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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
ESTUDOS DE LITERATURA
CRISTIANE LEMOS RODRIGUES
PALAVRA E IMAGEM:
PAISAGENS DISPARADAS EM ARMANDO FREITAS FILHO
NITERÓI
2006
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CRISTIANE LEMOS RODRIGUES
PALAVRA E IMAGEM:
PAISAGENS DISPARADAS EM ARMANDO FREITAS FILHO
Dissertação apresentada ao Curso
de Pós - Graduação em Letras da
Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção do
Grau de Mestre. Área de Concentração:
Estudos de Literatura.Subárea:Literatura
Brasileira e Teorias da Literatura.
Orientadora: Profª Drª Celia de Moraes Rego Pedrosa
Niterói
2006
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89
R696 Rodrigues, Cristiane Lemos.
Palavra e imagem: paisagens disparadas em Armando Freitas
Filho / Cristiane Lemos Rodrigues. – 2006.
88 f.
Orientador: Celia de Moraes Rego Pedrosa.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal
Fluminense,
Instituto de Letras, 2006.
Bibliografia: f. 80-85.
3
CRISTIANE LEMOS RODRIGUES
PALAVRA E IMAGEM:
PAISAGENS DISPARADAS EM ARMANDO FREITAS FILHO
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras
da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração:
Estudos de Literatura. Subárea: Literatura Brasileira e Teorias
da Literatura.
Aprovada em outubro de 2006.
BANCA EXAMINADORA
Profª Drª CELIA DE MORAES REGO PEDROSA - Orientadora
UFF
Profª Drª LUCIA TEIXEIRA SIQUEIRA DE OLIVEIRA
UFF
Prof. Dr. MARCELO DINIZ MARTINS
FACULDADE CCAA
Niterói
2006
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À Célia pelo rigor, amizade e paciência
e, também, ao Armando.
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AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal Fluminense,
À Professora Doutora Lucia Teixeira Siqueira de Oliveira, por
ter me iniciado no universo acadêmico,
Aos professores Vera Lins e Luiz Fernando Medeiros de
Carvalho, pelas inquietantes aulas na Pós-Graduação e
Aos professores de graduação com quem convivi e tive o prazer
de ser aluna nos cursos de Graduação da UFF.
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“Cena que desdobro e imagino:
filme de cortes, talhes e navalha
À margem da imagem como um cego
Eu descubro a paisagem com meu palmo.”
Armando Freitas Filho
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RESUMO
Este trabalho se propõe a refletir criticamente sobre as relações estabelecidas entre o
discurso poético brasileiro e os diversos valores ativados pela imagem na contemporaneidade,
de forma a problematizar a questão da representação. Para isto, escolhemos como objeto de
estudo a obra do escritor carioca Armando Freitas Filho, que, iniciada com a publicação de
seu primeiro livro, Palavra, em 1963, ainda se mantém produtiva até os dias atuais. A
maneira pela qual são construídas as relações entre a subjetividade e as paisagens poéticas
aponta-nos para um tenso e produtivo diálogo com as formas hegemônicas da visibilidade na
cultura contemporânea. Deste modo, identificamos na poética armandiana um olhar crítico
sobre uma tradição ocularcentrista ocidental, originada em Platão. Esta tradição, que se
estende até nossa contemporaneidade, apresenta como um de seus pressupostos a valorização
de um sujeito do conhecimento, possuidor de um olhar incorpóreo e distanciado, que acaba
por desenvolver uma tirania do saber. Na mirada armandiana há uma suposta adesão às
estratégias visuais para, a partir delas, desenvolver-se um potencial alternativo ao uso das
imagens. É o que ocorre em relação ao tema da paisagem ocidental: o escritor irá apropriar-se
desta temática para construir um olhar tátil, contaminado ao misturar elementos de ordem
natural e artificial e violento que se contrapõe ao olhar controlador, apaziguador e distante
de uma onipresente e massificante cultura do visual. A suposta naturalidade da cidade do Rio
de Janeiro, cujas marcas geográficas e culturais fazem-se presentes em sua poética, sua visão
já conhecida mundialmente como cartão-postal, lugar comum é desclicherizada pelo poeta,
que ao olhar para ela nos indica, em vez de uma reconfortante e bela visão já cristalizada, a
incapacidade de sua apreensão e a violência da subjetividade.
Palavras-chave: Poesia. Paisagem. Visibilidade. Imagem. Cidade.
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ABSTRACT
The purpose of this work is to critically reflect upon the relationship between the
brazilian poetical speech and the several values activated by the image in contemporaneity, so
to problemize the question of representation. To do so, we have chosen as the object of study
the work of the carioca writer Armando Freitas Filho, which, started with the publication of
his first book, Word, in 1963, and is still productive until today. The way through which the
relationships are built between the subjectivity and the poetical views leads us towards a tense
and productive dialogue with the hegemonic forms of visibility in the contemporary culture.
In this way, we identify in the armandiana poetics a critical look over a western ocularcentric
tradition, originated in Platon. This tradition comes to the modern days and presents itself, as
one of its requisites, the valorization of a subject of the knowledge, that contains an
incorporeal and distant look, that turns out to develop a tirany of power. In the armandiano
point of view, there is supposedly an adhesion to the visual strategies in order to, from them,
develop an alternative potential to the use of images.That is what happens to the western view
theme: the writer will take over this thematic to build a touchable look, infected ? as mixing
elements of natural and artificial order ? and violent, that opposes a controlling, pacifier and
distant look of an omnipresent and massive culture of the visual. The supposed naturality of
the city of Rio de Janeiro, which geographical cultural marks are so intensely identifiable in
its poetics, its vision already worldwide know as a postcard, the poet eliminated the common
place cliche, that as he looks to it, indicates beautiful and conforting crystalized vision, the
inability of its apprehensibility the violence of subjectivity.
Keywords: Poetry. Landscape. View. Panorama. Visibility. Image. City.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO, p. 10
1.1 REFERÊNCIAS, p. 26
2 EXERCÍCIOS DE DESCONTINUIDADES DO OLHAR, p. 28
2.1 ESCREVENDO NA LINHA DO HORIZONTE, p. 41
2.2 PARA JOÃO, “COM AMOR E SORDIDEZ”, p. 57
2.3 REFERÊNCIAS, p. 69
3 CONCLUINDO: AS RASURADAS LUZES DA MODERNIDADE, p. 73
3.1 REFERÊNCIAS, p. 79
4 OBRAS CONSULTADAS, p. 80
5 APÊNDICES, p. 85
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1 INTRODUÇÃO
Podemos entender a representação como uma operação mental em que tornamos
presente uma idéia ou uma imagem correspondentes a algo que pode ser chamado de
realidade. Representar é transformar este algo em linguagem, consciente e inconsciente,
produzindo-o em uma nova dimensão. Na atividade artística e na reflexão sobre ela
desenvolvida, a questão da representação ? já bastante antiga ? mostra toda sua
complexidade e constrói campos de tensão entre as noções de imagem, verdade e realidade.
Tomemos como exemplo desta problemática a noção literária de mímesis em Platão e
em Aristóteles nos séculos V e IV AC. Ambos os filósofos concordam que a arte é resultado
de uma imitação, de uma mimese da realidade, porém, divergem em relação à maneira pela
qual seu efeito é exercido sobre as pessoas. Para Platão, o Mundo Sensível das Aparências
ao qual estamos presos enquanto seres mortais e corporais é uma imitação imperfeita do
Mundo das Idéias de onde descemos; logo, a arte seria condenável por ser uma cópia de
uma imitação já “deficiente” e por aprisionar o homem no domínio dos sentidos inferiores,
dificultando sua ascensão, pelo intelecto, ao Belo, à Verdade, ao Bem e à Justiça, que
11
nos seus estados puros de essências só brilham acima e fora da caverna em
que habitamos ( PLATÃO, 1993, p. 48 ).
Em Aristóteles, imitar é característico do homem, o que, em vez de o afastar do mundo
das idéias, revelará cada vez mais a essência humana, cuja realização ocorre pelas
experiências da vida, através da vivência do mundo concreto ( ARISTÓTELES, 1985, p. 71 ).
Ao contrário de Platão, na filosofia aristotélica a idéia não possui uma existência separada,
por isso, ela ocorre por meio da forma nos seres sensíveis. Assim, há um conceito platônico
de representação cujos pressupostos baseiam-se em uma relação deformante e desviante da
suposta “pureza” do ser real; e, por outro lado, há um conceito aristotélico de representação
cujos pressupostos também se baseiam em uma relação deformante, a qual se apresenta,
entretanto, como força construtiva, um farol iluminador de outras faces da realidade. O que
temos em jogo ? e que se estende até nossa contemporaneidade como um de seus pontos
cruciais ? é o valor de verdade da imagem, constituidora deste processo analógico da
representação. Enquanto a filosofia platônica ( PLATÃO, 1993, p. 54 ) supervaloriza o eidós
? forma das coisas exteriores e interiores, a essência, a idéia ? e rejeita os eidolon ?
substitutos do visto, formas aparentes das coisas ? ( ídolo, simulacro, imagem, retrato ); a
filosofia aristotélica recusa esta hierarquia e apresenta na Poética uma nova percepção do
processo da mimese, em que as imagens servem para valorizar o trabalho poético, inserindo-o
na esfera do conhecimento e do prazer ( PLATÃO, 1993, p. 56 ).
No entanto, parece que é o paradigma platônico que vai prevalecer ao longo da
história. E é justamente este jogo de essência e aparência das coisas ? ocorrido por meio das
imagens ? que se vincula à formação de um olhar que prepara na filosofia o advento de um
sujeito privilegiado do conhecimento. É preciso que, para isso, o observador não se fixe em
cópias e simulacros e, sim, utilizando seu olho incorpóreo, veja a luminosidade radiante das
essências. Desta forma, este sentido prevalecerá sobre os demais na medida em que, por sua
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não-corporalidade, consegue ser ao mesmo tempo dialético ? para Platão, dialético seria
aquele capaz de dominar com o olhar o conjunto de saberes e penetrar em suas conexões ? e
contemplativo. Segundo Marilena Chauí:
Se o olhar usurpa os demais sentidos fazendo-se cânone de todas as
percepções é porque, como dizia Merleau-Ponty, ver é ter à distância. O olhar apalpa
as cois as, repousa sobre elas, viaja no meio delas, mas delas não se apropria.
“Resume” e ultrapassa os outros sentidos porque os realiza naquilo que lhes é
vedado pela finitude do corpo, a saída de si, sem sofrer qualquer alteração material.
É essa imaterialidade da operação visual que a torna tão propícia ao espírito.
Ela prepara os olhos para a transferência ao intelecto, começando por usurpá-lo - o
pensamento fala com a linguagem do olhar - e terminando por serem usurpados por
ele - o espírito dirá que os olhos não sabem ver. ( CHAUÍ, 1994, p. 35)
O surgimento deste paradigma, que aproxima a visão imaterial, dialética e
contemplativa e o conhecimento da verdade, propicia em um de seus desenvolvimentos uma
relação totalitária entre olhar e sujeito, na qual idéias de correção, perfeição e controle se
articulam e passam a ser utilizadas pela ciência e tecnologia ao longo da história. Podemos
citar como exemplo o aparecimento, no século XVII, da Óptica de Descartes cujo fundamento
baseia-se na crença em um olhar perfeito, capaz de retificar as imperfeições do olhar sensível.
Outro exemplo seria o surgimento do panóptico ( projeto arquitetônico que, em
grego, significa visão total ) desenvolvido por Bentham no século XIX como modelo de
encarceramento em função da posição estratégica de um observador que teria a visibilidade
total das celas. Através deste procedimento objetivo e analítico, o sujeito inspecionador irá
analisar o espaço das instituições ? asilos, escolas, hospitais e prisões ? fazendo os outros
passivos objetos de sua observação ( MURICY, apud NOVAIS, 1993, p. 135 ).
Há, portanto, uma tradição ocularcentrista originada com o surgimento da filosofia
platônica que se desdobra por meio de uma tirania a qual irá associar à história do olhar um
saber, por sua vez, desdobrado em vontade de poder. A formação de um sujeito
descorporizado e onisciente, dotado de uma visão universal e transcendente, irá ao encontro
do desenvolvimento científico e tecnológico da era moderna que tem como pressuposto
13
justamente a observação racional da natureza a fim de adquirir domínio sobre ela. O olho,
portanto, está aqui à disposição das operações intelectuais, servindo para corrigir as distorções
existentes no mundo imperfeito das aparências sensíveis.
A invenção de aparelhos de correção ótica e de instrumentos de medição celeste
podem ser citados como exemplos desta tentativa de “acertar” o olhar humano. O surgimento
destes objetos foi contemporâneo ao aparecimento de uma nova técnica em relação ao olhar
corretivo na era moderna que repercute até os dias atuais: a convenção da perspectiva,
estabelecida no início do Renascimento. Através dela, um olho absoluto representaria o único
centro do mundo visível, de maneira a ser o ponto de fuga do infinito, fazendo com que tudo
convergisse para ele. Este método era baseado em uma analogia com o modelo medieval:
assim como o Universo já foi antes organizado por Deus, o mundo visível é organizado para o
espectador. Entretanto, a transposição do sistema medieval não é perfeitamente adequada: ela
acarreta uma contradição intrínseca na perspectiva. Se no modelo quatrocentista, a figura
divina não teria necessidade de situar-se em relação aos outros ? por ser a própria situação
? no modelo, renascentista esta onipresença traduz-se em uma contraditória falta de
reciprocidade, pois se tenta estruturar todas as imagens da realidade na direção de um único
espectador que, diferentemente de Deus, só pode estar em um lugar a cada momento
( MERLEAU-PONTY, 1980, p. 135 ).
Com a invenção da câmera fotográfica essa contradição foi se tornando cada vez mais
aparente, pois ela propiciava a representação de aparições momentâneas, destruindo a crença
nas supostas unicidade e atemporalidade das imagens. O que se via dependia de onde e
quando se estava, não era mais possível a existência de um único olho humano como ponto de
fuga do infinito. Assim, a câmera, embora objetiva, acaba por demonstrar a inexistência de
um centro e, portanto, aquela consciência de um único sujeito organizador do mundo visível
se dissolve a partir do aparecimento dos meios de reprodução de imagens. Estas, de forma
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rápida, intensa e assustadora, compõem o mundo moderno para sempre alterando as relações
do sujeito com a realidade.
Atualmente, vemos mais e cada vez mais diferentemente do que antes: somos
bombardeados por imagens vindas de todos os lados ? das ruas, das vitrines, da mídia, do
cinema ? e, além disso, novas técnicas e instrumentos afetam nossa maneira de ver, perceber
e, até, pensar. Ao refletir sobre nosso tempo teríamos que estar atentos a uma formação do
espaço público constantemente transformado, reinventado e reproduzido pelos dispositivos
teletecnomidiáticos. Os progressos de um mundo cada vez mais comunicável em tempo real,
cada vez mais visível nas inúmeras telas que se reproduzem incansavelmente ? a do cinema,
do computador, da televisão, do vídeo, da câmera ? se situam ao lado da constituição de um
espaço artefactual, do monopólio de um efeito de atualidade, de uma criação de
acontecimentos. Para Karl Erick Scöllhammer:
Mas como é, cada vez mais difícil distinguir entre a realidade da imagem e
a imagem da realidade, corremos o perigo de confundir o papel histórico que a
produção de imagens tem hoje, com a função que a imagem cumpre para o sujeito
no reconhecimento da sua realidade. Por um lado, temos as imagens da mídia,
proliferadas e banalizadas mas sempre onipresentes. O problema destas imagens é
que já não conseguem representar nada fora de si porque, aperfeiçoando-se a custo
da diferença entre cópia e original, perderam a sua perspectiva e já não “escondem,”
nada, como nada “mostram” independente de si mesmo. A realidade transmitida
pela televisão é um bom exemplo disso por ser completamente auto-sustentada,
produz as próprias referências, e é difícil distingui-las das ficções.
( SCHOLLHAMER, 1995, p. 69 )
Como medir, então o valor que a diversidade e a proliferação destas imagens adquirem
em nossa contemporaneidade? Até que ponto elas podem ser entendidas como mecanismos de
intervenção totalitária ou elas incidem criticamente sobre estes mesmos mecanismos? Que
valores culturais, éticos ou políticos, que potencial alternativo são ativados pelas imagens
neste desconcertante tempo marcado pelo excesso do visual, pela superexposição, pela
sufocante lógica da presença? Estes questionamentos, em função de sua complexidade, devem
ser repensados pelo viés da própria modernidade que, como um movimento contraditório e
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heterogêneo, abarca diferentes posturas em relação à visibilidade. Assim, como vimos, a era
moderna com seu projeto iluminista de libertar o homem do sofrimento e da minoridade
conferindo-lhe autonomia, acaba por utilizar o olhar como instrumento de uma razão
monológica que observa, esquadrinha e normaliza ? na linguagem de Foucault ( 1977, p.
123 ) ? ou que calcula, classifica e subjuga ? no dizer de Adorno ( 1985, p. 20 ). No
entanto, ela, também, engendra em seu interior, ao mesmo tempo, uma outra forma de olhar
que, por sua vez, corrói criticamente esse modo de existência totalitário. Esta outra forma se
faz presente no desenvolvimento que as artes, notadamente as visuais, adquiriram a partir do
desenvolvimento tecnológico. Esta cultura visual será o cerne de uma ambígua questão não
resolvida em que serão indagados o lugar, a função e o valor da arte. Se por um lado, os
processos formativos abertos pelas novas tecnologias, somados a uma ótica do mercado, da
indústria cultural e da mídia, domesticam, banalizam e homogeneizam a força vital artística
de modo a relativizar o seu valor; por outro lado, eles podem ser incorporados pelas artes
visuais que, construtiva e positivamente, atrelam a eles um valor político, uma experiência de
negatividade crítica, de choque.
Em ambos os casos, qualquer reflexão contemporânea sobre a arte deve levar em conta
esta influência dos processos formativos dos meios tecnológicos que adquirirão tamanha
importância a ponto de serem considerados em todo o seu campo de ação ? desde o material
trabalhado até o meio de divulgação ? parte do próprio fazer artístico.
Para pensar a relação estabelecida entre o olhar moderno, a produção artística e a
técnica podemos voltar ao texto, já clássico, de Walter Benjamin ( 1985, p. 78 ) sobre a obra
de arte na época de sua técnicas de reprodução. Há pouco mais de meio século, quando
Walter Benjamin estabeleceu que a obra de arte, por princípio, foi sempre suscetível de ser
copiada, mas afirmou que a reprodução mecânica representava uma nova etapa, inicia-se uma
reflexão cujas conseqüências vão além de tudo o que ele poderia prever, já que o próprio
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estatuto e a própria função da arte são atingidos em seu cerne. Com o advento das técnicas
modernas, atinge-se, antes de mais nada, a noção que se tinha da obra de arte como algo
único, vivenciado no hic et nunc através da unidade de sua presença constituindo aquilo que
se chamaria de autenticidade. Esta, entendida como tudo o que é originalmente transmissível
pelo homem ? desde sua duração até seu poder de testemunho histórico ? poderia ser melhor
caracterizada pela noção de aura, “única aparição de uma realidade longínqua, por mais
próxima que esteja.” ( BENJAMIN, 1985, p. 95 ).
O surgimento de modernas técnicas de reprodução, originado pelas novas condições
econômicas e sociais, permitiu também o aparecimento de um novo espectador da obra de
arte: as massas, responsáveis, em parte, pelo declínio da aura e pela substituição do valor de
culto pelo valor de exibição. Se antes a produção artística vinculada à imagem fazia parte de
um sistema que privilegiava a singularidade e a permanência, agora ela implica
transitoriedade e deslocamento com possibilidades infinitas de uso, relacionado não mais à
fruição solitária, mas a situações coletivas. O foco principal da discussão sobre a obra de arte
passa a ser direcionado para um sistema organizado de produção e consumo de massa, em que
as relações entre cultura e juízo estético já não podem ser mais as mesmas. Desta forma,
segundo Benjamin, é irrelevante a discussão do início do século sobre a pintura ser uma obra
de arte e a fotografia não, pois o que está em jogo é a alteração funcional da obra e seu
próprio conceito, que agora terá que levar em conta o público e os meios dispostos pela
tecnologia nascente.
O despontar do cinema exemplifica melhor o conjunto destas novas atitudes em
relação à arte: com ele, a postura contemplativa proporcionada pela pintura cede vez à
experiência de choque suscitada pela violência com que as imagens aparecem na tela, que
impedem ao espectador refletir sobre o que se vê. Além disso, a diversidade e o alargamento
proporcionados pela estrutura cinematográfica que, como uma forma de cirurgia, penetra
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incisivamente no “coração da realidade”, atingem os objetos de maneira mais eficiente que a
pintura. Agora, a câmera estabelece esta espécie de aprofundamento da visão, revelando
novas condições e estruturas antes impossíveis a olho nu. Ela se move para o alto e para
baixo, distancia os objetos ou os aproxima, coordenando todos os pontos de vista em uma
justaposição de movimentos imagéticos.
Podemos dizer que estas modificações proporcionadas pelo desenvolvimento
tecnológico em relação às artes, ao introduzirem estas novas relações espectador-obra,
fruição-juízos estéticos, valor de culto-valor de exibição, estão, principalmente, solicitando
uma nova compreensão do estatuto e da função da imagem desenvolvida em Benjamin cujos
desdobramentos vão de encontro ao ocularcentrismo ocidental percebido em nossa sociedade
espetacular. Esta noção, conforme a inovadora interpretação de Huberman sobre Benjamin,
aponta a possibilidade de um valor positivo para a aura e também diz respeito a uma condição
da imagem em uma dimensão originalmente dialética, crítica ( HUBERMAN, 1999, p. 107 ).
Uma das formas de entendermos esta imagem e as categorias por ela evocadas seria
pensá-la como uma espécie de fulguração, de cintilação da luz. Ao contrário do brilho
refulgente associado às luzes da razão iluminista, ao contrário da certeza e segurança
emanadas pelo sol epistêmico da tradição platônica, a luz que perpassa a imagem
benjaminiana é um clarão rápido, cintilante, acompanhado de tremores e perturbações no
espaço visual. Por sua constituição fragmentada e inesperada a formação desta imagem
pressupõe eternamente o dobrar-se em movimentos dialéticos de crítica. Primeiro, sobre ela
mesma; depois sobre as imagens a sua volta; e, por último, sobre nossos modos de vê-la, já
que ao nos olhar ela instaura um contínuo jogo reflexivo.
Esta imagem crítica e dialética estende a categoria da fulguração para as relações
históricas. Ainda de acordo com Huberman, a história constituída a partir da imagem dialética
torna-se anacrônica por não mais buscar a reprodução do passado como algo fixo pronto a ser
18
desvelado, mas por produzi-lo a posteriori, por meio de sua leitura futura feita no presente.
Através, portanto, de uma operação de reminiscência no tempo presente, o passado é
produzido, originado fulgurantemente diante de nós. Esta forma de originação do passado, de
conflagração, faz com que a imagem dialética produza, então, uma leitura crítica de seu
próprio presente.
Podemos utilizar esta reflexão benjaminiana para pensar a inserção das formas
artísticas na presente cultura visual. Por um lado, encontramos um significativo cansaço em
relação ao uso delas, pois, em primeiro lugar, nesta era da visibilidade, ocorre, com o
processo midiático, uma evidente banalização e homogeneização de qualquer tipo de
imagem. Em segundo lugar, vemos que o valor dado à imagem artística constitui-se por meio
de caminhos contraditórios, o que acaba por gerar uma dificuldade e um conseqüente desgaste
referentes à definição da arte na contemporaneidade. A inegável situação de descrença em um
valor epsitemológico para ela, a falência de uma concepção essencialista da transcendência
nos deixam como contrapartida um estado de conformismo generalizador que, de maneira
cínica e medrosa, nega-se a diferenciar criticamente as variadas formas existentes na arte
atual. Por outro lado, apostamos que seja possível descobrir uma nova forma de uso, uma
nova força representativa das imagens utilizando-nos deste procedimento crítico
benjaminiano, e esboçar um possível valor ético e político para a produção artística atual.
Não pretendo neste trabalho responder a todos as questões, mas, sim, a partir delas,
investigar de que forma ( s ) o discurso lírico ao dialogar com a visibilidade contemporânea
ativa um valor de negatividade crítica, ao mesmo tempo em que trava diferentes formas de
diálogo com estas formas do visível. A propósito, vale lembrar aqui a célebre frase de Adorno
( s/d, p. 93 ) que considera o discurso lírico uma das manifestações do que há de mais
delicado e frágil na sociedade industrial. Para isto, escolhemos como objeto de estudo a obra
do poeta carioca Armando Freitas Filho. Percebemos em seu percurso poético, iniciado nos
19
anos 60, uma forte vinculação a elementos componentes das artes plásticas. Nas obras
iniciais, encontramos uma ligação de seu texto à Poesia-Práxis, que foi um dos movimentos
de vanguarda surgidos a partir do Concretismo brasileiro, lançado oficialmente pelos irmãos
Augusto e Haroldo de Campos e por Décio Pignatari, no ano de 1956, no Museu de Arte
Moderna de São Paulo, com uma exposição de poemas-cartaz ao lado de quadros e esculturas
“concretistas”.
Segundo Alfredo Bosi ( 1980, p. 528-530 ), no contexto da poesia brasileira este
movimento firmou-se como antítese à vertente intimista e estetizante dos anos 40 e repropos
temas, formas peculiares ao Modernismo de 22 em sua fase mais polêmica e aderente às
vanguardas européias. Os poetas concretos vão tentar radicalizar os processos desenvolvidos
pelas vanguardas, levando-os às últimas conseqüências, explorando as camadas materiais do
significante.
A expressão “arte concreta” foi formulada pelo artista plástico holandês Theo van
Doesbury na Europa, em 1930, e indicava que a obra deveria ser confeccionada por meio de
elementos geométricos, dispostos por princípios matemáticos. Este fundamento proveniente
das artes plásticas foi logo apropriado pelo movimento literário concreto que, além de buscar
certas objetividade e racionalidade, incorporou o uso de materiais gráficos e visuais ? o
poema apresenta a forma de cartaz, anúncio, dobradura ou, ainda, fotografia e colagem ? e
inseriu, também, em sua poética, uma temática urbana, das grandes cidades com seus
anúncios propagandísticos, outdoors e néon.
A transposição do plástico para o verbal no caso do Brasil levou em conta esta
geometrização racional da palavra, tanto em termos ideológicos ? pois os concretos
defendem uma poesia objetiva, exata, sintética ? quanto em termos visuais: em lugar da
sintaxe discursiva, dos tradicionais versos longos, o que temos agora é o aparecimento de uma
sintaxe ideogrâmica, e até mesmo a proposta do desaparecimento total do verso. O material
20
significante terá explorado seu potencial visual ? não só em relação à disposição gráfica na
folha impressa como também em relação a termos morfológicos, de economia verbal, de
desintegração do sintagma e seus morfemas, utilizando para isso diversos recursos das artes
gráficas através, por exemplo, do uso de siglas. O poema passa a ser identificado como um
objeto de linguagem, uma realidade autosuficiente que adquire dimensão material,
concreta ( CAMPOS et al, apud TELES, 200, p. 402-405 ). Assim, para os concretistas “O
poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou
sensações mais ou menos subjetivas. Seu material: a palavra ( som, forma visual, carga
semântica ).” ( CAMPOS et al, apud TELES, 200, p. 404 ).
No caso de Armando Freitas Filho, o elemento visual aparece primeiro em sua
trajetória através de um cuidado com a apresentação plástica do objeto livro, que começa
desde o envolvimento do autor com o material utilizado ( escolha da capa, edição artesanal )
até a convivência e troca com inúmeros artistas plásticos:
Sempre fui muito ligado às artes plásticas. O convívio, desde moço, com
Rubens Gerchman, Antonio Dias, Roberto Magalhães, Carlos Vergara, e mais tarde
com Cildo Meireles, Artur Barrio, Milton Machado etc. apurou o meu gosto. Dos
meus doze livros, oito têm capa de pintores: seis do Rubens (com quem fiz dois
livros de arte: Mademoiselle Furta-cor e Dupla identidade ), um do Cildo, outro do
Milton. Guaches do Barrio ilustraram uma pequena edição numerada de duzentos
exemplares de Dois dias de verão, escritos, em co-autoria, com Carlito Azevedo.
Elaborei inúmeras apresentações para exposições, catálogos e convites.
Ultimamente, além de Erótica, com Marcelo Frazão, Vladimir Freire e eu fizemos
um folder, 3TIGRES, que é um belo objeto de arte gráfica.
Agora, está saindo do forno um álbum, Sol e carroceria, com dois dedos de
prosa minha iluminados pelas serigrafias de Anna Letycia, em tiragem limitada.
Não sei se chego a ter "obsessões imagéticas", mas, seguramente, formas e cores,
alimentam a poesia que pratico, e colaboram, em muito, na minha imagerie ou com
a minha imaginação. Prova disto é que não são raros, em meus poemas, homenagens
ou menções a artistas plásticos. ( FREITAS FILHO, apud BOSI et al,
2000 )
Como o próprio poeta nos diz, esta presença do visual ultrapassa a esfera do preparo
do livro e dos diálogos com seus contemporâneos e se espraia em sua obra marcando-a de
forma explícita através de toda uma onomástica das artes plásticas, utilizando-se, para isto, de
21
nomes de artistas ou de suas obras, técnicas de pintura e gravura, ou ainda mencionando
elementos próprios deste universo.
Já no primeiro livro Palavra
1
, de 1963, ( ME, p. 77-115 ) temos como títulos de alguns
poemas: “Gravura”, “Diagrama”, “Água-Forte”, “Composição”, técnicas diretamente
relacionadas ao universo plástico, pois, como sabemos, gravura é a técnica de formar imagens
por meio de incisões e talhas ou fixar, por meios químicos, em metal, madeira ou pedra, ou
ainda ela é o próprio objeto resultante deste processo; água-forte, por sua vez, é um tipo de
gravura em que se emprega ácido azótico e água; composição é um processo cujos
componentes resultam de várias operações relativas à obtenção de uma forma tipográfica e é
também uma técnica de apreensão da paisagem; e diagrama é o objeto resultante da
diagramação, ou seja, da projeção de folhas, cartazes, anúncios, surgidos com o aparecimento
das artes gráficas.
Em Dual, de 1966, ( ME, p. 117-147 ) também temos a mesma ocorrência em títulos
como Xilogravura e Litogravura que representam tanto as técnicas empregadas em
gravura ? neste caso, elas se diferenciam pelo uso dos suportes da madeira, no primeiro, e
pelo da pedra ou placa de metal, no segundo ? quanto as obras provenientes deste processo.
Há também neste livro e no seguinte, Marca Registrada, de 1970, ( ME, p. 148-173 ) vários
poemas cujas titulações são nomes de pessoas importantes ao universo plástico. Assim,
encontramos por títulos não só representantes do Modernismo brasileiro como “Pancetti”,
“Morandi”, “Volpi” e “Goeldi”, como também, expoentes da cultura francesa como “Jean
Dubuffet”, “Calder”, “Le Corbusier” e “Fernand Léger”.
Este elemento plástico também se faz presente nos títulos de alguns de seus livros,
entretanto, nem sempre esta referência à plasticidade é tão óbvia, podemos dizer que ela
ocorre em diferentes nuances. Se em 3x4, de 1985, ( ME, p. 348-404 ) a alusão à fotografia é
1
A partir deste ponto, os poemas e títulos citados serão retirados da reunião de toda sua poesia editada em 2003
pela Nova Fronteira, intitulada Máquina de Escrever poesia reunida e revista, que será abreviada para ME.
22
clara, além de estar reforçada na estampa da capa onde temos um retrato um pouco desfocado
do autor, já em De Cor, de 1988, ( ME, p. 405-459 ) encontramos na titulação, além da
referência ao caráter afetivo da memória, a presença plástica da cor sugerida na locução
prepositiva. Este uso ambíguo do elemento visual se repetirá em Duplo Cego, de 1997 ( ME,
p. 525-556 ). Apesar de esta expressão referir-se ao teste farmacológico feito para novos
medicamentos, ocorre aqui uma alusão problemática à visibilidade. Neste teste, a droga
aplicada é desconhecida tanto por quem a recebe quanto por quem a administra e esta
“cegueira” dupla estende-se ao longo deste livro na mirada que a subjetividade poética
estabelece a sua volta, mais adiante veremos como será desenvolvida essa relação.
Este elemento visual em Armando, presente não só na confecção do objeto livro como
na titulação de muitas de suas obras e poemas ocorre, principalmente, no desenvolvimento de
um trabalho com a linguagem que se processa como diferença e crítica à homogeneização e
banalização existente nas formas com que as imagens se mostram atualmente. Esta marca é
percebida, como já mencionamos, no começo de sua trajetória, por sua vinculação ao
movimento da Poesia-Práxis que, junto ao movimento Neoconcreto, estabeleceu-se como
crítica e alternativa ao Concretismo brasileiro.
Assim, em 1959, no Rio de Janeiro, motivados pela exposição de São Paulo, poetas e
artistas plásticos ? Almícar de Castro, Ferreira Gullar, Frans Weissmann, Hélio Oiticica,
Lygia Clark e outros - fundaram o Neoconcretismo. O chamado “Manifesto Neoconcreto”
lançado por estes artistas cariocas critica, entre outros pontos, a perigosa “exacerbação”
racionalista a que tinha chegado a arte concreta em função de estar atrelada a uma opção
mecanicista de contrução, fazendo com que seus elementos se submetessem aos pressupostos
do conhecimento científico. Segundo os neoconcretos:
23
Não concebemos a obra de arte nem como uma “máquina” nem como um
“objeto”, mas como um “quasi-corpus”, isto é, um ser cuja realidade não se esgota
nas relações exteriores de seus elementos; um ser que decomponível em partes pela
análise, só se dá plenamente à abordagem direta fenomenológica. Acreditamos que a
obra de arte supera o mecanismo material sobre o qual ela repousa, não por alguma
virtude extraterrena: supera por transcender essas relações mecânicas ( que a Gestalt
objetiva ) e criar uma significação tácita ( M. Ponty ) que emerge nela pela primeira
vez. Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte, não o poderíamos
encontrar, portanto, nem na máquina nem no objeto mas, como S. Langer e W.
Wleidlé, nos organismo vivos. Essa comparação, entretanto, ainda não bastaria para
expressar a realidade específica do organismo estético.
( CASTRO et al, apud TELES, 2000, p. 408 )
Em vez de tomarem como ideal de sua arte a imitação da máquina, os neoconcretos
apostam na fundação de um novo espaço expressivo. Por exemplo, em relação à literatura, a
palavra em vez de ser um objeto e se transformar em sinal ótico ? como objetivaram os
concretos ? se abre, agora, à natureza da linguagem se afirmando não como ser espacial,
mas, sim, como ser temporal inserido em um fluxo discursivo. Esta revalorização da natureza
expressiva da arte e esta crítica ao racionalismo do Concretismo estarão também presentes nos
pontos principais da Poesia-Práxis. Ao publicar sua obra Lavra-lavra, Mário Chamie apelidou
o grupo paulista de “vanguarda velha” e propôs uma ação poética desenvolvida em três
etapas: o ato de compor, a área de levantamento e o ato de consumir, o que possibilitou a
criação do conceito de “textor”, um misto de autor, leitor e texto. Assim, o poema seria uma
espécie de processo, cuja suposta “finalização” estaria sempre aberta, dependente de uma
leitura efetiva sempre inacabada; além disso, este dinamismo se estende, também, em relação
à palavra, espécie de matéria-prima transformável no poema.
No caso de Armando Freitas Filho, em sua primeira obra, encontramos diversos
poemas onde ocorre este jogo de multissignificação sintática e semântica iniciado através da
palavra, que, aliás, não por acaso, tornou-se o título do livro. Assim, no poema
“Diagrama” ( ME, p. 96;97 ) temos:
24
Interna
a ave
hiberna.
Entrave
ao vôo
que se esbate
treva suave.
Trave
interrompida
por infrene
arremetida.
Ave
Como o próprio título do poema sugere ? diagrama é uma representação gráfica de
uma obra visual ? estamos diante de uma composição em que, além dos signos, a
espacialização das palavras é também importante ao entendimento do poema. Poderíamos
dizer que a área de levantamento ou a peça-curinga utilizada como chave de leitura é a
palavra ave, elemento estruturador dos níveis semântico e sintático existentes no texto.
Em primeiro lugar, em quase todas as palavras percebemos a presença das vogais a e
e. Esta insistência no uso destas vogais somada à utilização de rimas internas e externas e à
variação da acentuação da sílaba poética ? ora o acento cai na primeira, ora na segunda ?
resulta em uma tensão rítmica correspondente a uma tensão semântica. A partir da palavra ave
vão se formando outras como entrave, treva e trave, que, por suas disposições gráficas no
poema e por engendrarem novos campos de significação, ampliam este dinamismo rítmico.
Nos três primeiros versos a imagem da quietude e da interioridade sugeridas pelo sono
da “ave” é contraposta à imagem do quarto verso constituído somente da palavra “Entrave”.
Seria este um neologismo cujo significado é a entrada de uma ave em cena ou seria somente o
substantivo entrave, ou seja, um obstáculo, uma quebra, uma descontinuidade? Nos três
versos que se seguem há uma volta ao movimento de repouso inicial, notamos agora que este
regresso é transposto para a plasticidade da cor ? pois o vôo se esbate em treva suave. Em
seguida, temos no verso “Trave” novamente a questão do obstáculo e da ambigüidade:
25
estamos diante de uma trave ou do imperativo do verbo travar, que significa não só prender,
tomar, pegar; mas, também, entreter, entrelaçar, tramar? Os versos finais retomam o ritmo
entrecortado reafirmado pela disposição cruzada dos vocábulos, finalizando uma diagramação
poética “infrene” e “arremetida”. A palavra ave inicialmente apresentada como ponto inercial
se transforma em todo o poema, deflagra uma tensão e um campo de movimentação que
fazem com que tropecemos nela a cada instante de nossa leitura.
Entretanto, apesar de ser possível reconhecer estes traços praxistas em suas obras
iniciais, podemos dizer que eles servem apenas de ponto de partida para que o poeta enverede
por um caminho onde, apesar de continuar a ênfase nos elementos visuais, encontramos uma
escrita livre de vinculações a qualquer movimento ou tendências literárias já estabelecidas. O
movimento Práxis serve ao escritor em seu início de carreira como, primeiro, uma
oportunidade de publicação e, segundo, como uma das opções vanguardistas mais próximas
ao que o poeta tentava fazer, pois ele não aderia ao radicalismo presente, por exemplo, na
proposta de abolição do verso e se preocupava com as questões sociais da época. Segundo o
próprio escritor nos fala em entrevista:
A oportunidade chegou em boa hora, pois os espaços literários da imprensa e
nas poucas revistas existentes eram quase todos ocupados pela pregação concreta e
neoconcreta e pela chamada geração de 45. Para mim, o verdadeiro “inimigo” era
esse, com seu beletrismo insuportável, com suas aspirações, desde muito tempo, de
passar a limpo as conquistas libertárias de 22. Que as facções de vanguarda se
digladiassem entre si eu até achava que fazia parte do jogo; do processo de
crescimento de todos nós que incorporava bem bate-bocas e caneladas, na poesia e
fora dela. ( FREITAS FILHO, apud BOSI et al,
2000 )
Desta forma, partindo de um começo “praxista” na poesia de Armando Freitas Filho,
identificamos a constituição de um fio condutor que se entrecruza com as questões sobre
visibilidade contemporânea. Tentaremos, então, através de um estudo do trabalho de
linguagem desenvolvido em sua poética, identificar procedimentos que, ao apontar para um
potencial alternativo ao uso das imagens, ao mesmo tempo, complexificam as relações entre
subjetividade e a visibilidade.
26
1.1 REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor. “Lírica e sociedade”. In: Col. Os Pensadores Habermas, Horkheimer,
Adorno. SP: Editora Abril.
___________ & HORKHEIMER Dialética do Esclarecimento. RJ: Jorge Zahar Editor, 1985.
ARISTÓTELES.“Poética”. In: A Poética Clássica; Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo:
Cultriz, 1985.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. SP: Brasiliense, 1985.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. SP: Editora Cultriz, 1980.
CHAUÍ, Marilena. “Janela da Alma, Espelho do Mundo”, In: O Olhar, (org. Adauto
Novaes), SP: Cia das Letras, 1994.
FILHO, Armando Freitas. Máquina de Escrever ? poesia reunida e revista. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2003.
___________________. “Cicatriz Adiada, entrevista realizada por José Almiro, Viviana Boi
e Fábio Weintraub em 2000, disponível no site www.memorial.org.br.
HUBERMAN, Georges Didi. “A imagem crítica”, In: O que vemos, o que nos olha. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1999.
FOUCAULT, Michel. “L’oeil du pouvoir”, entrevista in Le panoptique, de Jeremy Bentham,
Paris Pierre Belfond, 1977.
MERLEAU-PONTY, Maurice. “A dúvida de Cézanne". In: Os Pensadores, São Paulo, Abril
Cultural, 1980.
27
MURICY, Kátia. “Os olhos do poder”, In: NOVAIS, Adauto ( org. ).O Olhar. São Paulo: Cia
das Letras, 1993.
PLATÃO. A República. SP: Ediouro, 1993.
SCHÖLLAMER, Karl Erik. Video ergo sum reflexões sobre a cultura visual e a
modernidade”. In: Cadernos de Memória Cultural, nº 1, Rio de Janeiro: Museu da República,
1995.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro Apresentação
e crítica dos principais manifestos vanguardistas. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, 16ª
Edição.
28
2 EXERCÍCIOS DE DESCONTINUIDADES DO OLHAR
O olhar poético presente na obra de Armando Freitas Filho, ao incidir sobre a
paisagem a sua volta, problematiza certa concepção relacionada a ela que vigora até a nossa
contemporaneidade. Esta concepção questionada por ele estaria associada a um modo de olhar
em que as relações entre o sujeito e o objeto viriam permeadas por uma ideologia, de forma a
obedecerem critérios já definidos anteriormente. Para melhor analisarmos esta
problematização, devemos entender o momento histórico do nascimento da idéia de paisagem
no Ocidente.
O surgimento desta noção submete-se à reunião de duas condições. A primeira
consiste na laicificação de elementos religiosos e da natureza, que, se antes serviam como
pano de fundo da representação pictórica durante a Idade Média, agora, se destacam da cena e
deixam de ser meros acessórios. Esta autonomia, acrescida da capacidade de estes
elementos formarem um grupo homogêneo e unificado, constitui a segunda
condição ( ROGER, 2000, p.35 ).
Podemos, desta forma, identificar a construção deste conceito com o momento
histórico de transição entre os valores da religiosidade medieval e os do humanismo
renascentista. A partir do século XV, surge uma nova concepção antropocêntrica do Universo,
29
a primazia do divino cede lugar ao novo homem, que apoiado na retomada da razão, adquire
confiança e recupera a Natureza como um campo de aprendizado. É a época das importantes
invenções e das conquistas marítimas, era preciso que as grandes descobertas de novas terras
se traduzissem em imagens, de modo a reafirmar a autonomia humana sobre o mundo
circundante. Assim nasceu a pintura de paisagem: não só como um estímulo à aventura em
direção ao desconhecido, mas como uma transposição idealizada dos relatos de viagens. A
rica produção cartográfica daquela época também influenciou a confecção dessas imagens,
que, tais como os mapas e cartas, idealizavam o Novo Mundo de acordo com os valores
europeus.
Logo, existirá uma relação entre o nascimento desta noção de paisagem, a descoberta
de novas terras e o estabelecimento de uma nova civilização. Desta forma, este estabelecer-se
caminha ao lado da necessidade de dirigir a visão sobre a natureza circundante de modo a ter
controle sobre ela. A paisagem, portanto, não significa somente a extensão do terreno
abrangida num lance de vista; antes de mais nada, ela não é um dado natural, mas, sim, uma
construção, um espaço inventado e organizado pela nossa percepção visando aos elementos a
nossa volta. Assim, a origem desta palavra, que em língua francesa significa “pays” reforça a
idéia de que o direcionamento e o controle do imaginário visual de uma terra descoberta está
na base do processo construtivo de uma civilização.
A idéia de paisagem logo adquiriu expressão maior por meio do gênero de pintura, que
pode ser identificado em duas grandes formas: uma, utilizadora de um olhar de fora, caso dos
painéis de grandes extensões do século XVII; outra, utilizadora de um olhar de dentro, caso
do posterior surgimento da cena romântica dos séculos XVIII e XIX. No primeiro modelo,
encontramos como exemplo o aparecimento dos panoramas, em que a utilização de escalas
pequenas faz com que a visão do espectador seja ampliada e distanciada de forma a produzir
30
um efeito de uma imagem tranqüilizadora em que o suposto sujeito não se envolve com o
visto, apenas o observa de fora.
No segundo modelo, a pintura tenta se despir de qualquer traço de objetivação realista
no uso das técnicas neoclássicas de representação e investe na construção de uma cena onde
os recursos utilizados formam uma atmosfera de aproximação com o espectador do quadro, de
modo a ressaltar os valores da intimidade e da afetividade. Desta forma, as paisagens,
trabalhadas com um forte investimento emotivo, tornam-se o tema central da composição ou
ainda servem de enquadramento a cenas humanas ? o piquenique no campo, o passeio a
cavalo ? estabelecendo uma relação nostálgica entre o fundo paisagístico e o que ali está
contido. Assim, busca-se uma intensa aproximação afetiva entre o espectador do quadro e o
seu conteúdo.
Em relação ao panorama, não se sabe com precisão quando começou sua utilização
para representar um novo gênero de pintura, mas 1787 é a data da patente registrada pelo
inglês Robert Backer. Em torno desta época encontramos tanto no panorama à européia em
que uma imagem circular é contemplada de uma pequena plataforma central ? quanto no à
americana ? em que uma imagem plana se desenrola diante do espectador ? a mesma idéia
de espetáculo grandioso, de estarmos diante de uma grande tela de cinema, pois o espectador
chega a se perder na imensidão da imagem.
Este dispositivo viria ao encontro da idéia contida na etimologia desta palavra:
panorama origina-se de duas raízes gregas cujos significados nos remetem ao campo
semântico da onividência e do gigantismo. Além disto, as paisagens reafirmavam esta mesma
idéia ao serem reproduzidas de forma grandiosa, e também por estarem de acordo com as
técnicas do Realismo que, ao exigir um grande domínio dos meios de representação,
enfatizava os valores da racionalidade e do rigor a que deviam se submeter estas obras. Diante
deste imenso painel, o olhar do observador imaginário incidia na linha do horizonte, o que
31
além de ampliar o seu alcance, seria também uma tentativa de capturar e controlar a cena
( AUMONT, 2004, p. 84 ).
Por sua vez, o modelo de paisagem romântica dos séculos XVIII e XIX contrasta com
a grandiosidade panorâmica e o rigor representativo presentes em sua figuração. Se nos
extensos painéis a natureza reafirma os ideais de clareza e ordem clássicas com, por exemplo,
o uso de uma luz forte do meio-dia, nestas cenas mais intimistas, a natureza nos remete a
diferentes valores. Agora, ela é refúgio à nascente vida urbana e sua luz adquire a suavidade
da manhã ou do entardecer, ou, ainda, a delicadeza de um efeito rendado sobre as folhagens.
No século XVIII este gênero adquirirá maior força, já que o crescimento das cidades, que se
tornaram cada vez mais escuras, sombrias e ameaçadoras, favorece o surgimento de uma
nostalgia pelos valores da vida campestre. A paisagem será então o chamado eficaz à
emotividade humana e contrapor-se-á à tirania de uma razão eleita como fator essencial ao
Neoclassicismo vitorioso das academias e exposições de arte vigentes naquela época. Assim,
em pintores europeus como Constable e Turner, ela, que deve ser percebida como uma
sensação que envolve e afeta quem a vê, despreza qualquer tom monumental ou panorâmico e
não se submete às técnicas do realismo das academias ( LEVY, 1980, p. 302 ).
Em ambos os modelos, encontramos uma ideologização do olhar projetada pelas
diferentes subjetividades. Assim, tanto na atitude afetiva encontrada na cena romântica,
quanto na atitude distanciada encontrada na visão panorâmica, coexiste um procedimento de
controlar a relação entre o olhar e o que é visto. Seja para direcionar a emoção,
domesticando-a, no caso da primeira, seja para pacificar ordenadamente o mundo
representado, diferenciando-se espectador e cena, no caso da segunda. O que se pretende
alcançar em ambas é sempre a integração entre “o” sujeito e “a” paisagem.
O olhar poético de Armando Freitas Filho sobre a paisagem contrapõe-se tanto a um
quanto a outro modelo. Assim, temos um olhar que desqualifica a inteireza e o distanciamento
32
ao se desenvolver de modo tátil ao mesmo tempo em que instaura uma dupla fragmentação ?
a da subjetividade e a da paisagem sobre a qual seu gesto incide. A natureza encontrada em
seu texto poético não acalenta e nem consola ninguém, ao contrário, como veremos adiante,
ela é construída por meio de tensões em que um dos desdobramentos aponta para a questão da
violência. Este olhar tátil, desaconchegante e fragmentado, ensaia um duplo movimento de
avançar e recuar. O poeta adere aparentemente às estratégias visuais que buscariam a
plenitude da imagem, para, em seguida, no corpo de sua linguagem, nos mostrar esta
impossibilidade de consegui-la. Assim, ocorre, a todo momento, um gesto repetido, como um
exercício, de tentar captar a cena e ao mesmo tempo o fracasso em conseguir.
Este fracasso é a forma pela qual o poeta mantém viva sua obra ao mesmo tempo em
que dialoga com a idéia de telos contida na visão totalitária de uma suposta plenitude da
imagem. A repetição insistente do gesto de olhar tudo a sua volta reafirma o movimento, o
trabalho de luta e esforço de linguagem e a própria vida gerada neste processo: pois, se a
plenitude é o fim ? o objetivo ? atingi-la não seria também o próprio fim ? a morte ??
Assim, o poeta está sempre em uma constante luta, no limiar de algo prestes a ser atingido.
Esta relação com o telos desenvolve uma tensão em sua poética entre o elemento da fluidez e
o elemento da fixação, indicadores da tentativa do sujeito poético de ir até o limite da
representação através destes exercícios de descontinuidades do olhar. Esta tensão, além de se
desenvolver por meio de uma gagueira poética, indicada a seguir, é ainda emblematizada por
expressões que traduzem esta paradoxal situação de movimento imóvel: “cachoeira fixa”
( ME, p. 412 ), “muro em movimento” ( ME, p. 95 ), “Rio retesado” ( ME, p. 101 ) e “espaço
vórtice” ( ME, p. 103 ).
Uma das conseqüências desse processo é a desqualificação da suposta pureza do
natural, pois ocorre uma contaminação entre os domínios do natural e do urbano. Olhar a
33
paisagem é se perder nela, diluindo os supostos limites criados artificialmente por um
determinado tipo de visão, e é, também, ao mesmo tempo, ir até o limite da escrita.
Este movimento da reiteração encontra na gagueira, que, como sabemos é uma
característica marcante da trajetória biográfica de Armando, uma das formas de procedimento
poético utilizadas pelo escritor. Construído sob esta tensão ? entre os elementos do contínuo
e do fixo ? signo de um movimento que tenta, mas não consegue alcançar ? o poeta diz não
ser capaz de atingir a velocidade do pensamento ? agarrar, reter, o seu texto torna-se gago. A
gagueira da escrita reafirma a sua luta com a linguagem.
A gagueira poética em Armando Freitas Filho não só instaura um procedimento
textual específico como também se insere em uma tradição literária de forma a problematizar
a origem do intelectual brasileiro expressa por uma cultura da eloqüência. Esta se
caracterizaria mais pelo “amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à indicação
ostentosa, à expressão rara” ( HOLANDA, 1979, p. 50-51 ) do que pela estima ao pensamento
especulativo, ao procedimento intelectual, que afasta as conciliações forçadas, trabalhando
criticamente determinado tema. Vemos, então, que este traço nascente se sedimenta,
estendendo-se até os dias atuais, ao eleger como marca de uma brasilidade supostamente
“espontânea” uma retórica afetiva que a tudo tenta conciliar, afastando ou minimizando as
contradições culturais de nossa formação.
Entretanto, esta valorização do tom ornamental, grandiloqüente e até teatral ?
caracterizando-se de forma artificial e excessiva ? foi necessária na formação da literatura
romântica em que foram esboçadas condições para a consolidação tanto de um público quanto
do papel social de um escritor em suas relações com o nacionalismo. Para Antonio Candido, a
retórica foi uma das características decisivas para a configuração geral da literatura pois
proporcionou um público de auditores que ultrapassariam em muito os precários leitores da
época. Segundo Candido: “A ação dos pregadores, dos conferencistas, dos recitadores de toda
34
hora, correspondia a uma sociedade de iletrados, analfabetos ou pouco afeitos
à leitura”. ( CANDIDO, 1980, p. 81 ). Desta forma, o escritor romântico
nasce com a função de produzir um texto muito mais voltado para ser ouvido do que
lido. A eloqüência em nossa cultura é, portanto, um valor de inserção social do nascente
cidadão-escritor, que somada à vocação patriótico-sentimental consegue atingir e manter uma
contraditória comunidade literária sem leitores.
Ao se posicionar contrariamente a esta tradição da eloqüência exacerbada em nossa
cultura literária, podemos dizer que Armando Freitas Filho se integra a uma outra tradição: a
da “arte pobre”, a da “poesia menos” identificada por Haroldo de Campos. Segundo este
autor, a arte pobre em nossa literatura é inaugurada por Machado de Assis e tem no ano de
1897 o registro histórico de sua discussão, quando Sílvio Romero critica o “estilo gago” do
escritor carioca. Na visão do crítico oitocentista, Machado ao repisar, repetir, torcer e retorcer
tanto suas idéias e palavras nos deixaria a impressão de um perpétuo tartamudear, que, na
verdade, seria fruto de uma “perturbação qualquer dos órgãos da fala” ( CAMPOS, s/d p.
222 ). Ao fazer tais considerações, Sílvio Romero reforçou uma ideologia estética
vigente baseada na valorização da fluência e da eloqüência, por sua vez, associada à riqueza
vocabular, enquanto acumulação quantitativa de efeitos. O estilo pobre de Machado ? com
suas lacunas e elipses era justamente o oposto ao que valorizava nossa cultura de auditório:
a facilidade da continuidade harmônica da frase, a variedade e riqueza vocabulares, o efeito
das palavras impactantes e do estilo ornamental. Foi justamente esta magreza estética
machadiana que possibilitou o início da demarcação de uma “certa linha rastreável de
evolução” ( CAMPOS, s/d, p. 223 ) da “arte pobre”, do “procedimento menos” em nossa
literatura.
Assim, o mesmo princípio de falta e incompletude contidos na tortuosa gagueira
machadiana é identificado em outros escritores fundamentais de nossa literatura. Ele está,
35
portanto, presente no capítulo fragmentado e lacunar de Machado, no estilo telegráfico de
Oswald de Andrade e seus poemas-minuto, na mudez de Graciliano Ramos em Vidas Secas.
Em todos estes escritores, a descontinuidade, como marca comum, deixa de ser um defeito de
construção e passa a ser estratégia textual bastante eficiente para se atingir diversos
propósitos: seja chegar obliquamente ao outro, caso de Machado; seja para denunciar numa
fisiologia afásica uma miséria existencial, caso de Graciliano; seja, ainda, para criticar a visão
retórica-ufanista, caso de Oswald. Seguindo esta linha da arte-menos identificamos na
“gagueira” de Armando Freitas Filho um elemento que a partir de seus desdobramentos e
implicações é capaz de inseri-lo nesta tradição.
Estamos aqui no perigoso terreno das relações entre a arte e a vida, ou melhor, nas
implicações que os elementos biográficos do escritor exercem em relação a seu texto.
Entretanto, não procuramos com esta noção de “texto gago” resolver a poesia de Armando
com uma concepção ? já bastante desgastada ao longo de diversas correntes literárias ? que
estabelece uma redutora correspondência entre os elementos externos e internos de uma obra.
O predomínio de um ou outro elemento ou ainda o tipo de relação estabelecida entre eles para
direcionar a interpretação textual representa um ponto problemático na história da crítica
literária.
De um lado, procurava-se mostrar que o valor e o significado da obra dependiam
exclusivamente do espelhamento de fatores externos a ela, caso, por exemplo, de um romance
considerado realista ter de ser a expressão das relações sociais contemporâneas a ele. Por
outro lado, caminhando-se na direção contrária, procurou-se resolver a obra ressaltando a
importância de seus componentes formais, de modo a torná-la independente de fatores
externos, livrando-a da submissão a contextos de ordem biográfica, religiosa ou social.
Segundo Antonio Candido, para ser possível a integridade da obra, não devemos
dissociar uma visão da outra, nem combiná-las por meio de uma hierarquizada operação
36
meramente associativa. É preciso fundir texto e contexto numa interpretação dialeticamente
íntegra, de modo a saber que o externo “(...) importa, não como causa, nem como significado,
mas como elemento que desempenha um certo papel na construção da estrutura, tornando-se,
portanto, interno.” ( CANDIDO, 1980, p. 4 ).
Por que não, então, afinando-nos com Candido, capturar esse dado biográfico da
gagueira, incorporando-o como procedimento poético em sua obra? Em um primeiro
momento, transporta da vida para a arte, e, em um segundo momento, dentro do próprio texto,
ela funciona como uma das formas de lidar com a tensão produtiva encontrada no texto
poético. Segundo Célia Pedrosa, “Em Armando, a gagueira está ( ... ) vinculada a uma
estranha forma de eloqüência, em que o gesto é expresso por uma dicção que o nega, a força
pelo travo que a repreende, assim como a luz pelos sobressaltos que a
entrecortam” ( PEDROSA, 2006, p. 128 ). O que alimentará o trabalho do escritor
será justamente esta repetição cotidiana, incansável, esta incompletude que o impulsiona a
estar sempre à beira de algo. Assim, a gagueira, inicialmente biográfica, reverbera em um
crescente jogo de transposições, se estendendo discursivamente, em pelo menos duas
direções: uma, ao construir a paisagem através de um jogo de plenitude e falta; outra, ao
instaurar uma subjetividade poética incompleta, fragmentária e reiterativa. Devemos
acrescentar ainda que tais direções não são independentes ou excludentes, ao contrário,
relacionam-se entre si, construindo várias formas de diálogo. De acordo com o poeta:
O que faltou foi velocidade
na datilografia, acurácia, para
captar o que sub-reptício se afastava
e mesmo se gritante, os dedos gagos
não conseguiam, nas teclas, articular
as palavras, o que se exprimia, próximo
mas sempre além de todo mecanismo
que embora igual aos outros, desistia.
( ME, p. 47 )
37
Temos neste poema uma vinculação da idéia de texto gago com o trabalho do escritor
ambiguamente definido pela expressão “máquina de escrever”, a que o poema acima faz uma
alusão: este instrumento pode ser definido pela prática adquirida com o exercício constante, a
repetição, a tentativa, o erro e o trabalho cotidianos afinal a “máquina” nos serve para
reproduzir incansavelmente os objetos. Além disto, ele nos remete à questão da situação do
artista em relação aos recursos técnicos e a sua inclusão na cultura de massa promovidos pela
era moderna. Desta forma, a máquina aqui referida aponta-nos, ambiguamente, tanto para o
exercício solitário pois sentamos sozinhos diante dela do escrever, quanto para a inserção
do poeta na era da reprodutibilidade técnica, em que ele seria um simples objeto, fazendo
parte do mecanismo de produção.
A idéia de urgência acompanha este sujeito-objeto-máquina e se desenvolve em
diferentes aspectos. Em um primeiro momento, há a urgência do escritor Armando Freitas
Filho em relação ao tempo restante para escrever. Em uma de suas entrevistas, o poeta nos diz
estar preocupado com esta questão temporal: “(...) fica-se pensando em quanto tempo nos
resta para fazermos as coisas que ainda queremos fazer. Tenho muito pouco tempo para fazer
o que penso (...) as preocupações humanas nos impedem, desorientam-nos, destroem-nos. Isso
tudo me põe aflito.” ( FREITAS FILHO, apud BOSI et al, 2000 ). Em outra entrevista ele
acrescenta ainda: “A questão do tempo é crucial, é a questão nodal disso tudo. Nossa geração
não tem tempo a perder. Se a gente tiver sorte, tem mais 15 anos de vida útil. Isso é muito
pouco. Acho que essa pressa toda, essa urgência que aparece no meu texto
vem daí."( FREITAS FILHO, apud NAVAS, 2000, p. 9 ). Assim, a urgência
primeira do poeta relaciona-se à pressa em utilizar o tempo útil de vida que lhe resta para
escrever, sabendo que parte deste tempo, precioso e sem volta, é também ocupado pelas
preocupações e contingências existentes na vida.
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Esta necessidade que o escritor apresenta de aproveitar cada minuto que lhe resta se
mostra também na voracidade com que um fragmentado sujeito poético estabelece com a
visibilidade, configurando-se com esta relação um desdobramento da urgência existencial.
Este movimento de um olhar que se confunde com o visto constrói-se como urgente não só
por sua intensidade e repetição, que em um gesto desesperado a tudo tenta abarcar, como
também por instaurar, paradoxalmente, a continuidade prevista na velocidade e a interrupção
prevista no tranco brusco do poema. Como se o andamento do texto, ao se revestir desta
urgência atropelada, conseguisse agarrar as coisas, da mesma forma que o poeta tenta agarrar
o tempo restante.
A propósito, Viviana Bosi explicita esta questão da urgência, chamando-nos a atenção,
já na titulação escolhida para o ensaio que abre as obras completas do escritor. Em “Objeto
Urgente” ( BOSI, apud FREITAS FILHO, 2003, p. 5-25 ), a autora esboça uma trajetória
poética de Armando desenvolvendo a idéia de uma “arte desesperada”, em que temos uma
urgência aflorando no escrever enquanto questão de sobrevivência, ou ainda como tentativa
de apanhar eroticamente as coisas, o outro, a suposta paisagem. Para a autora: “A lírica de
Armando existe sob o signo da tensão inconciliável, pois deseja fundir-se com o outro,
reconhecendo, ao mesmo tempo, a impossibilidade pedra inaferrável que impede o encontro
e, se debate, fazendo do poema arabesco inquieto desse impulso.” ( BOSI, apud FREITAS
FILHO, 2003, p. 25 ). Podemos dizer que é, portanto, como um movimento paradoxalmente,
contínuo e interrompido em direção às coisas, é como reconhecimento inconformado com a
impossibilidade, que se estabelece de forma percuciente a mirada discursiva da poética
armandiana.
O primeiro alvo dessa mirada é a própria subjetividade que encontra neste gesto auto-
reflexivo a imagem do espelho como um urgente movimento de construção identitária. O
olhar a si mesmo supõe uma necessidade de respostas imediatas, que, entretanto, obtém como
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réplica a impossibilidade de uma visão unificada e plena. Desta forma, a imagem do espelho
em seus poemas está sempre quebrada, aos pedaços e desperta o poeta, tira-lhe o sono, rasga
sua pele, revela seus espectros: “O espelho é hoje”; “espelho quebrado”; “espelho vazio da
chegada”; “Não se esqueça / o que a vida inventa / e descobre / na insônia do espelho / e no
horizonte da cidade”; “No espelho / enigma inimaginável”; “espelho selvagem / tão vário é o
que se perde / e parte e rasga o rosto” ( ME, p. 371; 397; 255 ). Portanto, esta mirada
especular instaura, a partir da imagem da quebra e do caco de vidro, o espaço de reflexão, de
dobramento do sujeito que se descobre múltiplo, partido, ferido.
Se esta auto-reflexão é uma atitude urgente que tira o poeta de um estado confortável,
podemos dizer que o olhar a paisagem também revela esta mesma pressa e necessidade ao
tentar capturá-la. O olhar aqui se reveste de materialidade, o poeta nos fala do “olho verde que
fura” ( ME, p. 519 ) e “não abarca o mar / mas apenas as pedras / onde ele bate e quebra”
( ME, p. 494 ). A vontade de agarrar o visto é grande a ponto de haver uma transposição
do plano visual para o tátil, fazendo com que haja uma correlação entre o olho e a mão. Da
mesma forma que nos deparamos com um espelho capaz de ferir, em vez de uma mão suave e
acariciadora, encontramos uma mão que fura, fere e arranha, e se apresenta tal como o dia e a
rocha que erram, revelando-se por meio de constantes exercícios: “cada erro da rocha, que um
dia / resvalou, escalavrando seu perfil / difícil, apareceu na escalada áspera / onde a mão, mais
de croqui / que de escrita, escorrega e rala” ( ME, p. 49 ). O signo da “mão” não só
metonimiza o trabalho do poeta, como também do desenhista, estabelecendo assim uma
relação entre o ver e o escrever. Temos na expressão “escalada rápida” uma imagem que
relaciona a rocha com a mão que a escala: o esforço de uma em escalavrar seu perfil difícil se
equipara ao esforço da outra ao escorregar e se machucar. O signo da aspereza nos remete à
qualidade desagradável daquilo que é tocado e, ao mesmo tempo, aos impedimentos do olhar
tátil, pois, a palavra “áspero” além de significar uma superfície desigual e dura, denota
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também um vegetal “dotado de pêlos curtos e rígidos, difíceis de ver à vista
desarmada, mas sensíveis ao tato” ( HOLLANDA, 1990, p. 146 ).
Este trabalho de linguagem em torno da urgência poética é emblematizado ainda na
escolha do título de seu livro, publicado em 2003, que reúne toda sua obra - “Máquina de
Escrever”. O poema citado, mais acima, com a expressão “dedos gagos” nos remete a essa
“máquina de escrever”, a qual, por sua vez, é também utilizada na epígrafe, proveniente de
um texto da escritora Clarice Lispector:
O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as
teclas secas na úmida e escura madrugada. Há muito já não sou gente. Quiseram
que eu fosse um objeto. Sou um objeto. Objeto sujo de sangue. Sou um objeto que
cria outros objetos e a máquina cria a nós todos. Ela exige. O mecanismo exige e
exige a minha vida. Mas eu não obedeço totalmente. Se tenho que ser um objeto,
que seja um objeto que grite. Há uma coisa dentro de mim que dói. Ah como dói e
como grita pedindo socorro. Mas faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um
objeto sem destino. Sou um objeto nas mãos de quem? Tal é o meu destino humano.
O que me salva é o grito. Eu protesto em nome do que está dentro do objeto atrás do
atrás do pensamento-sentimento. Sou um objeto urgente.
( LISPECTOR, Clarice, apud FREITAS FILHO, 2003. p. 32 )
Além da questão da identidade do poeta como um objeto “sujo de sangue” e urgente, a
escolha desta escritora, entre tantos outros interlocutores com os quais Armando dialoga, para
abrir sua obra completa é bastante significativa. Em um certo sentido, o escritor se apropria da
estranheza inaugural provocada pela linguagem de Clarice, do “coração selvagem” de seu
discurso, relacionando-os às ambíguas e problemáticas questões presentes na condição do
poeta moderno com a técnica, a máquina, a serialização. Paradoxalmente, o poeta vê a si
mesmo ( e à sua obra ) como um inumano objeto, seco e sem lágrimas, que, no entanto, grita.
Um objeto com um destino humano, sujo de sangue em função de suas feridas.
Voltando ao poema em questão, vemos que a problematização entre a experiência do
escritor e sua inserção no mundo moderno da técnica é reafirmada pela imagem dos dedos
gagos. Estes reforçam a idéia da repetição contida na gagueira de forma ambígua: de um
lado ela nos remete à serialização da máquina que reproduz velozmente os objetos; por outro
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lado, ela expressa a urgente condição do poeta em sua tentativa de capturar o sentido. O ritmo
marcado e ao mesmo tempo entrecortado do poema resultado do enjambement, no nível
sintático, e do efeito fônico da intercalação de palavras separadas por vírgulas no meio de
alguns versos reafirma, ao mesmo tempo, a situação anacrônica do barulhento som
“picotado” proveniente da utilização de uma máquina de escrever e o movimento fracassado
previsto na experiência do escritor em sua repetição cotidiana da apreensão do sentido.
Assim, desenvolveremos neste capítulo de que modo a gagueira incide na construção
da paisagem natural e urbana e quais suas implicações na questão do limite da representação
escrita e visual, de forma a indicar de que maneira esta gagueira visual e discursiva relaciona-
se com a questão da subjetividade poética.
2.1 ESCREVENDO NA LINHA DO HORIZONTE
Os elementos pertencentes à ordem do natural o sol, a pedra, a palmeira, as nuvens,
o horizonte povoam as paisagens construídas no texto poético de Armando Freitas Filho.
Esta presença constante da natureza é facilmente associada à cidade do Rio de Janeiro com
seus conhecidos e tradicionais pontos geográficos: o Morro do Corcovado, a Pedra da Gávea,
as praias da Zona Sul, as palmeiras do Jardim Botânico, a Lagoa Rodrigo de Freitas.
Entretanto, se o poeta utiliza continuamente esta fisiografia carioca, ele o faz de forma a
contagiá-la com elementos da ordem do urbano e do artificial, no sentido de tratar-se de
objetos construídos pelo homem. O natural em Armando não estará, então, relacionado à
qualidade da pureza prevista no desenvolvimento histórico deste conceito. A idéia de
contaminação invade o texto armandiano corrompendo uma possível inteireza pressuposta no
no natural e alterando uma harmonia estática presente, por exemplo, na visão cristalizada de
um cartão postal.
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Podemos perceber este processo de construção imagética da cidade carioca,
imediatamente, em alguns casos, por meio da própria titulação existente. Assim, encontramos
títulos como: “Atlântica” ? conhecida avenida à beira-mar carioca ? “Urca” ? bairro onde o
poeta reside ? , “Maracanã” ? famoso estádio de futebol ? “Forte” ? referência às fortalezas
militares situadas ao longo das praias e “Cidade Maravilhosa” ? referência à expressão com
que ficou conhecida a cidade carioca ( ME, p. 71; 59; 165; 549; 275 ). Em todos eles, temos
presente uma alusão ao Rio de Janeiro em termos de intervenção humana histórica,
localizável e datada. Além de esta ocorrência se dar por meio da nomeação dos poemas, ela
atua também no próprio corpo do texto:
Ler na areia, na revista do domingo
que ficou para trás, no fim da tarde
que a praia é a permanente risada do mar.
Ver nas fotos, nas páginas viradas
os mesmos coqueiros que pressinto aqui
em ordem unida, perfilados, sentinelas
estáticos e estéticos defronte do horizonte.
E impressa no céu, a pedra da Gávea
os Dois Irmãos ( e eu sou só um )
onde passam e pousam inúmeras nuvens
que são falsos anjos que se desmancham.
( ME, p. 389 )
O texto acima se inicia com uma cena típica do verão carioca: a leitura habitual da
revista de domingo na areia da praia. No entanto, esta familiaridade inicial apresentada na
abertura do poema é logo desconstruída por uma oposição entre diferentes formas de olhar
resultante de um estranhamento causado por oposições imagéticas. Há um jogo de olhares
instaurado a partir da problematização dos lugares estabelecidos para a captação da imagem.
Para isto, nos é apresentado um duplo contraste: entre um olhar do já capturado por um
suporte midiático ? “Ler na areia, na revista” e “Ver nas fotos”, “nas páginas viradas” ? e
um outro olhar que, por sua vez, constitui-se paradoxalmente ? “ver (....) os mesmos
coqueiros que pressinto aqui? ao estabelecer uma oposição entre uma posição presencial
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? por meio dos marcadores dêiticos “mesmos” e “aqui” e uma posição de distanciamento ?
por meio da utilização do verbo pressentir.
Podemos dizer que, contrapondo-se a um observador do discurso racional que fala de
um lugar estabelecido e supostamente distanciado e neutro, é difícil precisar onde o sujeito
poético está. Melhor seria dizer que o lugar de sua fala é definido por uma movência e
contaminação do olho com aquilo que vê, como se ambos participassem de uma mesma
experiência. O jogo de olhares no poema é retomado na ambigüidade com que é utilizado o
termo “impressa”, remetendo-nos tanto à representação de uma imagem ? na revista ou na
fotografia quanto à sensação da impressão deixada pela pedra da Gávea ou, ainda, ao estado
de pressentimento causado no poeta ao olhar as coisas à sua volta.
Contrastando com a languidez e preguiça de um final de domingo na praia somado ao
estado imaginativo do poeta ? que pressente os coqueiros ? temos as imagens da dureza e da
atenção sugeridas pelos sentinelas perfilados diante do horizonte. Toda a imaterialidade e
intuição ativadas na relação com as diferentes construções imagéticas colocadas em jogo no
texto são violentamente quebradas pelo rigor militar que estranhamente se insere na cena, de
modo a misturar uma ordem social e histórica à paisagem natural de um domingo.
Nos quatro versos seguintes, ocorre o mesmo contraste imagético: a figura do túnel
Dois Irmãos é atravessada pelas nuvens, fazendo com que surja uma convivência entre um
elemento artificial, construído pelo homem, e um elemento natural. Assim como os coqueiros
quebram a esperada harmonia da cena, a imagem do túnel também reitera esta quebra, pois
sua cor escura e seu tamanho grandioso se chocam com a imaterialidade e brancura das
nuvens, que adquirem uma dimensão concreta ao descaracterizarem-se de qualquer traço
espiritualizante, já que elas são “falsos anjos que se desmancham”.
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Esta dinamização da cena acrescida a este confronto de ordens diversas desenvolve
uma paisagem sentida como um esforço, uma espécie de luta entre seus elementos ou até um
campo gerador de violência:
Antes da pena d´água
o mar aberto se debate
inumerável, perdido
diante de palmeiras selvagens
temperado em heróica
e lírica consonância
com a lagoa inesperada
na boca seca do túnel
com o céu
reagindo no reflexo
tentando subir se salvar
mas resvala na pedra
isolado.
( ME, p. 522-523 )
Mais uma vez, temos aqui a convivência de uma ordem natural ? o mar, as palmeiras,
o céu e uma artificial o túnel. Nada neste poema nos traz a tranqüilidade de uma paisagem
integrada, parece que há uma luta entre seus elementos: o mar se debate, as palmeiras são
selvagens, a lagoa, inesperada, e o céu reage tentando se salvar, mas resvala na pedra, isolado.
A violência surgida neste combate também é construída por meio da disposição sintática dos
versos e da dificuldade fonética proveniente da leitura do poema. Nestes dois níveis há
também um jogo de avançar e recuar que dinamiza ainda mais o texto. Assim, temos a
insistente repetição do som resultante da oclusiva bilabial surda /p/ que acaba por contaminar
todo o poema com sua sonoridade de difícil fluidez ( pena”, perdido”, palmeiras”,
“temperado”, “inesperada”, “pedra” ). Somado a este avançar repetido, ocorre a construção de
versos cujos sentidos se completam no seguinte, apresentando, desta forma, um ritmo cortante
e ao mesmo tempo intermitente. A luta da paisagem está sempre neste movimento repetitivo,
dificultoso, e, ao mesmo tempo, interrompido.
A violência percebida na construção da cena armandiana contagia a obra do escritor e
se constitui como um dos núcleos de sua poética, irradiando-se em várias direções. Utilizada
45
para dinamizar a paisagem, diluindo suas supostas ordens, ela também estará presente nas
variadas temáticas abordadas pelo poeta, de forma a instaurar sempre uma dissolução de
limites, evoluindo para um estado de não-conformidade com as realidades dadas como
prontas ? caso da paisagem ? e revelando um caráter imprevisível e contingente da própria
vida. Ao provocar este movimento transgressivo, o elemento da violência em Armando afina-
se com os significados do verbo violar: ultrapassar os limites, ir além do permitido, desregrar-
se, utilizar a desmedida de maneira forte e impetuosa.
Assim, vemos que o mesmo tom incômodo, intenso e percuciente percebido na
construção da paisagem se repete em outras temáticas cruciais na obra do poeta: a presença
forte e constante da sensualidade, a consciência da morte iminente e a dificuldade desesperada
da escrita. Se o olhar armandiano instaura uma espécie de luta com o que é visto, negando
tanto uma relação de passividade quanto de controle, podemos dizer que este procedimento se
estende em direção a outras temáticas. Estas se desenvolvem também através do signo da
imprevisibilidade, sempre configurando-se como uma difícil luta e uma abertura constante ao
novo. Tal como a paisagem, os temas do erotismo, da morte e da escrita não podem ser
controlados, medidos ou limitados.
Este traço da imprevisibilidade se torna presente, primeiro, por meio do próprio fazer
literário. De acordo com Antonio Candido:
O primeiro passo ( que apesar de ser óbvio deve ser assinalado ) é ter
consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece
com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente,
pois a mimese é sempre uma forma de poiese. ( CANDIDO, 1980, p. 12 )
Sabemos que todo trabalho artístico é arbitrário, pois ao ser elaborado visa a um
significado intenção inicial do autor. Quem o recebe também o fará arbitrariamente, já que
irá valer-se de um determinado ponto de vista para analisá-lo. Assim, a representação de uma
realidade é sempre uma escolha, um recorte, uma deformação. Não se consegue transpô-la
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fielmente por estar sujeita às mais variadas interpretações tanto no momento da produção,
quanto no da recepção. Ou seja, a literatura é, sobretudo, poiese, uma experiência estética
produtiva, uma operação de produção de sentido, em que a obra é um signo, “significante de
um significado” ( BARTHES, 1995, p. 148 ). Como sabemos, o signo lingüístico transmite
uma informação servindo-se de uma parte material e perceptível associada a uma parte
imaterial e inteligível: a parte sensível é o significante, a não sensível, o significado. No
entanto, este significado não é único, mas variado, diverso. Logo, a mimese, mesmo quando
pretende ser apenas a reprodução fiel de uma dada realidade, também pode ser
transformadora, ou melhor, deformadora dessa mesma realidade empírica, a fim de se
produzir determinado efeito estético. Nesse sentido, a mimese é uma forma de poiese.
Por outro lado, se existe esta arbitrariedade do trabalho literário, antes de mais nada,
devemos pensar que ela já se encontra na própria linguagem verbal, precisamente na
constituição do signo lingüístico. Para certos lingüistas, se a relação significante e significado
é dita arbitrária no sentido de que não há nenhum motivo intrínseco para associar uma
seqüência fônica a um determinado conceito, no entanto, para eles, ela é indissolúvel porque é
necessária: o significante sem o significado é apenas um objeto, que existe, mas não significa
e o significado sem o significante é indizível, impensado e inexistente. Para estes lingüistas,
neste acordo pré-fabricado entre significado e significante, é desconsiderado o caráter
artificial e impositivo existente, de forma a ser ressaltada uma espécie de quase naturalidade
estabelecida nesta relação, já que ela seria um dos pilares para o devido funcionamento da
comunicação escrita, do tornar comum. Silviano Santiago, em texto em que estabelece modos
distintos de pesquisa em Teoria da Literatura e demarca diferenças entre análise e
interpretação, nos chama a atenção, valendo-se de Nietzsche e Derrida, para a problemática
do signo e constata que a relação entre a linguagem e as coisas só pode ser descrita pelo
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vocabulário da diferença e da violência. Segundo o autor, Nietzsche interpelava que o
“princípio da razão” se repousava
( ... ) numa continuidade entre a linguagem e as coisas, num acordo pacífico
entre elas, proporcionando então ao pensador a ‘ilusão’ de que a linguagem podia
ser a expressão adequada de todas as realidades. Essa desconfiança com relação
àquela continuidade, com relação portanto à própria linguagem, como veículo do
conhecimento e busca da verdade, leva Nietzsche a propor um outro sistema para a
compreensão do valor do signo, abstraindo-se totalmente e primeiro da problemática
da ‘coisa-em-si’, e vendo o estabelecimento da linguagem, sua gênese, como uma
sucessão de metáforas impostas pelo homem às coisas ( ... ) Primeira metáfora:
transpor uma excitação nervosa em uma imagem. Segunda metáfora: a imagem se
transforma em som articulado.( ... ). Daí para a desconfiança com relação à
linguagem da filosofia ocidental por excelência o conceito- nada mais precisava do
que apresentá-lo como uma metáfora, num distanciamento ainda maior da
linguagem à coisa. Terceira metáfora portanto. ( SANTIAGO, 1978, p. 203-204 )
Esta violência e arbitrariedade fundamentais a toda linguagem e a todo processo de
escritura contaminam os temas poéticos de Armando Freitas Filho. O olhar e o escrever
compartilham um procedimento comum caracterizado por uma abertura e conseqüente recusa
a qualquer solução instituída. Nesta direção, seguindo o pensamento de Sarah Kofman em A
Infância da Arte, o texto escrito instaura um movimento incessante de adiamente de sentido,
que traduz esta situação de incompletude. Segundo Kofman:
O enigma está em toda parte porque o sentido, sempre postulado está sempre
ausente em sua plenitude. Ele só se dá em sua deformação, através de uma cadeia de
significantes substitutivos, por sua vez, também já substitutivos. Todo texto é
lacunar, furado. São essas lacunas que ele recobre com seu tecido, para as
dissimular. O tecido que marcava ao mesmo tempo revela, aderindo perfeitamente
ao contorno daquilo que esconde. A continuidade fala da descontinuidade, o sentido
do não-sentido; inversamente, a descontinuidade e as rupturas de sentido no detalhe
falam do sentido de uma continuidade mais profunda. É ocultando que ele mostra o
que esconde e que não está em parte alguma como presença de sentido.
( KOFMAN, 1995, p. 69 )
Esta consideração do texto como procura ininterruptamente frustrada e adiada de
sentidos, como continuidade para sempre descontínua, equipara-se ao movimento incessante
do desejo, que, por sua vez, desencadeia um espaço de erotismo comum aos temas do olhar e
do escrever. Neles veremos que o erotismo ? como força geradora e transformadora do
mundo ? revela-se por meio de uma composição violenta. Por sua vez, a violência
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manifestada na linguagem e na produção artística também se repete como movimento
transgressivo no impulso erótico. Para Marcuse:
Ser é, essencialmente, lutar pelo prazer. Essa luta converte-se num “anseio” da
existência humana: o impulso erótico para combinar a substância viva em unidades
cada vez maiores e mais duradouras constitui a fonte instintiva da civilização. Os
instintos sexuais são instintos de vida: o impulso para preservar e enriquecer a vida
(...) é originalmente um impulso erótico.( MARCUSE, s/d, p. 118 )
Desejo e escritura compartilham, portanto, uma natureza violenta que, por sua vez,
aponta para um movimento de busca incessante proveniente de um estado de falta e
incompletude. O querer tomar posse das coisas ? seja pela atitude erótica, seja pelo ato de
nomear promovido pela linguagem ? indica uma busca permanente. É preciso, neste ponto,
ressaltar que a noção de desejo trabalhada é a estruturada a partir da psicanálise, que a
diferenciou da pertencente a um campo do estritamente biológico que o entendia como uma
simples satisfação de carências. A partir de Freud este vocábulo ultrapassará a visão empírica
de objeto adequado a suprir algo e se constituirá como uma insatisfação constante,
configurando-se uma meta agora impossível de ser alcançada, mas que, paradoxalmente,
retira desta impossibilidade sua energia infinita. A estrutura do desejo estará constituída em
um contraditório jogo de inacessibilidade, em que a suposta aproximação é um ausentar-se do
próprio objeto de desejo, que está sempre mais além ( MEZAN, 1987, p. 76 e 77 ).
Esta busca em direção ao objeto do desejo instaura uma luta inacabável, um violento
movimento de avançar e recuar, em que a satisfação nunca é alcançada. Este erótico jogo
toma como um de seus objetos a figura feminina, repetindo a mesma relação violenta, voraz e
inacabada estabelecida com a paisagem. A mulher é tratada no poema por meio da instauração
de um confronto amoroso em que seu corpo, objeto de desejo, é valorizado como algo que
deve ser vivenciado através dos sentidos, principalmente, o do tato. Assim, o amor, nunca é
suave ou espiritualizado, ao contrário, ele está impregnado de todo um universo semântico de
uma difícil luta corporal, já que é “pá de terra, batendo com toda força e peso / em cima do
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peito” ou é ainda o que “pega no tranco / e fica rodando / na base do tiro ( ...)” ou é um “amor
que bate / em todas as partes / no peito da vida / bate” ( ME, p. 505; 509; 265 ). O verbo amar
adquire, também, a dimensão de um ato auto-violento pois é “mergulhar de cabeça / sem
saber nadar, sem saber de nada / ao seu encalço / numa piscina / como um camicase ( ...)/ sem
perguntar / sem sequer pensar / se lá embaixo / vou encontrar água / ou o ladrilho do vazio?”.
( ME, p. 323 ).
Este sentimento caracterizado pela verbalização de atos violentos ? o amor “bate” ?
ou arriscados ? “amar é mergulhar de cabeça” ? tenta chegar até o outro perseguindo seu
corpo. Entretanto, tal como o corpo da paisagem que nunca se deixa captar em sua inteireza, o
corpo da mulher ou perde-se em uma ilusória unidade ou não se deixa capturar pelo escritor.
A busca pelo outro se materializa em muitos de seus poemas por meio da utilização do verbo
agarrar e seu campo semântico ? as garras, o arranhar, a caçada. Assim, o poeta nos diz:
“Seu corpo está todo aqui / mas não te agarro” ( ME, p. 469 ) e ainda “No seu corpo / vestido
de cetim / (...) eu me debruço (...) mas minha fome nem sequer alcança ou arranha o escudo
de esmalte da sua beleza, / não atravessa seu corpo de cromo” ( ME, p. 239 ).
Há sempre um obstáculo, uma dificuldade na luta travada entre o poeta e a mulher na
tentativa de realização de seu desejo, e se, ocasionalmente, acontece uma suposta apreensão
do objeto amado é somente para se desfazer e em seguida constatar-se o permanente fracasso.
É o que vemos no poema “Cinco sentidos” ( ME, p. 182 e 183 ) onde cada sentido utilizado
para “segurar” a amada é não só insuficiente como também portador de uma repentina ilusão.
Desta forma, no poema, quando há a referência ao sentido do tato o que se consegue é o
movimento paradoxal de uma mão-garra que apalpa o “chão do nada”: “(...) e sigo o rumo do
aroma / que respiro na escura / câmara dos sentidos / onde procuro sua fuga / quando, garra,
minha mão / apalpa o chão do nada / ou os muros da pele do corpo que persigo?” ( ME, p.
183 ).
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Podemos dizer, portanto, que a violência em Armando, além de se espraiar em vários
temas se repete de forma dupla em cada um deles. Pois, ela é constituída de esforços
simultâneos: seja por meio de um combate corporal ? em que se tenta agarrar a paisagem, a
mulher ou a escrita, mas o resultado é a ferida ? seja por meio da tentativa de captura da
significação. Assim como o corpo da mulher se insere no contexto da violência por estar
sujeito a estas inquirições e por estar sempre aos pedaços, dilacerado; o corpo da escritura
também se insere neste mecanismo. No poema “Escritura” ( ME, p. 224-225 ) ele nos fala
desta “(...) ferida que não pára/e que tanto me custa descrevê-la / e quanto mais eu grito, mais
ela fura (...) eu sangro aqui, sob a lâmina / de sua fala, assim punhal / palavra que não seguro
e se enterra / até o fundo, até o cabo, em toda treva.” Se escrever é sangrar o texto, é sangrar
debaixo da faca da fala; o “cortar”, ambiguamente, se refere a esta ferida e à economia e
precisão textuais perseguidas: “Corto por dentro e ao contrário./Reescrevo de novo sob luzes
frias.” ( ME, p. 487 ). E neste gesto pungente e calculado, o sujeito poético tenta como
máquina “xerocar” esta urgência: “Xerox, tigre, terror./Reproduzo o que não consigo
exprimir./O que é fúria e sangue urgente/debaixo da última pele.” ( ME, p. 415 ).
Dilacerada, a pele desta ferida se transforma em um espécie de “rubrica” ( a cor rubra,
a letra escarlate ) do escritor e do ato de escrever. Pois, como declara Armando: “Vivo me
escarafunchando sempre. (...) Não cicatrizo jamais.” ( FREITAS FILHO, apud BOSI et al,
2000 ). E o próprio ato do escarafunchar traduz as relações estabelecidas entre uma
subjetividade poética e uma paisagem (des)encontrada. Pois, por um lado, há neste verbo o
significado de procurar algo com paciência, pesquisar coisas miúdas, nos remetendo a um
olhar investigador que identifica “a” paisagem exterior e a decifra de maneira minuciosa. Por
outro lado, o valor que o poeta recupera do escarafunchar é o de uma atividade violenta e
inacabada, pois este ato alude tanto ao remexer, coçar, limpar o nariz ou orelha
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compulsivamente com as unhas até sangrar, quanto ao instrumento com que se apura o ouvido
das armas.
Neste sentido, a recusa à cicatrização da ferida é também a recusa a qualquer
“solução” poética, à estagnação da vida e da escrita. Assim, escarafunchar não é esgotar
detivescamente a paisagem, mas sangrar com ela, dilacerando supostos limites portadores de
um distanciamento apaziguador e reconhecendo as marcas da violência existentes nesta
relação. Desta forma, a subjetividade se debate com a paisagem, que, ao invés de situar o
poeta, o “sitia”, permeia, rasurando, seus vários eus possíveis. Como o próprio Armando nos
diz:
A explicação que encontro é que nunca me sinto situado na minha cidade,
mas sitiado. Esse estado de sítio não tem nada a ver com a violência real que grassa
no Rio: ele começa na subjetividade mesma. Por viver sempre essa sensação de
claustrofobia urbana, de sítio agudo, o Rio como que permeia tudo, é uma espécie de
primeira pele. ( FREITAS FILHO, apud HOLANDA, 2003 )
A cidade do Rio de Janeiro é, portanto, uma espécie de pele, paisagem “sitiada” no e
pelo poeta, espaço urbano onde é impossível delimitar o dentro e o fora nas vozes de quem o
fala. Como bem observam Luiz Costa Lima e José Miguel Wisnik nos respectivos prefácios
aos livros Cabeça de Homem e De Cor, a indiscutível presença da paisagem carioca não se
reduz a uma experiência exterior, apartada da subjetividade, mas sim se confunde com esta,
descortinando novas direções. Costa Lima nos diz que mesmo em poemas em que o Rio
encontra um de seus maiores cantores, a abertura ensejada por eles “(..) não se dá apenas por
fora, no encontro de paisagens e alteridades. Dá-se ainda para dentro, nesta visitação de si
próprio em que o eu se depara como se deparasse um outro.” ( LIMA, apud FREITAS
FILHO, 1991, p. 14 ). Wisnik também nos aponta esta relação: “Para um paulista como eu
este livro exala uma forte sensação de Rio de Janeiro. Não só pelas marcas explícitas,
palmeiras altíssimas, montanhas, água e mármore. (...) mas pelo perfil acidentado de
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paisagem interior, exposta ao espetáculo da natureza. Insônia: impossível dormir junto ao
colosso de pedra”. ( WISNIK, apud FREITAS FILHO, 1988, p. 13 ).
Neste acidentado sítio urbano, a violência não elide nem separa nenhum corpo, mas,
sim, irradia-se em direção a eles: o corpo da cidade é, mesmo, o próprio corpo da
subjetividade e da escrita, dilacerado, sempre correndo riscos, exposto a diversos perigos.
Nesta agressividade sofrida e ao mesmo tempo exercida pelo corpo, o que se viola não é só
sua questionável integridade, mas também o seu pacífico repouso. A exposição constante ao
risco iminente da morte caracteriza-se como fuga em ritmo acelerado, uma absurda e
sangrenta competição esportiva interminável: “( ... ) cada dia é irreparável / o corpo não tem
férias / vai no arrastão, com a roupa da hora / sempre ao alcance de balas além (...) queima a
inflamável vida enquadrada pelo sol, carburante / vencendo túneis / nadando no seu próprio
sangue.” ( ME, p. 522 ).
O corpo que se constrói aqui está constantemente ameaçado de mutilação: sempre em
movimento, nem a morte pode paralisá-lo, dando-lhe uma unidade, um repouso final. Em
nossa sociedade narcisista privilegiadora dos prazeres proporcionados pelo corpo “malhado”,
escultural, perfeito, vemos que o poeta se apropria desta temática corporal, deslocando este
erotismo banalizado, ao fazer dele um estranho e forte sobrevivente na cidade moderna.
Podemos dizer que o corpo em Armando é “malhado” no sentido de ser “martelado”, batido,
surrado, em ritmo acelerado: ele vai no “arrastão”, com a roupa da hora, no calor do
momento. Aliás, o calor da cidade do Rio de Janeiro, o pleno verão dos sentidos,
transformam-se agora no poder de fogo da violência das “balas” do além, da vida queimada
pelo sol carburante.
Esta velocidade, por sua vez, nos remete à maneira midiática com que são tratados os
problemas de nossa cidade o alto grau de miséria e desigualdades sociais, retratados nas
favelas, nas “baixadas” e no tráfico de drogas:
53
Muito além do túnel
as praias se apagam na lembrança
e o que sobe à tona
depois do naufrágio do mar
é a terra de ninguém
o mapa do pó, rasgado, o chão batido
as covas rasas. O Terrorama da Baixada
anunciando seus cadáveres:
secos, súbitos, recortados
impressos em preto-e-branco
com todas as letras garrafais
dos jornais que são só manchetes
ou cartazes, sem maiores explicações. ( ME, p. 388 )
Se em nosso dia-a-dia de moradores de uma violenta cidade urbana somos
bombardeados com as notícias diárias veiculadas pelas mídias, quase a ponto de nos
acostumarmos com elas, agora, os recursos utilizados neste processo de banalização são
estranhamente inseridos no contexto poético, de forma a “desdomesticar” nosso olhar,
recuperando toda a força, o choque e a estranheza causados pela violência social.
Descontextualizadas do formato jornalístico diário, mas apresentando a mesma objetividade,
rapidez e estrutura de corte utilizadas no tratamento das imagens televisivas, o texto poético
armandiano desbanaliza esta questão e imprime a nosso olhar, o susto, o risco, a estranheza.
Entretanto, não é somente ao formato midiático que a poesia de Armando se refere, no
poema “A um passante” ( ME, p. 71 e 72 ) temos instaurado um inquietante diálogo com o
soneto
2
“À une passante” de Charles Baudelaire ( 1994, p. 88 ). Este escritor, como sabemos,
com seus Tableaux Parisiens ( BAUDELAIRE, 1994, p. 78-104 ) trabalhou poeticamente o
tema da cidade moderna, da Paris do início do século, não através de suas belas moradas e
largas avenidas, mas, sim, pintando-a como uma cidade transitória, brumosa, com seus
personagens humanos ? a mendiga doente, os cegos terríveis, as anciãs decrépitas ? cheios
de dor e sofrimento.
No texto do escritor francês encontramos já desde o título a idéia de transitoriedade
das coisas prevista na figura da “passante”. Observar o caminhar de uma mulher é sentir a
2
Este poema se encontra disponível no Apêndice deste trabalho.
54
impressão deixada pela experiência da cidade e da multidão que atravessam como em
trânsito o poeta de forma rápida e perturbadora: “Un éclair ... puis la nuit”. A beleza fugidia
da “passante” é também a da cidade que velozmente se transforma. Entretanto, no poema, à
pergunta desesperançada “Ne te verrai je plus que dans l´éternité?” a resposta
aparentemente negativa “Ailleurs bien loin d´ici! Trop tard! jamais peut- être!” sugere que a
busca continua em outra dimensão, através do desconhecido, da viagem ou da morte. A
presença desta no poema, sugerida pela imagem do luto, da “douleur majesteuse”, se amplia
em outros textos baudelaireanos de Les Fleurs du Mal como La Mort e Danse Macabre.
Neste, a figura feminina do “grande esqueleto” traz consigo beleza e sedução ao desfilar com
elegância o arcabouço do corpo humano.
Podemos então dizer que A une Passante se constrói por uma tensa mistura entre a
fugacidade e o desejo de permanência prometido pela morte, pelo desconhecido, pela
dimensão do além. Em Armando Freitas Filho, a retomada do soneto de Baudelaire faz com
que a visão da personagem feminina seja substituída pela impactante visão de um
despersonalizado filho do que a rua apura, “junta sem refugar”:
A um passante
Filho feito do que a rua apura
junta sem refugar: ectoplasma
de panos sujos, de sacos de mercado
e latas, de arma desdentada na mão
mais o trecho do muro moído
que passa rente à linha do trem.
A vida não tem segunda via e vai
embora, terreno baldio, vala negra
mistura de céu e terra, e ainda:
plásticos pretos, catre de papelão
no meio-fio, à beira do trânsito.
Rio indo, inabalável, todo
tracejado por luzes e espumas
ao pé do leque aberto de montanhas
do puro perfil do Corcovado no sol posto.
( ME, p. 71e 72 )
55
O choque da visão da mulher que passa rapidamente é agora traduzido na radical
imagem do “ectoplasma”, que, por sua vez, retira qualquer dimensão humana do personagem,
não se trata mais de uma pessoa, mas de um amontoado de coisas, de uma visão espectral,
fugidia e feia. A morte não é, como no poema francês “Danse Macabre”, celebração do sabá
do horror, mas o próprio horror mesmo, a cena crua de uma violenta realidade urbana, pois o
ectoplasma de panos sujos carrega uma arma desdentada na mão. O luto da passante é
retomado no poema de Armando pelas imagens da vala negra e dos plásticos pretos que
cobrem o “passante”. A idéia de uma mulher passando se desdobra, então, na de um corpo,
que se encontra “à beira do trânsito”, enquanto que a beleza dela no poema de Armando
reside na cidade, que transita, mas sobrevive e permanece “Rio indo, inabalável” no meio
de toda esta violência urbana.
Reparamos também que o poema de Armando se constrói por meio de expressões que
ambiguamente se referem à miséria, à violência ou à morte. Assim, o desdentado da arma diz
respeito tanto à criança sem dentes quanto ao dente que carrega uma pistola; os sacos
plásticos pretos dizem respeito tanto à coberta usada pelos mendigos quanto ao material
utilizado para cobrir os cadáveres na rua; o tracejado das luzes do Rio de Janeiro diz respeito
tanto às iluminações da cidade quanto ao tracejado causado por alguns tipos de armas no céu
quando apontam para o alvo.
A cidade do Rio de Janeiro, portanto, na obra de Armando, estabelece relações tanto
com uma contemporaneidade midiática quanto com uma tradição poética baudelaireana. O
tom deste inquietante diálogo encontra na violência da e pela linguagem seu componente
fundamental. O fio condutor desta violência nos leva a um terceiro elemento dialógico com a
obra do poeta carioca: trata-se aqui do escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto. Para
melhor compreendermos o embate estabelecido entre os dois, é preciso, antes, situar ambos os
escritores na complexa teia da tradição poética brasileira. Segundo T. S. Eliot:
56
Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu
significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação
com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo,
para contraste e comparação, entre os mortos. ( ELIOT, s/d, pg. 39 )
Não é nosso objetivo realizar um estudo sobre Cabral, mas sim refletir sobre sua
influência e valor na poesia de Armando Freitas Filho. O texto de Eliot aborda a questão da
tradição, de forma a criticar a conotação negativa a ela atribuída, e ressaltar sua importância
em relação à historicidade da arte. Ao elogiarmos um poeta seria muito comum chamarmos a
atenção aos aspectos de sua obra que o distinguiriam de outros, ressaltando mais suas
diferenças, sua “originalidade” em relação a seus antecessores. Entretanto, não se deve
perceber seu valor somente a partir destas supostas diferenças, é preciso, como o autor
propõe, situá-lo por contraste e comparação entre os mortos. Podemos dizer que será neste
jogo de semelhanças e diferenças que vai ser construída a tradição poética. Para Eliot, a
tradição não é somente arqueológica, não se resume a um conjunto de autores do passado de
quem herdamos os êxitos. É preciso que o escritor perceba a presença desse passado com o
qual ele vai interagir na elaboração de uma nova obra, pois o novo não significa o abandono
da tradição, o “desprezo” por Homero ou “Shakespeare”, mas uma alteração de mentalidade.
Por isso, dizemos que o passado é dinâmico sofre mudanças através do tempo e que o
presente é complexo acumula experiências –, além disso, o passado é modificado pelo
presente, enquanto este é orientado por aquele, isto é, o passado nos oferece uma dimensão do
presente e vice-versa.
No caso de Armando, vemos que a relação travada com a tradição cabralina nunca é
passiva ou servil, ao contrário, reveste-se de certa ambigüidade ao misturar uma atitude
amorosa e ao mesmo tempo agressiva com o escritor. Como o próprio escritor nos diz:
57
João Cabral, poeta fundamental mas péssima influência quando lido de maneira
servil -, tem de ser enfrentado pelos que vêm depois, até para que possamos, por
contraste, amá-lo melhor. Para mim, o poema de hoje pede um menor controle do
autor sobre seus resultados. Só assim se consegue interromper o esperado, o tom
didático, monocórdico, a causa e o efeito da escrita cabralina. Um bom poema é
sempre aquele que surpreende, em primeiríssimo lugar, ao seu próprio autor. É
preciso, sempre que possível, escrever na contramão de si mesmo.
( NAVAS, 2000, p. 9 )
Ao longo da obra de Armando, percebemos que ao mesmo tempo que o poeta se
apropria de alguns procedimentos e temas cabralinos, ele o faz, no sentido de uma dinâmica
interação temporal. A identificação de pontos de semelhança e diferença entre os dois
escritores a qual, por sua vez, desenvolverá a questão do limite da representação, resultante do
desdobramento da violência, é o que desenvolveremos a seguir. Este limite é incansavelmente
perseguido pelo poeta ao se esforçar não só em agarrar as coisas como também em representá-
las discursivamente, “escrevendo na linha do horizonte”:
Tudo meu é muito instável, embora o texto pareça arrumado. E, falando
tecnicamente, não é arrumado, porque incluo muitas coisas de oitiva, coisas
vulgares, no meio daquilo que faço. Nesse, ponto eu sou pop, procuro juntar coisas
díspares. E juntar a martelo, sem muito verniz. Não porque queira, mas porque não
consigo fazer de outro jeito. Estou sempre aquém ou além do que quero. Então a
coisa fica sempre meio turva. A intenção é escrever na linha do horizonte, mas há
um intervalo entre intenção e expressão. Sabemos que só poucos conseguem
escrever naquela linha. (...) O que está ao nosso alcance é a linha do papel, do
caderno.( FREITAS FILHO apud BOSI et al, 2000 )
2.2 PARA JOÃO, “COM AMOR E SORDIDEZ”
João Cabral de Melo Neto é um dos escritores cuja presença torna-se bastante
marcante na obra de Armando Freitas Filho. A referência ao escritor pernambucano assume
em alguns textos formas explícitas. Neste caso, ela é facilmente notada por meio da menção a
seu nome em alguns títulos de poemas do escritor carioca. Nem sempre, entretanto, esta
identificação se faz por meio de marcas tão óbvias, pois em muitos poemas de Armando, elas
58
se diluem, mostrando-se por uma via indireta, com a utilização de temas e procedimentos
cabralinos que, por sua vez, estabelecem um inquietante diálogo.
Um dos pontos de aproximação entre os dois escritores relaciona-se com a busca da
materialidade da palavra e a violência estabelecida entre a subjetividade e a paisagem, seja
esta carioca ou nordestina. Como sabemos, João Cabral representou um dos marcos divisórios
mais importantes entre a poesia romântica e a moderna ao considerar o poema como um
objeto a ser trabalhado sem a interferência de estados emocionais ? como a inspiração ? ou
ainda sem a pesada herança retórica: o texto deve ser, antes de tudo, o resultado de um
exercício árduo e racional que o levará à forma mais adequada possível. Neste trabalho
consciente de construção, a palavra é a ferramenta-chave e o poeta, tal como um engenheiro
da composição, uma espécie de artífice do verso ao tentar forjá-la de modo a ser a mais
precisa e adequada entre tantas outras. Com isto, o escritor produz uma poética cada vez mais
substantiva, em que a linguagem não só se refere ao objeto como também o produz a ponto de
o sentirmos dentro do próprio poema, fazendo com que ocorra um movimento em direção à
materialidade das palavras. Desta forma, há uma busca obsessiva não só pela espessura das
coisas, pela escolha do vocábulo perfeito, como também ocorre a inserção de palavras
pertencentes a uma ordem abstrata em uma ordem telúrica, mineral.
Para isto, João Cabral a partir de elementos impalpáveis e abstratos força-os a
mergulharem em um rio de concretude. Assim, por exemplo, tanto o tempo quanto as nuvens,
que escapam a qualquer tentativa de toque, são trabalhados em seus poemas como elementos
simples do mundo concreto, como no poema - “As nuvens são cabelos / crescendo como rios /
(...) são estátuas em vôo / à beira de um mar ( MELO NETO, 1997, p. 31 ); o tempo “o
duro tempo mineral” é um “rio fluindo sob a casa, correnteza / carregando os dias, os
cabelos”. ( MELO NETO, 1997, p. 45 ).
59
Já no poema “O Engenheiro” ( MELO NETO, 1997, p. 34 )., encontramos um
estranho desdobramento de um dos signos abstratos mais desgastados pelo uso, ao longo da
literatura, como um lugar-comum associado a uma carregada subjetividade poética: o sonho.
No texto em questão, João Cabral não só o insere em uma dimensão concreta, como também
o esvazia de qualquer traço de sentimentalismo: “A luz, o sol, o ar livre / envolvem o sonho
do engenheiro. / O engenheiro sonha coisas claras: / superfícies, tênis, um
copo de água.” ( MELO NETO, 1997, p. 34 ). Antes de tudo, estamos diante de um
engenheiro que, ao contrário do esperado, sonha; e o produto desta atividade serve como um
instrumento de aprendizagem da realidade. Nada neste processo é indefinido, escuro ou
impreciso, pois ele sonha “coisas claras”. E os elementos que compõem o sonho deste poeta-
engenheiro são os mesmos que permeiam nossa realidade cotidiana, mais concreta e rotineira:
os tênis, um copo de água. Desta forma, o poeta se utiliza de um signo, a princípio com uma
forte herança de subjetividade e abstração, para trabalhá-lo em uma dimensão concreta e
cotidiana.
Esta busca da materialidade marcante em João Cabral também se faz presente em
Armando. A propósito, como observou Luiz Costa Lima, no prefácio à Cabeça de Homem, “o
poeta desenvolve uma poesia da concretude, do que não apenas alude, mas pertence à terra”
( COSTA LIMA, 1991, p. 11-12 ) . No poema intitulado “AR” ( ME, p. 465 ) há uma forte
oposição entre a impalpabilidade sugerida pelo título e o desenvolvimento no texto de um
eixo de concreção, pois o “ar” perde qualquer atributo imaterial ao ser construído, ou melhor,
ao ser invadido brutalmente por elementos concretos da natureza. No ar, encontramos, então,
“Madeira, raízes, cascas, nós, galhos. / Tudo que pede machado, corte, pancada. / O que é
duro áspero bate, e estaca. / O que estala e cresce da terra contra as estrelas.” O título
deste poema despe-se de qualquer feição imaterial e se constrói paradoxalmente por meio do
contraste entre sua óbvia invisibilidade e a dimensão material e violenta adquirida no corpo
60
do texto. O sentido prevalecente aqui é o do tato, que entre todos os outros seria o menos dado
a especulações filosóficas, e o mais terreno, no sentido de colocar o homem em contato direto
com objetos cotidianos. Esta ligação explicitada no poema põe em evidência a brutalidade da
vida prevista não só na aspereza do que é sentido, mas também na contundência do corte do
machado, de sua pancada.
Neste movimento em direção à concretude realizado pelos dois poetas, encontramos
no signo da pedra outro ponto de aproximação indicativo das tensas e violentas relações
tecidas entre a subjetividade, a paisagem e o fazer poético. A “pedra” em Cabral serve como
um dos elementos axiais em toda sua obra. A insistência em torno dela esclarece a postura
cabralina diante das relações estabelecidas entre a literatura e a realidade, pois ela se expande
em várias direções passando a ser, não somente um tema recorrente, como também um signo
bastante utilizado, ou ainda um emblema do seu fazer poético. Para Sebastião Uchoa
Leite, ( 1986, p. 120 ) uma das chaves de acesso ao escritor pernambucano é mostrada
pelo desafio que a realidade representa para o poeta, que deve lidar com ela não por um
procedimento de distanciamento metafórico, mas sim por um processo de presentificação
através da palavra. Nesta direção é preciso distanciar-se do eidos essencialista, pondo em
xeque a suposta profundidade e mistério ligados à poesia neo-simbolista, e voltar a olhar para
aquilo que nos cerca com um olhar capaz de sentir a realidade em sua concretude. Segundo
Uchoa:
Não é só a metapoética nem qualquer pretensão a uma epistemologia da
criação poética, a meta principal do projeto de JCMN. Serão, decerto, integradores
desse projeto, mas não o seu elemento marcado, no sentido de que o que importaria
para o poeta seria a metodologia ( ou o modo operatório e não o objeto ). Esse objeto
seria a própria observação crítica da realidade, no sentido de que ela seja vista pelo
que ela é, ao contrário de qualquer idealização. Uma visão descarnada, de rigor
intelectual, que implicou em certa forma de dureza, ou de extrema violência em
certos casos. ( UCHOA LEITE, 1986, p. 120 )
61
Neste sentido, a pedra serve para livrar Cabral do fardo de uma poética da eloqüência
ou do sentimentalismo, servindo como o próprio instrumento de uma didática da contenção,
pois o poeta tenta “captar sua voz inenfática, impessoal” ( MELO NETO, 1995, p. 338 ).
Além de oferecer a devida medida das coisas, livrando-nos dos derramamentos poéticos,
buscando uma ordem em que tudo tem seu exato lugar ? como no poema “Pequena Ode
Mineral” do livro Educação pela pedra: “Procura a ordem / que vês na pedra / nada se gasta /
mas permanece” ? ela se mostra ainda como lugar de identificação segura do poeta: “Maria
era sempre uma praia, / lugar onde me sinto / exato e nítido / como uma pedra” ( MELO
NETO, 1997, p. 22 ). Neste sentido, retomando o texto de Haroldo de Campos, este signo
emblematiza a inserção de Cabral em um dos desdobramentos na tradição da “poesia a
menos”, da “arte pobre”, já desenvolvida anteriormente, ao apostar na feição contida,
reduzida e dura da pedra.
Signo e ao mesmo tempo procedimento do fazer poético, encontramos na pedra
cabralina um instrumento que vai ao encontro da instauração de uma lógica da construção,
racionalista e objetiva, contra uma poesia de expressão, subjetiva e irracionalista ( CAMPOS,
s/d, p. 69 ). Neste projeto estético, parece que tudo foi antecipadamente planejado, de forma a
transparecer um controle e uma ordem, em que os elementos estão em seus devidos lugares.
Armando Freitas Filho, no texto de sua autoria intitulado “Três Mosqueteiros”, nos fala
exatamente sobre esta impressão de ordenação e clareza deixada pela primeira leitura de um
livro inteiro de Cabral:
Duas águas foi uma inundação. Conhecia, de João Cabral, somente três ou
quatro poemas que tinham sido publicados na Antologia da poesia brasileira
moderna, em 1953, pelo Clube de Poesia de São Paulo.
O que mais admirei ao ler sua obra completa até então foi ausência de altos
e baixos, de desníveis evidentes na sua poesia. Passava uma impressão irreal: a de
que tudo tinha sido escrito com a mesma mão, numa mesma hora, com a mesma
intensidade, com o mesmo mood. Nada era deixado ao leú. Uma vontade tirânica
perseguia e exauria o tema escolhido, investigando-o fenomenologicamente, desde o
cerne até a carne.
Escrevia como se fosse acendendo, uma a uma, todas as luzes de uma casa.
Quando o leitor chegava ao fim, estava ela toda acesa, do porão à mansarda, sem
62
chance para as sombras. Essa higiene combinava, aliás, com o retrato que eu via do
poeta na antologia acima referida: rosto limpo e cabelo irrepreensivelmente
penteado. ( FREITAS FILHO apud MASSI, 1991, p. 75-76 )
Podemos dizer então que com o signo da pedra a poesia do escritor
pernambucano se aproxima da poesia armandiana através do esforço construtivo e violento da
paisagem poética. Tal como a pedra nordestina que denuncia, ao mesmo tempo, uma
violência no fazer poético- em sua dura lição - e na miséria nordestina, a pedra carioca
também apresenta esta dupla natureza. Sua aparição já é uma forma de luta com o céu, pois
“as pedras ocupam machucando / o espaço ao ar livre: não param nunca em nenhum perfil / só
tem arranco” ( ME, p. 416 ) e sua natureza imóvel e passiva é negada o tempo inteiro pelo
poeta, por ser ela “fera imóvel” ou “pedra ruptura” que “aguarda / seu brusco impulso / em
difusa espera / de matéria e sombra” ( ME, p. 92; 95 ).
A análise detida destes versos já insinua uma diferença entre as duas poéticas. Desta
forma, além de conferir dinamismo a algo que “naturalmente” é o elemento mais estático da
paisagem, o poeta desnaturaliza a imagem cristalizada da pedra que, convencionalmente,
relaciona-se à estabilidade, segurança, firmeza para inseri-la em outro contexto,
diferenciando-se, assim de João Cabral. Agora, ela é mais um componente desestabilizador de
uma impassível e previsível paisagem e assume tensos matizes neste processo. Assim, ora ela
revela uma feição violenta e imprevista, seja no domínio artificial ? “a casa enorme guarda: /
furor de pedra escondida” ? ou natural ? “ na paisagem sustentada / por pilotis ou morros /
com o azul aberto voando / e a fera de algumas pedra” ? ora ela reafirma a intensidade do
verão carioca ? “Dia de pedreira que não passa / 11 e picos, sol e aresta, árdua, sem degraus.”
( ME, p. 91; 484; 502 ).
Assim, se encontramos a mesma violência desenvolvida pelos dois escritores em
relação a este signo com a paisagem, a homologia referente a ele ? enquanto lição cabralina
de justa medida e clareza ? não deve ser trabalhada sem antes levarmos em conta toda uma
63
fortuna crítica de João Cabral. Esta, consideraria facilmente a pedra um elemento
diferenciador, marcador de uma forte oposição entre os dois poetas. Segundo o próprio
Armando afirma em entrevista:
Dentre os grandes poetas brasileiros, foi com João Cabral que tive maior
intimidade. A intimidade que se pode ter com alguém que, além de ser 20 anos mais
velho, morou fora do país por longos períodos. Senti muito a sua morte. Os dois
poemas de Fio terra: “João Cabral: último rosto” e “Verbete para João Cabral”
nasceram deste sentimento. No entanto, o outro poema, de Duplo Cego, citado na
sua pergunta, que tem o título parodiado de um conto de Salinger e, como epígrafe,
uma linha do próprio: “Ninguém aqui está interessado em ser simpático”, é um
recado, senão a João, a quem interessar possa:
Exercício de estilo, se existe
não visa, como o de tiro
um alvo único, fixo e físico
mas a muitos
mais de imaginação
do que de imagem.
Não usa bala burocrática, numerada
de calibre certo, didático.
E sim um punhado de chumbo
de pedras
que pega um pouco em tudo
assinando o nome com garranchos
sem carinho
ou caligrafia pré-fabricada
picotando o jornal com furos de franco atirador.
( FREITAS FILHO apud NAVAS, 2000, p. 9 )
No poema citado pelo escritor temos presente a crítica à pedra cabralina como clara
lição de rigoroso procedimento poético. O texto se apropria deste signo e trabalha na contra-
mão do estilo de Cabral: em vez dos símiles ordenados, da construção paralelística e da
reiteração lexical ? o escrever com “as mesmas vinte palavras” ( MELO
NETO, 1997, p. 302 ) ? o que temos aqui é a presença de uma sintaxe atropelada e
cortada, em que a figura do enjambement serve como um recurso de um crescente
transbordamento poético, não há controle ou didáticas para o que se escreve. Segundo
Viviana Bosi, ainda que elogie o “verso de prumo e rigor” de Cabral, o poeta atribui a si a
desmesura, valorizando o não-planejado, o não-cerebral, o que “ficou atrás, no escuro / do
rascunho, cego e rasurado”, inscrevendo sua poética nesta tensão entre o anseio de se buscar o
64
cerne das coisas e a violência e velocidade contidas no gesto desmedido de tentar agarrar as
coisas. ( BOSI apud FREITAS FILHO, 2003, p. 5-25 ).
Entretanto, podemos, por outro lado, relativizar esta diferença instaurada entre os
poetas, para a partir dela, entendermos a pedra cabralina como um elemento inquietante do
fazer poético, que, apesar do rigor, não descarta o imprevisto, o risco desta atividade:
Para Ana Cristina, a poesia de Armando se definiria, entre outras tantas tensões,
especialmente pela que se estabelece entre “o deslizante verso discursivo” e a
“lucidez dos sobressaltos”, entre a linguagem lisa da prosa e a da poesia, em poema-
homenagem a Pierre Reverdy ( FREITAS FILHO, 1982 ). Aí a pedra assumiria para
Cabral um sentido um pouco mais amplo e ambíguo do que parece ser dado a ela na
maioria das leituras de sua obra, pautadas pela ênfase na associação entre
concretude, clareza rigor intelectual. Ao remeter sua pedra à do surrealista Reverdy,
esse João Cabral lembrado por Ana Cristina nos convida a exercer sobre ele uma
leitura em que essas qualidades não excluam aquelas decorrentes da experimentação
sobressaltada da vida e da linguagem, como enigma e imprecisão. Afinal, ao
comparar o escrever com o catar feijão, Cabral já usara a pedra como índice daquilo
que evita a leitura deslizante, fluvial, exige atenção metódica, grão a grão, palavra
por palavra, mas não exclui o indigesto, o imastigável, o risco.
( PEDROSA, 2002, p. 95 )
Neste sentido, partindo da pedra cabralina como a não-exclusão do indigesto, do
imastigável e do risco, a escritura desmedida de Armando Freitas Filho não se opõe
radicalmente à poética de Cabral, mas constrói a partir um espaço do rascunho, da rasura e do
desmedido como lugar de questionamento do limite da representação da linguagem.
Podemos então dizer que em vez de a pedra cabralina ser cristalizada como uma
poética do rigor, da medida e da educação do fazer, ela vai representar o obstáculo
intransponível, as dificuldades e as incertezas deste mesmo fazer. Pois, o objeto concreto
pedra como lição de impessoalidade, frieza intelectual e resistência moral, converte- se
na secura humana do sertão, que nada ensina a ninguém: “... No sertão, a pedra
não sabe lecionar, / e se lecionasse, não ensinaria nada; / lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
/ uma pedra de nascença, entranha a alma.”, ( MELO NETO, 1995, p. 338 ) ou, ainda,
converte-se no entrave à leitura fácil, óbvia, mastigável - “a pedra dá à frase seu grão mais
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vivo: / obstrui a leitura flutuante, flutual açula a atenção, / isca-a com o risco” ( MELO
NETO, apud NUNES, 1969, p. 267).
Na leitura do poema de Cabral intitulado
3
“O Relógio”, contido no livro Serial,
percebemos esta pedra-obstáculo na tensa contradição entre um movimento em direção à
ordenação e clareza como formas de controlar e definir as coisas e na constatação da
impotência deste gesto de representação da realidade. Neste texto, o poeta parte de objetos
concretos que vão se definindo por meio de outros na tentativa de compreender o mecanismo
do tempo. Logo de início, temos pela escolha de palavras componentes do título do poema,
sinais deste Cabral da clareza e do controle já cristalizado por uma leitura instituída por parte
da crítica. O uso do artigo definido, em termos gramaticais, é, essencialmente, um sinal de
notoriedade, de conhecimento prévio, por parte dos interlocutores, do ser ou do objeto
mencionado, fazendo com que a determinação do substantivo se torne mais
precisa ( CUNHA, 1985, p. 205 ). O vocábulo que se segue ao artigo o qual
por ser o núcleo do sintagma concentra a proposta central do poema tem como seu
primeiro significado ser a designação comum a diversos tipos de instrumentos ou mecanismos
para medir intervalos de tempo. O relógio, portanto, não só nos remete a um objeto concreto,
cotidiano, usado por quase todos, como também a idéias de ordem, medição, ritmo e controle
já que nossos compromissos são por ele regulados. Estamos diante, então, de um objeto
concreto cujo propósito é controlar e precisar algo imaterial, fugidio e abstrato como o tempo.
De fato, a forma como as estrofes são estruturadas, o ritmo sintático e a métrica textual
assemelham-se à regularidade matemática de um mecanismo horário. O poema é dividido em
quatro partes numeradas, cada uma, por sua vez, composta por seis estrofes de quatro versos.
Este isomorfismo serial é somado ao ritmo fluente e regular proporcionado pela metrificação.
Nesta, temos o uso do heptassílabo ou redondilha maior que, como sabemos, é o mais simples
verso de se empregar entre tantos outros. Sua simplicidade baseia-se no fato de que basta o
66
acento tônico recair na última sílaba, os outros acentos podem incidir em qualquer outra que a
melodia da frase não se altera a ponto de comprometer a fluência rítmica . Assim, este tipo de
verso é o predominante em quadrinhas e canções populares, sendo também um dos mais
antigos da Língua Portuguesa, já usado nas cantigas medievais ( GOLDSTEIN, 1990, p.27 ).
A forma e o efeito sonoros da leitura do poema nos coloca, então, diante de um preciso
relógio: repetido, regular, serial, ordenado, controlado. Entretanto, o jogo semântico formado
pelo encadeamento de palavras que em uma série de retomadas tentam se autodefinir em
sucessivos deslocamentos vai, sub-repticiamente, corroendo esta aparente estrutura objetiva e
clara. A cada estrofe uma palavra usada para definir o relógio enquanto metáfora temporal é
redefinida por outra, formando uma suposta série esperada e repetitiva. Entretanto,
contrariando a estrutura rítmica e paralelística do poema, a repetição nos coloca diante, ao
final do poema, do elemento não-esperado, não-controlável. Na primeira estrofe temos: “Ao
redor da vida do homem / há certas caixas de vidro / dentro das quais, como em jaula / se
ouve palpitar um bicho”. Seguindo-se a esta estrofe, a palavra jaula é redefinida pelo
vocábulo gaiola que, por sua vez, transforma-se em pássaro-cantor. Na série 2, este pássaro
traduz-se em um canto operário, uma máquina precisa movida por uma força regular. Esta,
paradoxalmente, é guiada por um monjolo ? uma antiga roda de água ? um fluido que
ninguém vê. Na série 4, o poeta radicaliza ainda mais esta contradição ao trabalhar o tempo
como uma máquina de dentro ? “soando nas veias, no fundo / de poça no corpo imersa”.
Assim, por mais que se tente definir, agarrar, segurar o relógio, este é uma espécie de fluido
interior, uma contraditória máquina sem controle, uma informe poça d´água. Segundo Alcides
Villaça ( 1982, p. 150 ), um suposto caráter objetivo da arte de Cabral é freqüentemente
deduzido nos limites de uma leitura estruturamente formalista, na qual se reduz a parcela
provocadora. Podemos dizer, portanto, que com esta contradição nos encontramos diante da
parcela provocadora deste escritor.
3
Este poema se encontra disponível no Apêndice deste trabalho.
67
Reinvestindo nesta impossibilidade cabralina, a poesia de Armando, a partir da
pedra” desenvolve um procedimento da abertura, presente em diversas imagens na sua obra.
Uma delas, bastante utilizada, pelo poeta é a do horizonte, da linha. Segundo Michel Collot:
Alors que pour la phénoménologie la “structure d´horizont” renvoie à une
possibilité d´ouverture permanente de notre expérience sur d´autres phénomenès,
vers d´autres “horizons”, l´imagination poétique envisage volontiers l´horizon
comme la limite du phénoménal. A preuve notamment l´importance qu´elle accorde
à la ligne d´horizon, qui dans l órdre du phénoméne, n´est, à vrai dire, qu´une
“illusion d´optique”. C´est dans la mesure même où elle reste insaisissable que cette
ligne fascine les poètes modernes; elle n´est pas à leurs yeux une limite provisoire
que l´on peut franchir pour découvrir la suite du paysage, mais bien la frontière d ún
autre monde destiné à demeure inconnu. C´est pourquoi l´horizon peut servir de
métaphore à tous ces seuils d´invisibilité absolue auxquels se heurte la conscience
dans les divers domaines de l´expérience: tache aveugle du corps, mystère
insondable de l´Être, profondeur du passé, indétermination de l´avenir,
transcendance d´autri. ( COLLOT, 1999, p. 104 )
A linha e o horizonte na poesia armandiana questionam o mecanismo da
representação, em sua ilusória pretensão de verdade e totalidade, nos remetendo a uma
paisagem constantemente esboçada, inacabada. O recurso do horizonte indica, desta forma, as
dificuldades de enxergar, a falta de nitidez e imprecisão dos contornos e ativa a estrutura da
rasura que aponta para um não-lugar, para uma situação de deriva, de indecidibilidade
espacial.
Assim, tudo é “sine die, em aberto” ( ME, p. 467 ) e o dia é “agudo e aberto como o
sol e as janelas do deserto” ( ME, p. 211 ) e se mostra “difícil de abrir” ( ME, p. 567 ), a “céu
aberto/ a paisagem não se apóia em nada” ( ME, p. 358 ). Esta disposição do dia e do céu está
relacionada ao processo de escritura, pois a “luz ainda abre cada folha, cada vez / mais lenta, e
vira a página / que custa a passar, e acaba / e se apaga sem fechar a capa” ( ME, p. 55 ).
Viver a paisagem diurna é estar disposto a não definir nada, a não “acabar” o livro, não fechar
sua página final: “(...) da linha / de nós estendida sobre / o dia-a-dia, o fim / que não chega /
nem fecha / nenhuma parte ou questão, tudo no ar / equilibrado / em suspense.” ( ME, 325 ).
Esta suspensão de tudo, esta indefinição, engendra, por sua vez, um outro movimento de algo
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prestes a acontecer, a irromper: “ (... ) a partir do ar / a partir / da linha do horizonte / como
quem desenha / a partir do branco / como quem descreve / na beira do espaço.” ( ME, p.
332 ).Descrever a cena na beira do espaço é aceitar a o risco de cair seguido da provável
queda: “as pedras prendem / o fôlego / antes de cair. / Quedam / quietas / e de repente
quebram / a paisagem / que não ensaia mais nada”, ou, ainda, “a tarde precipita sua cor / cai,
no começo / no princípio da noite”. ( ME, p. 356 ). Assim, ocorre a todo tempo um
movimento em série de abertura da paisagem, tentativa de captura, iminência de algo e
posterior queda. O que não se agarra neste processo é justamente o limite indicado pelo
horizonte da paisagem visual e, também poética. O poeta tenta alcançar este horizonte e
esbarra na linha do verso: “(...) a intenção é o horizonte / mas a linha que se alcança / é a do
papel, por mais / que force a vista, a mão” ( ME, p. 45 ) e “Vários horizontes. O mais perto / é
o desta linha, onde a vida do verso, com todos os elementos / atravessa as estações, atrás do
fio que virou cinza”. ( ME, p. 565 ).
O dispositivo da rasura, indicada pelo poeta através dos signos da linha e do horizonte,
é também um dos sinais de sua gagueira poética, já que ela se constrói por um espaço de
tentativas, inacabamento e repetição onde se elege como representação plástica o desenho e se
utiliza uma luz difusa, entrecortada não-direta. A opção por estas categorias plásticas na
poética armandiana nos indica, ao mesmo tempo, a recusa à cristalização do olhar
contemplativo e acabado originado com o platonismo, a crítica à luz imóvel e eterna da razão
oitocentista e a aposta em um lugar da arte como um vacilante limite construído pelo incerto e
surpreendente piscar de luzes. Este resíduo luminoso ? presente também na linha do esboço,
da rasura ? que nos provoca, causando-nos desconforto é o que será apresentado no capítulo
final.
69
2.3 REFERÊNCIAS
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73
3. CONCLUINDO: AS RASURADAS LUZES DA MODERNIDADE
A maneira como são trabalhados poeticamente os signos da linha, do fio e da luz na
obra de Armando Freitas Filho nos indica que o autor se apropria de noções sedimentadas por
uma tradição moderna totalitária para, dentro dela, criticar alguns de seus pressupostos,
revelando-nos uma outra modernidade, que se dobra sobre si mesma. Neste processo, há uma
recuperação da imagem dialética, já desenvolvida antes, como a que engendra continuamente
a auto-reflexão e a dupla crítica: sobre si mesma e sobre seus leitores- espectadores.
Conforme vimos anteriormente, o poeta se utiliza dos vocábulos “linha” e “fio” como
elementos construtores do dispositivo da abertura, do inacabado. Desta forma, seria fácil
apostarmos em uma simples oposição entre o procedimento da linha desenvolvido na poética
armandiana e a idéia de linha engendrada pela tradição ocularcentrista ocidental. Em termos
plásticos, pode-se pensar no surgimento da moldura, da borda que delimita, isola, ou melhor,
enquadra uma composição. Estamos diante, aqui, da linha retificadora, que, teleologicamente,
dirige nosso olhar, inventa uma perspectiva, aponta “o” sujeito e delimita “a” paisagem. A
moldura, a cornija, em seus surgimentos históricos, mais do que simplesmente valorizarem a
pintura, terão como uma das principais funções serem, ao mesmo tempo, mediadoras ?
integrando a tela pintada a seu ambiente exterior ? e centralizadoras da imagem
74
representada, de forma a tentar equilibrar simetricamente as figuras em torno
delas ( AUMONT, 2004. p. 201 ).
Entretanto, a poética de Armando problematiza sua relação com a tradição ao recusar
essa aparente e óbvia oposição. Se pensarmos na linha-fio como um percurso poético de
alguns de seus livros, vemos que ela, por um lado, reafirma o valor de continuidade, de
delimitação, em direção a um fim ou finalidade. Ocorre, nesse sentido, uma associação entre o
passar do tempo e a linha contínua do desenho, é o que podemos perceber ao compararmos
três livros do escritor: Fio Terra, À Mão Livre e Longa Vida.
No primeiro livro, temos no fio, metonimicamente, a idéia de continuidade da vida, do
destino, representados pelos fios tecidos pelas Moiras, que na Mitologia determinavam a
duração de cada pessoa. A este sentido inicial de vitalidade contínua junta-se o de linha afiada
e torcida, o fio da navalha, a lâmina de metal usada para cortar, perfurar ou tracejar; este,
aliás, aproxima-se da qualidade do fio de sua escrita, que além de torcida e afiada retoma
também o sentido energético e sexual encenado na expressão fio terra. No prefácio de À Mão
Livre, José Guilherme Merquior ( 1979, p. 12 ) já nos apontava a recuperação do sentido do
cursivo do desenho poético da poeisa brasileira reforçado pela fluência rítmica, pela
musicalidade, ainda que contidas, advindas da leitura. Este sentido cursivo repete-se também
em Longa Vida, em que no próprio título já temos esta idéia. Ana Cristina Cesar (1982, p. 13),
contemporânea de Armando, nos diz no prefácio a este livro que ele “poderia ser pensado
como um poema inteiro, desenhado por um verso em forma de fio longo, um barbante que se
torce pelas curvas do labirinto, perseguido por uma obsessiva melodia de inventário.”
Entretanto, como bem aponta Flora Süssekind ( 1985, p. 7-17 ) em prefácio a 3X4 ? ao invés
dos poemas que se sucediam sem intervalos, títulos e divisões, como em Longa Vida ?
quebra-se o livro em quatro partes, em poemas breves, tensos, em muitas interrogações.
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Estamos, então, diante de um descarte da continuidade cúmplice com o livro anterior. Agora,
todo o texto é continuamente descontínuo, interrompido, cheio de divisões.
Desta forma, podemos dizer que a linha armandiana, se, por um lado, indica o
caminho de perseguir uma continuidade, por outro, desfaz, em seguida, os fios desta trama,
constituindo-se, desta maneira, como um eterno rasurar,um esboço para sempre inacabado.
Apesar, de encontrarmos na poesia de Armando a insistência na ordem do visual que, como já
vimos, começa desde a preocupação material e prossegue incorporando em sua temática
elementos próprios de uma cultura midiática, apesar de suas referências também ao universo
da pintura, podemos dizer que será no desenho como representação plástica que sua poética
construirá uma de suas faces mais inquietantes. Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que
estamos nos referindo a uma técnica artística direcionada para o inacabamento, configurado
por meio do traço, do croqui, do esboço. Como sabemos, não era essa a finalidade do
chamado pintor-desenhista em seu surgimento. Segundo Celina Mello ( 204. p. 34 ):
Em todos os discursos e tratados sobre o Belo na Pintura, vinculados
ao espaço-histórico clássico, encontramos a palavra desenho ? dessin
? grafada como dessein ? desígnio, intenção, o que gera uma forte
ambigüidade semântica e aponta para uma valorização do traço por
seu caráter de representação da Idéia. A palavra francesa dessin, ao
traduzir o italiano disegno introduz em sua grafia dessein a conotação
da intencionalidade do fazer do pintor.
Em seu nascimento, o desenho não será somente um modo de formalizar o espaço,
mas, principalmente, terá como sistema de valores uma tradição filosófica ocidental que preza
acima de tudo o projeto, o desígnio, a ordem. Portanto, desvinculando-nos desta origem
intencional, referimo-nos, aqui, ao desenho portador de possibilidades não previstas. Segundo
Mario de Andrade:
76
A pintura busca sempre o elemento de eternidade e por isso ela tende ao infinito. O
desenho, muito mais agnóstico, é um jeito de definir transitoriamente, se posso me
exprimir assim. Ele cria, por meio de traços convencionais, os finitos de uma visão,
de um momento, de um gesto. Em vez de buscar as essências misteriosas e eternas, o
desenho é uma espécie de definição da mesma forma que a palavra “monte”
substitui a coisa “monte” para a nossa compreensão intelectual.
( ANDRADE, s/d, p. 69 )
Logo, por a linha ambiguamente representar tanto o fazer plástico como o literário e,
também, por sua possível abertura, temos no desenho a técnica que mais se aproxima da
poética armandiana. O esboço, a linha, o rabisco, como elementos do desenho, são riscos,
traços errantes que outra representação plástica não ousaria. Por meio de seu universo
cromático, aparentemente restrito ao branco e ao preto, configuram-se, ao mesmo tempo, uma
subjetividade poética e um esforço de linguagem rasurantes e inacabadas. Neste espaço
composto por essas duas cores, tudo ainda está por se fazer: “ ( ... ) entre a luz e o escuro / fica
a lembrança / a linha, o perfil / o fio, o filamento / do que foi, do que fui / do que fugiu / e está
à beira” ( ME, p. 308. ) e o exercício cotidiano da escritura também se submete aos perdidos
desígnios de um projeto, pois o poema que se pretende “( ... ) se perde ou se escreve / no
ar / ( ... ) / se escreve a carvão / ( ... ) / ao acaso / com lápis infernal, preto / zero, do trovão /
o poema se perde / no rascunho da tempestade / se rasura / no cinza chão das nuvens de
chuva” ( ME, p. 303 ). O trabalho do escritor metonimizado pelo signo da mão também será
portador deste embate entre o claro e o escuro, pois “Agora, só a sombra / da mão escritora /
empreende a luta” ( ME, p. 516 ). Nesta luta ocorre o nascimento do texto-desenho através do
signo da garatuja que pode ser tanto um desenho malfeito quanto um rabisco, ou seja, algo
escrito de modo ininteligível ou, ainda escrito às pressas, de forma desordenada e
improvisada:
Forçando a mão, estremunhada
com resto e reflexo de bicho
sobrevivendo, espichando-se:
desemaranhada voz, figura
de garatuja, estudo ainda sujo
que, de repente, arrebata.
( ME, p. 565 )
77
O poeta nos diz que “Escavo e escrevo: garatuja a carvão / escalavra a face / da folha
em branco.” ( ME, 194 ). Assim, desenhar e escrever é escalavrar a folha branca, ou seja,
golpear, arranhar, deteriorar, sofrendo também no corpo esse processo de escritura:
“Resescrever passando a limpo / passando o pente grosso, riscar / rabiscar na entrelinha,
copiar / segurando a cabeça pelos cabelos / batendo à máquina, passando o pente / fino
furioso, corrigindo, suando / e ouvindo o tempo da respiração.” ( ME, p. 43 ).
Assim como o claro-escuro representa o espaço da indefinição, do risco, a entrelinha
também participa deste mesmo lugar, do que ainda não está definitivo, cristalizado. Marcelo
Diniz, escrevendo sobre Armando Freitas Filho, concebe a entrevista como um espaço da
escrita viva da experiência poética e nos chama a atenção para a figura da “entrelinha” como
uma das imagens que reforçam o lugar instável, trêmulo e movemente de sua poética:
A escrita encontra-se envolvida com uma poética da aporia, uma
paradoxologia a matéria poética [ ... ] quase sempre acaba na entrelinha, com o
que não é dito nem escrito que não reconhece os limites de espaço, desnivela sua
gramática, não aceita ser apenas objeto, assunto, insiste e contamina o logos
reflexivo sobra a poesia. ( DINIZ, 2003, p. 287 )
Neste espaço do rabisco, da entrelinha, do fio tudo está em suspenso, ainda por se
fazer, como nos diz o poeta: “da linha / de nós estendida sobre / o dia-a-dia, o fim / que não
chega / nem fecha / nenhuma parte ou questão / tudo aberto, tudo no ar / equilibrado / em
suspense.”
Como um dos elementos deste tenso e vacilante desenho poético, temos no signo da
luz um outro componente bastante presente em seus textos. A luz armandiana é um elemento
poliforme: está presente tanto na paisagem natural, quanto na paisagem artificial e nas
composições plásticas de qualquer retrato, sem ela não é possível o desenho nem a escritura.
A luz também está presente na cidade moderna por meio dos sinais de trânsito, de seus
cartazes luminosos, de sua iluminação excessiva. Entretanto, a luz poética que vemos no texto
78
armandiano é sempre a do “borrão”, da “mancha”, do “claro-escuro”, das “iluminações
sobressaltadas”.
Seu aparecimento, ao invés de nos trazer conforto como nos fora prometido pelas
luzes da razão revela a agonia da cidade, da paisagem e da escrita e também sua violência:
“Rodando / a luz é um instrumento cortante” ( ME, p. 473 ); “Esta luz fura a parede / amarela,
presa a um bocal negro / queimando furiosa afora ; esta luz é a de dentro / da desordem, é a
que se desperdiça / concentrada, é a que sobra / e de que de tão acesa se apaga.” ( ME,
p. 535 ). Além disto, ela vem também, tal como a paisagem, contaminada, pois, o lugar que
o poeta elege para escrever é possuidor de uma “luz entrecortada”, sem luz ou trevas
absolutas: “Escrevo com a luz entrecortada / das bombas que explodem / nas águas da
televisão / se não estaria no escuro / aqui dentro / e o branco desta folha, aí fora / neste barco
livre não seria alvo / dessas iluminações sobressaltadas.” ( ME, p. 418 )
O signo da luminosidade desdobra-se também como cor do fundo da página que, por
sua vez, é o cenário ou espaço vazio a ser preenchido pelo rabisco do traço escuro. A folha
branca do papel é também paisagem móvel, cenário incompleto esperando ser rabiscado pelos
traços de sua poesia. O rabisco do lápis é rascunho, esboço, traço imperfeito e inacabado, que
nos convida vertiginosamente para a esfera de prazer e risco traçados por seus versos ( ME, p.
449 ): “Beijo no abismo. / Choro na coxa. / Gargantas, cristais moídos / Agora só lido com
rascunhos / e escrevo no fim das linhas / com todos os reflexos acesos / afinados com as
fontes / pela mesma luz que as regula / e que morre de sede na areia.”
79
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UCHOA LEITE, Sebastião. Crítica Clandestina. Rio de Janeiro: Livraria Taurus, 1986.
85
5 APÊNDICE
A une passante
La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, engrand deuil, douleur majesteuse,
Une femme passe, d´une masi fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l´ourlet
Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé commme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l´ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclai ... puis la nuit! _ Fugitive beauté
Donte l eregard m´a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l´éternité?
Ailleurs, bien loin d´ici! trop tard! jamais pet-être!
Car j´ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j´eusse aimée, ô toi qui le savais!
Danse macabre
Antinoüs flétris, dandys à face glabre,
Cadavres vernissés, lovelaces chenus,
Le branle universel de la danse macabre
Vous entraîne en des lieux qui no sont pas connus!
Des quais froids de la Seine aux bords brûlants du Gange,
Le troupeaus mortel saute et se pâme, sans voir
Dans un trou du plafond la trompette de l`Ange
Sinistrement béante ainsi qu´un tromblon noir.
86
O Relógio
1
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.
Se são jaulas não é certo;
Mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quebradiço da forma.
Umas vezes, tais gaiolas
vão pendiradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.
Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;
e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois dela se emite um canto
de uma tal continuidade
que continua cantando
se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.
2
O que eles cantam, se pássaros,
é diferente de todos:
cantam numa linha baixa,
com voz de pássaro rouco;
desconhecem as variantes
e o estilo numeroso
dos pássaros que sabemos
estejam presos ou soltos;
têm sempre o mesmo compasso
87
horizontal e monótono,
e nunca, em nenhum momento,
variam de repertório:
dir-se-ia que não importa
a nenhum ser escutado.
Assim, que não são artistas
nem artesãos, mas operários
para quem tudo o que cantam
é simplesmente trabalho,
trabalho rotina em série,
impessoal, não assinado,
de operário que executa
seu matrleo regular
proibido ( ou sem querer )
do mínimo variar.
3
A mão daquele martelo
nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
mal deve ser de operário;
ela é por demais precisa
para não ser mão de máquina,
e máquina independente
de operação operária.
De máquina, mas movida
por uma força qualquer
que a move passando nela,
regular, sem decrescer:
quem sabe se algum monjolo
ou antiga roda de água
que vai rodando, passiva,
graças a um fluido que passa;
que fluido é ninguém vê:
da água não mostra os senões:
além de igual, é contínuo,
sem marés, sem estações.
E porque tampouco cabe
por isso, pensar que é o vento,
há de ser um outro fluido
que a move: quem sabe, o tempo.
88
4
Quando por algum motivo
a roda de água se rompe,
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;
outra máquina de dentro,
imediata, a reveza,
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa.
Então se sente que o som
da máquina, ora interior,
nada possui de passivo,
de roda de água: é motor;
se descobre nele o afogo
de quem, ao fazer, se esforça,
e que ele, dentro afinal,
revela vontade própria,
incapaz, agora, dentro,
de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
( coração, noutra linguagem )
que, sem nenhum coração,
vive a esgotar, gota a gota,
o que o homem, de reserva,
possa ter na íntima poça.
90
A Uma Passante
tradução Guilherme de Almeida
A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;
Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.
Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?
Longe daquí! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!
91
XCVII - DANÇA MACABRA
A Ernest Christophe
Emproada como viva, orgulhosa a estatura,
Com seu grande buquê, mais as luvas e o lenço,
Possui a languidez como a desenvoltura
De uma coquete magra e de ar de sonho imenso.
Viu-se um dia num baile um porte assim delgado?
O vestido abundante e de real esplendor
Tão excessivo rui sobre um pé apertado
Por escarpim galante e lindo como flor.
Estes fofos que tem aos bordos das clavículas,
Como um lascivo arroio a ir de encontro ao rochedo,
Vedam pudicamente, e das vistas ridículas,
O fúnebre fulgor que ela guarda em segredo.
Tem o vazio e a treva a morar na pupila,
E seu crânio, de flor sabiamente toucado,
Sobre as vértebras tão molemente vacila,
- Ó fascínio do nada em loucura ataviado!
Alguns te fitarão como a caricatura.
Nunca há de compreender amante material,
O garbo singular desta humana armadura.
Tu, meu grande esqueleto, és meu único ideal.
Vens agora turbar, com feição zombeteira,
A festa desta Vida? Algo em ti deve arder
Para esporear assim tua viva caveira,
Levando-a ingenuamente ao sabá do Prazer?
Ao canto do violino, às candeias tão frias,
Esperas expulsar teu pesadelo então?
Para após suplicar à torrente de orgias
Que este inferno refresque a arder no coração?
Inesgotável poço e de culpa e defeito!
Da sempiterna dor eternal alambique!
As costelas, que são as grades de teu peito,
O insaciável réptil deixam que eu verifique.
Vivo sempre a temer que os teus airados ares
Não encontrem jamais um preço ao seu valor;
Que coração mortal te entende se zombares?
Só embriagam quem é forte os encantos do horror!
92
- Do fundo deste olhar, cheio de horríveis vôos,
Nasce a vertigem: e os dançarinos prudentes
Nunca irão contemplar, sem amargos enjôos,
O sorriso eternal dos seus trinta e dois dentes.
Mas quem nunca abraçou um esqueleto, em suma,
E quem não se nutriu de ares de campo santo?
O que importa o que veste, orna, pinta ou perfuma?
Como posso pensar que te olhem com espanto?
Cortesã sem nariz, baiadeira patética,
Dizes a estes que a dançar te miram ofuscados:
- “Casquilhos, apesar de toda a arte cosmética
Cheirais a Morte, ó Esqueletos perfumados!
Mirrados Antinoés, dândis de face glabra,
Defuntos de verniz, D. Joãos encanecidos,
O abalo universal desta dança macabra
Vos atrai a outros sóis sempre desconhecidos!
Do cais frio do Sena ao do Ganges inquieto,
Salta e desmaia agora o rebanho mortal
Ignorando a trombeta do anjo que, do teto,
Soa, sinistra e aberta, um trabuco fatal.
E sob todos os céus sempre a Morte te admira
Em tuas contorsões, atroz humanidade,
E às vezes como tu, perfumada de mirra,
Sua ironia junta à tua insanidade”.
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