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TÂNIA MARA SILVA DE LIMA
A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO GÊNERO ROTEIRO
COM ENFOQUE SOBRE A REFERENCIAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre. Área de
concentração: Língua Portuguesa.
Orientadora: Prof.
a
Dr.
a
Vanda Maria Cardozo de Menezes
NITERÓI
2007
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
L732 Lima, Tânia Mara Silva de.
A construção de sentido no gênero roteiro com enfoque sobre a
referenciação / Tânia Mara Silva de Lima. – 2007.
113 f.
Orientador: Vanda Maria Cardoso de Menezes.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2007.
Bibliografia: f. 103-105.
1. Análise do discurso (Lingüística). 2. Gêneros literários. 3.
Roteiros cinematográficos. 4. Anáfora (Lingüística). I. Menezes,
Vanda Maria Cardoso de. II. Universidade Federal Fluminense.
Instituto de Letras. III. Título.
CDD 801.955
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NIA MARA SILVA DE LIMA
A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO GÊNERO ROTEIRO
COM ENFOQUE SOBRE A REFERENCIAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre. Área de concentração: Língua
Portuguesa.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dr.ª Vanda M. Cardozo de Menezes Orientadora Universidade Federal Fluminense
Prof.ª Dr.ª Maria Jussara Abraçado de Almeida Universidade Federal Fluminense
Prof.ª Dr.ª Victoria Wilson Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Prof.ª Dr.ª Mariângela Rios de Oliveira Universidade Federal Fluminense
(Suplente)
Prof.ª Dr.ª Marcia Moraes Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Suplente)
AGRADECIMENTOS
À Professora Vanda Maria Cardozo de Menezes, querida e inesquecível
orientadora, pelo carinho e a perseverança com que sempre me conduziu e me
apoiou.
A meus amigos e familiares pelo estímulo e pelo afeto inestimáveis.
A Waldyr Lima pelo apoio, o apreço e a compreensão.
A todas as minhas queridas professoras por meu crescimento profissional e
pessoal.
Aos funcionários administrativos da Universidade Federal Fluminense, em
especial a Nelma, por sua gentileza e atenção.
A todos os que fazem parte do Programa de Pós-Graduação em Letras por fazer
da Universidade Federal Fluminense um espaço de saber, cidadania e
humanidade.
A Deus por ter-me permitido chegar até aqui com persistência e humildade.
SUMÁRIO
1.
Introdução........................................................................................... 9
2.
Problemas, hipóteses, objetivos e procedimentos metodológicos
Problemas .............................................................................................
12
2.2
Hipóteses ..............................................................................................
14
2.3
Objetivos ..............................................................................................
15
2.3.1
Objetivos gerais ...................................................................................
15
2.3.2
Objetivos específicos ...........................................................................
15
2.4
Procedimentos Metodológicos .............................................................
16
3.
Fundamentação teórica
3.1
A definição de texto .............................................................................
18
3.2
A visão de Bakhtin, o gênero do discurso e a questão da forma .........
22
3.3
A retomada dos estudos sobre gêneros textuais ...................................
26
3.4
Texto e contexto ...................................................................................
29
3.5
A construção de sentido .......................................................................
32
3.6
A referenciação ....................................................................................
36
3.7
A polifonia e a polissemia no roteiro ...................................................
49
4.
Análise do gênero roteiro, tendo como base o roteiro de Cidade
de Deus
4.1
Um resumo da história ........................................................................
53
4.2
Roteiro, um gênero textual ...................................................................
53
4.3
A estrutura física ou a forma do gênero roteiro ...................................
60
4.4
As personagens ....................................................................................
67
4.5
Os diálogos ...........................................................................................
82
4.6
A referenciação no roteiro ...................................................................
92
5.
O controle da interpretação ..............................................................
99
6.
Conclusão ............................................................................................
101
7.
Referências Bibliográficas .................................................................
103
8.
Apêndice .............................................................................................
106
RESUMO
O objetivo deste trabalho de pesquisa tendo como corpus o roteiro do filme Cidade
de Deus e como apoio os pressupostos teóricos da Lingüística Textual é a exposição e a
análise do gênero roteiro de cinema como gênero do discurso peculiar e instável, cuja
construção de sentido se manifesta através das rubricas e das falas das personagens e pode ser
verificada através das estratégias da referenciação, com ênfase especial para as anáforas
diretas e indiretas.
Palavras-chave: roteiro - gênero textual - construção de sentido - referenciação - anáforas
ABSTRACT
The objective of this research project through the use of the screenplay of the movie
Cidade de Deus as the corpus and the theoretical presuppositions of Textual Linguistics as a
basis is the exposition and analysis of the screenplay genre as an unstable and peculiar
discourse genre. The construction of meaning of the screenplay is revealed through
scene/action descriptions and the speech of characters, which can be verified through
strategies of the theory of reference with special emphasis on direct and indirect anaphora.
Key words: screenplay textual genre construction of meaning reference anaphora
9
1. Introdução
Com o surgimento do interesse pelo estudo dos gêneros, algumas perguntas se fizeram
presentes em relação a alguns textos pouco ou quase nunca explorados, como, por exemplo, o
roteiro. O que é um roteiro? É um gênero textual? Como se caracteriza esse gênero? Quais são
seus propósitos discursivos?
Levando-se em conta que o estudante, em qualquer nível, deve ter contato com a
maior gama possível de gêneros textuais na construção de seu conhecimento da língua, nos
pareceu oportuno fazer um estudo tendo como objeto este ainda pouco conhecido ou pouco
divulgado gênero: roteiro. E dentro do universo de roteiros, que podem ser de teatro, de
cinema, de programas de TV, etc., escolhemos como objeto de estudo de nossa pesquisa o
roteiro do filme Cidade de Deus (2001), de Bráulio Mantovani, uma adaptação do romance
homônimo de Paulo Lins (1997), porque, além de ter sido o roteiro de um filme muito
popular, em seu texto há elementos para tratar de diversos assuntos concernentes ao estudo da
linguagem, em especial os que dizem respeito à construção textual de sentido. No roteiro
citado, nos preocupamos em separar alguns trechos para análise de diálogos, cenários e cenas.
E é justamente sobre a construção de sentido de um texto cuja estrutura se polariza sobre três
núcleos cenário, cena e diálogos que se inclina este estudo, atento ao papel da
referenciação na consolidação dessa estrutura textual “efêmera”, como bem observa
Comparato (2000).
Segundo Koch (2006, p. 60), “a referenciação, bem como a progressão referencial,
consistem na construção e reconstrução de objetos de discurso.” Portanto, à medida que
enunciador e enunciatário produzem o discurso, constroem e reconstroem, através da
10
linguagem que também inclui a imagem, os símbolos , a representação do que ambos
entendem da realidade e do mundo. Sendo, pois, o que ambos entendem da realidade e do
mundo, não será a própria realidade nem o próprio mundo. Assim como pintores, também
“imitadores da realidade”, usam as tintas, as cores e ângulos e perspectivas para representar as
imagens que vêem, como as vêem, produzindo, desta maneira, a sua versão da realidade, os
participantes ou produtores do discurso usam a linguagem para representar a realidade e o
mundo da maneira que os percebem. E os percebem, tal como os artistas plásticos, de acordo
com suas condições sociais, cognitivas e culturais.
Não diferente é o escritor de roteiro que queira construir uma história que “imite” a
realidade. Ele cria enredo, imagens, diálogos e personagens da maneira que os percebe na
realidade. É a sua visão dessa realidade, da maneira de ser, de dizer e agir das pessoas
envolvidas nessa realidade. E, na produção do seu texto, para representar essa realidade, usará
a linguagem que crê que os represente e que possa ser interpretada, decodificada pelo
receptor, o leitor, o enunciatário que, no caso do roteiro, na maioria dos casos, são
profissionais envolvidos com a produção de um filme.
Este trabalho tem como escopo a produção de sentido do gênero roteiro e, por
conseguinte, o papel da referenciação, levando em conta a importância desta para a
composição e para a análise das personagens, posto que na imagem e nas falas estão
envolvidos elementos sociocognitivos e culturais.
Não nos caberá discutir se é ou não o roteiro um gênero literário este ainda é um
assunto muito polêmico para os estudiosos da Teoria Literária , se é ou não arte. O que nos
atrai no gênero roteiro de cinema, do qual pode-se seguramente dizer tratar-se de um gênero
11
textual, tomando por base os estudos de Bakhtin (2003) e Marchuschi (2005 e 2006) sobre o
tema, como veremos adiante, é o seu foco interpretativo. Ou seja, o roteiro é um gênero que
depende muito além da habilidade do roteirista , do leitor que, mesmo seguindo as
rubricas do autor, terá importante papel na composição das personagens e na construção de
sentido. Esse leitor primeiro a que nos referimos é o leitor-diretor, o leitor-ator, o leitor-
cinegrafista, o leitor-editor e todos os leitores que trabalham diretamente na produção de um
filme e que são modificadores diretos de um texto a partir do qual produzem um outro texto
o filme que ainda não se pode chamar de produto final. Mesmo este estará parcialmente
pronto, como ocorre com outros textos, cuja construção de sentido depende da leitura do
último leitor, o último elo dessa ampla corrente que, no caso do cinema, é o espectador.
Às vezes, torna-se difícil não confundir o pré-texto, o roteiro, com o texto a que dá
origem, o filme, embora pareçam, como produtos acabados, textos tão diferentes. Quiçá seja a
mesma diferença entre o rascunho de uma pintura e a pintura final, entre projeto e construção,
entre "intenção e gesto".
12
2. Problemas, hipóteses, objetivos e procedimentos metodológicos
2.1. Problemas
Ao fazer a adaptação do livro homônimo, cujo autor, Paulo Lins, preocupara-se de tal
modo em retratar com fidelidade a realidade que, para fazê-lo bem, tornara-se morador da
comunidade que deu origem à história, Cidade de Deus, tanto o então estreante roteirista,
Mantovani, e o diretor, Meirelles, tentaram, dentro de limitações que são inerentes a qualquer
um que se exponha como "retratador", retratar a mesma realidade que valeu ao filme, na
época, a fama de violento e chocante. Mas, o que foi a realidade no livro? O que é a realidade
no roteiro? O que é a realidade no filme? Escritores, roteiristas, enfim quaisquer pessoas que
usem a arte como expressão, quaisquer usuários de qualquer língua são mesmo capazes de
reproduzir com toda a fidelidade qualquer realidade em qualquer mídia, em qualquer
linguagem?
Como se constrói um texto cujo objetivo é a construção de outro texto? O gênero
roteiro é um gênero textual totalmente instável ou há certa estabilidade nesse gênero? Que
mecanismos existem para a construção de sentido em um texto que é essencialmente
polifônico e polissêmico? Como se narra uma história para ser lida, interpretada, representada
(escrito>oral)? Como se constroem personagens quando se deseja que pareçam ser reais?
Como se constroem objetos de discurso quando se os quer o mais próximo possível de objetos
do mundo real?
São as respostas para essas perguntas que buscamos nesta pesquisa. A "mágica" da
produção de sentido do roteiro talvez seja a mesma "mágica" presente em todos os tipos de
13
texto. O contexto e a leitura de mundo de todos os participantes do discurso de certo terão
papel preponderante como podem ter em qualquer texto, mas como isso acontece em um
roteiro?
Não há aqui pretensão de responder definitivamente a essas questões, mas com base
nas pesquisas dos estudiosos da linguagem, buscar-se-á uma visão que possa ser apoiada,
ampliada, refutada ou, finalmente, que seja uma singela contribuição para os estudos da
linguagem, em particular para o estudo dos gêneros textuais e dos processos de referenciação.
14
2.2 Hipóteses
Sendo o roteiro uma espécie de guia para a construção de um outro texto, ele deve ser
ao mesmo tempo claro, preciso e receptível a interferências, que naturalmente surgem no
transcorrer da sua metamorfose, isto é, durante a transformação do discurso escrito para o
discurso não-verbal (no caso do cenário e das cenas) e para o discurso oral (no caso dos
diálogos).
Tendo em vista a construção de sentido do gênero roteiro, definiram-se as seguintes
hipóteses:
a) O roteiro é um gênero textual com maior grau de instabilidade, se comparado a
outros gêneros textuais.
b) A construção de um roteiro resulta num texto polifônico e polissêmico.
c) A referenciação, na construção de sentido no roteiro de cinema, tem importante
papel na construção de cenas e de personagens em processo de composição.
d) A seleção lexical, dentre as estratégias de referenciação, é especialmente importante
para a composição das personagens.
15
2.3 Objetivos
2.3.1 Objetivos gerais
Investigar o gênero roteiro de cinema como um gênero textual.
Apontar para os elementos que compõem a estrutura física do gênero roteiro de
cinema.
Apontar para alguns dos mais eminentes participantes indiretos do discurso (os
leitores "profissionais" envolvidos na produção) e evidenciar sua interferência
direta na construção de sentido.
Discorrer sobre a importância da representação escrita do discurso verbal (os
atos de fala) e do discurso não-verbal (referentes à imagem).
2.3.2. Objetivos específicos
Identificar, no roteiro do filme Cidade de Deus, os elementos estruturais
básicos do gênero roteiro.
Analisar o contexto em “recortes” do referido roteiro para mostrar a
importância na construção de sentido.
Analisar a composição de uma das mais importantes personagens do roteiro
mencionado, levando em consideração a referenciação, em especial a escolha
lexical, e o contexto.
Analisar a contribuição da referenciação direta e indireta na construção de
sentido do referido roteiro.
16
2.4. Procedimentos Metodológicos
O corpus desta pesquisa se constitui de um único objeto de estudo: o roteiro do filme
Cidade de Deus (2001), argumento baseado no livro homônimo de autoria de Paulo Lins.
A pesquisa é bibliográfica, pois se utilizará de estudos sobre texto, contexto, gêneros
textuais, o gênero roteiro (a estrutura do roteiro, a composição das personagens, a função dos
diálogos, a relevância dos profissionais aqueles envolvidos na produção na construção
de sentido), a referenciação, a polifonia e a polissemia.
O método será o de estudo de caso, buscando compreender como se aplicam as teorias
de alguns especialistas em estudos da linguagem na análise da estruturação do roteiro de
cinema, principalmente no que concerne aos elementos de referenciação, que são bases da
construção de sentido.
Esta pesquisa, que busca fundamentos nos estudos da lingüística textual, parte da
premissa de que um texto é mais do que as palavras ditas ou escritas; é um processo complexo
no qual estão envolvidos:
a) em seu espaço físico, os fatores intrínsecos o dinamismo e o limite da forma de
acordo com o meio a que se destina; o dinamismo dos signos na expressão
referencial;
b) fora de seu espaço físico, os fatores extrínsecos o contexto, a sua contribuição,
seu suporte para a efetivação da função dos signos em sua expressão referencial,
17
com todos os elementos de que é constituído (o enunciador e o enunciatário, seu
lugar no discurso e suas condições sociais, econômicas e culturais).
Destarte, esta pesquisa verificará a importância dos diálogos (preparação para o futuro
discurso verbal oral) e das rubricas (preparação para as imagens, futuro discurso não-verbal)
na constituição do texto, como também a essencialidade do contexto para a construção de
sentido de um roteiro.
18
3. Fundamentação teórica
3.1 A definição de texto
Antes de falarmos sobre gêneros textuais,
vale a pena apresentar uma definição de
texto. Não é uma tarefa fácil, haja vista a
quantidade de definições encontradas. Dentre
elas, no entanto, encontra-se uma que bem
atende à proposição deste trabalho e, além
disso, diz um pouco da distinção entre texto
e discurso. De acordo com Fávero e Koch
(2002, p. 25),
o termo texto pode ser tomado em duas acepções: texto, em sentido lato, designa toda
e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano, (quer se trate de um
poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura etc.), isto é,
qualquer tipo de comunicação realizado através de um sistema de signos. Em se
tratando da linguagem verbal, temos o discurso, atividade comunicativa de um falante,
numa situação de comunicação dada, englobando o conjunto de enunciados
produzidos pelo locutor (ou por este e seu interlocutor, no caso de diálogo) e o evento
de sua enunciação. O discurso é manifestado, lingüisticamente, por meio de textos (em
sentido estrito). Neste sentido, o texto consiste em qualquer passagem, falada ou
escrita, que forma um todo significativo, independente de sua extensão. Trata-se, pois,
de uma unidade de sentido, de um contínuo comunicativo contextual que se
caracteriza por um conjunto de relações responsáveis pela tessitura do texto os
critérios ou padrões de textualidade, entre os quais merecem destaque especial a
coesão e a coerência.
No caso do roteiro de cinema, além dos diálogos, temos as rubricas que contêm
instruções para a montagem das cenas e também contêm instruções para os atores em relação
à encenação, ao que sentem as personagens, ao que demonstram as personagens. As rubricas
somadas aos diálogos devem produzir o sentido que almeja o autor.
Portanto, é o “texto” do roteiro uma preparação para dois tipos de discurso: o verbal e
19
o não-verbal. No primeiro, os recursos da referenciação podem ser evidentes, como no caso
da anáfora direta, ligada a algum termo já mencionado anteriormente pela mesma personagem
ou por outra personagem, ou podem não ser tão evidentes, como no caso da anáfora indireta,
nos mesmos moldes em que ocorrem num texto escrito, isto é, ancorada no contexto que, no
caso do roteiro, como veremos mais adiante, pode ser produzido pela imagem, sugerida nas
rubricas, ou pode estar além delas.
Sendo assim, o texto do roteiro contempla, com a linguagem verbal escrita, as rubricas
e os diálogos. As rubricas predeterminam as imagens que contribuem, por sua vez, para a
construção do contexto da história, como também para construção das personagens e trazem o
leitor como uma personagem silenciosa, uma testemunha ocular que bisbilhota toda a trama e
se deixa levar por ela, se envolve com ela e com as personagens e, dificilmente, se mantém
neutro, imparcial. Os diálogos são o complemento, talvez um elemento de coerência e coesão
entre a história e seu “pano de fundo”, as imagens, o contexto. É interessante perceber que,
para o cinema, a imagem é um texto essencial. Talvez por ter nascido sem som.
De acordo com Cursino (2007, paginação não disponível), há sempre uma grande
dificuldade de se estabelecer um marco preciso para o nascimento do cinema. É considerada
como marco a primeira exibição pública feita em um café, em Paris, em 1895, pelos irmãos
Lumière, do filme A chegada do trem à estação da cidade que trazia a imagem de um trem
que se movimentava, em perspectiva, obviamente, em direção à platéia que reagia apavorada.
Assim Máximo Gorki descreveu o filme,
De repente há um estalo, tudo se apaga e um trem numa ferrovia aparece na tela. Ele
dispara como uma flecha na sua direção cuidado! A sensação que se tem é como
se ele se arremessasse na escuridão até onde você está sentado e fosse reduzi-lo a um
saco de pele estropiado... e destruir esse salão e esse prédio [...] tornando tudo em
fragmentos e pó [...].(GORKI apud CURSINO, 2007, paginação não disponível)
20
Depois vieram os filmes mudos que eram, nas salas mais sofisticadas, exibidos com
música, com músicos que se apresentavam ao vivo, durante a exibição dos filmes. Seriam os
primórdios do que viria a ser, na produção cinematográfica moderna, a trilha sonora da
história?
No princípio, uma boa parcela dos filmes era cômica, havia uma predominância da
pantomima artifício para substituir a falta dos diálogos. A falta dos diálogos era tão
premente que, para garantir a compreensão, foram introduzidas as cartelas com as legendas
necessárias.
Os primeiros filmes com sincronia entre som e imagem foram Don Juan (1926?), O
cantor de jazz (1927), ambos de Alan Crosland, e Luzes de Nova York (1928), de Brian Foy.
Daí vieram os musicais, e o cinema evoluiu para valorizar os diálogos e a arte do ator,
especialmente em filmes mais intimistas, como os do cineasta sueco Ingmar Bergman.
1
O texto de um filme, portanto, se constrói sobre duas grandes bases: imagem
(cenários, cenas, encenação, ação, movimento) e som (trilha sonora e diálogos ou falas). O
roteiro nada mais é, como já dissemos, do que um guia para a produção desse outro texto o
filme , e nele estão representados ou descritos, em discurso verbal escrito, vários tipos de
texto: os diálogos, as cenas, os cenários e a música. O filme é o bolo, o roteiro é a receita.
Uma receita em que "metem a mão" o chef (o diretor de cinema) e seus auxiliares.
Essa prática de “meter a mão” pode ser confirmada com o que se deu com a seguinte
seqüência extraída do roteiro de Cidade de Deus:
1
Para saber mais sobre a história do Cinema, ver: http://www.webcine.com.br/historia1.htm. Para saber mais sobre Bergman:
http://www.terra.com.br/cinema/favoritos/bergman.htm e http://www.contracampo.com.br/74/gritosesussurros.htm.
21
INT. TERREIRO DE UMBANDA - NOITE
Cerimônia de umbanda. Dadinho, acompanhado por Bené, consulta o Exu. (Grifo
nosso)
(Mantovani, 2001, p. 53)
Como se pode ver, a seqüência tem como cenário um terreiro de umbanda, porém no
filme ela se passa em um 0cemitério, e muda de ritual de umbanda para ritual de quimbanda.
Vejamos este recorte de artigo que comenta a mudança na referida seqüência:
Quimbanda A seqüência do ritual da quimbanda, mostrada em "Cidade de Deus",
é quase gráfica. Encontra similares na seqüência do transe de Fernanda Montenegro
("Central do Brasil") e na gangorra da moça do circo em "Abril Despedaçado".
Meirelles explica o que o levou a optar por tal representação do ritual afro-brasileiro.
O Adão (Xalebaradã), que faz o pai de santo no filme, nos sugeriu filmar a
seqüência num cemitério. Sugeriu, também, acender algumas velas. O Charlone
decidiu iluminar a cena praticamente só com as velas, e pediu ao diretor de arte,
Tulé, para acender centenas delas.
(Trecho extraído do site Revista de Cinema, acessado em 28/02/2007:
http://www2.uol.com.br/revistadecinema/edicao29/cidadededeus/index.shtml)
22
3.2 A visão de Bakhtin, o gênero do discurso e a questão da forma
Antes, só havia o verbo no gênero literário. Só havia valor no gênero literário. Só
havia interesse no gênero literário. Só havia prestígio para o gênero literário. E ele tinha uma
forma original, que nasceu na República de Platão, com sua concepção de que a comédia e a
tragédia deveriam ter função moralizante e que "se constroem inteiramente por imitação"
(Soares; 2001, p. 9), isto é, o poeta seria um "imitador" daquilo que vê: o mundo real que, por
seu turno, já é uma cópia do mundo ideal, que existe além de nós. Essa concepção platônica a
seguir foi refutada por Aristóteles,
2
ex-discípulo de Platão, em sua Poética, na qual, além de
apontar as diferenças entre o mundo empírico e a realidade, discordando de Platão também
quanto à necessidade da função moralizante, esclarecia as diferenças entre as várias espécies
de poesia, entre a comédia, a tragédia e a epopéia, e identificava a forma para cada um dos
gêneros e também orientava sobre seu desenvolvimento.
Através dos tempos, com a evolução dos estudos e com o surgimento de novos
gêneros literários, um elemento nunca perdeu o seu valor: a forma . E cada produção literária
era tida como de menor ou de maior valor de acordo com a obediência à forma do gênero
literário em que se desenvolvia.
Foi no século XIX que houve, veementemente, com os românticos, uma ruptura com a
tirania da forma e uma nova concepção sobre mímesis, mas, mesmo assim, no que concerne
aos estudos de gêneros, até o início do século XX, houve completa supremacia do gênero
literário. Não se sabe exatamente quando estudiosos teóricos da linguagem começaram a se
interessar pela parte prosaica da linguagem (FARACO, 2003, apud RODRIGUES, 2005,
2
Para ler a Arte Poética, de Aristóteles: http://www.ebookcult.com.br/acervo/livro.php?L=282&cat=ART000000
23
p.152) em sua função comunicativa cotidiana (gêneros discursivos primários, como sugeriu
Bakhtin), mas um dos grandes estudiosos do assunto foi o próprio Bakhtin (1875-1975) que,
de acordo com Machado (2005, p. 155), distinguiu-a da linguagem produzida a partir de
códigos culturais elaborados, como a escrita, a que denominou gênero discursivo secundário.
Bakhtin (2003, p. 261 e 262) defendia a idéia de que as atividades humanas estão
todas ligadas ao uso da linguagem, e como são diversas as atividades humanas, também são
multiformes os usos da linguagem que tendem a se expandir à medida que se desenvolvam os
campos das atividades humanas. Para ele, o uso da língua se realiza através de enunciados
(orais ou escritos) que, dentro de sua unidade, abarcam três recursos: lexicais, fraseológicos e
gramaticais. E estes recursos são determinados de acordo com a finalidade a que se prestam,
isto é, dependem do campo da atividade a que se destinam, efetivando, assim, o conteúdo
temático, o estilo e a construção composicional. Embora cada enunciado particular seja
individual, ele não deixa de seguir as especificidades relativamente estáveis de cada campo de
atividade em que se desenvolve, gerando assim os gêneros do discurso.
Segundo Rodrigues (2005, p.164), baseando-se em estudos de Bakhtin, "O que
constitui um gênero é a sua ligação com uma situação social de interação, e não suas
propriedades formais". E cita, como exemplo, uma biografia científica e um romance
bibliográfico: embora ambos, a ciência e a arte, compartilhem os "valores biográficos", "se
encontram em esferas sociais diferentes" e têm "funções discursivo-ideológicas distintas".
Com relação à referência de Rodrigues sobre esferas sociais diferentes, melhor não
entendê-la como classes sociais diferentes e sim como grupos de interesses diferentes, pois, de
acordo com Marcuschi (2006, p. 24), "não podemos tomá-los [os gêneros] como se fossem
24
peças que se sobrepõem às estruturas sociais. Nem são peças que refletem as estruturas
sociais."
Com relação às funções, para a ciência, a finalidade é histórico-científica; para a arte, a
finalidade é, evidentemente, artística. A primeira teria compromisso com a verdade; a
segunda, cujo objetivo é a arte, o entretenimento, sendo ficção, poderia trazer a verdade,
transformar a verdade, distorcer a verdade... E, sendo as funções ou finalidades diferentes,
diferentes também seriam as formas.
Que não se creia, entretanto, que, por serem multiformes os gêneros discursivos, haja
completa liberdade de escolha de estilo, independente da atividade humana em que um gênero
se insere. Segundo Marcuschi (2006, p. 24 e 25),
os gêneros têm uma identidade e eles são entidades poderosas que na produção
textual nos condicionam a escolhas que não podem ser totalmente livres e aleatórias,
seja sob o ponto de vista do léxico, grau de formalidade ou natureza dos temas [...]
Os gêneros limitam nossa ação na escrita. [...] os gêneros não são superestruturas
canônicas e deterministas, mas também não são amorfos [...]
Isto diz bem da natureza relativamente instável dos gêneros do discurso. Portanto, de-
pendendo da atividade em que se insira o gênero, haverá, sim, um direcionamento para a
escolha lexical, que poderá ser formal ou informal, e para a forma, que poderá ser mais
padronizada ou menos padronizada.
Segundo Bakhtin (2003, p. 265), quanto mais padronizada a forma do gênero do
discurso, menor é o reflexo da individualidade, e cita como exemplos documentos oficiais
(pode-se pensar em: petições, requerimentos, declarações, atestados, etc.), ordens militares e
sinais verbalizados da produção. E poderiam ser acrescentados: receitas médicas ou
culinárias, pequenos avisos (saída, entrada, proibido fumar, etc.), até evoluirmos para os
25
enunciados representados por imagens, embora Bakhtin não os mencione, tais como placas de
trânsito, por exemplo.
Se ilimitada é a variação das atividades humanas e da comunicação, e se cada uma
origina determinado estilo (aqui significa a forma demandada por determinado gênero
discursivo) de acordo com sua função, então são ilimitados e multiformes os gêneros
discursivos.
Desta maneira, conclui-se, por exemplo, que um discurso político carregue as marcas
individuais do enunciador as lingüísticas (escolhas lexicais, variantes gramaticais,
fonéticas e lexicais e outros traços lingüísticos) e as ideológicas (leitura de mundo, lugar
social no discurso e outros traços socioculturais), nas quais Bakhtin afirma haver
reciprocidade , mas terá a forma de discurso político. E isto aconteceria também com uma
carta pessoal, uma crônica, um artigo, um romance ou até mesmo uma charge, um cartoon
seria possível não reconhecer o estilo de Caruso, Henfil ou Ziraldo, seus traços, suas
personagens, sua ideologia?
Salientando a importância das várias esferas de usos da linguagem não restritas a um
meio único, Bakhtin expôs um leque de fontes de estudo da linguagem ligadas tanto às
inúmeras situações interacionais ou inter-relacionais humanas quanto a uma gama inesgotável
de meios de comunicação muitos dos quais não existiam à época de seus escritos , e
conseqüentemente, a possibilidade de surgimento de um sem-número de gêneros discursivos
dentre os quais está também o gênero roteiro, seja para TV, cinema ou para a internet, onde já
podem ser vistas novelas criadas e encenadas por autores e atores experimentais.
3
3
Ver site: http://www1.uol.com.br/novela/ Ou qualquer outro site sob o título de net novela.
26
3.3 A retomada dos estudos sobre gêneros textuais
Os gêneros textuais, segundo Marcuschi (2005, p.19), são "fenômenos históricos,
profundamente vinculados à vida cultural e social." Como se vê, as atuais concepções de
Marcuschi estão fundamentadas nos estudos de Bakhtin acerca dos gêneros do discurso.
Marcuschi (2005, p.19) ainda destaca o fato de os gêneros textuais serem produzidos
coletivamente e de refletirem, através dos mais variados meios de comunicação, as culturas
nas quais se desenvolvem. Portanto, os gêneros textuais emergem de todas aquelas atividades
sociodiscursivas ou realizações lingüísticas que efetivam a comunicação. E porque os modos
de concretização e os meios de comunicação de que se utilizam os textos são vários, variados
também são os gêneros textuais.
Poderá o estudioso dos gêneros textuais encontrar desde logo uma dificuldade:
estabelecer uma definição para o que seja gênero textual considerando as diferenças entre este
e os tipos textuais.
Marcuschi (2005, p. 22) considera importante a distinção entre gênero e tipo textual
para o trabalho com a produção e compreensão de textos e apresenta as seguintes noções:
(a) Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de seqüência
teoricamente definida pela natureza lingüística de sua composição {aspectos lexicais,
sintáticos, tempos verbais, relações lógicas}. Em geral, os tipos textuais abrangem
cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação,
exposição, descrição, injunção.
(b) Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para
referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que
apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades
funcionais, estilo e composição característica.
Desta maneira, podemos concluir que toda ação comunicativa se constitui em um
27
gênero do discurso ou gênero textual, partindo da mais simples (qualquer ato de fala, como
um simples cumprimento: Bom dia!) chegando à mais complexa (uma exposição de fatos ou
de argumentos, por exemplo) e, dentro de cada uma dessas ações, encontrar-se-ia um tipo ou
encontrar-se-iam vários tipos textuais: uma injunção (o cumprimento), uma descrição, uma
narração, etc.
Para tornar essas diferenças mais visíveis, Marcuschi (2005, p. 23) expõe o seguinte
quadro:
TIPOS TEXTUAIS GÊNEROS TEXTUAIS
1. constructos teóricos definidos por
propriedades lingüísticas intrínsecas;
1. realizações lingüísticas concretas
definidas por propriedades sócio-
comunicativas;
2. constituem seqüências lingüísticas
ou seqüências de enunciados no
interior dos gêneros e não são textos
empíricos;
2. constituem textos empiricamente
realizados cumprindo funções em
situações comunicativas;
3. sua nomeação abrange um conjunto
limitado de categorias teóricas
determinadas por aspectos lexicais,
sintáticos, relações lógicas, tempo
verbal;
3. sua nomeação abrange um conjunto
aberto e praticamente ilimitado de
designações concretas determinadas
pelo canal, estilo, conteúdo,
composição e função;
4. designações teóricas dos tipos:
narração, argumentação, descrição,
injunção e exposição
4. exemplos de gêneros: telefonema,
sermão, carta comercial, carta pessoal,
romance, bilhete, aula expositiva,
reunião de condomínio, horóscopo,
receita culinária, bula de remédio,
lista de compras, cardápio, instruções
de uso, outdoor, inquérito policial,
resenha, edital de concurso, piada,
conversação espontânea, conferência,
carta eletrônica, bate-papo virtual,
aulas virtuais, etc.
Tomando-se por base as considerações de Bakhtin e de Marcuschi, poder-se-ia dizer
que o roteiro de cinema, nosso gênero-alvo, é um gênero textual com uma função determinada
(a preparação de falas de personagens, cenas, cenários e música) para um canal determinado
(o cinema), no qual se podem abrigar simultaneamente diversos gêneros textuais (em sua
28
composição podem ser encontrados telefonemas, cartazes, bilhetes, etc.) e tipos textuais (tais
como descrição, narração, exposição, injunção, etc.). Não podemos nos esquecer, no entanto,
de que na fase do roteiro, todos os gêneros se apresentam como discurso verbal escrito e que,
mais tarde, tornar-se-ão discurso verbal oral, no caso dos diálogos e da narrativa, e discurso
não-verbal, no caso das imagens e da trilha sonora.
29
3.4 Texto e contexto
Em suas concepções de texto e de sentido, Koch (2003, p. 13) começa salientando o
valor da concepção de língua e de sujeito para seu embasamento.
Segundo Koch (2003, p. 13 e 14), se tomarmos língua como "representação do
pensamento", seu sujeito é um "sujeito psicológico, individual, dono de sua vontade e de suas
ações." É, portanto, esse sujeito um enunciador cujo enunciado é a transmissão de seu
pensamento, sua identidade, diretamente para o enunciatário que, por seu turno, para
compreender seu sentido, deve captar as idéias do enunciador.
Se, no entanto, tomarmos língua como estrutura, seu sujeito é um "sujeito
determinado, assujeitado pelo sistema, caracterizado por uma espécie de 'não consciência'."
Seu enunciador, portanto, é inconsciente, o que diz é produto de uma ideologia que se
apoderou dele, é um discurso anterior ao dele, do qual ele é um mero repetidor. Se não tem
consciência, se não sabe o que diz, é um sujeito sem identidade, nele só se encontra a
ideologia que ele representa.
Mas se a língua é um sistema, uma estrutura, que o sujeito domina e que usa para
representar seu pensamento na sua comunicação com o outro, essa língua é "lugar de
interação" (Koch, 2003, p. 15). Terão, no momento da interação, enunciador e enunciatário a
mesma relevância na construção de sentido do texto, ou enunciado, porque o primeiro (o
enunciador) constrói o texto, ou enunciado, tendo em mente as considerações que faz sobre si
mesmo (sua própria leitura de mundo, seu próprio lugar no discurso), as considerações que
faz sobre o enunciatário (a leitura de mundo do enunciatário, seu lugar no discurso) e as
30
considerações que o enunciatário faz sobre ele (o enunciador); o segundo (o enunciatário)
"lê", ou interpreta, o texto tendo em mente as considerações que faz sobre si mesmo (sua
própria leitura de mundo, seu próprio lugar no discurso), as considerações que faz sobre o
enunciador (a leitura de mundo do enunciador, seu lugar no discurso) e as considerações que
o enunciador faz sobre ele (o enunciatário).
A produção e a leitura do texto, lugar de interação, portanto, carrega a leitura de
mundo de ambos, enunciador e enunciatário, que através dessa interação podem construir,
confirmar ou alterar a concepção que têm sobre sua própria identidade ou sobre a identidade
do outro.
Também nessa interação, o texto é o meio e na sua construção não deixará o
enunciador de lançar mão do recurso da leitura de mundo para se fazer entender ou para
convencer (persuadir) ou para não se fazer entender, conforme sua intenção. E se utilizando
desse recurso (a leitura de mundo) pode lançar mão de elementos que sejam extrínsecos ao
texto (o "não se fazer entender" não é o caso da maioria dos roteiros, pois dependem da
compreensão e da cumplicidade do "leitor" para que sua mensagem seja absorvida e seja
alcançado, assim, o seu fim).
Concluindo, dependendo do tipo de sujeito que esteja ou que se queira ou que se
pressuponha por trás do enunciador (autor) e do enunciatário (leitor), e da importância das
circunstâncias de espaço geográfico (lugares com culturas semelhantes ou muito diferentes) e
das circunstâncias de tempo (momento atual, momento com registros capazes de levar a uma
reconstituição, momento com parco ou nenhum registro), o texto será "lido" levando-se em
consideração apenas seus elementos intrínsecos (o próprio texto); o enunciador e sua
31
intenção; os elementos extrínsecos (o contexto) e o enunciatário, ou todos esses elementos
juntos.
É importante esta exposição sobre sujeito, texto e contexto para adiante abordarmos a
construção de sentido de um roteiro através da composição da personagem, dos diálogos e das
cenas (mímesis, contexto e referenciação). As idéias de uma personagem, a sua ideologia, seu
lugar social e seu lugar no discurso, seu nível cognitivo, social e cultural geralmente estão
expressos no seu discurso, na sua fala para que ela, a personagem, esteja coerente com o seu
universo, com o tipo que representa, de acordo com o aspecto espaço-temporal que se
identifica na história.
É fundamental também perceber que, no roteiro, todos os elementos são utilizados de
uma forma harmônica (no discurso verbal e no discurso não-verbal, no texto e no contexto)
produzindo sentido.
32
3.5 A construção de sentido
Há no roteiro, como no romance, várias espécies de interação: entre autor e texto (e aí
se incluem as personagens e o contexto imaginados e codificados pelo autor); entre as
personagens da história; e entre "leitor" e texto (aí também se incluem as personagens e o
contexto decodificados pelo "leitor").
Segundo Koch (2003, p.17),
na concepção interacional (dialógica) da língua, na qual os sujeitos são vistos como
atores/construtores sociais, o texto passa a ser considerado o próprio lugar da
interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que dialogicamente nele se
constroem e são construídos. Desta forma há lugar, no texto, para toda uma gama de
implícitos, dos mais variados tipos, somente detectáveis quando se tem, como pano
de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interação.
Essa gama de implícitos, portanto, que é um dos suportes para a significação, está sob
o velo do contexto e vem à tona no discurso, na codificação e na decodificação dos
participantes desse mesmo discurso.
Ainda, segundo Koch (2003, p. 17),
O sentido de um texto é, portanto, construído na interação texto-sujeitos (ou texto-
co-enunciadores) e não algo que preexista a essa interação. Também a coerência
deixa de ser vista como mera propriedade ou qualidade do texto, passando a dizer
respeito ao modo como os elementos presentes na superfície textual, aliados a todos
os elementos do contexto sociocognitivos mobilizados na interlocução, vêm a
construir, em virtude de uma construção dos interlocutores, uma configuração
veiculadora de sentidos.
Isso diz respeito, na verdade, ao momento de construção do texto, momento em que se
vão construindo e reconstruindo os objetos de discurso. Mas pode haver, também, na
formação discursiva a presença de outros textos, outras imagens que preexistem ao momento
33
de uma específica formação discursiva. Esses textos e essas imagens reconhecidas pelos
participantes do discurso podem ser, no momento da construção de sentido e no momento da
construção e reconstrução dos objetos de discurso, confirmados ou não, distorcidos ou não, de
acordo com a vontade, a cognição e a cumplicidade dos sujeitos participantes. E nesse jogo
entre os participantes do discurso é que se vai construindo o sentido do texto.
Toda atividade comunicativa humana que envolva um enunciador e um enunciatário
se manifesta através do texto, no sentido lato ou estrito, como observaram Fávero e Koch
(2002, p. 25), mencionadas anteriormente. A construção de sentido de um texto, entretanto,
pode não depender exclusivamente de recursos lexicais, fraseológicos ou gramaticais;
dependerá também do contexto. Isso contraria os defensores da teoria que preconiza que um
texto só deve ser considerado a partir de seus fatores intrínsecos, pois um texto, segundo essa
visão, é apenas aquilo que está escrito e seu valor está restrito a sua própria beleza estética,
não sendo preciso considerar que o autor esteja inserido em um momento histórico, em uma
situação social, em um espaço geográfico.
Ainda de acordo com essa visão, não é preciso considerar a bagagem sociocultural do
leitor, tampouco necessita este, para bem compreender um texto, se ater às entrelinhas. Sob
esse aspecto, têm, então, pouco interesse momento histórico, situação social, espaço
geográfico, bagagem sociocultural, leitura de mundo, que são os elementos extrínsecos do
texto. Esses elementos, que freqüentemente estão fora do alcance do leitor comum, menos
atento, às vezes se encontram fora do alcance mesmo de um leitor mais interessado em
desvendar os meandros da construção de sentido de um texto, principalmente se esse leitor
estiver muito distante, no tempo e no espaço, do contexto, ou da leitura de mundo,
condicionantes da produção do texto. Justamente por isso, para evitar um desvio de
34
interpretação, ou para apurá-la, é preciso “treinar o olhar”, é preciso saber considerar a
relevância do texto e do contexto para uma boa interpretação textual.
Comparando a interpretação textual ao trabalho desempenhado por um antropólogo,
poderíamos dizer o seguinte: um antropólogo parte de suas pesquisas pelos registros
históricos, encontra objetos, e através deles, quando autênticos, confirma, nega ou altera os
registros históricos. Da mesma forma, a interpretação parte do texto, através dos fatores
intrínsecos, e constrói seu sentido, que muitas vezes necessita dos fatores extrínsecos para ser
confirmado, negado ou alterado.
Portanto, há dois níveis de leitura, dois níveis de interpretação: aquele que considera
os fatores intrínsecos e aquele que considera os fatores extrínsecos. Ambos são importantes
para a compreensão do texto.
Poderíamos dizer que, em um roteiro, a preocupação com os detalhes das cenas e dos
diálogos não é gratuita: a vestimenta das personagens deve estar de acordo com a época em
que se passa a história, com a sua situação econômica, seu espaço geográfico, seu status; seus
gestos, sua expressão facial, sua expressão corporal, seu olhar, seu uso da linguagem e aí
se imiscuem as variações lingüísticas e as escolhas lexicais devem dizer daquilo que não
está dito oralmente, mas que se constitui em elemento importante na produção de sentido,
implicitando-o ou reforçando-o, de acordo com o caso. Está, portanto, na imagem, ou melhor,
nas rubricas que a descrevem uma das bases para a produção de sentido dos diálogos.
Ainda acerca do valor da imagem, vale lembrar Joly (1996, p.30) para quem a
semiologia "é o estudo de linguagens particulares (imagem, gestos, teatro, etc.)", visão que se
35
assemelha à de Barthes (apud HOUAISS, 2000, não paginado), para quem a semiologia é "o
estudo das significações que podem ser atribuídas aos fatos da vida social concebidos como
sistemas de significação: imagens, gestos, sons melódicos, elementos rituais, protocolos,
sistemas de parentesco, mitos etc."
Barthes (1990, p. 48-58) se refere, em especial, a dois níveis de sentido da imagem: o
sentido óbvio, fácil de perceber, pois está à superfície da imagem ou já é um simbolismo
usado o suficiente para remeter-nos ao seu significado, e o outro sentido, que ele chama de
obtuso, um simbolismo além da imagem, uma impressão que ela nos causa, mas que muitas
vezes não identificamos dentro da própria imagem.
Sendo assim, a comunicação transcende as palavras. Dela também fazem parte a
entoação, os gestos, as expressões, os olhares, enfim, tudo que diga respeito à imagem.
Portanto, a construção de sentido de um roteiro se faz através da interação do autor
com os leitores, principalmente os que estão envolvidos na produção do filme, da integração
entre rubricas e diálogos, texto e contexto.
36
3.6 A referenciação
Relembremos agora o que declararam Fávero e Koch (2002, p. 25) acerca de texto:
Trata-se, pois, de uma unidade de sentido, de um contínuo comunicativo contextual
que se caracteriza por um conjunto de relações responsáveis pela tessitura do texto
os critérios ou padrões de textualidade, entre os quais merecem destaque especial
a coesão e a coerência.
Aproveitando a metáfora da “tessitura do texto”, e interpretando tessitura como
textura, poderíamos dizer que coesão e coerência são “os fios”, os elementos que “tecem”,
“amarram”, “costuram” o texto. Essa tessitura do texto seria a progressão textual, a arte de
“tecer” o texto com os elementos de coesão e coerência.
Segundo Koch e Travaglia (2000, p. 23), “Todos os estudiosos do texto estão de
acordo quanto ao fato de que coesão e coerência estão intimamente relacionados no processo
de produção e compreensão do texto.”
Charolles (1987, apud KOCH e TRAVAGLIA, 2000, p. 23) afirma que “os elementos
lingüísticos de coesão e conexão ajudam a estabelecer a coerência, mas não são suficientes,
nem necessários para que a coerência seja estabelecida, sendo preciso contar com os
conhecimentos exteriores ao texto.”
De acordo com Beaugrande & Dressler (1981, apud KOCH, 2006, p. 35), há “sete
critérios, dois deles (coesão e coerência) ‘centrados no texto’ e cinco (situacionalidade,
informatividade, intertextualidade, intencionalidade e aceitabilidade) ‘centrados no usuário’.”
Até esse momento, a noção de coesão era restrita à remissão ou referência a elementos
37
anteriores (anáfora), feita através de elementos de ordem gramatical e lexical na superfície do
texto: pronomes, artigos, numerais, advérbios, por repetição, por elipse, por substituição, por
sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos, etc. Esses elementos eram considerados meros
“elos” sintáticos, seguindo o conceito tradicional de referência, segundo o qual os elementos
referenciais sempre retomam um referente estável. Porém, mesmo com esses elementos, para
a interpretação do anafórico se faz necessária uma interpretação sintática. Sendo assim,
mesmo nestes tipos de anáfora (retomada de um referente no texto), poder-se-ia dizer que não
há uma permanente estabilidade do referente.
Vejamos alguns exemplos:
VIELA - BANDIDOS
Zé Pequeno (1), ao dobrar uma viela, tromba com um VENDEDOR de PANELAS.
Zé Pequeno (2) cai no meio das panelas. (3) sua (4) RISADA FINA,
ESTRIDENTE E RÁPIDA. Ele (5) se levanta, e começa a ESPANCAR
violentamente o vendedor de panelas. Zé Pequeno (6) tira de trás do calção uma
PISTOLA. Parece que ele (7) vai matar o coitado. Mas, em vez disso, aponta (8) o
revólver para o alto, e dá (9) a ordem:
ZÉ PEQUENO (10)
Senta o dedo no galo!
(CDD,
4
p. 4)
Tomando como referente Zé Pequeno (1), observamos as seguintes anáforas
(retomadas):
a) Por repetição: (2), (6), (10);
b) Pronominais: (4), (5), (7)
c) Por elipse ou através de desinência pessoal: (3), (8), (9)
Nos dois últimos casos, podemos dizer que há uma pequena instabilidade do referente,
uma vez que, tanto nas anáforas pronominais quanto nas que são feitas através de elipse, há
necessidade de uma interpretação sintática desses elementos em relação ao referente, portanto
4
Na época do lançamento, alguns críticos se referiam ao filme com a sigla CDD, que era como os moradores se referiam à
Cidade de Deus. Para facilitar, usaremos a mesma sigla nos recortes selecionados do roteiro.
38
o referente não é completamente estável.
A título de comparação, vejamos o que acontece com o referente no seguinte trecho e
atentemos para a interação rubrica-diálogo/fala:
Dadinho vê alguém (1). Dá sua gargalhada perversa. E vai ao encontro de MANÉ
GALINHA (2), um jovem muito bonito, de olhos azuis, pele escura e cabelo liso.
Ele (3) está numa rodinha com 3 MULHERES, as mais bonitas do baile.
DADINHO (cont.)
Aí, bonitão (4)! Sempre com as gostosas, né? Mas macho mermo tu (5) não é. Tá
certo?
Galinha (6) vira as costas.
Dadinho dá um tapa na cabeça dele (7).
DADINHO (cont.)
Tô falando com você (8), viado de merda (9).
(CDD, p. 51)
Logo percebemos que o pronome indefinido alguém (1) se refere a Mané Galinha (2),
termo que aparece posteriormente. Portanto, há aqui uma catáfora. Esse tipo de referenciação
também acarreta em um decréscimo da estabilidade do referente, uma vez que exige
interpretação sintática do termo em relação ao posterior referente.
Tomando como referente Mané Galinha (2), podemos observar as seguintes anáforas
(retomadas):
I. Em relação às rubricas:
a) Pronominais: (3), (7)
Neste caso também há um pequeno decréscimo da estabilidade do referente por força
da interpretação sintática.
b) Nominal: (6)
Há aqui uma redução do nome Mané Galinha, o que ocasiona também um pequeno
decréscimo da estabilidade do referente.
39
II. Em relação a Zé Pequeno:
a) Pronominais: (5), (8)
Estas anáforas pronominais podem ocasionar uma maior diminuição da estabilidade do
referente, uma vez que o enunciatário usa dois pronomes pessoais para retomar o mesmo
referente.
b) Nominais: (4) e (9)
Em ambos os casos, o enunciador, que no texto é Zé Pequeno, confere atributos ao
referente Mané Galinha. No primeiro caso, há retomada do referente [Mané Galinha] com
remissão a sua beleza e a seu sucesso com as mulheres, com possível entoação de ironia ou de
desprezo. No segundo caso, também há retomada do referente, agora com remissão a sua
covardia, apesar da expressão usada, na verdade, não fazia referência à sua escolha sexual. Ou
essa escolha lexical traduziria apenas um xingamento, um insulto, fazendo remissão ao
despeito, ao desprezo, à inveja que sente o enunciador em relação ao enunciatário. Neste caso,
há um alto grau de instabilidade do referente.
Na análise da progressão referencial do último trecho, no que diz respeito aos itens (4)
e (9), pode-se perceber que coerência e coesão também estão ligadas ao contexto, pois para
fazer a ligação entre esses elementos, (4) e (9), e o referente, há necessidade de considerar o
contexto para perceber a alteração do seu sentido. Por isso, há hoje um reconhecimento de que
ambas, coerência e coesão, não dependem única e exclusivamente dos elementos presentes no
texto; elas também ancoram-se, semântica e cognitivamente, no contexto. Segundo Koch
(2006, p. 46),
a distinção entre coesão e coerência não pode ser estabelecida de maneira radical,
consideradas dois fenômenos independentes, pois [...] nem sempre a coesão se
estabelece de forma unívoca entre elementos presentes na superfície textual. Desta
maneira, sempre que se faz necessário um cálculo do sentido, com recurso a
elementos contextuais em particular os de ordem sociocognitiva e interacional
já nos encontramos no domínio da coerência. Além do mais, os dois grandes
40
movimentos responsáveis pela estruturação do texto o de retrospecção e o de
prospecção [anáfora e catáfora] , realizados em grande parte por meio de recursos
coesivos, são determinantes para a produção dos sentidos e, portanto, para a
construção da coerência.
Então, há mais do que os cinco elementos apontados por Beaugrande & Dressler
“centrados no usuário”. Há também a coesão e a coerência, pois, segundo Koch (2006, p. 46 e
47), “dentro de uma abordagem sociocognitiva e interacionista, a coerência vai passar a ser
vista como uma construção ‘situada’ dos interlocutores.”
É justamente nessa interação ou negociação entre os usuários que se vai construindo o
sentido do texto, que se vai estabelecendo a coerência: com os elementos de coesão e
coerência e com a progressão referencial, se vão construindo e reconstruindo os referentes e
as novas versões do referente, que são a representação, através da linguagem, da visão que
têm os usuários da realidade e do mundo. A língua é, então, “lugar de interação” e os
sujeitos a dominam e a usam para expressar seu pensamento, de acordo com seu nível social,
cognitivo e cultural. E sendo assim, feita no momento da produção do discurso e sob as
condições mencionadas (sociais, cognitivas, culturais), a (re)construção dos referentes, com
categorização e recategorização dos mesmos, torna-os instáveis, torna-os objetos do discurso.
De acordo com Mondada e Dubois (2003, p. 17),
os sujeitos constroem, através de práticas discursivas e cognitivas social e
culturalmente situadas, versões públicas do mundo.
[...] as categorias e os objetos de discurso pelos quais os sujeitos compreendem o
mundo não são nem preexistentes, nem dados, mas se elaboram no curso de suas
atividades, transformando-se a partir dos contextos. Neste caso, as categorias e
objetos de discurso são marcados por uma instabilidade constitutiva, observável
através de operações cognitivas ancoradas nas práticas, nas atividades verbais e não-
verbais, nas negociações dentro da interação.
Essa instabilidade dos referentes se pode observar na seqüência que vimos
anteriormente e na qual, agora, apontaremos outro referente:
41
VIELA - BANDIDOS
Zé Pequeno, ao dobrar uma viela, tromba com um VENDEDOR de
PANELAS (1). Zé Pequeno cai no meio das panelas. Dá sua (4) RISADA FINA,
ESTRIDENTE E RÁPIDA. Ele se levanta, e começa a ESPANCAR violentamente o
vendedor de panelas (2). Zé Pequeno tira de trás do calção uma PISTOLA. Parece
que ele vai matar o coitado (3).
(CDD, p. 4)
Tomando como referente, desta vez, um vendedor de panelas (1), observamos as
seguintes anáforas:
a) Por repetição: (2)
b) Nominal: (3)
Neste último caso, houve uma mudança no referente. Ele passou de “um vendedor de
panelas” para “o coitado”, portanto houve uma recategorização do referente. Essa
recategorização expõe a instabilidade do referente.
É esta, portanto, a diferença entre o que se entendia antes como referência e o que se
entende atualmente como referenciação na abordagem da lingüística textual. E, por isso, é
esta última a terminologia atualmente adotada. A referenciação admite a introdução de um
novo termo para expressar um referente já mencionado, ela admite a recategorização desse
referente. E por ser instável, o referente também recebe outra denominação à medida que se
modifica na progressão referencial: objeto de discurso. O objeto de discurso é a expressão, o
produto negociado e renegociado entre os participantes do discurso, à medida que se dá a
interação, de acordo com a leitura de mundo de cada um, de acordo com o conhecimento
compartilhado, e nessa negociação os objetos de discurso se vão enriquecendo, pois a eles se
vão acrescentando informações novas. Nesse processo não há comprometimento, portanto,
com a manutenção do referente no seu sentido original, pois os participantes podem
acrescentar, retirar, modificar qualquer elemento ou predicado que seja pertinente a esse
42
mesmo referente, provocando a inferência, jogando a compreensão, a leitura das suas versões
do referente para o contexto. Enquanto o "tradicional referente da tradicional referência" é
relativamente estável, o "referente da referenciação" é mutável. Daí a sua instabilidade, daí a
revisão e releitura do conceito de anáfora, de coerência e de coesão que, desta forma, não
dependem somente do texto. Dependem do contexto e da leitura de mundo dos participantes
do discurso. Logo, o referente pode ser estável, menos estável e instável de acordo com a
estratégia de referenciação escolhida pelos participantes do discurso, de acordo com a sua
estratégia para a “tessitura do texto”.
Koch (2006, p.51), interpretando Blikstein, argumenta que:
[...] percebemos os objetos tal como previamente definidos por nossas práticas
culturais: a ‘realidade’ é fabricada por toda uma rede de estereótipos culturais, que
condicionam a própria percepção e que, por sua vez, são garantidos e reforçados
pela linguagem, de modo que o processo de conhecimento é regulado por uma
interação contínua entre práxis, percepção e linguagem.
Para Koch e Marchuschi (1998, apud KOCH, 2006, p. 57), ao mesmo tempo em que
nosso cérebro recebe uma “leitura” da realidade, ele a processa, a reelabora sob condições
sociais, culturais, históricas e “pelas condições de processamento decorrentes do uso da
língua.”
E é também no ato da produção do discurso, quando nos vem à mente uma “realidade
já fabricada”, que a podemos reprocessar, reconstruir, reelaborar, criando, de acordo com as
condições culturais, históricas e sociais, uma interpretação daquela “realidade fabricada” que
será reinterpretada pelo enunciatário. Assim procedendo, criando objetos de discurso, criamos
também uma possível categorização ou recategorização da “realidade fabricada”. Uma vez
revelados, através do discurso, os objetos do discurso já não nos pertencem exclusivamente,
43
no sentido de que não estabilizam o que desejamos expressar. Eles podem ser reelaborados e
transformados por nós mesmos ou pelo enunciatário, que recriará, em sua interpretação,
expressando-se verbalmente ou não, sua versão dos mesmos objetos de discurso. Daí dizer-se
da instabilidade dos objetos de discurso e da sua provável infidelidade à realidade, uma vez
que, nesse jogo de sua construção e reconstrução, de acordo com Koch (2006, p. 59),
a interpretação de uma expressão anafórica, nominal ou pronominal, consiste não em
localizar um segmento lingüístico (“antecedente”) ou um objeto específico no
mundo, mas em estabelecer uma relação com algum tipo de informação presente na
memória discursiva.
[...] A discursivização ou textualização do mundo por intermédio da linguagem não
se dá como um simples processo de elaboração de informação, mas de
(re)construção interativa do próprio real.
Para tentar compreender melhor o processo da referenciação, toma-se emprestado um
exemplo da pintura, já que o foco deste trabalho é um gênero textual que tem como uma de
suas bases a preparação para a construção da imagem. Observemos o quadro Corps de
Femme, de Magritte:
(Disponível em: http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/enuhmagritt03c.htm)
Quais são os elementos internos? A figura em si e a frase "Corps de femme". Quais
são os elementos externos? São aqueles aos quais fazem referência tanto a figura quanto a
frase.
Quando se trata de pintura, a falta de controle de interpretação fica bem evidente, mas
se a leitura de mundo for compartilhada, ela pode levar a uma determinada interpretação, que
44
não é a “única” e nem a "correta", mas a que é produto do processo cognitivo sob influência
dos fatores sociais e culturais. No quadro exibido anteriormente, à primeira vista, não se
vislumbra um "corpo de mulher", porém, talvez uma análise mais detalhada das linhas
geométricas nos levasse a perceber uma parte do corpo de uma mulher. As duas retas que se
cruzam formam as partes expostas do corpo: são coxas abertas e parte do ventre e do sexo
cobertos por uma calcinha; a calcinha é um pedaço de céu azul com esparsas nuvens, o que
nos pode sugerir que ali esteja o paraíso, o prazer; o fato de haver cores diferentes para cada
coxa pode nos levar a concluir que a figura representa a mulher negra e a mulher branca ou
todas as mulheres; atrás do corpo, uma parede de tijolos lembra um beco, uma parte de muro
de rua. A figura então retrata uma mulher que expõe seu corpo na rua: uma prostituta. Ainda
voltando às formas geométricas, as duas retas que se cruzam formam um X, o que pode
significar algo proibido; e o muro atrás do corpo de mulher, o limite, a realidade dura e
concreta por trás do desejo, do prazer, ou do sonho.
Portanto, um referente representante do mundo "real", que no caso da pintura de
Magritte era a sua interpretação e sua representação de um "corpo de mulher" , pode ser
mantido, reconstruído, modificado, não só pela forma como vemos, interpretamos e
nomeamos o mundo, cuja realidade não é estática, imóvel, como também, segundo Koch
(2003, p. 78), "pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele: interagimos e
construímos nossos mundos através da interação com o entorno físico, social e cultural."
Quando construímos e reconstruímos um referente para representar algo em nossa mente, este
passa a ser objeto de discurso e não objeto de mundo. Esse objeto de discurso, para ser
entendido, depende da leitura de mundo compartilhada. Ao colocar na tela sua representação
do corpo de mulher, Magritte deixou de ser seu dono exclusivo, “doou” seu referente a todos
que quiserem compreendê-lo e interpretá-lo, fazendo cada um a sua própria leitura desse
45
mesmo referente.
Segundo Mondada (1994, apud KOCH, 2003, p. 81),
O objeto do discurso caracteriza-se pelo fato de construir
progressivamente uma configuração, enriquecendo-se com novos
aspectos e propriedades, suprimindo aspectos anteriores ou ignorando
outros possíveis, que ele pode associar com outros objetos ou integrar-
se em novas configurações, bem como pelo fato de articular-se em
partes suscetíveis de se autonomizarem por sua vez em novos objetos.
O objeto se completa discursivamente.
Então, voltamos à “tessitura do texto”.
Se, como diz Koch, o processamento do discurso é estratégico e envolve escolha de
elementos significativos dentre as inúmeras possibilidades de que dispõe a língua (aqui,
poderíamos ampliar para linguagem para incluirmos a imagem), essa escolha deve estabelecer
uma ligação não, obrigatoriamente, com algum elemento do texto já mencionado antes, mas
com "algum tipo de informação que se encontra na memória discursiva" (Koch, 2003, p. 81).
E provavelmente essa escolha também será influenciada pela leitura de mundo e pelo nível
sociocultural do usuário.
O texto, lugar de interação entre enunciador e enunciatário, é “tecido” a duas mãos
(enunciador e enunciatário), com elementos de coerência e coesão que se ancoram no texto,
no contexto e no processo cognitivo-socio-cultural dos participantes. É “costurado” através da
referenciação para a produção de sentido. Logo, a “tessitura do texto”, a progressão textual se
estabelece com a progressão referencial.
Seguindo, ainda, Koch (2003, p. 83), a referenciação na construção de um modelo textual tem
os seguintes princípios:
1. ativação pelo qual um referente textual até então não mencionado é
46
introduzido, passando a preencher um nódulo (“endereço” cognitivo, locação)
na rede conceptual do modelo de mundo textual: a expressão lingüística que o
“representa” permanece em foco na memória de curto termo, de tal forma que o
referente fica saliente no modelo;
2. reativação um nódulo já introduzido é novamente ativado na memória de
curto termo, por meio de uma forma referencial, de modo que o referente
textual permanece saliente (o nódulo continua em foco);
3. de-ativação ativação de um novo nódulo, deslocando-se a atenção para outro
referente e desativando-se, assim, o referente que estava em foco anteriormente.
Embora fora de foco, porém, este continua a ter um endereço cognitivo
(locação) no modelo textual, podendo a qualquer momento ser novamente
ativado. Seu estatuto no modelo textual é de inferível (cf. Prince, 1981).
O princípio de ativar referentes se efetiva através da atividade de referir. O princípio
de reativar um referente se efetiva através de atividades específicas: remeter e retomar. Koch
(2003, p. 84) estabelece diferenças entre referir, remeter e retomar:
Sucintamente: referir é uma atividade de designação realizável por meio da língua
sem implicar uma relação especular língua-mundo; remeter é uma atividade de
processamento indicial na co-textualidade; retomar é uma atividade de continuidade
de um núcleo referencial, seja numa relação de identidade ou não. Ressalte-se, mais
uma vez, que a continuidade referencial não implica referentes sempre estáveis nem
identidade entre referentes.
Na atividade específica envolvida pela remissão, deve-se ter em conta algum tipo de
relação (de ordem semântica, cognitiva, associativa, pragmática ou de outro tipo). A
noção de remeter diz respeito a um movimento textual em que se dão relações não
necessariamente correfenciais. Assim, o fato de progredir mediante a atividade de
remeter não envolve uma retomada, já que retomar é uma atividade particular de
remissão que subentende continuidade referencial, implicando algum tipo de relação
direta, seja de identidade material (caso da correferenciação), seja de não-identidade
material (caso da associação).
Portanto, a retomada de um referente envolve remissão e referenciação; a remissão
envolve referenciação, mas não obrigatoriamente retomada; e a referenciação não envolve
necessariamente retomada nem remissão específica.
Esses três conceitos são importantes para reafirmar o que se concebe por
referenciação, entendendo-se que essa noção é mais ampla que a de retomada referencial. A
progressão referencial é sempre baseada em algum tipo de referenciação, mas não
47
necessariamente em um tipo de retomada referencial (correferenciação).
Em suma, a progressão textual pode ser realizada através da progressão referencial; a
progressão referencial pode se feita através da referenciação; a referenciação pode ser feita
através de ativação, reativação e deativação de referentes; a reativação de referentes pode ser
feita através de retomadas e remissões, as retomadas e remissões podem ser feitas através das
anáforas.
Voltamos às anáforas? Sim, mas não nos referimos somente àquelas que efetivam
processo de referência estável e objetiva. Se na antiga concepção de referência, as anáforas
dependem apenas de elementos na superfície textual, na referenciação elas dependem
também do contexto.
Que tipos de anáforas são essas que dependem do contexto? Logicamente não as que
mantêm imutável o referente, mas aquelas que exercem sobre ele algum tipo de mudança de
sentido (recategorização).
As anáforas podem assim, nessa concepção, ser diretas ou indiretas. As anáforas
diretas são as que retomam um referente, através de uma co-referência ou não (reativação do
referente). Dentro desta categoria também estão os encapsulamentos (sumarizações) que não
dizem respeito a um referente, mas, segundo Koch (2006, p. 66) são nominalizações:
[...] resultantes de encapsulamentos operados sobre predicações antecedentes ou
subseqüentes, ou seja, sobre processos e seus actantes, os quais passam a ser
representados como objetos-acontecimento na memória discursiva dos
interlocutores. Isto é, introduz-se um referente novo, encapsulando a informação
difusa no co-texto precedente ou subseqüente [...], de forma a operar uma mudança
de nível e uma condensação (sumarização) da informação.
48
Já as anáforas indiretas (ou associativas) acontecem quando há, segundo Koch (2006,
p. 64), “uma relação indireta [com o referente] que se constrói inferencialmente, a partir do
co-texto, com base em nosso conhecimento de mundo.” Portanto, não há obrigatoriamente
retomada de um referente, uma vez que ele pode não ter sido ativado anteriormente, mas pode
haver, no momento de sua ativação, uma associação semântica ou cognitiva, por exemplo,
com um referente anteriormente ativado. Veremos exemplos destes tipos de anáfora quando
tratarmos, a seguir, da análise da construção de sentido em um roteiro, tendo como base o
roteiro do filme Cidade de Deus.
49
3.7 A polifonia e a polissemia no roteiro
O uso da palavra polifonia neste trabalho está baseado no que diz Bakhtin (2005, p. 4)
quando de sua análise da obra de Dostoiévski:
A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica
polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental
dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que,
em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos
seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências eqüipotentes e seus
mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua
imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais
são, em realidade, não apenas objetos de discurso diretamente do autor mas os
próprios sujeitos desse discurso significante.
Sendo assim, cada personagem deve ter seu próprio discurso que, para ser verossímil,
precisa parecer estar em sintonia com o seu contexto sócio-ideológico e não com a ideologia
do autor, uma vez que na enunciação cada participante do discurso tem definido o seu lugar
dentro da sociedade e o representa em seu discurso.
No entanto, mesmo que cada sujeito no texto tenha seu próprio discurso significante,
ainda assim será uma interpretação do autor ao compor as personagens. Por este motivo, ao
analisar-se um roteiro de filme, consideraram-se os lugares sociais do autor, do narrador, das
personagens e dos leitores, e não apenas dos enunciadores, das personagens. Por este motivo,
usa-se aqui o termo voz, mais comum nas análises literárias, que, no entanto, deixa mais claro
o objetivo aqui pretendido. Talvez esteja demasiado ampliado o conceito de polifonia, no
entanto bem se aplica a essa idéia que se tem das diversas ideologias e dos diversos lugares
sociais que se podem encontrar na elaboração/leitura-realização/"leitura" final do texto (filme)
do roteiro. Está mesmo bem distante do ‘eu’ responsável ou não pelo ato da fala, do ‘você’
co-enunciador de que nos fala Maingueneau (2002, p. 137-138).
50
"Quem conta um conto, aumenta um ponto."
Quanto ao termo polissemia, este vem emprestado da análise do discurso porque bem
traduz os diversos efeitos de sentido que um entrecruzamento de vozes pode, ao mesmo
tempo, causar ou deles ser o resultado. Sobre a polissemia, nos diz Orlandi (1999, p. 36) que
com ela "o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o
equívoco."
Para esclarecer essa visão, comparemos um romance com um roteiro. A diferença
mais evidente entre um roteiro e um romance está no fato de o romance ser escrito mais
diretamente para o leitor. Apresenta uma relação mais direta entre o escritor e o leitor, ou seja,
o enunciador e o enunciatário. O escritor traduz em palavras seus pensamentos, sua
imaginação, sua interpretação da ideologia que reveste cada uma de suas personagens, seja
pelo que ele é ou acredita ser, seja pelo que são os outros ou como acredita que são, e o seu
texto encontra os pensamentos, a imaginação, a ideologia do leitor. É uma relação indireta
entre o Eu e o Outro. É, portanto, o romance um texto polifônico e sendo polifônico, é
também, polissêmico. Nele se misturam várias vozes, a do autor, a das personagens e a do
leitor. A voz do autor está presente em todo o texto, em todas as personagens, em cada
impressão de imagens. A voz do leitor está em cada leitura e, mesmo que seja um único leitor,
essa voz tem tom variado quando o ato da leitura do mesmo texto se repete: algum detalhe
que lhe fugira antes pode mudar toda sua interpretação. Mas essa voz não se manifesta no
texto. Ela se impõe no consciente ou no inconsciente do leitor, de acordo com o nível de
percepção ou interpretação a que se submete. E não se deve esquecer que essa percepção e
essa interpretação estão intimamente ligadas à visão de mundo, à cultura e à ideologia de
quem lê. E são todos esses ingredientes que vão ajudar a construir o sentido do texto.
Portanto, mesmo quando não há o conflito ideológico no próprio discurso, acredita-se que
51
esse conflito se apresente nas leituras, nas interpretações. E, sendo assim, a interpretação é
passível de equívoco: não significaria o que o autor, com sua visão de mundo e sua ideologia,
houvesse tentado significar, mas significaria o que o leitor, com sua visão de mundo e sua
ideologia tivesse sido capaz de "ler".
O roteiro é também um texto polifônico e polissêmico, pois entre o autor e aquele a
quem o produto final (o filme) se destina, há elementos que primeiro fazem o papel de leitor
e, ao mesmo tempo, influenciam na mensagem do texto diretamente, antes que este chegue ao
último elo da corrente, o receptor final, aquele que assistirá ao filme. Entre esses construtores
do roteiro estão o diretor, o cenógrafo, os atores, o responsável pela edição, etc. O roteiro,
portanto, a cada passo em que é executado, recebe uma pincelada, um retoque dos que
participam de sua produção, antes de se tornar um produto final que irá encontrar o receptor
final. Mas, é claro, o resultado disto está na produção final o filme. O nosso discurso
polifônico e polissêmico é, no estágio do roteiro, semelhante ao discurso e ao efeito do
discurso do romance. Só que não encontra o último elo na sua fase escrita e sim quando é o
texto posterior, o filme. Portanto, pode-se dizer que o roteiro é um texto, efetivamente, em
construção.
Para acentuarmos essa influência, vejamos, sucintamente, algumas das atribuições de
alguns dos participantes desse processo:
1. O roteirista cria argumento, cria personagens e sugere as cenas e diálogos.
2. O diretor dirige as cenas de acordo com sua interpretação do que foi sugerido pelo
roteirista. Neste processo ele pode mudar ou eliminar cenas e diálogos.
52
3. Os atores atuam, encenam constroem a personagem de acordo com a sua interpretação do
roteiro, do argumento. A sua interpretação pode ser aceita pelo diretor ou não, pois a
interpretação deste tem preponderância sobre a interpretação dos atores.
4. O autor da trilha sonora faz a sua produção de acordo com o que interpretou das
personagens e do argumento.
5. O editor faz o corte, a edição de cenas, de acordo com o limite de tempo proposto, tentando
manter o sentido do argumento.
6. O figurinista é o responsável pela criação da vestimenta para as personagens, pois a
vestimenta, como já vimos, faz parte da composição da personagem, assim como a escolha
lexical, a fala, etc.
Esses são apenas alguns dos envolvidos na produção de um texto que usam o texto-
base, o roteiro, como ponto de partida para executar suas funções. E cada um tem, como
qualquer leitor, a sua própria interpretação do texto.
Por tudo isto, podemos dizer que o roteiro é um texto polifônico, não unicamente
porque cada personagem tem sua própria voz, mas porque atrás das vozes das personagens há
outras vozes. E esse conjunto de vozes pode fazer com que, não todo o texto, mas
determinados aspectos do texto adquiram um sentido que não fora previsto originalmente. Por
isso, o roteiro, um texto efêmero, instável como um referente da referenciação, pode ser
polissêmico.
53
4. Análise do gênero roteiro, tendo como base o roteiro de Cidade de Deus
4.1 Um resumo da história
O roteiro do filme Cidade de Deus (CDD, como ficou conhecido na época) narra a
progressão do crime naquela comunidade, desde a década de 1960 (talvez durante o mandato
de Carlos Lacerda, governador do então Estado da Guanabara), quando começou o
assentamento no que viria a ser uma favela, até os anos 1980. A história é narrada sob a ótica
de uma das personagens, Busca-Pé, um menino pobre que sonhava em ser fotógrafo. É Busca-
Pé quem nos conta a trajetória de meninos como Dadinho/Zé Pequeno, Bené, Sandro Cenoura
e de um jovem, Mané Galinha, vítima da inveja e da perversidade de Zé Pequeno, que
sonhava em ter uma vida melhor, mas acabou sucumbindo ao crime por revolta e por
vingança.
5
4.2 Roteiro, um gênero textual
Segundo o dicionário eletrônico Houaiss (2000, não paginado), na rubrica ou entrada
que nos interessa, roteiro é:
Rubrica: cinema, radiofonia, teatro, televisão.
texto que resulta do desenvolvimento do argumento de filme, vídeo, novela,
programa de rádio ou televisão, peça teatral etc. dividido em planos, seqüências e
cenas, com as rubricas técnicas, cenários e todos os diálogos. (Grifo nosso)
Ainda em relação ao assunto e pertinente ao nosso interesse, registre-se o que diz o
mesmo Houaiss eletrônico acerca de rubrica:
Rubrica: cinema, teatro, televisão.
em um roteiro de filme, teatro, televisão etc., texto que não faz parte do diálogo,
mas indica aos atores, ao diretor e à produção (arte, figurino etc.) detalhes
imprescindíveis da cena. (Grifo nosso)
5
Para saber mais sobre CDD, o filme e a comunidade, leia os apêndices.
54
Aqui uma breve comparação entre um roteiro de teatro e um roteiro de cinema:
a) Roteiro de teatro:
AUTO DA COMPADECIDA
PALHAÇO, grande voz
Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um
sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade.
Toque de clarim.
PALHAÇO
A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia.
Auto da Compadecida!
Toque de clarim.
PALHAÇO
A mulher que vai desempenhar o papel desta excelsa Senhora declara-se indigna de
tão alto mister.
Toque de clarim.
PALHAÇO
Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor
quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém,
que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o
direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua
gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas
intimidades.
Toque de clarim.
PALHAÇO
Auto da Compadecida! O ator que vai representar Manuel, isto é, Nosso Senhor
Jesus Cristo, declara-se também indigno de tão alto papel, mas não vem agora,
porque sua aparição constituirá um grande efeito teatral e o público seria privado
desse elemento de surpresa.
Toque de clarim.
PALHAÇO
Auto da Compadecida! Uma história altamente moral e um apelo à misericórdia.
JOÃO GRILO
Ele diz "à misericórdia", porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a
nação seria condenada.
...
PALHAÇO
O distinto público imagine à sua direita uma igreja, da qual o centro do palco será o
pátio. A saída para a rua é à sua esquerda.
(Essa fala dará idéia da cena, se adotar uma encenação mais simplificada e pode
ser conservada mesmo que se torne um cenário mais rico.) O resto é com os
atores. (Grifo nosso)
(SUASSUNA, Ariano. Teatro Moderno. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro,
Agir, 2004, p.22)
55
b) Roteiro de cinema:
CIDADE DE DEUS
Abrimos com a imagem de um FACÃO sendo afiado.
CARACTERES em superposição: 1981
Ouve-se o murmúrio de VOZES alegres, vozes CANTANDO um samba
acompanhado de um BATUQUE. Não vemos as pessoas. Mas os sons deixam claro
que se trata de um ambiente festivo. A letra do samba tem como tema: comida.
MÃOS NEGRAS amarram com um barbante a PERNA de um GALO.
O galo é imponente e vistoso. Alternamos o galo incomodado por ter a perna
amarrada a imagens que sugerem a preparação de um almoço: ÁGUA
FERVENDO numa enorme panela.
O galo parece reagir à imagem anterior.
Batatas sendo descascadas por MÃOS de uma mulher negra.
O galo reage como se entendesse a situação: vai virar comida.
GALINHAS MORTAS sendo depenadas por MÃOS de mulheres negras.
O galo reage. Ele tenta libertar a perna amarrada ao barbante.
MÃO masculina negra percute o couro de um pandeiro.
A letra do samba faz referência explícita ao tema comida.
O galo parece entender que seu fim está próximo.
Um FACÃO sendo afiado por mãos negras masculinas. A faca vai CRESCENDO,
tornando-se cada vez mais ameaçadora.
O galo se desespera. Luta. E escapa.
ALMEIDINHA, o negro que segura o facão, percebe a fuga do galo e
dá o alarme.
ALMEIDINHA
O galo fugiu!
Pela primeira vez, vemos a casa de Almeidinha do lado de fora.
Trata-se de um lugar pobre, uma casa de alvenaria da Cidade de Deus. A festa está
acontecendo no quintal.
A fuga do galo provoca um grande ALVOROÇO entre os convidados:
na maioria homens, JOVENS, NEGROS e MULATOS. Apenas alguns são
BRANCOS. Estão quase todos de calção e chinelo. Dezenas de bandidos saem
correndo atrás do galo. Eles fazem parte da quadrilha de Zé Pequeno. Todos
berrando:
VOZES DOS BANDIDOS
Pega o galo, pega o galo!
(MANTOVANI, B. , 2001, p. 1)
Logo percebemos uma diferença básica entre ambos: enquanto no roteiro para teatro
há poucas e sucintas rubricas relativas ao cenário, no roteiro de cinema elas são numerosas.
São textos para meios diferentes: para o teatro, onde, na maior parte dos casos, com
produções mais modestas que as cinematográficas, há o palco e recursos cenográficos
56
limitados, por isso o texto se apóia mais nos diálogos e na habilidade dos atores; para o
cinema, a imagem é fundamental.
Para bem compreender esta diferença, é lícito tomar como exemplo o filme Dogville,
6
direção e roteiro de Lars Von Trier, 2003. Nesse filme, a cidade é representada com um
grande palco, onde os espaços são demarcados com linhas feitas, talvez, com fita-crepe. Não
há paredes, mas as pessoas agem como se elas existissem. No cenário, apenas o indispensável
para caracterizar o lugar. A ausência de um cenário que imitasse a realidade não retira o
entendimento do que seja cada lugar porque todos sabem ou podem imaginar como são,
porque fazem parte da realidade de todos. Portanto, o filme se assemelha a uma peça teatral,
onde a expressão se faz através dos diálogos, da interpretação e da caracterização de cada
personagem. Dogville, o filme, parece uma peça filmada, com a diferença de que há a
possibilidade de aproximar o detalhe, por exemplo, a expressão facial do ator.
Para uma conceituação mais específica de roteiro de cinema, apresentamos a seguir a
visão de diferentes autores:
Para Comparato (2000, p. 19, 20 e 21), o roteiro é
[...] forma escrita de qualquer projeto audiovisual. [...] O que fica bem no papel fica
bem na tela. Um bom roteiro não é garantia de um bom filme, mas sem um bom
roteiro não existe com certeza um bom filme. [...] De maneira muito geral, podemos
dizer que esta forma de escrita a que chamamos roteiro é algo muito efêmero: existe
durante o tempo que leva convertendo-se num produto audiovisual. [...] o roteiro
propriamente dito é como se fosse uma crisálida que se converte numa borboleta,
imagem proposta por Suso d’Amico, a grande roteirista italiana.
Sobre roteiro, diz Maciel (2003, p. 20-21):
6
Para saber mais sobre Dogville, o filme, acesse: http://www.espacoacademico.com.br/038/38cult_valim.htm
57
Os americanos chamam-no screenplay, uma peça para a tela, de maneira a distingui-
la da simples play, destinada ao placo. Os franceses o chamam de scenario, para
designá-lo como um conjunto de cenas. E nós o chamamos de roteiro.
Não é uma má palavra para o caso. Roteiro é uma rota não apenas determinada, mas
'decupada', dividida, através da discriminação de seus diferentes estágios. Roteiro
significa que saímos de um lugar, passamos por vários outros, para atingir um
objetivo final.
Ou seja: o roteiro tem começo, meio e fim - conforme Aristóteles observou na
tragédia grega como uma necessidade essencial da expressão dramática.
No vocabulário do roteirista (2007, não paginado), de Jorge Machado, encontramos a
seguinte definição:
Forma escrita de qualquer espetáculo audiovisual. Descrição objetiva das cenas,
seqüências, diálogos e indicações técnicas do filme. ROTEIRO FINAL - Roteiro
aprovado para o início da filmagem ou gravação. ROTEIRO LITERÁRIO - Roteiro
que não contém indicações técnicas. ROTEIRO TÉCNICO - Roteiro contendo
indicações referentes a câmara, iluminação, som, etc.
Além das definições de roteiro apresentadas acima , vale a pena citar mais uma, a de
Syd Field:
7
Roteiro [...] é uma história contada em imagens. É como um substantivo: isto é, um
roteiro trata de uma pessoa, ou pessoas, num lugar, ou lugares, vivendo a sua
"coisa". (2001, p. XV)
O roteiro não é escrito para o grande público, mas é um texto-base para a produção de
outro texto (o filme) existe para a orientação dos autores (diretor, atores, editores, etc.)
desse outro texto. Portanto, seguindo Marcuschi (2005, p. 23), tem uma função comunicativa
dentro de uma situação específica. E, quanto à forma, sempre apresentará os elementos
básicos e indispensáveis para a sua construção: as rubricas e os diálogos. Tem também
especificações determinadas pelo canal a que se destina, o cinema: câmeras, iluminação,
música, instruções para montagem (edição), localização das cenas, etc.
7
Syd Field, renomado roteirista e escritor americano, atua como consultor de produtores americanos na análise e desenvolvimento de
roteiros.
58
Por tudo isto, pode-se dizer que o roteiro é um gênero textual bastante peculiar. Dentro
desse gênero textual deve abrigar-se algum gênero cinematográfico (drama, comédia, thriller,
policial, terror, etc.), isto é, na preparação do roteiro estará delineado também o gênero
cinematográfico em que se constituirá o texto-alvo, o filme. Portanto, o roteiro de cinema é
um gênero textual que abriga um gênero cinematográfico e pode, também, abrigar vários tipos
textuais (narração, argumentação, descrição, injunção, etc.) e outros gêneros textuais
(telefonema, carta, cartazes, mapas, etc).
Podemos ratificar essas afirmativas nos seguintes trechos do roteiro do filme Cidade
de Deus:
EXT. RUAS DO CONJUNTO (1) DIA (2) / MAPA DE GUERRA (3)
Acompanhado de um séquito de bandidos, Pequeno caminha pelas ruas da
Cidade de Deus, rumo à boca de Cenoura.
Desta vez, ele não é saudado pelos moradores, que entram em suas casas e
fecham portas e janelas, demonstrando o medo que sentem de Pequeno. (4)
EFEITO: em meia fusão entra MAPA DA FAVELA com linhas tracejadas
que mostram a trajetória de Zé Pequeno rumo à Boca da 15. (5)
Música militar. (6)
BUSCA-PÉ (V.O.) (7)
Depois que Bené morreu, ninguém mais podia segurar Zé Pequeno. Ele tava
decidido a matar o Cenoura e quem mais fosse pra virar o único dono da
Cidade de Deus...E quem é que ia se atrever a dizer alguma coisa? A Cidade de
Deus tava condenada a ser a favela do Zé Pequeno. (8)
(CDD, p. 85)
No trecho que acabamos de ler, podemos notar:
(1) Locação da cena;
(2) Instrução de que a cena se passa durante o dia;
(3) No título da rubrica a descrição da imagem de um mapa. Um mapa é uma imagem
gráfica, representa também um gênero textual;
59
(4) Descrição da cena;
(5) Instrução para a edição ou montagem;
(6) Descrição do tipo de fundo musical;
(7) Instrução para a introdução da voz do narrador;
(8) Fala do personagem-narrador. A narrativa é um tipo textual.
Agora vejamos este outro trecho:
ARQUIVO - JORNAL NACIONAL
Imagem de arquivo do Jornal Nacional da época: o apresentador dá a notícia
da prisão de Mané Galinha. (1)
INT. QUARTO DE HOSPITAL - DIA
Recriação de entrevista de Galinha para o Jornal Nacional com o mesmo texto,
o mesmo enquadramento e a mesma textura de imagem. (2)
(CDD, p. 100)
Nas rubricas há descrição de dois outros gêneros textuais:
(1) Noticiário de TV
(2) Entrevista.
Perseguição policial, morte, violência... O roteiro de Cidade de Deus não mostra
policiais “bonzinhos” ou “mocinhos” tentando desvendar um crime. Não é um filme da
categoria policial. Mostra policiais violentos e corruptos, pessoas tentando sobreviver num
ambiente violento, numa realidade à parte do “mundo do asfalto”, dos apartamentos e
mansões da Zona Sul. Mundos vizinhos e com realidades tão distantes. Cidade de Deus é um
drama.
60
4.3 A estrutura física ou a forma do gênero roteiro
Se achássemos apenas este trecho do roteiro de Cidade de Deus, uma página solta
numa calçada, por exemplo, o que nos levaria a classificá-lo como roteiro?
ARTE - CARTELA
Texto enche a tela: A DESPEDIDA DE BENÉ
INT. SALÃO DE BAILE - NOITE
No mesmo salão das outras vezes, Bené dá uma festa de despedida.
Barbantinho está fazendo o som. Busca-Pé está perto dele.
Bené e Angélica trocam beijos e abraços intensos. Estão totalmente apaixonados.
BUSCA-PÉ (V.O.)
O Bené era gente fina demais pra continuar naquela vida de bandido... Ele decidiu
largar tudo, inclusive a mulher, pra sair saindo com a Angélica. Eles iam comprar
um sítio. E viver felizes pra sempre.
Zé Pequeno passa por Busca-Pé, esbarrando nele. Zé Pequeno parece ser a única
pessoa mal-humorada no local. E observa Bené com um olhar desconfiado.
Tuba segue Zé Pequeno de perto, como se fosse um cachorrinho.
(CDD, p. 79)
Fortes indícios de que este trecho pertence a um roteiro são as rubricas, os nomes das
personagens, os diálogos, a voz em off (V.O.) e a palavra “tela”. O roteiro, portanto, tem uma
forma própria, tem uma “receita” onde podem ser encontrados facilmente os “ingredientes”
que o constituem. Como qualquer outro gênero discursivo. Mas, não são somente esses os
elementos que caracterizam um roteiro.
A estrutura física de um roteiro é composta por duas partes: as rubricas e os diálogos,
e essas duas partes englobam os três aspectos fundamentais Logos, Pathos e Ethos , de
acordo com Comparato (2000, p. 20 e 21):
A ferramenta de trabalho que dará forma ao roteiro é a palavra. O logos é essa
palavra, o discurso, a organização verbal de um roteiro, sua estrutura geral.
Um roteiro, a sua história, provoca identificação, dor, tristeza. Pathos é o drama, o
dramático de uma história humana. É, portanto, a vida, a ação, o conflito cotidiano
que vai gerando acontecimentos. O pathos afeta as pessoas que, arrastadas pela sua
própria história, quase não são responsáveis pelo que lhes acontece o seu drama
, nem pelo que as destrói a sua tragédia , convertendo-se inclusive em
motivo de divertimento a sua comédia para os outros.
61
A mensagem tem sempre uma intenção. [...] Tudo é escrito para produzir uma
influência. É o ethos, a ética, a moral, o significado último da história, as suas
implicações sociais, políticas, existenciais e anímicas. O ethos é aquilo que se quer
dizer, a razão pela qual se escreve. Não é imprescindível que seja uma resposta;
pode ser uma simples pergunta.
É através da palavra, do texto, do discurso que se constrói o roteiro. As palavras,
logos, representam tudo: as instruções para as cenas e a construção dos diálogos. Imagem e
diálogo formando o pathos, a história, o drama, a trama que levará ao ethos, a mensagem
implícita na história, ou seja, "moral da história".
Segundo Field (2001, p. 2),
roteiro é uma história contada em imagens [...] Uma história é um todo, e as partes
que a compõem a ação, personagens, cenas, seqüências, Atos I, II, III, incidentes,
episódios, eventos, música, locações, etc. são o que a formam. Ela é um todo.
Para Field, a história pode ser dividida em três atos que têm as seguintes funções:
O primeiro ato (ou Apresentação, para Field), segundo Field (2001, p. 4) é para:
"apresentar a história, as personagens, a premissa dramática, a situação (as
circunstâncias em torno da ação) e para estabelecer os relacionamentos entre o
personagem principal e as outras pessoas que habitam os cenários de seu mundo."
É, portanto, o Ato I o início, a introdução da história, o começo do envolvimento do
enunciatário, leitor ou espectador, que talvez se identifique na trama ou se identifique com
algum elemento ali apresentado, que pode ser a própria premissa dramática. Por isso, a
introdução ou a apresentação no Ato I é fundamental para o restante do desenvolvimento da
trama, uma vez que é ali que se estabelecem o problema e as pessoas nele envolvidas.
O segundo ato (ou Confrontação, para Field), é a fase em que aparecem as
personagens em ação enfrentando os obstáculos para a resolução do problema. Nessa
fase, o enunciatário, leitor ou espectador envolvido se torna uma testemunha
silenciosa, porém cúmplice e refém não resistente, prazerosamente submisso, da
62
história. Field explica (2001, p. 5):
Durante o segundo ato, o personagem principal enfrenta obstáculo atrás de
obstáculo, que o impedem de alcançar sua necessidade dramática [...] Necessidade
dramática é definida como o que seu personagem principal quer vencer, ganhar, ter
ou alcançar durante o roteiro. O que o move através da ação? O que deseja seu
personagem principal? Qual a sua necessidade? [...] Todo drama é conflito. Sem
conflito não há personagem; sem personagem, não há ação; sem ação não há
história; e sem história, não há roteiro.
O terceiro ato (ou Resolução, para Field), não deve ser visto como fim, mas
simplesmente como a solução do roteiro. Na verdade é o confronto final entre a
personagem principal e seus opositores. Na tradição hollywoodiana, na maioria das
histórias, daí advém o desfecho que satisfaz o envolvido enunciatário, leitor,
espectador, a confirmação da função moralizante: vencem os bons, perdem os maus.
Mas, nem sempre é assim, como nem sempre é assim na realidade.
Field (2001, p. 6) ainda menciona o plot point, o ponto de virada entre um ato e outro,
que se traduz em um episódio, um incidente ou um evento que muda o rumo da trama e cuja
finalidade é fazer a ligação entre um e outro ato.
Em relação ao filme Cidade de Deus, a história começa em um ponto de conflito
próximo ao final, no qual o narrador e personagem Busca- se vê diante do temido Zé
Pequeno que ordena que ele agarre um galo que acaba passando por entre suas pernas. Esse
momento o faz lembrar de outro momento, em sua infância, no qual o mesmo Zé Pequeno,
então chamado de Dadinho, requer a sua bola de futebol. A partir dessa lembrança, Busca-
recompõe a história que, no final, volta ao mesmo ponto do início até atingir o último
desenlace.
Começo da história:
Abrimos com a imagem de um FACÃO sendo afiado.
CARACTERES em superposição: 1981
63
Ouve-se o murmúrio de VOZES alegres, vozes CANTANDO um samba
acompanhado de um BATUQUE. Não vemos as pessoas. Mas os sons
deixam claro que se trata de um ambiente festivo.
A letra do samba tem como tema: comida.
MÃOS NEGRAS amarram com um barbante a PERNA de um GALO.
O galo é imponente e vistoso. Alternamos o galo --incomodado por ter a perna
amarrada -- a imagens que sugerem a preparação de um almoço:
ÁGUA FERVENDO numa enorme panela.
O galo parece reagir à imagem anterior.
Batatas sendo descascadas por MÃOS de uma mulher negra.
O galo reage como se entendesse a situação: vai virar comida.
GALINHAS MORTAS sendo depenadas por MÃOS de mulheres negras.
O galo reage. Ele tenta libertar a perna amarrada ao barbante.
MÃO masculina negra percute o couro de um pandeiro.
A letra do samba faz referência explícita ao tema comida.
O galo parece entender que seu fim está próximo.
Um FACÃO sendo afiado por mãos negras masculinas. A faca vai CRESCENDO,
tornando-se cada vez mais ameaçadora.
O galo se desespera. Luta. E escapa.
ALMEIDINHA, o negro que segura o facão, percebe a fuga do galo e dá o alarme.
ALMEIDINHA
O galo fugiu!
[...]
RUA - BUSCA-PÉ E BARBANTINHO
BARBANTINHO
Porra, Busca-Pé! Vamo sai saindo. Se tu encontrar o cara? Ele deve tá querendo te
matar.
BUSCA-
Barbantinho, se liga: a última coisa que eu queria na minha vida era ter que ficar
cara a cara com aquele bandido de novo.
Neste exato momento, as duas ações paralelas se encontram: o galo vira a esquina. E
atrás dele surgem Zé Pequeno e sua gangue.
Barbantinho arregala os olhos. Busca-Pé levanta um pouco a câmera fotográfica em
direção ao olho mas não consegue levar o gesto até o final. Ele fica paralisado,
olhando para Zé Pequeno que aponta a arma para Busca-Pé e grita:
ZÉ PEQUENO
Segura o galo.
Busca-Pé assume a pose de goleiro, fica meio abobalhado, tentando agarrar o galo,
que passa no meio das pernas dele.
Uma MULHER que empurra um carrinho de bebê vê a cena e se afasta
apressadamente.
(CDD, p. 1 e 2)
No trecho destacado, o plot point ou ponto de virada:
Zé Pequeno avança em direção a Busca-Pé.
Busca-Pé está apavorado. Barbantinho, paralisado.
Zé Pequeno pára de repente. Todos os bandidos apontam suas armas
para alguém que está atrás de Busca-Pé.
Busca-Pé olha para trás e vê uma PATRULHA de 6 policiais.
À frente da patrulha está o detetive Cabeção -- nordestino e malencarado.
Busca-Pé ainda na pose de goleiro desajeitado. A imagem congela.
BUSCA-PÉ (V.O.)
Na Cidade de Deus, não dá pra saber o que é pior: encarar os bandidos ou a polícia.
É um bangue-bangue sem mocinho. E sempre foi assim... Desde que eu...
64
FUSÃO PARA:
EXT. CAMPINHO - DIA
Um grupo de garotinhos jogando futebol. Entre eles estão os meninos Busca-Pé e
Barbantinho. A idade dos garotos varia de 8 a 10 anos.
CARACTERES em superposição: ANOS 60
O MENINO BUSCA-PÉ está jogando como goleiro. Seus gestos são idênticos aos
do jovem Busca-Pé tentando agarrar o galo na cena anterior.
A bola vem na direção dele. E passa por entre as pernas do menino, que se revela um
frangueiro.
BUSCA-PÉ (V.O.)
(...) me conheço por gente.
Gritos da molecada. O jogo continua.
BUSCA-PÉ (V.O. cont.)
Muito malandro já chegou na Cidade de Deus com experiência ou com disposição
pra bandidagem...
PERTO DALI DADINHO e BENÉ -- também garotos na faixa dos 8 aos 10 anos,
todos negros -- se aproximam do jogo.
Barbantinho agarra a bola assustado.
BARBANTINHO
Miou o jogo!
DADINHO
Aí, molecada! Deixa eu dar uns toque nessa bola manera aí!
STILL de Dadinho em CLOSE.
BUSCA-PÉ (V.O.)
Dadinho, por exemplo, parecia que já tinha nascido bandido.
Barbantinho, nervoso, joga a bola para Busca-Pé, que fica perplexo.
Dadinho se aproxima de Busca-Pé de maneira ameaçadora.
Bené se coloca entre os dois. Não é tão assustador quanto Dadinho. Ele fala para
Busca-Pé.
BENÉ
Como é que tu chama?
BUSCA-
Busca-Pé.
STILL de Bené e Busca-Pé.
BUSCA-PÉ (V.O.) (cont.)
Pra quem ainda não percebeu, esse aí com o Bené sou eu.
Imagem volta a ganhar movimento.
BENÉ
Não deixa o Dadinho chuta tua bola, não, que ele é perna-de-pau. No primeiro chute
ele fura a bola.
Busca-Pé hesita. Não entrega a bola mas não consegue disfarçar o medo que sente
de Dadinho.
Busca-Pé começa a recuar, andando para trás, preparando-se para correr.
Logo nos primeiros passos, Busca-Pé tromba com alguém maior do que ele:
CABELEIRA, um bandido de uns 18 anos, que veste uma CAMISETA BRANCA.
Cabeleira toma a bola de Busca-Pé.
Dadinho aplaude.
(CDD, p. 3 e 4)
Próximo ao final da história:
Replay de trecho de cena do começo do filme.
65
Busca-Pé levanta um pouco a câmera fotográfica em direção ao olho mas não
consegue levar o gesto até o final. Ele fica paralisado, olhando para Zé Pequeno que
aponta a arma para Busca-Pé e grita:
ZÉ PEQUENO
Segura o galo.
Busca-Pé assume a pose de goleiro, fica meio abobalhado, tentando agarrar o galo,
que passa no meio das pernas dele.
Uma mulher a Madalena da minibiografia que empurra um carrinho de bebê
vê a cena e se afasta apressadamente.
Zé Pequeno avança em direção a Busca-Pé.
Busca-Pé está apavorado. Barbantinho, paralisado.
Zé Pequeno pára de repente. Todos os bandidos apontam suas armas
para alguém que está atrás de Busca-Pé.
Busca-Pé olha para trás e vê uma PATRULHA de 6 policiais.
À frente da patrulha está o detetive Cabeção.
Busca-Pé ainda na pose de goleiro desajeitado.
Cabeção, de um lado, e Zé Pequeno, do outro, trocam olhares
ameaçadores.
Cabeção faz um sinal para seus homens guardarem as armas.
ZÉ PEQUENO (cont.)
Aí, Cabeção! Leva tuas meninas aí de volta
pra delegacia. Na minha favela, não entra
viado.
Zé Pequeno dá sua risada característica.
Cabeção e seus homens se retiram.
Ao fundo, passa um CAMINHÃO DE GÁS.
Busca-Pé continua paralisado. Zé Pequeno caminha na direção
dele. Busca-Pé acha que vai morrer.
ZÉ PEQUENO (cont.)
Aí, Busca-Pé! Tu tá esperando o que pra
tirar a minha foto.
Busca-Pé levanta a câmera. Ao mesmo tempo, Zé Pequeno faz uma
cara de assustado e aponta a arma na direção de Busca-Pé.
SUBJETIVA DA CÂMERA:
Busca-Pé tem Zé Pequeno enquadrado.
Busca-Pé fecha o olho, antes que ele aperte o botão, soa um
TIRO. E depois outro, e muitos outros.
PERTO DALI
O carrinho de bebê é destroçado por uma saraivada de balas.
DE VOLTA A BUSCA-
Vários bandidos em volta de Zé Pequeno caem mortos e feridos.
Outros disparam a esmo. Zé Pequeno foge.
Busca-Pé percebe que está no meio do fogo cruzado. Ele olha para trás e descobre
que se trata de um ataque do bando de Galinha.
Busca-Pé e Barbantinho se refugiam atrás de um monte de entulho.
(CDD, p. 156)
Como vimos, um roteiro conta uma história com princípio, meio e fim, mas isso não
impede que dentro do desenvolvimento da trama exista o flashback, que não é um recurso
inventado pelo cinema. Muitos romancistas o usaram e o usam. Por exemplo, José de Alencar,
66
em seu livro Senhora.
8
Ele começa seu romance falando de uma jovem rica e bela da
sociedade carioca do século XIX. Em dado momento, ele abre um espaço para contar sobre a
vida da jovem quando ainda era pobre e tinha sofrido uma desilusão amorosa.
Não podemos dizer que não haja uma estrutura pronta, uma espécie de esqueleto, para
o roteiro Field (2001, p. 6 -7), por exemplo, menciona que o primeiro ponto de virada (plot
point), que, no caso de Cidade de Deus, ocorre logo no início da história (na página 4), deve
ocorrer entre as páginas 25 e 27, entre o primeiro e o segundo ato, e o segundo entre as
páginas 85 e 90, entre o segundo e o terceiro ato , mas a receita pode ser transgredida,
ampliada, modificada, contanto que se construa uma história em imagens e que ela possa ter
princípio, meio e fim.
8
ALENCAR, José de. José de Alencar: ficção completa e outros escritos. Vol. I. Senhora. Rio e Janeiro, Companhia Aguilar Editôra, 1965.
67
4.4 As personagens
Para a linguagem cinematográfica, a caracterização de uma personagem é
fundamental, principalmente se a história busca retratar a realidade. Ou, mesmo que a história
busque a fantasia, um dos tons convincentes de sua legitimidade é a caracterização da
personagem que vive essa “irrealidade”. Assim, seja qual for o teor da história, isto é, seja a
história uma imitação (mímesis) da realidade ou pura fantasia, sua verossimilhança estará
baseada na composição, caracterização e representação convincente da personagem.
Excluindo-se o aspecto da bondade, que segundo Aristóteles, toda personagem deveria
ter, estamos em concordância quando diz, em sua Poética, no quarto ponto por ele apontado,
que a personagem deve ser coerente com aquele a quem imita, "mas se a personagem que se
pretende imitar é por si incoerente, convém que permaneça incoerente coerentemente."
Personagem, segundo Newman (2006, p. 93), "é, inicialmente, um ser imaginário que
atua em uma obra de ficção seja ela literária, cinematográfica ou teatral."
Segundo Field (2001, p. 18), "O personagem é o fundamento essencial do seu roteiro.
É o coração, alma e sistema nervoso de sua história. Antes de colocar uma palavra no papel,
você tem que conhecer o seu personagem."
Para Comparato (2000, p. 111), Personagem vem a ser algo assim como
personalidade e aplica-se às pessoas com um caráter definido que aparecem na narração.”
A diferença entre pessoa e personagem, embora pareça óbvia, é de difícil
68
estabelecimento. Newman (2006, p. 95) declara que
todas as pessoas são para nós aquilo que o nosso imaginário diz que elas são [...]
todos nós somos ‘personagens’ de um jogo de imaginários, entre o como os outros
nos vêem (que pode ser de muitos, diferentes e conflitantes modos) e como nós
mesmos nos vemos. O que nos distingue, ao nos compararmos com as personagens
ficcionais, é termos além de uma existência imaginária, simbólica uma
existência palpável e todas as coisas derivadas dessa concretude, nas minúcias
cotidianas da corporalidade (dormir, alimentar-se, cortar as unhas etc.).
Esses seres imaginários, criados na ficcão, são produtos da imaginação do autor,
mesmo que ancorados em pessoas que ele conheceu na realidade, e não têm compromisso
com a realidade externa da obra. O seu compromisso é com a realidade apresentada na obra.
Em Cidade de Deus, o filme, Busca-Pé é, ao mesmo tempo, o narrador e uma das
personagens. É um adolescente que conta a história da evolução da criminalidade no lugar
onde vive e, simultaneamente, sonha com uma oportunidade de fugir do destino a que estão
fadados seus amigos. E a história mostra que sua oportunidade vem através do crime, não
como um marginal, mas fotografando os acontecimentos marcantes daquela comunidade, o
que lhe abre uma porta como aprendiz de fotógrafo num jornal. Busca-Pé é um personagem
criado pelo autor, inspirado, como outros, em pessoas da vida real, tais como o Mané Galinha,
que no filme aparece em imagens reais do Jornal Nacional.
Tanto Newman (2006) como Comparato (2000) também discorrem sobre dois tipos de
personagens: planas e redondas. As personagens planas são aquelas que apresentam um perfil
inalterado, de traços fixos, como as madrastas das histórias infantis. Já as personagens
redondas são aquelas que surpreendem porque são complexas, imprevisíveis.
Ainda em relação à verossimilhança, segundo Comparato (2000, 128-129),
A complexidade de uma personagem e as suas contradições têm de se manifestar
69
para que seja verossímil, real. Quanto maior for sua densidade humana, mais real
nos parecerá. Um grave erro na configuração de uma personagem é pretender que
seja perfeita. Por natureza, o ser humano é imperfeito e, portanto, contraditório e
conflituoso. [...] aquilo que buscamos na configuração de uma personagem é o seu
equilíbrio, as linhas de força que a compõem [...] Aquilo que procuramos é um ser
humano com todas as suas complexidades, e não uma marionete obediente.
Valorosos itens na composição da personagem e também imprescindíveis para a sua
verossimilhança são a sua aparência, seu aspecto físico, sua vestimenta que geralmente
também têm relação com seu status, com o ambiente em que vive.
Isto podemos notar nestes trechos:
Pela primeira vez, vemos a casa de Almeidinha do lado de fora.
Trata-se de um lugar pobre, uma casa de alvenaria da Cidade de Deus. A festa está
acontecendo no quintal.
(CDD, p. 1)
O status também pode ser revelado através da "casa" da personagem.
A fuga do galo provoca um grande ALVOROÇO entre os convidados:
na maioria homens, JOVENS, NEGROS e MULATOS. Apenas alguns são
BRANCOS. Estão quase todos de calção e chinelo. (Grifo nosso)
(CDD, p. 1)
Status revelado pelas vestimentas das personagens.
Outro dado relevante acerca da personagem é a sua maneira de falar. Poderia
prejudicar a verossimilhança da história, por exemplo, se, ao interpretar um marginal da
comunidade de Cidade de Deus, com pouca ou nenhuma instrução, o ator falasse dentro da
norma padrão e sem a escolha lexical que faria a pessoa que ele (o ator) interpreta. Por isso,
ao criar ou interpretar uma personagem, o roteirista e o ator, por exemplo, devem estimar o
meio em que vive essa personagem, levando em consideração o universo da pessoa que essa
personagem representa.
70
Comparato (2000, p. 127) argumenta que “esses pormenores lingüísticos e de diálogo
tendem a desaparecer” por causa da prática universal da dublagem, embora reconheça que
com isso “se perde parte da riqueza e detalhe da composição da personagem.” Devemos
lembrar, no entanto, que, mantendo a variação lingüística e a escolha lexical, a perda só
existiria fora do espaço geográfico que esses pormenores alcançam. Da mesma forma que
podemos aqui não distinguir as diferenças entre os falares dos habitantes dos guetos e os
falares das pessoas cultas e das classes mais abastadas de Nova York e compreender uma
história que se passa naquela cidade. Se pensássemos assim, não poderíamos tampouco ler os
romances traduzidos. Obviamente há uma perda na tradução e na dublagem, mas, felizmente,
isso não impede que a obra original lance mão de um recurso tão importante para uma grande
parcela de leitores e público de cinema.
Vejamos um pouco (quando tratarmos dos diálogos, voltaremos ao assunto) dessas
variações lingüísticas e escolhas lexicais neste trecho:
INT. COZINHA DA CASA DE LÚCIA MARACANÃ - DIA
Berenice está lavando a louça do café da manhã. Cabeleira ajuda, enxugando os
pratos.
[...]
BERENICE
Se você tem alguma coisa pra dizer, diz logo, Cabeleira! Você tá me deixando
nervosa!
(CONT.)
CABELEIRA
É que eu ainda escolhendo as palavras certa, tá sabendo?
BERENICE
Você deve ser um cara muito escolhedor. Gente assim não se dá bem na vida,
não, sentiu?
SILÊNCIO.
EFEITO: PASSAGEM DE TEMPO.
CABELEIRA
Então é o seguinte: vou te mandar uma letra invocada agora: acho que meu
coração te escolheu, morou? Quem escolhe é o otário do coração, e quando eu te vi
meu relógio despertou pensando que era manhã de sol.
BERENICE
Tu tá é de conversa fiada, rapá... Coração de malandro bate é na sola do pé e não
desperta, não, fica sempre na moita!
71
(CDD, p. 27 e 28)
Além das escolhas lexicais e das variações lingüísticas, há nas falas das personagens,
ainda a serem consideradas, a entoação e a pronúncia próprias dos indivíduos da comunidade.
Não são somente, portanto, a escolha lexical e as variações lingüísticas, que têm a ver com o
universo no qual vivem as personagens, revelando seu nível sociocultural e a sua identidade
através do aspecto espaço-temporal. Esta identidade também pode e deve ser buscada através
da pronúncia e da entoação, especialmente quando o veículo se utiliza de som e imagem,
como é o caso do cinema.
Por fim, há ainda a personagem que não fala por si durante toda a trama, mas que pode
ser a personagem principal ou o antagonista. Como exemplos podemos citar o caminhão
enorme, que parece um assassino perseguindo sua presa, um carro de passeio, no filme
Encurralado (Duel),
9
1971, de Steven Spielberg, e a localidade de Cidade de Deus, no filme
objeto de nosso estudo. Não são seres humanos, mas são dotados de vida pela trama e
suscitam emoções.
Comparato (2000, p. 122-135) ainda divide as personagens em categorias, das quais
citamos:
a) Protagonista “é a personagem básica do núcleo dramático principal. [...] pode ser
uma pessoa, um grupo de pessoas, ou qualquer coisa que tenha capacidade de ação
e de expressão.”
b) Ator secundário ou coadjuvante “é a personagem que está ao lado do
9
Para saber mais sobre o filme, acesse: http://www.cinereporter.com.br/scripts/monta_noticia.asp?nid=1311
72
protagonista.”
c) Antagonista “é o contrário do protagonista, o seu oponente. Como o protagonista,
não é necessariamente uma pessoa; pode ser um grupo.”
No filme Cidade de Deus, pode-se dizer que a comunidade, a própria Cidade de Deus,
é, metaforicamente, uma das personagens, quiçá a personagem central, que tem físico no
começo, apresenta ruas de chão, sem asfalto, com fileiras de casas novas, simples e iguais
que, com o desenrolar da história, vão se transformando, tomando um novo “corpo”: casas e
vielas apinhadas, alvenaria sem emboço, lajes sem telhados, paredes sem pintura ou com
pintura desgastada, uma típica favela carioca e alma, que são os seus moradores, mormente
os excluídos, uns tentando por meios legais atingir a inclusão, mesmo com baixos salários, e
outros tentando a mesma inclusão pelo meio mais “fácil”, através do crime, estabelecendo
uma lei e um estado próprios. Essa alma da Cidade de Deus é, portanto, especialmente
representada por personagens que, embora complexos, são típicos em qualquer favela. Há,
portanto, um grupo de protagonistas e um grupo de antagonistas, todos ligados à Cidade de
Deus, com seus dramas, suas carências, sua exclusão, ora tentando escapar do crime e ora
enveredando por esse caminho. Não há heróis nessa história, não os do tipo "mocinho",
perfeito, não-humano. São heróis, como o são as pessoas comuns, rostos sem identidade,
despercebidos na multidão de despercebidos, abandonados à própria sorte, sem assistência,
sem a proteção da Lei ou das entidades sustentadas com o dinheiro público para tais fins. Eis
alguns deles:
a) Busca- um adolescente que vê seu irmão, Marreco, enveredar pelo caminho
do crime e ser assassinado pelo futuro chefe da criminalidade, Dadinho ou Zé
73
Pequeno. Embora viva tão próximo ao crime e fume maconha, estuda em uma
escola pública e sonha em ser fotógrafo. Tudo o que tem para realizar seu sonho é
uma máquina fotográfica barata e sem recursos e é com ela que começa sua
trajetória que é facilitada justamente pela proximidade que tem com o mundo do
crime: ele pode ir aonde os fotógrafos profissionais não podem. É ele a
personagem que narra a evolução da criminalidade em Cidade de Deus, que “faz a
fotografia” da comunidade. Mas nem sempre seu olhar está presente. Nesses
momentos, a narração é da câmera cinematográfica, esta sim sem limites, ou seja,
com os limites que lhe queira dar o roteirista ou o cineasta.
b) Cabeleira - Cabeleira, antigo bandido, o chefe dos “principiantes”, morto pela
polícia, injustamente, como um dos responsáveis pela chacina do motel.
c) Dadinho ou Zé Pequeno uma personagem que, na lembrança que Busca-Pé tem
de sua infância, é apenas um menino. Dele não há mostras de família. Parece um
menino solitário que desde sempre tem a inclinação para o mal. É ele o
responsável pela primeira chacina, a do motel, o primeiro grande crime imputado
injustamente aos bandidos “principiantes” da comunidade, Cabeleira, Marreco e
Alicate. Primeiro vive de pequenos furtos, depois percebe que o grande “filão”
está nas drogas e começa uma guerra para se apossar das bocas de fumo do local.
Consegue seu intento e faz mais inimigos dentro da comunidade. Passa a ser o
“delegado”, o justiceiro a quem recorrem os comerciantes para reclamar dos
constantes assaltos cometidos por menores infratores. Para reprimir os assaltos, ele
e seu bando cercam o bando de menores e sob suas ordens um menor é assassinado
por outro menor, membro de seu grupo. O que ele não sabe é que Otávio, chefe da
74
gangue dos menores infratores é filho de Cabeleira. Esse é talvez o momento mais
brutal do filme, embora bem realista. Uma de suas fragilidades é sua “feiúra”, que
na verdade está mais na sua brutalidade, que o faz chegar à maioridade sem
conhecer o sexo feito com amor. Todas as mulheres que tem são submetidas à
força. Esse insucesso com as mulheres o faz odiar Mané Galinha, um trocador de
ônibus muito bonito e querido pelas mulheres. Uma outra fragilidade é sua
amizade com Bené, o único verdadeiro amigo que teve a vida toda.
d) Bené é irmão de Cabeleira. Bené desde pequeno tem amizade por Dadinho e, à
medida que Dadinho vai se transformando no chefe do crime da localidade, ele vai
também se consolidando como parceiro e braço direito. A diferença é que Bené era
benquisto pela comunidade, ele não tinha a fama de cruel que tinha seu parceiro
Dadinho ou Zé Pequeno, embora fosse tão criminoso quanto este último. Ele era o
único que podia conter um pouco dos exageros de Zé Pequeno. Tudo ia bem até
que ele se apaixonou por uma adolescente de classe média que vivia fora da
localidade. Por ela muda sua aparência, com a ajuda de Thiago, um rapaz de classe
média, cliente consumidor de cocaína, e, por fim, quer deixar a vida marginal, o
que, é claro, desagrada a Zé Pequeno.
e) Thiago um rapaz de classe média que faz amizade com Bené e depois se
transforma em um membro do grupo de Zé Pequeno.
f) Mané Galinha de cabelos lisos e olhos azuis (embora no filme seja negro de
porte atlético). Tem sucesso com as mulheres e namora uma jovem cobiçada por
Zé Pequeno. É um ex-militar, atirador de elite, que vive de seu emprego como
75
trocador de ônibus, mas sonha em melhorar de vida. Tem horror ao crime, porém
muda seu destino ao ser humilhado por Zé Pequeno que, primeiro o faz despir-se
publicamente e, mais tarde estupra sua namorada e assassina seu irmão e seu avô.
Entra, então, para o bando de Sandro Cenoura, pensando unicamente em vingança,
mas logo se vê envolvido em assaltos a bancos, em um dos quais mata um
vigilante.
g) Sandro Cenoura marginal que recebe uma boca de fumo como herança quando
seu chefe, Grande, é preso. É o único poupado, por influência de Bené, por Zé
Pequeno na sua guerra para tomar as bocas de fumo. Com o tempo, no entanto, o
confronto se faz inadiável. E é justamente nesse confronto que se dá o desfecho de
toda a história. Ele se vale da tragédia que sofreu a família de Mané Galinha para
convencê-lo a juntar-se ao seu bando contra Zé Pequeno. É preso durante o
confronto.
h) Othon filho de um vigilante morto por Mané Galinha, se junta ao grupo de
Sandro Cenoura e Mané Galinha para vingar a morte de seu pai. Ninguém sabe
quem foi seu pai e todos pensam que ele quer se vingar de Zé Pequeno. Durante o
confronto entre as duas faccões, ele, mortalmente ferido, atira em Mané Galinha
pelas costas.
i) Otávio filho de Cabeleira e chefe da gangue dos menores infratores. Durante o
confronto final, comanda as crianças no assassinato de Zé Pequeno e torna-se o
líder da criminalidade do local.
j) Cabeção policial corrupto sempre presente nas perseguições aos criminosos da
76
comunidade, mas é, ao mesmo tempo, quem fornece as armas para os bandidos
através de um testa-de-ferro. No confronto entre as facções prende Sandro
Cenoura e “confisca” o dinheiro de Zé Pequeno, deixando-o livre.
Para tentarmos entender melhor a composição de uma personagem, vejamos alguns
trechos que focalizam a personagem Mané Galinha:
a) Primeiro aspecto: o apelido.
Dadinho vê alguém. Dá sua gargalhada perversa. E vai ao encontro de MANÉ
GALINHA, um jovem muito bonito, de olhos azuis, pele escura e cabelo liso. Ele
está numa rodinha com 3 MULHERES, as mais bonitas do baile.
DADINHO (cont.)
Aí, bonitão! Sempre com as gostosas, né? Mas macho mermo tu não é. Tá certo?
Galinha vira as costas.
Dadinho dá um tapa na cabeça dele.
DADINHO (cont.)
Tô falando com você, viado de merda.
As mulheres se afastam. Uma roda de curiosos se forma em volta.
Dadinho dá um tapa forte na cara de Galinha.
DADINHO (cont.)
Se tu virar as costas pra mim de novo, vai levar tiro.
Clima geral de constrangimento. Só Pequeno ri da humilhação de Mané Galinha.
Bené chega e segura Dadinho. (Grifo nosso)
(CDD, p. 51)
O apelido poderia estar ligado ao fato de Mané Galinha ser namorador ou ao fato de
ser covarde.
b) Segundo aspecto: integridade, camaradagem, vida difícil, porém apartada do crime.
INT. ÔNIBUS - NOITE
Busca-Pé e Barbantinho entram no ônibus e se sentam no banco de
trás.
O trocador é Mané Galinha.
[...]
77
GALINHA
Aí... Vocês têm que estudar pra sair daquele lugar, morou? Ali tem muito
bandido.
[...]
GALINHA
Eu sou de paz, mermão. Mas se precisar...
O ônibus pára. Busca-Pé puxa Barbantinho pelo braço.
BUSCA-
Aí, Barbantinho! vamo nessa!
GALINHA
Vão com Deus! (Grifo nosso)
(CDD, p. 72)
c) Terceiro aspecto: as habilidades e o sonho.
GALINHA
Estudei até o colegial. Só tirava nota alta. Servi o exército. Fui o melhor atira-
dor do meu batalhão. Mas mesmo assim tá difícil pegá emprego melhor que esse
aqui.
GALINHA
Mas tem que acreditar, rapá! Ó... Eu sei lutar caratê. Se um dia eu conseguir
arrumar um emprego numa academia, cumpádi, eu saio da favela. (Grifo nosso)
(CDD, p. 72)
Não percebemos na fala de Mané Galinha a mesma quantidade de variações
lingüísticas observadas nas falas das outras personagens. Mas sua fala está entremeada de
expressões que são características da comunidade: rapá, cumpádi.
Retorno ao primeiro aspecto:
Zé Pequeno chega até onde está Galinha e dá um tapa na cara dele.
ZÉ PEQUENO
Aí, bonitão. Tu tá sempre com mulherada, né? Quero vê se tu é macho. Tira a
roupa aí. Tira tudo.
Galinha olha para Pequeno com jeito desafiador. Uma roda se abre.
Zé Pequeno saca o revólver.
ZÉ PEQUENO (cont.)
Mandei tu tirar a roupa.
Galinha percebe que não tem outra saída. Abaixa a cabeça e começa a desabotoar
a camisa. Ele evita encarar o bandido nos olhos. (Grifo nosso)
78
(CDD, 2001, p. 80)
Até este momento, Mané Galinha se submete às provocações de Zé Pequeno. Nesses
três aspectos estão os traços da "personalidade", o perfil de Mané Galinha: pacífico, gentil,
avesso à violência, exímio atirador, esforça-se para conseguir condições financeiras para sair
da favela.
Na próxima seqüência começam os fatos que provocaram a reação, a virada da
personagem:
a) Primeiro fato: o estupro da noiva.
EXT. TERRENO BALDIO - NOITE
Zé Pequeno sobe o calção. Entendemos que um estupro acaba de acontecer.
Vários bandidos seguram Mané Galinha no chão. Um deles tem arma
encostada na cabeça de Galinha.
Pequeno dá um tiro que passa de raspão no pé de Galinha. Ninguém diz nada. Os
bandidos apenas riem. E vão embora. Mané Galinha se arrasta até a Loura,
machucada, despida e humilhada.
Galinha tenta abraçá-la, mas não consegue tocá-la. Ele apenas chora. (Grifo
nosso)
(CDD, p. 86)
b) Segundo fato: o assassinato do irmão e do avô de Mané Galinha.
NA SALA
Galinha vê o Avô morto. Galinha começa a chorar e corre para a rua.
EXT. DIANTE DA CASA DE GALINHA - NOITE
Uma pequena multidão está em volta do cadáver de Gelson. A Mãe acende velas
em volta do corpo do filho. Vizinhos evangélicos improvisam um culto.
Galinha, ajoelhado aos pés do irmão, URRA desesperadamente. Ele olha em
volta. (Grifo nosso)
(CDD, p. 89)
c) Na seqüência seguinte, a reação:
79
Sandro Cenoura está perto. Sua camiseta está levemente desarrumada, deixando
entrever o cabo de uma PISTOLA.
Galinha se levanta, arranca a pistola do calção de Cenoura. E
sai atrás de Pequeno.
[...]
Pequeno vê Galinha se aproximando a passos largos, apontando firme a pistola
e disparando. Tuba, que está bem ao lado de Pequeno, leva um tiro no braço.
Pequeno se levanta. Dispara a esmo. E foge correndo. Tuba o segue de perto.
Um outro bandido sai disparando na direção de Galinha. Leva um tiro fulminante no
meio da testa. (Grifo nosso)
(CDD, p. 89 e 90)
d) O arrependimento:
EXT. PRAÇA DA QUADRA - NOITE
De volta ao lugar em que Galinha matou os bandidos. Galinha anda até o cadáver.
Ele olha estarrecido para o que acaba de fazer. Olha em volta. Sua expressão é
de pânico. Está arrependido. (Grifo nosso)
(CDD, p. 90)
e) A aprovação da comunidade "pacífica":
Pouco a pouco, moradores começam a sair à rua. Outros vêm de ruas próximas. Uma
pequena multidão cerca Galinha. O silêncio é absoluto.
Uma VELHINHA se aproxima lentamente de Galinha e dá um beijo nele.
VELHINHA
Deus te abençoe, meu filho.
[...]
BUSCA-PÉ (V.O.)
Parecia que de repente a Cidade de Deus tinha encontrado um herói... (Grifo
nosso)
(CDD, p. 91)
f) O oportunismo de Cenoura e a entrada de Galinha para o mundo do crime:
80
INT. CAFOFO DO CENOURA - NOITE
O menino Filé com Fritas dá o recado a Cenoura, que ostenta sua metralhadora. O
local está cheio de bandidos. Todos de pé.
FILÉ COM FRITAS
Se tu matar o Galinha, o Zé Pequeno desiste de tomá tua [boca].
Galinha, que está sentado atrás dos bandidos, se levanta e caminha até Filé com
Fritas, que ameaça correr, mas é detido por Sandro Cenoura, que o segura pela
orelha.
CENOURA
Tá vendo, cumpádi? Tu tem que formar com nóis! Se não, tu tá morto.
GALINHA
Se tu tiver as armas e a munição eu quero, mas pode deixar que eu vou sozinho.
[...]
CENOURA
Se tu quiser, tu forma na boca aqui comigo. Tu vira meu parceiro. Meu sócio.
GALINHA
Eu não quero saber de boca-de-fumo, não. Não sou bandido, não. Minha questão é
com ele...
CENOURA
Se tu entrar numa de encarar o Pequeno sozinho, tu vai se fuder. (Grifo nosso)
(CDD, p. 91 e 92)
g) A transformação de Mané Galinha, sua ruína moral, seu conflito interno:
PASSAGEM DE TEMPO.
Mané Galinha, bastante transformado, com cara de bandido, está limpando uma
pistola. Vapores trabalham endolando maconha e fazendo trouxinhas de cocaína.
[...]
GALINHA
Tu tá querendo dizer o quê?
CENOURA
Tu sabe... A gente tem que fazer um ataque de dia. Pega os filho da puta dormindo.
GALINHA
Já falei que não. Tem muito inocente na rua. Eu não sou bandido pra sair por aí
matando morador.
Galinha cheira uma carreira de cocaína, pega uma garrafa de cerveja e bebe no
gargalo.
[...]
A sirene de polícia fica mais alta.
Galinha vê o corpo de Filé com Fritas: um cadáver de olhos bem abertos.
Culpado, Galinha se abaixa e fecha os olhos da vítima. (Grifo nosso)
(CDD, p. 97, 98 e 99)
Por tudo o que foi exposto, podemos dizer que Mané Galinha é um dos protagonistas e
81
uma personagem bastante complexa, um homem trabalhador que, dentro de suas limitações,
busca a inclusão social de maneira digna, porém sucumbe à violência com que lhe roubam os
mais caros sonhos e a vida de entes queridos.
82
4.5 Os diálogos
O recurso de que se utilizam os romancistas de colocar no papel o pensamento e o
sentimento das personagens não existe para o cinema. No roteiro, tudo o que a personagem
sente ou pensa deve ser dito ou nos diálogos ou nos gestos, ou nos olhares, ou na expressão
corporal ou de todas essas formas simultaneamente.
De acordo com Comparato (2000, p. 124),
Em audiovisual não existe um fluxo interior tal como existe no romance; assim o
que ela [a personagem] diz é a única forma de que a personagem dispõe para
expressar seu pensamento; e isto mesmo que as palavras sejam falsas, equívocas ou
dissimuladas.
Vejamos, então, um exemplo de romance:
Entretanto a sensação viva que Fernando experimenta neste momento é a do
contacto estreito, íntimo, do talhe palpitante da moça, como se o tivesse fechado em
seus braços; sua alma, semelhante ao molde que concebe a cêra branda, vazava em
si a formosa estátua e recebia seu toque mavioso.
`Se o colo de Aurélia pulsava rápido no ofêgo da valsa, embora os rofos do decote
nem de leve roçassem o colete, êle, fechando os olhos e recolhendo-se, palpava em
seu peito a rija galba do seio voluptuoso.”
(ALENCAR, José de. Senhora. Rio de Janeiro: Aguiar, 1965, p. 83)
O autor descreve simultaneamente as personagens e as suas emoções. Algumas das
palavras e expressões que usa relacionadas à emoção: sensação, contato estreito, íntimo, talhe
palpitante. E a sensualidade descrita de forma sutil e artística: "...sua alma, semelhante ao
molde que concebe a cêra branda, vazava em si a formosa estátua e recebia seu toque mavioso
[...] êle, fechando os olhos, recolhendo-se, palpava em seu peito a rija galba do seio
voluptuoso." Como adivinhar a emoção das personagens se não estivesse ali o autor a
traduzi-la?
É claro, para o cinema existe o recurso da voz em off (bastante usado em Cidade de
83
Deus) para tal, mas Comparato o considera "enfadonho e pouco criativo". (2000, p 124-125)
Portanto, uma das funções do diálogo é a de expressar os sentimentos, as emoções e os
pensamentos das personagens. Mas, como já dissemos, essa função não é apenas do diálogo,
está também na imagem. Ainda segundo Comparato (2000, p.124):
A personagem pensa e sente, mas faz isso de maneira muito peculiar. Existe uma lei
dramatúrgica muito popular que diz que, cada vez que a personagem pensa, fala. [...]
É importante compreender que, quando digo falam [as personagens], fica implícito
que se comunicam não só verbalmente, mas também através de olhares, expressão
corporal, gestos etc.
Outra função dos diálogos é a de tecer a trama. Juntamente com a imagem, eles
apresentam a história e as personagens e a relação entre elas; eles estabelecem o confronto
entre a personagem principal e seu antagonista; eles costuram a trajetória do herói em sua
busca para a "solução do problema". Eles estabelecem a correspondência entre o que é dito e
o que é mostrado, a coerência entre o discurso verbal e o não-verbal.
Para exemplificar, foram selecionados os trechos a seguir:
Ø Correspondência entre o que é dito e o que é mostrado:
INT. CASA DE CABELEIRA - DIA
Marreco dá uma longa tragada num baseado. Dadinho, brincando, encosta uma
arma na orelha dele. Alicate percebe e dá o alerta.
ALICATE
Vira esse negócio pra lá, moleque! Tu tá maluco.
Marreco dá um tapa em Dadinho e arranca a arma das mãos dele.
MARRECO
Dá essa merda aqui! Tu não tem o que fazer, moleque? Vai buscá uma Coca-cola
pra nós. (Grifo nosso)
(CDD, p. 10 e 11)
Ø Tecendo a trama:
84
Cabeleira intervém.
CABELEIRA
Vamo com calma que o Dadinho é do conceito, tá ligado?
Dadinho olha para Marreco num misto de raiva e desafio.
DADINHO
E isso aí, mermão. Eu também sou bicho solto, tá ligado?
Marreco passa o baseado para Alicate, que passa Cabeleira, que passa para Dadinho.
CABELEIRA
Amanhã tu vem com a gente sabargar o caminhão de gás de novo.
ALICATE
De novo?
CABELEIRA
Não quero ficar duro, não, porque dá azar de sujar e a gente não tem nem um
qualquer pra dar um calaboca pros homi, morou?
ALICATE
A polícia vai ficar na moita, só esperando pra encaçapar vagabundo, morou? Vou
ficar entocado.
CABELEIRA
Se hoje foi dia do Gasbrás, amanhã vai ser o Minasgás.
MARRECO
Caminhão de gás só dá couro de rato. O negócio é meter uma cachanga de bacana.
ALICATE
É... É assim que a gente acerta a boa! E sai dessa vida.
DADINHO
Acerta nada... Essa história de meter cachanga é robada. Eu sei de um jeito mais
melhor de acertar a boa.
Todos riem. Cabeleira defende o menino.
CABELEIRA
Cala boca todo mundo que o Dadinho é mais esperto que vocês tudo! Conta aí,
cumpádi... Que é que tu tá pensando?
Dadinho olha para a arma que tem nas mãos. Olha para Cabeleira e dá uma
risada peculiar. É a risada que ouvimos antes: a risada do futuro Zé Pequeno.
(Grifo nosso)
(CDD, p. 12)
Observe-se que Cabeleira percebe em Dadinho um menino com futuro promissor no
crime; ele é destemido, violento e esperto, mais esperto que os seus comparsas Alicate e
Marreco. Ouve Dadinho com atenção quando este sugere que tem um plano para um assalto
no qual eles conseguirão muito mais dinheiro do que assaltando um caminhão de gás. Através
deste diálogo, o autor faz com que o leitor perceba o perfil do menino Dadinho e indica que
ele vai se transformar num perigoso bandido.
Ø Estabelecendo o confronto entre a personagem principal e seu antagonista:
85
Galinha percebe a aproximação de Pequeno e os dois se olham.
BUSCA-PÉ (V.O. cont.)
A parada aí era entre o bonitão do bem e o feioso do mal. (Grifo nosso)
(CDD, p. 85)
Veja-se que, na verdade, Mané Galinha não é a personagem principal, ele é um dos
protagonistas. O confronto que se estabelece entre eles está declarado na própria fala do
narrador.
Ø Costurando a trajetória do “herói” em sua busca para a solução do problema:
CENOURA
Tá vendo, cumpádi? Tu tem que formar com nóis! Se não, tu tá morto.
GALINHA
Se tu tiver as armas e a munição eu quero, mas pode deixar que eu vou sozinho.
(Grifo nosso)
(CDD, p. 92)
[...]
GALINHA
Tu não tem pistola, não?
CENOURA
Não. Eu tenho dez ferro e essa metralhadora aqui. Mas se tu quer eu arrumo
pistola. A gente pode meter uma loja de arma aí, ó... (Grifo nosso)
(CDD, p. 94)
Mané Galinha, avesso à violência, é a esperança dos moradores pacíficos da Cidade
de Deus e do leitor (que segue a trajetória dele e de Zé Pequeno) de justiça e de vingança. O
autor mostra que, para “solucionar seu problema”, o “herói” entra também para o mundo do
crime.
E, por último, e não menos importante, a função dos diálogos é a de compor as
86
personagens. Seu aspecto psicológico, o seu sentimento, a sua visão de mundo, o seu lugar no
discurso estão expressos através das palavras e através da imagem. Através da imagem na sua
expressão facial e corporal, nos seus gestos, e através das palavras na sua inflexão da voz, sua
entoação, sua pronúncia, seu uso das variações lingüísticas e sua escolha lexical que terão a
ver com seu nível social, econômico e cultural.
Para demonstrar a relevância do uso das variações lingüísticas na composição das
personagens, nos apoiamos em Bright (apud ALKMIM; in Alkmim; Mussalim; Bentes, 2000,
p. 28 e 29) que, em seus estudos sobre a Sociolingüística, salienta a importância de
“relacionar as variações lingüísticas observáveis em uma comunidade às diferenciações
existentes na estrutura social desta mesma sociedade". Ainda de acordo com Alkmim, Bright
identifica um conjunto de fatores socialmente definidos, com os quais se supõe que
a diversidade lingüística esteja relacionada, como:
a) identidade social do emissor ou falante - relevante, por exemplo, no estudo dos
dialetos de classes sociais e das diferenças entre falas femininas e masculinas;
[...]
c) o contexto social - relevante, por exemplo, no estudo das diferenças entre a forma
e a função dos estilos formal e informal, existentes na grande maioria das línguas;
d) o julgamento social distinto que os falantes fazem do próprio comportamento
lingüístico e sobre o dos outros, isto é, as atitudes lingüísticas.
Como exemplo da composição das personagens através dos diálogos, poderíamos citar
a fala de algumas das personagens de Cidade de Deus.
Ø Aspecto psicológico, sentimento, visão de mundo, lugar no discurso:
ZÉ PEQUENO
Aí, Cenoura. Tu não tem que deixar aqueles moleques lá da caixa baixa ficar
roubando aqui na favela não, morou? (1)
CENOURA
Meu irmão, eu cuido da minha vida, não quero saber da vida dos outros, não.
Vai você mermo dar idéia a eles, morou? (5)
ZÉ PEQUENO
87
Vim te dar idéia, porque tô sabendo que os cara tão formando contigo lá na tua
área. (2)
CENOURA
Tu inventando isso pra tomar minha boca, rapá! Pensa que eu não tô sabendo.
Pequeno saca uma arma. Cenoura saca uma arma. (6) Bené se coloca entre os
rivais. (8)
BENÉ
Pô, meus cumpádi! A gente tamo na moral! (9)
ZÉ PEQUENO
Porra, Bené! O cara tá fudendo a nossa segurança no pedaço! A molecada da
Treze tá barbarizando! Tu vai esperar os samango vim pra cima da gente?
Morou? (3)
BENÉ
Na moral, cumpádi! Na moral! Aí, Cenoura! Tu é irmão, tá ligado? É só tu
avisar os moleques da Caixa Baixa que tu gosta lá pra dar um tempo, tá ligado?
(10)
CENOURA
Pode deixar que vou dar uma idéia lá com eles, Bené. (7)
ZÉ PEQUENO
Tu diz pra Caixa Baixa o seguinte: na favela do Zé Pequeno ninguém estrupa e
ninguém rouba, tá ligado? (4) (Grifo nosso)
(CDD, p. 63)
Perfis que podem ser observados nesse trecho:
a) Zé Pequeno ameaçador e arrogante: (1), (2), (3) e (4);
b) Sandro Cenoura destemido: (5), (6) e (7);
c) Bené conciliador: (8), (9) e (10)
Ø Nível social, econômico e cultural:
Algumas das variações destacadas deste trecho escrito poderiam ser assim
distribuídas:
88
de ordem gramatical:
Não-padrão Padrão
tu não tem Tu não tens / Você não tem
os cara os caras
a gente tamo a gente está
tu vai esperar os samango vir Tu vais esperar que os policiais venham
de ordem fonética
Não-padrão Padrão
Mermo Mesmo
Rapá Rapaz
Cumpádi Compadres
Estrupa Estupra
de ordem lexical
Não-padrão Padrão
Samango Policial
ter uma conversa dar uma idéia
Provavelmente na fase do discurso reproduzido oralmente, apareceriam outras marcas
que a escrita do roteiro desconsiderou. Por exemplo, a supressão do R final do infinitivo, a
supressão do S dos substantivos no plural, a supressão do U e a abertura do O em rouba.
Ainda sobre a escolha lexical, segundo Preti (2003, p. 51,52,54),
Assim como a roupa (a moda) carrega consigo elementos de maior ou menor
prestígio social, valorizando ou desvalorizando o usuário, da mesma forma a
linguagem atribui prestígio ou desprestígio a quem fala ou escreve. [...] A
valorização dos vocábulos, na escala do prestígio social, está ligada ao que se
costuma chamar de atitude lingüística do falante, isto é, o que julgamos ideal para o
comportamento lingüístico, ou seja, uma norma lingüística subjetiva, segundo a qual
estabelecemos critérios de aceitabilidade social da linguagem, assim como
estabelecemos critérios de aceitabilidade social do vestuário, nas diversas situações
sociais em que o usamos.
89
Neste sentido, vale também mencionar Bourdieu (1994, p. 54):
Os usos sociais da língua devem seus valores sociais específicos ao fato de que eles
tendem a ser organizados em sistemas de diferenças (entre variantes prosódicas e
articulatórias ou lexicais e sintáticas) que reproduzem, na ordem simbólica dos
desvios diferenciais, o sistema de diferenças sociais. Falar é apropriar-se de um ou
outro dos estilos de expressividade, já constituídos dentro e através do uso e
objetivamente marcado por sua posição, numa hierarquia de estilos que expressa a
hierarquia de grupos sociais correspondentes. Esses estilos, sistemas de diferenças
que são tanto classificados quanto classificadores, marcam aqueles que deles se
apropriam. (Tradução nossa)
Portanto, no roteiro de Cidade de Deus, o uso das variações lingüísticas e a escolha
lexical nas falas das personagens estão coerentes com a sua situação social, econômica,
cultural, espaço-temporal e com todo o contexto da história. Poderiam até ser consideradas
imprescindíveis. Poder-se-ia dizer também que, dentro daquela comunidade, a norma usada,
as variações e as escolhas lexicais (desprestigiadas na norma padrão) são as que têm prestígio,
as que identificam os membros daquela sociedade, as que os tornam “habitantes do mesmo
universo”, com o mesmo nível socio-econômico-cultural, com uma leitura de mundo que
coincide em larga escala.
Tampouco podemos esquecer que, além de mostrar-se nas imagens, é nos diálogos,
nas falas das personagens que se estabelece o conflito entre o dominador e o dominado. E é
através deles também que se expõe a ideologia, o preconceito não só das personagens, mas
também os do autor ou a sua interpretação da ideologia ou do preconceito inerentes àquelas
personagens.
Vamos novamente fazer alguns recortes no roteiro para exemplificar.
Os 3 policiais se separam de Touro e Cabeção.
CABEÇÃO
Os caras levaram a maior grana lá do motel. A gente pode meter a mão nisso aí.
(1)
90
TOURO
Eu me contento de enche esses crioulo filho da puta de bala. (2)
CABEÇÃO
Tu tá invocado comigo? Tu tá pensando que eu sou ladrão, é? Desde quando
tirar dinheiro de nego ladrão é crime? (3)
TOURO
Não é isso, não. (4)
Os policiais param e se sentam bem debaixo de uma enorme FIGUEIRA, cujo
aspecto é sinistro.
Cabeção tira um baseado do bolso. Acende. (5)
TOURO (CONT.)
Aí, não conta pra ninguém: a filha da puta da minha mulher foi embora. (6)
CABEÇÃO
Tu tá brincando?
TOURO
E a merda é que ela fica pedindo dinheiro pra tudo. (7)
O diálogo se dá entre dois policiais: Cabeção e Touro. A começar pelos apelidos. O
apelido até aqui parecia ser uma marca do criminoso.
E o teor do diálogo?
São dois policiais falando sobre a
apropriação indevida do produto do roubo:
(1). É a realidade que vivemos: um policial
corrupto (1) e viciado (5), Cabeção, e o
outro, Touro, que mesmo que não quisesse,
se veria forçado a "entrar no esquema": (3) e
(4) .
Ao mesmo tempo está retratado o
preconceito quando Touro diz que fica
91
satisfeito só por matar "esses crioulos" (2).
Outro problema focalizado é o do dinheiro,
talvez pensão, que o policial, indignado, se
vê obrigado a dar para sua ex-mulher: (6) e
(7).
Notamos, comparando o uso da linguagem
por parte dos criminosos e dos policiais, que
o nível cultural é praticamente o mesmo.
Talvez quisesse o autor assinalar que a única
diferença entre eles seria a de que os
policiais, corruptos, sem ética, sem cultura
são criminosos amparados pela lei? Ou,
como no dizer popular, “policiais e bandidos
são todos iguais”? Ou seria porque, em
contato constante com a comunidade,
tivessem assimilado a sua linguagem, parte
dos seus hábitos e de seu comportamento?
Ou todos esses motivos?
92
4.6 A referenciação no roteiro
Como vimos anteriormente, a construção de sentido de um roteiro também se faz entre
o texto e o contexto; os diálogos e as rubricas. Os diálogos representam o texto verbal; as
rubricas, o texto não-verbal, o das imagens, que cria uma parte do contexto e empresta
coerência para os diálogos. A correspondência estabelecida entre essas duas modalidades de
texto pode ser produzida, analisada e interpretada à luz da referenciação.
Primeiramente, tendo por base os três princípios da referenciação na construção de um
modelo textual, vejamos o caso de um referente ativado, de-ativado e, depois, reativado,
notando também as mudanças que ocorrem no referente quando reativado, como a relação
entre o elemento que representa o referente ativado e o elemento que representa sua
reativação necessita de inferência.
Ø Ativação de um referente:
EXT. QUINTAL DE CASA POPULAR - NOITE
Cabeleira, Marreco e Alicate pulam o muro em slow motion, vistos de baixo, como
se estivessem voando. (Grifo nosso)
(CDD, p.18)
Referente ativado: pulam o muro.
Ø Ativação de um novo referente e de-ativação do referente anterior:
Começa a soar uma SIRENE DE POLÍCIA. (Grifo nosso)
(CDD, p. 18)
Ativação de um novo referente: sirene de polícia
De-ativação: pulam o muro
93
Ø Reativação:
Alicate cai de mal jeito. (Grifo nosso)
(CDD, p. 18)
Embora o referente pulam o muro tivesse sido de-ativado, ele permaneceu na
memória discursiva e foi reativado através do verbo cai, que tem uma relação semântica com
pular o muro.
Nos exemplos seguintes, levamos em conta que a reativação pode ser feita através de
retomada e que essa retomada, que sempre envolve remissão, pode ser feita de duas maneiras:
1. através das anáforas diretas, que implicam a retomada de um referente que se
mantém relativamente estável:
EXT. CAMPINHO - DIA
Um grupo de garotinhos (1) jogando futebol. Entre eles (2) estão os meninos
Busca-Pé e Barbantinho. A idade dos garotos (3) varia de 8 a 10 anos. (Grifo nosso)
(CDD, 2001, p. 4)
No trecho destacado, podemos observar:
a) Ativação do referente: (1);
b) Anáforas diretas (retomadas):
Pronominal: (2)
Nominal: (3)
Em ambos os casos, há retomada de um referente que se manteve praticamente estável
(1).
94
2. Através de sumarização ou encapsulamento, que implica na retomada de referentes
antecedentes, com um termo que os engloba, os sumariza:
EXT. BAR DO PINGÜIM - NOITE
Cabeção mais jovem do que no início do filme sai de um camburão, e
cumprimenta o detetive TOURO, também nordestino e com pinta de violento.
Touro é tipo linha-dura. Cabeção tem vocação de corrupto. Eles examinam o carro
batido. (Grifo nosso)
(CDD, p.19)
Devemos inferir que é o mesmo carro que apareceu antes em outra seqüência em que a
gangue de Cabeleira rouba-o para fugir do motel que assaltaram e, em seguida, colide com um
muro. Portanto, há aqui a retomada do referente que textualmente estava na memória
discursiva, mas que se apresentava de forma diferente:
EXT. DIANTE DO BAR DO PINGÜIM - NOITE
O carro desgovernado desce a ladeira diante do bar do Pingüim. As PESSOAS que
estão nas mesas se assustam e pulam na hora em que o carro invade o bar e se
choca contra um muro. (Grifo nosso)
(CDD, p. 17)
Vejamos mais este exemplo de encapsulamento ou sumarização:
CARACTERES em superposição: 1981
Ouve-se o murmúrio de VOZES alegres, vozes CANTANDO um samba
acompanhado de um BATUQUE. Não vemos as pessoas. Mas os sons (1) deixam
claro que se trata de um ambiente festivo. (2)
(CDD, p. 1)
Podemos observar no trecho acima que:
a) (1) "os sons" retoma e encapsula: murmúrio de vozes alegres, vozes cantando,
batuque;
b) (2) "ambiente festivo" retoma e encapsula: murmúrio de vozes alegres, vozes
cantando um samba acompanhado de um batuque.
95
Em ambos os casos podemos ver que há uma retomada de referentes diferentes, ou
seja, de "predicações antecedentes", de "informação difusa" com a introdução de um novo
referente que as sumariza.
Nos trechos a seguir, apresentamos casos em que, na referenciação, um novo referente
pode manter uma relação semântica, conceitual ou inferencial, dependente de interpretação,
por meio de processos cognitivos inferenciais, com outro referente antecedente, sendo
portanto feita através de associação, ou seja, por intermédio de anáforas ditas associativas ou
indiretas:
DENTRO DO CAMINHÃO (1)
Mão na buzina (2). Entendemos que o motorista (3) acelerou (4). (Grifo nosso)
(CDD, p. 7)
No trecho acima, observamos que o referente é caminhão (1); os demais referentes
(2), (3) e (4) têm uma relação semântica com o primeiro referente: caminhão (1). Neste caso,
há uma retomada, não do mesmo referente, mas de todo o sentido que ele pode envolver, que
ele pode englobar.
Vejamos estes trechos do roteiro:
uma troca de olhares cúmplices entre o Ceará e Touro. (Grifo nosso)
(CDD, p.19)
Devemos inferir que essa troca de olhares é devida ao fato de ser Ceará o informante
da polícia, como já fora insinuado em seqüência anterior. Portanto, é uma retomada com
remissão a um referente que não estava claramente exposto:
96
CEARÁ
Eu ainda vou foder com a vida desses bandidos. Esses crioulo filho da puta!
Durante a locução a seguir, a câmera acompanha o Ceará indo até um
TELEFONE DO BAR, fazendo um gesto para PINGÜIM, o dono bar, indicando
que precisa telefonar. Pingüim assente com a cabeça. Ceará começa a discar. (Grifo
nosso)
(CDD, p. 19)
Essa troca de olhares entre Ceará e Touro também nos faz inferir que Touro é o
policial que recebe as informações de Ceará. Aqui não há retomada, pois esta informação não
existia anteriormente, mas há remissão, uma vez que para entender esta nova informação, para
estabelecer este novo referente, nos valemos da informação anterior: o informante Ceará
informava a alguém.
Ainda dentro da referenciação, gostaríamos de chamar a atenção para a especificidade
dos textos pertencentes ao gênero roteiro. Há remissões que serão sugeridas pela descrição da
imagem. Este é um caso específico da linguagem cinematográfica. Vamos rever este trecho:
EXT. PRAIA - DIA
Vários uniformes escolares dobrados ou simplesmente jogados sobre a areia da
praia.
Câmera sobe, revelando Busca-Pé e Barbantinho tirando os uniformes. Eles usam
sungas no lugar das cuecas.
(CDD, p. 40)
O fato de estarem na praia de uniforme e sob o uniforme usarem sunga nos leva a crer
que foi uma "gazeta" combinada.
Agora vejamos a singularidade deste caso:
EXT. CASA DE ALMEIDINHA - DIA
Abrimos com a imagem de um FACÃO sendo afiado.
(CDD, p. 1)
97
Como já pudemos ver, a imagem faz refência à violência. Essa referência à violência
se dá apenas no terreno da imagem, não há nada nos diálogos ou narração que a reforce.
Sendo a cena de abertura, a imagem induz à "violência" pelo próprio objeto e pelo título do
filme, que é o nome de um dos lugares mais violentos no Rio à epoca do lançamento do filme.
Esta ativação do referente "violência" é descontinuada à medida que vemos que o facão está
sendo amolado para preparar o frango para o almoço. Portanto, o referente se transforma,
ganha um sentido completamente novo. Há portanto uma ativação, uma de-ativação e uma
nova ativação com o mesmo referente.
Para terminar, podemos ver um caso de referenciação, onde estarão também presentes
as escolhas lexicais e as variações lingüísticas na composição da personagem:
INT. TERREIRO DE UMBANDA - NOITE
Cerimônia de umbanda. Dadinho, acompanhado por Bené, consulta o Exu.
EXU
[...]
Eu te dou proteção de balador de atirador, esse, te tiro das garras de butina preta,
esse, boto zimbrador no teu bolso e mostro os inimigado, esse. Só quero uma garrafa
de marafo e um toco, esse... Não precisa falador, esse, não, pensa no que tu quer.
Dadinho fecha os olhos e se concentra. O Exu parece ler os pensamentos do
bandido.
Zé Pequeno dá um sorriso “ambicioso”.
EXU (cont.)
Tu agora num vai se chamá Dadinho... Tu agora vai ser chamado com o nome que
eu quero que tu seja chamado, esse... Tu agora vai se chamá Zé Pequeno.
(CDD, p. 54)
Focalizando a personagem Exu e as escolhas lexicais, podemos destacar:
1 Ativação: Eu - a voz do Exu, a pessoa que fala.
2 Casos de reativação:
a) Anáforas diretas (com retomada do referente eu através das desinências pessoais):
Dou, tiro, boto, mostro, quero
b) Anáforas indiretas (com remissão à entidade Exu):
98
- Ao "poder" do Exu: dou, tiro, boto, mostro.
- À exigência do Exu para a realização dos desejos de Dadinho: quero.
- Ao preço que cobra o Exu para essa realização: uma garrafa de marafo e um toco.
c) Escolhas lexicais que identificam a entidade espiritual: marafo (cachaça), toco
(vela); a repetição da palavra esse; o uso das seguintes variantes: balador (balas),
"butina" preta (policial), zimbrador (dinheiro), inimigado (inimigos), falador
(conversa, falar).
10
Vejamos ainda esta outra fala do Exu para exemplificar a de-ativação:
EXU (cont.)
Tu agora num vai se chamá Dadinho... Tu agora vai ser chamado com o nome que
eu quero que tu seja chamado, esse... Tu agora vai se chamá Zé Pequeno.
3 De-ativação
A mudança de nome de Dadinho para Zé Pequeno é um exemplo de de-ativação e de
ativação. Do momento mencionado na cena em diante a personagem será chamada de Zé
Pequeno. O fato interessante dessa renomeação está na escolha do nome por parte do Exu.
Não é uma escolha gratuita. O nome Zé é parte do nome de um Exu: Zé Pelintra. E Pequeno
pode estar relacionado à palavra filho. Portanto, Zé Pequeno é novamente uma remissão à
entidade que atende Dadinho, provavelmente Zé Pelintra, que a partir daquele momento adota
Dadinho como filho. Existe maior exemplo de proteção?
10
O linguajar das entidades dos cultos afro-brasileiros se mantém, principalmente, à custa da oralidade, passando de pai para filho. As
informações sobre o significado dessas palavras foram checadas com duas mães-de-santo e em alguns dicionários eletrônicos:
http://www.reinodeoxum.com.br/DicionarioUmbanda.htm
http://www.portalcandomble.com/dicionario_o.htm
http://yle.iya.nom.br/yleiya/dicionario.html
99
5. O controle da interpretação
Como já vimos, a leitura de um mesmo texto pode levar à multiplicidade de
interpretação. Ao ler o roteiro de Cidade de Deus, poderiam ter a mesma interpretação um
legítimo membro da comunidade e um cidadão comum de uma cidade pacata? Dependeria do
nível de experiência de cada um, mas, provavelmente, pela constituição desses sujeitos, sob os
aspectos sociais, culturais e cognitivos, a leitura seria bem diferente. Como seria diferente,
embora, talvez, sem tanta intensidade, se feita por membros da mesma comunidade tratada no
roteiro. Os motivos vão desde a forma da construção do texto, a maneira como se constroem
os diálogos e as imagens, a exposição do "óbvio" e do "obtuso", até o nível de percepção do
leitor, o enunciatário, sua leitura de mundo, sua ideologia.
Portanto, por mais que se controle a forma, por mais que se queira limitar e conduzir
as interpretações, em qualquer tipo de texto, isso jamais será garantido. Nem, como já
dissemos, se ele é lido pela mesma pessoa uma segunda vez ou quantas vezes sejam
necessárias para que se esgotem as possibilidades de inferências. Isso também porque todos
sofremos mudanças, amadurecemos, mudamos de opinião porque somos, tal como o roteiro,
"um texto em construção" e nossas visões e interpretações das coisas não são, por isso,
imutáveis.
Ainda acerca do texto e da interpretação, que para muitos pode ser infindável, Orlandi
(2001, p. 65) considera que:
o texto pode ser considerado como uma "peça" no sentido de engrenagem. É uma
peça que tem um jogo, jogo que permite o trabalho da interpretação, do equívoco.
Há um espaço simbólico aberto - possibilitando do sujeito significar e se significar
indefinidamente - que joga no modo como a discursividade se textualiza. A leitura
trabalha, realiza esse espaço, esse jogo de sentido (memória) sobre o sentido (texto,
formulações), conformando essas relações.
Ainda a propósito disto, vejamos o que diz Eco (2000, p. XXII):
100
Em suma, dizer que um texto é potencialmente sem fim não significa que todo ato
de interpretação possa ter um final feliz. Até mesmo o desconstrucionista mais
radical aceita a idéia de que existem interpretações clamorosamente inaceitáveis.
Isto significa que o texto interpretado impõe restrições a seus intérpretes. Os limites
da interpretação coincidem com os direitos do texto (o que não quer dizer que não
coincidam com os direitos de seu autor).
Comparando-se essas duas opiniões, poder-se-ia aqui arriscar uma síntese: mesmo que
haja um limite para a interpretação de um texto, ele só existirá do ponto de vista do
interpretante B, que não conseguirá olhar o texto da mesma forma que o interpretante A, e
isso só evidenciará a distância e as diferenças entre os dois. As interpretações absurdas talvez
tenham origem na loucura e aí quem ousaria explicar? ou na total incapacidade de
leitura. Mas mesmo esta última provocaria ao menos uma opinião, nem que fosse: Ah, que
coisa sem pé e cabeça! ou Que chatice! Portanto, os limites da interpretação estão nas
limitações do interpretante, seja ele autor ou leitor, enunciador ou enunciatário.
101
6. Conclusão
O roteiro, um texto "efêmero", de acordo com Comparato, base para a construção de
outro texto, o filme, apresenta, e deve mesmo apresentar, devido à sua função, um certo grau
de instabilidade, uma vez que ele pode ser modificado a qualquer momento de sua execução.
É também um gênero textual com forma própria e escrito para determinado fim, que é
a produção de outro texto (filme), para determinada mídia (cinema). Embora não seja escrito
para o grande público, ele é a base para a execução de tarefas de profissionais envolvidos na
produção de um filme, tais como, diretor, cinegrafista, ator, editor, etc.
Como qualquer outro texto, o roteiro tem seu sentido construído através do texto e do
contexto, através da harmonia entre as rubricas (discurso verbal escrito que se transformará
em discurso não verbal) e das falas ou diálogos (discurso verbal escrito que se transformará
em discurso verbal oral).
Entre as estratégias de construção de sentido, há no roteiro o uso da referenciação.
Com equilíbrio entre rubricas e diálogos ou fala, a progressão textual do roteiro se faz através
da progressão referencial. Por meio da referenciação, com ativações, retomadas e remissões,
entre rubricas e falas, entre as descrições de cenas, cenários e diálogos, o roteirista tece o
argumento, dá vida a personagens por meio de caracterizações, entre as quais estão incluídas
as escolhas lexicais, uso de variantes, e constrói uma história com princípio, meio e fim,
envolvendo o leitor, tal como em um romance, fazendo-o ser uma testemunha dos
acontecimentos e trazendo-o para a interpretação e para a participação na construção de
sentido do texto.
102
O texto do roteiro é a "tradução" da realidade na visão do roteirista, como o filme será
a "tradução" da realidade feita pelos envolvidos em sua produção. Se, por conta da
subjetividade interpretativa do real, das condições de produção do discurso, que envolvem
cognição, fatores sociais, econômicos e culturais, não há fidelidade entre a realidade e a cópia
da realidade no roteiro, não há unanimidade em sua interpretação, como tampouco há
fidelidade e unanimidade da representação do real pelas estratégias da referenciação. E isto o
torna um texto polifônico e polissêmico.
O conceito de referenciação, nesta pesquisa que envolveu o roteiro do filme Cidade de
Deus, mostrou-se muito adequada na análise da produção de sentido do referido roteiro, que,
como qualquer outro texto do mesmo gênero, joga com a harmonia entre som e imagem,
rubricas e falas para construir sentido.
Portanto, a mágica presente na produção e na interpretação do gênero roteiro é a
mesma que está presente nos outros textos: a linguagem com suas múltiplas faces, palavras,
signos, símbolos e imagens no jogo entre enunciador e enunciatário que vão moldando,
pintando, construindo, desconstruindo e reconstruindo o sentido do texto, revelando sua visão
do mundo e a essência de seu pensamento.
103
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106
Apêndice
a)
13/01/2003 - 04h14 "Cidade de Deus" gera discriminação, dizem favelados
FERNANDA MENA
da Folha de S.Paulo
"Cidade de Deus", o filme brasileiro recordista de público desde 1990 (mais de 3 milhões de
espectadores), ao retratar uma condição social que, até então, poucos haviam visto tão de
perto -a guerra travada pelo tráfico de drogas dentro de favelas brasileiras-, acabou se
voltando contra parte das próprias vítimas de tal situação.
Os moradores da Cidade de Deus de verdade, onde aconteceram as histórias narradas no filme
de Fernando Meirelles e Kátia Lund (baseado no livro homônimo de Paulo Lins), afirmam
que, depois da estréia da obra, tornaram-se alvo de discriminação.
O preconceito se revelaria tanto no comportamento da polícia, que, segundo eles, promove
ações cada vez mais ostensivas na favela, quanto na hora de conseguir emprego ou crédito.
"Esculacharam a favela!", disse à reportagem da Folha um comerciante de 45 anos, que
preferiu não se identificar. "Depois disso aí, quando souberam que eu era da Cidade de Deus,
ficou mais difícil abrir um crediário."
"Tem casos de meninos aqui que foram procurar emprego e, quando leram no currículo o
endereço onde moravam, disseram apenas que iriam enviar uma carta com o resultado da
seleção. Os meninos estão esperando essas cartas até hoje. E elas nunca vão chegar", conta o
líder comunitário Jorge Vilela, 42, que desde 1971 vive na CDD -como os moradores
chamam a favela.
Para estudante Paulo (nome fictício), 19, o pior foi a mudança da abordagem policial com os
moradores. "A gente já não era tratado pela polícia de uma maneira legal. Parece que piorou
ainda mais. Agora, eles acham que todo mundo aqui é bandido, traficante ou está envolvido
com o tráfico."
Ao focar o enredo do filme nos traficantes e bandidos da CDD, o filme, de acordo com os
moradores, generalizou o banditismo.
O livro de Paulo Lins, ex-morador da Cidade de Deus, no qual o filme se fundamenta, foi
baseado em uma pesquisa realizada sob a orientação da antropóloga Alba Zaluar, professora
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Segundo um levantamento feito por Zaluar e Lins nos anos 80, menos de 2% das pessoas que
viviam na favela tinham alguma relação com o tráfico ou com outra atividade criminosa.
Polícia e emprego
De acordo com o tenente-coronel Marco Aurélio Moura, comandante do 18º DPO
107
(Destacamento de Policiamento Ostensivo), que fica dentro da Cidade de Deus, a polícia não
aumentou nem diminuiu as operações.
"O número de apreensões, prisões, operações e ocorrências é bastante similar ao longo dos
últimos oito meses, ou seja, antes e depois do filme", diz.
Segundo Moura, o que ele percebeu foi que os moradores "repudiaram o filme". "Muita gente
veio falar comigo. Eles acham que o filme colocou a CDD muito em evidência, mas a grande
preocupação da comunidade é conseguir emprego. Eu até intercedi na Associação Comercial
e Industrial de Jacarepaguá para que não considerassem o conteúdo do filme na hora de
selecionar o pessoal para empregos."
O diretor-executivo da associação, Augusto Torres, 69, diz que não há restrições a moradores
da Cidade de Deus nas empresas da região. "Mas acredito que, fora daqui, a coisa seja
diferente", pondera. "Se algum jovem procurar emprego em um shopping, por exemplo, e o
empregador identificar que ele mora na Cidade de Deus, é bem possível que prefira ter o
jovem o mais longe possível."
Nome aos bois
Os moradores da Cidade de Deus criticam o filme não por ele mostrar a situação de quem
vive em favelas dominadas pelo tráfico, mas por ter dado nome e endereço aos bois.
De acordo com José Neves, 75, presidente da União Comunitária da Cidade de Deus e
morador do bairro há 30 anos, o filme "desmoralizou a comunidade e marginalizou seus
moradores ao mostrar uma situação que não corresponde à realidade atual da CDD". "O autor
do livro e o diretor do filme se deram bem, mas a comunidade ficou na pior."
José Francisco Santana, 61, vice-presidente da União Comunitária e morador da CDD há 31
anos, diz ter ficado chocado. "A gente quer melhorar a imagem da Cidade de Deus e trabalha
24 horas por dia para isso. E, quando a gente está começando a conseguir um resultado, vem
um filme desses, contando várias mentiras, e coloca um trabalho de anos abaixo."
O comerciante Luís Antônio, 42, diz estar se sentindo usado. "Eles exploraram a história da
comunidade, não fizeram o filme aqui e não deram nenhum benefício para a gente."
Mesmo entre os adolescentes da Cidade de Deus, que em sua maioria se empolgaram com
toda a ação do filme, há uma certa desconfiança. Marília (nome fictício), 12, achou o filme
"legal", mas pouco representativo do lugar onde mora. "Agora, meus colegas da escola acham
que aqui é barra-pesada, que todo mundo rouba, que isso, que aquilo. Tudo por causa das
coisas que aparecem no filme. E disso eu não gostei, não."
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u66480.shtml
108
b)
Cidade de Deus: o reassentamento
Artigo - Marcelo Côrtes Neri
Valor Econômico
2/3/2004
Cidade de Deus, além de cenário do filme brasileiro com mais indicações na his
tória do
Oscar, representa valiosa experiência sobre os efeitos de reassentamentos urbanos a
partir da remoção de favelas.
O relativamente longo período desde a criação da Cidade de Deus, datada de 1966,
permite extrair lições úteis para o desenho de um me
nu de políticas alternativas como de
provisão de infra-
estrutura pública em áreas desfavorecidas sem remoção como no caso
do programa Favela Bairro em desenvolvimento na Cidade do Rio. Ou de regularização
fundiária, hoje em pauta no debate, função da crise
metropolitana brasileira atual. O Rio
constitui laboratório privilegiado de políticas habitacionais, pois é -- já há algum tempo -
o Estado mais metropolitano e o mais favelizado da federação.
A realocação de comunidades marginalizadas constitui complexo
exercício de economia
política, podendo como tal ser enxergada desde as diferentes perspectivas dos diversos
tipos de atores envolvidos no processo. Em primeiro lugar, a dos antigos vizinhos da
área anteriormente habitada que percebem um ganho de capital d
erivado da valorização
imobiliária -
no caso aquela observada no coração da Zona Sul carioca. Em segundo
lugar, a perspectiva do setor público aí incluindo aspectos políticos e financeiros
imediatos e futuros - por exemplo custos da remoção ou mudanças pro
spectivas na
arrecadação de impostos (IPTU). Por último -
e mais importante na perspectiva da
pobreza -
temos a ótica dos reassentados que se confunde com a própria narrativa
perseguida no filme.
Seguimos aqui a última perspectiva citada, analisando as con
dições de habitação,
trabalho e vida dos moradores da Cidade de Deus, que a tratam - assim como nós -
por
CDD. Em particular, questionamos até que ponto a CDD compartilha dos mesmos
problemas sociais de outras favelas de grande porte tais como Rocinha, Com
plexo do
Alemão, Jacarezinho e Maré. Estas comunidades constituem 5 das 32 regiões
administrativas cariocas podendo ser analisadas em detalhe a partir do Censo 2000 do
IBGE*. A comparação de retratos sociais destas diferentes comunidades fornece
impressões iniciais sobre possíveis implicações dos reassentamentos.
As condições de vida na Cidade de Deus são próximas às das grandes favelas cariocas,
a diferença é que o Estado se faz mais presente
Comecemos por alguns itens ligados ao quesito habitação, rela
cionados à própria origem
da CDD. A proporção de moradias em terreno próprio (82,8%) é maior do que a média
das demais quatro comunidades de baixa renda (73,2%) e mesmo do Estado do Rio visto
como um todo. O financiamento habitacional (6,9%) é bastante sup
erior ao das demais
comunidades (1,5% da média), o que é consistente com a idéia de que acesso a crédito e
maior formalidade dos direitos de propriedade fundiária caminham de mãos dadas. O
pessoal da CDD tem mais acesso a bens duráveis de alto valor, mais
sujeitos às
109
restrições de crédito do que nas demais comunidades, tais como máquinas de lavar
(55,4% contra 38,3%), automóvel (19,3% contra 12,8%), TV (99,1% contra 97,4%) e
videocassete (61% contra 53,6%) - o que permite a quase totalidade de seus habitant
es
assistir à cerimônia do Oscar e mais da metade assistir ao filme no conforto de seus
lares**.
Além de financiamento habitacional e título de propriedade que passam pela esfera
estatal. Outro sinal da presença do estado na vida dos moradores da CDD se dá
no
acesso a alguns serviços público que no entanto se apresenta similar entre as
comunidades analisadas como rede geral de água (98,2% contra 97,7%), canalização no
domicílio (98,3% contra 96,2%), iluminação (99,1% contra 99,4%). O lixo coletado é o
único a apresentar maior discrepância favorável a CDD (79,1% contra 52,4%).
Em termos das agruras da vida privada a CDD apresenta a maior renda média do
trabalho das cinco comunidades analisadas: 439 reais contra 396 da média das demais 4
comunidades embora a j
ornada trabalho se situe em nível idêntico de 45,8 horas
semanais. Este diferencial salarial pode ser explicado pela maior escolaridade média dos
ocupados (7,2 anos completos de estudo), também a mais alta das quatro comunidades
analisadas (6,1 anos). Como
a taxa histórica brasileira demora cerca de uma década para
que a educação média suba um ano a CDD está cerca de uma década a frente das demais
favelas mas uma década atrás da totalidade do estado. Já no quesito taxa de desemprego
os 22,3% registrados pel
a CDD representa não só o recorde entre as grandes favelas
cariocas (média de 19,1%) mas também de todas 32 Regiões Administrativas da cidade
ou os 92 municípios do estado. Note que a alta taxa de desemprego da CDD não decorre
da maior atividade econômica
pois ela apresenta a menor taxa de participação no
mercado de trabalho entre as favelas consideradas (67,9% contra 70,2% da média). De
maneira geral, a diferença fundamental na renda percebida no grupo de comunidades é a
maior participação de transferências pelo estado (25,3% contra 19,4%).
As condições de moradia na Cidade de Deus estão mais próximas das grandes favelas
cariocas do que no restante da cidade. Agora a carência de estado aparece um pouco
menor na Cidade de Deus do que nas demais favelas. Obvi
amente, comparações de
retratos sociais de comunidades diversas tiradas num dado ponto do tempo não são
capazes de determinar relações de causalidade entre reassentamentos e condições de
moradia e de trabalho dos envolvidos. Para isso era preciso ter uma s
eqüência de
fotografias, de modo a permitir comparar as mesmas pessoas antes e depois da mudança,
ou preferivelmente um filme que acompanhasse a história de vida dessas pessoas***.
*Os dados aqui analisados do banco de dados Mapa do Fim da Fome II advindos
de
parceria estabelecida entre a Ação da Cidadania, o Banco Rio de Alimentos do SESC e a
FGV (vide www.fgv.br/cps
) ** Consistentemente com as imagens do filme, CDD é a
Região Administrativa carioca com maior presença de pessoas que se auto-
intitulam
negros ou pardos (62%) mas em contraste com seu nome, Cidade de Deus é a terceira
em proporção de pessoas sem religião. *** Janice Perlman realiza pesquisa de campo
que entrevistou favelados cariocas em dois momentos 35 ano
s a parte, incluindo antigos
moradores removidos das margens da Lagoa Rodrigo de Freitas para Cidade de Deus.
Marcelo Côrtes Neri , chefe do Centro de Políticas Sociais do IBRE/FGV e professor da
EPGE/FGV, é autor de "Retratos da deficiência no Brasil", "
Cobertura previdenciária:
diagnóstico e prescrições de políticas" e "Ensaios sociais". E-mail: [email protected]
http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=108179
110
c)
Um outro olhar sobre a CDD
Alfredo Boneff
"Quando pisei pela primeira vez na Cidade de Deus o homem pisava pela primeira vez na lua.
Eu vinha do Leblon e fiquei chocado com a dimensão do vazio. Parecia uma cidade-fantasma.
Pouca gente, muita poeira e barro. Senti-me como aqueles homens do espaço explorando um
território inóspito." As sensações acima remetem ao ano de 1969 e foram vivenciadas pelo
carioca José Wilson dos Santos, que tinha então 9 anos. Tempos depois dessas primeiras
impressões, José Wilson veria parte de sua vida retratada no romance Cidade de Deus, de
Paulo Lins, e no filme homônimo, de Fernando Meirelles. Apesar de discordar do tratamento
dispensado na tela, ele guarda pelo menos algo em comum com o personagem Busca-Pé: o
desejo de consolidar uma carreira de fotógrafo e o olhar carinhoso sobre a CDD. Olhar que
permeia o ensaio fotográfico que resultou na exposição "Um outro olhar".
A mostra esteve em cartaz até o final de setembro no Rio de Janeiro. Os flagrantes produzidos
a partir do cotidiano da comunidade contrariam a tendência dos recortes violentos e
estigmatizantes. Práticas recorrentes na mídia e cômodas para quem desconhece a vida além
da Zona Sul ou desembarca da ponte aérea para se espantar com aquilo que definem como um
outro mundo.
O espanto do menino José Wilson foi de outra ordem. Para seus olhos novos, as obras na
Cidade de Deus, o imenso espaço, a poeira, tudo aquilo assemelhava-se a uma paisagem
lunar. Levado pelos pais, migrantes cearenses, ele moraria nos apartamentos do conjunto
habitacional durante as décadas seguintes.
Na Cidade de Deus, José Wilson se tornaria conhecido como "Sussu", devido a um problema
na fala. Além do apelido, ganharia também a amizade de vários dos personagens que estão no
livro de Paulo Lins e que foram transpostos para a tela na versão cinematográfica. A
proximidade com integrantes do tráfico tinha, para o futuro fotógrafo, caráter bem diferente
do atual. "Sentíamos uma certa proteção de estar ali com aquele cara. Hoje são facções, siglas.
Nos anos 70 eram pessoas, não a indústria que é hoje. A gente ia ao baile e via aquela galera",
diz.
É desta época a frustrada tentativa de assalto que aparece no livro e no filme. Com cerca de 12
anos, ele e um amigo conseguiram uma pistola e saíram para fazer um ganho. Os aspirantes a
assaltantes entraram num ônibus. Rápido exame entre os passageiros(as) levou José Wilson a
constatar: "Ricardo, aqui só tem pobre, não dá pra roubar, não". O plano prosseguiu numa
padaria, onde a simpatia e beleza da morena do caixa desencorajaram novamente o roubo.
Após o fracasso e cheios de frustração, os dois conseguiram pegar uma carona para casa. O
motorista era um paulista, que pedia orientação sobre o trajeto. A gentileza do sujeito
encerrou definitivamente a curtíssima carreira na bandidagem. "O cara botou um Raul Seixas
no rádio. Ficamos sem a introdução para fazer a abordagem", diverte-se José Wilson ao
recordar.
"Sempre contei essa história e o Paulo Lins sabia dela, assim como a maioria de meus
amigos", afirma. José Wilson conheceu o escritor nesse período. A utilização do episódio do
assalto frustrado no livro, lançado em 1997, não trouxe qualquer contrariedade. O mesmo não
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ocorreu com o filme de Fernando Meirelles. "Ele falou sobre o interesse de fazer uma
exposição de minhas fotos em 1999, antes do lançamento do filme. Nunca mais ligou", relata.
Numa festa em Cidade de Deus, o fotógrafo chegou a se aborrecer com amigos que insistiam
em chamá-lo de Busca-Pé. E tampouco gostou da maneira como o cineasta conduziu os
destinos do personagem-narrador, que no desfecho da obra revela que se chama Wilson
Rodrigues. O Busca- verdadeiro não é negro, ao contrário do personagem. Ele teme a
possibilidade de os espectadores relacionarem os lances da ficção à sua vida. "Vão pensar:
‘Esse cara é um bandido, deve estar roubando até hoje’", reclama.
Na adolescência ele compraria a sua primeira câmera, um modelo bastante limitado, mas que
o encantou por ter duas lentes. Os primeiros cliques foram alternados com o emprego numa
loja de materiais de construção. No início da década de 1980, no extinto Conselho de
Moradores da Cidade de Deus, o interesse aumentou com a participação em um grupo de
jovens amantes da fotografia. Foi então que comprou uma nova câmera. Embora usada, tinha
mais recursos que a primeira. Mas não dispunha de diafragma e obturador.
Após um curso no Senac, trabalhos começaram a aparecer. Campanhas políticas, suplementos
de bairros de O Globo e fotos para a Riotur foram alguns. Tudo isto simultaneamente à
administração de um bar na Cidade de Deus.
O projeto da exposição surgiu no ano passado, mas a mostra concretizou-se apenas em 2003 e
revela o dia-a-dia da comunidade em fotos muitas vezes pungentes. Lá estão tipos como o
velho morador que joga búzios, crianças brincando, a boemia, pessoas trabalhando em
diversas atividades. "Este é o lado cotidiano, que é a maior parte da Cidade de Deus. É isso
que estou mostrando", enfatiza José Wilson. Para ele o filme poderia ter apresentado a CDD
de forma mais generosa.
Atualmente morando no Pechincha, casado e com uma filha adolescente, ele acalenta projetos
para o futuro. Aos 42 anos, sobrevive com a renda do aluguel do antigo bar, hoje uma oficina
de radiadores. Entre fotos de casamentos, festas de debutantes e eventos políticos, pensa em
prosseguir os estudos interrompidos após a conclusão do ensino médio e cursar uma
faculdade de jornalismo. Outra idéia é a de colocar no papel, com a ajuda da mulher, sua
própria história de vida, contando a trajetória do menino que um dia chegou à CDD e
imaginou estar na lua.
Jornal da Cidadania nº119 - outubro/novembro 2003.
http://www.ibase.org.br/modules.php?name=Conteudo&pid=740
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d) CIDADE DE DEUS
Os pobres e negros garotos da Cidade de Deus foram o estopim de discussões e debates
exacerbados e de críticas ferrenhas ao tratamento do tema imposto pelos diretores Fernando
Meirelles e Kátia Lund. A escalada do crime nas favelas cariocas e a inclusão de uma massa
infantil na indústria das drogas despertou o país para um problema sério e fundamental, mas
pouco visto até então. O papel do cinema no retrato e representação da realidade também
passou a ser questionado com maior veemência.
Os aspectos sociológicos presentes no filme, são o exemplo de uma visão fechada e interna,
mas seus personagens são trabalhados com humanidade e respeito. O filme não traz à tona
tudo o que deveria, mas destaca o essencial na procura pela verdade que quer mostrar. Tem
como maior mérito dar voz aos excluídos e fazê-lo de forma audaciosa e competente. Não
quer trabalhar todos os ângulos nem ao menos ser imparcial. Sua defesa é única e explícita.
O livro Cidade de Deus, de Paulo Lins, lançado em 1997, já trazia a parcialidade em duras
palavras. Retrato e versão de um narrador onisciente, o livro destaca ações específicas e
centra seu foco no brutal caminho trilhado pelos moradores da favela. O filme somente traz
para as telas os personagens e recortes de Paulo Lins. Durante o adaptar, o texto do autor
sofreu alterações e fusões inúmeras. Personagens foram unidos, acontecimentos foram
excluídos, mas a essência não foi modificada.
O que temos como resultado final, é a contundente representação de um povo excluído e
discriminado. As lentes se voltam para protagonistas inéditos de nossa cinematografia e os
contornos impostos pelos diretores de elenco, roteirista e diretores, são reflexo da
preocupação existente na transposição de tão complexas figuras para as telas. As
interpretações são enérgicas e beiram o realismo buscado por mestres do cinema.
A estética afinada com o público jovem, foi outro motivo de "desonra" para seus diretores.
Críticos de todo o país desandaram a dizer que a publicidade estava abusando da pobreza e da
miséria humana para atingir o público. Manipulação da retina e traição ao clima pesado da
obra e dos duros dias da CDD. "Cosmética" bradaram alguns exaltados defensores de um
cinema preso ao passado. "Chacina Fashion" defendem outros.
Cidade de Deus é um espetáculo de técnica visto em poucos filmes de nosso cinema. Sua
reconstrução de época, figurino, cenários, fotografia, edição e interpretações são o reflexo do
avanço sofrido pelo nosso cinema e nos mostra que podemos sim ser representantes de uma
nova cinematografia mundial. Os mercados se redundam, mas em todos os cantos do mundo
iniciativas e projetos revelam novas possibilidades. Os caminhos têm que ser abertos a golpe
de facão.
Cidade de Deus também é o maior exemplo de que estamos prontos para encher as telas com
filmes aptos a atender o mercado consumidor. O primor de sua edição e fotografia nos
permitem espetaculares momentos de glória. Aliadas, nos mostram apaixonadas tomadas de
um Rio de Janeiro ainda em aquecimento. Nos mostram as ruas da favela em tempos
românticos.
Da mesma forma, a passagem dos tempos antigos, em que jovens sonhavam com a fama, para
os atuais tempos de matança discriminada e mecânica atuação de facções inimigas acontece
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de forma sutil e perfeita. A música muda, a tela troca de cor e as paredes ganham vida. A
claustrofobia dos cenários e locações transportam o espectador ao mundo dos mesmos garotos
que um dia foram inocentes.
Contando com a ajuda de atores revelação como Leandro Firmino da Hora, Seu Jorge,
Douglas Silva, Jonathan e Phelipe Haagensen, Meirelles e Lund conseguiram trazer ao Brasil,
e também ao mundo, um quadro antes fechado aos noticiários locais e relegado aos cantos do
país. A pobreza e miséria de um povo vinham à tona e abriam espaço para a polêmica. Os
olhos famintos de uma juventude sem lugar na paisagem urbana nos traziam uma realidade
antes apenas imaginada.
Levados ao extremo de suas emoções, os atores nos surpreendem pela liberdade e sutileza de
seus atos. Suas faces e mãos sujas nos arremessam pela violenta história de um líder do tráfico
carioca, pelos olhos de um garoto que sonha com a praia e o sucesso. No fim, somos todos
Busca-Pés, buscando a felicidade e nos esquivando dos tiros perdidos em noites sangrentas.
Precursor de muito o que veremos em nosso cinema, o filme se torna tão importante quanto
Deus e o Diabo na Terra do Sol, Os Fuzis, Terra em Transe ou qualquer outro filme que
tenha permitido ao Brasil conhecer o País em que vivemos.
Cidade de Deus vai além, por flertar com o popular e fácil e principalmente por atingir seus
objetivos, acertando em cheio a massa excluída de nossas ruas. O ecletismo e intelectualismo
excludente de nossos velhos mestres são substituídos por diálogos verossímeis, conhecidos e
adorados por todos. Pelo menos por aqueles realmente envolvidos na polêmica. Os velhos
algozes deste povo sofrido que se contentem com as discussões em clubes fechados como o
Espaço Unibanco.
Thiago P. Ribeiro - 08/03/2003
http://www.cinemando.com.br/arquivo/filmes/cidadededeus.htm
e) Para saber sobre ações de cidadania atualmente realizadas na CDD, acesse:
http://www.ceacc.org.br/index.
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