Download PDF
ads:
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC–SP
Márcia de Oliveira Jesus
A mulher nas crônicas de José Simão: um estudo da construção
dos estados de violência
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
São Paulo
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC–SP
Márcia de Oliveira Jesus
A mulher nas crônicas de José Simão: um estudo da construção
dos estados de violência
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Língua Portuguesa pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação da Profª. Drª. Ana Rosa Ferreira Dias.
São Paulo
2008
ads:
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
Aos meus pais, Vitor e Hermínia,
pelo constante incentivo e pela
dedicação dispensada à minha
formação pessoal e acadêmica.
Minha eterna gratidão.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, o expoente máximo do meu amor, do meu respeito e da minha
gratidão. Os que confiam e esperam no Senhor constantemente adquirem novas forças,
correm e o se cansam, andam e não se desfalecem. Muito obrigada, Jesus, sábio
mestre e orientador fiel de todas as horas. O rito de mais essa conquista em minha
vida é, em primeiro lugar, todo seu. A Ele a glória, a honra, e o louvor desde agora e
para todo o sempre.
À minha orientadora, Profª. Drª. Ana Rosa Ferreira Dias, meu profundo agradecimento,
pela confiança depositada em mim, pelo apoio nas tomadas de decisão, pelas
minuciosas leituras, pelas sugestões e pelo incentivo durante a atividade acadêmica.
À Profª. Drª Elisa Guimarães e ao Prof. Dr. Dino Preti, pelas ponderações e
contribuições significativas, ofertadas no momento do exame de qualificação.
Aos Professores da Graduação do Curso de Letras da Universidade Mackenzie e aos
Professores do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa da PUC, que muito
contribuíram para meu desenvolvimento pessoal, profissional e acadêmico.
À minha família, especialmente aos meus queridos pais e irmãos, Vitor e Marcelo, meu
sincero e reiterado agradecimento, pela compreensão dispensada durante todas as fases
desta pesquisa, pelo apoio e incentivo constantes.
Ao meu tio e amigo, Bernardino, pelo reconfortante apoio a mim oferecido, em um
momento especialmente difícil da minha vida.
À minha amiga e companheira de estrada acadêmica, Maísa, por compartilhar as
angústias, as alegrias vividas, no decorrer dessa nossa caminhada.
À minha querida “irmã”, amiga e grande incentivadora, Mara, por torcer por mim a
cada nova conquista.
A todos que de alguma forma contribuíram para a realização desta pesquisa.
A própria expressão “violência contra a mulher” foi assim
concebida por ser praticada contra pessoa do sexo feminino,
apenas e simplesmente pela sua condição de mulher. Essa
expressão significa, a intimidação da mulher pelo homem,
que desempenha o papel de seu agressor, seu dominador e
seu disciplinador.
(Teles e Melo)
RESUMO
O objetivo desta dissertação é analisar de que modo a linguagem, nas suas várias
manifestações, constitui uma das formas mais expressivas da representação da violência
no jornal Folha de S. Paulo, uma vez que esse periódico é considerado um dos veículos
de informação de maior prestígio e credibilidade do Brasil. Especificamente, nossa
pesquisa se dispõe a demonstrar como são construídas, nas crônicas de José Simão, as
expressões de violência contra a mulher.
Marcados, principalmente, pelo humor grotesco e deselegante, os textos de
Simão abrangem assuntos que vão desde a economia e a política a esportes e
entretenimento. Por meio de uma aparente conversa sem rumo, o divertimento
postulado pelas crônicas de José Simão parece anular a violência pois, sendo
considerado algo “não-sério”, permite que, por meio dele, se faça e diga coisas que fora
dele as normas sociais não permitiriam.
Nesse estudo verificou-se que as formas de violência contra as mulheres nas
crônicas de José Simão estão arraigadas muito tempo no seio de nossa sociedade,
machista e patriarcal, fazendo-se visíveis, mas também invisíveis, porque escondidas
sob formas de leis, racismos, intolerâncias, costumes e tradições. Ao reproduzir velhos
estereótipos generalizantes e preconceituosos que dizem respeito ao universo feminino,
o autor contribui - e muito para a disseminação e perpetuação da violência que avilta
diariamente as mulheres.
Comprovamos que a imagem da mulher é violentamente hostilizada, tornando-se
motivo de depreciação e zombaria. Para o exame do nosso corpus, consideramos como
categorias de análise a violência consumada contra a mulher, seja pela sua forma sica,
seja por aspectos culturais e sociais, seja por sua qualidade moral. O corpus foi dividido
segundo estas três categorias. Em termos lingüísticos, a violência contra as mulheres se
fez sentir pela exploração polissêmica ocorrida nas crônicas, não pela utilização das
metáforas e das ironias, mas também pelo uso de termos pejorativos, de trocadilhos, da
alteração maliciosa de nomes próprios e de neologismos.
Palavras-chave: mulher, mídia, crônica, humor, estado de violência, discurso,
estereótipos.
ABSTRACT
The purpose of this dissertation is to analyze how does language, in its different
manifestations, constitute one of the utmost expressive ways of violence in the
newspaper Folha de S. Paulo, being such newspaper considered one of the most
prestigious and trustful mass communication in Brazil. Specifically, our survey aims
demonstrating how the expressions of violence against women are constructed in José
Simão’s chronicles.
Marked, mostly, by a grotesque and inelegant humor, Simão’s texts embrace
issues that cover from economics and politics to sports and entertainment. Through an
apparent adrift chat, the amusement postulated by José Simão’s chronicles seem to
nullify the violence that when considered something “non serious” allows that, through
it, one does and says things that outside that context, social rules would not allow.
In this survey one noticed that the violence forms against women in José
Simão’s chronicles have been rooted for long time in the core of our sexist and
patriarchal society, becoming visible, yet also invisible, because hidden under the form
of laws, racism, intolerance, habits and traditions. Whilst reproducing old generalizing
and prejudiced stereotypes that deal with the female universe, the author contributes -
very much - to violence dissemination and perpetuation that abases women on daily
basis.
We prove that the woman’s image is violently antagonized, turning motif of
depreciation and mockery. For the exam of our corpus, we consider as analysis
categories, the violence consummated against women, either because of her physical
form or because of cultural and social aspects, or her moral quality. The corpus was
divided in accordance with those three categories. In linguistic terms, violence against
women can be felt by the poly-semantic exploration expressed in the chronicles, not
only using metaphors and ironies, but also using depreciatory terms, ambiguities,
malicious change of first names and neologisms.
Key words: woman, media, chronicle, humor, state of violence, speech, stereotypes.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 9
CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DO CORPUS DE PESQUISA ...................... 14
1.1 José Simão em foco: biografia do autor ............................................................ 14
1.1.1 A linguagem de José Simão ....................................................................... 17
1.2 O jornal Folha de S. Paulo ............................................................................... 19
1.2.1 Projeto Editorial ........................................................................................ 22
1.2.2 O mito da objetividade ............................................................................... 24
1.2.3 Perfil do leitor............................................................................................ 26
1.2.3.1 Perfil do leitor das crônicas de José Simão ........................................... 27
CAPÍTULO 2 - A CRÔNICA ................................................................................... 29
2.1 Constituição e o processo de transformação ...................................................... 29
2.2 Gênero híbrido por excelência .......................................................................... 34
2.3 A crônica como gênero jornalístico .................................................................. 36
2.4 Um gênero tipicamente brasileiro ...................................................................... 39
2.5 A crônica de José Simão ................................................................................... 41
CAPÍTULO 3 – A RELAÇÃO ENTRE VIOLÊNCIA E HUMOR ........................ 44
3.1 A propósito do conceito de violência e de sua categorização ............................. 44
3.1.1 Violência e linguagem ................................................................................ 49
3.1.2 Mídia e Violência ....................................................................................... 50
3.1.3 Violência contra a mulher .......................................................................... 53
3.2 A propósito das considerações sobre o humor: a questão do riso ....................... 57
3.2.1 A carnavalização do riso medieval sob a perspectiva de Bakhtin ................ 58
3.2.2 Algumas considerações de Bergson e Propp sobre a comicidade ................ 60
3.2.3 Instrumentos lingüísticos da comicidade .................................................... 62
3.3 A violência filtrada pela comicidade ................................................................. 65
CAPÍTULO 4 – DISCURSO E ESTEREÓTIPOS .................................................. 67
4.1 As definições de discurso ................................................................................. 67
4.1.1 Considerações sobre a Análise do Discurso ................................................ 69
4.1.2 Formações discursivas e ideológicas .......................................................... 71
4.2 Status e papéis sociais ...................................................................................... 72
4.3 Estereótipos: definições ..................................................................................... 77
4.3.1 Estereótipos e óculos sociais ....................................................................... 80
4.3.2 Estereótipo e preconceito ............................................................................ 81
4.3.3 Estereótipo e mídia ..................................................................................... 83
4.3.4 Estereótipos femininos ................................................................................ 85
CAPÍTULO 5 – ANÁLISE DO CORPUS ................................................................ 89
5.1 A violência deflagrada contra a mulher: aspectos morais .................................. 90
5.2 A consumação da violência contra a mulher em razão de sua forma física ........ 97
5.3 A materialização da violência contra a mulher em razão de aspectos culturais e
sociais ............................................................................................................. 106
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 124
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 128
ANEXOS ................................................................................................................. 134
9
INTRODUÇÃO
Histórica e culturalmente, devido a questões puramente fisiológicas, os homens,
dotados de forças superiores às mulheres são, por esse motivo, consagrados como
representantes do “sexo forte”. Nessa construção social assimétrica, os homens ocupam,
tradicionalmente, a posição de dominadores, enquanto as mulheres ocupam a posição de
dominadas (sexo frágil). A própria narrativa bíblica da criação da mulher, a partir de
uma costela de Adão, contribui para reforçar a subordinação do feminino em relação ao
masculino. À associação do conceito de que a mulher provém da matéria-prima do
homem, sedimentou-se a idéia da inferioridade daquela em relação a este. Apesar de, na
época contemporânea, serem legalmente assegurados às mulheres os mesmos direitos
concedidos aos homens - seja nas relações familiares, no campo do trabalho, seja na
política e na cultura a discriminação e o preconceito que recaem sobre elas ainda não
foram eliminados totalmente. Ao contrário, ainda se fazem sentir situações em que a
mulher é humilhada, inferiorizada, reduzida ao status de coisa pelo fato de ser julgada
quase que exclusivamente pela aparência física em detrimento de sua capacidade
intelectual e moral.
Dessa estreita relação entre o biológico e o cultural advém a normatização dos
sexos e determinam-se os padrões adequados a homens e mulheres em diferentes épocas
e sociedades. A invenção da masculinidade e da feminilidade não se dá por acaso, mas é
resultado de um discurso sexista que é gestado na história, produzido pela cultura,
socialmente aceito e incorporado aos hábitos, costumes e comportamentos de um povo.
Desse modo, os padrões de masculinidade e feminilidade preestabelecidos socialmente
para homens e mulheres legitimam as relações de poder entre os sexos, hierarquizam
suas posições sociais e criam um sistema baseado em valores, crenças, estereótipos e
discursos socioculturalmente construídos.
Os veículos de comunicação de massa têm uma inserção fundamental no
processo de construção dos comportamentos e exigências sociais. Mais que produtores
de informação, eles são formadores de opinião por excelência, criando e transmitindo
explícita ou implicitamente valores, representações e modelos de conduta. (cf.
Marcondes Filho, 2002, p.110). Essa cultura “pronta” nos é transmitida pela linguagem,
principalmente a verbal, por meio da palavra. (cf. Bakhtin, 1997, p.29). Mais importante
ainda é considerarmos que a mídia, especificamente o jornal, com sua aparência
10
indefesa, sob a alegação de prestar serviço cultural e informativo de maneira
diversificada, legitima-se, sobretudo, como instrumento de poder, palco, portanto, da
disseminação de interpretações estereotipadas e preconceituosas, interesses e ideologias
de classe.
Nossa pesquisa tem por objetivo analisar de que modo a linguagem, nas suas
várias manifestações, constitui uma das formas mais expressivas da representação da
violência no jornal Folha de S. Paulo, uma vez que esse periódico é considerado um dos
veículos de informação de maior prestígio e credibilidade do Brasil. Especificamente,
nosso estudo se dispõe a demonstrar como são construídas, nas crônicas de José Simão,
veiculadas nesse jornal, as expressões de violência contra a mulher.
Para o exame do nosso corpus, consideraremos como categorias de análise a
violência consumada contra a mulher, seja pela sua forma física, seja por aspectos
culturais e sociais, seja por sua qualidade moral. Desse modo, a análise que se segue
dar-se-á de acordo com essas três categorias e não de acordo com a ordem cronológica
das crônicas selecionadas. Na leitura dos excertos, percebemos que se imbricam. Por
questões metodológicas, para tornar nossa análise didática, optaremos por privilegiar
apenas uma das categorias para cada excerto do nosso corpus. Julgamos que as 15
crônicas por nós escolhidas, publicadas entre fevereiro e maio de 2007, são suficientes
para elucidarmos os objetivos almejados por este trabalho. Por fim, deve-se esclarecer,
ainda, que as crônicas de que nos valeremos são integralmente apresentadas somente no
anexo deste trabalho. No corpo de nossa análise serão contemplados os fragmentos
necessários à exemplificação de nossos argumentos. Entretanto, é importante destacar
que tais excertos não representam a totalidade dos casos em que se verifica a violência
contra a mulher nas crônicas por nós selecionadas. Assim, trabalharemos com um
número considerável de exemplos. Outros tantos, porém, ficarão de fora, devido aos
óbvios e inevitáveis limites deste estudo.
Para o desenvolvimento do nosso trabalho, no primeiro capítulo, nos ateremos à
biografia de José Simão, cujas crônicas nos servirão de corpus. A seguir, nos
direcionaremos para o aspecto da linguagem simionesca, descrevendo, por assim dizer,
a maneira como o escritor aborda de forma perspicaz e rápida temas do cotidiano sobre
política, corrupção, sexo, homossexualismo, esporte, modismos, gafes e outros,
provocando o riso no leitor, especialmente pela forma irreverente com que trabalha a
linguagem, abusando do tom caricaturesco e do uso de expressões grosseiras e
estereotipadas, não raro de caráter obsceno, generalizante e preconceituoso. Ainda nesse
11
capítulo, apresentaremos como corpus de pesquisa o jornal impresso, mais
precisamente, o jornal Folha de S.Paulo, uma vez que esse periódico é considerado um
dos veículos de informação de maior credibilidade do país, credibilidade esta reforçada
pelos mais de 80 anos que a empresa do Grupo Folha atua no segmento jornalístico.
Considerando o poder da imprensa na formação de opinião pública e mais restritamente,
o modo pelo qual a Folha orienta sua conduta no que diz respeito à seleção, organização
e transmissão de informações, julgamos importante pontuar alguns aspectos da história
do jornal em questão com o propósito de conhecermos a ideologia de seu projeto
editorial e o perfil de seu público leitor.
No segundo capítulo, para que compreendamos a linguagem das crônicas de
José Simão, o foco de nossa pesquisa concentrar-se-á na descrição da trajetória desse
gênero textual, desde a sua constituição a a época contemporânea. A princípio, a
crônica constituía-se em uma narrativa dos fatos ou registro de eventos de acordo com
sua ordem temporal no curso da história. Nesse sentido, havia uma preocupação com a
observação e registro objetivos dos fatos relacionados com o presente, com a atualidade
vivida. Nos dias atuais, a subjetividade do cronista é a maior característica desse gênero,
porém o tempo continua presente, que, agora, o tempo é aquele vivido também pelo
cronista e dominado por suas impressões e expectativas.
Quando pensamos em violência, a primeira referência de que nos valemos, ou
seja, sua primeira imagem é, normalmente, aquela expressa por meio da agressão sica,
legitimada pelo uso da força. Entretanto, pode-se dizer que nem sempre a violência se
apresenta como um ato, como uma relação, como um fato, que possuam uma estrutura
facilmente identificável. (cf. Odália, 2003, p.22). À medida que estiver escondida sob a
forma de preconceitos, leis, estereótipos, costumes e tradições cristalizados na
sociedade, a violência estará sendo consumada, pois, ao experimentar o sentimento de
privação, o indivíduo acaba por se sentir despojado, por razões que não lhe são claras,
de seus direitos como pessoa e como cidadão. (cf. ibid., p. 86).
É nesse sentido que, no terceiro capítulo, torna-se importante, a princípio, a
discussão dos conceitos e classificações da violência, pois, como veremos, a abordagem
acerca da violência dar-se-á dentro de uma perspectiva que não se restringe somente à
agressão sica ou a concepções puramente objetivas do fenômeno. Levando em
consideração que o objetivo desta pesquisa é o estudo, nas crônicas de José Simão, do
modo pelo qual a violência é construída na e pela linguagem, tendo como escopo as
mulheres, a existência de definições que contemplem não apenas a violência que deixa
12
marcas visíveis no corpo, mas também aquelas que afetam a subjetividade do indivíduo,
agredindo-os psíquica e moralmente, torna-se indispensável, pois a mídia, ao invés de
representar, (re)cria a realidade. (Dias, 2003). Daí, também, a importância de se
compreender a relação estabelecida entre mídia e violência.
Macaco Simão, ao brincar com o útil e o fútil, por meio do disfarce numa
suposta conversa sem rumo, trata com humor, leveza e informalidade, o que, de certa
forma, é motivo de revolta e indignação. Trata-se do riso como uma degradação
grotesca e carnavalesca do mundo, visto como uma lógica das coisas ao avesso, ao
contrário, “como um mundo ao revés.” (Bakhtin, 1996, p.57). Nesse aspecto, sendo algo
“não-sério”, o humor permite que, por meio dele, se façam e digam coisas que, fora
dele, as normas sociais não permitiriam. Assim, pode gerar ou intensificar preconceitos,
racismos e intolerâncias, sendo, portanto, também uma forma de violência. (cf.
Travaglia, 1989-90, p.50). Considerando esses aspectos e tendo em vista as crônicas que
nos servem de corpus, vamos analisar de que forma o cômico é construído, no que se
refere ao universo feminino e qual sua relação com a violência.
Por ser polissêmica e dialógica, a palavra traz marcas culturais, sociais e
históricas. Em situação de uso, a palavra vai se revestindo de sentidos, tons e valores.
(cf. Bakhtin, 1997, p.46-7). Dela emergem as significações que, conseqüentemente, se
fazem no espaço criado pelos interlocutores em um contexto sócio-histórico dado. Por
ser espaço gerador de sentido, é controlada, selecionada por meio dos mecanismos
sociais. E, diante disso, dependendo do interlocutor, da situação de uso, o falante
determina qual a melhor palavra a ser utilizada. (cf. Baccega, 2007, p.12). Nesse sentido
é que entra a importância da Análise do Discurso, ou seja, a possibilidade de perceber
como os sentidos se constituem. Inscrevendo-se em um quadro que articula o lingüístico
com o social, para a Análise do Discurso, a linguagem passa a ser um fenômeno que
deve ser estudado não em relação ao seu sistema interno, enquanto formação
lingüística a exigir de seus usuários uma competência específica, mas também enquanto
formação ideológica, que se manifesta por meio de uma competência socioideológica.”
(Brandão, 2004, p.17). Discutiremos esse assunto no quarto capítulo. Ainda nesse
capítulo, faremos uma reflexão acerca dos conceitos de status e papéis sociais, pois tais
conceitos, intimamente ligados, dizem respeito à participação do indivíduo no grupo
social. (cf. Preti, 2006, p.180). Pode-se dizer que, em função do status ocupado por uma
pessoa, ser-lhe-á cobrada a prática de certos comportamentos considerados convenientes
13
para tal posição, tais como uma postura ética adequada e aspectos ligados à sua
aparência, ao seu vestuário e à sua linguagem. (cf. ibid., p.181).
Para ser aceito e pertencer a um determinado grupo social, o indivíduo deve não
possuir, mas, sobretudo, manter os padrões de conduta e aparência que esse grupo
social espera dele. (cf. Goffman, 2007, p.74). Sob esse aspecto, pode-se dizer, então,
que o mundo estaria ordenado por códigos, passados de geração a geração, favorecendo
a perpetuação da estereotipia que, por função, defenderia as tradições culturais e
posições sociais de determinados grupos sociais. Em se tratando dos textos de José
Simão, no que se refere à construção da representação enviesada da figura da mulher,
mostraremos, também nesse capítulo, quais os estereótipos consagrados à imagem da
mulher e a sua estreita relação com o preconceito e a discriminação, bem como os
estereótipos veiculados e perpetuados pela mídia em relação ao sexo feminino.
No quinto capítulo, análise do corpus, pretendemos demonstrar como as
crônicas de José Simão constituem-se em uma das formas mais expressivas de
representação da violência contra a mulher, porque a intensifica, acentuando e
perpetuando estereótipos preconceituosos e generalizantes.
Feitas essas elucidações, iniciaremos nossa pesquisa com o propósito de
buscarmos as respostas a que nos propomos desde o início.
14
CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DO CORPUS DE PESQUISA
O objetivo desta pesquisa é analisar de que modo a linguagem, nas suas várias
manifestações, constitui, nas crônicas de José Simão, uma das formas mais expressivas
da representação da violência contra a mulher. Nesse sentido, para compreender a opção
que fizemos por seus textos, torna-se importante apresentar alguns aspectos, que
julgamos relevantes, acerca da biografia e da linguagem do autor. Considerando que as
crônicas de Simão são veiculadas no jornal Folha de S. Paulo, concebido como um dos
veículos de informação de maior prestígio e credibilidade do país, optamos por pontuar
alguns aspectos da história do jornal em questão com o propósito de conhecermos a
ideologia de seu projeto editorial e o perfil de seu público leitor.
Vale ressaltar que as crônicas de José Simão são veiculadas, no referido jornal,
desde 1987. Atualmente, os textos do autor são escritos de terça a domingo, no Caderno
Ilustrada. Como as crônicas de Simão não são publicadas às segundas-feiras, é
freqüente que aquelas editadas aos domingos recuperem não os fatos veiculados na
semana, mas também os comentários-piadas construídos pelo autor.
Para a seleção do corpus, pautamo-nos por dois critérios fundamentais. No
primeiro, de teor quantitativo, julgamos que as 15 crônicas, publicadas entre fevereiro e
maio de 2007, o suficientes para elucidarmos os objetivos a que nos propomos. No
segundo, consideramos como categorias de análise, nas crônicas de José Simão, a
violência consumada contra a mulher, seja pela qualidade moral, seja por sua forma
física, seja por aspectos culturais e sociais.
1.1 José Simão em foco: biografia do autor
DESCABELANDO O MACACO SIMÃO. Buemba! Buemba! O braço
armado da gandaia nacional está solto. No país da piada pronta, onde 200
pessoas morrem em acidente aéreo e o único preso é o dono do puteiro, onde
o presidente do Senado é absolvido e a amante vira capa da Playboy, só quem
nos redime é ele: José Simão, o esculhambador-geral da República, o macaco
mais festejado da imprensa brazuca, o colunista mais irreverente do País.
(Vannuchi, 2007, p.101)
15
São essas as palavras com as quais o jornalista da revista Brasileiros, Camilo
Vannuchi, apresenta José Simão, objeto da sua reportagem. É interessante observar que
a foto de Simão reluz, como pano de fundo, por todo o espaço da página. Não se trata de
uma foto qualquer, mas de uma foto que traduz bem o estilo irreverente e mordaz do
macaco Simão: os sobre a cabeça, boca bem aberta, testa franzida, cabelos
desarrumados, olhos atentos e arregalados (Anexo 1).
A harmonia entre a foto e as palavras foi exemplar, visto que, por meio do elo
estabelecido entre o visual e o verbal, o jornalista captou, a nosso ver, a essência
parodística do riso provocado por José Simão, a saber, uma nova maneira de ler o que
nos é tido, habitualmente, como convencional. Isso ocorre na medida em que é o
próprio homem que imita o macaco e, de maneira análoga, torna-se evidente o caráter
parodístico expresso em “onde 200 pessoas morrem em acidente aéreo e o único preso
é o dono do puteiro”. (Vannuchi, 2007, p.101).
José Simão nasceu na Vila Mariana, em São Paulo, em meados dos anos 40.
Ainda no colégio, por causa de seu sobrenome, ganhou o apelido de Macaco Simão,
nome de um personagem infantil que, mais tarde, viria a consagrá-lo de maneira
definitiva como um dos cronistas mais lidos do país. É relevante observarmos a
justificativa do próprio Simão a respeito da decisão de adotar esse apelido de infância e
tomá-lo como sua própria marca registrada:
E no começo da coluna, quando eu tava escrevendo, tal... eu me achava
parecido com um macaco, né? E... ah, eu vou usar um codinome chamado
Macaco Simão, você pode cair no ridículo ou não, mas não tive medo do
ridículo e pegou. Todo mundo ama macaco... no inconsciente infantil de
todo mundo. O macaco pode mais, é mais esperto, é mais tolerado! Macaco é
assim mesmo, que também é uma coisa bem brasileira. (Sio, 2007, p.45)
Na hora de escolher uma profissão, entre Engenharia e Medicina, José Simão
optou pelo Direito e entrou para o Largo de São Francisco, em São Paulo, em 1969.
Entretanto, abandonou o curso três anos depois. Foi para Londres, onde morou um ano
e meio, e fez alguns trabalhos para a BBC. Voltou para o Rio de Janeiro e durante dois
anos ficou batendo palma pro pôr-do-sol e assistindo o show da Gal toda noite.”
1
Morou um tempo na Bahia e, no final dos anos 70, abriu em São Paulo uma filial de um
1
Fonte: http://www2.uol.com.br/josesimao/biografia.htm. Acesso em: 05/01/08.
16
agitado boteco de Salvador. Nesse período, Simão conheceu o poeta Waly Salomão,
freqüentador assíduo do local, e este o apresentou à Folha.
Foi assim que, no ano de 1987, o jornalismo entrou na vida de José Simão,
quando ele começou a escrever para o suplemento Casa e Companhia, da Folha de S.
Paulo. No mesmo ano, foi convidado, pelos editores do caderno Folha Ilustrada, a
assinar uma coluna que, inicialmente, pretendia fazer comentários sobre programas
televisivos. Em 1989, a coluna começou a abordar outros assuntos que também eram
destaque na televisão. Atualmente, José Simão, além de escrever diariamente, exceto às
segundas-feiras, em uma das colunas mais lidas da Folha, também entra ao vivo de
terça a sexta no programa de rádio Buemba! Buemba!, gravado com Ricardo Boechat
e transmitido pela Band News FM; atualiza um site oficial próprio; mantém um quadro
no Portal UOL, o Monkey News; apresenta um programa musical de rádio na Internet, o
Ondas Latinas; e acaba de lançar o livro José Simão: no país da Piada Pronta. A título
de curiosidade, são dele também os livros Folias brejeiras (1986), Macaco Simão no
cipó das onze (1991), Guia do llamagate (1992), Macaco Simão no tetra (1994) e
Macaco Simão em nóis sofre mas nóis goza (2000). Por fim, vale lembrar que Simão,
em conjunto com Lenora de Barros, traduziu os livros O Mono Gramático, de Octávio
Paz, e Memórias de um amante desastrado, de Groucho Marx.
Marco Antonio Araújo, jornalista da Revista Língua Portuguesa, em entrevista a
José Simão, ao questionar se este se considerava mais um jornalista, um humorista ou
cronista, obteve a seguinte resposta do entrevistado:
Humorista. o de besteirol. Meu humorismo é todo crítico, social. Eu não
faço piada, eu faço ‘tiradas’, chistes. Na verdade, eu detesto piada, detesto
que me contem piada. Se ela não for muito inteligente, se não houver uma
sacada de linguagem, não me interessa. (Araújo, 2007, p.15)
A materialização, nas crônicas de Simão, desse humor crítico e social provém de
situações e fatos absurdos que se lhe afiguram rotineiramente:
Percebi que tudo é feito pela tevê. O presidente foi eleito e caiu por causa da
tevê. Tudo o que escrevo é o que vi na tevê. O Brasil é um país alfabetizado
17
visualmente. As pessoas são influenciadas. Se o Galvão Bueno mandar o
povo se atirar pela janela, tem gente que se atira.
2
De certa forma, todos nós, vez ou outra, nos identificamos com Simão sob certos
aspectos, na medida em que o autor transforma-se em uma espécie de porta voz dos
nossos impulsos reprimidos. É o caso, por exemplo, das inúmeras vezes que sentimos
vontade de insultar moralmente e cobrar atitudes lícitas de certos políticos, mas não o
fazemos. É que entra a perspicácia do Macaco Simão, que nos faz sentir, por meio de
seus ataques impiedosos, recompensados e vingados.
E é nesta perspectiva que o escritor define sua coluna como um “telejornal
humorístico”, no qual aborda “os três temas que mais deliciam os brasileiros: sexo,
política e futebol. Trio elétrico do brasileiro: real, bunda e bola!”
3
Como podemos verificar em algumas crônicas do corpus, José Simão direciona
seus comentários especialmente a personalidades nacionais e internacionais do mundo
artístico, televisivo e político. Com relação às mulheres, um dos alvos prediletos de
Simão é a apresentadora Luciana Gimenez, designada por ele como Lucianta, alusão
claríssima às inúmeras impropriedades ditas pela apresentadora durante o seu programa
diário, levado ao ar pela Rede TV. Com respeito às improvisações da morena diante das
câmeras, Simão enfatiza: ficar três minutos vendo o programa dela que rende
piada. E a Lucianta Gimenez o é transgênica, é antagênica. E ela vai apresentar um
programa com todos os seus micos. Assumiu a antice! Vai ser um programa
ANTAlógico. Antalogia da Lucianta. falta passar no Antaquistão!" (Sallum, 2003).
Na política, por exemplo, o Macaco dirige suas farpas à Marta Suplicy, alcunhada por
vezes de Mala Suplicy, Martox, Martícia Adams ou então, prefesteira: "E um amigo me
disse que vai votar na Marta porque ela é PT: Perua de Tailleur! Databotox informa: a
Marta subiu 14 pontos. Fez lifting! Foi pruma clínica e pediu: 'Daria pra fazer um lifting
na minha popularidade?'." (ibid, 2003).
1.1.1 A linguagem de José Simão
Por meio da estrutura da língua(gem) e dos recursos lingüísticos de cada idioma
é que se constroem, por parte dos diferentes usuários, os mais diferentes tipos de textos.
2
Fonte: http://www.terra.com.br/istoegente/152/entrevista/index_2.htm. Acesso 06/02/08.
3
Fonte: http://www2.uol.com.br/josesimao/biografia.htm. Acesso em: 05/01/2008.
18
Entretanto, nem todos os usuários de determinada língua, visando atender objetivos
específicos, têm a facilidade de usar, com êxito, a estrutura sintática, morfológica,
léxica e fonológica para a elaboração de seus textos. José Simão é um dos que sabe
perfeitamente como usar as estratégias da língua(gem) de forma a suscitar, nos seus
milhares de leitores, um sorriso, uma risada, uma gargalhada. (cf. Schmitz, 2007, p.19).
Ao abordar de forma perspicaz e rápida temas do cotidiano sobre economia,
política, corrupção, sexo, homossexualismo, esporte, modismos, gafes e outros, Simão
provoca o riso no leitor, especialmente pela forma irreverente com que trabalha a
linguagem, abusando do tom caricaturesco e do uso de expressões grosseiras e
estereotipadas, não raro de caráter obsceno, generalizante e preconceituoso. Assim, a
malícia para espiar o mundo gera uma linguagem de duplo-sentido, cheia de
insinuações. Brinca-se com as possibilidades de significados e com a sonoridade das
palavras para produzir o instante prazeroso de uma nova e desconcertante revelação.
Com uma linguagem bastante coloquial, Simão oraliza seus textos valendo-se,
por exemplo, de: a) onomatopéias: Rarará!; Ueba!; huuuuuum; ops; b) reduções
típicas do cotidiano: pra (para); (está verbo estar); duma (de uma); c) transcrições
da pronúncia popular: nóis (nós); inha (velhinha); gírias: sacanagem; deprê; soltou a
franga; d) aumentativos, próprios da linguagem afetiva: maridão; Ricardão; e)
marcadores conversacionais: ai; ah; e (iniciando frases); f) uso de expressões
normalmente usadas durante uma conversa: e diz que; e um amigo me disse; vou cair
fora. Essa aproximação com a ngua oral o tom informal, propício às gozações e
críticas feitas pelo Macaco Simão.
José Simão também cria neologismos para efeito humorístico. O aeroporto de
Congonhas se torna Cãogonhas, Pombonhas e até Cagonhas e o outro, Cumplica em
vez de Cumbica; o salário mínimo é ironicamente ressignificado como o salafrário
mínimo e o horário eleitoral como o hilário eleitoral. O que provoca o riso é, sem
dúvida, o tom de surpresa que essas novas palavras suscitam, já que os leitores se
deparam com formas e efeitos de sentido inesperados. de se acrescentar que os
neologismos criados por Simão também se originam da fusão de dois vocábulos, pois
loira e morena se juntam com as palavras anta para formar loiranta e morenanta,
respectivamente.
Os estrangeirismos também fazem parte da linguagem de Simão e contribuem
para o próprio efeito pragmático e humorístico de seus textos. É importante considerar
que os seus leitores têm uma conscientização político-social e também conhecem
19
diferentes línguas estrangeiras. (cf. Araújo, 2007, p.20). Assim, por exemplo, frases
como “‘The pinga is on the table’ e ‘I lobby you’ refletem acontecimentos na própria
vida do país e um bom entendedor faz a ligação com a surrada frase, muito freqüente
nos livros didáticos de inglês: The book is on the table’ e a declaração nem sempre
sincera ‘I love You!’” (ibid., p.20).
Os textos de Simão incorporam os sotaques e expressões mais espontâneos
colhidos Brasil afora. Desde 1987, quando a primeira coluna foi publicada, Simão
popularizou uma série de bordões que caíram no gosto dos leitores. Entretanto, confessa
que alguns dos bordões e expressões utilizados por ele não são criações suas (Sallum,
2003). Dessa forma, relata que, de Ibrahim Sued (1924-1995), famoso colunista social,
adotou a expressão Bomba! Bomba!, transformando-a em Buemba! Buemba!, pois, essa
nova versão, criada para chamar a atenção, revela o caráter melodramático e irreverente
em relação à própria ngua. Ainda a respeito dessa expressão, que abre sua coluna
diária, podemos acrescentar que tal expressão sinaliza que teremos notícias atuais e
sugere também que o conteúdo dessas notícias não é muito sério, dado pela palavra
buemba (que não existe na língua espanhola, por sinal). Hoje, amanhã, é linguagem
de rua da Bahia. A expressão Quem fica parado é poste é citação da marchinha Eu
Quero Rebolar, gravada por Risadinha nos anos 50 do século passado. O braço armado
da gandaia nacional foi sugestão de uma assessora de Marina Silva, ministra do Meio
Ambiente. De um leitor recebeu a famosa expressão com a qual freqüentemente encerra
as suas crônicas: Vou pingar meu colírio alucinógeno. Por fim, Nóis sofre, mas nóis
goza é inspirada em um bloco carnavalesco de Olinda e sintetiza a liberdade, o superar a
opressão, pois mostra a vingança do povo injustiçado. (cf. op. cit.).
1.2 O jornal Folha de S. Paulo
4
A história da Folha de S. Paulo tem início em 1921, ano em que foi criado, por
Olival Costa e seu sócio Pedro Cunha, o jornal Folha da Noite. É importante ressaltar
que o cenário que se afigurava nessa época era de agitação social, econômica,
ideológica e política representado pelas crises do café e do federalismo oligárquico,
pela crescente organização operária e pelo aparecimento de novos partidos políticos.
4
As informações, a respeito do histórico que apresentaremos sobre a Folha de S. Paulo, foram elaboradas
segundo informações constantes do Manual da Redação do jornal e também por meio do endereço
eletrônico http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/historia_folha.htm (acesso em 28/01/08).
20
Pode-se dizer que o objetivo do jornal priorizava, justamente, atrair para si
leitores das classes dias e urbanas e da classe operária. É por essa razão que a Folha
foi responsável pelo lançamento de campanhas a favor do voto secreto, tendo também
tomado posição de apoio ao tenentismo e ao Partido Democrático.
O ano de 1925 marca o surgimento do jornal Folha da Manhã, que viria a ser a
edição matutina do Folha da Noite. Ambos os periódicos apresentavam, praticamente, o
mesmo conteúdo. O que os diferenciava, porém, é que o primeiro dirigia-se aos
operários e às classes trabalhadoras, ao passo que o segundo tinha como leitores os
profissionais liberais e empresários.
Em 1930, aproximadamente por um ano, esses periódicos deixam de circular
quando uma nova direção assume o grupo Folha. O jornal foi comprado por Octaviano
Alves de Lima, um cafeicultor, que alterou a razão social do grupo para Empresa Folha
da Manhã S.A. A linha editorial do jornal passou a ser marcada pela defesa dos
interesses dos produtores rurais paulistas, assim como pregava o liberalismo e se
opunha ao Estado Novo, além de lançar uma campanha pela saúde pública. Com uma
estratégia agressiva, o jornal aumentou a tiragem de 15 mil para 80 mil exemplares.
O jornalista José Nabantino Ramos assumiu o controle acionário da empresa
em 1945, ano em que o jornal muda sua postura editorial. Exacerba-se, contudo, a
preocupação em manter jornais imparciais, isto é, identificados com idéias, mas não
com partidos. Tendo como meta atrair leitores das classes médias urbanas do Estado, o
jornal passa a defender o ensino público e a cédula única.
Em 1949 é lançado o jornal a Folha da Tarde e, em 1958, a Folha, embora
fizesse a cobertura de assuntos ligados à cultura e variedades desde a sua fundação, cria
um caderno específico para esse fim: a Ilustrada.
Em 1960 ocorre a fusão dos três títulos (Folha da Manhã, Folha da Tarde e
Folha da Noite) em um único, que daria origem ao atual Folha de S. Paulo, que
prevalece até os dias atuais. No dia 13 de agosto de 1962, os empresários Octávio Frias
de Oliveira e Carlos Caldeira Filho assumiram o controle acionário da empresa.
O ano de 1963 tem como foco principal o lançamento do jornal Notícias
Populares, que passou a fazer parte do Grupo Folha a partir de 1965. Trata-se de um
jornal que apresentava uma linguagem mais direta, numa linha sensacionalista destinado
à grande massa, com grande ênfase em assuntos policiais, sexo e assuntos bizarros. E,
em 1967, a empresa opta pela volta da circulação do jornal Folha da Tarde, cuja edição
havia sido suspensa desde o lançamento da Folha de S. Paulo, em 1960.
21
A Folha, em 1976, marca sua presença no processo de vanguarda da luta pela
redemocratização do Brasil, por meio da publicação das idéias de representantes da
sociedade civil. A coluna Tendências e Debates passa a abrigar espaço para as
discussões com a publicação de artigos de intelectuais e políticos das mais variadas
linhas ideológicas, inclusive aqueles perseguidos pela ditadura militar.
A década de oitenta marcaria a consolidação do projeto da Folha de S. Paulo em
se tornar o maior periódico de circulação no Brasil. Assim, em 1981, circula no jornal o
documento intitulado “A Folha e alguns passos que é preciso dar”, destacando o projeto
editorial calcado nas metas de correção da informação, interpretação e pluralidade de
opiniões sobre os fatos levantados. O ano de 1983 marca o início das atividades de
pesquisas do jornal, o Datafolha, que passa não a atender às demandas internas, mas
também à prestação de serviços para o mercado. Em 1984 a Folha liderava a campanha
das Diretas-Já!:
De qualquer forma, a experiência das “Diretas-Já!” provou que um jornal não
é um produto a ser gerenciado com mais ou menos competência; quando
conquista a confiança e atrai as expectativas do público, torna-se uma
entidade social e cultural, carregada de emoções, alimentando processos
complexos de comunicação com informações, análises e opiniões que podem
contribuir para mudar os rumos de povos e nações. (Chaparro, 1994, p.92)
Nesse mesmo ano, após o término do regime militar, surge a primeira edição do
Manual da Redação, explicitando as normas e estratégias do jornal. Os anos noventa
viriam marcar o processo de renovação contínua do jornal e a sua consolidação como
órgão diário de informação de abrangência nacional. Em 1991, o jornal apresenta uma
nova organização em cadernos de circulação diária. Além do caderno, tradicional,
Ilustrada, passam a ser editados os cadernos Brasil, Mundo, Dinheiro, Cotidiano e
Esporte. Nesse mesmo ano, as ações da empresa Folha da Manhã S.A., que pertenciam
a Carlos Caldeira Filho, passaram a Octavio Frias de Oliveira. O ano de 1992 marca a
consolidação do jornal como o de maior circulação aos domingos e também marca o
início da circulação diária da primeira página em cores. Além do mais, são lançados o
caderno Mais! e a Revista da Folha. Em 1994, a Folha é citada no Guinness Book, o
livro dos recordes, se tornando, assim, o primeiro jornal brasileiro a ultrapassar a
tiragem de um milhão de exemplares diários. E, a partir de 1996, a Folha passa a liderar
também o segmento de classificados. No mesmo ano, é lançado o Universo Online e,
22
posteriormente, ocorre a fusão deste com o Brasil Online (grupo Abril), constituindo-se
em uma nova empresa, a Universo Online S.A.
Em 1998 é lançado o caderno Folhainvest, cujo foco era o de análise do mercado
financeiro. No ano seguinte, o jornal Agora substitui a Folha da Tarde. A proposta
deste jornal apresentava um visual moderno e direcionado ao trabalhador paulistano.
No ano 2000, além do lançamento de um novo jornal econômico, intitulado
Valor, o Grupo Folha amplia seu projeto Folha Online, a versão em tempo real do
jornal. É introduzido também no mercado o caderno Equilíbrio, dedicado à questão da
qualidade de vida. Somando-se a isso, começa a circular junto com o jornal uma
compilação semanal de matérias e artigos do The New York Times. Por fim, no dia 20 de
janeiro de 2001, circula pela última vez a edição do Notícias Populares.
1.2.1 Projeto Editorial
5
No Projeto Editorial da Folha de S.Paulo, referente à década de oitenta, foi
cristalizada uma concepção de jornalismo definido como crítico, pluralista e apartidário.
Tais valores adquiriram a característica doutrinária que está impregnada na
personalidade do jornal e que ajudou a moldar o estilo da imprensa brasileira no
período. (cf. Manual da Redação da Folha de S. Paulo, 2001, p.17).
Cabe questionar, porém, à luz das transformações sumariadas acima, se a
implementação desses valores não deveria passar por revisão também, a com a
finalidade de sacudir os automatismos fixados pelo hábito, afinal, a mania de se
considerar insatisfeito consigo mesmo é uma característica peculiar do jornal: “Jornal
existe para incomodar os governos. Não importa se ele é bom ou ruim, incomodar é um
dos poucos serviços públicos que a imprensa presta. E incomodar é interpelar, criticar,
duvidar, ir contra a corrente’’, diz Frias Filho.
Agora, referindo-se à Folha de S. Paulo, Frias faz uma crítica contundente:
A Folha anda muito morna e acomodada. A responsabilidade por isso é da
equipe inteira, a começar por mim. Em vez de comemorar, precisamos
sacudir o jornal, colocá-lo novamente em crise, pois o sentimento de crise é
que o obriga a melhorar.
5
As informações, acerca da linha editorial da Folha de S. Paulo, foram elaboradas segundo pesquisa
encontrada em http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/futuro.shtml. Acesso em 04/02/08. As
declarações de Frias Filho também foram extraídas dessa página da internet.
23
É nesse contexto que surge o Projeto Editorial que a Folha publicou em 1997,
cabe dizer, o mais recente de uma série de documentos que o jornal começou a divulgar
em 1981 com o propósito de ordenar seus procedimentos e estabelecer suas prioridades
editoriais.
Assim, sob o título “Caos da Informação exige jornalismo mais seletivo,
qualificado e didático”, o texto desse projeto parte do diagnóstico de que a revolução
tecnológica e o advento da Internet, com a saturação de informações, multiplicaram,
inevitavelmente, a quantidade e os meios de acesso à informação. Dessa forma, o jornal
impresso ou on line deveria passar por processo de reorientação de modo a evitar,
dentre outras coisas, a dispersão do público.
Sobre essa questão, é importante atentar para o texto do Projeto, que preconiza:
a utilidade dos jornais crescerá se eles conseguirem não apenas organizar a
informação inespecífica, aquela que potencialmente interessa a toda pessoa
alfabetizada, como também torná-la compreensível em seus nexos e
articulações, exatamente para garantir seu trânsito em meio à
heterogeneidade de um público fragmentário e dispersivo.
Diante do exposto, verificamos que, a partir do novo Projeto, o jornalismo teria
de fazer frente a uma exigência qualitativa superior à do passado, refinando, por assim
dizer, sua capacidade de selecionar, didatizar e analisar. Entretanto, como defende Frias,
isso não significa que o jornalismo deva aplacar a sua disposição crítica, mas refiná-la e
torná-la mais aguda num ambiente que não é mais dicotômico, no qual o debate técnico
substituiu, em boa medida, o debate ideológico. Assim, acredita-se que o leitor da Folha
deve, portanto, assegurar seu direito de acesso a todas as possibilidades de interpretação
e a atitude apartidária, que veda alinhamentos automáticos e obriga a um tratamento
distanciado em relação às correntes de interesse que atuam sobre os fatos, não pode
servir de “álibi para uma neutralidade acomodada”
6
, quando não satisfeita em hostilizar
por hostilizar.
Atendendo aos propósitos de nossa pesquisa, julgamos importante transcrever,
de acordo com o projeto editorial da Folha, o modo pelo qual o jornal orienta sua
conduta em relação ao tratamento às mulheres:
6
Expressão retirada do Manual da Redação (Folha de São Paulo, 2001, p.17).
24
Trate mulheres que são personagens de notícia da mesma forma que homens.
Informe sua profissão ou cargo e também a idade (...) Evite o uso de
expressões estereotipadas (...). Não mencione características físicas, a menos
que citá-las seja relevante para a notícia.
7
Com respeito a essa questão, a partir da análise do nosso corpus, nossa intenção
é constatar até que ponto o tratamento que José Simão dispensa às mulheres é
condizente com as orientações do projeto editorial da Folha.
Após a pormenorização das intenções ideológicas do jornal, a seguir,
mostraremos como se a seleção, na Folha de S. Paulo, dos assuntos a serem tratados
como notícia.
1.2.2 O mito da objetividade
Retratar a sociedade, suas histórias e personagens requer, da parte de quem
escreve os fatos, estratégias discursivas para enunciar as informações. Diante das
inúmeras possibilidades de abordar os fatos, que, por sua vez, podem gerar diferentes
interpretações da realidade e, conseqüentemente, distintas maneiras de exposição destes
pelos jornalistas, verifica-se, portanto, a necessidade de o jornal estabelecer critérios de
seleção e hierarquização dos fatos a fim de definir quem (ou o quê) merece ser tratado
como notícia. Sob esse aspecto, a título de ilustração, vejamos o modo pelo qual a Folha
de S. Paulo resume tais critérios:
a) Ineditismo: a notícia inédita é a mais importante do que a já publicada;
b) Improbabilidade: a notícia menos provável é mais importante do que a
esperada;
c) Interesse: quanto mais pessoas possam ter a sua vida afetada pela notícia,
mais importante ela é;
d) Apelo: quanto maior a curiosidade que a notícia possa despertar, mais
importante ela é;
e) Empatia: quanto mais pessoas puderem se identificar com o personagem e
a situação da notícia, mais importante ela é. (Novo manual da Redação
1992, p.35)
7
Citação retirada da página http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/manual_texto_m.htm
25
Diante desse quadro, evidencia-se que a seleção de um fato a ser noticiado pelo
jornal, em detrimento de outro, pode ser explicada em função da sua importância como
“mercadoria” a ser consumida pelos leitores, a saber, o fato que pode gerar maiores
conseqüências para o mundo, para a sociedade e para os leitores; o fato que desperta
curiosidade ou aquele que é objeto de maior identificação entre o público leitor e a
personagem ou a situação do ocorrido; o fato mais inesperado e aqueles que os
poderosos têm interesse em ocultar.
Deve-se considerar que imprensa desempenha, claramente, um papel-chave na
batalha para ganhar as mentes e corações dos segmentos sociais que, no Brasil ao
menos, formam o que se chama de opinião pública, ou seja, a classe média principal
responsável pelo consumo de jornais e revistas em um país onde se pouco. (cf. Rossi,
2006, p.8). Rossi explica que essa batalha, entretanto, é “temperada pelo mito da
objetividade que a maior parte da imprensa importou dos padrões norte americanos.”
(ibid., p.9).
De acordo com o mito da objetividade, a imprensa deveria colocar-se numa
posição neutra e publicar tudo o que ocorresse, deixando ao leitor a tarefa de tirar suas
próprias conclusões. Se fosse possível praticar a objetividade e a neutralidade, a batalha
pelas mentes e corações dos leitores ficaria circunscrita à página de editoriais, ou seja, à
página que veicula a opinião dos proprietários de uma determinada publicação. (cf.
ibid., p.9) Com isso, a evidência de que a objetividade é impossível acabou por
transferi-la a todas as páginas dos jornais. Isso ocorre, pois, entre o fato e a versão que
dele publica qualquer veículo de comunicação de massa, há a mediação de um jornalista
(não raro, de vários jornalistas), que carrega consigo toda uma formação cultural, todo
um background pessoal, eventualmente opiniões muito firmes a respeito do próprio fato
que está testemunhando, o que o leva a ver o fato de maneira distinta de outro
companheiro com formação, background e opiniões diversas. (cf. ibid.)
Curiosamente, ainda a respeito da questão da objetividade, vejamos o que diz o
Manual da Redação da Folha de S. Paulo:
Não existe objetividade em jornalismo. Ao escolher um assunto, redigir um
texto e editá-lo, o jornalista toma decisões em larga medida subjetivas,
influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções. Isso não o
exime, porém, da obrigação de ser o mais objetivo possível. Para relatar um
fato com fidelidade, reproduzir a forma, as circunstâncias e as repercussões, o
26
jornalista precisa encarar o fato com distanciamento e frieza, o que não
significa apatia nem desinteresse. (2001, p.28)
A propósito desse assunto, verifica-se, sobremaneira, que o jornalista
automaticamente impõe uma visão particular ao selecionar aquilo que vai ganhar espaço
no jornal e o que vai ficar de fora, ao decidir o espaço que cada matéria poderá utilizar,
ao escolher as fotos que serão veiculadas e suas posições nas páginas, as palavras que
são permitidas e as que são proibidas, o tipo de letra, a perspectiva que o repórter deve
adotar para tratar de certo assunto, que fragmento da cena” deve iluminar e qual deve
obscurecer. Além do mais, a parcialidade também pode ser percebida, não somente pelo
que se diz, mas, sobretudo, por aquilo que deixa de se dizer. Assim, omitir algo de
importante ou oferecer um espaço menor, um destaque menos pronunciado, a algo que
merecia holofotes, é uma forma de parcializar o jornalismo.
Por fim, torna-se claro que nunca se é inteiramente subjetivo nem totalmente
objetivo na relação de apreensão e conhecimento do real. Todavia, é possível proceder
mais ou menos objetivamente ou subjetivamente, e é esta noção que é fundamental
reter: a da possibilidade concreta de buscar a objetividade e de tentar aproximar-se ao
máximo dela. (cf. Abramo, 2003, p. 39).
1.2.3 Perfil do leitor
8
O resultado da pesquisa intitulada “Perfil do Leitor”, promovida pelo Instituto
Datafolha em meados do ano 2000, esboçara o perfil do leitor pico da Folha de S.
Paulo como sendo um leitor com idade média de 40 anos, apresentando um alto padrão
de renda e escolaridade. Assim, esse leitor padrão pertenceria à classe A ou B, seria
casado, teria formação superior (aproximadamente 67% cursaram faculdade e 17%
fizeram pós-graduação), teria acesso à Internet e à TV por assinatura, estaria empregado
no setor formal da economia e, por fim, teria renda individual na faixa que vai até
quinze salários mínimos e familiar na que ultrapassa os trinta mínimos.
Octavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, explica que o fato de o leitor
estar ficando mais velho e mais instruído, nada mais é do que o reflexo da inserção do
jornal no establishment da opinião pública brasileira”, ou seja, de se tornar porta-voz
8
As informações, acerca do perfil do leitor da Folha de S. Paulo, foram elaboradas segundo pesquisa
encontrada em http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/quem_e_o_leitor.shtml (acesso em 04/02/08).
27
dessa elite (conservadora). Já a perda da participação dos leitores mais jovens, de
acordo com Frias, explica-se, em parte, pela característica mais refratária à leitura nesse
segmento, comprovada em pesquisas de opinião. O jornalista ainda admite que essa
perda também é sintoma de uma falha do próprio jornal no modo de atrair esse público
mais jovem.
Nessa perspectiva, a fim de sustentar e atrair um público mais heterogêneo, o
objetivo da Folha é justamente o de compatibilizar os interesses de um leitor cada vez
mais encerrado em seu universo individual com um jornalismo que apresente atitudes
mais agressivas e independentes e que seja capaz de lançar nova luz sobre uma
sociedade civil atualmente diferente, pulverizada e flexível.
1.2.3.1 Perfil do leitor das crônicas de José Simão
José Simão escreve uma coluna diária na Folha de S. Paulo, com a qual detém,
há quase 20 anos, o maior índice de leitura num dos maiores jornais do país. (cf. Araújo,
2007, p.13). Manter-se atualizado para escrever a coluna mais lida desse jornal
representa para o jornalista uma rotina bastante disciplinada que envolve a leitura de,
pelo menos, quatro jornais e dos emails que lhe são enviados por leitores de todo o
Brasil, bem como o zapear por diversos canais de televisão.
9
Todavia, não pára aí: “Eu
vou de carro lendo todos os outdoors, todas as faixas.” (Araújo, op.cit., p.13). Além
disso, Simão “aproveita para captar, de orelhada, a voz rouca das ruas” (Vannuchi,
2007, p.102), voz essa que envolve desde pessoas famosas ao porteiro do prédio onde
reside ou até clientes da padaria da esquina. (cf. ibid.). Comprova-se, dessa forma, que a
coluna de Simão é caracterizada como uma fonte variada de informações, que vão desde
economia e política, até esportes e entretenimento.
Assim sendo, pode-se dizer que as crônicas de José Simão pressupõem um leitor
bem informado, que acompanhe o jornal diariamente ou que mantenha contato com
outras mídias, como rádio, televisão, Internet, e que saiba qual é o barulho do dia”
10
.
Levando em consideração que os comentários de Simão geralmente são transmitidos de
forma sintética, havendo neles muitas alusões que contam com a necessidade de outras
informações ou detalhes não expressos no texto, presume-se que o autor espera, de
antemão, que seu leitor esteja inteirado acerca dos comentários e acontecimentos
9
http://www.terra.com.br/istoegente/152/entrevista/index_2.htm
10
Fonte da expressão “barulho do dia”: (Araújo, 2007, p.15)
28
narrados nas crônicas, pois, parodiando Eco (2002), quando o autor produz um texto,
faz uma hipótese sobre como este será lido, que caminhos o leitor deve percorrer, bem
como uma previsão de como seesse leitor. Sob essa perspectiva, para Eco (cf. ibid.,
p.39), o Autor-Modelo realiza uma dupla estratégia textual, pois ele pressupõe e institui
a competência do próprio Leitor-Modelo. Assim, o autor, como um estrategista, calcula
os movimentos de seu leitor, com uma grande distinção: o autor quer levar o adversário
(leitor) a vencer, ao invés de perder: “Por conseguinte, preverá um Leitor-Modelo capaz
de cooperar para a atualização textual como ele, o autor, pensava, e movimentar-se
interpretativamente conforme ele se movimentou gerativamente.” (ibid., p. 39)
Seguindo essa linha de raciocínio, torna-se claro que - se por um motivo ou
outro - o leitor não compreender as “tiradas” de José Simão, mesmo assim, esse leitor
pressuposto e instituído, ciente de que os jogos de palavras e as brincadeiras verbais
relacionam-se a acontecimentos recentes, certamente mobilizará seus conhecimentos
prévios (lingüísticos, textuais e de mundo) para dar coerência às possibilidades
significativas dessas crônicas. Nesse sentido, pode-se dizer que a operação do leitor para
pôr em funcionamento o texto, nada mais é do que uma atividade cooperativa de
recriação do que é omitido, de preenchimento de lacunas, de desvendamento do que se
oculta nos interstícios do tecido textual.
Apresentado o corpus de pesquisa de nossa dissertação, trataremos, no próximo
capítulo, de estudar alguns aspectos da crônica que julgamos relevantes, tendo em vista
que os textos de José Simão são categorizados de acordo com esse gênero textual.
29
CAPÍTULO 2 - A CRÔNICA
Onde cabem as pequenas coisas do cotidiano? Como registrar a história nossa
de cada dia, não necessariamente a História? Como tornar o eterno
instantâneo? Como captar a conversa fiada, os pequenos sentimentos, as
coisinhas, nossas ou alheias? (Bender e Laurito, 1993, p.43)
Neste capítulo, nos direcionaremos ao estudo da crônica, descrevendo, num
primeiro momento, em linhas gerais, a trajetória desse gênero textual, desde o seu
processo de constituição até a atualidade. Considerando que a linguagem da crônica é
permeada por marcas da oralidade, com jeito de conversa fiada, em que seu formato é
obtido, por essa razão, por meio do diálogo entre o escrito e o falado, confirma-se que a
crônica é caracterizada como gênero híbrido. Discutiremos essa questão a seguir.
Depois, focaremos nossa atenção para o estudo da crônica enquanto gênero jornalístico,
tendo em vista que as crônicas que nos servem de corpus são veiculadas no jornal Folha
de S. Paulo. Dando prosseguimento a esse estudo, refletiremos acerca de alguns
posicionamentos que contribuem para caracterizar a crônica como um gênero
tipicamente brasileiro. Feitas essas elucidações, relevantes para compreendermos a
linguagem de José Simão, trataremos, por fim, de caracterizar, sob alguns aspectos, as
crônicas desse autor.
2.1 Constituição e o processo de transformação
A crônica constituía-se, a princípio, em uma narrativa dos fatos ou registro de
eventos de acordo com sua ordem temporal no curso da história:
Do Grego chronikós, relativo a tempo (chrónos), pelo Latin chronica (m), o
vocábulo “crônica” designava, no início da era cristã, uma lista ou relação de
acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em seqüência
cronológica. Situada entre os anais e a História, limitava-se a registrar os
eventos sem aprofundar-lhes as causas ou tentar interpretá-los. (Moisés,
1983, p. 245)
30
De acordo com Melo (2002), a crônica constitui suas primeiras expressões
escritas com raízes na história e na literatura. Nesse sentido, as primeiras crônicas
seriam os grandes relatos históricos, feitos em ordem cronológica, desde as narrativas
do historiador grego Heródoto até as Cartas de Pero Vaz de Caminha
11
. Segundo o
autor, nesse primeiro momento, a crônica era produzida por “expectadores
privilegiados” – os viajantes, que escreviam impressões de paisagens e de nativos.
Nesse sentido, pode-se dizer que a crônica histórica assume, portanto, o caráter de relato
circunstanciado sobre feitos, cenários e personagens, a partir da observação do próprio
narrador ou tomando como fonte de referência as informações coligidas junto a
protagonistas ou testemunhas oculares.
A Carta de Pero Vaz de Caminha, citada anteriormente, é uma das mais famosas
crônicas da história da literatura luso-brasileira e corresponde à definição de crônica
como "narração histórica".
Segundo Bosi (1976, p.4), a Carta, “enquanto informação, não pertence à
categoria do literário, mas à pura crônica histórica”. Bosi pontua que, nela, encontramos
registros sobre a natureza e o homem brasileiro e essa característica, eminentemente
informativa, estender-se-á praticamente até o século XIX. Em contrapartida, sob a
perspectiva de (2005, p.5), a Carta se apresenta como início da estruturação da
crônica no Brasil e o texto de Caminha é criação de um cronista no melhor sentido
literário do termo, pois ele recria com engenho e arte tudo o que ele registra no contato
direto com os índios e seus costumes.”
Não nos cabe, aqui, pôr em discussão o valor literário da Carta de Caminha, mas
interessa-nos o fato de que ela se apresenta como a primeira crônica luso-brasileira.
Além de Caminha, outros cronistas portugueses noticiaram aos europeus o aspecto
exótico e as possibilidades de exploração das terras brasileiras. Entre eles estiveram
Pero Lopes de Souza, Pero de Magalhães Gândavo e Gabriel Soares de Souza.
Paralelamente a essa chamada crônica leiga, isto é, a crônica que narra os aspectos
gerais dos novos territórios, existe a crônica dos missionários e religiosos, sobretudo a
dos jesuítas, como Manuel da Nóbrega, Fernão Cardim e José de Anchieta, que tem
como finalidade principal documentar os passos da catequese indígena. (cf. ibid. p.5).
11
Na Carta de Pero Vaz de Caminha são narrados ao rei português, D. Manuel, o descobrimento do
Brasil, bem como os primeiros dias que os marinheiros portugueses passaram no país.
31
Todos esses textos produzidos, mesmo que não sejam explicitamente
designados, são crônicas, no sentido histórico da palavra, e antecipam a existência de
uma historiografia nacional. (cf. Bender e Laurito, 1993 p.13-14). Dessa forma, pode-se
dizer que a produção dos cronistas foi legitimada pela literatura que a recolheu como
representativa da expressão de uma determinada época, o que, na visão de muitos
estudiosos, denominou-se uma literatura de informação sobre o novo mundo.
Nessa primeira concepção de crônica, percebemos que os fatos narrados sempre
estão vinculados ao aspecto cronológico, ou seja, os primeiros cronistas portugueses no
Brasil se preocuparam com a observação e o registro objetivos dos fatos relacionados
com o presente, com a atualidade vivida. Nos dias atuais, a subjetividade do cronista é a
maior característica desse gênero, porém o tempo continua presente, só que, agora, o
tempo é aquele vivido também pelo cronista e dominado por suas impressões e
expectativas.
Assim sendo, o tempo é um fator que acompanha não apenas a etimologia da
crônica, mas continua a perpetuar-se em todas as suas definições, conforme afirma
Arrigucci:
São vários os significados da palavra crônica. Todos, porém, implicam a
noção de tempo, presente no próprio termo, que precede do grego chronos.
Um leitor atual pode não se dar conta desse vínculo de origem que faz dela
uma forma do tempo e da memória, um meio de representação temporal dos
eventos passados, um registro da vida escoada. Mas a crônica sempre tece a
continuidade do gesto humano na tela do tempo. (1987, p.51, grifo do autor)
O caráter informativo da crônica permanece no século XVII, observando-se,
nesse período, manifestações culturais que refletem uma estrutura social, política e
econômica de país-colônia. No entanto, se podem encontrar cronistas capazes de
pensar a realidade brasileira pelo ângulo nacional, recriada por meio de uma linguagem
relativamente livre dos padrões lusitanos. (Romero, 1980).
A partir do século XIX, em uma acepção moderna, o conceito de crônica
ampliou-se à medida que ela deixou de vincular-se apenas a um tempo historicamente
determinado e à narração sucessiva de fatos para, a partir do século XX, ser o registro
diário da vida cotidiana, revestindo-se com características literárias. Assim, da História
e da Literatura, a crônica passa ao jornalismo, sendo um gênero cultivado pelos
32
escritores que ocupam as colunas da imprensa diária e periódica para relatar os
acontecimentos pessoais. (cf. Melo, 2002, p.141).
Verifica-se que a crônica passou, então, a ser vista como integrante do jornal,
um suporte que lhe conferiu novas características. Apesar do seu nascimento nos meios
impressos, em termos oficiais, ter começado com Francisco Otaviano de Almeida Rosa,
em 1852, no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, foi Machado de Assis quem
imprimiu ao gênero características peculiares, como a possibilidade de trabalhar com
várias linguagens, temas e significados. E estes significados poderiam ser conotativos,
quando o escritor se utilizava de várias funções e figuras de linguagem, conferindo ao
seu texto inúmeras leituras. Além da conotação, Machado de Assis recorria à denotação
quando buscava, dentro do próprio corpo do jornal, temas para trabalhar nas suas
crônicas. Estes temas, no entanto, eram recriados e reinterpretados por ele. (cf.
Coutinho, 1971, p.112).
Nessa perspectiva, via de regra, o escritor ultrapassava a referencialidade
jornalística ou a influência literária, conferindo ao seu texto uma autonomia estética:
Machado de Assis é o cronista que buscou a maturidade estética da crônica,
tornando-a um gênero com autonomia estética que pode abrigar várias
linguagens nos jornais e manter uma independência lingüística ante o
folhetim e o discurso jornalístico de sua época. (Pereira: 2004, p.113)
Todavia, é importante considerar que a crônica dotada de uma independência
estético-estilística praticada por Machado de Assis, por exemplo, era uma exceção. O
jornal da época continha em suas páginas um discurso bacharelesco, de caráter
doutrinário, que se importava apenas em informar ou opinar de maneira pouco
consistente e fundamentada. Utilizava-se de uma retórica com palavras difíceis,
chavões, sem a preocupação de construir uma opinião crítica junto ao leitor. Neste
cenário, o objetivo dos cronistas-escritores era outro. Eles tentaram imprimir às suas
crônicas uma série de significados, utilizando-se para isto de funções ou figuras de
linguagem, para que, assim, as pessoas pudessem ter subsídios para interpretar de
diversas formas os fatos sociais. (cf. ibid.)
Conceituar a crônica dentro do periódico, contudo, era algo difícil nesse
momento, pois nem mesmo o jornalismo demonstrava clareza quanto à definição de
33
uma linguagem própria. O cronista, no entanto, buscava uma autonomia estética para
o seu texto:
Isto torna o cronista uma espécie de ‘artista’ no espaço jornalístico, porque,
ao invés de emprestar seu talento à capacidade de informar, busca construir
um outro universo de significados para interpretar os fatos sociais. (Pereira,
2004, p.43)
Constata-se, portanto, que esses fatos sociais eram retratados nas crônicas por
meio de um discurso que não traduzia uma tentativa de doutrinação do público leitor,
mas que representava uma narrativa rica em formas de leituras e significados.
É nesse contexto que tem lugar Paulo Barreto (1881-1921), escritor que
carregava o pseudônimo de João do Rio que, posteriormente a Machado de Assis,
Quintino Bocaiúva, José de Alencar, entre outros, e tal como eles, fez história no mundo
da crônica brasileira. (cf. ibid.)
Vale dizer que, no tempo de João do Rio, os jornais contavam com o folhetim,
ou seja, um artigo de rodapé em que eram publicados pequenos contos, poemas em
prosa, ensaios breves, tudo, enfim, que pudesse informar os leitores sobre as questões
do dia ou da semana. Com a modernização da cidade, João do Rio a necessidade de
mudanças no comportamento dos jornalistas. Ele, então, vai ao local dos fatos e
vivencia, experimenta situações que lhe possibilitam escrever um texto com mais vida.
João procura adaptar sua percepção ao ritmo do progresso, do qual a cinematografia e o
automóvel eram carros-chefes por volta do ano de 1908, no Rio de Janeiro. Foi o
primeiro passo para que a crônica moderna ganhasse uma roupagem mais literária e
poética. Nesse sentido, consideremos as palavras de Sá:
Em vez do simples registro formal, o comentário de acontecimentos que
tanto poderiam ser do conhecimento público como apenas do imaginário do
cronista, tudo examinado pelo ângulo subjetivo da interpretação, ou melhor,
pelo ângulo da recriação do real. (2005, p.9)
Assim, podemos comprovar que o cronista deste período histórico preocupou-se
menos em relatar fatos presos a um tempo rígido e passou a compor um cenário onde a
razão cedeu lugar à imaginação.
34
Em meio ao sensacionalismo, às críticas ásperas e ao conteúdo polêmico que
imperou nos jornais desse período, a crônica representou um espaço definido,
independente no jornal. Ela apresentou uma linguagem própria, graças ao trabalho
consciente dos cronistas-escritores:
O escritor do século XIX fazia do seu ofício uma profissão de fé na verdade.
Conscientes do papel de historiadores do momento fugaz, eles informavam o
que se passava a seu redor com a intenção de deixar um testemunho para a
posteridade. (Arnt, 1990, p.24)
Somando-se a isso, pode-se dizer que o escritor-cronista usou da sua
sensibilidade e argúcia para tentar imprimir ao seu texto uma linguagem independente
de toda a sorte de vícios, expressões difíceis ou jargões que predominavam no jornal
dessa época.
Por fim, vale lembrar que, embora vários autores usem o termo crônica como
sinônimo de folhetim (a princípio, no século XIX, chamavam-se as crônicas folhetins),
podemos observar que diferenças semânticas e estilísticas entre tais expressões, pois
a crônica, que também ocupou o rodapé dos jornais, buscou imprimir inovações
lingüísticas, discursivas e uma riqueza de significações conotativas e denotativas no
conteúdo dos seus textos. O folhetim, ao contrário, manteve uma intensa relação com o
jornalismo e a literatura, não conseguindo construir uma linguagem própria que
garantisse a sua autonomia estética:
A diferença entre a crônica e o folhetim não se resume apenas em uma
questão semântica, mas se estabelece na relação que ambos mantêm com o
espaço jornalístico. Neste sentido, a crônica marca uma certa evolução-
semântica, através das diversas linguagens que o cronista incorpora ao seu
texto. O folhetim, ao contrário, permanece marcado pela referencialidade do
texto jornalístico ou pelo grau de literariedade, quando assume as
características do romance ou mesmo da opinião jornalística. (Pereira, op.
cit., p.40)
2.2 Gênero híbrido por excelência
Ao brincar com o útil e com o fútil, a crônica observa o banal a partir de seu
valor extraordinário. (Pereira,2004). Este gênero narrativo híbrido oscila entre a
35
realidade e a imaginação, entre o jornalismo e a literatura e é resultado da visão pessoal
do cronista ante um fato qualquer, ou seja, a crônica é um registro do tempo, seja
retomado do passado ou flagrante do presente, transitando, portanto, entre a
referencialidade e o comentário subjetivo.
Para realizar a tarefa de resgate ou flagrante temporal de forma que não canse o
leitor, na crônica procura-se esconder a complexidade pressentida sob uma límpida
naturalidade por meio do disfarce numa suposta conversa sem rumo. Sob esse aspecto, a
impessoalidade não é desconhecida mas, sobretudo, rejeitada pelo cronista: é a sua
visão das coisas que lhe importa e ao leitor. (Arrigucci, 1987).
Assim, nota-se que o cronista que sabe atuar como consciência poética da
atualidade é aquele que mantém vivo o interesse do seu público e converte a crônica em
algo desejado pelos leitores. Atua como mediador literário entre os fatos que estão
acontecendo e a psicologia coletiva. É por isso que muitos cronistas buscam inspiração
no próprio jornal. (cf. Melo, 2003:156).
De fato, o cronista moderno, embora mantenha, como diz Cândido (1989), uma
“conversa aparentemente fiada” é capaz de pegar o miúdo e nele mostrar uma grandeza,
uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas, como se a crônica pusesse de lado
qualquer seriedade nos problemas. (cf. ibid., p.5). Na verdade, o cronista, ao captar o
lado engraçado das coisas, faz do riso um jeito ameno de examinar determinadas
contradições da sociedade. (cf. Sá, 2005, p.23). Além do mais, considerando também
que o jornal já está cheio de assuntos graves, a crônica instaura um momento de pausa,
de descanso, refletindo a trégua necessária à vida social, “acrescentando ironia e humor
à chatice do cotidiano, à dureza do dia-a-dia.” (Melo, op. cit., p.156).
A esse respeito, Cândido (1989) dizia que, na crônica, tudo é vida, tudo é motivo
de experiência e reflexão, ou simplesmente divertimento, de esquecimento momentâneo
de nós mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo da
imaginação. Para voltarmos mais maduros à vida, conforme o sábio.
Somando-se a isso, por serem as crônicas, leves e acessíveis, concordamos com
Cândido (ibid., p. 11) quando, nesse sentido, afirma que “aprende-se muito mais quando
se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para
mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer
a nossa visão das coisas.” Assim, enganam-se aqueles que pensam que o despojamento
de forma e conteúdo da crônica tirou-lhe a profundidade. Ao contrário, é justamente no
equilíbrio entre o poético e o toque humorístico que a crônica imprimiu de forma
36
marcante sua personalidade. Por meio de uma linguagem despojada, permeada por
gírias e marcas de oralidade, com jeito de conversa fiada, na qual o humor geralmente
está presente, o cronista dissemina sua visão de mundo, ao narrar ou comentar fatos do
cotidiano. ndido, nessa perspectiva, afirma que há, nesse gênero, uma linguagem
simplória, fazendo com que haja maior proximidade entre as normas da língua escrita e
da falada, pois o cronista elabora seu texto à semelhança de um diálogo entre ele e o
leitor. Segundo o autor (ibid., p.8), “a crônica opera milagres de simplificação e
naturalidade, demonstrando a busca da oralidade na escrita, isto é, de quebra de artifício
e de aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo.”
Sendo assim, esses aspectos da crônica fazem-na transitar por outros gêneros
literários. Pode ser poética, quando elaborada em pessoa, com assuntos ligados por
uma associação livre, mediante a tradução emotiva da realidade exterior e interior, numa
linguagem sentimental, mas coloquial, próxima à do leitor. Aproxima-se também do
conto, quando construída em ou pessoa, com a presença da narração (exposição e
diálogo, como forma de composição predominante), entrando num eixo, o fato, que gera
a história, desdobrando-o em uma ou mais situações. Nesse caso, pode ocorrer o
predomínio da história leve, divertida, de ritmo rápido, com personagens do cotidiano.
O humor, a ironia, a crítica de costumes fazem parte do enredo, sempre com um final
inesperado. (cf. ibid.).
É relevante dizer, de acordo com Moisés (1983, p.256), que o estilo em que se
vaza o monodiálogo repercute também todo o hibridismo da crônica: “direto,
espontâneo, jornalístico, de imediata apreensão, nem por isso deixa de manusear todo o
arsenal metafórico que identifica as obras literárias.”
Diante do exposto, comprova-se que a crônica, esse gênero literário leve,
descontraído, que, atualmente, tem como função maior a distração a partir do flagrante
de fatos que não teriam tanta importância, pois são cotidianos, rotineiros, é um gênero
textual que bem emprega características de duas modalidades lingüísticas a falada e a
escrita. Daí a caracterização da crônica como gênero brido, uma vez que seu formato
é obtido por meio do diálogo entre o escrito e o falado.
2.3 A crônica como gênero jornalístico
37
Do ponto de vista histórico, crônica significa efetivamente narração de fatos, de
forma cronológica, como documento para a posteridade. Foi com esse sentido de relato
histórico que a crônica chegou ao jornalismo:
Trata-se do embrião da reportagem. Ou seja, uma narrativa circunstanciada
sobre os fatos observados pelo jornalista num determinado espaço de tempo.
Muitas vezes essas matérias assumiam feição epistolar, como por exemplo, as
Cartas da Inglaterra de Eça de Queiroz, que continham a percepção do
momento cultural e do país, transmitindo ao leitor de língua portuguesa a
vivência daqueles acontecimentos. Mas também correspondem ao que depois
chamaríamos no Brasil de reportagem setorial, cobertura jornalística de uma
determinada instituição ou de uma esfera da sociedade crônica legislativa,
crônica policial, crônica esportiva, etc. (Melo, 2003, p.49-50)
Deve-se ressaltar que a história da crônica no Brasil, enquanto gênero
jornalístico, confunde-se com a própria trajetória do jornalismo contemporâneo.
Vinculada ao entretenimento, ela começou a consolidar-se em nosso país em meados do
século XIX e, desde então, tornou-se gênero quase obrigatório para os jornais
brasileiros. Todavia, vale lembrar que foi na França desse século que os caminhos da
crônica e do jornal começaram a se cruzar em decorrência das inovações tecnológicas
da imprensa jornalística que, por sua vez, barateavam a produção em larga escala de
periódicos. De fato, foi justamente nesse período que nasceu o folhetim, do qual se
origina a crônica atual:
De início, ou seja, começo do século XIX, le feuilleton designa um lugar
específico do jornal: o rez-de-chaussée rodapé, o s-do-chão geralmente
o da primeira página. Tinha uma finalidade precisa: era um espaço vazio
destinado ao entretenimento. E pode-se antecipar, dizendo que tudo o que
haverá de constituir a matéria e o modo da crônica à brasileira é, desde a
origem, a vocação primeira desse espaço geográfico do jornal,
deliberadamente frívolo, oferecido como chamariz aos leitores afugentados
pela modorra cinza a que obrigava a forte censura napoleônica. Aquele
espaço vale-tudo suscita todas as formas de diversão escrita: nele se contam
piadas, se fala de crimes e de monstros, se propõem charadas, se oferecem
receitas de cozinha ou de beleza: aberto às novidades, nele se criticam peças,
os livros recém-saídos. (Meyer, 1983, p.10)
38
Sob o aspecto meramente comparativo, pode-se dizer que o folhetim-crônica do
século XIX era mais longo do que a crônica atual e, na maioria das vezes, abarcava
grande número de assuntos. No entanto, já era escrito em tom mais leve, apresentando
enfoques humorísticos ou poéticos dos temas tratados. A própria escolha dos temas,
voltada para aspectos “menos importantes” do cotidiano, aponta para a presença do
humor, da leveza, da gratuidade, tão comuns na crônica atual. A esse respeito,
consideremos como o próprio Machado de Assis (1994) descreve como poderia ser “o
nascimento de uma crônica”:
um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que
calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço,
bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-
se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca
do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a
Petrópolis, e la glace est rompue está começada a crônica. (p.13)
No que se refere à temática da crônica, Pereira (2004) assegurava que tal
narrativa, próxima do dia-a-dia, tratava-se de um olhar atento para a banalidade que o
jornalismo o tem método para capturar e, às vezes, acaba rotulando como fait
divers
12
. A função da crônica, sob essa ótica, é se apropriar de fatos que não são
perceptíveis ou de fácil percepção.
Seguindo essa linha de raciocínio, é como se o cronista procurasse “fuçar” os
detalhes que passam despercebidos pelo exercício jornalístico. “Eu gosto de catar o
mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, entra o meu, com a curiosidade
estreita e aguda que descobre o encoberto”, comentou Machado de Assis sobre seu
ofício, na coluna A Semana, na Gazeta de Notícias, em 1897.
Com relação à brevidade e ao tom da crônica moderna, lembra-nos Cândido
(1989) que, aos poucos, o “folhetim” foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo
ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou
francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, achegar ao que é hoje. Revela-
se que, para este autor, ao longo deste percurso, a crônica foi largando cada vez mais a
intenção de informar e comentar, para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se
12
Para Roland Barthes, o sentido humano da notícia é a própria estrutura do Fait Divers. Segundo esse
autor, Fait Divers é um fato sensacionalista ou uma manchete sensacionalista, um "furo" de notícia.
(BARTHES, Roland. Structure du fait divers. Essais Critiques. Paris: Seuil, 1964).
39
tornou mais leve, mais descompromissada e se afastou da lógica argumentativa ou da
crítica política, para penetrar poesia adentro. Assim, a fórmula moderna, na qual entra
um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia,
representaria, segundo Cândido, o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica
consigo mesma.
Entretanto, é relevante destacar que essa aparência de simplicidade e leveza da
crônica moderna não implica, de forma alguma, no desconhecimento das artimanhas
artísticas do autor desses textos. Levando em consideração que a crônica surge primeiro
no jornal e este, portanto, nasce, envelhece e morre a cada vinte e quatro horas, pode-se
dizer que, nesse contexto, a crônica também assume essa transitoriedade e, por
conseguinte, sua elaboração também se prende a essa urgência. A esse propósito,
tece algumas considerações:
À pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos são
extremamente rápidos, e o cronista precisa de um ritmo ágil para poder
acompanhá-los. Por isso a sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada,
solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que propriamente um
texto escrito. Dessa forma, uma proximidade maior entre as normas da
língua escrita e da oralidade, sem que o narrador caia no equívoco de compor
frases frouxas, sem a magicidade da elaboração, pois ele o perde de vista o
fato de que o real não é meramente copiado, mas recriado. (2005, p.10-11)
2.4 Um gênero tipicamente brasileiro
A crônica, para alguns estudiosos, foi proclamada como um gênero tipicamente
brasileiro, não encontrando equivalente na produção jornalística de outros países.
Segundo essa concepção, a crônica nacional toma a feição de relato poético do real,
situado na fronteira entre a informação de atualidade e a narração literária. Em se
tratando do jornalismo mundial, o termo crônica, por sua vez, está mais vinculado ao de
relato cronológico, de narração histórica. (cf. Melo,2003, p.148-9). Melo ainda revela
que, para o povo brasileiro, a palavra crônica designa uma composição breve,
relacionada à atualidade, publicada em jornal ou revista. O autor ainda mostra que esse
significado está de tal forma generalizado, que mesmo os especialistas em
historiografia se lembram de outro, bem mais antigo, o de narração histórica por ordem
cronológica. (cf. ibid., p.148-9).
40
De fato, concordamos com Melo (2003) quando o autor atesta que a crônica
brasileira foi adquirindo, aos poucos, uma certa leveza, típica de uma escrita que brota
ao sabor da pena, despretensiosamente, mesclando, aos fatos mais comuns do cotidiano,
humor e poesia. Sob esse aspecto, verifica-se que a crônica nacional possui contornos
bem brasileiros, afigurando-se como espaço privilegiado do relato poético. Entretanto,
deve-se destacar que a crônica adquire, sobretudo, um sentido politicamente definido,
tornando-se um recurso para a intervenção social incessante dos jornalistas que se
alentam nos territórios do real e se expressam por meio da poesia. Talvez essa seja a
razão pela qual a crônica brasileira não disponha daquela seriedade e profundidade
características do jornalismo francês ou norte-americano. (cf. ibid.).
Ainda sobre essa questão, pode-se dizer que Machado de Assis (1994), ao
escrever suas crônicas, confessava-se escrevendo “brasileiro”. É nessa perspectiva que,
segundo Afrânio Coutinho (1971, p.112), a crônica adquire personalidade nacional, pois
esta exigia uma participação direta e movimentada na vida mundana reuniões da
sociedade, teatro, parlamento.
Curiosamente, a respeito da transformação da linguagem da crônica do Brasil,
chama a atenção o fato de que num país como o nosso, onde se costumava identificar
superioridade intelectual e literária com grandiloqüência e requinte gramatical, a crônica
operou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram o ponto máximo nos
nossos dias. A esse propósito, também concordamos com Cândido (1989) quando
estudioso diz que o grande prestígio atual desse gênero é um bom sintoma do processo
de busca de oralidade na escrita, tendo em vista a aproximação com o que de mais
natural no modo de ser do nosso tempo.
Embora a crônica tenha se afirmado como gênero peculiar desde os fins do
século XIX, continuando a ser praticado regularmente, de acordo com Cândido (cf.
ibid.), somente por volta de 1930 é que a crônica moderna se definiu e se consolidou no
Brasil como gênero bem nosso. Assim, para o autor, nos anos 30 se afirmaram Mário de
Andrade, Carlos Drummond de Andrade, e apareceu aquele que, de certo modo, seria o
cronista voltado de maneira praticamente exclusiva para este gênero: Rubem Braga.
Por fim, Cândido (1989) assegura que, no Brasil, a crônica tem uma boa história,
e até se poderia dizer que sob vários aspectos é um nero brasileiro, pela naturalidade
com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu:
41
É que a crônica brasileira bem realizada participa de uma língua geral lírica,
irônica, casual, ora precisa e ora vaga, amparada por um diálogo pido e
certeiro, ou por uma espécie de monólogo comunicativo. (ibid. p.13)
2.5 A crônica de José Simão
Dono de estilo singular e irreverente, José Simão comenta e critica, nas suas
crônicas, atitudes e acontecimentos do cotidiano brasileiro e mundial que sejam o
“barulho do dia”: “Eu gosto de escândalo, de babado, de barulho.” (Araújo, 2007, p.15).
Assim sendo, conforme assinalamos no primeiro capítulo, especificamente no item
1.2.3.1, pode-se dizer que os textos de Simão abrangem assuntos que vão desde a
economia e a política a esportes e entretenimento. E, como objeto de riso,
crítica/deboche da sua coluna, figuram personagens da sociedade e da mídia em geral,
mas, sobretudo, políticos e mulheres não escapam a seus funestos jogos de palavras. Ao
contrário do que se pode imaginar, Simão garante que “as vítimas chegam a elogiá-lo
difícil saber se por admiração mesmo ou por receio de virar alvo recorrente.” (Sallum,
2003).
No que se refere ao tratamento que José Simão atribui às mulheres, objeto de
nossa pesquisa, o cronista direciona seus comentários, especialmente, a personalidades
do mundo artístico, televisivo e político. As personalidades internacionais também são
citadas nos seus textos, porém em menor escala, dependendo das notícias do dia.
Curioso é notar que, para lançar suas farpas, José Simão incorpora o personagem
do macaco Simão, escondendo-se por trás de tal máscara”. Pode-se dizer que,
encoberto por seu personagem (macaco Simão), o cronista, sem nenhum pudor, critica
grotescamente tanto os acontecimentos culturais e políticos em destaque no país e no
mundo quanto o comportamento de personalidades televisivas. Por trás da “máscara”
de seu personagem, é permitido a José Simão “macaquear”, imitar, caricaturizar e
parodiar a realidade a sua volta. Assim, por meio do disfarce numa suposta conversa
sem rumo, o autor trata com humor, leveza e informalidade, o que, de certa forma, é
motivo de revolta e indignação.
As crônicas de José Simão, a nosso ver, se encaixam naquele tipo de crônica
mais popular, ao rés-do-chão, como diz Cândido (1989), pois o macaco, ao debochar de
tudo e de todos, revela, por um lado, falta de piedade e, por outro lado, revela uma
constante alegria, cuja risada, reproduzida costumeiramente no rarará, provém da
42
ausência de especulações morais, éticas, filosóficas. Trata-se do riso alegre, de bem com
a vida e, portanto, do riso carnavalesco, grotesco da acepção de Bakhtin. É importante
observar uma nítida ambivalência de sentido se considerarmos, por um lado, a
postulação de Bergson (2004, p.3), quando este afirma que o homem é o único animal
que sabe rir e que faz rir e, por outro lado, o próprio macaco Simão, que assimila a
atitude humana do riso. Daí a influência do cômico grotesco nas suas crônicas. Citamos,
ainda, a desforra catártica que o Carnaval pode representar para o povo (mas nóis goza),
uma vez que a alegria, nesse curto período, subverte a opressão do cotidiano oficial
(nóis sofre) e remete-nos imediatamente ao papel desempenhado pelas festas religiosas
medievais.
13
É importante lembrar, como fora registrado no capítulo de apresentação do
corpus, que as crônicas de José Simão rompem com a linguagem comum. O caráter
eminentemente oral de seus textos advém de uma situação verbal espontânea do
cotidiano e é revelado por meio de piadas, adivinhas, provérbios e deboches.
As últimas notícias ou o grande escândalo do dia tem seu efeito intensificado por
conta do alarido que as expressões e bordões iniciais das crônicas de Simão sugerem, a
começar pelo uso da caixa alta BUEMBA! BUEMBA! e também pela seqüência das
frases interjetivas de pequena extensão, como, por exemplo, Macaco Simão Urgente! O
esculhambador-geral da República! Direto do País da Piada Pronta!
Pode-se dizer também que a crônica de Simão caracteriza-se por ser
fragmentada, mesclando seus textos com citações de textos alheios aos seus, como, por
exemplo, piadas, enquetes e entradas de dicionário, sugerindo assim uma aparente
desordem textual. A esse respeito, sob esse ponto de vista, tal crônica constitui-se de
breves e variados temas do cotidiano, em que ocorre uma rápida transferência entre um
assunto e outro, como se o macaco pulasse de “galho em galho”. Aliás, atesta-se que a
própria superfície textual revela essa mudança constante entre um dizer e outro. Isso se
comprova por meio do emprego da conjunção aditiva E, como no exemplo da crônica
do dia 9/2/2007: E vendo as peladas nos ensaios de escola de samba...”/ E não tem
mais peito natural” / E o mico da semana”/ E olha essa notícia: Brasileiro morre ...”/
E atenção! Cartilha do Lula.”
13
As considerações sobre a questão do riso e do cômico grotesco serão abordadas de forma mais
detalhada, respectivamente, nos itens 3.2.1 e 3.2.2, do terceiro capítulo.
43
Levando em consideração que as crônicas de José Simão têm por hábito difamar
e ridicularizar personalidades do mundo artístico, televisivo e político, sobretudo as
mulheres, seja debochando das gafes cometidas, seja surpreendendo-as em situações
inusitadas, fica claro que, para o autor, tudo parece funcionar como pretexto para o
humor. Assim sendo, em nome do riso, escondem-se preconceitos, intolerâncias e
injustiças. Esses elementos, como parecem resultar da ordem natural das coisas, chegam
a passar, muitas vezes, despercebidos, configurando-se, portanto, em uma forma de
violência. Essa relação entre violência e humor, relevante para nossa pesquisa, é o que
abordaremos no capítulo seguinte.
44
CAPÍTULO 3 – A RELAÇÃO ENTRE VIOLÊNCIA E HUMOR
A partir da constatação de que a comicidade é deflagrada, nas crônicas que nos
servem de corpus, em função de uma narrativa rica em comentários depreciativos e
preconceituosos contra as mulheres, surgiu daí a necessidade de estabelecermos uma
relação entre violência e humor. Para tanto, a princípio, faremos uma reflexão acerca de
alguns conceitos e categorizações da violência, pois, como veremos, a abordagem
acerca desse fenômeno dar-se-á dentro de uma perspectiva que não se restringe somente
à agressão física ou a concepções puramente objetivas do fenômeno. Considerando que
a violência aparece também como ato de comunicação, o se delimitando apenas à
violência física, tornou-se coerente discutirmos, sob alguns aspectos, a relação
estabelecida entre violência e linguagem. Além do mais, evidencia-se que o mundo se
depara com uma nova realidade, uma nova ordem mundial, o fenômeno da
globalização. Assiste-se ao advento de uma sociedade global em que a ordem é
consumir. Nesse sentido, para que possa, além de manter a ordem vigente estabelecida,
alcançar maiores índices de audiência, a mídia, por diversas vezes, recorre a elementos
afinados com a lógica sensacionalista, do espetacular, do grotesco, do violento. Essa
relação entre mídia e violência é o que discutiremos a seguir. Por fim, trataremos,
especificamente, da violência contra as mulheres. Feitas as ponderações necessárias
acerca do fenômeno da violência, estudaremos, logo em seguida, alguns aspectos das
teorias sobre a comicidade, bem como os recursos lingüísticos, relevantes para nossa
pesquisa, que contribuem para a deflagração do riso. Considerando que o humor é
caracterizado como algo “não sério” (Travaglia, 1989-90), pode gerar ou intensificar
preconceitos, racismos e intolerâncias, configurando-se, por essa razão, como uma
forma de violência. Reforçamos, portanto, a importância de estudarmos essa ligação
entre humor e violência.
3.1 A propósito do conceito de violência e de sua categorização
O fenômeno da violência tem ocupado não só nos meios acadêmicos, mas
também no senso comum, lugar de destaque e preocupação. Tendo em vista essa ampla
abordagem do tema nos mais diferentes meios, compreendê-lo de forma mais criteriosa
contribui para pensar em caminhos mais eficazes para solucioná-lo ou ao menos
45
minimizá-lo. Mas, se por um lado é importante desmistificar e elucidar a noção de
violência, tendo em vista sua complexidade no meio social, por outro, a freqüente
abordagem e massificação do conceito acaba promovendo uma banalização e muitas
vezes distorções do seu significado.
O sociólogo e filósofo francês Yves Michaud, ao empreender um estudo sobre a
natureza e as implicações da violência como fenômeno social, buscou, em primeiro
lugar, resgatar os “sentidos” e a etimologia da palavra violência. Assim, inicialmente,
faz uma abordagem do assunto descrevendo o conceito do termo de acordo com as
informações veiculadas nos dicionários franceses contemporâneos, especificamente, o
Robert, 1964. Assim, a violência é descrita como:
a) o fato de agir sobre alguém ou de fazê-lo agir contra a sua vontade
empregando a força ou a intimidação; b) o ato através do qual se exerce a
violência; c) uma disposição natural para a expressão brutal dos sentimentos;
d) a forma irresistível de uma coisa; e) o caráter brutal de uma ação. (2001,
p.7)
A título ilustrativo, julgamos importante também considerar a definição do
termo violência, propagada em um dos dicionários brasileiros:
2) s.f. a) Qualidade do que é violento. b) Ação ou efeito de violentar, de
empregar força física (contra alguém ou algo) ou intimidação moral contra
(alguém); ato violento, crueldade, força. c) exercício injusto ou
discriminatório, ger. ilegal, de força ou de poder; cerceamento da justiça e do
direito; coação, opressão, tirania. d) força súbita que se faz sentir com
intensidade; fúria, veemência. e) dano causado por uma distorção ou
alteração o autorizada. f) o gênio irascível de quem se encoleriza
facilmente, e o demonstra com palavras e/ou ações. (Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa - dicionário virtual
14
Em se tratando da forma pela qual o termo violência é registrado no dicionário,
Chauí (2006) pondera que, na verdade, esse veículo de informação sintetiza, sem
comentários, a história dos numerosos sentidos que a palavra violência teve e tem na
cultura ocidental, desde a Antigüidade. Segundo a autora, esses múltiplos sentidos
14
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa - dicionário virtual. Disponível em:
http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=violencia&stype=k. Acesso em 13/03/08.
46
poderiam ser resumidos na idéia de que a violência é um ato brutal e antinatural de
transgressão e violação da natureza, do direito, da justiça, das leis, dos costumes, do
sagrado, das mulheres e dos mais fracos. Nesse sentido, pode-se afirmar que, quando a
relação entre dois ou mais seres se realiza por meio da força física, psíquica ou moral,
“dizemos que violência, identificando-a com a coerção, a coação ou a repressão.”
(ibid., p.120).
Sob o ponto de vista etimológico do termo violência, Michaud esclarece:
‘Violência’ vem do latim violentia, que significa violência, caráter violento
ou bravio, força. O verbo violare significa tratar com violência, profanar,
transgredir. Tais termos devem ser referidos a vis, que quer dizer força, vigor,
potência, violência, emprego de força física, mas também quantidade,
abundância, essência ou caráter essencial de uma coisa. Mais profundamente,
a palavra vis significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer
sua força e portanto, a potência, o valor, a força vital.
A passagem do latim para o grego confirma este núcleo de significação. Ao
vis latino corresponde o is homérico (iS) que significa músculo, ou ainda
força, vigor, e se vincula a bia (Βía) que quer dizer a força vital, a força do
corpo, o vigor e, conseqüentemente, o emprego da força, a violência, o que
coage e faz violência. Os especialistas ligam tais termos ao nscrito j(i)ya
que significa predominância, potência, dominação que prevalece. (2001, p.8)
Descritos os usos correntes e a etimologia da palavra violência, abordaremos,
ainda, de acordo com Michaud, as definições do termo fornecidas pelo direito (penal e
civil). Pode-se dizer que, ao contrário da amplitude do sentido corrente, juridicamente
essa palavra fornece definições estritas, em dois aspectos:
Um elemento de força física identificável com seus efeitos, e um outro, mais
imaterial, de transgressão, vinculado ao dano a uma ordem normativa. Como
dano físico, a violência é facilmente identificável e como violação de normas,
quase qualquer coisa pode ser considerada uma violência. (ibid., p.10).
Depreende-se, sob esse aspecto, que a violência pode referir-se tanto a um dano
físico, como também à transgressão de normas. Contudo, o ponto em comum a respeito
da noção de violência, segundo Michaud, é a idéia de uma força, “de uma potência
natural, cujo exercício contra alguma coisa ou alguém torna o caráter violento.” (ibid.,
47
p.8). Nesse sentido, a violência é uma questão de agressões e maus-tratos que deixa
marcas evidentes. Todavia, pode-se dizer que essa força assume sua qualificação de
violência em função de normas definidas que variam muito. (ibid.)
Em vista disso, tomando como base o caráter social da violência, comprova-se
que podem existir tantos tipos de violência quantas forem as sociedades em que ela está
inserida, tendo em vista que sociedades diferentes estruturam violências diferentes”,
daí “o papel das leis, explícitas ou implícitas, dos costumes e das tradições na
determinação dos limites de violência permitidos a cada sociedade em questão.” (Dias,
2003, p.103).
Conforme assinalamos no início deste capítulo, verifica-se, portanto, que a
complexidade de sentidos e de interpretações que o referido termo pode suscitar
dificulta, por assim dizer, uma apreensão objetiva a respeito de tal fenômeno, pois nem
sempre a violência se apresenta como um ato, como uma relação, como um fato, que
possuam uma estrutura facilmente identificável. Se, por um lado, como vimos, tornou-
se tarefa árdua definir objetivamente a violência, por outro lado, buscou-se compreender
de que modo esse fenômeno se manifesta na vida diária das pessoas.
Assim sendo, Odália (2003, p.86) encontra um ponto comum na caracterização
das mais variadas e possíveis formas de violência, à medida que, por meio da idéia de
privação, considera ser possível “descobrir a violência onde ela estiver, por mais
camuflada que esteja, escondida sob formas de preconceitos, de costumes ou tradições,
de leis e legalismos.” Para o autor, sempre que o sentimento de privação for
experimentado, sentindo-se, o indivíduo, despojado, por razões que o lhe são claras,
de seus direitos como pessoa e como cidadão, a violência estará sendo consumada. (cf.
ibid.)
Curiosamente, observa-se que, para Michaud (2001), a significação da violência
é prescrita a partir do ponto de vista de quem pratica a ação violenta, ao passo que, para
Odália (2003), essa significação da violência é formulada a partir da perspectiva
daquele que sofre tal ação. Sobre esse aspecto Dias pondera: Daí, para o primeiro, a
noção de força uma ação que ultrapassa da medida - e, para o segundo, a noção de
privação – sentimento de que determinadas coisas estão sendo negadas sem razões
explícitas.” (op. cit., p. 103).
Embora muitos estudos acerca do tema ainda se concentrem, basicamente, em
torno da violência caracterizada pela agressão física, é importante considerar que essa
modalidade de violência, aparentemente mais visível, não se constitui como a única
48
forma de violência. Definitivamente. Existem outras modalidades, igualmente graves,
ocultadas por trás de uma manipulação sutil e opressora e que se referem a estados de
violência:
Pode-se matar, deixar morrer de fome ou favorecer condições de subnutrição.
Pode-se fazer desaparecer um adversário ou afastá-lo progressivamente da
vida social e política através de uma série de proibições profissionais e
administrativas. Aqui, aparece claramente a distinção entre estados e atos de
violência. Entretanto a dificuldade reside no fato de que esses estados de
violência supõem situações de dominação que abrangem todos os aspectos da
vida social e política e se tornam, assim, cada vez menos passíveis de
localização. (Michaud, op. cit., p.11)
Na tentativa de propor uma definição que conta tanto dos estados quanto dos
atos de violência, Michaud é enfático:
violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem
de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou
várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua
integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e
culturais. (2001, p. 11)
Por fim, é interessante observar, ainda, a colocação de Chauí acerca do modo
segundo o qual a violência se institui. Para a autora, a sociedade brasileira é autoritária e
isso se deve ao fato de a cidadania ser mantida como “privilégio de classe” e colocada
numa posição de concessão da classe dominante às demais. Nessa sociedade, as
diferenças e assimetrias sociais e pessoais são transformadas em desigualdades e estas
em relações de “hierarquia, mando e obediência”. (cf. Chauí, 1994, p.53). As relações
acabam tornando-se uma forma de dependência, tutela, concessão, autoridade e favor,
“fazendo da violência simbólica a regra da vida social e cultural. Violência tanto maior
porque invisível sob o paternalismo e clientelismo, considerados naturais e por vezes,
exaltados como qualidades positivas do caráter nacional”. (ibid., p.54).
Diante do exposto até aqui, ficou-nos evidente o caráter subjetivo da violência,
tendo em vista as diferentes formas pelas quais o fenômeno é definido e categorizado
pelos autores mencionados. Entretanto, as propostas descritas pelos referidos estudiosos
nos interessam, pois permitem abordar a violência dentro de uma perspectiva que não se
49
restringe apenas à violência física, legitimada pelo uso da força e da agressividade.
Antes, também nos possibilitam compreender um pouco mais acerca da violência
aparentemente “invisível” e silenciosa, capaz de oprimir, brutalizar, intimidar, coagir e
impor arbitrariamente, ao indivíduo, costumes, valores, leis, etc.
3.1.1 Violência e linguagem
A palavra, segundo a concepção de Mafessoli (1987, p.57), é o “paradigma da
relação social”. Tal constatação implica dizer, no sentido comum do termo, que a
palavra é a troca simbólica por excelência, “pois permite o acordo ou o confronto de
subjetividades que se assumem enquanto tais e se superam umas às outras, num mesmo
movimento, numa alteridade plural.” (ibid., p. 57).
Sobre essa questão é importante considerar que, na circulação da fala, a
importância da palavra está menos no conteúdo do que na própria troca. A partir dessa
revelação proposta pelo autor, podemos compreender a palavra como instrumento de
violência justamente “pelo expediente da revolta, pois ela abre o caminho, a troca sem
fim, à circulação das idéias e das informações.” (ibid., p. 58). Constata-se, ainda, que a
palavra é ponto de partida de vários pensamentos, razão pela qual remete a outras
discussões, a outros discursos.
Pode-se dizer que a violência aparece não como mero fenômeno de agressão
física, mas também como linguagem, como ato de comunicação. Nesse sentido, Dias
(2003) sustenta que a violência construída pela linguagem, especificamente aquela
veiculada pela mídia, nos remete à distinção entre violência referida e violência
construída. No primeiro caso, a violência (normalmente física), ocorrida de fato, é
reportada no jornal – ou na mídia em geral – por meio de recursos que lhes são próprios.
No segundo caso, a violência que pode ou não ter se efetivado na realidade é
construída lingüisticamente pelos meios de comunicação, que, ao invés de representar,
(re)criam a realidade.
Para que possamos melhor compreender o modo pelo qual a violência é
construída por meio da linguagem, consideraremos a distinção entre fala e escrita,
proposta por Mafessoli (1987, p.59). A característica da fala, móvel e instável, é a sua
circulação rápida, sua o monopolização intrínseca. Se, por um lado, a fala é
dificilmente controlada por uma única pessoa ou por um grupo, a escrita, por outro lado,
é estruturalmente uma acumulação e necessita, assim, uma administração e,
50
conseqüentemente, funcionários patenteados para assegurar esta administração. Assim
sendo, ao caráter fechado da escrita opõe-se a abertura indefinida de uma fala truncada,
modificada, corrigida que, numa palavra, se presta ao dinamismo do conjunto social que
a cria ou que a utiliza. (cf. ibid.).
Ainda, segundo esse autor, as palavras podem se libertar, afinal, não são mais
controláveis. Assim, “basta abrir a linguagem para que ela fale por si própria contra a
ordem e o saber”. Nesse sentido, para Mafessoli, “todo ganho de fala, toda retomada de
fala é também retomada de poder” e, por assim dizer, “trata-se de uma ação ritual,
cinicamente repetida, da violência insurrecional, seja ela política, religiosa, etc.” (ibid.,
p.62).
3.1.2 Mídia e Violência
Que o jornal diário exerce uma função mediadora entre o leitor e a realidade,
sendo um veículo importante para tomada do conhecimento, por parte de seu público,
das questões que envolvem a violência em nossa sociedade, é fato inquestionável. Mais
importante ainda é considerarmos que o jornal, com sua aparência indefesa, sob a
alegação de prestar serviço cultural e informativo de maneira diversificada, pode
legitimar-se, sobretudo, como instrumento de poder, palco, portanto, da disseminação
de interpretações, interesses e ideologias de classe.
Em seu estudo sobre o jornal paulista Notícias Populares, a estudiosa Ana Rosa
Dias aponta para a construção de um tipo específico de prática discursiva, o discurso
da violência”. De acordo com a autora, esse discurso seria marcado pelos apelos ao
grotesco, ao escatológico e aos fait divers:
Trata-se de um discurso com cartas previamente marcadas, com ticas de
persuasão, com jogos dúbios de significados, com recursos de credibilidade
(em que entram, é claro, os próprios recursos visuais representados pelas
fotos mais expressivas dos fatos) num contexto complexo de produção,
compreensão e uso da notícia ... (2003, p.107)
Tais técnicas discursivas teriam como destinatário “um tipo específico de leitor,
receptivo a essa condução da narrativa, acostumado a esses ‘modelos’ noticiosos e à
forma como lhe são apresentados.” (ibid., p.107). Assim sendo, o caráter polifônico do
51
discurso da violência aparece claramente na idéia de que existe um leitor com quem ele
interage e com quem dialoga. Como afirma Rondelli, “o que se produz sobre a violência
são representações múltiplas, discursos polifônicos, por vezes contraditórios, mas
coerentes com requisitos institucionais diversos.”
(2000, p.155).
Vale ressaltar que, mesmo reconhecendo a presença de múltiplas vozes nos
discursos midiáticos, aponta-se, pois, para a assimetria neste processo, que a
imprensa, por meio de estratégias enunciativas, seria capaz de fixar conteúdos e propor
a “pauta” dos acontecimentos para seus leitores.
Assim, em se tratando do binômio violência e mídia, pode-se dizer que os meios
de comunicação agem como construtores privilegiados de representações sociais sobre o
crime, a violência e aqueles envolvidos em suas práticas e em sua coibição. Nesse
sentido, o modo como a mídia fala da violência seria parte da própria realidade da
violência, ou seja, de seus atos serão extraídos interpretações e sentidos sociais, os
discursos sobre ela passarão a circular no espaço público e a prática social passará a ser
informada pelos episódios narrados possuindo, assim, um caráter estruturado e
estruturador. Quanto a esse aspecto, Rondelli faz algumas ponderações:
Do real ela nos devolve, sobretudo, imagens ou discursos que informam e
conformam este mesmo real. Portanto, compreender a mídia não deixa de ser
um modo de estudar a própria violência, pois quando esta se apropria,
divulga, espetaculariza, sensacionaliza ou banaliza os atos de violência está
atribuindo-lhes um sentido, ao circularem socialmente, induzem práticas
referidas à violência. (2000, p.150)
Na mídia, atualmente, encontra-se a forma dominante de cultura
(mercantilizada), a qual promove a socialização ao mesmo tempo em que fornece
elementos de homogeneização da identidade das pessoas. Sob essa perspectiva, para
Kellner (2001), a cultura da mídia (entendida como a cultura da sociedade), por meio de
um “véu sedutor” que combina o verbal com o visual, traduz uma ampla dependência
entre comunicação e cultura. É justamente por conta desta inter-relação que os meios de
comunicação divulgam determinados padrões, normas e regras, ensinam o que é bom e
o que é ruim, o que é certo e o que é errado, bem como fornecem símbolos, mitos e
estereótipos por meio de representações que modelam uma visão de mundo (imaginário
social), de acordo com a ideologia vigente. Sob esse ponto de vista, concordamos com
Costa (2002, p.147) quando o autor enfatiza que a ação dos veículos de comunicação
52
corrobora o pensamento dos grupos que possuem os meios de reprodução simbólica,
agindo como instância de controle ideológico permanente e de introjeção de normas,
crenças e valores dominantes.
Evidencia-se, portanto, que a cultura contemporânea da mídia cria formas de
dominação ideológica que ajudam a reiterar as relações vigentes de poder, ao mesmo
tempo em que fornece instrumental para a construção e o fortalecimento de identidades,
para a resistência e a luta. Daí a constatação de que essa cultura midiática caracteriza-se
como um terreno de disputa no qual grupos sociais importantes e ideologias políticas
rivais lutam pelo domínio, e que os indivíduos vivenciam essas lutas, por meio de
imagens, discursos, mitos e espetáculos” veiculados que são pelos meios de
comunicação de massa. (cf. Kellner, op. cit., p.10-11).
Com o advento de uma sociedade global em que a ordem é consumir, a dia,
como assinalamos no início deste capítulo, por diversas vezes, recorre a elementos
afinados com a lógica sensacionalista, do superficial, do espetacular, do grotesco, do
violento para que, desta forma, além de manter a ordem vigente estabelecida, possa
superar a concorrência e provocar o interesse imediato da audiência, por meio da
espetacularização e exploração do inusitado, em uma busca permanente pela
anormalidade”. (Costa, op. cit., p.153).
Sobre essa questão, pode-se dizer que os meios de comunicação de massa, sob as
aparências de “máquinas de informação”, são, de acordo com Sodré (2006), de fato
máquinas integradoras dessas simulações necessárias à nova ordem. Porém, o autor
explica: “Não se trata, pois, de ‘informação’ enquanto transmissão de conteúdos de
conhecimento, mas de produção e gestão de uma sociabilidade artificiosa, encenada
num novo tipo de espaço público, cuja forma principal é a do espetáculo.” (ibid., p. 75).
Diante dessas observações, verifica-se que o jornal cria, a partir da matéria-
prima informação, a mercadoria notícia, expondo-a a venda (por meio da manchete) de
forma bastante atraente. Do contrário, ou seja, sem esses artifícios, a mercadoria o
vende e seu valor de troca não se realiza:
Notícia é a informação transformada em mercadoria com todos os seus apelos
estéticos, emocionais e sensacionais; para isso, a informação sofre um
tratamento que a adapta às normas mercadológicas de generalização,
padronização, simplificação e negação do subjetivismo. Além do mais, ela é
um meio de manipulação ideológica de grupos de poder social e uma forma
de poder político. (Marcondes Filho, 1989, p.13)
53
Seguindo essa lógica, Costa (op. cit., p.154) assegura que o importante, então, “é
explorar as anomalias patológicas, os comportamentos desviantes, a dimensão
extraordinária de um fato”, firmando-se, assim, na “descrição sintética do assunto em
títulos bombásticos”. O autor explica ainda que a “forma de apresentação, ainda que
resulte mosaicos informativos, desconexos e sobrepostos uns aos outros, passa a ser
mais evidente do que o fato. (p.42). Segundo essa perspectiva, o importante é
“expressar o fato pelos dados quantitativos”, de forma a “manter a atenção do público-
receptor, não importando se os procedimentos técnicos e narrativos comprometem a
ética e o humanismo. Os índices de audiência, a circulação e o consumo dos bens
simbólicos portanto, justificam os meios.” ( p.154).
Ainda, segundo o mesmo autor, a ação mediadora das tecnologias de
comunicação de massa exerce, no plano ideológico, a sobreposição de uma concepção
de mundo de quem detém os meios de reprodução simbólica, de modo a tornar juízo
comum para o restante da sociedade. Nesse sentido, o processo de adaptação é
favorecido pelos mecanismos de repetição insistente de um mesmo artefato histórico,
como se a repetição conformasse o gosto do indivíduo, fazendo-o crer, ilusoriamente,
que tal processo ocorre espontaneamente. (cf. Costa, op. cit.).
Assim sendo, a repetição de uma cena trágica, partindo-se de um detalhe mais
excitante, não resulta em esclarecimento, e sim em espetáculo que move a imaginação e
a curiosidade. a repetição continuada da violência amortiza a indignação e age no
sentido de sua banalização, como se a indiferença diante da dor, o horror e a angústia
garantissem a distância das massas diante da condição humana globalizada. (cf. ibid.,
p.135).
Resta-nos concluir que a mídia tem um grande poder de influência sobre o
indivíduo, contribuindo na e para formação da sua identidade e socialização. Entretanto,
assim como é capaz de formar, informar e transformar, também é igualmente capaz de
deformar os estilos de identidade, subjetividade e sociabilidade. Isso ocorre porque os
meios de comunicação, à medida que disseminam as ideologias da classe dominante,
servindo, portanto, de instrumento de manutenção do status quo, fazem, por assim dizer
“o uso do conhecimento como forma de poder, de distinção, de dominação e opressão.”
(Marcondes Filho,1989, p.24).
3.1.3 Violência contra a mulher
54
Para alcançar postos de alto nível numa sociedade machista, uma mulher é
obrigada acerto ponto a adotar atitudes machistas. Os postos importantes na política,
nos negócios e nas profissões não são espaços neutros que podem ser ocupados
indistintamente por homens ou mulheres: existem dentro de uma hierarquia e de uma
estrutura masculinas, e estão planejados para homens. As mulheres que chegam a
ocupá-los devem ter certas qualidades “masculinas” desde o início, e depois
“masculinizar-se” ainda mais para impor sua autoridade. (Castañeda, 2006).
Ao longo da história, a violência, de acordo com Morais (1981, p.79), “sempre
se originou de necessidades e interesses antagônicos geradores de um clima de disputa,
de mediação de forças.” Numa perspectiva dualista, a diferenciação de papéis
desempenhados por homens e mulheres foi se consolidando a partir da valorização da
força como elemento constitutivo de poder e autoridade, cujo detentor era o homem.
Esse modelo se afirmou, instituindo a dominação, atributo do homem, e seu avesso, a
submissão, imposta ao elemento feminino. É nesse sentido que, a essa relação entre os
sexos, construída em forma de oposição, se impôs uma lógica de violência simbólica,
definida como violência insensível e invisível a suas próprias vítimas, que se exerce
essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou,
mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do
sentimento. (cf. Bourdieu, 1999, p. 7).
É interessante observar que Teles e Melo (2003), ao se referirem à questão sobre
a violência contra a mulher, utilizam como sinônimo desse fenômeno o termo violência
de gênero. Sob esse aspecto, as autoras explicam que tal conceito deve ser entendido
como uma relação de poder de dominação do homem e da submissão da mulher, sendo
que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e
reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos,
indicando também que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim
do processo de socialização das pessoas. Nessa perspectiva, o conceito de gênero trata
“da forma culturalmente elaborada que a diferença sexual toma em cada sociedade, e
que se manifesta nos papéis e status atribuídos a cada sexo e constitutivos da identidade
sexual dos indivíduos.” (ibid., p. 38).
Além do mais, pode-se dizer que o nero se constrói socialmente de acordo
com o tempo histórico vivido em cada sociedade, enquanto a expressão ‘sexo’ teria uma
caracterização biológica com destaque para os aspectos físicos do ser feminino ou do
ser masculino. Assim, verifica-se que é a própria estrutura da sociedade e sua dinâmica
55
que transformam as diferenças sexuais em desigualdades sociais tendo em vista atender
interesses de determinados grupos. (cf. Teles, 2007, p. 38-9).
Esse viés de gênero como relacional desconstrói uma concepção binária dos
papéis sexuais e funda uma perspectiva em que homens e mulheres são analisados e
entendidos a partir das relações que estabelecem na esfera social. Assim sendo, a
compreensão dos papéis e representações adequados a homens e mulheres o tem tão
somente na variável biológica seu fator de leitura e entendimento, posto que essa
variável não conta de explicar a complexa teia de relações, por vezes ambíguas e
contraditórias, vivenciadas pelos sexos na sociedade:
Gênero tanto é substituto para mulheres como é igualmente utilizado para
sugerir que a informação sobre o assunto mulheres’ é necessariamente
informação sobre os homens, que um implica o estudo do outro. Esta
utilização insiste sobre o fato de que o mundo das mulheres faz parte do
mundo dos homens, que ele é criado em e por este mundo. Este uso rejeita a
validade interpretativa da idéia de esferas separadas e sustenta que estudar as
mulheres de maneira isolada perpetua o mito de que uma esfera, a
experiência de um sexo, tenha muito pouco, ou nada, a ver com o outro sexo.
Além disso, o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais
entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente explicações biológicas como
aquelas que encontram um denominador comum, para diversas formas de
subordinação, no fato de que as mulheres m as crianças e os homens m
uma força muscular superior. (Scott, 1990, p.7)
O gênero, visto sob esse ponto de vista, significa a organização social das
diferenças sexuais, de modo que, se o sexo pertence à esfera do biológico, o nero
encontra-se na esfera do sociocultural, mas, de maneira alguma, são duas categorias
antagônicas e que se excluem, antes, uma implica a outra.
De um modo geral, “a violência de gênero é praticada pelo homem para dominar
a mulher, e não eliminá-la fisicamente. A intenção masculina é possuí-la, é tê-la como
sua propriedade, determinar o que ela deve desejar, pensar, vestir. Ele quer tê-la sob seu
controle e ela deve desejar somente a ele próprio.” (Teles e Melo, 2003, p.25). As
autoras ainda destacam que a “prática da violência de gênero é transmitida de geração a
geração tanto por homens como por mulheres.” Tal violência “torna-se de tal forma
arraigada no âmbito das relações humanas que é vista como se fosse natural, como se
fizesse parte da natureza humana.” (ibid. p.24).
56
Dessa estreita relação entre o biológico e o cultural advém a normatização dos
sexos e determinam-se os padrões adequados a homens e mulheres em diferentes épocas
e sociedades. A invenção da masculinidade e da feminilidade não se dá por acaso, mas é
resultado de um discurso sexista que é gestado na história, produzido pela cultura,
socialmente aceito e incorporado aos hábitos, costumes e comportamentos de um povo.
Desse modo, os padrões de masculinidade e feminilidade preestabelecidos socialmente
para homens e mulheres legitimam as relações de poder entre os sexos, hierarquizam
suas posições sociais e criam um sistema baseado em valores, crenças, estereótipos e
discursos socioculturalmente construídos.
Os costumes, a educação e os meios de comunicação tratam de criar e preservar
estereótipos que reforçam a idéia de que o sexo masculino tem o poder de controlar os
desejos, as opiniões e a liberdade de ir e vir das mulheres. (cf. Teles e Melo, ibid., p.8).
Cotejando-se as teorias a respeito de gênero, Teles adverte para a utilidade desse
“instrumento de análise da realidade”, explicando que o estudo de gênero contribui para
o estudo das desigualdades sociais, para perceber e aprofundar as relações de poder, os
significados e os símbolos de corpos e sexos, a formulação de noções, idéias e valores
nas diversas áreas dos setores sociais: “É como se fosse uma lupa para que se possa
enxergar a realidade das relações sociais entre os sexos, seus conflitos e suas
contradições.” (2007, p. 53).
Histórica e culturalmente, devido a questões puramente fisiológicas, os homens,
dotados de forças superiores às mulheres são, por esse motivo, consagrados como
representantes do “sexo forte”. Assim, nessa construção social assimétrica, os homens
ocupam, tradicionalmente, a posição de dominadores, enquanto as mulheres ocupam a
posição de dominadas. Pelo mero fato de deterem, em geral, menos força física que os
homens, as mulheres teriam decretadas sua inferioridade e dependência perante aqueles
e, dessa forma, por representarem o “sexo frágil”, acabariam por facilitar aos homens o
exercício da violência sobre elas:
A própria expressão ‘violência contra a mulher’ foi assim concebida por ser
praticada contra pessoa do sexo feminino, apenas e simplesmente pela sua
condição de mulher. Essa expressão significa a intimidação da mulher pelo
homem, que desempenha o papel de seu agressor, seu dominador e seu
disciplinador. (Teles e Melo, op. cit., p.19)
57
De acordo com Bourdieu (1999), a dominação masculina tem suas origens num
comportamento histórico de forças materiais e simbólicas que atuam tanto na unidade
doméstica como também em unidades maiores como o Estado, a escola, a igreja e outras
instituições que orientam a conduta dos indivíduos na sociedade. O homem desde
criança aprende a representar a imagem de virilidade que é passada tanto pelo pai
(dominador) quanto pela mãe (dominada), possibilitando que ambos reproduzam a
relação de dominação.
Por fim, a violência contra a mulher deve ser entendida como “uma relação de
poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Os papéis impostos às
mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado
e sua ideologia, induzem a reações violentas. Não é fruto da natureza, mas sim do
processo de socialização das pessoas.” (Teles, 2007, p.69-70). Assim, quando falamos
em violência contra a mulher, referimo-nos à agressão psicológica, física, sexual ou
patrimonial direcionada exclusivamente à mulher, nos espaços públicos ou privados.
Com respeito à violência psicológica, deve-se esclarecer ainda que tal fenômeno atua
em todas as outras formas de violência e refere-se, segundo Teles (ibid., p.23-4), a
“ações ou omissões que visam degradar, dominar, humilhar outra pessoa, controlando
seus atos, comportamentos, crenças e decisões.”
3.2 A propósito das considerações sobre o humor: a questão do riso
Desde Aristóteles, o riso tem sido largamente estudado, teorizado e discutido por
historiadores, filósofos, psicólogos, sociólogos, lingüistas e outros o que justifica, por
um lado, a existência de uma vasta bibliografia sobre o assunto e, por outro lado, a
conseqüente dificuldade de sua definição e delimitação.
Embora muitos estudiosos tenham se debruçado sobre essa questão, Minois
(2003) adverte que tal interesse não deveria surpreender pois, de fato, estamos imersos
em uma “sociedade humorística”, ou seja, uma sociedade que quer ser cool e fun
15
,
amavelmente malandra, em que os meios de comunicação difundem modelos
descontraídos, heróis cheios de humor e em que se levar a sério é falta de correção”.
(ibid., p.15)
15
Cool: (adj.) indiferente, apático; (adv. de modo) distanciado, sem envolvimento; Fun: (subst.)
pândega, divertimento, diversão, prazer; (adj.) divertido, engraçado. Fonte: Dicionário virtual Michaelis:
http://michaelis.uol.com.br/ (acesso: 25/09/08)
58
O riso, por sua vez, sempre foi um mistério na história do pensamento ocidental.
Serve ao mesmo tempo para afirmar e para subverter. Na encruzilhada do físico e do
psíquico, do individual e do social, do divino e do diabólico, ele flutua no equívoco, na
indeterminação. (cf., ibid.). Portanto, de acordo com Minois, tem tudo para seduzir o
espírito moderno: “Alternadamente agressivo, sarcástico, escarnecedor, amigável,
sardônico, angélico, tomando as formas da ironia, do humor, do burlesco, do grotesco,
ele é multiforme, ambivalente, ambíguo. Pode expressar tanto a alegria pura quanto o
triunfo maldoso, o orgulho ou a simpatia.” (p.15-6).
Diante de um assunto tão instigante e abrangente, selecionar alguns aspectos das
teorias acerca da comicidade, importantes para a sedimentação da análise do nosso
corpus, nos afigurou o caminho mais lógico. Em vista disso, nos respaldaremos,
principalmente, nas postulações de Bakhtin, Bergson e Propp, imprescindíveis para
nossa pesquisa. É o que trataremos a seguir.
3.2.1 A carnavalização do riso medieval sob a perspectiva de Bakhtin
Por intermédio de sua obra, A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais, o teórico russo Mikhail Bakhtin
discorreu acerca da natureza do riso medieval. Para tanto, atentou para o fato de que na
sociedade da Idade Média havia uma divisão bastante acentuada entre o sério e o
cômico. Pode-se dizer que as autoridades, os religiosos e os senhores feudais defendiam
a seriedade como atributo da cultura oficial. O cômico, por sua vez, opunha-se à cultura
oficial e este valor subversivo o transformou em uma característica essencial da cultura
popular.
Convém lembrar, como relata Bakhtin (1996), que, por um lado, a festa oficial,
às vezes mesmo contra as suas intenções, tendia a consagrar a estabilidade, a
imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores,
normas e tabus religiosos, políticos e morais correntes. Nesse sentido, como aponta o
autor, a festa era o triunfo da verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante, que assumia a
aparência de uma verdade eterna, imutável e peremptória. Por isso, “o tom da festa
oficial pode ser o da seriedade sem falha, e o princípio cômico lhe era estranho.
Assim, a festa oficial traía a verdadeira natureza da festa humana e desfigurava-a.
(ibid., p.8). Por outro lado, o carnaval, contrário da festa oficial, era, como descreve
Bakhtin, “o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do
59
regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios,
regras e tabus.” (ibid., p.8). Assim, enquanto a festa oficial era a consagração da
desigualdade, no carnaval todos são iguais e nele reina uma forma especial de contato
livre e familiar entre os indivíduos normalmente separados na vida cotidiana pelas
barreiras intransponíveis da sua condição, sua fortuna, seu emprego, idade e situação
familiar.
Bakhtin (1996) destaca ainda que a própria Igreja, a princípio, em determinadas
festas religiosas, permitia que o sagrado fosse dessacralizado. Entretanto,
posteriormente, tais festas, como relata o autor - a festa do asno, a dos loucos e a do
riso pascal - deixaram de ser permitidas dentro dos ambientes sagrados das igrejas,
ocorrendo apenas em seu entorno. Isso ocorreu pelo fato de serem consideradas
degradações grotescas do mundo oficial de tal sorte que havia nelas inversões paródicas
dos cultos religiosos, instaurando, segundo Bakhtin, “uma lógica original das coisas ao
avesso, ao contrário, que mostra o segundo mundo da cultura popular, como um mundo
ao revés”. (ibid., p. 9)
Pode-se dizer que as pessoas, mascaradas ou fantasiadas, desfrutavam de total
liberdade nessas festas e ali embriaguez, licenciosidades, tudo era permitido ao povo
que, por sua vez, tomava as ruas e extravasava livremente sua primitiva alegria. Assim,
por meio do riso e da visão carnavalesca do mundo, a seriedade é destruída e a
consciência, o pensamento e a imaginação humana ficam assim disponíveis para o
desenvolvimento de novas possibilidades: “daí, que uma certa carnavalização da
consciência precede e prepara sempre as grandes transformações, mesmo no domínio
científico.” (ibid., p.43).
Com isso, segundo postula Bakhtin, pode-se dizer que o riso é uma das
principais formas pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo, sobre a história,
sobre o homem, assumindo "um profundo valor de concepção do mundo.” (ibid., p.57).
No entanto, para que a comicidade consiga desmascarar, desestruturar os grupos
dominantes e revelar a verdade, é preciso que haja um contexto cômico, ou seja, o
homem tem de estar inserido no grupo ou ambiente em que ocorre a situação risível
para que compreenda a crítica social implícita. (cf. Bergson, 2004, p.6). Esse autor
ainda acrescenta que o riso “é um ponto de vista particular e universal sobre o mundo”
percebendo esse mundo “de forma diferente, embora não menos importante (talvez
mais) do que o sério. " ( p.57).
60
A esse respeito, Bakthin dizia que o verdadeiro riso não recusa o sério, ao
contrário, purifica-o e completa-o: “O riso impede que o sério se fixe e isole da
integridade inacabada da existência cotidiana." (1996, p.105). Logo, o intuito do
cômico na literatura é de instruir e capacitar o leitor para perceber a falsidade e os
defeitos do homem, funcionando como um instrumento de combate contra o
autoritarismo, intolerância e a falsa moral da sociedade. Sob esse aspecto, Pinto (1970,
p.194) refere-se ao humor como a arte de descobrir a verdade, “utilizando do homem
sua capacidade de inventar. O humor é essencialmente criativo. O humor é uma forma
não linear de se descer ao fundo das coisas, de buscar e entender sua essência e revelá-la
de maneira não convencional.”
Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se dizer que na Idade Média uma das
funções do bufão era a de exprimir a verdade por meio do riso. Tal personagem tinha o
“privilégio de dizer bem alto o que todo mundo pensa baixo, o que é muito útil ao rei
para fazer que enxerguem a realidade àqueles que ainda não compreenderam ou que
fingem acreditar que a política é guiada pelos grandes princípios e pelos ideais morais e
religiosos." (Minois, 2003, p.289).
Essa visão de mundo específica, marcada pelo riso, pela subversão dos valores
oficiais, pelo caráter renovador e contestador da ordem vigente, materializados que são -
por meio de uma linguagem caricaturesca e dúbia confirma nossas impressões de que
as crônicas de José Simão leva-nos a Bakhtin, tendo em vista os constantes
rebaixamentos a que são submetidas as notícias e os seus atores, nesse caso específico,
as mulheres. Conforme havíamos assinalado no segundo capítulo, item 2.5, quando
pontuamos alguns aspectos da crônica de José Simão, comprova-se, a partir da análise
do corpus, que os textos do autor dessacralizam o sério, carnavalizam a notícia. Trata-se
do riso alegre, de bem com a vida e, portanto, do riso carnavalesco, grotesco da acepção
bakhtiniana.
3.2.2 Algumas considerações de Bergson e Propp sobre a comicidade
Bergson (1859-1941), quando escreveu em 1941 a obra O riso: ensaio sobre a
significação da comicidade, postulava que o riso, por ser exclusivo do homem, tem
como maior inimiga a emoção, sendo que a indiferença é o seu meio natural. (Bergson,
2004, p.3). Nesse sentido, pode-se dizer que, por meio do processo da mecanização, da
insensibilidade e distanciamento do expectador é que ocorre o processo do riso.
61
Quando, por exemplo, rimos de uma pessoa que nos causa pena, é preciso que, por
instantes, nos afastemos desse sentimento, o que exige uma "anestesia momentânea no
coração", mobilizando a "inteligência pura", ou seja, a razão. Assim, o riso cômico é
incompatível com algumas situações como, por exemplo, a de grande dor ou
sofrimento, atestando a fraqueza moral do sujeito que ri diante desses acontecimentos e
causando a nossa indignação. Entretanto, o riso, espécie de gesto social (cf. ibid., p.15),
não pode ser um ato solitário, pois é sempre o riso de um grupo”, tendo em vista que a
necessidade de que convivamos na mesma sociedade se impõe. (cf. ibid., p.4).
Em sua obra Comicidade e riso, publicada em 1946, o filólogo Vladimir Propp
(1992, p.33) afirma que uma das condições para que o riso ocorra é a presença de duas
grandezas: a do objeto ridículo que suscita o riso e a do homem - sujeito que ri. Sob essa
perspectiva, assim como Bergson, Propp também acredita na premissa de que o riso é
exclusivo do homem. Todavia, acrescenta que outros animais podem se tornar risíveis,
desde que se veja neles algum arremedo de ações humanas. É o caso do macaco, pois,
segundo Propp (ibid., p.38), “ele, mais do que todos, lembra o homem”. Propp também
postula, à luz de Bergson, que o riso é incompatível com uma grande e autêntica dor: “E
se apesar disso alguém ri, sentimos indignação, esse riso atestaria a monstruosidade
moral de quem ri.” (ibid., p. 36).
Pode-se afirmar também que a comicidade e, por conseqüência, o riso, permeiam
o comportamento e a vida humana, funcionando como uma espécie de trote social,
que humilha e minoriza que é objeto dele. De acordo com Bergson (2004, p.60), para
compreender o riso, “impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a sociedade;
impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função social.” De forma
análoga, Propp (1992, p.190) postula que o riso deve preencher certas exigências da
vida em comum, deve ter um significado social. Todavia, Propp alerta que somente o
riso de zombaria tem a função de destruir ou humilhar seu objeto, pois os outros tipos
de riso, como o de alegria ou o cordial, libertam e elevam o espírito humano, criando o
bom humor e estimulando a vontade de viver; portanto, o riso, exceto o de zombaria, é a
essência da vida e da felicidade: “O riso é importante como arma de luta, mas é também
necessário enquanto tal como manifestação de alegria de viver que estimula as forças
vitais." (ibid., p.190).
Atendendo aos objetivos propostos por esta pesquisa, trataremos do riso ligado à
comicidade, especificamente, ao riso de zombaria, pois José Simão “desnuda os defeitos
daquele ou daquilo que é objeto do riso” no caso, as mulheres “denunciando o seu
62
fracasso e retirando o seu prestígio.” (ibid., p.146). Igualmente importante para nosso
trabalho, também, é o estudo do riso maldoso e do riso cínico, ambos originados de
sentimentos ruins e maldosos. O riso maldoso, segundo Propp, “não suscita simpatia, já
que nesse tipo de riso os pequenos defeitos ou aqueles aparentes, inventados ou
imaginados são aumentados e realçados, causando os sentimentos maldosos, ruins e
maledicentes.” O riso cínico, por sua vez, “prende-se ao prazer pela desgraça dos
outros, enquanto que o riso mau deriva de defeitos falsos.” (ibid., p.190). Com isso,
percebe-se que “o riso é uma arma de destruição: ele destrói a falsa autoridade e a falsa
grandeza daqueles que são submetidos ao escárnio.” (ibid., p.46).
3.2.3 Instrumentos lingüísticos da comicidade
Como vimos até o momento, a comicidade é intrínseca à natureza humana,
sendo passíveis de riso todas as suas manifestações ou objetos e animais que lembrem o
seu comportamento. Dessa maneira, o cômico se manifesta por meio de outro elemento
inato ao homem: a linguagem que, por meio de seus jogos de palavras e idéias, revela
todos os aspectos risíveis do homem, submetendo-o ao escárnio.
A linguagem cômica provoca o riso com o intuito de desnudar os defeitos do ser
humano, evidenciando a sua fragilidade. Porém, é importante ressaltar que a linguagem
não é cômica por si, mas se torna cômica, uma vez que mostra os pensamentos de quem
a pronuncia, sendo, portanto, um recurso para delinear uma situação risível e revelar as
impressões que essa circunstância cria no espírito humano: "A língua não é cômica por
si mas porque reflete alguns traços da vida espiritual de quem fala, a imperfeição do
seu raciocínio" (Propp, 1992, p.9).
Ainda segundo Propp, para se estudar a elaboração do discurso cômico, deve-se
verificar a existência dos vários elementos lingüísticos que o norteiam, que a
linguagem cômica é constituída de um arsenal riquíssimo de instrumentos de
comicidade e zombaria. (cf. ibid.)
Cabe ressaltar, ainda, que contemplaremos apenas os elementos lingüísticos que
julgamos relevantes para a sedimentação de nossa análise. É o que trataremos a seguir.
Surgida entre os gregos, a paródia é uma das mais poderosas formas de sátira
social e se assemelha à imitação, pois zomba repetindo e negando a caracterização de
algo, criando uma certa tensão no discurso, dada pela comicidade. Nesse sentido, pode-
se dizer que a paródia recusa e esvazia o modelo original para recriar e preencher um
63
modelo próprio, estabelecendo uma inversão dos valores tradicionais como uma forma
de crítica consciente. Por essa razão, no discurso parodiado, como observa Bakhtin
(1981, p.168), é impossível a fusão de vozes, porque a segunda voz que se instala no
discurso do outro entra em hostilidade com o agente primitivo e o leva a servir fins
totalmente opostos. Assim sendo, postula-se que o discurso parodístico converte-se em
palco de luta entre duas vozes, caracterizando-se como uma crítica ao sistema social.
A caricatura ocorre quando se acentua uma qualidade ou defeito do
caricaturado, ou seja, é a representação exagerada de um determinado aspecto da pessoa
em detrimento das suas outras características, dando especial atenção aos pormenores
que antes eram quase imperceptíveis e que, ao ser isolado, passa a ter um efeito cômico
que, em nossa lembrança, estende-se a todo o objeto. (cf. Propp, op. cit., p.88). Em
conseqüência disso, acredita-se que o propósito da caricatura é zombar e ridicularizar o
seu objeto, firmando-se como uma verdadeira arma social para desmascarar e derrubar
os poderosos, porque, dificilmente, o caricaturado consegue se desvencilhar da imagem
distorcida e ridicularizada que o artista projeta sobre ele.
Outro elemento lingüístico importante na elaboração da comicidade é a ironia,
que consiste em dizer o contrário do que se está pensando ou sentindo, ou seja, é a
expressão de algo positivo, querendo, na realidade, deixar transparecer o seu aspecto
negativo. Sempre ligado à dissimulação e ao fingimento, esse recurso cria uma certa
comicidade na literatura, porque zomba, perverte e destrói o seu objeto, normalmente
elogiando o que se quer criticar e ridicularizar. (cf. Propp, op. cit., p.125).
A repetição, a inversão e a interferência de séries são três processos que, de
acordo com Bergson (2004), criam a comicidade por meio da mecanização da vida, pois
dão a impressão que todo arranjo de ato e acontecimento da vida é uma montagem
mecânica.
O primeiro deles, o da repetição, consiste, segundo o autor, na reiteração de
situações exatamente iguais em várias ocasiões diferentes, ou seja, fatos que se repetem
mesmo fora do contexto. É nessa reprodução idêntica dos fatos já ocorridos que está a
comicidade, pois a repetição da situação de modo quase mecânico é inserida no texto
como se fosse uma simples coincidência. Há ainda a repetição de situações, que consiste
em arrumar os acontecimentos de modo que uma cena seja reproduzida ou entre os
mesmos personagens em novas circunstâncias, ou entre personagens novos em situações
idênticas. Assim, por exemplo, os criados, ao repetirem em linguagem menos nobre
uma cena já desempenhada pelos patrões ou vice-versa, servem de ilustração para
64
compreendermos o processo de repetição. (cf. Bergson, 2004, p.66-7). No campo
estritamente lingüístico, a repetição pode ocorrer, segundo esse autor, por meio de
reiterações das mesmas palavras, frases ou expressões, demonstrando a mecanização do
comportamento e das ações da personagem.
A inversão, numa narrativa, ocorre tanto em relação às situações, como no
âmbito do tempo, espaço, ações das personagens ou, ainda, quanto à ideologia. Nas
situações, se refere à estrutura da narrativa, provocando contratempos e mudanças
inesperadas entre a situação inicial e final da narrativa. No que tange ao tempo e ao
espaço, o processo de inversão estabelece, principalmente em relação ao tempo, uma
mistura entre o real e o fantástico. O processo de inversão pode ocorrer, também,
quanto à ideologia, sendo mais comum na ironia, na sátira e na paródia, que o
narrador transmite um conceito contrário daquele expresso no desenvolvimento da
história. Desse modo, podemos considerar que a inversão se liga à esfera do carnaval
conceituado, por Bakhtin, como um momento em que as leis, proibições e restrições,
que determinam o sistema e a ordem da vida comum, são revogadas, acabando com a
desigualdade social e hierárquica entre os homens. A relação entre a carnavalização e a
inversão pode ser feita, porque os dois processos desviam a vida da sua ordem habitual,
conforme demonstra Bergson (2004): assim que rimos do réu que uma lição de
moral ao juiz, da criança que pretende dar lições aos pais, enfim, daquilo que se
classifique sob a rubrica do ‘mundo às avessas’." (ibid., p.70).
A interferência, por sua vez, consiste em uma confusão cômica, isto é, quando a
situação pode ser interpretada em dois sentidos diferentes ao mesmo tempo, sendo que
um é o sentido possível, dado pelas personagens, e o outro real que é dado pelo público.
É a incerteza que se forma em nosso espírito entre as duas interpretações que cria a
comicidade e suscita o riso.
Outro recurso muito usado na elaboração do cômico é o trocadilho ou o
calembur, que consiste no emprego cômico de palavras semelhantes quanto ao som,
mas diferentes quanto ao significado. Muito usado na interferência, o trocadilho ocorre
quando um interlocutor compreende o sentido geral ou amplo da palavra e o outro o
substitui pelo sentido restrito ou literal, anulando e revelando a inconsistência do
argumento do outro. Logo, o trocadilho torna-se cômico, porque desvia, mesmo que
momentaneamente, a linguagem. (cf. Propp, 1992, p. 121-3)
Diante do exposto, comprova-se, portanto, que a comicidade é dada pela
organização e elaboração da linguagem que, por meio de inúmeros recursos lingüísticos,
65
desnuda os defeitos, manifestos ou secretos, daquele ou daquilo que provoca o riso,
expondo-o à humilhação. Escritas de forma bastante característica, as crônicas de José
Simão são marcadas pelo uso recorrente das estratégias elencadas anteriormente. Por
essa razão, pode-se dizer que seus textos fornecem um vasto material para análise.
3.3 A violência filtrada pela comicidade
Ao lado da fala, o riso, em suas diversas formas, também pode ser considerado
um elemento estruturante da violência, caracterizado como um perigo ou uma denúncia
da civilização. Mafessoli (1987, p.65), ancorado nas postulações de Horkheimer,
acrescenta que o riso pode se tornar um perigo ou denúncia da civilização, à medida
que, aliado a hilaridade das multidões, liga-se à loucura, ao furor e ao mimetismo. Do
mesmo modo, é possível estabelecer a ligação entre o riso e a crueldade ou a violência.
De acordo com Travaglia (1989-90, p. 50), a denúncia é uma vocação básica do
humor e, por meio dele, “se rompe a proibição e a censura social imposta ao indivíduo
ou a grupos.” Para o autor, isso se torna possível à medida que o humor, sendo algo
“não-sério”, permite que por meio dele se façam e digam coisas que, fora dele, as
normas sociais não permitiriam. (cf. ibid.). Com isso, podemos dizer que esse humor,
amenizado pelo paleativo da “brincadeirinha”, pode gerar ou intensificar preconceitos,
racismos e intolerâncias, sendo, portanto, uma forma de violência.
Em se tratando da “violência dentro do humor”, Travaglia considera que esse
fenômeno nada mais é do que o rir das tristezas trágicas, de doenças e patologias, das
deformidades físicas ou não, das desgraças. Esse humor negro, para ser considerado
como tal, tem de ser feito de modo agressivo, violento, que coloca o dedo nas feridas”
que a sociedade resguarda a todo custo. (cf. ibid., p. 53).
Certamente, existe no riso um senso estético profundo, “um prazer dos sentidos
que, porque ele despreza o dever-ser ou valores que ele permite, é uma afirmação jocosa
(e trágica) de um presente que não teme o futuro” e, por assim dizer, em resumo, esse
riso é a morte, que, de várias maneiras, é assumida, vivida, negociada, destilada pelo
conjunto da espécie, que permite à vida existir.” (Mafessoli, 1987, p.67-8).
Além do mais, pode-se dizer que o riso assimila o necessário do arriscado em
instantes cômicos onde a ordem se perde na desordem, do mesmo modo que nos lembra
Bergson (2004), quando diz que o autônomo perde-se no automático e a vida na morte.
É exatamente nesse sentido que, para Mafessoli (1987:68), o riso é a expressão do
66
desgaste, da perda, que explica a inelutável inutilidade das coisas; “é exatamente o que
faz sua presença corrosiva ao máximo, numa intuição, numa situação, numa prática,
etc., cada uma persuadida, enquanto tal, em explicar ou em fazer, no momento
oportuno, o que é correto e necessário fazer.” (ibid.)
É esse o papel corrosivo do riso que, como na fala, faz dele um elemento
importante na dinâmica da violência. Sob essa perspectiva, sua faculdade agregadora
estende, por essa razão, sua eficácia subversiva, e isso ocorre porque o riso desmistifica
a pedante pretensão à racionalidade e à universalidade da seriedade política. Pode-se
dizer também que o riso, para Mafessoli (ibid., p.69), rompe a clausura, permitindo o
escoamento torrencial de viver que se tenta refrear. Por fim, ele não é o sinal de uma
reação brutal e o inteligente, mas expressão sutil de autoconservação que se sabe
ameaçada.
Por ser espaço gerador de sentido num dado contexto sócio-histórico, a palavra,
signo ideológico por excelência, é controlada, selecionada por intermédio dos
mecanismos sociais. Da importância da Análise do Discurso, ou seja, a possibilidade
de perceber como os sentidos se constituem. Pode-se dizer também, de acordo com
Bakhtin, que a palavra é uma arena em miniatura onde perpassam e lutam os valores
sociais de orientações contraditórias, podendo ser instrumento da disseminação de
costumes, hábitos, crenças e estereótipos generalizantes e preconceituosos. (cf. Bakhtin,
1997, p.49).
Atendendo aos propósitos de nossa pesquisa e, preconizando, dessa forma, um
quadro teórico que alie o lingüístico ao sócio-histórico, trataremos desse assunto no
próximo capítulo.
67
CAPÍTULO 4 – DISCURSO E ESTEREÓTIPOS
Para compreendermos os efeitos de sentido desencadeados pelas crônicas de
José Simão, buscaremos respaldo teórico nos pressupostos teóricos-metodológicos da
Análise do Discurso pois, em decorrência de seu caráter interdisciplinar, para a AD
16
, a
linguagem deve ser estudada não só em relação ao seu sistema interno, enquanto
formação discursiva, mas também enquanto formação ideológica. Isso significa que,
para o estabelecimento do sentido, acima de tudo, devem ser levados em conta os
embates históricos, sociais, ideológicos, etc. que se cristalizam no discurso,
materializados que são, sob a forma de estereótipos, crenças, valores, leis, etc. Vale
dizer que, num primeiro momento, refletiremos acerca desses conceitos. Considerando a
participação do homem no grupo social em que está inserido e a posição que ocupa
dentro desse grupo, ser-lhe-ão cobrados certos comportamentos tidos como
convenientes para tal estrutura social. Daí a razão de estudarmos os conceitos de status
e papéis sociais pois, tais conceitos, imbricados entre si, referem-se à participação do
indivíduo no grupo social. Por fim, direcionaremos nossa atenção à discussão dos
estereótipos, tendo em vista que José Simão, valendo-se de uma linguagem ordenada
por códigos, passados de geração a geração e que por vezes defende as tradições
culturais e sociais de determinados grupos sociais, contribui para a disseminação e
perpetuação de posições extremamente preconceituosas em relação à mulher.
4.1 As definições de discurso
Etimologicamente, o termo discurso
17
vem do latim discursus, o qual, por sua
vez, deriva de discurrere, que significa percorrer, atravessar, tratar, expor, analisar. A
esse respeito, Orlandi afirma:
A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua,
não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do
discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso,
de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em
16
Para nos referirmos à Análise do Discurso, de agora em diante,utilizaremos a sigla AD.
17
Conceito extraído do Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, de Antônio
Geraldo da Cunha, 2ª ed., Nova Fronteira. 1986.
68
movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o
homem falando. (2000, p.15)
Em seu livro, O Discurso da Violência, Dias, ancorada nas postulações de
Maingueneau acerca da definição de discurso, ressalta que este teórico entendia o
discurso como
resultado da articulação de uma pluralidade mais ou menos grande de
estruturações transfrásticas, em função das condições de produção, articulado
com elementos ideológicos. Para ele (explica Dias), o discurso tanto pode
estar ligado a um único enunciado como a muitos, pois o que importa
considerar não é o fenômeno da extensão, mas o de sua natureza. O essencial
são os elementos pragmáticos, advindos da situação do discurso, seu caráter
retórico, a intenção de um falante influenciar seu interlocutor. (2003, p.107)
Em sentido amplo, pode-se dizer que a definição de discurso, proposta por
Orlandi (1994), nos introduz em um campo disciplinar que trata da linguagem em seu
funcionamento, “considerando a produção de sentidos” enquanto parte da vida dos
homens, seja enquanto sujeitos, seja enquanto membros de uma determinada forma de
sociedade. Nessa perspectiva, o discurso é visto como efeito de sentido entre locutores.
A esse respeito, a autora explica:
Ou seja: se pensarmos o discurso como efeito de sentido entre locutores,
temos de pensar a linguagem de maneira muito particular: aquela que implica
considerá-la necessariamente em relação à constituição dos sujeitos e a
produção dos sentidos. Isto quer dizer que o discurso supõe um sistema
significante, mas supõe também a relação deste sistema com sua
exterioridade que sem história não sentido, ou seja, é a inscrição da
história na linguagem que faz com que ela signifique. Daí os efeitos entre
locutores. E, em contrapartida, a dimensão simbólica dos fatos. (ibid. p.17)
Em outras palavras, a respeito da proposta da AD, Orlandi ressalta: Levando
em conta o homem na sua história, a AD considera os processos e as condições de
produção da linguagem, pela análise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos
que a falam e as situações em que se produz o dizer.” (ibid., p.16).
Por fim, Baccega, a fim de que nos aproximemos da constituição dos discursos,
destaca a importância da enunciação e do enunciado:
69
está a enunciação, universo à disposição do indivíduo/sujeito, que poderá
escolher nele as palavras para, combinando-as, formar seu enunciado,
manifestar suas concepções, suas idéias, as quais, na verdade, foram
formadas a partir desse conjunto, a partir das interações apontadas. (2007,
p.53)
A esse propósito, prosseguindo em suas reflexões, a autora define os conceitos
de enunciação e enunciado, respectivamente: “A enunciação é, portanto, o lugar onde
‘nasce’ o discurso, o lugar de onde ‘brota’ o discurso. O enunciado é a manifestação
desse discurso, quer seja na modalidade escrita da língua, quer seja na modalidade oral.”
(ibid., p.53, grifos do autor).
4.1.1 Considerações sobre a Análise do Discurso
Nos anos 60 do século XX, os estudos e pesquisas feitos sobre a relação da
linguagem com seu contexto (a exterioridade) tomam uma forma singular e precisa, no
que temos chamado de Escola Francesa de Análise de Discurso. Tendo o discurso
como o seu principal objeto de pesquisa e opondo-se às análises conteudísticas, para a
AD, segundo Brandão (2004), era fundamental considerar o modo de funcionamento
lingüístico-textual dos discursos, além das diversas modalidades do exercício da língua,
num determinado contexto histórico-social de produção. Pode-se dizer que foram os
estudos de M. Pêcheux que forneceram uma base teórico-metodológica para o
desenvolvimento da AD.
Brandão, parafraseando Maingueneau, observa que a AD filia-se a uma certa
tradição intelectual européia (e sobretudo da França) acostumada a unir reflexão sobre
texto e sobre história. (cf. 2004, p.16). Nos anos 60, sob a égide do estruturalismo, a
conjuntura intelectual francesa propiciou, em torno de uma reflexão sobre a escritura”,
uma articulação entre a lingüística, o marxismo e a psicanálise. Brandão assegura,
assim, que a AD nasceu tendo como base a interdisciplinaridade, pois ela era a
preocupação não de lingüistas como de historiadores e de alguns psicólogos. (cf.
ibid.)
Sob esse aspecto, Maingueneau postula que a referência às questões filosóficas
e políticas, surgidas nos anos de 1960, constitui amplamente a base concreta,
70
transdisciplinar de uma convergência sobre a questão da construção de uma abordagem
discursiva dos processos ideológicos. (cf. 1997, p.10).
Com relação à filiação da AD com a Lingüística, o Marxismo e a Psicanálise,
Orlandi tece algumas considerações, que julgamos importantes, sobre as questões
criadas entre esses três domínios disciplinares, que o, ao mesmo tempo, uma ruptura
com o século XIX:
Desse modo, se a Análise do Discurso é a herdeira das três regiões de
conhecimento Psicanálise, Lingüística, Marxismo não o é de modo servil
e trabalha uma noção – a de discurso – que não se reduz ao objeto da
Lingüística, nem se deixa absorver pela Teoria Marxista e tampouco
corresponde ao que teoriza a Psicanálise. Interroga a Lingüística pela
historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando
pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como, considerando a
historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao
inconsciente sem ser absorvida por ele. (2000, p. 20)
Tendo em vista o seu caráter interdisciplinar, a AD inscreve-se em um quadro
teórico que articula o lingüístico com o social e, dessa forma, “vê seu campo estender-se
para outras áreas do conhecimento”, nas quais se confina (história, filosofia, sociologia,
psicologia, etc.). (Brandão, op. cit., p.16). Entretanto, para marcar a especificidade da
AD no interior dos estudos da linguagem, insistia Maingueneau (apud. Brandão,
1997, p.17) na necessidade de se considerarem outras dimensões, a saber: “o quadro das
instituições em que o discurso é produzido, as quais delimitam fortemente a enunciação;
os embates históricos, sociais etc. que se cristalizam no discurso; o espaço próprio que
cada discurso configura para si mesmo no interior de um interdiscurso”
18
.
E, inscrevendo-se em um quadro que articula o lingüístico com o social, para a
AD, a linguagem passa a ser um fenômeno que “deve ser estudado não só em relação ao
seu sistema interno, enquanto formação lingüística a exigir de seus usuários uma
competência específica, mas também enquanto formação ideológica, que se manifesta
através de uma competência socioideológica.” (Maingueneau, ibid., p.17).
É importante considerar que o discurso é uma das instâncias em que a
materialidade ideológica se concretiza. Ao analisarmos a articulação da ideologia com o
18
A interdiscursividade, na AD, é caracterizada pelo entrelaçamento de diferentes discursos, oriundos de
diferentes momentos na história e de diferentes lugares sociais. (FERNANDES, Cleudemar A. (2007)
Análise do Discurso: Reflexões Introdutórias. São Carlos: Claraluz. p.51).
71
discurso, dois conceitos já tradicionais em AD devem ser colocados: o de formação
discursiva e ideológica. É o que trataremos a seguir.
4.1.2 Formações discursivas e ideológicas
Os estudiosos de AD postulam que, se por um lado não há discurso destituído de
ideologia, por outro não há discurso que não tenha e/ou apresente a inscrição de outros,
visto que todos eles nascem e apontam na perspectiva de suas relações com outros
discursos. Desse modo, como já foi apontado no item anterior, a AD privilegia o
conceito de interdisciplinaridade para os estudos que desenvolve no campo da
investigação sobre a linguagem.
Maingueneau (1998) explica que Pêcheux, no quadro teórico do marxismo
althusseriano, propunha que toda formação social passível de se caracterizar por uma
certa relação entre classes sociais implica na existência de posições políticas e
ideológicas que se organizam em formações que mantêm entre si relações de
antagonismo, de aliança e de dominação. (cf. ibid., p.68)
É nas formações discursivas, segundo Maingueneau, que se opera o
“assujeitamento”, a “interpelação” do sujeito como sujeito ideológico. Assim, o sujeito
se expressa na ilusão de controlar a origem de seu discurso, sem que se conta que o
determinante dos sentidos desse discurso é a história, que se manifesta por meio de
diferentes formações discursivas nas quais se inscreve e não pode se despojar. O próprio
sujeito, os sentidos de seus discursos, o dizível e o o dizível são determinados pelas
formações discursivas que operam por intermédio de memórias discursivas próprias às
diversas posições desse sujeito. (cf. ibid., p 68)
O sujeito pertence simultaneamente a múltiplas formações discursivas, de
acordo com as diversas posições (de gênero, raça, situação civil, profissão e os mais
variados grupos sociais aos quais pertence) que ocupa. Cada formação rege, de forma
específica, a produção de sentidos permitidos, válidos: “Cada sociedade tem seu regime
de verdade, sua ‘política geral’ de verdade; isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e
faz funcionar como verdadeiros.” (Foucault, 2004, p.12).
Para Fiorin (2002, p.32), é na formação discursiva que se constitui o domínio do
saber, ou seja, o “conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada visão de
mundo.” Dessa maneira, pode-se dizer que são elas que determinam o que pode e deve
ser dito, em determinada época e espaço social. Quanto à formação ideológica, Fiorin
72
postula que deve ser entendida como a visão de mundo de uma determinada classe
social, isto é, um conjunto de representações, de idéias que revelam a compreensão que
uma dada classe tem do mundo. (cf. ibid., p. 32).
É importante considerar que a ideologia, segundo Brandão, vai funcionar como
reprodutora das relações de produção, isto é, o sujeito será assujeitado como sujeito
ideológico, de forma que cada sujeito interpelado pela ideologia busque ocupar o seu
lugar em um grupo ou classe social de uma determinada formação social, tendo a
impressão de que é senhor de sua própria vontade. (cf. 2004, p.46).
Por sua vez, sabe-se que as classes sociais mantêm e perpetuam a ideologia
através do que Althusser (1974) denominou de AIE (Aparelhos Ideológicos do Estado).
Dessa forma, os AIE(s) “colocam em jogo práticas associadas a lugares ou a relação de
lugares que remetem à relação de classe.” (cf. ibid., p.47). Por esse motivo, num
determinado momento histórico e no interior dos aparelhos ideológicos, as relações de
classe podem se caracterizar pelo afrontamento de posições políticas e ideológicas que
se organizam de forma a entrever entre si relações de aliança, de antagonismos ou de
dominação.
Por fim, cotejando-se a colocação de Fiorin (2002, p.32) acerca dos conceitos de
formação ideológica e formação discursiva, o autor adverte: “Assim como uma
formação ideológica impõe o que pensar, uma formação discursiva determina o que
dizer.” Nessa seqüência, lembra: “Há, numa formação social, tantas formações
discursivas quantas forem as formações ideológicas. Não devemos esquecer-nos de que
assim como a ideologia dominante é a da classe dominante, o discurso dominante é o da
classe dominante.” (ibid., p. 32).
4.2 Status e papéis sociais
De acordo com Preti (2006, p.180), “o conceito sociológico de papel está
intimamente ligado ao de status e ambos se referem à participação do homem no grupo
social.”
Pode-se dizer que um único indivíduo pode pertencer a vários grupos sociais, do
mesmo modo que tem uma posição definida dentro de cada grupo. A essas posições
denominamos status. Dessa forma, uma pessoa poderá ocupar, ao mesmo tempo, a
função de mãe, de dona de casa, de advogada, de esportista e de líder de uma
comunidade local.
73
É importante considerar que, em cada uma dessas situações, em função do status
ocupado pelo indivíduo, ser-lhe-á cobrada a prática de certos comportamentos
considerados convenientes para tal posição, assim como uma postura ética adequada e
“aspectos ligados à sua representação física, à sua aparência, ao seu vestuário e à sua
linguagem, componente na criação de sua imagem. Esse conjunto de normas relativas a
cada status tem o nome de papel social.” (ibid., p.181).
De acordo com Robinson (1977, p.114), papel social refere-se ao “conjunto de
comportamentos prescritos para (ou esperáveis de) uma pessoa que ocupe certa posição
na estrutura social.” Acrescenta o autor: “Sempre regras, escritas ou não escritas,
faladas ou não faladas, genéricas ou específicas, difusas ou periféricas, que governam o
comportamento de uma pessoa enquanto membro de uma categoria socialmente
significativa.” (ibid., p.114).
Isso ocorre pois o homem, em todos os estágios do desenvolvimento social,
nasce num mundo já “feito” ou, como diz Heller (2004, p.88), “numa estrutura
consuetudinária ‘feita’.” Seguindo essa linha de raciocínio, a autora revela que a
sociedade não poderia funcionar caso não pudesse contar com sistemas
consuetudinários de certo modo estereotipados. Sob esse aspecto, Heller explica que
esses sistemas constituem o fundamento do sistema de reflexos condicionados” do
homem, sistema que permite aos membros de uma sociedade mecanizar maior parte de
suas ões, praticá-las de um modo instintivo (mas instintivo por aquisição, não como
resíduo de uma estrutura biológica):
Se tivéssemos de decidir através de demorada reflexão se vamos ou não
saudar a alguém, se vamos ou o acender a luz, o que temos de fazer para
obtermos alimentos, etc., não nos restaria tempo algum não apenas para uma
ocupação livre, mas sequer para o trabalho habitual. (ibid., p.88)
Ser uma determinada espécie de pessoa, explica Goffman, não consiste
meramente em possuir atributos necessários, mas implica também em manter os padrões
de conduta e aparência que o grupo social do indivíduo associa a essa pessoa: “Uma
condição, uma posição ou um lugar social não são coisas materiais que são possuídas e,
em seguida, exibidas; são um modelo de conduta apropriada, coerente, adequada e bem
articulada.” (2007, p.74).
74
O status pode ser caracterizado, de acordo com Preti (2006, p.181-2), de duas
formas: status atribuído e adquirido. No primeiro caso, a “sociedade, em razão do sexo,
da idade, da raça, da classe social, da religião etc., estabelece uma série de
comportamentos a que o indivíduo deve obedecer, em função do seu status.” O status
adquirido, por sua vez, conquista-se “pelo mérito, pela competição, como os cargos
eletivos ou o dos profissionais liberais, dos empresários etc.” Esse status, insiste Preti,
também vai exigir dos indivíduos escolhidos comportamentos julgados convenientes.”
(ibid., p. 181-2).
Ainda, a respeito da representação dos diferentes papéis do indivíduo na
sociedade, pode-se dizer que, quando o indivíduo se apresenta diante dos outros, seu
desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos
pela sociedade. (cf. Goffman, 2004, p. 41) Nesse sentido, na medida em que uma
representação ressalta os valores oficiais comuns da sociedade em que se processa,
podemos considerá-la “reafirmação expressiva dos valores morais da comunidade.”
(ibid., p. 47).
A sociedade humana tem a propriedade essencial de que o caráter público das
ações influi nas próprias ações. Heller (2004) postula que o comportamento global do
homem transforma-se quando ele está colocado diante do público, diante de seus olhos e
diante de seu julgamento. E, sob esse aspecto, verifica-se que tal comportamento
humano se decompõe em vários clichês estereotipados, de forma que a personalidade
autônoma do homem pode perder-se inteiramente nesses clichês. Com isso, portanto,
percebe-se queo homem em público representa um papel, um papel em sentido literal,
‘dá seu espetáculo’, expressa suas opiniões, estados de espírito, julgamentos, etc., que
talvez nada tenha em comum com os que lhe são próprios.” ( p.91).
Nessa linha de investigação, observa-se que o desempenho de um papel social
pode acarretar mudanças de personalidade do indivíduo, podendo resultar, por assim
dizer, na negação da individualidade dele, fazendo com que perca a sua essência.
Assim, parece que não há escolha e, portanto, passa-se a impressão de que os indivíduos
têm o mesmo gosto, as mesmas atitudes e valores:
Ingressa o jovem indivíduo no ‘mundo’ que tem a configuração de uma
turma de companheiros de jogo e de estudos, os quais foram também
formados, em geral, em moldes semelhantes ao dele e que têm, mais ou
menos concepções idênticas. Inculcou-se nele uma admiração semelhante por
75
determinadas classes de coisas e pessoas e, mesmo involuntariamente, o
mesmo ódio ou aversão que são sentidos por outras: (...) e eis-nos diante de
outros tantos relógios que funcionam de acordo com a corda que lhes foi dada
e o acerto dos ponteiros... tudo isso vive na criança como pensamento, que o
vulgo imagina ter sido pensado com toda liberdade do indivíduo.
(Horkheimer e Adorno, 1978, p.64-5)
De acordo com Preti, o indivíduo é capaz de representar certos comportamentos
dentro da sociedade que, na verdade, não correspondem ao seu status real. São as
máscaras sociais. Pode-se dizer que a ocorrência da alteração no comportamento do
indivíduo ocorre, freqüentemente, nos papéis que representam os cargos e posições
sociais:
Na carreira política, por exemplo, a expectativa de que seus seguidores
adquiram posturas bem características, muitas vezes, verdadeiras máscaras
sociais afiveladas para um desempenho nem sempre de acordo com a
personalidade habitualmente conhecida do indivíduo. (2006, p.181)
Heller (2004, p.92-3) pontua que, na estrutura própria do papel, degradam-se as
relações sociais, de forma que essas deixam progressivamente de ser elementos
qualitativos para serem apenas quantitativos. É sob essa perspectiva que a autora afirma
que o aparecimento de estereótipos dificulta substancialmente as tarefas do
conhecimento dos homens, pois um indivíduo, ao desempenhar um papel, pode,
perfeitamente, não se “manifestar” de modo algum naquilo que faz. Conseqüentemente,
a “exterioridade” em demasia passa a encobrir a “interioridade” do homem e essa
interioridade se empobrece, alienando-o, atrofiando-o, de maneira a levá-lo a uma
direção manipulada e mecanizada do comportamento. (cf. ibid., p.92-3)
Tomando como base a relação estabelecida entre status e papel, Preti (2006,
p.181) afirma que ambos “fazem parte da própria organização do grupo social, e exercê-
los depende não apenas do desejo de fazê-lo, mas também da imagem que projetamos
para os outros e de seu reconhecimento por parte deles.”
A esse respeito, Goffman argumenta:
A sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer
indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de
esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada. Ligado a
76
este princípio um segundo, ou seja, de que um indivíduo que implícita ou
explicitamente a entender que possui certas características sociais deve de
fato ser o que pretende que é. Conseqüentemente, quando um indivíduo
projeta uma definição da situação e com isso pretende, implícita ou
explicitamente, ser uma pessoa de determinado tipo, automaticamente exerce
uma exigência moral sobre os outros, obrigando-os a valorizá-lo e tratá-lo de
acordo com o que as pessoas de seu tipo têm o direito de esperar.
Implicitamente também renuncia a toda pretensão de ser o que o aparenta
ser, e portanto abre o do tratamento que seria adequado a tais pessoas.
(2007, p. 21)
Um outro aspecto importante a ser considerado diz respeito às idéias do teórico e
crítico norte-americano Fredric Jameson (1985, p.16-26), quando este enfatiza que a
sociabilidade regida pelas aparências, imposta pela necessidade de “se dar bem”, projeta
e torna natural um padrão de comportamento que, tal como se apresenta, o faz parte
da natureza humana. Sob esse ponto de vista, o autor insiste que a paixão pelo status
social é uma paixão que foi reificada (glamourizada a eu diria) e posteriormente
projetada para as pessoas como um valor em si mesmo, despido de seu significado
simbólico o desejo de aceitação e transformado em algo que hoje parece atributo de
uma natureza humana intrínseca.” (ibid.).
Seguindo esse raciocínio, Heller observa que, na medida em que os modos de
comportamento convertem-se em papéis estereotipados, as transformações se mantêm
como meras aparências. Assim, quanto mais se estereotipam as funções de ‘papel’, tanto
menos pode ‘crescer’ o homem até a altura de sua missão histórica, tanto mais infantil
permanece:
Ao se generalizarem, os comportamentos de tipo ‘papel’ modificam a função
do dever-ser na vida cotidiana. No dever-ser, revela-se a relação do homem
inteiro com os seus ‘deveres’, com suas vinculações, sejam essas
econômicas, políticas, morais ou de outro tipo. (2004, p.94)
Por fim, é importante ainda considerar que, para essa autora, o dever-ser
entrelaça-se, freqüentemente, com o fato da representação, descrevendo sempre, de um
modo conceitualmente acessível, a relação do homem com sua obrigação. (cf. ibid.).
77
4.3 Estereótipos: definições
Definir os estereótipos não é tarefa fácil, pois parecem existir tantas definições
quanto o número de autores dedicados ao estudo do tema. Sob esse aspecto, constata-se
que os estereótipos m sido objeto de pesquisa de diversas áreas, como a Sociologia, a
Psicologia, a Semiologia, a Lingüística, etc. Algumas dessas definições são bastante
abrangentes, relacionando o estereótipo, analogamente, ao clichê, ao chavão, ao rótulo,
definindo-os como grupos de adjetivos comumente associados aos grupos sociais. Desse
modo, optamos por descrever, sob a perspectiva etimológica
19
, os conceitos que esses
termos abarcam:
Clichê. s.m (Fotograv.) placa para impressão por meio de prensa tipográfica.
(Tip.) estereótipo, galvanótipo fig. lugar-comum. Do fr. clic, de clicher, de
formação expressiva. Chavão. sm. Chave grande, modelo, padrão. Do lat.
clãvem. Rótulo. do lat. rotulus. (cp. Rotar) do lat. rotare: vb. andar à roda,
girar, rodar. (cp. Roda).
Quanto à etimologia da palavra estereótipo, Pereira (2002) explica que o termo é
formado por duas palavras gregas, stereos, que significa rígido, e túpos, que significa
traço. Considerações históricas acerca do tema sugerem, de acordo com o autor, que a
palavra em questão origina-se do jargão tipográfico, referindo-se a um molde metálico
utilizado nas oficinas tipográficas, que se destacava pela possibilidade de produzir uma
mesma impressão milhares de vezes, sem precisar ser substituído, surgindo daí a noção
de algo que poderia ser repetido mecanicamente. Por essa via, o termo chegou às
ciências sociais e tem sido utilizado para fazer referência à imagem generalizada que se
possui de um grupo ou dos indivíduos que pertençam a ele.
Considerando as relações de sentido estabelecidas entre os termos registrados
anteriormente, observa-se que entre eles está sedimentada a idéia de padronização, de
molde, bem como a repetição mecânica de idéias e atitudes.
É importante pontuar que os marcos históricos e teóricos vinculados à definição
de estereótipo encontram-se nos estudos precursores de Lippmann, datados de 1922, e
de Katz e Braly, de 1933, nos quais as propriedades dos estereótipos foram observadas e
19
Os referidos termos constam em: CUNHA, Antônio Geraldo. (1986). Dicionário Etimológico Nova
Fronteira da Língua Portuguesa, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
78
a partir dos quais se desenvolveu uma diversidade de outras pesquisas sobre essa
temática.
Walter Lippmann, jornalista e analista político, em sua obra Public Opinion,
contribuiu para que a definição do conceito de estereótipo fosse reconhecido. Foi dessa
forma que o termo entrou na área das Ciências Sociais, pela primeira vez, em 1922.
Pereira (2002) descreve que Lippmann, em sua obra, analisa como as pessoas constroem
as representações da realidade social e de que maneira essas representações são afetadas
tanto por fatores internos quanto externos.
Levando em conta que, inicialmente, os estereótipos foram considerados, por
Lippmann, como fotografias que as pessoas carregavam dentro da cabeça, Pereira,
seguindo esse raciocínio, explica:
Ora, se a percepção que as pessoas possuem dos outros grupos é constituída
através da articulação entre as impressões sensoriais imediatas objetivas e o
resto que foi acumulado ‘na cabeça’ durante anos, nada mais natural do que
conceber os estereótipos como os elementos preexistentes ou acumulados.
(2002, p.44)
Nesse sentido, postula-se que o mundo estaria ordenado por códigos, passados
de geração a geração, favorecendo a estereotipia que, por função, defenderia as
tradições culturais e posições sociais.
Essa percepção, de acordo com Pereira (2002), permaneceu servindo como
referência básica durante mais de uma década, até a publicação em 1933, por Katz e
Braly, do primeiro trabalho de natureza empírica sobre o assunto. Os estudos de Katz e
Braly foram de encontro às teorias de Lippmann e consideraram os estereótipos como
um fenômeno sociocultural. Porém, os estereótipos eram vistos como algo negativo e
dignos de pessoas autoritárias. (Amâncio, 1994).
Somente com a Teoria da Identidade Social de Taijfel os estereótipos passam a
ser entendidos como importantes funções cognitivas e sociais que passariam a ajudar as
pessoas a proteger o seu sistema de valores e proporcionar uma diferenciação positiva
para com o grupo a que pertencessem, levando a uma identidade social bem definida.
(cf. Amâncio, 1994, p.40-3).
Nenhum indivíduo, segundo Lippmann, é capaz de conhecer a realidade inteira,
ou seja, tudo que existe em todos os lugares do mundo. Para ele, o homem é capaz,
79
apenas, de conhecer uma parte dessa realidade, especificamente aquela em que circula
com freqüência. Isso posto, evidencia-se que nossas opiniões são formadas com base no
que outros nos relataram e no que somos capazes de imaginar:
Cada um de nós vive e trabalha numa pequena parte da superfície da Terra,
move-se num círculo restrito e, das coisas que conhece, conhece intimamente
umas poucas. De qualquer acontecimento público que exerça amplos efeitos,
na melhor das hipóteses, só vemos uma fase do aspecto. (1972, p.149)
Sob essa questão, Baccega (2007, p.29) explica que, mesmo que enxerguemos
apenas uma parte da realidade, esse “pedaço”, explica a autora, “nós já encontramos
‘descrito’ e ‘interpretado’ pelas gerações anteriores, nas quais confiamos.” A autora
adverte para o fato de que tal “descrição” e “interpretação” referem-se “não apenas aos
nomes dos objetos materiais como também aos valores.”
Nesse sentido, podemos explicar as diferenças que existem na apreensão e
articulação dos fatos, o que resulta, por sua vez, em variadas descrições da realidade.
Sob essa questão, Baccega lembra que, além de o homem fotografar a realidade, é ele
quem escolhe o quê e em que perspectiva fotografar e, por fim, esclarece a autora, é o
próprio homem quem vai revelar essas fotos da maneira que lhe for mais adequada e
conveniente. É por essa razão que Lippmann (1972) enfatizava que as pessoas, ao
articularem e apreenderem os fatos ao longo de suas vidas, “já haviam adquirido uma
série de imagens de brigas e essas imagens lhes dançavam diante dos olhos”. (ibid.,
p.29). Todavia, é importante lembrar que o indivíduo, antes de tudo, também é
considerado um sujeito, capaz de reelaborar as referências que recebe socialmente: “Por
isso, a diferença: quer entre indivíduos de diferentes épocas, quer de uma mesma época,
porém de classes sociais ou grupos diferentes; e até em uma mesma época, num mesmo
grupo.” (ibid., p.13).
Em decorrência da circulação automatizada do estereótipo no âmbito social,
levando-se em conta a forma como é utilizado, a intensidade de sua aplicação e a
ingenuidade com que muitas vezes é visto, principalmente na sociedade moderna, com a
disseminação, em grande escala, dos meios de comunicação de massa, por tudo isso,
torna-se evidente que o estereótipo nos é transmitido com tal força e autoridade que
“quase parece um fato biológico”, a ponto de nos tornarmos “parasitos biológicos de
nossa herança social”. (cf. Lippmann, 1972, p.158).
80
Vale acrescentar que, ao definir o estereótipo, Lippmann afirma que designa
uma opinião preconcebida acerca de atributos exteriores. O autor caracteriza, ainda, o
estereótipo como um mecanismo que auxilia na economia do pensamento, que organiza
as experiências, dando lugar às generalizações. Considera que absorvemos os fatos por
um mecanismo econômico, no sentido de retê-los por uma “posição em que estamos
colocados e dos hábitos de nossos olhos.” (ibid., p.150). Por sua vez, pode-se dizer que
este mecanismo lugar a uma economia do pensamento, mas também à sua
deformação.
Por fim, é interessante observar que se tem por hábito imaginar o mundo ou as
coisas antes mesmo de experimentá-los e, por assim dizer, colher os fatos nas
generalidades, particularizando-os sob o ângulo individualizado. Quanto a essa questão,
Lippmann adverte para o fato de os estereótipos criarem o-somente noções
simplificadas e recobrirem elementos contraditórios do real. Principalmente, quando
manipulados e difundidos de maneira hábil, tais noções podem servir de eficaz
instrumento a regimes autoritários ou qualquer outra tentativa de suplantar a razão.
Seguindo essa linha de raciocínio, comprova-se que o estereótipo, utilizado como
instrumento, pode vir a abrir caminho ao preconceito e à intolerância:
Na maior parte das vezes, não vemos primeiro para depois definir, mas
primeiro definimos e depois vemos. Na grande confusão florida e zunzunante
do mundo exterior colhemos o que nossa cultura já definiu para nós, e
tendemos a perceber o que colhemos na forma estereotipada, para nós, pela
nossa cultura. (Lippmann,1972, p.151)
4.3.1 Estereótipos e óculos sociais
A linguagem pode revelar aspectos, pregressos ou atuais, da mentalidade social
dominante nas elocuções mais triviais de seus falantes. A presença de aspectos da
ideologia social dominante “embutidos” na própria semiose (processo de significação)
das palavras, atuando na percepção da realidade pelos indivíduos das diferentes
comunidades lingüísticas foi observada por inúmeros autores. Num desses estudos, o
semiólogo Izidoro Blikstein (1985) descreve a forma como traços ideológicos
configuram na linguagem “corredores semânticos ou isotópicos que vão balizar a
percepção/cognição, criando modelos ou padrões perceptivos, ou ainda ‘óculos sociais’,
81
na expressão de Schaff.” (Blikstein, 1985, p.61). Assim, no contexto da práxis social,
por meio dos estereótipos ou “óculos sociais”, “vemos” a realidade e fabricamos o
referente, que se interpõe entre nós e a “realidade”, fingindo ser o real”. No entanto,
Blikstein deixa claro que “a nossa percepção não é ‘ingênua’ ou ‘pura’ mas está
condicionada a um sistema de crenças e estratégias perceptuais.” (ibid., p. 50).
O autor em questão também afirma que o indivíduo estabelece e articula traços
de diferenciação e de identificação, com os quais passa a discriminar, reconhecer e
selecionar, por entre os estímulos do universo amorfo e contínuo do “real”, as cores, as
formas, as funções, os espaços e os tempos necessários à sua sobrevivência. (cf. ibid.,
p.50). Prosseguindo em sua análise, Blikstein ainda sustenta que, nas culturas
ocidentais, tais traços ideológicos adquirem na práxis um valor positivo ou meliorativo
em oposição a um valor negativo ou pejorativo. E, sob esse ponto de vista, vão
desencadear a configuração de “fôrmas” ou “corredores” semânticos, por onde fluirão
as linhas básicas de significação da cultura de uma comunidade. Pode-se dizer, então,
que a verticalidade e tudo a que ela se associa (em pé, alto, altivo), por exemplo, é um
traço de valor meliorativo, indicando superioridade ou majestade”, enquanto a
horizontalidade tem conotação usualmente pejorativa. A tendência é de se depreciar o
que está caído, deitado, abaixo. Outros corredores seriam: frontalidade (meliorativo) /
posterioridade (pejorativo), retitude (meliorativo) / tortuosidade (pejorativo), dureza
(meliorativo) / moleza (pejorativo), branquitude (meliorativo) / pretidão, negritude
(pejorativo) etc.” (cf. ibid., p.60).
4.3.2 Estereótipo e preconceito
Como vimos, o estereótipo é uma forma de simplificar e generalizar atitudes,
costumes, aparências e formas de comunicação, visando possibilitar um conhecimento
mínimo sobre assuntos que não nos causam interesse ou sobre os quais, por motivos
alheios, não possuímos informação suficiente para uma análise crítica e detalhada. É
como se pegássemos apenas uma parte mais marcante de cada assunto, uma vez que não
temos tempo e/ou interesse em nos aprofundarmos no estudo desse material. Pode
tornar-se algo negativo quando usado sem responsabilidade, principalmente se
veiculado em grandes meios de comunicação, podendo criar uma imagem claramente
falsa da realidade, vindo a gerar ou intensificar preconceitos, racismos e intolerâncias.
82
Pode-se dizer que, etimologicamente, o substantivo preconceito
20
, calcado no
francês préconçu, significa o conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior
ponderação ou conhecimento dos fatos.
A noção de preconceito, para Pereira (2002, p.77), refere-se a uma atitude
injusta e negativa em relação a um grupo ou a uma pessoa que se supõe ser membro do
grupo, enquanto o conceito de discriminação, apesar de literalmente significar “tratar
alguém de uma forma diferente”, no seu sentido mais explícito, pode ser definido como
um comportamento manifesto, geralmente apresentado por uma pessoa preconceituosa,
que se exprime através da adoção de padrões de preferência em relação aos membros do
próprio grupo e/ou de rejeição em relação aos membros dos grupos externos. (cf. ibid.).
Em um sentido mais técnico, a posição hegemônica entre os psicólogos parece
relacionar o preconceito, “via de regra, com um conteúdo axiológico negativo.” (Heller,
2004). A autora destaca a figura do estereótipo, sublinhando, como fez Lippmann, o seu
caráter de imposição social, efetuada pela cultura. No entanto, o estereótipo destacado
por Heller tem como enfoque o cotidiano.
Assim, pode-se depreender que o caráter de fugacidade ou rapidez do cotidiano
também contribui para a deformidade do pensamento, tendo como base a figura dos
estereótipos. Para Heller, a “ultrageneralização é inevitável na vida cotidiana.” Nesse
sentido, segundo a autora, nosso discurso “baseia-se numa avaliação probabilística”,
pois, pela rapidez do decurso de tempo nos discursos, não poderíamos viver se nos
empenhássemos em fazer com que nossa atividade dependesse de conceitos fundados
cientificamente.” (ibid., p. 44).
Produtos da vida e do pensamento cotidianos, a maioria de nossos preconceitos,
enfatiza a autora, embora nem todos, são produtos das classes dominantes, já que
aspiram a universalizar sua ideologia. Isso ocorre porque essas classes mais favorecidas
desejam manter a coesão de uma estrutura social que lhes beneficia e mobilizar em seu
favor, inclusive, os homens que representam interesses diversos (e até mesmo, em
alguns casos, as classes e camadas antagônicas):
Com ajuda dos preconceitos, apelam à particularidade individual, que em
função de seu conservadorismo, de seu comodismo e de seu conformismo, ou
também por causa de interesses imediatos é de cil mobilização contra os
20
CUNHA, Antônio Geraldo. (1986). Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2
ed. Rio de Janeiro:Nova Fronteira.
83
interesses de sua própria integração e contra a práxis orientada no sentido
humano-genérico. (Heller, 2004, p.54)
A respeito das bases causais que determinam os preconceitos, os estereótipos e a
discriminação, Pereira (2002) explica que são três os fatores capazes de alimentá-los,
sob o ponto de vista da psicologia social: os sociais, os afetivos e os cognitivos. Entre os
fatores sociais, destacam-se as injustiças sociais, o senso de identidade social, a
conformidade e o suporte institucional. No caso dos fatores afetivos, nos referimos à
frustração-agressão e à personalidade autoritária, enquanto no caso dos fatores
cognitivos, identificamos a categorização, os estímulos que capturam a atenção e a
atribuição de causalidade. (cf. ibid.).
A praticidade e simplicidade dos clichês para a compreensão e a divulgação
superficial de informações podem parecer vantajosas, mas são extremamente
perniciosas. Maisonneuve (1977, p.118) aponta que “o próprio da estereotipia é ser
grosseira, rígida, brutal e repousar numa espécie de essencialismo simplista.” Assim
sendo, o é possível ignorar as armadilhas dos estereótipos: o preconceito, a fixação, a
superficialidade, o reducionismo, a caricatura, o exagero e a repetição. (ibid.).
Por fim, muitos tipos de preconceito podem, segundo Heller (2004, p.56), ser
distinguidos também por meio do conteúdo: “preconceitos-tópicos (por exemplo: ‘os
homens são maus, o é possível melhorá-los’), preconceitos morais, científicos,
políticos, preconceitos de grupo, nacionais, religiosos, raciais, etc.” Pode-se afirmar
ainda que mesmo em outros âmbitos que não o dos preconceitos morais, todos os
preconceitos se caracterizam por uma tomada de posição moral e, qualquer que seja seu
conteúdo, a esfera do preconceito, reitera Heller, é sempre a vida cotidiana. (cf. ibid.).
4.3.3 Estereótipo e mídia
Os veículos de comunicação de massa têm uma inserção fundamental no
processo de construção dos comportamentos e exigências sociais. Mais que produtores
de informação, eles são formadores de opinião por excelência, criando e transmitindo
explícita ou implicitamente valores, representações e modelos de conduta. No entanto,
essas informações apresentam pontos de vistas que envolvem disputa de poder,
buscando reforçar idéias de grupos que controlam os meios de comunicação e os que
patrocinam esses meios.
84
Sob esse aspecto, Marcondes Filho (2002, p.110) ressalta que a mídia reconstrói
diariamente o mundo impondo-lhes sua verdade cristalizada sobre as pessoas, sobre os
fatos, sobre as ocorrências novas, exercendo a atividade tranqüilizadora e gratificante
(para a maioria das pessoas) de “manter o mundo exatamente como ele é”, a saber, o
mais próximo possível da fantasia que as pessoas têm do próprio mundo, de seus
clichês.
À medida que, nas sociedades modernas, os estereótipos, juntos com os demais
conteúdos informacionais, avaliativos e valorativos são transmitidos por intermédio dos
meios de comunicação de massa, pode-se imaginar que eles atingem a milhões ou
mesmo bilhões de pessoas, levando à constituição lenta e inexorável do que poderia ser
denominado de repertório coletivo dos estereótipos.
Marcondes Filho (ibid.) sustenta que é por meio dos clichês que se estrutura a
parte majoritária das notícias. Pode-se dizer que a construção do estereótipo pela mídia
passa pela representação reducionista que transforma algo complexo em algo simples,
buscando padrões que categorizam e generalizam atributos em detrimento de outros por
meio da repetição e, também, mostra a visão de um grupo sobre outros grupos. Nesse
sentido, os meios de comunicação, adverte o autor, selecionam fatos novos e os
classificam, “a partir de seus próprios estereótipos”, tornando-se, conseqüentemente,
“atores privilegiados na manutenção de idéias, verdadeiros agentes conservadores da
cultura, visto que têm acesso a meios de divulgação em massa de suas idéias (e
preconceitos).” (ibid., p.109).
Por um lado, operar com clichês, segundo o autor, é incomparavelmente mais
cômodo, mais fácil, mais simples, pois são “fórmulas prontas, idéias mecanizadas sobre
pessoas, atividades, profissões, posições políticas, etc.” (ibid., p. 109). Por essa razão, os
“acontecimentos, grupos humanos, filosofias políticas são rapidamente classificados
seja na expressão clara, seja na forma indireta – como bons, maus, exóticos, mais
apreciados, joviais, ultrapassados, aconselháveis ou desaconselháveis.” Por outro lado, o
clichê constrói antecipadamente a notícia, pois os “jornalistas não partem para o mundo
para conhecê-lo; ao contrário, eles têm seus modelos na cabeça e saem pelo mundo para
reconhecê-los (e reforçá-los)”. (ibid., p.109).
Nesse momento, é importante levar em consideração que o discurso, segundo
Fiorin (2002), contém em si, como parte da visão de mundo que veicula, “um sistema de
valores, isto é, estereótipos dos comportamentos humanos que são valorizados positiva
ou negativamente.” A mídia, quando usa de suas próprias visões de mundo, parciais e
85
preconceituosas, tendenciosamente minimizadores dos problemas ou exageradores de
sua periculosidade, produz, ela mesma, “a desinformação através de diversos
procedimentos de intoxicação com informação e, além disso, margem a processos
livres, incontroláveis, inadministráveis de mistificação e desinformação.” (Marcondes
Filho, 2002, p.113). Isso ocorre, pois, ao fato, à pessoa, ao grupo antepõem-se os
preconceitos, esses pré-julgamentos que, em verdade, acabam por anular totalmente o
fato em si, só vendo, em seu lugar, a idéia feita (anteriormente) a seu respeito.” (ibid., p.
119).
Por fim, comprova-se que tais estereótipos entranham-se de tal modo na
consciência que acabam por ser considerados naturais, verdadeiros, pois, “o bombardeio
informativo narcotiza o receptor, para torná-lo indiferente à própria notícia.” Desse
modo, “figuras como ‘negro’, ‘comunista’, ‘puta’ têm um conteúdo cheio de
preconceitos, aversões e hostilidades, ao passo que outras como ‘branco’, ‘esposa’ estão
impregnadas de sentimentos positivos.” (Fiorin, 2002, p.55).
4.3.4 Estereótipos femininos
A submissão das mulheres sempre esteve vinculada à condição original de sua
existência, ou seja, ao simples fato de serem, elas, mulheres. Segundo a perspectiva de
Castañeda (2006), devemos considerar que, desde os primórdios da espécie humana,
houve uma divisão do trabalho: o homem pré-histórico, de lança na mão, sai à caça de
animais para sobreviver, enquanto a mulher permanece em casa, cuidando dos afazeres
domésticos. Tal divisão de tarefas reflete as diferenças físicas entre os sexos: eles são
mais fortes e corajosos, ao passo que elas, mais frágeis e dependentes, vêem-se
limitadas por suas funções biológicas, como a gravidez, o parto, a lactação.
A todo tempo, a sociedade, segundo Leitão (1988, p.23), lança novos protótipos
de beleza, resultando, dessa medida, a supervalorização da aparência física da mulher
em detrimento da sua capacidade intelectual: “basta ser bonita para ter um lugar
assegurado dentro da sociedade, que a estereotipa como sendo aquele ente que não
precisa ser culto, nem inteligente”.
Com isso, percebe-se que ser feminina significa mostrar-se passiva, fútil, meiga,
submissa, carinhosa, etc. Em outras palavras, a mulher deve apenas ter a preocupação
de enfeitar-se, embonecar-se, pois qualquer tentativa de afirmação “depõe contra a sua
feminilidade.” O homem, por um lado, se for feio, mas inteligente, não terá nenhum
86
problema. A mulher feia, por outro lado, “não palpite”, pois “mulher feia é como
sucata, não tem lugar no mercado.” (ibid., p.23).
Sobre a importância dos estereótipos para estabelecimento do sentido,
concordamos com Dias quando a autora enfatiza que
os estereótipos comandam, no discurso, uma série de trocadilhos, jogos
maliciosos, metáforas dúbias, aumentativos e diminutivos carregados de
significados maliciosos que, no fundo, representam posições muito atuais nas
relações entre os dois sexos, muito embora não sejam novas. (2003, p.145)
O sexo, considerado como fato social, é propício à formação de estereótipos,
pois, de acordo com Preti (1984, p. 158), “sobre o sexo atuam as mais diversas forças
que direcionam a vida na comunidade, ou seja, a Moral, a Religião, etc.” Na área
sexual, segundo o autor, os estereótipos “se prestam à conservação de certos tabus
morais, funcionando como desviadores da reflexão individual sobre o sexo e a exata
significação de certas práticas, para as quais se criam clichês que envolvem, não raro, o
próprio conceito ético-religioso de ‘pecado’.” Nesse sentido, Preti justifica que os
estereótipos sexuais são, portanto, “fórmulas que as gerações, em geral, se habituaram a
aceitar sem discutir, preferindo manter-se nos limites simplificadores, indicados pelas
oposições normal/anormal, puro/impuro, natural ou não etc.” (ibid., p.158).
No que se refere a mulheres, Castañeda (2006, p.220) postula que elas podem
ser rotuladas, sob o ponto de vista sexual, em três categorias: as ‘decentes’, com quem
um homem se casa; as mulheres com quem se pode ter relações ocasionais; e as
prostitutas.”
A autora também considera que
os homens tratam as mulheres de acordo com o tipo e grau do seu desejo, e
não em função de suas qualidades pessoais. A primeira apreciação que eles
fazem delas, a primeira percepção, é de ordem sexual, mais que afetiva ou
intelectual. O problema é que a classificação que os homens fazem das
mulheres depende inteiramente do gosto e das necessidades deles, e não das
características reais delas. Trata-se de uma projeção, mais que de uma
abordagem real, na qual as mulheres são uma vez objetos, e não sujeitos com
uma existência própria. (ibid., p.220)
87
Ainda a respeito dos estereótipos sexuais femininos, Dias enfatiza que “‘mulher
honesta’ sempre foi compreendida entre nós como mulher moral e sexualmente correta
e a expressão não abrange, por definição, seu comportamento no trabalho, nos negócios,
na vida pública etc.” (2003, p.145).
Nessa linha de investigação, a autora acrescenta:
No longo capítulo da emancipação feminina ainda não lugar para uma
mulher vista apenas pelas qualidades morais, independente de suas
qualidades sicas. A malícia popular sempre confundiu a mulher e a fêmea.
Certas atividades exercidas por ela fora do ambiente do lar como as
artísticas – são índices de mulheres liberais, mais livres, e esse conceito
freqüentemente carrega os semas da promiscuidade’, quando não de
‘prostituição’. (ibid., p.145)
A supremacia masculina o dependia ou não depende de outro fator senão
da “inferioridade” feminina. Tais idéias acerca da incompetência e inferioridade da
mulher em relação aos homens são traduzidas por estereótipos arraigados na cultura
popular e que reforçam esses dizeres. Por exemplo, quando se diz mulher ao volante,
perigo constante, a mulher é tida como incapaz de dirigir um automóvel, entretanto, na
concepção machista, serve mesmo para pilotar o fogão, ou seja, o lhe resta outra
alternativa, a não ser aceitar seu papel de rainha do lar. Outro exemplo diz respeito
àquelas situações em que algo sai errado ou em desacordo com os desejos dos homens:
nesses casos, os comentários mais comuns ditos por eles são do tipo só podia ser
mulher, tinha que ser mulher. Somando-se a isso, não podemos esquecer também,
segundo a concepção de Teles e Melo (2003, p.31), que os homens insistem em tornar
obrigatória a crença de que as mulheres são volúveis emocionais, fúteis, inseguras e
dependentes.”
Por fim, comprova-se que os meios de comunicação colaboram - e muito - para
perpetuar esses estereótipos e também reforçar a idéia da inferioridade do sexo feminino
em relação ao masculino. O que se pode afirmar, portanto, é que a mulher é reduzida ao
status de coisa, porque ela é julgada quase que exclusivamente pela aparência sica.
Corre-se o risco, portanto, de reafirmarem-se de maneira soberana, hegemônica e
impositiva, certas concepções e preconceitos, por vezes já arraigados na sociedade.
88
Até aqui, nosso estudo se preocupou em investigar os subsídios teóricos
necessários que contribuirão para a sedimentação da análise do corpus de pesquisa.
Resta-nos, de agora em diante, buscarmos as respostas a que nos propomos desde o
início. Vamos a elas?
89
CAPÍTULO 5 – ANÁLISE DO CORPUS
Em nosso referencial teórico, diversos estudos indicam que a linguagem usada
para caracterizar a mulher apresenta características que a distinguem da masculina, e
que essa distinção se principalmente em função do status inferior da mulher numa
sociedade que reflete o ponto de vista dos homens, porque são eles quem representam o
grupo social de prestígio, tradicionalmente instituído.
A escolha das crônicas de José Simão como corpus desta pesquisa presta-se a
comprovar que os estereótipos preconceituosos e generalizantes direcionados às
mulheres ainda se fazem sentir em todos os âmbitos da sociedade brasileira, mesmo
naqueles mais elitizados. Sob esse aspecto, é importante considerar que as referidas
crônicas são publicadas no jornal Folha de S. Paulo, veículo esse que, como
assinalamos no primeiro capítulo, tem como perfil de seu leitor típico, pessoas que
possuem alto padrão de renda e escolaridade.
Em vista disso, pretendemos evidenciar que a imagem da mulher é
violentamente hostilizada e depreciada nas crônicas de José Simão, tornando-se motivo
de discriminação e zombaria. Conforme registramos no capítulo de apresentação do
corpus, consideramos como categorias de análise a violência consumada contra a
mulher, seja pela qualidade moral, seja por sua forma física, seja por aspectos culturais
e sociais. Desse modo, a análise que se segue dar-se-á de acordo com essas três
categorias e não de acordo com a ordem cronológica das crônicas selecionadas. Na
leitura dos excertos, percebemos que eles se imbricam. Por questões metodológicas,
para tornar nossa análise didática, optamos por privilegiar apenas uma das categorias
para cada excerto do nosso corpus. Julgamos que as 15 crônicas por nós escolhidas,
publicadas entre fevereiro e maio de 2007, são suficientes para elucidarmos os objetivos
almejados por este trabalho. Por fim, deve-se esclarecer, ainda, que as crônicas de que
nos valeremos são integralmente apresentadas, cronologicamente, somente no anexo
deste trabalho. No corpo de nossa análise serão contemplados os fragmentos necessários
à exemplificação de nossos argumentos.
90
5.1 A violência deflagrada contra a mulher: aspectos morais
Pode-se dizer que as bases ideológicas que situam a mulher como inferior e
submissa vêm de muito longe, desde os mitos da criação, com a imagem de Eva
comendo do “fruto proibido” e oferecendo-o, posteriormente, a Adão. Nesse sentido,
Eva simbolizaria a tentação, o pecado da carne, o desejo de sexo, responsável pela perda
da paz e da tranqüilidade do homem, representadas pela perda do paraíso terrestre. Eva
constitui, por assim dizer, uma metáfora que as mulheres passam a ter na sociedade
patriarcal, e da forma como a sexualidade feminina passa a ser vista como perigosa e
transgressora, tratada como tentadora, síntese do mal e raiz do pecado. Tal concepção
generalizante, há muito tempo arraigada em nossa sociedade, é endossada por José
Simão logo no título de uma de suas crônicas:
Ueba! Quero a Eva, não o Evo! (FSP
21
, 16/02/07, grifo nosso)
Para compreendermos o efeito de sentido que o título dessa crônica evoca, é
importante que se diga que, neste exemplo, o efeito cômico decorre do cruzamento de
dois scripts
22
, o feriado prolongado de carnaval e a visita ao Brasil do então presidente
da Bolívia, Evo Morales, em 14 e 15 de fevereiro de 2007.
Levando-se em consideração a simultaneidade de acontecimentos ocorridos no
Brasil na ocasião, por um lado, a visita, ao país, do presidente boliviano Evo Morales e,
por outro, o feriadão de Carnaval, torna-se evidente a compreensão do efeito de sentido
desencadeado pelo título da crônica. Na época de Carnaval, a mídia tem-se aproveitado
abusivamente da imagem feminina em posições, movimentos eões eróticas chegando
a vulgarizar a figura da mulher. Por isso, quando acionamos o script do Carnaval, logo
nos vem à mente, por exemplo, no que se refere às mulheres, cenas “picantes” de
passistas nuas desfilando na Avenida, onde a licenciosidade sexual é prática comum.
21
Os fragmentos utilizados foram extraídos do jornal Folha de São Paulo, doravante referenciado como
FSP.
22
Scripts são planos estabilizados, utilizados ou invocados freqüentemente para especificar os papéis dos
participantes e as ações deles esperadas. De acordo com Brown e Yule, pode-se dizer que, por um lado,
“enquanto um frame é geralmente considerado um conjunto de elementos sobre uma situação
estereotipada”, o scrip, por outro lado,”é mais dinâmico, pois incorpora uma seqüência estereotipada de
ações que descrevem uma situação”. (apud. Fávero, 1998, p.68).
91
Nessa perspectiva, assim como a imagem de Eva nua é atrelada ao pecado da carne, o
Carnaval é, por excelência, um apelo à erotização e à liberação sexual. Decorre daí,
portanto, a “maldadezinha” de José Simão, logo no título da crônica: Quero a Eva, não
o Evo! Sob esse aspecto, tal enunciado nos autoriza a concluir que ao macaco e, por
conseguinte, aos homens - de quem Simão é uma espécie de porta-voz - não interessa a
visita de Evo Morales ao Brasil, pois o presidente da Bolívia não é capaz de satisfazer
aos prazeres e desejos sexuais masculinos. Constata-se, ainda, que o entrelaçamento dos
diferentes discursos, oriundos de momentos completamente distintos na história (Eva
personagem bíblica e Evopresidente da Bolívia), é considerado parodístico, beirando,
por assim dizer, o grotesco pois, à luz de Bakhtin (1996), o sério é dessacralizado, como
uma lógica original das coisas ao revés.
Feitas as considerações necessárias acerca do título da referida crônica,
passemos à análise de um excerto dela que julgamos importante para nosso trabalho:
E em todo feriadão vem essa clássica seção nos jornais: o que abre e fecha? E
em todo ano eu repito, óbvio: o que abre e fecha no Carnaval? As pernas.
As pernas e porta de geladeira! (FSP, 16/02/07, grifos nossos)
Habitualmente no Brasil, quando se aproxima algum feriado, a mídia tem por
costume divulgar os estabelecimentos que estarão abertos nessa ocasião. O feriado de
Carnaval não foge a essa regra e, portanto, os verbos de ação abre e fecha, empregados
por José Simão, estariam perfeitamente justificados, num primeiro momento, em se
tratando desse contexto de divulgação daquilo que estaria funcionando ou não no
feriado. No entanto, quando chegamos ao final do parágrafo, notamos que os
respectivos verbos adquirem outra conotação. Nesse sentido, somos obrigados a fazer
uma outra leitura para compreendermos quais eram as reais intenções que o cronista
pretendia passar a seus leitores. Feita a pergunta sobre o que abre e fecha no feriado, a
resposta a essa questão corroborou para a quebra da expectativa da leitura em relação ao
sentido esperado, que, a priori, seria o mais comum. Essa quebra de expectativa
contribuiu para instaurar o cômico. Assim, quando o cronista explica que o que abre e
fecha são as pernas, imediatamente outro significado é ativado para os dizeres de
92
Simão: o malicioso. Tal movimento de abrir e fechar as pernas significa a posição da
mulher no ato sexual.
No humor escrachado e deselegante da crônica de Simão a seriedade é destruída.
Pode-se dizer que esse humor grotesco, de acordo com Bakhtin (1996), o guarda
qualquer lirismo e, conseqüentemente, qualquer compaixão. Isso significa que Simão,
ao valer-se de suas críticas, jamais se deixa guiar por sentimentalismos, tão caros aos
poetas. Simão, definitivamente, vai direto ao ponto”, mostrando nutrir nenhuma
piedade para com a tragédia pessoal de outrem, no caso específico, da mulher, vítima de
seus comentários constantes. Esse tratamento escarnecedor, que humilha e deprecia
quem é dele objeto (mulheres), denunciando o seu fracasso e o seu prestígio, é
conceituado, de acordo com Propp (1992), como o riso de zombaria. Caracterizado o
humor como algo não sério”, por meio dele é permitido que se digam e façam coisas
que, fora dele, as normas sociais não permitiriam. Nessa perspectiva, em nome do riso,
intensificam-se intolerâncias, racismos e discriminações em relação ao universo
feminino, perpetuando visões generalizantes e estereotipadas no que se refere às
mulheres. Sob esse ponto de vista, o humor é considerado uma forma da violência, pois,
embora camuflada, escondida sob formas de costumes e preconceitos, oprime e despoja
a figura feminina de seus direitos como pessoa e cidadã. Cabe dizer ainda que tal
violência, sutil, chega a passar despercebida, como se resultasse da ordem natural das
coisas e não de ação intencional. (Morais, 1981).
Comprova-se que a violência praticada por Simão o se efetiva por meio de
atos violentos, em que se viola, por exemplo, a integridade física das mulheres. A
violência é consumada por meio da linguagem, a qual permite que se violem, psíquica e
moralmente, as representantes do sexo feminino. Assim como no exemplo anterior, a
próxima análise tem o Carnaval como discussão central:
Ueba! Chegou o ENGARRAFOLIA!” (FSP, 17/02/07)
José Simão se vale do trocadilho, em caixa alta, ENGARRAFOLIA, aludindo,
em primeiro lugar, ao fato de que, no feriado de Carnaval, é comum as estradas ficarem
congestionadas, por assim dizer, “engarrafadas”. A seguir, folia, morfologicamente
empregado de forma arbitrária pelo macaco, como um sufixo, trata-se, na verdade, de
93
um substantivo feminino, significando, de acordo com o dicionário virtual Houaiss,
festejo animado, alegre e barulhento; farra, pândega, baile.
A seguir, no corpo do texto, comprova-se que a mulher é vista como um mero
objeto sexual, da qual se pode avaliar exclusivamente os aspectos que interessem aos
homens (satisfação do prazer sexual masculino):
E o sonho de um amigo meu é transar com pelada de carro alegórico: não
fala nem reclama, só rebola e ri. (FSP, 17/02/07, grifos nossos)
Pela análise deste excerto, torna-se evidente que o humor se revela por meio do
estereótipo preconceituoso que diz que “mulher ideal” é aquela que não fala, não
reclama mas, em contrapartida, rebola. Verifica-se que, para satisfazer aos desejos
eróticos masculinos, basta apenas que a mulher saiba sorrir e rebolar. Constata-se, mais
uma vez, o estereótipo de mulher objeto, destinada apenas e - tão somente - a atender
aos caprichos e prazeres sexuais dos homens. A direta associação do referente mulher
ao adjetivo pelada, associada à menção a um interlocutor masculino um amigo
lembra, segundo Dias (2003, p.150), “a conversação entre homens, a propósito de
mulher e sexo”, pelo fato de a mulher ser enxergada apenas pelos seus ‘atributos’ físicos
e desempenho sexual.”
Nesse momento, somos obrigados a voltar ao título do texto, pois diante do que
foi dito anteriormente, nos é autorizado compreender que ENGARRAFOLIA pode
assumir outro sentido, pois, considerando a lexia engarra, podemos associá-la, pela
semelhança sonora, a agarra. Esse trocadilho torna-se cômico, porque desvia, mesmo
que momentaneamente, a linguagem, possibilitando que um interlocutor compreenda o
sentido geral ou amplo da palavra e o outro o substitua pelo sentido restrito ou literal,
anulando e revelando a inconsistência do argumento do outro. (Versiani, 1974).
Preti (2006) assegura que o indivíduo é capaz de representar certos
comportamentos dentro da sociedade que, na verdade, não correspondem ao seu status
real. A sociedade, em razão do sexo, da idade, da classe social, etc., estabelece uma
série de comportamentos a que o indivíduo deve obedecer, em função do status que lhe
é atribuído por essa sociedade. (cf. ibid., p.181-2) Assim, nas sociedades machistas, a
mulher, quando se apresenta diante dos outros (homens), seu desempenho tende a
94
incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade em que
está inserida. Dessa forma, nesse tipo de sociedade patriarcal e machista a mulher deve
mostrar-se passiva, não dar palpites e nem reclamar, ser fútil, meiga, submissa,
carinhosa e, principalmente, conforme alardeia Simão, estar sempre de boca fechada,
para que não haja risco de dizer “impropriedades” e chatear os homens, tendo em vista
sua pouca inteligência, estupidez e ignorância. Além do mais, considerando o discurso
machista, as mulheres são tidas como tagarelas e, portanto, chatas. Daí a constatação
que, para Simão, a mulher ideal é aquela que não fala nem reclama, ou seja, só é um
objeto pronto para o consumo. Só isso é o que importa e que basta realmente. O
desempenho de tais papéis sociais pode acarretar mudanças na personalidade da mulher,
podendo resultar, por assim dizer, na negação de sua individualidade, fazendo com que
esta perca a sua essência. (Horkheimer e Adorno, 1978, p.64-5).
Essa forma de simplificar e generalizar as atitudes, costumes, aparências e
formas de comunicação torna-se algo negativo, quando usado sem responsabilidade,
principalmente se veiculado pela mídia, no caso específico, por um jornal como a Folha
(classificado como jornal de elite), podendo criar uma imagem claramente falsa da
realidade e vindo a gerar ou intensificar preconceitos, racismos e intolerâncias. A
sexualização do discurso marca, inevitavelmente, um aspecto do estado de violência em
virtude da desigualdade com que é tratada a mulher. Verifica-se, portanto, que José
Simão, por meio do disfarce numa suposta conversa sem rumo, trata com informalidade
e leveza, o que, de certa forma, é motivo de revolta e indignação.
Diante do exposto, comprova-se, nitidamente, numa perspectiva dualista, a
diferenciação de papéis desempenhados por homens e mulheres. O papel do homem
está consolidado intimamente à valorização da sua virilidade e da força como elemento
constitutivo de poder e autoridade. A mulher deve ser passiva e atender, prontamente, às
necessidades e prazeres sexuais masculinos. Esse modelo se afirmou, instituindo a
dominação, atributo do homem, e seu avesso, a submissão, imposta ao elemento
feminino. É nesse sentido que, a essa relação entre os sexos, construída em forma de
oposição, impôs-se uma forma de violência contra a mulher, suave, insensível e
invisível a suas próprias vítimas. Essa violência de gênero, entendida como uma relação
de poder de dominação do homem e da submissão da mulher, demonstra, segundo Teles
e Melo (2003), que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao
longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações
95
violentas entre os sexos e indicam que a prática desse tipo de violência não é fruto da
natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas.
A seguir, apresentamos um outro exemplo que mostra de forma explícita e direta
uma linguagem de baixo calão, na qual fica evidente a valorização da mulher somente
naquilo que diz respeito aos seus atributos sexuais, deixando-se de lado sua verdadeira
essência enquanto ser humano, como se outros valores, que lhe são intrínsecos, fossem
destituídos de qualquer importância:
Hoje é o Dia Delas. Dia Internacional da Mulher . O Perereca´s Day! E
como disse um amigo meu: o Dia Internacional da Mulher devia ser de noite.
(FSP, 08/03/07, grifo nosso)
Tal excerto caracteriza-se pelo discurso da malícia, onde o substantivo perereca
faz alusão ao órgão sexual feminino. Nesse contexto, a referência que se faz à mulher se
por meio da metonímia, em que se ressalta apenas a parte erotizada de seu corpo: a
vagina. Daí dizer que o Dia da Mulher é, na verdade, o Perereca’s Day.
De acordo com Preti (1984, p.65), a palavra é considerada grosseira quando
tende a descrever, a pôr em relevo, o corpo e suas funções e, em particular, as mais
baixas. Essa “grosseria” é mais acentuada quando se exprime por meio de termos de
origem e uso popular, ou seja, termos que, por sua natureza, atualizam as imagens mais
materiais e corporais das coisas e funções designadas e às quais, por outro lado, se
ligam o descrédito e o desprezo de que são objeto aqueles que os empregam. Ainda,
Preti (op. cit. p.84) confirma que a referência à obscenidade é mais direta, menos sutil e
mais grosseira e, portanto, mais fácil de entender-se. É o que se verifica no fragmento a
seguir:
E essa é pra deixar todo mundo de boca aberta! Sexo oral aumenta risco de
câncer na garganta! Mentira!, sexo oral pode dar cãibra! Isso sim! LER, lesão
por esforço repetitivo. (...) Se boquete desse câncer, a Mônica Chupinsky
tava morta. Rarará! (FSP, 16/05/07, grifos nossos)
96
O exemplo acima alude, pelo jogo de palavras, a um fato de grande repercussão
na mídia nacional e internacional. Mônica Lewinsky, então estagiária do presidente
americano Bill Clinton, teria tido relações sexuais com ele, embora fosse casado.
A polêmica gerada, no mundo inteiro, em torno da atitude da moça é reforçada
por Simão, que mostra seu preconceito em relação às mulheres que se relacionam com
homens casados, como se o “delito” recaísse somente sobre elas. O homem, por sua vez,
não teria sua imagem “arranhada”, pois cabe a ele o papel de conquistador, de
“garanhão”. Assim, em termos lingüísticos, a atitude machista do cronista revela-se, por
exemplo, pelo trocadilho feito no nome da moça: chamar a antiga secretária de
Chupinsky, no lugar de Lewinsky, evoca, maliciosamente, dada a associação com o
verbo chupar, a forma como a secretária Mônica e o presidente Bil Clinton se
relacionaram sexualmente. O termo boquete também tem uma conotação sexual
bastante significativa, remetendo, pois, ao sexo oral. Em sociedades conservadoras, tal
prática é vista com restrições, considerada imoral, pecaminosa, ainda mais se for
protagonizada pelas mulheres. José Simão, ao utilizar-se de uma expressão em forma de
ditado popular (se boquete desse câncer, a Mônica Chupinsky já tava morta) para
descrever o suposto ato sexual perpetrado por Lewinsky e Clinton, reforça que era a
mulher que se valia desse expediente com muita freqüência e mesmo de forma
compulsiva. Daí a justificativa do macaco Simão de que sexo oral poderia dar cãibra,
em decorrência da lesão causada pelo esforço repetitivo (ato sexual). Aqui, nota-se uma
inversão parodística, caracterizada pelo modo grotesco em que a sigla LER (Lesão por
Esforço Repetitivo) é empregada em outro contexto, a saber, o erótico. O efeito de
espanto originado pela confusão cômica (interferência), tendo em vista o efeito dúbio
que a sigla evoca, na crônica de Simão, é que deflagra o riso. Trata-se do riso
carnavalesco, grosseiro, da acepção bakhtiniana.
Dos exemplos analisados até aqui verifica-se que a mulher é privada de seu
status de ser humano por meio de um julgamento prévio de sua conduta sexual e de
regras comportamentais que a diferenciam do homem, tanto naquele campo quanto no
social. As regras para medir seu comportamento no campo sexual são muito mais
rígidas do que as ditadas para o homem. Há, na realidade, duas morais sexuais: uma
permissiva, para ele, outra restritiva, para ela. Enquanto a ele tudo é permitido e visto
como normal, a ela tudo é proibido e dado como vergonhoso e indecente.
Por fim, comprova-se que as mulheres não são apenas coisificadas, mas também
tratadas como mercadorias, das quais se pode avaliar exclusivamente os aspectos que
97
interessam no momento da escolha (ou da “compra”). Dessa forma, elas o chegam
sequer a ser mencionadas como um sujeito em sua integridade, em sua completude.
Vemos, portanto, que a sexualização do discurso marca inegavelmente um aspecto do
estado de violência pelo preconceito e desigualdade com que é tratada a mulher.
5.2 A consumação da violência contra a mulher em razão de sua forma física
Nos dias atuais, a mulher, para ter valor, para ter importância social e ser desejada,
precisa ser bela, elegante e jovem. Nesse sentido, pode-se dizer que os cuidados para
com a aparência revelam-se, invariavelmente, como uma forma de a mulher estar
preparada para enfrentar os julgamentos e expectativas de uma sociedade machista e
patriarcal.
Além do mais, em decorrência da circulação automatizada dessas concepções
no âmbito social, levando-se em conta a forma como são utilizadas e aplicadas, bem
como a ingenuidade com que muitas vezes são vistas, principalmente na sociedade
moderna, com a disseminação, em grande escala, dos meios de comunicação de massa,
por tudo isso, evidencia-se que esses conceitos, a respeito da mulher, nos são
transmitidos com tal força e autoridade que “quase parecem um fato biológico”, a ponto
de nos tornarmos parasitos biológicos de nossa herança social”. (cf. Lippmann, 1972,
p.158).
As representantes do sexo feminino, assim sendo, não são reconhecidas como
sujeitos de direito, com vontade própria, mas como objetos, sendo discriminadas e
obrigadas a enfeitar o mundo, atendendo aos padrões estéticos vigentes e tendo suas
capacidades intelectuais tratadas como características secundárias, a serem admiradas
apenas se a função estética for devidamente cumprida.
Pela análise de alguns excertos de nosso corpus, verifica-se que, para José Simão, a
imagem da mulher e do feminino continua associada à da beleza, havendo cada vez
menos tolerância para os desvios nos padrões estéticos socialmente estabelecidos. Nessa
perspectiva, a feiúra é tomada como um termo generalizante negativo e aqueles que nela
se enquadram são excluídos.
No fragmento a seguir, a mulher feia aparece o só como não desejada, mas
também como sendo a responsável pelas insatisfações e, por que não dizer, pelas
infelicidades dos homens:
98
E sabe por que o Bush gosta tanto de bomba? Porque a mulher dele é um
canhão. Por isso que ele prega a abstinência sexual. legislando em causa
própria. (FSP, 06/03/07, grifos nossos)
À primeira vista, bomba e canhão, respectivamente, são termos que fazem
alusão, de alguma forma, às guerras. Apresentam, portanto, uma conotação negativa, já
que servem para destruir vidas e lugares. Bush, em seu governo, empreendeu a Guerra
contra o Iraque, dizimando vários civis, talvez esse o fato de o político gostar tanto de
bomba, como diz Simão. Entretanto, essa idéia é logo deixada de lado, à medida que a
mulher de Bush é tida como sinônimo de canhão. Trata-se do processo de condensação,
à luz de Freud (1905)
23
, em que um significante pode nos levar ao conhecimento de
mais de um significado, fazendo com que acionemos conhecimentos de mundo
diferentes: aqui, canhão é metáfora de mulher feia e, se Bush é casado com uma mulher
nessas condições, deve gostar mesmo de “bomba”, de “coisa feia”.
Entretanto, essa idéia de que Bush sentiria atraído por mulher feia se desfaz em
seguida. Isso ocorre, porque, pelo fato de estar casado com uma mulher nessas
condições, Bush “prega a abstinência sexual”, pois, sendo sua mulher tão feia e,
portanto, não desejada sexualmente, ela não tem utilidade alguma. Nesse sentido, ao
privar-se do ato da copulação com uma pessoa feia, mesmo que esta fosse sua esposa,
seria, para ele, legislar “em causa própria”, que a relação que nutria por sua
companheira não satisfazia mais às suas necessidades e desejos eróticos.
Como se observa, o lugar da mulher na sociedade está subordinado à sua
aparência física. A conotação existente nesses insultos usados pelo homem revela uma
gradação de desprazer que a mulher em evidência produz, não se levando em conta
qualquer outra qualidade como, por exemplo, a inteligência. Essa atitude masculina de
considerar a mulher como um objeto que tem de ser bonito, desejável, evidencia-se
nas expressões usadas por eles para se referirem àquelas que lhes causam efeito visual,
tátil e gustativo desagradável. Decorre, daí, a comparação da mulher de Bush a canhão
e bomba, condição em que se configura o discurso da violência, marcado pelos apelos
ao grotesco e à sexualidade, na qual, em nome do riso, os pequenos defeitos ou aqueles
aparentes são aumentados e realçados, gerando ou intensificando preconceitos, racismos
e intolerâncias, sendo, portanto, uma forma de violência.
23
FREUD, Sigmund. (1905). O chiste e a sua relação com o inconsciente (1905). In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1996. v. VIII.
99
Situação semelhante ocorre no fragmento abaixo, tendo em vista que, sob o
ponto de vista de Simão, para que seja valorizada pelo homem, a mulher deve ser
esteticamente perfeita, devendo, por essa razão, provocar efeito agradável aos olhos e ao
“paladar” masculinos:
(...) mulher feia é cozinheira de spa. Que tira o apetite de todo mundo!
Rarará. (FSP, 20/05/07, grifos nossos)
muito tempo, as comidas próprias a uma dieta alimentar de emagrecimento
são associadas, para muitos, como sinônimo de uma alimentação sem gosto ou mesmo
de paladar desagradável. Seguindo esse raciocínio, pode-se dizer que tais alimentos
tiram o “apetite” de qualquer um. O substantivo apetite, por estar associado a spa e
cozinheira, num primeiro momento aciona o contexto acima descrito. Entretanto,
insinuar que mulher feia é sinônimo de spa, pois é capaz de tirar o apetite de todo
mundo, implica dizer que há, agora, a mudança de referente: assim, quem tira o apetite
não é a comida de spa, mas sim a mulher feia. A palavra apetite passa, então, a ter uma
conotação maliciosa, significando metaforicamente, a falta de desejo sexual dos
homens, em se tratando de uma mulher feia. Esse jogo de significados é que instaura o
riso.
A depreciação das mulheres que não correspondem ao padrão de beleza, tido
pelos homens como o ideal, também se torna clara no excerto seguinte:
Príncipe Charles sugere acabar com o McDonald´s. Por uma alimentação
mais saudável. Justo ele? Come a Camila Parker-Bowles e quer falar em
alimentação saudável? Rarará. O McDonald´s, em represália, devia lançar o
Macamila, o MacJaburu, Macmulher feia. Junkie food! E ainda tem cara
de cavalo. Rarará. (FSP, 04/03/07, grifos nossos)
A expressão “alimentação saudável”, à primeira vista, pertence à mesma rede de
significados, por exemplo, daquela expressa pelo verbo comer”. De maneira
semelhante, essa mesma rede de significados é acionada, quando nos deparamos com a
100
palavra McDonald’s, nome de uma rede de lanchonetes em que se consome
alimentação rápida. Entretanto, à medida que avançamos na leitura do texto,
percebemos, imediatamente, a inversão de sentido que tais expressões abarcam.
Constata-se, portanto, que o verbo comer evoca, neste contexto, mais de um significado
Assim, por meio do jogo de palavras, o cronista cria uma situação cômica, inesperada,
que beira o grotesco: comer e alimentação mais saudável adquirem, agora, um novo
sentido, dessa vez, de conotação obscena: Simão utiliza o verbo comer, em sentido
metafórico, aludindo ao fato de o Príncipe Charles ter mantido relações sexuais com
uma mulher feia e por esta não ser uma alimentação saudável, metáfora que significa
“imprópria para consumo”. Dessa forma, Camila, a feia, é vista aqui como “indigna” de
ser desejada pelos homens, em virtude de sua fealdade, ainda mais em se tratando de um
príncipe.
Ainda a respeito do verbo comer, Preti (1984 p.87) explica que serve para a
expressão do ato sexual, visto sob forma de fruição do objeto desejado (a mulher) pelo
agente masculino, incluindo todas as conotações relativas à força, poder, domínio,
controle absoluto, convenientes ao macho no ato da posse. Nesse sentido, a mulher é
vista, para o homem, não como um ser humano, mas sim, como um objeto comestível e,
portanto, um objeto sexual, uma vez que comer, usado por eles, significa manter
relações sexuais.
Como se não bastasse, o cronista ainda sugere, em represália, pelo fato de a
moça ser feia, que o McDonald’s deveria lançar o McJaburu e o Mcmulher feia,
expressões que reforçam ainda mais a ideologia que mulher feia não tem vez. Jaburu é
uma expressão popular e pejorativa que, de acordo com o dicionário virtual Houaiss da
Língua Portuguesa, significa indivíduo feio, esquisito. Somando-se a isso, o cronista se
vale de um termo em inglês, Junkie food, que alude a uma alimentação de qualidade
ruim e, portanto, não apropriada para o consumo, assim também como a mulher feia não
o é. Como se não bastassem todos os predicados”, Simão alardeia que a moça “tem
cara de cavalo”.
Por fim, considerando a análise deste excerto, podemos dizer que José Simão
traz à tona outra característica marcante da personalidade feminina: a passividade.
Tomando como base o verbo comer, que, neste contexto, se refere ao ato sexual,
constata-se que na expressão que diz que o Príncipe Charles come a Camila Parker-
Bowles, o sujeito é exclusivamente masculino (Ele a comeu). Aqui, evidencia-se que a
mulher não participou ativamente da ação (copulação). Isso posto, confirma-se que a
101
mulher ocupa simplesmente o lugar de objeto. Essa função biológica se desenvolve em
condições que colocam o homem numa situação de agente e a mulher na de paciente.
Logicamente, nessa oposição, aquele ocupa o lugar dos dominadores e, esta, o de
dominados. Essa oposição desequilibrada entre o sexo masculino e o feminino cria,
contra este último, verdadeiros estados de violência.
Ainda, com respeito à depreciação da imagem feminina em razão de sua
aparência física, percebemos que José Simão não lança suas “farpas” apenas às
mulheres consideradas por ele feias. De forma alguma. Em seus textos, a imagem da
mulher que está com o peso excedente também é bastante hostilizada. É do que
trataremos a seguir.
Em tempos atuais, observa-se o papel fundamental que a mídia tem como
criadora e propagadora de um padrão estético feminino em que a beleza parece ser
obrigatoriamente vinculada à magreza. Tal modelo de conduta reflete-se na posição de
pouco prestígio que a mulher com excesso de peso ocupa frente à sociedade
contemporânea, condição esta suscetível a despertar preconceitos e intolerâncias.
O exemplo seguinte, mais uma vez, tem como pano de fundo o Carnaval
brasileiro, precisamente o desfile das escolas de samba cariocas, em que habitualmente
são exibidos, na Avenida, corpos femininos exuberantes e perfeitos. Se considerarmos
que as piadas de José Simão geralmente enaltecem o corpo das mulheres que ele
destaca, em razão de sua forma escultural, aqui, parece-nos que esse não é o caso. Em
decorrência das formas protuberantes da cantora e atriz Preta Gil, o “esculhambador
geral da República”, por essa razão, não a enxerga como um objeto formoso e agradável
de contemplação:
E o site Comentando comenta que a Preta Gil levantou a torcida no
Sambódromo. Quando ela passou, a torcida se levantou e gritou: “Pô, Preta
Gil, sai da frente e deixa a gente ver o desfile.” “Quem teve a idéia de botar
um carro alegórico na frente da bateria?” (FSP, 24/02/07, grifos nossos)
Em se tratando do tema do Carnaval e, por conseguinte, associando a essa
ocasião festiva o apelo à licenciosidade sexual, logo no início, conhecendo um pouco do
estilo de Simão, podemos esperar que o cronista, ao empregar o verbo levantou, remeta
102
seu leitor imediatamente ao humor sexual, ao discurso da malícia, do grotesco, aludindo
o ato de “levantar” ao órgão sexual masculino, quando é excitado. Entretanto, dando
prosseguimento à leitura, percebe-se que o sentido dado por José Simão, ao verbo em
questão, o tem conotação sexual. Nesse instante, a expectativa do leitor é desfeita,
pois Preta é comparada, impiedosamente, a um carro alegórico, em função das suas
formas volumosas, desmedidas e exageradas, aos olhos de Simão. Daí, a deflagração do
riso, funcionando como uma espécie de trote social, que humilha e deprecia quem é
objeto dele. (cf. Propp, 1992, p.190). Se não fosse Preta Gil que estivesse ali no
Carnaval, mas uma outra mulher, linda e com formas exuberantes, o sentido expresso
pelo verbo levantar faria menção, certamente, ao discurso erótico, em que os homens,
ao verem pela frente uma bela mulher, se renderiam sexualmente aos seus “encantos”.
Como Preta Gil não corresponde aos padrões de beleza tidos como “ideais” pelos
homens, o fato de Simão não ter empregado o verbo “levantar” referindo-se ao discurso
sexual justifica-se, portanto. Cabe dizer que tal verbo foi empregado no seu sentido
corriqueiro, usual. Assim, a torcida se levantou em decorrência do peso e da forma
excedentes da moça. Desse modo, sob o risco de o entender a “graça da coisa”, o
leitor é obrigado a rever o texto novamente. Isso ocorre, pois um significante - verbo
“levantar” - pode nos levar ao conhecimento de mais de um significado. Observa-se,
também, que a forma pela qual Simão se refere à moça (Sai da frente e deixa a gente
ver o desfile.) torna evidente, mais uma vez, o posicionamento machista em relação às
mulheres: a mulher que não apresenta belos dotes físicos o é perfeita para atender às
necessidades sexuais dos homens. É, portanto, descartada, pois não é produto
consumível”.
A título de curiosidade, assim como ocorre nesta crônica (24/02), em que José
Simão tece comentários sobre a postura da atriz e cantora Preta Gil durante o Carnaval,
na crônica veiculada no dia seguinte (25/02), Simão se vale das mesmas observações a
respeito da moça:
E o site Comentando prova que a Preta Gil levantou a torcida no
Sambódromo. (FSP, 25/02/08, grifos nossos)
103
Entretanto, dessa vez, o cronista assevera que o site Comentando prova que
Preta Gil levantou a torcida na avenida, ao passo que, no dia imediatamente anterior, o
mesmo site, sob a ótica de Simão, apenas comenta que a moça havia levantado a torcida
no Sambódromo. Muda-se, portanto, o tom da conversa, sendo que, na sua versão mais
recente, os fatos sobre a cantora e atriz, propagados pelo site Comentando, adquirem,
sob a perspectiva de Simão, uma conotação mais séria, exata, ao passo que na versão
anterior, não passava de um simples comentário.
Ainda sobre esse assunto, é interessante verificar que nem o fato de Preta Gil
ser a filha do então Ministro da Cultura nacional e cantor, Gilberto Gil, faz com que
José Simão poupe a moça de comentários tão preconceituosos e racistas, como se
comprova pela análise do fragmento da crônica. Associada às formas robustas da moça
está sua condição de mulher negra, que, pode-se dizer, continua sendo, nos dias de hoje,
alvo de exploração psicológica, física e/ou social por parte dos homens.
Neste palco de diferenças/desigualdades, a mulher negra recebe um grande fluxo
de incongruências, o que provoca um acirramento nas diferenças acentuadas pelo
processo de introjeção no meio social. Desde criança, o seu mapa cognitivo acolhe
discrepâncias com vistas a corroborar o status quo vigente, aquele que beneficia os
preceitos machistas e depaupera o já pálido modelo feminino.
Nesse caso, embora Preta Gil seja a exceção num país repleto de negros, como
ela, que vivem em precárias condições de vida, em razão da cor da sua pele, a cantora,
mesmo sendo considerada sua condição social privilegiada, carrega também o estigma
de gerações passadas, nos quais o negro apenas era usado como mero objeto, útil apenas
para servir aos desejos e necessidades dos brancos. Estereótipos do tipo que as mulheres
negras devem ter acesso restrito somente às áreas de serviço e que só têm utilidade para
servir ao homem entranham-se de tal modo na consciência que acabam por ser
considerados naturais, verdadeiros. A figura do negro carrega um conteúdo repleto de
preconceitos, aversões, hostilidades, ao passo que a figura do branco está impregnada de
conceitos positivos.
Considerando os exemplos analisados até aqui, comprova-se que a imagem
feminina é violentamente hostilizada por José Simão, em função de sua aparência física.
A esse propósito, confirma-se que a mulher, para ser valorizada, para ter um lugar
assegurado dentro de uma sociedade machista, deve ser bela, elegante e esbelta. Porém,
não pára aí. Definitivamente não. A mulher também deve ser jovem. Pela análise do
excerto seguinte, percebe-se claramente que a imagem da mulher idosa é desvalorizada
104
e marginalizada aos olhos do cronista. Assim, constata-se que estereótipos de que as
mulheres mais velhas não são atraentes fisicamente, o têm interesses por sexo ou são
incapazes de sentir algum estímulo sexual são amplamente difundidos e perpetuados por
José Simão:
E as inhas sem bingo? Tão com ndrome de abstinência de bingo. Vai ter
passeata! Já fizeram até camisetas: “Faz tempo que eu não bimbo, deixa eu ir
no bingo”. “Ô! Ô! Ô! Se eu não posso ir ao bingo, compre Viagra pro seu
avô”. “Quando ele parar de beber, eu paro de jogar”. São as famosas
camisetas da minha avó! E para quem bimbar é apenas recordação, bingar é
a solução! (FSP, 26/04/07, grifos nossos)
É importante considerar que o assunto tratado nesta crônica remete a um fato
que ganhou grandes proporções na dia brasileira da época em questão. Trata-se do
fechamento das casas de bingo em São Paulo, ações essas determinadas pela Justiça
Federal e que tiveram início no dia 19 de abril de 2007, após publicação do Decreto
Municipal 47.415, de 2006, que impediu a instalação de bingos na cidade, em
conseqüência do término das autorizações concedidas para o exercício dessa atividade.
Pode-se dizer que nas sociedades urbanas capitalistas o indivíduo tem valor,
quase que exclusivamente, pelo que produz. Tal efeito é sentido na marginalização das
pessoas mais velhas, principalmente quando não são mais uma força social produtiva.
Nesse sentido, o processo do envelhecimento é considerado prejudicial, de menor
utilidade ou associado à incapacidade funcional. Os preconceitos geralmente envolvem
crenças e estereótipos de que o envelhecimento torna as pessoas inativas, impotentes,
fracas, incapazes e inúteis.
Durante séculos, a figura da mãe foi mantida como ideal de realização feminina,
o que confere às mulheres um único papel, o da reprodução. Esta afirmação é produto
de uma atitude especificamente patriarcal: quando a mulher não pode mais ter filhos, ela
não tem mais utilidade.
O fato de ter o tempo livre pode causar no indivíduo a sensação de que o é
mais útil, além de desencadear uma série de outros complexos e carências. Em nossa
sociedade, o jogo do bingo, associado ao lazer das pessoas da terceira idade, é uma
forma de aproveitar esse tempo ocioso. De acordo com Simão, por possuírem uma certa
105
idade e, portanto, talvez não terem uma vida sexual tão ativa, ou mesmo, nenhuma
(“bimbar” é recordação”), o que resta às véinhas é jogar bingo.
Verifica-se que o diminutivo véinha, no ínicio do texto, tem uma conotação
afetiva. Preti (1984) assegura que a mulher mais idosa pode ser chamada de velha,
sem que isso a ofenda, pois ela está fora da competição sentimental. Por essa razão,
José Simão afirma que as véinhas estão privadas de uma vida sexual ativa e, sob esse
aspecto, “tão com síndrome de abstinência de bingo”. O resultado que tal expressão
evoca, ativada pelo vocábulo abstinência, sugere que as véinhas estão muito tempo
sem sexo e por essa razão, de forma bastante apelativa, para reverterem esse quadro,
não organizaram uma passeata reivindicando a abertura dos bingos, como também
“fizeram até camisetas.” Note-se que o emprego do advérbio até ratifica a urgência e,
por assim dizer, o desespero por parte das senhoras, que estão inconformadas com a
situação presente.
Para compreendermos a intenção do texto, lembramos que o substantivo bingo
(local onde se pratica a atividade de jogar bingo) assemelha-se foneticamente à bimbo,
palavra que tem aqui a função de um verbo, com o sentido de “ter relações sexuais”.
Essa semelhança fônica (trocadilho) é provocadora do riso, ainda mais quando o sentido
que carrega beira o cômico grotesco. Fica explícita a conotação sexual do discurso, à
medida que se introduz, no texto, a palavra Viagra, remédio para melhorar o
desempenho sexual dos homens, a saber, dos “véinhos”. Verifica-se que o homem,
mesmo na condição de idoso, é visto como possuidor, explorador, dominador absoluto
da mulher, que é vista meramente como objeto sexual.
Nas culturas ocidentais, os traços ideológicos configuram na linguagem
“corredores semânticos”, criando modelos ou padrões perceptivos que adquirem na
práxis social um valor positivo ou meliorativo em oposição a um valor negativo ou
pejorativo. (cf. Blikstein, 1985, p.61). A verticalidade e tudo a que ela se associa (em
, alto, altivo), por exemplo, é um traço de valor meliorativo, indicando
superioridadeou majestade”, enquanto a horizontalidade tem conotação usualmente
pejorativa. A tendência é de se depreciar o que está caído, deitado, abaixo. A mulher
idosa, por não apresentar uma forma física exuberante que atraia sexualmente a atenção
dos homens e, por assim dizer, estar bem abaixo” das expectativas destes, é
estereotipada, por eles, como aquele ser que não pode mais ser consumido”, portanto,
sem utilidade alguma. Examinando os aspectos comuns que são postos em relevo em se
tratando da mulher mais velha, verifica-se que as metáforas associadas a essa mulher
106
são, entre outras, a de bagulho, sucata, traste, coroa, enferrujada, etc. De fato, observa-
se, por conseguinte que, por meio da sexualização do discurso, José Simão colabora
para acentuar a desigualdade entre os sexos, materializando em seus textos a posição de
inferioridade da mulher perante a sociedade.
Diante do exposto até aqui, comprova-se que a desumanização da mulher
materializa-se, primeiramente, quando o homem a considera um objeto que tem de ser
belo para poder ocupar um lugar na sociedade. Além de a mulher ser vista como um
objeto formoso, agradável aos olhos, é definida em função de sua sexualidade. Nela, a
sua humanidade - o seu ser não é levada em conta. O homem não a como um ser
humano em sua essência, mas sim como um objeto sexual, com características físicas
que lhe devem agradar, condições essas em que se materializam e se perpetuam
preconceitos e intolerâncias, transformadas que são em estados de violência.
5.3 A materialização da violência contra a mulher em razão de aspectos culturais e
sociais
Se levarmos em consideração a história, veremos que liberdade e inteligência,
durante muito tempo, não foram características comuns de serem atribuídas ao sexo
feminino. Por séculos, as relações entre os gêneros mantiveram (e ainda mantêm, mas
com menor intensidade) um caráter excludente com relação às mulheres – e que se dava
tanto nos campos político e econômico, como no social e cultural. De acordo com o
discurso machista, essa exclusão seria, de uma certa forma, justificada pelo fato de que
as mulheres seriam menos capazes (pouco inteligentes, muito frágeis, etc.) do que os
homens. A exploração desses estereótipos conduz a um discurso marcado pelo
preconceito e discriminação em relação às mulheres, condição em que se institui o
estado de violência.
No que se refere às personalidades femininas do mundo artístico televisivo, as
“farpas” de José Simão se voltam àquelas que dizem inúmeras impropriedades
lingüísticas no ar. Dentre as “eleitas” por Simão, Luciana Gimenez ocupa lugar de
destaque. O fragmento da crônica analisado a seguir o apenas revela a débil
competência lingüística da apresentadora. Revela, sobretudo, a perspicácia do cronista,
na medida em que, por meio de um jogo sonoro, deforma o nome de Luciana, que passa
a ser chamada, por ele, de Lucianta e morenanta:
107
I LOVE LUCIANTA! Mais uma da minha morenanta predileta, Lucianta
Gimenez. A Preta Gil explicava que seu pai (o menestrel Gil) teve problemas
em registrá-la porque o escrivão não aceitava o nome Preta. E aí o pai
argumentou: ‘Se tem Branca, Rosa, Violeta por que não Preta?’. E a
Lucianta: ‘E Priscila!’ Priscila é cor? Só se for rosa: Priscila, Rainha do
deserto. O arco-íris da Lucianta: branca, violeta, rosa e Priscila! Daltonismo
mental. (FSP, 22/03/07, grifos nossos)
Sob o aspecto estritamente lingüístico, observamos que tanto o nome da moça
(Luciana), como o seu tipo físico (morena), são associados ao substantivo anta, à guisa
de sufixo. O sentido atribuído à expressão popular ser uma anta ou agir como uma anta
é muito conhecido entre os brasileiros: trata-se da pessoa que é desprovida de
inteligência. Ao dizer Mais uma da minha morenanta predileta, Simão destaca a pouca
intimidade que a apresentadora tem com a língua portuguesa, pois o mais uma revela
que Luciana, constantemente, diz inúmeras impropriedades em seu programa na Rede
TV.
A dificuldade lingüística de alguém que não domina a língua pode resultar em
confusões homéricas e geralmente rende uma boa piada. Simão, como percebemos, o
perde uma oportunidade em relembrar as “pérolas” ditas por seus alvos prediletos.
Nota-se que o cronista emprega “I LOVE LUCIANTA”, em caixa alta, com o propósito
de chamar a atenção do leitor para as asneiras ditas pela moça. Cabe dizer que tal
expressão remete, intertextualmente, ao seriado americano I love Lucy
24
. É interessante
essa associação feita por Simão, pois tanto Luciana quanto Lucy apresentam-se de
maneira caricata e parecem apresentar características semelhantes, dadas as sucessivas
trapalhadas cometidas pelas duas, resultando em fracassos constantes.
24
A série I love Lucy foi exibida nos EUA nos anos 50 e chegou ao Brasil nos anos 80. O sucesso
imediato da série se deve a uma idéia simples, mas que marcou uma época: pela primeira vez, o cotidiano
das famílias da classe média americana era retratado na televisão. O foco era a rotina de Lucy, uma dona
de casa que leva o marido à loucura com suas trapalhadas. A série foi exibida nos anos 50, ou seja, no
período pós-guerra no qual, após a volta dos maridos, inúmeras mulheres voltaram ao seu tradicional
papel de dona-de-casa. Mas, as mulheres iniciavam uma briga para entrar no mercado de trabalho e
provar sua capacidade, Lucy pode ser vista como um ícone feminino, pois a cada episódio lutava para sair
da sombra de seu marido. Mas, por outro ponto de vista, as maluquices realizadas por ela e seus
sucessivos fracassos transpareciam que a mulher na verdade o possuía toda a capacidade que dizia
possuir. Lucy representava adequadamente a mulher de sua época, apesar de ser mostrada de uma forma
extremamente caricata. Foi por meio de séries como essa que a insatisfação feminina com sua situação
começou a ser exibida para o grande público
Disponível em: http://lucysite.vilabol.uol.com.br/sociedade.html. Acesso em 04/06/08.
108
De acordo com o macaco, a morenanta, quando entrevistou Preta Gil em seu
programa, se superou em termos de seu desconhecimento lingüístico. Para a
apresentadora, Priscila não se trata de um nome próprio, mas de uma cor. Essa confusão
cômica (interferência) se estabelece à medida que uma situação pode ser interpretada
em dois sentidos diferentes ao mesmo tempo. E, sob a ótica de Simão, tal distorção de
sentido, de tão absurda que é, leva-o a acreditar que a apresentadora é portadora de
daltonismo mental, metáfora que sinaliza a incapacidade intelectual da morena de
compreender as sutilezas de um assunto, de um raciocínio e também de distinguir entre
uma coisa e outra, mesmo que se trate de algo muito corriqueiro e conhecido pelo senso
comum. No caso específico deste fragmento, a apresentadora não soube distinguir entre
uma cor e um nome próprio. Pode-se dizer que a referida observação feita por Luciana,
de tão surpreendente, absurda e inusitada, sob a perspectiva de Simão, por isso mesmo,
parece beirar entre o real e o fantástico. Daí a deflagração do riso carnavalesco, à luz de
Bakhtin (1996).
Ainda, tendo como discussão central a deficiência lingüística de algumas das
apresentadoras da televisão brasileira, José Simão, dessa vez, registra sua crítica ferina à
Claudete Troiano, apresentadora do então programa feminino Pra Valer, da Rede
Bandeirantes:
E adorei a Claudete Troiano na Band: ‘Como é mesmo o nome daquelas
que ficam chorando em velório? Ah, CARPINTEIRAS’. Rarará! Vai virar
assessora intelectual da Lucianta Gimenez. (FSP, 18/03/07, grifos nossos)
Neste exemplo, o humor se estabelece por meio do trocadilho empregado por
Claudete Troiano, quando esta se referia às pessoas que choram em velório. A
apresentadora afirmou que as pessoas que realizam essa atividade são as carpinteiras.
Deve-se levar em consideração que o substantivo carpinteiro, de acordo com o
dicionário Houaiss da língua portuguesa, refere-se ao artesão que trabalha com
madeira. Carpideira é o termo adequado para designar uma mulher que pranteia os
mortos durante os funerais. José Simão, em decorrência da impropriedade lingüística
dita por Claudete Troiano, não a poupa de suas terríveis “farpas”. De maneira alguma.
Ironicamente e de forma mordaz, o cronista deixa claro que a apresentadora vai virar
109
“assessora intelectual da Lucianta Gimenez”, aludindo à precária competência
lingüística de ambas.
Historicamente, o trabalho da mulher sempre esteve presente nas diversas
épocas e lugares, sendo relevante para o progresso da humanidade. No entanto, a
integração da mulher no mercado de trabalho foi difícil e marcada pela subalternidade e
pela discriminação. Considerando a análise dos excertos seguintes, veremos que José
Simão ainda contribui e muito para a disseminação e perpetuação de concepções
fortemente machistas contra as mulheres no contexto profissional.
Apesar de nos dias atuais serem legalmente assegurados às mulheres os mesmos
direitos concedidos aos homens - seja no campo da remuneração, na promoção do
trabalho, seja na política e na cultura - a mulher durante muitos anos teve uma educação
diferenciada da masculina. Sabe-se que a mulher era treinada para servir seu
companheiro e procriar, enquanto o homem era treinado para assumir a posição de
trabalhador e soberano da família.
A libertação da mulher desse sistema que se arrastou através dos séculos
possibilitou que, gradativamente, ela fosse conquistando seu espaço e, principalmente, o
mercado de trabalho. No entanto, a discriminação ao trabalho da mulher o foi
eliminada de forma total e ainda se fazem sentir situações em que a mulher é humilhada,
inferiorizada, reduzida ao status de coisa pelo fato de ser julgada quase que
exclusivamente pela aparência física. O fragmento da crônica de José Simão, logo
abaixo, ilustra bem essas concepções:
Título: Ueba! Gretchen bota bunda no pleito!
Ueba! Conga Conga Conga! Todo mundo rebolando! Liga o som. Toca a
Melô do Piripipi! A Gretchen entrou pra política! Filme pornô ela já fez! Já tá
preparada pra sacanagem! A Gretchen botou a bunda no pleito. Quer ser
prefeita da ilha de Itamaracá! Vai bombar! Vai ser um paraíso: todo mundo
de bunda pra cima! (...) E os slogans? “Não votem em qualquer um, freak lê
bumbum.” “Bunda por bunda, vote na mãe das bundas.” A bunda das
cavernas, a protobunda. Ou, como está escrito no site oficial dela: “Pioneira
no setor retro-rebolativo”. (...) E como disse um amigo meu: quero botar
meu voto na urna dela. (...) E diz que a Gretchen vai entrar pros anais da
política! Rarará! Ô esculhambação! O Brasil tinha três saídas: Cumbica,
Galeão e a esculhambação. Depois da zona aérea, fico com uma: a
110
esculhambação! O Brasil tinha três saídas e agora com a Gretchen tem uma
entrada: entrada pelos fundos. Rarará. (FSP, 02/05/07, grifos nossos)
Nesta crônica, o foco central da fala de Simão é a filiação da cantora e atriz
Gretchen a um partido político, após ter abandonado definitivamente sua carreira
artística.
A partir do título da crônica verifica-se a existência de referências, ainda que
indiretas, às mulheres. José Simão inicia seu texto apresentando ao leitor o título das
músicas pelas quais seu alvo tornou-se conhecido nacionalmente: Conga Conga Conga
e Melô do Piripipi. Para aqueles leitores mais desavisados, Simão faz questão de
esclarecer ou lembrar que Gretchen, além de ser pioneira no setor retro-rebolativo, até
filme pornô ela fez.
Levando-se em consideração o fato de a cantora ter ingressado na política para
concorrer à prefeitura de uma cidade pernambucana, normalmente, o que deveria estar
em pauta de discussão seriam os assuntos relativos ao plano de governo traçado pela
candidata, ou seja, as metas e objetivos que contribuíssem para a melhoria das
condições sociais e econômicas da população que vise a governar. Entretanto, José
Simão não segue por esta trilha. Embora a cantora pretendesse deixar para trás seu
passado artístico, objetivando dedicar-se somente à política, levando em consideração
os comentários do cronista, por todo o texto, constata-se que o macaco optou pelo
caminho inverso: verifica-se que a ênfase que Simão à cantora recai somente sobre
os “predicados” físicos dela, em detrimento de sua capacidade intelectual e moral.
Para quem “até filme pornô fez”, estar já preparada pra sacanagem, é coisa que
não surpreende. A expressão preparada pra sacanagem, neste contexto, é dúbia: em
primeiro lugar, porque alude ao fato de Gretchen ter protagonizado filme
pornográfico. Esse tipo de filme é caracterizado, pelas sociedades mais conservadoras,
como promíscuo, libidinoso, imoral. Em segundo lugar, porque remete, imediatamente,
ao estereótipo dos políticos: pessoas que não trabalham, praticam negócios ilícitos,
ladrões, provocam conflitos, exploram o povo, fazendo muitas “sacanagens”, etc.
Prosseguindo esta análise, na perspectiva de Simão, se Gretchen tornar-se prefeita da
ilha de Itamaracá, tal fato vai ser um paraíso”, pois todo mundo ficade bunda pra
cima”. Nesse caso, Simão também nos concede, propositalmente, a autorização para que
interpretemos dubiamente tais palavras: por um lado, o fato de Gretchen tornar-se
111
prefeita “ser um paraíso”, pois todo mundo ficará debunda pra cima” alude ao
estereótipo de que, embora político não trabalhe como realmente deveria, recebe, em
contrapartida, excelente remuneração. Daí a aceitação de que tal função é “um paraíso”.
Por outro lado, as mesmas expressões também assumem uma conotação sexual: as
formas protuberantes dos glúteos da moça correspondem bem ao gosto (machista) dos
homens: mulher com belos dotes físicos e, portanto, perfeita para atender às
necessidades sexuais deles.
Enquanto o “homem público” remete-nos ao dever social, a imagem da “mulher
pública” é sempre associada à sua aparência e apresentação. Sob o ponto de vista de
Simão, a forma como se daria a recepção da cantora no plenário, onde estariam reunidos
todos os membros do partido, comprova a afirmação anterior: Gretchen botou a bunda
no pleito. É importante observar que o efeito chamativo dessa inscrição também se faz
presente logo no título da crônica, apelando para um vocabulário obsceno que ratifica e
sustenta, ainda mais, a mensagem da violência que hostiliza a imagem da mulher no
ambiente de trabalho.
De acordo com Preti (1984), a um sentimento de força, de poder e de violência,
essencialmente masculino, corresponde uma afirmação de fraqueza e impotência
feminina, com imagens desvalorizadoras referentes às partes pudentas, desde a visão
mais degradante do corpo da mulher, até a representação humorístico-depreciativa do
órgão genital e das partes anais. A respeito desta última, relacionam-se: bunda,
protobunda, urna, fundos, anais. (cf. p.88). Sob esse ponto de vista, para Preti, a
referência à obscenidade é mais direta, menos sutil e mais grosseira e, portanto, mais
fácil de entender-se. (cf. ibid., p.84).
O alto” grau de feminilidade alcançado por uma mulher, seu adestramento no
realce de sua dinâmica de atração, especialmente referente à submissão e dependência
eróticas, contrastam freqüentemente com sua incapacidade para todo tipo de tarefa que
seja distinta de sua “natureza”.
Comprova-se, mais uma vez, que a mulher é caracterizada como objeto. E, sendo
elas, o apenas “coisificadas”, mas também tratadas como mercadorias, das quais se
pode avaliar exclusivamente os aspectos que interessam no momento da escolha (ou da
“compra”), elas não chegam sequer a ser mencionadas como um sujeito em sua
integridade, em sua completude. Nos textos de José Simão, a mulher é caracterizada por
meio de metonímias em que se ressaltam as partes erotizadas de seu corpo. No caso
específico desta crônica, por meio da bunda (a parte) de Gretchen, ela é caracterizada
112
em seus mais distintos papéis: a política, a cantora, a atriz, a mãe de família, a esposa (o
todo).
Deve-se convir que a luta das mulheres pela igualdade de direitos em relação aos
homens, no mercado de trabalho, pode servir como exemplo de um grupo minoritário
tentando introduzir elementos inovadores na sociedade. Diversos segmentos sociais
ainda são contrários a essa inovação. Isto pode gerar uma relação de opressão onde, a
partir do olhar da maioria, o “outro” (minoria) se apresenta com uma conotação
negativa, e a “maioria”, uma “positiva”. Pode-se dizer que, no cenário da política
nacional, a predominância ainda é, em grande escala, masculina. Além do mais, nos dias
de hoje, prevalece a concepção de que assuntos políticos dizem respeito exclusivamente
aos homens.
De fato, no exemplo seguinte observa-se que tal ponto de vista é bastante notório
na linguagem de Simão. Embora os tempos tenham mudado, a mulher ainda sente as
conseqüências das escolhas que ela nunca pôde fazer, ou melhor, da condição que a
impediu de ser ela um pouco diferente. Como não podem ser o que querem, as mulheres
são consideradas desviantes, inadaptadas ou marginais. É nessa relação de opressão que
os estereótipos surgem e se cristalizam. Sob esse aspecto, vejamos outro exemplo:
Título: Turismo! Marta viaja na maionese!
A Volta da Marta Viva! Todo mundo só quer falar da Marta! Martamania
ou martafobia?! E sabe por que ela foi escolhida pra ministra do Turismo?
Porque vive viajando na maionese. Rarará! Maionese Airlines! E os vôos
atrasam tanto que ela vai criar a taxa de espera de embarque. E o blog
‘Comentando’ revela qual será a primeira providência dela como ministra.
Tirar um passaporte novo. (FSP, 22/03/07, grifos nossos)
Nascida rica e educada em colégios freqüentados pela elite paulistana, a
sexóloga e ex-prefeita Marta Suplicy tornou-se conhecida na década de 80, quando
ancorou um quadro sobre sexualidade no programa TV Mulher, da Rede Globo,
momento em que, após a ditadura militar, era possível falar no assunto, até então banido
da mídia. Quando era prefeita de São Paulo, ficou muito conhecida pela instituição de
113
taxas de manutenção de serviços como a coleta de lixo e a iluminação pública, razão
pela qual alguns opositores lhe colocaram o apelido de Martaxa.
Na ocasião em que José Simão escreveu esta crônica, Marta havia sido indicada,
pelo então presidente da República, Lula, a nova ministra do Turismo. Todavia, nessa
época, o Brasil enfrentava um momento muito difícil no contexto da aviação, a saber,
um verdadeiro “caos aéreo” de grande repercussão nacional e internacional.
Logo de início, percebe-se o efeito da paródia intertextual construída por Simão.
Isso se torna evidente, pois A Volta da Marta Viva! (com as iniciais das palavras
maiúsculas) trata-se de um trocadilho que remete ao filme A Volta dos Mortos-Vivos.
Tal qual acontece no filme original, onde cadáveres voltam à vida para se alimentar das
pessoas, instaurando pitadas de humor negro, na cena descrita por José Simão, Marta,
após ter sido prefeita de São Paulo, regressa à cena política, dessa vez, na posição de
ministra do Turismo. Tal fato, em síntese, implicava naquilo que Simão alardeou:
“Todo mundo só quer falar na Marta!”, ou seja, a volta da ex-prefeita ao cenário político
era assunto em pauta de todos os brasileiros, portanto, tratava-se, aos olhos de Simão,
por um lado, de uma mania nacional e, por outro lado, como indaga o cronista, o
regresso de Marta, agora ocupando a função de ministra do Turismo, poderia despertar,
nos brasileiros, um sentimento de aversão e desaprovação em relação à consumação
desse fato, tão logo ela tomasse posse do referido cargo.
O processo de desmerecimento das figuras públicas perpetrado por José Simão
busca as mais variadas estratégias, entre elas, o jogo verbal, por meio do qual o cronista
cria palavras cuja sonoridade não reproduz ou se aproxima do nome pelo qual o
político é conhecido, como também alude a um fato ou ação que o desmerece. A
compreensão da cena descrita anteriormente se torna possível quando o leitor,
informado sobre a realidade dos fatos, é capaz de desvelar o sentido atribuído aos
trocadilhos criados por Simão, a saber, Martamania e Martafobia.
É interessante observar a capacidade de síntese que esses trocadilhos encerram:
com muito pouco e de forma inteligente, brincalhona e irônica, muito é dito. Nesse
sentido, pode-se dizer que é próprio do trocadilho apresentar-se como forma eufemística
pois, valendo-se do paleativo da “brincadeirinha”, a violência, traduzida em forma de
preconceito e discriminação é velada, mas configura-se, mesmo assim, em estado de
violência.
Pelo sentido que evoca, o verbo viajar, expresso em viajando na maionese, à
primeira vista, pertence à mesma rede de significados dos termos turismo, airlines,
114
embarque, passaporte. Entretanto, o substantivo maionese, que acompanha o verbo
viajar, não faz parte da mesma cadeia de significados do verbo que o acompanha.
Viajar na maionese é uma expressão figurada popular e depreciativa, significando que
alguém não diz coisa com coisa, ou seja, é incapaz, digno de não ser levado em conta
pelas suas palavras e atitudes.
Dentro desse espírito jocoso, seguindo a frase exclamativa no intertítulo da
crônica de Simão (Marta viaja na maionese!) e sua repetição no corpo do texto,
observamos, à luz de Costa (2002), que tal repetição contribui para a conformação dos
leitores em relação à violência, tornada inconsciente pela automatização da linguagem,
tendo em vista que, acostumados às constantes repetições, para os leitores, o texto
passa a não ter mais conteúdo, somente forma. O rarará, descrito a seguir, é a
materialização do riso do macaco Simão. Este, por sua vez, convida o leitor a rir com
ele e, seduzido pelo riso, tal leitor deixa de espiar o que por detrás desse rarará.
Dessa forma, em nome do riso, a violência é construída.
A cena da desordem que assolou a aviação civil brasileira, em que era comum os
passageiros passarem horas e até dias nos saguões dos aeroportos, à espera do
embarque, é, por si só, degradante e digna de revolta. Como se não bastasse, José
Simão traz à tona as impropriedades acometidas na gestão de Marta, enquanto prefeita
da cidade, a saber, a instituição de taxas para alguns serviços, tais como a iluminação
pública e o lixo, dentre outras. Pelo fato de a criação de taxas serem marcas da gestão de
Marta, Simão não deixa escapar esse “detalhe” e assim, de forma irônica, lança mão de
suas farpas, direcionando-as à nova ministra do Turismo: E os vôos atrasam tanto que
ela vai criar a taxa de espera de embarque. Como se não bastasse a criação de novas
taxas, a primeira providência tomada pela ministra, o logo assuma o novo cargo, é
tirar um passaporte novo. Ironicamente, a conotação que tal idéia evoca é a de que
Marta é vista como fútil, destituída de competência profissional e inteligência. Tal
julgamento a desumaniza e a reduz ao status de coisa, como se não tivesse nada a
oferecer.
O fragmento, por nós contemplado a seguir, mais uma vez tem como alvo das
terríveis críticas de José Simão a então candidata ao Ministério do Turismo, Marta
Suplicy. Todavia, pode-se dizer que, dessa vez, o tratamento cômico dado pelo cronista
à Marta exagera não tanto os seus predicados políticos, mas a própria questão da
feminilidade, superpondo a figura feminina à política o que, sem dúvida, subsume uma
visão preconceituosa quanto ao papel da mulher:
115
MARTA FOLIA! Ontem foi a posse da Marta. Hoje é sábado e ela de
folga. Hoje ela tira o passaporte novo. Rarará! E ainda com o novo apelido:
Mala Suplicy. Ué, não é turismo? Então Mala. Rarará. E diz que o maridão
franco-argentino (sendo que eu não conheço nenhum argentino franco) fez
um poema especialmente pra posse da Mala Suplicy: “Eu queria amá-la/
amá-la muito/ que amá-la não posso/ Porque a mala esqueci no avião.”
(FSP, 24/03/07, grifos nossos)
Verifica-se que Simão refere-se a Luis Favre, atual marido de Marta, usando o
termo maridão. Trata-se de um aumentativo, próprio da linguagem familiar. Tal termo
vem carregado de sentidos. Perpassam-no, por exemplo, as idéias de masculinidade, de
força e superioridade, comparativamente aos termos empregados para se referir à ex-
prefeita de São Paulo.
À primeira vista, verifica-se que a relação de sentidos estabelecida entre a
palavra mala e as palavras turismo, passaporte, avião, presentes neste excerto, é a
mesma, ou seja, todas elas pertencem ao mesmo frame
25
. Sob esse aspecto, a palavra
mala assumiria seu sentido literal, significando bagagem. Entretanto, após a leitura do
excerto, nota-se que a palavra mala assume outro sentido. Marta é vista, sob a
perspectiva do macaco Simão, como uma “mala”, dada a semelhança lingüística entre
Marta e mala. Daí o nome Mala Suplicy. Constata-se que o sentido da palavra mala não
corresponde, nesse caso específico, ao seu sentido literal (bagagem). De forma alguma.
A palavra mala adquire, metaforicamente, nesse sentido, uma conotação pejorativa,
aludindo ao fato de Marta ser, para José Simão, uma pessoa chata, desagradável,
complicada de lidar e, portanto, “difícil de carregar”. A título ilustrativo, observa-se que
o sentido que essa expressão evoca faz parte do repertório popular.
Pode-se dizer que José Simão, por meio do jogo de palavras, combina humor e
maldade para caracterizar a figura de Marta Suplicy. Assim, um poema é escrito
“especialmente pra posse” dela. A semelhança lingüística e fonética das expressões
mala e amá-la ativa mundos textuais distintos. Ao sentimento de afetividade expresso
pelo verbo amar em Eu queria amá-la/amá-la muito, contrapõe-se o fragmento a mala
esqueci no avião. Aqui, Marta é vista como uma pessoa que ninguém suporta, nem
25
De acordo com Brown e Yule, um frame é geralmente considerado um conjunto de elementos sobre
uma situação estereotipada. (cf. apud. Fávero, 1998, p.68).
116
mesmo o próprio marido, tanto que a “esqueceu” no avião. É interessante observar que,
no caso desse poema, que desqualifica hostilmente a imagem de Marta, o cronista
atribui a autoria ao próprio marido da candidata, como se esse último e José Simão
partilhassem de concepções semelhantes com relação aos predicados” de Marta
Suplicy.
O modo pelo qual José Simão explora os estereótipos em relação à mulher
negra, conduzindo, por assim dizer, a um discurso marcado pelo preconceito e
discriminação racial, é do que trataremos logo a seguir:
E a top model Naomi Campbell que, de tanto agredir os outros, acabou
pegando uma bela pena alternativa: faxineira! E diz que arrasou no primeiro
dia como faxineira. Naomi, precisando de diarista. Rarará! Como diz um
amigo meu: imaginou encoxar a Naomi no fogão enquanto ela prepara o
meu feijão? (FSP, 22/03/07, grifos nossos)
A top model negra, Naomi Campbel, tida como uma das principais modelos do
mundo, foi condenada, em março de 2007, a prestar serviços comunitários - trabalhou
durante cinco dias como faxineira em uma garagem de Nova York - por agredir sua
empregada doméstica com um telefone celular.
A naturalização do racismo e do sexismo na mídia reproduz sistematicamente
estereótipos e estigmas em especial sobre mulheres negras, trazendo prejuízos para a
afirmação de sua identidade racial e valorização social. A mulher negra tem sido, ao
longo de nossa história, a maior vítima da profunda desigualdade racial vigente em
nossa sociedade. Passando dos trabalhos forçados, pesados e insalubres do escravismo
para os trabalhos braçais, a imagem da mulher negra, dentro deste contexto, continua
sendo associada prioritariamente às funções que desempenhava na sociedade colonial e
imediatamente no pós-abolição: empregada doméstica, faxineira, lavadeira e cozinheira.
Pode-se dizer que a mulher negra continua sendo, nos dias de hoje, alvo de exploração
psicológica, física e/ou social, tendo utilidade apenas para servir ao homem em todos os
sentidos, inclusive aos caprichos e desejos eróticos masculinos. Nessa oposição de
papéis, confirma-se a degradação das “raças atrasadas” (representadas pelas mulheres
negras) pelo domínio da “raça adiantada” (homens). Presume-se assim que, no par -
117
dominadores e dominados -, os homens continuam a ocupar a posição de dominadores
enquanto as mulheres, a posição de dominadas.
A presença de aspectos da ideologia social dominante “embutidos” no processo
de significação das palavras configura, na linguagem, corredores semânticos ou
isotópicos que vão balizar a percepção/cognição, criando modelos ou estereótipos
sociais. No contexto da práxis social, por meio desses estereótipos ou óculos sociais,
‘vemos” a realidade e fabricamos o referente, que se interpõe entre nós e a “realidade”,
fingindo ser o “real”. (cf. Blikstein, 1985). Sob esse aspecto, o indivíduo estabelece e
articula traços de diferenciação e de identificação, com os quais passa a discriminar,
reconhecer e selecionar, por entre os estímulos do universo amorfo e contínuo do “real”,
as cores, as formas, as funções, os espaços e os tempos necessários à sua sobrevivência.
Tais traços ideológicos adquirem na práxis um valor positivo ou meliorativo em
oposição a um valor negativo ou pejorativo.
Assim, em nossa sociedade, pretidão, negritude o traços de valor pejorativo,
ao passo que branquitude adquire conotação meliorativa.
Para justificarmos essas afirmações e compreendermos o papel desempenhado
pelas mulheres negras no decorrer da história, aos dias de hoje, julgamos pertinente
recorrermos à obra de Gilberto Freyre Casa Grande & Senzala, escrita em meados de
1930. Nesta obra, são tratados, entre outros temas, a situação da mulher no sistema
escravocrata brasileiro e suas funções dentro dessa organização, expressando as
narrativas dos senhores de escravos que combinam opressão colonial racista com
submissão patriarcal.
26
26
A mulher negra escrava servia a casa grande como mucama, babá, cozinheira, arrumadeira, amante e
objeto sexual do senhor de engenho, aliciadora dos jovens filhos dos senhores na vida sexual;
trabalhavam no campo e ainda serviam sexualmente aos de sua raça sem muitas vezes terem um parceiro
fixo, pela desigual quantidade de escravas em relação aos escravos. As escravas, para trabalharem na casa
grande, deveriam antes passar por um teste: elas tinham que ser asseadas, passivas, e ter o apreço da
família patriarcal. Como mucamas, elas eram as primeiras conselheiras amorosas das sinhazinhas; eram
elas que lhes contavam as lindas histórias de coragem e de lutas pelas quais muitas moças e rapazes dos
engenhos passaram em prol da liberdade de amar. Elas também preparavam e serviam os alimentos das
famílias da casa grande e depois arrumavam as coisas, lavavam e organizavam os objetos da casa. E
quando eram babás, precisavam amassar os alimentos e retirar os empecilhos para não prejudicarem a
saúde das crianças. Mas, talvez, o maior ato de crueldade da escravidão, seja a exploração sexual das
escravas por parte dos senhores. Assim que algumas escravas alcançavam a idade de 12, 13 ou 14 anos,
eram literalmente estupradas pelos senhores de engenho ou pelos seus filhos, que eram assim introduzidos
na arte do amor físico. Algumas escravas se tornavam amantes dos senhores e, portanto, eram protegidas
por eles, mas odiadas pelas senhoras que muitas vezes maltratavam-nas, causando-lhes ferimentos
hediondos que as levavam à morte ou à invalidez. Muitas escravas tinham que servir sexualmente ao seu
senhor e aos escravos na senzala, pois geralmente mulheres e homens vivam juntos no mesmo espaço
físico. Boa parte das escravas tinham complicações nos partos pela precariedade de local e instrumentos,
e muitas acabavam morrendo. Não era raro as escravas serem mães dos seus próprios senhores, isto
quando os seus filhos não eram vendidos logo cedo.
118
Entretanto, é importante considerar que o problema social da subordinação,
opressão, discriminação e exploração da mulher o está na mulher, assim como o
problema étnico não está no negro. Definitivamente, não está. Está nas pretensas
formas de organização e de convívio, isto é, de exploração e dominação criadas,
mantidas e atualizadas pela sociedade que, através do tempo, legitimam a
"superioridade" e a conseqüente dominação dos homens sobre as mulheres, dos brancos
sobre os negros e da classe dominante sobre a classe operária.
Nas sociedades machistas, por exemplo, quase tudo que se relaciona com
limpeza é tarefa das mulheres. Para provar essa afirmação, Castañeda (2006) lembra-
nos que a publicidade é um exemplo que tem um impacto social decisivo ao perpetuar o
estereótipo de que o lugar da mulher está restrito à “área de serviço”. Assim, nas
propagandas de produtos de limpeza, são as mulheres que fazem a faxina com energia e
entusiasmo. O homem, por outro lado, aparece quando “presenteia” a mulher com
algum produto de alta tecnologia, para “ajudá-la” em seus afazeres.
Pela prática de agressão, a modelo, segundo José Simão, teve como punição
exercer a atividade da faxina. É interessante que, ironicamente, o colunista classifica tal
atividade como sendo “bela” para as mulheres. Interessante observar ainda, também
ironicamente, que Naomi teve justamente, como “castigo”, exercer a mesma função que
é desempenhada, habitualmente, pela sua própria empregada, como se “o feitiço virasse
contra o feiticeiro”. Nesse caso, considerando a dicotomia dominador e dominado,
mudam-se os papéis, mudam-se os referentes. Assim, a princípio, antes de a modelo ter
sido condenada a realizar serviços de faxina por ter agredido sua empregada, levando
em conta os papéis que cada uma delas desempenhava, Naomi ocupava a posição de
dominadora enquanto a empregada ocupava a posição de dominada. Aqui, é evidente o
fato de a cidadania ser mantida como “privilégio de classe”, como ressalta Chauí (cf.
1994, p.53). Isso ocorre, pois as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são
transformadas em desigualdades e, estas, em relações de hierarquia, mando e
obediência.” (ibid.).
No momento em que a modelo iniciou os serviços comunitários, como faxineira,
imediatamente, invertem-se as posições de papéis entre dominados e dominadores.
Naomi passa da condição de dominadora à de dominada. Dessa vez, essa relação não se
constitui entre uma mulher e outra mulher, como a princípio (patroa e empregada).
JANUS: Revista de História e Ciências Sociais, ano II, n. 5, setembro de 1998. Disponível em:
http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/janus/05.html#romeu. Acesso em 13/06/08.
119
Agora, a relação se estabelece entre o homem (representante do “sexo forte”) e a mulher
(representante do “sexo frágil”). Com isso, pode-se dizer que o poder masculino impõe-
se em detrimento dos direitos das mulheres e estas passam a ser obrigadas a
submeterem-se às necessidades e aos desejos dos homens, tornando-se assim deles
dependentes.
Com base nesses argumentos, Chauí (1994) defende que a sociedade brasileira é
autoritária. Além do mais, as relações acabam tornando-se uma forma de dependência,
tutela, concessão, autoridade e favor, “fazendo da violência simbólica a regra da vida
social e cultural. Violência tanto maior porque invisível, sob o paternalismo e
clientelismo, considerados naturais e por vezes, exaltados como qualidades positivas do
caráter nacional.” (ibid., p.54).
Assim como Gilberto Freyre relata, em Casa Grande & Senzala, que cabia à
mulher, na época colonial brasileira, exclusivamente o papel de servir ao homem
branco, comprova-se, pelo exposto nesta análise, que o assédio moral que avilta a
imagem da mulher negra ainda se repete exaustivamente. Simão deixa escapar, nas
entrelinhas, que a faxina é um serviço feminino e talvez, por essa razão, Naomi, embora
não tivesse “intimidade com a vassoura”, logo “arrasou no primeiro dia”, como se essa
atividade lhe fosse inata, natural. Somando-se a isso, vale lembrar que Naomi Campbell
é uma modelo negra e também fica implícito o preconceito em relação à associação
de tarefas tidas como “inferiores”, “degradantes” às pessoas de raça negra.
Por fim, Naomi, pelo fato de ser considerada uma top-model, uma mulher
atraente, com belos dotes físicos e desejada pelos homens, é justamente a mulher
perfeita para atender às necessidades sexuais destes. Fica clara aqui a idéia de que a
mulher nasceu para suprir as necessidades do homem, servindo-lhe de mero objeto, cuja
função é saciar os desejos masculinos, nos mais variados aspectos: além de limpar a
casa, preparar o feijão, ainda é tida como “fêmea”, esteticamente perfeita e, por isso,
ideal para a copulação. Simão se vale do verbo encoxar, que no vocabulário gírio tem
um forte apelo sexual e conduz à idéia de “masculinidade”, “virilidade”, “esperteza” do
conquistador em conseguir uma mulher exuberante.
Não como negar o estigma da sogra em nossa sociedade, manifestado
principalmente por anedotas, algumas das quais altamente depreciativas, e por
expressões de desdém e intolerância. Como veremos a seguir, José Simão também
colabora e muito - para a disseminação e perpetuação desses conceitos, muito
tempo arraigados no meio social.
120
E fechar os bingos fere o Estatuto do Idoso! Pô, sacanagem com as véinhas!
É como disse um amigo meu: ‘Agora, onde vou enfiar a minha sogra, com
todo respeito?’. A Polícia Federal não pensou nos genros. (FSP, 29/04/07,
grifos nossos)
Faz parte do processo evolutivo vital que as pessoas se conheçam, namorem,
casem, enfim, estabeleçam relacionamentos amorosos. No entanto, entre duas pessoas
que se relacionam, existe um sistema de valores e uma cultura própria que cada
indivíduo traz consigo de sua família. Tal idéia pode ser ilustrada com a idéia
estereotipada que diz que quando um homem se casa, porventura também se casa com a
família da mulher. Sendo assim, o irmão da mulher passa a ser cunhado, o pai passa a
ser sogro e a mãe, sogra. Nessa multiplicidade de papéis e funções, a sogra é um
personagem que carrega um estereótipo de múltiplas conotações, que, geralmente,
suscita piadas, brincadeiras, gozações e comentários jocosos.
Pode-se dizer que sogra e genro, oriundos de famílias diferentes, possuem
hábitos, valores e crenças, muitas vezes, incompatíveis e que, com o tempo, passam a
estabelecer algum tipo de relação que pode ser prazerosa, gratificante ou hostil e
competitiva.
Leitão relata que o sogro é visto como um segundo pai, um amigo; a sogra é
vista como "a velha chata, linguaruda, mandona, que sempre mete o nariz onde não é
chamada." (cf. 1988, p.37). Popularmente, o preconceito negativo recai sobre a sogra
que, por sua vez, carrega sobre sua imagem o estereótipo da “megera”, da pessoa
inoportuna, que deve ser suportada por qualquer pessoa em algum momento de sua
vida. Nesse sentido, constata-se que a figura da sogra reflete a condição marginal da
mulher na sociedade, condição esta na qual se submete por força das circunstâncias ou
da ordem social estabelecida, não porque deseje.
A expressão enfiar a minha sogra também é muito pejorativa, ao passo que
revela o estereótipo de que esta não serve mais para nada e que só atrapalha. Além do
mais, nesse discurso, também se faz sentir a linguagem desrespeitosa, maliciosa de
baixo calão, cuja explicitação constitui tabu.
Como se comprova pelos excertos analisados, a imagem feminina é exposta, por
José Simão, a situações vexatórias, constrangedoras e humilhantes nos mais variados
121
contextos do cotidiano. Assim sendo, as relações que permeiam a organização
sociocultural da sociedade traduzem-se, freqüentemente, em relações de poder e
desigualdade. Sob esse aspecto, constata-se que ainda são os homens que ocupam a
tradicional posição de superioridade no meio social, como dominadores, enquanto as
mulheres, rotuladas como seres inferiores, ocupam a posição de dominadas.
Por tudo o que foi exposto em nossa análise, é relevante, ainda, fazermos uma
última ressalva. Ainda que no Manual da Folha de S. Paulo (verbete mulheres) esteja
previsto um tratamento igualitário para homens e mulheres no que diz respeito às
notícias a serem veiculadas pelo jornal, conforme registramos no primeiro capítulo,
especificamente no item 1.2.1, comprova-se que as crônicas de José Simão fogem,
definitivamente, a essa regra.
É bem verdade que a crônica
27
, gênero híbrido por excelência, apresenta uma
linguagem despojada, simplória, permeada por gírias e marcas de oralidade, com jeito
de conversa fiada, na qual o humor geralmente está presente. É como se o cronista, ao
captar o lado engraçado das coisas, fizesse do riso um jeito ameno de examinar
determinadas condições da sociedade, como se a crônica pusesse de lado, de acordo
com Cândido (1989), qualquer seriedade nos problemas. Nessas condições, por meio do
disfarce de uma conversa sem rumo, José Simão, como dissemos, trata com humor,
leveza e informalidade, o que de certa forma, é motivo de indignação. Levando em
conta que os textos de Simão são categorizados de acordo com esse gênero textual, a ele
(Simão) é permitido debochar e criticar grotescamente tudo e todos. Isso ocorre pois, a
crônica, por ser assinada, é de responsabilidade de seu autor. Além do mais, ao propiciar
a subjetividade e a liberdade de expressão, a crônica é tida como espaço privilegiado
para que o escritor dissemine sua visão de mundo, ao narrar ou comentar fatos do
cotidiano.
Considerando todas essas ponderações, poderíamos até dizer que José Simão, sob
esse aspecto, seria o “anti-manual”, o “anti-modelo” da Folha de S. Paulo pois, o
tratamento hostil e depreciativo dispensado pelo autor às mulheres, nos seus textos, o
se enquadra, em hipótese alguma, às normas prescritas no projeto editorial do referido
periódico. Diante disso, coube-nos, ainda, uma indagação: será que Simão é o único que
dissemina concepções altamente preconceituosas e degradantes acerca da mulher na
Folha? Qual é o posicionamento do jornal, como um todo, em se tratando,
27
Os estudos acerca do gênero textual crônica foram abordados, detalhadamente, no segundo capítulo.
122
especificamente, dessa questão? Enfim, o periódico, como diz o Manual da Folha, trata
a mulher da mesma forma que o homem, não mencionando as características físicas
dela, a menos que citá-las seja relevante para a notícia? Para solucionar tal dúvida,
recorremos aos estudos postulados por Pereira (1999). Em sua pesquisa intitulada A
representação da mulher no discurso jornalístico, a autora tratou de demonstrar, por
intermédio de um estudo lingüístico, como a representação da figura feminina no
discurso de imprensa escrita é construída pelo jornal Folha de S. Paulo no contexto da
cobertura da IV Conferência Mundial da Mulher e do Fórum Feminino Internacional
das Organizações –Não Governamentais, realizados na China em 1935.
Tendo em vista os muitos exemplos de representação da mulher relatados pela
Folha de S. Paulo, no contexto específico da conferência e do fórum, Pereira (1999)
comprova a condição marginalizada da figura feminina, postulada pelo jornal:
Se a mulher se enquadra dentro de um universo tipicamente conhecido como
feminino, o jornal a ridiculariza por suas obrigações domésticas, por seu
comportamento verbal, por sua postura e, até mesmo, por seus hábitos
relacionados à beleza estética (tão valorizados nas sociedades machistas).
Dentro de um contexto de engajamento social, como militante feminista, a
mulher é representada de forma estigmatizada sob os rótulos de mal-amada,
lésbica, masculinizada e outros. Quando a mulher manifesta preocupação e
interesse por assuntos como o da sexualidade feminina, mesmo num contexto
de debate em uma conferência, ela é qualificada como promíscua e
sexualmente voraz. E, ainda, se a mulher se enquadra dentro de um perfil mais
atual, como profissional, independente e intelectual, até mesmo superando a
competência masculina, o jornal torna a enquadrá-la na condição de
inferioridade. ( p. 168-9).
Isso posto, parafraseando Castañeda, torna-se evidente que a submissão das
mulheres esteve sempre vinculada à condição original de sua existência, ou seja, pelo
simples fato de serem, elas, mulheres. Por conseguinte, como acabamos de observar,
pode-se dizer que José Simão não é o único a reforçar a idéia da inferioridade do sexo
feminino em relação ao masculino. De forma alguma. A ação dos veículos de
comunicação corrobora o pensamento dos grupos que possuem os meios de reprodução
simbólica, agindo como instância de controle ideológico permanente e de introjeção de
normas, crenças e valores dominantes. Nesse sentido, os meios de comunicação e a
Folha de S. Paulo, consecutivamente, agem como construtores privilegiados de
123
representações da violência pois, o modo como falam da violência seria parte da própria
realidade da violência, tendo em vista que quando estes se apropriam, divulgam,
espetacularizam, sensacionalizam ou banalizam os atos de violência estão atribuindo-
lhes um sentido que, por sua vez, ao circularem socialmente, induzem práticas referidas
à violência. (cf. Rondelli, 2000, p.150).
Encerrada a pesquisa, feitas as análises, temos a impressão de que conseguimos
comprovar as hipóteses que aventáramos desde o início. Resta-nos, então, partir para a
conclusão.
124
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos comprovar, pela análise que fizemos, que a imagem da mulher é
violentamente hostilizada e denegrida nas crônicas de José Simão, tornando-se motivo
de discriminação e zombaria, seja pela sua forma física (feia, gorda, velha), seja por
aspectos culturais e sociais (rotulada como sendo destituída de inteligência, ignorada e
humilhada no mercado de trabalho, servindo somente para desempenhar os serviços
domésticos), seja por sua qualidade moral tida como leviana, vista como mero objeto
sexual, servindo apenas para atender às necessidades e aos desejos eróticos masculinos).
Tal constatação se confirma à medida que nossa sociedade nos condicionou, por um
lado, a considerar estereótipos como agressividade, autoridade, decisão, vigor, defesa,
independência e raciocínio analítico como sendo características masculinas. Por outro
lado, estereótipos como passividade, dependência, inferioridade, submissão,
sensibilidade, emoção, superficialidade, indecisão, afetividade, intuição, ilogicidade e
malícia são tipicamente femininos.
A mulher, sob esse aspecto, não escolhe o seu destino. Já nasce com uma
trajetória de vida traçada, um programa de vida definido. Ela nasceu para ser esposa e
mãe. Praticamente, desde o berço, deverá observar uma série de comportamentos
ligados à ética, à estética, às prendas domésticas, à cozinha, etc., para um dia merecer a
preferência do homem que lhe outorgará o status de cidaplena, pois suas aspirações
individuais contam muito pouco.
Com isso, evidencia-se que as formas de violência contra as mulheres, existentes
nos textos de José Simão, estão arraigadas muito tempo no seio de nossa sociedade,
machista e patriarcal, fazendo-se visíveis, mas também invisíveis, porque escondidas
sob formas de preconceitos, injustiças, costumes ou tradições. Nesse sentido, sempre
que a situação de privação for experimentada, sentindo-se o indivíduo despojado, por
razões que não lhe são claras, de seus direitos como cidadão, a violência estará sendo
consumada, condição essa em que se instituem os estados de violência. Justifica-se,
portanto, o título de nossa pesquisa pois, a violência que se faz presente nas crônicas de
José Simão, não é consumada pelo uso da força. Lógico que não. Antes de mais nada, se
materializa enquanto linguagem, como ato de comunicação. Parafraseando Dias, trata-se
da violência construída lingüisticamente pelos meios de comunicação que, ao invés de
representar, (re)criam a realidade. (cf. 2003, p. 48).
125
Sob esse aspecto, a mídia, assim como é capaz de formar, informar e
transformar, também é igualmente capaz de deformar os estilos de identidade,
subjetividade e sociabilidade. Isso ocorre porque os meios de comunicação, à medida
que disseminam as ideologias da classe dominante, servindo, portanto, de instrumento
de manutenção do status quo, fazem, por assim dizer o uso do conhecimento como
forma de poder, de distinção, de dominação e opressão.” (cf. Marcondes Filho,1989,
p.24).
O homem, como atesta Heller (2004), em todos os estágios do desenvolvimento
social, nasce num mundo já “feito”, repleto de fórmulas prontas, idéias mecanizadas
sobre pessoas, atividades, profissões, posições políticas, etc. Assim, o sujeito se
expressa na ilusão de controlar a origem de seu discurso, sem que se conta que o
determinante dos sentidos desse discurso é a história, que se manifesta por meio de
diferentes formações discursivas nas quais se inscreve e não pode se despojar.
Sob esse aspecto, comprova-se que José Simão não é o responsável direto pela
criação de posições fortemente machistas contra as mulheres. O cronista colabora para a
disseminação e a perpetuação da violência que avilta diariamente as mulheres, pois, ao
reproduzir velhos estereótipos generalizantes e preconceituosos que dizem respeito ao
universo feminino, Simão contribui para acentuar a dualidade entre os sexos,
materializando em seus textos, por um lado, a tradicional posição de superioridade
ocupada pelos homens na sociedade, como dominadores (“sexo forte”) e, por outro
lado, a posição de inferioridade das mulheres, como dominadas (“sexo frágil”).
Verificamos que, de acordo com as crônicas de José Simão, não existem
mulheres humanas, dotadas de defeitos e qualidades. Dessa forma, a ambigüidade que
caracteriza os seres humanos parece não servir para caracterizar as mulheres. Pois, para
Simão, existem apenas dois tipos de mulheres, tipos esses, vale dizer, completamente
opostos e, portanto, excludentes entre si. De um lado, têm-se as mulheres feias que, por
isso mesmo, não têm “utilidade” alguma. De outro, estão as mulheres lindas, geralmente
burras e que, por isso, prestam-se apenas a atender aos desejos e prazeres sexuais
masculinos. São tidas como mero “objeto” de consumo.
Constata-se, sob esse aspecto, que uma das formas de desvalorização dada à
mulher por nossa cultura encontra-se na ênfase dada à aparência física em detrimento da
sua capacidade intelectual. Basta ser bonita para ter um lugar assegurado dentro da
sociedade, que a estereotipa como sendo aquele ente que não precisa ser independente,
culto e inteligente. Porém, não pára aí. A mulher, além de ser vista como um objeto
126
bonito, agradável aos olhos, é definida, também, em função da sua sexualidade. O
homem não a enxerga como um ser humano, e sim como um objeto sexual, com
características físicas que lhe devem agradar.
Evidencia-se claramente que, para ser mulher, é necessário ser membro de uma
classe sexual em oposição à classe do ser humano. Algumas assimetrias de sentido nos
mostram esse conceito. Essa desigualdade básica (homem = ser humano, mulher =
objeto sexual) é comum nas crônicas de José Sio à medida que se comprova que a
mudança de significado que ocorre com uma série de palavras, quando usadas em
relação às mulheres, têm sentido sexual e, quando aplicadas aos homens, não
apresentam conotação pejorativa: para citar apenas um exemplo, o ato de “abrir as
pernas” refere-se exclusivamente à utilidade sexual da mulher. Tal expressão o
adquire sentido depreciativo quando se refere ao homem. Em termos lingüísticos, a
violência contra as mulheres se fez sentir pela exploração polissêmica ocorrida nas
crônicas, não pela utilização das metáforas e das ironias, mas também pelo uso de
termos pejorativos, de trocadilhos, da alteração maliciosa de nomes próprios e de
neologismos, entre outros recursos que, consideramos, muito aproximam a coluna de
José Simão dos textos de jornais populares.
As crônicas de Simão podem ser classificadas ainda paródias extratextuais, visto
que as notícias podem servir de pretexto para que os comentários jocosos sobre as
mulheres se sucedam e para que o riso seja deflagrado. Aliar à percepção de que um
tom alegre e satírico marca, via de regra, os comentários-piadas nos quais o humor
decorre dos constantes rebaixamentos a que são submetidas as notícias e os seus atores
(mulheres), levou-nos à impressão de que tais crônicas trazem ecos do cômico grotesco:
à luz de Bakhtin (1996), elas dessacralizam o sério, carnavalizam a notícia e trazem uma
lógica das coisas ao avesso, ao contrário, como um mundo ao revés.
O riso, como dizia Bergson (2004), não pode ser um ato solitário. A emoção é
a sua maior inimiga e a indiferença é o seu meio natural. Nesse sentido, observa-se que
por meio da mecanização, da insensibilidade e distanciamento do expectador
manifestam-se pensamentos, atitudes, gestos, vícios, inversões de papéis, repetições de
frases feitas e estereotipadas que acentuam preconceitos e injustiças, configurando-se
em estados de violência. Por tudo exposto a aqui, comprova-se, portanto, que em
nome do riso são reforçadas as discriminações e preconceitos que socialmente oprimem
as mulheres. Em nome do riso, a insensibilidade diante da dor e da violência é
instaurada. Considerando a ligação estabelecida entre a comicidade e a violência em
127
relação à cultura de massa, comprova-se que os quadros humorísticos, de maneira
aparentemente ingênua, embora reforcem a discriminação racial e o preconceito sexual,
não são categorizados como agressivos pelo fato de postularem o divertimento.
Conseqüentemente, a estrutura repetitiva desses quadros estabelece com a audiência
uma conformação à violência, tornada inconsciente e aguardada (cf. Costa, 2002.
p.180), pois, ao estarem ocupadas com o próprio riso, as pessoas acabam por ignorar a
violência atroz e impiedosa, por vezes escondida por detrás desse riso. Com respeito aos
textos de José Simão, constata-se que, muitas vezes, os preconceitos e, com eles, a
violência, expressos pelas constantes repetições, não são sequer identificados nas
crônicas, banalizados que estão por força de tais repetições e pela comicidade que
norteia os seus textos. Parafraseando Costa, o importante é expressar o fato pelos dados
quantitativos, de forma a manter a atenção do público-receptor, não importando se os
procedimentos técnicos e narrativos comprometem a ética e o humanismo. “Os índices
de audiência, a circulação e o consumo dos bens simbólicos portanto, justificam os
meios.” (cf. Costa, 2002, p.154).
128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMO, Perseu (2003). Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo:
Perseu Abramo.
ALBERTI, Verena. (1999). O riso e o risível na história do pensamento. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor.
AMÂNCIO, Ligia. (1994). Masculino e feminino. A construção social da diferença.
Porto: Afrontamento.
ARAÚJO, Marcos Antonio. (2007). O macaco está certo. Língua Portuguesa, São
Paulo: Segmento, n. 24, p. 12-17.
ARNT, Héris. (1990). Jornalismo literário. Logos: Comunicação & Universidade, Rio
de janeiro: UERJ- Faculdade de Comunicação Social, v.1, set. 1990.
ARRIGUCCI, Davi Jr. (1987). Enigma e Comentário - Ensaios sobre Literatura e
Experiência. São Paulo: Companhia das Letras.
ASSIS, Machado de. (1994). Crônicas escolhidas. São Paulo: Ática.
BACCEGA, Maria Aparecida. (2007). Palavra e discurso. História e literatura. São
Paulo: Ática (Série Princípios).
BAKTHIN, Mikhail. (1981). Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paula Bezerra.
Rio de Janeiro: Forense-Universidade.
______. (1996). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. 3. ed. São Paulo: HUCITEC.
______. (1997). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC.
BENDER, Flora; LAURITO, Ilka. (1993). Crônica. História, teoria e prática. São
Paulo: Scipione (Col. Margens do Texto).
BERGSON, Henri. (2004). O riso: ensaios sobre a significação da comicidade. São
Paulo: Martins Fontes.
129
BLIKSTEIN, Izidoro. (1985). Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. São Paulo:
Cultrix.
BOSI, Alfredo. (1976). História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix.
BOURDIEU, Pierre. (1999). A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
BRANDÃO, Helena. H. Nagamine. (2004). Introdução à análise do discurso. 2. ed.
Campinas: Unicamp.
CÂNDIDO, Antônio. (1989). A vida ao rés-do-chão. Prefácio Para gostar de ler. São
Paulo: Ática, v. 5, p. 4-13 (Crônicas).
CASTAÑEDA, Marina. (2006). O machismo invisível. Trad. Lara Cristina de
Malimpensa. São Paulo: A Girafa.
CHAPARRO, Manuel Carlos. (1994). Pragmática do Jornalismo. Buscas práticas para
uma teoria da ação jornalística. São Paulo: Summus.
CHAUÍ, Marilena. (1994). Conformismo e resistência. Aspectos da cultura popular no
Brasil. São Paulo: Brasiliense.
______. (2006). Simulacro e poder. Uma análise da mídia. São Paulo: Perseu Abramo.
COSTA, Belarmino César Guimarães. (2002). Estética da violência. Jornalismo e
produção de sentidos. Campinas: Unimep.
COUTINHO, Afrânio. (1971). A literatura no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Sul
Americana, v. 6.
DIAS, Ana Rosa Ferreira. (2003). O discurso da violência: as marcas da oralidade no
jornalismo popular. 2. ed. São Paulo: Cortez.
ECO, Umberto. (2002). Lector in fabula. A cooperação interpretativa nos textos
narrativos. São Paulo: Perspectiva.
FÁVERO, Leonor Lopes. (1998). Coesão e Coerência Textuais. 5ª ed. São Paulo: Ática
(Série Princípios).
FIORIN, José Luiz. (2002). Linguagem e ideologia. 7. ed. São Paulo: Ática (Col.
Primeiros Passos).
FOUCAULT, M. (2004). Verdade e poder. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
Grahal.
130
FREUD, Sigmund (1905). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Trad. Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 8.
GOFFMAN, Erving. (2007). A representação do eu na vida cotidiana. 14. ed. Trad.
Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis: Vozes.
HELLER, Agnes. (2004). O cotidiano e a história. 7. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho
e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra.
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. (Orgs.). (1978). Temas básicos da
sociologia. 2. ed. São Paulo: Cultrix.
JAMESON, Fredric. (1985). Pós-modernidade e sociedade de consumo. Novos Estudos
Cebrap. Trad. Vinícius Dantas. São Paulo, n. 12, p. 16-26.
KELLNER, Douglas. (2001). A cultura da mídia. São Paulo: EDUSC.
LEITÃO, Eliane Vasconcellos. (1988). A mulher na língua do povo. 2. ed. Belo
Horizonte: Itatiaia. v. 4.
LIPPMANN, Walter. (1972). Estereótipos. In: STEINBERG, Charles (Org.). Meios de
comunicação de massa. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix.
MACHADO DE ASSIS. (1994). Crônicas Escolhidas. São Paulo: Ática.
MAFESSOLI, M. (1987). Dinâmica da violência. Trad. Cristina M. V. Franca. São
Paulo: Revista dos Tribunais.
MAINGUENEAU, Dominique (1998). Termos chave da análise do discurso. Belo
Horizonte: UFMG editora.
______. (1997). Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. São Paulo: Pontes.
MAISONNEUVE, Jean. (1977). Opiniões e estereótipos. Introdução à
psicossociologia. São Paulo: Edusp, p. 110-125.
MARCONDES FILHO, Ciro. (1989). O capital da notícia. 2. ed. São Paulo: Ática.
______. (2002). A saga dos cães perdidos. 2. ed. São Paulo: Hacker Editores.
131
MARTINS, Aracéli. (1994). Entendendo o humor. São Paulo: Paulus
MELO, José Marques de. (2002). A crônica. Jornalismo e literatura: a sedução da
palavra. São Paulo: Escrituras Editora (Col. Ensaios transversais).
______. (2003). Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3.
ed. Campos do Jordão: Mantiqueira.
MEYER, Marlyse. (1983). Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras.
MICHAUD, Yves. (2001). A violência. Trad. L. Garcia. São Paulo: Ática.
MINOIS, Georges. (2003). História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora Unesp.
MOISÉS, Massaud. (1983). A criação literária. 2. ed. São Paulo: Cultrix
MORAIS, Regis. (1981). O que é violência urbana. São Paulo: Brasiliense (Col.
Primeiros Passos).
MUNIZ SODRÉ. (2006). Sociedade, Mídia e Violência. Porto Alegre: Sulina
EDIPUC/RS.
ODÁLIA, Nilo. (2003). O que é violência. 6. ed. São Paulo: Brasiliense (Col. Primeiros
Passos).
ORLANDI, Eni P. (1994). Discurso, imaginário social e conhecimento. Em Aberto,
Brasília, ano 14, n. 61, jan./mar.
______. (2000). Análise de discurso. Princípios e procedimentos. Campinas: Pontes.
PEREIRA, Andréa da Silva. (1999). A representação da mulher no discurso
jornalístico. São Paulo. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Pontifícia
Universidade Católica (PUC).
PEREIRA, Marcos Emanoel. (2002). Psicologia social dos estereótipos. São Paulo:
E.P.U.
132
PEREIRA, Wellington. (2004). Crônica: a arte do útil e do fútil: ensaio sobre crônica
no jornalismo impresso. Salvador: Calandra.
PINTO, Ziraldo Alves. (1970). Ninguém entende de humor. Revista de Cultura Vozes,
Petrópolis, Ano 64, n. 3, abr.
PRETI, Dino. (2006). Papéis sociais e formas de tratamento em A Ilustre Casa de
Ramires, de Eça de Queiroz. In: PRETI, Dino. Estudos de Língua Oral e Escrita. Rio de
Janeiro: Lucerna, p.180-199 (Série Dispersos).
______. (1984). A linguagem proibida: um estudo sobre a linguagem erótica. São
Paulo: T. A. Queiroz.
PROPP, Vladimir. (1992). Comicidade e riso. São Paulo: Ática.
ROBINSON, W. P. (1977). Linguagem e comportamento social. Trad. Jair Martins. São
Paulo: Cultrix.
ROMERO, Sílvio. (1980). História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Garnier.
RONDELLI, Elizabeth. (2000). Imagens da violência e práticas discursivas. In:
PEREIRA, C. A. (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
ROSSI, Clovis (2006). O que é jornalismo. São Paulo: Brasiliense (Col. Primeiros
Passos).
SÁ, Jorge de. A crônica. (2005). 6. ed. São Paulo: Ática (Série Princípios).
SALLUM, Érika. (2003). Como quem fica parado é poste. Veja São Paulo, dez. 2003.
Disponível em http://veja.abril.com.br/vejasp/171203/perfil.html. Acesso em: 03/02/08.
SCHMITZ, John Robert. (2007). A linguagem Simiesca. Língua Portuguesa, São
Paulo: Segmento, n. 24, p. 18-21.
SCOTT, Joan W. (1990). Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educação
e realidade. Porto Alegre, v. 15, n. 2, jul.dez, p. 5-22.
SIMÃO, José. (2007). José Simão no país da piada pronta. São Paulo: Editora do
Bispo.
TELES, Maria Amélia de Almeida. (2007). O que são direitos humanos das mulheres.
São Paulo: Brasiliense (Col. Primeiros Passos).
133
TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica. (2003). O que é violência contra a
mulher. São Paulo: Brasiliense (Col. Primeiros Passos).
TRAVAGLIA, L. Carlos. (1989-90). O que é engraçado? Categorias do risível e o
humor brasileiro na televisão. Revista do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas, Maceió: CHLA. Universidade Federal de Alagoas, v. 5 e 6, p. 42-79,
jan./dez.
VANNUCHI, Camilo. (2007). Descabelando o Macaco Simão. Brasileiros, São Paulo,
n. 4, out., p. 101-105.
VERSIANI, Marçal. (1974). O significado do cômico e do riso na obra de Bergson.
Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, Ano 68, n. 01, jan.fev.
Manuais e dicionários:
Novo manual da Redação. (1992). São Paulo: Folha de São Paulo.
Manual da Redação da Folha de S. Paulo (2001). São Paulo: Publifolha.
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa - dicionário virtual. Disponível em:
http://houaiss.uol.
Dicionário Michaelis dicionário virtual da língua inglesa. Disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/
CUNHA, Antônio Geraldo. (1986). Dicionário etimológico Nova Fronteira da Língua
Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Páginas consultadas da Internet:
http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=violencia&stype=k. Acesso em 13/03/08.
http://lucysite.vilabol.uol.com.br/sociedade.html. Acesso em 04/06/08.
http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/janus/05.html#romeu. Acesso em 13/06/08.
134
http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/futuro.shtml. Acesso em 04/02/08.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/historia_folha.htm. Acesso em: 28/01/08.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/quem_e_o_leitor.shtml. Acesso em:
04/02/08.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/manual_texto_m.htm. Acesso em 04/02/08.
http://www.terra.com.br/istoegente/152/entrevista/index_2.htm. Acesso 06/02/08.
http://www2.uol.com.br/josesimao/biografia.htm. Acesso em: 05/01/08.
135
ANEXOS
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo