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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Paulo Sérgio Velten Pereira
A exceção do contrato não cumprido fundada na violação de dever lateral
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2008
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Paulo Sérgio Velten Pereira
A exceção do contrato não cumprido fundada na violação de dever lateral
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre em
Direito, na área de concentração de Direito das Relações
Sociais, subárea de Direito Civil, pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do
Professor Doutor Renan Lotufo.
SÃO PAULO
2008
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Paulo Sérgio Velten Pereira
A exceção do contrato não cumprido fundada na violação de dever lateral
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
Dissertação defendida e aprovada em
: _______ / _________ / __________
À Cremilda Maria, vó, mãe, tudo (in
memoriam).
A Manoel Gomes Pereira, pai, amigo e
incentivador.
À Maria Paula, filha querida, com quem um
dia pretendo purgar a minha mora.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Renan Lotufo, pela segura orientação e atenção dispensadas desde o
primeiro dia de aula, assim como pela disponibilização de sua biblioteca para pesquisa.
Ao fraterno amigo Ítalo Fábio Gomes de Azevedo, pelo permanente incentivo na
busca do aprimoramento profissional.
Aos ex-companheiros de antigas batalhas Fred Dominici, Eduardo Cavalcanti,
Gutemberg Braga e Figueiredo Neto, pelo espírito de equipe e sacrifício.
Ao Professor Rodrigo Xavier Leonardo, pelas importantes sugestões apresentadas.
Às incansáveis Daniela Busa e Thaís Viegas, pela importantíssima ajuda no árduo
trabalho de pesquisa, debates e revisão de textos.
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo investigar a possibilidade de argüição da exceção do contrato
não cumprido diante da violação de dever lateral de conduta. A escolha do problema se deu a
partir da constatação de que o sistema aberto do Código Civil brasileiro de 2002 conferiu ao
intérprete a possibilidade de colmatar cláusulas gerais do ordenamento com valores
fundamentais da Constituição e da própria Lei civil, concretizando-os nas relações
interprivadas. Entre essas cláusulas gerais desponta a da boa-fé objetiva, de observação
obrigatória pelos contratantes. Através da pesquisa da doutrina nacional e estrangeira sobre as
transformações operadas no direito das obrigações, chegou-se à conclusão que da cláusula
geral da boa-fé objetiva decorrem deveres laterais que conferem complexidade à relação
obrigacional, alargando a base do inadimplemento e gerando efeitos que vão além do simples
dever de indenizar e da possibilidade de resolução do contrato. A principal hipótese de
trabalho é que a função reativa da cláusula geral da boa-fé objetiva constitui fundamento para
restringir direito subjetivo e controlar o abuso do contratante que, na relação bilateral, exige
dever de prestação sem antes cumprir dever lateral, com o que se nova abordagem ao
instituto da exceptio non adimpleti contractus, inclusive, como instrumento de preservação do
equilíbrio e da justiça contratuais.
Palavras-chave: Boa-Fé Objetiva. Deveres Laterais. Exceção do Contrato não Cumprido.
ABSTRACT
This research aims the investigation of the possibility of arguing the exception of the breach
of contract (exceptio non adimpleti contractus) due to the violation of the lateral duty of
conduct. The choice for preparing this study has been motivated by the verification that the
open system of the Brazilian Civil Code of 2002 has given the interpreter the possibility of
filling the legislation’s general clauses with the fundamental values of the Constitution and
the civil Law, in a way that those values become applied in interprivate relations. Among the
general clauses, one of great importance is the objective good-faith clause, which constitutes a
mandatory clause for the contracting parties. By researching the national and foreign literature
concerning the changes in the field of the Law of Obligations, it has been concluded that from
the general clause of objective good-faith derives the lateral duties, which grants complexity
to the obligational relations, widens the base of default and generates effects that move
beyond the mere duty to compensate damages and the possibility of termination of contract.
The study’s main hypothesis is that the reactive function the general clause of objective good-
faith constitutes enough grounds to restrict the subjective right and control the abuse of a
contract party who demands the other party’s fulfilment of the contract without even
respecting the lateral duties in the first place. This hypothesis gives a new approach to the
exceptio non adimpleti contractus, highlighting the institute as an instrument for preserving
the contractual balance and justice.
Keywords: Objective Good-faith. Lateral Duties. Exception of the Breach of Contract.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BGB - Bürgerliches Gesetzbuch
§ - parágrafo
art. - artigo
arts. - artigos
etc. - e outras coisas
cf. - confiram (latim)
CF/1988 - Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
LICC - Lei de Introdução ao Código Civil
CC/1916 - Código Civil brasileiro de 1916
CC/2002 - Código Civil brasileiro de 2002
CPC - Código de Processo Civil
n. - número
Parág. ún.
- Parágrafo único
pVV - positive Vertragsverletzung
s.d. - sem data
ss. - subseqüentes
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 10
CAPÍTULO 1 - A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA......................... 14
1.1 Os valores fundamentais do Código Civil brasileiro de 2002............................... 15
1.2 O sistema aberto do Código Civil brasileiro de 2002............................................ 20
1.2.1 Os princípios gerais de direito................................................................................. 23
1.2.2 As cláusulas gerais.................................................................................................. 26
1.2.3 Os conceitos legais indeterminados.........................................................................
31
1.2.4 Os conceitos legais determinados pela função........................................................ 33
1.3 A boa-fé objetiva e subjetiva................................................................................... 34
1.3.1 A boa-fé objetiva como princípio e como cláusula geral........................................ 39
1.3.2 A boa-fé objetiva, a autonomia privada e a Constituição........................................
45
1.3.3 A boa-fé objetiva e a função social do contrato...................................................... 57
1.3.4 A boa-fé objetiva e o abuso de direito..................................................................... 67
1.3.5 A boa-fé objetiva e as fases do contrato.................................................................. 70
1.3.6 A boa-fé objetiva e os direitos fundamentais.......................................................... 78
1.4 A crise do contrato....................................................................................................
84
1.5 Os deveres laterais ou anexos.................................................................................. 90
1.5.1 Deveres de proteção................................................................................................ 94
1.5.2 Deveres de lealdade e cooperação........................................................................... 95
1.5.3 Deveres de informação e esclarecimento................................................................ 98
CAPÍTULO 2 - ASPECTOS DO INADIMPLEMENTO........................................... 103
2.1 O inadimplemento absoluto..................................................................................... 104
2.2 A mora....................................................................................................................... 112
2.3 A questão do adimplemento imperfeito..................................................................
124
2.4 A polêmica violação positiva do contrato no Direito brasileiro........................... 129
CAPÍTULO 3 - A EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO..................... 138
3.1 Pressupostos.............................................................................................................. 141
3.1.1 A relação obrigacional sinalagmática......................................................................
142
3.1.2 A necessidade do inadimplemento.......................................................................... 149
3.1.3 A simultaneidade das prestações............................................................................. 153
3.1.4 A imprescindibilidade da boa-fé............................................................................. 155
3.2 As formas de argüição da exceptio non adimpleti contractus................................ 158
3.2.1 Argüição como exceção material dilatória.............................................................. 158
3.2.2 Argüição como defesa extrajudicial........................................................................ 161
3.2.3 Argüição como demanda reconvencional............................................................... 162
3.3 Exceptio e cumprimento incompleto, defeituoso ou inexato da prestação.......... 163
3.4 Os efeitos da exceptio non adimpleti contractus......................................................
165
3.4.1 Efeitos entre as partes da relação obrigacional........................................................
166
3.4.2 Efeitos entre terceiros.............................................................................................. 167
CAPÍTULO 4 - A ARGÜIÇÃO DA EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO
CUMPRIDO FRENTE À QUEBRA DE DEVER LATERAL...................................
171
4.1 A contratualização dos deveres laterais................................................................. 171
4.2 A função reativa da cláusula geral da boa-fé objetiva.......................................... 177
4.3 A argüição da exceptio em face da violação de dever lateral................................ 181
CONCLUSÃO.................................................................................................................
192
REFERÊNCIAS............................................................................................................... 197
INTRODUÇÃO
O direito privado vive momento histórico singular. Dele aproximaram-se valores
como a ética, a dignidade da pessoa humana e a boa-fé. Sua constitucionalização conferiu
força normativa a esses valores, que passaram a compor a pauta da vida de relações, em geral,
e do mundo dos negócios, em particular.
Nesse ambiente, não mais espaço para a vetusta dicotomia direito público-
direito privado. O direito é um e sua razão de existir é a pessoa humana, começo e fim de
todas as coisas. Despatrimonializado, funcionalizado e ético, esse novo direito não se confina
mais a compartimentos. Destina-se à realização do indivíduo em todas as suas
potencialidades.
Tal fenômeno impõe aos atores públicos e privados um novo padrão de
comportamento a quando do concerto de seus interesses, parâmetro que, no Brasil, é
disciplinado com maior amplitude no Código Civil brasileiro de 2002, diploma fundado em
valores de eticidade, socialidade e operabilidade, além de estruturado num sistema aberto,
pós-positivista, composto de princípios, cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados,
que conferem mobilidade ao sistema.
Com isso, permite-se a constante evolução do ordenamento, sem a necessidade de
nova produção legislativa, ordinariamente demorada e repleta de percalços.
A abertura e a mobilidade do sistema são de todo recomendável nos dias atuais,
pois o direito, empenhado em acompanhar a evolução da sociedade, deve ser compreendido
como um organismo vivo e muito peculiar, que se atualiza no dia-a-dia por intermédio do
esforço laboral dos intérpretes, construtores da norma do caso concreto.
Esse o cenário em que se apresenta o estudo acerca da argüição da exceptio non
adimpleti contractus em face do inadimplemento dos deveres laterais de conduta.
O marco teórico desse trabalho localiza-se no Direito Civil, de perfil
constitucional, cujos preceitos informam e conformam o movimento da pesquisa.
Aqui, parte-se da hipótese de que a argüição da exceptio non adimpleti contractus
afigura-se como possibilidade de defesa do contratante que se torna inadimplente por não
obter da outra parte o adimplemento dos deveres laterais de conduta decorrentes da incidência
da cláusula geral da boa-fé objetiva em todas as fases da relação obrigacional, ou seja, do
instante em que instauradas as tratativas ao estágio que sucede a execução do contrato.
10
Além de apresentar uma análise sobre a argüição da exceção do contrato não
cumprido, tendo por fundamento a quebra de deveres laterais – objetivo geral da pesquisa –, o
presente estudo impõe um exame dos valores fundamentais do Código Civil brasileiro de
2002, a partir dos quais será esquadrinhada a boa-fé objetiva, notadamente enquanto norma de
limitação ao exercício de direitos subjetivos.
Por outro lado, o trabalho não se furta da tarefa de analisar a complexidade das
relações bilaterais e a conseqüente ampliação das possibilidades de uso da exceptio como
instrumento de reequilíbrio das relações contratuais.
Tendo esses objetivos em mira é que se desenvolve o estudo orientado da boa-fé,
abordando sua dupla característica, objetiva e subjetiva, seu enquadramento como princípio e
cláusula geral expressamente abrigada na nova legislação de direito comum, sua inserção na
perspectiva constitucional como instrumento de concretização de inúmeros valores
fundamentais e sua aplicação no espaço de autonomia privada, não se descurando de
relacionar a boa-fé com outros institutos do direito privado atual, como a função social dos
contratos e o abuso de direito.
Reconhece-se que nem todas as dificuldades serão superadas pela centralização de
valores como a boa-fé, pois parcela considerável dos problemas que atualmente assolam os
contratos decorre menos de interpretação e aplicação do direito e mais da própria estrutura
complexa da sociedade pós-moderna que atravessa uma crise de confiança sem precedentes.
Assim, investigam-se as razões da “crise do contrato”, examinando eventual
conexão com a chamada “crise de confiança”, que permeia as relações sociais dos dias de
hoje, quase todas fundadas na aparência.
A constatação de que a confiança precisa ser revitalizada como forma de
superação da crise do contrato imporá o reconhecimento da confiança como vetor ou liame de
contratação, do qual advirão “deveres laterais” de conduta que, ao lado dos deveres de
prestação, comporão um conjunto de interesses envolvidos na relação obrigacional, que
passará a ser definida como entidade ou relação complexa.
Em seguida, organizam-se os deveres laterais em três grandes grupos: deveres de
proteção; deveres de lealdade e cooperação; e deveres de informação e esclarecimento;
embora se saiba que não constituem rol taxativo, eis que outros inúmeros deveres laterais
podem, de igual modo, decorrer da função criadora da cláusula geral da boa-fé objetiva.
Compreendendo a relação obrigacional como relação complexa, dotada de
deveres de prestação (que têm como fonte a vontade das partes) e de deveres laterais ou
anexos de conduta (cuja fonte é a cláusula geral da boa-fé objetiva), apresenta-se uma análise
11
das tradicionais figuras de incumprimento contratual (inadimplemento absoluto e mora),
assim como do adimplemento imperfeito, sem deixar de abordar o instituto da violação
positiva do contrato.
Tal instituto de origem germânica, positive Vertragsverletzung (pVV), base inicial
da pesquisa, impôs dificuldades para o desenvolvimento do estudo mercê da polêmica gerada
em torno da sua aplicação ao direito brasileiro, que dispensa à mora, um nível de
complexidade distinto do conferido pelos demais ordenamentos da família romano-
germânica.
Neste trabalho defende-se também que a cláusula geral da boa-fé objetiva, à
medida que amplia o conteúdo da relação obrigacional, permite alargar a base do
inadimplemento e conceber a violação positiva do contrato como uma terceira hipótese de
descumprimento obrigacional, restrita, contudo, aos casos de descumprimento de deveres
laterais de conduta, moldes em que, aliás, a “Lei para a modernização do Direito das
obrigações” (Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts) tratou do tema na Alemanha, ao
promover substanciosas alterações da Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), entre os anos de 2001
e 2002, colhendo a experiência jurídica desenvolvida ao longo do século XX.
Com o propósito de fincar uma das premissas do tema, desenvolve-se o estudo do
instituto da exceção do contrato não cumprido, analisando seus pressupostos, formas usuais
de argüição, a aplicação diante do adimplemento imperfeito e seus efeitos perante as partes e
terceiros na relação.
Revisitada a exceptio, ingressa-se então na parte final deste labor, onde se sustenta
que o atual sistema aberto de direito privado brasileiro, com o adequado desenvolvimento da
cláusula geral da boa-fé objetiva, abriga a possibilidade de argüição da exceção de contrato
não cumprido em face da violação de dever lateral de conduta, de maneira que o contratante
que violou o referido contrato fique, por sua vez, impedido de exigir o cumprimento de dever
de prestação até observar os princípios de probidade e boa-fé objetiva, com o que a exceção
manterá o seu caráter de defesa material dilatória.
O fundamento jurídico para essa nova forma de utilização do instituto originário
do direito canônico reside na contratualização dos deveres laterais e na outorga de função
reativa à cláusula geral da boa- objetiva, cuja força inibidora de condutas incompatíveis
com os deveres de lealdade e cooperação, entre outros, permite submeter ao perímetro da
relação obrigacional um maior leque de controvérsias, ampliando a tutela contratual.
Ao fim e ao cabo, este esforço de pesquisa objetiva demonstrar que a argüição da
exceptio ante a violação de dever lateral derivado da boa-fé pode constituir instrumento apto a
12
recompor o quadro negocial e permitir o restabelecimento dos princípios de equilíbrio e
justiça contratuais rompidos pela conduta da parte que, a um tempo, exige o cumprimento
de dever de prestação, mas cujo comportamento marginaliza os deveres laterais de
observância obrigatória.
Para percorrer este caminho, utilizou-se o método indutivo de abordagem e o
método de procedimento monográfico, tendo sido empregada como técnica a pesquisa
bibliográfica e legislativa.
Este trabalho, convém frisar, não tem a pretensão de apresentar soluções
definitivas à novidadeira questão que a pesquisa impôs-se. Também não traz qualquer verdade
absoluta e nem expõe posições herméticas, eis que não representa um produto pronto e
acabado.
O propósito desta dissertação é contribuir na abertura de novos horizontes
jurídicos, teoréticos e pragmáticos, visando à sedimentação de um sistema de direito privado
pautado, essencialmente, pelo valor constitucional da dignidade da pessoa humana.
13
CAPÍTULO 1 - A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA
Observado no direito romano clássico, o sentido de boa-fé decorre da idéia de
fides, associada à noção de garantia, de confiança e a outros institutos correlatos, como a
ética, a eqüidade e a justiça.
Inicialmente impregnada de conotações religiosas e morais, a fides, qualificada
como bona fides, assume características jurídicas, impactando o universo das relações
obrigacionais com a projeção de valores éticos para os negócios.
A riqueza semântica da fides, e conseqüentemente da bona fides iudicia, ao tempo
em que traz importante vetor para a ordem privada, torna árdua e complexa a tarefa
legiferante de encapsular na lei todo o conteúdo polissêmico da boa-fé.
Nesse contexto, a cnica legislativa contemporânea, buscando conferir
mobilidade ao sistema, insere na lei formulações propositalmente genéricas e abstratas,
assegurando ao intérprete e ao aplicador do enunciado normativo a possibilidade de preencher
as lacunas com valores ético-jurídicos do seu tempo, atualizando conceitos, sem a necessidade
de uma constante reforma legislativa.
Com origem no direito germânico, essa técnica legislativa permite a apropriação
de valores do Período Clássico, como a fides, e sua aplicação na superação de problemas
atuais.
Fala-se, então, na cláusula geral da boa-fé objetiva como regra de ordem pública e
fonte criadora de direitos a ser concretizada pelo juiz no âmbito das relações obrigacionais, de
maneira a permitir soluções jurídicas que, sem desprezo da técnica, aproximam-se do sentido
do justo, do equânime e do ético.
A elaboração de um Código Civil compatível com a complexidade social dos dias
que correm não poderia descurar da técnica de cláusulas gerais, nomeadamente da cláusula
geral da boa-fé como enunciado instrumentalizador das relações contratuais.
Neste capítulo, observar-se-á como o legislador brasileiro do CC/2002 utilizou-se
do recurso das cláusulas gerais, em particular no direito das obrigações, permitindo o
exercício de uma função criadora pelos juízes, por vezes inspirados em valores fundamentais,
quando diante das inúmeras possibilidades de concerto da vontade dos atores privados.
14
1.1 Os valores fundamentais do Código Civil brasileiro de 2002
Os enunciados normativos são proposições vinculadas a motivos e finalidades
justificadoras de sua criação, visando à realização dos objetivos considerados fundamentais e
revelados através de valores que constituem a ética de determinada sociedade.
Para Fernando Noronha (2003, p. 107), “os valores são ideais éticos e de política
social que fazem parte da cultura de cada sociedade, são neste sentido ‘verdades básicas’, mas
que se transformam em verdades jurídicas quando incorporados por princípios jurídicos”.
Portanto, são os valores proposições básicas apresentadas como qualidades ideais
determinantes do comportamento individual e social que atuam como fundamento da ordem
jurídica
1
. Disso resulta que o Direito é:
[...] um instrumento de controle social constituído de normas que representam a
escolha que o legislador faz entre diversos valores, como resposta à necessidade de
solução dos conflitos ou de organização social. Justifica-se, portanto, o direito na
sua existência e nos seus efeitos, pela realização dos valores que a sociedade
estabelece como finalidade básica do ordenamento jurídico e que, por isso mesmo,
lhe servem de fundamento. O direito é, assim, uma realidade cultural e histórica que
somente se compreende com a referência e o conhecimento dos valores que
constituem a sua finalidade e a razão de ser (AMARAL, 2003a, p. 14).
Sob este prisma, o trabalho da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil,
composta, em 1969, por notáveis juristas coordenados por Miguel Reale, desenvolveu-se com
amparo determinante nos valores de eticidade, socialidade e operabilidade, convolando-se em
projeto de lei que, após tramitar por quase três décadas no Congresso Nacional, resultou na
edição da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, atual Código Civil brasileiro
2
.
Ao longo de todo o século XX:
[...] o paradigma civilístico da modernidade ainda sobejava, confinando o direito
privado a exercer papel de técnica e ideologia do capitalismo mercantilista. O
Código Civil de 1916, para além dessa razão de ordem político-econômica,
demonstrava apego aos fundamentos jurídicos do positivismo. Seus princípios
informadores formalismo, individualismo e patrimonialismo não deixavam
dúvidas acerca do seu comprometimento político-ideológico. A interface entre os
1
Norberto Bobbio (1992, p. 26) registra três modos de fundar os valores: “deduzi-los de um dado objetivo
constante, como, por exemplo, a natureza humana; considerá-los como verdades evidentes em si mesmas; e,
finalmente, a descoberta de que, num dado período histórico, eles são geralmente aceitos (precisamente a prova
do consenso)”.
2
Azevedo (2003, p. 33) recorda o fato histórico ocorrido em 15 de agosto de 2001, quando “a mara dos
Deputados aprovou, por votação simbólica sem registro de voto no painel eletrônico, o novo Código Civil, que
tramitava havia vinte e seis anos no Congresso Nacional”.
15
direitos civis e o direito civil estava marcada pelo estigma autoritário do império da
propriedade, plena e absoluta (BARROSO, 2007a, p. 120).
Nessa mesma linha, Gustavo Tepedino (2004, p. 219) destaca o perfil do Código
Civil brasileiro de 1916:
A nossa primeira codificação, como todos sabem, destinava-se a proteger uma certa
ordem social, erguida sob a égide do individualismo e tendo como pilares, nas
relações privadas, a autonomia da vontade e a propriedade privada. O legislador não
deveria interferir nos objetivos a serem alcançados pelo indivíduo, cingindo-se a
garantir a estabilidade das regras do jogo, de tal maneira que a liberdade individual,
expressão da inteligência de cada um dos contratantes, pudesse se desenvolver
francamente, apropriando-se dos bens jurídicos, os quais, uma vez adquiridos, não
deveriam sofrer restrições ou limitações endógenas. Garantia-se assim, o tráfego
jurídico e a propriedade privada, esta considerada como expressão da liberdade e da
personalidade humanas.
O reconhecimento jurídico da necessidade de consolidar uma base ética às
instituições e às relações entre particulares motivou a Comissão Revisora e Elaboradora do
Código Civil a inaugurar um sistema civil emancipatório, capaz de fazer face aos avanços e
complexidades configurados pela sociedade pós-moderna. Em vista disso, natural que a Lei
civil brasileira abandonasse a visão oitocentista outrora predominante, fundada no formalismo
jurídico, no individualismo e no patrimonialismo exacerbados, redirecionando seu foco para
as relações sociais e humanas, consagrando o fenômeno da repersonalização, fundamento
antropocêntrico do Direito Civil para eclipsar os dogmas do passado
3
(FACHIN, 1998).
Consistindo o Direito Civil no direito comum das pessoas que vivem em
sociedade, relacionam-se entre si, assim como com os bens patrimoniais economicamente
apreciáveis, sobreleva conferir sentido ético à tutela dessas relações, enaltecendo os valores
morais e de correção de conduta, a ponto de elevá-los à categoria de dever jurídico.
Para tanto, Francisco Amaral (2003a, p. 99, grifo do autor) assevera:
[...] a eticidade privilegia os critérios ético-jurídicos aos critérios lógico-formais no
processo de realização do direito [...]. Implica isso um maior conhecimento teórico
do direito, na medida em que uma das funções da doutrina é precisamente auxiliar o
Juiz e o legislador na criação normativa, e também, um maior grau de poder e de
responsabilidade do Juiz, chamado a não aplicar o direito, mas a criar o direito para
3
Caio Mario da Silva Pereira (2008) destaca que: “O Direito Civil do século XXI é constitucionalizado, com
forte carga solidarista e despatrimonializante, em claro reconhecimento da maior hierarquia axiológica à pessoa
humana – na sua dimensão do ‘ser’ – em detrimento da dimensão patrimonial do ‘ter’. O fenômeno da
despatrimonialização, no âmbito das situações jurídicas sob a égide do Direito Privado, denota uma opção que,
paulatinamente, vem se demonstrando em favor do personalismo superação do individualismo e do
patrimonialismo superação da patrimonialidade como fim de si mesma, do produtivismo, antes, e do
consumismo, depois como valores que foram fortificados, superando outros valores na escala hierárquica de
proteção e promoção do ordenamento jurídico”.
16
o caso concreto. Desse modo, o novo código confere ao Juiz o o poder para
suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de
conformidade com valores éticos. A referência a este princípio pelo legislador
demonstra a sua não aceitação do dogma da plenitude da ordem jurídica, vendo-a
como um sistema aberto, flexível e lacunoso, donde a necessidade de recurso à
integração e a conseqüente importância dos princípios jurídicos.
Esse desiderato é percebido em várias disposições do Código Civil brasileiro,
entre as quais a do art. 113, da Parte Geral, que estipula o dever de interpretar os negócios
jurídicos conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Para Renan Lotufo (2003c, p. 531) essa norma constitui o “pórtico de eticidade”
da nova Lei civil, regra “matriz e motriz” de todo o ordenamento, à medida que nasce e se
espraia por todo o Código, pois:
[...] o princípio não deixa de ser, antes de tudo, uma idéia matriz e uma idéia motriz.
É matriz porque é a fonte, é a sede inaugural de toda uma série de disposições
normativas subseqüentes dele decorrentes e motriz, porque o princípio é que serve
de base e alimenta todas essas disposições, e, em razão desses princípios, é que se
divisa a construção de um sistema de direito.
A valorização do princípio ético é, do mesmo modo, consagrada nos arts. 187 e
422 do CC/2002. O primeiro, pune o titular de um direito que o exerce de maneira abusiva
contra os limites impostos pelos fins econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
O segundo, exalta os princípios de probidade e os deveres de conduta, como os de lealdade e
confiança, de observação imprescindível para a normalidade do tráfico jurídico, doravante
presidido não pela intenção ou pela vontade declarada, mas, sobretudo, pela conduta dos
contratantes.
E vai além. A boa- encontra-se presente em inúmeras outras disposições do
Código, como nas relativas aos contratos de seguro (art. 765 e ss.), à promessa de recompensa
(art. 856, Parág. ún.), ao pagamento indevido (art. 879, Parág. ún.), à venda sob reserva de
domínio (art. 523), ao mandato (art. 689), entre outros.
A eticidade também permeia todo o direito de empresa, seja por incidência das
regras do direito das obrigações, seja nas hipóteses de tutela das relações entre
administradores e sócios da sociedade (art. 1.011), em que o propósito de cooperação para o
alcance do fim econômico revela-se em máxima extensão.
Embora sem propósito de lucro, o espírito associativo também está presente nas
relações familiares que, por isso, são igualmente submetidas ao valor eticidade, registrando
Clóvis do Couto e Silva (2007a) que os deveres decorrentes da boa-fé podem constituir o
próprio conteúdo dos deveres principais, como nos casos acima assinalados, mas também
17
podem estar expressos como deveres duradouros de fidelidade, abrangendo e justificando toda
a relação jurídica, como no contrato formador da relação de família.
O valor socialidade, por sua vez, orientou o legislador no sentido de superar o
individualismo, nota dominante no Código Civil de 1916, fazendo prevalecer os valores
coletivos sobre os individuais, sem, contudo, desmerecer o valor fundante da pessoa humana.
Esse valor reverbera com intensidade nos âmbitos do contrato, da propriedade e da posse.
Como regra de abertura do Título V do Livro I da Parte Especial do Código Civil,
estabelece o art. 421 que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato, relativizando o princípio res inter alios acta
4
, segundo o qual os
efeitos do contrato limitam-se à esfera dos próprios contratantes.
A relevância da cláusula da função social do contrato, derivada do valor
socialidade, é tamanha no direito privado atual, que juristas da lavra de Lotufo (2004)
advogam a tese de que a mesma atuaria como quarto requisito de validade do negócio
jurídico, a ser inserida ao lado do agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou
determinável; e da forma prescrita ou não defesa em lei.
Na lição de Daniel Boulos (2006, p. 90-91):
A sociabilidade é uma característica marcante do Código Civil brasileiro, bastando
para tanto verificar que institutos básicos e elementares do Direito Civil dois mil
anos dentre eles, por exemplo, o contrato e a propriedade –, a par da função
individual que eles sempre possuíram e desempenharam, passaram a ser
considerados dentro de um contexto socializante do Direito, donde se infere a
necessidade do atendimento à função que tais institutos devem ter. [...] a propriedade
privada continua sendo garantida pelo Direito, mas hoje se encontra limitada por
uma série de normas de Direito Público e de Direito Privado, que procuram
conformar o seu exercício aos anseios sociais de justiça e segurança. Da mesma
forma, o contrato, enquanto instrumento fundamental no processo de trocas
econômicas – de bens e serviços – de um país civilizado, continua a gozar de
proteção do Direito, que, no entanto, ao contrário de antigamente, hoje exige que as
operações econômicas que eles engendram se dêem em um ambiente seguro e,
sobretudo, justo.
Sendo certo que a propriedade obriga, não é dado ao proprietário exercer o seu
direito em dissonância com as finalidades econômicas e sociais da coisa, devendo preservar
bens de interesse coletivo, como a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e
o patrimônio histórico e artístico, sem descuidar da obrigação de evitar a poluição do ar e das
águas. Do mesmo modo, é vedado ao proprietário agir de maneira emulativa, com o
propósito de prejudicar terceiros.
4
Expressão derivada da regra do direito romano res inter alios acta allis neque nocere neque prodesse potest (o
que foi negociado entre as partes não pode prejudicar nem beneficiar terceiros).
18
Tudo isso sobressai do art. 1.228 do CC/2002, em apreço ao valor socialidade,
que também vai se fazer presente na proteção da posse exercida por mais de cinco anos e de
boa-fé, por considerável número de pessoas que no imóvel houverem realizado obras e
serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
Também inspirador dos dispositivos do Código é o valor operabilidade
5
, que
orienta ao aproveitamento e utilização dos enunciados normativos, que devem primar pela
clareza e objetividade para serem bem compreendidos e corretamente aplicados. Com efeito,
toda hipótese legal deve possuir um alcance prático, ou seja, ser de fácil interpretação e
aplicação, de modo a conferir o máximo proveito ao seu destinatário, regra esta que merece
ser considerada com maior ênfase no plano do direito comum. O valor operabilidade situa-se
no campo da hermenêutica filosófica e jurídica, funcionando como estrutura de concretização
da norma adequada ao caso concreto.
Por isso, concede-se ao intérprete, segundo Amaral (2003b, p. 197), larga margem
de criação por meio de princípios, cláusulas gerais, usos do lugar e costumes, e, dessa opção
metodológica:
[...] resulta uma nova e saudável margem de criação para o intérprete, chamado a
participar não mais como agente passivo de um mero processo de lógica dedutiva,
mas sim, como participante ativo do processo de nomogênese jurídica, para resolver
conflitos de interesses entre indivíduos concretos e em situações jurídicas concretas.
É o que, a propósito, registra Miguel Reale (2005), ao conceituar a operabilidade
como o estabelecimento de soluções normativas visando à facilitação da interpretação e
aplicação pelo operador do direito.
No atual Código, o valor operabilidade inspirou uma série de disposições, entre as
quais as que tratam dos institutos da prescrição e da decadência, organizados de maneira
conceitual e autônoma. Assim, o Código Civil pátrio arrolou nos arts. 205 e 206 todos os
casos de prescrição, com significativa redução de prazos para muitos deles
6
, deixando as
hipóteses de decadência para regulamentação específica de cada categoria jurídica, em sua
grande maioria, na Parte Especial da Lei civil. Com isso, o legislador de 2002 pôs fim a uma
intrincada discussão sobre os aspectos e aplicação desses institutos.
5
Para Boulos (2006), esse valor traduz-se na conveniência de tratar os institutos jurídicos da forma mais técnica
possível.
6
O fenômeno inspirou Lotufo (2004) a vislumbrar outro valor implícito no ordenamento, o qual denominou
atividade, que introduz os deveres de vigilância e atuação na vida de relações, consagrando a parêmia
dormientibus non succurrit jus.
19
O sentido de operabilidade dos enunciados normativos do CC/2002 também se
apresenta nos novos delineamentos dos conceitos de associações e sociedades, sendo as
primeiras consideradas entidades de fins não lucrativos, e as segundas, organizações que
buscam objetivos econômicos, realizados de maneira organizada na forma de empresa, cujo
conceito foi igualmente particularizado no Código.
Eticidade, socialidade e operabilidade, como valores fundamentais, conferem
novo sentido e dimensão à Lei civil, reconhecendo a evolução operada na estrutura da
sociedade brasileira a partir da segunda metade do século XX, esclarecendo Reale (2005, p.
46) que esses valores fundamentais condicionam os preceitos do novo Código Civil,
atendendo-se às exigências de boa-fé e probidade em um ordenamento constituído por normas
abertas, susceptíveis de permanente atualização. Para Carin Prediger (2002, p. 170):
A constatação dessas diretrizes orientadoras do novo Código Civil nos leva ao
encontro dos ensinamentos de Canaris, que entende que as características da
abertura e da mobilidade integram a noção de sistema de Direito, esta última
assegurada num sistema aberto pela existência e emprego das cláusulas gerais, as
quais também possibilitam as erupções momentâneas da tópica dentro do sistema.
É sobre a abertura do sistema, cuja elaboração foi presidida por valores que
melhor representam o desenvolvimento cultural brasileiro, que se tratará no próximo item.
1.2 O sistema aberto do Código Civil brasileiro de 2002
Superada historicamente a discussão sobre a codificação ou não da Lei civil, com
a admissão da criação de microssistemas legislativos ao lado de um Código de direito comum
apto a oferecer segurança nas relações jurídicas, passou-se então, a tratar do melhor modelo
de Código a ser adotado: um modelo fechado e rígido, que definisse com máxima precisão os
elementos e pressupostos da lei, assim como as conseqüências de sua não observância; ou, um
modelo aberto, fundado apenas em cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados.
que transformar o juiz em boca da lei, tal como pretenderam os
revolucionários franceses
7
, não seria compatível com o atual estágio civilizatório e com a
7
Além dessa metodologia própria dos Comentadores do Código Napoleônico, contribuiu também para a redução
do poder criador da jurisprudência a doutrina da separação de Poderes apregoada por Montesquieu, que tinha
como princípios, dentre outros, a sujeição do juiz à vontade legislativa e à autonomia da vontade.
20
complexidade da vida moderna, optou-se por um sistema flexível e móvel, capaz de conferir
maior liberdade ao aplicador da lei frente à dinâmica da vida em sociedade.
De fato, se a completude do ordenamento está ligada à idéia de um sistema
fechado, a possibilidade da existência de lacunas que o próprio ordenamento não pode
solucionar leva ao reconhecimento do sistema aberto ou dotado de mobilidade [...]” que
permita preencher as lacunas deixadas pela lei (CALGARO, 2007, p. 117).
A partir da segunda metade do século XX, notadamente com o Pós-Guerra,
percebeu-se não haver mais lugar para leis fundadas em sistemas fechados e rígidos,
incapazes de acompanhar as rápidas mudanças operadas na sociedade da chamada pós-
modernidade, da alta tecnologia.
A concepção oitocentista do Direito Civil, em particular a do Código de
Napoleão, intentava estabelecer e prever todas e quaisquer situações pelas quais percorreria o
indivíduo, funcionando como centro do sistema jurídico (PREDIGER, 2002).
Assim, em uma regressão histórica, verifica-se que o sistema fechado alicerçou o
surgimento do Estado moderno, ao tempo em que contribuiu para a separação entre a
sociedade e o Estado.
Nesse contexto, Prediger (2002, p. 157-158) assevera:
A necessidade de contemplar os ideais da burguesia ascendente, em especial o da
igualdade, foi fator determinante para que a concepção vigorante à época redundasse
na elaboração de um modelo fechado de sistema de direito privado. À sociedade de
então, composta por cidadãos formalmente iguais, deveria corresponder um sistema
jurídico capaz de encerrar em si, de modo absolutamente ordenado segundo a razão
e as ciências exatas, todas as normas possivelmente aplicáveis também segundo o
preceito da igualdade formal ao curso da vida burguesa da época. Do contrário,
não apenas dar-se-ia um tratamento diferenciado – rejeitado pelos princípios da
revolução, ainda que pudesse significar a aplicação do que hoje entendemos por
igualdade material –, mas também não haveria a segurança do cidadão, no sentido de
ter a si aplicadas, tão-somente, as normas jurídicas conhecidas, livrando-o, assim se
supondo, de qualquer arbítrio jurídico. O direito privado da época assumiu a forma
de sistema fechado, caracterizando-se por ser exclusivo e excludente de tudo o mais
que não estivesse em si contido [...]. Assim, devia ele possibilitar o esgotamento, de
forma antecipada ou preordenada, das hipóteses conceituais às quais viriam a se
conformar os fenômenos da realidade, impedindo o casuísmo e, por conseqüência, o
raciocínio tópico.
A abertura do sistema autoriza a aplicação de outros mecanismos para a solução
de casos concretos, sempre considerando o sistema como resultado do pensamento lógico e
axiológico, que possibilita a adequação das normas aos fatos. Por certo:
A concepção de um sistema aberto permite que se componham valores opostos,
vigorantes em campos próprios e adequados, embora dentro de uma mesma figura
21
jurídica, de molde a chegar-se a uma solução que atenda à diversidade de interesses
resultantes de determinada situação (FRADERA, 1997, p. 43).
O sistema jurídico aberto possui duas acepções. A primeira tem por base uma
ordem jurídica construída casuisticamente, subsidiada pela jurisprudência e derivada da
aplicação da tópica, contrapondo-se ao sistema codificado, tido como um sistema fechado.
A segunda acepção tem a modificabilidade e a incompletude do direito codificado
como principais características desse sistema, permitindo a alteração e o aperfeiçoamento dos
valores fundamentais da ordem jurídica, a “evidenciar que o sistema surge aberto porque a
interpretação criativa é admissível” (PREDIGER, 2002, p. 160).
É esta última significação que melhor se coaduna com o sistema aberto do Código
Civil brasileiro, “cuja estrutura normativo-material se fez intencionalmente aberta, como
declarou Miguel Reale, para permitir a evolução e a obra da interpretação os necessários
completamentos quer da doutrina, quer da jurisprudência” (COELHO, 2003, p. 331). Por
isso, é imprescindível que o sistema jurídico permita o acompanhamento do devir social, sem
a necessidade de constante alteração do texto legal, com todas as dificuldades inerentes ao
processo legislativo. Num sistema jurídico aberto:
[...] são possíveis, tanto mutações na espécie de jogo concertado dos princípios, do
seu alcance e limitação recíproca, como também, a descoberta de novos princípios;
seja em virtude de alterações da legislação, seja em virtude de novos conhecimentos
da ciência do Direito ou modificações na jurisprudência dos tribunais (LARENZ,
1997, p. 693).
A idéia de abertura do sistema, também empregada no ordenamento civil
brasileiro de 1916, surgiu para permitir a concreção do direito e dos ideais de justiça por meio
da hermenêutica, através da interpretação da norma jurídica com apoio nos valores e
princípios fundamentais do ordenamento, inclusive, o constitucional.
Assim, esclarece Amaral (2003a, p. 98, grifo do autor):
Se o Código Civil de 2002 foi fiel ao sistema lógico-formal do Código de 1916,
mantendo, sempre que possível, as suas disposições e enriquecendo-o com as
contribuições da doutrina e da jurisprudência nacionais ao longo de oito décadas, o
que o torna legítima expressão da experiência jurídica brasileira no campo do direito
civil, sua principal característica é constituir-se em um sistema aberto, no sentido de
ser uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais. Esses
princípios compreendem, além dos princípios de direito civil, como o da liberdade, o
da igualdade e o da dignidade da pessoa humana, os critérios com que o legislador
quer orientar o intérprete na tarefa de construir a norma jurídica adequada ao caso
concreto que porventura se lhe apresente. Esses critérios, que o flexibilidade ao
sistema e exigem do jurista, advogado e magistrado, preparo e responsabilidade na
22
construção da norma, são os princípios da socialidade, da eticidade e da
operabilidade.
Além disso, “a abertura do sistema jurídico a elementos extra-sistemáticos, ou
seja, a fatores anteriormente não previstos pela norma, mas relevantes para a formação de
sentido e significado para sua aplicação se dá com a previsão normativa das cláusulas gerais”
(MIRAGEM, 2007, p. 181).
A valer, o sistema aberto é o mais apropriado ao Código Civil brasileiro,
concebido para não englobar todas as modalidades de relações da vida privada, tarefa que,
segundo Clóvis do Couto Silva (1997), seria inexeqüível, em razão da complexidade da vida
moderna e por negar a própria idéia de sistema.
Portanto, o ordenamento civil brasileiro, a exemplo dos diplomas europeus,
manteve o direito codificado, unificando o direito das obrigações (cível e comercial), mas, ao
mesmo tempo, adotou um sistema flexível, fundado em princípios e cláusulas gerais,
conceitos legais indeterminados
8
e conceitos legais determinados pela função, elementos
integrantes do ordenamento, sobre os quais se passará a discorrer.
1.2.1 Os princípios gerais de direito
Não estando positivados no sistema normativo ao qual sobrepairam, os princípios
são regras de conduta que atuam como bússola, auxiliando o Juiz na tarefa de interpretação e
aplicação do direito, assim como no preenchimento das lacunas.
Na insubsistência da analogia e do costume para a solução do caso, o magistrado
deve recorrer aos princípios gerais de direito, imanentes à ordem jurídica. Segundo Maria
Helena Diniz (2005, p. 464), trata-se de “diretriz para a integração de lacunas estabelecida
pelo legislador, o princípio é vago em sua expressão e reveste-se de caráter impreciso, uma
vez que o elaborador da norma não diz o que se deve entender por princípio”.
8
Gomes (2003, p. 15) leciona que as cláusulas gerais e os conceitos legais indeterminados “são esquemas
maleáveis, sem a rigidez de um ius strictum, que atribuem ao julgador larga margem de discrição na solução do
caso concreto”. E acrescenta: “Está definitivamente superada, no pensamento jurídico europeu a concepção que
reduzia a aplicação do Direito a mera atividade cognoscitiva, de tipo puramente lógico-dedutivo, mecânico ou
silogístico”.
23
Díez-Picazo e Gullón (2005a, p. 141) apontam que os princípios gerais de direito
têm relação próxima com os problemas trazidos ao ordenamento jurídico pelas lacunas
legislativas e pela necessidade de fixação do alcance e sentido das normas, e sustentam que:
El problema de los principios generales del Derecho guarda además una relación
muy estrecha con el fenómeno denominado de las “lagunas de la ley”. Una laguna
legal aparece como un fenómeno de inexistencia de una ley aplicable a una
determinada materia o a una determinada institución, o como una falta de previsión,
por una ley efectivamente existente, de un determinado punto que aparece como
controvertido. [...] Pero no es sólo la integración de las posibles lagunas de un texto
legal lo que obliga en muchas ocasiones a recurrir a criterios extralegales. También
la determinación del verdadero alcance, sentido o significación que dentro del
ordenamiento jurídico pose una determinada disposición legal, solamente puede
hacerse, en ocasiones, acudiendo a aquéllos. Cuando hablamos, pues, de “principios
generales del Derecho” estamos haciendo referencia, prima facie, a estos criterios o
valores no legislados, ni consuetudinarios.
Os autores enfatizam o dissenso doutrinário sobre a definição do que sejam os
princípios gerais de direito, e concluem (vencendo as vertentes, positivista e jusnaturalista
9
, e
os embates sobre a localização de tais princípios – se dentro ou fora do ordenamento jurídico),
que os mesmos são estruturais ao sistema normativo, eis que fundados em valores sociais.
Assim:
[...] no se puede afirmar rotundamente que los principios generales se hallan fuera
ni, por el contrario, dentro del ordenamiento jurídico. Lo que resplandece en todo
9
“Dos posturas clásicas, y en cierto modo antagónicas, sobresalen en orden a la concepción de los principios
generales del Derecho, entre quienes admiten el postulado básico de su existencia: la concepción iusnaturalista y
la positivista. El iusnaturalismo, originariamente, parte de que la Naturaleza tiene no sólo leyes físicas que rigen
la materia no viviente y la viviente, sino también una ley moral impresa en el corazón del hombre dictándole lo
que debe hacer y omitir en su vida individual, y una ley jurídica que le impone las normas de convivencia en su
vida social. Y para la concepción iusnaturalista, sustancialmente, los principios generales del Derecho pueden
identificarse con los de Derecho natural. Integran las verdades jurídicas naturales y universales, a modo de
axiomas jurídicos, o normas establecidas por la recta razón. Son, así, normas universales de bien obrar. Son los
principios de Justicia, constitutivos de un Derecho ideal. Son, en definitiva, un ‘conjunto de verdades objetivas,
derivadas de la ley divina y humana’, que no otra cosa es, para DE CASTRO, el primigenio Derecho natural. Su
valor reside, precisamente, en su naturaleza óntica de principios de Justicia, porque, al decir de BATTLE,
‘siendo la Justicia el fin que el Derecho persigue, hay que buscar aquélla en sus fuentes naturales’. Como resume
ATIENZA, ‘los autores iusnaturalistas, a lo largo de su historia milenaria, parecen haber estado de acuerdo en
afirmar: 1) Que además y por encima del Derecho positivo (de la ley humana) existe un Derecho natural, esto es,
un conjunto de normas y/o principios válidos para todos los tiempos y lugares. 2) Que el Derecho (el Derecho
positivo) sólo es tal si concuerda (al menos en sus principios fundamentales) con el Derecho natural, es decir, si
es justo. En otro caso, no pasa de ser ‘aparencia de Derecho’, ‘corrupción de ley’, etc.’. La concepción
positivista o histórica sostiene básicamente que los principios generales del Derecho equivalen a los principios
que informan el Derecho positivo y le sirven de fundamento. Estos principios se inducen, por vía de abstracción
o de sucessivas generalizaciones, del propio Derecho positivo, de sus reglas particulares, ya que son aquéllos los
que, anteriormente, han servido al legislador como criterio para establecer aquel Derecho y sus singulares
normas. Los principios, en efecto, ya están dentro del Derecho positivo y, por ser éste un sistema coherente,
pueden ser extraídos del mismo. Su valor les viene dado no en función de ser dictados de razón o por constituir
un Derecho natural o ideal, sino que deriva del mismo potencial que las propias leyes” (FLÓREZ-VALDÉS,
1991, p. 38-39).
24
caso es su función vertebradora o estructuradora del mismo porque: . Tienen un
carácter básico y fundamental en la organización del grupo humano que por él se
conduce. . Revelan de modo espontáneo el sistema de creencias y convicciones en
que reposa la organización de tal grupo social. Y ello porque si el Derecho es una
ordenación organizadora de la comunidad social, no hay que olvidar que descansa en
definitiva en un conjunto de creencias o de convicciones del grupo humano a que va
destinado. La norma jurídica, en una concepción democrática, no es más que la
expresión de la voluntad de la comunidad, que plasma así sus convicciones. Los
principios generales del Derecho no son exclusivamente meros criterios directivos,
ni juicios de valor simplemente, ni escuetos dictados de razón. Son auténticas
normas jurídicas en sentido sustancial, pues suministran pautas o modelos de
conducta. Cuando se dice, por ejemplo, que nadie puede enriquecerse injustamente,
o que nadie puede ejercitar abusivamente sus derechos, o que los pactos han de ser
observados, es claro que se están proponiendo modelos de conductas a seguir. Estas
normas gozan de una característica especial: no se encuentran fundadas en la
autoridad del Estado, como ley, ni en los usos o prácticas de determinadas fuerzas o
grupos sociales, como la costumbre. Tienen su fundamento en la comunidad entera,
a través de sus convicciones y creencias, de forma que es ella el auténtico poder
creador de las normas de que tratamos (DÍEZ-PICAZO; GULLÓN, 2005a, p. 144-
145).
Nessa linha de pensamento, dispõe o art. da LICC: “quando a lei for omissa, o
juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”,
norma que se reflete no art. 126 do CPC brasileiro, com a seguinte redação: “O juiz não se
exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da
lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e
aos princípios gerais de direito”.
Os partidários do Direito Civil Constitucional, entre os quais Gustavo Tepedino
(2004, p. 18), distinguem os princípios gerais de direito dos princípios constitucionais,
assinalando que:
Não se pode concordar com os civilistas que se utilizam dos princípios
constitucionais como princípios gerais de direito. Os princípios gerais de direito são
preceitos extraídos implicitamente da legislação, pelo método indutivo. Quando a lei
for omissa, segundo a dicção do artigo da Lei de Introdução, o Juiz decidirá o
caso de acordo com a analogia e os costumes; e então, na ausência de lei expressa
e fracassada a tentativa de dirimir o conflito valendo-se de tais fontes, decidirá com
base nos princípios gerais de direito. No caso dos princípios constitucionais, esta
posição representaria uma subversão da hierarquia normativa e uma forma de
prestigiar as leis ordinárias e até os costumes, mesmo se retrógrados ou
conservadores, em detrimento dos princípios constitucionais que, dessa maneira,
seriam utilizados em sede interpretativa na omissão do legislador, e após serem
descartadas, a analogia e a fonte consuetudinária.
Com efeito, ao intérprete não é dado relegar ao segundo plano um princípio
constitucional para lançar mão, prioritariamente, do recurso integrativo da analogia. Aliás,
essa tortuosa tarefa poderia até comprometer, em termos de eficiência, o sistema aberto do
25
novo Código, permeado de conceitos abstratos prontos para serem colmatados por valores e
princípios também extraídos do texto constitucional, como o da dignidade da pessoa humana.
Para Díez-Picazo e Gullón (2005a), usualmente, nas normas constitucionais estão
plasmados os valores, crenças e convicções do país, fundamentos dos princípios gerais de
direito. Dessa forma, a Constituição impõe ao sistema jurídico a tarefa de concretizá-los, de
torná-los realidade. Os civilistas advertem, contudo, que princípios para além do texto
constitucional, como ocorre aqui e na Espanha
10
, com sua marcante presença no Código Civil.
A propósito da relação entre os princípios constitucionais e aqueles plasmados no
Código Civil, Renan Lotufo (2004) lembra, em espirituoso exemplo, que o papel das
cláusulas gerais (status que os princípios gerais de direito recebem, uma vez incorporados ao
direito positivo) é exatamente o de fazer o “meio-de-campo” entre os valores fundamentais da
Constituição Federal e o direito privado.
Os princípios gerais de direito convertidos em cláusulas gerais, nada obstante
permanecerem com baixa densidade normativa, geram direitos e obrigações, como se verá
adiante.
1.2.2 As cláusulas gerais
As cláusulas gerais constituem o mais importante instrumento de integração do
ordenamento jurídico aberto
11
. Segundo Flávio Tartuce (2007, p. 44), elas são “janelas abertas
deixadas pelo legislador para preenchimento pelo aplicador do Direito, caso a caso”.
Ao lado das grandes diretrizes da eticidade, socialidade e operabilidade, as
cláusulas gerais abrem o texto do Código Civil, o qual:
[...] está vocacionado naturalmente a receber o mais amplo desenvolvimento
jurisprudencial, que não chega a causar surpresa se tivermos presente que esse é um
fenômeno comum na vida do direito e que o mesmo ocorreu com o Código de 1916,
em que pese a ilusão, reinante àquele tempo, de que as malhas da lei pudessem
regular, por inteiro e aos detalhes, os múltiplos e complexos problemas da
convivência social (COELHO, 2003, p. 328-329).
10
Um profundo estudo sobre o tratamento dos princípios gerais de direito no Código Civil espanhol é
apresentado por Flórez-Valdés (1991).
11
O sistema de cláusulas gerais é apontado por Ruzzi (2007, p. 494) como desdobramento dos princípios
constitucionais, que se aplicam diretamente às relações privadas, como será objeto de estudo alhures. “Além
disso, esse sistema nos traz a materialização da idéia de funcionalização do direito, que não permite seja esse
concretizado sem ter em conta a realidade que visa normatizar [...]”.
26
Para Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2003), a sobrevivência
de um dos mais perfeitos diplomas civis do mundo, a BGB, deve-se fundamentalmente ao
sistema das cláusulas gerais. Registra Franz Wieacker (2004, p. 545-546, grifo do autor):
O legislador conseguiu afastar-se de forma mais feliz, da tormentosa escolha entre
uma abstração empobrecedora e uma casuística acanhada através das chamadas
cláusulas gerais, isto é, através de linhas de orientação, que, dirigidas ao Juiz, o
vinculam e, ao mesmo tempo, lhe dão liberdade. As cláusulas gerais constituíram
uma notável e muitas vezes elogiada concessão do positivismo à auto-
responsabilidade dos juízes e a uma ética social transpositiva, cujo padrão propulsor
para o legislador foi constituído pela organização dada pelo praetor romano ao judex
para determinar o conteúdo da decisão de acordo com a bona fides. O legislador
transformou o seu trabalho através da referência à “boa-fé”, aos bons costumes,
aos hábitos do tráfego jurídico, à justa causa, ao caráter desproporcionado etc. em
algo de mais apto para as mutações e mais capaz de durar do que aquilo que era de
esperar. A jurisprudência civilista alemã mostrou-se suficientemente adulta para
satisfazer as exigências que as cláusulas gerais colocam à obediência inteligente
do Juiz (Heck) quando ela, a partir das crises da primeira guerra mundial, começou,
com uma calma e refletida ponderação, a preencher as cláusulas gerais com uma
nova ética jurídica e social e, assim, a adaptar a ordem jurídica burguesa à evolução
social. Assim, ela adquiriu uma função totalmente nova do direito judicial posterior
à segunda guerra mundial.
A utilização das cláusulas gerais, ao que se dessume, decorre da chamada crise da
teoria das fontes do direito, baseada no puro raciocínio dedutivo de caráter positivista.
A tarefa de subsunção não deve ser obtida apenas da lei escrita, mas através de
outros critérios de interpretação, formados a partir do pensamento casuístico e valorativo, apto
a fornecer função criadora à jurisprudência, com todos os riscos envolvidos (SILVA, 2007a),
implica dizer, a tarefa de integração por meio das cláusulas gerais não deve ser realizada de
forma arbitrária, motivo pelo qual o juiz deve recorrer ao próprio sistema, utilizando-se de
critérios metajurídicos, indicando as razões de decidir, de modo a cumprir o mandamento
constitucional de fundamentação dos julgados.
As cláusulas gerais também atuam como instrumento apropriado para a aplicação
dos direitos fundamentais, concepção lançada na Alemanha por G. Dürig e pelo Tribunal
Constitucional (CALGARO, 2007).
Ressalta-se que a efetivação dos direitos fundamentais nas relações privadas pode
realizar-se em planos separados e complementares: pelo exercício da autonomia privada; na
interpretação e obediência aos efeitos das normas de direito privado; e pela solução dos
problemas na esfera privada aplicando as regras de hermenêutica e as cláusulas gerais.
A relação entre a opção do legislador pelo reconhecimento das cláusulas gerais e a
crescente importância do pensamento prático-jurisprudencial aquele em que “o direito se
27
realiza no processo de sua construção” é abordada por Francisco Amaral (2003b, p. 197-
198):
Ao Juiz é, hoje, reconhecido um largo poder de apreciação, que ele exerce ao
analisar o sentido e o alcance da regra jurídica, a partir de uma pré-compreensão, no
sentido que lhe a corrente hermenêutica. A interpretação não é descoberta do
significado de um texto, implica, também, a criatividade do intérprete. E esse poder
judicante encontra maior campo de realização nas chamadas cláusulas gerais. Entra-
se aqui, na metodologia da arte de legislar que reconhece, ao lado dos preceitos
jurídicos em que a hipótese de aplicação (fattispecie) é descrita com específica
particularidade, outras formas de expressão legislativa que concedem maior
autonomia ao intérprete. São as chamadas cláusulas gerais, disposições normativas
abertas, fluidas, vagas, que permitem ao Juiz criar, com maior liberdade, a norma
jurídica adequada ao caso concreto que enfrenta. Indicam um critério de justiça, mas
não impõem regras, delegando ao intérprete a função de criá-las. As cláusulas gerais
são preceitos jurídicos vazios ou incompletos que, graças à sua generalidade e
abstração, podem abranger um mais vasto grupo de situações, de modo ilacunar e
com possibilidade de ajustamento a uma conseqüência jurídica. Seriam normas
jurídicas, em cuja estrutura a hipótese de fato, a chamada condição de aplicação
(fattispecie, Tatbestand, operative facts) seria muito ampla, até indeterminada, com
uma formulação em termos de grande generalidade, levando a que o direito do caso
concreto decorra não apenas da subsunção, mas também do recurso aos valores do
sistema e à própria vontade do intérprete. A sua principal característica seria, assim,
a relatividade de seu conteúdo. Apresentando-se como conceitos amplos e elásticos,
recebem o seu sentido e conteúdo da realidade social e cultural própria do ambiente
em que devam ser aplicadas. Sua valorização atual traduz um desejo de mudança na
ciência do direito, passando das concepções puramente formalistas e sistemáticas
para o reconhecimento de um direito orientado, também, por princípios e cláusulas
gerais, onde ao intérprete e ao Juiz se reconhecessem mais amplos poderes.
Por sua vez, Wieacker (2004, p. 626) constatou a ampliação dos poderes do juiz
diante do sistema de cláusulas gerais, ressaltando que:
O recuo perante o formalismo jurídico manifesta-se, antes de tudo, na progressiva
libertação do Juiz no que respeita à vinculação em relação a hipóteses de facto
definidas de forma precisa na lei. Isto corresponde a uma modificação na função da
lei no estado social. Ela não é mais, como no estado de direito burguês, uma
delimitação das esferas do direito e da liberdade de cada uma relativamente aos
outros e aos poderes públicos, mas antes um elemento de social engineering, linha
de orientação jurídica para a planificação social [...]. Num tal tipo de legislação, a
cláusula geral indeterminada, que tempera o rigor da justiça, encontra o seu lugar
próprio [...]. Uma legislação desse tipo não apenas confere novas atribuições ao Juiz,
mas força-o também à criação de uma medida própria de valoração e à consideração
da justiça do caso concreto [...].
Reconhecendo a ampliação desses poderes, mas também a necessidade de limitar
a atuação discricionária dos juízes, Herbert Hart (2001, p. 336, grifo do autor) observa que:
É importante que os poderes de criação que eu atribuo aos juízes, para resolverem os
casos parcialmente deixados por regular pelo direito, sejam diferentes dos de um
órgão legislativo: não os poderes do Juiz são objecto de muitos constrangimentos
que estreitam a sua escolha, de que um órgão legislativo pode estar
28
consideravelmente liberto, mas, uma vez que os poderes do Juiz são exercidos
apenas para ele se libertar de casos concretos que urge resolver, ele não pode usá-los
para introduzir reformas de larga escala ou novos digos. Por isso, os seus poderes
são intersticiais, e também estão sujeitos a muitos constrangimentos substantivos.
Apesar disso, haverá pontos em que o direito existente não consegue ditar qualquer
decisão que seja correcta e, para decidir os casos em que tal ocorra, o Juiz deve
exercer os seus poderes de criação do direito. Mas não deve fazer isso de forma
arbitrária: isto é, ele deve sempre ter certas razões gerais para justificar a sua decisão
e deve agir como um legislador consciencioso agiria, decidindo de acordo com as
suas próprias crenças e valores. Mas se ele satisfizer essas condições, tem o direito
de observar padrões e razões para a decisão, que não o ditadas pelo direito e
podem diferir dos seguidos por outros juízes confrontados com casos difíceis
semelhantes.
Um código que se pretende dinâmico e operativo necessita, portanto, abeberar-se
noutras fontes para solucionar o problema que o atual direito privado apresenta
12
.
Nesse contexto, as cláusulas gerais apresentam-se com função instrumental,
atuando de maneira a conferir concretude aos princípios gerais de direito e aos conceitos
legais indeterminados, passando, nesse último caso, pelos conceitos determinados pela
função.
Consoante a lição de Antonio Menezes Cordeiro (2007, p. 1184):
Na medida em que se associem a conceitos indeterminados, as cláusulas gerais
deixam nas mãos do intérprete-aplicador um poder considerável, perturbando a
repartição de poderes entre parlamento e tribunais e constituindo um factor
suplementar de insegurança. Permitem, contudo, uma aplicação cuidada do Direito,
com limites, apenas, no nível juscultural dominante no espaço jurídico e expresso
pelo julgador, facilitando a actividade legislativa.
Ao tempo que permitem mobilidade ao sistema do código e a concretização dos
enunciados abstratos, as cláusulas gerais conferem ao juiz o poder de integrar o negócio
jurídico, exigindo, segundo Ruy Rosado de Aguiar Júnior (2000, p. 20), “uma magistratura
preparada para decidir através da utilização dos novos valores do código com melhor
atendimento das expectativas da sociedade brasileira”. Não foi por outra razão que o mestre
gaúcho denominou o Código Civil brasileiro de 2002, como “o código dos juízes”.
12
Perfilhando o mesmo pensamento, Gustavo Tepedino (2004, p. 226) assim se manifesta: “Nos dias de hoje, a
necessidade de se dar efetividade plena às cláusulas gerais faz-se tanto mais urgente na medida em que se afigura
praticamente impossível ao direito regular o conjunto de situações negociais que floresce na vida
contemporânea, cujos avanços tecnológicos surpreendem até mesmo o legislador mais frenético e obcecado pela
atualidade. Trata-se de constatação indiscutível, que impõe ao intérprete uma mudança de atitude, sob pena de
sucumbir à realidade social, perplexo e inerte à espera de uma mítica intervenção legislativa, encerrado em
abstrações concernentes a um modelo ideal de sociedade. Dito diversamente, incapaz de disciplinar todas as
inúmeras situações jurídicas que florescem na esteira dos avanços tecnológicos, o legislador vale-se da técnica
das cláusulas gerais”.
29
É com o surgimento e multiplicação de vários institutos jurídicos que a cláusula
geral encontra maior difusão, em razão da impossibilidade de o legislador exaurir sua
regulamentação. Assim, concede-se ao intérprete maleabilidade para, diante do surgimento de
fatos não regulados e desconhecidos pelo legislador, fazer prevalecer os valores do
ordenamento. Nessa trilha:
[...] ao se dizer que as cláusulas gerais são elementos que permitem a abertura do
sistema, o denominado sistema aberto e móvel de Cannaris, a atuação do intérprete e
aplicador do direito (o Juiz que ingressa na relação contratual das partes e proíbe,
anula ou reconhece prerrogativas e condutas a partir da concreção destas normas)
não se basta em si mesma. Ou seja, a atuação do Juiz não se dá como mero ato de
autoridade, senão que dele se reclama não o exercício desta autoridade, mas a
argumentação e convencimento quanto ao conteúdo e intensidade da sua intervenção
na relação jurídica das partes. O sistema, neste aspecto, se aperfeiçoa não apenas no
simples fato da pluralidade de decisões possíveis a partir de um convencimento
judicial, senão pela atualização e aplicação da lei, como novos métodos, a diferentes
realidades fáticas. As cláusulas gerais, da mesma forma, tornam-se veículo de
valores ou princípios jurídicos do ordenamento jurídico, provenientes da
Constituição e da construção doutrinária e jurisprudencial relativos a
comportamentos devidos ou de significados expressivos dos interesses juridicamente
protegidos em disputa (MIRAGEM, 2007, p. 188, grifo do autor).
O estudo dos caminhos do direito privado brasileiro contemporâneo necessita
transpor a discussão sobre a interpretação e aplicação das cláusulas gerais, merecendo
destaque a incorporação deste instituto ao ordenamento jurídico que passa a contribuir de
forma significativa para o aperfeiçoamento e atualização do sistema, consagrando, portanto,
novos parâmetros para a compreensão das relações jurídico-privadas (MIRAGEM, 2007).
Tal integração seria feita por intermédio da sentença determinativa, meio
processual adequado para o juiz preencher o conteúdo impreciso da cláusula geral prevista na
norma, atribuindo-lhe concretude
13
(LUNARDI, 2006).
13
Segundo informa Soraya Regina Gasparetto Lunardi (2006, p. 151/154-155), o “termo ‘sentença
determinativa’ vem sendo empregado de forma genérica para designar a atuação do julgador em casos de
preenchimento de vãos na aplicação da lei e de modificação do conteúdo de contratos [...]. A sentença
determinativa seria o meio processual pelo qual o juiz poderia, nos casos mais complexos, atribuir à norma um
conteúdo concreto contido no sistema, mas não especificamente na própria norma [...]. A interpretação proposta
assenta-se em um modelo composto por normas estruturais e regras jurídicas aplicáveis mediante integração,
cabendo ao intérprete o papel de revelar o sentido das normas de tipificação aberta e fazê-las incidir no caso
concreto”.
30
1.2.3 Os conceitos legais indeterminados
O Código Civil brasileiro de 2002, sistema constituído por regras móveis,
prestigiou, além da técnica legislativa das cláusulas gerais, a dos conceitos legais
indeterminados
14
(DELGADO, 2003). Luís Roberto Barroso (2007b, p. 14) define tais
conceitos como “signo semântico ou técnico”.
Essa técnica legislativa utiliza-se de “[...] expressões de textura aberta, dotadas de
plasticidade, que fornecem um início de significação a ser complementado pelo intérprete,
levando em conta, as circunstâncias do caso concreto.” Isto significa que a norma em abstrato
necessita ser integrada através da valoração de fatores objetivos e subjetivos da realidade,
indicando o sentido e alcance da norma (BARROSO, 2007b, p. 14).
Na lição de Menezes Cordeiro (2007, p. 1176-1177), evocar os conceitos
indeterminados torna-se necessário:
[...] sempre que um conceito não permita comunicações claras quanto ao seu
conteúdo, por polissemia, vaguidade, ambigüidade, porosidade ou esvaziamento:
polissemia quando tenha vários sentidos, vaguidade quando permita uma informação
de extensão larga e compreensão escassa, ambigüidade quando possa reportar-se a
mais de um dos elementos integrados na proposição onde o conceito se insira,
porosidade quando ocorra uma evolução semântica com todo um percurso onde o
sentido do termo se deva encontrar e esvaziamento quando falte qualquer sentido
útil.
Os conceitos legais indeterminados são proposições carentes de preenchimento e
de valoração. Contudo sua utilização não é arbitrária, eis que “existe toda uma série de
indícios que inculcam as variáveis a ponderar e o seu peso relativo, a quando das operações de
preenchimento” (CORDEIRO, 2007, p. 1180).
14
Para Eros Roberto Grau (2001, p. 196/ 200-201, grifo do autor), a indeterminação não é dos conceitos
jurídicos (idéias universais), mas de suas expressões (termos); logo, mais adequado será referirmo-nos a termos
indeterminados de conceitos, e não a conceitos (jurídicos ou não) indeterminados. [...] São tidos como
‘indeterminados’ os ‘conceitos’ cujos termos são ambíguos ou imprecisos especialmente imprecisos –, razão
pela qual necessitam ser completados por quem os aplique. Neste sentido, são eles referidos como ‘conceitos
carentes de preenchimento com dados extraídos da realidade. Os parâmetros para tal preenchimento quando se
trate de conceito aberto por imprecisão – devem ser buscados na realidade, inclusive na consideração das
concepções políticas predominantes, concepções essas que variam conforme a atuação das forças sociais
(Forsthoff 1973/17-18). Quando se trate de conceito aberto por ambigüidade o seu preenchimento é procedido
também mediante a consideração do contexto em que inserido o que, de qualquer forma, não deve obscurecer
a verificação de que, sempre, é da participação no jogo de linguagem, no qual inserido o termo (este, sim,
indeterminado como sempre sustentei –, seja por ambigüidade, seja por imprecisão) do conceito que decorre a
possibilidade de o compreender-se, procedendo ao seu preenchimento”.
31
Dessume-se que os conceitos legais indeterminados variam de acordo com o grau
de indeterminação e na medida da imprecisão dos elementos postos ao intérprete na atividade
de concretização (CORDEIRO, 2007).
Além do direito privado, também o direito administrativo é perpassado pela teoria
dos conceitos jurídicos indeterminados. Nesta disciplina, a questão é tratada a partir de seu
entrelaçamento com a noção de discricionariedade administrativa e o debate acerca do
controle, pelo Poder Judiciário, dos órgãos governamentais e administrativos. A origem da
referida teoria é apontada por Andreas Joachim Krell (2004, p. 29-30, grifo do autor):
No fim do século XIX, na Áustria, Bernatzik entendia que conceitos abertos como
“interesse público” teriam que ser preenchidos pelos órgãos administrativos
especializados, sem a possibilidade da revisão da decisão pelos tribunais. Tezner,
contrário a essa teoria, exigia um controle objetivo de todos os conceitos normativos
inclusive os vagos das leis que regiam a relação entre a Administração e os
cidadãos. Apesar da ampla aceitação dessa última tese, foram criados, em seguida,
limites cada vez mais rígidos para o controle judicial das decisões administrativas,
sob a alegação de que certos tipos de conceitos legais (os de valor e o onipresente
interesse público) abririam espaço para a “atitude individual” da Administração e
exigiriam uma acurada investigação da questão para cada caso. Surgiu, assim, a
doutrina dos “conceitos jurídicos indeterminados”, os quais não foram considerados
como uma expressão da discricionariedade, mas plenamente sindicáveis pelo Poder
Judiciário mediante interpretação.
O mesmo autor concebe “o uso de conceitos jurídicos indeterminados [...] como
manifestações comuns da técnica legislativa de abertura das normas jurídicas, carecedoras de
complementação” (KRELL, 2004, p. 35, grifo nosso). Assim, com o mesmo conteúdo de
abstração e sentido vago das cláusulas gerais, os conceitos legais indeterminados destas se
diferem quanto à finalidade e eficácia, à medida que a própria lei aponta a solução a ser dada
no caso concreto, quando o conceito legal for preenchido pela hipótese fática, via subsunção.
Segundo Nelson Nery Junior e Rosa Maria Nery (2003, p. 407, grifo dos autores):
Conceitos legais indeterminados são palavras ou expressões indicadas na lei, de
conteúdo e extensão altamente vagos, imprecisos e genéricos, e por isso mesmo esse
conceito é abstrato e lacunoso. Sempre se relacionam com a hipótese de fato posta
em causa. Cabe ao Juiz, no momento de fazer a subsunção do fato à norma,
preencher os claros e dizer se a norma atua ou não no caso concreto. Preenchido o
conceito legal indeterminado (unbestimmete Gesetzbegriffe), a solução já está pré-
estabelecida na própria norma legal, competindo ao Juiz apenas aplicar a norma,
sem exercer nenhuma função criadora. [...] O fenômeno parece ter-se desenvolvido,
com as características aqui apontadas no direito administrativo. Para o direito
administrativo não bastam as cláusulas gerais (que permitem ao Juiz liberdade no
preenchimento dos conceitos), porque o princípio da legalidade (CF, 37 caput)
permite que seja realizado o que a norma expressamente autorizar.
Para José Augusto Delgado
(2003, p. 399)
, os conceitos legais indeterminados:
32
[...] entregam ao intérprete a missão de atuar no preenchimento dos claros,
permitindo que ele extraia da norma, para o caso concreto em evidência, o que,
realmente, ela pretende. O Código Civil de 2002 contém vários conceitos
indeterminados. Eles são examinados com suporte na orientação fixada pela
Constituição Federal. Visam, no plano normativo ordinário, cumprir os objetivos
centrais determinados por aquele Diploma Maior.
Exemplo típico de conceito legal indeterminado é a expressão “interesse social e
econômico relevante” contida no § do art. 1.228 do CC/2002, porquanto a própria norma
pré-estabelece a privação da coisa ao proprietário, na hipótese de preenchimento da
indeterminação pelo juiz, segundo valores éticos e sociais aplicáveis ao caso.
Como se vê, a própria norma que estatui o conceito legal indeterminado define a
função que este exerce diante do caso concreto, sem que haja necessidade de o juiz criar
direito, mas tão-somente integrar o ponto omisso do conceito.
1.2.4 Os conceitos legais determinados pela função
Segundo o gênio de Platão (2002), expresso em “A República”, a função é algo
que aquilo sabe fazer de melhor. A amplitude dessa máxima encontra ressonância na
contemporaneidade do sistema aberto do direito privado, permitindo revitalizar os institutos
jurídicos a partir da sua função, vale dizer, a partir daquilo que eles possuem de melhor.
Na busca de conceitos que sejam úteis para o sistema jurídico e providos de
conteúdo, entende Karl Larenz (1997, p. 686) que:
Tem antes de se tratar de conceitos, cujo conteúdo, a relação de sentido subjacente a
uma regulação, com base num princípio determinante, é expressa em tal medida que,
mesmo que necessariamente abreviada, continua a ser identificável. De facto, a
ciência jurídica atual trabalha em larga medida com tais conceitos. Podemos chamá-
los de conceitos determinados pela função”. Assim, a ciência do direito privado
actual trabalha, pelo menos desde a grande obra de FLUME, com o conceito de
negócio jurídico determinado pela função, que o entende primordialmente como
meio da autonomia privada e intenta compreender a partir dessa sua função
problemática a ele ligada e as respostas dadas a esse respeito pela lei.
Para Nery Junior e Nery (2003, p. 408), “os conceitos legais indeterminados se
transmudam em conceitos determinados pela função que tem de exercer no caso concreto”.
33
Nesse sentido, pode-se afirmar que a integração dos conceitos legais
indeterminados por meio de valores confere-lhes força de regra do caso concreto. Os
conceitos legais indeterminados, ainda segundo aqueles autores:
Servem para propiciar e garantir a aplicação correta, eqüitativa do preceito ao caso
concreto. Nos conteúdos das idéias de boa-fé (CC 422), bons costumes (CC 187),
ilicitude (CC 186), abuso de direito (CC 187 etc.), está implícita a determinação
funcional do conceito, como elemento de previsão, pois o Juiz deverá dar concreção
aos referidos conceitos, atendendo às peculiaridades do que significa boa-fé, bons
costumes, ilicitude ou abuso do direito no caso concreto. Vale dizer, o Juiz torna
concreto, vivos, determinando-os pela função, os denominados conceitos legais
indeterminados. São, na verdade, o resultado da valoração dos conceitos legais
indeterminados, pela aplicação e utilização, pelo Juiz, das cláusulas gerais (NERY
JUNIOR; NERY, 2002, p. 6).
Ademais, destaca-se a concepção de Larenz (1997, p. 694):
A missão do sistema científico é tornar visível e mostrar a conexão de sentido
inerente ao ordenamento jurídico como um todo coerente. Para isso serve a
descoberta dos princípios directivos e a sua concretização nos conteúdos regulativos,
a formação de conceitos determinados pela função e de tipos jurídicos-estruturais.
Para esse efeito, pressupõe-se sempre que as regras do Direito e os diferentes
complexos de regulação estão de facto entre si numa tal conexão de sentido, quer
dizer, que são algo mais do que uma aglomeração de normas particulares baseada na
“arbitrariedade” do legislador ou noutros factores mais ou menos casuais.
Os conceitos legais determinados pela função atuam na aplicação das normas
jurídicas, cujo conteúdo encontra-se implícito como elemento de previsão ou como
conseqüência jurídica.
Portanto, determinar um conceito pela sua função é buscar, com inspiração nos
valores éticos e sociais do novo ordenamento de Direito Civil, o máximo de eficácia e
utilidade dos conceitos legais indeterminados na espécie.
1.3 A boa-fé objetiva e subjetiva
Reale (2005, p. 247) destaca a diferença no tratamento dado à boa-fé nos Códigos
de 1916 e 2002
15
, tendo aquele se baseado no Código de Napoleão e na escola alemã dos
pandectistas, em que predominava o “exclusivismo jurídico”.
15
A posição concedida à boa-fé no Código Civil de 2002 mereceu relevo na obra de Reale (2005, p. 240-241),
no capítulo “Um artigo-chave do Código Civil”, no qual destaca a riqueza do art. 113: “os negócios jurídicos
34
Para o mesmo autor:
O resultado da compreensão superadora da posição positivista foi a preferência dada
às normas ou cláusulas abertas, ou seja, não subordinadas ao renitente propósito de
um rigorismo jurídico cerrado, sem nada se deixar para a imaginação criadora dos
advogados e juristas e a prudente, mas não menos instituidora, sentença dos juízes.
[...] Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma
norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação
dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas
conseqüências. Daí a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da
realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do
Direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial (REALE, 2005, p. 248,
grifo do autor).
Na visão de Nerilo (2007, p. 76):
Através da boa-fé permite-se a penetração de elementos metajurídicos para que haja
permanente adaptação do sistema à realidade social e econômica, sem que para isso,
se tenha que fazer modificação na legislação. Assim, a realização da justiça no
contrato depende dessa re-alimentação em interação com a realidade, pois não seria
possível que a norma jurídica esgotasse as condutas consideradas queridas ou
indesejadas.
Cabe salientar que a boa-fé pode ser percebida sob duplo aspecto: boa-fé objetiva
e boa-fé subjetiva
16
. A primeira guarda relação com o modelo de conduta, com o
comportamento. A segunda, com o estado anímico, com a intenção.
Tartuce (2007, p. 48) assim as diferencia:
Por certo é que a boa-fé subjetiva existe no plano da intenção, enquanto a boa-fé
objetiva existe no campo da conduta de lealdade, da probidade que deve existir entre
as partes envolvidas no negócio jurídico celebrado. Essa última relação de boa-fé é
baseada, sobretudo, numa relação de confiança.
devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”, afirmando ser a boa-fé, “o
cerne ou a matriz da eticidade, a qual não existe sem a intentio, sem o elemento psicológico da intencionalidade
ou do propósito de guardar fidelidade ou lealdade ao passado. Dessa intencionalidade, no amplo sentido dessa
palavra, resulta a boa-fé objetiva, como norma de conduta que deve salvaguardar a veracidade do que foi
estipulado. Boa-fé é, assim, uma das condições essenciais da atividade ética, nela incluída a jurídica,
caracterizando-se pela sinceridade e probidade dos que dela participam, em virtude do que se pode esperar que
será cumprido e pactuado sem distorções ou tergiversações, máxime se dolosas, tendo-se sempre em vista o
adimplemento do fim visado ou declarado como tal pelas partes”.
16
A concepção germânica da boa-fé no seu duplo aspecto é definida pelas terminologias: guten Glauben como
boa-fé subjetiva equivalente ao estado psicológico de ignorância e Treu und Glauben boa-fé objetiva relacionada
com a conduta leal e honesta adotada pelas partes. Para alguns autores a True und Glauben seria uma criação
germânica, à medida que seu conteúdo não equivale a bona fides romana, fidelidade à palavra dada. A boa-fé
objetiva teria seus fundamentos nas tradições dos juramentos de honra medievais, imbuídas das idéias de
lealdade, retidão de conduta, honra, fidelidade à palavra dada e consideração pelo outro. Decomposta a
expressão, tem-se que a palavra Treue significa fidelidade, lealdade e Glauben como crença, no sentido de
confiança. A combinação dessas palavras representa a necessidade de um comportamento honesto e leal, com
respeito aos legítimos interesses das partes (FRITZ, 2007).
35
Sobre a dupla vertente da boa-fé no Direito Civil, leciona Rosa Maria de Andrade
Nery (2002, p. 120 grifo da autora):
Em sentido subjetivo é a situação psicológica de ignorância em prejudicar o direito
de outrem. Tem natureza jurídica de regra de interpretação da vontade, cabendo ao
juiz investigar a boa-fé na intenção daquele que manifestou sua vontade. Em sentido
objetivo caracteriza-se como um princípio de justiça superior, vale dizer, princípio
de solidariedade contratual que transcende o regulamento negocial. Tem natureza
jurídica de fonte de Direito e de obrigação, funcionando como verdadeira cláusula
geral, isto é, “uma formulação da hipótese legal que, em termos de grande
generalidade, abrange e submete a tratamento jurídico todo um domínio de casos”.
No âmbito das relações jurídicas tem-se presente a boa-fé subjetiva
17
todas as
vezes que um dos sujeitos crê estar agindo de maneira regular, secundum legis, ou, por outro
lado, ignora que esteja obrando de maneira contrária à ética e ao bom direito. Daí porque
dizer que o sujeito que atua contra o direito, sabendo que assim o faz, age de má-fé.
com relação à boa-fé no plano objetivo, deve-se considerar a própria conduta
do sujeito na relação, levando-se em conta padrões nimos de comportamento socialmente
recomendados, consubstanciados na honestidade, retidão e lealdade. A boa-fé objetiva,
portanto, constitui uma norma de procedimento reto, cujo conteúdo não pode ser fixado de
maneira gida, variando sempre em função do caso concreto, em razão do que se situa no
sistema aberto como cláusula geral.
No que se refere à relação contratual, a boa-fé objetiva exige dos sujeitos uma
postura harmônica com seus padrões, que deve manifestar-se nas fases pré-contratual, na fase
de execução e depois de concluído o negócio jurídico. A significar que todas as cláusulas
contratuais devem ser interpretadas em consonância com os padrões nimos de conduta,
evitando obrigações contrárias à eqüidade ou vantagens desproporcionais.
Apreendendo um pouco mais da preciosa lição de Reale (2005, p. 249, grifo do
autor), constata-se que a boa-fé objetiva:
[...] apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta,
arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria
conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal.
[...] Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva se qualifica como
normativa de comportamento leal. A conduta, segundo a boa-fé objetiva, é assim
entendida como noção sinônima de “honestidade pública”.
17
Para Reale (2005, p. 248), a boa-fé subjetiva é percebida no âmbito dos direitos reais e no instituto do
casamento putativo e representa “fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão de vontade,
denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o Direito”.
36
Teresa Negreiros (2006, p. 122) assim se manifesta a respeito das vertentes da
boa-fé:
Ontologicamente, a boa-fé objetiva distancia-se da noção subjetiva, pois consiste
num dever de conduta contratual ativo, e não de um estado psicológico
experimentado pela pessoa do contratante; obriga a um certo comportamento, ao
invés de outro; obriga à colaboração, não se satisfazendo com a mera abstenção,
tampouco se limitando à função de justificar o gozo de benefícios que, em princípio,
não se destinariam àquela pessoa.
Apesar de se distinguirem de maneira marcante, ambas as espécies de boa-fé
podem ser encontradas no mesmo campo, como sucede nos casos de aplicação da teoria da
aparência.
Sublinha Judith Martins-Costa (1999) que a boa-fé subjetiva diz respeito à
valoração da conduta do lesado, em razão de haver atuado na crença segundo a qual o que se
mostrou à primeira vista fosse a real condição psicológica, subjetivamente avaliável, enquanto
a boa-fé objetiva concerne à valoração do comportamento do sujeito que permitiu a criação da
errônea aparência.
Tanto a boa-fé subjetiva quanto a objetiva consistem em modelos jurídicos
previstos no ordenamento para a solução de litígios e não de pendengas de natureza moral.
Não tratam, portanto, de mero apelo à ética. Antes, constituem princípios norteadores da
atuação das partes, visando o adequado cumprimento das obrigações assumidas.
A boa-fé objetiva não constitui apenas regra de conduta do sujeito vista
isoladamente, mas sim, na consideração dos interesses do outro, ressaltando Martins-Costa
(1999) que a boa-fé deve ser compreendida como norma de conduta que ordena a
consideração pelos interesses legítimos do alter, inserindo o instituto no âmbito do direito
obrigacional.
Para fins deste estudo, se examinará a boa-fé objetiva como cláusula geral do
sistema de direito privado, em que a mesma surge de maneira revolucionária, gerando deveres
instrumentais para o âmbito do contrato, subvertendo o direito obrigacional da pós-
modernidade (MARTINS-COSTA, 1999).
A boa-fé subjetiva é velha conhecida dos operadores do direito, remontando a
milênios, com repercussão no direito dos oitocentos, a exemplo do que se tinha no art. 131 do
Código Comercial brasileiro, onde a boa-fé mencionada como princípio (e não como cláusula
geral) conformava a inteligência dos negócios, prestigiando o tino comercial, inspirando a
interpretação de regras com acentuado individualismo e conotação de lucro, tudo a reforçar o
37
seu aspecto subjetivo. Bom comerciante era o comerciante esperto, habituado a levar
vantagem em tudo, logo, adepto à “Lei de Gerson”
18
.
Essa visão subjetivista, embora ainda presente no direito atual (como se no
âmbito da posse, do seguro etc.), perde cada vez mais espaço nos tempos modernos, onde a
autonomia da vontade deixa de ser apanágio dos negócios, mundo no qual a autonomia
privada assume papel de destaque.
Com efeito, a boa-fé objetiva, enquanto cláusula geral, adveio do direito
germânico, precisamente do § 242 da BGB
19
, expandindo-se para outros ordenamentos,
propiciando a construção de modelos de conduta ou standard jurídico, segundo os quais as
pessoas devem concertar seus interesses com honestidade e probidade. Além disso:
“Com a edição de conceitos abertos como a boa-fé objetiva, a ordem jurídica
atribui ao Juiz a tarefa de adequar a aplicação judicial às modificações sociais, uma vez que os
limites dos fatos previstos pelas aludidas cláusulas gerais são fugidios, móveis [...]”
(FRADERA, 1997, p. 39).
No Brasil, a solução germânica tardou a vigorar, nada obstante o Código Civil de
1916 (relatado pelo gênio de Clóvis Beviláqua) já contemplar um sistema não rígido,
inspirado nas cláusulas gerais da BGB. Trabalho que, todavia, não repercutiu na comunidade
jurídica nacional como deveria, pois esta era influenciada, em sua maioria, pela cultura
francesa, fundada na idéia de que o juiz é a “boca da lei”, com exceção de Estados como
Pernambuco, Rio Grande do Sul e parte de Santa Catarina: o primeiro, em virtude da intensa
influência germânica em sua história; e os demais, em razão de fatores ligados à colonização
(LOTUFO, 2003b).
Fazendo justiça a Beviláqua, menciona Lotufo (2003b) que o relator do Código
Civil de 1916 foi, na verdade, o precursor do Direito Civil Constitucional, ao tratar do tema
“A Constituição e o Código Civil”, em conferência proferida logo após a edição da Carta
Republicana de 1934, esforço que não foi suficiente para que o direito privado fosse aplicado
com inspiração no sistema flexível da BGB.
Com isso, a boa-fé na sua compleição objetiva e com a natureza de cláusula geral,
inspirada na lei alemã, somente veio a ser conhecida e estudada no Brasil, a partir das
discussões acerca do anteprojeto do atual Código Civil, sendo também apropriada por outros
ordenamentos, a exemplo do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
18
Jargão criado em torno de peça publicitária com o craque da seleção brasileira de futebol da década de 1970,
Gérson de Oliveira Nunes, que dizia gostar de levar vantagem em tudo.
19
O título oficial do referido parágrafo, que consagrou a cláusula geral, é “prestação conforme a boa-fé”
(NORDMEIER, 2007, p. 146).
38
Na doutrina brasileira, a boa-fé objetiva, consoante informa Martins-Costa (1999),
foi primeiramente tratada por Couto e Silva em sua tese de cátedra, em 1967, depois editada
sob o título “A obrigação como processo”, obra clássica que investigou as virtualidades da
boa-fé com a profundidade até então só examinada na doutrina e na jurisprudência alemãs
20
.
Acentuando os múltiplos significados da boa-dentro do direito, Silva (2007a)
observa que, em relação ao direito das obrigações, o instituto manifesta-se como máxima
objetiva que impõe o recrudescimento de deveres afora aqueles explicitamente previstos na
convenção, endereçando-se a todos os partícipes do contrato, inclusive ao credor, que
tradicionalmente, era apenas portador de direitos. Nesse sentido, pontifica Massimo Bianca
(2003b, p. 10):
In base al dovere de correttezza (o buona fede in senso oggettivo) il debitore è tenuto
a realizzare o preservare l’utilità del creditore. La correttezza costituisce pertanto un
generale critério di determinazione della prestazione, integrando la sfera del
comportamento dovuto sul piano di uma doverosità attenuata, che non supera i limiti
di un aprazzibile sacrificio.
Esse caráter objetivo foi percebido pela pena do mestre Silva (2007a), quando a
boa-fé existia apenas como princípio, eis que, ao contrário da BGB, o Código Civil brasileiro
de 1916 não a consagrou expressamente como cláusula geral, o que nem era preciso, por
tratar-se de proposição jurídica com significado de regra de conduta.
1.3.1 A boa-fé objetiva como princípio e como cláusula geral
No direito romano, o princípio da boa-fé possuía forte valor normativo,
especialmente no campo dos contratos internacionais celebrados entre romanos e estrangeiros,
tendo a função de exigir dos contraentes o respeito à palavra dada (pacta sunt servanda),
pondo-se em evidência a necessidade de conceber o direito inseparável dos valores éticos.
Amaral (2003a, p. 426) registra a evolução desse instituto:
20
A análise histórica do instituto mostra que, para os dois mais importantes ordenamentos jurídicos ocidentais, a
boa-fé objetiva possui concepções bastante distintas. Para a doutrina francesa, a boa-fé objetiva significa o
reforço àquilo que foi pactuado no contrato; ao passo que para a doutrina germânica traduziria a necessidade de
um comportamento honesto e leal, sempre em consideração com os interesses alheios. Embora o direito francês
tenha exercido grande influência com a promulgação do digo de Napoleão, a melhor doutrina recente adota a
concepção alemã de boa-fé objetiva (FRITZ, 2007).
39
Na Idade Média, acentuou-se a importância da boa-fé no campo das obrigações
contratuais e em matéria de posse, surgindo, com base nos textos romanos, uma
dupla perspectiva. A primeira, em matéria de posse, a boa-fé como atitude
psicológica, uma falsa crença daquele que desconhece o vício da sua posse. A
segunda, em matéria contratual, particularmente na compra e venda, como expressão
de um valor ético que se exprime em um dever de lealdade e correção no surgimento
e desenvolvimento de uma relação contratual. Com o processo histórico da
codificação, sob a égide das idéias jusracionalistas, os códigos francês, italiano e
alemão acolheram o princípio da boa-fé, nas suas duas dimensões, a psicológica, ou
subjetiva, que se fundamenta em uma crença errada, em uma falsa representação da
realidade, e a objetiva, que exprime a necessidade de um comportamento ético, de
lealdade, de correção, na gênese, execução e interpretação dos negócios jurídicos.
A boa-fé encontra-se prevista no CC/2002 sob a forma de princípio e cláusula
geral.
Como princípio, encontra-se no art. 113, com a seguinte redação: “Os negócios
jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
como cláusula geral, assenta no art. 422, com o texto: “Os contratantes são
obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé”.
A influência do princípio da boa-fé objetiva no direito europeu é bem retratada
por Karina Fritz (2007, p. 210, grifo da autora):
Na realidade, a boa-fé objetiva enquanto princípio ético de comportamento encontra-
se, embora em diferente intensidade, enraizada na cultura jurídica dos países
europeus, sendo, por isso, considerada um princípio jurídico do direito privado
europeu. Segundo o Münchener Kommentar, embora uma norma semelhante ao §
242 do BGB exista em alguns ordenamentos jurídicos sendo o suíço, nesse
ponto, o que mais se aproxima do alemão, embora o país não faça parte da União
Européia a idéia em si da boa-fé objetiva encontra ressonância em todas as
tradições jurídico-culturais dos países europeus. Por isso, o Tribunal Europeu já
reconheceu em diversas decisões que o princípio da boa-fé objetiva é parte
fundamental da ordem jurídica comum européia, de modo que cada vez mais os
ordenamentos jurídicos nacionais (inclusive o francês) aproximam-se da concepção
desenvolvida pelo direito alemão.
José Augusto Delgado (2003, p. 397) classifica a boa-fé (concebendo-a enquanto
princípio) como conceito jurídico indeterminado e vincula sua presença no Código Civil
brasileiro de 2002 a um mandato constitucional expresso:
O princípio da boa-fé, embora seja um conceito jurídico indeterminado, está inserido
em nosso ordenamento jurídico por disposição expressa contida na Constituição
Federal quando proclama uma atuação do Estado e dos particulares voltada para
concretização da justiça social, da moralidade, da proporcionalidade, da
razoabilidade e da segurança jurídica. A boa-fé exprime uma regra de honestidade
que deve ser seguida em qualquer tipo de relação jurídica, quer de ordem privada,
quer de ordem pública.
40
O princípio da boa-fé nasce no Código, em sua Parte Geral, e por ele perpassa,
penetrando na sua Parte Especial e em todos os seus Livros e Títulos, onde houver negócio
jurídico, inclusive de caráter não-patrimonial
21
.
A boa-fé como princípio, segundo Nerilo (2007, p. 76):
[...] se aplica graças às transformações da teoria tradicional das fontes dos direitos
subjetivos e dos deveres, que agora se caracterizam por ser um sistema aberto cuja
evolução e cujo sentido prático se perfazem com a incorporação dos casos do dia-a-
dia, exigindo dos profissionais do Direito uma postura pela qual deixem de ser
menos aplicadores de uma norma previamente qualificada para serem verdadeiros
autores.
Alocada, por sua vez, nas Disposições Gerais dos Contratos, no Livro das
Obrigações, a cláusula geral da boa-fé objetiva possui destinação específica, qual seja o
campo das relações obrigacionais.
O princípio da boa-fé, conforme observado no item anterior, deve ser visto na sua
dupla perspectiva. Subjetiva, quando relacionada à crença de estar agindo conforme o direito.
E objetiva, quando se refere à consideração dos legítimos interesses do outro, da contraparte,
o que obriga a quem assim considera, atuar segundo padrões de conduta, de honradez,
lealdade, cooperação etc.
22
O princípio tem largo espectro e alcance, estando presente em matéria de posse,
casamento, sucessão, sociedade empresarial, compra e venda, cessão de crédito, assunção de
débito, adimplemento e inadimplemento etc. Logo, não pode ser visto apenas no seu aspecto
objetivo.
Como já observado, uma vez que a cláusula geral constitui elo com os princípios
gerais de direito e com os próprios valores fundamentais previstos na Constituição, entende-se
que o princípio geral da boa-fé encartado no art. 113 do CC/2002, em seu duplo aspecto, é
reforçado em seu padrão objetivo pela regra do art. 422.
A propósito, esse foi o espírito que orientou o trabalho dos relatores da BGB,
documento legal que inspirou fortemente o Código Reale, assinalando Silva (1997) que a
21
O negócio jurídico também pode ser visto em setores do Código que não regulam interesses de caráter
estritamente patrimonial, como é o caso da regulação de visitas, guarda, adoção etc.
22
Diversamente, Francisco Amaral (2003a) entende que o princípio da boa-fé inserido no art. 113 do CC/2002
refere-se tão-somente à boa-fé no sentido objetivo, como regra de comportamento, reconhecendo, como três, as
funções da boa-objetiva: interpretativa, no sentido de ser um critério para estabelecer o sentido e alcance da
norma; integrativa, no sentido de que se constitui em princípio normativo a que se recorre para preencher
eventuais lacunas, e ainda uma função limitadora de direitos subjetivos, principalmente no campo da autonomia
privada. O princípio inserto no art. 113, segundo o mestre, teria uma função interpretativa-integrativa.
41
cláusula geral do § 242 da Lei civil alemã, outra coisa não significava, senão reforço ao
princípio da boa-fé constante do seu § 157.
A valer, o que se tem no diploma civil brasileiro é a cláusula geral do art. 422,
contendo em seu enunciado o princípio da boa-fé no seu aspecto objetivo que, ao contrário do
que normalmente sucede, foi expressamente previsto na norma pelo legislador. Isso não pode
gerar contradição ou mesmo tautologia com a afirmação segundo a qual as cláusulas gerais
são os princípios normatizados.
Na espécie, o princípio da boa-fé surge expresso no art. 113 do CC/2002 dada sua
relevância no contexto dos valores que nortearam a Comissão de notáveis, daí porque dizer
que constitui regra de interpretação para todo o Código, princípio estruturante do
ordenamento.
O art. 113, como assinalado, constitui o “pórtico de eticidade” da nova Lei civil
(LOTUFO, 2003c). Nesse sentir, poder-se-ia afirmar que o princípio constante do referido
artigo constitui fundamento da cláusula geral da boa-fé, prevista no art. 422 do mesmo
diploma. Contudo, mero ponto de partida para a adequação valorativa às circunstâncias do
caso concreto.
Não se pode confundir o emprego dos institutos jurídicos, o que é comum de
ocorrer tanto mais diante da boa-fé. Martins-Costa (1999, p. 342-343, grifo da autora) anota:
Um dos mais lamentáveis equívocos que cercam esta matéria é o que considera a
cláusula geral como uma espécie de proteifórmico “princípio geral”, aplicável à
totalidade do ordenamento. Pelo contrário, as cláusulas gerais estão situadas sempre
setorialmente, num certo domínio de casos. No direito civil são exemplos o campo
da responsabilidade por culpa, o das tratativas negociais ou fase formativa dos
contratos e o da execução dos contratos. Se assim não fosse, aliás, não teriam
qualquer utilidade prática e importariam na mais completa assistematização do
direito. A análise comparativa demonstra que a cláusula geral da boa-fé, endereçada
ao Juiz e por ele adequadamente utilizada, tem, primariamente, função
individualizadora, conduzindo ao “direito do caso”. Secundariamente, permite a
formação de instituições “para responder aos novos fatos, exercendo um controle
corretivo do direito estrito, ou enriquecedor do conteúdo da relação obrigacional, ou
mesmo negativo em face do direito postulado pela outra parte”. Como exemplo, as
instituições da supressio, da surrectio, da violação positiva do contrato, do venire
contra factum proprium, e a da culpa in contrahendo em seu perfil atual [...].
A dificuldade de estabelecer essa distinção e correlação entre os institutos em foco
quiçá se deva ao fato de, historicamente, sob a égide do Código Civil brasileiro de 1916, não
se ter a boa-fé como princípio nem como cláusula geral do sistema, ausências que exigiam
grande esforço lucubrativo por parte dos juízes que, por vezes, utilizavam o princípio
implícito com função típica da cláusula geral da boa-fé.
42
Eis a razão pela qual sobreleva conhecer as funções da boa-fé objetiva no
sistema brasileiro
23
, produto do trabalho da jurisprudência alemã na interpretação sistemática
do § 242 da BGB, enumeradas por Judith Martins-Costa (1999) como: cânone hermenêutico-
integrativo do contrato, norma de criação de deveres jurídicos e norma de limitação ao
exercício de direitos subjetivos.
Como cânone hermenêutico-integrativo, a boa-fé objetiva serve ao preenchimento
de lacunas pelo julgador, que explicitará o sentido do conjunto contratual efetivamente
verificado, analisando o modo de atuação das partes com base em princípios jurídicos e em
outros valores, de modo a não permitir que o contrato, como regulação objetiva, dotada de um
específico sentido, atinja a finalidade oposta ou contrária àquela que, razoavelmente, à vista
de seu escopo econômico-social, seria lícito esperar (MARTINS-COSTA, 1999).
Assim, a primeira função da boa-fé objetiva apresenta-se como norma que
flexibiliza e integra as disposições contratuais. Além disso, é relevante na atuação como
norma corretiva, podendo inserir na relação obrigacional direitos e deveres diversos da lei ou
da vontade das partes (FRITZ, 2007). Para Peter Härbele (2003, p. 30), isso somente é factível
porque “a interpretação é um processo aberto que conhece possibilidades e alternativas
diversas”.
No direito alemão, os §§ 133, 157 e 242 da BGB são dedicados às regras de
interpretação do negócio jurídico, e os §§ 242 e 157 tratam da boa-fé objetiva, tendo este
último a seguinte redação: “Os contratos devem ser interpretados conforme exige a boa-fé
objetiva, com consideração aos usos e costumes do tráfico”.
Essa norma possui similar redação com o art. 113 do atual Diploma civil
brasileiro sem correspondente com o Código de 1916. De se ver que tal artigo representa a
função hermenêutica-integrativa da boa-fé.
23
A respeito das funções conferidas pelo Código Civil de 2002 à boa-fé objetiva, Flávio Tartuce (2007, p. 46-47)
menciona três: “A primeira é a função de interpretação, pois os negócios jurídicos em geral devem ser
interpretados conforme a boa-fé objetiva e os usos e os costumes do local da celebração (art. 113 do CC). A
segunda é a função de controle, pois aquele que a desrespeita comete abuso de direito, nova modalidade de
ilícito (art. 187 do CC). A terceira e última é a função de integração, pois a boa-fé objetiva deve estar presente
em todas as fases do contrato (art. 422 do CC)”. Insistindo nas funções da boa-fé objetiva na nova teoria
contratual, Lima (2007b, p. 516) enumera que três delas apresentam especial reflexo no instituto da resolução:
“A primeira é uma função criadora, porque cria novos deveres, anexos aos deveres de prestação contratual
derivados da vontade, como os deveres de informar, de cuidado, cooperação. A segunda é uma função
interpretadora que permite a visão do vínculo obrigacional como uma totalidade ou um processo formado por
uma série de atos tendentes a uma finalidade que é a utilidade econômico-social do contrato. A terceira é uma
função limitadora, reduzindo a liberdade de atuação dos parceiros contratuais ao definir algumas condutas e
cláusulas como abusivas, seja controlando a transferência dos riscos profissionais e libertando o devedor em face
da não-razoabilidade de outra conduta”.
43
O § 133 da BGB, que se dedica a averiguar a intenção das partes no momento da
celebração, reza: “Na interpretação de uma declaração de vontade é de se investigar a
verdadeira vontade e não estar-se preso ao sentido literal da frase”.
Semelhante teor era encontrado no art. 85 do CC/1916, sendo repetido no art. 112
do CC/2002, como se lê: “Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas
consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem”.
Em sua função de norma de criação de deveres jurídicos, a boa-fé objetiva faz
nascer deveres instrumentais que disciplinam a relação obrigacional entre as partes,
independentemente de suas vontades.
Esses deveres (designados pela doutrina germânica como laterais, acessórios de
conduta e de proteção, ou tutela) destinam-se a ambos os sujeitos do vínculo, credor e
devedor.
Para Martins-Costa (1999, p. 439-440, grifo do autor), os deveres instrumentais:
[...] não estão orientados diretamente ao cumprimento da prestação ou dos deveres
principais, como ocorre com os deveres secundários. Estão, antes, referidos ao exato
processamento da relação obrigacional, isto é, à satisfação dos interesses globais
envolvidos, em atenção a uma identidade finalística, constituindo o complexo
conteúdo da relação que se unifica funcionalmente. Dito de outro modo, os deveres
instrumentais “caracterizam-se por uma função auxiliar da realidade positiva do fim
contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos
concomitantes”, servindo, “ao menos as suas manifestações mais típicas, o interesse
na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em
conexão com o contrato [...]”.
Por fim, a boa-fé objetiva, como limite ao exercício de direitos subjetivos, revela-
se quando o exercício de tais direitos caracteriza conduta incompatível com os deveres
instrumentais, notadamente os de lealdade e cooperação, o que sucede na impossibilidade de
resolução contratual frente ao adimplemento substancial, na possibilidade de paralisação da
ação do autor inadimplente por meio da exceção do contrato não cumprido e nas argüições
das regras tu quoque e venire contra factum proprium etc. (MARTINS-COSTA, 1999).
44
1.3.2 A boa-fé objetiva, a autonomia privada e a Constituição
Com o abandono do dogma da vontade, de fundamento subjetivista, e do
individualismo burguês de feição liberal, a autonomia privada
24
, de concepção objetiva,
ganhou força, e é compreendida como potestade, como faculdade deferida pelo Estado ao
particular, de auto-regulamentar seus próprios interesses e negócios, conforme sua liberdade
contratual, nos limites da lei (VELTEN, 2006).
Entre as divisas impostas pela lei exsurge a boa-fé objetiva, obtemperando a
atuação do particular com base em princípios de probidade e eticidade. O ordenamento
jurídico sai melhorado, sobreleva-se a correção de conduta que passa a inspirar e fundamentar
a relação obrigacional em todas as suas fases: de tratativa, conclusão, execução e pós-
encerramento do vínculo.
A consagração desses novos princípios resulta na reconstrução do direito privado,
que passa a viver momento histórico singular, assumindo a importante missão de fazer
realizar os valores fundamentais da Constituição nas relações interprivadas, impondo ao
mesmo tempo, a vinculação imediata e a observação desses valores pelos particulares e pelo
Estado, em suas esferas de atuação
25
, entendendo Konrad Hesse (2001, p. 81-83) que o
24
Para Giselda Hironaka e Flávio Tartuce (2007, p. 49) “[...] o princípio da autonomia privada pode ser
conceituado como sendo regramento básico, de ordem particular – mas influenciado por normas de ordem
pública –, pelo qual, na formação dos contratos, além da vontade das partes, entram em cena outros fatores:
psicológicos, políticos, econômicos e sociais. Trata-se do direito indeclinável da parte de auto-regulamentar os
seus interesses, decorrente da sua própria dignidade humana, mas que encontra limitações em normas de ordem
pública, particularmente nos princípios sociais contratuais”. Rosa Maria de Andrade Nery (2002, p. 115-116,
grifo da autora) assim diferencia autonomia da vontade de autonomia privada: “[...] a idéia de autonomia da
vontade liga-se à vontade real ou psicológica dos sujeitos, no exercício pleno da liberdade própria de sua
dignidade humana, que é a liberdade de agir, ou seja, a raiz ou a causa de efeitos jurídicos. Respeita, portanto, à
relação entre vontade e declaração e é um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana, porque
destaca a liberdade de agir da pessoa, sujeito de direitos. Todas as disciplinas jurídicas em geral, e o Direito
privado em particular, velam pelo respeito, pela correspondência verdadeira entre a vontade do sujeito e sua
declaração, que encontra ocasião de proteção suprema na teoria geral do Direito privado, eis que se a vontade
não foi autônoma e livremente expressada (por dolo, erro, coação etc.), abre-se ocasião de se invalidar o ato ou
negócio jurídico que a declaração viciada possa ter ensejado. [...] A autonomia privada é outra coisa. É princípio
específico de Direito privado. Situa-se em outro plano, ligada à idéia de poder o sujeito de Direito criar normas
jurídicas particulares que regerão seus atos. Manifesta-se, principalmente, nos negócios jurídicos. A autonomia
privada, como fonte normativa, é fenômeno que permite que o sujeito realize negócios jurídicos (principalmente
negócios jurídicos bilaterais, ou seja, contratos), que são extraordinários mecanismos de realização do Direito, na
medida em que o negócio jurídico é um modo de manifestação de normas jurídicas (ainda que particulares). A
autonomia da vontade desafia, por isso, o verso e o reverso de uma mesma medalha: é a um tempo a
confirmação da evidência de um espaço jurídico livre da ingerência do Estado, destinado na normatividade
particular; de outro lado, em sentido contrário, é a constatação da existência de reserva de um espaço de
incidência apenas de normas cogentes, exclusivo do exercício do poder, vetado à liberdade negocial”.
25
A passagem da Constituição para o centro do ordenamento é registrada por Finger (2000, p. 94): “A condição
de norma superior do ordenamento jurídico, ostentada pela Constituição, é revelada basicamente por duas
razões: (i) por se constituir em fonte primária das normas jurídicas, fonte das fontes; e, (ii) por expressar uma
45
Direito Constitucional e o Direito Privado aparecem como partes recíprocas que “se
complementan, se apoyan y se condicionan” e o significado do primeiro para o segundo
“consiste em singulares funciones de garantia, orientación e impulso”.
Ademais, a superação e as transformações de institutos presentes no ordenamento
jurídico comprovam a proposição de que “o Direito não está recluso em si mesmo, e que, por
isso, tanto quanto outros ramos, o direito civil responde às demandas sociais, e estas, uma vez
alteradas, resultam em correspondentes alterações nos institutos jurídicos” (NEGREIROS,
2006, p. 7).
Essa evolução enseja grande interpenetração dos domínios do direito público e do
direito privado
26
, sepultando a grande dicotomia
27
, apregoada por Bobbio (2007), ditada pelo
critério da utilidade encontrado na célebre frase de Ulpiano: “Publicum ius est quod ad
intenção fundacional, com pretensão de permanência (revelada pela ‘rigidez’). [...] Como corolário dessa
supremacia, entende-se que a Constituição exige que todos os atos praticados sob sua égide a ela se conformem,
sob pena de inexistência, nulidade, anulabilidade ou ineficácia (princípio da inconstitucionalidade).
Conseqüente, também, à idéia de hierarquia normativa, é a das normas constitucionais constituírem
heterodeterminação negativa (oferecendo limites à legislação infraconstitucional) e positivas (conformando
também o conteúdo material das normas hierarquicamente inferiores). Nesse sentido, todo o direito
infraconstitucional é direito constitucionalizado, não se podendo, da mesma forma, ter um direito civil autônomo
em relação ao Direito Constitucional. Superou-se, também, consequentemente, outra divisão, a qual, mais que
metodológica, expressava toda uma visão do ordenamento jurídico: a absoluta separação entre direito público e
direito privado”.
26
Refletindo sobre a distinção entre os conceitos de direito blico e de direito privado, Rosa Maria de Andrade
Nery (2002, p. 91-93, grifo da autora) anota que: “As situações jurídicas privadas pautam-se pela igualdade e
pela liberdade, enquanto as situações jurídicas públicas m embasamento em princípios diferentes, dos quais os
da autoridade e da competência são os mais marcantes. Em virtude disso, o sujeito de direitos, no âmbito de
situações particulares, pode agir livremente no contexto de todas as situações jurídicas que não lhe sejam
proibidas (atipicidade dos negócios jurídicos privados). Diferentemente se com o sujeito que realiza atos e
negócios que se inserem no contexto de trato das coisas públicas, a quem se permite apenas a realização daquilo
para cujo exercício esteja previamente autorizado (princípio da legalidade ou da tipicidade dos negócios de
Direito público: a administração pública pode agir secundum legem). Na esfera das situações jurídicas de
Direito privado previnem-se ingerências ou intromissões arbitrárias da estrutura do poder nas questões de
interesse imediato e privado do homem, para cuja segurança e felicidade o direito existe. Faculta-se ao sujeito de
Direito, à pessoa natural e à pessoa jurídica de Direito privado um mínimo de liberdade e de possibilidade dentro
do espaço jurídico-sociocultural a que pertence. Por isso que ideologicamente é correto afirmar que o Direito
privado contém regramentos que impõem limites para a defesa da pessoa contra as investidas do Estado e contra
o arbítrio de grupos. [...] É certo que se tem procurado distinguir o Direito público do Direito privado a partir de
diferentes critérios: a) interesse jurídico que se busca resguardar; b) natureza jurídica do sujeito da situação sob
análise; c) qualidade da posição jurídica do sujeito da situação vivenciada. Quem opta pelo primeiro critério de
distinção parte do pressuposto de que o sistema de Direito público visa à proteção de interesses públicos,
enquanto o sistema de Direito privado corresponderia à proteção de interesses privados. Na seqüência, o segundo
critério busca distinguir o Direito público do Privado a partir da natureza do sujeito de Direito, o que implica
dividir as normas jurídicas a partir dos sujeitos aos quais elas são endereçadas. Se dirigidas ao Estado, são
normas de Direito público; se endereçadas aos particulares, normas de Direito privado. Num terceiro momento,
considera-se de Direito público a situação jurídica vivenciada pelo sujeito que atua com poderes de autoridade
(ius imperii), e de Direito privado a situação de quem atua sem a invocação desses poderes”.
27
Pablo Malheiros da Cunha Frota (2007, p. 555) assevera que tal divisão foi rompida pelos ditames
constitucionais. Segundo ele, “Percebe-se a natureza híbrida e a retroalimentação do Direito público com o
Direito privado. Edificam-se, dessa forma, os direitos privado-públicos ou originais, como também os direitos
público-privados, vocacionados à função promocional do Direito [...]. Dessa forma, não há falar, ante ao
momento s-positivista vivido, em Direito privado, tutelador das relações entre particulares, e Direito público,
regedor das relações entre Estado e particulares e Estado e Estado, salvo para fins didáticos”.
46
statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem”. Como observa
Giuseppe Lumia (2003, p. 56), “romano” e “público” têm idêntico significado.
As normas constitucionais perdem o caráter meramente programático, deixam de
ser essencialmente dirigidas à estrutura do Estado e assumem característica normativa e
aplicabilidade imediata, passando ao centro do sistema legal, inclusive, do direito privado,
que se vê fortemente influenciado e interpretado a partir da Constituição. Para Hesse (2001, p.
84-85):
El Derecho Constitucional reacciona en general con rapidez a los cambios de la
realidad; gracias a la amplitud y apertura de sus normas está en situación de tener en
cuenta las transformaciones de los presupuestos y de las exigencias más rápidamente
y más fácilmente que el Derecho Privado. Debido a su influencia sobre el Derecho
Privado, se convierte así en un medio para su desarrollo. De este modo puede actuar
como motor de un cambio también de la legislación y de la jurisprudencia jurídico-
privadas.
A antiga forma de ver o direito privado, resultado da influência cultural francesa
que predominou em boa parte do país, fez do Código Civil o centro das relações privadas e
como base única de interpretação, somente sendo ampliada a visão do direito privado com o
desenvolvimento dos estudos de Teoria Geral do Direito, Lógica e Filosofia do Direito
(LOTUFO, 1999).
Natural que assim fosse, porquanto, o Código Civil francês foi concebido com
base no direito romano, diante do que o exame do Direito Civil era apenas exegético. Não
existia uma teoria geral
28
.
Mas essa visão redutora do Direito Civil, que já vinha em franco declínio, hoje se
encontra definitivamente ultrapassada
29
. Com a difusão internacional dos direitos nascidos nas
Constituições francesa e americana, o papel das Cartas Políticas dos países em geral foi
sobremodo elevado. As atuais Constituições possuem conteúdo mais amplo, não se limitam a
apenas cuidar da estruturação do Estado, vão além. Assumem o papel de transformadoras das
velhas estruturas e instituições do direito privado.
Para Martins-Costa (2002a, p. 625):
28
No Brasil, registrou Lotufo (2004), que Teixeira de Freitas foi precursor da criação de Sistema, baseado na
teoria dos pandectistas alemães, muito embora sua obra não tenha sido aproveitada por Clóvis Beviláqua na
elaboração do Código Civil brasileiro de 1916, servindo, porém, de esteio para os Códigos Civis da Argentina,
Uruguai e Paraguai.
29
Para Gomes (1961, p. 5, grifo do autor): “Privatistas e publicistas proclamam que o Direito privado está sendo
dominado, no seu espírito e na sua técnica, pelo Direito público. Contrariando a regra que Montesquieu traçara,
com mão de mestre, nas páginas imortais do Espírito das Leis, regulam-se hoje, pelos princípios do Direito
político, as cousas que dependem dos princípios de Direito civil”.
47
[...] no que concerne ao direito privado, os dados do projeto oitocentista foram
subvertidos. Hoje não é concebível visualizar-se o direito privado reduzindo-o ao
Código Civil, ao digo Comercial e a uma ou outra “lei extravagante”. Não é mais
concebível entender-se o direito privado como um conjunto de regras de condutas
neutras, apolíticas e técnicas, isto é, regras tão-somente instrumentais, possíveis de
ser postas, criadas e desenvolvidas por uma autoridade estatal onisciente, totalitária
e totalizante e, neste sentido, divorciada da criadora experiência cotidiana dos usos
da sociedade civil e dos valores fundamentais consagrados na, ou deduzidos da
Constituição.
A necessidade de reflexão e revisão das antigas teorias interpretativas em face do
novo direito já consistia preocupação de Pietro Perlingieri (2002), que defendia um sistema de
direito privado mais harmonizado com os princípios fundamentais, assim como a redefinição
dos fundamentos e extensão dos institutos jurídicos por intermédio de um esforço de
modernização das teorias de interpretação.
O direito privado de perfil constitucional e funcionalizado também foi objeto de
estudo de Karl Larenz e Mota Pinto, entre outros, sendo igualmente precursor no tema o
próprio Beviláqua, que em 1934 admitia os efeitos diretos e imediatos da Constituição
como norma jurídica (LOTUFO, 1999).
Também antes do atual Código Civil entrar em vigor, Tepedino (2004) defendia a
integração normativa do Código de Beviláqua com as leis especiais e a Constituição de 1988,
considerando esta como a tábua axiológica e fundamento de validade de institutos tradicionais
do direito privado. Para o mestre carioca, o direito privado deve ser lido à luz da
Constituição
30
que, por seu turno, confere-lhe conteúdo social e mais eficácia prática, guiando
o intérprete na obtenção de uma solução mais justa e humana para os diversos conflitos de
interesse. Nesse prisma, o Código Civil de 2002 submete-se:
[...] à denominada Constitucionalização do Direito Civil, expressão que evoca a
necessidade de aplicação e interpretação de todas, sem exceção, as leis de direito
privado conforme as normas e princípios constitucionais, ou seja, conforme a tábua
de valores defendidos pela Constituição Federal de 1988, funcionando esta, como
vértice de um sistema aberto e como eixo central do ordenamento privado [...]
(CUNHA, 2007, p. 63).
30
Tepedino (2004, p. 224), com maestria, destaca o papel da Constituição da República na regulação das
relações antes entregues somente à iniciativa privada: “A Constituição Federal cuidou analiticamente de diversos
institutos do direito privado, embora tenha tido o cuidado de fixar, em seus quatro primeiros artigos, os
fundamentos e os princípios da República, de molde a vincular o legislador infraconstitucional e o intérprete a
uma reunificação axiológica que independa de regulamentação específica de cada um dos setores do
ordenamento. É preciso, pois superar os velhos limites das doutrinas do direito constitucional tendentes a
restringir a atuação das chamadas normas programáticas, não auto-aplicáveis. Toda regra constitucional é norma
jurídica com efeitos imediatos sobre o ordenamento infraconstitucional. A Constituição é toda ela norma
jurídica, seja qual for a classificação que se pretenda adotar, hierarquicamente superior a todas as demais leis da
República, e, portanto, deve condicionar, permear, vincular diretamente todas as relações jurídicas, públicas e
privadas”.
48
Dessume-se desse escorço doutrinário que o direito privado atual passa a ser
integrado também pela Constituição, que atua como norma vinculante, de efeito imediato e
não apenas como critério de hermenêutica. A par disso, Konrad Hesse (1991, p. 18) esclarece:
[...] a força vital e a eficácia da Constituição assentam-se na sua vinculação às forças
espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu
desenvolvimento e a sua ordenação objetiva. A Constituição converte-se, assim, na
ordem geral objetiva do complexo de relações da vida.
Assim, ao longo do século XX, o Código Civil de 1916, até então tido por
“Constituição do direito privado”, perdeu centralidade e:
Os textos constitucionais, paulatinamente, passaram a definir princípios relacionados
a temas antes reservados exclusivamente ao Código Civil e ao império da vontade: a
função social da propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da
família, matérias típicas do direito privado, passaram a integrar uma nova ordem
pública constitucional. [...] se a normativa constitucional se encontra no ápice do
ordenamento jurídico, os princípios nela presentes se tornaram, em conseqüência, as
normas diretivas, ou normas-princípios, para a reconstrução do sistema de direito
privado (KLEE, 2008, p. 89-90).
Esses novos contornos repercutem difusamente em todo o sistema de direito
privado e, na lição de Teresa Negreiros (2006, p. 11), “o processo de constitucionalização do
direito civil implica a substituição do seu centro valorativo em lugar do indivíduo surge a
pessoa. E onde dantes reinava, absoluta, a liberdade individual, ganha significado e força
jurídica a solidariedade social”.
Ao tratar da força normativa de dispositivos da Lei Fundamental alemã, Claus-
Wilhelm Canaris (2003) tece severas críticas aos autores que defendem a eficácia apenas
mediata do legislador ordinário aos direitos fundamentais. Para Canaris a vinculação do
legislador de direito privado aos direitos fundamentais é imediata, não fazendo sentido
advogar tese oposta, por certo violadora do art. 1º, 3 da Lei Fundamental alemã, que impõe
eficácia normativa imediata dos direitos fundamentais.
O mestre germânico dizia não compreender o que alguns juristas pretendiam
sustentar com a variante da “eficácia mediata em relação a terceiros”, denominando esta
teoria de “teoria misteriosa” (CANARIS, 2003, p. 28-29).
A inquestionável eficácia direta dos direitos fundamentais sobre o direito
privado
31
, assim como a vinculação imediata do legislador ordinário e do aplicador da lei aos
31
Sarlet (2000, p. 154) defende que a vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais somente
poderá ser afastada quando se “tenha por destinatário precípuo o poder público” e acrescenta: “Convém lembrar,
49
princípios e valores insertos na Constituição, conforme apregoado por Canaris (2003),
impõem a sistematização e o aprofundamento dos estudos de uma nova disciplina, a que se
tem chamado de Direito Civil Constitucional, cujo termo inicial pode ser a análise de
conceitos já lapidados pela boa doutrina.
Como exemplo, tem-se Joaquín Arce y Flórez-Valdés (1991), que menciona um
sistema de normas e princípios normativos integrados na Constituição, tendo como objeto a
proteção da pessoa em si mesma considerada e em suas dimensões familiar e patrimonial.
Na mesma linha, Giovanni Ettore Nanni (2004) defende a integração do direito
privado no texto constitucional brasileiro, afirmando que é possível identificar a existência de
vários dispositivos de direito privado na CF/1988, e da necessária obediência da ordem
privada às normas constitucionais, como em questões relativas à pessoa, família, propriedade,
sucessão e obrigações em geral
32
.
Tal percepção é pacífica na doutrina e como bem esclarece Martins-Costa (2002b,
p. 627):
Constituição e direito privado atuam, assim, numa relação ou de coincidência ou de
dialética complementariedade. Coincidência quando elegem, ambos como seu
princípio fundante, a dignidade da pessoa, pois não é por acaso que, a par de a
Constituição arrolá-lo em seu primeiro artigo, a classificação do Código inicia
com a proteção à pessoa e à sua personalidade. Complementariedade quando às
normas infraconstitucionais fica reservado o papel de especificar, detalhar a
completa implementação dos princípios constitucionais, e, bem assim, de suas
diretivas.
Segundo Rosa Maria de Andrade Nery (2002, p. 113-114), o princípio da
dignidade da pessoa humana ecoa como princípio geral de direito privado, não apenas como
“[...] uma arma de argumentação, ou uma tábua de salvação para a complementação de
interpretações possíveis de normas postas. Ele é a razão de ser do Direito. Ele se bastaria
sozinho para estruturar o sistema jurídico”.
Adverte-se que esse novo direito privado, funcionalizado e de perfil
constitucional, não exprime uma nova categoria do Direito Civil ou uma disciplina diversa.
Adjetivá-lo de Direito Civil Constitucional tem apenas o propósito de reforçar para o
neste ponto, que a Constituição Brasileira de 1988 expressamente albergou em seu texto normas de direitos
prestacionais tendo como destinatários em primeira linha sujeitos privados [...]”.
32
A constitucionalização do direito privado é revelada em dois aspectos: formal e material. No tocante ao
aspecto formal, entende-se que as Constituições passaram a dispor sobre normas que somente constavam dos
códigos civis, a exemplo da Constituição Federal que versa sobre usucapião, direito de família, juros etc. O
segundo aspecto demonstra que a Constituição passou a ser fonte de valores informadores do direito civil
(SILVA, 2003).
50
intérprete a idéia de que se operou uma profunda mudança na forma de ver e interpretar o
Direito, o que hoje se faz, obrigatoriamente, através da Constituição Federal.
A passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico revela-se através da
atuação daquela como “filtro axiológico” na aplicação e interpretação do Direito Civil,
fenômeno retratado na frase “Ontem os Códigos; hoje as Constituições. A revanche da Grécia
contra Roma”
33
(BARROSO, 2007b, p. 23).
No mais, como adverte Gustavo Tepedino (2004), a adjetivação serve somente
para privilegiar os valores não-patrimoniais, como a dignidade da pessoa humana, o
desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para os
quais se dirigem a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais,
reforçando a idéia de que velhos institutos, como o contrato, devem restar funcionalizados
socialmente.
Desse modo, a nova configuração do direito privado é vista sob o prisma do
fenômeno constitucional, que objetiva implantar um senso de justiça social às relações
privadas. Assim, Direito Civil e Direito Constitucional, situados num mesmo plano, assumem
uma posição programática na vida de relações, ampliando sobremaneira o conteúdo
interpretativo das normas:
A leitura do direito civil sob a ótica constitucional atribui novos fundamentos e,
consequentemente, novos contornos à liberdade contratual. Em meio ao processo de
despatrimonialização ou de funcionalização do direito civil, a noção de autonomia
da vontade sofre profundas modificações no âmbito do contrato, sistematizadas na
afirmação de que a autonomia negocial, diferentemente das liberdades existenciais,
não constitui em si mesma um valor. Ao contrário, a livre determinação do conteúdo
do regulamento contratual encontra-se condicionada à observância das regras e dos
princípios constitucionais, o que significa, no quadro de valores apresentado pela
Constituição brasileira, conceber o contrato como um instrumento a serviço da
pessoa, sua dignidade e desenvolvimento (NEGREIROS, 2006, p. 107).
Esse é o direito privado do tempo atual. O direito que tem a dignidade do ser
humano, a sociabilidade e a solidariedade como parâmetros maiores, que possui a
Constituição Federal no vértice do sistema e como parâmetro de funcionalidade.
Sob essa nova panorâmica jurídica, importante frisar que a autonomia da vontade
e a autonomia privada representam categorias jurídicas distintas. A teoria que subjaz à
primeira estriba-se na idéia de que todo sujeito possui liberdade bastante para contratar à
33
Primeira parte da frase atribuída a Paulo Bonavides e complementada por Grau (2001).
51
vontade, sendo importante apenas que externe a manifestação dessa vontade
34
livre de vícios.
A teoria que baseia a segunda advém da concepção de direito normativo, da potestade de onde
emanam normas inferiores, criadas, não pelo Estado, enquanto centro de poder, mas pelos
próprios particulares que vão sofrer sua incidência. Dessa forma:
La autonomía privada es el poder de dictarse uno a mismo la ley o el precepto, el
poder de gobernarse uno a mismo. Podría también definirse como un poder de
gobierno de la propia esfera jurídica, y como está formada por relaciones jurídicas,
que son el cauce de realización de intereses, la autonomía privada puede igualmente
conceptuarse como el poder de la persona para reglamentar y ordenar las relaciones
jurídicas en las que es o ha de ser parte. La autonomía privada es libertad individual.
Reconocer libertad significa permitir hacer, dar al individuo una esfera de actuación,
pero reconocer autonomía es decir algo más: que el individuo no sólo es libre, sino
que además soberano para dictar su ley en su esfera jurídica. En otras palabras, un
reconocimiento del valor jurídico de sus actos, que serán vinculantes e preceptivos
(DÍEZ-PICAZO; GULLÓN, 2005a, p. 379).
Sendo uma potestade auto-reguladora, a autonomia privada mantém
características de direito, sendo, no entanto, restrita pela norma estatal, que tem caráter
absoluto.
Para bem expressar os limites da autonomia privada, Lotufo (2004), em suas
lições acadêmicas, apresenta o exemplo da gema do ovo, que pode ser dura ou mole, mas
estará sempre limitada ao centro do ovo. Do mesmo modo, a faculdade que os particulares
possuem de auto-regularem suas relações, com maior ou menor variação, estará sempre
delimitada pela lei.
E, se era assim na antiga ordem legal, com a influência atualmente exercida
pela Constituição no Direito Civil, a autonomia privada (enquanto liberdade dos particulares
para ajustar suas próprias normas) sofre importantes modificações, que repercutem com força
no sistema, de tal ordem que não é mais adequado proclamar a máxima privatística segundo a
qual o que não é vedado é permitido
35
.
34
Antonio Junqueira de Azevedo (2007, p. 82, grifo do autor), em sua obra “Negócio jurídico: existência,
validade e eficácia”, entende que: “[...] a vontade não é elemento do negócio jurídico; o negócio é somente a
declaração de vontade. Cronologicamente, ele surge, nasce, por ocasião da declaração; sua existência começa
nesse momento; todo o processo volitivo anterior não faz parte dele; o todo consiste na declaração. Certamente, a
declaração é o resultado do processo volitivo interno, mas, ao ser proferida, ela o incorpora, obsorve-o, de forma
que se pode afirmar que esse processo volitivo não é o elemento do negócio. A vontade poderá, depois,
influenciar a validade do negócio e às vezes também a eficácia, mas tomada como iter do querer, ela não faz
parte, existencialmente, do negócio jurídico; ela fica absorvida inteiramente absorvida pela declaração, que é seu
resultado”.
35
María Paz Sánchez González (1991, p. 67) traça a evolução histórica do instituto da autonomia da vontade:
“Historicamente, el principio de autonomía de la voluntad apareció formulado en el artículo 1.134 del Código
Civil francés. En los orígenes del movimiento codificador se va a considerar que es válido todo convenio,
siempre que no esté expresamente prohibido. Esta concepción liberal de la autonomía da la voluntad se entendía
como la atribución al individuo de ‘una reserva de caza’ o ‘zona protegida’ en la que lo Estado no podía entrar.
52
Doravante, é adequado afirmar que está permitido tudo aquilo que está dentro do
conteúdo da autonomia privada. Dito espirituoso: o que está na “gema do ovo”. Nada obstante
isso:
[...] é possível considerar a autonomia privada como valor de dignidade
constitucional, decorrente do sistema adotado pela nossa carta de direitos (art. , §
2º), mas mais diretamente do princípio máximo da dignidade da pessoa humana.
Pois esta resulta inimaginável sem a auréola de liberdade que constitui a autonomia
individual (GEHLEN, 2002, p. 205).
A autonomia da vontade, embora continue a existir como forma de expressão da
liberdade, perde substancial relevância, não tendo mais a dimensão de outrora
36
, deixando de
ser “a rainha do mundo”, como dizia Lotufo (2004).
Nesse sentido, constata-se que:
A prevalência da vontade, entretanto, não atende mais às situações da vida moderna,
impondo-se uma concepção mais objetiva da relação obrigacional. Quer dizer, a
relação obrigacional não pode mais ser medida somente com base na vontade, mas
deve considerar os fatos ou as circunstâncias referentes ao contrato, permitindo-se
construir objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um
dinamismo que escapa, por vezes, até mesmo ao controle das partes (LIMA, 2007b,
p. 513-514).
Perlingieri (2002, p. 18-19), de seu turno, assevera que os atos de autonomia,
apesar de apresentarem fundamentos diversos:
[...] encontram um denominador comum na necessidade de serem dirigidos à
realização de interesses e de funções que merecem tutela e que são socialmente
úteis. E na utilidade social existe sempre a exigência de que atos e atividade não
contrastem com a segurança, a liberdade e a dignidade humana [...].
O mesmo autor ressalta ainda:
[...] superou-se o dogma do caráter sacro e inviolável do poder de autonomia e
colocaram-se em evidência os limites à extensão desse poder (e o sentido dessa
limitação) [...]. A autonomia privada não é um valor em si e, sobretudo, não
representa um princípio subtraído ao controle de sua correspondência e
Durante todo el siglo XIX se va a exluir toda limitación a la autonomía de la voluntad, fuera del mandato
expreso de la ley: ‘He aquí ante todo, una regla de Derecho que en ninguna parte está escrita: Todo lo que no
está expresamente prohibido por la ley, está permitido. La libertad es la regla; la liberdad privada es la regla,
salvo los limites fijados por la ley”.
36
Bruna Lyra Duque (2007b, p. 84) ressalta que: “[...] no Código Napoleônico, a autonomia da vontade foi
levada à máxima expressão, transformando-se na base de todo o sistema estabelecido para os contratos. Nessa
época, a liberdade humana foi considerada tão ilimitada que o acordo de vontades foi equiparado à lei. A
liberdade infinda foi superada pela necessidade de serem ampliadas as funções do Estado, que passou a
direcionar as relações contratuais, momento denominado de dirigismo contratual”.
53
funcionalização ao sistema das normas constitucionais. Também o poder de
autonomia, nas suas heterogêneas manifestações, é submetido aos juízos de licitude
e de valor, através dos quais se determina a compatibilidade entre ato e atividade de
um lado, e o ordenamento globalmente considerado, do outro (PERLINGIERI,
2002, p. 277).
Na nova moldura jurídica, o individualismo do Direito Civil clássico perdeu força.
Com a evolução da sociedade, com o advento dos contratos de massa e das transações
realizadas via internet (operações ordinariamente capitaneadas por grandes corporações), não
faz sentido manter a vontade no altiplano dos negócios jurídicos, com natural privilégio da
vontade da parte mais poderosa, recordando Henri Lacordaire, “entre o fraco e o forte a
liberdade escraviza e a lei liberta”
37
(LIMA, 2007a, p. 25).
Nesse sentido, a lição de Díez-Picazo e Gullón (2005a, p. 380-381):
Es frecuente la afirmación de que el principio de autonomía de la voluntad es un
principio de signo individualista y liberal, que debe ser sustituido por un principio
intervencionista más conforme con las concepciones sociales. No se va a negar que
el principio de autonomía alcanzó extraordinario vigor dentro de las direcciones
políticas de matiz liberal, como también es cierto que la corrección de las
exageraciones a que condujo su imperio bajo el reinado de las ideas liberales y la
misma enemiga contra éstas, son las causas del aumento de las restricciones que ha
sufrido en la época moderna.
E ao passo que o dogma da autonomia da vontade perde virilidade, delimita-se
cada vez mais o âmbito da potestade, do exercício da autonomia privada, nomeadamente na
seara da intervenção do Estado na economia e no direito das obrigações, onde o equilíbrio é
condição sem a qual não se alcança a liberdade
38
.
A liberdade, para não ser mera utopia, deve ser assegurada pelo Estado, que
através das leis delimita a margem de autonomia privada, promovendo o equilíbrio, com a
supressão da insuficiência do mais fraco, que deve ser protegido do mais forte.
Mota Pinto (1995) concebe o problema do funcionamento do mecanismo
contratual a partir da proporção e da harmonia entre o exercício da autonomia privada como
direito de liberdade e a justiça contratual.
Assim, a necessária igualdade de poder negocial entre as partes:
37
Originalmente, a célebre frase do religioso francês Henri Lacordaire é: Entre le fort et le faible, c’est la liberté
qui opprime et la loi qui affranchit (LIMA, 2007a).
38
Rodrigo Xavier Leonardo (2003, p. 73, grifo do autor) leciona que: “[...] sob uma perspectiva constitucional
atual, não se pode reduzir o significado de autonomia privada ao poder conferido aos sujeitos de regrar seus
interesses, idéia melhor indicada pela expressão autonomia contratual. A autonomia privada passa a ser apenas
um dos feixes de luz do princípio maior da dignidade da pessoa humana (CF, art. , III), e os atos provenientes
da autonomia não se reconduzem apenas à liberdade de iniciativa (CF, art. 1, IV) alvo de interpretação
restritiva por autorizada doutrina –, mas a toda e qualquer expressão, patrimonial ou não patrimonial, do sujeito”.
54
[...] não pode, porém, significar um controle externo que venha, em nome da sua
protecção, retirar aos particulares a possibilidade de, através do exercício da
autonomia privada, conformar as suas relações jurídicas como entenderem. Também
por este modo se atingiria o valor da liberdade que se quer proteger. Está, pois, em
causa o estabelecimento de um equilíbrio entre liberdade e justiça contratuais
(PINTO, 1995, p. 61, grifo do autor).
Daí se colhe que valores como liberdade, justiça, igualdade e solidariedade
constituem verdadeiros alicerces das relações jurídicas, em que o interesse social deve ter
clara predominância sobre a vontade particular e sobre a própria possibilidade de auto-
regulação das relações jurídicas, ficando limitado o âmbito de autonomia privada.
Esse o quadro atual: a vontade persiste como mero pressuposto, e a autonomia
privada, ganhando em importância, tem o seu campo de atuação cada vez mais delimitado
pelo Estado. Se a vontade individual como fonte produtora de direito, no dizer de Orlando
Gomes (1980), conduz ao arbítrio, a autonomia privada deve ser delimitada e encontrar no
negócio jurídico o melhor instrumento para sua veiculação.
A propósito, no desenvolvimento que fez sobre a teoria do negócio jurídico, o
mestre Gomes (1980) afirmava que a reelaboração da noção de autonomia privada teve como
ponto de partida exatamente a sua incorporação à teoria do negócio jurídico
39
; dessa forma,
com o declínio do voluntarismo, a categoria dos negócios jurídicos passou a encontrar
explicação fora do dogma da vontade, este levado às suas derradeiras conseqüências pela
Escola dos Pandectas.
De fato, a vontade individual não pode mais ser concebida senão subordinada à
apreciação normativa. A esse propósito, Ana Prata (1982) anotou que o próprio Savigny
recusava a idéia do negócio como ato meramente voluntário, advertindo que assim como
ninguém pode ser o juiz da própria causa, também, o mesmo indivíduo não deve ser o
legislador da própria norma.
39
Tiziana Chiusi (2007, p. 21-22) correlaciona autonomia privada e bona fides esclarecendo: “Que os contratos
se formam pelo acordo das partes é, para nós, uma obviedade. Essa compreensão, porém, devemos aos juristas
romanos que, à época da república, desenvolveram contratos que se formavam por meio de palavras mágicas
ou atos ritualísticos, mas simplesmente por meio de acordo de vontades entre os contratantes. Esses contratos
eram especialmente importantes para o comércio: compra e venda, mandato, sociedade, prestação de serviços,
empreitada e locação. Eles se baseavam na idéia de bona fides (boa-fé), ou seja, no poder-confiar na palavra
dada. A introdução desse princípio no mundo do Direito representa uma mudança de paradigma, haja vista que, a
partir de então, as partes, para a conformação dos negócios jurídicos, não mais necessitavam se servir de formas
ou fórmulas transmitidas, mas poderiam passar a definir-se livremente. Com isso se e a raiz da autonomia
privada, que perpassa a totalidade do direito contratual”.
55
Essa evolução teórica levou à verificação de que o negócio jurídico é, antes de
tudo, um ato voluntário integrado à previsão normativa, com base na qual os seus efeitos são
produzidos.
E é também Prata (1982) quem explica a imbricação existente entre autonomia
privada e negócio jurídico, assim como a constante transformação sofrida por ambos os
institutos a partir do desprestígio do voluntarismo individualista, acentuando que autonomia
privada e negócio jurídico constituem meio e instrumento de composição jurídica de
interesses de natureza essencialmente privada, que não são mais relegados na exclusiva
disponibilidade das partes.
Autonomia privada diz respeito à capacidade negocial, à possibilidade de as
próprias partes regrarem sua conduta segundo o limite permitido pelo direito. Assim, as partes
criam suas próprias normas individuais de caráter estritamente negocial, embora também
possa existir autonomia privada fora dos negócios patrimoniais, como nos direitos reais, de
família e até mesmo nos negócios extrapatrimoniais.
Nesse particular, Giovanni Ettore Nanni (1999) afirma não haver razão para se
restringir o campo da autonomia privada aos negócios patrimoniais, apontando como exemplo
de atuação da autonomia privada no campo extrapatrimonial, a legislação sobre as
transplantações de órgãos e tecidos, em que existe autonomia privada exclusivamente da
pessoa natural. Não há discussão de conteúdo patrimonial.
Outro exemplo é a corriqueira regulamentação de visitas a menores nos processos
de família, onde também se vislumbra, claramente, a presença de autonomia privada, refletida
em negócio jurídico de caráter não-patrimonial.
Tudo isso demonstra como são variadas as formas de manifestação da autonomia
privada por via do negócio jurídico, diferindo sensivelmente da autonomia da vontade.
Autonomia da vontade, como anota Amaral (2003a), tem conotação subjetiva; por
sua vez, a autonomia privada marca o poder da vontade de um modo objetivo e concreto.
De tal arte, a realização de qualquer negócio jurídico remete ao exame da
possibilidade de se criar as próprias regras, segundo as normas de direito material,
nomeadamente os princípios e regras do direito constitucional, entre os quais o da socialidade
e solidariedade, circunstância que, na lição de Luigi Ferri (1969), guarda relação com a
autonomia privada e não com a autonomia da vontade.
No ambiente atual do direito privado, de perfil constitucional, a vontade deixou de
ser elemento essencial do negócio jurídico, sendo mero requisito formal, pressuposto que
encontra limites na norma, limites impostos para assegurar que as relações jurídicas atendam
56
os valores fundamentais previstos na Constituição Federal e outros aspectos sociais previstos
na lei infraconstitucional, como a manutenção dos contratos.
Na lição de Negreiros (2006, p. 5):
Reconhece-se, pois, a necessidade de rever o âmbito da autonomia privada no
campo das relações jurídicas patrimoniais. Neste sentido, fala-se em “limites” à
soberania da vontade individual, “restrições” à liberdade contratual, ampliação do
conceito de ordem pública, regimes “especiais” ou “excepcionais” de tutela da parte
fraca em certas relações contratuais [...], supondo-se que, afora intervenções
pontuais, o significado e a função do direito civil permanecem indissociavelmente
ligados à proteção de interesses privados, cujo conteúdo compete aos próprios
indivíduos determinar, melhores juízes que são do seu próprio bem-estar.
Além das limitações, a autonomia privada também pode sofrer intervenções
estatais, visando, entre outros fins, promover o devido equilíbrio da relação jurídica e afastar
os atos lesivos e contrários à boa-fé, sempre com o propósito de repelir do ambiente jurídico
aspectos próprios do individualismo ou voluntarismo do direito antigo.
Essa intervenção é sobremodo sentida, como já frisado antes, no campo das
obrigações, como se percebe também com a inserção da cláusula geral da boa-fé objetiva no
contrato, a qual confere complexidade à relação obrigacional, dotando-a de deveres laterais ou
anexos de conduta, de observância obrigatória pelos contratantes.
1.3.3 A boa-fé objetiva e a função social do contrato
A ausência da boa-fé como cláusula geral, por muitos anos no ordenamento
jurídico brasileiro, conduziu a jurisprudência dos tribunais a encontrar soluções que, buscando
o equilíbrio da relação obrigacional, ultimaram por recorrer a institutos e princípios os mais
diversos, dificultando a sistematização judicial das decisões e o aprimoramento técnico do
direito.
Conforme a oportuna advertência de Martins-Costa (1999, p. 426-427, grifo da
autora), apresentada sob a vigência do Código Civil de 1916:
[...] pela ausência da cláusula geral da boa-fé, utilizou-se o recurso à eqüidade, ao
equilíbrio social e ao enriquecimento sem causa. Se é verdade que “nada impede que
assim se faça”, fácil é compreender, contudo, que o apelo a tantos institutos e
princípios diversos dificulta a sistematização judicial das decisões e o próprio
desenvolvimento do direito, cabendo aqui lembrar a observação de Clóvis do Couto
e Silva, segundo o qual, “nas situações mais evidentes”, é possível que o Juiz,
57
mesmo ausente a cláusula geral da boa-fé, julgue o caso “aplicando o princípio da
boa-fé, mas com outra denominação [...]. O que é mais grave, porém, é que o
recurso a tantos princípios diversos impede a promoção, progressiva, de
“tipicizações” normativo-jurisprudenciais de comportamentos contrários à boa-fé,
através da formação, via jurisprudencial, de grupos e casos “típicos” de sua
aplicação. Daí a razão pela qual se torna por vezes difícil perceber, na análise da
jurisprudência brasileira, a operatividade da boa-fé objetiva. A ausência de cláusula
geral, dificultando e assistematizando as decisões judiciais, conduz a que, não
raramente, não se perceba, com clareza, qual é a fonte dos deveres que são impostos
às partes. Estes, contudo, manifestam-se e são efetivamente declarados em sede
judicial, ainda que mascaradamente. Enquanto fonte normativa, a boa-fé objetiva
desempenha funções técnicas específicas, que se evidenciam em cada relação
contratual concretamente considerada.
O advento do novo Código Civil, todavia, não foi suficiente para eliminar estas
erronias, cabendo ao intérprete a tarefa de sistematização dos conceitos e dos efeitos de cada
um dos novos institutos, entre eles as cláusulas gerais da boa-fé objetiva e da função social do
contrato
40
, enfronhadas em artigos vizinhos do novo Código.
Alguns critérios de conexão e distinção devem ser postos em tablado para a
melhor aplicação dessas cláusulas frente à diversidade dos casos concretos que se apresentam
no cotidiano.
Nesse sentido, importa abordar o fenômeno da funcionalização dos institutos
jurídicos, mormente dos de direito privado, aspecto novidadeiro e desafiador à ciência
jurídica, pois:
40
Ives Gandra Martins (2003, p. 340-341), numa perspicaz análise da função social do contrato, não o considera
como instituto novidadeiro no ordenamento jurídico brasileiro, e com efeito, interpreta: “[...] o art. 421 do CC
apenas como uma explicitação de ‘princípio implícito’ constante do texto anterior, sendo decorrência de
idêntico princípio veiculado por textos constitucionais anteriores sobre a função social da propriedade. Em outras
palavras, estando as relações econômicas alicerçadas nos pilares do ‘contrato’ e da ‘propriedade’, que devem ser
respeitados, o que fez o legislador ordinário foi estender a ‘função social’ da propriedade àquela do contrato, sem
nenhuma redução dos demais princípios que o regem, ou seja, da autonomia da vontade, da imprevisão, da
lealdade, boa-fé, equilíbrio entre as partes contratantes, podendo, pela via de simples interpretação, alargar
conceitos de estabilidade, jamais de desagregação. Da mesma forma que o texto constitucional ao cuidar da
propriedade faz menção a sua função social, sem esmaecer o direito de propriedade assegurado expressamente
no caput do art. da Lei Maior, convencido estou de que a novidade pretendida no art. 421 do CC não pode
ultrapassar os limites dos demais princípios que regem a ordem jurídica dos contratos, prevalecendo, entre
outros, o princípio do pacta sunt servanda, como alicerce mais relevante das pactuações privadas. É de lembrar
que os contratos leoninos são condenados desde priscas eras, pois não cumprem a função social do contrato,
nada obstante a inexistência de texto expresso, no direito civil anterior, com a utilização da expressão ‘função
social’. Não vejo na ‘inovação’, inovação. Apenas explicitação de algo que deflui do próprio texto constitucional
e que não pode ser examinado sem os temperos próprios da hermenêutica jurídica, para que a segurança e a
certeza do Direito não sejam abaladas. A renovação é, portanto, a meu ver, apenas explicitação de aspecto que
sempre, no direito contemporâneo, norteou as formulações contratuais e que a cláusula rebus sic stantibus, de
certa forma, introduzira, pela imprevisibilidade e inevitabilidade de fatos não examinados quando das
pactuações. A inovação, portanto, data, pelo menos, do Código de Hammurabi, em que função social do contrato
estava valorizada no cânone 48, coluna XIV, assim redigido: ‘XIV - § 48. Si un señor tiene una deuda y (si) el
dios Adad ha inundado su campo y ha destrozado la cosecha, o bien (si) a causa de la sequía, el campo no
produce grano, en ese año no entregará grano a su acreedor; cancelará su tablilla (de contrato) y no pagará el
interés de ese año’. Nada a acrescentar sobre a função social prevista pelo Codificador sumeriano, quase
4.000 anos”.
58
Isso implica dizer que todo o Direito está comprometido com os ditames da
cidadania material e da justiça social, atinentes aos Estados de Direito democráticos,
abandonando, definitivamente, as matrizes individualistas que o permearam nos
últimos séculos, em proveito dos valores coletivos (BARROSO, 2007a, p. 125).
Na preciosa lição de Francisco Amaral (2003a, p. 367-368):
Emprestar ao direito uma função social significa que os interesses da sociedade se
sobrepõem aos do indivíduo, sem que isso implique, necessariamente, a anulação da
pessoa humana, justificando-se a ação do Estado pela necessidade de acabar com as
injustiças sociais. Função social significa não-individual, sendo critério de valoração
de situações jurídicas conexas ao desenvolvimento das atividades de ordem
econômica. Seu objetivo é o bem comum, o bem-estar econômico coletivo. A idéia
de função social deve entender-se, portanto, em relação ao quadro ideológico e
sistemático em que se desenvolve, abrindo a discussão em torno da possibilidade de
se realizarem os interesses sociais, sem desconsiderar ou eliminar os do indivíduo.
Sistematicamente, atua no âmbito dos fins básicos da propriedade, da garantia de
liberdade e, conseqüentemente, da afirmação da pessoa. E ainda, historicamente, o
recurso à função social demonstra a consciência político-jurídica de se realizarem os
interesses públicos de modo diverso do aentão proposto pela ciência tradicional
do direito privado, liberal e capitalista. Neste particular, pode-se dizer que “revoga
um dos pontos cardeais do sistema privatista, o direito subjetivo modelado sobre a
estrutura da propriedade absoluta”, o que poderia sugerir uma certa
incompatibilidade entre a idéia de função social e a própria natureza do direito
subjetivo. Mas o que se assenta, é que a função social se configura como princípio
superior ordenador da disciplina da propriedade e do contrato, legitimando a
intervenção do estado por meio de normas excepcionais, operando ainda como
critério de interpretação jurídica. A função social é por tudo isso, um princípio geral,
um verdadeiro standard jurídico, uma diretiva mais ou menos flexível, uma
indicação programática que não colide nem torna ineficazes os direitos subjetivos,
orientando-lhes o respectivo exercício na direção mais consentânea com o bem
comum e a justiça social. E é precisamente o contrato, instrumento da autonomia
privada, o campo de maior aceitação dessa teoria [...].
Nesse contexto, de acordo com Azevedo (2003, p. 33-34):
[...] têm os Estados modernos lançado mão de normas cogentes, interferindo nas
contratações, com sua vontade soberana, para evitar lesões. A intervenção do
Estado, no âmbito contratual, abriu as portas a um novo tempo, em que se mitigaram
os malefícios do liberalismo jurídico, com a proteção social ao mais fraco.
Portanto, a figura da função social do contrato, inserida no ordenamento jurídico
como um dos novos princípios de cunho social, contrapõe-se aos princípios liberais clássicos
da liberdade contratual, da relatividade do contrato e da autonomia da vontade.
Corolário dessa concepção clássica era a idéia de compartimentos estanques em
que as partes versavam no contrato apenas seus interesses individuais, desprezando-se
qualquer obediência a eventuais interesses sociais relacionados. Da mesma forma, à sociedade
não competia o respeito ao contrato e às partes contratantes.
59
O novo cenário afeta diretamente esses princípios, especialmente o princípio da
relatividade, segundo o qual o vínculo obrigacional somente produz efeitos às partes, não
prejudica nem beneficia terceiros que não manifestaram sua vontade: trata-se da res inter
alios acta. Esse princípio recebia influência da força obrigatória do contrato (fundamentada
na autonomia da vontade) e era exacerbado ao ponto de tolerar que terceiros tomassem por
inexistente uma relação obrigacional da qual não faziam parte
41
.
A presente conjuntura brasileira flexibiliza tal quadro e a função social do
contrato atualmente vista como fonte de reconhecimento de novos efeitos na relação
obrigacional – dirige-se para a regulação externa da avença, de modo a obstar eventuais danos
sociais causados pelo ajuste (BDNIE JUNIOR, 2006).
Como exemplos desses danos sociais têm-se: a simulação de negócio em prejuízo
de terceiros; a contratação de empresa publicitária para produção de propaganda enganosa; a
comercialização de viagens favorecedoras de turismo sexual ou prostituição infantil; a compra
e venda de defensivos agrícolas fora das prescrições legais com danos ao meio ambiente e à
vizinhança; a locação empresarial em zona de uso estritamente residencial da cidade; entre
outros.
Em todos esses casos, os sujeitos contratuais, diretamente envolvidos na relação,
têm a sua margem de autonomia privada restrita pelos limites impostos pela função social do
contrato intimamente ligada à idéia de comutatividade, deixando o instrumento de possuir
exclusiva finalidade econômica, hipóteses segundo as quais, os contratantes não podem
conduzir suas vontades e utilizar o seu patrimônio contra o interesse público (DONINI, 2000).
Para Rosenvald (2007, p. 85, grifo do autor):
Tal como sugeriu Norberto Bobbio ainda na década de 1970, a passagem da
estrutura à função indica que a liberdade dos privados é circunscrita pelos valores
constitucionais, a fim de que o negócio jurídico seja um espaço promocional de
determinados fins reputados como valiosos pelo corpo social. O direito se desliga de
seu compromisso meramente sancionatório e postula um papel de incentivo ao
diálogo entre a ordem econômica e as finalidades programáticas do ordenamento.
Aqui surge em potência a função social do contrato. Não para coibir a liberdade de
contratar, como induz a literalidade do art. 421, mas para legitimar a liberdade
contratual. A liberdade de contratar é plena, pois não existem restrições ao ato de se
relacionar com o outro. Todavia o ordenamento jurídico deve submeter a
composição do conteúdo do contrato a um controle de merecimento, tendo em vista
as finalidades eleitas pelos valores que estruturam a ordem constitucional.
41
A proposição de flexibilização do princípio da relatividade dos contratos gerando efeitos perante terceiros
originou-se do direito francês e foi introduzida no Brasil por Antonio Junqueira de Azevedo (2004, p. 137-147),
no parecer: “Os princípios do atual direito contratual e a desregulamentação do mercado Direito de
exclusividade nas relações contratuais de fornecimento Função social do contrato e responsabilidade aquiliana
do terceiro que contribui com o inadimplemento contratual”.
60
De fato, o art. 421 do CC/2002:
[...] restringe a liberdade de contratar herdada do liberalismo econômico e do
voluntarismo jurídico sob cuja égide se proclamava que o contrato era lei entre as
partes – para estatuir que, doravante, essa clássica expressão da autonomia da
vontade merecerá reconhecimento e proteção do Estado se for exercida em razão
e nos limites da função social do contrato. Na prática, isso significa que qualquer
contrato, por mais cuidadoso que seja do ponto de vista formal, se e quando for
necessária a intervenção do Estado para garantir a sua execução, estará sujeito a
controle de legitimidade à luz da Constituição e da Lei Civil, uma e outra voltadas à
concretização da justiça em sentido real, que não se compadece com os pactos
leoninos, via dos quais, em posição dominante, uma parte consegue impor os seus
interesses e reduzir a outra à condição de contratante sem vontade (COELHO, 2003,
p. 332-333).
O ditame estabelecido pela função social orienta que o contrato não pode se
transfigurar num instrumento para a prática de atividades abusivas à parte contrária ou a
terceiros, pois consoante o art. 187 do CC/2002: “Também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico
ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
A adoção da função social implica dizer que o contrato não deve ser
compreendido como uma relação jurídica que interessa tão-somente às partes contratantes. Ao
contrário, ele é entremeado pelas “condicionantes sociais que o cercam e que são por ele
próprio, afetadas” (NEGREIROS, 2006, p. 209).
No entendimento de Tartuce (2007, p. 48-49, grifo do autor):
[...] a função social dos contratos constitui um regramento de ordem pública, pelo
qual o contrato deve ser necessariamente, interpretado e visualizado de acordo com
o contexto da sociedade. A previsão como princípio de ordem pública consta do art.
2.035, parágrafo único, da codificação emergente. Em reforço, nunca se pode
esquecer que a função social dos contratos tem fundamento na cláusula pétrea da
função social da propriedade, protegida no art. , incs. XXII e XXIII da CF/88. De
qualquer sorte, temos certeza de que a função social dos contratos e a boa-fé objetiva
mantêm uma relação simbiótica de interação, visando proteger a parte vulnerável da
relação contratual. Assim, em regra, o contrato motivado pela má-fé não está
atendendo à sua função social.
Por conseguinte, o contrato exerce por sua própria finalidade uma função que é
inerente ao poder negocial atribuído às partes envolvidas.
Para Reale (2005, p. 267, grifo do autor), “o ato de contratar corresponde ao valor
da livre iniciativa, erigida pela Constituição de 1988 a um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito, logo no inciso IV do art. 1º, de caráter manifestamente preambular”.
61
A função social do contrato, como contenção ao exercício da autonomia privada, é
interpretada por Delgado (2003, p. 396) a partir dos preceitos constitucionais:
A função social do contrato impõe determinado limite à autonomia privada. Essa é
uma nova linha ideológica que passa a figurar no campo do nosso direito comum,
alterando o espírito individualista presente no Código Civil de 1916 e impondo uma
visão interpretativa socializante nas normas disciplinadoras das relações jurídicas. A
autonomia privada continua a ser respeitada. Não haverá homenagem a
posicionamentos individualistas. Os interesses particulares cederão diante dos
imperativos éticos pregados pela Constituição Federal, a partir dos ditames
constitucionais que exigem objetivos de valorização da dignidade humana, da
cidadania e da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa.
Sobre o tema, Paulo Marcelo Wanderley Raposo (2002, p. 87-89) esclarece:
Pode parecer, à primeira vista, que a função social dos contratos é algo que se
antepõe à autonomia privada; mas este entendimento é falso, pois a função social na
verdade não nega, mas prestigia a autonomia privada. Realmente, a função social do
contrato é mais do que ser um instrumento de circulação de riquezas, devendo mais
ter uma função digna e social, evitando a preponderância do individualismo
exacerbado, contrariando os interesses da maioria. [...] evidente que é na harmonia
entre a autonomia privada e a solidariedade social que repousa o grande ideal da
sociedade humana. Assim é que foi substituído o foco no individualismo abstrato e
inorgânico por outro que se fixe na finalidade de um Estado moderno, criando,
assim, a função social do contrato.
Essas situações evidenciam que os efeitos do contrato não são apenas inter alios
acta, mas também externos à relação, cabendo aos contratantes o ajuste de seus interesses
privados, em conformidade e nos limites da função social do contrato, sob pena de terceiros
prejudicados suscitarem, em juízo, a cessação dos efeitos do ajuste (ou, até mesmo, a
nulidade) com a reparação de eventuais danos sofridos.
A atribuição de eficácia externa às relações obrigacionais importa uma resposta às
crescentes relações jurídico-econômicas, cada vez mais intrincadas, porquanto:
Na sociedade hipercomplexa, as atividades econômicas e sociais não se realizam, em
boa parte das vezes, por intermédio de um exclusivo contrato entre as partes
definidas e conhecidas. Surge, como mencionamos, o fenômeno das redes
contratuais, que ao mesmo tempo em que otimizam a relação entre as partes
(especializando e concentrando esforços de cada um dos parceiros contratuais para
uma determinada finalidade), determina-lhe também a responsabilidade pela
frustração da prestação contratual por ato que se lhe impute, ou mesmo respondendo
perante terceiros por descumprimento para o qual muitas vezes não contribuiu
diretamente (MIRAGEM, 2007, p. 191).
Nessa linha de pensar, constatou-se que a boa-fé objetiva não projeta tais efeitos
externos, incidindo no âmbito interno do contrato, que toca exclusivamente aos interesses das
62
partes contratantes. Assim, quando, por exemplo, a deslealdade de um contratante prejudicar
os interesses do outro, entra em cena a cláusula geral da boa-fé objetiva e quem pode reagir
contra a má conduta é o próprio contratante lesado.
Também entendendo que a limitação imposta pela função social deve ser
compreendida no cenário dos efeitos externos do contrato, Humberto Theodoro Júnior (2004,
p. 59) acrescenta que:
Em contrapartida, não se pode falar em desvio de função social, quando um
contratante, deslealmente, provoca prejuízo ao outro, empregando meios reprováveis
ética e juridicamente, ou prevalecendo da inexperiência ou da necessidade em que o
contratante se encontra. Nesse plano, que é o típico da boa-fé objetiva, quem pode
reagir é apenas o sujeito contratual lesado. O fenômeno se passa no plano interno do
relacionamento negocial.
Seguramente, o pragmatismo originado da práxis favorece a visualização da
função social operando no plano externo do pacto, mas é possível conceber a projeção dessa
cláusula geral sobre outro plano. Por isso, esta pesquisa utilizou o advérbio “também” para
afirmar, na linha de Theodoro Junior (2004), que o manejo da função social aponta para a
regulação dos efeitos externos da avença. Mas não só!
Ao mencionar a íntima relação entre a boa-fé objetiva e a função social do
contrato, Tartuce (2007, p. 49-51, grifo do autor) defende que ambos os princípios têm efeitos
internos e externos sobre o negócio jurídico patrimonial, pois:
A eficácia interna da boa-fé objetiva pode ser percebida pela exigência de conduta
proba das partes contratuais, como prevê o próprio art. 422 do Código Civil. A
eficácia externa pode ser sentida pela afirmação de que um negócio celebrado com
boa-fé, com boa conduta, pode prevalecer mesmo em casos de nulidade absoluta.
Também como caso de eficácia externa da boa-fé objetiva, podemos citar a
tendência da proteção de terceiros de boa-fé efetivada por nossos Tribunais.
Também a função social dos contratos tem duplo efeito. A eficácia interna é
percebida pelo afastamento da onerosidade excessiva e pelas tentativas de
conservação do contrato e da autonomia privada. A eficácia externa da função social
do contrato pode ser percebida pelo fato de que um contrato que traz prejuízos ao
meio social não pode prevalecer. Essa dupla eficácia da função social dos contratos
é reconhecida expressamente pelo Enunciado n. 23 do Conselho da Justiça Federal,
aprovado na I Jornada de Direito Civil, pelo qual: “a função social do contrato,
prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia
contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes
interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa
humana”. O contrato pós-moderno, portanto, deve ser encarado sob o prisma
necessário desses dois princípios, que mantêm uma relação de interação, buscando a
justiça contratual e a solidariedade social prevista na Constituição (art. 1º, III, da
CF/88). Por certo que, por diversas vezes, ambos os regramentos serão aplicados de
forma concomitante, visando repelir situações intoleráveis.
63
Decerto interessa a toda a sociedade o pleno cumprimento dos contratos
realizados. E é exatamente nesse ponto que se projeta internamente a função social do
contrato, fazendo direta conexão com a boa-fé objetiva, donde derivam deveres instrumentais
que permitirão o alcance do escopo contratual.
Para tanto, tem-se na assertiva de Silva (2003, p. 137), que:
[...] é importante que as trocas sejam justas e úteis, pois se não o forem, os
contratantes, certamente, deixarão de cumprir os contratos firmados, e isto resultará
em uma quebra de finalidade da liberdade contratual. [...] o contrato cumpre sua
função (razão pela qual foi acolhido pelo ordenamento jurídico) sempre que permitir
a realização e a manutenção das convenções livremente estabelecidas. Estas, porém,
serão mantidas enquanto as partes (e ambas as partes, pois se trata de um negócio
jurídico bilateral) retirem vantagens em condições paritárias, ou seja, enquanto
houver uma equação de utilidade e justiça nas relações contratuais.
Em vista disso, Inocêncio Mártires Coelho (2003, p. 333, grifo do autor) concebe
a função social do contrato, no novo Código Civil brasileiro, como critério geral de
validação de quaisquer negócios celebrados sob a égide dessa codificação”.
Jorge Cesa Ferreira da Silva (2003, p. 112), ao traçar um perfil conceitual da
função social, entende que ela “[...] impõe a observância das conseqüências sociais das
relações obrigacionais, tendo como pressuposto a compreensão de que direitos e faculdades
individuais não são imiscíveis às necessidades sociais”, pois é no meio social que o ser
humano se potencializa.
É através da cooperação, da solidariedade, da lealdade e da confiança, além de
outros deveres anexos, que as partes diretamente envolvidas na obrigação relacional atingirão
o fim do contrato, com repercussão em toda a sociedade, à medida que restam fortalecidos o
crédito, a segurança das relações e o próprio desenvolvimento econômico decorrente da
circulação de riquezas com base no contrato. A esse propósito:
[...] diferentemente do que ocorria no passado, o contrato, instrumento por
excelência da relação obrigacional e veículo jurídico de operações econômicas de
circulação da riqueza, não é mais perspectivado desde uma ótica informada
unicamente pelo dogma da autonomia da vontade. Justamente porque traduz relação
obrigacional – relação de cooperação entre as partes, processualmente polarizada por
sua finalidade e porque se caracteriza como o principal instrumento jurídico de
relações econômicas, considera-se que o contrato, qualquer que seja, de direito
público ou privado, é informado pela função social que lhe é atribuída pelo
ordenamento jurídico, função esta, ensina Miguel Reale, que “é mero corolário dos
imperativos constitucionais relativos à função social da propriedade e à justiça que
deve presidir à ordem econômica”. Sob esta ótica, apresenta-se a boa-fé como norma
que não admite condutas que contrariem o mandamento de agir com lealdade e
correção, pois só assim se estará a atingir a função social que lhe é cometida
(MARTINS-COSTA, 1999, p. 456-457, grifo do autor).
64
Aliás, ao dispor que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites
da função social do contrato, não pode haver dúvida que a cláusula geral da função social
possui duas virtualidades, interna e externa. A primeira impõe aos contratantes atuação
conforme a boa-fé, objetivando o fim do negócio com ganhos para toda a sociedade. A
segunda, o cuidado de não causar danos a terceiros alheios ao vínculo
42
.
O art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil dita que “Na aplicação da lei, o juiz
atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Referindo-se a
esse dispositivo, Nelson Rosenvald et al. (2007, p. 312) registra:
[...] a função social do contrato objetiva conjugar o bem comum dos contratantes e
da sociedade. Portanto, podemos cogitar uma função social interna e uma função
social externa do contrato. A função social interna concerne à indispensável relação
de cooperação entre os contratantes por toda a vida da relação. Implica a
necessidade de os parceiros se identificarem como sujeitos de direitos fundamentais
e titulares de igual dignidade. Assim, deverão cooperar mutuamente nos deveres de
proteção, informação e lealdade contratual, pois a finalidade de ambos é idêntica: o
adimplemento, da forma mais satisfatória ao credor e menos onerosa ao devedor.
Nesse plano, a função social se converte em limite positivo e interno à estrutura
contratual, impedindo a formação de uma relação de subordinação sobre a pessoa do
devedor, o que implicaria a quebra de sua autonomia privada com reflexos em seus
direitos de personalidade. Em qualquer relação contratual, os partícipes cedem uma
parcela de sua liberdade jurídica em prol do êxito do programa comum. A função
social interna pretende acautelar os contratantes da recuperação dessa liberdade
contratual ao término do empreendimento em conjunto.
A função social, enquanto nova categoria jurídica é absorvida pela legislação dos
países
43
e até mesmo pelas encíclicas papais
44
, mas quase sempre com o propósito de regular
a propriedade privada. Contudo, o novo paradigma estava instaurado e a velha idéia de
interesse social como limite externo de direito público foi gradativamente sendo superado.
A reconstrução do direito privado, a partir da inserção da Constituição no centro
do sistema, impõe a revisão e redimensionamento dos velhos institutos a partir da categoria da
função social, obnubilando cada vez mais o discrímen entre individual e social, com a
conseqüente superação da velha dicotomia direito público e privado
45
.
42
O negócio jurídico assim compreendido representa, além do interesse individual dos contratantes, um interesse
prático em prol de toda a sociedade: “Tal e qual um direito subjetivo qualquer, atualmente as obrigações revelam
uma função social, uma finalidade perante o corpo social. Para além da intrínseca função da circulação de
riquezas, o papel das relações negociais consiste em instrumentalizar o contrato em prol de exigências maiores
do ordenamento jurídico, tais como a justiça, a segurança, o valor social da livre iniciativa, o bem jurídico e, o
princípio da dignidade da pessoa humana. O epicentro do contrato se desloca do poder jurígeno da vontade e do
trânsito de titularidades, para um concerto entre o interesse patrimonial inerente à circulação de riquezas e o
interesse social que lateralmente àquele se projeta” (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 11).
43
Do que é exemplo a Constituição de Weimar e, no Brasil, a Constituição de 1934.
44
Caso da encíclica Mater et magistra, Papa João XXIII.
45
Para melhor debate acerca da superação da dicotomia direito público/direito privado consultar (LUDWIG,
2002. p. 86-117).
65
Com efeito, se a Lei Maior é o fundamento de legitimidade do ordenamento
jurídico, deve ser também a fonte e o novo paradigma para os institutos privados, restando
eliminada a perspectiva de que as normas de direito privado, em especial as do Código Civil,
e a Constituição formam esferas estanques, fechadas em si mesmas.
Nessa fase de reconstrução, a Constituição deve atuar como norte e garante do
direito privado, permitindo a interpretação ampla e aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais nas relações jurídicas
46
entre particulares e entre estes e o Estado, em todas as
suas esferas de atuação.
Articula-se, nesse contexto, a função social enquanto categoria de status
constitucional e como cláusula geral prevista no Código Civil, vislumbrando Eros Roberto
Grau (2001) uma natureza de princípio jurídico na função social, princípio este informador de
toda a ordem econômica nacional.
Assim, não a propriedade privada, mas também o contrato, devem ser vistos
como instrumentos da economia num mundo compartilhado por todos. Por isso, precisam ter
função social, sob pena de perversão da própria ordem econômica capitalista.
Ao perfilhar as virtualidades interna e externa da função social, o contrato passa a
ser visto como um instrumento de circulação das riquezas da sociedade e não apenas na
sociedade, possibilitando que as trocas econômicas sejam justas e eqüitativas (CUNHA,
2007).
A função social surge como regra limitadora
47
do direito subjetivo
48
e da
autonomia da vontade, destacando-se, porém, na idéia traduzida por Gomes (1980, p. 12), “a
obrigação que tem o proprietário de utilizar o seu patrimônio na forma do interesse coletivo”.
Os bens particulares e as próprias relações jurídicas (entabuladas no espaço que o
Estado reserva à autonomia privada) devem atender à categoria da função social, favorecendo
o entrelaçamento dos institutos do direito privado com o direito público, eliminando, assim, a
velha dicotomia.
46
Como, aliás, preconiza o art. 5º, § 1º da Constituição Federal brasileira de 1988.
47
Alexandre Malfatti (2004, p. 31) ressalva que: “As limitações à liberdade contratual [...] são formas de
garantia de outras liberdades ou direitos. Ou seja, sacrifica-se a liberdade contratual em prol de outra liberdade
(ou direito) mais importante”.
48
Laura Beck Varela (2002) e Marcos de Campos Ludwig (2002) entendem que não se deve confundir a
categoria da função social com a noção de limites, cujo significado é de algo externo e, portanto, estranho ao
direito subjetivo.
66
1.3.4 A boa-fé objetiva e o abuso de direito
Construído a partir da noção de limites ao direito subjetivo das partes, o abuso de
direito ressurge como instituto de ampla aplicabilidade no atual direito privado, opondo-se à
cláusula geral da boa-fé objetiva, a qual possui na perspectiva tripartite a limitação ao
exercício de direitos subjetivos como uma de suas funções.
Sob a ordem do Estado burguês, assegurou-se o máximo de liberdade e exercício
ao poder da vontade dos particulares, situação que descambou para desregramentos e
injustiças, havendo a necessidade de abrandar os rigores do liberalismo
49
.
Nesse contexto, o direito subjetivo, outrora impossível de ser concebido ao lado
do ilícito, pois quem tinha direitos tudo podia
50
, teve que conviver com a idéia de limites, sem
que isso importasse o seu exercício fora da ordem jurídica.
Ganha força, nesse período, a teoria finalista de Louis Josserand, ao fixar a noção
de fins sociais dos quais não podem se desviar as prerrogativas jurídicas
51
, superando-se a
fase do “‘absolutismo intransigente’ para recepção do ‘relativismo’ dos direitos subjetivos,
que assumem conotação objetiva” (PINHEIRO, 2002, p. 7).
Manuel de Cossio (1994, p. 115-116) registra a experiência espanhola quanto ao
tratamento jurídico do abuso de direito:
La teoría del abuso de derecho desarollada, inicialmente, por la doctrina francesa,
nace con carácter marcadamente subjetivista en nuestro Derecho, en cuanto se
valora la intención del autor del acto, como decisiva para la declaración de su
ilicitud y, como consecuencia de ello se afirma, que no puede estimarse protegido
por el Derecho quien proceda de forma dolosa en el ejercicio de un derecho,
partiendo de una idea moral que rechaza la injusticia que se seguiría con ello, pese a
lo cual, modernamente, la doctrina se ha planteado este tema, más bien desde un
punto de vista objetivo, partiendo del principio de que los derechos son susceptibles
de abuso, porque no es posible trazar de antemano los límites de su ejercicio: lo
decisivo por tanto, no será la existencia de una intención dolosa, como la falta de un
interés legítimo, que justifique la actuación del titular del derecho subjetivo, el abuso
comienza en el desequilibrio, rompiendo el principio de comercio jurídico
49
Nesse aspecto, Loureiro (2008, p. 106) afirma que a teoria do abuso do direito encena uma “saudável reação
contra o individualismo jurídico em voga no século XIX, como conseqüência dos princípios consagrados pela
Revolução Francesa de 1798”, a evidenciar “a crise do Estado liberal”, fundado na intangibilidade das liberdades
individuais.
50
A nota predominante na época era neminem laedit qui iure suo utitur (a ninguém prejudica aquele que usa de
seu direito).
51
O abuso de direito visto como um fenômeno social tem como defensor o jurista italiano Mario Rotondi que
considera o direito sob dois aspectos: o estático representado pelas normas jurídicas, tendo como nota prevalente
o princípio da conservação e, noutro aspecto, o dinâmico que procede do complexo social e dirigido pelo
princípio da evolução, concluindo que “o abuso de direito é ato conforme o direito estático e contrário ao direito
dinâmico” (CARVALHO, NETO, 2006, p. 269).
67
equitativo. En tal sentido, la famosa sentencia dictada por el Tribunal de Colmar, en
1855, declaraba que si bien es un principio consagrado, que el derecho de propiedad,
es en cierto modo absoluto y autoriza al propietario a usar y abusar de la cosa, sin
embargo, el ejercicio de este derecho, debe tener por límite la satisfacción de un
interés serio y legítimo.
Aplicada inicialmente ao direito de propriedade, a teoria do abuso de direito
depois alcança o contrato, estando umbilicalmente ligada à liberdade de contratar.
Nesse aspecto, as concepções teóricas baseadas na visão do abuso de direito como
ato contrário ao “fundamento axiológico” do direito subjetivo perdem força, conforme revela
Cordeiro (2007), ao esboçar críticas às chamadas teorias internas limitadas à racionalidade de
um “jussubjetivismo”, surgindo no panorama jurídico um novo instrumento de controle do ato
abusivo, a boa-fé.
Assim, assevera Cordeiro (2007, p. 901):
Nos cenários do exercício inadmissível de posições jurídicas, quer a proteção da
confiança, quer o relevo de situações jurídicas materiais, operam na base de um
contrato específico entre duas pessoas: trata-se de situações relativas, que a
linguagem e a tradição jurídica m conectado com a boa-fé. [...] Num campo em
que, como este, jogue a possibilidade, cientificamente nova e muito produtiva, de
uma remissão para o sistema, a boa-fé torna-se, num acrescento aos fatores, de si
conclusivos, acima apontados, uma locução ideal: apreciativa, vaga, mas com
conotações insofismáveis de voluntariedade na aplicação do Direito e capaz de, de
imediato, recordar a imprescindibilidade da aplicação da Ciência do Direito, a boa-fé
traduz, por excelência, a capacidade expansiva do sistema. O essencial do exercício
inadmissível de posições jurídicas é dado pela boa-fé [...].
Controlando o exercício da liberdade de contratar sob o ângulo externo, e não
mais restrita à dimensão interna do direito subjetivo, a boa-objetiva estabelece padrões de
conduta que, para além da intenção e finalidade do ato, incidirão sobre a forma e o
comportamento dos atores contratuais durante as fases do negócio jurídico.
Dessa forma, no direito privado atual, comete abuso de direito aquele que o
pratica de maneira exacerbada e contrariando o fim social do ato, mas também quem o realiza
sem observância dos deveres de conduta decorrentes da cláusula geral da boa-fé objetiva
52
.
É nesse passo que a figura do abuso de direito faz a ponte com a cláusula geral da
boa-fé objetiva, abandonando as concepções subjetivista e finalista do ato abusivo, até então
52
Para Loureiro (2008, p. 97): [...] o denominado ‘abuso de direito’, segundo a maior parte dos juristas,
caracteriza um limite imposto ao exercício do direito subjetivo. É necessário estabelecer um limite imposto aos
direitos subjetivos para que os demais sejam protegidos contra atitudes egoístas e anti-sociais do titular dos
direitos. Trata-se de evitar que o titular de um determinado direito subjetivo (v.g. direito de propriedade) cometa
excessos ao exercer seu direito, ou não usá-lo, de forma a prejudicar interesses alheios, dignos de tutela jurídica,
apesar da inexistência de uma norma expressa que determine tal proteção”.
68
predominantes, para enriquecer a teoria do abuso de direito com os novos postulados da boa-
fé. Negreiros (2006, p. 141), ao desenvolver a relação entre esses institutos, infere que:
Diante da ordenação contratual, o princípio da boa-fé e a teoria do abuso de direito
complementam-se, operando aquela como parâmetro de valoração do
comportamento dos contratantes: o exercício de um direito será irregular, e nesta
medida abusivo, se consubstanciar quebra de confiança e frustração de legítimas
expectativas. Nesses casos, o comportamento formalmente lícito, consistente no
exercício de um direito, é, contudo, um comportamento contrário à boa-fé e, como
tal, sujeito ao controle da ordem jurídica [...].
No dizer de Rosalice Fidalgo Pinheiro (2002, p. 10): “Trata-se de delinear uma
concepção dogmática autônoma de abuso do direito, centrando-a no lugar mais propício para
demonstrá-la com as nuanças de um caráter inovador: o contrato”.
A autora desenvolve sua linha de pensamento, que conjuga abuso de direito e boa-
fé, com apoio tanto no § 242 da BGB como no art. 334 do Código Civil português de 1966,
este vazado nos seguintes termos: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular
exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim
social ou econômico desse direito” (PINHEIRO, 2002, p. 247; 251-252).
No Direito Civil brasileiro, o abuso de direito encontra-se positivado no art. 187
do CC/2002, sem paralelo com o ordenamento anterior, possuindo redação análoga ao art. 334
do Código Civil português. Estabelece o art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico
ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes”.
O que se verifica é que a boa-fé atua como critério de identificação do abuso de
direito e controle do conteúdo interno dos contratos, abrangendo todas as fases da negociação
contratual. Nesta perspectiva, reafirma o ordenamento civil que a boa-fé é concebida como
limite ao exercício do direito ou liberdade de contratar.
Noutro panorama, a lei não exige o elemento subjetivo, ou seja, a consciência do
titular de direito de que seu ato é contrário ao fim econômico ou social, à boa-fé ou aos bons
costumes, nem se exige a intenção de prejudicar para a caracterização do abuso de direito.
Basta que o ato do titular seja distorcido ou contrário aos limites impostos ao exercício do
direito.
A matéria assim tratada, enriqueceu o direito das obrigações à proporção que
fixou, em caráter definitivo e em termos gerais, a cláusula da boa-fé objetiva como critério de
determinação da legitimidade ou ilegitimidade do exercício do direito e limite essencial não
69
do direito subjetivo, mas também de várias situações jurídicas envolvidas, todas
relacionadas com a autonomia privada.
Nesse diapasão, revelam-se inesgotáveis as possibilidades de aplicação da boa-fé
objetiva conexa ao ato abusivo
53
, a exemplo de quando o sujeito exerça seu direito em
contradição com sua conduta anterior, na qual a outra parte depositava confiança, hipótese do
chamado venire contra factum proprium. Não se pode deixar de registrar outras modalidades
de abuso de direito calcadas na violação da boa-fé, caso da exceptio doli, verwirkung, não
alegação de nulidades formais, tu quoque e o desequilíbrio no exercício jurídico.
1.3.5 A boa-fé objetiva e as fases do contrato
A cláusula geral da boa-fé objetiva submete os contratantes ao cumprimento de
deveres de conduta em todos os ciclos do desenvolvimento do vínculo, incluindo a fase de
formação e a relativa à projeção dos seus efeitos, passando pela conclusão e cumprimento,
muito embora o legislador brasileiro de 2002 tenha dito menos do que pretendeu
54
, ao
mencionar no texto do art. 422 do Código apenas as fases de conclusão e execução do
contrato
55
.
Sobre tal artigo, comenta Coelho (2003, p. 332, grifo do autor):
Em que pese a objeção de que esse dispositivo seria imperfeito porque, pela sua
expressão literal, estaria a exigir os requisitos de probidade e boa-fé apenas na
celebração e na execução dos contratos e não, também, como deveria, nas fases pré-
contratual e pós-contratual, apesar disso achamos que essa crítica não procede ou, no
mínimo, se mostra exagerada, porque nada impede que, na concretização desse
enunciado como de resto sempre ocorreu com preceitos semelhantes os seus
aplicadores levem a cabo a velha e obsequiosa interpretação extensiva, que outra
coisa não é senão ampliar o alcance das palavras da lei para, à vista da finalidade da
norma, atribuir-lhe o sentido que reputam adequado em cada situação hermenêutica.
53
O Código Civil brasileiro também coíbe o abuso de direito nas dobras dos arts. 421 e 422.
54
Com o intuito de sanar esta ausência, o Deputado Ricardo Fiúza elaborou o Projeto de Lei 6.960, o qual
“[...] traz uma sugestão de alteração do texto do art. 422 do CC/2002 para incluir, de maneira expressa, a
observância ao princípio da boa-fé objetiva também nas fases pré e pós-contratual. Assim, a redação passaria a
ser: ‘Os contratantes são obrigados a guardar, assim nas negociações preliminares e conclusão do contrato, como
em sua execução e fase pós-contratual, os princípios de probidade e boa-fé e tudo mais que resulte da natureza
do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade’” (LIMA, 2007a, p. 35).
55
Dissentindo desse pensamento, Azevedo (2008, p. 1), ao deitar luzes sobre o art. 422 do Projeto do Código
Civil de 2002, sustenta que o dispositivo “[...] se limita ao período que vai da conclusão do contrato até a
execução [...]”. Acrescentando o mestre uspiano, “[...] que o contrato é um certo processo em que há um começo,
prosseguimento, meio e fim. Temos fases contratuais fase pré-contratual, contratual propriamente dita e s-
contratual”.
70
Tal entendimento resulta do fato de que a boa-fé objetiva implica o dever das
partes de agir com lealdade, honestidade e segurança, desde as tratativas iniciais do negócio,
na formação, execução e extinção do contrato, bem como depois desta. Nesse diapasão:
Assim, desde o início devem os contratantes manter seu espírito de lealdade,
esclarecendo os fatos relevantes e as situações atinentes à contratação, procurando
razoavelmente equilibrar as prestações, expressando-se com clareza e esclarecendo o
conteúdo do contrato, evitando eventuais interpretações divergentes, bem como
cláusulas leoninas, em favor de um dos contratantes, cumprindo suas obrigações
nos moldes pactuados, objetivando a realização dos fins econômicos e sociais do
contratado; tudo para que a extinção do contrato não provoque resíduos ou situações
de enriquecimento indevido, sem causa. Após a extinção do contrato, existem,
também, deveres, que devem ser respeitados pelos contratantes, como, por exemplo,
o dever de não divulgar informações sigilosas de que tomem conhecimento,
segredos profissionais, de fabricação de produtos, fórmulas secretas e que devam
manter-se sob reserva. Qualquer divulgação desses e de outros fatos, por um dos
contratantes, pode causar sérios prejuízos ao outro (AZEVEDO, 2003, p. 35).
Para Ana Rispoli D’Azevedo (2007, p. 286-295, grifo da autora) é necessário “[...]
filmar toda a relação jurídica (plano da eficácia), desde a sua formação no momento pré-
contratual até a efetiva execução da obrigação, em vez de fotografá-la no momento da
declaração de vontade (plano da existência)”, sendo que tal dinâmica impõe a observância da
boa-fé objetiva ao longo de toda a “filmagem da relação contratual”.
A esse respeito, manifesta-se Bianca (1987, p. 166):
Nello svolvimento delle tratative e nella formazione del contratto le parti devono
comportarsi secondo buona fede. La buona fede rileva qui come regola di condotta,
e cioè como buona fede in senso oggettivo. La buona fede esprime il principio della
solitarietà contrattuale e si especifica nei due fondamentali aspetti della lealtà e della
salvaguardia. La buona fede, precisamente, impone alla parte di comportarsi
lealmente e, oltre, di attivarsi per salvaguardare l’utilità dell’altra nei limiti di um
apprezzabile sacrifício.
Negreiros (2006, p. 117) complementa a afirmativa:
[...] boa-fé representa, no modelo atual de contrato, o valor da ética: lealdade,
correção e veracidade compõem o seu substrato, o que explica a sua irradiação
difusa, o seu sentido e alcance alargados, conformando todo o fenômeno contratual
e, assim, repercutindo sobre os demais princípios, na medida em que a todos eles
assoma o repúdio ao abuso da liberdade contratual a que tem dado lugar a ênfase
excessiva no individualismo e no voluntarismo jurídicos.
Essa compreensão do papel da boa-fé objetiva atuando nas relações contratuais foi
resultante da alteração do modo de ver o vínculo obrigacional, que se deu através da
jurisprudência alemã após a 1ª Guerra Mundial.
71
Na construção teórica anterior, observa-se que o vínculo jurídico era concebido na
relação de sujeição do devedor ao credor e delimitado pela oposição entre dever versus direito
Redefinida essa concepção, o contrato passa a ser visto como um “vínculo de cooperação”
(BORGES, 2007, p. 27).
Com o desprezo da noção de relação obrigacional como fenômeno estanque e
voltado tão-somente para a pretensão do autor, foi possível vislumbrar as diversas fases do
fenômeno contratual: tratativas, execução e pós-contratual. Surge, então, a noção de obrigação
como processo
56
de direitos e deveres ordenados logicamente, voltados ao desfecho final, que
é a realização dos interesses das partes (SILVA, 2007b). Admite-se assim:
[...] a idéia de que a relação obrigacional não é estática e que abriga uma série de
etapas, é natural que o direito se preocupe em estender a tutela aos participantes a
todo o iter obrigacional, ou seja, desde a aproximação negocial até mesmo após a
extinção do vínculo. A satisfação deve ser garantida dentro de uma visão
globalizada que já não se limita exclusivamente ao tempo da execução do contrato.
Durante todo o iter negotii, são apontados aos participantes certos deveres de
conduta, que não visam outro escopo senão o de tutelar a confiança das próprias
partes no escorreito andamento do processo negocial. Brotam da boa-fé objetiva e
eventualmente da própria vontade exteriorizada (USTÁRROZ, 2007, p. 80).
56
Ana Prata (2006, p. 11-15), ao conceber a formação do contrato como processo, afirma que os deveres
decorrentes da boa-fé, construídos na fase de negociação preliminar, avançam para atingir o futuro da relação.
Em suas palavras: A formação do contrato é um processo que pode apresentar-se, factual e juridicamente, com
duração e complexidade muito diversas. Se casos em que ela dispensa quaisquer preliminares e se reduz às
manifestações simultâneas de uma vontade contratual cujo processo de maturação não implicou contactos
anteriores entre as partes, em outros, ao invés, a formação da vontade conclusiva do contrato passa por
prolongadas negociações, por diversificadas fases de acordo parcelar ou aproximativo, ou é manifestada
desfasadamente no tempo, criando situações jurídicas, intermédias, carecidas de tutela e regime específicos.
Quando o processo de formação do contrato se resolve numa seqüência mais ou menos prolongada de actos,
pode ainda estabelecer-se uma nítida distinção entre aqueles processos em que, nas suas etapas, se vão
produzindo sucessivos efeitos jurídicos entre as partes, sem que os respectivos factos adquiram autonomia
negocial, e aqueles outros em que se alcançam acordos preliminares com identidade contratual própria. No
primeiro tipo de processos, inscrevem-se os que se consubstanciam em negociações preliminares, com ou sem
formalização de acordos parcelares, de cartas de intenção, de protocolos de acordo ou de minutas de contrato
que impõem às partes um comportamento relacional pautado pela boa-fé e pela diligência no cumprimento dos
ditames que daquela emergem – bem como aqueles outros em que as declarações de vontade surgem em
momentos temporalmente distintos, produzindo então a proposta contratual efeitos jurídicos próprios que a
válida e eficaz aceitação extingue, ao dissolvê-la na nova realidade jurídica que o contrato formado constitui. A
caracterização da eficácia vinculativa daqueles acordos preparatórios é problema que suscita grandes
dificuldades. Ocorrendo a sua formalização no período negociatório em razão da progressiva extensão dos
conteúdos substanciais acordados, eles servem uma função instrumental das negociações, que tanto pode ser a de
registrar etapas da sua evolução, como a de facilitar o seu desenvolvimento, como ainda a de consolidar pontos
de acordo doravante inquestionáveis. A sua variabilidade e estreita dependência dos propósitos das partes, por
um lado, a sua não correspondência a figuras tipificadas legalmente, por outro, determinam que não seja, muitas
vezes, tarefa fácil a interpretação destes documentos pré-contratuais, consistindo então a dificuldade na
determinação da medida em que cada uma das partes quis obrigar-se quanto ao futuro. Quando não seja possível
identificar claras obrigações voluntariamente assumidas pelas partes, estes acordos interlocutórios pouco
acrescentarão aos deveres decorrentes da boa fé, que, na fase das negociações, impendem sobre os futuros
contraentes”.
72
Nesse sentido, afirma-se que a boa-fé enriquece o conteúdo da obrigação, de
modo que a prestação não deve apenas satisfazer os deveres expressos, mas também é
necessário verificar a utilidade que resulta para o credor da sua efetivação, quando por mais
de um modo puder ser cumprida. Houve, no caso, um aumento de deveres na relação
obrigacional (FRADERA, 1997).
Inserida nas Disposições Gerais do novo Estatuto civil, a observância dessa
cláusula geral é comum a todas as espécies contratuais, independentemente de seus
condicionamentos próprios e características específicas.
Relativamente à fase de tratativas ou pré-contratual justifica-se a incidência da
boa-fé diante da complexidade crescente do tráfego comercial, fortemente marcado pelo apelo
publicitário e permeado de entrevistas, discussões, entendimentos prévios, análise de projetos
e propostas, até culminar na oferta e na aceitação definitivas entre as partes interessadas no
entabulamento do pacto. Sendo assim, os atos preparatórios ao contrato devem ser realizados
segundo os deveres de conduta e comportamento decorrentes da boa-fé objetiva
57
, pena de a
parte descumpridora responder pelos danos causados à outra parte, antes mesmo da conclusão
do pacto, estabelecendo as bases do instituto da responsabilidade pré-contratual, remodelação
da velha culpa in contrahendo.
Sobre a responsabilidade pré-contratual imposta pela cláusula geral da boa-fé
objetiva, preleciona Mário Júlio de Almeida Costa (2004, p. 271-272) que:
Através da responsabilidade pré-contratual tutela-se directamente a confiança
fundada de cada uma das partes em que a outra conduza as negociações segundo a
boa-fé; e, por conseguinte, as expectativas legítimas que a mesma lhe crie, não
quanto à validade e eficácia do negócio, mas também quanto à sua futura celebração.
Convirá salientar, todavia, que o alicerce teleológico desta disciplina ultrapassa a
mera consideração dos interesses particulares em causa. Avulta, com especial
evidência, a preocupação de defesa dos valores sociais da segurança e da facilidade
do comércio jurídico. Não é inédito aduzirem-se postulados da análise econômica do
direito.
Singular decisão judicial que constitui verdadeiro case na matéria é lembrada pela
pena de Martins-Costa (1999), como forma de enriquecimento do sistema de cláusulas gerais,
no qual se assenta a boa-fé objetiva.
57
A presença da boa-na formação dos contratos é assim retratada por Loureiro (2008, p. 85): “Quando se
aproximam para tratar de um possível e futuro contrato, as partes iniciam uma negociação, uma relação de fato
baseada na recíproca confiança que a lei não pode regular de uma maneira genérica e abstrata. Daí a importância,
nesta etapa prévia à formação do contrato, da boa-fé, que a jurisprudência alemã há muito tempo define como ‘o
princípio supremo do direito das relações obrigatórias, de forma que todas as demais normas devem ser medidas
por ela’”.
73
A professora gaúcha registra “o caso dos tomates”, segundo o qual determinado
agricultor costumava plantar tomates com as sementes que lhe eram entregues por uma grande
companhia industrial, que depois adquiria a produção para industrialização. A aquisição do
produto, todavia, deixou de ser efetivada em dada safra, o que gerou a indenização do
agricultor pelos danos sofridos com a perda da produção.
A querela foi julgada mediante a aplicação in concreto do princípio da boa-fé
objetiva (que ainda não vigorava na legislação pátria como cláusula geral), considerando o
dever pré-contratual da indústria de não frustrar as legítimas expectativas criadas pelo
agricultor.
O caso firma a tese da existência de deveres que se inserem na fase pré-negocial
do contrato e que devem ser observados por ambas as partes envolvidas. Esclarece Martins-
Costa (1999) que o campo de atuação dessa responsabilidade é o do “ainda-não-contrato”, o
espaço da inexistência de vínculo, mas tão-somente do trato, raciocínio com o qual distingue
o instituto de outro similar, qual seja o da responsabilidade pelo inadimplemento de pré-
contrato que, ao contrário daqueloutro, resulta de responsabilidade contratual.
A hipótese deve ser examinada com especial atenção, principalmente diante do
CC/2002 que, em seu art. 462, expressamente prevê o contrato preliminar, dispondo que: “O
contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais do
contrato a ser celebrado”.
Calha observar que a mera troca de minutas e propostas de intenção, per si, não
gera responsabilidade pré-negocial, quando sem definição clara do consentimento das partes
envolvidas e da confiança legítima expressa na real expectativa posta em tablado.
Esse exame, como informa Martins-Costa (1999, p. 483, grifo da autora), não é de
fácil deslinde, pois o período de formação dos contratos “não oferece sinal homogêneo” e sua
proteção, em alguns casos, está polarizada pelo conflito entre o “interesse da liberdade
contratual” e “interesse na proteção da confiança”, os quais se manifestam sempre diante
das reais expectativas geradas na fase de negociação, recrudescendo à medida que o iter
contratual progride.
Em síntese, para se antever responsabilidade pré-contratual, há que se considerar a
legítima confiança gerada na contraparte acerca da futura conclusão do contrato
58
, se o ato
58
“A negativa em contratar por uma das partes não gera obrigações e, consequentemente, responsabilidades,
porém, quando essa negativa se após um longo período de negociações, tratativas iniciais, que levaram a
despesas com consultas, levantamentos, atos preparatórios, se não exigidos, mas ao menos incentivados pela
parte contrária, gera uma responsabilidade passível de indenização por quem a ela deu causa” (VARGAS, 2006,
p. 63).
74
violador do dever de confiança era potencialmente capaz de causar dano, a existência do dano
em si e o nexo de causalidade entre o dano e o ato, enfim, todos os elementos caracterizadores
da responsabilidade civil contratual, valendo ressaltar, com Martins-Costa (1999, p. 495) que,
na espécie, o que se indeniza “é a confiança iludida”.
No direito comparado, os debates em torno da culpa in contrahendo, com base
nos deveres laterais decorrentes da boa-fé objetiva, surgiram nos Estados Unidos da América
somente após a Segunda Grande Guerra
59
, com a Conferência Nacional para Unificação das
Leis Estaduais, sendo posteriormente ampliada em virtude do esforço de interpretação da
doutrina e jurisprudência norte-americanas sobre as regras relativas à compra e venda por
meio do reenvio ao standard da razoabilidade (MARTINS-COSTA, 1999).
Desse esforço surgiram vários institutos relacionados às negociações preliminares,
entre os quais as doutrinas da neglicence, da estoppel e da implied contract, que supriram
funcionalmente a carência de norma específica sobre responsabilidade pré-negocial
(MARTINS-COSTA, 1999).
Na Inglaterra, institutos como o equity e statutes, embora em caráter
extraordinário, tratam da responsabilidade pré-contratual, com a desconfiança que o
magistrado britânico tem sobre o princípio da boa-fé e correlatos (MARTINS-COSTA, 1999).
o direito germânico intui que a relação pré-contratual é decorrência natural da
relação de confiança e, antes da reforma da BGB de 2001/2002, introduzida pela chamada
“Lei para a modernização do Direito das obrigações” (Gesetz zur Modernisierung des
Schuldrechts)
60
(CORDEIRO, 2004, p. 69), a responsabilidade pré-negocial era desenvolvida
com apoio em determinadas regras não-escritas de direito obrigacional, complementadas pelo
direito escrito, tendo como fundamento a responsabilização da parte pela confiança iludida
(MARTINS-COSTA, 1999).
Nessa alteração, a matéria relativa à culpa in contrahendo foi codificada
61
, com a
reforma do direito da “perturbação das prestações”
62
, e passou a figurar assim:
59
Sobre a história da comunidade européia no pré e no pós-guerra ver Junqueira (2008).
60
Para Nordmeier (2007, p. 139): “Com a reforma do direito das obrigações [...] o BGB sofreu a sua mais
importante modificação desde sua entrada em vigor (mais de cem anos). Quanto à questão da importância desta
reforma, a doutrina é unânime no sentido de que é impossível subestimar o seu impacto sobre os conceitos
jurídicos e a realidade jurídica na Alemanha. Analisou-se que, na área principal desta codificação, pouco ficou
como era antes – que o direito das obrigações foi reescrito e a tradição pandectística do direito romano,
abandonada”.
61
Sobre a culpa in contrahendo Nordmeier (2007, p. 153) anota: “[...] sua problemática e a solução oferecida
pelo novo BGB: quando uma parte infere direitos da outra antes da celebração do contrato, ainda não há, no
momento do infringimento, uma relação contratual entre as partes, o que não permitiria, no fundo, indenizações
com base no direito contratual, mas a parte infringida somente é protegida pelo direito dos delitos. Para evitar tal
resultado e estabelecer uma responsabilidade obrigacional, a jurisprudência desenvolveu a culpa in contrahendo,
75
§ 311 (Relações obrigacionais negociais e semelhantes a negociais)
(1) Para a constituição de uma relação obrigacional através de negócio jurídico
assim como para a modificação do conteúdo de uma relação obrigacional é
necessário um contrato entre as partes, salvo diversa prescrição da lei.
(2) Uma relação obrigacional com deveres no sentido do § 241/2 surge também
através de:
1. A assunção de negociações contratuais;
2. A preparação de um contrato pelo qual uma parte, com vista a uma
eventual relação negocial, conceda à outra parte a possibilidade de agir sobre
os seus direitos, bens jurídicos ou interesses, ou confia nela ou azo a
contratos semelhantes a negociais.
(3) Uma relação obrigacional com deveres no sentido do § 241/2 pode também
surgir para pessoas que não devam, elas próprias, ser partes num contrato. Uma tal
relação obrigacional surge, em especial, quando o terceiro tenha assumido um
determinado grau de confiança e com isso tenha influenciado consideravelmente as
negociações contratuais ou a conclusão do contrato
63
(CORDEIRO, 2004, p. 111-
112).
A responsabilidade pré-contratual, após a profunda reforma que se operou no
direito obrigacional germânico, como frisado, restou codificada e não mais tão-somente
assentada na boa-fé. O direito tornou-se mais claro e preciso, de mais fácil manuseio, e,
embora a BGB pós-reforma não tenha esmiuçado os diversos deveres de prestação, conferiu
melhor base ao instituto, mantendo as tipologias consagradas na doutrina e na
jurisprudência (CORDEIRO, 2004).
Assim, os deveres do § 241/2 da BGB podem ser enquadrados nos seguintes
grupos
64
: (a) violação de deveres de proteção perante a outra parte durante as negociações
criando uma relação “quase-contratual” para abranger danos pré-contratuais; o legislador de 2002 codificou esta
instituição, costume no Direito alemão. O novo § 311 II estabelece que uma relação obrigacional também surge
por início de negociações, preparação de um contrato ou contratos comerciais parecidos”.
62
Referindo-se a essa locução tradicionalmente consagrada no Direito germânico, informa Cordeiro (2007) que a
reforma de 2001/2002 adotou uma concepção ampla de perturbação das prestações sem, contudo, designar essa
figura, que envolve institutos dogmaticamente distintos, como a violação de meros deveres de proteção e de
outros deveres acessórios. Carl Friedrich Nordmeier (2007, p. 146-147) menciona que “a mudança das normas
que regulam a perturbação da prestação foi um dos aspectos mais discutidos da reforma. Não é de admirar isto,
porque o anteprojeto (Diskussionsentwurf) pretendeu harmonizar as perturbações da prestação, abandonando os
conceitos do direito adiliciano, que existem dois mil anos e estavam, até então, presentes no antigo BGB. A
sugestão consistiu em juntar os vários tipos de perturbações em uma noção, a violação do dever
(Pflichtverletzung), o que teria causado o desaparecimento das regras sobre a impossibilidade, que teve uma
posição central no direito das obrigações no BGB de 1900”. Assim, parte da doutrina criticou o anteprojeto,
porque a integração da impossibilidade no conceito da violação do dever deixaria a desejar, e este conceito
tornar-se-ia difuso. Exigia-se a conservação da impossibilidade como uma categoria própria do direito das
obrigações. O legislador manteve a impossibilidade regulada no § 275 BGB/2002.
63
Os deveres no sentido do § 241/2 da nova lei referem-se aos deveres acessórios outrora não mencionados na
BGB, mas implícitos na cláusula geral da boa-fé. Essa a redação do § 241/2: “A relação obrigacional pode
obrigar, conforme o seu conteúdo, qualquer parte com referência aos direitos, aos bens jurídicos e aos interesses
da outra”.
64
Em primoroso estudo sobre o novo direito das obrigações no Código Civil alemão após a reforma de 2002,
Nordmeier (2007, p. 154), comentando os elementos que geram a responsabilidade por violação de dever
naquele sistema jurídico, aponta que “além de uma relação obrigacional, exige-se [...] uma violação de deveres,
distinguindo deveres relacionados à prestação (leistungsbezogene Pflichten) dos não relacionados à prestação
76
contratuais; (b) violação de deveres de informação; (c) impedimento à eficácia do contrato;
(d) interrupção infundada das negociações; (e) responsabilidade do representante
(CORDEIRO, 2004).
O grande mérito do direito alemão foi fixar, de maneira definitiva e precisa, a
responsabilidade pré-contratual como obrigacional
65
, permitindo que o juiz o sentido e o
conteúdo dos deveres que, em face do caso concreto, entender violados (CORDEIRO, 2004).
Na fase contratual, os deveres decorrentes da boa-fé objetiva manifestam-se
juntamente com as obrigações resultantes do vínculo
66
e, diferentemente dos deveres
principais orientados para o cumprimento da prestação, os deveres laterais atuam na satisfação
integral dos interesses das partes e possuem natureza jurídica contratual, consistindo sua
violação em verdadeiro inadimplemento.
E como se tem determinado que a relação obrigacional é um processo
67
, todo
esse rol e tipologia de deveres decorrentes da boa-fé objetiva vão se projetar, simetricamente,
para as demais fases da contratação, alcançando também o período pós-contratual, mediante a
aplicação da chamada culpa post factum finitum (SILVA, 2007b).
Para Cláudia Lima Marques (2005), a teoria da culpa post factum finitum terá
especial relevância para as relações de consumo, observando que as novas leis
intervencionistas cuidarão dos deveres de proteção, notadamente quanto ao consumo de bens
duráveis, impondo, entre outros, o dever de assistência pós-venda, de informação sobre a
utilização adequada do produto e garantias legal e contratual a cargo do fornecedor.
(nicht-leistungsbezogene Pflichten). Esta distinção fica muito clara no novo § 241, intitulado “deveres oriundos
da relação obrigacional” (Pflichten aus dem Schuldverhältnis). O inc. I determina os deveres relacionados à
prestação, colocando que o credor pode exigir do devedor uma prestação, o que estabelece deveres de
possibilitar, em todos os sentidos, o cumprimento da obrigação. O inc. II cria deveres de respeitar os direitos,
bens jurídicos e interesses da outra parte, referindo-se a deveres que estão fora da relação obrigacional. No
direito antigo, estes deveres foram criados por meio da figura do infringimento positivo do contrato (positive
Vertragsverletzung) ou, no âmbito pré-contratual, por meio da culpa in contrahendo. Um exemplo clássico de
infringimento de deveres não relacionados à prestação é o de um pintor que, ao pintar as paredes de um quarto,
danifica os móveis no quarto. Neste caso, o cumprimento do dever principal, isto é, pintar as paredes, foi
cumprido perfeitamente; mas o devedor não tomou cuidado de proteger os bens jurídicos do credor, danificando
seus móveis. Portanto, surge a responsabilidade por violar um dever não relacionado à prestação”.
65
A responsabilidade das partes na fase de tratativas foi desenvolvida e consolidada na doutrina e jurisprudência
alemãs, a partir do estudo de Ballerstedt, defendendo a tese de que o simples início das negociações criaria entre
as partes deveres de lealdade, esclarecimento e informação, merecedores da tutela do direito.
66
Loureiro (2008, p. 89) entende que a boa-fé no decorrer do cumprimento contratual “[...] aponta a maneira de
como deve o contratante agir, sempre orientado para a consecução de sua prestação contratual. Trata-se de não
fazer aquilo que, direta ou indiretamente, possa dificultar ou impedir o alcance do resultado pretendido. [...] Do
ponto de vista negativo, a boa-fé na execução do contrato impede que o contratante aja de tal forma a colocar em
perigo o objetivo contratual ou o dificulte”.
67
A obrigação como processo tema inicialmente abordado no Brasil por Clóvis Veríssimo do Couto e Silva
encontra suas bases na teoria sociológica do contato social, “segundo a qual existem nos contatos sociais
diversos graus, variando desde uma intensa proximidade até a máxima distância.” Larenz (apud FRITZ, 2007, p.
220) entende que “aos diferentes contatos estabelecidos entre os membros de determinada sociedade, são
atribuídos, pelo ordenamento jurídico, deveres com diversos graus de intensidade”.
77
Nesse âmbito, inúmeros exemplos de projeção de deveres para a fase pós-
contratual podem ser aqui lembrados, como o do fabricante de medicamentos que se viu
obrigado a comunicar os efeitos colaterais do seu produto, descobertos após o processo de
comercialização; os corriqueiros casos de recall promovidos pelas montadoras de veículos; e
ainda o dever de confidencialidade estabelecido em contratos afetos ao direito concorrencial.
Importante observar que tais deveres incidentes nas fases pré e pós-contratual,
quando inexistem deveres principais, atuam “como os únicos deveres a serem respeitados
pelos envolvidos, cuja função consiste primordialmente em adequar o comportamento das
partes aos padrões exigidos pela boa-fé objetiva” (FRITZ, 2007, p. 219). Nessas fases, os
deveres laterais também têm natureza jurídica contratual, e sua violação gera responsabilidade
contratual, uma vez que decorrem da função integrativa da cláusula geral da boa-fé objetiva.
Desse modo:
Manifestamente a boa-fé objetiva, com suas funções de enriquecimento do vínculo
obrigacional (criando deveres anexos ao lado dos principais e secundários) e de
minoração da intensidade de certas posições jurídicas (como a figura do supressio,
da surrectio, do venire contra factum proprium e do tu quoque) acaba por veicular a
idéia de solidariedade, pois impõe aos contratantes que sejam leais e colaborem com
o escorreito andamento do processo contratual (SILVA, 2003, p. 149).
E essa função integrativa da boa-fé objetiva sobre a relação contratual, sem
dúvida, espraia-se sobre as fases de desenvolvimento e execução do pacto, concorrendo para
determinar o comportamento correto dos contratantes.
1.3.6 A boa-fé objetiva e os direitos fundamentais
O direito privado no atual momento histórico, como destacado, tem a
Constituição Federal como seu vértice, ou seja, como centro normativo irradiador de
princípios e valores fundamentais.
Compete ao intérprete materializar tais princípios e valores na vida das pessoas.
Para tanto, torna-se imprescindível uma mudança de mentalidade. Mister ver a Constituição
com outros olhos, como documento não apenas programático, mas como a Lei Maior do país,
como fundamento de validade do direito privado, “fonte primeira e vinculativa do Direito”
(SARLET, 2007, p. 112).
78
O fato de a CF/1988 ter sido pródiga na previsão de amplo rol de direitos
fundamentais marcadamente heterogêneos, além de ter gerado a imprescindibilidade de
intenso esforço para sua concretização e proteção, trouxe severas conseqüências à sua
aplicação no âmbito do direito privado e das relações entre particulares (SARLET, 2007). De
notar que:
[...] a jurisdição constitucional pode, com base na Constituição e com as devidas
cautelas intervir na legislação ordinária em nome do bem comum, para realizar
uma legítima conformação dos valores esculpidos na Constituição, o que se poderia
denominar, ao menos pela idéia que transmite, de uma relação de diálogo das
fontes, cujo mecanismo pode ser sintetizado da seguinte forma: à medida que os
valores constitucionais abstratos depuram o Direito, eles elevam o nível jurídico das
normas de Direito ordinário e da jurisprudência. Com o tempo, vai surgindo um
Direito mais justo que, por sua vez, depura valores da Constituição em um ciclo
contínuo de aperfeiçoamento. Em suma, a influência do Direito Constitucional sobre
o Direito ordinário encontra-se, sobretudo, no plano do seu aperfeiçoamento e
desenvolvimento. Esse mecanismo permite, sem rupturas consideráveis, a
compreensão da Constituição como fonte de Direito nas relações privadas,
constituindo-se, assim, em um critério eficaz, por exemplo, para o controle do
conteúdo jurídico dos contratos privados (DUQUE, 2007a, p. 104-106, grifo da
autora).
É nesse contexto que ocupa lugar de destaque o exame acerca da eficácia da
Constituição na esfera do direito privado
68
, recebendo da doutrina a denominação de eficácia
horizontal direta ou imediata
69
dos direitos fundamentais
70
, discussão em que:
[...] se cuida principalmente de uma interpretação conforme a Constituição das
normas de Direito Privado e da incidência da Constituição no âmbito das relações
entre sujeitos privados, seja por meio da concretização da Constituição pelos órgãos
legislativos, seja pela interpretação e desenvolvimento jurisprudencial (SARLET,
2007, p. 120).
68
Para um estudo sobre a influência e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares no
direito comparado cf.: Courtis (2007), Sarlet (2007), Pinto (2007), Ubillos (2007), Neuer (2007) e Silva (2007c).
69
A eficácia horizontal diz respeito às relações entre sujeitos privados, na qual os direitos fundamentais atuam
como norma vinculante na ordem jurídico-privada. Enquanto que a relação de subordinação do particular perante
o Estado, denomina-se de eficácia vertical dos direitos fundamentais.
70
Sobre o tema Sarlet (2006, p. 395) pondera: “Ponto de partida para o reconhecimento de uma eficácia dos
direitos fundamentais na esfera das relações privadas é a constatação de que, ao contrário do Estado clássico e
liberal de Direito, no qual os direitos fundamentais, na condição de direitos de defesa, tinham por escopo
proteger o indivíduo de ingerências por partes dos poderes públicos na sua esfera pessoal e no qual, em virtude
de uma preconizada separação entre Estado e sociedade, entre o público e o privado, os direitos fundamentais
alcançavam sentido apenas nas relações entre indivíduos e o Estado, no Estado social de Direito não apenas o
Estado ampliou suas atividades e funções, mas também a sociedade cada vez mais participa ativamente do
exercício do poder, de tal sorte que a liberdade individual não apenas carece de proteção contra os poderes
públicos, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade, isto é, os detentores de poder social e
econômico, já que é nesta esfera que as liberdades se encontram particularmente ameaçadas”.
79
A matéria é tratada por Canotilho (2003, p. 409) em termos de funções exercidas
pelos direitos fundamentais perante terceiros, referindo o constitucionalista à obrigação estatal
de “concretizar as normas reguladoras das relações jurídico-civis de forma a assegurar nestas
relações a observância dos direitos fundamentais”. Conclui o mestre português:
O comércio jurídico privado está, portanto, vinculado pelos direitos fundamentais
sociais sobretudo no que respeita ao núcleo desses direitos intimamente ligados à
dignidade da pessoa humana (ex.: contratos lesivos da saúde da pessoa, contrato
lesivo dos direitos dos consumidores) (CANOTILHO, 2003, p. 484).
Rosa Maria de Andrade Nery (2002, p. 112, grifo da autora), por seu turno,
analisa a eficácia civil dos direitos fundamentais sob duas perspectivas:
1) pela penetração dogmática direta (passagem imediata dos textos constitucionais
às decisões civis), ou indireta, pela concretização de conceitos indeterminados
(conceitos tornados precisos para aplicação a determinados casos concretos); 2) por
seu alcance material, na medida que os direitos fundamentais delimitariam: a)
espaços livres de ingerência estadual; b) espaços do Estado livres de ingerência de
particulares; c) pretensões de particulares por ações que contendam com os direitos
fundamentais (aqui identificada a eficácia reflexa ou civil dos direitos
fundamentais).
A relevância do debate é apontada diante da percepção de que, também na
dimensão das relações privadas, os direitos fundamentais são ofendidos, o que dissipa
qualquer dúvida acerca do necessário enfrentamento da matéria. Assim:
[...] relativamente ao “se” de uma eficácia dos direitos fundamentais na esfera das
relações entre particulares não se verificam objeções significativas, notadamente
quando se compreende que esta eficácia não se restringe à problemática da
vinculação dos particulares, abrangendo a influência da Constituição sobre os atos
normativos infraconstitucionais de Direito Privado e sua aplicação judicial
(SARLET, 2007, p. 122).
Noutras palavras, a vinculação de particulares a certos deveres de proteção
decorrentes da observância dos direitos fundamentais retrata a deferência do direito privado às
normas constitucionais e a imediata relação destes com a boa-fé objetiva.
Nessa esteira, afirma Ingo Sarlet (2007, p. 129):
[...] parece perfeitamente legítimo sustentar que uma vinculação direta dos órgãos
estatais no âmbito dos deveres de proteção decorrentes dos direitos fundamentais
não exclui a possibilidade de os particulares também estarem vinculados por
determinados deveres de proteção, ainda que evidentemente não estatais, e que na
esfera das relações entre particulares não exista pelo menos um dever de respeito e
80
tolerância em relação aos direitos fundamentais dos demais sujeitos de direitos, sem
prejuízo dos deveres fundamentais do cidadão [...].
Disso resulta que:
[...] em princípio, podem e devem ser extraídos efeitos jurídicos diretamente das
normas de direitos fundamentais também em relação aos atores privados, não
resultando obstaculizada pela falta ou insuficiência de regulação legal. Que somente
as circunstâncias de cada caso concreto, as peculiaridades de cada direito
fundamental e do seu âmbito de proteção, as disposições legais vigentes e a
observância dos métodos de interpretação e solução de conflitos entre direitos
fundamentais (como é o caso da proporcionalidade e da concordância prática)
podem assegurar uma solução constitucionalmente adequada. [...] o que
efetivamente importa em primeira linha é que se obtenha uma solução
sistematicamente adequada e que guarde compatibilidade com os princípios e regras
da Constituição, portanto, seja com o núcleo essencial da autonomia privada e da
liberdade contratual, seja com os demais direitos fundamentais, correspondendo, de
resto, tanto às exigências da proibição de excesso quanto às da vedação da proteção
insuficiente (SARLET, 2007, p. 132-133).
Admitindo a incidência da normativa constitucional no âmbito das relações
privadas, impõe-se a materialização ou concretização dos valores fundamentais plasmados na
CF/1988, que se dará por intermédio das cláusulas gerais e com base no pensamento tópico, e,
não mais exclusivamente através do método sistemático-dedutivo.
A propósito:
A utilização das cláusulas gerais exige o afastamento do raciocínio axiomático-
dedutivo. [...] muito embora as contribuições teóricas mais recentes, não é raro
encontrar-se, ainda hoje, conotada à noção de sistema, aquela antiga acepção, a de
que ao direito é ínsito o sistema fechado, ou axiomático-dedutivo. As conseqüências
que daí resultam são desastrosas no campo do raciocínio, da metodologia e,
portanto, da aplicação das cláusulas gerais. Se utilizado o raciocínio lógico-dedutivo
e o método axiomático, estarão as cláusulas gerais condenadas a permanecer
emudecidas, num inútil e eterno limbo. Por constituir uma técnica de pensamento
orientada por problemas é que a tópica recusa a possibilidade de serem encontradas
soluções que não os levem em conta, ou não os levem em conta como ponto de
partida para o raciocínio. Esse estilo de pensamento se funda, inicialmente, na noção
de tópico. Este nada mais é do que um ponto de vista considerado relevante e
consensualmente aceito, como por exemplo, o tópico da “finalidade”, em matéria de
adimplemento contratual, ou o do “interesse”, no campo do exercício dos direitos
subjetivos, ou o da função social”, atinente ao exercício do direito de propriedade.
[...] O estilo de pensar tópico flexibiliza, portanto, a formação da arquitetura
conceitual abstrata característica do pensamento gico-dedutivo. Mais do que isso,
a vinculação constante com o “problema” impede a formação de um pensamento
linear, limitado às operações de dedução e redução, como ocorre com a atividade de
subsunção (MARTINS-COSTA, 1999, p. 355, 358, 364, grifo da autora).
O que se dessume é que nem sempre a norma permite encontrar uma solução com
base na atividade de natureza sistemático-dedutiva, como acontece nas situações em que,
81
diante do mesmo caso concreto, várias soluções se apresentam igualmente possíveis. Em face
desse problema, a saída pode ser encontrada no exame de precedentes.
Caso emblemático da existência de diferentes alternativas para a solução de
determinada questão submetida ao exame judicial, informa Martins-Costa (1999, p. 367, grifo
da autora), é fornecido pela cláusula geral da boa-fé objetiva, asseverando que:
É possível detectar a incidência da norma segundo a qual na execução do contrato,
devem as partes agir segundo a boa-fé, em um caso concreto cujos elementos de fato
não sejam idênticos ao de outro caso, que foi solvido mediante o recurso à mesma
cláusula geral. referi que, em razão da vagueza semântica da norma, o Juiz tem
relativa liberdade para estabelecer a hipótese completa de incidência, a qual não está
perfeitamente definida no enunciado normativo. Deve averiguar, portanto, os casos
semelhantes, procurando, nos precedentes, detectar qual foi a ratio decidendi. Dela
retirará os traços de semelhança que conduzirão, ou não, à aplicação do princípio,
valor ou standard ao qual reenvia a cláusula geral.
É nesse contexto que se sustenta possível concretizar vários dos valores
fundamentais constantes do texto constitucional, reenviando-os à cláusula geral da boa-fé
objetiva prevista no Código Civil, sem perder de vista os precedentes, a communis opinio
doctorum e os usos do tráfego jurídico, de maneira a possibilitar a melhor e mais justa solução
do caso concreto. A boa-fé atuará como topos na liquidação do problema, enriquecendo a
experiência jurídica.
Todavia, não se pode crer que o pensamento lógico-formal reste de todo
abandonado, pois o juiz continuará a utilizar o raciocínio subsuntivo após o preenchimento
das lacunas pelo reenvio.
Constata-se, dessa forma, a perfeita compatibilidade entre o pensamento tópico e
o sistemático, inaugurando o que Martins-Costa (1999, p. 377) denominou de “novo
pensamento sistemático”.
Pertinente a observação de Clóvis do Couto e Silva (2007a, p. 69), em sua obra
“A obrigação como processo”:
[...] a sistemática atual é predominantemente dedutiva, mas dá larga margem para
que se possa pensar casuisticamente, do que pode resultar a descoberta de novos
princípios e a formação de novos institutos. E assim é porque, embora a codificação
possa ter a virtualidade de revogar todas as normas conflitantes com o novo código,
não terá a virtude de ab-rogar, entretanto, todos os princípios jurídicos, mormente
aqueles considerados fundamentais.
O manejo do direito privado no atual momento histórico está a exigir maior
desprendimento hermenêutico, com a problematização dos casos, a partir da utilização da
82
tópica e também do raciocínio lógico-dedutivo, isto é, do “novo pensamento sistemático”,
reconhecendo eficácia irradiante dos direitos fundamentais sobre as normas ordinárias.
Todo esse sofisticado processo hermenêutico possibilita a concretização de
valores fundamentais no direito privado, em especial, no direito das obrigações, por
intermédio da cláusula geral da boa-fé objetiva.
Nesse passo, exsurge o mais importante dos valores fundamentais, qual seja o da
dignidade da pessoa humana
71
, que despatrimonializando e repersonalizando o direito
privado, cria as bases do chamado Direito Civil Constitucional, caminho descrito de forma
significativa por Perlingieri (2002, p. 33), ao tratar dessa tendência normativo-cultural:
[...] se evidencia que no ordenamento se operou uma opção, que, lentamente, se vai
concretizando, entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo
(superação da patrimonialidade fim a si mesma, do produtivismo, antes, e do
consumismo, depois, como valores). Com isso não se projeta a expulsão e a
“redução” quantitativa do conteúdo patrimonial no sistema jurídico e naquele
civilístico em especial; o momento econômico, como aspecto da realidade social
organizada, não é eliminável. A divergência, não certamente de natureza técnica,
concerne à avaliação qualitativa do momento econômico e à disponibilidade de
encontrar, na exigência de tutela do homem, um aspecto idôneo, não a “humilhar” a
aspiração econômica, mas, pelo menos, a atribuir-lhe uma justificativa institucional
de suporte ao livre desenvolvimento da pessoa. Isso induz a repelir a afirmação
tendente a conservar o caráter estático-qualitativo do ordenamento pela qual não
pode ser “radicalmente alterada a natureza dos institutos patrimoniais do direito
privado”. Estes não são imutáveis: por vezes são atropelados pela sua
incompatibilidade com os princípios constitucionais, outras vezes são exaustorados
ou integrados pela legislação especial e comunitária; são sempre, porém, inclinados
a adequar-se aos novos “valores”, na passagem de uma jurisprudência civil dos
interesses patrimoniais a uma mais atenta aos valores existenciais. Estes não podem
mais ser confinados aprioristicamente no papel de limites ou de finalidades
exteriores, como se não fossem idôneos a incidir sobre a função do instituto e,
portanto, sobre a sua natureza.
A cláusula geral da boa-fé objetiva, devidamente funcionalizada com base em
valores fundamentais como os da dignidade da pessoa humana, livre iniciativa, função social
da propriedade, trabalho, solidariedade e proporcionalidade, favorecerá a reconstrução do
Direito Civil, qualificando a tutela das relações obrigacionais, mediante o fortalecimento da
confiança, cooperação, lealdade e equilíbrio, com a revitalização dos princípios da
comutatividade e da justiça contratual.
71
Ao discorrer sobre a dignidade da pessoa humana como paradigma do direito privado, Alexandre dos Santos
Cunha (2002, p. 243) entende que: “A partir do desenvolvimento da teoria da personalidade, abriu-se todo um
novo campo para a expansão de demandas de tutela, bem como de formalização de direitos que a ela estariam
relacionados. Essas demandas acabaram por alçar a dignidade humana, enquanto princípio teia dos direitos da
personalidade, à categoria de direito do Homem, consagrado, até, no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem, da ONU. Isso é, em parte, conseqüência do fato de que, segundo Carvalho, se hoje um sentido e
um futuro para a História, ele está no Homem, não o ideal, mas o de carne e osso, que se faz a si próprio em um
processo dialético: o Homem como processo”.
83
1.4 A crise do contrato
Ao contrário do que sucede na França, onde os magistrados não são habituados a
lidar com o sistema das cláusulas gerais
72
e por isso acaba hipertrofiado na prática –, no
Brasil, a crise por que atualmente atravessa o contrato encontra seu fundamento não na
interpretação e aplicação do direito das obrigações, mas na própria estrutura da sociedade pós-
moderna, que padece de uma crise de confiança, de acordo com concepção de Marques
(2007).
Para a mesma autora, “a nova linguagem visual, fluida, rápida, agressiva, pseudo-
individual e massificada dos negócios jurídicos de consumo à distância pela Internet”
(MARQUES, 2007, p. 20) gerou uma crise de confiança nos instrumentos atuais da teoria
geral dos contratos.
Essa circunstância demanda o desenvolvimento de uma nova dogmática capaz de
atender às preocupações sociais com o fim de melhor tutelar o interesse dos consumidores e a
“justiça nas relações jurídicas equilibradas entre dois civis e entre dois comerciantes, nos
contratos agora regulados prioritariamente pelo Código Civil de 2002” (MARQUES, 2007, p.
21).
Alicerçada nas diversas manifestações da boa-fé, a confiança “[...] exprime a
situação em que uma pessoa adere, em termos de actividade ou de crença, a certas
representações passadas, presentes ou futuras, que tenha por efetivas. O princípio da
confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela(CORDEIRO, 2007, p.
1235).
Para Ana Rispoli D’Azevedo (2007, p. 293):
A teoria da confiança protege as expectativas legítimas que nascem no outro
contratante, o qual confiou na postura, nas obrigações assumidas e no vínculo criado
por meio da declaração do parceiro. [...] A proteção da confiança é vista hoje como
um imperativo ético-jurídico que empresta significado a diferentes enfoques, como o
aumento do potencial na ordem social (e econômica) e o incremento à eficiência das
relações econômicas interempresariais e com os consumidores.
72
É que o sistema de cláusulas gerais, como observado, requer um laborioso e sofisticado esforço hermenêutico,
atividade que não encontra ressonância na estrutura lógica do direito civil francês, concebido pelos influxos da
Revolução e contrário a qualquer possibilidade de interpretação da lei pelo juiz, que dela deveria ser escravo,
atuando como autômato, ou seja, o juiz “boca da lei”.
84
A nova dogmática está centrada na revitalização do princípio da confiança
73
com
vistas a reduzir a crescente litigiosidade e arrefecer a exacerbação dos conflitos entre os
diversos agentes econômicos, objetivo a ser cumprido com a aplicação das cláusulas gerais da
função social, dos bons costumes e notadamente da boa-fé objetiva, com diferentes graus de
intensidade no universo do direito privado, tripartido em direito puramente civil, empresarial
e consumeirista “ou misto, entre um civil e um comerciante” (MARQUES, 2007, p. 22).
É de Niklas Luhmann (apud CORDEIRO, 2007) a proposta de uma leitura
sociológica da confiança, ao asseverar que várias são as hipóteses de comportamentos capazes
de interferir na vida de relações. A confiança, elemento essencial da vida em sociedade,
permite reduzir a complexidade, eis que representa o confiar na própria expectativa, nos
elementos e na normalidade das atuações das partes.
Para além disso, o princípio da confiança possui como um de seus vetores
informativos o direito que, ao reduzir as complexidades através de suas decisões impregnadas
de estabilidade e segurança, confere efeitos e eficácia às situações concretas de confiança.
É com a valorização do paradigma da confiança
74
que o direito privado será capaz
de oferecer respostas satisfatórias para o mundo da “pós-modernidade”
75
, solucionando a
73
Raphael Manhães Martins (2007, p. 219-220) discorre sobre o fenômeno da revitalização da confiança, nos
seguintes termos: “Embora a confiança tenha diversos matizes e graduações, a idéia básica por trás dela é que
existem determinadas situações nas quais um ou mais sujeitos de uma relação jurídica adere(m), quer por meio
de uma atividade ou, por sua crença no indivíduo ou na relação, sempre em decorrência de representações de
outrem”. A proteção destas situações, ou melhor, a existência de um princípio geral de proteção à confiança
gerada nas partes de determinada relação jurídica é uma das transformações que o direito das obrigações sofreu
recentemente. Este princípio, diferentemente da boa-fé, entretanto, não encontra seu fundamento em questões de
natureza ética. Ao contrário, entende-se que sua introdução, no sistema jurídico, está muito mais atrelada a
necessidades do próprio modelo jurídico adotado e ao contexto social que cerca o seu surgimento e
desenvolvimento – isto é, uma necessidade de garantir a segurança jurídica num momento tão instável e
complexo do que, exclusivamente, considerações éticas ou morais. Afinal, num mundo onde as variáveis e os
riscos são inúmeros, como nossa sociedade de consumo ou da informação, o ser humano precisa eliminar
algumas destas possibilidades, de forma a reduzir a complexidade social e ganhar tempo, permitindo a atuação e
intervenção mais ampla no espaço social. E para esse processo ser feito, é necessário que uma das partes confie
em outra, ou seja, aceite as representações, presentes, pretéritas ou futuras, feitas por outrem, independentemente
de um maior processo racional por trás deste confiar. Mas, embora tal ‘confiar’ permita e propicie o
desenvolvimento de certas atividades, bem como a tomada de decisões de forma mais eficiente, é importante
reconhecer a conseqüência desastrosa que ela cria para as relações intersubjetivas: o homem que confia,
necessariamente coloca-se numa posição mais frágil e vulnerável dentro daquela relação jurídica. Isto porque ele
despe-se de algumas de suas preocupações e dos receios, que racionalmente teria, e passa a não tomar todas as
precauções que, em outras circunstâncias, seriam adotadas. Para compensar esta vulnerabilidade de quem confia,
surgiu a necessidade do ordenamento jurídico proteger esta confiança, como uma maneira de fortalecer o papel
da auto-responsabilização dos sujeitos numa relação jurídica e fortalecer a segurança jurídica nesta”.
74
“A idéia e o valor da confiança andam ligados à teoria do negócio jurídico quase desde o início das suas
primitivas formulações. As suas raízes remontam às orientações declarativistas que contestaram a teoria da
vontade, tal como enunciada por Savigny e reelaborada por Windscheid e Zitelmann. Embora os princípios e
soluções objectivistas tenham perdido muito da sua força (e alguma de sua razão) com a promulgação da BGB,
não deixaram de ter sempre alguns representantes na evolução da teoria do negócio jurídico, fazendo ouvir uma
voz diferenciada que não deixou de ter influência, em especial quanto à metodologia e critérios de interpretação.
Predominante entre os civilistas austríacos e suíços, a doutrina de protecção da confiança reaparecem também
85
chamada “nova crise do contrato” que é “crise de confiança”, decorrente do ceticismo quanto
à capacidade do direito de dar respostas adequadas e satisfatórias aos problemas sociais
atuais, que se alteram e se aprofundam com rapidez, segundo concepção de Marques (2007, p.
25-26).
A reconstrução do direito privado (assentado em cláusulas gerais e conceitos
indeterminados) deve ter por escopo eliminar, ou reduzir no maior grau possível, a
disparidade de condições entre os contratantes, restabelecendo o equilíbrio nas relações
obrigacionais, segundo princípios de eqüidade e justiça contratual perdidos no tempo.
Nesse ponto, o que se vê é um verdadeiro movimento de retorno à mancipatio,
quando as obrigações das partes contratantes eram levadas à praça pública e pesadas nos
pratos de uma balança, ficando os pratos em eqüidistância para o fim de atestar a igualdade
dos compromissos assumidos. O contrato constituía verdadeiro símbolo da Justiça,
representado pela balança, com o que nasce o princípio da comutatividade.
Na expressão de Álvaro Villaça Azevedo (2002, p. 29), esse é o:
[...] princípio essencial de Direito, porque exige a equivalência das prestações e o
equilíbrio delas no curso das contratações, pois por ele, as partes devem saber, desde
o início negocial, quais serão seus ganhos e suas perdas, importando esse fato à
aludida eqüipolência das mencionadas prestações.
O resgate desse apanágio do Período Clássico passa por uma profunda reforma da
teoria dos contratos, oxigenando-a com princípios de solidariedade, boa-fé, igualdade e
justiça, eliminando a “crise de confiança” e sobrelevando em importância a função do
contrato, enquanto instrumento indispensável à vida de relações.
Nesse ambiente, nenhum contratante pode frustrar as legítimas expectativas do
outro, sendo missão do direito proteger a confiança dos que contratam (por isso, a lei manda
na Alemanha, como reacção à doutrina das relações contratuais de facto que, quando recusada reclamava uma
objectivização do critério e dos limites do negócio jurídico. Para esta orientação, a declaração de vontade é
expressão da autodeterminação individual, mas se justifica na medida em que se adere às exigências da
protecção social e da confiança do destinatário” (ALMEIDA, 1992, p. 53-54, grifo do autor).
75
Segundo teoria de Erik Jayme, sintetizada por Marques (2007, p. 23-24, grifo da autora), como o período de
“mudanças da sociedade contemporânea”, desde o fim da Guerra Mundial, em que a pós-industrialização
lançou o pós-fordismo, “os bens juridicamente relevantes, ou a riqueza econômica, passaram a ser os bens
móveis imateriais e os fazeres ou serviços de massa, em que a privatização generalizada dos serviços públicos
abalou a segurança do Estado, do bem-estar, a globalização da produção e da distribuição em escala, e o
crescente movimento de integração econômica superaram as fronteiras do Estado-Nação, diminuindo a
intervenção protetiva estatal e deslegitimando os poderes estatais, como o Judiciário e o Legislativo, o que foi
acompanhado por um movimento de renascimento da autonomia da vontade, dos árbitros e dos meios
alternativos de solução de controvérsias, legitimando as regras do mercado e da lei dos mercadores (lex
mercatoria), concentrando ainda mais o poder nas empresas mundiais e acompanhado da revolução das relações
virtuais da sociedade da informação”.
86
observar os princípios de probidade e boa-fé), gerando reflexos em toda a sociedade. Daí
porque se enaltecer a cláusula da função social do contrato como regra, a um tempo,
limitadora e informadora da liberdade de contratar
76
.
Uma visão pós-moderna de contrato requer uma análise do instituto sob a
perspectiva civil-constitucional que, com base nos valores fundamentais da dignidade da
pessoa humana, igualdade, livre iniciativa e solidariedade, realocaria a “confiança” elevando
seu status jurídico, pois a mesma passaria de “dever de proteção” decorrente da boa-fé
objetiva à base do próprio contrato, papel que hoje é exercido pela “autonomia privada”.
Essa realocação da confiança enalteceria o elemento visual e a informação
divulgada na fase de tratativas, que ganhariam a condição de novos paradigmas contratuais.
Assim, para fins de conclusão e efeitos do contrato (hoje firmado em ambiente virtual) valeria
mais a aparência (aquilo que foi exibido como real por uma das partes), do que a negociação
em si.
O impacto dessa percepção pós-moderna de contrato, em especial no âmbito do
direito consumeirista, é assim observado por Cláudia Lima Marques (2007, p. 44-45, grifo da
autora):
Normalmente utilizamos, no Brasil, a teoria da aparência e da boa-fé para afirmar
que as relações sociais (juridicamente protegidas) baseiam-se na confiança legítima
e merecem a especial proteção do direito. Se isto continua certo, no mundo virtual e
visual dos nossos atuais contratos de consumo a própria aparência já é importante, o
contrato e a prestação desmaterializam-se. Fluído e passageiro é o serviço, é a
informação; complexo e plural é o contexto contratual, em especial de consumo,
rápido e especializado. Daí a importância de acrescentar-se aos conhecidos
princípios contratuais um paradigma qualificado, valorizando a confiança como eixo
central das condutas e como fonte jurídica e dela retirando responsabilidades
específicas.
Para Marques (2007), o modelo máximo da boa-fé (bona fides) deve ser reforçado
com a revalorização de um paradigma mais básico, a fides, que representa a confiança
puramente, consistindo num “padrão mais visual”, menos valorativo do sentido ético das
condutas, logo, menos valorativo da própria boa-fé.
A interação entre confiança e boa-fé objetiva é retratada por Karina Nunes Fritz
(2007, p. 212, grifo da autora), ao entender que o princípio:
76
Sob o aspecto operacional, a expressão “liberdade de contratar” deve ser interpretada em sentido amplo. Atine
tanto com a possibilidade de escolher o parceiro contratual (com quem dizer sim ou não), como também com a
liberdade de discutir o conteúdo, as cláusulas do contrato, em igualdade de condições com a outra parte, tudo em
conformidade com a cláusula geral da “função social”. Mal comparando, quando determinado indivíduo escolhe
o restaurante onde vai realizar sua refeição, exerce liberdade de contratar. no restaurante, esse indivíduo
sugere alterações no cardápio do prato que pretende pedir, exerce liberdade contratual. Doravante, uma e outra
devem ser exercidas em razão e nos limites da função social do contrato (VELTEN, 2006).
87
[...] da proteção da confiança, segundo o qual as pessoas, para poderem formar suas
relações de vida e relações jurídicas com responsabilidade, precisam poder confiar
no comportamento das outras. A confiança, requisito indispensável a todo
relacionamento humano, vem protegida de diversas formas pelo direito, dentre as
quais via princípio da boa-fé objetiva. Percebe-se, então, o importante papel
atribuído à boa-fé objetiva no direito alemão: ela forma a base ética sobre a qual
ergue-se o direito privado e, nesse sentido, completa, integra e limita a liberdade de
exercício de direitos, a autonomia privada e seu principal desdobramento, a
liberdade contratual. Significa isso dizer que as partes devem, no exercício de sua
autonomia, agir eticamente, considerando os interesses do outro, aspecto essencial
da idéia da boa-fé [...].
Esse novo paradigma, “mais voltado para as percepções coletivas e para o
resultado fático da conduta de um agente”, ao tempo que reclassifica, aproxima os princípios
paradigmáticos da boa-fé (bona fides) e da confiança (fides)
77
, ensejando a utilização desses
institutos de maneira harmônica e em constante diálogo
78
(MARQUES, 2007, p. 47-48).
Constata-se, ademais, que:
Nas suas manifestações subjectiva e objectiva, a boa-fé está ligada à confiança: a
primeira dá, desta, o momento essencial; a segunda, confere-lhe a base juspositiva
necessária quando, para tanto, falte uma disposição legal específica. Ambas, por fim,
carreiam as razões sistemáticas que se realizam na confiança e justificam,
explicando, a sua dignidade jurídica e cuja proteção transcende o campo civil
(CORDEIRO, 2007, p. 1.250).
No mundo de aparência, esta deve ser valorada pelo direito, no sentido de que se
criam expectativas legítimas nas pessoas de boa-fé, deve prevalecer o que aparentou, o que
pareceu ser. Noutras palavras, aquilo que foi informado ou divulgado e despertou a confiança
do outro, ainda que por meio de falsa publicidade, abstraindo Marques (2007) que o “visual”,
o aparente, o informado, o declarado e o presente na publicidade constituem a base para o
próprio vínculo contratual para a pós-modernidade atual.
Particularmente no comércio eletrônico, Marques (2004, p. 47) pontifica que:
Confiar na aparência, na imagem, no som, na informação, no click, na presença de
um ser humano ou de uma pessoa jurídica organizadora, em qualquer um dos
computadores interligados no mundo. Confiança no meio eletrônico, na entrega, nos
dados, na contratação, no armazenamento, na possibilidade de perenizar o negócio
jurídico e de seu bom fim! Confiança na realização das expectativas legítimas do
consumidor também, nos negócios jurídicos do comércio eletrônico é a meta!
77
Chiusi (2007, p. 23) registra que: “A bona fides representa, pois, o critério central de todos contratos realmente
relevantes e fundamenta a proteção da confiança”.
78
O termo aqui é empregado na expressão “diálogo das fontes”, concebida por Erik Jayme, para revelar a
necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado coexistentes no sistema (MARQUES, 2007).
88
Foi buscando fortalecer a confiança na aparência, inclusive com a integração da
defesa do consumidor, que a reforma da BGB de 2001/2002 regulou ainda mais o dever de
informar do fornecedor 361b), tratou de maneira mais minudente da culpa in contrahendo
311), positivou a responsabilidade pela confiança e a existência de deveres laterais de
conduta oriundos da cláusula geral da boa-fé objetiva, que foi consideravelmente revista e
ampliada (§ 241/2) (CORDEIRO, 2007).
No Brasil, onde a estrutura legal de defesa do consumidor foi mantida intacta no
âmbito de um “microssistema” e as obrigações civis e comerciais foram unificadas no
CC/2002, que também definiu as figuras do empresário, da sociedade empresária e do
estabelecimento empresarial, o funcionamento do sistema, diante da complexidade da vida
moderna, dependerá muito do esforço hermenêutico e da forma pela qual o intérprete
promoverá o “diálogo” entre as fontes, tendo como vértice a CF/1988 (MARQUES, 2007).
A definição do modelo de direito privado brasileiro, segundo análise de Marques
(2004, p. 85), pode ser compreendida a partir da seguinte figura de linguagem:
[...] o direito privado brasileiro reconstruído pela Constituição de 1988 seria
semelhante a um edifício. O Código Civil de 2002 é a base geral e central, é o
próprio edifício, em que todos usam o corredor, o elevador, os jardins, é a entrada
comum a civil, a empresários e a consumidores em suas relações obrigacionais. o
Código de Defesa do Consumidor é um local especial, para privilegiados, é como
o apartamento de cobertura: existem privilégios materiais e processuais para os
diferentes, que passam por sua porta e usufruem de seu interior, com piscina,
churrasqueira, vista para o rio ou mar e outras facilidades especiais. Na porta da
cobertura entram os convidados: os consumidores, os diferentes, em suas relações
mistas com fornecedores. Sustentando conceitualmente o privilégio ou como base
do Código de Defesa do Consumidor, está o Código Civil de 2002, com seus
princípios convergentes (boa-fé, combate ao abuso, à lesão enorme, à onerosidade
excessiva etc.), sempre pronto a atuar subsidiariamente.
O atual direito privado brasileiro sai enriquecido pela inserção de novos
instrumentos legais postos à disposição do intérprete. Sua correta utilização, seja na seara
cível, empresarial ou consumerista, será de crucial importância para a superação da crise de
confiança que atinge os contratos.
89
1.5 Os deveres laterais ou anexos
Decorrentes da cláusula geral da boa-fé objetiva, os deveres laterais ou anexos
constituem um conjunto de regras de conduta impostas a ambos os sujeitos da relação
obrigacional, credor e devedor, que não possuindo relação direta com os deveres principais ou
anexos de prestação, objetivam o alcance do fim do contrato
79
.
Para Silva (2007a, p. 93), os deveres laterais ou anexos “[...] comportam
tratamento que abranja toda a relação jurídica. Assim, podem ser examinados durante o curso
ou o desenvolvimento da relação jurídica e, em certos casos, posteriormente, ao
adimplemento da obrigação principal”.
Tais deveres decorrem da função criadora da boa-fé objetiva:
[...] a qual se impõe ora de forma positiva, exigindo dos contratantes determinado
comportamento, ora de forma negativa, restringindo ou condicionando o exercício
de um direito previsto em lei ou no próprio contrato. É certo, assim, que os deveres
impostos pela boa-fé objetiva se aplicam às relações contratuais independentemente
de previsão expressa no contrato, mas seu conteúdo está indissociavelmente
vinculado e limitado pela função sócio-econômica do negócio celebrado
(D’AZEVEDO, 2007, p. 289-290).
Nessa esteira, complementa Scavone Junior (2007, p. 339) que “[...] além das
obrigações decorrentes diretamente do contrato, surgem outras, decorrentes de deveres
acessórios ou laterais que, igualmente, devem ser respeitados pelos pólos da relação jurídica
obrigacional, sob pena da incidência das conseqüências do descumprimento”.
Apesar de, tradicionalmente, as noções de adimplemento e inadimplemento
estarem limitadas ao cumprimento ou descumprimento da prestação principal, Anderson
Schreiber (2007, p. 130, grifo do autor) aponta que hodiernamente:
[...] reconhece-se que a obrigação transcende, em muito, o dever consubstanciado na
prestação principal. A própria noção de obrigação, identificada com um vínculo de
submissão do devedor ao credor, vem sendo, gradativamente, abandonada em favor
do conceito mais equilibrado de relação obrigacional, composta por direitos e
deveres recíprocos, dirigidos a um escopo comum. Avultam, nesse sentido, em
importância os chamados deveres anexos ou tutelares, que se embutem na
regulamentação contratual, na ausência ou mesmo em contrariedade à vontade das
79
Rafael Marinangelo (2005, p. 64-65) entende que: “[...] os deveres laterais abrangem deveres indiretamente
relacionados com a prestação, [...] às condutas necessárias ao perfeito desenvolvimento do programa contratual.
Não estão orientados para o interesse no cumprimento do dever principal de prestação, mas sim para auxiliar a
realização positiva do contrato e de proteção à pessoa ou aos bens da outra contra os riscos de dano
concomitantes”.
90
partes, impondo comportamentos que vão muito além da literal execução da
prestação principal.
Na lição de Martins-Costa (2002a, p. 632-634), a característica dos deveres
anexos:
[...] está em que o seu escopo diz com o exato processamento da relação
obrigacional considerada como uma totalidade unificada finalisticamente. [...] Nesta
medida compreende-se a razão pela qual, para que a finalidade de um contrato seja
eficazmente atingida, é necessário que as partes, que num contrato bilateral têm
interesses antagônicos, mas convergentes, atuem, ambas, em vista do interesse
legítimo do alter. Compreende-se também a razão pelas quais as partes de uma
relação obrigacional não podem ser vistas como entidades isoladas e estranhas,
atomisticamente consideradas, constituindo a necessidade de colaboração
intersubjetiva [...].
A autora arremata que esses deveres são instrumentais, uma vez que dirigem a
atuação das partes para o cumprimento integral da obrigação
80
, ao mesmo tempo em que
“operacionalizam a diretriz da solidariedade, e são ‘avoluntaristas’ porque não derivam
necessariamente, do exercício da autonomia privada nem de punctual explicitação legislativa,
mas têm sua fonte no princípio da boa-fé objetiva” (MARTINS-COSTA, 2002a, p. 634).
Segundo Gustavo Rene Nicolau (2007, p. 116-117), a necessária observância dos
deveres anexos ao contrato é uma implicação prática da boa-fé objetiva:
Isso porque num contrato as chamadas cláusulas centrais ou nucleares, que nada
mais são do que as principais obrigações das partes dentro do contrato. [...] Ocorre
que a boa-fé objetiva impõe às partes contratantes deveres que não são os centrais ou
nucleares, mas que estão anexos, marginais, laterais ao contrato e que muitas vezes
nem sequer foram redigidos. São obrigações decorrentes justamente daquela justa
expectativa que existe em nossas relações sociais de sempre lidar com pessoas
íntegras e probas. São deveres de proteção ao contratante. São deveres que
concernem principalmente à segurança do contratante, ao sigilo que resguarda a
intimidade e a vida privada do cidadão, à plena informação dos termos contratados,
evitando subterfúgios ou penumbras de interpretação no contrato, ao zelo e à
lealdade que os contratantes devem guardar um em relação ao outro.
Destaca-se que os deveres laterais ou anexos sempre fizeram parte, em maior ou
menor grau, do conteúdo da relação obrigacional (SILVA, 2002).
80
Nas redes contratuais do mercado habitacional, Rodrigo Xavier Leonardo (2003, p. 151) entende incidir
deveres anexos que se situam em correlação com os objetivos do sistema, a saber: “a) dever lateral de
contribuição para manutenção do sistema; b) dever lateral de observação da reciprocidade sistemática das
obrigações; c) dever lateral de proteção das relações contratuais internas ao sistema”.
91
Porém, apenas a partir das primeiras décadas do século XX, é que sua análise
despertou o interesse da comunidade jurídica internacional, em especial, da jurisprudência
francesa e alemã
81
.
Malgrado o desenvolvimento contemporâneo da matéria, foram as doutrina e
jurisprudência alemãs que buscaram fundamentos mais abrangentes para os deveres laterais,
com apoio na peculiaridade da BGB e a partir da sistematização e organização dada por
Heinrich Stoll que, segundo Silva (2002, p. 78-79, grifo do autor), sustentara que:
[...] toda a relação obrigacional implica uma duplicidade de interesses. Num
primeiro plano, as partes vinculam-se visando o objeto da prestação, cabendo ao
resultado da atuação do devedor atingir o cumprimento. Trata-se, pois, de um
interesse positivo: que se fazer algo para que um determinado resultado seja
atingido. De fundo, por sua vez, outro interesse. Toda relação expõe a pessoa ou
os bens de uma parte à atividade da outra, que pode, com esta atividade, provocar
danos a tais bens ou colocá-los em perigo. Incide então a boa-fé, a regular o
comportamento dos sujeitos por meio da criação de uma série de deveres dedicados
a evitar situações danosas. Esses deveres, assim, ao contrário dos anteriores,
veiculam um interesse negativo: que se fazer algo (ou que se tomar determinadas
medidas) para que um determinado resultado não seja atingido. Esses deveres são
por ele [Stoll] chamados de “deveres de proteção” [Schutzpflichten], freqüentemente
representados em deveres de aviso e de conservação [Anzeige-und
Erhaltungspflichten].
Wieacker (2004, p. 597), ao examinar a história do direito privado, descreve as
modificações ocorridas no âmbito do direito das obrigações no ordenamento alemão:
A relação obrigacional, equiparada pelo BGB à pretensão do credor (ou uma
multiplicidade de pretensões) foi reconhecida pela prática e pela teoria como uma
relação jurídica complexa (‘organismo’) de contornos vastos e alastrantes, a partir da
qual podem ser deduzidos não os múltiplos deveres acessórios e “deveres de
proteçãode caráter geral, tanto do lado de uma das partes como do lado da outra,
mas também assunções de deveres pré-contratuais (culpa in contrahendo) e uma
responsabilização contratual do respectivo credor (culpa in exigendo).
Na linha de Stoll, os deveres de prestação possuem uma função positiva e os de
proteção, uma função negativa. Assim é que o descumprimento da função positiva resulta
numa violação negativa (o que em regra se pelo inadimplemento absoluto ou pela mora); e
81
Silva (2002) cita, para melhor compreensão e distinção dos deveres laterais, julgamento da Corte de Cassação
Francesa de 1911 sobre obrigação acessória de segurança no contrato de transporte, e ainda o famoso caso dos
rolos de linóleo julgado por um tribunal alemão no mesmo ano, no qual uma consumidora sofreu acidente no
interior de um estabelecimento comercial em decorrência da queda de rolos de linóleo que, arrumados de forma
negligente, despencaram da prateleira. Fixou-se o entendimento de formação de uma relação negocial
preparatória, no simples ato de adentrar no estabelecimento, resultando em deveres de proteção à vida e à
propriedade da consumidora.
92
inobservância da função negativa tem como conseqüência a violação positiva do contrato
(pVV), figura introduzida pelo advogado berlinense Hermann Staub em 1902 (SILVA, 2002).
Ao contrário do que sucede com os deveres principais de prestação
82
,
particularizados tão-somente na pessoa do devedor, os deveres laterais destinam-se a ambos
os partícipes da relação obrigacional, surgindo como ajustes implícitos fundados na boa-fé,
cujo propósito é ensejar o melhor adimplemento possível.
João de Matos Antunes Varela (2003, p. 127, grifo do autor) reputa que esses
deveres laterais de conduta:
[...] tanto recaem sobre o devedor, como afectam o credor, a quem incumbe evitar
que a prestação se torne desnecessariamente mais onerosa para o obrigado e
proporcionar ao devedor, a cooperação de que ele razoavelmente necessite, em face
da relação obrigacional, para realizar a prestação devida.
Ademais, a violação aos deveres anexos de conduta não permitem ajuizar ação de
cumprimento, que é própria dos deveres de prestação. Contudo, sua violação pode obrigar à
indenização pelos danos causados ao outro contratante, a resolução do contrato ou mesmo
admitir a argüição de exceção do contrato não cumprido, esta última a merecer análise
pormenorizada em capítulo posterior deste trabalho.
O descumprimento desses deveres anexos gera conseqüências nas obrigações
principais, uma vez que “[...] também fazem parte de ‘todo’ o contrato, pois o
descumprimento de um dever de cooperação, de lealdade, ainda que parcial, significa o
inadimplemento de toda a obrigação” (D’AZEVEDO, 2007, p. 297).
Aqui, para melhor exposição do tema, adotar-se-á nesta pesquisa a classificação
tripartite oferecida por Cordeiro (2007, p. 604), segundo a qual os deveres “acessórios”
podem ser divisados entre deveres de proteção, de lealdade e de esclarecimento, agregando os
deveres de cooperação e informação. Registra-se tal agregação segundo as adaptações
propostas por Silva (2002).
Temas abordados alhures.
82
Fábio Ulhoa Coelho (2005b, p. 129) classifica os deveres dos contratantes em: principais que definem a
natureza do contrato; secundários os quais sucedem ou antecedem os deveres principais; e laterais voltados à
colaboração e proteção dos interesses dos obrigados.
93
1.5.1 Deveres de proteção
Esses deveres buscam impedir que nas diversas fases da contratação um dos
sujeitos cause dano à pessoa ou ao patrimônio do outro. Na lição de Cordeiro (2007, p. 604),
“por eles, considera-se que as partes, enquanto perdure um fenômeno contratual, estão ligadas
a evitar que, no âmbito desse fenômeno, sejam infligidos danos mútuos nas suas pessoas ou
nos seus patrimônios”.
Como se baseiam essencialmente no princípio neminem laedere, segundo o qual
ninguém deve causar dano a outrem
83
, natural que sejam alocados, nomeadamente pela
doutrina oitocentista, na seara da responsabilidade aquiliana.
Contudo, esse antigo enquadramento não impede a resistematização dos deveres
laterais no âmbito do contrato, à medida que o seu cumprimento guarda relação com o melhor
adimplemento dos deveres de prestação e sua inobservância acarreta a “perturbação das
prestações”, expressão tradicionalmente consagrada no direito germânico e que a reforma de
2001/2002 adotou com ampla concepção (CORDEIRO, 2004, p. 101).
Assim, estabelece o § 241/2 da BGB que a relação obrigacional pode obrigar,
conforme o seu conteúdo qualquer parte com referência aos direitos, aos bens jurídicos e aos
interesses da outra”. Portanto, o objeto da obrigação não é apenas o dever de prestação, mas
também deveres que, embora provenientes da relação obrigacional, são dirigidos à proteção
dos direitos, bens e interesses da contraparte.
Os deveres laterais de proteção, via de regra, são melhor observados na fase pré-
contratual, quando as partes, na pertinente interpretação de Ana Prata (2005, p. 77), “estão
vinculadas a deveres, cujo fim é a proteção da pessoa e do patrimônio da contraparte”, idéia
que, primeiramente, encontrou expressão e aplicação no célebre caso dos rolos de linóleo,
aqui tratado. Com o julgamento deste caso, a jurisprudência alemã reconheceu o dever de
proteção ou de cuidado como dever pré-contratual.
83
“O direito, qualquer que tenha sido a desvirtualização utilitária que tenha recebido, acidentalmente, no
decorrer dos séculos, continua a ser, em substância, a arte do bom e do justo, como pretendiam os jurisconsultos
romanos, pois é no ‘jus’ de Roma que o direito privado moderno continua a mergulhar as suas raízes mais
profundas. O direito natural continua a ser, assim, o conjunto de preceitos que nos dão a medida comum
civilizada do que é bom e do que é justo, qualquer que seja a região do globo onde forem aplicados e qualquer
que seja a ética religiosa e moral dos povos considerados em estado de civilização que, por imperativo dessa
mesma civilização, lhe estão submetidos no íntimo da consciência. Entre esses preceitos, encontram-se, desde
tempos imemoriais,os velhos princípios ‘neminem laedere’ e ‘suum cuique tribuere’, que o mesmo é dizer: Dar a
cada um o seu, não lesar ninguém” (ALMEIDA, 2007, p. 13).
94
Estabelece-se, desse modo, uma relação jurídica preparatória na fase de tratativas,
com natureza similar à contratual, da qual se originam deveres de cautela quanto aos bens e às
pessoas envolvidas na relação.
A tutela pré-contratual baseada nos deveres de proteção ultimou por sofrer
considerável alargamento em sede doutrinária e jurisprudencial, passando a envolver
situações próprias da responsabilidade in contrahendo que, por sua vez, acabou sendo
codificada pela reforma da BGB de 2001/2002, sob o título “Relações obrigacionais negociais
e semelhantes a negociais” (§ 311/2, n. 2 e 3).
O reformador alemão, como se vê, incorporou soluções conhecidas pelos
operadores do direito, reforçando a noção de que os deveres de proteção referem-se à
responsabilidade pré-contratual, logo, oriunda da relação obrigacional e não da
responsabilidade aquiliana.
Importante, ainda, assentar que os deveres laterais de proteção não possuem
autonomia, pois nascem das negociações e visam à preparação do futuro contrato, vale dizer,
guardam direta conexão com o projeto de contrato, sendo, contudo, admissível invocar a
responsabilidade in contrahendo da parte causadora de danos à pessoa ou bens da contraparte,
conquanto esses prejuízos resultem do comportamento apresentado durante a execução do
negócio, mesmo que invalidamente celebrado.
1.5.2 Deveres de lealdade e cooperação
Os deveres de lealdade e cooperação impõem aos contratantes uma atuação reta,
omissiva ou comissiva, insuscetível de fraudar a confiança da contraparte, conforme se espera
de quem atua no tráfico jurídico, objetivando o atendimento das legítimas expectativas da
contraparte.
Tais deveres transformam os contratantes em parceiros ainda que seus interesses
sejam contrapostos, porém, não divergentes, uma vez que os efetivos interesses envolvidos na
relação devem ter por escopo o melhor adimplemento e a finalidade do negócio.
Dessa forma, é incorreto atualmente representar o contrato como um feixe de
interesses divergentes, tal como se fazia no passado, com fins didáticos, para distinguir o
instituto do contrato de sociedades, simbolizado por um conjunto de interesses convergentes à
consecução do objeto social.
95
Para Cordeiro (2007, p. 606-607):
Os deveres acessórios de lealdade obrigam as partes a, na pendência contratual,
absterem-se de comportamentos que possam falsear o objectivo do negócio ou
desequilibrar o jogo das prestações por elas consignados. Com esse mesmo sentido,
podem ainda surgir deveres de actuação positiva. A casuística permite apontar,
como concretização desta regra, a existência, enquanto um contrato se encontre em
vigor, de deveres de não concorrência, de não celebração de contratos incompatíveis
com o primeiro, de sigilo face a elementos obtidos por via de pendência contratual e
cuja divulgação possa prejudicar a outra parte e de actuação com vista a preservar o
objetivo e a economia contratuais. Estes deveres hão-de imputar-se à boa-fé e não ao
próprio contrato em si, quando não resultem apenas da mera interpretação
contratual, mas antes das exigências do sistema, face ao contrato considerado.
Entende ainda o mencionado doutrinador que esses deveres “[...] acompanham as
particularidades assinaladas dos seus congêneres. [...] a ‘lealdade’ em jogo transcende o
respeito pelo contrato; corporiza, antes, parâmetros diversos do sistema que afloram a
pretexto do contrato” (CORDEIRO, 2007, p. 616).
Os deveres de lealdade têm forte influência sobre os deveres de prestação, já que a
inobservância daqueles pode acarretar a frustração destes últimos. Isso porque, segundo o
escólio de Silva (2002, p. 112), os deveres de lealdade:
[...] nascem e se corporificam, em grande medida, em atenção às situações
estabelecidas para as prestações fim do contrato, como no caso da omissão de
determinada conduta que conflitue com o objeto de um contrato em vigor ou
anterior.
Da mesma forma, os deveres de cooperação têm grande importância para os fins
do contrato, visto que estabelecem para as partes a obrigação de auxiliar na realização de
atividades preliminares indispensáveis ao adimplemento, mas também impõe o dever de não
criar dificuldades para a consecução do ajuste. Silva (2007a, p. 96) assevera que “todos os
deveres anexos podem ser considerados deveres de cooperação”.
Isto porque é ínsita às relações obrigacionais uma atitude positiva de cooperação,
de colaboração na busca da melhor satisfação do interesse alheio, à medida que a boa-fé atua
como critério de conduta que se dirige ao cumprimento do pactuado, satisfazendo a
expectativa da outra parte (MARTINS-COSTA, 2002a).
Os deveres de lealdade possuem duas conotações: uma positiva e outra negativa.
A primeira exige que desde as tratativas até a fase pós-contratual os negociantes atuem e
cooperem, removendo óbices materiais e jurídicos que, porventura, perturbem a conclusão da
obrigação. A feição negativa traduz-se no dever de não iniciar ou prosseguir nas tratativas se
96
inexistir real intenção de concluir o estipulado
84
, bem como de não abandonar ou interromper,
desmotivadamente, a execução do contrato.
Sobre esse dever no âmbito consumerista, pontifica Marques (2005, p. 1024):
Cooperar é um dever de conduta do parceiro contratual segundo a boa-fé. É o
simples agir com lealdade, é colaborar com o “outro”, para que possa cumprir com
suas obrigações e possa alcançar suas expectativas legítimas e interesses naquele
tipo contratual. Cooperar é não obstruir ou impedir o acesso do consumidor à
justiça, à possibilidade de reclamação ou efetivação de seus direitos, ou o seu acesso
à prestação contratual (com reabertura de carência, desconsideração do cumprimento
substancial pelo atraso de apenas uma prestação etc.). Cooperar é tratar com
lealdade o outro e não instituir um mandato ou cláusula afim para poder assinar em
seu nome negócio jurídico diferente do principal ou poder se ressarcir de forma mais
efetiva diretamente em sua conta corrente ou poder transferir riscos profissionais
seus ao levantar dinheiro no mercado ou empréstimo em dólares. Cooperar é
colaborar com o outro que deseja ou necessita manter os contratos cativos de longa
duração (forçando distratos fictos, rescisões, e induzindo o fim do vínculo).
Cooperar é, em resumo, não criar barreiras contratuais para que o “outro” consiga
alcançar seus pontos legítimos no contrato.
Investigando a incidência dos deveres de lealdade na responsabilidade pré-
contratual, Prata (2005, p. 68) oferece critérios que permitem caracterizar como ilícita, a
ruptura das negociações em virtude da violação desse específico dever, afirmando que:
Se, nos casos em que uma das partes inicia o processo negociatório sabendo de
antemão que não virá a concluir qualquer contratoe isto quer a sua motivação seja
a de prejudicar a outra parte, quer seja a de, com desconsideração dos interesses
dela, explorar as condições de mercado, por exemplo – ou naqueles em que a própria
ruptura tem por fim a produção de prejuízos ao outro sujeito, é fácil encontrar
maioritário entendimento doutrinal no sentido de fazer suportar a essa parte os danos
que a sua conduta dolosa ou irreflectida provocou ao outro sujeito [...].
Critério semelhante foi proposto por Vaz Serra (apud PRATA, 2005, p. 71) para o
Código Civil português, estatuindo o n. 3 do seu art. que “incorre em responsabilidade, no
caso de rotura de negociações, aquele que conscientemente fez com que a outra parte
acreditasse, sem dúvida, em que o contrato se realizaria e depois, sem motivo justificado,
rompe as mesmas negociações”.
Essa redação, no entanto, não transitou para o texto definitivo do Código,
permanecendo a cargo do intérprete a definição da responsabilidade in contrahendo, em casos
84
Ressalta-se que: o entrar em negociações pressupõe uma disponibilidade das partes em celebrar o contrato,
caso os juízos de conveniência e oportunidade surjam para ambas. É um ato, ou processo, que requer uma
certeza: a de que pode conduzir ao fechamento do contrato. A negociação é, portanto, um processo teleológico,
dotado de uma finalidade a eventual conclusão contratual – o que requer um comportamento leal e honesto em
todo o seu desenrolar. Por esta razão, tem-se considerado como contrário à boa-fé objetiva o entrar ou prosseguir
em negociações sem que haja, desde o início, uma intenção de conclusão, o que a Doutrina alemã chama de
fehlender Abschlufswille, bem como, o interromper injustificadamente as tratativas” (FRITZ, 2007, p. 230).
97
que tais, tarefa da qual se desincumbirá mediante a ponderação dos interesses em jogo e
considerando a crescente confiança gerada pela evolução dos contratos pré-negociais,
impondo o dever de lealdade. Ainda segundo Prata (2005, p. 71):
[...] que a parte, que saiba ou deva saber com a normal diligência que algum
risco ameaça o sucesso do processo negociatório, o comunique à contraparte,
advertindo-a, em particular, da necessidade de adequada prudência na realização de
gastos ou na privação de ganhos. A violação do dever pré-contratual de lealdade
pode consubstanciar, pois, uma conduta omissiva e, frequentemente,- assim será -,
mas pode também traduzir-se num positivo comportamento de incitamento da
contraparte a praticar actos ou a abster-se de iniciativas no pressuposto da futura
celebração do contrato, quando se sabe que a probabilidade desta é escassa.
Independente dos motivos capazes de gerar o rompimento das negociações, os
deveres laterais de lealdade e aqui se acrescenta, o de cooperação objetivam evitar a
ocorrência de prejuízos injustos ao contratante que concorreu para as tratativas com boa-fé,
buscando a realização dos seus legítimos interesses.
Portanto, aos contratantes não cabe tão-somente a observância e o respeito às
cláusulas estipuladas no contrato, mas também à colaboração leal na satisfação das
necessidades da relação obrigacional.
Esse norte, orientador da fase de negociações, constitui bússola segura a guiar a
conduta dos contratantes nas demais fases contratuais, porquanto, o que aqui se prestigia é a
postura de integridade, de probidade e de idoneidade das partes, visando atender as legítimas
expectativas do alter.
1.5.3 Deveres de informação e esclarecimento
Através do dever de informação e esclarecimento, as partes ficam obrigadas a
manter permanente intercâmbio sobre todos os aspectos relacionados ao vínculo e aos seus
efeitos, de modo a permitir que abstraiam a exata medida de suas responsabilidades e esforços
a serem empreendidos, visando atender o melhor adimplemento do ajuste.
Os deveres de informação e esclarecimento também se apresentam fundados na
boa-fé objetiva, possuindo estrita vinculação com os demais deveres laterais, porque sua
ausência, de regra, implica falta de cooperação, de lealdade e de proteção com a outra parte.
Nesse sentido é o entendimento de Scavone Junior (2007, p. 340):
98
[...] a informação plena aquela que é possível e está ao alcance dos agentes sociais
é uma obrigação que decorre de qualquer atividade, impondo o dever de indenizar
àquele que, ainda que não tenha relação jurídica direta, cause dano pela omissão
dolosa ou culposa da informação de que dispõe. Portanto, a terceira via, que se
apresenta ao sistema em razão da violação de deveres éticos, de honestidade e
equilíbrio das relações jurídicas decorrentes da função social do contrato, da boa-fé
objetiva, da solidariedade, da proteção, da justiça social, da equidade e da
transparência (Código Civil, arts. 113, 421 e 422), implica, sem a menor sombra de
dúvida, o dever de indenizar pela ausência da correta, ampla e irrestrita informação.
Vivemos em uma nova era da sociedade da informação impondo, em razão dela,
a indenização decorrente da infração ao dever genérico de “bem informar”, elevado
a princípio que sobrepaira as relações sociais. Este novo princípio, que decorre do
artigo 5º, XIV da Constituição Federal, facilitado pelas novas tecnologias, com
fundamento inexorável na boa-fé objetiva, exige, como temos insistido, lealdade,
cooperação, probidade e confiança.
Tais deveres, por vezes, confundem-se com os deveres de prestação, pois:
[...] grande parte dos objetos de contratos que ensejam a transferência de
propriedade demanda a complementação da prestação com notas explicativas, sem
as quais o bem em si passa a não possuir qualquer significado operativo. Nesses
casos, a ausência da informação costuma ser equiparada ao descumprimento de
dever de prestação, principal ou secundário, conforme as especificidades do caso,
igualando-se a ausência de informação à falta de qualidade essencial do objeto
(SILVA, 2002, p. 117).
Todavia, é o próprio Silva (2002, p. 118, grifo do autor) quem, buscando uma
melhor visualização dos deveres laterais, contesta a inserção do dever de informação e
esclarecimento como deveres de prestação, asseverando que:
[...] essa equiparação poderia ensejar o aniquilamento da classificação do dever de
informar como dever lateral, passando-se a compreendê-lo, no âmbito das relações
de consumo, exclusivamente como qualidade do objeto prestado. O prejuízo
interpretativo, nesse caso, seria evidente. Em troca da elevação da relevância do
dever, em alguns casos, extinguir-se-iam em todas as outras as hipóteses de sua
alocação lateral. Portanto, que se ter em mente as distintas manifestações do
dever de informar. Quando a informação for estandardizada e disser respeito às
qualidades típicas e genéricas do produto (prazo de validade, modo de utilização,
contra-indicações etc.), a ausência delas é considerada defeito do produto. Da
mesma forma, o será, quando a ausência de informação, em face de outras
circunstâncias circundantes, gerar a falsa imagem de que o produto possui tal ou
qual qualidade. Porém, quando especificidades típicas da relação concreta
demandarem um conjunto diferenciado de informações ou esclarecimentos, tendo
em vista a permitir a correta fruição do bem ou o melhor adimplemento, então entra-
se no campo dos deveres tipicamente laterais.
Esse entendimento, que ultima por criar diferentes categorias de deveres de
informação e esclarecimento, parece ser o que melhor se coaduna com a regra do art. 12,
caput e § 1º do Código de Defesa do Consumidor.
99
Todavia, incide na atecnia de, em dado momento, vincular o dever de informar
85
ao próprio objeto da prestação, quando de rigor, tal dever diz respeito, exclusivamente, ao
comportamento do sujeito na relação obrigacional, atualmente compreendida como entidade
complexa.
Não se tem dúvida que “informar” e “esclarecer” remetem às condutas que as
partes devem respeitar para viabilizar não a celebração, mas a própria consecução da
finalidade do contrato, daí porque tais deveres laterais devem ser observados em todas as suas
fases.
Nesse sentido, Prata (2005, p. 49-50) registra que:
O dever de informação respeita a todos os elementos negociais relevantes quer para
a decisão de contratar, quer para a conformação concreta do contrato a celebrar, quer
ainda para a completa funcionalidade do contrato para servir os interesses que a
parte com ele quer ou pode ver prosseguidos: características da coisa ou actividade,
seus vícios, sua prestabilidade para os objectivos do contraente, sua prestabilidade
para fins que a parte desconhece que ela possa servir, qualidades jurídicas do sujeito
susceptíveis de influir no negócio [...].
O dever de esclarecimento para Silva (2007a, p. 94):
[...] dirige-se ao outro participante da relação jurídica, para tornar clara certa
circunstância de que o alter tem conhecimento imperfeito, ou errôneo, ou ainda
ignora totalmente. Esclarecimento, evidentemente, relacionado com alguma
circunstância relevante. o se trata de dever para consigo mesmo, mas em favor do
outro.
Nessa esteira, complementa Scavone Junior (2007, p. 341):
Em outras palavras, é obrigação legal, imposta pelo sistema, consumerista ou não,
notadamente nas atividades empresariais, a informação ampla e passível de inculcar
no potencial contratante todas as informações sobre o negócio jurídico que será
praticado. E resta evidente que esta obrigação não se limita à fase contratual,
manifestando-se, com mais vigor, na fase pré-contratual, sem descartar a fase pós-
contratual. O dever de informar, decorrente da sociedade da informação, em resumo,
abrange as possibilidades técnicas de informação que encontram contrapartida no
conhecimento e compreensão pelo pólo inverso, mesmo antes da contratação e cujo
descumprimento acarreta nulidade do contrato eventualmente formado em razão da
infração à boa-fé objetiva e conseqüente objeto ilícito. Posta assim a questão, gera o
dever de indenizar contratual e extracontratual.
Amplo e variado é o núcleo dos deveres de informação e esclarecimento, de sorte
a incluir tanto atuações quanto omissões, o que inclui informações e esclarecimentos falsos
85
Ricardo Luis Lorenzetti (1998, p. 239) adverte que: “[...] a informação é um requisito da liberdade, que o
indivíduo é sempre livre, e não pode exercê-la amplamente se não conhece as opções que tem.”
100
relacionados ao objeto da prestação, ou mesmo atempados, impedindo que a contraparte, pela
falta de oportunidade, se acautele ou promova os esforços adequados ao cumprimento do
ajuste.
Importante frisar, ademais, que diante do seu caráter elementar, o dever de
informação e esclarecimento não se limita à comunicação das cláusulas contratuais que
venham a integrar o instrumento, mas estende-se, fundamentalmente, à elucidação dos
precisos sentidos jurídico e econômico de cada uma das regras entabuladas.
Além disso, para a doutrina de Cordeiro (2007, p. 616), os deveres laterais de
informação:
[...] m uma proximidade ao vínculo contratual superior aos demais. Também aqui
deve, contudo, evitar-se a vertigem contratual: não se requer uma profundidade de
análise muito grande [...] para constar que, sob violações alegadas de deveres de
informação, está a intenção judicial de proporcionar determinados conteúdos
contratuais, de conseguir certas repartições do risco ou, muito simplesmente, de
contornar dificuldades de prova.
Tão importante é o dever de informação, notadamente na fase de negociações, que
em caso de dúvida sobre o alcance e significado de cláusulas ambíguas ou contraditórias,
determina o art. 423 do CC/2002 a adoção de interpretação mais favorável ao aderente, sem
prejuízo da incidência da regra estatuída no art. 113 do mesmo Diploma, segundo a qual “Os
negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua
celebração”, o que, de ordinário, importará a análise do comportamento pré-contratual
referente aos esclarecimentos prestados de parte a parte.
A relevância do dever de informação também pode ser ponderada na extensão da
influência na formação do juízo de conveniência e oportunidade quando da celebração do
negócio, de modo que, de posse das informações, as partes podem celebrar ou não o contrato,
como também podem fazê-lo sob diversas condições.
Conforme lição de Fritz (2007, p. 226-227), sobre a violação das informações na
fase de negociações:
Sendo as negociações a fase nas quais as partes deliberam sobre a formação ou não
do contrato, nada mais razoável exigir-se, portanto, que todas as informações
relacionadas com o eventual negócio sejam devidamente fornecidas, a fim de que as
partes possam, com base em dados corretos e completos, formar seguramente um
juízo de conveniência e oportunidade sobre o contrato [...]. A violação dos deveres
de informação pode adquirir uma feição positiva ou negativa, constituindo, assim
como a infração de todos os deveres decorrentes da boa-fé objetiva, motivo legítimo
para o abandono das negociações, na medida em que quebra da necessária
confiança que deve existir entre os parceiros. Uma violação positiva ocorre, por
101
exemplo, face o fornecimento de indicações incompletas ou inexatas, podendo
responder, quem forneceu as informações, por responsabilidade pré-contratual, caso
a contraparte tenha realizado despesas em decorrência das informações prestadas. A
violação de deveres de informação adquire conotação negativa quando ocorre, por
exemplo, omissão de informações.
Contudo, na troca de informações deve existir a demarcação da “extensão do
dever de informação em face do dever de informar-se”, uma vez que correlato ao dever de
informar subsiste o dever de buscar as informações necessárias acerca do negócio a ser
entabulado. Larenz (apud FRITZ, 2007) obtempera que a omissão a respeito de alguma
informação nem sempre poderá caracterizar quebra de dever lateral, pois cada sujeito
necessita arcar com o dever de cercar-se do máximo de informações relevantes para a
celebração do contrato.
Dessume-se que a repercussão da extensão desses deveres de auto-esclarecimento
quanto ao conteúdo e critério de interpretação dos contratos
86
será tanto mais significativa,
diante de um eventual desequilíbrio no poder negocial das partes, cabendo ao intérprete e
aplicador da lei encontrar o justo equilíbrio, de modo a proteger o contratante mais débil.
Considerando que no atual momento histórico do direito privado, o contrato é
caracterizado como entidade complexa, que além dos deveres de prestação, também comporta
os chamados deveres laterais ou anexos, a inobservância desses últimos, decerto, gerará
conseqüências próprias do inadimplemento, com todas as nuanças possíveis, perspectiva que
será abordada ao se analisar as figuras tradicionais de descumprimento contratual.
86
Segundo registra Marino (2006, p. 67): “Interpretar o contrato de acordo com a boa-fé objetiva é substituir o
ponto de vista relevante, posicionando, no ambiente previamente delimitado (contexto situacional), não os
contratantes, mas um modelo de pessoa normal e razoável, com o fito de averiguar o sentido que essa pessoa
abstrata atribuiria à declaração, nas mesmas circunstâncias em que se encontravam as verdadeiras partes.
Recorrer a uma pessoa razoável ou normal equivale a ter em mente o padrão de conduta honesto e leal para com
a contraparte, isto é, o modelo de comportamento social que seria de se esperar de alguém que estivesse no
mesmo lugar do contratante”.
102
CAPÍTULO 2 - ASPECTOS DO INADIMPLEMENTO
Compreendida como processo
87
, a obrigação, segundo Clóvis do Couto e Silva
(2007a, p. 167), “dirige-se ao adimplemento”, passando pelo “plano do nascimento e
desenvolvimento”, para satisfazer o interesse do credor. Realizadas essas etapas, a obrigação
se extingue e o devedor fica liberado do vínculo a que se encontrava adstrito, abstraindo-se
daí a idéia de provisoriedade da relação obrigacional.
Portanto, o adimplemento é o meio próprio e natural de satisfação do interesse do
credor e conseqüente extinção da obrigação.
Contudo, no atual momento histórico do direito privado, adimplir integralmente
uma obrigação importa não só cumpri-la no tempo, lugar e forma convencionados (CC/2002,
art. 394), mas fazê-lo observando, em todas as suas fases, os princípios de probidade e boa-fé.
Este último, uma vez incorporado na Lei Civil brasileira, no art. 422, assume status de
cláusula geral, que dizendo respeito ao comportamento ou conduta das partes, qualifica a boa-
fé como objetiva.
Em síntese, adimplir a obrigação, de modo integral, consiste em satisfazer, a um
tempo, os deveres de prestação (principais e secundários) e os deveres laterais ou anexos
de conduta (decorrentes da cláusula geral da boa-fé objetiva), destinados estes à satisfação dos
interesses tanto do credor quanto do devedor.
Nesse contexto, a análise aqui proposta tem por escopo descortinar as espécies e
conseqüências gerais do inadimplemento desses deveres no sistema aberto do Código Civil
brasileiro de 2002, com vistas a vislumbrar a possibilidade de uma nova forma de utilização
da exceptio por qualquer das partes, numa perspectiva civil-constitucional, contempladora da
justiça e do equilíbrio contratual.
87
Rodrigo Xavier Leonardo (2003, p. 150, grifo do autor) assevera: Na medida em que a relação jurídica é
vislumbrada como processo, reconhece-se nessa relação mais do que um plexo de direitos e deveres voltados
para o simples adimplemento da prestação principal. Reconhece-se um conjunto de direitos e deveres próprios à
manutenção de um contato relacional entre as partes, conforme os princípios de honestidade e probidade que
iluminam todo o direito das obrigações”.
103
2.1 O inadimplemento absoluto
As obrigações nascem, são assumidas, visando seu fiel cumprimento
88
. E na
grande maioria dos casos, é o que espontaneamente sucede, as obrigações são cumpridas e
preenchem a função satisfativa do interesse do credor, liberando-se o devedor do vínculo a
que se encontrava adstrito (VARELA, 2001).
Nas palavras de Agostinho Alvim (1980, p. 6-7):
O cumprimento da obrigação é a regra; o inadimplemento, a exceção. Vários são os
motivos que levam o contraente a cumprir o que prometeu. Primeiramente, a simples
ética: a voz da consciência, o hábito adquirido pelo homem bem educado. Nem
todos têm, é verdade, uma consciência tão bem formada, de modo a cumprir todos
os deveres, somente em satisfação a regras morais. Mas, quando esse motivo não
fosse suficiente, haveria sempre o temor da reprovação pública. Esse temor leva
muitas pessoas a cumprir deveres morais, não porque ouçam a voz da consciência,
nem porque sejam esses deveres providos de sanção, mas a fim de evitar a
reprovação de seus pares. [...] é certo que as obrigações, no sentido jurídico, isto é,
as obrigações civis, são providas de sanção, qualquer que seja a sua fonte. Logo, o
credor pode compelir o devedor, a que cumpra a obrigação; e quando ele chegar a
este extremo, a situação do devedor estará agravada com os encargos da mora.
Estes motivos todos fazem com que as pessoas, em regra, se desempenhem,
espontaneamente, das obrigações que assumiram.
O adimplemento é efeito direto e necessário da obrigação, enquanto o
inadimplemento ressalta como “estado patológico”, uma vez que representa a “exceção ao
estado fisiológico” ou normal, isto é, a alteração do curso natural do processo, o não-
atingimento do fim projetado, impossibilitando o cumprimento da prestação ou frustrando a
satisfação dos interesses do credor na relação (ALVIM, 1980, p. 3).
A propósito da idéia tradicional de que o interesse do devedor está subordinado ao
do credor, Anderson Schreiber (2007, p. 135-136, grifo do autor) alerta para a necessidade de
se revisitar a matéria, examinando-a a partir de um olhar mais eqüitativo, isso porque,
segundo o autor:
88
Washington de Barros Monteiro (2003, p. 3) deixa assentado que “não existe direito sem a respectiva
obrigação, nem obrigação sem o correspondente direito. Bem exprime essa idéia velho adágio jurídico: jus et
obligatio sunt correlata”. Mais adiante elabora regressão histórica sobre a origem da palavra obrigação
esclarecendo que sua utilização é recente, eis que não constou na Lei das XII Tábuas e sequer houve menção na
terminologia jurídica longínqua. “O vocábulo primitivo, empregado para externar o vínculo obrigacional, era
nexun, derivado do verbo nectere (atar, unir, vincular). Nexum representava a sujeição a si mesmo. O direito do
credor contra o devedor era quase um direito real. A obligatio primitiva caracterizava-se como direito de garantia
sobre a pessoa física do credor obrigado” (MONTEIRO, 2003, p. 4-5).
104
[...] o adimplemento dirige-se não à satisfação arbitrária do credor, mas ao
atendimento da função socioeconômica, identificada com a própria causa do ajuste.
Em outras palavras, o que o adimplemento exige não é tanto a satisfação do
interesse unilateral do credor, mas o atendimento à causa do contrato [...]. Se o
comportamento do devedor alcança aqueles efeitos essenciais que, pretendidos
concretamente pelas partes com a celebração do negócio, mostram-se merecedores
de tutela jurídica, tem-se o adimplemento da obrigação, independentemente da
satisfação psicológica ou não do credor. Note-se, porém, que não basta a verificação
da causa em abstrato, normalmente identificada, no direito das obrigações, com a
realização das prestações principais integrantes do tipo negocial em sua previsão
normativa. Impõe-se o exame da chamada “causa em concreto”, isto é, do
atendimento dos interesses efetivamente perseguidos pelas partes com a
regulamentação contratual. Transcende-se, em síntese, a estrutura do negócio
forma e conteúdo (o como e o quê) – para se perquirir a sua função (o seu porquê). É
o atendimento a essa função concreta do negócio, e não mais o cumprimento
meramente estrutural da prestação principal, que define o adimplemento, em sua
visão contemporânea.
Para Maria Ángeles Egusquiza (1990, p. 136), cumprir uma obrigação:
[...] significa desarollar una prestación según el programa previsto en aquélla;
incumplir será, por tanto, ejecutar todo comportamiento contrario o no ajustado a las
previsiones estabelecidas en el acto o negocio jurídico de constitución de la relación
obligatoria. Es incumplimiento todo aquello que no es cumplimiento, y que tiene su
origen bien en actos manifestamente contrarios a lo estabelecido en la obligación o
simplesmente en actividades no ajustadas con total exactitud al programa previsto.
Ressalta-se que a obrigação, entendida como relação, abrange necessidades
juridicamente legítimas de ambas as partes envolvidas no ato negocial, pois:
A obrigação abrange deveres de prestação e de conduta os chamados deveres
laterais e interesses do credor e do devedor [...]. E se é verdadeiro que se tem por
adimplida a obrigação que concretiza os interesses legítimos (ativos e passivos) nela
envolvidos e dela decorrentes, não menos certo é que por inadimplemento se deve
entender o não-cumprimento ou inobservância por uma das partes de qualquer
dever emanado do vínculo obrigacional. O inadimplemento, assim, não se limita à
prestação e nem aos deveres exclusivamente, a ela relacionados. [...] O
inadimplemento é um descumprimento de dever jurídico qualificado pela pré-
existência de relação obrigacional. Não se trata, pois, de um mero desrespeito a uma
imposição de ordem geral, a ser observada por todos os membros de uma
comunidade política (dever de respeito à propriedade alheia, p. ex.), mas de um
preceito individual, emanado do vínculo constituído entre dois pólos. É pressuposto
do inadimplemento, portanto, a eficácia da sua fonte (que o contrato seja válido, que
o dano seja indenizável etc.) e a exigibilidade da conduta (não inadimple aquele que
não deve, ou que não está em condições jurídicas de dever) (SILVA, 2007c, p. 31-
32, grifo do autor).
O inadimplemento ou a inexecução da obrigação (vocábulos aqui empregados em
sinonímia), quando absoluto, significa o não atendimento, em caráter definitivo, do dever de
prestação imposto ao credor, dever este que constitui a finalidade ou a razão de ser do
105
contrato
89
. Para Lotufo (2003a, p. 427), o inadimplemento absoluto “dá-se quando a
obrigação não foi cumprida nem poderá sê-lo de forma útil para o credor”.
A utilidade do cumprimento da obrigação e o correspondente interesse do credor
90
são definições que dão azo a algum subjetivismo, carecendo, portanto, de colmatação judicial
(LIMA, 2007b). Assim, quem intenciona adquirir determinado bem de consumo contrata com
o fornecedor e assume o dever de pagar pela coisa. Do mesmo modo, quem pretende desfrutar
de férias no litoral com a família pode alugar um imóvel para esse fim, comprometendo-se a
pagar ao proprietário, o valor correspondente à locação por temporada.
Esses deveres, uma vez satisfeitos, realizam a função dos diferentes negócios
jurídicos (nos exemplos acima, a compra e venda e a locação), por isso, denominam-se
deveres principais de prestação e constituem, ao lado dos deveres laterais, o conteúdo dos
contratos.
Os deveres de prestação serão secundários ou acessórios quando destinados a
auxiliar e favorecer a plena satisfação dos deveres de prestação principal.
Volvendo aos exemplos citados, supondo que a compra e venda seja de um bem
durável e entabulada para pagamento a prazo, pode o interessado, no ato de conclusão do
negócio, assumir a obrigação de comprovar sua renda, demonstrando condições de cumprir a
obrigação principal. Por sua vez, na locação, o locatário, além de obrigar-se com o pagamento
do aluguel, compromete-se com a conservação do bem locado.
Também haverá inadimplemento absoluto, quando a inobservância desses deveres
secundários comprometer, em caráter definitivo, os deveres de prestação principal.
O inadimplemento absoluto constitui, a bem da verdade, um dos efeitos do
descumprimento obrigacional, à medida que tem como resultados a impossibilidade de
efetivação da prestação, sua inexigibilidade em virtude de alteração das circunstâncias e sua
inutilidade para o credor. Logo, diferentes conseqüências podem advir do inadimplemento
absoluto, a depender da imputabilidade ou da inimputabilidade do devedor.
Concorrendo o devedor com culpa, terá dado causa ao inadimplemento, que lhe
será imputável. Se a culpa for de outrem (credor ou terceiro), decorrer de excludentes da
89
Acerca do inadimplemento absoluto, Rodrigues (2008, p. 235) esclarece que não cumprida a obrigação o
devedor responde por perdas e danos, a teor do art. 389 do CC/2002, denominando-o de “regra fundamental da
responsabilidade contratual”, enquanto que o art. 186 do CC/2002 regula a responsabilidade delitual.
90
Segundo Rafael Marinangelo (2995, p. 195), para se verificar objetivamente a perda de interesse do credor
“não basta o mero desinteresse do credor, a prestação deverá mostrar-se, efetivamente, inútil ou desnecessária”.
106
responsabilidade (caso fortuito ou força maior), derivar da lei ou de ato sem culpa do próprio
devedor, então o descumprimento obrigacional será classificado como inimputável
91
.
Essa classificação se aproxima da que define o inadimplemento como voluntário e
involuntário. O primeiro quando deriva de culpa de pelo menos um dos sujeitos da relação
obrigacional. E o segundo, quando causado por fato necessário de efeitos inevitáveis, a
exemplo do ato de terceiro, de força maior e de impedimento legal superveniente (COELHO,
2005a).
Quanto à impossibilidade, o Código Civil alemão, com a reforma de 2001/2002,
afastou a distinção entre impossibilidade subjetiva (vinculada ao devedor) e objetiva
(relacionada a qualquer pessoa), unificando as conseqüências jurídicas para ambos os casos
(NORDMEIER, 2007).
Apesar dessa simplificação, os incisos II e III do § 275 da BGB, que tratam da
inexigibilidade da prestação, impuseram novos problemas quanto à sua interpretação, o que é
bem explicitado por Carl Friedrich Nordmeier (2007, p. 148-149):
[...] no inc. II, estabelece-se que o devedor pode negar a execução da prestação, caso
as despesas necessárias para efetuar a prestação sejam inexigíveis. A inexigibilidade
pessoal está estabelecida no inc. III, que regula o caso que o devedor tem que prestar
pessoalmente, mas a prestação não pode ser exigida por razões pessoais. O inc. II é
baseado na doutrina de Canaris que traz a idéia da “impossibilidade prática
(pratiksche Unmöglichkeit). Pensa-se nos casos nos quais a prestação, teoricamente,
ainda pode ser efetuada, mas, por causa da mudança de circunstâncias, a prestação
traria custos enormes para o devedor, e não se pode esperar que ele preste. O
exemplo mais citado e até usado nos considerandos da lei para a modernização do
direito das obrigações é o do anel no fundo do mar. Neste caso, o devedor vendeu
um anel, mas, antes de entregar para o comprador, ainda fez um cruzeiro. Durante o
cruzeiro, o anel caiu, em alto-mar, na água e afundou. Sob estas circunstâncias, a
prestação fica, teoricamente, possível, pois o devedor pode contratar especialistas
para recolher o anel do fundo do mar, mas os custos para isto excederiam todos os
limites da razão econômica. O § 275 II BGB lhe a possibilidade de livrar-se da
obrigação.
Nordmeier (2007, p. 150) aponta diferentes soluções dadas para o mesmo caso de
impossibilidade antes da reforma da BGB:
Otto, por exemplo, comenta que o caso do anel no fundo do mar enquadrava-se,
antes da reforma, sem problemas, no conceito da impossibilidade subjetiva ou, numa
pressuposição de certa profundidade da água até na categoria da impossibilidade
objetiva. Portanto, Otto aplica, com referência à doutrina antiga, a este caso o inc. I
do § 275 BGB. Além disso, surgem problemas de distinguir o § 275 II BGB e a
91
A classificação é de João de Matos Antunes Varela (2001), que relaciona o não-cumprimento inimputável ao
devedor a todas as causas provenientes de fato de terceiro, de circunstância fortuita ou de força maior, da própria
lei e do credor, e as situações para as quais o devedor, em alguma medida, tenha concorrido para a concretização,
o autor denomina de incumprimento imputável ao devedor.
107
quebra da base do negócio, codificado nos §§ 313 e seguintes BGB. Por tudo isto, o
entendimento desta nova norma é considerado difícil e capaz de gerar problemas na
aplicação prática. Os casos atingidos pelo inc. III do § 275 são denominados
“impossibilidade pessoal” (persönliche Unmöglichkeit). Por meio desta figura
jurídica, solucionam-se os problemas que surgem quando a prestação tem que ser
efetuada pessoalmente pelo devedor, mas, sob as circunstâncias concretas, tal
prestação não pode ser exigida.
O mesmo autor segue com outro exemplo de impossibilidade pessoal, examinado
sob a ótica do direito reformado:
Uma cantora, cujo filho adoeceu com perigo de morte. Se ela foi contratada para se
apresentar, nada lhe impede, objetivamente, de cantar uma música alegre no palco,
porém, do ponto de vista pessoal, isto é totalmente inexigível. Esta norma quebra
parcialmente a doutrina de Canaris, que serviu como base para a elaboração do §
275 BGB, pois, na sua visão, a impossibilidade pessoal pode ser solucionada,
aplicando a cláusula geral da boa-fé objetiva, § 242 BGB. A positivação no § 275 III
BGB faz com que esta figura influencie a interpretação do § 275 II BGB, o que abre
um novo campo para conceitos diferentes (NORDMEIER, 2007, p. 150-151).
Para o sistema brasileiro, na hipótese de inadimplemento imputável ou culposo,
responderá o devedor, primordialmente, por perdas e danos
92
, sem prejuízo de,
eventualmente, a critério da parte lesada, ser também obrigado ao cumprimento do contrato
93
.
Aliás, essa regra é a que melhor se coaduna com os valores de eticidade e
operabilidade do novo Diploma civil brasileiro e com o princípio geral de conservação dos
contratos.
A partir da mesma classificação, o escólio de Silva (2007c, p. 37, grifo do autor):
[...] a impossibilidade imputável atribui ao devedor o dever de indenizar, alterando
com isso o conteúdo do vínculo. O devedor, que antes devia a prestação que se
impossibilitou, agora deve a indenização substitutiva, mas o vínculo não se extingue.
Se a relação decorre de contrato, pode o credor optar entre mantê-lo (conservando o
seu dever de prestar e promovendo a execução pelo equivalente, acrescida de perdas
e danos) ou resolvê-lo, sendo-lhe restituído o que prestara, igualmente com o
acréscimo de perdas e danos.
Caso o inadimplemento seja inimputável ou não-culposo, a conseqüência será a
simples resolução da obrigação
94
. Sobre o tema, colhe-se da doutrina italiana de Bianca
(2003b, p. 16):
92
Além de juros, correção monetária e honorários de advogado, na atual dicção do art. 389 do CC/2002.
93
CC/2002, Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir
exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
94
Aguiar Júnior (2004) entende que em caso de impossibilidade superveniente não imputável ao devedor a
obrigação extingue-se ipso jure, ou seja, de pleno direito, sem a necessidade de intervenção de qualquer das
partes.
108
L’idea che il debitore non sia responsabile quando insorgono impedimenti non
prevedibili superabili con la dovuta diligenza è coerente anche col diffuso
intendimento dell’obbligazione quale vincolo improntato a criteri di normalità e
ragionevolezza, vincolo che subordina l’interesse del debitore a quello del creditore,
ma non esige che l’interesse de quest’ultimo sia soddisfatto a costo di qualsiasi
sacrificio.
A impossibilidade, como forma de inadimplemento absoluto, é originária quando
já existente ao tempo do surgimento da obrigação, sendo causa de nulidade do negócio
jurídico
95
. Por isso, essa impossibilidade é denominada de objetiva ou absoluta, porquanto
afeta a todos indistintamente.
Quando, no nascimento da obrigação, a incapacidade é apenas do devedor ou se
evidencia diante de alguma condição jurídica que precisa ser implementada para que o
negócio válido tenha eficácia, diz-se que a impossibilidade originária é subjetiva ou relativa.
Desse modo, suprida a incapacidade inicial e realizada a condição, o ato, que era válido,
passa a ser também eficaz.
Mantendo-se a ineficácia até o momento da prestação fica caracterizada a
impossibilidade superveniente, que também pode ser relativa ou absoluta, à proporção que
atinja apenas o devedor ou a todos.
A impossibilidade superveniente também pode ser classificada como definitiva,
temporária, total ou parcial.
É definitiva, quando inviabiliza para sempre a prestação, extinguindo o vínculo.
Classifica-se como temporária, quando a inviabilidade é apenas provisória, mas ainda pode
ser realizada em momento futuro, o que “[...] enseja a paralisação da exigibilidade da
prestação e mantém o vínculo até que a causa da impossibilidade se afaste ou até que se
extingam os interesses do credor na prestação” (SILVA, 2007b, p. 39).
95
Tal era a solução dada pela BGB de 1900, em seu § 306. Após a reforma, no entanto, ainda que a execução
seja impossível desde o nascedouro da avença, o contrato é válido. “Um novo paradigma para a teoria dos
contratos no âmbito da impossibilidade foi introduzido pelo novo § 311 a I BGB. Esta norma trata do contrato,
cuja execução é objetivamente impossível antes da celebração (objetive anfängliche Unmöglichkeit), p. ex.,
quando as partes, ao celebrar o contrato, não sabiam que o objeto da prestação foi destruído. O antigo BGB
ordenava, neste caso, a nulidade do contrato, § 306 BGB/1900; para estabelecer a responsabilidade contratual
das partes, usou-se a figura da garantia, isto é, a idéia de que a parte que se obriga a prestar certo objeto garante,
dentro de determinados limites, a existência de tal objeto. O novo § 311 a I inverte este paradigma, colocando
que um contrato, cuja execução já é objetivamente impossível antes da celebração, é plenamente válido. Mas isto
não significa que o credor mantenha sua pretensão à prestação primária (Primärleistung). Muito pelo contrário, o
conteúdo do contrato limita-se às pretensões secundárias. Com esta visão, o direito alemão segue os padrões
internacionais, p. ex. os Princípios do Unidroit ou o CISG, que também prevêem a validade do contrato, caso a
prestação seja objetivamente impossível antes da celebração do mesmo” (NORDMEIER, 2007, p. 151-152).
109
A impossibilidade será total, se compreender toda a prestação. Parcial, se não
alcançá-la integralmente. Para Gomes (1972, p. 170, grifo do autor):
Acontece, às vezes, que o obstáculo se levanta apenas contra parte da prestação. Se a
impossibilidade é parcial, o efeito extintivo pode produzir-se em relação a toda a
obrigação ou, tão-sómente, a uma parte. Para se conhecer sua extensão, é preciso
considerar o interesse do credor. Cumpre indagar, primeiramente, se o parcelamento
da prestação é possível sem seu total sacrifício. No caso afirmativo, se interessa, ou
tem utilidade, para o credor, a parte possível. Interessando, ou sendo útil, a relação
subsiste mutilada. Caso contrário haverá impossibilidade total.
A resolução do negócio será determinada pela impossibilidade total ou mesmo
pela impossibilidade apenas parcial, quando não importar cumprimento substancial da
obrigação e esta não mais atender os interesses do credor na prestação
96
. Para Bianca (2003b,
p. 322), a resolução do negócio determinada pela impossibilidade total “[...] comporta lo
scioglimento del contratto senza che a tal fine sia necessaria una pronunzia giudiziale o un
atto del creditore. Si tratta quindi di una risolucione automatica”.
Relativamente ao inadimplemento por ausência de interesse do credor, Díez-
Picazo e Gullón (2005b, p.194) observam:
[...] el retraso equivale a incumplimiento definitivo cuando ya non puede satisfacer
el interés del acreedor; la prestación deja de serle útil. Especial relevancia tiene esta
doctrina en los negocios con termino esencial o a fecha fija, aunque su virtualidad
no queda encerrada en ellos. Si la época en que debió ejecutarse la prestación era tan
importante en la economía de la relación que pasada la misma no es útil, el retraso
es incumplimiento definitivo, aunque objetivamente fuese posible cumplir.
Mas a impossibilidade superveniente inimputável ao devedor também pode
decorrer de culpa do credor, de ato de terceiro, de caso fortuito, motivo de força maior, da lei
e do próprio devedor, mas sem culpa.
O credor será responsável pela impossibilidade se adotar comportamento que
impeça ou embarace a realização da prestação.
Também o terceiro, alheio à relação obrigacional, pode impossibilitar a prestação,
hipótese em que o devedor não responde, salvo se concorrer com sua conduta, estiver
96
A inutilidade para a satisfação dos interesses do credor deve ser verificada objetivamente, mediante a real
possibilidade de a prestação ainda ser cumprida. Logo, a caracterização da inutilidade não decorre de juízo
subjetivo ou até mesmo de mero capricho do credor. Essa, a adequada interpretação do § único do art. 395 do
CC/2002, que a Lei Civil portuguesa torna despicienda, face à clareza da segunda alínea do seu art. 808º ao
estatuir que “a perda do interesse na prestação é apreciada objetivamente” (NORDMEIER, 2007).
110
representado pelo terceiro ou se tratar de responsabilidade objetiva prevista em lei ou
decorrente do risco criado
97
.
Fortuito é o fato humano imprevisível e irresistível. E força maior é o fato natural
inevitável e igualmente irresistível. Ambos não podem ser imputados ao devedor, a não ser
que tenha se responsabilizado por eles expressamente ou esteja em mora e nenhum
comportamento tenha adotado para evitar os efeitos do fortuito e da força maior.
A impossibilidade superveniente inimputável ao devedor também pode decorrer
da lei que, entrando em vigor após a conclusão do negócio, vede expressamente a realização
da prestação, como o que sucede com os atos normativos que criam reservas biológicas em
propriedades privadas, proibindo alguns tipos de exploração econômica para a qual foram
adquiridas.
Por fim, o próprio devedor pode, sem culpa, descumprir o dever de prestação,
caso em que nenhuma das partes arcará pelos prejuízos, resolvendo-se a obrigação sem perdas
e danos.
Na hipótese de inadimplemento em razão da presença das causas que excluem a
responsabilidade, leciona Egusquiza (1990, p.138):
[...] si el incumplimiento total y definitivo de la prestación es consecuencia de que la
prestación no haya podido ser cumplida, actuando el deudor con la debida diligencia
y sin haber éste incurrido en mora, al mediar perdida fortuita de la cosa debida o ser
imposible el desarrollo del comportamiento debido, se producirá la extinción de la
obligación, quedando el deudor liberado de su cumplimiento.
Silva (2007c, p. 37-38, grifo do autor), referindo-se à impossibilidade
superveniente, assevera que é inimputável ao devedor:
[...] por decorrer de caso fortuito ou força maior, fato do credor ou do príncipe –, a
impossibilidade o libera, pondo termo ao vínculo. Nesse caso, a impossibilidade é o
contraponto do risco assumido. Entende-se por risco a determinação de quem sofre
os efeitos de circunstâncias que impedem ou dificultam extremamente a prestação.
Se a impossibilidade é inimputável, a não-prestação é risco da outra parte. Por isso,
sendo a relação decorrente de contrato, que se analisar se o risco da
impossibilidade, ainda que sem culpa, não foi assumido por uma das partes.
Havendo culpa do devedor, o incumprimento terá como causa a imputabilidade,
situação em que o credor estará autorizado a resolver ou não o contrato, podendo exigir as
perdas e danos em ambas as situações. Assim:
97
O CC/2002 preas duas situações de responsabilidade objetiva. A primeira, em rol especificado no art. 932.
A segunda, no Parágrafo único do art. 927.
111
Ao prejudicado cabe o direito de exigir o ressarcimento, quer dos danos que
representam uma desvalorização ou perda patrimonial, quer ainda dos que se
traduzem numa não valorização ou frustração do ganho. Estes últimos, na esfera do
interesse contratual negativo, reconduzem-se, máxime, aos lucros ou vantagem
provenientes de outros negócios que se realizariam se não tivesse sido celebrado o
negócio resolvido (COSTA, 2004, p. 978).
Sobre a culpa contratual, em quaisquer de seus sentidos (amplo ou estrito) e graus
(grave ou leve), por vezes, será avaliada tendo em vista o descumprimento não de deveres de
prestação, mas sim, de deveres laterais ou anexos de conduta, notadamente o dever de
proteção a que estão obrigadas as partes.
2.2 A mora
A mora é, sem dúvida, um dos institutos jurídicos mais complexos e que exige
grande atenção e estudo por parte dos operadores do direito. Principalmente, em face do
ordenamento nacional, onde representa mais que simples retardamento.
Com efeito, ao contrário do que sucede com os Códigos Civis da Alemanha
98
,
Espanha
99
, Portugal
100
e Argentina
101
, no Brasil, a mora possui tríplice aspecto, pois o art. 394
do Código Civil considera em mora não apenas o devedor que não efetuar o pagamento e o
98
§ 326 Mora do devedor (1) Se uma das partes, em um contrato bilateral, estiver em mora quanto à sua
prestação, poderá a outra fixar prazo razoável para a execução da prestação, com a declaração de que,
transcorrido este prazo, recusa a prestação. Transcorrido o prazo, está a parte autorizada a exigir indenização por
não-cumprimento, ou resolver o contrato, se a prestação não tiver lugar no tempo devido; a pretensão à prestação
está vedada. Se a prestação, até o transcurso do prazo, não for realizada parcialmente, encontrará a disposição do
§ 325, alínea 1, frase 2, analogamente aplicação. (2) Caso o cumprimento do contrato em face da mora não
interessar mais ao credor, caberá a ele os direitos fixados na alínea 1, sem que seja necessária a estipulação de
um prazo.
99
Artículo 1100. Incurren en mora los obligados a entregar o a hacer alguna cosa desde que el acreedor les exija
judicial o extrajudicialmente el cumplimiento de su obligación. No será, sin embargo, necesaria la intimación del
acreedor para que la exista: 1. Cuando la obligación o la ley lo declaren así expresamente. 2. Cuando de su
naturaleza y circunstancias resulte que la designación de la época en que había de entregarse la cosa o hacerse el
servicio, fue motivo determinante para establecer la obligación.
100
Art. 804 1. A simples mora constitui o devedor da obrigação de reparar os danos causados ao credor. 2. O
devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível,
não foi efectuada no tempo devido.
101
Artículo 509. En las obligaciones a plazo, la mora se produce por su solo vencimiento. Si el plazo no
estuviere expresamente convenido, pero resultare tácitamente de la naturaleza y circunstancias de la obligación,
el acreedor deberá interpelar al deudor para constituirlo en mora. Si no hubiere plazo, el juez a pedido de parte,
lo fijará en procedimiento sumario, a menos que el acreedor opte por acumular las acciones de fijación de plazo
y de cumplimiento, en cuyo caso el deudor quedará constituido en mora en la fecha indicada por la sentencia
para el cumplimiento de la obligación. Para eximirse de las responsabilidades derivadas de la mora, el deudor
debe probar que no le es imputable.
112
credor que não quiser recebê-lo no tempo, mas que não o fizerem no tempo, lugar e forma,
que a lei ou a convenção estabelecer
102
.
Portanto, a mora no direito brasileiro, além do fator tempo, também se refere a
lugar e forma, abrangendo, em razão disso, os casos de adimplemento imperfeito e violação
positiva do contrato, dos quais se tratará nos próximos tópicos.
O estudo da mora torna-se tanto mais complexo e interessante diante dos
princípios fundamentais de eticidade, socialidade e operabilidade entronizados no Código
Civil brasileiro de 2002, assim como pela introdução do sistema das cláusulas gerais e da
textualização legal da boa-fé.
Forte na regra segundo a qual o devedor deve cumprir a prestação no tempo, lugar
e forma devidos e sob inspiração dos valores do novo Código, nomeadamente nas cláusulas
gerais da boa-fé e da função social dos contratos, tem-se que o não-cumprimento da
obrigação, nos dias que correm, não deve mais se resolver, ordinária e prioritariamente, em
perdas e danos. A lei e a interpretação dela decorrente devem, antes de tudo, favorecer a
solução que conduza ao cumprimento da obrigação que se convencionou.
Nessa linha, a mora assume especial relevo, considerando que a sua
caracterização, de per si, não impede a manutenção do avençado, se a prestação ainda satisfaz
os interesses objetivos do credor. Na lição de Silva (2007c, p. 42):
Encontra-se em mora o devedor que, por sua culpa, deixa de realizar a correta
prestação no tempo certo, seja porque a atrasou, seja porque a realizou sem algumas
de suas qualidades devidas (lugar, forma), sem que tal circunstância extinga os
interesses objetivos do credor na prestação. Reside exatamente na manutenção dos
interesses do credor na prestação o ponto de distinção entre a mora e o
inadimplemento absoluto, as duas espécies de descumprimento obrigacional
decorrentes da não-realização dos interesses na prestação. A partir da perspectiva
dos interesses objetivos do credor, observa-se se a prestação é ainda realizável [...].
Se o for, há mora; inexistindo a possibilidade, o inadimplemento é absoluto [...].
E, se a mora, como diz J. X. Carvalho de Mendonça ([s.d.], p. 142), “é, na sua
realização jurídica, influenciada em grande parte pela eqüidade; e, ordinariamente, é mais
uma questão de fato que de direito”, então não se pode mesmo desprezar a importância que os
valores do Código Civil têm na tarefa de caracterização da mora e no apuro de suas
102
Discorrendo acerca da satisfação dos interesses do credor Silva (2007a, p. 48, grifo do autor) esclarece: “[...]
tendo em conta que a relação obrigacional envolve não só deveres de prestação, mas também deveres de conduta
decorrentes fundamentalmente da boa-fé objetiva (deveres de proteção, de cooperação, de sigilo, de informação
etc.) e que não se esgotam no ato de prestar, mas realizam-se no tempo, não se pode dizer que o ato de
pagamento represente a plena e total satisfação dos interesses do credor”.
113
conseqüências. Mais que tudo, atuará o arbítrio do juiz diante do caso concreto, mediante a
chamada “eqüidade individualizadora” (ALVIM, 1980, p. 4).
Conforme lembra Sérgio Cavalieri Filho (2003, p. 185, grifo do autor), “os
práticos conceituavam a mora como sendo o retardamento culposo no pagar o que se deve, ou
no receber o que nos é devido”
103
.
O conceito não satisfaz, embora sirva de ponto de partida. Fixa no retardo por
parte do devedor e foca, exclusivamente, no aspecto temporal da obrigação, tal como a mora é
encarada no direito europeu. Ou seja, tão-somente como “una forma speciale di
inadempimento. Il ritardo nell’adempimento della obligazione” (OBERTO, 2001, p. 62).
Alvim (1980, p. 10-11) criticava tal conceito clássico com dois argumentos:
Primeiro, porque leva em conta o retardamento: dilatio; ao passo que o Código
Civil [refere-se ao Código de 1916] considera em mora o devedor que não paga, ou
o credor que não recebe no tempo, lugar e forma convencionados (art. 955). Em
segundo lugar, verifica-se que ele pressupõe a culpa como elementar (culpa non
carens), tanto na mora do devedor, como na do credor.
Com efeito, o tríplice contexto que Beviláqua conferiu para a mora no direito
brasileiro não permite reduzi-la a um mero retardamento, como afirmado. Por outro lado, e
malgrado a controvérsia ainda existente, amiúde tem-se acolhido o entendimento de que o
elemento subjetivo da culpa não se faz presente na mora do credor, senão na do devedor. O
que se vê, então, é que a antiga definição serve melhor para a mora do devedor, que de fato
ocorre com mais freqüência.
No conceito de mora, podem ser vislumbrados elementos objetivos e subjetivos.
Os primeiros encontram-se no art. 394 do CC/2002: “Considera-se em mora o devedor que
não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei
ou a convenção estabelecer”. Os segundos, no art. 396 do mesmo Diploma: “Não havendo
fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora”.
a mora do credor dispensa o elemento subjetivo da culpa, baseando-se apenas
nos elementos objetivos, esclarecendo Orosimbo Nonato (1960, p. 282-286) que:
A demora é o elemento objetivo da mora. Se a ela se anumera o elemento subjetivo,
vale dizer a culpa do devedor ou a recusa ou a descontribuição do credor nas
providências que lhe cabem no pagamento, estará completa e perfeita a figura
jurídica da mora. [...] A noção corrente de mora é ser ela o retardo culposo no
103
Azevedo (1990, p. 29, grifo do autor) conceitua a mora no seguinte sentido: “O próprio vocábulo mora indica
o sentido desse instituto jurídico, pois, mora é demora, atraso, retardamento, inexecução, inadimplemento,
descumprimento obrigacional”.
114
cumprimento da obrigação ou a recusa da aceitação do pagamento, por ato injusto
do credor ou ausência das providências que lhe caibam no caso. [...] pela noção
correntia, a mora do devedor é o retardo culposo no cumprimento da obrigação; a do
credor a recusa injustificada de receber a prestação devida. Na síntese de Molitor,
‘l’omission injuste de faire ou de recevoir un paiement’. Mas, a verdade é que, em
alguns casos pelo menos, não se exige a recusa injustificada para caracterizar a mora
do credor. Basta a inocorrência, culpada ou inculpada, de atos que lhe tocam, para a
realização do pagamento regular. Mora é, assim, o retardo culposo no pagamento
regular da obrigação (mora solvendi) ou a recusa injustificada ou simples omissão de
atos do credor no recebimento da prestação, sem impossibilidade em um caso que
noutro – de solução posterior.
Também com apoio nos elementos objetivos e subjetivos, Alvim (1980, p. 12,
grifo do autor) esboça uma definição do instituto, afirmando que:
[...] para formular um conceito unitário da mora do devedor e do credor, em nosso
direito, diremos que ela é o não-pagamento culposo, bem como a recusa de receber
no tempo, lugar e forma devidos. Analisando: o elemento subjetivo culpa dirá
respeito à mora do devedor e não à do credor; as circunstâncias tempo, lugar e
forma, a uma e outra se referirão; e o termo devidos que empregamos em lugar de
convencionados, de que usa o Código, nos parece mais preciso, visto como nem
sempre a mora se prende a uma convenção, bastando atentar na que se origina de
responsabilidade delitual (Código, art. 962) [refere-se ao Código de 1916].
A redação do art. 396, contudo, continuou fazendo referência à convenção e
acrescentou a expressão “lei”.
De sua vez, o termo “delito”, utilizado no antigo art. 962, foi substituído no art.
398 pela expressão “ato ilícito”, ficando assim disposto: “Nas obrigações provenientes de ato
ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou”.
O “ato ilícito” a que se refere o art. 398 do CC/2002 consiste no “delito civil”, e
como o “ato ilícito” também é mencionado no art. 186 do Código, não se pode perder de vista
que a referência feita pelo art. 398 também abrange a mora contratual ou, noutras palavras, o
inadimplemento contratual moroso.
Mas o palco da grande controvérsia continua sendo o elemento culpa. Sua
ausência pode livrar devedores, conquanto não tenham efetuado o pagamento no tempo, lugar
e forma que a lei ou a convenção estabelecer, circunstâncias objetivas expressamente
definidas no art. 394 do CC/2002.
Anota Lotufo (2003a, p. 442) que a culpa “[...] distingue a mora do simples
retardamento, que é um dos elementos dela. O retardamento, assim, é o atraso no
cumprimento da prestação, enquanto a mora é o retardamento culposo”.
115
Para o devedor, não basta o simples retardamento. Esse retardamento tem que
decorrer de culpa, na medida em que, nos termos do art. 396 do CC/2002: “Não havendo fato
ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora”.
A existência da boa-fé, mesmo agora que foi alçada à condição de cláusula geral
do sistema, não elide a existência de culpa, tendo observado Alvim (1980, p. 13-14) que:
O devedor pode, de boa-fé, violar o avençado, pela má apreciação de certos fatos, ou
pela errônea interpretação do contrato. Nem por isso se exonerará de responder.
Com efeito, se o erro for de fato, terá havido culpa, pela inadvertência ou
negligência. E se for de direito “erro na interpretação do contrato” equivalerá ele ao
erro na interpretação da lei, e tal erro não se escusa com a boa-fé [...].
Dessa sorte, poderá o devedor, mesmo agindo de boa-fé (mas por negligência,
imperícia ou imprudência) não efetuar o pagamento no tempo, lugar e forma que a lei ou a
convenção estabelecer, incidindo em mora, também nesses casos.
O elemento culpa é quem, verdadeiramente, vai permitir a caracterização do
simples “retardamento do devedor” em mora.
Mesmo nas dívidas de dinheiro, em que pese a controvérsia existente, os juros de
mora não podem correr se inexistir culpa do devedor. Este é o entendimento que deflui da
correta interpretação do art. 396 do Código. É que a ausência de culpa impede os efeitos da
mora debitoris, sendo de fundamental relevo a influência do elemento subjetivo para sua
caracterização, apontando Caio Mário da Silva Pereira (1993, p. 216-217) que:
[...] não é toda retardação no solver ou no receber que induz mora. Algo mais é
exigido na sua caracterização. Na mora solvendi, como na accipiendi, de estar
presente um fato humano, intencional ou não-intencional, gerador da demora na
execução. Isso exclui do conceito de mora o fato inimputável, o fato das coisas, o
acontecimento atuante no sentido de obstar a prestação, o fortuito e a força maior,
impedientes do cumprimento. Em princípio, o devedor de solver no momento
certo, e o credor receber oportunamente. A falta de execução na hora devida induz a
marca de um ou de outro. Aquele que tem de suportar as suas conseqüências
cumprirá provar, então, a existência do fato, acontecimento ou caso, hábil a criar a
escusativa.
Divergindo de toda a orientação até aqui observada, Marcos Jorge Catalan (2005)
entende que, diante do princípio da boa-fé, aferido mediante critérios objetivos, a exigência
do elemento culpa não seria mais fundamental para a caracterização da mora do devedor, pois
o critério eleito pelo legislador teria sido outro, qual seja o da imputabilidade.
Secundando-se nas lições de Giorgio Giorgi e Carvalho de Mendonça, Catalan
(2005, p. 151-152) sustenta que culpa é “infração ao necessário dever de diligência que se
116
impõe as partes quando se proponham a dar, fazer ou não fazer alguma coisa”, o que não pode
ser confundido, como ordinariamente ocorre, com a violação de dever jurídico fundado na
vontade das partes. Culpa, na sua visão, não guardaria relação necessária com imputabilidade,
esta de índole objetiva e diretamente relacionada com a inexistência de fatores externos
justificadores do incumprimento.
Ao tratar do art. 393 do CC/2002, Catalan (2005, p. 154) assinala:
Como se depreende do citado dispositivo legal, não haverá mora apenas se a conduta
comissiva ou omissiva não puder ser imputada ao devedor, e isto somente será
possível na incidência de eventos alheios a sua vontade, como preleciona o art. 393
da Lei Civil e não apenas quando não haja culpa, posto que culpabilidade e
imputabilidade são conceitos distintos que infelizmente m sido confundidos. [...]
Como se denota, evidente confusão entre as expressões culpa e imputabilidade, e,
não havendo dúvidas acerca do que seja a primeira, quanto à última, de frisar-se
que esta se materializa no plano concreto enquanto um fato que se manifesta na
órbita de atuação do devedor que não releva o aspecto volitivo; e, desprezando
aspectos subjetivos na conduta do devedor, impõe-se-lhe a responsabilidade por seus
efeitos se não puder demonstrar que em fato externo, albergado pelo direito, foi a
fonte do retardamento no desempenho da prestação.
Pontes de Miranda (2003, p. 154-160), de maneira mais ampla e sepultando a
discussão, sustenta que “o simples fato de a prestação não se realizar na data ajustada
constitui razão bastante para a caracterização da mora do devedor”, compreendida esta como
a falta ao cumprimento, fundada na ação ou omissão que possam ser imputadas ao devedor.
Ora, a responsabilização ou imputação de alguém por qualquer ação ou omissão,
quer parecer conceito genérico que muito se aproxima da idéia de culpa. Mas o fato é que o
retardamento, que constitui elemento objetivo da mora, independente da verificação da
existência de culpa (ou imputabilidade), produz os seus efeitos de imediato.
É que a mora, ou retardamento culposo (ou imputável), deve ser provisoriamente
admitida com a constatação do prazo de vencimento da obrigação, pois, na grande maioria
dos casos, dies interpellat pro homine, e os efeitos da mora se produzem desde logo.
Entretanto, se trata de “mora presumida”, que se estabelece em decorrência da presunção de
culpa. Presunção relativa que admite prova em contrário.
Boa parte dos doutrinadores, em especial Alvim (1980), defende que a autonomia
da vontade das partes é livre para admitir a caracterização da mora, independentemente da
existência de culpa por aplicação do art. 1.058 do CC/1916 (atual art. 393 do CC/2002), regra
relativa ao inadimplemento absoluto, mas que também se aplica à mora.
117
Diante da nova legislação, essa liberdade, mais que nunca, deverá ser exercida em
razão e nos limites da função social do contrato, observando os princípios de probidade e boa-
fé e os usos do lugar da celebração do negócio jurídico.
Sem embargo da utilidade do debate acerca da distinção entre os conceitos de
imputabilidade e culpa, tem-se que o melhor critério para definir a mora do devedor é o
critério econômico ou da utilidade-possibilidade, pois conforme Alvim (1980, p. 44-45):
inadimplemento absoluto quando não mais subsiste para o credor a possibilidade
de receber a prestação; mora quando persiste essa possibilidade. [...] O elemento
volicional devedor querer ou não querer pagar; o dolo contratual traduzido pela
relutância consciente em não cumprir o avençado, nada disso deve servir para a
distinção entre mora e inadimplemento absoluto. O critério para a distinção deve ter
por base um fato de ordem econômica; na hipótese, a possibilidade ou não, para o
credor, de receber a prestação que lhe interessa.
O mesmo critério, aliás, serve para bem compreender a mora do credor:
Se mero atraso do credor em cooperar ou receber, verifica-se a mora, com estas
ou aquelas conseqüências. Muitas vezes, porém, o não-recebimento da prestação
caracteriza o inadimplemento absoluto. Assim, p. ex., se o credor deixar de
cooperar, quando tal obrigação lhe assiste, e o cumprimento da obrigação, por parte
do devedor, se tornou impossível, terá havido inadimplemento absoluto por parte do
credor. É o caso do empresário que, por desídia, não procurou obter teatro onde
pudesse ser dado certo recital, segundo o combinado com um determinado virtuose.
Terá havido inadimplemento absoluto. O empresário deve o que prometeu, sem
direito a receber, posteriormente, a prestação que não recebeu a tempo, por culpa sua
(ALVIM, 1980, p. 49).
Nesse rastilho, San Tiago Dantas (1978, p. 73-74) também sustenta que o
fundamento da teoria da mora está no interesse do credor na prestação:
casos em que o credor, não sendo satisfeito no dia próprio, toma essa
impontualidade da prestação como inadimplemento, e outros em que considera
apenas como um atraso, como uma demora mora atraso culposo do pagamento
da prestação.
Esse autor usa a expressão “mora inculpata” utilizada pelos antigos escritores
para definir a mora decorrente de fortuito, de retardamento escusável. Daí se conclui que a
idéia de culpa está sempre presente na mora do devedor, na expressão de Dantas (1978, p.
74), “mora típica, é o atraso daquele que devia cumprir a obrigação”.
Para que haja mora é fundamental que a obrigação ainda seja possível, pois se o
não cumprimento da obrigação é definitivo, o caso não é mais de mora, mas de
inadimplemento absoluto.
118
O incumprimento definitivo é, portanto, resultado da mora e ocorrerá sempre que,
diante do incumprimento parcial, ocorrer perda do interesse do credor na prestação, isto é,
quando a prestação se tornar inútil ao credor, nos termos do parágrafo único do art. 395 do
CC/2002, segundo uma apreciação objetiva.
Nas obrigações consideradas negativas, as chamadas obrigações de não-fazer, não
se pode cogitar de mora, mas apenas de inadimplemento absoluto. Logo, se determinado
contratante se obriga a não realizar dada prestação e, ainda assim, a realiza, não mais falar
em retardamento culposo, mas em não-cumprimento definitivo, na medida em que o desfazer
assume o caráter de reparação.
Sobre a inaplicabilidade do conceito de mora nas obrigações negativas sob o
ponto de vista de ambos os parceiros da relação obrigacional, preleciona Maria Ángeles
Egusquiza (1990, p. 147; 157-158):
La facultad de cumplir tardíamente irrealizable el cumplimiento tardío, puesto que si
no se ha ejecutado en tiempo la prestación, quiere decir que se ha llevado a cabo la
actividad contraria, y, por lo tanto, que se ha incumplido totalmente la obligación.
La obligación negativa queda excluida del ámbito del incumplimiento relativo
mora –, este únicamente se referible a las obligaciones positivas. [...] cabe
preguntarnos si es posible que se dé la mora, o retraso cualificado, en el acreedor. La
respuesta es negativa, en tanto en cuanto la abstención supone una actividad que
produce sus efectos automáticamente desde que ésta comienza a ser ejecutada.
Además, el cumplimiento de la prestación omisiva, como acto debido, genera un
estado especial para el acreedor que le coloca, desde el punto de vista objetivo de la
prestación, en una posición de espectador paciente. Si a lo expuesto se une el hecho
de la incapacidad material de consignar una actuación omisiva observamos que
carece de sentido la aplicación de este instituto en las obligaciones negativas.
Relativamente à recusa formal e antecipada do devedor em cumprir a obrigação, é
necessário distinguir se a recusa constitui fato pessoal, infungível ou se a obrigação pode ser
cumprida por terceiro, sendo então fungível.
Na primeira hipótese, o caso se mesmo de inadimplemento absoluto. Na
segunda, o não cumprimento assume o caráter de mora.
A mora tem ainda diferentes efeitos quanto à pessoa do devedor e do credor.
Quanto ao devedor, o primeiro efeito da mora é a responsabilidade pelas perdas e
danos. Assim é que o art. 395 do CC/2002 estatui que: “Responde o devedor pelos prejuízos a
que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices
oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”.
Essa última parte do dispositivo é novidade na lei, que decidiu ampliar o rol dos
prejuízos decorrentes da mora.
119
O ressarcimento desses prejuízos decorre do mero retardamento culposo. Não se
faz necessário que a prestação tenha se tornado inútil. Havendo inutilidade da prestação, a
indenização aplicável ao caso é a prevista no art. 389 do CC/2002 para o caso de
inadimplemento total.
E como registra Alvim (1980, p. 55), “dada à alegação do credor de que a
prestação, devido à mora, não lhe apresenta mais utilidade, a ele cabe o ônus da prova”.
Outro efeito da mora do devedor é a perpetuação da obrigação, regra consagrada
no atual Código Civil brasileiro:
Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora
essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem
durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda
quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.
O dispositivo estatui o princípio da perpetuação da obrigação em virtude da mora,
albergando como exceções a possibilidade de o devedor “provar isenção de culpa” ou “que o
dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada”.
A primeira exceção, na verdade, seria até desnecessária, na medida em que o art.
396 fixou que a ausência de culpa impede a caracterização da mora do devedor. A segunda
trata da falta de eficácia da mora para produzir um dano, ou mais precisamente, da falta de
nexo causal entre a culpa e o dano, o que afasta, por completo, a responsabilidade do devedor.
O ônus de provar as exceções previstas no art. 399 do CC/2002 é do devedor, conforme a
dicção do próprio dispositivo.
Para Dantas (1978, p. 74-78), são três os efeitos da mora debendi, a saber:
1) Perpetuatio obligationis: - Graças à mora verifica-se a perpetuação da obrigação.
Desde que o animal que se tinha de entregar perece, fica-se exonerado do dever de
custódia. Se este efeito se verifica depois da constituição em mora, o devedor tem
que pagar o valor do animal que morreu. [...] É preciso temperar o rigor da
perpetuação da obrigação por meio da mora. O devedor poderá se exonerar, se
provar que a coisa teria perecido, até mesmo que a obrigação tivesse sido cumprida e
entregue ao credor. Se uma casa que essob custódia de alguém, um raio a abate,
poderá o devedor provar que o mesmo aconteceria se a casa estivesse no poder do
credor? Bastará que este alegue que pretendia protegê-la contra as descargas
elétricas, para que o devedor não possa ficar exonerado. [...] 2) Outro efeito da mora
é obrigar o devedor a pagar as perdas e danos. [...] 3) Peculiar às prestações em
dinheiro é a prestação de juros. Não se discutem as perdas e danos; são logo
substituídas por juros de 6% ao ano. Nas obrigações líquidas contam-se os juros da
mora desde a citação. Quando a parte contrária for constituída em mora, apesar de
serem obrigações ilíquidas, nessas o efeito retroage.
120
Pereira (1993, p. 218), de seu turno, também considera que a responsabilidade
pelas perdas e danos e a perpetuação da obrigação são efeitos da constituição em mora. E no
que tange ao primeiro desses efeitos, esclarece:
Responde, na verdade, o devedor pelos prejuízos a que der causa o retardamento da
execução (Código Civil, art. 956; Anteprojeto de Código de Obrigações, art. 193);
obrigado fica a indenizar o credor pelo dano que o atraso lhe causar, seja mediante o
pagamento dos juros moratórios legais ou convencionais, seja ressarcindo o que o
retardo tiver gerado. A indenização moratória não é substitutiva da prestação devida,
vale dizer que pode ser reclamada juntamente com ela, se ainda for proveitosa ao
credor. Mas, se se tornar inútil ao credor em razão da mora do devedor, tem ele o
direito de exigir a satisfação das perdas e danos completa, mediante a conversão da
res debita no seu equivalente pecuniário. É o caso em que o atraso no cumprimento
equivale a descumprimento total, equiparando-se a prestação retardada à falta
absoluta da prestação.
E sobre a perpetuatio obligationis, anota Pereira (1993, p. 219) que é em razão
desse específico efeito que o devedor moroso responde pela impossibilidade da prestação,
conquanto tal impossibilidade decorra de caso fortuito ou de força maior:
São requisitos deste agravamento da responsabilidade do devedor: estar ele em mora
e ocorrer a impossibilidade na pendência desta. O devedor não se escusa sob
alegação de ausência de culpa no perecimento do objeto, porque a sua condição de
devedor se torna agravada precisamente em razão de não ter prestado em tempo
oportuno. A perpetuação da obrigação não deve ter, contudo, caráter absoluto.
Casos haverá em que o dano sempre sobreviria à coisa, e, então, escusa-se o devedor
moroso, comprovando, além da falta de culpa específica na danificação, a
circunstância de que o evento dar-se-ia ainda que a obrigação tivesse sido
oportunamente desempenhada. Exemplo clássico é o da coisa fixa no solo e
destruída pelo raio, na pendência da mora solvendi: ainda que o devedor houvesse
cumprido a tempo, perderia o credor a coisa, pela força do fogo do céu. Nesse
mesmo exemplo, pelo fortuito, entretanto, responde o devedor, se a coisa era
destinada à alienação, e o retardamento na entrega impediu o credor de realizá-la. É
que o interitus não a atingiria a tempo de frustrar a alienação, se, com a traditio
oportuna, houvesse o credor convertido o objeto no seu valor pecuniário, em
desenlace das negociações já entabuladas. Ressalva-se, também, a obrigação de
gênero, pois que, sendo certo que genus nunquam perit, a perda de uma coisa não
individuada não impossibilita a execução mediante a entrega de outra do mesmo
gênero.
Ainda quanto à mora do devedor, Giacomo Oberto (2001, p. 63-64) acentua:
Innanzitutto, dal momento della mora il debitore deve risarcire al creditore i danni
causati a quest’ultimo dal ritardo. [...] Il secondo luogo, sul debitore viene a gravare
il rischio dell’impossibilità sopravvenuta della prestazione (anche) per causa a lui
non imputabile (art. 1221 c.c.). Come si è gaccennato e verrà meglio illustrato in
seguito, l’impossibilità sopravvenutta della prestazione per causa non imputabile al
debitore determina l’estinzione dell’obbligazione e la liberazione del debitore da
responsabilità. Tuttavia, tale effeto non si verifica (e dunque il debitore continua ad
essere tenuto al risarcimento del danno) se l’impossibilità si verifica nel momento in
cui il debitore era in mora.
121
No que respeita aos efeitos da mora do credor, estabelece o art. 400 do CC/2002
que:
A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela
conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em
conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o
seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação.
Realmente, não havendo cooperação por parte do credor, os riscos da coisa lhe são
transferidos, cessando também a contagem dos juros moratórios.
A caracterização e os efeitos da mora do credor têm início com a recusa
injustificada.
A mora de um contraente exclui a do outro. Assim, estando evidenciada a recusa
injustificada do credor em receber a prestação, este incide em mora e não haverá mora do
devedor, ainda que o mesmo não realize a consignação da coisa devida.
A consignação, vale anotar, constitui mera faculdade, mesmo no atual contexto da
reforma introduzida no Código de Processo Civil, pela Lei n. 8.951 de 13 de dezembro de
1994, criando a possibilidade de depósito da quantia devida nos casos de obrigação em
dinheiro.
A simples oferta e a recusa injustificada do credor caracterizam a mora accipiendi
e desoneram o devedor pelo retardo no cumprimento da obrigação, liberando-o dos riscos pela
guarda da coisa e dos juros de mora. Não há necessidade de depósito judicial ou bancário para
tanto. Os juros da dívida a que se refere o art. 337 do CC/2002 dizem respeito aos juros
remuneratórios do capital. Não guardam relação com os juros de mora.
Para Alvim (1980, p. 79), “[...] o instituto da mora do credor caracteriza-se pelos
efeitos que a ela se atribuem; grande parte deles reside naquelas desonerações do devedor”.
Nesse passo, cumpre observar que a mora do credor não produz o efeito de liberar
totalmente o devedor, uma vez que a relação obrigacional se mantém intacta, malgrado a
ocorrência da mora.
A liberação total do devedor, em virtude da mora do credor, atentaria contra os
valores de eticidade e representaria ofensa ao princípio, hoje encartado no art. 884 do
CC/2002, que veda o enriquecimento sem causa.
Dessa sorte, a oferta do devedor não o libera do cumprimento da obrigação, livra-
o tão-somente da falta, noutras palavras, desonera-o da responsabilidade pelo não
122
adimplemento da obrigação no tempo, lugar e forma devidos. Mas o devedor não estará
liberado da responsabilidade se agir com dolo, permitindo intencionalmente que a coisa
pereça, com prejuízo para o credor, contexto no qual também se inclui o abandono. Isso,
mesmo diante da mora accipiendi. E nem seria razoável admitir o contrário, diante de uma
legislação que prestigia a eticidade, a probidade e a boa-fé.
Em razão de sua mora, o credor também deve ressarcir o devedor das despesas
que o oneraram na conservação da coisa. O princípio da operatividade que influenciou a
linguagem do CC/2002, tornando a norma susceptível de mais fácil compreensão e aplicação,
dissipou as dúvidas geradas pela segunda parte do antigo art. 958 do CC/1916.
Hoje, as discussões sobre “mais alta” ou “mais baixa” estimação, “tempo do
contrato” e “tempo do pagamento” estão dissipadas pela clareza redacional do art. 400 do
CC/2002, que permite entrever que a intenção do legislador foi, de fato, reparar integralmente
o devedor cuidadoso em face do credor moroso.
A esse respeito, vale chamar à sirga a doutrina de Lotufo (2003a, p. 453):
A alteração redacional na segunda parte do dispositivo, que agora fala na estimação
mais favorável ao devedor, e no Código de 1916 falava na mais alta estimação,
deve-se à discussão sobre o sentido da expressão, ainda na tramitação daquele
Código. Com a nova formulação poderá não ser a mais alta estimação, visto que
cabe ao devedor fixá-la, não estando obrigado a ir ao máximo, mas à que
efetivamente lhe seja favorável. Outra alteração sofrida no artigo é quanto à parte
final, em relação aos momentos de referência do preço a ser pago, desde que tenha
ocorrido oscilação entre a data prevista para o pagamento e a da sua real efetivação.
A nova redação facilita a compreensão e a execução do dispositivo.
Sobre os efeitos da mora credendi ou accipendi, aponta-se os seguintes:
1) Produz uma espécie de inversão na perpetuação da obrigação: ela exonera o
devedor de todos os riscos da coisa. Por meio da citação, o devedor constitui em
mora o credor. 2) Se o devedor for obrigado a fazer despesas, por elas responde o
credor constituído em mora. 3) Algumas vezes, a coisa vai ser entregue por um
preço e se verifica uma oscilação de preços entre o espaço de tempo em que o credor
está constituído em mora: o credor tem de receber pelo maior preço. Não se pode
admitir mora sem culpa. O caso fortuito é uma escusa (DANTAS, 1978, p. 79).
Os efeitos da mora accipiendi, em linhas gerais, resumem-se em dois, isenção de
responsabilidade do devedor e liberação dos juros e da pena convencional:
Incorrendo em mora, o credor subtrai o devedor isento de dolo da responsabilidade
pela conservação da coisa, cujos riscos assume. Em simetria com a mora debendi,
que implica no agravamento da situação do devedor, a mora credendi reduz a
oneração da prestação. Assim é que, perecendo ou deteriorando-se o objeto, o credor
em mora sofre-lhe a perda ou tem de recebê-lo no estado em que se encontra, sem a
123
faculdade de eximir-se da prestação que lhe caiba, e sem o direito a qualquer
abatimento ou indenização. E, ao revés, se o devedor tiver feito despesas para
conservação da coisa, deve o credor ressarci-las. Mais: se ocorrer o acréscimo de
ônus, ainda que indiretamente, na pendência de mora credendi, por ele responde o
credor. E se o valor da coisa oscilar entre o tempo do contrato e o do pagamento, o
credor terá de recebê-la pela sua mais alta estimação. O nosso Anteprojeto, diferindo
da orientação do Código de 1916, minudencia todos esses efeitos da mora credendi
(art. 195) (PEREIRA, 1993, p. 221).
Sobreleva notar que a mora accipiendi não pode ser admitida sem a oferta da
coisa devida ao credor, de modo à oportunar o embaraço da solução do devedor. E essa oferta,
para valer, tem que ser efetiva, de forma à “positivar a atitude ostensiva do devedor no sentido
do pagamento, e a recusa do credor, salvo se houver precedido a declaração formal de que não
aceita o pagamento”, caso em que a oferta pode ser dispensada (PEREIRA, 1993, p. 221).
Não por outra razão que a mora accipiendi guarda vinculação direta com o
instituto da consignação em pagamento, segundo Pereira (1993, p. 221), “meio técnico de que
se vale o devedor para liberar-se da obrigação nolente creditore, impondo a solutio ao credor,
de forma que prevaleça a palavra jurisdicional como quitação do obrigado”.
Tão próximos são os institutos da mora accipiendi e da consignação em
pagamento, que o direito francês deixa de disciplinar o primeiro, tratando apenas do segundo.
O direito brasileiro, contudo, optou pela tradição romana e, alinhando-se à escola germânica,
deu tratamento específico a ambos os institutos.
2.3 A questão do adimplemento imperfeito
Tal como o inadimplemento absoluto e a mora, o adimplemento imperfeito
104
constitui conseqüência do descumprimento e compreende toda realização defeituosa da
prestação que resulte na insatisfação do interesse do credor, pelo não atendimento integral das
hipóteses relativas a tempo, forma e lugar mencionadas no art. 394 do CC/2002.
Contrastando mora e cumprimento imperfeito, além de relacionar esse último com
as hipóteses de violação positiva do contrato, observa Aguiar Júnior (2004, p. 123-124):
104
A matéria tem merecido destaque no ordenamento jurídico português que, ao lançar as bases para uma
possível reforma do direito civil português, fez constar em seus relatórios preliminares a necessidade de inserção
de um regime geral regulador do cumprimento defeituoso, eis que são aplicadas à hipótese as normas de compra
e venda de coisas defeituosas e defeitos na empreitada entendendo, parte da doutrina, existir uma lacuna no
Código Civil português acerca do regramento do cumprimento defeituoso (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2005).
124
A mora compreende a “inexistência” da prestação, a prestação “tardia”, a efetuada
“fora do lugar” adequado, ou sem a “forma” da convenção ou da lei. Além desses
casos, porém, e portanto além do âmbito do art. 394 do Código Civil, o contrato
pode ser lesionado com o cumprimento da prestação de “modo” imperfeito, seja
porque desatende ao exigível para as circunstâncias (casos de execução defeituosa
da prestação quanto ao modo), seja porque da prestação efetuada pelo devedor
resultam danos ao credor (violação positiva do contrato). O cumprimento imperfeito
pressupõe a existência da prestação, mas efetivada de modo contrário à lei ou ao
convencionado. Assim ocorre quando a prestação da obrigação de dar é concretizada
sem que a coisa entregue tenha a qualidade ou a quantidade previstas, quando o
fornecimento foi por período inferior ao determinado, ou quando o serviço é
executado com deficiência, e se incluem os casos de violação ao contrato de
fornecimento de serviços profissionais de médicos, advogados, engenheiros etc. [...]
Além da desatenção ao modo de cumprimento da prestação, devem ser aqui
referidas as infrações contratuais positivas, que também pressupõem o cumprimento
da prestação, igualmente de modo imperfeito, mas com imperfeição que não está
nela mesma, e sim no fato de causar ofensa ao interesse do credor.
Para Almeida Costa (2004, p. 987-988), o cumprimento defeituoso importa:
[...] um conceito residual, que abrange a execução defeituosa e a violação de deveres
acessórios ou laterais. Acrescenta-se à sua própria configuração, como elemento
individualizante, a tipicidade dos danos causados ao credor, visto que ele os não
sofreria se o devedor de todo não houvesse efectuado a prestação; dito de maneira
diversa, o incumprimento definitivo ou a mora, em si mesmos, não seriam
susceptíveis de produzir tais danos. Na verdade, tratando-se de danos derivados da
falta de cumprimento perfeito e não de danos específicos ocasionados pelo
cumprimento defeituoso, a situação reconduz-se a incumprimento definitivo ou a
mora.
O autor reconduz às hipóteses de mora, os danos decorrentes do cumprimento
imperfeito, se ainda possível remover a imperfeição, observando que o problema adquire
relevo quando ocorram danos típicos do cumprimento de deveres laterais, pelos quais o
devedor responderá, independente de, simultaneamente, ocorrer mora ou inadimplemento
absoluto (COSTA, 2004).
Araken de Assis (2004, p. 134), por seu turno, entende que a estrita hipótese de
adimplemento insatisfatório ou descumprimento da parte mínima, no direito brasileiro, revela-
se na “discrepância qualitativa e irrelevante na conduta do obrigado”.
Segundo o autor, o adimplemento ruim significa que “[...] o obrigado adimpliu,
embora – e isto define o problema – incorretamente” (ASSIS, 2004, p. 126, grifo do autor).
Na trilha de Costa, Assis (2004, p. 126, grifo do autor) aponta que “a divergência
na conduta devida não se concentra na identidade ou na quantidade da prestação, o que daria
lugar a inadimplemento parcial; o descumprimento recobre, no caso, os deveres laterais e
acessórios [...]”.
125
Creditando a Zitelmann a expressão “adimplemento ruim”, Pontes de Miranda
(2000, p. 284-295) sustenta que ela é mais ampla que “adimplemento defeituoso” e menos
abrangente do que “violação positiva do contrato”, que no seu entender envolveria “categorias
outras além do direito das obrigações”.
Não são poucos os autores que entendem que o adimplemento imperfeito
105
equivale ao não cumprimento dos deveres anexos. Nesse sentido, Vera Maria Jacob de
Fradera ([s.d.], p. 59):
[...] o adimplemento ruim, insatisfatório ou defeituoso é aquele, pois, em que houve
desatenção aos deveres denominados anexos ou secundários, decorrentes do
princípio da boa-fé, e que fazem parte do fim da atribuição do negócio jurídico,
constituem um plus”, com que esse fim se relaciona.
O critério para o cumprimento imperfeito passar a inadimplemento absoluto é o
mesmo utilizado para a mora, qual seja o da inutilidade da prestação para o credor, o que
deverá, como já foi dito neste trabalho, ser verificado objetivamente dos elementos fornecidos
pelo próprio contrato. De acordo com Aguiar Júnior (2004, p. 131-132):
Essa inutilidade é aferível do ponto de vista do interesse do credor, que funciona
como parâmetro tanta para a mora, em sentido estrito, como para os demais casos de
incumprimento imperfeito. [...] se de considerar as demais espécies de
incumprimento: para resolver, a falta deve atingir substancialmente a relação,
afetando a “utilidade” da prestação. Como a utilidade deriva da capacidade da coisa
ou do ato em satisfazer o interesse do credor, temos que a prestação inútil que
pode ser enjeitada e levar à resolução do contrato e mais perdas e danos é a feita
com atraso ou imperfeições tais que ofendam substancialmente a obrigação,
provocando o desaparecimento do interesse do credor, por inutilidade. Ao reverso,
quando, não obstante a mora, o cumprimento ainda é possível e capaz de satisfazer
basicamente o interesse do credor ou quando, apesar da imperfeição do
cumprimento, parcial ou com defeito, foram atendidos os elementos objetivos e
subjetivos a serem atingidos pelo cumprimento, diz-se que o adimplemento foi
substancial e atendeu às regras dos arts. 394, 395 e 389 do Código Civil, afastando-
se a resolução.
Reforça-se a idéia segundo a qual o cumprimento defeituoso, por afetar parcela
insignificante da prestação, não autoriza a resolução do contrato, uma vez que caracteriza
aquilo que o direito inglês convencionou chamar de “substancial performance”, instituto que
guarda estrita relação com a qualidade do adimplemento
106
. O cumprimento imperfeito,
105
Para Nuno Manuel Pinto Oliveira (2007, p. 98): “O conceito de cumprimento defeituoso é em geral entendido
de forma a abranger três tipos de casos: o cumprimento em termos não coincidentes com o ‘programa da
prestação’ dos deveres principais ou primários; o não cumprimento ou impossibilitação dos deveres secundários;
e, por último, a violação de deveres acessórios de conduta (ou ‘deveres laterais’)”.
106
“Inspirada na substantial performance do direito anglo-saxônico, tal construção surge com o propósito de
autorizar a avaliação de gravidade do inadimplemento antes de deflagrar a conseqüência drástica
126
segundo Rafael Marinangelo (2005), presume a realização da prestação, embora ocorra de
modo diverso do que foi pactuado.
De fato, no cumprimento defeituoso, em qualquer de suas formas, a resolução
contratual é considerada imprópria ou mesmo subsidiária, eis que diretamente dependente de
critérios como o interesse do credor, os meios de tutela adequados, bem como a natureza do
incumprimento (PROENÇA, 2006).
Ao se verificar um adimplemento bastante próximo ao resultado final esperado e,
tendo em vista o comportamento das partes, não nasce o direito a resolução do contrato, se
porventura essa pretensão venha configurar-se como abusiva. Ademais, a aplicação do
princípio da boa-fé objetiva mitiga o princípio de o cumprimento ser completo ou integral,
permitindo criar outra solução quando faltar apenas parcela diminuta ou pouco relevante.
Com isso, impede-se o exercício abusivo do direito de resolução, retirando do
credor a faculdade de se recusar a aceitar a prestação substancialmente completa. A teoria do
adimplemento substancial, segundo Eduardo Luiz Bussatta (2007, p. 159), consiste numa
aplicação prática não clássica do princípio da conservação do contrato, hipótese que prestigia
em grau máximo o negócio jurídico e os regramentos de vontade produzidos pelas partes na
avença. Cuida-se da possibilidade de “[...] rejeitar a resolução do nculo obrigacional sempre
que a desconformidade entre a conduta do devedor e a prestação estabelecida seja de pouca
relevância” (SCHREIBER, 2007, p. 138). O mesmo autor complementa:
De fato, a teoria do adimplemento substancial veio inicialmente associada a um
“descumprimento de parte mínima”, a um inadimplemento de scarsa importanza,
em abordagem historicamente importantíssima para frear o rigor do direito à
extinção contratual e despertar a comunidade jurídica para o exercício quase
malicioso de um direito de resolução em situação que formalmente não se
qualificava como adimplemento integral. Em uma leitura mais contemporânea,
contudo, impõe-se reservar ao adimplemento substancial um papel mais abrangente,
qual seja o de impedir que a resolução e outros efeitos igualmente drásticos que
poderiam ser deflagrados pelo inadimplemento – não venham à tona sem uma
ponderação judicial entre (i) a utilidade da extinção da relação obrigacional para o
credor e (ii) o prejuízo que adiviria para o devedor e para terceiros a partir da
resolução (SCHREIBER, 2007, p. 141).
consubstanciada na resolução da relação obrigacional. [...] A teoria do adimplemento substancial encontra
previsão expressa em numerosas codificações. A Convenção de Viena acerca da compra e venda internacional
de mercadorias exige para a resolução do ajuste uma ‘violação fundamental do contrato’ (arts. 49 e 64) e define
como fundamental aquela violação que ‘causa à outra parte um prejuízo tal que prive substancialmente daquilo
que lhe era legítimo esperar do contrato, salvo se a parte faltosa não previu este resultado e se uma pessoa
razoável, com idêntica qualificação e colocada na mesma situação, não o tivesse igualmente previsto’(art. 25).
No Brasil, o silêncio do legislador de 2002 não tem impedido o acolhimento da noção, com base, mais uma vez,
na boa-fé objetiva. De fato, afirma-se que, no âmbito da segunda função da boa-fé objetiva, consistente na
vedação ao exercício abusivo de posição jurídica, ‘o exemplo mais significativo é o da proibição do exercício do
direito de resolver o contrato por inadimplemento, ou de suscitar a exceção do contrato não cumprido, quando o
incumprimento é insignificante em relação ao contrato total’” (SCHREIBER, 2007, p. 138-139).
127
Em ntese, a “substancial performance” importa o adimplemento substancial ou
considerável da prestação, tornando irrazoável e desproporcional a resolução do contrato, em
razão de parcela mínima de descumprimento. Mais razoável e proporcional é sua manutenção,
tanto mais quando a prestação, na sua integralidade, ainda se revela plenamente útil à
satisfação do interesse do credor na relação, interesse que, na lição de Aguiar Junior (2004, p.
131-132):
[...] é uma relação posta entre o sujeito credor e a prestação prometida, servindo esta
a suprir necessidade ou carência; daí dizer-se que o credor está “interessado na
prestação do credor. A prestação que desatender a esse interesse, porque não tem
capacidade de suprir a necessidade do sujeito credor, é uma prestação inútil. É
preciso, portanto, estabelecer em que consiste o interesse a que a prestação está
ligada. Certamente, é o que decorre do próprio sinalagma, em que existem prestação
correspectivas em equivalência, podendo ser objetivamente estabelecido que
interesse a prestação prometida iria satisfazer, de acordo com a sua natureza e a
experiência comum. Os dados a considerar, portanto, são de duas ordens: os
elementos “objetivos”, fornecidos pela regulação contratual e extraídos da natureza
da prestação, e o elemento “subjetivo”, que reside na necessidade de o credor
receber uma prestação que atenda à carência por ele sentida, de acordo com a sua
legítima expectativa e a tipicidade do contrato. Não se trata de motivos ou desejos
que, eventualmente, o animavam, mas da expectativa resultante dos dados objetivos
fornecidos pelo contrato, por isso legítima.
Constatada, com base em dados objetivos fornecidos pelo contrato, a
impossibilidade de se remover atempadamente o defeito da prestação, o credor pode exigir as
perdas e danos.
A teoria do adimplemento substancial, portanto, impõe que se observe a
relevância do inadimplemento, de maneira a respeitar a importância social dos negócios
jurídicos, observação subscrita por Catalan (2007, p. 80):
É exatamente neste contexto que é construída a teoria do adimplemento substancial,
ao versar que, constatando-se no plano fático que a prestação tenha sido
desempenhada, de tal modo, que se aproxime do resultado final esperado, o direito à
resolução do negócio jurídico restará impedido, caracterizando-se tal pretensão
como violadora do princípio da boa-fé objetiva, autorizando, entretanto, o credor a
receber o porcentual não adimplido e também eventuais perdas e danos.
A rejeição sem propósito da prestação pelo credor, quando a mesma ainda pode
ser realizada, pode gerar sua própria mora e até a responsabilização por ato ilícito decorrente
de abuso de direito, figura regulada pelo art. 187 do CC/2002, como visto alhures.
Anderson Schreiber (2007, p. 142) um perfil atual da substancial performance
no Brasil:
128
[...] a importância do adimplemento substancial não está hoje tanto em impedir o
exercício do direito extintivo do credor com base em um cumprimento que apenas
formalmente pode ser tido como imperfeito como revelam os casos mais
pitorescos de não-pagamento da última prestação –, mas em permitir o controle
judicial de legitimidade no remédio invocado para o inadimplemento, especialmente
por meio do balanceamento entre, de um lado, os efeitos do exercício da resolução
(e outras medidas semelhantes) para o devedor e eventuais terceiros e, de outro, os
efeitos de seu não-exercício para o credor, que pode dispor de outros remédios
muitas vezes menos gravosos. Não quer isto significar a prevalência do interesse do
devedor sobre o interesse do credor ao cumprimento exato do avençado. Mesmo na
acepção mais restritiva e formal do adimplemento substancial, não se deixa de
reconhecer o descumprimento parcial, concedendo ao credor outros mecanismos de
tutela, como o ressarcimento das perdas e danos; veda-se, tão-somente, a extinção
do vínculo obrigacional como remédio mais drástico contra o devedor.
Vale ainda considerar que, tendo ciência do defeito somente após o recebimento
da prestação, o negócio pode ser invalidado, consoante às hipóteses previstas no art. 166 do
CC/2002, com a conseqüente caracterização do inadimplemento. Mas, o credor também pode
aceitar o recebimento da prestação defeituosa, obtendo o ressarcimento de seu prejuízo na
justa medida, a substituição da prestação ou o abatimento proporcional do preço. Mecanismos
que a lei consumerista também adota e que mais se comprazem com o adimplemento
substancial.
2.4 A polêmica violação positiva do contrato no Direito brasileiro
A doutrina alemã da violação positiva do contrato ou positive Vertragsverletzung,
também identificada pela sigla “pVV”, foi fruto do esforço desenvolvido por Hermann
Staub
107
visando ampliar os campos do inadimplemento não preenchidos pelas tradicionais
figuras da impossibilidade e da mora tratadas na BGB, de 1896 (GOMES, 1980).
O trabalho de Staub foi sistematizado em artigo doutrinário publicado em 1902,
sob o título Die positiven Vertragsverletzungen und ihre Rechtsfolgen
108
(SILVA, 2002).
A criação dessa nova figura de inadimplemento é atribuída à:
[...] evolução típica de um abandono, trabalhoso, mas contínuo, das posições da
pandectística, pois as hipóteses restritas e incompletas de cumprimento defeituoso
107
Silva (2007a) entende que a violação positiva do contrato foi um conceito inspirado na figura da anticipated
breach of contract da common law e recepcionado pelo ordenamento jurídico alemão.
108
“As violações positivas do contrato e suas conseqüências jurídicas”. Trabalho que foi republicado em 1904
com alterações realizadas por Staub e novamente editado em 1913 com complementos de Eberhard Muller
(CORDEIRO, 2007).
129
do BGB fundam-se numa generalização feita por Friedrich Mommsen a partir das
fontes romanísticas, nas quais a figura da impossibilidade definitiva estava limitada
à obrigação individual proveniente da stipulatio (WIEACKER, 2004, p. 598).
Cordeiro (2007) assevera que o trabalho elaborado por Staub teve, na época,
grande repercussão no ordenamento jurídico alemão, tanto na doutrina quanto na
jurisprudência. Para esta, havia a possibilidade de alargamento no caso concreto diante da
imprecisão da tese, embora existisse o risco de desvio para a figura da eqüidade.
Por outro lado, inúmeras foram as críticas doutrinárias. Merece destaque a crítica
dirigida à designação de uma figura única abarcada pela violação positiva do contrato, uma
vez que esta se mostrou insuficiente diante da multiplicação das modalidades nos casos
concretos. Posteriormente, foi definida como residual, com a técnica de exclusão das
hipóteses que não configurassem inadimplemento absoluto ou mora. Outra crítica negou a
existência de lacuna, ao entendimento de haver na BGB diversas disposições legais sobre a
matéria (CORDEIRO, 2007).
Embora alvo de algumas censuras, em especial de Henrich Stoll, a tese da
existência de outra hipótese de inadimplemento, desvinculada da mora e da impossibilidade,
foi confirmada, ainda que implicitamente, por seus críticos, eis que seria possível o seu
abandono com a criação de figuras alternativas (CORDEIRO, 2007).
Em verdade, a doutrina clássica já desenvolvia três diferentes hipóteses pelas qual
o devedor poderia descumprir a obrigação: a inexecução voluntária (equivalente da
impossibilidade), o cumprimento tardio (ou mora) e o cumprimento defeituoso (figura similar
ao adimplemento imperfeito no Brasil).
Todas essas formas clássicas importavam violações negativas do crédito, vale
dizer, nelas incorriam o devedor que não cumprisse o que deveria cumprir, ou não cumprisse
total ou pontualmente, ou ainda, não o fizesse de maneira correta, isto é, cumprisse com
defeito (GOMES, 1980).
A contribuição de Staub consistiu em acrescentar a essas três, uma quarta hipótese
de inadimplemento, que diferente das demais, apresentou-se como uma violação positiva do
crédito
109
, na qual incorreria o devedor que cumprisse o que não deveria cumprir ou que
agisse quando deveria omitir-se (GOMES, 1980). Com efeito:
109
Susana Navas Navarro (2004) registra a influência da teoria da violação positiva do contrato sobre os autores
espanhóis destacando Castán Tobenãs, o qual distinguiu entre incumprimento próprio ou absoluto e
incumprimento impróprio ou relativo.
130
Em 1902, dois anos após a entrada em vigor do BGB, Staub reconheceu no então
novo Código a existência de lacunas no regramento do inadimplemento: para além
do inadimplemento absoluto (chamado de impossibilidade) e da mora, existiriam
outras hipóteses não reguladas, apesar de igualmente configurarem inadimplemento.
Para ele, tanto o inadimplemento absoluto quanto a mora correspondiam a violações
negativas do crédito: no primeiro, a prestação não é realizada; no segundo, a
prestação não é realizada no momento adequado. as hipóteses por ele elencadas
acarretariam descumprimento obrigacional exatamente porque a prestação foi
realizada. Por isso, para diferenciar esses casos dos anteriores, entendeu chamar
essas hipóteses de violações positivas do contrato (SILVA, 2007c, p. 43, grifo do
autor).
Para melhor compreensão da figura jurídica desenvolvida por Staub, Gomes
(1980, p. 159, grifo do autor) defende a distinção entre dever de omissão principal e dever de
omissão secundário, asseverando que:
Quando a obrigação de não-fazer é o núcleo da relação jurídica, a violação do dever
de omissão implica inexecução propriamente dita do contrato. O ato praticado pelo
devedor configura inadimplemento da obrigação. Por outras palavras: nas
obrigações negativas, o dever de omissão é principal, ou independente, como
preferem qualificá-lo. Mas nas relações obrigacionais que m como núcleo uma
obrigação positiva, e contêm dever de omissão secundário, a infração desse dever
não pode ser considerada, a rigor, inexecução, visto que esta se caracteriza pelo
inadimplemento da obrigação nuclear. Não se identificam, positivamente, as duas
infrações, quer no modo por que se consumam, quer nas conseqüências sobre a
própria estrutura do vínculo. A infração de um dever de omissão secundário, sempre
cometida por uma ação, pode não implicar ruptura do vínculo, enquanto o
inadimplemento da obrigação nuclear determina necessariamente a incidência da
mora e, ordinariamente, a extinção do contrato. Nada impede, com efeito, que as
partes estipulem multa como corretivo a infrações contratuais positivas, evitando,
por esse modo, que sejam causa determinante do rompimento do vínculo. Para a
inexecução propriamente dita do contrato, poderão, quando muito, estipular cláusula
penal, liquidando, previamente, o dano proveniente de eventual inadimplemento da
obrigação nuclear.
A par da distinção que apresenta entre os deveres de omissão, o autor em
referência acaba por conceber a aplicação da teoria da violação positiva do contrato no âmbito
do descumprimento de dever principal, quando o núcleo da relação jurídica for uma obrigação
de não-fazer.
Assim é que, ao aludir ao Parágrafo único do art. 1.092 do CC/1916, Gomes
(1980, p. 160, grifo do autor) menciona a existência de dever de omissão “previsto no
contrato” cuja violação ensejaria a possibilidade de resolução, caracterizando as bases da
“nova” causa de execução:
Dispõe, com efeito, o parágrafo único do art. 1092: a parte lesada pelo
inadimplemento pode requerer a rescisão do contrato com perdas e danos. Dado que
a violação positiva do crédito constitui inadimplemento de um dever de omissão,
previsto no contrato, a infração autoriza a outra parte a pedir a resolução. No
131
preceito que assegura essa faculdade encontra-se, pois, o fundamento da nova causa
de inexecução. Tal fundamentação é tão evidente, que se sustenta a desnecessidade
de se destacar a categoria construída por Staub nos sistemas jurídicos que
estabelecem, como medida de proteção, a cláusula geral de resolução do contrato.
Conquanto, porém, proceda a observação, nem por isso se deve afastar, por inútil, a
quarta causa de inexecução, porquanto não pode ser reduzida a qualquer das três
tradicionalmente reconhecidas. Todas são negativas, ao passo que ela é positiva,
apresentando-se, por conseguinte, sob forma que lhe empresta feição inconfundível
por seus traços próprios. Há de se tê-la, assim, como figura independente.
Sem se preocupar em estabelecer contornos gidos para o instituto, Staub (apud
SILVA, 2002, p. 218) reuniu os casos de violação positiva do contrato em cinco grandes
grupos: “(1) o descumprimento de obrigações negativas” (os deveres de omissão principais
mencionados por Orlando Gomes); “(2) o negligente cumprimento de deveres de prestação;
(3) o mau cumprimento de obrigações duradouras, pondo em risco em risco os fins do
contrato; (4) o cumprimento de deveres laterais” (ou deveres de omissão secundários, ainda
na expressão de Gomes) “e (5) a recusa antecipada do devedor de cumprir o devido”.
No primeiro grupo, estaria o descumprimento dos “deveres de omissão”, não
previstos na Lei alemã, que somente tratava dos casos em que a mora se transformaria em
inadimplemento absoluto depois do descumprimento pelo devedor do prazo convencionado
para o cumprimento da obrigação. Exemplifica-se com o dever de um empresário não fazer
concorrência a outro, relativamente à comercialização de determinado produto, num certo
período de tempo (SILVA, 2002).
No segundo grupo, Staub (apud SILVA, 2002) sinaliza com a existência de
deveres de prestação que, cumpridos no prazo ajustado, mas de modo inicialmente negligente,
acarreta prejuízos a um dos contratantes, embora depois, também no prazo, o dever de
prestação seja devidamente realizado. Exemplo citado é o do sócio que apresenta balanço
inicial fraudado aos demais. Com base nesse balanço os sócios tomam importantes decisões e
comprometem a sociedade, após o que o sócio encarregado apresenta finalmente o balanço
correto.
No terceiro grupo, do mau cumprimento de obrigações duradouras, quando em
determinado período de um contrato de prestação continuada um dos contratantes e em
risco os fins do negócio, deixando de fornecer produto da mesma qualidade do que sempre
forneceu. Caso da cervejaria que após entregar cerveja de boa qualidade durante anos, em
dado momento fornece cerveja azeda para o estabelecimento adquirente, que perde sua
clientela (SILVA, 2002).
O quarto, formado pelas hipóteses de descumprimento de deveres laterais, que
seriam os deveres essencialmente ligados à proteção do patrimônio da contraparte e não aos
132
fins diretos do contrato. Ao que vale citar a venda de material contendo composto explosivo,
sem especificação, acarretando danos para o comerciante que o pôs à venda sem o
indispensável cuidado, uma vez que não teve a necessária informação (SILVA, 2002).
Por último, o grupo relativo à recusa antecipada do devedor em adimplir,
obrigando um dos contratantes a se acautelar e agir no sentido de mitigar ou impedir os
efeitos do inadimplemento anunciado. Caso do adquirente de lotes que se organiza para
revenda, mas tem conhecimento de que o alienante não concluirá a operação (SILVA, 2002).
Todos esses casos agrupados por Staub configurariam hipóteses de
inadimplemento incapazes de serem enquadradas como inadimplemento absoluto e mora,
surgindo, posteriormente, estudos doutrinários que também distinguiram adimplemento
imperfeito e violação positiva do contrato, ocorrendo esta última, com geração de danos
específicos e distintos dos acarretados pela prestação realizada de maneira imperfeita.
Sobre essa sutil distinção, Silva (2002, p. 226-227, grifo do autor) esclarece:
[...] faz-se fundamental a existência de danos típicos, ou seja, danos não comuns às
hipóteses de mora e de impossibilidade. É o que ocorre com a forragem entregue
com venenos, que acaba matando os cavalos do adquirente ou da entrega de maças
bichadas que acabam contaminando as demais maças do adquirente, ou ainda do
dentista que, na extração do dente, acaba comprometendo culposamente a arcada.
Em qualquer um desses casos, o prejuízo é distinto daquele decorrente da não-
entrega ou da entrega tardia do bem ou da não-realização ou realização tardia do
fato. De outra parte, o interesse do credor não mais se volta à realização do objeto
da prestação (nova entrega da forragem, nova entrega do devido lote de maças, a
extração do dente), mas para a sanação dos danos decorrentes da prestação. Por isso,
a doutrina alemã tem o costume de nomear esses danos como danos acompanhantes
[Begleitschäden] ou danos decorrentes de defeitos [Mängelfolgenschäden].
Não prevista inicialmente na BGB, a doutrina da violação positiva foi
recepcionada pela jurisprudência, e bem desenvolvida na Alemanha desde o início do século
passado. A reforma da BGB de 2001/2002 colheu dessa experiência jurídica desenvolvida ao
longo do século XX e tratou da questão relativa ao terceiro gênero de inadimplemento lato
sensu, embora sem fazer expressa menção ao instituto.
Segundo a nova Lei civil germânica:
§ 280/1 comete ao devedor que viole um dever proveniente de uma relação
obrigacional (qualquer que ela seja) o dever de indemnizar;
110
110
Para Nordmeier (2007, p. 152-153), o § 280 da BGB é o coração do novo direito das perturbações de
deveres”, de modo que “a pretensão à indenização sempre deve basear-se neste parágrafo, eventualmente em
conjunto com outras normas”. O autor enumera quatro pressupostos para a responsabilidade por violação de
dever, quais sejam: existência de relação obrigacional válida, violação de deveres (dentre os quais se distinguem
os relacionados à prestação e os deveres que estão fora da relação obrigacional), dano causado pela violação e
culpa.
133
§ 324 permite, perante a violação de um dever proveniente de relação obrigacional
(e seja, ele, também, qualquer um) a resolução do contrato pelo credor
(CORDEIRO, 2004, p. 114).
Esses e outros preceitos, consoante Cordeiro (2004, p. 114), trazem o instituto da
violação positiva do contrato para o âmbito da BGB, registrando que:
A técnica analítica adoptada pelo reformador de 2001/2002 permitiu encontrar uma
solução ágil e natural para o problema. Tem ainda interesse referenciar que a
remissão para a violação de um dever, “no sentido do § 241/2 da lei nova” permite
dar corpo à tese da doutrina unitária dos deveres de proteção (e outros), propugnada
por Canaris desde a década de 60 do século XX: as conseqüências legais serão,
ainda, as mesmas, operando-se qualquer necessária diferenciação no momento da
realização do Direito
111
.
Atualmente, a partir de estudos mais amplos acerca do instituto, afirma-se que a
violação positiva do contrato tem como fonte a cláusula geral da boa-fé objetiva e que o
campo a ela reservado é o do descumprimento dos deveres laterais ou anexos de conduta
112
,
que também englobaria o mau cumprimento de deveres de prestação, quando geradores de
danos distintos dos causados pela mora e pelo inadimplemento. Para Silva (2007c, p. 45-46,
grifo do autor):
Esses deveres não dizem respeito diretamente à realização da prestação, mas sim ao
melhor adimplemento, vale dizer, aquele que atinja mais perfeita e eficazmente o
resultado esperado sem causar danos à outra parte e a terceiros. Entre esses deveres
laterais encontram-se os deveres de proteção (proteção das pessoas das partes, dos
seus próximos, assim como dos seus respectivos patrimônios). Havendo
descumprimento desses deveres (o meio entregue ao devedor para executar a
prestação era defeituoso e, por isso, o devedor sofreu danos), a violação positiva do
contrato é chamada a atuar também no direito brasileiro, visto inexistir outra
ferramenta conceitual que abarque a hipótese [...]. Fundamenta-se a figura
inicialmente na boa-fé objetiva, de aplicação geral no direito obrigacional (arts. 422,
187). É da boa-fé que se originam, ao menos mediatamente, os deveres laterais,
mesmo quando possuam uma expressa previsão legal ou contratual.
Restaria, assim para o enquadramento nas formas de incumprimento já conhecidas
(em especial, o inadimplemento absoluto e a mora) a violação dos deveres de prestação,
independentemente de serem estes compostos por uma obrigação positiva ou negativa.
111
§ 241/2 da BGB: A relação obrigacional pode obrigar, conforme o seu conteúdo, qualquer parte com
referência aos direitos, aos bens jurídicos e aos interesses da outra.
112
Tartuce (2007b, p. 48) menciona que “sobre a violação positiva do contrato foi aprovado o Enunciado n. 24
na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, pelo qual: ‘Em virtude do princípio da boa-fé,
positivado no art. 422 do NCC, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento,
independentemente de culpa’”.
134
É que se a violação positiva do contrato, além dos deveres anexos, também
abarcar os deveres de omissão que constituem o núcleo da relação obrigacional, o
desenvolvimento do instituto acabará ampliado ao extremo, ultimando por adentrar em campo
próprio do inadimplemento absoluto ou da mora.
Deve, portanto, a violação positiva cuidar dos deveres anexos, cujo
descumprimento, em virtude de ação culposa, inviabilize a realização do projeto contratual.
São os chamados deveres laterais decorrentes da boa-fé que compõem o campo de aplicação
da teoria da violação positiva do contrato.
Desenvolvendo as “virtualidades internas” do inadimplemento no direito
brasileiro a partir dos desdobramentos da incidência da boa-fé objetiva sobre a relação
obrigacional, Silva (2002, p. 28-29, grifo do autor) sustenta que o modelo obrigacional
brasileiro, apesar de menos rigoroso que o alemão, comporta a aplicação da doutrina:
No caso brasileiro, a análise e a utilização da figura também são relevantes, em que
pese ao nosso modo próprio de regulação da eficácia obrigacional. É bem verdade
que a doutrina da violação positiva do contrato surge historicamente sob a égide do
ordenamento alemão, rigoroso na delimitação de algumas figuras, como as noções
de impossibilidade e de mora, do mesmo modo que é verdadeiro que o direito
brasileiro escapa deste rigorismo. Porém, apesar dessas importantes diferenças, se
for tomada cada uma das eficácias da doutrina da violação positiva do contrato e se
tentar aplicá-las ao direito brasileiro, ver-se-á que, apesar das diferenças entre os
ordenamentos, um importante campo de aplicação da figura da violação positiva
do contrato, que se expressa nos casos de descumprimento dos chamados deveres
laterais.
Com efeito, o CC/2002 é menos rigoroso que a BGB ao tratar do inadimplemento,
a começar da maior flexibilidade conceitual dada a alguns institutos, entre os quais, a mora,
que no Brasil, refere-se não ao fator tempo, mas também ao incumprimento da obrigação
no lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer, segundo disposição do atual art. 394 do
Código.
Esse modelo dilargado permite enquadrar como hipótese de mora tudo aquilo que,
inicialmente, não se consiga definir como inadimplemento absoluto, circunstância que, deve-
se admitir, dificulta o desenvolvimento de um terceiro gênero de inadimplemento no direito
nacional.
Contribui tanto mais para essa situação, o tratamento dado pelo direito brasileiro
ao tema da responsabilidade civil encarada sempre como principal efeito do inadimplemento,
inclusive, no âmbito do direito do consumidor, onde as regras sobre o fato do produto ou do
serviço também atuam no âmbito da responsabilidade civil, distinguindo-se dos deveres
laterais, que incidem especificamente sobre a relação contratual.
135
Esclarecendo sobre o tema Silva (2002, p. 242-244, grifo do autor) que:
A simples previsão legal da responsabilidade pelo fato do produto ou serviço não
tem o condão de, por exemplo, sustentar a resolução contratual, ou de dar ensejo à
oposição do contrato não cumprido. Atua ela somente no campo indenizatório,
campo que, algumas vezes, sequer é tocado pelos deveres laterais. Tome-se o caso
do pintor contratado para pintar as paredes internas de um determinado edifício. Não
obstante realizar o serviço para o que foi contratado de forma exemplar, passa
constantemente a importunar os moradores, solicitando dinheiro emprestado,
olhando de alguma forma ameaçadora as jovens do prédio e sendo grosseiro com as
crianças. Afora um eventual dano extracontratual, não se pode corretamente afirmar
que haveria, na hipótese, motivo para a responsabilização civil do referido pintor.
Sobram, no entanto, motivos para romper-se o contrato por descumprimento por
parte do devedor. Da mesma forma, mesmo ante a ocorrência de danos, encontram-
se casos em que a distinção se torna nítida. O devedor (eventual fornecedor), ao
efetuar o seu serviço cai da escada a ele entregue pelo credor (eventual consumidor)
para efetuar o serviço em decorrência de encontrar-se solto, há muito, um dos
degraus; um dos contraentes (o antigo proprietário do bem) não entrega à outra parte
os documentos vinculados ao objeto da prestação necessários à extinção de conflitos
possessórios relativos exatamente a esse objeto, causando-lhe uma série de
problemas e contratempos. Em todos esses casos, danos que, além de poderem
gerar outros efeitos contratuais, serão passíveis de indenização, não por serem
tutelados pelas regras do art. 12 e seguintes do CDC, mas sim por concretizarem
descumprimento de deveres laterais. Deste modo, resta clara a distinção de aplicação
e de concepção existente entre os deveres laterais e os deveres decorrentes dos
artigos 12 e seguintes do digo consumerista, razão pela qual se pode aceitar a
necessidade da utilização (ou da introdução) da figura da violação positiva do
contrato para os casos de descumprimento de deveres laterais, como concluído
acima. Mesmo ante as mais recentes normatizações do direito brasileiro, esta terceira
via de inadimplemento não perde em significado operativo, mostrando-se, ao
contrário, como integrante fator destinado à proteção dos interesses globais das
partes.
Apartando-se do campo específico dos vícios, o descumprimento de deveres
laterais também não pode ser confundido com hipóteses de mau cumprimento ou de
adimplemento imperfeito, que se mantém diretamente vinculado aos interesses do credor na
prestação.
O descumprimento de deveres laterais, ao contrário, não tem vinculação direta
com os interesses do credor na prestação. Vale dizer, os deveres de prestação, eventualmente,
podem até ser cumpridos, sem que os deveres laterais tenham sido na mesma medida. Não
sendo caso de inadimplemento absoluto ou mora, seria hipótese de violação positiva do
contrato
113
. Isso porque:
113
A experiência jurisprudencial brasileira na aplicação do instituto é assim apresentada por Anderson Schreiber
(2007, p. 137): “Sem embargo de suas diversas acepções, a noção de violação positiva do contrato, em seus
contornos fluidos, vem sendo aplicada pelas Cortes brasileiras exatamente naquelas hipóteses em que, embora se
verificando um comportamento do devedor correspondente à realização da prestação contratada, não se alcança,
por alguma razão, a função concretamente atribuída pelas partes à regulamentação contratual. Com efeito, a
jurisprudência brasileira reconhece a configuração de violação positiva do contrato em situações como a de
‘instalação de piso laminado’ com defeito caracterizado pelo ‘afundamento de miolo’, ou ainda a execução
de contrato de seguro por ‘demora excepcional na realização do conserto de veículo sinistrado’”.
136
Como sabido, a obrigação não é simplesmente dever de alguém frente a outro, mas,
muito mais do que isso, é relação, e relação pautada por critérios de cooperação. A
obrigação se justifica como estrutura jurídica na medida em que os interesses do
credor, vale dizer, o reflexo das suas necessidades juridicamente legítimas, são
satisfeitos. No entanto, disso não decorre que somente os interesses do credor sejam,
ou devam ser, observados. A proteção do devedor durante o processo obrigacional
(proteção física, de sua honra, de seu patrimônio etc.), por exemplo, é também
devida obrigacionalmente, ainda que, estruturalmente, esse dever não se confunda
com a dos deveres de prestação [...] (SILVA, 2007c, p. 31, grifo do autor).
A constatação destes casos também como hipóteses de incumprimento permite
alargar a base do inadimplemento e conceber efeitos outros, além do mero dever de indenizar,
como a resolução por incumprimento de deveres laterais e a possibilidade da exceção do
contrato não cumprido. Tal é o entendimento de Silva (2007c, p. 47, grifo do autor) ao afirmar
que: “o descumprimento de deveres laterais poderesultar na resolução ou na oposição da
exceção do contrato não cumprido, conforme a importância relativa do fato para o contrato”.
Por derradeiro, não tendo como fonte a vontade das partes (ao contrário do que
sucede com os deveres de prestação), mas a cláusula geral da boa-fé objetiva, os deveres
laterais ou anexos de conduta dirigem-se não apenas à expectativa do credor na relação, mas a
de ambos os sujeitos da relação obrigacional
114
, esclarecendo Silva (2002, p. 102-103) que:
A proteção dos contratantes, nesses casos, é decorrência direta do fato de que as
partes se relacionam contratualmente e não do objetivo das partes na relação. Por
isso, a posição ativa ou passiva das partes na relação obrigacional não tem
relevância para a subjetivação desses deveres.
Conclui-se que, atualmente, não basta adimplir o contrato. No contexto de uma
relação obrigacional complexa dotada de deveres de prestação e deveres laterais de conduta, é
preciso adimplir a avença de maneira integral com a total satisfação dos interesses e deveres
laterais envolvidos na prestação, sob pena de surtirem todos os efeitos do inadimplemento,
como perdas e danos, o direito de resolução e, também, a possibilidade de oposição do
contrato não cumprido.
114
Como se vê do art. 422 do CC/2002, com a seguinte redação: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim
na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Portanto, a lei emprega o
substantivo no plural: “os contratantes”, ou seja, todos os sujeitos da relação.
137
CAPÍTULO 3 – A EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO
Sendo o contrato um negócio jurídico bilateral que nasce de um acordo de
vontades, onde ambas as partes atribuem-se obrigações, conatural que prevaleça a regra
segundo a qual nenhum dos contratantes pode, antes de cumprida a sua obrigação, exigir o
implemento da obrigação do outro.
Essa correlação das prestações constitui característica marcante do contrato
sinalagmático, no âmbito do qual se torna possível argüir a exceção do contrato não cumprido
prevista no art. 476 do CC/2002.
A regra é conhecida de outros ordenamentos, como os suíço, espanhol, francês,
português, argentino e venezuelano, entre outros.
No direito alemão encontra-se regulada nos §§ 320 e 321 da BGB pós-reforma,
nos quais se estatui que:
Quien está obligado por un contrato bilateral puede negar la prestación que le
incumbe hasta la efectuación de la contraprestación, a no ser que esté obligado a
cumplir la prestación anticipadamente. Si la prestación ha de realizarse para varios,
puede ser negada a cada uno la parte a él correspondiente hasta la efectuación de
toda la contraprestación. No se aplica la disposición del parágrafo 273, parágrafo 3º.
Si ha sido cumplida parcialmente la prestación por una parte, la contraprestación no
puede ser negada, siempre que la negativa, según las circunstancias, en especial a
causa de la proporcional insignificancia de la parte atrasada, fuese contraria a la
fidelidad y la buena fe. El que se ha obligado por un contrato bilateral a cumplir
anticipadamente, puede negar la prestación que le incumbe cuando después de
celebrarse el contrato se ponga de manifiesto que su pretensión a la contraprestación
peligra por la escasa capacidad de la contraparte. El derecho a denegar la prestación
decae cuando se efectúe la contraprestación o se preste garantía para ella. El
obligado a cumplir en primer lugar puede establecer un plazo razonable dentro del
cual la contraparte deba efectuar la contraprestación inmediatamente a la prestación
del primero o le preste una garantía a su elección. Una vez transcurrido el plazo sin
éxito, el obligado a cumplir en primer lugar puede resolver el contrato (MORENO,
2004, p. 16-17).
Por sua vez, o Código Civil italiano, em seu art. 1.460, assim regula a exceptio:
Nei contratti con prestazioni corrispettive, ciascuno dei contraenti può rifiutarsi di
adiempiere la sua obbligazione, se l’altro non adempie o non offre di adempiere
contemporáneamente la propria, salvo che termini diversi per l’adempimento siano
stati stabiliti dalle parti o risultino dalla natura del contratto. Tuttavia non può
rifiutarsi l’esecuzione se, avuto riguardo alle circostanze, il rifiuto è contrario alla
buona fede (MORENO, 2004, p. 18).
Sobre o fundamento do instituto, Bianca (1994, p. 344) complementa:
138
L’eccezione d’inadempimento ha carattere autonomo, essa constituisce cioè un
rimedio autonomamente esercitabile in funzione del intresse del creditore a non
eseguire il contratto a fronte dell’inadempimento dell’altra parte. L’interesse del
creditore tutelato con l’eccezione d’inadempimento si specifica come interesse a non
privarsi della prestazione senza avere il vantaggio della contraprestazione cioè a non
essere messo in una situazione di desiguaglianza rispetto alla controparte.
María Cruz Moreno (2004, p. 19) informa que entre os princípios de direito dos
contratos elaborados pela Comissão Européia, o art. 9.201 estabelece a seguinte regra sobre a
exceção do contrato não cumprido:
[...] una parte que está obligada a cumplir al mismo tiempo que la otra o después de
ella, puede suspender el cumplimiento hasta que la otra parte haya cumplido u
ofrezca hacerlo. La suspensión será completa o en parte, según resulte razonable en
atención a las circunstancias que concurran en cada caso. Del mismo modo, se podrá
suspender el cumplimiento, en el supuesto la contraobligación esté aplazada, pero
quede claro que resultará incumplida cuando llegue a nacer.
Oriunda do pensamento canonista do medievo, a exceptio non adimpleti
contractus foi formulada a partir da idéia de condição suspensiva tácita inerente à execução
dos contratos, que pode ser acionada por qualquer um dos sujeitos para obrigar o outro a
cumprir com a fé da palavra empenhada.
E é na fides que se projeta a força do contrato e sobrevém a regra de que: “quem
não cumpre com a de sua palavra, não pode invocar essa mesma a seu favor” (non
servanti fidem non est servanda), velha máxima advinda do direito canônico
115
, com base na
qual se reconhece o instituto da exceção do contrato não cumprido e seu largo campo de
aplicação nas relações contratuais (SCAVONE JUNIOR, 2007).
Algumas teorias serviram de fundamentação para a exceção do contrato não
cumprido. Entre as mais importantes, a teoria da causa, concebida pelos canonistas e depois
desenvolvida pelos franceses. Segundo essa teoria, a causa do contrato bilateral origem às
115
A origem da exceção do contrato não cumprido, apesar de envolver alguma controvérsia, é majoritariamente
reputada ao direito canônico. Scavone Junior (2007, p. 159-160, grifo do autor) assevera que “o instituto
encontra sua origem no direito canônico, por meio do adágio ‘non servanti fidem, non est fides servanda’, em
razão do qual Bartolo e os pós-glosadores extraíram as conclusões do Digesto, explicando a possibilidade de
recusa ao cumprimento das obrigações, construindo a teoria da exceção do contrato não cumprido, cuja
configuração termina no século XV, refletindo, depois disto, em regras claras dos arts. 320 e seguintes do
Código alemão e nos arts. 82 e 83, do Código suíço”. Pereira (2007, p. 236) reflete sobre o debate nos seguintes
termos: “Frederic Girard, romanista exímio, defende com calor a tese de sua origem romana. Em oposição,
Cassin, em monografia especializada, nega esta genealogia, e atribui aos canonistas a sua elaboração. Se é certo
que, nos contratos bonae fidei, ao contratante acionado pelo que não havia executado a sua parte se reconhecia
uma exceptio doli, que seria o germe da exceptio non adimpleti contractus, certo é, também, que a existência de
uma correlação de dependência funcional entre as prestações recíprocas nos contratos bilaterais não apareceu
senão no século II de nossa era, o que leva a concluir que, como instituto desenvolvido dotado de efeitos
específicos, a exceptio non adimpleti contractus se deveu à elaboração dos canonistas, e não aos jurisconsultos
romanos”.
139
obrigações, em que uma é a razão de ser da outra, rectius, a execução de uma é a razão de ser
da outra. O cumprimento de uma obrigação justifica a outra. A contrario sensu, o
descumprimento de uma torna a outra desprovida de causa.
A teoria da conexão entre enriquecimentos patrimoniais pretende explicar, além
da própria exceptio, institutos como a resolução por inadimplemento e a regra dos riscos
contratuais. Informa Miguel Maria de Serpa Lopes (1959) que para essa teoria, cujo pai foi
Gino Gorla, o vínculo de dependência encontra-se nas prestações e sua razão justificadora
reside no conceito de que, desaparecendo uma das prestações, desaparece igualmente a
justificação estática do enriquecimento produzido no patrimônio de um dos contratantes.
A exceção do contrato não cumprido, segundo Gorla (apud LOPES, 1959),
surgiria como uma modalidade de tutela preventiva do enriquecimento sem causa, com uma
afirmação do princípio da comutatividade, pelo qual o enriquecimento, enquanto prestação
executada, pode permanecer com estabilidade no patrimônio de uma pessoa, se tiver outro
enriquecimento como contrapartida.
A teoria do sinalagma funcional, em contraposição ao sinalagma genético de que
fala a teoria da causa, alude especificamente à conexão existente entre as obrigações no
momento de sua execução, gerando uma situação que permite fazer operar os remédios
sinalagmáticos, como a exceptio.
Picard e Prudhomme (apud LOPES, 1959), por sua vez, desenvolvem a teoria do
equilíbrio das prestações, por meio da qual propugnam diferentes categorias de resolução: a) a
das obrigações essenciais, em que a resolução nasce da ruptura do equilíbrio que envolve a
inexecução de uma das obrigações essenciais de um contrato sinalagmático; b) a das
obrigações acessórias, cuja inexecução só faz desaparecer o contrato quando tem objetivo, um
fim prático subordinado ao elemento específico do contrato; e c) a da sanção da obrigação
geral de boa-fé que envolve toda espécie de contrato e remete para análise judicial da questão
de ordem fática geradora da violação.
Diversas outras teorias, ainda que menos elaboradas, procuram fundamentar a
exceção do contrato não cumprido, todas na linha da interdependência entre as prestações.
Mas é em Lopes (1959, p. 190) que se encontra a explicação que se assenta nas teorias de
Gorla, Picard e Prudhomme:
Não dúvida que a teoria da equivalência das prestações aliada à idéia de um
enriquecimento indevido são explicações razoáveis do mecanismo da resolução dos
contratos ou da exceção de inexecução. Quer isto dizer que somos partidários da
teoria da equivalência. Tudo quanto nos resta explicar é em que sentido deve ser
entendida a noção de equivalência. [...] a noção de equivalência, de par
140
geminadamente com a de enriquecimento sem causa, estão ambas formando a
conseqüência natural, lógica e jurídica, de que o não podermos bastar a nós mesmos
força-nos, na grande maioria dos casos, a estabelecermos pactos, mediante prestação
e contra-prestação, com uma manifestação normal de um elemento ínsito à nossa
própria vida humana, que paralisaria se não fora esse fluxo e refluxo de riquezas
intercambiadas.
Ao corrente de sua fundamentação teórica, importante examinar os pressupostos,
natureza, instrumentalização, efeitos e demais aspectos da exceptio non adimpleti
contractus
116
, de modo a revitalizar e ampliar a utilização desse instituto com apoio num novo
direito privado, funcionalizado e de perfil constitucional, propiciando assim encontrar novas
regras de equilíbrio para o direito dos contratos.
3.1 Pressupostos
O exercício da exceptio non adimpleti contractus está condicionado à existência
concomitante de alguns requisitos ou pressupostos, que doravante se passará a examinar
isoladamente, a fim de se verificar em que medida influenciam na configuração geral do
instituto e até que ponto foram absorvidos pelos diferentes ordenamentos, em especial pelo
legislador do Código Civil brasileiro de 2002.
116
Entende Aguiar Junior (2004, p. 222-223) que: “a exceção não é um instrumento de negação do direito de
crédito pleiteado pelo autor da ação, antes o pressupõe, mas a pretensão e a ação a ele ligadas ficam encobertas
ou temporariamente paralisadas por um obstáculo levantado pelo réu, na exceção. Contudo, o direito de crédito,
que existia, continua existindo, tanto que o autor poderá obter a condenação do demandado e receber a prestação
pleiteada, tão logo superado o impedimento argüido na exceção. Na exceptio non adimpleti contractus, o réu
poderá vir a ser condenado ao adimplemento, a se realizar assim que o credor cumprir a sua prestação; o réu
excipiente não se nega à prestação, apenas não estava obrigado a atendê-la antes do cumprimento do autor. No
entanto, bem diferente ocorre na ação de resolução. Alegando o incumprimento do credor, o réu não está
querendo apenas encobrir, para afastar temporariamente, o direito extintivo do autor, mas negar de todo a própria
existência desse direito, porque um dos requisitos da resolução é não ser o credor inadimplente. Logo, a alegação
de incumprimento do autor não é só exceção, é defesa que ataca o próprio direito alegado do autor. Ademais, não
é da simples oferta de cumprimento do credor, formulada diante da defesa do devedor, ou mesmo de seu efetivo
cumprimento, que nasce ao autor o direito de resolver. É que o fundamento de seu pedido não se compõe com a
sua saída do estado de inadimplência. Se o juiz acolher a oferta do credor em cumprir, aceitando, assim, a defesa
do réu, não pode desde logo decretar a resolução, porque, então, surgiu ao devedor a oportunidade para efetuar a
sua prestação. E se o juiz não pode resolver, também não pode condenar o réu ao adimplemento, porque a ação
é, em princípio, apenas para a resolução”.
141
3.1.1 A relação obrigacional sinalagmática
A palavra grega synallagma foi primeiramente empregada por Labeão para
traduzir a palavra contractum, expressão originariamente indicativa apenas de reciprocidade
de consentimento. Mais tarde, por interpolação dos compiladores, enunciado também
representativo do acordo de vontades, da convenção geradora de obrigação
117
(LOPES, 1959).
Antonio Junqueira de Azevedo (2004, p. 170) leciona que o sinalagma é uma
“estrutura imanente ao contrato que liga prestação e contraprestação; ele estabelece um
‘programa’ para as partes, que é tanto mais evidente quanto mais prolongada no tempo for sua
execução”. No decorrer da relação obrigacional, as partes assumem riscos programados para o
futuro.
Inúmeras teorias buscaram apontar o elemento caracterizador da
sinalagmaticidade dos contratos
118
, sendo classificadas em teorias objetivas e subjetivas.
Para as teorias objetivas, o traço marcante é a onerosidade, característica
fundamental da bilateralidade
119
. Para as teorias subjetivas, a causa determinante da obrigação
é a vontade de as partes obterem a execução da prestação prometida, conforme entendimento
de Lopes (1959).
Reconhecendo a importância da vontade porém, não como elemento
caracterizador do sinalagma –, R. Cassin (apud LOPES, 1959) admite como legítima, uma
recusa temporária à execução de uma prestação, desde que as obrigações recíprocas tenham
por fundamento uma mesma relação sinalagmática e estejam ligadas por um elo de conexão
especialmente desejado pelas partes.
As duas condições essenciais caracterizadoras do vínculo sinalagmático seriam a
“comunidade de origem” e a “reciprocidade”, aliadas à boa-fé elemento sobre o qual se tratará
adiante.
Indiscutível que a exceptio terá lugar nas obrigações nascidas de contratos
sinalagmáticos
120
, pois é o descumprimento de uma prestação que legitima a contraparte a
117
Os romanos julgavam que o sinalagma era representativo da bilateralidade objetiva, com obrigações
simétricas e contrapostas, sem, contudo, entendê-las como recíprocas e interdependentes. Os canonistas
incorporaram a bilateralidade como intercâmbio de prestações baseadas na boa-fé, cunhando o princípio fides
non servanda est ei qui frangit fidem (AGUIAR JÚNIOR, 2004).
118
No direito brasileiro, as expressões sinalagmático, bilateral ou prestação correspectiva são equivalentes.
119
Estampando a teoria objetivista, o Código civil português, em seu art. 642, classifica os contratos em
unilaterais ou gratuitos e em bilaterais ou onerosos.
120
Da doutrina italiana, Bianca (1987, p. 462) fornece a noção de sinalagma nos contratos: “La corrispettività
delle prestazioni contrattuali sta a significare che la prestazioni di una parte trova remunerazione nella
142
valer-se do instituto para se escusar do cumprimento da contraprestação (RODRIGUES,
2007). No dizer de Rosenvald (2007, p. 371):
O sistema jurídico pretende que haja uma execução simultânea das obrigações. A
boa-fé objetiva e a segurança do comércio jurídico demandam o respeito pelas
obrigações assumidas de modo a unir o destino das duas obrigações, de forma que
cada uma delas será executada à medida que a outra também o seja. Trata-se de
uma verdadeira situação de interdependência, que assegura não apenas o interesse
das partes na realização da finalidade comum (função social interna), mas satisfaz a
ordem social que procura pelo adimplemento como imposição de justiça comutativa
(função social interna).
É no campo das obrigações recíprocas que a exceptio encontrará seu fundamento.
Informa Moreno (2004, p. 46) que a consagração desse princípio encontra-se no art. 1100, §
3º, da Lei Civil espanhola, que alude às obrigações recíprocas, entendendo-se como tais “las
obligaciones que se deben una por otra, y por ello están en relación de condicionalidad mutua,
o de concausalidad, y se consideran subjetivamente como equivalentes”.
Nos contratos bilaterais ou sinalagmáticos, as obrigações são recíprocas e “nessa
relação obrigacional, tais contratantes devem-se mutuamente; cada qual é credor e devedor do
outro ao mesmo tempo [...] podendo exigir do outro o cumprimento obrigacional (ius et
obligatio sunt correlata)” (AZEVEDO, 2002, p. 63).
De fato, as relações obrigacionais sinalagmáticas unem-se umas às outras por um
vínculo de reciprocidade ou interdependência
121
, representadas por um entrelaçamento de
duas ou mais declarações de vontade
122
num mesmo instrumento negocial
123
.
A caracterização da bilateralidade, contudo, não necessita de prestações
objetivamente equivalentes. Para tanto, basta que cada parte reconheça na contraprestação a
compensação suficiente à sua própria obrigação (AGUIAR JÚNIOR, 2004).
prestazioni dell’altra. I contratti a prestazioni corrispettive sono anche detti sinallagmatici. Essi comprendono
principalmente i contratti di scambo, i contratti di concessione in godimento e di servizi a titolo oneroso
(locazione, lavoro subordinato, ecc) in cui la prestazione de una parte è compensata dalla controprestazione
dell’altra. La corrispettività comporta normalmente l’interdependenza delle prestazioni. L’interdependenza
esprime in generale il condizionamento di una prestazione all’altra.
121
“[...] l’interdipendenza non è una regola esclusiva dei contratti a prestazioni corrispettive e non può quindi
servire a identificare il concerto di corrispettività. Quale vincolo di recíproco condizionamento l’interdependenza
si riscontra infatti in tutti i contratti in cui la prestazione di ciscuna parte assume un’importanza determinante per
la realizzazione della causa del contratto” (BIANCA, 1987, p. 462).
122
Ribeiro (2003, p. 15-16, grifo do autor) leciona que: “As declarações de vontade não são o contrato, mas
apenas uma componente da sua complexa estrutura normativa, que integra, num todo orgânico e unitário,
‘elementos não consensuais’, fontes de vinculação que não promanam ex voluntate, mas da acção performativa
dos contextos situacionais em que a relação se estabelece e desenrola”.
123
Um contrato é sempre um negócio jurídico bilateral, uma vez que nasce da união de duas ou mais vontades e,
em regra, possui duas partes contratantes. Contudo, negócios bilaterais que criam obrigações para uma das
partes na relação, são os chamados contratos unilaterais (exs.: comodato, tuo); enquanto outros contratos
criam obrigações para ambas as partes, são denominados bilaterais (exs.: compra e venda, locação).
143
A equivalência objetiva das prestações indica que o valor econômico de uma
prestação corresponde ao valor da outra. Contudo, esta equivalência não é requisito necessário
nos contratos a título oneroso, isto porque prevalece a regra da livre estipulação contratual. O
desequilíbrio entre prestação e contraprestação não exclui o nexo de reciprocidade.
A correspondência subjetiva representa o equilíbrio inicial dos valores estipulados
na gênese do contrato. A verificação do aspecto subjetivo é relevante, sobretudo, quando uma
prestação deve ser redimensionada por se tornar excessivamente onerosa ou houver inexatidão
da contraprestação. Essa definição de obrigações recíprocas remete às teorias da causa e da
equivalência mencionadas alhures, e apenas reforça a idéia da indispensável existência de
correlação de forças num contrato para que seja possível a argüição da exceptio, circunstância
que se tornará tanto mais evidente a quando da execução do mesmo.
Acerca do regramento da matéria no direito português, Luis Manuel Teles de
Menezes Leitão (2005, p. 254) esclarece que:
[...] nos contratos sinalagmáticos, a lei permite a qualquer dos contratantes recusar a
realização de sua prestação enquanto não ocorrer a prévia realização da prestação da
contraparte, ou a oferta de seu cumprimento simultâneo. É, assim, lícita neste caso a
recusa do cumprimento, o que impede a aplicação do regime da mora (arts. 804.º e
ss.) e, naturalmente, o do incumprimento definitivo (art. 808.º), mesmo que tenha
havido interpelação da outra parte. Se as duas obrigações forem puras a excepção de
não cumprimento é, assim, sempre invocável, nem sequer podendo ser afastada
mediante a prestação de garantias (art. 428º, n.º 2).
Com efeito, é a execução de uma prestação que constitui a causa da outra, pois a
satisfação do credor será alcançada com a execução da obrigação, e não apenas com a sua
mera existência.
A questão põe em tablado a distinção entre sinalagma genético e sinalagma
funcional, permitindo melhor divisar a relação de recíproca dependência entre as
prestações
124
, relação esta que se manifesta tanto no momento do nascimento quanto na
execução da obrigação.
Para Aguiar Júnior (2004, p. 82):
124
Para ilustrar a idéia de reciprocidade, colhe-se a lição de Teresa Negreiros (2006, p. 167): “‘Não faças a
outrem o que não queres seja feito a ti’ eis uma das muitas manifestações da justiça: a reciprocidade, fundada
exatamente no que há de comum entre mim e o outro. Ora, não há reciprocidade sem igualdade, e neste
mandamento, tão evidentemente justo, não parece haver qualquer conteúdo predeterminado daquilo que se deva
ou não fazer. No entanto, a formalidade da regra não a priva de algum conteúdo, o qual é definido por François
Ewald nos seguintes termos: ‘Ela não me obriga a sair de mim mesmo, faz do outro um outro eu próprio. Não
aliena a minha vontade na de um outro; obriga-me apenas a considerar-me como um outro para o outro. Não
hierarquiza; supõe, pelo contrário, que cada um seja o igual do outro’”.
144
É de se repelir o entendimento de que a interdependência das obrigações deve estar
presente apenas na gênese, pois a exceptio e a resolução se aplicam exatamente
porque o sinalagma não desaparece após a celebração, mas continua a qualificar a
conduta dos contratantes durante todo o processo obrigacional.
O sinalagma genético indica que “na nese ou raiz do contrato, a obrigação
assumida por cada um dos contraentes constitui a razão de ser da obrigação contraída pelo
outro” (VARELA, 2003, p. 397, grifo do autor). Portanto, se inexistentes a reciprocidade e a
interdependência das obrigações na origem, o contrato será unilateral.
Moreno (2004, p. 24) define sinalagma genético como:
[...] un nexo causal que liga a las obligaciones nacidas del contrato, de modo que la
propia causa del contrato consiste en dar vida a estas obligaciones que nacen una por
la otra. Dicho nexo explicaría por qué el contrato es inexistente si una de las dos
obligaciones no llega a nacer [...].
o sinalagma funcional exprime que as obrigações devem ser exercidas
paralelamente – numa relação de equilíbrio –, uma vez que a execução das obrigações de cada
contratante pressupõe que haja o cumprimento da obrigação da contraparte. Assim, alterada a
situação de uma das prestações haverá, necessariamente, repercussão na outra (VARELA,
2003). Faltando a prestação, a contraprestação torna-se inexigível.
Na lição de Menezes Leitão (2005, p. 254):
Nos contratos sinalagmáticos verifica-se reciprocidade entre as prestações de ambas
as partes, o que implica que, por força do sinalagma funcional, não deva permitir-se
a execução de uma das prestações sem que a outra também o seja. Essa situação
implica que o não cumprimento das obrigações das prestações recíprocas seja sujeito
a um regime especial, admitindo-se ser lícita a recusa de cumprimento, enquanto a
outra parte não realizar a sua prestação (excepção de não cumprimento do contrato)
e que o incumprimento definitivo de uma das prestações permite à outra parte a
resolução do contrato (resolução por incumprimento) [...].
A separação do sinalagma em genético e funcional não significa duas realidades
diferentes, mas sim apenas dois aspectos, observados em momentos diversos formação e
execução da obrigação do mesmo vínculo que une as obrigações emanadas dos contratos
bilaterais.
De tal arte, a teoria da dependência originária entre as obrigações (sinalagma
genético) não seria bastante para explicar a exceção do contrato não cumprido, influindo
igualmente no instituto o sinalagma funcional.
145
O nascimento simultâneo das obrigações constitui justificativa para que uma não
exista sem a outra. Logo, a invalidade de uma das obrigações em virtude da impossibilidade,
gera, do mesmo modo, a invalidade da outra.
na dependência funcional, as obrigações são conexas na execução, formando
um todo indissolúvel, cujo cumprimento se deve processar integralmente. Sendo, no dizer de
Lopes (1959, p. 248), “precisamente nesta dependência funcional que se permite a recusa de
uma prestação tanto que a outra não se mostre disposta a realizar a que lhe incumbe”.
Outro ponto curioso nessa parte do estudo é saber se nos contratos em que se
estabelece obrigação para uma das partes, ou seja, nos contratos unilaterais, lugar para
aplicação da exceção do contrato não cumprido.
Os contratos bilaterais, ou sinalagmáticos imperfeitos ou acidentalmente
bilaterais, estão representados por duas espécies.
A primeira delas, por contratos que desde a sua gênese atribuem prestações às
duas partes, mas sem contraprestação correspectiva que possa ser incumprida. Como
exemplo, o comodato, em que o comodante tem a obrigação de propiciar ao comodatário o
gozo da coisa, e este, de restituí-la.
A segunda espécie refere-se aos contratos que, em princípio, somente gerariam
deveres para uma das partes. Todavia, no decorrer da execução obrigacional, surgem
acidentalmente obrigações de prestar também para a contraparte até ali não obrigada, deveres
estes também desvinculados da reciprocidade própria do sinalagma, a exemplo da obrigação
do depositante de pagar as despesas feitas com a coisa, que somente surge após findo o
contrato de depósito gratuito
125
(VARELA, 2003).
Em algumas circunstâncias, esses contratos poderiam gerar despesas ou prejuízos
para a parte obrigada, a qual passaria a ter direito de reembolso ou indenização, logo, direito
não ligado ao nascimento do contrato, mas a um fato posterior e eventual, eis que decorrente
“[...] da incidência da lei, que atribui efeitos a atos particulares no curso da vigência do liame
convencional, como ocorre com o direito à indenização que surge ao depositário, pelas
despesas realizadas” (AGUIAR JUNIOR, 2004, p. 84).
Esse reembolso ou indenização, na linguagem de Capitant (apud LOPES, 1959),
constituiria um crédito superveniente, efeito secundário ou acessório do contrato, restando
125
No contrato de depósito, a obrigação de indenizar pelos custos com a manutenção da coisa depositada decorre
do fato de ter havido uma despesa não vinculada com o contrato propriamente dito. Essa obrigação de reembolso
possui caráter eventual, eis que o fato (despesas com a manutenção da coisa depositada) pode ou não surgir.
Desta forma, não se pode falar em bilateralidade ou alteração da natureza contratual.
146
afastada a possibilidade da exceptio diante da ausência de simultaneidade de execução. Em tal
caso, os únicos direitos invocáveis seriam os direitos de retenção ou de indenização.
A BGB, em seu art. 320, e o Código Suíço das Obrigações, em seu art. 82,
admitem a utilização da exceção do contrato não cumprido nos contratos bilateriais que
envolvam uma relação de sinalagmaticidade (LOPES, 1959).
Diversamente, o direito italiano possibilita nos contratos bilaterais imperfeitos a
oposição da exceptio, consoante leciona Bianca (1994, p. 332):
Ancora, l’eccezione deve reputarsi ammissibile nei contratti c.d. bilatelari imperfetti
(es.: mandato, deposito, ecc.), anche se a titolo gratuito, quando l’obligato principale
abbia diritto alla corresponsione dei mezzi necessari per l’esecuzione del contratto e
degli impegni connessi a tale esecuzione. Anche in tal caso ricorre infatti la agione
del rimedio, ossia quella di prevenire una situazione di squilibrio economico a danno
di una parte a causa dell’inadempimento dell’altra. Va infine rilevato che
l’accessorietà dell’obbligazione inadempiuta non impedisce il ricorso all’eccezione
d’inadempimento in quanto le prestazioni accessorie integrano ciò che il contraente
ha diritto di ricevere in base al contratto. Occorre tuttavia che l’obbligazione
accessoria inadempiuta abbia un’importanza rilevante nell’economia dell’affare.
Mesmo nos contratos plurilaterais, como são os contratos das sociedades
empresárias, nos quais rigorosamente não há diversidade, mas convergência de interesses para
um objetivo comum, é possível, conquanto excepcionalmente, surgir obrigação sinalagmática,
com espaço para a argüição da exceptio.
Tal poderá suceder quando um dos sócios contraentes descumprir determinada
obrigação assumida perante os demais sócios e a sociedade, caso do encarregado de
apresentar o balanço contábil e que, inadimplente, tem suspenso o recebimento de seus
dividendos pela sociedade.
Admitindo a hipótese, Lopes (1959, p. 262-263, grifo do autor) observa que:
Em dadas circunstâncias, desde que o inadimplemento da prestação de uma das
partes torne inexeqüível o objetivo comum da sociedade, influindo sobre as
prestações das outras partes, desde que se observe a presença de um vínculo
sinalagmático, desde que a prestação não cumprida pode ser considerada essencial à
obtenção do objetivo comum, quer porque as partes não a consideram exeqüível, de
conformidade com o estabelecido no contrato, se nos afigura possível o emprego da
exc. n. ad. cont. Cada parte pode recusar-se a adimplir a sua prestação, quando a
parte ou as partes que peçam o adimplemento não tenham, de seu lado, cumprido a
prestação que lhes incumba.
Tem-se, portanto, que o pressuposto substancial da exceptio é a existência de
relação sinalagmática, caracterizada pela presença de duas prestações contrapostas e
interligadas por conexão (ultro citroque obligatio), sendo possível a paralisação da
147
exigibilidade de uma delas, se a parte encarregada de realizar a sua em primeiro lugar
inadimplir (MONTEIRO, 2003).
Varela (2003, p. 399) ressalta a imprescindibilidade, no direito português, da
reciprocidade na relação contratual, para a oposição da exceção do contrato não cumprido:
A ligação sinalagmática entre as duas obrigações do contrato bilateral é tão forte
que, no próprio processo executivo, sempre que a obrigação exeqüenda esteja
dependente de uma prestação por parte do credor (exeqüente) ou de terceiro, é ao
credor que a lei (art. 804.º, 1, praticamente inalterado neste n.º 1, do Cód. Proc. Civ.)
impõe o ônus de provar que esta prestação foi realizada ou oferecida à contraparte.
Sendo relevante a prova de um crédito exigível, não se mostra imprescindível sua
certeza e liquidez para oposição da exceptio, pois tudo quanto se faz necessário é a existência
de um crédito vencido e aparelhado de ação. Para a argüição, basta uma certeza relativa,
uma situação de concludência e verossimilhança do bom fundamento da exceção para os
elementos adquiridos e pelas deduções de provas oferecidas, e que convença ao juiz da
sinceridade da defesa e da oportunidade de encaminhar o desenvolvimento do juízo à
declaração dos fatos (LOPES, 1959).
Quando se menciona a necessidade de um crédito exigível por meio de ação, fica
afastada a possibilidade de argüição da exceptio em face de uma obrigação natural, especial
dever de prestar não jurídico, cujo adimplemento é tutelado pelo Estado por imperativo moral
e de justiça, desde que efetuado voluntariamente. Assim, o único efeito da obrigação natural é
a soluti retentio. Nesse sentido, dispõe o art. 882 do CC/2002 que: “Não se pode repetir o que
se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”.
Por fim, as obrigações negativas estão sujeitas a argüição da exceptio,
independente de ser a sua execução continuada ou imediata. Num caso ou noutro, haverá
violação do direito da outra parte, a quem se facultará promover a rescisão do contrato ou
condicionar a realização da sua prestação, se possível, ao desfazimento do que foi realizado
em descumprimento da obrigação.
Também aqui, a exceptio terá a função de remédio de caráter suspensivo da
prestação do contraente cujo interesse se viu prejudicado pela ação daquele que possuía o
dever de abstenção.
Não faria sentido e ofenderia a posição de equilíbrio entre os contraentes, exigir
que alguém fosse obrigado a adimplir diante do inadimplemento de prestação correlata da
contraparte, pouco importando a modalidade da obrigação.
148
3.1.2 A necessidade do inadimplemento
A denominação “exceção do contrato não cumprido”, per si, remete à idéia de
inadimplemento, de descumprimento da obrigação no tempo, lugar e forma convencionados.
Esse inadimplemento, contudo, não é unilateral, ele deve ser de ambos os contraentes. Do
excepto, que exige a satisfação de uma prestação sem realizar a que lhe incumbe. E do
excipiente, que recusa a realização da prestação que lhe é exigida até que o excepto satisfaça a
sua em primeiro lugar.
Nesse sentido, esclarece Moreno (2004, p. 54):
Para que se pueda oponerse la excepción de incumplimiento, no basta que las
obligaciones sean sinalagmáticas, sino que hace falta además que el excipiens deba
actualmente la obligación cuyo cumplimiento inmediato se le reclama y que
precisamente él se oponga a ello por ser titular de un contracrédito que ni se cumple
ni se ofrece cumplir. Por tanto: debe ser el excipiens efectivamente deudor de la
prestación que se le reclama, pues si no debe nada, o si debe algo distinto a lo que se
le reclama, o si su negativa al cumplimiento se fundamenta en otro motivo distinto
de la inejecución del contracrédito, no procede la exceptio non adimpleti contractus.
Como también debe de estar en condiciones de oponerse a la ejecución; y no lo
estaría, si por ejemplo ya hubiese ejecutado la prestación, o si hubiese renunciado
previamente a la posibilidad de utilizar este remedio. En cambio, resulta en principio
indiferente cuál sea el objeto de la obligación que se le reclama al excipiens.
Têm-se, assim, duas prestações inadimplidas e opostas a se defrontar. Uma, em
fase dinâmica, através da actio, pretendendo o autor receber do réu o que lhe é devido; e
outra, em fase estática, detendo a ação do autor, que se mantém paralisada até que ele cumpra
a prestação devida em primeiro lugar (LOPES, 1959).
Para tanto, a negativa ao cumprimento da prestação pelo demandado deve fundar-
se na ausência de cumprimento da contraparte, e não em qualquer outra circunstância. Isto
porque, somente haverá lugar para a oposição da exceptio, se o débito reclamado estiver
vencido e a negativa do pagamento pelo excipiens ocorrer em razão de o demandante ter que
cumprir prévia ou simultaneamente a sua obrigação.
Conclui Moreno (2004, p. 55, grifo da autora) “[...] que si la excepción de
incumplimiento es una negativa legítima y provisional al cumplimiento, no toda negativa
legítima al cumplimiento es exceptio inadimpleti contractus”.
A mesma autora ressalta:
149
[...] la excepción de incumplimiento no se concibe si el demandado alega que nunca
debió lo que se pide, o que la deuda ya se extinguió, o que hay cualquier causa
distinta de la inejecución de la contraprestación, que justifica su falta de
cumplimiento. Con la excepción de incumplimiento lo que se alega es que aun
siendo cierto que se debe, no se está obligado a cumplir previamente, y que por tanto
sólo se ejecutará la prestación si y cuando la contraparte reclamante cumpla u
ofrezca cumplir lo que a su vez debe. Se desprende fácilmente de aquí que entonces,
para que la excepción de incumplimiento que se alega resulte bien fundada, es
inexcusable que ciertamente el demandante sea deudor de una obligación conexa
con aquella cuyo cumplimiento se reclama, obligación que puede ser de cualquier
clase, pero que debe existir efectivamente en el momento en que se opone la
excepción, estar vencida y, claro está, no haber sido ya satisfecha o haberse
extinguido de cualquier otro modo. Con todo, y como también se desprende de lo
dicho, tampoco podrá acogerse la exceptio, aun dándose todos estos requisitos, si el
demandante acompaña a su demanda de una oferta de cumplimiento previo o
simultáneo al del demandado (MORENO, 2004, p. 56-57).
Nesse contexto, a exceptio surge como uma alternativa ao inadimplemento, ao
lado da indenização e da resolução do contrato, tradicionais conseqüências do
descumprimento das obrigações, entendendo Serpa Lopes (1959) que a exceção do contrato
não cumprido, embora possua características próprias, não deixa de representar um elemento
coercitivo indireto, à medida que através dela o excipiente tenta a realização da prestação por
parte do inadimplente e não a resolução do contrato.
Como meio coercitivo indireto do adimplemento que ultima por paralisar a ação
do excepto, a exceção pode ser argüida tanto diante do inadimplemento absoluto, parcial ou
total, como também diante da simples mora, compreendida esta como inadimplemento
relativo, vale dizer, prestação que ainda pode ser realizada, desde que possível de satisfazer os
interesses objetivos do credor.
Neste caso, haverá uma concorrência de mora de dois devedores, pois na seara dos
contratos sinalagmáticos ambos os contraentes reúnem, ao mesmo tempo, as condições de
credores e devedores. E nem poderia ser diferente, visto que não é possível a coexistência de
moras do credor e do devedor. Uma sempre exclui a do outro
126
.
E as moras debitoris coexistirão até a eficácia declarativa do reconhecimento da
exceptio. Reconhecida esta, não incorrerá em mora aquele que deixou de cumprir sua
obrigação em segundo lugar, exatamente em razão do descumprimento anterior da
contraparte.
126
Segundo Alvim (1980), entre os pressupostos da mora de uma das partes esa inexistência da mora da outra
parte. A mora do credor, sempre exclui a do devedor. De conseguinte, importante assinalar o momento em que
se dá a mora de um deles para se saber qual está em mora. Assim, a mora do credor e seus efeitos começam da
recusa injustificada, deixando de ter início a do devedor, independentemente da existência de consignação em
pagamento ou depósito, que constituem, em geral, meras faculdades do devedor em face da recusa do credor.
150
O afastamento da incidência da mora em relação ao excipiente constitui um dos
efeitos da exceptio, estando seu fundamento previsto no art. 396 do CC/2002, ao dispor que
“Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora”. É preciso,
no entanto, que a situação de retardo no cumprimento da obrigação tenha conexão com o
fundamento da exceção.
A norma se assenta em princípio de justiça. Afinal, não é razoável que o
excipiente responda pelas conseqüências da mora, sendo obrigado ao pagamento de
indenização, juros e agora também correção monetária e honorários advocatícios, conforme
art. 395 do CC/2002, além de estar sujeito à resolução do contrato, se ele possui justificativa
idônea para encontrar-se na situação de retardo.
Essa é mais uma razão para se considerar a culpa como elementar da mora
debitoris. Se um dos devedores da relação sinalagmática não concorreu para a mora, rectius,
se sua mora decorreu exatamente do inadimplemento anterior do excepto, o sentido
penalizar o devedor.
A mesma orientação deverá ser aplicada nos casos de recusa antecipada ao
cumprimento da obrigação por parte do excepto. Segundo Silva (2002, p. 256-257):
A recusa antecipada do devedor em cumprir seu dever obrigacional, realizada antes
do nascimento da pretensão, foi bem apanhada por STAUB como caso de
inadimplemento. Contudo, a hipótese pode ser alargada. Além da recusa, declaração
expressa que é, pode-se incluir a conduta concludente do devedor no sentido do
inadimplemento. De qualquer sorte, e na esteira do formulado por STAUB, em um
ou em outro caso, a séria manifestação do devedor no sentido do inadimplemento é
capaz de gerar importantes conseqüências na orientação econômica relacionada a
uma dada obrigação, podendo tornar a sua manutenção absolutamente destituída de
significado.
A questão toca de perto com os efeitos do inadimplemento, pois importa concluir
que esses efeitos incidirão diante da manifestação prévia do devedor no sentido de que não irá
cumprir a obrigação no seu termo. Essa manifestação pode decorrer da simples vontade de
não querer cumprir, como também da prática de um ato que impede ou torna impossível o
cumprimento ao chegar o termo fixado para tanto.
O primeiro caso nem sempre é fácil de verificar, eis que pode suceder de a
manifestação do devedor não ser expressa, havendo sempre o risco de sua atitude ser mal
interpretada. O segundo permite uma análise mais objetiva, fundada em juízo de
probabilidade diante da perda de oportunidade decorrente do transcurso do tempo. Hipótese
de uma construção que deveria estar concluída em três anos e não tem sequer os alicerces
preparados ao final de dois.
151
Sendo possível a resolução do contrato nesses casos, não seria razoável deixar de
reconhecer ao contratante o direito à argüição da exceptio, que viria sempre como algo
anterior à resolução. O ponto peculiar é que a argüição da exceção do contrato não cumprido,
por também se tratar de um remédio temporário, não acarreta, per si, prejuízo algum para o
posterior adimplemento do contrato, desde que o excepto possa restabelecer o cumprimento
do contrato na forma ajustada.
De ver, outrossim, que os casos de recusa antecipada não se confundem com a
antecipação do vencimento da obrigação prevista para as hipóteses tradicionais capituladas no
art. 333 do CC/2002,
127
que dizem respeito ao descumprimento de dever de prestação.
A recusa antecipada ao adimplemento manifestada pela vontade do devedor ou
por um ato que inviabilize o cumprimento representa violação à cláusula geral da boa-fé
objetiva, atingindo a confiança necessária ao cumprimento dos deveres de prestação.
Essa recusa, portanto, dá-se no plano dos deveres laterais e não no plano dos
deveres principais ou secundários propriamente ditos, esclarecendo Silva (2002, p. 263-264,
grifo do autor) que:
A análise dos casos passíveis de configurarem uma manifestação antecipada quanto
ao inadimplemento demonstra a certa heterogeneidade existente entre elas. De um
lado, têm-se declarações, de outro, atos. Estes vinculam-se, ora a deveres
diretamente relacionados à realização da prestação, ora a deveres relacionados a
outros fins. Assim, a classificação da circunstância como inadimplemento deve
atentar para tais diferenças, restando praticamente impossível uma classificação
unitária. Seguindo-se a classificação do inadimplemento conforme a vinculação do
dever específico aos deveres de prestação (principais e secundários), há que se
reconhecer que alguns casos de manifestação antecipada configuram
descumprimento de deveres principais, consubstanciam deveres secundários de
prestação. É o caso dos aqui chamados ‘deveres instrumentais’ para o
adimplemento. Quando, para a construção da aeronave, demanda-se um conjunto de
atos prévios dedicados a preparar e a permitir o resultado final, é evidente que se
está diante de deveres de prestação. O resultado do não-cumprimento desses deveres
será ou a impossibilidade da construção ou o atraso na entrega. O descumprimento,
portanto, é de deveres secundários de prestação, passíveis de ensejar
inadimplemento absoluto ou mora. Situação distinta, no entanto, é encontrada
naqueles casos em que o descumprimento não provoca, em cadeia causal necessária,
a não-realização futura da prestação, mas sim consubstancia desde um ataque à
relação de confiança existente entre as partes. São os casos de declarações concretas
no sentido do inadimplemento, ou mesmo de atos concretos que demonstrem essa
possibilidade. Nestas circunstâncias, não será um dever de prestação que será
violado, mas um dever lateral. Por isso, a classificação desses casos não poderá
realizar-se entre as figuras tradicionais do inadimplemento, ligando-se assim
diretamente à violação positiva do contrato.
127
Art. 333. Ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou
marcado neste Código: I – no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores; II – se os bens,
hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor; III se cessarem, ou se se
tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-
las [...].
152
Os casos aqui catalogados de recusa antecipada ao cumprimento da obrigação
poderiam, sem dificuldade, caracterizar as circunstâncias tratadas no art. 133 do CC/2002,
para que o termo de vencimento da obrigação seja presumido em favor do excipiente
invertendo-se o princípio geral segundo o qual o prazo é instituído em benefício do devedor.
No caso da exceção do contrato não cumprido, em favor da parte que deveria cumprir a
prestação em primeiro lugar, o excepto.
Após esclarecer que a razão desse princípio geral é impedir que o vencimento
antecipado produza o enriquecimento do credor, Serpa Lopes (1959, p. 294-295) trata das
exceções, admitindo entre elas a recusa antecipada quer pela manifestação de vontade do
devedor, quer por um ato que impossibilite o adimplemento, sustentando, que:
[...] tanto na situação de suspeição como no caso de afirmação antecipada do
propósito de não adimplir, tudo isso representa uma circunstância que exige deferir-
se ao credor uma posição protetora, máxime no momento em que ele, a seu turno,
como devedor, é obrigado a cumprir uma prestação organicamente vinculada a uma
outra ainda futura de que é credor, porém já tendo sobre ela impendente a afirmação
categórica de não ir ser cumprida.
O inadimplemento é de tal modo relevante para a exceptio, que uma vez cumprida
a obrigação, mesmo tardiamente, já não há lugar para a argüição, que perde sua razão
essencial de ser exatamente porque consiste em neutralizar a ação do credor até o
cumprimento da prestação que lhe incumbe.
Logo, cumprida a prestação, a exceptio não terá mais qualquer função salvo se o
adimplemento foi imperfeito ou, decorrente de culpa ou dolo, não veio acrescido da reparação
dos prejuízos decorrentes da mora, como hoje prevê o art. 395 do CC/2002.
3.1.3 A simultaneidade das prestações
A argüição da exceptio encontra-se sujeita à exigibilidade da prestação e da
contraprestação, vale dizer, tanto uma quanto outra precisam ter alcançado o seu termo de
vencimento, de modo que essa exigibilidade possa ocorrer, como se diz do direito francês,
trait pour trait, ou, como indica o direito germânico, zug um zug, ou ainda em linguagem
popular: toma lá, dá cá (LOPES, 1959).
153
Na compra e venda
128
, que é contrato tipicamente sinalagmático, essa
característica é mais perceptível, à medida que a prestação do vendedor de transferir o
domínio da coisa corresponde a do comprador de, simultaneamente, pagar o preço em
dinheiro. Aliás, não sendo a venda a crédito, o vendedor não está mesmo obrigado a entregar
a coisa antes de receber o preço, conforme art. 491 do CC/2002.
Regra geral, os negócios jurídicos entre vivos são exeqüíveis desde logo,
consoante prescreve o art. 134 do CC/2002, sincronia temporal que, também ordinariamente,
torna possível a argüição da exceptio.
O princípio da simultaneidade das prestações será percebido com maior clareza no
âmbito da relação processual, existindo, conforme Serpa Lopes (1959, p. 276-277), duas
teorias que visam explicá-lo:
[...] a) os que consideram a prestação devida pelo autor como uma condição do seu
próprio direito de demandar; b) os que entendem que a ação de cada uma das partes
visa, mesmo no contrato bilateral, não a uma troca de prestações, senão
simplesmente a obter a da outra parte. Consoante o primeiro ponto de vista, o Juiz
deve (mesmo no processo por culpa) apurar se o autor cumpriu preliminarmente sua
prestação ou se a execução oferecida por ele na demanda judicial é regular;
consoante o segundo, a ação do Juiz limita-se a apurar se a prestação exigida pelo
autor é realmente devida pelo réu, de modo que o réu pode opor a essa ação do autor
uma exceção no sentido técnico da palavra, isto é, a exc. n. ad. cont., por força da
qual lhe é permitido sustentar que o contrato bilateral teve por finalidade uma
prestação e uma contraprestação, de modo que lhe é dado recusar a primeira
enquanto não for satisfeita a segunda.
Do confronto entre essas teorias, resulta que a possibilidade de argüição da
exceptio depende sempre do movimento que empreende o titular do direito. A atuação de uma
das partes dirigirá o comportamento da outra, nos precisos limites do princípio da
simultaneidade. De modo que, não haverá lugar para a exceptio, se uma das prestações for
contemplada com termo, se uma das prestações tiver sido recebida ou se não existir uma
relação de intercâmbio, de conexão entre prestação e contraprestação.
Para Bianca (1994, p. 334, grifo do autor):
L’eccezione è um rimedio spettante alla parte contrattuale nei confronti della
controparte inadimpiente, e precisamente della parte che non adempie o non offre di
eseguire la própria prestazione. L’inadempimento della controparte implica che la
sua prestazione sia attualmente dovuta, che cioè la controparte non abbia adempiuto
alla scadenza del termine o non adempia a seguito della richiesta del creditote.
128
O contrato de compra e venda é tipicamente sinalagmático, ou bilateral perfeito, uma vez que comprador e
vendedor se obrigam reciprocamente um para com o outro, de tal forma que ambas as obrigações são essenciais
e igualmente relevantes para o negocio jurídico. Sobre o assunto ver: Azevedo Júnior (2005).
154
Essa regra, contudo, não é absoluta. Situações em que se poderá prescindir da
simultaneidade. Basta ver o que preconiza o art. 477 do CC/2002, vazado nos seguintes
termos:
Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes
diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação
pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que
aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.
No caso, não se pode conceber simultaneidade entre as prestações, eis que
rigorosamente inexigíveis, senão em razão da suspeição da parte que, rompendo a regra geral,
pode argüir a exceptio, conquanto obrigado a executar sua prestação em primeiro lugar. A
exceção se funda no imperativo de justiça contratual, pois não seria justo ou mesmo razoável
exigir que o contraente cumpra sua prestação quando as circunstâncias evidenciarem a grande
probabilidade de a contraparte não adimplir a sua.
A simultaneidade das prestações prevalece como pressuposto da exceção do
contrato não cumprido, embora sem caráter absoluto, de vez que a boa-fé sempre pode atuar
como fator de abrandamento dessa exigência, autorizando a argüição da exceptio mesmo nos
casos em que prestação e contraprestação estejam relativamente afastadas no tempo. Caso de
alguns contratos de execução continuada, em que um dos contraentes não recebe a prestação
após pagar o preço, deixando de realizar o pagamento subseqüente até que a parte faltosa
entregue a prestação anterior.
3.1.4 A imprescindibilidade da boa-fé
Sendo certo que os negócios jurídicos devem ser interpretados e guiados pela boa-
fé, à evidência que a argüição da exceptio também deve estar pautada por esta cláusula geral,
vedada a recusa no cumprimento da prestação se, consideradas as circunstâncias do caso
concreto, a negativa apresentar-se contrária aos deveres laterais ou anexos de conduta.
Nessa matéria, Pereira (1993, p. 160) é enfático: “Sendo o instituto animado de
um sopro de eqüidade, deve à sua invocação presidir a regra da boa-fé, não podendo erigir-se
em pretexto para o descumprimento do avençado”.
155
Alguns ordenamentos estabelecem expressamente que o exercício da exceptio
deve estar em conformidade com a boa-fé. A propósito, o Código Civil italiano possui regra
limitadora no art. 1.460 in fine
129
, extraindo-se da doutrina de Bianca (1994, p. 348-349) que:
Il codice esclude espressamente che il creditore possa rifiutarsi de eseguire la sua
prestazione se, avuto riguardo alle circostanze, il rifiuto è contrario alla buona fede
(art. 1460). Come canone di lealtà la buona fede impone al creditore di non suscitare
intenzionalmente falsi affidamenti, di non speculare su falsi affidamenti, di non
contestare regionevoli ingenerati nel debitore (III, n. 226); como canone de
salvaguardia la buona fede impone al creditore di essercitare i soui poteri
discrezionali in modo da salvaguardare l’utilità della controparte compatibilmente
com il proprio interesse.
De todo o modo, existindo ou não regra expressa neste sentido, presentes os
pressupostos necessários para a oposição da exceptio, deve o juiz verificar, no caso concreto,
se o seu exercício é ou não contrário às exigências da cláusula geral da boa-fé, que no direito
brasileiro está consagrada no art. 422, e na BGB, no § 242.
A boa-fé não estará presente, por exemplo, quando a situação do sinalagma for
olvidada, isto é, quando a própria argüição da exceptio gerar a quebra do equilíbrio das
prestações correspondentes, com desprezo da finalidade e da função social e econômica do
contrato.
Moreno (2004, p. 75-76) retrata a experiência espanhola sobre a matéria:
En nuestra Jurisprudencia el juicio de la conformidad o no a la buena fe se ha
polarizado, por mimetismo, en torno a la idea de proporcionalidad, y se viene
entendiendo que es contraria a la buena fe la alegación de la exceptio, cuando la
prestación no ejecutada por el mandante tiene carácter accesorio, o cuando
refiriéndose a una obligación principal, el incumplimiento fuese de escasa gravedad.
Se procede, pues, de forma traslaticia y se vienen a exigir para la excepción de
incumplimiento los mismos requisitos que para la resolución por incumplimiento
(justificado este proceder, a su vez, por la idea de conexión causal entre las
obligaciones sinalagmáticas como fundamento de la exceptio).
A “comunidade de origem” e a “reciprocidade” das prestações, enquanto
condições essenciais caracterizadoras do vínculo sinalagmático, devem aparecer aliadas à
boa-fé, sem a qual não como se fundamentar a exceção de inexecução. Nesse sentido, a
boa-fé coloca-se como mais um pressuposto da exceptio, devendo ser concretamente
129
Art. 1460 Eccezione d’inadempimento Nei contratti con prestazioni corrispettive, ciascuno dei contraenti
può rifiutarsi de adempire la sua obbligazione, se l’altro non adempie o non offre de adempire
contemporaneamente la propria, salvo che termini diversi per l’adempimento siano stati stabilite dalle parti o
risultino della natura del contratto (1565). Tuttavia non può rifiutarsi l’esecuzione se, avutto riguardo alle
circostanze, il rifiuto è contrario alla buona fede (1375).
156
verificada pelo aplicador do direito em conjunto com outras circunstâncias, como esclarece
Lopes (1959, p. 240):
A função do Juiz não termina quando, após ter ele adquirido certeza de que o
excipiens se comporta sem malícia, nem mesmo quando ele haja igualmente
sondado as intenções do autor, responsável por uma prestação incompleta. Cumpre
que ele ascenda mais alto, que tome em consideração, na falta de convenções
especiais, os usos, costumes da sociedade em que vivem os contratantes, a eqüidade
no sentido largo da palavra.
A recusa de adimplir, portanto, deve estar de acordo com a boa-fé, tanto no seu
aspecto objetivo quanto no subjetivo, considerando os costumes da sociedade em que vivem
os contratantes.
A boa-fé exige nexo de equivalência ou de proporção entre o inadimplemento do
excipiente e da contraparte, de modo que a recusa sirva de fundamento ou de justificativa
idônea para a oposição da exceptio.
Nesse sentido, doutrina Serpa Lopes (1959, p. 311, grifo do autor) que:
[...] sempre se teve por assente que o princípio inadimpleti non est adimplendum
é aplicável quando entre o inadimplemento de um dos contratantes e o posterior
do outro, exista justo nexo de causalidade por proporcionalidade e entidade das duas
inadimplências. A exceptio deixa então de ser aplicada quando importe numa
desproporção entre a prestação descumprida e a prestação a ser cumprida.
A exceptio, portanto, deve ser excluída quando, para um dos sujeitos
obrigacionais, a prestação se tornar excessivamente onerosa, cabendo, nesses casos, a escolha
pela resolução do contrato ou pela revisão contratual
130
, sendo esta, a primeira opção a ser
cogitada em respeito ao princípio da conservação do negócio jurídico.
A boa-fé impõe, ademais, que as partes demonstrem tolerância uma em relação à
outra, sendo desnecessário lançar mão da exceptio quando falte parte mínima da prestação ou
a mesma tenha sido cumprida com pequena imperfeição, e conforme Moreno (2004, p. 79):
130
Para María Cruz Moreno (2004, p. 79): “[...] Piénsene en el caso de la venta de un inmueble, en el que se
descubre después una servidumbre pasiva oculta. Si para obtener el precio de la venta tuviera el vendedor que
poner fin a la misma, quedaría a merced de su titular y del comprador. De ahí, que non quepa la exceptio, sino
sólo optar entre la resolución del contrato o la reducción del precio. O en un contrato de obra, que presenta una
pequeña imperfección, que puede ser reparada pero cuya reparación exige la destrucción casi completa de la
obra, y consecuentemente la realización por su artífice de sacrificios patrimoniales muy superiores al perjuicio
que para el dueño de la obra resulta de la imperfección. En tal caso, el demandado sólo podría pretender una
reparación por equivalente, y no in natura, y por tanto sólo sería legítima una negativa parcial al pago del precio
(en la parte que no quedara compensado por el crédito indemnizatorio)”.
157
[...] cuando opera se deben valorar múltiples factores, como las causas que
motivaron la parcialidad o imperfección de la prestación realizada por el
demandante, la actitud del mismo, el interés de los terceros que pudieran quedar
afectados por la estimación de la excepción etc.
O demandante deve reclamar algo que efetivamente lhe é devido pelo excipiens.
Se o crédito é inexistente ou sua exigibilidade encontra-se subordinada à condição diferente
da execução simultânea ou de prévia contraprestação, não lugar para a oposição da
exceptio.
Como se vê, a função limitadora da boa-fé, cujos contornos são analisados neste
trabalho, é novamente revelada na repressão ao abuso do direito nos termos do art. 187 do
CC/2002.
O juízo acerca da boa-fé deverá ser realizado, tendo em vista as atitudes do
demandado e do demandante, além das circunstâncias objetivas do caso em análise, sempre
considerando o comportamento leal e honesto esperado pela confiança mútua depositada nos
sujeitos da relação obrigacional.
3.2 As formas de argüição da exceptio non adimpleti contractus
Aqui se observará que a aplicação processual da exceção do contrato não
cumprido pode ocorrer de três formas. No próprio processo em que instaurada a demanda,
constituindo a exceptio uma medida de defesa com caráter dilatório e que, em alguns
ordenamentos, autoriza, inclusive, o proferimento de sentença condicionada ao cumprimento
da obrigação pelo excepto. Através de contraprotesto extrajudicial, logo, antes de instaurada a
demanda. E por meio de contra-ataque em demanda reconvencional.
3.2.1 Argüição como exceção material dilatória
Sendo assegurado ao credor o direito de acesso ao Poder Judiciário para reclamar,
através da ação judicial, o recebimento compulsório da prestação que não recebeu
voluntariamente, a exceptio garante ao devedor a possibilidade de, no próprio processo em
158
que é demandado, negar provisoriamente o adimplemento da prestação até que receba a
contraprestação.
A exceptio exsurge como típica medida de defesa no processo
131
. Assim sucede na
maior parte dos ordenamentos regidos pelo princípio da simultaneidade do adimplemento. Na
Suíça, contudo, outro é o critério adotado. O art. 82 do Código de Obrigações exige que o
demandante comprove o cumprimento de sua prestação como condição prévia da ação
judicial, de maneira que ele não pode exigir o adimplemento do seu crédito, sem antes
cumprir sua parte na avença.
Essa solução parece excessivamente interventiva e obstativa do direito de acesso à
Justiça, além do que exige do juiz um nível de cognição de tal modo exauriente, que pode
ultimar desequilibrando a relação processual ainda no limiar do processo.
Classificada como exceção dilatória de direito material, a exceptio cumpre melhor
o objetivo de restaurar o equilíbrio conatural ao contrato sinalagmático, gerando uma situação
de inexecução transitória da obrigação, que pode deixar de existir com o adimplemento da
obrigação por parte do credor excepto, renascendo, nesse caso, a possibilidade do pleito
judicial. Para Gagliardi (2006, p. 16):
[...] ao invocar a exceção do contrato não cumprido, o demandado não nega o direito
do demandante à prestação exigida, mas apenas lhe opõe um direito que,
momentaneamente, o torna ineficaz. O simples fato de a questão poder ficar definida
em razão da inércia do demandante afigura-se meramente acidental, não tendo a
força necessária para afastar o caráter dilatório da exceção substancial sob exame.
O efeito meramente dilatório da exceptio determina seu caráter provisório, sendo
que, em determinadas situações seus efeitos podem ser definitivos, como sustenta Moreno
(2004, p. 82):
[...] ocurre así, en el supuesto de que se haya utilizado frente a una demanda de
resolución, o cuando por versar el crédito del demandante y el del demandado sobre
bienes fungibles homogéneos entre sí, la Sentencia en la que se acoge la exceptio
tiene efectos compensatorios. Pero aquí efecto definitivo no quiere decir
desestimación definitiva de la demanda del cumplimiento del actor, sino al
contrario, estimación: la exceptio en lugar de legitimar provisionalmente la
inejecución de la prestación debida por el demandado y por carecer de sentido que
se prolongue esa situación de inejecución recíproca, dada la homogeneidad de las
131
Sobre a matéria Gonçalves (2007, p. 165) entende que: “A exceção em apreço, que é de direito material,
constitui uma defesa indireta contra a pretensão ajuizada. Não é uma defesa voltada para resolver o nculo
obrigacional e isentar o réu excipiente do dever de cumprir a prestação convencionada. Obtém este apenas o
reconhecimento de que lhe assiste o direito de recusar a prestação que lhe cabe enquanto o autor não cumprir a
contraprestação a seu cargo. No entanto, poderá vir a ser condenado a cumprir a obrigação assim que se o credor
cumprir a sua prestação, pois, ao opor a aludida exceção, não se negou ele à prestação, mas apenas aduziu em
sua defesa que não estava obrigado a realizá-la entes de o autor cumprir a sua”.
159
prestaciones debidas por ambas partes, produce un efecto compensatorio, de modo
que los dos créditos se extinguen en la cantidad concurrente.
Relativamente à carga da prova, compete ao demandado, que argüi a exceptio, a
demonstração da existência do crédito conectado, em relação sinalagmática, com aquele cujo
cumprimento é reclamado judicialmente pelo excepto. E a este, caberá provar que o crédito do
excipiente foi por qualquer razão extinto, pois também aqui o ônus probatório é de quem
alega.
Sendo o caso de exceptio non rite adimpleti contractus, caberá ao demandado
provar que a prestação realizada pelo demandante foi imperfeita, deixando de produzir o
efeito extintivo próprio do pagamento. Desincumbir-se dessa prova, contudo, não será tarefa
fácil, pois à medida que a prestação é quase completa, maior a complexidade de provar o
inadimplemento e conseqüente invocação da exceptio.
Ponto polêmico e gerador de acirrada controvérsia são os chamados efeitos da
sentença, que reconhece a exceção do contrato não cumprido. A quaestio é saber se mais
adequado e útil para as partes é a decisão que condena o excipiente ao cumprimento de uma
obrigação condicionada ao adimplemento do excepto ou a que simplesmente resolve o
contrato em face da existência de duplo inadimplemento. O direito alemão opta pela primeira
opção. Os pós-glosadores admitiam a condenação condicional, assim como os pandectistas,
estabelecendo a BGB, no § 322 que:
[...] si una parte interpone acción para reclamar la prestación e ella debida a
consecuencia de un contrato bilateral, el ejercicio del derecho correspondiente a la
otra parte de negar la prestación hasta la efectuación de la contraprestación sólo
produce el efecto de que dicha otra parte ha de ser condenada al cumplimiento
simultáneo (MORENO, 2004, p. 84).
A solução também é adotada na Espanha, mas sem uma jurisprudência
consolidada a respeito, ressaltando Moreno (2004, p. 85) os aspectos práticos desse tipo de
tutela e a crítica que a ela se opõe:
El argumento que se esgrime en pro de esta fórmula es sobre todo el de su utilidad
práctica, pues aquí el procedimiento seguido, y pesar del éxito de la exceptio, acaba
proporcionando al demandante un tulo ejecutivo del que podrá servirse, con sólo
cumplir u ofrecer lo que a su vez debe al demandado. Con ello se evitarían
eventuales procedimientos posteriores. Hay que advertir, sin embargo, que también
la condena condicional podría ser fuente de otros litigios: contando el que fue
demandante con un título ejecutivo condicionado, le basta con cumplir la condición,
para conseguir la ejecución forzosa; y por ello puede que tenga el que fue
demandado que entablar un nuevo proceso, para demostrar, por ejemplo, que dicho
cumplimiento del demandante no es ya posible o que después de todo el tiempo
160
transcurrido ya no interesa. A más, que la complicación que se introduce en el
procedimiento cuando debe éste conducir a una condena bien que condicionada –,
sería injustificada si finalmente se optara por la resolución del contrato que, por otra
parte y presumiblemente, resultará más difícil que logre el condenado
condicionadamente.
O parágrafo único do art. 460 do Código de Processo Civil brasileiro ao
prescrever que: “A sentença deve ser certa, ainda quando decida relação jurídica condicional”,
leva a crer, num primeiro súbito de vista, que no Brasil não há espaço para a condenação nos
moldes em que admitida nos direitos germânico e espanhol, diante do reconhecimento da
exceptio.
Essa compreensão, todavia, decorre de uma apreciação não refletida do enunciado
normativo que, rigorosamente, proíbe que o juiz, ao solucionar o litígio, deixe dúvida sobre a
solução do mesmo, condicionando a procedência ou improcedência da ação a evento futuro e
incerto. Algo como: julgo procedente a ação, se o autor, na liquidação, comprovar a existência
de lucro cessante.
Não é o que sucede, todavia, com a sentença que decide relação jurídica de direito
material, pendente de condição. Caso da sentença que, embora acolhendo a exceção do
contrato não cumprido, julga procedente a ão, conferindo um título cuja execução poderá
ser detonada, desde que o autor-excepto cumpra sua parte na avença, adimplindo sua
prestação perante o réu-excipiente. A solução é diferente da anteriormente cogitada e
caracteriza decisão perfeitamente possível diante do Parágrafo único do art. 460 do Código de
Processo Civil brasileiro, pois condicionada não é a sentença, mas sim, a relação jurídica de
direito material alcançada pela decisão.
3.2.2 Argüição como defesa extrajudicial
A exceção do contrato não cumprido também pode ser utilizada fora do processo.
A rigor, constitui uma exceção de direito material. Assim, diante de uma interpelação,
protesto ou notificação extrajudicial reclamando o cumprimento da obrigação, o devedor
também pode objetá-lo, recusando a prestação, via de contraprotesto, até que o notificante
adimpla sua parte primeiramente.
161
A vantagem dessa forma de argüição pode ser especialmente percebida nas
obrigações sem termo, hipótese em que a mora do excepto é constituída mediante o
contraprotesto extrajudicial (mora ex personae).
Dessa sorte, havendo sentença, que acolha a argüição da exceptio, em futuro
processo judicial instaurado entre as partes, terá seus efeitos retroagidos ao tempo da
realização do contraprotesto extrajudicial, sendo certo, outrossim, que a atuação antecipada do
excipiente, antes de instaurada a lide, fornecerá parâmetro para que o juiz, por ocasião do
julgamento, afira o comportamento e a boa-fé demonstrados nas fases anteriores, além das
próprias objeções argüidas diante da reclamação de pagamento.
3.2.3 Argüição como demanda reconvencional
Demandado para o cumprimento forçado da prestação inadimplida, pode o
devedor apenas defender-se por meio da exceção do contrato não cumprido, como também
adotar uma postura ofensiva, contra-atacando o autor com uma ação reconvencional.
Uma e outra forma de atuação apresentam vantagens e desvantagens.
A mais importante vantagem da demanda reconvencional é a possibilidade de
ofertar ao reconvinte um futuro título executivo judicial, o que não obteria se acaso optasse
por simplesmente argüir a exceptio em contestação, neutralizando, completamente ou em
parte, a ação de cumprimento proposta, pois, em nenhuma dessas situações obteria uma tutela
específica da obrigação contra o demandante, restando apenas a possibilidade de, uma vez
reconhecida a exceptio, demandar seu crédito noutra ação.
Por outro lado, os limites impostos pela coisa julgada aumentam tanto mais o
risco da segunda opção, à medida que o reconhecimento do seu crédito pode coincidir com o
reconhecido na primeira demanda, podendo ainda haver igualdade entre as circunstâncias
da inexecução, considerando a existência anterior de definição sobre determinada situação
jurídica.
O direito não pode se constituir em fator de insegurança. A coisa julgada surge
exatamente com o papel de estabilizar as relações, impedindo o proferimento de nova decisão
acerca da mesma pretensão, da mesma relação jurídica obrigacional. Desse modo, definidos
em sentença alguns aspectos da relação crédito-débito, o juiz pode ver-se obrigado a abster-se
162
de proferir novo juízo valorativo acerca da matéria, reduzindo as possibilidades de êxito da
nova demanda.
A opção pela demanda reconvencional, por sua vez, tem a vantagem de permitir
ao reconvinte ampliar os limites objetivos da demanda, postulando pretensão conexa com a
ação principal embora mais abrangente.
3.3 Exceptio e cumprimento incompleto, defeituoso ou inexato da prestação
Aqui o campo de aplicação da exceção do contrato não cumprido alarga-se para
também abranger os casos de cumprimento imperfeito da obrigação, caracterizando o que o
direito germânico denominou de exceptio non rite adimpleti contractus (Einrede des nicht
gehoerig erfüllten Vertrages). Controvertendo se a espécie passaria a constituir um instituto
distinto ou se poderia ser identificada à exceptio non adimpleti contractus (LOPES, 1959).
Debate justificado mercê da exigência do requisito de inadimplemento para ambos os
institutos, visto que cumprimento defeituoso ou incompleto equivale ao descumprimento.
Acerca do reconhecimento do instituto, María Cruz Moreno (2004, p. 63) entende
que:
Desde el Derecho común, se ha admitido la posibilidad de oponer la exceptio ante
ejecuciones parciales o defectuosas de la prestación, defensa que a partir del s.
XVIII, se dio en llamar exceptio non rite adimpleti contractus, y que se reconoce de
una forma u otra en todos los Ordenamientos de nuestro entorno.
Nada obstante isso, minoritária doutrina espanhola defende que a possibilidade de
opor a exceptio non rite adimpleti contractus deve se restringir às hipóteses em que o
cumprimento imperfeito revele-se grave e capaz de interferir na finalidade desejada pelo
contrato. Para Moreno (2004, p. 63), trata-se de “Doctrina peligrosa, que al cabo admite la
exceptio sólo en los casos en los que podría operar además la resolución por incumplimiento
[...]”.
Inúmeros ordenamentos consagram o instituto da exceptio non rite adimpleti
contractus. O § 320 II da BGB alude expressamente seu cabimento quanto à execução parcial
estendendo-se também às hipóteses de execução defeituosa. Doutrina e jurisprudência
portuguesas e italianas retiram esse instituto das normas dos respectivos Códigos que
163
consagram a exceção de contrato não cumprido, em caráter geral. Idêntica conclusão sucede
na França e na Espanha (MORENO, 2004).
No ordenamento civil brasileiro, entende Marcos Jorge Catalan (2007, p. 352-
353), que havendo cumprimento inexato ou defeituoso da obrigação:
[...] será hábil a disparar a exceção do contrato não cumprido, conforme se pode
extrair da leitura do art. 476 do Código Civil, que dita que: “nos contratos bilaterais,
nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o
implemento da do outro”, regra que poderá ser invocada para embasar a exceptio
non rite adimpleti contractus, aplicável, por conseqüência, não apenas na situação
de mora do parceiro negocial, mas também quando tiver desempenhado sua
prestação de modo inadequado. Dessa forma, em quaisquer casos, a exigibilidade da
prestação assumida por quem tenha sido recebido prestação defeituosa será suspensa
até que o vício seja sanado.
Assim, a prestação mal executada, com defeitos ou incompleta permite ao
excipiente recusar o adimplemento em relação à sua parte, constituindo essa espécie de
argüição um meio defensivo em face da atuação do excepto.
E natural que assim seja, pois se o excipiente pode reclamar a execução da
obrigação e até mesmo promover a resolução da avença (em tese, armas mais poderosas)
diante da inadimplência ou apenas do adimplemento imperfeito por parte do excepto, com
maioria de razão também pode usar o meio defensivo da recusa de pagamento.
A particularidade a ser demonstrada com a oposição da exceptio non rite
adimpleti contractus é que a prestação recebida pelo excipiens não possui caráter liberatório,
com isso o devedor não pode considerar que a prestação foi integralmente cumprida.
Outro ponto que costuma suscitar controvérsias quando se trata de cumprimento
imperfeito da obrigação é a matéria alusiva aos cios redibitórios, que segundo a doutrina de
Álvaro Villaça Azevedo (2002, p. 96):
[...] é o defeito oculto em determinado objeto, em um contrato comutativo, que passa
despercebido pelas partes, ou só pelo adquirente, no momento da concretização
negocial, e que, por tornar a coisa imprestável ao uso a que se destina ou
desvalorizada, possibilita ao mesmo adquirente redibir o negócio ou pedir
abatimento no preço.
No direito brasileiro, a matéria encontra-se regulada nos arts. 441 a 446 do
CC/2002 e, como se dessume, diz respeito à coisa, ao objeto da prestação, cujo vício lhe é
inerente. O cumprimento imperfeito, ao revés, atine à prestação em si, que constitui o objeto
da própria obrigação. De conseguinte, diferentes são os institutos e a própria postura dos
contratantes.
164
Diante do vício redibitório e da demanda do alienante, o contraente pode enjeitar a
coisa, redibindo o contrato, ou reclamar abatimento proporcional do preço (quanti minoris ou
aestimatoria), o que faz por meio de autêntica demanda reconvencional. Não está, portanto,
em face de simples adimplemento imperfeito, ensejador da exceptio non rite adimpleti.
A argüição de exceção do contrato não cumprido é plenamente possível diante do
adimplemento imperfeito da obrigação, observados os pressupostos tratados neste trabalho,
como a necessidade de relação sinagmática, da simultaneidade das prestações e da
imprescindibilidade da boa-fé.
O fundamento da exceptio é a ausência de satisfação plena do interesse da parte
demandada na ação de cumprimento, cujo impulso será paralisado até a integral realização da
prestação.
3.4 Os efeitos da exceptio non adimpleti contractus
Nesse ponto, abordam-se os resultados práticos da exceptio tanto em face das
partes contratantes, como em razão dos terceiros que de alguma forma intervêm na relação
obrigacional.
Os efeitos jurídicos da exceptio non adimpleti contractus dizem respeito, como
se acentuou em diversas passagens, apenas aos contratos sinalagmáticos, nos quais cada um
dos sujeitos possui deveres de prestação autônomos, mas ligados por íntima conexão que os
vincula do nascimento à execução da obrigação, de modo a manter o equilíbrio entre
prestação e contraprestação.
Nesse contexto, a exceptio confere a um dos sujeitos da relação, em face do
inadimplemento anterior do outro, o direito de diferir a realização de sua prestação até que
esteja diante do integral adimplemento, inspirando-se em princípios de eqüidade e boa-fé, por
isso que também extensivo aos terceiros que, em diferentes medidas, submetem-se aos
reflexos da relação obrigacional primária.
165
3.4.1 Efeitos entre as partes da relação obrigacional
O principal efeito da exceção do contrato não cumprido em face das partes é
paralisar a ação de cumprimento, permitindo ao excipiente suspender o adimplemento da
prestação a que é obrigado até que o excepto cumpra a que lhe compete. Daí porque chamar a
exceptio de exceção dilatória.
Possibilitada, por lei, a argüição da exceptio non adimpleti contractus, não que
se falar, na espécie, de mora no cumprimento da obrigação, pois inexiste fato ou omissão
imputável ao devedor
132
, mas sim à contraparte, esclarecendo Serpa Lopes (1959, p. 313) que
diante da exceptio, “o excipiente, como que, se coloca na mesma posição de um devedor a
termo, até que o autor cumpra sua obrigação”.
Além de paralisar a ação de cumprimento, a exceptio impede que o demandante
procure, por qualquer via direta ou indireta, in natura ou por equivalente –, satisfazer seu
crédito, sem antes cumprir a sua obrigação ou oferecer, simultaneamente, a prestação devida.
Moreno (2004) assinala que se a obrigação versar sobre bens fungíveis,
especificamente, dinheiro, incabível a compensação com outro crédito que não aquele
derivado da relação obrigacional sinalagmática. Da mesma forma, invocada a exceptio, a
obrigação de fazer, não pode ser realizada por terceiro à custa do devedor. Inaplicável,
portanto, o art. 249 do CC/2002
133
.
Em se tratando de obrigação de entrega de bem, o excipiens poderá negar-se a
entregá-la “[...] mientras perdure la situación de inejecución de la contraprestación, sea que el
acreedor intente obtenerla mediante el ejercicio de acción personal o mediante acción real que
sea” (MORENO, 2004, p. 90). Nesse caso, o excipiens permanece na custódia do bem, com a
mesma diligência de outrora, não podendo dele se desfazer para realizar o seu crédito.
Quando a prestação do excipiente consistir numa obrigação de dar coisa certa, a
conservação decorrente da sua retenção será responsabilidade da contraparte inadimplente,
que se coloca na mesma posição do credor em mora, devendo ressarcir as despesas
empregadas na manutenção da coisa, ficando o mesmo sujeito a recebê-la pela estimação mais
132
Nesse sentido, aliás, a redação do art. 396 do CC/2002: “Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor,
não incorre este em mora”.
133
Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do
devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível.
166
favorável ao excipiente, caso haja oscilação do valor do bem entre a data de conclusão do
contrato e a do adimplemento, na esteira do que preconiza o art. 400 do CC/2002
134
.
Caso esse bem renda frutos, o excipiens poderá percebê-los e retê-los juntamente
com o bem principal ou vendê-los, na eventualidade de perecerem. Em qualquer das
hipóteses, o devedor estará impossibilitado de satisfazer seu crédito com tais rendimentos.
Reconhecida a situação de mora do excepto, que deixou de realizar a prestação
que primeiro lhe incumbia, não se pode, uma vez acolhida a exceptio, imputar ao devedor
excipiente a responsabilidade pelo pagamento dos juros moratórios, assim como pela
satisfação da cláusula penal resultante do inadimplemento.
Na hipótese de solidariedade passiva, aplica-se a regra fundamental da correlação
das obrigações, podendo o credor-devedor excipiente suscitar a exceptio contra qualquer dos
credores que lhe exija a prestação sem primeiro realizar a que se obrigou solidariamente.
Ao tratar do peculiar efeito da exceptio em face da pluralidade de devedores,
Serpa Lopes (1959, p. 316) informa que:
No Direito germânico, esse caráter da exc. n. ad. contractus mantém-se mesmo no
caso de obrigações não solidárias, cumprindo ressaltar que, no sistema daquele
Direito, de acordo com o art. 427 do B.G.B, existindo várias pessoas vinculadas a
uma obrigação conjunta, o todas presumidamente consideradas devedoras
solidárias. A indivisibilidade da exc. n. ad. cont. está determinada no período da
alínea do art. 320 do B.G.B., quando determina: ‘Si la prestación ha de realizarse
para varios, puede ser negada a cada uno la parte a él correspondiente hasta la
efectuación de toda la contraprestación’.
Na mesma medida, no direito brasileiro, prevalece o entendimento segundo o
qual, se o autor, sendo ao mesmo tempo devedor solidário, deixou de cumprir a prestação,
conquanto em parte, pode o réu excipiente argüir-lhe a exceção do contrato não cumprido até
o recebimento da prestação devida.
3.4.2 Efeitos entre terceiros
Além de ser argüida perante os titulares originários do crédito sinalagmático, a
exceção do contrato não cumprido também pode ser oponível em face daqueles que não
134
Art. 400. A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa,
obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais
favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação.
167
participaram diretamente do nculo prestacional desde sua origem, mas que posteriormente,
são atingidos por seus efeitos.
Na lição de Moreno (2004, p. 93), para conhecer o alcance e eficácia do remédio
perante outros sujeitos, faz-se necessário apreender a finalidade e o fundamento da exceptio, e
nesse sentido:
[...] recordemos que se trata de un remedio que se otorga sólo respecto de los
créditos sinalagmáticos, en orden al mantenimiento, durante la fase de ejecución de
la relación, del equilibrio preexistente, que se materializa en el principio del
cumplimiento simultáneo de los mismos. Son estos, créditos que están previamente
conexionados, equilibrados entre sí, y con la exceptio se trata de impedir el
desequilibrio de la relación, con el conseguinte prejuicio para una de las dos partes
implicadas.
O equilíbrio da relação contratual é “uma realidade objetiva”, passível de ser
modificada, independentemente de figurar como inadimplente de uma das prestações
recíprocas, o obrigado originário ou um terceiro. Assim, a exceptio poderá ser oponível contra
aquele que ingresse na relação jurídica sinalagmática, titular ou não de um direito próprio.
Esse, portanto, é o requisito necessário para o exercício da ação (MORENO, 2004).
Lopes (1959) inclui entre as hipóteses, os casos de delegação, expromissão,
cessão de crédito, cessão de contrato, ação subrogatória, fiança e contratos a favor de
terceiros.
Na delegação, o novo devedor (terceiro), chamado de delegado, assume a
prestação do devedor originário (delegante) com o consentimento do credor, aqui denominado
delegatário.
Na expromissão, a diferença é que o terceiro apresenta-se espontaneamente ao
credor para liberar o antigo devedor e sem o consentimento deste.
Em qualquer dos casos, têm-se duas relações obrigacionais distintas, apesar de
muito próximas: a antiga, entre delegante e delegado. E a nova, entre credor-delegatário e
terceiro-devedor-delegado.
Assim, eventual exceptio que o delegado possa opor ao delegante, em face da
antiga relação, não será oponível por este ao delegatário, salvo, em caso de expromissão, pelo
próprio inadimplemento do delegatário diante do delegante, defendendo Lopes (1959, p. 319)
que:
[...] se o terceiro se oferece espontaneamente para assumir a responsabilidade pelo
adimplemento de um débito de outrem, não pode opor ao credor as exceções de
inadimplemento relativas às relações entre ele e o devedor originário, mas pode, ao
168
contrário, opor-lhe essas mesmas exceções se disserem respeito ao inadimplemento
do próprio credor em relação ao devedor originário e, isto mesmo, no caso em que
este haja sido liberado.
Nessa situação a inoponibilidade da exceção representaria um prêmio ao credor
inadimplente.
Em caso de pura delegação, em que a nova obrigação é estipulada a título de
encargo para o terceiro (que é devedor do devedor originário), este liquidará seu próprio
débito ao pagar ao credor a dívida do delegante, razão pela qual a exceptio será inoponível
pelo terceiro (pelo fato de haver aceito o encargo) em face do credor delegatário. Nessa
hipótese, o terceiro que ingressa na relação jurídica pode opor as exceções que tenham por
fundamento a obrigação delegada, todavia, é vedado argüir exceções baseadas em outras
relações, seja com o credor ou com o devedor liberado da obrigação.
Na cessão de crédito, assim como na própria cessão de posição contratual ou
cessão do contrato, as exceções inerentes ao cedente passam para o cessionário com a
transmissão das obrigações.
A peculiaridade na cessão de crédito é que o cedente fica responsável ao
cessionário pela existência do crédito ao tempo da cessão
135
. Afora essa, nenhuma outra
responsabilidade caberá ao cedente. Perfeita que seja a cessão, o cessionário ingressa na
mesma posição jurídica do cedente.
o devedor, também denominado de cedido, pode opor ao cessionário e ao
cedente, as exceções que lhe competirem. Mas quanto a este último, apenas as exceções que
tinha no momento em que tiver conhecimento da cessão.
Na assunção de dívida, por sua vez, o terceiro que assumir a obrigação do devedor
originário não pode opor a exceptio que este eventualmente pudesse ter em relação ao credor,
operando-se, em razão disso, certa mudança na extensão da obrigação, que passará a vigorar
apenas entre o novo devedor e o credor. Nesse caso, o devedor primitivo somente não ficará
exonerado se o terceiro que assumir a obrigação era insolvente ao tempo da assunção e o
credor desconhecia esse fato.
Na sub-rogação, o terceiro que paga a vida do devedor originário, recebe todos
os direitos, ações, privilégios e garantias do credor primitivo, recebendo, na mesma
proporção, a possibilidade que este tinha de opor a excepto e de com ela ser confrontado pelo
devedor.
135
É que reza o art. 295 do CC/2002: Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize,
fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu [...].
169
Na fiança, se o fiador for demandado pelo pagamento da dívida do devedor
principal, além do direito de exigir a exceptio escussionis, alegando o benefício de ordem (nos
casos em que o benefício o aproveita), pode suscitar a exceção do contrato não cumprido, em
face da cobrança que lhe endereça o credor, na hipótese de este encontrar-se inadimplente.
A exceptio também estará presente na estipulação em favor de terceiro, à medida
que a este terceiro, beneficiário da estipulação, é permitido exigir a obrigação do promitente
que, como devedor na relação sinalagmática, pode opor a exceção do contrato não cumprido,
tanto contra o terceiro beneficiário (na hipótese de este exigir o cumprimento da prestação),
como contra o próprio estipulante inadimplente. O direito titularizado e exercitado pelo
terceiro deriva da mesma fonte da qual surge o direito à contraprestação do estipulante.
Do mesmo modo, a exceção do contrato não cumprido também é possível de ser
suscitada na promessa de fato de terceiro e no próprio contrato com pessoa a declarar. No
primeiro caso, tanto pelo promitente quanto pelo terceiro, quando este aquiesce ao
cumprimento da obrigação, em relação ao credor inadimplente. No segundo, a terceira pessoa
nomeada, que adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes do contrato, pode opor a
exceptio em face do contratante originário.
170
CAPÍTULO 4 - A ARGÜIÇÃO DA EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO
FRENTE À QUEBRA DE DEVER LATERAL
Estudada a cláusula geral da boa-fé objetiva em seus vários aspectos, as figuras do
inadimplemento e a exceptio non adimpleti contractus, cumpre agora interpenetrar a análise
desses institutos, visando retirar todas as potencialidades da cláusula geral da boa-fé objetiva.
Aqui o ponto fundamental desta pesquisa. Considerar, para fins da exceptio, não
deveres de prestação conexos e simultâneos entre si, mas sim com as mesmas características
de reciprocidade e simultaneidade, deveres de prestação e deveres laterais de conduta. Os
primeiros decorrentes do contrato. Os segundos, da cláusula geral da boa-fé objetiva.
O entrelaçamento entre deveres de prestação e deveres laterais e a sustentação que
uns conferem aos outros, a um tempo, favorecem o atingimento do escopo contratual e
permitem sua confrontação, via exceptio, em caso de inadimplemento.
4.1 A contratualização dos deveres laterais
Os deveres laterais justapõem-se aos deveres de prestação visando o melhor
adimplemento contratual. Todavia, têm como fonte a cláusula geral da boa-fé objetiva.
Segundo entendimento de Paulo Mota Pinto (1995), os deveres laterais constituem
expressão de acordos ditos “tácitos”, inicialmente alicerçados num pacto de garantia
celebrado pelas partes, cuja violação originaria responsabilidade por culpa in contrahendo.
Embora não estejam diretamente relacionados com a prestação, os deveres laterais
lhe dão respaldo e, por isso, são de observação obrigatória por todos os contratantes, razão
pela qual devem ser inseridos na relação obrigacional, considerada modernamente como
relação complexa.
A contratualização dos deveres laterais permite soluções mais gicas e coerentes
dos inúmeros casos submetidos à apreciação judicial, que passam a ser solucionados no
perímetro do contrato, tanto no que respeita aos limites da responsabilidade das partes pelo
seu inadimplemento, como na verificação do direito de resolução do contrato e, ainda, quanto
à possibilidade de argüição da exceção do contrato não cumprido.
Sob essa ótica destaca-se o entendimento de Nerilo (2007, p. 77), quando leciona:
171
Supera-se uma concepção ilusória, que permeou toda a teoria liberal dos contratos,
de que as vontades soberanas e autônomas no momento do fechamento do negócio
têm mais valor do que os acontecimentos que o rodeiam. François Ost diz que isso é
uma vontade de estreitar a duração real de uma criação jurídica “simultaneamente
instantânea e virtualmente perpétua”. Como se as relações obrigacionais fossem
concebidas como um momento estático que tem seu começo e fim na firmatura do
pacto “instante mágico da troca de vontades”.
Compreender os deveres laterais como decorrentes do princípio neminem laedere
e remetê-los para o âmbito da responsabilidade civil geral, importa retirar do contratante
lesado a possibilidade de invocar a tutela contratual, deixando-o sem a necessária proteção
diante de inúmeras situações que ocorrem no cotidiano.
Não são poucas as situações em que uma das partes, adimplindo os deveres de
prestação no tempo, lugar e forma convencionados, negligencia no cumprimento de deveres
laterais, como os de proteção, cooperação, informação etc.
136
, não oportunando à contraparte
motivos justos para, por exemplo, pleitear a rescisão do contrato, ficando a mesma obrigada a
receber a prestação e, se o desejar, buscar eventual reparação em sede de responsabilidade
aquiliana.
Moreno (2004, p. 33-34) esclarece:
La experiencia revela sin lugar a dudas que el acreedor que ya recibió la prestación,
se encuentra menos inclinado al cumplimiento exacto de la contraprestación que a él
incumbe realizar. Obtenidas ya todas las ventajas de la operación, se comportará
normalmente de forma menos escrupulosa. Esta situación de desequilibrio,
provocada por la ejecución de una sola de las dos obligaciones sinalagmáticas, es
especialmente peligrosa en el caso de que la non cumplida, sea insusceptible de ser
ejecutada forzosamente en forma específica: si el deudor no se aviene
voluntariamente a ello – lo que se hace más probable estando ya satisfecho su
crédito –, tendrá el acreedor que conformarse con el equivalente económico. Pero en
cualquier caso es evidente la desventaja en la que se encuentra el acreedor
cumplidor: siempre existe el riesgo de no obtener la prestación debida, por
insolvencia del deudor, e incluso el de no poder recuperar la realizada a su favor
en caso de que opere la resolución por incumplimiento. Se concluye, pues, que
mantener el equilibrio de la relación sinalagmática en el curso de su ejecución, no
es, en suma, una cuestión de escrúpulo innecesario, sino una medida de equidad con
la que se pretenden evitar peligrosas consecuencias.
Algo semelhante sucederia com o contratante que, sofrendo sucessivos danos ao
seu patrimônio em face da atuação culposa da contraparte na execução do contrato, fosse
obrigado a cumprir rigorosamente seus deveres de prestação, sem qualquer possibilidade de
opor a exceção do contrato não cumprido.
136
O rol de deveres laterais não é exaustivo, pois numa relação jurídica obrigacional podem manifestar-se
inúmeros deveres laterais com o intuito de preservar as legítimas expectativas adquiridas pelas partes em razão
do vínculo contratual, mas todos decorrem do vetor confiança e podem ser classificados, como visto, em deveres
de proteção, lealdade e cooperação, assim como de informação e esclarecimento.
172
Diante disso, defende-se a contratualização dos deveres laterais, cuja observação é
imposta aos sujeitos da relação, quando tais deveres estejam vinculados à execução do
contrato.
Portanto, se acaso não diretamente ligados à execução do contrato, tais deveres
podem decorrer da obrigação geral de não lesar ninguém. Entende-se ser esse o melhor
parâmetro técnico a impedir um exacerbado alargamento dos deveres anexos oriundos da
cláusula geral da boa-fé objetiva. Isso porque:
A boa- objetiva constitui, no campo contratual sempre tomando-se o contrato
como processo, ou procedimento , norma que deve ser seguida nas várias fases das
relações entre as partes; o pensamento, infelizmente, ainda muito difundido, de que
somente a vontade das partes conduz o processo contratual, deve ser definitivamente
afastado. É preciso que, na fase pré-contratual, os candidatos a contratantes ajam,
nas negociações preliminares e na declaração da oferta, com lealdade recíproca,
dando as informações necessárias, evitando criar expectativas que sabem destinadas
ao fracasso, impedindo a revelação de dados obtidos em confiança, não realizando
rupturas abruptas e inesperadas das conversações etc. Aos vários deveres dessa fase
seguem-se deveres acessórios à obrigação principal na fase contratual quando a
boa-fé serve para interpretar, completar ou corrigir o texto contratual e, até
mesmo, na fase pós-contratual, a boa-fé também cria deveres, os posteriores ao
término do contrato são os deveres post pactum finitum [...]. Em qualquer uma das
fases contratuais, a cláusula geral da boa-fé, como norma de comportamento, cria,
para as partes, deveres positivos e negativos; estão, entre os primeiros, os deveres de
colaboração, inclusive informação ou seja, as partes, no contrato, formam como
que um microcosmo, ou pequena sociedade, como já dizia Demogue, na década de
30 –, e, entre os segundos, os deveres de lealdade, especialmente, o de manter sigilo
(AZEVEDO, 2004, 176-177, grifo do autor).
Os deveres laterais vinculam-se a qualquer espécie de contrato, sendo também
desnecessária sua previsão expressa. Certo, porém, é que a intensidade de atuação de cada
dever lateral dependerá dos objetivos do negócio jurídico, havendo casos em que um
determinado dever exercerá maior influência sobre outro
137
.
A concepção de que os deveres laterais possuem contorno obrigacional não é
nova. Nasceu no início do século passado na Alemanha, país que registra o julgamento do
famoso caso dos rolos de linóleo lembrado alhures –, no qual uma compradora foi
atingida por rolos do tecido num estabelecimento comercial, tendo o tribunal germânico
(Reichsgericht) decidido indenizá-la, ao fundamento da violação dos deveres de cuidado
semelhantes aos das relações contratuais (CORDEIRO, 2007).
137
Para Ustárroz (2007, p. 85): “É certo que a boa-fé ordena que os sujeitos atuem preservando sempre os
interesses legítimos do alter. No entanto, de tal raciocínio não se deve concluir que, quando o comportamento
prescrito pela boa-fé objetiva importe sensível prejuízo para uma parte, esta, ainda assim, esteja obrigada a
obedecê-lo. Com razão, existirão muitos deveres impostos pela boa-fé objetiva, sendo que parcela deles afetará,
em maior ou menor escala, os interesses dos sujeitos. Daí que o comportamento segundo a boa-fé objetiva
deverá ser pensado a partir das circunstâncias concretas de ambos contraentes, pois de nada adiantaria salvar o
interesse de uma para comprometer o do outro parceiro”.
173
A doutrina francesa também cuidou dos deveres laterais sustentando, todavia, que
seu nascimento estava na vontade. Na Itália, o tema não foi desenvolvido com interesse num
primeiro momento, já que o ordenamento jurídico daquele país não exigia maior preocupação
dos tribunais sobre a classificação contratual ou extracontratual do dano. Logo, foi
efetivamente, a doutrina alemã quem, favorecida pelas características da BGB, realizou
fundamentação mais abrangente sobre os deveres laterais, segundo informa Silva (2002, p.
78-79, grifo do autor), ao registrar que:
[...] uma série de autores passou a abordar o problema, como ZITELMANN, que
diferenciou deveres prévios de proteção [Obhutspflichten] de deveres laterais
autônomos; SIBER, que indicou existirem deveres laterais de conservação e
informação; SCHLESINGER, que abordou o tema do inadimplemento considerando
os deveres laterais com base na noção de relação obrigacional como organismo e
KREβ, que teria sido o primeiro a diferenciar claramente os deveres de prestação
[Leistungspflichten] dos deveres de proteção [Schutzpflichten], assim como os
interesses correspondentes [Vertragsinteresse; Erhaltungsinteresse,
respectivamente]. Coube a HEINRICH STOLL, porém, a tarefa de, pela primeira
vez, sistematizar e organizar a distinção antes enunciada. A partir dele pode-se
afirmar a doutrina alepassa a contar com uma fundamentação própria para os
deveres laterais. Segundo STOLL, como se viu, toda relação obrigacional implica
uma duplicidade de interesses. Num primeiro plano, as partes vinculam-se visando o
objeto da prestação, cabendo ao resultado da atuação do devedor atingir o
cumprimento. Trata-se, pois, de um interesse positivo: que se fazer algo para que
um determinado resultado seja atingido. De fundo, por sua vez, outro interesse.
Toda relação expõe a pessoa ou os bens de uma parte à atividade da outra, que pode,
com esta atividade, provocar danos a tais bens ou colocá-los em perigo. Incide então
a boa-fé, a regular o comportamento dos sujeitos por meio da criação de uma série
de deveres dedicados a evitar situações danosas. Esses deveres, assim, ao contrário
dos anteriores, veiculam um interesse negativo: que se fazer algo (ou que se
tomar determinadas medidas) para que um determinado resultado não seja atingido.
Esses deveres são por ele chamados de ‘deveres de proteção’ [Schutzpflichten],
frequentemente representados em deveres de aviso e de conservação [Anzeige und
Erhaltungspflichten].
Esses interesses “de fundo” da relação obrigacional são protegidos pelos deveres
laterais, subjetivados em ambas as partes, visando à preservação da própria pessoa e do seu
patrimônio. Sua função é negativa, ou seja, é impedir que o interesse de proteção seja
prejudicado, posto em perigo ou violado, permitindo com isso o melhor adimplemento.
O ordenamento civil holandês traz regra expressa no art. 248, do Livro das
Obrigações, sobre a criação de deveres anexos, estabelecendo que às partes cumpre respeitar
não só o que foi convencionado, mas também tudo aquilo que resulta da natureza do contrato,
da lei, dos usos e das exigências da razão e da eqüidade
138
.
138
O Código Civil holandês utiliza a expressão “exigências da razão e da eqüidade” em substituição à boa-fé,
visando evitar confusão com a boa-fé subjetiva (AZEVEDO, 2004).
174
A cláusula geral da boa-fé encontra-se inserida na expressão “exigências da razão
e da eqüidade”. Essa norma prevê que do contrato decorrem deveres implícitos, diversos
daqueles convencionados pelas partes (AZEVEDO, 2004). Portanto, esses deveres compõem
a relação obrigacional, conferem-lhe completude, complexidade, ampliando a própria noção
de adimplemento, que passa a abranger todos os interesses envolvidos na obrigação, sejam os
diretamente relacionados à prestação, sejam os relativos ao comportamento das partes,
também relacionados com a prestação.
E se os deveres laterais constituem deveres tipicamente contratuais, seu
descumprimento, tem que gerar responsabilidade civil contratual ou negocial, jamais
responsabilidade extracontratual ou aquiliana, derivada do rompimento da regra geral de
noeminem laedere.
Como sustenta Silva (2002, p. 85-86):
[...] a contratualidade dos deveres laterais não pode ser tratada como um problema
de responsabilidade civil, especialmente como um problema de alargamento deste
campo, passível seguramente de ocorrer, fincar-se-á somente em exigências
sistemáticas, mas fundamentalmente em elementos determinantes do caso concreto
posto à verificação judicial. A abordagem da natureza obrigacional ou contratual dos
deveres laterais deverá sustentar-se, assim, na análise do fenômeno obrigacional e
contratual na sua totalidade, avaliação que tem na responsabilidade civil um dos
mais importantes elementos, mas não o único. Ao lado dele, impõe-se também a
percepção do direito de resolução por inadimplemento sublinhado especialmente
por STAUB assim como a possibilidade de oposição da exceção do contrato não
cumprido, que revelam a necessidade, ou pelo menos, as enormes virtudes da
alocação contratual dos deveres laterais.
Com razão o mestre gaúcho. Diante de um contrato de prestação continuada, em
que uma das partes produz danos seqüenciados à outra, deixando entrever com seu
comportamento que a lesividade não cessará, cabem as seguintes indagações: de que maneira
poder-se-ia pleitear a resolução do contrato, sem a compreensão de que a conduta lesiva
representa violação de dever lateral? E se a opção for a argüição da exceptio, como contrapor
o inadimplemento de dever lateral sem considerar sua natureza contratual?
Todas as respostas conduzem à contratualização dos deveres laterais. Por outro
lado, a se entender que o dano tem natureza extracontratual, a parte lesada, no exemplo
apresentado, ver-se-á na absurda obrigação de ingressar com uma nova medida judicial a cada
lesão provocada pela outra, ou, o que é ainda pior e mais ilógico, promover a resolução do
contrato, obrigando-se ao pagamento de cláusula penal pela iniciativa do rompimento do
pacto.
175
O fenômeno obrigacional deve, portanto, ser analisado de maneira abrangente, de
modo a permitir a contratualização dos deveres laterais, desde que diretamente relacionados
com o cumprimento dos deveres de prestação.
Essa relação se faz necessária a fim de evitar um exagerado alargamento dos
deveres abrangidos pelo vínculo, com a inclusão de algum dever sem conexão com a
execução do contrato. A respeito preleciona Silva (2002, p. 89):
[...] todos aqueles deveres que não possam ser relacionados como necessários à
execução do contrato, ou da obrigação, estão fora de seu âmbito, como o dever de
não furtar ou de não roubar o patrimônio da outra parte. De outro lado, são
obrigacionais, o dever de não destruir o patrimônio da outra parte com a execução
do contrato, ou o de não informar as eventuais conseqüências danosas do mau uso
da máquina instalada, ou o de instalar a máquina de modo a melhor atender os
interesses do adquirente. [...] A obrigação e com mais vigor a obrigação contratual
possui na sua complexidade interna um conjunto de deveres que não se resumem
aos deveres de prestação.
Clara é a distinção entre deveres de prestação e deveres laterais. A começar por
suas fontes. Os laterais, como observado, têm substrato na cláusula geral da boa-fé. Os de
prestação, na vontade das partes contratantes. Pluralidade de fontes que pode ainda ser
classificada em fáticas e normativas, como esclarece Silva (2002, p. 96, grifo do autor):
Quando se afirma que os deveres laterais possuem fontes normativas e fáticas
diversas dos deveres de prestação, tem-se uma decorrência desta distinção ora
focalizada. No que toca à fonte normativa, já foi visto que os deveres laterais
fundam-se preponderantemente no princípio da boa-fé, especialmente no vetor
confiança, quando este não se destina a impor uma dada prestação, mas a impedir
que danos venham a ser provocados à pessoa ou aos bens da outra parte, ou a
determinar que o adimplemento se da forma qualitativa e objetivamente mais
satisfeita aos interesses do credor e de forma menos onerosa ao devedor. no que
toca à fonte fática, pode-se perceber que os deveres de prestação possuem como
suporte concreto o momento genético do contrato, ou seja, o momento em que as
duas vontades se conjugam. Após esse momento genético, pode ocorrer que uma
dessas vontades, ou até mesmo ambas, se altere. Se isso se der, somente por outra
disposição contratual-normativa, um aditivo contratual, por exemplo, é que se
poderá alterar o conteúdo normativo da relação. Por seu turno, os deveres laterais
possuem como fonte fática o conjunto de fatos ensejadores e/ou decorrentes do
acordo, independentemente do momento genético. Eles não têm por base, assim, as
declarações de vontade gênese do contrato, mas as atuações das partes (inclusive
eventualmente declarativas de vontade superveniente) e o conjunto de
circunstâncias, mesmo que decorrentes de terceiros, envolvidas na relação.
Outro ponto de dessemelhança é que, uma vez invalidado o negócio jurídico, os
deveres de prestação se extinguem, enquanto os laterais remanescem, ainda que o contrato
não tenha tido sua execução iniciada.
176
Exemplo destacado por Cordeiro (2007) é o do médico-cirurgião que o informa
corretamente o paciente dos riscos e efeitos de uma determinada intervenção. Ainda que o
contrato de prestação de serviços médicos seja, supervenientemente, considerado nulo desde o
início, o profissional não ficará exonerado da sua responsabilidade.
É que a nulidade do contrato atinge apenas os deveres de prestação, ligados que
são ao plano de validade do negócio. Os deveres laterais subsistem porque vinculados ao
plano da existência, incluindo aí, a fase de tratativas do vínculo.
Quanto à imputação, os deveres de prestação são destinados ao devedor, que deve
satisfazê-los atendendo a expectativa do credor na relação. os deveres laterais são
imputados a ambos os sujeitos da relação obrigacional, à medida que visam proteger as
esferas pessoal e patrimonial de todos os contratantes.
Como salienta Silva (2002, p. 102-103, grifo do autor):
A proteção dos contratos, nesses casos (de deveres laterais), é decorrência direta do
fato de que as partes se relacionam contratualmente e não do objetivo das partes na
relação. Por isso, a posição ativa ou passiva das partes na relação obrigacional não
tem relevância para a subjetivação desses deveres.
Relativamente ao tipo contratual, os deveres de prestação amoldam-se a cada
espécie (na compra e venda é um, na locação é outro etc.). Os deveres laterais, de seu turno,
são sempre os mesmos, independente do tipo de contrato, variando apenas em intensidade, eis
que a conduta conforme a boa-fé deve ser obrigatoriamente observada em qualquer contrato
nominado ou inominado.
Essas algumas distinções que antes de servirem para colocar em departamentos
estanques deveres de prestação e deveres laterais, ressaltam a importância de conferir-lhes a
indispensável relação de conexão, por intermédio da contratualização dos últimos em prol do
melhor atendimento dos primeiros.
4.2 A função reativa da cláusula geral da boa-fé objetiva
Ao tempo que gera deveres laterais de conduta, a cláusula geral da boa-fé também
atua limitando direitos subjetivos, quando estes são exercidos de maneira abusiva, no âmbito
do contrato, gerando danos à contraparte.
177
A função da cláusula é reativa porque efetivamente importa uma oposição à
pretensão abusiva, uma exceção à eficácia de determinado direito que se contrapõe ao sentido
cooperativo da relação obrigacional, à própria boa-fé numa perspectiva mais ampla e à função
social atribuída aos contratos pela ordem jurídica. Como acentua Martins-Costa (1999, p.
457), “a boa-fé como norma não admite condutas que contrariem o mandamento de agir com
lealdade e correção, pois só assim se estará a atingir a função social que lhe é cometida”.
Dessa forma, a cláusula da boa-fé surge com força inibidora de condutas
incompatíveis com os deveres de lealdade e cooperação, desdobrando-se, para tanto, em
diferentes aspectos. O primeiro deles é o venire contra factum proprium.
O venire contra factum proprium tem como ponto de partida a idéia segundo a
qual a confiança que constitui a base das relações obrigacionais impõe às partes o dever de
agir de maneira coerente, seguindo uma linha de conduta em todas as fases da contratação,
não lhes sendo permitido contrariar abruptamente determinada conduta anterior por meio de
uma atuação posterior. Vale dizer: o contratante não pode contrariar sua própria atitude
139
.
Segundo tal raciocínio jurídico, não é dado ao agente alterar sua postura no decorrer
de um negócio após se portar de um mesmo modo por determinado período. É uma
restrição ao direito subjetivo do agente, que não pode contrariar uma postura
anterior que criou uma expectativa na parte contrária (NICOLAU, 2007, p. 119).
Cordeiro (2007, p. 742) define o instituto como “o exercício de uma posição
jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente”.
Tem-se no venire dois comportamentos lícitos revelados pelo mesmo titular em
diferentes momentos, sendo o segundo comportamento contraditório com o primeiro.
Para Negreiros (2006, p. 146), a regra é dotada de complexidade, pois exige o
estabelecimento de critérios de valoração das condutas em contradição, segundo os ditames da
boa-fé objetiva:
Mais complexa é a regra do venire contra factum proprium, que, de forma geral,
proscreve o comportamento contraditório que importe quebra de confiança,
revertendo legítimas expectativas criadas a outra parte contratante. É mais complexa
porque, neste caso, não se exige sequer que o comportamento impugnado se realize
na seqüência de um ato objetivamente indevido [...] bastando que se configure um
139
Na lição de Loureiro (2008, p. 92), a teoria do venire contra factum proprium preleciona que: “[...] aquele que
adere a uma determinada forma de proceder não pode opor-se às conseqüências jurídicas que decorrem de sua
conduta contratual, justamente pelas expectativas legítimas que emergem para a outra parte que, de boa-fé,
supõe-lhe presentes e legítimos os efeitos. Esta figura prestigia a conduta transparente e honesta, combatendo o
comportamento malicioso de fazer aquilo que se sugeria ou indicava que não seria feito. De fato, ninguém pode
se opor a fato a que ele próprio deu causa, ou seja, voltar sobre os próprios passos, para infringir a estabilidade
da boa-fé objetiva, restringindo-se com isso o uso abusivo de um direito teoricamente legitimado”.
178
desvio de conduta em relação à linha de atuação que aquele contratante vinha
assumindo como padrão. [...] A complexidade desta noção ligada aos valores da
veracidade e da confiança, reside, como se percebe facilmente, no estabelecimento
de critérios de valoração aptos a determinar quais as contradições da conduta
humana que devem e quais as que não devem ser consideradas contrárias à boa-fé.
O comportamento inicial é o factum proprium. O subseqüente, que com o inicial
coloca-se em contradição, constitui a atuação contrária à boa-fé, à medida que a contraparte
confia que outra será a atuação, isto é, coerente e vinculada ao primeiro comportamento.
É ainda Cordeiro (2007, p. 747) quem aponta as situações em que essa
contradição de condutas é percebida:
[...] quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifeste
a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique e quando uma
pessoa, de modo, também, a não ficar especificamente adstrita, declare pretender
avançar com certa actuação e, depois, se negue.
Na espécie, pouco importa se o titular da posição jurídica age com culpa ou má-fé
deliberada. O que interessa verificar é a atuação incoerente e contrária aos deveres laterais de
lealdade, confiança e cooperação. Esse abusivo e inadmissível exercício de posição jurídica
contrapõe-se à cláusula geral da boa-fé objetiva.
Entretanto, não é qualquer conduta contraditória com a anterior que pode ser
inibida pela cláusula geral da boa-fé. Esta somente atua quando as expectativas frustradas
“[...] estejam devidamente fundadas em atos concretos (e não somente indícios) praticados
pela outra parte, os quais, conhecidos pelo contratante, o fizeram confiar na manutenção da
situação assim gerada” (NEGREIROS, 2006, p. 147).
Além disso, esse comportamento violador da legítima confiança somente será
alcançado pela cláusula geral da boa-fé objetiva quando injustificável ou se causar prejuízos à
contraparte.
A segunda função reativa da cláusula geral da boa-fé objetiva é a possibilidade de
exceção de dolo, segundo Cordeiro (2007, p. 720), “poder que uma pessoa tem de repelir a
pretensão do autor, por este ter incorrido em dolo”. Logo, ocorrendo o dolo, a pessoa obrigada
à determinada prestação poderia, licitamente, recusar-se ao respectivo cumprimento,
paralisando a pretensão abusiva.
O direito romano conferia à exceptio doli papéis diferenciados. A exceção seria
especial (exceptio doli specialis) quando o defendente alegasse a prática de dolo por ocasião
da formação da situação jurídica. Se a alegação surgisse no momento da discussão da causa, a
hipótese seria de exceptio doli generalis (CORDEIRO, 2007).
179
Como o sentido da exceptio doli specialis residiu verdadeiramente na anulação do
negócio jurídico em face do vício da manifestação da vontade pelo dolo, foi a exceptio doli
generalis a que teve maior desenvolvimento posterior, dela sobressaindo figuras como a
compensação e o direito de retenção (CORDEIRO, 2007).
Como exceção de direito material, a exceptio doli generalis constitui fundamento
para barrar a pretensão do autor cuja atuação dolosa tenha gerado dano à contraparte. Pune-se,
dessa forma, aquele que, depois de molestar o outro, age com dolo pleiteando o que deveria
ser restituído.
Por fim, a derradeira função reativa da cláusula geral da boa-fé objetiva é o tu
quoque, regra segundo a qual ninguém pode invocar normas jurídicas após descumpri-las
140
.
Do mesmo modo que ninguém pode adquirir direitos de má-fé.
Para Azevedo (2004), a idéia vem expressa na doutrina alemã de Larenz e
Teubner que alude à célebre frase de Júlio Cesar tu quoque, cujo significado é: “até você que
agiu desse modo, vem agora exigir de mim um comportamento diferente?”.
A respeito do tu quoque, leciona Negreiros (2006, p. 143):
[...] a idéia básica é a de que atenta contra a boa-fé o comportamento anterior, e,
especificamente, que resulte em desequilíbrio entre os contratantes, na medida em
que permita que contratantes igualmente faltosos sejam, não obstante, tratados de
forma desigual. Voltar-se contra os próprios atos constitui, nesta hipótese, um
comportamento que o princípio da boa-fé não tolera: equity must come in clean
hands resume o brocardo inglês. No caso específico da regra do tu quoque, a boa-
objetiva atua como guardiã do sinalagma contratual, impedindo que o contratante
que descumpriu norma legal ou contratual venha a exigir do outro que, ao contrário,
seja fiel ao programa contratual [...].
Segundo Cordeiro (2007, p. 837), a “fórmula tu quoque traduz, com generalidade,
o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem
abuso, exercer a situação jurídica que esta mesma norma lhe tivesse atribuído”. Para o mestre
português a aplicação da regra exige cautela, pois, se é absurdo que uma pessoa possa
desrespeitar um comando e depois vir exigir de outrem o seu acatamento, é igualmente sem
sentido admitir que um sujeito venha eximir-se aos seus deveres jurídicos simplesmente
alegando violações perpetradas por outra pessoa.
Portanto, a modalidade tu quoque de exercício inadmissível de posição jurídica
deve ser verificada em face do caso concreto, aplicando-se a chamada “equidade
140
Loureiro (2008, p. 91) define o tu quoque como “[...] uma conduta desleal de uma parte no contrato que
consiste no impedimento de fazer ou exigir do outro contratante o que não se faz ou não se exige de si próprio:
um contratante não pode exigir do outro aquilo que ele próprio não faz ou não cumpre. Assim, por exemplo, a
parte que não cumpre sua obrigação não pode exigir da outra a prestação correspondente”.
180
individualizadora” de que falava o mestre Alvim (1980), prestigiando-se a cláusula geral da
boa-fé objetiva.
Exemplo prático de aplicação da tu quoque é exatamente a exceção do contrato
não cumprido, pois encerra reconhecer que aquele que não cumpriu seu dever de prestação,
não pode exigir que a contraparte cumpra o seu. Logo, importa a perda de um direito,
conquanto em caráter provisório, exatamente em razão das condutas apresentadas
anteriormente.
Não se trata, porém, de qualquer alegação de violação de dever para justificar o
descumprimento da contraprestação. É imprescindível que a justificativa esteja baseada na
boa-fé e que se demonstre a relação de conexão entre as diferentes situações de
inadimplemento, como esclarece Martins-Costa (1999, p. 420):
Para os fins da legítima oposição da exceptio non adimpleti contractus, exige-se que
a recusa ao adimplemento encontre concreta justificação na relação entre prestações
inexecutadas e prestações recusadas, em relação aos vínculos de correspectividade e
interdependência entre os mesmos subsistentes, e, ainda, que a referida recusa não
seja contrária à boa-fé, isto é, não seja determinada por motivos não correspondentes
à finalidade para a qual esta é concedida pela lei.
O exercício inadmissível de posições jurídicas, como função reativa da cláusula
geral da boa-fé objetiva, deve ser vislumbrado em qualquer atuação contraditória, permitindo
que a parte demandada pelo cumprimento de dever de prestação, paralise, através da exeptio,
a pretensão da contraparte violadora de dever lateral.
4.3 A argüição da exceptio em face da violação de dever lateral
A boa-fé objetiva, além de cláusula geral, é fonte legal de direito e de obrigações e
dela, como visto, decorrem deveres laterais que impõem aos contratantes determinado
padrão de conduta, comportamento correto, ético, honesto, leal, cooperativo e solidário,
observados os usos e costumes.
Essa regra integra a teoria geral dos contratos e vale para todo e qualquer tipo de
contrato sinalagmático, em que ambos os contratantes possuem deveres a cumprir, de maneira
recíproca e concomitante, casos em que ela é especialmente sentida e tem efeito paralisante do
181
ajuste sempre que um dos contratantes pretender exigir que o outro cumpra a prestação sem
que ofereça a contrapartida.
E à medida que a relação obrigacional revela-se complexa, sendo integralizada
pelos deveres laterais, como os de lealdade, cooperação, solidariedade, informação e
esclarecimento, entre outros igualmente anexos aos deveres de prestação (principais ou
secundários), o descumprimento daqueles pode ensejar defesa por meio da exceptio
inadimpleti contractus na ação em que a parte inadimplente deduza pretensão de
cumprimento de dever de prestação.
No atual ambiente das relações obrigacionais, quem age com deslealdade e
desonestidade, estorvando o atingimento do escopo contratual pela violação de deveres
laterais de conduta, não pode exigir o cumprimento de dever de prestação por parte do outro,
segundo o princípio tu quoque, fundamento da exceção do contrato não cumprido.
A contraposição das situações de inadimplemento não pode ser obstada pela
distinção entre as fontes dos deveres de prestação e dos deveres laterais, à proporção que a
vontade das partes deve se conformar com os princípios de probidade e boa-fé. Noutras
palavras, a liberdade de contratar deve ser exercida em absoluta compatibilidade com a
cláusula geral igualmente geradora de direitos e obrigações.
E nem poderia ser diferente num sistema aberto, baseado em conceitos vagos
(caso das cláusulas gerais), onde a tópica tem ressonância e conduz à conclusão de que pode
haver direito sem fundamento em lei rígida ou que dela tenha que ser deduzido, pois:
Há direitos que têm o seu fundamento justamente em valores, princípios e standards
que provêm de outras fontes, de outros modelos, ou, no caso das cláusulas gerais,
em valores a que a própria lei reenvia. Estes, porém, podem ser deduzidos mediante
um processo lógico-formal de subsunção, exigindo a conjugação com o raciocínio
tópico. Em outras palavras, o ponto de partida é o topos ao qual o caso envia.
Posteriormente, é operada a recondução aos elementos normativos integrantes do
sistema. Compreende-se que assim seja. Como instrumentos da disciplina de certo
setor, as cláusulas gerais estão firmemente direcionadas à finalidade dos atos de
disciplina, sem a qual não seria possível definir a sua programação. O raciocínio
tópico é determinante para a definição desta finalidade, devendo, nessa perspectiva,
ser utilizado para adaptar as regras postas em determinado ordenamento, mesmo o
codificado, que ‘em todos os campos do direito, nos quais a solução do conflito
não seria compreensível sem o conhecimento ou a suposição de um programa
orientado a um fim, é necessário pesquisar os critérios de valoração que defluem da
finalidade’ do instituto, instituição, modelo ou norma, e do interesse a ser
juridicamente protegido (MARTINS-COSTA, 1999, p. 373-374).
O reconhecimento de que os princípios e os conceitos vagos possuem
normatividade caracteriza o chamado “pós-positivismo”, ambiente em que as normas não se
182
limitam a descrever condutas específicas, cuidando também de consagrar valores a serem
realizados por diversos meios (BARROSO, 2007b).
Esse é o espaço propício para que se confira caráter contratual aos deveres laterais
decorrentes da cláusula geral da boa-fé objetiva, cujo descumprimento pode fundamentar a
argüição da exceptio em face da demanda de cumprimento. E sendo procedente a exceptio,
fica suspensa a exigibilidade da prestação devida pelo excipiente.
Esses o critérios que, mediante a utilização do raciocínio tópico, podem ser
fixados para, com base na exceção do contrato não cumprido, se passar do simples confronto
entre deveres de prestação para a conexão entre esses e os deveres laterais, estabelecendo,
concretamente, a tutela dos interesses envolvidos na relação e a própria comutatividade das
obrigações.
O fenômeno é tanto mais possível de ser vislumbrado, se considerado que a
relação obrigacional não pode mais ser encerrada na simples idéia de vínculo jurídico de
natureza simples, caracterizado pela submissão do devedor ao credor.
Com efeito, a relação obrigacional atualmente assume moldura complexa, deve
ser compreendida como totalidade, como relação ampla, dinâmica e em permanente
transformação, dotada de novos deveres que, ao lado da vontade dos sujeitos, compatibilizam
o negócio com o atual estágio da sociedade pós-moderna.
A consideração da obrigação como processo
141
, dotado de complexidade e
dinamismo, foi bem apanhada pela pena de Martins-Costa (1999, p. 394, grifo da autora),
registrando essa lente gaúcha que:
[...] pode a relação de obrigação, no transcorrer de sua existência, muitas vezes em
razão das vicissitudes que sofre, gerar outros direitos e deveres que não os
expressados na relação de subsunção entre a situação fática e a hipótese legal, ou
não indicados no título, ou ainda poderes formativos geradores, modificativos ou
extintivos, e os correlatos estados de sujeição; pode, por igual, importar na criação
de ônus jurídicos e deveres laterais, anexos ou secundários ao dever principal, ao
qual corresponderão, por sua vez, outros direitos subjetivos, mesmo que não
expressamente previstos nem na lei, nem no título. Uma vez ocorridas, todas essas
‘vicissitudes’ e os efeitos jurídicos delas resultantes devem ser reconduzidos ao
conceito, completando-o ou formando-o para que se torne concretamente geral, isto
é, para que seja verdadeiramente dotado de uma unidade –vale repetir –, a ‘unidade
do todo articulado que contém em si a diferença’ e, por isso, seja unitário do ponto
de vista estrutural e funcional, bem como total em relação ao seu conteúdo.
Entre “outros direitos subjetivos” correspondentes aos deveres laterais nascidos
nesse novo contexto da relação obrigacional, insere-se o direito à argüição da exceção de
141
Expressão que é de Clóvis do Couto e Silva (2007a).
183
contrato não cumprido por parte daquele que, sofrendo violação de dever lateral, é demandado
pelo cumprimento de dever de prestação.
Nesses casos, a possibilidade da argüição ajusta-se perfeitamente à noção de
relação como um vínculo dinâmico, constituído e desenvolvido com vistas a um fim, que é o
adimplemento, ao que deve observar a vontade das partes e os deveres laterais decorrentes da
cláusula da boa-fé objetiva, tal como explica Martins-Costa (1999, p. 395, grifo da autora):
A concepção da obrigação como um processo e como uma totalidade concreta põe
em causa o paradigma tradicional do direito das obrigações, fundado na valorização
jurídica da vontade humana, e inaugura um novo paradigma para o direito
obrigacional, não mais baseado exclusivamente no dogma da vontade (individual,
privada ou legislativa), mas na boa-fé objetiva. [...] No vínculo obrigacional
considerado como uma totalidade, com um complexo de direitos (direitos de crédito,
direitos formativos), deveres (principais e secundários, laterais e instrumentais),
sujeições, pretensões, obrigações, exceções, ônus jurídicos, legítimas expectativas
etc., visualiza-se, como referi, além do aspecto externo, o aspecto interno, vale
dizer, aquele conjunto inseparável de elementos que coexiste, material e
complessivamente, no vínculo que liga credor e devedor, inclusos os elementos
consistentes às suas fontes e aos seus limites.
Na Alemanha, a alteração introduzida na BGB pela “Lei para a modernização do
Direito das obrigações” (Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts), ao tratar do contrato
bilateral, na Secção 3, Título 2, alterou, entre outros, o § 324 que dispõe sobre a resolução por
incumprimento de um dever acessório (lateral), regra abrangida pelo chamado Direito da
perturbação das prestações (Recht der Leistungsstörungen), fórmula doutrinária que
açambarca inúmeras situações relativas ao descumprimento de obrigações (CORDEIRO,
2004).
Para Cordeiro (2004), mais apropriado seria chamar “perturbação da relação
obrigacional”, uma vez que abrange a violação de deveres de proteção e de outros deveres
acessórios.
“Perturbação das prestações” representa, nesse contexto, “violações de deveres
provenientes da relação obrigacional.
Em linhas gerais, abstrai-se que a reforma da Lei civil alemã procedeu ao
alargamento da noção de impossibilidade, conferindo possibilidades que advinham da lei
velha, desde que interpretada, em termos criativos, com o auxílio de uma jurisprudência e de
uma doutrina centenárias. Todavia, a dogmática agora viabilizada é melhor acabada
(CORDEIRO, 2004).
184
Com efeito, a dogmática é mais arrematada porque a violação de deveres agora
constitui matéria compreendida no plano da impossibilidade da prestação, permitindo, ainda
segundo Cordeiro (2004, p. 111):
[...] soluções mais simples e imediatas, particularmente no que toca à tutela do
credor. Este poderá, desde logo, beneficiar dos direitos que a lei lhe confere, sem ter
de aguardar por uma sempre insegura acção de responsabilidade civil. Idêntica
vantagem atinge, de resto, o próprio devedor em causa. O preenchimento da
inexigibilidade – que integra o cerne da impossibilidade pessoal – terá de ser feito na
base dos casuísmos próprios da concretização de conceitos indeterminados.
No Brasil a idéia de impossibilidade também sofreu alargamento. As normas
sobre boa-fé previstas no Código Civil, como princípio (art. 113) e como cláusula geral (art.
422), e a regra relativa ao abuso de direito (art. 187), introduzem o arcabouço legal para a
admissão dos deveres laterais no âmbito dos contratos, permitindo, por conseguinte, que a sua
inobservância por qualquer dos contratantes, nos pactos bilaterais, constitua fundamento para
a argüição da exceção de inexecução regulada no art. 476 do Diploma brasileiro.
Inseridos na relação obrigacional, os deveres laterais, quando violados, geram
diferentes conseqüências legais, como a resolução, a indenização e, conforme aqui se defende,
também a argüição da exceção do contrato não cumprido, tudo a ser verificado “no momento
da realização do Direito”
142
.
A inter-relação entre deveres de prestação e deveres laterais reside na constatação
de que o cumprimento dos primeiros decorre da estrita observância dos últimos, como bem
exemplifica Assis (2004, p. 113, grifo do autor), ao ressaltar a importância dos deveres
laterais para o perfeito cumprimento do contrato:
O chamado dever de colaboração do credor, sem o qual a prestação do parceiro
jamais poderá realizar-se a contento, também ilustra descumprimento gravíssimo: a
indústria não poderá fabricar o produto e receber o preço sem o cliente fornecer os
projetos ou a matéria-prima necessária à empresa. A negativa à estreita colaboração
com freqüência origina verdadeiro obstáculo ao cumprimento [...]. Os deveres de
informar e de exibir documentos ao parceiro cada vez assumem maior relevo no
tráfico jurídico e no mundo contemporâneo. Se alguém adquire um hardware de alta
tecnologia, e deseja usá-lo produtivamente, dependerá das minuciosas instruções do
fabricante; a documentação do imóvel e a pessoal dos compromitentes, quando o
preço da promessa será financiado por agente promotor da área, deverá acompanhar
os trâmites internos do banco e àqueles pertence o dever de exibi-las no prazo
adequado.
142
Expressão de Cordeiro (2004).
185
Sem colaboração e cooperação mútuas, o cumprimento de dever de prestação
pode ser impossível, sendo de fundamental importância conectá-los na mesma relação
obrigacional para o fim de oportunizar a argüição da exceptio, sempre que um dos
contratantes pretenda exigir que o outro cumpra dever de prestação, sem antes, observar os
chamados deves laterais decorrentes da cláusula geral da boa-fé objetiva.
Também no direito germânico, aponta Martins-Costa (1999), diante da violação
de normas apresentam-se limitadas as possibilidades de sanção quando aquele que as invoca,
por seu turno, também cometeu violações de normas. Trata-se de uma variante da doutrina da
Verwirkung, construção da jurisprudência alemã ligada aos institutos da prescrição e da
decadência, mas que fornece elementos para se impedir a realização de direitos por parte de
quem não atua na conformidade da boa-fé objetiva.
Assim, a parte que atenta contra o fim do contrato, comportando-se deslealmente,
não pode exigir da outra o cumprimento fiel dos deveres de prestação, ao menos até que
restabeleça sua conduta aos padrões da boa-fé. Essa paralisação será possível, conforme se
defende, por meio da argüição da exceptio.
Em casos que tais o sinalagma contratual restará rompido não em virtude da
simples e direta quebra de deveres de prestação, mas sim em razão de condutas contrárias à
boa-fé que vão impedir a realização daqueles deveres, conduzindo ao desequilíbrio contratual,
situação tanto mais perceptível nos contratos de longa duração. Assim:
O sinalagma é a característica principal dos contratos que se classificam como
bilaterais, configurando a dependência recíproca das obrigações. Esta dependência
recíproca, verificando-se desde a formação do contrato, diz-se genética. Nos
contratos de longa duração, de modo especial, transmuda-se em dependência
funcional, ou sinalagma funcional, o qual acompanha as vicissitudes provocadas nos
contratos que se projetam no tempo, a fim de manter a relação original de
interdependência recíproca das obrigações (MARTINS-COSTA, 1999, p. 465).
Com efeito, é nos contratos de longa duração que não raro a equivalência se perde
em virtude da quebra de deveres laterais, em especial o dever de confiança indispensável para
o tráfego negocial. Isso porque nos contratos que encerram obrigações duradouras, o
adimplemento é permanente, isto é, as obrigações perduram sem que ocorra modificação do
conteúdo do dever de prestação, extinguindo-se apenas com o decurso do prazo ou em razão
de eventual denúncia, como sucede nas relações de locação, arrendamento, comodato,
depósito, sociedade e fornecimento (SILVA, 2002).
Mas, se o adimplemento dos deveres de prestação, de um modo geral, é observado
nas relações duradouras, nem sempre o mesmo sucede com os deveres laterais. Pense-se, por
186
exemplo, no caso do prestador de serviço que, após longo período de regular cumprimento de
um contrato, em dado momento, divulga segredo comercial da contraparte a cujo respeito tem
conhecimento em razão da relação obrigacional.
Ou ainda, o caso do fornecedor de produto que, abruptamente, deixa de ser
cooperativo e exige da contraparte o cumprimento de formalidades nunca antes exigidas.
Nesses casos, é evidente que não se pode exigir do devedor, que suporta a violação de deveres
laterais, o fiel e integral adimplemento de dever de prestação.
Contudo, sem desenvolver completamente as virtualidades internas do
inadimplemento, com a alocação dos deveres laterais no contrato, torna-se impossível a
oposição da exceção do contrato não cumprido, instrumento hábil para obstar, conquanto em
caráter provisório, a pretensão do credor (SILVA, 2002).
Abordada sob esse viés, a exceção do contrato não cumprido fortalece o princípio
da confiança enquanto vetor das relações obrigacionais, criando óbices legais ao exercício
inadmissível de posições jurídicas, pois, como frisado, é na fides que se projeta a força do
contrato e sobrevém a regra segundo a qual quem não cumpre com a de sua palavra, não
pode invocar essa mesma fé ao seu favor.
Na conformidade dessa máxima, o sistema expande-se pelo fortalecimento da
boa-fé nos contratos, reconhecendo-se o instituto da exceção do contrato não cumprido e seu
largo campo de aplicação nas relações contratuais, inclusive, como instrumento de equilíbrio
e justiça contratual.
Na moderna concepção de contrato, as idéias de justiça e equilíbrio não estão
exclusivamente ligadas à qualidade da declaração de vontade e não se restringem ao momento
de formação do vínculo. Expandem-se, sobretudo, para a fase de execução das prestações.
Conforme Cunha (2007, p. 98):
O parâmetro de justiça contratual, assim, deslocou-se da análise da produção da
declaração da vontade para o que a declaração da vontade efetivamente produziu.
Passa-se a verificar se as prestações de um e de outro contratante estão ou não
equilibradas.
A nova função da exceptio visa exatamente corrigir eventuais desequilíbrios que
possam surgir em decorrência da inobservância de deveres laterais por um dos contratantes.
Se a obrigação é processo que nasce, se desenvolve e visa um fim, que é o melhor
adimplemento, não se pode descurar que toda e qualquer conduta, que de algum modo
empane esse objetivo, deve ser rechaçada.
187
Todas as vezes que as atitudes dos contratantes não condizem com os ditames do
que se considera leal e honesto, compromete-se o equilíbrio almejado com a lisura do pacto,
reclamando-se do direito uma providência que “recomponha o quadro negocial e restabeleça o
equilíbrio rompido, tanto para a segurança dos compartes quanto para a confiança no sistema
como um todo” (NERILO, 2007, p. 77).
Defende-se que a exceção do contrato não cumprido pode surgir como a
providência, como o instrumento apto a recompor o quadro negocial e permitir o
restabelecimento do equilíbrio contratual, pois a razão que justifica a existência da exceptio é
a regra da eqüidade, por vezes rompida diante da conduta daquele que exige o cumprimento
da contraprestação, sem, contudo, observar os deveres laterais decorrentes da cláusula geral
da boa-fé objetiva.
Como afirmava Reale (1998), o equilíbrio é a base ética do direito das obrigações.
Logo, se é correto afirmar que um contrato desequilibrado gera um contrato injusto, com
maioria de razão pode-se dizer que num pacto em que a conduta das partes é pautada pela
deslealdade, não se pode conceber relação obrigacional equilibrada.
Nesse contexto, a utilização da exceptio contra a violação de dever lateral de
conduta constitui um novo meio de atuação para a preservação do equilíbrio contratual.
Afinal, não pode existir equivalência sem respeito à boa-fé objetiva, reverberando Jorge
Iturraspe (2002, p. 67) que:
[...] en la búsqueda de la ‘justicia contratual’, del necesario equilibrio entre las
prestaciones en cambio, de la armonización de la utilidad con la equidad, es
fundamental el principio de la buena fe objetiva, verdadero faro que alumbra, con
luz potente, el Derecho de los contratos.
Fruto do liberalismo econômico do século XIX, o contrato é um dos mais
importantes institutos jurídicos. Pressupondo consensualidade como exaltação da vontade, o
contrato assume função protetiva dos próprios sujeitos que compõem a relação obrigacional
(FERREIRA, 1999). Inserida no ajuste, a boa-fé objetiva constitui remédio contra condutas
desleais que propiciem o desequilíbrio da relação.
O direito canônico fez ressurgir a idéia da boa-fé e do equilíbrio entre os
contratantes, corolários do respeito à palavra dada e da execução simultânea das prestações.
Disso resulta a regra da reciprocidade, segundo a qual o contratante que reclama suas
prerrogativas e vantagens derivadas da relação obrigacional, deve respeitar as da contraparte.
188
Essa conjuntura permitiu a elaboração de critérios que pudessem tutelar e conservar o
equilíbrio contratual, na hipótese de se verificar alterações na relação.
Logo, a questão centra-se na manutenção da situação de equilíbrio instaurada na
gênese da obrigação, tanto que se a parte não ofereceu a prestação à outra, a manutenção do
equilíbrio reclama a simultaneidade das obrigações. O contrário revela desequilíbrio na
relação contratual.
Na lição de Martins-Costa (2006, p. 134, grifo da autora):
Não se trata, por óbvio, de um equilíbrio meramente matemático ou estático, como o
de corpos em repouso, devendo ser visto na dinamicidade da relação, de seu
conteúdo, seus fins e interesses legítimos. Não diz respeito, diretamente a um
equilíbrio entre as partes, mas ao conteúdo do negócio, vizualizado concretamente,
conforme as circunstâncias da sua formação e do desenvolvimento, de sua natureza,
tipicidade (jurídica ou social) e dos fins que, instrumentalmente, visa alcançar. Daí
que circunstâncias subjetivas, conquanto objetivamente comprováveis (por exemplo:
a assimetria informativa) e circunstâncias objetivas (v. g., a finalidade econômico-
social do negócio) devem ser harmoniosamente conjugadas pelo intérprete. Por isso
mesmo entendemos que na sociedade transversalizada em que vivemos, a metáfora
que melhor traduz o equilíbrio da relação obrigacional não será sempre a da balança
grega, composta por dois pratos que servem para medir e comparar: muitas vezes,
diante da complexidade da relação, da sua estrutura em rede, dos vínculos sistêmicos
que possa ter gerado, é a imagem de um bile, arte criada pelo gênio artístico de
Alexander Calder que melhor representará, na medida em que, no móbile uma
composição irregular – embora harmoniosa – de pesos diversos, um complexo
sistema de distribuição dos centos de gravidade que o compõem.
Para Moreno (2004, p. 60):
Con la exceptio non adimpleti contractus no se pretende en modo alguno sancionar
el incumplimiento, sino, como hemos visto, mantener un equilibrio preexistente en
la relación. Pues bien, el equilibrio puede romperse siempre que una parte realiza la
prestación debida antes que la otra. Si quiere mantenerse el equilibrio, tiene que
poder evitarse que una parte pueda forzar a la otra al cumplimiento previo
‘anticipado’ de su obligación, tanto y esto el lo importante si el que reclama el
cumplimiento es como si no es incumplidor. El incumplimiento o no del
demandante resulta desde este punto de vista absolutamente irrelevante. Lo que
interesa, ya lo hemos visto, y es lo que justifica la exceptio, es que el demandado sea
titular de un crédito: que esté vencido, que sea ya exigible, que non se haya
ejecutado [...].
Não faria sentido e ofenderia a posição de equilíbrio entre os contraentes exigir
que alguém fosse obrigado a adimplir diante do inadimplemento de prestação correlata da
contraparte, pouco importando a modalidade da obrigação.
Disto decorre que a exceptio não é concebida como espécie legitimadora do
incumprimento da prestação por um dos obrigados, de modo que somente se possibilita ao
excipiens a sua argüição para evitar o desequilíbrio da relação obrigacional. Nem pode ser
189
caracterizada como medida sancionatória, mas sim como reação objetiva visando instar a
contraparte ao cumprimento. Seu fim precípuo é proteger o contratante adimplente das
conseqüências da ruptura do equilíbrio.
Boa-fé e eqüidade idéias imanentes à exceptio
143
impregnadas de vagueza e
amplitude, materializam-se e concretizam-se no princípio da manutenção do equilíbrio
contratual. Para tanto, a lei não prevê contraposição de valores e interesses, apreciáveis
distintamente em razão da época ou de determinada ordem jurídica, pois, de acordo com
entendimento de Moreno (2004, p. 33), “[...] se trata simplesmente de asegurar el
mantenimiento que estaba ya creado al iniciarse la relación”.
Rosa Maria de Andrade Nery (2004, p. 114, grifo da autora) pontua que:
Temos que é impossível falar-se de vínculo obrigacional como relação jurídica de
razão como manifestação do que de mais especial em matéria de ciência do
direito sem retomar à idéia de equilíbrio; de justa medida; de sensatez, que são
conseqüências próprias e consentâneas com a atividade do juiz, ao menos a partir
dessa fórmula extraordinária que marcou o apogeu do Direito Romano.
Martins-Costa (1999, p. 419) colaciona exemplos de jurisprudência extraída do
direito comparado que denotam a utilização da cláusula geral da boa-fé como fundamento de
argüição da exceptio visando o equilíbrio contratual:
A exceção de inadimplemento, nos contratos com prestações correspectivas, visa a
conservar o equilíbrio substancial e funcional entre as obrigações correspectivas;
portanto, a recusa a executar o contrato pela parte que entende valer-se de tal
exceção pode considerar-se em boa-fé, segundo a previsão da qual o art. 1.460,
segunda alínea, do Código Civil, apenas se se traduzir em um comportamento que,
além de não contrastar com os princípios gerais de lealdade e de correção, resulte
objetivamente razoável e lógica, no sentido de encontrar concreta justificação no
contraponto entre prestações inexecutadas e prestações recusadas, em relação aos
vínculos de correspectividade e contemporaneidade das mesmas.
A exceptio restaura o princípio do equilíbrio contratual, impedindo que um
contratante assuma posição de vantagem em relação ao outro.
143
Rafael Villar Gagliardo (2006, p. 52-53) defende que: “Sem dúvida, a exceção de contrato não cumprido
decorre do princípio da eqüidade. A ninguém ocorreria tentar justificar, moral ou juridicamente, a exigência da
prestação devida pelo co-contratante. A regra, como já mencionado, é intuitiva e universal. Aliás, a eqüidade está
presente antes mesmo da existência da exceptio non adimpleti contractus como modernamente concebida.
Convém lembrar que, no processo formular romano, a própria exceptio surgiu para atenuar os rigores formais do
ius civile e ampliar os poderes do Pretor, para que ele pudesse abordar questões que, originariamente, escapariam
ao teor da fórmula. Não foi diferente no Direito Canônico, cujo desenvolvimento fez surgir efetivamente a
exceção de contrato não cumprido com os contornos essenciais que hoje marcam o instituto. A exceção em voga
aflorou a partir da regra frangenti fidem, fides frangatur idem, pela qual o contratante seria considerado
desonerado do juramento no qual repousava a sua obrigação contratual, no caso de inadimplemento atribuível ao
outro contratante”.
190
Assim, Lopes (1959) entende que, além de um remédio sancionatório indireto
contra uma das partes inadimplente, a exceptio representa um meio de conservação do
equilíbrio jurídico-econômico pretendido pelos contratantes na conclusão do acordo.
E se é assim com os deveres de prestação, com maior razão há de suceder com os
deveres laterais, à proporção que estes constituem a base para o atingimento daqueles. Não
como se conceber a comutatividade dos contratos bilaterais, e assegurar o justo equilíbrio daí
decorrente, sem o respeito à cláusula geral da boa-fé objetiva e aos deveres que dela irradiam.
Concebida a relação obrigacional como estrutura complexa, é força concluir que a
interligação entre deveres de prestação e deveres laterais estruturados no vínculo compreende
um quadro de equilíbrio mútuo que deve ser preservado em todas as fases da relação
obrigacional, não sendo possível qualquer comportamento das partes que possa conduzir a
inobservância desses preceitos e conseqüente desequilíbrio da relação.
Nesse contexto, a possibilidade de argüição da exceptio non adimpleti contractus
diante da violação de dever lateral surge como mais um eficaz instrumento de equiparação de
forças, permitindo que a obrigação, vista como processo, possa atingir o seu fim com plena
satisfação de todos os interesses envolvidos na relação.
191
CONCLUSÃO
Os valores atuam como fundamento da ordem jurídica de determinada sociedade.
E a razão de ser do direito é a realização desses valores.
Eticidade, socialidade e operabilidade constituem os valores fundamentais da
ordem jurídica privada no país desde o advento do Código Civil brasileiro de 2002, que
rompendo com o individualismo, o patrimonialismo e o formalismo excessivo da lei anterior,
redirecionou seu foco para as relações sociais e humanas, consagrando o fenômeno da
repersonalização.
A concretização desses valores da nova Lei civil dar-se-á apoiada num sistema
aberto, fundado em princípios, cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados, que permita
maior mobilidade do sistema, mediante a utilização pelo intérprete de um novo pensamento
sistemático (que se utiliza tanto da tópica quanto do raciocínio lógico-dedutivo), capaz de
reconhecer a eficácia irradiante dos direitos fundamentais frente à dinâmica da vida em
sociedade.
Nesse rastilho, o direito aproxima-se como nunca da ética e da moral, exaltando a
boa-fé como princípio geral dos negócios jurídicos e como cláusula geral a ser observada
pelos contratantes, objetivamente, em todas as fases da contratação.
Relaciona-se, então, a cláusula geral da boa-fé objetiva com vários institutos do
direito, entre os quais a autonomia privada, faculdade que o Estado defere ao particular de
auto-regulamentar seus próprios interesses e negócios, nos limites da lei. Nesses lindes, as
condutas guiadas pela boa-fé.
Passando a Constituição Federal a ser o vértice do sistema de direito privado
moderno, a boa-fé objetiva ganha funcionalidade, conteúdo social e eficácia prática, guiando
o intérprete na obtenção de soluções mais justas e humanas para os diversos conflitos de
interesses.
Íntima também é a relação entre a cláusula geral da boa-fé objetiva e a função
social do contrato, pois ambas projetarão efeitos interno e externo sobre o negócio jurídico.
No plano interno, a boa-fé objetiva impõe conduta correta às partes; a função
social atuará na preservação do contrato com respeito à autonomia privada, porque o
cumprimento de contratos, nos parâmetros da legalidade, interessa a toda a sociedade pós-
moderna.
192
No plano externo, viu-se que o negócio celebrado com boa-fé pode vivificar,
inclusive, nulidade absoluta; a função social, de sua vez, impede que prevaleça contrato capaz
de causar dano ao meio social.
Com a teoria do abuso de direito, aproxima-se a boa-fé objetiva na sua função
limitadora do exercício de direitos subjetivos, porquanto, no direito privado atual, comete
abuso de direito não só o contratante que pratica o ato de maneira exacerbada e contrariando o
fim social do contrato, mas também aquele que o ajusta e executa sem a observância dos
deveres de conduta decorrentes da cláusula geral da boa-fé objetiva.
A partir daí firmou-se entendimento quase apaziguado pela communis opinio
doctorum, segundo o qual a cláusula geral da boa-fé objetiva submete os contratantes ao
cumprimento de deveres de conduta em todos os ciclos do desenvolvimento do vínculo.
Ciclos esses que incluem a fase de formação (fase de tratativas ou pré-contratual) e a relativa
à projeção dos seus efeitos (período pós-contratual), passando pela conclusão e cumprimento,
malgrado o legislador brasileiro de 2002, como quase sempre sucede, tenha ido aquém da
mens legis, limitando-se a mencionar no art. 422 do CC/2002 as fases de conclusão e
execução do contrato.
Com o crescimento do tráfego comercial, fortemente marcado pelo apelo
publicitário, o desenvolvimento da boa-fé objetiva estabeleceu as bases do instituto da
responsabilidade pré-contratual, remodelação da velha culpa in contrahendo, matéria que
restou codificada na BGB com a chamada reforma do direito da “perturbação das prestações”
operada em 2001/2002.
A complexidade das relações modernas, com a projeção de efeitos do contrato,
também gerou a necessidade de observar a boa-fé na fase pós-contratual, permitindo o
desenvolvimento da teoria da culpa post factum finitum.
A relação entre os diversos institutos tratados no Capítulo I deste trabalho
permitiu constatar, ao final, que a incidência da normativa constitucional no âmbito das
relações privadas impõe a materialização ou concretização dos valores fundamentais
plasmados na Constituição, o que se dará também por intermédio da cláusula geral da boa-fé
objetiva e com base no “novo pensamento sistemático” (misto de tópica e método sistemático-
dedutivo).
Inobstante o enriquecimento do direito privado, que desponta constitucionalizado,
o contrato atravessa uma crise que decorre da estrutura da sociedade pós-moderna, e que, na
verdade, é uma crise de confiança, mercê da massificação dos negócios e da distância imposta
pelo comércio eletrônico. A superação da crise, como se observou, dependerá da revitalização
193
da confiança, objetivo a ser cumprido pela adequada aplicação da cláusula geral da boa-fé
objetiva, o que, destaca-se, passa pela investigação dos deveres laterais que dela decorrem.
E um dos pontos debatidos e constatados advindos da pesquisa foi exatamente
observar que os deveres laterais constituem um conjunto de regras de conduta impostas a
ambos os sujeitos da relação obrigacional, credor e devedor, que não possuindo relação direta
com os deveres de prestação, facilitam o alcance do fim do contrato.
Os deveres laterais foram divisados neste trabalho entre deveres de proteção, de
lealdade e cooperação, e deveres de informação e esclarecimento.
A tutela contratual baseada nos deveres laterais ganhou força, sofrendo
considerável alargamento em sede doutrinária e jurisprudencial, sendo essa categoria de
deveres obrigacionais incorporada à BGB com a reforma de 2001/2002.
A boa-fé objetiva e os deveres laterais dela decorrentes deram nova contextura à
relação obrigacional, que passou a ter estrutura complexa, dotada de deveres de prestação e de
deveres laterais. Alargou-se, com isso, a base do inadimplemento, que ao lado das tradicionais
figuras do inadimplemento absoluto e da mora, abrigou a violação positiva do contrato,
relativamente ao descumprimento dos deveres laterais, temas do Capítulo II.
Com a complexidade da relação obrigacional e o alargamento da impossibilidade,
as conseqüências gerais do inadimplemento (perdas e danos, direito de resolução e a
possibilidade de argüição da exceção do contrato não cumprido) passaram a receber um novo
enfoque na atual perspectiva civil-constitucional, sobretudo a exceptio.
Projetada para operar no negócio jurídico bilateral diante do inadimplemento de
uma das prestações simultâneas por um dos sujeitos da relação, a exceção do contrato não
cumprido, realçada no Capítulo III, nasce da idéia de que, num acordo de vontades, no qual
ambas as partes atribuem-se obrigações, natural que prevaleça a regra segundo a qual nenhum
dos contratantes pode, antes de cumprida a sua obrigação, exigir o implemento da do outro,
pois, segundo a formulação canonista, quem não cumpre com a de sua palavra não pode
invocar essa mesma fé em benefício próprio.
A pretensão indevida por uma das partes autoriza que a outra, apoiada na boa-fé,
argúa a exceção do contrato não cumprido de três maneiras distintas: no processo em que
instaurada a demanda, constituindo a exceptio uma medida de defesa com caráter dilatório;
através de contraprotesto extrajudicial, antes de instaurada a demanda; e por meio de contra-
ataque em demanda reconvencional.
Mas o caráter de defesa material dilatória da exceptio tradicionalmente só é
explorado no confronto entre deveres de prestação.
194
No atual sistema aberto de direito privado, de índole constitucional, regido pela
cláusula da boa-fé objetiva, o velho instituto de origem no direito canônico é reformulado
para abrigar também o inadimplemento de deveres de prestação.
Para tanto, faz-se necessário, na esteira do que fez recente reforma da BGB,
conferir caráter contratual aos deveres laterais oriundos da cláusula geral da boa-fé objetiva,
de modo a possibilitar soluções mais lógicas e coerentes dos inúmeros casos submetidos à
apreciação judicial, que doravante devem ser solucionados no perímetro do contrato.
Compreender os deveres laterais como decorrentes do princípio neminem laedere
e remetê-los para o âmbito da responsabilidade civil geral importaria retirar do contratante
lesado a possibilidade de invocar a tutela contratual, deixando-o sem a necessária proteção
diante da inobservância da contraparte aos deveres de probidade e boa-fé objetiva.
Delimitou-se, então, no Capítulo IV, a função reativa da cláusula geral da boa-fé
objetiva, que atua como limitadora de direitos subjetivos exercidos de maneira abusiva no
âmbito do contrato sinalagmático.
Restou assentado que a função é reativa porque importa oposição à pretensão
abusiva, uma exceção à eficácia de determinado direito que se contrapõe ao sentido
cooperativo da relação obrigacional, à própria boa-fé numa perspectiva mais ampla, e à
função social atribuída aos contratos pela ordem jurídica.
A cláusula geral da boa-fé surge com força inibidora de condutas incompatíveis
com os deveres laterais, condutas que ensejam a aplicação da regra tu quoque, de que
ninguém pode invocar normas jurídicas após descumpri-las.
Aplicação prática dessa regra é exatamente a exceção do contrato não cumprido
na sua visão reformulada pelo novo direito privado, encerrando reconhecer que aquele que
não cumpriu dever lateral de conduta, não pode exigir que a contraparte cumpra seu dever de
prestação. Importa, desse modo, por via da exceptio, a paralisação provisória da pretensão da
parte responsável pela violação de dever lateral.
Conclui-se, assim, confirmando a hipótese de pesquisa, pela plena possibilidade
de argüição da exceção do contrato não cumprido pela parte demandada ao cumprimento de
dever de prestação, quando o demandante não tiver, de seu turno, observado dever lateral
decorrente da boa-fé objetiva.
No atual ambiente das relações obrigacionais, pautado pela ética e pela moral, o
contratante que age com deslealdade e desonestidade, violando deveres laterais, não pode
exigir o cumprimento de dever de prestação da contraparte, segundo o princípio tu quoque,
fundamento da exceção do contrato não cumprido. Abordada sob esse viés, a exceção do
195
contrato não cumprido desponta como um extraordinário instrumento de fortalecimento do
princípio da confiança, contribuindo para a superação da crise do contrato, impedindo o
desequilíbrio da relação pela equiparação de forças com vistas à satisfação dos interesses
envolvidos na relação obrigacional.
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