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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
MESTRADO EM LETRAS
ISA FERREIRA MARTINS
A HORA DA EXISTÊNCIA NA TEMÁTICA, NA LINGUAGEM E
NA NARRATIVA DE CLARICE LISPECTOR
NITERÓI
2006
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ISA FERREIRA MARTINS
A HORA DA EXISTÊNCIA NA TEMÁTICA, NA LINGUAGEM E
NA NARRATIVA DE CLARICE LISPECTOR
Dissertação apresentada ao curso de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a
obtenção do Grau de Mestre. Área de
concentração: Estudos de Literatura.
Orientador: Prof. Dr. FERNANDO DÉCIO PORTO MUNIZ
Niterói
2006
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.... ..... Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
M386 Martins, Isa Ferreira.
A Hora da existência na temática, na linguagem e na narrativa
de Clarice Lispector / Isa Ferreira Martins. 2006.
130 f.
Orientador: Fernando Décio Porto Muniz.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2006.
Bibliografia: f. 122-130.
1. Lispector, Clarice, 1925-1977 Crítica e interpretação. 2. Lispector,
Clarice, 1925-1977. A Hora da Estrela. 3. Linguagem. 4. Narrativa. I. Muniz,
Fernando Décio Porto. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de
Letras. III. Título.
CDD B869.3009
ISA FERREIRA MARTINS
A HORA DA EXISTÊNCIA NA TEMÁTICA, NA LINGUAGEM E
NA NARRATIVA DE CLARICE LISPECTOR
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em
Letras da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do Grau de
Mestre em Letras. Área de concentração: Estudos
de Literatura.
Aprovada em setembro de 2006
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Fernando Décio Porto Muniz Orientador
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Prof
a
Dr
a
Elizabeth Chaves de Mello
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Prof
a
Dr
a
Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Niterói
2006
À minha admirável e adorável mãe, verdadeira responsável
por minhas Aprendizagens e Paixões pelas Letras ao
preencher os dias de minha infância com sonhos, magias,
descobertas e emoções literárias.
Ao meu inesquecível avô de alma, Jorge da Silva Mafra Filho
(in memoriam), por valorizar e respeitar, como poucos, o
caminho profissional que escolhi, por todas as lições de vida e
de literatura, pelo amor incondicional que até hoje me
emociona.
AGRADECIMENTOS
À Amorita Ferreira Batista, minha querida mãe e companheira preferida, pelo exemplo de
força, coragem e determinação, pela sensível e brilhante forma com que sempre exerceu o
papel de pai, pelo incomensurável amor que nos une, por ser a estrela que ilumina minhas
noites, sendo elas tristes ou felizes.
Ao Professor Fernando Muniz, meu orientador, que com sua sensibilidade humana e saber
acadêmico ajudou-me a trabalhar de forma crítica com a literatura de Clarice Lispector.
Suas orientações permitiram-me um maior aprendizado teórico sobre o universo ficcional
da escritora.
Ao apaixonante Hiran Roedel, por todas as tardes e noites de intensas e enriquecedoras
discussões históricas e literárias, por dividir seus conhecimentos com uma simplicidade
admirável, pelas atenciosas e produtivas leituras dos meus textos, por ser minha fonte de
serenidade nos momentos difíceis, pelo amor maduro e compreensivo, pelos carinhos e
olhares, de homem e companheiro, que me fazem a-lo cada dia um pouco mais.
À Professora Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro, por desde minha Graduação
incentivar e contribuir para meu crescimento nos estudos clariceanos e na vida, não só com
materiais e indicações de leituras sobre Clarice Lispector, mas, principalmente, com suas
palavras, seus ensinamentos e seu carinho. Hoje, mais que uma admiração, uma querida
amiga.
Ao Professor Guillermo Francisco Giucci Schmidt, que com seus cursos, críticas e
observações teve papel fundamental no rumo de minha pesquisa clariceana, literária e
cultural. Suas disciplinas, em minha Graduação, proporcionaram mais que aprendizados
acadêmicos, na verdade, ampliaram, sensivelmente, minha visão de mundo.
À Professora Elizabeth Chaves de Mello, pelas contribuições teóricas e literárias de seu
curso no mestrado, pela participação na banca de avaliação do meu projeto com
importantes críticas que proporcionaram a ampliação da minha pesquisa, por todas as
orientações acadêmicas e humanas ao longo desta trajetória.
À Professora Ida Maria Santos Ferreira Alves, pela participação na banca de avaliação do
meu projeto com apontamentos que nortearam minha pesquisa.
A Agostinho Gomes Cascardo Junior, pelo exemplo de disciplina e determinação, pelas
discussões sobre minha pesquisa, pelas palavras de motivação, por ser um amigo muito
especial em todas as horas.
À Alessandra Nóbrega de Moura Miranda, minha doce amiga-irmã, pela generosidade
humana que sempre me comove, por desde o nosso Ensino Médio acreditar, motivar e
ajudar na realização do meu sonho de viver de Literatura, e, por compreender meu coração
como se fosse o seu.
À Ana Cristina Andrade dos Santos, querida amiga, pelo apoio com o qual sempre pude
contar nos momentos de dificuldades, pela competente e minuciosa revisão do meu
trabalho, por desde os tempos de Graduação estar presente em minha vida de forma
marcante com seu carinho e amizade, por sempre me proporcionar sorrisos e aprendizados
humanos através do seu jeito único, delicado e sincero de ser.
À Janaina Alves Brasil Corrêa, minha encantadora e intensa amiga-irmã, por desde a nossa
Graduação compartilhar emoções clariceanas e existenciais, pelas incansáveis leituras,
reflexões e observações que fez em meus textos, contribuindo de forma única para a
superação desta etapa da minha vida profissional, o que faz com que eu a considere co-
autora deste trabalho; pela capacidade que tem de entender todas as linguagens do meu Ser,
mesmo quando as palavras não estão presentes; pelo ombro, pelo colo, pelas discordâncias,
pelos sorrisos, pelas bobices, pelos empréstimos de livros e de Éus, pelas Joanas e
joaninhas; pelos cães, gatos, estrelas-do mar, jacarés e até baratas que fazem parte da
história da nossa amizade, enfim, por ser a tradução perfeita da afinidade, da sintonia e do
companheirismo no trabalho, na literatura e na vida.
À Laura Cecília Alves Corrêa e Luiza Alves, pelo acolhimento na casa e no coração, e,
também pelo grande presente que é a Janaina.
À Magda de Oliveira Carlos, querida amiga, por ser um grande exemplo de coragem e
força, pelas palavras de estímulo em minhas horas de cansaço, pela voluntária e competente
revisão do meu projeto, por todas as experiências que juntas vivemos com a certeza do
recíproco apoio de uma amizade.
À Nelma Teixeira Pedretti, funcionária da Secretaria de Pós-Graduação em Letras, pela
competência de seu trabalho, pela paciência e atenção com os alunos, pelo constante sorriso
com o qual nos recebe, pelas orientações e palavras de apoio.
“Os meus livros não se preocupam muito com os fatos em si
porque, para mim, o importante não são os fatos em si, mas as
repercussões dos fatos no indivíduo. Isso é que realmente
importa. É o que eu faço. E penso que, sob este aspecto, eu
também faço livros comprometidos com o homem e sua
realidade, porque a realidade não é um fenômeno puramente
externo. Clarice Lispector
Trecho da carta da autora à amiga Olga Borelli em resposta à
pergunta “Porque você escreve?”. (GOTLIB, 1995: 434-437)
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo apresentar um estudo
sobre o caráter existencial da temática, da linguagem e da
narrativa de Clarice Lispector. Nossa motivação partiu de
discussões e leituras de que A Hora da Estrela ocupa um
lugar atípico dentro da produção clariceana, por ser um
romance de cunho social, destacando-se das demais obras da
autora. Assim, mostramos que Clarice Lispector, também em
A Hora da Estrela, problematiza, fundamentalmente,
questões existenciais através do viés individual e subjetivo
com que são dramatizados os conflitos. Desta forma,
fizemos comparações entre A Hora da Estrela e outras obras
da escritora a fim de mostrar a continuidade do estilo, do
caráter introspectivo, reflexivo e existencial da literatura
clariceana.
Palavras-chave: Clarice Lispector; A Hora da Estrela;
existência, temática, linguagem e narrativa.
ABSTRACT
This work aims at presenting a study on the existential
character of Clarice Lispector’s thematic, language and
narrative. Our motivation was initiated by some discussions
and texts about The Hour of the Star occupying an atypical
place in Lispector’s literary production as a novel that has a
social approach, gaining preeminence among the author’s
other works. Thus, we show that Clarice Lispector, in The
Hour of the Star, also raises, fundamentally, existential
questions through the individual and subjective bias that is
applied to dramatize the conflicts. In such a way, we made
comparisons between The Hour of the Star and other
Lispector’s works so as to show the continuity of the style,
of the introspective, reflexive and existential character of
Clarice Lispector’s literature.
Key Words: Clarice Lispector; The Hour of the Star;
existence; thematic; language and narrative.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................12
CAPÍTULO I
A HORA DA ESTRELA: A EXISTÊNCIA EM DIÁLOGO COM A OBRA CLARICEANA.....18
1.1 A temática existencial em Clarice Lispector...................................................................................................18
1.2 O referencial local e existencial..........................................................................................................................27
1.2.2 O espaço em A Hora da Estrela...................................................................................................................31
1.3 A experiência do “ser-no-mundo”...................................................................................................................34
1.4 A angústia da existência......................................................................................................................................37
1.5 A descoberta do Ser.............................................................................................................................................43
CAPÍTULO II
A LINGUAGEM CLARICEANA COMO PROBLEMÁTICA DA EXISTÊNCIA...................51
2.1 A linguagem de Clarice Lispector e a crítica: breves abordagens e apontamentos.............................51
2.2 Linguagem e existência: limites, questionamentos e confluências..........................................................57
2.3 Linguagem, literatura e os referenciais existenciais da realidade e da ficção........................................64
2.4 A linguagem clariceana na construção de “novos mundos”....................................................................72
CAPÍTULO III
A NARRATIVA CLARICEANA EM TRÊS NÍVEIS EXISTENCIAIS ................................................77
3.1 Três níveis da narrativa clariceana: realidade objetiva, introspecção do Ser e existência subjetiva ....77
3.2 A estrutura narrativa em Clarice Lispector: da horizontalidade à verticalidade ...................................79
3.3 Elementos da narrativa horizontal: classe social e realidade......................................................................87
3.4 A ruptura da narrativa horizontal: motivações que levam ao primeiro nível da narrativa vertical ..94
3.5 Primeiro nível vertical da narrativa clariceana...............................................................................................99
3.6 Segundo nível vertical da narrativa clariceana...........................................................................................106
3.7 Narrativas e narrador em A Hora da Estrela: diálogo entre ofício e obras.........................................109
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................................................114
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................................................122
INTRODUÇÃO
Este trabalho se propõe a analisar o caráter existencial da temática, da linguagem e
da narrativa no universo ficcional de Clarice Lispector, tendo como destaque a obra A
Hora da Estrela. O enfoque deste romance, em nosso estudo, partirá das discussões que
apontam este livro como uma obra de cunho social, ocupando, assim, um lugar atípico na
produção clariceana.
A idéia apresentada por alguns comentadores, de que A Hora da Estrela se
enquadra nos moldes dos romances sociais produzidos nos anos trinta, servirá como ponto
de partida para as questões que serão apresentadas. Diante de tais leituras e interpretações,
buscamos em nossas análises mostrar que Clarice Lispector, também em A Hora da
Estrela, problematiza questões existenciais na temática, na linguagem e na narrativa do
romance.
Para tratarmos o mais amplamente possível desta questão, seria interessante a
apresentação de uma minuciosa pesquisa de toda a produção da autora, porém, pelos
próprios limites acadêmicos de uma dissertação, tivemos de eleger algumas obras
específicas. Assim, teremos como principal fonte de comparação com A Hora da Estrela o
romance A Paixão Segundo G. H., por ser este livro reconhecido como “a obra mais
existencial” de Clarice Lispector, conforme nos afirma Benedito Nunes.
Perto do Coração Selvagem, romance de estréia da autora na Literatura Brasileira,
tem também um papel fundamental, por apresentar questões existenciais e por toda
discussão que motivou, e ainda motiva, a escritura peculiar de Clarice Lispector. Vale
ressaltar que Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, A Legião Estrangeira, A Maçã
no Escuro e Água Viva, dentre outras, também serão usadas em nossas explanações por
apresentarem características ficcionais que contribuem para a proposta de nossa pesquisa.
No primeiro capítulo, discutiremos a temática da existência na obra clariceana. Para
nossa fundamentação, recorremos a críticos que cuidaram dessa questão, como, por
exemplo, Benedito Nunes, o qual defende a idéia de que a temática da existência perpassa
toda a obra de Clarice Lispector. Já Olga de Sá apresenta uma leitura sobre o fato de a
produção clariceana ser baseada em um enfoque subjetivo do homem. Em concordância
com os dois críticos, trataremos deste caráter introspectivo da ficção clariceana
observando, inicialmente, o papel que o referencial de local e regional desempenha na
literatura de Clarice Lispector. Tal discussão, em A Hora da Estrela, se faz necessária pela
possibilidade de se interpretar a região Nordeste, seus conflitos e mazelas sociais como
uma denúncia social feita pela autora. Assim, mostraremos que o referencial de regional
perpassa a obra como uma alusão local e que, com o decorrer da leitura, é possível
perceber que Macabéa poderia ser natural de qualquer outra região, pois seus dramas são
essencialmente existenciais, e não só puramente sociais.
Seguindo esta linha de pensamento, teremos como foco a relação que tais
referenciais locais possuem com o “despertar” da experiência do “ser-no-mundo”, com a
própria angústia da existência e, também, com a “descoberta do ser”. Desta forma,
mostraremos que, também em A Hora da Estrela, Clarice Lispector constrói seu universo
ficcional colocando como tema central o homem diante do mundo que o cerca. Assim, a
relação dos personagens com o espaço que os cerca, quando acorre, acontece no plano da
subjetividade humana, levando ao que Benedito Nunes conceitua como “experiência de
ser-no-mundo”, ou seja, a importância dos dados locais ou regionais na literatura
clariceana é dada através do processo de autodescoberta apresentado pelos personagens.
O homem apresentado por Clarice Lispector como um “ser-no-mundo” é solitário
diante de tudo que o cerca. Este sentimento desencadeia as buscas e as descobertas que os
personagens fazem sobre seu próprio eu. Assim, ao desenvolver sua temática no campo
existencial, a autora constrói personagens que motivam a atenção do leitor para a universal
subjetividade e introspecção humanas. Desta forma, o “ser-no-mundo” na literatura
clariceana representa um aspecto global da própria condição humana, independente dos
dados objetivos da realidade.
Ao apresentar a condição do homem, Clarice Lispector problematiza também o
processo de angústia que o envolve em tal experiência. Sendo a angústia mais uma
temática existencial abordada pela autora em seus romances, mostraremos o paradoxo
presente no processo de auto-reflexão, bem como os sentimentos ambíguos que envolvem
os personagens. Veremos que tais comportamentos ocorrem porque os personagens se
encontram diante de suas novas necessidades, do reconhecimento de suas próprias
limitações e também da tomada de decisão de continuar, ou não, a reproduzir os
comportamentos padronizados e aceitos pela sociedade, mas que já não correspondem aos
desejados.
Este processo comportamental resulta no último item por nós analisado dentro da
temática existencial clariceana: A descoberta do “Ser”. Neste, mostraremos como a
experiência da existência adquire um estágio de revelação da plena consciência do eu. O
desejo de se livrar das amarras sociais e sentimentais está presente de forma intensa através
do confronto entre cotidiano, realidade e liberdade. Observaremos, também, que os limites
impostos pela própria condição da existência são compreendidos pela reflexão
introspectiva apresentada pelos personagens. As questões sobre as limitações vividas pelo
homem durante sua existência são ampliadas quando tratadas também no campo da
linguagem. Esta, por permear toda a experiência de vida do homem, ganha destaque na
literatura clariceana através de uma escritura em que homem e palavra exprimem a própria
existência humana, suas potencialidades e limitações.
Assim, falar da questão existencial na literatura clariceana é tratar inevitavelmente
também do trabalho da escritora com a linguagem. Então, analisaremos esta questão em
nosso segundo capítulo. Veremos, pois, como Clarice Lispector problematiza o processo
de “descoberta do ser” diante dos limites da língua verbal.
Iniciaremos o segundo capítulo apresentando um breve panorama sobre o impacto
que a literatura de Clarice Lispector causou na crítica brasileira. Através deste quadro,
poderemos perceber que as análises dos críticos apontam para o fato de a linguagem
clariceana possuir, assim como suas temáticas, um caráter marcadamente existencial.
A partir de então, mostraremos que a forma como a linguagem, a realidade e o
homem são abordados por Clarice Lispector reflete a condição da existência humana,
através de uma “subversiva” escritura, característica esta apontada pelos críticos e
comentadores de sua obra. A idéia apresentada por Umberto Eco de que o homem,
através da ficção, busca um sentido para sua existência permite perceber a inevitável
ligação entre linguagem e existência apresentada por Clarice Lispector em sua literatura. A
problematização dos limites do “dizer” é um dos aspectos que vai ao encontro da teoria de
Eco, pois a necessidade do homem de se autoconhecer perpassa os referenciais de mundo,
do eu e do outro, fazendo com que os personagens se deparem, por diversas vezes, com as
fronteiras impostas pela linguagem. Tais questões estão presentes também nas
“transgressões” e “subversões” que Clarice faz em sua escritura, tendo em vista que o
trabalho da autora com a linguagem mostra que as barreiras impostas pela comunicação
existem, mas a busca pela ultrapassagem destas é tão necessária ao homem quanto se
superar diante das limitações existenciais.
Este trabalho de Clarice Lispector com a linguagem nos direcionou, ao final deste
capítulo, a uma aproximação entre a teoria de Umberto Eco sobre “mundos possíveis” e a
literatura clariceana. Neste momento, iremos apresentar como as subversões e questões
sobre a linguagem presentes na obra de Clarice Lispector permitem o conhecimento de
novos “mundos possíveis”, uma vez que estas podem motivar uma ampliação da
“enciclopédia” ou “mobília” preexistente do leitor
2
, possibilitando, assim, a
“desautomatização” semântica de quem lê, isto é, o leitor, ao deparar-se com as subversões
que Clarice faz através da linguagem, é levado a abandonar seus pré-conceitos ficcionais e
semânticos para “entrar” no mundo apresentado pela autora.
No terceiro e último capítulo, trataremos da estrutura narrativa de Clarice Lispector,
que mantém, também, como foco principal a existência humana. Assim, o
desenvolvimento do processo narrativo de Clarice Lispector é dividido em um nível
horizontal e em dois níveis verticais.
Para mostrarmos tais divisões narrativas, conceituamos, primeiramente, o nível
horizontal. Neste, veremos que a autora parte de uma dada realidade para “ambientar o
leitor”, mas vale-se desta “realidade objetiva” para tratar de temas de cunho introspectivos,
como, por exemplo, a solidão que envolve o homem, tanto no seu cotidiano, como nas
situações que podem alterar o itinerário de sua vida. O papel que a solidão humana adquire
na narrativa de Clarice é o de transição, que levará ao primeiro nível da narrativa vertical.
Neste nível, é o sentimento de abandono e de exclusão humana vivido pelos personagens
2
Estes termos são usados por Umberto Eco, como veremos ao longo da dissertação.
que os leva a refletir sobre si mesmos. Após a fase em que a angústia e a necessidade de
“descoberta do ser” tomam conta dos personagens, inicia-se o segundo nível da narrativa
vertical.
Neste momento, as questões existenciais adquirem o papel central nas histórias
clariceanas. A relação do homem com o mundo que o cerca é intensamente trabalhada
tendo por base as descobertas interiores dos personagens. A partir de então, são
intensamente problematizadas as possibilidades e tentativas de mudanças diante das
amarras impostas pela própria condição de Ser existente e o contexto em que cada um se
encontra. Esta análise terá como fundamentação teórica os conceitos que Roland Barthes e
Umberto Eco apresentam sobre a estrutura da narrativa. Para tal, desenvolvemos um
esquema que objetiva apresentar um panorama dos três níveis narrativos que serão
apresentados.
Será possível perceber em nosso esquema que as narrativas horizontal e vertical em
Clarice Lispector vão ao encontro dos apontamentos de Roland Barthes sobre a estrutura
do “jogo incessante dos potenciais” da narrativa. As idéias de Barthes nos permitirão expor
como Clarice Lispector utiliza em sua obra elementos da “realidade objetiva” do homem
para problematizar a forma subjetiva e ampla da existência humana. Neste sentido,
veremos, ainda, as idéias de Umberto Eco que tratam das macroproposições narrativas.
Tais conceitos nos possibilitarão mostrar o caráter universal dos conflitos apresentados por
Clarice Lispector, através da estrutura narrativa da literatura da escritora.
Assim, através das teorias de Barthes e Eco, discutiremos a confluência entre
narrativa, linguagem e temática existencial na estrutura ficcional de Clarice Lispector,
objetivando mostrar que a autora, também em A Hora da Estrela, mantém o caráter
intersubjetivo e existencial de sua obra.
CAPÍTULO I
A HORA DA ESTRELA: A EXISTÊNCIA EM DIÁLOGO COM A
OBRA CLARICEANA
1.1 – A temática existencial em Clarice Lispector
O caráter subjetivo e abstrato da obra de Clarice Lispector é apontado por diversos
leitores da obra clariceana, sendo estes especialistas ou não. Essas características são
intensamente mostradas na vasta produção que há nos estudos clariceanos. Dentre os
críticos que possuem tal leitura, temos, por exemplo, Benedito Nunes, Antonio Candido,
Olga de Sá, Afrânio Coutinho, Luiz Costa Lima, Álvaro Lins, dentre outros, como veremos
nas análises apresentadas sobre a obra da autora.
Como sabemos, Clarice Lispector, em sua estréia na Literatura Brasileira, causou
um grande impacto na crítica literária do Brasil, devido a seu rompimento como a temática,
a linguagem e a narrativa existente. A primeira, por trazer como tema central o homem e
seus dramas pessoais, e não sociais; a segunda; pela inovação de sua escritura, como
veremos em nosso segundo capítulo; e a terceira, pela inversão dos modelos tradicionais
que seguiam a ordem de começo, meio e fim. Este efeito impactante não diminuiu com o
passar do tempo, pois, mesmo o estilo clariceano já não sendo novidade, o leitor a cada
obra surpreende-se com as diversas subversões feitas pela autora.
A introspecção como característica dos personagens e das histórias clariceanas
permite-nos observar o enfoque dado pela autora às questões existenciais. Conforme
Benedito Nunes, podemos considerar a literatura clariceana possuidora de um caráter
marcadamente existencial, pois a cada romance ou conto nos deparamos com temas como:
“inquietação, o desejo do ser, o predomínio da consciência reflexiva, a violência
interiorizada na relações humanas, a potência mágica do olhar, a exteriorização da
existência, a desagregação do eu, a identidade simulada, o impulso ao dizer
expressivo, o grotesco e/ou escatológico, a náusea e o descortínio silencioso das
coisas. (NUNES: 1995, 100)
Vale ressaltar neste momento a diferenciação entre caráter “existencial” da
literatura clariceana
3
e existencialismo, pois esta nos norteará ao longo de toda nossa
dissertação.
Embora estas temáticas apresentadas por Benedito Nunes sejam reconhecidas ao
analisarmos a obra clariceana, para alguns críticos, no romance A Hora da Estrela, esse
caráter parece perder lugar para uma caracterização realista e representacional, resultando,
assim, no que se chama de romance social.
Em nossos estudos sobre o romance, percebemos uma tênue linha entre a aparente
crítica social e as questões existenciais vividas por Macabéa, estas, típicas de outras obras
de Clarice Lispector. Tal observação nos levou à perspectiva de que o referido romance
3
É necessário observar a diferente leitura entre a Filosofia do Existencialismo e o caráter existencial da obra
de Clarice Lispector. Para tal, faz-se necessário apresentarmos a definição de existencialismo dada por Jean-
Paul Sartre em O Existencialismo é um Humanismo: “(...) O que desde já podemos dizer é que entendemos
por existencialismo uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda
a verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana”. (SARTRE, 1973: 04) [Grifo nosso]
clariceano é fundamentalmente existencial, pois percebemos que através da narrativa e
linguagem de A Hora de Estrela temos em Macabéa uma personagem que se distancia dos
padrões da ficção tradicional dos anos 30, inserindo-se no campo que Benedito Nunes
chama de “imaginário cultural” de Clarice Lispector.
O fato de Macabéa apresentar uma aparente falta de consciência de sua condição
social e humana e aceitar incondicionalmente sua realidade já a difere dos personagens do
romance social dos anos 30, o que Benedito Nunes considera ser uma “abstração dos
elementos objetivos da realidade”, como veremos no item seguinte deste capítulo. Mas é
exatamente a partir desta observação que a questão se amplia, nos mostrando uma
nordestina que tem muito mais a provocar sobre a condição humana. Desta forma, nossa
proposta é apontar a fundamentação universal de A Hora da Estrela. A narrativa
desenvolvida na obra permite um diálogo profundo com o leitor, expresso através da
história de uma nordestina que, antes de qualquer classificação, é humana.
O romance A Hora da Estrela pode ser visto como uma imagem do conjunto
regional e cultural do nordestino brasileiro sendo personificado por Macabéa. No entanto,
se tentarmos analisar a problemática que envolve a brasileira nordestina Macabéa,
perceberemos que essa personagem está ligada mais significativamente às temáticas de
caráter humano e universal em continuidade com os romances anteriores de Clarice
Lispector do que às socioculturais enfrentadas por aqueles que chamaríamos de seus
“conterrâneos” da literatura regional.
Um crítico que nos permite mostrar a idéia de que a temática central de A Hora da
Estrela não possui um caráter representacional, distanciando, assim, Macabéa de uma pura
representante do nordeste brasileiro, é Ítalo Moriconi. Embora faça sua análise da obra
focalizando o narrador, em A Hora da Estrela ou a Hora do Lixo de Clarice Lispector ele
retoma inicialmente o texto clariceano diante da recepção crítica. Para ele, “o texto de
Clarice Lispector foi dado como surpreendente, sobretudo, por trazer um inequívoco
componente experimental” de transgressão que se intensificou ao longo de sua obra.
(MORICONI, 2003, 720). Observemos a descrição da personagem segundo Ítalo:
“Macabéa é uma caricatura de nordestino. E ‘nordestino’ não é uma categoria
inocente na cultura brasileira. Nordestino na literatura brasileira são os pobres,
excluídos, periféricos, seres provenientes de um Brasil arcaico em relação ao país
surgido desde fins do século XIX, cultural e economicamente dominado pelo
poderoso Sudeste. Na ideologia da ordem do discurso de hegemonia pela civilização
do Sul, o estereótipo do nordestino é o da ‘raça subdesenvolvida’, ‘sub-raça’ pela
falta de recursos. (...) Um dos aspectos de originalidade de A Hora da Estrela, no
plano mimético-documental, é que Rodrigo S. M. retrata uma nordestina já
urbanizada, não uma nordestina flagrada no seu sertão original, nem a nordestina
deslocando-se pelo país como retirante da pobreza de sua região, duas imagens
tipicamente modernistas. (MORICONI, 2003: 723-724)
Para Moriconi, um dos diferenciais entre Macabéa e a maioria das personagens
nordestinas é o fato de ela ser uma “imigrante já estabelecida na periferia das grandes
cidades do Sudeste (...)” (MORICONI, 2003: 723-724). E complementa, dizendo que
“Lispector faz Rodrigo S. M. transgredir todas as regras de pieguice e utopias sociais que
sustentam o mito do nordestino na literatura modernista” (MORICONI, 2003: 723-724).
Segundo ele, o fato de Macabéa ser uma nordestina já transgride por sua história
não se limitar a um relato ou registro de fatos sociais da região do Nordeste brasileiro. Para
Ítalo, a personificação de nordestina é uma “representação alegórica”, pois “Rodrigo S. M.
sabe que sua motivação é completamente exterior ao drama efetivamente vivido pelos
modelos inspiradores de sua Macabéa” (MORICONI, 2003: 724).
Dessa forma, podemos perceber, através dos apontamentos de Moriconi, uma
leitura que se contrapõe ao vínculo de A Hora da Estrela e sua nordestina Macabéa como
um romance de denúncia social ou uma forma de “documento histórico literário”, assim
como fizeram os romancistas nos anos 30 em suas literaturas, por vezes, de engajamento
político. Ou seja, é possível perceber em A Hora da Estrela um caráter não de simples
representação social, mas um romance que aponta para questões subjetivas do homem,
repercutindo em uma abordagem existencial e universal, pois, mesmo tendo como pano de
fundo conflitos gerados pelo social, Macabéa desperta, na verdade, para as angústias
inerentes à condição da existência humana.
Porém, um exemplo de que esta leitura sobre o livro pode não ser tão evidente ou
unânime é dado por críticos que o vêem sobre um outro prisma. Segundo estes, A Hora da
Estrela se encaixaria nos moldes do romance social dos anos 30, por tratar, essencialmente,
de questões como desigualdade, injustiça e problemas sociais.
nia Roncador
4
, por exemplo, apresenta uma possível explicação para a ficção
clariceana tomar um “novo rumo” a partir dos anos 70: o fato de a escritora estar, então,
envolvida com temas sociais, como a miséria econômica, a fome e a injustiça social. Para
ela, a motivação de Clarice para tal mudança de abordagem teria sido provocada pelas
várias críticas de que sua literatura seria “hermética e abstrata, desprovida de um contexto
histórico e, principalmente, de uma mensagem política transparente(RONCADOR, 1999: 151).
Outro exemplo desta linha de pensamento é de Lícia Manzo. De acordo com a
comentadora, a temática do problema social era um desafio para Clarice Lispector, e
apresenta o referido romance clariceano da seguinte forma: “intitulado A Hora de Estrela,
o primeiro romance ‘social’ de Clarice Lispector narrava as desventuras da jovem
nordestina ‘tão pobre que só comia cachorro-quente’ (MANZO, 1997: 204).
Outra perspectiva que mantém a mesma linha de análise sobre A Hora da Estrela é
apontada por Fátima Cristina Dias Rocha
5
, que, mesmo ao fazer a consideração do caráter
4
RONCADOR, Sônia. Poéticas do empobrecimento: a escrita derradeira de Clarice Lispector. São Paulo:
Annablume, 2002.
5
ROCHA, Fátima Cristina Dias. “A Hora da Estrela de Clarice Lispector: singularidade e transgressão”.
Literatura em foco. Fátima Cristina Dias Rocha (org.). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
de exceção da obra pelo questionamento da escrita que o narrador expõe, não deixa de
apresentar o romance como sendo uma retomada do romance social. Vejamos:
“O romance A Hora da Estrela parecia, de fato, promover um deslocamento no
texto clariceano, que se abria, por fim, à tematização mais explícita do social. Neste
aspecto, com a história da nordestina migrante e pobre devorada no cenário
agressivo da grande capital, Clarice Lispector retomava um tema grato ao romance
social dos anos 30. (...)”. (ROCHA, 2003: 49-50)
Esta inserção de Clarice Lispector numa tradição regional entra em choque com o
traço marcante da literatura clariceana: seu caráter existencial e universalizante
6
. Tal idéia
fica ainda mais clara se observarmos a análise da obra clariceana que nos é apresentada por
Benedito Nunes. Segundo ele:
“Autoconhecimento e expressão, existência e liberdade, contemplação e ação,
linguagem e realidade, o eu e o mundo, conhecimento das coisas e relações
intersubjetivas, humanidade e animalidade, tais são os pontos de referência do
horizonte de pensamento que se descortina na ficção de Clarice Lispector (...)”.
(NUNES, 1995: 99)
Este universo de temáticas que envolvem a existência humana revela a função que a
“concepção-do-mundo”
7
ocupa dentro da ficção de Clarice Lispector, ou seja, esta
“configuração e interpretação do mundo” revela uma narrativa que tem como centro as
questões existenciais. Desta forma, podemos perceber também em A Hora da Estrela as
características presentes na seguinte análise que Benedito Nunes faz sobre os romances
clariceanos:
6
Como universalizantes, entendemos aquelas temáticas que abarcam o homem independente da região, raça,
religião ou cultura.
7
Segundo Benedito Nunes: “É sempre possível encontrar, na literatura de ficção, principalmente na escala do
romance, uma concepção de mundo, inerente à obra considerada em si mesma, concepção esta que deriva da
atitude criadora do artista, configurando e interpretando a realidade. Qualquer que seja a posição filosófica da
escritora, o certo é que a concepção do mundo de Clarice Lispector tem marcantes afinidades com a filosofia
da existência (...)”. (NUNES, 1969: 94)
Em cada um deles é a existência, como fonte substancial de todos os conflitos
interpessoais, que se apresenta, infiltrando-se no cotidiano, produzindo a retração da
personalidade social e que, desgastando a crosta protetora de sentimentos e atitudes
criados pelo hábito e pela cultura, transcende os nexos objetivos, social e
historicamente estabelecidos, para impor-se como força dominante, primitiva e
caótica (...)”. (NUNES: 1969, 116)
É possível observarmos essas perspectivas também em A Hora da Estrela se diante
da obra voltarmos nosso olhar para a presença da investigação e da reflexão sobre o
homem que é apresentado através dos conflitos internos dos personagens. Já as
comunicações e linguagens ganham espaço ao longo da narrativa devido à problematização
de suas múltiplas possibilidades e limites. Tais aspectos nos permitem observar tanto em
Macabéa quanto em seu namorado Olímpico, em sua colega de trabalho Glória, no Chefe
de ambas, e até na própria cartomante da história, a caracterização que Benedito Nunes
atribui a outros personagens, como, por exemplo, Joana (Perto do Coração Selvagem) e G. H.
(A Paixão Segundo G. H.), que, segundo o crítico, desenvolvem-se principalmente pela
experiência interior que revelam em suas histórias.
Olga de Sá apresenta a idéia de que A Hora da Estrela é essencialmente existencial
ao caracterizar Macabéa como uma “nordestina, toda fome e deserto” (SÁ, 2000: 271), isto
é, uma personagem que através da alusão à região à qual pertence metaforiza as
necessidades e a solidão do homem.
É possível ainda entender a escolha do Nordeste como região de origem da
personagem como uma escolha metafórica do romance, pois temos a partir desta uma
alusão ao abandono, à solidão, à injustiça, à indiferença e à fome humana, experiências
estas, geralmente, vividas pelos que nascem e vivem naquele lugar. Assim, temos em
Macabéa uma personagem que através de problemáticas concretas encaminha o olhar do
leitor para questões subjetivas e inerentes à natureza do ser humano, isto é, Macabéa seria,
então, uma metáfora da dor humana, e não simplesmente uma personagem de romance
social que toma o Nordeste como questionamento dos problemas de desigualdade do país.
Olga de Sá mostra que a redução da temática de A Hora da Estrela ao campo social
ocorre porque “alguns críticos só reconhecem o enfoque social em A Hora da Estrela
(, 2004: 286)
8
. Segundo a autora:
“Clarice defendeu-se da acusação de alienação social, dizendo que, para ela, o social
era o óbvio. Tendo crescido no Recife, entre ‘sobrados e mocambos’, a pobreza era
seu cenário e sua vivência. Por isso, ao contrário do que se afirma, o social permeia
sua escritura, embora se recuse a escrever, explicitamente, sobre o óbvio”. (,
2004: 286)
Ao afirmar que A Hora da Estrela nos “permite desvendar algumas das articulações
de toda a obra de Clarice Lispector” (NUNES, 1995: 160), Benedito Nunes reafirma mais
uma vez a idéia, como já mostrado anteriormente, do enfoque em temas existenciais
presentes no livro, que teve início em Perto do Coração Selvagem. Além disso, o crítico
complementa sua idéia afirmando que há em A Hora da Estrela uma continuidade do estilo
clariceano por meio da linguagem e temática utilizadas, permanecendo, assim, o
rompimento com a tradição romanesca dos anos 30, já iniciado pela autora na década de 40.
Segundo Benedito Nunes, as articulações da obra clariceana fundamentam-se:
1 – na experiência interior;
2 – na continuidade do estilo;
3 – no caráter reflexivo, individual e dramático da existência humana;
4 – na angústia;
5 – no fracasso humano;
6 – nas limitações da linguagem;
8
O trecho apresentado e a citação a seguir foram retirados de Clarice Lispector. Cadernos de Literatura
Brasileira. “Uma metafísica da matéria ou uma poética do corpo”. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles,
2004, ed. especial, números 17 e 18, dezembro de 2004. Tal obra possui vinte e três autores colaboradores,
como por exemplo, Benedito Nunes, Silviano Santiago, Ferreira Gullar, Lêdo Ivo, dentre outros. Desta
forma, em nossa bibliografia, registramos o referido livro também através do Instituto.
7 – nas comunicações das consciências.
Esses pontos mostram primordialmente o caráter existencial da literatura de Clarice
Lispector
9
, pois podem ser percebidos em toda dimensão da temática da obra clariceana.
Em A Hora da Estrela, as temáticas acima citadas podem ser percebidas se
observarmos a trama e seus desdobramentos. Nela, temos como “ponto central” Macabéa,
que, isolada do mundo, tem sua consciência questionada pelos personagens, pelo narrador
e pelo leitor devido a suas atitudes diante dos acontecimentos e da vida. O mesmo enfoque
é dado ao fracasso humano, que pode denotar a distância entre o eu e o outro.
“Quero neste instante falar da nordestina. É o seguinte: ela como uma cadela vadia
era teleguiada exclusivamente por si mesma. Pois reduzira-se a si. Também eu, de
fracasso em fracasso, me reduzi a mim mas pelo menos quero encontrar o mundo e
seu Deus”. (A Hora da Estrela, 1998: 18)
A angústia apontada por Benedito Nunes, que será analisada no item 1.4 deste
capítulo, pode ser percebida na própria relação que o narrador constrói com sua
personagem, como podemos perceber, por exemplo, no seguinte trecho: “(...) preciso falar
dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela”
(A Hora da Estrela, 1998: 17).
Esta idéia é complementada por Benedito Nunes ao apresentar o paradoxo que por
vezes envolve a obra clariceana através da “paixão da existência e da linguagem” devido à
perspectiva de que esta:
“(...) se ajusta à acepção equívoca da própria idéia de existência na obra de Clarice
Lispector, ora atribuída à realidade irredutível, mas insuficiente, do sujeito humano,
9
Vale ressaltar que, embora estas temáticas presentes na obra de Clarice Lispector sejam relacionadas por
Benedito Nunes aos temas da Filosofia Existencial e, assim, inserindo a literatura clariceana num contexto da
existência, o próprio crítico ressalva que “não pretende afirmar, com isso, nem que a ficcionista vá buscar as
situações típicas de seus personagens na filosofia existencial, nem que as intenções fundamentais de sua
prosa só desse conjunto de doutrinas receba o impulso extra-artístico que as justifica e anima” (NUNES,
1969: 94). Desta forma, Benedito Nunes desfaz qualquer idéia de que ao classificar a ficção de Clarice como
existencial esteja sugerindo que a escritora seguia as doutrinas e idéias da Filosofia Existencial.
ora à realidade auto-suficiente mas não humana do ser, projetada num plano
cósmico (Natureza) onde as coisas esplendem em sua perfeição e beleza oposto
ao plano da linguagem, da atividade prática das relações sociais e seus sistemas
(Cultura). (NUNES, 1995: 127)
Já os limites da linguagem também podem ser vistos como uma temática
clariceana, pelo papel que esta fronteira desempenha na consciência que o homem tem de
que a palavra pode isolá-lo, caso não consiga encontrar “uma tradução para suas idéias e
sentimentos.
“Tudo isso, sim, a história é história. Mas sabendo antes para nunca esquecer que a
palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra.
Atingi-la é o meu primeiro dever comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e
artisticamente vã, tem que ser apenas ela. Bem, é verdade que também queria
alcançar uma sensação fina e que esse finíssimo não quebrasse em linha perpétua.
(...) E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que
existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico”.
(A Hora da Estrela, 1998: 20) [Grifo nosso]
Estas questões, como angústia, consciência, linguagem, dentre outras, serão
mostradas ao longo de nossa dissertação. As duas primeiras, ainda no presente capítulo, e a
segunda, no posterior. Elas foram aqui inicialmente apresentadas para mostrar o plano
subjetivo em que é construída A Hora da Estrela, uma vez que, nesta obra, como veremos
logo a seguir, os referenciais sociais perdem-se diante da amplitude dos temas existenciais,
assim como acontece com os referenciais locais e regionais.
1.2 – O referencial local e existencial
Para tratarmos do papel que o referencial local possui dentro da temática existencial
apresentada na literatura clariceana, é necessário já neste momento mostrarmos a definição
de “ser-no-mundo” dado por Benedito Nunes, embora este tema vá ser discutido e
analisado separadamente no item seguinte deste capítulo.
Benedito Nunes afirma que, na literatura clariceana, o real e seu referencial local
servem como uma ligação inicial para a consciência da condição do homem de “ser-no-
mundo”. Ou seja, tal conceito reflete a forma como Clarice Lispector constrói o universo
de seus personagens, pois neste:
“O ambiente é Espaço, e o Espaço meio de inserção da existência. As paisagens
naturais e urbanas não adquirem importância por si mesmas, mas pela maior ou
menor carga das coisas que encerram, são situações equivalentes. Traduzem
aspectos parciais de uma só situação global. Exteriorizam, integralmente, em cada
caso, o ‘ser-no-mundo’ da existência humana. Daí a inevitável abstração de
particularidades locais, de dados sociais, e, por fim, dos elementos objetivos da
realidade”. (NUNES, 1969: 114)
Para o crítico, esta condição permeia todos os personagens criados pela autora, pois
é a partir dele que podemos entender o papel que o distanciamento local e regional possui
na narrativa de Lispector, já que é a partir deste distanciamento que se inicia o processo de
autoconhecimento, de questionamentos e de diálogos presentes em toda a obra. Tal idéia
também se aplica em A Hora da Estrela.
Nesta obra, a nordestina Macabéa possui uma vida que tem nas regiões e nos locais
em que são ambientados a história um referencial e uma alusão não unicamente à pobreza
(Alagoas) ou às dificuldades de se viver em uma cidade grande (Rio de Janeiro), mas,
principalmente, à condição do homem diante da realidade social contemporânea. Se
tomarmos como base o conceito de “ser-no-mundo” apresentado por Benedito Nunes,
podemos compreender que estes cenários, na verdade, perdem importância diante de uma
narrativa em que a própria situação global da condição da existência humana acaba por
colocar em segundo plano os referenciais locais, regionais e sociais.
A definição de George Stewart sobre a literatura regional complementa a idéia de
Benedito Nunes sobre a abstração dos referenciais na obra clariceana. Segundo Stewart:
“Podemos definir o regionalismo de duas maneiras. Num sentido largo, toda obra de
arte é regional quando tem por pano de fundo alguma região particular ou parece
germinar intimamente desse fundo. Neste sentido, o romance pode ser localizado
numa cidade e tratar de problema universal, de sorte que a localização é incidental.
Mais estritamente, para ser regional uma obra de arte não somente tem que ser
localizada numa região, senão também deve retirar sua substância real desse local.
Essa substância decorre, primeiramente, do fundo natural clima, topografia, flora,
fauna, etc. como elementos que afetam a vida humana na região; e, em segundo
lugar, das maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e
que a fizeram distinta de qualquer outra. Este último é o sentido do regionalismo
autêntico”. (In: COUTINHO, 1983: 202)
De acordo com este, A Hora da Estrela se encaixaria no que considera ser uma
localização incidental”, já que as questões tratadas no romance ganham um enfoque
universal, e as cidades inseridas na narrativa perdem espaço para temáticas que
independem de qualquer região. Desta forma, podemos perceber que, assim como em
outras obras clariceanas, temos em A Hora da Estrela personagens e temáticas que não
refletem simplesmente as peculiaridades e problemáticas sociais vividas pelo povo simples
de Alagoas e, também, que esta região não tem um papel fundamental na obra. Assim,
Macabéa mais parece, conforme Benedito Nunes, um “ser-no-mundo”. Além disso, a
“alagoana do mundo” se deslocou de sua cidade natal para o Rio de Janeiro, local onde se
desenvolve a história, e este lugar é apenas o cenário no qual serão focalizadas as
problemáticas que envolvem as relações humanas. Assim, não é suscitada a “substância”
deste local, ou melhor, a cidade pouco reflete as questões tratadas no romance, isto é, os
referenciais geográficos, regionais ou de localidade específicas dados ao leitor por Clarice
servem como ponto de partida para uma localização do homem dentro da realidade; porém,
logo encaminham para uma cena ou situação que poderia ocorrer em qualquer outro lugar,
por centrar suas questões na existência do homem, nas suas angústias, nas frustrações, nos
desejos etc.
Um exemplo sobre o papel dos referenciais locais e regionais que encaminham para o
conceito do “ser-no-mundo” é dado por Benedito Nunes no que se refere aos referenciais
que a autora apresenta em A Maçã no Escuro. Para o crítico, nesta narrativa que se inicia
após o personagem Martin sair de um Hotel e seguir sua fuga léguas e léguas pelo deserto:
“Verifica-se, paralelamente, uma abstratificação dos dados referentes ao espaço
geográfico e nacional. (...) ‘O Homem estava no coração do Brasil’ é a única
referência regional precisa. No mais, quanto aos lugares por onde ele passa,
encontramos indicações meramente tópicas Vila baixa, Montanha, fazenda, etc. O
importante é que esse homem, que ‘estava no coração do Brasil’, acha-se, antes de
mais nada, no centro da Natureza, em face das coisas”. (NUNES, 1969: 115)
A análise, de Benedito Nunes, também pode ser observada não só na história de
Martin, mas também na de Macabéa e G. H. Nestas, o sentido global do homem no mundo
ultrapassa o referencial das inserções locais e sociais para dar lugar à inquietação, a uma
consciência reflexiva, às problemáticas das relações humanas, à angústia de viver, à busca
da identidade, ao desejo e à investigação de Ser
10
. A própria ambientação dos lugares
freqüentados pela nordestina nos mostra tal idéia, como veremos a seguir.
10
O termo “Ser” está recorrentemente presente nas análises sobre a obra de Clarice Lispector. Benedito
Nunes, assim como outros críticos, como veremos ao longo de nossa dissertação, usam a terminologia no
sentido filosófico. Em concordância com o crítico, faz-se necessária, neste momento, a apresentação do
sentido com que trabalharemos o termo ao longo de todo nosso trabalho. Para tal, recorremos ao Dicionário
de Filosofia, de José Ferrater Mora. “O conceito de ser, que ocupou um lugar central no pensamento dos
filósofos, tem aspectos muitos diversos, entre outras razões pelos modos como foi expresso lingüisticamente.
Alguns falam de ‘ser’, outros de ‘o ser’ ou ‘o Ser’ e outros do ‘é’. Grande parte das análises e especulações
em torno do conceito de ‘ser’, desde a Grécia, gira em torno de usos de ‘ser’ e ‘é’. (...) Desde muito cedo se
enfrentou a questão de se é preciso entender ‘ser’ no sentido de cópula ou no chamado ‘sentido existencial’.
Se ‘ser’ é entendido como cópula, então requer uma menção de alguma propriedade, qualidade, relação etc.
Em ‘x’ é branco, ‘é’ expressa o fato de x ser branco (como alguns diriam, ‘a brancura’ de x ). Não se pode
então dizer simplesmente ‘é’, porque, como às vezes se percebeu, cabe perguntar ‘é o quê?’ (se se diz ‘x’ é,
pode-se perguntar ‘o que é?’ e responder, por exemplo, ‘branco’). Se ‘é’ é entendido no sentido existencial,
então se entende ‘é’ por algo assim como ‘existe’, ‘x é’ quer dizer neste caso ‘x existe’. Mas para dizer que x
existe não é preciso dizer que é; pode-se dizer, é claro, que existe e pode-se dizer também que ‘há x, isto é,
qualificar x existencialmente (ou particularmente). Se se parte do sentido existencial de ‘é’, então parece que
cabe passar um sentido existencial de ‘ser’. É justamente o que ocorre quando se fala de ‘o ser’ (ou até de ‘o
Ser’), representando-se com isto o que existe, o ‘sendo’ ou ‘ente’” (MORA, 2001: 2654 2655).
1.2.2 – O espaço em A Hora da Estrela
A condição, do homem, de “ser-no-mundo”, apontada por Benedito Nunes na
literatura clariceana, é o resultado da “reversão do espaço ambiente para um espaço
indeterminado, que funde, numa só paisagem única e onírica, outros locais e outras
paisagens” (NUNES, 1995, 115).
Macabéa, por exemplo, é uma alagoana que após a morte da tia vem para o Rio de
Janeiro e vai morar em um quarto com mais quatro moças. Ao apresentar o ambiente em
que a personagem vivia, o narrador descreve a Rua do Acre como um lugar em que ele não
pisa, por ter horror do “pardo pedaço da vida imunda”. E, na seqüência, revela que,
“embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica, ela
era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim” (A Hora da Estrela,
1998: 30-31). Desta forma, é possível perceber que, embora o narrador esteja ambientando
o leitor, o local miserável em que vive Macabéa atua como segundo plano, pois o foco
subjetivo da história é rapidamente revelado. Sua condição econômica, que resulta na
localização de onde vive, mostra uma situação que pode ser a de milhões de pessoas, desde
os tempos bíblicos (“podia ser uma figura bíblica”, A Hora da Estrela, 1998: 30-31). Além
disso, a metáfora do capim (“ela era capim”, A Hora da Estrela, 1998: 31) sugere que a
personagem pode ser de qualquer lugar, apontando, na verdade, para questões universais.
Ou seja, a palavra capim possibilita uma generalização do local de nascença da
personagem, pois, assim como este nasce em “qualquer lugar”, Macabéa também poderia
ser de “qualquer parte”,o tendo este fato importância para os dramas por ela
vivenciados.
Este contraste pode ser também observado se compararmos a história de Macabéa
com a de personagens dos romances sociais dos anos 30, os quais, geralmente, trazem
histórias que são construídas a partir de fatos sociopolíticos que ocorrem em cada região do
Brasil e que, na ficção, ganham, na maioria das vezes, a forma de uma narrativa de
denúncia, discordância, reprovação ou insatisfação com o referencial da própria história
que está sendo “contada”. Já a nordestina de Clarice Lispector, embora tenha apresentada
sua história de vida, fornece informações pouco elucidativas e em mínima quantidade”
11
sobre sua região de nascimento. Tal fato contribui para que se perca como caráter principal
a denúncia dos problemas sociais enfrentados por aqueles que, tão pobres como ela, vivem
em Alagoas.
Na história de G. H., tal questão se revela pontualmente no referencial da solidão
diante do mundo. Segundo Benedito Nunes, a “paixão” da personagem explode na
ampliação do sentido de solidão que ocorre por ela se encontrar no quarto de seu
apartamento, “que está situado no edifício de uma cidade, de um país, de um continente, de
um universo”. Esta perda do referencial local que despertará a consciência é vivida pela
personagem desde criança, conforme podemos observar na citação abaixo:
“Quando era criança, inesperadamente tinha consciência de estar deitada numa cama
que se achava na cidade que se achava na Terra que se achava no Mundo”.
(A Paixão Segundo G. H., 1998: 50)
Esta contextualização do homem como um ser solitário diante do universo, um “ser-
no-mundo”, é o papel fundamental que o regional e o local possuem, pois é exatamente
através da abstração desses elementos de localidade que é construído o amplo cenário em
11
A relação entre as poucas informações sobre região de nascimento da personagem tem como base o
seguinte trecho de A Hora da Estrela: “Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples.
Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e
não muito elucidativas, informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de
carpintaria” (A Hora da Estrela, 1998: 14).
que o homem está inserido. Ou seja, estes referenciais possuem não uma função realista,
mas a de despertar a consciência do homem sobre o que o cerca diante de suas próprias
problemáticas existenciais.
Podemos perceber, ainda, que, mesmo se infiltrando no cotidiano, Clarice Lispector
nos lança a interrogativa sobre a vida e reflete a inquietude humana, quando, por exemplo,
nos apresenta uma personagem aparentemente distante de si, como Macabéa. Mas, se
compararmos a pobre nordestina com a condição de patroa de G. H. (alguém que por sua
formação deveria ter consciência de seu papel e espaço na sociedade), podemos perceber
que proximidade entre Macabéa e outros personagens criados por Clarice.
Vejamos a definição de Benedito Nunes sobre a problemática do homem nos
personagens clariceanos, na qual também incluímos Macabéa:
“O Homem, na novela de Clarice Lispector, qualquer que seja a inserção que se lhe
dê numa determinada ambiência, doméstica ou social, está primeiramente situado
como ser-no-mundo. Lá está, por sob todas as situações particulares, a situação
originária do homem, o homem que existe perante si mesmo e perante outras
existências. Neste sentido é sempre o mesmo homem (...), descobrindo a sua solidão
e o seu abandono”. (NUNES, 1969: 116)
Estas características e comportamentos estão claramente presentes em A Hora da
Estrela e A Paixão Segundo G. H. e revela que, embora Macabéa e G. H. sejam mulheres
de condições sociais completamente díspares, ambas apresentam em suas histórias
situações “originárias do homem”. E, mesmo percorrendo caminhos diferentes, suas
trajetórias levam ao sentimento de “ser-no-mundo”, ainda que suas histórias sejam
ambientadas de forma tão contrastante
12
.
Um outro exemplo deste distanciamento com o regional é o fato de Macabéa pouco
trazer ou cultivar em seu cotidiano heranças culturais do Nordeste, como, por exemplo, a
música (já que ouve a Rádio Relógio, a qual informa “cultura e hora certa”). A comida
12
A ambientação é contrastante se tomarmos como base o contexto sociorregional das personagens.
típica fica, no máximo, na memória, não havendo relevantes demonstrações de desejo
pelos alimentos próprios de sua região. Assim, podemos perceber a forma romanesca
diferenciada que Clarice Lispector usa para contar a história de sua nordestina, fazendo
perceber que A Hora da Estrela ultrapassa os padrões do tradicional romance social da
década de trinta.
Sendo assim, o ambiente social em Clarice Lispector se revela através das relações
humanas, já as diferenças sociais, quando abordadas, se dão através do questionamento do
eu e do outro, sendo tal problemática o principal referencial da narrativa. Esta é a fuga do
“realismo grosseiro
13
e o mergulho na questão existencial, conforme observa Luiz Costa
Lima sobre a Literatura de Clarice Lispector: o local e/ou o regional dos ambientes das
narrativas de Clarice denotam um espaço que pode ser situado em qualquer lugar, pois
possuem, geralmente, dados que logo são abstraídos. Mesmo quando ambienta o leitor
sobre a localidade em que a narrativa se desenvolve, a escritora constrói as cenas com um
foco na problemática da existência, o que leva o leitor à abstração deste cenário, gerando,
assim, a sensação de “ser-no-mundo”, conforme aponta Benedito Nunes.
1.3 – A experiência do “ser-no-mundo”
A partir desta abstratificação dos referenciais concretos dos locais, o personagem
clariceano está no centro de seu universo narrativo e inicia um processo de conhecimento
13
Tal idéia é apresentada por Luiz Costa Lima em “A mística ao revés de Clarice Lispector”. Neste texto, o
crítico apresenta sua análise de algumas obras clariceanas apontando para o enfoque subjetivo da autora
presente desde A Paixão Segundo G. H.: “Os dilemas de G. H. nada têm de raros. O tédio cotidiano, a
vontade de violência, de sensação forte e de sentimentos extraordinários passaram a ser usuais nas grandes
cidades. Melhor dito, em certas classes das grandes cidades. E o desenvolvimento que será próprio ao livro
ou seja, sua parte propriamente do imaginário não negam ou se opõem a esta realidade. Dão-lhe sim um
sentido possível, pelo qual se alcança a raiz de situações e de soluções. Não sendo, portanto, um mero
documento ou testemunho o que seria prova de realismo grosseiro a ‘memória’ de G. H. não deixa,
entretanto, de oferecer elementos assentes em uma realidade anterior e usual” (COSTA LIMA, 1969: 122).
de sua solidão e necessidades. A partir deste momento, a realidade e tudo o que a envolve
servem somente de referencial para a revelação do verdadeiro eu dos personagens. Surgem,
então, como centro da narrativa, os questionamentos existenciais do narrador ou do
personagem sobre a condição do homem no mundo.
Em A Paixão Segundo G. H., por exemplo, ao entrar no quarto da empregada que
fora embora, a personagem inicia o confronto consigo mesma, pois neste momento G. H.
entrará em um mundo até então desconhecido para a vida de patroa. A escuridão e o
aspecto de caverna com que se depara têm a função de uma espécie de túnel que leva G. H.
à perturbação da investigação sobre si mesma. Vejamos o referido trecho:
“Entrei então. (...) Como te explicar: eis que de repente aquele mundo inteiro que eu
era crispava-se de cansaço, eu não suportava mais carregar nos ombros o quê? e
sucumbia a uma tensão que eu não sabia que sempre fora minha. Já estava havendo
então, e eu ainda não sabia, os primeiros sinais em mim do desabamento de cavernas
calcárias subterrâneas, que ruíam sob o peso do primeiro desabamento, abaixava os
cantos de minha boca, me deixava de braços caídos. O que me acontecia? Nunca
saberei entender mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de criar esse
alguém que entenderá.” (A Paixão Segundo G. H., 1998: 44)
O fragmento acima mostra um dos momentos da descoberta da apatia de G. H.
diante da vida que levava. O processo de reflexão se inicia e terá como resultando a
consciência de si e do eu que não se quer ser. A partir de então, a subjetividade humana
adquire o papel principal da narrativa, e tudo o que está à volta serve apenas como
referencial para a efetiva experiência de “ser-no-mundo”, para a busca do entendimento
deste e para a indagação de como é possível se encontrar.
Este é o cerne da temática clariceana. Tais questões envolvem o ser humano das
mais diferentes nacionalidades. Suas peculiaridades narrativas propiciam ao leitor um
mergulho na subjetividade dos personagens. Segundo Ivo Lucchesi, em A Hora da
Estrela:
“a matéria ficcional de que se nutre a tessitura narrativa deixa de ser a investigação
obsessiva e radical da verdade, centrada na essência do indivíduo, para se projetar na
realidade circundante. Esta mudança de percepção da experiência do ser-no-mundo
provoca inevitavelmente a alteração profunda na constituição do projeto narrativo.
Ou seja, a consciência do narrador ultrapassa os limites da sua própria experiência
na razão direta e toma conhecimento da existência do ‘outro’”. (LUCCHESI, 1987: 34)
Este foco no “outro” é a primeira questão que podemos observar diante do fato de
Macabéa apresentar uma aparente falta de consciência de sua condição social e humana, e
aceitar incondicionalmente sua realidade. Temos aqui o que Benedito Nunes considera ser
uma “abstração dos elementos objetivos da realidade” (NUNES, 1969: 115). Mas é
exatamente a partir deste ponto que a questão se amplia, nos mostrando uma nordestina
que tem muito mais a provocar sobre a própria condição humana do que sua situação social.
O próprio narrador da história, Rodrigo S. M., nos relata a forma como essa
provocação ocorre nele através do questionamento que acerca do motivo pelo qual escreve
sobre uma jovem pobre.
“Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem? (...) Para ser
mais do que eu, pois tão pouco sou”. (A Hora da Estrela, 1998: 21)
Sua imediata resposta é a de que Macabéa leva a questões sobre o eu do narrador,
sobre sua própria condição de “ser-no -mundo”, isto é, a narrativa desenvolvida na obra
permite um diálogo profundo com o leitor, expresso através da história de uma nordestina
que, antes de qualquer classificação, é humana. Sua condição de “ser-no-mundo” pode ser
percebida através do trecho de A Hora da Estrela, ao revelar que:
“Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama
num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são
facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam”. (A Hora da
Estrela: 1998, 14)
O exemplo acima permite perceber que a forma como Clarice Lispector constrói a
personagem reflete o sentimento de solidão e uma condição humana que pode representar
qualquer um, dando-lhe, assim, um caráter mais significativamente universal, ou seja,
existencial. Tal processo ocorre logo após “abstração de particularidades locais” e de
“dados sociais”
14
que o livro provoca. Desta forma, a experiência de “ser-no-mundo”
adquire um importante papel dentro da temática existencial, pois a partir dele os
personagens, então invadidos pelo sentimento de angústia, refletem sobre seu papel
enquanto homem em sua existência.
1.4 – A angústia da existência
Nos itens anteriores, iniciamos nossa discussão acerca das temáticas existenciais
presentes na obra clariceana, como, por exemplo, a introspecção, a subjetividade, o
fracasso, a solidão. Vimos também que os referenciais locais e regionais fazem parte de
uma estrutura que serve para ambientar o leitor, mas que ganham um segundo plano ao
situar o personagem como “ser-no-mundo”. Partiremos, então, para a angústia da
existência, uma vez que esta tem início com a problemática do homem enquanto “ser-no-
mundo”.
O sentimento de angústia permeia o paradoxo entre uma realidade e um cotidiano
que protege e o desejo de liberdade que os personagens adquirem ao refletirem sobre si.
Após este rompimento do conforto e da segurança em que se encontravam, os personagens
de Clarice iniciam um processo de angústia, motivados pelo choque interno que o
questionamento da condição da existência ocasiona.
14
Cf. visto no item anterior.
Faz-se necessário, neste momento, a delimitação do conceito de angústia que estará
em questão. Para tal, recorreremos à definição do crítico que nos norteou, Benedito Nunes.
Segundo ele, este é o sentimento existencial que:
“nos desnuda, reduzindo-nos àquilo que somos: consciências indigentes, com a
maldição e o privilégio que a liberdade nos dá. No extremo de nossas possibilidades,
ao qual esse sentimento nos transporta, ela intensifica a grandeza e a miséria do
homem”. (NUNES, 1969: 95)
Esta liberdade ou maldição citada pelo crítico é a liberdade da consciência que na
literatura de Clarice pode ser observada quando surge o sentimento ou a necessidade de
rompimento com o próprio eu. Luiz Costa Lima apresenta como se inicia tal processo nos
personagens de Clarice Lispector da seguinte forma:
“Esquematicamente, a situação comum seria a seguinte: a vida cerca os personagens
de conforto, a segurança de seu dia a dia domestica a potência agressiva do mundo.
Deste quase se afasta o imprevisto. Mas de súbito, por mais perfeito que seja o
círculo de segurança, e por frestas inesperadas irrompe na existência das criaturas a
sensação inédita, o contato perigoso”. (COSTA LIMA, Luiz, 1969: 98)
Este rompimento com o conforto de se “ir sendo”, como a própria definição de
Macabéa por Rodrigo S. M., está presente em A Hora da Estrela no momento em que
Macabéa consegue imaginar-se vivendo uma vida completamente diferente da que possui.
A fresta apontada por Costa Lima é gerada por um acontecimento que pode ou não ser
banal. No conto Perdoando Deus, por exemplo, a personagem inicia seu processo de
angústia ao se deparar com um rato em plena praia de Copacabana; o mesmo acontece com
G. H. ao ficar frente a frente com uma barata; já para Macabéa o encontro com a
cartomante será o ponto de partida.
Mesmo quando refugiados na segurança de uma vida aparentemente sem
problemas, os personagens de Clarice não ficam livres do sentimento de angústia. Ao
trabalhar com temas como o medo, a inércia, a solidão e a condição do homem no mundo,
Clarice provoca o encontro do homem com sua realidade de existir no mundo, que terá
como conseqüência a angústia humana.
Além disso, Costa Lima acrescenta que “não é a qualquer um que o cotidiano pode
ser rompido para que a criatura se ponha em relação com a turbulência da vida” (COSTA
LIMA, 1969: 99). É possível observarmos tal idéia diante da experiência da angústia
através do conto Amor, por exemplo.
Mesmo depois de toda a angústia e a tomada de consciência de que a vida que
levava não era a que desejava, a personagem Ana decide voltar ao seu cotidiano, que não
mais aceitava, e retomar a mesma vida de sempre. E é com a expressão abaixo citada que
Ana, ao voltar do Jardim Botânico, retorna não simplesmente para sua casa, mas para sua
vida diária que, até então, não lhe causava angústias.
Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa!
15
.
(Amor. In:MORICONI, 200: 218)
Esta fuga de Ana nos revela a própria natureza do homem diante de sua condição
angustiante da existência humana e sua tentativa de tentar escapar desta condição, como
aponta Benedito Nunes:
“Pode o homem, através da angústia, encontrar a sua realidade de existente; mas é
para escapar da angústia que ele se refugia no cotidiano”. (NUNES, 1969: 94)
Tal angústia, decorrente da lucidez, aliada à consciência do Ser, provoca também
medo. Este sentimento, por sua vez, prolonga o processo angustiante e revela as limitações
15
Citação do conto Amor, de Clarice Lispector, retirada do livro organizado por Ítalo Moriconi: Os cem
melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
da personagem que, então, prefere não se desnudar. Este efeito pode ser observado no
seguinte trecho de Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres:
“Lóri achava que se ela fosse ela, os conhecidos não a cumprimentariam na rua
porque até sua fisionomia teria mudado. ‘Se eu fosse eu’ parecia representar o maior
perigo de viver, parecia a entrada nova do desconhecido”. (Uma Aprendizagem ou O
Livro dos Prazeres, 1978: 140)
Ou seja, mesmo após o processo de busca pela consciência de si ter chegado ao fim,
a angústia permanece, principalmente quando o sentimento de Ser é pleno. Isto ocorre
porque não se sabe o que fazer com sua nova condição de homem no mundo. Então, um
novo momento de angústia se inicia e só se finda após a decisão entre reproduzir uma
aparente falta de conhecimento de seu eu ou fugir dos padrões até então reproduzidos. É
desta maneira que se sente G. H. A liberdade experimentada é tamanha que ela não
consegue decidir que postura tomar diante das descobertas que fez sobre si. Esta indecisão
dá continuidade ao sentimento de angústia:
“O que é que me havia chamado: a loucura ou a realidade? (...) Perdi durante horas a
minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida (...)
Não sei o que fazer da aterradora liberdade que me pode destruir (...) mas como
faço agora?”. (A Paixão Segundo G. H., 1998: 12-14) [Grifo nosso]
Podemos perceber, então, como a angústia em Clarice Lispector faz com que o
personagem questione sua própria identidade pessoal. As descobertas fundamentais se
descortinam diante de um sujeito apático que é levado a um nível de reflexão sobre ele
mesmo que não imaginava ser possível experimentar. E a conseqüência pode ser também
perigosa para o indivíduo, pois, ao se deparar com seu verdadeiro eu, ele terá a necessidade
de mudança. Tal problemática pode ser observada pelo narrador Rodrigo S. M., de A Hora
da Estrela, no trecho em que descreve sua personagem Macabéa:
“Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à
toa. Se tivesse a tolice de se perguntar ‘quem sou eu?’ cairia estatelada e em cheio
no chão. É que ‘quem sou eu?’ provoca necessidade. E como não satisfazer a
necessidade? Quem se indaga é incompleto. (A Hora da Estrela, 1998: 15)
Este é um dos maiores pontos de angústia presentes na obra. Por não saber quem é,
Macabéa segue sua vida isenta de questionamentos sobre ela e o mundo. É, então, através
do narrador, que a autora apresenta as indagações sobre a personagem. Esta função permite
ao leitor não só um maior conhecimento sobre a identidade de Macabéa, como também
impulsiona Rodrigo S. M. para a consciência reflexiva.
A sensação de desconforto, quase físico, comparado por Benedito Nunes com a
náusea sartreana
16
, que o processo da angústia gera, mobiliza o personagem para uma
inevitável reflexão sobre si. Porém, cada um destes reagirão de forma diferente diante da
tentativa der dar fim a este sentimento. Alguns personagens retornam a suas vidas como se
nada de novo se tivesse experimentado, por não agüentarem conviver com as questões
sobre si motivadas pela angústia. Já outros tentam ultrapassar seus medos e perceber o que,
na verdade, os angustiam, e, assim, mergulham mais profundamente na tentativa de
autodescoberta. Esta postura ocorre porque:
“A angústia, que assinala a extrema lucidez a que chega a consciência em confronto
consigo mesma e com os seres, jamais apaga o nexo entre consciência e sentido”.
(NUNES, 1969: 96)
“Aflige-nos a falta de correspondência entre nós e as coisas, os nossos projetos e o
mundo!”. (NUNES, 1969: 96)
16
“A náusea que Sartre descreve em A Náusea é a forma emocional violenta da angústia, que arrebata o
corpo, manifestando-se por uma reação orgânica definida. Quando nos sentimos existindo, em confronto
solitário como nossa própria existência, sem a familiaridade do cotidiano e a proteção das formas habituais
da linguagem, quando percebemos ainda a irremediável contingência, ameaçada pelo Nada, dessa existência,
é que estamos sob o domínio da angústia, sentimento específico e raro, que nos dá uma compreensão
preliminar do Ser” (NUNES, 1969: 94).
O reconhecimento desta nãocorrespondência entre os personagens e o mundo ocorre
porque, conforme Benedito Nunes, “violentada por aquilo que não pode compreender,
paralisada em sua liberdade, não podendo negar e transcender essa revelação do absurdo, a
consciência decai” (NUNES, 1969: 97). Esta decadência da consciência é o que Clarice
apresenta na construção de Macabéa, pois, mesmo apresentando uma aparente falta de
consciência de si, a personagem demonstra a angústia que a incapacidade de se adequar ao
mundo que a cerca provoca.
“A maior parte do tempo tinha sem saber o vazio que enche a alma dos santos. Ela
era santa? Ao que parece. Não sabia que meditava pois não sabia o que queria dizer
a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só
que precisava dos outros para crer em si mesma, senão se perderia nos sucessivos e
redondos vácuos que havia nela. Meditava enquanto batia à máquina e por isso
errava ainda mais”. (A Hora da Estrela, 1998: 38)
“Em todo caso o futuro parecia vir a ser melhor. Pelo menos o futuro tinha a
vantagem de não ser o presente, sempre há um melhor para o ruim.” (A Hora da
Estrela, 1998: 38-39)
Esta preliminar compreensão do Ser é o resultado mais profundo do processo da
angústia em Clarice Lispector, pois é a partir deste que os personagens terminam sua
sondagem sobre si e iniciam uma mudança ou um retorno aos comportamentos anteriores.
Em A Hora da Estrela, este ápice da angústia perpassa toda a obra, pois desde o início da
narrativa Rodrigo S. M. revela que a necessidade de escrever sobre Macabéa é algo que o
angustia. Segundo Olga de Sá, Rodrigo S. M. “escreve por necessidade de escrever, para se
compreender, porque tem perguntas irrespondidas para fazer” (SÁ, 2000, 175). Tal idéia
pode ser observada no seguinte trecho, em que o próprio narrador escreve:
“Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. (A Hora
da Estrela, 1998: 11)
Esta necessidade de respostas é o que motiva Rodrigo S. M. e, ao mesmo tempo,
revela que o narrador irá através da escrita iniciar seu próprio processo de
autoconhecimento. O mesmo ocorre com outros personagens clariceanos que, mesmo por
caminhos diversos, entram no processo de descoberta do ser, como veremos a seguir.
1.5 – A descoberta do Ser
Como vimos anteriormente, o sentimento de angústia atinge os personagens
clariceanos de tal modo que os levam à reflexão sobre si, dando início ao processo de
consciência do Ser. Observamos, também, que o conhecimento de si não isenta o
personagem clariceano da angústia, pois tal sentimento, muitas vezes, permeia todo o
processo reflexivo.
De acordo com Benedito Nunes, a angústia se prolonga no percurso de
autoconhecimento por ser um momento de encontro com o desconhecido. Ou seja, o
conforto do cotidiano dá lugar a questionamentos e reflexões que causam medo e angústia
por não se saber quais as transformações que as descobertas sobre si ocasionarão. Vejamos
a vivência deste processo em A Paixão Segundo G. H.:
“Foi assim que eu fui dando os primeiros passos ao nada. Meus primeiros passos
hesitantes em direção à vida e abandonando minha vida. O pé pisou no ar, e entrei
no paraíso ou no inferno: no núcleo”. (A Paixão Segundo G. H., 1998: 81)
Este desconhecido experimentado por G. H é o que leva o personagem ao encontro
de si mesmo. As dúvidas e interrogações não anulam o medo de suas respostas, mas ao
mesmo tempo impulsionam para ultrapassar seus limites e renascimento enquanto Ser. A
citação a seguir, de A Paixão Segundo G. H., mostra tal idéia:
“Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? E
no entanto não há outro caminho (...). Como é que se explica que eu não tolere ver,
só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra”. (A Paixão Segundo G. H.,
1998: 13)
Esta postura de G.H. diante de suas próprias verdades, conforme nos esclarece Jean
Paul Sartre, em Verdade e Existência, reflete a necessidade, mesmo que inconsciente, de o
homem entender-se ou encontrar-se dentro do mundo que o cerca. No entanto, o homem
deseja respostas que lhe dêem uma sensação de segurança, ou seja, ele quer chegar através
da “iluminação” a uma verdade que Sartre define como “verdade morta” que o livre das
angustiantes incertezas. O filósofo ressalta que isto ocorre pela necessidade de termos um
“solo”. Ou seja:
“A Iluminação do Ser é um bem absoluto ou devo aquietar-me com o alcance e os
efeitos de minhas evidências, considerar-me responsável pelo que ignoro? Para
irmos em direção a nós mesmos precisamos de um solo. Relativo e absoluto,
finito e infinito, um e múltiplo, particular e universal...”. (SARTRE, 1990: 9) [Grifo
nosso]
Porém, pela subjetividade do homem, o mundo não pode ser fixo. Por sua própria
natureza, este “solo” precisa ter em sua essência o próprio paradoxo humano. Mas o não-
conhecimento ou aceitação deste fato faz com que o medo e a dúvida estejam fortemente
no processo de descoberta de si.
A revelação plena do Ser mostra a existência como um tipo de experiência que
nunca se teve verdadeiramente. A partir de então, inici-se uma intensa necessidade de
entendimento do que se é. Na literatura clariceana, uma situação que ocorre no cotidiano
pode despertar o personagem para a consciência reflexiva, para uma transformação total
que desencadeia uma dolorosa metamorfose humana. Este processo, embora difícil, faz-se
necessário para a descoberta de si mesmo, além de provocar um desejo de libertação dos
comportamentos.
“mas sofrer era bom porque enquanto mais baixo o sofrimento se desenrolava
também se existia como um rio aparte”. (Perto do Coração Selvagem, 1998: 48)
[Grifo nosso]
Este existir realmente ocorre após a descoberta de “ser-no-mundo”, dos momentos
angustiantes e do início da descoberta do Ser. Este encadeamento pode ser entendido
através da explicação que Sartre apresenta em O Existencialismo é um Humanismo de que
a existência precede a essência humana. Vejamos:
“O homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se
define. O homem tal como concebe o existencialista, se não é definível, é porque
primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se
fizer” (SARTRE, 1973: 06)
O diálogo interno é o meio para se chegar a esta descoberta interior. Os
personagens de Clarice Lispector podem até não agir para fazer valer o eu que
descobriram, mas o não pensar sobre si é uma postura que a autora busca interromper.
Além disso, Clarice não incute uma moral em suas histórias, narrativas e personagens. Eles
não reproduzem comportamentos de mudança radical, algumas vezes, esperados pelo
outro. O núcleo das questões acerca da existência em Clarice é o próprio homem e não o
que a sociedade espera dele.
Temos, como exemplo, a personagem Joana, de Perto do Coração Selvagem, que
vai embora de casa, ou melhor, “vai embora da vida que levava, mesmo não tendo um
rumo definido. As descobertas que faz sobre ela mesma, sobre seu casamento e sobre seu
marido não a levam a reorganizar esta estrutura ou tentar “concertá-la”. Após compreender
a si mesma como infeliz, Joana segue na busca de seu eu, dando continuidade unicamente
a sua própria vida. A personagem quebra a expectativa de que uma mulher casada ao
entrar em uma crise, tentar se autoconhecer e obter suas próprias respostastentaria
entender e aceitar o outro que com ela dividia a vida. No entanto, Joana segue seu
caminho, sozinha, para viver o seu eu.
O desfecho de Perto do Coração Selvagem denota a relação do homem com o
outro de que nos fala Sartre
17
. Na descoberta do Ser, tem-se a consciência do quanto o
outro faz parte de nós e como tentamos nos moldar para atender a suas expectativas. Tal
idéia, mesmo que de forma subjetiva ou nas entrelinhas, está relacionada à iluminação do
Ser, conforme Sartre. A relação do eu com o outro desvenda, nos personagens clariceanos,
a centralidade do homem diante da busca pela descoberta de si mesmo. Vejamos em A
Hora da Estrela exemplos de tal idéia através da narrativa de Rodrigo S. M.:
“A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem (...)”.
(A Hora da Estrela, 1998: 20)
“Vejo a nordestina se olhando ao espelho e um rufar de tambor no espelho
aparece meu rosto cansado e barbudo”. (A Hora da Estrela, 1998: 22)
O olhar para outro na busca de si pode ser ainda observado no comportamento da
personagem Joana, de Perto do Coração Selvagem. Nele, percebemos o questionamento de
certos conceitos ensinados e o olhar do outro sobre o comportamento humano em Clarice
Lispector. Observemos tal questionamento no trecho em que a personagem, ainda criança,
após a professora contar uma história, indaga sobre o sentimento de felicidade. Vejamos:
E daí em diante ele e toda a família foram felizes. (...)
O que é que se consegue quando se fica feliz? (...)
Repita a pergunta...?
Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? Repetiu a
menina com obstinação.
(...) Faça a mesma pergunta com outras palavras...
Ser feliz é para se conseguir o quê? (...)
17
“O Olhar de outrem unifica, queira-o eu ou não, o conjunto de minhas condutas e tende a considerar-me
com um ser; aí está a origem da alienação, quer eu faça tudo para me identificar a este ser que o olhar de
outrem me remete, quer eu busque escapar dele. A reflexão pura é tomada de consciência deste fracasso
fundamental da reflexão cúmplice” (SARTRE, 1990: 13).
Pegue um pedaço de papel, escreva essa pergunta que você me fez hoje e guarde-a
durante muito tempo. (...) talvez um dia você mesma possa respondê-la de algum
modo...” (Perto do Coração Selvagem, 1998: 29–30)
Este é mais um exemplo de como Clarice Lispector trabalha o tema da existência e
a descoberta do Ser em sua obra. Afinal, a felicidade parece ser a grande busca da
humanidade. Mas o que se é ou ainda se busca depois que a felicidade é alcançada? Seria
correto afirmar que a busca contínua pela felicidade é a evidência de que tal estado nunca é
alcançado plenamente? Conhecer a si mesmo, ou melhor: descobrir a si mesmo pode levar
à resposta e aos limites de cada um sobre a felicidade. Esta busca é analisada por Benedito
Nunes da seguinte forma:
“Clarice Lispector ultrapassa a medida psicológica do caráter, distanciando-se da
sondagem dos sentimentos e paixões, da análise das múltiplas e complexas
motivações de atitudes, que fizeram do romance moderno, como arte por excelência
do processo da vida individual, no espaço e no tempo, um instrumento habilitado a
explorar o fluxo dos estados de consciência. (NUNES, 1969: 117)
Desta forma, o homem, sua subjetividade, como ele se vê, como sente o mundo,
como enxerga sua condição de Ser existente ganham destaque nas narrativas clariceanas,
mesmo os personagens sendo capazes ou não de “suportar” as respostas sobre seu eu. A
escritora coloca a busca da consciência de si como um inevitável destino de suas histórias
levando o homem a seu interior. Vejamos um exemplo desta idéia:
“O que És? E a resposta é: És. O que existes? E a resposta é: o que existes. Eu tinha
a capacidade da pergunta, mas não a de ouvir a resposta”. (A Paixão Segundo G. H.,
1998: 134)
Encontramos uma correspondência com este trecho em A Hora da Estrela se
observarmos no narrador, Rodrigo S. M., sua incapacidade de lidar com as próprias
respostas e sua tentativa da fuga de simplesmente “se ser” através da escrita.
“Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de
me ser e se não fosse a novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente
todos os dias”. (A Hora da Estrela, 1998: 21)
Podemos perceber, através da citação acima, que o conhecimento que Rodrigo S. M.
tem sobre ele mesmo o motiva a escrever como uma tentativa de mudar sua própria
realidade. É dessa forma que o processo de autoconhecimento está presente em quase todos
os personagens clariceanos. A busca pelo verdadeiro Ser, embora angustiante, é o resultado
da necessidade de liberdade, de questionamento e aprendizado do homem que Clarice
Lispector problematiza em sua literatura e que, segundo Benedito Nunes, é a tradução de
um comportamento existencial que:
“(...) envolve aspectos entrelaçados: o emocional do mal-estar e do fascínio, o
empolgamento da consciência, paralisada em sua negatividade, diante da coisa nua,
fora da teia de significações ligando sujeito a objeto, e, finalmente, a revelação ou
iluminação do hiato que separa o ser da consciência da consciência do ser”.
(NUNES, 1995: 117)
A falta de indagações sobre si aponta para um “hiato” entre o homem e sua
consciência. Tal idéia pode ser observada em A Hora da Estrela no trecho em que o
narrador apresentando a personagem sobre a qual está escrevendo aponta para as
conseqüências da auto-reflexão, mesmo que paradoxalmente mostre que sua Macabéa não
pode ter consciência do que é.
“Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou
completamente de pensar. Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para o
nada”. (A Hora da Estrela, 1998: 32)
Esta reflexão, centrada na consciência do Ser presente em A Hora da Estrela, ganha
dimensão pela intensa pesquisa sobre o homem e sua existência, inserindo o romance em
um contexto essencialmente existencial.
Tal idéia pauta-se na definição de Sartre de que “a consciência não é conhecimento,
mas existência” (SARTRE, 1990: 19). Este conceito pode ser aplicado à obra clariceana se
observarmos que somente após o processo de conhecimento de si o personagem adquire
uma consciência, quer dizer, somente depois de adquirida a consciência é que se percebe a
si mesmo como “ser-existente” dentro de um mundo. Até a conquista desta vive-se em
uma alienação que não se pode considerar como a verdadeira existência do Ser, mas
simplesmente um reflexo do olhar do outro.
É este olhar que A Hora da Estrela nos desperta, pois através desta narrativa a
autora desperta os personagens e, por que não dizer, o leitor, para o que tanto Sartre
quanto Benedito Nunes afirmam ser a iluminação do ser, pois, segundo o crítico,
“iluminada desse modo pela própria coisa, a consciência experimenta, ao mesmo tempo, a
sua superfluidade e o caráter irredutível e injustificável do fato de existir” (NUNES, 1995:
118). É diante desse caráter de “iluminação” da consciência que entendemos a temática
existencial de Clarice Lispector em A Hora da Estrela, pois, ao iniciarmos a leitura do
livro, somos levados pelas palavras de Rodrigo S. M., que nos promete contar a história de
uma nordestina. Criamos, então, a expectativa de uma obra que trate das problemáticas de
uma mulher pobre, que vem para o Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades.
No entanto, com o desenvolver da história, Clarice Lispector nos apresenta a personagem
pelo viés subjetivo dos conflitos apresentados. O sentimento de “ser-no-mundo” tanto da
nordestina quanto do narrador ganha o papel central dentro de uma história que,
metaforizando a região de nascença de Macabéa, consegue levar o leitor para o centro do
mundo humano: ele mesmo.
A forma como Clarice Lispector desenvolve as questões que permeiam a temática
existencial nos encaminha para uma outra investigação nos estudos clariceanos: como a
escritora desenvolve tais assuntos através da linguagem. Dessa maneira, nosso próximo
capítulo mostrará que, assim como a questão existencial pode ser percebida sensivelmente
na obra de Clarice Lispector, o trabalho que a autora desenvolve com a linguagem mostra,
através do uso que faz da palavra, dos signos, dos sentidos e significados, que a
indissociável relação e problemáticas do homem com a linguagem é uma continuidade das
questões apresentadas pela escritora no campo da temática existencial.
CAPÍTULO II
A LINGUAGEM CLARICEANA
COMO PROBLEMÁTICA DA EXISTÊNCIA
2.1 – A linguagem de Clarice Lispector e a crítica: breves abordagens e
apontamentos
A questão existencial está inserida na linguagem clariceana através das
problematizações que a autora apresenta sobre ambas. Tal idéia pode ser percebida ao
observarmos os limites entre o Ser e o dizer presentes na narrativa clariceana. As relações
entre, por exemplo, realidade e linguagem, o eu e o mundo, autoconhecimento e expressão
apontam para a condição do homem de “Ser-no-mundo”, para o fracasso humano, para a
angústia da existência e para a própria “descoberta do Ser”.
Para entendermos este trabalho, de caráter existencial, que Clarice Lispector faz
com a linguagem, é necessário apresentarmos, inicialmente, o impacto que a linguagem
clariceana causou na crítica brasileira, pois as abordagens e interpretações dos críticos
apontam as características, os recursos e as temáticas presentes na escrita da autora, o que
nos permitirá um melhor panorama das problemáticas acerca da existência que serão
discutidas.
Antonio Candido, no artigo
18
em que apresenta sua impressão sobre Perto do
Coração Selvagem, romance de estréia da autora, define a linguagem da escritora como
fruto de uma pesquisa entre a língua, a realidade e os limites que cercam ambas. Além
disso, caracteriza o uso da linguagem como uma inovação dentro da literatura brasileira.
Assim, de acordo com o crítico, Clarice Lispector:
“Se aventura: não segue os caminhos batidos. Em que se aventura? Num novo ritmo
de ficção, numa pesquisa de linguagem para transmitir sua pessoal interpretação do
mundo, por meio de um vocabulário, imagens e torneios que se amoldem ‘às
necessidades de uma expressão sutil e tensa’, de tal maneira que a língua adquira o
‘mesmo caráter dramático de um entrecho’”. (CANDIDO, 1970: 129)
Outro apontamento de Candido, sobre a idéia da linguagem clariceana como
pesquisa, é voltada para o Ser. Segundo o crítico, a busca pela autodescoberta do homem
em relação ao mundo que o cerca está presente também através da própria linguagem
usada por Clarice Lispector. Dessa forma, aponta o primeiro livro da autora como:
“uma obra de exceção, uma variação de suplício de Tântalo, que se lança incansável
sobre as coisas, sempre recusadas. Essa é a razão de ser de Joana, a protagonista: a
procura da pesquisa do Ser. Uma pesquisa anunciada numa pergunta de 198
páginas acerca do homem e do mundo, pergunta jamais respondida e que se
chama literatura. (CANDIDO, 1970: 128) [Grifo nosso]
As idéias de Antonio Candido apontam primeiramente para a forma como Clarice
Lispector estréia na literatura, pois, segundo ele, a escritora foge da até então “tradicional
ficção” através de sua linguagem “de exceção”. Em um segundo momento, o crítico mostra
que a relação entre a linguagem e o Ser acontece através da voz da protagonista, que lança
18
CANDIDO, Antonio. No raiar de Clarice Lispector. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
uma pesquisa em busca do Ser nas 198 páginas (toda obra), apontando, assim, para a tríade
homem/existência/linguagem “através da pesquisa do Ser” na literatura clariceana.
O trabalho de Clarice Lispector no desenvolvimento da palavra levou Antonio
Candido a caracterizá-la, já em 1944, como uma escritora que pensava efetivamente o
material verbal. Para ele, a autora de Perto do Coração Selvagem explora a palavra,
provocando surpresa, uma vez que:
“Nos romances que se publicam todos os dias entre nós, podemos dizer sem mêdo
que não encontramos a verdadeira exploração vocabular, a verdadeira aventura da
expressão. Por maiores que sejam, os nossos romancistas se contentam com
posições já adquiridas, pensando naturalmente que o impulso generoso que os anima
supre a rudeza do material. (...) Raramente é dado encontrar um escritor que, (...),
procura estender o domínio da palavra sôbre regiões mais complexas e mais
inexprimíveis, ou fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo e das
idéias. (CANDIDO, 1970: 126)
Um aspecto interessante, sobre o caráter existencial da linguagem de Clarice
Lispector, é tratado por Gilda de Mello e Souza em sua análise sobre O Lustre, em artigo
homônimo. Neste texto, a autora qualifica o romance como simbólico, aproximando-o, por
exemplo, às novelas de Kafka, pois, segundo ela, “Clarice Lispector nos oferece sua visão
de mundo por meio de um mito” (SÁ, 2000: 38).
“Pretendendo traduzir o que existe de complexo e contraditório no mundo, a
romancista tem de violentar a lógica da linguagem, fertilizar-lhe o despojamento,
preencher-lhe o esquematismo. Tal processo repercute na adjetivação, que não
poderá ser objetiva, definidora, mas será antes subjetiva, para traduzir uma emoção
mais rica.
19
(SÁ, 2000: 36)
19
Olga de Sá exemplifica tal processo com a seguinte observação, feita por Gilda de Mello, sobre o Romance
O Lustre: “Diante da palavra ‘mancha’, que corresponde a uma noção determinada, surgem em qualquer
espírito os possíveis atributos ‘grande’, ‘pequena’, ‘clara’, ‘escura’, ‘larga’, ‘esguia’, todos eles definindo
melhor a noção. Clarice dirá ‘mancha cansada’ e a noção subitamente se enriquece: ‘...frágil como uma
lembrança, vislumbraria a mancha cansada do afogado afastando-se.’ Esse processo de personificação ou
animização das coisas impregna os cheiros, as cores, a paisagem e, além de atingir a palavra, violenta
também o sentido lógico da frase” (SÁ, 1979: 36, 37).
Observando a subjetividade que permeia a linguagem de Clarice Lispector, através
de uma análise do caráter introspectivo e universalizante das primeiras personagens
clariceanas, Sérgio Buarque de Holanda
20
define Clarice Lispector como possuidora de um
diferencial renovador que acontece através da técnica romanesca que abandona “a
inspiração novelística brasileira, patente no êxito da literatura de 30, nos ‘romances
regionais’”. Esta retirada do foco romanesco para “psiquê humana” resulta em novos
caminhos e paisagens além da dita “real”.
Este enfoque literário da escritora, no que tange à exploração da consciência, seja
dos personagens, seja do narrador, faz com que a introspecção e a subjetividade ganhem
um espaço só explorado, efetivamente, por autores da literatura estrangeira. Quinze anos
após a estréia de Clarice Lispector na literatura, Roberto Schwarz escreve um artigo sobre
Perto do Coração Selvagem, que, como uma forma de síntese analítica sobre o mundo
traduzido por Lispector, aponta que o romance é uma “iluminadora reflexão” artística
sobre a condição humana
21
.
Alguns anos mais tarde, já nas décadas de sessenta a setenta, novos comentadores
da obra de Clarice Lispector, como, por exemplo, Afonso Romano de Sant’Anna, Alfredo
Bosi, Assis Brasil, Benedito Nunes, Eduardo Portella, Luiz Costa Lima, Massaud Moisés,
entre outros, adensam a lista daqueles que escrevem sobre a produção e a linguagem da
autora, e acrescentam análises de cunho existencial aos estudos clariceanos. Desta forma,
temos, cada vez mais presente, a idéia de que Lispector produz uma literatura de caráter
existencial e abstrata através de uma linguagem que foge aos padrões convencionais. Tais
características podem ser percebidas através das palavras de Alfredo Bosi. Para ele, o
caráter abstrato da autora parte do psicológico para o metafísico ao apresentar um “uso
20
HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Caminhos do romance”. Folha da Manhã. São Paulo, 30 de maio de
1950.
21
SCHWARZ, Roberto. “Perto do Coração Selvagem”. A Sereia e o desconfiado. São Paulo: Civilização
Brasileira, 1965, p. 37-41.
intenso da metáfora insólita, a entrega ao fluxo de consciência, a ruptura com o enredo
factual”, além de “construções sintáticas anômalas que obrigam o leitor a repensar as
relações convencionais da linguagem” (BOSI, 1970: 476).
As análises apresentadas acerca da linguagem de Clarice Lispector são referenciais
para a percepção de que as temáticas desenvolvidas pela autora, apresentadas no primeiro
capítulo, permeiam também a linguagem que ela utiliza em suas obras. Tal idéia pode ser
percebida através do trecho seguinte, no qual podemos observar a subjetividade e o
paradoxo do homem diante da realidade, da existência e da própria palavra:
“Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a realidade, antes da minha
linguagem, existia como um pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui
impelida a precisar saber o que o pensamento pensa. A realidade antecede a voz que
a procura, mas como a terra antecede a árvore, mas como o mundo antecede o
homem, mas como o mar antecede a visão do mar, a vida antecede o amor, a matéria
do corpo antecede o corpo, e por sua vez a linguagem um dia terá antecedido o
silêncio.” (Água Viva, 1998: 43)
Abordando a irremediável dependência que o homem tem em relação à linguagem,
Clarice revela não só a fundamentação do próprio ato de escrever, como também do seu
esforço de linguagem diante do limite entre o Ser e o dizer.
A realidade é a obra prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la e como não
acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que
instantaneamente reconheço. A linguagem é meu esforço humano. Por destino volto
com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado
através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que
obtenho o que ela não conseguiu.” (Água Viva, 1998: 43)
Esta articulação entre a linguagem e a impossibilidade de correspondência entre
palavra e realidade tem como resultado uma construção densa, na qual o sujeito se mistura
à sua forma de escrever. Assim, tanto o eu quanto a linguagem tornam-se indissociáveis,
levando o sujeito (personagens, narradores e leitores) a estados de:
a) questionamentos;
b) contemplação;
c) de tentativa de autoconhecimento;
d) descoberta dos próprios limites;
e) consciência do fracasso da linguagem diante da realidade.
Sobre esta problemática, cabe notar que, segundo Olga de Sá, o que caracteriza a
linguagem de Clarice Lispector “é a fusão dos elementos numa harmoniosa unidade
refeita, no plano da escritura, em busca do ser que o narrador tão teimosamente persegue:
A vida e ou a linguagem” (SÁ, 2000: 217).
Esta questão sobre a existência estar inserida na própria escritura de Clarice
Lispector, na qual vida e linguagem se confundem, nos remete à percepção da tênue linha
que separa ficção e realidade. Segundo Umberto Eco:
“Na ficção, as referências precisas ao mundo real são tão intimamente ligadas que,
depois de passar um tempo no mundo do romance e de misturar elementos ficcionais
com referências à realidade, como se deve, o leitor já não sabe muito bem onde
está”. (ECO, 2004: 131)
Este processo, quando estamos diante da literatura de Clarice Lispector, ocorre por
meio de uma linguagem que poderíamos caracterizar de existencial, já que reflete
constantemente as problemáticas que envolvem o Ser. A escrita clariceana coloca o leitor
em um jogo no qual as palavras provocam a perda da noção do que delimita o sujeito, a
existência, a realidade, a linguagem e a ficção.
Os referenciais de realidade e linguagem “misturados aos elementos ficcionais”,
conforme Umberto Eco, são constantemente explorados na escrita clariceana. Tais
elementos metaforizam o esforço humano, a experiência do Ser, a existência, já que, como
afirma Eco, há “obras de literatura que se esforçam para ser tão ambíguas quanto a vida
(ECO: 2004, 123).
Para Benedito Nunes, Clarice “tematiza” a própria linguagem. E como faz isso?
Apresentando a linguagem como sujeito. E, através das construções feitas pela autora,
temos uma literatura que problematiza o próprio processo de escrever. Tal trabalho
provoca no leitor, acostumado às estruturas narrativas e semânticas tradicionais, um certo
desconforto inicial, que só poderá ser transposto se ele for capaz de entrar no jogo de
surpresas gerado pela narrativa. A forma como o texto irá afirmar ou quebrar a expectativa
do leitor se relaciona ao questionamento “da própria linguagem enquanto capaz de denotar
o ser” (SÁ, 2000: 153). Para melhor entendermos a relação entre a linguagem clariceana e
o Ser, seguiremos com uma discussão sobre os limites da expressão humana e a forma
como são abordadas por Clarice Lispector.
2.2 – Linguagem e existência: limites, questionamentos e confluências
Como foi apresentado no item anterior, a escritura
22
de Clarice Lispector, desde sua
estréia na literatura, com Perto do Coração Selvagem, “provoca”
23
não somente os leitores,
mas também a crítica. Esta afirmação se pauta nas discussões e comentários sobre o
22
O termo “escritura”, criado por Roland Barthes e aqui apresentado, será usado ao longo de toda nossa
dissertação. Optamos por este termo e não por “escrita” por acreditarmos, em concordância com Olga de Sá,
em A escritura de Clarice Lispector, que seu conceito expressa melhor a idéia a que se propõe nosso
trabalho. Usaremos o termo no sentido Barthesiano, pois, segundo Leyla Perrone-Moisés, em sua tese de
livre-docência A Crítica-escritura (um discurso dúplice), São Paulo, Universidade de São Paulo, 1975
este termo pode ser compreendido como “a escrita do escritor.” Desta forma, manteremos em nossas análises
a idéia de Barthes de que “O escritor tem de destacar uma fala segunda do visgo das falas primeiras que lhe
oferece o mundo, a história, sua existência” (Barthes, 1995:09).
23
Usamos este vocábulo no sentido de desafio. Para melhor exemp lificarmos nossa intenção, vejamos a
seguinte definição de Olga de Sá: “O estilo de Clarice Lispector está cheio de estranhezas, de paradoxos, de
expressões que, parecendo formular evidências, manifestam a face chocante do obvio” (SÁ: 2000, 144).
Assim, ao afirmarmos que “a escritura de Clarice Lispector provoca”, temos a intenção de chamar a atenção
para o fato de que os leitores diante da literatura clariceana se deparam com uma linguagem que suscita
inevitáveis desconfortos e, conseqüentemente, discussões sobre as “estranhezas” inovadoras que a escrita
permite, conforme apontado por Olga de Sá.
desafio não só temático, mas também estilístico, da linguagem usada por Clarice. O leitor
clariceano se depara com uma escritura permeada por inversões sintáticas, conotações,
sinestesias, transgressões de pontuação e de estilística, e também com uma linguagem que
é ao mesmo tempo instrumento e personagem principal de sua ficção. Conforme Olga de
Sá, “o questionamento clariceano, expresso em ficção, é o da própria linguagem, enquanto
capaz de denotar o ser” (SÁ: 2000, 153).
Temos em Clarice Lispector uma escritura que se afasta dos padrões estéticos por
apresentar, através de seu “esforço” com a linguagem, questões que envolvem o homem
diante dos limites da comunicação, colocando-a no centro desta discussão.
A forma peculiar com que Clarice constrói seu mundo ficcional revela não apenas a
subjetividade que permeia a língua verbal e seus problemas, mas apresenta e questiona a
própria relação que o homem tem com a linguagem. Temos, como efeito da escritura de
Clarice, uma sensação de “provocação” e “estranheza”
24
definidas por Olga de Sá como
estados de “mal-estar” do leitor. Isto ocorre porque a linguagem clariceana requer de quem
lê, conforme Antonio Candido, “uma desautomatização dos clichês morais e ficcionais”.
Assim, os questionamentos sobre a própria linguagem e o sujeito têm início naquilo que
Umberto Eco classifica como “cadeia de artifícios de expressão
25
. Ou seja, Eco atenta
24
O termo vem da idéia que alguns autores apresentam para definir o efeito que provoca a literatura de
Clarice. Afonso Romano de Sant’Ana afirma: “a ‘performance’ de Clarice, para usar o termo de Antonio
Candido, é insólita, ela é tão ‘diferente’ como suas personagens. Daí que, estilisticamente, sua obra possa ser
concebida como um ‘estranhamento’ dentro do quadro de nossa ficção” (SANT’ANNA: 1973, 185).
25
Este conceito de Umberto Eco aponta para a relação entre texto e interpretante, pois é através dela que
podemos perceber as ações motivadoras de um texto ou a “cadeia de artifício da expressão” que determinada
obra provoca. Vejamos: “Antes de mais nada: na questão dos interpretantes, toda a vida cotidiana apresenta-
se como um retículo textual em que os motivos e as ações, as expressões emitidas com objetivos claramente
comunicativos, bem como as ações que provocam, tornam-se elementos de um tecido semiótico em que
qualquer coisa interpreta qualquer outra. Em segundo lugar, não há termo que, sendo incoativamente uma
proposição e um argumento, não signifique os textos possíveis em que poderá ou poderia ser emitido. É, no
entanto, com respeito a esta riqueza de implicitações, promessas argumentativas, pressuposições remotas, que
o trabalho de interpretação impõe a escolha de limites, a delimitação de rumos interpretativos e, por
conseguinte, a projeção de universos do discurso” (ECO, 2004: 30-31).
para pressupostos
26
sobre a relação que se estabelece em uma obra literária entre o autor e
o texto. Para este autor, qualquer que seja a natureza da mensagem, há nela um postulado
de competência gramatical por parte do destinatário. Isto significa dizer que o desempenho
do leitor junto ao texto é mais acentuado quando ele se relaciona com o leque de
possibilidades que uma só palavra pode evocar, inclusive com aqueles sentidos que o
dicionário não menciona, pois novas possibilidades de interpretação podem ser geradas por
extensão de sentido, por metaforização ou por outro processo natural de uma língua, que se
movimenta por causa das experimentações e dos usos ao longo dos tempos e da sua
história etimológica. Além dessa competência pressuposta no leitor (de uma dada obra),
caberia também a ele cumprir outra exigência do texto: “atualizar-lhe o conteúdo através
de uma série complexa de movimentos de cooperação” (ECO, 2004: 36).
Sendo assim, de acordo com Eco, todo texto é incompleto e depende diretamente
do leitor para atualizar sua “cadeia de artifícios de expressão”, pois é nesse processo de
atuação do leitor diante do texto que é iniciada a correlação entre códigos. Vejamos:
“Uma expressão permanece puro flatus vocis enquanto não for correlacionada, com
referência a um determinado código, ao seu conteúdo convencionado: neste sentido,
o destinatário é sempre postulado como operador (não necessariamente empírico),
capaz de abrir, por assim dizer, o dicionário para toda palavra que encontre e de
recorrer a uma série de regras sintáticas preexistentes para reconhecer a função
recíproca dos termos no contexto da frase.” (ECO, 2004: 35)
Para Eco, toda mensagem apresentada solicita ao destinatário/leitor sua
competência gramatical. Este, então, recorre às regras e ou estruturas gramaticais
preexistentes àquele texto para tentar dar conta de sua leitura. Ao deparar-se com a
26
(1) As competências lingüísticas do autor e do leitor; (2) os elementos extrínsecos: a história, o contexto; o
sociocultural; (3) o tipo de texto, o tipo de leitor, o tipo de leitura; (4) os movimentos de cooperação; (5) os
elementos extralingüísticos. Umberto Eco trata destes pressupostos nas seguintes obras: Lector in Fabula e
Seis passeios pelo bosque da ficção.
literatura clariceana, o leitor percebe estar diante de uma escritura que subverte alguns de
seus modelos semânticos e gramaticais. A partir deste ponto, temos instaurada, na ficção
de Clarice Lispector, uma das problemáticas que envolvem a linguagem clariceana.
Devemos, então, para dar continuidade a esta discussão, partir do pressuposto de que os
leitores de Clarice Lispector devem ser segundo palavras da própria autora
27
“pessoas
de alma já formada”, cujo entendimento dar-se-á tanto através da palavra como por meio
dos vazios que seu texto suscita. Caso contrário, isto é, se não considerarmos o “leitor
ideal
28
de Clarice Lispector, teríamos como primeiro entrave o não-entendimento ou a
não-fruição estética quanto à forma de escrever da autora, e, assim, não seria possível
avançarmos para a questão da existência evocada através da linguagem.
Podemos dizer que o uso da língua verbal, nas obras de Clarice Lispector, se
apresenta como inerente à existência do homem, uma vez que este tem a expectativa de
que a linguagem permita a expressão clara e por vezes objetiva de idéias, sentimentos,
pensamentos e sensações.
O leitor clariceano é provocado por uma linguagem que questiona sua própria
função de comunicar, os referenciais de mundos, a existência humana, seus limites e
problemáticas, não só no primeiro romance, mas ao longo de toda a obra de Clarice
Lispector. Tais questões podem ser percebidas, sensivelmente, em A Hora da Estrela. No
27
Dedicatória de A Paixão Segundo G. H. “a possíveis leitores”: “Este livro é como um livro qualquer. Mas
eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a
aproximação, do que quer que seja, se faz aproximação, se faz gradualmente e penosamente atravessando
inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar.
28
“Esse tipo de leitor é o que eu chamo de Leitor-Modelo uma espécie de tipo ideal que o texto não só
prevê como colaborador, mas ainda procura criar. Um texto que começa com “Era uma vez” envia um sinal
que lhe permite de imediato selecionar seu próprio leitor-modelo, o qual deve ser uma criança ou pelo menos
uma pessoa disposta a aceitar algo que extrapola o sensato e o razoável”. (ECO, 2004: 16)
diálogo entre Macabéa e seu então namorado, Olímpico de Jesus, será possível perceber
essas idéias, como mostrará nossa análise:
“Ele: Pois é.
Ela: Pois é o quê?
Ele: Eu só disse pois é!
Ela: Mas “pois é” o quê?
Ele: Melhor mudar de conversa porque você não me entende.
Ela: Entender o quê?
Ele: Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!
Ela: Falar então de quê?
Ele: Por exemplo, de você.
Ela: Eu?!
Ele: Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente.
Ela: Desculpe mas não acho que sou muito gente.
Ele: Mas todo mundo é gente, Meu Deus!
Ela: É que não me habituei.
Ele: Não se habituou com quê?
Ela: Ah, não sei explicar.
Ele: E então?
Ela: Então o quê?
Ele: Olhe, eu vou embora porque você é impossível!
Ela: É que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é que eu faço para
conseguir ser possível?
Ele: Pare de falar porque você só diz besteira! Diga o que é do seu agrado.
Ela: Acho que não sei dizer.
Ele: Não sabe o quê?
Ela: Hein?
Ele: Olhe, até estou suspirando de agonia. Vamos não falar em nada, está bem?
Ela: Sim, está bem, como você quiser.
Ele: É, você não tem solução. Quanto a mim, de tanto me chamarem, eu virei eu.
No sertão da Paraíba não há quem não saiba quem é Olímpico. E um dia o mundo
vai saber de mim.
É?
Pois se eu estou dizendo! Você não acredita?
Acredito sim, acredito, acredito, não quero lhe ofender.”
(A Hora da Estrela, 1998: 47 49) [Grifo nosso]
O diálogo é iniciado por um “pois é”. Podemos perceber claramente uma quebra da
estrutura narrativa padrão. A expectativa do leitor é a de que antes de um “pois é” haja
algum assunto, porém não há. Na narrativa que antecede o diálogo temos somente a
descrição de que o casal estava sentado “no que é de graça: banco de praça pública”, não
possuindo assim qualquer contextualização sobre o início do diálogo. É exatamente fora de
um contexto que Macabéa e Olímpico começam sua conversa. O “pois é” que inicia o
diálogo causa no leitor, que acompanha as páginas anteriores do livro, certa estranheza. No
entanto, ao seguir com a leitura, podemos perceber que aquele que lê já conota a
dificuldade da plena comunicação entre os namorados. A própria reação de Macabéa de
não entender ao quê o namorado estava se referindo é o início das questões que são
tratadas ao longo deste diálogo. Podemos observar, ainda, a presença da temática da
existência e das limitações do Ser e da linguagem, já que a própria condição de Ser
humano não é “sentida” pela personagem ao afirmar que não se habituou “a ser gente”.
Já os limites da linguagem, para dar conta de dada realidade e permitir a “fiel
tradução” de sentimentos e mundos, são mostrados através da incapacidade tanto de
Macabéa quanto de Olímpico de conseguir ter acesso ao mundo um do outro por meio da
comunicação. Olímpico ameaça ir embora pelo fato de Macabéa Ser “impossível”. Ela
responde que só sabe “ser impossível” e ainda pede ajuda do namorado para conseguir “ser
possível”. Neste momento do diálogo, podemos perceber que a personagem, diante do que
considera ser a realidade, tem consciência de sua “incapacidade” de se moldar ao mundo e,
por esse motivo, considera-se “impossível”.
Tais questões refletem as relações entre o “eu e o outro” e o “eu e o mundo”,
constantemente presentes na literatura clariceana. Para Olga de Sá, a escritura clariceana é
um monólogo que se transforma em diálogo entre o “eu e o outro”
29
. Vale ressaltar que o
“outro” em Clarice tanto pode ser representado pelo que é contraditório em um mesmo
indivíduo, conforme Olga de Sá, ou, ainda, pode representar a própria relação que o
homem trava com uma determinada pessoa.
29
Tal idéia é apresentada por Olga de Sá ao usar como exemplificação o romance Perto do Coração
Selvagem: “O monólogo representa um mergulho no fluxo de consciência das personagens para colher a
gênese dos pensamentos e sentimentos, coordenadas do mesmo dualismo interior em que parece debater-se a
romancista: o desejo de viver ou analisar a consciência da vida; participar do sangue grosso da existência ou
atirar-se no jogo da escritura. (...) Na verdade, o monólogo, sobretudo na ficção, continua a ser um diálogo,
ao menos implícito, pois subtende a presença do leitor, real ou virtual. A própria personagem, que monologa,
se desdobra em duas entidades mentais: o ‘eu’ e o ‘outro’, um ‘eu’ que fala e o mesmo ‘eu’ que se ouve,
como se fosse um ‘outro’” (SÁ: 2000, 141-142)
Diante de dada realidade na qual se encontra o personagemseus questionamentos
em relação ao “outro” ou a sua própria condição humana desencadeia-se o momento em
que “resgata-se, neste caso, a monotonia com a profundidade e a riqueza, porque este é um
modo fundamental de colher, ao vivo, as indagações íntimas do homem a respeito do ser”
(SÁ, 2000: 142), ou seja, a limitação da linguagem, diante da expressão, retoma a temática
da existência pelo paradoxo “o eu e o outro-eu” ou “o eu e o outro”, revelando assim
questões que permeiam as relações do consigo mesmo, com as pessoas e com o mundo.
Tais problemáticas, que envolvem a subjetividade do sujeito, a expressão do eu e
a apreensão deste eu pelo outro podem ser vislumbradas em Olímpico, o qual acredita
ser o que a realidade a sua volta o “impõe”, pois seu “eu” é a conseqüência da forma como
o “outro” o vê. Sua noção de si mesmo é justificada quando afirma que “Quanto a mim, de
tanto me chamarem, eu virei eu”. Assim, temos um casal que exemplifica o paradoxo
humano e a relação de cada um com seu referencial de “eu” e “outro”. Enquanto Macabéa
apresenta sua falta de identidade diante do mundo, Olímpico constrói a sua pautado em
informações que o mundo externo lhe oferece. A consciência que tem de si mesmo é
revelada, ao leitor, através da relação com uma pessoa numa situação exatamente oposta,
ou seja, uma namorada que não se reconhece como parte do que a cerca.
A discussão sobre as “possibilidades” e “impossibilidades” do Ser, presente em A
Hora da Estrela, mostra que a escritura clariceana exige do leitor aquilo que Umberto Eco
chama de “mundo mobiliado”
30
, pois os personagens apresentam, para quem está lendo,
indagações que para muitos leitores podem representar “um novo mundo”, uma vez que a
30
Quando nos referimos à idéia de que o diálogo entre Macabéa e Olímpico solicita o mundo mobiliado do
leitor, nos pautamos nas seguintes idéias de Umberto Eco: “O texto põe em jogo alguns indivíduos (pessoas,
coisas, conceitos) dotados de algumas propriedades (...). Mas, enquanto o texto não for melhor atualizado,
deixa-se em suspenso uma decisão definitiva sobre as pertinências destes indivíduos a um mundo definido,
‘real’ ou possível. Assim, o leitor, como primeiro movimento para poder aplicar a informação que lhe foi
fornecida pelos códigos e subcódigos, assume transitoriamente uma identidade entre o mundo a que o
enunciado se refere e o mundo da própria experiência, tal qual é refletido pelo dicionário base. Se, à medida
que a atualização procede, se descobrem discrepâncias entre o mundo da experiência e aquele enunciado,
então o leitor realizará operações extensionais mais complexas” (ECO: 2004, 59)
escritura de Clarice Lispector foge da simples representação do real. Tal efeito ocorre
porque, nas palavras de Umberto Eco, “na verdade, espera-se que os autores não só tomem
o mundo real por pano de fundo de sua história, como ainda intervenham constantemente
para informar aos leitores os vários aspectos do mundo real que eles talvez desconheçam
(ECO: 2004, 100)
Com isso, queremos dizer que o leitor tem também seu próprio “mundo” solicitado
ao deparar-se com questões sobre os referenciais de real, do Ser e dos questionamentos
sobre a linguagem dar conta da comunicação entre os seres. Diante deste “jogo estético”,
ele é levado, através da narrativa, a refletir sobre, e a ampliar, seu “mundo mobiliado”.
Assim, a literatura de Clarice Lispector faz refletir um mundo de subjetividade, de
metáfora humana e de uma linguagem que admite nem sempre conseguir transpor todas as
expectativas do Ser. Um novo “mundo possível” transforma a linguagem em objeto da
narrativa, através de questões que envolvem homem e existência, por intermédio de uma
escritura peculiar e densa. Luiz Costa Lima considera tal escrita como “fuga do realismo
grosseiro”, por provocar no leitor
31
“uma surpresa perturbadora” que sugere um mergulho
no próprio sujeito.
2.3 – Linguagem, literatura e os referenciais existenciais da realidade e da
ficção
A necessidade que o homem tem de conhecer a si mesmo se depara,
freqüentemente, com as fronteiras impostas pela comunicação, uma vez que os referenciais
de mundo e de linguagem tanto do eu quanto do outro não poderiam ser idênticos. Na
31
Conforme as próprias palavras de Álvaro Lins.
literatura de Clarice Lispector, os referenciais existenciais e de linguagem fazem parte do
jogo estético que revela a complexidade do real em que o homem está inserido. Vejamos
tal idéia através do conceito de “jogo estético” apresentado por Benedito Nunes:
“... o jogo estético, que suspende ou neutraliza, por meio da imaginação, a
experiência imediata das coisas, dá acesso a novas possibilidades, a possíveis modos
de ser que, jamais coincidindo com um aspecto determinado da realidade ou da
existência humana, revelam-nos o mundo em sua complexidade e profundeza”.
(NUNES, 1969: 130)
Tal jogo caracteriza a escritura clariceana como possuidora de uma relação
essencial entre “a ação narrada e o jogo da linguagem”. Dessa forma, temos o que o crítico
considera ser a “linguagem tematizada” na ficção da escritora, uma vez que, a palavra
também revela a necessidade dos personagens de se expressarem livremente
32
.
“Já no primeiro deles [Perto do Coração Selvagem] se observa uma relação
essencial entre a ação narrada e o jogo da linguagem, como situação problemática
dos personagens que andam à busca de comunicação e expressão. Assim, a
linguagem, tematizada na obra de Clarice Lispector, envolve o próprio objeto
da narrativa, abrangendo o problema da existência como problema da
expressão e da comunicação. (NUNES: 1969, 130) [Grifo nosso]
As análises de Benedito Nunes mostram que os personagens de Clarice Lispector
deparam-se com a questão de que a língua, por vezes, transforma-se numa barreira oposta à
comunicação. Tal fato, de certa forma, exemplifica o impacto que a narrativa clariceana
causa em seu leitor, fazendo com que sejam reorganizados seus referenciais pela inevitável
consciência de que estes não conseguem dar conta de toda experiência vivida até então.
Podemos perceber estas idéias no seguinte trecho de Perto do Coração Selvagem, no qual
a personagem Joana sente-se aprisionada pela linguagem:
32
“Eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim...” (Perto do Coração Selvagem. 1998: 24) [grifo
nosso].
Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão e
liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as
verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo
ainda não tem nome. (Perto do Coração Selvagem, 1998: 70) [Grifo nosso]
A personagem Joana revela que se sente limitada a um espaço em que a palavra não
consegue expressar seus sentimentos e sua busca é o reflexo da insuficiência da linguagem
em sua realidade. Desta forma, seria a língua verbal um tipo de cárcere para a existência?
A problemática de Joana desloca-se do questionamento do real e de sua condição enquanto
sujeito e caminha para a consciência de que o aprisionamento vivido ocorre pelo
distanciamento da expressão e, conseqüentemente, da linguagem. De acordo com Eco, “a
literatura mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio coletivo, cria
identidade e comunidade, mantendo em exercício também a nossa língua individual
(ECO, 2003: 10, 11). Assim, a comunicação passa a ser também um problema vinculado à
própria condição da existência. Esta inevitável distância pode ser entendida se
consideramos que “não conseguimos exprimir tudo o que somos e adquirimos um ser
aparente mediante aquilo que conseguimos exprimir” (NUNES, 1969: 132).
A linguagem tematizada por Clarice Lispector remete às idéias de Umberto Eco
33
sobre o fato de a literatura colaborar para dar sentido a nossa existência. Desta forma,
vejamos o que o teórico escreve sobre a relação literatura, existência e homem:
“Não deixamos de ler histórias de ficção, porque é nelas que procuramos uma
fórmula para dar sentido a nossa existência. (ECO, 2004: 145)
Diante da concepção de que a ficção apresenta para o leitor uma possibilidade de
levá-lo, mesmo que inconscientemente, à “descoberta do Ser”, Umberto Eco acredita que é
33
Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
a busca do sujeito pelo entendimento do ser e da existência que motiva a leitura. Esta
procura ocorre, naturalmente, não somente através da narrativa ficcional, mas também em
toda literatura existente.
Neste processo de conhecimento por meio da leitura, a literatura ficcional cumpre
um importante papel, pois através dela temos a chance de vivenciarmos experiências que
confirmam ou não, em parte ou totalmente, determinadas crenças e referenciais que
possuímos, dando lugar, diversas vezes, a novos conceitos e descobertas
34
.
Esta é a experiência que Clarice Lispector provoca através de suas obras. Nelas,
encontramos “mundos mobiliados” sendo questionados pelas histórias de seus
personagens. É certo que as obras literárias, dada a sua natureza, provocam indagações no
leitor, porém podemos observar que, na literatura clariceana, os questionamentos sobre o
Ser, a existência e a realidade são intensificados pela temática, pela linguagem e pela
narrativa. Dessa maneira, vejamos, através do texto da autora, o motivo pelo qual a
temática da existência e o papel da linguagem aparecem como questões necessárias ao
homem:
“Mas é que basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as realidades, a única
irredutível, a da existência”. (Perto do Coração Selvagem, 1998: 22)
As idéias de Umberto Eco sobre a relação do homem com a literatura e o trecho
anterior de Perto do Coração Selvagem permitem observar a constante presença da questão
da “existência” na literatura de ficção. Para tal, é preciso entender como ocorre a relação
do próprio leitor/sujeito.
34
“Ao lermos uma obra de ficção, suspendemos nossa descrença em relação a algumas coisas e não a outras.
(...) a fronteira entre aquilo em que devemos acreditar e aquilo em que não devemos acreditar é bastante
ambígua” (ECO, 2004: 83).
Segundo Eco, as informações que recebemos ao longo de toda nossa experiência de
vida ajudam a construir nosso referencial de mundo, pois “ninguém vive no presente
imediato; ligamos coisas e fatos graças à função adesiva da memória pessoal e coletiva
(história e mito)” (ECO, 2004: 136137). Enquanto sujeitos, temos a necessidade de nos
situarmos dentro da realidade que nos cerca. Precisamos saber sobre a história da
humanidade, os fatos que mudaram o percurso desta, da mesma forma que necessitamos
compreender como as coisas que nos cercam são construídas ou por que existem:
“Nosso relacionamento perceptual com o mundo funciona porque confiamos em
histórias anteriores. Não poderíamos perceber inteiramente uma árvore se não
soubéssemos (porque outras pessoas nos disseram) que ela é o produto de um longo
processo de crescimento e que não cresce da noite para o dia (...)”. (ECO, 2004:
136137)
Necessitamos ainda de uma memória familiar, mesmo que não a tenhamos vivido
35
.
Julgamos saber o que nos cerca através de tudo o que nos é transmitido desde a nossa
infância. Pouco questionamos certos discursos já socialmente aceitos como verdades.
Quando estes são destruídos em função de uma nova “verdade”, temos então de reformular
conceitos e referências, já que “aceitamos como verdadeira uma história que nossos
ancestrais nos transmitiram, ainda que hoje chamemos esses ancestrais de cientistas”
(ECO, 2004: 137). Assim, nos localizamos, de certa forma, dentro da realidade e nos
sentimos como parte da existência desta realidade.
Em nossas experiências com o mundo da ficção não é diferente. Usamos os
conceitos e comportamentos aprendidos também no ato da leitura. Trazemos conosco
35
“Confiamos num relato anterior quando, ao dizer ‘eu’, não questionamos que somos a continuação natural
de um indivíduo que (de acordo com nossos pais ou com o registro civil) nasceu naquela determinada hora,
naquele determinado dia... (...) Esse emaranhado de memória individual e memória coletiva prolonga nossa
vida, fazendo-a recuar no tempo, e nos parece uma promessa de imortalidade” (ECO, 2004: 136-137).
nossa “Enciclopédia
36
e a todo instante testamos se o que estamos lendo é condizente com
o referencial de verdade e de realidade a que estamos, até então, habituados. No entanto,
por essa intensa necessidade de não perdermos a noção de “nossa existência” dentro da
“realidade”, acabamos por questionar a todo momento a “representação do real” na
literatura.
A conceituação sobre o Leitor-Modelo
37
de Eco mostra que mesmo entrando
conscientemente no jogo proposto pela ficção, sendo um romance histórico ou uma fábula
o leitor terá sempre como referencial o seu mundo, que foi “mobiliado” através daquilo
que considera real. A ligação com o desejo de sentir-se parte deste real ou de existir dentro
desta realidade não será perdida nem mesmo diante de uma ficção científica, por exemplo.
Pois, como o teórico nos explica, até mesmo o mais “irreal” dos romances é construído
através da referência de dados, objetos ou conceitos da realidade, os quais o leitor usará
como recurso no ato de sua leitura. Isto é o que Umberto Eco chama de “história
inverossímil”, porém com ambientes ou referenciais verossímeis
38
.
Assim, o sujeito, o outro, a existência, a memória individual e a coletiva, os
referenciais de realidade e a verossimilhança são elementos que fazem parte de todo o
comportamento do homem diante da vida real e ficcional. No mundo construído por
Clarice Lispector eles ganham o papel de protagonistas em uma literatura que problematiza
36
Este termo é utilizado por Umberto Eco para explicar a relação existente entre realidade e ficção no ato da
leitura. “Por ‘enciclopédia’, entendo a totalidade do conhecimento, com o qual estou familiarizado apenas em
parte, mas ao qual posso recorrer porque é como uma enorme biblioteca composta de todos os livros e
enciclopédias todos os papéis e documentos manuscritos de todos os séculos, inclusive os hieróglifos dos
antigos egípcios e as inscrições cuneiformes. A experiência é uma longa série de decisões que me levaram a
confiar na comunidade humana, me convenceram de que o que a Enciclopédia Total descreve (em geral de
maneiras contraditórias) representa uma imagem satisfatória do que chamo de mundo real. Em outras
palavras, o modo como aceitamos a representação do mundo real pouco difere do modo como aceitamos as
representações de mundos ficcionais” (ECO, 2004: 96).
37
“... uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar. Um
texto que começa com ‘Era uma vez’ envia um sinal que lhe permite de imediato selecionar seu próprio
leitor-modelo, o qual deve ser uma criança ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar algo que extrapola o
sensato e o razoável” (ECO, 2004: 15).
38
“Temos de admitir que, para nos impressionar, nos perturbar, nos assustar ou nos comover até com o mais
impossível dos mundos, contamos com nosso conhecimento do mundo real. Em outras palavras, precisamos
adotar o mundo real como pano de fundo” (ECO, 2004: 89).
esses elementos através da linguagem. Podemos citar, como exemplo, a forma como a
autora mostra uma representação que um simples inseto (como a barata, de A Paixão
Segundo G. H.) pode ter para a sociedade, como este inseto não só faz parte do conjunto
“existência humana”, mas também como uma barata pode provocar uma relação catártica
no homem (como narrado por G. H.), pela própria condição da existência de ambos.
Assim, podemos perceber o papel que o referencial de “existência” desempenha na
vida do sujeito, as formas como ela se desenvolve no processo da leitura e a importância
que tem para o homem. Estas questões podem ser observadas através das idéias de
Benedito Nunes
39
, ao definir a produção de Clarice Lispector. Vejamos:
“Autoconhecimento e expressão, existência e liberdade, contemplação e ação,
linguagem e realidade, o eu e o mundo, conhecimento das coisas e relações
intersubjetivas, humanidade e animalidade, tais são os pontos de referência do
horizonte de pensamento que se descortina na ficção de Clarice Lispector.
(NUNES, 1995: 99)
Não é difícil reconhecermos os elementos, acima citados por Benedito Nunes,
problematizados através da escritura de Clarice Lispector, principalmente se observarmos a
constante alusão que a linguagem clariceana faz a si mesma e como esta reflete as questões
existenciais que permeiam o Ser. Tal idéia pode ter como referência as palavras de Affonso
Romano de Sant’Anna, pois, para ele, em Clarice Lispector, a linguagem alude “a
possibilidade do impossível, o êxito do fracasso, a tentativa de falar diante do silêncio”
(SÁ, 2000: 167), ou seja, ao tentar dar conta do “possível” diante do “impossível”, a
própria linguagem reproduz o processo de paradoxo a que o homem está inevitavelmente
envolvido ao longo de toda sua existência. Ao longo desta experiência, ele pode ou não se
modificar a qualquer momento, motivado por sua subjetividade ou até mesmo pela
39
NUNES, Benedito. O Drama da Linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2ª ed. São Paulo: Ática,
1995.
mudança de olhar sobre a realidade que o cerca.
40
Em A Legião Estrangeira, Clarice
escreve que o sujeito pode ser modificado através das palavras que antecedem e
ultrapassam o homem. Isto denota a problemática “autoconhecimento e expressão”, a que
Benedito Nunes se refere em sua definição
41
:
“As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam”.
(A Legião Estrangeira, 1964: 111)
A palavra, na ficção de Clarice Lispector, ganha por vezes a atribuição de
“construir” o homem, sua identidade e seus referenciais de mundo, mostrando como toda
linguagem integra a construção da realidade e da questão da existência humana.
“Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos sou eu que escrevo o que estou
escrevendo. (...) A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha
vida mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só
palavra que a signifique”. (A Hora da Estrela, 1998: 11)
Esta verdade interior que a palavra busca revelar mostra a inevitável relação da
linguagem com “indagações íntimas do homem a respeito do ser” (SÁ, 2000: 142) e com
mundo que o cerca.
40
Para Umberto Eco, a mudança do homem diante do que o cerca e da literatura acontece porque “qualquer
passeio pelos mundos ficcionais tem a mesma função de um brinquedo infantil. As crianças brincam com
boneca, cavalinho de madeira ou pipa a fim de se familiarizarem com as leis físicas do universo e com os
atos que realizarão um dia. Da mesma forma, ler ficção significa jogar um jogo através do qual damos
sentido à infinidade de coisas que aconteceram, estão acontecendo ou vão acontecer no mundo real. Ao
lermos uma narrativa, fugimos da ansiedade que nos assalta quando tentamos dizer algo de verdadeiro a
respeito do mundo. Essa é a função consoladora da narrativa - a razão pela qual as pessoas contam histórias e
têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma
forma no túmulo da experiência humana”. (ECO, 2004: 93)
41
Tal definição, citada anteriormente, encontra-se na página 70.
2.4 – A linguagem clariceana na construção de “novos mundos”
Como vimos, a impossibilidade da perfeita equivalência entre o “mundo real” e o
“mundo subjetivo”, problematizada por Clarice Lispector, provoca em seu leitor o
processo de reorganização tanto de sua “enciclopédia” quanto de seus conceitos ficcionais.
Esta discussão nos remete à idéia que Umberto Eco
42
apresenta sobre o conceito de
“mundos possíveis”
43
, no processo da leitura, e a possibilidade de falar desses “mundos”
na Literatura.
Para Eco, o leitor usa, inicialmente, sua “enciclopédia” e experiências para prever o
que irá acontecer na história. No entanto, esta postura tem, inicialmente, uma função de
“reconhecimento” com aquilo que considera ser a “realidade”, pois “vivemos no grande
labirinto no mundo real, que é maior e mais complexo que o mundo de ’Chapeuzinho
Vermelho’. É um mundo cujos caminhos ainda não mapeamos inteiramente e cuja
estrutura total não conseguimos descrever” (ECO, 2004: 121).
A linguagem de Clarice Lispector possibilita ao leitor a ampliação de sua noção do
“possível”. Ou seja, na escritura de Clarice Lispector, a noção de “mundo possível” é
solicitada como referencial na leitura
44
, como ponto de partida, mas seu universo logo se
amplia através das subversões que a autora faz com a linguagem usual
45
. Ao deparar-se
com um texto que foge da estrutura sintática e semântica corrente, o leitor clariceano,
42
ECO, Umberto. Lector in Fabula. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
43
A definição deste conceito será apresentada logo a seguir, pois acreditamos ser necessário apresentar antes
um pouco mais das questões que envolvem tal idéia.
44
“(...) os leitores precisam saber uma porção de coisas a respeito do mundo real para presumi-lo como o
pano de fundo correto do mundo ficcional” (ECO, 2004: 91).
45
Clarice não teme a quebra de regras gramaticais e semânticas. Especialistas em Língua Portuguesa
reconhecem os valores poético, estético e estilístico da autora. Como exemplo desse reconhecimento das
subversões que a escritora faz através da linguagem, o tradutor Oscar Mendes observa: “É certo que ela
escreve diferente. Não plano geral da ficção, a frase clariceana adquire uma dimensão intocável. Se tentarmos
corrigi-la pela pauta do português corrente, teremos perdido a grande estilista que ela é” (SÁ, 2000: 147).
Para Benedito Nunes, os recursos usados por Clarice e “condenados” na produção textual, em geral, revelam
o aprofundamento da autora no processo da escrita. As técnicas usadas pela autora transgridem as normas,
fazendo com que o leitor se sinta inicialmente incomodado. Porém, neste momento, é preciso que quem lê
concorde em entrar no “jogo estético” no qual “um texto ficcional sugere algumas capacidades que o leitor
deveria ter e estabelecer outras” (ECO, 2004: 120-121).
diante de tal desconforto, é motivado a “reformular” sua própria relação com a linguagem
e com os referenciais de mundo. Para Eco, é exatamente o desconforto que a literatura
provoca que pode levar o leitor a conhecer um “novo mundo possível”.
Vejamos a definição deste conceito apresentado pelo teórico:
“... um mundo possível não consiste num conjunto vazio e sim num conjunto pleno
ou, para usar uma expressão que circula na literatura em questão, um mundo
mobiliado. Por isso, não devemos falar de tipos abstratos de mundos possíveis que
não contenham listas de indivíduos (...), mas, ao contrário, de mundos ‘grávidos’
cujos indivíduos e propriedade devemos conhecer”. (ECO, 2004: 104)
Assim, como apontado por Eco, na escritura de Clarice Lispector nos deparamos
com “mundos ‘grávidos’ cujos indivíduos e propriedade” conhecemos inicialmente através
de nossa “enciclopédia” ou “mobília”. Mesmo a escritura clariceana partindo deste “mundo
real”, o leitor é levado a conhecer histórias e personagens que se despem de expressão
vocabular e de conceitos gregários de mundo.
E como este processo se inicia? Na literatura de Clarice Lispector, tal rompimento
se faz através de uma linguagem que “inverte estruturas ficcionais”. Conforme a análise de
Candido, já apresentada anteriormente, a linguagem clariceana força o leitor a uma
desautomatização dos clichês morais e ficcionais, quebrando a linearidade discursiva,
questionando e invertendo modelos de escrita e, assim, provocando estranhamento diante
de certas imagens e colocações, mas “pescando” o “leitor pelas entrelinhas”.
Este processo em que a escritura de Clarice Lispector fisga o leitor pela linguagem,
levando-o a um “novo mundo”, a uma “nova linguagem”, foi vivenciado por Sérgio Milliet
através de sua experiência de leitura de Perto do Coração Selvagem, aqui apresentado por
Olga de Sá:
“Ia enterrar o volume na estante quando, acordada a consciência profissional, lê ao
acaso a página 160 e acha-a excelente: sóbria e penetrante. A continuação da leitura
não decepciona. A linguagem envereda por inesperados atalhos, atinge o poético,
usa soluções inéditas, sem cair no hermetismo ou nos modismos modernistas. Uma
linguagem pessoal, de boa carnação e musculatura, de adjetivação segura e aguda,
que acompanha a originalidade e a fortaleza do pensamento, que os veste
adequadamente (...)”. (MILLIET. In: SÁ, 2000: 27)
Através das palavras de Cândido e Milliet, é possível perceber a forma peculiar
com que a escritura de Clarice Lispector envolve o leitor, motivando-o a conhecer “um
novo mundo” por meio das problemáticas propostas pela autora. Tal processo provocado
pela literatura, para Umberto Eco, é não só positivo como necessário, pois, para ele:
“Construir o mundo de referimento, ao invés de tomar o nosso da forma como ele é,
representa uma grande ajuda não apenas para a semiótica textual, mas também para
as meninges de qualquer pessoa normal que, dada uma proposição, não se pergunta
absolutamente quais e quantas são todas as suas possíveis conseqüências lógicas”.
(ECO, 2004: 123)
Em A Hora da Estrela, Clarice Lispector problematiza o “mundo possível” da
linguagem através da narrativa sobre Macabéa. Podemos perceber tal idéia no trecho em
que o narrador do romance apresenta o ato de escrever como algo que ultrapassa a história
da personagem.
“Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus
que nos mandou inventar. Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito
da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo, portanto, não por
causa da nordestina, mas por motivo grave de ‘força maior’, com se diz nos
requerimentos oficiais, por ‘força de lei’”. (A Hora da Estrela, 1998: 18)
No “mundo possível” elaborado por Clarice, o paradoxo e o limite, tanto da
linguagem quanto do homem, perpassam o próprio cerne da narrativa e da temática,
reforçando, assim, o caráter existencial de sua obra.
Ao observarmos A Hora da Estrela sob este prisma, podemos perceber que a “não-
expressão verbal” de Macabéa resulta em uma postura apática, o que ocorre pela sua
limitação diante da linguagem. A personagem tem sua voz “calada” pela
impossibilidade/incapacidade de transpor seus sentimentos e pensamentos em palavras
46
.
Este problema se estende ainda na dificuldade que a nordestina tem até de “entender certas
situações que vive
47
. Podemos dizer que este comportamento não está vinculado
unicamente ao seu histórico regional, social ou financeiro, mas também à sua relação de
“impotência” diante da linguagem.
“A maior parte do tempo tinha o saber vazio que enche a alma dos santos. Ela era
santa? Ao que parece. Não sabia que meditava, pois não sabia o que queria dizer a
palavra. Mas parece-me que sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que
precisava dos outros para crer em si mesma, senão se perderia nos sucessivos e
redondos vácuos que havia nela”. (A Hora da Estrela, 1998: 38)
Se voltarmos nosso olhar para o narrador da história, podemos perceber que este é a
única voz de Macabéa. No entanto, ele aproveita a história de sua personagem, presa nos
46
Um exemplo de tal situação pode ser verificado através do seguinte trecho do romance:
“Glória perguntou-lhe:
Porque é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
É para eu não me doer.
Como é que é? Hein? Você se dói?
Eu me dôo o tempo todo.
Aonde?
Dentro, não sei explicar.
Aliás cada vez mais ela não sabia explicar. Transformara-se em simplicidade orgânica” (A Hora da Estrela,
1998, 62).
47
Você está com começo de tuberculose pulmonar.
Ela não sabia se isso era coisa boa ou coisa ruim. Bem, como era uma pessoa educada, disse:
Muito obrigada, sim?
O médico simplesmente se negou a ter piedade. E acrescentou: quando você não souber o que comer faça um
espaguete bem italiano” (A Hora da Estrela, 1998: 68).
limiares da palavra, para revelar sua busca, enquanto escritor, por uma linguagem que
revele a verdadeira forma de escrever, ou seja, Rodrigo S. M. admite que mesmo ele, por
vezes, não consegue revelar pela palavra o Ser que é sua personagem: “o que me proponho
a contar parece fácil e à mão de todos. Mas sua elaboração é muito difícil” (A Hora da
Estrela, 1998: 19).
Ao transpor para sua literatura esta problemática que envolve o homem, seus
referenciais de “mundos possíveis” e os limites da comunicação, Clarice Lispector não só
tematiza como entrelaça existência e linguagem a partir de situações e de indivíduos de
nosso cotidiano. Este trabalho que a autora faz através de sua escritura foi observado por
Luiz Costa Lima
48
em outras obras da autora. Em sua análise sobre A Paixão Segundo G. H.,
por exemplo, escreve que os dilemas de G. H. nada têm de raros e aponta que o tédio
cotidiano, a vontade de violência, a sensação forte e os sentimentos extraordinários são
usuais em certas classes da cidade grande. Ainda de acordo com o crítico, na referida obra,
Clarice foge do mero testemunho que se assenta a uma realidade usual e interior,
distanciando-se dos padrões do “realismo crítico” através do campo da linguagem.
Estas observações vão ao encontro com as idéias de Umberto Eco aqui
apresentadas, isto é, o envolvimento do leitor de Clarice Lispector ocorre pela forma como
a autora apresenta novos “mundos possíveis” em sua obra ao subverter a idéia tradicional
de “falar do mundo”. Assim, conforme as palavras de Álvaro Lins, na linguagem de
Clarice Lispector “a realidade não fica escondida ou sufocada, porém é levada para os seus
planos mais profundos, mais originais, nas fronteiras entre o que existiu de fato e o que
existiu na imaginação”, resultando em uma escritura que “provoca, pela novidade, uma
surpresa perturbadora” (SÁ, 2000: 33).
48
COSTA LIMA, Luiz. “A mística ao revés de Clarice Lispector”. Por que Literatura. Petrópolis:
Vozes,1969.
CAPÍTULO III
A NARRATIVA CLARICEANA EM TRÊS NÍVEIS EXISTENCIAIS
3.1 – Três níveis da narrativa clariceana: realidade objetiva, introspecção do
Ser e existência subjetiva
Neste capítulo, trataremos da estrutura narrativa da literatura clariceana e
poderemos perceber uma forma de narrar que possui três níveis. Tal subdivisão ocorre
diante de uma “narrativa horizontal e vertical” que reflete também o foco central dado pela
escritora em sua temática e linguagem, ou seja, o homem e sua existência.
Esta investigação teve início ao observarmos, primeiramente, o fato de A Hora da
Estrela apresentar o narrador e as questões que envolvem a problemática de escrever como
uma das temáticas do livro. Posteriormente, foi possível perceber que a profundidade com
que Clarice Lispector escreve sobre temas existenciais parte de uma realidade “acessível ao
mundo da nossa experiência cotidiana” (ECO, 2004: 140). Segundo Eco, este é o plano
horizontal da narrativa, uma vez que o texto explora temáticas cujo entendimento parece
ser alcançado de forma mais imediata.
Neste sentido, pode-se dizer que uma narrativa horizontal tende à dada
superficialidade, pois se remate (revela) àquilo que pode ser apreendido, ou
experimentado, perceptivelmente mais “facilmente” por um conjunto maior de leitores.
Isto pode parecer contraditório, já que dissemos, há pouco, que Clarice Lispector
atinge uma profundidade no nível narrativo partindo de um plano horizontal. Em que nível,
então, a escrita (o texto) da autora se desenvolve?
“Se, no início de sua carreira, a escrita de Clarice Lispector foi qualificada ‘por um
crítico de valor’ (CANDIDO, 1970: 127) como ‘ingenuamente naturalista’, parece que há
tempos tal classificação já está superada, uma vez que o tom ‘natural’ é conseqüência de
um laborioso esforço lingüístico, estruturado racional e lingüisticamente” (CORRÊA,
2006: 41).
De acordo com Costa Lima, a “linguagem de Lispector contém como uma
armadilha: a sua simplicidade enganosa, podendo dar a impressão de uma planura sem
fim, de uma superfície horizontal” (COSTA LIMA, 1997: 529, 530) [Grifo nosso]. A
“armadilha” da escrita clariceana é encontrada não só em sua linguagem, mas também em
sua estrutura narrativa, que torna o nível horizontal apenas como ponto de partida e segue
tendo como foco narrativo a experiência introspectiva, pessoal e única do homem diante de
seu cotidiano, da vida, do mundo (narrativa vertical).
Como exemplo da mescla entre os planos horizontal e vertical temos o papel do
narrador e do seu ofício apresentados em A Hora da Estrela, já no sétimo parágrafo do
romance, através das palavras de Rodrigo S. M., quando este apresenta a forma e a história
que contará, além de inserir-se como um “personagem”:
“Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar
as palavras que vos sustentam. A história determino com falso livre-arbítrio vai
ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu,
Rodrigo S. M.. (A Hora da Estrela, 1998: 13) [Grifo nosso]
A importância dada a si, dentro da própria narrativa, dá início a questionamentos
sobre a escrita, os modelos narrativos e o papel do narrador apresentados por Clarice
Lispector, na referida obra. Tais questões nos encaminham para a investigação de como
esses temas são abordados dentro na narrativa da autora. O narrador, como um dos
personagens principais desta história, direciona nosso olhar para a presença e
simultaneidade entre a escritura, a realidade, o Ser e a existência também dentro da própria
estrutura narrativa clariceana. Desta forma, seguiremos nossa análise pelo plano narrativo
de Clarice Lispector, observando a forma como a questão do homem e sua existência
perpassam tal processo.
3.2 – A estrutura narrativa em Clarice Lispector: da horizontalidade à
verticalidade
Assim como Olga de Sá
49
, acreditamos que A Hora da Estrela dialoga com toda a
obra da escritora. Nossa afirmação parte do princípio de que, também nesta obra, Clarice
nos proporciona um aprofundamento acerca do universo do homem, da vida e da tentativa
de compreensão sobre si mesmo e do mundo que o cerca. Essas características estão
presentes em todos os seus romances anteriores. O que para alguns críticos e
comentadores, como já apresentado em nosso primeiro capítulo, pode parecer um romance
49
Olga de Sá, em A Escritura de Clarice Lispector, escreve ao iniciar sua análise sobre A Hora de Estrela
que “este livro dialoga com todo o universo ficcional de Clarice Lispector (...)” (SÁ,1979: 269).
de cunho puramente realista, no sentido de denúncia das diferenças sociais, possui, na
verdade, abordagens que vão além do que consideramos ser uma “horizontalidade
narrativa”, isto é, uma narrativa na qual prevalece o campo dos fatos e da realidade. Para
melhor explicitarmos tal conceito, observemos, inicialmente, que Clarice Lispector, em A
Hora da Estrela, parte de uma realidade, conhecida pelos brasileiros, que é fruto da
exclusão. Assim, são abordadas conseqüências que sofrem aqueles que, assim como
Macabéa, são socialmente excluídos por questões educacionais, financeiras e, por que não
dizer, também regionais. No entanto, a autora apresenta, através destes dados tão
concretos, muito mais uma investigação sobre a alma humana do que uma denúncia social.
Umberto Eco explica este recurso inicial na narrativa da seguinte forma: “Um mundo
narrativo toma emprestado os próprios indivíduos e suas propriedades do mundo ‘real’ de
referência (ECO, 1986: 111).
Sobre a questão de referencial de realidade presente em A Hora da Estrela, temos
as seguintes palavras de Olga de Sá, ao sintetizar o livro como:
“Um relato, registro de fatos. Contra seus hábitos, o narrador apaixonou-se por fatos.
Acabará, porém, por cansar-se deles: são banais e definíveis. Nos interstícios da
narrativa, o que fica mesmo é o ‘sussurro’. ‘Os fatos são sonoros, mas entre os
fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona’ (HE p.31)”. (SÁ, 1979:
269) [Grifo nosso]
É interessante observar o sentido de “sussurro” apresentado por Olga de Sá como
característica da narrativa de A Hora da Estela, pois através da “exploração” desta palavra
é possível o vocábulo como sendo quase uma voz, aquilo que está entre o que se fala e o
que se cala. Desta forma, Olga de Sá aponta para o caráter existencial de A Hora da
Estrela, o qual se iniciou em Perto do Coração Selvagem e que foi seguido a cada
narrativa com descobertas e indagações sobre o Ser.
Através da narrativa sobre a personagem Macabéa, Clarice Lispector aborda
questões humanas, como, por exemplo, a solidão humana, a ingenuidade e o caráter que o
homem, mesmo diante de muito pouco que a vida oferece, pode ou não manter. Neste
sentido, cabe observar que o comportamento de Olímpico, personagem ambicioso e
vaidoso, mostra-nos o paradoxo inerente à existência do homem. Suas atitudes são
motivadas pelo desejo de ser aceito por uma sociedade que cruelmente exclui aqueles que
não se encaixam nos padrões. A imagem de Macabéa, para ele, é a reflexão da sua, pois
Olímpico sabe que ambos vivem a mesma “condição de ser-no-mundo”: “O rapaz e ela se
olharam por entre a chuva e se reconheceram como nordestinos, bichos da mesma espécie
que se farejam. Ele a olhara enxugando o rosto molhado com as mãos. E a moça, bastou-
lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiabada-com-queijo(A Hora da Estrela, 1998: 43).
A tentativa de fuga deste espelho humano, de que lhe serve a namorada, o faz trocá-
la por Glória, já que esta compartilha com ele o desejo e o sonho de ser como “alguém da
alta sociedade”. O cabelo loiro de “farmácia”, a constante maquiagem, mesmo que
exacerbada, e a própria forma como se relaciona com Macabéa são elementos que denotam
a postura de Glória perante a vida. Suas atitudes diante de Macabéa reforçam em Glória o
sentimento de que é possuidora de um poder e de uma sedução que a colega não tem.
A aceitação da traição de Olímpico com Glória reflete em Macabéa uma tolerância
de quem vê a vida como uma seqüência de fatos irremediáveis. Esta é uma questão sempre
presente na existência do homem, que, por vezes, passa por momentos de passiva aceitação
da vida, com uma apatia diante dos acontecimentos cotidianos que o afeta, mas que nada
faz para mudá-los. Ao lermos esta obra de Clarice, nos defrontamos com esta indagação
sobre a passível aceitação dos fatos da vida:
“Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor.
Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando”. (A Hora da
Estrela, 1998: 23)
Este mesmo processo pode ser percebido num outro romance, considerado por
Benedito Nunes como o mais existencial da obra de Clarice: A Paixão Segundo G. H.
Completamente isolada, G. H., ao longo da narrativa, vive mergulhada em uma total
solidão. No entanto, diferentemente da nordestina de A Hora da Estrela, ela vivencia o
início de um processo de descoberta de si mesma. Já Macabéa vive tal experiência somente
no final de sua existência, porém motivada pelo atropelamento ou, metaforicamente, pelo
“encontro”
50
com um carro. Na maioria das vezes, o início ou busca da consciência de si
mesma ocorre após o “encontro” dos personagens com alguns objetos ou pessoas que o
fazem começar a enxergar a si mesmo. Para Macabéa, isto ocorre em sua consulta com a
cartomante e é finalizado quando é atropelada pelo Mercedes amarelo, na sua imaginação
pertencendo ao homem que a amaria e a “salvaria” da vida que possuía.
Já a abastada patroa G.H. começa a conhecer-se após seu “encontro” com um inseto
que “vive abaixo dos pés da sociedade”, “que vive no esgoto”. Lugar este reservado
somente ao que causa nojo ao homem, onde se encontram os dejetos da sociedade, inseto
este do qual se tem asco também por sua insignificância e pavor que provoca. Podemos
perceber Macabéa como uma barata para a sociedade, pois quem a quer por perto?
“...ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém” (A Hora da Estrela,
1998: 13).
Os exemplos dados anteriormente nos encaminham para a discussão sobre os níveis
narrativos desenvolvidos por Clarice em sua obra, pois o enfoque na existência humana, e
nas problemáticas do Ser, isto é, na experiência interior, se desenvolve, na narrativa
50
Encontro este sempre presente na obra clariceana, como vimos no primeiro capítulo através do item sobre
“a descoberta do ser”.
clariceana, independentemente do fato de determinado personagem ser pobre ou rico, culto
ou com pouco conhecimento formal, casado há anos ou solteiro. Tais “roupagens” pouco
importam; todos viverão os dramas da existência.
Na verdade, a condição ou papel social ganha força pelo prisma da experiência
interior de cada um, ou seja, as vivências e os acontecimentos exteriores são o ponto de
partida para a uma reflexão sobre como o homem se sente e lida com cada uma dessas
experiências. Desta forma, a narrativa de Clarice Lispector está centrada nos sentimentos
gerados pelos acontecimentos. Para melhor expormos tal idéia, vejamos, na próxima
página, a estrutura da narrativa clariceana
51
:
51
O esquema proposto tem como objetivo expor a estrutura narrativa clariceana, porém vale ressaltar que
nossa fundamentação tem por base o conceito sobre estrutura narrativa apresentado por Roland Barthes no
artigo “Introdução à analise estrutural da narrativa”. Para Barthes, “a complexidade de uma narrativa pode-se
comparar à de um organograma, capaz de integrar os movimentos para trás e os saltos para diante; ou, mais
exatamente, é a integração, sob formas invariadas, que permite compensar a complexidade aparentemente
indomável, das unidades de um nível; é ela que permite orientar a compreensão de elementos descontínuos,
contíguos e heterogêneos (...), a integração narrativa não se apresenta de uma maneira serenamente regular
(...), a narrativa apresenta-se assim como uma série de elementos mediatos e imediatos, fortemente
imbricados; a <<distaxial*>>, mas a integração superpõe-lhe uma leitura <<vertical>>: há uma espécie de
<<encaixamento>> estrutural, como um jogo incessante de potenciais (...)” (BARTHES, 1973: 58).
*É interessante notar a maneira como Barthes utiliza em sua definição a palavra distaxia, uma vez que esta
tem como sentido a dificuldade na coordenação dos movimentos voluntários.
3 Segundo nível vertical da narrativa clariceana
(questionamentos existenciais a partir de uma visão de si em
relação a todo o resto)
Questões existenciais,
o homem / o Ser,
parcial ou total descoberta sobre si,
revelações sobre o mundo que o cerca,
reflexões seguidas de tentativas ou desejo de mudanças.
1 Narrativa horizontal (ponto de partida)
Realidade, fatos, posição e papel social, cotidiano, comportamentos, sociedade,
superficialidade do homem em relação aos fatos, à vida e às relações.
Momento de transição para o segundo nível da narrativa
Sentimento de medo e solidão (abandono),
solidão positiva e construtiva que levam ao desejo de descoberta de si mesmo
2 Primeiro nível vertical da narrativa clariceana
Lispector
(momento de rompimento com o mundo exterior
“concreto” para um efetivo mergulho no Ser)
Ultrapassagem do sentimento de medo e
solidão, desejo e busca da descoberta de
si mesmo.
Revelação,
introspecção que
levarão à descoberta do
eu
.
v
e
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t
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c
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l
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z
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ç
ã
o
Horizontalidade
Benedito Nunes, através de suas análises de romances clariceanos,
52
ratifica a
estrutura narrativa que apresentamos anteriormente. Através das análises do crítico,
podemos perceber a ruptura com os referenciais da realidade e do cotidiano para um
mergulho na tentativa de “consciência de si, na experiência do sentido da existência. Este
rompimento com o meio “real” e, conseqüentemente, com o cotidiano inicia uma
consciência que por meio de uma auto-análise busca a descoberta do eu. Em A Hora da
Estrela, tal processo é claramente vivenciado pelo próprio narrador, Rodrigo S. M.
“Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido, e ao
escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino. Quem já não
se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?” (A Hora da Estrela, 1998: 15)
Vale ressaltar, neste momento, que não estamos aqui afirmando que os referenciais
de realidade tenham um papel menor dentro da literatura clariceana, ou, muito menos, na
produção ficcional de qualquer outro escritor, pois, como vimos no capítulo anterior, eles
são ingredientes ou, conforme Umberto Eco, parte da “enciclopédia” do leitor, que poderá
52
Benedito Nunes escreve, em O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector, sobre algumas
narrativas clariceanas. Em análise sobre Perto do Coração Selvagem, o crítico trata das experiências
interiores da personagem Joana narradas por Clarice Lispector. Segundo ele, “Abundante e significativas,
essas vivências absorvem os acontecimentos exteriores, escassos e insignificantes, e exprimem o conflito
dramático que cinde a personagem, interiormente dividida e em oposição aos outros”. A respeito de O
Lustre, mostra que este romance “começa expondo o fato exterior determinante da vida de seus personagens.
Virgínia e seu irmão Daniel, que se debruçam numa ponte pênsil, vêem um afogado boiando no rio. A morte
que lhe é então revelada, e acerca da qual silenciam, vai refletir-se nos jogos sombrios das duas crianças.
Essa recordação secreta sela a mútua dependência afetiva, cimentada num liame de domínio e servidão, em
que elas vivem”. Acerca de A Cidade Sitiada, pontua que o livro tem como cenário “um subúrbio em
crescimento, na década de vinte, ‘que já misturava ao cheiro de estrebaria algum progresso’ (CS, 14): novas
fábricas em seus arredores, automóveis e caminhões na velha rua do mercado ‘onde um gosto passado
reinava nas varandas de ferro forjado, nas fachadas rasas dos sobrados’ (CS, 15) (...) Essas mudanças, que
refletem nos habitantes, se associam à experiência interior de Lucrecia Neves, a protagonista do romance,
que leva uma vida dúplice”. Sobre A Maçã no Escuro, Benedito Nunes mostra que, como Martin acredita ter
assassinado sua mulher, “foge duplamente: das conseqüências do crime e do seu próprio passado. E à medida
que foge fisicamente, o crime se transforma num ato positivo de ruptura com a sociedade e a fuga, num
movimento de evasão interior”. Já em relação a A Paixão Segundo G. H. Benedito Nunes escreve que “o
confronto com a barata marca o início de uma ruptura não apenas com essa maneira de viver, mas com a
engrenagem com o sistema geral dos hábitos mundanos. Mediador de violenta e completa desorganização
do mundo humano, o animal exterioriza as forças traiçoeiras que solapam as estabilidades desse mundo e que
desalojam G. H. do círculo da existência”. “Lori, a personagem de Uma aprendizagem ou O livro dos
prazeres, que conhece a extrema solidão desagregadora de G. H., encontra em Ulisses, um professor de
filosofia, o interlocutor que a devolve a si mesma e à realidade” (NUNES, 1995: 20-21; 24; 34; 40; 64, 79).
ou não reestruturar os conceitos dos “mundos preexistentes” à leitura, conforme já
discutido no capítulo anterior. Na verdade, o que estamos discutindo é em que nível da
narrativa se desenvolvem, essencialmente, as histórias clariceanas. As palavras de Affonso
Romano de Sant’Anna sobre a literatura de Clarice Lispector são importantes neste
momento, em que estamos discutindo em que nível de profundidade narrativa se encontra a
literatura clariceana:
“Evidentemente sua obra não é uma simples metáfora existencialista, conquanto seja
uma metáfora existencial. Conferir seus ingredientes com o receituário da série
social ou da série filosófica é dar relevância aos métodos conscientes em detrimento
dos modelos inconscientes de composição que, parece, são os vigentes em sua
obra”. (SANT’ANA, 1973: 102)
Desta forma, podemos observar que o real e o social em Clarice Lispector são um
tipo de “alicerce” onde a autora constrói a problemática do homem, ou melhor, de onde ela
parte para um segundo nível de sua narrativa
53
, assim como nos apontou Affonso Romano
de Sant’Anna na citação anterior e como pudemos perceber através das idéias de Umberto
Eco, já apresentadas. Afinal, o que é exterior ao homem o faz sentir-se distante de si
mesmo. É exatamente esse “real”, a “dureza da vida” e dos fatos que motivam a
necessidade de um mergulho em si mesmo para, então, tentar se viver de uma forma mais
verdadeira, mais “consciente”. O “real” clariceano não tem a intenção de mimetizar o
mundo exterior, mas de exteriorizar a subjetividade, as angústias, os verdadeiros desejos e
verdades de cada um, questões estas inerentes à própria experiência de existir.
53
O conceito de estrutura narrativa apresentado por Affonso Romano de Sant’Anna, em Análise estrutural de
romances brasileiros, nos ajuda, já neste momento, a explicar o papel do primeiro e do seguinte nível
narrativo clariceano. Vejamos o que diz Affonso Romano de Sant’Ana: “A narrativa de estrutura simples tem
uma vinculação com a forma de narrar que repousa sobre a oralidade e que se comporta de uma maneira
ingênua, natural e primitiva. Tal narrativa revela muito mais o interesse em endossar as formas
convencionais, o comportamento social e literário do que efetivar uma crítica do sistema de idéias e de
atitudes de uma comunidade. Por ser uma maneira cômoda de contar, ela não chega a perturbar o público e o
sistema. Diferentemente, a narrativa de estrutura complexa provoca um distanciamento entre o indivíduo e a
realidade ordinária. Ela é crítica do real e crítica da própria forma de narrar. Sua complexidade vem de que
ela trabalha de maneira diferente os mitos em que repousam os valores da sociedade” (SANT’ANA, 1975: 17).
Macabéa é o referencial inicial de uma nordestina pobre e excluída por todos. No
entanto, ela é retratada muito através de seu interior, isto é, ao terminarmos a leitura de A
Hora da Estrela, percebemos que a conhecemos, principalmente, através de sua
subjetividade, da forma como “sentia” a difícil vida que levava. São pelos sentimentos,
pela solidão e pelo desamparo humano ao longo de sua existência que conhecemos
Macabéa, já que “não havia nela miséria humana. É que tinha em si mesma uma certa flor
fresca” (A Hora da Estrela, 1998: 31).
Esta definição sintetiza a forma como Clarice constrói sua personagem. Uma
mulher que, mesmo diante de todas as adversidades da vida, não muda sua essência,
proporcionando ao leitor uma reflexão sobre exclusão e solidão não puramente social, mas,
principalmente, humana, que perpassa toda esta problemática.
3.3 – Elementos da narrativa horizontal: classe social e realidade
A classe ou referencial social é o material concreto (real) para as questões que são
tratadas sobre o homem e seu conhecimento de si mesmo em A Hora da Estrela, assim
como em A Paixão Segundo G. H.. No primeiro livro, podemos perceber que, mais do que
Macabéa, quem sofre com os conflitos sociais e humanos é o narrador Rodrigo S. M. A sua
nordestina não apresenta uma aparente consciência sobre a sua difícil condição social e vai
levando a vida simplesmente “inspirando e expirando”. Esta postura de Macabéa diante da
vida provoca em Rodrigo S. M. uma série de questionamentos sobre ele mesmo e sua
relação com o que o cerca, como, por exemplo, a escrita, o papel que temos dentro da
sociedade, nosso reconhecimento diante dela, as injustiças vividas pelo homem etc. Assim,
a inquietação do narrador de A Hora da Estrela não se dá puramente pela condição social
de Macabéa. Podemos perceber que ele se inquieta também com sua própria condição
diante de si mesmo e da sociedade, já que, mesmo sendo um intelectual, Rodrigo S. M.
também sofre com os ofícios de ser escritor. Seu ofício não é aceito por todos, o que o faz
viver, como ele mesmo se classifica, como um “marginalizado”. Esta questão está
intimamente ligada aos próprios questionamentos que faz sobre si e sobre o ato de
escrever. A busca por seu lugar entre as classes sociais dominantes e dominadas não o
diferencia tanto de Macabéa no quesito exclusão e solidão. Vejamos um trecho em que a
narrativa aponta tal questão:
“sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de
mim de algum modo um desonesto. (...) Que mais? Sim, não tenho classe social,
marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média
com desconfiança de que possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim”.
(A Hora da Estrela, 1998: 31)
A sensação de deslocamento no mundo apresentada por Rodrigo S. M. é um dos
pontos marcantes no livro. É este sentimento de “ser sem lugar”, presente em vários
romances e contos de Clarice Lispector, que demarca a tênue linha que não mais separa a
dona-de-casa, ou a doméstica, da madame; o mendigo do intelectual, o leitor do escritor. É
o não “sentir-se” como parte integrante do que os cercam que motiva os personagens à
busca de seu lugar e da noção de si mesmo. Esta procura é que poderá, posteriormente,
ajudar estes sujeitos a se integrarem ao que consideram como realidade, mesmo quando
isso ocorre diante de uma não-aceitação dos modelos e comportamentos sociais a que
estavam se sujeitando.
Nádia Gotlib
54
aponta a forma como este processo ocorre em A Hora da Estrela.
Segundo ela, o aparente divertimento que a forma desajeitada, submissa e exageradamente
54
GOTLIB, Nádia Batella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
“esquisita” de Macabéa pode provocar no leitor se desfaz quando este se depara com os
fatos de uma realidade miserável em que sempre está inserida a nordestina. Como se não
bastasse ter nascido e vivido no lugar que é a própria metáfora da “fome e da miséria”, a
personagem vem para o Rio de Janeiro e tenta, como a maioria das pessoas da cidade,
sobreviver no “cenário agressivo” de uma grande capital. No entanto, o “mal-estar” que
provoca a história de Macabéa ocorre porque o livro “fisga o leitor na íntima e difícil
angústia de um conflito, que é social, mas que aparece experimentado de dentro, na sua
densa repercussão de ordem existencial” (GOTLIB, 1995: 466).
Vejamos um trecho que exemplifica o lado aparentemente cômico, porém
possuidor de um caráter existencial (olhar para si, para dentro), mesmo tendo como ponto
de partida uma limitação social (financeira):
“Em pequena ela vira uma casa pintada de rosa e branco com um quintal onde havia
um poço com cachimba e tudo. Era bom olhar para dentro. Então seu ideal se
transformara nisso: em vir a ter um poço só para ela. Não sabia como fazer e
então perguntou a Olímpico:
Você sabe se a gente pode comprar um buraco?”.
(A Hora da Estrela, 1998: 49) [Grifo nosso]
Macabéa não deseja possuir uma casa, mas um “buraco”. Este trecho permite
observar que a condição social e a realidade da personagem apresentam-se como elementos
concretos da narrativa horizontal, como ponto de partida. No entanto, a impossibilidade de
possuir uma casa como a que vira quando pequena revela, na verdade, o caráter e o
enfoque introspectivo da personagem (“Era bom olhar para dentro. Seu ideal transformara-
se nisso: vir a ter um buraco só para ela.”). O poço da casa transforma-se para Macabéa em
buraco. Dessa forma, a narrativa parte de realidade e do social e se desloca para a questão
de “ser-no-mundo”. No trecho a seguir, podemos perceber também tal idéia:
“Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com
satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si
mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser”.
(A Hora da Estrela, 1998: 36)
A narrativa de Rodrigo S. M. revela que os referenciais sociais de Macabéa
refletem a imagem que tem de si mesma, ou seja, sua “obediência de Ser”. Tal efeito
pode ser relacionado com a idéia de que a realidade social é trabalhada no campo da
relação existencial que o homem tem com o mundo, com o outro e com ele mesmo. No
trecho a seguir, o narrador nos permite observar esta idéia:
“Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a barba durante
dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou
um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para
me pôr no nível da nordestina. Sabendo no entanto que talvez eu tivesse que me
apresentar de modo mais convincente às sociedades que muito reclamam de quem
está neste instante mesmo batendo à máquina”. (Hora da Estrela, 1998: 19-20)
“Experimentar”, perceber, sentir o “outro” como é o caso de Rodrigo S. M. ou
ainda precisar “representar o papel de ser” são momentos em que social e existencial se
encontram na narrativa de Clarice, pois é o “outro” (o “outro que um dia eu fui”, o outro
que “todo dia sou”) que passa a ser o referencial que temos diante de dada realidade.
Na literatura clariceana, as estruturas de mundo, a que estamos inevitavelmente
inseridos socialmente, aparecem como ponto de partida para questões existenciais dos
romances. Esta idéia também pode ser constatada em outro livro da escritora: A Paixão
Segundo G. H., a partir do encontro da personagem com uma barata.
No romance, o monólogo da personagem-narradora (todo escrito em primeira
pessoa) apresentaria só nas entrelinhas a questão social, dada a intensidade com que a
narrativa “envolve” as questões existenciais vividas por G. H. No entanto, vejamos como
realidade, cotidiano e estruturas de hierarquia social encontram-se também presentes nas
linhas do romance. No exemplo a seguir, verificaremos que, assim como Macabéa, G. H.
teve uma infância difícil.
“A lembrança de minha pobreza em criança, com percevejos, goteiras, baratas e
ratos era como um meu passado pré-histórico, eu já havia vivido com os primeiros
bichos da terra” (A Paixão Segundo G. H., 1972: 55)
Podemos perceber a confluência de experiências e histórias da infância pobre ao
nos depararmos com o seguinte trecho de A Hora da Estrela:
“(...) pálida e mortal a moça era hoje o fantasma suave e terrificante de uma infância
sem bola nem boneca. Então costumava fingir que corria pelos corredores de boneca
na mão atrás de uma bola e rindo muito. (...) saudade do que poderia ter sido e não
foi”. (A Hora da Estrela, 1998: 33)
Esta ligação de uma infância difícil entre as personagens Macabéa e G. H. é
fortificada se observarmos que, na narrativa clariceana, as duas personagens, depois de
adultas, têm uma vida muito diferente quanto às classes sociais, mas que experimentam
quase tudo de uma forma muito subjetiva, já que ambas mostram ao leitor que a classe
social em nada, ou quase nada, minimiza as dores que todos podem sentir ao longo de sua
existência.
Ao repararmos a forma como G. H. e Rodrigo S. M., por diversas vezes, situam o
leitor para o contexto socioeconômico, bem como para a realidade que cerca os
personagens, podemos notar que esta contextualização está ligada às questões existenciais
apresentadas nos romances. A descrição do alto e luxuoso prédio em que se situa a
cobertura de G. H., juntamente com a existência de uma empregada que vivia em um
pequeno quarto, o qual a patroa considerava um cômodo à parte de sua residência gera
uma reflexão sobre a real importância, para o homem, destas macro e microestruturas de
poder aquisitivo.
A relação inicial feita por G. H., de que o local em que era alocada sua empregada
seria uma forma de caverna onde só os “sub-humanos” poderiam viver, reflete a estrutura
base que apresentamos sobre a narrativa horizontal clariceana. Nesta horizontalidade
narrativa, o mais alto nível da sociedade pode igualar-se ao mais baixo, através do
significado de que os níveis sociais apresentam um questionamento sobre como ocorrem as
relações de classes entre os indivíduos.Vejamos um exemplo de tal idéia, primeiramente,
em A Paixão Segundo G. H. e, posteriormente, em A Hora da Estrela:
“Não ter naquele dia nenhuma empregada, iria me dar o tipo de atividade que eu
queria: o de arrumar. Sempre gostei de arrumar. (...) Ordenando as coisas, eu crio e
entendo ao mesmo tempo. Mas tendo aos poucos, por meio do dinheiro
razoavelmente bem investido, enriquecido o suficiente, isso impediu-me de usar essa
minha vocação: não pertencesse eu por dinheiro e por cultura à classe a que
pertenço, teria normalmente tido o emprêgo de arrumadeira numa casa de ricos,
onde há muito o que arrumar”. (A Paixão Segundo G. H., 1972: 36)
G. H., mesmo no papel de uma mulher rica, nos revela o paradoxo social e humano
ao apresentar, inicialmente, seu provável destino de arrumadeira, caso não estivesse
inserida numa classe de alto poder econômico, e, posteriormente, ao revelar sobre sua
necessidade e gosto pela arrumação. Um outro ponto a ser observado é a afirmação que a
personagem faz de que nas casas dos ricos “há muito o que arrumar”. Seria isto uma forma
de questionamento da aparente ordem e perfeição da vida abastada, uma vez que a idéia
está quase sempre atrelada aos que possuem recursos e status? Podemos perceber, ainda,
G. H. “igualando-se” a sua empregada através do significado que a profissão de
arrumadeira apresenta no trecho acima, isto é, pela própria necessidade que a patroa possui
de “arrumar” sua própria vida. Também em A Hora da Estrela o “experimentar” a vida do
“outro” está presente de forma similar à de G. H.:
“Vez por outra [Macabéa] ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes
de jóias e roupas acetinadas só para se modificar um pouco. É que ela sentia falta
de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro”. (A Hora da
Estrela, 1998: 34)
Assim como G. H., no trecho anteriormente apresentado, Macabéa buscava
experimentar uma vida que não era a sua. Podemos notar que a datilógrafa busca uma fuga
através de ícones, que fazem parte de uma classe social exatamente oposta a que pertence.
Tal idéia fica mais clara se atentarmos para o fato de que, morando na Rua do Acre
55
e
trabalhando na Rua do Lavradio, no Centro do Rio de Janeiro, lugar que possui um intenso
comércio, inclusive de “jóias e roupas acetinadas”, Macabéa desloca-se exatamente para a
Zona Sul, bairro considerado berço da elite social, para “se modificar um pouco”. Assim,
temos, como aconteceu com G. H., a presença do imaginário que divide as classes sociais,
mas que na literatura clariceana ganha uma nova roupagem pela forma como constrói esta
aparente antítese de mundos. Nesta discussão sobre a classe social de G. H. e Macabéa, a
representação da realidade ganha um foco ainda mais introspectivo. O que está no centro
destas estruturas de mundos é a forma como cada um dos personagens se insere e sente o
“mundo do outro” e como este “sentir pode ser representativo nas experiências de cada um,
resultando em um diálogo entre o sujeito e a sua existência. O próprio Rodrigo S. M.
revela que, através de sua narrativa, o leitor pode experimentar este processo de descoberta
ao escrever que, “se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para
ver como às vezes é o outro” (A Hora da Estrela, 1998: 30).
Assim, podemos observar como os referenciais sociais e de realidade concreta
situam-se no primeiro nível da narrativa de Clarice Lispector (horizontalidade) e como
estes permeiam as histórias dos personagens em momentos de diálogo entre Ser e existir.
Tal idéia também pode ser observada através das palavras de Benedito Nunes, o qual, ao
55
Área não-residencial e, quando destinada a este fim, o é apenas para as classes populares.
falar sobre a dificuldade de se caracterizar objetivamente os personagens clariceanos,
aborda esta problemática:
“Em cada um deles é a existência, como fonte substancial de todos os conflitos
interpessoais que se apresenta, infiltrando-se no cotidiano, produzindo retração da
personalidade social e que, desgastando a crosta protetora de sentimentos e atitudes
criados pelo hábito e pela cultura, transcende os nexos objetivos, social ou
historicamente estabelecidos, para impor-se como força dominante, primitiva e
caótica”. (NUNES, 1966: 47)
Assim, a realidade e, conseqüentemente, o social apresentam-se como prismas a
partir dos quais Clarice parte para níveis mais profundos/subjetivos da narrativa. Cabe
notar que esta “realidade concreta”, ficcionalizada na narrativa, não registra ou mimetiza a
vida e o real, mas, sim, faz refletir, conhecer, questionar, “descobrir” o Ser, ao tentar
entender os múltiplos caminhos da experiência da existência. Para intensificar tal
aprofundamento, a autora faz com que as personagens passem pelo processo de ruptura
com a realidade factual objetiva.
3.4 – A ruptura da narrativa horizontal: motivações que levam ao primeiro
nível da narrativa vertical
O momento de transição do primeiro (horizontal) para o segundo nível (vertical) da
narrativa clariceana é marcado por um profundo medo que seus personagens apresentam
diante de seu desconhecido mundo interior. Eles são tomados pela angústia, ao saírem de
seus padrões comportamentais e ao se depararem com “um eu” que poderá não
corresponder ao que acreditavam ser. Tal mudança resulta na perda do conforto de “ir
sendo”, já que este modo de agir passivo é um comportamento que assegura uma dada
“tranqüilidade”, que se extingue pelos questionamentos e, conseqüentemente, pelo
autoconhecimento. A resistência, em relação à mudança de comportamento, pode ser
percebida em Macabéa, uma vez que ela:
“Imaginavazinha, toda supersticiosa, que se por acaso viesse alguma vez a sentir um
gosto bom de viver se desencantaria de súbito de princesa que era e se
transformaria em bicho rasteiro. Porque, por pior que fosse sua situação, não
queria ser privada de si, ela queria ser ela mesma”. (A Hora da Estrela, 1998:
32). [Grifo nosso]
Notamos que a personagem não era “totalmente” inconsciente de sua precária
situação; no entanto, desejava continuar no que ela acreditava Ser. O medo de “encarar-se”
“prende” em “uma forma de limbo” os diversos personagens de Clarice. Este sentimento,
em G. H., revela-se no seguinte trecho do romance:
“Como se explica que meu maior mêdo seja exatamente o de ir vivendo o que fôr
sendo? Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu
pensava e sim outra como se antes eu tivesse sabido o que era!”. (A Paixão
Segundo G. H., 1972: 09)
Embora percebamos em G. H. um inicial desejo de não “ir sendo”, a personagem
nos revela sua dificuldade, medo e limitação para seguir a busca sobre si e a vida. No
entanto, o sentimento de solidão diante do mundo que envolve os personagens encaminha-
os para uma inevitável introspecção, ou atitude, conduzindo, assim, a narrativa clariceana
para seu segundo nível, onde a principal temática é a questão da descoberta do que se “é
realmente em contraste do que se acreditava Ser.
Em A Hora da Estrela, este segundo nível narrativo se desenvolve, de início, mais
claramente, através do narrador da história, que assume sua própria solidão diante do
mundo, e assim apresenta intensos questionamentos sobre si, sobre Macabéa, sobre a
crítica literária, sobre o comportamento da sociedade e sobre as relações humanas.
Entretanto, a solidão de Macabéa diante da vida, dos amigos, do amor, da sociedade, não
deixa de ser o mote de que Clarice Lispector se utiliza para seguir ao segundo nível desta
sua narrativa. Assim, ainda no primeiro nível da narrativa (horizontal) os personagens já
iniciam o percurso para um mergulho em si mesmo (primeira profundidade vertical) para,
só então, emergirem e impulsionarem-se para a verticalidade superior: a do conhecimento
existencial. Assim, mesmo ainda receosos de sair de suas acostumadas vidas, os
personagens, envolvidos por uma solidão assombrante, acabam seguindo para a descoberta
do Ser. Vejamos alguns exemplos em que se pode notar a imensa solidão em que se
encontram, respectivamente, Macabéa e G. H.:
“Outro retrato; nunca recebera presentes. (A Hora da Estrela, 1998: 40)
“A nordestina se perdia na multidão. (A Hora da Estrela, 1998: 41)
“Macabéa nunca recebera uma carta em sua vida e o telefone do escritório só
chamava o chefe e Glória. Ela uma vez pediu a Olímpico que lhe telefonasse. Ele
disse: Telefonar para ouvir suas bobagens?”. (A Hora da Estrela, 1998: 46-47)
“Para as pessoas outras ela não existia. (A Hora da Estrela, 1998: 63)
Já G. H. expressa este abandono no mundo da seguinte forma:
“A verdade não faz sentido, a grandeza do mundo me acolhe. Aquilo que
provavelmente pedi e finalmente tive veio no entanto me deixar carente como uma
criança que anda sozinha pela terra. Tão carente que só o amor de todo o universo
por mim poderia me consolar (...)”. (A Paixão Segundo G. H., 1972: 17-18)
Esta solidão adquire um papel importante na narrativa clariceana, pois ela é a
concretização do sentimento de abandono, de “mal-estar”, do medo de não “pertencer a um
sistema”, como nos mostra a reflexão de G. H.: “talvez desilusão seja o mêdo de não
pertencer mais a um sistema. No entanto, se deveria dizer assim: ele está muito feliz
porque foi finalmente desiludido” (A Paixão Segundo G. H., 1972: 10).
Vale ressaltar que a solidão não tem uma carga unicamente negativa na narrativa
clariceana. Quando aparece negativamente, é no sentido do abandono humano, por denotar
a forma egoísta com que os homens se relacionam. Mas, há também a presença deste
sentimento como necessário e importante para o homem em sua autodescoberta. Quando
apresentado sobre esta perspectiva, a solidão adquire um caráter positivo e importante que
leva à liberdade de estar mais perto de si mesmo. Vejamos um trecho em que Rodrigo S.
M. narra um momento em que a solidão de Macabéa é experimentada pela personagem de
forma positiva e necessária ao homem:
“dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e. (...) Encontrar-se
consigo própria era um bem que ela não conhecia. Acho que nunca fui tão contente
na vida, pensou”. (A Hora da Estrela, 1998: 41).
O momento de solidão, como o descrito anteriormente, revela o papel que este
sentimento adquire na transição do primeiro para o segundo nível da narrativa clariceana,
pois, uma vez experimentado, o medo da busca da sua própria verdade, a dor que o
sentimento de abandono provoca e, posteriormente, a partir da solidão, a libertação de
amarras sociais e comportamentais é gerada uma inicial consciência de si que levará a uma
libertação. A solidão servirá, então, de ponto de partida para uma atitude ou auto-reflexão
que poderá mudar o rumo de sua história. Rodrigo S. M. deseja que este momento de
solidão “libertadora” aconteça o mais breve possível para Macabéa e idealiza como
possível discurso da nordestina, quando tal fato ocorrer: Eu sou sozinha no mundo e
não acredito em ninguém, todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que
um ser fale com outro, a verdade só me vem quando estou sozinha” (A Hora da Estrela,
1998: 69).
A solidão positiva apresentada por Clarice Lispector, geralmente, é seguida de
“encontros” ou “momentos” do personagem com algo que despertará a consciência deste
sujeito para a necessidade de uma reflexão e autodescoberta. Este início de consciência
pode ocorrer quando o personagem se depara com um objeto, uma pessoa, um bicho, uma
paisagem, uma lembrança, um cheiro, uma visão qualquer, uma situação, ou ainda diante
de acontecimento habitual ou banal até então. Em A Hora da Estrela, o processo de
autodescoberta se inicia após a sugestão da personagem Glória para que ela (Macabéa)
consultar uma cartomante para saber de seu destino. Rodrigo S. M. assim descreve a
motivação de Macabéa para tal atitude:
“Assim pela primeira vez na vida tomou um táxi e foi para Olaria. Desconfio que
ousou tanto por desespero, embora não soubesse que estava desesperada, é que
estava gasta até a última lona, a boca a se colar no chão”. (A Hora da Estrela, 1998: 71)
Já para G. H., também após vivenciar o medo, o abandono total e as conseqüências
dos momentos da solidão positiva, é o “encontro” com uma “simples” barata que irá
despertar nela sentimentos que a levarão a si mesma. Vejamos este momento:
“De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo aos meus
olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa. Meu grito foi tão abafado que
só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito fica me batendo
no peito”. (A Paixão Segundo G. H., 1972: 53)
“Era isso era isso então. É que eu olhava a barata viva e nela descobria a
identidade de minha vida mais profunda”. (A Paixão Segundo G. H., 1972: 67)
Tanto a decisão de Macabéa de ir à cartomante quanto os sentimentos gerados em
G. H. pelo encontro com a barata que estava no quarto de sua empregada denotam uma
mudança comportamental de ambas as personagens, que neste ponto da narrativa adquirem
uma postura de procura interior, mesmo motivadas por situações diferentes. Pode parecer
que Macabéa estava procurando saber sobre sua vida e seu futuro e que G. H. não teve
escolha. Mas, na verdade, ambas são motivadas por acontecimentos aparentemente banais.
A primeira jamais havia pensado em ir a uma cartomante e isto só ocorre por sugestão da
amiga Glória; já G. H. depara-se de forma imprevista com um simples inseto, que para
qualquer outro poderia ser apenas mais um, mas que para a rica mulher simbolizou o início
da compreensão de sua própria identidade.
Através desses “encontros” é iniciada a necessidade de descoberta do que se é. A
narrativa clariceana parte, então, deste momento de transição situado após a narrativa
horizontale segue para a primeira verticalidade narrativa onde se inicia inevitável
descoberta de si. Sobre esta transição, Nádia Gotlib, aponta que, na literatura de Clarice
Lispectoré preciso, pelo menos uma vez na vida, destruir a vida para reconstruí-la,
fundada numa ‘grande reivindicação’. É preciso pelo menos uma vez na vida empreender
essa viagem ‘para ver se é verdade” (GOTLIB, 1995: 340).
É diante dessa necessidade que há a passagem para a narrativa vertical. É a partir de
então que os personagens iniciam a busca de sua “verdade”, como veremos no item que se
segue.
3.5 – Primeiro nível vertical da narrativa clariceana
Nossa escolha comparativista entre A Hora da Estrela e A Paixão Segundo G. H. se
pauta nas leituras e questões antagônicas que situam os romances, respectivamente, como
de caráter social e existencial. Considerado por Benedito Nunes como uma das obras mais
existenciais da obra clariceana, A Paixão Segundo G. H. permite, então, mostrar que os
níveis narratológicos de cunho existencial da obra também são desenvolvidos em A Hora
da Estrela.
100
A profundidade narrativa apresentada nestes dois romances ocorre após uma
construção mais objetiva de referências da realidade e da vida, pois a seguir os
personagens iniciam um mergulho na experiência do autoconhecimento, o que nos
encaminha para o segundo nível da narrativa clariceana: o primeiro nível vertical.
Neste nível, observa-se, principalmente, como Clarice Lispector desenvolve a
problemática da subjetividade, da introspecção e do processo de busca do Ser. Analisar
esta mudança de níveis narrativos em A Hora da Estrela faz-se necessário em nosso
trabalho, pois, conforme nos aponta Barthes:
“Compreender uma narrativa não é somente seguir o esvaziamento da história, é
também conhecer nela <<estágios>>, projetar os encadeamentos horizontais do
<<fio>> narrativo sobre o eixo implicitamente vertical, ler (escutar) uma narrativa
não é somente passar de uma palavra a outra, é também passar de um nível a outro.
(BARTHES, 1973: 26)
Passemos, então, para o primeiro nível da narrativa vertical. Após a decisão de ir à
cartomante, Macabéa inicia um momento de sua história marcado por revelações que
nunca ousara enxergar efetivamente.
“(...) madama Carlota mandou-a cortar as cartas com a mão esquerda (...). Macabéa
separou o monte com a mão trêmula: pela primeira vez ia ter um destino. Madama
Carlota (explosão) era um ponto alto na sua existência. A madama de repente
arregalou os olhos.
Mas, Macabeazinha, que vida horrível a sua! Que meu amigo Jesus tenha dó de
você, filhinha! Mas que horror!
Macabéa empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim”.
(A Hora da Estrela, 1998: 76) [Grifo nosso]
Macabéa, neste momento, está diante de uma visão de sua vida que a faz tomar
completa consciência do quão ruim era sua forma de existir. Mas que palavras mágicas
eram as de madama Carlota que os outros que a cercavam já não tivessem dito? Na
verdade, por vezes, a amiga Glória e o então namorado Olímpico já haviam dito coisas
parecidas com as que a cartomante agora revelara. Porém, ainda envolvida pelo medo e
101
pelo conforto do “ir sendo”, as palavras de Glória e Olímpico não faziam sentido como as
palavras da cartomante. Entretanto, estas, na verdade, eram as respostas que havia ido
buscar: a efetiva descoberta de si, já que antes Macabéa “vagamente pensava de muito
longe e sem palavras o seguinte: já que sou, o jeito é ser” (A Hora da Estrela, 1998: 33).
O primeiro momento da consciência de si e da existência, experimentados por
Macabéa através das palavras da cartomante, também fora vivido por G.H da seguinte
forma após seu encontro com a barata:
“Olhai-a, à barata: eu a odiava tanto que passava para o seu lado (...) E de repente
gemi alto, dessa vez ouvi meu gemido. É que como um pus subia à minha tona a
minha verdadeira consistência e eu sentia com susto e nojo que ‘eu ser’ vinha de
uma fonte muito anterior à humana e, com horror, muito maior que a humana (...).
Pela primeira vez eu me espantava de sentir que havia fundado toda uma esperança
em vir a ser aquilo que eu não era”. (A Paixão Segundo G. H., 1972: 67)
Este é um momento importante, pois, a partir deste efetivo encontro com algo que
desperta a “consciência do eu”, temos uma melhor compreensão de como foi possível
conseguir, até então, viver daquela forma, naquele limbo. Tal processo nem sempre é
rápido ou desprovido de medo, ansiedade, decepção e solidão. Porém, embora seja
doloroso, agora ele é desejado. E, assim, aspira-se a viver toda a dor necessária para a
compreensão de suas próprias verdades, expectativas, comportamentos e limites a serem
transgredidos.
O monólogo interior
56
é um momento importante neste ponto da narrativa. Através
dele, manifesta-se a angústia de um difícil e, por vezes, demorado aprendizado, pois no
caminho da descoberta é preciso retornar ao que se viveu até então e reviver certas
experiências têm agora um doloroso peso, em que a “inconsciência” e o desconhecimento
de si mesmo aliviava ou impediam de ser sentido. Tanto para Macabéa quanto para G. H.,
56
“O monólogo interior caracteriza-se por transcorrer na mente da personagem (mónos, único, sozinho;
logos, palavra, discurso) como se o ‘eu’ se dirigisse a si próprio”. (MOISÉS, 2004:308).
102
a experiência da existência até o momento de encontro com a “verdade” era permeada pelo
silêncio, pela impessoalidade diante dos que as cercavam, pela fuga para um mundo
introspectivo onde ninguém as atingiam, nem elas mesmas, ou seja, para o que Benedito
Nunes classifica como “introspecção abismal
57
.
Será a partir do despertar da consciência reflexiva e da conseqüente introspecção
que os personagens seguirão para suas pessoais aprendizagens sobre o Ser e a existência.
“Madama Carlota havia acertado tudo. Macabéa estava espantada. Só então vira que
sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar ao ver o seu lado oposto, ela que,
como eu disse, até então se julgava feliz”. (A Hora da Estrela, 1998: 79)
“Macabéa nunca tinha tido coragem de ter esperança” (A Hora da Estrela, 1998:
76), mas agora, diante das descobertas que fazia sobre a vida e sobre si mesma, era
possível mudar e ver além daquilo a que estava habituada, pois a cartomante havia “lido”
no destino dela um futuro melhor. Nele, havia a permanência no emprego, o qual a todo
momento estava na eminência de perder, o encontro do verdadeiro amor, com um
“príncipe encantado” chamado Hans, que, além de ser rico, seria lindo, estrangeiro e a
amaria plenamente a ponto de cobri-la de casaco de pele. Somente então Macabéa “sentia
em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero” (A Hora da
Estrela, 1998: 79).
Assim, Macabéa quase que instantaneamente descobre-se no fundo de seu Ser,
através das palavras da cartomante, pois “desde Moisés se sabe que a palavra é divina” (A
Hora da Estrela, 1998: 79). Vale ressaltar que esta experiência é o ápice do processo da
57
Benedito Nunes mostra este momento de introspecção em A Paixão Segundo G. H.: “o confronto com a
barata, ponto de ruptura do sistema em que a personagem vive, marca o início de sua experiência como
autoconhecimento vertiginoso. Mas essa descida à realidade interior abisma e grotesca conduziu a
personagem, também sujeito-narrador, aos limites do aprofundamento introspectivo. A introspecção, que
atinge a realidade interna transformada em matéria repulsiva e impura, converte-se num mergulho
escatológico, destinado ao silêncio”. (NUNES, 1995: 73).
103
“descoberta do ser” e que já inicia, conforme veremos no próximo item, o segundo nível da
verticalidade na narrativa clariceana, na qual a consciência de Macabéa se completa.
Já para G. H. o processo é mais lento, já que sua tomada de consciência de si
mesma é permeada por um lento decurso. Como num ritual, a personagem de A Paixão
começa a desvendar-se através de atitudes e reflexões cotidianas. A necessidade de se
encontrar pode ser percebida através do seguinte pensamento: “Eu me trato como as
pessoas me tratam, sou aquilo que de mim os outros vêem” (A Paixão Segundo G. H.,
1972: 26-27).
Macabéa depara-se com a verdade sobre si através das palavras do outro, G. H.,
inicia uma profunda reflexão sobre seus padrões referenciais e comportamentais em atos
como o de arrumar o quarto de sua antiga empregada, por exemplo.
“Começaria talvez por arrumar pelo fim do apartamento; o quarto da empregada
deveria estar imundo, na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas
velhas, jornais antigos, papéis de embrulho e barbantes inúteis. Eu o deixaria limpo
para a nova empregada. Depois, da cauda do apartamento, iria aos poucos ‘subindo’
horizontalmente até o seu lado oposto, que era o ‘living’, onde como se eu própria
fosse o ponto final da arrumação e da manhã (...)”. (A Paixão Segundo G . H., 1972: 37)
O ritual a que G. H. se propõe denota alguns juízos que ele faz a respeito de si
mesma, quer dizer, a personagem reproduz algumas idéias sobre si, como, por exemplo, o
distanciamento daquilo que não representa o seu “horizonte” atual (aqui representado pelo
“living”, que seria, enfim, o retorno da personagem ao ambiente e à vida a que estava
acostumada), além do próprio questionamento da estrutura de baixo e alto que, muitas
vezes, povoa o imaginário social diante das relações humanas e de poder. Mas G. H., neste
ponto da trama, ainda não adquirira a “revelação” a que Macabéa experimentara quase que
instantaneamente ao ir “buscar” seu destino. A rica mulher só se “encontrará” quando se
104
deparar com a terrível, temida e reveladora barata que encontra no quarto que fora arrumar,
mas que, curiosamente, surpreende suas expectativas:
“Esperara encontrar escuridões, preparara-me para ter que abrir escancaradamente a
janela e limpar com ar fresco o escuro mofado. Não contara é que aquela
empregada, sem me dizer nada, tivesse arrumado o quarto à sua maneira, e numa
ousadia de proprietária o tivesse espoliado de sua função de depósito. Da porta eu
via agora um quarto que tinha uma ordem fresca, calma e vazia. Na minha casa
fresca, aconchegada e úmida, a criada sem me avisar abrira um vazio sêco.
(A Paixão Segundo G. H., 1972: 42)
Podemos perceber a decepção de G. H. ao deparar-se com um quarto que não se
apresentava na condição de sub-humanidade, porém não é somente isso que o trecho
revela. Através dele, podemos observar a personagem já em fase de autodescoberta, pois,
ao fazer comparações entre o seu mundo e aquele que acreditava encontrar, G. H.
demonstra algumas comparações que nela se apresentam como reflexão de seu vazio
interior. E, então, ao deparar-se com a barata, que se encontrava no quarto, inicia-se um
doloroso percurso de auto-reflexão e que tem como uma das maiores dificuldades a
descoberta de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos” (A Paixão
Segundo G. H., 1972: 81).
Essa não-humanidade descrita por G. H. é fruto de solitária descoberta que o inseto
provocou, pois, a partir desse encontro, a personagem questiona a si e ao mundo e, nessa
transição de sentimentos e conceitos, percebe-se igual à barata, a qual ingere
58
. Este é o
ponto máximo deste segundo nível da narrativa; nele temos o personagem em encontro
com o eu, que, embora não conhecesse, dolorosamente já o buscava. Assim, G. H. reflete:
“naquela manhã, antes de entrar naquele quarto, o que era eu? Era o que os outros sempre
58
“Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca, e então comecei a cuspir, a
cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia adocicado
como o de certas pétalas de flor, gosto de mim mesma eu cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto
de sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda” (A Paixão Segundo G. H., 1998: 167).
“Não. Eu não precisava ter tido a coragem de comer a massa da barata. Pois me faltava a humildade dos
santos: eu havia dado ao ato de comê-la um sentido ‘máximo’” (A Paixão Segundo G .H., 1998: 169).
105
me haviam visto ser, e assim eu me conhecia. Não sei dizer o que eu era” (A Paixão
Segundo G. H., 1972: 24).
É nesta densa descoberta do Ser que se interpenetram os contrastes da existência,
revelados através do eu que era, do que sou e do que poderei ser. Macabéa, em sua extrema
imersão no “ser” do “jeito que é”, desperta nosso olhar para a confortável aceitação
humana de não sair de certos comportamentos
59
. No entanto, Clarice não isenta Macabéa
de enxergar-se verdadeiramente, processo este que G. H. vive ao longo de toda narrativa
do romance. Cabe notar que, mesmo após o processo da “descoberta do ser” não existe um
compromisso com a mudança comportamental. Na narrativa de Clarice, este olhar para si
mesmo ocorre para uma “consciência do eu”, o qual uma vez atingido terá concretizado a
busca central deste nível da narrativa: o homem, seus sentimentos e suas relações
antagônicas.
Vimos, até aqui, os momentos do encontro com os “eus” de Macabéa e G. H., no
entanto, é necessário observar que as questões existenciais que envolvem a história das
personagens não necessariamente seguem um percurso constante
60
, pois, e por diversas
vezes, as reflexões existenciais estão presentes antes mesmo do efetivo encontro com o
“eu”, como veremos e discutiremos na segunda verticalidade da narrativa clariceana.
59
Este comportamento é explicado por Benedito Nunes na seguinte análise: “Pode o homem, através da
angústia, encontrar a sua realidade de ser existente; mas é para escapar da angústia que ele se refugia no
cotidiano, onde, protegido por uma crosta de palavras, por interesses fugidios e limitados, que não o
satisfazem completamente e apenas disfarçam o cuidado em que vive, passa a existir de modo público e
impessoal” (NUNES, 1969: 94-95).
60
Como mostramos ao longo de nossas análises, a existência está presente na temática, na linguagem e
também na estrutura narrativa de Clarice Lispector. Porém, não há uma delimitação efetiva na ficção da
escritora sobre os momentos específicos em que a existência será problematizada. Este entrelaçamento da
temática existencial na obra de Clarice Lispector e o papel que esta representa dentro do nível vertical de sua
narrativa nos remetem a Barthes que, ao tratar de questões que permeiam a narrativa, aponta que “a
<<perseguição>> exercida por um conjunto horizontal de relações narrativas, embora sendo completas, para
ser eficaz, deve também dirigir-se <<verticalmente>>: a significação não está <<ao cabo>> da narrativa, ela
a atravessa (...)” (BARTHES, 1973: 26).
106
3.6 – Segundo nível vertical da narrativa clariceana
Alguns leitores podem considerar que, após as “revelações” ou as descobertas sobre
si, os personagens entram numa espécie de compreensão total do “eu” e que os
questionamentos já possuem todas as respostas. No entanto, por estarem inicialmente
alocados, a partir deste momento, no segundo nível vertical da narrativa clariceana, a
existência ganha uma nova dimensão dentro da literatura de Clarice Lispector, pois,
conforme nos é narrado por G. H., “toda compreensão súbita é finalmente a revelação de
uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si mesmo” (A Paixão
Segundo G. H., 1972: 13). Como nos revela este trecho, no segundo nível da narrativa
vertical clariceana, os questionamentos macroexistenciais
61
ganham destaque no eixo
temático.
Vale ressaltar que, assim como tem uma forma peculiar de escritura e linguagem,
Clarice também subverte na hora de narrar. Se observarmos atentamente, veremos que o
segundo nível vertical da narrativa clariceana parece ser o “resultado” de uma estrutura
tradicional de narrar. No entanto, este segundo nível vertical da narrativa não ocorre
simplesmente como conseqüência das questões tratadas nos dois níveis anteriores
(narrativa horizontal e primeira verticalidade da narrativa clariceana). O segundo nível
vertical da narrativa clariceana é o que poderíamos chamar de profundidade das e nas
questões existenciais. Desta forma, podemos encontrá-la permeada aos dois níveis
anteriores. Isto ocorre porque o que consideramos ser o nível mais profundo da narrativa
clariceana as questões existenciais aparecem com uma carga de intensidade, pois neste
segundo nível vertical da narrativa estarão sempre presentes o Ser, seus sentimentos e
61
Como questionamentos macroexistenciais, entendemos aqueles mais profundos sobre a existência humana,
tal qual o papel que cada homem representa na humanidade em contraste com o comportamento que
efetivamente deseja ter.
107
problemáticas, podendo ou não ser mostrado anteriormente os processos de angústia, da
descoberta do Ser, da solidão reflexiva etc.
Esta idéia nos remete ao que Umberto Eco chama de “macroproposições
narrativas”. Ao discorrer sobre a diferença entre “fábula” e “enredo”, o teórico aponta as
“conexões lógicas profundas” como elementos presentes na narrativa vertical.
“(...) Num texto narrativo o enredo identifica-se com as estruturas discursivas.
Contudo, poderia também ser entendido como uma primeira síntese tentada pelo
leitor com base nas estruturas discursivas, uma série de macroproposições mais
analíticas que, entretanto, deixam ainda indeterminadas as sucessões temporais
definidas, as conexões lógicas profundas. (...) O que nos interessa a nível de estádios
cooperativos é que, depois de atualizar as estruturas discursivas, mediante uma série
de movimentos sintéticos, se chegue a formular as macroproposições narrativas”.
(ECO, 2004: 86)
O trecho de Umberto Eco nos ajuda a compreender como o segundo nível vertical
da narrativa clariceana aparece, por vezes, interposto aos níveis anteriores, pois, conforme
Eco, as “macroproposições” ou “macropropostas” “deixam ainda indeterminadas as
sucessões temporais definidas, as conexões lógicas profundas”. Enfim, as
“macroproposições narrativas”, da obra da autora (o homem e sua existência), são
problematizadas constantemente, mesmo antes de seus personagens adquirirem a
consciência do Ser, estágio este alcançado somente após o processo vivido, inerentemente,
nos níveis narrativos anteriores (narrativa horizontal: superficialidade do homem em
relação aos fatos, à vida e às relações; e primeiro nível vertical da narrativa clariceana:
desejo e busca da descoberta de si mesmo).
Vejamos uma seqüência de trechos em que o segundo nível vertical da narrativa de
Clarice Lispector está vinculado aos níveis anteriores.
Antes de narrar o atropelamento de Macabéa, Rodrigo S. M. sintetiza o novo Ser
que ela acabara de se tornar, fazendo uma comparação entre o que a personagem era e o
108
que “estava sendo”, naquele momento, de forma factual (narrativa horizontal), ou seja, o
narrador faz uma espécie de narrativa concreta sobre a forma como Macabéa vivia:
“Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho.
Assim, como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida.
Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar.
Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria”. (A Hora da Estrela,
1998: 79)
No entanto, logo após ter se “enchido de esperança até a boca”, Macabéa é
atropelada por uma Mercedes-Benz. Ao descrevê-la enquanto estava caída no chão,
Rodrigo S. M. comenta que:
“Para tal exígua criatura chamada de Macabéa a grande natureza se dava apenas em
forma de capim de sarjeta”. (A Hora da Estrela, 1998: 80)
Neste trecho, podemos perceber que Rodrigo S. M. se reporta à imagem de
Macabéa como a de quem nada teve na vida, nem mesmo a consciência (primeiro nível
narrativo), uma vez que esta só dura por um pequeno período antes do atropelamento.
Como ápice do que está narrando, faz reflexões sobre a vida e o destino da
personagem com um questionamento típico da segunda verticalidade da narrativa
clariceana, isto é, com uma indagação macroexistencial:
“Pergunto: toda história que já se escreveu no mundo é história de aflições?”
(A Hora da Estrela, 1998: 81)
Vejamos agora um trecho em que o segundo nível vertical da narrativa clariceana
apresenta-se desconectado dos anteriores, mas, como sempre, atrelado a profundos
questionamentos “macroexistenciais”. Rodrigo S. M., ao falar sobre a história que narra,
reflete:
109
“Se há veracidade nela e é claro que a história é verdadeira embora inventada
que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem
pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por faltar coisa mais
preciosa que ouro existe a quem falte o delicado essencial”. (A Hora da Estrela,
1998: 12)
Podemos notar nessa citação como as questões universais sobre o homem e sua
existência possuem um papel central na narrativa de Clarice, pois o caráter existencial das
histórias está presente na narrativa da autora de forma direta (nos três níveis hierárquicos)
ou de forma indireta, quando perpassa o nível horizontal e o primeiro nível vertical.
Desta forma, é possível entender como mais uma de suas transgressões, além da
linguagem e escritura, a sua narrativa. A observação desta intensa presença da temática
sobre o homem, suas dores, limitações e paradoxos, presente também na forma de narrar
62
,
nos levou a caracterizar este segundo nível vertical da narrativa da autora como o nível
mais profundo da narrativa diante da questão existencial.
3.7 – Narrativas e narrador em A Hora da Estrela: diálogo entre ofício e obras
Neste capítulo sobre a narrativa de Clarice Lispector, e seus níveis, não poderíamos
deixar de analisar a figura de Rodrigo S. M. que, como personagem/narrador suscita
diversas discussões como, por exemplo, a escrita e suas funções, a crítica literária, o papel
do escritor, entre outras.
Segundo Olga de Sá, as indagações acerca das problemáticas da narrativa em A
Hora da Estrela surgem “questionadas, ironizadas e sofridas (SÁ, 1979: 269),
principalmente através da tríade Rodrigo S. M., leitor e Macabéa.
62
“Devo acrescentar um algo que importa muito para a compreensão da narrativa: é que esta é acompanhada
do princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de dente, coisa de dentina exposta”. (A Hora da
Estrela, 1998: 24)
110
Esta é uma história em que o narrador mostra ser ele um dos personagens principais
e, por meio da construção narrativa, por vezes, faz transparecer que “sente e vive as
próprias dores” de Macabéa. Tal postura causa no leitor um impacto interessante, pois
Rodrigo S. M. se encontra e se questiona através da história da nordestina. Assim, a
dimensão auto-reflexiva da literatura clariceana mais uma vez está presente, já que a
relação entre narrador e personagem é construída por uma forma de espelho
63
.
Em alguns momentos, o narrador sente-se e comporta-se assim como sua
personagem
64
, porém com indagações sobre si e a escrita feitas de forma absolutamente
consciente. Vejamos um trecho em que ele fala da forma como se encaixa e se vê diante do
mundo:
“Quanto a mim, só me livro de ser um acaso porque escrevo, o que é um ato que é
um fato. E quando entro em contato com forças interiores minhas, encontro através
de mim o vosso Deus. Para que escrevo? E eu sei? Sei não. Sim, é verdade, às vezes
também penso que eu não sou eu, pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão
estranho que sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro. (A Hora da
Estrela, 1998: 36)
Este questionamento sobre o ato da escrita perpassa o romance, situando-se no que
já classificamos segundo nível vertical da narrativa de Clarice Lispector, pois tais reflexões
revelam uma transgressão da figura do narrador, que, ao questionar a própria atividade,
difere-se do narrador tradicional. Sendo assim, Rodrigo S. M. admite ser apenas “mais
um”, despindo-se da importância dada ao papel daquele que narra dentro da literatura:
63
“Vejo a nordestina se olhando ao espelho e um rufar de tambor no espelho aparece o meu rosto
cansado e barbudo” (A Hora da Estrela, 1998: 22).
64
“Quando penso que eu poderia ter nascido ela e por que não? estremeço. E parece-me covarde fuga de
eu não ser, sinto culpa como disse num dos títulos. Em todo caso o futuro parecia vir a ser melhor. (...) Por
estranho que pareça, ela acreditava. Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isso. E eu? De mim só se
sabe que respiro” (A Hora da Estrela, 1998: 38-39).
“Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim, que vivemos exclusivamente no
presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, e eternidade é estado das
coisas neste momento” (A Hora da Estrela, 1998: 18).
111
“Aliás descubro eu agora também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo
um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria de ser homem porque
escritora mulher pode lacrimejar piegas”. (A Hora da Estrela, 1998: 14)
Ao considerar-se alguém “dispensável” dentro da literatura, Rodrigo S. M. destaca-
se dentre os narradores em geral que, na maioria das vezes, adquirem uma postura de uma
“entidade” onipresente e onisciente. Tal atitude retira-lhe a responsabilidade de obrigação
de manter-se dentro dos padrões de narradores, dando-lhe uma liberdade de ultrapassar
limites, questionar e criticar a função do escritor.
Esta idéia de inovação pode ser observada através da análise do papel do narrador
apresentada por Ítalo Moriconi. Para ele:
“Lispector faz Rodrigo S. M. transgredir todas as regras de pieguice e utopias
sociais que sustentam o mito literário do nordestino da literatura modernista (...).
Neste sentido, a relação entre o narrador e Macabéa é a representação alegórica da
relação entre o intelectual modernista e a população pobre e excluída”.
(MORICONI, 2003: 724)
Desta forma, Rodrigo S. M. envolve-se com Macabéa na construção do
personagem, por vezes, “mimetizando-se” e sentindo-se como ela.
“Por que escrevo sobre uma jovem que nem beleza enfeitada tem? Talvez porque
nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de corpo e espírito eu toco
na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, pois
tão pouco sou”. (A Hora da Estrela, 1998: 21)
Apaixonado por sua personagem, Rodrigo S. M. não reflete o distanciamento de
toda a miséria social de Macabéa, diferentemente do que ocorre com as problemáticas
existenciais da personagem, pois, embora apaixonado pelos fatos, estes logo o cansam, e
ele prefere o “sussurro” da vida.
112
Uma outra transgressão de Rodrigo S. M. é o questionamento da linearidade
narrativa. Mesmo a história se estruturando de forma linear, o narrador declara seu desejo
de começar pelo “gran finale” e justifica sua desistência pelo fato de não querer parecer
“modernoso”.
“Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar
modismo à guisa de originalidade. Assim, é que experimentei contra os meus
hábitos uma história com começo, meio ‘gran finale’, seguido de silêncio e de chuva
caindo” (A Hora da Estrela, 1998: 13).
Sua crítica segue ao dizer-se “enjoado de literatura”, afirmação esta que traz
consigo um grande questionamento sobre o ato de escrever: “Estou absolutamente cansado
de literatura; só a mudez me faz companhia” (A Hora da Estrela, 1998: 70).
Este desdobramento da problematização da escrita, que perpassa a história de
Macabéa, evoca no romance os três níveis da narrativa clariceana que apresentamos
anteriormente. No primeiro nível narrativo (horizontal) estão presentes o referencial de real
e social. Já a introspecção da personagem e do narrador, a solidão de ambos diante do
mundo e a busca por respostas sobre si mesmos denotam a fase de transição para o
segundo nível vertical da narrativa. Neste segundo nível, temos a abordagem de questões
que vão além de próprias histórias pessoais de Macabéa e Rodrigo S. M., ampliando as
questões existenciais presentes também na narrativa.
Dessa maneira, Macabéa e Rodrigo S. M., através da estrutura narrativa de Clarice
Lispector, espelham em A Hora da Estrela o enfoque existencial que a autora apresenta
através da temática e da linguagem. Assim, as narrativas horizontal e vertical clariceanas
refletem o que Benedito Nunes classifica como representantes de um “caldo da cultura” e
do “Ser”. Como afirma Barthes, “a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os
lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade;
113
não há em parte alguma povo sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm
suas narrativas (...)”. E, complementando a importância da narrativa não só dentro da
literatura, mas para o próprio homem, para o Ser e para a sociedade, temos a seguinte
síntese do autor: “freqüentemente estas narrativas são apreciadas em comum por homens
de cultura diferente, e mesmo oposta
65
: a narrativa ridicularizada, a boa e a má literatura:
internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida”. (BARTHES,
1983: 19)
65
Nota do Autor: “Este não é o caso, é necessário lembrar, nem da poesia, nem do ensaio, tributário do nível
cultural dos consumidores”.
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou mostrar o caráter existencial da temática, linguagem e
narrativa de Clarice Lispector. Nosso ponto de partida foi a discussão, sobre romance A
Hora da Estrela, quanto ao fato de a autora se distanciar de sua produção anterior ao
escrever como última obra um livro de cunho social, retornando, assim, aos romances
produzidos nos anos trinta. Tal questão foi apresentada através de análises de
comentadores da obra de Clarice Lispector, os quais apontam para a idéia de que a
narrativa de A Hora da Estrela é uma denúncia dos problemas sociais enfrentados pela
maioria dos nordestinos.
Mostramos que esta leitura é possível em um primeiro momento, porém, ao
avançarmos nossas análises sobre o romance, percebemos que os dramas vividos por
Macabéa são apresentados por Clarice Lispector através de um enfoque subjetivo e
existencial, e não somente social. Tal idéia pôde ser constatada das análises apresentadas
através das análises de críticos, como, por exemplo, Benedito Nunes, o qual, aponta como
temática central de toda literatura clariceana a experiência interior do homem, a reflexão
individual e dramática da existência humana, a angústia, o fracasso, as limitações da
linguagem diante da comunicação etc. Essas características puderam ser percebidas
também através das análises comparativas que fizemos entre A Hora da Estrela e A Paixão
115
Segundo G. H., Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres e Perto do Coração
Selvagem. Através dos exemplos mostrados, foi possível perceber que a abordagem das
temáticas existenciais, citadas anteriormente, revela o plano subjetivo em que Clarice
Lispector constrói suas histórias, pois é a “experiência de ser-no-mundo” que a autora
problematiza em sua literatura.
Para entendermos o conceito dado por Benedito Nunes, e reiterado por Olga de Sá,
sobre o “ser-no-mundo” clariceano, mostramos que os referenciais locais e regionais
servem como ponto de partida para uma localização do homem dentro de uma realidade ou
de um mundo, mas que logo revelam episódios que poderiam acontecer em qualquer outro
lugar. Isto ocorre exatamente pelo fato de Clarice Lispector centrar suas questões na
existência do homem, em suas angústias, frustrações, desejos etc. Desta forma, os cenários
apresentados pela autora cedem lugar a uma narrativa na qual a própria situação global
da condição da existência humana acaba por colocar em segundo plano os referenciais
locais, regionais e sociais. Assim, Macabéa, conforme o conceito de Benedito Nunes, é
mais um “ser-no-mundo” que perde seus referenciais locais e regionais pelos dramas
universalmente existenciais que apresenta.
Buscamos mostrar que esta condição de “ser-no-mundo” resulta da forma como
Clarice Lispector trabalha a relação que se tem com o espaço, pois na literatura clariceana
o ambiente tem a função de revelar, na verdade, o amplo cenário em que o homem está
inserido: o mundo. Assim, o regional dos ambientes das narrativas de Clarice denota um
espaço que pode ser situado em qualquer lugar, pois os referenciais locais apresentados
pela autora, geralmente, são logo abstraídos. Ou seja, mesmo quando ambienta o leitor
sobre a localidade em que a narrativa se desenvolve, a escritora constrói as cenas com um
foco na problemática da existência, o que leva o leitor a um “alheamento do cenário,
116
gerando, assim, o efeito de “ser-no-mundo” de seus personagens, conforme aponta
Benedito Nunes.
Um exemplo dado por nós sobre esta idéia é o de que, embora tenha sua história de
vida narrada por Rodrigo S. M., Macabéa pouco se apresenta como uma típica nordestina
ou se prende às informações e questões que envolvem a região em que nasceu. Esse fato
contribuiu para a leitura de que o caráter principal de A Hora da Estrela não é o de
denúncia dos problemas sociais enfrentados por aqueles que, tão pobres como Macabéa,
vivem em Alagoas, mas sim os dramas e conflitos existenciais do homem.
Desta forma, a partir da abstração dos referenciais locais, os personagens
clariceanos ganham o papel principal do universo narrativo, além de apresentarem, então,
um processo de conhecimento de sua solidão e necessidades. A partir deste momento, a
realidade que os cercam serve apenas de referencial para as reflexões que farão sobre o
verdadeiro eu diante da imensidão que é o mundo. Surgem, assim, os questionamentos
existenciais sejam do narrador, sejam do personagem sobre a condição do homem no
mundo.
Assim, procuramos mostrar que Macabéa reflete, na verdade, o sentimento de
solidão e uma condição humana que pode estar atrelada a qualquer sujeito, o que a
caracteriza como uma personagem possuidora de um caráter mais significativamente
universal, ou seja, existencial. A “abstração de particularidades locais” e de “dados
sociais” em A Hora de Estrela apresenta Macabéa como uma “alagoana do mundo”.
Esta experiência de “ser-no-mundo” vivida pelos personagens clariceanos provoca
o sentimento de angústia, que tem como principal conseqüência a auto-reflexão sobre o
papel que cada um exerce dentro de uma sociedade que exige o enquadramento nos
comportamentos esperados. A partir de então, a angústia na literatura clariceana adquire a
função de desencadear uma lucidez até então não experimentada. Esta preliminar
117
compreensão do Ser é o resultado do processo da angústia em Clarice Lispector. Através
dessa descoberta, toma-se consciência do quanto o outro faz parte de nós e como nos
modificamos para sermos aceitos. A relação do eu com o outro desvenda, nos personagens
clariceanos, a busca pela descoberta de si mesmo. É assim que o homem, sua
subjetividade, como ele se vê, como sente o mundo, como enxerga sua condição de Ser
existente ganham destaque nas narrativas clariceanas. A escritora coloca a busca da
consciência do “eu” como um inevitável destino de seus personagens, o que leva a uma
reflexão interior. Esta busca pelo verdadeiro Ser, mesmo angustiante, é o resultado da
necessidade de liberdade, de questionamento e aprendizado do homem que Clarice
Lispector problematiza em sua literatura.
É diante do caráter de “iluminação” da consciência que entendemos a temática
existencial de Clarice Lispector em A Hora da Estrela, pois, ao iniciarmos a leitura do
romance, Rodrigo S. M. revela que contará a história de uma nordestina. Pode haver,
então, a expectativa de que a obra tratará das problemáticas de uma nordestina pobre, que
vem para o Rio de Janeiro para melhorar sua vida e que, além disso, mostrará as aventuras
e as dificuldades de uma nova experiência na cidade grande. No entanto, com o
desenvolver da história, Rodrigo S. M. nos apresenta a personagem pelo viés subjetivo dos
conflitos narrados. A condição de “ser-no-mundo”, tanto da nordestina quanto do narrador,
mostra, na verdade, uma história que suscita uma reflexão sobre a questão da existência
humana.
Ao mostrarmos o caráter existencial da temática clariceana, fomos levados à
inevitável relação que existe entre os temas existenciais e o trabalho de Clarice Lispector
com a linguagem. Na literatura clariceana, tudo o que cerca o homem perpassa a questão
dos limites entre o Ser e o dizer, uma vez que realidade e linguagem, o eu e o mundo,
autoconhecimento e expressão possuem uma direta ligação com a condição de “Ser-no-
118
mundo”, com o fracasso humano, com a angústia da existência e com a própria “descoberta
do Ser”.
Sendo assim, para mostrarmos a ligação entre existência e linguagem na obra
clariceana, apresentamos algumas das mais relevantes análises da crítica brasileira sobre a
linguagem da autora e o impacto que a escritora causou na ocasião de sua estréia na
literatura.
Ao problematizar a dependência que o homem tem em relação à linguagem, Clarice
Lispector revela a fundamentação de sua escrita e seu esforço diante do limite entre o Ser e
o dizer. Esta articulação entre a palavra e sua impossibilidade de corresponder à realidade
resulta na densidade da escritura da autora, na qual, por vezes, o sujeito se mistura à forma
de escrever. Isto ocorre porque o eu e a linguagem se tornam indissociáveis, levando
personagens, narradores e leitores a questionamentos sobre a descoberta dos próprios
limites de expressão e de consciência do fracasso da língua verbal diante da realidade. Tal
questão revela como a existência está presente também na própria escritura de Clarice
Lispector, pois vida e linguagem se confundem através da forma peculiar com que Clarice
constrói seu mundo ficcional.
Temos, assim, como efeito da escritura de Clarice, a “provocação” e a “estranheza”
que Olga de Sá definiu como estados de “mal-estar” do leitor. Isto ocorre porque a
escritura clariceana requer de quem lê, conforme Antonio Candido, uma
desautomatização dos clichês morais e ficcionais. Como resultado deste trabalho com a
linguagem, temos o que Umberto Eco conceitua como problematização do “mundo
mobiliado” do leitor, isto é, ao deparar-se com questões sobre os referenciais de real, do
Ser e dos questionamentos sobre a linguagem diante dos limites da comunicação, o leitor
tem questionado seu próprio “mundo mobiliado”. Mostramos, então, como a palavra
119
adquire o papel de construir a identidade humana, tendo em vista que a linguagem integra a
relação que a realidade tem com a questão da existência humana.
Este trabalho com a linguagem ganha um destaque diante da possibilidade que o
leitor tem de ampliar sua “enciclopédia” e ainda descobrir ou construir “novos mundos”. O
desconforto promovido pela autora ao questionar os limites da palavra e ao subverter
certos padrões da escrita provoca uma reorganização tanto da “enciclopédia” do leitor
quanto dos seus conceitos ficcionais. Essa questão nos remeteu à teoria de Umberto Eco
sobre “mundos possíveis”, que trata da possibilidade de o leitor aumentar seus referenciais
de mundo através da literatura.
Vimos que, em A Hora da Estrela, Clarice Lispector problematiza o “mundo
possível” da linguagem através da história de Macabéa. Neste “mundo possível” do
romance, o paradoxo e os limites da linguagem são percebidos através da “não-expressão
verbal” de Macabéa diante dos acontecimentos da vida, pois ela está “presa” na
impossibilidade/incapacidade de transpor seus sentimentos e pensamentos em palavras.
Mostramos, assim, que o comportamento passivo da personagem não está vinculado
apenas ao seu histórico regional, social ou financeiro, mas, principalmente, à sua relação
de “impotência” diante da linguagem. Ao transpor para sua literatura esta problemática que
envolve o homem, seus referenciais de “mundos possíveis” e os limites da comunicação,
Clarice Lispector entrelaça existência e linguagem, provocando questionamentos e
diálogos sobre o significado das palavras, ampliando “os mundos” em sua literatura a partir
da constante pesquisa do Ser.
O trabalho de Clarice Lispector com a linguagem e com a temática nos motivou a
pesquisar a narrativa clariceana. Pôde-se, desta forma, observar que o enfoque existencial,
presente na temática e na linguagem da autora, revela uma estrutura narrativa também do
120
mesmo caráter, através de um processo narrativo que é dividido em um nível horizontal e
em dois níveis verticais.
No nível horizontal, observamos que o real e o social são referenciais a partir dos
quais a autora constrói a problemática do homem. Vale ressaltar que o “real” apresentado
por Clarice Lispector não busca mimetizar o mundo, mas sim exteriorizar a subjetividade
das relações do homem com este referencial. No entanto, os fatos concretos, assim como a
temática, despertam a necessidade de um mergulho em si mesmo para, então, tentar se
viver de uma forma mais verdadeira, mais “consciente”.
Na horizontalidade narrativa clariceana, Macabéa apresenta-se como uma
nordestina pobre e excluída por todos. No entanto, ao longo do romance, podemos
perceber que a personagem é caracterizada muito mais pela sua subjetividade, ou seja, pela
forma como “sentia” a difícil vida que levava. Na verdade, é através de seus sentimentos,
de sua solidão, de seu desamparo humano que conhecemos Macabéa. Desta forma, as
estruturas de mundo, a qual pertencemos socialmente, aparecem como ponto de partida
para questões existenciais dos romances. Assim, a realidade e, conseqüentemente, o social
são pontos de partida para níveis mais profundos/subjetivos da narrativa clariceana.
Já na transição para a narrativa vertical, os personagens revelam um inicial
mergulho em si mesmo (primeira profundidade vertical). Após este processo, inicia-se o
segundo nível da narrativa vertical: a do conhecimento existencial.
Em A Hora da Estrela, esta autodescoberta se inicia após Macabéa aceitar a
sugestão de consultar uma cartomante, feita pela personagem Glória. Ao decidir seguir o
conselho da colega de trabalho, Macabéa depara-se com revelações que nunca ousara
enxergar efetivamente e faz descobertas sobre a vida e sobre si mesma. Esta experiência é
o ápice do processo da “descoberta do ser”, e acontece somente no segundo nível da
121
verticalidade da narrativa clariceana, pois é após este acontecimento que Macabéa tem a
completa consciência de si mesma.
Este segundo nível vertical da narrativa clariceana é o que chamamos de
profundidade das e nas questões existenciais. Isto ocorre porque o que consideramos como
o nível mais profundo da narrativa clariceana as questões existenciais permeia o Ser,
seus sentimentos e problemas, podendo ou não estar presente, conscientemente, nos
processos de angústia, da descoberta do Ser, da solidão reflexiva etc. O que nos levou a
caracterizar este nível como sendo o mais profundo é o fato de nele estarem concentradas,
claramente, as problemáticas centrais da existência do homem: suas dores, limitações, seus
sonhos, paradoxos e questionamentos existenciais. Temos, então, a abordagem de questões
que vão além das próprias histórias pessoais dos personagens, ampliando a narrativa para
conflitos universais da existência humana, que podem abarcar qualquer sujeito.
Procuramos, no desenvolvimento deste trabalho, elaborar comparações e apresentar
análises que mostram o caráter existencial da A Hora da Estrela, partindo,
especificamente, da temática, da linguagem e da narrativa clariceana. Mostramos, assim,
que o romance nos permite uma leitura de cunho existencial, por apresentar nas três esferas
citadas as problemáticas que envolvem o homem ao longo de sua existência. Sabemos que
a discussão não chega ao fim com estas considerações finais. No entanto, vale observar que
a forma como Clarice Lispector constrói a história e a personagem nordestina “fisga” o
leitor, principalmente, pela forma subjetiva, solitária, angustiante e única de Macabéa
existir no mundo.
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