Download PDF
ads:
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
MESTRADO EM FILOSOFIA
ROBERTO JOSÉ LUBE TELES
A CONCEPÇÃO EXPRESSIVISTA DE PESSOA EM CHARLES
TAYLOR: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E POLÍTICAS
CURITIBA
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ROBERTO JOSÉ LUBE TELES
A CONCEPÇÃO EXPRESSIVISTA DE PESSOA EM CHARLES
TAYLOR: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E POLÍTICAS
Trabalho apresentado ao Departamento de Pós-
Graduação stricto sensu mestrado em filosofia,
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. César Augusto Ramos
CURITIBA
2008
ads:
AGRADECIMENTOS
Aos que me ajudaram na conclusão deste
trabalho ofereço meus agradecimentos:
Ao Departamento de Filosofia da PUCPR;
Ao meu orientador Prof. Dr. César Augusto
Ramos que desde a graduação me enriquece
com seus ensinamentos, e por ter depositado
esperança em meu trabalho;
Ao Prof. Dr. César Candiotto e Prof. Dr.
Bortolo Valle pelos apontamentos
enriquecedores ao trabalho;
Aos meus amigos, pela ajuda e pelos
momentos de felicidade;
Aos meus familiares, meu pai (in
memoriam), minha mãe e meu irmão, sem os
quais essa caminhada não seria possível.
SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................................................ vi
ABSTRACT ........................................................................................................................... vii
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 1
1 O MODELO DE PESSOA NUMA PERSPECTIVA ENGAJADA ....................... 9
1.1 O SUJEITO DO REPRESENTACIONISMO .............................................................. 9
1.2 A FUNDAMENTAÇÃO DO SUJEITO ENGAJADO ............................................... 12
1.2.1 Heidegger e o sujeito engajado como um ser-no-mundo ............................................ 14
1.2.2 Merleau-Ponty e o sujeito engajado pelo corpo .......................................................... 16
1.2.3 Herder e Wittgenstein e o engajamento do sujeito pela linguagem ............................ 17
1.3 A RECEPÇÃO DE TAYLOR À FORMA DE COMPREENDER O SUJEITO
ENGAJADO ........................................................................................................................... 21
1.3.1 A idéia de pessoa enquanto um animal que se auto-interpreta ................................... 24
2 O LEGADO CULTURAL MODERNO: UMA FUNDAMENTAÇÃO MORAL
DE PESSOA ........................................................................................................................... 28
2.1 O LEGADO CULTURAL MODERNO: A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE
MODERNA ............................................................................................................................ 28
2.2 O SELF EXPRESSIVISTA: UMA ALTERNATIVA AO PADRÃO HEGEMÔNICO
DO CONCEITO DE PESSOA ............................................................................................... 37
2.2.1 A individualidade na perspectiva expressivista .......................................................... 40
2.3 IMPLICAÇÕES ÉTICAS AO SUJEITO MODERNO .............................................. 44
2.3.1 O naturalismo na moral ............................................................................................... 44
2.3.2 O agente e as avaliações fortes .................................................................................... 47
2.3.3 Implicações éticas ao modelo expressivista de pessoa ................................................ 50
2.3.4 A identidade e o bem ................................................................................................... 55
3 O LIBERALISMO POLÍTICO E A CONCEPÇÃO DE PESSOA ...................... 60
3.1 A CONCEPÇÃO DE PESSOA E O LIBERALISMO PROCEDIMENTAL DE
RAWLS ................................................................................................................................... 60
3.2 O LIBERALISMO SUBSTANCIAL DE TAYLOR .................................................. 65
3.2.1 O liberalismo substancial de Taylor e o multiculturalismo ......................................... 72
3.2.2 O self e a participação política ................................................................................... 76
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 83
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 88
RESUMO
A pesquisa tem por objetivo expor a defesa da idéia expressivista de pessoa em Charles
Taylor, além das implicações éticas e políticas decorrentes dessa concepção de pessoa. O
filósofo busca a fundamentação de seu ideal de pessoa tomando por base duas dimensões
teóricas: uma ontológica e outra moral. Na primeira, Taylor busca compreender quais são os
aspectos imprescindíveis na natureza humana. Nesse ponto, o autor destaca a natureza
humana engajada pela linguagem e corpo, além de sua condição de animal auto-interpretativo
(self-interpreting animals), que o lança para a defesa de um sujeito expressivista. Para
Taylor, o sujeito (self) constrói sua individualidade por intermédio das interpretações de suas
expressões no mundo. A interpretação avalia os valores condizentes com a própria
individualidade do ser humano, e entre esses, alguns são mais valiosos que outros. Esses são
os valores fortes (strong values), que marcam a identidade da pessoa. Isto expõe a marca
central da modernidade: um olhar atento para si mesmo como forma de auto-esclarecimento e
concepção da identidade. Na segunda dimensão, a moral, Taylor busca estruturar e criticar os
valores que compõem o horizonte moral do sujeito ressaltando os seus aspectos positivos e
negativos. Taylor defende que o sujeito está essencialmente relacionado com o bem. Nesse
caso, o sujeito depende de suas configurações (frameworks) morais como forma de dar
sentido às suas ações. Como a natureza humana é concebida de forma engajada pelo autor, os
valores que dão conteúdo às ações dependem também da dimensão social de avaliação. Por
isso, para Taylor, a auto-interpretação feita pelo sujeito moderno, como forma de buscar uma
individualidade, é um atentar para os valores da comunidade. No terceiro ponto, referente às
implicações políticas, Taylor irá estruturar o ideal de sociedade decorrente de sua concepção
de pessoa. Para o autor, a autenticidade do sujeito, traduzida pela construção da identidade
tomando por base os valores caros ao sujeito, é um direito que deve ser garantido pela
sociedade. Esse valor se aproxima da idéia de igualdade e liberdade, pontos caros, defensáveis
pelo liberalismo. No entanto, Taylor, partindo de sua concepção expressivista de pessoa,
traduz esses direitos pela idéia de que a sociedade deve defender uma igual liberdade de
expressão da identidade, seja de um grupo ou de um único indivíduo.
Palavras-chave: Holismo – Configurações – Expressivismo –Autenticidade – Liberalismo
ABSTRACT
This research aims to expose the defense of a expressivist idea of person in Charles Taylor
and its implications in ethics and politics. The philosopher searches the foundation of his
person ideal basing on two theorics dimensions: an ontologic and a moral one. On the first
dimension, Taylor aims to understantd which are the indispensable aspects in human nature.
In this point, he emphasizes the engaged nature of human beings by language and body,
besides his self-interpreting animals dimension, that of take him to a self expressivist
defenser. For Taylor, the self constructs his individuality by the interpretation of his
expressions in the world. The interpretation of the self julgde the values that correspond with
his own individuality, and some of them are more values than others. These ones are the
strong values that mark the personal identity. It shows the central point in modernity, that is
an self-investigantion like a way of self-elucidation and conception of the identity. On the
second dimension, the moral one, Taylor searches structurate and criticize the values that
composes the self moral horizon, in show on theirs negatives and positives aspects. Taylor
defenses that the self is esseantially related with the good. In this case, the self is based on the
moral frameworks like a way of give sense for their actions. As the human nature is conceived
in an engaged way, the values that give the content of the actions are based on the social
dimension of evaluation. Therefore, in Taylor, the self-interpretation of the modern self, like a
way to search the individuality, means an attempt to the community values. On the third
point, those of the politics implications, Taylor will structurate a society ideal based on his
person’s conception. For Taylor, the authenticity of the self, indicated on the identity
construction, based on the strong values for the self, is a right that must be guarantee in the
society. This value approach to the liberty and equality ideas, that are the liberalism strongest
points. But Taylor in his expressivist person’s conception understands there rights like a way
of the society must defense an equal right of the identity expression liberty, be this groups or
individuals.
Key words: Holism – Framework – Expressivism – Authenticity – Liberalism
INTRODUÇÃO
Uma das questões proeminentes na filosofia refere-se à concepção de pessoa. A
categorização do ser humano, no que consiste a sua diferenciação em relação aos outros
animais, a natureza do agente, seu estatuto moral e legal e, nesse caso, o modo como o
homem se insere na sociedade e define suas relações; compõem questões relacionadas à
concepção de pessoa que participam das indagações pode-se pensar irremediáveis num
discurso filosófico. A história da filosofia apresentou inúmeras respostas a tais questões, de
modo a compor diferentes pensamentos filosóficos.
Imbuída dessa questão, a pesquisa buscará a estruturação da concepção expressivista
de pessoa
1
a partir do pensamento do filósofo Charles Taylor
2
, no sentido de buscar novos
elementos às questões antropológicas, éticas e políticas, que estão presentes na filosofia do
autor e se expressam na sua concepção de pessoa. Ao se tomar o expressivismo
3
enquanto
1
O vocábulo pessoa juntamente com outros que serão largamente empregados na pesquisa, como indivíduo, eu
(self), sujeito, ser humano, possuem na filosofia um significado peculiar. Segundo Lalande, indivíduo (latim
individuum) “[...] é um objeto de pensamento concreto, determinado, que forma um todo reconhecível, e consiste
num real dado quer pela experiência externa, quer pela experiência interna.” (LALANDE, André. Vocabulário
técnico e crítico da filosofia. Tradução de Fátima Correia, Maria Aguiar, José Torres, Maria de Souza. São
Paulo: Martins Fontes, 1999, p.556) Sujeito (latim suppositum) é o suporte ou substrato de certos atributos, no
sentido lógico e metafísico é “[...] o ser ao qual é atribuído predicado e é, por assim dizer, o seu suporte [...] Por
conseqüência, o ser real considerado como algo que tem qualidades ou exerce ações.” (Id. Ibid., p.1090). Pessoa
(latim persona, grego prosópon) representava para os gregos a máscara com a qual os atores representavam
papéis no palco de teatro. Embora os vocábulos tenham significados expressivos para a filosofia, Taylor utiliza-
os sem atender às restrições filosóficas impressas nos termos. Por isso, na pesquisa não iremos estabelecer
diferenciações quanto aos vocábulos sujeito, pessoa, eu (self), ser humano. A única exceção feita pelo autor está
na palavra agente que para o autor pode não carregar a dimensão reflexiva avaliativa ideal para a composição do
ser humano.
2
Taylor (1931) é um filósofo canadense influente na filosofia contemporânea. O autor versa sobre inúmeros
campos do pensamento: na psicologia, nas ciências sociais, na religião e, principalmente na ética e na política.
Além de pensador, foi membro ativo no cenário político canadense, no qual defendeu, enquanto partidário do
NPD (New Democratic Party) políticas contrárias à fragmentação política do Canadá decorrentes de tendências
neo-liberais. O seu pensamento recebe a influência de inúmeros filósofos, entre os quais, pode-se destacar:
Aristóteles, Herder (juntamente com a tradição romântica e expressivista), Hegel, Wittgenstein, Merleau-Ponty,
Heidegger. A partir desse legado, Taylor desenvolve seu ideal de sujeito situado pela linguagem e corpo nas suas
avaliações perceptivas, o que serve de base para o seu pensamento ético-político, impondo, assim, a idéia de um
sujeito engajado na comunidade. Entre suas inúmeras obras, pode-se destacar: Hegel, 1975; Sources of the self,
1989 (tradução brasileira: As fontes do self, 1997); Le Malaise de la Modernité, 1991; Multiculturalism, 1994
(tradução portuguesa: Multiculturalismo e tradução brasileira de parte da obra: Política do Reconhecimento in:
Argumentos Filosóficos, 2000); além de outros ensaios contidos em coleções como Philosophical Papers vol 1,2
1985, e Philosophical Arguments, 1995 (tradução brasileira: Argumentos filosóficos, 2000).
3
Taylor resgata o movimento do Sturm und Drang (tempestade e assalto, ou tempestade e ímpeto), que foi um
prelúdio ao romantismo na Alemanha, e cujos teóricos Herder, Goethe, Schiller, Hamann, Humboldt fizeram um
primeiro contraponto ao iluminismo. Isaiah Berlim, assim como Taylor, é um autor que resgata a filosofia de
Herder e o expressivismo. O autor afirma de modo geral na idéia de expressionismo uma doutrina baseada em
que a atividade humana em geral, e a arte em particular, expressam a personalidade completa do indivíduo ou do
grupo, e são inteligíveis unicamente até o limite em que elas assim o fazem.” (BERLIN, Isaiah. Vico e Herder.
Tradução de Juan Antonio Gili Sobrinho. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, p.139)
fonte para a edificação da idéia de pessoa, Taylor recorre a uma corrente filosófica que, em
conjunto com o romantismo, promoveu mudanças na forma de se pensar os valores e a
perspectiva do conhecimento moderno. Para o autor, essas duas correntes se contrapuseram ao
modelo cultural iluminista, hegemônico na modernidade, que referenciou e ainda referencia a
forma de se compreender o sujeito e sua relação na sociedade.
Um primeiro obstáculo a ser enfrentado está no modo como o filósofo interpretará a
legitimidade dos critérios utilizados para a concepção de pessoa. Taylor afasta sua análise de
uma categorização científica da pessoa, no sentido de observá-la como um objeto de
investigação segundo categorias de um conhecimento neutro e objetivo. Essa análise está
assentada em parte nas críticas do expressivismo aos valores difundidos pela cultura
iluminista. Na verdade, o autor intitula esse critério de análise como naturalista. Nesse
sentido, o homem, enquanto parte da natureza e submetido às suas leis, é passível de uma
mesma análise de conhecimento como qualquer outro objeto.
Para o autor, esse pano de fundo utilizado para a compreensão da pessoa perde as
propriedades qualitativas que são inerentes ao ser humano. A primeira premissa está no fato
de que o homem é constituído por fatores que extrapolam uma análise universal e imparcial
prevista na visão naturalizada de pessoa. Imbuído de uma concepção expressivista, Taylor
afirma que o homem é constituído por uma cultura, por valores que decorrem dela, e que
também dependem de uma interpretação do sujeito.
Para a elaboração da concepção expressivista de pessoa no filósofo, algumas obras
serão essenciais, como As fontes do self
4
, The concept of a person
5
, What is human agency
6
.
Entre essas, há um destaque especial para As fontes do self. Esta é uma das principais obras do
autor, e para o propósito da pesquisa, ela representa o levantamento dos principais modelos de
sujeito que figuram nas avaliações referentes à concepção de pessoa em Taylor, além de
delinear grande parte da cultura moderna e contemporânea relacionada à forma de
compreender o estatuto moral e político do sujeito. Isto porque, nessa obra, Taylor busca
estruturar, entre outras coisas, as configurações morais (moral frameworks)
7
presentes na
4
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Tradução de Adail Ubirajara
Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Edições Loyola, 1997.
5
Id. Human Agency and Language : Philosophical Pappers 1. Cambridge : Cambridge University Press, 1985.
6
Id. Ibid.
7
Configuração (framework) é um termo caro para o autor e será aprofundado no segundo capítulo. Configuração
significa, grosso modo, estruturas históricas condicionantes do sujeito e, no caso da moral, representa os valores
comuns de uma comunidade que nele são impressos. A configuração é a estrutura que “articula o nosso sentido
de orientação no espaço de indagações sobre o bem. Essas distinções qualitativas, que definem as configurações,
foram vistas por mim, inicialmente como pressupostos sicos de nossas reações e juízos morais, e depois como
contextos que dão a essas reações seu sentido.” (Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op.
cit., p.63.)
modernidade, que garantem uma diversidade de facetas morais ao sujeito. Nesse caso, é
possível retirar uma primeira idéia na forma como Taylor concebe o sujeito e que consiste na
relação necessária entre a pessoa e o bem. Isto é, os valores, aludidos a uma cultura,
influenciam na forma como o sujeito é percebido e se percebe no mundo.
Entre essas configurações, ou formas referenciais, que nos foram legadas da
modernidade na forma de compreender a pessoa, está a defesa da idéia de interioridade do
sujeito, do eu (self)
8
. Nesse caso, a partir da modernidade, ao concebermos a idéia de pessoa,
identificamo-la como portadora de uma interioridade que é alvo de uma busca tanto para o
auto-esclarecimento do sujeito e do mundo quanto para a compreensão de sua dimensão
moral. Ao adotar essa perspectiva, o autor impulsiona sua teoria em favor de uma defesa da
dimensão interiorizada dos valores e, por isso, não parte do horizonte antigo na forma de
compreender o sujeito. Como afirma Taylor, numa entrevista a Phillipe de Lara, “eu parto da
situação atual, das idéias fortes, das formas de compreensão de si em conflito em nós, e eu
busco desenterrar certas formas anteriores às quais elas procedem, de modo a resgatar
aspectos aprisionados hoje e que permitam novas possibilidades.”
9
O fato de Taylor apostar numa variedade de padrões morais que referenciam
diferentes tipos de sujeito moderno indica que trabalhar com um único tipo de sujeito ou
universalizar a modernidade é perder a riqueza das suas fontes morais. Por isso, a cultura
científica (iluminista), e o critério naturalista de conceber a pessoa decorrente desses valores,
não totalizam a identidade do sujeito moderno. Nesse sentido, outras fontes de interpretação,
como a romântica e expressivista, as quais geraram uma cultura diferente da perspectiva
científica predominante, são obliteradas, gerando um empobrecimento do horizonte moderno
na compreensão do estatuto moral da pessoa. Daí o resgate do filósofo dessa cultura como
forma diferente não só de compreender a pessoa, mas também, por trazer contribuições
significativas no campo da ética e da política.
Apesar de Taylor referenciar a forma como o sujeito é compreendido de acordo com
a história, ainda assim, o autor não aposta numa relativização do sujeito, pois, acredita “ser
8
Os tradutores da obra As fontes do self, Sobral e Azevedo, não traduzem a palavra self (eu) do original em
inglês. Embora não tenham feito nota para justificar essa posição, é possível entender o emprego da palavra self,
em inglês, por ela carregar a idéia de reflexividade do sujeito, algo que Taylor busca destacar. No entanto, em
outras traduções da obra a palavra não é mantida, como para o francês Les sources du moi, e para o espanhol
Fuentes del yo. Mesmo assim, o vocábulo eu (self) será utilizado com o mesmo sentido que pessoa, sujeito, ser
humano.
9
Id. De l’anthropologie philosophique à la politique de la reconnaissance: entretien de Phillippe de Lara avec
Charles Taylor. In : LAFOREST, G ; LARA, P. (org). Charles Taylor et l’interpretation de l’indentité
moderne. Paris : Le Presses de L’Université Laval, 1998, p. 362, tradução nossa.
possível formular verdades verdadeiramente trans-históricas sobre o sujeito humano.”
10
Por
isso, antes de adentrar nas descrições dos sujeitos e os valores difundidos na modernidade, é
preciso compreender a forma como Taylor entende as questões que compõem o modelo de
pessoa. Em seu artigo The concept of a person, Taylor busca delinear as dimensões em torno
das quais gira a concepção de pessoa. “Uma pessoa é um ser com um status moral, ou um
portador de direitos. Mas, subjacente ao status moral, como sua condição, existem certas
capacidades.”
11
Embora Taylor divida, na citação acima, as instâncias em termos de capacidades e
status moral, é possível interpretar esses dois planos como sendo o ontológico e o histórico.
No primeiro caso, figuram-se os aspectos inerentes à natureza humana, as questões trans-
históricas. No segundo caso, estão os aspectos que descrevem a condição humana e que se
modificam de acordo com a cultura, e os valores cultuados por uma comunidade ou indivíduo.
É nesta dupla dimensão que se inclui o estatuto antropológico da pessoa
12
.
Partindo dessa perspectiva, a pesquisa trabalhacom dois ideais de pessoa que se
desdobram tanto no seu aspecto ontológico como no histórico. Os dois ideais, conectados na
modernidade, correspondem, de um lado, à perspectiva histórica da cultura iluminista
(naturalista) na forma de se conceber o sujeito, que se traduz na dimensão ontológica
(desengajada ou desprendida) de se compreender a pessoa; e, por outro lado, à cultura
expressivista e romântica, a qual Taylor irá fundamentar sua visão ontológica do sujeito
engajado. Por isso, esses dois horizontes culturais estarão lado a lado, não por servirem de
comparação, mas também, por comporem em conjunto os valores centrais à identidade
moderna.
Na dimensão ontológica, já no primeiro capítulo, dois modelos de agente serão
expostos. Um primeiro modelo, chamado atomista ou desprendido
13
, retrata um sujeito
destituído de um meio constitutivo que encontra sentido em si próprio. O segundo modelo,
10
Id. Ibid., p. 362, tradução nossa.
11
Id. Human Agency and Language: Philosophical Pappers 1. Op. cit.., p. 67, tradução nossa.
12
Abbey afirma que “uma via útil para entender a questão do sujeito em Taylor está em distinguir dois aspectos
diferentes, mas complementares: as dimensões históricas e ontológicas.” (ABBEY, Ruth. Charles Taylor.
Princenton: Princenton University Press, 2000, p.56, tradução nossa). Kotkavirta, afirma que “deve-se distinguir
as questões descritivas, concernentes às condições de ser uma pessoa, das prescritivas, concernentes aos vários
tipos de status normativo das pessoas.” (KOTKARVITA, Jussi. Charles Taylor and the Concept of a Person. In:
LAITINEN, Arto; SMITH,Nicholas. Perspectives on the Philosophy of Charles Taylor. Helsinki: Acta
Philosophica Fennica, 2002, p.67, tradução nossa). O autor acredita, ainda, que “os aspectos descritivos e
normativos da pessoa estão conectados internamente e de uma maneira que não é muito reconhecida pelas visões
dominantes.” (Id. Ibid., p.67-68, tradução nossa).
13
O vocábulo desprendido ou desprendimento é traduzido para o português, pelo tradutor de Argumentos
Filosóficos, Adail Ubirajara Sobral, do original disengaged e disengagement. No caso, o sentido adotado é o de
desengajado, ou um sujeito desprendido ao meio ou à comunidade.
dito holista (nas próprias palavras do autor) ou engajado (engaged), identifica o sujeito ligado
a determinadas formas de vínculo existencial de engajamento. “O que significa ‘engajamento’
aqui? Equivale a dizer algo como: o mundo do agente é moldado por sua forma de vida, por
sua história ou por sua existência corporal.”
14
Nos dois casos, podemos identificar um plano
teórico de fundo que sentido a essas formas. No primeiro, o padrão naturalista de avaliar a
pessoa, arraigado no cientificismo, que reproduz o sujeito sob a ótica de uma epistemologia
da representação; e no segundo, um padrão lingüístico, interpretativo e perceptivo corporal,
que retrata um sujeito encarnado na sociedade e que se utiliza de sua dimensão lingüística,
social, para se auto-avaliar. Este último tem por referência a cultura expressivista, embora a
concepção engajada de pessoa extrapole essa perspectiva. Nesse sentido, será tomado como
base não Herder, principal expoente do expressivismo, mas, também, outros autores que
seguem uma mesma linha de se pensar o sujeito situado, como Hegel, Heidegger,
Wittgenstein, Merleau-Ponty
15
.
Uma das principais contribuições legadas da cultura do expressivismo à concepção
ontológica de pessoa em Taylor é a idéia de animal que se auto-interpreta (self-interpreting
animals). Esta idéia será um ponto alto na filosofia do autor, pois, representará não uma
visão pela qual Taylor compreende a natureza do sujeito, como servirá de base para o
entendimento da forma como os indivíduos lidam com os valores e os relacionam a si
mesmos. Na dimensão interpretativa do sujeito, os valores precisam ser articulados,
manifestados, para utilizar o sentido correto empregado pelo expressivismo. Isso significa que
os valores dependem não só de uma cultura, mas também dos sujeitos que os expressam.
A dimensão histórica que forma ao sujeito será trabalhada no segundo capítulo, o
qual terá como foco a obra As fontes do self. Nessa obra, Taylor visa arrolar as inúmeras
fontes morais que compõem o sujeito moderno. O levantamento teórico configurativo do
sujeito moderno aponta para uma cultura de fundo hegemônica, a iluminista ou científica
(naturalista), condizente com uma forma ontológica (atomismo) de conceituação da pessoa.
Dessa cultura, o autor concebe pontos positivos e negativos, e que são legados ao nosso modo
de ser.
14
(TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Edições
Loyola, 2000, p. 74.)
15
Estes filósofos, defensores da perspectiva engajada de sujeito, são aqueles ressaltados pelo próprio Taylor em
sua teoria. Da mesma forma que Taylor não demonstra uma preocupação de análise hermenêutica destes autores,
no sentido de decifrar a especificidade do pensamento de cada filósofo que o influencia, não serão estabelecidas
distinções peculiares entre os filósofos elencados, embora seja reconhecida a distinção e originalidade no
posicionamento desses autores na defesa de suas teorias. Ao tomá-los, a pesquisa busca ressaltar de que modo
eles ajudaram a constituir na história da filosofia uma linha filosófica que visa compor uma concepção engajada
de sujeito.
No que diz respeito aos aspectos negativos decorrentes da cultura iluminista, o autor
identifica a presença do sujeito atomista, e no seu horizonte constitutivo na razão
instrumental, o desengajamento político, e a destituição de valores (desencantamento do
mundo). Contudo, um aprofundamento feito na modernidade trará à tona o romantismo e o
expressivismo que não são condizentes com os valores negativos legados da modernidade. A
peculiaridade de Taylor consiste, então, em resgatar valores, ou fontes morais, desenvolvidos
na própria modernidade, os quais, ainda que opondo-se ao atomismo, não negam os valores
caros à modernidade como a igualdade, liberdade individual, dignidade, entre outros.
A partir disso, é possível conceber algumas implicações éticas na filosofia do autor.
O fato de Taylor partir de uma leitura com um forte apelo ao aspecto cultural e histórico, mas
sem abandonar a perspectiva ontológica, demonstra que a universalização moral prevista na
análise que parte de um pano de fundo científico (naturalista), apresenta um ponto de vista
particular na história na forma de se tomar o sujeito de modo abstrato. Daí uma primeira
justificativa à crítica do autor com relação à interferência de um método aplicável ao campo
das ciências naturais para responder questões referentes ao estatuto moral do ser humano, e
que se apresentam em diversas formas à luz da história do sujeito. No entanto, responder que
uma diversidade não significa que uma relativização na concepção do sujeito, e essa
será a tarefa do autor em destituir essa relação, a qual será respondida pela dimensão
ontológica, e pelas configurações morais que referenciam a ação do sujeito na sociedade.
Neste ponto, ressalta-se, ainda, a idéia tayloriana de sujeito portador de avaliações
fortes (strong evaluations)
16
: os bens referentes aos sujeitos não são dados por mera
preferência volitiva, antes, são interpretados pelo indivíduo, e constituem o horizonte de ação
do sujeito dando razão aos próprios desejos. Nesse caso, somos seres sensíveis a ter
propósitos, e as coisas não são destituídas de valores. Elas imprimem algum desejo, aversão,
impregnando a nossa ação. Uma conseqüência dessa maneira de compreender a pessoa está na
tese forte do autor de que o bem dimensiona a ação do sujeito, daí o olhar atento ao horizonte
constitutivo de valores como forma de avaliar a pessoa. Já o modo atomista de pensar o
sujeito, e a moral na sua forma preponderante de universalidade auto-referente, representa um
obstáculo para um pensamento que visa compor uma moralidade situada no tempo e numa
cultura.
16
Para Taylor, o fator avaliativo forte figura-se como um aspecto essencial à natureza humana. No entanto, não é
descrito no primeiro capítulo, onde estão representados os fatores ontológicos, pois estão mais bem associados à
questão moral, trabalhada no segundo capítulo.
O aspecto auto-interpretativo do sujeito, legado do expressivismo, servirá de base
não para a compreensão dos valores, mas, também para a definição da identidade do
sujeito. Ao associar a identidade ao bem do self, Taylor afirma que a forma como os
indivíduos concebem esses valores, os hierarquizam, ou mesmo tomam algum deles para a
afirmação de um ideal de vida, representará a autenticidade da pessoa. A autenticidade é o que
impulsionará o pensamento do autor para a defesa de uma forma de individualidade
(autenticidade), entendido na perspectiva do expressivismo. Isso significa, para Taylor, dizer
que cada indivíduo possui uma forma única de expressar sua natureza, uma qualidade que
deve ser garantida em todos, como respeito à dignidade da pessoa e aos seus direitos.
A relação entre o primeiro e segundo capítulo ocorre na medida em que se observa
em Taylor a idéia de interpretar o aspecto ontológico do sujeito (primeiro capítulo) a partir
das fontes constitutivas, ou seja, a dimensão histórica na qual o sujeito está imerso (segundo
capítulo). As próprias características ontológicas, como o aspecto auto-interpretativo de
valores do sujeito, além de seu aspecto de ser situado pelo corpo e linguagem, implicam a
idéia de sujeito imerso numa cultura, ou melhor, numa determinada forma de vida. Nesse
sentido, para compreender a concepção de sujeito atomista deve-se atentar para a cultura de
fundo que o produz, ao mesmo tempo em que o próprio modelo de sujeito atomista transmite
valores para a cultura na medida em que promoveu uma nova visão na forma de observar a
realidade (política, linguagem, ética). Daí a intenção da pesquisa em não separar os aspectos
ontológicos e as fontes morais que devem vir em conjunto - e assim o é na teoria de Taylor -
mas que, para delas se ter uma melhor compreensão, serão tratadas separadamente.
O terceiro capítulo tem o propósito de complementar o modelo de pessoa ao se focar
a idéia da dimensão política da pessoa, da atenção às correntes políticas contemporâneas e
o seu legado cultural moderno. Taylor afirma que uma das fontes de seu trabalho esteve na
“vontade de religar a antropologia filosófica e a realidade política.”
17
O expressivismo que
fomentou a idéia de sujeito engajado numa forma de vida pela linguagem/corpo, desenvolvida
no primeiro momento, e que leva à idéia de sujeito que se constrói a partir de suas
interpretações dos valores, localizadas nas configurações da comunidade, servirão de subsídio
para uma avaliação da filosofia política do autor sob uma ótica comunitarista
18
. No entanto, o
17
TAYLOR, Charles. De l’anthropologie philosophique à la politique de la reconnaissance: entretien de
Phillippe de Lara avec Charles Taylor. In : LAFOREST, G ; LARA, P. (org). Charles Taylor et l’interpretation
de l’indentité moderne. Op. cit., p. 356, tradução nossa.
18
O comunitarismo, o qual será aprofundado na pesquisa mais à frente, é, grosso modo, uma perspectiva política
que parte do pressuposto de que o indivíduo está referenciado a uma comunidade, da qual retira valores que
afetam a sua identidade, e na qual desenvolve o sentido de um bem comum que integra o seu modo de ser
individual e social. Os principais defensores dessa corrente são M. Sandel, M. Walzer, MacIntyre, além do
fato de o autor dar grande importância para ideais caros ao liberalismo como a liberdade
individual, sob a idéia da autenticidade, e alguns direitos fundamentais vistos como situados
numa cultura que razão de ser a essas práticas e direitos, leva a teoria do autor para a
defesa de um liberalismo de outra ordem, qualificado de substancial
19
.
Buscar-se-á, então, retratar as discussões de aspectos da filosofia política
contemporânea que ostentam uma discussão entre liberalismo e comunitarismo, como forma
de compreender não a dificuldade de conceituação dessas teorias, na perspectiva do autor,
mas também, possibilitar a compreensão de novos horizontes nessas teorias. Entre os liberais,
um especial destaque ao filósofo norte-americano John Rawls, exemplo de liberalismo
procedimental dado a partir de um modelo abstrato de pessoa. Da mesma forma, apontar-se-á
a idéia de justiça perseguida por Taylor, além do modelo de cidadão condizente com a cultura
na qual está inserido. Esse propósito levará à possibilidade de se compreender liberalismo e
comunitarismo sob uma outra ótica, na qual o valor cultural e ético da idéia de bem é
predominante na escolha do modelo de sociedade, haja vista a idéia de que os sujeitos estão
imersos numa cultura, ou partem de suas configurações para agir no mundo. Por isso, não
um único modelo de sociedade e sua construção não se faz a partir de princípios de justiça
procedimentais, com predominância do justo sobre o bem. Isso não significa que Taylor
deixará de lado valores fortes presentes na nossa sociedade e que são cultuados pelo
liberalismo como a liberdade individual, igualdade, direitos humanos, dignidade da pessoa,
entre outros. Ocorre que eles devem ser avaliados sob a ótica de uma determinada concepção
de pessoa inscrita tanto numa perspectiva ontológica como histórica, tal como Taylor a
compreende.
próprio Charles Taylor. No entanto, o autor se afasta de uma generalização do termo, pois se “você diz que é um
comunitarista, terá como alvo várias posições possíveis que sequer são coerentes entre si” (TAYLOR, Charles.
An interview with Charles Taylor. In: LAITINEN, Arto; SMITH, Nicholas (org). Perspectives on the
philosophy of Charles Taylor. Op. Cit., p.170, tradução nossa). Por isso, é preciso ler com ressalvas o sentido
dos empregos do termo comunitarismo e, também, como veremos mais à frente, do liberalismo.
19
Da mesma forma que foi feita uma ressalva à palavra comunitarismo, é preciso estabelecer o mesmo com a
palavra liberalismo. O autor se afasta de um liberalismo, como será descrito no terceiro capítulo dito
procedimental. No entanto, é possível conceber a defesa de um liberalismo no autor, ou melhor, dos valores
liberais. Por isso, buscou-se denominar esse liberalismo de substancial.
1. O MODELO DE PESSOA NUMA PERSPECTIVA ENGAJADA
O presente capítulo tem o propósito de introduzir a discussão acerca da concepção de
pessoa no filósofo canadense Charles Taylor. Nesse primeiro momento identificar-se-ão dois
modelos ontológicos descritivos de pessoa, o engajado (holista) e o desengajado (atomista).
No entanto, a pesquisa irá se ater no modelo engajado, pois é com ele que Taylor concorda
para a edificação da concepção de pessoa. Uma análise dos demais aspectos de sua obra
levará a uma complementação de seu padrão ontológico de pessoa na idéia de sujeito que se
auto-interpreta.
1.1 O SUJEITO DO REPRESENTACIONISMO
O padrão descritivo da natureza humana tem suas origens no século XVII em meio a
uma cultura objetivo/científica. Essa cultura serviu para a fundamentação de um campo
teórico tomado por aspectos científicos no modo de pensar as questões das ciências humanas.
Nesse contexto, destaca-se uma forma de conceber a natureza humana nos seus mais diversos
aspectos antropológicos e, principalmente, no que se refere às normas adequadas ao sujeito,
promovendo, assim, o que o autor chama de uma ética naturalista. A concepção de
conhecimento que estava por trás dessa cultura promoveu um tratamento da concepção de
pessoa segundo os mesmos critérios científicos utilizados para analisar um objeto comum da
natureza. Isso significa naturalizar o ser humano. Como parte da natureza ele deve ser
submetido às mesmas leis ou métodos aplicados aos objeto. Para Taylor, uma cultura assim
concebida promove uma visão redutora da natureza humana, no sentido de que ignora os
aspectos essenciais que diferenciam os homens de outros objetos. Por isso, grande parte da
tarefa do autor estará em superar essa cultura, visando assim constituir a sua antropologia.
A revolução científica do século XVII representa um momento crucial para
compreender a forma como a concepção de pessoa passa a ser tratada. Taylor não se detém na
descrição das revoluções técnicas desse período, em que pese a importância que elas terão
para a modificação radical da vida das pessoas na modernidade. O autor busca compreender
como essa revolução, ou sua formulação na cultura, foi absorvida pelos filósofos da época, e
nesse sentido, refere-se a Descartes, Bacon, Hobbes, Locke. Uma das conseqüências previstas
na filosofia foi uma exaltação da importância da epistemologia, como forma que interroga
sobre os fundamentos do conhecimento, ou seja, que o entendimento da natureza do saber
humano proporciona os meios essenciais para se compreender a veracidade do conhecimento
produzido.
Nesse meio floresce uma faceta de sujeito intitulada pelo autor de representacionista.
Este modelo apresenta a idéia de que o conhecimento é produzido a partir de representações
internas do mundo externo. Um primeiro personagem que vem à mente é o filósofo francês
Descartes, na sua proposta de compreender a natureza do conhecimento humano. Descartes
sintetiza essa tese ao identificar no ser humano duas naturezas: corpo e mente, ou seja, um
campo externo como sendo dos objetos e corpo, e o interno da mente. Nessa separação, o
filósofo enuncia a capacidade da consciência desprendida de representar o mundo, incluindo o
próprio corpo do sujeito, que fica a mercê de uma definição dada pelas idéias (representações)
contidas na mente. É o próprio sujeito, na sua atividade mental, que condiciona um campo
externo diferente do campo interno (lócus das representações mentais) o qual será chamado de
campo “objetal” das coisas fora da mente. Isso significa ontologizar o sujeito a partir de suas
representações
20
.
Essa linha de pensamento se direciona para uma forma naturalizada de compreensão
das ciências humanas. No momento em que a mente se distingue como diferente do próprio
corpo, sendo este localizado no mesmo campo externo dos objetos, pode-se reduzir a natureza
humana a uma propriedade ou objeto de conhecimento, pois ela está sujeita às mesmas leis
direcionadas aos objetos. Em consonância com essas idéias pode-se entender que o
desengajamento do sujeito com o mundo, e com seu próprio corpo, advém pelo fato de que o
sujeito, agora plenipotente, deve voltar somente a si mesmo como fonte de compreensão a
partir de suas idéias (representações). Essa forma de compreender o sujeito denotará
alterações na ética e política que serão descritas mais adiante.
Seguindo esse modelo cartesiano, pode-se entender a forma com que a ciência
pretendeu esclarecer a natureza humana, utilizando-se dos mesmos atributos de julgamento
evidenciados pela racionalidade do sujeito em relação ao objeto.
20
A comentadora Ruth Abbey ressalta um ponto importante na relação unidirecional entre representacionismo e
dualismo cartesiano. “Embora a aproximação do representacionismo com o conhecimento seja obviamente
compatível com o dualismo cartesiano, com a mente sendo o interior, e o corpo material e mundo natural como
exterior, Taylor não vê o representacionismo confinado ao dualismo. Na verdade, ele afirma que a visão
representacionista do conhecimento é mais extensa que qualquer teoria epistemológica.” (ABBEY, Ruth.
Charles Taylor. Op. cit., p. 174, tradução nossa).
Uma de suas idéias principais foi a de que a ciência, ou o conhecimento verdadeiro,
não consiste tão-só numa congruência entre idéias da mente e realidade exterior [...]
A congruência deve aflorar por meio de um método confiável, gerando uma
confiança bem fundada. A ciência requer certeza, e esta se pode basear na clareza
inegável a que Descartes deu o nome de évidence.21
Nesse sentido, a fonte da certeza está na nossa mente e, conseqüentemente, a mente
se afasta do mundo externo, ou melhor, dos sentidos que nos enganam, e busca a verdade do
objeto com base em uma racionalidade auto-referente. Por isso, essa verdade estará numa
congruência entre as representações mentais e os objetos, intermediados por um método
racional.
Ao mesmo tempo em que Taylor combate um padrão iniciado por Descartes de um
sujeito do conhecimento desengajado, suas críticas voltam-se, também, aos efeitos dessa
cultura presente na perspectiva empirista de conhecimento, representado, sobretudo, por
Locke. Neste caso, a mente processa dados de experiência que estão no mundo externo e que
são apreendidos pelos sentidos. A mente está desprendida do mundo, desengajada, pois seu
papel consiste em ser passiva em relação às impressões colhidas do mundo.
Nesse caso,
as idéias mesmas são como pensamentos cartesianos em sendo o eu presente
conteúdo de um mundo inteligível interno independente [...] Isso quer dizer, ambas
as teorias constroem experiência como inteligível sem referência aos significados
manifestos a um sujeito corporificado.
22
O modelo de representacionismo do sujeito acarreta numa descrição da pessoa, que
se define como portadora de consciência, responsável por conceber representações do mundo
externo. Assim, quando Taylor afirma que “qualquer teoria filosófica da pessoa deve
endereçar a questão acerca do que é ser um respondente”, ou seja, um sujeito o qual pode ser
interpelado, pois tem a capacidade de reagir ou responder, essa capacidade é definida nessa
concepção representacionista de pessoa em termos de capacidade consciente de estabelecer
representações. Segundo Taylor, ela é identificada por intermédio de um critério de
performance. A pessoa é aquela que detém representações do mundo e age no mundo de modo
consciente. No caso, avaliar os atos em termos de conscientes ou não é identificar uma ação
humana. Essa visão será contraposta, a seguir, na crítica feita à consciência representacional.
21
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p. 16.
22
SMITH, Nicolas H. Charles Taylor: Meaning, Morals and Modernity. United Kingdom: Cambridge, 2002,
p.52, tradução nossa.
1.2 A FUNDAMENTAÇÃO DO SUJEITO ENGAJADO
O século XIX inaugura alternativas no campo da teoria do conhecimento que podem
ser pensadas na perspectiva contrária ao modelo epistemológico desenvolvido por
Descartes
23
. Embora hegemônica, na modernidade, a forma de se pensar a idéia de sujeito
como desprendido, e descrito por intermédio de um método científico, o período em questão
desenvolveu, também, outras formas de se avaliar o sujeito e sua relação com o mundo.
Taylor ressalta nas correntes do Romantismo e, sobretudo, do Expressivismo, o
desenvolvimento de uma forma de pensar o sujeito, crítica em relação ao padrão do sujeito
desprendido. Para o Expressivismo, “o homem não é composto de corpo e mente, mas é uma
unidade expressiva que engloba ambos.”
24
Embora inseridas no interior da modernidade,
essas correntes promovem, mesmo que às vezes germinalmente, como no caso do
Romantismo, e de forma mais amadurecida, no Expressivismo de Herder
25
Humboldt, além
do idealismo de Hegel; uma virada na filosofia em direção à descrição de um sujeito
engajado.
O expressivismo de Herder desenvolve um papel importante na filosofia de Taylor
por representar uma das primeiras correntes a se contrapor a um modo de entendimento do
sujeito desprendido. Para Herder, nosso acesso ao mundo obedece a desejos e propósitos que
estão ao fundo de nossas intenções. Isso significa que nosso entendimento do mundo não é
neutro, ou puramente racional, está acoplado a sentimentos que estão presentes na forma
como acessamos o mundo. Pensar para o autor é engajar-se, é articular o entendimento de
uma determinada forma. Nesse caso, articular para Herder é tornar manifesto, significa expor
de um certo modo algo que estava encarnado. É esse o sentido para o autor da palavra
expressão.
Hegel será, também, um dos primeiros a abrir os horizontes do entendimento do
sujeito, no século XIX, ao insistir sobre o engajamento social e histórico do sujeito. Hegel
dará sua contribuição à tese antidualista ao afirmar uma reconciliação do sujeito, entendido
23
É preciso ressaltar que o autor não endereça suas críticas somente ao modelo
epistemológico de Descartes. O autor aposta mais num imaginário que circunda tanto o
campo teórico como a cultura das pessoas de uma determinada época que, como foi visto, está
identificado numa forma naturalista/cientificista de descrever a pessoa.
24
TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola,
2005, p. 13.
25
Herder, Humboldt, além de Hamann, Goethe, fizeram parte do movimento na Alemanha do Sturm und Drang
(tempestade e assalto, ou tempestade e ímpeto), que estabeleceu um contraponto ao iluminismo.
enquanto autonomia racional no legado de Kant, e com o corpo, no sentido do expressivismo
como algo figurando a natureza, ainda que de forma antitética. Hegel explicita sua filosofia
partindo de uma forma especulativa, ou melhor, dialética de argumentação, estabelecendo
uma identidade entre a identidade (o eu, o sujeito) e a diferença (o outro, o corpo, a
particularidade).
Um dos princípios básicos do pensamento de Hegel era que o sujeito e todas as suas
funções, mesmo as ‘espirituais’, eram inevitavelmente corporificados, e isso em
duas dimensões inter-relacionadas: como um ‘animal racional’, ou seja, um ser vivo
que pensa, e como um ser expressivo, ou seja, um ser cujo pensamento sempre e
necessariamente se expressa num certo meio.
26
Segundo Taylor, Herder e Hegel seguem, ao seu modo, um entendimento do sujeito
análogo ao de Aristóteles. Embora Taylor não retorne à antiguidade como forma de compor o
sujeito, não nega as raízes de sua concepção expressivista de pessoa presentes na tese do
hilemorfismo aristotélico. Segundo esta tese, os seres corpóreos são formados de matéria e
forma, sendo a última um determinante para a primeira, no sentido que a matéria cumpre uma
determinada forma. Hegel desenvolve essa idéia na medida em que concebe o sujeito
determinado por um espírito que incorpora e forma à sua manifestação. Neste caso, a
presentificação do espírito cósmico (Geist) pode se dar enquanto consciência num corpo.
Herder parte da idéia aristotélica de hilemorfismo, mas acrescenta, também,“uma nova
dimensão, na medida em que vê esta forma realizada como a expressão, no sentido de
elucidação, do que é o sujeito, algo que não poderia ser conhecido antecipadamente.”
27
Herder desenvolve a idéia de que o sujeito se manifesta pela linguagem, e, esta, está situada
em um meio que garante sentido às expressões lingüísticas.
Essa forma situada de compreender a linguagem será também, mais tarde, no século
XX, empregada por Wittgenstein para fundamentar o sujeito engajado numa forma de vida,
ou melhor, numa cultura que lhe significação. Juntamente com Wittgenstein, o século XX
encontrará em expoentes como Heidegger e Merleau-Ponty, pautados por uma visão
fenomenológica de pensar o entendimento do sujeito, devedora de Husserl, uma forma
aperfeiçoada de compreender o sujeito não engajado numa forma de vida, mas também
encarnado no mundo.
26
TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. Op. cit., p. 31.
27
TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola,
2005, p29.
O que esses homens [Heidegger, Merleau-Ponty e Wittgenstein] m em comum é o
fato de ver o agente não primariamente como o lócus de representações, mas como
agente engajado em práticas, como um ser que age num mundo e sobre um mundo.
28
O que esses autores propõem no todo é uma transformação nas bases da
antropologia, o que servirá de apoio para a fundamentação da dimensão do engajamento
ontológico do sujeito, perseguida por Taylor.
É a partir da tese fenomenológica da intencionalidade, desenvolvida por Husserl e
legada a Merleau-Ponty, que essa idéia de sujeito engajado foi mais bem aprimorada. Afirmar
uma intencionalidade à consciência significa dizer que quando pensamos uma atividade
automaticamente a referenciamos. Deste modo, não existe consciência isolada do mundo e
sim consciência de algo. Ora, levantar essas questões que figuram no debate contemporâneo
acerca da teoria do conhecimento significa levar a concepção descritiva de pessoa a novos
horizontes.
Com o objetivo de avaliar a concepção tayloriana de pessoa, pretende-se, de forma
sintética, analisar as contribuições que determinados filósofos, sobretudo, Heidegger,
Merleau-ponty, Herder e Wittgenstein, deram no sentido de se pensar o sujeito fora do
modelo representacionista. Eles são pensadores que contribuíram para o pensamento do
sujeito em formas de engajamento que vinculam o homem com a sua própria realidade e com
o seu mundo. É nesse sentido que se pode dizer do engajamento ontológico do sujeito.
1.2.1 Heidegger e o sujeito engajado como um ser-no-mundo
Martin Heidegger deu uma importante contribuição para o projeto tayloriano de uma
antropologia engajada ao descrever a categorização do ser. Em sua mais renomada obra Ser e
Tempo (1927), o filósofo propõe analisar, entre outras coisas, as estruturas da existência
(analítica existencial). O primeiro desafio encontrado nessa obra está no questionamento pela
definição do Ser, que fora respondido, segundo Heidegger, por uma tradição na filosofia, com
uma entificação do sentido do Ser. Nesse sentido, o ser é “objetificado”, na qualidade de um
ente, ele é colocado na mesma condição de outros objetos.
O ‘ser’ não pode ser determinado, acrescentando-lhe um ente. Não se pode derivar o
ser no sentido de uma definição a partir de conceitos superiores nem explica-lo
28
Id. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p.185
através de conceitos inferiores [...] Daí pode-se apenas concluir que o ‘ser’ não é um
ente.29
O homem, diferente dos objetos (entes) dados no mundo, é aquele ente que se propõe
a pergunta pelo sentido do ser. É nesse propósito que Heidegger identifica o homem como um
ser-aí (Dasein). Esta idéia enuncia a finitude do ser aliada à sua abertura descrita na idéia de
que o sujeito se constrói por intermédio de suas ações, ou melhor, da sua existência.
O autor descreve o Dasein como um ser-no-mundo, o que significa que não um
ser sem mundo e não um mundo sem ser, além de seu desvelamento não se dar num
universo paralelo, mas sim inerente ao mesmo mundo e em consonância com o sentido das
outras coisas mundanas. O homem não é um espectador do mundo, sujeito e mundo vêm ao
mesmo tempo. As coisas também não são objetos de conhecimento de maneira isolada, pois
advêm em conjunto com as correlações de movimentos que as articulam. Isto nega, segundo
Taylor, a concepção de que o objeto de conhecimento nos é dado de forma isolada, ou seja,
atomisticamente.
Deste modo, para o filósofo alemão, o homem deve ser tomado enquanto um projeto,
um poder-ser, algo sempre a ser construído. Isso significa que o autor identifica um problema
na metafísica clássica, de Aristóteles a Hegel, em tratar a questão do ser sempre avaliando os
entes. Para Heidegger, esse problema passa também pela forma de compor o questionamento
do ser por intermédio de um tipo de linguagem que não comporta a verdade do ser. A
linguagem como forma de compreensão racional da realidade acaba sempre “objetificando” o
ser, enquadra-o como ente. Como pensar o questionamento do Dasein então? Heidegger
responderá que por intermédio de uma linguagem poética (autêntica).
A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores
e poetas são os guardas dessa habitação. A guarda que exercem é o consumar a
manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam.30
Em contraposição à linguagem científica, explicará o filósofo em sua obra Carta
sobre Humanismo, que é aquela que define e dá finitude às coisas, a linguagem utilizada para
compreensão do ser está na linguagem do poeta que deixa o ser se desvelar. Isto significa que
muito menos que definições, o homem precisa do silêncio que permite a manifestação do ser,
e assim, permite-se ouvi-lo.
29
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. v. 1. Tradução de Márcia de Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1993,
p.29.
30
Id. Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os Pensadores. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril
Cultural, 1973, p.347.
Uma outra contraposição de Heidegger ao representacionismo está na neutralidade
apregoada a este modelo. Segundo o filósofo, o mundo se desvela, ou melhor, as coisas nos
são conhecidas à nossa mão (zuhanden). Nesse sentido, não temos uma relação apática em
relação ao mundo, nos envolvemos de maneira peculiar, a partir de nossa natureza e ações
personalizadas. Este envolvimento transforma o mundo, ao mesmo tempo em que também
nos transforma. Nesta mesma linha, a própria leitura neutra deve pressupor uma relação
prévia de envolvimento (primeira e primordialmente, nas palavras do autor) que é, por sua
vez, a partir de um dado sujeito, finito, sobre o qual o mundo se desvela.
O que esse modelo de Heidegger impõe é uma leitura segundo a qual o sujeito é
engajado (engaged)
31
no mundo, e que constitui o meio pelo qual as coisas são desveladas.
Logo, um contraponto à idéia de que o sujeito na sua interioridade (mente) descobre
(conhece) o mundo que está fora. Ao mesmo tempo, a definição proposta de ser por
Heidegger representa uma crítica à visão naturalista (científica) de sujeito.
1.2.2 Merleau-ponty e o sujeito engajado pelo corpo
Com o mesmo propósito de Heidegger de enunciar um sujeito engajado, o filósofo
francês Merleau-Ponty apresentou, em destaque, na sua obra A Fenomenologia da Percepção
(1945) condições transcendentais de conhecimento (análogas às kantianas) do sujeito que o
levaram a essa defesa de sujeito. Filiado à tradição fenomenológica, o filósofo assume a tese
da intencionalidade da consciência, o que significa que ela é concernente sempre a algo. Por
isso, ao falarmos de consciência, afirmamos automaticamente a fórmula consciência de algo.
Nesse sentido, não temos uma relação isolada com o mundo, pois o estado do sujeito
enquanto consciente ou perceptivo pressupõe uma relação com o objeto, além de ser a forma
como nós acessamos o mundo. O autor nega, neste caso, a pré-concepção de alma diferente de
corpo (psíquico de físico). Merleau-ponty aposta no entrelaçamento entre um e outro, o que se
explicita na tese do autor de que a existência do sujeito é ser-no-mundo (être-au-monde).
O mundo não é um objeto tal que tenho em minha possessão as leis de sua
construção; ele é um campo para desenvolver todos os meus pensamentos e minhas
percepções. A verdade não ‘habita’ somente o ‘homem interior’, ou mais
precisamente, não homem interior; o homem está no mundo e somente no mundo
ele se conhece.32
31
Taylor emprega esse termo tanto na filosofia de Heidegger quanto na de Merleau-Ponty.
32
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro Moura.
São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.8.
A forma como nos relacionamos com o mundo, enquanto presença ativa nele, molda
a forma como o mundo nos é dado. A percepção, para o autor, está em íntima conexão com o
comportamento do sujeito e não menos com a forma como ele concebe a realidade. O nosso
acesso ao mundo se por intermédio da percepção, ou melhor, do corpo. Nesse sentido,
avaliamos a partir de critérios dimensionais alto, baixo, longe, perto sendo que nosso
próprio posicionamento dependerá dessa estrutura condicional. Por isso, observamos a partir
de uma posição erétil, ou agachada, nos deslocamos no espaço, de modo que, afinal, tais
condições moldam a forma como vemos o mundo e nos vemos. Diferentemente de Descartes,
não uma condição em que o sujeito se põe de estar num momento perceptivo, o corpo é
percepção, ele vê e é visto. Não somente isso, essa inter-relação marca a característica
comunicativa do corpo. É nesse sentido primário que está presente a teoria de Merleau-ponty,
na tese de Taylor do engajamento corporal do sujeito no mundo.
Posso perceber o mundo de muitas formas. Posso ponderar sobre a situação na
Namíbia ou sobre os eventos ocorridos em Marenbad, tecer considerações acerca da
segunda lei da termodinâmica e assim por diante. Mas uma maneira de ter um
mundo básico para tudo isso é percebê-lo a partir da posição em que me encontro,
com meus sentidos, como se diz. 33
Merleau-Ponty propõe, assim, um campo perceptivo de nossa abertura condicional
(transcendental) ao mundo. Nesse sentido, condicionamos nossa compreensão do mundo a
uma maneira corporificada, isto é, nos vemos enquanto corpo, assim como vemos o outro e o
mundo, de tal modo que isto implica no nosso posicionamento perante o mundo e os outros.
1.2.3 Herder e Wittgenstein e o engajamento do sujeito pela linguagem
A filosofia da linguagem representa um ponto forte na motivação do pensamento de
Taylor. O autor acredita na idéia do sujeito como animal lingüístico, de modo que as questões
dessa área do conhecimento figuram não importantes para uma contraposição ao sujeito
desengajado, como também são essenciais para a formulação da sua antropologia filosófica.
Wittgenstein
34
e outros filósofos da linguagem como Herder e Humboldt
contribuíram, cada um à sua maneira, para a descrição tayloriana de sujeito engajado pela
linguagem. O ponto forte desses autores está nas reflexões que visaram contrapor com um
determinado tipo de pensamento hegemônico sobre a linguagem na vertente de Condillac, na
33
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p. 35.
34
Taylor toma o segundo Wittgenstein, o da Investigações Filosóficas.
modernidade, e de filósofos contemporâneos da corrente positivista da linguagem. Este
aspecto lingüístico contribuiu, em grande parte, para a afirmação de uma forma objetivo-
científica de tratar o conhecimento da natureza humana. Daí a aproximação desse modelo a
autores da filosofia do atomismo.
Uma das questões presentes no pensamento de Taylor, e abordada em seu artigo
Language and human nature
35
, é o desenvolvimento da idéia de sentido/significado no que
concerne a uma compreensão acerca da nossa forma de conhecer e valorar. A linguagem na
modernidade apresenta duas maneiras de significar algo, objeto ou valores, quando aplicamos
o sentido de maneira designativa ou expressiva. “[...] Nós damos o significado de um signo ou
uma palavra ao apontar para as coisas ou relações que podem ser usadas para referir ou falar
sobre.”
36
Este é um modo descritivo de qualificar objetos. A outra dimensão, expressiva,
extrapola a noção básica e factual compreendida pela descrição e associa sentimentos
manifestos juntamente com a experiência lingüística. As duas formas de compreender o
sentido das coisas não são separadas na nossa natureza cognoscível, visto que no discurso
ambas as formas estão presentes. O fato é que o foco dado a elas diferencia: de um lado os
objetos (designativa) é que são designados, de outro, pensamentos e sentimentos (expressiva)
são manifestos. No entanto, algumas teorias visam separá-las, como no caso da linguagem da
ciência que privilegia mais a maneira objetiva, isto é, busca dar ao sentido uma descrição, e
assim, evitar confusões que estão relacionadas a uma maneira expressivista de interpretar.
Taylor, ao se pautar na teoria de Herder, sinaliza um resgate do expressivismo.
Herder aponta um engajamento do sujeito pela linguagem, que manifesta uma expressão. O
sentido da expressão será obtido pela linguagem, ele não é dado de antemão por supostos
pensamentos privados. A linguagem não é um mero referencial de coisas, ela personifica um
modo de ser, manifesta, ao mesmo tempo, a consciência do homem nas relações de emprego
de suas expressões. “A linguagem é vista não como um conjunto de sinais, mas como o
meio de expressão de um certo modo de ver e experimentar [...] Logo, não pode haver
pensamento sem linguagem [...]”
37
Em contraste com o expressivismo de Herder, para os
designativistas, como Condillac, a natureza do conhecimento humano se dá por meio da
linguagem que agrupa uma coleção de palavras que, por conseguinte, formam o léxico do
qual nos baseamos para significar e, assim, o conhecimento tem a característica de ser
designativo. Isto é, a nossa reação a um objeto é correspondente à descrição que nós lhe
35
TAYLOR, Charles. Human Agency and Language: Philosophical papers 1. Op. cit.
36
Id. Ibid., p.218, tradução nossa.
37
Id. Hegel e a sociedade moderna. Opus Cit., p.30.
damos. Wittgenstein faz uma observação análoga, ao afirmar criticamente quando se pensa
“que aprender a linguagem consista em denominar objetos, isto é, homens, formas, cores,
dores, estados de espírito, números etc. Que a denominação é semelhante a pendurar em uma
coisa um cartãozinho com um nome.”
38
A ingenuidade está em apregoar a idéia de que as
palavras podem representar coisas, de tal modo que podemos estabelecer um elo definitivo
entre ambas.
Herder, por sua vez, nega o fato de que a compreensão é um dado, e de que uma
definição estrita de uma palavra em relação a uma determinada coisa possa ser algo interno,
isto é, alheio à dimensão lingüística do homem. Deste modo, o autor aponta a irredutibilidade
de nossa linguagem. Nesse sentido, nossas ações lingüísticas, em seus mais variados sentidos,
dependem para seu esclarecimento da própria dimensão lingüística, ou seja, não podemos
definir uma palavra senão quando recursos lingüísticos são utilizados como verdade,
interpretação, entre outros. Isso significa que a nossa forma de conhecer parte de uma
articulação lingüística do sujeito com um objeto dado, que não se manifesta previamente
como uma coleção de léxico que nos é ensinado. Este é o sentido de pano de fundo que advém
com Herder
39
e, em seqüência, com Wittgenstein e Heidegger, e que fora obliterado por uma
tradição designativista hegemônica na epistemologia lingüística desde Condillac. Deste modo,
a idéia de pano de fundo sinaliza que, para avaliarmos, não podemos prescindir de nossa
própria dimensão lingüística de avaliação. A palavra na dimensão expressivista de linguagem
tem o propósito de estabelecer um elo com o sentido da expressão. Neste caso, ela não
delimita, ela busca se aproximar à riqueza da expressão, e, ao fazer isso, proporciona
características de sentido à própria expressão.
Uma criatura opera na dimensão lingüística quando pode usar signos e a eles
responder em termos de sua verdade, ou justeza descritiva, do poder de evocar
algum estado de espírito, recriar uma cena, exprimir alguma emoção, veicular
alguma nuança de sentimento ou ser de algum modo le mot juste.
40
Segundo Taylor, “A primeira intuição importante de Herder foi ver que a expressão
constitui a dimensão lingüística.”
41
Deste modo, reagimos ao objeto, o reconhecemos, isto é,
38
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Coleção Os Pensadores. Tradução de José Carlos
Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1975, §26.
39
Taylor ressalta que num primeiro momento, o pano de fundo tem como germe a filosofia de Kant no que
concerne à idéia de sujeito transcendental e a forma de conhecer que destoa da tradição empirista Huminiana na
qual o sujeito tem uma impressão direta do objeto, isoladamente. O autor afirma que Herder faz na linguagem
algo análogo o que Kant faz na epistemologia.
40
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p. 98-99.
41
Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p. 106.
aferimos uma expressão que o marca e, assim, o identificamos como diferente de outros. Ao
mesmo tempo, podemos apresentar uma outra expressão com relação ao mesmo objeto. Isso é
o que caracteriza o aspecto dinâmico da linguagem: possuímos uma relação com os objetos
que extrapola a mera designação deles. A linguagem nessa “virada expressivista” tem, então,
o sentido de articulação de expressões manifestas numa determinada experiência, localizadas
no sujeito. Nesse caso, a articulação do entendimento é engajada, não uma razão neutra
que capte o sentido das coisas. “Descrever uma situação com certas palavras, e não outras, é
já engajar o julgamento sobre essa situação.”
42
O ponto central nesse aspecto da linguagem gira em torno da dimensão dialógica.
Nesse sentido, Taylor destaca a dependência do âmbito comunitário, das redes de
interlocução, como meio para o desenvolvimento da linguagem e suas significações. “A
linguagem é moldada e se desenvolve, principalmente, não no monólogo, mas sim no diálogo,
ou melhor, na vida da comunidade de falantes.”
43
Logo, é pelas nossas expressões
interpretadas pela comunidade lingüística
44
e, mais especificamente, por intermédio da fala
que possibilitamos articular significados, ou seja, torná-los cônscios. Correlacionamos o
sentido das coisas através de um ato conjunto, sobretudo, pela fala (expressão), que não
advém de um indivíduo único, não é uma propriedade privada de indivíduos isolados, é antes
uma capacidade que pressupõe uma forma dialógica de relacionamentos intersubjetivos. Este
fato vai de encontro ao modelo atomista de pensar o sujeito, limitado à forma designativista,
portanto, fragmentária de tratar a experiência lingüística. O sujeito isolado não articula suas
expressões, logo, não constrói linguagem emotiva, ou melhor, não constrói uma maneira
dinâmica de se relacionar com os objetos e, sobretudo, com as pessoas. E mais, não elabora
um entendimento que é decorrente da comunidade lingüística.
O resultado disso está no fato de que Taylor expõe a linguagem não como um
instrumento, no exercício de definição de sentido das coisas. A idéia de instrumentalidade da
linguagem cunhada pelo século XVII é contraposta à corrente expressivista, num primeiro
momento, e por autores como Wittgenstein no século XX. Juntamente com essa mudança na
forma de compreender a linguagem, a concepção de natureza humana muda. De um
pensamento estritamente científico no tratamento da realidade objetiva, e nela inserido o
conceito de sujeito definido como um objeto neutro, para um modo referenciado de tratar a
42
DE LARA, Philippe. Les voies de la raison pratique. In: LAFOREST, Guy; DE LARA, Philippe (org).
Charles Taylor et l'interprétation de l'identité moderne. Op. cit., p.370, tradução nossa.
43
TAYLOR, Charles. Human Agency and Language: Philosophical papers I. Op. cit., p.234, tradução nossa.
44
O autor reforça sua tese comunitarista ao apresentar a linguagem como um meio pelo qual travamos contato
com nossa comunidade, isto é, nos relacionamos não com os indivíduos situados nela, mas também, com a
sua história.
linguagem, isto é, fazê-la depender tanto do âmbito da comunidade lingüística quanto da
dialogicidade, os quais devem servir de base para as afirmações epistemológicas.
Para além da descrição do homem como um animal racional, Taylor estende essa
concepção, apoiando-se na idéia de racionalidade não como uma capacidade meramente
representacional, mas sim lingüístico-expressiva, e que remete à forma como os antigos
gregos concebiam o logos, razão cognitiva e discursiva.
Se agora olharmos para trás para a rota que perseguimos, veremos como a
linguagem tornou-se central para nosso entendimento do homem. Se mantivermos a
intuição de que o homem é um animal racional, o animal portador do logos ou
pensamento-discurso, ao menos nisso concordaremos que esse fato tem relação com
o aquilo que nos distingue dos outros animais, então, o efeito da doutrina
expressivista será o de fazer com que vejamos o lócus da nossa humanidade no
poder da expressão.45
No que concerne ao aspecto descritivo da natureza humana, proposto nesse primeiro
momento, a linguagem para expressivistas como Herder é uma forma de estar no mundo, uma
atividade que exercemos, e ao fazermos isso confluímos com nossa natureza. Ora, este fato
comum, e pelo qual a natureza humana exerce sua essência, permite discutir a real condição
do homem como um ser que não pode prescindir desse fato nos mais variados campos: ético,
político, epistemológico. É essa contribuição que Taylor recebe desses autores, como
Heidegger, Wittgenstein, Merleau-ponty e Herder, para a elaboração de seu pensamento
filosófico, sobretudo, no que diz respeito à descrição da natureza humana em termos
expressivistas.
1.3 A RECEPÇÃO DE TAYLOR À FORMA DE COMPREENDER O SUJEITO
ENGAJADO
A principal condição imposta ao agente, segundo pensam filósofos como Heidegger,
Wittgenstein, Merleau-Ponty, é o engajamento do sujeito.
tanto Heidegger como Wittgenstein tiveram de lutar para resgatar uma compreensão
do agente como engajado, mergulhado numa cultura, numa forma de vida, num
45
Id. Ibid., p.234-235, tradução nossa.
`mundo´ de envolvimentos, em última análise, para compreender o agente como
agente corporificado [de cuja idéia Merleau-Ponty é o principal expoente].
46
Nesse sentido, o foco sai das representações mentais e passa para as ações, ou
melhor, para as expressões. Isto significa que o conhecimento pressupõe primeiramente uma
relação intrínseca e necessária entre o sujeito/mundo. Ao mesmo tempo, isso resulta no fato
de que o entendimento da ação passa a ser tomado no seu aspecto prático, realista,
diferentemente do aspecto exterior dado às representações mentais pelo representacionismo.
Nesse sentido, as teorias devem ter como pressuposto essa condição imposta à definição de
sujeito e constitutivo de sua experiência.
Alguns pontos comuns e centrais podem ser observados tendo em vista a tradição na
forma de compreender o sujeito engajado. Na interpretação de Taylor, o que esses filósofos
pretendem dizer acerca dos vínculos existenciais de engajamento, seja pelo corpo seja pela
linguagem, é de que a moldura perceptiva que temos do mundo rege nossas avaliações como
um pano de fundo (background)
47
. “Nessa relação, o primeiro termo, a forma do agente
(corporificação), está para o segundo (nossa experiência) como um contexto que confere
credibilidade.”
48
O contexto que o autor faz menção é o pano de fundo, no sentido de que ele
é a condição de inteligibilidade de uma dada experiência. Esta se constitui como o foco, ou o
objeto, alvo de intencionalidade por parte do agente. E o pano de fundo é uma “compreensão
implícita, ou ‘pré-compreensão’, para usar o termo de Heidegger.”
49
Merleau-Ponty afirma que o nosso acesso ao mundo de maneira objetiva pressupõe
uma pré-objetividade. Isto significa que ao redor do objeto concernente, alvo de nossa
intencionalidade, um mundo pré-objetivo que molda nosso campo perceptivo dando-lhe
significação. Da mesma forma, a idéia de pano de fundo se apresenta também no campo da
linguagem. “Wittgenstein faz uso de uma noção assemelhada [do pano de fundo], como
ocorre quando mostra o que se tinha de supor compreendido quando se tenta definir algo
ostensivamente ou dar-lhe um nome.”
50
Nesse sentido, a própria compreensão “não se refere a
ações individuais, mas aos jogos de linguagem em que estas figuram e eventualmente a todo
modo de vida em que esses jogos têm sentido.”
51
É este o mesmo significado dado pelo autor
46
Id. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p. 73-74.
47
Taylor utiliza o termo pano de fundo (background) para tratar das estruturas que estão por detrás da ação
perceptiva. Já no que concerne à dimensão moral, o autor afirma o sujeito dependente de configurações
(framework) morais para reger suas ações.
48
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p.81.
49
Id. Ibid., p.82.
50
Id. Ibid., p.83.
51
Id. Ibid., p.87.
à idéia de holismo de sentido de Herder. “Uma palavra tem significado no âmbito de um
léxico e de um contexto de práticas lingüísticas, que se acham embutidas em última análise
numa forma de vida.
52
Da mesma forma, Saussure emprega, segundo o autor, um sentido
próximo na sua distinção entre langue e parole. “Existe um código (langue), código a que se
recorre em cada ato de fala particular (parole).”
53
O sentido dado ao pano de fundo pressupõe o fato de que não podemos articulá-lo
por inteiro, pois, paradoxalmente, tal pretensão pressupõe um outro pano de fundo. Deste
modo, nossas ações, e a própria idéia de sujeito apresentada pelos teóricos das filosofias do
desengajamento, tornam-se possíveis se contrastadas a um pano de fundo, que pressupõe
preceitos básicos (transcendentais) na maneira como nós compreendemos as coisas. Ora, os
teóricos críticos dessas filosofias propõem uma forma diferente de entender a ação humana.
Se outrora a ação tinha como lócus a mente, ou melhor, as representações do sujeito, agora
elas se localizam nas práticas e são, muitas vezes, dinâmicas e dependentes de uma
dialogicidade. Isso significa que devemos estar mais atentos ao pano de fundo que garante a
compreensão de uma prática. Por isso, esse pano de fundo não só confere o contexto pelo qual
uma representação ou prática é compreendida, como também sua ausência significa a
ininteligibilidade da prática humana.
Um ponto em que não se pode perder de foco é a mudança nas bases teóricas de
entendimento do sujeito. Se de um lado o sujeito representacionista trouxe um método que
garante objetividade científica na forma de avaliar o sujeito, uma das conseqüências do
desenvolvimento teórico de filósofos críticos dessa epistemologia é uma alteração teórica com
vistas a uma avaliação interpretativa do sujeito. O mundo não é pré-definido, ele depende de
uma articulação que se constrói a partir das experiências do sujeito, de suas avaliações.
54
Há, então, uma divisão a respeito do objeto de análise das ciências. As ciências
humanas têm como instrumento de análise as ações humanas, que têm seu entendimento no
horizonte significativo da sociedade. É nesses termos que se introduz a idéia de espírito
objetivo cunhada por Hegel e expressa também, de forma semelhante, na concepção de
mundo da cultura em Merleau-Ponty. Nesse sentido, um campo, o do “espírito objetivo”,
que reúne as instituições ou a cultura, e que se exterioriza nas práticas humanas. Assim, o
sujeito não busca o entendimento das ações em sua consciência, na mente, como no
52
Id. Ibid., p.108.
53
Id. Ibid., p.150.
54
O filósofo canadense aproxima, então, seu pensamento à tradição hermenêutica, isto é, interpretativa,
sobretudo, no que concerne à forma de compreender os critérios de análise das teorias. Taylor faz menção a
Gadamer, como expoente dessa forma hermenêutica de tratar a natureza humana.
representacionismo, mas sim na interpretação das instituições, da cultura, ou melhor, do
“espírito objetivo” no qual vive. O aspecto interpretativo ganha importância, nesse sentido,
pois o meio juntamente com as práticas se modifica ao longo da história.
1.3.1 A idéia de pessoa enquanto um animal que se auto-interpreta
Uma conseqüência da forma interpretativa de compreender os problemas
relacionados às ciências humanas se estende à concepção de pessoa: a interpretação da
natureza humana levando-se em conta a forma como o sujeito mesmo se interpreta55. A esse
aspecto vem se somar, como vimos, outras condições impostas à natureza do sujeito, como o
seu conhecimento engajado pela linguagem e o corpo.
Define-se, assim, a capacidade racional pensada de modo não representacional e sim
lingüístico-expressivista. Em extensão a essa idéia afigura-se um outro componente essencial
para a descrição ontológica da natureza humana: o ser humano é um animal auto-
interpretativo (self-interpreting animals), qualificação essencial para a definição de nossa
identidade. O autor traça em linhas gerais esta qualificação da seguinte forma:
dizer que o homem é um animal que se auto-interpreta não significa dizer tão
somente que ele tem uma tendência compulsiva para ter visões reflexivas de si, mas
antes, como o homem é, ele é sempre constituído por auto-interpretações, ou seja,
pelo seu entendimento dos significados [imports] que o influenciam.56
Este aspecto relevante da natureza humana indica que aquilo que somos e como
agimos é inevitavelmente conectado com as nossas auto-interpretações, de tal modo que a
realidade não pode ser apreendida de forma alheia às interpretações. Enquanto agentes no
mundo experienciamos sensações e atribuímos significações a elas, e o fato de atribuirmos
significações as mais diversas, mesmo a uma igual situação, é o que qualifica nossa postura
interpretativa. E mais, o fato de observarmos esses significados em nossa interioridade denota
nossa postura auto-interpretativa. Deste modo, não julgamos tais sensações de maneira
objetiva, ou melhor, não identificamos uma sensação diretamente a um objeto, e sim
55
Esta é a discussão que norteia, segundo o autor, o século XVII quanto à descrição de propriedades de primeira
ordem, objetivas, e de segunda ordem, que podem ser variáveis e dependem da experiência subjetiva. “Esta
teoria da experiência tornou-se um embaraço para todos, e, recentemente, essa mesma orientação objetivista
expressou-se na perspectiva de uma visão redutora da ação e experiência humana em termos fisiológicos e,
ultimamente, em químicos e físicos. Desta forma, estamos aptos a tratar o homem, e qualquer outra coisa, como
um objeto em meio a outros objetos, caracterizado em termos de propriedades as quais são independentes de sua
experiência nesse caso, a auto-experiência.” (TAYLOR, Charles. Human Agency and Language:
Philosophical papers 1. Op. cit., p.47, tradução nossa)
56
Id. Ibid., p.72, tradução nossa.
interpretamos o contexto como portador de uma significação, na linha expressivista de tratar a
linguagem, com ocorre com Herder e Wittgenstein.
[...] experienciar uma dada emoção envolve experenciar nossa situação como
portadora de certo significado [import], na qual para a atribuição do significado não
é suficiente somente que eu sinta dessa forma, mas antes, que o significado o
fundamento ou base para o sentimento. 57
O import (referenciais que utilizamos para dar resposta à nossa ação) permite que a
existência de um sentimento venha acompanhada de uma situação na qual interpretamos para
reagir segundo tal sentimento. Assim, o sentimento de medo, por exemplo, advém do fato de
estarmos numa situação na qual nos sentimos ameaçados, portanto, interpretamos esta
situação, no caso a ameaça (import), e reagimos desta forma: com medo. No entanto, o autor
chama atenção para o fato de que a relação sentimento/significado não é de total equivalência,
pois podemos experienciar sentimentos sem nos envolver na situação adequada a tal
sentimento. “Eu me sinto envergonhado, mesmo pensando que eu vejo isso perfeitamente um
absurdo, que não há nada vergonhoso em ter sucumbido a um ataque de raiva em tal
circunstância.”
58
Isso expressa melhor o fato de que não há objetos nem situações padrões que
possamos identificar e reagir de acordo com alguma sensação, pois o sentimento depende de
uma auto-interpretação. Este aspecto delineativo da natureza humana indica que o agente
qualifica suas emoções, logo, age de forma parcial com relação às suas experiências.
Esse contraponto hermenêutico expõe a fragilidade das teses naturalistas. Ora, a
questão em pauta está na dificuldade de entender o motivo pelo qual tais teses foram – e ainda
são – fortes em nossa cultura. Grande parte dessa motivação, percebe o autor, está na idéia da
descrição dos sentimentos que possui uma veracidade. Deste modo, pode-se descrever
algumas sensações como sendo correlatas a manifestações fisiológicas. “Alguém arranha a
unha no quadro-negro, e eu me estremeço e me arrepio.”
59
Ou mesmo, pode-se padronizar
uma sensação de medo de acordo com uma situação na qual estamos em perigo de vida, ou de
causar danos a nosso corpo. Além disso, pode-se atribuir tais sensações a outros seres que não
possuem a capacidade reflexiva. Embora tais sensações possam ser postas em termos
objetivos, não ainda a possibilidade de descrever a natureza humana em termos objetivos,
mesmo porque nem todos os sentimentos possuem uma mesma característica.
57
Id. Ibid., p.49, tradução nossa.
58
Id. Ibid., p.50, tradução nossa.
59
Id. Ibid., p.51, tradução nossa.
Um contraponto expressivo a essa tese reducionista está, por exemplo, na descrição
do sentimento de vergonha.
[...] o termo ‘vergonhoso’ não possui sentido fora de um mundo no qual não haja um
sujeito por quem as coisas têm determinado sentido (emocional). O significado
(lingüístico) de ‘vergonhoso’ só pode ser explicado com referência a um sujeito para
quem esses significados (emocional) tenha peso, e se não houver tal sujeito, o termo
em si perderá o sentido.60
Não podemos descrever a vergonha em termos de estado fisiológico, nem a animais
que não possuam a capacidade reflexiva, pois esse sentimento depende não de um sujeito
que interprete e sinta tal situação, como de um pano de fundo cultural que valide tal
sentimento. Nesse caso, é preciso uma comunidade e um sujeito que comungue valores como
a dignidade para existir uma sensibilidade a tal sentimento. Assim, a vergonha poderia ser
explicada no caso em que a dignidade do indivíduo está abalada. Ou seja, numa sociedade na
qual indivíduos buscam manter sua dignidade e respeito, a vergonha pode ser algo relacionada
a algo que se censura no espaço público.
A maneira mesma como andamos, nos movemos, gesticulamos e falamos é moldada
desde os primeiros momentos por nossa consciência de estar na presença de outros,
de nos encontrarmos num espaço público e de que esse espaço pode trazer
potencialmente o respeito ou o desprezo, o orgulho ou a vergonha.61
As experiências, como no exemplo da sensação de vergonha, estão acopladas a uma
rede de outras sensações que lhe dão sentido, e, por isso, são referenciadas. Esse ponto reforça
a crítica do autor ao naturalismo, e uma forma representacionista de tratar o sujeito, no que se
refere à idéia de valores enquanto construtos atomizados, isto é, independentes de um meio e
de um sujeito, nos quais eles são definidos. Taylor afirma que a descrição de um valor é
acompanhada de um outro valor que contrasta com ele. Assim, a avaliação de um ato corajoso
tem ao fundo a noção de um ato covarde. Da mesma forma, um ato honrável tem como
contraste um ato desonrado. Isto mostra que nossas emoções também são situadas em meio a
outras emoções. Nesse sentido, elas estão articuladas por intermédio da linguagem, não no
sentido designativista, mas expressivista, isto é, a linguagem molda o nosso sentimento
dinamicamente, pois ela o articula e é variável de acordo com uma rede de significações.
Esses sentimentos que dependem do valor cultural e, portanto, referenciados somente
aos indivíduos que os reconhecem, são chamados de sujeito-referente (subject-referring). É
60
Id. Ibid., p.53, tradução nossa.
61
Id. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p.30.
preciso um sujeito que possua um arcabouço de emoções transfiguradas pela linguagem, logo,
a presença de uma cultura de fundo, permitindo, assim, que uma dada emoção possa ser
reconhecida. Deste modo, emoções que dependem de um sujeito que as referência não
podem ser explanadas teoricamente, ou seja, não são passíveis de explicação se o indivíduo
não possuir alguns pressupostos, como emoções codificadas pela linguagem em valores. De
igual modo, não podemos atribuir tais sensações sem um sujeito, isto é, tratá-las da mesma
forma que procedemos com um objeto, com neutralidade. “A ação que estamos inclinados a
tomar é identificada pelos seus propósitos, e freqüentemente, eles são inteligíveis somente
contra o background de significação.”
62
Nesse sentido, o background de significações é que
auxilia tanto na nossa situação com relação à dada experiência quanto na possibilidade de
torná-la cônscia para outro sujeito.
Uma vez que a linguagem molda nossas expressões, e dado o fato de que nossas
manifestações lingüísticas dependem de um background lingüístico, significa que
experimentamos sentimentos de forma particular, mas ao mesmo tempo manifestamo-los
lingüisticamente, portanto, num sentido que “todos” possam entender, e obedecendo a um
mesmo pano de fundo. Esse é ponto que explica o motivo pelo qual Taylor não adota uma
saída relativista para a descrição dos sentimentos. Portanto, a sensação é privada e, por isso,
não pode ser apreendida de forma externa, como por uma teoria, pois para haver um
sentimento de vergonha é necessário um individuo que a sinta, isto é, que a interprete
(interiormente). No entanto, também não é plenamente subjetiva, pois ela é portadora de
sentido comum. É no âmbito da sociedade que os indivíduos comungam valores sociais como
dignidade, respeito, vergonha, etc.
Taylor estabelece mais uma crítica à idéia de consciência representacional que
concebe as representações do mundo de forma neutra. Em termos de emoções, como vimos,
uma representação neutra não não apreende a verdade da sensação, como ignora a real
relação que o sujeito estabelece com suas emoções.
[...] nosso entendimento delas ou as interpretações que nós aceitamos são
constitutivas para a emoção. O entendimento ajuda moldar a emoção. E, é por isso
que a última não pode ser considerada um objeto independente por completo, e a
tradição teórica da consciência enquanto representação não se aplica aqui.
63
Esse aspecto interpretativo dado ao sujeito refere-se à dimensão ontológica, e
impulsiona a teoria do autor para uma veia expressivista de pensar a pessoa, pois os
62
Id. Human Agency and Language: Philosophical papers 1. Op. cit., p.108, tradução nossa.
63
Id. Ibid., p.101, tradução nossa.
significados passam a ser interpretados de acordo com as práticas humanas, com a forma
como os indivíduos constroem os significados em suas vidas.
2. O LEGADO CULTURAL MODERNO: UMA FUNDAMENTAÇÃO MORAL DE
PESSOA
O capítulo anterior teve por objetivo delinear os aspectos ontológicos do sujeito.
Nesse sentido, buscou-se tratar das contribuições de filósofos para a concepção tayloriana de
um sujeito engajado, e o próprio posicionamento do autor com relação a essa tradição. Este
capítulo pretende abordar a dimensão moral do sujeito. Uma primeira premissa está no fato de
que Taylor não aposta numa universalização dos valores, e sim numa internalização dos
mesmos de acordo com determinada cultura e grupo. Ora, as teses expressivistas pontuam
uma maneira de ver e interpretar o sujeito. Ao concebermos a linguagem expressivista
enquanto manifestação de uma determinada cultura abrimos a possibilidade de tratar a relação
entre o sujeito e a moral de forma condizente ao vínculo que ele mantém com a comunidade.
Nesse sentido, os valores serão compreendidos de acordo com suas manifestações no
horizonte significativo de uma comunidade ao longo da história do sujeito. Para Taylor, os
sujeitos portam valores que foram difundidos na modernidade. Esses valores ajudam a
compreender os planos teóricos que estruturaram tanto a forma desprendida de sujeito, esta
mais hegemônica, como a forma engajada, que para Taylor deve ser resgatada também nos
valores cunhados na modernidade. Destarte, este capítulo está em íntima conexão com o
anterior, não porque pretende complementar a concepção de pessoa ao discutir as
decorrências morais provenientes da forma como o sujeito é pensando ontológicamente
engajado, mas pelo fato de promover um entendimento dos planos teóricos que levaram a
florescer os tipos ontológicos de sujeito discutidos no capítulo anterior.
2.1 O LEGADO CULTURAL MODERNO: A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE
MODERNA
Uma análise dos aspectos constitutivos da moralidade deve levar em conta algumas
variáveis. Em primeiro lugar, o autor não aposta num único padrão de sujeito e seu
correspondente moral. Taylor concebe um conjunto de valores do qual faz parte um período
da história, no caso a modernidade, e para a composição desse plano de fundo investiga
inúmeras fontes morais.
A dimensão interpretativa utilizada para avaliar os aspectos ontológicos da pessoa
deve ser usada para compreender as fontes morais que compõem o horizonte cultural
moderno. Nesse caso, buscar-se-á interpretar as diversas resultantes culturais enraizadas nas
múltiplas facetas de sujeito moderno para, assim, compreender os valores que compõem a
imagem moral do sujeito moderno.
Ao se reportar às múltiplas facetas do sujeito moderno não significa que não seja
possível identificar também aspectos comuns em todas as variáveis. Aliás, é esse o motivo
pelo qual pode-se conceber que em meio a tantos modelos difundidos de sujeito moderno haja
um ponto comum que diga ao menos que esse sujeito faça parte da modernidade. Esse aspecto
central para a denominação de sujeito moderno, o autor identifica na idéia de interioridade. O
movimento de internalização que advém com os modernos, sobretudo, com Descartes; dá uma
outra tonalidade à fonte moral a qual o agente deve se direcionar
64
.
Quando os modernos lêem a respeito, digamos, de culturas xamanistas que alegam
acreditar que a pessoa humana tem três almas e que uma delas pode sair e
permanecer fora durante algum tempo, não sabem o que fazer com essa informação.
Isso significa que essas pessoas não têm o mesmo senso de corpo, que não vêem as
pessoas da mesma maneira que nós? Não precisamos supor coisas tão bizarras.
65
Ocorre que o senso de individualização (eu não sou você) é tácito, embora a
explicação da ação humana - a descrição de agente e sua relação moral e espiritual com o
mundo e outrem - seja diversa. O self para Taylor carrega uma noção de reflexividade com
relação aos seus valores, que serão alvos de uma atenção para a composição da identidade da
pessoa. Daí um olhar na interioridade para se perceber enquanto pessoa. Isto explica o padrão
moderno de sujeito dotado de uma interioridade que referencia sua identidade, diferente da
noção grega de pessoa.
Platão distingue na alma uma parte superior e outra inferior, de modo que a razão,
lócus da parte superior, deve controlar os desejos, parte inferior da alma, com o propósito de
que o homem possa ter autodomínio e, assim, atingir um estado moral superior. Para Platão,
ser governado pela razão é orientar-se com vistas à ordem natural, por isso, a ação moral em
consecução com a ordem das coisas é uma ação racional. Esta ação toma sentido na medida
64
Segundo Taylor, a idéia de interioridade advém com Santo Agostinho de forma primitiva. Para o Santo de
Hipona a certeza superior, traduzida por Deus, provém de uma passagem pela nossa interioridade que é, assim,
fonte de certeza. Aliás, é preciso ressaltar que a pesquisa não irá retratar o reconhecimento de Taylor quanto à
presença dos valores medievais, como a ágape cristã, na formação da cultura moderna.
65
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.151.
em que é justificada em consenso com a ordem do cosmo, da mesma forma que a parte se
explica através do todo.
A razão alcança sua plenitude na visão da ordem maior, que também é a visão do
Bem. E é por isso que a linguagem do dentro/fora pode, de certo modo, ser enganosa
como enunciado da posição de Platão. Num sentido importante, as fontes morais às
quais temos acesso por meio da razão não estão dentro de nós. Podem ser
consideradas como algo que está fora de s, no Bem; ou talvez nossa ascensão a
um estado superior deva ser vista como algo que ocorre no ´espaço` entre nós e essa
ordem do bem. Quando se define substantivamente a razão, quando uma visão
correta da ordem é critério de racionalidade, o processo de nos tornarmos racionais
não deve, claramente, ser descrito como algo que acontece em nós, e sim como
nossa ligação com a ordem maior em que nos encontramos [...] Não é uma questão
de internalização de uma capacidade, e sim de conversão
.66
Se para Platão o agente se converte à ordem, algo que é dado e cuja tarefa cabe
lembrar (rememoração), para Descartes e para outros modernos a razão constrói a ordem ao se
voltar para si mesma por intermédio de um método correto. Isso significa que não só a certeza
advém da interioridade como as fontes morais têm nela o seu lócus. Esta visão aponta uma
revolução na perspectiva do sujeito com relação ao mundo. Se o sujeito tinha um papel para
desvelar a verdade, adequando-se à ordem cósmica, em Descartes, por exemplo, a realidade
advém das idéias, ou das representações inseridas na minha mente e, por isso, o sujeito
constrói a ordem e descobre a verdade.
O novo modelo de domínio racional que Descartes apresenta revela-se como uma
questão de controle instrumental. Libertar-se da ilusão que mistura mente e matéria é
ter uma compreensão desta última que facilita seu controle. Da mesma forma,
libertar-se das paixões e obedecer à razão é dar às paixões uma direção instrumental.
A hegemonia da razão não se define mais como a da visão dominante, e sim como
uma atividade diretiva que subordina um reino funcional.
67
A razão é boa não porque nos guia a uma entidade superior, a um mundo das idéias -
lugar do bem - e sim por direcionar nosso espírito à certeza, e, conseqüentemente, ao controle.
É este o sentido de funcionalidade da razão, pois ela é um instrumento, um guia, de modo que
o mundo, e também os outros, tornam-se sujeitos de observação, conhecimento, e
direcionamento.
Taylor aponta, nesse momento, para a configuração de uma cultura a qual serve de
norma para o entendimento da relação sujeito/mundo. Por intermédio dos valores difundidos
na modernidade, como representação, razão instrumental, lócus interior/exterior, é possível
66
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.165.
67
Id. Ibid., p.197.
entender a predominância do modelo desengajado de sujeito, mesmo porque, a cultura
científica fomentadora desta epistemologia encontra respaldo através da validação cultural
dada a esses valores.
No momento em que descobrimos a verdade e também nossas avaliações
interiormente, isso faz com que nos afastemos do meio no qual estamos situados. Deste modo,
objetificamos tudo a nossa volta, isto é, deciframos o horizonte cientificamente e o
postulamos como uma teoria. “Bruscamente as coisas perderam sua aura”.
68
Nesse sentido,
perde-se o mundo encantado, o mesmo que a antiguidade, à sua forma, acreditava ser a
morada das verdades. Isto representa o “desencantamento” do mundo, termo que Taylor
apropria de Max Weber. Esse entendimento proporcionará uma nova atitude das pessoas
perante estruturas sociais como a família, sociedade, Estado: “as pessoas não são mais
sacrificadas sob o altar dos valores autenticamente sacros que os transcendem.”
69
Não há mais
uma preocupação com o todo, no sentido de que antes, com os gregos, o sujeito era pensado
enquanto parte de um plano maior. Agora, resta o sujeito e um mundo sem “sentido”, isto é,
sem valor moral intrínseco, o valor que será atribuído a ele decorre do sujeito. Umas das
conseqüências deste modelo fora a perda da orientação do sujeito no mundo.
Declarou-se que ao cortar os vastos horizontes sociais e cósmicos o indivíduo havia
perdido algo de essencial. Alguns falaram de uma perda da dimensão heróica da
vida. As pessoas perderam o sentido do ideal, a perspectiva de um objetivo pelo qual
valesse a pena morrer.
70
A conseqüência negativa disso tudo é um indivíduo absorto em si, egocêntrico, ou
melhor, isolado do meio constitutivo.
A cultura moderna desenvolveu concepções de individualismo que retratam a pessoa
humana como, ao menos potencialmente, um ser que encontra suas coordenadas
dentro de si mesmo, que declara independência das redes de interlocução que o
formaram originalmente ou, ao menos, as neutraliza.
71
A partir dessa cultura, algumas conclusões podem ser tiradas em termos de valores.
A dignidade, ponto alto da ética, não advém mais de uma hierarquia de sujeitos de acordo
com a posição em relação ao bem, como em Platão; a dignidade dada em termos de
capacidade racional gera uma moralidade independente. Uma conseqüência disso é um
68
TAYLOR, Charles. Grandeur et misère de la modernité. Traduit de l’anglais par Charlotte Melaçon.
Québec : Berllarmin, 1992, p.13, tradução nossa.
69
Id. Ibid., p. 12, tradução nossa.
70
Id. Ibid., p.14, tradução nossa.
71
Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.56.
primeiro passo ao igualitarismo universal entre os homens no momento em que a qualquer um
é atribuído o valor universal da dignidade.
Taylor identifica, ainda, na modernidade, na filosofia de Locke, uma intensificação
da idéia de controle da razão. Para o inglês, a mente constitui-se por intermédio de um feixe
de relações empíricas e causais de idéias simples. Deste modo, a percepção fornece o material
pelo qual a mente articulará as idéias e, conseqüentemente, a realidade. Todo o movimento
que rege esse pensamento decorre de uma atividade humana, portanto, a pessoa (como em
Descartes) é responsável pelo conhecimento e pela realidade a ser construída. Por isso, afirma
Taylor: “a teoria de Locke gera e também reflete um ideal de independência e auto-
responsabilidade, uma noção da razão como algo livre do costume estabelecido e da
autoridade local dominante.”
72
A radicalidade na idéia de sujeito desengajado do autor está em estabelecer os elos
causais internos como única fonte de certeza.
O sujeito que pode adotar esse tipo de postura radical de desprendimento para si
mesmo com vistas à reforma é o que chamo de self ´pontual`. Adotar essa postura é
identificar-se com o poder de objetificar e refazer e, por meio disso, distanciar-se de
todas as características particulares que são objetos de mudança potencial.
73
Isto significa que não há uma ordem externa, como em Platão, ou uma ordem interna,
como em Descartes, fonte de verdade. “Ela [ordem] tem de surgir por meio de uma conexão
estabelecida com um estado interior que, em si, não tem nenhum objeto intrínseco [como a
mente inata de Descartes relacionada a Deus].”
74
Locke enuncia um sujeito que, por estar
inclinado a hábitos e costumes, deve e pode reformá-los tão-somente porque não uma
ordem que dite o certo ou errado de nossas crenças. Por isso, podemos sopesar aquilo que
acreditamos sob um olhar calculista do melhor prazer, resultado, ou felicidade. Pode-se aqui
entender o ideal moral do utilitarismo na sua forma embrionária em Locke. Mesmo porque,
num mundo desencantado, os próprios hábitos e costumes não têm valor em si. Como o nome
afirma, tratam-se de hábitos que podem ser ou não ser.
Nossa essência não é descrita por aquilo que creditamos, e sim pela nossa capacidade
de poder constantemente elaborar e desconstruir crenças e costumes. Portanto, não temos um
horizonte pelo qual somos definidos. O resultado disso é a razão enquanto centro de controle
e, agora, de reformulação. Daí a importância de Locke para o iluminismo.
72
Id. Ibid., p.219.
73
Id. Ibid., p.223.
74
Id. Ibid., p.222.
O que provavelmente fez de Locke o grande mestre do Iluminismo foi sua
combinação destes dois fatores: apresentou uma descrição plausível da nova ciência
como conhecimento válido, mesclada com uma teoria de controle racional do self; e
associou as duas sob o ideal de auto-responsabilidade racional.
75
O desenvolvimento da idéia de natureza interior traz para a vida cotidiana, mundana,
o lugar da realidade. Se a realidade em Platão estava situada no mundo das Idéias, os
modernos afirmam os aspectos da vida cotidiana: mundo do trabalho, produção, vida familiar.
Segue daí uma mudança de hierarquias, pois se outrora a vida ociosa era superior, agora, a
partir de Bacon e do protestantismo, o trabalho (a produção) é não digno, como sua falta
constitui um estorvo à ordenação social. Conseqüentemente, afirma Taylor: “o foco do bem
viver está agora em algo de que todos podem participar e não em tipos de atividade a que
somente uns poucos ociosos podem fazer jus.”
76
Deste modo, a teoria não tem o propósito de apreender o cosmos, mas sim calcular
fins, direcionar o saber para trazer benesses à sociedade; daí o caráter utilitarista da técnica.
Os valores como honra, glória, que eram valores em si, independentes de sua finalidade,
adquirem um valor instrumental que subordina o bem à ordem política e ao trabalho.
Essa ética burguesa tem óbvias conseqüências niveladoras, e ninguém pode fechar
os olhos ao papel tremendamente importante que teve na constituição da sociedade
liberal moderna, por meio das revoluções fundamentais do século XVIII e
posteriores, com seus ideais de igualdade, seu senso de direito universal, sua ética do
trabalho e sua exaltação do amor sexual e da família.
77
O mal-estar cultural revelado ao fundo dessa perspectiva de sujeito é a de razão
instrumental
78
. Nesse sentido, a razão é um instrumento para a consecução de fins, segundo a
máxima eficácia para a obtenção da melhor produtividade.
Acreditamos que as decisões que deveriam ser submetidas a outros critérios não
sejam tomadas em termo de eficácia ou de uma relação entre custos e benefícios,
75
Id. Ibid., p.227.
76
Id. Ibid., p.277.
77
Id. Ibid., p.278.
78
Embora Taylor estabeleça um posicionamento crítico em relação à razão instrumental e à conseqüente
tecnicidade da natureza, o autor avista seu ponto positivo ao não se apoiar nem naqueles que censuram a
instrumentalidade enquanto lógica de dominação, nem nos que se posicionam de forma saudosista de modo a
criticarem por completo a evolução tecnológica. Nesse sentido, não precisamos necessariamente de uma
sociedade a mercê do controle tecnológico e burocrático, mas, ao mesmo tempo, a tecnologia proporcionou
enormes ganhos para a humanidade no sentido de melhorar a condição humana, na medida em que promoveu
bem-estar, organização social, aumento de produção e, conseqüentemente, melhor distribuição. Por isso, o autor
identifica na instrumentalidade um ideal de benevolência. “Atingimos hoje a idéia de uma solidariedade
universal, ao menos teoricamente, mesmo que ela não seja perfeita, e a aceitamos em nome de um
intervencionismo ativo à natureza [...] Esta benevolência ativa e universal está de acordo com o desenvolvimento
da razão instrumental.“ (Id. Grandeur et misère de la modernité. Op. cit., p.130-131, tradução nossa)
que os fins autônomos que deveriam clarear nossas vidas não sejam obscurecidos
pelo anseio crescente de aumentar a produtividade.
79
Segue daí que o pano de fundo que permeia nossas relações tem como mote um ideal
competitivo, bem como destrutivo e, assim, podemos entender que animais, a natureza, e
porquê o os seres humanos, são dados como objetos para nós e, deste modo, nossa relação
com eles será de dominação, sujeição, tendo por fim a maximização de interesses pessoais.
No campo político o resultado disso é uma visão atomista
80
de sujeito e sociedade,
endossada, sobretudo, pelas teorias contratualistas. Se outrora o consentimento da autoridade
política era dado pela comunidade, ponto pacífico nas intelecções políticas, agora, a própria
idéia de comunidade é alvo de discussão a respeito de sua legitimidade.
A mudança entre esses dois tipos de teoria contratual reflete uma mudança na
compreensão da condição moral do homem. Antes, as pessoas eram membros de
uma comunidade sem precisar dizê-lo. Não era algo que precisasse ser justificado
em relação a uma situação mais básica. Mas agora a teoria parte do indivíduo em si.
A participação numa comunidade com poder de decisão coletivo é, agora, algo que
precisa ser explicado pelo consentimento anterior do indivíduo [...] O povo origina-
se de átomos políticos.
81
Nesse sentido, o indivíduo passa a desempenhar um papel central na sociedade, pois
é a partir de sua legitimidade, enquanto ser autônomo, que a sociedade e as relações sociais
são construídas. A conseqüência disso é a teoria dos direitos naturais, que agrupa entre eles a
vida, a liberdade, e a propriedade. Isto significa que a sociedade será calculada na medida em
que possibilita a consecução desses fins. Predomina, aqui também, uma visão instrumental de
sociedade como um meio facilitador de fins. O aspecto relevante de discórdia nessa doutrina
está na defesa do não pertencimento natural à comunidade, dado que os direitos, por sua vez,
incondicionais e primeiros, estabelecem o fato de que a sociedade é um produto das vontades
individuais.
Um contraponto a esse sujeito de direitos pode ser visto na idéia de animal político,
visão formulada por Aristóteles, de sujeito referenciado à comunidade (polis), que não
79
Id. Ibid., p.16, tradução nossa.
80
“O termo atomismo é usado livremente para caracterizar as doutrinas teóricas do contratualismo as quais se
originaram no século XVII, e também para doutrinas sucessoras que podem não ter feito uso da noção de
contrato social, mas que herdaram uma visão da sociedade, como em algum senso, constituídas por indivíduos
em busca da realização de fins os quais seriam primeiramente individuais [...] O termo é também aplicado a
doutrinas contemporâneas que retomaram as doutrinas do contrato social, ou que tentam defender em algum
senso a prioridade dos indivíduos e seus direitos perante a sociedade, ou que apresentam uma visão puramente
instrumental da sociedade. (Id. Philosophy and the human sciences: Philosophical Papers II. Cambridge:
Cambridge University Press, 1985, p.187, tradução nossa)
81
Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.251.
garante a todos uma identidade como simboliza o bem pelo qual os cidadãos devem lutar.
Para Aristóteles, todas as associações visam a um bem, e a cidade (polis) é a comunidade
última, a finalidade, ou o bem supremo. É nela que se dá a realização do indivíduo, a
felicidade. Nesse propósito, a definição de homem vem acompanhada com o dever de
cidadania, pois a realização da essência humana se efetiva nas atividades que visam o bem
comum. Esta perspectiva, chamada de holista, representa também um modelo de sujeito com
o qual os comunitaristas, sobretudo, utilizam para se contraporem às teses liberais, próximas
ao atomismo social e político.
O agravante da forma atomista de compreender o sujeito está no fato de que as
próprias liberdades individuais, paradoxalmente legadas do próprio liberalismo, estão
ameaçadas. Um dos motivos se pelo fato de que uma sociedade regida pela razão
instrumental exerce um poder externo sobre tudo e todos, ou seja, a gica do mercado e da
produtividade acaba por manipular as ações dos indivíduos e, conseqüentemente, a ação
moral tendo em vista o bem coletivo. O autor constata também a perda de liberdade política,
isto é, de participação no que concerne à coisa (res) pública. Taylor faz menção a Tocqueville
por atentar a atomização da sociedade em detrimento do envolvimento coletivo.
Em uma sociedade formada por indivíduos ‘trancafiados na solidão de seu próprio
coração’, poucas pessoas desejarão participar ativamente da vida política. Elas irão
preferir permanecer isoladas a fim de satisfazer os prazeres da vida privada [...]
82
O desengajamento da vida pública abre espaço para a promoção de um governo
déspota, uma forma de “despotisme doux”, na expressão de Tocqueville. O governo, apesar de
manter a democracia e as liberdades individuais, exerce um poder tutelar sobre os indivíduos
que, sem uma articulação coletiva, se vêem isolados e impotentes em face dele. A perda de
liberdade política que resulta desse imobilismo político é, segundo Taylor, prejudicial à
democracia que se ameaçada por mecanismos de dominação presentes no próprio seio das
sociedades liberais.
Os mecanismos impessoais citados acima podem restringir nossa margem de
liberdade na sociedade, mas a perda de liberdade política significaria que nós não
poderíamos nem mesmo fazer as escolhas que nos cabem enquanto cidadãos, um
poder tutelar irresponsável as faria em nosso lugar.
83
82
Id. Ibid., p.20-21, tradução nossa.
83
Id. Ibid., p.22, tradução nossa.
O desapego com a vida política é o reflexo de uma visão liberal de que o objetivo do
indivíduo consiste na satisfação privada de seus desejos. Deste modo, o individualismo
promove um afastamento do outro, na medida em que ninguém depende de ninguém. E se
dependência, o interesse é meramente “instrumental” para a consecução dos fins privados do
sujeito.
Em suma, em meio às múltiplas fontes morais do self moderno um conjunto de
atributos que o autor define da seguinte forma:
É uma cultura individualista [...] valoriza a autonomia; atribui um papel importante à
auto-exploração, em particular do sentimento; e sua visão do bem viver em geral
implica envolvimento pessoal. Como conseqüência, em sua linguagem política, ela
formula as imunidades devidas às pessoas em termos de direitos subjetivos. Devido
à sua tendência igualitária, concebe esses direitos como universais.
84
O objetivo em oferecer tais modelos de self está, justamente, em apontar a fonte que
a modernidade e a contemporaneidade utilizaram para a construção de suas teorias. No
entanto, a própria modernidade construiu padrões morais e ideais de sujeito tão ricos quanto o
sujeito desprendido, mas que não foram ressaltados. É a tais padrões que Taylor apóia tanto
sua crítica à modernidade, quanto a elaboração de uma teoria que não obedeça a essa única
fonte atomista de sujeito. Por isso, o autor não visa construir sua teoria de modo a negar a
modernidade e resgatar plenamente, e de forma utópica, a antiguidade grega como modelo
teórico. Taylor não opta nem por uma linha desclassificatória dos ganhos morais e políticos da
modernidade como a liberdade individual e a igualdade jurídica, nem opta por uma linha
radicalmente crítica de viés comunitarista como a de MacIntyre
85
. Ao localizar sua concepção
de sujeito na modernidade, na idéia de sujeito expressivista, o autor irá retirar alguns valores,
sobretudo, o legado positivo da modernidade, importantes para a constituição da dimensão
moral do sujeito.
84
Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.396.
85
O filósofo comunitarista MacIntyre estabelece uma crítica à corrente liberal com destaque a autores como
Rawls, Dworkin, Nozick, por proporem uma análise de sujeito desenraizado da comunidade. O autor segue uma
linha neo-aristotélica e propõe a vida comunitária como condição para a integralidade da natureza humana. A
exemplo disso, Taylor afirma o seguinte numa entrevista a Arto Laitinen e Hartmut Rosa: “Alasdair passou por
uma série de fases e mudou sua direção, mas a principal diferença hoje resulta do fato de que ele é mais negativo
acerca da modernidade e tenta destacar o que a modernidade perdeu.“(LAITINEN, Arto; SMITH, Nicholas
(org.). Perspectives on the philosophy of Charles Taylor. Op. cit., p.181, tradução nossa).
2.2 O SELF EXPRESSIVISTA: UMA ALTERNATIVA AO PADRÃO HEGEMÔNICO DO
CONCEITO DE PESSOA
O expressivismo pode ser compreendido como uma corrente filosófica que veio em
conjunto com a reação do romantismo a alguns pontos da cultura iluminista. Seus principais
expoentes, como descrito no capítulo anterior, são os filósofos Herder, Hamman e Humboldt.
Essa corrente é a mesma descrita para a afirmação de uma linguagem expressivista em
oposição à designativa para a conceituação de sujeito engajado. Como visto no capitulo
anterior, é esse modelo de sujeito que torna a teoria de Taylor, em muitos aspectos,
dependente do legado do expressivismo.
O período romântico em questão representa para o autor não só um contraponto a
uma forma desengajada de descrever o sujeito, mas também uma fonte moral para a
construção de uma concepção de pessoa desvinculado a alguns desencontros presentes na
modernidade. Deste modo, pode-se compreender a tentativa do autor em resgatar, por outras
vias, aspectos positivos da modernidade e, assim, elaborar uma perspectiva de pessoa partindo
desse contexto moral.
No romantismo e expressivismo a natureza passa a ser uma fonte moral, localizada
na interioridade do sujeito, assim, diferentemente de um objeto de conhecimento e controle
visto na razão instrumental do sujeito desengajado, a natureza exigirá uma nova postura do
indivíduo. Taylor destaca que no século XVIII, isto é, dentro da própria modernidade,
Rousseau inaugura essa postura crítica à razão instrumental. Rousseau nega essa visão, tida
como ingênua, de certezas de nossa alma, o que leva o filósofo a se afastar de uma visão
calculista da razão, impetrada pelos iluministas anteriores, e passar a observar aquilo que
temos de mais natural enquanto fonte incorruptível pelos homens.“Rousseau não pode aceitar
a noção naturalista do iluminismo de que o que precisamos para nos tornar melhores é de
mais razão, mais cultura, mais lumières.”
86
O filósofo francês apela à verdade que possuímos
dentro de nós, à natureza que ecoa em nossa alma, e que é obscurecida por uma cultura que
nos afasta de nós mesmos. Este inevitável afastamento ocorre, pois vivemos em função da
sociedade, daquilo que os outros pensam e perdemos o contato conosco mesmos, isto é, com
nossa boa natureza.
86
Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit, p.459.
A natureza percorre o mundo e a interioridade humana, por conseguinte, articular
esses impulsos naturais é atingir a unidade entre indivíduo e natureza. Para essa integração
com a natureza, a postura do sujeito não pode ser a do sujeito do conhecimento, aquele que
define, observa o mundo como um objeto de conhecimento. Os impulsos naturais demandam
uma articulação, e articular para Taylor, pautado pelo expressivismo, é tornar manifesto, a
articulação a vida, as coisas passam a ser representadas de acordo com a forma como são
manifestadas. Nesse caso, articulação passa a ser dar voz à natureza, dar voz à vida interior.
Dar atenção à voz interior da natureza é direcionar-se ao bem e, conseqüentemente, à
felicidade. “A natureza aparece como um reservatório do bem, do desejo inocente ou da
benevolência e do amor ao bem. Na postura de desprendimento, estamos fora de sintonia com
ela, separados dela; não podemos recuperar o contato com ela.”
87
A realização moral do
sujeito passa a se encontrar na concordância com os impulsos naturais, com seus sentimentos
mais puros. Taylor ressalta uma ética associada a sentimentos, apoiada nessa visão da
natureza como fonte moral. “É por meio de nossos sentimentos que chegamos às verdades
morais mais profundas e, de fato, cósmicas.”
88
Segundo Herder, os sentimentos são partes no
conhecimento. “Cognição e sensação estão conosco, criaturas unidas, interconectados; temos
cognição somente por intermédio da sensação, nossa sensação é sempre acompanhada com
um tipo de cognição.”
89
Em decorrência dessa mudança de perspectiva cria-se uma relação
forte entre ética e estética na perspectiva da filosofia da natureza como fonte moral. “Agora
que a ética passou a ser definida em parte de acordo com sentimentos, fica mais fácil camuflar
linhas divisórias.”
90
Isso porque, a partir do século XVIII, com Kant, Baumgarten, abade de
Bos, a experiência estética passa a se focar no sentimento evocado pelo indivíduo face a obra
de arte. Diferentemente da perspectiva da arte como mimese, ou seja, imitação da realidade, a
partir da cultura expressivista a arte reflete a idéia de que ela é uma manifestação, uma
expressão, sempre traz algo original, decorre do poder de imaginação e criação do homem. A
mesma postura que o artista tem com o seu objeto de criação, ou seja, o de manifestá-lo de
forma original, segundo sua interpretação da natureza, ou melhor, por meio de sua auto-
interpretação, pois a natureza está em sua interioridade, é a postura do conhecimento humano.
Não fazemos, a partir do romantismo e expressivismo, uma leitura neutra do mundo, a mesma
87
Id. Ibid., p.475.
88
Id. Ibid., p.476.
89
HERDER, Johann G. Philosophical writings. Tradução de Michael N. Forster. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002, p.178, tradução nossa.
90
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit, p.479.
de um observador à parte do mundo, no caso, estabelecemos a partir de nossas interpretações
uma leitura original, parcial, que associa sentimento a razão.
uma ligação entre essa perspectiva do conhecimento, a criação artística, com a
própria linguagem adequada à forma de interpretação do mundo. Como vimos, Taylor se
apropria da linguagem expressivista, aquela que relaciona ao objeto tomado sentimentos e
interpretação, diferente de uma linguagem designativista, que relaciona objetos a designações,
nomeações. A postura articuladora do indivíduo e artista demanda que ele estabeleça uma
interpretação do mundo. “O poeta romântico tem de articular uma visão original do cosmo.”
91
Essa visão retrata uma manifestação da natureza, que, segundo Taylor, às vezes sequer
encontra palavras referenciadas. “Os próprios poemas estão encontrando as palavras para
nós. Nessa ‘linguagem mais sutil’ - a expressão é emprestada de Shelley algo é definido e
criado, além de ser manifestado.”
92
A natureza representa, nesse caso, um horizonte constitutivo do qual Taylor
menciona como pano de fundo para nossas avaliações e para a afirmação de nossa identidade.
Se, para os antigos, imersos numa dimensão holística de compreender o homem, a natureza
obedecia a uma ordem em meio ao logos ôntico, na modernidade, sobretudo, para os filósofos
adeptos do naturalismo, ela se manifesta na vida presente, ao mesmo tempo em que é objeto
para o seu domínio instrumental. No entanto, o romantismo enuncia um aspecto distinto de
natureza enquanto verdade que se encontra no interior, o que expõe um contraponto à visão
instrumental de natureza. Se as filosofias do desprendimento se apegam a esta visão
instrumental, os românticos buscam com a natureza uma integração na medida em que a
observam na sua interioridade em consecução com a harmonia do mundo.
[...] as duas idéias básicas que vemos como recorrentes de maneiras diversas, de
Goethe aos românticos e destes a Hegel, são: em primeiro lugar, que podemos
realmente conhecer a natureza porque temos a mesma substância comum, que, na
verdade, conhecemos propriamente a natureza quando tentamos estar em
comunhão com ela, e não quando tentamos dominá-la ou disseca-la, no intuito de
sujeitá-la às categorias do entendimento analítico; e, em segundo lugar, que
conhecemos a natureza porque estamos, num certo sentido, em contato com aquilo
que a formou, a força espiritual que se expressa na natureza.
93
Deste modo, a visão calculista de uma natureza externa nega a condição humana
dotada da mesma natureza na sua interioridade. A tensão entre as divergentes visões acerca da
natureza, na forma instrumental e expressiva, é que marcarão, segundo Taylor, os traços da
91
Id. Ibid., p.489.
92
Id. Ibid., p.489.
93
Id. Hegel e a sociedade moderna. Op. cit., p.21-22.
cultura moderna. De um lado o desprendimento entre razão e natureza, e a conseqüente
instrumentalização da mesma, e por outro lado, uma reunificação entre razão e natureza, ou
razão e sentimentos.
2.2.1 A individualidade na perspectiva expressivista
A virada em direção à natureza interior marca a autenticidade, um outro aspecto
moral importante para a modernidade. A autenticidade do sujeito está descrita numa maneira
própria e sincera de ser que resulta na constituição moral do sujeito, por isso, sua relação com
o individualidade. Herder afirma que a própria manifestação interior da natureza, e a
conseqüente interpretação (articulação) dessa, revela a interioridade e, por isso, a vontade e a
auto-realização que estão presentes na idéia de integração entre sujeito e natureza.
No expressivismo o sujeito adquire uma nova condição na medida em que sua
manifestação através de uma maneira particular de expressar seus próprios sentimentos denota
sua originalidade. “O expressivismo foi a base de uma individuação nova e mais completa.
Essa é a idéia que se desenvolve no fim do século XVIII: cada indivíduo é diferente e
original, e essa originalidade determina como ele deve viver.”
94
Herder afirma que cada um
de nós tem uma forma particular de ser humano: cada pessoa possui sua própria ‘medida’
95
Nesse sentido, a identidade do sujeito é fruto de uma construção interpretativa dos seus
próprios sentimentos.
Descobrimos o que devemos ser no nosso modo de vida, dando forma pelo nosso
discurso e pelos atos ao que é original em nós. A idéia de que a revelação se
encontra na expressão é o que eu procuro ilustrar ao falar do 'expressionismo' da
idéia de indivíduo.
96
Ao adotar o expressivismo de Herder, Taylor com sua concepção de self-interpreting
animals, submete a identidade a um projeto de constante reformulação, de acordo com as
interpretações dos significados e sentimentos desenvolvidos numa comunidade.
O plano teórico desenvolvido por Herder faz parte do mesmo pano de fundo da
modernidade, a qual descreveu uma moral individualista impressa nas configurações do
sujeito. Isso corrobora com a tese de Taylor de que aspectos positivos e negativos na
modernidade. Ocorre que a fonte moral, no caso a natureza, encontra-se de um lado, pelos
naturalistas, como objeto de conhecimento e manipulação, e, do outro, pelos expressivistas,
94
Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., 481.
95
Id. Grandeur et misère de la modernité. Op. cit., p.43, tradução nossa.
96
Id. Ibid., p.81, tradução nossa.
trata-se de uma fonte originária, quase que mística, a qual devemos recorrer para encontrar
nossa verdadeira individualidade.
É verdade que o individualismo manifesto na visão de desprendimento acaba por
levar a um desapego do bem comum, ou a um projeto comum. Apesar dessa crítica, o autor
ainda assim credita um valor moral à idealização moderna do individuo.
Esse ponto manifesta a visão crítica e, ao mesmo tempo, defensora das qualidades
morais no modelo de sujeito do expressivismo. Taylor não manifesta nem uma defesa cega da
individualidade no sentido de trazer somente benesses à vida social; nem uma crítica que
identifica a sociedade individualista como uma sociedade caótica, ou mesmo o individualismo
como um erro. Identifica, antes, na autenticidade um plano moral, sob o qual “precisamos de
um trabalho de recuperação graças ao qual esse ideal poderia nos ajudar a endereçar nossas
condutas.”
97
Segundo o filósofo, não como pensar autenticidade em detrimento do horizonte
constitutivo.
Mais particularmente, adoraria mostrar que os modos de vida que visam ao
desenvolvimento de si, independente (a) das exigências de nossas relações com os
outros ou (b) das exigências de todo tipo que emanam de realidades superiores ou
simplesmente das aspirações ou desejos humanos, são contra-produtivos e eles
destroem as condições mesmas de autenticidade.
98
A autenticidade, antes de ser uma constatação científica proveniente de uma forma
desengajada de se pensar o sujeito, é um valor e, na concepção de Taylor, um valor comum,
difundido e apreciado pela comunidade Ocidental. Nesse sentido, o autor toma um outro viés
acerca do individualidade moderna, de tal modo que mostra uma compatibilidade entre o
horizonte moral constitutivo para nossa identidade e o individualidade sob a forma de
autenticidade. Ao mesmo tempo, no momento em que o autor aproxima a autenticidade ao
padrão do Romantismo e Expressivismo, a possibilidade de se projetar um outro rumo ao
individualidade não condizente com os aspectos negativos, como o egocentrismo, narcisismo
e desapego ao bem comum.
Sustento que deveríamos considerar que essa cultura é a expressão parcial de uma
aspiração moral, o ideal de autenticidade, mas que esse ideal não justifica esses
modos egocêntricos. Esses aparecem, antes, à luz desse ideal, como modos
aberrantes e fúteis.
99
97
Id. Ibid., p.38, tradução nossa.
98
Id. Ibid., p.51-52, tradução nossa.
99
Id. Ibid., p.73, tradução nossa.
Desse modo, afirma-se no concepção de pessoa a liberdade individual, mas não o
desapego ao horizonte moral e político, mesmo porque esta liberdade constitui um ideal de
cultura que está fundamentado em valores cultuados por uma determinada comunidade.
O que está em jogo nessa forma de compreender o individualidade, seja enquanto
uma verdade referente a um contexto ou uma verdade auto-referente; é a forma de liberdade
adequada à concepção de pessoa. Nesse caso, há, de um lado, uma liberdade de vertente
hobbesiana, intitulada de liberdade negativa por I. Berlin
100
, que significa o cumprimento da
liberdade na medida em que o sujeito não possui obstáculos, entraves, sejam esses o Estado
(pelas leis) ou de outrem. Por outro lado, a chamada liberdade positiva que se apóia na idéia
de autolegislação, do autogoverno, e, deste modo, leva a idéia do “sou livre”, a exemplo de
Kant, quando obedeço às regras cunhadas pela minha razão.
Em meio a essa discussão que se tornou clássica na filosofia contemporânea entre
liberdade negativa e positiva, Taylor aponta uma saída que destoa em grande parte dessa
tradição na forma de compreender o tema. O autor obedecerá em seu plano teórico ao ideal de
autenticidade, valorizado pelo expressivismo, e juntamente com isso, se apoiará na sua idéia
de sujeito que se auto-interpreta, e interpreta valores cunhados numa cultura.
Em seu artigo What’s wrong with negative liberty
101
afirma ser apressada a tese da
liberdade negativa que impõe os obstáculos como as únicas barreiras para a nossa liberdade.
“Essa visão não terá relações com outros obstáculos menos imediatos, mas obviamente
restritos à liberdade, por exemplo, falta de conhecimento, falsa consciência, repressão, ou
outros aspectos internos desse tipo.”
102
Taylor parte do pressuposto de que os indivíduos
almejam acima de tudo a auto-realização.
Não podemos dizer que alguém é livre, na perspectiva da auto-realização, se ele é
totalmente irrealizado, ou, ainda, se ele seja inconsciente de seu potencial, bem
como se realizá-lo não fosse sequer uma questão para ele, ou se ele está paralisado
pelo medo de quebrar alguma norma a qual ele tenha internalizado, mas que não o
reflete autenticamente.
103
O exercício de liberdade tomado nesse propósito está condizente com um
direcionamento que o indivíduo deve fazer tendo em vista a realização pessoal. Assim,
100
Berlin descreveu em sua obra Os quatro ensaios sobre a liberdade uma divisão que ficou conhecida na
contemporaneidade entre duas formas de liberdade: a positiva e negativa.
101
Id. Philosophy and the human sciences: Philosophical Papers II. Op. cit.
102
Id. Ibid., p.212, tradução nossa.
103
Id. Ibid., p.213, tradução nossa.
liberdade não pode ser tomada tão simplesmente na idéia de cumprimento de quaisquer ações,
de modo que basta que não haja impedimento ou empecilho para ser livre. É preciso ver,
antes, o que motiva tais ações, qual o objetivo de se buscar realizar ações, e ver acima de
tudo, se elas estão condizentes com um planejamento que diz respeito ao ideal de vida
almejado pelo indivíduo. Isso significa que precisamos fazer uma auto-interpretação de
nossos valores e observar antes de tudo, aqueles que dizem respeito a nossa essência, ou nosso
ideal de vida, os quais são intitulados pelo autor como valores fortes de uma cultura. O auto-
entendimento que o indivíduo faz dirá seu posicionamento em relação à sua auto-realização
ou não. Portanto, mesmo que o sujeito esteja livre de obstáculos, o fato de ele estar distante de
seus ideais, ou estar confuso quanto a eles, ou mesmo ir contra seus ideais, faz com que esse
sujeito esteja longe de sua auto-realização, e por isso, não seja livre no sentido empregado por
Taylor. Assim, os obstáculos não são somente externos, mas, sobretudo, internos, ajustados
mediante o auto-entendimento dos valores e do ideal de vida para que, depois, seja avaliada a
ação, agora condizente com o valor de sua motivação.
O problema que a liberdade negativa na vertente hobbesiana parece propor é uma
avaliação das nossas ações tomando todas em um mesmo patamar de valor, isto é, não há uma
diferenciação das ações que nos são caras, daquelas que são triviais, basta que hajam
obstáculos para nossas ações, para que assim signifiquem uma ausência de liberdade.
Então, podemos dizer que minha liberdade é restringida se a autoridade local instala
um novo semáforo em um cruzamento perto da minha casa; assim, onde antes eu
podia atravessar sem problemas, e evitando colisão com outros carros, agora tenho
que esperar até que o sinal esteja verde. Numa perspectiva filosófica, podemos
afirmar isso como uma restrição à liberdade, mas não numa discussão política
séria.
104
O autor identifica problemas também na liberdade positiva. O exercício da liberdade
tomada de forma coletiva pode significar um cerceamento do coletivo à individualidade, e,
portanto, à autenticidade do sujeito. Aqui, o autor se aproxima de uma sociedade liberal no
sentido que propõe
[...] uma visão que valor à auto-realização, e aceita que ela possa falhar por
razões internas, mas que acredita que nenhum guia pode provir, a princípio, de uma
autoridade social, em respeito à diversidade e originalidade humana, e mantém que a
tentativa de impor tal guia irá destruir outras condições necessárias de liberdade.
105
104
Id. Ibid., p.218, tradução nossa.
105
Id. Ibid., p.217, tradução nossa.
2.3 IMPLICAÇÕES ÉTICAS DECORRENTES DO SUJEITO MODERNO
Charles Taylor tece algumas críticas com relação ao estado da ética moderna. Taylor
utiliza seus argumentos em prol de um sujeito engajado pela linguagem e corpo, e opta assim
pelos valores que melhor acompanham a formulação dessa perspectiva de sujeito, os quais são
observados na modernidade pelo Romantismo e Expressivismo. Partindo dessa perspectiva
engajada de sujeito, Taylor se esforça por constituir uma noção substantiva de racionalidade
moral em oposição a uma razão procedimental das éticas formais. Esta perspectiva ética
decorre de um pano de fundo naturalista (cientificista). Nesse caso, Taylor se opõe a uma
razão estratégica, que emprega procedimentos a fim de avaliar a ação em concordância com
um bem universal.
Taylor buscará compor uma ética que vise o bem, o desejável para a edificação da
vida humana. Partindo de uma racionalidade moral substancial, observam-se os conteúdos, os
valores, que compõem a razão e condicionam a própria avaliação da ação moral do sujeito.
Isto explica o motivo pelo qual a pesquisa retratou a forma como Taylor concebe os valores
que dão conteúdo à identidade moderna. Observar esses valores é compreender a forma como
o sujeito moderno se porta no espaço moral.
2.3.1 O naturalismo na moral
Taylor crê que possuímos um conjunto de exigências morais com um forte teor
imperativo e instintivo que devem ser mantidos. No entanto, a justificativa deles se distancia
das éticas formais como a kantiana. O autor julga determinados valores como o respeito à
vida, a integridade e dignidade do outro, além do bem-estar, como inerentes à natureza
humana. “A cultura e a criação podem ajudar a definir as fronteiras dos ‘outros’ relevantes,
mas não parecem criar a reação básica em si.”
106
Isto significa que, mesmo aquelas sociedades
que corrompem tais preceitos morais reconhecem-nas intuitivamente enquanto constitutivas
da moral humana. Ocorre que por um capricho de articulação, ou melhor, por uma
interpretação, pode-se alterar os detentores de tais direitos, isto é, pode-se pensar que os
106
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.17.
nazistas, por exemplo, creditavam tais preceitos a todos os homens (universal); no entanto, os
judeus e outros perseguidos não eram considerados humanos.
O ponto de partida óbvio é que os bens de que tenho falado existem para nós por
meio de alguma articulação. As compreensões deveras distintas do bem que vemos
em diferentes culturas são o correlativo das diferentes linguagens que se
desenvolveram nessas culturas.
107
A citação do fator articulação
108
não fora dada ao acaso. O propósito de Taylor é
justamente de compreender a moral dependente da articulação do sujeito. Essa ação, no caso,
interpretativa, é direcionada à chamada ontologia moral, composta pelos valores impressos no
sujeito e que são relacionados à forma como o sujeito se vê, constrói suas relações, sentido
às suas ações.
Portanto, nossas reações morais nesse domínio m, por assim dizer, duas facetas.
De um lado, são quase como instintos, comparáveis a nosso amor por doces, nossa
aversão a substâncias nauseantes ou nosso medo de cair; do outro, parecem envolver
afirmações, implícitas ou explícitas, sobre a natureza e condição dos seres humanos.
Nesta segunda perspectiva, uma reação moral configura-se como uma aceitação,
uma afirmação, de dada ontologia do humano.
109
Nesse sentido, a reação moral obedece, por um lado, a uma fonte quase que instintiva
impressa na natureza humana, e, por outro lado, é moldável segundo algumas variáveis, entre
elas a cultura e a forma do sujeito se conceber nela; no entanto, em ambos os casos os
preceitos morais dependem de um sujeito, de sua auto-interpretação. Ora, para o entendimento
disso é preciso uma atenção ao contraponto desse pensamento que toma corpo nas éticas que
privilegiam uma unidade dos bens, ou melhor, negam a diversidade dos bens na sociedade.
Elas tomam a clareza um pouco da maneira das teorias científicas. Elas mostram que
uma vasta gama de intuições morais e sentimentos de obrigação são modos de
realização de um objetivo único, como a maior felicidade para todos, ou que
respondem a um único critério, como a possibilidade de universalizar a máxima da
ação.
110
107
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.125.
108
A palavra articulação tem um sentido forte na teoria de Taylor, pois, para o autor, a articulação representa a
atividade que vida às configurações morais e aos valores que passam despercebidos na consciência das
pessoas e vêm à luz em momentos de crise, ou seja, quando é preciso dar razões a atitudes ou escolhas morais.
Na introdução à obra “La liberté des modernes”, De Lara chama a atenção para o fato de que articular “não se
trata somente de designar um objeto, mas de revelá-lo, de desdobrá-lo, de tornar mais visível aquilo que não
era.” (DE LARA, Philippe (org). La Liberté des modernes. Paris: PUF, 1997, p.5, tradução nossa).
109
Id. Ibid., p.18.
110
Id. Charles Taylor et l’interprétation de l’identité moderne. Op. cit., p.287, tradução nossa.
Taylor expõe dessa forma sua crítica à ética utilitarista, no primeiro caso, e à ética
kantiana e suas inspirações na contemporaneidade, no segundo caso. Para essas éticas, que
são inspiradas pelo pano de fundo teórico da ciência natural moderna, o fator ontológico é
deixado de lado nas discussões acerca da moral.
Há, a meu ver, muita supressão motivada de ontologia moral entre nossos
contemporâneos, em parte porque a natureza pluralista da sociedade moderna torna
mais fácil viver dessa maneira, mas também por causa do grande peso da
epistemologia moderna (como ocorre com os naturalistas acima mencionados) [...]
111
Para as éticas de fundo naturalista tratamos todas as reações morais como efeitos
semelhantes a um efeito orgânico, como uma náusea, dor de cabeça. Isto significa que os
preceitos morais são objetos de conhecimento, assim como qualquer outro objeto, e pelo
padrão científico devem ser analisados a partir de critérios neutros e universais, da mesma
forma como se faz com qualquer outro objeto. Essa tradição na forma de pensar a moral se faz
entender a partir do modo como é tomado o agente: de forma abstrata, enquanto entidade
universal.
Porém, certas coisas geralmente julgadas verdadeiras acerca de objetos do estudo
científico que não se aplicam ao self. Para ver os obstáculos conceituais aqui
presentes, seria útil enumerar quatros desses pontos. 1. O objeto de estudo deve ser
tomado de modo ‘absoluto’, quer dizer, não no sentido que tem para nós ou para
qualquer outro sujeito, mas tal como é por si mesmo (‘objetivamente’). 2. O objeto é
o que é, independentemente de quaisquer descrições ou interpretações dele
oferecidas por qualquer sujeito. 3. O objeto pode, em princípio, ser apreendido numa
descrição explícita. 4. O objeto pode, em princípio, ser descrito sem referência ao
ambiente que o cerca.
112
A partir dessa maneira de se compreender o sujeito, propriedades antropocêntricas
são identificadas nele. Isso significa que se tem um modelo de sujeito, agora, em termos
absolutos, ou seja, identifica-se um eu universal. Para Taylor, tomar o sujeito a partir de uma
investigação científica, da mesma forma como se procede com um objeto, é perder os valores
qualitativos atribuídos à pessoa decorrentes da interpretação do sujeito. De um sujeito que se
auto-interpreta e que depende de um pano de fundo lingüístico que, por sua vez, toma valores
situados numa comunidade. “Parece-me, então, que essa ambição de seguir a ciência natural,
e evitar as propriedades antropocêntricas, tem sido uma importante motivação do
representacionismo”.
113
Uma conseqüência direta à moral está na definição estrita de seu
conteúdo a partir do modelo de sujeito com o qual cientificamente se trabalha. Isso resultará
111
Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit.,p.23.
112
Id. Ibid., p.51.
113
Id. Human Agency and Language: Philosophical Pappers 1. Op. cit., p.109, tradução nossa.
em valores universais, deduzidos procedimentalmente, pois o sujeito é tomado dessa forma.
Em oposição às idéias da filosofia do desprendimento, o filósofo canadense esboça a
sua concepção de pessoa no que concerne à dimensão moral. Se no capítulo anterior foi
tratada a idéia de sujeito tomado de forma representacional, desengajado (atomista) em
oposição a um sujeito corporificado, engajado (holista), neste capítulo, o sujeito assim
pensado serve, também, de base para a edificação de um conceito de pessoa moral.
Podemos definir um ideal cultural proposto pela modernidade como constituindo a
identidade moral do sujeito moderno. Nesse sentido, a pessoa é desprovida de horizonte
constitutivo, ela o instrumentaliza, domina-o, encontra em si mesma as fontes para a
elaboração de um ideal moral. O sujeito, a partir da modernidade, é tomado como átomo,
encontra o sentido da ação em si mesmo, da mesma forma que não necessita do seu meio para
a elaboração de suas finalidades, ou melhor, o meio não participa dos planos do sujeito
individualizado. Por fim, a norma idealizada a tal sociedade de indivíduos atomizados busca
privilegiar o desenvolvimento individual, daí uma maior liberdade pautada, por sua vez, na
ausência de cerceamento (a chamada liberdade negativa de Berlin).
Neste modelo de pessoa, os valores decorrentes da interpretação do sujeito e de sua
comunidade são reduzidos e, portanto, o que é ausente na perspectiva naturalista é o
reconhecimento da articulação ontológica, do pano de fundo que fornece inteligibilidade aos
preceitos morais. Isso o significa que o autor seja contrário à resultante moral elaborada a
partir da descrição de um agente de forma naturalista. Taylor não nega a possibilidade de
escolher fins dos agentes, nem o respeito mútuo que devemos. Ocorre que o autor afirma-os a
partir do pano de fundo que articula nossas reações morais. Nesse sentido, nossas escolhas
obedecem a um horizonte de possibilidades cunhadas pela comunidade e que se manifestam
na linguagem e expressões a qual interpretamos, e está mais condizente com um outro modelo
de pessoa que será descrito na seqüência.
2.3.2 O agente e as avaliações fortes
O modelo de pessoa que Taylor propõe afirma que os agentes são entendidos como
detentores de propriedades qualitativas, e que agem imbuídos dessa essência para avaliar a
realidade. Nesse modelo as coisas que cercam o sujeito são significativas, por isso, o agente
as responde. “Dizer que as coisas importam para os agentes significa dizer que podemos
atribuir propósitos, desejos, aversões a eles num sentido forte e original.”
114
Este sentido de
atribuição de qualidades fortes ao sujeito é o que marca um primeiro momento da
característica do modelo de pessoa com a qual Taylor trabalha, e que está presente na idéia de
sujeito expressivista. Assim, o sujeito não é definido pelo fato de deter representações do
mundo conscientes. “Isso não é mais visto em termos de consciência, mas, antes, em termos
de concernimento em si mesmo [mattering itself]. Um agente pode ser um respondente, pois
as coisas concernem a ele de um modo original.”
115
Essa idéia de sentido original ou forte do sujeito está presente na idéia de avaliações
fortes (strong-evaluation) ou desejos de segunda ordem
116
, as quais Taylor atribui serem
pertencentes à natureza do ser, ou seja, fatores ontológicos. Este ponto representa uma
descrição da qualidade do agente humano. “[...] o que é distinto no ser humano é o poder de
avaliar nosso desejo, notar alguns como desejáveis e outros indesejáveis.”
117
Isto significa que
alguns animais somente desejam (primeira ordem) sem uma reflexão sobre o valor do desejo,
o ser humano avalia seus desejos, sopesa-os, com intuito de qualificá-los como valiosos ou
não e, assim, hierarquiza-os. Deste modo, o autor expande a idéia de animais interpretativos
para animais que avaliam, e melhor, avaliam suas próprias avaliações. Logo, não uma
escolha cega em relação aos nossos fins.
No primeiro caso, o qual podemos chamar avaliação fraca [desejo de primeira
ordem], tem referência com resultados; no segundo [segunda ordem], avaliação
forte, com a qualidade de nossa motivação. No entanto, colocar desta forma é um
pouco apressado. O que é importante é que a avaliação forte esta referenciada a
valores qualitativos de diferentes desejos.
118
Deste modo, qualificamos nossos desejos como fortes à luz de bens que são valiosos
para a comunidade e para o modo de vida que desejamos seguir. Atribuímos, a eles, então,
critérios valorativos, como o caráter de serem imbuídos de coragem, nobreza, profundidade;
ou, ao contrário, superficialidade, fragmentação. Nesse sentido, não estabelecemos uma
avaliação neutra do mundo, pois nossas concepções e, portanto, os objetos, são carregados de
aspectos emotivos fortes ou fracos. Isto significa que, nesse caso, precedem as nossas
escolhas motivações que possuem um valor expressivo para nós, e que são identificados por
114
Id. Ibid., p.99, tradução nossa.
115
Id. Ibid., p.99, tradução nossa.
116
Taylor se apóia para a definição de agente humano nas idéias de Harry Frankfurt, cuja definição de pessoa é a
de ser detentora de desejos de primeira e segunda ordem. Na realidade, o autor subjuga os desejos de primeira
ordem como comuns em muitos animais, de modo que a natureza humana é concebida por deter desejos de
segunda ordem.
117
TAYLOR, Charles. Human Agency and Language: Philosophical Pappers I. Op. cit., p.16, tradução nossa.
118
Id. Ibid., p.16, tradução nossa.
meio de nossa natureza interpretativa. Portanto, ser uma pessoa, nesse sentido qualitativo,
significa ser sensível a tais interpretações, o que não ocorre com os animais.
As significações que circundam nossas avaliações são, por sua vez, interpretadas de
modo diferente pela cultura científica. Não obstante serem elas interpretadas de forma neutra,
são avaliadas também de acordo com um critério fisiológico. As cargas emotivas dos
significados obedecem aos critérios que proporcionam prazer ou dor; ou mesmo que ameaçam
a vida humana ou que trazem saúde. Nesse caso, uma redução acerca da natureza humana.
Ora, reduzir a natureza humana a essa lógica fisiológica significa ignorar aspectos emotivos
de nossa condição humana como vergonha, dignidade, culpa, e que são provenientes de
interpretações.
Na avaliação fraca, as escolhas são definidas tendo em vista o desejo pessoal sem
que haja um valor significativo julgado na escolha. Ao se falar de destituição de valores no
que concernce às escolhas, o autor remete a questão ao viés ético do utilitarismo clássico.
A meta dessa filosofia era precisamente rejeitar todas as distinções qualitativas e
conceber todos os objetivos humanos como estando em pé de igualdade, suscetíveis,
por conseguinte, de quantificação e cálculo comum de acordo com alguma ‘moeda
comum.
119
Diferentemente do utilitarismo, Taylor pensa que as escolhas estão imbuídas de um
aspecto qualitativo, embora hajam escolhas referenciadas a avaliações fracas, que tratam de
meros casos de preferência. No entanto, isso não significa que qualificar de forma fraca nos
torna mais afastados da condição humana.
fins ou bens que são dignos ou desejáveis de uma maneira que não pode ser
medida de acordo com os mesmos padrões que nossos fins, bens, desirabilia. Eles
são não mais desejáveis no mesmo sentido, porém num grau mais elevado do
que alguns desses bens comuns. Devido a seu caráter especial, merecem nossa
reverência, respeito ou admiração.
120
Avaliação forte tem, então, sua distinção no aspecto de ser motivada por algum valor
que contraste e tenha qualidades fortes para uma comunidade. Na avaliação fraca o que
motiva é um desejo contingente, uma vez que a escolha de uma ou outra opção revela apenas
uma mera opção de desejo. Na avaliação forte, o valor qualifica e influi no desejo, sendo que
o ato pode até mesmo ser adverso à vontade pessoal, pois a motivação do ato influencia na
decisão, e a mesma é qualificada tendo em vista o valor da motivação. Como exemplo, comer
119
Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.39.
120
Id. Ibid., p.35.
ou não carne pode ser uma escolha minha, algo banal, escolha fraca, mas pode ser também
uma escolha forte, na medida em que sou um vegano
121
, ou seja, na medida em que a escolha
de não comer carne passa a obedecer a um plano forte de valores, diz respeito à minha forma
de vida, se como entro em contradição com meus próprios valores. Neste caso, não comer
carne é uma escolha forte. A avaliação forte não é, portanto, fundamentada pelo desejo
pessoal, e sim pelo valor que a motiva. “Motivações ou desejos não contam somente em
virtude da atração à sua consumação, mas também em virtude do tipo de vida e sujeito a que
esses desejos propriamente pertencem.”
122
Ambos os tipos de avaliação têm como exercício a
qualificação de atos. Contudo, a avaliação forte tem como diferencial o aspecto de
profundidade na qual o ato é avaliado. Os valores designados por um aspecto qualitativo forte
são múltiplos e divergentes quanto a sociedades e indivíduos diferentes. Por isso, algumas
dessas visões são incomensuráveis entre si, dependendo de cada agente e, que, também, não
podem ser quantificadas. Culturas diferentes promovem escolhas e qualificações diversas. Isto
remete ao horizonte lingüístico que possui uma carga emotiva da qual cada sujeito e
comunidade interpreta ser mais importante para si.
Com a avaliação forte, contudo, pode haver e freqüentementeuma pluralidade de
formas de prever minha situação, e a escolha pode não ser somente entre o que é
claramente o mais forte e fraco, mas entre duas incomensuráveis formas de olhar
essa escolha.
123
Embora haja uma característica mais comunitária da qualidade da ação, Taylor
destaca a importância da responsabilidade que cada um tem no que concerne à opção tomada
na avaliação. Não somos indiferentes àquilo que avaliamos. Por isso, as implicações das
decisões que cada um toma são expressivas para a cultura e o ambiente social no qual
vivemos. Isso significa que nossas avaliações não dizem respeito somente a nós mesmos, elas
são configuradas pela cultura da qual nos ambientamos e, da mesma forma, trazem
implicações a este meio, resultando responsabilidades pessoais e comunitárias.
2.3.3 Implicações éticas ao modelo expressivista de pessoa
Ao recorrer à nossa característica de seres dotados de qualificações fortes, Taylor
121
O vegano, associado ao estilo de vida Vegan, é o indivíduo que motivado por convicções éticas não consome
produtos de origem animal, nem mesmo aceita a exploração dos mesmos.
122
TAYLOR, Charles. Human Agency and Language: Philosophical Pappers I. Op. cit., p.25, tradução nossa.
123
Id. Ibid., p.16, tradução nossa.
enuncia nossa relação com os bens enquanto horizontes de possibilidades de ação moral. Os
indivíduos agem numa sociedade de forma a hierarquizar alguns bens que pensam ser
fundamentais para si e para a sociedade. Deste modo, pode-se, por exemplo, eleger a justiça
como matriz suprema de qualificação, ou mesmo, a bondade, ou nossa devoção a Deus.
As teorias morais adotam uma característica comum de julgamento partindo de um
bem hierarquicamente superior e deduzem os valores a partir de princípios formais puros.
Neste caso, os valores de estima forte e fraco não compõem os preceitos éticos, mesmo
porque, estes são apresentados, muitas vezes, de forma neutra, alheios a qualquer qualificação
humana. O que está em jogo nessa discussão é a primazia do modelo universalizante da ética,
do qual Kant se mostra como principal expoente. Para este filósofo, o agir humano obedece a
regras claras e universais, intituladas de imperativos, provenientes de deduções extraídas da
razão.
Na teoria kantiana, considerações relativas à felicidade devem ser silenciadas
quando nos vemos interpelados por um imperativo categórico. E a ‘moral’ é definida
muitas vezes como aquilo que tem força irresistível, opondo-se ao mero
‘prudencial’.
124
Uma formulação pura dos preceitos éticos promove uma distância perante os bens de
valia menos forte, daí uma dificuldade de julgamento de nosso agir cotidiano. Como é o caso
dos chamados “bens da vida”, “quer dizer as ações, os modos de ser, as virtudes que definem
o que é realmente uma vida boa para nós.”
125
Nesse caso, os bens constitutivos, partes da
configuração moral, servem de margem de significação para os bens da vida. Nas éticas
deontológicas, ou melhor, que partem de uma unidade dos bens, não há espaço para esses dois
planos, a realização ocorre quando o agir estiver em concordância plena com o preceito
universal. Deste modo, ficamos condicionados a regras da razão, que até podem ser estranhas
à nossa natureza, e perdemos nossas articulações acerca dos bens e a dimensão concreta da
vida humana. De Lara destaca esse aspecto na proposta tayloriana.
A racionalidade moral real não consiste nesse tipo de frieza dado a distância de si
para si, onde os momentos de deliberação e de ação são radicalmente separados, mas
numa atividade de reflexão e de expressão de nossos objetivos, de nossos
engajamentos e ideais, que faz ela mesmo parte da ação, que depende do contexto
que ela modifica. Sou eu, ser agente de carne que age, que delibera sobre aquilo que
devo fazer, não meu cérebro.
126
124
Id. Ibid., p.91.
125
DE LARA, Philippe (org). La Liberté des modernes. Op. cit., p.289, tradução nossa.
126
Id. Les voies de la raison pratique. In: DE LARA, Philippe; LAFOREST, Guy (org). Charles Taylor et
l’interprétation de l’identité moderne. Op. cit., p.369, tradução nossa.
Um outro ponto de discussão está em torno da idéia de razão prática. Na perspectiva
kantiana, essa razão serve para qualificar as máximas de acordo com o preceito da
universalidade da ação. Da mesma forma, no utilitarismo, razão prática serve para calcular as
ações tendo em vista a máxima da felicidade para a maioria. Nesses casos, a razão prática é
um instrumento de avaliação que visa ver um acordo ou não com um bem maior. Smith
afirma que Taylor propõe, diferentemente do procedimentalismo dessas éticas, um modelo
substantivo de razão prática que avalia
se a mudança ou transição de um ponto de vista para outro, de uma interpretação de
um valor forte [strong value] para outro, constitui um ganho. Estamos aptos a dizer
que a deliberação prática toma ao certo a extensão do que podemos projetar ou
reconstruir na transição de uma interpretação de um ponto de vista para o outro
como uma redução de um erro. O ponto crucial é que o certo é revelado pelo
conteúdo, não pelo procedimento, pelo conteúdo clarificado por meio de um
contraste.
127
A razão prática é, então, a forma com que o indivíduo avalia suas escolhas em termos
de valores que o cercam. A postura do indivíduo é o de julgar os valores tendo em vista um
ganho moral, uma expansão do horizonte moral que, conseqüentemente, representa uma
edificação do sujeito. O cumprimento da norma universal, nesse caso, cede lugar ao
desenvolvimento de si. Nesse sentido, as avaliações dos valores menores são essenciais para
compreender a dimensão moral do indivíduo. Não importa tão-somente a concordância com
um preceito ético, mas, também, o valor da forma de vida perseguida pelo indivíduo: se rumo
ao bem ou distante dele. Neste caso, os valores menores fazem parte do conjunto de valores
que dá dimensão moral à vida do indivíduo. A ética se distancia da idéia do que é certo fazer e
passa a se focar no que é bom ser. Nesse caso, é preciso atentar para os chamados “bens da
vida”, para as virtudes que nos levam ao caminho do bem. Taylor chama atenção também
para o fato de que a ética que pretende a universalidade acaba sendo altamente excludente em
termos da variedade de bens presentes nas configurações morais. Essa forma de ver a ética, e
a dimensão moral que compõe a concepção de pessoa, está mais próxima com uma filosofia
prática de inspiração aristotélica.
A vida ética real se constrói inevitavelmente entre a unidade e a pluralidade. Não
podemos suprimir a diversidade de bens esse, ao menos, meu argumento contra a
127
SMITH, Nicholas. Charles Taylor: Meaning, Morals and Modernity. Op. cit., p.106, tradução nossa.
teoria moral moderna), nem a aspiração à unidade que é implícita na atitude de guiar
sua vida.
128
A partir das considerações feitas acerca do sujeito e a forma como ele lida com os
valores na sociedade, alguns princípios do domínio moral podem ser interpretados na filosofia
de Taylor. Ao compreender o sujeito cercado de um horizonte constitutivo, o qual interpreta e
assim dimensiona sua vida moral, Taylor parece incorrer na defesa de um tipo de realismo
moral
129
. Nesse caso, as avaliações fortes cunhadas nesse horizonte independem da própria
escolha do indivíduo. Esse sentido empregado parece se afastar da filosofia de Taylor, na
medida em que o autor credita uma referência que os bens têm com a articulação dada pelos
sujeitos. Abbey defende, então, que Taylor propõe um chamado realismo falseável (falsifiable
realism). Nesse caso, o autor não se aproxima nem de uma defesa de um realismo forte, no
sentido de que os valores morais existem independentemente das interpretações dos sujeitos;
nem um realismo fraco que deduz os bens a partir da forma como os indivíduos vivenciam e
interpretam suas vidas. “Realismo falseável situa-se entre esses dois [tipos de realismo],
embora mais perto do realismo forte, pois ele toma o fato da experiência moral humana
seriamente e imputa a isso significado ontológico”.
130
Nesse caso, as práticas humanas
constituem normas sociais, no entanto, estas não existem independentemente das práticas
humanas, ou seja, elas estão referenciadas ao modo de vida que o sujeitos têm na sociedade.
Ao entender a palavra articulação como algo semelhante à revelação, Taylor manifesta a idéia
de uma realidade moral forte.
Articular nossas distinções qualitativas é estabelecer o sentido de nossas ações
morais. A articulação explica de maneira mais plena e rica o significado de dada
ação para nós, em que consistem exatamente seu caráter bom ou mau, obrigatório ou
proibido.
131
No entanto, uma realidade moral objetiva nega a pluralidade dos bens e sua
mutabilidade de acordo com determinadas culturas, ao mesmo tempo, retira o poder de
escolha dos bens, incutido no indivíduo e, conseqüentemente, sua autenticidade. Esse aparente
paradoxo pode ser solucionado com a sua idéia de configuração moral (moral framework).
Taylor acredita que um outro aspecto duradouro da vida moral está na presença do
que ele chamou de configuração moral [moral framework] ou horizonte (ele usa
128
DE LARA, Philippe (org). La Liberté des modernes. Op. cit., p.306, tradução nossa.
129
O sentido empregado ao realismo significa que uma realidade existente e que é independente da
interpretação ou não que o sujeito faz dela.
130
ABBEY, Ruth. Charles Taylor. Op. cit., p.30, tradução nossa.
131
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.111.
esses termos de forma permutável). A idéia de uma configuração moral refere a uma
série de crenças que dão a forma global e a direção para os valores das pessoas e a
sua perspectiva moral.
132
A configuração moral reflete a idéia de que o indivíduo se encontra num espaço de
qualificações morais. “As configurações proporcionam o fundamento, explícito e implícito, de
nossos juízos, intuições ou reações morais [...] Articular uma configuração é explicar o que dá
sentido a nossas respostas morais.”
133
Configurações são estruturas referenciais que dão
sentido ao bem. Esse tipo de referência ontológica não depende da escolha do indivíduo,
embora precise da sua articulação; em outras palavras, depende de um sujeito como animal
que se auto-interpreta. Isso significa dizer que a configuração, num plano comum, portanto,
tem uma dimensão objetiva encarnada na vida de um povo, nas instituições sociais e políticas
de uma determinada cultura, enfim, no ethos de uma comunidade. Ao mesmo tempo, ela se
manifesta na subjetividade dos indivíduos, estando presentes nas suas reações morais, dando-
lhes sentido. Por isso, ela é pressuposto e contexto, universal/particular. Ela é externa ao
sujeito e aderente à sua interioridade, algo que o naturalismo e o racionalismo subjetivista
negam, pois querem repousar a moralidade na auto-referencialidade do próprio sujeito como,
por exemplo, a noção de autonomia ou bem-estar. Aliás, é a perda dessas configurações o que
acompanha o “desencanto” do horizonte moral na modernidade. Os indivíduos perdem, assim,
sua referência moral no mundo.
A idéia de configurações constitui um importante ingrediente para a discussão da
ética no contexto comunitarista, mesmo porque, os valores decorrem de qualificações sociais
impressas nas configurações morais. No entanto, o aspecto forte designado à autonomia acaba
por afastar a teoria do autor de um viés comunitarista como o de MacIntyre, por exemplo, que
na autonomia moderna a perda do horizonte, ou melhor, da tradição que fundamentava a
verdade para o sujeito. Taylor crê que a liberdade, igualdade, assim como a interioridade,
figuram como valores sociais fortes presentes nas configurações morais da modernidade. A
liberdade é um exemplo de bem comum em nossa sociedade. Ser um agente autônomo
significa possuir uma
identidade, uma maneira de se compreender a si mesmo, que os homens não
possuem por nascimento [...] Mas eles podem adquirir essa característica se ela
estiver implícita nas suas práticas comuns, nos modos como eles se reconhecem e se
tratam uns aos outros na vida comum (por exemplo, no reconhecimento mútuo de
certos direitos), na maneira de deliberar em conjunto
134
132
ABBEY, Ruth. Charles Taylor. Op. cit., p.33, tradução nossa.
133
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.42.
134
DE LARA, Philippe (org). La Liberté des modernes. Op. cit., p.247, tradução nossa.
A liberdade, assim como outros valores fortes impressos em nosso horizonte moral
moderno acabam se estruturando nas configurações morais das pessoas, é publicamente
reconhecida, torna-se não uma prática, mas algo mais forte, adquire caráter de
normatividade. O sujeito articula, então, sua via moral a partir dos valores legados no
horizonte moral, mas que se orientam na interioridade do sujeito em comunhão com o espaço
comum.
O fato de o autor situar a moral pautada nos valores presentes no horizonte
constitutivo significa que o envolvimento do indivíduo é feito no contexto das opções que
uma determinada comunidade faz pelos valores, os quais ela deseja seguir. Se a modernidade
cultua em grande parte esse horizonte moral naturalizado, isso implica que a ordem moral de
uma comunidade está em constante mutabilidade. O culto a uma religião pode ter sido algo
essencial no passado, e na modernidade é relegado a um papel secundário. Bens como a
justiça, ou racionalidade, podem não ter os mesmos valores em outros momentos da história.
Um outro exemplo - o respeito à igualdade de dignidade - nem sempre foi um atributo da
justiça. Da mesma forma, o papel dado à individualidade é superior hoje em detrimento da
vida comunitária, mas não se aplica à Grécia Antiga. Nesse sentido, as teorias éticas modernas
e suas correlações na contemporaneidade não fazem seguir senão uma interpretação de um
horizonte particular. Este fato será de grande valia para a edificação de uma sociedade, de
suas normas políticas, condizente com uma determinada identidade moral do sujeito.
2.3.4 A identidade e o bem
Um aspecto importante que sobressai em meio à questão da força exercida pelas
configurações na construção do sujeito moral, está na idéia de identidade do sujeito. Se as
configurações morais exercem um impacto forte no sujeito, é possível falar de um sujeito
autônomo? Montefiore questiona essa posição em Taylor.
A questão é saber se se trata de uma descoberta ou, antes, de uma decisão. O terreno
sobre o qual me encontro, o horizonte que Taylor chamaria de minhas avaliações
fortes, me são eles dados? Ou eu posso escolher livremente o lugar a partir do qual
tomarei posição? Será que posso fabricar minha identidade? Ou será que a resposta
justa seria que se trata de uma descoberta e uma decisão?
135
135
MONTEFIORE, Alan. Choisir son identité? In: DE LARA, Philippe; LAFOREST, Guy (org). Charles
Taylor et l’interprétation de l’identité moderne. Op. cit., p.97, tradução nossa.
A resposta dessa questão será um dos motes deste tópico. Um aspecto importante
para a definição de pessoa moral está na relação feita pelo autor entre identidade e
hiperbem
136
(hypergood). Este se refere, segundo Taylor, aos bens que não são
reconhecidos como fortes na sociedade, mas são bens eleitos como superiores em relação aos
demais bens que são reconhecidamente estimados na sociedade como de qualidade forte.
O hiperbem na teoria de Taylor constitui um ideal no qual nos apoiamos para
estabelecermos nossas avaliações fortes, daí sua importância para a constituição da moral
137
.
No entanto, Ruth Abbey acredita que os hiperbens não são creditados na teoria de Taylor a
todas as configurações morais, pois “se os hiperbens forem experienciados por todos, os
desafios do pluralismo não seriam tão picantes quanto Taylor freqüentemente sugere que
são”.
138
Taylor não nega que existam bens numa comunidade que são eleitos como
hierarquicamente superiores pelos indivíduos, no entanto eles não deixam de estar
referenciados a um horizonte moral, por isso, também, são referenciados historicamente. O
fato é que o hiperbem aparece na teoria de Taylor como uma causa perseguida pelo indivíduo,
ele é constitutivo para a fundamentação de um ideal de vida, por isso, está relacionado com a
identidade do indivíduo. “É a orientação na direção desse bem que mais se aproxima da
definição da identidade da pessoa e, portanto, o direcionamento para esse bem tem para ela
importância ímpar.”
139
O hiperbem perde seu conteúdo quando não é articulado de acordo
com uma referência a um horizonte moral. É isso o que ocorre com as éticas modernas que
dão preferência a um procedimento na forma de identificar esses bens. Este ponto adquire
destaque, sobretudo, pelo fato de concordar com a tradição liberal
140
na forma de qualificar a
identidade do agente. Nesta esteira, Taylor se afasta da afirmação de identidade definida por
Locke.
A identidade pessoal é a identidade do self, e o self é compreendido como um objeto
a ser conhecido. É verdade que ele não corresponde exatamente a outros objetos.
Para Locke, o self apresenta a peculiaridade de se fazer presente essencialmente para
136
O emprego da idéia de hiperbem em Taylor não possui relação com a idéia de hiperbem platônica, no sentido
de ser o sumobem, um bem universal.
137
“Todos reconhecem alguns bens desse gênero; que esse estatuto é justamente o que define a ‘moral’ em nossa
cultura: um conjunto de fins ou exigências que não apenas é dotado de importância incomparável como supera e
nos permite julgar os outros”. (TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op.
cit., p.90).
138
ABBEY, Ruth. Charles Taylor. Op. cit., p.37, tradução nossa.
139
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.89.
140
Neste sentido, falamos de autores originários da tradição kantiana na forma de denominar o agente. O autor
norte-americano John Rawls, tratado de forma aprofundada mais adiante, é um exemplo dessa tradição kantiana,
ao tratar a natureza do agente como procedimental e em consonância com a justiça ao invés do bem.
si mesmo. Seu ser é inseparável da autoconsciência. Em conseqüência, a identidade
pessoal é uma questão de autoconsciência. Mas isso não é de forma alguma aquilo
que venho chamando de self, algo que pode existir num espaço de indagações
morais. A autopercepção é a característica definitória crucial de pessoa na opinião de
Locke.
141
Primeiramente, Taylor expõe uma relação direta entre identidade e bem, no sentido
de que o sujeito enquanto avaliador de bens encontra sua identidade a partir dessa ão
avaliativa.
Saber quem sou é uma espécie de saber em que posição me coloco. Minha
identidade é definida pelos compromissos e identificações que proporcionam a
estrutura ou o horizonte em cujo âmbito posso tentar determinar caso a caso o que é
bom, ou valioso, ou o que se deveria fazer ou aquilo que endosso ou a que me
oponho.
142
Taylor mostra que a identidade é definida dentro de um horizonte significativo.
Portanto, não sabemos o que somos sem antes atentarmos para os valores cunhados pelo
nosso meio. A partir desse instante, as opções que tomarmos, isto é, os valores que
escolhemos para seguir será um indicativo de nossa identidade, a qual não é pré-definida nem
se de forma atomista, mediante uma apreensão isolada de valores que cercam o sujeito.
Portanto, precede à definição de nossa identidade nossa capacidade interpretativa, tanto dos
bens expressos na nossa comunidade, quanto de uma própria auto-reflexão acerca de nosso
posicionamento em relação a esses bens.
Defino que sou ao definir a posição a partir da qual falo na árvore genealógica, no
espaço social, na geografia das posições e funções sociais, em minhas relações
íntimas com aqueles que amo e, de modo também crucial, no espaço de orientação
moral e espiritual dentro do qual são vividas minhas relações definitórias mais
importantes.
143
Isto significa dizer que nossa vida está situada em meio a uma narrativa que tem
como norte os bens que optamos para seguir. “Para ter um sentido de quem somos, temos de
dispor de uma noção de como viemos a ser e de para onde estamos indo.”
144
A busca da
identidade está determinada por esta localização, não só de qual bem é importante para
perseguir, mas também quanto a posição em que estou em relação a esse bem. Assim, dado o
caráter constitutivo desses bens para nosso horizonte, a perda deles, ou o seu afastamento,
apontam para uma perda de horizonte e, conseqüentemente, para uma crise de identidade.
141
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.72-73.
142
Id. Ibid., p.44.
143
Id. Ibid., p.54.
144
Id. Ibid., p.70.
Uma crise como esta vem associada a uma desorientação quanto à forma de lidar com valores
e bens; segue daí que a perda desses elementos constitutivos traz implicações na forma como
nos vemos, e como nos avaliamos no ambiente social.
Isto explica a preocupação do autor concernente à destituição dos horizontes
significativos pertencentes ao período moderno. Nesse sentido, o autor menciona Max Weber
que afirmou a era moderna como responsável pela destituição do horizonte moral e um
desencantamento do mundo. Taylor entende que isso é decorrente em grande parte do
instrumentalismo em relação à natureza e do individualismo na sua forma negativa. Em meio
a esse contexto, nossa relação com o mundo e com a nossa própria identidade parece carecer
de valores fortes com os quais possamos nos orientar. Nossa fonte de apreciação, tanto acerca
da identidade quanto da moral, ficam pautadas, assim, numa perspectiva naturalista.
A peculiaridade do autor está em contestar a afirmação de uma identidade auto-
referente, como a proposta pelos atomistas. Da mesma forma, na relação que Taylor
estabelece entre a identidade e o bem, não a compreensão de uma identidade determinada
categoricamente pelo meio constitutivo. Essa forma paradoxal de compreender a identidade
proposta por Taylor, Gagnon expõe da seguinte forma:
A identidade, objeto de reflexão, não pode ser entendida como um olhar puro sobre
si e supõe considerar os traços fundamentais de pertencimento do agente ao seu
meio (social, histórico, cultural). Contudo, a forma cujos agentes se concebem entra
também em jogo nas determinações dos fatores históricos, sociais, culturais.
145
A identidade é compreendida em consonância com a comunidade, “só se é um self no
meio de outros. Um self nunca pode ser descrito sem referência aos que o cercam.”
146
Ao
mesmo tempo, a possibilidade do sujeito de afirmar valores condizentes com sua maneira de
ser, isto é, a chamada autenticidade, permite que o indivíduo se destaque de seu meio, ou
melhor, afirme em si uma identidade própria, que o diferencia do horizonte constitutivo da
comunidade. Nesse caso, Montefiori observa que o conceito de identidade em Taylor
“comporta elementos daquilo que é dado aos indivíduos e do que resta aberto para que eles
mesmos determinem.”
147
A identidade está relacionada, então, aos engajamentos do indivíduo
no interior da comunidade; por isso, “se trata de uma descoberta e de uma decisão.
148
Descoberta dos valores eleitos na comunidade e de uma decisão daqueles que mais satisfazem
145
GAGNON, Bernard. La philosophie morale et politique de Charles Taylor. Québec: Les Presses de
l'Université de Laval, 2002, p.62, tradução nossa.
146
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.53.
147
MONTEFIORE, Alan. Choisir son identité? In: DE LARA, Philippe; LAFOREST, Guy (org). Charles
Taylor et l’interprétation de l’identité moderne. Op. cit., p.103, tradução nossa.
148
Id. Ibid., p.112, tradução nossa.
a individualidade de cada um. Isso significa que a cultura (comunidade) legada ao sujeito é o
ponto de partida para as suas avaliações “autônomas”.
É possível concluir, neste capítulo, que Taylor enuncia que a modernidade impôs, por
intermédio de uma destituição das antigas hierarquias, uma nova faceta à identidade. Se
outrora a identidade do indivíduo se dava segundo a posição que ele ocupava na sociedade, na
modernidade todos são portadores de uma mesma identidade, visto que todos merecem a
mesma dignidade dada por uma sociedade democrática. Segundo Taylor, este é o ponto
principal de defesa do liberalismo neutro, que será discutido adiante. No entanto, o autor
busca na própria modernidade uma visão da identidade distinta do eu representacionista e que
possibilite chegar às mesmas conclusões morais, como a defesa da liberdade individual, sob o
valor de autenticidade, e de valores fortes imperativos ao sujeito. Pela via do expressivismo,
encontra um padrão de sujeito condizente com a sua teoria. Assim, grande parte do mal-estar
deixado pela modernidade pode ser contornado ao se focar em fontes alternativas de conteúdo
moral para o sujeito. Os aspectos positivos do período como a liberdade individual, traduzida
por um ideal de autenticidade, ressaltados pelos românticos expressivistas, além de uma
eqüidade traduzida por um igual respeito ao valor de expressar a própria autenticidade, são
valores presentes numa modernidade obliterada por uma interpretação que faz prevalecer a
figura ético-política do sujeito desprendido. O que resta, neste momento, é compreender o que
resulta da concepção de sujeito, tanto engajado como desprendido, e seu correlativo moral, no
plano político de uma sociedade adequada a esses modelos de pessoa.
3. O LIBERALISMO POLÍTICO E A CONCEPÇÃO DE PESSOA
Ao entrar propriamente nas teorias políticas desenvolvidas a partir do legado cultural
moderno é que se observam melhor as diferenças entre o modelo de sociedade e o correlativo
padrão de sujeito. Por isso, além de destacar as fontes morais que ajudam a construir o ideal
de pessoa é importante atentar também para sua resultante na forma de conceber a sociedade.
Isso porque, Taylor parte da premissa de que a pessoa é enraizada culturalmente numa
sociedade de tal modo que esse fato impõe um condicionamento na forma de compreender os
valores adequados ao tipo de pessoa.
Neste capítulo buscar-se-á retratar dois modelos opostos de sociedade. Num primeiro
momento, o caso de Rawls que argumenta segundo valores cunhados por uma sociedade
partindo de uma cultura liberal. Num segundo momento, a sociedade idealizada por Taylor,
tomando com base uma idéia de sujeito situado e expressivista, portador de uma liberdade de
autenticidade, compatível com um liberalismo, o qual será denominado de substancial.
3.1
A CONCEPÇÃO DE PESSOA E O LIBERALISMO PROCEDIMENTAL DE
RAWLS
É possível ver na figura de filósofos da corrente liberal procedimental, como Rawls,
o exemplo da edificação de uma concepção de pessoa especificada segundo uma concepção-
modelo de cunho formal. O filósofo norte-americano revolucionou a filosofia política a partir
de sua obra Uma Teoria da Justiça (1971), bem como na reformulação de seu pensamento em
Liberalismo Político (1993). Na linha do contratualismo, Rawls pressupõe uma concepção
ideal de sujeito, a partir da sua consideração como parte contratante de uma situação ela
também ideal na qual estão abstraídos todos os aspectos concretos e históricos da condição
real dos indivíduos, uma vez que estão submetidos a um “véu de ignorância”
149
, de uma
situação hipotética inicial, que Rawls chama de “posição original”. Segundo Taylor, o
liberalismo procedimental
149
O véu de ignorância é o recurso teórico utilizado por Rawls para defender a neutralidade do contrato. Ele
representa as restrições ao conhecimento da posição na sociedade, e a defesa de valores que os indivíduos têm ao
conhecerem sua posição social.
[...] a sociedade como uma associação de indivíduos, cada um dos quais tem uma
concepção de uma vida boa ou válida e, correspondentemente, um plano de vida. A
função da sociedade deve ser facilitar esse plano de vida o máximo possível e seguir
algum princípio de igualdade.
150
Segue daí que os direitos que visam salvaguardar as liberdades e, sobretudo, a
liberdade de seguir um fim, têm uma primazia em relação ao bem, isto é, a um projeto comum
pautado em ideais políticos a serem maximizados a toda a sociedade por parte do Estado. As
diretrizes básicas desse aspecto de liberalismo, dito procedimental, se enquadram, segundo o
autor, com o conjunto das idéias de liberais como Rawls, Dworkin, Scanlon, entre outros.
A fim de arquitetar princípios de justiça eqüitativos numa sociedade, isto é,
princípios que não visem favorecimento a nenhuma das partes compactuantes, Rawls supõe
representações de pessoa e sociedade. Esta configuração teórica, a qual se intitula
construtivismo kantiano, e que Rawls tenciona dar um viés político, demonstra uma maneira
de construir princípios de justiça independente de doutrinas morais anteriores, ou seja,
constituídos, como chama o autor, a partir de cidadãos racionalmente autônomos
151
.
No construtivismo, o modelo da posição original, que serve para vincular a pessoa ao
conteúdo dos princípios de justiça, juntamente com seus instrumentos de véu de ignorância e
especificação simétrica das relações entre os parceiros, serve, justamente, para filtrar as
diversas concepções de bem enviesadas no momento do contrato. O resultado é então um
acordo neutro, constituído a partir de regras, daí seu caráter procedimental.
A concepção-modelo de pessoa afirma que os cidadãos são considerados pessoas
morais e que agem tanto racionalmente quanto razoavelmente. As duas capacidades morais
das pessoas - a de serem iguais, na medida em que possuem igual poder de participação no
processo de seleção de princípios; e a de serem livres, pois seguem fins particulares, os quais
tentam incorporar na sociedade constituem dois elementos centrais na constituição desta
concepção.
No aspecto racional o agente é dotado da faculdade de conceber um ideal de bem.
Para o modelo liberal de sujeito moral essa capacidade representa uma liberdade de definição
de qual bem deve ser seguido, o que destoa do aspecto de bem como horizonte constitutivo de
150
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p.202.
151
O construtivismo político de Rawls é um procedimento que consiste em adotar concepções modelos de pessoa
(sob um viés político) e sociedade (cujo alvo são as estruturas básicas da sociedade) que, juntamente com
algumas restrições (posição original, na qual o sujeito se submete a uma situação de “véu de ignorância” que
impede as partes de um conhecimento mais profundo de sua condição histórica), resultarão em princípios de
justiça. Nesse caso, as concepções têm origem na cultura pública, ou seja, são noções latentes no senso comum.
nossas opções, e que se articula com as nossas próprias escolhas autênticas, tal como Taylor
sugere. O razoável segundo Rawls, condiciona o racional, pois ele representa as limitações
através da posição original dos bens (fins) a serem seguidos pelos parceiros. Isso significa
que, tendo em vista o fato dos indivíduos agirem visando termos eqüitativos de cooperação, as
diversas concepções de bem, traduzidas pelas nossas escolhas particulares de fins, não podem
servir de parâmetro para a elaboração de uma concepção política de justiça. A razoabilidade
consiste na idéia de que as diversas concepções de bem levariam a uma compreensão de
justiça tendenciosa à visão de bem de cada um. Este fato decorre da qualidade moral do
agente numa sociedade liberal tomada pelo pluralismo de valores; pois, se os bens não podem
ser correlacionados de modo a fazerem parte de um horizonte único, obviamente as escolhas
qualitativas dos agentes, isto é, os fins a serem perseguidos, não poderão ser hierarquizados.
Segue daí o direito de cada um de perseguir seu projeto individual de vida sem relação ao
horizonte moral maior do qual faz parte.
Esse ponto que discute o condicionamento do aspecto razoável do sujeito sobre o
racional demonstra a tentativa de Rawls de buscar um acordo, ou nas palavras do autor, “a
estabilidade para uma sociedade multicultural”. Rawls responde, assim, a um segundo
problema que está presente na sua teoria: “quais são os fundamentos da tolerância assim
compreendida, considerando-se o fato do pluralismo razoável como resultado inevitável de
instituições livres?”
152
O filósofo acredita que a saída para essa questão está na sobreposição
dos valores idealizados pelo contrato, ou seja, os valores do justo sobre os do bem. Em outras
palavras, o caminho para a estabilidade numa sociedade está na idéia de um consenso
sobreposto (Overlapping Consensus). A idéia de consenso sobreposto é aplicada num
segundo momento da constituição da sociedade, ou seja, quando dados os princípios básicos
de justiça política que regerão as estruturas básicas, faz-se necessário compreender a forma
como esta concepção lidará com as inúmeras doutrinas abrangentes seguidas pelos cidadãos
(pluralismo) que as têm por direito (faculdade racional).
Rawls dividirá a questão da estabilidade em duas partes. Em primeiro lugar, a
estabilidade é possível quando os indivíduos crescem apoiados em tais instituições justas,
tendo a noção de que outros também assim acatam, e agem de acordo com tais preceitos
regidos pelas instituições básicas. Isso faz com que os indivíduos adquiram uma fidelidade a
essas instituições e princípios, agindo de forma recíproca de acordo com tais preceitos. No
entanto, a questão está em como coordenar a justiça com a idéia de bem, tida por direito, do
152
RAWLS, John. O Liberalismo Político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Editora Ática,
2000, p.45.
indivíduo? Nesse caso, a unidade social é proveniente de um consenso sobreposto de
doutrinas abrangentes
153
e razoáveis. A idéia de seguir uma doutrina razoável está assentada
no fato de que os indivíduos irão sobrepor a qualquer que seja seu ideal de bem, os valores de
justiça descritos no contrato. No entanto, o liberalismo político não coíbe os valores
designados pelo ideal de bem perseguido pelo indivíduo: esses valores cabem na esfera
privada. O indivíduo que persegue bens que minam os valores de justiça idealizados pelo
contrato age de forma contraditória para o autor, pois os indivíduos estariam destruindo o
próprio sistema que garantiu a eles perseguirem tais bens.
O esforço de Rawls está, justamente, em condicionar nossos bens a um papel
secundário, ou mesmo inexistente, como é no caso da escolha dos princípios de justiça
selados no contrato social. Uma sociedade que vise ser bem ordenada não pode, para o
filósofo americano, favorecer nenhuma parte, nenhuma concepção particular de bem, pois o
que está em jogo é o pluralismo a partir de uma base moral da pessoa de cunho universal. Isto
tudo se justifica pela igualdade universal da pessoa, marca da modernidade e horizonte dos
filósofos contemporâneos. Taylor não esconde sua desavença com este modelo procedimental
neutro de conceber princípios. Este modelo representa uma concepção de pessoa oposto ao
que Taylor defende. Para este filósofo, a pessoa obedece a configurações morais, que
imprimem valores fortes no indivíduo, e que norteiam suas avaliações na sociedade. “Rawls
está tentando estabelecer para nós os princípios de justiça, quase que sem prestar atenção às
variações históricas e culturais nos tipos de associação que formamos e os bens que
buscamos.”
154
No modelo rawlsiano de pessoa não espaço para bens fortes que ocupam
nosso horizonte de escolha de fins. A incoerência vista nessa teoria está no fato de Rawls
ignorar o horizonte constitutivo presente na fundação de seus princípios de justiça.
Rawls, por exemplo, parece propor, em Uma Teoria da Justiça, que desenvolvamos
uma noção de justiça que parta apenas de uma ‘teoria tênue do bem’, expressão com
a qual se refere ao que denomino bens fracamente valorizados. Mas essa sugestão é,
no nível mais profundo, incoerente. É claro que Rawls consegue derivar (caso seus
argumentos relativos à teoria das escolhas racionais se sustentem) seus dois
princípios de justiça. Porém, como ele mesmo concorda, reconhecemo-los como
verdadeiros princípios aceitáveis da justiça porque são compatíveis com nossas
153
“Uma concepção é geral quando se aplica a uma ampla gama de questões (praticamente todas as questões); é
abrangente quando compreende concepções daquilo que tem valor para a existência humana, ideais do valor e
caráter pessoais, e assim por diante, isto é, de tudo o que influencia a maior parte da nossa conduta não política
(no limite, a nossa vida no seu conjunto)” (Id. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p.346).
154
TAYLOR, Charles. Philosophy and the human sciences: Philosophical Papers II. Op. cit., p.308, tradução
nossa.
intuições. Se fossemos articular o que constitui a base dessas intuições,
começaríamos formulando uma teoria bastante ‘densa’ do bem.
155
Embora negue a existência de fins particulares no conteúdo do contrato, Rawls faz
uma opção por bens que devem ser tomados como superiores e alheios a um favorecimento do
qual o autor busca afastar sua teoria. Estes bens se referem aos que melhor concordam com as
faculdades e capacidades morais da concepção de pessoa
156
. Portanto, eles não favorecem a
nenhuma doutrina em especial, mas condizem com a própria realidade da natureza pura do
agente como ser racional e razoável. Rawls enumera um grupo básico de bens primários,
como: liberdades básicas (de pensamento, consciência), liberdade de movimento, escolha,
garantia de oportunidades, renda, riqueza e respeito mútuo. Estes bens são imbuídos, então,
com essa concordância quanto à manutenção da possibilidade de um indivíduo almejar um
bem, ter liberdade para trocá-lo, atuar cooperativamente e em condição de igualdade de
reivindicação na sociedade e esperar isso igualmente dos outros.
Guardadas as diferenças teóricas, o que se pode agrupar nas teorias procedimentais
como a de Rawls é a forma de elaborar princípios e identificar bens à sociedade e ao agente a
partir de descrições neutras acerca da natureza do mesmo, o que representa a cultura atomista
descrita nos capítulos anteriores. Nesse sentido, toma-se o agente enquanto um eu universal,
isto é, busca-se excluir aquilo que denota sua particularidade como é o seu fator qualitativo e
sua capacidade interpretativa/reflexiva de avaliação, sobretudo, de valores considerados fortes
numa cultura.
No entanto, poderíamos pensar também este modelo procedimental à luz dos
questionamentos de Taylor, como sendo condizente com a idéia de bens superiores que nos
cercam em determinada época. Se elegermos bens que constituem nosso horizonte
significativo, não seriam propriamente os bens descritos no conjunto de bens primários de
Rawls, bens que também fazem parte de um horizonte cultural? Nesse sentido, o naturalismo
e nesse caso a ciência, fonte de entendimento da realidade a partir da modernidade, e a justiça,
são bens fortes, argumentos superiores, de modo que argumentar segundo razões da ciência e
em busca da justiça é algo notavelmente superior numa teoria. Ora, ao observarmos outras
culturas que não a Ocidental, e mesmo a cultura Ocidental em outro período como o antigo,
identificamos a tese de Taylor de que bens fortes em outras épocas, ou para pessoas
155
Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.122.
156
É preciso atentar que Rawls afirma que tais bens são retirados de uma cultura, mais especificamente, a
Ocidental, de tradição democrática. No entanto, isso não impede a crítica ao autor a uma universalização desses
bens na medida em que são justificados por um procedimento, isto é, são pautados por regras supostamente
claras e neutras e que devem valer para todos.
diferentes, não tinham a mesma relevância, e seu triunfo em outra época quase sempre vem
acompanhado de conflito. A isso, o autor acrescenta: “o próprio fato de que aquilo que um dia
foi sólido tenha em muitos casos se desmanchado no ar mostra que lidamos não com coisas
fundadas na natureza do ser, mas com interpretações humanas mutáveis.”
157
O propósito do canadense em situar a relação direta entre identidade e bem, sendo
este aderente ao período no qual o indivíduo está situado, denota a intenção do autor em situar
o liberalismo e o seu substrato de cunho procedimental como projetos peculiares de uma
época e de um determinado local. Ao mesmo tempo, dado que o liberalismo possui um ideal
moral de fundo, exemplifica o fato de que ele representa um novo projeto da mesma forma
que uma fonte de conflito.
3.2 O LIBERALISMO SUBSTANCIAL DE TAYLOR
A avaliação de Taylor feita sobre o modelo hegemônico liberal de pessoa reforça sua
crítica a um ideal metodológico que ignora a dimensão situada de sujeito pela linguagem e
pelos valores transcritos nela, que se encontram em determinada cultura, abertos à
interpretação do sujeito. É possível enquadrar nesse modelo de sociedade outras críticas que
dizem respeito às implicações sociais inseridas no modelo de tal agente e que representam um
mal-estar para a sociedade. Por isso, é clara a posição do autor no que concerne à concepção
de pessoa. No entanto, a sociedade liberal carrega também um legado cultural importante, que
não pode ser descartado na contemporaneidade. Não obstante, o próprio Taylor buscou
fundamentar sua perspectiva de sujeito moderno pautado por um dos valores mais fortes
defendidos pelo liberalismo, a idéia de autenticidade do sujeito. Como poderíamos pensar
uma sociedade enquadrada na visão de sujeito apreciada por Taylor e, ao mesmo tempo,
adequada aos valores sedutores do liberalismo? Em outras palavras, isso significa entrelaçar a
concepção tayloriana de sujeito engajado com os valores de uma sociedade pensada sob a
ótica de um determinado tipo de liberalismo não procedimental.
Em seu artigo Propósitos Entrelaçados: O debate Liberal-Comunitário
158
, Taylor
ressalta como primeiro ponto na sua tarefa de ampliar o leque teórico das teorias liberais e
comunitaristas, a possibilidade de intercalarmos posições liberais com comunitaristas. O
157
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. cit., p.43.
158
Id. Argumentos Filosóficos. Op. cit.
canadense indica que a ilusória contradição percebida nesse propósito passa por um erro ao
separarem as duas doutrinas que possuem, para o autor, pontos de defesa conciliáveis.
O argumento central de Taylor nesse artigo consiste em destacar que ambas as
doutrinas extenuam questões de defesa e ontológica, e identificá-las e conjugá-las representa
uma possibilidade de combinar liberalismo e comunitarismo.
As questões de defesa referem-se à posição moral ou à política que se adota. Há aqui
uma ampla gama de posições que, numa extremidade, dá primazia aos direitos
individuais e à liberdade e, na outra, maior prioridade à vida comunitária ou ao
bem das coletividades.
159
As questões ontológicas separam monistas (a) de holistas (b).
Eles [defensores dessas posições] acreditam que em (a), a ordem da explicação, você
pode e deve explicar ações, estruturas e condições em termos das propriedades dos
constituintes individuais; e em (b) a ordem da deliberação, você pode e deve
explicar os bens sociais em termos de concatenações de bens individuais.
160
Um dos pontos de discussão que separa as doutrinas parte de uma avaliação acerca
da idéia de pessoa. Nesse propósito há, de um lado, monistas, defensores do sujeito
desenraizado, que não necessita da sociedade para compor sua individualidade, e que por isso,
o ideal teórico culmina, como vimos no caso de Rawls, na defesa de uma sociedade liberal
individualista na qual o sujeito busca se satisfazer no cumprimento de seu ideal de vida. Os
holistas, por outro lado, partem de uma concepção de pessoa condizente em grande parte com
a descrita por Taylor, isto é, enraizada pela linguagem e corpo, situada em meio a um
horizonte significativo do qual o sujeito retira sua autenticidade (identidade), que em conjunto
representa seu projeto de vida.
Uma das percepções do autor quanto a esse debate é que uma divisão no interior
da teoria entre as questões ontológicas, que seriam as referentes ao padrão de pessoa, seja ele
monista ou holista, e questões de defesa que significam o ideal normativo ou moral proposto a
uma sociedade, seja ele coletivista ou individualista. Taylor responde que a defesa de questões
ontológicas não determina as questões de defesa, e vice-versa. Apesar de uma apontar o pano
de fundo, pois “o ontológico ajuda de fato a definir as opções que são importantes sustentar
por meio da defesa
161
, não significa que a teoria fique enrijecida a uma única lógica
monista/individualista e holista/coletivista pois, como afirma Taylor, tratam-se de questões
159
Id. Ibid., p. 198.
160
Id. Ibid., p.197.
161
Id. Ibid., p.199.
diferentes e que podem ser intercaladas sem ferir a lógica da teoria. Deste modo, o autor
concebe a possibilidade de se conjugar num propósito liberal uma visão holista com a defesa
de uma sociedade de direitos, daí uma visão substancial de liberalismo, ou a defesa de uma
sociedade comunitária em meio a indivíduos atomistas. O autor aponta, como exemplo, a
primeira possibilidade a Humboldt
162
, e a segunda a um idealismo de Skinner.
A defesa de um sujeito situado em Taylor, como podemos recapitular, está pautada
na visão de pessoa enraizada pela linguagem e corpo, de modo que, sua compreensão do
mundo não pode prescindir desse pano de fundo, e por isso, o sujeito não é um átomo auto-
referente, isto é, não retira sua identidade a partir de uma auto-reflexão destituída dos valores
de uma comunidade. Isso significa que a linguagem que o sujeito utiliza para se auto-
interpretar, e interpretar valores, é referente a uma comunidade lingüística. No que concerne
aos fins perseguidos pelo indivíduo, eles estão pautados num horizonte moral que é
construído, por sua vez, pelos mesmos valores empregados numa comunidade lingüística. Ao
final, o sujeito é situado numa comunidade específica e, por isso, sua natureza é holista.
No entanto, ao observar as normas adequadas ao padrão de pessoa, percebe-se um
Taylor defensor de pontos caros ao liberalismo como a liberdade individual e a eqüidade. Daí
toda a tarefa de desconstrução entre o padrão ontológico e o padrão de defesa de uma
sociedade. Uma parte dessa divisão foi vista quando Taylor fundamenta a liberdade individual
segundo um padrão de cultura e, portanto, concebe-a como um valor moral de autenticidade.
Ora, essa diferença de articulação tem uma representação de sentido significativa, apesar de
que, na prática, o resultado é semelhante, chamemo-la de liberdade individual ou
autenticidade, embora, como será discutido mais à frente, na idéia de multiculturalismo, a
percepção tayloriana de liberdade individual e direitos impulsionará sua teoria para a defesa
de um outro tipo de política pública, diferente da prevista numa sociedade liberal
procedimental. O fato é que a liberdade individual antes de ser tomada como uma verdade
universal, proveniente de um postulado moral, ou procedimento, passa a ser entendida
enquanto situada num tempo e num campo cultural de relações e de significados lingüísticos.
As normas, os direitos, estão assentados para Taylor em práticas comuns expressivas para
uma dada comunidade. Isso significa enxergar no projeto liberal procedimental uma defesa
162
Taylor concentra-se no pensamento de Humboldt que, segundo ele, desempenha um papel importante no
desenvolvimento do liberalismo moderno e, não obstante, fora obliterado no liberalismo contemporâneo. O
canadense afirma que Humboldt e seus pares “representam uma tendência de pensamento plenamente cônscia da
inserção social (ontológica) dos agentes humanos, mas que, ao mesmo tempo, valoriza muito a liberdade e as
diferenças individuais.” (Id. Ibid., p. 201). Taylor aponta, ainda, Humboldt como guia em seu plano teórico
quando afirma: “Trata-se de grande parte de minha agenda [recuperar a importância de Humboldt na
contemporaneidade] (não tão oculta), por ser a linha de pensamento com que me identifico. (Id. Ibid., p.202).
etnocêntrica que estaria mais condizente com valores cunhados, antes, por sociedade do
mundo anglo-saxão e, sobretudo, dos Estados Unidos da América.
No que se refere, então, à discussão acerca das questões de defesa, Taylor identifica
um liberalismo, dito procedimental, contra o qual se contrapõe, apesar de que a resultante do
processo se assemelhe à defesa teórica do autor. Isto se pelo fato de que Taylor não
observa uma teoria nem um método em específico, mas sim uma cultura que fomenta
inúmeras teorias e, assim, poderíamos pensar que o procedimentalismo constitui uma das vias
de defesa dos valores liberais. Outros modelos são possíveis, como é caso de Humboldt e seus
pares situados na corrente romântica (expressivista). Por isso, ao seguir o legado de
Humboldt, Taylor impulsiona sua teoria para a defesa de um liberalismo dito substancial.
Apesar de Taylor rejeitar o formalismo do liberalismo, a instrumentalidade da política, a
liberdade negativa, pensada sem as avaliações fortes, ou seja, sem a distinção do conteúdo dos
impedimentos à liberdade, ainda assim, um valor forte dado aos direitos individuais, entre
eles a liberdade individual, como forma de impedir coerções sociais e permitir o
desenvolvimento de si. Taylor pontua essa questão quando afirma que uma das tarefas da
filosofia está em “purificar nossas noções normativas chave liberdade, justiça, direitos de
suas distorções atomistas.”
163
Abbey afirma que Taylor, ao preservar alguns pontos do
liberalismo, passa a ser um defensor do pós-liberalismo
164
. Abbey aponta a idéia de Charles
Taylor de pensar a liberdade individual e os direitos sob um ideal de cultura, como um
aspecto que o afasta do liberalismo procedimental e o lança a favor de um pós-liberalismo.
Num nível mais profundo, Taylor afirma que a linguagem do individualismo é
adequada somente no interior de uma determinada cultura, e cultura não é um
acréscimo das escolhas individuais, mas uma herança compartilhada, coletiva.
Somente no interior desse contexto maior cultural e social é que certas
possibilidades e autoconcepções para indivíduos se tornam possíveis. Não é
possível, por exemplo, para um indivíduo dar valor à autonomia ou ver a si mesmo
como portador de direitos e liberdades, a menos que esses bens sejam adequados a
uma cultura maior.
165
163
TAYLOR, Charles. Human agency and language: Philosophical Papers I. Op. cit., p.9, tradução nossa.
164
“O que qualifica um pensador como pós-liberal é a ambição de ir ao limite e conservar a tradição liberal. Isso
pode soar contraditório, mas como pensadores liberais como Charles Taylor evidenciam, a tradição liberal é rica
e complexa, permitindo parte dela de ser preservada e promovida enquanto outras podem ser consideradas
obsoletas.” (ABBEY, Ruth. Charles Taylor as a Postliberal Theorist of Politics. In: LAITINEN, Arto; SMITH,
Nicholas (org). Perspectives on the philosophy of Charles Taylor. Op. cit., p.151, tradução nossa).
165
Id. Ibid., p.157, tradução nossa.
Essa será também a percepção de Araújo, que chama a proposta política de Taylor de
um liberalismo comunitário
166
. Araújo afirma que “o pensamento de Taylor busca esclarecer
as limitações do liberalismo não [...] para destruí-lo, mas para abrir o seu leque teórico.”
167
No momento em que tomamos teorias procedimentais, como a de Rawls, temos
defesas sociais importantes como a liberdade individual e a igualdade. No entanto, juntamente
com esse processo, a teoria acaba se prejudicando por partir de um postulado de cunho
jurídico que enrijece a relação entre o Estado e o cidadão destituindo a idéia de comunidade.
Nesse sentido, não espaço, como veremos oportunamente, para a articulação da sociedade
em benefício de culturas que não obedeçam ao padrão moral do liberalismo, ou melhor, não
espaço para a premissa básica de Taylor de que o indivíduo está situado num tempo e
cultura, aspectos que são relevantes para a constituição normativa de um Estado. E mais: não
espaço, por exemplo, para uma exaltação do engajamento político, pois privilegiar esse
fator como um ideal de defesa da sociedade significa para autores como Rawls abrir um
precedente no que se refere à promoção social de um ideal de vida, e esse precedente
representa romper com as regras neutras cunhadas por uma teoria procedimental. Por isso,
conjugar pontos importantes de defesa do liberalismo em conjunto com a perspectiva de
pessoa situada será a tarefa de Taylor.
O canadense, primeiramente, permite pensar o liberalismo na perspectiva de posições
republicanas, de resto, inadequadas segundo os seus críticos. “Ele [o liberalismo
procedimental] pode aceitar a tese republicana e alegar que tem de fato lugar para um bem
comum e, portanto, para o patriotismo, e que pode ser viável como sociedade livre.”
168
Mas
não é essa a escolha daqueles que defendem essa forma de liberalismo: “pensarão que a tese
republicana, seja qual tenha sido sua validade em tempos antigos, é irrelevante na moderna
sociedade burocrática de massas.”
169
Não obstante isso, Taylor enuncia, curiosamente, que
“na prática um liberal procedimental pode ser holista; e, mais do que isso, o holismo captura
muito melhor a prática real de sociedades que se aproximam desse modelo.“
170
Primeiramente, o liberalismo pode ser pensado enquanto defensor de uma idéia de
bem, se consideramos, afirma Taylor, os direitos, caros às sociedades liberais procedimentais,
como um bem cujos cidadãos respeitam e perseguem, isto é, consideram como um plano
comum da sociedade. Em segundo lugar, o liberalismo pode, como constata Taylor no melhor
166
Ver DE ARAÚJO, Paulo Roberto H. Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento. São Paulo: Edições
Loyola, 2004, p.188.
167
Id. Ibid., p.195.
168
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p. 211.
169
Id. Ibid., p.211.
170
Id. Ibid., p.214.
exemplo dos Estados Unidos, admitir o patriotismo como virtude desempenhada socialmente,
e, de fato, o faz.
No caso dos Estados Unidos, uma ampla identificação com o `american way of
life´, um sentido de que os americanos partilham uma identidade e uma história
comuns, definidas por um compromisso com certos ideais, articulados famosamente
na Declaração de Independência, no Discurso de Gettysburg, de Lincoln e em outros
documentos desse gênero, que por sua vez derivam sua importância do vínculo que
têm com certas transições climáticas de uma história partilhada.
171
Deste modo, o vínculo comum indivíduo-sociedade não só se refere à defesa de uma carta
de direitos comum, mas também de uma história, isto é, ideais absorvidos por uma
sociedade ao longo da história que culminam com uma cultura em meio a qual tais
indivíduos tornam-se enraizados.
Stephen Mulhall descreve a possibilidade de alguns liberais, como o próprio, Rawls,
defenderem uma idéia comum de bem a uma sociedade liberal.
[...] Rawls em seu mais recente trabalho reconhece que sua visão de sociedade
incorpora e requer um social entendimento do que seja de valor na comunidade
política. Mas, esse entendimento comum é acerca do justo e não do bem. É o
genuíno entendimento comum das regras de direito, do respeito pelo direito do outro
enquanto cidadão, que pode formar as bases de uma forte noção de patriotismo.
172
No entanto, se pela via do holismo uma sociedade liberal pode comportar ideais
republicanos como o patriotismo e virtudes cívicas; por outro lado, o canadense coloca em
dúvida a mobilidade do modelo liberal com o cerne do republicanismo, que é o autogoverno
participativo. O liberalismo procedimental não defende a associação entre o bem centrado na
participação política - que é caro ao republicanismo - e a liberdade, assegurada e exercida
através dessa virtude cívica. Como vimos, um exemplo de mal-estar cultural atrelado ao
individualismo liberal, está no fato de que a liberdade coletiva ou a participação ficam
segregadas a um segundo plano, acarretando o despotisme douxde Tocqueville. Assim,
Taylor define dois modelos no que tange à idéia de participação, sintetizados da seguinte
forma:
O modelo A concentra-se nos direitos individuais e no tratamento igualitário, bem
como numa ação governamental que leve em conta as preferências dos cidadãos. É
isso que deve ser garantido. A capacidade do cidadão consiste principalmente no
poder de reivindicar esses direitos e assegurar tratamento igual, bem como no de
influenciar os reais tomadores de decisões. Essa reivindicação pode ocorrer em larga
medida por meio de tribunais, em sistemas com um corpo de direitos reconhecidos,
171
Id. Ibid., p.212.
172
MULHALL, Stephen. Articulating the horizons of liberalism: Taylors polític philosophy. In: ABBEY, Ruth
(org). Charles Taylor. Op. cit., p.115, tradução nossa.
como encontramos nos Estados Unidos (e recentemente no Canadá). Mas também se
concretizará por meio de instituições representativas que, segundo o espírito desse
modelo, têm uma significação inteiramente instrumental. Tendem a ser vistas tal
como o eram no modelo `revisionista´ antes mencionado. Assim, não se valoriza a
participação no regime por si própria. O ideal não é `governar e ser governado
alternativamente´, mas ter voz ativa [...]
O modelo B, em contraste, define a participação no autogoverno como a essência da
liberdade, como parte daquilo que tem de ser assegurado. Ela é também vista como
componente essencial da capacidade do cidadão. Em conseqüência, uma sociedade
em que a relação com o governo é normalmente antagônica, e mesmo onde estes
conseguem fazer o governo render-se a seus propósitos, não garantiu a dignidade
dos cidadãos, permitindo apenas um baixo grau de capacidade do cidadão. A plena
participação no autogoverno significa, ao menos em parte do tempo, ter alguma
participação na formação de um consenso do governo, com o qual podemos nos
identificar junto com outros. Governar e ser governado alternativamente significam
que ao menos em parte do tempo os governantes podem ser ´nós` , não sempre
´eles`.
173
Tendo em vista esses dois modelos, Taylor descreve que o liberalismo procedimental
se caracteriza pela defesa do primeiro, o republicanismo do segundo. A dúvida suscitada pelos
republicanos é se o liberalismo pode se adequar a um ideal de sociedade livre com vínculos
comuns (como o patriotismo). o liberalismo argumenta que a liberdade é solapada na
medida em que há um engajamento com vistas ao bem comum.
Com respeito à defesa da perspectiva de sociedade seja individualista ou coletivista
“tem-se de particularizar a questão em termos da tradição e da cultura de cada sociedade.”
174
Ora, o modelo A não é senão o reflexo da sociedade norte-americana, enquanto que o B
referenda-se ao de outras sociedades que privilegiam a participação, como o Canadá. A
diferenciação dos ideais de defesa da sociedade passa, então, por um campo mais complexo.
Não é somente a partir de uma defesa teórica, ou melhor, de uma universalização que se pode
definir a perspectiva de sociedade, visto que, se o modelo A, embora alvo de críticas, é mais
bem adequado na cultura norte-americana, a implantação de outro modelo, como o B, poderia
não se adequar, e muito mais, seria errôneo com a tradição norte-americana.
Apesar disso, a possibilidade de combinar liberalismo e comunitarismo ainda se faz
possível. Taylor se pergunta: “Será que esses outros tipos de sociedade, organizados em torno
do modelo B ou de uma cultura nacional, não seriam propriamente liberais?”
175
A questão
suscitada agora não é mais se o liberalismo procedimental, de fato, comporta o holismo, mas
se podemos pensar um liberalismo que extrapole este modelo procedimental, isto é, se o
liberalismo pode ser abrangente de modo que incorpore as idéias do modelo B de sociedade.
Esta será a tarefa do autor na sua construção de uma perspectiva de sociedade que ressalte as
173
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Op cit., p. 216-217.
174
Id. Ibid., p.218.
175
Id. Ibid., p. 220.
virtudes cívicas e que mantenha uma sociedade pautada pela ética do reconhecimento, em
conjunto com uma forma holista de compreender a concepção de pessoa sem deixar de lado a
promoção da individualidade e os direitos individuais, caros ao liberalismo.
3.2.1 O liberalismo substancial de Taylor e o multiculturalismo
A possibilidade de articular ideais liberais, na medida em que eles são pensados
enquanto correspondentes a uma cultura com um sujeito retratado pelos comunitaristas
como engajado passa a ser o grande desafio do nosso autor. Taylor, ao se posicionar com
relação ao problema contemporâneo do multiculturalismo, reflete a construção de um ideal
liberal de justiça que foge dos moldes procedimentais que ele combate, e busca saída na idéia
de sujeito enraizado numa cultura.
As sociedades liberais contemporâneas se deparam com o problema de como
articular suas instituições públicas face à diversidade das identidades culturais; e como lidar
com o reconhecimento de grupos minoritários, ou segregados.
A tese é de que nossa identidade é moldada em parte pelo reconhecimento ou por
sua ausência, frequentemente pelo reconhecimento errôneo por parte dos outros, de
modo que uma pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer reais danos, uma real
distorção, se as pessoas ou sociedades ao redor deles lhes devolverem um quadro de
si mesmas redutor, desmerecedor ou desprezível. O não-reconhecimento ou o
reconhecimento errôneo podem causar danos, podem ser uma forma de opressão,
aprisionando alguém numa modalidade de ser falsa, distorcida e redutora.
176
Deste modo, Taylor parte do princípio de que um dos pilares da sociedade liberal
democrática, qual seja, a condição igualitária dos cidadãos em status, cultura e gênero, não é
suficiente para fomentar o reconhecimento dos diversos grupos presentes na sociedade.
Segundo o autor, o individualismo liberal, ao mesmo tempo em que promove o ideal formal
da condição dos agentes, é o responsável por uma modificação no quadro de reconhecimento
mútuo entre eles. Os períodos anteriores à modernidade como Grécia Antiga e o Ocidente
medieval - tematizavam o reconhecimento da identidade dos cidadãos a partir de uma
estrutura social pré-concebida segundo um ideal de bem, na qual cabiam aos agentes
desempenharem papéis já definidos.
A modernidade trouxe a chamada política da diferença com o advento da identidade
individualizada, no sentido de que cada um possui sua própria maneira de ser. Nesse sentido,
176
Id. Ibid., p. 241.
o indivíduo é autêntico de tal modo que não se encaixa num horizonte constitutivo que
idealize sua identidade. Se a identidade não é mais pré-dada segundo um modelo no qual nos
encaixamos, ela depende, agora, do reconhecimento do outro, da sociedade. Ela é negociada e
pode, por isso, malograr.
Taylor ressalta a insuficiência do projeto liberal que preconiza uma identidade, dita
formal e pública, como o igual status dos cidadãos perante a lei. Contudo, na realidade, na
esfera íntima figura um jogo em meio ao qual a identidade é negociada. A partir do momento
em que a identidade é fruto das relações dialógicas de intercâmbio, “a projeção de uma
imagem inferior ou desprezível sobre outra pessoa pode na verdade distorcer e oprimir na
medida em que a imagem é internalizada.”
177
Ao mesmo tempo em que a modernidade demandou uma política da dignidade, ao
tornar igualitário o status dos cidadãos, viu também a demanda de um igual reconhecimento
das diferenças, de modo que todos devem ter suas identidades peculiares reconhecidas, como
condição também de cidadania. Ocorre que entre a política da igual dignidade e a política da
diferença há um conflito.
Para uma delas, o princípio do respeito igual requer que tratemos as pessoas de uma
maneira cega às diferenças. A intuição fundamental de que os seres humanos
merecem esse respeito concentra-se naquilo que é o mesmo em todos. Para a outra,
temos de reconhecer e mesmo promover a particularidade. A reprovação que a
primeira faz à segunda é simplesmente que ela viola o princípio da não
discriminação. A reprovação que a segunda faz à primeira é a de que ela nega a
identidade ao impor às pessoas uma forma homogênea que é infiel a elas.
178
O liberalismo quando preconiza uma política da dignidade em detrimento da política
da diferença universaliza um modo hegemônico de identidade, sob preceitos procedimentais,
que no fundo é o reflexo de uma cultura particular, com localização específica – mais
precisamente o Ocidente –, e com um representante autêntico os Estados Unidos. “Assim, a
sociedade supostamente justa e cega às diferenças é não inumana (porque suprime
identidades) mas também, de modo sutil e inconsciente, altamente discriminatória.”
179
No entanto, Taylor não visa somente estabelecer a crítica ao liberalismo neutro,
como sendo detentor de uma cultura de fundo. O autor discute sobre qual é o melhor modelo
político de reconhecimento para uma sociedade multicultural. Nesse ponto, põem-se em
questão sociedades distintas do padrão liberal norte-americano, como é o caso do Québec que,
177
Id. Ibid., p.249.
178
Id. Ibid., p. 254.
179
Id. Ibid., p.254.
sob colonização francesa, possui não a língua matriz diferente da inglesa do restante do
Canadá, como reflete uma cultura diferenciada. Vale ressaltar que para o filósofo a
importância da língua é essencial para a fomentação da identidade, de tal modo que reflete
uma percepção diferente de mundo.
180
Nesse sentido, como pensar uma política de
reconhecimento para a minoria do Canadá francófono? Ora, a aplicação de uma legislação
procedimental, aos moldes da carta liberal de direitos norte-americana, pode desfavorecer essa
minoria, ou até mesmo condená-la ao desaparecimento, visto que o inglês exerce no Canadá
uma hegemonia cultural. Deste modo, como motivação de manter a cultura dessa minoria, o
autor permite pensar a legitimidade em se tomar medidas legais que favoreçam, ou melhor,
que ponham tais minorias em condição de igual sobrevivência, na medida em que elas possam
manifestar sua cultura.
Por exemplo, Québec aprovou algumas leis na área da língua. Uma regula quem
pode enviar os filhos a escolas de língua inglesa (não os francófonos nem os
imigrantes); outra requer que negócios com mais de 50 empregados sejam dirigidos
em francês; uma terceira põe fora da lei placas comerciais não escritas em francês.
Em outras palavras, foram impostas aos habitantes do Québec, pelo governo,
restrições em nome de sua meta coletiva de sobrevivência, restrições que, em outras
comunidades canadenses, poderiam facilmente não ser impostas em virtude da
Carta.
181
A polêmica que emerge dessas medidas consiste no fato de que a aplicação de uma
carta liberal, pautada pela política da igual dignidade, indicaria tais atitudes como ilegais, ou
discriminatórias da igualdade entre todos os cidadãos. No entanto, o autor permite pensar essa
questão à luz da política da diferença, na qual a manutenção da cultura ou do grupo
minoritário detém uma primazia perante a neutralidade jurídica. Embora como observa
Araújo, a preocupação de Taylor “não se restringe a criar vantagens sociais para os grupos
minoritários, mas a elaborar uma visão política que possa, de fato, garantir os valores dos
diversos grupos que formam as sociedades contemporâneas.”
182
No fundo, essa discussão reflete uma preocupação maior que orienta o debate liberal-
comunitário, qual seja: o que detém primazia na elaboração das leis de uma sociedade, o bem
ou o justo? O primeiro representa uma primazia do aspecto cultural como elemento norteador
180
O próprio autor conviveu com as duas línguas: francesa por parte de mãe e inglesa por parte de pai. Este fato
serviu, segundo Taylor, para que ele convivesse desde cedo com dois mundos diferentes.
181
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p. 264.
182
DE ARAÚJO, Paulo Roberto M. Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento. Op. cit., p.179.
da constituição de uma sociedade, já o justo parte de uma concepção abstrata acerca do
homem
183
e deduz, a partir disso, a constituição das instituições públicas.
É axiomático para os governos de Québec que a sobrevivência e o florescimento da
cultura francesa em Québec são um bem. A sociedade política não é neutra entre os
que valorizam o permanecer fiéis à cultura de seus ancestrais e os que desejariam se
libertar disso em nome de alguma meta individual de desenvolvimento pessoal.
184
Taylor, ao se posicionar em benefício da cultura, portanto, da primazia do bem, não
relega a carta liberal de direitos. O autor, assim como a Carta de direitos do Québec, se
apóiam nos direitos básicos das democracias liberais como o conjunto de liberdades
individuais; ocorre que
É preciso distinguir as liberdades fundamentais, aquelas que nunca podem ser
feridas e, portanto, que devem ser incessantemente protegidas de privilégios e
imunidades que, embora importantes, podem ser revogados ou restringidos por
razões de política pública – embora se precise de uma forte razão para isso.
185
O resultado disso é um modelo de liberalismo pautado pelas idéias do bem, isto é, que
prima pela política da diferença, portanto, em nome da sobrevivência e reconhecimento de
minorias e da cultura.
[...] uma sociedade com fortes metas coletivas pode ser liberal desde que também
seja capaz de respeitar a diversidade, especialmente em suas relações com aqueles
que não partilham suas metas comuns, e desde que possa oferecer salvaguardas
adequadas dos direitos fundamentais.
186
Ao refletirmos acerca do ideal de liberdade como autenticidade, observamos que a
diversidade, traduzida pela forma individual de compor a identidade, é uma visão que Taylor
busca promover para a sociedade multicultural. No entanto, as metas coletivas se sobrepõem
na medida em que a própria identidade, pensada de forma enraizada na comunidade, sob a
concepção de pessoa engajada, reflete uma cultura de fundo. O indivíduo, mesmo que queira
desenvolver uma individualidade contrária à sua cultura, não pode querer promovê-la a todos.
No entanto, isso não significa enrijecer as modificações culturais na história de um povo.
183
Um exemplo é a definição abstrata de Rawls acerca da concepção de homem enquanto livre, igual, racional,
razoável.
184
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p.264.
185
Id. Ibid., p.265. A não restrição às liberdades individuais parece ser um ponto tênue no autor, pois ao mesmo
tempo em que prima pela não interferência como segue na citação anterior, o autor afirma: “Uma sociedade
como Québec não pode deixar de se dedicar à defesa e à promoção da língua e da cultura francesas, mesmo que
isso envolva alguma restrição às liberdades individuais.” (Id. Ibid., p.220).
186
Id. Ibid., p.265.
Ocorre que as mudanças para serem legitimadas precisam antes de um aval cultural,
sedimentado em práticas comuns que validem essa nova mentalidade.
Por fim, Taylor aposta na tese de Gadamer de “fusão de horizontes” como uma
forma dos indivíduos perceberem modos distintos de vida (cultura) não a partir de um modelo
etnocêntrico. O etnocentrismo é um entrave no entendimento de outras culturas, comunidades.
O desafio está em superar o julgamento feito ao outro por intermédio de nossa própria
linguagem que acaba afirmando um entendimento do mundo. Por isso, Taylor acredita que
uma ampliação de nosso entendimento, no sentido de incorporar novas compreensões quanto
aos valores, ajuda a ampliar nosso leque cultural, e permite, assim, compreender o modo de
ser do outro. Isso significa que para haver uma compreensão abrangente, esta não pode vir a
partir de avaliações restritivas aos critérios empregados no nosso modo de ser, ela vem,
segundo Taylor
na forma de comparações ou contrastes que deixam o outro ser. Os contrastes são
cruciais. Mas eles surgem na compreensão mais ampla, que vem por sua vez de
nossa articulação de coisas antes tidas por certas. Logo, o contraste é elaborado
numa linguagem que nós mesmos concebemos.
187
A fusão dos horizontes busca o contraste dos valores de diferentes culturas e
configurações morais, como forma de auxiliar a expansão do horizonte dos indivíduos. Nesse
caso, a apreensão de um vocabulário lingüístico-cultural leva o sujeito a reconhecer novas
manifestações culturais, e, assim, não emitir um juízo a outras culturas partindo de um ponto
de vista etnocêntrico. “Chegamos ao juízo em parte por meio da transformação de nossos
padrões.”
188
A fusão dos horizontes ressalta, assim, através da expansão dos horizontes, o
respeito igual entre os indivíduos.
3.2.2 O self e a participação política
Os pontos negativos decorrentes da liberdade individual, descritas no capítulo
anterior, refletem a idéia de que o sujeito acaba muitas vezes se abstendo do âmbito público
na medida em que volta os interesses para si mesmo. Nesse sentido, o indivíduo acaba
alienando seu poder de participação ou perde força perante um Estado voltado a si mesmo e
engrandecido pela displicência dos indivíduos. Em outras palavras, um mero poder
187
Id. Ibid., p.168.
188
Id. Ibid., p.270.
representativo garantido por direito na idéia de liberdade individual não incorre que a esfera
pública tenha a característica de ser livre – o que é caro ao liberalismo.
Uma das conseqüências que podem ser tiradas do debate levantado por Taylor acerca
do liberalismo e do comunitarismo é o de que uma sociedade fundamentada somente em
direitos, como a liberal procedimental, mesmo que apresente vínculos comuns, deixa de fora o
elemento central que motiva uma sociedade livre tendo em vista a construção de um projeto
comum, qual seja: o ideal de participação inerente aos agentes e, consequentemente, o
autogoverno.
Taylor delineará, a partir dessa motivação, algumas propostas que terão o intuito de
fomentar em meio à sociedade liberal o ideal de participação. Uma primeira preocupação é
focada no ponto fraco que uma sociedade liberal, aos moldes dos Estados Unidos, enfrenta,
qual seja, a burocratização. Um sistema político desta ordem diminui a participação individual
quando contrastada com o todo. Ora, este problema representa um sério desafio às sociedades
liberais modernas, haja vista a pequena participação política em assuntos concernentes ao bem
público. O desinteresse no envolvimento nas eleições representa o principal exemplo desta
tendência. Tendo em vista sua concepção de pessoa, e a partir desse diagnóstico, é possível à
luz da obra de Taylor esboçar possíveis saídas ao problema.
O filósofo canadense, quando pensa no liberalismo, tem em mente o papel do
autogoverno, juntamente com o bem da liberdade e os direitos, como os objetivos a serem
realizados ou respeitados pela sociedade. Ora, ao tratar dos pilares do liberalismo, o autor se
volta ao lócus de realização desses bens - a sociedade civil. Deste modo, pensar no nível da
liberdade exercida numa determinada sociedade é se reportar à intensidade da sua presença na
sociedade civil, na medida em que a sociedade civil se opõe à totalização do Estado na vida
dos cidadãos.
Em linhas gerais, Taylor define da seguinte forma a sociedade civil
189
: “[...] uma rede
de associações autônomas, independentes do Estado, que reúne cidadãos em torno de questões
de preocupação comum e cuja simples existência ou ação podem ter efeito sobre as políticas
públicas.”
190
. Este campo é composto, segundo o autor, por duas realidades sociais que
floresceram no Ocidente e, sobretudo, nas sociedades democráticas liberais: uma primeira
realidade extrapolítica é caracterizada pelo papel central que a economia desempenha na
189
A discussão acerca da idéia de sociedade civil Taylor deve em grande parte a Hegel no que tange à sua
distinção de sociedade em três eixos: família, sociedade civil, Estado. Diferente de Aristóteles, que distinguia o
campo do oikos (família) da polis (política), Hegel percebe a sociedade civil como um campo da esfera privada e
dos interesses econômicos.
190
TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Op. cit., p. 221.
sociedade civil e, de modo geral, de independência em relação ao Estado; a segunda realidade
social é representada pela esfera pública.
Desejo descrevê-la como um espaço comum em que os membros da sociedade se
congregam, por meio de uma variedade de meios (impressos, eletrônicos), bem
como em encontros diretos, para discutir questões de interesse comum para assim
poder ser capazes de formar uma idéia comum sobre essas questões.
191
O filósofo destaca a importância da esfera pública como voz ativa dos cidadãos em
relação às questões públicas, e que estão fora do poder tutelar do Estado. Por isso, ela é
metatópica, está presente em inúmeros locais sendo que em grande parte paira uma idéia
comum pela qual todos se vêem atinados. “A discussão que podemos estar vendo na televisão
agora trata daquilo que foi dito no jornal pela manhã, que por sua vez relata o debate
radiofônico de ontem e assim por diante.”
192
O que de comum em todos esses campos é a
idéia debatida, que por sua vez depende da ação de discussão, isto é, o ato em conjunto é que
vida a ação. Assim, não algo que transcenda a própria a ação, ou seja, o agir não é
fundado nem justificado seja por Deus, constituição, ou uma ordem de idéias. A esfera
pública é eminentemente secular, pertence a um determinado tempo, e é fruto das ações
comuns que a dão sentido. Isto significa que esta esfera inaugura um tipo de atividade de
ordem diferente da ação em consecução com o poder político ou religioso.
A característica extrapolítica da esfera pública adquire nas sociedades liberais duas
teses. Segundo o autor, há uma primeira que destaca a esfera pública como o lócus de
independência do indivíduo em relação ao poder político, por isso, é uma esfera na qual o
indivíduo exerce sua individualidade, ou melhor, possibilita se ausentar de uma
responsabilidade coletiva. Deste modo, quanto menor o efeito cerceador do político nessa
esfera maior a amplitude da liberdade individual. Em contraste com essa idéia, uma tese
que apregoa a esfera pública como o campo no qual se exerce o autogoverno, isto é, o
exercício de decisão das questões públicas no âmbito exterior à esfera política.
Para o autor, a importância da característica extrapolítica da esfera pública está em
ser o poder normativo da esfera política, na medida em que o governo é guiado pelas idéias
desenvolvidas, em conjunto, pelos cidadãos. Cercear a esfera pública significa retirar do
cidadão seu poder de questionar os assuntos concernentes tanto à sua vida quanto ao rumo de
sua sociedade. “A esfera pública é, pois, um lócus em que são elaboradas as concepções
racionais que devem guiar o governo. Isso passa a ser visto como característica essencial de
191
Id. Ibid., p. 277.
192
Id. Ibid., p.277.
uma sociedade livre.”
193
Deste modo, uma sociedade democrática na qual os indivíduos são
focados nos seus interesses individuais, acaba por minar o ideal de decisão coletiva e,
conseqüentemente, o aspecto central da democracia: a participação. No entanto, o autor
credita à sociedade democrática o ideal de uma comunidade, o que contrasta com essa visão
pessimista da democracia liberal moderna.
O autor buscará no romantismo e expressivismo um projeto político contrastante com
a idéia instrumental de sociedade decorrente da visão desengajada de sujeito. A visão de
engajamento político nasce com a idéia de Rousseau de soberania do povo, em que a
sociedade deve refletir a identidade do povo. Para Rousseau, “a boa comunidade política
mantém sua coesão por meio de um sentimento que é uma extensão da alegria que o seres
humanos sentem na companhia uns dos outros mesmo nos contextos mais prosaicos e
íntimos.”
194
Ao buscar respaldo na filosofia da linguagem e na idéia de autenticidade do
sujeito, que é estendida ao povo, em Herder, Taylor traz a idéia de nacionalismo decorrente
do pensamento do filósofo alemão. Herder traz “a noção de que cada povo tem seu próprio
modo de ser, de pensar e de sentir, ao qual deve ser fiel; a idéia de que cada um tem o direito
e o dever de fazer as coisas de sua própria maneira e não segundo uma maneira estranha e
imposta.”
195
A ngua, na perspectiva expressivista, representa o fator de coesão de um povo,
ela reflete a maneira particular de que cada povo tem de sentir, pensar. “A idéia que está na
base da soberania popular é a de que as pessoas soberanas formam algum tipo de unidade.
Eles não são uma equipe qualquer escolhida pela história que tem em comum a lista de
passageiros de algum vôo internaciona
l.”
196
Taylor crê que a composição da sociedade tem ao fundo um elo comum, seja uma
história, uma cultura, que liga os indivíduos de tal modo que o desinteresse com este pano de
fundo representa um desinteresse com a sua própria identidade. Ora, é este elo que faz com
que as decisões coletivas, bem como os direitos arraigados na sociedade, tenham uma
aceitação coletiva. Uma sociedade marcada pelo mútuo desinteresse poderia acarretar numa
destituição da unidade social, pois na medida em que a opinião do outro é irrelevante não há a
necessidade de perseguir metas coletivas, dentre as quais os direitos básicos. Ao tratar do
desinteresse no tocante às metas coletivas o autor retoma sua crítica à fragmentação da
sociedade.
193
Id. Ibid., p.282.
194
Id. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Op. Cit., p.461.
195
Id. Ibid., p.531.
196
Id. Argumentos Filosóficos. Op. cit. p.294.
Na medida em que as pessoas envolvidas já tenham aceito uma perspectiva atomista,
que a sociedade como uma agregação de indivíduos com seus próprios planos de
vida e nega a realidade da comunidade política, essa reação [de impulso à
centralização política] está disponível com ainda maior imediaticidade.
197
Segundo o autor, uma sociedade fragmentada reflete um deslocamento das questões
políticas, dado que os indivíduos estão envolvidos em interesses particulares que são, por
vezes, irrelevantes no tocante ao bem comum. Este é o cenário de alienação das questões
coletivas e uma centralização nas questões individuais, ou limitadas a pequenos grupos. Deste
modo, as questões coletivas recaem sobre a tutela do Estado que monopoliza as questões
políticas. Um outro motivo de alienação política se deve à burocratização política, visto que
os indivíduos se inibem a participar das questões coletivas, dada a distância entre os cidadãos
e o Estado, no sentido de que a voz de um único indivíduo se esvai em meio à imensidão do
Estado, e o cidadão tem o sentimento de que é irrelevante.
O filósofo destaca outras dificuldades das sociedades democráticas de massa. Um
dos motivos da perda da liberdade da sociedade civil, ou melhor, da liberdade de autogoverno
de um povo, está na facilidade com que os cidadãos são vítimas de dominação seja por
intermédio de uma mídia corrupta, ou de grupos de interesse (lobbies) que influenciam nas
decisões, ou até mesmo por uma falta de informação da parte deles. Ao mesmo tempo, a
sociedade pode ser cerceadora das minorias não favorecidas nas questões públicas, bem como
pode ficar à mercê do engrandecimento da função do Estado que passa ser o único agente
político. “A mais completa destruição da sociedade civil foi levada a efeito em nome de
algumas variantes e sucessoras dessa idéia no século XX, com destaque para a nação e o
proletariado.”
198
Além disso, a sociedade civil é passível também da gica independente do
poder econômico, no que tange ao seu aspecto de mão invisível pelo qual a sociedade fica à
mercê de uma gica independente e, por vezes, dominadora por parte dos ajustes
econômicos. Assim, a sociedade civil nas democracias liberais não cumpre seu papel, pois o
seu poder de ação nem sempre é efetivo, por causa da burocratização do Estado, ou porque
grupos, como os sindicatos, colocam-se como agentes, nem sempre legítimos, entre os
cidadãos e o Estado; e que, da mesma forma, isolam pela burocratização e interesses
particulares corporativistas os indivíduos das atividades políticas. Assim, a idéia de sociedade
civil apresenta problemas tanto na medida em que é tomada como um campo independente do
político, como é o caso da lógica econômica, quanto ao seu atrelamento ao político, seja por
197
Id. Ibid., p. 298.
198
Id. Ibid., p.237.
um engrandecimento do Estado, seja por uma lógica política manipulativa. Deste modo, o
autor vislumbra algumas soluções da presença de ações políticas no âmbito da sociedade civil.
Associações voluntárias de todo propósito são valiosas. Mas sua significação reside
em nos dar o gosto e o hábito do autogoverno, razão por que são essenciais para
propósitos políticos. Mas para serem reais loci de autogoverno, têm elas de ser não
gigantesca. Quanto a esta, deve ser descentralizada, de modo que o autogoverno
possa ser praticado também no nível local, sem se restringir ao nacional. Se esse
autogoverno desaparecer naquele, corre o risco de desaparecer também neste.
199
O autor avalia uma sociedade participativa na medida em que ela é tomada por indivíduos
preocupados com as questões coletivas, mesmo porque elas fazem parte, na pior das
hipóteses, de questões individuais, pois o indivíduo é parte inseparável do grupo. No
entanto, reconhece que o incentivo a essa prática advém na medida em que o cidadão
detém o poder de decisão, e sabe que seu posicionamento será relevante e igual, seja no
âmbito local seja no nacional. Por isso, a descentralização é um projeto que visa encorajar
a participação.
É importante ressaltar a forma com que o autor idealiza a sociedade liberal que,
diferentemente de ser marcada por uma sociedade de direitos aos moldes dos liberais
procedimentais, carrega em seu bojo o autogoverno como peça fundamental de edificação da
sociedade. No entanto, o autor faz objeções a um tipo de sociedade que se transforma em
controle social da política sem que ela mesma se politize, avançando em mecanismos
democráticos de manifestação e realização da dimensão do político.
[...] a política liberal deve preocupar-se com as condições de um processo decisório
genuinamente democrático e que a esfera pública não tem de ser vista apenas como
uma forma social que limita o político, mas como sendo ela mesma o meio da
política democrática.
200
Assim, embora a sociedade civil seja um propósito importante na definição do
liberalismo, no sentido de apresentar o meio no qual a liberdade é exercida, sua contrapartida
está na promoção de uma sociedade não apática às questões políticas.
Apesar dos valores defendidos por Taylor e Rawls sejam iguais, o método para se
legitimar tais valores são diferentes, o que acaba demonstrando algumas diferenças entre
ambos, sobretudo, no campo da idéia do multiculturalismo e na idéia da participação política.
Para Rawls: em meio à pluralidade de valores de uma sociedade, não pode existir a defesa de
um ou outro valor, de um ou outro grupo, sob pena de se cometer um abuso à liberdade
(inviolável) do indivíduo. Quanto à participação política (embora Rawls de um destaque
199
Id. Ibid., p.239.
200
Id. Ibid., p. 304.
maior à liberdade política), ela não pode ser exercida de forma obrigatória, também, sob pena
de se cometer um abuso à liberdade individual. Para Taylor: ao pensar a idéia de que o
indivíduo tem sua identidade referenciada ao seu meio, aos valores cunhados pela sua
comunidade, o Estado não pode ser neutro com relação à promoção desses valores, sob pena
de se perder a identidade do grupo referenciado. A cultura, o valor do grupo, tem mais
destaque para o Estado do que qualquer plano individual que de encontro com esses
valores. Os valores, como foi dito, fazem parte da história da comunidade, exercem a
configuração da identidade dos indivíduos. No entanto, Taylor não nega as liberdades
individuais, como foi afirmado no respeito ao valor da autenticidade do indivíduo, e de sua
dignidade. Essas políticas públicas não chegam ao extremo, mas também não ficam no campo
do estritamente inviolável de Rawls, Taylor apenas afirma que algumas medidas devem ser
tomadas para se manter a cultura de um povo. No campo da participação política, Taylor
acredita que a participação é aquilo que pode nos livrar da dominação, e nisso, se apóia nas
idéias de Tocqueville, de que a liberdade política é que faz com que haja a própria
manutenção das liberdades individuais. Taylor busca meios para que essa liberdade seja
exercida sem manipulação, seja pelo Estado, sindicatos, grupos, empresas. Para o autor, é esse
o caminho da esfera pública livre, que permite com que exerçamos a nossa liberdade na ótica
do ideal liberal de sociedade. Ao defender o expressivismo e romantismo, Taylor ressalta uma
concepção de liberdade e individualidade que permite fugir de mazelas decorrentes da cultura
moderna como o desincentivo à participação política resultado de um individualismo
narcisista, ou mesmo de uma visão instrumental de sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa pretendeu expor a concepção expressivista de pessoa em Charles Taylor,
ressaltando algumas implicações éticas e políticas presentes nessa perspectiva de pessoa. De
forma metodológica, buscou-se separar essas questões para delas se ter um melhor
entendimento. Ao final da pesquisa faz-se necessário, ainda, salientar a união dos principais
pontos dissertados nos três capítulos como forma de se aproximar de uma visão mais
complexa presente na filosofia do autor, que abrange esses pontos de forma conjunta.
A maneira como foi abordado o pensamento do autor, tendo em vista sua concepção
de pessoa, teve por objetivo ressaltar duas dimensões circundantes à idéia de pessoa: uma
moral, histórica, e outra ontológica. A constituição da idéia de pessoa em Taylor tem como
base a defesa de vínculos existenciais de engajamento que culminam na defesa de valores
comunitários. Por isso, as questões éticas e políticas estão interligadas aos aspectos da
concepção de pessoa.
Num primeiro plano, o exemplo de uma concepção desengajada, ou atomista,
que simboliza a idéia de um sujeito auto-suficiente, desvinculado do seu meio (mundo), da
comunidade para dizer no quesito político -, que encontra sentido em si mesmo. Essa
concepção tem raízes em um modelo de sujeito determinado de cartesiano, que se afirma
na teoria do desengajamento da pessoa compondo a cultura do racionalismo iluminista.
Esta resulta em conseqüências não para a visão ontológica do sujeito como proporciona
valores para a modernidade e, assim, traz implicações no campo da ética e política.
Taylor se contrapõe a essa perspectiva, ou melhor, às conseqüências negativas que
essa cultura traz para a modernidade. O autor irá compor uma concepção de pessoa
engajado, ou holista, que é a constituição de uma idéia de sujeito que encontra sua
identidade, a composição de seus valores, bem como sua própria liberdade vinculadas com
a comunidade. Taylor busca constituir essa perspectiva estimulado pelas filosofias que
retratam um sujeito engajado, seja pela linguagem, com Wittgenstein, Herder, seja pela
reconciliação entre corpo e mente, nas visões de Hegel, Merleau-Ponty, Heidegger. O autor
busca resgatar esses valores na própria modernidade a partir do romantismo e
expressivismo. Embora o recorte feito na obra do autor vise pontuar essas correntes, é
necessário atentar para as filosofias que seguiram a defesa de um sujeito engajado na
contemporaneidade no intuito de observar a composição da concepção de pessoa em
Taylor. Apesar de ser ousada a explicitação de uma relação entre esses dois períodos e os
planos teóricos, pois é inquestionável a constatação de diferenciações teóricas na
abordagem de cada filósofo, a relação não se restringe em conceber as vicissitudes
teóricas, mas, antes, em compreender um horizonte comum de defesa de valores na forma
de compor a idéia de sujeito engajado e de contraposição à concepção de pessoa decorrente
da cultura objetivo/científica do racionalismo iluminista.
A composição do sujeito engajado, partindo da cultura romântica e expressivista,
demonstra uma preocupação teórica do autor em não negar os valores modernos que são
imprescindíveis na composição teórica das filosofias contemporâneas. Por isso, Taylor se
mostra um otimista com relação à modernidade, apesar de pontuar alguns pontos negativos na
cultura moderna.
Ao analisar as configurações morais da modernidade, o filósofo identifica alguns
pontos em comum que se manifestam nos mais diversos planos teóricos no iluminismo, no
romantismo e expressivismo. A partir do pressuposto comum da idéia de interioridade, a
modernidade acaba expressando uma série de valores que condicionam a dimensão moral do
sujeito moderno. A interioridade leva à defesa do individualidade, valor imprescindível para
as teorias modernas, juntamente com a igualdade, manifestada na idéia de direito a dignidade
que cada sujeito possui de expressar a sua individualidade. A partir dessa cultura na forma de
conceber o sujeito, esses valores adquirem uma qualidade de direitos, e manifestam-se como
normas para os indivíduos e sociedade. Isso será de suma importância para a defesa dos ideais
políticos que são imprescindíveis na contemporaneidade, defendidos, sobretudo, pelo
liberalismo.
Taylor, embora se apóie na modernidade, de tal modo que reconhece a importância
desses valores para a constituição moral do sujeito, identifica alguns mal-estares presentes na
visão moderna de sujeito, sobretudo, decorrente da cultura naturalista que compõe uma visão
de sujeito desengajada. O autor destaca a razão instrumental que culturalmente impôs uma
nova percepção na relação entre o sujeito e o mundo, na medida em que tudo passa a ser um
objeto de conhecimento do sujeito que decifra e ordena o mundo por intermédio das leis da
razão; com a idéia de indivíduo auto-suficiente, tem-se a visão do individualismo narcisista,
em que o sujeito não necessita da sociedade, ou melhor, a sociedade passa a ser um
instrumento para a consecução dos fins privados e, com isso, vem o próprio desengajamento
político, na medida em que se ressalta nessa visão de sujeito, uma liberdade de gozo da
privacidade e não de incitamento à participação. Da mesma forma, a própria noção de
igualdade pode ser cega às diferenças e, nesse caso, pode-se perder sob o viés da neutralidade
do Estado a manifestação cultural de grupos que carecem de uma atenção especial do Estado
como condição para perpetuarem suas culturas. Nesse caso, o Estado acaba promovendo uma
massificação, na medida em que permanece indiferente à realidade da existência de grupos
culturais, às vezes, conflitantes, presentes em uma mesma sociedade. Contudo, partir do
momento em que se legitima ações do Estado em benefício da sobrevivência de grupos e
culturas, o problema passa a residir na idéia de quais grupos ou culturas devem ser
promovidas? Ou melhor, será que ao promover uma determinada cultura o Estado não estaria
levando ao fim de outra, ou ao cerceamento da liberdade?
A tarefa de Taylor está, em certa medida, justamente em desenvolver essas questões,
isto é, desenrolar os conflitos a que os valores modernos podem ser levados. Um primeiro
passo está em compreender valores e conceitos como Estado, liberdade individual,
igualdade,desenvolvidos pela modernidade, sob uma outra ótica, que não necessariamente a
de uma cultura iluminista e cientificista, presente de forma hegemônica na modernidade. Tal
perspectiva aponta ou leva ao desencadeamento da idéia de sujeito que possui uma
inviolabilidade de seus direitos , sobretudo, a inviolabilidade de sua liberdade. Sem negar os
valores da igualdade e liberdade Taylor se propõe ao desafio de avaliá-los sob o prisma de
uma cultura romântica e expressivista. No viés do expressivismo, a liberdade é traduzida pela
autenticidade, isto é, pelo poder de expressão autêntico da individualidade que cada sujeito
deve ter por garantia. A princípio, esses valores não parecem solucionar a questão de como o
Estado deve lidar com as minorias culturais, ou mesmo, com o individualismo enquanto um
entrave para a defesa de um bem coletivo, ou engajamento político.
Ocorre que Taylor, ao resgatar o expressivismo, posiciona-se em defesa da idéia de
engajamento do sujeito, isto é, que a autenticidade da individualidade está referenciada a uma
cultura, a um horizonte moral que sustentação à identidade do sujeito. Nesse caso,
manifestar a autenticidade significa expressar a cultura a que está referenciado esse sujeito
autêntico. Por isso, antes de serem normas universais extraídas da razão, os valores modernos
são decorrentes de práticas comuns, e ganham sua legitimidade quando são observados em
um meio comum no qual esses valores adquirem sentido. Taylor ao valorizar a modernidade,
e por dar crédito a alguns valores fortes nela presentes como a individualidade, a dignidade da
pessoa, os direitos humanos, faz com que impulsione sua filosofia política em direção a uma
forma de liberalismo. No entanto, esse não seria o liberalismo rawlseano que chega à defesa
desses mesmos valores por intermédio de um procedimentalismo. Ao mesmo tempo,
manifesta um comunitarismo, pois identifica no engajamento do sujeito, sobretudo, na
manifestação de seus valores, seu elo para com a comunidade. Taylor apresenta-se, então,
enquanto defensor de um liberalismo substancial, na defesa da liberdade e igualdade
relacionada à concepção engajada de sujeito, em que o valor da cultura e as diferenças são
pontos de defesa tanto para o Estado (comunidade) como para os indivíduos.
No que diz respeito às implicações éticas, Taylor de forma crítica uma ética
atrelada a uma cultura do cientificismo e naturalismo, que ignora a real condição de sujeito
que se auto-intepreta e, no caso, interpreta valores. Para Taylor, essa cultura é responsável por
uma universalização dos valores que são sopesados tendo em vista um bem maior, universal,
deduzido de forma procedimental. Os bens adquirem o caráter de neutralidade e independem
da avaliação que o sujeito estabelece deles.
Taylor destaca a partir de uma cultura expressivista na forma de conceber o sujeito,
implicações éticas que vão de encontro a essa ética universalista. Para o autor, é preciso
pensar os valores enquanto referenciados a um horizonte moral, manifestos numa cultura, e
que dependem da articulação do sujeito, isto é, do seu reconhecimento. Taylor apela, então, a
uma razão substantiva em contraposição a uma procedimental. Nesse sentido, os juízos
morais antes de serem verdades proferidas por uma razão neutra, vazia, obedecem a um
horizonte de possibilidade de valores. Eles ocupam as configurações morais do sujeito e se
manifestam nas avaliações feitas pelos indivíduos. Os bens que possuem uma forte densidade
comunitária para o sujeito, irão compor sua identidade, e a forma como ele avalia e
hierarquiza esses bens marcará sua individualidade. O sujeito, para Taylor, está num constante
processo de constituição. Ao se avaliar e, se posicionar em relação aos bens presentes na
comunidade, obtém, por vezes, edificação de sua via moral configurando a sua identidade.
Uma ligação pode ser feita em termos das questões morais e políticas, na medida em
que Taylor centra suas preocupações a um mesmo emprego da razão e de uma cultura que
sentido aos planos teóricos de fundo à razão. A implicação que uma ética procedimental tem
no dimensionamento moral do indivíduo reflete de forma direta nas questões referentes à
política. Uma mesma ausência de pluralidade de valores e, consequentemente, pluralidade de
formas de vida, se manifesta numa ausência de pluralidade política. Aliás, é decorrente de um
modelo abstrato de justiça, consequentemente, de razão, que nega a possibilidade do Estado
em estabelecer rearranjos políticos, em benefício de culturas, minorias, que não manifestam o
modelo hegemônico de valores.
Nesse sentido, resgatar um modelo expressivista de pessoa não significa apenas a
crítica de um sujeito moldado de forma unilateral na filosofia do desengajamento, como
também traz consigo uma cultura, um conjunto de critérios diferentes na forma de abordar o
ser humano em sua dimensão ética e política. Taylor compreende a cultura moderna enquanto
um horizonte de valores que configura a identidade do sujeito. Isto significa que antes dos
planos teóricos representarem verdades científicas, eles são formas de interpretar as práticas e
valores do sujeito. No caso, a própria percepção de que divergentes fontes morais agem em
conjunto na formação do sujeito, está em concordância com o aspecto expressivista de
compreender a pessoa, no sentido que o sujeito manifesta o seu tempo, por intermédio de suas
práticas e da forma como interpreta os valores presentes em seu horizonte moral. Assim,
tomar um sujeito desengajado, e a cultura decorrente dessa perspectiva de pessoa, que pontua
uma universalidade das práticas e valores, significa perder o aspecto interpretativo do sujeito,
sua dinamicidade no mundo, sua peculiaridade em pertencer a um tempo e espaço.
Enfim, o trabalho procurou ressaltar o resgate feito pelo autor a uma concepção de
pessoa expressivista, que, na verdade, toma corpo, posteriormente, enquanto uma contra-
cultura a alguns ideais do iluminismo e naturalismo, em outros filósofos como Hegel,
Wittgenstein, Heidegger, Merleau-Ponty. Nessa cultura, o sujeito engajado acaba dando
resultado em outros campos, tanto na defesa de uma ética que valorize os aspectos
qualitativos dos bens, decorrentes de uma articulação dos indivíduos e de seus valores de
acordo com uma cultura, quanto de uma política que ressalte um engajamento do sujeito
segundo a concepção normativa de uma identidade vinculada à comunidade, na qual ele
assegura de forma mais consistente a sua individualidade e liberdade.
REFERÊNCIAS
ABBEY, Ruth. Charles Taylor. Princenton: Princenton University Press, 2000.
_______ Charles Taylor (Contemporary philosophy in focus). Cambridge: Cambridge
University Press, 2004.
BERLIN, Isaiah. Vico e Herder. tradução de Juan Antonio Gili Sobrinho. Brasília
: Universidade de Brasilia, 1982.
CARRITHER ; COLLINS ; LUKES (ed.) The concept of the person. Cambridge :
Cambridge University Press, 1985.
DE ARAÚJO, Paulo Roberto H. Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento. São
Paulo: Edições Loyola, 2004.
DE LARA, Philippe (org). La Liberté des modernes. Paris: PUF, 1997.
GAGNON, Bernard. La philosophie morale et politique de Charles Taylor. Québec: Les
Presses de l'Université de Laval, 2002.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. v. 1. Tradução de Márcia de Cavalcante. Petrópolis:
Vozes, 1993.
_______ Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os Pensadores. Tradução de Ernildo
Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
_______ A época das imagens de mundo. Tradução de Claudia Drucker. Disponível em :
<ateus.net/ebooks/acervo/a_epoca_das_imagens_de_mundo.pdf > Acesso em : 4 de
setembro de 2008.
HERDER, Johann G. Philosophical
writings. Tradução de Michael N. Forster.
Cambridge: Cambridge University Press, 2002
_______ Philosophie de l'histoire de l'humanité. Tradução de Émile Tandel. Paris : A.
Lacroix, 1874.
LAFOREST, G ; LARA, P. (org). Charles Taylor et l’interpretation de l’indentité
moderne. Paris : Le Presses de L’Université Laval, 1998.
LAITINEN, Arto; SMITH, Nicholas (org). Perspectives on the philosophy of Charles
Taylor. Helsinki: Acta Philosophica Fennica, 2002.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução de Carlos Alberto
Ribeiro Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
_______ O Liberalismo Político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Editora
Ática, 2000.
REDHEAD, Mark. Charles Taylor : thinking and living deep diversity. Boston : Rowman
& Littlefield Publishers, 2002.
RORTY, Amélie O. Mind in Action: Essays in the Philosophy of Mind. Massachusets:
Beacon Pr, 1991.
SANDEL, Michael (ed.) Liberalism an its critics. New York : New York University Press,
1984.
SMITH, Nicolas H. Charles Taylor: Meaning, Morals and Modernity. United Kingdom:
Cambridge, 2002.
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Tradução de
Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Edições Loyola, 1997.
_______ A secular age. Harvard: Belknap Press, 2007.
_______ Argumentos Filosóficos. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Edições
Loyola, 2000.
_______ Grandeur et misère de la modernité. Traduit de l’anglais par Charlotte Melaçon.
Québec : Berllarmin, 1992.
_______ Hegel e a sociedade moderna. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições
Loyola, 2005.
___________
Human Agency and Language : Philosophical Pappers I. Cambridge : Cambridge
University Press, 1985.
_______ Modern social imaginaries. London: Duke University Press, 2004.
_______ Multiculturalismo : examinando a política do reconhecimento. Tradução de Marta
Machado. Lisboa : Instituto Piaget, 1998.
________Philosophy and the human sciences: Philosophical Papers II. Cambridge:
Cambridge University Press, 1985.
______ Reconciling the Solitudes: Essays in Canadian Federalism and Nationalism, Guy
Laforest (ed). Montreal and Kingston: McGill-Queen's University Press, 1993
_______ The Pattern of Politics. Toronto: McClelland and Stewart, 1970
TULLY, James. Philosophy in an age of Pluralism: the philosophy of Charles
Taylor in question. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Coleção Os Pensadores. Tradução de
José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo