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Universidade Federal de Goiás
Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Festa do Rosário:
Encruzilhada
de Significados
Renata Nogueira da Silva
Goiânia, GO
2007
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Universidade Federal de Goiás
Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Festa do Rosário: Encruzilhada de Significados
Renata Nogueira da Silva
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da
Universidade Federal de Goiás como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profª. Drª. Custódia Selma Sena do
Amaral
Goiânia, GO
2007
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Dissertação defendida no Mestrado em Sociologia da UFG, em 31 de agosto de 2007 e
aprovada pela Banca Examinadora, constituída pelos seguintes professores:
Banca Examinadora:
_______________________________________
Eurípedes da Cunha Dias (UnB)
_______________________________________
Roberto Cunha Alves de Lima (UFG)
_______________________________________
Custódia Selma Sena do Amaral (Orientadora /UFG)
Dedico esse trabalho aos congadeiros e
moçambiqueiros, filhos do rosário de Maria, que
fazem a festa hoje, aos que a fizeram ontem e
partiram para o Órum e aos que virão e lhe darão
significados!
“Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de
construir uma leitura de) um manuscrito estranho,
desbotado, cheio de elipse, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos escritos não
com os sinais convencionais do som, mas com
exemplos transitórios de comportamento modelado.”
(GEERTZ).
Agradecimentos
Gostaria de agradecer e principalmente reconhecer o auxílio de algumas pessoas que
me ajudaram a efetivar o sonho dessa dissertação, um sonho que na verdade se tornou uma
paixão. Esse trabalho foi construído com o esforço, a cooperação, a dedicação e as lágrimas
de muitas pessoas e grupos que embora não estejam retratados diretamente no texto estão nas
entrelinhas e fazem parte, sem dúvida, das muitas vozes que compõem não essa pesquisa,
mas também a minha vida. A seguir identifico algumas dessas pessoas e deixo a minha
gratidão!
Aos meus pais, Onofre e Maria do Rosário, e aos meus irmãos, Patrícia e Onofre
Filho, que em todos os momentos dessa trajetória peregrina me apoiaram financeira e
emocionalmente, tolerando minhas ausências, meus silêncios e me ajudando a enfrentar todos
os problemas e obstáculos que apareceram no caminho. Ao meu esposo Fábio, que suportou
meu mau-humor, minhas insônias, introspecções e ansiedade e que ouviu atentamente as
histórias e as músicas de congada, uma, duas, três vezes... Um companheiro e amigo de todas
as circunstâncias, que abriu mão junto comigo de viagens, fins de semana e que me aceitou
incondicionalmente, com amor e paciência, respeitando minha falta de tempo, fazendo aflorar
o riso ou chorando comigo quando as lágrimas insistiam em cair dos meus olhos e o desânimo
batia. Aos meus sogros, Vera Lúcia e Michel, aos meus avós, tios e tias, pelo carinho e
respeito a mim dedicados nos últimos anos!
Às amigas de infância de Ituiutaba: Melissa, Soraia Cristina, Vânia e Mirian, que me
deram colo quando precisei recompor as energias. Aos amigos e amigas de Uberlândia, que
em momentos diversos e em situações variadas me incentivaram e não me deixaram desistir
dessa pesquisa: Carlos Eduardo Panosso, Marcelo Evaristo, Leandro Silva, Rodrigo Crochês,
Dona Elza, Lucélia Melo e Ingo. Aos colegas pesquisadores e pesquisadoras de congada
com quem partilhei muitas angústias, discuti e discordei algumas vezes: Fabiola Benfica,
Larissa Gabarra, Márcio Bonesso, Cláudio Santos, Ana Paula e Kelly. A Jeremias Brasileiro,
pela atenção e colaboração no desenvolvimento dessa pesquisa. Em especial agradeço à
Juliana Calábria, minha grande amiga e companheira de pesquisa de campo, com quem
realizei essa pesquisa. Uma pessoa extremamente querida, que me estimulou, animou, deu
forças e com quem falei horas e horas pelo telefone durante a elaboração desse trabalho,
discutindo autores e informações sobre a festa da congada!
Aos colegas da turma de mestrado: Adélia, João Marcelo, Moema e Dilma, pelo
companheirismo nas horas difíceis e pela força que deram na minha fase de adaptação em
Goiânia. A Dona Lázara, que prontamente me recebeu em sua casa em Goiânia, facilitando
inclusive minha permanência no mestrado! A Raquel Fabeni, pela escuta atenta, pela amizade
e pelo respeito a esse trabalho! A Juliana Bonat, pelo trabalho de revisão, pela confiança,
otimismo e alegria que ensinaram a flexibilizar minhas opiniões.
Às amizades que fiz no CEDLAN (escola que trabalho), especialmente Alcioneides
Novais, minha “mãe adotiva” de Brasília; Shirley, uma amiga com quem divaguei muito
sobre esse trabalho; Gleidsmar, que me ensinou que nem sempre as coisas acontecem da
forma e no tempo que queremos. A Inês, Marisa e Magela pelo carinho e atenção.
À Universidade Federal de Uberlândia, onde me graduei, principalmente aos
professores Paulo Albiery, Mônica Abdala e João Marcos Alem, que me ajudaram a descobrir
a antropologia e o encantamento por essa disciplina.
Ao Prof. José Carlos Gomes, meu orientador e mestre da graduação, que
pacientemente me ensinou a fazer pesquisa de campo e me introduziu nesse “oficio
iniciático”.
À Universidade Federal de Goiás, principalmente ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, e particularmente, ao Prof. Luiz Melo pela atenção e pelo interesse por esse
trabalho.
À Profª. Selma, minha querida orientadora do mestrado, que aceitou o desafio de
orientar essa pesquisa e não mediu esforços nessa empreitada: orientou-me aos sábados, pelo
telefone, por e-mail, no bar e acreditou não só nesse trabalho como também na minha
capacidade de desenvolvê-lo. Graças a essa professora, ao seu incentivo e principalmente ao
seu respeito pelo meu tempo de fazer as coisas, esse trabalho foi concluído.
Aos congadeiros de Uberlândia, Ituiutaba e Araguari, pelo carinho e receptividade, em
especial aos ternos Moçambique de Belém, Camisa Rosa, Camisa Verde e Moçambique
Branco, nas pessoas de Fábio Silva, Seu Zezinho, Dona Divina, João, Alberto, Beto,
Saturnino, Courão, Soraia, Cida, Francis Luce, Maria Lúcia, Mário, Dona Geralda e Divina
Telles.
Ao capitão Ramon Rodrigues, meu paciente interlocutor desses últimos anos, que me
aceitou no Moçambique de Belém e repetiu a mesma história de várias formas para que eu
compreendesse. Sou muito grata a esse capitão que me permitiu realizar essa pesquisa e
conhecer um pouco da festa de Nossa Senhora do Rosário e assim escrever esse trabalho!
Resumo
Esta etnografia sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário ou congada, é resultado de
um trabalho de campo realizado na área definida como Triângulo Mineiro, MG, durante o
período de 2001 a 2007. Este trabalho procura compreender de que forma a congada, uma
prática religiosa usualmente definida como tradicional, é reelaborada contemporaneamente
por meio de trânsitos religiosos, políticos e tecnológicos. A partir da interpretação de versões
do mito fundador, de rituais e do exame da relação entre os congadeiros e os novos
mediadores culturais, busco apreender a dinâmica da congada e os mecanismos que garantem
a continuidade desta tradição. Trata-se de uma festa de e de afirmação étnico-racial em que
os congadeiros ocupam os espaços públicos e questionam através de rituais, cantigas, uso de
cores exuberantes e performances corporais expressivas, a situação de subalternidade em que
vivem cotidianamente.
Palavras-chave:
Congada, ritual, tradição, trânsitos e reelaborações.
Abstract
This ethnography of the Nossa Senhora do Rosário festival or ‘congada’, results of the
fieldwork carried out at the area known as Triângulo Mineiro, Minas Gerais, during the period
between 2001 and 2007. This work seeks to understand the way how ‘congada’, a religious
practice usually defined as traditional, is contemporary rebuilt by the religious, political and
technological transits
. By the interpretation of the foundation myth’s versions, rituals and
analysis of the relation among “congadeiros” and the new cultural mediators, I search to
apprehend the dynamics of congada’ and the mechanisms that grant the on going of that
tradition. It is a festival of beliefs and ethnic-racial awareness, in which ‘congadeiros’ occupy
the public areas and question, through rituals, songs, the using of exuberant colors and
expressive corporal performances, the subaltern situation in which they live daily.
Key words:
‘Congada’, ritual, tradition, transits and rebuilding.
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................................
11
Capítulo 1 – Contextualizando a festa do Rosário........................................................... 23
1.1 As memórias da escravidão e o anúncio da libertação..........................................
41
Capítulo 2 – A congada em Uberlândia: visibilidades e ocultamentos............................
53
Capítulo 3 – Ritualização e mito na festa do Rosário..................................................... 68
3.1 A fé em Nossa Senhora do Rosário: O mito fundador.......................................... 72
3.2 Versões obtidas no trabalho de campo.................................................................. 74
3.3 Versões obtidas em trabalhos etnográficos........................................................... 77
3.4 Espaços e tempos da festa do Rosário.................................................................. 82
3.5 A segunda-feira: Os bastidores da festa................................................................ 98
Capítulo 4 – Festa do Rosário: a tradição ressignificada................................................. 101
4.1 O público da congada: dos fiéis devotos aos espectadores................................... 109
4.2 Os novos atores sociais e a festa do Rosário......................................................... 116
Considerações finais – E a festa continua...................................................................... 136
Referências Bibliográficas.............................................................................................. 144
Anexos.............................................................................................................................. 149
11
Introdução
A congada é uma festa híbrida, que envolve práticas do catolicismo popular e das
religiões afro-brasileiras e que se constrói dinamicamente no trânsito entre a tradição e a
modernidade.
Nesse trabalho adoto a perspectiva de que a festa da congada é um momento
ritual, nos termos de Turner (1974), em que predomina a communitas como compartilhamento
de práticas e valores culturais.
O trabalho de campo é definidor de um estudo etnográfico, por isso discuto, a seguir,
as condições de produção desta pesquisa, particularmente minha relação com meus
interlocutores, pois, como bem disse Silva, V.G. (2000), no trabalho de campo problemas
escolhidos, teorias e estratégias metodológicas utilizadas estão perpassados pela relação
intersubjetiva entre o pesquisador e o grupo pesquisado. Meu lócus privilegiado de estudo foi
a congada de Uberlândia, MG, porém, ao longo desse trabalho menciono algumas
informações, a título de comparação, das outras festas pesquisadas
1
.
Para os fins dessa pesquisa, fiz cinco trabalhos de campo: em 2005 acompanhei as
festas de Ituiutaba e Uberlândia, MG, Goiânia e Itumbiara, GO, e, em 2006, dediquei-me à
festa de Uberlândia. Gostaria de ressaltar que a pesquisa que ora apresento é o
aprofundamento de um estudo que teve início na graduação, período em que procurei
compreender a elaboração e a aprendizagem da música na congada. Entretanto, atualmente
me sinto instigada a entender as reelaborações contemporâneas da festa.
Realizei meu primeiro trabalho de campo em 2001, mas, curiosamente, esse não
aconteceu em Uberlândia e sim em Ituiutaba, MG, minha cidade natal, especificamente na
igreja de São Benedito, local em que passei toda minha infância e fui socializada sob os
dogmas do catolicismo. Apesar de ter crescido escutando o som dos tambores e assistindo a
danças congadeiras, não compreendia muito bem aquela festa, sabia apenas que era conhecida
na cidade como festa de negro e que ocorria próximo ao treze de maio. Por essa razão, ao
iniciar essa pesquisa deparei-me com a seguinte situação: De onde devo assistir a festa? Da
praça? Da igreja? Da rua? Ou de um terno
2
? Sabia que essa decisão interferiria na condução
do trabalho, pois tal escolha me permitiria ver algumas coisas e outras não. Resolvi que
conheceria, ou melhor, olharia a festa a partir de um terno, por isso, acompanhei, em 13 de
1
Entre o período de 2001 a 2006, acompanhei as festas das cidades mineiras de Ituiutaba, Araguari, Romaria e
Monte Alegre e das cidades goianas de Itumbiara e Goiânia. Acompanhá-las foi muito importante para esta
interpretação, pois me permitiu compará-las.
2
T
erno é uma categoria nativa utilizada para identificar os diferentes grupos que compõem a congada.
Geralmente o terno é composto por parentes consangüíneos ou simbólicos e possui uma combinação de cores
específicas, que o distingue perante os demais. Em alguns casos, são essas cores que dão o nome ao terno:
Camisa Rosa, Camisa Verde, Azul e Branco etc.
12
maio de 2001, o terno Moçambique Camisa Rosa, que era composto por pessoas
identificáveis e inclusive conhecidas. Estar entre pessoas conhecidas trouxe um desconcerto,
pois aquela festa, que eu tinha visto algumas vezes, apresentava-se aos meus olhos como
algo diferente e novo. Comecei a prestar atenção nas danças, nos olhares, nos gestos, na
forma como música era tocada, como era cantada e em que momentos isso ocorria. Notei,
naquela primeira inserção no campo de observação, que olhar e ouvir eram mais que atos
cognitivos, pois estes são organizados através de um treinamento disciplinar.
Velho (2003), ao refletir sobre as condições do pesquisador que realiza trabalho de
campo na cidade, forneceu-me algumas pistas para entender e discutir a experiência de
desenvolver uma pesquisa no meio urbano e entre atores que não são distantes do
pesquisador.
Este autor retoma a discussão sobre estranhar-se a si mesmo e familiarizar-se
com o outro, de Lévi-Strauss (1976), e ressalta que o que vemos e encontramos em campo
pode ser familiar, mas não necessariamente conhecido e o que designamos como diferente
pode ser até certo ponto conhecido
.
Ao acompanhar o Camisa Rosa pelas ruas da cidade observei que havia uma diferença
significativa entre assistir a congada da praça, local em que os ternos se apresentam no
domingo da festa, e acompanhá-la com um determinado terno. Da praça é possível ter uma
visão panorâmica e generalizada, mas ver a festa a partir de um grupo permitiu-me presenciar
situações que não são notadas na praça. Escolhi o terno como lócus privilegiado de
observação por entender que essa opção ia ao encontro dos objetivos desse trabalho, por isso
é importante salientar que não se trata de uma hierarquização. Acredito que a praça ou rua
possibilitam igualmente elaborar interpretações da congada, o que fiz foi uma escolha tendo
em vista as propostas da pesquisa. Para Geertz (1997, p. 11), “aquilo que se depende do
lugar em que foi visto, e das outras coisas que foram vistas ao mesmo tempo”. Conhecer a
congada de Ituiutaba acompanhando um grupo específico foi muito importante à pesquisa,
com essa experiência percebi que era justamente fora do foco de interesse do grande público –
nesse caso a igreja de São Benedito –, que a festa ampliava seu sentido e ultrapassava as
perspectivas mais folclóricas.
Eu queria extrapolar o espaço da praça, almejava conhecer as pessoas e entender o que
significava a congada para elas, e nesse momento tive a suspeita de que a pesquisa demoraria
mais do que eu imaginava, requerendo tempo e paciência. De acordo com Velho (2003),
colocar-se no lugar do outro e captar vivências e experiências particulares exige um mergulho
em profundidade difícil de ser precisado e delimitado em termos de tempo. O
desenvolvimento de uma pesquisa de campo é marcado por movimentos dialéticos e
13
paradoxais, em que é necessário constantemente estranhar o que se torna familiar e
familiarizar-se com o que se torna estranho. Nessa pesquisa, lidei com o tempo mítico e
cíclico da congada diferente do meu tempo linear, marcado por datas e entregas de
relatórios –, e com o espaço sagrado da festa de Nossa Senhora do Rosário.
compreendi a relevância desse primeiro trabalho de campo após dois anos, no
processo de elaboração da monografia de fim de curso, Etnografia de um terno de
Moçambique: Ritual e música na festa de Nossa Senhora do Rosário (2003), e hoje tenho
mais certeza ainda de que esse momento foi essencial no desenrolar da pesquisa. Para
DaMatta (1978, p. 32) “os dados, por assim dizer, caem como pingos de chuva. Cabe ao
etnólogo não apará-los, como conduzi-los em enxurrada para o oceano das teorias
correntes”. Ao relacionar dados de campo e interpretações teóricas, pude não estranhar o
campo, mas também questioná-lo, numa relação dialógica com meus interlocutores. Ao
observar a congada de Ituiutaba tive sensações simultâneas de familiaridade e estranheza,
porque se de um lado a festa, especificamente a estrutura do ritual, apresentava-se claramente
familiar, do outro, ao observar a festa a partir de um terno, eu via muitas coisas diferentes e
estranhas.
Após esse trabalho de campo em Ituiutaba, comecei a me preparar para iniciar a
pesquisa no Moçambique de Belém, Uberlândia, MG. O meu primeiro contato no terno foi
com o capitão
3
Ramon Rodrigues e logo notei que se tratava de uma pessoa extremamente
articulada, mas muito desconfiada. Já nos primeiros encontros observei que o capitão tinha
uma postura crítica com relação às pesquisas acadêmicas sobre a congada. A maneira com
que ele se referia a esses estudos deixava clara sua posição e sua indignação com algumas
formas de se realizar pesquisa. Além disso, o capitão tinha aversão aos estudos que
concebiam a congada como uma festa folclórica, pois para ele a congada é uma festa de
resistência e fé da população negra de Uberlândia, uma cidade que desde seu surgimento
possui fortes mecanismos de segregação racial.
As posições do capitão Ramon são ilustrativas da mudança de perfil que os “objetos”
tradicionais de estudos da antropologia, os grupos subalternos, vêm sofrendo ao longo dos
anos. Essas mudanças são exemplificadas em Uberlândia nas disputas contemporâneas entre
pesquisadores e grupos de congada por subsídios, muitas vezes vindos de leis de incentivo à
cultura. Segundo Silva, V.G. (2000, p. 25) “ao lado das praias, aldeias e povoados da antiga
antropologia, estudam-se também a cidade, seus grupos, seus bairros, seus habitantes e seus
3
Nos ternos os capitães ocupam cargos hierarquicamente superiores e são responsáveis pela organização deles.
Os demais membros são chamados muitas vezes de soldados e devem respeitar e obedecer aos capitães.
14
estilos de vida, entre outros”. Atualmente, os antropólogos se deparam com situações bem
diferentes daquelas encontradas pelos precursores do trabalho de campo, pois hoje, além de
sermos todos nativos, como afirmou Geertz (1997), também disputamos mercado de trabalho
com nossos próprios grupos estudados, que começam a falar por si e contar em seus próprios
termos suas histórias.
Durante minha pesquisa no Moçambique de Belém tive a oportunidade de
acompanhar o fluxo de estudantes pesquisadores no terno. A maior parte dos pesquisadores
procurava o terno para fazer trabalhos de final de curso e, por isso, dispunham de pouco
tempo, não tinham inclusive possibilidade de acompanhar o terno em mais de uma festa. A
rapidez com que algumas pesquisas são elaboradas é vista com maus olhos pelos congadeiros
4
e é bastante censurada também. Nem sempre os pesquisadores têm tempo suficiente para
conquistar a confiança dos congadeiros, já que há prazos para serem cumpridos e geralmente
esses prazos não levam em conta os imponderáveis do percurso da pesquisa. Quando esses
pesquisadores ainda são graduandos, como foi o meu caso no início da pesquisa, esse quadro
se complica ainda mais, pois a imaturidade intelectual nos traz dificuldades para lidar com
situações inesperadas da pesquisa de campo.
No caso do Moçambique de Belém um pesquisador apressado o consegue
desenvolver sua pesquisa, que o capitão Ramon, para estabelecer laços de confiança com o
pesquisador, o submete a desafios, testes e ritos de passagem. A descrença dos congadeiros na
academia, provocada pelo grande número de trabalhos sobre a congada, pela escassez de
retorno desses e pelo desconhecimento da profissão do antropólogo (diferentemente do que
ocorre com um jornalista, por exemplo, já que os grupos sabem bem como esses profissionais
atuam), são fatores que contribuem para que os congadeiros demorem a confiar nos
pesquisadores.
Ouvi congadeiros dizerem: Para onde vão essas pesquisas que vocês fazem? Nunca vi
o texto pronto! Os mais inteirados do vocabulário acadêmico chegaram a afirmar: Não somos
apenas objeto de estudo! Cardoso de Oliveira (2003) indica que nas pesquisas realizadas com
seres humanos, o sujeito da pesquisa deixa a condição de cobaia (ou de objeto de
intervenção), para assumir o papel de ator (ou de sujeito de interlocução), por isso, nessa
pesquisa utilizo o termo interlocutores para me referir aos sujeitos pesquisados. É importante
destacar que na situação de pesquisa de campo, diferentemente do que ocorre em outras áreas,
4
Nessa pesquisa o termo congadeiro é utilizado para referir-se genericamente aos praticantes da congada,
independentemente de sua filiação a algum terno. o termo moçambiqueiro é usado para distinguir o
congadeiro que pertence ao terno de Moçambique.
15
o antropólogo tem que negociar constantemente sua inserção e identidade no grupo
pesquisado. Acredito que essa pesquisa sobre a congada foi possível devido aos diálogos
consentidos e negociados estabelecidos entre pesquisadora e pesquisados. Gostaria de
ressaltar, também, que utilizo os nomes verdadeiros dos congadeiros, tendo em vista que essa
foi uma solicitação dos capitães dos grupos, que crêem que isto aumenta a visibilidade e a
divulgação da festa em espaços não congadeiros, como a universidade, por exemplo.
A desconfiança dos congadeiros me fez refletir sobre as estratégias de entrada e saída
do campo. Não sabia muito bem como lidar com aquela situação, mas resolvi que devolveria
para os grupos pesquisados os textos produzidos e as fotos tiradas do terno e da festa. Essa
postura teve bons resultados e provocou inclusive diálogos com os capitães, motivados pela
leitura dos textos que levei para os ternos. Assim como os congadeiros ficam contentes ao
receber um trabalho elaborado pela universidade sobre uma festa que é tão importante para
suas vidas, também foi muito gratificante saber que meu texto havia sido lido por membros
dos ternos que eu acompanhava. Dessa forma, fui tecendo minhas redes e aos poucos
interagindo e descobrindo os melhores caminhos para me aproximar dos congadeiros.
Além da problemática acima colocada é necessário apontar que não foi apenas a
descrença dos congadeiros na universidade que tornou essa pesquisa um desafio, um outro
fator que dificultou minha inserção no grupo foi minha condição de gênero. Silva, V.G.
(2000), em sua pesquisa com os pesquisadores de religiões afro-brasileiras, destaca que a
condição de gênero nos estudos desse tema produz representações diferenciadas sobre o grupo
estudado. Ser homem ou ser mulher
5
traz implicações importantes no desenvolvimento de
uma pesquisa, principalmente quando se trata de grupos estruturados através de identidades e
papéis de gênero. O autor apresenta depoimentos de pesquisadoras de campo que enfrentaram
preconceitos tanto dos pares antropólogos quanto dos interlocutores pesquisados. O autor
ressalta, ainda, que a primeira pesquisa etnográfica sobre religiosidades afro-brasileiras
realizada por uma mulher no Brasil foi a da antropóloga Ruth Landes. A pesquisadora teve
dificuldades de inserção no meio acadêmico brasileiro, que até a década de 70 era
majoritariamente masculino, e também nas casas de candomblé, ainda que essas fossem
lideradas em sua maioria por mulheres. Os trabalhos de Ruth Landes abordam questões como
a homossexualidade e o poder feminino nos candomblés, um aspecto considerado irrelevante
pelos intelectuais brasileiros.
5
Na situação de pesquisa de campo ainda é possível acrescentar outros limitadores tais como: cor, idade ou
orientação sexual. No meu caso o limitador mais preponderante foi minha condição de gênero.
16
Na congada, assim como nos terreiros, os papéis e os espaços são definidos a partir do
gênero: por exemplo, os homens tocam e cantam para Nossa Senhora, as mulheres são
responsáveis pela reza do terço, eles usam bastão e elas conduzem as bandeiras do terno e dos
santos protetores. Tal demarcação de papéis fica bem evidente nos leilões
6
: os homens e as
mulheres se encontram no quartel
7
por volta das 19h30. Se a casa em que ocorrerá o leilão
ficar próxima ao quartel, elas vão primeiro, para rezar o terço, e mais tarde seguem os
homens, para louvarem São Benedito e Nossa Senhora do Rosário e iniciarem os leilões das
prendas. Se a casa que sediará o leilão ficar longe do quartel, seguem todos juntos, mas
geralmente os homens não entram para rezar o terço, eles ficam na rua organizando os
instrumentos e esperando um sinal para seguirem até a casa do leilão e louvarem seus santos
devocionais. O sinal para a saída deles é o estouro de foguetes. Estes indicam que o terço está
acabando e que eles devem se preparar para fazer suas louvações e o leilão das prendas (no
Moçambique de Belém, Seu Zezinho é o leiloeiro oficial), mas são as mulheres que recebem,
conferem e guardam o dinheiro. Os momentos dos leilões são bem marcados, as mulheres
predominam na reza do terço e ocupam o espaço da casa e os homens são responsáveis pelas
músicas e danças e dominam a rua, um padrão recorrente na sociedade brasileira, que
relaciona a mulher ao domínio privado e o homem ao domínio público.
Meu interesse inicial de pesquisa no Moçambique de Belém era compreender o
processo de elaboração e aprendizagem da música. E música nos ternos de congada em
Uberlândia é uma prática predominantemente masculina. Em outras cidades como Araguari,
por exemplo, é possível encontrar mulheres tocando caixa e utilizando bastão, e às vezes até
ocupando o cargo de capitã, atividades interditadas às mulheres congadeiras de Uberlândia.
casos em Uberlândia de mulheres que se aventuram a tocar instrumentos musicais, mas
essas são extremamente criticadas. Entender a construção da música ia de encontro à minha
condição de gênero, pois estar no terno na categoria de pesquisadora não eliminava meus
atributos de gênero, o que me obrigava a cumprir determinadas tarefas definidas pelo grupo
como femininas. Acompanhar o processo de produção da música era quebrar um tabu e
ocupar um espaço que o grupo não via como sendo de mulher. Várias vezes Dona Divina
chamou a minha atenção para o meu lugar no terno rezando o terço junto com as outras
mulheres. Em algumas ocasiões Dona Divina brincava: tá fugindo do terço minha filha! Rezar
6
Os leilões ou campanhas, como são chamados em algumas cidades mineiras, são momentos de preparação da
congada, neles ocorrem a reza do terço e o arremates de prendas.
7
Quartel é o local em que ficam guardados os instrumentos musicais, a bandeira, os bastões e todos os objetos
importantes do terno. Na maioria das vezes o quartel fica localizado na casa do capitão-geral do terno. No caso
do Moçambique de Belém, ele localiza-se na casa da matriarca Dona Divina, viúva de Seu Siricôco, idealizador
do terno e mãe de Ramon Rodrigues.
17
o terço implicava não acompanhar os homens na preparação da cantoria para a santa. Estar
entre as mulheres foi uma experiência bem interessante, pude perceber como elas vivenciam a
festa e, além disso, aos poucos tive a aceitação delas, o que facilitou bastante o
desenvolvimento da pesquisa. A grande questão que se colocava era criar mecanismos que me
permitissem transitar tanto nos espaços concebidos como femininos quanto nos definidos
como masculinos, pois era importante no meu estudo circular entre a casa e a rua.
Os pesquisadores de religiões afro-brasileiras, José Jorge de Carvalho e Rita Segato,
realizaram juntos suas pesquisas de campo e entenderam como as implicações dos papéis de
gênero e os tabus religiosos interferem no desenvolvimento de uma pesquisa. Silva, V.G., em
entrevista com o casal, apontou como cada um teve o acesso permitido em atividades
características de seu gênero. José Jorge, por ser homem, pôde assistir a uma obrigação a
égum; Rita Segato, em contato com o universo feminino, percebeu o alto índice de
bissexualidade das mulheres nos candomblés. Na pesquisa sobre congada, ser mulher e querer
conhecer o universo masculino implicou várias coisas, dentre elas ter que primeiro aceitar o
lugar definido como de mulher, para depois ter acesso ao universo masculino. No entanto,
esse acesso não eliminou meu desconforto de estar “fora do lugar” definido pelo grupo.
Interessada em entender melhor como as mulheres vivenciam a festa, tentei várias
vezes fazer uma entrevista com Dona Divina, mas ela não me concedeu uma entrevista formal
como eu imaginava. Ela me tratava com seriedade e ao abordá-la para perguntar alguma coisa
sobre a congada, ela me pedia para falar com Ramon, como se ele fosse o porta-voz do terno,
o legitimado por ela e pelo grupo para falar de congada. Aos poucos e com muita insistência
consegui conversar mais com ela, mas essas conversas raramente tinham como assunto a festa
de Nossa Senhora do Rosário. Descobri que para escutá-la falar de congada o melhor caminho
seria não perguntar e deixar que esse assunto viesse à tona de alguma forma. Não foi cil
silenciar as perguntas à anciã do terno, aquela que conhecia os fundamentos
8
e saberes
ancestrais do grupo. Muitas vezes saí dos leilões triste por não conseguir a tão desejada
entrevista, e com isso aprendi que a entrevista é um recurso importante, mas não exclusivo em
uma pesquisa.
Dona Divina, com toda sua sabedoria congadeira, mostrou-me que nem sempre as
experiências são traduzidas em palavras e que às vezes precisa-se observar e ter paciência.
8
Fundamento é uma categoria congadeira utilizada para designar o conjunto de valores e regras que devem ser
seguidos pelo terno. É um termo usado também no candomblé e na umbanda para indicar o grupo de objetos
sobre os quais a força dos orixás e de outras divindades é assentada, ou seja, enterrada no terreiro ou em outro
lugar especial do local de culto, constituindo suas fundações místicas.
18
Essa mulher guerreira e devota de Nossa Senhora do Rosário, tem o respeito e a admiração
dos membros do Moçambique de Belém, ou como eles dizem, Família de Belém, tem
inclusive a obediência do capitão Ramon Rodrigues, que apesar de ser o líder do grupo
recorre frequentemente a sua mãe, solicitando conselhos. Dona Divina não é de muita
conversa, tem um olhar firme que dispensa explicações e controla seu filho no comando do
terno. A entrevista realmente não aconteceu, mas aprendi muito com essa mulher que leva nas
costas anos de experiência e fé nos santos padroeiros.
Também encontrei em Ituiutaba mulheres congadeiras que como Dona Divina evitam
falar, mas que na verdade são as grandes líderes dos ternos. Tive a oportunidade singular de
conhecer um pouco das várias experiências de Maria Lúcia (presidente da irmandade de São
Benedito e Nossa Senhora do Rosário e líder do terno Camisa Rosa), e Divina Telles
(responsável pelo terno de Congo Camisa Verde). Essas mulheres são grandes referências
congadeiras em Ituiutaba, pois são filhas dos fundadores dos ternos dos quais são
responsáveis hoje. Com elas aprendi que se a festa é vista pelo grande público como
predominantemente masculina, são elas as grandes matriarcas, as que sustentam os grupos.
Geralmente quando se estuda congada, referimo-nos basicamente aos capitães como sendo os
grandes transmissores das tradições congadeiras. As
mulheres são deixadas em segundo plano
e simbolizam a casa, mas vi que elas são também responsáveis pela perpetuação da festa
contemporaneamente. Tive que rezar muito terço para conhecer uma ínfima parcela, porém
muito significativa, das experiências das mulheres congadeiras. E essas foram extremamente
importantes no estudo sobre a congada. Falar do mundo feminino foi possível porque
encontrei no trajeto dessa pesquisa mulheres fortes, que me impulsionaram a olhar e a
compreender a festa a partir da minha condição de gênero. Sou muito grata a todas as
congadeiras e moçambiqueiras que me fizeram perceber o quanto a congada é uma festa
complexa, na qual os papéis de gênero se completam para criar a festa como espaço sagrado
da fé em Nossa Senhora do Rosário e como espaço público de afirmação étnico-cultural.
Em Uberlândia a festa acontece em outubro e agrega vinte quatro ternos, que se
organizam em torno da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, instituição promotora e
organizadora da congada na cidade. Ao som dos tambores e à luz do sol radiante do mês de
outubro, desfilam pelas ruas vários ternos de congado que com suas cores brilhantes e
performances corporais expressivas, apropriam-se do espaço público e inscrevem sua tradição
num espaço historicamente negado à população negra. Nos dias da congada, os negros saem
do anonimato e assumem lugar de destaque na cena urbana, promovendo uma ruptura com a
rotina cotidiana extremamente marcada pela sujeição e subjugação. Ao dançar e cantar para
19
seus santos, os congadeiros revivem as lições de seus ancestrais e revertem
momentaneamente o lugar secundário que ocupam na hierarquia de poder local.
Foi no Moçambique de Belém que compreendi um pouco do que a festa de Nossa
Senhora do Rosário representa na vida de muitas mulheres, crianças e homens uberlandenses,
que aguardam o ano inteiro para louvarem seus santos. No Moçambique de Belém, as
atividades de preparação da congada iniciam-se no mês de agosto, são três meses de intensa
cantoria e reza pelas ruas da cidade. De agosto, período em que os rosários e as campanhas
são abertos, até outubro, quando a festa acontece na cidade, os tambores tocam e anunciam
que se aproxima a festa dos negros, forma com que muitos se referem à congada na cidade.
Durante esses três meses os ternos fazem o giro do sagrado, aqui parafraseando Lima (1990)
em sua pesquisa sobre a festa do Divino em Pilar, GO. No giro pela cidade os ternos rezam o
terço, fazem leilões e realizam ensaios das cantigas e coreografias novas. De acordo com o
regimento da festa de Uberlândia (anexo A) é preciso que os ternos rezem o terço à Virgem
do Rosário em pelo menos nove casas distintas. Com relação ao regimento é importante
destacar que se trata de um documento que é anualmente reformulado, tendo em vista a festa
do ano anterior.
As atividades de abertura da preparação para a festa no Moçambique de Belém têm
como marco a execução da seguinte cantiga: Bandeira santa me ensina caminho, em nome de
Deus me ensina caminho. Os membros do terno cantam com efervescência e os capitães
tocam veementemente seus apitos, e deste modo declaram abertos os festejos a Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito naquele ano. Após a abertura ritual dos festejos, a bandeira santa e
o som dos apitos dos capitães passam a operar como ativadores dos dançadores da congada.
Ao ouvir o apito de seu capitão, seja no quartel, na praça ou na igreja, os membros de um
determinado terno saem depressa para recompor o grupo e acatar as indicações de seu líder,
pois na maioria das vezes o apito do capitão é uma convocação para visitas, cortejos ou
procissões. Tal como ocorria com os dançadores durante as festas ou em apresentações, o
apito despertava em mim dispositivos de prontidão e concentração. Ao escutar o som de um
apito, imediatamente começava a procurar os membros do terno que estava acompanhando,
pois sabia que alguma atividade ritual iria acontecer. A bandeira e o apito acionam em mim
mecanismos que ultrapassam a situação da pesquisa de campo, todas as vezes que vou
escrever ou falar sobre congada a primeira imagem que me vem à mente é a da bandeira e o
primeiro som, sem dúvida, é o produzido pelo apito. O apito pode indicar diferentes coisas:
marcação de música, ordenação do terno, porém para mim a mais expressiva é aquela
evocação subjetiva de minha experiência de campo.
20
As orientações metodológicas empregadas na pesquisa baseiam-se no uso de trabalho
de campo, isto é, na observação participante e nos dados de entrevistas gravadas e anotadas.
A entrevista refere-se ao âmbito mais formal da pesquisa, em que ocorre um diálogo entre
pesquisador e pesquisado(s); tal diálogo é geralmente mediado pelo pesquisador. a
observação participante diz respeito aos aspectos mais informais e envolve o olhar atento e
disciplinado do pesquisador. Parto do princípio de que o trabalho de campo é um universo
misterioso e surpreendente, não conseguimos controlá-lo e às vezes somos obrigados a
trabalhar na arena das possibilidades. Elaboramos um projeto, que se pretende
academicamente aceito, mas nem sempre encontramos no campo o que fomos buscar, então
somos obrigados a reelaborar nossos planos, privilegiar elementos que não pretendíamos e
desconsiderar outros que seriam centrais para comprovar nossas hipóteses. A pesquisa se
realiza, portanto, no domínio do imponderável e da incerteza, nem sempre em campo fazemos
o que queremos, ou o que gostaríamos, na maioria das vezes fazemos o que é possível diante
das condições que encontramos. Não acredito numa concepção linear do processo de
produção de conhecimento, em que o trabalho de campo é a fase intermediária entre o projeto
de pesquisa e a escrita do texto. De acordo com Silva, V.G. (2000, p. 27), “projeto de
pesquisa, trabalho de campo e texto etnográfico não são fases que se concatenam sempre
nessa ordem e de forma linear. Na prática essas etapas são processos que se comunicam e se
constituem de forma circular ou espiral”. O autor ainda destaca que o trabalho de campo exige
a construção de uma rede de interlocutores e isso na maioria das vezes é um processo que
demanda tempo:
A importância que o trabalho de campo assume no desenvolvimento das etnografias
faz com que muitas vezes os grupos contatados sejam vistos como o capital do
antropólogo ou sua rede de campo, isto é, um conjunto de relações sociais que o
antropólogo estabelece com as pessoas pesquisadas e que permite a realização do
trabalho etnográfico. A construção dessa rede geralmente leva muito tempo e exige
paciência: é preciso ter acesso ao grupo, familiarizar-se com ele, enfrentar conflitos,
aprender regras a duras penas, até que se estabeleça um clima de confiança mútua e
colaboração. (p. 32).
O trabalho de campo me fez perceber que cada vez mais meus interlocutores se
politizam e exigem dos pesquisadores posicionamentos e compromissos que integram o
próprio fazer antropológico.
As interpretações e discussões apresentadas nesse estudo procuram demonstrar que a
congada é mais que uma dramatização da situação de subalternidade dos negros ao longo da
história brasileira. A congada veicula fé, resistência étnico-racial e outros significados que
informam as relações dos congadeiros com os novos mediadores culturais. E é justamente isso
21
que me permite apontar nesse trabalho que a congada tem impactos para além dos momentos
rituais. A divisão da dissertação aqui proposta é apenas didática e deve-se levar em
consideração que os assuntos debatidos em cada capítulo se interpenetram o tempo todo, o
que indica a possibilidade de outras organizações.
No capítulo 1 apresento ao leitor uma contextualização da festa de Nossa Senhora do
Rosário, retomo as principais interpretações acadêmicas sobre tema e discuto como os
próprios congadeiros concebem a festa. Nesse capítulo enfatizo que a congada é uma
manifestação cultural que se constrói no trânsito entre o catolicismo popular e as religiões
afro-brasileiras, concepção que perpassa todo o trabalho. Além disso, também faço uma
reflexão sobre a atuação das irmandades de São Benedito e/ou Nossa Senhora do Rosário na
organização da congada.
No capítulo 2 analiso como a congada se organizou em Uberlândia. Para tal, destaco
algumas peculiaridades da festa na cidade, que se trata de uma manifestação que embora
possua um mito fundador relacionado a Nossa Senhora do Rosário, recebe inflexões locais.
Nesse capítulo reflito sobre os difíceis processos de construção e consolidação tanto do
espaço urbano quanto da festa na cidade. Nesse aspecto é importante levar em consideração
que Uberlândia, desde seu surgimento, definiu-se como uma cidade segregada etnicamente. O
negro subalternizado constituiu a mão-de-obra que construiu a cidade, fato que é pouco
representado na história oficial local. Além disso, os negros criaram muitas das manifestações
culturais da cidade, como a congada, o carnaval, a capoeira, a folia de Reis etc.
Após localizar minimamente a congada em Uberlândia, desenvolvi uma espécie de
liturgia da festa de Nossa Senhora do Rosário, ou seja, descrevi a partir das indicações dos
congadeiros as principais práticas rituais da festa. O capítulo 3 aborda o mito de Nossa
Senhora do Rosário e busca compreender de que forma os grupos ressignificam suas práticas
em função desse mito. As tarefas fundamentais desse capítulo é explorar algumas versões do
mito fundador e identificar os sujeitos sociais da congada com seus respectivos símbolos.
Também indico nesse tópico como, a partir do mito de Nossa Senhora do Rosário, as
diferenças entre os ternos de Congo e Moçambique foram construídas.
Em Uberlândia, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário e os ternos de Congo e
Moçambique recebem maior visibilidade nos dias em que ocorre a festa na cidade. Nesses
dias de ruptura, os ternos tomam a cena e transformam ruas, igrejas, terreiros e praças em
espaços de contestação. O capítulo 4 trata da inserção dos novos mediadores culturais na
realização da festa. Neste capítulo explícito quem são esses mediadores culturais que
participam da congada hoje em Uberlândia e como a festa se reestrutura a partir desses
22
agenciamentos, garantindo sua continuidade justamente através da transformação.
Geertz (1987, p. 29) diz que “o etnógrafo inscreve o discurso social: ele o anota. Ao
fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio
momento de ocorrência, em um relato (...) que pode ser consultado novamente”. Apresento
nesse trabalho um relato construído com informações de segunda e terceira mão sobre a festa
de Nossa Senhora do Rosário. Desde já admito que se trata de um trabalho provisório e aberto
a futuras revisitações.
23
CAPÍTULO 1
Contextualizando a festa do Rosário
O objetivo da pesquisa é compreender de que forma a congada também conhecida
com as denominações festa do Congo, congado e festa de Nossa Senhora do Rosário –, uma
manifestação cultural definida usualmente como tradicional, é reelaborada como uma prática
cultural contemporânea. Nesse capítulo faço uma contextualização da festa de Nossa Senhora
do Rosário e retomo as principais interpretações acadêmicas sobre o tema. Além disso,
discuto também como os próprios congadeiros concebem a festa.
A congada vem sendo registrada no Brasil desde o período colonial e aparece de forma
integrada ao calendário católico. Alvarenga (1960), por exemplo, destaca que a primeira
notícia documentada que se tem de uma congada realizada no Brasil é de 1760, encontrada na
relação dos festejos do casamento de D. Maria I, rainha de Portugal. Tinhorão (2000), faz
um recuo histórico maior do que o de Alvarenga. O autor recua até 1711 e por meio de
pesquisas folclóricas identifica a primeira coroação de rei congo no interior de uma irmandade
de Nossa Senhora do Rosário, em Pernambuco. O autor retrocede ainda mais, para o final do
século XVII, e encontra notícias das primeiras manifestações de coroação de reis, mas esta
realizada com alusão a reis de Angola e não de Congo. Tinhorão ressalta, inclusive, que a
coroação dos reis de Congo organizada por escravos e forros já era uma prática disseminada
no século XVI, em Lisboa. Definir se as primeiras festas de congada no Brasil ocorreram no
século XVII ou no XVIII é secundário nessa pesquisa, o que é importante salientar é que as
festas de congada datam do Brasil colônia e dramatizam relações conflituosas construídas na
diáspora africana no Novo Mundo.
Zamith (1995), a partir da leitura de Andrade (1959) e Brandão (1985), define a
congada como um folguedo brasileiro, de caráter religioso, que se apresenta em forma de
cortejo real, incluindo cantos e danças, e freqüentemente, entrechos com representações
teatrais. Para a autora, a congada é formada por grupos chamados ternos, guardas ou
companhias, compostos predominantes por negros, que se reúnem para louvar seus santos de
devoção.
Para os fins dessa pesquisa entendo a congada como um ritual híbrido, que agrega de
um lado a coroação de reis negros e de outro o culto aos santos católicos, geralmente Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito
9
. A congada organiza-se no interior das irmandades
9
Ainda é possível encontrar festas de congada que louvem Santa Efigênia e Nossa Senhora Aparecida.
24
religiosas
10
e em função de um mito fundador que envolve a aparição de uma santa no período
da escravidão. Tal santa rejeita os louvores e a capela construída pelos brancos, mas se
encanta com as adorações dos escravos e por isso é considerada protetora do povo negro.
Lima (2003), em seu estudo sobre narrativas orais, indica que mitos como os de Nossa
Senhora do Rosário estão espalhados por toda América hispânica e portuguesa. uma rie
de histórias do Brasil colônia em que santos e santas aparecem nos mais diversos lugares:
mato, água, gruta, pedra etc. e que só aceitam serem resgatados de tais lugares com os
louvores de algum grupo subalternizado: negros, índios ou garimpeiros. Lima descreve a
aparição de Nossa Senhora da Penha, em Pilar, interior do estado de Goiás, e essa santa, assim
como Nossa Senhora do Rosário, surge no contexto das adversidades da escravidão. Nesse
sentido, deve-se destacar que a escravidão colonial foi sustentada pela religião católica e que a
ação colonizadora dos portugueses foi extremamente marcada por imagens, milagres e
expiações. Talvez seja por isso que histórias como as de Nossa Senhora do Rosário e da
Penha são tão fortes no interior de Goiás e Minas Gerais e foco de muitas romarias e festas
populares. Na perspectiva de Lima, a idéia de proteção divina, sob a égide de uma santa,
aparece no contexto de luta dos escravos contra as forças da natureza e contra a perseguição
movida pelos mantenedores do regime escravista.
Durante a pesquisa conheci várias versões do mito fundador da congada, e todas elas,
apesar das tipificações peculiares de quem as contam, giram em torno de histórias
relacionadas à Virgem do Rosário. De modo geral, o mito diz que durante a escravidão Nossa
Senhora apareceu na água
11
, senhores e escravos organizados em grupos separados cantaram e
dançaram para resgatá-la, mas apenas os negros mais velhos e experientes conseguiram retirá-
la. Todas as diferentes versões do mito relatadas nas cidades pesquisadas atribuem ao grupo
de Moçambique
12
o mérito da retirada da santa da água. Durante a realização da congada esse
mito é constantemente renovado e reconstruído.
Não é o louvor ao santo católico por si ou a coroação do rei negro, mas o
acontecimento simultâneo dos dois que constrói as particularidades da festa e a diferencia das
demais práticas do catolicismo popular. O culto aos santos católicos era uma forma de os
negros utilizarem o espaço público e legítimo da igreja para a organização das irmandades
10
É possível encontrar o termo confraria como sinônimo de irmandade. Os dois termos referem-se à instituição
organizadora dos ternos de congada. As irmandades ou confrarias foram muito importantes na vida da sociedade
patriarcal e escravista do século XIX.
11
O lugar em que a santa apareceu varia nas versões contadas pelos grupos. Em algumas versões, a santa aparece
na água, em outras, numa gruta, ou ainda, numa árvore.
12
A congada é composta por vários grupos afro-brasileiros: Congo, Marinheiro, Moçambique, Catupé, Vilão,
Penacho, Caboclo, entre outros. No capítulo dois desse trabalho, faço uma descrição dos ternos que compõem a
congada.
25
leigas. a coroação dos reis negros, na perspectiva de Mello e Souza (2001), existiu sob a
forma de eleição de reis ou governantes, festivamente comemorada com danças e ritmos, em
diversas localidades da América. Estas festividades apresentavam-se como espaço de
reatualização das tradições e recriação de laços comunitários destruídos pelo tráfico e pela
escravidão. No entanto, foi na América portuguesa que tais práticas mais se difundiram,
ocorrendo ainda hoje em muitas regiões brasileiras. Ao ingressar numa irmandade leiga os
africanos e seus descendentes tinham chances de alcançar maiores veis de integração e
aceitação na sociedade que os subjugava.
Mello e Souza ressalta que ao se estudar as coroações de reis no Brasil não se deve
privilegiar a busca de origens, a atenção do pesquisador precisa ser direcionada para
desvendar os processos históricos que levaram à formação de certas instituições e ao
entendimento de seus significados para os grupos que as adotaram. A autora afirma ainda que
“foi a força simbólica e a capacidade de arregimentação de um rei ou chefe que fizeram as
associações étnicas organizadas ao seu redor serem adotadas pelos diferentes grupos, em
lugares diversos” (p. 173).
A congada vinculada às irmandades funciona para a igreja católica como um
instrumento de conversão dos negros ao catolicismo, já para os congadeiros, a festa atua
simultaneamente como resistência, espaço de reconstrução de identidades e afirmação
cultural. De acordo com Volpe (1997), as irmandades foram uma das respostas mais
significativas para uma rede de problemas enfrentados por uma sociedade mais aberta, que
desabrochou com a economia mineradora e estava fundada no regime do Padroado. Este
regime pode ser resumido como um acordo entre a igreja católica e a Coroa, pelo qual o papa
transferia ao rei a administração temporal da igreja e esta por sua vez assumia funções de
Estado. As irmandades eram organizações religiosas de leigos que reuniam classes sociais,
grupos étnicos e categorias profissionais distintas sob a devoção de um santo padroeiro. Para
a autora, “a adoção do sistema de crenças católicas por parte dos mulatos legitimava o
reconhecimento do seu lugar na sociedade dominada pelo branco” (p. 15). As irmandades
agiam também como uma espécie de previdência social. As irmandades eram responsáveis
pelo enterro de seus membros, sepultura e ainda, quando era necessário, amparava a família
do (a) falecido (a). Pode-se dizer que as irmandades possuíam duplo papel na sociedade,
definido por Volpe (1997, p. 20) da seguinte forma:
Do ponto de vista religioso, as irmandades, serviram como um instrumento de
propagação da católica e educação espiritual. Do ponto de vista secular, a sua
ação preencheu uma série de demandas sociais, econômicas, éticas e ideológicas
envolvendo a dinâmica interna daquela comunidade como também a Coroa.
26
Os negros, escravos e forros geralmente estavam vinculados às irmandades de Nossa
Senhora do Rosário e/ou São Benedito. A coroação dos reis negros, gerida pelas irmandades e
incorporada pelo sistema escravocrata como modo de controle dos africanos, de acordo com
Martins (1997), é apropriada pelo próprio negro, que por meio dela, reterritorializa formas
ancestrais de organização social e ritual. Os brancos acreditavam que a coroação dos reis
negros evitaria possíveis rebeldias dos negros. Entretanto, mais que um simbolismo, a
coroação dos reis negros no período colonial em torno das irmandades envolvia a
reorganização do poder entre os negros. Era por intermédio da irmandade e do rei congo que
os negros negociavam com o Estado e com a igreja católica, instituições que praticamente se
fundiam neste período. As irmandades atuavam como entidades políticas, procurando
intermediar e negociar as reivindicações de seus adeptos frente ao Estado e à igreja católica.
As irmandades foram até o Brasil Império, sobretudo as irmandades negras, os
principais veículos do catolicismo popular. Nelas os santos eram frequentemente mais
preferidos que o Deus todo poderoso. Na perspectiva de Reis (1991), as irmandades eram
organizadas como gestos de devoção a santos específicos. Estes santos, por sua vez, trocavam
a proteção que davam aos devotos por festas exuberantes. Os santos atendiam aos pedidos dos
leigos, e, em contrapartida, recebiam fartos almoços e grandes procissões. As irmandades
apresentavam-se como espaço primordial de construção negociada das identidades
congadeiras. Entretanto, é importante deixar claro que a irmandade de Nossa Senhora do
Rosário ou de São Benedito não é a congada. A irmandade é a gestora da reunião de vários
ternos de congada. Os ternos de congada podem até se organizar de forma independente,
porém, eles devem obedecer aos preceitos e aos encaminhamentos da irmandade, que é a
instituição representativa e organizadora dos ternos
13
.
Em Uberlândia, a congada organiza-se em função dos louvores a São Benedito e a
Nossa Senhora do Rosário e da coroação de uma rainha e de um rei congo, prática chamada
de reinado na região. No entanto, existem festas em que não composição de reinado e
ocorre o encontro de ternos. Ainda que tratados geralmente como sinônimos, diferenças
significativas entre eles. Segundo Martins (1997), os ternos de Congo podem existir
individualmente, ligados a santos de devoção, em comunidades ondeo existe reinado.
Nesses espaços ocorre o encontro de ternos, mas não há coroação de reis e rainhas. Na
concepção da autora, os reinados são definidos por uma estrutura simbólica complexa e por
ritos que incluem a presença das guardas e a formação de um Império, cuja concepção inclui
13
É possível encontrar na literatura sobre a congada relatos de festas que não estão vinculadas a irmandades
religiosas. É o caso da congada de Inhaúma – MG, pesquisada por Zamith (1995).
27
variados elementos, atos litúrgicos e cerimônias que reinterpretam, por meio de performances,
as travessias dos negros da África às Américas.
Em Água Suja MG, hoje conhecida por Romaria, ocorre um dos maiores encontros
de ternos de congada
14
da região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba (conferir mapas 1 e
2). No encontro não instauração de reinado
15
, mas ele atrai grupos de congado de vários
estados brasileiros, principalmente de Goiás e Minas Gerais. Segundo Bonesso (2002), a
origem do povoamento de Água Suja data da colonização do Triângulo Mineiro, período em
que os portugueses começaram a explorar ouro e diamantes na região. O autor relata que em
1867 o garimpeiro Sebastião Silva embrenhou-se no meio do cerrado do Triângulo Mineiro e,
ao descansar nas costas de um rio, descobriu cascalho e percebeu que o local era propício para
diamantes. O garimpeiro cavou o cascalho e encontrou diamantes e uma pequena quantidade
de ouro, logo a notícia se espalhou e a região atraiu pessoas de vários locais. Rapidamente o
vilarejo se multiplicou e isso transformou o manancial de água límpidas em um córrego
barrento, dando origem ao nome do povoado, Água Suja.
O autor ainda destaca que os habitantes de Água Suja, como de toda aquela região,
faziam uma peregrinação até a Ermida de Muquém GO, atual distrito de Niquelândia, em
devoção a Nossa Senhora da Abadia. Mas em função das dificuldades da viagem, o fundador
de Água Suja, em 1870, solicitou ao bispo de Goiás autorização para construção de uma
capela no povoado. O bispo concedeu autorização, pois, em 1871, Água Suja era habitada por
um universo considerável de fiéis. A construção da capela e a entronização da imagem de
Nossa Senhora da Abadia no vilarejo atraiu romeiros de várias localidades. Aos poucos a
romaria foi se institucionalizando e recebendo um número cada vez maior de peregrinos. De
acordo com Bonesso (2002, p. 7) “a produção do evento que surgiu das práticas e interesses
populares, passou a ser organizada pelos produtores intermediários, ou seja, agentes
institucionais, políticos e Igreja Oficial que se apropriam dos eventos de cultura popular,
transformando seus sentidos”. E este é inclusive um dos meios de continuidade da maior parte
das festas populares.
A principal festa que ocorre em Água Suja é em agosto, em devoção a Nossa Senhora
da Abadia, já que a santa é festejada em quinze de agosto. Esse dia é inclusive feriado na
região. Durante o mês de agosto, a cidade se torna palco da peregrinação popular, por onde
passam centenas e centenas de pessoas para pagar promessas e agradecer os milagres
14
Olímpia – SP também sedia um grande encontro de ternos de congada.
15
Em Romaria acontece basicamente um encontrão de ternos de outras cidades, pois na cidade não ternos de
congada. Os reis e rainhas que participam dessas festas são de outras cidades e esses são escolhidos anualmente,
durante a realização do encontro de ternos.
28
concedidos pela santa. Como a cidade de Romaria fica próxima às cidades mineiras de
Uberlândia, Uberaba e Ituiutaba e à cidade goiana de Catalão, muitas pessoas fazem o
percurso todo caminhando. Mas o fluxo maior é entre Uberlândia e Romaria, que distam
uma da outra cerca de cem quilômetros. É comum encontrar nesse período caravanas que
saem de vários locais do Brasil para Romaria. Muitas dessas caravanas param em Uberlândia
e de algumas pessoas seguem o percurso a pé. Em Ituiutaba, a família da presidente da
irmandade de São Benedito organiza um ônibus para levar os romeiros à Água Suja. É
importante destacar que alguns membros do Moçambique Camisa Rosa caminham de
Ituiutaba à Romaria, cerca de trezentos quilômetros, em agradecimento aos benefícios
alcançados por intermédio da santa. Em Uberlândia também situações similares. É o caso
da devoção de Seu Charqueada, membro do Moçambique Pena Branca e que todo o ano
peregrina de Uberlândia à Água Suja em louvor a Nossa Senhora da Abadia. Seu Charqueada
é filho de ex-escravos e com mais de cem anos de idade ainda é um dançador atuante da
congada de Uberlândia. Ele é chamado carinhosamente na cidade de Vovô Charqueada, além
de ser muito respeitado pelos congadeiros.
Para Fernandes (1988), a romaria católica faz uma distinção entre a morada do santo e
a dos fiéis. E é justamente essa distinção que o romeiro dramatiza quando sai de sua cidade,
deixa sua casa, seu trabalho e se desloca para um lugar sagrado. Muitas vezes esse
deslocamento é marcado pela idéia de sacrifício e penitência expressa não nas longas
caminhadas até a romaria, mas também nas bolhas nos pés e no inchaço das pernas. Por isso,
o romeiro se sente recompensado quando volta para casa. O autor afirma que “viajar, neste
sentido, torna-se uma transubstanciação às avessas, o profano que vira sagrado.” (p. 97). Os
romeiros cultuam seus santos de uma maneira bem peculiar e se organizam em grupos
autônomos, que geralmente não estão vinculados às paróquias locais.
Os romeiros, em momentos de crise, fazem promessas e criam vínculos cíclicos e
íntimos com seus santos. Na pesquisa conheci histórias de pessoas que peregrinam até
Romaria mais de vinte anos e dizem que continuarão com tal devoção enquanto
agüentarem. As romarias e peregrinações podem ser pensadas à luz da noção de sacrifício
contratual de Mauss. Nesse tipo de sacrifício, os deuses dão uma grande coisa: recuperação da
saúde de um ente querido, meios para pagamentos de dívidas, emprego, prosperidade etc.; em
troca de uma pequena: peregrinações, procissões e novenas, por exemplo.
Evidentemente que em Romaria a festa de agosto é a mais conhecida, mas acontecem
na cidade outros eventos que interessam diretamente aos fins desse estudo, que são os
encontros de folias de Reis e ternos de congado. Esses encontros possuem uma estrutura
29
diferente de uma festa de folia ou de congada que ocorre em outras cidades. Em Romaria tais
encontros são marcados pela idéia de espetáculo, mas é preciso salientar que, assim como na
festa de agosto, ocorre peregrinação, que os congadeiros e os foliões se deslocam de suas
cidades até Romaria para louvarem Nossa Senhora da Abadia. Com relação aos encontros de
ternos de congada em Romaria, segundo os congadeiros mais velhos, havia, até alguns anos
atrás
16
, uma espécie de festival. Nestes festivais acontecia a apresentação dos ternos e era
formada uma equipe para julgar os grupos, tal como ocorre nos desfiles de carnaval. Hoje não
disputa declarada e verbalizada entre os ternos, mas ainda ocorre uma disputa ou desafio
meio disfarçado, que se basicamente através das músicas. Quando um terno desafia outro
por meio de uma cantiga é esperado que o terno desafiado saiba responder corretamente a tal
cantiga. Caso o terno desafiado não saiba a resposta, este é muitas vezes chacoteado e alvo de
comentários desairosos pelos demais ternos. Tais desafios também aconteciam entre os
grupos de folia de Reis. Nas folias esses desafios chegaram ao ponto de alguns grupos
perderem seus instrumentos musicais por vacilarem na disputa.
Bonesso (2002), em seu estudo sobre as festas de Romaria, traz algumas informações
relevantes que nos ajudam a entender como têm início e se institucionalizam os encontros de
ternos de congada em Romaria:
O santuário de "Nossa Senhora da Abadia da Água Suja", representa para a região
do Triângulo Mineiro e Alto do Paranaíba, o núcleo mais importante do catolicismo
popular, centro de peregrinação da região 130 anos. Na década de 70, com as
mudanças nas diretrizes católicas, passa a acoplar outros eventos das culturas
populares, formando um calendário anual de festas. Folias de Reis, Congado,
Catupés, Moçambiques, Marujos, são algumas expressões de catolicismo popular
que fazem parte do ciclo de eventos da cidade. (pp. 3-4).
Os encontros de ternos de congado em Romaria geralmente acontecem em maio.
Nesses encontros, os grupos se apresentam num palco organizado na frente da igreja e no
final da tarde acontece a celebração da missa, com a coroação de Nossa Senhora da Abadia.
Não em Romaria coroação de reis, como ocorre nas outras cidades que acompanhei,
acontece basicamente um encontro de ternos de congada organizado nos moldes de um desfile
e nesse encontro há a participação de reis de outras cidades. Os grupos chegam à cidade e se
identificam numa mesa que organiza a ordem em que os ternos irão se apresentar.
Apresentam-se anualmente em Romaria cerca de cinqüenta, sessenta ternos. É um momento
em que os grupos se reúnem, brincam e trocam experiências.
16
Os relatos que obtive não precisaram o período exato em que ocorreram esses festivais.
30
Segundo Martins (1997), os reinados, onde ocorrem, pressupõem a execução de uma
série de atividades ritualísticas. Tais atividades ritualísticas e dramatizadas fazem alusão à
coroação de um rei congo. No Brasil, a prática de se coroar um rei e uma rainha nas festas de
congada é bastante disseminada. Geralmente os coroados são chamados de rei congo e rainha
conga. Hoje, em Uberlândia, esses cargos não são mais vitalícios, mas cidades, como
Catalão – GO, em que os cargos de rei e a rainha são transmitidos de pai/mãe para filho/filha.
Martins define um reinado da seguinte forma:
Os festejos do Reinado apresentam uma estrutura organizacional complexa,
disseminada em uma tessitura ritual que desafia e ilude qualquer interpretação
apressada de toda a sua simbologia e significância. Levantação de mastro, novenas,
cortejos solenes, coroação de reis e rainhas, cumprimento de promessas, folguedos,
leilões, cantos, danças, banquetes coletivos, são alguns elementos que compõem as
celebrações dramatizadas em toda Minas Gerais. (p. 44).
No passado, a coroação de reis congos permitia que os negros tivessem seus reis. A
coroação dos reis negros era um recurso utilizado pelo poder do Estado e da igreja católica
para controlar os negros, entretanto, os negros utilizam essa permissão e atribuíam aos reis
função de liderança e de intermediários do sagrado. Nesse sentido Volpe (1997, p. 30) afirma:
É um equívoco considerar que tais festividades eram apenas um instrumento de
manipulação e controle social. As festividades cíclicas eram carregadas de
simbolismo, expressando a relação de forças e a dinâmica da negociação entre o
forte e o fraco, as expectativas de mudanças e que aliviavam as tensões sociais.
A congada é muitas vezes concebida tanto pelos estudiosos quanto pelos próprios
congadeiros como uma manifestação cultural afro-brasileira, e isso implica recorrer
minimamente à questão da escravidão no Brasil. Não pretendo apresentar uma trajetória da
chegada dos negros escravos no Brasil, desejo apenas indicar como a questão da diáspora foi
pensada pelos intelectuais e como ela pode iluminar as interpretações da congada nos dias
atuais.
Segundo os pesquisadores desse assunto, os escravos que chegavam ao Brasil
recebiam denominações referentes a regiões africanas e portos de embarque, termos que não
correspondiam a etnias específicas. Havia uma tendência em identificar os escravos pelos
portos em que eles embarcavam na África. Assim, as etnias não se reorganizavam
internamente como continuidade (KUBIK, 1979). A reorganização dos escravos no Novo
Mundo foi em grande medida sustentada pela idéia de nação, uma categoria inventada pelo
colonizador e incorporada pelos escravos. Os agrupamentos em nações não significavam a
reprodução literal de padrões culturais vindos da África, mas a reelaboração de uma
africanidade nas Américas.
31
As procedências do embarque não indicavam de forma categórica identidades
africanas, por isso o embarque de um grupo num determinado porto não pode ser entendido
como homogeneizador das identidades e experiências na escravidão. Termos como Angola,
Congo e Costa, não se referem necessariamente a um grupo étnico, podendo ser produto da
afluência de vários grupos étnicos que embarcaram no mesmo lugar. O local de embarque dos
negros na África atuou na diáspora, sobretudo como um identificador do grupo em suas
experiências em terras estrangeiras, tanto na relação com os brancos, quanto na relação entre
os próprios negros. Nessa perspectiva, a questão da origem dos escravos fica secundária,
que no Brasil as identidades foram reelaboradas em função das experiências vividas na
situação de escravidão. É evidente que essa reelaboração ocorreu a partir da reorganização de
patrimônios culturais semelhantes que interagiam e construíam novas identidades em
território brasileiro. Pode-se dizer que os fatores que homogeneizaram as experiências negras
no Brasil foram o tráfico e a escravidão.
Com relação à suposta origem desses escravos, não se pode afirmar com certeza,
acredita-se que representantes dos grupos sudanês e bantu, oriundos principalmente das
regiões do Congo e Golfo da Guiné sejam preponderantes no Brasil. Segundo Anjos (2006), a
caracterização etnológica dos africanos e de seus descendentes no Brasil, ao longo dos séculos
da diáspora, aponta-nos uma dimensão ampla e de difícil reconstituição. Não é possível
determinar precisamente a origem dos negros que vieram para o Brasil. O que se pode fazer é
estabelecer conjecturas. Nesse sentido o autor afirma que:
Foram trazidos para constituir a formação do território brasileiro seres humanos do
tipo: Minas, Congos, Angolas, Anjicos, Luandas, Quetos, Hauças, Fulas, Ijexás,
Jalofos, Mandingas, Anagós, Fons, Ardas, dentre muitos outros e outras que
possibilitaram o que podemos denominar de afro-brasileiro, ou seja, brasileiros de
matriz africana ou população de ascendência africana. Entretanto, a referência
geográfica precisa não possui uma resposta satisfatória. (p. 65).
É um procedimento comum entre os pesquisadores dividir os escravos que chegaram
ao Brasil em dois grandes grupos lingüísticos: sudanês e bantu. Considera-se que nos estados
do Norte e Nordeste, os povos sudaneses foram preponderantes e os bantus se espalharam
pelo sudeste brasileiro seguindo o ciclo do ouro e do café. Nessa pesquisa, as categorias
bantu e sudanês são usadas menos para indicar origens e mais para se referir ao privilégio que
algumas práticas elaboradas na diáspora no Brasil receberam em detrimento de outras que
foram quase abolidas dos estudos acadêmicos. No início do século XX as práticas culturais
como capoeira, maracatu e congada, definidas pelos pesquisadores como expressões dos
povos bantus, foram praticamente desconsideradas nos discursos acadêmicos em favor das
32
práticas definidas como sudanesas, como, por exemplo, as Nações de candomblé Ketu e Jêje
da Bahia. Imperava um silêncio discursivo em torno das festas e práticas denominadas bantas
enquanto as definidas como sudanesas eram debatidas e pesquisadas por grandes
pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Assim, todas as práticas que se distanciavam da
estrutura dos candomblés eram consideradas inferiores. Acreditava-se inclusive que embora
os bantus fossem maioria, os sudaneses conseguiram preservar mais suas culturas,
identificadas nas casas tradicionais de candomblé da Bahia e do Maranhão.
Segundo Sansone (2002), a Bahia teve um lugar central na gênese da etnografia da
cultura afro-brasileira. Merecem destaque os trabalhos de Nina Rodrigues, Manuel Querino e
Manuel Bonfim. Inspirados na busca da africanidade no Novo Mundo, vários antropólogos e
sociólogos consideraram o Estado da Bahia como a área do Brasil que manteve maior
fidedignidade aos traços africanos. De fato, a Bahia é considerada historicamente central tanto
nos discursos dos intelectuais quanto nas construções populares sobre a África no Brasil. Tais
situações podem ser verificadas a partir da década de 70, momento em que um número
significativo de pesquisadores e sacerdotes do candomblé almejava conhecer o continente
africano para encontrar as raízes das práticas afro-brasileiras. Ao retornarem, os intelectuais e
sacerdotes ostentavam objetos e títulos africanos, fato que indiretamente atribuía legitimidade
aos seus discursos. Esse movimento foi denominado de reafricanização da cultura afro-
brasileira e é marcado pela recusa aos elementos do catolicismo.
Nesse período várias casas de candomblés, principalmente da Bahia, tiraram as
imagens de santos católicos dos terreiros e as substituíram por imagens de orixás e também
passaram a utilizar nas cerimônias línguas africanas. Tais iniciativas o bem ilustradas no
manifesto das iyalorixas baianas, Menininha do Gantois, Stella de Oxossi, Tete de Iansã, Olga
de Alaketo e Nicinha do Bogum, assinado em julho de 1983, na Conferência Mundial da
Tradição e Cultura dos Orixás
17
(CONTOC). Nesse documento (anexo B), as iyalorixas das
casas consideradas mais tradicionais da Bahia assumem o candomblé como uma religião
independente da fé católica e lutam pela dessincretização e descatolização do candomblé.
Segundo Prandi (1991), o movimento de africanização do candomblé procura
desfazer o sincretismo com o catolicismo e recuperar elementos rituais perdidos na diáspora,
além de reaprender a língua yorubá. Vale ressaltar que o yorubá utilizado nos candomblés é
uma língua ritual expressa em algumas frases e termos.
17
A CONTOC foi um movimento organizado por lideranças religiosas da África, dos Estados Unidos, do Caribe
e da América do Sul, que objetivava, entre outras coisas, a unificação da tradição dos Orixás. O primeiro
encontro ocorreu em Ilé–Ifé, na Nigéria, e o segundo no Brasil, ocasião em que algumas iyalorixas assinaram
um manifesto de dessincretização do candomblé.
33
Encantados pela suposta pureza africana dos terreiros de candomblé e pelo mito da
originalidade, os pesquisadores muitas vezes interpretavam as recriações e as reelaborações
expressas, por exemplo, nas congadas e na umbanda, como perda de raízes tradicionais.
Havia, assim, uma legitimação acadêmica dos candomblés em prejuízo das demais práticas
afro-brasileiras. Para os pais e mães de santo, ter um pesquisador em suas casas era sinônimo
de prestígio e axé
18
e isso contribuía para atrair adeptos e clientes aos terreiros.
As categorias bantu e sudanês são utilizadas principalmente para demarcar diferenças
e construir fronteiras. Logicamente, não desconsidero o processo histórico de construção da
congada e das demais práticas afro-brasileiras, nem mesmo quero cair na armadilha de
compreendê-las atemporalmente. Entretanto, hoje me sinto instigada a interpretar a congada
aludindo às negociações e aos conflitos que reinventaram a África no Brasil. Nesta
perspectiva, a pesquisa pretende analisar as reelaborações contemporâneas da festa e refletir
sobre as diferentes formas com que os grupos constroem suas identidades e se apropriam do
passado no presente. Na congada ocorre uma espécie de recriação da África, e nessa recriação
os congadeiros elaboram suas identidades. Dizer que a congada é uma festa afro-brasileira é
ao mesmo tempo afirmar que os seus membros vivenciam memórias comuns da escravidão e
reafirmam seu pertencimento identitário a territórios imaginados.
A vertente intelectual brasileira do final do século XIX e início do século XX tentava
transpor para o Brasil as idéias positivistas da Europa e com esse ideário identificavam no
emaranhado de traços da cultura afro-brasileira os aspectos africanos mais puros. Esses
aspectos eram concebidos pelos pesquisadores como as contribuições mais sofisticadas das
culturas africanas à nação brasileira. Aos ditos elementos puros e autênticos foram
contrapostos os traços denominados impuros e inferiores das culturas africanas consideradas
menos nobres e complexas. Os pesquisadores desse período acreditavam que na Bahia e em
outras regiões que desenvolveram formas de candomblé mais puras, o chamado modelo Jêje-
Nagô, isso ocorria devido à predominância de negros escravos provenientes da região
sudanesa. Esses escravos eram considerados mais sofisticados e por isso conseguiam manter
suas crenças. nas regiões que foram elaboradas formas culturais ditas mais sincréticas ou
híbridas, como a congada e a umbanda, por exemplo, os estudiosos justificavam pelo fato de
18
Segundo Prandi (1991) a palavra axé no candomblé tem muitos significados. Axé é força vital, energia,
princípio da vida, força sagrada dos orixás. Axé é o nome que se dá às partes dos animais que contêm essas
forças da natureza viva, que também estão nas folhas, sementes e nos frutos sagrados. Axé é bênção,
cumprimento, votos de boa sorte e sinônimo de amém. Axé é poder. Axé ainda pode significar muitas outras
coisas.
34
nesses espaços haver um grande número de negros procedentes da África bantu. Os bantus
eram, portanto, apresentados como despossuídos de aptidão quando confrontados aos
sudaneses. De acordo com Sansone (2002), a ênfase nos yorubás ou sudaneses e a
minimização dos bantus era parte de um ávido esforço de fornecer uma imagem positiva do
Brasil negro, e particularmente da afro-Bahia, para o resto do mundo.
Nina Rodrigues (1932), ao estudar as manifestações culturais afro-brasileiras, via com
ressalvas as mesclas produzidas pela cultura denominada banta na diáspora e interpretava a
maior plasticidade cultural do povo bantu no Brasil como sinônimo da incapacidade do grupo
de preservar seu patrimônio e sua identidade. Se as palavras utilizadas para organizar a
interpretação desse período eram preservação e autenticidade, logo as práticas que
misturavam influências de várias culturas, como é o caso da congada, era um indicativo de
inferioridade e, por isso, despertava pouco interesse nos pesquisadores. Para Nina Rodrigues,
a congada era um prática cultural elaborada por um povo inferior, que facilmente se misturava
e se fundia com outras culturas. É importante destacar que o termo sincretismo não
desempenha um papel relevante no jargão de Rodrigues, que opta pelos termos mesclas e
fusões. Gilberto Freyre (1933), ainda que se oponha às interpretações de Nina Rodrigues,
também não usou o termo sincretismo, pois preferiu utilizar o termo hibridismo. A noção de
sincretismo será considerada uma importante categoria explicativa da sociedade brasileira nas
obras de Arthur Ramos (1934) e seus sucessores, que difundem no Brasil as idéias da escola
culturalista.
Com relação ao termo sincretismo, Ferreti (2001), um dos autores que utiliza essa
noção na interpretação das religiões afro-brasileiras, apresenta um panorama dos estudos
sobre o sincretismo religioso no Brasil ao longo do século XX, a partir da bibliografia sobre
religiões afro-brasileiras. Nesse trabalho, o autor faz um trajeto que se inicia com as posições
de Nina Rodrigues e Arthur Ramos e chega às interpretações mais contemporâneas sobre o
assunto. Para este autor, a discussão sobre o termo sincretismo é complexa e está longe de um
consenso. Ferreti faz a seguinte argumentação:
Durante um século, através de correntes teóricas diferentes, muita coisa foi escrita
sobre o sincretismo entre nós. Alguns acham que se deve evitar falar em
sincretismo. Outros falam em dessincretização, ou africanização e reafricanização,
em relação às religiões de origens africanas no Brasil. Historiadores preocupados
com as mentalidades e a vida cotidiana discutem esse problema, que antes era
considerado específico da Antropologia. A trajetória desse conceito permite
visualizar disputas acadêmicas e políticas, que acompanham análises de nossa
realidade. Sincretismo, cultura, identidade, etnicidade e outras categorias sociais
complexas necessitam continuar a serem pensados e repensados, com a colaboração
de diferentes ciências e correntes de pensamento. É importante lembrar que a
35
própria definição dessas diversas categorias, como do fenômeno do sincretismo,
continua constituindo um desafio para os especialistas. (FERRETI, 2001, p. 9)
Como Ferreti bem disse, o fenômeno do dito sincretismo ainda é um desafio para as
ciências sociais. O termo sincretismo historicamente tendeu a ressaltar os aspectos
harmônicos das interações entre universos simbólicos diferentes e deixou em segundo plano
as relações de conflito. Durante boa parte do século XX, o termo sincretismo esteve
vinculado, por exemplo, às noções de aculturação, aceitação e reação (RAMOS, 1942), ou à
idéia de convivência cultural expressa na perspectiva do pluralismo cultural (BASTIDE,
1961).
As conotações do termo sincretismo são contemporaneamente debatidas sob uma outra
perspectiva, que rediscute não o conceito de cultura como também as relações construídas
no período colonial e pós-colonial. Tais posturas são desenvolvidas, por exemplo, nas obras
de Canclini (1997) e Hall (2000) etc. Esses autores usam o termo hibridismo como alternativa
ao conceito sincretismo. Entretanto, é necessário fazer algumas objeções com relação ao uso
do termo hibridismo, que tal como a noção de sincretismo suscita vários questionamentos. No
século XIX, o termo híbrido esteve vinculado a discursos racistas e sexistas, mas no século
XX, o conceito é ressignificado e passa a ser utilizado para descrever fenômenos culturais
relacionados aos efeitos da globalização. Canclini é um dos autores contemporâneos que se
destaca pela utilização da categoria hibridismo. Entretanto, deve-se ressaltar que Gilberto
Freyre usou a noção de hibridismo, em 1933, para compreender o processo de formação da
sociedade brasileira, e Canclini em 1997, mais de sessenta anos depois, utiliza o mesmo termo
para explicar as diversas mesclas interculturais, não apenas as raciais e as religiosas, como
também outras formas culturais de hibridação. Ao definir a congada como um ritual híbrido,
procuro interpretá-la em oposição ao mito da pureza, mito que geralmente desconsidera a
dinâmica das culturas. As práticas híbridas operam com a gica da criatividade, do
movimento e da instabilidade. A categoria híbrido vai de encontro à idéia de tradição
autogerada e estática e permite o movimento e o entrelaçamento de símbolos.
Uma outra vertente importante de estudos sobre a congada foi expressa pelos registros
dos folcloristas. A congada foi definida por Mário de Andrade (1959), como uma dança
dramática, caracterizada pela realização de bailados coletivos que obedecem a um tema
característico tradicional, e que possuem uma obra musical formada pela apresentação de
coreografia seqüencialmente ordenada. Andrade privilegiou em suas pesquisas as regiões
Norte e Nordeste do Brasil, pois para ele nessas regiões as festas populares tiveram maior
36
expressividade. Para o autor, os Congos em sua manifestação mais primitiva e generalizada,
são na verdade um simples cortejo real dançado.
Apesar das críticas que hoje os folcloristas recebem, seus trabalhos foram pioneiros e
fundamentais às pesquisas posteriores das festas denominadas populares. Reconheço o mérito
dos folcloristas na descrição das festas populares brasileiras, mas faço algumas objeções. Uma
das críticas contemporâneas mais contundente aos folcloristas refere-se ao fato de essas
descrições não indicarem quais as funções das tradições na atualidade. Os folcloristas não
contemplaram em suas descrições as análises das relações de poder que constroem as práticas
e lhes dão significados. Canclini (1997) indica que uma inclinação em pensar a cultura
numa lógica maniqueísta: moderno versus tradicional; culto versus popular; hegemônico
versus subalterno; entretanto, na concepção do autor, é preciso verificar como se reestruturam
essas oposições nas transformações das festas.
Ao fazer uma reflexão sobre as festas ditas populares, Hall (2003) propõe desconstruir
a idéia de popular vinculado às questões de tradição, classe, ou como um estrato autêntico e
autônomo e sugere compreendê-las sob uma nova perspectiva. Para o autor, geralmente
quando se fala em cultura popular vem à tona o termo “tradição”. Entretanto, esse termo é
traiçoeiro, porque embora seja um elemento essencial da cultura ele não está diretamente
relacionado com a persistência e a manutenção de velhas formas
19
. Na concepção de Hall, o
termo tradição está muito mais relacionado às formas de associação e articulação de
elementos. Ao se estudar a cultura popular por meio da análise da tradição pela tradição,
desconsiderando, assim, a historicidade dessas festas corre-se o risco de acreditar que os
significados e sentidos das festas populares não se alteram. É preciso ressaltar, porém, que os
elementos da tradição podem ser reorganizados e adquirirem ao longo da história diferentes
significados. Com relação ao estudo das práticas denominadas populares e tradicionais Hall
diz que:
(...) o essencial em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a
cultura popular em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e
antagonismo) com a cultura dominante. (...) nossa preocupação (...) não é com a
questão da autenticidade ou da integridade orgânica da cultura popular. (...) O
significado de uma forma cultural e seu lugar ou posição no campo cultural não está
inscrito no interior de sua forma. Nem se pode garantir para sempre sua posição.
(HALL, 2003, pp. 257-258)
A noção de popular utilizada nessa pesquisa se aproxima das indicadas anteriormente
e tende a considerar as relações antagônicas e as tensões travadas entre a dita cultura popular
19
Com relação à discussão sobre tradição ver também Hobsbawn (1987).
37
e a cultura dominante. A congada entendida como festa popular está inscrita numa arena de
poder e é o lugar que ela ocupa nessa arena que lhe confere sentido. Nessa arena, a congada
ocupa um lugar subalterno em relação às instituições culturais e ideológicas hegemônicas.
De acordo com Brandão (1977), congada é um complexo sistema de trocas de ações e
de serviço que envolve tipos de participantes e modos de participação, tanto nas esferas
amplas de relações entre a sociedade promotora e a festa do santo, quanto nas esferas restritas
das trocas entre "irmãos" dançantes de congadas e Moçambiques, os encarregados da
irmandade do Rosário e outros agentes responsáveis pela festa. Com Brandão, um dos
principais especialistas do tema e que realizou vários trabalhos na região Centro-Oeste, a
congada deixou de ser concebida isoladamente e passou a ser entendida de uma forma mais
contextualizada.
Os estudos de Brandão indicam que no Brasil desenvolveram-se diferentes formas de
congada. Alguns dos rituais estruturaram-se em torno da apresentação de embaixadas e de
danças dramáticas dos rituais, representando grupos rivais em combate. Uma segunda
modalidade diz respeito aos desfiles pelos arraiais, apenas com cortejo e sem danças. Uma
outra variação é a coroação do rei com grupos de dançantes, a qual se acrescenta uma outra
versão, a inclusão de reis nas embaixadas dramáticas. Esses modelos dão idéia das variações
de um ritual com uma mesma matriz. No caso da festa de Uberlândia composição de
reinado, mas não as embaixadas dramáticas, como ocorre nas festas do Estado de Goiás, e
a música é um componente constituinte da congada, não sendo possível pensá-la sem o som
dos tambores tocados pelas ruas da cidade. Mas a música foi abordada em minha pesquisa
numa perspectiva sócio-antropológica e no interior das múltiplas expressões culturais que
integram o processo ritual: dança cortejo, procissões, mitos, visitas etc. (SILVA, R. N., 2003).
Das variações de rituais da congada identificados por Brandão, verifica-se que em Uberlândia
ocorre uma mistura entre o segundo e o terceiro modelo de congada. As combinações desses
modelos são expressões das atualizações contemporâneas da congada.
Em Uberlândia, os membros da congada concebem a festa como uma instância de
resistência à dominação social e racial vivenciadas pelos negros na cidade. A congada é,
assim, espaço primordial de construção de identidades. Essas observações são ratificadas pelo
depoimento de Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém e principal interlocutor
dessa pesquisa, num depoimento publicado em 2005, ano em que ocorreu no Brasil a
Marchas Zumbi + 10. Antes de citar o depoimento do capitão, devo ressaltar que em 2005 o
movimento negro passou por uma disputa interna que teve como ponto central a suposta
independência em relação à administração central comandada pelo PT. Essa crise de fundo
38
partidário vivida pelo movimento negro nesse período ocorreu no processo de construção da
Marcha Zumbi + 10.
.
Em função dessas relações conflituosas, houve duas Marchas no mês de
novembro, uma no dia 16 e a outra no dia 22. De acordo com a estimativa da polícia de
Brasília, a primeira Marcha contou com cerca de cinco mil participantes e a segunda teve a
participação de mais ou menos dezessete mil pessoas. Somando o número de manifestantes
das duas Marchas, cerca de vinte duas mil pessoas, obtém-se um número inferior ao da
Marcha de 1995, que contou com mais ou menos trinta mil pessoas. As duas Marchas tiveram
a participação de ternos de congada, e ao optarem pelos dias dezesseis ou vinte dois, os
congadeiros também se posicionavam ideologicamente no âmbito do movimento negro.
Ramon faz as seguintes observações sobre a congada em Uberlândia:
Agradeço a Fundação Cultural Palmares por me dar à chance de poder, rapidamente,
colocar para todo território nacional a importância ideológica e cultural da maior
resistência cultuada, principalmente na região sudeste no Brasil, “A congada”. (...)
Todo ano trava-se uma luta difícil que lembra nosso herói maior “Zumbi” dos
Palmares, que é a realização da festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito, que é realizada em pleno centro da cidade, o desrespeito à urbanização e a
falta de reconhecimento cultural e ideológico é o nosso inimigo, mas como “Zumbi”
nunca nos entregaremos. (Revista Palmares, 2005, p. 87).
A concepção de que a congada é uma festa de resistência cultural
20
é compartilhada
por aqueles que, pela via dos movimentos sociais ou pelo caminho devocional, vêem na
congada um campo de batalha. As observações do capitão nos remetem a uma luta simbólica
travada entre os louvores a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e os poderes instituídos
da cidade. Ramon entende que a congada tem uma importância ideológica e cultural em todo
território nacional, principalmente no sudeste brasileiro. Ramon Rodrigues transita em vários
setores da sociedade: movimento negro, bloco de carnaval, partido político, sindicato, igreja
católica e terreiros de umbanda. Esse pertencimento múltiplo do capitão atua diretamente em
sua concepção de congada. Ramon é capitão do Moçambique de Belém, membro do Bloco
Axé
21
, militante do Movimento Negro de Uberlândia, sindicalista, diretor da irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e ainda participa de celebrações em casas de santo da cidade.
São várias as experiências identitárias que se interpenetram e contribuem na
construção de uma visão bem particular da festa de Nossa Senhora do Rosário. Tal visão não
20
A expressão resistência cultural foi recorrente nos depoimentos congadeiros obtidos no decurso dessa pesquisa
e é, por isso, que utilizo essa noção em vários momentos do trabalho. Gostaria de ressaltar que não é a proposta
dessa pesquisa interpretar a congada por meio de oposições binárias como, por exemplo,
resistência/apropriação, tradicional/moderno, pois trata-se de uma festa complexa marcada por constantes fluxos
e trânsitos. É importante destacar que muitos dos meus interlocutores são militantes de movimentos negros e
talvez esse seja um dos motivos que os levem a conceber a congada como uma expressão de resistência cultural
.
21
O Bloco Axé é um grupo carnavalesco que possui sua sede no quartel do Moçambique de Belém. um
número significativo de participantes em comum no Moçambique de Belém e no Bloco Axé.
39
considera apenas a dimensão religiosa da festa, mas traz à tona embates e relações de
conflitos evidenciados na realização da congada. Quando o capitão diz que a festa é realizada
em pleno centro da cidade e que mesmo assim não possui reconhecimento cultural e
ideológico, ele na verdade está questionando relações de poder que destinam um lugar
subalterno à congada em Uberlândia. Para Ramon, a congada é ao mesmo tempo fé,
resistência, disputa de poder e espaço de formação de identidade. Mas para o capitão é preciso
aprender a negociar e assim saber o momento certo para resistir e o momento em que se deve
consentir.
Entre os dias 20 e 22 de setembro de 2002 acompanhei uma situação que indica
possibilidades de compreender a congada em sua dimensão de trânsito identitário. Ocorreu
em Uberlândia o IV Congresso das Tradições Afro-brasileiras
22
. Diferentemente dos demais
anos em que eu havia participado, naquele ano o encerramento do congresso, que geralmente
ocorre com uma festa para yemanjá, teve a participação de ternos de congada e apresentação
de capoeira.
Notei que algumas pessoas que participaram do congresso, na categoria de filhos de
santo, no momento da apresentação dos ternos tornavam-se músicos, dançadores e capitães.
Misturou-se o povo de santo e os congadeiros em torno de um objetivo: o louvor à yemanjá.
Eu diria que tive em imagem tudo o que a teoria predizia: as fortes relações entre a
umbanda e o candomblé e a festa da congada. Eram os mesmos atores sociais, vivendo dois
papéis simultâneos – de congadeiros e de filhos de santo. O que tornou aquele momento único
foi a percepção de que uma série de papéis que eram vividos em momentos supostamente
separados foi vivenciada naquela ocasião simultaneamente. Observei que ocorria uma espécie
de justaposição identitária, em que se congregavam várias experiências de forma contígua.
Gabarra (2003, p. 68) ao descrever essa mesma festa para yemanjá, diz que:
Existe uma transferência de personagens de uma cultura para a outra, em um
momento o indivíduo atua como folião, em outro ele pode estar atuando como
médium no terreiro. Essa mobilidade cultural atinge também os símbolos de cada
uma dessas culturas em separado. Um objeto importante no terreiro pode aparecer
no carnaval com outro significado, ou então no Congado, talvez com o mesmo
significado.
A autora indica que não só as pessoas como também os símbolos circulam nas
22
Esse congresso possui grande visibilidade na cidade de Uberlândia e discute temas pertinentes às
religiosidades afro-brasileiras. Tal congresso conta com a participação tanto de adeptos de religiões afro-
brasileiras quanto de pesquisadores que discutem a temática. Em 2005, por exemplo, o congresso teve entre
outros como palestrantes Reginaldo Prandi.
40
manifestações afro-brasileiras. É possível encontrar, por exemplo, bastões sendo utilizados na
congada e nos terreiros, os mesmos tambores sendo tocados na congada, no terreiro, no
carnaval, e as guias (colares que identificam um orixá), usadas nos terreiros, podem ser
utilizadas durante a congada. Segundo Gabarra “a história que essas pessoas constroem parece
num primeiro momento desconexa”, mas, “quando verificadas de perto descobre-se que são
as mesmas pessoas que exercem papéis diferenciados em cada uma dessas histórias”. (p. 79)
Nesse sentido, é possível que uma mesma pessoa seja simultaneamente capitão de
congada, abiã
23
no terreiro, carnavalesco de escola de samba e devoto de São Benedito e
Nossa Senhora do Rosário. Trata-se de várias festas populares intercambiáveis, mas
constituídas por hierarquias de posições, tradições e histórias diferentes. Uma pessoa pode
ocupar um alto posto na congada, como o de capitão, e um lugar de principiante como o de
abiã no terreiro, ainda situações em que os cargos de capitão e pai-de-santo coincidem na
mesma pessoa. Em Araguari – MG e Goiânia – GO há capitães de ternos de Moçambique que
também são pais de santo. São os casos dos capitães João Batista e Seu Lázaro,
respectivamente. Conheci o capitão Lázaro em Uberlândia, visitando o terno Moçambique
Pena Branca e três anos depois o reencontrei em Goiânia, momento em que descobri que Seu
Lázaro possuía muitos parentes em Uberlândia e que inclusive era primo do capitão Ramon
Rodrigues, do Moçambique de Belém. Essas manifestações culturais se relacionam e
interagem, entretanto, possuem relativa autonomia uma da outra. É importante, nesse aspecto,
compreender como os congadeiros transitam nessas manifestações.
Na congada, além dos trânsitos que ocorrem entre pessoas e objetos, as cantigas
também transitam e recebem os contornos das situações vividas pelo grupo. As melodias das
músicas que o Moçambique de Belém cantou no encerramento do congresso das Tradições
Afro-brasileiras eu havia escutado em outras ocasiões. No entanto, as letras das cantigas
foram adaptadas ao evento. Cantava-se para yemanjá e para o povo-de-santo:
Solo: Oh, quando eu vim da minha terra.
Coro: Aruê
Solo: Com o rosário de Maria
Coro: Aruê
Solo: Atravessei as matas de Angola
Coro: Aruê
Solo: Para festejar mãe yemanjá
Coro: Aruê
(Cantiga do Moçambique de Belém)
23
Abiã é o posto inicial na hierarquia do candomblé. Nessa fase ainda não foram concluídas todas as etapas da
iniciação.
41
É importante notar que essa música fala de um passado longínquo, fortemente
marcado pela idéia de um território imaginado de onde supostamente os congadeiros um dia
saíram. A África é concebida entre os congadeiros como uma referência simbólica em torno
da qual se constroem identidades. É esse sentimento de pertença a um suposto mundo
africano que permite aos congadeiros reverenciarem, na mesma cantiga, yemanjá, orixá do
panteão afro-brasileiro, e Nossa Senhora do Rosário, aquela que os protegeu das adversidades
do período da escravidão.
Se essa pesquisa fosse realizada em outro grupo, com certeza minhas interpretações
também seriam outras. Acredito que esse pertencimento múltiplo do capitão Ramon e de
muitos membros do terno Moçambique de Belém foi essencial para ampliar a noção de
congada empregada nesse estudo.
1. 1 As memórias da escravidão e o anúncio da libertação
Através da congada, os negros simultaneamente dramatizam a escravidão e anunciam
sua libertação. A escravidão é encenada, por exemplo, por meio das músicas e da coroação de
um rei e uma rainha conga. A coroação dos reis é atualmente em Uberlândia um fato mais
simbólico e performático, se comparado com o papel que os reis ocuparam no período
colonial junto à irmandade do Rosário. A libertação é, por sua vez, anunciada quando
mulheres e homens utilizam, mesmo que temporariamente, um espaço que lhes é negado
historicamente, o centro comercial da cidade. No caso de Uberlândia, afirma Silva, J. C
(1997), que até os anos 60 existia na cidade espaços urbanos segregados, que protegiam a
elite da mistura racial. Essa segregação é sutil, não é amparada pela lei e se expressa através
da codificação simbólica dos espaços. Muitas vezes os congadeiros significam os espaços
através da linguagem musical. Transformam um espaço físico, como, por exemplo, as ruas, as
igrejas e o mato, em arenas de disputa de poder e de construção de identidades.
A seguir demonstro, por meio da linguagem musical (um recurso muito utilizado pelos
membros da congada de Uberlândia), como a travessia, a escravidão e a libertação são
expressas e cantadas pelos congadeiros:
Com relação à travessia
Nos trechos de músicas apresentados a seguir é possível destacar a idéia de minha
terra vinculada à Angola e também indicar a importância que a proteção do rosário de Maria
teve na viagem forçada da África para o Brasil. Transcrevo duas versões da mesma cantiga,
42
com o intuito de demonstrar que embora essa música possa ser organizada de diferentes
formas, ela mantém alguns princípios básicos: a idéia de uma terra de origem, a recordação de
uma viagem e a proteção divina do rosário, seja ela oferecida por Nossa Senhora ou por São
Benedito.
(Cantigas do Moçambique de Belém)
Algumas cantigas do terno Moçambique de Belém relatam o itinerário dos negros,
iniciado em Angola e encerrado em terras brasileiras, e esse trajeto é constantemente
dramatizado e recordado nas músicas. A viagem é expressa geralmente através de aventuras
na água e no mato, tais fatos conotam situações de perigo e risco e, por isso, é tão forte a
necessidade de uma proteção sobrenatural. Ao se depararem com as mazelas da vinda, os
negros africanos, transportados como peças que seriam vendidas num mercado, apelam para a
proteção divina.
Referência à escravidão
A música do Moçambique Camisa Rosa, transcrita a seguir, expressa bem o discurso
congadeiro no que tange à escravidão. É uma cantiga de lamento e que traz a tona os
sofrimentos vividos pelos negros no Brasil no período da escravidão. A cantiga também fala
do sonho de liberdade e da proteção que Nossa Senhora oferecia aos negros na situação de
calvário. Essa música foi elaborada por um membro do Camisa Rosa para o Moçambique
Camisa Rosa Mirim
24
e pode ser lida, inclusive, como uma forma de aprendizagem e leitura
do passado vivido pelos negros no Brasil.
Hé, quando eu lembro do cativeiro,
Aruê
Onde só trabalhava e ainda apanhava,
Aruê
Vivia em busca de um sonho,
Arué
O sonho da liberdade
24
O terno Camisa Rosa Mirim é composto por filhos dos membros do Camisa Rosa de Ituiutaba MG. O Camisa Rosa
Mirim é uma extensão do Camisa Rosa de adultos e expressa o encontro de duas gerações de moçambiqueiros
Solo: Oh, quando eu vim da minha terra.
Coro: Aruê
Solo: Com o rosário de Maria
Coro: Aruê
Solo: Atravessei as matas de Angola
Coro: Aruê
Solo: Para visitar, vossa morada.
Coro: Aruê
Solo: Eh, quando eu vim da minha terra.
Coro: Aruê
Solo: Até hoje ainda me lembro
Coro: Aruê.
Solo: São Benedito me deu um rosário
Coro: Aruê
Solo: Para poder vim festejar
Coro: Aruê
43
Aruê
Hé, que cena triste esta que te conto.
A do negro apanhando amarrado no tronco
Olelê, ê, ê gemia e chorava.
O negro sofrendo seu próprio calvário
Chamava a Deus e a mamãe do Rosário
Olelê, ê ê a mamãe do Rosário.
Por isso que conto o que aconteceu
Para ninguém esquecer o que o negro sofreu
Olelê, ê, ê o que o negro sofreu.
(Francis Luce, Moçambique Camisa Rosa).
A música faz um relato da escravidão colonial na concepção congadeira e evidencia
situações de sofrimento e calvário explícitas em palavras como cativeiro
25
e tronco. O
cativeiro emerge nesse contexto como uma categoria que fala da história passada, o período
da escravidão. Na congada é comum ouvir histórias e cantigas do tempo do cativeiro,
ilustrada, por exemplo, nos versos:
Vovó não quer casca de coco no terreiro (bis)
Que faz lembrar do tempo do cativeiro (bis)
(Cantiga cantada em vários ternos)
Solo: Eh rasguei a camisa, furou paletó, cacunda de negro é mulambo só.
Coro: Olê, lê, lê é mulambo só.
(Cantiga do Moçambique de Belém)
Essas narrativas e cantigas são construídas a partir de lembranças e histórias contadas
pelos mais antigos. Em conversas com Seu Charqueada tive a oportunidade de ouvir algumas
dessas histórias, em que ele relata suas vivências de sofrimento e maus tratos nas fazendas de
Uberlândia durante a escravidão, que foi extinta tardiamente no interior do país. Essas
narrativas são transmitidas oralmente e difundidas entre os congadeiros nas cantigas e nos
causos contados pelos mais experientes e, dessa forma, constrói-se uma memória coletiva
sobre os significados da escravidão. E esta é constantemente contada, recontada e atualizada.
A partir da construção genérica do tempo do cativeiro, os congadeiros refletem inclusive
sobre sua situação atual. A idéia de cativeiro pode ser utilizada para se referir à condição
subalterna que os negros vivem contemporaneamente.
Costa (2006) interpreta as crenças e práticas da congada de Salitre, MG, a partir da
noção de cativeiro. A autora destaca que a experiência do cativeiro é o que une os praticantes
25
Sobre a recorrência da noção de cativeiro entre as classes populares no Brasil ver, entre outros, Velho (1987).
44
da congada. Na concepção de Costa são as “circunstâncias do presente ou do passado,
marcadas pela exploração, discriminação, maus tratos, falta de liberdade e de autonomia
produtiva, que estabelecem certos pressupostos de inferioridade aos escravizados.” (p. 16).
Possibilidades de libertação
É válido indicar que simultaneamente ao lamento da vinda da África para o Brasil
ocorre o anúncio de libertação e a reivindicação de respeito ao passado histórico dos
congadeiros na cidade.
Querer não é poder
Querer não é poder
Respeite o meu passado
Pois o meu Congado
Não pode mexer.
(Cantiga do Moçambique de Belém)
Essa música foi elaborada no ano de 2003, período em que a irmandade de Nossa
Senhora do Rosário de Uberlândia impôs a mudança da realização da festa de novembro para
outubro. A mudança da data da congada foi motivada, entre outras coisas, pelo fato de a igreja
católica ter dedicado e incentivado a oração do rosário no período de outubro de 2002 a
outubro de 2003. Como a congada acontecia na cidade no mês de novembro, a irmandade
sugeriu que a festa fosse antecipada e culminasse com o encerramento do ano consagrado pela
igreja católica à reza do rosário de Maria. Em outras palavras, a mudança da festa foi proposta
tendo em vista uma adequação ao calendário católico. É preciso mencionar que as opiniões
dos congadeiros se dividiram, existia um grupo favorável à mudança e um que era
radicalmente contra e, para complicar ainda mais essa situação, ocorreram disputas políticas
partidárias entre os congadeiros. A festa de 2003 foi extremamente tensa, marcada por rixas,
desentendimentos, abaixo-assinados e faixas de protestos.
Através da execução da música Querer não é poder na porta da igreja do Rosário,
perante o bispo, padres, a cúpula da irmandade e representantes da prefeitura, o terno
Moçambique de Belém descreve sua insatisfação com a imposição da irmandade e utiliza a
música como um instrumento político e de contestação. A música é concebida pelo capitão
Ramon como expressão de resistência do negro em Uberlândia contra a discriminação. Essa
música também é um pedido de respeito à festa da congada na cidade. Todas as vezes em que
o terno Moçambique de Belém quer protestar contra alguma situação de injustiça, eles
cantam em alto e bom som essa cantiga e assim demonstram sua insatisfação. Costa (2006)
45
ressalta que a congada pode ser mais que uma oposição à dominação exercida historicamente
sobre os congadeiros, ela é criativa e pode ser transformadora nos momentos rituais em que se
realiza. O protesto do Moçambique de Belém é um ilustrativo dessa possibilidade
transformadora da congada.
As músicas entoadas na congada possuem a estrutura solo/coro encontrada também
em outras práticas denominadas afro-brasileiras, tais como a capoeira e o candomblé. É
interessante ressaltar que Martins (1997) e Brandão (1985), em contextos diferentes de
pesquisa, Contagem - MG e Catalão - GO, respectivamente, também encontram a
predominância da estrutura solo/coro em suas pesquisas sobre a congada. A estrutura
solo/coro pode se organizar de diversas maneiras: algumas vezes o coro responde tal qual o
solo, outras vezes, o coro responde através de refrões (olê, lê, aruê...), ou ainda, o coro
responde partes do solo. Interpreto as expressões Are Olê , muito usadas nos ternos de
Moçambique, como uma demonstração de dor Ah quando eu vim da minha terra. Aruê
!. E
afirmação Mamãe do Rosário mandou te falar, irmandade não pode parar. Olê, lê, lê, não
pode parar. Esses refrões são usados em várias cantigas do Moçambique de Belém e também
em outras cidades. Pode ser que em outros contextos as expressões Arué e Olê, lê, conotem
outras coisas.
A congada é composta por diversos momentos que se complementam. Nestes rios
momentos, marcados por tempos e espaços diferentes, canta-se de acordo com a situação
vivida, seja uma visita, um agradecimento, a chuva, apresentações públicas ou
acontecimentos inusitados. Por exemplo, o Moçambique Branco de Araguari caminhando
pelas ruas da cidade e debaixo de uma forte chuva, cantou o seguinte verso:
(
Todos): Embarca morena embarca, molha o pé, mas não molha a meia.
Viemos de muito longe fazer barulho nesta terra alheia.
O Moçambique Camisa Rosa de Ituiutaba na celebração fúnebre de um de seus
membros cantou com muitas lágrimas durante o cortejo até o cemitério a seguinte cantiga:
Solo: Carreio, carreiro, assim chamava meu boi, meu boi chamava saudade oh meu
Deus, de um tempo que já se foi.
Coro: Carreio, carreiro, assim chamava meu boi, meu boi chamava saudade oh
meu Deus, de um tempo que já se foi
.
Foi justamente o exame destes contextos diferenciados que me possibilitou
compreender a música como fator inerente e indispensável para realização do ritual. “As
letras das cantigas, que são cantadas na forma de solo, definem, seqüênciam a festa, oram,
46
saúdam, louvam, homenageiam os componentes do congado ou pessoas queridas” (ZAMITH,
1995, p. 219). A música é uma linguagem na congada, é um meio de comunicação
privilegiado entre os congadeiros. A música evidencia alegria, adoração, dor e magia. É a
cantiga que inicia e encerra as cerimônias congadeiras.
O contexto em que uma música está sendo executada determina o ritmo e a
predominância de algum instrumento em detrimento de outros. Assim, as músicas são
construídas e elaboradas pelo grupo de acordo com o momento. Uma mesma canção pode ser
executada de várias formas, expressando inclusive coisas diferentes. O significado da música
depende, entre outras coisas, do andamento, da acentuação e até mesmo do ritmo, ou seja, é o
contexto de execução de uma cantiga que determina seu significado. E esse significado é
sempre partilhado pelos vários grupos. Na pesquisa procurei verificar em que circunstâncias
ocorrem estas modificações. Observei que os locais e o público definem tanto o que será
cantado quanto a forma como a música será executada. Na igreja ou no terreiro, em espaços
sagrados ou profanos, exigem posturas diferenciadas dos congadeiros. As músicas são
províncias de sentido, compartilhadas apenas pelos iniciados. É através das músicas que os
grupos se comunicam. As canções são polissêmicas e inseridas num contexto mais amplo que
o dos congadeiros. Por exemplo, a música:
Solo: Balança a gunga, oh deixa balançar.
Coro: Balança a gunga, oh deixa balançar.
Solo: O preto-velho gosta não deixa essa festa acabar
Coro: O preto velho gosta não deixa essa festa acabar
Solo: Demanda e rixa não pode existir
Coro: Demanda e rixa não pode existir
Solo: A união dos ternos faz mamãe do rosário sorrir
Coro: A união dos ternos faz mamãe do rosário sorrir.
(Cantiga do Moçambique de Belém)
Essa cantiga é cantada em várias situações rituais, para saudar um sacerdote das
religiões afro-brasileiras, para indicar a presença das entidades afro-brasileiras numa
manifestação que é conhecida como católica (nesse aspecto nota-se mais uma vez o caráter
híbrido da festa), para se referir à união dos ternos como um fato que deixa a santa contente e
ainda quando se pretende fazer uma homenagem ao preto-velho
26
.
Através de uma música
é possível veicular uma série de mensagens que muitas vezes não são identificadas por
26
Os pretos-velhos geralmente são apresentados como homens ou mulheres pretos, velhos, sentados num toco de
madeira, vestindo roupas brancas e segurando um cachimbo. Os nomes dessas entidades fazem referência a
alguma localidade africana: Moçambique, Angola, Congo, por exemplo, Pai Joaquim de Angola, VoRei do
Congo, Maria Conga, etc. Os pretos-velhos são entidades bastante cultuadas na umbanda e estão associadas a
noções de benevolência e sabedoria. Em alguns ternos de congada relaciona-se a imagem do preto-velho a de
São Benedito.
47
aqueles que apenas assistem à congada. Saber identificar essa pluralidade de sentidos que uma
mesma música agrega foi possível após acompanhar o terno em várias situações: durante a
festa, em visitas a festa de outras cidades e em apresentações em eventos. Ao observar as
posturas do terno nessas situações variadas notei que uma mesma cantiga pode expressar
coisas diferentes.
As músicas (letras e ritmos) são aprendidas por meio da fala, do toque, do olhar e
principalmente pela convivência no grupo. Internalizam-se os ritmos, pois estes são
socializados através de técnicas corporais e aprende-se as letras das sicas por meio da
repetição e pelo partilhamento do seu significado. Nos ensaios preparatórios para a festa do
Rosário do Moçambique de Belém, os capitães e os mais velhos no terno ensinam aos mais
novos as condutas que devem ser seguidas: como se portar nas apresentações públicas, como
segurar um bastão, de que forma se toca as gungas e as patangomas
27
. Além disso, são nesses
momentos que se aprende a responder aos comandos que os capitães dão por meio dos apitos,
seja para iniciar uma música, ou para colocar o terno em prontidão. O apito é um instrumento
muito importante na realização da congada, pois é pelo reconhecimento do apito dos capitães
que o terno se organiza.
Arroyo (1999), em seu estudo sobre o fazer musical em ternos de Marinheiros em
Uberlândia, MG, faz apontamentos semelhantes sobre o processo de aprendizagem da música.
A autora verificou que o ensino e a aprendizagem da música nos ternos se fazem em práticas
musicais coletivas, como congadeiros tocando na rua, por exemplo. No Moçambique de
Belém, os ensaios acontecem na rua e geralmente terminam com pagode e muita diversão.
Nessas situações, o terno reafirma seus laços de amizade, afetividade e reciprocidade.
A forma de se ensinar as músicas e os demais preceitos congadeiros passam pela
oralidade, de pai para filho, do mais velho para os mais novos, do capitão para os soldados.
Entretanto, nos dias atuais, os ternos têm incorporado outros meios de comunicação nos
processos de inculcação deste saber. No Moçambique de Belém, por exemplo, os capitães
preparam panfletos (anexo C) com as cantigas novas, que são distribuídos para os membros
do grupo e para as demais pessoas na igreja no dia da festa. Nos ensaios do grupo, as letras
das músicas são distribuídas e ensaiadas até serem memorizadas. Não as letras devem ser
memorizadas como também os ritmos tocados e a coreografia. Para endossar meu argumento,
trago a reflexão de Pereira (2002) sobre essa discussão. O autor diz que “os eventos
27
Os ternos de Moçambique possuem como instrumentos musicais característicos: as gungas, espécie de guizo
amarrado nas pernas, e as patangomas ou patangomes, que são chocalhos arredondados que lembram o formato
de uma peneira.
48
considerados como cultura popular se defrontam na modernidade com uma questão
fundamental, isto é, com a mudança de canais de transmissão e das formas de saber” (p. 45).
A transmissão oral do saber é ainda um veículo importante na congada, mas agregados
a ele surgem outros meios que também são relevantes e que devem ser considerados. Não é
possível desprezar a relevância das novas tecnologias, pois os congadeiros estão cada vez
mais inseridos nesse universo – em Uberlândia há ternos que possuem site na internet,
inclusive com comunidade no orkut –, esses fatos nos levam a refletir sobre a festa da
congada em suas relações com a cultura de massa. A midiatização permite que os congadeiros
de uma determinada cidade estreitem laços com os de outras cidades.
Notei nas festas de congada que acompanhei, que as fotografias e os vídeos são
utilizados pelos grupos não como registro, mas também como uma forma de avaliar a
postura e o desempenho deles durante a realização da festa. Por meio das fotos e dos vídeos,
os grupos buscam melhorar suas performances no ano seguinte. A utilização das novas mídias
não é vista pelos ternos, pelos menos nos estudados nessa pesquisa, como uma ameaça à
tradição, mas, ao contrário, como uma possibilidade de propagação e divulgação da festa.
Na perspectiva de Pereira (2002), a ênfase na oralidade restringe a possibilidade de
pensar a circulação da cultura popular através de outros elementos de mediação como, por
exemplo, a iconografia representada pelos objetos de culto, pela vestimenta, pela expressão
corporal e pela própria escrita, tantas vezes registrada em cadernos de receitas, diários, cartas,
bilhetes, orações manuscritas e sucessivamente copiadas. Tive relatos de membros do
Moçambique de Belém que diziam que muitas vezes os capitães sonham com as letras das
músicas que serão cantadas na festa. Geralmente essas músicas fazem referência às histórias
importantes do grupo, por exemplo, uma homenagem aos ancestrais dos ternos, ou o relato de
algum conflito experimentado pelo grupo naquele momento. Segundo os moçambiqueiros,
quando isso ocorre a pessoa que teve o sonho ou a revelação, como muitos dizem, acorda
durante a noite e rapidamente escreve a letra da música para não esquecer.
Na pesquisa observei que os congadeiros almejam escrever sua história, que essa
não foi, durante décadas, contemplada nos discursos oficiais. Transformar em material escrito
as falas congadeiras cantadas e narradas nas ruas, igrejas e terreiros da cidade é um desejo dos
próprios congadeiros. Os trabalhos escritos sobre a congada não são apenas elaborados por
acadêmicos, atualmente, uma busca dos próprios congadeiros de contar e escrever suas
histórias e experiências. A iniciativa de se contar a história congadeira nos termos
congadeiros e por congadeiros é encontrada em Uberlândia e Ituiutaba nas propostas de
Ramon Rodrigues e Francis Luce, respectivamente. Em conversas com Ramon Rodrigues,
49
várias vezes o capitão indicou seu desejo de publicar um livro e lançar um CD sobre a festa de
Uberlândia. Além disso, ele escreve para algumas revistas de circulação local e até nacional.
Em Ituiutaba, Francis Luce, membro do terno Camisa Rosa, elaborou um texto sobre a
congada e a irmandade de Ituiutaba. Li o texto, mas resolvi não citá-lo porque o
moçambiqueiro está aguardando a publicação desse material. Em Ituiutaba também o
desejo da irmandade de lançar um CD com a participação de todos os ternos.
Para pensar a cultura popular como um sistema comunicacional, torna-se necessário
considerá-la como um sistema de signos. Nessa ótica é possível pensar que a congada, como
manifestação popular que é, permite que seus membros encontrem os suportes mais
adequados para veiculá-la na contemporaneidade. É pertinente destacar que nos grupos
pesquisados um diálogo entre o que os congadeiros chamam de fundamentos (princípios e
valores) e as novas tecnologias. Nesse sentido, Pereira (2002, p. 54) afirma: “é necessário
considerar que a cultura popular não está retida em suas origens, mas se transforma e se
mantém como realidade cultural porque se propõe a dialogar com as diferenças”. Acredito
que é justamente a facilidade de dialogar com o novo que possibilita a reelaboração e a
perpetuação da congada nos dias atuais. Os congadeiros, cada vez mais, disputam os espaços
de visibilidade oferecidos pela ordem social. E nessa luta por reconhecimento social, a
congada de Uberlândia tem aumentado sua expressão na cidade, fato notadamente verificado
no aumento do público que assiste à festa anualmente.
A preocupação de se ensinar a congada aos mais novos e de perpetuá-la nas gerações
futuras pode ser expressa em Ituiutaba por meio da iniciativa singular da criação do terno
Moçambique Camisa Rosa Mirim, que visa primordialmente a continuidade da festa na
cidade. O Moçambique Mirim é uma idealização da matriarca do Moçambique Camisa Rosa,
Dona Geralda, e é composto basicamente por netos e bisnetos da matriarca. O Moçambique
Mirim possui todos os cargos de um Moçambique adulto, as meninas da bandeira, tocadores,
dançadores, madrinha
28
e capitães. As crianças são ensinadas no mundo congadeiro e também
são preparadas para dar continuidade à festa na cidade. Se o Moçambique Mirim persistir,
fortes possibilidades não de o terno Camisa Rosa continuar, mas também de este
permanecer sendo coordenado pelos membros da família da Dona Geralda.
Entendo o Moçambique Mirim como uma tentativa de continuidade da festa. O
Moçambique Mirim atua como uma escolinha congadeira que prepara os mais novos para dar
prosseguimento à festa na cidade. Nessa escola, os mais novos são iniciados pelos mais
28
A madrinha é responsável pela organização das meninas que conduzem os estandartes. Nos capítulos seguintes
apresento melhor os cargos que compõe a congada e identifico as funções correspondentes a esses cargos.
50
velhos e recebem responsabilidades de adultos. A seguir apresento uma música do
Moçambique Mirim que é bem significativa e ajuda a entender os esforços de preservação e
continuidade da festa:
Chué, chué, chué, chuá
Sou Moçambique mirim
E acabei de chegar
Vovó me pediu
Para manter essa cultura
Com o Moçambique mirim
A Congada continua
Pra meu São Benedito
Eu canto em verso e prosa
Hoje sou Moçambique Mirim
Amanhã Camisa Rosa.
(Francis Luce, Moçambique Camisa Rosa).
Na letra cantada nota-se claramente a idéia de que o Moçambique Mirim será a
continuidade do terno Camisa Rosa no futuro: Hoje sou Moçambique Mirim/Amanhã Camisa
Rosa. Conversando com Maria Lúcia, presidente da irmandade de Ituiutaba, ela me disse que
no final de 2006 o Moçambique Mirim foi convidado para fazer uma apresentação junto com
um grupo do Conservatório de Música da cidade e isso foi para os congadeiros motivo de
orgulho e satisfação. Maria Lúcia contou-me, emocionada, o quanto ficou orgulhosa de suas
crias, utilizando as próprias palavras da presidente. Os meninos e meninas do Moçambique
Mirim hoje participam de apresentações com personalidades musicais da cidade e, além disso,
são representantes de uma festa que gradativamente ganha maior visibilidade. Ultimamente, a
congada não é pensada nos dias da festa (no caso de Ituiutaba, em maio), aos poucos os
congadeiros, por meio da irmandade, ampliam os significados da festa na cidade. uma
busca por divulgação e pela construção de uma imagem positiva da congada que se expressa
em situações extra-festa, como, por exemplo, campeonatos de futebol e apresentações
musicais em eventos. Mais recentemente, a irmandade de Ituiutaba propôs que fosse
organizada no interior da irmandade uma prática de doações mensais de cestas básicas para
famílias carentes da cidade. Além disso, os congadeiros participam de fóruns de debate e
seminários que abordam questões pertinentes às manifestações afro-brasileiras. Essas
atividades contribuem no sentido de divulgar a congada e ampliar sua significação no
imaginário do congadeiro e também do não congadeiro.
Atividades como as indicadas anteriormente contribuem para a reelaboração das
identidades congadeiras na contemporaneidade. No entendimento de Hall (2000), estão
51
emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição
entre diferentes posições: que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições
culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são
cada vez mais comuns em um mundo globalizado. As identidades congadeiras se formam na
encruzilhada de várias religiosidades, de diferentes relações de poder e estão inseridas no
espaço urbano. Tais identidades não são marcadas pela fixidez e estão em constante
movimento. Para Hall é possível vislumbrar uma saída para a complexa questão das
identidades. Essa saída é o princípio da tradução, que vai além das possibilidades mais
conhecidas de retorno a raízes ou do desaparecimento através da assimilação e da
homogeneidade. O autor define tradução da seguinte forma:
Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e
intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersas para
sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de
origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são
obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem
assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os
traços das culturas, das tradições, da linguagem e das histórias particulares pelas
quais foram marcadas. A diferença é que elas não são, irrevogavelmente, o produto
de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo,
a várias casas (e não uma casa particular). (HALL, 2000, pp. 88-89)
A idéia de tradução é um excelente recurso para interpretar a congada. nos
discursos congadeiros fortes referência a uma suposta ascendência africana, mas não se pode
dizer que eles almejem retornar à África. De um lado, os congadeiros mantêm fortes vínculos
com esse território imaginário que é a África, e de outro, são pressionados a estabelecer novos
diálogos e assim reconstruir suas identidades através de experiências cotidianas.
52
Mapa 1: Regiões de Planejamento de Minas Gerais
Fonte: www.mg.gov.br
Mapa 2: Uberlândia
Fonte: http://www.uberlandia.mg.gov.br
53
.
CAPÍTULO 2
A congada em Uberlândia: visibilidades e ocultamentos
Falar da congada em Uberlândia implica discorrer sobre a constituição da cidade, pois
a forma como se organizou o espaço urbano está diretamente envolvida com a celebração da
festa. Nesse sentido, dedico algumas páginas para explicar como a cidade foi, desde sua
fundação, marcada pela segregação dos negros em redutos de pobreza. Na cidade o Bairro
Patrimônio, que pode ser interpretado como uma espécie de quilombo urbano, apesar de ainda
não ter sido reconhecido como tal pela Fundação Palamares, durante muitos anos foi chamado
pela população uberlandensse como bairro de negro. Comecemos então com um breve
histórico do bairro e da cidade.
No final do século XIX, por volta de 1818, chegou à região que hoje está localizada a
cidade de Uberlândia a família de João Pereira da Rocha, que se apossou das terras nas
margens do córrego São Pedro. Através dessa família iniciou-se a formação do Arraial de
Nossa Senhora do Carmo de São Sebastião da Barra de São Pedro de Uberabinha. Outras
famílias foram chegando e se instalando e assim criou-se um pequeno povoado. Esse povoado
foi crescendo e formou-se um núcleo habitacional conhecido ainda hoje por “Fundinho”,
região que foi o centro comercial do arraial por muitos anos. O arraial de Nossa Senhora do
Carmo de São Sebastião da Barra de São Pedro de Uberabinha foi fundado em 1846 e era
mais conhecido por São Pedro do Uberabinha. De acordo com DaMatta (1987), tanto o
espaço quanto o tempo são invenções sociais e ambos, simultaneamente, constroem e são
construídos pela sociedade. Com relação à demarcação do espaço o autor ressalta que a
questão é aparentemente banal, pois o espaço é demarcado quando alguém estabelece
fronteiras, separando um pedaço de chão do outro. Entretanto, DaMatta adverte que é preciso
explicar de que modo as separações são feitas e como são legitimadas e aceitas pela
comunidade como tal. Essas discussões de DaMatta são relevantes para compreender como a
demarcação da cidade que hoje é Uberlândia aconteceu.
Em 1851, o crescimento do arraial foi intensificado graças à atitude de uma fazendeira
local, que vendeu 100 alqueires de terras para o Patrimônio da Capela de Nossa Senhora do
Carmo e São Sebastião da Barra. Em 1883, uma família latifundiária doou 12 alqueires de
terra ao Patrimônio de Nossa Senhora da Abadia. Estas terras eram situadas à margem
esquerda do Ribeirão São Pedro e originou o Bairro Patrimônio da Abadia, hoje conhecido
apenas por Patrimônio. Em 1888, o arraial tornou-se município e, em 1929, passou a se
chamar Uberlândia, nome sugerido por João de Deus Faria e que significa "terra fértil".
54
De acordo com Soares (1988), era comum, no período colonial, o chamado
Patrimônio. Este era constituído de terras doadas por um fazendeiro ou grupo deles para uma
igreja ou santo, nos quais iria se organizar um núcleo inicial do novo aglomerado. Os
patrimônios de doação, a santos ou igrejas, foram comuns até fins do século passado.
Em conversas com moradores do Bairro Patrimônio, obtive algumas informações que
me auxiliaram a compreender esse momento da história de Uberlândia. Segundo os
moradores, eles compravam os lotes de terra da igreja, por um valor que se pretendia
simbólico, todo mês eles pagavam um pouquinho e ao final do pagamento das parcelas
recebiam um documento chamado aforamento (cheguei a ver tal documento no bairro).
Entretanto, segundo os moradores, esse documento não garantia a posse da terra, pois a igreja
em alguns casos revendia novamente as terras. De acordo com os relatos que obtive, esse foi
um momento confuso e muitos moradores chegaram a perder suas terras. Deve-se considerar,
nesse processo, que a maioria dos negros era analfabeta e por isso eram muitas vezes
enganados.
Silva, J. C. (2000), afirma que as informações disponíveis sobre a população negra de
Uberlândia mostram que, desde o momento em que o espaço urbano começou a estruturar-se,
o negro fez-se presente, contribuindo decisivamente tanto para a construção material da
cidade quanto para a consolidação de suas práticas culturais, tais como a congada, a capoeira
e o carnaval. O autor salienta que as relações sociais que se desenvolveram no século XIX
eram bipolares, agregando de um lado o pólo hegemônico branco e de outro, uma população
de aproximadamente 22% de negros. A cidade de Uberlândia, desde sua constituição, definiu-
se como segregada etnicamente. O negro subalternizado constituiu a mão-de-obra que
construiu a cidade, fato que é pouco representado na história oficial local.
A pesquisa de Bosi (2000) sobre a constituição da classe trabalhadora em Uberlândia,
no período de 1888 a 1915, corrobora as argumentações apresentadas sobre a atuação da
população negra no processo de construção da cidade de Uberlândia. O autor afirma que:
É possível visualizar a trajetória dos trabalhadores negros ex-escravos, libertos e
descendentes em Uberabinha. A maioria dos trabalhadores negros vivia, desde pelo
menos 1883, num bairro chamado Patrimônio. O lugar ficava afastado do núcleo
populacional aproximadamente dois quilômetros. Dezesseis anos antes da abolição,
Uberabinha (então Freguesia de Uberaba/MG) contava com 545 escravos frente a
3483 livres. Considerando que a transferência de escravos para outras regiões não
foi tão grande como nas zonas de garimpo e computada a “perda” de escravos em
função da lei do sexagenário (de eficácia duvidosa) e da mortalidade, o número de
escravos às vésperas de 1888, não deve ter variado muito. Após a abolição, os que
ficaram em Uberabinha empregaram-se principalmente nas charqueadas, no
matadouro e em serviços de reforma urbana (estes, numa escala crescente), como o
calçamento das ruas da cidade
.
(BOSI, 2000, p.107).
55
A presença do negro em Uberlândia foi marcada por mecanismos de segregação,
que a população negra encontrava-se principalmente no Bairro Patrimônio. No período de
construção da cidade, o Patrimônio se apresentava como um atrativo para a população negra,
que vendia sua força de trabalho, primeiro ao Matadouro Municipal, fundado oficialmente em
1894, e depois à Charqueada Ômega, criada em 1929 pela família Naves. O Bairro
Patrimônio caracterizava-se como um espaço em que os negros construíam suas próprias
sociabilidades.
Em conversas informais com João Rodrigues, mais conhecido por Seu Bolinho, tive
relatos desse processo de segregação dos negros na cidade. Seu Bolinho tem 65 anos e ainda
mora no Bairro Patrimônio. Ele é um dos moradores mais antigo do bairro, por isso
acompanhou e sentiu a trajetória de exclusão vivenciada pelos negros na cidade.
Seu Bolinho relata que quando ele era mais jovem, mesmo não havendo nada escrito
na lei, os negros sabiam qual era o lugar deles na cidade de Uberlândia. O morador conta que
os residentes do Bairro Patrimônio eram conhecidos por vermelho. De acordo com ele, o
povo do Patrimônio recebia esse nome porque deixava suas pegadas de barro vermelho no
asfalto do centro da cidade quando ia trabalhar. Seu Bolinho relata que muitas mulheres
vaidosas, para não serem apelidadas de pé vermelho colocavam sacos plásticos nos pés para
não sujarem seus sapatos e só os tiravam após pegarem o ônibus.
João Rodrigues ainda afirma que até os anos 60 havia uma divisão na Avenida Afonso
Pena, uma das principais e centrais avenidas da cidade: o lado direito era para os brancos e o
esquerdo era reservado para os negros. Vale lembrar que no imaginário de nossa sociedade o
lado esquerdo recebe uma conotação negativa e acredito não ser mera coincidência associá-lo
à população negra. Segundo Seu Bolinho, não havia nada que indicasse essa divisão, mas
todo mundo sabia como se portar. O mesmo acontecia nos clubes e cinemas da cidade. Havia
poltronas para negros e poltronas para brancos; essa divisão não tinha expressão legal, mas
estava inscrita no imaginário da população de Uberlândia de uma forma mais arraigada do
que se tivesse inscrita na lei. Como Seu Bolinho disse, todo mundo sabia qual era seu lugar.
Com a definição de lugares específicos para brancos e para negros, verifica-se a construção de
espaços morais, nos termos de DaMatta, haja vista que o espaço é definido mais através de
contrastes, complementaridades e oposições, do que por meio de uma fita métrica.
Desde o final do século XIX, o Bairro Patrimônio se caracteriza em Uberlândia como
um dos principais espaços de ocupação negra. Ainda hoje é notória a presença dos negros
neste bairro, a qual se expressa principalmente pelas formas de sociabilidade que eles
desenvolveram neste local. Podemos citar, por exemplo: os ternos de Moçambique Princesa
56
Isabel, Pena Branca e Raízes, a Escola de Samba Tabajara, o Grupo Tabinha, o Clube de
Futebol Guarany e a Folia de Reis Pena Branca. Seu Bolinho é um bom exemplo da atuação
dos negros na cidade. Ele é hoje membro do Moçambique de Belém, localizado no Bairro
Santa Mônica
29
, participante da velha guarda da Escola de Samba Tabajara do Bairro
Patrimônio e idealizador do Grupo Tabinha. O Grupo Tabinha nasceu na ala-mirim da Escola
de Samba Tabajara e hoje é um grupo de percussão reconhecido em âmbito nacional. Muitos
membros do Tabinha participam também dos ternos de Moçambique do bairro.
O Bairro Patrimônio, que antes era considerado periferia, atualmente, em função da
especulação imobiliária e da urbanização da cidade, transformou-se em alvo de interesse e foi
invadido por moradores de classe média alta. No bairro convivem, mas não harmonicamente,
os casebres dos negros e pobres e os condomínios fechados da elite.
Os moradores mais saudosistas do bairro dizem que quando eram mais jovens as
coisas eram melhores, apesar da precariedade em que viviam; sem saneamento básico, energia
elétrica, etc. Hoje em dia eles não têm mais liberdade para fazer suas louvações e brincadeiras
pelas ruas, pois os novos moradores se sentem incomodados e muitas vezes se manifestam de
forma agressiva. Em conversas com alguns congadeiros do bairro, ouvi uma história que
ilustra bem o quadro conflituoso do Patrimônio e também caracteriza a luta simbólica
vivenciada entre os congadeiros e os novos moradores. Um membro do Princesa Isabel
revelou-me que o grupo, ao voltar para casa de um leilão, tocando e cantando pelas ruas, foi
surpreendido com tiros disparados para o alto por um morador incomodado com o som das
caixas. Relata o moçambiqueiro que houve situações em que os novos moradores,
enclausurados nos portões e muros dos condomínios fechados, atiraram tomates e tinta nos
membros do grupo que retornavam de mais um leilão.
Em função desses conflitos, um grupo de moradores do Bairro Patrimônio, com o
apoio de políticos e ONGs, tiveram a idéia de construir um espaço cultural que fosse utilizado
para os ensaios do Tabinha, da Escola de Samba Tabajara e dos grupos de folia de Reis e
congado. Dessa forma, a rua não seria mais utilizada como espaço e palco para as festas, o
que garantiria a ordem e o sossego. Essa idéia ainda não se efetivou, mas dividiu as opiniões
dos grupos: alguns acharam a idéia boa, pois assim teria um local para seus ensaios sem
correrem riscos, outros achavam que a rua era o local de encontro privilegiado dessas
manifestações.
Os exemplos que citei ilustram a situação conflituosa no Bairro Patrimônio, entre os
29
O Bairro Santa Mônica se localiza próximo à região central de Uberlândia. Fica nas mediações da
Universidade Federal de Uberlândia e do Shopping Center.
57
novos e os antigos moradores. Atualmente, muitos dos mais antigos moradores vendem seus
lotes e migram para bairros mais periféricos, tais como: Canaã, Morumbi, Dona Zumira, entre
outros. Esses bairros mais marginais ficam longe do Patrimônio, que hoje se encontra nas
mediações centrais da cidade e por isso, durante os dias da congada, esses ex-moradores
retornam para o bairro e se alojam na casa de amigos e parentes, instaura-se uma grande
família congadeira em que impera laços de compadrios e reciprocidade. É preciso ressaltar
que a família consangüínea e o parentesco religioso expresso no compadrio, são fundamentais
na realização da congada. A família do idealizador do terno geralmente exerce função
gerencial sobre este, é ela que organiza os membros do terno e toma as decisões finais.
Apresentei nos últimos parágrafos um breve histórico do processo de construção da
cidade de Uberlândia. Acredito que tal contextualização é relevante, pois nos auxilia a
entender de que forma o meio urbano foi construído, e esse é um aspecto fundamental para a
compreensão da congada atualmente. Se a congada está inscrita no espaço urbano, é
importante conhecer minimamente como esse espaço foi consolidado e como se organizam as
instituições de poder.
Uberlândia é uma cidade de médio porte, com cerca de 600 mil habitantes, localizada
no Triângulo Mineiro. Vale destacar que hoje o denominado Triângulo Mineiro pertenceu à
Província de Goiás até 1816, passando então à Província de Minas Gerais. O governo de
Minas, objetivando colonizar as terras situadas naquela região e habitadas por índios caiapós,
iniciou uma campanha que visava intensificar a ocupação do Sertão da Farinha Podre
30
(como
era conhecida a região no período). Até o final do século XVIII, o Sertão da Farinha Podre era
apenas um ponto de passagem de tropeiros e mineradores e no início do século XIX é que
se efetivou a ocupação da região do atual Triângulo Mineiro.
Silva, J. C. (2000), acredita que os primeiros registros históricos da cultura negra no
Triângulo Mineiro associam-se à descoberta de jazidas de ouro e diamantes no interior de
Goiás e Mato Grosso, ainda no século XVIII. Sabe-se da presença do negro neste espaço
devido às referências aos primeiros quilombos. Acredita-se que os primeiros quilombos
Ambrósio (Ibiá/Araxá), Grunga (Uberaba), Cruzeiro dos Peixotos/Uberlândia) –, foram
organizados no século XVIII por escravos que teriam fugido do controle dos senhores de
30
No início do século passado, a região conhecida por Farinha Podre funcionou como um elo para tropeiros que
cruzavam as terras paulistas e mineiras em busca dos campos prósperos goianos. Tal local compreende
atualmente as regiões do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro. Na expectativa de um breve retorno, os tropeiros
guardavam os alimentos em certo ponto da estrada; aliviando, assim, o peso das bagagens, mas raramente eles
conseguiam retornar. Quando os viajantes trilhavam aquele caminho, os mantimentos haviam apodrecidos, d
o motivo pelo qual a região ficou conhecida como Sertão da Farinha Podre.
58
engenho e alcançado o Triângulo Mineiro via Rio São Francisco.
Uberlândia é hoje o maior centro atacadista-distribuidor da América Latina,
responsável pela distribuição de inúmeros produtos para os mais variados locais do Brasil. É
importante ressaltar que Uberlândia possui uma logística singular e está numa posição
geográfica estratégica, que facilita o trânsito e o comércio responsável pela distribuição de um
grande número de produtos para os mais diversos locais do território nacional.
A congada é parte integrante do calendário religioso e cultural da cidade, e a
realização da festa foi, desde o início, marcada por conflitos e tensas negociações de poder. A
esse despeito, Silva, J. C., (2000), em sua pesquisa sobre segregação sócio-espacial em
Uberlândia, cita a seguinte notícia circulada em jornal oficial:
A primeira capela dedicada à devoção da comunidade negra, foi fundada em 1890 e
construída onde hoje se instala a escola Eneas de Oliveira Guimarães. Por ordem do
político Arlindo Texeira, que residia na Praça Dr. Duarte e estava incomodado com
a movimentação dos negros, foi construída uma nova igreja que posteriormente deu
lugar à atual igreja do Rosário, na Praça Rui Barbosa, em terreno doado por ele.
(Correio do Triângulo, 14/11/93, p.15, apud SILVA, J. C, 2000).
A notícia nos remete aos processos de negociações que ora permitiam e ora negavam a
realização da congada em Uberlândia. A igreja do Rosário, local de encontro da irmandade e
lugar em que acontece a festa, foi transferida da região central para uma região considerada
marginal naquele período. Tal fato é um indicativo de que a realização da congada na cidade
esteve, desde o início, conectada às configurações de poder e marcada por movimentos de
desterritorialização e reterritorialização. Há inclusive relatos que afirmam que os negros
foram várias vezes impedidos de fazer suas louvações a Nossa Senhora do Rosário na
Catedral de Santa Terezinha. Hoje a região para a qual a igreja do Rosário foi transferida é
considerada tão central quanto a primeira.
De acordo com o site da prefeitura de Uberlândia e com depoimentos dos próprios
congadeiros, a festa iniciou-se na cidade no século XIX. Segundo Jeremias Brasileiro
31
(2001), no período da escravidão os negros se reuniam no mato para cantar e louvar sua santa
protetora. Por volta de 1874, acredita-se que tenha começado o congado em Uberlândia,
através do Senhor André. O escravo André reunia os negros da região do Rio das Velhas,
Olhos D'água, e eles saiam tocando as caixas e pedindo a Nossa Senhora do Rosário,
padroeira dos negros, para libertá-los da escravidão. Essa é a versão mais difundida sobre o
início da congada na cidade, entretanto, Jeremias ressalta que ainda uma outra versão para
31
Jeremias Brasileiro é historiador, membro da irmandade de Nossa Senhora do Rosário e da COAFRO. Ele
desenvolve pesquisas sobre as festas de congada do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba.
59
o surgimento da festa em Uberlândia. O autor aponta que, segundo Ranufo José Paulino, os
primeiros ternos de congado surgiram no distrito de Santa Maria atual Miraporanga.
Jeremias faz as seguintes colocações:
Ramulfo convicto afirmava que o congado procede de Santa Maria (atual
Miraporanga), desde que os escravos fundaram uma Igrejinha do Rosário, e seu
argumento tem consistência uma vez que nessa região habitaram escravos que mais
tarde vieram para as margens do Rio Uberabinha, habitando nas adjacências do
Bairro Patrimônio. (BRASILEIRO, 2000, p. 32).
Nos dias atuais, em Uberlândia vinte e quatro grupos afro-brasileiros divididos em
ternos de: Congo, Catupé, Moçambique e Marinheiro. Estes grupos se intitulam ternos e se
diferenciam por meio das indumentárias, dos instrumentos musicais, das vestimentas e
cantigas. Em cidades do Alto Paranaíba, sul de Minas e Goiás, ainda é possível encontrar
ternos de Vilão e Penacho. Jeremias Brasileiro, a partir de suas pesquisas, faz as seguintes
diferenciações entre os ternos:
Congos tradicionalmente considerado um dos primeiros ternos que surgiu para
festejar Rei Congo e Rainha Conga e também Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito. Suas cantorias são mais brincantes, alegres e o ritmo musical depende ora
de uma percussão lenta ora rápida que ainda está vinculada às danças executadas.
Seus instrumentos principais são as caixas, tamborins, reco-recos, pandeiros e
acordeons. Os congos são mais coloridos, enfeitadores das ruas para os
moçambiques puxar os coroados.
Moçambiques formados nos tempos primeiros exclusivamente com escravos nas
senzalas, possuem ritmo e músicas cadenciadas e uma cantoria devocional. Antigos
cantadores de pontos de influência dos terreiros de umbanda e das ritualidades de
candomblés, os capitães de moçambiques sempre foram associados à mística do
poder espiritual herdado de seus ancestres africanos. Tem como instrumentos
básicos as caixas, patagomes e as gungas ou paiás de proteção. Os moçambiques
trazem as coroas, o reinado e as bandeiras dos santos devocionais.
Catupés ou Catopês de influência indígena devido a interação ocorrida entre
escravos fugidos que se encontravam nas matas com os índios e que após retornarem
para as vilarejos com o fim da escravidão, inseriram nas congadas o jeito de vestir e
dançar dos indígenas. Utilizavam ainda cantorias irônicas e também de criticas
sociais.
Marujos e Marinheiros esses ternos traziam influências mouras e portuguesas. O
uso de marlotas vestuário idêntico a uma capa curta - para esconder as espadas e
evoluírem como em formação de luta, percutindo fortemente as suas maracanãs
(caixas grandes); ripiliques (caixas menores) e os chocalhos. Além disso, eram
reconhecidos pela expressão mar abaixo”, simbolizando a chegada ao Brasil como
escravos desembarcados entre as ondas que açoitavam as praias.
Penachos representavam os índios africanos inseridos nas congadas. Suas
cantorias são geralmente um coral de lamentações e as coreografias são
essencialmente de passos marcados de forma livre e graciosa.
Vilão vilões seriam os jovens escravos preparados para assaltar as fazendas e
engenhos (levando animais domésticos e mantimentos) com a devida orientação dos
mais idosos (os moçambiqueiros).
(Artigo publicado no site www.uberlandia.mg.gov.br
).
60
Em Uberlândia, as atividades públicas da congada concentram-se em dois dias, um
domingo e uma segunda-feira do mês de outubro, e têm como santos padroeiros Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito. É importante ressaltar que a data da festa está sujeita a
manipulações políticas, pois a congada ocorreu, por exemplo, em novembro. É evidente
que as atividades dos grupos ultrapassam os dias de festejos públicos. Forma-se um ciclo do
sagrado, que começa mais ou menos três meses antes dos eventos de domínio público, além
disso, durante todo o ano os grupos viajam para cidades vizinhas e participam de outras
festas.
Jeremias Brasileiro (2006, p. 28) faz uma reflexão sobre demandas individuais que
visam retirar os festejos da congada do centro da cidade. O autor traz como exemplo a
solicitação de um morador do Bairro Carajás, encaminhada aos vereadores da cidade.
Jeremias reproduz a solicitação da seguinte forma:
Solicito a V.Sª. estudar a possibilidade de mudança do local e construção do
Sambódromo no Parque do Sabiá onde ocorrerá desfiles das escolas de samba, festa
do Congado, festa do Rosário e divulgação do Carnaval de Uberlândia. O local irá
contribuir para o sucesso do carnaval e não ficará no esquecimento a cultura negra,
como o Congado, São Benedito e festa do Rosário. Inclusive os moradores próximos
a Igreja do Rosário, reclamam do barulho, e o local não tem condições adequadas
para abrigar os participantes. A própria classe vai administrar o Sambódromo, não
necessitando de subvenção do Município para as escolas de samba.
Essa solicitação do morador é expressiva e nos permite perceber mais uma tentativa de
desterritorialização da festa, levando-a novamente para regiões periféricas da cidade, longe do
comércio e dos moradores dos bairros de classe média. Não sei qual foi o destino dessa
solicitação, mas o que me interessa ao citá-la é indicar que as relações estabelecidas entre os
congadeiros e o restante da sociedade são marcadas por tensões e conflitos.
A congada é um ritual religioso, mas não pode ser interpretado como um fenômeno
isolado, pois ela se encontra em relação constante com outros cenários. Na congada, o
catolicismo e as religiosidades afro-brasileiras se misturam e formam um ritual híbrido. Essa
mistura é mais notável nos leilões e na segunda-feira da festa, pois nestas situações a égide da
igreja é menor. A pesquisa de campo indicou que o leilão é um momento privilegiado da
socialização do grupo e refere-se basicamente à reza do terço, à arrecadação de verba para
festa e à preparação de algumas músicas já conhecidas.
Nos leilões os ternos saem às ruas para rezar e se preparar para a festa em louvor a
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Estes são momentos em que menos
interferência da irmandade. É importante destacar que ocorrem dois tipos de leilões na
congada de Uberlândia: um de caráter mais interno, que é organizado no interior de cada terno
61
e que começa mais ou menos três meses antes da festa. O outro é mais institucionalizado,
administrado pela irmandade e acontece na semana que antecede a festa, acompanhado pela
novena na igreja do Rosário. O que basicamente diferencia esses dois tipos de leilões é a
gestão, os leilões internos são de responsabilidade dos ternos, os que acontecem na igreja
são organizados pela irmandade. Os leilões que ocorrem na igreja atuam como uma
preparação espiritual organizada pela igreja católica. Cada dia de leilão realizado na igreja é
prestigiado com a apresentação de dois ou três ternos. Tais ternos devem participar da reza do
terço, da novena, e colaborar nos arremates dos leilões daquele dia. As prendas são doadas
pelos festeiros
32
do dia e por pessoas simpáticas à congada. Os leilões organizados pela
irmandade constam inclusive nos cartazes e no folder da festa.
Os ternos chegam cantando e tocando seus instrumentos após a reza do terço,
semelhante ao que ocorre nos leilões internos dos ternos. Na porta da igreja, fazem seu louvor
e homenagem aos santos padroeiros. Em seguida, iniciam-se os leilões das prendas. O
leiloeiro, que geralmente é um membro de algum terno, posiciona-se no palco montado em
frente à igreja e começa: Mais um leilão para festa de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito. A primeira prenda do dia é um frango assado, quem dá mais....
Após consecutivos arremates de prendas, os ternos retornam com seus sons, o que
evidencia a mistura de momentos profano e sagrado na congada. Volta mais uma vez o
leiloeiro para continuar o leilão. Encerradas as prendas, os ternos tocam e dançam
fervorosamente na porta da igreja e se despedem tal qual nos leilões organizados pelos ternos.
Os leilões organizados pela irmandade arrecadam fundos para a irmandade, os leilões
organizados no interior de cada terno arrecadam dinheiro para os ternos. O dinheiro que os
ternos arrecadam é complementado com a subvenção fornecida pela prefeitura.
A irmandade não tem controle dos momentos que antecedem a realização da festa,
principalmente das casas visitadas pelos ternos durante os leilões. Alguns ternos estão
diretamente envolvidos com as religiões afro-brasileiras e esse vínculo se expressa de forma
mais clara nos momentos em que a atuação da igreja é mais amena.
Fiz um acompanhamento mais minucioso do terno Moçambique de Belém, por isso as
discussões que proponho são balizadas por essa experiência. A pesquisa, dessa forma, é
marcada historicamente no tempo, no espaço e principalmente pelos sujeitos sociais que
significam a festa no momento em que foi realizado o estudo.
O terno Moçambique de Belém possui seu quartel no Bairro Santa Mônica, em
32
Festeiros são membros da comunidade que são responsáveis pela arrecadação de prendas que serão leiloadas.
62
Uberlândia – MG. O bairro, assim como a cidade de modo geral, tem sofrido nos últimos anos
grandes transformações, influenciadas pelo processo de urbanização. Até os anos 50, o Bairro
Santa Mônica era considerado uma região marginal. Bairros como o Santa Mônica, o
Patrimônio, e o Martins, naquela época ainda desertos e distantes do centro da cidade, eram
atrativos para negros e pobres que procuravam locais de moradia de baixo custo. Atualmente,
os bairros acima citados estão passando por processos de constantes transformações. No caso
específico do Bairro Santa Mônica, alguns fatores interferiram de forma direta nas mudanças
do bairro: as construções do Centro Administrativo, da Universidade Federal de Uberlândia,
do Center Shopping e da Avenida Rondom Pacheco.
O novo quadro que se forma no contexto urbano transforma regiões até então
consideradas marginais em alvos de especulação imobiliária e de interesse da classe média.
Grande parte da população negra que vivia nestes bairros tende a vender seus imóveis,
migrando mais uma vez para regiões afastadas: Canaã, Aurora, Morumbi, entre tantos outros.
As mudanças ocorridas no espaço urbano provocam também novas reelaborações e
configurações na festa da congada. Anjos (2006, p.53), ao discutir sobre a questão tão
importante e complexa do espaço, afirma que “num país como o Brasil, multicultural, a terra,
o terreiro e a territorialidade assumem grande importância dentro da temática da pluralidade
cultural”.
Com relação às construções simbólicas do espaço ainda é importante destacar as
observações de Silva, J. C. (1997, p. 12):
Refletir sobre o espaço em uma sociedade marcada por hierarquias sociais e raciais,
implica em rediscutir as construções simbólicas sobre o espaço como sendo
homogêneo e igualitário e recolocar a questão das fronteiras, e dos limites. (...) Uma
preocupação recente da antropologia ao voltar-se para o urbano tem sido a discussão
do espaço não mais de uma perspectiva ecológica, mas do ponto de vista do poder,
elemento que se tornou chave para se compreender a ordenação do espaço no
contexto das grandes metrópoles mundiais.
As novas configurações, tanto do espaço urbano quanto da festa de Nossa Senhora do
Rosário, bem como as relações de poder a elas vinculadas, são elementos essenciais à
compreensão da congada atualmente. Segundo DaMatta (1987), para compreender o espaço é
necessário entender a sociedade com suas redes de relações sociais e valores, pois o espaço se
confunde com a própria ordem social. Por exemplo, noções como em cima e embaixo,
expressam mais regiões sociais convencionais e locais do que atitudes topograficamente
assinaladas. O autor afirma que “nas cidades brasileiras a demarcação espacial (e social) se
faz sempre no sentido de uma gradação ou hierarquia entre centro e periferia, dentro e fora”.
63
(p. 34).
A pesquisa de campo indicou que a festa da congada é um momento ritual que
concede provisoriamente à população negra maior visibilidade e dizibilidade. Neste período
as manifestações negras são vistas e ouvidas pela sociedade uberlandense. É preciso ressaltar
que essa visibilidade não é incontestada; ao contrário, é marcada por conflitos, tensões e
negociações que caracterizam as práticas insurgentes dos subalternos. Um exemplo de que
essas práticas insurgentes têm conseqüências políticas que ultrapassam os momentos cíclicos
da festa é o que ocorreu em Uberlândia nas últimas eleições para prefeitura. Em 2004, um
capitão de congada elegeu-se vereador e para as próximas eleições, 2008, tem-se a expectativa
de mais dois candidatos congadeiros concorrendo ao cargo de vereador.
Deve-se indicar que a questão não é verificar se o vereador congadeiro ou se os
congadeiros candidatos são aceitos pela irmandade e pelos ternos, o que interessa é indicar
que os congadeiros estão inseridos numa lógica que os leva para além dos assuntos de caráter
religiosos da congada. O fato de existir congadeiros candidatos ao cargo de vereador é um
indicativo de que nos dias atuais os congadeiros exigem representatividade nas esferas de
poder.
A congada é definida pelos estudiosos do tema como uma festa tradicional afro-
brasileira que tem como palco as ruas e ruelas das cidades, cujos cenários e cujas
representações dos grupos variam de acordo com o contexto. Brandão (1989, p. 18) discute a
demarcação dos espaços casa e rua e aponta que a festa ocorre basicamente no espaço da rua:
Não dúvida de que a casa é o local da rotina, da família e de uma estabilidade de
relações que em quase tudo sugere o contrário daquilo que é a rua, seus tempos,
festas e sujeitos. (...) tudo o que acontece nos dias de festa é uma seqüência de
cerimônias regidas pela idéia de vagar pelas ruas e o entrar e sair das igrejas e casas,
unificando com o rito justamente as polaridades que existem não apenas entre a casa
e a rua, mas entre também aquilo de que elas são mbolos: o sagrado e o profano, o
feminino e o masculino e a devoção e a diversão, a restrição e a permissividade.
Os espaços que sustentam as interações da festa podem ser lidos a partir das noções de
casa e rua, sugeridas inicialmente por Gilberto Freyre (1936) e retomadas alguns anos depois
por DaMatta (1987) em sua proposta de interpretação do Brasil. Brandão (1989) apropria-se
das noções de casa e rua em seus estudos sobre a congada e outras festas populares e define a
casa como o local da rotina e o espaço da segurança, no qual se vivenciam experiências não
permitidas na rua. No caso da congada é no espaço da casa que ocorrem as preparações
espirituais para a festa. É na casa, inclusive, que se aprende a cantar, dançar e rezar e que se
resolvem muitos dos conflitos gerados na rua. Para DaMatta, as categorias casa e rua não
designam apenas espaços físicos, mas, acima de tudo, entidades morais e domínios culturais
64
institucionalizados. A congada ocorre entre a casa e a rua e, nesses lugares de trânsito, os
espaços são demarcados simbolicamente pelos grupos e ocorrem muitas expressões de
intercâmbio religioso que permitem, por exemplo, que uma mesma cantiga saúde São
Benedito e se refira a órum, palavra utilizada na umbanda e no candomblé e que significa o
céu dos orixás. A música diz o seguinte:
Paz entre irmãos
São Benedito ta
Chamando
Vim aqui rezar
Siricôco Moçambiqueiro
Que acabou de chegar
E a gunga ta maiando
Vi aqui para rezar
Lembra do Xeta e do
Nego Anta
Vamos todos Saravá.
E órum, saravá
Rezo para São Benedito
Irmão com irmão não pode brigar.
(Marcos A. Silva, Moçambique de Belém)
A cantiga não louva São Benedito como também homenageia os antepassados do
terno Moçambique de Belém, aqueles que faleceram, mas que são constantemente
lembrados nas cantigas e nas orações e atuam como uma espécie de mentores para o terno. Na
música, São Benedito, o santo católico, é saudado com a expressão Sara, que é uma forma
de cumprimento muito disseminada na umbanda e no candomblé e que quer dizer salve. É
recorrente encontrar nas cantigas da congada expressões simultaneamente usadas no
catolicismo popular e nas religiões afro-brasileiras. Estar entre duas ou mais coisas, como é o
caso da congada, não implica escolher entre uma ou outra. Este é justamente o sentido da
noção de encruzilhada, expressão comum entre meus interlocutores e que melhor caracteriza
e define a congada.
Para Martins (1997) o termo encruzilhada, utilizado como operador conceitual,
oferece-nos a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem
dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e dialogam, nem sempre
amistosamente, concepções e sistemas simbólicos diferenciados e diversos. Para a autora, o
termo sincretismo, muitas vezes usado para compreender tais cruzamentos, reduz as
possibilidades de apreender a complexidade destes cruzamentos híbridos simbólicos.
A congada é a todo instante reinventada e recriada pelos agentes que a significam.
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Essa reinvenção e a recriação da tradição são acompanhadas por releituras das próprias
identidades congadeiras. A (re) invenção da tradição ganha significado quando esta é capaz de
combinar os sentidos históricos com as experiências dos atores sociais. A experiência
biográfica do ator se apresenta como fonte e possibilidade de continuidade da tradição. Ao
analisar as configurações atuais da festa de Nossa Senhora do Rosário, notei que os
congadeiros têm usado cada vez mais técnicas e meios modernos para afirmar e ampliar, por
meio das mudanças, a sua significação social. Ao discutir as mudanças que as festas da
comunidade dos Arturos têm sofrido ultimamente, algumas delas semelhantes as que
verifiquei na congada de Uberlândia, Pereira (2002, p. 19) afirma que:
Ao evitarmos a ótica dualista, mergulhamos na trama das hibridações onde se
desenham os contornos de experiências sociais que pressupõem a preservação a
partir das possibilidades de transformação. (...) As hibridações se abrem como
campos do possível e as articulações de sentido passam a ser tecidas pelos grupos de
maneiras diferenciadas e simultâneas. (...) A incerteza quanto ao resultado das
hibridações é o traço marcante, uma vez que o principio da preservação através da
transformação se realiza em horizontes de mudança cada vez mais ampla. A
comunidade dos Arturos experimenta as tensões decorrentes desse quadro. As
alterações mais visíveis são aquelas que atingem os aspectos formais dos ritos. Por
exemplo, a redução do trajeto do cortejo nas festas de maio (libertação) e outubro
(Nossa Senhora do Rosário) em virtude do tráfego intenso na região próxima à
matriz de São Gonçalo.
Para o autor, as alterações mais visíveis que tem ocorrido nas celebrações dos Arturos,
referem-se aos aspectos formais dos rituais e tais mudanças incluem as relações com empresas
que divulgam as atividades tradicionais em programações dirigidas a um público consumidor,
a exemplo da apresentação de ritos e da exposição de fotos e vestes sagradas dos Arturos no
Big Shopping de Contagem. Situação similar à descrita por Pereira ocorre em Uberlândia.
uma série de exposições de fotos nas universidades e algumas ONGs, tais como EMCANTAR
e Folia Cultural, têm demonstrado bastante interesse pela congada, produzindo documentários
e CDs.
Na festa de Nossa Senhora do Rosário ocorrem fluxos constantes de símbolos entre os
grupos dominados, nesse caso os congadeiros, e os dominantes, classe média e poderes
públicos, e esse intercâmbio simbólico permite que a congada seja reelaborada por seus
atores. Nos dias da festa homens e mulheres, meninos e meninas, congadeiros e congadeiras
arrumam-se para os festejos: cuidam das vestimentas, dos acessórios e da aparência de modo
geral, até porque muitos namoros começam nas festas de congada. Nos últimos anos,
verifiquei uma disseminação na festa de adereços e objetos vinculados à idéia de uma
identidade afro-brasileira: tranças nos cabelos, turbantes na cabeça, roupas de algodão e chita
enfeitadas de búzios, uma série de objetos que era deixada de lado foi incorporada à festa.
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Notei que em função do investimento no turismo de negócios, em Uberlândia uma
tentativa dos poderes públicos de transformar a congada em símbolo cultural da cidade.
Talvez seja em função disso que a prefeitura tem aumentado significativamente a divulgação
do evento. Nos dias em que ocorre a festa em Uberlândia, a igreja de Nossa Senhora do
Rosário fica repleta: são membros da congada, políticos, participantes das religiões afro-
brasileiras, pesquisadores de instituições públicas e privadas, equipes de filmagem a serviço
de redes de TV local, membros da igreja católica e, por último, mas não menos relevantes,
capoeiristas e pagodeiros, que usam o espaço da praça para fazerem rodas de samba e
capoeira. Nesta perspectiva, podemos recorrer a Silva, T. T (2000), quando este afirma que o
estabelecimento da identidade e da diferença está diretamente vinculado às relações de poder
de uma determinada sociedade. Nas palavras do próprio autor encontramos:
Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros
recursos simbólicos e materiais da sociedade. (...) A identidade e a diferença estão,
pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e
de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A
identidade e a diferença não são nunca inocentes. (p. 81).
Verifiquei, na pesquisa em Uberlândia, que as identidades congadeiras não são
elaboradas exclusivamente no interior da irmandade de São Benedito e Nossa Senhora do
Rosário. Entretanto, as históricas tensões entre igreja, irmandade e congadeiros permanecem
no interior da festa, o que explicita um processo negociado de construção de identidade negra.
Manuela Carneiro (1985), afirma que a identidade é construída de forma situacional e
contrastiva, ou seja, ela constitui resposta política a uma conjuntura, é uma resposta articulada
com outras identidades em jogo, com as quais formam um sistema.
Na gama heterogênea de crenças e religiosidades que o processo ritual da congada
agrega, o desfile dos ternos pelas ruas da cidade no domingo em que ocorre a festa é a
expressão mais visível. Observei que os momentos que possuem maior notoriedade e se
apresentam ao domínio público são aqueles ligados ao catolicismo. As práticas relacionadas
às religiões afro-brasileiras ficam numa espécie de bastidores. Com relação ao termo
bastidores, Goffman (1992, p. 107) afirma que a região de fundo de uma representação fica
localizada numa extremidade onde ela está sendo apresentada, ficando separada por uma
divisão e passagens protegidas. (...) a região de fundo será o lugar onde o ator pode
confiantemente esperar que nenhum membro do público penetre”. O acesso aos bastidores da
congada geralmente é limitado e depende do grau de confiança que o grupo deposita no outro.
Incluo na categoria “outro” todos os não iniciados, aqueles não socializados no universo
congadeiro. É nesse grupo que se encaixa o pesquisador. Penetrar nos bastidores de um grupo
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é uma tarefa difícil, mas que nos ajuda a entender o momento em que o ator sai dos fundos e
entra no local em que o público se encontra e como se veste e se despe um personagem. Nos
bastidores da congada ocorre o aprendizado dos papéis sociais e o respeito às hierarquias, ou
seja, são nas situações em que o público está ausente que acontece a internalização dos papéis
que são desempenhados perante a platéia.
Nos momentos de bastidores, o grupo não veste suas fardas, expressão congadeira que
se refere ao uniforme do terno, não utiliza todos seus instrumentos musicais e as relações
hierárquicas entre os músicos, dançadores e capitães são mais tênues, apesar de essas relações
serem aprendidas nestes momentos. Já na presença do público, notam-se os componentes do
terno portando seus uniformes e uma organização hierárquica com o capitão ocupando o
posto máximo.
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CAPÍTULO 3
Ritualização e mito na festa do Rosário
O tema ritual tem sido largamente discutido na antropologia desde os clássicos
Durkheim e Mauss. A bibliografia sobre esse assunto é vasta e bem diferenciada, por isso, ao
eleger os autores que me pautariam nesta pesquisa, tomei cuidado para que essa escolha fosse
capaz de evidenciar a dinâmica da congada. Victor Turner (1967), é um dos que se destacam
no estudo dos rituais. Em seus trabalhos perpassam tanto a definição conceitual quanto a
discussão das características do ritual. Para o autor, os ritos são geralmente organizados em
ciclos de performances e em cada momento do ciclo haveria um núcleo básico e dominante de
símbolos, que seria caracterizado por sua posição central na performance ritual. Na concepção
de Turner, os rituais podem ser de várias modalidades – passagem, contingenciais e cíclicos –,
e o elemento alegórico seria a menor parte de um rito e se expressaria em atividades, relações,
gestos, objetos, eventos etc.
Ao estudar os rituais Ndembu, Turner (1967) deu atenção especial para a questão dos
conflitos sociais. Suas argumentações sobre ritual são úteis para interpretarmos a festa de
Nossa Senhora do Rosário, principalmente se levarmos em consideração os conflitos inerentes
aos processos de constituição e continuidade da festa na contemporaneidade. Para Turner, os
símbolos estão em constante movimento, e é justamente essa idéia de movimento que me
auxilia no estudo da congada. O autor enfatiza a importância dos rituais para compreensão da
vida social e afirma que “qualquer que seja a sociedade na qual vivemos, estamos ligados uns
aos outros, e nossos grandes momentos são grandes momentos para os outros também.”
(TURNER, 1967, p. 36).
Ainda segundo este autor, dois tipos de correlacionamentos humanos justapostos e
alternantes. O primeiro é o da sociedade estruturada e o segundo é o da sociedade considerada
como um “comitatus” não estruturado, uma espécie de comunidade. Para ele, o estado de
communitas apresenta-se como possibilidade de romper provisoriamente com os papéis
instituídos. Turner (1974) concebe a sociedade como um processo dialético, com fases
sucessivas de estruturas e communitas. Para o autor, o conceito de conflito passou a
relacionar-se com o conceito de estrutura social, desde que a diferenciação das partes tornou-
se oposição entre as partes, e a situação insuficiente se torna objeto de lutas entre pessoas e
grupos que pretendem alguma coisa. Na perspectiva de Turner, a communitas se torna
evidente quando justaposta à estrutura ou pela “hibridização” entre communitas e estrutura.
Em outros termos, a communitas pode ser apreendida por meio de suas relações com as
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estruturas.
Na perspectiva do autor nenhuma sociedade pode funcionar adequadamente sem a
dialética entre estrutura e communitas. Assim, mesmo nas menores sociedades distinção
entre estrutura e communitas, e esses dois elementos “juntos constituem a condição humana,
no que diz respeito às relações do homem com seus semelhantes” (TURNER, 1974, p. 159).
Daí a necessidade de conceber a vida social como um processo, ou uma multiplicidade de
processos, em que o caráter de um tipo de fase difere da outra fase. A idéia de processo ritual
desenvolvida por Turner (1974) é adequada para entendermos a série de momentos da
congada, que muitas vezes ultrapassam o âmbito público e que evidenciam situações
extraordinárias e de ruptura da vida cotidiana. Turner (1967, p. 49) define ritual da seguinte
forma:
Por ritual, entendo o comportamento formal prescrito para ocasiões não devotadas à
rotina tecnológica, tendo como referência a crença em seres ou poderes místicos. O
símbolo é a menor unidade do ritual que ainda mantém as propriedades especificas
do comportamento ritual; é a unidade última de estrutura especifica em um contexto
ritual. (...) um símbolo é uma coisa encarada pelo consenso geral como tipificando
ou representando ou lembrando algo através da posse de qualidades análogas ou por
meio de associações em fatos ou pensamentos. Os símbolos que observei no campo
eram, empiricamente, objetos, atividades, relações, eventos, gestos e unidades
espaciais em uma situação ritual. (...) Descobri que não conseguiria analisar
símbolos rituais sem estudá-los numa série temporal em relação com seus outros
eventos, pois símbolos estão envolvidos com o processo social.
O autor entende que para compreender os rituais é preciso destacar os símbolos rituais
(menor unidade ritual), e estes devem ser estudados levando-se em consideração os contextos
em que eles estão inseridos. Nos estudos de Turner é enfatizado o poder do ritual e dos
símbolos, as idéias de conflitos, crises, movimentos e dramas. Além disso, ele destaca o lugar
da ambigüidade e da liminaridade na análise da vida social e rejeita os modelos explicativos
estáticos. É por isso que ele procura acompanhar os movimentos surpreendentes da vida
cotidiana e se interessa por momentos de suspensão de papéis sociais. Nessas situações,
denominadas communitas, as pessoas se vêem frente a frente, como membros de um mesmo
tecido social. Através dos rituais, onde os elementos do cotidiano se reconfiguram, recriam-se
universos sociais e simbólicos.
DaMatta (1987), numa perspectiva diferente da de Turner, concebe ritual como uma
representação social no sentido teatral. Para o autor, os rituais são marcados por momentos de
suspensão das regras cotidianas e por alterações das posições estabelecidas estruturalmente
pela sociedade. Embora esta interpretação de ritual nos possibilite refletir sobre o desfile
público dos ternos no domingo, ou seja, sobre os aspectos mais visíveis da festa em que
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ocorre a inversão de papéis sociais e a suspensão da ordem estabelecida, ela é insuficiente
para explicar a totalidade do processo ritual: as visitas, os leilões, a preparação e os conflitos.
São justamente os aspectos menos visíveis da festa que segundo Silva, J. C. (2000, p. 87),
“criam um espaço simbólico de interações que amplia o sentido do ritual, ultrapassando o
mero festejo folclórico, ou a inversão de papéis sociais estruturalmente estabelecidas no
cotidiano”.
No caso da congada é preciso considerar não o que os sujeitos fazem, mas também
o que eles dizem fazer. O dilema entre o que os sujeitos fazem e o que os sujeitos dizem fazer
é uma questão que perpassa a maioria dos estudos em ciências sociais. Esse dilema diz
respeito ao longo período em que persistiram, nos estudos antropológicos e nas ciências
sociais de modo geral, as análises dicotômicas, como, por exemplo, magia versus religião e
mito versus rito. Nesta última dicotomia, o mito refere-se ao plano do pensamento e é
considerado superior ao rito que se relaciona com a prática. Peirano (2001) propõe focalizar o
que os sujeitos fazem, tanto ou mais do que dizem fazer. A autora parte da perspectiva
durkheimiana, que vê nos cultos e rituais verdadeiros atos de sociedade, nos quais são
reveladas visões de mundo dominantes de determinados grupos. Na concepção de Peirano
“não é possível, portanto, separar o dito e o feito, porque o dito também é feito” (p. 8).
Peirano (2001, p. 4), em suas reflexões sobre a importância dos rituais nas sociedades
contemporâneas, fornece-nos algumas orientações que podem ser usadas na interpretação da
festa de Nossa Senhora do Rosário, em Uberlândia. A autora faz as seguintes observações:
Rituais são tipos especiais de eventos, mais formalizados e estereotipados e,
portanto, mais suscetíveis à análise porque são recortados em termos nativos. (...)
Eventos em geral são por princípio mais vulneráveis ao acaso e ao imponderável,
mas não totalmente desprovidos de estrutura e propósito se o olhar do observador foi
previamente treinado nos rituais.
Essa definição de ritual pressupõe uma formalização estrutural dos eventos rituais e
isso contribui para torná-los menos vulnerável aos imponderáveis do acaso. No caso da
congada, uma repetição ritualística organizada em função do mito de Nossa Senhora do
Rosário. Peirano faz uma discussão a respeito da definição de ritual que abre horizontes para
uma interpretação mais aberta da congada, construída a partir das definições de congada dada
pelos próprios congadeiros e moçambiqueiros. Nessa perspectiva, é ritual o que os
interlocutores em campo definem como tal.
O ritual pode ser concebido como uma porta
heurística de compreensão de aspectos mais amplos da vida social.
O ritual da congada nos possibilita interpretarmos, por exemplo, as relações entre
brancos e negros na cidade de Uberlândia, bem como, as inflexões raciais e de poder que
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ordenam essas relações e organizam os espaços morais e políticos da cidade. De acordo com
Peirano (2001), a definição de uma prática como ritual depende diretamente do grupo que
vive e significado para tal prática. Assim sendo, cabe ao pesquisador criar estratégias para
desvendar quais são as atividades definidas como especiais pelo grupo estudado. A esse
respeito, a autora afirma que
:
Não compete aos antropólogos definir o que são rituais. “Rituais”, “eventos
especiais”, “eventos comunicativos” ou “eventos críticos” são demarcados em
termos etnográficos e sua definição pode ser relativa nunca absoluta ou a priori;
ao pesquisador cabe apenas a sensibilidade de detectar o que são, e quais são, os
eventos especiais para os nativos
sejam “nativos” políticos, o cidadão comum, até
cientistas sociais. (PEIRANO, 2001, p. 3).
Nessa perspectiva, a definição de ritual é sempre relativa e esta não pode ser
demarcada a priori, é a pesquisa de campo que pode determinar isso. Para a autora, interessa
menos como os intelectuais definem ritual e mais a percepção e a identificação dos eventos
considerados especiais pelo grupo em questão. Segundo Peirano, rituais e eventos ampliam,
acentuam e sublinham o que é comum em uma sociedade. Nesta proposta de estudo de rituais,
o tema clássico da antropologia, desde Durkheim, assume um especial significado teórico e
político, e uma ressignificação contemporânea.
Com relação às interpretações dos mitos, Lévi-Strauss (1978) afirma que é impossível
compreendê-los como uma seqüência continua. O mito não deve ser lido como lemos um
artigo de jornal ou uma novela, da esquerda para direita, linha por linha, pois dessa forma não
chegaremos a entendê-lo. De acordo com o autor, o mito deve ser entendido como uma
totalidade, pois o significado básico do mito não está ligado à seqüência de acontecimentos,
mas sim a grupos de acontecimentos. Afirma o autor que “temos de ler o mito mais ou menos
como leríamos uma partitura musical, pondo de partes as frases musicais e tentando entender
a página inteira.” (p. 68).
Assim como ouvir uma sinfonia, entender um mito exige a capacidade de relacionar
as partes envolvidas. É preciso, nesse sentido, manter a referência de totalidade. Para
compreender o mito de Nossa Senhora do Rosário, por exemplo, aquele fundador da congada,
deve-se considerar que este é recriado constantemente e relembrado nas celebrações. É em
função dele que os grupos elaboram suas práticas e significam seus símbolos. Martins (1997),
ao analisar as diferentes versões do mito de Nossa Senhora do Rosário, destaca três unidades
que persistem nas versões: 1) descrição de uma situação de repressão vivida pelo negro
escravo; 2) a reversão simbólica dessa situação, com a retirada da santa da água ou da pedra,
capitaneada pelos tambores; e 3) a instituição de uma hierarquia e de outros poderes,
72
fundados pelo arcabouço mítico. Em poucas palavras, podemos dizer que o mito fundador
ordena simbolicamente a congada.
Silva, J. C (1997), numa concepção próxima a de Martins (1997), afirma que “uma
leitura possível do mito é a de que agora unidos na adversidade do Novo Mundo, Congos e
Moçambiques poderiam reverter o poder dos senhores brancos” (p. 44). O mito fundador da
congada exerce o duplo papel de unir e diferenciar os grupos. De um lado, o mito atribui
diferenças identitárias entre os ternos, pois é por meio da explicação mítica que se distinguem
os grupos de Congo e Moçambique. De outro, o mito possibilita a construção de uma
identidade congadeira que une Congo e Moçambique em torno de uma experiência histórica –
a escravidão.
3.1 A fé em Nossa Senhora do Rosário: o mito fundador
Interpretar a festa de Nossa Senhora do Rosário implica entender como interage o mito
fundacional e o conjunto de eventos formais que devem ser obedecidos para que os louvores
sejam aceitos pelos santos padroeiros. É preciso compreender como se relaciona mito e rito na
festa, pois a santa aceita as louvações se estas forem executadas seguindo determinados
princípios organizados justamente em função do mito. É a atualização anual do mito através
do ritual que concede à congada a possibilidade de constantes reelaborações na
contemporaneidade.
Para Martins (1997), Nossa Senhora do Rosário, a santa branca padroeira dos negros,
remete-nos ao período escravocrata, momento em que os missionários ocidentais buscaram
catequizar os escravos. Na concepção congadeira, Nossa Senhora do Rosário se fez protetora
dos negros para que os brancos parassem de maltratá-los. O mito de Nossa Senhora do
Rosário é o fundador da congada. Tal mito possui significações variadas que dependem tanto
dos interesses dos grupos quanto da região em que está sendo contada a história. O mito de
Nossa Senhora do Rosário não é utilizado apenas por congadeiros, ele é freqüentemente usado
por outros grupos da católica e também por adeptos da umbanda e do candomblé, mas em
todos esses espaços a santa é referenciada como protetora dos negros.
Segundo Hall (2003), os mitos têm o poder de moldar nossos imaginários e influenciar
nossas ações, conferindo significado às nossas vidas e dando sentido à nossa história. O mito
de Nossa Senhora do Rosário sentido às vidas congadeiras, além de atribuir significado a
um passado comum a escravidão. Na perspectiva do autor, os mitos fundadores podem ser
definidos da seguinte forma:
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Os mitos fundadores são, por definição, transistórios: não apenas estão fora da
história, mas são fundamentalmente aistóricos. São anacrônicos e m a estrutura de
uma dupla inscrição. Seu poder redentor encontra-se no futuro, que ainda está por
vir. Mas funcionam atribuindo o que predizem à sua descrição do que já aconteceu,
do que era no principio. Entretanto, a história, como a flexa do Tempo, é sucessiva,
senão linear. A estrutura narrativa dos mitos é cíclica. Mas dentro da história, seu
significado é frequentemente transformado. (HALL, 2003, pp. 29-30).
Os significados e sentidos atribuídos às histórias de Nossa Senhora do Rosário são
constantemente renovados e atualizados pelos grupos que revitalizam suas crenças nos dias
atuais através de constantes negociações. Dessa forma, o mito deve ser contextualizado em
relação a outros eventos e às experiências vividas pelos congadeiros na cidade.
Durante a pesquisa conheci várias versões do mito de Nossa Senhora do Rosário e
procurei lê-las e interpretá-las como um todo, ou como uma partitura, para utilizar a expressão
de Lévi-Strauss. Procurei evidenciar na interpretação do mito aquelas idéias que formam o
que denomino de núcleo comum, ou seja, idéias que se repetem na maioria das versões a que
tive acesso direta ou indiretamente. É evidente que há variância, não pela questão da
oralidade, mas também pelo fato de as histórias receberem inflexões locais. De acordo com
Lima (2003, p. 80), a disseminação da católica no território americano não acomoda uma
história de mão única: “Apropriados de modos diferentes pelas diferentes populações seus
ícones e imagens sofrem ressignificações e, nesse processo, passam a constituir outras
referências que os confirmam sim, mas abrigando novos sentidos”.
.As versões do mito se organizam em torno dos seguintes unidades estruturais: 1)
Nossa Senhora do Rosário aparece num determinado local; 2) rios grupos de brancos e
negros tentam tirá-la; 3) Apesar das inúmeras tentativas a santa retorna ao local em que
apareceu; 4) Os grupos de Congo tentam tirar a santa; 5) Nossa Senhora do Rosário sai, mas
quando lhes dão as costas ela volta; 6) Os negros mais velhos, organizados no terno de
Moçambique, com sua cantoria e dança cadenciada, conseguem retirar a santa e esta se senta
num tambor do Moçambique
As versões do mito serão utilizadas para apresentar uma espécie de liturgia da festa de
Nossa Senhora do Rosário e para identificar os símbolos que diferenciam os agentes da
congada. Indico, a seguir, dois blocos de versões do mito de Nossa Senhora do Rosário. O
primeiro deles refere-se às versões que obtive diretamente em pesquisa de campo, por meio de
entrevistas e observações participantes. O segundo bloco é basicamente composto por dados
de outros pesquisadores da temática. Nesse bloco versões do mito apresentadas em
trabalhos etnográficos elaborados em outros contextos. Apresentar as versões do mito dessa
forma é uma estratégia para estabelecer comparações, indicando, minimamente, semelhanças
74
e diferenças entre as versões coletadas. Além disso, também é possível inferir que um
núcleo comum que predomina nas diferentes versões, em várias localidades brasileiras.
3.2 Versões obtidas no trabalho de campo
As versões apresentadas nesse bloco foram adquiridas a partir de entrevistas e
observação participante nos ternos Moçambique Camisa Rosa de Ituiutaba, MG, e
Moçambique de Belém, de Uberlândia, MG. A primeira versão aqui apresentada é bem
significativa para mim, pois ela foi obtida em meu estágio inicial de interação no
Moçambique de Belém. Essa versão não levanta pontos importantes para compreender a
congada como também representa o início de minha inserção no grupo. Através dela pude
apreender melhor a congada e notei que a entrevista seria um recurso muito importante em
meu trabalho. Entretanto, percebi que o diálogo é um processo lento e que passa pelo grau de
aceitação que o pesquisador (a) tem no campo. Vivenciei situações em que o entrevistado
congadeiro, ao ser perguntado sobre determinado tema, dava apenas noções gerais, sem
aprofundar nenhum aspecto; em outras, ele não respondia ao que havia sido perguntado, mas,
na medida em que uma relação de confiança era construída, o pesquisado fornecia mais
informações. Nesse sentido, a interlocução ocorre no tempo e nas condições do congadeiro, é
ele quem define o que o pesquisador deve saber e em que momento isso acontecerá. É no
universo sagrado do congadeiro que é possível interpretar a congada, mas isso acontece
gradativamente e é um exercício contínuo de paciência, marcado por idas e vindas, avanços e
retrocessos. A pesquisa não se define por um movimento linear; ao contrário, sua
característica básica é a de ser cíclica e nesse sentido se aproxima do mito. Silva V.G. (2000,
p. 41), faz as seguintes colocações a despeito das relações estabelecidas entre pesquisado e
pesquisador, evidenciadas na situação de pesquisa:
(...) a entrevista é um momento privilegiado para a troca de informações e de
percepções entre as pessoas que dela participam. Estabelecer uma relação de
confiança favorável à suas realização, é, muitas vezes, um processo complicado,
exaustivo e que exige um conhecimento mínimo de certas etiquetas e códigos do
grupo.
Durante a realização das entrevistas, observei que perguntas diferentes tiveram muitas
vezes a mesma resposta o mito. Notei que o mito é acessado como explicação para tornar
inteligíveis diferentes situações que o grupo estava vivenciando. Esse é um aspecto que
considero relevante, pois indica o quanto o mito é significativo para os grupos e como ele é
utilizado para explicar e dar sentido às práticas congadeiras. O mito é, na verdade, uma forma
75
de interpretar as situações vivenciadas pelos negros em suas experiências diásporicas no
Brasil. O mito ilumina a compreensão do passado no presente e abre inclusive possibilidades
para o futuro.
Na realização de uma entrevista, perguntei ao capitão Ramon Rodrigues quais eram as
principais funções do Moçambique na festa de Nossa Senhora do Rosário e ele assim me
respondeu:
Versão 1
O terno de Moçambique possui as principais funções dentro da festa de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito. No Domingo, o terno pega as bandeiras de
Nossa Senhora do Rosário e o Benedito e leva até à igreja. Logo após hasteia,
levanta e desce as bandeiras. Na medida do possível o terno de Moçambique, leva e
busca o reinado no Domingo. (...) Todas essas funções o Moçambique recebeu por
ter conseguido retirar a santa (Titulada de Nossa Senhora do Rosário, Nossa
Senhora Aparecida ou ainda Imaculada Conceição como é conhecida em Portugal)
da gruta. A história foi assim: Os ternos de Congos entoavam cânticos, se
ajoelhavam para Nossa Senhora. Quando ela chegava na porta da gruta, os ternos
de Congos viravam as costas e saíam cantando e Nossa Senhora retornava para
dentro da gruta. Então, veio o terno de Moçambique com um batido diferente,
usava sabugos de milho e guizos amarrados nas canelas que dava um batido todo
diferente dos demais. Quando Nossa Senhora chegou na porta da gruta os
moçambiqueiros se levantaram e saíram de costas, até Nossa Senhora se posicionar
fora da gruta. Eles cantavam e posicionava Nossa Senhora à frente do terno que é
o Moçambique.
(Ramon Rodrigues, capitão do terno Moçambique de Belém, 2002)
O capitão justifica as funções atribuídas ao terno de Moçambique recorrendo ao fato
de ter sido esse grupo que retirou a santa da água. É por isso que o Moçambique tem o
privilégio de conduzir o reinado e a coroa de Nossa Senhora do Rosário, levantar e descer o
mastro. De acordo com o relato, os ternos de Congo também tentaram, porém inutilmente,
retirar a santa da água. Nossa Senhora do Rosário gostou do batido diferente do Moçambique
e por isso seguiu com ele e a partir daí não fugiu mais.
A segunda versão foi narrada por Alberto, um outro membro do Moçambique de
Belém. Alberto, diferentemente de Ramon, não é capitão, mas é um dançador respeitado do
grupo, pois já dança há muitos anos no terno. Geralmente os dançadores dos ternos de
Moçambique portam bastões de entrechoque, utilizados na coreografia das danças e para
proteger Nossa Senhora do Rosário. Os filhos de Alberto, desde criancinhas de colo, são
socializados no universo congadeiro e acompanham a festa pelas ruas da cidade, dançando
com seus bastões e louvando sua santa de devoção. As observações do dançador também nos
remetem ao mito de Nossa Senhora do Rosário e trazem elementos novos à interpretação. Em
conversa com Alberto, perguntei por que Nossa Senhora do Rosário era tão louvada e
cultuada nas festas de congada. Numa resposta bem próxima a de Ramon, o dançador me
76
disse assim:
Versão 2
Segundo os mais antigos, Nossa Senhora do Rosário estava dentro de uma pedra.
Por isso que eles falam que o Moçambique puxa a coroa. Estava lá, os negros
encontraram ela, pegaram ela e levaram ela, de novo ela retornou outra vez. E foi
assim, eles bateram, bateu. E os moçambiqueiros chegou, bateu, cantou e tirou ela,
levou e ela ficou. Por isso que eles falam é o Moçambique que puxa a coroa, o
moçambiqueiro é que leva a coroa. Tanto é que quem levanta os mastros de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito é dois Moçambique. Ou o Moçambique de
Belém levanta Nossa Senhora do Rosário ou nós levantamos o Benedito. Sempre
é dois Moçambique. (...) o terno de Congo é um complemento e o Moçambique faz o
firmamento. Nós cantamos diretamente ligados tanto na santa quanto no São
Benedito. (o grifo é meu). Tanto é que nós temos uma letra que fala que ele é santo
padroeiro, ele foi cozinheiro. São Benedito foi cozinheiro, mas hoje ele é santo
padroeiro. A diferença do Moçambique com o Congo é muito grande. Se você for
aprofundar mesmo bem diferente, nos ritmos, nas cultuações também em tudo, até
mesmo além do que as pessoas conhecem. Se você aprofundar até nos versos que
nós cantamos é diferente. (...) é nós que puxamos a coroa. Dificilmente um rei é
puxado por um terno de Congo. Nós temos a forma de entrar dentro da casa, saí,
por exemplo, s entramos de frente, mas saímos de fasto. Não damos as costas
para a santa. Não fazemos volta, do jeito que nós entramos, nós saímos. Nós
entramos de frente e saímos de costas. E quem puxa a coroa mesmo é o
Moçambique.
(Alberto Alves Gonçalves, dançador do Moçambique de Belém, 2003).
Em ambas as versões, o mito é utilizado para justificar a posição simbolicamente
superior reivindicada pelos ternos de Moçambique. Alberto faz menção também à devoção a
São Benedito –“o santo cozinheiro” e indica algumas diferenças entre os ternos de
Moçambique e de Congo. Além disso, o dançador afirma que o Moçambique não faz volta e
não pode dar as costas para a santa, pois foi justamente esse fato que fez com que Nossa
Senhora do Rosário seguisse o terno de Moçambique. É recorrente nos ternos de Moçambique
a postura de entrar de frente e sair de costas, numa tentativa constante de não dar as costas
para a santa. Essa postura muitas vezes ao Moçambique a fama de mandingueiro e negro
esperto.
A terceira versão foi relatada por Francis Luce, do terno Moçambique Camisa Rosa,
de Ituiutaba, MG. bastante semelhança entre essa versão e as duas primeiras, apesar de
serem contadas por membros de ternos diferentes. É importante deixar claro que um
trânsito de informações entre Ituiutaba e Uberlândia, por dois motivos que considero
essenciais. Primeiro, é importante destacar que as cidades são próximas, cerca de 130
quilômetros separam uma da outra. Em segundo lugar, uma rede de parentesco e amizade
que liga os congadeiros dessas cidades. Perguntei a Francis o que diferenciava os ternos de
Congo e de Moçambique e ele me respondeu o seguinte:
77
Versão 3
O terno de Congo dentro da festa da congada, ele tem uma função policial. Por que
a congada na verdade, simboliza a coroação de um rei Congo. Cada tribo africana,
eles tinham um rei, e onde faziam esta coroação. E os ternos de Congo ele faziam
todo aquele policiamento de todo esse cortejo que acontecia. o terno de
Moçambique, dentro da congada ele vem como um terno que ele na verdade, ele faz
tipo o cortejo. Ele vai carregar a santa, e vai fazer uma dança, mais coreográfica
que a do Congo. O Moçambique, sempre tem aquela função de carregar Nossa
Senhora do Rosário, pelo fato de ter sido um terno de Moçambique que retirou a
Santa da água e levou até a igreja. Então sempre em todas essas festas de
congadas, sempre é um terno de Moçambique que tem responsabilidade de
conduzir Nossa Senhora do Rosário.
(Francis Luce, Moçambique Camisa Rosa, 2002).
Esta versão define nitidamente as funções e diferenças estabelecidas entre os ternos de
Congo e de Moçambique. também a constatação de que a congada representa a coroação
de um rei congo e que essa era uma celebração que ocorria na África e é trazida para o Brasil
com os escravos. A visão do moçambiqueiro Francis é bem particular e deve-se considerar
que Francis há alguns anos tem pesquisado a congada e a irmandade de Ituiutaba. Ele realizou
entrevistas, consultou atas e documentos antigos da irmandade e reconstruiu as relações de
parentesco das famílias, inclusive a dele, que fundaram a congada na cidade. Nessa versão e
nas outras apresentadas anteriormente, o mito fundador estabelece as funções que os ternos
devem cumprir durante a realização do ritual.
3. 3 Versões obtidas em trabalhos etnográficos
Nesse bloco apresento algumas versões do mito de Nossa Senhora do Rosário
adquiridas em trabalhos etnográficos que discutem a congada de Uberlândia e de outros
contextos. As versões quatro e seis foram obtidas no trabalho de Leda Martins (1997) sobre a
comunidade dos Arturos, em Contagem, interior de Minas Gerais, a versão cinco foi transcrita
do trabalho de Silva, J. C. (1997) sobre o Bairro Patrimônio, de Uberlândia, e a versão sete é
da pesquisa de Brandão (1985), em Catalão, GO. Essas versões se assemelham em alguns
aspectos às versões que obtive em minha pesquisa nos ternos de Moçambique no Triângulo
Mineiro.
Versão 4
Antigamente, minha falecida mãe, que Deus a tenha, contava pra nós estórias de
santo. Ela contava um lenda que na época dos escravos aconteceu de verdade. Uma
vez Nossa Senhora do Rosário apareceu para os escravo, era na época da
escravidão. Um escravo mandou o seu filho ir à mina d'água que ficava perto do
mar, buscar água. Quando o menino chegou na mina ele viu uma luz muito forte no
mar. Ele olhou, olhou e parou pra olhar bem. Ele sentiu que era uma moça com
78
uma criança no colo que estava dentro do mar. Ele voltou correndo, chamou pelo
pai, e disse na língua deles que tinha uma senhora no mar, se afogando com uma
criança no colo. O pai dele não acreditou nele e foi verificar. Ele chegando,
avistou a senhora no mar, a coroa dela brilhava demais, parecia uma luz muito
forte. Então aquele escravo foi na fazenda do sine comunicou o sinhô. O sinhô
não acreditou nele e mandou dar chibatada nele. Aí ele falou: pode batê, sinhô pode
me dar chibatada, mas a virgem afogano no mar. O sinhô então preparou uma
romaria de gente branca pra ir retirar a santa do mar. Quando chegaram e
viram a santa se afogando começaram a rezar e cantar em voz alta pra santa.
Conseguiu tirar ela do mar e levar ela pra fazenda, fez um altar e colocou ali a
santa. Depois da reza foram dormir. No outro dia ele procurou pela santa e a santa
não estava. Achou que os escravo tinha roubado a santa e mandou bater nos
escravo. Quando os escravo, chorando, disse que não era eles, ele voltou ao mar e
viu que a santa estava quase se afogando. De novo levou pro altar e ela voltou a
fugir. Quando viu que ela não queria aceitar eles, deixou os escravo tentar. Os
escravo se reuniu e fez tambores, forrado com folha de inhame. Eles pegaram a
madeira, cortaram redondo, trançaram com embira de banana, foram no brejo e
pegaram folha de inhame pra cobrir os tambor. Primeiro foi a guarda de Congo,
enfeitou-se bem e foi dançar pra ela, mas ela não saiu da água. Ela achou muito
bonito mas ela não saiu. Então os escravo mais velho ajuntou todos os escravo,
velho e novo, preparou uma guarda de Moçambique e foi dançar pra ela. Era a
mesma gente, as caixa era as mesma, mas o canto e a dança era diferente. Quando
eles dançaram pra ela, no jeito diferente que tem o Moçambique de dançar, ela
olhou muito pra eles. Eles foram entrando no mar, cantando pra ela, levando o
bastão perto dela. Eles cantavam pra ela assim:
Ô, vem Mariá
Já com Deus,
Vem Mariá
E foi chegando, foi chegando com o bastão perto dela, assim, e ela segurou no
bastão; quando ela segurou no bastão, eles cantou pra ela:
Ô, vamos Mariá,
Já com Deus,
Vamos Mariá
Ela segurando naquele bastão, eles conseguiu puxar ela para fora do mar,
forraram então um dos tambor com um pano branco que eles carregavam no
ombro e ela sentou cima daquele tambor, em cima do tambor Nossa Senhora do
Rosário está sentada. E ela ficou sendo a padroeira de toda a raça negra, a nossa
mãe. (o grifo é meu) E a água indo pra lá e eles vindo pra cá. Por isso Moçambique
é o dono coroa porque tirou Nossa Senhora do mar e sentou ela nos seus tambor.
E eles carregava devagarim, devagarim, cantando:
Olê, vamo devagá
Olê, vamo devagá
Moçambique não pode corrê
Moçambique não pode corrê
Olê, vamo devagá
(D. Alzira Germana Marfins, 65 anos, rainha de Nossa Senhora das Mercês da
Irmandade de N. S. do Rosário do Jatobá. Entrevistas gravada em 05/07/92 e
03/04/96)
Nessa versão, fica explícito o entendimento de que Nossa Senhora do Rosário é
considerada padroeira e protetora da raça negra. A santa não se deixa capturar pelos louvores
nem aceita a capela construída pelos brancos na fazenda. Ela se recusa a ser entronizada num
79
local em que predomina a escravidão, por isso, todas as vezes que a levaram para a capela
construída pelos brancos ela fugiu para água e demonstrou sua rejeição aos maus tratos que os
escravos sofriam. As constantes fugas da santa criam, segundo Lima (2003, p. 73) “se não
uma identidade, pelo menos uma afinidade entre a santa e os escravos, dada, em ambos os
casos, pelo desejo, feito fuga, de escapar ao terror do cativeiro escravista”.
Ao analisar essa variante do mito, mais uma vez percebe-se a importância que a
música possui nas narrativas sobre Nossa Senhora do Rosário. Tem-se a visão de que a santa
saiu da água pelos toques e danças dos moçambiqueiros. Nesse sentido, a música atua como
um elemento identificador dos ternos. Acredito que a relevância que a música tem na congada
refere-se justamente à sua função no próprio mito fundador. As músicas, assim como a dança,
são concebidas pelo grupo como formas de linguagem. Há, entre os congadeiros, o
compartilhamento da idéia de que o Moçambique deve andar devagar e não pode correr,
porque esse foi um dos motivos que encantou Nossa Senhora do Rosário e a conduziu ao
tambor do Moçambique. Em algumas regiões, como, por exemplo, Contagem, MG, o tambor
em que a santa sentou é chamado de candombe e tem inclusive rituais internos, fechados aos
não congadeiros, com a presença desse tambor. Em Uberlândia, o termo candombe não é
muito utilizado entre os ternos.
É bastante comum associar o ritmo compassado do Moçambique à retirada da santa
da água. Isso é percebido nas falas dos moçambiqueiros, quando esses afirmam
constantemente que o toque do Moçambique é mais cadenciado do que o de Congo e por isso
eles podem dançar mais. Essa questão do ritmo é bastante debatida contemporaneamente.
Alguns ternos mais antigos não admitem mudança no ritmo em hipótese nenhuma, os mais
novos cada vez mais incrementam e repicam os ritmos. Esse choque chega a casos extremos
de cisão de ternos. também aqueles congadeiros mais velhos que acham que as idéias
novas devem ser incorporadas à tradição. Certa vez uma madrinha da bandeira de Uberlândia
revelou-me: a gente precisa de coisa nova, estou cansada de arroz com feijão. O jovem é a
mistura diferente. Na fala da madrinha nota-se uma tendência em considerar positivas as
mudanças introduzidas por gerações diferentes.
A versão seguinte é apresentada por Silva, J. C. (1997), em seu trabalho sobre os
ternos de Moçambique do Bairro Patrimônio, de Uberlândia. Essa versão foi narrada pelo
moçambiqueiro Lázaro e nela um conjunto de termos utilizados nas religiões afro-
brasileiras. Ao analisar essa versão nota-se que na congada as religiões afro-brasileiras e o
catolicismo popular se expressam constante e concomitantemente:
80
Versão 5
A santa (Nossa Sra. do Rosário) foi achada, vieram os ternos de Congo cantando e
acharam a santa, mas eles tocavam, tocavam, pegavam a santa e não tinha conta de
tirar. E tinha um egum ou satanás, que não deixava tirar e veio um moço com gunga
e atraiu, quando ele viu estava com o Congo. Em qualquer canto do Brasil o
Moçambique é poderoso. No Moçambique todos os soldados usam bastão, o Congo
também usa bastão, mas no Moçambique todos os soldados tem que usar, no Congo
não, e o bastão deve ser feito de aroeira ou jacarandá, madeira de lei. O meu
bastão foi madrinha Irene que me deu, passou para mim num ritual, ela me deu um
decar, recebi de madrinha Irene (apontando para o bastão de jacarandá).
(Seu Lázaro, Moçambique Pena Branca, Uberlândia)
Seu Lázaro é um antigo morador do Bairro Patrimônio e atual capitão do terno
Moçambique de São Benedito, localizado no Bairro Feliz, em Goiânia, GO. Em seu relato, ele
diz que ganhou seu bastão da madrinha Irene
33
, na celebração de seu decar. Nos cultos afro-
brasileiros o deca ou decar é uma cerimônia em que um chefe de terreiro concede a um (a)
ebome (filho ou filha de santo com sete anos de iniciação), o cargo de babalorixá ou ialorixá.
Após essa celebração, o filho tem autonomia para abrir sua própria casa e pode ministrar o
jogo de búzios. Seu Lázaro, além de capitão do terno Moçambique de São Benedito, é
também pai-de-santo e cuida da espiritualidade de seu terno. O caso dele é bem representativo
das redes que a festa da congada forma, pois Seu zaro participa da festa de Uberlândia
dançando no terno Pena Branca e ainda possui parentes em outros ternos da cidade.
A próxima versão, apresentada por Martins (1997), além de discutir os aspectos
anunciados anteriormente, aponta outros que contribuem bastante para a interpretação da
congada. A versão ressalta o desgosto da santa ao ver o sofrimento dos negros e, o que é mais
interessante, é narrada por um menino de oito anos.
Versão 6
Um dos negos foi pescar na beira do mar. Aí ele viu Nossa Senhora do Rosário
nas águas do mar. Ali ele chamou os nego, que foram cantar e rezar pra ela,
batendo tambor. A Nossa Senhora foi acompanhando eles. Eles fizeram uma choça
coberta de sapé. Então o chefe deles viu e mandou bater neles e Nossa Senhora do
Rosário viu eles apanhando e começou a chorar e pingou uma lágrima no chão,
nasceu uma flor, aquela flor era um pé de conta-de-lágrima. Por isso que nasceu o
terço de Nossa Senhora do Rosário.
(Ubirajara de Lima Ferreira, Bira; 8 anos, dançante de Moçambique na Irmandade
de N. S. do Rosário do Jatobá. Entrevista gravada em 07/04/96)
33
Madrinha é um termo utilizado nas casas de umbanda como sinônimo de mãe ou zeladora de santo. Madrinha
Irene, é bastante conhecida em Uberlândia e possui vínculos com muitos ternos, entre os quais alguns são
preparados espiritualmente por ela. É importante destacar que o termo madrinha é também utilizado na congada,
mas para indicar a pessoa responsável pelas meninas da bandeira. Em ambos os casos, o termo refere-se à pessoa
respeitada por seu conhecimento e sabedoria.
81
Nessa versão, uma lágrima da santa é transformada numa flor e as sementes dessa flor
– as contas de lágrimas –, são utilizada pelos moçambiqueiros num colar, com o qual
homenageiam a santa. O moçambiqueiro usa no peito um colar de conta de lágrimas cruzado,
fazendo referência às lágrimas que Nossa Senhora derramou pelo sofrimento dos negros. Em
Ituiutaba e Uberlândia os moçambiqueiros usam uma faixa cruzada no peito e por dentro das
fardas um terço e/ou contas ou guias (colares) para orixás, dependendo dos vínculos que os
congadeiros estabelecem com o catolicismo e com as religiões afro-brasileiras.
De acordo com Brandão (1985) as explicações que os congadeiros o para suas
práticas oscilam entre um mito envolvendo fatos supostamente vividos pelos negros escravos,
na África ou no Brasil, e as fórmulas de votos e promessas feitos entre o "brincador" devoto e
Nossa Senhora do Rosário. O autor descreve rias versões do mito, mas, segundo ele,
uma versão, que é a primeira que ele apresenta, que pode ser considerada a mais simples e
generalizada do mito. Ao refletir sobre essa versão do mito fundador, Brandão propõe que se
busque compreendê-la a partir das seguintes unidades a) Uma Nossa Senhora do Rosário é
encontrada no deserto; b) Algumas pessoas resolvem dançar para a santa; c) Os Congos
dançam, a santa sorri e não os acompanha; d) Os Moçambiques dançam, a santa os
acompanha e é colocada em uma igreja; e) A santa retorna ao seu lugar no deserto; f) É feita
uma igreja no local onde a santa foi encontrada. O autor salienta que a versão transcrita a
seguir é contada e recontada com pequenas variações até entre os mais novos.
Versão 7
Eles acharam a Nossa Senhora no deserto, numa loca de pedra, eles acharam ela
lá. Então fizeram uma reunião e eles foram dançar lá. Então o Congo chegou lá,
dançando lá, ela riu, mas ficou quieta. Depois chegou o Moçambique. Chegou
tudo malumbado, um lenço na cabeça, de pés descalços, e aí ela acompanhou. Eles
pegaram, fizeram uma igreja, puseram elana igreja. Ela voltou, ficou lá no lugar
outra vez. Aí, eles pegaram e fizeram a igreja lá no lugar. Isso aí é da antiguidade.
(Capitão de terno de Congo)
Segundo Lima (2003), narrativas como as versões do mito de Nossa Senhora do
Rosário são recorrentes em todo território americano de colonização ibérica. A autora cita, por
exemplo, a origem do santo patrono em San Miguel Acatán, na Guatemala, a aparição de
Nossa Senhora dos Remédios em Cali, Colômbia, e a aparição de Nossa Senhora da Penha em
Pilar, interior de Goiás. O que unifica todas essas histórias é a condição dos protagonistas que
resgatam os santos e as santas, pois em todos os casos são os grupos subalternizados, negros,
índios, garimpeiros ou camponeses, os atores principais das narrativas. Na perspectiva de
Lima, essas histórias “são emblemáticas do catolicismo ibérico disseminado e apropriado
82
pelos vários grupos populacionais que a colonização americana fez interagir, os indígenas
nativos e os africanos, ambos sob o domínio do europeu cristão” (p. 78).
Numa tentativa de síntese, proponho algumas observações gerais sobre o mito de
Nossa Senhora do Rosário. Em primeiro lugar, deve-se destacar que na formação do cortejo,
os ternos de Congo posicionam-se à frente, já que estes exercem função de policiamento, e os
grupos de Moçambique vão atrás, conduzindo Nossa Senhora do Rosário e o casal de rei e
rainha. O Moçambique conduz o casal de rei e rainha por ter retirado Nossa Senhora do
Rosário da água, sendo assim, o Moçambique é considerado um grupo hierarquicamente
superior na organização do cortejo, alguns chegam a dizer que ele é o terno mais importante
da congada. Os ternos de Congo vão à frente, abrindo caminho para os ternos de
Moçambique; os Congos possuem uma dança que se define por movimentos circulares com
os tambores e bastões. Tal dança está diretamente relacionada ao mito fundador e refere-se ao
fato de os grupos de Congo terem virado as costas para Nossa Senhora do Rosário quando
essa saiu da água. Os ternos de Moçambique, ao contrário dos Congos, geralmente entram e
saem dos locais de costas.
Ao observar a congada, notei que a execução das tarefas: levantar os mastros, conduzir
o reinado e Nossa Senhora do Rosário, são funções atribuídas aos grupos de Moçambique. O
mito atua como um estruturador do ritual e é ele que define as posições dos grupos durante as
cerimônias e estabelece quais funções serão desempenhadas por cada terno.
A estrutura terno de Congo/terno de Moçambique repetiu-se em todos os cortejos das
festas que acompanhei, à exceção da cidade de Itumbiara, GO, em que conheci uma estrutura
diferente da encontrada no Triângulo Mineiro. Em Itumbiara, na formação do cortejo havia a
estrutura Moçambique/Congo. Apesar de a estrutura ser diferente –, a justificativa era a
mesma a retirada de Nossa Senhora da água por um grupo de Moçambique, fato que mais
uma vez nos remete ao mito fundador da congada que é significado e particularizado nas
diferentes regiões.
3. 4 Espaços e tempos da festa do Rosário
O ritual da congada é marcado por diferentes tempos e espaços onde as interações
sociais acontecem, o tempo dos leilões e novenas, o espaço dos quartéis, das ruas, das casas,
das praças, dos bairros, das igrejas e dos terreiros.
Os momentos da festa de Uberlândia que mais chamam a atenção pública são os que
acontecem no domingo, dia em que ocorre o desfile dos ternos na Praça Rui Barbosa e a
83
procissão em louvor a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário. Relatarei os momentos da
festa do Rosário a partir das experiências que vivi com o terno Moçambique de Belém.
Em Uberlândia, a festa ocorre atualmente no mês de outubro. Esta data é definida pela
irmandade de Nossa Senhora do Rosário, que escolhe um dia significativo para os
congadeiros. Em Ituiutaba, MG, e Monte Alegre, MG, as festas ocorrem em maio e em
Catalão, GO, a festa acontece próxima a de Uberlândia. Geralmente os membros dos ternos se
encontram em seus respectivos quartéis bem cedo no domingo da festa. O quartel é o local da
preparação para a festa: os homens vestem suas fardas, as meninas da bandeira prepararam
suas roupas e arranjos, os capitães conferem seus bastões e apitos, os músicos afinam seus
instrumentos, as mulheres preparam o almoço, a madrinha ajeita as bandeiras de São Benedito
e Nossa Senhora do Rosário. Enfim, é no quartel que ocorre toda a preparação para as
apresentações públicas que irão ocorrer nas ruas da cidade. Grosso modo, pode-se estabelecer
uma analogia entre os quartéis na congada e os terreiros nas casas de candomblés, ambos são
espaços sagrados em que ocorrem interações e se aprende os fundamentos para se tornar seja
um congadeiro seja um candomblecista.
O quartel do Moçambique de Belém fica na casa de Dona Geralda e de seu filho
Ramon Rodrigues. Este local possui vários espaços, que são ocupados durante o processo
ritual da congada. A casa possui uma garagem, onde o terno se organiza para as saídas; um
cômodo na frente da casa, que é usado nos dias da congada e do carnaval como um bar; e nas
repartições dos fundos há um quarto separado das dependências da casa, em que ficam
guardados os instrumentos musicais. Além disso, também uma casa independente em que
mora uma irmã de Ramon. No espaço do fundo, constituído entre as casas de Dona Geralda e
Ramon, Soraia (filha de Dona Geralda), e o quartinho dos instrumentos musicais, é preparado
o almoço. Durante os dias da festa, nesse espaço é formada uma espécie de tenda, na qual se
improvisam os fogões a lenha em que serão preparadas as comidas. Nesse espaço todo mudo
trabalha, homens, mulheres e crianças.
No Moçambique de Belém acontecem vários momentos de preparação espiritual do
terno
34
. Um deles ocorre no domingo de manhã, antes do terno se posicionar para a saída.
Nesse momento, todos tomam um preparado de ervas, que é também chamado de fecha corpo
ou remedinho, que tem a função de impedir as demandas e as rixas entre os ternos
35
. Todos,
sem exceções, que acompanham o terno, devem tomar o remedinho, que é servido na boca.
34
Práticas semelhantes ocorrem nos ternos de Moçambique Pena Branca e Princesa Isabel de Uberlândia e no
Moçambique Branco de Araguari.
35
A esse respeito ver Lima (2003). A autora relata a recorrência de feitiços e magia no período colonial.
84
Experimentei algumas vezes a bebida de fecha corpo, pois esta é uma condição indispensável
para acompanhar o Moçambique de Belém. Segundo Seu Zezinho, o leiloeiro oficial do terno,
há na bebida: pinga, alho, guiné, e outras ervas. Ramon, ao comentar como acontece a
preparação espiritual do grupo, teceu as seguintes observações:
A nossa preparação ela é mista, porque a gente tem a nossa preparação de católico
e tem a espiritual também! A gente tem o Seu rico que a gente faz a benzição e o
fechamento de corpo e as orações com ele desde quando meu pai fundou o terno.
Tem aquela questão nossa do domingo pela manhã: aquela oração coletiva, e o
remédio que a gente toma para fazendo o fechamento de corpo, o remédio que
traz tanta discussão, que usa é com vinho é com cachaça, usa com negócio e tal!!
Alguns incluem ervas que não tem nada a ver, mas a coisa minimamente eu acho
que ta caminhando!!
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2005)
Ramon afirma que a preparação espiritual do terno é mista, pois há eventos vinculados
às religiões afro-brasileiras e outros de cunho mais católico. É interessante notar que nas
colocações do capitão esses dois universos religiosos se relacionam bem, não se percebe na
fala dele uma tensão ou conflito entre preparar-se espiritualmente no terreiro e na igreja
católica.
O Moçambique de Belém tem, por exemplo, um momento de preparação dos bastões
do terno, que antecede o domingo em que ocorre a festa. É um ritual umbandista em que o
médium
36
e dono da tenda (tio Dôrico), abençoa e benze os bastões do terno, incorporado em
pretos-velhos. Acompanhei esse ritual e obtive permissão para escrever sobre ele. Trata-se de
ritual fechado, acompanhado apenas pelos capitães do Moçambique de Belém e por Dona
Divina. Nesse ritual, a primeira incorporação foi de preto-velho de falange
37
angolana, em
seguida manifestaram os pretos-velhos da linha moçambiqueira, que conduziram os passes
espirituais nos capitães. Neste momento, os capitães tiveram a oportunidade de consultar as
entidades, falar dos problemas que o terno passava, entre outras coisas. Também conversei
com as entidades, elas me benzeram e me prepararam espiritualmente para o trabalho de
pesquisa, as entidades abençoaram inclusive meu material de trabalho, gravadores e máquina
fotográfica.
Tio Dôrico era um velho amigo do fundador do Moçambique de Belém, Seu Siricôco
(já falecido), e faz este trabalho de preparação do terno desde sua fundação. É na tenda que se
prepara o remedinho, com ervas que servem para fechar o corpo, ou seja, proteger os
membros do terno contra as demandas e quizilas da festa. Demanda e quizila são termos
36
Intermediário entre os vivos e as almas dos mortos.
37
Na umbanda falange refere-se à linha de vibração na qual as entidades trabalham.
85
utilizados nos terreiros e por alguns grupos de congada para expressar situações de conflito de
interesse e rixa entre os ternos. Muitas vezes tais situações se manifestam através de magias e
feitiços que um terno manda para outro.
Evidentemente que esta postura do capitão do Moçambique de Belém de preparar o
terno espiritualmente num ritual umbandista não pode ser generalizada, uma vez que há ternos
que buscam cada vez mais se distanciarem de situações que poderiam ser interpretadas como
expressões das religiões afro-brasileiras. A presença dos dois campos religiosos na congada
não implica que os ternos se relacionam da mesma forma com eles. Por um lado aqueles
que querem ser identificados pelo catolicismo, por outro, os que desejam ser marcados
pelo pertencimento a uma tradição religiosa afro-brasileira. E ainda é preciso destacar que há
aqueles que querem ser reconhecidos pelo pertencimento múltiplo e verbalizado aos dois
campos religiosos já mencionados.
Depois desse breve comentário a respeito do ato de benzer os bastões no terreiro,
retorno aos momentos preparativos do Moçambique de Belém que ocorrem no quartel do
terno no domingo da festa. Após o ritual do remedinho, todos se posicionam a frente do
quartel para as últimas instruções dos capitães e para o momento da oração coletiva. Na
estrutura de pergunta e resposta, todos repete três vezes a seguinte oração de preparação,
proferida pelo primeiro capitão:
Cruz deitada responda por nós.
Meus inimigos a retira de nós.
Arreda de nossas casas.
Que tenho três Cristo: São Pedro, São Paulo e São João Batista.
Quem quiser juntar a nós
Venha com a cruz de Cristo
Que nela morreu responda por nós
Cruz deitada responda por nós.
Essa oração de preparação é feita na porta do quartel e é entoada com muito fervor
pelos membros do terno. À medida que eles repetem a oração ela vai se encorpando e
ganhando cada vez mais força. Após a oração, os capitães conversam com os membros do
terno e pedem seriedade durante a realização da festa. Além disso, os capitães chamam
atenção para os moçambiqueiros não exagerarem nas bebidas alcoólicas, pois eles precisam
dar uma boa imagem da congada e mostrar o quanto suas louvações são importantes e sérias.
O remedinho e a oração coletiva marcam a preparação espiritual do domingo da festa. A
primeira mais vinculada aos princípios das religiosidades afro-brasileiras e a segunda mais
próxima ao catolicismo popular. As duas preparações objetivam basicamente a mesma coisa:
fechar o corpo e livrar os membros do terno dos inimigos.
86
Após a oração coletiva as meninas levam a bandeira dos santos devocionais, o
estandarte do terno (bandeira identificadora do grupo) e os capitães pedem licença, através
de músicas, para conduzirem a bandeira para o desfile. A bandeira sagrada dos santos
padroeiros irá para as ruas e por isso deve-se pedir licença para retirá-las do recinto sagrado.
As músicas de licença normalmente seguem o esquema dos versos abaixo, que vão se
combinando de diferentes formas, de acordo com a improvisação do capitão.
Solo: Licença me dê, licença me dá, Moçambiqueiro já vai adorar.
Coro: Olé, lê, lê, lê, já vai adorar.
Solo: Nas horas de Deus não pode parar, irmandade não pode parar.
Coro: Olé, lê, lê, lê, não pode parar.
Solo: Bandeira santa me ensina caminho, em nome de Deus me ensina caminho.
Coro: Olé, lê, lê, lê, me ensina caminho.
À medida que esses versos são cantados e repetidos gradativamente, o terno vai se
organizando para a saída do quartel. Os ternos de Moçambique, que são partes integrantes da
congada, organizam-se de forma diferente dos demais ternos da festa. Cada agente possui
símbolos que os diferencia segundo as funções determinadas, que devem ser cumpridas.
Quando me refiro aos demais ternos, considero os ternos de Congo, Marinheiro, Catupé,
Vilão e Marujo. A forma do terno se organizar após a retirada da bandeira do quartel não é
aleatória. uma maneira determinada de estruturação, em que cada um sabe onde ficar e a
quem obedecer durante o ritual.
Através do acompanhamento no terno Moçambique de Belém, pude elaborar um
quadro que possibilita compreender a estrutura espacial de um terno de Moçambique e a
relação que se estabelece no momento ritual entre: agente, símbolo e função. Atualmente
podem-se acrescentar outros atores a esse quadro, mas farei isso num outro momento, em que
me dedicarei especificamente ao entendimento de como atuam esses novos atores na festa da
congada hoje.
87
Quadro 1: Setores e atores de um terno de Moçambique
Atores que compõem
os setores do terno
Símbolos e instrumentos
utilizados
Função dos atores
Meninas
Bandeira
Conduzem a bandeira de
Nossa Senhora do Rosário,
São Benedito e a bandeira
identificadora do terno.
Setor 1
38
:
Meninas da Bandeira
39
Responsável: Madrinha
Madrinha
Bandeira
Organiza e coordena as
meninas que conduzem a
bandeira. É uma espécie de
capitã das meninas.
Dançadores Bastões, chapéus e faixas
cruzadas no peito.
Dançam com os bastões e
utilizam esses bastões como
instrumentos que protegem
Nossa Senhora do Rosário.
Dançadores
(Gungueiros)
Bastões, chapéus, faixas
cruzadas no peito e
gungas.
Dançam, tocam as gungas e
fazem coreografias com os
bastões. Além disso,
auxiliam na composição do
ritmo característico do
Moçambique.
Tocadores
(Patangomeiros)
Patangomas, toalhas
brancas amarradas na
cabeça e faixa cruzada no
peito.
Tocam as patangomas e
auxiliam na improvisação do
ritmo do terno.
Tocadores
(Caixeiros)
Caixa, toalhas brancas
amarradas na cabeça e
faixa cruzada no peito.
Tocam as caixas, marcam e
sustentam o ritmo do terno.
Setor 2:
Dançadores e tocadores
Responsáveis: capitães
Capitães
40
Apito, bastões, chapéus e
faixas cruzadas no peito
diferentes dos demais
membros do terno.
Coordenam a organização do
terno, são responsáveis pelo
bom andamento das músicas
e das danças.
Capitão geral
(general)
Apito, bastão, chapéu e
faixa cruzada no peito
diferente dos demais
membros do terno.
Coordena a organização do
terno, é responsável pelo
bom andamento das músicas
e das danças. O capitão geral
é o grande responsável pelo
grupo, é ele que fala em
nome do terno.
Nota-se que em cada setor do terno um ator responsável pela organização. Essa
organização ocorre em função de códigos que o compartilhados e definidos previamente.
Na festa propriamente dita, estes códigos compartilhados promovem a dinâmica do grupo. No
terno Moçambique de Belém
41
, os atores posicionam-se assim: na frente vão as meninas da
38
Os símbolos dominantes de cada setor estão destacados em negrito.
39
As meninas levam a bandeira dos santos devocionais e o estandarte que identifica o terno. As imagens dos
santos saem às ruas apenas durante a procissão, nos demais momentos rituais as imagens não acompanham os
cortejos.
40
Em algumas cidades como Ituiutaba, por exemplo, o cargo de capitão atrevido, que atua como colaborador
dos capitães.
41
Não podemos generalizar a estrutura de organização do Moçambique de Belém para os demais ternos de
Moçambiques. No entanto, os ternos pesquisados possuem estruturas semelhantes a esta apresentada.
88
bandeira, com a madrinha; logo atrás, os dançadores com seus bastões e gungas; em seguida,
os patangomeiros; e no final os caxeiros. Preparei um esquema que possibilita uma maior
compreensão da estrutura interna de um terno de Moçambique
.
Utilizarei os seguintes
símbolos:
Para músicos (tocadores): /x/ Para dançadores: /. / Meninas da bandeira: /*/
Esquema 1: Organização de um terno de Moçambique
Bandeira dos santos devocionais
Bandeira identificadora (estandarte) do terno
Meninas da bandeira
******
Madrinha das meninas
******
Dançadores com bastões e gungas
. . . . . .
Capitães circulando pelo terno.
. . . . . .
Músicos (tocadores)
x x x x
(patangomas)
x x x x
caixas (tambores)
Segundo as informações que obtive no Moçambique de Belém, a bandeira dos santos
padroeiros pode ser conduzida por meninas virgens. Esse preceito congadeiro gerou
alguns problemas, pois às vezes, quando as meninas deixavam de dançar no terno,
propagavam-se boatos de que elas não eram mais virgens e por isso, não iam dançar mais.
Tais comentários causaram inclusive desentendimentos entre os membros do terno.
Considerando-se que atualmente as meninas iniciam suas vidas sexuais cada vez mais cedo, o
capitão diz que o terno estabeleceu que pode levar a bandeira meninas de até dez anos de
idade.
O esquema apresentado acima foi feito com base na organização dos ternos de
Moçambique estudados, mas é lógico que variações. A idéia de trabalhar utilizando um
esquema é pautada em Brandão (1985), quando o autor apresenta esquematicamente como se
organiza um terno de Congo em Catalão, GO. No caso de Uberlândia os Congos se organizam
mais ou menos assim:
89
Esquema 2: Organização de um terno de Congo.
Meninas da Bandeira
******
Madrinha das meninas
******
Capitães
x . . . . . . . x
x . . . . . . . x
Tocadores
x . . . . . . . x
Dançadores
Bandeira dos santos devocionais
Bandeira identificadora (estandarte) do terno
Essa forma do Congo se organizar facilita a execução de sua dança circular, com os
bastões e os tambores. Nos ternos de Congo geralmente ocorre uma coreografia com os
tambores e esse modo de organização ajuda no desempenho de suas danças. Encontrei
também, como anteriormente mencionado, relatos de que a dança circular do Congo remete
ao mito de Nossa Senhora do Rosário, tendo em vista que esse terno deu as costas para a santa
quando ela saiu da água. Mais uma vez percebe-se que o mito é constantemente recriado para
explicar a congada e é nesse sentido que ele é revitalizado nas práticas cíclicas rituais.
Uma das características mais marcantes dos ternos de Moçambique e que os
diferenciam dos demais grupos é a utilização de determinados instrumentos musicais. Assim,
por serem os instrumentos musicais tão significativos para os Moçambiques e considerados,
inclusive, como seus identificadores perante os demais grupos, farei considerações a esse
respeito. Proponho uma análise dos instrumentos musicais para além da interpretação
musicólogica. Seeger (s/d), em seu estudo sobre classificação dos instrumentos musicais na
etnia Suyá, indica a relevância da classificação dos instrumentos na análise da música de um
grupo. Entretanto, ressalta que a classificação dos instrumentos deve vir acompanhada de
particularidades culturais da comunidade que os utiliza. Nas palavras do autor:
Embora extremamente útil para o registro museológico e louvável pela ênfase à
maneira segundo a qual o som é produzido, a classificação pura e simples de
instrumentos musicais comporta ao mesmo tempo, virtudes e vícios. Um deles é o
isolamento dos instrumentos musicais das outras categorias de elementos da cultura
material. A música é uma faceta da vida social; os instrumentos musicais são parte
integrante da cultura material que, por sua vez, não pode ser isolada dos outros
domínios da sociedade. (s/d, p. 175)
90
A classificação por si não responde às questões sobre o papel dos instrumentos
musicais na congada, pois para tal é necessário entender os eventos em que os instrumentos
estão inseridos. Indicadas as ressalvas do método classificatório, apresento a seguir os
instrumentos dos Moçambiques, como são geralmente classificados pela etnomusicologia, sua
função musical e algumas características relacionadas aos tipos de materiais de confecção
.
Quadro 2: Os instrumentos musicais do terno de Moçambique
Instrumentos musicais Funções Classificação Características
Caixa ou tambor Marcação Membranofone
42
Tambores de madeira cobertos de
pele de animais ou materiais
sintéticos como a napa.
Patangome ou patangoma. Improvisação Ideofone Chocalhos de ferro de forma
arredondada.
Gunga Auxilia na dança
e na improvisação
do ritmo.
Ideofone Guizos de ferro
Apito Coordenação Ideofone Alguns são feitos artesanalmente
de madeira, mas em sua maioria
os apitos são adquiridos
industrialmente.
Bastões de entrechoque Dança, comando,
policiamento e
protetor da santa.
Ideofone Em sua maioria são feitos de
madeira. Possuem adereços como
fitas coloridas e plantas como:
guiné e arruda.
Verifiquei que atualmente nos ternos uma predominância do material sintético em
detrimento do couro na confecção das caixas. Segundo os músicos, ou tocadores, como eles
são identificados entre os congadeiros, os materiais podem ter sofrido modificação, mas o
som continua o mesmo:
O som é o mesmo, mudou a pele. De primeiro, era de carneiro, hoje passou a
pele. A única coisa que modificou. (...) A pele de carneiro dava um som mais limpo,
não é Fabinho
43
? Era um som mais gostoso. Hoje a pele dá um som muito agudo.
Mas o batido é o mesmo, o tom é o mesmo (o grifo é meu). Quando chovia e
molhava o couro sumia o som. Aí tinha que por fogo. Fogo para esticar o couro,
era
aquele trabalho. Daí em diante o finado Siricôco, fundador do terno foi
concordando de mudar para não ser aquele sofrimento igual era. Hoje a pele
furou, troca na hora. O aro arrebenta tem como trocar. De primeiro as coisas
eram mais difíceis.
(Wellington, patangomeiro do terno Moçambique de Belém, 2005).
42
Esta classificação de instrumentos foi baseada na obra de Seeger.
43
Esta entrevista foi realizada no quartel do Moçambique de Belém. Havia vários membros do terno que
também se manifestaram durante a entrevista. E o patangomeiro Fábio Silva foi recorrido várias vezes por
Wellington para confirmar suas afirmações.
91
Na fala do músico percebe-se que o grupo trocou as peles de animais que revestiam as
caixas por materiais sintéticos e isso nos remete novamente à idéia de reelaboração da
congada. Os congadeiros criaram mecanismos alternativos para continuarem fazendo suas
louvações a Nossa Senhora do Rosário. Se contemporaneamente não é mais possível usar pele
de animal como se fazia no passado, então os congadeiros buscaram outros meios para
continuarem a tradição do congado na cidade e utilizam para isso até os meios de
comunicação de massa.
Aos olhos dos não iniciados, torna-se difícil compreender o quanto à música permeia o
ritual da congada. São especificamente os instrumentos musicais que diferenciam um terno
de Congo de um terno de Moçambique. É a música que proporciona a identidade dos ternos,
que os diferencia externamente e os une internamente. “Fazer música para seus ternos parece
trazer implícita a necessidade de diferenciá-los, de reforçar suas identidades perante aos
grupos”. (ARROYO, 1999, p. 121).
O Moçambique de Belém geralmente sai do quartel por volta das 8 horas da manhã e
se dirige à Rua Prata, casa de Seu Dení, o atual presidente da irmandade. eles encontram
alguns ternos de Congo das proximidades para começarem a formação do cortejo. É esperado
que todos os ternos no domingo de manhã visitem a casa do presidente da irmandade, pois
nesse local se encontra não o presidente como também o general da festa. O cargo de
general da congada é vitalício, o atual general da festa de Uberlândia, Jeremias Brasileiro,
recebeu esse cargo no leito de morte do general Tio Cândido que exerceu o cargo até o fim de
sua vida. Segundo Jeremias o general tem várias funções na festa, entre elas está o
recebimento dos ternos na casa do presidente e na igreja do Rosário.
Visitar o presidente da
irmandade é referenciar a hierarquia dessa instituição e reconhecer seu papel histórico no
processo de constituição da congada.
Os ternos se aglutinam na porta casa do presidente, fazem suas homenagens através de
músicas e começam a se organizar para o desfile, que ocorre na Praça Rui Barbosa (Av.
Floriano Peixoto). Essa rie de atividades foi repetida em todas as vezes que acompanhei o
grupo e, embora ela se repita os imponderáveis do caminho não, pode ser uma chuva forte,
um imprevisto no trânsito, entre outras coisas inesperadas. O trajeto é acompanhado não
pelos membros do Moçambique, mas também por esposas, filhos, pesquisadores, mídia e
pagadores de promessa que seguem o grupo pelas calçadas das avenidas. Durante esse
caminho, o grupo dialoga com a sociedade uberlandense, no caso do Moçambique de Belém,
o terno passa inclusive nas mediações do setor administrativo, da Câmara legislativa e do
Shopping Center. Esse caminhar do grupo pelas ruas da cidade forma uma paisagem
92
diferente, repleta de música, cores e alegria, mas também cheia de conflitos e insegurança.
Como o grupo caminha num setor movimentado da cidade, é preciso que os capitães façam o
policiamento e protejam o terno de acidentes. O policiamento militar, apesar de ter melhorado
nos últimos anos, ainda é fraco e não consegue sozinho dar segurança aos congadeiros, pois
os grupos vêm de muitos bairros da cidade.
Muitas vezes os capitães têm que seguir à frente do terno para fazer o policiamento
nos cruzamentos e esquinas, os cacetetes dos policiais que deveriam estar naqueles locais são
substituídos pelos bastões dos guardiões de Nossa Senhora do Rosário. Nem todos os
motoristas param para os grupos passarem, muitos não tem paciência de esperar e
interrompem a passagem ritual de alguns grupos. Nessas situações conflituosas, casos de
capitães que se manifestam e eventualmente acontecem discussões. Alguns motoristas
buzinam, outros xingam, mas também aqueles que param com curiosidade e observam.
Enfim, as atitudes da população variam muito com relação a festa na cidade. No meio dos
prédios verticalizados e da racionalidade urbana de uma cidade média, desfilam os
congadeiros e estes dão um novo significado para os lugares. Os ternos não criam novos
significados para os lugares como também mudam a paisagem urbana com suas formas
características de louvar e cantar para seus santos devocionais. Nos dias da festa os
congadeiros se empoderam e ocupam o espaço público da cidade de Uberlândia.
O capitão segue na frente para proteger o terno, não fisicamente, mas também
espiritualmente. O capitão geralmente tenta impedir, com seu bastão, que o grupo passe em
bueiros, linhas de trem de ferro e em encruzilhadas, pois esses são locais privilegiados de
mandinga
44
. De acordo com meus interlocutores, são nesses locais que se ofertam os feitiços
que visam destruir os ternos. Segundo os congadeiros mais velhos, já ocorreram muitos casos
de feitiços no congado, por isso ainda hoje essa preocupação tanto de fechar o corpo
quanto de evitar passar nos locais em que os trabalhos são oferecidos às entidades.
Após as homenagens ao presidente e ao general, os ternos se organizam, sempre
obedecendo ao princípio do Congo, na frente do Moçambique e seguem para o cortejo. Nesse
trajeto se forma uma extensa fila de ternos, que vai se constituindo aos poucos, recebendo
grupos de todos os lados da cidade e de cidades vizinhas. Essa fila vai determinar a ordem em
que os ternos se apresentarão na igreja. O centro econômico e comercial da cidade é tomado
pela festa, acontece uma ruptura com a ordem rotineira. Os congadeiros assumem um papel
de destaque e fazem das ruas palco para suas louvações. As avenidas utilizadas pelos carros
44
Esse termo é utilizado entre os ternos como sinônimo de feitiço. Mandar uma mandinga significa o mesmo
que mandar um feitiço.
93
são apropriadas física e simbolicamente pelos membros da congada. Os congadeiros quebram
a ordem e inscrevem suas práticas culturais com certa liberdade no espaço público.
Ao se aproximarem da igreja de Nossa Senhora do Rosário, os ternos o recebidos
pelo general da congada que posicionado numa esquina, ou melhor, numa encruzilhada,
recebe e beija a bandeira de todos os ternos que se aproximam para fazer suas louvações. O
general através do beijo na bandeira sagrada permite a entrada do terno e faz a mediação
entre a rua e a igreja, o sagrado e o profano, as religiões afro-brasileiras e o catolicismo. Após
a permissão do general os ternos seguem até a porta da igreja, local em que o bispo e os
padres, assistem à apresentação dos ternos. Cada grupo possui um tempo estabelecido
previamente em reuniões da irmandade para se apresentarem. A irmandade tem se organizado
bastante nos últimos anos. Um exemplo dessa organização e burocratização da irmandade
pode ser ilustrado no Regimento da festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito de Uberlândia, MG. O Regimento é deliberativo e indica os passos que os ternos
devem seguir, começando pelas novenas e culminando no domingo da festa
. É evidente que o
tempo determinado pela irmandade para as apresentações não é cumprido criteriosamente por
todos os grupos. Alguns ternos excedem seu tempo e isso provoca conflitos e aumenta a
espera dos outros ternos. Enquanto esperam, os congadeiros fazem pequenas demonstrações
pelas ruas, cantam, batem caixa e dançam bastante, aquecendo-se para a apresentação na porta
da igreja.
Em 2006, não foi possível que os congadeiros entrassem na igreja para louvar seus
santos, pois a igreja, tombada patrimônio histórico, estava passando por um período de
restauração. Tal situação gerou várias opiniões: alguns acharam um absurdo não poderem
entrar na igreja, outros compreenderam as atitudes da prefeitura e da igreja e entendem que a
restauração valorizará a igreja e, conseqüentemente, a congada na cidade. Enfim,
concordando ou não, o fato é que, em 2006, em função da impossibilidade de entrar na igreja,
a festa ganhou uma nova roupagem, inclusive mais espetacular, já que toda a apresentação foi
feita de fora da igreja.
Os grupos tocam na porta da igreja e deixam seus instrumentos todos juntos nas
imediações da igreja. Mais ou menos às onze horas da manhã ocorre o levantamento dos
mastros de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Os mastros são hasteados por grupos
de Moçambique. Os ternos levantam o mastro, dançam e fazem coreografias com seus
bastões. Esse momento se completa com a dança do trança-fitas, realizada por ternos de
Congo ou Marinheiro. A dança é feita assim: alguém segura o mastro e as outras pessoas
pegam uma ponta de fita e vão girando e passando uma fita pela outra até que o mastro fique
94
todo colorido e trançado. O trança-fita é uma das danças que identifica a festa de congada na
região do Triângulo Mineiro. É uma coreografia que também possibilita a brincadeira e a
interação entre os mais novos e os mais velhos, pois mesmo que coordenada por ternos de
Congo ou Marinheiro, há participação de membros de outros ternos
.
Após o levantamento do mastro e o trança-fita, os ternos que se apresentaram
retornam para seus quartéis. ou num local próximo ao quartel, os grupos almoçam e em
alguns casos recebem ternos de outras cidades (convidados anteriormente), para almoçar,
criando o que Mauss chamou de dádiva o princípio de dar, receber e retribuir. Os ternos
seguem essa gica ao retribuir e receber convites, ou seja, forma-se uma rede de
reciprocidade entre alguns ternos e algumas cidades também.
Nos quartéis, durante o almoço geralmente os congadeiros almoçam e descansam
ouvindo um samba, em alguns casos, quando não a proibição do capitão, os congadeiros
tomam cerveja. Essa é uma questão bastante complicada nos grupos, pois capitães que não
se importam com o uso de bebida na festa, outros proíbem categoricamente e outros pedem
bom senso. Para a pesquisa, o que é interessante é a constatação de que na congada o profano
e o sagrado se misturam de uma forma bastante peculiar. E com essa constatação mais uma
vez chegamos à encruzilhada: não é o sagrado ou o profano; nem mesmo o catolicismo
popular ou as religiões afro-brasileiras, mas o sagrado e o profano imbricados com o
catolicismo popular e as religiosidades afro-brasileiras que conferem particularidades aos
festejos populares no Brasil.
O grupo descansado retorna às ruas por volta das quinze horas para seguirem para a
procissão. Antes da procissão os ternos de Moçambique devem buscar o reinado. Ramon
relata como é feita a escolha do casal de rei e rainha e como tem acontecido nos últimos anos
a busca do reinado:
A rainha, o que acontece: desde os primórdios a rainha é geralmente na nossa
irmandade, tem lugar igual Catalão que é perpetuo, não muda. É ele ai morreu
passa de pai para filho! Aqui em Uberlândia geralmente as pessoas que tem contato
com a irmandade, uma grande maioria que tem na santa e outras coisas mais,
eles postulam fala olha eu recebi uma graça de Nossa Senhora do Rosário e São
Bendito e eu queria me postulando para ser o festeiro de 2008. você tem que
ter presença de um ano na igreja, ter essa ligação, porque senão não tem lógica
uma pessoa sai da Cochinchina e eu quero ser rei porque eu quero ser,
não...…isso tem uma ordem para isso. É escrito seu nome no livro (da
irmandade) é contado a sua presença, quando se aproxima a festa você tem que
estar nas novenas, a participação nas novenas, no dia da festa vovai estar sendo
coroado para o ano vindouro e assim sucessivamente.
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2005).
Em Uberlândia não há casal perpétuo de rei e rainha, estes são os festeiros da festa. Os
95
casais são escolhidos seguindo alguns princípios estabelecidos pela irmandade. E a definição
dos ternos de Moçambique que irão buscar os casais é baseada na organização espacial da
cidade e segue os seguintes princípios:
A questão de buscar ou o a rainha. Geralmente divide-se por região não tem
lógica o Bombinha [Capitão do terno Princesa Isabel] no Patrimônio e ele vir
buscar no Tibery ou no Santa Mônica, então uma dividida nisso. É... divide-se
também os grupos de Moçambique, ou seja, se tem quatro nessa região, igual esse
ano vai ter um festeiro na Cesário Alvim e um aqui no Santa Mônica. Ai aqui pode
ser s e o Estrela Guia, do lado de pode ser o Angola mais o Guardiães. A
questão de pegar isso aí vai de festeiro.
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2005)
Ramon coloca que geralmente dois casais de rei e rainha e por isso se faz uma
divisão nos ternos de Moçambique da cidade, levando em consideração o bairro em que o
grupo está localizado e as casas dos festeiros. Então fica definido a priori quais ternos ficarão
responsáveis por cada casal festeiro. O grande impasse que se apresenta é que o casal escolhe
com qual terno irá para procissão. Segundo Ramon e outros congadeiros da cidade isso
depende diretamente dos critérios elencados pelo capitão: afinidade e saber cantar com
fundamento.
Em 2006, quando o Moçambique de Belém chegou para buscar o reinado notei que já
havia na casa do casal um terno de Moçambique tentando tirar o reinado. O Moçambique de
Belém também chegou cantando, e assim, os dois ternos ficaram por alguns minutos
disputando a preferência do casal de rei e rainha. O casal escolheu as cantigas do
Moçambique de Belém, embora o outro terno de Moçambique tenha chegado primeiro. Esse
episódio indica que o que realmente define com qual terno o reinado segue a procissão é a
afinidade entre o casal e o terno, que passa inclusive pela apreciação das cantigas e das
louvações.
Os ternos de Moçambique que conseguem convencer o casal a segui-los os leva até a
igreja para a procissão. Os Moçambiques conduzem o reinado até a igreja e se posicionam
atrás dos Congos, atualizando o mito fundador, e iniciam a procissão. A procissão nem
sempre é acompanhada por todos os grupos, pois alguns congadeiros nesse momento estão
nos galanteios pela praça. A congada também é um momento de namoro e diversão, muitos
namoros que se iniciam na congada, estendem-se e chegam ao casamento e à constituição de
uma família congadeira.
Na frente da procissão, encontra-se a hierarquia da igreja, representada pelo padre e
pelos coroinhas (ajudantes sacerdotais), portando velas e crucifixo, numa organização bem
96
característica das celebrações católicas: fila indiana, ladainhas e orações. Atrás vão os ternos,
que geralmente não se organizam em fila indiana e sim juntos, bem próximos, tocando e
louvando seus santos padroeiros. As imagens de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
são levadas em andores enfeitados pelos congadeiros e membros da igreja. Durante a
procissão, geralmente as músicas cantadas advém do catolicismo, às vezes os ternos unem os
cânticos católicos a seus ritmos. A procissão é realizada no fim da tarde e seu trajeto é todo
realizado no centro da cidade. Enquanto ocorre a procissão pelas ruas de Uberlândia, na igreja
se prepara o altar para a celebração da missa.
Esquema 3: Organização da procissão.
Música católica no ritmo de Moçambique:
Solo/Coro: Eu confio em nosso senhor, com esperança e amor. Eu confio em
nosso senhor, com fé esperança e amor.
A procissão em Uberlândia não é uma das atividades mais participadas da congada.
Muitos congadeiros não acompanham a procissão e ficam nas mediações da praça,
descansando ou namorando. Durante todo o domingo os grupos andam pela cidade, tocam e
dançam para São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, quando chega a noite é evidente que
alguns estão cansados, mas isso não os impede de continuar suas louvações. A festa no
domingo vai até por volta da meia-noite e reinicia-se na segunda-feira de manhã, no quartel.
♦♦
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Μ
embros dos ternos
Andores do santos
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coroinhas e padre
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Membros da igreja católica
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Após a procissão, os andores de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário são levados
novamente para a igreja do Rosário e lá acontece uma missa campal. Assim como a procissão,
a missa não é uma atividade muito freqüentada em Uberlândia. Em 2006, notei um aumento
na participação dos congadeiros nessas duas atividades, acredito que isso se deve às
iniciativas recentes, mas ainda incipientes, de incorporar à celebração católica músicas,
objetos e danças mais próximos da congada. Ao lado disso também se verifica um incentivo
maior dado pelos poderes públicos locais para a realização da congada. Em outras cidades,
como Araguari e Ituiutaba, por exemplo, ocorre a missa conga e isso é com certeza um
atrativo para a participação dos congadeiros, pois, nesse caso, os congadeiros se identificam
com a celebração da missa, que é toda organizada em função dos símbolos da congada. É
oferecido no altar católico as coroas dos casais de reis, os bastões dos capitães, muitas vezes
benzidos nos terreiros, e até os instrumentos musicais. Os ternos Camisa Rosa e Camisa
Verde de Ituiutaba, geralmente são convidados para ajudarem a cantar e tocar na celebração
da missa de Uberlândia, já que são ternos de conhecida participação no catolicismo. Outras
vezes, o terno Sainha, o grupo mais antigo da cidade, encarrega-se de fazer a cantoria da
missa. É relevante perceber que na medida em que ocorre maior identificação entre a forma
com que a missa é celebrada e os valores congadeiros, aumenta a adesão dos congadeiros às
atividades católicas.
Encerrada a missa, acontece a coroação de Nossa Senhora do Rosário, que é
geralmente feita por crianças. Logo depois que Nossa Senhora é coroada e mais uma vez
entronizada padroeira e protetora dos congadeiros, cantam-se os hinos a Nossa Senhora e São
Benedito. No domingo à noite é anunciado também o casal de rei e rainha do próximo ano.
Esse casal escolhido pela irmandade terá, no decorrer do ano, que cumprir algumas
exigências, como, por exemplo, participar das missas aos domingos e assinar o livro da
irmandade, além de conseguir prendas e fundos para os leilões que ocorrem na igreja nos dias
da novena. Em seguida, os ternos cantam na porta da igreja e retornam para os quartéis.
No domingo à noite a Praça do Rosário fica cheia e simultaneamente as celebrações
sagradas acontecem as atividades mais profanas. Neste momento da festa a interação entre
congadeiros e moçambiqueiros, acontecem também rodas de capoeira e apresentações de
grupos de samba e pagode nos bares das mediações da igreja.
98
3.5 A segunda-feira: os bastidores da festa
O segundo dia da festa, a segunda-feira, chama menos atenção do público se
comparado ao domingo. Muitas das práticas que ocorrem no segundo dia da festa limitam-se
aos olhos dos membros dos ternos, ou seja, os iniciados. É neste dia que os ternos se visitam,
saúdam-se e vivenciam experiências diferentes daquelas determinadas pela católica. Na
segunda-feira, os ternos fazem visitas a locais importantes para a população negra: visitam o
rei e a rainha, os anciãos congadeiros que não dançam mais, vão a quartéis de outros ternos,
visitam também terreiros de umbanda e casas que fizeram leilões. Enfim, é o momento da
interação social dos ternos. Assim como os leilões, o segundo dia da festa recebe menos
interferência da irmandade e da igreja.
Para a sociedade uberlandense é um dia de semana comum, em que as práticas
comerciais da cidade acontecem normalmente. No entanto, entre os carros e no centro
econômico da cidade, congadeiros e moçambiqueiros, com seus instrumentos característicos e
com sua música assimétrica, transformam as ruas da cidade na arena da festa da congada.
Uma arena, que agrega não apenas o espetáculo da dança congadeira, mas também as lutas e
conflitos inerentes à realização da festa na cidade.
Das visitas que acompanhei, destaco algumas que foram extremamente importantes
para o desenvolvimento desse estudo. A primeira foi o encontro entre os ternos Pena Branca e
Moçambique de Belém, no quartel do Moçambique de Belém. Nele, os ternos se saudavam
através de cantigas conhecidas pelos dois grupos, e os capitães se louvavam e se abraçavam,
recriando laços importantes para os dois ternos. Quando um terno visita outro, geralmente o
terno que está fazendo a visita entrega sua bandeira ao capitão do terno visitado e esse a
beija, passando-a pelo corpo. Essa atitude é sinal de acolhida e reconhecimento das boas
intenções do outro terno ao fazer aquela visita. É por isso que as visitas, em sua maioria,
ocorrem entre ternos que se afinam.
Além do espírito de coletividade, percebi, ao observar as visitas, que a família possui
papel essencial na realização da congada. Entendi que é a noção de família ampliada e
simbólica que possibilita a continuidade da festa. Nos ternos de Moçambique verifiquei que
uma rede de parentesco consangüíneo ou simbólico que é responsável pela organização
interna dos ternos. No terno Pena Branca, a família do Seu Charqueada; no Moçambique
de Belém, os descendentes de seu Siricôco, fundador do terno; no Moçambique Branco, a
liderança da família do capitão João Batista; e no Moçambique Camisa Rosa, é a família da
matriarca Dona Geralda que organiza o grupo.
99
Outras visitas importantes foram realizadas pelos ternos Pena Branca e Moçambique
de Belém ao Chatão. O Chatão é como se fosse um gueto negro localizado no Bairro
Aparecida. Nesse gueto também está a Escola de Samba Unidos do Chatão. Em 2002, o rei e
a rainha eram membros do Chatão e por isso receberam visitas de todos os ternos.
Especificamente em relação à visita do Moçambique Pena Branca, é interessante destacar
algumas músicas que este terno cantou para a comunidade do Chatão assim que o grupo é
conhecido em Uberlândia):
Solo: Peneirou, peneira, peneirou no ar, peneirou peneira, peneirou no ar, peneirou
peneira fina vai cair dentro do mar.
Coro: Peneirou, peneira, peneirou no ar, peneirou peneira, peneirou no ar,
peneirou peneira fina vai cair dentro do mar.
Solo: Oh bate chuva na Aruanda de Xangó, oh lá na nuvem em que a poeira
balançou. Oh, em vem Nossa Senhora, brasileira rezando no rosário cheio de
flor.
Coro: Oh bate chuva na Aruanda de Xangó oh na nuvem em que a poeira
balançou. Oh, em vem Nossa Senhora, brasileira rezando no rosário cheio de
flor.
O último trecho da música é bem ilustrativo de como o grupo Moçambique Pena
Branca relaciona as entidades das religiões afro-brasileiras, nesse caso Xangô, e as crenças
católicas expressas nas referências a Nossa Senhora e ao rosário. Observei posturas
semelhantes na visita do terno Moçambique de Belém ao Chatão. O terno chegou, cantou e
dançou bastante, numa postura bem descontraída quando comparada à observada no domingo.
Apresento a seguir algumas cantigas cantadas pelo Moçambique de Belém na comunidade do
Chatão.
Solo: Eh chuva, choveu, goteira pingou, eu num vou embora, num vou e num vou.
Coro: Olé, lé, lé, num vou e num vou!
Solo: Eu canto na língua ninguém entende, canto na engoma, pouco compreende.
Coro: Olé, lé, lé, pouco compreende!
No penúltimo verso o uso da palavra engoma
45
que os sujeitos dessa pesquisas
afirmam pertencer a um dialeto africano. Em outras situações ouvi expressões do tipo Órum,
Aye, Saravá, enfim uma série de palavras utilizadas nas religiões afro-brasileiras e que no
contexto da congada agregam outros sentidos e significados. Cantar uma cantiga utilizando
uma palavra em dialeto é sinônimo de muito conhecimento do capitão. Além disso, há
situações em que o capitão faz questão de cantar usando tais expressões para testar o capitão
45
Engoma é uma denominação dos tambores rituais da congada.
100
do outro grupo e assim saber se o outro conhece e sabe responder aquela bizarria
46
.
As visitas feitas na segunda-feira evidenciam o caráter híbrido e negociado da festa.
Nos bastidores, no plano do não visível, congadeiros e moçambiqueiros reatualizam seus
laços de coletividade e reciprocidade. No domingo a festa possui caráter de ritual público e
desfile. Já na segunda-feira, ocorrem momentos que não são presenciados pelo grande
público, mas que são de extrema importância para os congadeiros e moçambiqueiros. No final
da noite deste dia ocorre um ritual que o grupo Moçambique de Belém denomina tira-palha.
O tira-palha, para o capitão Carlos Roberto, consiste em “desarrear” os instrumentos aos pés
dos capitães. Tive a oportunidade de acompanhar este momento tão importante e tão pouco
conhecido. Era um dia chuvoso, mas os moçambiqueiros e congadeiros, após descerrarem os
mastros de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, voltaram a para seus quartéis.
Cheguei no quartel do Moçambique de Belém por volta das vinte e três horas e pude observar
a chegada do terno que louvava e cantava debaixo de chuva. Na porta do quartel, local onde
se canta para a saída da bandeira tanto nos dias dos leilões quanto nos dias de festas,
formaram-se dois cordões e os membros do terno cantavam a seguinte música:
Solo: Vamos tirar palha/Coro: Vamos tirar palha.
À medida que se repetia esta letra os soldados se despiam de seus instrumentos
(gunga, bastão, patangome ou caixa) e passavam a acompanhar a cantiga com palmas. Alguns
resistiam e evitavam entregar o instrumento, como foi o caso do Mão de Onça, um dançador
antigo e conhecido na região por sua irreverência ao dançar, que foi o último a tirar as gungas.
O tira-palha é um ritual predominantemente masculino, marcado por tristeza, lamento e
despedida, daí a resistência em tirar os instrumentos, pois despir-se deles implica admitir que
a festa daquele ano acabou. O exemplo do Moçambique de Belém não é único, em Araguari,
na segunda-feira, percebemos nas músicas cantadas na porta da igreja do Rosário o mesmo
lamento e dor:
(Juntos) É hoje só, é hoje só, é hoje só, Mamãe do Rosário, é hoje só.
46
Bizarria ou bizarrinha como alguns dizem, significa entre os congadeiros pontos (cantigas cantadas na
umbanda e candomblé) ou desafio. Atualmente, segundo os próprios congadeiros, quase não esse tipo de
confronto, embora muitos ainda conheçam cantigas em dialeto africano, a esse respeito ver Silva, J. G. (2005).
101
CAPÍTULO 4
Festa do Rosário: a tradição ressignificada
A festa de Nossa Senhora do Rosário caracteriza-se por um constante processo de
recriação de práticas e ressignificação de símbolos. Os congadeiros, ao trilharem o caminho
sagrado da em Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, também inscrevem suas
tradições na paisagem urbana e agregam novos significados à festa da congada. Tal devoção é
centenária em Uberlândia e sentido à vida de muitos homens, mulheres e crianças que em
seus cotidianos buscam manter vivas e em contínuo movimento suas tradições. A congada é
periodicamente atualizada e reelaborada através das relações estabelecidas entre congadeiros
e não congadeiros. Para os congadeiros, a congada é um momento privilegiado de reviver e
relembrar situações importantes vivenciadas pelos ternos. E nesse reviver vêm à tona as
recordações do passado e as possibilidades de atualizações das tradições no presente, através
da construção de novos significados nos contextos contemporâneos da festa.
A festa de Nossa Senhora do Rosário é dinâmica e provoca interesses de múltiplas
ordens: econômica, midiática, cultural, política, entre outros. São atores e instituições que por
motivos diversos colaboram para a realização da congada hoje em Uberlândia. A festa é
conhecida atualmente como símbolo cultural da cidade, tal qual o maracatu no Maranhão e o
candomblé na Bahia. A congada ganha um caráter espetacular e cada vez mais é identificada
interna e externamente como uma manifestação que representa a cultura uberlandense. É
interessante destacar que Uberlândia uma cidade que durante cadas foi marcada pela
discriminação e segregação racial, destinando inclusive locais específicos em cinemas para
brancos e negros –, possui, nos dias atuais, como uma importante expressão da cidade, a
congada, festa denominada afro-brasileira. Além dela, outros grupos também definidos como
afro-brasileiros destacam-se na cidade, tais como: Cia Balé de Rua e Grupo Tabinha. Os dois
grupos são financiados por leis de incentivo à cultura e muitos de seus membros participam
também de ternos de congada.
A Cia Balé de Rua é o mais novo Ponto de Cultura da cidade, conveniado com o
Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura
47
, e tem suas bases no Funk, Break e Hip
Hop. O grupo foi fundado em 1992, por jovens da periferia de Uberlândia, e hoje é uma
referência cultural da cidade. O Grupo Tabinha foi idealizado por Seu Bolinho e Neirimar, em
1998, com a proposta de ser a bateria-mirim da Escola de Samba Tabajaras, do Bairro
Patrimônio. Seu Bolinho e Neirimar são membros atuantes da congada e atualmente dançam,
47
De acordo com o Ministério da Cultura, mais de 650 Pontos de Cultura no Brasil, sendo quarenta e cinco
localizados em Minas Gerais, dos quais dois estão em Uberlândia.
102
respectivamente, no Moçambique de Belém, localizado no Bairro Santa Mônica, e
Moçambique Raízes, o terno mais novo da cidade, localizado no Patrimônio. Segundo Seu
Bolinho, a idéia de se fundar uma ala mirim na escola de samba visava, em primeiro lugar,
criar alternativas para os meninos do bairro, que estavam se envolvendo com drogas e roubos.
A idéia ganhou uma dimensão maior que a esperada e o Tabinha recebeu durante alguns anos
o patrocínio de uma empresa local, mas com o término desse patrocínio o grupo teve que
buscar sua auto-sustentação.
A Cia Balé de Rua e o Tabinha fazem apresentações internacionais e representam as
manifestações culturais de Uberlândia. Em 2000, o Tabinha se apresentou em Portugal; em
2002, a Cia Balé de Rua fez espetáculos na França e desde esse período faz turnês
internacionais todos os anos. Com relação à visibilidade e ao reconhecimento desses grupos,
tanto em Uberlândia quanto fora, é importante destacar que “los símbolos afro circulan a
través de instituciones socioculturales de horizontes históricos y políticos muy diversos
48
(CARVALHO, 2005, p. 10). Ao discutir a circulação dos símbolos afro, Carvalho relembra a
participação do Olodum no disco de Paul Simon e destaca o quanto essa iniciativa afetou o
grupo internamente, tanto nos aspectos referentes à arte performática expressa nas roupas,
danças, imagens, coreografia dos tambores, ritmos e textos das canções, quanto na identidade
de seus líderes.
Assim como a Cia Balé de Rua e o Grupo Tabinha, alguns ternos de congada são
convidados para se apresentarem em atividades e eventos fora da cidade de Uberlândia e fora
do tempo e espaço sagrados em que acontece a festa de Nossa Senhora do Rosário, mas a
congada difere do Tabinha e do Ba de Rua por seu caráter religioso. O Moçambique de
Belém, por exemplo, além de ser um Ponto de Cultura é freqüentemente convidado para
participar de muitos encontros em Uberlândia e em outras cidades. O capitão Ramon avalia
esses convites da seguinte forma: A gente tem que fazer apresentações onde que voveja
que vai está ampliando o arco de conhecimentos das pessoas para o congado. O
Moçambique de Belém participou do Encontro Nacional de Educação em Brasília e do
Enescpop (Encontro Nacional de Educação, Saúde e Cultura Populares), que aconteceu em
2006, na Universidade Federal de Uberlândia MG. Para o capitão, a participação do terno
nesses eventos é positiva, pois permite a divulgação da congada em espaços que ultrapassam
a cidade de Uberlândia e a igreja do Rosário.
Quando os ternos se apresentam em espaços diferentes daqueles em que ocorrem
48
“Os símbolos afro circulam através de instituições socioculturais de horizontes históricos e políticos muito
diversos.”
103
geralmente as festas de Nossa Senhora do Rosário, eles precisam criar estratégias para lidar
com o sagrado em espaços profanos. Pereira (2002, pp. 15-17), indica que os ternos da
comunidade dos Arturos atualmente estabelecem relações que ora são de fechamento, ora de
abertura com as outras instâncias da sociedade:
(...) A insurgência revela que a modificação das relações dos Arturos com a
sociedade em torno deles levou à reelaboração social de determinados aspectos do
grupo. (...) A arqueologia do sagrado indica, também, a atuação da insurgência em
várias micro-situações, tais como as mudanças da cor de uma vestimenta, do
material utilizado na confecção dos instrumentos ou do trajeto dos cortejos. Temos
de estar atentos para o fato de que as transformações ocorridas nessas estruturas de
superfície remetem para outras em curso nas estruturas profundas da organização
social.
O autor indica que as relações atuais entre os Arturos e o restante da sociedade
levaram a reelaborações de determinados aspectos do grupo e fatos semelhantes acontecem
também na festa de Uberlândia. As relações que os ternos estabelecem externamente
implicam, às vezes, mudanças internas. Com as transformações da sociedade, os ternos vão
gradativamente reelaborando suas práticas. Tais reelaborações vão desde a troca de materiais
utilizados na fabricação dos instrumentos musicais – por exemplo, a troca do couro de
animais no revestimento dos tambores pelo material sintético –, à burocratização dos ternos.
Este último aspecto merece um pouco mais de discussão, que expressa uma tendência
recente na cidade.
Nos ternos de congado o capitão é um cargo considerado hierarquicamente superior
dentro e fora do processo ritual. Geralmente, o capitão faz parte da família consangüínea do
fundador do grupo. Ele é o responsável pela gestão do sagrado e do profano e representa o
terno nas reuniões mensais da irmandade na igreja do Rosário, onde são discutidas questões
referentes à festa e à irmandade. É por meio dos capitães que a subvenção é repassada aos
ternos, e como estes possuem mais de um capitão, geralmente eles dividem as tarefas
explicitadas acima. Mas mesmo que haja quatro ou cinco capitães em um terno, sempre o
primeiro capitão ou general, aquele a quem todos respeitam. Nesse sentido, o capitão é uma
figura emblemática e agrega tanto funções rituais quanto papéis administrativos. Apresento a
seguir duas falas de capitães, uma do terno Camisa Rosa, de Ituiutaba, e a outra do terno
Moçambique de Belém, de Uberlândia, que expressam bem as tarefas desempenhadas por eles
e a importância da família consangüínea na transmissão do cargo:
104
Como capitão no terno eu dirijo o terno em peso, comando meus companheiros,
meus colegas que participam e que fazem parte desse terno Camisa Rosa. Primeiro
eu tenho que dirigir a minha pessoa, obediência é o que eu mais peço na
organização, horário, sobre os nossos movimentos. Como primeiro capitão, por
exemplo, sempre é eu que dirijo, o que nós vamos cantar, o hino, a apresentação
sai da minha pessoa. Quem me passou este cargo foi a minha mãe, Dona Geralda.
Antes o dono do terno era meu pai, o terno foi nascido por ele, o Moçambique
Camisa Rosa foi nascido pelo meu pai e minha mãe.
(Mário, capitão do terno Camisa Rosa, 2004).
O discurso deste capitão indica quais são as tarefas desempenhadas pelo primeiro
capitão, além disso, destaca os mecanismos de transmissão do cargo, aspecto que fica bem
claro quando o capitão aponta que o terno é criação de seu pai, e que ele [Mário Antônio]
recebeu o cargo de capitão de sua e [Dona Geralda]. O capitão Ramon Rodrigues, através
de explicações próximas as do capitão Mário Antônio, de Ituiutaba, ressalta que na passagem
do cargo de capitão obedece-se o seguinte preceito: o cargo é passado do idealizador e
capitão do grupo para seu filho mais velho. No caso do Moçambique de Belém, o irmão mais
velho é o João (caixeiro do grupo). Entretanto, Ramon destaca que seu pai lhe preparou para
receber o cargo mesmo não sendo ele o mais velho, e, portanto, o herdeiro esperado do terno.
O fato de Ramon não ser o primogênito e mesmo assim ter recebido o cargo de capitão de seu
pai pode ser interpretado como uma expressão de reelaboração de um princípio congadeiro.
Seu Siricôco recriou a tradição quando passou o cargo para seu filho caçula e não para o mais
velho, como determinam os preceitos. Com relação à transmissão do cargo de capitão, Ramon
faz as seguintes colocações:
O meu pai me preparou um pouco para ser capitão e o resto eu fui forjando aí pelos
anos da vida. Porque muitas coisas que ele fazia eu não faço, mas mantenho
dentro da lei e dos mandamentos. A batida é a mesma, a gente tem algumas
elevações. Para caracterizar o jovem. E o jovem se você não tiver algum tipo de
dança você não atrai o jovem. A gente tem uma batida forte, nas danças, nos cantos,
então a gente tem atraído muito jovem. Hoje é como se fosse o começo do terno. A
gente tem 70% de jovem. Continua na mesma dinâmica que meu pai deixou.
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2005).
Os dois depoimentos dos capitães indicam que uma inclinação nos ternos, referente
à transmissão do cargo de capitão, no sentido de manter a gestão do grupo com os membros
da família fundadora. Mário Antônio diz que o capitão age na coordenação do terno,
entretanto, nos últimos anos em que acompanhei a festa de Uberlândia, verifiquei que em
alguns ternos havia pessoas externas ao grupo dividindo as funções que eram realizadas
anteriormente apenas pelos congadeiros. Refiro-me a pessoas procedentes de centros
universitários e políticos que investem nos grupos e também participam de sua organização,
105
tornando-se, às vezes, diretores ou tesoureiros dos ternos que patrocinam. Situações como
essas trazem implicações diversas para o grupo, já que as pessoas que entram no terno como
burocratas não conhecem como os ternos lidam com o sagrado e com o profano e também não
sabem como se organizam as hierarquias internas. A inserção desses agentes pode criar
conflitos, pois as pessoas externas à festa não conhecem os limites de sua atuação e nem
respeitam o espaço dos capitães.
A questão que me interessa apontar é que assim como há mudanças nas relações entre
os ternos e o restante da sociedade uberlandense, também significativas transformações
ocorrendo no interior de cada terno. É preciso deixar claro que dois tipos de mudanças
acontecendo na festa de Nossa Senhora do Rosário de Uberlândia: uma de caráter mais
externo, que envolve a entrada de novos atores sociais na realização da congada; e a outra, de
cunho mais interno, que diz respeito aos impactos que a emergência desses novos atores
sociais causam nas relações internas dos grupos. Pereira (2002), ao discutir como a
comunidade dos Arturos tem negociado com o restante da sociedade que a circunda, aponta
os efeitos da deslocação espacial quando os ternos fazem apresentações fora dos momentos
rituais. O autor afirma que:
Nessas situações os Arturos e outros grupos lidam com as mudanças das noções
tradicionais de espaço físico (do terreiro/rua para o palco), de tempo (da
reinstauração do tempo mítico de longa duração para a inserção no tempo comercial
com hora marcada para inicio e fim da representação), de público (dos devotos
participantes para expectadores nem sempre devotos) e de função (da celebração
ritual para representação das celebrações). (...) Torna-se necessário considerar que o
popular tradicional tem servido das técnicas e meios modernos para afirmar e
ampliar através das mudanças, a sua significação social. (PEREIRA, 2002, p. 20).
Algumas dessas interpretações sobre a comunidade dos Arturos podem ser usadas
também no estudo da congada de Uberlândia. A primeira delas refere-se às mudanças nas
noções sagradas de espaço físico, pois dançar e cantar na rua, como geralmente acontece nas
festas de congada, é diferente de dançar e cantar em um palco, como ocorre nas apresentações
em situações extra-festa. Nesse aspecto, é preciso levar em consideração que os grupos de
Uberlândia são grandes (média de cem a duzentos componentes) e organizar todas essas
pessoas num palco é complicado. A segunda está relacionada à questão do tempo. As festas
de congada são marcadas pelo tempo cíclico dos mitos e, ao se apresentarem em outros
contextos, os grupos têm que se ajustar a um tempo linear, com hora marcada para início e
término da apresentação. A terceira interpretação de Pereira, e que é útil na pesquisa sobre a
congada, é a da formação de um público espectador que envolve não apenas devotos. No caso
de Uberlândia, a idéia de público espectador é bem forte e isso fica evidente, por exemplo, nas
106
apresentações dos ternos nas proximidades da igreja no dia da festa. As ruas são
transformadas em palco, nas quais são organizados dois cordões humanos, um de cada lado. É
entre esses cordões, demarcados ao mesmo tempo por cordas e pessoas, que os grupos passam
e se apresentam. Os congadeiros driblam os imprevistos do trajeto e inscrevem suas tradições
no meio urbano, recriando continuamente suas formas de louvação e devoção a São Bendito e
a Nossa Senhora do Rosário.
Em função do grande número de ternos que participa da congada em Uberlândia,
inclusive vindos de cidades vizinhas, a irmandade estabeleceu um limite de tempo para a
apresentação dos ternos na porta da igreja no domingo da festa, como já foi comentado
anteriormente. E isso deixa incomodados os ternos que gostariam de fazer uma apresentação
mais demorada para a platéia, com suas cantigas e danças novas. O Moçambique de Belém,
por exemplo, produz músicas novas todos os anos. Aprender essas músicas demanda tempo e
exige bastante dedicação dos capitães que, além de coordenarem o terno, precisam ensinar as
letras das músicas novas. As músicas novas do Moçambique de Belém dizem respeito a
questões relevantes para o terno e para a festa como um todo. Em 2006, o Moçambique de
Belém preparou cantigas que faziam alusão à comemoração dos noventa anos da irmandade
na cidade. Vale ressaltar que as louvações a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, em
Uberlândia, são anteriores à criação da irmandade, que é uma forma de institucionalização
posterior dessas práticas.
Chegou noventa anos
[Chegou noventa anos.
Que irmandade do Rosário] Duas vezes
Está comemorando
Esta festa de paz, esta festa bonita
Unido um povo de fé
Se torna raiz de um Quilombo sofrido
Aruê, aruá
Salve Nossa Senhora
Salve meu São Benedito
Aruê, aruá
Salve os homens de cor
Salve Jesus Cristo.
(Saturnino Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém).
Além de fazer referência aos noventa anos da irmandade, essa música traz à tona a
metáfora da congada como raiz de um quilombo sofrido, noção diretamente vinculada à
percepção congadeira de que a festa do Rosário é uma expressão de resistência da população
negra uberlandense. No Moçambique de Belém o compartilhamento da idéia de que o
terno é uma extensão da família, ou seja, o terno pode ser concebido como uma família
107
simbólica, que agrega as pessoas em função do sentimento de pertença ao grupo. Essa música
foi cantada várias vezes em 2006, com grande fervor não pelos membros do Moçambique
de Belém, mas também por quase toda a platéia que assistia às apresentações, já que o terno
distribui anualmente panfletos com as letras das músicas novas. Observei na pesquisa de
campo que esses panfletos foram algumas vezes patrocinados por políticos e outras vezes
confeccionados com verba do próprio terno, dependendo de circunstâncias políticas locais
(anexo D).
A outra cantiga, preparada também para ano de 2006, tal como a primeira, evoca os
noventa anos da irmandade, mas, além disso, evidencia outros aspectos importantes da festa.
Noventa Anos
[Noventa, noventa,
Noventa anos vai comemorar.
Com a benção da Mamãe do Rosário.
São Benedito vamos consagrar]. Duas vezes
A história da irmandade
Vamos contar com muita emoção.
Um escravo chamado André
Foi quem lutou pela construção.
Ea, ea, noventa anos está comemorando.
A nossa igreja está reinaugurando.
[Não deixa essa festa acabar]. Seis vezes
Nós vamos unir para continuar
(Ramon Rodrigues e Carlos Roberto, capitães do Moçambique de Belém)
A música retrata o surgimento da irmandade em Uberlândia e menciona a
reinauguração da igreja, que esta ficou durante meses fechada para restauração.
Em 2006,
foi assinado um convênio entre a Prefeitura de Uberlândia e a irmandade de Nossa Senhora
do Rosário, no montante de R$ 98.976,05 (noventa e oito mil, novecentos e setenta e seis
reais e cinco centavos), para restaurar a Praça Rui Barbosa, conhecida como Praça do Rosário
ou Praça da Bicota. Segundo Jeremias Brasileiro, o valor final parece que chegou a R$
120.000,00 (cento e vinte mil reais), conforme matéria de jornal de Uberlândia. No entanto,
logo após a referida matéria, uma nova licitação aponta os custos da obra em torno de R$
220.000,00 (duzentos e vinte mil reais). As músicas na congada são elaboradas em função de
situações vividas pelo grupo num determinado momento. A música é para os congadeiros
uma linguagem que veicula louvações, protestos e conta também a história dos ternos e da
festa.
Segundo os congadeiros mais velhos da cidade, no passado, como eles tinham poucos
108
ternos, não era preciso estipular o tempo de apresentação para cada grupo. A postura da
irmandade de determinar os minutos para os ternos se apresentarem é resultado de uma
necessidade criada pelo aumento do número de ternos que participam da festa na cidade.
Muitos ternos, enquanto esperam numa fila quilométrica até chegar a sua vez de se
apresentarem na porta da igreja, fazem pequenas demonstrações com danças e músicas pelo
percurso. Apesar do calor escaldante da cidade mineira, a espera na fila é um momento de
reencontro dos grupos. Enquanto esperam, os congadeiros e moçambiqueiros circulam entre
os ternos, abraçam-se, conversam e revêem amigos congadeiros de outras cidades. Esse
período é também utilizado pela mídia, que aproveita para registrar demonstrações de dança e
música dos grupos. Durante as horas de espera, os pesquisadores espalhados pelos vários
grupos aproveitam para fazer entrevistas e tirar fotos.
Na fila para a apresentação na igreja é possível perceber, inclusive, como os
moradores das proximidades da igreja se relacionam com a festa: dos prédios muitos
aplaudem, devotos que fazem altares para os santos nos portões das casas e, nesses casos,
os grupos param, cantam e passam as bandeiras dos santos nos corpos dos devotos. Tal
atitude é uma prática comum tanto na congada quanto na folia de Reis e é entendida pelos
devotos como demonstração de benção e proteção dos santos padroeiros. aqueles que, em
sinal de respeito, fazem o sinal da cruz. Ainda é preciso mencionar o caso dos protestantes
que, reclusos nos templos localizados na área central, exaltam-se e fazem alusão ao demônio
durante a passagem dos ternos pelas ruas. Andar pelas ruas da cidade é uma complicada
travessia, impedida pelos carros, que muitas vezes não esperam os congadeiros passarem,
gerando mal estar e até discussões. Os congadeiros, nos dias da festa ocupam o centro da
cidade na condição de produtores de uma manifestação cultural e não de trabalhadores
subalternos. Nesses momentos de rupturas e empoderamento os negros enfrentam os carros,
o centro comercial da cidade e todo um complicado processo de segregação racial e social
pelo qual os congadeiros passaram e ainda passam em Uberlândia.
Além de controlar o tempo das apresentações musicais dos ternos, a irmandade
também precisa viabilizar o levantamento dos mastros de São Benedito e Nossa Senhora do
Rosário (tarefa executada por dois ternos de Moçambique) e a dança do trança-fita (tarefa
coordenada por ternos de Congo e/ou Marinheiro). Esses dois momentos são muito
importantes e precisam da atenção e participação de todos os congadeiros.
Com relação ao levantamento dos mastros, Martins (1997, pp. 87-88) afirma que se
trata de um “um ato litúrgico que galvaniza forças telúricas, dos vivos, dos mortos, de seus
descendentes, firmando o terreiro para o bom andamento dos festejos”. Ao serem levantados,
109
os mastros ligam os vivos e os mortos, o passado, o presente e o futuro, e o céu e a terra, essa
simbologia é muito próxima da função desempenhada pelo mastro localizado no centro dos
terreiros de umbanda e candomblé. Isso deixa evidente que a congada permite o encontro do
catolicismo popular, da umbanda e do candomblé, pois se hasteiam as bandeiras dos santos
católicos com louvores e homenagens feitas com os bastões dos moçambiqueiros, muitas
vezes repletos de patuás, rosários e ervas ungidas nos terreiros.
4.1 O público da congada: dos fiéis devotos aos espectadores
Atualmente em Uberlândia a festa possui um público heterogêneo, composto por fiéis
do catolicismo, da umbanda e do candomblé, universitários, políticos, mídia, pesquisadores,
curiosos etc. Cada faixa desse público se relaciona de forma diferenciada com a congada. Os
fiéis do catolicismo se relacionam com a congada pelo viés da nos santos protetores, os
participantes da umbanda e do candomblé concebem a congada como expressão das
religiosidades afro-brasileiras. Há, inclusive, pais e mães de santo que dançam em alguns
ternos. Durante a congada, há casos de fiéis que acompanham determinado terno para
pagarem promessas e agradecerem bênçãos obtidas. O pagamento de promessas nas festas de
congada ocorre com menor intensidade se comparada, por exemplo, com as festas de folia de
Reis. Nas folias há uma série de relatos de milagres operados pelos santos reis e curas
alcançadas por meio de promessas.
Os universitários pesquisam e criam muitas vezes laços afetivos com os grupos que
estudam, chegando, em alguns casos, a se tornarem dançadores de ternos. Um bom exemplo
dessa atitude é o caso do pesquisador Cláudio Santos, que no início desse ano concluiu sua
tese de doutorado sobre o Moçambique de Belém. Além de pesquisador do terno, Cláudio,
conhecido no grupo como “Cabelo”, é também membro do Moçambique de Belém, chegando
a tocar caixa nos últimos anos, um cargo que exige bastante conhecimento dos fundamentos
congadeiros.
Os políticos usam o espaço da festa para se promoverem, espalham faixas pela praça e
patrocinam camisetas. E a mídia confronta muitas vezes com os pesquisadores, na disputa por
fotos e entrevistas que transformam a festa em notícia. Tais relações são muitas vezes
conflituosas, pois ilustram disputas por informações e exclusividade. Refletir sobre as
relações construídas entre os agentes que de uma forma ou de outra contribuem na realização
da congada implica evidenciar a polêmica entre a preservação e a transformação, que a
entrada de novos atores provoca a elaboração e a adição de outros significados à festa. No
110
debate entre a busca de preservação e a possibilidade de transformação, Pereira (2002),
elabora uma boa metáfora, utilizada para interpretar as festas da comunidade dos Arturos.
Acredito que tal metáfora pode ser aproveitada na reflexão sobre a congada em Uberlândia. O
autor diz o seguinte:
Embora continuemos a lidar com termos adjetivados como culturas populares e
culturas de massas, o importante é percebermos que preservação e transformação
são mais do que conceitos. São processos que questionam as fronteiras das
vivências sociais.(...) por isso a idéia de janela em movimento, ou seja, das inter-
relações que pressupõem preservação e transformação – é paradoxalmente, uma
caixa de segredos aberta. (...) fica-nos a perspectiva de que para compreendermos as
inter-relações entre a tradição e a modernidade é válido o princípio de que a única
constância está na mudança. (p.22)
A idéia de janela em movimento é uma boa saída para pensarmos as inter-relações que
compõe a festa de Nossa Senhora do Rosário. Através dessa noção é possível entender como
se relacionam congadeiros e não congadeiros e assim salientar a dinâmica da festa. Embora
nos últimos anos se perceba a inserção de novos atores que atuam na realização da congada,
ainda assim é possível dizer que as irmandades de santos de devoção continuam em muitas
cidades mineiras como Uberlândia, Ituiutaba e Araguari, sendo as principais gestoras das
festas de Nossa Senhora do Rosário. Os novos atores que, por motivos diversos, participam
atualmente da congada, necessitam dialogar com as irmandades e reconhecer o papel histórico
que elas desempenham.
As irmandades atuam como administradoras da festa, são elas que permitem a criação
de novos ternos e que repassam a subvenção fornecida pela prefeitura aos ternos. Apesar de
ser a instituição que representa os congadeiros, nem sempre as relações que se estabelecem
entre os ternos e a irmandade são de harmonia. É preciso ressaltar que as históricas tensões
entre igreja, irmandade e congadeiros, presentes desde a consolidação da festa nas cidades
pesquisadas, ainda se expressam contemporaneamente, e isso revela um processo negociado
de construção da identidade congadeira. As relações entre igreja católica, irmandade e ternos
variam e dependem das conjunturas sócio-culturais, que definem o tratamento e a
interpretação que os párocos das igrejas em que ocorrem a festa do Rosário dão à congada. No
caso de Ituiutaba, MG, para a festa ser aceita, a condição foi a de que os congadeiros se
batizassem, fizessem a primeira comunhão e se casassem na igreja, quando fosse o caso. O
capitão do terno Camisa Rosa de Ituiutaba nos dá a dimensão dessas negociações ocorridas no
histórico da festa na cidade.
111
Quando eu nasci em 1950, meu pai, meu avô, o tio Geraldo que é dono do terno
Camisa Verde e mais alguns irmãos do meu pai e os colegas dele, fizeram uma
brincadeira, que iam criar um terno. Eu nasci em 1950, 14 de outubro, aí eles
começaram aquela brincadeira que iam fazer um terno em louvor a São Benedito,
por que ele era um santo negro, nós devemos louvor a ele por que nós somos
negros, vamos fazer uma capela de São Benedito se Deus quiser. Então, eles
começaram na época do meu nascimento e quando foi em maio foi a primeira
festa, dia 13 de maio, foi a primeira do ano da frente. Eles iam, tiravam licença na
delegacia para poder fazer passeata e a alvorada naquele dia, pois naquela época
era muito perigoso, não era bem organizado ainda. E dveio crescendo, e as
pessoas participaram da primeira eucaristia, muitos deles, meu avô, meu pai, meus
tios não tinham feito a primeira eucaristia, foi com o padre João Ávila, o instrutor
dele foi o Irmão Pedro, um sacerdote e seminarista muito conhecido naquela
época. Desta época para cá, do 13 de maio para cá, eles começaram a fazer a
participação na Igreja. Participou da primeira eucaristia eles ficaram um ano
preparando com o seminarista irmão Pedro, para poder fazer a primeira eucaristia,
que eles liberaram o congado. Eles queriam participar do congado por causa da
Igreja, do movimento da Igreja, queriam fazer a capela de o Benedito. Então
inclusive este São Benedito nosso, esse que s fizemos a campanha foi o Padre
João Ávila que atuou para irmandade de São Benedito, daí para veio dando
continuamento, nunca parou (a festa), sempre em 13 de maio ou no domingo mais
próximo desta data.
(Mário, capitão do Moçambique Camisa Rosa, 2004)
Na fala do capitão fica evidente que a permissão para realização da congada em
Ituiutaba foi condicionada ao processo de conversão dos congadeiros à católica. A festa de
Ituiutaba é ainda muito marcada pelo catolicismo, fato do qual se orgulham os congadeiros,
pois os diferencia de outras festas mineiras que expressam seus fortes vínculos com a
umbanda e o candomblé, como acontece em Monte Alegre, Uberlândia e Araguari, por
exemplo. Dizer que a festa de Ituiutaba possui fortes relações com o catolicismo não significa
dizer que ela não possui características da umbanda e do candomblé. Há, inclusive, membros
da congada de Ituiutaba que participam e são lideranças de terreiros; entretanto, essas relações
não são explícitas, como ocorre em outras cidades. Acredito que em função do complicado
processo de constituição da festa na cidade, essas relações não são tão verbalizadas. Mesmo
com o relativo silenciamento das expressões das religiões afro-brasileiras na festa de
Ituiutaba, há, contemporaneamente, algumas tentativas nos ternos de exaltar os mbolos da
cultura afro-brasileira através das vestimentas, dos adereços e das músicas.
Em conversas com o moçambiqueiro Francis Luce, membro do Moçambique Camisa
Rosa de Ituiutaba, percebi que ele tinha muita preocupação em recuperar o que ele chama de
raízes e identidade moçambiqueira. Para o moçambiqueiro, as raízes do Moçambique são
expressas, entre outras coisas, nas cantigas em verso, que muitas vezes relatam as
experiências da escravidão, e nas danças cadenciadas, centradas nos quadris e nos ombros.
Motivado pela busca da identidade moçambiqueira, Francis elabora versos que tratam de
situações importantes para o grupo e inicia um processo de transmissão dessas músicas ao
112
Camisa Rosa Mirim. Ele acredita que é por meio do Moçambique Mirim que esses elementos
identificadores dos ternos de Moçambique serão reavivados.
Em Uberlândia, assim como Ituiutaba, a festa passou por momentos de proibição e
por duros processos de consolidação. Segundo Jeremias Brasileiro, a irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Uberlândia, surgiu em contraposição a uma
irmandade dos Homens Brancos, que monopolizava os louvores à santa. A homenagem dos
brancos ocorria em outubro, mas como os negros eram excluídos dessas louvações, eles
começaram a fazer suas próprias homenagens à santa, em novembro. De acordo com Jeremias
Brasileiro, o bispo da época dizia que assim que acabava a festa de outubro, começava a festa
da bagunça, a festa da macumba. Segundo os relatos que obtive a irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Brancos foi extinta por volta de 1965. Em função desses
fatos, durante anos a festa de congada em Uberlândia acontecia em novembro, como memória
de um passado não muito distante, marcado pela luta e resistência dos congadeiros para
louvarem São Bendito e Nossa Senhora do Rosário. Por isso, em 2003, ano da mudança da
festa de novembro para outubro, ocorreram tantas polêmicas e discussões na cidade. Na
concepção de muitos congadeiros, mudar a data da festa era apagar as lutas históricas vividas
pelos negros na cidade. Tal postura fica explícita na música do Moçambique de Belém que
diz: Respeite o meu passado, pois o meu congado não pode mexer. Mesmo com todos os
desentendimentos expressos em músicas, abaixo-assinados, faixas e protestos em rádios
locais, a festa de Uberlândia de fato mudou de data. Alterar a data de uma festa traz algumas
implicações, pois geralmente a congada de uma determinada cidade é visitada por ternos de
outras. E tais ternos das cidades próximas se organizam em função de datas preestabelecidas.
No primeiro ano da mudança no calendário da festa de Nossa Senhora do Rosário, em
Uberlândia, os ternos que costumavam participar da festa estranharam, mas logo se
adequaram à nova data.
Presenciei, na pesquisa de campo, não mudanças ocorridas na festa, mas também
nos posicionamentos dos meus interlocutores moçambiqueiros. Apresento, a seguir, trechos
de entrevistas feitas com Ramon Rodrigues em dois momentos diferentes da festa do Rosário
na cidade, uma realizada no ano de 2002 e outra em 2007. Ao compararmos os dois discursos
do capitão, fica claro que as relações entre os ternos e a irmandade são reelaboradas
constantemente e nesse período de cinco anos algumas mudanças ocorreram nessas relações.
As críticas mais contundentes do capitão são destinadas ao estatuto da irmandade. Com
relação à igreja católica, o capitão ressalta que ela não deve interferir nos princípios
congadeiros. Nos trechos da entrevista abaixo, é possível perceber de que forma o capitão
113
avalia as relações entre a igreja católica, a irmandade e os ternos:
De vez em quando temos problemas com o estatuto da irmandade que é muito
arcaico. É aquela coisa de passando de pai para filho e nem sempre o que se
passa de pai para filho fica uma coisa boa. Então a gente tem um pouco de
dificuldade. Com a igreja em si até hoje não tivemos muitos problemas, mas eu acho
que o padre tem que fazer o papel dele, não é? Não tem que tentar fazer um papel
de ditando normas, porque a gente vai voltando naquela velha história de
catequização, os padres se envolvendo .Então eu acho, que ele tem que rezar a
missa dele e deixa os congadeiros com seus mandamentos e raízes.
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2002).
No depoimento do capitão, a função destinada ao padre seria a de estritamente rezar a
missa, o que implica não se envolver com as questões de ordem mais interna da festa, porque,
dessa forma, estar-se-ia voltando ao passado de colonização, marcado pela catequização.
Também é possível observar que a figura do padre é concebida pelo capitão como uma
representação da igreja católica. Em alguns momentos de sua fala, nota-se que em sua
concepção padre e igreja parecem fundir-se e cumprem o mesmo papel. Nas colocações do
capitão Ramon Rodrigues, também fica explícito o questionamento ao estatuto da irmandade.
Esse é um assunto polêmico, pois alguns congadeiros não concordam com a cláusula que
define a transmissão do cargo de presidente. Tal cláusula diz que o cargo de presidente deve
ser passado de pai para filho. congadeiros que acham esse critério complicado, uma vez
que nem sempre o presidente possui herdeiros para assumir seu lugar e mesmo que possua,
não garantias de que o herdeiro fará um bom trabalho. Essa preocupação está também
diretamente ligada ao medo do sucessor não dar continuidade aos fundamentos da festa.
Em janeiro de 2007, quando voltei à Uberlândia para realizar mais uma entrevista com
o capitão do Moçambique de Belém, resolvi perguntar novamente sobre as relações dos ternos
com a igreja católica e com a irmandade. Pretendia, com essa pergunta, entender a dinâmica
das relações construídas entre os agentes que promovem a festa de Nossa Senhora do Rosário
em Uberlândia. Nessa ocasião, ele teceu alguns comentários que se aproximam daqueles
feitos em 2002 e outros que se distanciam:
A irmandade tinha posturas totalmente diferente de hoje. A irmandade, apara
vocês que são pesquisadoras entenderem isso: O fechamento dela era brusco era
uma coisa que ninguém penetrava e hoje minimamente você consegue ter acesso
a documentos, consegue ter acesso a falas do presidente. Antigamente nem a
questão dos leilões eram feitos: era se tirado esmola na rua, todos os grupos juntos
e tiravam esmola, esse recurso era passado para o presidente que revertia parte
disso para os grupos e o restante era destinado para irmandade. Hoje mudou
porque cada grupo faz o seu leilão e além do leilão ainda tem subvenção da
prefeitura, né!! E a questão da irmandade propriamente dita, ela hoje abre. A gente
conseguiu dentro da irmandade [Ramon é atualmente diretor da irmandade]
construindo a questão dos seminários, trabalhando a questão social, porque é um
114
das preocupações que a gente tem, porque o que está acontecendo fora está
acontecendo também dentro dos grupos de congada, ou seja, se tem jovens que estão
se drogando, que estão matando, que estão bebendo fora, esses mesmos jovens
podem ser os jovens que são dançadores de congada. E como que a gente vai
trabalhar isso? E a irmandade de dois anos para acorda para isso, começa a
construir um processo social: dando palestras para jovens, para as meninas sobre a
questão da gravidez indesejada. Ou seja, a irmandade realmente começa a ter um
papel além da festa. Porque a irmandade para mim de sete anos atrás ela tinha um
papel na festa de congada, hoje não, hoje ela tem um papel antes e depois.
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2007).
Comparando o discurso de 2002 com de 2007, é possível notar que alguns
posicionamentos do capitão foram alterados. Ele faz um histórico da atuação da irmandade
nos últimos anos e destaca que ela tem ampliado seu papel, passando a atuar em situações que
ultrapassam os festejos. O capitão destaca que a irmandade, durante muitos anos, foi uma
instituição fechada e que não fornecia informações nem documentos, mas indica que essa
postura mudou e que hoje a irmandade é bem mais aberta e tem, inclusive, promovido
discussões e debates sobre: saúde, drogas e gravidez na adolescência. Alguns desses debates
aconteceram no espaço da Universidade Federal de Uberlândia. A iniciativa da irmandade de
promover debates e discussões auxilia na ampliação da imagem que congadeiros e não
congadeiros possuem da festa. Nos dias atuais, os congadeiros buscam a manutenção da festa
na cidade, porém, essa manutenção ocorre, muitas vezes, pela transformação.
Se anteriormente a congada era evidenciada em Uberlândia apenas nos meses que
antecediam a festa e durante o domingo e a segunda-feira, em que acontece o espetáculo
público, hoje uma extrapolação desse período. O capitão Ramon entende que essa
ampliação se deu em duas frentes. Uma delas está diretamente relacionada aos encontros dos
congadeiros fora dos momentos da festa. A outra, conseqüência da primeira, diz respeito à
atuação de membros de alguns ternos como debatedores em seminários, e encontros
universitários e políticos. Com relação à primeira frente de atuação, o capitão Ramon faz as
seguintes considerações:
Eu tive a idéia de fazer um campeonato de futebol entre os grupos de congado o ano
passado, conseguimos levar para Ituiutaba, teve em Ituiutaba, Araguari quer,
Monte Alegre quer, Uberaba quer, então, ou seja, é uma mania que toma conta e
que desvirtua um pouco da questão da festa, ou seja, quem não gostava um do
outro tocando caixa, agora vai ter que se olhar jogando futebol. Isso a gente quer tá
passando para as meninas, a gente quer passando para os meninos, ou seja, é
uma construção nova de identidade, ou seja, não mudando a identidade antiga do
congadeiro, mas que um perfil novo e de respeito dentro da sociedade, porque
eles estão vendo que a gente está se movimentando em várias direções, não
esperando chegar outubro para dançar o congado.
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2007)
115
Para Ramon, o fato de os congadeiros se encontrarem em outras situações além da
festa, como num jogo de futebol, por exemplo, contribui para a construção de uma nova
identidade congadeira. Em sua concepção, tais eventos dão visibilidade à congada e mostram
para o restante da população uberlandense que os congadeiros não apenas fazem
apresentações em outubro, mês em que ocorre a congada em Uberlândia, mas que eles estão
em movimento constante. Na fala do capitão destacada em negrito, fica evidente a construção
de uma identidade congadeira forjada pela negociação. Hoje os grupos de congada, quando
participam de eventos, não o fazem apenas através de espetáculos entre uma palestra e outra,
eles também atuam nos debates e nas discussões. Para o capitão, um dos eventos mais
significativos dos últimos anos foi o Enescop, pois contou com a participação dos congadeiros
numa mesa de discussão. Ele considera importante a participação de congadeiros em eventos
que discutem a festa, já que eles são a parte mais interessada:
Uma outra ampliação da noção de congada e que foi muito boa foi a nossa
participação no Enescpop
.
Fizemos um cortejo nesse evento e foi muito bonito,
vieram grupos de Ituiutaba, Araguari, Catalão foi um outro momento do congado.
O Enescpop é um encontro popular, mas não trazia a carga do movimento
popular mais importante da região, que é o congado, nós conseguimos fazer isso
o ano passado. Então no Enescpop nós formamos uma mesa de discussão onde que
tiramos um documento, mas assim como são muitas coisas e a gente corre atrás de
muita ao mesmo tempo, mas houve debates curiosos nesse encontro, como por
exemplo, trabalhar a questão da aposentadoria do capitão, eu acho que isso é
interessante porque ele é um portador de tradição. Na Bahia o zelador de santo
com quarenta anos de trabalho ele aposenta e porque não o capitão de
congado?!Entendeu? Então assim foram coisas que surgiram um passaporte para
o capitão: o papa tem, o padre tem, porque que o capitão não pode ter?! Então
assim são coisas que foram pontuadas lá no encontro e que minimamente tem
caminhado.
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2007).
O depoimento de Ramon indica que, atualmente, os congadeiros possuem
reivindicações que extrapolam as questões da festa de outubro. Eles exigem maior
participação na sociedade e lutam inclusive pelo reconhecimento do capitão como um
portador de tradição, tal como ocorre com os pais de santo na Bahia. Essa movimentação
dos congadeiros e sua participação em eventos acadêmicos e políticos, dentre outras coisas,
são indicadores das mudanças que têm ocorrido na organização da congada em Uberlândia.
Todas essas mudanças devem ser consideradas, que elas compõem a identidade congadeira
inscrita na contemporaneidade e podem ser interpretadas como alternativas de continuidade
da festa, pois, como disse Hall (2003) “tradição é o mesmo em mutação” e “portanto não é
uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas
tradições”. (p. 44).
116
A permanência da congada nos tempos atuais é por si expressão de resistência e
contestação. Os congadeiros através de práticas insurgentes, criam formas específicas de
louvação aos seus santos devocionais e buscam visibilidade na sociedade uberlandense.
Atualmente, atores e instituições sociais externos à congada, tais como prefeitura, políticos,
ONGs e centros universitários têm colaborado direta ou indiretamente na realização da festa.
É relevante destacar que a inserção desses novos atores sociais não é uma peculiaridade das
festas de congada, embora nelas a entrada deles seja bem intensa. De acordo com Bonesso
(2006), nas folias de Reis também tem ocorrido a atuação de atores externos na realização da
festa. Nesse sentido o autor afirma que “a inserção desses novos agentes culturais constitui-se
como um processo bastante evidente de transformação dos rituais e símbolos das culturas
populares, o que tem imprimido diferentes sentidos às festas religiosas”. (p. 3).
Dos vários agentes e instituições que contemporaneamente cooperam para que a
congada aconteça na cidade, destaquei alguns para fazer uma reflexão mais pontuada.
Evidentemente, outras escolhas poderiam ser feitas, entretanto, ressalto aqueles que mais se
aproximam dos propósitos dessa pesquisa. Analiso a atuação da prefeitura, pois a criação de
uma subvenção destinada à congada na cidade mudou bastante a organização interna e externa
da festa, e também faço alguns comentários sobre a presença das ONGs e dos pesquisadores
na festa de Nossa Senhora do Rosário. Identificar esses atores colaboradores da festa do
Rosário é muito importante, pois eles nos auxiliam a compreender as reelaborações da
congada, construídas em função das relações e contextos que sustentam a festa atualmente. Os
novos atores e instituições sociais que entram no cenário da congada podem ser interpretados
como “novos intermediários culturais”, noção criada por Bourdieu (1984) e apropriada por
Featherstone (1995), que se trata de pessoas e instituições envolvidas com a circulação
permanente dos bens culturais.
4.2 Os novos atores sociais e a festa do Rosário
Em 2001, havia quinze ternos de congada em Uberlândia, em 2006, esse número
passou para vinte quatro. Em cinco anos foram criados nove ternos, ou seja, uma média de
quase dois ternos por ano. Esse é um dado significativo e expressa o quanto a festa tem
ganhado visibilidade nos últimos anos. O aumento da visibilidade da congada em Uberlândia
deve-se também a outros fatores, como, por exemplo, o investimento dos poderes públicos na
divulgação da festa, por meio de propagandas, e a atenção que a igreja católica tem dado à
congada, cedendo inclusive mais tempo para a realização da festa. Tais atitudes não são
117
exclusivas de Uberlândia. Em Ituiutaba, na festa de 2007, ocorreu uma antecipação da missa
dominical, sugerida pelo pároco da igreja de São Benedito, visando à ampliação das
apresentações dos ternos. Diferentemente de Uberlândia, que reserva dois dias para as
apresentações públicas, em Ituiutaba as apresentações e as visitas acontecem, todas, no
domingo. O cronograma de atividades é intenso e os congadeiros precisam ser ágeis para
cumprirem suas obrigações. A irmandade de Ituiutaba é recente se comparada, por exemplo, a
de Uberlândia. Esta comemorou, em 2006, noventa anos, enquanto a primeira festejou, em
2007, os cinqüenta anos da irmandade. De acordo com a presidente da irmandade de
Ituiutaba, na comemoração de 2007 aconteceu a missa conga, que é uma atividade muito
admirada pelos congadeiros. Nessa celebração foram inclusive reservados lugares na igreja
para os congadeiros e a missa teve a participação intensa dos ternos. A realização da missa
conga em Ituiutaba é uma conquista da irmandade, que anos luta e reivindica essa
celebração.
Em conversas com Ramon Rodrigues notei que em Uberlândia também estavam
mudando as relações estabelecidas entre os ternos e a igreja e também entre os ternos e a
irmandade. Ramon teve alguns desentendimentos com o padre e com a diretoria da
irmandade de Nossa Senhora do Rosário, entretanto, seu discurso atual indica que suas
relações com o padre e com a irmandade melhoraram nos últimos anos:
A igreja católica ela está agregando, eu tenho notado que o próprio padre, aquele
meu amigo, meu irmão hoje (brincando e se referindo a conflitos passados entre o
capitão e o padre) ele está bem acessível. Eu acho que a igreja em si quando ela
toma o rumo de deixando acontecer a missa afro dentro da igreja católica, eu
acho que a igreja católica viu que podia se fortalecer com a questão negra no
Brasil, que é formado por 70% de negros. Se ela continuasse com aquela restrição
ela iria perder mais espaço do que está! Então eu acho que é uma concordância,
ou seja, nós queremos crescer e a igreja se manter.
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2007).
Para Ramon, a maior aceitação da igreja deve-se ao medo dessa instituição de perder
adeptos, que os negros constituem uma parcela significativa da população brasileira e de
fiéis do catolicismo. A partir da fala do capitão, podemos inferir que se estabeleceu um pacto
não verbalizado entre os congadeiros e a igreja católica. Os primeiros querem crescer e a
segunda quer se manter, então ambos abrem concessões e as duas partes envolvidas ganham
com isso. Ramon acredita que o fato de a igreja permitir a celebração da missa conga ilustra
bem a maior recepção da congada pela igreja católica. A missa conga relaciona a liturgia
católica e as religiosidades afro-brasileiras expressas no congado. Nessa missa, as músicas são
entoadas ao som dos tambores e as danças congadeiras dinamizam as celebrações. São
118
levados ao altar católico as coroas dos reis e rainhas, os bastões dos capitães e, em alguns
casos, purifica-se a igreja com pipoca e/ou canjica, prática muito encontrada nas casas de
umbanda e candomblé. A missa conga não é uma atividade constante da festa de congada, ela
ocorre de acordo com a predisposição dos padres em realizá-la. Dentre os padres adeptos da
missa conga é preciso mencionar um muito conhecido entre os congadeiros – Pe. Preguinho –,
que é inclusive convidado para participar de festas de congado nas regiões do Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba. Pe. Preguinho é uma liderança católica negra, que concebe a festa
como espaço de resistência e luta da população negra. Observei que a festa da congada nas
cidades pesquisadas tem passado por várias modificações, entre elas o aumento das missas
congas na região.
Não só a congada, mas também outras festas denominadas populares, como a folia de
Reis, por exemplo, estão passando atualmente por reelaborações organizacionais (ver
Bonesso, 2006). Tais reelaborações permitem as atualizações dessas festas populares na
contemporaneidade. Uma das expressões da dimensão que a congada alcançou nos dias atuais
pode ser notada quando se avalia o aumento do número de ternos no último triênio. Apresento
a seguir, dados disponibilizados no site da prefeitura de Uberlândia, que indicam o ano de
criação de cada terno e o bairro em que está localizado o quartel do grupo. Tais dados
possibilitam não só visualizar o crescimento da quantidade dos ternos na cidade, como
também identificar o período em que se deu esse aumento.
119
Quadro 3: Cronologia e localização dos ternos de Uberlândia – MG
Nome do terno Ano de criação Bairro
1) Congo Camisa Verde 1930 Aparecida
2) Catupé de Nossa Senhora do Rosário 1912 (Salitre) Atualmente Dona Zumira
3) Marinheiro de Nossa Senhora do Rosário 1932 Santa Mônica
4) Congo Sainha 1932 Santo Inácio
5) Marinheiro de São Benedito 1960 Tibery
6) Moçambique de Belém 1971 Santa Mônica
7) Moçambique Pena Branca de Nossa Senhora
do Rosário
1972 Canaã
8) Moçambique Princesa Isabel 1972 Patrimônio
9) Terno de Congado Santa Efigênia 1975 Brasil
10) Azul de Maio 1982 Roosevelt
11) Moçambique do Oriente 1983 Roosevelt
12) Congado Congo Branco 1983 Tibery
13) Terno de Catupé Azul e Rosa Década de 1990 Santa Mônica
14) Amarelo Ouro 1997 Saraiva
15) Verde e Branco 2001 Pampulha
16) Rosário Santo 2001 Travessa Antônio Fonseca
Silva
17) Moçambique Estrela Guia 2002 São Jorge
18) Moçambique de Angola Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito
2002 Daniel Fonseca
19) Congo São Benedito 2002 Tibery
20) Congo Prata 2004 Martins
21) Moçambique Guardiães de São Benedito 2004 Santa Rosa
22) Congo São Domingo 2004 _________
23) Beira Mar de São Benedito 2005 Morumbi
24) Moçambique Raízes 2005 Patrimônio
120
Gráfico1: Aumento do número de ternos em Uberlândia – MG, entre 1912 a 2005
.
A partir de 2001, o número de ternos na cidade aumentou significativamente. Acredito
que esse aumento deve-se, entre outras coisas, ao impacto que as políticas nacionais de
inclusão racial tiveram em Uberlândia. Algumas dessas políticas envolvem inclusive o
aumento dos investimentos destinados às manifestações denominadas afro-brasileiras. É
interessante notar que o período em que ocorreu o aumento dos ternos na cidade coincide com
o momento em que o governo brasileiro reconhece a existência do racismo e começa a
elaborar estratégias para combatê-lo. Em 2001, o Brasil participou da III Conferência Mundial
de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata em
Durban (África do Sul) e desde então o assunto vem sendo amplamente discutido. Uma das
medidas mais significativas adotadas pelo governo brasileiro, visando combater o racismo, foi
a criação da Seppir Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial, em
2003, cuja função é promover a igualdade e a proteção dos direitos de indivíduos e grupos
étnico raciais atingidos pela discriminação. A partir da Conferência de Durban, iniciaram-se,
no Brasil, debates que mobilizaram os intelectuais, movimentos negros e políticos para a
refletirem sobre ações afirmativas. Deve-se ressaltar que o debate sobre as ações afirmativas
foi iniciado por pressões dos movimentos negros nos poderes públicos.
Na Universidade Federal de Uberlândia, as discussões sobre ações afirmativas vêm
Ano
2005
2004
2002
2001
1997
1990
1983
1982
1975
1972
1971
1960
1932
1930
1912
Número de Ternos
30
25
20
15
10
5
0
121
sendo realizadas desde 2003 e contam com a participação de lideranças negras congadeiras.
Se por um lado é possível vincular o aumento do número de ternos em Uberlândia a políticas
nacionais de inclusão étnico-racial, por outro as justificativas congadeiras baseiam-se em
dados mais locais, relacionados principalmente aos critérios definidos pela irmandade para se
criar um terno. Na concepção de Ramon Rodrigues, diretor da irmandade de Nossa Senhora
do Rosário, o aumento do número de ternos é uma questão que preocupa a irmandade, pois
muitas vezes esse crescimento é expressão de rupturas no interior dos ternos. O capitão relata
que é comum desentendimentos internos culminar no surgimento de outro grupo e esse
nasce com rixas em relação ao terno do qual saiu:
Nós passamos aqui em Uberlândia mais de dez anos com quatorze grupos. Até 2000
ainda eram quatorze, em dois anos explodiu para dezenove e depois em mais dois
anos para vinte quatro. O critério para se criar um terno é o seguinte: é você ter
contato, ou seja, ter conhecimento, ter algum vínculo principalmente de raiz com o
congado, você tem que ter participação de no mínimo um ano dentro das missas
para você se inscrever e mais três anos para você ter direito à subvenção. que
isso é uma faca de dois gumes hoje, porque com o surgimento desse critério
começou as rusgas e as brigas: (dá um exemplo com tom de brincadeira): eu faço
um terno e a Renata [a pesquisadora] é minha segunda capitoa, a Renata briga
comigo e fala não eu não quero mais ficar com o Ramon ai ela forma outro, a
Renata e a Jú [se referindo a pesquisadora Juliana Calábria] a pega briga
com a Renata e forma outro, ou seja, algumas pessoas que estão ai hoje não tem
todo o acúmulo de conhecimento necessário para a frente de um terno e nem
para comandá-lo. Então esse critério ele foi um pouco facilitado. O que a
irmandade e a diocese fizeram: vai poder se criar novos ternos daqui a quinze
anos.
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2007)
No depoimento acima fica patente o quanto o número de ternos tem aumentado nos
últimos anos e o capitão acredita que isto se deve aos critérios da irmandade para aceitar a
criação de um novo grupo. O período de três anos pelos quais passam os grupos candidatos a
ternos da congada representam o que Gennep, Turner e outros antropólogos definem como
liminaridade. Durante três anos esses grupos vivem em uma espécie de zona marginal da
festa de Nossa Senhora do Rosário: não recebem a subvenção da prefeitura
49
e são
constantemente avaliados e algumas vezes até chacoteados pelos grupos mais velhos. Os três
anos de transição pelos quais os novos ternos passam equivale ao processo iniciático do
candomblé. Ambos os casos exigem dos neófitos paciência e resignação para aprenderem os
fundamentos necessários a um congadeiro ou um filho de santo, no caso do candomblé.
49
Segundo Jeremias Brasileiros esses grupos recebem uma colaboração da irmandade durante os três anos de
transição. Evidentemente, o dinheiro destinado a tais grupos é bem menor do que o destinado aos ternos
aceitos pela irmandade.
122
Acompanhei o processo de aceitação de um terno na irmandade o Congo Rosário
Santo. Esse grupo, composto em sua maioria por jovens e muitos deles participantes de
escolas de samba e grupos de pagode, é um terno irreverente e possui um ritmo que os mais
velhos não gostam muito, pois dizem que aquela batida não é de Congo. O terno Rosário
Santo, em seu período de liminaridade, precisou criar mecanismos de aceitação, inclusive
mostrando que aquela era a forma peculiar do grupo ser congadeiro. Aos poucos, alguns
capitães de ternos mais antigos foram estreitando os laços com o capitão do terno Rosário
Santo, e assim, gradativamente, o terno foi sendo aceito e acima de tudo legitimado na
irmandade e na cidade. O Rosário Santo foi, durante os primeiros anos de sua existência,
bastante criticado pelos ternos mais velhos, ouvi comentários de que o terno dançou o
primeiro ano sem a permissão da irmandade.
O terno Rosário Santo, em sua primeira apresentação na congada, em Uberlândia, foi o
último a se apresentar, se ele possuía ou não permissão é uma questão que não posso afirmar
com certeza. Entretanto, sei que o terno fez suas louvações para São Benedito e Nossa
Senhora do Rosário na porta da igreja. A apresentação do Rosário Santo assemelhou-se à
condição dos abiãs nos terreiros de candomblé, que eles são os últimos a participarem das
celebrações e raramente são vistos e ouvidos pelos demais membros do terreiro. No meio da
apresentação do Rosário Santo ocorreu um problema no som. Alguns congadeiros me
disseram que o som foi desligado propositalmente, outros, que foi um acidente; enfim,
várias interpretações desse acontecimento. O que me interessa particularmente é entender as
relações muitas vezes conflituosas que marcam a criação de um terno de congado. A fundação
do terno Rosário Santo foi assinalada por momentos polêmicos e dividiu as opiniões dos
congadeiros. Trata-se de um grupo emblemático que possui ritmos repicados e acelerados,
esses ritmos se mantêm com a vitalidade de seus membros, que fervorosamente tocam suas
caixas e cantam para seus santos. As atitudes de enfrentamento e questionamento desse terno
causam simultaneamente admiração e estranhamento. Mas é justamente a irreverência, seja
ela interpretada como positiva ou negativa, o adjetivo que melhor caracteriza o terno na
cidade.
Ouvi, na pesquisa de campo, observações de vários teores sobre o Congo Rosário
Santo. Quando esse terno se aproximava da igreja, alguns congadeiros mais velhos me diziam
vem a barulheira do Rosário Santo , outros falavam – que coisa bonita essa
juventude. E, dessa forma, causando reações ambíguas e contraditórias, o Rosário Santo se
afirmou na cidade como um terno de congada e conquistou a simpatia e o respeito dos demais
ternos. O Rosário Santo reelaborou a tradição congadeira na cidade, acelerou o ritmo típico
123
dos Congos de uma maneira muito criativa, porém, bastante perceptível aos ouvidos treinados
dos congadeiros mais velhos, o que gerou muitos desconfortos. O terno é algumas vezes
associado pelos dançadores mais experientes ao grupo Olodum, tanto pelos ritmos quanto
pelas danças e coreografias com os tambores. O Rosário Santo possui os cargos de comando
do grupo, mas esses são ocupados por pessoas jovens se comparados aos outros ternos da
cidade. Em todos os lugares em que o Rosário Santo se apresenta, ele chama atenção e
ninguém fica indiferente a sua irreverência e impetuosidade.
Segundo o capitão Ramon, para evitar que pequenos desentendimentos levem à cisão e
à criação de outros ternos, a irmandade e a diocese de Uberlândia decidiram que poderão
ser criados novos ternos daqui a quinze anos. Tal iniciativa almeja a manutenção do número
atual de ternos e evitar que “qualquer briga ou rixa” culmine na criação de ternos. Para o
capitão, vinte quatro ternos é uma boa quantidade se comparada à distribuição desses ternos
nos bairros da cidade. Segundo o site da prefeitura, em Uberlândia sessenta e quatro
bairros, incluindo a zona central. Além disso, deve-se considerar que quanto maior o número
de ternos menor é parcela para cada terno na divisão da subvenção (conferir mapa 3).
Pereira (2002), em seu trabalho sobre a comunidade dos Arturos, evidencia situações
semelhantes às encontradas no meu estudo sobre a congada em Uberlândia. Tanto nos Arturos
quanto na festa de Uberlândia, verificam-se mudanças significativas nas relações
estabelecidas entre os congadeiros e outros grupos sociais. Aqui, busco entender de que forma
os grupos de congada negociam com atores e instituições sociais, que por motivos diversos, e
apenas recentemente, entram em cena no espetáculo da festa de Nossa Senhora do Rosário.
Interpretar a congada a partir de tais possibilidades é também salientar a dinâmica
contemporânea constitutiva da festa.
Na congada de Uberlândia notei que os congadeiros desenvolvem mecanismos que
visam simultaneamente preservar determinados fundamentos e recriar outros, tendo em vista
as relações e as estruturas de poder. Para a congada se manter na atualidade é necessário
negociar, entretanto, essas negociações, segundo os congadeiros que entrevistei, ocorrem
dentro dos limites dos fundamentos. Certa vez, conversando com Ramon, ele me disse que
uns dez anos sua postura era mais radical e gida, mas de alguns anos para ele aprendeu a
flexibilizar suas ações. O capitão relata que ao longo de sua vida como congadeiro, militante,
sindicalista e religioso aprendeu que se negocia quase tudo e que para a tradição se manter ela
tem que incorporar o novo. Ele completa sua fala enfatizando: tem coisas que podem ser
mudadas e negociadas, têm outras que são fundamentos, nessas ninguém pode mexer.
Gostaria de refletir um pouco sobre essa última afirmação de Ramon, à luz das
124
observações de Carvalho (2005) sobre o negociável e o não negociável no que se refere aos
símbolos sagrados afro-americanos, nesse caso, aos símbolos congadeiros. O autor assinala
que a congada é um espaço ritual poderoso de afirmação da condição negra no Brasil,
equivalente à importância simbólica do candomblé, e indica que nos últimos anos os
praticantes da congada têm enfrentado um difícil problema, gerado pela gravação dos cantos
rituais da congada por cantores populares. Em Uberlândia também casos de cantores que
gravam, com ou sem a participação dos congadeiros, os cantos e os sons da festa do
Rosário
50
.
Na perspectiva de Carvalho, uma enorme diferença de poder entre as comunidades
da congada e as empresas nacionais e internacionais que participam do circuito das produções
audiovisuais. Ainda é preciso destacar que essas gravações provocam reações diversas nos
congadeiros de Uberlândia: aqueles que concebem as gravações como possibilidades de
divulgação e há aqueles que repudiam a exposição dos cantos. Observei que quando
gravações de músicas da festa de Nossa Senhora do Rosário consentidas pelos congadeiros,
eles selecionam o que pode e o que não pode ser socializado entre os não congadeiros;
músicas que são entoadas apenas em momentos rituais fechados e essas, evidentemente, não
entram no rol das cantigas comercializadas. Entretanto, é importante destacar que os
congadeiros não têm controle sobre a disseminação de suas músicas, e, por isso, muitas delas
são apropriadas sem o conhecimento e o consentimento do grupo que as produziu. Carvalho
aponta que se negociações para que a música tradicional entre num circuito mais amplo é
porque um reino do inegociável. Se se negocia, é porque algo que não vai se negociar
que é o sagrado interno.
No período de 2001 a 2003, notei que, na segunda-feira, dia em que os ternos
geralmente fazem visitas, eles se apresentaram num local chamado Oficina Cultural. Embora
tais visitas não aconteçam mais, vou comentá-las, porque elas são importantes para
compreender algumas mudanças atuais da festa da congada. A Oficina Cultural é um espaço
da prefeitura onde acontecem várias atividades: oficinas de fotografia, música, exibição de
filmes, exposição de artes etc. Os prédios da Oficina Cultural estão localizados na região
central de Uberlândia, próximos à igreja de Nossa Senhora do Rosário, e foram tombados em
1985, por meio da Lei Municipal 4.217, que sua construção arquitetônica data do início
do século XX. Nos dias da festa da congada, a Oficina Cultural era transformada pelos
congadeiros em espaço de enfrentamento e concebida pelos poderes blicos locais como
50
A título de exemplo pode-se citar Milton Nascimento, no disco Tambores de Minas, e gravações de CDs do
Projeto Emcantar e da Folia Cultural.
125
palco para a cultura popular. Era arena de luta se considerada do ponto vista dos congadeiros,
que ao inscreverem seus ritmos e danças no contexto urbano se apropriam dos espaços
públicos e assim contestam sua condição de subalternidade. Era espetáculo se tomado do
ponto de vista do não congadeiro, que se vislumbra com a festa exótica que assiste. É
espetáculo também no sentido de representação teatral e porque rompe com a rotina cotidiana
e cria uma platéia espectadora.
Praticamente todos os ternos faziam visitas à Oficina Cultural, chegava-se inclusive a
formar filas para as apresentações. As autoridades públicas locais, principalmente os
representantes da Secretaria de Cultura, esperavam as apresentações dos ternos naquele local.
Após as apresentações, geralmente era servido um lanche para os congadeiros, patrocinado
pela prefeitura. Quando um terno faz uma visita é esperado que o dono da casa em que
ocorreu tal visita ofereça um lanche aos membros do terno, como uma forma de
agradecimento. A Oficina Cultural é ainda espaço ativo da prefeitura, porém, não recebe mais
a visita dos ternos durante os dias da congada.
Ultimamente não são os ternos que se deslocam até a Oficina Cultural, mas a
prefeitura, representada pela Secretaria de Cultura e COAFRO (Coordenadoria Municipal
Afro-Racial), que vai até a Praça do Rosário para assistir às apresentações. Essa inversão é
significativa, pois expressa a legitimação do espaço sagrado em que ocorre a festa. A
prefeitura é um agente importante na realização da congada, mas a congada também sua
contrapartida e se consolida como expressão cultural da cidade. Não são mais os congadeiros
que se deslocam até os espaços da prefeitura, são os representantes da prefeitura que vão até a
praça para assistirem à festa.
A atuação da prefeitura na festa foi gradativamente aumentando, pressionada em
grande medida por congadeiros que possuem cargos públicos na cidade. A criação da
COAFRO possibilitou a organização de eventos que interessam à população negra, além
disso, as práticas afro-brasileiras ganharam uma agência institucionalizada para fazerem suas
reivindicações. Os eventos organizados por essa coordenadoria buscam contemplar os anseios
das casas de umbanda e candomblé, da congada, da capoeira e os do carnaval. Nesse sentido,
a COAFRO desempenha um papel fundamental na viabilização de discussões, debates e
encontros da população negra uberlandense. O fato de a COAFRO ter possuído, ao longo de
sua história, lideranças congadeiras, foi extremamente positivo para a festa na cidade. Essas
lideranças tiveram papel importante na sensibilização dos poderes públicos para o
reconhecimento e visibilidade da festa.
Uma das formas de evidenciar a atuação da prefeitura na congada nos últimos anos é
126
acompanhar o aumento da subvenção destinada à festa de Nossa Senhora do Rosário e
compará-la com a verba que a prefeitura destina a outras práticas populares na cidade, como,
por exemplo, a folia de Reis. Bonesso (2006), em seu estudo sobre a festa de Reis em
Uberlândia, apresenta dados oficiais da Secretaria de Cultura de Uberlândia que indicam que
a congada recebe maior subvenção do que os grupos de folia. Talvez esse fato possa ser
explicado pelo investimento dos poderes públicos objetivando tornar a congada um símbolo
cultural da cidade, atitude essa motivada pelo incentivo que as políticas nacionais de inclusão
étnico-racial têm dado as manifestações culturais afro-brasileiras.
Os dados apresentados por Bonesso demonstram um investimento diferenciado da
prefeitura nas festas de folia e de congado ao longo de oito anos. Apesar de serem duas festas
muito difundidas em Uberlândia, é possível, por meio da avaliação dos valores destinados a
cada uma dessas festas, inferir que a congada foi privilegiada. Deve-se destacar que mais
grupos de folia de Reis que ternos de congada, mas os ternos de congada são maiores se
comparados aos grupos de folia na cidade.
Quadro 4: Subvenção da Associação das folias de Reis de Uberlândia – MG
Ano
Valor da subvenção
1995
19.000
1997
10.251,60
1998
11.000
1999
4.312,50
2000
4.312
2001
5.262
2002
10.000
2003
Não recebeu
127
Quadro 5: Subvenção da irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de Uberlândia –MG
Ano
Valor da Subvenção
1995
19.000
1997
10.251,60
1998
11.000
1999
8.625
2000
8.625
2001
23.670
2002
32.000
2003
47.560
2004
51
33.000
2005
70.000
2006
42.000
2007
52.000
A congada e a folia de Reis são manifestações culturais que possuem grande expressão
no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Essas festas populares foram inseridas no calendário
católico com as discussões do Concílio Vaticano II. Nessa reunião da alta hierarquia católica,
realizada em 1962, ocorreram debates e foram elaboradas estratégias que buscavam tornar a
igreja católica mais inclusiva. Através da construção de um discurso que se pretendia mais
pluralista não foram inseridas no calendário do catolicismo as festas populares, como
também foram permitidas suas louvações dentro das igrejas.
Com relação especificamente às festas de congada e folia de Reis em Uberlândia, vale
indicar que até 1998 as duas festas recebiam a mesma subvenção da prefeitura. Em 1999, a
subvenção destinada à folia de Reis foi reduzida à metade e a verba para irmandade do
Rosário praticamente dobrou. Em 2001, a subvenção da festa do Rosário triplica e a da folia
tem um pequeno aumento. Em 2003 é interessante notar que a folia de Reis nem recebeu
subvenção, enquanto a congada recebeu uma quantia de R$ 47.650,00 (quarenta e sete mil e
seiscentos e cinqüenta reais). No ano de 2005, a subvenção destinada à congada tem um
aumento bem satisfatório, mas esta não se mantém nos anos seguintes. Em 2005, a irmandade
de Nossa Senhora do Rosário obteve uma verba complementar de trinta mil reais, amparada
pela Lei Orgânica do Município, art. 116, Lei nº 8666/93 e Lei Municipal nº 9078, de
51
As informações dos valores da subvenção do período de 2004 a 2007 foram fornecidas por Jeremias
Brasileiro.
128
19/10/2005, por isso a subvenção chegou à quantia de setenta mil reais
52
. Os números indicam
um aumento significativo da subvenção da congada num período curto de anos.
Evidentemente, esse aumento na subvenção ocorreu em função da mobilização dos
congadeiros, que organizados, muitos deles em movimentos negros e partidos políticos,
reivindicaram mais verba para a festa da congada na cidade. Atualmente, os congadeiros usam
o poder público tanto para melhorarem a infra-estrutura da festa quanto para aumentarem sua
visibilidade na região.
De acordo Ramon Rodrigues, a institucionalização da subvenção é recente e o
dinheiro que os ternos recebem é insuficiente para fazer todos os reparos que são necessários:
nos instrumentos musicais, roupas etc. Segundo o capitão, no caso do Moçambique de Belém,
essa verba precisa ser complementada com recursos obtidos de outras atividades realizadas
pelo terno: festivais de sorvete, rifas e leilões, por exemplo. Quando perguntado a respeito da
subvenção ele disse o seguinte:
A subvenção é coisa de uns dez anos atrás, eu acho que isso mesmo, porque a gente
sempre vivia na correria, e ela era muita pouca, era muito pouco essa subvenção,
era coisa mesmo de complemento. Hoje, ela ainda é muito pouco, porque pelo
número de grupos que isso é dividido, a gente recebeu o ano passado 1.890,000,
para gente aqui isso é muito irrisório! Tem grupos aí que tem 20/30 pessoas, aí dá e
sobra, para nós aqui não dá, pois são muito reparos que tem que serem feitos!
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2007).
A subvenção da congada chega aos ternos via irmandade do Rosário, mas de acordo
com Jeremias Brasileiro, uma porcentagem dessa verba é destinada à manutenção da
irmandade e o restante é repassado aos ternos através dos capitães. Para o capitão Ramon, a
pecúnia repassada pela irmandade é suficiente apenas para os ternos menores, mas no caso do
Moçambique de Belém, com mais de duzentas pessoas, essa verba não é o bastante para
suprir as suas demandas. Embora a subvenção o seja a desejada pelos ternos, ela vem, ao
longo dos anos, aumentando significativamente, tal como observa Bonesso (2006, p. 358):
Toda essa movimentação política fez com que ocorresse um grande aumento no
número dos ternos de congado, além da grande visibilidade que a festa tem em toda
a cidade, com propaganda na televisão, grandes cartazes, fechamento das ruas
centrais nos dias de encerramento e construção de camarotes da prefeitura para
autoridades. Diferentemente das folias de reis, as festas de congados são realizadas
no centro da cidade e levam um grande número de pesquisadores, curiosos e demais
pessoas ligadas direta e indiretamente com a religiosidade dos santos de louvor.
Como Bonesso bem colocou, a congada é alvo de muitos interesses, atrai estudiosos e
a mídia. Se comparada à folia de Reis, por exemplo, a congada é muito mais expressiva na
52
A esse respeito ver discussões de Jeremias Brasileiro (2006).
129
cidade, entre outros motivos, porque a igreja de Senhora do Rosário está localizada no centro
da cidade e a dos Santos Reis na periferia. Essa é uma questão importante, pois o espaço,
além receber significações construídas socialmente também demarca diferenças. A congada
acontece no centro da cidade e dialogando com os poderes instituídos, apesar de muitos de
seus membros morarem em bairros mais marginais. Já a folia, composta em sua maioria por
pessoas mais velhas, ocorre nos bairros mais periféricos e na zona rural. Bonesso (2006, pp.
340-341) destaca ainda que as festas populares provocam cada vez mais disputas constantes
entre mídia, pesquisadores e ONGs. O autor exemplifica essas disputas narrando uma situação
que aconteceu com Seu Charqueada, em Romaria:
A partir da década de 90, muitos documentários, teses de graduação e pós-graduação
foram realizados, não com base na romaria de agosto, mas também nos encontros
de folias de reis e nas congadas. O ano de 2002 evidencia a importância desses
agentes nas festas populares. Um exemplo disso é o episódio acontecido nesse ano
envolvendo um grupo de pesquisadores e um canal de televisão, ambos interessados
em documentar a figura emblemática de “Seu Charqueada”, um romeiro/congadeiro
com mais de 100 anos que peregrina todos os anos de
Uberlândia à Romaria em
uma
bicicleta sem marchas do modelo “barra forte”. Nessa ocasião, um dos
organizadores do documentário peregrinou com ele de bicicleta até o santuário em
Romaria, onde duas apresentadoras de um jornal local faziam tomadas ao vivo.
Quando elas avistaram “Seu Charqueada”, figura muito conhecida e admirada em
toda região, resolveram fazer uma reportagem com ele. Para isso, solicitaram ao
ancião que andasse com a bicicleta pela praça do santuário para a captação de
imagens que simulassem a sua chegada da peregrinação, apesar de ele ter chegado a
algum tempo na cidade. A praça estava tomada pela multidão, pois era o fim de
semana que antecedia o dia 15 de agosto, dia da santa padroeira. As quatro filas
simultâneas para se chegar à imagem de N. S. da Abadia rodeavam o quarteirão da
praça. Com toda essa movimentação de romeiros, as repórteres pediram aos
seguranças do santuário que cortassem a fila, para que as meras filmassem “Seu
Charqueada” aos pés da imagem de N. S. da Abadia. No momento da autorização, a
equipe de pesquisadores, também interessados em registrar “Seu Charqueada’
quiseram cortar a fila, mas foi barrada pelos seguranças. Esbravejando contra essa
situação, uma coordenadora do documentário conseguiu autorização para que duas
pessoas acompanhassem “Seu Charqueada” até a imagem da santa. Houve ali uma
literal disputa simbólica pelo “objeto de pesquisa” ou de “reportagem”, culminada
com uma pequena troca de insultos entre as repórteres e pesquisadores.
Esse episódio evidencia o estabelecimento de relações conflituosas que tem se tornado
cada vez mais recorrente no trabalho de campo, a disputa pelo “objeto de estudo”. No caso de
Uberlândia, isso fica explícito no domingo e na segunda-feira da festa, dias em que a igreja de
Nossa Senhora do Rosário é o alvo principal de atenção. Também verifiquei que conflitos
e querelas entre os pesquisadores da festa, expressos, sobretudo, na luta por informações
sobre um determinado terno. Para se obter tais informações é necessário construir uma rede de
interlocutores, o que demanda tempo, resignação e depende principalmente da familiarização
do pesquisador com seus pesquisados. Por isso, os pesquisadores estimam e prezam tanto seus
dados e chegam, em alguns casos, como observa Silva, V. G. (2000), a se tornarem refratários
130
à presença de outros pesquisadores que se aproximam de suas redes. O autor destaca ainda
que tais atitudes são bastante comuns em pesquisas que abordam as religiões afro-brasileiras.
No caso da congada, devido ao aumento considerável de pesquisadores nos últimos anos, as
disputas entre eles são bem intensas.
Realizar uma pesquisa sobre a congada muitas vezes exige do pesquisador a
elaboração de estratégias para conhecer o terno pesquisado e isso implica a participação em
atividades extra-festa. Mas quando chegam os dias de espetáculo na praça, a maior parte
desses pesquisadores tem dificuldade para penetrar nos espaços reservados para a mídia. Tal
dificuldade é acirrada com o aumento da terceirização da segurança da festa. Esses seguranças
geralmente tentam impedir a passagem dos não-congadeiros ao lugar em que ocorrem as
apresentações dos ternos. A mídia tem mais facilidade para driblar a segurança dos que os
pesquisadores. Os membros do Moçambique de Belém e do Camisa Rosa identificaram
minha dificuldade de inserção, por isso algumas vezes me chamaram para o meio do terno.
Evitavam, dessa forma, a censura dos seguranças e também permitiam meu acesso a toda a
apresentação do terno. Estar entre os moçambiqueiros durante as apresentações foi bem
interessante, senti o forte som das caixas, das gungas e das patangomas. Tive a oportunidade
inclusive de ver como funciona a dinâmica de um terno de Moçambique e como são
desempenhados os vários papéis que compõem o terno.
Presenciei situações de grande efervescência no Moçambique de Belém, marcadas por
estados de quase transe expressos nas danças rituais que muitas vezes fazem alusões aos
pretos-velhos, bastante cultuados nas casas de umbanda e candomblé. A dança do
moçambiqueiro é encurvada e cadenciada, combina movimentos nos quadris e nos ombros,
além disso, os moçambiqueiros usam bastões como adereço das danças. Segundo Durkheim,
o estado de efervescência provoca uma alteração psíquica. As energias vitais são
superexcitadas, as paixões mais vivas, as sensações mais fortes. No caso da congada, a
música, a dança, determinadas bebidas usadas para fechar o corpo, entre outras práticas
ritualísticas são fatores que contribuem para que seus participantes compartilhem experiências
de efervescência.
Com relação à dança do moçambiqueiro, Martins (1997, p. 46) faz as seguintes
observações:
O moçambiqueiro é o senhor das coroas. (...) Dançam agrupados, sem nenhuma
coreografia de passo marcado. Seu movimento é lento e de seus tambores ecoa um
ritmo vibrante e sincopado. Os pés dos moçambiqueiros nunca se afastam muito da
terra e sua dança, que vibra por todo o corpo, exprime-se, acentuadamente, nos
ombros meio curvados e nos pés. Seus cantares acentuam, na enunciação lírica e
rítmica, a pulsação de seus movimentos.
131
Tive algumas oportunidades de acompanhar o Moçambique de Belém em
apresentações fora do contexto ritual da festa. Destaco uma apresentação do Moçambique de
Belém na ocasião de uma entrevista de Jeremias Brasileiro à TV Integração. Cito essa
entrevista porque ela é um exemplo de como os congadeiros lidam com os atores sociais que
entram na congada.
Quando o terno me convidou para acompanhar a entrevista fiquei muito contente, mas
quando eles me disseram o horário (cinco horas da manhã), senti que poderia ser um teste,
melhor dizendo, um rito de passagem. Passados os apuros da caminhada até a praça,
finalmente cheguei ao local. Quando cheguei ainda não tinha chegado ninguém, pensei
inclusive que não aconteceria mais a tal entrevista. Após alguns minutos chegou Jeremias
Brasileiro e aos poucos os membros do terno foram chegando e ao me encontrarem naquele
lugar, tão cedo, ficaram surpresos.
A entrevista tinha, dentre outros objetivos, anunciar a festa do Rosário que se
aproximava. Tal entrevista aconteceu na Praça Tubal Vilela, em frente à igreja matriz de
Santa Terezinha. A entrevista passaria ao vivo no jornal local da manhã, por isso o terno teve
que chegar tão cedo. O terno posicionou-se na praça para uma apresentação que ocorreria fora
do contexto ritual. Paramentados para uma apresentação pública os membros do terno foram
se soltando aos poucos. Policiados pelo estranhamento que as câmeras provocavam, o grupo
iniciou a apresentação modestamente sem exagerar nos ritmos e nas danças. Aos poucos o
grupo foi se soltando e quando solicitado pelo câmera tocaram mais rápido ou usando uma
expressão congadeira, maiaram com fervor suas gungas e patangomas. Foi uma situação
inusitada para o terno, composta por câmeras, microfones e luzes. Fizeram algumas perguntas
ao capitão Ramon e ao pesquisador Jeremias Brasileiro, mas o que realmente chamava
atenção eram as danças e os toques bem marcados das caixas. As câmeras dispensavam as
explicações do capitão e do pesquisador, o que interessava aos repórteres eram as músicas
cadenciadas e as fortes expressões corporais do terno.
Quando o grupo sai do espaço em que geralmente acontece a festa eles elaboram
estratégias para lidarem com essa saída. Segundo Pereira (2002), a dia moderna tem sido
empregada por alguns representantes da cultura popular, no caso dessa pesquisa os
congadeiros, como um suporte comunicacional. O autor faz as seguintes argumentações, que
são pertinentes ao estudo da festa de Nossa Senhora do Rosário:
132
O inter-relacionamento da televisão com o popular interfere na maneira como os
representantes desse modelo passam a percebê-lo (...) a universalização de eventos
locais proporcionada pela televisão expõe os representantes do popular em
diferentes espaços de competição social. Com isso, a dimensão de cultura local se
desloca para uma dimensão global de intercâmbios que os aparatos tecnológicos
estimulam em curtos espaços de tempo. (...) se instaura um novo cenário que amplia
as possibilidades de produção de sentido, que o popular e o massivo estão
disponíveis como provocações à sensibilidade e à compreensão dos públicos. E,
como tentamos explicitar, os suportes tradicional e moderno possuem grande parcela
de participação nessa ordem social, pois contribuem com ângulos de visão a partir
dos quais os grupos e os indivíduos se projetam como interpretantes das realidades
culturais e de si mesmos. (PEREIRA, 2002, p.61)
A televisão contribui para que a congada alcance outros contextos sociais e para que se
construam novos sentidos em torno da festa. À medida que os grupos de congada utilizam a
mídia para difundirem a festa, eles criam também possibilidades de atualizações de suas
tradições na contemporaneidade. A congada é vivida e constantemente reconstruída no
imaginário de seus membros e essa reconstrução conta, na atualidade, com os novos aparatos
tecnológicos. A festa de Nossa Senhora do Rosário é acompanhada por redes de TV e jornais
locais e é divulgada em toda a região do Triângulo Mineiro. Canclini (1997, 262) analisa o
carnaval em alguns países latino-americanos e descreve os processos que tornam essas festas
populares em grandes atrativos para turistas, processo semelhante ao que aconteceu com a
congada em Uberlândia:
Nasceram como celebrações comunitárias, mas num ano começaram a chegar
turistas, logo depois fotógrafos de jornais, o rádio, a televisão e mais turistas. Os
organizadores locais montam barracas para a venda de bebidas,
do artesanato que
sempre produziram souvenirs que inventam para aproveitar a visita de tanta gente.
(....) Claro que as relações não costumam ser igualitárias, mas é evidente que o
poder e a construção do acontecimento são resultado de um tecido complexo e
descentralizado de tradições reformuladas e intercâmbios modernos, de múltiplos
agentes que se combinam.
No caso da festa de Nossa Senhora do Rosário de Uberlândia é notório como ela se
ampliou ao longo de cinco anos. A cada ano aumenta o público que assiste à festa e cresce
também o número de barracas ambulantes localizadas nas mediações da igreja do Rosário.
Evidentemente que a ampliação da estrutura da congada é resultado de relações de poder
construídas nem sempre de forma igualitária, como colocou Canclini. Entretanto, é preciso
indicar que na reelaboração das práticas congadeiras na cidade são construídos novos sentidos
e novos atores sociais passam a se vincular à festa.
Em 2005, ao acompanhar a congada em Uberlândia notei que a estrutura física que
sustentava a realização da festa havia mudado. Próximo à igreja, no caminho da apresentação
dos grupos, havia um palanque com slogans da prefeitura que era ocupado por autoridades,
repórteres e fotógrafos. Nesse palanque estavam membros da Secretaria de Cultura de
133
Uberlândia e da Coordenadoria Municipal Afro-Racial (COAFRO). Quando cheguei à praça e
observei aquela estrutura estranhei bastante, pois era uma organização bem grandiosa se
comparada com as outras dos anos anteriores. Notei também que os grupos, ao chegarem às
imediações da igreja, faziam duas apresentações: uma para a prefeitura, representada no
palanque, e outra para os membros da igreja, posicionados num palco na lateral da igreja do
Rosário. Tal organização espacial fazia sentido naquele contexto, que prefeitura e a igreja
católica são duas instituições importantes para a congada atualmente.
A congada é uma das manifestações populares mais expressivas de Uberlândia. Em
função dessa importância que a festa possui na cidade, o pesquisador Jeremias Brasileiro, nas
atribuições de seu cargo de comandante-geral da congada, solicitou
ao COMPHAC (Conselho
Municipal do Patrimônio Histórico, Arquitetônico, Artístico e Cultural de Uberlândia), por
meio de ofício, o registro da festa de Nossa Senhora do Rosário como patrimônio imaterial
53
.
Esse registro interessa não apenas os congadeiros, mas também aos poderes públicos, pois
assim a festa poderia contribuir, por exemplo, no aumento do turismo na cidade. Em conversa
com Ramon Rodrigues, perguntei-lhe sobre o processo de reconhecimento da congada como
patrimônio imaterial e ele me disse o seguinte:
Eu sei por que o Jeremias falou que está fazendo isso. Agora eu acredito que em
momento propicio, e ele é um cara inteligente e sabe que não pode fazer isso por
conta dele e da secretaria [Secretaria de Cultura/COAFRO] por achar que a
secretaria vai paternalizar o negócio. (...) Então assim eu acho interessante isso,
mas algo que seja construído, até porque isso é um fator de crescimento para todo
mundo.
(Ramon Rodrigues, capitão do Moçambique de Belém, 2007).
Fica evidente no discurso do capitão Ramon que a congada reconhecida como
patrimônio imaterial é algo que vai beneficiar a todo mundo congadeiros, políticos e a
cidade de modo geral. Entretanto, o capitão destaca que é importante que tal iniciativa
envolva todas as partes, inclusive os congadeiros, que são os maiores interessados. Jeremias
Brasileiro vem desenvolvendo muito tempo um trabalho de pesquisa sobre as festas de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Estar entre
a prefeitura, a irmandade e a universidade a Jeremias boas possibilidades na empreitada de
reconhecimento da congada como patrimônio imaterial. Como pesquisador, Jeremias chama
esse pertencimento múltiplo de circularidade. Seja pelo prisma do circular, como indicou
53
Para o IPHAN, o patrimônio imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um
sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à
criatividade humana.
134
Jeremias, ou pela noção de fronteira, como prefiro denominar, é interessante perceber que
essa condição é ilustrativa de muitas outras encontradas atualmente na congada de
Uberlândia.
As ONGs compõem um outro grupo de atores que de uma forma ou de outra também
contribuem na elaboração de novas configurações da festa de Nossa Senhora do Rosário.
Durante a pesquisa sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário, percebi que as ONGs se
interessavam muito pelas festas ditas populares, principalmente pela congada e a folia de
Reis. Destaco os projetos das ONGs EMCANTAR e Folia Cultural, no que tange
essencialmente aos seus interesses pela congada.
O Projeto EMCANTAR (Centro de Cultura, Educação e Meio Ambiente) atua nas
cidades de Uberlândia MG e Araguari MG, desde o ano de 1996. Segundo a página do
projeto, o EMCANTAR desenvolve atividades de formação continuada em Educação pela
Arte e Educação Sócio-ambiental, envolvendo educadores e alunos de escolas públicas, além
de crianças, jovens e adultos da comunidade. O projeto atua em três frentes: cultura, educação
e meio ambiente. O que interessa nessa pesquisa é entender como o projeto EMCANTAR se
relaciona com a congada. No período de 2001 a 2003, o EMCANTAR desenvolveu uma série
de pesquisas que objetivavam o registro e a divulgação de algumas expressões da cultura
popular da região do Triângulo Mineiro. Essas pesquisas resultaram em seis documentários:
Charqueada: Vida Salgada no Tempo; Reis de Contas, que fala da congada de Uberlândia; A
Escola em que Moro; Vida de... Lixo de...; dos Reis, dos Santos, da Silva...; A Folia; e
Agarrar a terra... Fecundar o som.
Uma outra ONG que tem demonstrado interesse na congada em Uberlândia é a Folia
Cultural (Instituto de Educação, Cultura, Arte, Pesquisa e Informação). Essa ONG ganhou o
prêmio Klauss Vianna, proposto pela Funarte, com o projeto Escola de Congo. Fiquei
sabendo desse projeto por intermédio de Jeremias Brasileiro, no encerramento da novena na
igreja do Rosário do ano de 2006, que acontece no sábado que antecede a festa. Jeremias
comentou que nesse espaço havia uma exposição de fotos da artista Renata Meira
54
. Fiquei
curiosa com aquela informação, mas não fui naquele dia ao local sugerido por Jeremias. No
domingo ouvi alguns ternos comentando que iam visitar a Escola de Congo. Então resolvi
acompanhar esses ternos e logo descobri que o espaço da Escola de Congo era bem próximo à
igreja do Rosário. Cheguei à escola e notei que o local foi visitado entre outros ternos, pelo
Moçambique Raízes (o terno mais novo da cidade), e o Congo Sainha (um dos mais antigos
54
Renata Meira é artista e professora da Universidade Federal de Uberlândia.
135
ternos da cidade).
As visitas à Escola de Congo aconteceram nos moldes das demais visitas que os ternos
fazem. O grupo chega cantando e entrega a bandeira do terno para os donos da casa que
passam essa bandeira no corpo para se purificarem e receberem as bênçãos dos santos
padroeiros. Em seguida o terno entra na casa, nesse caso na Escola de Congo. Após algumas
músicas cantadas aconteceu uma apresentação de dança do grupo Baiadô
55
, como uma forma
de agradecimento às visitas recebidas. Tal apresentação combinou músicas de várias festas
populares: congada, cacuriá e coco, por exemplo.
Entre uma visita e outra tentei compreender melhor o que era aquele espaço que
recebia a visita de alguns ternos e de outros não. Na parede externa do espaço estavam
divulgados os vários cursos oferecidos, entre eles, aulas de congado com o terno Sainha,
percussão com o Tabinha e capoeira com o mestre Urso. Meu interesse naquele espaço
utilizado por tantos grupos era compreender o que ele representava e depois entender sua
relação com o terno Sainha. Em conversa com Renata Meira ela me disse que hoje funcionam
na sede da Folia Cultural vários grupos que atuavam na cidade mesmo antes da premiação
da Funarte. Esses grupos se uniram num mesmo espaço, onde continuam realizando suas
funções, mas integrados a outros grupos. O que mais me chamou atenção na proposta da
Escola de Congo foi o envolvimento do grupo Sainha nesse projeto. Queria compreender de
que forma o Sainha (considerado um dos ternos mais tradicionais da cidade, composto pelos
mais velhos e conhecedores do congado e portador do que muitos chamam de verdadeira
batida de Congo), atua numa proposta como essa da Escola de Congo.
De acordo com Renata Meira o envolvimento do Sainha nesse projeto ocorre por meio
de parceria:
Esse projeto é em parceria com o Sainha [terno de Congo Sainha], com o Tabinha,
com o CAC, entendeu? Então assim, o projeto é reunir coisas preexistentes num
trabalho de criação em arte. Então não sei se você viu a gente recebeu agora o
Raízes e a gente dançou para eles uma criação que a gente fez a partir das
tradições onde a gente colocou a referência ao Congado de jogar o tambor para
cima. A referência ao Cacuriá, que é nossa prática mais intima no Baiadô que é a
música do tambor, que foi composta por um congadeiro, que é do grupo e cantamos
um Congo também que a gente compôs para eles. A gente não faz um trabalho de
imitação, a gente não faz um trabalho de parafolclore, a gente faz um trabalho de
arte, de criação. No Baiadô, que é o grupo que vai a frente nas misturas porque os
outros são mais ligados à tradição a gente tem congadeiro, faxineiro, professor,
doutor, gente de seis anos, de cinqüenta e cinco. Aqui na escola de Congo também:
tem turma que tem criança de quatro com senhora de sessenta e cinco, eles dançam
e interagem que são coisas que a gente aprende com a tradição, você não separa
55
Baiadô é um grupo de pesquisa e prática das danças brasileiras do Departamento de Música e Artes Cênicas
da Universidade Federal de Uberlândia.
136
criança e adulto é intergeracional. Então essa idéia da escola de Congo, é uma
idéia que a gente aprende com a tradição as práticas da linguagem artísticas
recria e com isso a gente dialoga, então a gente recebe o Raízes [terno de
Moçambique Raízes], a gente fez essa exposição. Nós estamos homenageando a
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário que está fazendo noventa anos nesse ano
de 2006.
(Renata Meira, outubro de 2006)
É interessante destacar o lugar de fala da coordenadora do Grupo Baiadô. Renata é
pesquisadora de festas populares e também atua na ONG Folia Cultural, isso lhe confere uma
posição diferenciada, pois transita entre a Folia Cultural e a universidade. Este exemplo é
ilustrativo de uma tendência encontrada na cidade: é cada vez mais comum encontrar
pesquisadores – professores e alunos –, circulando ONGs e universidade.
Ações como as do Projeto EMCANTAR e da Escola de Congo contribuem na
construção de novos sentidos para a congada na cidade. Tais organizações, assim como a
prefeitura, os políticos e os centros universitários, formam os novos atores sociais que direta
ou indiretamente atuam na congada atualmente. Quando os ternos se vinculam a iniciativas
como as descritas, criam novos significados para suas práticas. E mesmo aqueles que não
estão diretamente envolvidos nos projetos são também afetados por eles, uma vez que tais
projetos mudam a dinâmica da festa na cidade.
Muitas vezes, quando determinados grupos aceitam participar de projetos geridos por
instituições externas à festa, é comum ouvir a expressão: os congadeiros estão perdendo a
tradição. Essa expressão é utilizada entre os membros dos grupos que não estão envolvidos
nesses projetos, pela comunidade exterior e, em muitos casos, por pesquisadores saudosistas,
que insistem em buscar as raízes da festa de Nossa Senhora do Rosário. Muitas vezes os
grupos que participam de projetos como esses são bastante criticados pelos demais grupos.
As ONGs, a prefeitura, os pesquisadores e a mídia formam o que denominei de novos
atores sociais da congada. Esses atores se relacionam de maneiras variadas com a congada e
suas atuações diversas colaboram no sentido de recriar o significado da congada através da
reelaboração de suas práticas e da renovação de suas.
137
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E a festa continua...
Para interpretar a congada foi necessário realizar um intenso trabalho de campo,
mesclado por momentos de alegrias, decepções, surpresas e encantamentos. Ao longo dessa
pesquisa conheci muitas pessoas, escutei várias histórias de feitiçaria e milagres, presenciei
conflitos no interior dos ternos, aprendi cantigas e ouvi causos dos mais velhos. À medida que
aumentei minha convivência nos ternos estudados, tive a sensação de que quanto mais se
pesquisa o congado mais coisas surgem para serem pesquisadas, pois se trata de uma festa que
está em constante transformação. A congada é uma festa dinâmica, que é atualizada e recriada
por meio de celebrações anuais. Esse trabalho procurou mostrar de que forma a congada, uma
manifestação cultural definida usualmente como tradicional, é reelaborada como uma prática
cultural contemporânea.
É importante relembrar que a congada se organiza no interior das irmandades
religiosas e em função de um mito fundador que envolve a aparição da imagem de uma santa
no período da escravidão. Tal santa rejeita os louvores e a capela construída pelos brancos,
mas se encanta com as adorações, danças e músicas dos escravos e, por isso, é considerada
protetora do povo negro. Há várias versões do mito fundador da congada, mas a todas que tive
acesso giram em torno de histórias relacionadas à Virgem do Rosário e atribuem ao terno de
Moçambique o mérito da retirada da santa do local em que ela apareceu. Algumas versões
dizem que a santa apareceu na água, outras afirmam que foi no mato e ainda tem as que
relatam o aparecimento da santa numa pedra ou deserto.
Durante a realização da congada esse mito é constantemente renovado. O mito é
atualizado, por exemplo, quando os moçambiqueiros reverenciam Nossa Senhora do Rosário
e portam no peito colares de contas de lágrimas, que lembram o lamento da santa ao ver o
sofrimento dos negros escravizados. O mito é reconstruído quando os congadeiros ocupam o
espaço público e questionam através de suas músicas, a condição subalterna da população
negra. A congada é associada por muitos congadeiros a um campo de batalha, em que é
preciso lutar continuamente. Uma batalha que, segundo eles, lembra a luta do herói negro
Zumbi dos Palmares. Os congadeiros lutam pela continuidade da festa e por seu
reconhecimento nos campos cultural e ideológico. Lutam e negociam com os poderes
públicos, com a hierarquia da igreja católica, com as ONGs, com a dia e com os
pesquisadores. E ao lutarem e negociarem, os congadeiros recriam suas práticas e lhes dão
novos sentidos.
138
No primeiro capítulo fiz uma contextualização histórica da festa de Nossa Senhora do
Rosário e retomei as principais interpretações acadêmicas sobre o tema. Observei que a
congada é uma prática que data do Brasil colônia e que foi estudada por diferentes vertentes
do pensamento social brasileiro. Os pesquisadores, ao interpretarem essa festa tão expressiva
do Brasil, utilizaram termos como: mesclas, fusões, sincretismo e hibridismo. No percurso
peregrino que trilhei até aqui notei que a congada é uma manifestação cultural afro-brasileira
híbrida, que se constrói no trânsito entre o catolicismo popular e as religiões afro-brasileiras e
entre a tradição e a modernidade. É possível que um bastão seja utilizado pela mesma pessoa
na congada e no terreiro e que se encontrem guias de orixás circulando pelo carnaval e pela
festa de Nossa Senhora do Rosário. Também observei no desenvolvimento dessa pesquisa que
a transmissão oral do saber ainda é um veículo importante na congada, mas agregados a ele
surgem outros meios de aprendizagem desse saber que devem ser considerados, tais como:
elaboração de panfletos com as cantigas congadeiras e o uso das novas tecnologias. Assim,
criam-se trânsitos não só de pessoas, mas também de objetos e significados.
No capítulo dois, momento em que fiz uma análise da constituição da congada em
Uberlândia, constatei que a celebração da festa na cidade está diretamente relacionada à
organização do espaço e às configurações de poder. Tais relações podem ser aferidas pelas
mudanças que tanto a data da festa quanto a localização da igreja de Nossa Senhora do
Rosário passaram ao longo dos anos. É interessante observar que se por um lado a congada
enfrentou dificuldades para se consolidar em Uberlândia, tendo que negociar constantemente
com os poderes instituídos da igreja católica e da prefeitura, por outro, ela gradativamente tem
aumentado sua visibilidade. Tal visibilidade é expressa, entre outras coisas, pelo crescimento
do número de ternos: no final da década de noventa havia quatorze ternos em Uberlândia e
hoje vinte quatro grupos de congada distribuídos em ternos de Congo, Catupé,
Moçambique e Marinheiro. Dentre esses ternos, o Moçambique de Belém foi meu alvo
principal de análise, entretanto, é importante recordar que acompanhei também os ternos de
Moçambique Camisa Rosa e Branco de Ituiutaba e Araguari, respectivamente. Acompanhar
esses ternos foi muito importante, pois assim pude fazer comparações e ampliar o leque de
interpretações da festa. Além disso, observei que os ternos de uma determinada cidade
visitam as festas de outras cidades no decorrer do ano, criando fortes vínculos e trânsitos entre
ternos, cidades e pessoas.
A congada é composta por várias atividades que se iniciam mais ou menos três meses
antes da festa e formam uma espécie de giro do sagrado: são leilões, novenas, missas, visitas,
ensaios, preparação em terreiros de umbanda etc. Nessas atividades verifiquei que se
139
interpenetram as religiões afro-brasileiras e o catolicismo popular, formando um ritual
híbrido, marcado por danças, rosários, guias, cores, músicas, santos, pretos-velhos e orixás.
Embora essa mistura perpasse todos os momentos da congada, nos leilões e na segunda-feira
da festa ela é mais evidente, já que nestas situações o controle da igreja católica é menor.
Pode-se dizer que as práticas mais próximas às religiões afro-brasileiras ficam nos bastidores
e não possuem a mesma visibilidade se comparadas às práticas mais próximas do catolicismo
popular.
No decorrer desse trabalho tive condições de elaborar uma liturgia da festa de Nossa
Senhora do Rosário, destacando não os momentos rituais como também os atores que dão
significados à congada e os símbolos utilizados na festa. Essa discussão, que foi desenvolvida
basicamente no capítulo três, aponta que os congadeiros ressignificam suas práticas em
função do mito de Nossa Senhora do Rosário. É o mito que indica, por exemplo, como o
cortejo é organizado e estabelece que o terno de Congo deve se posicionar à frente do
Moçambique, exercendo função de policiamento e abrindo caminho para os moçambiqueiros
conduzirem Nossa Senhora do Rosário e o reinado. É o mito que justifica a posição
simbolicamente superior reivindicada pelos ternos de Moçambique e lhes dá o mérito de subir
e descer os mastros de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.
Em Uberlândia, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário continua sendo a
gerenciadora da festa, entretanto, nos dias atuais, instituições e atores sociais externos à
congada, como a prefeitura, vereadores, centros universitários e ONGs, têm contribuído para
que a festa aconteça na cidade. No capítulo quatro, fiz uma discussão sobre a atuação dos
novos atores e instituições sociais na festa de Nossa Senhora do Rosário e observei que esses
atores e instituições se relacionam de maneiras variadas com a congada. A prefeitura atua por
meio de subvenção, e nesse aspecto é importante mencionar que nos últimos anos Uberlândia
tem investido bastante no turismo de negócios e a congada é utilizada pelos poderes públicos
como símbolo cultural da cidade. Os vereadores e centros universitários fornecem patrocínio
a alguns grupos, o que muitas vezes diminui a autonomia dos capitães, e as ONGs produzem
CDs e documentários sobre a festa. Esse trabalho buscou compreender as relações da congada
com o poder e a política.
Nesse estudo esforcei-me para demonstrar que a congada é uma manifestação cultural
que ocorre em vários espaços e tempos e é vivenciada por diferentes atores sociais. Atores
esses que dão significados para a festa e a inscrevem na paisagem urbana, recriando, assim,
suas crenças e seus mitos. Nessa pesquisa constatei que a congada é uma prática resultante de
um processo negociado de construção de identidades negras na diáspora. Na festa de Nossa
140
Senhora do Rosário, a África surge como uma referência simbólica, um território imaginado,
em torno do qual os congadeiros vivem experiências coletivas.
Uma das coisas que me instigou nesse trabalho foi compreender as configurações
contemporâneas da festa de Nossa Senhora do Rosário. Essa pesquisa me levou à conclusão
de que é possível pensar em continuidade da congada, porque esta é constantemente recriada
nas vidas, nos corpos e no imaginário dos congadeiros. Finalizo esse trabalho com a mesma
atitude do dançador Mão de Onça do Moçambique de Belém, no ritual tira-palha, com
resistência e lamento. Nesse ritual que discuti no capítulo três, observei que o dançador
recusava-se a entregar seu bastão e suas gungas aos capitães, pois se o fizesse ele estava
admitindo o encerramento da festa daquele ano. Assim como o moçambiqueiro Mão de Onça
resistiu ao despojar-se de seus instrumentos, eu também lamento ao terminar esse trabalho,
que me acompanha tanto tempo, pois nesse período fiz amizades, discuti, ri e chorei. Mas
tal como o moçambiqueiro Mão de Onça que acredita na continuidade da festa, eu também
confio no prosseguimento dessa pesquisa. Pretendo futuramente aprofundar o estudo da festa
de congada de Goiânia e conhecer os poucos grupos de Brasília e assim estabelecer
comparações entre essas festas e as do Triângulo Mineiro. Creio que ainda muito para se
pesquisar sobre a congada e que é possível ampliar os horizontes de interpretação dessa
prática, que dá sentido à vida de muitos grupos étnico-raciais.
Descobri nessa pesquisa sobre a congada a beleza da simplicidade, o valor das
palavras e dos compromissos que se criam. Aprendi com meus amigos congadeiros que as
coisas mudam inclusive as tradições, mas que não necessariamente desaparecem. Elas
ganham sim novos significados e são recriadas.
Nesse momento desço meu mastro, desarreio meus instrumentos e finalmente canto
fazendo eco às cantigas congadeiras, já que essas foram uma das formas de linguagem
privilegiadas no desenvolvimento dessa pesquisa:
É hoje só! É hoje só! É hoje só, mamãe do Rosário, é hoje só!
141
Mas a festa continua....
Porque ela é anualmente atualizada através de ritualizações do mito e de histórias
relacionadas à fé em Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Andor de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, Ituiutaba – MG.
Andor de Nossa Senhora Aparecida na festa de Araguari – MG
142
Porque ela é um momento importante de afirmação cultural e empoderamento dos negros
subalternizados.
Moçambique de Belém desfilando no centro econômico da cidade.
Porque ela é uma tradição dinâmica que se reelabora constantemente.
Quartel do Moçambique de Belém, 2006.
143
Porque ela é uma festa intergeracional em que os mais experientes ensinam os mais
jovens e estes juntos recriam a festa constantemente em suas vidas, corpos e imaginários.
Vovô Charqueada na festa de Araguari, 2003.
Caixeiro do terno Sainha em visita a Escola de Congo, 2006.
E a festa continua...
Justamente porque ela se transforma.
144
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Perspectivas, Uberlândia (32/33): 195-219, jan.jul./ago.dez. 2005.
SILVA, Renata Nogueira da. Etnografia de um terno de Moçambique: Ritual e Musica na
festa de Nossa Senhora do Rosário. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) -
Universidade Federal de Uberlândia. 2003.
SILVA, Vagner Gonçalves da. O Antropólogo e sua magia: Trabalho de campo e texto
etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2000.
SILVA, T.T. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da
Silva. HALL, Stuart & WOODWARD, Kathryn (Orgs.). Petrópolis, Rio de Janeiro. Vozes:
2000.
TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Editora 34, 2000.
KUBIK, Gerhard. Angolan Traits in Black Music, Games and Dances of Brazil. Estudos de
Antropologia Cultural. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar/Centro de
Estudos de Antropologia Cultural. 1979.
TURNER, V. O Processo Ritual. Petrópolis: Vozes. 1974.
______________. Florestas de símbolos: Aspectos do ritual Ndembu. Niterói: Editora da
Universidade Fluminense, 2005 [1ª edição, 1967].
VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina (Orgs). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho
antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
VELHO, Otávio. O cativeiro da besta-fera. Religião e Sociedade, v. 14. 1987.
VOLPE, M. A. Irmandades e Ritual em Minas Gerais durante o Período Colonial. Revista
Música. São Paulo, v. 8, n. 1/12: 6-55, maio/nov. 1997.
SOARES, B. R. Habitação e Produção do Espaço Urbano em Uberlândia. Dissertação de
Mestrado. São Paulo: FFLCH /USP, 1988. 222 p.
ZAMITH, R. M. B. Aspectos Internos do fazer Musical num Congado de Minas Gerais.
Revista Música, São Paulo, v.6, n.1/2: 190-202 maio/nov. 1995.
148
Referências de sites consultados:
http://www.emcantar.org
http://www.cultura.gov.br
http://www.foliacultural.org
http://www.mg.gov.br
http://portal.iphan.gov.br/portal
http://www.uberlandia.mg.gov.br
149
ANEXO A
REGIMENTO DAS FESTIVIDADES EM LOUVOR A NOSSA SENHORA DO
ROSÁRIO E SÃO BENEDITO DE UBERLÂNDIA MINAS GERAIS
CAPÍTULO I
DA DENOMINAÇÃO, DO ESTATUTO E DO REGIMENTO DAS FESTIVIDADES
EM LOUVOR A NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO E SÃO BENEDITO
Art. 1
o
Este regimento, em perfeita harmonia com o Estatuto e Regimento Interno
da Irmandade, é um instrumento deliberativo, administrativo, orientador da festa em
louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Parágrafo Único – Todos os membros da Irmandade, e particularmente os ternos
deverão cumprir fielmente as determinações do Estatuto, do Regimento Interno da
Irmandade e deste Regimento da festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito.
CAPÍTULO II
DAS FESTIVIDADES
Art. 2
o
A festividade em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito é
constituída pelas Campanhas; Novenas; Desfiles e apresentações; Busca, entrega e
visitas ao Reinado e ao Presidente da Irmandade; Procissão, Missa e Coroação;
Encerramento das festividades.
CAPÍTULO III
DAS CAMPANHAS
Art. 3º - As campanhas marcam o início das festividades em louvor a Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito e deverão se constituir da seguinte maneira:
I São demarcadas pela reza do terço do Rosário de Maria, conforme os princípios e
tradições religiosas da Irmandade;
II - Cada terno deverá realizar a reza do terço em, no mínimo, nove residências
distintas de devotos de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito;
III Os Capitães e Madrinhas dos ternos deverão incentivar a ampla participação dos
membros de seus ternos na reza do terço, dos nticos em louvor a Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito, inclusive ensinando seus membros a conduzirem essa prática
de fé;
IV - Terão seu início no mês de Agosto de cada ano com a entrega das licenças pela
Diretoria aos ternos que cumprirem as determinações do Estatuto e Regimento Interno
da Irmandade;
V - Os ternos deverão respeitar os horários previstos em lei para a realização das
campanhas, estando sujeitos as sanções legais em caso de desrespeito às mesmas.
VI - No que diz respeito as casas dos devotos onde são realizadas as campanhas, cada
terno deverá respeitar aquelas casas em que um outro terno tradicionalmente realiza
suas campanhas;
VII - As campanhas terão seu encerramento 10 dias antes da festa de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito.
VIII - Ao final das campanhas, cada terno deverá apresentar à Diretoria da Irmandade
relação de casas de devotos em que foram realizadas a reza do terço.
150
CAPÍTULO III
DAS NOVENAS
Art. 4º - As novenas são as atividades religiosas da Irmandade demarcadas pela visita
dos ternos à Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito nos nove dias que
antecedem a grande festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Elas
sucederão da seguinte maneira:
I São demarcadas pela reza do terço do Rosário de Maria, conforme os princípios e
tradições religiosas da Irmandade;
II - Cada terno deverá se fazer presente conforme escala e horários definidos pela
Diretoria da Irmandade;
III - É obrigação dos ternos zelar pelo cumprimento dos horários definidos pela
Diretoria para sua apresentação na porta da Igreja, estando sujeitos a sanções
disciplinares no que tange a freqüência nas atividades religiosas da Irmandade;
IV Os Capitães e Madrinhas dos ternos deverão incentivar a ampla participação dos
membros de seus ternos nas novenas, através da reza do terço e dos cânticos em louvor
a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, inclusive ensinando seus membros a
conduzirem essa prática de fé;
V Os Capitães e Madrinhas e as meninas dos ternos deverão participar das novenas,
de forma ativa, inclusive nos dias em que seus ternos não estiverem escalados;
conforme escala definida pela Diretoria da Irmandade;
Parágrafo Único – Conforme Art. 4º, Inciso VII do Regimento Interno da Irmandade, o
terno que não comparecer à novena, conforme escala definida pela Diretoria da
Irmandade, terá sua ausência registrada na contagem de freqüência nas atividades
religiosas da Irmandade;
CAPÍTULO IV
DOS DESFILES E DAS APRESENTAÇÕES
Art. - O desfile e as apresentações dos ternos na porta da Igreja no dia da festa é
grande expressão da em Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e deverão seguir
rigorosamente a Carta de Comando elaborada pela Diretoria da Irmandade.
I São demarcadas pela apresentação dos ternos com suas respectivas fardas em
conformidade com o cadastro junto à Irmandade, pela entôo de cânticos de louvor a
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e a preservação dos ritmos e danças
relacionadas a essa devoção;
II – O desfile terá início na casa do Presidente da Irmandade com os ternos que
conduzem as bandeiras com as imagens de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e
obedecerá as seguintes normas:
a) será complementado pelos outros Ternos, inclusive os visitantes, em frente ao Fórum
Abelardo Pena e seu término nos fundos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito;
b) Os ternos visitantes deverão, para o desfile, posicionarem-se atrás do terno que o
convidou para as festividades;
c) resguardar-se-á a distância máxima de 3 (três) metros entre um terno e outro;
d) Em hipótese alguma os ternos poderão interromper a seqüência e continuidade do
151
desfile;
e) A ordem do desfile dos Ternos, definida pela Carta de Comando definida pela
Diretoria - não poderá, em nenhuma hipótese, ser alterada;
III – Os ternos que não cumprirem a ordem do desfile, definida pela Carta de Comando,
deverão se dirigir para a última posição da referida ordem do desfile.
IV Geograficamente, o espaço para apresentação dos ternos inicia-se no largo da
Igreja do Rosário, na Rua Silviano Brandão;
V O tempo de apresentação de cada terno será definida pela carta de comando,
levando em conta o espaço geográfico especificado no §3º;
VI – Os ternos responsáveis pelo asteamento dos mastros e os Marinheiros responsáveis
pela trança das fitas farão estas atividades religiosas no decorrer das suas apresentações,
conforme tempo fixado pela Diretoria na Carta de Comando;
VII- Os ternos devem cumprir, rigorosamente, o limite de tempo determinado pela
Carta de Comando;
VIII - O tempo de apresentação de cada terno será controlado pela Diretoria da
Irmandade e por uma comissão de Capitães eleita na Assembléia de Capitães;
IX – É proibido aos ternos e aos seus membros, ao terminar a sua apresentação na porta
da Igreja, retornar ao largo da Igreja do Rosário e ao final do seu grupo para reiniciar
apresentação;
X Ao passar pela porta da Igreja, nenhum terno poderá continuar, por longo período,
tocando seus instrumentos para não atrapalhar a apresentação dos demais Ternos;
XI – É terminantemente proibido aos ternos transitar e se apresentar na região destinada
à praça de alimentação ou em sentido contrário do desfile;
XII O asteamento e descida dos mastros com as bandeiras com as imagens de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito será feito por qualquer terno , segundo a ordem do
desfile, levando-se em consideração, principalmente, o horário previsto na programação
da festa;
XIII Em hipótese alguma a descida das bandeiras com as imagens de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito será feita em horário avançado e sem a presença do povo
devoto de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
CAPÍTULO V
BUSCA, ENTREGA E VISITAS AO REINADO E AO PRESIDENTE DA
IRMANDADE
Art. - O Reinado é atividade religiosa e cultural da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito fundamentada na tradição afro-descendente e na devoção a
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Art. 7º - O Reinado constitui-se:
a) na busca do casal de festeiros de Nossa Senhora do Rosário e do casal de festeiros de
São Benedito em suas residências;
b) a condução dos mesmos até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito;
c) no acompanhamento da procissão;
d) na condução dos novos festeiros até suas residências;
e) na visita aos festeiros no segundo dia da festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito.
§ - Enquanto expressão da cultura e tradição afro-descendente, é obrigação de todos
os ternos participar de sua realização, conforme a Carta de Comando;
§ - Compete aos ternos zelar pelo cumprimento dos horários estabelecidos para a
realização do Reinado;
152
a) O primeiro terno que chegar na casa dos festeiros aguardará outros ternos no
máximo 15 (quinze) minutos para iniciar a condução do Reinado até a Igreja;
§ 3º - A ausência de qualquer terno na realização do Reinado implicará em falta grave e
a mesma será registrada no livro de freqüência nas atividades religiosas da Irmandade,
conforme o Inciso VII do Art. do Regimento Interno da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito;
§ - Compete a todos os ternos zelar, entre si, pela harmonia, disciplina e respeito
mútuo e para com os festeiros na realização do Reinado.
§ 5 Os horários de realização do Reinado definidos pela Carta de Comando também
deverão ser obedecidos pelos festeiros;
§ - É vetado aos festeiros, em qualquer hipótese na realização do Reinado, pretender
modificar as determinações da Carta de Comando e da Diretoria, recusar ou escolher os
ternos que irão conduzi-los;
§ - Em caso de recusa pelos festeiros de serem conduzidos por qualquer terno que
esteja presente no horário previsto, os mesmos serão deixados para trás e os demais
ternos orientados, pela Diretoria da Irmandade, a se dirigirem diretamente para a Igreja.
§ - A realização do Reinado será acompanhada e dirigida por algum membro da
Diretoria da Irmandade;
§ - É obrigação de todo terno visitar e se despedir dos festeiros no segundo dia da
festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, conforme as
determinações da Carta de Comando.
§ 10º - É obrigação de todo terno visitar e se despedir do Presidente da Irmandade no
segundo dia da festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, conforme
as determinações da Carta de Comando.
CAPÍTULO VI
DA PROCISSÃO, DA MISSA E DA COROAÇÃO
Art. - A procissão, a missa e a coroação são atividades religiosas da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e expressão da e louvor a Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito.
Art. - A procissão é o cortejo com as imagens de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito pelas ruas próximas da Igreja, com acompanhamento dos Ternos, festeiros,
devotos e autoridades eclesiásticas, sendo regulada da seguinte maneira:
a) tem seu início e término na porta da Igreja;
b) seu percurso é definido pela Diretoria da Irmandade em conjunto com as Secretarias
de Cultura e Trânsito e Transporte de Uberlândia;
c) tem início com a chegada do Reinado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito;
d) Todos os ternos devem acompanhar a procissão entoando seus instrumentos e
cânticos de louvor apropriados à procissão de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito;
e) Os ternos que se chegarem na Igreja após o início da procissão deverá perfazer o
percurso total da mesma e ocupar a última posição;
f) Os ternos que não chegarem na Igreja e encontrarem a procissão, não poderão, em
hipótese nenhuma, ingressar no meio da mesma, devendo aguardar a sua passagem,
ocupando a última posição.
Parágrafo Único estarão dispensados de acompanhar a procissão os ternos que
forem participar efetivamente nas celebrações da missa, coroação e escolha dos novos
festeiros.
153
Art. 10º - A procissão encerra-se com a chegada das imagens de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito na Igreja, disto decorrendo:
a) A interrupção da percussão por todo e qualquer terno para que se inicie a missa e a
coroação solenes;
Art. 11º - A missa e a coroação são celebrações solenes em louvor a Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito e devem ter ampla participação de todos os Ternos.
b) Após o fim da coroação e a escolha dos novos festeiros, os ternos poderão dar
continuidade em suas apresentações na porta da Igreja, respeitando a ordem em que se
encontravam no percurso da procissão.
Parágrafo Único Após a coroação e a escolha dos novos festeiros, os ternos que os
conduzirão da Igreja para suas residências terão prioridade em suas apresentações,
podendo, sob determinação da Diretoria, interferir na ordem em que os ternos se
encontravam durante a procissão.
CAPÍTULO VII
DO ENCERRAMENTO DAS FESTIVIDADES
Art. 12º - O encerramento das festividades em louvor a Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito são marcadas por:
a) Despedida dos ternos na porta da Igreja;
b) A descida dos mastros com as bandeiras com as imagens de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito, segundo o que determinam os §§ 11º e 12º do Art. deste
Regimento das Festividades em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Art. 13º - O encerramento das festividades na porta da Igreja sucederá no horário
previsto pela Carta de Comando, obedecendo as seguintes práticas:
a) Finalização do serviço de som;
b) Encerramento da visitação a Igreja;
c) Encerramento das vendas nas barracas de bebidas e alimentação.
CAPÍTULO VIII
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS E TRANSITÓRIAS
Art. 13º - Este Regimento das Festividades em louvor a Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito poderá ser alterado anualmente, conforme as necessidades.
Parágrafo Único Qualquer alteração neste Regimento terá validade com a
aprovação de 2/3 da assembléia geral composta Assembléia dos Capitães, pela
Diretoria Executiva, pelo Conselho Consultivo e pelo Conselho Fiscal da
Irmandade.
Art. 14º - O desrespeito às determinações deste Regimento constituirá em falta grave,
sendo registrado no Livro de Ocorrências e passível de punição uma vez que fere o Art.
4º, Inciso II do Regimento Interno da Irmandade e o Art. inciso I, II do Estatuto da
Irmandade.
Art. 15
o
Cada terno deverá manter em seus quartéis pessoas com conhecimentos e
capacidade para receber a visita de outros Ternos, principalmente quando efetivar
convites aos outros Ternos.
Art. 16
o
Os casos omissos neste Regimento serão resolvidos pela maioria absoluta
dos membros da Assembléia de Capitães, da Diretoria Executiva e do Conselho
Consultivo.
Art. 17º Este Regimento Interno entra em vigor na data de sua aprovação pela
154
maioria absoluta da assembléia geral composta pela Assembléia dos Capitães, pela
Diretoria Executiva, pelo Conselho Consultivo e pelo Conselho Fiscal da
Irmandade.
Uberlândia, 03 de Abril de 2007.
Obs. No Art. Item XII quando aonde se “Qualquer terno significa de
Moçambique ou Catupés, e na ausência desses, aquele que estiver mais próximo do
horário.
155
ANEXO B
Manifesto das iyalorixas baianas
Jornal da Bahia
Salvador, Sexta-Feira, 29 de julho de 1983.
Reportagem: Vander Prata
Iyalorixás assumem a crença como uma religião independente da católica
Daqui para frente, os filhos de gente de Santo não vão mais aprender sua tradição dos
Orixás em sincretismo com a religião católica. As iyas e babalorixás da Bahia não
querem, também, permitir mais que sua religião seja tratada como folclore, seita,
animismo ou religião primitiva, "como sempre vem ocorrendo neste país, nesta cidade".
Querem também dar um basta à utilização de seus trajes, e rituais, em concursos oficiais
ou de propaganda turística.
Esta posição assumida por algumas das mais respeitadas mães de Salvador Stella de
Oxossi, Mãe Menininha do Gantois, Tete de Yansã, Olga do Alaketo e Nicinha do
Bogum deverá repercutir intensamente na comunidade local, uma cidade que cresceu
vendo o culto de candomblé sendo sincretizado com o catolicismo. "Já imaginaram o
Senhor do Bomfim sem Oxalá?". Serena, Mãe Stella de Oxossi, uma das mais
respeitadas ialorixás da Bahia, sempre avessa a publicidades e a imprensa, falou com
exclusividade ao Jornal da Bahia, explicando:
“Os Santos e imagens católicos têm seus valores. Nós não estamos a fim de deixar de
acreditar, por exemplo, em Santa Bárbara. Um espírito elevado, sem dúvida. Mas
sabemos que Iansã é uma outra energia, não é Sta. Bárbara. Religião não se impõe,
depende da consciência de cada um. Mas queremos respeito com o Candomblé. Não
tem nada a ver, por exemplo, arriar-se comida de Iansã nos pés da imagem de Sta.
Bárbara. Não tem sentido. A comida é de Iansã, é outra energia, completamente
diferente do que é Sta. Bárbara, entende?
Pensamento Livre
Mãe Stella participou ativamente da recente Conferência Mundial da Tradição dos
Orixás. Ela não tem dúvida de que esta atitude deverá ter ressonância entre a população.
Sobre o que a Igreja Católica vai dizer? Ela responde: "O Pai de Santo que tiver
coerência com seus princípios não vai mais sincretizar, mas vai passar para seus filhos
os nossos conhecimentos. Quanto ao que pode dizer a Igreja, o culto, o pensamento é
livre. Respeito muito D. Avelar, mas cada um deve ter sua consciência. Essa coisa de
mandar na consciência das pessoas, neste fim de século, não é mais possível". E diz
156
mais: "Também não estamos forçando todo mundo a acreditar no Candomblé". Para
concluir:
“O Candomblé não é incompatível com a religião Católica. Mas é vice-versa. Aí, fica
com cada pessoa e sua consciência, de dizer que é de Ogum, o que não quer dizer que
acabe sua em Santo Antônio. Apenas, como disse, são energias diferentes. Vice-
versa.”
Mãe Stella tem plena sabedoria do que ocorre com os ritos/magias da crença nos Orixás.
Salvador é considerado pólo turístico pelo governo. E o Candomblé sua mais forte
expressão popular. O que pode acontecer, por exemplo, com o carnaval da Bahia? Ela
discorda profundamente da utilização de trajes-símbolos sagrados.
“Sair vestido de santo ou usando símbolos é pura falta de respeito, uma profanação com
nossa religião.”
C
omo ficam as saídas para as ruas do Filhos de Gandhy ou mesmo da versão mais
moderna do Afoxé, o Badauê? Mãe Stella não entra no mérito ("são afoxés, alegria do
carnaval"), mas, absolutamente não concorda com a "profanação dos Orixás". Profanar,
aqui, significa levar para fora do terreiro preceitos e segredos do culto.
“Não porque ficar enganando. Precisamos ser respeitados como religião e não como
faz a imprensa, por exemplo, daqui de Salvador, que inclui nossas casas de culto nas
colunas de folclore.
passamos do tempo de ter que esconder nossa religião. Nossos antepassados, para
não serem massacrados foram levados ao sincretismo. É isto que queremos parar de
fazer.”
Outro aspecto da conversa com Mãe Stella: os artistas, os estudiosos, enfim, a crescente
aproximação da intelectualidade para beber na fonte e depois utilizar o aprendizado,
seja nas artes ou nas teses acadêmicas, sem nada reverter para o Candomblé. Ela
responde: “Os sabidos que andam pelos Candomblés não estão agindo certo. Não sou
contra um pintor pintar Xango, mas quando ele começa a utilizar-se disso para ganhar
muito dinheiro, para profanar, está errado. Isto tende a desaparecer, com o crescimento
de nossa consciência dentro de nossas casas”.
Durante a II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás, Mãe Stella propôs ação
concreta: o ensino da língua yorubá e o ensino da tradição dos Orixás, "e não somente
da religião católica pois se você perguntar para a criança de que religião ele é, vai dizer
‘católica’ e na verdade é filha de gente de Santo, mas ela tem medo, ensinaram errado
para ela".
Como seria a concretização de sua idéia? Mãe Stella espera que "as autoridades tomem
as providências para satisfazer o desejo de toda uma Comunidade". O que compete às
Iyas e Babalorixás, eles deram a partida. Esta vigorosa carta divulgada ontem traz no
seu âmago um grito de liberdade: Ma beru, Olorum wa pelu awon omorisa. Em outras
palavras, quer dizer: "Não tenha medo, Deus está com todos os Filhos de Orixá".
Daqui para a frente, os filhos de gente de Santo rompem, decididamente, com quase
157
cinco séculos de silêncio, imposto desde a chegada das masmorras e dos pelourinhos,
para fazer uma só voz com Mãe Stella:
“Já passamos do tempo de ter de esconder nossa religião.”
Cartas abertas ao público:
Ao público e ao povo do Candomblé
As Iyas e Babalorixás da Bahia, coerentes com as posições assumidas na II Conferência
Mundial da Tradição dos Orixá e Cultura, realizada durante o período de 17 a 23 de
Julho de 1983, nesta cidade, tornam público que depois disso ficou claro ser nossa
crença uma religião e não uma seita sincretizada.
Não podemos pensar, nem deixar que nos pensem como folclore, seita animismo,
religião primitiva como sempre vem ocorrendo neste país, nesta cidade, seja por parte
de opositores, detratores: muros pichados, artigos escritos "Candomblé é coisa do
Diabo", "Práticas africanas primitivas ou sincréticas", seja pelos trajes rituais utilizados
em concursos oficiais e símbolos litúrgicos consumidos na confecção de propaganda
turística e ainda nossas casas de culto, nossos templos, incluídos, indicados, na coluna
do folclore dos jornais baianos.
Ma beru, Olorum wa pelu awon omorisa
Salvador, 27 de julho de 1983
Assinaram:
- Menininha do Gantois, Iyalorixá do Axé Ilé Iya Omin Iyamassé
- Stella de Oxossi, Iyalorixá do Ilé Axé Opô Afonjá
- Tete de Iansã, Iyalorixá do Ilé Nassô Oká
- Olga de Alaketo, Iyalorixá do Ilé Maroia Lage
- Nicinha do Bogum, Iyalorixá do Xogodô Bogum Malê Ki-Rundo
158
ANEXO
C
Panfleto de músicas do Moçambique de Belém, 2006.
159
ANEXO D
Panfleto de músicas do Moçambique de Belém patrocinado por um político local, 2003.
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