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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO
CURSO DE MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA
E TEORIAS DA LITERATURA
A LINGUAGEM-IMAGEM EM JOÃO GILBERTO NOLL
Mestranda: Eliane Lage Souza
Área de Concentração: Estudos de Literatura
Orientadora: Lucia Helena
Linha de Pesquisa: Literatura e Vida Cultural
Niterói, abril de 2007
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CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
ELIANE LAGE SOUZA
A LINGUAGEM-IMAGEM EM JOÃO GILBERTO NOLL
Niterói
2007
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ELIANE LAGE SOUZA
A LINGUAGEM-IMAGEM EM JOÃO GILBERTO NOLL
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do Grau de Mestre do Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense. Área de concentração:
Estudos de Literatura
Orientadora: Prof
a
. Dr
a
Lucia Helena
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________
Profª. Drª Lucia Helena
ORIENTADORA
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________
Profª Drª Anélia Montechiari Pietrani
Instituto Superior de Educação La Salle
__________________________________________________
Profª Drª Sylmar Lannes El-Jaick
Universidade Cândido Mendes
Defendida a dissertação:
Em ____/____/____
Nota: ____________
Niterói, 2007
RESUMO
Com base nos conceitos sobre a imagem estudados desde a Antigüidade até a
atualidade, a presente dissertação analisa algumas produções textuais de João Gilberto Noll
que transformam a linguagem numa prática visual denotando correspondências entre texto e
imagem. Este processo se efetua sob dois aspectos: o primeiro, procura entrelaçar literatura e
cinema, verificando se os procedimentos narrativos utilizados pelo escritor têm a ver com a
linguagem cinematográfica. O segundo, tem o intuito de estudar a apropriação das técnicas do
filme na composição da escrita ficcional, o que comprovaria a escolha dos textos de Noll para
o cinema. A partir de tal proposta é possível comprovar que há de fato na narrativa do autor
uma poética da imagem.
Palavras-chave: olhar imagem - linguagem
ABSTRACT
Based on the concepts about the image studied since antiquity until nowadays, the
actual dissertation analyses some textual creations of João Gilberto Noll which transform the
language into a visual practice denoting correspondences between text and image. This
process takes place under two aspects: the first one, tries to interlace literature and cinema,
verifyng if the narrative procedures used by the writer has something to do with
cinematographic language. The second, has the intention of studying the appropriation of the
movie techniques in the composition of the fictional writing, what would prove the choice of
Noll texts for the cinema. Analysing this proposal it is possible to prove that there is fact in
the narrative of the author a poetical image.
Key words: look image - language
A Deus,
a meus familiares,
a meu marido Alexandre,
a meus filhos Rafael, Diogo, Eduardo
e a todos aqueles que me incentivaram e acreditaram no meu êxito.
AGRADECIMENTOS:
À Lucia Helena,
Pelas críticas providenciais, pela confiança, orientação segura durante o percurso e por ter me
ajudado a transpor meus limites com seu rigor e conhecimento.
Às amigas,
Gisele Heffner, Débora Reis, Jane Malafaia, Ilza Mascarenhas e Dalila Santos pelo apoio e
troca de idéias necessárias ao trabalho.
À minha mãe e a meu pai (in memoriam)
Pela luta diária para que pudéssemos estudar e termos melhores oportunidades que eles não
tiveram.
Às minhas irmãs Angela e Marise pela motivação e amizade
A meu marido que sempre esteve carinhosamente a meu lado, me dando força nas
dificuldades.
A meus filhos Rafael, Diogo e Eduardo pela felicidade de tê-los presentes em minha
caminhada.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................
08
1. O olhar e o apogeu da imagem ....................................................................... 13
1.1 A imagem na literatura: de Platão a Noll ...........................................................
15
1.2 A imagem literária e a imagem cinematográfica ...............................................
26
2. O cinema na literatura .................................................................................... 35
2.1 Construção do enredo literário com elementos da cinematografia ....................
36
2.2 Montagem, cortes e recursos formais das narrativas de Noll ...........................
45
2.3 Dos livros para as telas do cinema .....................................................................
52
2.3.1 Nunca fomos tão felizes ............................................................................
54
2.3.2 Harmada ...................................................................................................
63
3. A linguagem-imagem em João Gilberto Noll ................................................
70
3.1 Noll: o olho câmera do narrador pós-moderno ..................................................
74
3.2 O tempo e o espaço na narrativa de Noll ...........................................................
84
3.3 Literatura-imagem ............................................................................................. 93
3.3.1 Berkeley em Bellagio ................................................................................
93
3.3.2 Lorde .........................................................................................................
101
4. CONCLUSÃO ..................................................................................................
109
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................
113
6. ANEXO ...............................................................................................................
118
Quando eu escrevo [...] os segredos não se evitam, surgem inocentes, pelos cantos, até que
sejam agarrados, examinados com lentes e raios-x. Escarafunchando o pensamento, estou
nu em praça pública. Mas não aguardo julgamento. Quando eu escrevo dou um nó nessa
folha em branco, torço o papel, crispo os dedos até que escorram as palavras. Logo
descem pelo ralo, num redemoinho de trincos quebrados e portas batidas. Deitam longe de
mim, sem controle. Quando eu escrevo é pra entender, ligar as pontas, afrouxar o tempo.
Recriar as pequenas identidades perdidas num sorriso de mulher, no sol riscando o céu.
Fotografar a vida que se vive, emoldurar o que se sente, esculpir as ilusões. Em palavras.
(CUENCA, João Paulo. Quando eu escrevo.O Globo,1/8/2003,2
o
caderno)
INTRODUÇÃO
O ponto essencial é que uma história filmada, como uma história pintada ou escrita,
é um ato de interpretação.
1
Neste trabalho, como metodologia básica, temos por construir o esboço de uma teoria
da imagem no que concerne à inter-relação literatura e cinema, o que nos faz refletir sobre a
intertextualidade que existe entre as artes. Esse tema demonstra a fascinação pela imagem na
nossa cultura e como a visualidade de uma pintura, de uma fotografia ou de um filme podem
se imbricar na Literatura Brasileira trazendo efeitos na imaginação do leitor/espectador.
Para tanto, a originalidade do olhar de João Gilberto Noll, escritor gaúcho, empreende
uma leitura criativa de paisagens e cenas, mas também de coisas invisíveis como sonhos,
memórias, idéias ou fantasias num registro atento aos detalhes, mostrando a mudança na
percepção da realidade no espetáculo da modernidade. Os livros Berkeley em Bellagio e
Lorde, mais recentes na época do início da pesquisa, assim como Hotel Atlântico, Harmada e
o conto Alguma coisa urgentemente serão o corpus para a comprovação da poética da imagem
instituída pelo autor.
Como nos interessa observar as relações entre literatura e imagem, com ênfase na
interseção com o cinema, tomaremos por textos-matrizes o conto e o romance que foram
filmados: Nunca fomos tão felizes de Murilo Salles e Harmada de Maurice Capovilla. No
entanto, como queremos evitar um determinismo que suponha a dependência exclusiva do
autor em relação à narrativa cinematográfica, pretendemos também focalizar as duas obras
contemporâneas do escritor, citadas anteriormente, em que o uso da imagem suscita o olhar de
cruzamento, ainda não realizado, entre textos e a dinâmica da imagem literária ou diálogo
com o cinema.
1
Entrevista de Noll para a revista Entrelivros, Ano 2, n
o
18, 2006.
Na pesquisa se incluiu também Hotel Atlântico, pois a cineasta Suzana Amaral já
estava filmando há alguns anos seqüências para o filme. Mas infelizmente, o mesmo não ficou
pronto a tempo da conclusão do trabalho. Apesar disso, o romance aparece como exemplo em
vários momentos, pois sua estratégia discursiva lembra um roteiro em que imagens se
projetam simulando um espetáculo cinematográfico.
Para o embasamento do estudo, dois enfoques serão considerados: o primeiro, o
histórico-crítico, buscando-se determinar o lugar da narrativa pós-moderna; o segundo, o
estrutural, avaliando-se como Noll procura soluções ficcionais numa correspondência com a
linguagem visual.
Para tanto, no capítulo O olhar e o apogeu da imagem serão pesquisadas as questões
relativas à imagem desde a Antigüidade, através de Platão, Aristóteles e Horácio, refletindo-se
sobre como os sentidos, principalmente o da visão, têm um papel fundamental na experiência
do indivíduo ao observar o mundo. A seguir, concepções sobre o tema ao longo da história,
demonstrarão uma homologia entre as artes e o diálogo que se expressa, apesar de cada uma
ter sua linguagem peculiar.
A distinção entre poesia e pintura concentrando-se no verso de Horacio, ut pictura
poesis (a poesia como pintura), será vista no estudo do Laocoonte (1766) de Gothold Ephrain
Lessing. A seguir, observar-se-á a tradição de superioridade da poesia se invertendo para a
pintura, com Leonardo da Vinci e seu Paragone destacando o visível da mesma e valorizando
cada vez mais essa arte como forma mais próxima da realidade. Mas, logo a Reforma e a
Contra-Reforma modificarão o intuito do famoso pintor, pois a religião se empenhará em
sobrepujar a palavra.
No século XIX, as mudanças nos conceitos estéticos serão comentadas, mostrando-se
a reaproximação das duas artes e a maneira como cada uma utilizar-se-á de seus meios de
expressão. O papel do receptor se tornará mais evidenciado.
A hierarquia entre as artes e a interferência entre elas ainda será indicada no século
XX, chegando-se até o presente momento em que se descartará a teoria de que uma delas é
mais perfeita, mais autônoma, mais pura ou mais absoluta do que a outra, pois cada uma
mantém sua essência e interage com as demais, articulando intervenções entre as diversas
formas artísticas.
Depois deste histórico, pesquisaremos a imagem literária e a imagem cinematográfica
para entendermos melhor os procedimentos de uma e de outra e o diálogo que se estabelece
entre as obras contemporâneas e o cinema. Para tanto, os estudos de Pierre Francastel,
Christian Metz, Eisenstein, Jacques Aumont, Ismail Xavier e Flora Sussekind trarão
contribuições para o entendimento da composição do filme e da influência sofrida por
escritores com os novos aparatos técnicos. Os variados olhares e as transformações da
linguagem, que se torna extremamente visual, redefinirão a relação texto/imagem e os efeitos
causados entre realidade/ imaginário.
Primeiramente, no capítulo O cinema e a literatura, demonstrar-se-á que o enredo
literário de Noll é construído com elementos cinematográficos como imagens-clichê de
filmes, que eles são como roteiros já vistos e que a utilização da livre associação de idéias
causa a descontinuidade dos acontecimentos e impressões gerando uma acumulação dos
planos ou simultaneidade. Além disso, também serão vistas as lacunas que surgem com a
mudança de planos intensa e o ritmo textual que se mostra frenético a partir dessas estratégias.
Os romances escolhidos, através de exemplos, denotarão a atitude discursiva que rompe com
as estruturas literárias do passado.
Neste sentido, o aspecto da montagem e cortes da narrativa onde seqüências criam
ilusão de movimento, através de tomadas, deslocamentos de focos, travellings e outros meios,
enfocarão os diferentes tipos de planos que darão relevo a determinadas minúcias do texto. O
estranhamento do leitor também será previsível, pois com esse tipo de organização não haverá
argumentação nem conclusões cabíveis.
As possíveis aproximações entre as narrativas verbais e visuais serão examinadas a
partir de autores como Adauto Novaes e outros já citados, que enriquecerão com seus
conceitos questões como narração e imagem, enquadramento e ponto de vista, seqüência e
simultaneidade, montagem e colagem, dentre outros aspectos do tema.
Para complementar o estudo, os recursos formais como a parataxe, a pontuação, os
parágrafos longos e a sintaxe metonímica irão corroborar na comprovação de que o autor
aplica elementos produtores de imagens neste mundo em que se vive cercado por elas.
Como este trabalho segue também pelo caminho dos livros de Noll que foram
adaptados para o cinema, a análise de como os cineastas Murilo Salles e Maurice Capovilla
conseguiram esse intento, com tramas tão simples, mas que metaforicamente levam a diversas
leituras, mostrarão que os diretores conseguem completar as lacunas deixadas em aberto pelo
ficcionista ou retirar fragmentos quando não é possível modificá-los em ação, sem prejuízo do
entendimento da proposta temática do autor.
Por fim, no capítulo A linguagem-imagem em João Gilberto Noll, o olho câmera do
autor/narrador será estudado pela produção de ambigüidades estabelecidas motivada por sua
apresentação nos textos como um ser paradoxal que tem múltiplas faces, assumindo ser
escritor, ator, cego, ladrão, se mascarando e se desintegrando em outros personagens, assim
como ocorre com o processo narrativo que toma trajetos diferenciados. Esse narrador parece
estar com uma câmera na mão filmando os fragmentos visíveis e os não visíveis, mudando
sempre o foco, através de sua memória, alucinações e devaneios. Ele acaba projetando para o
leitor/espectador as cenas de sua errância numa viagem que nunca chega ao fim.
A tessitura narrativa das tramas é que dará a quem lê a oportunidade de analisar as
peças do jogo e deduzir seus significados. Com as técnicas de montagem e justaposição, as
noções de tempo e espaço se modificarão refletindo no texto, onde presente, passado e futuro
se misturarão e alterarão também a forma de representar o espaço. Esse novo conceito trará
um efeito que se afina com as técnicas cinematográficas e com o desenvolvimento das artes
plásticas. Buscaremos descrever como isso funciona através das soluções ficcionais de Noll,
pois o espaço torna-se mais dinâmico e adquire uma temporalidade que conduz o tecido
textual rompendo com o convencional.
No campo da interpretação das obras Berkeley em Bellagio e Lorde, nosso intento será
de evidenciar os traços de construção do enredo literário, numa crescente sofisticação das
técnicas de representação e, também de modo paradoxal, numa simplificação da linguagem
textual.
Como se observa, a mudança paradigmática notada nas artes e na literatura acentuará
cada vez mais a representação pela imagem e para investigar como essa relação de mão-dupla
vem ocorrendo na ficção, será importante refletir como os narradores pós-modernos
constroem seus textos conduzidos pelo movimento do olhar. Seus papéis não de “donos”da
narração, mas de participantes que demonstram não deter a onisciência para esclarecer os
fatos, serão de grande valia para se chegar a um entendimento das interrogações acerca da
realidade contemporânea. Por isso, em nossa análise, sempre que conveniente, assinalaremos
os procedimentos estéticos da literatura pós-moderna.
Pretendemos, dessa forma, com base na leitura crítica da obra de João Gilberto Noll
dentro dos critérios apontados, alcançar os objetivos inicialmente propostos, de esboçar uma
poética da imagem, sem pretensões de esgotar o assunto e contribuindo de maneira discreta,
esperar que o resultado da pesquisa abra caminhos a um olhar mais atento aos estudos
literários e à compreensão do mesmo nas variadas épocas.
Comecemos o percurso!
1. O OLHAR E O APOGEU DA IMAGEM
Pára, o mundo pára
O mundo pára pra fantasia
Um click fez o personagem
Dar força à imagem na fotografia
2
Na interpretação dos sinais que chegam às pessoas, costuma-se usar os cinco sentidos
e a maioria de nós aprende a aplicá-los desde que nasce. Mas o sentido que mais se utiliza é a
visão, pois num mundo com tantas distrações, o olho nunca vê apenas uma coisa. O nosso ver
está em constante atividade, em movimento, captando tudo o que está à nossa volta, assim
como vemos, através da memória, imagens e símbolos visuais que se tem do passado. A
recíproca é verdadeira, pois quando se olha poder-se-á também ser visto, o que nos torna parte
desse mundo visual. Só que esse olhar depende do que se tem de conhecimento ou do que se
acredita. Logo, a ação de ver é definida pela visão, que facilita, pelo aprendizado e
identificação dos elementos visuais de nossas vidas, a manutenção de um relacionamento
mais competente com o mundo. Contudo, nem sempre se vê aquilo que se olha, pois isso
depende de uma escolha pessoal para que haja um real alcance e um detalhamento do que se
quer ver.
Nesse sentido, as imagens são olhadas não de forma global, mas durante um certo
momento, numa exploração que fixa particularidades, sucessivamente, até que se tenha a
2
Refrão do samba da Unidos da Tijuca do carnaval de 2007. Autores: Ivinho do Cavaco, Totonho, Silvão e
Jorge Remédio. Retirado da Revista O Globo de 18/02/2007.
nossa percepção delas. Dessa maneira, a visibilidade de um objeto, de um ser, é o que aparece
em primeiro lugar. Depois, numa análise maior, descobrem-se os detalhamentos possíveis
daquilo que se viu, reconhecendo-se uma outra dimensão. O entendimento é que vai dar a
capacidade infinita de variações. Logo, o visto necessita do pensamento para que haja o
verdadeiro reconhecimento.
Depreende-se, então, a partir dessas reflexões que o ato de ver é definido pela visão
em todas as suas subdivisões, definidas em três níveis por Dondis em Sintaxe da linguagem
visual: “o representacional aquilo que vemos e identificamos com base no meio ambiente e
na experiência; o abstrato a qualidade cinestésica de um fato visual reduzido a seus
componentes visuais básicos e elementares, enfatizando os meios mais diretos, emocionais e
mesmo primitivos da criação de mensagens, e o simbólico o vasto universo de sistemas de
símbolos codificados que o homem criou arbitrariamente e ao qual atribuiu
significados.”(DONDIS, 1997, p. 85) A autora complementa que o aprendizado e a
identificação dos componentes visuais que se convive é que trarão um relacionamento de
mundo mais capaz. Mundo que pode ser da natureza, mundo do que criamos e o mundo da
manufatura e da tecnologia moderna. Para ela: “Todos nós somos a câmera original; todos
podemos armazenar e recordar, para nossa utilização e com grande eficiência visual, toda essa
gama de informações visuais.” (DONDIS, 1997, p. 87) Acrescenta ainda que o mais próximo
da realidade de um modelo, se equiparando ao olho e ao cérebro, seria a fotografia, mas “que
na experiência direta, ou em qualquer nível da escala de expressão visual, da foto ao esboço
impressionista, toda experiência visual está fortemente sujeita à interpretação individual.”
(DONDIS, 1997, p.88)
O que se percebe, então, é que todos têm a capacidade visual, que variará de acordo
com as épocas, com as vivências, com o conhecimento de cada um e seus diferentes olhares
para a imagem, num treinamento constante do olho para se reunir um saber que consiga
acarretar as visibilidades diversas, além de buscar os possíveis elementos invisíveis. O que
também se observa no presente momento e num futuro próximo é que as pessoas estarão cada
vez mais envolvidas pela fotografia, pelo cinema, pela televisão, pelo computador, o que leva
a linguagem para esse campo, o que não acontecia antes, pois até que se inventasse a câmera,
apenas o artista tinha essa competência.
1.1 A imagem na literatura: de Platão a Noll
Como saber se cada pássaro que cruza os caminhos do ar/ não é um imenso mundo
de prazer, vedado por nossos cinco sentidos?
3
Esta pesquisa refere-se à ligação entre a linguagem, o olhar e a imagem, objetivando
estudar essa relação através da leitura e reflexão da ficção de João Gilberto Noll, escritor
gaúcho, que estreou em 1980, com o livro de contos O cego e a dançarina.
Nesses contos, o autor descobre uma forma original de relacionar o não habitual e o
dia-a-dia da sociedade pós-moderna, assim como nos romances utiliza-se de elementos que o
levam a uma técnica narrativa capaz de revigorar a maneira de seu dizer, numa busca
incessante de paisagens e imagens que deixam interrogações sobre a realidade contemporânea
e sobre a linguagem que enuncia o visto e o não visto. Através do olhar, a mente do narrador
funciona como uma câmera, com imagens projetadas que assumem peculiaridades
cinematográficas com ângulos e tomadas de várias distâncias, cortes, flashes, deslocamentos
de foco e outros elementos. Tudo é móvel no texto: as imagens, o narrador, o sentido.
Acumulam-se dúvidas, hipóteses, surgindo múltiplos significados. Cabe ao leitor preencher os
vazios, completar as lacunas, pois a força imagética atua decisivamente na recepção.
3
Willian Blake, The marriage of heaven and hell, prancha 7, em The poetry and prose of Willian Blake, ed.
David V. Erdman, 4 ed. rev.Garden City, Nova York: Doubleday/Anchor, 1970.
Assim como a imagem contemporânea inaugura uma presença que impregna o
cotidiano, a imagem de diversas épocas, como o Barroco, o Renascimento, também
engendram modelos sociais e crenças, propagam uma ordem visual e comportamental e
precipitam evoluções na área visual abrindo caminhos a seus efeitos nos dias de hoje.
Estes motivos nos remetem ao estudo da imagem ao longo dos tempos para elucidar
alguns conceitos, pois essa questão tem um papel relevante no tocante às artes plásticas e à
literatura, conforme a investigação deste trabalho demonstrará.
Inicialmente, a primeira acepção do termo imagem que vem ao nosso pensamento, é
de algo que se assemelha visualmente a um objeto ou pessoa, denotando peculiaridades
comuns a eles: formas, cores. Logo, a imagem representa, substitui, o que pode ser
exemplificado quando se observa um anúncio com o jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho.
O que se vê é a sua representação e não a sua pessoa. Como diz Francis Wolff: “Não
representamos aquilo que está presente, representamos o que está ausente, o que ainda não
está mais, o que não pode estar presente, e que se encontra então representado...”
4
Na
verdade, esse primeiro conceito sobre o termo foi desenvolvido pelo filósofo grego Platão.
Em sua teoria, ele considerava a imagem da coisa como sua idéia (eidos), uma projeção
mental. Para Wolff, o filósofo abordava alguns elementos importantes. O primeiro, Platão
explica no diálogo Crátilo:
Se alguma divindade, não contente de imitar tua cor e tua forma, como os pintores,
reproduzisse também todo o interior de tua pessoa, tal como ele é, lhe desse a
mesma nobreza e o mesmo calor, e lhe desse movimento, arte e pensamento, tais
como existem em ti, em uma palavra, colocasse a teu lado um duplo de todas as
tuas qualidades, haveria, nesse caso, um Crátilo e uma imagem de Crátilo, ou dois
Crátilos?
5
4
WOLFF, Francis. Por trás do espetáculo: o poder das imagens.Trad. Eric Roland René Heneault. In:
NOVAES, Adauto(org.) Muito além do espetáculo. São Paulo: Ed. Senac, 2005, pp. 20-21.
5
PLATÃO, Diálogos, Crátilo, trad. Carlos Alberto Nunes, vol. IX da Coleção Amazônica (Belém: Universidade
Federal do Pará, 1973), 432 bc, pp.182-183.
O que o autor quer demonstrar nesse texto é que não se deve ter na representação de
alguém ou de um objeto, todas as suas características, mas só algumas, para que não se possa
confundir com o real a sua reprodução, o seu substituto.
A segunda face da imagem, de acordo com Platão, é de que ela é múltipla, pois há uma
série de representações possíveis de uma mesma realidade. Ela é apenas uma imitação,
segundo a explicação de Wolff: “...isso não é um verdadeiro homem, isso é um bloco de
pedra, isso não é um verdadeiro fogo, são cores sobre uma tela. (...) Em suma, a imagem é um
ser menor do que aquele que ela representa, é um falso ser, simples imitação da aparência, é
múltipla em lugar de una.” (NOVAES, 2005, p. 22-23)
Já Aristóteles, ao contrário de Platão, ponderava que a imagem era adquirida pelos
sentidos, a visão principalmente, pois através dela se percebe a semelhança entre os objetos.
Em outras palavras, segundo Ana Lucia Oliveira, “quando se passa ao plano das artes
discursivas, evidencia-se uma significativa diferença em relação a Platão: em vez de condenar
o prazer advindo das sensações visuais, trata-se de tirar partido dele, explorando a força
pictórica através da enárgeia, que consiste na evidência, na concretude dos exemplos.”
6
É possível ilustrar esse assunto com um trecho do segundo capítulo da Poética, onde
há a comparação entre pintura e poesia e a conduta de pintores gregos:
Como aqueles que imitam, imitam
Pessoas em ação, estas são
necessariamente ou boas ou más (pois os
caracteres quase sempre se reduzem
apenas a esses, baseando-se no vício ou
na virtude a distinção do caráter), isto é,
ou melhores do que somos, ou piores, ou
então tais e quais, como fazem os
pintores; Polignoto, por exemplo,
6
OLIVEIRA, Ana Lucia M. de. A retórica da imagem Sobre as releituras seiscentistas de Aristóteles. In: X
Congresso Internacional da ABRALIC, 2006, UERJ. Rio de Janeiro. Disponível em endereço eletrônico.
Acesso: 31/10/2006
melhorava os originais; Pausão os
piorava; Dionísio pintava-os como eram.
Evidentemente, cada uma das ditas
imitações admitirá essas distinções e
diferirão entre si por imitarem assim
objetos diferentes.
7
Assim, questões sobre a imagem e confrontos entre as artes realizados por autores da
Antigüidade Clássica estabelecem uma reflexão paralela sob diferentes ópticas. Horácio
também é um deles, pois escreve o famoso verso “ut pictura poesis” (poesia é como pintura)
fazendo um cotejo entre as duas, que se tornou lema dentro da história de aproximação das
artes. Esta influência do verso horaciano pode ser notada, pois o mesmo aparece em diversos
tratados de poesia e pintura, como epígrafe, do século XVI ao XVIII. O contexto do verso na
Arte Poética de Horácio é o seguinte:
Poesia é como pintura [ut pictura
poesis]; uma te cativa mais, se te deténs
mais perto; outra, se te pões mais longe;
esta prefere a penumbra; aquela quererá
ser contemplada em plena luz porque
não teme o olhar penetrante do crítico;
essa agradou uma vez; essa outra, dez
vezes repetida, agradará sempre.
8
No Renascimento, essas comparações ampliaram seu sentido, numa tentativa de elevar
a pintura e o pintor a um nível mais merecedor, pois a tradição sempre assegurou à poesia a
supremacia. Um dos precursores dessa discussão para provar a superioridade do visual sobre
o verbal é o pintor Leonardo Da Vinci, através do Paragone (comparação, em italiano, mas
7
ARISTÓTELES, A poética clássica, trad. Jaime Bruna, São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1981, p. 20
8
ibid, p. 65.
que ganha o tom de competição do grego). Para Costa Lima, a mudança teve algumas
conseqüências:
a) concedia ao pintor um status que, enquanto era ele reconhecido como artesão, era
privilégio do poeta-humanista; b) acentuando a ilusão criada pela semelhança,
estabelecia a equivalência moderna entre mímesis e imitação; c) como se comprova
pelas múltiplas rubricas do Paragone (sobre a anatomia, a ótica, a fisiologia, a
hidráulica etc), aproximava a pintura das ciências nascentes.
9
A partir do Renascimento, também houve a recuperação do costume clássico da poesia
descritiva, que gerava uma intertextualidade com a imagem visual, onde as telas
representavam passagens da Bíblia, idéias das narrativas históricas e míticas. Essa duplicidade
acaba por verter à poesia o alcance de efeitos inerentes às artes plásticas, o que cria uma
eficácia maior à sua assimilação.
Com a inversão de valores voltada para a pintura, sabe-se também que Da Vinci logo
se deparou com dificuldades, pois a Reforma e a Contra-Reforma exprimem de maneira
enérgica seus pontos de vista em relação às imagens religiosas porque se empenham na
supervalorização da palavra.
Pelo caminho traçado até aqui, observa-se que discussões acerca do tema da imagem e
da comparação das artes sempre foram postas em questão. Mas, a ênfase entre o visível e o
dizível, numa reflexão sobre as diferenças entre a pintura e a poesia será sistematizada no
século XVIII através da contribuição de Gothold Ephraim Lessing, com seu livro Laocoonte,
que investiga as fronteiras que se estabelecem entre pintura e poesia, examinando a teoria da
imaginação, as questões sobre a mímesis da arte e sua recepção.
9
LIMA, Luiz Costa. A arte entre o engano e a reflexão. Folha de São Paulo, São Paulo, 6/2/2000. Disponível
em: www1.folha.uol.com.br. Acesso em: 1/11/2006.
O autor inicia sua síntese citando as seguintes palavras do pintor Leonardo da Vinci:
Existe uma tal proporção entre a imaginação e o efeito, como existe entre a sombra
e o corpo que gera a sombra. E a mesma proporção existe entre poesia e pintura
porque a poesia usa letras para pôr as coisas na imaginação e a pintura as põe
efetivamente diante dos olhos, de modo que o olho recebe as semelhanças como se
elas fossem naturais; e a poesia nos dá o que é natural sem essa similitude e as
[coisas] não passam a impressiva pela via da virtude visual como na pintura.
(LESSING, 1998, p. 9)
10
Nessa perspectiva, o pintor enaltece o papel do olhar, dando à visão, no caso a
pintura, como forma mais imediata e mais próxima da realidade, uma importância maior do
que a poesia. Deve-se ressaltar que quando se refere à pintura, entende-se como as artes
plásticas em geral, e por poesia, as outras artes cuja imitação é progressiva.
Para Lessing (1766), a competição entre as duas artes acontecia porque a pintura se
baseava nos tratados de retórica e de poética, vertidos da literatura para o trabalho com as
imagens e também porque sua concepção “será de início eminentemente lingüística”.
(LESSING, 1998, p.11) Isso as deixava em paridade de condição.
Um outro aspecto que deve ser lembrado é relativo ao papel do espectador/leitor, pois
se pensava que ele era passivo, idéia que, aos poucos, vai se transformando e reconfigurando
as duas estéticas.
O autor esclarece ainda que é no Humanismo que a competição se inicia numa
“tentativa de restaurar a Antigüidade, de fazer renascer das ruínas os textos, construções e
imagens”. (LESSING, 1998, p.10) Porém, a opinião negativa sobre a poesia, irá perdurar
durante todo o século XVIII, só sendo questionada por alguns teóricos no limiar do mesmo
século.
10
A obra será citada sempre desta maneira.
Breitinger é um dos que contribuem para esclarecer essa disputa, dizendo que “o poeta
teria a capacidade de unificar o efeito das demais artes”, “pois ele poderia atingir a todos os
sentidos e não apenas a visão e a audição, e dessa forma, tornar mesmo o invisível visível”.
(LESSING, 1998, p.29) Logo, as palavras teriam uma força de representação, direta e
imagética, despertando os estímulos necessários na imaginação daquele que lê ou ouve a
poesia, gerando imagens, levando significados à memória cada vez mais visuais.
Na verdade, Lessing confere a cada uma das artes as suas especificidades: a poesia,
dinâmica, como arte temporal; a pintura, estática, como arte espacial. Sem abandonar a
concepção mimética da arte, mas determinando a finalidade de cada estética, de acordo com
seus caracteres próprios, o autor limita a representação das artes plásticas e da arte da
linguagem. Dessa maneira, Lessing demonstra a diferença entre as duas, tanto no aspecto do
tipo de matéria e assunto, quanto no seu modo de imitação.
Porém, para melhor entender as analogias entre a pintura e a poesia, Aguinaldo José
Gonçalves, autor de Laokoon revisitado, faz um estudo mostrando que há uma ampliação de
meios expressivos, além dos já utilizados, através do intercâmbio com outras artes, no sentido
de trocas múltiplas e não de concorrência. A obra em que se baseia para suas considerações é
o mesmo Laocoonte de Lessing, que é um grupo de esculturas encontrado em escavações
efetuadas em Roma em 1506, em que são representados o sacerdote troiano Laokoon e seus
dois filhos, no momento da morte, com serpentes venenosas que se enroscam e se prendem a
seus corpos. O efeito das picadas é visível através de suas faces, músculos e outras partes do
corpo.
O autor compara a passagem do canto II de Eneida, de Virgílio, a essa escultura, pois a
temática é a mesma. Mas, no texto de Virgílio, a dor por que passa Laocoonte tentando se
desvencilhar das serpentes é enfatizada por gritos horríveis, numa ação progressiva, o que não
pode ser observado na estatuária, pela visão estática do instante apenas que ela proporciona.
Partindo dessas ponderações, Gonçalves mostra que Lessing analisa a escultura (artes
plásticas) “como forma totalmente imitativa e limitada rigidamente pelas leis miméticas; a
poesia épica (arte temporal), imitadora de ações, porém possuidora de uma esfera mais ampla;
e a poesia dramática (arte temporal e espacial), síntese ideal de eficácia mimética”.
(GONÇALVES, 1994, p.39)
Na Antigüidade, a concepção rígida dos limites das artes plásticas, que se baseia na
idéia de que tudo o que é “belo” é “imitável”, ajuda na argumentação do autor, mas ao mesmo
tempo, ele reconhece que a arte moderna
11
(no Renascimento até meados do século XVIII)
amplia tais limites em relação à natureza imitada, mas não aos modos e meios de imitação.
Aguinaldo Gonçalves acrescenta que Lessing “mantém, em relação a eles (esses
limites), a mesma visão dominante no processo de criação da Antigüidade. Para ele, os limites
das artes plásticas mantêm-se invioláveis: o artista só pode apreender um instante da natureza
variável, só pode, nesse único instante, surpreender um ponto de vista; por outro lado, além de
vistas, as obras devem ser observadas e contempladas muitas vezes”. (GONÇALVES, 1994,
p.40) Portanto, é importante definir que a forma como os elementos de cada arte serão
representados é que caracterizarão suas diferenças e semelhanças, apontando para pontos de
convergência ou não.
Na época do Romantismo, os limites das artes começam a mudar, pois os conceitos
estéticos se reconstroem numa nova visão de mundo e de linguagem. Para Antonio Candido,
no livro Formação da Literatura Brasileira, o movimento “revoca tudo a novo juízo: concebe
de maneira nova o papel do artista e o sentido da obra de arte (...), em benefício de um
sentimento novo, embebido de inspirações locais, procurando o único em lugar do
perene.”(CANDIDO, 1975, p.23) O autor complementa ainda que “do ponto de vista literário,
11
Petrarca propõe uma nova periodização da História européia e chamava de Antigüidade ao período que
termina com a conversão do imperador Constantino ao Cristianismo (337). O momento seguinte constitui uma
nova era, que ele chamou de Moderna. Esse termo contraposto à Antigüidade, tinha uma conotação negativa,
mas que com o tempo, se associa ao renascimento da cultura antiga e ganha um significado positivo.
o individualismo romântico importa numa alteração do próprio conceito de arte: ao equilíbrio
que a estética neoclássica procurou estabelecer entre a expressão e o objeto da expressão,
sucede um desequilíbrio.” (ibid, p.23) Sem se importarem em saber se a imagem é verbal ou
pictórica, os românticos a utilizam e a entendem na sua totalidade, trazendo em poucas
palavras uma carga de símbolos imagéticos que fazem a correspondência com as outras artes.
Nesse momento, a imagem se sobrepõe tanto na pintura como na poesia,
reaproximando-as novamente. Tudo deve se transformar em imagem, cada qual utilizando
seus meios, de forma objetiva ou subjetiva. O pintor, trabalhando cores, formas e desenhos e o
poeta narrando fatos, mostrando símbolos da natureza e vivências do homem.
Mais adiante, ainda no século XIX, essas condutas se modificam e não são mais tão
relevantes, pois o que interessa agora para o pintor e para o poeta é a estrutura da obra. Neste
momento, são dados os primeiros passos para a modernidade e o papel do receptor se torna
mais evidente, pois é ele quem dará o significado ao objeto artístico.
No século XX, as contaminações entre as variadas manifestações artísticas são
demonstradas pelos trabalhos de vanguardas. Assim, por exemplo, os cubistas Picasso e
Braque introduzem no processo de suas pinturas, a colagem de letras e palavras,
desconstruindo a estrutura representacional com a forma escritural e recriando a ilusão de
espaço real na tela plana com o uso de perspectiva, luz e sombra. Dessa maneira, com o
Cubismo, a arte já não precisava ser apenas imitação do mundo à sua volta.
Chega-se então à conclusão, que só através da fantasia e da imaginação pode-se dilatar
os horizontes de observação de forma eficiente entre a obra de arte plástica e aquele que
observa. Está claro, dessa maneira, que ele deve preencher os vazios deixados pelo artista, e
que o mesmo deve permitir determinados momentos de intensidade para a fantasia livre do
observador.
Baseado nas idéias de Merleau-Ponty, Adauto Novaes esclarece em Muito além do
espetáculo
12
que “a visão não é, em hipótese nenhuma, a pura recepção de um conteúdo
visual, o que equivale a dizer que não vemos apenas com nossos olhos” porque “a visão é
mais do que visão física: ela envolve uma forma de compreensão ou de pensamento”.
(NOVAES, 2005, p.69) Ou seja, há algo que transpõe o que vemos com os olhos, e que depois
de visto, deve ser analisado para se descobrir suas significações. Logo, a imaginação
dependerá das coisas que se percebe e o intelecto e o conhecimento conceitual é que nos
trarão o entendimento necessário da coisa representada. A relação não pode ser direta, mas
sim provocadora, a ponto de acionar identificações daquele que olha.
Por isso, com a visualidade atual do mundo, temos a impressão de que todos sabem o
que é ver, mas encontramos alguns percalços para entender melhor essa experiência, diferente
de outros sentidos, graças ao que ela tem de contraditória.
Quanto à poesia, muitas vezes não se refere a uma imagem, mas cria a sua própria,
determinada pela linguagem enriquecedora e pela sugestão que advém desta. O olho não vê,
mas imagina. O texto emite indagações e pode-se ver com os olhos das palavras, fazendo
analogias, revelando a interioridade do visível. A sonoridade e a visualidade da discursividade
deixam as pessoas livres para uma infinidade de possibilidades e novas relações.
Com todos esses elementos citados, pode-se complementar esses conceitos com as
seguintes idéias de Maria Fontes:
Hoje, muitas técnicas de comunicação conjugam imagens visuais e linguagem
escrita, porém é oportuno reconhecer que a função visiva e a função lingüística
constituem dois canais divergentes da produção de imagens, sem, todavia pressupor
que tal ramificação equivalha a um corte. Na Idade Média e ao longo do
Renascimento, a expressão lingüística (escrita ou oral) vinha acompanhada de uma
imagem visiva que a ilustrava e a reforçava (caligrafias figurativas, miniatura,
emblemas, distintivos, brasão, etc). A arte contemporânea reatualiza
12
NOVAES, Adauto (org.) Muito além do espetáculo. SãoPaulo: Editora Senac São Paulo, 2005.
freqüentemente essa prática do desdobramento espacial de um texto poético: nos
caligramas, nas colagens e ainda nas performances eletrônicas (infografia). A
imagem icônica, mental ou material, pode ser geradora de um pensamento expresso
verbalmente, ou ser objeto de tradução, ou elemento de análise em uma língua
descritiva ou sugestiva (invenção científica a partir de uma imagem modelo,
criação poética a partir de uma pintura, etc).
13
Portanto, o que importa é apontar o papel do observador/leitor na elaboração da
própria arte, através de imagens mentais que eles traduzem pela pintura ou pela poesia.
Interessa também saber que aspectos das artes iremos considerar (semântico ou estrutural) e
que princípios são comuns às duas para podermos distinguir suas afinidades e diferenças.
Dessa forma, com as diferentes gradações de olhares que buscam dar visibilidade ao caráter
obscuro das coisas e as marcas que pintura e poesia deixarão entre si, poderemos perceber e
alterar nossa maneira de ver o mundo, de sentir e interagir com ele e de representá-lo.
A partir, então, da introdução acerca do entendimento e da analogia entre pintura e
poesia, podemos estender algumas metáforas que as elucidam para envolvê-las na obra de
João Gilberto Noll, pois o caminho que o escritor escolheu para contar suas histórias é bem
particular, através de uma poética da imagem, o que acabou seduzindo o cinema, tanto que
dois de seus textos já viraram filme. Transparece ainda a busca constante do escritor para uma
compreensão melhor do fenômeno literário na atualidade e a tensão que se estabelece entre a
percepção e a escrita e o compromisso que ele tem com o seu tempo.
Nesse sentido, Noll consegue suscitar em suas narrativas imagens que fluem além do
que está escrito e que vêm à consciência de cada um por diversas fontes, dependendo da
experiência do leitor. Essas imagens se desdobram como numa película de um filme e são
captadas pela visão e pelos outros sentidos. Logo, a relação da linguagem literária com a
13
FONTES, Maria Aparecida R.,1997. As cores inefáveis do camaleão: o processo mimético como substrato
teórico das correspondências entre pintura e poesia. Dissertação de mestrado, Faculdade de Letras da UFRJ,
Rio de Janeiro.
cinematográfica se faz presente nos seus livros como será constatado, percebendo-se então,
que a interseção da imagem com o texto literário é uma prática na arte contemporânea, como
referenda Alberto Manguel em Lendo imagens: “A imagem dá origem a uma história, que,
por sua vez, dá origem a uma imagem.” (MANGUEL, 2006, p.24)
1.2 A imagem literária e a imagem cinematográfica
Pode-se sustentar que há uma parecença geral entre todas as obras de arte de uma
época, que imitações posteriores confirmam denunciando elementos heterogêneos:
que há uma unidade latente ou manifesta nas produções do mesmo artista, qualquer
que seja o campo onde experimenta a mão; e que as tradições exercem influência
diferenciadora não só entre uma e outra arte, mas também dentro da mesma arte...
14
Para tratar da temática da imagem literária e da cinematográfica, é necessário refletir
sobre a multiplicidade de representações dos objetos, desenhos, gravuras que surgem à nossa
frente, através de propagandas, videoclips, videogames, cinema, televisão e computador, pois
os processos utilizados na variação da imagem nos diversos campos do conhecimento,
mostram que se pode manipulá-la quando se quer, deixando muitas vezes as pessoas confusas
ao interpretarem alguns dados dos sentidos. Isso acontece porque na era de tantas mudanças
técnicas, nossa realidade visual nem sempre apreende as coisas como realmente são, mas sim
de uma forma ilusória e sugestiva de acordo com a percepção de cada um.
Esses produtos culturais a que se tem acesso possuem códigos que interagem com o
espectador e que, por diversas vezes, consideraram não serem estabelecidos pelo leitor através
da palavra escrita. Mas, desde a invenção dos primeiros aparatos técnicos, como o
cinematógrafo e a máquina fotográfica, que o texto literário vem alterando sua percepção do
14
PRAZ, Mario. Literatura e artes visuais. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 54-55.
mundo. Nesse sentido, há uma ligação às vezes tênue, outras, bem visível, entre a ficção e a
forma como se trabalha nas linguagens visuais.
Logo, o que interessa considerar é, sobretudo, que procedimentos de representação
utilizados pela cinematografia influenciam a narrativa literária.
Algumas pesquisas sobre o assunto, como a de Pierre Francastel no livro Imagem,
visão e imaginação explicitam como se estabelecem as relações com a imagem artística.
Galienne Francastel comenta na apresentação do texto do autor:
Francastel reivindica para a percepção uma parte do trabalho do espírito, com tudo
o que este termo implica de contribuições prévias: por parte do artista, que faz
nascer a imagem, por parte do espectador e ainda pela inclusão de ambos num
grupo determinado. Um trabalho que, à partida, altera os dados imediatos dos
sentidos.
15
Para o autor, esta combinação para a percepção imagética, advém de três níveis: “ o da
realidade sensível que cria os stimulli, o da percepção e o do imaginário”, que se entremeiam
determinando uma pluralidade de significados. Logo, este processo envolve não só o
reconhecer, mas também, o compreender a imagem, pois desde que ela “faz parte do sistema
mental do homem, isto é, desde sempre, ela já contém em si todas as potencialidades que hoje
se vêem realizadas graças aos meios técnicos.”(FRANCASTEL,1983, p.15)
Com relação ao cinema, Francastel entende que o termo imagem se mostra ambíguo,
pois a câmara cinematográfica tem o poder de sintetizá-la, registrando apenas uma parte e que
o espectador também não vê o conjunto total porque há uma montagem por parte do diretor. É
todo um trabalho cumulativo apreendido mentalmente num primeiro olhar e que dependendo
das diferentes memórias (criadores, espectadores, críticos) serão feitas associações para se ter
um alcance, uma mensagem, que diferirá pela forma de pensar e agir de cada um. Acrescenta,
15
FRANCASTEL, Galienne. Introdução.In: FRANCASTEL, Pierre. Imagem, visão e imaginação. Trad.
Fernando Caetano. Lisboa: Edições 70, 1983, p. 16.
ainda, que ao lermos um texto literário, serão evocadas imagens também, mas que duas
pessoas nunca as verão do mesmo jeito, pois cada uma fará a sua seleção, de acordo com o
seu entendimento.
Para se compreender melhor os mecanismos do cinema, deve-se relembrar que, a
princípio, o filme, forma de discurso ficcional, é elaborado através de imagens registradas
mecanicamente. Essas são fixas (fotografia) e depois impressas num negativo. A película
filmada é revelada e sua montagem se processa optando-se por cortes ou não, continuidade ou
descontinuidade, privilegiando-se umas imagens ou outras. Essa manipulação pode levar a
uma fragmentação do espaço. Porém, se isso ocorre de uma maneira bem dosada, o efeito se
dissolve não transparecendo os truques empregados. Por isso, Christian Metz em A
significação no cinema explica que “a manipulação fílmica transforma num discurso o que
poderia não ter sido senão o decalque visual da realidade.”(METZ, 1972, p. 99)
O cinema clássico e o cinema de vanguarda soviética buscaram explorar essa
manipulação. No primeiro, a ruptura entre os planos garante uma continuidade que não
demonstra os mecanismos empregados. Já no segundo, a fragmentação visual é visível,
revelando sua artificialidade através de uma montagem de choque.
Mais adiante, algumas modificações acontecem, havendo, então, uma tendência para
tomadas longas (planos-seqüência) que favorecem a impressão de realidade.
Percebe-se, então, que a imagem fotográfica é a base do cinema, e que, mais tarde,
redimensionada, ela ganhará movimento, causando a impressão de realidade, o que tornará o
filme uma produção de grande sucesso quando confrontado com o espectador contemporâneo.
Assim, o que se constata é que a fotografia enfatizando a verossimilhança com o
objeto representado, estabelece uma relação de similaridade, que, no cinema, se intensificará,
pois ele trabalha com os mecanismos técnicos, mas também com o movimento.
Sobre o assunto, Ismail Xavier no artigo Cinema: revelação e engano, informa que
“nos primeiros tempos, são numerosas as crônicas que nos falam das reações de pânico ou de
entusiasmo provocadas pela confusão entre imagem do acontecimento e realidade do
acontecimento visto na tela.”(XAVIER, 1977,p. 12) Mas, com o passar dos anos, essa
interpretação se modifica e a imagem rompe as convenções realistas se impondo, podendo
estar entre o verdadeiro e o falso, e possibilitando variedades interpretativas. Observa-se,
então, o valor da fotografia e do cinema, que como meios de reprodução técnica, transformam
as formas de concepção e produção estética. No caso do filme, seu jogo ilusório de aparências
através do processo de montagem, propicia uma dinâmica que imprime um movimento às
imagens tornando a prática cinematográfica importante. De acordo com o sentido que se quer
dar às tomadas, serão utilizados nas películas, procedimentos de corte que causarão a idéia de
continuidade ou descontinuidade visual que se deseja.
No método clássico de composição fílmica, a montagem é imperceptível, dando a
impressão de um fluxo contínuo. Foi a modalidade adotada por Griffith, nas primeiras
décadas do século XX. Já Eisenstein, emprega a montagem descontínua, desfazendo essa
noção, colidindo imagens-choque e causando o efeito de simultaneidade. Acerca do método
griffithiano, Eisenstein assim opina:
O cinema de Griffith não conhece este tipo de estrutura de montagem. Seus
primeiros planos criam atmosfera, esboçam traços dos personagens, se alternam nos
diálogos dos principais personagens e os primeiros planos do perseguidor e do
perseguido aumentam o ritmo da perseguição. Mas Griffith sempre permanece num
nível de representação e objetividade e nunca tenta, através da justaposição de
planos, exprimir sentido e imagem. (EISENSTEIN, 1990, p. 202)
No início do século XX, o filme era construído utilizando-se um ponto fixo: a câmera
imóvel, que registrava a cena continuamente numa posição frontal. Mais tarde, com a
utilização da ação paralela, imprimiu-se maior dinamismo às seqüências, pois a câmera
focaliza alternadamente episódios simultâneos, que representam um grande progresso na
narração cinematográfica.
Segundo Eisenstein em A forma do filme, essa forma de construção da película, se
origina na literatura e Griffith a realiza no cinema, incorporando procedimentos narrativos
adotados por Dickens nos seus textos. (EISENSTEIN, 1990, p.179)
Assim, se constata a afinidade entre o cinema e a literatura, pois Hollywood sempre
produziu cinema adotando o estilo narrativo da ficção realista e do teatro naturalista do século
XIX, mostrando histórias e acontecimentos que tinham uma conexão e continuidade e que
geravam interesse do espectador. É o chamado cinema contador-de-histórias que será modelo
para o mundo todo.
Esse estilo elaborado trouxe uma condição inovadora para o cinema: os movimentos
de câmera que exploram o espaço e deixam de lado a imobilidade. No começo, ela continua
fixa em relação ao objeto (trem, barco ou gôndola em movimento). Mais tarde, serão
utilizados outros movimentos como os travellings (carrinhos ou trilhos) onde a câmera
desempenha movimentos variados, aproximando-se ou afastando-se, para a frente ou para
trás, para cima ou para baixo, da esquerda para a direita ou vice-versa. As primeiras
panorâmicas também surgem, onde a câmera pode girar 360
o
deslocando apenas seu corpo,
sem movimentar a sua base.
Mais adiante, a combinação desses dois tipos básicos de procedimentos é comum.
Acrescenta-se a eles a câmera na mão, colocada no ombro da pessoa que filma, dando-lhe
bastante mobilidade. Mas com o passar do tempo, outras inovações surgiram, como o
primeiríssimo plano (close-up), pela necessidade de se enfatizar determinados detalhes ou
algum elemento da estória. Também outros planos foram adotados pelo cinema, visando a
distância entre a câmera e o objeto. São eles os seguintes: o plano geral, que é uma exibição
espacial ampla, um plano de conjunto; o plano médio, que enquadra os personagens na
totalidade, deixando apenas um pequeno espaço acima da cabeça e abaixo dos pés; o plano
americano, em que as figuras humanas aparecem ao nível da cintura; o primeiro plano, em
que as pessoas são cortadas na altura do busto.
Além disso, numa filmagem, torna-se necessário um ângulo da câmera, que pode ser
no nível normal de um observador, optar-se pela posição de cima para baixo (câmera alta =
plongée) ou então, o contrário, de baixo para cima (câmera baixa = contra-plongée). Mas
tudo isso só terá sentido na tela através da montagem, assim como da imaginação do
espectador, não mais num papel passivo, mas sim como participante da realidade fílmica.
Logo, assim como a pintura e a fotografia, em que o olho realiza as diversas tomadas
de vista, também o cinema “é dominado pela metáfora do olhar, do ponto de vista, até na
forma como trata o material visual.” (AUMONT, 1983, p. 126)
No ensaio O ponto de vista, Aumont comenta que a literatura também “descobria
pouco a pouco fenômenos análogos, e em especial a complexidade das relações entre
acontecimentos, lugares, situações, personagens, e por outro lado, o“olhar”com que a
instância narradora os vê...” Também que é em grande parte, nesse momento literário, em que
há uma diversificação e mudança no ponto de vista narrativo, que o cinema clássico é
considerado como herdeiro de um sistema narrativo que “colocou as questões do narrador, do
seu olhar, e da sua encarnação sob as espécies do autor e da personagem, fundamentando o
“reconhecimento do potencial narrativo da imagem, mediante a sua assimilação a um olhar.”
(ibid, p. 126)
Para o autor, esse olhar ou ponto de vista pode ter uma série de significados em
relação ao cinema tais como: é o ponto ou lugar a partir do qual se olha; é a própria vista,
considerada a partir de um certo ponto de vista; refere-se ao ponto de vista narrativo; é a
atitude mental que traduz o juízo do narrador sobre o acontecimento. Através dessas
distinções, Aumont mostra o lado da figuração direta (na imagem) e a indireta (na narrativa)
de um ponto de vista, dividindo-o, ainda, pelos três elementos que olham: “o personagem, o
autor, o espectador que olha os dois, e que se vê a olhar.”(AUMONT, 1983, p. 127)
Constata-se, portanto, que a significação de uma imagem na tela será possível através
de alguns componentes como a montagem, o imaginário do observador, a interação com
outras imagens.
Em relação à câmera, observa-se seu avanço, no sentido de agilizar a realidade fílmica,
largando a passividade de apenas registrar os fatos, visto nos primeiros filmes de Lumiére.
Refletindo sobre essas questões, verifica-se que o cinema narrativo hollywoodiano
efetiva ligações com a literatura e que essa proximidade não é de agora, pois no século XIX,
com as inovações técnicas, como a máquina de escrever, o cinematógrafo, o fonógrafo, a
litografia, a fotografia, que começam a ser disseminadas pelo país, há uma transformação nos
comportamentos e na forma de percepção das coisas, mas que também levam alguns
escritores a se insurgirem contra esses artefatos.
Flora Sussekind no livro Cinematógrafo das Letras, comenta sobre o escritor Olavo
Bilac, que passou a considerar esses objetos e “as transformações por que passava a imprensa
como inimigos e prováveis responsáveis por um futuro afastamento dos homens de letras das
redações de jornal.”(SUSSEKIND, 1987, p.21) O autor rejeita os temas diários que serviam
para suas crônicas, tentando escrevê-los contrastando com as imagens técnicas que produziam
através da máquina fotográfica e do cinematógrafo da seguinte maneira: “muitos vocativos,
palavreado vistoso, proliferação de sinônimos, analogias com a mitologia clássica.”
( ibid, p. 21)
Ainda no mesmo século, a partir da década de oitenta, esse novo aparato técnico se
difunde, trazendo um novo diálogo entre as artes e a literatura, ainda discreto, mas que se
intensificará na virada do século XX. A diluição dos limites rígidos entre o texto e a imagem
será visível, e poetas como Mallarmé, que passa a considerar a visualidade da letra e do
branco do papel como elementos de seus poemas, terão grande importância nesse processo de
resgate de vínculos entre a palavra e a imagem.
Outro que mudará sua escritura é João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, que ao
escrever relatos breves, tentará a semelhança fílmica, utilizando personagens que não se
delineiam, sendo apenas superfície. O autor, que vivia como um errante pela cidade do Rio de
Janeiro buscando informações, na época da modernização empreendida pelo prefeito Pereira
Passos, coloca em seus textos procedimentos que mesclam reportagens e crônicas.
Com a prosa modernista, se estabelece uma apropriação por parte da literatura, de
novas formas de expressão, redefinindo-se o que interessa do cinema para o texto. Imprimem-
se outras maneiras de se compreender o tempo, a personagem, a narração, a subjetividade,
deixando-se de lado o conceito de que ele é artesanal para sintonizá-lo com os artefatos
modernos agora desvendados. Um bom exemplo é do prosador Alcântara Machado que
experimentará os caminhos trilhados por Mário e Oswald de Andrade, fazendo um recorte
bem brasileiro de nossa realidade de uma forma leve e bem-humorada usando uma linguagem
telegráfica e cinematográfica, cheia de flashes e cortes de cena que surpreendem. Pathé Baby,
livro do autor, sintetiza bem esse cinema escrito, pois sai do lugar-comum, trabalhando com
elementos que valorizam os detalhes visuais e sonoros como se fosse uma reportagem
cinematográfica num registro de suas impressões sobre a viagem que ele havia realizado no
ano anterior à Europa. Assim, a obra se diferenciava de tudo o que se fazia no período,
antevendo o mundo imagético que estava por vir.
A parceria com o artista plástico modernista Paim Vieira propiciou uma visão crítica
das cidades européias ressaltadas pela escrita e pelo desenho em que os textos apresentavam
pedaços de poesia, de músicas, de histórias em quadrinhos, imagens de humor, numa relação
icônica e verbal lembrando a forma do cinema mudo.
Para Flora Sussekind, “muda também a forma de olhar para uma paisagem de
aparelhos, para um mundo-imagem. Além da própria técnica literária, que se permite agora
explicitar seus inevitáveis enlaces e confrontos com eles”, porque antigamente o homem
estava limitado, pois sua ‘memória visiva’ se restringia ao “patrimônio de suas experiências
diretas e a um reduzido repertório de imagens refletidas pela cultura.”(SUSSEKIND, 1987, p.
147) Hoje, há “um bombardeio de tal quantidade de imagens a ponto de não podermos
distinguir mais a experiência daquilo que vimos há poucos segundos na
televisão.”(CALVINO, 1993, p. 99)
Com esse novo olhar e o aprimoramento técnico, a produção cinematográfica
brasileira começa a se evidenciar. Alguns escritores acabam se tornando colaboradores e se
transformam em diretores e roteiristas de filmes. Porém, para muitos, esse envolvimento é
apenas temático e superficial, aparecendo em seus textos citações, referências ligeiras sobre o
cinematógrafo e outros elementos da tecnologia, parecendo que se tornaram modernos.
O diálogo entre as obras contemporâneas e os achados tecnológicos do cinema são
cada vez mais evidentes, levando a uma conexão clara de fórmulas, idéias e tramas,
perpassada por diferentes gradações de olhares numa linguagem extremamente visual
implicando numa multiplicidade de possibilidades ao modo de existir e de ser do indivíduo.
2. O CINEMA NA LITERATURA
Eu sou um olho. Um olho mecânico. Eu, a máquina, mostro-lhe o mundo da
maneira que apenas eu posso ver. Liberte-me hoje e para sempre da imobilidade
humana. Estou em constante movimento [...]. Esta sou eu, a máquina, operando em
movimentos caóticos, gravando um movimento depois do outro, nas mais
complexas combinações. Livre dos limites de tempo e espaço, eu coordeno todo e
qualquer ponto do Universo, onde quer que ele seja. Meu caminho conduz a uma
nova percepção do mundo. Assim, mostro de um modo novo um mundo seu
desconhecido.
16
O cinema vem aperfeiçoando suas técnicas desde a primeira exibição pública dos irmãos
Lumiére em 1895, pois a partir de 1914, inaugurava-se a era do cinema mudo e, nos anos 30,
já se assistia ao início da produção cinematográfica falada. Nos Estados Unidos,
principalmente nos anos 50, via-se o apogeu dessa arte, com uma grande proliferação de
estúdios cinematográficos e com grandes realizações nessa área.
A princípio, o romance influenciou o cinema, mas com os resultados satisfatórios deste,
na década de 50, inverteu-se o processo e ambos buscaram sair das limitações impostas,
interpenetrando variados planos e deixando de lado a linearidade e objetividade do relato
utilizado anteriormente.
16
Citação de um artigo escrito em 1923 por Dziga Vertov, o revolucionário diretor de cinema soviético. Apud
John Burger, Ways of seeing .Londres: Penguin Books, 1977, p. 17.
Por esse motivo, a relação cinema-literatura vem sendo estudada e utilizada por diversos
autores, que procuram estabelecer os elos e as influências possíveis entre a arte visual e a arte
verbal. Estes devem partir do pressuposto de que não existe competição entre ambos, mas sim
possibilidades de trocas para que se possa criar mensagens.
No cinema, alguns elementos estabelecem as relações entre o visível e o invisível para que
haja uma interação da imagem e seu significado. Um deles é a montagem, que levará o
espectador a lê-la e a interpretá-la. Além dela, outros recursos formais estabelecem essas
ligações e vêm sendo, cada vez mais, aplicados pelos escritores, mas que dependerão da
perspectiva que eles criam e do olhar que as recebe.
2.1 Construção do enredo literário com elementos da cinematografia
O que eu aprecio num relato, não é pois diretamente o seu conteúdo, nem mesmo
sua estrutura, mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: corro,
salto, ergo a cabeça, torno a mergulhar. (BARTHES, 2004, p. 18)
O processo de escrita de Noll favorece uma estrutura narrativa desestruturada com
relação ao tempo e ao espaço e com personagens que não se delineiam nitidamente,
apresentando uma gama de procedimentos ditos cinematográficos.
A busca de um outro caminho ficcional é a opção do autor para enfocar superfícies e
percepções do instante, deixando de lado a profundidade e a interiorização presentes na
tradição romanesca.
Como uma tela, as cenas da narrativa de Noll se concatenam pelo discurso em formato
de imagens, numa apresentação visual simulada. Essa discursividade, que foge dos
parâmetros da estética clássica, em vez de parecer cópia do real, aparenta ser ela própria o
elemento visivo. O que se vê no texto, então, é um enredo fragmentado, sem ordenamento
lógico e bem diferente das tramas tradicionais. Esse modelo se assemelha a uma tela de
cinema, onde se associam cortes e montagem, elementos da técnica industrial da produção de
imagens.
O escritor, através da linguagem, incorpora o padrão fílmico utilizando-se de imagens-
clichê que demonstram uma forma diferenciada de escrever. Pode-se notar esse tratamento de
semelhança com o cinema no exemplo de Hotel Atlântico: “Eu não tinha andado dez minutos
quando vi sangue na areia. Parei. Vi que o sangue continuava à direita fazendo uma trilha,
entrava pelo mato.” (NOLL, 2003, p. 52) Também se observa o mesmo no fragmento que se
segue: “E as duas sentaram uma em cada perna de Léo. Léo ficou ruborizado. Um filme
antigo, balbuciei.” (NOLL, 2003, p. 45)
Em outros trechos de sua obra, percebe-se também essa estratégia de trabalhar o texto
como um roteiro de filmes já vistos, pois muitas vezes parece que já se tem conhecimento da
estória contada. É o que se vê no trecho de Harmada: “Eu assistira a isto muito tempo atrás
num filme, o ator fazendo o mesmo na frente do espelho.”(NOLL, 2003, p. 16)
Outra técnica empregada pelo autor é a forma da “escrita automática”, que no
manifesto surrealista de 1924, André Breton preconizou e, aos poucos, foi introduzida na
literatura e no cinema. A chamada livre associação de idéias gera uma descontinuidade em
que vários acontecimentos e impressões se juntam em planos na construção do texto, de forma
acumulativa, o que facilita o encadeamento de imagens, aproximando-se do esquema de
montagem cinematográfica de Eisenstein, que obedece ao princípio do realce do descontínuo,
transmitindo ao espectador as sensações que criam a cena. O pensamento livre libera, assim,
uma pluralidade de impressões da imaginação e do sonho de maneira artística.
Com a experiência onírica, a narrativa de Noll se aproxima da escrita ideogrâmica:
sintaxe visual e sonora (contrária à lógica-discursiva), método baseado na parataxe,
construção sintática que prescinde do conectivo, para passar à proposição seguinte. Nessa
perspectiva, a ficção do autor, através do ritmo e da visualidade de fragmentos justapostos,
traz para o texto a simultaneidade e a relação musical para a linguagem, num desdobramento,
no intuito de dizer de um chofre tudo o que lhe vem à mente. Como exemplo, pode-se lembrar
do trecho de Harmada:
Abro a janela esquecida atrás do palco. Vejo a manhã de sol. A alguns metros
Bruce desce do táxi. Escuto a água do chuveiro que cai sobre o corpo de Cris. Vejo
o pó que circula denso numa faixa de claridade que vai até o chão, como um spot.
Ouço os passos de Bruce. Vejo de repente Bruce na minha frente: seus poucos
cabelos, grisalhos, barriga calculada, os óculos que só entram fora de cena, penso
que ele é meu amigo há pelo menos trinta anos... (Noll,2003, p. 59)
Esse método afina-se com o princípio de montagem do filme eisensteineano,
resultando numa conotação de liberdade, abandono de argumentação, imagens desconectadas,
pausas e cortes, que resultam no despojamento da sintaxe, tornando a linguagem do autor
diferencial. Isso evidencia que Noll trabalha no âmbito das idéias-imagem e não como no
Modernismo, em que a montagem se realizava no nível das palavras e frases, o que imprime
um lirismo à composição, pois as imagens sucessivas se relacionam dando um ritmo dinâmico
e ousado.
As lacunas são uma constante em suas narrativas, não havendo então um senso
comum, um ponto conclusivo, nem mergulhos psicológicos. Dessa maneira, o texto se
referencia na superfície, vazio de sentidos pré-estabelecidos, deixando para o leitor sua co-
produção. Com isso, a construção do discurso abrange diferentes fragmentos narrativos
referentes à cultura de massa, que se aglomeram de maneira dispersa, tecendo todo o sistema
textual. Harmada mostra esse processo, pois o escritor desenha um universo ficcional que
parece um labirinto, onde as imagens se transformam com grande rapidez, sem limitações,
sem um espaço e um tempo definidos, numa mudança de planos intensa. O tipo de
estruturação das imagens é perceptível no trecho em que o personagem sai do estádio e, de
repente, já está diante do asilo onde permanecerá durante alguns anos:
À saída do estádio os meus pés pisam em barro. Vou até próximo de um lago, aqui,
nas cercanias do estádio.
Me ajoelho no barro, me deito nele de bruços, o lado esquerdo da minha cara
chafurda.
Depois me viro de barriga para cima. Abro a camisa de um golpe, arrancando os
botões. Com supremos golpes de força rasgo o que resta da camisa, a calça. Há uma
lua, eu vejo.
Agora me levanto, sei para onde ir. Uns passos mais, releio na porta frontal do
pesado prédio: diz tratar-se de um asilo, de mendicidade, como chamam ali.
(NOLL, 2003, p. 36)
O entrechoque das imagens produz a chamada idéia-imagem no pensamento de quem
lê e o resultado da articulação das unidades propostas gera o que Eisenstein explica:
(...) a justaposição de dois planos isolados através de sua união não parece a
simples soma de um plano mais outro plano mas o produto. Parece um produto
em vez de uma soma das partes porque em toda justaposição deste tipo o
resultado é qualitativamente diferente de cada elemento considerado isoladamente.
(EISENSTEIN, 1990, p.16)
É importante frisar que o autor não delimita essas teorias ao cinema, pois a literatura, o
teatro e a pintura também aplicam esse método, demonstrando que a montagem, mesmo sendo
um princípio essencial da linguagem cinematográfica, já existia antes, pois Maupassant a
utilizava na prosa, Leonardo da Vinci na pintura e outros em variadas modalidades artísticas.
(EISENSTEIN,1990, p.13-47)
Outro manejo visto no cinema e observado em Noll são as imagens mentais. No
filme, isso acontece quando surgem os pedaços de reminiscências, os sonhos, os desvarios do
personagem. Para exemplificar, pode-se relembrar o filme Sonhos de Akira Kurosawa, no
episódio Van Gogh, onde o personagem que olha o quadro do pintor, de repente, se vê dentro
dele percorrendo os caminhos pintados pelo artista e só no final da cena, vemos que ele estava
somente observando e sua imaginação é que foi longe.
Já nos romances, o que se vê é um forjamento do procedimento fílmico, através de um
olho narrante que faz com que o leitor construa a imagem de maneira ativa, mas que
dependerá da percepção visual de apreensão do mundo dele, numa comparação constante
entre o que está sendo visto e o que ele já viu em suas experiências.
Na passagem de Lorde em que o autor diz que “não se lembrava direito de onde tinha
vindo”, pode-se depreender o jogo simulativo adotado para a construção das imagens:
Ele queria que eu falasse do Brasil para uma audiência de seiscentas pessoas? Ah,
me vinha logo um lago e eu entrando nele devagar, bem devagar porque a água
estava fria e eu não tinha ainda carne suficiente para suportar. Minha pele, couro de
arrepio. Eu olhava em volta e não via ninguém. Uma colina ali. Um cavalo a pastar.
(...) Assim hoje me vejo à espera do inglês. Era preciso se envolver. Romper os
grilhões daquela espera e se envolver: se eu me sentia amnésico, eu retiraria das
entranhas essa e outras imagens, vividas ou não, e delas extrairia, como se espreme
uma laranja, aos poucos, com força, com a dificuldade exposta, valendo pontos
delas extrairia... (NOLL, 2003, p.29-30)
A qualidade da sugestão verbal leva a imaginação, através da leitura, à tradução das
imagens mentais que o autor sugere e o leitor a acompanhá-lo através do “olho da mente”.
Noll o conduz a perceber o objeto, o ser ou lugar segundo sua perspectiva, fazendo-o tomar
parte de sua experiência. A imagem, dessa maneira, cresce em intensidade, pois os
movimentos como os de uma câmera através de ruas, ambientes e locais revelam uma mente
que vê imagens que se equivalem a “tomadas” cinematográficas muitas vezes carregadas de
mistério, de tensão e que necessitam ser decifradas.
Com relação à mente do protagonista, Noll se apropria de uma técnica do cinema para
transformar em imagens visuais as associações produzidas pela memória e pelos estados
psicológicos, como se nota no trecho de Harmada: Fechei os olhos e vi um velho fugindo
num vale deserto, ele fugia arrastando seus pertences envoltos num saco de lona
parda.”(NOLL, 2003, p.71) Nesse caso, o ritmo do texto será o do pensamento do
protagonista e não da ação.
A estrutura textual, que parece ser desconexa, associa-se sempre a alguma experiência
do presente ou do passado, revelando alguma lógica de sua imaginação que espacializa os
estados da mente.
No cinema, a iluminação tem um papel de grande relevância, pois cria uma atmosfera
e estabelece, entre outros efeitos, o tom emocional. É possível constatar esse clima no texto e
identificá-lo com a chamada modalidade noir que englobaria filmes policiais, histórias de
detetives e de gângsters, onde os cenários percorridos pelos protagonistas são à noite ou
escuros criando um ar de mistério. Assim como ocorre no filme baseado nesse modelo, o
discurso ficcional de Noll transcorre na atualidade aproveitando-se desses elementos que se
revestem no universo da trama policial como se observa na seguinte passagem de Harmada
em que o personagem conhece um manco:
Relampejava, nós dois caminhávamos por uma estrada de terra, e ele me oferecia
um lenço, que parecia branco debaixo daquela noite escura [...] até que nos
embrenhamos por um matagal úmido, escorregadio, o que lhe dificultava, claro, o
andar, o homem num determinado momento chegou a pegar em mim para não cair,
um bicho urrou lá dentro do matagal, perguntei o que era para testar a sua
familiaridade com o ambiente, ele respondeu que era um subá, como?, interroguei,
subá, uma ave noturna, ele disse, nesse instante já estávamos à beira de um rio
levado por uma correnteza... [...] Pois então ele parou. E começou a se despir. Pediu
que eu fizesse o mesmo, que eu ia ver que beleza eram as águas do rio numa noite
de tal calor [...] aquele manco que, repentino, sem que eu pudesse compreender,
sem aparentemente ter quê nem por quê, aquele manco sim que, repentino, repito, e
me deixando estupefato, sem ação, aquele manco que com um pluft!, um nada,
sumiu, e que sumiu no fundo das águas porque aguardei um, dois minutos e ele não
voltou, não sei se tragado por um animal ou puxado para o bojo de um buraco, não
sei, só sei que nunca mais o vi, ainda mergulhei quatro ou cinco vezes, fui bastante
fundo até, eu era levado pela correnteza no interior do rio, olhos abertos, nada que
eu pudesse dizer é ele! (NOLL, 2003, p.11-14)
Nesse trecho, as cenas são fantasmáticas e enigmáticas, onde um temporal mostra um
ambiente de escuridão iluminado pelos relâmpagos. Mais tarde, esse local é iluminado pela
luz da lua, numa espécie de fade-in, típico do cinema. Esse jogo cria uma nebulosidade que se
amplia com o desaparecimento do manco no meio do rio.
No romance Hotel Atlântico nota-se uma reedição de cenas de filmes da temática noir,
pois a abertura do livro mostra o momento em que um assassinato é descoberto dentro de um
hotel. A busca de indícios do crime e do assassino demonstram a identificação com o gênero,
mas em vez de serem aproveitadas para engendrar uma cena detetivesca, o narrador percorre
outros caminhos esvaziando-a de seu sentido inicial, engendrando para a procura de sua
identidade e de um caminho para sua vida:
Me debrucei à beira da cama. A mancha de sangue quase invisível continuava ali.
Um tiro, por que não?
Sim, também eu mataria, e ganharia uma cela e comida do Estado. Talvez voltasse
ao desenho que eu abandonara na adolescência. Ficaria desenhando o dia inteiro se
os outros presos deixassem. À noite cairia de sono. Para na manhã seguinte
despertar e dar continuidade à linha interrompida no dia anterior.
(NOLL, 2003, p. 14)
Assim, mesmo que não haja um desfecho plausível, nem a manutenção de suspense na
trama, o papel de investigador que o narrador assume se mantém e sua errância também,
dando possibilidade a ele de mostrar suas diversas faces clicherizadas.
Em passagens de Hotel Atlântico, assim como de outros livros, o autor emprega a
montagem paralela indicando acontecimentos passados e presentes, concomitantemente, ou
até mesmo sonhos lembrados, como o citado:
Lá longe, no fundo do horizonte, léguas de mim, vinha vindo um homem com um
terno branco, talvez um chapéu também claro, ele vinha com o corpo a tremular
efeito dos grãos de areia movidos pelo vento sobre a imagem dele.
Quando abri os olhos a primeira coisa que pensei foi contar o sonho para Susan.
Então me virei para o lado, e vi que Susan tinha uma substância com jeito de
pastosa mas já ressequida na beirada da boca, no queixo, manchando o suéter preto.
(...)
Não havia dúvida: Susan tinha morrido. Lembrei que era o segundo cadáver que eu
encontrava em menos de 48 horas. O outro, o do hotel em Copacabana.
(NOLL, 2003, p. 29-31)
Outro elemento denotado na escrita nolliana é o chamado flash-forward, que seria uma
forma de se voltar para o futuro e, através da imaginação, supor o que pode acontecer. Isso
pode ser visto em Berkeley em Bellagio no momento em que o personagem está para voltar
ao Brasil:
... rumo a Porto Alegre,“extremo sul do Brasil”, cidade que costuma sediar o Fórum
Social Mundial e que passará a ouvir mais e mais línguas: afegãos, palestinos,
hindus, africanos darão novo molho à algaravia das minhas velhas artérias de
arrabalde, tentarão quem sabe no início abocanhar o sustento com seus cânticos de
origem pela rua da Praia, Borges de Medeiros, Largo Glênio Peres. Conseguirão?”
(NOLL, 2003, p. 80)
Outra técnica do cinema que se deve destacar é o ritmo visual, com referência à
representação pictórica das imagens. Em Hotel Atlântico quando o protagonista percebe que
vão matá-lo, o ritmo do texto se modifica tornando-se mais frenético e agitado, exprimindo,
então, um grande número de closes ou grandes planos, correspondendo ao estado psíquico do
personagem:
Eu comecei a me arrastar por trás da rocha, subindo a ribanceira. Quando chegasse
lá em cima eu correria o mais veloz possível, pois os cachorros iriam latir furiosos
isso era certo, eu então teria que ser o mais veloz possível porque o latido dos cães
me colocaria na mira da arma de Nélson em menos de segundos, o mais veloz
possível eu correria e pegaria a chave em cima do painel do carro onde Nélson a
deixara eu tinha certeza, e fugiria no carro, eu fugiria.
Eu me arrastava subindo a ribanceira, pegava em raízes expostas para me ajudar
nos impulsos necessários para me fazer subir, o chão tinha a umidade de mato
cerrado que nunca recebe a luz do sol, eu vinha subindo trazendo folhas das árvores
coladas à roupa, todo enlameado, com movimentos medidos para não cometer o
menor ruído, quando chegasse no topo da ribanceira aí não haveria outra saída, eu
teria de correr, fazer barulho, ser veloz até o carro que estava próximo dos cães
policiais que latiriam como possessos, esticando as correntes até um ponto que
talvez arrebentassem.
E chegando lá em cima eu corri veloz até o carro, abri a porta fechei os vidros com
a fúria dos cachorros a poucos metros de mim, ensurdecido peguei a chave liguei o
carro e aí vieram os tiros por trás...
(NOLL, 2003, p. 54)
Através da montagem recebemos informações sobre o personagem. A fragmentação
mostrada numa série de planos aproximados revela esse ser sob diversos ângulos. A reação
das pessoas quando o vêem evidencia seu estado de tensão. Esse clima torna-se visível em
Hotel Atlântico onde se apreende a maneira de perceber as coisas, as situações e o emocional
presente:
Bati numa porta. Uma mulher enrolada num cobertor abriu a porta, me olhou, notou
que eu estava todo molhado e coberto de lama, e então bateu a porta soltando um
berro. Depois ouvi ela gritar:
_ É o seqüestrador, socorro!
Me afastei andando de costas. De repente me virei e eu estava na frente da casa de
onde vinha a ópera. Decidi por mais uma tentativa: bati na porta.
Um homem gordo e careca abriu a porta. O disco rodava lentamente fanhoso. Era a
voz de um tenor. O homem quando viu o meu aspecto enlameado tirou uma arma
do bolso. E me apontou. (NOLL, 2003, p. 74-75)
A exploração de elementos da cinematografia utilizada nos textos de Noll não parece
ser ingênua, pois o autor encadeia uma busca na cena visual com uma série de fixações que,
na verdade, detalham o que ele pretende mostrar. Então, em vez de se olhar de uma forma
global a imagem, o olho desloca-se de outro modo, gerando o que Jacques Aumont explica
como “integração dessa multiplicidade de fixações particulares sucessivas que faz o que
chamamos nossa visão da imagem.”(AUMONT, 2004, p. 61) Com isso, o olhar é que vai
definir a percepção da imagem e a intenção de Noll nos seus contos e romances.
2.2 Montagem, cortes e recursos formais das narrativas de Noll
Se a montagem não é uma invenção inadvertida do cinema, pelo menos ela
despertou nossa atenção nesse medium, de modo que suas operações e suas
possibilidades criativas se tornaram mais óbvias que nunca.
17
Na construção de um filme existem duas operações básicas: a filmagem e a montagem.
Na primeira, o diretor opta pela maneira como os registros das imagens serão feitos e na
segunda, ele escolhe o modo como as mesmas serão combinadas. Neste caso, sua escolha
17
SPENCER, Sharon. Space, Time and Structure in the modern novel. Nova York: New York University, 1971,
p. 115. Apud Tânia Pellegrini, Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações.In: Literatura, cinema
e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 24.
recairá na neutralização da descontinuidade ou no transparecer desta. A partir do que o diretor
resolver combinar, as relações diegéticas entre a sucessão de blocos deverão ser estabelecidas
pelo espectador.
Com relação ao texto, também ocorrem as mesmas técnicas de montagem que
assumem as peculiaridades do cinema, pois o narrador apresenta com o seu olhar fazendo o
papel da câmera, episódios seguindo as mesmas diretrizes. Só que para conseguir o intento na
linguagem, o trabalho do escritor será com as palavras e frases da narração articulando os
signos de forma diferenciada.
Vagando com liberdade, pelos espaços, sem se prender a ninguém e a nada, o olhar de
personagens e narradores de Noll busca os diferentes cenários através desses recursos, tais
como: ângulos e movimentos de câmera, focos variados, distância, ilusão de seqüencialidade
e outros da cinematografia.
Para comprovar essa afirmação, o recorte discursivo abaixo, presente no texto de
Lorde, utiliza esses elementos como um fluxo de imagens mentais do narrador, numa
elaboração verbal que produz significados que remetem a um espetáculo fílmico, pois na
leitura se estabelece uma projeção de imagens em seqüência que criam a ilusão de
movimento:
Ele se levanta. Põe os bolsos completamente vazios da calça para fora. E inicia a
caminhar com os pés em direções bem opostas, cadência de cinema mudo. Eu não
sei se é para sentir alguma coisa diante daquela figura. Vai longe assim naquele
andar patético que faz algumas pessoas se virarem. Vai longe assim, como se já não
houvesse ordem possível na sua até então empedernida parcimônia, mais típica do
que a do próprio inglês. Vai como um palhaço, um bêbado ou louco. Os bolsos do
terno aparentemente impecável perigam estar furados. Começo a ir atrás. Continuo
mantendo alguma distância para que ninguém identifique laços entre a minha
pessoa e a dele. Andamos à beira do Tâmisa e o vento gela. Vejo um amontoado
aos pés de um banco. Não sei porque a coisa me chama a atenção a ponto de ir
averiguar. Um pano. Abro-o. Entre as minhas mãos desce um tecido todo de
remendos e bordados, cravejado aqui e ali de botões. Uma colcha melhor, um
manto. Sim, há um botão dourado que o fecha à base do pescoço. Botaram no lixo o
figurino de um espetáculo? Enrolei-me no manto. [...] Lembrei-me do inglesinho
que ficava no meu pé e agora andava um tanto trôpego em direção à nova ponte de
pedestres que atravessa o Tâmisa. Barras brancas a sustêm. São duas, aliás: Golden
Jubilee Bridges. Aperto o passo. Ele não olha nem uma vez para trás. Não imita
mais o caminhar do cinema mudo. Literalmente trôpego, mas por necessidade,
abalo. Chego perto. Tiro o manto. Ponho-o sobre os ombros dele. Abotôo. O botão
dourado é todo trabalhado por um artesão de primeira. Eu digo vai, você é o rei, o
soberano, o bispo. Ele sobe para a primeira das pontes, sobe, vai. O dia já se foi
num piscar de olhos. É noite novamente. Não há ninguém por perto. Aplaudo, grito
de longe, saúdo. Mas paro, faço que não posso ultrapassar algum ponto do rito. Não
sei se ele ainda me ouve, seus passos estancam no meio da ponte, como se acabasse
de se lembrar. Do quê? Ele sobe nos ferros brancos e se atira. Nunca esquecerei o
ruído de implosão que fez. (NOLL, 2004, p. 85-86)
As cenas se justapõem e se articulam descontinuamente revelando seqüências. Pode-se
enumerar os planos à maneira de um roteiro, como se vê nas primeiras tomadas: “O inglês se
levanta e põe os bolsos completamente vazios da calça para fora”; “E inicia a caminhar com
os pés em direções bem opostas, cadência de cinema mudo.”A memória do narrador vai
liberando as cenas através de justaposições no discurso para se chegar aos significados.
No fragmento, o corte e a montagem são percebidos através do olhar de um eu que
apresenta os episódios e faz o papel de uma câmera subjetiva, assim como participa dos
acontecimentos. Na seqüência, como uma filmagem, o foco, numa tomada ampla (plano
geral) é do caminhar do inglês: “Vai como um palhaço, um bêbado ou louco.” O leitor
acompanha o fluxo de imagens e a justaposição de cenas projetadas. A narrativa segue com
variados deslocamentos de foco. Um deles é relativo à roupa do inglês: “Os bolsos do terno
aparentemente impecável perigam estar furados.”A percepção visual das pessoas também é
introduzida, pois algumas se viram para olhar o “andar patético”do mesmo, numa preparação
para o clima do que está para ocorrer. Além dela, a percepção olfativa é notada no trecho
mais adiante: “Enrolei-me no manto. Cheiro de gaveta, só.” Nesse momento, como uma
câmera que estivesse numa grua, o narrador acompanha o protagonista e o inglês ao longo do
rio Tâmisa, onde um atrás do outro, mantêm uma certa distância. Com um congelamento da
imagem e um travelling lento e curto, a máquina se detém e mostra algo visto pelo narrador,
focalizando com detalhes um manto: “Vejo um amontoado aos pés de um banco. Não sei por
que a coisa me chama a atenção a ponto de ir averiguar. Um pano. Abro-o.” Como o zoom de
uma câmera outras minúcias são identificadas: “um tecido todo de remendos e bordados,
cravejado aqui e ali de botões”; “um botão dourado que fecha à base do pescoço.”
Na narrativa, o escritor parte de um plano geral até chegar a um primeiríssimo plano
que põe em relevo pormenores da cena estruturada em planos justapostos. É uma forma
instigante de apresentar as imagens que leva a uma analogia com os filmes de suspense e
estimula o espectador/leitor a depreender suposições para decifrar o mistério e buscar
respostas. Nesse tipo de texto o leitor se mantém sempre atento e atraído a acabar logo a
leitura.
Ainda no mesmo fragmento, a câmera se aproxima do homem que caminha ao longo
do rio (primeiro plano) mostrando uma das pontes: “Ele sobe para a primeira das pontes, sobe,
vai.” Simultaneamente, o protagonista, na mudança de foco do olhar narrativo, é observado:
“Aplaudo, grito de longe, saúdo. Mas paro, faço que não posso ultrapassar algum ponto do
rito.”E então acontece o clímax do romance: “Ele sobe nos ferros brancos e se atira. Nunca
esquecerei o ruído de implosão que fez.”A partir do ocorrido, é comum que o leitor pense nas
causas e nas conseqüências do ato do inglês porém, não há um encadeamento em outra
seqüência e o discurso de Noll transcorre sem nenhuma continuidade.
Este recurso evidencia o corte e a montagem na narrativa, num ritmo rápido, sem elos,
numa quebra da cadeia temporal, como um roteiro de cinema. Muitos desses detalhes serão
desprezados no próximo quadro, determinando apenas uma justaposição de planos com
imagens descontínuas. É o que ocorre na seqüência seguinte, onde o personagem se dirige
para a National Gallery manifestando suas dúvidas e estranhamento em relação às pessoas e
lugares por onde circula. Além desse, outros exemplos aparecem nas obras de Noll,
denotando a forma de organização da linguagem, do tempo e do espaço pelos métodos
cinematográficos.
No entanto, apesar de todos os elementos que inferem a presença do narrador
marcando sua percepção visual nos cortes, nos enquadramentos e nos pormenores
selecionados nos textos, Noll deixa ao leitor a oportunidade de estranhar, de incluir seu ponto
de vista e preencher as lacunas como seu parceiro ativo e, ao mesmo tempo, de surpreender a
todos que o lêem, pois não dá nenhuma explicação para os fatos, não faz nenhuma crítica e se
mostra numa forma neutra de ver a vida.
A ficção aproxima espectador/leitor e espetáculo, mas gera dúvidas entre o que é falso
ou verdadeiro no jogo de simulacros do texto, provocando no imaginário um campo de
ligações, combinações possíveis que dependerão da subjetividade de cada um.
Uma outra abordagem em relação aos recursos formais do discurso estudado se refere
à parataxe, pois o autor a emprega, com freqüência, em construções sintáticas sem elos
subordinativos para passar à seqüência seguinte, criando um grau de dependência menor e
ligações mais livres. Esse tipo de conexão (por coordenação assindética) acaba por se
constituir num bloco ou seqüência discursiva onde não há argumentação e que, muitas vezes,
se torna ilógico. No trecho inicial de Hotel Atlântico depreende-se a montagem textual
paratática:
Lá dentro havia um corpo coberto por um lençol estampado.
Fiquei parado num dos degraus, pregado à parede. Uma mulher com os cabelos
pintados muito louros descia a escada chorando. Ela apresentava o tique de repuxar
a boca em direção ao olho direito.
Me senti arrependido de ter entrado naquele hotel. (NOLL, 2003, p. 9)
No quadro que abre o romance, como numa tela, surgem imagens na mente do leitor
do assassinato que ocorre mal o protagonista chega para se hospedar em um hotel. A
construção sintática segue as diretrizes da segmentação e justaposição de cenas descontínuas.
Não há uma relação de dependência entre os constituintes lingüísticos. Logo, os efeitos do
emprego da parataxe são os de afastar a idéia conceitual do discurso e transferir para diante o
momento conclusivo, trazendo resultados mais atraentes e deixando a interpretação livre do
texto sem a preocupação que ele seja entendido pelos outros.
Outros elementos fundamentais da escrita nolliana são os parágrafos longos, com uma
pontuação que carrega o leitor para um ritmo intenso de leitura. Essa fluidez permite que o
receptor se encarregue de marcar os sinais gráficos como desejar, o que pode ser visto em
Berkeley em Bellagio:
Eu me debato agora, corro pelo quarto como se numa dança afro, bato com a
cabeça na parede porque só consigo pensar em inglês, o que treino pra dizer no
imaginário para alguém já sai corrido nessa língua como se o idioma tivesse pressa
de chegar para vencer meu português, matar o meu ofício, a minha ocupação me
deportar no primeiro vôo de Milão para São Paulo, para eu descer em Porto Alegre
como um gringo desvalido, sem saber o que fazer de mim numa cidade que eu já
não reconheço, não sei meu endereço, não lembro de parente, se perguntam onde
fica essa tal rua eu nada entendo, se sou eu a perguntar alguma coisa é a outra
pessoa a me olhar sem dar rumo ao pensamento, o inglês é a minha língua de
repente, não poderei sobreviver com meu gasto português já esquecido, abro as
janelas, penso o que fazer, se me jogo no di Como, se volto correndo pro Brasil, até
que vejo que vem vindo o escritor de Chicago... (NOLL, 2003, p. 64)
O texto revela uma série de informações do pensamento do narrador/protagonista,
típicas da oralidade, que são lançadas e acentuam as diferenças narrativas, pois não há pontos
em frases e nem parágrafos onde deveria haver. E mais uma vez o leitor participará do jogo,
pontuando onde depreender que necessite, definindo a dinâmica textual.
A leitura partida do mundo desvia a visão do todo, conseguida através de uma sintaxe
metonímica que combina palavras, frases e outros elementos lingüísticos que representarão os
diversos estilhaços do personagem ou de qualquer uma outra pessoa vista por ele na multidão:
Olhando o palco não via os Beatles, mas a mim mesmo com o rosto que eu já não
esperava ter. Alguém marmóreo, com apenas a parte da cabeça de uma estátua,
caída de lado, em proporções gigantescas - eu!, se ainda fosse possível lembrar do
meu passado ideal. A cabeça ocupava quase todo o palco e eu bebia escondido no
fundo do breu. Uma espécie de vergonha me fazia morrer um pouco no escuro.
(NOLL, 2004, p. 101)
As pausas, os vazios instaurados suscitam a participação do leitor e ensejam a
liberdade de sentidos textuais numa fuga da chamada montagem clássica utilizada nos filmes,
em que o procedimento seria de efeitos de continuidade que a tornariam invisível.
Como isso não ocorre em Noll, seu olhar tem uma perspectiva diferencial, pois ao utilizar
uma junção descontínua dos elementos da escritura, típica do cinema eisensteiniano, ele
gerará uma multiplicidade de significações que não acrescentarão nada aos enigmas e
acontecimentos, mas trarão ao discurso a visualidade realçada. Além disso, a colagem de
clichês fílmicos conferirá à linguagem um ritmo veloz destacando a aventura que é possível
ser a literatura na obra de um escritor como ele.
2.3 Dos livros para as telas do cinema
Com a visão, o infinito nos é dado de uma só vez; a riqueza é sua descrição.
18
Walter Benjamin em seu texto A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica
(1983) já via o cinema como típica manifestação artística do novo homem e suas formas de
percepção modificadas no mundo moderno apostando no seu potencial inovador das técnicas
de reprodução.
O Brasil foi um dos principais beneficiários das novas conquistas técnicas e das idéias
modernas. No início dos anos 60, surge realmente uma estética brasileira, com temas e
personagens brasileiros, através de filmes do chamado Cinema Novo, destacando o país
internacionalmente.
Com suas limitações econômicas, esse cinema utilizou lições do neo-realismo
(cortando custos e saindo dos estúdios) e da Nouvelle Vague (equipamentos leves) para
chegar a um resultado original. Mas ainda que tenha sido um marco na evolução do cinema
aqui, não se deve esquecer que antes do Cinema Novo essa arte já tinha uma história longa e
respeitável.
Como veículo de idéias políticas, o cinema também demonstra sua força e presença,
com diversos cineastas desenvolvendo propostas cinematográficas das mais diferentes. Mas, o
cerceamento à liberdade de criação artística e intelectual prosseguia num ritmo intenso através
do endurecimento do regime militar.
Alguns obstáculos se percebem no horizonte do cinema, pois o Estado controla o setor
e os cineastas se vêem à mercê do apoio econômico do governo. A brecha será valorizar a
18
GATTEGNO, Caleb. Apud DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 6.
cultura tradicional, afirmar a nossa nacionalidade e apresentar os grandes vultos da história. A
literatura parece ser a forma mais adequada disso acontecer.
Com a chamada abertura, inicia-se em 1984 o processo de transição para o regime
democrático. Nesse momento, Murilo Salles lança o filme Nunca fomos tão felizes. Baseado
no conto Alguma coisa urgentemente de João Gilberto Noll, resulta numa transposição com
imagens fortes e enternecedoras do reencontro do pai ausente e misterioso com o filho já
adulto.
Apesar de todas as discussões e divergências em relação à adaptação, os que
escreveram sobre o tema citam as diferenças entre os dois meios. A literatura utiliza-se da
linguagem verbal, que é ricamente figurativa, enquanto que o cinema, além desse elemento,
trabalha com imagens, sons não verbais, música.
No caso da adaptação de Nunca fomos tão felizes, observa-se que no filme há uma
identidade enorme com o conto de Noll. Ambos mostram o mesmo clima dos tempos
sombrios, difíceis e violentos, vividos no Brasil, havendo uma fidelidade no roteiro também
em outras passagens.
Noll afirma em um depoimento que o “clima do filme é também Alguma coisa
urgentemente. Há uma insuficiência de ser na vida do garoto. Ele não tem condições de
conhecer porque existe um vazio muito grande permeando a relação dele com o pai.”
O autor não se preocupa se sua obra será simplificada ou não na tela grande, pois
considera “a literatura um trabalho mais complexo, que é degustado pelo leitor a sós. O leitor,
em sua solidão, vai co-produzindo o livro. Quanto maior a capacidade que o cinema tiver para
sugerir, melhor, pois vai fazer com que o espectador seja também um co-produtor.”
(informação verbal)
19
19
Entrevista do autor em 16 jan. 2002 no Jornal do Brasil.
2.3.1 Nunca fomos tão felizes
Baseado no conto do livro O cego e a dançarina de João Gilberto Noll, o filme de
Murilo Salles tende para a reflexão e a sugestão. A história é centrada no filho de classe
média, no início dos anos 70, na época da ditadura, que não consegue captar o motivo de seu
pai não estar presente em sua vida como gostaria. Explorando o silêncio do protagonista, o
filme deixa que desvendemos os mistérios. Uma verdadeira metáfora do Brasil nos anos de
repressão e bastante representativo para o cinema nacional.
O próprio escritor comenta, numa entrevista, que conto e filme mostram a “sensação
de orfandade” que ambos inspiram. Para ele, Salles consegue manter “com unhas e dentes a
integridade desta situação-limite.”(informação verbal)
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Para iniciar a análise, pode-se observar o título do filme, tirado de um slogan de
propaganda do governo Médici. Os dois primeiros vocábulos (Nunca fomos) são maiores e
com traços mais fortes do que os outros dois (tão felizes). Essa é uma indicação do que o
espectador poderá perceber mais adiante pelas imagens, além do que não está dito, mas
sugerido. As interpretações podem ser as mais diversas como: a relação pai-filho não se
estabelece de forma feliz; a solidão do pai por conta de sua atividade demonstra sua
infelicidade e outras possibilidades que indicarão a forma irônica pretendida pelo diretor. Na
verdade, se invertêssemos a ordem para tão felizes nunca fomos, teríamos uma visão melhor
do que esperar do filme.
O enredo, cujo presente narrativo é durante o governo do ex-presidente Médici, não
fornece nenhum modelo de atuação política, denúncia de tortura ou lamento em relação ao
destino das pessoas que lutaram por uma causa neste momento. Parece apenas usar esses
20
Entrevista do autor em 27 ago. 1984, O Globo
elementos como pano de fundo, como forma de observar os que acompanharam os conflitos
entre o governo e os grupos que queriam consertar o Brasil.
Percebe-se que nos textos de João Gilberto Noll a temporalidade aparece normalmente
com marcações tênues, o que não ocorre no filme, pois nas mudanças de planos são vistas
datas precisas e dias da semana especificados.
Quanto ao cenário, após a saída do rapaz do colégio interno, a trama se passa a maior
parte do tempo dentro de um apartamento, com poucos móveis, poucos objetos e janelas
enormes para o mar.
Para Bachelard em A poética do espaço, “a casa, mais ainda que a paisagem é um
estado de alma. Mesmo reproduzida em seu aspecto exterior, fala de uma intimidade.”(1976,
p. 65) Observa-se, então, não só a proteção e resistência que a casa pode nos dar, mas os
valores humanos em que isso pode se transformar. Não há mais uma inércia da casa, pois ela
transcende o espaço geométrico e integra uma comunhão dinâmica entre homem e casa,
carregando-a de imagens de uma realidade psicológica de uma pessoa enclausurada em sua
solidão. É o que se vê com Gabriel, que neste espaço vazio, extravasa sua angústia e medo.
Parece que estava mais tranqüilo em sua antiga moradia, sem ter que esperar por um pai que
nem sempre aparece.
No ambiente em que vive, para tentar descobrir algo sobre a vida do pai, o rapaz
procura em pequenos objetos algumas pistas para os segredos do mesmo. Bachelard comenta
em seu livro sobre a importância desses objetos:
O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu fundo
falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta. Sem esses “objetos”e
alguns outros igualmente valorizados, nossa vida íntima não teria modelo de
intimidade. São objetos mistos, objetos-sujeito. Têm, como nós, para nós, por nós,
uma intimidade.(BACHELARD, 1979, p.70)
Objetos (caixas de fósforos, um jornal, uma fotografia, as roupas, a maleta fechada, as
passagens de avião) e gestos aparentemente banais são mostrados pela câmera de uma
maneira detalhada criando imagens com pequenos ângulos em detrimento de um discurso
verbal. Através deles o rapaz faz ligações, tece possibilidades e tenta unir um passado ao seu
cotidiano. A música ajuda a inspirar esse clima de descobertas.
O armário também é um espaço de intimidade, que quando se abre não é à toa. Nele,
Gabriel se vê num espelho, que reflete a verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da
consciência. Sua imagem revela o que ele não pode esconder.
Para Carvalho, normalmente ver-se-ia o simbólico nos filmes anteriores a essa época,
em que a alegoria estaria sempre presente como um clichê. Logo, os objetos do apartamento
teriam motivos tropicais, os personagens-tipo estariam representados para delinear a
sociedade focalizada e estes, “passariam então a gritar e a fazer discursos, ou, caso mais raro,
apenas agir e falar, de maneira que pudessem ser reconhecidos como personagens alegóricos.
O microcosmo estaria formado e o apartamento seria, sem tirar nem pôr, um grandioso
resumo especular da nação brasileira.”(informação verbal)
21
Mas, em vez disso, o que se vê
são imagens em que se olha o outro e se observa sua experiência, sem palavras. O que a
palavra não diz, o olhar e a imagem dizem: a passividade e o imobilismo do homem
contemporâneo. Como nos livros de Noll, o protagonista é um ser que prefere a contemplação
à ação, gente comumente desadaptada, fragmentada.
A força das imagens que Salles apresenta pode ser percebida quando o rapaz insiste
em saber o que o pai faz e a câmera passeia entre o rosto dos atores Cláudio Marzo e Roberto
Bataglin. Os olhares que se entrecruzam e a entonação dada cada vez que a cena se repete
falam mais forte que qualquer diálogo. O silêncio tem o seu papel. No conto de Noll, o
21
Entrevista do autor em 27 maio 1984, na Folha de São Paulo.
protagonista fala: “O segredo alimentava o meu silêncio. E eu precisava desse silêncio para
continuar ali.” (1991, p. 14)
O olhar do rapaz também é visto pelo espectador sempre voltado para o horizonte,
visto da janela ou quando está na praia. A imensidão o leva ao devaneio que se alimenta da
contemplação da grandeza. A imagem denota a falta de perspectiva de futuro para sua
existência. É uma imagem-percepção em que se vê e se reflete sobre o que ele pode estar
vendo.
A televisão é um elemento fundamental, pois, através dos noticiários, o personagem se
informa sobre os fatos da época que possam vir a ter alguma relação sobre a possível
atividade de seu pai. Na verdade, ela parece ser um personagem com quem ele se relaciona de
forma unilateral.
A guitarra e o rádio também ajudam na construção desse contexto multifacetado.
As manchetes de jornais trazem à tona uma possibilidade de realidade nesse espaço de
personagens perdidos que buscam uma identidade para se fixarem.
As referências intertextuais, explícitas ou veladas, pontuam o texto cinematográfico,
deixando o espectador fazer as relações que se incorporam de forma perfeita, como nos
exemplos: “O tempo de comunicação fazendo o homem livre.”; “A verdadeira democracia se
constrói com o esforço de cada um para a segurança de todos. Estamos forjando o nosso
destino com Ordem e Progresso. Brasileiros, nunca fomos tão felizes!”
O fragmento do filme “Os Inconfidentes” (1972) de Joaquim Pedro de Andrade,
aparece no meio do quadro, entre as figuras do pai e do filho enquanto se olham. O
personagem Tiradentes voltado diretamente para a câmera fala ao espectador: “... foi então
que me ocorreu a independência que esse país poderia ter, e eu comecei a fazê-la primeiro e
depois a cuidar de como se poderia chegar até ela.”
Essa remissão ao que passa na TV provoca uma interação entre os filmes,
desencadeando a possível intenção de Salles com a comparação simbólica da relação pai-filho
ou como o próprio diretor diz:
Eu formulo no meu filme uma crítica no nível da poética da imagem, uma crítica
simbólica à luta armada da maneira como se desenvolveu no Brasil. O personagem-
pai é um pouco o representante desse tipo de militância e o personagem-filho se
assemelha com a classe média brasileira, que se postou diante da TV, assumindo
uma identidade que não era nossa. (informação verbal)
22
Para Avellar, “cada plano de Nunca fomos tão felizes é construído como se fosse um
todo à parte. Como um fragmento que só pode mesmo ser percebido como um fragmento.
Solto. Independente. Pedaço que se quebrou de um conjunto. Pedaço que não se encaixa mais
em conjunto algum. Vemos o pé e a cabeça, imaginamos o corpo” numa referência à
importância da fotografia para compor a narrativa. O momento referido é o que Gabriel está
no pátio do colégio jogando a bola na parede. A ação aparece em dois planos. No primeiro, a
câmera para mostrar os chutes está bem ao nível do chão. No plano seguinte, no close do rosto
do rapaz, a câmera sobe e observamos apenas o movimento de sua cabeça. E então,
imaginamos, porque a cena não aparece inteira na imagem.
Para o autor, “vemos esta coisa fragmentada como uma narração linear contínua,
compreendemos a fragmentação não como uma falha de construção, mas sim como um
artifício de composição, como uma forma de revelar algo que é essencial ao contexto e à
aventura de um pai que apanha o filho no colégio e se prepara para deixar o país.”
(informação verbal)
23
22
Entrevista do autor em 23 de abril de 1984, Jornal do Brasil.
23
Entrevista do autor em 27 de maio de 1984, Folha de São Paulo.
A mulher não se encontra muito presente no filme. Somente surgem a proprietária do
apartamento da Avenida Atlântica e ex-namorada do pai (Suzana Vieira) e algumas aparições
de uma prostituta. A primeira, ele conhece através de uma foto, assim como a lembrança da
mãe, que morreu quando ele ainda era pequeno.
Quanto ao personagem principal, o adolescente reproduz o comportamento da
juventude daqueles anos com sua carência afetiva e com a sua alienação em relação à
realidade do país. O rapaz, no conto, ainda diz que precisa fazer alguma coisa urgentemente,
mas, no filme, sua forma de agir é bastante apática. Sua orfandade é visível em todos os
sentidos, mas principalmente, através de duas fotografias: no colo da mãe, quando era bebê e
na morte do pai, quando ele tira a primeira e única imagem dele, porque não tinha nada e nem
sabia nada sobre ele. Seu nome não é dito ao longo do filme nem do conto. Só no final,
morrendo, seu pai o chama pelo nome, o que demonstra sua identidade mal resolvida.
O que o rapaz vê em volta dele, como o mar, o letreiro luminoso do hotel, o vendedor
de cachorro-quente, os comerciais, o pedaço de filme na televisão, aparentemente sem
sentido, têm a ver com a visão de mundo que ele tem neste momento e através disso
percebemos o que ele sente.
A incomunicabilidade dos personagens é ressaltada, pois eles não fazem discursos ou
se explicam, mas a linguagem basicamente visual, o que ocorre no conto também, quase sem
diálogos, faz-nos imaginar o pensamento deles.
Ao se observar um pouco os diálogos presentes, é possível relacionar com um estudo
de Roland Barthes sobre o Neutro. Essa é uma categoria que permeia a língua, o discurso, o
gesto, o ato, o corpo. Seria tudo aquilo que burla o paradigma e como ele próprio diz: “um
modo de procurar de modo livre meu próprio estilo de presença nas lutas de meu tempo.”
(BARTHES, 2000, p.20)
O silêncio é uma das figuras analisadas pelo autor. O Neutro nesse sentido seria o
direito a calar-se, pois o silêncio evita as armadilhas da fala. É o que se vê quando Gabriel sai
do colégio interno com seu pai. Os dois estão mudos quase todo o tempo. Algumas perguntas
são feitas ao pai: “Por que você foi preso?”; Pai, você é um terrorista?; Por que você não me
conta as coisas?” Porém, o personagem apenas olha e não responde, mostrando como nesses
quadros o papel da câmera é primordial.
Para Barthes, “todo o Neutro é arredio à asserção.”(2003, p. 97) Daí as esquivas, que
são notadas nas conversas entre os dois, como um modo de fugir do conflito: “Por que você
fez isso? Porque precisava fazer. Depois eu te explico. Eu gostaria de responder a todas as
perguntas, mas eu não posso.”
Apenas quando é indagado sobre os motivos de buscá-lo no colégio, o pai afirma:
“Porque tinha saudades.”
“Porque estava na hora.”
“Porque você é meu filho.”
A saída pela tangente também é uma maneira de não responder. É o que faz a
proprietária do apartamento: “Isso é tudo o que eu posso te dizer agora.”
Por essas não respostas o leitor/espectador tem um enigma que precisa ser
desvendado. Muitas vezes por um detalhe que nos parece banal, descobrimos coisas
importantes.
Nessa linguagem que transparece como simples, a leitura num nível metafórico se faz
necessária, pois quando saímos do filme pensamos se aquilo realmente aconteceu ou se faz
parte do imaginário do rapaz, que tenta organizar o seu mundo, compreender o seu pai e
conhecer a si próprio.
Como leitores, descobrimos um microuniverso rico, pulsante, sob a mesmice do
cotidiano, que um escritor como Noll consegue escrever e como espectadores, vemos o papel
da imagem mostrada por Salles de forma primorosa revelando o que é essencial nesse grande
filme.
Através da leitura e análise de Alguma coisa urgentemente, de outros textos dele e de
autores do período, conclui-se que há um deslocamento da ficção brasileira contemporânea
para o questionamento da identidade dos indivíduos, dos seres fragmentados que vagam pelos
caóticos espaços urbanos em detrimento de uma discussão de uma identidade nacional (ou
regional). Vemos, então, o sujeito do relato se apresentando sem contornos definidos, a
supressão da lógica causal, da seqüência linear em favor de elementos como a simultaneidade,
a descontinuidade, a fragmentação, o deslocamento espaço-temporal, e, sobretudo o olhar. Já
não se quer mais só ouvir o mundo, mas vê-lo, pois há uma invasão frenética de imagens, de
acordo com a velocidade dos acontecimentos da vida, que não nos permite parar, absorver e
entender. Com isso, a palavra acaba sendo substituída pelo olhar, numa tentativa de fixar o
instante, o aqui, o agora.
Em vez do relato totalizante do mundo, em que se pautava a ficção, há a captura da
imagem, dos flashes, na rapidez do instante, sem explicação, pois ela não tem explicação. As
palavras são manipuladas de modo a funcionarem como imagens, suscitando na mente do
leitor uma espécie de “cinema” que acompanha a imaginação verbal.
Autores como Noll, cada um à sua maneira, têm em seus livros essa visualidade da
fotografia e do cinema e por isso não é por acaso que seus textos são levados às telas. A
linguagem verbal não sendo mais suficiente para que eles digam o que querem, é
transformada num efeito de imagem cinematográfica.
Esse procedimento lingüístico da literatura nos impõe um novo olhar, uma nova forma
de perceber o mundo.
Como disse o próprio Noll, numa entrevista:
Sou um escritor de linguagem, pelo método com o qual escrevo fica claro isso.
Tento captar a realidade através do que a linguagem me indica. Isso não quer dizer
que tenha uma linha progressiva, uma finalidade angelical, nada disso, mas existe a
possibilidade de você conhecer o seu próprio movimento. O homem não é um bicho
estagnado. E só existe ficção por isso e não para usar a ação como uma peripécia
atordoante que valha por si mesma. Mas o que vai me levar a essa ação, a essa
verdade humana que é o momento, é a linguagem. Ela é o abre-te sésamo deste
novo mundo. (informação verbal)
24
Quanto ao filme de Salles, mostra sua originalidade ao ultrapassar uma tradição que
existia anteriormente e insere-se neste contexto que se nomeia pós-modernismo, com um
trabalho de linguagem, que não é o discursivo, mas o da própria imagem de uma forma
bastante poética.
Como disse Epstein: “Não se conta mais nada, indica-se. O que permite o prazer de
uma descoberta e de uma construção. Mais pessoal e sem entraves, a imagem se organiza.”
(GEADA,1983, p. 271)
A partir de poucos detalhes pode-se imaginar e voar alto, fazendo relações e leituras
possíveis da trama, que aparentemente é tão simples, mas que permite uma interatividade com
o espectador.
Assim como o conto, o filme só existe plenamente quando o leitor/espectador faz seu
percurso em um dado momento e reflete em cima do que viu reexaminando até alguns
conceitos.
Portanto, não há dúvidas de que a modernidade causou vários impactos na vida das
pessoas, através de acontecimentos que mudaram o cenário real vivido, mas ao mesmo tempo
o homem percebe que tudo tem dois lados, pois a arte é essa instigação única que se atualiza
constantemente ao longo dos séculos e nos faz refletir e sonhar.
24
Depoimento do autor em 16/05/2004, O lugar do escritor, no Jornal do Brasil.
2.3.2 Harmada
Sempre houve e haverá preconceito em relação à adaptação do texto literário para o
cinema, onde a crítica se justifica com argumentos que vão desde a infidelidade, a deformação
até a vulgarização em relação ao original.
Robert Stam, em seu texto Beyond Fidelity: The dialogics of adaptation, expõe alguns
deles: como o de que a literatura teria uma história e o cinema não; que a imagem corrompe a
verdade; que é mais fácil ver um filme do que ler um livro e de que o cinema suga a literatura.
Mas essas divergências e discussões só trouxeram uma interação cada vez maior entre as duas
artes, cada qual se apropriando de recursos da outra, instaurando modificações radicais em
suas expressões, cada qual fazendo sua recriação. (NAREMORE, 2000, p. 54)
Por isso, o escritor contemporâneo João Gilberto Noll costuma ser lembrado pela sua
narrativa extremamente visual, que remete a um roteiro cinematográfico, onde a descrição de
espaços, caminhos, becos e esquinas sugere um olhar pormenorizado e preciso. Daí o filme
Harmada, de Maurice Capovilla, ter se baseado no livro homônimo(1993) do autor se
aproveitando de sua prosa singular, pois o mesmo leva o leitor a descobertas e ligações de
sentidos e a ver a vida numa outra dimensão.
O trabalho de filmagem foi realizado em 2002 e só finalizado em 2003. Só chegou aos
cinemas em meados de 2005, depois de vários adiamentos, por ser um filme fora dos padrões
dos grandes circuitos.Concorreu ao 36
o
Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e conquistou
o prêmio de melhor ator para Paulo César Pereio.
Depois de quase trinta anos desde seu primeiro filme, Capovilla enfrentou o desafio de
transpor Harmada para o mundo das imagens com uma equipe técnica de peso, entre eles, o
diretor de fotografia Mário Carneiro e o operador de câmera Dib Lutfi.
O cineasta consegue extrair do livro apenas o testemunho do vagar do protagonista, as
ações, mas não as reflexões, os delírios, os sonhos.
A película aborda um tema universal, que é a tentativa de sobrevivência do artista
brasileiro buscando a superação pela arte da representação e de contar histórias. Através de
um ator que já fez grande sucesso, rodou o mundo, mas que no momento está destruído, a
história remete a um passado e retoma a atualidade, vinte anos depois, perpassando pelos
desvios possíveis até a chegada de sua reestruturação e refazimento pessoal e social. O que se
depreende é que a história é bem superficial, mas Capovilla valoriza aquilo que acha ser
importante: a arte com o seu poder de mudança dos seres.
O personagem, que se repete em vários livros de Noll, vive transitando pelos lugares
em busca de algo que não sabe. A tradicional viagem que muitos protagonistas (heróis) fazem
no intuito de acumular conhecimentos não tem o mesmo sentido no texto, pois como expõe
Lutz Muller no livro O Herói ele “representa, portanto, o modelo do homem criativo, que tem
coragem para ser fiel a si mesmo, aos seus desejos, fantasias e às suas próprias concepções de
valor. Ele se atreve a viver a vida, em vez de fugir dela.”(1987, p. 9) Mas esse personagem,
apesar de se pensar que ele tomará um novo rumo, acaba por enganar o leitor/espectador, pois
não tem um objetivo e não sofre a transformação que o levaria a um aprendizado real. Então,
ele volta a percorrer novos caminhos.
Esse ser, no filme, como nos livros do autor, não tem nome próprio e passa pela
narração no anonimato, numa representação que desvanece sua interioridade.
Paulo César Pereio, ator famoso do cinema nacional, conduz o protagonista de Noll,
um intérprete teatral, chamado apenas de Ator, como se vê no livro:
-- Olha, vou te confessar um troço, é a primeira vez, depois de muitos anos, que
confesso isto: eu fui artista de teatro, conhece teatro?, pois é, eu fui um artista, um
ator de teatro. E, de lá pra cá, desde que abandonei ou fui abandonado pela
profissão, não sei, desde então já não consigo mais fazer qualquer outra coisa, não é
que não tenha tentado, tentei, mas já não tento mais, vou te explicar por quê: tudo
aquilo que eu faço é como se estivesse representando, entende?, se pego uma pedra
aqui e a levo até lá me dá um negócio por dentro, como se fosse trilhões de vezes
mais pesado carregar esta mentira de carregar a pedra do que a própria pedra, não
sei se você me entende, mas o caso é grave, acredite. Peguemos qualquer outra
situação, não fiquemos só na pedra. Eu e você aqui sabe?. tudo isto que estou a te
falar, não acredite em nada, é uma repelente mentira, eu não sou de confiança, não,
não acredite em mim. (NOLL, 2003, p. 24)
As contradições do ser humano, como matéria-prima ficcional, compõem o
personagem que trafega na história e as conta também. Vagando por um país que se imagina
que seja o Brasil, pois Harmada é um lugar imaginário, ele se encontra com pessoas e diversas
situações que o levam da destruição para uma reconstrução de sua vida.
A princípio, na primeira parte do filme, ele vê um grupo de atores de um teatro
mambembe e acaba indo assistir ao espetáculo, em que duas atrizes apenas, encenam um
diálogo, versos de Hilda Hilst, escolhidos pelo cineasta e que não estão no livro. O Ator acaba
se agregando a eles e se apaixona por uma delas, que tem uma filha de alguns meses. Mais
tarde, 14 anos depois, tanto no livro como no filme, ele se reencontrará com a menina,
orientando-a para que se torne uma atriz de sucesso. Um relacionamento de muita
proximidade faz com que ele se sinta como seu pai e, ao mesmo tempo, como seu mestre na
arte de interpretar.
No livro, só se sabe que ele é ator pelas entrelinhas, pois em nenhum momento o
personagem é visto encenando. No máximo, sabe-se que ele conta histórias no asilo onde se
encontra. Porém, na imagem do filme há a necessidade da ação do mesmo e então ele aparece
montando uma peça com os idosos que estão internados no local. O texto teatral é de Bertold
Brecht.
No romance, como narrador do grupo de albergados, semanalmente relata o que ele
diz “serem episódios vividos ou testemunhados por mim.”(NOLL, 2003, p. 39) E ainda que “é
como se esta narrativa fosse um fluido que saísse de mim, de fininho, em direção a um mundo
ainda desconhecido, onde todas as histórias seriam protegidas da maresia do esquecimento,
qual um arquivo do tempo.”(NOLL, 2003, p. 40) Dessa forma, ele se sente num espetáculo
como ator novamente.
Para Noll, Harmada “é um livro que tem uma fé cega no teatro, no poder do teatro, no
poder da recriação, de você realmente ver outros mundos, de fazer um exercício de viver
outros mundos, outros personagens, sair um pouco de você mesmo e recriar a realidade.”
25
O
filme consegue passar para o espectador essa mensagem levando a platéia a refletir sobre o
papel do teatro na sociedade.
A simplicidade das cenas para mostrar um teatro que ainda sobrevive dependente de
patrocínios pode ser vista na seqüência em que Pereio se veste de Napoleão e com poucos
elementos diverte a platéia do asilo.
O Ator numa das falas finais do filme expressa o papel do artista: o “verdadeiro ator” é
aquele que “sem cores e acessórios” procura “por uma verdade oculta”. E essa valorização é
dada a ele na perspectiva de Capovilla.
Assim como no texto, na tela grande não se encontram explicações nem motivações
para os acontecimentos vividos nas perambulações desse ser, que parece ter perdido o encanto
e segue seu destino sem orientação, de maneira estanque, desconectado.
No seu caminhar, o protagonista ama várias mulheres, casa-se com uma delas e vive
um casamento incompleto, indo parar num asilo de mendigos por um tempo. Acaba fugindo
de lá com Cris, a menina citada anteriormente que reaparece já moça, para buscar e tentar
refazer seu projeto de vida. Em um momento do filme ele diz: “Vamos fugir daqui numa
manhã dessas e estarás comigo no paraíso.”
25
ROSÁRIO, Miguel do. A literatura é muito perigosa. Entrevista com J. G. Noll. Disponível em:
http://www.arteepolítica.com.br. Acesso em: 07/04/2006
Quando os dois fogem do asilo, vão parar na casa de um amigo, Bruce, ator da época
em que ele representava. A partir desse momento, o sentimento que ele tinha anteriormente de
que se “tornara definitivamente um ex-ator e, pior, eu me tornara uma imagem corroída do
que eu fora; em outras palavras, eu já não passava de um canastrão”(NOLL, 2003, p. 47) se
modifica quando começa a dirigir uma peça, um monólogo mexicano, para apresentar Cris,
como atriz, ao público de Harmada. O sucesso do espetáculo transforma a vida dos dois.
Nesse ponto, transparece a idéia do retorno e da reconstrução da imagem pregressa do
protagonista. Essa relação também emerge quando o herói mítico, Pedro Harmada, fundador
da cidade, é mostrado a ele por um menino no momento de sua recordação sobre o passado
histórico local:
Levanto as mãos com vontade. Inicio os sinais: conto para o garoto que hoje é o
aniversário de Harmada.
É a data em que um homem chega de barco numa praia. Este homem vem de uma
guerra ferido num dos braços.
Ele sai do barco segurando o braço ferido e cai de joelhos. Gotas de sangue na
areia.
Ele pensa: nestas terras daqui vou fundar uma cidade. (2003, p. 100)
Esta cena que finaliza o romance se imbrica com a história do personagem, pois retrata
a sua volta às origens numa analogia com a lendária figura de Pedro Harmada.
Tudo é mostrado de maneira mecânica, com cortes e recomeços a cada cena, nos
diferentes palcos limitados, enquadrados, que indicam as agruras sofridas por um homem que
tenta se refazer, mas sem uma marcação espacial e temporal.
A locação das filmagens é num cenário atemporal, entre a cidade e o campo, na cidade
de Parati, o que acentua ainda mais as referências de espaço e tempo, indeterminando a
estória. O espectador acompanha esse percurso nessa indefinição. Assim como no livro, a
ação se passa em ruas, praças em estado precário, panoramas sem historicidade, lugares
transitórios. Para os espaços fechados, casarões antigos se prestam aos cenários revelando-se
perfeitos para a visualidade necessária ao filme.
A cenografia citadina representa imagens da pobreza, denotando indiretamente um
engajamento político do diretor através da imagem urbana, das instituições no trato com as
pessoas e as mudanças na modernidade.
A voz de Pereio conduz o fio narrativo entre os diversos planos, sem uma visão de
passado e futuro, num passar desgovernado, sem um caminho pré-definido. A câmera recorta
seu olhar no momento preciso deixando entrever sua atuação impecável, principalmente na
cena em que ele conversa com o amigo (Cecil Thiré), momento marcante do filme.
A fotografia dá cor na revelação do real nos planos-seqüência, nos enquadramentos, na
montagem final, de maneira plural e irrepreensível, pois o fotógrafo ao decidir colocar uma
imagem ou outra, impõe seu ponto de vista e interpretação.
Na montagem da película não se vê muitos cortes, mas alguns planos-seqüência
longos surgem dando a impressão de que o diretor quer que o espectador aprecie melhor o
desenrolar das imagens. Além disso, há duas cenas em que se percebe a câmera estática por
alguns minutos num aproveitamento do que a locação permite revelar.
A linguagem de Noll é facilitadora para um roteiro fílmico, pois sua descrição
minuciosa de caminhos, espaços, gera uma textura visual que se transforma em desenhos no
imaginário de cada um que o lê. Sua narração em primeira pessoa, os múltiplos sentidos de
seus parágrafos sem pontos, se acumulam em signos impressos que se transformam em fatos
na tela. Obviamente, o tempo da narrativa será de acordo com o ritmo que leitor/espectador
imprimir na sua leitura. Pode-se conferir no trecho abaixo como flui o texto do autor:
Cris fechou os olhos e começou a girar a cabeça, primeiro lentamente, depois num
louco rodopio, os cabelos negros açoitando o ar. Eu era um covarde por não chegar
ali, por não puxar aquelas crinas e não obrigá-la a ajoelhar-se diante de mim, por
não obrigá-la a pedir perdão por aquele tempo de espera que ela estava a me exigir
para que eu soubesse enfim se ela ia ou não ser atriz, eu aguardava agora aquela
resposta febrilmente, porque seria eu o seu diretor, eu que já me sentia bem passado
para voltar a ser ator, era eu que possuía agora os segredos necessários para dirigi-
la num palco, me surgia enfim uma nova promessa; (NOLL, 2003, p. 54)
A imprecisão é uma constante nas estórias desse narrador-itinerante. Seu papel,
através da linguagem, é de estabelecer imagens que costurarão o tecido textual ou, ao
contrário, denotarão a descontinuidade das ações de seus personagens. Para isso, ele
perambula pelas paragens com o olho de quem está filmando, mostrando imagens e cenários.
Daí advém a sintonia que suscita o diálogo entre literatura e cinema, gerador de uma
estratégia de composição que reúne elementos da cinematografia, como a sintaxe de cortes e
pausas, permitindo que os textos de Noll possam ser transpostos para a tela e permitindo que o
leitor/espectador tenha a liberdade de se mostrar como autor também.
3. LITERATURA-IMAGEM EM JOÃO GILBERTO NOLL
A preeminência do olhar como fato a ser narrado posiciona o sujeito como
observador e o mundo como espetáculo difuso. Sujeito do olhar, sujeito que olha,
antes que do sujeito do enunciado. [...] Estado semelhante ao de um hipotético
repórter de TV que saísse ao léu pelas ruas, com a câmera ligada, em busca de
flagrantes televisíveis. (MORICONI, 1987, p. 26)
Muitos autores investigaram e conceituaram a pós-modernidade, mas ainda se
encontram pontos divergentes nessa conceituação, com visões positivas ou negativas em
relação a esse momento.
O termo e a idéia surgiram, primeiramente, na década de 1930, no mundo hispânico.
Em As origens da pós-modernidade (1999), Perry Anderson conta que foi Frederico de Onís
que imprimiu o termo num primeiro instante, embora descrevendo “um refluxo conservador
dentro do próprio modernismo.” (ANDERSON, 1999, p. 10) Mas a expansão do conceito
coube ao filósofo francês Jean François Lyotard, com a publicação A condição pós-moderna
(1979).
Fornecendo um relato histórico das origens da noção de pós-modernismo, Anderson
comenta sobre a abordagem de Lyotard, que se concentra nas ciências, como interessante,
mas que “pouco dizia acerca das manifestações culturais e políticas ou sua influência nas
mudanças sócio-econômicas.” Jameson se volta para esse estudo e aponta um novo tipo de
sociedade, mais conhecido como “sociedade pós-industrial”. Ele argumenta que “qualquer
ponto de vista a respeito do pós-modernismo na cultura é ao mesmo tempo, necessariamente,
uma posição política, implícita ou explícita, com respeito à natureza do capitalismo
multinacional em nossos dias.”(ANDERSON,1999, p. 65)
Para Jameson, “a pós-modernidade torna-se o sinal cultural de um novo estágio na
história do modo de produção reinante”, “não mais uma mera ruptura estética ou mudança
epistemológica.” (ANDERSON, 1999, p. 66) Logo, seu entendimento é de que em relação ao
passado, não houve novidades, pois o capitalismo ainda é o mesmo, pois é constituído de
fases, mas que essa seria uma nova fase que caracteriza da seguinte forma: “a exploração
tecnológica da eletrônica moderna e seu papel como principal fonte de lucro e inovação, o
predomínio empresarial das corporações multinacionais, o imenso crescimento da
especulação internacional, a ascensão dos conglomerados de comunicação com um poder sem
precedentes sobre toda a mídia e ultrapassando fronteiras.” (ibid, p.66) Isso atinge
profundamente a vida nos países avançados, mas para ele, a mudança mais fundamental de
todas está na configuração de uma nova mentalidade humana.
Anderson diz que “o modernismo era tomado por imagens de máquinas; agora, o pós-
modernismo é dominado por máquinas de imagens” da televisão, do computador, da Internet,
do shopping center. A modernidade era marcada pela excessiva confiança na razão, nas
grandes narrativas utópicas de transformação social e o desejo de aplicação mecânica de
teorias abstratas à realidade. Jameson observa que “essas novas máquinas podem se distinguir
dos velhos ícones futuristas de duas formas interligadas: todas são fontes de reprodução e não
de ‘produção’ e já não são sólidos esculturais no espaço.” (ibid, p. 105)
Fazendo um parâmetro com o Modernismo, observa-se que o Pós-Modernismo não
precisou de nenhuma transformação, nem de acabar com o passado, nem de acabar com o que
não era moderno. Tudo aconteceu no cotidiano de forma natural, sem nenhuma grande
transformação radical. O que se transformou foi o sujeito, pois exposto à cultura modificou
lentamente seus valores, sua predisposição, seu lado natural da vida, seu sentido de
comunidade.
Para Jameson, este momento é marcado pela “diminuição do afeto”. “O resultado é
uma nova superficialidade do sujeito, não mais seguro dentro de parâmetros estáveis...”
(ANDERSON, 1999, p. 68)
Apesar da visão do autor se centrar na arquitetura, seus estudos abordam várias áreas
que enumera em sua obra: na arte, Andy Warhol e a pop art, o fotorrealismo e o neo-
expressionismo; na música, John Cage, mas também a síntese dos estilos clássico e “popular”
que se vê em compositores como Phil Glass e Terry Riley e, também o punk rock e a new
wave; no cinema, Godard; na literatura, William Burroughs, Thomas Pynchon e Ismael Reed,
de um lado, e o “noveau roman francês e sua sucessão”, do outro.
Quando ele se refere à literatura, argumenta que ela também foi afetada pela mudança
do período, mas na visão dele, “gerou obras menos originais. Pois aqui, talvez mais do que em
qualquer arte, o motivo mais insistente do novo era um jocoso ou portentoso parasitismo
sobre o velho.” (ibid, p. 72) Mas, por outro lado, Anderson nos diz que importantes ficções
chegaram às telas de cinema e às listas de obras mais vendidas, o que antes não acontecia.
O pensador brasileiro Sérgio Paulo Rouanet no seu estudo em As razões do
Iluminismo (1987), também observa que o prefixo pós tem muito mais o sentido de exorcizar
o velho (a modernidade) do que de articular o novo (o pós-moderno). Ou seja, o que há é uma
“consciência de ruptura”, que o autor não considera uma “ruptura real”.
Depois de se pensar sobre algumas acepções e opiniões em relação ao termo pós-
moderno, pode-se perceber que tudo depende do modo de olhar.
Jameson, em sua abordagem, entende que o problema é compreender o fenômeno, não
julgá-lo a priori dizendo se é bom ou ruim. Esses parâmetros trazem uma visão de coerência
para a pós-modernidade.
Então, este trabalho busca uma reflexão sobre questões que apontam para esse
momento na cultura brasileira e assinalar as novas concepções do sujeito, do indivíduo e da
subjetividade. Mas, principalmente, perceber o trabalho com a linguagem nos livros Berkeley
em Bellagio e Lorde de João Gilberto Noll, importante escritor do período estudado.
O Brasil também se tornara uma nação capitalista e moderna, e então se observa uma
nova geração em cena. Novos comportamentos, novas expectativas, todos correspondendo a
princípios urbanos e capitalistas, formando uma nova ética da sociedade brasileira.
Diante de tais transformações, os escritores dessa fase, denotaram um esfacelamento e
pulverização da realidade, demonstrando um mundo instável em suas ficções. Então, algumas
tendências são importantes de serem ressaltadas, como a desintegração das formas realistas
tradicionais que haviam predominado até a década de 1960.
A partir dos anos 70, rompe-se com a linearidade narrativa e abandona-se toda a
pretensão de uma concepção lógica do mundo. Mais tarde, ocorre um recuo nesse caos, dando
lugar a uma razoável síntese entre ruptura e tradição, fragmentação e criação de mundo.
Rubem Fonseca é um bom exemplo desse momento com seus contos.
A impossibilidade de uma visão totalizante da nova realidade, pode ser a causa do
conto ter se tornado o gênero mais praticado no país a partir dos anos 70, pois lidando com o
relato breve, com o registro de um flagrante da vida, passa mais ou menos incólume pela
desintegração de sentido vivida.
Paradoxalmente, na mesma época, ressurge uma espécie de realismo social à moda
antiga, com relatos que representavam os dramas das camadas subalternas, como uma
resposta à censura imposta pelo regime militar, que proibia a imprensa de noticiar os aspectos
negativos do país. Escritas por jornalistas, que se utilizavam da ficção para driblar a censura,
muitas dessas obras não passavam de reportagens ficcionalizadas. Cidade de Deus, de Paulo
Lins, poderia ser enquadrada na referida tendência, como obra mais recente.
Ainda neste período, a ficção introspectiva foi reafirmada, com a exploração da
subjetividade e a procura da identidade mais profunda dos seres. João Gilberto Noll é um dos
escritores representativos com seu livro Hotel Atlântico.
A partir da década de 80, ganhou espaço o romance histórico evocando fatos e/ou
personagens do passado, reinterpretados por meio de uma visão crítica e desmitificadora.
Nos últimos anos, por fim, cresceu o número de escritores que fabricam best sellers,
sob encomenda ou não, atendendo às exigências do mercado e que alguns críticos consideram
como narrativa trivial.
No livro, que será analisado, vemos esse sentido de mercadoria que predomina neste
momento: “... é isso, a história que eles querem que eu faça: conte uma história, não
complique...” (NOLL, 2003, p. 70); “... leve a bom termo a vida de suas páginas.” (NOLL,
2003, p. 71)
3.1 Noll: o olho câmera do narrador pós-moderno
Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila
do vaso. (BENJAMIN,1993, p.205)
Sabe-se que, desde os primórdios, a narrativa acompanha o homem nas conversações
diárias, nos relatos, na religião, nas lendas, nos episódios, nas artes e nos fatos históricos.
Como forma de linguagem, procura dar conta de atos e acontecimentos desse ser no mundo.
Já na época primitiva, era tradição do povo, à noite, reunir-se à volta da fogueira ouvindo,
atentamente, as estórias das façanhas dos heróis, dos mitos do mundo ou de conhecimentos
práticos da comunidade.
Para Walter Benjamin, a narrativa clássica se associa à idéia de que o narrador tem a
experiência de vida ou de quem transmitiu a ele aqueles fatos, sendo, assim, “um homem que
sabe dar conselhos”. (1993, p. 200) Mas, na modernidade, a arte de narrar decaía porque “as
ações da experiência estão em baixa...” (ibid, p. 198) Assinalava o pensador alemão várias
razões, como o surgimento do romance, cujo autor é solitário e não consegue transmitir
sabedoria e dar conselhos; a informação jornalística, que esgota a comunicação; a depuração
burguesa da morte, que elimina a autoridade e a sanção que a narrativa teria na boca de um
moribundo; e, finalmente, a mudança das formas de produção de artesanal para industrial,
afastando de vez do ambiente de trabalho a narrativa. Todos esses motivos, levariam o
homem à dificuldade cada vez maior de intercambiar experiências.
É importante ressaltar que Benjamin se referia à narrativa oral, que era dirigida a um
público seletivo e próximo, enquanto que a experiência romanesca da modernidade volta-se
para um público indiferenciado e distante do narrador, em que o romancista vê seu livro
transformado em mercadoria.
A partir deste momento, o narrador esbarra num mundo contábil burguês e se vê
obrigado a inventar, a ficcionar seu saber e sua experiência. Finge a experiência do Outro,
compartilha o relato de sua solidão, reproduz a sua interiorização. Por sua vez, volta a se
estabelecer uma reaproximação com o público, já que havia se instaurado um distanciamento
entre ele e a arte.
Com esse propósito, muitos escritores da contemporaneidade buscam uma sintonia
maior de seus trabalhos com as linguagens de consumo popular como o jornal, a televisão e o
cinema, que é objeto desse estudo, por se inscrever nessa ampla comunicabilidade da obra
narrativa de Noll.
Os livros do autor mostram a maneira como o narrador vagueia, deixando para o leitor
as conclusões sobre suas viagens e perambulações sem rumo, que são expostas por um olho
invisível, como uma câmera cinematográfica, registrando os mínimos detalhes.
A aproximação de sua ficção com a linguagem audiovisual se dá pela assimilação de
procedimentos, como a fragmentação do discurso, a descontinuidade da montagem e a sintaxe
textual de cortes e pausas, que implicam em efeitos de simultaneidade e interpenetração de
imagens em seus textos.
Essa escritura contemporânea em análise demonstra, assim, o intercâmbio entre a obra
e o cinema, se inscrevendo numa relação com a cultura de massa utilizada por muitos autores
da atualidade como estratégia de composição para agradar o público consumidor.
O espetáculo visual captado por esse método composicional apresenta as diversas
imagens da vida em seu movimento vertiginoso se integrando ao sistema narrativo.
Silviano Santiago, em seu ensaio O narrador pós-moderno, explica em suas
considerações teóricas que tal tipo de narrador seria “aquele que quer extrair a si da ação
narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador”. (1986, p. 38) Logo,
isso levaria a um alargamento do espaço entre a experiência vivida e aquela imaginária de seu
texto, através do olhar que se informa e constata.
Noll é um desses, que assiste ao espetáculo urbano através de um olhar distanciado,
numa sucessão de episódios justapostos, conseguindo narrar captando a efemeridade e a
velocidade das imagens, de diferentes ângulos, como ele mesmo diz em Lorde: “...via novos
enquadramentos da praça no meio da tarde”. (NOLL, 2004, p.89)
A narrativa realiza-se como uma simulação, através das imagens geradas pelo
discurso, fazendo vir à tona sua estruturação, que só terá sentido pela linguagem. Essa
organização do texto difere daquela perspectiva realista, que pretende copiar o mundo
esteticamente, pois em Noll o mundo é apresentado como um cenário, com imagens em
trânsito, numa agilização do real. Pelo trecho abaixo de Lorde percebe-se esse método: “Vi
um repentino flash... uma moça fotografava um ator vestido de época, sentado...”
(NOLL, 2004, p.94)
Para que a leitura de Noll seja melhor entendida é interessante lembrar a deixa de
Umberto Eco em Seis passeios pelo bosque da ficção:
O leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional [...], tem de saber que o que
está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o
escritor está contando mentiras. De acordo com John Searle, o autor simplesmente
finge dizer a verdade. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado
de fato aconteceu. (ECO,1999, p. 81)
Dessa maneira, o leitor-observador se faz presente, se apropriando desse olhar,
podendo ver como o narrador, sendo atraído para a ficção.
A arte de representar pela escrita com toda a profusão de aparelhagens técnicas que
surgem nas sociedades pós-industriais possibilita réplicas que diluem a fronteira entre o
verdadeiro e o simulacro. Jair Ferreira dos Santos escreve em O que é pós-moderno como isso
ocorre:
O ambiente pós-moderno significa basicamente isso: entre nós e o mundo estão os
meios tecnológicos de comunicação, ou seja, de simulação. Eles não nos informam
sobre o mundo; eles o refazem à sua maneira, hiper-realizam o mundo,
transformando-o num espetáculo. (SANTOS, 1989, p. 13)
As narrativas em estudo muitas vezes tornam o espaço urbano nesse espetáculo, pois a
ação é representada, é vista, é observada, mediada pela tecnologia, expondo os personagens
(narradores ou não) a uma câmera que capta, invisivelmente, seus diversos movimentos, sua
vida vazia e instável, a sua falta de referências e objetivos e também suas trajetórias
indefinidas. Esse olhar cinematográfico que o narrador possui, mostra um indivíduo que
sobrevive à sociedade pós-moderna e a exibe através de closes do dia-a-dia da cidade nos
mínimos detalhes, como se pode ver no trecho de Berkeley em Bellagio: “... a câmera vai
pegando a brancura do leite, nele se afoga”. (NOLL, 2003, p.62)
Com os narradores-protagonistas de Noll, o leitor tem a sensação de incompletude,
pois tudo está em fluxo. Mas, na verdade, nada muda. Por isso é possível lembrar da tradição
baudelaireana do flâneur, definido por Benjamin como “o passeante citadino do século XIX”
cujo objeto de interrogação é a própria modernidade.”(BUCK-MORSS, 2002, p. 360) Para
ele, essa figura seria uma chave para explicar a crise na transmissão da experiência nesse
momento.
No Passagen-Werk, o autor descreve a experiência no mundo moderno como o eterno
retorno do mesmo, onde não se acumula e não se aprende nada do passado. No meio disso
tudo está o flâneur, que presencia um mundo em que as memórias individuais foram retiradas
à tradição coletiva.
Já o flâneur de Noll passeia por cidades que podem ser qualquer uma, pois isso não
importa para ele. Ao mesmo tempo, se confronta com um excesso de informações da cultura
de massa que não deixa brecha para a experiência, onde cada ser humano vive a sua própria
solidão. O que ele vê são vestígios, pedaços da paisagem citadina.
Na opinião de Renato Cordeiro Gomes, em Grafias urbanas, o flâneur na pós-
modernidade deve ser substituído pelo zappeur:
O antigo flâneur absorvido pela multidão e pela massa não tem mais lugar na
cidade da via expressa, na sociedade dominada pelas tecnologias comunicacionais.
Talvez tenha cedido o lugar para o zappeur que, escolhendo pontos e fragmentos
urbanos, pode montar sua imagem da cidade, longe da rua. (GOMES, 1996, p. 22)
Assim, as cidades não teriam tanta importância no romance de Noll, mas sim as
formas como essas imagens delas surgiriam através das palavras e de seu ponto de vista,
manipuladas com a rapidez que um controle remoto é capaz de dar a elas.
Portanto, no universo caótico da modernidade, o narrador vive inseguro e em
constante sobressalto, num flanar de errância permanente, em viagens inconclusas na busca de
uma identidade, como se vê em Hotel Atlântico, no momento que recebe de alguém sua
carteira de identidade, perdida, e se explica: “nem lembrava mais dela”(NOLL, 2003, p.67).
O esquecimento da identidade pelo narrador possibilita a exploração de sua
fragmentação, numa constante experimentação de encenações cotidianas, na tentativa de
recuperá-la, mesmo de forma incompleta. Assim, as confrontações por que esse sujeito passa,
o distanciam cada vez mais dela e o levam a nunca estar bem, assim como a ver qualquer um
como inimigo. Na passagem seguinte de Hotel Atlântico, o narrador pega um ônibus para
Florianópolis porque nunca tinha ido lá. Conhece uma moça estrangeira, Susan Fleming,
conversa com ela. Ao voltarem para o ônibus depois que ele parou para um lanche, os dois
dormem até o dia seguinte. Pela manhã, o protagonista acorda e lembra de um sonho que teve
e quer contar para sua companheira. Então, percebe que ela está morta e é o segundo cadáver
que ele encontra em menos de quarenta e oito horas. Teme em ser acusado pelo assassinato e
já começa a tecer considerações, denunciando o corte no texto manipulado por Noll :
O que me agoniava é que começassem a desconfiar de mim. Naquele momento já
parecia tarde demais para que eu desfizesse o equívoco. Passaria anos me
arrastando pelos tribunais, encarando a sordidez da justiça, já sem forças para eu
mesmo acreditar na minha própria inocência. (NOLL, 1989, p. 31)
O narrador-perambulante de Noll desloca-se nos labirintos da cidade filmando o
mundo e o seu próprio interior, mas quando se vê incapaz de enfrentar uma situação, ele se
resguarda: “Aqui ninguém me vê”. (NOLL, 2003, p. 5) É o momento que no livro Harmada
ele se protege das pessoas na floresta. Porém, assim que possível, ele reinicia sua jornada,
selecionando cenas que são flashes de suas observações e memória, entremeados por fantasias
e alucinações. Essa projeção surge para o leitor, como familiar, de narrativas fílmicas já vistas
e ele mesmo diz isso: “Nelson falava por enigmas. Mas todas as palavras que ele dizia, aquela
casa, tudo aquilo me parecia de um filme antigo.”(NOLL, 2003, p.45) e “Eu assistira a isto
muito tempo atrás num filme.” (ibid, p. 16)
A construção do texto não estabelece limites entre o que é vivido e o que é imaginado
ou sonhado, o que faz transparecer os recortes de cena como uma colagem superposta. A
manutenção de um narrador impede a destruição do discurso, mantendo-o no papel de
condutor da narrativa, apesar de também estilhaçado, como se pode exemplificar em seus
livros: “Eu era aquele homem que já almejara ser alguém...”(NOLL, 2004, p. 33); “Perguntei-
me se o mundo daqui agora era esse, embaçado.”(NOLL, 2004, p. 107); “... no passo de um
dançarino exausto, condenado a não sair dos bastidores.” (NOLL, 2003, p. 27);
“... nem sei que faço nem que digo, se é que digo, já nem sei se sonho.” (NOLL, 2003, p. 45)
“... a imagem que nem sei se tenho ou tive.” (NOLL, 2003, p. 56)
Esse narrador é bombardeado por imagens e informações, não consegue fixar a
atenção apenas num ponto e acaba absorvendo uma multiplicidade de fragmentos do que
ocorre à sua volta. Às vezes, nas conversas: “... pegando nacos de frases...”(NOLL, 2003, p.
38) ou na rapidez com que assume suas diferentes faces:“Em dois segundos me desfazia da
imagem de padre.”(NOLL, 2003, p.69)
Na produção de Noll, o narrador adota múltiplas facetas e posições, o que traz à cena
as diversas máscaras pós-modernas, como ele próprio diz em Lorde: “Parecia idêntico a tantos
homens que andavam pelas ruas de Londres, poderia passar por tantos deles... essa
compensação de ser de alguma forma todos...”(NOLL, 2004, p. 32); “Tinha vindo para
Londres para ser vários. Um só não me bastava agora.”(NOLL,2004. p. 28)
As diferentes transformações assumidas pelo narrador, entre elas, as de escritor, de
ator, de diretor, de ladrão, de cego, de assassino, de mulher, podem ser reais ou imaginárias,
denotando um eu plural: “Falei que eu era ator, um homem familiarizado com a intimidade
dos outros. (NOLL, 2003, p.20); “Sim, também eu mataria, e ganharia cela e comida do
Estado.” (NOLL, 2003, p.14); “Eu era um escritor de olhar heavy.” (NOLL, 2003, p.43);
“... retirei sua carteira metendo-a com uma ligeireza absurda no bolso externo inferior do meu
casaco...” (NOLL, 2004, p. 97); “No sonho eu era uma mulher sentada no alto de umas dunas.
[...] O meu vestido tinha um decote profundo. Penetrei a mão pelo decote e peguei um seio.”
(NOLL, 2003, p.23)
Dessa maneira, ao longo das obras mencionadas, o narrador revela um perfil dúbio, o
que incita o leitor a imaginar, além do que lê/vê, a sua própria versão para as constantes
buscas, viagens e pretensos objetivos do mesmo. Nessa discursividade, se depreende um
personagem que foge aos padrões literários anteriores de linearidade e continuidade,
passando-se a ver um ser que vive se mascarando, tomando as mais variadas aparências
dependendo de seus percursos. Cabe ao leitor a escolha de acompanhá-lo ou não nesse jogo,
seguindo os desvios percorridos num trajeto ao acaso e repentinamente, como se pode notar
em Hotel Atlântico: “... vi que tinha chegado a hora da viagem.” (NOLL, 2003, p.16)
Foi quando lhe perguntei se não sabia de ninguém que fosse de carro para o oeste
catarinense e estivesse querendo rachar a gasolina. A coisa me saiu assim, como
poderia ter saído para qualquer outra direção geográfica. O que importava é que eu
precisava continuar dando rumos à minha viagem. (NOLL, 2003, p.29-30)
Em outro de seus livros, Berkeley em Bellagio, sua dispersão é visível: “... eu vou, eu
vou embora para um lugar que ainda não foi feito e que me espera entre a sombra da torre do
convento ao norte e a velha figueira ao sul...” (NOLL, 2003, p. 17)
Essa figura, sem essência, é construída assim como a narrativa, de forma fragmentária,
absorvendo também estruturas de outras linguagens, como o cinema, como se pode ver na
primeira página de Hotel Atlântico, onde o trecho inicial parece um flash cinematográfico,
que surge através da memória do personagem como o roteiro de um filme, com diversos
deslocamentos de foco numa justaposição de planos que mostram sua chegada a um hotel de
Copacabana. O ritmo apressado, onde cenas não se articulam, demonstram uma
descontinuidade textual sem nenhuma causalidade. As lacunas prendem a atenção do leitor
que busca uma análise plausível para os acontecimentos:
Subi as escadas de um pequeno hotel na Nossa Senhora de Copacabana, quase
esquina da Miguel Lemos. Enquanto subia ouvi vozes nervosas, o choro de alguém.
De repente apareceram no topo da escada muitas pessoas, sobretudo homens com
pinta de policiais, alguns PMs, e começaram a descer trazendo um banheirão de
carregar cadáver.
Lá dentro havia um corpo coberto por um lençol estampado.
Fiquei parado num dos degraus, pregado à parede. Uma mulher com os cabelos
pintados muito louros descia a escada chorando. Ela apresentava o tique de repuxar
a boca em direção ao olho direito.(NOLL, 2003, p.9)
Cada vez mais desagregado e vazio, o narrador projeta em seus personagens um duplo
imaginário, que faz transparecer seu mundo interior, numa experimentação de si mesmo. A
descentralização desse eu pode ser observada nos trechos que se seguem: “Eu era Berkeley, o
célebre filósofo [...] um outro que de fato sou, um estrangeiro de mim mesmo... Sou alguém
que se desloca para me manter fixo?” (NOLL,2003, p.37)
Essa personalidade se dissolve e vai congregando papéis variados e produzindo uma
imagem sua e do mundo clicherizadas, de acordo com a sociedade pós-moderna, utilizando-se
principalmente de estereótipos da cinematografia, que lembram filmes policiais.
Nos textos do autor ainda são freqüentes as referências ao espelho, onde muitas vezes
a imagem do narrador sofre um apagamento: “... já não se reconhece ao se surpreender de um
golpe num imenso espelho...” (NOLL, 2003, p. 29)
Na cena final de Hotel Atlântico a voz do narrador se esvai, pois ele perde a visão e
não consegue mais olhar para poder narrar, levando à finalização do romance:
Só me restava respirar, o mais profundamente.
E me vi pronto para trazer, aos poucos, todo o ar para os pulmões. Nesses segundos
em que enchia o pulmão de ar, senti a mão de Sebastião apertar a minha.
Sebastião tem força, pensei, e eu fui soltando o ar, devagar, devagarinho, até o fim.
(NOLL, 2003, p.110)
Pelos exemplos assinalados o que se vê é que o narrador de Noll está sempre em
trânsito e filma os espaços, imagens e cenários por onde passa em suas viagens que não se
completam, sem mesmo precisar percorrer esses lugares. É como, hoje em dia, estar diante do
computador e, através da internet, poder ir onde se quiser, sem sequer se deslocar dali.
Assim, o discurso do autor seduz o leitor-espectador com sua forte visualização e
movimento, pois, como no desenrolar de um filme, compõe personagens e narradores
promovendo a interação entre literatura e mídia. Para isso, se apropria de diretrizes como o
corte, a montagem e alguns recursos na escrita, captando seqüências como se estivesse com
uma câmera, mas sem um aprofundamento maior para que o leitor participe de sua produção.
A seleção das imagens feita pelo escritor também empreende uma ligação com as narrativas
policiais onde as dúvidas e mistérios são uma constante. A utilização de imagens-clichê da
filmografia confirma esse percurso. Essa tendência híbrida traz uma mudança paradigmática
na percepção da literatura e fornece elementos novos dinamizando a técnica literária, pois
com uma série de artifícios a literatura consegue com as palavras o efeito gerado pelas
imagens no cinema.
3.2 O tempo e o espaço na narrativa de Noll
O sujeito desengajado é sujeito descompromissado, disponível. No estado de
atenção distraída em que vive, as ligações entre o momento presente e os momentos
passado e futuro são sempre fluidas e incertas. É em cada ponto de um tempo
presentificado que se encontra a matéria a ser resgatada pela palavra escrita. Cada
ponto é um olhar lançado, um toque realizado. (MORICONI, 1987, p. 26-27)
O estilo imagético da narrativa de João Gilberto Noll especulariza o espaço urbano,
ressaltando-o, através de cenas em mudança contínua. Dessa maneira, o autor capta o
imediatismo da contemporaneidade e a movimentação espacial e temporal constante,
representando melhor o indivíduo pós-moderno com seus anseios e sensações.
Esse novo enfoque literário leva a mudanças explicitadas por Tânia Pellegrini:
Essa multiplicidade [...] engloba desde a construção prolixa de personagens
infinitamente díspares e planas, até a presença tradicionalmente marcante de heróis
problemáticos em conflito com um mundo hostil; desde a perspectiva da pintura
homogênea e realista de ambientes e atmosferas, até a refração de espaços
múltiplos e simultâneos, zonas ou territórios antigeograficamente ilimitados,
traduzindo a sensação do caos globalizado; desde o tempo como duração, que se
perde ou recupera pela memória, pelo sonho ou pelo desejo, até a experiência de
um eterno presente, pontual e descontínuo, “esquizofrenicamente” mensurado pelos
tempos das novas mídias; desde a propalada morte do sujeito e o desaparecimento
do narrador, até sua presença ainda soberana. (PELLEGRINI, 2003, pp.16-17)
Em face disso, a escritura de Noll representa espaços que parecem palcos com
diferentes encenações e personagens em inúmeros papéis, tudo como um simulacro onde o
espetáculo evidencia no que se tornou o ser humano. Isso pode ser percebido no livro
Berkeley em Bellagio, quando o protagonista começa a dar aulas na Universidade: “Todos ali
simulavam, faziam um jogo...” (NOLL, 2003,p.18)
De acordo com essa visão, o olhar pós-moderno relata e valoriza as coisas, os seres, os
incidentes, os espaços, de uma forma dinâmica, saturada de imagens, mas superficialmente,
resultando duas conseqüências: uma, relativa à própria construção romanesca e a outra tendo
a ver com a percepção da realidade crítica e social.
Quanto à primeira, produz um efeito cênico que agiliza o texto, com as ações se
sucedendo sem percalços subjetivos, num trajeto horizontal que mostra a errância do
narrador-personagem, vista em Hotel Atlântico: “Sabia que dentro de mim eu represava um
desespero, porque daqui a pouco eu precisava ir.”(NOLL, 2003, p.13)
Também assim caminhando, o personagem de Berkeley em Bellagio como um
viajante-narrador que a cada momento está num rumo, se indaga: “... lhe acendeu a dúvida se
estava ali chegando do Brasil, ou, ao contrário, se já estava voltando ao Sul do planeta ...”
(NOLL, 2003, p. 10)
A falta de causalidade lógica das ações, a multiplicidade de espaços e os diversos
eventos do passado que se misturam ao presente, confluem para um mesmo tempo, o presente
contínuo, tornando a leitura mais acelerada e direta.
Quanto ao segundo ponto, que a visão contemporânea deixa impressa, é que a
realidade se estende pelo olhar, pois o vazio existencial leva o escritor a ver o que está mais
próximo de si, tentando compreender as diferentes representações simultâneas do mundo
atual.
O espaço da cidade visualizado de uma forma panorâmica pelo olho-câmera estabelece
novas maneiras de se observar a paisagem urbana, mostrando-a exploratoriamente numa
intensidade de signos e cenas que ressaltam essa imagem, justapondo temporalidades e
espacialidades numa compressão que confunde a todos. Como imagem-espetáculo que se
oferece, o narrador busca constatar através de travellings de seu olhar, locais variados de
enquadramento da cidade, como se constata em Lorde, pois ele consegue ver cenas numa
rapidez enorme, ouvir ruídos como a sirene da polícia e perceber o chuvisco que cai sobre a
cidade, evidenciando suas diversas percepções de forma simultânea:
Aqui são as pombas, ali uma mulher bonita que se tenta adivinhar a nacionalidade,
mais adiante um turista rodeado de suas malas começando a operação de entrar em
seu ônibus especial. A sirene da polícia. O chuvisco precipitado da cidade, tudo
merece a extremada atenção.(NOLL, 2004, p. 90)
Ainda no mesmo livro, essa abordagem do mundo com o olhar, gera imagem nas
coisas focalizadas, pois nossa mente acompanha as visões do autor: “Como passa o avião no
céu de Londres, falei olhando pela vidraça. Cansa-me contá-los nas noites sem sono. Dezenas
nesse enquadramento da janela.” (NOLL, 2004, p. 76)
No entanto, esse ser que olha, só vê a superficialidade do que o cerca, donde seu
desencontro pessoal e com os outros, tornando-o incapaz de fincar raízes num mesmo lugar. É
como ele se sente em Berkeley em Bellagio e no conto Alguma coisa urgentemente: “...esses
personagens um tanto crônicos que faço, que não sabem nem para onde ir...” (NOLL, 2004, p.
59); “Em São Paulo fomos para um quarto de pensão onde não recebíamos visitas.
_ Vamos para o Rio _ ele me comunicou sentado na cama ...”(NOLL, 1991, p. 13)
A eterna fuga e falta de objetivos o levam a uma individualidade, que sintetiza sua
angústia existencial, num constante isolamento visto em Lorde: “... eu teria apenas de trocar
minha solidão de Porto Alegre pela de Londres.” (NOLL, 2004, p. 10)
A permanente falta de interação e troca nas experiências do cotidiano estão presentes
nos textos de Noll, evidenciando a incomunicabilidade das relações entre as pessoas, como se
pode ver no relacionamento sexual do protagonista com a recepcionista onde ele se hospeda
em Hotel Atlântico:
Vendo-se despida ela imediatamente se pôs de quatro sobre o imundo carpete
verde. Eu me ajoelhei por trás. A minha missão, cobri-la fora do alcance dos seus
olhos.
Nenhum toque acima da cintura, nada que não fossem ancas anônimas se
procurando, patéticas. (NOLL, 2003, p. 12)
A voz narrativa do autor focaliza avenidas, esquinas, itinerários, tudo
superficialmente, mantendo muitas vezes um clima enigmático, pois as imagens não são
decifradas, gerando sempre dúvidas no leitor/espectador:
Olhava as faces mais diversas que tentavam me ajudar, e me descia o mais fundo
dos arrependimentos. O que fiz?, eu mesmo perguntava. E todos respondiam em
uníssono, nada, nada, você é bom. Ao tentar me consolar naquela esquina, a cidade
abria mais meu abscesso _ me indagava calado se, assim, passaria daquela noite.
(NOLL, 2004, p. 92)
Os personagens que circulam no texto de Noll, habitantes urbanos, representam como
atores nesse espaço-cenário, como num palco, focalizando as diversidades de vivências,
angústias, indiferenças, impotências em relação ao real que os circundam. Sem preocupação
com limites de tempo e de espaço, o narrador pode deixar fluir suas idéias que proliferam
infinitamente:
Eu, a bem da verdade, jamais preparava as narrativas que desembocavam pela
minha boca. O rumo do desenrolar das tramas se dava ali, no ato de proferir a ação.
Aliás, detestava pensar previamente acerca do que teria a contar. Eu me deixava
conduzir pela fala, apenas isso, e esta fala nunca me desapontou, ao contrário, esta
fala só soube me levar por inesperados e espantosos episódios. (NOLL, 2003, p. 40)
Com todo tipo de representações no ambiente citadino, os seres acabam sem rumo e
desestabilizados, por não conseguirem explicações para o que lhes sucede, apagando a
fronteira entre o real e o artifício em episódios desconectados, que deixam o leitor sem saber
se aconteceram ou não:
Fiquei assim parado por algum tempo, parado pensando nos últimos
acontecimentos, tentando fazer um balanço sucinto daquilo que acabara de ocorrer,
me perguntando se tudo fora composto mesmo por acontecimentos, por fatos que
despontam na superfície dos segundos, dos minutos, daquela noite ainda nem tão
avançada, ou se tudo não passara de um breve colapso entre a aparência e o íntimo
das coisas, o que parecera ser talvez não fosse, aquele homem manco não
desaparecera, talvez ele nem chegasse a ter sido, eu não sabia o que estava fazendo
diante daquele rio em correnteza, debaixo daquele céu estrelado, daquela lua,
aquilo tudo provavelmente nem existisse, era quem sabe uma secreção mental
oriunda sei lá de que entranhadas motivações... (NOLL, 2003, p. 15)
Como a visão do tempo não está ligada a uma cronologia, nem a ligações de causas e
efeitos, não há uma regularidade nos fatos, pois observamos momentos suspensos,
interrupções e lacunas nos eventos. Em Lorde, o narrador/protagonista registra a rapidez
temporal sentida na própria pele:
Comigo o tempo parecia se excitar em me vencer. Eu nem bem falara com o ator
que se castra, em horário de sessão noturna, normal, e quando vejo amanhece. Em
Liverpool eu viraria espartano, pensei: faria exercícios todas as manhãs, e contaria,
contaria quantos segundos cada gesto levava, sem dar condições de que o tempo me
ultrapassasse eu estando de bobeira. Vamos chegar parelhos. (NOLL, 2004, p.97)
A errância urbana do narrador lança um olhar sobre diversos elementos como
esconderijos, fachadas, sítios e outros lugares que se renovam, se modificam, tornando-o às
vezes confuso, mas que não o fazem perder o ritmo vertiginoso de observar as coisas, mesmo
não limitando o que é fato ou fantasia.
A seguinte seqüência de Hotel Atlântico demonstra a experiência da
efemeridade, dos detalhes diversos vistos pelo narrador e a maneira criativa de apresentar os
ambientes:
O mundo tinha ficado mudo, era só silêncio, mas eu via bem cada coisa, embora de
cabeça para baixo eu via bem o bezerro preto que pastava no terreno baldio, eu vi
um cachorro atrás das patas de um cavalo que puxava uma carroça, eu vi uma
imensidão de areias brancas. (NOLL, 2003, p. 110)
No meio da multidão, os personagens de Noll caminham pela cidade, dobram
esquinas, entram em alguns ambientes, sempre seguindo em frente, mas encenando a solidão
que parece intransponível, pois eles não conseguem estabelecer relações duradouras com os
seres e com a realidade circundante. Na verdade, sobrevoam o mundo e se ausentam, pois são
pessoas deslocadas e solitárias, como se vê em Berkeley em Bellagio:
... agora está aqui no Guggenheim, sem que o público incessante se aproxime muito
da corrente que o protege desse mundo, ele é um faquir sem assento de pregos nem
com fome, que apenas escuta o senso estético na virtualidade máxima do mundo,
pois o vidro não é à prova de som e ele escuta, escuta sim quase o tempo todo, mas
nada lhe custa nada, e ele inclusive até pode se alhear dos ruídos que assim jamais o
mortificam, ele esquece, esquece com facilidade o que ocorre em torno, se
refluindo até um ponto onde não chega nada, nem o som, nem o que se chama de a
face humana, um sorriso, a tal lágrima furtiva, nada, e fica assim por algum tempo
que jamais descobre, pois ao voltar nada se passou, e o mesmíssimo público que
permanece ali como que viveu sem saber a eternidade inteira... (NOLL, 2003, p.
54-55)
Conforme esse espaço se amplia, o eu também cada vez mais se oprime e se
isola da grande maioria das pessoas e do espetáculo do cotidiano, como o próprio autor
comenta no livro citado anteriormente:
... eu saio, encontro o vizinho na portaria do prédio, a tentação que tenho é a de
ignorá-lo, não lhe responder o cumprimento, me confundir com as coisas, ser
apenas mais uma entre todas, não dar um passo preciso, não ser visto, apenas
flutuar num espaço que o olho humano não alcança. (NOLL, 2003, p. 97)
Em alguns momentos é possível verificar uma mudança no eixo narrativo em
romances do autor, onde os personagens se limitam a ficar no interior dos espaços, como um
apartamento com poucos objetos em Alguma coisa urgentemente ou num asilo para mendigos
em Harmada, enquanto que em Berkeley em Bellagio e Hotel Atlântico os mesmos são vistos
sempre em andanças pelo espaço público como nômades.
Nos textos analisados, em relação à questão temporal, não se encontram elos nos
acontecimentos que vão ocorrendo, pois o espaço citadino se dissipa, transparecendo as
experiências de um eu que vive num tempo que não se distingue.
Esclarecendo melhor o tema, Jean Pouillon em O tempo no romance afirma que:
Quando se trata, tal como aqui, de uma relação temporal, quer isto dizer que
devemos buscar em cada instante o porquê e o como de suas ligações com os
demais e não nestes últimos; é neste momento que eu volto a ligar-me ao que fui, é
neste momento que projeto realizar mais tarde uma determinada ação, que
permanece aliás como ação projetada pois, justamente, será apenas mais tarde que,
uma vez realizada, me será dado, em um novo presente, compreender seu
relacionamento com meu projeto atual. Por conseguinte, debalde se há de ligar este
presente ao passado; a descrição do passado não poderá jamais esgotar o assunto,
por si só: será sempre preciso passar a descrevê-lo por ele mesmo. Respeitar os
caracteres do tempo significa, portanto, descrever presentes e não dissolvê-los num
passado que, finalmente, permaneceria sempre inatingível.
(POUILLON,1946, p. 114)
Para melhor explicitar essas relações, o autor se indaga sobre o porquê de se escrever
o romance no pretérito imperfeito freqüentemente, se é o presente que deve ser traduzido.
Explica, então, que ao se utilizar esse método, “torna-se possível apresentar a ação como um
espetáculo”, dando ao imperfeito um ‘sentido espacial’, de distanciamento daquele que olha.
(ibid, p.115)
É o que se nota em Noll, pois o tempo se fragmenta, constituindo-se em muitas linhas
acontecendo ao mesmo tempo, numa descontinuidade de fatos, num montar e desmontar de
cenas que traduzem a dimensão mental da pós-modernidade, onde a experiência se vincula ao
presente que está ali sendo visto e vivido, gerando uma modificação na linguagem, que pode
ser observada nos fragmentos respectivamente de Berkeley em Bellagio e Lorde:
... enquanto eu estivesse ali, parado, olhando aqueles dois afantasmados, eu estava
pronto a me deter no tempo, a economizar de forma radical minhas batidas
cardíacas, ser apenas mais um elemento da floresta, um corpo que não precisasse
batalhar por mais um dia _ e, quando despertasse novamente, nenhum desgaste das
horas teria me marcado com seu ferro em brasa... (NOLL, 2003, p.36)
Desci as escadas pensando que não voltaria para o meu calabouço de Hackney. Eu
agora só era prisioneiro do tal tempo que urge, como sempre. Tinha que matá-lo,
matá-lo andando por aí, até decidir que trem tomar, para que cidade inglesa ir, ou se
encontrava repouso num hotelzinho em Londres mesmo, mas o mais longe possível
de Hackney. (NOLL, 2004, p. 89)
Na atualidade, a maioria das narrativas suprime a marcação indicadora de tempo,
emergindo dos textos personagens que têm um viver em pedaços, disperso, onde se misturam
passado, presente e futuro, com um sentido superficial e sem as indicações temporais que
caracterizavam os romances românticos e realistas. Através da percepção ocular do narrador,
o processo da narração se compõe, processando os diversos movimentos como uma câmera,
mas sem a visão adotada anteriormente em que as ligações temporais eram marcadas, numa
ordenação cronológica, assim como, sem o intuito psicológico do romance moderno.
Com isso, a quantidade de informações e imagens que o narrador apresenta não tem
muita profundidade, nem um sentido histórico visível, como se vê em Berkeley em Bellagio:
... levanto o foco para o rosto, é ele, o ragazzo italiano, o mordomo com quem fui
para trás de uma cortina e que agora já não quero; ele pingava a sobra de mijo na
superfície daquele século XI ali tão apertado no porão dos mortos... Eu me afastei,
já não quero nada nem ninguém, sou santo, é na Itália que me vem a iluminação,
não poderia ter sido na profana Califórnia, agora nem precisarei mais do meu
desejo incalculável por todos os homens [...] falo em meu latim que aprendi no
colégio do meu tempo de garoto, falo o que me vem à boca, ocupo em versículos
meus lábios, meus dentes, gengivas... (NOLL, 2003, p.51)
O sujeito dos textos do escritor vive o momento presente onde não há uma perspectiva
futura e, sem se distanciar do que acontece à sua volta, também não se entrega à subjetividade
para tentar organizar seu próprio eu. O que ele apresenta para o leitor é uma série de
percepções, pedaços de memórias e presentificações geradoras de descontinuidade de uma
existência que acontece vertiginosamente.
O preceito desse protagonista é o de sempre caminhar adiante, enfrentando desafios
através das situações por que passa, mas sem desistir de chegar ao fim da viagem, mesmo que
mude de rumo, como em Hotel Atlântico: “Eu também conseguiria: viajar, tomar um ônibus,
chegar em algum lugar.” (NOLL, 2003, p. 20)
Por conta dessas estratégias, nas obras em análise, não há finais conclusivos
que esclareçam e se delineiem no tempo, o que transparece apenas uma visão temporal da
existência do sujeito numa montagem sem um pretérito e com um futuro que se mostra incerto
num espaço que se esvai.
3.3 Literatura-imagem
3.3.1 Berkeley em Bellagio
A arte talvez seja uma ilha que guarda o mistério possível da eternidade.
26
O escritor João Gilberto Noll, através de sua experiência como estrangeiro, na
Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde deu cursos de literatura brasileira
contemporânea, e depois, em Bellagio, na Itália, trabalhando para a Fundação Rockefeller,
acabou criando mais uma de suas histórias.
Na apresentação do livro, Italo Moriconi comenta:
... todos os elementos de alter ego vêm à tona, sem comprometer o elã narrativo e
ficcional. A mestria invulgar de João Gilberto Noll, aqui demonstrada na utilização
estética da oscilação entre um “ele”e um “eu”, fornece talvez o mais sofisticado
exemplo, em nossas letras recentes, de exploração contemporânea dos limites entre
ficção e realidade, no espaço de uma escrita do eu ameaçado de extinção e
necessidade de redenção. (Noll, 2003)
26
Depoimento de Noll numa entrevista em 02/11/2002 no caderno Idéias do Jornal do Brasil.
O estilo narrativo, através de seus traços, insere-se no contexto que vem se
perpetuando nos últimos anos chamado de pós-modernismo. Escrito na primeira e na terceira
pessoa, o personagem de sua ficção perpassa toda sua obra, sendo uma coisa em cada uma,
embora não tenha uma continuidade idêntica.
Sua concisão, através de narrativas curtas, é interessante de ser pensada talvez como
uma forma de silenciar, de não se mostrar.
O romance surgiu com a junção das lembranças de um cotidiano, que era estranho ao
autor, ao fruto de sua extraordinária imaginação, acrescentando-se partes de um cenário de
sua terra natal, Porto Alegre. Como o próprio Noll diz: “A narrativa assume contornos
vertiginosos; quebram-se barreiras cronológicas num roteiro contado sem interrupções,
parágrafos ou capítulos, num ritmo arrebatador, contado de“fio a pavio”. (informação
verbal)
27
Nessa banalidade do dia-a-dia, no que há de mais comum, seu texto se funde,
revelando-se numa viagem literária bastante singular, levando à paradoxal característica de
reconhecimento ou de rejeição que pode despertar no leitor.
Os títulos dos livros de Noll aludem a lugares transitórios, traços e restos de
experiência, cenários sem historicidade, vazios de progressão e temporalidade como no
estudado:
Quando saiu a conhecer o vilarejo de Bellagio, não conseguiu ver o que esperava
encontrar numa aldeia italiana típica de filmes como Cinema Paradiso, O carteiro
e o poeta; não via como dali poderiam sair histórias autenticamente pessoais,
dramas, humor, malícia, tédio.(NOLL, 2003, p. 21)
27
Comunicação pessoal do autor em 02 nov. 2002 no caderno Idéias do Jornal do Brasil.
A ação se desloca entre o vilarejo de Bellagio e suas ruas estreitas, o campus de
Berkeley e Porto Alegre, onde as imagens não têm mais a quantidade de signos e choques
vistas pelo flâneur moderno: “... e pôs-se a olhar muito mais para dentro, ao encontro talvez
de um sentimento que provocasse nele a noção antiquada de uma comunidade, seja ela qual
fosse, mas o que viu lá dentro não correspondia...” (NOLL, 2003, p. 22)
Não restam nas cidades marcas históricas e ele a nada reconhece. Apenas a sua Porto
Alegre tem algum sentido para ele: “Ele só tinha mesmo o que olhar na sua Porto Alegre.”
( ibid, p. 22)
“Mas esse resultado não se deu de fato, olha ele ali sentado na frente de um café de
Bellagio, como se fosse apenas o gerador de um olhar que a nada reconhecia mais ...” [...]
“... tudo lhe parecia um mero quadro arrancado de seu berço histórico.” (NOLL, 2003, p.23)
Procurando seu lugar no mundo, o escritor, desenraizado e sem família, vagueia por
lugares que lhe são estranhos, e onde nem sequer fala a língua, o que o isola ainda mais:
“... precisava ir à ação, falar inglês, testemunhar nessa língua a todos que pudessem se
interessar por sua vida.” (NOLL, 2003, p. 11)
O autor mistura o lugar onde se move, e um outro, ficção dentro da ficção, sobre o
qual escreve um romance que tem de apresentar para cumprir uma bolsa de criação, onde a
angústia da solidão e a ausência de referências emocionais mais estáveis são mostradas ao
longo da narrativa, levando o leitor a acompanhá-lo num percurso entre o real e a fantasia, o
passado e o presente, numa estrutura temporal indefinida: “... não tenho certeza de nada do
que penso, tudo pode ser assim de fato, ou mais ou menos por aí, ou nada, nada disso.”
(NOLL, 2003, p. 96)
No texto é constante a deriva, pois na tentativa de extrair um significado do passado,
perde-se a capacidade de aprender com a experiência, pois o sujeito não encontra nada a
reconhecer:
... importa o trânsito entre a memória se formando e o que está prestes a ocorrer ali
na bucha, parece que vivo nesse hiato, ao ocorrer a coisa ainda não a tenho o
suficiente para socorrer-me em sua identidade, e depois é como se eu nunca pegasse
o tempo a tempo, sempre é tarde para tanto, ele já mergulhou nas águas da
memória, aquilo que o complementará depois já estou vivendo sem saber, sempre
achando que errei de capítulo, que estou fora de hora. (NOLL, 2003, p. 98)
O próprio Noll, numa entrevista, diz “que os dados biográficos de Berkeley em
Bellagio estão mais do que nunca presentes neste livro e vêm antes de tudo do que a geografia
pode dar.” [...] “Não são, portanto, os fatos vividos que eu retrato com mais empenho. São
essas paisagens estrangeiras que nos dão a graça da transfiguração do mundo e não a
observância estrita de uma cor local já desgastada pela nossa desatenção rotineira.”
(informação verbal)
28
Mesmo que ele não tenha vivido mais da metade do que contém na história, o lado
confessional está presente perpassando toda a história.
Vivenciando as pequenas coisas do cotidiano através de um caso amoroso que
aconteceu em Porto Alegre, o protagonista se reconcilia com sua história e geografia.
Praticamente adota uma criança, pois divide as responsabilidades da paternidade com esse
homem.
A forte presença dos impulsos sexuais em relações homossexuais é acompanhada de
um vocabulário que choca e agride o leitor, mesmo que este seja aberto a toda forma de
relacionamento. Noll mostra a comunhão que renova o personagem espiritualmente como um
verdadeiro sacramento da mitologia católica:
... era Deus que ele continha no seu peito arfante, não o Deus que não saía das
igrejas, mas o Deus que pulsava atrás da calça apertada do ragazzo, o Deus que se
aplumava e se punha rígido, colosso! _ , o Deus que foi levado pelo escritor porto-
alegrense para trás de uma cortina malcheirosa pelo tempo, o Deus que ali se
28
Comunicação pessoal do autor em 02 nov de 2002 ao Jornal do Brasil.
deixou ordenhar como um bovino e que ali se deixou beber não bem em vinho, mas
em leite que o nosso senhor gaúcho engoliu aos poucos, na carestia da idade,
lembrando-se da Primeira Comunhão. (NOLL, 2003, p.30)
O autor diz “que aprendeu a ver seus protagonistas, gente comumente desadaptada,
inadequada, como um sintoma de uma geração que viveu na sua mocidade o fenômeno da
guerrilha e de incisivas alternativas existenciais e políticas. São pessoas que obtém e perdem
empregos, vão para algum hospital psiquiátrico, encontram gente que não parece ir a lugar
nenhum. São seres que preferem a contemplação à ação, não se ajustam por isso à
administração normal dos dias e das horas, toda voltada à produção e ao lucro.” (informação
verbal)
29
Mas, neste livro, o personagem consegue se inserir numa realidade razoável mesmo
percebendo que há uma instabilidade no horizonte: “... se voltando a seu país teria teto,
emprego, as famigeradas refeições ou aquela mulher para acompanhá-lo na desdita.”
(NOLL, 2003, p.19)
Noll acrescenta que é a primeira vez que o personagem tem nome, porque além de ser
o nome próprio dele, é um nome comum:
Subimos para os quartos, e ao parar diante da minha porta com meu nome escrito
num cartão com margens em finos arabescos de metal dourado, ele se aproximou e
repetiu: Joao, Joao, treinando um til no ar, a repetir Joao, Joao, enquanto eu abria a
porta...(NOLL, 2003, p.49)
Com os narradores-protagonistas de Noll, o leitor tem a sensação de incompletude,
pois tudo está em fluxo. Mas, na verdade, nada muda. Por isso nos fazem lembrar da tradição
baudelaireana do flâneur, definido por Benjamin (Buck-Morss, 2002) como “o passeante
citadino” cujo objeto de interrogação é a própria modernidade.
29
Comunicação pessoal do autor em 02 nov de 2002 ao Jornal do Brasil.
No Passengen-Werk, Benjamin descreve a experiência no mundo moderno como o
eterno retorno do mesmo, onde não se acumula e não se aprende nada do passado. No meio
disso tudo está o flâneur, que presencia um mundo em que as memórias individuais foram
arrebatadas à tradição coletiva. O protagonista de Noll é esse flâneur que parece condenado à
mesmice temporal, pois o que aconteceu antes ou depois não importa muito.
No texto de Noll, há uma decomposição do sujeito de tal forma que a experiência não
se torna passível de identificar. Com isso, confundem-se as identidades diluindo-as, levando à
perda de um sentido estável, de fragmentação.
Esse caminho que se instaura para abordar as questões da pós-modernidade é um
caminho particular que o autor conseguiu trilhar para mostrar as diferenças de uma maneira
brilhante.
Para o escritor, “a linguagem é o abre-te sésamo deste novo mundo”, pois através do
que ela indica, tenta aproveitar a realidade. Daí não ter um conteúdo pré-determinado do livro,
como lhe exigiam em Berkeley, mas sim do que a linguagem possa lhe mostrar.
Para o estudo da linguagem no autor, serão utilizados os conceitos de Roland Barthes
do livro O Neutro em que ele o define como: “tudo o que burla o paradigma.” Paradigma seria
“a oposição de dois termos virtuais dos quais atualizo um, para falar, para produzir
sentido.”(BARTHES, 2003, p. 16)
O Neutro remeteria a alguns campos lexicais que são o da gramática (gêneros dos
substantivos, verbos nem ativos, nem passivos), da política (não tomar partido), da botânica
(flor neutra), da zoologia (abelhas que não têm sexo), da física (corpos neutros) e da química
(sais neutros). Mas o campo que nos interessa é o discursivo, o gestual, o corporal e outros
que estão presentes na comunicação entre os indivíduos.
Em relação ao livro analisado, consideramos que o protagonista de Noll é o próprio
Neutro, pois se apresenta como um homossexual, apesar de já ter tido relacionamento com
uma mulher: “... sem o tempo de gritar por Léo, o homem que costumava chamar de
namorado mas que lhe era bem mais ...” (NOLL, 2003, p.9)
Em relação à língua, ele também é Neutro, pois estava em Berkeley e não falava
inglês: “Ele não falava inglês e se perguntava se algum dia arranjaria disposição para aprender
mais uma língua, além do seu português viciado.” (ibid, p.9)
O discurso da hesitação está presente através da contradição das escolhas numa
maneira de ser Neutro: “Ah, uma dúvida sempre os martelava: até quando isso ou aquilo ...?”
Através de frase dita no encontro do personagem com Mana, a moça brasileira com
quem vivera um caso logo ao chegar à Califórnia em que ele mesmo responde: “O
rompimento os levou de novo a corpos do mesmo sexo, de onde ambos, agora viam, jamais
deveriam ter se afastado.” (NOLL, 2003, p.14)
Em relação ao conflito, vemos a busca do Neutro:
Sou alguém que se desloca para me manter fixo?
Quem me responde, e já, se o fato de eu estar aqui andando pelo bosque em plena
madrugada me confere alguma garantia de que eu não seja um outro que de fato
sou, um estrangeiro de mim mesmo. (NOLL, 2003, p. 37)
Barthes fala que “a conversação atualiza o caráter perpétuo da linguagem: força
monstruosa da qual me sinto excluído como indivíduo (a não ser que me transforme num
tagarela!).”(BARTHES, 2003, p. 42) Como se vê no texto: “...mesmo ao falar com alguém
durante esses afazeres, quando parecia conseguir fugir por instantes do seu alheamento
convulso, impertinente até, como se o encarcerasse numa masmorra, pôr-se em liberdade,
mas espiar por uma fresta...”
(NOLL, 2003, p. 25)
O lugar de cada um em relação à linguagem está em jogo na conversação: “...tudo eu
ouvia como sempre ouvia os cortesãos da Fundação, pegando pedaços, nacos de frases, logo
me desinteressando, às vezes retornando pra verificar se daria para lastimar mais tarde ter
passado ao largo do assunto...” (NOLL, 2003, p. 38)
Há um momento em que só ele sabe a língua e se coloca numa outra posição: Isso
tudo só eu que escutava, já que ali ninguém parecia arranhar o francês como eu...”
(NOLL, 2003, p.39)
O Neutro tem o direito a calar-se, a ficar mudo: “Fingir que não pedia pedindo
refeições...” (NOLL, 2003, p. 9) ; “...aproveitava que não era português e descansava da
semântica ...” (NOLL, 2003, p.81)
Pôr claros no discurso, escolhendo o que deve ser dito ou não, é uma forma de
neutralidade: “...os que já se retiraram do convívio da expressão, são como mudos, vivem do
que lhes assoma dentro dos miolos, dizem o necessário pra ganhar o seu sustento, nenhuma
palavra entra em seu lazer...” (NOLL, 2003, p. 53)
Outro exemplo é quando ele conversa com uma chilena e para não responder a uma
afirmativa dela, ele afrouxa o nó da gravata, pede licença e põe-se a andar.
Através da fala interior também percebemos o tempo todo suas indagações: “...agora
com saudades do caso que tivera com esse rapaz e que acabara de se extinguir (ou não?).”
(NOLL, 2003, p. 21)
Através da metaforização cria-se a delicadeza como forma de destacar um traço e
fazê-lo se multiplicar em linguagem: “Logo uma torrente submersa que ambos desde sempre
sentiam ao se encontrar, pôs-se a latejar sem pedir uma única palavra...” (NOLL, 2003, p. 14)
A negação, a dúvida, a interrogação são matizados no discurso evitando-se a asserção:
“...já nem sei que faço nem que digo, se é que digo, já nem sei se sonho.” (NOLL, 2003,
p.45); “...não quero criticar nada nem ninguém, sou sombra, nada mais me assusta...”
(NOLL, 2003, p.50)
Por não temer indiferenças, o Neutro busca uma relação atenta e não arrogante com o
presente: “Eu ando como sempre por esse shopping com o ar um tanto alheio, às vezes uma
ou outra careta para quem me olha em demasia, sobretudo para os mesmos seguranças, esses
que se lixem, quero só ser invisível...”(NOLL, 2003, p.62)
O sujeito Neutro só é claro para ele mesmo, mas sem verdade: “...eu sei que ela me
deseja, deseja o tal corpo vazado, sim, o meu, sem nada dentro.” (NOLL, 2003, p. 53)
O Neutro se questiona sobre a conduta, mais ou menos razoável, do imaginário e
Barthes responde: “Consolemo-nos de tudo com o pensamento de que gozamos de nosso
pensamento, e de que nada nos pode arrebatar esse gozo.” (BARTHES, 2003, p. 219)
3.3.2 Lorde
A minha literatura bebe da fonte oral, presente na entoação das sílabas quando se
vive o estado musical, o canto. Talvez por isso eu tenha fascínio por frases meio
serpenteantes. Há um certo ritmo impossível aí, as sentenças que dobram quarteirão
trazem em si o mito da simultaneidade, o aspirar dizer tudo de uma vez só.
30
Lorde é um livro elaborado no período em que Noll estava em Londres como escritor-
residente do King’s College. Essa experiência trouxe para a ficção uma espécie de
autobiografia, pois ele mistura narrador/autor/personagem no começo de seu texto.
O enredo se baseia na história de um homem de cinqüenta e poucos anos de idade,
com vários livros publicados, que deseja alterar sua vida. Então, ele desembarca em Londres
para um trabalho que desconhece, pois o inglês que o chamou apenas lhe deu passagem,
hospedagem e uma quantia em dinheiro para que se mude de Porto Alegre sem dizer o motivo
exato da viagem: “Eu estava chegando ao aeroporto de Heathrow, em Londres. Sendo
chamado por um cidadão inglês para uma espécie de missão.”(NOLL, 2004, p. 9)
30
Entrevista de Noll para a revista Entrelivros, Ano 2, n
o
18.
O objetivo de ter viajado não interessava muito, pois como ele diz: “Então eu vim.
Poderia dizer que antes eu teria de resolver isso e aquilo. Não, que nada, eu teria apenas de
trocar minha solidão de Porto Alegre pela de Londres.”(NOLL, 2004, p. 10) Porém, no
momento em que é levado para Hackney, bairro de sua nova casa, várias indagações surgem:
“Por que de fato teria ele me chamado lá no Brasil, naquela cidade do Sul, Porto Alegre por
que apelar para que eu viesse a Londres numa missão, ao que parecia, especial?”(NOLL,
2004, p. 11); “Para onde iríamos?”(NOLL, 2004, p. 14); “E, de algum lado que se procurasse
enxergar, eu estava representando mesmo o Brasil?”(NOLL, 2004, p.16); “E eu estava em
condições de negacear seu convite?”(NOLL, 2004, p. 17)
O livro parece complementar as páginas de Berkeley em Bellagio, pois os
protagonistas dos dois textos são escritores que estão fora do país. A diferença é que um sabe
o porquê de estar no lugar, mas o outro não sabe. Também a questão do idioma se repete, mas
de maneira oposta, porque em Berkeley em Bellagio o personagem desconhece a língua
inglesa e tem dificuldade para se comunicar, o que no final do romance se inverte, pois ele
chega ao Brasil só falando essa língua. Já, em Lorde, ao contrário, o narrador comenta: “Eles
tinham chamado a seu país um homem que começava a esquecer.”(NOLL, 2004, p. 16) Ele
ainda acrescenta: “Tudo o que eu vivera até ali parecia estar indo embora.”(NOLL, 2004, p.
19) Então, a utilização da língua portuguesa converte-se num apagamento proposital: “uma
língua nova, a língua velha que tão cedo assim já me parecia faltar em sua intimidade, a não
ser, é claro, as noções gerais ou quem sabe, o socorro que ela ainda proporcionaria pelo
menos para mim em casos extremos...”(NOLL, 2004, p. 19)
A essência do ser humano é enfocada fragmentariamente por um narrador que se
movimenta e se transforma em outro. A procura por um espelho no apartamento onde está
hospedado é uma das providências tomadas por ele: “Não era por nada, queria me ver depois
da viagem, ver se eu ainda era o mesmo.”(NOLL, 2004, p. 23) Pintar o cabelo de castanho-
claro é outra mudança que o protagonista empreende pois, segundo ele, “desconfiava
seriamente de que eu já não trazia o mesmo homem.”(NOLL, 2004, p. 31) E nessa
transformação, o protagonista cada vez mais se distancia de sua identidade anterior:
Agora eu podia ver. Estava um sujeito de cabelos castanho claros, igual àquele
belo jovem da parede, e eu remoçara tanto que me sentia enfim plenamente
penitenciado por qualquer dano que poderia ter causado. Parecia idêntico a tantos
homens que andavam pelas ruas de Londres, poderia passar por tantos deles, que
nessa minha indefinição já era maior do que eu, embora tivesse me perdido e
começasse a desconfiar de que nem o meu patrão inglês poderia enfim fazer alguma
coisa para me devolver a mim.(NOLL, 2004, p. 32)
Enquanto aguardava sua tarefa indefinida, o narrador fazia suas andanças,
normalmente sem rumo pelas ruas da cidade britânica, transportando o leitor junto com ele.
Sua solidão e a tentativa de se livrar da imagem de escritor é visível, tanto quanto o ressurgir
de um outro:
Eu também não me afogaria, eu ressurgiria outro, inteiro, e triunfaria. Não me
importava que as pessoas que caminhavam pelas calçadas não me notassem, me
confundissem com todas: era desse material difuso da multidão que eu construía o
meu novo rosto, uma nova memória. Por enquanto, sim, eu não era ninguém. Mas
cedo eu chegaria a todo mundo e estaria então com a minha cara pronta...
(NOLL, 2004, p. 34)
O sentimento de angústia é sentido em todo o texto nas idas e vindas, nos desvios dos
caminhos, nas inquietações, nas incertezas, nas provocações sofridas pelo protagonista e que o
desafiam.
O onírico também se estabelece na narrativa, trazendo a dúvida sobre o que é real ou
imaginário na escrita, numa amostra do despedaçamento do personagem. Seu delírio está
presente nas diferentes imagens que ele leva o leitor a ver: “Uma colina ali. Um cavalo a
pastar. Mais?, agüentar mais um pouco o ferrão do gelo em que eu tinha me metido e então
me afogar.”(NOLL, 2004, p. 30); “...se eu me sentia amnésico, eu retiraria das entranhas essa
e outras imagens, vividas ou não, e delas extrairia, como se espreme uma laranja, aos poucos,
com força, com a dificuldade exposta, valendo pontos delas extrairia... o quê?”(ibid, p. 30)
Para aguçar ainda mais a expectativa de quem lê, o narrador de Noll é levado, de
repente, para um hospital com a justificativa de que era “para ver se estava mesmo tudo
bem.”(NOLL, 2004, p. 34) Então, a dúvida se mantém, quando lhe dão uma injeção na veia
sem motivo aparente, mas apesar disso, ele se sente confiante: “Eles tinham me internado por
uma razão que eu desconhecia. Eu a usaria para nascer.”(NOLL, 2004, p. 35) Mas isso não
acontece, pois enquanto o escritor se desintegra, não há nenhuma transformação dele em
outro personagem:
Aquele inglês mudara definitivamente a minha vida e eu deixaria isso claro o
suficiente para ele a cada minuto do que me sobrasse de existência. Iria me dedicar
ainda mais a seu plano. Estávamos na mesma armada, e tanto fazia que essa armada
me obrigasse a renegar tudo o que até ali eu tentara ser. Nome, nacionalidade, cor,
religião. Indiferente compor com os novos elementos de cidadania um sentido ou
não. Eu era o clássico indivíduo que havia muito não tinha mais nada a
perder.(NOLL, 2004, p. 41)
O estranhamento acaba por aguçar a curiosidade do leitor e este acompanha a narração
com expectativa até o momento final do livro, pois o autor, deixa para ele a decifração do que
pode ter ocorrido ou do que irá acontecer quando se fecha a leitura.
As cenas textuais se apresentam baseadas no instantâneo do cotidiano e como coreografias
que se mostram numa tela vistas pelo olhar onde o protagonista representa:
Atravessava a London Bridge curvado contra o vento e a garoa, entrava nas
primeiras avenidas da City, passava por centenárias igrejas espremidas entre
prédios recentes, sentava às vezes em algum degrau de uma delas, ensaiava a mão
em concha a pedir esmola para a noite gelada, deitava no chão de pedra, fingia estar
agonizando a céu aberto, a sofrer de desnutrição aguda, ser o mais desamparado dos
mendigos. (NOLL, 2004, p.51)
Os espaços são delineados numa perspectiva realista nas descrições de ambientes e
horizontes variados e simultâneos. Suas representações passam a ser dinâmicas, não existem
distâncias, são ilimitadas e descontínuas, como ocorre também com a temporalidade. Por isso,
em Lorde, os recursos de montagem e colagem denotam uma ficção com diversas
possibilidades espaciais e temporais de construção de mundos, enfocando e recortando a
realidade e a fantasia. Alguns estados apresentados pelo personagem como a subjetividade, as
reflexões, os sonhos e os desejos podem exemplificar esse olho câmera presente na narrativa:
Levantei a coberta, sentei e reclinei-me no encosto da cama. Podia sentir o cheiro
da carne suada daqueles dois na noite anterior. Nada mal passar o tempo sem sono
cheirando fluidos de corpos em fogo. De vez em quando o garoto do trem que
olhava a paisagem sem parar ficava debaixo de mim e eu o mordia todo, não
adiantava reclamar. De vez em quando Bach era um contraponto nas Alturas à
perdição dos meus sentidos jogando pesado na pura escassez. (NOLL, 2004, p. 69)
Ao longo da narração poucos personagens se relacionam com o escritor. Um deles é o
professor Mark, de Estudos Latino-Americanos, que o convida para uma entrevista em sua
casa. Ele pensa que talvez essa seja uma pessoa com quem possa compartilhar e estabelecer
uma amizade. Com isso, seus pensamentos vão longe imaginando o que poderiam fazer
juntos. Mas, ao ser convidado para entrar na banheira onde tomava banho o professor, o
narrador chora e transparece o que sente: “Diante dele eu me sentia um homem sem ação, um
mísero escrevinhador de horas necrosadas. Ele me ofereceu a mão para me levantar do vaso.
Sentiu que eu estava refluindo para um ponto distante do meu personagem ...”(NOLL, 2004,
p. 48) Saindo de lá sem muitas explicações ele se pergunta: “Por que eu era o homem que
vivia a fugir?”(NOLL, 2004, p. 49); “E queria me jogar nos braços do professor Mark e entre
eles ficar como um pintassilgo molhado da chuva?”(NOLL, 2004, p. 51)
O desejo erótico é experimentado, mas não se conclui, pois algo o imobiliza mesmo
tentando reagir perante os acontecimentos.
Na estagnação que se encontra, o protagonista caminha pelas ruas de Londres e se
distrai com suas reflexões: “Eu passaria a jejuar sentado naquele degrau, a léguas de todo o
movimento da rua, tendo desaprendido a reagir até se me tangessem, me surrassem, me
dessem a mão...”(NOLL, 2004, p. 52) Mas, como é comum nos textos do autor, algo inusitado
ocorre: “Ouvi um gemido... Olhei em volta... Num degrau de um prédio portentoso, logo
adiante, um rapaz de cabelos rastafári parecia ferido. Sangue na altura da garganta.”(ibid, p.
52) Esse homem morre nos seus braços dizendo: “Foi ele...”(NOLL, 2004, p. 53) Como
sempre, a morte é uma constante na travessia desse ser, que vive de incertezas e incógnitas
que não são explicadas nas cenas seguintes.
Num momento que volta para o apartamento onde está hospedado, outra estranheza
acontece, pois o inglês que o convidou para estar lá, se encontra no local com uma funcionária
loura. Ele oferece seu quarto para os dois ficarem à vontade e dorme na sala. Quando acorda,
só vê pela janela os dois subindo num caminhão parecido com o do exército britânico, o que o
deixa mais intrigado: “Qual o interesse de um militar inglês em me ter na Inglaterra? Que
serviço eu poderia prestar às armas ou às relações armadas entre os dois países?”(NOLL,
2004, p. 63) Nessa hora, o escritor se supõe prisioneiro e não entende como, de repente, nas
proximidades de sua residência diversas manobras militares estão sendo realizadas num lugar
que antes era um descampado.
Aos poucos, o personagem vai se tornando uma pessoa desintegrada, pois a
indefinição de seu papel ali o atormenta. O que ele deseja é ficar naquele lugar e não voltar
para o Brasil: “Eu queria ter a minha função: santa, diabólica, mesquinha, inócua ou heróica.
E que essa função tivesse a sua extremidade geográfica, e que dela eu não passasse para poder
acabar aqui.”(NOLL, 2004, p. 64)
No relato de suas experiências, várias imagens passam por sua mente: vê tudo
inundado de sangue, pensa que está na guerra, imagina estar soterrado, vê um barco que o
leva para águas calmas. E, na verdade, nem está num rio, mas numa estação de trens.
Passagens essas que se projetam como quadros, de forma rápida e sucessiva, dando ritmo ao
texto.
Ao ser levado pelo inglês à presença de um homem que não sabe quem é, se vê
examinado dos pés à cabeça por ele, sem ao menos pronunciarem uma palavra sequer.
Desconfiado, fica sem entender mais uma vez sobre o que querem de sua pessoa, se
deparando com uma possível trama secreta que não consegue desvendar.
O encontro desestruturou o inglês, pois parece “que escolheu o sujeito errado para o
papel que lhe tinha reservado. Mas não vai dar o braço a torcer tão fácil assim, vai retomar o
plano e saberá dizer enfim a que veio, até o ponto em que isso não desfizer o seu poder de
ação.”(NOLL, 2004, p. 83) É como pensa o protagonista, tentando entender os últimos fatos.
Porém, ao caminharem à beira do Tâmisa, os dois se distanciam e o escritor o segue como se
estivesse com uma câmera acompanhando todos os seus passos, detalhando cada gesto em
diferentes planos, até que ele se joga da ponte no rio. Mais uma vez o mistério prevalece e o
narrador comenta: “e assim como veio se foi.”(NOLL, 2004, p. 86) Então, as perguntas que o
escritor quer entender para sua estada na Inglaterra permanecem e ele continua num rumo
incerto.
Enfim, o protagonista encontra uma alternativa, pois decide do nada ir para Liverpool.
Sem dinheiro, rouba de um passageiro na estação de trem a carteira, com o suficiente para “a
vida nova que eu poderia ter por um período.”(NOLL, 2004, p. 98) Como um outro
personagem ele se sente bem, pois se hospedou num excelente hotel, foi a mini mercados
buscar coisas que precisava, iria comprar roupas. Seu humor melhora visivelmente.
Para completar sua satisfação, uma professora da Universidade da Cidade de
Liverpool telefona para ele marcando um encontro, pois o havia reconhecido como o autor
que lia e estudava com seus alunos. No encontro, ela o convida para ser professor de língua
portuguesa para o semestre seguinte, o que seria uma oportunidade para se manter por lá.
O recomeço é a forma que o narrador encontra para que o personagem se desvencilhe de
seu corpo, para conseguir “a alma de um outro”(NOLL, 2004, p. 109), levando o leitor
também aos meandros de sua alma.
Com relação aos traços narrativos, são típicos do estilo pós-moderno, pois do texto
emergem várias facetas, originais, de um narrador exibindo os closes do cotidiano desfazendo
a fórmula formal anteriormente adotada pela literatura. O narrador vê como se estivesse
postado diante de janelas e em diferentes enquadramentos como se o olho fosse uma câmera.
Além das janelas, os espelhos também refletem a multiplicidade de seus olhares na
observação da paisagem e as transformações do indivíduo. Dessa forma, recorrendo aos
flashes como se estivesse olhando de relance, Noll tem uma perspectiva que entrevê muitas
das coisas que outras pessoas não percebem.
Como é dito na contra-capa do livro por Aquiles Alencar Brayner do King’s College
London: “Sonhar o sonho do outro: eis o papel do escritor que, como Noll, acredita na
literatura enquanto expressão da essência do homem.”
4. CONCLUSÃO
...quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas
imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e
seu próprio desejo [...] É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar
algum, pois o espetáculo está em toda parte. (DEBORD, 1997, p. 24)
O principal objetivo que orientou este trabalho foi o de discutir como João Gilberto
Noll consegue traduzir em palavras aquilo que vê produzindo uma narrativa da imagem. Além
disso, como ele se apropria dos procedimentos considerados próprios ao cinema, a tarefa de
rastrear a inter-relação entre a escrita ficcional e os processos de montagem do filme foram
percursos para se delinear o estudo. Nessa direção, ainda foram examinados os filmes
adaptados de seus textos para referendar as idéias anteriormente expressas.
Para tanto, inseriu-se a questão dos limites das artes e suas correspondências,
comparando-se a poesia e a pintura sob diferentes ópticas desde Platão até a época mais
recente, fazendo-nos pensar se haveria uma arte perfeita, pois para Leonardo da Vinci a
pintura seria a expressão maior da estética artística. No entanto, para Lessing a literatura
estaria em primeiro lugar na valoração das artes, assim como para Eisenstein o cinema ficaria
com o cetro de grandeza do poder.
Concluindo-se sobre a questão, descartou-se a classificação de uma arte ser melhor do
que a outra, pois cada qual tem sua particularidade e as preferências dependem de quem as
produz e as recebe. Esse caminho se fez necessário para mostrar que existem traços comuns
às artes e que há uma interferência entre as mesmas possibilitando uma interseção nos seus
meios de expressão.
Com a panorâmica adotada na distinção da imagem literária e a cinematográfica foi
possível observar que olhar é uma constante nos textos de Noll, através de seus narradores-
personagens, mas que essa maneira de expressar já ocorria anteriormente em autores como
João do Rio, Alcântara Machado e outros que davam um caráter de visualidade a seus
enunciados. O diferencial estaria na estrutura que o escritor recorre para tanto, pois a
constituição narrativa possibilitaria a formação de idéias-imagens a partir do que ele escreve,
levando, dependendo de cada receptor, a imaginação além de seus limites e à visão do
invisível.
Como já foi dito, a reaproximação da arte visual e verbal já vinha acontecendo e se
intensificou com o surgimento das diversas tecnologias e mídias até chegarmos à era digital
em que vivemos hoje. Com isso, houve uma saturação da imagem, que ao se tornar banal,
trouxe uma mudança na relação texto/imagem. Além disso, o cenário das sociedades pós-
modernas foi se reconfigurando com a cultura do consumo e transformando as percepções da
realidade do sujeito e dos objetos. Assim, poetas e artistas procuraram outros meios de se
relacionar com a arte.
No cinema, as transformações através da tecnologia digital surtiram efeitos temporais
e espaciais em histórias como do filme Dejà vu em que o protagonista volta aos fatos do
passado, através de um mapeamento da cidade feito pelo computador, em detalhes, para
descobrir o assassino de várias pessoas na explosão de um barco e conseguir mudar o rumo do
acontecimento. Também na narrativa, autores como Noll, intensificam seus olhares, como
câmeras, fazendo manejos de distanciamento e deslocamento que se conjugarão em traduções
simultâneas de visibilidade. Além desses recursos, os jogos de luz, a mudança de planos, o
ponto de vista e outras estratégias constroem e desconstroem os espaços e desintegram a
noção do tempo, fazendo-o transcorrer num outro ritmo.
O verdadeiro e o falso, universos possíveis e impossíveis são suspensos em tramas
deste tipo. Fragmentos díspares são postos simultaneamente na narrativa, com as técnicas de
colagem e montagem, denotando como a linguagem nos oferece interpretações novas e
originais no jogo das imagens que somos, que criamos e que se constituem no nosso
imaginário.
Adauto Novaes no ensaio A imagem e o espetáculo explicita que é no princípio do
olhar e da imagem que se cria, através do pensamento, “um mundo imaginário, que, nesse
sentido, não é ficção, mas invenção do novo.”(NOVAES, 2005, p. 12) Por isso, o papel da
arte seria também de encontrar os segredos que o olho não vê. Logo, a relação com o que se
pensa ficaria assim definida:
O esforço do pensamento consiste, pois, em decifrar imagens, entender o mundo a
partir delas. Traduzir o enigma das imagens é uma forma de reconciliação do
espírito com os sentidos. Nesse processo, cada imagem quer tornar-se palavra,
logos; e cada palavra, imagem. Imaginar é, pois, julgar e pensar.
(NOVAES, 2005, pp. 12-13)
Na obra analisada do escritor é possível detectar várias condutas, com suas variantes,
de que alguns mecanismos da tecnologia do cinema foram transpostos para o texto. Um deles
é o método de compor como se fossem fotogramas de um filme numa enumeração de planos,
onde se vê os cortes e a montagem realizada. A parataxe facilita esse procedimento,
parecendo que a narrativa segue um roteiro cinematográfico. Outro elemento é a
descontinuidade, pois sem um encadeamento das ações, os eventos se constituem sem
causalidade, deixando o leitor/espectador atônito, sem explicações plausíveis.
A neutralidade com que o escritor atua, demonstra que ele não é onisciente e dá a
chance ao leitor de participar de sua criação. Dessa maneira, o texto se revela como um
simulacro de um olhar liberto de amarras que possibilita ao imaginário concatenar as peças e
fazer as analogias que lhe aprouver, preenchendo os vazios deixados por ele, o que ocorre
com os filmes também.
Normalmente, a escolha textual do autor gera imagens que instigam, pois muitas das
seqüências nos fazem lembrar filmes de mistério. O filme pesquisado no trabalho, Nunca
fomos tão felizes, representa bem como a linguagem do conto é capaz de transmitir isso até
através do silêncio do pai do protagonista, que não responde às perguntas do rapaz, causando
dúvidas em relação ao que ele faz, o que mantém o leitor/espectador atento. Nesse contexto,
os enigmas não serão desvendados e poderemos conjeturar além dos limites fixados pela
página e pela tela através de nossa experiência.
Conclui-se, então, que na produção de Noll, diversos elementos já conhecidos são
aplicados na prática discursiva, muitos deles da linguagem cinematográfica, do estilo
eisensteineano, numa intertextualidade que atualiza a linguagem e traz a representação da
imagem visual para o papel numa reciclagem do antigo, produzindo o efeito de um filme e
abrindo novos caminhos de representação da literatura contemporânea.
Assim, ao lermos um texto escrito buscamos significados, tanto quanto ao lermos uma
imagem, com o intuito de definirmos sentidos para nossa existência e para o que está à nossa
volta. Como nos diz Alberto Manguel em seu livro Lendo imagens: “Cada obra de arte se
expande mediante incontáveis camadas de leituras, e cada leitor remove essas camadas a fim
de ter acesso à obra nos termos do próprio leitor. Nessa última (e primeira) leitura, nós
estamos sós.”(2006, p. 32)
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ANEXO
TERMINOLOGIA DE CINEMA:
Cena: é cada uma das partes do filme dotadas de unidade espaço-temporal.
Corte: no plano cinematográfico é literalmente o corte da película ou a interrupção do registro
pela câmera. No plano fílmico, acontece um corte, quando há descontinuidade da imagem
mostrada na tela, correspondendo a uma mudança de planos, possivelmente com
enquadramento e angulação diferentes.
Enquadramento: é a ação de selecionar determinada porção do cenário para figurar na tela.
Fotograma: corresponde a cada uma das imagens fotográficas estáticas captadas pelo
equipamento de filmagem, as quais, projetadas em uma certa velocidade, produzem a ilusão
de movimento aos olhos humanos. Para esse efeito é necessário que as imagens sejam
exibidas à velocidade de 24 fotogramas por segundo.
Fade-in: é a gradativa aparição da imagem, a partir da tela escura, em oposição ao fade-out.
Fade-out: é o gradativo escurecimento da imagem, até o preto total, em oposição ao fade-in.
Plano: o conceito é bem amplo e utilizado de forma elástica. Uma delas é de que o plano é o
intervalo que há entre dois cortes. O plano costuma ser classificado de acordo com os
seguintes critérios, não havendo regras rígidas para a delimitação entre um tipo e outro:
Quanto à distância entre a câmera e o objeto filmado:
plano geral: mostra todo o espaço da ação em cenas localizadas em exteriores ou interiores.
plano médio ou de conjunto: a câmera mostra o conjunto de elementos envolvidos na ação
(figuras humanas e cenário). Alguns autores distinguem os dois planos, mas de forma
arbitrária, pois o último abrangeria a um campo maior de visão.
plano americano: corresponde ao ponto de vista em que as figuras humanas são mostradas até
a cintura aproximadamente, em função da maior proximidade da câmera em relação a ela.
primeiro plano: mostra uma pessoa do tronco à cabeça.
primeiríssimo plano (close-up): se refere a um maior detalhamento- um olho ou uma boca
ocupando toda a tela.
Quanto à duração:
plano relâmpago: dura não mais que poucos segundos, correspondendo quase a um piscar de
olhos.
plano-seqüência: é tão longo que se pode dizer que corresponde a uma seqüência inteira do
filme. Observe que entre os dois pólos aqui apresentados (plano relâmpago e plano seqüência)
pode haver planos das mais variadas durações.
Quanto ao ângulo:
frontal: personagem visto de frente
esquerda/direita: personagem visto de lado
baixo/alto
nível do chão/chão
plongée: do alto olhando para baixo
contra-plongée: de baixo para cima
(nos dois últimos o ângulo é reto, paralelo ao chão)
Quanto ao movimento:
panorâmica: horizontal com tripé fixo; a câmera gira em torno do seu eixo.
titl: panorâmica vertical
câmera na mão
steady cam: uma espécie de cinto e um braço com amortecedor onde a câmera fica presa
(peso, contra-peso e molas para amaciar movimentos bruscos e tremidos)
chicote: movimento muito rápido utilizado geralmente para introduzir cortes
travelling: o eixo da câmera fixo; a câmera inteira se desloca (plataforma sobre trilhos)
grua: grande braço articulado com uma plataforma sobre a qual é fixada a câmera
Seqüência: é um conjunto de cenas que formam uma grande subdivisão da narrativa fílmica,
com uma relativa unidade interna. Um filme convencional é formado por algumas poucas
seqüências, cada uma compreendendo uma etapa mais ou menos separada das outras pelos
acontecimentos que desenvolve. Dentro de uma seqüência, pode haver lacunas de tempo, isto
é, eventos que se supõe ocorrer, embora não sejam mostrados na tela. A isso, dá-se o nome de
elipse.
Som:
diegético: faz parte da realidade fílmica na construção daquele espaço cinematográfico (Por
exemplo: Toca uma música no rádio do carro.)
não diegético: rompe com a realidade fílmica; é geralmente quando não vemos a fonte sonora
(Por exemplo: música de fundo em um melodrama.)
Tomadas: são as capturas feitas de uma determinada parte do filme, com o objetivo de se
chegar àquela mais perfeita. A mesma parte pode ser encenada e registrada repetidas vezes,
para que seja possível selecionar a melhor que irá para as telas.
Retirado de: http//pt.wikipedia.org/wiki/terminologia_ de
_cinema
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