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mesmo ausente a cláusula geral da boa-fé, julgue o caso “aplicando o princípio da
boa-fé, mas com outra denominação” [...]. O que é mais grave, porém, é que o
recurso a tantos princípios diversos impede a promoção, progressiva, de
“tipicizações” normativo-jurisprudenciais de comportamentos contrários à boa-fé,
através da formação, via jurisprudencial, de grupos e casos “típicos” de sua
aplicação. Daí a razão pela qual se torna por vezes difícil perceber, na análise da
jurisprudência brasileira, a operatividade da boa-fé objetiva. A ausência de cláusula
geral, dificultando e assistematizando as decisões judiciais, conduz a que, não
raramente, não se perceba, com clareza, qual é a fonte dos deveres que são impostos
às partes. Estes, contudo, manifestam-se e são efetivamente declarados em sede
judicial, ainda que mascaradamente. Enquanto fonte normativa, a boa-fé objetiva
desempenha funções técnicas específicas, que se evidenciam em cada relação
contratual concretamente considerada.
O advento do novo Código Civil, todavia, não foi suficiente para eliminar estas
erronias, cabendo ao intérprete a tarefa de sistematização dos conceitos e dos efeitos de cada
um dos novos institutos, entre eles as cláusulas gerais da boa-fé objetiva e da função social do
contrato
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, enfronhadas em artigos vizinhos do novo Código.
Alguns critérios de conexão e distinção devem ser postos em tablado para a
melhor aplicação dessas cláusulas frente à diversidade dos casos concretos que se apresentam
no cotidiano.
Nesse sentido, importa abordar o fenômeno da funcionalização dos institutos
jurídicos, mormente dos de direito privado, aspecto novidadeiro e desafiador à ciência
jurídica, pois:
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Ives Gandra Martins (2003, p. 340-341), numa perspicaz análise da função social do contrato, não o considera
como instituto novidadeiro no ordenamento jurídico brasileiro, e com efeito, interpreta: “[...] o art. 421 do CC
apenas como uma explicitação de ‘princípio implícito’ já constante do texto anterior, sendo decorrência de
idêntico princípio veiculado por textos constitucionais anteriores sobre a função social da propriedade. Em outras
palavras, estando as relações econômicas alicerçadas nos pilares do ‘contrato’ e da ‘propriedade’, que devem ser
respeitados, o que fez o legislador ordinário foi estender a ‘função social’ da propriedade àquela do contrato, sem
nenhuma redução dos demais princípios que o regem, ou seja, da autonomia da vontade, da imprevisão, da
lealdade, boa-fé, equilíbrio entre as partes contratantes, só podendo, pela via de simples interpretação, alargar
conceitos de estabilidade, jamais de desagregação. Da mesma forma que o texto constitucional ao cuidar da
propriedade faz menção a sua função social, sem esmaecer o direito de propriedade assegurado expressamente
no caput do art. 5º da Lei Maior, convencido estou de que a novidade pretendida no art. 421 do CC não pode
ultrapassar os limites dos demais princípios que regem a ordem jurídica dos contratos, prevalecendo, entre
outros, o princípio do pacta sunt servanda, como alicerce mais relevante das pactuações privadas. É de lembrar
que os contratos leoninos são condenados desde priscas eras, pois não cumprem a função social do contrato,
nada obstante a inexistência de texto expresso, no direito civil anterior, com a utilização da expressão ‘função
social’. Não vejo na ‘inovação’, inovação. Apenas explicitação de algo que deflui do próprio texto constitucional
e que não pode ser examinado sem os temperos próprios da hermenêutica jurídica, para que a segurança e a
certeza do Direito não sejam abaladas. A renovação é, portanto, a meu ver, apenas explicitação de aspecto que
sempre, no direito contemporâneo, norteou as formulações contratuais e que a cláusula rebus sic stantibus, de
certa forma, já introduzira, pela imprevisibilidade e inevitabilidade de fatos não examinados quando das
pactuações. A inovação, portanto, data, pelo menos, do Código de Hammurabi, em que função social do contrato
estava valorizada no cânone 48, coluna XIV, assim redigido: ‘XIV - § 48. Si un señor tiene una deuda y (si) el
dios Adad ha inundado su campo y ha destrozado la cosecha, o bien (si) a causa de la sequía, el campo no
produce grano, en ese año no entregará grano a su acreedor; cancelará su tablilla (de contrato) y no pagará el
interés de ese año’. Nada a acrescentar sobre a função social prevista pelo Codificador sumeriano, há quase
4.000 anos”.