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Niterói
2006
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Janaina Alves Brasil Corrêa
A “inexpressão” na obra Água Viva de Clarice Lispector
Dissertação apresentada ao curso de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do Grau de Mestre. Área de
concentração: Letras.
Orientador: Prof. Dr. Fernando Muniz
Niterói
2006
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Janaina Alves Brasil Corrêa
A “inexpressão” na obra Água Viva de Clarice Lispector
Dissertação apresentada ao curso de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do Grau de Mestre. Área de
concentração: Letras.
Aprovada em Março de 2006
Banca Examinadora
____________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Décio Porto Muniz - Orientador
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINESE
_____________________________________________________
Profa. Dra. Elizabeth Chaves de Mello
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINESE
____________________________________________________
Profa. Dra. Maria Consuelo Cunha Campos
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Niterói
2006
C824 Corrêa, Janaina Alves Brasil.
A “inexpressão” na obra Água Viva de Clarice Lispector /
Janaina Alves Brasil Corrêa. – 2006.
121 f.
Orientador: Fernando Muniz.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2006.
Bibliografia: f. 115-121.
1. Literatura brasileira Crítica e interpretação. 2. Lispector,
Clarice, 1925-1977. Água Viva. 3. Narrativa. 4. Linguagem. I.
Muniz, Fernando. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto
de Letras. III. Título.
CDD B869.09
À minha Mãe Laura, por me ensinar valores.
Ao meu Pai Mardel (in memoriam), por ter
me despertado o prazer da leitura.
Agradecimentos
À Laura Cecília, minha mãe, por, simplesmente, ser mãe e pai e irmã e amiga e amor.
Ao meu Orientador Fernando Muniz, pela presença competente e estimulante; pelas
constantes indicações de leitura; pelas discussões e críticas; pelas anotações que fez em meus
textos e capítulos; enfim, por não me indicar o caminho, mas por me fazer vê-lo sob vários
aspectos.
Ao querido Gil, pela paciência sobrenatural; pelo estado de graça que traz e compartilha;
por me achar engraçada inclusive quando não me sinto engraçada; pelo cafuné de quando
ainda estou meio dormindo.
À Isa, minha irmã, por entender as entrelinhas até do meu olhar; por adivinhar meus
pensamentos; por ser companhia perfeita; por fazer parte da minha família; por estar sempre
presente; por ser assim, exatamente, do jeito que é.
À Beatrice Costa, minha amiga e diretora, pelo incentivo constante; por ter me ajudado a
construir um outro olhar sobre a Educação; por estar sempre me lembrando que as descobertas
de pesquisa têm grande e estimulante recompensa quando compartilhamos com nossos alunos.
À Eulalia Fernandes, por ter me despertado para os estudos da linguagem, por ter sido
muito mais do que orientadora de Iniciação Científica, por dialogar com os meus textos, pela
amizade iniciada junto aos primeiros passos de pesquisa.
Às Professoras Elizabeth Chaves de Mello e Lucia Teixeira, pelas críticas fundamentais
que fizeram a este trabalho, pelos norteadores teóricos que indicaram, pelas aulas estimulantes
e criativas.
À Nelma Teixeira Pedretti, Funcionária da Secretaria de Pós-Graduação em Letras, por
sua simpatia, pelo esmero e eficiência profissional, pela dedicação e paciência com os alunos.
Aos meus cães, que, a qualquer tempo, sendo tarde ou madrugada, me deram a perfeita
companhia canina, e, também, a abstração necessária que permitiu que minha escrita se
tornasse mais alegre.
À CAPES pelo importante apoio à minha pesquisa.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a obra
Água Viva de Clarice Lispector, atentando para os
procedimentos narrativos usados pela autora para criar
um texto fronteiriço, cuja força de expressão busca
estender os limites da língua. A peculiaridade das
estruturas textual e temática cria no ato da leitura um
espaço no qual um diálogo com o leitor é melhor
propiciado. Deste modo, questões acerca da interação
deste interlocutor com o texto foram observadas em
consonância com as indicações de leitura construídas
pela obra para propiciar percursos de geração de
sentidos.
ABSTRACT
This study aims at analyzing a literary work of Clarice
Lispector, Água Viva (The Stream of Life), observing
attentively the narrative procedures employed by the
author to create a frontier text. The expressiveness of
this text tries to amplify the boundaries of language. The
peculiarity of the textual and thematic structures creates
in the act of reading a space in which a dialogue with the
reader is better propitiated. Thus, questions concerning
the interaction between this reader and the text were
observed in accordance to the reading suggestions
constructed by the selected literary work in order to
propitiate routes of creation of senses.
Quero apossar-me do é da coisa.”
Clarice Lispector.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 10
CAPÍTULO I
REFLEXÕES PRELIMINARES ...................................................................................... 14
1.1 - Literatura e Expressão: a questão da linguagem .......................................... 14
1.2 A noção de escritura ..................................................................................... 19
1.3 A literatura e o leitor....................................................................................... 21
1.4 As teorias da Literatura e o leitor................................................................... 24
1.5 - Confluências Teóricas: uma justificativa ........................................................ 28
CAPÍTULO II
A LINGUAGEM DE CLARICE: EM BUSCA DA “INEXPRESSÃO” ................................. 30
2.1 O impacto da linguagem clariceana na literatura brasileira ........................... 30
2.2 Itinerários clariceanos da linguagem ............................................................. 35
2.3 Itinerários da ficção: o “real” em Água Viva ................................................... 42
2.4 “inexprimir para exprimir”:
a inexpressão como recurso da literatura ............................................................... 46
CAPÍTULO III
ÁGUA VIVA: UM MONÓLOGO DIALÓGICO .................................................................. 52
3.1 Água Viva: um monólogo com a vida ........................................................... 52
3.2 Água Viva: um diálogo com o leitor .............................................................. 57
CAPÍTULO IV
A “INEXPRESSÃO” EM ÁGUA VIVA ................................................................ 72
4.1 O “Ser” e o “Dizer”: a existência na linguagem ....................................... 73
4.2 A temática do mal: o caráter diabólico na linguagem .................................... 78
4.3 - O “instante-já” e a escrita: tentativa de captação do fugidio pela palavra...... 84
4.4 Escrita plástica, musical e figurativa............................................................. 90
4.5 Deslocamentos sígnicos, rupturas sintáticas
e anacolutos temáticos............................................................................. 97
4.6 A escrita Poética ...........,................................................................. 104
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 110
BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................. 115
INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende somar-se aos estudos da obra de Clarice Lispector
no que tange à peculiaridade de expressão desta autora, cuja maneira de utilizar
a linguagem parece ser o aspecto mais marcante em toda sua produção.
Reconhecida pelo uso de uma linguagem peculiar, inovadora e que transgride as
normas da língua padrão, Clarice causou grande impacto na crítica na ocasião de
sua estréia na literatura, justamente, pela singularidade de sua forma de
expressão. Certamente, a linguagem foi a mais marcante questão de toda a sua
carreira, o que tem, inclusive, dividido os críticos desde os idos da década de 40.
É interessante, no entanto, notar que esta questão da linguagem, tão em
voga na crítica quando do início da carreira de Clarice, com o decorrer do tempo,
foi cedendo lugar a outros tipos de abordagens, ligadas a questões como
feminismo, filosofia da existência, misticismo e religiosidade judaica, psicanálise e
erotismo. Tal prática tem se intensificado, uma vez que a tendência da atualidade
é a articulação entre literatura e outros campos do saber cultural, antropológico,
filosófico, dentre outros e com diversas temáticas: repressão, liberdade, política,
engajamento, e tantos mais possam ainda ser (re)descobertos. Assim, criam-se
estudos cada vez mais específicos e/ou periféricos quando uma problemática
11
fundamental que Antônio Cândido já ressaltava em 1944 pode estar sendo
abandonada: a articulação entre pensamento e língua, esta “corrente dupla, de
que saem as obras-primas e sem a qual dificilmente se chega a uma visão
profunda e vasta da vida dentro da literatura” (Cândido, 1970:126).
Esta é, portanto, a questão que se pretende retomar neste trabalho: o
esforço de linguagem de Clarice Lispector para estender os limites da língua
verbal.
Contudo, como este confronto com a língua pode ser encontrado, de
maneira sensível, ao longo da produção clariceana, então, a priori, poder-se-ia
escolher qualquer de suas obras para tal estudo. Acredita-se, porém, que é em
Água Viva que podem ser encontrados traços de estilo e de linguagem de forma
mais radicalizada. Sob este aspecto, cabe notar a escassez de trabalhos que
tratem desta obra em especial. A grande maioria dos estudos, sobre a escrita de
Clarice, condensa-se em outras de suas obras, principalmente nos romances
Perto do Coração Selvagem, O Lustre, A Cidade Sitiada, A Maçã no Escuro; A
Paixão segundo G.H. .
Este trabalho busca, portanto, estudar procedimentos lingüísticos e
estilísticos da obra Água Viva de Clarice Lispector. Sabendo-se que não seria
possível realizar, no âmbito de uma dissertação, um estudo de todos os recursos
e técnicas que Clarice utiliza neste escrito, escolheu-se um repertório de
elementos que se pudesse dar conta de analisar.
São muitos os motivos que fazem de Água Viva um texto fronteiriço, um
escrito que está situado sempre no limite: da linguagem, do gênero, do tema, da
estrutura narrativa, do leitor. Assim, apresentamos, a partir deste momento os
12
pressupostos teóricos que deram suporte na investigação das questões que
permeiam este trabalho.
Desta maneira, o Capítulo I, intitulado reflexões preliminares, busca fazer
uma brevíssima abordagem sobre questões teóricas e periféricas que este
trabalho acredita como pressupostas. Assim, primeiramente, salienta-se a
expressão literária, no que tange às relações estabelecidas entre o pensamento e
a língua. A partir destas reflexões sobre o caráter da linguagem, apresenta-se o
conceito de “escritura”, desenvolvido por Roland Barthes, que designa, entre
outras coisas, o resultado do trabalho de deslocamento que o escritor exerce
sobre a língua para “forçá-la” a exprimir um dado pensamento. Sob este aspecto,
não se pretende provar que a escrita de Clarice é uma escritura, embora se tenha
partido deste pressuposto.
Além disso, incluímos o papel do leitor na recepção da obra, e, a partir desta
perspectiva, apresentamos uma brevíssima abordagem do seu papel segundo
algumas visões da literatura. No último item do capítulo, pretendemos justificar o
uso de teorias que mais divergem do que se aproximam, uma vez que deram
suporte para compreensão da escritura e do leitor.
No Capítulo II, apresentamos, sucintamente, o impacto na crítica por
ocasião da estréia de Clarice Lispector na Literatura uma vez que tal assunto foi
habilmente tratado por Olga de Sá, em seu livro A escritura de Clarice Lispector.
Esta obra, que abarca as mais importantes análises das décadas de 40 a 70, com
ênfase nas duas primeiras, traz, como bem disse Haroldo de Campos
1
, “o mais
amplo espectro existente da fortuna crítica da obra de Clarice Lispector”.
1
In: Sá, Olga. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, Lorena: Faculdades Integradas
Teresa Dávila, 1979.
13
Na tentativa de esboçar, de maneira mais ampla, procedimentos de
expressão de Clarice Lispector, são mostrados alguns recursos de linguagem
encontrados ao longo de sua produção, bem como um procedimento ficcional
peculiar à obra Água Viva. Finalmente, no último item do capítulo, será
apresentado o conceito de “inexpressão”, fundamental para o entendimento e
análise dos elementos estruturais de Água Viva abordados no capítulo seguinte.
No capítulo III, pretendemos, inicialmente, apresentar os procedimentos
estruturais da obra Água Viva, bem como situar a singularidade deste texto dentro
da produção clariceana. No segundo item, serão vistas as possibilidades de
interação entre o leitor e o texto, bem como idéias de Wofgang Iser e Umberto
Eco, que tratam não só da interação entre estes agentes como também apontam
para os mecanismos de envolvimento construídos pela escrita.
No capítulo IV, serão retomados os procedimentos de Água Viva
apresentados nos capítulos anteriores para a devida análise. Com este trabalho,
pretendemos, apenas, contribuir no conjunto geral dos estudos da produção de
Clarice Lispector, assim como trazer alguma análise à Água Viva, texto de
fundamental importância no conjunto de sua obra.
CAPÍTULO I
REFLEXÕES PRELIMINARES
1.1 Literatura e Expressão: a questão da linguagem
Ao longo da história de nossa literatura, pode-se perceber o movimento
peculiar de toda arte: a busca por novas formas de expressão e o deslocamento
dos valores estéticos. Assim, o que é ou não é “literário” está sempre atrelado a
um pensamento crítico e estético, o que significa dizer que uma ruptura de
tendência com a escola em voga significa não só o questionamento de seus
valores e idéias, mas talvez, sobretudo, de suas formas de expressão.
Com o Modernismo, nossas letras passaram a buscar o rompimento com os
moldes anteriores, cujos princípios estéticos já tinham preconizado a exaltação da
natureza, o culto da forma, o lirismo do eu, as impressões da realidade pelo
sujeito, dentre outros caminhos para expressão. Sem dúvida, este movimento
teve importante papel no que se refere a uma nova tendência estética na literatura
brasileira, porém, passado o espírito de inquietude provocado pela novidade
15
estética, o grupo modernista, responsável pela Semana de Arte Moderna, desfez-
se como um movimento uno. Como toda proposta estética tende a ser, passado
certo tempo, questionada, reformulada e transformada, o modernismo passou a
englobar projetos estéticos tão diferentes que o movimento se fragmentou. A
idéia de arte também se ampliou, desta maneira, as produções deste período
procuravam tanto o que as diferenciariam das demais que, de modo geral, o
panorama literário sucumbiu à superficialidade (Afrânio, 1968: 240), não tendo
havido aprofundamento estético por grande parte dos autores (Cândido,
1970:125 128).
Em 1944, o crítico Antônio Cândido chama a atenção para este conformismo
estilístico que vigorava no Brasil, ressaltando que mesmo tendo havido
importantes avanços, não houve o aprofundamento da expressão literária, algo
imprescindível para que, de fato, se desse início a uma reformulação do pensar
literário. Observemos suas palavras:
Parece certo que o início de uma verdadeira reforma do pensamento
literário tem de começar pelo forjamento de uma expressão adequada;
mas no Brasil notamos um certo conformismo estilístico. É forçoso convir
que [as tentativas modernas] não passaram de uma limitada amplitude.
Dentro dela, cada um se exprimiu mais ou menos saborosamente, conforme
o seu talento, mas ninguém aprofundou a expressão literária.
(Cândido, 1970:125) [Grifo nosso]
Antônio Cândido estabelece uma relação estética, talvez indissociável, entre
expressão e pensamento literários, cabendo a primeira significar, produzir e
transformar o imaginário ou o real, o objetivo ou o subjetivo que se queira
expressar.
O objetivo estético está diretamente ligado aos meios que se utiliza para
enunciar um pensamento, isto é a maneira como a escrita é articulada para atingir
16
sua finalidade. Assim, se um escritor constata de que um dado “enredo” merece
um “roteiro” que não só o exprima como também seja capaz de despertar no leitor
dadas sensações, ele provavelmente irá buscar na linguagem a forma que melhor
exprima suas intenções estéticas. Isto quer dizer que o tipo de efeito que ele quer
causar no leitor está ligado ao trabalho que vai realizar com a língua. Se, por
exemplo, este autor opta por minuciosa descrição de cada elemento que compõe
um dado espaço e usa linguagem erudita e poética, ele apresenta e representa
um tipo de proposta estética e pressupõe um tipo de leitor que também se
“relacione” de maneira especial com o recurso da descrição, da poesia, da
erudição. Da mesma maneira, este escritor pode optar por uma construção
lingüística que não descreva qualquer cena, e sim transmita um tipo de
pensamento que atinja, sensibilize e motive o leitor a descobrir na linguagem algo
inusitado. Se ele é capaz de causar estranhamento, curiosidade ou identificação,
se consegue impactar por meio da linguagem, de modo a suplantar (e também
intensificar) o teor de sua história, então certamente este é um escritor cujo cerne
de sua proposta literária está em dramatizar a linguagem, é ela mesma o fio
condutor do enredo, assim, as tramas são tecidas a partir dela. Neste caso, a
linguagem é, então, tanto instrumento do seu pensamento estético como também
protagonista de sua ficção.
Se, porém, a linguagem é também um elemento estético e os valores
estéticos se transformam, fazendo oscilar o valor atribuído a uma produção
literária ao longo da história, o que torna, então, uma “obra durável” do ponto de
vista das “produções feitas para permanecer”?
17
Antônio Cândido
1
atenta para esta questão, elucidando que não é uma
fórmula de linguagem que eterniza uma obra, e sim a maneira de se pensar a
língua, pois é este o movimento que garante um uso criativo sob as perspectivas
lingüística e estética. Este crítico salienta que para que haja uma “criação superior
do espírito” é necessário que se estabeleça uma relação entre pensamento e
linguagem no interior da obra literária, e, também, na própria forma de se
conceber a literatura para que esta se destaque como uma verdadeira
manifestação artística. Ao buscar uma relação entre o pensamento e a linguagem
que o expressa, o autor mostra que a língua deve ser pensada em sua
materialidade e se harmonizar com o pensamento, sugerindo-o, para que a
literatura brasileira se perpetue:
Para que a literatura brasileira se torne grande, é preciso que o pensamento
afine a língua e a língua sugira o pensamento por ela afinado.
(Cândido, 1970: 126)
A partir desta relação que se estabelece entre o pensamento e a linguagem,
cabe perguntar sobre a perspectiva do leitor, uma vez que, como vimos, o autor
imprime no seu texto procedimentos estéticos que irão ao encontro de um leitor
que “complete” a obra.
Os vínculos criados, entre texto e leitor, dependem não unicamente da obra,
tampouco exclusivamente daquele que lê. As teorias que tratam da recepção de
1
Acerca desta questão, o autor elucida: “Numa literatura enquanto não se estabelecer um
movimento de pensar efetivamente o material verbal; enquanto não se passar da afetividade e
da observação para a síntese de ambos, que se processa na inteligência, - não será possível
enca-la do ângulo das produções feitas para permanecer. Enquanto não fôr pensada
convenientemente uma língua não estará apta para coisa alguma de definitivo, nem dará azo a
nada mais sólido do que uma literatura periférica, ou seja, a que dá voltas em tôrno de um
problema essencial sem conseguir pôr a mão nele.” (Cândido, 1970: 126) [grifo nosso]
18
uma obra literária focam sua atenção no papel do leitor no ato da leitura,
atribuindo ao ele uma participação ativa nesta ação. Para que este papel possa
ser significativo no ponto de vista estético e não somente no que tange ao
prazer que o texto pode causar por meio de uma leitura “livre” é necessário que
o leitor esteja disposto a entrar no jogo da ficção. Contudo, seria correto afirmar
que alguns escritos possibilitam, dada sua estrutura, uma interferência maior do
leitor no ato da leitura? Certos textos, dada sua “escritura”, propiciariam um
diálogo mais intenso com o leitor? A resposta assertiva a estas indagações
significa que a escrita, ao solicitar mais explicitamente a participação de quem lê,
busca uma certa igualdade de papéis, mas também solicita um leitor “especial”
que possa compreender os itinerários da escritura traçados pelo autor. Portanto, a
relação entre estes dois agentes depende tanto do esforço de linguagem para se
construir um leitor ideal quanto da existência física deste leitor.
Para que se possa dar continuidade a esta questão de interação, mais
adiante, faz-se necessária a apresentação de alguns conceitos teóricos. Desta
maneira, será visto o modo como é compreendida a relação entre o leitor e a
literatura, e, também, a maneira como é compreendida, e necessária, neste
trabalho, a palavra “escritura”.
19
1.2 A noção de escritura
O termo “escritura” pode estar ligado a diferentes olhares teóricos
Derrida, Barthes, Lacan, Sollers sendo assim, deve-se elucidar que esta
expressão está, aqui, sendo usada no sentido barthesiano. Não se objetiva,
no entanto, elaborar uma definição do termo, tampouco discorrer sobre
todas as implicações da noção de escritura em Barthes, pois isto exigiria
uma tese à parte, aliás já habilmente realizada por Leyla Perrone-Moysés
2
.
Assim, pretende-se, apenas, situar algumas nuanças que permeiam a idéia
de escritura.
Barthes dispunha, na sua língua materna, de uma palavra écriture
para pensar e refletir sobre a idéia transmitida por este signo. Assim, ele se
valia de outras palavras e sentidos para dar a écriture o rumo de
pensamento que queria significar: L’écriture est ceci: la science des
jouissances du langage, son kamasutra”. Como a língua portuguesa dispõe
de duas palavras para traduzir écriture, poder-se-ia traduzir esta frase
barthesiana por “A escritura (ou a escrita) é isto: a ciência dos gozos da
linguagem, seu Kamasutra”. O sentido é dado pelo todo da frase,
independente de qual palavra for utilizada na tradução de écriture, afinal
pode-se perceber claramente que Barthes se refere a uma escrita especial,
àquela com a qual o prazer e o “desejo sensato do impossível” se
relacionam. Assim, a escritura, no sentido barthesiano, pode ser
compreendida, de acordo com Leyla Perrone-Moisés como “a escrita do
2
Perrone-Moisés, Leyla. A Crítica-escritura (um discurso dúplice). Teses de livre-docência. São
Paulo, Universidade de São Paulo, 1975.
20
escritor”. É, pois, o esforço do escritor com a língua, seu trabalho de luta, de
confronto, com normas, padrões, regras que fará surgir o objeto estético que
é o seu texto.
Leyla Perrone-Moysés atenta para o fato de este termo ser recusado
por “alguns
3
”. No entanto, na elaboração deste trabalho, o termo não foi
substituído, embora possa, por razões estruturais ou semânticas, aparecer a
palavra “escrita” querendo significar escritura ou apresentando o sentido de
“representação de palavras ou idéias por meio de sinais
4
”, afinal “toda
escritura é uma escrita; mas nem toda escrita é uma escritura, no sentido
barthesiano” (Perrone-Moysés, 2004:75). A resistência à mudança do termo
se acentuou na medida em que “usar a palavra escritura tem a vantagem de
precisar a particularidade da noção recoberta por esse termo” (Perrone-
Moysés, 2004:75).
Leyla Perrone-Moysés desenvolve uma argumentação relacionada ao uso
desta palavra no posfácio do livro Aula, eis alguns pontos:
I - Aproveitamento da riqueza léxica da língua portuguesa;
II - Singularização de uma noção;
III - Esquiva de ambigüidades indesejáveis;
IV - Especificação da idéia na tradução de textos de Barthes, Lacan, Derrida,
Sollers, ou em textos teóricos de brasileiros que a eles se refiram;
3
Alguns alegam que esse uso de escritura seria um galicismo; ora, em português como em
francês, a palavra vem diretamente do latim scriptura. Outros repelem o termo, nesse contexto,
por considerá-lo adequado apenas no caso de um documento de tabelião ou de um texto religioso
(as Sagradas Escrituras)” (Perrone-Moisés, 2004:77)
4
Dicionário Eletrônico Aurélio Século XXI
21
V - Registro, no Dicionário de Aurélio Buarque, da palavra ‘escritura’ como
sinônimo de escrita, sendo esta sua primeira acepção;
VI - Tradição da palavra ‘escritura' na escrita literária.
Os esclarecimentos parecem justificar o uso desta palavra, além de
esclarecerem a acepção que se atribui, neste trabalho, a este termo, uma vez que
a compreensão deste vocábulo como “a escrita do autor” parece reunir, ao
mesmo tempo, idéias ligadas ao estilo e à expressividade lingüística de um texto.
Assim, tendo sido dada uma brevíssima noção acerca de escritura, retoma-
se a questão da literatura como um instrumento de diálogo com leitor.
1.3 A literatura e o leitor
A proposta de estudar os itinerários de uma escritura se justifica mais
acertadamente se estiver ligada a um outro pólo, sem o qual a literatura não se
realiza: o leitor.
Acredita-se que dadas estruturas narrativas possibilitam um maior
envolvimento do leitor no ato da leitura, levando-o não só preencher as lacunas
que o texto proporciona, mas também reconhecer a si mesmo na voz do narrador
ou nas possibilidades que a obra oferece. Isto não se trata de transformar à
revelia o escrito pelas próprias acepções, porque dados textos criam uma
proximidade tão forte com o leitor que é como se a própria consciência deste se
22
revelasse junto à obra. Existe ainda a possibilidade de o leitor ser levado a um
conhecimento sobre algo antes ignorado ou compreendido de um modo outro.
Além destes aspectos de interação e mudança, Umberto Eco acredita que a
literatura exerce uma série de funções para a vida do homem, tanto individual
quanto socialmente. Para este autor, “a literatura mantém em exercício, antes de
tudo, a língua como patrimônio coletivo, cria identidade e comunidade, mantendo
em exercício também a nossa língua individual” (Eco: 2003: 10, 11). Embora Eco
apresente clara consciência de que esta manifestação artística atinja apenas uma
minoria dos habitantes do planeta, não apresentando tampouco o “poder” de
saciar a fome ou de curar enfermidades físicas, o autor
5
afirma que a literatura é
um instrumento capaz de gerar significativas mudanças para o homem.
Dentro desta perspectiva, a literatura é compreendida como possibilidade de
falar à consciência do indivíduo, sendo capaz de gerar transformações através de
um tipo de reflexão que se dá por intermédio da ficção. Seria correto, no entanto,
afirmar que toda obra literária propõe este tipo de mudança? De quais
transformações estamos falando? Daquelas que um dado indivíduo toma para si,
imitando exemplos de conduta ou comportamento? Ou de todas as metamorfoses
geradas na sua visão de mundo? Se aceitarmos esta última indagação como uma
hipótese assertiva de transformação mais profunda, podemos ser levados a crer
que não é o arquétipo do personagem se é vilão ou herói, bom ou mau que
5
Observemos as palavras do autor em Sobre a Literatura acerca da importância desta
manifestação para a vida humana: “nem eu seria idealista a ponto de pensar que às imensas
multidões, às quais faltam pão e remédios, a literatura poderia trazer alívio. Mas uma observação
eu gostaria de fazer: aqueles desgraçados que, reunidos em bandos sem objetivos, matam
jogando pedras dos viadutos ou ateando fogo a uma menina, sejam eles quem forem afinal, não
se transformaram no que são porque foram corrompidos pelo ‘newspeak’ do computador (nem ao
computador eles têm acesso), mas porque restam excluídos do universo do livro e dos lugares
onde, através da educação e da discussão, poderiam chegar até eles os ecos de um mundo de
valores que chega de e remete a livros” (Eco, 2003: 11, 12).
23
nos indica o caminho a ser seguido. Isto se aproxima mais dos inúmeros títulos de
auto-ajuda, que prometem ensinar sobre como conquistar o sucesso, ter amigos e
vencer na vida. Ao contrário, quando se percebe em uma leitura, não fórmulas
prontas, mas traços híbridos, intensos paradoxos ao longo do texto - seja na voz
do personagem, do narrador (ou na própria voz do leitor que se mescla ao escrito
do autor) - é possível até reconhecer a si mesmo, através de fragmentos da
linguagem que, também, e talvez sobretudo, no “não-dizer”, é capaz de elucidar
porque provoca dados “estados de alma.”
Assim, os vários momentos estéticos que uma obra pode propiciar não estão
ligados somente à “boa” construção de um escrito há textos que embora sejam
indefectíveis são enfadonhos, não capazes de criar qualquer afetividade com o
leitor. Quando, porém, uma obra é capaz de gerar um certo abandono do “eu”,
capaz de desestruturar o sujeito, que percebe esta desestruturação como
benéfica, pode-se dizer que o leitor vivenciou um momento estético, pois ele,
após esta experiência, pôde ter uma melhor afecção de si e do mundo. É um
estado impactante de mudanças que uma dada obra pode gerar. Porém, para que
isso aconteça é necessário que o leitor interaja com o texto por meio da leitura.
Como se dá esta interação? Do que depende esta comunicação: de um texto cuja
estrutura seja capaz de potencializar este diálogo, ou do leitor, que deve ser
capaz de entrar neste jogo?
24
1.4 As teorias da literatura e o leitor
O foco de atenção da crítica e da teoria dirigiu-se, em tempos distintos, ao
autor, ao texto e ao leitor. De acordo com Terry Eagleton
6
, a teoria da literatura
pode ser dividida em três fases distintas: a primeira delas, correspondente ao
romantismo e século XIX, centrava seus estudos no autor; a segunda, conhecida
por Nova Crítica ou New Criticism, apresentava preocupação exclusiva com o
texto, e, finalmente, a terceira, tendo início nos meados da década de setenta,
centrou a atenção no leitor:
O leitor sempre foi o menos privilegiado desse trio estranhamente, já que
sem ele não haveria textos literários. (...) Para que a literatura aconteça, o
leitor é tão vital quanto o autor. (Eagleton, 2003:102)
Se, na contemporaneidade, nos parece igualmente “estranho” o fato de o
leitor vir ocupando, em termos de história da literatura, um lugar não-privilegiado
pela crítica é porque as próprias teorias da literatura trataram de incluir diferentes
enfoques sobre a participação do leitor no ato da leitura. Embora este trabalho
não se destine a estudar o leitor; a inclusão de seu papel ou melhor, a maneira
como aqui se compreende o leitor se faz necessária na medida em a literatura
só se realiza, estética e empiricamente, se houver uma recepção à sua obra, e
esta recepção não pode ser apenas a crítica.
Assim, será feita uma brevíssima apresentação sobre os diferentes papéis
atribuídos ao leitor em alguns momentos na história da literatura.
6
Teoria da Literatura: Uma Introdução, Martins fontes: São Paulo, 2003.
25
Segundo Eagleton (2003), o primeiro movimento a incluir, de certa forma, o
leitor em uma discussão teórica, foi o Formalismo Russo. Com uma estética
oposta a das formulações marxistas, o Formalismo não se volta para as
influências sociais de uma obra, nem pretende conectá-la ao contexto social. Tal
visão imanentista da obra deixa de lado a questão do referente, restringindo-se ao
estudo na “mensagem”. Os primeiros formalistas esboçam certa preocupação
com o leitor no que tange à possível mudança de sua postura diante da realidade.
Tal transformação se daria a partir do contato com a obra literária, que seria
responsável por “uma certa recuperação do real”, advindas do processo de
“estranhamento” que a literatura proporciona. Quando os formalistas se referem a
“recuperação da realidade” estão refletindo o leitor que, a partir de novas
percepções, novas formas de compreender, ver e sentir o mundo, podem se
distanciar de sua relação “mecanizada” com o real, pois em decorrência de sua
automatização de percepção, o leitor já não estaria percebendo o mundo.
Embora o formalismo atribua um “ganho” ao leitor, que é a vantagem de
“perceber” o mundo, a preocupação desta escola se centra na obra em si: na
linguagem por ela utilizada para transmitir os conteúdos que se pretendem. Esta
tendência se intensificou e se radicalizou com o New Cristicism, ou a Nova
Crítica, movimento que tem familiaridade com os Formalistas, tendo em vista a
referida visão imanentista dentro da qual compreendem a obra literária.
A Nova Crítica ignora radicalmente o autor, o leitor e a história. Esta escola
se concentra sobretudo nos estudos da poesia e pretende transformar o poema
em uma “coisa em si mesma”, para os seus seguidores, o poema não significa,
ele “é”. Se os formalistas incluíam o leitor como um “beneficiário”, a Nova Crítica
26
buscava separar o poema tanto do autor (como pessoa física) quanto do o leitor.
O texto, materializado como um objeto, deveria ter sua estrutura “desmontada”
para que os elementos do poema pudessem ser correlacionados, “decifrados” e
então integrados novamente.
Após mais de trinta anos, permeados pelas teorias supracitadas e por outras
como o estruturalismo, as críticas psicanalítica e sociológica, a semiótica
surge a Estética da Recepção, tendo como um dos expoentes Wolfgang Iser. O
objetivo desta teoria vai se centrar na comunicação entre o autor e o leitor, ou, em
outras palavras, como o autor deixa silêncios no texto para se comunicar com o
leitor:
O que falta nas cenas aparentemente triviais e os vazios nas articulações
do diálogo estimulam o leitor a preenchê-los projetivamente. Jogam o leitor
dentro dos acontecimentos e o provocam a tomar como pensado o que não
foi dito. Daí decorre um processo dinâmico, pois o que foi dito só parece
realmente falar quando cala sobre o que censura. Como, no entanto, o
calado é a implicação do dito, é por ele que o dito ganha seu contorno.
Como o calado adquire vida pela representação do leitor, o dito passa a
apresentar um fundo, que agora, (...), é muito mais significativo do que
permitiria supor a descrição do dito. (...) O processo de comunicação assim
se realiza não através de um código, mas sim através da dialética movida e
regulada pelo que se mostra e se cala. O que se cala impulsiona o ato de
constituição, ao mesmo tempo que este estímulo para a produtividade é
controlado pelo que foi dito, que muda, de sua parte, quando se revela o
que fora calado. (Iser, 1979:90)
Pode-se dizer, portanto, que esta foi a primeira teoria, mais sistêmica, que
buscou compreender o papel do leitor no ato da leitura. Segundo Iser (1996), por
meio da leitura, se é possível penetrar nas idéias do outro, o que pode
representar, num primeiro momento, uma estranha experimentação; desta forma,
no ato da leitura, se é cativado pela junção do que é comandado pelo texto com o
que é produzido por quem lê. O leitor preenche as lacunas com as suas projeções
imaginativas; desenvolve associações entre os elementos, formula hipóteses, faz
deduções. É ele quem confere valor à obra, isto é, é ele quem vai decidir se
27
gostou ou não, se o texto é bom ou ruim. O leitor é finalizador da obra literária; por
este motivo, a estética da recepção delega ao leitor o papel de co-produtor do texto.
Portanto, é o leitor quem faz os ajustes necessários para adequar o texto às suas
experiências, assumindo um papel atuante e não apenas de decodificador,
realizando uma leitura que vai além do texto e que começa antes do contato com ele.
Esta relação que se estabelece com o leitor é o que concretiza todo o
esforço do autor com a língua. Do mesmo modo, para que o diálogo seja fluido e
dinâmico, este leitor também deverá empregar as forças e competências que lhe
cabem para fazer da leitura também um diálogo e não somente “receptáculo de
suas próprias emoções
7
”.
A teoria da recepção, segundo Eagleton, compreende que a relação do leitor
com a obra torna o processo de leitura dinâmico, pois todo “um movimento
complexo que se desdobra no tempo” se desencadeia. Para que este movimento
se efetue, o leitor deve poder tornar realidade as “direções gerais” que a obra
fornece. E de que maneira isto se concretiza para Teoria da Recepção?
Primeiramente o leitor olhará para a obra com certos “pré-entendimentos” e com
um “contexto de crenças e expectativas”, por meio do qual poderia avaliar as
várias características da obra. Após isso, porém, o texto pode revogar mais uma
vez as rédeas das mãos do leitor, modificando as expectativas até então
existentes. Nesse “esforço” de leitura, o leitor passa então a compor e descompor
7
Eco nomeia este leitor como empírico, que seria uma pessoa cuja interpretação da obra seria
privada, servindo-se dela como um “devaneio” pessoal: “Os leitores empíricos podem ler de várias
formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque em geral utilizam o texto como um
receptáculo de suas próprias paixões, as quais podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo
próprio texto. (...) Nada nos proíbe de usar um texto para devanear, e fazemos isso com
freqüência, porém o devaneio não é uma coisa pública; leva-nos a caminhar pelo bosque da
narrativa como se estivéssemos em nosso jardim particular.” (Eco, 2003:14-16)
28
expectativas, estabelecendo um senso coerente, a partir dos elementos
selecionados e organizados, alguns sendo destacados e outros excluídos, a partir
dos vazios que o próprio texto constrói.
1.5 - Confluências Teóricas: uma justificativa
Como vimos anteriormente, os diferentes momentos da história da teoria da
literatura centram sua atenção em diferentes elementos, seja no autor, na obra ou
no leitor. Por vezes, mesmo tendo o mesmo objeto de análise, as divergências
teóricas são eminentes, chegando, inclusive, a apresentarem princípios e
procedimentos metodológicos opostos.
Não se pretende aqui apontar uma única teoria como ideal e correta, pois o
estudo e a análise da obra Água Viva solicitaram os referenciais teóricos que
dessem conta de serem compreendidas a estrutura lingüística utilizada e a
relação estabelecida, por meio da linguagem, com o leitor. Tendo em vista a
singularidade deste texto, foi necessária a utilização de modelos teóricos bastante
distintos, até excludentes sob dadas perspectivas, no entanto, pareceram
essenciais para que se desse conta de aspectos abordados neste trabalho: a
escrita e a leitura.
Ora, se a teoria barthesiana muito nos ajuda a compreender os itinerários da
escritura de Água Viva, bem como é essencial para a formulação do conceito da
“inexpressão”; a estética da recepção de Iser é fundamental para o entendimento
29
de como o diálogo com o leitor se dá de maneira especial nesta obra. Desta
forma, foi possível compreender e estudar, mais amplamente, a obra Água Viva.
Dentro da visão barthesiana, não há meios de se fixar um determinado sentido
ao texto, tendo em vista suas emanações de sentido, a exploração da polissemia, o
jogo semiótico entre os múltiplos significados que pretendem evocar. Assim, o leitor,
num ato de entrega, entra no jogo do texto, não por saber que o autor deixou ali
“espaços” para serem preenchidos por ele, mas porque ele é seduzido pelo texto,
que provoca um certo “abandono do eu”.
Dentro da perspectiva barthesiana, a divergência com a teoria de Iser estaria
no fato de que se para Estética da Recepção o leitor é devolvido a si mesmo, com
um eu transformado ou recuperado, para Barthes, os textos, sobretudo os
modernistas, faziam explodir a “identidade cultural segura do leitor, numa
jouassaince que é ao mesmo tempo uma benção da leitura e um orgasmo sexual”
(Eagleton, 2003:114).
Embora sob enfoques diferentes, tanto a Estética de Iser quanto a teoria de
Barthes tratam do leitor, e são significativas no que tangem ao enfoques dados ao
seu “papel” diante do texto, e é neste sentido que serão aqui utilizadas e
entendidas. Isto quer dizer que ambas as idéias darão suporte para um melhor
entendimento do texto Água Viva como um todo de sentido que envolve autor,
linguagem e leitor. Desta maneira, o ”papel”, a “relação” e o “envolvimento” do
leitor serão abordados junto com os procedimentos estruturais e temáticos da
obra.
CAPÍTULO II
A LINGUAGEM DE CLARICE:EM BUSCA DA “INEXPRESSÃO”
2.1 O impacto da linguagem clariceana na literatura brasileira
Como vimos anteriormente, a busca por novas formas de expressão é
movimento natural da literatura. Assim, partindo desta questão sobre novas
propostas estéticas nos deparamos com grandes autores, por vezes
precursores de seu tempo, que não somente fazem parte dos nomes
universalmente conhecidos, mas também contribuem para uma nova
compreensão artística dentro da literatura de um país. Clarice Lispector situa-se
neste grupo de escritores, que foram capazes de inaugurar uma nova forma de
expressão por meio da invenção de uma linguagem:
Clarice Lispector retoma aquela linhagem de invenção, dos raros que fizeram
“exploração da palavra”, como Oswald e Mário; daí a surpresa que provoca,
procurando fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo das idéias; e
com isso, entregando-se a uma aventura da expressão. (Sá, 1979:130)
31
Olga de Sá, nesta citação, se reporta às palavras e idéias apresentadas por
Antônio Cândido
1
sobre a estagnação da literatura brasileira e a ausência de
criatividade no uso da língua entre os escritores. Para este crítico, a literatura
deve ser capaz de refletir o pensamento através de uma “verdadeira exploração
vocabular”, e, sem dúvida, Clarice Lispector produzia, através de seus textos,
um mundo “inventado” por meio das palavras:
A autora colocou seriamente o problema do estilo e da expressão.
Sobretudo desta. Sentiu que existe uma certa densidade afetiva e
intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos quebrar os
quadros da rotina e criar imagens novas, novos torneios, associações
diferentes das comuns e mais fundamente sentidas. (...) Clarice
Lispector aceita a provocação das coisas à sua sensibilidade e procura
criar um mundo partindo das suas próprias emoções, da sua própria
capacidade de interpretação. (Cândido, 1970:128)
Apesar desta “novidade” no plano de expressão, sua forma de utilizar a
linguagem gerou um certo impacto na crítica, afinal, parece natural que um
empreendimento lingüístico tão inventivo, como Perto do Coração Selvagem,
sofresse resistências frente a modelos estéticos já pré-estabelecidos e
solidificados pela crítica. De acordo com Antônio Cândido (1970), um artista
que se mantém na “rotina mediana” do talento, isto é, não se lança à
originalidade, à aposta, ao risco, provavelmente se sustenta dentro “da bitola
comum da arte”. Assim como Antônio Cândido, também o crítico Sérgio Milliet
(1945) se reporta à questão do uso continuado de modelos, da repetição
1
“Nos romances que se publicam todos os dias entre nós, podemos dizer sem mêdo que não
encontramos a verdadeira exploração vocabular, a verdadeira aventura da expressão. Por maiores
que sejam, os nossos romancistas se contentam com posições já adquiridas, pensando
naturalmente que o impulso generoso que os anima supre a rudeza do material. (...) Raramente é
dado encontrar um escritor que, (...), procura estender o domínio da palavra sôbre regiões mais
complexas e mais inexprimíveis, ou fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo e das
idéias.” (Cândido, 1970:126)
32
monótona dos textos literários que se enquadra em moldes e impossibilita a
inovação:
Raramente tem o crítico a alegria da descoberta (...) Quando porém o autor
é novo há sempre um minuto de curiosidade intensa o crítico abre o livro
com vontade de achar bom, lê uma página, lê outra, desanima, faz nova
tentativa, mas qual! As descobertas são raras mesmo.
(Milliet, 1945:27).
É dentro desta atmosfera de insatisfação, que a crítica se vê frente à
Clarice, uma autora jovem e desconhecida, cujo estilo parecia promissor,
capaz de dar novos rumos à literatura brasileira. Antônio Cândido, Sérgio
Milliet, Álvaro Lins, Gilda de Mello e Souza, são alguns dos nomes que
reconheceram estar diante de uma forma de expressão que buscava
estender os limites da palavra, forçando a língua a desdobrar-se pelos
itinerários do pensamento. Cândido
2
atribui ao estilo da autora um caráter
de novidade que, embora ainda incipiente, se mostrava promissor, pois a autora
parecia arriscar-se a um novo tipo de aventura a da linguagem:
Este romance [Perto do Coração Selvagem] é uma tentativa impressionante
para levar nossa língua canhestra a domínios pouco explorados, forçando-a
a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que
a ficção não é um exercício ou aventura afetiva, mas um instrumento real do
espírito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais
retorcidos da mente. (Cândido, 1970:127)
Este pensamento é compartilhado por Sérgio Milliet, que, através de Perto
do Coração Selvagem, faz uma descoberta que o “enche de satisfação
3
”. Este
crítico relaciona a linguagem da autora a sons e imagens, capazes de enredar o
leitor numa trama de estilos:
2
“(...) mesmo na craveira ordinária do talento, há quem procure uma via mais acentuadamente
sua, preferindo o risco da aposta à comodidade do ramerrão. É o caso de Clarice Lispector, que
nos deu um romance de tom mais ou menos raro em nossa literatura moderna (...)” (Cândido,
1970:127)
3
Palavras do referido crítico, acerca do romance supracitado, publicadas no Diário Crítico
(1945:27).
33
A princípio é uma imagem, mas vai agindo aos poucos, como uma
sugestão, vai penetrando, evoluindo, girando, desdobrando-se como uma
serpentina, mudando de estilo, acariciando e ferindo, até se tornar uma
coisa, independente, uma forma pura, que não é entretanto apenas
decorativa, mas expressiva e quase opressiva. Não posso mais libertar-me,
vira frase musical, melodia, acorde, conforme o momento. É uma presença.
(Milliet: 1945:87)
Sérgio Milliet ressaltava, ainda, a “estranha técnica de adjetivação”, a “prosa
poética”, a “deformação sintática e vocabular” e outras peculiaridades de sua
estrutura textual, classificando em defeitos e qualidades seus traços de estilo.
Segundo este crítico, os recursos da autora, em A Cidade Sitiada, começavam a
se repetir, como se a escritora utilizasse determinados moldes sintáticos
4
. Os
defeitos da escrita de Clarice, segundo a análise de Milliet, publicada no Diário
Crítico, apontam para o uso de uma linguagem “sem objetivo certo”, conforme
observou Olga de Sá
5
em A escritura de Clarice Lispector.
É importante, no entanto, observar que Sérgio Milliet reconheceu mais
saldos positivos do que negativos na obra da romancista; segundo ele, Perto do
Coração Selvagem possui uma “linguagem pessoal, de boa carnação e
musculatura, de adjetivação segura e aguda, que acompanha a originalidade e a
fortaleza do pensamento.” (Milliet:1945:30)
4
Ao se referir à obra A Cidade Sitiada, Milliet observa: “A preocupação da jóia rara que ameaçava
adelgaçar a visão da romancista acabou por subverter por completo a escrita, o rococó mascarou
com sua interminável série de ornatos a estrutura da obra, impedindo-nos de perceber e
penetrar-lhe o espírito. E, o que me parece mais grave, a forma virou fórmula.” (Milliet,
1953:33) [grifo nosso].
5
“Embora segundo o crítico, não se tenha perdido inteiramente a força reveladora do primeiro
livro, as imagens se sucedem neste [A cidade sitiada], sem objetivo certo, pelo prazer da frase, “da
exibição de um requinte”, que se procura com um fim em si mesmo. Nega-lhe até o adequado uso
da língua que considera “algo descosida, quase relaxada”. Verbiagem, malabarismo, exibicionismo
insistente, “achados” de romancista, eis os graves defeitos que Milliet aponta na prosa poética de
A Cidade Sitiada “ ( Sá: 1979:29).
34
Clarice Lispector, sem dúvida, deu novos rumos à crítica literária brasileira.
Vale, no entanto, ressaltar que isto se deve ao fato de a escritora instaurar uma
novidade no plano da linguagem através de inúmeros recursos, como por
exemplo: 1) dilema entre linguagem e existência; 2) evocação do Mal; 3)
subversão do tempo cronológico; 4) escrita plástica; 5) escrita que não se encerra
na norma culta da língua e 6) uso de elementos típicos do poema.
A utilização desses, e de muitos outros, recursos
6
gera uma forma de
expressão diferente na literatura brasileira. Não raramente fazem-se analogias
entre o estilo de Clarice e o de Vírgínia Wolf e James Joyce. Não se pretende
aqui realizar uma crítica de influências, isso parece ser irrelevante ao propósito
deste trabalho, o que se busca enfatizar é o fato de Clarice ter instaurado, dentro
da literatura brasileira, um tipo singular de escrita, somente reconhecido, até
então, pela crítica em escritores de literatura estrangeira.
A escrita clariceana possui elementos passíveis de serem reconhecidos em
toda a sua obra, pois é possível perceber, desde o primeiro romance até o último,
um confronto com a natureza da linguagem, que se realiza por meio da língua
verbal, isto é, uma busca por romper as limitações próprias da palavra. Este é,
sem dúvida, o traço mais marcante de seu estilo, construído através do uso de um
repertório bem delineado de procedimentos.
6
Talvez não seja possível elaborar um trabalho de dissertação que abarque o estudo e a análise
de todos os elementos que se encontram na escrita clariceana: monólogo interior, tema do
indizível, perspectiva metalingüística do narrador, exaltação de experiências subjetivas; ruptura
com o real “empírico”, criação de perspectivas de estranhamento em relação ao mundo, efeitos
epifânicos, dentre muitos outros.
35
2.2 Os itinerários clariceanos da linguagem
Como foi visto no item anterior, no estilo de Clarice, a questão da linguagem
é notadamente reconhecida pelo fato de a autora utilizar, freqüentemente,
recursos e temas que buscam exprimir dados conteúdos, a princípio, impossíveis
de serem apreendidos pela língua. Além disso, pode-se perceber que a ficção de
clariceana questiona a língua verbal como sendo um instrumento capaz de dar
conta da experiência, seja do pensamento, seja do mundo que pretende produzir.
Se por um lado, a autora busca na língua verbal formas de expressão que
pretendem significar com exatidão, por outro, cria narradores que questionam a
“eficácia” da língua para tal fim. Desta maneira, Clarice produz uma escrita de
paradoxo, na qual o plano da expressão (língua) e plano do conteúdo (enredo) se
aproximam, na medida em que é tema recorrente, na obra da autora, a língua
(PE) ser questionada como sendo capaz de expressar conteúdos de forma
“exata
7
”:
O questionamento clariceano, expresso em ficção, é o da própria
linguagem, enquanto capaz de denotar o ser. (...) ela [Clarice] questiona a
possibilidade do “eu” exprimir “a coisa.” (Sá, 1979: 153)
Os narradores clariceanos costumam questionar a língua como sendo
capaz de traduzir o pensamento. Clarice cria, assim, um tipo de expressão
lingüística que oscila entre a denúncia do fracasso da linguagem diante do real
e o desafio de traduzir pensamentos, emoções e sensações. Este confronto
travado com a linguagem força a língua com suas regras e seus sistemas a
7
Conforme acepção de Roland Barthes, a qual veremos mais adiante.
36
encontrar uma forma de expressão lingüística singular. Uma das maneiras de
imprimir na língua um afastamento do idioma padrão em prol de uma
expressividade mais original é a aproximação que a autora faz entre a palavra
e outras manifestações não-verbais
8
. Desta maneira, Clarice constrói um tipo
de narrativa que busca evocar formas de linguagem (no seu sentido mais
amplo), que extrapolam os sentidos habituais de palavras e frases, através de
um tipo de comunicação que não se fia, exclusivamente, nas normas e regras
do idioma padrão.
Através dessa colocação, somos levados a refletir sobre a possibilidade
de limitação da língua em determinados aspectos, e, se aceitarmos a hipótese
de que também pensamos através de mecanismos não-lingüísticos
9
, seria,
então, correto afirmar que, nesses casos em especial, a língua seria
insuficiente para traduzir o pensamento? Neste caso, a escrita clariceana
buscaria, por meio de recursos como a sinestesia e a desestruturação frasal,
por exemplo, se aproximar das experiências não-verbais, evocando no leitor a
sensação de ler imagens, sons, gestos e sabores?
8
O mundo que experimentamos está repleto de fatos que não são apreendidos pela língua - a
pintura, a música, a escultura e as paisagens naturais, em geral, são alguns exemplos de fatos
que não necessitam da língua verbal para se fazerem entender. Utilizamos a língua para
exteriorizarmos a apreensão destes tipos de experiência, mas elas são inteligíveis mesmo não
sendo apreendidas, especificamente, pela língua verbal, como é o caso do ato da leitura, por
exemplo.
9
No que se refere ao pensamento não-verbal, Slobin (1980:206 - 207) afirma: “Não deveríamos
esperar que Beethoven tivesse ‘explicado’ a si mesmo a idéia de uma sinfonia. Seus cadernos
estão cheios de temas e tentativas de várias harmonias, transcrições e orquestrações, mas
dificilmente encontramos ali palavras escritas. Todavia, ninguém vai dizer que Beethoven não
tenha ‘estudado’ a estrutura e o conteúdo de suas composições. O plano de Guernica, de Picasso,
reflete-se em numerosos desenhos, e não numa folha cheia de palavras. (...) A fala [no sentido de
língua] é um dos muitos instrumentos do pensamento, mas não é o próprio pensamento.” (Slobin,
1980: 206 - 207)
37
A escrita clariceana questiona a linguagem e busca explorar a língua por
meio de um jogo vocabular, onde as palavras
10
transformam sentidos, pois o
significado que habitualmente apresentam se desloca para outros significados. A
exploração da polissemia e da ambigüidade, a aproximação com recursos ligados
a outras artes, a criação de um contexto adequado, são alguns dos elementos
que possibilitam uma linguagem realmente inventiva, capaz de revelar o caráter
especial das ações que pretende ressaltar. Além disso, Clarice introduz, em seus
textos, elementos típicos da poesia, “violentando a lógica da linguagem” pela
adjetivação subjetiva:
Pretendendo traduzir o que há de mais complexo e contraditório no mundo,
a romancista tem de violentar a lógica da linguagem, fertilizar-lhe o
despojamento, preencher-lhe o esquematismo. Tal processo repercute na
adjetivação, que não poderá ser objetiva, definidora, mas será antes
subjetiva, para traduzir uma emoção mais rica
11
. (Sá, 1979: 36, 37)
É interessante notar que, ainda no início de sua carreira, Clarice Lispector foi
criticada por levar, para o romance, elementos típicos da poesia, particularidade
esta que, segundo Gilda de Mello, não deve se apresentar nesta estrutura textual,
pois o romance deveria ter como características principais o romanesco e o
10
Para melhor compreensão do trabalho de deslocamento que Clarice exerce sobre a língua, é
importante observar que palavras são signos sociais, já que usadas por uma comunidade
lingüística (segundo Sausurre, Peirce e Vygotsky), mas devem ser levadas em consideração, no
contexto lingüístico (frase, expressão ou texto) em que se encontram (Pottier); são, também,
signos individuais, pois cada indivíduo, baseado no aspecto social (referência objetiva comum a
todos os usuários da língua), infere suas próprias relações psico-socioculturais (interpretante do
signo Peirce e Pottier) e sua capacidade de compreensão relativa ao estágio de maturação de
seu desenvolvimento cognitivo (Vygotsky).
11
Olga de Sá exemplifica tal processo com a seguinte observação, feita por Gilda de Mello, sobre
o Romance O Lustre: “Diante da palavra ‘mancha’ que corresponde a uma noção determinada,
surgem em qualquer espírito os possíveis atributos ‘grande’, ‘pequena’, ‘clara’, ‘escura’, ‘larga’,
‘esguia’, todos eles definindo melhor a noção. Clarice dirá ‘mancha cansada’ e a noção
subitamente se enriquece: ‘...frágil como uma lembrança, vislumbraria a mancha cansada do
afogado afastando-se.’ Esse processo de personificação ou animização das coisas impregna os
cheiros, as cores, a paisagem e, além de atingir a palavra, violenta também o sentido lógico da
frase.” (Sá, 1979: 36, 37)
38
caráter discursivo. Tal crítica
12
está ligada a um tipo de concepção estética e
compreende este recurso como um defeito técnico. Contudo, numa outra
perspectiva estética, é possível compreender esta interpenetração de gêneros
tanto como uma marca de estilo do autor, como, também, um recurso
enriquecedor da narrativa. Embora acreditemos que a inserção de elementos
poéticos na forma romanesca rompa com a rigidez da forma discursiva, ornando
sentidos, evocando paisagens, sons, cheiros e formas, não se pode negar que as
bases que norteavam as críticas de Gilda de Mello têm fundamento pautado nas
características que um dado gênero deveria apresentar. Neste sentido é
interessante ressaltar que Sérgio Milliet estranhava o fato de não se ter
conhecimento de nenhum poema de Clarice publicado até então. Tal
estranhamento pode ser um indício de que este crítico desejasse que Clarice se
iniciasse “em um novo gênero: o poema em prosa, no qual, ela poderia mover-se
com mais liberdade que na ficção” (Sá, 1979:30). Parece que a escritora atendeu,
de certa forma e um tanto tardiamente, o desejo de Milliet, quando se dedicou a
uma obra, cuja estrutura peculiar se destaca entre toda a produção clariceana:
Água Viva.
Neste texto, Clarice utiliza recursos da estrutura poética como forma de
ruptura com o que é inerente ao discursivo; em contrapartida, mescla a esta
12
Olga de Sá tece o seguinte comentário sobre a crítica de Gilda de Mello e Souza à Clarice:
“Gilda de Mello (...) parte do princípio da limitação dos gêneros literários regidos por certas normas
estéticas, não admitindo como riqueza, no romance, o que chama de empréstimos de um gênero a
outro. Ora, usando Clarice Lispector, na ficção, os processos da poesia (linguagem anímica,
violentação do sentido lógico da frase, anotação do excepcional), “(...) não teria O Lustre traído, de
certa maneira, a característica principal do romance que é ser romanesco e discursivo?” A
Referência crítica de Gilda de Mello e Souza é “a bela e exaustiva sinfonia” de Sérgio Milliet, por
ela explicitamente citado. Nessa linha de leitura, é natural que aponte, em seguida, como defeito,
o abuso dos qualificativos “quase sempre excessivos”, “sistematicamente geminados” (Sá, 1979:
37).
39
linguagem construções eruditas e elementos triviais da comunicação cotidiana.
Desta maneira, a inserção de elementos poéticos, também uma marca de seu
estilo observada em grande parte de sua obra, se dá em Água Viva totalmente
livre das limitações que um gênero pode impor. Além disso, neste texto, encontra-
se um repertório, de recursos de estilo e de traços da escrita, de forma mais
densa. Assim, acredita-se que Água Viva seja o texto no qual a questão da
linguagem, suas problemáticas e implicações, encontram o ponto culminante de
expressão.
A que se propõe, porém, esta invenção de linguagem? Certamente, uma
escrita que pretende não só exprimir, como também questionar as relações entre
o pensamento e a linguagem literários, aspira dar um outro significado a essas
relações, e, ainda, resgatar um sentido especial já desgastado pelo uso da
palavra. Ora, toda manifestação artística utiliza-se de um material específico. A
pintura, por meio de cores, traços e formas, busca retratar uma dada realidade,
seja esta visível no mundo concreto, seja presente apenas na mente do artista.
Este princípio de “dizer” o “real”, seja de que natureza for, permeia as artes de
modo geral. Assim como estas manifestações, a literatura utiliza-se de um
material. O que, porém diferencia, de certo modo, esta arte das demais é o fato
da “matéria-prima” usada ser a língua. Daí advém o fazer artístico da escrita:
transformar algo de cunho também utilitário, prático e objetivo em algo que visa
produzir efeitos estéticos.
Esta tarefa, de revelar inclusive o comum e o banal de forma incomum,
original e efetivamente expressiva, parece ser o esforço de todo artista, que deve,
de alguma forma, forçar a língua até o limite, fazendo dizer o que o sentido
40
comum não permite. Isto significa que o autor deve “retirar da língua uma outra
fala”, que deve, para usar a fórmula barthesiana, “inexprimir o exprimível
13
”. Para
Barthes, a maneira como se é capaz de surpreender, transformar, provocar
sensações e reflexões com algo tão presente no cotidiano, sem dúvida, parece
ser intensificada quando “reinventam-se” outros caminhos de expressão. Em
Crítica e Verdade, o autor trata desta questão de a linguagem ter de ser
“revolucionada” para exprimir dados contextos. Vejamos um exemplo pontual, e
por isso transcrito na íntegra, dado por este autor acerca do assunto:
Um amigo acaba de perder alguém que ele ama e eu quero dizer-lhe minha
compaixão. Ponho-me então a escrever-lhe espontaneamente uma carta.
Entretanto, as palavras que encontro não me satisfazem: são “frases”: faço
“frases” com o mais amoroso de mim mesmo; digo-me então que a
mensagem que quero mandar a esse amigo, e que minha própria
compaixão poderia em suma reduzir-se a uma simples palavra:
condolências. Entretanto, o próprio fim da comunicação a isto se opõe, pois
essa seria uma mensagem fria, e por conseguinte inversa, já que o quero
comunicar é o próprio calor de minha compaixão. Concluo que para retificar
minha mensagem (isto é, em suma, para que ela seja exata) é preciso não
só que eu a varie, mas ainda que essa variação seja original e como que
inventada. (Barthes, 1999:18) [Grifos do autor]
A invenção da palavra é uma das características que tornam o texto Água
Viva tão representativo, principalmente no que se refere à linguagem, dentro da
produção clariceana. A autora utiliza inúmeros recursos que fazem o texto
parecer fruto de uma naturalidade desmedida. O efeito de espontaneidade que a
autora cria é construída na língua, e reiterado na temática de Água Viva. Sobre
esta aparência “natural”, vale observar o que diz Leyla Perrone-Moisés:
A dança é o rastro de uma luta não é por acaso que a palavra dança pode
tomar, em várias línguas, o sentido coloquial de briga (“buena danza se
armó!”). Ora, cada escritor tem o seu modo de se haver com a língua, suas
táticas de luta. Mesmo os escritos mais desenvoltos, mais harmoniosos (ou
13
“Toda a tarefa da arte é inexprimir o exprimível, retirar da língua do mundo, que é a pobre e
poderosa língua das paixões, uma outra fala, uma fala exata” (Barthes: 1999:22).
41
melhor: estes em particular), resultam de afrontamentos e esquivas
resolvidos em dança. Na escrita, como na dança, a facilidade, a
espontaneidade, o natural, são o efeito de um trabalho (“C’est du gros
boulot”, dizia Céline numa entrevista). (Perrone-Moisés, 2004:65)
Segundo Costa Lima, “a linguagem de Lispector contém como que uma
armadilha: a sua simplicidade enganosa, podendo dar a impressão de uma
planura sem fim, de uma superfície horizontal” (Costa Lima, 1997:529, 530). Se
no início de sua carreira, a escrita de Clarice foi qualificada “por um crítico de
valor” (Cândido, 1970:127) como “ingenuamente naturalista”, parece que há
tempos tal classificação já está superada, uma vez que o tom “natural” é
conseqüência de um laborioso esforço lingüístico, estruturado racional e
logicamente. Clarice anotava “coisas” que lhe ocorriam no decorrer do dia
para, posteriormente, “juntar” os trechos anotados, conferindo, assim, a
direção, estrutural e semântica, de uma história. Este procedimento, que
reflete “práxis
14
” e “técnica
15
”, faz crer que o “esforço laborioso
16
” está em
juntar os pedaços para construir o “todo”. Affonso Romano de Sant’Anna
atenta para o fato de Água Viva causar a impressão de obra escrita “de
uma só vez”, seguindo a “ordem” da fluidez do pensamento. Parece ter
sido esta a intenção da autora: criar uma ficção que faça crer que não se
trata de ficção.
14
Observemos o que disse Clarice acerca de seu processo de criação: “Eu elaboro muito
inconscientemente. Às vezes pensam que eu não estou fazendo nada. Estou sentada numa
cadeira e fico. Nem eu mesma que estou fazendo alguma coisa. De repente vem uma frase...”.
Resposta de Clarice Lispector a uma pergunta de Affonso Romano de Sant’Anna sobre a
elaboração de A cidade Sitiada, publicada no livro Outros Escritos (Lispector, 2005:150).
15
Pode-se dizer que é uma técnica estrutural e semântica o método de juntar os fragmentos,
estabelecendo entre os trechos uma conexão coerente para o que o enredo
apresentasse uma unidade harmônica e ordenada.
16
Pode-se inferir que a etapa de dar sentido aos vários trechos era a mais laboriosa. Além disso,
Clarice afirmou ser esta uma parte “chata”: “Estou fazendo [A Hora da Estrela], com muita
preguiça, porque o que me interessa é anotar. Juntar é muito chato” (Lispector, 2005:147).
42
2.3 Itinerários da ficção: o “real” em Água Viva
Em Água Viva, Clarice constrói um texto que pretende ter o tom de vida real,
uma vez que faz crer que a narradora é um personagem do mundo concreto,
vivendo, assim, uma existência que se passa além do livro. Logo as interrupções
que a narradora faz na escrita se justificam, logicamente, uma vez que, por causa
de sua “vida real”, ela é obrigada a “parar de escrever” para praticar outras ações:
“pintar”, “dormir”, “fumar”, “morrer” (Sá, 1979):
Escrevo-te como exercício de esboços antes de pintar. (AV, 17)
E eu tinha resolvido que ia dormir para poder sonhar. (AV, 29)
Às três e meia da madrugada acordei. E logo elástica pulei da cama. Vim te
escrever. Quer dizer: ser. Agora são cinco e meia da manhã. (AV, 33)
Agora vou acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por aqui
mesmo para sempre. Eu que nunca sou adequada.
Voltei. Estou pensando em tartarugas (AV, 50)
Acho que vou ter que pedir licença para morrer. (AV, 55)
Mas vou ter que parar porque estou tão cansada que só morrer me tiraria deste
cansaço. Vou embora. Voltei. (AV, 77)
Tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um
cigarro queimando no cinzeiro. (AV, 81)
Tais trechos são apenas alguns dos exemplos que transmitem o efeito de
uma narrativa “real”, na qual a personagem “toma conta do mundo”, através do
olhar, porque “nasceu incumbida”
17
. Tal “realidade” é reiterada pela maneira
como a autora marca as ausências do ato de escrever da personagem. No
fragmento a seguir, um tempo mais longo de pausa na escrita é evidenciado,
17
“Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo
conta do mundo. (...).Tenho que tomar conta com o olhar de milhares de plantas e árvores e
sobretudo da vitória-régia. Ela está lá. E eu a olho.(...) Você há de me perguntar por que tomo
conta do mundo É que nasci incumbida.” (AV, 55,56)
43
pois a “experiência” narrada pressupõe, no “mundo concreto”, um tempo de
espera suficiente para esta personagem receber uma carta e tentar
telefonar por duas vezes para o remetente da mesma:
Vou parar um pouco para me aprofundar mais.
Depois eu volto.
Voltei. Fui existindo. Recebi uma carta de S. Paulo de pessoa que não conheço.
Carta derradeira de suicida. Telefonei para São Paulo. O telefone não respondia,
tocava e tocava e soava como num apartamento em silêncio. Morreu ou não
morreu? Hoje de manhã telefonei de novo: continuava a não responder. Morreu
sim. Nunca esquecerei. (AV, 31)
O segmento temporal “hoje de manhã” leva o leitor a pressupor que o
primeiro telefonema ocorreu, pelo menos, na noite anterior, assim, o advérbio
“hoje” representa o dia em que a narradora retomou a escrita, relatando o fato.
Desta maneira, quanto mais “real” a narradora parecer, mais a estrutura
fragmentada do texto se justificará, uma vez que será “compreendida” pelo leitor
como as experiências de uma vida que, de fato, existe. Ora, se o leitor perceber
nesta “pista” uma orientação para a leitura, ele entenderá melhor a estrutura do
texto, as subversões da linguagem, as mudanças temáticas. Além deste indício
que aponta para a ficção de uma “vida”, o texto parece explicar seus
próprios recursos. A descontinuidade temática, por exemplo, evoca as
diversas observações, registros e pensamentos da narradora. Assim, o
encadeamento dos assuntos passa a ser ordenado por um momento de
“vida real” ou pela sucessão da lembrança dos mesmos:
Um instante me leva insensivelmente a outros e o tema atemático
vai se desenrolando (AV, 14)
Oh como tudo é incerto. E no entanto dentro da Ordem. Não sei
sequer o que vou te escrever na frase seguinte (AV, 59)
44
O “tema atemático” vai se desenvolvendo segundo a “ordem” do
pensamento ou dos fatos do mundo da personagem, por este motivo, o que vem
a seguir é imprevisível. A incerteza do próximo tema cria uma expectativa no
leitor, uma vez que um assunto pode ser longamente tratado ou repentinamente
encerrado. Clarice faz crer que as mudanças temáticas não são controladas pela
narradora, que também se deixa levar pelos acontecimentos e por seu
pensamento (“Quanto ao imprevisível a próxima frase me é imprevisível” AV,
26; “Estou esperando a próxima frase. É questão de segundos. Falando em
segundos pergunto se você agüenta que o tempo seja hoje e já” AV, 32). Desta
maneira, Clarice aproxima narradora e leitor, pois ambos desconhecem o
próximo instante, que deverá ser “feito” pelos dois para que o diálogo
buscado pelo texto possa ser intensificado. Assim, a descontinuidade
textual é um recurso que visa ampliar os vínculos criados no ato da leitura.
Além disso, a falta de continuação também faz referência à
espontaneidade, à vida e à descoberta:
Este é um exercício de vida sem planejamento. O mundo não tem
ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me
acontecer. (AV, 22)
Ocorreu-me de repente que não é preciso ter ordem para viver. Não
há padrão a seguir e nem há o próprio padrão: nasço. (AV, 35)
Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho
de achados e perdidos. (AV, 66)
Os trechos citados acima justificam ao leitor sua maneira de escrever. A
narradora argumenta que o mundo não apresenta uma “ordem visível”, e que,
portanto, não se é preciso seguir um padrão para viver. No entanto, é interessante
notar que, mesmo dentro do aparente caos, há uma organização no texto, que,
45
como vimos, se assemelha ao fluxo do pensamento, mas também apresenta um
fio condutor, que é reiterado na voz da narradora
18
. Mas além dessa ordenação
regida pelos “instantes” pode-se perceber que a autora desenvolve certas
“histórias
19
” de maneira mais unificada. Tais trechos são mais longos e podem ser
um recurso para “localizar” o leitor, ou ainda estabilizar, momentaneamente, suas
reações, tendo em vista as constantes rupturas presentes no texto.
Clarice buscou criar a “impressão” de um texto escrito num fluxo
contínuo de consciência. Tal “atmosfera de naturalidade” é capaz de enredar o
leitor para dentro de suas tantas histórias, reflexões e descrições que, mesmo
quando se relacionam ao cotidiano, se produzem através de uma escrita
sinestésica, na qual as imagens criadas são feitas de luzes, cores, figuras,
perspectivas, cheiros, paisagens, sabores, texturas, aliterações. Este recurso é
capaz de criar quadros mentais, que se desenvolvem em toda a obra,
estabelecendo um elo entre significantes e significados, conferindo à palavra
plasticidade, textura e musicalidade. Contudo, a narradora de Água Viva
pretende, ainda, tornar as palavras próximas a experiências que não se realizam
por meio da palavra. Desta maneira, como tornar perceptíveis em um texto o
sabor, o aroma, o contato tátil e a música, por exemplo? Se transmitir, com
plenitude, uma experiência verbal já é uma possibilidade questionada pela
narradora, de que modo, então, pode-se expressar verbalmente a natureza
específica de experiências não verbais?
18
“Quero a experiência de uma falta de construção. Embora este meu texto seja todo atravessado
de ponta a ponta por um frágil fio condutor qual? o do mergulho na matéria da palavra? Fio
luxurioso, sopro que aquece o decorrer das sílabas” (AV, 25). “Há uma linha de aço atravessando
isto tudo que te escrevo” (AV, 35).
19
Como exemplos de trechos que desenvolvem mais longamente uma história, podem-se citar as
seguintes temáticas: bichos (44-48); flores (51-55) e espelho (70-72).
46
Para exprimir, por meio da palavra, o que a princípio não se conseguiria, a
autora cria uma escritura que transgride os padrões e as normas da língua
padrão, buscando aquilo que Barthes chamou de “inexprimir o exprimível”. Mas o
que significa, afinal, a “inexpressão” no sentido barthesiano?
2.4 “inexprimir para exprimir”: a inexpressão como recurso da
literatura
Como vimos anteriormente, a linguagem é, sem dúvida, um elemento
fundamental para o alcance de uma proposta estética, sobretudo na literatura,
que se concretiza através de uma língua que deve se “afinar” com o pensamento
(Cândido: 1970:126). Para isto, o escritor tem o trabalho de se “haver” com a
língua. Ora, se dada percepção ou idéia tiver parecido ao escritor como genial e
incrivelmente reveladora, ele certamente tentará transmitir o fascínio desta
experiência por meio de palavras.
Desta maneira, a missão do escritor é buscar um meio de primeiramente
alcançar a experiência inexprimível por meio do signo, mesmo que esta
experiência tenha sido percebida pelos sentidos, não envolvendo, assim, a
palavra. Isto quer dizer, que se deve haver a conversão de uma linguagem em
outra, o que irá transformar “fatos” em palavras, sendo que estas palavras
sofrerão outras versões, para, assim como numa tradução de línguas, melhor
47
exprimir o que dizia o idioma de origem. De acordo com Barthes
20
, essa etapa de
perceber os fatos “inexprimíveis” do mundo por meio da palavra é anterior à etapa
de registrá-las. Se o processo de criação literária se desse de outro modo, isto é,
se o escritor tivesse por função produzir apenas “uma primeira voz” a alguma
coisa anterior à linguagem, ele só poderia produzir uma infinita repetição, uma vez
que, segundo Barthes, o imaginário é pobre, só sendo enriquecido pela
combinação de figuras que o constituem. Tais figuras, por mais torrenciais que
pareçam a quem as vive, só pode ser fecunda de significados se puder ser
variada. (Barthes, 1999: 22)
O que este crítico mostra é que o nomeado, matéria verbal do signo, existe
em constante desgaste e reiteração, porque as palavras são reconhecidas e
assimiladas na medida em que vão se repetindo e se confirmando os sentidos
que emanam. De acordo com Barthes, em sua Aula:
Os signos de que uma língua é feita, os signos só existem na medida em
que são reconhecidos, isto é, na medida em que se repetem; o signo é
seguidor, gregário; em cada signo dorme este monstro: um estereótipo:
nunca posso falar senão reconhecendo aquilo que se arrasta na língua.
(Barthes, 2004:15)
Este “monstro” do qual fala Barthes é o “lugar comum” da língua, que como
código social sedimenta signos, consolida significados, materializa
representações. Reconhecer aquilo que “se arrasta na língua”, isto é, os
estereótipos que se encontram arraigados nas palavras, parece ser um primeiro
“passo” em direção à busca de outras formas lingüísticas de expressão. Desta
20
“as infelicidades e as felicidades humanas, o que elas despertam em nós, indignações,
julgamentos, aceitações, sonhos, desejos, angústias, tudo isso é matéria única dos signos, mas
esse poder que nos parece primeiramente inexprimível, de tal forma é primeiro, esse poder é
imediatamente apenas o nomeado (Barthes, 1999:21)
48
maneira, resta ao escritor retirar a palavra de lugares cristalizados pelo uso e
relacionar-se intimamente com ela para que justamente através deste convívio,
“que está muito dentro” da língua possa surgir uma linguagem como que
inventada. Para Barthes, a literatura deve libertar-se deste “lugar comum”, sendo
que esta liberdade só é possível, segundo ele, se houver uma relação íntima de
quem escreve com a linguagem:
Ora, é com essa primeira linguagem, esse nomeado, esse nomeado
demais, que a literatura deve debater-se: a matéria-prima da literatura não é
o inominável, mas pelo contrário o nomeado; aquele que quiser escrever
deve saber que começa uma longa concubinagem com uma linguagem que
é sempre anterior (...) (Barthes, 1999:22)
Assim, o escritor tem o poder (e isto é um poder tentador) de produzir e de
comunicar uma realidade. O “impossível” é, então, “contar o conto” com o mesmo
tom de revelação presente no pensamento ou no mundo; e o “milagre” é tornar o
impossível realizável por meio de uma linguagem que não pretende, em suma,
exprimir ou comunicar, mas atingir e provocar o leitor. A busca do escritor,
segundo Barthes, deve ser justamente pela inexpressão, só assim ele poderá
retirar da língua “uma fala exata”, conferindo destaque e valores especiais,
inclusive, a acontecimentos que passeiam despercebidos no cotidiano. O que
Barthes afirma é que o “inexprimir” deveria ser a única forma de expressão dentro
da literatura, uma vez que não existe uma realidade que já não esteja classificada
pelos homens através da linguagem.
O escritor (...) tem de destacar uma fala segunda do visgo das falas
primeiras que lhe fornecem o mundo, a história, sua existência, pois ele vem
num mundo cheio de linguagem e não existe nenhum real que já não esteja
classificado pelos homens. Ouve-se freqüentemente dizer que a arte tem
por encargo exprimir o inexprimível: é ao contrário que se deve dizer: toda a
tarefa da arte é inexprimir o exprimível, retirar da língua do mundo, que é a
pobre e poderosa língua das paixões, uma outra fala, uma fala exata.
(Barthes, 1999:22)
49
Com esta afirmação, Barthes não propõe que as palavras sejam esvaziadas
de sentido, “inexprimindo” algo possível de ser “exprimível”, sendo colocadas
aleatoriamente sem que se queira dizer alguma coisa. O escritor, sem dúvida, tem
uma missão, talvez utópica, de exprimir, sendo que ele deveria ter, de acordo com
Barthes, a consciência de que só poderá expressar se subverter a linguagem
primeira, que é aquela com a qual entramos em contato com o mundo, ou melhor:
com os sentimentos do mundo.
[a] originalidade é o próprio fundamento da literatura; pois é somente me
submetendo à sua lei que tenho a chance de comunicar com exatidão o que
quero dizer; em literatura, como na comunicação privada, se quero ser
menos “falso”, é preciso ser mais “original”, ou se preferir, mais “indireto”.
(Barthes, 1999:19)
Deste modo, combinar as figuras do imaginário e do mundo através da
palavra é o desafio do escritor, que primeiramente deve lançar à realidade um
olhar que, se por um lado se aproxima da língua, por outro se afasta. Esta relação
de entendimento dos mecanismos da linguagem lhe permitirá vislumbrar e
“colher” materiais para que, posteriormente, lhes dê a forma capaz de transformar
mesmo o banal em novidade. E esta mudança não se trata apenas de transmudar
o chumbo do cotidiano no ouro das palavras, pois, para o escritor, todo o mundo
está repleto de interessantes possibilidades cotidianas ou espetaculares que
esperam por serem escritas. E o segundo passo depois de sua experiência com o
mundo é transformar em escritura suas histórias, seus múltiplos olhares. E assim,
nas palavras de Barthes, “inexprimir o exprimível”.
Se o objetivo é “comunicar” por que, então, “inexprimir” ao invés de exprimir?
Porque parece ser justamente tomando este itinerário que se consegue com
50
maior exatidão transmitir o fascínio ou o horror, a fantasia ou o realismo real, que
se deseja “dar a entender”.
Quem quiser escrever com exatidão deve pois se transportar às fronteiras
da linguagem. (...) O escritor e o homem privado (quando ele escreve) são
condenados a variar desde o início suas mensagens originais, e já que ela é
fatal, escolher a melhor conotação, aquela cujo aspecto indireto, por vezes
fortemente retorcido, deforma o menos possível, não o que eles querem
dizer mas o que eles querem dar a entender. (Barthes, 1999:20)
Não se pretende com isto afirmar que um único sentido (inequívoco) de
interpretação é o exato, renunciando assim as ambigüidades que um texto suscita
ou os outros caminhos interpretativos possíveis, sejam do leitor, sejam da crítica.
A questão que a teoria não deve ignorar é que quando uma obra é escrita, ela
tem um “porquê” de ser, cuja certeza de sentido só pode ser plenamente sabida
pelo autor, que certamente deve julgar interessantes os trabalhos teóricos de
interpretação que se escrevem sobre sua obra. Parece que mais instigante do
que perseguir um caminho de interpretação que forneça um sentido legítimo à
obra, é explorar o esforço de construção de um escrito, isto é, a maneira como um
substantivo ou uma noção se enriquece ou como a descrição de uma paisagem
inexistente pode se materializar aos olhos do leitor, por exemplo. A busca pela
inexpressão (ou pela fala exata, ou pela escritura, ou pela originalidade), mais do
que exprimir, produz uma realidade capaz de criar vínculos com leitor, de modo
que ele pode “acolher” o escrito.
A originalidade é pois o preço que se deve pagar pela esperança de ser
acolhido (e não somente compreendido) por quem nos lê. Essa é uma
comunicação de luxo, já que muitos pormenores são necessários para dizer
poucas coisas com exatidão. (Barthes, 1999:20)
Deste modo, a novidade instaurada na escrita busca a reinvenção dos
modos de dizer, e, se o escritor escreve para os outros, então o desejo de criar
51
vínculos com o leitor não pode ser negado. Ou seja, o processo de “inexprimir o
exprimível”, que se realiza na escritura, visa, de certa maneira, atingir o horizonte
de expectativas do leitor, que concretizará, com sua intervenção na obra, o
esforço do autor. Desta forma, o leitor deve não só cooperar com o escrito, como
também ser capaz de compreender as “regras”, uma vez que o que se instaura é
uma “comunicação de luxo”. A partir deste movimento de troca e cooperação
mútua é que se criam, efetivamente, os vínculos no processo da leitura.
CAPÍTULO III
ÁGUA VIVA:“UM MONÓLOGO DIALÓGICO”
3.1 Água Viva: um monólogo com a vida
1
Água Viva não é romance, conto, crônica ou novela. Em sua edição lançada
pela editora Rocco, em 1998, a obra está identificada simultaneamente como
ficção
2
e romance
3
. Parece que ambas as classificações parecem ser
equivocadas, uma vez que a primeira “encerra o próprio núcleo do conceito de
literatura. Neste caso, qualquer obra literária (conto, novela, romance, soneto,
ode, comédia, tragédia, etc.) constitui a expressão dos conteúdos da ficção.”
(Massaud Moisés, 2004:188). Sabe-se, entretanto, que, em sentido restrito,
recorre-se ao vocábulo, para designar a prosa literária em geral, ou seja, a prosa
de ficção.
1
Utilizou-se aqui “monologo com a vida” no lugar de “monólogo da vida” em referência ao primeiro
título do livro Água Viva: “Atrás do pensamento: monólogo com a vida.” (Gotlib, 1995:409)
2
O termo ‘ficção’ aparece na terceira folha de rosto da edição, juntamente ao nome do livro.
3
A classificação ‘romance’ aparece na segunda folha de rosto, ao lado do título e junto às demais
obras da autora, todas acompanhadas do respectivo gênero.
53
Benedito Nunes, em seu livro O Drama da Linguagem: uma leitura de
Clarice Lispector atenta para a questão da classificação desta obra:
À falta de melhor palavra, ‘ficção’ é o nome equívoco desse texto fronteiriço
inclassificável, que está no limite entre literatura e experiência vivida.
(Nunes, 1995:157).
Ainda de acordo com este crítico, a obra Água Viva não é um texto que
possa ser classificável num gênero pois sua escritura “não ostenta mais as
características formais da novela ou do romance.” É interessante notar que a
única obra de Clarice Lispector classificada pela Editora Rocco simplesmente
como ‘ficção’ é Água Viva. Esta questão acerca do gênero é apenas um indício da
peculiaridade deste texto, que se diferencia dos demais desde a sua gênese,
quando ainda era intitulado ‘Atrás do Pensamento: Monólogo com a vida’. Este
manuscrito de aproximadamente 200 páginas, após ter sido entregue ao crítico e
tradutor Alexandrino Severino, foi renomeado de ‘Objeto Gritante’, e, após quase
três anos de revisão, o mesmo foi reduzido praticamente à metade. Este novo
projeto foi intitulado Água Viva.
Segundo Sônia Roncador
4
, “ ‘Objeto gritante’ teria sido um dos projetos mais
ambiciosos na literatura nacional dos anos 70” (Roncador, 2002:51), pois este
manuscrito possuía um caráter autobiográfico, apresentando relatos cotidianos da
“vida pessoal da autora no momento mesmo do ato de escrever” mesclados a
fragmentos de diferentes expressões literárias (crônicas jornalísticas, textos
literários já publicados e fragmentos inéditos).
4
Sônia Roncador dedicou-se, em sua pesquisa de doutorado, ao estudo do Manuscrito “Objeto
Gritante”. Sua tese deu origem ao livro: Poéticas do empobrecimento: a escrita derradeira de
Clarice.
54
É interessante notar que, segundo Alexandrino Severino, em artigo intitulado
“As duas versões de Água Viva”, após ter recebido o manuscrito para traduzi-lo
para o inglês, Clarice estava convencida de que aquele texto estava concluído,
tendo, inclusive, ressaltado que a tradução deveria ser cautelosa e sensível, “que
nenhuma vírgula deveria ser acrescentada, que teriam [Clarice e Alexandrino] que
encontrar a palavra exata e respeitar a pontuação” (Severino, 1989:118). Outro
fato que demonstra o caráter, até então, de obra finalizada é a entrevista
publicada no Jornal Correio da Manhã, em 05 de março de 1972, na qual Clarice
fala sobre ‘Objeto Gritante’. A autora diz que “o livro será muito criticado [pois] ele
não é conto, nem romance, nem biografia, nem tampouco livro de viagens ...
sabe, ‘Objeto Gritante’ é uma pessoa falando o tempo todo.” Apesar desta
expectativa criada sobre a obra, em 23 de junho de 1972, Clarice escreve a
Alexandrino, comunicando sua decisão de não publicar o manuscrito, informando
que abandonaria o projeto ou, para usar as palavras de Clarice, “trabalharia no
mesmo”.
Após pouco mais de um ano de “trabalho” com ‘Objeto Gritante’, surge Água
Viva, publicado em agosto de 1973. Um texto que, mesmo tendo sido
reestruturado, continua a apresentar certos traços do anterior, como, por exemplo,
um “eu”, na forma de uma narradora sem nome, que “fala o tempo todo”. Do que
se fala? São pensamentos, visões de mundo, observações do cotidiano, reflexões
sobre o ato de escrever e sua impossibilidade de apreensão da realidade,
correspondências entre a pintura e a escrita.
Outro elemento que se apresenta em ambos os textos é a “aparência de
bricolagem”. Em referência ao manuscrito, Nadia Gotlib (Gotlib, 1995: 405)
55
salienta que o filósofo José Américo Pessanha observou a heterogeneidade da
obra através de dois procedimentos: 1) mistura entre fragmentos já publicados
5
e
trechos inéditos e 2) movimentos de idas e vindas entre a ficção e o cotidiano. Em
relação à Água Viva, o aspecto de bricolagem também se evidencia, conforme
observa Nádia Gotlib em seu livro Clarice: Uma vida que se conta:
Juntando fragmentos, a bricolagem se faz servindo-se à vontade, de outros
textos seus de outras obras (...) As divisões internas da obra em pequenos
textos colados correspondem a um princípio regulador do livro: “divido-me
milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem,
fragmentária que sou e precários os momentos” (Gotlib, 1995:410, 411).
Os aspectos acima citados, que interligam os dois textos, são alguns dos
elos
6
entre o manuscrito “Objeto Gritante” e a obra Água Viva. Tais conexões
fazem de Água Viva uma obra singular na produção de Clarice, pois mesmo não
apresentando projeto tão ousado como o de “Objeto Gritante”, representa um
5
É importante esclarecer que, segundo Clarice Lispector, não é Água Viva que se “aproveitou” de
textos já publicados e sim o contrário: a autora escrevia Água Viva e tinha que publicar crônicas no
Jornal do Brasil, e então aproveitava alguns trechos do livro que estava escrevendo: “Eu estava
escrevendo o livro [Água Viva] e detestava fazer crônicas, então eu aproveitava e publicava. E não
eram crônicas, eram textos que eu publicava” (Lispector, 2005:148). Como Água Viva foi publicado
posteriormente, criou-se a impressão de que a autora utilizou fragmentos de textos escritos
anteriores à Água Viva.
6
É interessante ressaltar que ao longo do texto, Clarice mantém inúmeras recorrências ao
primeiro título (“Estou atrás do que fica atrás do pensamento” AV, 12; “Atrás do pensamento não
há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento” AV, 27; “Atrás do
pensamento, atinjo um estado” AV, 65; dentre outras), e, apenas, uma recorrência em relação ao
segundo: “O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas
secas na úmida e escura madrugada. Há muito sinto que não sou gente. Quiseram que eu fosse
um objeto. Sou um objeto. Objeto sujo de sangue. Sou um objeto que cria outros objetos e a
máquina cria a nós todos. Ela exige. O mecanicismo exige e exige a minha vida. Mas eu não
obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita. Há uma coisa
dentro de mim que dói. Ah como dói e como grita pedindo socorro. Mas faltam as lágrimas na
máquina que sou. Sou um objeto na mão de quem? tal é o meu destino humano. O que me salva
é o grito. Eu protesto em nome do que está dentro do objeto atrás do atrás do pensamento-
sentimento. Sou um objeto urgente” (AV, 79). Este último segmento é bastante complexo, o “grito”
aqui não é um signo gregário, mas a expressão de uma intensidade que escapa a ordem da fala, é
algo que não se pode ser traduzido em palavras. O grito de uma pessoa que se tornou objeto
parece ser uma atribuição ainda mais intensa, expressão máxima de “inexpressão”: Por que este
objeto uma pessoa grita? Por que não é um objeto “falante” já que uma pessoa é dotada deste
tipo de articulação?
56
marco, distinguindo-se do que foi escrito antes e depois desta obra. De acordo
com Benedito Nunes, Água Viva retoma o esvaziamento da narrativa, que registra a
condição errante do narrador, que se fragmenta em A Paixão segundo G.H. Por
outro lado, o autor afirma ser também um recomeço na medida em que traz a tona o
“realismo novo” que se anuncia em Uma Aprendizagem ou O livro dos Prazeres,
apresentando como diferencial uma temática que ressalta um aprendizado “das
coisas humanas transformado em busca aleatória”. Ainda segundo Benedito Nunes:
Água Viva é uma continuação e um recomeço (...). A escritura
autodilacerada, conflitiva, atingida como limite final de uma necessidade
perturbadora, é agora a contingência assumida de transgressão das
representações do mundo, dos padrões da linguagem, dos gêneros
literários e da fantasia protetora. (Nunes, 1995:156). [grifo nosso]
Clarice teria radicalizado em Água Viva sua forma de linguagem, neste texto
está presente a maior parte do elenco de recursos utilizado pela autora para criar
uma escrita capaz de transgredir os padrões da linguagem. O fato de esta obra
não apresentar um enredo possibilita uma liberdade de expressão que não está,
sob qualquer aspecto, presa aos moldes pré-estabelecidos do conto ou do
romance, por exemplo. Segundo Benedito Nunes:
Fluído como a matéria, ‘Água Viva’ não tem outra história senão a do fluxo
de uma meditação erradia, apaixonada, ao sabor da variação de certos
temas gerais. (Nunes, 1995:157)
Este tipo de narrativa movimenta e desloca os assuntos, que ora são
retomados, ora apenas mencionados. Deste modo, o dinamismo de Água Viva se
realiza por meio de uma estrutura textual de caleidoscópio
7
, isto é, através de
7
Termo utilizado, e explorado semanticamente, pela narradora de Água Viva: “Um instante me
leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas geométrico
como as figuras num caleidoscópio” (Lispector, 1998:14); “Mas sou caleidoscópica: fascinam-me
as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro” ((Lispector, 1998:31).
57
uma sucessão rápida de temas, interligados por um tênue fio que conduz o texto
de maneira não linear. Esta escrita fragmentada busca criar uma atmosfera de
escrita natural, ou seja, pretende criar no leitor a sensação de que a escrita se
realiza no mesmo momento em que os pensamentos vão surgindo ou em que os
acontecimentos da vida do narrador vão acontecendo. Assim, não importa a
natureza do que está sendo registrado, seja a observação de um fato cotidiano,
seja a descrição de um quadro, seja a evocação de uma lembrança, pois o
objetivo da narradora é expressar a realidade e os pensamentos que lhe vão
acontecendo por meio de uma linguagem que também se deixe acontecer de
maneira fluida. Com isto, cria-se uma atmosfera de naturalidade, como se a
escrita fosse espontânea tanto no que diz respeito a retratar um acontecimento do
mundo, como também inventá-lo por meio da linguagem.
3.2 Água Viva: um diálogo com o leitor
Apesar de apresentar a forma de monólogo, Água Viva aponta para um
diálogo, uma vez que a voz da narradora se dirige a uma outra pessoa, nomeada
simplesmente como “tu”, cuja representação oscila entre dois diferentes
interlocutores. Ora as falas se voltam a alguém com quem se estabeleceu uma
ligação amorosa, que agora está rompida; ora se encaminham ao leitor, que é
levado, através de diferentes recursos, a participar deste monólogo como um
ouvinte atento e ativo. Tais fragmentos dirigidos ao “tu” por vezes se mostram
58
ambíguos, podendo ser compreendidos, simultaneamente, por ambos os
interlocutores supracitados.
Como foi dito anteriormente, Água Viva não apresenta um enredo nos
moldes tradicionais deste termo, no entanto, se se é preciso “contar” a alguém do
que se trata o livro, provavelmente uma forma de dizer em poucas palavras a sua
história seria: “um texto em que o narrador é uma pintora que escreve, sobre os
mais variados assuntos, para uma pessoa que já se relacionou afetivamente.”
Observemos os seguintes trechos
8
:
Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da
dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me
prende mais. (AV, 09)
Parece com momentos que tive contigo, quando te amava (...) (AV, 13)
Venho do inferno do amor mas agora estou livre de ti. (AV, 15)
Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo isso ganhei ao deixar de
te amar. (AV, 17)
Esta temática de separação é abordada em vários trechos do livro, tal fato
ratifica a idéia de que a narradora trata dos variados assuntos direcionando os
mesmos ao homem que “amou e ainda ama?” (Gotlib, 1995:410). No entanto,
como foi mencionado acima, este “tu”, a quem se dirige a narradora, pode ser
entendido como o leitor pois o texto, não só possibilita, como indica esta
interpretação:
Hoje acabei a tela de que te falei: linhas redondas que se interpenetram em
traços finos e negros, e tu, que tens o hábito de querer saber porque (...)
perguntarás por que os traços negros e finos? é por causa do mesmo
segredo que me faz escrever agora como se fosse a ti (...)
(AV, 11) [grifo nosso]
8
Deste ponto em diante, todas as referências à obra Água Viva serão representadas pela sigla
AV, seguida pelo número da página onde se encontra o trecho em destaque. Cabe informar que
todas as citações desta obra foram retiradas da edição lançada pela Rocco, em 1998.
59
No trecho acima, a narradora inicia uma “conversa” sobre uma determinada
tela que pintou, se dirigindo, a princípio, a alguém que já tinha conhecimento
desta mesma tela. No entanto, em seguida, ela diz que o que escreve é “como se
fosse” dirigido a esta pessoa, o que faz crer que, de fato, o texto não é
direcionado, exclusivamente, a quem, de alguma forma se pretendia inicialmente.
A partir desta ambigüidade, Clarice Lispector cria um jogo, no qual o leitor é
incitado a participar de uma forma diferente. Primeiramente, ele é levado a
acreditar que o monólogo que lê se dirige a um personagem que não aparece no
texto e sim é construído pelas orientações do próprio texto. Pouco a pouco,
porém, o texto dá indicações cada vez mais claras de que, na verdade, a pessoa
com quem se fala é aquele que lê, pois através das temáticas se é possível inferir
quando a narradora fala ao personagem “ausente” e quando se dirige ao leitor. A
partir daí, Clarice cria uma cumplicidade com quem a lê, pois ao mesmo tempo
em que a narradora de Água Viva mostra os conflitos de sua separação amorosa
sua dor, seu alívio, sua sensação de liberdade , ela também dialoga com o
leitor sobre outros assuntos, que continuamente se dispersam.
Este procedimento estrutural pode gerar no leitor uma sensação de
expectativa continuada, pois a narradora, além de afirmar que “o próximo instante
é o desconhecido”, questiona quem seria o responsável por ele:O próximo
instante é feito por mim? Ou se faz sozinho?” (AV, 09). Imediatamente após
este questionamento, ela inclui o leitor, o convidando a participar de cada
um destes instantes: Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma
desenvoltura de toureiro na arena” (AV, 09).
60
Se compreendermos que estes instantes representam os consecutivos
fragmentos do livro, então, a “desenvoltura” estaria ligada tanto ao ato de
escrever quanto ao de ler, uma vez que o que se propõe é que os instantes
sejam feitos pela narradora e pelo leitor. Desta maneira, ela pressupõe um
tipo de competência, de leitura e escrita, que envolva a agilidade e a
perspicácia.
No que tange à escrita, pode-se dizer que sua estrutura é “algo” livre.
Como foi dito anteriormente a referida obra não apresenta enredo, no
sentido clássico do termo, e também foge das classificações do gênero.
Esta questão, inclusive é explicitada no livro:
Este não é um livro porque não é assim que se escreve. (AV, 11,12)
Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando,
gênero não me pega mais. (AV, 12, 13)
História não te prometo aqui. Mas tem it. Quem suporta? (AV, 35)
Eu não tenho enredo de vida? sou inopinadamente fragmentária.
Sou aos poucos. Minha história é viver. (AV, 66)
Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir
dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos
fugitivos que se vêem da janela do trem. (AV, 67)
Esta liberdade promovida pela estrutura do texto permite que a
narrativa percorra os mais variados temas, de forma ágil e fragmentada.
Como vimos nos trechos acima, a narradora assume sua natureza
“imprevisivelmente” fracionada, assim como os instantes que ela busca
registrar. Assim, pode-se dizer que, no que tange à escrita, a narradora
apresenta a “desenvoltura” necessária para ir “construindo” o texto ao
sabor do momento que pretende fixar.
Clarice Lispector elaborou um jogo ficcional que reflete um movimento
61
da própria literatura ao criar uma narradora que procura no leitor a
cumplicidade e a compreensão de sua escrita. A personagem explica ao
leitor a sua maneira de escrever, mas também indica uma forma de leitura
como adequada ao seu texto:
Ouve apenas superficialmente o que digo e da falta de sentido
nascerá um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida alta
e leve. (AV, 23)
Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra
coisa. Quando digo “águas abundantes” estou falando da força de corpo
nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na verdade falo
porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio.
(AV, 28)
O que estou te escrevendo não é para se ler é para se ser.
(AV, 34)
Estes trechos funcionam como “indicações”, orientando o leitor sobre
o modo como o texto deve ser lido. O primeiro fragmento citado aponta
para um tipo de leitura que não deve se fixar em explicações imediatas,
uma vez que o sentido surgirá através daquilo que é, aparentemente,
desconexo. O segundo trecho indica a questão da “entrelinha”, aquilo que
pode ser subentendido no texto, além disso, insinua a multiplicidade de
sentidos que um dado segmento pode provocar. O terceiro fragmento
funciona como um apelo a uma experiência vital, uma vez que não
pretende que o leitor faça uma “leitura”, e sim que ele possa “viver”,
“sentir” a escritura. Esta busca por atingir o leitor pretende que este
compactue com a narrativa, contudo, tal pacto só é possível se ele for
atingido e puder compreender os enigmas que permeiam a escritura. Para
isto, ele precisa estar atento às “pistas” deixadas pela autora na
construção do texto, além de preencher os silêncios da escritura, que, a
62
narradora chama de entrelinhas. Este tipo de construção, permeada por
vazios, não só conduz o percurso de geração de sentidos, mas também solicita a
participação ativa do leitor para a construção de significados.
Preciso terrivelmente de você. Nós temos que ser dois. Para que o trigo
fique alto. (AV, 39)
Este fragmento sugere que somente através do movimento de cooperação
mútua é que o sentido poderá “crescer”. A narradora busca, assim, persuadir o
leitor a participar do seu texto como um co-autor, e, ao fazer isto, eleva o papel
daquele que lê, o estimulando a desvendar os mistérios desta narrativa. O apelo
que se faz ao leitor neste trecho é reforçado pelo uso da expressão
“terrivelmente”, que, intensifica a necessidade do outro para que “o trigo fique
alto”. Deste modo, adjetiva-se a intensidade, que deixa de ter valor, unicamente,
de “muito” para significar que quem escreve necessita, de maneira desmedida, do
leitor.
A participação do leitor, também, é incitada através do recorrente uso de
indagações. Este recurso equivale, de certa maneira, às perguntas que um
enunciador faz ao seu interlocutor num diálogo face-a-face:
(...) será que estou te dando uma idéia do que uma pessoa passa em vida?
(AV, 18)
O que te direi? te direi os instantes (AV
9
, 20)
Quer ver comigo? Paisagem onde se passa essa música? (AV, 83)
Quer ver como continua? Esta noite é difícil te explicar esta noite sonhei
que estava sonhando. Será que depois da morte é assim? o sonho de um
sonho de um sonho de um sonho? (AV, 86)
9
Neste trecho, a resposta que se segue à pergunta é iniciada por letra minúscula. Tal ocorrência
aparece várias vezes no livro.
63
Não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito. Eu não te disse que
viver é apertado? (AV, 86)
A inserção de frases interrogativas no meio da narração funciona como um
elemento propulsor na imaginação do leitor, incentivando reflexões sobre as
perguntas, pois ao usar esta estrutura frasal, a autora chama a atenção do leitor
para a importância daquilo que está acontecendo no texto. Além disso, o uso de
indagações contribui para que a sensação de diálogo se intensifique, uma vez
que, também através de perguntas, a autora busca situar o leitor sobre o desvio
de um dado tema. Um exemplo disso é a temática de animais que Clarice
desenvolve por duas páginas e, de repente, insere a história de uma rosa.
Parecendo estar atenta para esta mudança repentina de assunto, ela pergunta ao
leitor se ele também “estranha” tal fato: “Sei da história de uma rosa. Parece-te
estranho falar em rosa quando estou me ocupando com bichos? Mas ela agiu de
um modo tal que lembra os mistérios animais” (AV, 47). Na seqüência deste
trecho, a narradora justifica o porquê de a rosa ter agido como um bicho, e após
uma página de explicação, ela encerra o assunto da rosa para, posteriormente,
retomar a temática dos animais: “(...) eu e ela [a rosa] tínhamos podido viver uma
a outra profundamente como só acontece entre bicho e homem. Não ter nascido
bicho é minha nostalgia secreta” (AV, 47, 48)
Ao falar sobre o desejo de ter nascido bicho, a narradora reafirma sua forte
ligação com os animais, tal fato intensifica a relação criada com a rosa que,
segundo a narradora, agiu com “instinto de natureza” animal.
64
As constantes suspensões de temas para posteriores retomadas funcionam
como um recurso capaz de, ao mesmo tempo, “prender” e ”desviar” a atenção do
leitor. Observemos o seguinte trecho:
Disseram-me que a gata depois de parir come a própria placenta e durante
quatro dias não come mais nada. Só depois é que toma leite. (AV, 29)
Após este trecho, tal assunto é desviado para a “subida” do preço do leite; a
partir de então, a narradora passa a relatar e a descrever a respiração, o
desconhecido, a lua cheia, o sonho e outros assuntos, que vão se distanciando
cada vez mais do que havia abordado no trecho acima. Após quase quatro
páginas de “desvios” temáticos, a narradora resgata o assunto:
Nascer: já assisti gata parindo. Sai o gato envolto num saco de água e todo
encolhido dentro. A mãe lambe tantas vezes o saco de água que este enfim
se rompe e eis um gato quase livre, preso apenas pelo cordão umbilical.
Então a gata-mãe-criadora rompe com os dentes esse cordão e aparece
mais um fato no mundo. (...) Comi minha própria placenta para não precisar
comer por quatro dias. (AV, 32)
É interessante notar que ela inverte a ordem natural dos fatos, uma vez que
a gata só poderia comer a placenta após parir seus filhotes. Talvez tal inversão se
deva ao fato de ela se “apropriar” metaforicamente do comportamento animal
descrito anteriormente. Desta forma ela interliga noções de natureza, nascimento,
vida e alimento, podendo, este último, ser compreendido como uma forma de
auto-sustentação pelo “espírito” (“Comi minha própria placenta”). No primeiro
trecho citado, ela lança ao leitor um fato, no entanto, não “justifica” o porquê deste
assunto aparentemente deslocado, ao contrário, desenvolve variadas reflexões
sobre outros temas, deixando em suspenso aquele fragmento, como tantos outros
do texto. É claro quer o leitor não sabe que o este assunto será retomado, uma
65
vez que alguns fragmentos aparecem apenas uma vez sem apresentar aparentes
conexões com outros segmentos. No entanto, quando retoma o assunto da “gata”,
proporciona ao leitor a possibilidade de preencher o espaço vazio constituinte
entre o primeiro e o segundo fragmento. Assim, a retomada do assunto chama a
atenção do leitor para a importância do assunto, que mesmo inconscientemente,
faz deduções e conexões com aquilo que foi lido anteriormente. Segundo Terry
Eagleton:
Embora raramente percebamos, estamos formulando hipóteses construtivas
sobre o significado do texto. O leitor estabelece conexões implícitas,
preenche lacunas, faz deduções e comprova suposições (...). O texto em si
não passa de uma série de “dicas” para o leitor, convites para que ele dê
sentido a um trecho de linguagem. Na teoria da recepção, o leitor
“concretiza” a obra literária, que em si mesma não passa de uma cadeia de
marcas organizadas numa página. (Eagleton, 2003:105)
Esta concretização feita pelo leitor se dá justamente pelo preenchimento dos
espaços vazios de uma obra. Água Viva - dada sua estrutura fragmentada, repleta
de vazios e entrelinhas - possibilita uma participação mais ativa do leitor, uma vez
que convida, constantemente, o mesmo a completar tais espaços. Wolfgang Iser
afirma que a literatura só pode se concretizar com o leitor, que atribui à obra
literária vários sentidos: “o sentido do texto é apenas imaginável, pois ele não é
dado explicitamente; em conseqüência, apenas na consciência imaginativa do
receptor se realizará” (Iser, 1996: 75). Assim, o leitor assumirá um
posicionamento, proporcionado pelo texto, para preencher seus vazios. Iser
assinala que, no momento da leitura, o leitor pode se ocupar de uma gama de
experiências desconhecidas, “daí a impressão de viver uma transformação
durante a leitura” (Iser, 1999: 90). “A constituição do sentido que acontece na
leitura, portanto, ‘não só significa que criamos o horizonte’ de sentido, tal como
66
implicado pelos aspectos do texto” (Iser, 1999: 92), mas também está interligada
ao que as experiências do leitor podem suscitar quando somadas aos espaços
vazios do texto. “Neste sentido, a literatura oferece a oportunidade de formularmo-
nos a nós mesmos, formulando o não-dito” (Iser, 1999: 93).
Para que isso aconteça, no entanto, é necessário que o sujeito seja capaz de
entrar neste jogo, isto é, ser mobilizável para se mobilizar. É preciso que o leitor
esteja disposto a não impor exclusivamente suas próprias projeções
independentemente do texto (cf. Iser), ele deve estar disposto a mudar, a entrar em
contato com um mundo que não é o seu. Segundo Iser, o equilíbrio entre texto e
leitor só pode ser alcançado pelo preenchimento dos vazios deixados pelo autor, que
por serem constitutivos são constantemente ocupados por projeções. No entanto, tal
interação poderá fracassar, o que significa, segundo Iser, que o leitor realizou:
o preenchimento do vazio exclusivamente com as próprias projeções. Como,
entretanto, o vazio mobiliza representações projetivas, a relação entre texto e
leitor só pode ter êxito mediante a mudança do leitor. (Iser, 1979:88)
Esta mudança, da qual fala Iser, refere-se ao deslocamento do leitor para uma
posição que possibilite o vislumbramento de outros aspectos como possíveis. Isto quer
dizer que o leitor não pode “modificar” um escrito de acordo com suas próprias
acepções, “lendo” apenas o que quer ler, pois uma obra literária abre-se a múltiplos
sentidos dentro de um dado limite, imposto pelo próprio texto
10
. Água Viva, além de
10
Tal teoria aproxima-se da posição de Umberto Eco sobre as questões que tornam uma “obra
aberta”, mas indissociavelmente ligadas ao que ele chama de “intenção do texto“: “A leitura das
obras literárias nos obriga a um exercício de fidelidade e de respeito na liberdade da interpretação.
Há uma perigosa heresia crítica, típica de nossos dias, para a qual de uma obra literária pode-se
fazer o que se queira, nelas lendo aquilo que nossos mais incontroláveis impulsos nos sugerirem.
Não é verdade. As obras literárias nos convidam à liberdade da interpretação, pois propõem um
discurso com muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambigüidades da linguagem e da
vida. Mas para poder seguir neste jogo, no qual cada geração lê as obras literárias de modo
diverso, é preciso ser movido por um profundo respeito para com aquela que eu, alhures, chamei
de intenção do texto” (Eco, 2003:12).
67
convidar o leitor para “participar do jogo”, sugere que ele se “mude” para a esfera
construída pela escritura:
Preste atenção e é um favor: estou convidando você para mudar-se para
reino novo. (AV, 52)
De que maneira, porém, pode-se estabelecer um limite entre a “liberdade
interpretativa” e a “imposição das próprias projeções do leitor”? Ora, se numa
interação com interlocutores in loco há a possibilidade do equívoco, isto é, de não
compreender o sentido das palavras do outro, o que acontece então com o livro,
uma vez que não é possível perguntar ao texto o que ele está querendo dizer?
Este mesmo questionamento abordou Umberto Eco:
Na comunicação face a face intervêm infinitas formas de reforço
extralingüístico (gestual, ostensivo e assim por diante) e infinitos
procedimentos de redundância e feedback, um em apoio ao outro. O que
acontece, porém, com um texto escrito que o autor gera e confia a múltiplos
atos de interpretação, como uma mensagem na garrafa? (Eco, 2004:39)
Para responder a esta questão, Eco utiliza-se da noção de cooperação
mútua entre o autor (que desenvolve e organiza a própria estratégia textual) e o
Leitor-Modelo (que de certa forma deve ser previsto e construído pelo autor):
Para organizar a própria estratégia textual, o autor deve referir-se a uma
série de competências que confiram conteúdo às expressões que usa. Ele
deve aceitar que o conjunto de competências a que se refere é o mesmo a
que se refere o próprio leitor. Por conseguinte, preverá um Leitor-Modelo
capaz de cooperar para a atualização textual como ele, o autor, pensava, e
de movimentar-se interpretativamente conforme ele se movimentou
gerativamente. (Eco, 2004:39)
Além de pressupor o Leitor-Modelo, Eco acredita que o autor também deve
instituí-lo, pois “prever o próprio Leitor-Modelo não significa somente ‘esperar’ que
exista, mas significa também mover o texto de modo a construí-lo” (Eco, 2004:40).
68
De qualquer forma, mesmo com toda “colaboração” do autor para construir
um Leitor-Modelo, nem aquele o autor nem o leitor poderão ter a certeza de
que seus esforços foram compreendidos. Isto significa que o autor nunca saberá
se os caminhos que construiu foram vislumbrados, assim como o leitor nunca
tirará do texto a certeza de que os itinerários que percorreu não se perderam em
atalhos:
o texto não pode sintonizar, ao contrário do parceiro na relação diádica, com
o leitor concreto (...) O leitor nunca retirará do texto a certeza explícita de
que a sua compreensão é a justa. (Iser, 1979:87)
Esta incerteza do leitor (e também do autor) gera uma relação assimétrica,
conforme elucida Iser
11
, na qual o leitor é levado a preencher os vazios. Porém é
justamente esta relação, segundo o teórico, que origina a comunicação no
processo de leitura. De acordo com Iser, esta assimetria é fundamental, pois são
os “vazios”, o “não-dito”, que envolvem o leitor, de modo que este “é jogado” para
dentro de uma obra. Clarice, em sua Água Viva, parece ter “adivinhado” o
pensamento de Iser:
Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo.
Você tornou-se um eu. É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser
ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós
dois? Dificílimo contar (...). Houve o que se chama de comunhão perfeita.
(AV, 49, 50)
Este trecho parece pressupor que a escritura já possibilitou uma
comunicação bastante forte com o leitor, o que fez com que este tivesse se
tornado um co-autor. No entanto, reafirma a dificuldade de expressão e de
comunicação, o que aponta para a relação assimétrica entre os agentes, que
11
“São os vazios, a assimetria fundamental entre texto e leitor, que originam a comunicação no
processo da leitura” (Iser, 1979: 88).
69
apesar do silêncio, possibilitará, como numa “comunhão perfeita”, uma leitura
ideal. É claro que esta leitura “ideal” irá depender do leitor, que além de preencher
os vazios, deve ser capaz de compreender a maneira como a língua é usada, isto
é, o leitor deve estar atento para os recursos de linguagem utilizados pela autora.
Umberto Eco atenta para pressupostos
12
sobre a relação que se estabelece
em uma obra literária entre o autor e o texto. Para este autor, qualquer que seja a
natureza da mensagem, há nela um postulado de competência gramatical por
parte do destinatário. Isto significa dizer que o desempenho do leitor junto ao texto
é mais acentuado quando ele se relaciona com o leque de possibilidades que
uma só palavra pode evocar, inclusive com aqueles sentidos que o dicionário não
menciona, pois novas possibilidades de interpretação podem ser geradas por
extensão de sentido, por metaforização ou por outro processo natural de uma
língua, que se movimenta por causa das experimentações e dos usos ao longo
dos tempos e da sua história etimológica.
Além desta competência pressuposta no leitor (de uma dada obra), caberia
também a ele cumprir outra exigência do texto: “atualizar-lhe o conteúdo através
de uma série complexa de movimentos de cooperação.” (Eco, 2004: 36)
É interessante notar que Eco desenvolveu uma perspectiva de observação
do leitor que se assemelha em certos aspectos a Iser. Eco constrói a noção de
Leitor-Modelo que se correlaciona com a de Leitor implícito de Iser:
Esse tipo de leitor é o que eu chamo de Leitor-Modelo - uma espécie de tipo
ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar.
Um texto que começa com “Era uma vez” envia um sinal que lhe permite de
12
(1) As competências lingüísticas do autor e do leitor; (2) Os elementos extrínsecos: a história, o
contexto; o sociocultural; (3) O tipo de texto, o tipo de leitor, o tipo de leitura; (4) Os movimentos de
cooperação; (5) Os elementos extralingüísticos. Umberto Eco trata destes pressupostos nas
seguintes obras: Lector in Fabula e Seis passeios pelo bosque da ficção.
70
imediato selecionar seu próprio leitor-modelo, o qual deve ser uma criança
ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar algo que extrapola o sensato
e o razoável. (Eco, 2004:16)
Outro aspecto correlato entre as idéias de Iser e Eco é o espaço vazio, ou o
não-dito, deixado pelo autor e preenchido pelo leitor, tornando um jogo dinâmico
que deve haver a cooperação de ambos os agentes.
O texto está, pois, entremeado de espaços brancos, de interstícios a serem
preenchidos, e quem o emitiu previa que esses espaços e interstícios
seriam preenchidos e os deixou em brancos por duas razões. Antes de
tudo, porque o texto é um mecanismo preguiçoso (ou econômico) que vive
da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu (...). Em segundo
lugar, porque, à medida que passa da função didática para a função
estética, o texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa, embora
costume ser interpretado com uma margem suficiente de univocidade. Todo
texto quer que alguém o ajude a funcionar. (Eco, 2004:37)
Se os espaços em branco costumam ser interpretados com uma certa
“univocidade” é porque, neste caso, a interação se deu com leitores-modelos, ou
leitores-implícitos, que colaboraram para a interpretação que seria a “esperada”,
isto é aquela para qual os caminhos do texto devem se empenhar em guiar.
Como vimos, anteriormente, Clarice dá pistas, indica caminhos de
interpretação, sugere atalhos em Água Viva. Além disso, suscita maior
envolvimento daquele que lê por meio do apelo que se faz à sua afetividade.
Clarice constrói um texto que busca não só a compreensão do leitor, mas também
sua simpatia, pois, desta maneira, o texto passaria a ser de ambos:
Das palavras deste canto, canto que é meu e teu, evola-se um halo que
transcende as frases, você sente? (AV, 44) [grifo nosso]
É indizível o que me aconteceu em forma de sentir: preciso depressa da tua
empatia. Sinta comigo. Era uma felicidade suprema. (AV, 79) [grifo nosso]
Por meio deste convite, que também busca a compreensão do leitor, Clarice
apela para os sentidos e para um tipo de percepção ao sensível que “transcende”
71
a língua em função de expressar aquilo que é “indizível”. Desta forma, busca levar
o leitor à experimentação de sensações, a princípio, impossíveis de serem
percebidas por intermédio da língua. Para isto, a autora utiliza os recursos da
“inexpressão”, que colaboram tanto para um maior envolvimento do leitor, como
também para a “construção” do leitor-ideal ou modelo deste texto.
CAPÍTULO IV
A INEXPRESSÃO EM ÁGUA VIVA
Clarice Lispector extrapola os limites da língua verbal para justamente
exprimir uma certa realidade. Certamente, não importa se se trata da chamada
“realidade real”, ou, ainda, verossímil, pois não se busca afirmar a veracidade
desta realidade, e, sim, compreender como a linguagem pode provocar em
tantos leitores não só a sensação de se estar lendo o próprio real, mas,
sobretudo, o efetivo conhecimento de uma realidade que escapa à língua.
Logo, o que parece, neste caso, interessar são os itinerários para criação deste
tipo de percepção e não o questionamento se, de fato, o “narrado” aconteceu
ou não.
Como vimos no capítulo II, Clarice Lispector deu novos rumos à crítica
literária brasileira ao instaurar uma novidade no plano da linguagem. Tais
procedimentos podem ser encontrados ao longo de suas obras, contudo
parece ser em Água Viva que se encontram, de maneira sensível, certos
traços de sua escritura e de sua ficção, já mencionados anteriormente: 1)
dilema entre linguagem e existência; 2) evocação do Mal; 3) subversão do
73
tempo cronológico; 4) escrita plástica; 5) escrita que não se encerra na
norma culta da língua e 6) uso de elementos típicos do poema.
Desta maneira, apresentaremos uma análise dos recursos de
“inexpressão”, seja sob o aspecto forma, seja sob a perspectiva temática, pois
o conjunto de tais procedimentos faz de Água Viva um dos textos mais
inquietantes da literatura brasileira.
4.1 - O “Ser” e o “Dizer”: a existência na linguagem
Para tornar as palavras mais próximas da plenitude, seja de um instante
observado, seja de um pensamento, seja de uma sensação, a autora utiliza
elementos sinestésicos, fazendo evocar aromas, paisagens, sonhos, imagens,
pinturas. Ao mesmo tempo, usa construções tipicamente orais; muda de
assunto sem “qualquer cerimônia”; retoma um tema aqui e outro ali formando
blocos fragmentados. Assim, é criada a impressão de que se escreve
distraidamente, sobre o agora, como se dados fatos narrados estivessem
acontecendo literalmente no “exato instante da escrita
1
”. Observemos os
seguintes fragmentos do texto Água Viva:
Escrevo-te na hora mesma em si própria (AV, 24).
Estas minhas frases balbuciadas são feitas na hora mesma em que
estão sendo escritas e crepitam de tão novas e ainda verdes (AV, 25)
1
De acordo com Sônia Roncador, o manuscrito “Objeto Gritante” apresentava inúmeras
passagens que retratavam acontecimentos da vida pessoal de Clarice. Não é, porém, objetivo
deste trabalho relacionar questões biográficas de Clarice a sua obra Água Viva, e sim atentar
para a maneira como a autora transforma fatos pertencentes a um universo subjetivo e
intrínseco para o extrínseco por meio da linguagem.
74
Primeiramente, cabe notar a estruturação das frases. O primeiro trecho
inicia-se por uma construção idiomática padrão (“Escrevo-te”), e continua com
um tipo de diferente pleonasmo (“hora mesma em si própria”), não pela forma,
mas em razão das idéias de personificação, individualidade e introspecção que
vincula à hora. Além disso, é válido atentar que a frase é dirigida a um “tu”, o
que intensifica a atmosfera de diálogo. No segundo segmento, a palavra
“balbuciadas” reitera a forma expressional do que é incipiente, uma vez que o
balbucio é treino da fala articulada, é “puro som” que antecede à língua. Vale
notar a sonoridade que se obtém com a seqüência “escritas e crepitam”.
Sob a perspectiva temática é como se a narradora estivesse realmente
vivendo o momento descrito. Por isso existe um conflito intrínseco no texto:
viver o instante ou tentar descrevê-lo através da palavra. Esta tentativa, de
descrição plena de um momento, é observada na obra, uma vez que, para a
narradora, esse é o drama da linguagem
2
: viver ou exprimir a totalidade da
experiência vivida. Sua busca consiste em imprimir os momentos no papel no
mesmo instante em que acontecem. Desta maneira, não há distância entre a
escrita e o acontecimento pois a escrita é o próprio acontecimento.
Eu viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago,
acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está
sendo agora transposto na escrita, o desespero das palavras ocuparem
mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero o
seu fluxo (AV, 15).
Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever.
Esse é o modo de não haver defasagem entre o instante e eu: ajo no
âmago do próprio instante. Mas de qualquer modo há alguma
defasagem (AV, 49).
2
O Drama da Linguagem: uma leitura de Clarice Lispector é o título do livro de Benedito
Nunes, no qual ele faz uma leitura do conjunto da obra da ficcionista, detendo-se sobre a
questão da escritura e da existência.
75
Segundo Benedito Nunes, Clarice cria, em Água Viva, um embate, por
meio da linguagem, entre a palavra e sua impossibilidade de expressar a
plenitude de dados sentimentos, isto é, entre o “ser” e o “dizer”. Para o filósofo,
esta perda é o que mantém a escrita clariceana à beira do indizível
3
. Desta
maneira, a autora procura recriar uma realidade lingüística ficcional capaz de
produzir um sujeito que é apenas voz, pura denúncia do fracasso da linguagem
diante do real. Uma voz sufocada que, de tempos em tempos, se sobrepõe aos
silêncios que oscilam entre o ser e o escrever, entre o dizer e o não-dizer. A
narradora apresenta a consciência da problemática da linguagem no que se
refere a sua insuficiência para expressar dados estados da “alma”, para
exprimir certos sentimentos difíceis, ou até impossíveis, de serem expressos:
Mas agora quero ver se consigo prender o que me aconteceu usando
palavras. Ao usá-las, estarei destruindo um pouco o que eu senti - mas
é fatal. (AV, 81)
Então, a solução parece ser justamente “inexprimir”, não usando a dura
“seara das palavras
4
” convencionalmente, uma vez que através da inexpressão
busca-se uma comunicação exata daquilo que se pretende comunicar:
Pássaros - eu os quero nas árvores ou voando longe das minhas mãos.
Talvez certo dia venha a ficar íntima deles e a gozar-lhes a levíssima
presença de instante. “Gozar-lhes a levíssima presença” dá-me a
sensação de ter escrito frase completa por dizer exatamente o que é:
levitação dos pássaros. (AV, 45, 46)
Se a natureza da língua é a de exprimir e o fracasso do exprimir “trai” a
natureza da linguagem, então “inexprimir” é o meio que Clarice utiliza para
3
“(...) para a narradora de Água Viva, desincorpora-se do tom dos sentimentos infinitos a
presença finita do ‘Instante’ contra o qual se debate o ato de escrever, maximamente agônico,
antecipadamente fadado ao silêncio ao fracasso existencial que o detém à beira do indizível.”
(Nunes, 1995:159)
4
Expressão usada no livro Água Viva, página 11.
76
forçar a língua a dizer aquilo que o uso e a expressão comuns não permitem.
Cabe observar que neste trecho, Clarice constrói um percurso de sentidos
(pássaros, liberdade, vôo, intimidade, gozo, leveza, instante) para que no
desfecho (“levitação dos pássaros”) o clímax e a compreensão “exata” possam
ser alcançados de forma mais intensa. Esta busca por capturar e escrever “o é
da coisa” (AV, 09) faz com que a irremediável dependência do homem em
relação à linguagem seja ”enfrentada”, na medida em que a autora cria um
discurso de paradoxo, no qual a “inexpressão” se vale tanto de palavras quanto
de silêncios:
Minha voz cai no abismo do teu silêncio. Tu me lês em silêncio. Mas
nesse ilimitado campo mudo desdobro as asas, livre para viver. (AV, 51)
Deixo oculto o que precisa ser oculto e precisa irradiar-se em segredo.
(AV, 59)
É no ilimitado campo do silêncio da linguagem e também do leitor que
o sentido se “desdobra”. Água Viva situa-se no limite entre o dizer sob a
forma das estruturas lingüísticas e o ser, profundo vazio que talvez nenhuma
palavra possa traduzir. Esse é o território em que a escritura da referida obra
se desenha, buscando, por meio da escrita, significar esse silêncio, tentativa
retomada em uma circularidade narrativa. Observemos as palavras de Júlio
César de Bittencourt Gomes acerca deste assunto:
Sob o aspecto da palavra como um meio de expressão do silêncio, Água
Viva talvez seja o texto mais perfeito de Clarice Lispector, pois ao
mesmo tempo em que constitui o auge do paradoxo que funda sua
escrita (só através da palavra é que o silêncio pode ser dito), também é
o momento de resolução do paradoxo, através da abdicação do desejo
de relatar o mundo. O mundo, então, com tudo o que ele contém, passa
a ser, simplesmente, sem explicações: “É-se. Sou-me. Tu te és” [trecho
de Água Viva entre aspas]
77
A renúncia em relatar o mundo se estabelece na medida em que a
narradora não utiliza um registro lingüístico usual para registrar um mundo
observável e “real”, pois o mundo de Clarice é outro, a realidade que ela cria na
ficção é uma outra, que parece escapar à apreensão da língua. Assim, Clarice
imprime à linguagem a mesma materialidade do real, isto é, a realidade passa
a ser criada pela palavra, uma vez que a escrita é o próprio acontecimento, o
próprio real:
Não, isto tudo não acontece em fatos reais mas sim no domínio de de
uma arte? sim, de um artifício por meio do qual surge uma realidade
delicadíssima que passa a existir em mim: a transfiguração me
aconteceu. (AV, 19)
Clarice cria uma realidade inventada, atingida por meio de um estado
“onírico”, que a voz da narradora faz transparecer: “O real eu atinjo através do
sonho. Eu te invento realidade” (AV, 68). Do mesmo modo, faz crer que o real é
transformado por ela, e, esta nova realidade que se produziu é justamente
aquela que criará a narradora: “Transfiguro a realidade e então outra realidade,
sonhadora e sonâmbula me cria” (AV, 21). Essas referências ao estado de
“sonho”, que “transfigura a realidade” da narradora, reitera a estruturação
temática do texto, na qual pode ser notada a seqüência de pensamentos, de
idéias vagas, mais ou menos agradáveis, mais ou menos incoerentes, às quais
a narradora se entrega em estado de vigília. No “sonho” não se tem controle
sobre os acontecimentos que transcorrem, assim a personagem narra sua
realidade “sonâmbula” pois essa parece ser a única maneira de se alcançar o
“intangível do real” (AV, 12) criado por meio da palavra.
Minha forma interna é finalmente depurada e no entanto o meu conjunto
com o mundo tem a crueza nua dos sonhos livres e das grandes
realidades. Não conheço a proibição. (AV, 37)
78
O que, no entanto, buscaria a autora ao evocar as “realidades do sonho”?
No sonho, não estão presentes os limites impostos pelas regras da sociedade
e do mundo real, neste estado não há espectadores tampouco os possíveis
julgamentos advindos destes indivíduos. Neste sentido, o sonho possibilita a
liberdade de se criar as “grandes realidades”. É dentro desta liberdade que
Clarice constrói uma escrita também livre, que transgride o sentido gregário de
mundo, ao causar, por exemplo, emoções variadas, até antitéticas, como
fascínio e horror, como por exemplo, evocando o Mal por meio de uma
linguagem “diabólica”.
4.2 A temática do mal: o caráter diabólico na linguagem
Clarice Lispector insere reflexões sobre a perversidade, o crime, a
punição, o ódio, a culpa e o mal como temas recorrentes em crônicas, contos,
romances e até mesmo em livros que dedicou ao público infantil. Na crônica
Uma Ira
5
, a vontade de destruir, a violência, o ódio aparecem como resultado
de um amor não correspondido ou da incapacidade de amar? de um
narrador que clama que sua ira transforme-se em perdão. Em Felicidade
Clandestina, a narradora uma menina “imperdoavelmente bonitinha, esguia,
altinha, de cabelos livre experimenta a “ferocidade”, as “humilhações”, a
“tortura” e a “perversidade” de uma outra criança, que por puro “sadismo”
5
Tal crônica encontra-se na coletânea Para Não Esquecer, editada pela Rocco.
79
engana a menina “sem posses” apaixonada por livros e fascinada pela
possibilidade de ler As Reinações de Narizinho. Em Perto do Coração
Selvagem, a protagonista Joana é “dotada de uma força interna reconhecida
por ela e pelos que a cercam como maligna” (Martins, 1997:49). Em O Lustre,
os irmãos que protagonizam o romance experimentam o mal, ora como vítimas,
ora como agentes. De acordo com Martins, “nas brincadeiras de infância o
menino exercita sua maldade com jogos perversos que denunciam o abuso do
poder de que se sabe possuidor” (1997:50). Nos livros infantis Quase de
verdade e A mulher que matou os peixes, os narradores
6
falam, embora de
maneira mais sutil, sobre maldade, sacrifício, morte, destruição, inveja,
vingança e escravidão.
Inúmeros são os exemplos que poderiam ser citados, dada a recorrência
de temáticas de caráter maligno ao longo da produção de Clarice:
E multiplicam-se indefinidamente os desdobramentos da temática do
mal na produção da autora, sempre retomados mas revistos, matizados
por novas perspectivas, numa espécie de exercício de escalas que
impede reducionismos forçados e generalizações fáceis mas
falseadoras. (Martins, 1997, 49)
O que parece, no entanto, diferenciar outras obras de Água Viva é o fato
de que naquelas a maldade, a dor, os crimes são contextualizados dentro de
um enredo, e, se justificam diante de argumentos, sejam do narrador, sejam
dos personagens. Assim, o leitor é levado a “compreender” as circunstâncias
de perversidade, mesmo que estas se refiram à natureza dos personagens ou
de dado acontecimento. Em Água Viva, porém, a temática do mal está ligada a
um certo caráter diabólico da linguagem, sem que sejam “explicados” os
6
Cabe notar que o narrador de Quase de verdade é um cachorro.
80
motivos de tais ocorrências, uma vez que não há uma trama e os trechos
sombrios simplesmente se articulam a outras temáticas, inclusive aprazíveis.
Em um fragmento específico, a autora parece indicar uma orientação para a
leitura deste tema, ao, após criar uma cena de sortilégio, se dirige ao leitor,
fazendo transparecer que para que haja um diálogo, é necessário que os
interlocutores se “deixem ser”:
A mão verde e os seios de ouro é assim que pinto a marca de Satã.
Aqueles que nos temem e à nossa alquimia desnudavam feiticeiras e
magos em busca da marca recôndita que era quase sempre encontrada
embora só se soubesse dela pelo olhar pois esta marca era indescritível
e impronunciável mesmo no negrume de uma Idade Média Idade
Média, és a minha escura subjacência e ao clarão das fogueiras os
marcados dançam em círculos cavalgando galhos e folhagens que são o
símbolo fálico da fertilidade: mesmo nas missas brancas usa-se o
sangue e este é bebido. Escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser então.
(AV, 24)
O Mal em Água Viva parece estar ligado à transgressão da
linguagem e do sentido gregário do mundo, uma vez que a perspectiva
da narradora relaciona-se, como vimos, a uma outra realidade “ligada a
crueza dos sonhos livres” que “não conhecem proibição” para a
atividade criadora:
O uso da liberdade e do livre-arbítrio aparece questionado por
Clarice como possibilidade comportamental no plano da vida e da
arte e a potencialidade maligna, dirigida para o fazer artístico,
confere-lhe também uma dimensão transgressora: somente a
imaginação “tem a força do mal”, pois (...) para Clarice criar é
transgredir, é possibilidade e meio de ruptura com o estabelecido.
(Martins, 1997:50)
Clarice transgride a “ordem” do mundo, uma vez que o que ela cria
é um outro mundo: regido pela arte e pela imaginação. Em Água Viva,
pode-se perceber a mesma liberdade transgressora que Guimarães Hill
7
7
O Sistema Original de Clarice Lispector. Tempo Brasileiro, (48): 61, jan.-mar., 1977.
81
observou em A Paixão segundo G.H.: “a assunção da liberdade implica
transgressão da Ordem, desde que o ato que ela contém esteja fora do
campo noético do código estabelecido.” A noese, na Fenomenologia, é o
aspecto subjetivo da vivência, constituído por todos os atos que tendem
a apreender o objeto: o pensamento, a percepção, a imaginação. Deste
modo, ao transgredir o comportamento social tido como moralmente
aceito, Clarice desarticula as bases psicológicas, sociais e culturais do
leitor, levando-o a experimentar de outra forma o mundo criado por ela.
O que Clarice causa no leitor é a multiplicidade de emoções, dado o
estado impactante que sua narrativa é capaz de produzir, ao criar uma
realidade onde o Bem e o Mal, o fascínio e o horror coexistem numa
mesma natureza:
Um mundo fantástico me rodeia e me é. Ouço o canto doido de um
passarinho e esmago borboletas entre os dedos. Sou uma fruta roída
por um verme. (AV, 61)
E vejo que sou intrinsecamente má (AV, 65)
Meu anjo aleijado que se desajeita esquivo, meu anjo que caiu do céu
para o inferno onde vive gozando o mal. (AV, 67)
Por que o horrível terrível me chama? que quero com o horror meu?
porque meu demônio é assassino e não teme castigo: mas o crime é
mais importante que o castigo. Eu me vivifico toda com meu instinto feliz
de destruição. (AV, 69)
Clarice Lispector choca a expectativa do leitor com segmentos que
simplesmente comprovam um “fato” e um “gosto”, ambos ligados ao mal (“sou
uma fruta roída por um verme; vejo que sou intrinsecamente má; onde vive
gozando o mal; eu me vivifico toda com meu instinto feliz de destruição”). O
estranhamento que é capaz de causar se intensifica, ainda, mais pela escolha
e combinação das palavras. A autora mescla vocábulos, em geral, ligados a um
82
imaginário aprazível (mundo fantástico; céu; canto; feliz); faz uso da forma
diminutiva (passarinho), que costuma estar ligada à afetividade; combina as
palavras e seus significados de forma não usual (canto doido; anjo aleijado;
instinto feliz de destruição). Em contrapartida, Clarice ameniza, através da
linguagem, a estranheza do tema, assim a sensação de horror se contrapõe a
trechos “delicados”, que exprimem um ser repleto de benevolência:
O Deus, como estou sendo feliz. (AV, 61)
É apenas por pura bondade que sou boa. (AV, 65)
Depois a madrugada vem com seu bojo de passarinhos barulhando.
(AV, 65)
A aura do corpo em plenilúnio. (AV, 67)
Ah Força do que existe, ajudai-me, vós que chamam de o Deus.
(AV, 69)
O mesmo tom afável destes trechos também pode ser encontrado em
inúmeras outras passagens, nas quais beleza, simplicidade e singeleza de
cenas são ressaltadas (a chegada da madrugada, o som dos passarinhos, a
lua cheia para representar a grandeza da aura). O que, no entanto, é curioso
notar é que estes segmentos encontram-se nas mesmas páginas dos
fragmentos soturnos citados anteriormente. Esta mistura de atmosferas
intensifica a naturalidade com a qual o Mal é experimentado pela narradora. Tal
procedimento também pode ser notado em A Paixão segundo G.H., romance
no qual, segundo Costa Lima
8
, “a matéria viva, o demoníaco são declarados
com a simplicidade que seria de se esperar se o personagem perguntasse
pelas horas”. Em Água Viva, porém, a autora parece pretender confundir e
8
A Mística ao revés de Clarice Lispector. Por que literatura. Petrópolis: Vozes, 1969, p. 110.
83
fazer vacilar as crenças do leitor, pois, se, por um lado, constrói uma linguagem
diabólica, por outro, e logo em seguida, é capaz de falar do amor:
Eu me aprofundei em mim e encontrei que eu quero vida sangrenta (...).
A liturgia dos enxames dissonantes dos insetos que saem dos pântanos
nevoentos e pestilentos. Insetos, sapos, piolhos, moscas e percevejos
(...). E minha fome se alimenta desses seres putrefatos em
decomposição. (...) Bebo um gole de sangue que me plenifica toda (...)
de repente chorava. Já era amor. (AV, 38, 39)
A constante reiteração e retomada do “Bem” e do “Belo” como temas não
parecem apontar para um pedido de desculpas. A narradora não pede perdão
por, também, ser má; na verdade, ela intensifica a dualidade que reside em seu
ser sem culpas, e, atenta para aquilo que permitirá a compreensão do ato de
transgredir: a liberdade (“Escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser então”. AV, 24).
Neste caso, sua redenção consiste na aceitação, por parte do leitor, de sua
ambigüidade, além disso, a narradora deixa claro um pedido de ajuda à Força
que chamam de Deus
9
. Tal súplica clamaria por salvação ou pela transmutação
de sentimentos tão conflitantes, assim como ocorre na crônica Uma Ira?
9
Neste mesmo instante estou pedindo ao Deus que me ajude. Estou precisando. Precisando
mais do que a força humana. Sou forte mas também destrutiva. O Deus tem que vir a mim já
que eu não tenho ido a ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha.
(AV, 51)
84
4.3 O “instante-já” e a escrita: tentativa de captação do fugidio pela
palavra
O tempo ficcional é objeto de estudo e análise muito amplo, sendo difícil
abranger tão diversa bibliografia. Na tentativa de delinear o modo como se dá a
questão da (a)temporalidade em Água Viva, nos ateremos a algumas idéias
que colaboram para a compreensão desta problemática na referida obra.
Pode-se dizer que Pouillon, Mendillow e Meyerhoff acreditam que “o
tratamento literário do tempo sofreu profunda e decisiva influência do
“vitalismo” existencial de Bergson e do romance de Proust” (Sá, 1979:90).
Segundo Olga de Sá, a “decisiva influência” de Bergson sobre a noção de
tempo se realizou sobre o pensamento positivista do século XIX, aplicado por
Spencer às ciências humanas, cujo desencadeamento das ações estaria
sujeito “às leis de um tempo quase estático, porque cronológico” (SÁ, 1979:91).
Bergson desenvolveu o conceito de “durée”, cuja idéia identifica o tempo com o
fluir da consciência e do sensível, “cujo ritmo é o próprio ritmo da vida” (Sá,
1979:91).
Pode-se dizer que dentro desta perspectiva de tempo se insere a obra
Água Viva de Clarice Lispector uma vez que é o “encadeamento das idéias,
seja dos personagens, seja dos narradores, que produz a noção de duração”
(Sterne
10
, 1950:150). Desta maneira, “passado e presente já não são se
separam estanques, mas o primeiro se atualiza no segundo, pelo processo de
10
“The idea of duration, and of its simple modes, is got merely from the train and succession of
our ideas.” Sterne, Lawrence. The life and the opinions of Tristram Shandy Gentleman.
85
associação de idéias, verdadeira teia responsável pela estruturação da
narrativa” (Sá, 1979:93). Nem só o passado se atualiza no presente, mas
também o futuro é trazido para o instante da escrita: “sou um ser concomitante:
reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no
tique-taque dos relógios” (AV, 21). De acordo com Massaud Moisés, Clarice
busca, em suas narrativas, apreender o fluxo temporal:
Clarice Lispector representa na atualidade brasileira (e mesmo
portuguesa) a ficcionista do tempo por excelência: para ela, a grande
preocupação do romance (e do conto) reside no criar o tempo, criá-lo
aglutinado às personagens. Por isso correspondem suas narrativas a
reconstruções do mundo não em termos de espaço, mas de tempo,
como se, aprendendo o fluxo temporal, elas pudessem surpreender a
face oculta e imutável da humanidade e da paisagem circundante.
(Moisés, 1967:192)
A procura pela fixação do oculto e do visível produz um tempo,
simultaneamente, demorado e instantâneo, uma vez que a escrita clariceana
ao criar um dado objeto imprime neste objeto características que só poderiam
ser aprendidas ao longo do tempo. Costa Lima, ao analisar Laços de Família,
diz que:
Clarice Lispector projeta um olho simultaneamente demorado e
instantâneo, como se se tratasse de uma máquina apta a fixar as
mínimas oscilações de um corpo animal, ao mesmo tempo que a sua
ótica se projetasse para dentro, captando a sua evolução e as suas
reações íntimas. (Costa Lima, 1997:549)
A questão do tempo ficcional em Clarice Lispector, quando abordada pela
crítica, é verificada sobretudo no romance de estréia da autora. Olga de Sá
11
,
por exemplo, dedica vinte e seis páginas à análise do tempo em Perto do
Coração Selvagem, e, apenas, quatro páginas para considerações gerais sobre
o tempo em A Cidade Sitiada, A Maça no Escuro, A Paixão segundo GH, Uma
11
A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.
86
aprendizagem ou o Livro dos Prazeres e Água Viva. Não se pretende aqui
esgotar o referido assunto, uma vez que o mesmo poderia ser objeto de análise
de uma tese, dada a complexidade e a possível articulação com outros temas.
No entanto, faz-se necessário uma elucidação acerca deste assunto uma vez
que o mesmo tem importante papel no que tange à estruturação da escritura
desta obra.
O tempo ficcional em Água Viva se dá pela mescla do tempo cronológico
ao tempo psicológico, já que a história deste livro é simplesmente a fala de um
“eu” que, por meio de um monólogo, conta memórias, descreve fatos,
pensamentos, sensações, cria imagens, narra sonhos e confissões. Enfim, a
narradora “fala o tempo todo”. Esta fala é preenchida (1) por acontecimentos
“reais”, que ocorrem tanto no presente, como passado ou futuro; e (2) por
pensamentos que se articulam misturando e desordenando a “ordem natural
das coisas”. Assim, Clarice imprime neste texto dois movimentos distintos e
também paradoxais. Se por um lado, a narradora de Água Viva pretende dizer
as coisas ao mesmo tempo em que tais coisas acontecem ou são lembradas,
ou, ainda, pretendidas para um momento futuro; por outro, seu esforço é o de
que a escrita possa criar o próprio acontecimento como num ato contínuo.
A mistura de tempos, inclusive verbais
12
, possibilita um texto fluido pois,
embora inúmeros assuntos sejam tratados, de forma fragmentada, elos são
criados entre as cadeias temáticas de modo que fazem lembrar uma conversa
casual ou ainda “quando uma pessoa se distrai, refletindo” (Sá, 1979:94). Esta
fluidez textual, presente em Água Viva, assemelha-se à fluidez do pensamento,
12
O termo “verbais” é aqui usado com o sentido de flexão de tempo e modo, isto é, referente a
pretéritos, presente e futuro.
87
onde presente, passado, futuro se mesclam a realidades, fantasias, raciocínios,
sonhos, imagens, lembranças, acontecimentos e tantos outros caminhos que a
mente humana possa encontrar:
O tempo experimentado pela mente humana tem a qualidade de fluir, e
embora os momentos sucessivos se escoem, constantemente, o fluir
perdura, no seio da própria mudança. Este aspecto se liga à dimensão
psicológica da memória, como instrumento de registro dinâmico dos
acontecimentos. (Sá, 1979:99)
O dinamismo deste texto reporta ao tempo dos acontecimentos no mundo, cujo
menor fragmento é o “instante-
13
”, problematizado como um instante fugidio,
impossível de se captar. Uma imagem, que exemplifica a natureza do “instante-
já”, é a de uma estrela cadente e do pedido feito a ela, sempre após seu
desaparecimento, pois tão rápida é sua aparição e sumiço, que o pedido à
estrela vem no instante seguinte, o que seria, sob a perspectiva da narrativa,
um outro instante-já, pois aquele da estrela já foi, não é mais instante, é
passado:
Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga.
O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade
toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou,
tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado
(AV, 15).
A questão dos instantes que transcorrem é explorada no texto estando
irremediavelmente interligada com a questão da linguagem como não sendo
capaz de dar conta da experiência. Assim, tentar captar e transmitir a essência
de um instante, por meio da palavra, é um “desafio” desta ‘escritura’, na qual se
constrói e desconstrói tal possibilidade ao longo de todo o texto. A autora
utiliza-se da descontinuidade textual como um princípio narrativo, isto é, não
13
Expressão utilizada na obra Água Viva para representar a palavra ‘instante’ com sentido
ainda mais efêmero do que aquele utilizado usualmente.
88
há o desenrolar de um tema, e sim de diferentes temáticas. Os temas se
ligam ora de forma coesa, ora de forma completamente desconexa. As
“mudanças de assunto” são tão abruptas que desconcertam o leitor. Tal
aparente desordem temática se assemelha a um pensamento livre, cuja
memória é afetada por processos de “condensação” e “deslocamento”:
(...) A memória também [sofre os processos de condensação e
deslocamento]. De tal forma, que os fatos lembrados se confundem e se
interpenetram e embora exista uma ordem subjacente subjetiva, essa
ordenação parece caótica e confusa, comparada com a ordem do tempo
cronológico. Na duração do tempo interior existe certamente uma lógica
interna, que representa, antes, uma espécie de ilogismo. Ninguém se
lembra das coisas linearmente. (Sá, 1979:99)
Quando pensamos “distraidamente”, sem propósitos racionais, nossa
linha de raciocínio costuma se perder em outros pensamentos, seja por causa
de um cheiro, da visão de alguma coisa que nos remete a uma lembrança ou
por causa de diferentes fatores que nos fazem dispersar continuamente. Este
movimento que se relaciona com o ato de pensar, imprime na narrativa a
subjetividade de quem narra, assim, a estruturação do texto não poderia ser
objetiva e cronológica, pois está carregada dos estados subjetivos da
narradora. De acordo com Hans Meyerhoff: enquanto o tempo cronológico é
objetivo, passível de mensuração, por meio de relógios e calendários, o tempo
da experiência pessoal de cada um é relativo e irregular, dependendo
principalmente dos diferentes estados subjetivos (1976: 13,16).
A construção fragmentada de Água Viva possibilita uma aproximação
tanto com o pensamento quanto com a natureza efêmera dos “instantes-já”,
que se sucedem, em tempo “real”, um após o outro. Além disso, por meio dos
inúmeros fragmentos de assuntos intensifica-se a atmosfera de escrita natural;
recurso, nada ingênuo, que transmite ao leitor a sensação de estar lendo uma
89
dada realidade vivida, apreendida, lembrada ou vislumbrada, tendo sido
registradas no momento em que passaram pela lembrança do narrador:
O que falo é puro presente e este livro é uma linha reta no
espaço. É sempre atual, e o fotômetro de uma máquina
fotográfica se abre e imediatamente se fecha, mas guardando em
si o flash. Mesmo que eu diga “vivi” ou “viverei” é presente
porque os digo já. (AV, 17)
O dinamismo deste texto parece expressar realidades fugidias, como a do
instante e a do pensamento, por exemplo. Por outro lado, imprime na escrita
um caráter de continuidade que aspira ser eterno, pois “esta escritura quer
assumir a duração, quer ser uma escritura contínua, como a vida que não pára”
(Sá, 1979:122). Isto pode ser notado, sobretudo, nas duas últimas páginas do
livro:
Ah este flash de instantes nunca termina. Meu canto do it nunca
termina? Vou acabá-lo por um ato voluntário. Mas ele continua em
improviso constante, criando sempre e sempre o presente que é futuro.
(AV, 86)
Tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O
melhor não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas. (AV, 86)
O que te escrevo continua e estou enfeitiçada. (AV, 87)
É com o terceiro fragmento citado que Clarice Lispector finaliza Água
Viva, como se legasse à escritura uma eternidade alcançada, seja pela
entrelinha, seja pela leitura. Olga de Sá lança o questionamento:
O que será esta fala eterna, esta fala sem tempo, senão a fala do
absoluto em dimensões da arte e, especificamente, da literatura? Pelo
menos, é uma possibilidade. Uma possibilidade que o homem tem de
vencer o tempo e a morte. (Sá, 1979:109)
Em Água Viva, o tempo é um “duradouro presente indivisível, em que a
sucessividade e a simultaneidade se fundem no tempo (templo) do Ser”
(Lucchesi, 1987:27). Segundo Lucchesi, é na perspectiva do tempo como
90
instaurador do transitório que se deve compreender o eterno na ficção de
Clarice Lispector, uma vez que, em Água Viva, a eternidade é uma categoria
instaurada pelo fluxo da subjetividade (Lucchesi, 1987:30).
4.4 - Escrita plástica, musical e figurativa
A escrita de Clarice Lispector busca uma aproximação com as outras
artes, desta maneira, a autora utiliza um tipo de composição textual que evoca
qualidades plásticas, visuais e sonoras. Em suas obras é possível perceber
que através da expressão verbal, elementos de natureza não-verbal vão se
agrupando. Em A Maçã no Escuro é possível perceber “uma espécie de talento
visual e plástico, quanto ao modo de criar a paisagem e o ambiente das
personagens
14
”:
E o que Martim viu foi uma estendida planície vagamente em subida.
Muito além começava um declive suave que, pela graça de suas linhas,
prometia deslizar para um vale ainda invisível. E no fim do silêncio do
sol, havia aquela elevação adoçada pelo ouro, mal discernível entre
brumas ou nuvens baixas, ou talvez pelo fato do homem não ter ousado
pôr os óculos. Ele não sabia se era montanha ou apenas névoa
iluminada. (Lispector, 1998:22)
Olga de Sá atribui ao trecho acima qualidades plásticas, pois, por meio
da escrita, foi criado um quadro de sucessivas imagens, preenchidas de
luzes e cores:
Neste caso, ela trabalha numa clave aproximativa, conforme sua luz
interior, e vai tentando por meio de certa modalidade de técnica
impressionista, de comparações e repetições, adequar a nuança de cor
do quadro ao seu instante de luz. (Sá, 1979:145)
14
Sá, Olga. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 145.
91
A Paixão segundo G.H, Um Sopro de Vida e Água Viva são obras que
apresentam vozes femininas que se dedicam à pintura. No primeiro destes,
pode-se dizer que o fato de a narradora ser uma pintora não influi, de maneira
decisiva, na estrutura textual. Em Um Sopro de Vida, encontram-se mais
nitidamente elementos narrativos que imprimam na escrita certos
procedimentos da pintura. É, porém, em Água Viva, que se pode notar, mais
nitidamente, a inserção de “imagens plásticas ao processo discursivo novo que
a autora vinha desesperadamente buscando
15
” (Vianna, 2003:83).
Olga de Sá aponta a presença de procedimentos ligados a outras formas
de manifestação artística na obra Água Viva. Segundo ela, Clarice “retoma suas
mais primitivas raízes, mais livre, mais desimpedida, aderente quanto é possível ao
discurso, ao desenho do texto, que aspira a ser pintura, música, fotografia, escultura,
significante, puro jogo de sons e de formas” (Sá, 1979:265). Nádia Gotlib também
atenta para a questão do livro Água Viva estar ligado a outros canais de expressão:
O projeto artístico consiste neste despojamento ou, conforme expressão
da narradora, nesse “destituir-se para alcançar cerne e semente de
vida.” Toda a arte dirige-se para a representação desse cerne: assim
como na pintura pretende a fixação do incorpóreo, e na música, “a
palavra muda”, na literatura pretende alcançar a “palavra intocada” ou,
como no desenho eletrônico, a “pura vibração”. (Gotlib, 1995: 411)
No que tange à interpenetração de expressões artísticas, Nádia Gotlib diz
que “de fato nota-se uma tendência para deslocar-se cada vez mais do
15
Cabe notar que Clarice Lispector “dedicou-se à pintura como atividade terapêutica e
relaxante, pintou cerca de 16 quadros, dos quais 14 se encontram no acervo da Fundação
Casa de Rui Barbosa. Todas as peças são pequenas (40 cm X 30 cm), realizadas diretamente
sobre a madeira, e, embora, não possa ser definido um estilo, pode-se notar o gosto pelo não-
figurativismo” (Vianna, 2003:82). Tal fato é apenas um indício de que a autora possuía uma
certa relação com a pintura, cujos procedimentos específicos desta expressão poderiam ser
recriados na escrita. Segundo Vianna, “essas realizações marginais não podem ser separadas
da obra como conjunto da produção artística resultante de uma práxis e de uma techné, como
entende Ricouer” (Vianna, 2003:87).
92
figurativo, na escrita, aproximando-se do ritmo e dos sons puros, desvinculados
de compromissos com a linha contínua do discursivo e da história” (Gotlib,
1995:477). Tal interpenetração de domínios entre a escrita e a pintura se
intensifica, também, como um dilema recorrente, apresentado pela narradora
de Água Viva que se aventura na escrita como atividade libertadora e como
exercício
16
para pintar.
É interessante notar que a narradora questiona a funcionalidade da palavra
e da figura para expressar aquilo que aparece “inominável” no mundo “real”,
neste sentido parece desejar que a palavra se liberte dos domínios da língua
(Isto é, “inexprima”), do mesmo modo que a pintura possa ser capaz de registrar
o “incorpóreo”, ou seja, aquilo que não pode ser representado por um objeto
figurativo. A epígrafe de Água Viva, retirada da contracapa do livro de Michel
Seuphor
17
, apresenta indícios desta busca por “evocar os reinos incomunicáveis
do espírito”:
Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura
o objeto que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma
história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os
reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna
pensamento, onde o traço se torna existência. [grifo nosso]
As palavras de Seuphor coincidem com a “nova” proposta estética que se
aventura a narradora de Água Viva. A artista, “tomada pelo gosto das
palavras”, move-se “com cuidado entre elas” para produzir, como vimos
anteriormente
18
, uma realidade inventada, atingida através do sonho. Esta
16
“Comecei estas páginas também com o fim de preparar-me para pintar.” (AV, 18).
17
“There had to be a painting wholly liberated from dependence on figure, the object a painting
which, like music, does not illustrated anything, does not tell a story and does not launch a
myth. Such painting is content with the incommunicable realms of the spirit where dreams
becomes thought, where the sign becomes being” (Seuphor, M., Abstract Painting: Fifty Years
of Accomplishement from Kandisnky to Jackson Pollok).
18
“O real eu atinjo através do sonho. Eu te invento realidade” (AV, 68)
93
produção a escritura passa a ser a própria existência, realizada por uma
escrita que, tal como a pintura de Seuphor, não busca ilustrar uma história mas
sim evocar “os reinos incomunicáveis”, isto é “inexprimir o exprimível”. Essa
recusa do uso normativo na palavra faz com que a narrativa de Água Viva seja, para
usar o conceito de Barthes, um exemplo da “inexpressão”, uma vez que busca outras
dimensões da palavra, outras formas de exatidão daquilo que se quer exprimir. Esta
linguagem plástica, musical e figurativa busca expressar o não-verbal, e para isto, deve,
necessariamente expandir as possibilidades do verbal. Que meios, então, Clarice
utiliza para evocar os “reinos incomunicáveis”? Quais procedimentos ela utiliza
para aproximar sua escritura da pintura, da música e da escultura?
Para provocar no leitor o efeito estético que se costuma produzir por estas
artes, a escrita deve fazer com que aquele que lê “veja” as cenas, “escute” a
melodia, “sinta” o incorpóreo, e também o matérico, do signo. Isto quer dizer
que, nesta escritura, o verbal conduz o leitor a criar imagens, a perceber
sinestesicamente certos vocábulos, a espalhar sentidos por meio de figuras
que se lançam através do texto. Diz a narradora de Água Viva que “cada coisa
tem um instante em que ela é”, e na busca por captar este instante fugidio, cria-
se uma cena: “Esses instantes que decorrem do ar que respiro: em fogos de
artifício eles espocam mudos no espaço” (AV, 09). Com este sintagma, projeta-
se na escrita o cromatismo multicolorido de fogos de artifício, que, nesta
realidade inventada, brilha em silêncio. Os “instantes” criados na escrita
possuem a qualidade experimental da pintura: não se pode refazer, pois o que
se pinta é o que já está pronto. Sobre isso, é interessante notar o que diz o
pintor, e também escritor, Iberê Camargo:
94
Na paisagem, nessa época [1940], procurava fixar o instante fugidio.
Queria aferrar, captar o mistério que vejo envolver o real. (...) Terminado
o quadro, não o retocava, mesmo que nele descobrisse dissonâncias.
Considerava o instante de criação irretocável, sagrado (Camargo,
1985:81).
A escrita de Clarice é cuidadosamente elaborada para criar o efeito de
espontaneidade a que se refere Iberê Camargo. Clarice reitera este tipo de
efeito através da voz da narradora, que concebe o ato de escrever como
irretocável: “não gosto do que acabo de escrever mas sou obrigada a aceitar
o trecho todo porque ele me aconteceu“ (AV, 27); e, também, explicita seu
“método espontâneo” de escrever: “Agora vou escrever ao correr da mão: não
mexo no que ela escrever” (AV, 49). Assim, pode-se dizer que o procedimento
experimental de Água Viva é a busca por expandir as possibilidades do verbal
através de qualidades sinestésicas, musicais, e picturais.
No que tange às construções sonoras, podem-se citar aliterações,
repetições de palavras e paronomásias que imprimem ritmo e cadência às
sílabas, palavras e frases:
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é
abstrato como o instante. É também com o corpo todo que pinto os
meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo
mesma. (AV, 10)
Quero pôr em palavras mas sem descrição a existência da gruta que faz
algum tempo pintei e não sei como. Só repetindo seu doce horror,
caverna de terror e das maravilhas, lugar das almas aflitas, inferno e
inverno, substrato imprevisível do mal que está dentro numa terra que
não é fértil (AV, 15).
Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados, já que em Água Viva,
“sílabas cegas de sentido” (AV, 11) são o “substrato da palavra repetida em canto
gregoriano” (AV, 11), capazes de evocar um mundo “emaranhado de cipós,
sílabas, madressilvas, cores e palavras” (AV, 14). Tais procedimentos, típicos da
poesia, imprimem na prosa uma força de expressão construída por sons e
95
imagens, que se constituem como um meio de “inexprimir”, uma vez que
intensifica o ato de “escrever” e o ato de querer pintar uma gruta por emanações
subjetivas. Clarice faz o leitor atentar para o ritmo e a sonoridade que impõe à
narrativa: “Entende-me: escrevo-te uma onomatopéia, convulsão de linguagem.
Transmito-te não uma história mas apenas palavras que vivem do som” (AV, 25).
Por outro lado, faz o leitor saber que “de vez em quando” lhe será dado uma “leve
história” para, assim como num refrão, ressaltar uma temática:
De vez quando te darei uma leve história ária melódica e cantabile
para quebrar este meu quarteto de cordas: um trecho figurativo para
abrir uma clareira na minha nutridora selva. (AV, 31)
Ao qualificar sua escrita como “ária, melódica e cantabile” ela atribui ao
texto características bem específicas da teoria musical. Por “ária” entende-se a
parte da música que exprime o sentimento inspirado pelo “assunto” tratado pela
canção; por “melódico” diz-se do intervalo cujos sons se ouvem
sucessivamente; e, “cantabile” é a melodia que deve ser salientada, pois
predomina sobre as outras do conjunto. Além dessas características musicais,
Clarice imprime uma qualidade plástica na escrita. A expressão “trecho
figurativo” faz alusão a um recurso da pintura que se manifesta pela
preocupação de representar uma realidade sensível das formas acabadas da
natureza. Desta maneira, cria descrições repletas de cromatismo, onde luzes e
sombras se intercalam, assim como a palavra e o silêncio.
E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra,
escuras mas nimbadas de claridade, e eu sangue da natureza grutas
(...) onde se unem estalactites, fósseis e pedras (...) Gruta sempre
sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade? espantosa,
espantosa, esverdeada pelo limo do tempo (AV, 14)
96
Este trecho é seguido de descrições dos bichos que habitam neste lugar,
a riqueza de imagens é capaz de criar não só a imagem, mas a cena em
movimento de uma gruta “extravagante e perigosa” (AV, 14), onde “tremeluzem
pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos” (AV, 14), onde
“baratas velhas se arrastam em penumbra” (AV, 15). Variadas imagens são
criadas ao longo do texto: bichos, flores, jardins, florestas, dentre outras. Os
trechos, porém, em que os recursos plásticos adquirem mais expressividade no
procedimento discursivo, são aqueles que foram ou serão pintados em uma
tela: o portal de uma igreja (AV, 69-70), um espelho (AV, 70-72), um cravo (AV,
52-53), um guarda-roupa (AV, 74 75). Tais fragmentos não serão aqui citados
pois são muito longos, no entanto, mais adiante, trataremos, em função de
outros procedimentos, dos dois últimos.
Clarice, ao buscar atingir as qualidades específicas de outras artes, visa
produzir um efeito semelhante que estas manifestações provocam. Como,
porém, utiliza tais recursos na linguagem, a autora parece querer expandir as
possibilidades do verbal, evocando sensações inerentes ao não-verbal. Desta
maneira, imprime no texto uma presença plástica, musical e figurativa, tanto
através das temáticas, como através do procedimento discursivo.
97
4.5 Deslocamentos sígnicos, rupturas sintáticas e anacolutos
temáticos
A originalidade de Clarice Lispector está ligada, entre outros
aspectos, aos procedimentos estilísticos que instaura em seus textos.
Trataremos aqui de alguns traços lingüísticos presentes em Água Viva
que chamam a atenção pela novidade nos planos sintático, semântico e
estrutural. Não temos a pretensão de esgotar essa ampla questão, que
sem dúvida, pode ser objeto de variados estudos, discussões e análises.
Como vimos no capítulo II, a idéia de inexpressão aponta para o uso de
recursos que sejam capazes de expandir as possibilidades da língua verbal.
Neste sentido, Clarice faz com as palavras, em geral, o que uma pessoa faz
quando utiliza o recurso gráfico das aspas. Quando se coloca uma palavra
entre aspas, pretende-se “pinçar” algum sentido em especial, e imagina-se que
aquele que ler perceberá qual foi o sentido pretendido. Dentro desta finalidade,
esse recurso gráfico é usado quando há um deslocamento
19
sígnico, ou seja,
quando se transfere uma palavra para um âmbito semântico que não é o do
“objeto” que costuma designar habitualmente. O uso das aspas pretende que o
sentido “exato” possa ser compreendido pelo outro, uma vez que evoca as mais
variadas formas de deslocamento sígnico. Neste sentido, cabe notar que para
Olga de Sá “o contínuo deslocamento do texto clariceano procura recuperar o
sensível do ‘qualissigno’, sempre em luta com a discursividade racional da
19
Em relação ao deslocamento, vale dizer que este também se aplica quando uma palavra
aparece deslocada em dado contexto, por exemplo, o uso de uma palavra de cunho subjetivo e
poético em um texto científico.
98
linguagem que ‘não diz’, mas impõe-se, como material necessário, ao escritor”
(Sá, 1979:21).
Através deste deslocamento, seja de sentidos, seja no que tange ao
emprego de uma palavra como se esta fosse de outra classe gramatical
(“expectativa maravilha”; “estado de jardim”; “eu sou antes, eu sou quase, eu
sou nunca”, AV, 17), Clarice tenciona uma leitura sempre atenta aos
significados que podem ser produzidos. “A carga emocional que seus
vocábulos carregam e as palavras-chaves produzem um efeito que é antes de
tudo estético” (Portella, 1960). Observemos os trechos que se seguem:
Esse ar solto, esse vento que me bate na alma da cara. (AV, 48)
[grifo nosso]
Elas são o amazônico: o dinossauro das flores. (AV, 54) [grifo nosso]
No primeiro trecho, a autora diz que o vento lhe bateu na “alma da cara”.
Com isso, primeiramente, desloca o sentido de alma, cuja acepção costuma
significar um “princípio de unificação” que se liga ao corpo para formar um todo.
Ao completar este substantivo com a expressão “da cara”, atribui à face uma
“alma” separada do restante do corpo. Além disso, a escolha do vocábulo
“cara” no lugar de “rosto”, “semblante” ou “fisionomia” afasta a frase de um
sentido ameno e sentimentalista para evocar a concretude de uma realidade
mais rude.
O segundo fragmento faz parte de um tema que preenche três páginas
completas, um padrão extenso segundo a estrutura tão fragmentada do livro,
que “muda de assunto”, muitas vezes, na mesma linha. Nesta temática sobre a
99
“dolência das flores
20
”, são atribuídos à vitória-régia a seguinte seqüência de
vocábulos: “enorme”; “aquáticas”; “amazônico”; “dinossauro”; “majestosas” e
“simples”. Desta maneira, ela inicia a seqüência das características referentes
à flor com dois atributos que se referem, respectivamente, ao tamanho e ao
habitat da vitória-régia: “Enorme e até quase dois metros de diâmetro.
Aquáticas, é de se morrer delas.” Neste momento, se projeta seqüencialmente
a imagem uma flor bastante grande que vive na água e que “é de se morrer
delas”. Esta estruturação é uma novidade sintática na medida que os
significados se confundem: que relações podem-se estabelecer entre flor,
aquáticas e a morte? Que significados produzem o vocábulo “morte” neste
trecho? Cabe notar que a concepção de “morte” que perpassa o livro busca
continuamente afastar a idéia de “fim da vida”. É possível perceber que a
narradora não aceita a morte e por isso busca, por meio de eufemismos,
amenizar e deslocar tal sentido: “Morrer deve ser uma muda explosão interna.
O corpo não agüenta mais ser corpo. E se morrer tiver o gosto de comida
quando se está com muita fome? E se morrer for um prazer, egoísta prazer?”
(AV, 76). No fim do livro ela declara o sentido que buscou se afastar, porém,
ratifica a negação deste fato: “Aliás não quero morrer, ouviu, Deus? Não tenho
coragem, ouviu? Porque é uma infâmia nascer para morrer não se sabe
quando nem onde” (AV, 86). Clarice produz no plano semântico das palavras
“morte” e “morrer” um caráter polissêmico, que somado à estrutura sintática
20
“Agora vou falar da dolência das flores para sentir mais a ordem do que existe” (AV, 51,52);
[grifo nosso]. Cabe, aqui, notar que Clarice informa que irá praticar uma ação (falar) para, como
conseqüência disto, sentir, isto é captar pelos sentidos, uma ordem do que “é”. Nesta
perspectiva a ação de escrever, não só precede, mas, principalmente, realiza a percepção da
existência. Tal fato é curioso, uma vez que aquilo que a narradora busca é exprimir a sua
percepção do mundo por meio da linguagem, e neste exemplo, o que se dá é justamente o
inverso: é a linguagem que cria a percepção da ordem, do encadeamento, do mundo e da
existência.
100
que utiliza no trecho citado (“é de se morrer delas”) impulsiona
questionamentos no leitor. Em seguida, ela insere “amazônico”, adjetivo que,
convencionalmente, atribui ao substantivo uma característica relativa ou
pertencente à Amazônia. Porém, ao escrever “elas são o amazônico”, subverte
o emprego usual deste adjetivo e através da estruturação da frase inverte o
sentido habitual: a vitória-régia passa a abarcar a totalidade de tudo o que é
“amazônico”, assim, ela deixa ser parte do todo para representar a soma de
tudo aquilo que é relativo ou pertencente à Amazônia. Além disso, a autora
acrescenta: “o dinossauro das flores”, e, com este segmento, imprime uma
característica animal
21
a esta flor.
Affonso Romano de Sant’Anna diz que “o inusitado da construção de
Clarice está no nível imagético e semântico, não no sintático” (Sant’Anna,
1973:208), no entanto, Água Viva está repleto de rupturas sintáticas, seja na
estruturação da frase, seja na pontuação. No que se refere ao afastamento da
norma culta do idioma, a autora rompe com as regras da sintaxe, na busca por
imprimir um “sentido exato” naquilo que é comunicado, desta maneira, a
inexpressão sintática pretende estreitar e especificar o significado de um
sintagma:
(...) devo por sina e trágico destino só conhecer e experimentar os ecos
de mim, porque não capto o mim propriamente dito. (AV, 17) [grifo
nosso]
21
Cabe lembrar que a atribuição de uma característica de natureza animal a uma flor também
foi tratada no capítulo III, página 63 , sendo que naquele segmento Clarice explica, ao leitor, o
porquê da relação entre a rosa e os bichos, pautando-se no comportamento da flor. Tal
esclarecimento encontra-se na página 47 de Água Viva, e, o fragmento da vitória-régia na
página 54 da mesma edição. É possível inferir que a proximidade das páginas e as constantes
suspensões e retomadas temáticas são pistas que orientam o leitor na construção de sentido,
isto quer dizer que o leitor-ideal deste livro compreenderá o segmento “o dinossauro das flores”
de uma forma mais específica porque pôde perceber, pelas pistas deixadas pelo próprio texto,
que a atribuição de uma característica animal a uma flor está ligada ao universo afetivo da
narradora, que reitera: “não ter nascido bicho é minha nostalgia secreta” (AV, 48).
101
E respeito muito o que eu me aconteço. (AV, 27) [grifo nosso]
Um eu que pulsa já se forma. Há girassóis. Há trigo alto. Eu é. (AV, 34)
[grifo nosso]
Sou em transe. (AV, 61)
Não, eu não descrevi o espelho - eu fui ele. (AV, 72)
No primeiro segmento, a autora utiliza a forma “ecos de mim” no lugar de
“meus ecos”, desta maneira, afasta o objeto (eco) dela mesma, pois a maneira
como a frase é estruturada segue sintaticamente outro padrão, como aquela
encontrada em “ecos do mundo”, por exemplo. Desta maneira, ela significa os
“ecos” como ainda mais distantes. No mesmo trecho, Clarice utiliza “não capto
o mim” em vez de “não me capto”, e, desta maneira, além de evitar a
sonoridade desagradável que produz o sintagma “não me capto”, imprime um
distanciamento entre ela e o conhecimento de si mesma. Sob este aspecto
sintático, inúmeros outros exemplos poderiam ser citados (“me apodero dos
desvãos de mim” AV, 17; “o outro lado de mim” AV, 19; “quem em mim está
fora” AV, 62; “o significado de mim” AV, 65; “o excesso de mim” AV, 73, dentre
outros). Já o segundo segmento destacado situa-se dentro de uma temática
sobre a escrita, ou melhor, sobre como um dado trecho acabou de ser criado.
Através do sintagma “o que eu me aconteço” Clarice faz crer, pela estruturação
sintática, que a narradora é ao mesmo tempo um agente de causa e efeito, que
pratica e sofre a ação do mesmo verbo. O terceiro trecho destacado situa-se
numa temática que alude metaforicamente ao nascimento e à existência e à
eternidade. Pela maneira como o segmento acima é inserido na temática,
pode-se inferir que a autora ao escolher a combinação “eu é” buscou reforçar
que o ser da personagem acabara de nascer, não apresentando, assim, os
traços de personalidade, continuidade e pessoalidade que residem na
102
construção “eu sou”. Por outro lado imprime, através do verbo “é” uma idéia de
essência que reside na existência (“o é da coisa” AV, 09), além disso, reafirma
o tempo contínuo: aquilo que “é” passa a ser eterno, pois é enunciado sempre
no presente. No quarto trecho, Clarice novamente inverte o uso dos verbos ser
e estar, sendo que, desta vez, no segmento “sou em transe”, utilizou o verbo
ser no lugar de estar para atribuir à “transe” uma qualidade permanente e não
um estado de espírito passageiro. Aqui também há a evocação do eterno.
Finalmente, no último trecho, Clarice encerra um longo assunto sobre espelho
com a frase “eu fui ele”, e, através dela, reflete a intensa relação de
compreensão que a narradora teve acerca deste objeto. Os trechos citados são
exemplos das rupturas sintáticas presentes em Água Viva. Se em outras de
suas obras tais tipos de estrutura se apresentam diluídas na narrativa, aqui se
mostra como um procedimento discursivo que permeia todo o texto. Além
dessas rupturas sintáticas, pode-se dizer que Clarice empregou em seu texto o
princípio do anacoluto, uma vez que muitas frases se seguem sem que haja
qualquer relação com a anterior.
Estou numa expectativa estupefaciente, trêmula, maravilha, de costas
para o mundo, e em alguma parte foge o inocente esquilo. Plantas,
plantas. Fico dormitando no calor estivo do domingo que tem moscas
voando em torno do açucareiro. (AV, 17)
Sou o coração da treva. O problema é que na janela de meu quarto há um
defeito na cortina. (AV, 34)
Orgia de palavras? A eletrola está quebrada. (AV, 78)
Através deste recurso, que poderia ser intitulado por “anacoluto temático”,
a autora não termina o assunto da frase, deixando, assim, vários sentidos em
suspenso. Só a continuação da leitura dirá se os mesmos serão retomados ou
não, uma vez que a pontuação e a estruturação dos parágrafos não são
103
indicativos de continuidade. Ao contrário, a pontuação deste texto não segue
os padrões na norma culta. Clarice faz pouco uso da vírgula, e, quando a utiliza
ao longo do texto, mescla o emprego segundo as normas idiomáticas a um tipo
de uso que pode marcar uma mudança radical de assunto. Em contrapartida,
emprega, abundantemente, o ponto final, que passa a desempenhar funções
variadas, ora apresentam um tempo de pausa que uma vírgula poderia
representar, ora realizam cortes violentos na narrativa, conforme pode ser
observado nos trechos acima. A pontuação de Água Viva é, provavelmente, um
recurso estrutural que visa ratificar os desvios temáticos, “os assuntos
truncados que se iniciam e se reatam adiante, a quebra do tempo linear, e,
também, as ‘digressões’, que, embora, pareçam romper o ritmo da ação, fazem
progredir a trama, pois suprimindo-as se destruiria o próprio texto” (Sá,
1979:93).
É interessante notar que tais procedimentos estruturais intensificam a
atmosfera de “fluidez de pensamento” e a “aparência inconclusa” da obra.
Segundo Affonso Romano de Sant’Anna
22
, o livro Água Viva “dá a
impressão de uma coisa fluida e que teve um jorro só de elaboração”. A
descontinuidade, como princípio textual e temático recria o movimento
do pensamento, que pode ser ordenado, fluido, disperso, caótico e,
também, poético.
22
Em entrevista publicada no Livro Outros Escritos (Lispector: 2005:147).
104
4.6 A escrita poética
Como vimos no capítulo II, alguns críticos atribuem elementos da poesia à
prosa de Clarice, devido às imagens e sensações que a autora cria por meio de
uma linguagem “que envereda por inesperados atalhos e atinge o poético”
(Milliet, 1945: 27). Álvaro Lins atribui à autora “a audácia na concepção, na
imagem, nas metáforas, nas comparações, no jogo das palavras”, no entanto,
segundo ele, é nessas ocasiões que a autora se “sente mais tentada ao
verbalismo” (Lins, 1963:191). Ao tecer comentários sobre O Lustre, o critico diz
que o romance “padece de verbalismo” e, como exemplo, cita um de seus
trechos: “Um frio inteligente, lúcido e seco percorria o jardim” [grifo nosso].
Segundo Olga de Sá, tal exemplo contraria as próprias palavras de Álvaro Lins,
pois “os adjetivos sugerem que, no frio daquele jardim, fundia-se uma
qualidade da razão com a zona sensível da luz e do tato, construindo um válido
recurso sinestésico” (Sá, 1979:35). A sinestesia usada por Clarice é também
um recurso que busca dar plasticidade ao texto, desta forma se relaciona aos
procedimentos de pintura e música que foram vistos anteriormente. Neste
sentido, cabe observar as palavras do filósofo Jean-Paul Sartre sobre a poesia:
O império dos signos é a prosa; a poesia está lado a lado com a pintura,
a escultura, a música. (...) Na verdade, o poeta afastou-se por completo
da linguagem-instrumento; escolheu de uma vez por todas a atitude
poética que considera as palavras como coisas e não como signos. Para
o poeta, as palavras são coisas naturais que crescem naturalmente
sobre a terra, como a relva e as árvores. (Sartre, 1999:13,14)
A inserção de elementos poéticos na estrutura discursiva de Água Viva faz
deste texto uma espécie de “poema em prosa”, “gênero” que Sérgio Milliet
julgava que Clarice poderia mover-se com mais liberdade, desprendida das
105
amarrações do enredo (Sá, 1979:30). Sob este aspecto, o que chama a
atenção neste texto é o fato de ele não poder ser classificado por um “gênero”
como afirmou Benedito Nunes, uma vez que mescla diferentes formas de
expressão literárias: poesia, relatos autobiográficos, descrições. Deste modo, o
leitor fica continuamente num “estado suspenso” (Sá, 1979), pois não sabe que
tipo de novas construções irá se deparar. Um leitor de poesias, certamente,
aprecia os procedimentos textuais deste tipo de narrativa, do mesmo modo, um
leitor cujo prazer se estabelece com uma narrativa policial, de suspense ou,
ainda, de ficção científica conhece e também se apraz da forma e recursos
inerentes a essas modalidades de ficção. O leitor, que inicia a leitura de Água
Viva, não sabe inicialmente que procedimentos deve tomar como base, pois o
texto mescla diferentes tipos de narrativa. Os elementos poéticos e
sinestésicos trazem a este escrito uma atmosfera diferente das demais
produzidas por Clarice, pois aqui, tais elementos não estão diluídos como
naquelas, mas estão intrinsecamente ligados à temática e à estrutura textual.
Vejamos alguns trechos:
Na minha funda noite sopra um louco vento que me traz fiapos de
gritos. (AV, 36) [grifo nosso]
As combinações que Clarice faz entre as palavras destacadas não
podem ser consideradas como uma “novidade” se forem compreendidas
no âmbito poético, uma vez que os poetas utilizam freqüentemente este
tipo de associação. O que se destaca como original é o uso destes
elementos numa estrutura que, a princípio, não pretende ser
exclusivamente uma “poesia”. Assim, com o intuito de qualificar o vento,
a autora não utiliza as palavras normalmente associadas a este
106
vocábulo, como, por exemplo, “forte”, “leve”, “agradável”; em vez disso,
diz “louco vento”, exprimindo, assim, uma idéia de “loucura”, que é,
inclusive, reforçada com a continuação do sintagma. Os tênues fios
trazidos pelo vento não são constituídos pelos materiais que
normalmente são feitos, os “fiapos” de Clarice são feitos de gritos, um
vocábulo, aliás, freqüentemente associado à loucura
23
, dentro de um
registro poético.
Os procedimentos sinestésicos são inúmeros, a autora busca, ao longo do
texto, estabelecer simultaneamente no leitor percepções cujos domínios
envolvem diferentes sentidos: “(...) assim ouço a eletricidade da vibração” (AV,
14); “(...) o que estou escrevendo é música do ar” (AV, 34); “Para te escrever
eu antes me perfumo toda” (AV, 48); “Estou tentando fotografar o perfume”
(AV, 50); “perfume de lua cheia” (AV, 54); “(...) pois as mãos também olham”
(AV, 70). Observemos o trecho abaixo, que além do uso de elementos
sinestésicos, pode-se perceber aliteração e ritmo poéticos:
São cinco horas da madrugada. E a luz da aurora em desmaio,
frio aço azulado e com travo e cica do dia nascente das trevas.
(AV, 67) [grifo nosso]
Neste segmento, Clarice cria e significa uma cena. A expressão “em
desmaio” qualifica, por meio de uma sensação corporal, a luminosidade que
precede o nascer do sol; “o frio aço azulado” refere-se à temperatura e à
tonalidade das “cinco horas da madrugada”. Ao usar a palavra “aço”, a autora
23
Os segmentos que antecedem e sucedem o primeiro trecho acima citado levam a crer que a
loucura a qual se refere Clarice apresenta uma conotação de sensualidade, observemos o
fragmento na íntegra: “Boca e língua. E um cavalo solto de uma força livre. Guardo-lhe o casco
em amoroso fetichismo. Na minha funda noite sopra um louco vento que me traz fiapos
de gritos. Estou sentido o martírio de uma inoportuna sensualidade. De madrugada acordo
cheia de frutos.“ (AV, 36)
107
subitamente intensifica a sensação térmica de um horário que é, geralmente, o
mais frio do dia. Evocando o gosto que as frutas têm quando ainda estão
verdes (“travo” e “cica”), Clarice imprime “sabor” ao momento que antecede o
nascer do dia. Neste sentido, cabe lembrar que Sérgio Milliet julgava este tipo
de construção como “falsa poesia”:
Dir-se-á ’grito de café fresco’, dando a grito o sentido de ‘cheiro
repentino’, ou se dirá ‘tomava seu sábado’, emprestando a ‘tomar’ o
sentido de ‘vi ver’ ou transformando o sábado numa ‘bebida sorvida
lentamente’. Percebe-se o perigo da solução que permite construir toda
uma falsa poesia sobre arbitrariedade, da truncagem, sobre uma técnica
malandra (Milliet, 1955:236).
O crítico, entretanto, afirma que apesar destes “defeitos”, é a
“espontaneidade das imagens que faz de sua prosa um texto cheio de
surpresas” (Sá, 1979:31).
Para significar de maneira mais precisa, e transmitir uma emoção de
maneira mais inventiva, Clarice também se vale de um procedimento que
busca fixar em um dado objeto características de outros signos, desta maneira,
faz com que o significado do referido objeto, subitamente, se transforme. Para
isto, a autora cria cenas e descrições para, logo em seguida, retomar o sentido
pretendido:
Já o cravo tem uma agressividade que vem de certa irritação. São
ásperas e arrebitadas as pontas de suas pétalas. O perfume do cravo é
de algum modo mortal. Os cravos vermelhos berram em violenta beleza.
Os brancos lembram o pequeno caixão de criança defunta: o cheiro
então se torna pungente e a gente desvia a cabeça para o lado com
horror. Como transplantar o cravo para a tela? (AV, 52)
Neste trecho, Clarice atribui ao cravo características humanas,
exemplifica a cor branca da flor com uma imagem funesta, evoca, ainda, o
cheiro, criando uma cena “completa”. Segundo Olga de Sá, “esse processo de
108
personificação impregna os cheiros, as cores, a paisagem e, além de atingir a
palavra, violenta também o sentido lógico da frase” (Sá, 1979:37). Num outro
trecho também encontramos os recursos de exemplificação e personificação.
Mais longo que o anterior, este segmento não poderá ser sintetizado pois o
sentido se completa através do encadeamento dos significados produzidos
pouco a pouco:
Mas eu também quero pintar um tema, quero criar um objeto. E esse
objeto será - um guarda-roupa, pois que há de mais concreto? Tenho
que estudar o guarda-roupa antes de pintá-lo. Que vejo? Vejo que o
guarda-roupa parece penetrável porque tem uma porta. Mas ao abri-lo,
-se que se adiou o penetrar: pois por dentro é também uma superfície
de madeira, com uma porta fechada. Função do guarda-roupa:
conservar no escuro os travestis. Natureza: a da inviolabilidade das
coisas. Relação com pessoas: a gente se olha ao espelho da parte de
dentro de sua porta, a gente se olha sempre em luz inconveniente
porque o guarda-roupa nunca está no lugar adequado: desajeitado, fica
de pé onde couber, sempre descomunal, corcunda, tímido e desastrado,
sem saber como ser mais discreto, pois tem presença demais. Guarda-
roupa é enorme, intruso, triste, bondoso. Mas eis que, ao movimento
que a porta faz, e na nova composição do quarto em sombra, nessa
composição entram frascos e frascos de vidro de claridade fugitiva. Aí
posso pintar a essência de um guarda-roupa. (AV, 74, 75)
Após a escolha do “guarda-roupa” - um objeto concreto no mundo como
tema para pintura, inicia-se um percurso de geração de sentidos. A autora
parte da percepção visual, e também espacial, deste objeto, e, passa para
atribuições metafóricas e subjetivas acerca de sua função, natureza e relação
que estabelece com as pessoas. Em seguida, “humaniza” o objeto através da
atribuição de características inerentes ao ser humano, e, com isso, transmite
ao guarda-roupa uma idéia de um organismo vivo, cuja essência poderá ser
“pintada” após a contemplação da cena que encerra o trecho (“na nova
composição do quarto em sombra, nessa composição entram frascos e frascos
de vidro de claridade fugitiva. Aí posso pintar a essência de um guarda-
roupa.”).
109
É interessante notar que por meio dos procedimentos utilizados, Clarice
busca fazer o leitor concluir dados sentidos, desta maneira, os recursos
buscariam apontar para uma interpretação pretendida pelo texto. Em
contrapartida, a natureza, a efemeridade e correlação dos temas abririam
espaços para diferentes interpretações do leitor, que, desta maneira, se
tornaria um co-autor da obra. Ao compreender a que se destinam os tantos
procedimentos atípicos de estruturação textual, o leitor estaria mais preparado
para penetrar nos enigmas da escritura de Água Viva.
A preocupação em orientar o leitor pode ser percebida ao longo da
narrativa, Clarice freqüentemente contextualiza o leitor, uma vez que interliga
“temas” a “estruturas textuais”, talvez seja correto afirmar que estes elementos
também se completam como um procedimento de reiteração. Isto quer dizer
que o texto deve ser, estruturalmente, fragmentado pois se pretende dizer os
instantes e os pensamentos; deve ser plástico pois a personagem que narra o
mundo e a vida “que escorre” é uma pintora; deve apontar para a relação do
real com a linguagem, refletindo assim a impossibilidade dessa relação, porque
a autora é Clarice Lispector, cujo efetivo leitor, parece estar habituado aos seus
atos de linguagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho buscou realizar um estudo mais aprofundado da estrutura
narrativa de Água Viva. Longe de se ter tido o propósito de esgotar a análise
desta obra, chegamos ao fim com a impressão de texto “inacabado”, que deve
para usar as palavras de Clarice continuar, tantos são os meios de expressão e
os recursos textuais que não puderam ser vistos e desenvolvidos. Permeado por
“estranhas metáforas” (Sá, 1979:243), alegorias, paradoxos, anáforas, antíteses,
metonímias, antonomásias, perífrases, hipérboles, eufemismos, pleonasmos, e
ainda outras figuras, este texto repleto de “imagens”, “sons” e “gestos” do
pensamento merece estudos mais aprofundados, seja acerca de sua estrutura,
seja acerca de seu estilo.
Inicialmente, mostrou-se que aquilo que despertou o interesse, e também a
curiosidade, dos críticos foi o uso que a autora fazia da linguagem. Vimos que
este impacto talvez tenha se acentuado ainda mais em decorrência do panorama
literário brasileiro da época que, conforme assinalado por Antônio Cândido,
passava por um “conformismo estilístico”. Assim, dentro desta perspectiva de
mudanças que uma obra pode gerar, julgou-se conveniente retomar brevemente
algumas questões sobre a literatura brasileira. Assim, acreditamos que a
111
discussão acerca do impacto crítico de Clarice Lispector pôde ser melhor
compreendida.
Buscamos atentar para os procedimentos temáticos e formais da
“inexpressão” clariceana, que em Água Viva parecem atingir a forma máxima.
Acreditamos que a estrutura da própria obra fragmentada, inclassificável por um
gênero, repleta de “entrelinhas” possibilitou um espaço de criação onde Clarice
pode fazer sua linguagem “debater-se contra o nomeado demais” (Barthes),
afastar os signos de sentidos gregários e “estereotipados”, e, assim, “retirar da
língua uma fala exata”.
Procuramos afastar a idéia de que esta obra seria fruto de uma escrita
automática e superficial. Como vimos, as temáticas e os procedimentos formais
se interligam, numa mútua reiteração. Isto é, se no texto são problematizadas a
vida que passa depressa e a impossibilidade de abarcar e escrever cada instante,
então sua estrutura textual reflete, através de uma escrita fragmentada e repleta
de tramas, a busca em dizer “aquilo que é.” Este conflito entre o “ser” e o “dizer”
pode ser compreendido como um “grande tema” que se renova em outras
temáticas, como a do instante-já e da relação estabelecida entre a pintura e a
escrita, por exemplo. Reiterando o procedimento formal pela temática, Clarice
mescla o inusitado e o trivial, imprime no texto características de processos de
elaboração e de improviso. Sua narradora-personagem declara que está fazendo
um “improviso” na busca por imprimir na escrita uma característica da existência
humana: “Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem
isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante
da platéia”(AV, 21); “Estou improvisando e a beleza do improviso é fuga” (AV, 43).
112
Que é esta fuga que se impõe como resultado de beleza diante do público? Que
tipo de público esta obra constrói e solicita?
Acredita-se que Água Viva solicita um tipo de leitor que compreenda e
aprecie as regras de linguagem deste escrito. O leitor desta obra deve ter uma
relação especial com a linguagem, além disso, não deve compreender como
essenciais: 1) a unicidade do enredo; 2) a forma tradicional de descrição de
ambientes e 3) a presença de personagens. Para o leitor modelo de Água Viva, a
protagonista da ficção é a linguagem. A fruição deste texto reside, assim, na
formas e no estilo de linguagem.
Vimos que, segundo as idéias que estudam o papel do leitor no ato de
leitura, o autor deixa “pistas”, cujo objetivo seria guiar, aquele que lê, pelos
interstícios da obra, de modo a formar um todo que esteja ligado ao que Umberto
Eco chamou de intenção do texto. As pistas deixadas para o leitor foram aqui
tratadas, tendo como pressuposto que, para que houvesse um diálogo,
efetivamente fluido, o leitor de Água Viva não só deveria compreender as
orientações de leitura, mas, também, precisaria perceber, e fruir, os
procedimentos, estrutural e temático, utilizados nesta obra, uma vez que tais
recursos buscam reiterar as pistas que o texto fornece.
No que tange aos “vazios” do texto, buscou-se mostrar algumas relações
entre o que se diz e o que se cala na obra Água Viva, já que esta se apresenta
como uma narrativa na qual constantes confrontos, entre o dito e o não-dito, se
realizam através da linguagem. Clarice Lispector elaborou uma ficção repleta de
113
silêncios, nos quais o leitor irá “pescar na entrelinha
1
” as palavras que não estão
escritas, engendrando os múltiplos sentidos que suscitam tais vazios. Os silêncios
do texto podem, nesta obra, ser chamados de entrelinhas, uma vez que a autora
“tem de violentar a lógica da linguagem, fertilizar-lhe o despojamento, preencher-
lhe o esquematismo para traduzir uma emoção mais rica”, como observa Olga de
2
. A linguagem utilizada em tal obra não só propicia ao leitor um diálogo mais
aberto, como também o convida para penetrar no jogo de sua escrita.
Em Água Viva, “inexprimir” e exprimir convivem, buscando ultrapassar os
limites impostos pela língua. Desta maneira, é instaurada por meio de uma
linguagem que “inexprime o exprimível” um tipo de comunicação capaz de
“significar” o pensamento. Na busca por recriar a linguagem, Clarice utiliza meios
lingüísticos inovadores, que subvertem a própria sintaxe da frase. As rupturas
narrativas instalam o “eu” de quem narra no âmbito do “ser”, da “existência”, sob a
presença maciça do narrador que se ausenta do mundo da linguagem formal
movido pela necessidade e pelo desejo de traduzir-se por meio do pensamento.
Em Água Viva, a autora leva a extremos a insurreição formal e a desestruturação
da forma romanesca, elaborando um gênero híbrido, marcado pela fluidez, pela
aparência inacabada e inconclusa. Transmite-se, assim, a sensação de que o
texto é um produto de liberdade, de um certo estado de embriaguez produtiva que
rompe limites sintáticos e fronteiras normativas, criando um ato revolucionário da
escrita, verdadeira convulsão da linguagem.
1
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não
é palavra. Quando essa não-palavra a entrelinha morde a isca, alguma coisa se
escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora.
Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. (Água Viva,
Lispector, 1998:20).
2
A escritura de Clarice Lispector, 1979: 36.
114
Esta convulsão criada por Clarice é enredada numa refinada trama de
signos, tessituras, sensações e pensamentos, criando um embate no qual
narrador e leitor se misturam num jogo, em que palavras e imagens, sons e
silêncio se combinam segundo uma lógica complexa e subjetivante.
Água Viva é, ao mesmo tempo, um texto de prazer e de fruição, pois ao
mesmo tempo em que ele “contenta, enche, dá euforia”, ele também “põe em
estado de perda, desconforta, faz vacilar bases históricas, culturais, psicológicas
do leitor, a consciência de seus gostos, de seus valores, suas lembranças, faz
entrar em crise sua relação com a linguagem” (Barthes, 2004:21).
A inquietação que Água Viva provoca seja na crítica, seja no leitor é uma
questão que merece ser aprofundada. Clarice torna tensa a relação do real e da
linguagem, refletindo a própria impossibilidade representativa desta relação. A
autora torna sensível este dilema: o conflito da linguagem com o mundo. No
entanto, Clarice não pretende representar, através da língua, a realidade, uma
vez que ela cria um mundo e fala desse mundo, cujo exercício é o confronto com
uma linguagem “à beira do desmaio, do êxtase
3
”.
3
Expressão utilizada por Sérgio Milliet em crítica publicada no Diário Crítico (1947:41) sobre a
expressividade da linguagem utilizada em O Lustre.
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