Benedito Nunes, através de suas análises de romances clariceanos,
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ratifica a
estrutura narrativa que apresentamos anteriormente. Através das análises do crítico,
podemos perceber a ruptura com os referenciais da realidade e do cotidiano para um
mergulho na tentativa de “consciência de si”, na experiência do sentido da existência. Este
rompimento com o meio “real” e, conseqüentemente, com o cotidiano inicia uma
consciência que por meio de uma auto-análise busca a descoberta do eu. Em A Hora da
Estrela, tal processo é claramente vivenciado pelo próprio narrador, Rodrigo S. M.
“Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido, e ao
escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino. Quem já não
se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?” (A Hora da Estrela, 1998: 15)
Vale ressaltar, neste momento, que não estamos aqui afirmando que os referenciais
de realidade tenham um papel menor dentro da literatura clariceana, ou, muito menos, na
produção ficcional de qualquer outro escritor, pois, como vimos no capítulo anterior, eles
são ingredientes ou, conforme Umberto Eco, parte da “enciclopédia” do leitor, que poderá
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Benedito Nunes escreve, em O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector, sobre algumas
narrativas clariceanas. Em análise sobre Perto do Coração Selvagem, o crítico trata das experiências
interiores da personagem Joana narradas por Clarice Lispector. Segundo ele, “Abundante e significativas,
essas vivências absorvem os acontecimentos exteriores, escassos e insignificantes, e exprimem o conflito
dramático que cinde a personagem, interiormente dividida e em oposição aos outros”. A respeito de O
Lustre, mostra que este romance “começa expondo o fato exterior determinante da vida de seus personagens.
Virgínia e seu irmão Daniel, que se debruçam numa ponte pênsil, vêem um afogado boiando no rio. A morte
que lhe é então revelada, e acerca da qual silenciam, vai refletir-se nos jogos sombrios das duas crianças.
Essa recordação secreta sela a mútua dependência afetiva, cimentada num liame de domínio e servidão, em
que elas vivem”. Acerca de A Cidade Sitiada, pontua que o livro tem como cenário “um subúrbio em
crescimento, na década de vinte, ‘que já misturava ao cheiro de estrebaria algum progresso’ (CS, 14): novas
fábricas em seus arredores, automóveis e caminhões na velha rua do mercado – ‘onde um gosto passado
reinava nas varandas de ferro forjado, nas fachadas rasas dos sobrados’ (CS, 15) (...) Essas mudanças, que
refletem nos habitantes, se associam à experiência interior de Lucrecia Neves, a protagonista do romance,
que leva uma vida dúplice”. Sobre A Maçã no Escuro, Benedito Nunes mostra que, como Martin acredita ter
assassinado sua mulher, “foge duplamente: das conseqüências do crime e do seu próprio passado. E à medida
que foge fisicamente, o crime se transforma num ato positivo de ruptura com a sociedade e a fuga, num
movimento de evasão interior”. Já em relação a A Paixão Segundo G. H. Benedito Nunes escreve que “o
confronto com a barata marca o início de uma ruptura não apenas com essa maneira de viver, mas com a
engrenagem – com o sistema geral dos hábitos mundanos. Mediador de violenta e completa desorganização
do mundo humano, o animal exterioriza as forças traiçoeiras que solapam as estabilidades desse mundo e que
desalojam G. H. do círculo da existência”. “Lori, a personagem de Uma aprendizagem ou O livro dos
prazeres, que conhece a extrema solidão desagregadora de G. H., encontra em Ulisses, um professor de
filosofia, o interlocutor que a devolve a si mesma e à realidade” (NUNES, 1995: 20-21; 24; 34; 40; 64, 79).