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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
DEBORA REIS DA SILVA
DE OLHAR E OLHARES:
a ficção urbana de Alencar e as tramas sociais
NITERÓI
2007
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DEBORA REIS DA SILVA
DE OLHAR E OLHARES: a ficção urbana de Alencar e as tramas sociais
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área
de concentração: Estudos de Literatura.
Orientador: Profª Drª LUCIA HELENA
Niterói
2007
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
S586 Silva, Debora Reis da.
De olhar e olhares: a ficção urbana de Alencar e as tramas
sociais / Debora Reis da Silva. – 2007.
141f.
Orientador: Lúcia Helena.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2007.
Bibliografia: f. 137-141.
1. Alencar, José de, 1829-1877 – Crítica e interpretação. I.
Helena, Lúcia. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de
Letras. III. Título.
CDD B869.3
DEBORA REIS DA SILVA
DE OLHAR E OLHARES:
a ficção urbana de Alencar e as tramas sociais
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras
da Universidade Federal Fluminense como requisito
parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de
Concentração: Estudos de Literatura.
Aprovada em março de 2007
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________________
Profª Drª Lucia Helena
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________________
Profª Drª Anélia Pietrani Montechiari
UNILASALLE - RJ
___________________________________________________________________________
Profª Drª Denise Brasil Alvarenga Aguiar
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Niterói
2007
A Luíza: presente de Deus.
Agradecimentos
A Deus, por me fazer alcançar a rocha mais alta que eu.
Aos meus pais Olívio e Juciléa, pela educação que me deram,
pelo cuidado que sempre tiveram comigo e pelo amor que nos
une.
Às minhas irmãs Ruth e Raquel e meu cunhado André, pelos
bons momentos de descontração e alegria.
Às amigas queridas: Eliane, Gisele, Jenny e Leila, por me
estenderem a mão todas as vezes que precisei.
À minha orientadora Lucia Helena, pelas críticas, pelos elogios,
por aceitar o meu pedido de orientação quando eu ainda
carregava um pedaço de papel com o esboço simples, confuso e
imperfeito de um projeto. E por me fazer acreditar na minha
capacidade.
[...]
Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,
Exercerei a sós a minha estranha esgrima,
Buscando em cada canto os acasos da rima,
Tropeçando em palavras como nas calçadas,
Topando imagens desde há muito já sonhadas.
(CHARLES BAUDELAIRE. As flores do
mal).
Não há olhar que não espere resposta do ser ao
qual se destina. Quando esta espera é
compensada (por um pensamento, por um
esforço voluntário da atenção), a experiência
da aura conhece então a plenitude [...]. A
experiência da aura repousa, pois, na
transferência [...]. Assim que se é ou se crê
olhado, levantamos os olhos. Sentir a aura de
algo é conferir-lhe o poder de levantar os
olhos.
(WALTER BENJAMIN. Sobre alguns temas
em Baudelaire).
RESUMO
O objetivo deste trabalho é investigar a presença do olhar na ficção urbana de José de
Alencar. Para isso, propõe-se, de início, compreender o lugar que esse gesto cultural ocupa na
sociedade desde a modernidade, lida pelos olhares atentos de Benjamin e Baudelaire, e que
deu origem ao que hoje chamamos de “sociedade do olhar”. O trabalho também focaliza o
desejo brasileiro de modernidade, expresso nos romances de Alencar, que desperta a
necessidade de espelhar-se no outro e, ao mesmo tempo, exibir-se ao olhar do outro,
revelando uma vida social envolta por um comportamento voyeurista / exibicionista. O
escritor aparece como espectador privilegiado do mundo, que busca constantemente a
qualidade do seu olhar. A análise dos romances Encarnação, Diva e Senhora possibilita
também a discussão do conflito, anunciado pelo escritor brasileiro, motivado por duas
maneiras diversas de olhar a realidade. Uma delas privilegia uma “visão material” do mundo,
enquanto a outra defende ao que consideramos uma “visão espiritual”. Uma das
conseqüências desse desequilíbrio é o estado de vertigem, fundado na necessidade de uma
relação instável entre o ser e o parecer.
Palavras-chave: olhar, Alencar, modernidade, vida social, século XIX, vertigem.
ABSTRACT
The objective of this essay is to investigate the presence of sight in José de Alencar’s
urban fiction. Initially, it is proposed to understand the place where this cultural gesture has
in society since modernity, read through Benjamin’s and Baudelaire’s attentive look, which
gives the origin to what we call today “sight society”. This work also focus on a Brazilian
desire for modernity, expressed on Alencar’s novels, which shows the necessity to be
mirrored in the other’s vision and, at the same time, to display oneself to others’, revelling a
social life wrapped by a voyeuristic / exhibitionist behaviour. The writer appears as a world
privileged viewer, who constantly looks for the quality of its look. The analyses of
Encarnação, Diva and Senhora novels also gives the possibility to discuss the conflict,
announced by the Brazilian writer, motivated by two different ways to look the society. One
of those favours the world “material vision” , whilst the other defends, what we consider, “the
spiritual vision”. One of the consequences of this imbalance is the dizziness state based on the
necessity for a stable relationship between the being and the resemblance.
Key-words: sight, Alencar, modernity, social life, XIX century, dizziness.
SUMÁRIO
O OLHAR COMO PERSONAGEM PRINCIPAL: INTRODUÇÃO
1- “OBJETO DO OLHAR” E “MODO DE VER”: ALENCAR E O SEU TEMPO
1.1- “Ilusão sagrada e verdade profana”: o olhar na modernidade
1.2- O escritor e a criação literária: uma busca pela qualidade do olhar
1.3- O Brasil oitocentista e a sociedade carioca do século XIX: espelho e vitrine
2- OS OLHARES DA NARRATIVA
2.1- “Olhar material” e “olhar espiritual”: Encarnação
2.2- O olhar como gesto cultural: Diva
2.3- A ingrata separação entre o ser e o parecer: a pedagogia do olhar em Senhora
3- ALENCAR E O ARTIFÍCIO DA VERTIGEM
3.1- A vertigem na narrativa
3.2- A vertigem da valsa, A vertigem do mundo
A LUNETA MÁGICA DE ALENCAR: CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O OLHAR COMO PERSONAGEM PRINCIPAL: INTRODUÇÃO
Conta a mitologia grega que Narciso, filho de Céfiso e da ninfa Liriopé, era um belo
rapaz indiferente ao amor. Quando Narciso nasceu, sua mãe consultou o adivinho Tirésias. O
cego, “que enxergava para além das imagens do mundo”, disse que Narciso teria longa vida se
jamais visse a própria face. Mas acontece que, aos 16 anos, Narciso já despertava o interesse de
todas as moças, que sofriam por não serem correspondidas. A deusa Nêmesis, comovida pelo
sofrimento das moças, decidiu vingá-las: induziu Narciso a debruçar-se numa fonte para beber
água. Foi então que o rapaz viu seu rosto refletido e apaixonou-se por sua própria imagem.
Permaneceu imóvel na contemplação e ali morreu, sendo assim cumprida a profecia do
vidente.
Como agradecimento ao rei Polidectes por tê-lo acolhido com sua mãe em um país
estrangeiro, Perseu, outro personagem mitológico, promete matar a Medusa, que aterroriza a
todos com o seu olhar mortífero. A estratégia de Perseu consiste em avançar em direção a
Górgona sem cruzar seu olhar ao dela, empregando o escudo como um espelho. Quando a
Górgona se vê no escudo de Perseu, torna-se vítima petrificada de sua própria fascinação, pois
o poder maléfico de seu olhar se volta contra ela.
Já Édipo não contou com a mesma sorte de Perseu. Mesmo tendo desvendado o mistério
da esfinge, furou seus próprios olhos ao descobrir-se assassino do pai e casado com a própria
mãe.
9
E o que dizer de Orfeu, que vê sua chance de trazer Eurídice de volta à vida esvair-
se ao render-se à curiosidade dos olhos?
Personagem principal do mundo de Narciso, elemento central na história de
Medusa e peça fundamental no mito de Édipo e na história de amor de Orfeu e Eurídice,
destaca-se o olhar sobre os demais sentidos. Talvez por esse motivo todos os filósofos ou
sistemas filosóficos falaram sobre o olhar ou a partir dele.
Aristóteles tentou explicar essa preferência humana pela sensação visual ao
afirmar:
Por natureza, todos os homens desejam conhecer. Prova disso é o prazer
causado pelas sensações, pois mesmo fora de toda utilidade, nos agradam por
si mesmas e, acima de todas, as sensações visuais. Com efeito, não só para
agir, mas ainda quando não nos propomos a nenhuma ação, preferimos a vista
a todo o resto. A causa disto é que a vista é, de todos os nossos sentidos,
aquele que nos faz adquirir mais conhecimentos e que nos faz descobrir mais
diferenças. (ARISTÓTELES
1
, A 980 apud CHAUÍ, In: NOVAES, 2003, p.38).
Mas o prazer das sensações visuais, lembra-nos Marilena Chauí (In: NOVAES,
2003), tão prezado por Aristóteles, será condenado por Santo Agostinho. Sob o nome de
vã curiosidade, Santo Agostinho, em suas Confissões, reprova o desejo de tudo conhecer,
ainda que concorde com a idéia da aptidão dos olhos para o conhecimento.
(...) um desejo de conhecer tudo por meio da carne. Esse desejo curioso e vão
disfarça-se sob o nome de conhecimento e ciência. Como nasce da paixão de
conhecer tudo, é chamado, nas divinas Escrituras, de concupiscência dos
olhos, por serem estes sentidos mais aptos ao conhecimento. É aos olhos que
propriamente pertence o ver. Empregamos, contudo, esse termo mesmo em
relação aos outros sentidos, quando os usamos para obter qualquer
conhecimento. Assim, não dizemos, “ouve como brilha”, “cheira como
resplandece”, “saboreia como reluz”, “apalpa como cintila”. Mas já podemos
dizer que todas essas coisas se vêem. Por isso não só dizemos “vê como isto
brilha” pois só os olhos podem sentir -, mas também “vê como ressoa, vê
como cheira, vê como sabe bem, vê como é duro”. É por isso que se chama de
1
ARISTÓTELES, Metafísica, A 980, p 21-5
10
concupiscência dos olhos à total experiência que nos vem pelos sentidos.
Apesar de o ofício da vista pertencer primariamente aos olhos, contudo os
restantes sentidos usurpam-no por analogia, quando procuram um
conhecimento qualquer.(SANTO AGOSTINHO
2
, 1973 apud CHAUÍ, In:
NOVAES, 2003, p.38-39).
Lembre-se de que foi este “desejo curioso e vão” o responsável pela expulsão de
Adão e Eva do Paraíso, ou ainda, esta “concupiscência dos olhos” a grande vilã do drama
vivido pela mulher e pelas filhas de Ló, transformadas em estátuas de sal por um
capricho do olhar.
Também não podemos esquecer que o sentido que nos faz adquirir mais
conhecimentos foi também considerado o “mais espiritual dos sentidos” pelos
renascentistas, que viam nos olhos o “lugar onde se pode perceber a atividade da alma”.
“A alma especula com os olhos”, diziam eles. Esse privilégio da visão sobre os demais
sentidos se dá em razão da sua capacidade de abarcar o todo da percepção, de usurpar os
demais sentidos e por eles ser usurpado, como bem disse Santo Agostinho.
Alfredo Bosi no artigo “Fenomenologia do olhar” (In: NOVAES, 2003) alerta para
o fato de que já na cultura grega o ver e o pensar estavam entrelaçados pelos fios da
linguagem. Assim, ele destaca a semelhança sonora, em latim, da palavra idea com video
(eu vejo), ou ainda a sua afinidade com o vocábulo eidos (forma ou figura). Nesse
mesmo compasso de Bosi, Marilena Chauí (In: NOVAES, 2003, p.34) ressalta a palavra
théoria, “ação de ver e contemplar, que nasce de théorein examinar, observar, meditar.
Théorema é o que se pode contemplar, regra, espetáculo, preceito, visto pelo théoros, o
espectador”. O mesmo acontece com a palavra “fenômeno”, que vem de phaino (fazer
brilhar, fazer aparecer, mostrar, dar a conhecer o caminho, explicar) e que remete a phaós
(luz, luz dos astros e especialmente do sol, luz do olhar, do fogo, e também vir à luz,
nascer).
2
SANTO AGOSTINHO, Confissões, X, Coleção Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p.230.
11
A presença, tão importante quanto constante, da referência ao domínio escópico na
filosofia no que concerne ao conhecimento e ao saber, pode ser associada à crença dos
antigos no fogo do olhar. Antonio Quinet, no livro Um olhar a mais (2002, p.19), afirma
que para perceber a concepção antiga, centrada em torno do raio visual, concebido como
“o fogo do olhar projetado pela alma para fora de seu corpo”, devemos superar nossas
concepções atuais da visão e da ótica, que têm sua base nas propriedades físicas do raio
luminoso e da formação de imagens; uma vez que, ao contrário do raio luminoso, o raio
visual é ele mesmo luminoso por causa do fogo do olhar, responsável por iluminar os
objetos de sua visibilidade. Daí o parentesco entre o olho e o Sol conhecido por todos na
Antigüidade. Para Sócrates, o Sol é fruto do Bem, e é nessa analogia que o filósofo
introduz a distinção entre o olho que vê o mundo sensível iluminado pelo Sol e o olho da
alma que possui inteligência. Enquanto o olhar do olho do corpo vê o mundo sensível, o
olhar do olho da alma vê o mundo inteligível, este é um olhar noético, de contemplação,
que diz respeito à verdade e ao ser.
Mas é na alegoria da caverna que Platão descreve a passagem do mundo sensível
ou do estado inicial de ignorância dos homens para o processo de conhecimento rumo ao
mundo inteligível. O professor e filósofo Gerard Lebrun, no artigo “Sombra e luz em
Platão”, propõe a divisão da alegoria em quatro episódios:
1º) os prisioneiros, acorrentados, imobilizados, sem poder mover a cabeça,
observam as sombras das marionetes que desfilam em uma parede. Eles as
tomam por seres verdadeiros e crêem ouvi-las falar, quando na realidade
ouvem as vozes dos carregadores;
2º) o cativo liberto, deslumbrado pela luz do fogo, é forçado a olhar as
marionetes que passam por cima do muro;
3º) tirado para fora do antro, ele é de princípio cegado pela luz, e é incapaz de
observar “o que agora chamamos de seres reais”. Aos poucos ele vai se
acostumando. Observa as sombras e os reflexos, depois os próprios seres que
projetam essas sombras.
4º) Seu olhar se eleva em direção ao Sol. Ele conclui que esse é que produz a
vida e as estações, e que é “de alguma forma a causa” de tudo o que ele via
12
quando estava sentado na caverna para onde será forçado a retornar.
(LEBRUN, In: NOVAES, 2003, p. 26).
Trata-se, sem dúvida, de uma pedagogia do olhar. Da escuridão para a claridade,
das trevas para o Sol, da sombra para a luz, da imagem para a Idéia, enfim, da aparência
para a realidade. Daí a insistente desconfiança de Platão na percepção e nos caprichos do
corpo.
O século XVII trouxe consigo uma nova teoria sobre o olhar. Com Descartes, os
raios do olhar, presentes na tradição platônica, são substituídos pela física, pela métrica e
pela geometria. A partir de então, o olhar será reduzido à metáfora do saber e o olho se
torna apenas um dispositivo óptico. Descartes pretendia a dominação das paixões pela
consciência, por isso a certeza de que era a clareza da razão que iluminava as idéias. Em
sua Dióptrica, o enigma do olho dará lugar à física da visão e, sendo a visão enganosa, é
necessário corrigir seus erros para alcançar a visão correta e, para isso, é necessário haver
as condições geométricas necessárias para que a imagem seja definida sobre a retina. A
ação do ato de ver, não depende mais dos olhos, e sim dos objetos luminosos ou
iluminados que os rodeiam.
Apesar disso, Descartes também reconhece o privilégio dos que contam com a
visão e demonstra sua apreciação pelo sentido quando diz:
O olho, pelo qual a beleza do universo é revelada à nossa contemplação é de
tal excelência que todo aquele que se resignasse à sua perda privar-se-ia de
conhecer todas as obras da Natureza cuja vista faz a alma ficar feliz na prisão
do corpo, graças aos olhos que lhe representam a infinita variedade da criação.
Todo comportamento em nossas vidas depende de nossos sentidos; entre eles,
o mais universal e nobre é a visão, e não há dúvida alguma de que as
invenções que servem para aumentar sua potência são as mais úteis de
todas.(DESCARTES
3
, 1953 apud Quinet,2002, p.54 supra e 28 infra)
3
DESCARTES, René. “La Dioptrique”, in Oeuvres et lettres. Paris:Bibliotèque de la Plêiade/Gallimard,
1953.
13
Fascinado pelo telescópio e as vantagens que ele proporciona ao descobrir novos
astros ou ampliar a capacidade da visão, tornando visíveis objetos invisíveis a olhos nus,
Descartes entoa verdadeiro hino às lunetas e telescópios de seu tempo: “Essas
maravilhosas lentes que, estando em uso há tão pouco tempo, já nos descobriram novos
astros no céu e novos objetos sobre a terra” (Idem, p.29). É que, ao descobrir novos
objetos, o telescópio fará da visão um ato de conhecimento.
Maurice Merleau-Ponty também dedicou grande parte de sua vida aos estudos
sobre o enigma do olhar e o mundo da percepção. Incomodava-lhe o culto desenfreado
ao conhecimento metódico da ciência em detrimento à “experiência sensível do mundo”.
Daí a atenção reservada à Dióptrica de Descartes. Para Merleau-Ponty, a crença de que
somente a ciência é capaz de nos libertar das ilusões em que vivem nossos sentidos e
fazer-nos chegar à verdadeira natureza das coisas precisa ser contestada e, embora
reconheça o valor da ciência no mundo, o filósofo questiona a capacidade da ciência em
oferecer “uma representação do mundo que seja completa, que se baste, que se feche de
alguma maneira sobre si mesma, de tal forma que não tenhamos mais nenhuma questão
válida a colocar além dela”. (MERLEAU-PONTY, 2004, p.4-5)
Merleau-Ponty critica toda a tradição que elege a Idéia ou o Espírito absoluto
como fonte de conhecimento, e diretamente a Descartes que acreditava na cisão entre o
espírito e o corpo. Pela primeira vez o homem é visto não mais como um espírito e um
corpo, mas um espírito com um corpo, que só alcança a verdade das coisas porque seu
corpo parece cravado nelas.
A fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty propõe a ruptura da dicotomia
clássica sujeito\objeto. O olhar fenomenológico é um olhar de dentro, já que o sujeito da
percepção faz parte do fenômeno. Desse modo, a Fenomenologia da Percepção se
organiza a partir da concepção do sujeito encarnado no fenômeno em si.
14
Nossa relação com as coisas não é uma relação distante, cada uma fala ao
nosso corpo e à nossa vida, elas estão revestidas de características humanas
(dóceis, doces, hostis, resistentes) e, inversamente, vivem em nós como tantos
emblemas das condutas que amamos ou detestamos. O homem está investido
nas coisas, e as coisas estão investidas nele. (Ibidem, p.24).
Merleau-Ponty atribui o mérito da reabilitação da percepção e do mundo
percebido à arte e ao pensamento modernos. Preocupados com a verdade, estes reúnem
esforços para reencontrar o mundo tal como o captamos em nossa experiência vivida. A
vida de Cézanne e a maneira como ele expunha o mundo em suas telas serão grandes
aliados aos discursos do filósofo. Foi necessário banir o ensinamento clássico da
perspectiva geométrica e toda representação convencional do visível, uma vez que a
percepção da realidade depende do ponto de vista.
A cada momento, enquanto nosso olhar viaja através do espetáculo, somos
submetidos a um certo ponto de vista, e esses instantâneos sucessivos não são
passíveis de sobreposição para uma parte da paisagem. O pintor só conseguiu
dominar essa série de visões e delas tirar uma única paisagem eterna porque
interrompeu o modo natural de ver: muitas vezes fecha um olho, mede com
seu lápis o tamanho aparente de um detalhe que ele modifica graças a esse
procedimento e, submetendo todas essas visões livres, domina seu
desenvolvimento movimentado, mas também suprime sua vibração e sua vida.
Se muitos pintores, a partir de Cézanne, recusaram curvar-se à lei da
perspectiva geométrica, é porque queriam recuperar e representar o próprio
nascimento da paisagem diante de nossos olhos, é porque não se contentavam
com um relatório analítico e queriam aproximar-se do estilo propriamente dito
da experiência perceptiva. (Ibidem, p.13-14).
“Recuperar e representar o próprio nascimento da paisagem diante dos nossos
olhos” era, para Merleau-Ponty, a maior virtude da pintura moderna, mas não apenas dela
como também da literatura e da filosofia. Assim, cabe ao artista, ao filósofo e ao poeta
expor aos nossos olhos a verdade do mundo em que vivemos “mas que somos tentados a
esquecer”. Merleau-Ponty parece dessa forma imprimir ao olhar do artista uma visão
privilegiada e capaz de captar o espetáculo do mundo.
15
É importante compreender que a verdade sobre o enigma que envolve o olhar foi
sempre um desafio para qualquer sociedade. O olhar é, sem dúvida, um de seus
protagonistas. Além disso, na medida em que a sociedade se modifica, os modos de ver a
realidade também se modificam e, conseqüentemente, a maneira de entender o olhar, por
isso, ele pode ser entendido como elemento histórico. São evidentes a sua grande
influência e significação na constituição subjetiva da sociedade não apenas na relação
mantida com o pensar ou na metáfora do saber já tão explorada pela filosofia, mas
também como gesto cultural, na relação do sujeito com o mundo, principalmente no
mundo moderno. Esta seria, então, uma outra vertente interessante do estudo sobre o
olhar que gostaríamos também de explorar.
O século XIX pode ser considerado o grande período da visão. Quando se inicia a
modernização das cidades, quando surgem as teorias ópticas, quando descobrem a
fotografia, o cinema e quando o espaço público é invadido pelas galerias e vitrines. É
também quando o movimento de milhares de pessoas deslocando-se por entre o
emaranhado de edifícios das grandes cidades compõe a cena cotidiana.
Nesse momento surgem artistas, poetas e escritores que, interessados e
compromissados em representar o inquietante espetáculo promovido pelas
transformações urbanas e pela massa humana que ganha as ruas, se colocam na posição
de observadores das cenas de rua, convencidos de que viver numa grande cidade implica
no reconhecimento de múltiplos sinais, sendo, portanto, uma atividade do olhar. Nomes
como Baudelaire, Balzac e Zola na França, e Edgard Alan Poe e Charles Dickens na
Inglaterra, registraram as impressões de olhares curiosos direcionados a esse espetáculo
urbano, por isso, a rua e a janela tornam-se imagens recorrentes nas artes e na literatura
do período.
16
Figura importante da modernidade, o flâneur, com seu caminhar lento por entre a
multidão e seu olhar contemplativo, presenciou o progresso parisiense e o fervilhante
desfile de homens e mulheres na paisagem urbana. Onde está a massa humana, ali
também estará o flâneur, aberto ao encontro do inesperado, “à súbita aparição de
monstros e maravilhas” que o progresso provoca. Aliás, em Baudelaire, a experiência
moderna desperta um sentimento de melancolia. Trata-se da vivência desencantada do
homem moderno. Por isso a imagem de uma multidão sem impulsos próprios, de gestos
automáticos e a ausência da reciprocidade do olhar.
A multidão, a “experiência do choque” e a “perda da aura”, presentes na poesia de
Baudelaire, emblematizam a modernidade e serão temas relevantes do estudo de Walter
Benjamin, que ainda hoje ocupa lugar proeminente entre os maiores pensadores dessa
época.
No Brasil, o século XIX também representou para seus participantes uma época
de transformações rápidas e cruciais, seja no âmbito político, seja no âmbito cultural, seja
no âmbito social. Além disso, o acelerado progresso dos países europeus era uma
referência e um exemplo a seguir, principalmente para um país com pretensões de
alcançar o posto de nação independente e de viver de acordo com os padrões ditados
pelos arautos da nova civilização, mas que ainda via um entrave na coexistência do
atraso, representado pelas idéias escravistas e pelo clientelismo, com o moderno,
representado pelo nascimento do capitalismo em acordo com as idéias liberais dos
considerados países modernos.
Sede do poder político, centro dinâmico do país, principal porto exportador de
café e o mais importante pólo de redistribuição de mercadorias importadas, a cidade do
Rio de Janeiro é objeto de interesse dos mais diversos tipos de observadores, todos têm
seus olhos voltados para o espaço carioca, principalmente pela necessidade de reconstruir
17
a imagem de uma nova cidade e dar visibilidade a tudo que lhe é favorável. O desejo de
igualar-se às mais modernas cidades do mundo incitou o imaginário da cidade que se
esforça na construção de sua nova imagem. E o progresso é o agente capaz de tornar uma
cidade como o Rio de Janeiro igual a Paris, Londres ou qualquer outra metrópole.
Na literatura deste período, José de Alencar se destaca por sua insistência na
construção da nacionalidade e pela indicação “visual” dessa questão. Em suas crônicas e
romances, assim como em algumas peças de teatro, as transformações urbanas e,
principalmente, os novos costumes da sociedade fluminense exibem aos nossos olhos o
fascínio e a desorientação da vida moderna. Mais diretamente ligadas à modernidade
nascente, suas narrativas urbanas exploram o ambiente da burguesia carioca, com seu
luxo e seus modismos, que se apresentam como um convite ao olhar. Esta era, sem
dúvida, a imagem que a sociedade carioca desejava evidenciar e expor como uma vitrine
ao mundo naquele século. Mas a utopia do progresso se revela ambígua, ela é ao mesmo
tempo sedutora e destruidora. Daí a necessidade de se educar o olhar, capacitá-lo a ver
todas as coisas para que o brilho excessivo da modernidade e, conseqüentemente, do
capitalismo não nos arranque de vez a visão. Alencar também estava atento a isso.
Dessa forma, pretende-se aqui reconhecer na literatura do escritor o registro de
uma sociedade que deseja ser vista e apreciada, além de se espelhar nos costumes de
países mais adiantados, aos quais olha com a admiração de quem almeja igualar-se. O
ambiente dos salões e os bailes devem favorecer essa característica exibicionista e
voyeurista da sociedade, que daria origem ao que hoje chamamos de “sociedade do
olhar”.
É também objetivo do trabalho buscar no olhar dos personagens aquilo que têm a
dizer de si, do outro e do mundo. Investigar a necessidade de olhar, mas também de
exibir-se ao olhar do outro. Seguir o olhar no teatro, no passeio público, nos bailes, ou
18
mesmo, nas janelas das casas e identificá-lo como o maestro condutor do jogo amoroso
num século em que a vigilância sobre o contato físico é, ainda, bastante rígida. E ainda
perceber o fascínio que o espetáculo da vida mundana oferece aos olhos daqueles que
buscam o progresso a todo custo.
Para desenvolver todas as idéias e cumprir com os objetivos até aqui anunciados,
o trabalho foi dividido em três partes:
A primeira parte, cujo título é “‘Objeto do olhar’ e ‘modo de ver’: Alencar e o seu
tempo” tem a tarefa de imprimir uma abordagem teórico-formal ao trabalho. Assim,
pretende-se situar o momento em que Alencar se propôs a escrever, o que ele se propôs a
olhar e o modo como ele e os demais pensadores de sua época viam a chegada da
modernidade; o seu compromisso enquanto escritor; e de como a atividade do olhar
esteve presente no início da modernidade, época em que o escritor Alencar lança seu
olhar ao mundo, e ainda hoje ocupa um lugar proeminente na sociedade. Na primeira
seção, é feito um curso pelo comportamento moderno, tentando encontrar o lugar e a
atividade do olhar estabelecidos pela sociedade atual e de que forma este mesmo olhar
surgiu na consciência humana como elemento primordial de um mundo feito de imagens
e para ser visto.
Pensar no trabalho do escritor, em sua relação com a criação literária, bem como
o alcance do seu olhar sobre a sociedade, além do seu compromisso enquanto intelectual
é a proposta da segunda seção do trabalho. E, para fechar a primeira parte, é colocado em
pauta o conflito ideológico presente no Brasil oitocentista e na sociedade carioca do
século XIX. A necessidade de ser visto pelo mundo como país moderno, afeito às idéias
liberais e o persistente confronto dessas com as atitudes escravocratas ainda praticadas,
que promoviam uma sociedade com múltiplas faces. A falta de correlação do ideal
19
sonhado com o real vivido e o empenho de espelhar-se no outro e exibir-se como vitrine
ao restante do mundo também encontram espaço para reflexão nesse momento.
Na segunda parte do trabalho, “Os olhares da narrativa”, é feita uma, das
inúmeras leituras possíveis, de três romances urbanos de Alencar: Encarnação, Diva e
Senhora. Optou-se por dedicar uma seção a cada romance para favorecer o que cada um
deles oferece de essencial e particular na discussão sobre o olhar. A leitura de
Encarnação permite uma importante reflexão acerca do choque causado pelo encontro
do “olhar material” que vê o mundo exclusivamente na sua vertente racionalista com o
“olhar espiritual” que não se apraz com a idéia da quantificação do mundo, mas
supervaloriza a alma e sacraliza o amor. Diva traz uma leitura que prioriza o olhar
enquanto gesto cultural da sociedade carioca moderna. Nos salões, nos bailes e reuniões
não podem faltar um olhar faceiro em busca da admiração de outrem e um olhar
galanteador e curioso a procura da decifração daquele que o capturou. Exibicionismo e
voyeurismo fazem parte da vida moderna e do jogo amoroso anunciado nesse ponto da
discussão. A leitura de Senhora avança numa reflexão sobre os conflitos sociais
originados na fascinação do indivíduo pelas aparências e vantagens do mundo capitalista,
o perigo e as conseqüências da desumanização do homem e a incompatibilidade entre o
ser e o parecer que também compõem a vida moderna e que acarreta um sentimento de
desencanto do mundo.
Para encerrar o ciclo de discussões em que consiste o trabalho, a última parte é
uma espécie de retorno ao ponto de partida. A sua inspiração está no movimento elíptico
e vertiginoso que acompanha a valsa. Partindo da idéia de movimento, velocidade e do
estado de vertigem como emblemas da vida moderna, a primeira seção busca nos
romances do escritor as cenas e os movimentos da estrutura narrativa que ajudam a
pensar nesse distintivo da modernidade, além de desenvolver a noção de vertigem e
20
delírio como artifícios usados pelo escritor para traduzir a fusão do real com o ideal
sonhado. Por fim, a última seção convoca alguns dos principais conceitos desenvolvidos
lá no início para, mais uma vez, refletir a fugacidade da vida moderna que deturpou a
visão e proporcionou um sentimento de perda do equilíbrio, de desorientação que se
alastrou pelos anos a ponto de provocar a sensação de vertigem do mundo.
Na conclusão do trabalho ainda é possível encontrar espaço para algumas
considerações importantes sobre o escritor José de Alencar, que depositou sobre a
cidade/ sociedade um olhar polêmico para uns, mas, indiscutivelmente, importante e
valoroso para todos quantos souberam ler nos seus escritos uma indispensável discussão
sobre a identidade cultural e nacional do país.
1- “OBJETO DO OLHAR” E “MODO DE VER”: ALENCAR E O SEU TEMPO
O olhar é ora cognitivo e, no limite, definidor, ora é emotivo ou
passional. O olho que perscruta e quer saber objetivamente das coisas
pode ser também o olho que ri ou chora, ama ou detesta, admira ou
despreza. Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto
sentimento. (Alfredo Bosi
1
).
No livro O enigma do olhar, Alfredo Bosi examina a obra de Machado de Assis. Seu
objetivo é entender o olhar machadiano, sua perspectiva e o foco narrativo, na tentativa de
preencher um hiato que, segundo Bosi, ainda perdura entre os conceitos impressos na extensa
fortuna crítica do escritor e as figuras do texto-fonte. Para tanto, foi necessário, primeiro,
encontrar a distinção entre objeto e olhar. Isso porque, como o próprio crítico afirma, é sempre
o modo de ver que dá forma e sentido ao objeto do olhar, mesmo porque, a historicidade em
que se inscreve uma obra de ficção traz em si dimensões da imaginação, da memória e do juízo
crítico do seu criador (BOSI, 1999, p.12). Dessa forma, os valores culturais, bem como os
estilos de pensar, que caracterizam a visão de mundo do romancista, serão os norteadores da
sua arte. Mas o que mais importa em tudo isso é que, além de serem vários os objetos do olhar
narrativo, também não são poucas as maneiras de encará-los, principalmente devido a uma
característica que é inerente ao olhar: a sua mobilidade. Daí a importância de estar sempre
atento às indicações do ponto de vista da narrativa, acompanhando “cada uma das suas
visadas”.
1
BOSI, Alfredo. O enigma do olhar. Rio de Janeiro: Editora Ática, 1999, p.10.
22
Dar início a mais um estudo da obra de Alencar, seja qual for a proposta, também não
pode ser diferente. Investigar o “objeto do olhar” e o “modo de ver” do autor é o primeiro
caminho para o sucesso de uma pesquisa.
Assim como Machado de Assis, José de Alencar possui uma extensa produção literária
e, como não poderia ser diferente, esta conta com uma ampla e díspar bibliografia de
intérpretes e críticos já bastante conceituados no meio acadêmico. O juízo crítico de alguns
apontou para um escritor conservador e até contraditório, ou mesmo um adaptador dos grandes
romances europeus. Outros souberam reconhecer com justiça a importância das narrativas de
Alencar para a formação da cultura brasileira.
Já nas primeiras publicações, Alencar experimentou os desafios de quem abre um
caminho até então restrito aos literatos portugueses e à literatura importada. De fato, construir e
organizar a história cultural de uma nação não foi tarefa fácil. Principalmente porque era
preciso criar um modelo literário brasileiro, mas a única referência que tínhamos na época
eram os modelos de romances europeus e a transferência deste para a realidade brasileira
resultaria, para alguns críticos, dentre os quais Roberto Schwarz seria o porta-voz, numa
literatura “mal-resolvida”.(Schwarz,2000, p.33-79)
Mas é o próprio Alencar quem pode nos ajudar na identificação de suas “visadas”. Em
Como e porque sou romancista, autobiografia datada em 1873, mas publicada originalmente
apenas no ano de 1893, o escritor revela a influência de alguns escritores europeus, como
Voltaire, Balzac, Dumas e Chateaubriand em sua formação intelectual, mas garante que seu
mestre maior foi a natureza de sua pátria. Em “Benção paterna”, prefácio de Sonhos d’ouro,
romance de 1872, ele confessa que a intenção e objetivo primordial de seu projeto era a luta
pela real independência literária e lingüística do Brasil. Aliás, o escritor sempre fez questão de
expor suas reflexões críticas sobre a própria obra, seja em prefácios ou posfácios escritos para
suas criações, seja em crônicas jornalísticas, ou mesmo em sua autobiografia, criando um
23
verdadeiro documento das suas formas de pensar e ver a literatura nacional. Como faz ao
interrogar acerca mesmo do estatuto da literatura brasileira:
A literatura nacional que outra coisa é senão a alma da pátria, que transmigrou para
este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta
terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contacto de outros povos e
ao influxo da civilização? (ALENCAR, 1872, prefácio).
Fixando com atenção um Brasil que luta pela real independência e a necessidade de
alimentar o imaginário cultural brasileiro, o escritor assume o propósito de recontar a história
da civilização através de um discurso de fundação adequado a uma nação em formação de um
lado, com os romances indianistas e, noutro, introduzir a sociedade carioca já em seu estágio
mais evoluído.
Alencar teve o seu olhar voltado para diferentes épocas e paisagens que configuram o
objeto de seu olhar narrativo. Das matas para a metrópole, da selva para a casa, da “origem do
nacional” para o “tamanho fluminense”, enfim de Peri e Iracema, representantes da cultura
autóctone, para Emília, Amália e Aurélia, damas da sociedade carioca; nada escapou ao olhar
observador e crítico do escritor que merece ser interpretado tendo como alicerces a sua época e
as suas reflexões e “visadas” sobre a sociedade e a literatura, objetos do seu olhar.
1.1- “Ilusão sagrada e verdade profana”
2
: o olhar na modernidade
O olhar humano pós-moderno é desejo e palavra que caminham pela
imobilidade, vontade que admira e se retrai inútil, atração por um corpo
que, no entanto, se sente alheio à atração, energia própria que se
alimenta vicariamente de fonte alheia. Ele é o resultado crítico da
maioria das nossas horas de vida cotidiana. (Silviano Santiago
3
)
Nunca a questão do olhar foi tão explorada e discutida como nas sociedades atuais.
Tudo porque os avanços da ciência e da tecnologia apresentam-nos um mundo onde tudo existe
para ser visto. Na “sociedade do olhar”, somos bombardeados por estímulos visuais que
2
O termo é de Feuerbach no prefácio da segunda edição de A essência do Crisitanismo.
3
SANTIAGO, Silviano. “O narrador pós-moderno”. In: Revista Brasil. Literatura anos 80. Ano 2, n°5\86, p.12.
24
invadem a paisagem incentivando-nos e, muitas vezes, até nos obrigando à prática voyeurista.
No livro Um olhar a mais, Antonio Quinet enfatiza a característica escópica dessa sociedade
que, segundo ele, é a conjugação da sociedade do espetáculo descrita por Guy Debord com a
sociedade disciplinar descrita por Foucault.
A união desses dois modelos de sociedade faz da sociedade atual a detentora de dois
mandamentos que caracterizam a sua essência. São eles: VEJA! e MOSTRE-SE! Responsáveis
por duas novas versões do velho cogito: “Vejo, logo existo”, e ainda, “o outro me vê, logo eu
existo”. (QUINET, 2002, p.280 et seg.).
A sociedade disciplinar baseava-se, segundo Foucault (1997), no modelo do panóptico
de Jeremy Benthan (1748 1832), que consistia num projeto arquitetônico que pretendia a
construção de um sistema de prisão com disposição circular de celas individuais, divididas
por paredes e com a parte frontal exposta à observação do diretor, que podia ver sem ser visto,
garantindo, assim, o controle das atitudes por meio da visibilidade total e permanente dos
indivíduos. Embora com prioridade entre prisioneiros, o principio do panóptico poderia ser
adaptado em estabelecimentos como escolas, fábricas ou onde mais fosse necessário reforçar a
relação de hierarquia e de poder. Na sociedade disciplinar, como o próprio nome diz, o
observador está presente em tempo real a observar e a vigiar os indivíduos, afim de torná-los
seres disciplinados e úteis à sociedade. Porém, na verdade, o vigilante nem precisava estar
presente, bastava uma veneziana ou mesmo um vidro escuro para que houvesse a presença do
olhar. A intenção era agir mediante a interiorização de uma sujeição que era implantada nas
mentes ao pressupor a insistente vigilância. É o que acreditava Benthan numa de suas
afirmações, lembrada por Kátia Muricy no artigo “Os olhos do poder” (In: NOVAES, 2003,
p.483): “Estar incessantemente sob os olhos de um inspetor acarreta a perda da possibilidade
de fazer o mal e até mesmo de pretender fazê-lo”.
25
É possível dizer que, ainda hoje, o princípio do panóptico continua plenamente ativo
nas formas de controle implementadas pelas novas tecnologias. Embora vítimas de uma
vigilância virtual, o efeito causado nos indivíduos é, sem dúvida, o mesmo. Somos seres
visíveis, mas incapazes de ver quem nos olha, controlados pela força perturbadora e
petrificadora do olhar que insiste, a todo momento e em todo lugar, em nos alertar: “VOCÊ
ESTÁ SENDO FILMADO!”.
Já a sociedade do espetáculo, explica Guy Debord (1997, p.14 -17), não é um conjunto
de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. Na sociedade do
espetáculo, tudo o que era vivido diretamente torna-se uma representação, o que faz da verdade
um momento do que é falso” diz, ainda, Debord. Nessa “realidade virtual” o natural não se
opõe ao artificial, pelo contrário, os dois se confundem, ou melhor, convergem, chegando, na
maioria das vezes, a trocar de papel ou eliminar os limites de onde um termina para dar lugar
ao outro.
No ensaio O reino da contemplação passiva”, Anselm Jappe apresenta-nos a essência
da sociedade espetacular examinada por Debord, que contribui para nosso raciocínio:
...trata-se de uma sociedade baseada na contemplação passiva, em que os indivíduos,
em vez de viverem em primeira pessoa, olham as ações dos outros. Isto acontece não
somente sob o plano televisivo, e não somente na publicidade, mas também sob
muitos outros planos: na sociedade do espetáculo, também a política incluindo uma
boa parte daquela que se proclama revolucionária -, a cultura, o urbanismo, as
ciências baseiam-se sempre na distinção entre espectador e ator. Não existe relação
direta entre o indivíduo e seu mundo, apesar de este mundo ter sido produto dele. De
fato, a relação é sempre mediada pela imagem, imagem esta escolhida
propositalmente pelos outros, isto é, pelos proprietários da sociedade.(JAPPE, In:
NOVAES, 2004, p.256)
Com efeito, somos transformados em seres passivos, submetidos à lógica do espetáculo,
que influi num processo vertiginoso de alienação em que a sedução adquire papel fundamental.
Brilhar, atrair, seduzir o espectador\consumidor de forma que ele não consiga resistir ao
26
assédio é, na sociedade capitalista, a atribuição única e intransferível da mercadoria. Marx
(1986) já havia identificado a relação amorosa que existe entre a mercadoria e o consumidor ao
afirmar, em “O fetichismo da mercadoria”, que a mercadoria ama o dinheiro e lança “olhares
amorosos” ao consumidor.
Para Walter Benjamin (1989), essa característica sensual que integra o cerne da
sociedade da mercadoria já marcava presença nas exposições universais do século XIX, que
concentravam milhares de pessoas como em uma verdadeira peregrinação religiosa. Aliás,
Benjamin reconhece nesse culto da mercadoria e da novidade um prolongamento da religião.
Paris, a “sagrada” cidade-fetiche expõe ao olhar do “fiel” consumidor os novos deuses da
“religião” moderna: a mercadoria, a imagem e o progresso.
Antes disso, porém, as Passagens já haviam inaugurado esse espaço de interação entre
os progressos da sociedade capitalista e o público que ali agia como verdadeiro espectador
frente a um espetáculo cheio de novidades. As Passagens, surgidas na transição do século
XVIII para o século XIX, compunham uma espécie de microcosmo das metrópoles. Na “Paris
em miniatura”, por exemplo, podia ser encontrada toda a sorte de atrações que implicavam no
reconhecimento das inovações que necessitavam ser exibidas ao olhar dos passantes. Mas, na
verdade, como afirmou o próprio Benjamin, as passagens eram nada mais que fantasmagorias
da modernidade, uma vez que ao evidenciar o encantamento, o fascínio e a beleza dos produtos
e as novidades tecnológicas de suas múltiplas vitrines, elas garantiam o encobrimento de uma
outra faceta desse progresso que não havia interesse ou vantagem em deixar à mostra. Dessa
forma, enquanto o brilho inusitado das mercadorias se apresentava através das vitrines
iluminadas pelas luzes da modernidade, a esfera da produção e o trabalho operário era
ofuscado, abrindo espaço para imagens enganadoras, que cumpriam a tarefa de transfiguração
do real.
27
O resultado desse processo iniciado no século XIX, com o crescimento das cidades e o
surgimento do modo de produção capitalista, é uma sociedade com uma forte característica
imagética, uma espécie de “sociedade das representações”. A profusão de imagens visuais no
cenário urbano intensificou-se de modo a produzir uma realidade fictícia, uma realidade
marcada pelos símbolos, sempre associados a objetos de consumo. Estes símbolos estarão
presentes, por meio de mídias, nos mais diversos lugares por onde circulam os consumidores.
Não mais teremos olhares a procura de imagens, mas imagens que pululam na captura de
olhares. No entanto, o que mais impressiona é que a simbologia de uma mercadoria não precisa
estar vinculada ao seu valor original de uso, pelo contrário, ela deve convencer o consumidor
de que os atributos de um produto podem transcender seus limites materiais.
É nessa sociedade dominada pelas imagens e fascinada pelo espetáculo, que o
desenvolvimento das comunicações junto à inserção de novas tecnologias altera radicalmente
nossa concepção de mundo, bem como a convivência e a percepção de nós mesmos e dos
outros. O que resulta dessa alteração pode ser resumida nas palavras de Feuerbach no prefácio
da segunda edição de A essência do Cristianismo. Diz ele:
É sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a
representação à realidade, a aparência ao ser... Ele considera que a ilusão é sagrada. E
a verdade é profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade
decresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do
sagrado.(FEUERBACH
4
apud DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997).
Um real sem origem nem realidade, mas cultuado e sagrado aos olhos da sociedade que
se alimenta dos simulacros de uma nova era.
A facilidade com que as coisas chegam até nós também contribui para essa forma de
pensar e ver a realidade. O progresso implica a conquista do espaço, a derrubada de todas as
barreiras espaciais e, por que não, temporais. Por isso, numa época em que qualquer incidente,
4
Prefácio da segundo edição de A essência do Cristianismo
28
novidade ou conquista, não importa onde e quando ocorra, pode ser comunicado e transmitido
para o resto do mundo simultaneamente ao fato não poderia deixar-nos indiferentes. Dessa
forma, o tempo deixa para trás sua característica de tempo histórico para incorporar a idéia de
velocidade, instantaneidade e simultaneidade. Nelson Brissac Peixoto, no artigo “O olhar
estrangeiro”, ilustra com clareza de que forma essa crescente velocidade implica na
superficialidade do olhar:
A velocidade provoca, para aquele que avança num veículo, um achatamento da
paisagem. Quanto mais rápido o movimento, menos profundidade as coisas têm, mais
chapadas ficam, como se estivessem contra um muro, contra uma tela. A cidade
contemporânea corresponderia a este novo olhar. Os seus prédios e habitantes
passariam pelo mesmo processo de superficialização, a paisagem urbana se
confundindo com os outdoors. O mundo se converte num cenário, os indivíduos em
personagens. Cidade-cinema. Tudo é imagem. (PEIXOTO, In: NOVAES, 2003,
p.361).
O signo da velocidade também acarreta conseqüências na subjetividade da sociedade. É
que a velocidade vertiginosa das novas tecnologias e invenções tornam obsoletos tudo o que
foi produzido anteriormente. O efeito disso seria uma certa crise de identidade, um sentimento
de angústia e insegurança. Sentimentos esses que aumentam ainda mais com a diminuição das
restrições ao comércio entre países, com a construção de espaços públicos de rápida circulação
como aeroportos, estações de metrô, e com o surgimento da Internet e da globalização que
garantem, simultaneamente, o acesso a diferentes culturas e a fragmentação dos sujeitos. Em O
mal-estar da pós-modernidade, Bauman faz referência a esse problema de identidade próprio
dos novos tempos.
O aspecto novo, caracteristicamente pós-moderno e possivelmente inaudito, da
diversidade de nossos dias é a fraca, lenta e ineficiente institucionalização das
diferenças e sua resultante intangibilidade e curto período de vida. Se desde a época
do “desencaixe” e ao longo da era moderna, dos “projetos de vida”, o “problema da
identidade” era a questão de como construir a própria identidade (...) atualmente, o
problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a
qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma
de expressão que tenha boa probabilidade de reconhecimento vitalício, e a resultante
29
necessidade de não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder
abandoná-la de uma hora para outra, se for preciso. (Bauman, 1998, p.155).
Outro efeito característico da sociedade da imagem é a dificuldade que o indivíduo
enfrenta de mergulhar para dentro de si em busca da própria experiência. Não há mais lugar
para o diálogo ou para a troca de experiência.
Refletindo sobre o narrador das narrativas contemporâneas, Silviano Santiago (1986),
no artigo “O narrador pós-moderno”, levanta a seguinte questão: Seria o narrador pós-moderno
um contador de fatos vivenciados por ele mesmo, ou seja, seria a sua narração fruto de
experiência própria ou da experiência proporcionada por um “olhar lançado”, um relato da
experiência de outrem? De fato, o narrador pós-moderno é aquele que age semelhante a um
repórter ou espectador e procura sempre se abstrair da ação narrada. De acordo com Silviano,
ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste da platéia.
Esse distanciamento da pessoa que narra com o fato narrado não é uma particularidade
do narrador pós-moderno, mas uma característica do mundo contemporâneo. Ainda segundo
Silviano Santiago, os seres humanos hoje mantêm a postura de meros espectadores de ações
vividas ou ensaiadas e representadas. A “passividade prazerosa” e o “imobilismo crítico” são
atributos contemporâneos que transformam a experiência numa atividade do olhar, numa
experiência do olhar. “O espetáculo torna a ação representação. Dessa forma, ele retira do
campo semântico de ‘ação’ o que existe de experiência, de vivência, para emprestar-lhe o
significado exclusivo de imagem” afirma Silviano (1986, p.12) .
Os contos de Edilberto Coutinho, analisados em “O narrador pós-moderno” indicam
algo mais. A insistente presença da “incomunicabilidade de experiência” do mais velho e a
constante imagem vivaz da juventude mostram-nos uma sociedade onde não existe mais
espaço para a palavra, pois a imagem e a aparência ocuparam o seu lugar. Também não há o
interesse da visão do passado, mas o que se tem é uma predominante superioridade do agora.
Aqui, esbarramos na idéia da interminável busca pelo novo, da necessidade incontrolável pela
30
novidade e, conseqüentemente, do distanciamento do passado, valores que estão arraigados à
compreensão do termo modernidade. A fugacidade da vida e a voracidade do tempo são
traços peculiares do cotidiano do mundo contemporâneo. Daí a pobreza de experiência e a
ausência da palavra. Essa foi sem dúvida a grande problemática introduzida por Walter
Benjamin já no século XIX, quando anunciou a “perda da faculdade de intercambiar
experiência”.
A perda de experiência equivale, para Benjamin, à experiência vivida do choque, já que
esta se opõe àquela que seria uma experiência autêntica, vivida na coletividade. A experiência
do choque, ao contrário, é vivida individualmente, ela é fragmentária e, por isso mesmo, não é
comunicável, ela corresponde à vivência desencantada do homem moderno, aodeclínio da
aura”. Foi exatamente o que aconteceu no caso, relatado por Benjamin, dos soldados que
voltando da primeira guerra mundial, eram incapazes de comunicar a experiência vivida nos
campos de batalha.
Para Baudelaire, o herói da sociedade moderna é, justamente, aquele que luta contra
essa pobreza da verdadeira experiência e contra o tédio e a melancolia da experiência moderna.
O herói é, para Baudelaire, “o verdadeiro objeto da modernidade” e, por isso, ele deve ser
capaz de tomar uma atitude em relação à percepção de tempo dessa modernidade que, segundo
Benjamin, é caracterizada pelo processo de corrosão do tempo, que está intimamente ligado à
idéia de modernidade como ruptura em relação ao passado e à tradição e como auto-superação,
que faz com que o novo se torne antigo, uma vez que a dinâmica interna do moderno se traduz
na brevidade, na deterioração, na fugacidade e na transitoriedade das coisas.
Na concepção Benjaminiana (1994), o heroísmo em Baudelaire não consiste apenas na
constatação da descontinuidade dos tempos modernos, mas numa tomada de posição que deve
se opor exatamente a essa transitoriedade, num esforço em encontrar um antídoto contra a
31
voracidade da vida e buscar o que há de eterno no agora. Esse era o seu papel enquanto poeta e
o compromisso da arte nos tempos modernos.
A grande cidade era, para Baudelaire, o espaço por excelência da modernidade. Ele
sabia que viver numa grande cidade implicava no reconhecimento de múltiplos sinais, sendo,
assim, uma atividade do olhar e, por isso, é nas ruas da cidade que ele procura as imagens
fascinantes e aterrorizantes, inspiração necessária para exercer suaestranha esgrima”. Nas
grandes cidades, a mudança apresentava-se como regra permanente, porém, a busca incessante
pelo novo está paradoxalmente ligada à idéia de morte em relação ao tempo e ao passado, à
tradição e aos valores. E cabia ao poeta escancarar o negativo dessa aparente vantagem do
progresso. A alegoria em Baudelaire carregava, então, a cólera necessária para penetrar e
transfigurar esse mundo fantasmagórico.
Época do nascimento das primeiras metrópoles, o século XIX sustentou todas as
transformações por que passam as cidades em processo de modernização. Cidades como Paris
e Londres enfrentavam mudanças no espaço e, também, nas socialidades urbanas. Segundo
Sandra Jatahy Pesavento (2002, p.111), essas cidades tinham por desafio justamente encontrar
o ponto de equilíbrio entre as forças do progresso, com toda a demolição causada pela
revolução urbana, e a preservação da memória e da tradição. O resultado dessa ambigüidade
progresso\tradição podia ser reconhecido na sensação de estranhamento e na perda de pontos
de referência dos habitantes.
A mudança da forma e do traçado da cidade implicava um processo também
cambiante de alteração da sua identidade. Sendo a identidade uma representação
social que dá a sensação de pertencimento, aquela mudança ocasionava a dolorosa
perda de referenciais, fazendo com que o habitante da urbe não mais reconhecesse a
sua cidade. (Pesavento, 2002, p.111).
Em sua reflexão a fundo sobre a modernidade, Benjamin não deixa de salientar como
ponto de referência a conturbada vida nas grandes cidades. O espetáculo da vida mundana
aparece nos poemas de Baudelaire, assim como na produção artística de outros literatos
32
contemporâneos ao poeta, com o constante movimento das multidões na nova imagem da
cidade de Paris, que na metade do século XIX sofre as transformações impostas pelas reformas
de Haussmann. A multidão apresenta-se nas ruas como um acontecimento inédito. Os gestos
automáticos e as reações instintivas dos passantes representam um verdadeiro teatro da vida
humana e conferem à paisagem uma ária inquietante. Baudelaire, um privilegiado espectador
de sua cidade, foi capaz de reconhecer e transferir todo o turbilhão de sentimentos
contraditórios, gerados pelas constantes mudanças de ordem urbana e social, para seus poemas.
Diz o poeta na primeira estrofe de “O Cisne
5
: Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história/
Depressa muda mais que um coração infiel; E, na estrofe seguinte, continua: Paris muda! Mas
nada em minha nostalgia/ Mudou! Novos palácios, andaimes, lajedos,/ Velhos subúrbios, tudo
em mim é alegoria,/ E essas lembranças pesam mais do que rochedos.
Ainda em relação à grande cidade e o crescente interesse que ela desperta nos literatos
do século XIX, afirma Sandra:
A grande cidade marcaria a posição de ambivalência tão significativa para o
entendimento da modernidade. Virtude e vício, mas, sobretudo, teatro da vida
humana, a cidade passa a interessar não mais como espaço, mas por ser o terreno
essencial da existência moderna, como lugar onde as “coisas acontecem”. (Ibidem,
p.100).
Assim, a seqüência de imagens contrastivas e a ambigüidade entre multidão e solidão,
ricos e pobres, sonho e despertar, o desejo do progresso e a nostalgia em relação ao passado
que se perde em meio às ruínas da cidade destruída, o fascínio da busca pelo novo e o
desencanto diante da fugacidade do mundo são transformadas em alegorias na poética de
Baudelaire.
É através do olhar do flâneur e mediante o spleen, estado de melancolia da experiência
moderna, que a cidade de Paris será representada poeticamente. Esse foi, sem dúvida, o mérito,
reconhecido por Benjamin, da obra de Baudelaire: a capacidade de expor poeticamente todas
5
A tradução é de Ivan Junqueira e está no livro de Afonso Henriques Neto, Cidade Vertigem, p.165-166.
33
as contradições do mundo moderno. O flâneur, segundo Benjamin, é um estudioso da natureza
humana, ele é o próprio poeta. Com um olhar aparentemente desatento e distraído, mas capaz
de penetrar na alma do outro, ele procura refugio no meio da multidão e dela se alimenta. O
efeito que a multidão exerce sobre o flâneur é semelhante ao de um narcotizante. Sem a
multidão não existe o flâneur, assim como sem modernidade não há multidão. Aliás, é no
centro dessa multidão que o poeta-flâneur encontra os personagens importantes para a sua
visão alegórica da modernidade.
Além do flâneur, o poeta também carrega algumas semelhanças com outras
personagens da rua. A figura decadente do trapeiro, por exemplo, “encarregado de apanhar os
detritos de um dia da capital”, que cataloga e coleciona tudo o que a grande cidade rejeitou, se
assemelha com aquela do poeta que, num trabalho igualmente solitário, busca retirar o que há
de poético no histórico e o que há de eterno no transitório, que encontra “o lixo da sociedade
nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico”. (Benjamin, 1994, p.78).
Com a prostituta, a afinidade do poeta reside no valor de mercadoria de seus produtos:
assim como o corpo, o pensamento também adquire um valor de venda. Diante do mercado
literário, o poeta é obrigado a criar poemas-mercadoria, como tudo o que existe na sociedade
capitalista.
Além do trapeiro e da prostituta, o jogador, o colecionador, o dândi e outros anônimos
das ruas como os velhos e a viúva também marcaram presença na lírica do poeta. Por isso a
importância de se colocar no meio da multidão a observá-la. O sentimento, porém, não é de
animosidade e nem mesmo de cumplicidade ou coletividade, mas a experiência da multidão
implica num sentimento de solidão. Multitude, solitude: termos iguais e conversíveis pelo
poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão, não sabe também ser só no meio de
uma multidão atarefada”.
34
Este mesmo sentimento de solidão em meio à multidão aparece registrado também no
texto O homem da multidão, de Edgar Allan Poe, de quem Baudelaire foi tradutor. Numa das
principais ruas de Londres, sentado à janela de um café, um homem observa o tumulto da
cidade. Ali, ele narra o vai e vem das pessoas, nada foge ao seu olhar carregado de curiosidade.
O detalhe das roupas, gestos ou expressões das pessoas que se cruzam formando “o mar
tumultuoso das cabeças humanas”, tudo é filmado pelo olhar do narrador. Revelando-se
extremamente dependente do movimento urbano, obcecado na leitura daquela sociedade
enigmática, a qual deseja dominar, “conhecendo o desconhecido” que lhe é apresentado, o
narrador parece surpreso diante dos movimentos automatizados das pessoas que passam, e
mais, diante desse estar sozinho em meio ao fluxo constante de passantes. Vejamos suas
impressões:
A maior parte dos que passavam tinha o aspecto de gente satisfeita consigo mesma e
solidamente instalada na vida. Parecia que pensavam apenas em abrir caminho por
entre a multidão. Franziam o cenho e lançavam olhares para todos os lados. Se
recebiam um encontrão dos que passavam mais perto, não se descompunham, mas
endireitavam as roupas e se apressavam em prosseguir. Outros e também este grupo
era numeroso, moviam-se de maneira descomposta, tinham o fogo afogueado,
falavam entre si e gesticulavam, como se justamente no meio da multidão
incalculável que os cercava, se sentissem perfeitamente sós. Quando tinham que
parar, deixavam inesperadamente de murmurar, mas intensificavam sua gesticulação,
e esperavam, com um sorriso ausente e forçado, que tivessem passado aqueles que os
atrapalhavam. Quando recebiam um encontrão, cumprimentavam exageradamente
aqueles de quem tinham recebido o esbarrão e pareciam extremamente confusos.
(Ibidem, p.51)
A modernidade apresenta-se numa ordem onde não há lugar nem espaço para a
interação e a troca. Pelo contrário, é na multidão, espetáculo puramente moderno, que
desaparecem todas as marcas identitárias. É no meio da massa que o indivíduo se refugia
quando quer permanecer incógnito, apenas mais um anônimo dentre vários. É no meio da
multidão que ele será suprimido e estará só.
35
O próprio Baudelaire anuncia o fim da reciprocidade do olhar nas grandes cidades. Em
“A passante”, o poeta cruza seu olhar ao olhar de uma mulher que vem, em sentido contrário,
junto à multidão. Porém o momento de êxtase que resulta desse encontro de olhares para o
poeta logo é dissipado quando, ao voltar, ela já tinha sido engolida pela multidão anônima.
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz... e a noite após! Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
6
A mesma multidão que traz a encantadora imagem a leva consigo. O poeta sabe o quão
difícil será encontrá-la uma outra vez, pois o cotidiano da metrópole é feito de encontros
fortuitos, de figuras fugidias e indecifráveis interiormente, enfim, de espectros que roubam os
atributos humanos. A rua e os passantes que nela se deslocam constantemente adquirem as
mesmas características da então dessacralizada vida moderna. O signo da modernidade pode
ser encontrado na efemeridade, na transitoriedade e na fugacidade dos transeuntes.
No Brasil, a partir do século XIX, mais precisamente na sua segunda metade, a cidade
também passa a ser objeto de múltiplos discursos e olhares. Nessa época, a cidade do Rio de
Janeiro passava por um processo de transformação semelhante àquele sofrido pela Paris de
Benjamin e Baudelaire. Sede da Corte Imperial, o Rio de Janeiro passava a assumir o status de
6
Tradução de Ivan Junqueira, in: NETO, Afonso Henriques, 2005, p.167.
36
centro de decisões, tornando-se núcleo irradiador de novos costumes. Observa-se nesse período
uma crescente urbanização da cidade, o interior das casas também é valorizado e sofre
inúmeras modificações, desvencilhando-se dos moldes coloniais e ampliando sua área social
para dar lugar às mais belas festas e reuniões que, juntamente com o teatro, passam a ser as
grandes atrações da época.
Tempo de novos afazeres e novas sensações, o século XIX foi o grande período da
visão, motivado não só pela modernização da cidade, mas também, pelo desenvolvimento de
teorias ópticas e pela invenção da fotografia que teve importante papel na construção da
imagem de um Brasil muito mais ligado com o futuro imperial do que com o seu passado de
colônia.
Nesse momento, o olhar passa a cumprir um papel fundamental tanto na construção de
uma cidade moderna quanto na formação do imaginário social do país. O escritor, como
espectador privilegiado do social, passa a se interessar pelo espaço urbano não apenas em sua
dimensão física, mas, sobretudo, nas novas sociabilidades que despontam na sociedade agora
imersa num mundo cujo modo de produção dominante é o capitalista.
José de Alencar é um exemplo de escritor que teve acesso ao início desse fenômeno
urbano e nele depositou demoradamente seu olhar. A metropolização da vida foi testemunhada
pelo escritor que, para exercer o seu papel de cronista e escritor, tornou-se um atento
observador do cotidiano da sociedade fluminense, dos seus novos hábitos e, principalmente,
dos antigos valores que se perdiam.
Numa de suas crônicas, Alencar lamenta o abandono dos bens nacionais e da flânerie,
um costume bastante cultivado no passado que, aos poucos, vinha sendo substituído por outros
divertimentos como o Cassino, o Teatro Lírico ou mesmo os saraus, grandes novidades para a
burguesia carioca.
37
Era, sem dúvida, o início do mundo das representações e aparências que vemos hoje. A
prática voyeurista/exibicionista foi, então, uma necessidade entre os habitantes da cidade. Era
preciso exibir-se enquanto cidade moderna que busca o progresso e enquanto indivíduo de
hábitos e atitudes modernos.
Quanto ao escritor, restava-lhe deitar o seu olhar sobre esse fato inédito e torná-lo
transparente ao seu público leitor e, para isso, era preciso, antes de tudo, atirar-se na busca pela
“qualidade do seu olhar.
1.2- O escritor e a criação literária: uma busca pela qualidade do olhar
O artista é aquele que fixa e torna acessível aos mais humanos dos
homens o espetáculo de que fazem parte sem vê-lo. (MERLEAU-
PONTY
7
)
Certa vez, numa despretensiosa visita a um estabelecimento ótico, o acaso põe nas mãos
de um jovem escritor uma velha luneta com poderes mágicos que lhe permitia invadir o
pensamento de todos quantos desejasse. Se, para o proprietário do estabelecimento, que
desconhecia os poderes do objeto, ele era um traste velho sem nenhuma valia, para o escritor, o
objeto foi seu grande achado.
Comprada pelo preço de uma bagatela, a luneta torna-se um aliado do escritor, que
promete tirar proveito, em seus escritos, do imenso alcance daquele “vidro mágico”.
A partir daquele momento, tendo adquirido uma visão privilegiada do mundo, o próprio
escritor afirma que “não mais precisaria estar preso a uma banca, a escrever, a riscar, a contar
as tábuas do teto em busca de uma idéia, a esgrimir contra a musa rebelde” (ALENCAR, José
de. Ao correr da pena. Virtual Books: 2003, p.139)
8
.
Certamente, o cronista José de Alencar pensava na responsabilidade e no esforço do
artista ou do escritor em perceber o mundo pela raiz quando escreveu a crônica de 06 de maio
7
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p.134.
8
Todas as citações referentes ao livro Ao correr da pena estão disponível em:
http://virtualbooks.terra.com.br\freebook\port\Ao_correr_da_pena.Htm
38
de 1855. Para ele, a posse de uma luneta mágica, que permite ver no mundo o que a olhos nus
não é possível, representaria a certeza da inspiração e o cumprimento de um dever, cujo
objetivo é “desenhar” o mundo em sua realidade, o que não significa imitá-lo “tal-qual”, mas
captá-lo em outro registro e expô-lo aos olhos da sociedade.
Esta crônica não é a única em que José de Alencar trata do trabalho do escritor e da sua
relação com a criação literária. Logo na primeira parte de Ao correr da pena, com a
justificativa de explicar o nome do artigo, Alencar nos fala de uma fada, a poesia ou a
imaginação, que, caída de amores por um moço de talento, toma as formas de uma pena de
cisne e entrega-se de corpo e alma ao seu amante. Esta é a visão que o cronista nos oferece
desse encontro amoroso entre o escritor e sua musa inspiradora:
Não serei eu quem desvendarei os mistérios desses amores fantásticos, e vos contarei
as horas deliciosas que corriam no silencio do gabinete, mudas e sem palavras. Só vos
direi e isto mesmo, é confidência, que, depois de muito sonho e de muita inspiração, a
pena se lançava sobre o papel, deslizava docemente, brincava como uma fada que era,
bordando as flores mais delicadas, destilando perfumes mais esquisitos que todos os
perfumes do Oriente. As folhas se animavam ao seu contato, a poesia corria em ondas
de ouro, donde saltavam chispas brilhantes de graça e espírito.
Por fim, a desoras, quando já não havia mais papel, quando a luz a morrer apenas
empalidecia as sombras da noite, a pena trêmula e vacilante caía sobre a mesa sem
forças e sem vida, e saltava uns acentos doces, notas estremecidas como as cordas da
harpa ferida pelo vento. Era o último beijo da fada que se despedia, o último canto do
cisne moribundo. (ALENCAR, José de. Ao correr da pena. Virtual Books, 2003, p.4)
Um pouco mais adiante, nas mãos de outro escritor, a mesma pena já não apresenta a
forma elegante, a poesia e a faceirice de outrora. Ela agora desliza rapidamente sobre o papel,
travando com seu novo senhor uma verdadeira luta e fazendo-o, por vezes, riscar o papel e
rasgar originais.
Mais uma vez é possível observar a preocupação do cronista em relação ao trabalho da
escrita. Uma luneta com poderes mágicos ou até mesmo uma fada em forma de pena. A
primeira lhe permitiria ver além da simples aparência, já a segunda lhe concederia a capacidade
39
de expressar o indizível. A união dessas duas possibilidades é, sem dúvida, o grande desafio do
escritor enquanto intelectual do seu tempo e Alencar sabia disso.
Merleau-Ponty parece apresentar-nos uma idéia semelhante àquela de Alencar quando
declara que o compromisso da arte seja ela a pintura, a literatura ou qualquer outra, é fazer do
espetáculo do mundo algo acessível ao homem habituado às ilusões da experiência sensorial,
ou seja, é através da arte que conseguimos redescobrir e refletir sobre o mundo em que
vivemos.
Pensando nesse trabalho do escritor, na sua relação com a obra de arte literária e, ainda,
a relação desta última com a sociedade é que surgem algumas indagações sobre as quais
gostaríamos de refletir. Como seria, então, a atividade do artista ou escritor? O que ele vê? Ou
a pergunta exata seria como ele vê? Qual seria a diferença entre o olhar do artista e o olhar dos
“mais humanos” dos homens como diria Merleau-Ponty? E a postura do escritor enquanto
intelectual? Não seria ele o encarregado por “tornar acessível o espetáculo do mundo”?
Na busca de caminhos que nos levem a estas reflexões seria interessante fazermos, de
início, um percurso através dos textos de Baudelaire em “O pintor da vida moderna”
(BAUDElAIRE, 1988, p. 159-212), sem, no entanto, renunciar às idéias presentes nos escritos
do filósofo Merleau-Ponty, mais precisamente no artigo “A dúvida de Cézanne(MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 123-142), onde ele faz um estudo da percepção do pintor na obra de arte.
É na combinação das idéias de Baudelaire e de Merleau-Ponty que tentaremos
encontrar algumas das respostas para nossas indagações em torno do olhar e da atividade do
artista, para então, passarmos a uma reflexão sobre a responsabilidade e o papel do intelectual
na sociedade.
Baudelaire sempre esteve preocupado em definir o conceito de modernidade. Em “O
pintor da vida moderna”, ele destaca uma seqüência de temas que, combinados, desenham as
linhas fortes do cotidiano da modernidade. Dentre esses temas, surge a figura do artista,
40
segundo ele, o grande herói da modernidade, por ser capaz de perceber a “beleza particular”
dos novos tempos, além de “extrair da moda o que ela tem de poético no histórico”.
O cuidado dedicado por Baudelaire ao trabalho do pintor Constantin Guys merece
atenção. G. é um enamorado do mundo, por isso ele conjuga duas características que, segundo
Baudelaire, são essenciais no artista moderno: a curiosidade e uma paixão insaciável de ver e
de sentir, ou melhor, de desposar a multidão. Ele possui um interesse sempre renovado pelo
universal e pelo mundano, está atento a tudo que acontece fora do seu quarto, para onde só
voltará à noite, momento de estar só para expressar suas impressões. A flâneurie é, sem dúvida,
o ponto de partida desse artista. Fixar residência no seio da multidão significa para ele
alimentar-se, e estar atento ao espetáculo que a vida mundana oferece.
O que resulta dessa jornada é anunciado por Baudelaire na descrição que faz do
trabalho solitário de Constantin Guys. Vejamos o que ele diz:
“Foi, com certeza, uma jornada bem empregada”, pensará certo leitor que todos
conhecemos. “Todos têm talento suficiente para preenchê-la da mesma maneira”.
Não! Poucos homens são dotados da faculdade de ver; há ainda menos homens que
possuem a capacidade de exprimir. Agora, à hora em que os outros estão dormindo,
ele está curvado sobre a mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que
há pouco dirigia às coisas, lutando com seu lápis, sua pena, seu pincel, lançando água
do copo até o teto, limpando a pena na camisa, apressado, violento, ativo, como se
temesse que as imagens lhe escapassem, belicoso, mas sozinho e debatendo-se
consigo mesmo. E as coisas renascem no papel, naturais e, mais do que naturais,
belas; mais do que belas, singulares e dotadas de uma vida entusiasta como a alma do
autor. (BAUDELAIRE, 1988, p.172).
A cena se parece um pouco com aquela da crônica de Alencar, principalmente na idéia
de semelhança da criação literária com a luta de esgrima. Com a metáfora do esgrimista não é
difícil perceber que, para Baudelaire, o trabalho poético é bem próximo ao esforço físico.
Traços artísticos e traços marciais aparecem confundidos na descrição da atividade do artista.
Mas Baudelaire também diz que poucos homens são dotados da faculdade de ver ou
mesmo da capacidade de exprimir o que vêem. E, nesse mesmo contexto, ele cita o conto de
41
Poe, “O Homem das Multidões”. Sentado à mesa de um café e ainda se recuperando de uma
grave enfermidade, um homem olha com interesse a multidão de passantes. O que chama a
atenção na cena do conto é a capacidade do olhar ainda convalescente desse observador.
Segundo Baudelaire, a convalescença é como uma volta à infância, pois tanto o
convalescente quanto a criança possuem, em alto grau, a faculdade de se interessar pelas
coisas, por mais triviais que elas possam se apresentar. O olhar do artista precisa, então, ter
essa sensibilidade. Trata-se de um olhar privilegiado, quase doente. A expressão artística
resulta, assim, da conjugação da curiosidade e da intensidade do olhar próprio da criança com a
“organização voluntária e racional” presente no adulto.
A busca incessante pelo novo é, para Baudelaire, a verdadeira arte. Contudo, o novo
depende da intensidade do olhar sobre o trivial, uma vez que toda novidade, quando declarada,
deixa para trás a idéia do novo.
Flanar pelas ruas em busca do novo, lançar um olhar pleno de sensibilidade e
curiosidade infantis sobre “o grande deserto dos homens” e insistir nessa observação até que
não haja mais lugar algum de onde resplandeça luz, poesia, enfim, vida; só então, esse
“solitário dotado de uma imaginação ativa” poderá seguir para o seu recanto, não para “beber
da taça do esquecimento” mas para lutar contra ela; eis o dia-a-dia de um artista segundo a
concepção baudelairiana.
A imaginação e a memória serão os grandes aliados do artista quando, não mais
misturado à multidão, ele se entrega à sua arte. As imagens de tudo o que viu, observou e
contemplou recebem, então, a mediação da memória e da imaginação, principais responsáveis
pela apreensão daquilo que realmente importa. Assim, em vez de ficar preso ao aleatório ou a
uma cópia do real, ficará imune ao esquecimento.
A respeito disso, Baudelaire apresenta uma interessante opinião, que merece atenção
especial por apresentar de forma clara e resumida as suas convicções da relação que deve
42
existir entre a arte e a realidade. Segundo Baudelaire (1988), um artista que representa não o
que sonha, mas o que vê, acaba matando em si o homem que pensa e sente.
Dessa forma, seria correto afirmar que, para Baudelaire, a presença do real na obra do
artista ou do escritor precisa ser assinalada pela intromissão da memória e da imaginação, que,
aliadas a um privilegiado alcance visual, serão os grandes responsáveis pela preservação da
vida da obra literária ou artística.
Imitar a realidade também não era objetivo de Cézanne, conforme observou Merleau-
Ponty em “A dúvida de Cézanne”. O ensaio, escrito entre 1942 e 1945 pelo filósofo, é
contemporâneo de a Fenomenologia da percepção, uma de suas principais obras, e retoma
alguns conceitos já trabalhados no livro. Em “A dúvida de Cézanne”, Merleau-Ponty trata da
insatisfação do artista, que não consegue dar conta, em sua obra, da multiplicidade que percebe
no mundo.
A dificuldade de ter uma expressão completa de sua percepção de mundo e,
conseqüentemente, o sentimento de impotência diante da criação artística, em Cézanne,
apresenta-nos uma nova visão da discussão sobre a relação entre o artista e a obra de arte ou,
ainda, entre o escritor e a obra literária, já agora sob a ótica de Merleau-Ponty.
Em oposição a Constantin Guys, Cézanne não é um apaixonado pela multidão, pelo
contrário, de caráter tímido, desconfiado e suscetível, o contato com os homens o aborrece. Em
seu ateliê, entregue a si mesmo, ele busca, em sua liberdade de solitário, a realização da
expressão do que percebe. Mas o que ele percebe? Cézanne percebe não apenas a coisa em si,
mas também o movimento, a cor, a luz e a fisionomia do motivo, enfim, todos os aspectos do
visível, daí a constante insatisfação que o motivou a abandonar seus quadros em diferentes
etapas de realização. O objetivo de Cézanne é buscar a realidade sem abandonar a sensação,
mas sendo guiado unicamente pela impressão imediata que a natureza inspira. Cézanne rejeita
qualquer alternativa pronta. A união da arte com a natureza foi o desejo que ele acreditou não
43
alcançar. Cézanne, como afirmou Merleau-Ponty, queria pintar o mundo, convertê-lo em
espetáculo. Seus quadros mostram a pretensão de quem quer pintar a natureza em sua origem.
Merleau-Ponty conseguiu refletir sobre esse desejo que Cézanne acreditou inalcançável na
seguinte afirmação:
O artista segundo Balzac ou segundo Cézanne não se contenta em ser um animal
cultivado, ele assume a cultura desde o começo e funda-a novamente, fala como o
primeiro homem falou e pinta como se jamais houvessem pintado. Com isso a
expressão não pode ser a tradução de um pensamento já claro, pois os pensamentos
claros são os que já foram ditos dentro de nós ou pelos outros. A “concepção” não
pode preceder a “execução” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.134-135).
O que Cézanne deseja pintar não está na percepção cotidiana do mundo que sugere uma
cultura já conquistada, já apreendida e sabida por todos; antes, ele precisa dar um novo sentido
ao que já via e conhecia de um outro modo, imprimindo-lhe significação insuspeitada.
Merleau-Ponty desvendou essa inquietação do artista ao buscar a expressão do mundo
em sua origem. E é dessa percepção originária que gostaríamos de falar, então. Segundo o
filósofo, a percepção originária seria olhar as coisas como que pela primeira vez. Por isso,
antes da pintura, o pintor terá que perceber a pintura pela raiz, o mesmo deve acontecer com o
escritor e o filósofo. A intenção da arte e da literatura deve ser, então, a de reinventar o mundo
sem deixar espaço para que o já percebido se apresente. O fato é que o próprio filósofo afirma
que uma percepção originária já é criação, expressão e, portanto, essa expressão deixa de ser
originária quando impressa na tela ou no papel. Daí a grande inquietação e a busca por uma
expressão também originária ou primordial. Por outro lado, no prefácio de Fenomenologia da
Percepção, a percepção originária é compreendida como “acesso à verdade” e a verdade, como
sabemos, nunca está pronta, ela nunca nos dá o acabado, o que explica a sensação de
incompletude, na obra de muitos artistas modernos.
Assim como Baudelaire, Merleau-Ponty faz uma comparação da percepção e expressão
originárias com a experiência infantil. Segundo ele, a primeira palavra de uma criança é, pelo
44
menos para ela, algo nunca dito antes. Assim é também o pressentimento do escritor, poeta ou
romancista, em relação à sua obra.
Constantin Guys e Cézanne são dois artistas que carregam algo em comum. As análises
de Baudelaire e de Merleau-Ponty possibilitam-nos entrever na diferença entre os dois pintores
um único desejo: a busca pelo não percebido, e pelo nunca dito antes, ainda que esteja
arraigado na essência do cotidiano.
Voltando ao nosso ponto de partida, quando o escritor, na intenção de obter e de
fornecer uma visão privilegiada do mundo, adquire uma luneta com poderes mágicos, não será
difícil, então, identificar essa mesma inquietação na busca pelo novo ou pelo que se apresenta
além da aparência e a mesma pretensão a uma expressão primordial, mesmo que para isso seja
necessário lançar-se a uma “luta de esgrima”. Enfim, podemos dizer que é nessa busca
incessante por uma qualidade do olhar que está o mérito da arte e do intelectual.
Esse desejo por uma leitura criativa do mundo, esse exame minucioso de uma época,
bem como a indagação em torno da sua própria situação no prazer literário é, sem dúvida,
característica de um artista que zela por seu lugar enquanto intelectual de sua época. Sua
relevância social está na sua capacidade de interpretação e crítica da vida de seu tempo, mas
também na sua vontade incontrolável de imaginação que também objetiva uma solução futura.
Só assim esse intelectual estará apto a apresentar, ao mundo, o Mundo; e de restabelecer a
capacidade de reflexão humana, ou melhor, só assim ele terá condições de “tornar acessível aos
‘mais humanos’ dos homens o espetáculo de que fazem parte sem vê-lo”. (MERLEAU-
PONTY, 2004, p.134).
1.3- O Brasil oitocentista e a sociedade carioca do século XIX: espelho e vitrine
“As idéias fora do lugar”, ensaio escrito por Roberto Schwarz em Ao vencedor as
batatas, é certamente um dos textos mais conhecidos sobre a complicada situação de
45
ambigüidade que se instalou no Brasil logo após a sua independência e que Schwarz
convencionou chamar de “comédia ideológica nacional”, além das duras conseqüências desse
fator para a literatura da época, desafiando seus literatos a produzirem uma literatura coerente
com a realidade local.
O fato é que, mesmo independente desde 1822, o Brasil, de certa forma, ainda
continuava preso pelo cordão umbilical à sua antiga Metrópole, principalmente quando o
assunto era a sua estrutura econômico-social. Até porque, como observou o próprio Roberto
Schwarz, a independência brasileira não resultou de uma revolução, o que garantia a aliança
entre o Brasil e sua ex-Metrópole. Da mesma forma, o Brasil continuava sendo um país
agrário, dividido em latifúndios e a sua recente independência não diminuía a necessidade do
tráfico negreiro e da exploração do trabalho escravo. Muito pelo contrário, a escravidão
consistiu, num primeiro momento, numa condição para o progresso, uma vez que fora a
escravidão, ao fornecer a força braçal exigida na produção latifundiária, que dera condições ao
Brasil de garantir um lugar na divisão internacional do trabalho ao lado das nações ditas
civilizadas. Melhor dizendo, “se em última análise o capitalismo é incompatível com a
escravidão, e acaba por liquidá-la, por momentos ele também precisou, para desenvolver-se,
desenvolvê-la e até implantá-la”.(SCHWARZ, 1999, p.94).
Por outro lado, sabemos que o país tinha urgência em alinhar-se às nações modernas e,
para isso, era necessário professar as idéias liberais defendidas por essas nações. Acontece, que
dentre as idéias sustentadas pelo liberalismo entoavam-se, principalmente, o incentivo do
trabalho livre, bem como a autonomia do indivíduo e a universalidade da lei, ideologias
substancialmente contrárias às práticas escravocratas.
46
Seria, então, possível falar de um liberalismo escravocrata
9
sem suscitar a
incompatibilidade entre ser liberal e, ao mesmo tempo, escravocrata? Daí a incongruência ou a
“comédia ideológica” apontada no ensaio de Roberto Schwarz.
Se a realização da modernidade podia ser minada pela persistência da situação colonial
de dependência externa na economia e pela manutenção das relações autoritárias, servis e
senhoriais, mas a realidade brasileira impedia a ruptura e, de certa forma, até dependia da
manutenção dessas práticas, o jeito era buscar a convivência pacífica, uma espécie de
acoplamento das idéias liberais com as práticas escravocratas. Parafraseando Roberto Schwarz
(2000, p.26), no Brasil oitocentista, as idéias liberais eram, ao mesmo tempo, indescartáveis e
impraticáveis. Assim, uma coisa era o discurso, outra, a prática.
Lucia Helena também reconhece essa característica dúplice da fisionomia brasileira
quando diz que
Falar de Brasil significava encarar um rosto de múltiplas faces, com pelo menos duas:
uma cultura patriarcal e conservadora, no nível das relações internas, e uma outra,
com pretensões de liberalismo e de atualização no que dizia respeito às relações
internacionais. (HELENA, 2006, p. 105).
O que mais impressiona é o fato de ainda hoje ser possível confrontarmos com esse
caráter postiço da identidade do país quando ideologias, seja na área da educação ou em
qualquer outra, oriundas ou “importadas” de outros países, na maioria das vezes países ricos e
desenvolvidos, parecem um tanto descabíveis para a realidade brasileira e geram resultados
ineficazes, mas que por satisfazerem as exigências de uma elite ou um grupo de privilegiados
acabam não sendo descartadas, passando a configurar um discurso que se distancia cada vez
mais da prática.
9
O termo é de Alfredo Bosi no ensaio “A escravidão entre os dois liberalismos” de Dialética da colonização. No
texto, Bosi, numa posição contrária a Schwarz, defende a tese de que as idéias não estavam fora do lugar.
Segundo ele, o que é funcional não pode parecer postiço e pouco importa o lugar de onde vêm as idéias, e sim o
processo de adaptação ou sistema de “filtragem” que separa o aproveitável do estranho de acordo com os
interesses em questão. Schwarz vai rebater a tese de Bosi no ensaio “Discutindo com Alfredo Bosi” ao afirmar
que a filtragem das idéias não descarta ou inviabiliza o argumento das “idéias fora do lugar”, pois ainda assim
sobressai um “aspecto desengonçado” no acoplamento das idéias liberais com a realidade brasileira.
47
O perfil brasileiro do século XIX, no entanto, não estava restrito às figuras do
latifundiário e do escravo. Além da conhecida relação entre os dois, Schwarz também aponta
para uma outra classe de população produzida pela colonização, que compunha a identidade
brasileira no século XIX e chamava a atenção por manter uma relação bastante peculiar com a
classe dos latifundiários. Diz ele:
Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio
da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na
verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos
terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida
social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto de um grande.
O agregado é a sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se
reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que
têm. (SCHWARZ, 2000, p.15-16).
Livre, mas na verdade, dependente. Morando de favor na casa de um grande ou mesmo
conseguindo privilégios no exercício da profissão por meio dele. O mais interessante é que o
liberalismo seria incorporado ao favor e, embora este fosse na essência tão incompatível com
aquele quanto o escravismo, a sua prática entre nós, segundo Roberto Schwarz (2000, p.18),
era muitas vezes justificada pelas próprias idéias liberais. Tudo porque, o que originalmente era
ideologia na Europa converte-se em “ideologia de segundo grau” no Brasil, passando a
defender interesses particularistas e deixando de lado seu aspecto universalista. É em função
disso que, “com mérito, atribui-se independência à dependência, utilidade ao capricho,
universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio etc. (Ibidem, p.19).
Ainda sobre a singular relação mantida entre proprietário e “homem livre”, que na
literatura do século XIX apresenta-se principalmente na figura do agregado, é essencial
observar que, de alguma forma, o “homem livre” em seu dever de retribuir a “generosidade” do
seu protetor acaba por suplantar sua própria identidade para viver “anexado” à identidade do
seu “senhor”. Aqui, mais uma vez, podemos recorrer às idéias de Lucia Helena que
discursando acerca da crise que se abateu sobre o Brasil já desde a construção de sua
48
identidade afirma que Alencar teria sublinhado em seus romances esse caráter mutante do
perfil brasileiro e lembra de um trecho de O tronco de ipê, onde o escritor define o papel do
compadre e sua relação com o dono da terra. Importante observar o quanto a situação combina
com aquela vivida pelo agregado. Isso se dá porque tanto o compadre quanto o agregado eram
representantes expressivos daquela classe de homens livres e dependentes, ou da “arraia
miúda” da sociedade, como bem definiu Lucia Helena (2006). Vejamos o que diz O tronco do
ipê:
Um compadre não é parente, não é hóspede, nem criado, mas participa dessas três
posições, é um ente maleável que se presta a todas as feições e toma o aspecto que
apraz ao dono da casa; é um apêndice da família na qual ele se incumbe de suprir
quaisquer lacunas, e de apregoar as grandezas.(...) pronto sempre para conversar,
andar, jogar e comer, conforme a veneta do protetor a quem se anexou. (ALENCAR,
1965, p.600).
Mais importante ainda é identificar na combinação de reconhecimento” por parte do
homem que era livre e, ao mesmo tempo, dependente das vontades e do favor de outrem - mas
que também não detinha um comportamento ingênuo ou desinteressado - e generosidade por
parte do senhor que “cultivava” as idéias liberais, mas que era escravista na prática, a
consolidação de um sistema que argumenta em favor da autonomia do indivíduo, mas pratica
em acordo com a supremacia e as vontades dos proprietários.
E é exatamente aí que está o maior desafio dos intelectuais das letras, que vivendo no
século XIX e presenciando esse contraste entre o ser dependente e o parecer independente, o
ser escravista e o parecer liberal, o ser atrasado e o parecer moderno, o ser brasileiro e o
parecer europeu, tão arraigado àquela sociedade, precisa não só compreender essa dinâmica,
bem como a impropriedade das idéias liberais européias aqui no Brasil, como também
imprimi-las de modo eficaz em sua produção literária.
Para Schwarz, quem melhor soube aproveitar tais peculiaridades da nova nação foi
Machado de Assis. No entanto, não podemos deixar de lembrar que se o grande mérito de
Machado viria alguns anos depois da sua estréia como escritor, com o romance Memórias
49
Póstumas de Brás Cubas (1880), que sem dúvida tornou ainda mais depurada e até mais lúcida
a dimensão realista da sociedade brasileira, o mérito de Alencar estaria, principalmente, no fato
do escritor tomar a seu cargo o desafio de buscar soluções para a identidade ainda em formação
do país numa época em que poucos conseguiam captar tão bem essa necessidade brasileira de
consolidar a sua própria identidade. Dessa forma, seria um descabimento procurar dentre os
dois escritores aquele que mais corroborou para a literatura do país. Dessa mesma perspectiva,
Lucia Helena vai ressaltar que
Haveria sempre em Alencar um tom de missão, carregado por vezes de ingenuidade e
de arrogância, simultaneamente. Em Machado, o recorte sem sentimentalismo, ferino,
cético e contundente, destilado de escrita fina e lâmina afiada. Enfim, são tantas as
variáveis que os distinguem que parece não levar muito longe a comparação (em geral
com o sinal de menos voltado para Alencar) entre os dois que, sem dúvida, vejo como
os nossos maiores narradores do século XIX. É verdade, como diz Schwarz, que
Machado tem uma escrita que define padrão crítico mais consciente, mas Alencar tem
o inegável trabalho de desbravador.
Na revolução que representam, se eles se distinguem no propósito e na execução, se
aproximam na capacidade com a qual captam, ambos, a contradição e problemas na
esfera social brasileira de seu tempo. Alencar está mais próximo de um movimento de
entusiasmo, de construção, de “invenção da nação”, que se alimenta, até de modo
explicito, da vontade de “fazer um país”. Machado é reticente, mais cético acerca da
validade de se atribuir uma tal missão, o que sempre o afastou de revisitar as
“origens” do nacional (HELENA, 2006, p.94).
Além disso, apesar das críticas que recebeu ao longo da sua produção intelectual,
Alencar soube trabalhar muito bem, principalmente se comparado aos demais escritores que
produziram seus romances no mesmo período, esse aspecto múltiplo do país que vimos até
aqui. Além do mais, alguns de seus personagens reforçam, através da maneira perspicaz com
que atuam na sociedade, no caso dos romances urbanos, a conturbada relação entre o ser e o
parecer que foi, sem dúvida, uma grande problemática do Brasil oitocentista.
A corte carioca foi, para Alencar, o cenário ideal para falar da nascente sociedade
burguesa no Brasil e do frenesi capitalista que insistia em se espalhar rapidamente na ainda
pretensa vida urbana do Rio de Janeiro e que foi o grande responsável pela ardente necessidade
50
do país de tomar a aparência pela essência, quando parecia impossível transformar a realidade,
como veremos adiante.
Preocupado não só com as “origens do nacional”, mas também em representar essa
fisionomia da sociedade fluminense é que Alencar compõe seus romances urbanos. Sendo um
dos mais caros representantes do romantismo no Brasil, o escritor cearense mostrou muito
interesse na “fisionomia indecisa, vaga e múltipla [do país], tão natural à idade da
adolescência
10
e que, por isso, persistia na “importação contínua de idéias e costumes
estranhos
11
e era naturalmente inclinada a receber influxo de mais adiantada civilização”
12
.
O Rio de Janeiro era o lugar por excelência dessa importação de costumes e o ambiente
preferencial para o recebimento desse influxo estrangeiro. Até porque, como sabemos, a
independência brasileira trouxe consigo esse desejo de modernidade e, da mesma forma que a
Europa exibia o seu progresso através da urbanização de grandes cidades como Paris e
Londres, que rapidamente se transformaram em modelos de civilização moderna e,
conseqüentemente, no “outro desejado” (PESAVENTO, 2002), o Rio de Janeiro, capital
federal, devia funcionar para o Brasil como uma espécie de vitrine e, embora também saibamos
que a revolução urbana carioca ocorreu de forma mais intensa somente no início do século XX
com a reforma de Pereira Passos, no final do século XIX já eram consideráveis as
preocupações com a forma de apresentação estética da cidade carioca, que era o cartão de
visita, a porta de entrada do país.
É claro que, um novo tempo traria consigo novos valores que exigiam, evidentemente,
uma nova urbanidade, e impunha aos atores dessa nova cidade, novas atitudes e novos
comportamentos. Em função disso, a cidade carioca passa a ser o objeto de inúmeros olhares.
Escritores, fotógrafos, médicos e higienistas, concentram seus olhares no espaço e na vida
urbana. A intenção era construir uma nova imagem da cidade carioca, uma vez que a realidade
10
ALENCAR, José de. “Benção Paterna”. Sonhos d’ouro. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1964, p.12.
11
Idem, ibidem.
12
Idem, ibidem.
51
não coadunava com as expectativas daqueles que desejavam colocá-la em cena. A estratégia de
construção da imagem da cidade não poderia ser outra senão o da revelação e superexposição
dos aspectos favoráveis da vida urbana carioca e, conseqüentemente, o ocultamento dos
aspectos desfavoráveis, que não eram poucos, mas precisavam ser rapidamente eliminados ou
retirados de cena. Era, então, necessário não apenas a reformulação do espaço físico, mas,
sobretudo, a construção de um novo olhar para o espectador, que precisava captar novas
imagens dessa cidade.
Segundo Pechmam (1992), o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX é uma
cidade em crescimento, tanto é que de 137 mil habitantes em 1838, a população passa a 522
mil em 1890. As conseqüências desse aumento populacional, numa estrutura urbana ainda
colonial, são bastante desconcertantes em se tratando de uma sociedade ávida por uma
modernização à imagem e semelhança das grandes cidades européias. Acontece que, ainda de
acordo com as reflexões de Pechman, a estrutura urbana da cidade era inadequada ao
dinamismo das novas atividades econômicas e das novas necessidades habitacionais: com ruas
estreitas, barrentas e entulhadas de carroças, que dificultavam e muito a circulação de
mercadorias. Além disso, o aumento substancial da população levou a uma deteriorização,
tanto das condições sanitárias da cidade, quanto das condições de moradia. Enfim, o espaço
urbano consistia numa fonte de problemas que ameaçavam o desenvolvimento do próprio país.
Daí a necessidade de imprimir à cidade aspectos de uma sociedade moderna, organizada, e,
sobretudo, desenvolvida.
Posicionada à frente do espelho, a nova nação brasileira, ancorando toda a sua
esperança e suas expectativas, principalmente, na urbanização da cidade do Rio de Janeiro,
buscava o reflexo de sua própria identidade. E, como o que via refletido realmente não
agradava, o país buscava na experiência de outros países alternativas para, enfim, alcançar o
desejo de espelhar a imagem que a classe dominante queria ver de si mesma.
52
Em seu livro, Sandra Jatahy Pesavento (2002) discute com propriedade esse desejo
brasileiro de realização da modernidade através da construção do imaginário da cidade do Rio
de Janeiro. Segundo a autora, o “caso parisiense” foi a prova de que a cidade é o espaço e o
tempo oportunos para essa realização da modernidade. Além disso, a cidade de Paris
configurou uma referência identitária muito forte à França e foi, por isso, um exemplo seguido
por muitos. Então, não podia parecer estranho o fato do Brasil, adotando o modelo francês, que
garantiu sua permanência no escalão de frente da civilização mundial através da imagem da
sua metrópole Paris, também busque a sua inscrição no mundo moderno, urbano e civilizado
através da exposição de uma cidade-capital bem parecida com aquela metrópole, mesmo que
para isso fosse necessário imprimir à aparência o status de realidade. Assim, metonimicamente,
falar das novidades modernas ou investir na urbanização da cidade do Rio de Janeiro era o
mesmo que afirmar o progresso de todo o país.
Se o traço isolado vale pelo todo, a identificação de alguns elementos da modernidade
estendem-se ao conjunto, configurando uma identidade global que aponta na direção
desejada. Aumentando a escala de transferência, a cidade moderna passa a valer pela
nação e, com isso, atinge-se o padrão identitário idealizado, que atrelaria o Brasil ao
“trem da história”, no caminho da “civilização”.
Tal processo implica um predomínio do simbólico sobre o real, da representação
sobre o seu referente. Qual a Alice de Lewis Carroll, a travessia para o outro lado do
espelho revela o maravilhoso de um imaginário, com efeito de “real”.
Assim, nos caminhos da representação, é possível passar da “cidade maravilhosa” ao
“país das maravilhas”, sem que a hipertransfiguração do real deixe de ser convincente
(PESAVENTO, 2002, p.159).
A construção da identidade da cidade carioca, como aconteceu em todas as outras
cidades, inclusive aquelas que no século XIX já haviam se transformado em modelos de
civilização moderna, resultou da tensão entre a realidade da cidade que tínhamos com o
imaginário que sustentava a cidade que queríamos. A cidade ideal, a cidade do desejo era, sem
dúvida, do tipo parisiense; já a cidade real era marcada pelos já conhecidos problemas
causados pela ausência de saneamento, de calçamento das ruas e, sobretudo, pelo aumento da
53
população. Acontece que esse imaginário, que fora alimentado por uma elite que detinha o
poder de decisão, impôs-se de forma tão intensa que, como era do gosto dessa camada da
sociedade, sobrepôs-se à realidade. Dessa forma, todas as mudanças que ocorriam na cidade
acompanhavam uma representação que já havia sido incorporada antes ao imaginário da
população.
Não foram poucas as mudanças sofridas pela ainda almejada “cidade maravilhosa”
naquele século, além de toda transformação no seu aspecto físico, que só alcançou o auge no
primeiro quartel do século XX, ela contou com mudanças também nos costumes do carioca.
Incentivados pela luxuosidade do vestuário, das festas, enfim, de todo o glamour da vida social
denunciado pelos refletores de Paris, que sabia, e muito bem, camuflar ao mundo suas
imperfeições e misérias, a burguesia carioca passa a copiar os hábitos dos povos de além mar.
A situação central do Rio de Janeiro favorecia esse contato dos cariocas com as novidades
européias, principalmente por abrigar o maior porto do país, que servia tanto para a exportação
da produção cafeeira quanto para a importação das novas tendências do lado de lá.
O fato de ser a sede da corte imperial já conferia à cidade um status de superioridade
sobre as demais. Além disso, a dinâmica desenvolvida por ela para acompanhar o movimento
vertiginoso do que era novo e moderno consistia na dupla ação de olhar e dar-se ao olhar do
outro, ou seja, o desejo de ver no mundo o que significava ser moderno, vinha acompanhado de
um outro desejo: o de ser olhado e devolver ao mundo a imagem de modernidade.
Embora não tenha mostrado grande interesse nas alterações físicas da cidade do Rio de
Janeiro no decorrer do século XIX, José de Alencar provou estar atento ao advento da
modernidade firmado nas novas formas de sociabilidade e nos mais recentes costumes da corte
carioca nesse mesmo período. Não escaparam das lentes do escritor detalhes da maneira de
vestir tão ao gosto europeu, sem contar as novidades no mobiliário que ambientavam o interior
das casas e modernizavam a atmosfera dos salões e dos demais aposentos.
54
Também fica claro nos romances urbanos do escritor esse desejo voyeur e, ao mesmo
tempo, exibicionista da sociedade burguesa. Em todos eles, a força da modernidade estará
presente, seja no encanto causado pelo espetáculo da vida mundana que se alimentava,
principalmente, dos bailes e saraus promovidos pela aristocracia da época, seja pelos conflitos
e desconforto causados pela mercantilização do mundo que, para ser moderno, precisava
acompanhar as leis de um capitalismo sem nenhum apego a antigos valores acalentados por
muitos, investindo cada vez mais na quantificação e na abstração racionalista do mundo e,
conseqüentemente, na dissolução de vínculos sociais e na transformação das relações humanas
em relações entre coisas.
O mais interessante é perceber que tanto no encanto da vida mundana, quanto no
desencanto do mundo capitalista há uma forte predominância do olhar. Dessa forma, não será
difícil encontrar nas páginas de Diva, Senhora e Lucíola, para falar apenas dos chamados
“perfis de mulher”, o cruzamento de olhares que procuram ansiosamente decifrar o olhar do
outro, ou que brincam ao revelar e esconder segredos, que provocam e aguçam a curiosidade
do olhar alheio, ou ainda, o brilho de um olhar diante do fascínio causado pela beleza que não
está apenas no ser, mas na aparência conquistada pela fortuna. E mais, a luta de um olhar que
sonha com valores autênticos, não contaminados pela racionalização do mundo com um outro,
enfeitiçado pela magia do progresso, o qual pode levá-lo a uma cegueira moral e que, por isso,
deve ser educado.
O Romantismo de Alencar consistia, então, na luta por uma literatura nacional, por uma
renovação dos cânones lingüísticos em direção a uma linguagem brasileira, enfim, na defesa da
construção de uma modernidade que não compactuava com a crença iluminista do progresso
como o único portador da felicidade humana, mas acalentava a utopia de uma nação
independente, que valoriza a sua história e a “cor local”, estando ambas presentes na sua
produção cultural, da qual teria orgulho de exibir ao mundo.
2- Os olhares da narrativa
Valha-me Deus! É preciso explicar tudo. (Machado de Assis
1
)
A frase em epígrafe é uma das farpas que o narrador do livro Memórias póstumas de
Brás Cubas lança em direção ao leitor. Num tom irônico e absurdamente abusado, o narrador
de Machado mantém com o leitor uma relação curiosa. Essa não será a única vez que o
narrador fará uma provocação ao leitor. Através de um capítulo totalmente vazio de palavras,
mas cheio de significado, ou confessando a inutilidade de um capítulo logo após a leitura do
mesmo pelo leitor ou até pondo em dúvida a seriedade de um capítulo que acabou de escrever,
o narrador deixa transparecer a face de um Machado escritor que, propositalmente, deixa
lacunas no texto para serem preenchidas pelo leitor.
Numa ponta, o autor. Na outra, o leitor. O resultado do cruzamento desses dois olhares
não poderia ser outro senão o texto.
Parece já ser bastante evidente o caráter comunicativo de um texto. No entanto, grandes
estudos mostraram que essa comunicabilidade do texto não é apenas de cunho extraliterário e
obtida somente no momento da sua recepção, quando o leitor colabora com suas experiências
pessoais, mas ela já aparece na sua estrutura, sendo, portanto, ainda de caráter intraliterário.
Para compreender melhor esse segundo aspecto da comunicabilidade textual, é interessante
promover um rápido diálogo entre as idéias de interpretação propostas pela estética da
1
ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas, Rio de Janeiro: Editora, 1991, p.131.
56
recepção que conta com a importante contribuição do conceito de leitor implícito desenvolvido
por Wolfgang Iser (2002) e a semiótica da interpretação criada por Umberto Eco (1993) com as
particularidades do seu leitor modelo.O leitor implícito evocado por Iser é aquele já previsto
pelo texto, cuja tarefa é preencher os espaços de indeterminação da obra. Iser trabalha com a
noção de “estrutura de apelo do texto” (ZILBERMAN, 1989,p. 64). Segundo ele, o apelo do
texto consiste num conjunto de regras e instruções predeterminadas pelo autor que prevêem as
reações do leitor e o auxiliam no processo de compreensão do texto. Assim, o leitor implícito
de Wolfgang Iser não se refere a um leitor individual ou empírico do texto literário, mas sim a
uma espécie de “leitor virtual” indispensável para dar sentido às lacunas da obra, trata-se,
então, das estratégias de comunicação do texto, que exercerá certo controle ao convidar o seu
leitor a participar da obra, privilegiando, porém, certas respostas.
O conceito de interpretação em Umberto Eco não difere muito daquele proposto por
Iser, principalmente se pensarmos nas pistas deixadas pelo autor para guiar o leitor no
exercício da interpretação, defendidas nos dois estudos. Também para Umberto Eco (1993),
desde a sua origem, um texto deve prever as atitudes de seu leitor modelo e deve ser elaborado
de modo a solicitar do leitor a sua participação no trabalho. Isso não significa a possibilidade
de uma única leitura correta feita por um leitor ideal, pelo contrário, um texto pode oferecer
numerosas estratégias narrativas e, por isso, suscitar inúmeras interpretações. O que Umberto
Eco quer dizer é que, embora o texto conceda ao leitor a iniciativa interpretativa, é
imprescindível haver limites, uma vez que o exagero interpretativo pode violentar um texto.
No capítulo anterior vimos que Alencar parecia acreditar na necessidade de uma
privilegiada capacidade visual da parte do artista e do escritor. A prova disso seria a forma
como o escritor simula o uso de uma luneta mágica e de uma pena encantada para escrever
suas crônicas ou mesmo pelo fato de construir em seus romances narradores oniscientes,
instruídos a impor limites à visão do leitor e cuja detenção total dos fatos e da consciência de
57
cada um dos personagens lhes garante o poder de brincar com olhos do leitor ao revelar e
encobrir fatos a seu “bel-prazer”. No entanto, também é verdade que o escritor sempre deixou
claro suas expectativas em relação às atitudes de seus leitores. Numa atitude não menos
provocadora que aquela de Brás Cubas, o cronista Alencar, em crônica de 04 de março de 1855
de Ao correr da pena, por exemplo, exige do leitor uma postura mais ativa na relação com a
leitura.
Que interessante coisa não deve ser o exame de consciência de uma menina pura e
inocente, quando à noite, entre as alvas cortinas de seu leito, com os olhos fitos numa
imagem, perscruta os refolhos mais profundos de sua alma à cata de um pecadinho
que lhe faz enrubescer as faces cor de...
Arrependi-me! Não digo a cor. Reflitam e advinhem se quiserem. Tenham ao menos
o trabalho em lerem, assim como eu tenho em escrever. (ALENCAR, José de. Ao
correr da pena: Virtual Books, 2003)
A presença do narrador-testemunha em alguns romances do escritor é outro modo de
incitar o leitor a dar sentido às lacunas deixadas no texto, principalmente se atentarmos para o
fato de ser a maior parte desses narradores figuras masculinas perplexas diante do caráter
enigmático de uma mulher implacável na arte da sedução. Dessa vez o narrador empresta suas
lentes ao leitor, mas não deixa de confessar suas fraquezas e tentações diante do “objeto” do
seu olhar. Dessa forma, a narrativa toma emprestada essa característica enigmática da mulher e
sai a procura de um leitor voyeur, para não deixar de usar uma expressão tão significativa num
trabalho que se propõe a interpretar olhares, que busque numa das inúmeras interpretações
possíveis preencher os vazios deixados estrategicamente pelo autor.
2.1- “Olhar material” e “olhar espiritual”: Encarnação
Difícil acreditar que um romance como Encarnação não tenha merecido, ao longo
desses anos, uma atenção mais detalhada de algum crítico ou estudioso da obra de Alencar.
58
Principalmente em se tratando de uma obra póstuma. Encarnação foi escrita no mesmo ano da
morte de Alencar, mas teve sua primeira edição, preparada por Mário de Alencar, só no ano de
1893, dezesseis anos após a morte do escritor. Antes disso, ele já havia sido publicado em
folhetins e, embora o tema insista em nos parecer um tanto cansativo, uma análise sustentada
nas idéias e nos costumes da sociedade em que esta literatura foi produzida e consumida
poderá surpreender-nos.
Sabemos que o público leitor do século XIX era essencialmente feminino. Tendo seu
espaço garantido no lazer das mulheres das classes altas, os romances deste período logo se
tornaram importantes aliados na sustentação e na recuperação de alguns valores que, aos
poucos, se perdiam em meio aos novos hábitos que a modernidade impunha. Era preciso
entreter os leitores, mas também orientá-los, ensiná-los dos perigos de uma vida voltada
exclusivamente para as “idéias mui positivas” estabelecidas pela nova ordem.
Começar a leitura de um romance que traz por título a expressão encarnação, num
século em que a Igreja Católica ainda mantinha grande domínio, deve ter despertado, no
mínimo, o interesse daquelas leitoras mais travessas. É natural imaginar que naquela época
temas como o que previa o título do romance não eram nada comuns e deviam, portanto,
conquistar o olhar curioso daquele público constituído, principalmente, por moças ávidas por
histórias de amores impossíveis.
No entanto, é interessante observar que, apesar do título, em momento nenhum a
narrativa apresenta desacordo com qualquer valor instituído pela Igreja, pelo contrário, por
vezes, a história contada reforça alguns dos seus valores mais importantes. O enredo é mais ou
menos assim:
Trata-se da história de um amor inesquecível. Julieta, moça de espírito fino, mas de
esboço imperfeito, casa-se com Hermano, um dos mais brilhantes cavalheiros dos salões
fluminenses. Os dois vivem na maior harmonia conjugal, até que a jovem falece, deixando o
59
viúvo inconsolável. Este continua a viver como se Julieta ainda estivesse viva, despertando o
interesse e a curiosidade da vizinhança e, principalmente, da jovem e, é claro, rica Amália, que
quando menina observara, por vezes, as castas carícias do casal. Aos poucos, a vida de Amália
sofre uma transformação e ela, que não acreditava no amor, descobre-se apaixonada por
Hermano e, agora, terá que lutar para conseguir o amor de um homem preso à lembrança da
mulher santificada.
Aqui, junto à história do triângulo amoroso entre duas pessoas e uma lembrança, há
espaço para uma outra história, ou a mesma história, desta vez numa outra perspectiva, que
estamos dispostos a contar aqui.
Trata-se da história de um olhar, ou melhor, de dois olhares que não se confundem e,
por vezes, um até parece tentar eliminar a autenticidade do outro, ao creditar à sua visão o
status de verdadeira visão do real. São eles: o “olhar material” e o “olhar espiritual”, o primeiro
fruto dos “olhos do corpo” e o segundo garantido pelos “olhos da alma”.
No romance aqui apresentado, a incredulidade de Amália no amor e suas idéias acerca
do casamento, a falta de interesse de Hermano pelas coisas materiais e sua dificuldade em
libertar-se de seu conflito psicológico são as molas mestras criadas pelo escritor para trabalhar
os conflitos causados por essas duas formas distintas de visão da realidade e da sociedade.
A distinção entre as duas formas de olhar estaria basicamente no que cada um enxerga.
Os “olhos do corpo” possuem uma visão material, ou seja, é um olhar racional, que enxerga a
exterioridade das coisas, se apega à superfície, ao imediatamente visível. Por isso a trajetória
da personagem Amália será marcada por uma visão mais racional do mundo, ela conhece todos
os mecanismos sociais que envolvem o casamento por serem esses mecanismos
exclusivamente materiais.
Já os “olhos da alma” conseguem penetrar no cerne, ele é o intuitivo, vai além do
meramente visível. Daí a capacidade de Hermano em cumprir a promessa de fidelidade feita à
60
sua primeira esposa mesmo após a morte dela, já que a presença material não é mais
importante que a presença espiritual.
Podemos aqui até encontrar algumas semelhanças desses dois olhares com a crença dos
antigos filósofos em relação à distinção entre o mundo sensível e o mundo inteligível, embora
reconheçamos não ser essa intenção de Alencar, nem tampouco a de defender, a partir da idéia
filosófica, uma ou outra visão.
Detentor de uma visão privilegiada dos acontecimentos da trama, o narrador será o
responsável por descrever cada movimento dos olhares dessa história. Embora não constitua
em um dos personagens da trama, nosso onisciente narrador se coloca como testemunha dos
fatos ao afirmar ainda no primeiro período da trama: “Conheci outrora uma família que morava
em São Clemente”. A partir daí, não será difícil narrar uma história pautada na verossimilhança
realista. Desta vez, Alencar não utiliza anexos ou nota introdutória como em seus principais
romances urbanos. O destinatário é um leitor qualquer e o próprio Alencar assina a obra.
Digo isto, porque o escritor teve sua trajetória marcada por pseudônimo, especialmente,
por G.M., autor ficto dos perfis de mulher e estratégia utilizada, inicialmente, para tratar de
tema considerado tabu para a época.
Diferenças a parte, o narrador de Encarnação mantém a seriedade e onisciência no
relato detalhado dos pensamentos íntimos de seus personagens, e possui a capacidade de
penetrar no interior de cada um deles para descobrir seus dramas e caprichos. Onisciência esta
que também lhe dá o direito de brincar com o leitor, logo em seguida, fingindo pretensa
ignorância quanto aos motivos de tais pensamentos com elementos expressivos de dúvida. Tal
recurso discursivo busca criar uma expectativa por parte do leitor, que deverá estar com o olhar
atento ao futuro da narrativa.
Entretanto quem observasse a vida íntima dessa moça conheceria o fundo de
sensibilidade e ternura que havia sob aquela aparência frívola e risonha. Não só tinha
amor extremoso à família e dedicação pelas amigas, mas em certos momentos, como
se a afogasse uma exuberância do coração, cobria a mãe de carinhos.
61
Alguma vez, nas horas de repouso, quando a imaginação vagueia pelo azul, ela fazia
também como todas as moças o seu romance; com a diferença, porém, que o das
outras era esperança no futuro, ardente aspiração d’alma; enquanto o seu não passava
de sonho fugace ou simples devaneio do espírito.
Um traço singular destas cismas é que elas faziam contraste ao modo habitual da
moça, ao seu gênio. Essa natureza alegre e expansiva, esse coração incrédulo e
desdenhoso, quando fantasiava os seus idílios, reservava sempre para si a melancolia,
a abnegação e o obscuro martírio de uma paixão infeliz.
Seria um pressentimento? Creio eu que não era senão uma antítese natural da
imaginação com o espírito. (ALENCAR, 2002, p.15. Grifo nosso).
Em outros momentos, o narrador não se exime da posse absoluta dos acontecimentos,
mas delega ao leitor a co-participação, ou melhor, cumplicidade na detenção dos fatos.
A causa dessa repulsão não a podia precisar; mas suspeitou que se referia a Hermano.
Seria porque fora ele quem envolvera o amigo na existência da moça; ou era ao
contrário porque não tivera força de aproximá-lo dela?
A verdadeira causa nós a sabemos. (Ibidem, p.50. Grifo nosso).
Como voz onisciente da narrativa, o narrador possui o poder de conceder a nós, leitores,
uma visão privilegiada dos acontecimentos. Entretanto, o privilégio da visibilidade total é do
narrador, cabe a ele cobrir e descobrir os fatos que achar conveniente. Aliás, o mistério dos
caixotes que entram na casa de Hermano após a morte de Julieta é guardado a sete chaves pelo
narrador, que só revela a verdade para o curioso leitor e, ao mesmo tempo, para Amália quase
no final da narrativa. Até então, sabemos da existência do mistério, mas ele fica adormecido
até o momento em que Amália decidir exercer o seu direito e, mais do que isso, o seu dever de
dona-de-casa.
Os dois primeiros capítulos da trama merecem destaque, pois serão essenciais no
reconhecimento dos protagonistas e, conseqüentemente, na identificação das diferentes visões
que cada qual deposita sobre a sociedade. Neles, o minucioso narrador traça um perfil preciso
dos personagens principais, que são apresentados cada um na sua intimidade. Este será o ponto
de partida para o desenrolar da narrativa. É também nestes dois primeiros capítulos que
62
encontraremos marcas indispensáveis nos costumes dos personagens para uma análise da vida
social da aristocracia carioca.
As lentes cuidadosas do narrador estarão, no capítulo inicial, concentradas em Amália e
sua família. Vejamos o que suas lentes revelam:
Conheci outro dia uma família que morava em São Clemente.
Havia em sua casa agradáveis reuniões de que fazia os encantos uma filha, bonita
moça de dezoito anos, corada como a aurora e loura como o sol.
Amália seduzia especialmente pela graça radiante, e pela viçosa e ingênua alegria,
que manava dos lábios vermelhos, como dos olhos de topázio, e lhe rorejava a
lúcida beleza.
Sua risada argentina era a mais cintilante das volatas que ressoavam entre os rumores
festivos da casa, onde à noite o piano trinava sob os dedos ágeis da melhor discípula
de Arnaud.
Acontecia-lhe chorar algumas vezes por causa de um vestido que a modista não lhe
fizera a gosto, ou de um baile muito desejado que se transferia; mas essas lágrimas
efêmeras que saltavam em bagas dos grandes olhos luminosos, iam nas covinhas da
boca transformar-se em cascatas de risos frescos e melodiosos.
Tinha razão de folgar.
Era o carinho dos pais e a predileta de quantos a conheciam. Muitos dos mais
distintos moços da corte a adoravam. Ela, porém, preferia a insenção de menina; e
não pensava em escolher um dentre tantos apaixonados, que a cercavam.
Os pais, que desejavam muito vê-la casada e feliz, sentiam quando ela recusava
algum partido vantajoso. Mas reconheciam ao mesmo tempo que formosa, rica e
prendada como era, a filha tinha o direito de ser exigente; e confiavam no futuro.
(Ibidem, p.13. Grifo nosso).
Diante de tantas qualidades, podemos dizer que Amália em nada fica para trás das
preferidas dos críticos: Aurélia, Lucíola e Diva. Ela possui todos os atributos imprescindíveis
para tornar-se uma grande heroína alencariana: ela é bonita, prendada, caprichosa e rica; ou
melhor, rica e caprichosa já que somente as moças ricas possuem o “direito de folgar”.
Até aqui, a personagem descrita pelo narrador está muito próxima à figura de qualquer
moça de família rica do século XIX. Não se esqueça de que, não por acaso, o principal perfil
dos leitores desse século eram as moças de família abastadas.
63
O século XIX, como vimos, compreende um período interessante na vida social do Rio
de Janeiro, e alguns dos novos hábitos daquela sociedade já aparecem retratados nos parágrafos
aqui transcritos. Neste século era muito comum as famílias abrirem os salões de suas casas,
freqüentemente, para receberem parentes e amigos. De um lado reuniam-se os homens de
posições destacadas para estreitar relações ou tomar decisões. De outro lado ficavam as
mulheres e os moços da corte. Para este grupo, as reuniões e os bailes eram as principais
diversões.
Fazer compras, ir ao teatro ou à missa eram, além dos bailes e reuniões, alguns dos
poucos motivos que as mulheres burguesas tinham para sair às ruas. Nessas ocasiões, elas
aproveitavam para expor sua beleza aos olhares masculinos. Muito restritas ao espaço
domiciliar, essas mulheres tinham no passeio público e nas festas únicas oportunidades para a
prática do exibicionismo. Estes eram também espaços oportunos de afirmação e competição,
por isso a moda, principalmente percebida no detalhado vestuário, torna-se um elemento
essencial no dia-a-dia daquela sociedade. Nos bailes, além de ver e serem vistos, as moças e os
jovens podiam manter um contato mais estreito entre eles, principalmente na proximidade dos
corpos na hora da dança. Tudo numa vigilância paterna menos rígida. E, como alguns pais
abrandavam seus poderes, deixando seus filhos escolherem seus pretendentes, muitos
casamentos eram arranjados nos bailes. Sem dúvida, em todos os casos, a palavra final era dos
pais.
Amália vivia nos salões e chegava a chorar quando um baile desejado por ela era
transferido ou quando um vestido não saía a seu gosto. Também conquistara sua independência
de filha querida, podendo, portanto, escolher - desde que os pais aceitassem, é claro!- com
quem casar. Mas como nem tudo são flores na vida de uma heroína alencariana, Amália não
acreditava no amor.
64
Após tantas qualidades, enfim revelou-se o conflito íntimo de Amália. Como aceitar
que uma jovem rica e cortejada pelos moços mais distintos da corte não anseie por um
casamento luxuoso e deseje viver um amor inesquecível como deve ser para qualquer moça do
século XIX?
Até porque, Amália já estava com dezoito anos e, para os padrões da época, já se
encontrava na idade de pagar o “tributo à sociedade”. Lembre-se de que nessa época, ao entrar
na casa dos vinte anos, as moças já eram consideradas “solteironas” e, a esse tipo, só restava o
celibato. Daí a preocupação dos pais de Amália, que atribuíam a solteirice da filha ao fato de
ser ela rica, prendada e, por isso, exigente na escolha do partido.
Mas na realidade, Amália é mais uma mulher, criada por Alencar, dotada de
consciência e vontade própria. Ela conhece os mecanismos sociais que envolvem o casamento
e, muito embora não costumasse verbalizar, ocultando na alma suas idéias, Amália ia adiando
esse momento que, sabia ela, era inevitável naquela sociedade.
Tinha sobre o casamento idéias mui positivas. Considerava o estado conjugal uma
simples partilha de vida, de bens, de prazeres e trabalhos. Estes não os queria: os
mais ela possuía e gozava, mesmo solteira, no seio de sua família.
Era feliz; não compreendia, portanto, a vantagem de ligar-se para sempre a um
estranho, no qual podia encontrar um insípido companheiro, se não fosse um tirano
doméstico.
Estes pensamentos, Amália não os enunciava, nem os erigia em opiniões. Eram
apenas os impulsos íntimos de sua vontade; obedecendo a eles, não tinha a menor
pretensão à excentricidade.
Ao contrário, como sabia do desejo dos pais, aceitava de boa mente a corte de seus
admiradores. Mas estes bem percebiam que para a travessa e risonha vestal dos
salões, o amor não era mais do que um divertimento de sociedade, semelhante à
dança ou à música.
Conservando a sua independência de filha querida, e moça da moda, Amália não
nutria prejuízos contra o casamento, que aliás aceitava como uma solução
natural para o outono da mulher.
Ela bem sabia que depois de haver gozado da mocidade, no fim de sua esplêndida
primavera, teria de pagar o tributo à sociedade, e como as outras escolher um
marido, fazer-se dona-de-casa, e rever nos filhos a sua beleza desvanecida.
(Ibidem, p.14. Grifo nosso).
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E é nesse momento que se inicia a história de um olhar que, longe de ser mais ou menos
perfeito que qualquer outro, está condicionado a enxergar o lado puramente material daquela
sociedade, até mesmo na considerada sagrada instituição do matrimônio.
Numa sociedade baseada na estrutura da família, o casamento era a aspiração de todos
os jovens, e nem sempre estava ligado ao amor; o importante era o dote que este casamento
traria consigo. Esse pensamento já estava embutido na vida da sociedade. Por isso, o Sr. Veiga,
pai de Amália, calculou que o Dr. Henrique Teixeira estava apto para ser seu genro por
apresentar um pedestal, que não era talento ou virtude, mas sim fortuna. Como homem
“positivo” que era, Sr. Veiga enxergava o casamento como um negócio e era preciso colher
boas informações sobre o pretendente da filha, garantindo, assim, o status da família.
Segundo o narrador, o Dr. Henrique Teixeira “era médico de talento e podia contar com
um futuro brilhante, se não lhe faltasse a qualidade preciosa de saber-se apresentar.” (Ibidem,
p.35).
Não é demais destacar aqui as idéias da sociedade do século XIX, que parecem não ser
tão contrárias às que vemos em nosso século, quando o assunto é carreira e sucesso
profissional. Alencar tenta ainda ressaltar uma certa postura ética ao descrever a importante
distinção, naquela sociedade, entre “a fina arte de saber apresentar-se” e o trabalho grosseiro
próprio dos charlatães.
Essa qualidade não é tão comum como se pensa; o que se encontra a cada passo e em
todas as profissões é o abuso dela, o vício muito conhecido com o nome de
charlatanismo. Não se trata, porém, desse grosseiro arremedo, que está ao alcance de
qualquer sujeito desembaraçado, ainda mesmo ignorante e medíocre.
Os processos e fórmulas do charlatanismo já se aperfeiçoaram de tal modo, que os
adeptos não carecem mais de gênio inventivo; tudo está feito, desde o anúncio até a
celebridade artificial.
Aquele que precisa do petrecho completo, médico, advogado ou artista não tem mais
do que pagar.
O que faltava a Henrique Teixeira não era pois essa fanqueria a que o seu caráter não
se prestava; era sim a verdadeira e fina arte social que ensina o homem a pôr em
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relevo o seu merecimento, e atenuar os seus defeitos, sem hipocrisia, unicamente pela
simples reserva e discrição.
Os painéis dos melhores mestres carecem de uma posição favorável para mostrarem
todas as suas belezas; colocados contra a luz ou de esguelha desmerecem
completamente e confundem-se com qualquer pintura. Assim são os homens na
sociedade. A atitude é tudo: quase sempre decide de uma carreira.
O Sr. Veiga era homem prático e muito conhecedor de seu mundo. Apreciou pois no
justo valor a observação do amigo que lhe prestava esta informação; mas também
sabia ele que a riqueza supre perfeitamente na sociedade, a virtude, o talento, o saber,
e até a afeição. (Ibidem, p.35)
Podemos dizer que, de certa forma, evoluímos. Enquanto Alencar afirma que na
modernidade do século XIX “a atitude é tudo”, menos de dois séculos depois constatamos que
a atitude não é tudo, e sim “a imagem é tudo”. De qualquer maneira é fácil identificar nessa
atitude que pode “decidir de uma carreira” a essência do espetáculo que temos hoje. Além
disso, a riqueza é pedestal capaz de transformar qualquer um num ser visível e, portanto, num
belo partido para qualquer jovem daquele século. De que adiantaria o talento ou a virtude se
não houvesse essa base indispensável a qualquer indivíduo que deseja mostrar-se ao mundo?
Amália também sabia disso, por isso não só resumia o casamento a uma partilha de
bens, como tinha consciência de que este era o tributo a ser pago à sociedade que a acolhia e a
exaltava na “primavera da vida”.
Mas o que torna Amália uma personagem que merece a atenção dos leitores é
justamente o fato dela ter consciência de todos esses mecanismos, evidenciando a distância
entre o olhar material do matrimônio e o olhar espiritual, que ela acredita não existir nesse
caso. Esses dois olhares serão trabalhados por Alencar durante todo o romance, seja para
convencer Amália e, conseqüentemente, seus leitores da possibilidade da união matéria/
espírito; seja para ajudar o outro protagonista na busca da encarnação/ materialização do seu
ideal.
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Carlos é o nome desse outro protagonista que, segundo o narrador, também atende
pelos nomes Hermano e H. de Aguiar. Este possui um conflito ainda mais complexo que o de
Amália. Enquanto ela insiste em não acreditar no amor, ele acredita no amor eterno.
De início, o segundo capítulo mostra-nos um Hermano bastante confuso. Sabemos que
ele é rico, embora ninguém conheça a sua profissão e o narrador também não se preocupe em
dizer aos leitores. A riqueza dispensa qualquer explicação: ou o indivíduo nasce rico ou se casa
com um bom partido, não importa a sua profissão. Hermano já nasceu rico. Mas o que
impressiona são os hábitos desse homem considerado fino e de boa sociedade. Sua apatia
social é um convite ao passado. E será esse passado o início da história contada pelo narrador
e, de igual modo, da história de nosso segundo olhar.
Na verdade, Alencar constrói um personagem que é o oposto de Amália. Hermano vê
com os “olhos do espírito”, por isso para ele o que importa não é o físico.
Para provar a completa isenção de interesse físico e material desse olhar, sua primeira
paixão não era rica nem bonita. Escolha muito estranha para “um dos mais brilhantes
cavalheiros dos salões fluminenses” e para olhos habituados a ver as mais “aristocráticas
belezas da corte”, num mundo onde o valor da mulher só pode ser encontrado na beleza do
corpo e no seu dote e onde o espírito é negado pela força da materialidade.
Julieta é o que podemos considerar o oposto de tudo isso. Seus atributos não são físicos,
mas interiores e, por isso, ela deve ser admirada à distância.
O espírito fino, meigo e gentil de Julieta não tinha expansões. Era modesto, e às
vezes tímido. Entretanto o que ela dizia, por mais simples que fosse, trazia o calor de
uma emoção íntima. Sua palavra exalava os perfumes de uma alma em flor.
Ao seu lado e conversando com ela, um homem de rigor estético poderia esquivar-se
ao enlevo que infundia a suprema distinção dessa moça; e notar em suas feições e
em seu talhe a ausência da beleza plástica.
Mas apartando-se dela, e perdendo-a de vista, raro era o que não levava na fantasia
um ideal suave e gracioso, que ofuscava a imagem das mais radiantes formosuras do
salão. (Ibidem, p.17. Grifo nosso).
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Enquanto a descrição dos atributos de Amália são essencialmente físicos, Julieta reúne
os mais belos atributos da alma. Certamente que a “ausência da beleza plástica” seria uma
barreira para qualquer encontro, principalmente naquela sociedade onde a exaltação da beleza é
intensa, não fosse o excêntrico olhar de nosso Hermano.
Mas é no primeiro encontro de Hermano e Julieta que encontramos a explicação desse
estranho interesse, que contrariava os costumes vigentes naquela sociedade.
O primeiro encontro de Hermano com a noiva explica bem a influência que ela devia
exercer em sua vida.
Ao sair do teatro lembrou-se do convite que recebera para uma partida em casa de
pessoa de sua amizade, a quem devia atenções. Dirigiu-se para lá, com a intenção de
apenas fazer ato de presença.
Quando entrou no saguão cantava uma senhora a ária de Lucia de Lammermoor. A
voz, que não era extensa, comoveu-o. Parou para escutar; e viu desenhar-se em seu
espírito a imagem esbelta e vaporosa da virgem que o amor enlouquecera.
Terminado o canto, subiu. Havia na sala muitas senhoras, algumas de seu
conhecimento, outras que via pela primeira vez. Notou entre elas uma moça alva, de
cabelos negros; era Julieta. Sem que lho dissessem, por uma rápida intuição,
adivinhou que fora ela a intérprete inspirada da música de Donizetti. (Ibidem, p.17-
18. Grifo nosso).
Se atentarmos à composição de Julieta, veremos que ela é a antítese de Amália. A face
alva e os cabelos negros de Julieta contrastam com a tonalidade corada e loura de Amália. Mais
adiante, o narrador confessa que “Amália era uma beleza deslumbrante que ofuscava a outra”.
Essa não será a única oposição entre as duas personagens. Vimos que Amália não acreditava
no amor, Julieta, ao contrário, o torna absoluto.
Outra informação importante na descrição do primeiro encontro de Hermano e Julieta é
o fato do sentido da audição anteceder o da visão. Hermano não se apaixona pelo que vê, mas
pelo que sente. Tanto é que, ao ouvir aquela ária, ele “viu desenhar-se em seu espírito a
imagem esbelta e vaporosa da virgem que o amor enlouquecera”. O problema é que ele sempre
imaginara uma Lucia loura. Porém, a decepção é passageira, uma vez que a imagem havia sido
plantada no espírito.
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As idéias de Hermano e Julieta sobre o casamento caminham lado a lado. Para ambos
não se trata apenas de uma união social ou de “uma simples partilha de vida, de bens, de
prazeres e trabalhos” como pensava Amália. Por isso, há uma espécie de pacto entre os dois.
“Sempre acreditei que o casamento não deve ser uma simples união social, mas a formação da
alma criadora e mãe, da alma perfeita, de que nós somos senão as parcelas esparsas. Essa alma
uma vez formada, só Deus a pode dividir e mutilar”. (Ibidem, p.19). Como se vê, e o próprio
narrador declara em determinado momento, Alencar cria dois personagens completamente
desprendidos dos interesses e misérias sociais.
Encarnação possui muitos pontos em comum com os demais romances de Alencar,
principalmente aqueles que compõem a trilogia dos “perfis” de mulher. Contudo, dessa vez, a
constituição psicológica própria daquelas mulheres é encontrada na figura de um homem.
Hermano sofre da mesma exuberância de sentimentos e, também para ele, o amor é um
culto idolatrado, onde é dever sacrificar o presente e o futuro.
Para explicar as estranhezas de Aurélia, o narrador afirmava: “Aurélia amava mais seu
amor que seu amante; era mais poeta do que mulher: preferia o ideal ao homem” (ALENCAR,
1991, p.85). Alencar parece utilizar o mesmo molde para compor Hermano, pois este também
acredita num ideal de amor que é etéreo e eterno. E, assim como Aurélia manda pintar um
quadro com a imagem a quem tributava toda a adoração, Hermano traz para os cômodos de sua
casa estátuas que eram, para ele, a encarnação do seu ideal.
Hermano é só coração e, nesse sentido, sua postura não se ajusta ao comportamento
masculino daquela época, caracterizado por uma mente mais reflexiva e materialista. A
intensidade do sentimento de Hermano é tanta que chega a produzir um desequilíbrio das
faculdades que vai se revelando no desenrolar da trama.
O drama do personagem começa com a morte de Julieta, primeira encarnação viva do
ideal de Hermano. Até então, os dois viviam felizes como num conto de fadas. Nesse tempo, os
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dois passam a evitar o espaço público para viverem um do outro. Mas a passagem de Julieta
pela narrativa é curta; pelo menos sua presença corpórea ocupa apenas dois capítulos. A partir
daí, sua presença será nada mais que fruto da imaginação doentia de Hermano.
Com a morte física de Julieta, instaura-se o nó da narrativa. Numa das pontas está
Hermano que ainda consegue ver Julieta, pois só aprendeu a ver com os olhos da alma. Na
outra ponta encontra-se Amália que, com os olhos do corpo, só é capaz de enxergar o
matrimônio em seu aspecto material. E mais uma vez somos obrigados a lembrar de Aurélia e
Seixas: enquanto ela anseia reencontrar em Seixas a imagem do passado, do seu ideal, Seixas
apresenta-se em sua materialidade nua e crua. Em Encarnação esses papéis estão invertidos.
Podemos aqui identificar um dilema que realmente estava presente no dia-a-dia da
sociedade carioca do século XIX. Aceitar o mundo das aparências e a possibilidade de
ascensão social por meio de um casamento arranjado, prática bastante natural no meio burguês,
ou acreditar na preservação de relações humanas autênticas por meio de casamento fruto de
uma identidade de propósitos e lançar fora as vantagens de certos ideais capitalistas? Essa é,
sem dúvida, apenas uma parcela de um problema muito maior que a modernidade trouxe
consigo ao dividir a sociedade entre as idéias liberais difundidas e importadas pelos grandes
centros europeus e alguns valores humanos ainda tão prezados e acalentados, mas que estavam
sendo banidos pelo novo sistema. Essa foi a grande discussão do romantismo, do qual,
sabemos, Alencar foi um dos porta-vozes. O problema não estava no progresso, mas nas
conseqüências desta nova ordem. O desencantamento e a quantificação do mundo, a
mecanização do mundo que acarreta na dissolução dos vínculos sociais, que transformam o
indivíduo num ser solitário mesmo inserido numa comunidade são apenas algumas das
características apontadas e combatidas pelos românticos.
Assim, o constante dualismo amor/dinheiro, matéria/espírito, corpo/alma, que está
presente na realidade social da cidade, aparece como um dos pontos principais dessa narrativa.
71
Porém, não é verdade que Alencar procurava enaltecer a “visão espiritual” para, assim, tornar
desprezível toda e qualquer visão racional do mundo. A prova disso é que, paralelo a todo
aquele processo experimentado por Amália, Alencar nos mostra o perigo de uma vida que se
recusa a enxergar tudo o que é racional, por isso as atitudes de Hermano chegam a atingir o
patológico. Além disso, alheios a todos esses acontecimentos, os pais de Amália estão ali para
não deixar que nenhuma escolha da moça a desvirtue da ordem adotada pelo sistema. Percebe-
se sim uma superioridade dos olhos da alma em seus romances, principalmente porque este
estaria ligado a sentimentos e valores autênticos. No entanto, fica evidente a infinita
importância que o autor atribui à presença do olhar e a sua intenção em unir o olhar material
com o olhar espiritual, já que a existência absoluta de um ou de outro poderia representar um
perigo naquela sociedade.
Amália, ao preferir a vida de solteira pelas razões já comentadas, nega a necessidade da
proteção de um homem e ameaça assumir um papel que não é conveniente a uma moça do seu
século. Hermano, por sua vez, renegando o presente e revivendo o passado, mutila sua
individualidade. Um homem que se recusa a agir é sinônimo de fraqueza e relativiza a idéia da
superioridade masculina.
Com certeza, os signos estão trocados. Em Amália, encontramos o dinamismo, a ação e
a determinação. Em Hermano, a fragilidade, a docilidade e a imobilidade.
Este será, portanto, o maior desequilíbrio da narrativa. A figura da mulher sempre
esteve associada a um ideal de amor, pureza e abnegação. Ela possui, para aquela sociedade,
por natureza, disposição a abdicar de sua própria individualidade em prol de sua família. E, ao
homem, cabe gerenciar a sua família, ele é a cabeça da relação e todas as decisões devem partir
dele.
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Tendo por base todas essas regras sociais, que são incontestáveis naquele momento, é
necessário redistribuir os papéis. O processo de transformação de Amália é mais rápido e
simples que aquele sofrido por Hermano.
Henrique Teixeira será o agente responsável por unir as duas pontas desse nó,
promovendo o encontro do olhar material de Amália com o olhar espiritual de Hermano, o que
nos faz acreditar que o fato do narrador dizer que Dr. Henrique Teixeira era uma notabilidade
oftalmológica não é por acaso. Seu papel na narrativa é o de acender a chama da curiosidade e
apresentar a Amália um outro olhar até então ignorado por ela, era preciso orientá-la a olhar
com os olhos da alma. Cabe a ele convencê-la da superioridade espiritual das atitudes de
Hermano. E é exatamente isso que ele faz no seu primeiro diálogo com Amália.
- A senhora nunca perdeu uma pessoa a quem amasse. Aqueles que já sofreram esse
golpe, quando visitam o túmulo que encerra as cinzas do ente querido, acreditam que
ali está alguma cousa deles, a sua sombra, a sua alma quando ali não há senão pó. É o
mesmo que acontece a Carlos, com uma diferença: nos outros são os vestígios
materiais, é o despojo mortal, que produz aquele efeito; nele é o espírito unicamente.
O que ele sente, o que ele vê, é a alma da mulher.
- Chega a vê-la? disse Amália cuja ironia nada perdoava.
- Com os olhos da alma. O corpo nada é e nada era para ele. Desde o momento em
que D. Julieta morreu, ele a abandonou como um objeto indiferente, e não teve o
menor desejo de vê-la. Isto observei eu. (ALENCAR, 2002, p.29. Grifo nosso).
O fato é que a história contada por Teixeira realmente desperta o interesse da moça e, a
partir desse momento, a personagem passa a espionar Hermano da janela de seu quarto que,
coincidentemente, dá para o edifício vizinho. A tarefa da moça consiste em tentar saciar o seu
desejo de desvendar o segredo que envolve a vida daquele homem.
É interessante perceber a supremacia dos movimentos do olhar nos capítulos que
descrevem o processo sofrido por Amália em busca pela decifração de Hermano. Tal processo
marcará também a trajetória dos olhos materiais de Amália rumo aos olhos espirituais de
Hermano. Olhar, avistar, ver, observar, notar, examinar, contemplar e admirar são apenas
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alguns dos vocábulos utilizados pelo narrador para descrever a crescente simpatia que as
atitudes Hermano despertavam em Amália.
A simples curiosidade do início, aos poucos, passa a desejo. Desejo de conhecer, vigiar,
de desvendar o novo. Observar é o primeiro passo de Amália.
Quando absorta nestes pensamentos olhava o edifício meio oculto pelos bambus e
avermelhado pelo arrebol, viu Hermano que passava entre as árvores, e aproximava-
se do banco favorito.
A moça disfarçando a sua curiosidade, recolheu o airoso busto na penumbra da
coluna para observar o solitário passeador, que se sentara à pequena distância do
muro da chácara, em lugar onde ela o via imediatamente. (Ibidem, p.31. Grifo nosso).
Não bastava apenas observar, era preciso examinar para só então compreender.
...Examinou a fisionomia, e notou que ela não tinha nesse momento a expressão de
recolhimento e abstração própria do homem que está só. O seu olhar não era de
contemplação; animava-o o raio do espírito. Não era o olhar que vê, mas o olhar
que fala, que transmite a impressão em vez de recebê-la.
Uma vez ergueu-se; foi até a platibanda, colheu uma flor, um lírio, e tornando a seu
lugar, conservou-o na mão com o gesto expressivo de quem o mostrasse a outrem
sentado a sua direita.
Então operou-se em Amália um fenômeno psicológico, estranho para ela que vivia
unicamente no presente, porém em si muito natural e freqüente. Assim como na tela
de um transparente as figuras assomam de repente quando as colocam a contraluz, da
mesma forma na memória da moça desenharam-se cenas da infância esquecida por
anos. (Ibidem, p.31-32. Grifo nosso).
Fica claro na narrativa a “espiritualização” do olhar de Amália. Este processo será
acompanhado do afastamento de Amália dos salões e das festas, espaços símbolo da
modernidade, antes tão cultuados por ela. Além disso, o brilho e a beleza da vida não estarão
mais restritos às jóias ou aos adereços brilhantes de seu uso.
Amália admirava outrora as estrelas como jóias mimosas de que Deus havia recamado
o seu manto azul, ou como umas violetas do céu a luzir por entre as sombras da noite.
Era bonito, mas ela preferia um adereço de brilhantes sobre um vestido de cetim
ou uma grinalda de misótis.
Agora um místico sentimento a atraía para essas flores de luz. Gostava de
conversar com elas. Pensava que talvez tivessem um coração irmão do seu. (Ibidem,
p.45. Grifo nosso).
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A essa mudança repentina no comportamento de Amália, o narrador deu o nome de
conversão. É possível, portanto, afirmar que a conversão de Amália foi nada menos que a
conquista da capacidade de enxergar o que até então não lhe fora revelado pelos olhos do
corpo.
No entanto, a reação de Amália é, no mínimo, curiosa. Há em sua alma, após
convencer-se da possibilidade de um amor autêntico, a luta entre dois movimentos opostos: um
de atração e outro de repulsão. Amália sente-se atraída pela chácara vizinha, mas, ao mesmo
tempo, sente repugnância por entregar-se tão facilmente àquela necessidade.
O voyeurismo de Amália consiste numa tentação de olhar que se revela superior ao
sentimento de repulsa, tratava-se, então, não mais de uma curiosidade, mas de uma
necessidade.
Outra característica comum às personagens femininas de Alencar é o prazer que elas
demonstram em tirar proveito de suas prendas e de sua beleza para seduzir e dominar. Com
Amália não será diferente. Tanto é que ao imaginar a traição de Hermano em relação à já
falecida esposa, ela decide vingá-la e, para isso, ela, que havia vigiado a casa do viúvo, sempre
cuidadosa para não ser vista, passa a desejar e buscar os olhos de Hermano. De que maneira?
Exibindo-se. Porém, não adiantaria de nada exibir sua beleza, pois, como já sabemos, Hermano
não se deixa atrair por atributos físicos. Por isso, ela encontra na ópera de Donizetti a forma
perfeita de atrair a atenção de Hermano. É claro que a atitude se revelaria um sucesso, já que se
trata da mesma ária cantada por Julieta no dia em que Hermano a conheceu. Assim, não
demora muito para que Amália consiga exercer certo domínio sobre Hermano.
A moça não duvidava de seu império. Ela sentia em torno de si, a envolvê-la
incessante, a admiração por Hermano. A cada momento, via ou adivinhava na
espessura das árvores, na penumbra de uma janela, o olhar que a buscava com
ansiedade, e a seguia infatigável.
Entretanto mostrava-se despercebida dessa contemplação. Se aparecia à varanda ou
passeava no jardim, não dava o menor sinal de ocupar-se com a casa vizinha, que
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antes a absorvia tão completamente. Saía agora mais vezes, para ter o gosto de ver-se
acompanhada de longe e respeitosamente; ou para tornar mais desejada a sua
presença. Amália não tinha cultivado a arte de fazer-se amar, que se chama faceirice;
mas parece que é um dom natural da mulher. (Ibidem, p.51)
De voyeurista a exibicionista, mas parece que a arte da sedução e o poder de despertar
admiração e fascinar é um talento natural das mulheres criadas por Alencar. Agora, quem
assume o posto de voyeur é Hermano.
Para tentar compreender as estranhas atitudes de Hermano é necessário conhecer uma
importante particularidade do olhar adotado por ele, ou seja, o olhar do espírito. A principal
diferença entre esse modo de olhar e o olhar material ou racional é o poder de criação e
imaginação do espírito.
Hermano deseja encontrar o modelo que se ajuste ao ideal criado por ele, ou melhor, à
imagem que ele guarda na alma. Aqui, o termo encarnação está associado à idéia de um vulto
(imagem) que toma corpo. Por isso, podemos dizer que Julieta foi a primeira encarnação viva
do ideal de Hermano. Sua morte representa, então, a desagregação matéria/imagem. Quem
desaparece é o corpo e não o ideal. Este continua vivo, mas adormecido até que Hermano o
consiga transpor.
Henrique Teixeira afirma que Hermano sempre teve gosto para as artes. Mas quem é
Hermano senão o próprio artista em busca da plenitude de seu ideal?
A trajetória de Hermano será, portanto, marcada por essa busca. Há dois momentos na
narrativa que mostram esse processo de encarnação do ideal de Hermano e, ao mesmo tempo,
comprovam o abismo patológico das atitudes extremadas desse homem. O primeiro é
descoberto por Amália quando, já casada com ele, se depara com as estátuas de cera. Porém ao
mesmo tempo em que confirma a já imaginada loucura de Hermano, Amália adivinha o
“segredo dessa criação ideal da mente enferma” de seu, agora, marido.
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O amor de Hermano era uma demência. Não fora uma mulher que ela havia adorado,
e adorava ainda; mas um fantasma, um ente de sua imaginação. Esse ideal ele o tinha
encarnado em Julieta, desde o primeiro momento em que a vira.
Por que misteriosa relação se havia operado essa transfusão ninguém o poderia
explicar, senão por uma afinidade moral.
Morta Julieta, o ideal se tornara outra vez fantasia ou sonho, até que pela mesma
ignota afinidade se encarnara de novo na imagem do painel de Veroneso, Ester ou
Suzana, como dissera o Teixeira, referindo a visita ao Louvre.
Estas figuras, pensava Amália, são a cópia daquela imagem, a que Hermano dera o
nome de Julieta, por ser o da primeira encarnação viva de seu ideal. Mas elas não
tinham nada de comum com a morta senão essa misteriosa relação, que transparecia
em uns longe de fisionomia.
Julieta não era formosa; e toda a sua graça estava unicamente na expressão. A mulher
reproduzida em cera era de uma beleza estatuária, que ofuscava inteiramente o retrato.
Como pois tinha Hermano identificado essas duas imagens tão diversas?
Este fenômeno só podia explicar-se por um modo. Hermano não idolatrava a forma,
embora a admirasse quando ela realizava a sua imaginação. O que ele amava era uma
larva, um espírito, um duende de beleza imaterial, que transportara a principio para
uma mulher, depois para uma imagem e afinal para uma estátua. (Ibidem, p.76)
Os leitores de Alencar já estão habituados com a abdicação de suas personagens
femininas. Dominadas pela mais sublime paixão, são capazes de sacrificar o que têm de mais
precioso para a realização do amor. Aqui, Amália terá que abrir mão de sua personalidade.
Depois de suspeitar da idéia de suicídio de Hermano, Amália adquire uma postura que,
até então, recusava-se a assumir: a de dona-de-casa. A casa é, para a sua sociedade,
responsabilidade da mulher; é dela o dever de administrar as tarefas do lar. A isenção de
Amália até aquele momento dera lugar à permanência da antiga dona. Por isso, é importante
que Amália assuma, desde já, o que, como esposa lhe está destinado. O interessante é que só
quando a personagem enfrenta Abreu, desejando, pela primeira vez, tomar para si a autoridade
doméstica é dada a ela a oportunidade da revelação. É na primeira vez que entra nos aposentos
do marido que Amália encontra as chaves do toucador de Julieta. Lá, como já vimos, ela
consegue, enfim, decifrar a neurose do marido e compreender o que proibia a consumação do
seu casamento.
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Não podemos esquecer de que casados, Amália e Hermano vivem o conflito do
interdito matrimonial. O próprio Hermano rejeita a proximidade física, quando, na noite de
núpcias, é traído mais uma vez pelas reminiscências do passado.
A renúncia da sua individualidade é a estratégia adotada por Amália para recuperar a
mente enferma do marido. Conscientemente, ela deseja operar em si a nova encarnação do
ideal de Hermano. Passando-se por Julieta ela acreditava poder dominar o espírito do marido e
restituir-lhe a razão. A atitude de Amália é tão grandiosa que atinge a proporção de heroísmo
até para o próprio narrador:
Este romance de Amália, a incompreensível encarnação do delírio de um cérebro
enfermo, essa admirável intuição, é que me propus contar; e agora sinto que não o
conseguirei.
Como descrever a paciente eliminação de uma alma a despojar-se de sua
individualidade para infundir em si o ser imaginário, filho de uma alucinação?
(Ibidem, p.77)
Na verdade, o ato heróico de Amália tem o sobrolho da inteligência: já que seus
atributos físicos de nada lhe valeram até ali, senão como forma momentânea de admiração, era
preciso induzir, atrair, mesmo que para isso ela tivesse que reviver nela a outra. Amália chega
ao ponto de disfarçar com uma renda preta os cabelos louros, ou mesmo a tingi-los, para se
aproximar da aparência de Julieta.
Trata-se de uma espécie de cura terapêutica que termina com a fusão das duas mulheres
numa cena muito interessante de delírio, momento em que Hermano recebe o consentimento de
Julieta e testemunha a fusão da alma de sua primeira esposa com a alma de Amália.
Chegamos assim a uma conclusão bastante curiosa: à Julieta faltava a beleza e a
vivacidade que emanava de Amália; já à Amália do início da narrativa faltava a sensibilidade
da alma que distinguia Julieta das “mais radiantes formosuras do salão”. Dessa forma, a
narrativa consegue recuperar a inteireza perdida da separação corpo e alma.
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O incêndio, solução encontrada por Hermano para ocultar o seu intento, é também a
saída do narrador para libertar seu personagem do delírio em que vive. As chamas consomem
toda a recordação material de Julieta e, sobretudo, anuncia a síntese das dualidades passado e
presente, Julieta e Amália, espírito e matéria.
Derrubadas as barreiras que impediam a felicidade plena do casal é desfeito o nó da
narrativa e são atadas as duas pontas. A partir daí está tudo pronto para a normalização e o
desfecho nada mais é senão a prova da consumação do matrimônio, com Hermano e Amália
retornando ao local do incêndio, trazendo com eles a filha que só podia chamar-se Julieta.
Amália, ao longo da narrativa, aprendeu a acreditar no amor, assumiu o papel de dona-
de-casa, abriu mão de sua individualidade para salvar o marido e ainda adquiriu uma alma
sensível, ela agora sabia olhar com os olhos da alma. Hermano saiu da apatia social de viúvo e
aprendeu a viver no presente, adquirindo uma visão mais racional do mundo, aquela que o faz
equilibrar, no ato de enxergar, os olhos do corpo e os do espírito.
2.2- O olhar como gesto cultural: Diva
Diva é o romance publicado no ano de 1864, que traz a história de amor da mimada e
rica Emília Duarte com o médico Augusto Amaral. Quem narra os fatos é o próprio Augusto, o
que para os leitores mais atentos já se torna motivo de suspeita, pois o que teremos é a história
de uma mulher tal qual foi vista por um olhar masculino, e mais, por um olhar masculino
apaixonado que, inclusive, chega a confessar que a Emília de que ele fala não existiu para
ninguém, senão para ele mesmo, concedendo, assim, razão a qualquer um que viesse a duvidar
um dia da existência dessa mulher. E, deixando-nos a dúvida: teria sido ele o único
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privilegiado em conhecer aquela mulher tal qual nos revela ou teria ela existido realmente
apenas em sua imaginação?
Nesse sentido, Diva assemelha-se a outro romance dos “perfis de mulher”. Lucíola,
romance publicado no ano de 1862, apenas dois anos antes daquele, traz a história de Maria da
Glória narrada pelo apaixonado e saudoso Paulo. Outro ponto em comum entre os dois
romances é a presença de G. M., a suposta autora dos romances e que também assinará
Senhora, o último romance dos perfis.
O que ocorre em Diva é a confissão manuscrita de Amaral, que tem por confidente
Paulo, o mesmo que narrou a história da cortesã de Lucíola e que tinha por confidente ninguém
menos que G.M., a senhora de cabelos brancos, “responsável” pela publicação do romance.
Dessa vez, Amaral conta a sua história a Paulo que, por sua vez, a transmite a G.M., que dessa
vez poderá permitir sem escrúpulo sua leitura à neta e que a entregará a nós, leitores, tornando
a história de Augusto Amaral e Emília Duarte de domínio público.
O discurso do médico é marcado por uma forte perplexidade diante da essência
enigmática de Mila. Mas o que mais surpreende a nós, leitores, é o fato de o romance terminar
sem que o narrador consiga sequer esclarecer-nos este enigma, ou seja, Augusto Amaral passa
do início ao final de sua narrativa tentando desvendar “... que esfinge era essa moça de dezoito
anos” (ALENCAR, 2001, p.46); buscando decifrar uma mulher que oculta na alma a sua
verdade e age com a excentricidade e a ambigüidade que mais parecem um desafio àquele que
ousar cruzar o seu olhar ao dela e, no entanto, ao final da narrativa, quando Emília já
confessava seu amor por Augusto, ele ainda é capaz de pedir a Deus coragem para resistir,
acreditando ser uma infâmia amar aquela mulher que, seguramente, continuava, para ele, e
conseqüentemente para os leitores, indecifrável (Ibidem, p.84). Dessa forma, na conclusão do
relato não fica desvendado o enigma feminino, apesar da entrega declarada de Mila a seu
amado.
80
Outro ponto relevante do relato de Augusto consiste na sua posição de narrador-
testemunha. Mas acontece que ele não só viu os fatos que narra, como também os vivenciou.
Apenas essa informação não seria motivo de espanto se esse mesmo narrador não revelasse
particularidades da vida íntima da família Duarte, que só poderiam aparecer no relato de um
narrador onisciente. Assim, o narrador de Diva aparenta, ao longo de seu relato, uma
privilegiada acuidade visual que ultrapassa os limites do corpo, mas que, no entanto, não o
capacita a desvendar o enigma que envolve essa moça, ora mulher, ora esfinge.
Talvez, por esse motivo, o olhar será um traço marcante na narrativa. Tanto Mila
quanto Augusto depositam no olhar a responsabilidade de dizer tudo aquilo que não se quer
verbalizar, ou ainda, contrariamente, a de ocultar seus verdadeiros sentimentos quando não
desejam revelá-los. Algumas vezes, porém, esse mesmo olhar pode vir a traí-los, ao cumprir
seu já conhecido papel de janela da alma: “Levantei os olhos para ela. Parecia não me ouvir,
nem mesmo ter consciência de que eu ali estivesse e lhe falasse. Sua alma passava no olhar...”
(Ibidem, p. 30).
Além disso, sabemos que o olhar possui espaço garantido no “jogo amoroso” em
qualquer sociedade e época, mas principalmente naquele século em que os princípios de
moralidade muito dificultam a possibilidade de aproximação física entre os casais. Parece que
Diva é o romance que melhor indica essa interdição do contato físico tão prezado na sociedade
com regras restritas de decência. Apenas nas festas, na hora da dança, como vimos, o direito ao
toque ficava um pouco mais facilitado pelo abrandamento da vigilância. Assim, “na
contradança, burlando a vigilância, era possível cerrar mais vivamente os dedos do par ou,
libertando as mãos da luva, sentir melhor o frêmito do corpo enlaçado”. (SOUZA, 2005,
p.148). Emília, ao contrário, não valsa para não permitir que o braço de um homem lhe toque a
cintura, nem tampouco consente que a manga de uma casaca lhe roce as rendas do seu decote
e, ainda, recusa-se a participar da quadrilha se o seu par não calçar as luvas.
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Emília não valsava; nunca nos bailes ela consentiu que o braço de um homem lhe
cingisse o talhe. Na contradança as pontas dos seus dedos afilados, sempre calçados
nas luvas, apenas roçavam a palma do cavalheiro: o mesmo era quando aceitava o
braço de alguém. Bem diferente nisso de certas moças que passeiam nas salas
reclinadas ao peito de seus pares, Emília não consentia que a manga de uma casaca
roçasse nem de leve as rendas do seu decote.
Uma noite, dançando com Amorim, sócio de seu pai, recolheu a mão de repente, e
deixou cair sobre ele um de seus olhares de Juno irritada:
_ Ainda não sabe como se dá a mão a uma senhora? Disse com desprezo.
Proferidas estas palavras, sentou-se no meio da quadrilha, e nunca mais dançou com
ele. O Amorim em uma das marcas, tinha-lhe inadvertidamente tomado a mão, em
vez de apresentar-lhe a sua.
Freqüentava as reuniões de D. Matilde um moço oficial da marinha, o tenente Veiga.
Tinha uma nobre figura e o cunho da verdadeira beleza marcial. Era um dos mais
ferventes adoradores de Emília. Tirando-a para dançar uma noite, ela ergueu-se e ia
dar-lhe o braço, mas retraiu-se logo e voltou a sentar.
_ Desculpe-me. Não posso dançar!
_ Por que motivo, D. Emília?
Ela calou-se; mas fitou-lhe as mãos com os olhos tão expressivos que o moço
compreendeu e corou:
_ Tem razão. Tirei as luvas para tomar chá e esqueci-me de calçá-las. (ALENCAR,
2001, p.24-25).
A excessiva castidade de Emília é vista como modelo de decência e exemplo a ser
seguido, por isso, o narrador considera pura inveja o fato do comportamento de Mila ser
motivo de comentários maldosos entre as demais moças de sua idade, alegando ser Mila
superior a estas na beleza, no espírito e na riqueza. Realidade ou discurso de narrador
apaixonado? Não importa. O que é realmente interessante observar é esse ambiente
competitivo entre as mulheres, principalmente, no momento do baile. Muitas vezes o narrador
refere-se a elas como rivais. A beleza e a riqueza de uma mulher era o que primeiro saltava à
vista e, certamente, era motivo de disputa ou de “guerra feminina” como prefere o narrador.
Nesse momento, o brilho do ouro e a riqueza das vestimentas eram os elementos mais
eficientes que entravam no jogo do exibicionismo. Enquanto a beleza era atributo exclusivo
das mulheres, o prestígio dos homens nos salões dependia de sua elegância, do seu talento e
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também na maneira delicada e galanteadora ao dirigir um elogio sem ofender o pudor e as
regras de decência da sociedade, que assistia a tudo com seu olhar julgador, que podia tanto
condenar como absolver. É claro que o julgamento da opinião pública era muito mais
inexorável em relação às mulheres e é Emília quem faz questão de tornar explícita essa
situação de extrema submissão feminina:
...Oh! Que ente injusto e egoísta que é o homem! Quando nos ama, dá-nos apenas
sobejos de suas paixões e as ruínas de sua alma; e entretanto julga-se com direito a
exigir de nós um coração não só puro, ma também ignorante! Devemos amá-los sem
saber ainda o que é o amor; a eles compete ensinar-nos... educar a mulher... como
dizem em seu orgulho! E ai da mísera escrava que mais tarde conheceu que não
amava!... Seu senhor é inexorável e não perdoa!... Basta-lhe um aceno, e a multidão
apedreja. (Ibidem, p. 69)
É mais ou menos isso que faz o narrador em relação a Julinha, prima de Emília, que é
também o oposto desta. Apesar de não chegar a condenar Julinha, o narrador não dispensa um
olhar crítico às atitudes da moça. Educada na sala, a prima de Emília, segundo o narrador,
habituara-se a ser animada ao colo e beijada por quantos freqüentavam a casa e, apesar de boa
e compassiva, perdera muito cedo a “suave matiz de pudicícia”. No entanto, os defeitos de
Julinha mais parecem um pretexto para elevar as qualidades daquela que despertara a atenção
do narrador. Afinal, para o narrador, Emília mantém uma relação mítica com a divindade,
prenunciada já no título da narrativa e confirmada ao longo dela. A nossa Diva era uma
verdadeira esfinge, seus olhares era de Juno e de Diana, seu passo de sílfide e seu gesto
olímpio.
Talvez por isso, o pudor desmedido de Emília não a impede de agir com audácia
quando “erigia a fronte com altivos desdéns, e fitava em face qualquer homem que a olhava”
(Ibidem, p.21), como também não a inibe de marcar entrevistas com Augusto no bosque dos
bambus, às 11 horas ou às 7 horas da manhã; na jaqueira, à 1 hora da madrugada ou de ir ter
com o solitário Augusto em sua casa. Também porque o extremo pudor que ela mantinha em
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relação ao toque a torna isenta de acusações maledicentes. Até Augusto sente a necessidade de
atenuar as atitudes audaciosas da moça frisando que a castidade a protegia melhor do que um
severo recato. Além disso, a própria Emília afirma, e essa parece ser a justificativa mais
acertada, que sua privilegiada posição social não a deixava comprometer-se.
O recalque do tato é tão forte em Emília que mesmo doente ela não se deixa tocar,
dificultando, inclusive, o diagnóstico do Dr. Augusto Amaral. Aliás, um dos motivos aparentes
que justificam o comportamento ora agressivo, ora atencioso de Mila com Augusto seria o fato
dele ter encostado o ouvido ao corpo da moça para examiná-la, despertando nela um
sentimento de amor e ódio em relação ao médico, e cujo único castigo apropriado será
conduzi-lo a um jogo arriscado, mas fascinante, que abriga e deixa confusos esses dois
sentimentos, que é o jogo da sedução.
Maria Rita Kehl, no ensaio “Masculino/Feminino: o olhar da sedução” faz uma
descrição bastante pertinente do jogo da sedução e que poderá ser facilmente reconhecido na
história de Mila e Augusto. Vejamos algumas de suas idéias:
O que se diz de imediato sobre a sedução é que é um jogo. Caçada silenciosa entre
dois olhares; captura numa rede perigosa de palavras. Jogo arriscado e fascinante
angústia e gozo onde o vencedor não sabe o que fazer de seu troféu e o perdedor só
sabe que perdeu o rumo: um jogo cuja única possibilidade de empate se chama amor.
[...] o seduzido é quem nos deixa registro sobre sua experiência. [...] É o seduzido que
tenta compreender a transformação que se deu nele ao mesmo tempo que tenta
entender o poder do olhar sedutor. [...] De que encanto o seduzido é presa, ele não
sabe dizer. O sedutor é o que não se revela. (KEHL, in: NOVAES, 2001, p.411).
“Caçada silenciosa entre dois olhares”, eis o que acontece em Diva. “O sedutor é o que
não se revela”, é Emília. “O seduzido é quem deixa registro sobre sua experiência e tenta
compreender a transformação que se deu nele ao mesmo tempo que tenta entender o poder do
olhar sedutor”, é Augusto.
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“De que encanto o seduzido é presa, ele não sabe dizer”, no entanto, é certa a sua
situação de prisioneiro, entregue, seguramente, ao abandono do sedutor. Por isso, Emília age
com a segurança de quem acredita que o jogo está ganho.
Como fiquei ao ver aquela mulher, exultando de júbilo e orgulho ali, em face de mim,
que pensava tê-la afinal humilhado com meu frio sarcasmo!
_O que é que a senhora compreende, D. Emília?
_Que eu vivo em sua alma! E como o senhor não pode arrancar-me dela, procura
rebaixar-me a seus próprios olhos para ter a força, que não tem, de me desprezar! O
senhor ama-me, e há de amar-me enquanto eu quiser... e há de esperar aqui, a meu
lado, até que chegue a hora em que me perca para sempre... Por que eu é que posso
jurar-lhe: não o amo, não o amei, não o amarei nunca... (ALENCAR, 2001, p. 82).
Também sobre o “jogo da sedução”, Baudrillard (1992) afirma que a decisão de seduzir
o outro pode ser nada mais que uma reação e uma defesa daquele que não quer se deixar
seduzir. Portanto, para não ser seduzido, o indivíduo age com rapidez e seduz com medo de
que o outro o faça primeiro. Talvez por esse motivo, Emília só confessa o seu amor por
Augusto quando este decide desistir de amá-la: “um jogo cuja única possibilidade de empate se
chama amor”.
Parece que o olhar substitui em Emília a insistente proibição do tato. O desejo
reprimido do tato cede lugar à supremacia do olhar. Num contexto social como aquele descrito
por Alencar, sem dúvida, as mensagens enviadas pelo olhar passam a ser saborosos
ingredientes e alternativa eficaz na arte da sedução.
Em Diva, o olhar apresenta-se mais nessa função de imprimir tempero aos romances,
ele caminha lado a lado com a linguagem oral e, muitas vezes, até parece dizer mais que as
palavras proferidas pelos dois personagens principais. Nada mais natural, já que fomos
habituados a acreditar que, algumas vezes, “um olhar vale mais que mil palavras”. De braços
dados, mas nem sempre de comum acordo, palavra e olhar serão os instrumentos mais eficazes
no jogo da sedução. Aqui ele será tratado principalmente como um gesto cultural, não tanto na
dualidade material e espiritual, como vimos em Encarnação, ou num sentido metafórico, como
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proposta a uma pedagogia do olhar, como veremos em Senhora, mas simplesmente na sua
importante participação no jogo amoroso e nas relações sociais dos indivíduos do século XIX,
que Alencar também fez questão de depositar o seu olhar.
Logo nas primeiras páginas, Augusto Amaral apresenta-nos a figura insípida e sem
graça de Emília aos quatorze anos. No entanto, a menina feia e de excessiva magreza pôde
contar já nessa primeira mirada com a aguçada visão desse narrador que enxerga o presente,
mas antevê o futuro ao declarar que havia na menina o arcabouço de uma soberba mulher.
Emília tinha quatorze anos quando a vi pela primeira vez.
Era uma menina feia, mas da fealdade núbil que promete à donzela esplendores de
beleza.
Há meninas que se fazem mulheres como as rosas: passam de botão a flor:
desabrocham. Outras saem das faixas como os colibris da gema: enquanto não
emplumam são monstrinhos; depois tornam-se maravilhas ou primores.
Era Emília um colibri implume; por conseguinte um monstrinho.
[...] Entretanto, quem soubera a anatomia viva da beleza, conhecera que havia nessa
menina feia e desengraçada o arcabouço de uma soberba mulher. O esqueleto ali
estava: só carecia da encarnação. (ALENCAR, 2001, p.11-12).
Anos mais tarde e poucas páginas depois, Augusto a reencontra linda, tal qual havia
previsto e já nesse momento começa o embate de olhares dos personagens. Ele pára na porta
para admirá-la, enquanto ela desfere sobre ele um olhar de puro desdém. É interessante
perceber que não há diálogo entre os personagens nesse momento. A comunicação é feita
exclusivamente através do olhar: a admiração de um é seguida pelo desprezo do outro. Mesmo
assim, o narrador faz questão de percorrer seu olhar pelo corpo da moça, expondo aos olhares
do leitor cada um de seus detalhes.
Nessa ocasião, Emília estava de pé e só no vão da janela e tinha um livro aberto na
mão, o qual lia com atenção. Não é a primeira vez que Alencar introduz o hábito da leitura
numa de suas personagens femininas. Aurélia é leitora de Diva e dos romances de George
Sand. Lucíola lia A dama das camélias, de Dumas; Paulo e Virginia, de Bernardin de Saint-
Pierre; Atala, de Chateaubriand. Aliás, o livro é companheiro dessas mulheres e as “idéias mui
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positivas” que freqüentam seus pensamentos podem estar relacionadas ao fato de serem elas
leitoras. É por isso que o narrador diz que “Emília lia muito e já de longe penetrava o mundo
com olhar perspicaz” (Ibidem, p.19). Além disso, a figura estatutária de Emília, aos olhos do
narrador, só ganha vida pela leitura.
Visitando o negociante, vi ao entrar na sala uma linda moça, que não reconheci.
Estava só. De pé no vão da janela cheia de luz, meio reclinada ao peitoril, tinha na
mão um livro aberto e lia com atenção.
Não é possível idear nada mais puro e harmonioso do que o perfil dessa estátua de
moça.
Era alta e esbelta. Tinha um desses talhes flexíveis e lançados, que são hastes de lírio
para o rosto gentil; porém na mesma delicadeza do porte esculpiam-se os contornos
mais graciosos com firme nitidez das linhas e uma deliciosa suavidade nos relevos.
Não era alva, também não era morena. Tinha sua tez a cor das pétalas da magnólia,
quando vão desfalecendo ao beijo do sol. Mimosa cor de mulher, se a aveluda a
pubescência juvenil, e a luz côa pelo fino tecido, e um sangue puro a escumilha de
róseo matiz. A dela era assim.
Uma altivez de rainha cingia-lhe a fronte, como diadema cintilando na cabeça de um
anjo. Havia em toda a sua pessoa um quer que fosse de sublime e excelso que a
abstraía da terra. Contemplando-a naquele instante de enlevo, dir-se-ia que ela se
preparava para sua celeste ascensão.
Às vezes, porém, a impressão da leitura turbava a serena elação da sua figura, e
despertava nela a mulher. Então desferia alma por todos os poros. Os grandes olhos,
velutados de negro, rasgavam-se para dardejar as centelhas elétricas do nervoso
organismo. Nesses momentos toda ela era somente coração, porque toda ela palpitava
e sentia. (Ibidem, p. 18).
Observe que o narrador descreve uma perfeita mulher-estátua, portanto feita para ser
admirada, um verdadeiro objeto de olhar, que somente a leitura é capaz humanizar.
Mas, apesar dessa encantadora descrição da figura de Emília, a sua entrada triunfal na
sociedade e no romance não acontece logo no primeiro capítulo como em Senhora, que já na
primeira página compara Aurélia, personagem principal do romance, a um astro celeste com a
frase: “Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela” (ALENCAR, 1991, p.13). Porém,
desde o início, alguns instantes contemplando a moça já são o bastante para o narrador utilizar
mais uma vez de seu privilegiado alcance visual e se convencer de que a ascensão de Mila está
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próxima. Antes, porém, ela deve passar por um período de aprendizado. A escola de Mila não
poderia ser outra senão aquela onde as moças da época podiam tornar evidentes suas prendas e
exibir suas qualidades.
A casa de D. Matilde era uma espécie de ponto de encontro das famílias ricas da corte.
Lá, todas as noites, realizava-se uma reunião com uma parte da “boa sociedade”. Aos
domingos, era oferecido um jantar para “um círculo mais escolhido”. E, de mês em mês, a
nobre casa abria suas portas para um baile. Em suas crônicas de Ao correr da pena, Alencar já
alertara para este costume que a burguesia carioca havia importado dos hábitos europeus. As
festas, os saraus e os bailes eram as grandes diversões da época, ocupando, muitas vezes, as
horas que antes eram reservadas ao passeio público, e, como o próprio narrador de Diva diz,
qualquer pretexto poderia servir para justificar a necessidade de um baile em casa de D.
Matilde. Este ambiente foi, segundo o narrador, não apenas o lugar onde ele viveu o seu drama,
mas também, e isso é muito importante, a escola de Emília.
Gilda de Mello e Souza (2005, p.89) lembra que no pequeno intervalo entre a vida de
menina e a vida de senhora, momento em que esperavam a chegada de um marido, as moças do
século XIX entregavam-se ao aprendizado da música e das maneiras. Além disso, elas deviam
aprender regras de etiqueta, que iam desde a maneira correta de se portar diante de um homem
até a forma mais adequada de receber a corte. Nessa mesma época, intensificava-se, também, o
desenvolvimento da arte da sedução, sendo a exibição das habilidades parte dessa arte.
Portanto, não é à toa que as personagens femininas de Alencar colecionam talentos que não se
restringem à beleza corpórea e ao brilho do ouro, mas suas habilidades também são exibidas ao
tocar piano, ou mesmo, ao cantar a ária de qualquer ópera famosa; de mais, todas têm uma
queda por bailes e saraus. Mila tivera a tempo sua imaginação educada, por isso, ela desenhava
bem, não só sabia música como sabia executá-la com maestria, e mais, excedia-se em todos os
mimosos lavores de agulha.
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Interessante é perceber a visível mudança que se opera tanto no traje quanto nos
movimentos da personagem após essa tão esperada ascensão que se dá, é claro, após Mila
freqüentar algumas aulas. No primeiro capítulo temos a seguinte visão de seu gesto e traje:
Era uma boneca, desconjuntada amiúdo pelo gesto brusco e tímido.
[...] Compunha-se de um vestido liso e escorrido, que fechava o corpo como uma
bainha desde a garganta até os punhos e tornozelos; de um lenço amarrado no
pescoço; e uma das calças largas, que arrastavam, escondendo quase toda a botina.
Emília ainda assim não parecia satisfeita. Estava constantemente a encolher-se,
fazendo trejeitos para mergulhar o resto do pescoço e o queixo no talho do vestido, e
sumir as mãos no punho das mangas. Caminhando, dobrava as curvas a fim de tornar
comprida a saia curta; sentada, metia os pés por baixo da cadeira.
Tinha um cuidado extremo em puxar para a frente as longas tranças do cabelo, que
andavam sempre a dançar-lhe, como antolhos pelo rosto. Se lhe falava alguma pessoa
de intimidade da família, não lhe voltava as costas como fazia com estranhos; mas
sentia logo uma necessidade invencível de coçar a cabeça, acompanhada por um
repuxamento dos ombros. Eram modos de atravessar o braço diante do rosto e furtar o
queixo, escondendo assim o que lhe restava de fisionomia. (ALENCAR, 2002, p.11-
12)
No quarto capítulo, temos a prova de que somente freqüentando o ambiente dos salões
Emília poderia aprender a impor-se na atmosfera dos bailes. A ascensão, no entanto, se dá aos
poucos.
estava Emília.
Ainda a flor do agreste de sua gentileza não se havia aclimatado à atmosfera do baile.
Ela perdia à noite e no meio do salão ornado pelas mais elegantes formosuras da
corte. Não tinha ali nem a suave limpidez do desalinho, em que eu vira antes; nem o
fulgor radiante, que tanto admirei depois. Era o crepúsculo matutino de uma rosa, que
abotoara à noite e ainda não desatara ao sol. (Ibidem, p. 20).
A brilhante metamorfose ocorre no quinto capítulo. A descrição é realmente de fazer
despertar os mais invejosos olhares. Vejamos tal descrição:
Nessa noite ela quis ostentar-se deusa; e vestiu os fulgores da beleza, que desde então
arrastaram após si a admiração geral. Seu trajo era um primor do gênero pelo mimoso
e delicado. Trazia o vestido de alvas escumilhas, com a saia toda rofada de largos
folhos. Pequenos ramos de urze, com um só botão cor de rosa, apanhavam os fofos
transparentes, que o menor sopro fazia arfar. O forro de seda do corpinho,
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ligeiramente decotado, apenas debuxava entre a fina gaza os contornos nascentes do
gárceo colo; e dentre as nuvens de rendas das mangas só escapava a parte inferior do
mais lindo braço. (Ibidem, p.26).
No capítulo dez, a visão da aparição de Mila parece tornar-se ainda mais intensa. De
patinho feio a cisne real.
Que magnificências de luxo, que pompas, a natureza e a arte não derramavam sobre
aquela festa noturna! Um céu abriu-se ali; e a deusa dele atravessava com gesto
Olímpio a via láctea dos salões resplandescentes. Seu passo tinha o sereno deslize,
que foi o atributo da divindade; ela movia-se como o cisne sobre as águas, por uma
ligeira ondulação das formas.
A multidão afastava-se para deixá-la passar sem eclipse, na plenitude de sua beleza.
Assim, por entre o esplêndido turbilhão, ela assomava como um sorriso; e era
realmente o sorriso mimoso daquela noite esplêndida.
Eu contemplava-a de longe e arredado. Sentia-me triste. O dia inteiro, Emília,
absorvida pela festa, nem sequer notara a minha presença. Esquecia-se de si própria,
das homenagens ardentes rendidas à sua beleza, para ocupar-se exclusivamente desse
exibição de luxo e riqueza, que ela preparara como uma inspiração de artista e poeta,
como um painel ou um poema. (Ibidem, p. 47).
Não é difícil perceber nas atitudes de Mila o comportamento exibicionista\voyeurista
daquela sociedade. Chegamos, afinal, no que parece ser a grande fundamentação do romance
Diva. Tudo indica que Alencar procurou, acima de tudo, representar um ambiente símbolo
daquela sociedade, que buscava incessantemente a modernização de seus hábitos, enfim, de sua
vida. Nada melhor que o ambiente mágico e fascinante dos salões para explicitar os hábitos
exibicionistas de um segmento da sociedade que unia esforços para mostrar-se ao mundo.
Assim, a dona da casa deve triunfar no meio de suas “rivais” e aos olhos de seus
adoradores. Mesmo casada, D. Matilde precisava destacar-se, já que tinha o encargo de, através
da roupa e das jóias que usava, ostentar o status familiar, por isso, o narrador não deixa de
referir-se à sua beleza. Já as moças solteiras como Emília e Julinha tinham a oportunidade de
candidatar-se a um pretendente e a moda era realmente a mais forte aliada na hora de atrair
atenções, até porque, um dos truques da moda é justamente o de conduzir o olhar numa
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determinada direção, numa espécie de compromisso entre o exibicionismo e o seu recalque.
(SOUZA, 2005, p.93).
Em seu livro, Gilda de Mello e Souza afirma que a festa era para a sociedade com
regras restritas de decência, mais que para qualquer outra, a ruptura da rigidez dos costumes.
Momento oportuno para a prática exibicionista, na festa se permitia o negaceio, a faceirice, os
olhos quebrados atrás do leque e uma curiosa técnica de avanços e recuos, de entregas parciais,
um se dar se negando que vai caracterizar um “jogo amoroso” arriscado, mas fascinante para a
juventude da época. Daí a necessidade de dar-se em espetáculo muito comum às personagens
alencarianas, e que fica muito evidente na descrição que o narrador faz toda a vez que Mila
entrar em cena.
Ainda parafraseando Gilda de Mello, as mulheres do século XIX desenvolveram uma
espécie de estilo de existência que era nada menos que a arte de se apresentar. O elo
estabelecido entre a vestimenta e a pessoa, a maneira de usá-la em concordância com o corpo e
a alma, a ritmia de gestos que se revela ao arrepanhar das saias, do esconder-se atrás do leque,
no chegar ao corpo a mantilha ou o xale, mais do que qualquer opulência de tecidos ou
exuberância dos folhos era, sem dúvida, a essência da elegância e elemento de diferenciação
pessoal dentro do grupo. Emília sabia disso que chegava a esquecer-se de si para não se
descuidar de sua apresentação e o fato de querer ostentar-se deusa aponta para esse hábito de
exposição e de disputa que é intrínseco a qualquer sociedade moderna.
É claro que esse era, de certa forma, o momento oportuno para dar vazão aos impulsos
sexuais reprimidos. Além disso, a festa propicia encontros fortuitos, conversas a dois,
confissões veladas cheia de reticências e pode ser a antecâmara do casamento, como bem disse
Gilda de Mello (2005, p.149). No caso de Emília, que assim como as demais heroínas
alencarianas não acreditavam na possibilidade de um amor autêntico, os cortejos e os
namoricos do salão não passavam de divertimentos, de representação de sala, nada mais que
91
“paixões improvisadas numa noite e calculadas friamente no dia seguinte” (ALENCAR, 2001,
p.73).
Mais uma vez, Alencar vai explorar a trama que envolve o casamento naquele século. É
lógico que, sendo o salão o ambiente por excelência dos encontros entre os jovens, um dos
assuntos preferidos era aquele relativo ao casamento. O que pensar de uma moça que amava
seu primo a quem estava prometida e, de repente, se casa com o filho de um rico capitalista?
Augusto é o primeiro a sair em defesa da moça. O fato é que o casamento de conveniência,
como sabemos, não era nenhum crime naquela sociedade e, portanto, não havia, segundo
Augusto, nada de mal na atitude da moça que poderia muito bem ser justificada por uma “falta
de coragem da pobreza” (Ibidem, p.78). Ao contrário, assume ainda Augusto, o mal estaria em
comprar um marido. Assim, para o narrador, e este é, sem dúvida, um reflexo das idéias
daquela sociedade, o casamento por interesse não é equivalente à atitude de comprar um
marido. Observe que a atitude condenada pelo narrador de Diva será justamente aquela
utilizada por Aurélia para humilhar Fernando Seixas. O motivo? Tinha ele se casado por
interesse no dote que lhe fora prometido.
No entanto, Emília não compartilhava das mesmas idéias de Augusto e, por isso, mais
adiante, em mais um embate entre os protagonistas, tentando humilhar a moça, Augusto faz
questão de materializar todo o interesse que sentia por ela.
...Eu compreendi nessa ocasião os poetas que eu não compreendera nunca, e as suas
comparações minerais... Vi que seus dentes mimosos eram realmente pérolas de
Ceilão, seus lábios rubis de Ofir, e seus olhos diamantes da melhor água! Sua voz
argentina tinha aos meus ouvidos essa melodia inefável, que nem Rossini nem Verdi
puderam ainda imitar, a melodia do ouro... do ouro, a senhora bem sabe, a lira de
Orfeu deste século!... Oh! que paixão, D. Emília! Era um delírio... uma loucura... Foi
então que eu não pude mais resistir e confessei-lhe que a amava! (Ibidem, p. 81).
Como não poderia ser diferente, o ambiente de maior relevância no embate entre os
personagens Augusto e Emília será o dos bailes e saraus promovidos em casa de D. Matilde, tia
92
da moça. O próprio narrador declara o valor de escola que estas reuniões desempenharam para
Emília, ao imprimirem os últimos toques à beleza especial da moça. Ali, a boa aluna aprimora
seus dotes no convívio social. Segundo o narrador, da mesma forma que o pintor só adquire na
tela o tato fino e o suave colorido, a mulher o adquire na sala, que é tela para sua formosura e
Mila não copiara nem imitara, mas com seu gosto apurado criou em si um molde próprio e
original para sua elegância.
A beleza em perfeita comunhão com o luxo já seria uma união capaz de provocar o
brilho necessário para atrair o interesse e a admiração de qualquer um que experimentasse se
aproximar e Mila conjugava essas duas opulências com o primor de um verdadeiro artista. Do
olhar, porém, ela faz sua arma mais traiçoeira. Seja para incendiar ou congelar, é no olhar da
personagem que se configuram e se ocultam os seus desígnios e cálculos. Assim, o traço mais
marcante de sua fisionomia será, sem dúvida, os olhos, com sua capacidade de cobrir e
encobrir sentimentos, mas também meio de dominar. Segundo o narrador, essa moça carregava
em seus olhares uma atração imperiosa e irresistível que carregavam um homem, o prendiam e
o levavam cativo e submisso a seus pés (Ibidem, p.27). A luz de seus olhos era tão forte que
impedia o entendimento e cegava. Lembre-se de que a luz quando excessiva perde sua função
de revelar o mundo, podendo até mesmo ocultá-lo.
O que temos então é, de um lado, uma heroína capaz de, com um simples, mas não
inocente ou desinteressado olhar, atrair as mais dedicadas atenções para si. Porém, aos olhares
atraídos pelo clarão da beleza e da riqueza dessa mulher só é permitido enxergar a carcaça,
ficando impedidos de atravessar-lhe o brilho corpóreo.
Do outro lado, encontramos um narrador que mostra, no decorrer da narrativa, a sua
capacidade de antever situações ou antecipar o futuro. Augusto age de longe e
disfarçadamente, atento às reações de Emília, sempre pronto a descobrir seu ponto vulnerável.
Ele anseia ultrapassar o brilho corpóreo, ele busca desvendar a esfinge. A própria Emília
93
reconhece a grande capacidade visual de Augusto ao afirmar que ele enxergava muito e de
longe (Ibidem, p. 31). Chega até a alugar uma chácara próxima à casa de Emília, num ponto
estratégico, de onde ele pode observar os movimentos da amada. Mas também procura vê-la de
perto, acompanhá-la com o olhar, fazendo-se tão perturbador quanto ela.
O embate desses dois olhares será determinante e recorrente em toda a narrativa. “Nós
cruzamos um olhar, como dois adversários cruzam o ferro, começando o combate”, diz
Augusto em um dado momento. Assim, Augusto olha, observa, contempla, corteja, estuda,
admira e espia; enquanto Emília lança seu olhar provocador, olhar fulgurante de pura cólera,
olhar desdenhoso, olhar de atração imperiosa e irresistível, olhar frio e gelado, olhar de Juno
irritada, olhar inescrutável e insaciável, olhar que fixa, tiraniza, afronta, enfim, que aniquila e
traga a vítima. O sentimento provocado pelo cruzamento desses olhares não poderia ser outro
senão de confusão e contrariedade. Assim, toda vez que Augusto tentar se aproximar de
Emília, ela passará de encanto a glacialidade. “È como se existissem duas Emílias”, diz o
narrador, “uma para o desprezo e outra para o amor” (Ibidem, p.68). Daí as dissonâncias de
que é feita essa mulher: que com o olhar macio acaricia com delícias, mas que impõem
obediência; que lança um “meigo império do olhar”; que tem olhos que deslumbram, mas
ferem e que convida pela independência de seus costumes, mas afasta e cria barreiras na sua
castidade fria. Mas este narrador também não estará livre da confusão de sentimentos e pode
muito bem admirá-la com olhos de maldição ou desprezá-la no mesmo instante que a admira.
Além do espaço dos salões, e justaposto a ele, o espaço natural exercerá influência no
caráter da protagonista. Lugar dos encontros secretos de Mila e Augusto, a natureza serve de
pano de fundo para alguns momentos de grande relevância na história. Aliás, para compreender
o comportamento contraditório da personagem, é necessário antes pensar nestes dois espaços
principais que compõem a narrativa. Emília divide-se entre o contato profundo com a natureza
94
e a sede febril do gigante urbano. A terra em contraste com a vida mundana produz o efeito
dissonântico de sua personalidade, uma vez que os opostos permitem visualizações diversas.
A presença constante do olhar estará presente, como podemos ver, também nesse
romance urbano onde todo o glamour dos bailes e o espetáculo da vida mundana são bastante
intensos. A riqueza de expressões visuais que freqüentam os capítulos dessa narrativa contribui
e muito para elucidar a maneira como aquele século viveu o início da modernidade.
Certamente que a busca pela real independência e o desejo de mostrar ao mundo uma nação tão
moderna quanto alguns países europeus estimulam essa característica escópica da sociedade. É
quando no mesmo instante em que o indivíduo lança seu olhar ao mundo, ele descobre-se
objeto visível ao olhar do mundo.
2.3- A ingrata separação entre o ser e o parecer: a pedagogia do olhar em Senhora
_Agora nós dois!” (Honoré de Balzac
2
).
Há anos raiou no céu fluminense um novo romance.
Desde o momento de sua publicação nenhum outro lhe disputou o cetro. Tornou-se o
queridinho dos críticos e o mais comentado dos romances urbanos de seu autor.
Era rico e encantador.
Não há como não reconhecer nessas palavras um esboço da fantástica apresentação
feita pelo narrador de Senhora (ALENCAR, 1991)
3
da rica e formosa Aurélia Camargo,
personagem principal do romance. Publicado em 1875, Senhora ocupa um lugar privilegiado
na galeria dos romances de Alencar. Em meio a críticas e elogios, o romance não passou
despercebido e, até hoje, junto com O Guarani, Iracema e Lucíola, reúne a fortuna crítica de
2
Balzac, Honoré de. O pai Goriot. Trad. Sérgio Rubens. RJ: Ediouro, 1994, p. 221.
3
O texto original encontra-se no início da primeira parte do romance da seguinte forma:
“Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela.
Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclamada a rainha dos salões.
Tornou-se a rainha dos bailes; musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade.
Era rica e formosa.”
95
maior relevância do escritor cearense. Talvez devido ao fato de ser ele o romance mais realista
do escritor e, por isso, aquele em que a modernidade lateja com um pouco mais de intensidade,
apesar do tom idealista do final, ou ainda pelo fato de apresentar uma estrutura mais complexa
e, por isso, ser considerado de qualidade superior aos demais. É também o terceiro e último dos
perfis de mulher” e, como em Lucíola e Diva, G.M. é a responsável pela publicação, embora
desta vez apareça uma nota Ao Leitor assinada por J. de Al..
Numa organização predominantemente teatral por vezes o narrador chama a história
de drama, os personagens de atores e suas atitudes de representação o discurso narrativo de
Senhora se faz cúmplice do tecido imagístico sendo, portanto, impossível separar a linguagem
da imagem que a acompanha. Daí a importância das inúmeras descrições que o narrador faz ao
longo do romance: a câmara nupcial, o contraste dos móveis simples e velhos da casa de
Fernando Seixas com a sofisticação dos objetos de uso pessoal do rapaz, as fantásticas
aparições de Aurélia nos salões e festas e, principalmente, as indicações sugeridas pelo olhar
da personagem que ora revela a meiguice e a ternura, ora castiga com desprezo e provoca com
escárnio.
Neste romance, o narrador não habita o universo dos personagens, diferente dos outros
romances que compõem os perfis, que tinham narradores envolvidos emocionalmente com os
fatos narrados, numa espécie de livro de memórias. No entanto, é o próprio José de Alencar
que tenta convencer seus leitores da veracidade dos fatos que serão narrados, mesmo
confessando a indeterminação do doador do relato e assumindo a intromissão do autor na
correção da forma e no lavor literário do livro:
Este livro, como os dois que os precederam, não são da própria lavra do escritor, a
quem geralmente os atribuem.
A história é verdadeira; e a narração vem de pessoa que recebeu diretamente, e em
circunstância que ignoro, a confidência dos próprios atores desse drama curioso.
O suposto autor não passa rigorosamente de editor. É certo que tomando a si o
encargo de corrigir a forma e dar-lhe um lavor literário, de algum modo apropria-se
não a obra mas o livro. (ALENCAR, 1991, p.11).
96
Ainda na nota introdutória Ao leitor, Alencar comenta a presença de certo exagero
imaginativo também do escritor, causa dos “quadros mais plásticos” e das “tintas vivas e
cintilantes”. Aqui, fica registrada mais uma vez a perspicácia de Alencar que, ao mesmo tempo
em que afirma ser verdadeira a história, não demonstra resistência em declarar que o trabalho
do escritor foi realizado. O que interessa é que a verdade artística
4
está preservada.
Há no livro um outro anexo. Dessa vez, trata-se da correspondência entre duas amigas,
que seriam, supostamente, duas leitoras do romance. Acontece que a leitura de Senhora teria
suscitado duas cartas publicadas no folhetim do Jornal do Comércio. Nelas, D. Paula Almeida
expunha a sua opinião sobre o romance. Mais tarde, o mesmo jornal publicaria a carta de Elisa
do Vale. Somente esta aparece reproduzida no anexo, contudo, o grau de intimidade entre as
duas leitoras é sugerido pelo tom afetuoso com que Elisa se dirige a Paula. Da mesma forma, é
possível imaginar o conteúdo das cartas de D. Paula Almeida nas palavras de Elisa do Vale. A
carta de Elisa é uma carta-resposta, onde ela rebate a supostas críticas de Paula ao romance.
O curioso, entretanto, é considerar a intenção de Alencar de, antecipadamente, oferecer
respostas às possíveis críticas ao seu romance. Além disso, o anexo também pode ser
considerado uma tentativa do autor de recuperar a idéia de relação pessoal que existia em
Lucíola e Diva do emissor com o destinatário, embora, desta vez, a relação se dê entre duas
leitoras, ou melhor, duas receptoras.
No último “perfil” fica ainda mais nítida a idéia do olhar como o grande mediador do
sujeito com o mundo. Além do olhar onisciente do narrador e do olhar interessado do leitor,
Aurélia conta ainda com os olhares ardentes e cúpidos de seus pretendentes e os olhares
curiosos e maledicentes da opinião pública formada pelas senhoras que julgavam inadequados
4
A seção 1.2 do primeiro capítulo do presente trabalho foi dedicada ao ofício do escritor e sua busca pela
qualidade do seu olhar. Ali, podemos encontrar um conceito de Baudelaire que define bem o que queremos dizer
com a expressão “verdade artística”. Baudelaire acreditava que o artista que representa não o que sonha, mas o
que vê, acaba matando em si o homem que pensa e sente. A “verdade artística” seria, então, o que resulta da
união entre a realidade e o sonho, entre a memória e a imaginação.
97
os modos desenvoltos da moça e por suas rivais que invejavam o sucesso que a moça fazia na
sociedade e permaneciam atentas a qualquer descuido de Aurélia.
As rótulas das janelas, de onde é possível ver e se dar a ver; os salões de onde emergem
as mais luxuosas festas e universo preferido para provocar admirações, arrancar elogios e
vivenciar a vertigem da valsa; o Cassino e o Teatro Lírico, espaços de lazer, mas também de
ver, mirar, espiar, contemplar sem que ao menos o outro perceba; todos esses espaços estão
presentes na narrativa, garantindo ao olhar o lugar privilegiado que com certeza ele ocupa na
sociedade da época.
E mais, a paixão dos personagens começa com uma fatal troca de olhares: “Quando,
porém, Aurélia enrubescendo volveu o rosto, e seus grandes olhos nublaram-se de uma névoa
diáfana ao encontrar a vista escrutadora que lhe estava cinzelando o perfil, não se pôde conter
Fernando...” (Ibidem, p. 78).
Ainda pobre, Aurélia, atendendo a um pedido da mãe, que se encontrava doente e não
suportava a idéia de morrer e deixar a filha sem o “natural e eficaz apoio de um marido”, põe-
se, ou melhor, expõe-se à janela para exibir sua beleza e ser cobiçada pelos moços que,
porventura, passassem por ali: “Foi um suplício cruel essa exposição de sua beleza com a mira
no casamento. Venceu a repugnância que lhe inspirava semelhante amostra de balcão, e
submeteu-se à humilhação...” (Ibidem, p.74).
Já rica, ela deve continuar exibindo sua beleza, mas agora, com ela, a ostentação do
luxo e o brilho do ouro renderão espetaculosas aparições capazes de atrair para si uma multidão
de olhares admirados. A reação da sociedade ante as aparições de Aurélia é digna de nota:
“... apareceu na sala a Aurélia Camargo, que chegava naquele instante. Sua entrada
foi como sempre um deslumbramento; todos os olhos voltaram-se para ela e pela
numerosa e brilhante sociedade ali reunida passou o frêmito das fortes sensações.
Parecia que o baile se ajoelhava para recebê-la com o fervor da adoração”.(Ibidem,
p.49).
98
Outro momento em que é possível reconhecer uma forte predominância do olhar
enquanto meio de revelação ou dissimulação dos desejos e sentimentos é registrado no
constante movimento dos personagens do espaço público para o espaço privado e vice-versa.
Tentando disfarçar a verdadeira identidade da relação e a conseqüente infelicidade do casal, em
cena pública o semblante deve ser de plena felicidade. Aurélia deve ser amável e disfarçar a
tristeza que habita em sua alma e, para isso, seus olhos não podem ser as janelas de sua alma.
Já Fernando precisa ser atencioso e carinhoso, ainda que humilhado e espezinhado pela
situação. Ele também não pode consentir que seus olhos revelem o que se passa em sua alma.
Esse é um dos motivos pelo qual Fernando não convida sua família para visitá-lo:
Não passou despercebida a Aurélia essa esquivança da família do marido. Uma tarde
em que Seixas recebeu à sua vista um bilhete de Nicota, ela o interpelou:
_Sua família depois da noite de nosso casamento nunca mais voltou a esta casa! Será
por meu respeito?
_Não; o culpado sou eu que nunca lhes falei nisso.
_E por quê?
_Julgam-me feliz. Não quero roubar-lhes essa doce ilusão.
_Aqueles que nos visitam e freqüentamos não andam iludidos?
_São indiferentes. Olhos de mãe lêem n’alma do filho como em livro aberto: aquilo
que não vêem, adivinham.
_Quer fazer uma aposta?
_Sobre?
_Sou capaz de enganá-la como tenho enganado a todos.
_É possível, ela não é sua mãe. (Ibidem, p.140).
Nos momentos em que os dois se encontram a sós, longe da companhia de D. Firmina,
ou mesmo escondidos pela folhagem, já não há necessidade de mentir, dissimular ou disfarçar
uma felicidade que não existe. Assim, nada impede que Aurélia, “fitando de chofre o olhar no
semblante do marido” (Ibidem, p.122), desfira sobre ele “um olhar frio de interrogação”
(Ibidem, p.115), impondo-lhe “o império de seu olhar de rainha” (Ibidem, p.125). O fato é que
mesmo assim a representação continua, agora para não permitir que o outro perceba o afeto e o
desejo que insistem em se revelar: “Aurélia no afogo destas palavras que lhe brotavam do seio
99
agitado, retirara a mão do braço de Seixas, ao terminar voltara-se rapidamente para esconder a
veemência do afeto que lhe incendiara o olhar e as faces” (Ibidem, p.123).
Além disso, mesmo na esfera privada é possível a invasão dos olhares curiosos e
maliciosos da opinião pública.
Depois do lanche, Aurélia convidou o marido para darem uma volta pelo jardim; mas
havia senhoras nas janelas da vizinhança, e a moça não quis expor-se aos olhares
curiosos. Ela não era noiva feliz e amada, mas as outras supunham, e tanto bastava
para que seu pudor a recatasse às vistas dos estranhos.(Ibidem, p. 112).
Com discreta malícia, a pretexto de procurar o lenço fazia menção de voltar-se para
gozar do prazer de assustar os dois pombinhos. Então percebia um leve rumor;
cuidando que eles se afastavam, quando ao contrário fingiam ocupar-se um do outro,
para não traírem sua mútua indiferença. (Ibidem, p. 116).
Está confirmado: o voyeurismo não é uma prática exclusiva do século XXI. Aliás,
Fernando Seixas é o protagonista de uma das cenas mais voyeur do romance. Vejamos:
Um impulso de curiosidade o dominou. Correu à porta que o separava da câmara
nupcial e dos aposentos da mulher. [...] Que fazer?
Agitado pela idéia terrível que o assaltava, deu a esmo algumas voltas pelo aposento,
numa perplexidade cruel. Seu olhar que não deixava a porta, notou um esguicho de
luz no fim do corredor escuro, e conheceu que saía pela greta da fechadura.
Aproximou-se cautelosamente e sem rumor. Pelo recorte da chave pôde ver na parede
fronteira um quarto iluminado que se destacava no crepúsculo da câmara nupcial. Era
o espelho colocado sobre a jardineira de mármore, que refletia obliquamente pela
porta aberta uma faixa de outro gabinete.
Essa zona abrangia um divã onde nesse instante destacava-se do brocado verde a
estátua de Aurélia, deitada como o alto-relevo que outrora ornava as campas dos
nobres. Envolvia o corpo da moça um roupão de cambraia, cujas pregas caíam sobre o
tapete semelhante aos borbotões da nívea espuma de uma cascata, e deixavam-lhe o
talho debuxado sob a fina teia de linho.
[...] em seu tocador, Aurélia tinha febre: febre da paixão que a abrasava. Abriu todas
as portas e janelas, atirou-se vestida como estava sobre o divã, e ali ficou imóvel,
como vira Seixas pela broca da fechadura.
Assustado com essa imobilidade, o marido ia bater, quando a mucama atravessou por
diante do quadro iluminado, o qual apagou-se de repente. Fechara-se a porta do
toucador, refletida no espelho. (Ibidem, 136-137)
Voltando ao notório interesse que a sociedade nutria pela vida de Aurélia e Fernando,
cabe alertar que ele não deve ser justificado apenas como uma curiosidade natural e inocente,
mas toda essa especulação se deve ao fato de ser Aurélia detentora de atributos que a sociedade
da época insiste em idolatrar: ela é rica e formosa. Aurélia é uma celebridade do século XIX.
Ela representa muito bem todo aquele glamour que a sociedade acreditava ser o símbolo da
modernidade. Daí os muitos adjetivos e elogios confiados a ela pelo narrador logo nos
primeiros parágrafos do romance.
Mas, ao contrário do que seria natural imaginar, Aurélia não sente prazer em toda essa
adoração que a acompanha nos salões. A intenção dela ao exibir-se é exclusivamente a de
oferecer ao mundo a criatura que ele mesmo criou: “_Assim o mundo achará em mim a sua
criatura; a mulher que festeja e enche de adorações. Eu serei para ele o que ele me fez”
(Ibidem, p.119). Aurélia reconhece todos os mecanismos de fingimento que envolvem a vida
social e não os tolera porque sabe que as sedas que cobrem suas carnes e os adornos que
enfeitam o seu corpo, aos olhos do mundo, têm mais valor que sua pessoa e sua alma. Porém, o
que Aurélia despreza não é o dinheiro e a comodidade que ele proporciona, mas a idolatria que
o acompanha; tanto é que em momento nenhum ela pensa em renunciar a sua herança, nem
mesmo após ter cumprido o seu projeto de desnudamento da estrutura social contra aquele que,
para ela, foi o símbolo da tirania embutida naquele comportamento.
Parece que essa era a mensagem que Alencar propunha ao escrever o romance. A
riqueza não precisa ser extinta, suas vantagens são importantes desde que a relação dos homens
com ela não seja sobreposta à relação autêntica entre os indivíduos. Para isso, é necessário
reformular os valores que regem a vida da nova sociedade fluminense.
Assim, o poder persuasivo do dinheiro, gerador de um conflito já bastante conhecido da
sociedade da época entre o sentimento e a ascensão social, o afã de parecer aquilo que deseja
ser, mas que está longe de coincidir com a realidade e a mercantilização das relações
pessoais são apenas alguns dos efeitos da modernidade sob a ótica do romantismo brasileiro e
que fazem deste um romance que merece a leitura atenta destes fatores que compõem a vida
social da corte fluminense.
A paixão pela arte da leitura e a atenção às indicações do escritor aos conflitos inerentes
a uma sociedade dividida entre a fortuna e o sentimento são as armas necessárias para
compreendermos melhor o texto de Alencar.
Retomemos, então, à frase em epígrafe. Ela parece um bom começo para adentrarmos
nas idéias contidas nesse importante romance de Alencar. E o motivo não é difícil de entender:
O pai Goriot foi o primeiro grande romance de Balzac e é do personagem Eugène
Rastignac a frase: “_ Agora nós dois!”. Rastignac é um jovem provinciano que, em Paris,
busca sucesso e ascensão social. A inexperiência do rapaz logo no início do romance o leva a
ouvir alguns conselhos que revelam, sobretudo, os mecanismos e as leis que regem aquela
cidade. A primeira a lhe prestar tal favor é a Madame de Beauséant, que tem o segredo para
quem deseja galgar os degraus do sucesso social:
_ Pois bem, senhor de Rastignac. Trate este mundo como ele o merece. Se o senhor
quiser triunfar, eu o ajudarei. O senhor sondará quão profunda é a corrupção
feminina, medirá o tamanho da miserável vaidade dos homens. [...] Quanto mais
friamente o senhor calcular, mais longe irá. Fira sem piedade e será temido. Aceite
homens e mulheres como se fossem cavalos de posta que serão abandonados mortos a
cada troca e chegará assim ao apogeu de seus desejos.[...] Se algum dia amar, guarde
bem seu segredo! [...] O senhor fará sucesso, e em Paris o sucesso é tudo, é a chave
do poder (BALZAC, 1994, p.68-69) .
Vautrin, outro personagem chave da ficção balzaquiana, e que também terá espaço em
outros romances do autor francês, possui, assim como Madame de Beauséant, a solução para se
chegar bem rápido à fortuna:
Êxito! Êxito a qualquer preço.[...] Uma fortuna rápida é o problema que se propõe a
resolver, neste momento, cinqüenta mil jovens que se encontram na sua situação.
[...]Considerando-se que não há cinqüenta mil bons lugares, serão obrigados a se
devorar uns aos outros como aranhas num jarro. Sabe como faz carreira aqui? Pelo
brilho da inteligência ou pela destreza da corrupção. [...] A honestidade não vale nada.
[...] A corrupção representa uma força, o talento é raro. [...] Se, porém, o senhor
quiser logo a fortuna, é preciso já ser rico ou parecê-lo. [...]. Não há princípios, há só
acontecimentos. Não há leis, há apenas circunstâncias. (Ibidem, p.89-93).
As palavras de Vautrin e de Madame de Beauséant apresentam a realidade nua da
cidade de Paris do século XIX. Cidade movida pela busca do dinheiro e do prazer. Cidade que
desfaz costumes, subverte valores e estabelece novas regras de conduta. Cidade um pouco
cínica e amoral, onde “não há princípios, só circunstâncias”. Cidade de desastre para uns e
glória para outros.
Note que, até então, o jovem Rastignac é apenas um iniciante, um provinciano
pretendente ao posto de arrivista social, cujo único grande pecado ainda está em utilizar o dote
das irmãs para fazer figura na sociedade parisiense. No entanto, é na frase final do romance
quando do alto do cemitério Père Lachaise, a admirar Paris, tendo acompanhado o enterro
melancólico e solitário do velho pai Goriot, que passou a vida na mais absurda miséria para dar
às filhas uma vida de luxo, que Rastignac parece compreender os códigos daquela cidade.
Provavelmente, a história da vida de pai Goriot ensinou mais que qualquer conselho o que
significava calcular friamente e o quanto aquela sociedade podia ser cruel com aqueles que não
comungavam da mesma ambição e adoração pela fortuna.
_Agora nós dois!” é mais que uma promessa, é um desafio àquela sociedade. Começa
a partir daquele momento a verdadeira aventura de Eugène Rastignac no monstro sedutor
chamado Paris. A vista da cidade é o cenário ideal para o moço lançar seu desafio à cidade e
um olhar que mais parecia “sugar antecipadamente o mel daquela colméia zumbidora”
(Ibidem, p.221). É também o momento oportuno para Balzac dar cabo à história. Em seu
romance, assim como na moderna cidade de Paris, não há lugar para arrependimentos nem
culpas, não há espaço para regenerações ou necessidade de autenticidade. A vida tem que
continuar.
Podemos identificar em Senhora alguns pontos em comum com o romance de Balzac,
até porque, como vimos nos capítulos anteriores, a cidade carioca espelhava-se na moderna
cidade de Paris, tanto em seu aspecto urbano quanto em seu aspecto social, para alcançar a
modernidade sonhada. Desse modo, dadas as proporções da metrópole parisiense e da ainda
pretensa moderna cidade carioca, Alencar também aborda uma sociedade marcada pela
idolatria do dinheiro, o que já fica registrado nos títulos de cada uma das quatro partes que
compõem o livro.
Usando um vocabulário próprio das transações comerciais, Alencar as denomina Preço,
Quitação, Posse e Resgate. O fato é que a transação comercial aqui não se refere a uma
simples negociação material, e sim, a um casamento. A partir daí, não será demais imaginar
que o interesse financeiro já invadiu o nível das relações humanas. Portanto, não estranhe o
leitor se a formosura de Aurélia, antes da herança, não é suficiente para despertar qualquer
interesse matrimonial nos moços, mas a união desta com a riqueza da moça a torna “deusa dos
salões; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade (ALENCAR, op.cit., p.13.).
Ou que Alfredo Moreira, um dos muitos admiradores da moça, pareça natural ao afirmar que
Aurélia não fala, tine como ouro”. (Ibidem, p.41). Ou ainda se deparar com a heroína do
romance indicando o merecimento relativo de cada um de seus pretendentes com um valor
monetário.
Obedecendo a ordem natural dos fatos, o romance parece bem simples: Aurélia
Camargo, moça bela e pobre, é cortejada por Fernando Seixas, rapaz da moda, com
sensibilidade fidalga e poética, porém também fraco e pouco autêntico, que sofre influências da
sociedade em que vive.
Logo, Seixas revela-se um pequeno crápula, trocando Aurélia pelo dote de trinta contos
de outra mulher. Acontece que, inesperadamente, Aurélia recebe enorme herança e decide
executar uma vingança contra esse homem que a enganou, exercendo seu direito de comprar
um marido, oferecendo-lhe um dote ainda maior.
O casamento é realizado com todas as formalidades comerciais dinheiro,
documentação, assinatura e posse da mercadoria e é somente na noite de núpcias que
Fernando fica conhecendo a autora da proposta e agora, como ela mesma faz questão de se
denominar, sua dona.
Alencar, no entanto, prefere alterar esta ordem, apresentando primeiro a entrada de
Aurélia nos salões e o deslumbramento da sociedade diante da indiscutível majestade da moça.
Preço é o título da primeira parte e nela, o narrador não fala apenas de uma quantia que
permite a uma moça solteira e rica do século XIX comprar um marido, mas, de igual modo, o
preço que ela tem que pagar por ser um simulacro do ouro.
Somente na segunda parte do romance é possível conhecer o passado de Aurélia, os
motivos da visível mágoa da jovem e a dívida que Fernando adquiriu nesse passado. Em
Quitação, também é possível identificar a natureza econômica da relação entre os indivíduos
que já aparece tão claramente no capítulo anterior; sendo que, desta vez, a situação de Aurélia
está invertida. Ela é pobre e experimenta o sabor amargo de ser fruto de um casamento
clandestino, órfã de pai e arrimo único da família. Seu “valor de troca” no mercado nesse
momento ainda é baixo.
Assim, podemos considerar que tanto a primeira quanto a segunda parte apreendem a
lei social que evidencia o indivíduo enquanto mercadoria disponível no mercado do mundo.
Por isso, a proposta da compra de um marido é encarada com frieza pelo encarregado
da “negociação” e tutor de Aurélia. O Sr. Lemos conhece muito bem os vícios daquela
sociedade e a maneira natural com que esta encara o casamento arranjado, principalmente
quando este garante a uma das partes a possibilidade de ascensão social. E é justamente por
esse motivo que ele, desde o primeiro instante, considera impossível que “um moço em
perfeito juízo” repelisse a “fortuna honesta” que lhe batia a porta de repente.
É curioso perceber que, mesmo sem nenhum constrangimento e considerando natural
tanto a atitude da sobrinha quanto o previsível consentimento de Fernando, Lemos não deixa
de usar palavras que revelam a crueldade de um comportamento social ao cantar
antecipadamente a vitória de sua missão:
_ Não se recusam cem contos de réis, pensava ele, sem razão sólida, uma razão
prática. O Seixas não a tem; pois não considero como tal essas palavras ocas de
tráfico e mercado, que não passam de um disparate. Queria que me dissessem os
senhores moralistas o que é esta vida senão uma quitanda? Desde que nasce um pobre
diabo até que o leva a breca não faz outra coisa senão comprar e vender? Para nascer
é preciso dinheiro, e para morrer ainda mais dinheiro. Os ricos alugam os seus
capitais; os pobres alugam-se a si, enquanto não se vendem de uma vez, salvo o
direito do estelionato. (Ibidem, p. 42)
Mesmo sem receber conselhos como os de Vautrin e Madame Beauséant, Aurélia e sua
mãe de encomenda, D. Firmina Mascarenhas, também reconhecem que é irresistível a
“eloqüência do ouro”, capaz de embelezar ou embriagar muita gente que “sofre” da atração do
dinheiro:
_[...]Então não sabe, D. Firmina, que eu tenho um estilo de ouro, o mais sublime de
todos os estilos, a cuja eloqüência arrebatadora não se resiste?
_ [...] o dinheiro faz do feio bonito, e dá tudo, até saúde.
_ [...] o ouro tem uma fumaça invisível, que embriaga ainda mais do que a do charuto
de Havana. (Ibidem, p. 18).
Fernando Seixas, por exemplo, é um dos que sofrem deste mal. Inclusive, Seixas parece
manter um certo parentesco com o personagem balzaquiano Eugène Rastignac, a começar pelo
fato de os dois se encantarem tanto pela vida de luxo, a ponto de estirpar o dote das próprias
irmãs em favor desse capricho.
Órfão de pai desde os dezoito anos, Fernando Seixas vive com a mãe e as duas irmãs.
Desde então, a família conta apenas com os juros semestrais de cerca de doze contos de réis, o
aluguel de dois dos quatro escravos deixados pelo pai e também de algumas costuras da mãe e
das duas moças. Fernando não pegou para si a responsabilidade da família, como era comum
nesses casos, não participava das despesas da casa e ainda dependia da ajuda das economias da
mãe e das irmãs para manter a vida na sociedade. Em casa, o rapaz compartilhava da pobreza e
dos escassos recursos com que contava a família. No entanto, fora dali, era rapaz da moda,
freqüentava o Cassino, o Teatro Lírico e os bailes e reuniões em casa de gente da alta
sociedade:
Foi assim que Seixas insensivelmente afez-se à dupla existência, que de dia em dia
mais se destacava. Homem de família no interior da casa, partilhando com a mãe e as
irmãs a pobreza herdada, tinha na sociedade, onde aparecia sobre si, a representação
de um moço rico. (Ibidem, p. 35).
Outro aspecto importante dessa dupla existência do rapaz é a forma como Fernando
Seixas tenta serenar qualquer dúvida quanto às boas intenções de seu comportamento. Seu
raciocínio é longo, mas bastante lógico para aquela sociedade capitalista fundada no interesse
econômico:
Freqüentando assiduamente e com algum brilho a sociedade, adquirindo relações e
cultivando a amizade de pessoas influentes que o acolhiam com distinção, era natural
que ele, Seixas, fizesse uma bonita carreira. Poderia de um momento para outro
arranjar um casamento vantajoso, como tinham conseguido muitos que não estavam
em tão favoráveis condições. Não era difícil também que de repente se lhe abrisse
essa estrada real da ambição, que se chama política.
Uma vez rico e ilustre, montaria sua casa com um estado correspondente à sua
posição.
Então sua família participaria não só dos gozos materiais desse viver opulento, como
do brilho e prestígio de seu nome. O trato da sociedade lhes imprimiria o cunho de
distinção de que precisavam para bem se apresentarem. Casaria as duas irmãs
vantajosamente; faria assim a felicidade de todos esses entes queridos confiados a seu
desvelo.
Se ao contrário, ele, Seixas se onerasse desde logo, no princípio de sua carreira, com
o peso da família, prendendo-se à vida obscura de que não podia tirá-la ainda mesmo
com sacrifício de todos seus rendimentos, que outra coisa devia esperar senão vegetar
na penumbra da mediania e consumir esterilmente sua mocidade? (Ibidem, p. 38)
Isso significa que Fernando Seixas não explorava o trabalho da mãe e das irmãs para
viver do bom e do melhor que a sociedade tinha a oferecer, pelo contrário, elas é que estavam
aplicando uma pequena quantia para mais tarde resgatá-la em proporções muito maiores! Não
seria esse raciocínio de Seixas o que Madame de Beauséaunt chamava de calcular friamente?
O mais interessante é que no parágrafo seguinte o narrador diz que tais pensamentos
dissiparam os escrúpulos do rapaz, convicto de que continuar freqüentando a sociedade não
era apenas uma ambição nobre, mas o penhor único da felicidade da família.
Lembra-se das palavras de Vautrin a Rastignac? “Se, porém, o senhor quiser logo a
fortuna é preciso já ser rico ou parecê-lo”. Seixas não nasceu rico, mas precisava parecer rico
para conseguir fortuna.
Como é possível perceber, as idéias contidas em Senhora não são muito diferentes
daquelas que Balzac sustentou em O pai Goriot. Isso porque tanto Balzac quanto Alencar
mantiveram um olhar voltado para a realidade de seu tempo. Contudo, a diferença está na
forma como os dois autores vão conduzir seus romances ao desfecho. Se Balzac persiste até o
fim com o realismo em seu romance, Alencar prefere acreditar na possibilidade de redenção de
seus personagens.
No artigo O olhar iluminista” (In: NOVAES, 2003, p. 125-148), Sergio Paulo Rouanet
aponta algumas características do que ele denominou de olhar ilustrado
5
e que pode nos
interessar nesse momento. Para Rouanet, a máxima da Ilustração estaria na frase: “é preciso
ver tudo” e “é necessário olhar corretamente o que se quer ver”. Daí a necessidade de se ter um
olhar educado, um olhar capaz de ver todas as coisas.
A Ilustração parte do princípio de que, de um modo geral, o olhar não está preparado
para ver, ou melhor, ele foi instruído para não ver. Seria, portanto, uma cegueira social que
5
O autor faz a distinção entre Iluminismo e Ilustração no artigo citado. Segundo ele, o primeiro seria uma
tendência transepocal que visa combater o mito e o poder, enquanto a Ilustração seria a matriz do pensamento
iluminista que ocorreu no século XVIII.
pode ser corrigida pela educação. Dessa forma, é correto dizer que a Ilustração defende uma
pedagogia do olhar que possibilite a recuperação do direito de ver.
Alencar parece compartilhar dessa idéia do “pensamento ilustrado” quando aborda em
seus romances urbanos e, especialmente em Senhora, os conflitos e as tramas sociais
decorrentes de uma visão materialista do mundo, capaz de “coisificar” as relações humanas.
Ou ainda quando conduz a história de seus personagens por um caminho que irá resultar na
recuperação da visão daqueles “tornados cegos” pelos encantamentos do mundo capitalista.
A verdade é que tanto Aurélia Camargo quanto Fernando Seixas são vítimas da
sociedade por vivenciarem um conflito que não foi criado por eles, mas que está arraigado nas
novas formas de vivência que a modernidade impõe. Assim, convivendo constantemente com a
contradição entre sentimentos legítimos e as estratégias que compõem a vida social, eles são
forçados a ceder aos mecanismos de fingimento que, conseqüentemente, acarretam uma nova
tensão, agora, entre o ser e o parecer. Fernando Seixas, como vimos, precisa parecer rico e
sofisticado para ter o privilégio de freqüentar a sociedade, Aurélia precisa aparecer linda para a
sociedade que a humilhou e disposta a apresentar o mesmo comportamento do qual ela foi
vítima; juntos, eles devem parecer felizes, embora a solidão seja o único caminho possível para
reencontrar seus valores mais íntimos e iniciar uma nova caminhada.
Como qualquer outro representante do romantismo, Alencar estará atento a tudo isso e
seu compromisso é fornecer esse caminho de volta. O Fernando Seixas que conhecemos na
primeira e na segunda partes do romance é um produto da sociedade. Seus olhos não
conseguem enxergar crueldade alguma no fato de lançar fora um casamento que não renderia
vantagens financeiras para ele e sua família e agarrar-se a um outro de 30 contos. Também não
como desumano viver às custas das irmãs e da mãe para parecer rico e ter a oportunidade de
enriquecer de fato. É como se a fascinação do luxo e o brilho do ouro ofuscassem a sua vista de
forma a dificultar uma visão correta e transparente de toda a engenhosidade social da qual
vinha compartilhando. O próprio Seixas, após “recuperar o direito de ver”, admite a sua visão
deturpada de outrora:
A sociedade no seio da qual me eduquei, fez de mim um homem à sua feição; o luxo
dourava-me os vícios, e eu não via através da fascinação o materialismo a que eles me
arrastavam. Habituei-me a considerar a riqueza como a primeira força viva da
existência, e os exemplos ensinavam-me que o casamento era meio tão legítimo de
adquiri-la, como a herança e qualquer honesta especulação. (ALENCAR, 1991,
p.187).
O caminho percorrido por Fernando Seixas rumo a essa recuperação da capacidade de
visão começa no momento em que Aurélia, na noite de núpcias, revela a hipocrisia do
comportamento do marido. O isolamento do personagem será um fator determinante nesse
aprendizado.
Logo na madrugada seguinte à noite de núpcias, o rapaz desce ao jardim. Ali, ele
comunga com a “inefável serenidade da límpida e fresca manhã”. A partir daí Fernando passa
pelo tal processo de reeducação, e a descrição marca o início do reencontro do rapaz consigo
mesmo, é a primeira vez que Fernando estará sozinho após a revelação de Aurélia e o início do
seu aprendizado:
Naquele momento porém, assistindo ao romper do dia, ali no meio do jardim, Seixas
sentia que além das cores brilhantes, das formas graciosas e dos perfumes agrestes,
havia alguma coisa de imaterial que palpitava no seio desse ermo, e que infundia-se
em seu ser. Era a alma da criação que o envolvia, e comungava com sua alma a
inefável serenidade da límpida e fresca manhã. (Ibidem, p.104).
A terceira parte do livro, Posse, abrange os onze meses de vida dentro do casamento.
Ali, o narrador descreve todo o conflito matrimonial: a dissimulação, o interdito, os olhares, as
palavras e a falta delas, mas também, os momentos de mergulho na interioridade, de reflexão e
introspecção. É possível perceber a mudança de Fernando já neste capítulo. Ele assume um
novo perfil ético, apresentando um comportamento mais maduro. Dentre as novas atitudes de
Fernando estão a sua recusa em usar o enxoval oferecido a ele por Aurélia e a sua assiduidade
à repartição. Seu sorriso também sofre alterações, apresentando, segundo o narrador, traços
distintivos que criam uma fronteira entre o que é galanteria e o que é meditação. Aos poucos, o
rapaz que só conseguia ver as vantagens e o encanto da vida mundana, começa a enxergar todo
o jogo de interesse puramente econômico e de valores estritamente materiais que envolvem a
sociedade da qual insistia em participar.
A mudança que se havia operado na pessoa do Seixas depois de seu casamento, fez-se
igualmente sentir em sua elegância. Não marcou-se a fina distinção de suas maneiras
e o apuro do trajo; mas a faceirice que outrora cintilava nele, essa desvanecera-se. Sua
roupa tinha o mesmo corte irrepreensível, mas já não afetava os requintes da moda; a
fazenda era superior, porém de cores modestas. Já não se viam em seu vestuário os
vivos matizes e a artística combinação de cores.
Aurélia notou não só essa alteração, que dava um tom varonil à elegância de Seixas,
como outra particularidade, que ainda mais excitou-lhe a imaginação. Dos objetos que
faziam parte do enxoval por ela oferecido, não se lembrava de ter visto um só usado
pelo marido. (Ibidem., p.120)
Se de um lado a disputa do casal é acirrada pelos constantes epigramas e motejos que
um lançava em direção ao outro, por outro lado, aumentam as cenas em que os dois quase se
deixam levar pelo verdadeiro sentimento que deveria tê-los unido, não fosse a corrupção dos
valores.
E assim seguirá até o final da quarta parte, chamada de Resgate, em que são acentuadas
as cenas de avanço e recuo entre os protagonistas, até a cena final quando Fernando Seixas, já
de posse dos cem contos, decide prestar contas com Aurélia e fica esclarecido o verdadeiro
motivo da união. O resgate indica tanto a segunda prestação de contas, agora protagonizada por
Fernando, que “recompra” sua dignidade e liberdade, outrora vendidas, como a “recuperação
do direito de ver”, que é também o resgate de Seixas, retirado dos desvios da sociedade
corrompida. De igual modo, os papéis sociais, antes invertidos, são redivididos e Aurélia
Camargo e Fernando Seixas passam a ocupar o lugar que caberia a cada um.
É nítido o exagero da solução romântica do texto. Provavelmente Alencar perdeu
alguns elogios nessa conclusão, uma vez que a densidade reflexiva que o texto sustenta parece
ser diluída nas suas páginas finais. No entanto, o mérito do romance não foi diluído pelo “final
feliz”, uma vez que a narrativa de Alencar apresenta uma boa dimensão dos principais conflitos
que envolveram a chegada da modernidade.
3- ALENCAR E O ARTIFÍCIO DA VERTIGEM
O automóvel ritmiza a vida vertiginosa, a ânsia das velocidades, o
desvario de chegar ao fim. (João do Rio)
1
Nas páginas de Ao correr da pena, temos a prova de que Alencar atribuía ao
movimento uma idéia de modernidade. As primeiras máquinas de coser importadas que
chegam ao Brasil, por exemplo, ganharam destaque na crônica de 3 de novembro de 1854.
Nela, Alencar descreve uma visita à fabrica de coser da Mme Besse.
Antes, porém, o cronista imagina o lamento daqueles que viam neste invento uma
ameaça à arte de coser e fiar, desenvolvida com tanta sensibilidade e poesia pelas mãozinhas
delicadas e habilidosas das mulheres. Apesar disso, Alencar não deixa de afirmar os benefícios
das máquinas, principalmente pela velocidade e rapidez com que elas trabalham, até porque,
segundo ele, as máquinas não deixam para traz a poesia, pelo contrário, se antes o prazer era
causado pelas mãos que teciam, agora os pés também mostram sua graciosidade. Repare que o
escritor mistura erotismo e fetiche ao falar do trabalho da costureira nas máquinas:
E digam-me ainda que as máquinas despoetizam a arte! Até agora, se tínhamos a
ventura de ser admitidos no santuário de algum gabinete de moça, e de passarmos
algumas horas e conversar e a vê-la coser, só podíamos gozar dos graciosos
movimentos das mãos, porém não se nos concedia o supremo prazer de entrever sob a
orla do vestido um pezinho encantador, calçado por alguma botinazinha azul; um
pezinho de mulher bonita, que é tudo quanto há de mais poético no mundo.
1
RIO, João do. “A era do automóvel”. In: Vida vertiginosa. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Enquanto este pezinho travesso, que imaginareis, como eu, pertencer a quem melhor
vos aprouver, faz mover rapidamente a máquina, as duas mãozinhas, não menos
ligeiras fazem passar pela agulha uma ourela de seda ou de cambraia, ao longo da
qual vai-se estendendo com incrível velocidade uma linha de pontos que acaba
necessariamente por um ponto de admiração (!).
[...] posso assegurar-lhe que a rapidez é tal, que nem o mais cabula dos estudantes de
São Paulo ou de medicina, nem um poeta ou romancista a fazer reticências, são
capazes de ganhá-la a dar pontos. (ALENCAR, José. Ao correr da pena. Virtual
Books:2003, p.36 )
Não é difícil identificar o entusiasmo do cronista pela velocidade das máquinas. Um
pouco mais adiante ele vai dizer que a qualidade das máquinas de coser pode fazer muitos
estabelecimentos da corte lucrarem com um trabalho não só mais rápido e mais bem acabado
como mais módico no preço.
Essa não é a única vez que Alencar demonstra seu apreço pela velocidade. Na crônica
de 10 de dezembro de 1854, ele usa uma citação de Dumas para expressar o prazer que a
sensação de velocidade proporciona: “o prazer da velocidade tem um gozo, uma
voluptuosidade inexprimível”. Idéia bem semelhante podemos encontrar nas páginas de
Senhora. Os volteios rápidos da valsa são enaltecidos pelo narrador que, não diferente de
Dumas, lhe confere uma dimensão exclusivamente sensual:
O lindo par arrojou-se, deixando a trotar classicamente os outros que não podiam
acompanhar aquela torrente impetuosa. Obscurecia-se a vista que buscava
acompanhá-lo; ele passava nublado por aquela espécie de atmosfera oscilante, que a
velocidade da rotação estabelecia em torno de si.
[...]
Há uma delícia, uma voluptuosidade pura e inocente, nessa embriaguez da
velocidade. Aos volteios rápidos, a mulher sente nascer-lhe as asas, e pensa que voa,
rompe-se o casulo de seda, desfralda-se a borboleta. (ALENCAR, 1992, p. 163-164).
Em Alencar, a sensação de vertigem está associada a esse prazer que o movimento
elíptico da valsa oferece. Tanto é que algumas de suas heroínas sofrem dessa vertigem. A
vertigem é uma falsa sensação de movimento ou de rotação, a impressão que se tem é de que
os objetos se movem ou rodam e o sentimento é de desorientação, de perda do equilíbrio.
Movimento, velocidade e vertigem integram o panorama da modernidade. O progresso
depende do movimento, acreditava-se já no século XIX. Portanto, a ordem exigia que as
pessoas circulassem pelas ruas, evitando aglomerações; a cidade devia sofrer mudanças rápidas
na sua estrutura; a cidade-corte era lugar de movimento, “lugar onde as coisas aconteciam”,
por isso era preciso apresentar-se em permanente agitação, proporcionando um ambiente
animado por festas, bailes e reuniões.
A velocidade alucinante imposta pela modernidade determina aquele sentimento de
desorientação, de perda do equilíbrio, já anunciado por Baudelaire, e que hoje podemos chamar
de a vertigem do mundo.
3.1- A vertigem da valsa, a vertigem da narrativa
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente
Uma parte de mim
é vertigem:
outra parte,
é linguagem
(Ferreira Gullar
2
)
Podemos afirmar que a idéia de movimento estabelece uma dinâmica importante nos
romances de Alencar. Em se tratando dos romances urbanos, essa importância se torna ainda
maior, principalmente pela noção de cidade moderna como espaço de constante mudança e
renovação. É claro que, ao arremedar os costumes franceses e cultivar o sonho de
emancipação, a cidade carioca incorporou ao seu cotidiano práticas que movimentavam a vida
social da chamada “boa sociedade” boa, é verdade, porque goza do privilégio da fortuna -; a
2
Quinta e sexta estrofes da poesia Traduzir-se, de Ferreira Gullar.
finalidade era criar uma atmosfera moderna e, por isso, produtiva e, acima de tudo, veloz. Tal
aspecto pode ser notado tanto nas inovações tecnológicas que, paulatinamente, chegam ao
Brasil, quanto nas incessantes festas e reuniões, promovidas por esse círculo social, que
atraíam a atenção das moças e rapazes e implicavam em idas animadas à modista e ansiosas
buscas pelas novidades últimas de Paris, além de acirradas disputas para ver quem exibia a
mais bela das rendas, a mais brilhosa das jóias e os mais elegantes adereços.
No artigo “Imagem e auto-imagem do segundo reinado”, Ana Maria Mauad fala das
crônicas e das revistas da época que tinham a tarefa de fazer revisões semanais ou quinzenais
de bailes e episódios recém-acontecidos. Numa destas revistas
3
, apontada por Mauad, o
escritor dá dicas de como aproveitar cada uma das estações do ano. Repare que a cidade-corte
é sempre assinalada na sua atmosfera de excitação e entusiasmo, é, sem dúvida, um lugar de
movimento, enquanto que o campo fica reservado para os dias secos de verão, tempo de
descansar e recompor as energias para mais uma vez estrear nos salões:
Fixemos nós as estações do ano conforme elas devem ser: o inverno deve ser
aplaudido no movimento, na alegria radiante dos salões, nos divertimentos, no
delírio da dança, das corridas... Mas o verão, seco e ardente, nos leva ao campo, à
vida doce e tranqüila, ao remanso suave de uma existência que se vigoriza e se
reabilita para de novo estrear viçosa e animada nos salões. (MAUAD, In:
ALENCASTRO, 2004, p.208).
Ainda segundo Ana Maria Mauad, tais publicações, ao mesmo tempo em que
informavam certos tipos de comportamentos, todos criados pela corte em acordo com os
costumes estrangeiros, eles eram propagados pelas províncias como modelos a ser seguidos
ou como normas de conduta. Portanto, é também nesse estar ou pôr-se em movimento que a
sociedade carioca mostrava-se cada vez mais próxima do seu ideal de modernidade.
3
Jornal das senhoras, 18/12/1853.
Outro momento de grande agitação podia ser presenciado na chegada dos paquetes que
traziam as novidades da moda de Paris. O fato também é registrado na crônica publicada no
jornal O Gosto de 12/08/1843:
Os últimos navios têm trazido novas e modernas fazendas de gosto para as principais
lojas, que as vão subdividindo, a rua da Quitanda se enfeita e a do Ouvidor se
remexe. Antes deste dia tudo são incertezas [...] depois não haverá dúvidas, o
figurino será dado pela Imperatriz. O que se nota nas senhoras, nota-se nos homens e
a profusão e confusão de modas da corte será tal, que fará perfeito contraste com a
confusão e profusão de modas que hão de vir do campo ostentar entre nós as galas
de seu brilhantismo nas festas noturnas... (Ibidem, p.209/211).
É lógico que o burburinho das ruas também integra esse dinâmico e novo espaço
urbano. O conto de Machado de Assis, “Capítulo dos chapéus”, é um ótimo exemplo da
movimentação de ruas como a do Ouvidor, onde estavam situadas as mais elegantes lojas do
século XIX. Mariana, personagem do conto, após ser ironizada pelo marido por insistir que
ele troque o chapéu que costuma usar todos os dias, decide visitar a amiga Sofia para
espairecer e acaba acompanhando Sofia numa consulta ao dentista na Rua do Ouvidor. É
muito interessante observar as impressões do narrador ao descrever o embaraço da moça em
meio à multidão que ali caminha por volta do meio dia. É bem verdade, que desde o início, o
narrador esclarece que se trata de uma moça afeita aos hábitos quietos, “uma criatura passiva
e meiga”. No entanto, a visão lembra aquela das ruas de Londres descrita no conto “O homem
das multidões”, de Allan Poe. Observe:
Chegaram à Rua do Ouvidor. Era pouco mais do meio-dia. Muita gente andando ou
parada, o movimento do costume. Mariana sentiu-se um pouco atordoada, como
sempre lhe acontecia. A uniformidade e a placidez, que eram o fundo do seu caráter
e de sua vida, receberam daquela agitação os repelões do costume. Ela mal podia
andar por entre os grupos, menos ainda sabia onde fixasse os olhos, tal era a
confusão das gentes, tal era a variedade das lojas. Conchegava-se muito à amiga e,
sem reparar que tinham passado a casa do dentista, ia ansiosa de lá entrar. Era um
repouso; era alguma coisa melhor do que o tumulto. ( ASSIS, Machado de. Capítulo
dos chapéus. In: Histórias sem data.
4
)
Longe de sustentar a docilidade e tranqüilidade de Mariana, Sofia parecia muito
senhora de si, “ela tinha o dom de fascinar”, diz o narrador. Portanto, o mesmo não acontece
com ela, a rua não a amedronta, pelo contrário, ela é encantada pela vida social e estar metida
naquele vai-e-vem para olhar e ser vista é uma necessidade e uma exigência que ela cumpre
com admirável desenvoltura:
Sofia, prática daqueles mares, transpunha, rasgava ou contornava as gentes com
muita perícia e tranqüilidade. A figura impunha; os que a conheciam paravam ou
voltavam-se para admirar-lhe o garbo. E a boa senhora, cheia de caridade,
derramava os olhos à direita e à esquerda, sem grande escândalo, porque Mariana
servia a coonestar os movimentos. Nada dizia seguidamente; parece até que mal
ouvia as respostas da outra; mas falava de tudo, de outras damas que iam e vinham,
de uma loja, de um chapéu... Justamente os chapéus, - de senhora ou de homem, -
abundavam naquela primeira hora da rua do Ouvidor. (Ibidem.).
Sofia não mostrava habilidade apenas em andar pelas ruas do Centro, mas sua postura
ativa também pode ser provada na conversação que a moça mantém com Dr. Viçoso na sala
do consultório. Juntos, os dois “abrem o estojo de assuntos” que povoam a cidade. Começam
pelo Teatro Lírico com suas óperas, os concertos da semana, passam pelo Cassino, desfiam
suas recordações do último baile, chegando até às emoções fortes das animadíssimas corridas
no Jockey Club. Juntos, eles reforçam a idéia de que a cidade moderna é o lugar “onde as
coisas acontecem”.
A volta para casa não será muito diferente da ida, sem contar, é claro, com o número
de transeuntes que aumenta bastante e Mariana que leva, agora, a “alma doente dos
encontrões, vertiginosa da diversidade de coisas e pessoas”.
4
Disponível em:
http:\\www..klickeducaçao.com.br\klick_portal\obrasliterarias\obras\194\Machado_de_Assis_historiassemdata.
pdf.
A vertigem da alma que Mariana carregava ao retornar para sua casa, pode ser
entendida como um símbolo de horror diante do “excesso de vida”. Excesso de vida da rua
por onde caminhou, excesso de vida dos “chapéus” que ali circulavam, excesso de vida da
amiga Sofia, enfim, excesso de vida que emanava daquela sociedade.
Assim, a vertigem parece ser um estado muito adequado e próximo à sensação de
estranhamento e às oscilações de sentimentos múltiplos e contraditórios diante desse “excesso
de vida” que insiste em acompanhar e dar existência à modernidade.
Nas crônicas que escreveu para o Correio Mercantil, o próprio Alencar não escondeu a
“fecundidade de acontecimentos” que ele, como cronista, tinha o dever de percorrer. Na
crônica de 24 de setembro de 1854, por exemplo, além de prever uma semana cheia de
novidades, ele queixa-se do seu trabalho de folhetinista que, para agradar aos mais diversos
tipos de leitores, é obrigado a sugar o mel, a graça e o sal de cada fato e, depois, quando todos
já se encontram recolhidos a lembrar-se dos prazeres do dia, ele ainda tem a tarefa de se
debruçar sobre a folha de papel e ali depositar suas impressões.
Tinha-me divertido, é verdade; mas aquele domingo cheio, que estreava a semana de
uma maneira tão brilhante, fazia-me pressentir uma tal fecundidade de
acontecimentos, que me inquietava seriamente. Já via surgir de repente uma série
interminável de bailes e saraus, um catálogo enorme de revoluções e uma cópia de
notícias capaz de produzir dois suplementos de qualquer jornal no mesmo dia.
[...] Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos [...] Fazerem do
escritor uma espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague, e a sugar, como o mel das
flores, a graça, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato.
(ALENCAR, José de. Ao correr da pena. Virtual Books, 2003).
Como vimos nos capítulos anteriores, o Teatro Lírico, o Cassino, os bailes, os saraus,
e todas as formas de lazer que movimentavam a vida social da elite carioca do século XIX e
que compunham um ambiente de projeção da modernidade também estão presentes nos
romances urbanos do escritor.
O narrador de Encarnação, logo nas primeiras linhas do romance, afirma que Amália
chorava quando um baile muito desejado era transferido, tal era a simpatia que a moça nutria
pelos divertimentos sociais. O depoimento de Augusto em Diva nos faz acreditar que o
cotidiano de Mila era banhado pelos bailes, reuniões e partidas, promovidos em casa da tia da
moça, a D. Matilde. Aurélia, como sabemos, devia parecer para o mundo tal qual ele a havia
criado. Ela era rica e formosa e, por conta disso, afeita aos divertimentos da vida mundana,
conforme a convicção da sociedade em que ela vivia. Assim, com medo de revelar a
verdadeira identidade do casamento a que se submetera e para que todos a julgassem feliz,
como era natural a uma pessoa rica como ela, Aurélia abandona-se no intenso e vertiginoso
mundo que, para as famílias abastadas do século XIX, tinha o compromisso de dar visão ao
que a sociedade tinha de mais moderno, à semelhança das grandes cidades da Europa.
...Mostrava pelos divertimentos uma sofreguidão que nunca tivera, nem mesmo em
solteira. Entrou a freqüentar de novo a sociedade, mas com furor e sem repouso.
Os teatros e os bailes não lhe bastavam; as noites em que não tinha convite, ou não
havia espetáculo, improvisava uma partida que em animação e alegria, não invejava
as mais lindas funções da corte. Tinha a arte de reunir em sua casa as formosuras
fluminenses. Gostava de rodear-se dessa corte de belezas.
Os dias, destinava-os para as visitas da Rua do Ouvidor, os piqueniques no Jardim
ou Tijuca. Lembrou-se de fazer da Praia de Botafogo um passeio à semelhança do
Bois de Boulogne em Paris, do Prater em Viena e do Hyde-Park em Londres.
Durante alguns dias ela e algumas amigas percorriam de carro aberto, por volta de
quatro horas, a extensa curva da pitoresca enseada, espairecendo a vista pelo
panorama encantador, e respirando a fresca viração do mar. (ALENCAR, 1991 p.
145).
Também aqui descobrimos o excesso de vida de que falávamos há pouco. O mais
interessante é que a idéia de movimento nas narrativas do escritor não se restringe apenas a
esse vai-e-vem da vida mundana da Corte fluminense. No drama vivido pelos personagens
também é possível identificar um processo contínuo de aproximação e afastamento, atração e
repulsão, avanços e recuos; forças contrárias que ajudam a dar contornos sinuosos à narrativa.
Esta, por sua vez, passa a transmitir também uma idéia de constante movimento, ou seja,
quando parece que o drama caminha em direção ao desfecho, qualquer fato pode contribuir
num novo desequilíbrio na narrativa e, conseqüentemente, no seu retrocesso.
Acontece que esses romances giram em torno de um mesmo conflito, que já
adiantamos nos capítulos anteriores desse trabalho, resultado do desequilíbrio e assombro
proporcionados pela modernidade e pela coexistência de duas maneiras diferentes de pensar a
sociedade e nela se apresentar. Se, de um lado, as idéias liberais defendiam as vantagens de
um mundo voltado para práticas capitalistas, assegurando benefícios de ordem econômica e a
promessa de cear das mesmas iguarias de que dispunha a considerada civilização moderna; do
outro, os ideais românticos enxergavam numa parte dessas vantagens a corrupção dos valores
mais autênticos da sociedade. Tal conflito acarreta dualidades visíveis em todos os romances
entre o passado e o presente, entre o ser e o parecer, entre o amor e o dinheiro, entre a alma e
o corpo, entre o ideal e o real.
Transformar esse desequilíbrio que a modernidade provocou numa possibilidade de
harmonia e união do que seria uma visão do progresso com uma visão qualitativa dos valores
que não podiam ser extintos da sociedade parece ser a tarefa das histórias escritas por
Alencar. Daí as constantes oscilações que acompanham suas narrativas.
Portanto, não seria demais realizar um apanhado das cenas que produzem essa idéia de
movimento, já que acreditamos ser ele um distintivo da modernidade, esteja a idéia embutida
no drama das personagens ou na estrutura mesma da narrativa. Vejamos, então, de como isso
se dá em Senhora e, logo depois, nos outros dois romances aqui examinados: Encarnação e
Diva.
É na estrutura que descobrimos o primeiro importante movimento em Senhora. A
parte inicial narra o presente de Aurélia. Nele, a personagem já se encontra no seio da
elegante sociedade carioca e daí, ela segue seu rumo na compra do marido. O último capítulo
da primeira parte termina com o casal dentro da câmara nupcial. Nesse momento, Aurélia
revela a verdadeira realidade daquele casamento e o papel que caberá a cada um de ora em
diante.
A surpresa, porém, fica por conta da segunda parte do romance que rompe com
linearidade dos fatos, respeitados, até então, e retorna, não ao ponto de partida do texto, mas a
um tempo anterior, ou melhor, ao passado de Aurélia, lugar de morada dos motivos das
atitudes excêntricas da moça. É também nesse passado que se esconde a dívida moral que
Fernando Seixas mantinha com Aurélia.
Observe que o foco narrativo do texto não é fixo, ele se desloca do presente ao
passado, mas, logo em seguida, ainda no final da segunda parte, um novo giro faz com que a
lente do narrador retorne ao presente da narrativa e, mais uma vez, à câmara nupcial. O leitor
reencontra, então, Aurélia e Seixas na mesma posição em que os deixara no final da primeira
parte. O primeiro rodopio, portanto, está completo.
A terceira parte do romance narra o conflito matrimonial. A câmara nupcial passa a ser
um lugar proibido que atrai e, ao mesmo tempo, retrai. Algumas vezes, a narrativa porá os
dois Fernando e Aurélia tão próximos um do outro que a idéia de solução logo precisa ser
dissipada por uma palavra, ou mesmo um simples gesto que afasta ainda mais o casal. No
caso de Aurélia, a proximidade do Seixas real a obriga a perceber que ele nada tem a ver com
aquele Fernando idealizado que ela carrega na alma. Isso, é claro, implica num processo de
repulsão e afastamento. “Aurélia amava mais seu amor que seu amante; era mais poeta do que
mulher; preferia o ideal ao homem”, dizia o narrador.
O distanciamento de Fernando e Aurélia começa a diminuir somente na quarta parte
do romance, quando o drama começa a desenhar o seu desfecho.
Há dois momentos da narrativa em que a aproximação dos dois é tão grande, que
parece, enfim, chegar à conclusão. Um deles acontece no primeiro capítulo de “Resgate”,
quando na volta de um baile, onde Aurélia mostrara a opulência de sua beleza e desferira de si
seduções a ponto de tornar Fernando Seixas o mais invejado dos maridos, a moça declara-se
tonta e é levada pelo marido ao seu toucador. O movimento de atração, porém, ocorre já na
saída do baile. No carro, a distância dos corpos já era bem pequena e qualquer movimento era
suficiente para que a espádua de Aurélia tocasse no ombro de Fernando ou os cachos de seus
cabelos castanhos afagassem o rosto do moço. A claridade do gás, por sua vez, permitia a
visão das linhas harmoniosas do colo soberbo que se apojavam em contornos voluptuosos
(ALENCAR, 1991, p.148).
O diálogo do casal também parece aproximá-los. Assim, Aurélia trava a mão do
marido para apontar-lhe a direção de uma estrela e, logo em seguida, retira-a para,
distraidamente, descansá-la no joelho do rapaz. Dentro do toucador, a troca de olhares e os
toques inadvertidos dão uma sensação de embriaguez.
O marido levou-a para o divã onde ela deixou-se cair prostrada de fadiga ou de sono.
Não tendo soltado logo o braço de Seixas, este reclinou-se para acompanhar-lhe o
movimento, e achou-se debruçado para ela.
Aurélia conchegou as roupas fazendo lugar à beira do divã, e acenando com a mão
ao marido que se sentasse. Entretanto com a cabeça atirada sobre o recosto de
veludo, o colo nu debuxava sobre o fundo azul um primor de estatuária cinzelado no
mais fino mármore de Paros.
Seixas desviou os olhos como se visse diante de si um abismo. Sentia a fascinação,
e reconhecia que faltavam-lhe as forças para escapar à vertigem. (ALENCAR, 1992,
p.150).
A vertigem que Aurélia sofre nesse momento pode ser justificada pela moça como
uma simples fraqueza de infância, no entanto, não é difícil perceber que o verdadeiro motivo
da vertigem é outro. Sabemos que o estado de vertigem deturpa a visão, é como se os objetos
que estão à volta iniciassem um rápido e constante movimento de rotação, a vista embaralha e
o sentimento é de desorientação.
Acredito que o estado de vertigem é nada menos que um artifício utilizado pelo autor
para anunciar a tão esperada união do casal. A vertigem é capaz de confundir o real com o
ideal, o passado com o presente, o ser com o parecer. No entanto, a proximidade dos dois
nesse momento é tanta que acaba por denunciar a incompatibilidade dos opostos, permitindo,
assim, que o conflito da narrativa continue.
Ela ergueu de leve a cabeça, para vazar no semblante do marido a luz dos olhos, e
sorriu. Que sorriso! Uma voragem, onde submergiam-se a razão, a dignidade, a
virtude, todas essas arrogâncias do homem.
Seixas ia precipitar-se; mas os olhos de Aurélia o queimavam; escapavam daquelas
pupilas cintilantes um fogo intenso que penetrava-lhe n’alma como lava em
ebulição.
[...] Depois de um instante de perplexidade ia levantar-se, quando Aurélia surgiu
arrebatadamente do torpor e languidez que a prostravam, e sentindo-se no divã,
obrigou o marido a ajoelhar-se de novo a seus pés. Apoiando-lhe então a mão na
fronte, vergou-lhe a cabeça, e cravou-lhe no semblante um olhar longo, penetrante,
que parecia submergir-se na consciência daquele homem, e sondar-lhe os arcanos.
(Idem, p.150).
Ainda não é dessa vez que a fusão do homem real com a imagem que Aurélia
guardava de Fernando “antes da queda” será definitiva. Um abismo separa o real do ideal, por
isso a moça recorre ao retrato, que mostra Fernando tal como o seu olhar construiu. A
semelhança física do homem real com o seu retrato é fato, porém, a alma não coincide. Trata-
se, ainda, de mais um ensaio. A narrativa uma outra vez ganha um movimento contrário ao
que havia prenunciado e, ao invés de unir, separa.
O jogo de avanços e recuos ainda se repetirá algumas vezes, sempre num ritmo
crescente. O movimento de aproximação do casal é sempre interrompido por um deles,
fazendo com que a distância pareça cada vez mais ampla.
Talvez, o emblema maior de toda essa dinâmica do movimento seja a valsa. Na
verdade, o movimento da estrutura do texto se parece muito com o giro elíptico da valsa. Daí
a força que adquire a cena em que Aurélia e Fernando tomados pela vertigem da valsa e
envoltos pela paixão que sentem um pelo outro quase colocam a perder toda aquela farsa em
que viviam até então, suspendendo por um átimo a dissimulação que orienta a vida do casal.
A aproximação dos dois desta vez alcançará um limite tão ínfimo que, segundo o narrador,
nunca se experimentara antes. Era a primeira vez em mais de seis meses de casados que o
braço de Seixas enlaçava a cintura de Aurélia.
Tudo começa sob os olhares atentos e curiosos dos convidados do baile, que desejam
ver o casal valsando. No entanto, o crescendo alucinante da dança imposto pelo casal não
pode ser acompanhado pelo público, pois “obscurecia-se a vista que buscava acompanhá-lo”.
O par valsante, numa das elipses, se afasta do público, indo parar por detrás de uma jardineira.
É ali, apenas sob o olhar do leitor, que acontece o mais estreito encontro dos corpos. “Era uma
verdadeira transfusão operada pelo toque da mão da moça no ombro do marido, e da mão
deste na cintura dela; mas, sobretudo pelos olhos que se emergiam, e pelas respirações que se
trocavam” (Ibidem, p.165). Mas o que poderia ser o desenlace da narrativa é adiado um pouco
mais pelo desmaio da protagonista.
O par então volta mais uma vez ao ponto de atração da narrativa: o toucador de
Aurélia. A plenitude da dança é interrompida, mas a aproximação dos dois continua até que
uma frase mal interpretada quebre outra vez a tênue linha que começava a entrelaçá-los.
De novo a vertigem aparece na narrativa como prenúncio do desenlace final. Repare
que o giro vertiginoso da dança é o que faz Aurélia pensar ter finalmente encontrado o
homem dos sonhos, a encarnação do seu ideal, que seria o resultado da fusão do homem real
com o homem idealizado, imaginado, destituído dos vícios de uma sociedade corrompida pela
lei do dinheiro.
No último capítulo da quarta parte do romance o leitor se depara com mais um retorno
do casal à câmara nupcial. Dessa vez, não há razão para uma nova vertigem, pois o Fernando
Seixas que lá se encontra já detém a educação e a elegância do Seixas e a alma incorruptível
do Fernando. A fusão do real com o ideal, do passado com o presente, do corpo com a alma
não é mais fruto de uma vertigem, mas resultado de uma pedagogia do olhar, como vimos no
capítulo anterior deste trabalho.
A conclusão do romance é também a conclusão do rodopio final da narrativa. Por três
vezes o casal esteve próximo à câmara nupcial, por três vezes a narrativa cria no leitor a
expectativa do encontro e desenlace feliz do casamento. O último giro enfim anuncia a
consumação do casamento. Desta vez nem o leitor é convidado a olhar.
Encarnação possui uma cena semelhante àquela da vertigem de Aurélia, porém, no
lugar da vertigem, o delírio. A função de unir o real ao ideal, no entanto, parece ser a mesma.
No romance, Hermano carrega um ideal de mulher. Sua primeira esposa é a primeira
encarnação desse ideal; ela não é rica nem bonita, mas apresenta uma alma sensível e o
espírito fino, meigo e gentil. A morte da esposa afasta Hermano da sociedade até que ele
encontra Amália e se casa com ela. O narrador descreve Amália como uma moça da moda, de
aparência frívola e risonha, mas, sobretudo de uma beleza que ofuscava a outra. Portanto, de
um lado está a superioridade da alma de Julieta, do outro a beleza e a vivacidade de Amália.
Pouco antes da cena final do romance, Hermano é acometido por um delírio que nos
interessa por clarear ainda mais a idéia de fusão matéria e espírito. Durante o delírio,
Hermano vê a alma de Julieta unir-se à beleza de Amália:
E assim, como um corpo ermo de vontade e pensamento, surgiu Julieta, ou melhor
diria a alma gêmea em que se tinham condensado a sua e a da esposa. Atravessaram
uma série de anos; eram os de sua existência, cujo curso haviam remontado, e afora
de novo repassavam. Todas as fases de sua história ele as reviveu com uma mulher
que não era nem Julieta, nem Amália; mas as duas vazadas em um só molde.
O passado e o presente se travavam e confundiam. [...]
A mulher que ele amara tinha a beleza de Amália e a alma de Julieta. (ALENCAR,
2002, p.86).
Mais uma vez Alencar utiliza um estado de deturpação da visão para reforçar a idéia
de que o conflito causado pelos opostos passado e presente, matéria e espírito, realidade e
sonho, amor e dinheiro pode ser resolvido quando conciliados. Portanto, o progresso,
simbolizado pela idéia de presente, matéria, realidade e dinheiro, não deve ser um motivo para
o abandono de valores autênticos, simbolizados pela idéia de passado, espírito, sonho e amor.
Essa parece ser a postura do escritor em todos os romances urbanos que escreveu.
Em Encarnação a estrutura textual também obedece a um ritmo sinuoso de avanços e
recuos, principalmente porque acompanha o sentimento ora de atração, ora de repulsão que
Amália experimenta ao conhecer Hermano: “Tinha medo de ver; e uma irresistível tentação
de olhar”.(ALENCAR, 2002, p.48). O movimento, portanto, é o mesmo de Senhora.
Em Diva, o movimento da narrativa segue o mesmo padrão de Senhora e Encarnação.
Desta vez, porém, o ritmo será imposto pelas mutações cíclicas que acompanham o perfil de
Emília. Augusto, narrador do romance, apresenta ao leitor não uma Emília, mas duas: uma
para desprezo, outra para o amor. A moça, por diversas vezes, passa do encanto à
glacialidade. A aproximação de Augusto a transforma numa estátua de gelo, então, ela o
afronta, despreza, amaldiçoa e o afasta; enquanto que o seu distanciamento a recobre de vida,
então ela o atinge com um olhar de atração imperiosa.
A polarização imposta pela constante metamorfose da personagem é explicada no
texto pelo recato excessivo da personagem. Embora se tratando quase de uma “aberração”,
Mila não difere das demais personagens alencarianas, ela também teme a visão fria e material
que envolve o casamento naquela sociedade.
3.2 – A vertigem do mundo
...a ilusão é a tentativa de buscar nesse espaço angustiante algo que o
transcenda; então busca-se a ilusão como uma forma de, sem poder
mais negar a nova realidade, criar uma nova fantasia, a fantasia
possível dentro de um espaço real que não se pode negar nem,
tranqüilamente assimilar. (Ferreira Gullar
5
).
5
GULLAR, Ferreira. “Barroca: olhar e vertigem”. In: NOVAES, Adauto. O olhar. SP: Companhia das Letras,
2003
Num artigo dedicado ao Barroco, Ferreira Gullar (In: NOVAES, 2003) afirma que o
sentido do real depende basicamente do olhar. Poucas linhas depois, o mesmo Ferreira Gullar
diz que a irrealidade também nos é transmitida, principalmente, pelo olhar. O mais
interessante, no entanto, é perceber que não há contradição nas afirmações do escritor. E é ele
mesmo quem explica o porquê: “se o que eu vejo é real, e o pintor me pinta a irrealidade, eu
passo a ver a irrealidade em termos da realidade” (Ibidem, p.221). Com isso, Ferreira Gullar
pretende expor um dos objetivos da arte barroca, que consiste em explorar a ilusão de ótica ou
o trompe-l’oeil para imprimir o fator de irrealidade, de delírio, de vertigem, de desequilíbrio.
Essa característica barroca, segundo Gullar, deve-se, fundamentalmente, às
inquietações e à insegurança que surgem com os rumores de uma nova compreensão da
realidade, como, por exemplo, a descoberta de que a Terra não é o centro do mundo e, por
isso mesmo, o homem deixa de ser o centro privilegiado do Universo. Não havendo mais
certezas definitivas, a criação do espaço barroco acontece.
É exatamente o que diz a epígrafe. A angústia de uma nova visão da realidade, de
saber que não é o homem o ser que ele sempre imaginou, visão esta que não pode mais ser
negada, mas que também não é de fácil assimilação, exige a criação de uma realidade
ficcional, ilusória que amenize o desconforto e a falta de chão. Daí a explicação do
desenvolvimento da arte barroca.
Deixando de lado a idéia de arte barroca, mas aproveitando essa noção de construção
de um espaço ilusório e vertiginoso enquanto busca de algo que transcenda a angústia que a
nova visão da realidade oferece, este último capítulo convida a uma nova reflexão sobre a
modernidade e o seu aspecto também vertiginoso que, se por um lado procura transcender um
sentimento de angústia já existente, por outro cria uma sensação ainda maior de angústia e
desorientação, mas que, ao mesmo tempo, se relaciona estreitamente à realização de um
desejo. Um desejo que também é de transcendência, mas transcendência dos limites. Um
desejo histórico de tocar o extremo, uma fome de eternidade, um desejo febril de ultrapassar
essa fronteira última entre o humano e o divino.
O Iluminismo, por exemplo, se revelou um grande movimento de expressão desse
desejo, já iniciado no Renascimento e estendido até a Revolução Francesa, de transcendência.
Ao elevar a razão ao status de autoridade, ao entrelaçar técnica, ciência e progresso, a razão
iluminista já provava sua ânsia de ultrapassar um limite antes bem demarcado pelos
dogmatismos religiosos.
Essa nova visão da realidade abria caminho para o mundo moderno, buscava demarcar
o lugar do homem no mundo e, com ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, defendia o
elogio da razão, com base no cálculo, na acumulação e no desenvolvimento tecnológico.
No artigo “Baudelaire, Benjamin e o moderno”, Jeanne Marie Gagnebin (1997),
baseando-se nos escritos de H. R. Jauss, apresenta uma breve história do conceito de
modernidade que pode ser de grande valia para a nossa reflexão. Segundo ela, a palavra
“modernidade” remete a uma oposição já existente na Antigüidade entre “antigo” e
“moderno”. A relação entre as duas palavras, inicialmente, era meramente temporal, e não
discutia o sentido de inovador do moderno e atrasado do antigo, mas indicava o caráter
exemplar do passado para o presente.
Assim, o valor exemplar dos Anciens percorreu até a Renascença, quando na Querelle
dês Anciens et dês Modernes, os Modernes propõem algumas mudanças, dentre as quais a
racionalidade cartesiana e a confiança no progresso das ciências se faziam ouvir. Além disso,
eles se julgavam os verdadeiros Anciens por acreditarem que a Renascença era a idade
madura da Antigüidade. Aos poucos, a consciência iluminista dos Modernes acaba por
deslocar essa relação privilegiada do presente com o passado em direção ao futuro.
A utopia iluminista do século XVIII carregava uma preocupação muito forte com a
imagem que o amanhã teria do hoje, ela estava muito mais interessada e orientada pela
concepção de um progresso histórico, onde não havia lugar para um olhar retrospectivo.
De acordo com Gagnebin, Jauss ressalta ainda que, paralelo ao pensamento iluminista,
o Romantismo viria adotar um outro sentimento, embora em ambos os movimentos existisse
um distanciamento progressivo da consciência do presente em relação ao passado. No
sentimento romântico, o presente era vivido como um afastamento doloroso de uma harmonia
passada.
A Revolução Francesa, no entanto, rompe de vez com o passado, acreditando na
promessa de uma melhora decisiva. A partir de então, “novo” passa a ser o sinônimo mais
adequado ao conceito de “moderno”.
O problema, e é o que vai nos interessar nesse momento, é que
o novo está, por definição, destinado a se transformar no seu contrário, no não-novo,
no obsoleto, e o moderno, conseqüentemente, designa um espaço de atualidade cada
vez mais restrito. Em outras palavras, o moderno fica rapidamente antigo, a linha de
demarcação entre os dois conceitos, outrora tão clara, está cada vez mais fluida. Ao
se definir pela novidade, a modernidade adquire uma característica que, ao mesmo
tempo, a constitui e a destrói. (GAGNEBIN, 1997, p.143).
O aspecto volátil e fugidio do novo torna-se, então, característica fundamental da
modernidade. Não pretendo me estender aqui nesses conceitos que, acredito, já foram
cuidadosamente trabalhados em capítulos anteriores. Mas não é demais repetir que a
experiência moderna é sedimentada num sentimento ambíguo que mistura encanto e
melancolia. Encanto pela novidade. Melancolia e horror perante a decadência da tradição e
dos valores. A sensação não é outra senão de desorientação, desequilíbrio e vertigem.
Luís Carlos Fridman, no livro Vertigens pós-modernas, trata dessa questão:
A industrialização e a urbanização lançaram grandes contingentes humanos em um
ambiente que em nada se assemelhava à repetição, à preservação dos costumes, às
relações pessoalizadas, à preponderância dos laços morais, e assistiu-se ao
transtorno de toda a vida coletiva então existente. O progresso essa palavra mágica
que serviu para justificar as extraordinárias conquistas do período, os novos poderes
em ascensão e as formas dramáticas de dominação e exclusão abalou estruturas
sociais cristalizadas e varreu rotinas e referências estabelecidas.(FRIDMAN, 2000,
p.10).
No início desta sessão, pautados nas afirmações de Ferreira Gullar, falávamos da
tentativa da arte barroca de criar um espaço ilusório e vertiginoso que amenizasse as angústias
das novas descobertas. Na modernidade, a idéia de progresso, como bem disse Fridman,
“abalou estruturas sociais cristalizadas e varreu rotinas e referências estabelecidas”. Este fato,
certamente, foi uma das causas do mal-estar da sociedade. É lógico que as façanhas da
modernidade foram motivadas por aspirações humanas, embaladas também por uma nova
visão da realidade, no entanto, o resultado foi um mundo marcado pela instabilidade e
efemeridade, que transformou em vítimas os próprios idealistas:
Ante o espetáculo dessa mobilidade universal, alguns de nós serão presas da
vertigem. Habituados à terra firme, não se acostumam ao balanço e às cabeçadas.
Precisam de “pontos fixos” onde sujeitar o pensamento e a existência. Entendem que
se tudo passa, nada existe; e que se o real é mobilidade, a realidade não existe desde
o momento em que é pensada: escapa ao pensamento. (BERGSON, 2006, p.139).
Além disso, a modernidade também investiu na criação de um ambiente ilusório. Ao
escrever sobre as galerias parisienses, Walter Benjamin fala de fantasmagorias que eram nada
menos que uma espécie de transfiguração falseadora, enganadora que congregava em si
imagens-desejo da coletividade e que, como a arte barroca, se esforçava na tentativa de tornar
suportável a História arruinada.
Aí está, portanto, as razões da vertigem do mundo moderno. A idéia de progresso
trouxe uma visão moderna da sociedade, mas ao mesmo tempo, um mal-estar, esse, por sua
vez, exigiu uma medida que amenizasse ou transcendesse o sentimento de angústia, daí
aparecem as fantasmagorias que constroem um ambiente ilusório. Lembre-se das palavras de
Ferreira Gullar: “Se o que eu vejo é real e o pintor me pinta a irrealidade, eu passo a ver a
irrealidade em termos de realidade”. È exatamente essa a dinâmica da modernidade, que
acelerou o seu ritmo e todo dia mostra-nos uma realidade cada vez mais pautada na ilusão.
Termino com a transcrição de alguns trechos da crônica “Um dia na vida de um
homem de 1920”, de João do Rio, que apesar de grande, a meu ver resume com muita
propriedade o ritmo vertiginoso imposto pelo mundo moderno que, com o ambiente ilusório
de suas máquinas e os muitos inventos tecnológicos criados pelo homem com o intuito de
facilitar e agilizar os compromissos sociais, acabou reduzindo o homem à condição de
engrenagem, que não pode parar, pois a máquina do mundo precisa trabalhar:
Dentro de três meses as grandes capitais terão um serviço regular de bondes aéreos
denominados aerobus. O último invento de Mamoni é a máquina de estenografar.
As ocupações são cada vez maiores, as distâncias menores e o tempo cada vez chega
menos. Diante desses sucessivos inventos e da neurose de pressa hodierna, é fácil
imaginar o que será o dia de um homem superior dentro de dez anos, com este
vertiginoso progresso que tudo arrasta...
O Homem Superior deitou-se às três da manhã. Absolutamente enervado por ter de
aturar uma ceia com champanhe e algumas cocotes milionárias, falsas da cabeça aos
pés porque é falsa a sua cor, são falsas as olheiras e sobrancelhas, são falsas as
pérolas e falsa a tinta do cabelo nessa ocasião por causa da moda [...] Acorda às seis,
ainda meio escuro por um movimento convulsivo dos colchões e um jato de luz
sobre os olhos produzido pelo despertador elétrico último modelo[...]
Dez minutos. O Homem Superior está vestido. O jornal pára de falar. O Homem
bate o pé e desce por um ascensor ao 17° andar onde estão a trabalhar quarenta
secretários.
Há em cada estante uma máquina de contar, e uma máquina de escrever o que se
fala. O Homem Superior é presidente de cinqüenta companhias, diretor de três
estabelecimentos de negociações lícitas, intendente geral da Compra de Propinas,
chefe do célebre jornal Electro Rápido, com uma edição diária de seis milhões de
telefonógrafos a domicílio, fora os quarenta mil fonógrafos informadores das praças,
e a rede gigantesca que liga às principais do mundo em agências colossais. Não se
conversa. O sistema de palavras é por abraviatura.[...]
Depois o Homem Superior almoça algumas pílulas concentradas de poderosos
alimentos, sobe ao 30° andar num ascensor e lá toma o seu coupé aéreo, que tem no
vidro da frente em reprodução cinematográfica, os últimos acontecimentos. São
visões instantâneas.[...]
Encosta-se ao muro branco e olha-se num espelho. Está calvo, com uma dentadura
postiça, e corcova. Os olhos sem brilho, os beiços moles, as sobrancelhas grisalhas.
É o fim da vida. Tem trinta anos. Mais alguns meses e estalará. É certo. É fatal. [...]
Se descansasse?... Mas não pode. É da engrenagem.
E cai, arfando, na almofada, os nervos a latejar, as têmporas a bater, na ânsia
inconsciente de acabar, de acabar, enquanto por todos os lados, em disparada
convulsiva, de baixo para cima, de cima para baixo, na terra, furiosamente, milhões
de homens disparam na mesma ânsia de fechar o mundo, de não perder tempo, de
ganhar, lucrar, acabar... (RIO, 2006, p.297-305).
A LUNETA MÁGICA DE ALENCAR: CONCLUSÃO
Se a luneta é um instrumento óptico que permite estender a capacidade dos olhos
humanos de observar objetos longínquos, o que esperar de uma luneta mágica? Alencar
imaginou uma luneta com poderes de invadir o pensamento de todos quantos cruzassem o seu
caminho. O privilégio visual garantido pela luneta teria, então, papel fundamental no seu
trabalho de escritor.
Sabemos, porém, que não existem lunetas com esses poderes. Alencar, certamente,
também não acreditava nelas. Mas ele sabia que um escritor precisa ter um olhar privilegiado,
capaz de enxergar além das aparências, e mais, capaz de, como disse Merleau-Ponty (2004),
fazer-nos redescobrir o mundo em que vivemos, mas que somos tentados a esquecer.
Por isso, o escritor não poupou esforços para alcançar esse olhar privilegiado. Desde
muito cedo, o menino Alencar mostrou o interesse pela leitura de obras literárias. Sua
infância, confessou o próprio escritor em Como e porque sou romancista, foi rodeada por
livros, logo tornou-se o “ledor” nos serões da família e, na escola, destacou-se pela “assídua
aplicação e maior desejo de aprender”. Essas “primícias literárias” são lembradas com carinho
por Alencar, que atribui a elas uma considerável influência no seu futuro de escritor:
Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em
meu espírito a tendência para essa forma literária que é entre todas a de minha
predileção?
Não me animo a resolver essa questão psicológica, mas creio que ninguém
contestará a influência das primeiras impressões.
[...]Esta mesma escassez, e a necessidade de reler muitas vezes o mesmo romance,
quiçá contribuiu para mais gravar em meu espírito os moldes dessa estrutura
literária, que mais tarde deviam servir aos informes esboços do nobel escritor.
(ALENCAR, 1995, p.23).
Além das leituras, que, sozinhas, teriam feito dele um “mecânico literário”, Alencar
reconhecia que a semente da imaginação, herança da sua mãe, foi uma das grandes
responsáveis pelo seu talento enquanto romancista: “Mas não tivesse eu herdado de minha
santa mãe a imaginação de que o mundo apenas vê flores, desbotadas embora, e de que eu
somente sinto a chama incessante...” (Ibidem).
O mundo vê apenas flores desbotadas. Realmente Alencar teve que conviver com
inúmeras críticas que insistiam em assinalar seus romances como frágeis, exagerados e
desmedidamente românticos. Mas, ao contrário do que diziam alguns críticos, Alencar propôs
uma reflexão muito consciente daquilo que ele pôde observar e captar na atmosfera da
modernidade. É como afirmava Franz Kafka: “Quem exagera super-vê”.
Foi exatamente essa “super-visão” que encontramos no escritor José de Alencar. Visão
esta, capaz de alcançar diferentes épocas e paisagens. Capaz de falar das origens do nacional
1
,
mas também atento aos espaços regional e urbano. Um olhar lúcido e consciente da
necessidade de uma independência não apenas política e econômica, mas também de uma
identidade cultural, com literatura e linguagem próprias. Um olhar desbravador que não se
intimidou diante das críticas e construiu um verdadeiro legado da nação que, tendo
conquistado a sua independência, experimentava o desejo de modernidade e, ao mesmo
tempo, descobria que ser moderno também implica num sentimento de desorientação, numa
sensação de vertigem.
Os romances de Alencar analisados neste trabalho carregam algo em comum: a
presença ilustre, travessa e indispensável do olhar. Presença ilustre porque ele é o convidado
de honra, a sua presença é, talvez, uma das mais esperadas pelo leitor. Presença travessa
porque ele está presente em todos os lugares e, a qualquer descuido daquele que o carrega,
1
A expressão não deve ser confundida com a idéia de construção da nacionalidade, que é um projeto de todos os
romances do escritor, e sim à proposta de um discurso de fundação presente nos seus romances indianistas.
não hesita em cochichar com um outro olhar que o atraiu. Sua maior travessura é não guardar
segredos e contar o que vai na alma do seu dono, daí o seu sucesso entre os leitores.
E presença indispensável porque parece impossível falar de modernidade sem sequer
intuir a participação do olhar. Por isso, José de Alencar não dispensou a sua companhia e nos
seus romances, muitas vezes, o olhar deixou de ser apenas mais um dos cinco sentidos do
personagem, para ocupar o papel de personagem principal.
Embora o olhar tenha uma longa trajetória na História da humanidade, devemos
concordar que a sua presença no mundo moderno não foi casual e iniciou uma nova era,
vivida por uma sociedade comandada e controlada pela supremacia do olhar. A modernização
das cidades, a formação de novos conceitos científicos de astronomia e ótica, o aparecimento
da imprensa, a invenção da fotografia e do cinema, tudo isso contribuiu para acelerar a
visualização progressiva do mundo. Além disso, o emprego das galerias e vitrines inaugurou
um mundo onde tudo é produzido para ser visto e tudo se mostra ao olhar. O fato não passou
despercebido e ganhou a atenção de poetas, artistas e escritores que saíram às ruas em busca
do novo espetáculo promovido pelas transformações urbanas e pela multidão que nelas
caminha. O que fazem esses poetas, artistas e escritores? Eles olham, vêem, observam e
admiram, também se espantam, enfim, fazem um verdadeiro exercício para o olhar.
Também não podemos mais duvidar de que a presença do olhar na literatura do
escritor brasileiro teve um propósito. Falar do sonho de modernidade de um país que há pouco
tinha conquistado a sua independência, mas que, sabemos, ainda mantinha aspectos da
estrutura colonial nas relações políticas e econômicas, não teria sentido sem descrever as
conseqüências desse processo de modernização e os conflitos que atingiram a vida da
sociedade a partir desse interesse. Alencar compreendeu que essas conseqüências e esses
conflitos também não podiam ser trabalhados isolados da característica escópica que o mundo
a cada dia expressava com maior intensidade.
Portanto, a sociedade que passeia pelas páginas desses romances é aquela que conjuga
a necessidade de olhar, com o desejo de ser vista. Tal comportamento voyeurista/exibicionista
é essencial numa sociedade que busca nos países mais adiantados a imagem que sonha um dia
oferecer ao mundo. As festas, os bailes e saraus que a sociedade fluminense promovia com
freqüência no século XIX são registrados pelo autor e expressam o desejo daquela sociedade
de se expor ao olhar do outro para ser admirada e reconhecida como moderna.
Por outro lado, Alencar faz questão de anunciar que no mundo moderno capitalista a
aparência muitas vezes assume o status de realidade e pode muito bem deturpar a visão
daqueles mais desavisados que se encantarem pelo brilho do luxo que exala da vida mundana.
Há, portanto, nos romances do escritor uma pedagogia do olhar que consiste em alertar os
leitores para os perigos da aparência do mundo capitalista e da incompatibilidade entre o ser e
o parecer, um dos motivos da sensação de desorientação e do mal-
estar da modernidade.
Seguir os ideais liberais e aceitar as vantagens do mundo capitalista, ignorando grande
parte dos valores firmados no passado ou defender e vivenciar sentimentos puros em troca de
uma vida distante do glamour ostentado pelo novo sistema? Esse foi um outro conflito trazido
pela modernidade que os personagens de Alencar tiveram que enfrentar.
Não acredito que Alencar tenha desprezado o progresso e a modernidade e, com isso,
tenha proposto a extinção da visão racional do mundo ou que ele não apreciasse os
divertimentos da vida da corte. Pelo contrário, seus escritos deixam claro um ideal que unia
passado e presente, sonho e realidade, sentimento e razão. É verdade que como qualquer
representante do romantismo, ele se preocupou com a mecanização e a quantificação do
mundo e, principalmente com a dissolução dos vínculos sociais que eram conseqüências de
práticas capitalistas. Assim como também é verdade que o “romantismo é uma crítica
moderna da modernidade e, apesar de sua crítica à modernidade os românticos são
modernos”. (LOWY &SAYRE, 1995).
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