37
A escrita clariceana questiona a linguagem e busca explorar a língua por
meio de um jogo vocabular, onde as palavras
10
transformam sentidos, pois o
significado que habitualmente apresentam se desloca para outros significados. A
exploração da polissemia e da ambigüidade, a aproximação com recursos ligados
a outras artes, a criação de um contexto adequado, são alguns dos elementos
que possibilitam uma linguagem realmente inventiva, capaz de revelar o caráter
especial das ações que pretende ressaltar. Além disso, Clarice introduz, em seus
textos, elementos típicos da poesia, “violentando a lógica da linguagem” pela
adjetivação subjetiva:
Pretendendo traduzir o que há de mais complexo e contraditório no mundo,
a romancista tem de violentar a lógica da linguagem, fertilizar-lhe o
despojamento, preencher-lhe o esquematismo. Tal processo repercute na
adjetivação, que não poderá ser objetiva, definidora, mas será antes
subjetiva, para traduzir uma emoção mais rica
11
. (Sá, 1979: 36, 37)
É interessante notar que, ainda no início de sua carreira, Clarice Lispector foi
criticada por levar, para o romance, elementos típicos da poesia, particularidade
esta que, segundo Gilda de Mello, não deve se apresentar nesta estrutura textual,
pois o romance deveria ter como características principais o romanesco e o
10
Para melhor compreensão do trabalho de deslocamento que Clarice exerce sobre a língua, é
importante observar que palavras são signos sociais, já que usadas por uma comunidade
lingüística (segundo Sausurre, Peirce e Vygotsky), mas devem ser levadas em consideração, no
contexto lingüístico (frase, expressão ou texto) em que se encontram (Pottier); são, também,
signos individuais, pois cada indivíduo, baseado no aspecto social (referência objetiva comum a
todos os usuários da língua), infere suas próprias relações psico-socioculturais (interpretante do
signo – Peirce e Pottier) e sua capacidade de compreensão relativa ao estágio de maturação de
seu desenvolvimento cognitivo (Vygotsky).
11
Olga de Sá exemplifica tal processo com a seguinte observação, feita por Gilda de Mello, sobre
o Romance O Lustre: “Diante da palavra ‘mancha’ que corresponde a uma noção determinada,
surgem em qualquer espírito os possíveis atributos ‘grande’, ‘pequena’, ‘clara’, ‘escura’, ‘larga’,
‘esguia’, todos eles definindo melhor a noção. Clarice dirá ‘mancha cansada’ e a noção
subitamente se enriquece: ‘...frágil como uma lembrança, vislumbraria a mancha cansada do
afogado afastando-se.’ Esse processo de personificação ou animização das coisas impregna os
cheiros, as cores, a paisagem e, além de atingir a palavra, violenta também o sentido lógico da
frase.” (Sá, 1979: 36, 37)