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SONIA MARIA COUTO PEREIRA
ETNOGRAFIA E ICONOGRAFIA NOS REGISTROS PRODUZIDOS
POR HÉRCULES FLORENCE DURANTE A EXPEDIÇÃO
LANGSDORFF NA PROVÍNCIA DO MATO GROSSO (1826-1829)
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SONIA MARIA COUTO PEREIRA
ETNOGRAFIA E ICONOGRAFIA NOS REGISTROS PRODUZIDOS
POR HÉRCULES FLORENCE DURANTE A EXPEDIÇÃO
LANGSDORFF NA PROVÍNCIA DO MATO GROSSO (1826-1829)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Grande Dourados, para a
obtenção do título de mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Eremites de Oliveira.
Dourados – 2008
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - UFGD
81.7
P436e
Pereira, Sonia Maria Couto.
Etnografia e iconografia nos registros produzidos por
Hércules Florence durante a Expedição Langsdorff na Província
do Mato Grosso (1826-1829). / Sonia Maria Couto Pereira. –
Dourados, MS : UFGD, 2008.
203p.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Eremites de Oliveira
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
da Grande Dourados.
1. Etnografia. 2. Iconografia. 3. Índios da América do Sul. –
Brasil – Obras ilustradas 4. Mato Grosso – História – Sec. XIX. 5.
Expedição Langsdorff, 1826-1829 – Mato Grosso. 6. Florence,
Hércules, 1804 -1879 (Antoine Hercule Romuald Florence) –
Viagens - Brasil 7. Langsdorff, G. H. Von (Georg Heinrich Von),
1774 – 1852. – Viagens - Brasil I. Título.
SONIA MARIA COUTO PEREIRA
ETNOGRAFIA E ICONOGRAFIA NOS REGISTROS PRODUZIDOS
POR HÉRCULES FLORENCE DURANTE A EXPEDIÇÃO
LANGSDORFF NA PROVÍNCIA DO MATO GROSSO (1826-1829)
COMISSÃO JULGADORA
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
Presidente e orientador______________________________________________________
2º Examinador_____________________________________________________
3º Examinador ______________________________________________________
Dourados, ______ de ______________ de ______.
DADOS CURRICULARES
SONIA MARIA COUTO PEREIRA
NASCIMENTO: 10/09/1976, SÃO PAULO/SP
FILIAÇÃO: Péricles Pereira Couto
Alva Israel Ferreira Couto
1995-1999: Graduação em Desenho Industrial com Habilitação
em Programação Visual – Universidade Estadual de Minas
Gerais, UEMG.
RESUMO
O Brasil recebeu, no século XIX, inúmeras expedições científicas estrangeiras com a vinda
da família real e a Abertura dos Portos. Durante esse período, o conhecimento do território
e de seus habitantes conjugava interesses científicos e coloniais. Nas expedições científicas,
papel fundamental cabia aos pintores-viajantes. Eram responsáveis por descrever e traduzir
no papel todos os detalhes do inventário do Novo Mundo. Nesse contexto, Hércules
Florence se apresenta como um exímio observador. Os desenhos por ele produzidos
durante a Expedição Langsdorff, entre 1826 e 1829, são registros iconográficos e
etnográficos de uma viagem cercada de encontros e desencontros. Na passagem pela região
pantaneira e Bacia do Alto Paraguai, o pintor-viajante teve contato com três grupos étnicos
Guaná, Guató e Bororo. A retratação desses grupos seguiu a lógica de um desenhista
obcecado pela fixação da imagem e pela curiosidade científica. Tudo expresso conforme as
indagações da época sobre a humanidade dos índios. A produção do pintor-viajante é
analisada a partir do diálogo interdisciplinar entre História e Antropologia, buscando
diferentes leituras para os registros iconográficos e etnográficos. Identifica-se uma escala
de valor entre civilização e barbárie, em torno da qual giram as descrições de práticas
culturais, organização social, cultura material e relações travadas com a sociedade não-
índia. Os desenhos retratam desde os Guató, ícones do bom selvagem, passando pelos
Guaná, detentor de uma peculiar técnica produtiva até os Bororo, exóticos e indomáveis.
Palavras-chave: Pintor-viajante, Etnografia, Iconografia, Imagem, Índios.
ABSTRACT
Brazil received, in century XIX, innumerable foreign scientific expeditions because of
incentive of the real family’s presence in Brazil and Ports Opening. During this period, the
knowledge of the territory and its inhabitants conjugated scientific and colonial interest. In
the scientific expeditions, a fundamental role fit to the painter-travelers. They were
responsible for describing and translating on paper all the details of the inventory of the
New World. In this context, Hercule Florence presents himself as an observing expert. The
drawings that he produced during the Langsdorff Expedition, between 1826 and 1829, are
iconographic and etnographics registers of a surrounded trip of meeting and failures in
meeting. Passing through the swampy region and Alto Paraguai basin, the painter-traveler
had contact with three ethnic groups Guaná, Guató and Bororo. The retraction of these
groups followed the logic of a painter blinded for the setting of the image and the scientific
curiosity. Everything was enunciated in agreement with the logic of the interrogations of
that time about Indians humanity. The production of the painter-traveler is analyzed from
the interdisciplinary dialogue among History and Anthropology, being searched different
readings for the iconographic and etnographic registers. One identifies to a scale of value
between civilization and barbarity, around which they turn the descriptions of cultural
praxis, social organization, material culture and relations that were joined with no-Indian
society. The drawings portray since the Guató, icons of the good savage, going through the
Guaná, detainer of a peculiar productive technique until the exotics and indomitables
Bororo.
Keywords: Painter-traveler, Etnography, Iconography, Image, Indians.
Ao meu filho Mateus Couto Pereira,
que de forma graciosa e delicada
agigantou para sempre minha vida.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida revestido de amor e graça.
Ao meu esposo, Silvio, escolhido da minha alma, companheiro que suportou
minhas angústias e descobertas, é o porto-seguro da nossa caminhada.
Ao meu filho, Mateus, que nasceu durante a realização deste trabalho, trazendo
força e perseverança e proporcionou enorme alegria à nossa pequena família.
Aos meus pais, Péricles e Alva, que não pouparam esforços para viverem comigo
tantas lutas e conquistas. A vocês toda a minha gratidão. São meus amados mentores.
Ao meu irmão, Estêvão, à minha cunhada, Kelly, e ao meu sobrinho, Lucas, pelo
coração sempre apertado da melhor e mais sofrida saudade, a saudade mineira.
Aos meus familiares, vó Geraldina, e amigas, que mesmo de longe me
acompanharam com incentivo, carinho e orações.
Aos meus sogros, Adonias e Leonilda, pelo apoio e acolhida.
Às famílias Walber, Ângela e Matheus. Cristiano, Eliane, Carolina e Fábio. Esdras
e Fernanda pela amizade construída em Dourados.
Ao Professor Jorge Eremites de Oliveira pela orientação sincera e pelo incentivo
constante.
Aos Professores Ana Cristina Teodoro da Silva, Eudes Fernando Leite, Cláudio
Alves de Vasconcelos, Paulo Roberto Cimó Queiroz, Osvaldo Zorzato, João Carlos de
Souza, que através das disciplinas ministradas contribuíram para o amadurecimento do
tema.
Aos Professores Levi Marques Pereira e Protásio Paulo Langer pelas preciosas
contribuições por ocasião da banca de qualificação.
Aos colegas do mestrado, em especial, Márcia Bortoli Uliana, por compartilhar
lágrimas e risos, e Luciano Pereira da Silva pela força providencial no início de tudo.
Ao Centro de Documentação Regional da Universidade Federal da Grande
Dourados pelas consultas importantes, em especial, ao Carlos Barros Gonçalves pela
atenção e disponibilidade.
A Adriana Florence, tetraneta do pintor-viajante Hércules Florence, que me recebeu
em seu ateliê em um encontro mágico de desprendimento, vivacidade e carinho.
Aos Professores Vânia Carneiro de Carvalho, Maria de Fátima Costa, Danuzio Gil
Bernardino da Silva, Ulpiano Bezerra de Meneses, Erivam de Oliveira, Francismar Alex
Lopes de Carvalho e à escritora Dayz Peixoto Fonseca, pelas informações e trocas
realizadas à distância que acrescentaram muito ao presente trabalho.
Ao Museu Paulista, da Universidade de São Paulo, pela pesquisa em seus arquivos
iconográficos, na pessoa de Ana Carla Luiz.
Ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande
Dourados, pela oportunidade da realização do Curso.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela
concessão da bolsa de estudo e financiamento desta pesquisa.
Agora, pois, vemos apenas um reflexo
obscuro, como em espelho; mas, então,
veremos face a face. Agora conheço em
parte; então, conhecerei plenamente, da
mesma forma como sou plenamente
conhecido.
Bíblia Sagrada, I Coríntios 13.12 (NVI)
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS.......................................................................................................................11
LISTA DE QUADROS.....................................................................................................................14
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 15
1. BREVE HISTÓRIA DA EXPEDIÇÃO LANGSDORFF............................................................ 34
1.1. O espaço-tempo da expedição.......................................................................................... 36
1.2. O percurso da expedição................................................................................................... 47
1.3. Hércules Florence e a expedição em si............................................................................. 54
1.4. Os indígenas em foco no século XIX............................................................................... 63
2. HÉRCULES FLORENCE EM SEU TEMPO.............................................................................. 69
2.1. Imagens que forjam visões............................................................................................... 72
2.2. A iconografia indígena de Hércules Florence .................................................................. 74
2.3. As duas faces dos registros dos viajantes......................................................................... 94
2.4. Ciência e arte como suportes da representação iconográfica ......................................... 100
2.5. O inventário por Hércules Florence................................................................................ 106
3. ETNOGRAFIA E ICONOGRAFIA NOS REGISTROS DE HÉRCULES FLORENCE ......... 118
3.1. O Pantanal e a Bacia do Alto Paraguai........................................................................... 118
3.2. A representação visual indígena por Hércules Florence................................................. 123
3.3. O encontro com os Guaná .............................................................................................. 125
3.4. O encontro com os Guató............................................................................................... 141
3.5. O encontro com os Bororo.............................................................................................. 166
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................... 187
REFERÊNCIAS............................................................................................................................. 191
FONTES................................................................................................................................ 191
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................... 192
LISTA DE FIGURAS
Página
Figura 1:
Percurso da Expedição Langsdorff com identificação dos grupos indígenas
(FONSECA, 2008, p. 24).
18
Figura 2:
Percurso da Expedição Langsdorff (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 29).
37
Figura 3:
Percurso da Expedição Langsdorff (CARELLI, 1992, p. 106). 38
Figura 4:
Rota das Monções (HOLANDA, 2000, p. 145). 49
Figura 5:
Localização do trajeto da Expedição Langsdorff em relação às bacias
hidrográficas em território brasileiro. 51
Figura 6:
A Ximbó encalhada em um rochedo. Nanquim, a pena, 21,3 x 30,6 cm
(CARELLI, 1992, p. 23). 53
Figura 7:
Fotografia de Hércules Florence, após 1830, 5,2 x 6,8 cm (MONTEIRO &
KAZ, 1998, p. 359). 55
Figura 8:
Vellozia flavicans Mart. ex Schultzes. Canela-de-ema (MONTEIRO & KAZ,
1998, p. 278). 79
Figura 9:
Crotalus durissus Linnaeus. 1758. Cascavel (MONTEIRO & KAZ, 1998, p.
305). 80
Figura 10:
Ageneiosus brevifilis Valenciennes, 1840. Peixe-palmito (MONTEIRO &
KAZ, 1998, p. 300). 81
Figura 11:
Detalhe de Crecnicichla vittata Heckel, 1840. Joana-guenza. Acestrorhynchus
altus Menezes, 1969. Peixe-cachorro (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 296/97). 82
Figura 12:
Negra Cabinda. Diamantino. Fevereiro de 1828 (MONTEIRO & KAZ, 1998,
p. 330).
83
Figura 13:
Índia da Chapada, filha de um Paresi e uma Bororo. Guimarães, Maio de 1827
(MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 108). 84
Figura 14:
Expedição no Porto de Cuiabá, contra os índios Guaicurú (Col. Cyrillo
Hércules Florence) (FLORENCE, 1977b, p.62). 87
Figura 15:
Vista do local onde se situava o antigo porto do Rio Cuiabá (Boris Kossoy)
(FLORENCE, 1977b, p.62).
88
Figura 16:
Pirâmide “Sub Ferdinando VI” (FLORENCE, 1977a, p. 208). 89
Figura 17:
Vista do marco representativo do Tratado de Madri (1750). Foi trasladado da
margem direita da embocadura do rio Jauru para a praça da cidade de Cáceres,
MT (BORIS KOSSOY) (FLORENCE, 1977b, p. 94).
90
Figura 18:
Vista dos rochedos da Chapada, nos arredores de Cuiabá (FLORENCE, 1977a,
p. 153). Destaque para o grupo de índios Guaná. 92
Figura 19:
Mapa localizando o Pantanal matogrossense e suas sub-regiões ou pantanais
(MAGALHÃES, 1992, p.17 apud EREMITES DE OLIVEIRA, 2002, p. 157). 120
Figura 20:
Índios Guaná. Aquarela negra, 25,9 x 41,1 cm. São Paulo, 1830 (CARELLI,
1992, p. 42-43). 130
Figura 21:
Duas pirogas de Guaná. 1827 (CARELLI, 1992, p. 43). 131
Figura 22:
Índios Guaná. Lápis, 20 x 25 cm. 1826 (CARELLI, 1992, p. 42). 134
Figura 23:
Índios Guaná. Aquarela 27,7 x 21,5 cm. Novembro de 1827, Cuiabá
(MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 328/329).
136
Figura 24:
Jovem Guaná e Guanita. Aquarela 39,9 x 24,8 cm. 1826 (CARELLI, 1992, p.
45). 140
Figura 25:
Situação etnográfica, no contexto de Florence, visualizada conforme
considerações de João Pacheco de Oliveira (1999). 144
Figura 26:
Guató em duas canoas (FLORENCE, 1977a, p. 115). 146
Figura 27:
Guató (FLORENCE, 1948, p. 161). 147
Figura 28:
Índio Guató, Albuquerque, Rio Paraguai, 1826. Nanquim a pena. 25,4 x 20,2
cm (CARELLI, 1992, p. 48). 148
Figura 29:
Desenho de Guató atribuído a Castelnau (HARTMANN, 1970, s/ n). 149
Figura 30:
Velho e menina Guató (FLORENCE, 1977a, p. 116). 150
Figura 31:
Guató na Passagem Velha (FLORENCE, 1977a, p. 122). 153
Figura 32:
Página do diário de Hércules Florence. Encontro com os índios Apiacá
(KOSSOY, 2006, p. 57). 155
Figura 33:
Índios Guató, na confluência do rio São Lourenço. Técnica mista. 19,9 x 24,9
cm (FLORENCE, 1977a, p. 123). 157
Figura 34:
Índios Guató, na confluência do rio São Lourenço. Técnica mista. 19,9 x 24,9
cm (CARELLI, 1992, p. 48). 158
Figura 35:
Abano tecido. Índios Guató, M. N. n
o
3880. Esc. 1:7,5. Vista da peça. B.
Detalhe do tecido. C. Detalhe da alça. D. Detalhe do suporte (RIBEIRO, 1988,
p. 80). 161
Figura 36:
Abano de mosquitos de fibra de tucum (SCHMIDT, 1942, p. 191). 162
Figura 37:
Família Guató (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 325). 163
Figura 38:
Índio Bororo. Nanquim a pena e aguado. 25,5x20 cm (KOSSOY, 2006, p. 52). 170
Figura 39:
Índio Bororo (CARELLI, 1992, p. 63). 171
Figura 40:
Índio preparado para cerimônia (ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p.
329). 172
Figura 41:
Coroa de garras de onça. Índios Bororo. Coleção Museu Nacional. Foto: Pedro
Lobo (RIBEIRO, 1989, prancha XI). 173
Figura 42:
Cabeça de um mestre de canto coroada (ALBISETTI & VENTURELLI,
1962a, p. 51). 174
Figura 43:
Corte tradicional dos cabelos dos Bororo (ALBISETTI & VENTURELLI,
1962a, p. 12).
175
Figura 44:
Índio Bororo e mulher. Nanquim a pena e aguado, 25x20 cm (
FLORENCE,
1977a, p. 193).
177
Figura 45:
Diadema com penas amarelas (ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 550). 178
Figura 46:
Mulheres Bororo, com grande carga (
FLORENCE, 1977a, p. 203).
180
Figura 47:
Faixa íntima das mulheres. Para o período do puerpério e dos mênstruos
(ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 89). 181
Figura 48:
Kogu, cinto mulíebre de entrecasca de pau-jangada (Alchornea triplinervia)
(ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 89).
182
Figura 49:
Crianças Bororo, 1827. Nanquim a pena, 25,2 x 20 cm (CARELLI, 1992, p.
60) 183
Figura 50:
Bororo, sexdigitário, em Jacobina. Nanquim a pena e aguado, 25x20 cm
(FLORENCE, 1977a, p.196). 184
Figura 51:
Par de pregos, cada sub-clã possui privacidade sobre o uso dos pregos
(ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 89).
185
LISTA DE QUADROS
Página
Quadro 1:
Algumas localidades percorridas pela Expedição Langsdorff 50
15
INTRODUÇÃO
Uma das características da cidade de Dourados, no estado do Mato Grosso do Sul, é
a forte presença da população indígena. A maior motivação para este trabalho surgiu como
um primeiro passo para compreender a trajetória dessa população multiétnica. A pesquisa
acadêmica acontece a partir de diversas vivências que se afunilam no encontro do
pesquisador com seu objeto de estudo. Por isso, a explanação rápida dos antecedentes que
culminaram na presente pesquisa.
Com formação em Design Gráfico pela Universidade Estadual de Minas Gerais –
UEMG, o meu trabalho profissional gira em torno da imagem enquanto representação
visual. Ora como produto da atividade projetual, ora como motivador de análises a respeito
das dinâmicas sociais e culturais. Em 2004, no contexto da nova cidade, tive contato com o
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados –
UFGD e com a possibilidade de aprofundar uma reflexão sobre a representação visual da
população indígena.
Assim, durante a disciplina Arqueologia Indígena e Etnoistória com o professor
Jorge Eremites de Oliveira, tive conhecimento da Expedição Langsdorff (1821-1829) e do
pintor-viajante Hércules Florence
1
. A Expedição Langsdorff cruzou, através dos rios, o
interior do território brasileiro. Seguiu o trajeto das monções e atravessou as províncias de
São Paulo, Mato Grosso e Grão-Pará. A expedição de caráter enciclopédico misturava
talento artístico com interesse científico. Possuía claros fins de inventário e catalogação.
1
Utiliza-se a grafia do nome como lido em português, Hércules Florence. O original é Hercule
Florence, em francês.
16
Hércules Florence despontou entre os demais desenhistas pela busca incessante de
objetividade no registro iconográfico e etnográfico.
Nesse momento, deu-se a delimitação do objeto de estudo em questão, a
representação visual de grupos indígenas na região pantaneira produzida por Florence,
segundo desenhista da expedição russa. Como marco temporal tem-se os anos do trajeto
fluvial da expedição o período de 1826 a 1829. Os desenhos do pintor-viajante são fontes
iconográficas e etnográficas que juntamente com os textos escritos formam os relatos do
diário do viajante.
A primeira classificação, fontes iconográficas, diz respeito à forma em que se
apresentam: fontes não-verbais, próprias do campo imagético, de natureza interpretativa
específica. São representações materializadas enquanto um ícone, uma denotação na
linguagem e na expressão (JOLY, 1996). Ao tratar do material visual produzido por
Hércules Florence se inclui no mesmo nível de compreensão os termos desenhos, pinturas,
imagens, esboços, produção gráfica, produção imagética. Apenas há o diferencial na
terminologia visualidade e visualidade étnica que diz respeito a um processo mais amplo.
Este engloba um conjunto de práticas e experiências que se desdobram em tempos
diferentes e em suportes específicos, como livros didáticos, literários, catálogos de arte
(MENESES, 2003).
Já as fontes etnográficas dizem respeito ao conteúdo: a representação de diferentes
grupos étnicos por um estrangeiro, no caso um viajante francês. A grande peculiaridade do
registro desse pintor está na sua habilidade de descrever, a partir da observação, as
populações nativas.
A escolha do objeto de estudo girou em torno de duas particularidades.
Primeiramente, o estilo e o modo de retratação dos grupos indígenas por Hércules Florence.
Pelos seus registros textuais e iconográficos é possível um diálogo interessante com a
etnoistória. Em segundo, o período histórico dos registros: o século XIX, um século
produtivo para a iconografia indígena brasileira. Os pintores-viajantes, com diferentes
estilos, deixaram grande contribuição visual para a história brasileira. Ana Maria de
Moraes Belluzzo (2000), em seu livro O Brasil dos Viajantes, registra a importância do
acervo produzido pelos artistas e cientistas viajantes. “O acervo não apenas nos traz
registros visuais de várias épocas e pontos de vista da nossa história, mas se configura
17
como um verdadeiro panorama da formação da identidade brasileira” (BELLUZZO, 2000,
p. 13).
O projeto de pesquisa ganhou “corpo” se apresentando com a seguinte proposta:
investigar as fontes iconográficas e etnográficas produzidas entre os anos de 1826 e 1827,
pelo pintor-viajante Hércules Florence, articulando um debate a partir das potencialidades
do registro visual e seus desdobramentos na situação de contato intercultural.
É pertinente abrir aqui um parêntese: utiliza-se a designação “indígena”, mesmo
com sua conotação homogeneizante que engloba culturas muito diferentes. Mas entende-se
o “indígena” como diferentes grupos étnicos, diferentes tanto entre si, como das sociedades
nacionais. A terminologia, entretanto, tem servido de “uma categoria de luta e uma
identidade que, de atribuída tornou-se politicamente operante, justamente por somar sob
uma única classificação grupos étnicos diferenciados, que tiveram nesta soma, sua força
aumentada” (CALEFFI, 2003).
A Expedição Langsdorff teve contato com diferentes grupos indígenas (Figura 1).
Mas por questões de ordem prática, tendo em vista o amplo material iconográfico, esta
pesquisa se voltou para o estudo da representação visual de três grupos específicos: Guaná,
Guató e Bororo
2
, todos visitados ao longo da Bacia do Alto Paraguai e Pantanal.
2
A grafia dos nomes tribais obedece à convenção instituída pela 1ª Reunião Brasileira de
Antropologia, em 1953, sobre a uniformização dos nomes tribais, cujo texto está publicado na
Revista de Antropologia, vol. 2, n. 2, de dezembro de 1954, São Paulo.
18
Figura 1: Percurso da Expedição Langsdorff com identificação dos grupos indígenas
(FONSECA, 2008, p. 24).
O termo Guaná refere-se a grupos que migraram para a margem direita do rio
Paraguai em fins do século XVIII, em virtude do processo de colonização espanhola e das
relações interétnicas com outros povos indígenas (SCHUCH, 1995, p. 54). Tal designação
é um termo genérico, encontrado em vários relatos de viajantes e religiosos do século XIX.
Segundo Roberto Cardoso de Oliveira (1976, p. 25), Guaná trata-se de uma designação
especial, dada pelos conquistadores espanhóis, aos grupos Txané da Bacia do Paraguai.
Para Cardoso de Oliveira, foram quatro grupos que atravessaram o rio e se estabeleceram
nas margens orientais: Terena, Layana, Kinikináu e Exoaladi. Todos pertencentes à família
lingüística Aruak. Os relatos do pintor-viajante Hércules Florence apenas indicam o termo
Guaná, sendo possível supor, que pela localidade do encontro com tais índios, região de
19
Albuquerque, trata-se de índios Exoaladi e até alguns Kinikináu (SCHUCH, 1995, p. 55).
Atualmente, apenas os Exoaladi, aparentemente, não possuem remanescentes em território
sul-matogrossense.
Os Guató são de língua filiada genética e diretamente ao tronco Macro-Jê
(EREMITES DE OLIVEIRA, 1995; 2002). Dentre os povos canoeiros, como os Payaguá e
os Guaxarapo, os Guató são os últimos representantes. Seus remanescentes estão na
periferia de Corumbá, na Ilha Ínsua e no morro Caracará, próximo à confluência do rio
Paraguai com São Lourenço (EREMITES DE OLIVEIRA, 2002). Florence encontrou com
índios Guató na região do Rio São Lourenço e teve notícias de um grupo vivendo na lagoa
Gaíva (FLORENCE, 1977a, p. 117).
Os Bororo, de língua do tronco lingüístico Macro-Jê, viviam em uma área
aproximada de 350.000 km
2
, situada aproximadamente entre os rios Araguaia e Paraguai
no sentido Leste-Oeste e rios da Morte e Taquari no sentido Norte-Sul (ALBISETTI &
VENTURELLI, 1962a; VIERTLER, 1987; ZAGO, 2005). Florence encontrou um grupo
na fazenda Jacobina, em Vila Maria, atual Cáceres, Mato Grosso. Atualmente, os Bororo
habitam seis terras indígenas demarcadas no estado do Mato Grosso (SERPA, 2001).
O trabalho de Hércules Florence, durante a expedição, resultou em 139 imagens,
entre representações de plantas, animais, paisagens, núcleos urbanos e diferentes grupos
sociais (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 15). Quanto à população indígena, o pintor-viajante
teve contato e deixou registros visuais de sete etnias ao total. Os desenhos de Florence
estudados constam nas edições do seu diário Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas – pelas
Províncias Brasileiras de São Paulo, Mato Grosso e Grão-Pará (1825-1829). As
anotações do diário constituem fonte documental textual. As narrativas sistematizadas
formam com a documentação iconográfica, fonte visual, um conjunto de relatos
pormenorizados da viagem científica. No diário, a maior parte das ilustrações são esboços
em preto-e-branco. Outras publicações, entretanto, possuem mais reproduções e com maior
qualidade (COSTA & DIENER, 1995; BELLUZZO, 1994; FLORENCE, 2000;
MONTEIRO & KAZ, 1998; CARELLI, 1995).
A partir das fontes, propõem-se responder às seguintes indagações: (1) Como o
pintor-viajante observou e desenhou essas populações indígenas? (2) Quais os antecedentes
que influenciaram na visão do artista? (3) O que os desenhos indicam quanto à formação
20
da imagem do indígena brasileiro? (4) E, por fim, como a leitura dos desenhos e pinturas
de Florence pode contribuir para o estudo sistemático da história indígena?
Esse trabalho se alinha com os recentes debates da temática indígena na
historiografia brasileira. É preciso entender que os povos indígenas possuem dinâmica
própria como agentes e sujeitos históricos plenos. Assim, a historiografia busca desfazer
preconceitos muitas vezes impostos por ela mesma, como a idéia dos povos indígenas
como “primitivos”, “incivilizados” e “fósseis vivos” que ficaram estagnados no tempo,
condenados a uma eterna infância e sem história (MONTEIRO, 1995; CUNHA, 1992). Ou
ainda, como expõe Antônio Carlos de Souza Lima:
Nunca saem dos primeiros capítulos dos livros didáticos; são vaga e
genericamente, referidos como um dos componentes do povo e da
nacionalidade brasileiros, algumas vezes tidos como vítimas de uma
terrível ‘injustiça histórica’, os verdadeiros senhores da terra. Não surgem
enquanto atores históricos concretos, dotados de trajeto próprio (LIMA,
1995, p. 408).
Visões deturpadas a respeito do “modo de ser” das populações indígenas estão
presentes tanto nos que assumem uma postura “romântica”, vendo no índio um indivíduo
puro, que deve ser preservado em seu “estado original”, como pelos defensores do
capitalismo esmagador, que prioriza o acúmulo de bens, em que o índio não tem vez, sendo
caracterizado por “preguiçoso” ou “irresponsável”.
As populações nativas exerciam no passado e continuam exercendo “estratégias
políticas, moldando o próprio futuro diante dos desafios e das condições do contato e da
dominação” (MONTEIRO, 1995, p. 227). Mesmo diante de mudanças sócio-culturais nas
situações de contato, as sociedades indígenas conseguiram reafirmar e reelaborar
identidades étnicas, inclusive através de padrões estéticos. A História Indígena é um
neologismo cada vez mais difundido no Brasil que, segundo Jorge Eremites de Oliveira
(2001, p. 116), pode ser, a grosso modo, apresentada sob dois aspectos: “o transcurso dos
povos ameríndios (dentro ou fora de uma visão êmica) e o estudo da trajetória histórica e
sociocultural dos povos nativos da América, desde a pré-história até os dias de hoje,
realizado através do levantamento, análise e interpretação de fontes diversas
(arqueológicas, imagéticas, lingüísticas, orais, textuais, etc)”.
21
Os registros iconográficos e etnográficos são “pistas”, como bem tipificou
Ginzburg (1989), do passado dinâmico e inventivo dessas sociedades. A temática do
“outro” se reflete na representação imagética e faz parte de um discurso ético, uma
construção sobre o “outro”. Na opinião de Ana Maria de Moraes Belluzzo, as imagens
produzidas pelos viajantes ainda se configuram como um universo a ser explorado, pois
A questão dos diferentes pontos de vista permanece atual, na medida em
que persiste o discurso sobre o aqui e o lá, revestido do debate entre o
centro e as margens, e na medida que abordagens contemporâneas têm
reafirmado a condição intercultural, inerente ao material estudado
(BELLUZZO, 2000, p. 13).
É necessário, entretanto, valer-se de métodos e análises críticas para a leitura desse
rico material visual, cada vez mais à disposição de um número maior de pessoas através
dos meios eletrônicos. As representações históricas visuais são reflexos de um todo mais
complexo e confuso, não passível de enquadramento estanque na cena imagética.
Conforme Serge Gruzinski (2003, p. 17), ao referir-se ao olhar dos cronistas eclesiásticos
do século XVI sobre as populações nativas: “Previsivelmente, esses autores exploram o
mundo indígena utilizando esquemas e vocabulários europeus. Muitas vezes, o exotismo
que sentimos ao ler seu testemunho emana, na verdade, mais da Espanha do século XVI do
que das culturas indígenas”.
Nesse sentido, ao longo deste trabalho, pretende-se apontar para a relação entre
diferentes sujeitos, em que um deles representou graficamente e concebeu o “outro” por
meio de seus padrões específicos. Ao contrário do que se possa imaginar, a representação
iconográfica não fornece informações unilaterais, ou seja, apenas sobre o “outro” retratado.
Mas sinaliza também sobre quem produz a representação. À medida que se aprofunda na
análise dos desenhos de Hércules Florence, é possível entender o próprio pensamento do
pintor-viajante, portador de um olhar europeu, e também a forma como se desenvolveu a
situação de contato intercultural entre ações e reações.
Aqui é importante explanar um pouco sobre o termo cultura, que irá permear essa
discussão. Embora seja impossível delimitar o conceito de cultura em poucas linhas.
Talvez nem um tratado pudesse dar conta de suas variantes. Mas faz-se necessário apontar
os teóricos que desenvolveram com excelência tal conceito.
22
Na perspectiva de Marshall Sahlins (1997, p. 41), a cultura não pode ser
subestimada, “sob pena de deixarmos de compreender o fenômeno único que ela nomeia e
distingue: a organização da experiência e da ação humana por meios simbólicos”. A
cultura não se restringe apenas a idéia da demarcação de diferenças entre povos e grupos.
A noção de cultura parece apontar mais para a pluralidade de resignificações e
apropriações de um contexto social, em constante dinamismo. Para Sahlins (1997, p. 12), a
forma cultural refletida entre o ser e a prática depende das comunidades de significação. O
relacionamento normalmente (e normativamente) prescreve um modo apropriado de
interação.
Em direção à percepção dos grupos étnicos, o pensamento do Fredrik Barth sinaliza
outros apontamentos importantes. Os valores culturais compartilhados são conseqüências
de escolhas anteriores realizadas pelos indivíduos do grupo e identificável pelos outros
externos. Assim, um grupo étnico se define enquanto tal por identificação e auto-
identificação, ou seja, a organização do grupo promove diferenças culturais que
configuram a identidade específica diante de outras em constante processo de interação
(BARTH, 1998, p. 189). Esse pensamento caminha para desmistificar a idéia da
manutenção da fronteira étnica apenas pelo isolamento. Ao contrário, nas relações
interétnicas o processo de interação fortalece as fronteiras, mantendo a unidade grupal a
partir de um caráter organizacional.
A discussão deste trabalho é, antes de tudo, interdisciplinar. O tema das fontes
iconográficas extrapola os domínios da História, ainda mais quando se trata de fontes
etnográficas. Pela crescente literatura, pode-se dizer que as imagens têm atraído cada vez
mais historiadores nos últimos tempos (BURKE, 1992, 2004; GRUZINSKI, 2006; PAIVA,
2006; FABRIS, 1991; LEITE, 1993; ANDRADE, 2002; KOSSOY, 1989, 2002). Com tal
interesse, a História tem encontrado suporte em outros campos do saber para dar conta da
leitura de fontes não-verbais como as fontes visuais.
O diálogo com a Antropologia tem papel fundamental por três principais motivos.
Primeiramente, essa disciplina descobriu mais cedo o valor cognitivo dos fatos, em
particular dos registros visuais, servindo-se de desenhos, fotografias, filmes e vídeos
(MENESES, 2003, p. 16). Para Ulpiano Bezerra de Meneses (2003, p. 20), “a história,
como disciplina, continua à margem dos esforços realizados no campo das demais ciências
humanas e sociais, no que se refere não só a fontes visuais, como à problemática básica da
visualidade”. Além do mais, a Antropologia aprimorou-se em uma vertente específica dos
23
estudos imagéticos (SAMAIN, 1995), a chamada Antropologia Visual
3
. Esta deve ser
entendida como um trabalho teórico e reflexivo de sistemas visuais e seus discursos, que
dialogam com as complexidades internas dos grupos étnicos e seus contatos.
Em segundo, o aporte teórico-metodológico baseia-se também na etnoistória e, a
análise antropológica está intrinsecamente ligada à etnoistória. Entende-se que a etnoistória
é um método interdisciplinar que se vale de “um conjunto de técnicas para recolher,
preparar e analisar as tradições orais e escritas” (CARMACK, 1979, p. 22). A despeito das
diferentes posições com relação à etnoistória ser apenas um método ou uma disciplina,
Bruce Trigger (1982, p. 29-30) afirma ser consenso que a etnoistória usa “evidências
documentais e tradições orais para estudo das mudanças nas sociedades sem escrita, desde
aproximadamente o momento do mais recente contato com os europeus”.
Portanto, o método da etnoistória é importante tanto pelas mudanças socioculturais
na situação de contato, como pelas leituras interdisciplinares das fontes que ampliam a
construção do passado das sociedades ágrafas. O método tem se mostrado eficaz no que
diz respeito à História Indígena. Robert Carmack, ao analisar o transcurso da aproximação
entre História e Antropologia, discorre que
Ao retornar para a relação entre as culturas dominantes e as subordinadas
em sociedades coloniais, tanto os antropólogos americanos como os
britânicos se viram forçados a estudar a dinâmica cultural [...] Não existia
outro recurso que regressar aos documentos a fim de obter tal gama e
quantidade de detalhes (CARMACK, 1979, p. 11).
Para Sahlins, a etnoistória demanda o cruzamento dos conhecimentos históricos e
antropológicos, pois a
[...] história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas
sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. O
contrário também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados
historicamente, porque, em maior ou menor grau, os significados são
3
Em trabalhos do antropólogo Etienne Samain encontram-se preciosas reflexões acerca da
fundação e da prática de uma Antropologia Visual, ainda em processo construtivo. Para o
pesquisador, a Antropologia Visual só se estabelecerá enquanto ciência, quando for acompanhada
de uma história da antropologia visual (SAMAIN, 1995).
24
reavaliados quando realizados na prática. A síntese desses contrários
desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos históricos, ou seja, as pessoas
envolvidas. Porque, por um lado, as pessoas organizam seus projetos e
dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes da
ordem cultural (SAHLINS, 1987, p. 7).
Assim, é preciso perceber que ordens culturais diversas possuem modos próprios de
produção histórica (SAHLINS, 1987, p. 11). É nesse ponto que a abordagem etnoistórica
pode contribuir, “buscando a historicidade inerente a cada distinta cultura e,
principalmente, entendendo o processo pelo qual cada etnia passou, com a chegada do
ocidental e o sistema colonial” (CALEFFI, 1992).
Ainda nesse sentido, um terceiro relevante papel da Antropologia é a compreensão
da prática etnográfica e também o que as fontes etnográficas representam enquanto
registros dos dados culturais dos povos indígenas em questão. Na tese pioneira sobre
iconografia indígena, intitulada Contribuição da iconografia para o conhecimento de
índios brasileiros no século XIX (1970), Thekla Hartmann salienta o caráter etnográfico
dos registros de Florence. Hartmann cita a declaração de Theodor Koch-Grünberg,
etnólogo alemão, dirigida a Ataliba Florence, filho de Hércules Florence, em 1921, “Seu
pai foi um observador extraordinariamente exato. Tudo que escreveu ou desenhou é a tal
ponto tão vivo e fiel que sua obra parece não a de um simples desenhista viajante, mas de
um etnógrafo e geógrafo profissional” (HARTMANN, 1970, p. 154).
A declaração de Koch-Grünberg, assim como a percepção de outros autores,
caminha para testificar o relevante material etnográfico encontrado nas representações
visuais de Hércules Florence. A exaustividade da observação do pintor-viajante advinha
dos moldes científicos da expedição configurados a partir dos cânones científicos do século
XIX e do anseio do pintor em fixar a imagem observada.
Vale esclarecer que as imagens analisadas no presente trabalho, enquanto registros
etnográficos, se enquadram com suas possibilidades e limites no diálogo da História e da
Antropologia. Assim, não se trata aqui de conferir um status de etnógrafo ao pintor-
viajante, mesmo porque a etnografia tal qual concebida no fazer antropológico se
estabelece somente no século XX. O marco foi a publicação, em 1922, da obra de
Bronislaw Malinowski, Argonautas do Pacífico Ocidental, com uma nova configuração
para o trabalho de campo através da observação participante.
25
A afirmação de Koch-Grünberg parece sinalizar apenas o mérito da capacidade de
registro dos dados culturais dos povos indígenas contatados. Por isso, o tratamento das
imagens enquanto registros etnográficos, o que não isenta a representação das
interrogações próprias das representações etnográficas no contexto colonial e pós-colonial.
Como bem frisou James Clifford:
É mais do que nunca crucial para os diferentes povos formar imagens
complexas e concretas uns dos outros, assim como das relações de poder
e de conhecimento que os conectam; mas nenhum método científico
soberano ou instância ética pode garantir a verdade de tais imagens. Elas
são elaboradas – a crítica dos modos de representação colonial pelo
menos demonstrou bem isso – a partir de relações históricas específicas
de dominação e diálogo (CLIFFORD, 2002, p. 19).
Uma leitura do material imagético sugere essas críticas do universo representado de
um ponto de vista ético, a partir do arcabouço da etnografia dos grupos contatados. Para
tanto, compreende-se a etnografia como um método de observação e descrição. Esta difere
da etnologia que diz respeito à interpretação dos dados coletados. Na etnografia, a
observação participante obriga seus praticantes a experimentar, tanto em termos físicos
quanto intelectuais, as vicissitudes da tradução (CLIFFORD, 2002, p. 20).
A etnografia é um trabalho extensivo que busca a objetividade e a exaustividade
descritiva, mesmo correspondendo a um período passageiro ou curto de observação
(MAUSS, 1993). Segundo Marcell Mauss, em Manual de Etnografia, o etnógrafo deve
observar três vertentes da sociedade em questão: a morfologia social (demografia,
geografia humana, tecnomorfologia), a fisiologia (técnicas, estética, economia, direito,
religião, ciências) e os fenômenos gerais (língua, fenômenos nacionais, fenômenos
internacionais, etologia coletiva
4
).
Para Clifford Geertz (1978), por mais que a etnografia busque “autenticidade” no
relato, tem-se sempre uma leitura de segunda e terceira mão. Bronislaw Malinowski expõe
assim as armadilhas do fazer etnográfico:
4
Estudo do caráter, da psicologia política nacional e das suas relações com os fenômenos
psicológicos e biológicos.
26
Na etnografia, o autor é, ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e
historiador, suas fontes de informação são, indubitavelmente, bastante
acessíveis, mas também extremamente enganosas e complexas; não estão
incorporadas a documentos materiais fixos, mas sim ao comportamento e
memória de seres humanos (MALINOWSKI, 1993, p. 18-19).
E ainda “é frequentemente imensa a distância entre a apresentação final dos
resultados da pesquisa e o material bruto das informações coletadas pelo pesquisador
através de suas próprias observações, das asserções dos nativos, do caleidoscópio da vida
tribal” (MALINOWSKI, 1993, p. 19).
Dito isso, os registros etnográficos de Florence apontam para uma interessante
convergência entre as descrições relatadas e as continuidades e descontinuidades desses
dados, enquanto práticas culturais nos grupos indígenas ao longo dos tempos até o presente
momento.
Outro importante aspecto do estudo imagético diz respeito à sua potencialidade
enquanto produção humana, fonte de estudo para o historiador. De presença múltipla no
cotidiano, faz-se necessário sua correta delimitação e conceituação (GASKELL, 1992, p.
237). O crescente interesse pelos estudos sobre a imagem deve-se muito ao fato do maior
espaço na experiência social contemporânea, como expressou Eduardo Neiva:
Mesas de fórmica imitam madeira; o plástico oferece-se a qualquer forma:
é o grau zero da matéria; fossilizamos andorinhas e pingüins em
porcelana; corantes dão a refrigerantes a aparência mais que perfeita de
uva ou laranja. A duplicação obsessiva das imagens nos afasta dos
referentes, purificando nossa experiência até a alucinação (NEIVA, 1993,
p.11).
Essa dimensão da imagem visual é bem trabalhada por Ulpiano Bezerra de
Meneses (2003), ao se referir aos estudos da cultura visual, ampliados a partir da década de
1980. Com a difusão da comunicação eletrônica e a popularização da imagem virtual,
novos instrumentos de análise foram requisitados, sobretudo, na sociologia, antropologia e
semiótica. Sob este aspecto, o objeto visual se transformou em uma problemática do visual.
As representações visuais foram interpretadas enquanto “coisas” que participam das
relações sociais, reconhecendo na visualidade um objeto detentor de historicidade. “O
documento visual como registro produzido pelo observador; o documento visual como
27
registro e parte do observável, na sociedade observada; e, finalmente, a interação do
observador e do observado” (MENESES, 2003, p. 22).
Embora pareça “novidade” entre os estudiosos, esta temática expandiu ainda na
segunda metade do século XIX, e início do século XX, com contribuições no campo da
história da arte e da história cultural. Michel Vovelle (1987) elaborou algumas indicações
neste sentido, tratando de outros objetos e contextos. Vovelle tratou a iconografia como um
meio privilegiado para se compreender a dialética entre as realidades materiais e o olhar
lançado sobre elas. Esta idéia traduz as funções didáticas e problemáticas diferenciadas do
registro visual.
Na historiografia contemporânea, percebe-se o desafio de integrar a linguagem
técnico-estética e as representações históricas e sociais (NAPOLITANO, 2005, p. 237).
Por isso, este trabalho busca a centralidade no estudo da imagem em relação aos sujeitos e
ao contexto histórico. Alguns estudos enfatizam as classificações formais e explicativas
sobre o significante e o significado na imagem e tratam os aspectos históricos de forma
paralela.
Entretanto, experiências como das historiadoras Solange Ferraz Lima e Vânia
Carneiro de Carvalho, do Museu Paulista, apontam para uma maior integração
interpretativa:
A categoria Museu Histórico enfrenta hoje dilemas relativos ao
desempenho das exposições frente aos seus objetivos educacionais,
culturais e de fruição estética. Diante do uso por vezes quase abusivo de
recursos de multimídia e imagens eletrônicas e em face das cenarizações
dos parques temáticos que forjam um passado estilizado com o qual o
espectador se relaciona acriticamente, quais seriam os caminhos para o
museu histórico conciliar curadorias de natureza científica, propósitos
educacionais e prazer estético? (LIMA & CARVALHO, 2005, p. 66).
Com este questionamento, pode-se observar uma entre várias problemáticas de
como a imagem visual tem se inserido no universo da historiografia. Além da categoria
museu, os livros didáticos, os monumentos erguidos em praças públicas e demais símbolos
escolhidos colaboram para o imaginário coletivo sobre o que pode ser a trajetória de um
grupo social ou nação. A declarada profusão de imagens nas pesquisas já se tornou um
tema bem trabalhado com diferentes desdobramentos. Mas persiste, sobretudo, um
descompasso entre a leitura teórica e a práxis, quando se trata de fontes visuais.
28
Alguns trabalhos são essenciais e pioneiros na discussão da iconografia indígena
brasileira. São eles: a tese, já citada, de doutorado da pesquisadora Thekla Hartmann, sobre
a iconografia indígena no século XIX (1970). A Suma etnológica brasileira (1987), de
Berta G. Ribeiro, edição atualizada do Handbook of South American Indians (1963) de
Julian Steward. Da mesma autora, ainda há outros dois trabalhos Arte indígena, linguagem
visual (1989) e Dicionário do artesanato indígena (1988). Mais recentemente estão o
trabalho de Lux Vidal em Grafismo Indígena (1992) e o livro A Plumária Indígena
Brasileira no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (DORTA
& CURY, 2000).
Um pouco do que expõe Berta Ribeiro, na Suma etnológica brasileira, ajuda a
entender o que está representado nos registros de Florence. Ribeiro caminha para uma
compreensão etnoestética que lança luz sobre o modo como os grupos tribais expressam
seus códigos culturais: “Vocabulários visuais estandartizados, ou unidades elementares,
transmitindo, como na linguagem oral, categorias de graus variáveis de generalidade e
possuindo regras implícitas de combinação de elementos. São representações visuais que
ordenam e comunicam experiências” (RIBEIRO, 1987, p. 22).
Para Clifford Geertz (1997, p. 149), o estudo da arte como um sistema cultural,
abrange uma sensibilidade que é “essencialmente coletiva, com bases de formação tão
amplas e tão profundas como a própria vida social”.
Está posto o desafio de identificar nos registros de Florence, os “fatos” conforme
identifica Geertz (1997). Ou seja, nas culturas pré-letradas ou proto-letrada, os símbolos
artísticos, as manifestações da cultura material são fatos definidos e manifestados, não em
livros, mas dentro de um sistema cultural de cada grupo retratado. Da mesma forma que
existe um sistema lingüístico para uma cultura, também há um sistema de representação
gráfica. Esta representação diz respeito ao referente que pode ser simbolizado e se torna
um “ser-percebido” (CHARTIER, 2002, p. 73). Por isso, a iconografia adquire especial
valor na pesquisa etnográfica, ajudando no cruzamento de informações sobre a dinâmica
cultural e as práticas sociais.
A fonte iconográfica figura o visível através de uma relação de memória,
imaginação e ligação muito própria ao processo técnico no qual se forma. Cabe explicar
que o caminho da pintura realista seguiu a lógica da perenização do momento
experienciado que posteriormente culminou na descoberta do processo fotográfico.
29
Segundo Lúcia Santaella, pintura realista e fotografia são protótipos da imagem indexical,
relacionadas à categoria de índice. A fotografia transmite uma conexão entre imagem e
objeto de forma casual, “já na pintura realista não há tal casualidade. A relação entre
imagem e objeto não é existencial, mas referencial” (SANTAELLA & NÖTH, 1998, p.
148). A manipulação criativa do momento de retratação, em ambos os casos, se faz
presente. Em princípios do século XIX, entretanto, a pintura realista na busca da retratação
do “fato como realmente aconteceu” indicava a áurea que se formaria em torno da
fotografia. A foto ligada ao seu referente guardava o certificado da presença, pois se
relacionava ao que foi e existiu (BARTHES, 1984).
No processo de criação, seja pintura ou fotografia, há o encontro do sujeito que cria,
o objeto criado e a fonte da criação. Para este trabalho, será de grande valia, por sua ênfase
antropológica, o entendimento desta “fonte de criação”, no caso os grupos étnicos com que
Florence teve contato. As questões de alteridade foram bem desenvolvidas por John Collier
Júnior em Antropologia Visual: a fotografia como método de pesquisa (1973). Ao falar do
impacto do surgimento da fotografia, Collier escreve sobre ver o que é particular ao
“outro”:
O problema persistente nos séculos passados e nas nossas relações
humanas atualmente é ver os outros como eles realmente são. Antes da
invenção da fotografia, o conceito de humanidade, flora, fauna, era
frequentemente fantástico. É por isso que a câmara com sua visão
imparcial têm sido desde o início, esclarecedora e modificadora da
compreensão ecológica e humana. Os homens sempre usaram as imagens
para dar forma aos seus conceitos de realidade. Foi a imagem dos artistas
que exprimiu o céu e o inferno, a figura do diabo, dos demônios, dos
selvagens perigosos – imagens de povos tão surpreendentes e diversas.
As pessoas pensavam através dessas representações que geralmente
traduziam o que os artistas queriam ver, ou as impressões que lhes
causavam as imagens. O entusiasmo com que se acolheu a invenção da
fotografia mostrava a consciência que o homem teve, pela primeira vez,
de poder ver o mundo como realmente era (COLLIER, 1973, p. 4-5).
É através da observação do “outro” que o percebemos e traçamos nossas relações
sociais e trocas culturais. A tarefa da observação culmina em vários componentes que são
registrados em algo aparentemente perenizado. Nem sempre a imagem é percebida em sua
delimitação de forma e conteúdo. Pode-se dizer que, no senso comum, o poder da imagem
consiste em sua capacidade de tratar um fato como uma narração completa e carregada de
veracidade.
30
Antes mesmo das intervenções virtuais das modernas tecnologias, sabe-se que a
imagem projeta sempre a parte de um todo. Sua existência já pressupõe a perda de um
conjunto mensurável. Isso ocorre quando, por exemplo, o público, eventual consumidor do
registro visual, é determinado. A mensagem segue condicionada
5
para o público
consumidor. Ao final, se vê somente o que se deseja ou em parte, como se usasse viseiras.
Os livros ilustrados sobre as expedições científicas eram possíveis graças à expansão de
técnicas de gravação, como a xilogravura (gravura em madeira) e a litogravura (gravura em
pedra). A noção de tais técnicas ajuda a entender como as reproduções das imagens
chegavam até o público. Não é o caso, entretanto, das ilustrações de Hércules Florence.
Portanto, é importante o desenvolvimento de metodologias que contemplem o
recorte característico da linguagem imagética. A tese de Thekla Hartmann (1970) se
destaca por sinalizar uma metodologia para a leitura das fontes visuais. Hartmann aponta
alguns filtros necessários para a análise da fonte iconográfica. No âmbito da iconografia
indígena brasileira, pode-se dizer que não há nada semelhantemente sistematizado. Dessa
forma, finaliza-se com um detalhamento a partir de suas considerações e pontos
importantes para a leitura iconográfica do presente estudo.
Primeiramente está presente o filtro artista/produtor:
(1) Definição do momento no tempo. As viagens científicas tinham grande apelo
naturalista sob a influência da filosofia de Alexander von Humboldt, personificando a
figura do “viajante filósofo, que não só estuda os homens, mas procura chegar a um
verdadeiro conceito de humanidade, em outros termos, realizar a missão científica do
pensamento enciclopedista e a viagem sentimental do romantismo” (LOPES DE
CARVALHO, 2005, p. 3).
(2) Definição dos objetos e seres vivos que lhe interessam. Não somente o
escolhido, mas também o que porventura foi omitido ou acrescentado. Na pesquisa dos
grupos étnicos, observaram-se, principalmente, identidades somáticas, adornos e
ornamentação do corpo e aspectos da cultura material. A identidade somática é a
identidade a partir do corpo, dos traços físicos.
5
Para conhecer uma aplicação prática da ideologia imagética, interessante verificar o trabalho de
INOCENCIO SILVA, Nelson F. Consciência Negra em Cartaz. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2001.
31
(3) Imperfeições da vista ou defeitos visuais como daltonismo, ilusão de ótica,
distância exagerada, iluminação. Florence, por exemplo, escreve em seu diário não ter
condições de desenhar alguns índios pelas constantes febres de que foi acometido no
percurso.
(4) Características perceptiva, seletiva, imaginativa e volitiva do artista. Para este
estudo, é relevante notar que, cruzando as informações do diário com as datas inscritas nos
desenhos, nem sempre a data do encontro com o grupo corresponde com a produção do
desenho.
Em segundo, o filtro da obra criada ou produto da criação:
(1) Limitações do meio de reprodução: qualidade da impressão, papel, linhas, cores
e tons. Alguns esboços do pintor-viajante, que se apresentam em preto-e-branco no diário,
possuem detalhes em cor. As diferentes reproduções também podem omitir detalhes da
obra do artista.
(2) Formação técnica e capacidades do artista. Segundo a biografia de Florence, o
pintor não possuía uma formação acadêmica, porém fazia parte de uma família dedicada às
artes (BOURROUL, 1901). Pode-se supor que seu estilo mostra como, de certa forma,
Florence pôde ser “menos” influenciado pelos padrões artísticos vigentes na academia e
nas instituições artísticas em geral. Segundo Hartmann (1970), na pintura dos índios, ele
reproduz os pés ligeiramente virados para dentro, contrariando a estética em vigor, mas
seguindo uma linha de máxima caracterização.
(3) Limitações e contrastes culturais, próprios das culturas distintas em contato.
Florence nutre especial apreço pelos Guató e reconhece na identidade somática desta tribo,
traços do europeu.
(4) Limitações dos valores éticos do próprio artista.
Por último, o filtro da transmissão da obra artística ao espectador:
(1) Estragos provenientes do tempo, imperfeições na reprodução tipográfica,
modificações das dimensões do original. Desenhos distorcidos ao passar pelo crivo dos
gravadores. Havia a possibilidade de interferência nos traços, muitos trabalhavam no
anonimato, dificultando a identificação.
(2) Condições de percepção do espectador e pelo condicionamento cultural de sua
interpretação.
32
Para tais pontos, exige-se a confrontação das fontes iconográficas com outras
diferentes fontes, que levem em consideração o artista, o momento da retratação e os
próprios retratados. Em um movimento contínuo conferem-se novos olhares à imagem,
criando uma ordem necessária para obter mais subsídios para interpretação. Esse
movimento entre as fontes e a escrita é um exercício importante para geração de novas
metodologias para o campo da iconografia indígena, que ainda pode ser amplamente
explorado.
Por fim, quanto à divisão dos capítulos, a dissertação apresenta a seguinte
configuração: o primeiro capítulo, de caráter introdutório, visa contextualizar o leitor no
tema e no recorte cronológico da pesquisa. Introduz aspectos importantes sobre a formação
do pintor-viajante e do período histórico da expedição, tendo como objetivo investigar os
caminhos que culminaram na produção imagética de Florence durante a expedição. A
análise da criação, da produção e da circulação da fonte como documento histórico, no
caso da iconografia do pintor-viajante, parte-se da sua especificidade enquanto fonte de
natureza não-escrita. As reflexões são necessárias para dar conhecimento de questões
externas à fonte, sem a pretensão de falar “em nome da fonte”, nem de fornecer uma
narrativa textual que transforme a fonte visual apenas em suporte.
No segundo capítulo, foram enfatizadas as construções mentais e conceitos das
tradições européias que permeiam o discurso sobre o “outro” por Florence. Pretende-se
extrair informações do relato denso e pragmático que se configuram como pistas da
experiência de contato e da imagem construída a partir dela. A narrativa do pintor-viajante
apresenta-se como um inventário, que oscila entre a descrição e o julgamento. A tensão
narrativa reside no compromisso de “dar conta” da experiência de observação (o que o
artista vê) e na imaginação artística (o que o artista leu ou ouviu falar sobre o que é
observado).
De forma especial, busca-se refletir sobre as construções de uma visualidade étnica
baseada no exemplo científico da Expedição Langsdorff. Do grupo, Florence é o artista
mais empenhado e pronto para responder às demandas de uma ideologia baseada em
indagações sobre a humanidade dos índios no século XIX. As imagens sobre os índios da
América do Sul e do Brasil foram cunhadas pelos relatos dos viajantes e cronistas dos
séculos XVI, XVIII e XIX. Isto gerou, em muitas esferas da cultura erudita européia (e,
por efeito do espelhamento, também nas elites coloniais), expectativas historicamente
33
defasadas quanto às condições de vida e ao estado de cultura desses índios, focalizados
como fósseis vivos a serem explicados unicamente por referência ao passado.
Por último, no terceiro capítulo, está o detalhamento dos registros iconográficos e
etnográficos propriamente, precedidos de uma contextualização da região pantaneira e da
Bacia do Alto Paraguai. O artista-viajante, no exercício de sua função, desenhou esboços
durante a viagem concluindo alguns posteriormente para publicação. Fez uso de técnicas
como aquarela e nanquim, além de valer-se da câmera escura para mais exatidão das
formas e traços. O artista contou também com anotações e descrições textuais.
Dos grupos contatados e registrados por Hércules Florence, nessa região estão os
Guaná, Guató e Bororo. Os dados culturais sobre os grupos visitados são de caráter
introdutório ao debate iconográfico, não tendo aqui a pretensão de discorrer em
profundidade sobre as questões etnoistóricas de cada povo. Na percepção do pintor-
viajante, em tempos da história natural classificatória e expansionista, os grupos são vistos
a partir de uma escala mensurável baseada nos critérios de civilização e barbárie.
34
1. BREVE HISTÓRIA DA EXPEDIÇÃO LANGSDORFF
O material iconográfico, objeto do presente estudo, foi produzido a partir da
expedição científica russa que levou o nome do seu idealizador e organizador, o Barão
Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852), cônsul-geral do império russo no Brasil. Esta
importante expedição avançou pelo interior do território brasileiro no início do século XIX,
entre 1825 e 1829. Um dos seus membros, o pintor-viajante francês Hércules Florence
(1804-1879), deixou um relato textual e iconográfico denso, o diário chamado Viagem
Fluvial do Tietê ao Amazonas – pelas Províncias Brasileiras de São Paulo, Mato Grosso e
Grão-Pará (1825-1829).
O objetivo deste capítulo é analisar os caminhos que culminaram na produção
imagética de Hércules Florence durante a expedição. A iconografia do pintor-viajante,
como fonte de natureza não-escrita, nesse primeiro momento, cede espaço para a
“representação da realidade histórica ou social” (NAPOLITANO, 2005, p. 237). As
reflexões que se seguem são necessárias para dar conhecimento das questões externas à
fonte, sendo produtos de interrogações a partir dela. Não se pretende esgotar a
contextualização do período histórico, nem suas especificidades. Vários apontamentos,
aqui iniciados, ajudam a compor as discussões posteriores. O propósito da
contextualização não é de falar “em nome da fonte”, nem de fornecer uma narrativa textual
que transforme a fonte visual apenas em suporte. Compreende-se que a apresentação de
informações periféricas ou envolventes à fonte visual não ofusca sua própria natureza
discursiva (MENESES, 2003, p. 16). Nesse sentido, o pressuposto metodológico é de
análise da criação, produção e circulação da fonte como documento histórico.
Primeiramente, é importante esclarecer que os estudos sobre a expedição não
possuem consenso quanto ao seu início. Na verdade, dependem da própria interpretação de
35
seus autores em relação à dinâmica da organização, do empreendimento e de sua conclusão.
Alguns apontam seu início em 1821, em virtude dos primeiros acertos do Barão Langsdorff
com o governo russo, planejando a expedição ainda na Europa. Os que defendem o ano de
1822 levam em consideração o registro das curtas expedições nas proximidades do Rio de
Janeiro e, outros em 1824 com as incursões na província de Minas Gerais (BECHER, 1990,
p. 98). Foi entre 1822 a 1824 que o pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858)
trabalhou na expedição. Desta parceria, resultou uma coleção de desenhos com grandes
paisagens, plantas e material de zoologia (MANIZER, 1967, p. 63). Segundo Maria de
Fátima Costa (1999, p. 16), nessa expedição o pintor se fortaleceu em seu ofício e, mais
tarde publicou um álbum de litografias Viagem Pitoresca. Há ainda a referência de início
em 1825, quando a expedição deixou o Rio de Janeiro (TAUNAY, 1981, p. 43). Entretanto,
o início mais usualmente lembrado é 22 de junho de 1826, data da partida do grupo de
Porto Feliz, província de São Paulo. A partir daí, a expedição seguiu o trajeto das monções,
nome dado à rota entre São Paulo e Cuiabá das expedições fluviais intensificadas a partir
da segunda década do século XVIII (HOLANDA, 2000, p. 33). Já o seu término é marcado
ou pela chegada a Santarém ainda em 1828, ou pelo regresso dos membros da expedição
ao Rio de Janeiro, em março de 1829. Outro marco, no ano seguinte, foi o envio do
restante do material recolhido pela expedição à Academia de Ciências de São Petersburgo,
completando os esforços despendidos até então (KOMISSAROV, 1994, p. 33).
No presente trabalho, entende-se que a Expedição Langsdorff pode ser dividida em
três momentos: o planejamento da expedição, de 1821-1826; o trajeto fluvial, percurso
mais longo ao interior do país, de 1826-1829; e a reunião da documentação para envio à
Rússia, 1829 e 1830. O recorte cronológico mais detalhado da pesquisa refere-se aos anos
de 1826 e 1827. Entretanto, pode-se encontrar, ao longo da narrativa, uma flexibilidade
desse período conforme explicação acima. É importante enfatizar também que mesmo com
a constatação de desenhos terminados após esse período, tal delimitação prioriza o
momento de contato do pintor-viajante com os indígenas retratados. Ademais, os lampejos
gráficos construídos a posteriori são relevantes indícios da memória do desenhista
Florence e sua capacidade seletiva como viajante.
36
1.1. O espaço-tempo da expedição
A expedição percorreu as províncias de São Paulo, Mato Grosso e Grão Pará. Para
evitar confusões entre a província de Mato Grosso e o atual estado do Mato Grosso, ao
tratar da sua atual configuração, se esclarece de antemão. A maior parte do percurso foi
através dos grandes rios. Em seu diário, Hércules Florence explica a escolha da rota fluvial:
Enquanto em São Carlos me entendia com um tropeiro, para o transporte
de nossa bagagem a Cuiabá, recebi do Sr. de Langsdorff carta em que me
dizia: Já não vamos por terra para Cuiabá; para lá iremos por meio dos
rios, e embarcaremos em Porto Feliz. O Doutor Engler, de Itu, assegurou-
me que os naturalistas ainda não exploraram esta rota, ao passo que
vários deles, como os Srs. Martius e Spix, Burschell, Netterez, etc., já se
valeram do caminho por terra. Venha a Porto Feliz, à casa do Sr.
Francisco Álvares Machado e Vasconcellos, excelente pessoa, cujo
conhecimento o Sr. Engler me favoreceu. Vou percorrer o sul da
província e o Sr., enquanto isso, ajudado pelo Sr. Francisco Álvares,
cuidará de aprestar as canoas e os víveres, assim como arrolará as
tripulações (FLORENCE, 1977b, p. 14).
Para o pesquisador Boris Komissarov (KOMISSAROV & BRAGA, 1993, p. 15), o
trajeto pelos rios, fato inédito entre os viajantes naturalistas até então, revelava o espírito
empreendedor e pioneiro de Langsdorff. Marcos Pinto Braga, na apresentação do livro O
Barão Georg Heinrich von Langsdorff – pesquisas de um cientista alemão no século XIX,
caracteriza Langsdorff como um “homem de destino incomum, marcado pela ânsia de
conhecimento e frenética corrida contra o tempo” (BECHER, 1990, p. 8). A expedição
também desejava alcançar as Guianas, objetivo impossibilitado pelas várias intempéries
que se sucederam ainda na Bacia do Alto Paraguai.
Por se tratar de uma viagem fluvial, o espaço geográfico em questão refere-se à
Bacia do Alto Paraguai e à região conhecida como Pantanal, compreendendo parte dos
atuais estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (Figura 2 e 3).
37
Figura 2: Percurso da Expedição Langsdorff (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 29).
38
Figura 3: Percurso da Expedição Langsdorff (CARELLI, 1992, p. 106).
39
Historicamente, essa região experimentou incursões de viajantes estrangeiros em
vários períodos, com diferentes objetivos. Em linhas gerais, tal área se apresentou como
um lugar de encontro e conflito. Primeiro, pela disputa da região entre as metrópoles
ibéricas, e depois entre os Estados independentes do Brasil, Paraguai e Bolívia. Na região
pantaneira, história hispânica e lusitana se confundem. A região escapava da demarcação
do Tordesilhas (1492) e foi ponto de negociação entre Portugal e Espanha no Tratado de
Madri (1750). Tal tratado, através do argumento de uti possidetis, garantiu as posses já
existentes e deu ao Brasil aproximadamente sua configuração atual (HOLANDA, 1986, p.
89).
Inicialmente, buscava-se um caminho para chegar às minas de prata da região
andina. Remontam do início do século XVI as viagens do espanhol Juan Díaz de Solis
(1515) e do português Aleixo Garcia (1522) que cruzaram o rio Paraguai em direção às
riquezas anunciadas do Império Inca. Os relatos do soldado bávaro Ulrico Schmidl
(primeira expedição em 1538) e do espanhol Alvar Nuñez Cabeza de Vaca (1541)
registraram o encontro com uma grande população indígena e retrata a experiência no
ambiente pantaneiro com a imposição do ciclo das águas (COSTA, 1999, p. 88). As
primeiras explorações eram permeadas por sonhos de riquezas e as descrições da região e
dos grupos indígenas oscilavam entre a realidade e a fantasia (COSTA, 1999).
Ao longo do século XVII, foram os paulistas, com as chamadas “bandeiras”, que
adentraram a região para escravizar grupos indígenas sobre o pretexto de buscar metais
preciosos. O chamado “apresamento”, segundo expõe John Manuel Monteiro (1994, p. 58-
61), existia desde as origens da Colônia. Conforme as necessidades da economia local de
São Paulo, a busca de cativos foi alcançando o interior. Os paulistas, conforme Sérgio
Buarque de Holanda, “distanciados dos centros de consumo, incapacitados, por isso, de
importar em apreciável escala os negros africanos, eles deverão contentar-se com o braço
indígena – os `negros` da terra; para obtê-lo é que são forçados a correr sertões inóspitos e
ignorados” (HOLANDA, 2000, p. 16). Diante disso, os colonos se aventuraram pelo
“sertão” dos Patos, interior do atual estado de Santa Catarina, pela região do Guairá,
interior do atual estado do Paraná, chegando até ao chamado “sertão” mato-grossense.
A associação do termo “sertão” faz-se interessante discorrer um pouco, tendo em
vista que perdura até os dias atuais. Segundo Janaína Amado, a designação “sertão” era
utilizada pelos portugueses para denominar regiões situadas dentro de Portugal, porém
longe de Lisboa. No século XV, “usaram-na também para nomear espaços vastos,
40
interiores, situados dentro das possessões recém-conquistadas ou contíguos a elas, sobre os
quais pouco ou nada sabiam” (AMADO, 1995, p. 148). Assim,
De forma simplificada, pode-se afirmar, portanto, que, às vésperas da
independência, ‘sertão’ ou ‘certão’, usada tanto no singular quanto no
plural, constituía no Brasil noção difundida, carregada de significados.
De modo geral, denotava ‘terras sem fé, lei ou rei’, áreas extensas
afastadas do litoral, de natureza ainda indomada, habitadas por índios
‘selvagens’ e animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas,
leigas ou religiosas, detinham pouca informação e controle insuficiente
(AMADO, 1995, p. 150).
Dessa maneira, é possível perceber que a expressão “sertão” tinha seu dualismo
com o litoral. De um lado o conhecido, o habitado e o colonizado; de outro, o
desconhecido, o isolado, o inacessível e habitado por bárbaros, hereges e infiéis. A
referência se deslocou do aspecto geográfico e se transformou em realidades opostas e
complementares. Criou-se, assim, uma dependência muito propícia em tempos de
conquista e consolidação do espaço colonial. Posteriormente, foi apropriada pelos próprios
brasileiros na conjuntura da formação do estado-nação (AMADO, 1995, p. 151).
No século XVIII, em 1719, durante as incursões paulistas, foi descoberto ouro de
aluvião nas imediações do rio Cuiabá. Estava aberta a rota das monções. Durante esse
período, o sul da capitania mais especificamente presenciou a fixação da população não-
índia em roças para suprir os viajantes. Tais roças não possuíam força comercial e eram
alvos de ataques por parte dos índios. Os enfrentamentos mais conhecidos eram realizados
pelos Caiapó na fazenda de Camapuã, fundada na década de 1720 e situada a meio
caminho entre Porto Feliz e Cuiabá (HOLANDA, 2000, p. 91). Os viajantes também
sofriam ataques dos Paiaguá (MAGALHÃES, 1999) e Guaicurú (HERBERTS, 1998) com
estratégias como de “molhar os fechos das armas dos adversários atirando água sobre os
arcabuzes com as pás dos remos quando iam intentar a abordagem” (TAUNAY, 1981, p.
83).
Em 1727, foi organizado o núcleo de Vila Bela do Bom Jesus de Cuiabá (atual
Cuiabá) às margens do rio Cuiabá. Mais tarde, em 1734, também foi encontrado ouro na
região do rio Guaporé, na Bacia do Amazonas. Em 1748, se deu a criação da capitania do
Mato Grosso que englobava os atuais estados de Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do
Sul. Sua área era de aproximadamente dois milhões e trezentos e quarenta mil quilômetros
quadrados (COSTA, 2001, p. 998). Em 1752, Vila Bela da Santíssima Trindade, às
41
margens do rio Guaporé, foi estabelecida como capital em detrimento do já povoado
núcleo de Cuiabá. Tal decisão fazia parte da política agressiva do governo português de
manter a fronteira. Conforme escreve Maria de Fátima Costa,
Às faldas das missões jesuítas espanholas, em território chiquitano, a
capital situava-se em um lugar de total insalubridade, porém
fundamentalmente estratégico. Para governar a nova capitania foram
nomeados homens da mais nobre estirpe lusitana. Estes, orientados pela
corte, promoveram uma vigorosa política de ocupação e defesa,
plantando fortificações, presídios, povoações, vilas e arraiais por toda a
aurífera raia fronteiriça, tanto na região do Guaporé como na banhada
pela bacia paraguaia (COSTA, 2001, p. 998).
A mineração promoveu a formação dos primeiros povoados. Virgílio Corrêa Filho
escreve que Cuiabá foi criada a partir da iniciativa bandeirante da comitiva de Pascoal
Moreira Cabral que
Costumado às longas peregrinações pelos sertões impérvios, jamais
idearia fundar, naquele êrmo longínquo, povoação duradoura, ainda que
estanciasse longamente em sítio apropriado a servir-lhe de reduto
defensivo para qualquer emergência, como seria o de Emboteteí (atual rio
Miranda) [...]. Não cogitaria de ajuntar povoadores entre o Coxipó e o
Cuiabá, onde apenas pretendia arrebanhar índios. Mas o ouro que se lhe
deparou, em grande cópia, alterou-lhe os projetos de pioneiro andejo
(CORRÊA FILHO, 1969, p. 205-206).
A vantagem do ouro descoberto estava relacionada à sua fácil extração. Mas, por
outro lado, se esgotava rapidamente. As notícias sobre as minas de Cuiabá, que chegavam
à Capitania de São Vicente, eram mais reluzentes que o próprio ouro. Como escreve Sérgio
Buarque de Holanda, “corriam coisas prodigiosas acerca da riqueza sem par daqueles
sertões. Dizia-se, por exemplo, que à falta de chumbo, eram empregados granitos de ouro
nas espingardas de caça; que eram de ouro as pedras onde se punham as panelas nos
fogões” (HOLANDA, 2000, p. 47).
De fato, em seu diário, Florence também anuncia a corrida ao ouro na região de
Cuiabá: “ávidos de ouro, paulistas embarcavam em Porto Feliz e, pelos rios, penetravam os
sertões monumentais. Sabe-se que apenas levavam armas, pólvora, chumbo, sal e anzóis”
(FLORENCE, 1977b, 67). Acrescenta Florence que os “saídos de São Paulo” teriam como
destino uma riqueza efêmera e destrutiva:
42
A maior parcela dos caracterizadamente aventureiros, sedentos de
grossas maquias, não encontrando à vontade ouro em condições de
saciar, lançou mão de toda espécie de violências: roubo, assassinato,
sangrentas rixas haviam já principiado a arruinar a nascente colônia,
quando se cogitou de estabelecer um governo e se enviou a São Paulo
pedido de chefes capazes de exercê-lo (FLORENCE, 1977b, 67).
Na chegada da Expedição Langsdorff a Cuiabá, Hércules Florence confirma as
impressões sobre o declínio da mineração, visualizando vestígios da época mais turbulenta
com “escavações e buracos que atestavam o quanto foi revolvido” (FLORENCE, 1977a, p.
144). Mais adiante, ele afirma que “não se acha ouro em porção que dê algum lucro, senão
nos arredores da cidade ou a algumas léguas de distância” (FLORENCE, 1977a, p. 144).
Florence refere-se ainda às técnicas de extração como muito primitivas. Para ele, a região
aurífera talvez experimentasse a riqueza se houvesse “mineiros inteligentes, máquinas e
métodos aperfeiçoados, em conformidade com o progresso dos dias que vivemos”
(FLORENCE, 1977b, p. 64).
Portanto, conforme análise de Luiza Rios Ricci Volpato, não há como sustentar a
idéia de um passado ostensivo e glorioso na capitania durante a mineração:
O baixo nível técnico e a utilização de métodos, que disperdiçavam muito
do ouro encontrado, concorriam para que a produção fosse baixa. Além
disso, as jazidas encontradas na região foram todas de rápido
esgotamento e duração efêmera. Dessa forma, a produção aurífera mato-
grossense esteve muito à mercê da riqueza do achado e da facilidade de
sua exploração (VOLPATO, 1987, p. 81).
Até o fim do período colonial, apesar de a decadência da mineração, era o ouro e
outros minerais, como prata e diamantes, que significavam, de fato, produtos de exportação
(VOLPATO, 1987, p. 85). Segundo Volpato, a economia precária da capitania girava em
torno de outros fatores e, ainda, acrescenta que
A ameaça permanente de ataques de índios e espanhóis, a organização da
defesa civil e militar, a espoliação do fisco e do comércio externo, o
atraso no pagamento dos soldos de militares e salários dos funcionários
públicos, os surtos epidêmicos faziam que a vida dos habitantes da
capitania, durante o período colonial, mal atingisse os níveis vitais
mínimos da sobrevivência (VOLPATO, 1987, p. 110).
Em relação a Diamantino, nas proximidades de Cuiabá, Florence relata que
43
Da vasta província de Mato Grosso são o Diamantino e Vila Bela os dois
pontos mais insalubres. Esta cidade está em decadência, e se a vila se
mantém é pelos diamantes; entretanto já começa a ser abandonada. [...]
No Diamantino os habitantes não tem médicos: assaltados de um sem-
número de enfermidades, cujo nome, pelo menos, é desconhecido em
medicina, recorrem a uma infinidade de remédios, uns naturais e
estrambóticos, a maior parte bárbaros e supersticiosos (FLORENCE,
1977a, p. 224).
Na visão de Lúcia Salsa Corrêa, o estágio de pobreza de Mato Grosso, até meados
do século XIX, seria reflexo da crise que abalou e transformou o Antigo Sistema Colonial.
Entretanto, mesmo com o quadro de crise do sistema, “houve crescimento de produção e
redefinição dos espaços coloniais, nos fins do século XVIII e inícios do XIX” (SALSA
CORRÊA, 1999, p. 83). A autora prossegue argumentando que os processos de
independência das colônias espanholas redefiniram o movimento comercial na região
platina. Um diferente fluxo mercantil promoveu, no início do século XIX, “produtos
tradicionais como erva-mate, couros, tecidos, madeiras e alguns gêneros alimentícios,
como carne e charque, açúcar, milho, mandioca, e outros mais” (SALSA CORRÊA, 1999,
p. 85).
Para Uacury Bastos a ocupação da região do Alto Paraguai teve importância
fundamental na ampliação do território brasileiro e as causas do povoamento pós-
mineração poderiam assim ser destacadas:
Região de transição entre o campo cerrado e a floresta úmida equatorial,
permitiu o estabelecimento de atividades baseadas na coleta: a poaia e a
baunilha são dois exemplos expressivos. A comercialização de peles
silvestres constituiu elemento mantenedor do povoamento surgido com o
rush do ouro. Se acrescentarmos a estes dois elementos o da pecuária
bovina e a cultura da cana de açúcar visando a produção da aguardente,
teremos os principais fatores econômicos que contribuíram para a
radicação dos colonos na região do Alto Paraguai (BASTOS, 1972, p. 44).
Em outro trabalho, Valmir Batista Corrêa enfatizou o passado violento da província
de Mato Grosso, em que uma estrutura sócio-econômica se caracterizava por forças
conflitantes. Essas forças seriam “reflexos da ocupação agressiva do território e da
natureza hostil, da intranqüilidade gerada pela presença de indígenas e espanhóis, e do
choque de interesses entre mineradores, comerciantes, senhores rurais e uma
desprivilegiada massa urbana” (BATISTA CORRÊA, 1976, p. 57). Em outro trecho de seu
trabalho, Corrêa relaciona a mestiçagem com as condições sócio-econômicas da região:
44
Outro aspecto de fundamental importância para a compreensão das bases
sócio-econômicas da região mato-grossense, nessa fase de ocupação e
exploração, foi a utilização em grande escala de escravos negros e
indígenas e o alto índice de miscigenação entre a população local. Nesse
sentido, a estagnação econômica da região agiu como desestímulo para
um contínuo afluxo populacional e criou condições favoráveis para uma
intensa interação racial. A análise dos dados populacionais de 1815
permite então constatar entre a população livre em Mato Grosso, uma
predominância de mestiços (7.908 indivíduos) sobre brancos (5.813
indivíduos) e negros (2.656 indivíduos), e uma população escrava de
1.569 pardos e 9.319 negros. Portanto, em termos globais, Mato Grosso
possuía segundo os dados de 1815 uma população de 10.888 escravos,
10.564 forros e 5.813 brancos (BATISTA CORRÊA, 1976, p. 47-48).
No diário de Florence, consta o registro sobre os habitantes de Cuiabá, ligando o
início da povoação em busca do ouro a uma vida dissoluta própria de “gente bárbara”:
Tão pouca população provém de que não há 125 anos que Cuiabá foi
descoberta e todos quantos procuraram estas terras atraídos só pela posse
do ouro, uma vez conseguido esse fim, trataram de se ir embora para
gozarem das riquezas ganhas em país civilizado. Os que se deixaram ficar,
ricos em pouco tempo e no meio de solidões, só cuidaram em satisfazer
seus sentidos. Entregaram-se a grosseiros prazeres e viveram com
amásias, não se lhes dando de formar famílias e educar os filhos, quando
os tinham, nos sãos princípios da religião e da moral (FLORENCE,
1977a, p. 146).
Em outro trecho, Florence descreve que nas ruas de Cuiabá transitam pouquíssimas
pessoas. Segundo ele, “Não é de admirar: a cidade rodeia-se de infindáveis sertões”
(FLORENCE, 1977b, 61). Nas impressões do pintor-viajante, o espaço longínquo, pouco
habitado, noticiado, todavia desconhecido, é denominado “sertão”.
No que diz respeito à política do período analisado, o início do século XIX, é
marcado por grandes mudanças políticas no Brasil. Segundo Manuela Carneiro da Cunha
(1992, p. 133), “o século XIX é um século heterogêneo, o único que conheceu três regimes
políticos: embora dois terços do período se passem no Império, ele começa ainda na
colônia e termina na República Velha”. O último capitão-general da capitania de Mato
Grosso, Francisco de Paula Magessi, foi deposto em 1821. Conforme Virgílio Corrêa Filho
(1969, p. 463), a relação estreita com a Província de São Paulo desencadeou o levante entre
clero, nobreza e povo para dar fim ao governo colonial, a 20 de agosto de 1821. Nesse
período, Vila Bela e Cuiabá, principais povoados, duelaram pelo comando da região,
formando duas Juntas Governativas. Tal rivalidade prejudicou ainda mais a situação
45
econômica da região. Apenas em 1823 tomou posse um Governo Provisório único, com
membros das duas localidades (CÔRREA FILHO, 1969, p. 468).
O início da expedição foi, por mais de uma vez, adiado em decorrência da
efervescência política do período da Independência. Foi exatamente em 1822 que o Barão
Langsdorff aportou no Brasil. Não era a primeira vez que Langsdorff chegava ao Brasil.
Em 1813, já estava no Rio de Janeiro exercendo suas funções diplomáticas. Além da
expedição científica, estava nos planos de Langsdorff fundar uma colônia agrícola alemã
na fazenda Mandioca, em uma região próxima da cidade do Rio de Janeiro. A fazenda foi
adquirida em 1816, assim Langsdorff foi o primeiro agricultor alemão no Brasil de que se
tem notícia. Entretanto, o projeto da colônia agrícola não se concretizou (BECHER, 1990).
Na chegada a Cuiabá, os membros da Expedição Langsdorff foram recebidos pelo
então Presidente da Província, o tenente-coronel José Saturnino da Costa Pereira. Descrito
por Florence como “requintado de maneiras e em seus conhecimentos, bom matemático,
exemplar chefe de família, desfruta de ótimo conceito em toda a província e está em
vésperas de eleger-se Senador do Império” (FLORENCE, 1977b, p. 61). Para Côrrea Filho
(1969, p. 472), José Saturnino, se não fez uma brilhante administração, pelo menos logrou
levá-la em bom termo. O autor conta que, com espírito dado ao estudo, Saturnino difundiu
o ensino público e conseguiu “autorização para mandar ao Pará algumas pessoas agregadas
à Comissão Langsdorff, de cujo botânico, Riedel, receberia as instruções necessárias para o
ensaio da cultura, em Mato Grosso, do afamado guaraná, que este pretendia estudar in
loco”.
Na função de cônsul-geral e encarregado de negócios da Rússia, Langsdorff tinha
amplo relacionamento com as autoridades brasileiras (BECHER, 1990, p. 10). O Barão
Langsdorff era naturalista e médico formado pela Universidade de Göttingen em 1797. Em
Portugal, exerceu a profissão até 1800, onde aprendeu o português (MANIZER, 1967).
Conforme Becher (1990, p. 139), as principais atividades do Barão, no Brasil, eram
“estudar detalhadamente o mercado brasileiro e auxiliar os mercadores russos no Rio de
Janeiro e também providenciar abastecimento para os navios da Companhia Russo-
Americana e outros barcos russos”.
A relação amigável de Langsdorff com D. Pedro I lhe rendeu ajuda financeira para
sua expedição e, ao mesmo tempo, incentivo para seus projetos de colonização, com a
chegada de imigrantes alemães. Hans Becher (1990, p. 26) registra que “logo após a
46
Independência, von Langsdorff teve um papel fundamental na manutenção das relações
russo-brasileiras”. Na época da Independência, a relação entre Rússia e Portugal andava
estremecida, pois o governo russo havia declarado apoio à Espanha na questão da margem
leste do rio Paraguai (BECHER, 1990, p. 25). Langsdorff, contudo, tinha laços fortes com
o principal ministro brasileiro, José Bonifácio de Andrada e Silva, “ex-colega da
Universidade de Freiberg, camarada de idéias, parceiro científico” (BECHER, 1990, p.
141). Nesse sentido, pode-se supor que a Expedição Langsdorff foi privilegiada em seus
contatos junto ao governo colonial e, posteriormente, imperial. Langsdorff abriu caminho,
politicamente, para a viagem científica e exploratória.
No início do século XIX, as incursões estrangeiras ao Brasil foram beneficiadas
pela vinda da família real para o Brasil e pela Abertura dos Portos. A corte portuguesa
permaneceu no Brasil até 1821. Durante esse período, profundas transformações ocorreram
nos centros urbanos, em especial, no Rio de Janeiro. Nesse período, difundiram-se idéias
liberais e renovadoras pelo país. O Brasil também foi palco de empreendimentos artísticos,
como, por exemplo, o da Missão Artística Francesa, em 1816, patrocinada por D. João VI.
Datam dessa época a Academia de Marinha, a Academia Real Militar e o Jardim Botânico.
As facilidades de desenvolvimento cultural resultaram na difusão de livros, impressa e
tipografia (KOSSOY, 2006, p. 39).
As viagens não possuíam apenas fins científicos de inventário, uma vez que
estavam repletas de interesses coloniais (RAMINELLI, 2000, p. 974). Entre elas,
destacam-se a viagem do sargento-mor e engenheiro Luiz D´Alincourt, entre 1823-1830,
com o Mapa Estatístico de Mato Grosso (COSTA, 1993). Do militar Barão de Antonina,
Intinerario das viagens exploradoras emprehendidas pelo sr. Barão de Antonina para
descobrir uma via de comunicação entre o porto de Villa de Antonina e o Baixo-Paraguay
na província de Mato Grosso: feita nos annos de 1844 a 1847 pelo sertanista o sr.
Joaquim Francisco Lopes e descritas pelo sr. João Henrique Elliot (1870). Do naturalista
francês Francis Castelnau, em 1845, com a Expedição às Regiões Centrais pela América
do Sul (1945). E de Augusto Leverger, Roteiro da navegação do rio Paraguay desde a foz
do São Lourenço até o Paraná (1862).
Junto ao frenesi científico estavam projetos políticos que confrontavam potências
européias na corrida por mercado e domínio em solo americano. O próprio governo
português, querendo antecipar-se nas explorações do interior do território brasileiro, enviou,
47
em 1778, o brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira para esquadrinhar os grandes cursos
fluviais do Amazonas e do Pantanal (COSTA, 2001; RAMINELLI, 2001).
1.2. O percurso da expedição
A Providência traçou para o homem, como rotas primitivas, os rios, pelos
quais ele penetra nos continentes e nos desertos, e nos sertões onde vivem
os selvagens. [...] Sinto-me orgulhoso de ter vindo para estas paragens,
cuja solidão me retraça, com inteireza de verdade, o estado do mundo
antes da criação do homem. Assim, eu, que outrora vivia no seio das
velhas populações européias, por mim substituídas pelas nascentes
populações da América, ainda atinjo os extremos de um período de
6.000.000 de anos! (FLORENCE, 1977b, p. 51).
As palavras de Florence remetem-se ao imaginário, que no século seguinte, foi
enfatizado pela historiografia, da unidade nacional através dos rios. Os rios são as
“estradas móveis” de Sérgio Buarque de Holanda. Para Florence, são as rotas primitivas,
exaltando sua natureza ainda a ser dominada. Através dos rios, a expedição penetra um
paraíso intocado. No caso do trajeto monçoeiro, é o paulista o herói desbravador, que
penetra o continente pelos rios, deixando um rastro de civilização. Os rios são como um
cenário para a epopéia bandeirante. Os viajantes da expedição, pelo mesmo caminho,
desejam conquistar o conhecimento. Desbravar a natureza e, poeticamente, atingir o
paraíso terrestre.
Na construção da identidade nacional, ao longo do tempo, os rios assumiram
importante papel sustentador. São os rios que unem o “sertão” e que conduzem o progresso.
No caso das monções, conforme análise de Marcela Marrafon de Oliveira (2007), o rio
Tietê se transfigurou como símbolo de grandiosidade. A autora demonstra como a
exaltação do rio Tietê procurava fundir história nacional com história paulista. Dentre seus
maiores propagandistas, destaca-se a figura de Afonso d’Escragnolle Taunay, diretor do
Museu Paulista, conhecido como Museu do Ipiranga, entre 1917 e 1939. Taunay
classificou o rio Tietê como “grande rio de São Paulo, tributário do Paraná,
indestrutivelmente ligado à história da construção territorial do imenso Brasil ocidental”
(TAUNAY, 1981, p. 11).
48
Mas, longe do discurso eloqüente da historiografia de Taunay, os rios reservaram
aos viajantes destinos bem menos gloriosos. O próprio declínio da via fluvial revelou a
crueldade de um sistema nem um pouco ufanista de nacionalidade.
Os rios não aproximaram o “sertão”. Além das dificuldades de navegação, da
resistência indígena e do precário abastecimento ao longo do percurso, pode-se refletir
sobre outra faceta do caminho monçoeiro. Ao tratar dos caminhos de comunicação entre
São Paulo e Cuiabá, Paulo Roberto Cimó Queiroz (2006) analisa o desempenho das
monções a partir do fluxo, maior ou menor, de uma corrente comercial. Para Queiroz
(2006), o entrave para o sucesso da via entre os dois pólos parece ter mais sentido na
fraqueza da corrente comercial. No início do século XIX, o comércio na colônia, voltado
para exportação, experimentava o declínio da produção de açúcar, e a nascente expansão
da lavoura cafeeira. A produção se concentrava nas regiões nordeste e centro-sul. “Em
plena era do capitalismo comercial, a colônia ainda vivia sem indústria de qualquer
espécie” (KOSSOY, 2006, p. 35).
Nessa linha de raciocínio, a manutenção da via de comunicação estava
intrinsecamente ligada à viabilidade econômica da província e das políticas de ocupação
por parte do Estado. Muito tempo depois das monções, a categoria de viajantes que seguia
para Cuiabá continuava a mesma. Os registros do naturalista americano Herbert Smith, que
viajou pela região em 1881, apontam que
A lista de nossos passageiros daria idéia bem apropriada da classe dos
viajantes que vão a Cuiabá. Além do Presidente e seu séqüito, havia um
ou dois empregados civis, um padre, um negociante vindo do Rio, onde
fora comprar gêneros, meia dúzia de fazendeiros ou criadores, e nossa
partida de naturalistas. Os mais eram militares, capitães e tenentes,
pertencentes aos vários regimentos estacionados em Mato Grosso
(SMITH, 2006, p. 267).
As monções duraram cerca de um século, desde o início da descoberta do ouro até
por volta de 1838, quando uma epidemia de febre tifóide atacou a população que vivia às
margens do rio Tietê e que trabalhava nas expedições (HOLANDA, 2000, p. 65). Foi no
final desse período das monções, que a Expedição Langsdorff realizou seus trabalhos. O
percurso mais comumente utilizado eram os dos rios Tietê, Paraná, Pardo, Coxim, Taquari,
Paraguai, São Lourenço e Cuiabá, o que somava cerca de três mil quilômetros (Figura 4).
49
Figura 4: Rota das Monções (HOLANDA, 2000, p. 145).
Os trechos por terra eram denominados de varadouros. Algumas das principais
localidades por onde a expedição passou foi Camapuã, Albuquerque, Cuiabá e fazenda
Jacobina. O Quadro 1 contextualiza tais localidades, de forma sucinta e baseada nos relatos
de Florence.
Quadro 1: Algumas localidades percorridas pela Expedição Langsdorff
Localidade Descrição Comentário
Camapuã
“Os habitantes, privados de qualquer incentivo, apenas
cuidam de colher feijão, milho e cana-de-açúcar que bastem
para seu sustento” (FLORENCE, 1977b, p. 42).
Com o fim das monções, a fazenda Camapuã entrou em declínio.
Florence recebeu notícias sobre ataques de índios Guaicurú nas
imediações da fazenda.
Albuquerque
(Distrito de
Corumbá)
“Moram em Albuquerque, cerca de 300 pessoas, entre
índios, mestiços, caborés e negros crioulos [...]. Os Guaná
vêm de sua aldeia e destinam-se a Cuiabá” (FLORENCE,
1977b, p. 52).
Inicialmente, um núcleo de caráter militar para defender a região
sul da capitania do Mato Grosso. Fundada pelo governador Luís de
Albuquerque, assim como o Presídio de Nova Coimbra, pretendia
prevenir que os espanhóis se apoderassem da via fluvial das
monções, incluindo rio Paraguai, Cuiabá e Jauru (CÔRREA
FILHO, 1969, p. 403). “Os Guaná, que habitavam as margens do
rio Paraguai, foram reunidos no ano de 1819 na Missão de Nossa
Senhora da Misericórdia, no lugar denominado Albuquerque ao sul
mato-grossense” (CRISTINA DA SILVA, 2001, p. 6).
Cuiabá
“Não diria que seja geral, em Cuiabá, a dissolução, mas em
nenhuma parte vi tão grande tendência para o
desregramento” (FLORENCE, 1977b, p. 61).
Capital da província de Mato Grosso, a cidade se tornou um palco
de diferenças, com uma população e organização social bem
heterogênea. Muitos grupos indígenas foram direcionados para
Cuiabá.
Jacobina
(Cáceres)
“A mais rica fazenda da província [...]. Estropiado estava o
braço esquerdo de uma índia velha, conseqüência de bala
com que a feriram os homens do tenente-coronel, durante a
guerra por ele movida à tribo, por causa de rapinas e
assassinatos de que eram vítimas os escravos da Jacobina”
(FLORENCE, 1977b, p. 83).
Hoje município de Cáceres. Foi fundado pelo tenente-coronel João
Pereira Leite, que em 1817, declarou guerra aos Bororo Ocidentais.
51
As características das monções são importantes para entender o percurso fluvial da
Expedição Langsdorff. No mapa da Figura 5, observam-se as bacias hidrográficas do
percurso, a saber, Bacia do Paraná/Paraguai (trecho em território brasileiro) e Bacia do
Amazonas. Pode-se observar também que a maior parte das localidades ou núcleos urbanos
visitados pela expedição pertence aos atuais estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul,
englobando o trecho do bioma pantaneiro.
Figura 5: Localização do trajeto da Expedição Langsdorff em relação às bacias hidrográficas em
território brasileiro
6
.
6
Elaborado por Silvio Bueno Pereira, a partir de dados obtidos pela Agência Nacional de Águas
(ANA), disponível no site www.ana.gov.br.
52
Em seu livro, Relatos Monçoeiros, Afonso Taunay (1981) relatou várias
dificuldades das vias fluviais, como as do rio Coxim, de difícil navegação, as do rio
Paraguai onde não se encontrava água potátel, considerado o trecho mais desfavorável à
saúde dos monçoeiros (TAUNAY, 1981, p. 55). Já o rio Pardo teria a água mais saudável e
o rio Paraguai foi classificado por Florence “como o rio mais navegável do mundo”
(FLORENCE, 1977b, p. 51). O período do trajeto durava entre quatro a sete meses. Com
inúmeros obstáculos, cachoeiras, saltos e corredeiras, os viajantes eram obrigados a se
desfazer de canoas, construir outras, transpor a pé ou a cavalo porções de terra.
Quanto à navegação, era comum iniciar às oito da manhã e ir até cinco da tarde, já
que a neblina escondia os perigos do rio (TAUNAY, 1981, p. 23). Vale destacar que o
modo de navegar dos monçoeiros foi aprendido com os indígenas. Para enfrentar os
perigos das águas revoltas, os tripulantes remavam em pé. As canoas ou batelões tinham
cerca de 12 metros de comprimento e eram feitas de troncos de árvores, como o tucuri,
narrado por Florence (FLORENCE, 1977a, p. 269). Na parte central da canoa ficava a
carga. Na frente, uns 2 ou 3 metros iam seis remeiros além do piloto e do proeiro. Para
lugares mais perigosos, iam um guia ou prático, ou dois para trabalhar alternadamente. O
proeiro tinha o importante papel de marcar o compasso das remadas, além de outras
funções, como, por exemplo, guardar a chave do caixão das carnes salgadas. Este possuía
relativo prestígio por conhecer os rios e a navegação. Normalmente, a tripulação dessas
canoas não passava de trinta tripulantes, mesmo porque o transporte monçoeiro obrigatório
das cargas limitava a tripulação.
Na Figura 6, o desenho de Florence reproduz canoas encalhadas, em virtude do
peso das cargas, resultando na diminuição da profundidade do rio. “Não obstante se haver
retirado metade da carga, a Ximbó encalhou num baixio. Sem perda de tempo, os
remadores atiraram-se à água e a puseram flutuando de novo” (FLORENCE, 1977b, p. 22).
Figura 6: A Ximbó encalhada em um rochedo. Nanquim, a pena, 21,3 x 30,6 cm (CARELLI, 1992, p. 23).
54
Como já mencionado, o trajeto escolhido visava percorrer um caminho ainda não
trilhado por outros cientistas. Antes de embarcar em Porto Feliz, a expedição havia
realizado pequenas incursões pelas províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais (1824-
1825). Já a partir de Cuiabá, a expedição se dividiu em dois caminhos fluviais.
Um grupo seguiu pelos rios Preto, Arinos, Juruena e Tapajós, pelo norte do atual
estado do Mato Grosso e cortando o atual território do Pará. Outro grupo seguiu de Vila
Bela pelos rios Guaporé, Mamoré e Madeira, na direção de Manaus. Ambos tiveram
grandes percalços, somando tragédias que fazem da expedição mais conhecida por suas
desventuras. Para Mário Carelli, em seu livro A descoberta da Amazônia: os diários do
naturalista Hércules Florence, a trágica viagem resumidamente apresenta-se assim:
A navegação é difícil, as etapas muito longas, o calor úmido e
insuportável. Soma-se a tudo aquilo o medo dos selvagens e as relações
tensas entre os membros do grupo: seus inimigos mais sorrateiros não
serão nem as serpentes nem os tigres, mas impiedosos mosquitos, origem
de febres que provocam o delírio (CARELLI, 1994, p. 98).
1.3. Hércules Florence e a expedição em si
Hércules Florence (Figura 7) desembarcou no Rio de Janeiro em 1824. Esse francês,
conhecido também por sua descoberta pioneira da fotografia no Brasil e nas Américas,
viveu uma trajetória muito peculiar (KOSSOY, 1980). Foi um pintor-viajante estrangeiro
que estabeleceu raízes no Brasil e radicou-se na Vila de São Carlos, atual cidade de
Campinas, São Paulo. Durante toda sua vida, dedicou-se às pesquisas científicas,
realizando importantes descobertas em diferentes campos da ciência e da técnica.
55
Figura 7: Fotografia de Hércules Florence, após 1830, 5,2 x 6,8 cm
(MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 359).
Antoine Hercule Romuald Florence nasceu em 1804, em Nice, sul da França,
cidade litorânea do Mar Mediterrâneo. Em sua biografia, Estevam Bourroul escreve que o
mar fascinava o pintor-viajante desde sua infância. Segundo o biógrafo, essa atração era
semelhante à exercida sobre os conquistadores e descobridores de mundos (BOURROUL,
1900, p. 9). O talento do desenhista parece ter surgido a partir de um contexto informal.
Seu pai, Arnaud Florence, chegou a ser professor de desenho da Escola Central do
Departamento dos Alpes Marítimos, e a família de sua mãe, Augustine de Vignallys,
conforme Bourroul, também tinha predileção pelas artes:
56
Hercules cresceu num meio cheio de quadros e de desenhos; abundavam
os painéis, mas escasseavam os livros. Por índole da família e por
tradição, e desprovido de bens de fortuna, como dissemos, Hercules não
podia deixar de ser propenso às belas-artes e entregou-se ao estudo do
desenho. Segundo ele, ‘eu o aprendi sem outro mestre que os modelos
que tinha diante dos olhos, e animado pelos amigos de minha mãe; bem
longe de pensar então que obstáculos sucessivos e o meu gênio haviam
impedir-me toda a vida de ser pintor’ (BOURROUL, 1900, p. 20).
Ainda bem jovem, Florence realizou alguns trabalhos de desenhos e caligrafia
7
. Seu
fascínio pelo mar e pelas viagens, todavia, fez com que ele ingressasse na Marinha Real
Francesa como aprendiz de marinheiro. Conforme autobiografia, em sua adolescência, leu
Robinson Crusoé, The Life and Strange Surprizing Adventures of Robinson Crusoé, de
Daniel Defoe (1719):
Li Robinson, e fiquei apaixonado pelas viagens e aventuras marítimas.
Este gosto me deu o da Geografia, e passava horas inteiras sobre um atlas
bom que nós tínhamos. Não havia um ponto no globo onde eu não
pretendesse ir algum dia. O Mediterrâneo me parecia muito pequeno e eu
apenas pretendia percorrê-lo como se percorre um lago do país antes de o
deixar (BOURROUL, 1900, p. 22).
Pode-se observar, em trechos da Viagem Fluvial, a inspiração na figura literária de
Robinson Crusoé. É possível perceber que não somente em Florence, mas em outros
relatos sobre viajantes europeus no Novo Mundo, as construções narrativas se apóiam em
uma personagem solitária e curiosa, seduzida pelo desconhecido. Mário Carelli (1994)
chega a caracterizar Florence como o novo Robinson. Em certa altura do seu diário,
Florence também nomeia e tipifica seu Robinson:
Lá me surpreendeu a presença de um homem de longa barba, coberto por
chapéu preto de abas largas, trazendo à cinta sabre e bolsa de caçador, na
qual chamavam a atenção compridos pêlos de guariba. Empunhava sua
espingarda e calçava avantajadas botas de couro de veado. Inicialmente,
imaginei estar vendo uma espécie de Robinson, mas logo percebi seus
companheiros, além de remadores e quatro botes. Era o Capitão Sabino,
chegado de Cuiabá, com destino a Porto Feliz, para abastecer-se de
artilharia, pólvora, ferro e sal (FLORENCE, 1977b, p. 27).
7
Quando já residia em Campinas, Florence instalou uma tipografia, a primeira de Campinas e, no
ano de 1842, imprimiu o primeiro jornal do interior do Estado de São Paulo, denominado “O
Paulista”. O jornal foi responsável pela “veiculação de notícias que propagaram o movimento
liberal. Seu idealizador e principal redator foi o padre Diogo Antonio Feijó” (KOSSOY, 2006, p.
83).
57
Não é difícil notar que este imaginário transpôs os séculos. Talvez, a solidão que
acompanhava o viajante fosse mais um indício de sua singular percepção do entorno. Nas
palavras de Bourroul, a solidão de Robinson era composta de três “presenças”. A natureza,
primeiramente, com seus elementos revoltosos, que deveria ser conquistada com a energia
e a invenção. Segundo, Deus, a força da alma no sentimento religioso. E, por último,
Sexta-Feira, o nativo com quem trava um diálogo, por vezes ininteligível para ambas as
partes (BOURROUL, 1900, p. 21).
Ao analisar a chegada de Cristóvão Colombo à América e o seu contato com os
nativos, Tzvetan Todorov aponta para as diferentes formas de observação do viajante. A
perspicácia do conquistador, na observação da natureza, não é a mesma na compreensão
dos indígenas (TODOROV, 2003, p. 24). Descrever a natureza, classificar animais e
plantas, tudo se faz com muita atenção e pragmatismo. Mas em relação a esse “outro”:
A primeira reação, espontânea, em relação ao estrangeiro é imaginá-lo
inferior, porque diferente de nós: não chega nem a ser um homem, e, se
for homem, é um bárbaro inferior; se não fala a nossa língua, é porque
não fala língua nenhuma, não sabe falar, como pensava ainda Colombo
(TODOROV, 2003, p. 105-106).
Como Colombo já antecipava seu julgamento, em sua abstração não havia o que
compreender, aí residia solidão.
Outras leituras necessárias para o jovem Florence foram os livros de matemática e
de física. Faziam parte do sonho de ser marinheiro. No entendimento de Mário Carelli
(1994), a trajetória de Florence coaduna com as idéias do filósofo Jean-Jacques Rousseau:
“nenhum outro livro que não o mundo, nenhuma outra instrução que não os fatos”
(CARELLI, 1994, p. 90). Na concepção rousseauniana, não havia espaço para a autoridade
que limitava a educação a rígidos padrões. A educação natural conduzia à formação do
homem, e nela residia sua liberdade: “que seu aluno não aprenda a ciência: que ele a
invente” (CARELLI, 1994, p. 90).
Nesse sentido, Florence parece ter tido sucesso, revelando um espírito disciplinado
e autodidata. Diversas foram suas invenções e sempre demonstrou desprendimento na
busca solitária do conhecimento, inclusive, no que tange às belas-artes. Em suas palavras:
“Inclinado a tudo o que estava em meu alcance aprender, não podia deixar de dedicar-me
58
ao desenho. Eu o aprendi sem outros mestres que não os modelos que tinha diante dos
olhos” (CARELLI, 1994, p. 91).
Em 1824, Florence embarcou na fragata Marie Thérèze, a convite do capitão du
Rosamel. Após quarenta e cinco dias de viagem, a fragata aportou na baía de Guanabara
(BORROUL, 1900, p. 45). Ao expressar suas primeiras impressões sobre o Brasil, o
francês, de ideais liberais, revoltou-se com a escravidão dos negros:
Atravessei o pequeno largo do Capim, onde se açoitava um negro
amarrado ao pelourinho. Esta cena me revoltou, pois eu era bisonho
quanto à escravidão. Mais adiante via a fachada de São Francisco de
Paula, onde estava escrito em grandes letras: Charitas; e não pude deixar
de maldizer um povo que afetava tanto a caridade e que açoitava os
negros (KOSSOY, 2006, p. 49).
Nesse contato, aponta Bourroul que Florence questionou a religião e a moral dos
brasileiros (BOURROUL, 1900, p. 47). Outra leitura que influenciou Florence foi a obra
do filósofo Abade Raynal, publicada em 1770, Histoire Philosophique et Politique des
Etablissements et du Commerce des Européens dans les Deux Indes. O filósofo ataca toda
forma de opressão e foi um dos primeiros a denunciar a escravatura. Em parte de sua obra,
trata do Brasil, de seus governos, com descrições que “aqueciam as imaginações fogosas e
sedentas de novidades e de saber” (BOURROUL, 1900, p. 15).
O primeiro trabalho de Florence no Rio de Janeiro foi em uma loja de roupas, de
um conterrâneo. Depois em uma tipografia, do também francês Pierre Plancher. Ali teve
notícias da Expedição Langsdorff. Um anúncio de jornal se referia à vaga deixada por
Johann Moritz Rugendas que, em atrito com Langsdorff, abandonou a expedição.
Entretanto, Hans Becher (1990, p. 72) defende que o desentendimento não pode ser
comprovado por documentos, existindo a possibilidade de que o contrato assinado entre
ambos tenha expirado naquele ano. Já Maria de Fátima Costa reforça a idéia do
desentendimento, ao interpretar trechos do diário de Langsdorff e da carta de despedida do
pintor-desenhista. Langsdorff reclamava do “comportamento grosseiro de Rugendas em
uma discussão sobre assuntos relativos à organização da viagem”, enquanto Rugendas não
aceitava o tom autoritário do chefe da expedição. A arrogância de Langsdorff também seria
alvo de críticas do pintor Taunay que chegou a pedir demissão (COSTA, 1995, p. 15;
BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 100)
. Ainda, segundo Costa (1995, p. 14), após a
59
experiência com Rugendas, o barão Langsdorff agiu por precaução contratando outro
desenhista.
Mário Carelli (1995) transcreve o anúncio de Langsdorff, mas não referencia a
fonte: “Um naturalista em preparativos para uma viagem através do Brasil procura pintor.
Às pessoas que preencham as condições necessárias, roga-se que se dirijam ao vice-
consulado russo” (CARELLI, 1995, p. 97). No ano seguinte à sua chegada ao Brasil,
Florence foi contratado como segundo desenhista da Expedição Langsdorff. Florence
deixou o barão impressionado com suas habilidades como desenhista e com seus
conhecimentos de cartografia (KOMISSAROV, 1994). Não houve dúvida de sua pronta
contratação.
O relacionamento de Langsdorff com os artistas parecia ir além de uma questão
temperamental, pois girava em torno do que foi a essencial contradição do artista-viajante
do século XIX: percepção intuitiva versus apreensão científica do mundo (COSTA, 1995,
p. 16). Langsdorff dava sinais de querer conter a criação artística, fruto do idealismo
romântico da época. De personalidade forte e não muito inclinada a dar explicações, o
chefe da expedição encontrou em Florence um apoio fundamental e um artista
comprometido com os objetivos da expedição (COSTA, 1995, p. 18). Em seu diário,
Langsdorff, à certa altura da expedição em controvérsias com o pintor Taunay, declara:
“Como conheço os artistas, aceitei o Sr. Florence, às suas próprias expensas, um jovem
muito mais solícito, que, espero, será de grande utilidade para mim daqui em diante”
(BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 100).
A equipe de Langsdorff era composta pelo astrônomo, Nestor Rubzof; pelo
botânico Luis Riedel; pelo primeiro desenhista Aimé Adrian Taunay e por Hércules
Florence, segundo desenhista. O zoólogo Christian Hasse, embora tenha sido contado, não
chegou a embarcar. Ainda na lista de integrantes da expedição, elaborada por Langsdorff,
no dia 22 de junho de 1826, consta o nome de sua segunda esposa Guilhermina de
Langsdorff. A participação da esposa, pelo menos até Cuiabá, foi investigada pelo
pesquisador Boris Komissarov, baseado em documentação existente em Leningrado
(BECHER, 1990, p. 77).
Apesar das intempéries do trajeto fluvial, do ritmo rigoroso da estação das chuvas,
do calor, da umidade e de muitos, mas muitos mosquitos, a expedição perseguiu seus
objetivos. Em carta do Sr. von Langsdorff à Academia de Ciências de São Petersburgo, o
60
chefe da expedição informou o andamento da expedição. A carta, escrita em Cuiabá, em
abril de 1827, foi transcrita por Manizer (1967) em seu livro A Expedição do Acadêmico G.
I. Langsdorff ao Brasil. É interessante observar os diversos propósitos da expedição nela
relatados:
Pela relação anexa de material zoológico, a Alta Conferência da
Academia de Ciências verá o significativo crescimento que resultará
desta viagem para o Gabinete de história natural. [...] O botânico Riedel
trabalhou para a ciência com muito fervor e com grande êxito; conseguiu
uma coleção magnífica de plantas e sementes raras, que poderão ser
adaptadas, de acordo com as indicações, à coleção do Jardim Botânico
em São Petersburgo. Nestor Rubtsov prosseguiu diligentemente fazendo
suas observações astronômicas, meteorológicas e geográficas, que envio
em anexo para explicação do mapa. O pintor Adrien Taunay desenhou
com habilidade e gosto numerosas e admiráveis vistas e espécimes raros
de história natural. Constituiu-se assim uma interessante coleção de
desenhos.
Tendo em vista que a melhoria dos conhecimentos relativos ao homem
me interessa mais particularmente, esforcei-me por que os pintores da
Expedição preparassem retratos fiéis de representantes de todas as tribos
indígenas que pude observar. Já agora tenho a satisfação de possuir
retratos muito instrutivos das tribos dos caiapós, guaianás, guatós,
xamacocos, bororos e chiquitos. Qualquer pessoa que inadvertidamente
observe essas tribos facilmente se inclina a considerá-las como sendo de
raça mongol. Tenho a esperança de que esta coleção de todas as tribos
brasileiras, após esta excursão ainda muito longa que empreendo,
despertará inusitado interesse.
Além disso, esforcei-me em reunir notas e tudo o que se refira aos
idiomas dos índios [desde o tempo dos jesuítas] e penso que com isso
poderei prestar à ciência um importante serviço (MANIZER, 1967, p. 56).
Os documentos demonstram a rigorosidade metodológica que envolvia a expedição
científica. Flora Süssekind (1990), a respeito desse tipo de viagem, descreve que “os chefes
de expedição pareciam ter bem clara a definição de uma paisagem útil e dos objetos e
espécimes a serem colecionados e registrados nas pranchas dos desenhistas itinerantes”
(SÜSSEKIND, 1990, p. 114). Na carta de Langsdorff, há uma clara preocupação em
mostrar resultados para a Academia de Ciências. Expressões, como “significativo
crescimento”, “grande êxito”, “prestar à ciência um importante serviço” revelam como o
planejamento da expedição estava submetido aos interesses de um grupo científico
estrangeiro.
O território brasileiro, a natureza e os seus habitantes eram, para Langsdorff, um
grande laboratório vivo que precisava ser transportado para a Academia em São
61
Petersburgo. Por isso, as exigências com os desenhistas, uma vez que estes deveriam ser
esforçados e “fiéis” em suas representações. O Barão foi muito influenciado por Johann
Friedrich Blumenbach, especialista em Anatomia e Antropologia, que foi seu professor em
Göttingen. Como médico, interessava-se pelas pesquisas etnográficas para estudar o ser
humano. Segundo Becher, em 1813, Langsdorff enviou à Academia de Ciências de São
Petersburgo a descrição de um botocudo, relatando a semelhança com os índios da costa
noroeste da América do Norte (BECHER, 1990, p. 26).
Ao final da carta transcrita, Manizer lamenta que um plano tão meditado e de início
brilhante tenha fracassado (MANIZER, 1967, p. 57). Parece ser esse um consenso entre os
estudiosos da expedição. O projeto enciclopédico não foi finalizado e, consequentemente,
o tão “precioso” legado científico ficou comprometido. As remessas do material coletado e
as observações realizadas foram profundamente afetadas pelas tragédias da expedição. O
Barão Langsdorff foi acometido de uma “espécie muito aguda de malária, que se refletiu
no sistema nervoso e o fez perder a memória, acarretando ainda outros prejuízos em sua
atividade mental” (MANIZER, 1967, p. 58). A carta de Cuiabá foi a última enviada por
Langsdorff. Em maio de 1828, Florence refere-se à saúde dos membros da expedição
apontando que
Atacadíssimos pela doença, permanecem privados da mínima ação os Srs.
de Langsdorff e Rubzoff. Tão fracos se sentem que lhes é impossível
abandonar a rede. Sua inapetência é absoluta [...]. Conseguira, por minha
vez, entrar em convalescença franca, mas uma tempestade, que me colheu
durante excursão a que certa hora do dia me aventurara, redundou-me em
recaída (FLORENCE, 1977b, p. 115).
Florence comenta também o estado debilitado de Langsdorff, o que impede o
prosseguimento da expedição:
Essa perturbação, da qual nunca mais se restabeleceu, obrigou-nos a ir
para o Pará e voltar para o Rio de Janeiro, pondo assim termo a uma
viagem, cujo plano, antes dessa desgraça, era vastíssimo, pois devíamos
subir o Amazonas, o rio Negro, o Branco, explorar Caracas e as Guianas
e regressar ao Rio de Janeiro, atravessando as províncias orientais do
Brasil. Talvez tivéssemos também tomado outra direção, a do Peru e
Chile, por exemplo. Não havia sido pelo governo da Rússia determinado
ao sr. de Langsdorff nem tempo nem caminho certo (FLORENCE, 1977a,
p. 271-273).
62
O esforço final para que o resultado da expedição chegasse à Rússia coube ao
pintor-viajante e ao botânico Riedel.
No percurso de Vila Bela do Mato Grosso em direção à Bacia Amazônica, deu-se a
morte trágica de Aimé-Adrian Taunay por afogamento no rio Guaporé, o que abalou a
todos da expedição. Taunay era filho de Nicolas Antoine Taunay, integrante da Missão
Artística Francesa de 1816. Filho mais novo de cinco irmãos, foi criado no ambiente
artístico da família. A Expedição Langsdorff não foi sua primeira experiência como artista-
viajante, haja vista que de 1818 até meados de 1820 ele havia participado de uma
expedição ao Oceano Pacífico (COSTA, 1995, p. 14). Florence, Rubzof e Langsdorff
seguiram pelos rios Preto, Arinos, Juruena e Tapajós, na direção de Manaus. Assim,
Florence narra a notícia sobre Taunay:
14 de fevereiro de 1828 – dia nefasto, dia marcado pela mais cruel notícia.
Comunicou-nos uma carta do sr. Riedel que o sr. Taunay se afogara no
rio Guaporé, em Vila Bela. Encheu-nos de consternação esta desgraça
(Florence, 1977a, p. 222).
Langsdorff também anota o recebimento da notícia sobre o falecimento de Taunay.
Seu relato é um misto de elogios e frustração com o desgaste do relacionamento com o
desenhista:
Uma notícia muito dolorosa para mim, embora eu tivesse muitos e muitos
motivos justos para estar descontente com o comportamento do falecido.
Taunay tinha muitos talentos natos: era um verdadeiro artista, um gênio
em todos os sentidos [...]. Quando ele realmente queria trabalhar – o que
era raro –, ele conseguia produzir em uma hora mais do que qualquer
outro artista em meio dia (BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 171).
Quando a expedição teve fim, Hércules Florence esteve com a família de Adrian
Taunay, nesta visita, o pintor-viajante deixou para a família do amigo falecido o seu texto
Esboço da Viagem feita pelo Sr. de Langsdorff ao Interior do Brasil, desde Setembro de
1825 até Março de 1829. Este foi traduzido do francês para o português por Alfredo
d´Escragnolle Taunay (Visconde de Taunay) e publicado pela primeira vez em 1875 e
1876, pela Revista Trimensal do Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico do
Brasil, tomos 38 e 39. Posteriormente, parte do manuscrito foi publicado na Revista do
Museu Paulista, tomo 26, sob o título “De Porto Feliz à Cuiabá, 1826-1827 (Diário da
Viagem de um Naturalista da Expedição do Barão de Langsdorff)”. Houve outras
63
publicações do Esboço da Viagem... em 1941 e 1948. Ambas pela Companhia
Melhoramentos de São Paulo e com muitas ilustrações, sob o título Viagem Fluvial do
Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Em 1977, o Museu de Arte de São Paulo publicou o
diário completo, completado a partir de 1849 que consta o manuscrito Ami de arts livre a
lui-même ou récherches et découvertes sur différents sujets nouveaux, sob o título Viagem
Fluvial do Tietê ao Amazonas pelas Províncias Brasileiras de São Paulo, Mato Grosso e
Grão-Pará (1825-1829), com tradução de Francisco Álvares Machado e Vasconcellos
Florence, descendente de Florence.
A partir de 1830, Florence se estabeleceu na então Vila de São Carlos, onde
constituiu família e iniciou seus experimentos que culminaram com a descoberta do
processo fotográfico. Apesar de expressar “saudades” da Europa, Florence viajou somente
uma vez, em 1855, para encontrar sua mãe. Em 1877, dois anos antes de seu falecimento,
foi aceito por unanimidade como Membro Correspondente do Instituto Histórico
Geográfico e Etnográfico do Brasil, tendo como título de admissão o trabalho Esboço da
Viagem.... .
Cabe esclarecer que as duas edições que são fontes desta pesquisa são diferentes
não apenas pelas traduções (uma de Visconde de Taunay, edições de 1875-1876, 1948 e
1977; outra de Francisco Álvares Machado e Vasconcellos Florence, edição de 1977), mas
pelo próprio conteúdo descrito. Pode-se considerar o texto traduzido por Taunay como um
rascunho, ou seja, anotações realizadas durante a expedição. Já o de Francisco Álvares
como um texto completo, reescrito cerca de vinte anos após o fim da expedição. Este
último é mais lapidado, tendo em vista que há a incorporação de diferentes informações.
Como um texto reescrito com considerável espaço de tempo, não se trata apenas da visão
de um viajante estrangeiro em trânsito, mas de um estrangeiro estabelecido no Brasil e,
portanto, mais próximo da dinâmica nacional.
1.4. Os indígenas em foco no século XIX
É difícil não mencionar o valor dos relatos etnográficos dos grupos contatados ao se
referir à Expedição Langsdorff. Além disso, ao tratar da história dos grupos indígenas, os
documentos concernentes à expedição são sempre uma referência.
64
Nesta altura da discussão, é preciso relembrar as ponderações recentes da História
Indígena que exerce uma auto-reflexão quanto aos seus métodos e abordagens. Assim,
persiste o grande desafio de evitar os equívocos de interpretação, em que os grupos
indígenas possuem papéis estáticos, amorfos, com apenas duas opções: um povo vitimado
ou à margem da própria História (MONTEIRO, 1995; SILVA, 1995).
Em trabalho recente intitulado Viajantes, Mareantes e fronteiriços: relações
interculturais no movimento das monções – século XVIII, Francismar Alex Lopes de
Carvalho (2006, p. 17) afirma que os “desbravadores do sertão” não transitavam por
“desertos” e sim por “territórios ocupados pelos grupos étnicos locais”. A articulação dos
grupos étnicos tem sido relegada a um segundo plano nos estudos historiográficos.
Conforme expôs Francismar Lopes de Carvalho:
Já se tornaram insustentáveis hoje em dia as análises que subestimam as
ações políticas de defesa dos territórios empreendidas pelos grupos
étnicos nativos e as alianças que os portugueses e espanhóis tiveram de
fazer com certos grupos para acessarem com maior regularidade
determinados territórios (LOPES DE CARVALHO, 2006, p. 19).
A historiografia tem retornado às fontes do século XIX e reconhecido comunidades
indígenas com dinâmica própria, interagindo entre si. Isso contraria o mito da passividade
dos indígenas, e da inauguração de sua própria história na chegada dos europeus. Apesar
disso, ainda persiste uma visão oblíqua e distorcida que sustenta conceitos como o
“desbravamento” e os “vazios territoriais”, construída em torno do conflito entre os
primeiros colonos e os grupos étnicos na região mato-grossense e sul-mato-grossense
(SALSA CORRÊA, 1999, p. 92). Essa visão ignora sociedades indígenas já, há tempos
remotos, estabelecidas na região
8
.
Para Manuela Carneiro da Cunha (1992, p. 133), “durante o século XIX, a questão
indígena se converte numa questão de terras com a intenção da conquista do espaço”. A
conquista territorial, as vias de transporte e a região de fronteira ocorreram à custa da
espoliação de terras indígenas. Para o colonizador, a idéia do “sertão”, enquanto
isolamento, excluía a presença de um mundo socialmente ordenado na região. Assim, era
8
Para uma compreensão ampla de territorialidade, deve-se ir além de espaços e fronteiras físicas.
Entre permanências e mudanças, as sociedades definem relações próprias com o ambiente biofísico,
com modos de ser e fazer, promovendo a territorialidade (LITTLE, 2002, p. 3).
65
muito mais conveniente justificar suas atrocidades através da inserção em um “vácuo
social e político” (CUNHA, 1922, p. 13). A autora explica ainda que “civilizar” os índios
compreendia sua incorporação ao Estado. Assim, os índios deveriam se submeter a leis e
costumes regulares, formando um corpo civil, uma sociedade, pois não se reconhecia neles
próprios uma sociedade.
Tendo como exemplo o grupo étnico Mbayá-Guaicurú, é possível observar os
embates do grupo indígena com as autoridades locais na visão de Florence. Tal grupo não
esteve em contato com o pintor-viajante, ele apenas teve “notícias”. A impressão, portanto,
é distinta nesse momento, sua narrativa é baseada em observações externas e oficiais. As
estratégias e interações tratam da relação entre os grupos indígenas e a sociedade nacional,
no século XIX.
Os Mbayá-Guaicurú (HERBERTS, 1998) pertencem à família lingüística Guaikuru.
Ao citar vários grupos, genericamente chamados de Mbayá-Guaicurú, Jorge Eremites de
Oliveira (2002, p. 237) explica que “em tempos coloniais e imperiais seu território
abrangia parte expressiva do curso médio do rio Paraguai, entre o Apa e o Ypané, na atual
República do Paraguai, e parte do alto Paraguai, especialmente o pantanal de Nabileque, no
Brasil, dentre outras áreas”. Os remanescentes desse grupo são os Kadiwéu. A imagem
mais conhecida dos Guaicurú é a figura do índio cavaleiro. Entretanto, Eremites de
Oliveira (2002, p. 238) lembra que conforme documentação comprovada, o grupo não
deixou de utilizar também canoas como meio de transporte durante as cheias.
A partir do encontro com uma monção que procurava novos caminhos entre São
Paulo e Cuiabá, os membros da expedição tomaram ciência dos índios chamados Guaicurú.
A monção comandada pelo tenente Manuel Dias alertou sobre ataques desses índios, tidos
como traidores e desleais:
Em plena paz, mataram um habitante das vizinhanças de Miranda, bem
assim um sargento e certos comandados seus [...]. Para viver em guerra
com os brancos da região, toda a tribo desapareceu dos arredores de Nova
Coimbra e retirou-se rumo a Camapuã, ao Taquari e ao Paraguai
(FLORENCE, 1977b, p. 47).
Percebe-se entre os membros um clima de apreensão com as notícias sobre os
Mbayá-Guaicurú. Diante disso, por precaução, colocaram sentinelas durante a noite e
66
ficaram alertas a qualquer surpresa. As notícias relatavam ataques dos Mbayá-Guaicurú
aos paulistas no século XVIII:
Grande dano às monções que por entre eles passavam [...]. Não poupam
em suas devastadoras correrias nem sequer os espanhóis das margens do
Paraguai, indo mesmo em tempo de paz saquear-lhes as povoações, cujos
despojos vendem aos brasileiros. Não sei se depois de pacificados
continuam nessas práticas (FLORENCE, 1977a, p. 88).
O relato de Florence aponta para uma intensa movimentação espacial do grupo.
Segundo Ana Lucia Herberts (1998, p. 85), apesar do fluxo constante entre o Chaco e o
Pantanal, a área ocupada pelos Mbayá-Guaicurú se restringiu consideravelmente no século
XIX em relação ao território do século XVIII. Florence (1977b, p. 47) menciona a adoção
dos “hábitos de seus vizinhos, os espanhóis”, como o uso do cavalo. Tal apropriação
colaborou para a independência e mobilidade do grupo. Herberts explica que
Com a adoção do cavalo obtiveram grande mobilidade, o que lhes
permitiu percorrer maiores distâncias e se mover mais rápido. A pouca
estabilidade dos assentamentos chaquenhos nos séculos XVIII e XIX
pode relacionar-se também a outros fatores, como a grande mobilidade
eqüestre e a economia botineira, em conseqüência da reorganização de
uma sociedade eqüestre e guerreira, com ataques e assaltos a outros
grupos indígenas, espanhóis e portugueses (1998, p. 101).
O relato de Florence sobre os Mbayá-Guaicurú enfatiza eventos de confronto, como
roubos e ataques. Os índios são considerados agressivos e de índole duvidosa no trato com
todos. Atacaram os paulistas pelo caminho monçoeiro até que “nunca mais puderam barrar
a passagem dos paulistas” (FLORENCE, 1977b, p. 47). Com os portugueses, foram
incessantes os tratados de paz, sem, contudo obter sucesso. Para Florence (1977b, p. 47), o
governo colonial “gostava de resguardar os índios do Brasil” e acrescenta que “embora à fé
dos tratados haja paz no que concerne a eles, embora se lhes dêem presentes e víveres,
costumam irromper inesperadamente agressivos, sem outra razão além do intuito de pilhar”
(FLORENCE, 1977b, p. 48).
No século XIX, antes de 1845, não havia uma legislação indigenista. Em 1825, foi
promulgado o Regulamento das Missões. É o único documento indigenista geral do
Império. Conforme Cunha (1992, p. 11), “Detalhado ao extremo, é mais um documento
administrativo do que um plano político. Prolonga o sistema de aldeamentos e
explicitamente o entende como uma transição para a assimilação completa dos índios”.
67
Cada província agia de acordo com suas próprias diretrizes e conveniências. Com a
independência, restringiram-se ainda mais os atores em torno da questão indígena, pois o
novo Estado brasileiro incorporou em grande medida a posição dos antigos “moradores”
(CUNHA, 1987, p. 167).
Em seus relatos, Florence comenta ainda sobre a política do governo com relação a
povos indígenas, como os Guaicurú,
D. Pedro I observava a mesma linha política: as instruções de seu
governo prescreveram sempre que em hipótese alguma se deviam
maltratar os selvagens, até quando rebeldes, procurando-se, ao contrário,
ganhar por meio de presentes a sua amizade (FLORENCE, 1977b, p. 47-
48).
Passou a fazer parte do discurso oficial, pela atuação do ministro José Bonifácio, os
“meios brandos e persuasivos” no trato com os indígenas. Tal estratégia, porém, não
deixava de ser a pura sujeição, ao jugo da Lei e do trabalho, pois se referia aos
aldeamentos (CUNHA, 1992, p. 7). Sobre José Bonifácio, Cunha afirma que este
[...] aparece, portanto, como o ideólogo da legislação do Império. Em
muitos sentidos, seu projeto continua o do marquês de Pombal: é um
estadista que se preocupa com um substrato para a nação brasileira,
formando-lhe um “corpo” homogêneo, tanto físico quanto civil (CUNHA,
1987, p. 168).
Apesar do discurso oficial, as situações impositivas contra os Guaicurú persistiam
com o uso de diversos tipos de violência. Em seu relato, Florence descreve o encontro com
uma expedição que visava submeter os Guaicurú. Essa expedição era comandada
exatamente pelo tenente-coronel que se tornaria presidente da província em 1826. Segundo
Florence,
Percebemos, com efeito, uma canoa com o pavilhão imperial, carregada
de petrechos e cheia de soldados. Não tardamos a ver outras, ao todo doze,
que transportam Jerônimo e duzentos milicianos, engrossados por cem
homens de tripulação arregimentados (1977b, p. 58).
A leitura dos Guaicurú, proposta pelo relato, conduz a uma imagem selvática, que
cresce “a galope”. Florence prossegue seus relatos descrevendo os ataques aos espanhóis e,
por fim, as relações de poder com outros grupos étnicos, submetendo-os à escravidão.
68
Estão os Guaicuru persuadidos de que são, na escala de valores, o
primeiro povo do mundo, ao qual todos os demais devem tributo e
servidão, e não eximem disto os brancos, que converteriam em escravos,
se pudessem. Desprezam profundamente as raças de cor e escravizam
elementos da tribo Chamacoco (FLORENCE, 1977b, p. 48).
O desenrolar do texto parece apontar para a dicotomia do índio “manso” e índio
“bravio”, onde a discussão girava em torno da humanidade dos índios. De acordo com
Cunha (1992), o século XIX conheceu duas imagens opostas do índio. De um lado, os tupi
e guarani, “virtualmente extintos ou supostamente assimilados, que figuram por excelência
na auto-imagem que o Brasil faz de si mesmo”. Dessa forma, são considerados índios bons
e convenientes. Do outro lado, o botocudo “contra quem se guerreia por excelência nas
primeiras décadas do século: sua reputação é de indomável ferocidade” (CUNHA, 1992, p.
8). Se o discurso nacional encontrava seu emblema na figura do índio tupi-guarani,
conforme relata a autora, a ciência tornou o índio botocudo seu paradigma. Assim, a
curiosidade de naturalistas e viajantes percorreu o país, interagindo com grupos indígenas.
Alguns foram além, levando os indígenas para a Europa, como no caso do príncipe von
Wied-Neuwied, como se fossem empalhados vivos, para saciar as investigações da história
natural. Diante disso, o interesse científico também marcou a questão indígena no século
XIX.
69
2. HÉRCULES FLORENCE EM SEU TEMPO
Ao debruçar sobre o contexto dos registros do pintor-viajante Hércules Florence,
questiona-se acerca de quais personagens e situações compõem as cenas de sua trajetória.
Busca-se também saber quais as informações, desse relato denso e pragmático, que
fornecem pistas sobre a experiência de contato e a imagem construída a partir da trajetória
percorrida. Os pormenores referenciados por esse pintor-viajante conjugam texto e imagem
na narrativa que demonstram o que se passou durante a expedição e a “atmosfera”
perseguida por Florence. Entre as temáticas observadas nas narrativas, verificam-se as
referências ao contato do viajante com povos indígenas no interior do território brasileiro.
Pode-se dizer que Hércules Florence foi um explorador fora do gabinete e por
dentro da curiosidade. Em alusão ao “Gabinete de Curiosidades”, local que precede o
museu. Espaço de coleções, que no século XVI, guardavam artefatos raros, objetos
exóticos e animais “monstruosos”. A catalogação e classificação de objetos da natureza e
de objetos feitos pelo homem era uma forma do homem se relacionar com o mundo
(LARA FILHO, 2006, p. 27). Quando a História Natural se fortalece enquanto ciência
autônoma, os Cabinets de Curiosités viram moda, assim como os jardins botânicos
(PALAZZO, 2007).
Nesse contexto, do contato à representação, surge uma teia de significados e
transformações culturais. A partir do exame da representação visual são reunidos
elementos úteis para a interpretação de realidades sociais e culturais distintas em contato.
A partir de um elenco de imagens, observa-se o gesto em ação, ou seja, o
fazer em determinados momentos da sociedade [...]. O registro
70
iconográfico refaz através das imagens a trajetória de engendramento de
muitas histórias do diverso (CAMPOS, 1994, p. 171).
Esses elementos são importantes para a compreensão histórica e para a percepção
da potencialidade dessa imagem no presente. Na análise da iconografia indígena,
novamente parte-se do desafio vivenciado pela História Indígena como um todo. “Oferecer
um contraponto das dinâmicas locais e regionais para se repensar tanto as abordagens
estruturalistas quanto as teses globalizantes de décadas anteriores” (MONTEIRO, 1995).
Outro ponto desafiador na pesquisa iconográfica é a identificação das interações
culturais, expondo as lógicas do retratado e do retratista em contato. Como lembra Lilia K.
Moritz Schawrcz:
Em lugar da noção de culturas ‘puras’, ou conspurcadas pelo encontro,
vários trabalhos insistem atualmente nas estratégias de negociação e de
reformulação de identidades: na fronteira. Sem incorrer no erro de supor
que os contatos culturais se travam de modo harmonioso e igualitário,
trata-se de investigar como elementos externos foram relidos pelas
culturas locais, não só porque revelavam imposição política, mas,
também, porque faziam sentido em determinado contexto, em si
significativo (SCHAWRCZ, 2005, p. 129).
Em busca dos elementos externos à retratação em si, este capítulo reflete sobre
Hércules Florence e o seu tempo histórico. Janice Theodoro, ao discorrer sobre os relatos
de Alvar Nunez Cabeça de Vaca, explorador das Américas no século XVI, e do pintor-
viajante Hércules Florence, destaca o que se encontra latente também na representação
visual.
Os objetos e as experiências alinhavados seqüencialmente deixam
transparecer apenas visões da história, ou, se o leitor preferir, o percurso
dos olhares nos narradores. Não se trata, portanto, de buscar um sentido,
mas analisar a relação, sempre inédita, do narrador com o seu tempo;
relação que torna possível caracterizar formas diferenciadas de
percepção do mundo (THEODORO, 1996, p. 74). (Grifo meu).
Se no século XVI, havia admiração e surpresa com o Novo Mundo. Já no século
XIX, este mundo devia ser organizado conforme a superioridade do Velho Mundo
(THEODORO, 1996, p. 75). Vale ressaltar aqui que entre as compreensões da expressão
71
Novo Mundo, Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra Visão do Paraíso, associa o novo
com um cenário paradisíaco.
Novo não só porque, ignorado até então, das gentes da Europa e ausente
da geografia de Ptolomeu fora ‘novamente’ encontrado, mas porque
parecia o mundo renovar-se ali, e regenerar-se, vestido de verde imutável,
banhado numa perene primavera, alheio à variedade e aos rigores das
estações, como se estivesse verdadeiramente restituído à glória dos dias
da Criação (HOLANDA, 1969, p. 204).
O paraíso era o lugar perfeito para a curiosidade humana e a transformação da
ciência e da arte. Unidas para moldar um mundo concebido naturalmente em desordem.
No século XIX, a linguagem dissocia, torna o mundo intransitivo, como
se fosse uma galeria de animais empalhados, esqueletos, peixes, plantas e
pinturas que ilustram o mundo das diferenças. A convenção da
veracidade, e não a verdade, pauta algumas vezes a conduta de
determinados desenhistas e pintores. Mas é esta convenção que afasta e
torna cegos os homens que copiam e, assim, segregam (THEODORO,
1996, p. 83).
Para Theodoro (1996), as representações iconográficas fazem parte de um corpus
do pensamento europeu, forjado numa perspectiva de longa duração, desenvolvida por
Fernand Braudel, como estruturas que permanecem e se modificam muito lentamente ao
longo dos séculos (BRAUDEL, 1978). O olhar diferenciado sobre a América, entretanto,
custou muito caro a seus habitantes. No enfrentamento das concepções de mundo, entre
culturas distintas, existem realidades latentes e ocultas aos olhos mais desavisados. A
proposição é que “detrás da curiosidade está a emergência de um mundo novo que resiste à
imposição das convenções habituais” (GIUCCI, 1992, p. 169). Este trabalho, no escopo
dessas colocações, reflete sobre as representações do índio na iconografia do pintor-
viajante Hércules Florence.
72
2.1. Imagens que forjam visões
Ao analisar o olhar dos pintores-viajantes, Flora Süssekind argumenta que os
relatos buscavam inaugurar a paisagem brasileira. As expedições científicas serviram para
a formação do Estado-nação, na medida em que nomeavam lugares e cenários,
selecionando o que deveria ser destacado no Brasil no século XIX:
Sugerem, de um lado, um saber técnico, um modo de olhar e classificar
racionalmente figuras e vistas [...] e, de outro um ‘Brasil pitoresco e
histórico’ decisivo na figuração romântica de uma paisagem singular,
intransferível e delimitada como ‘nação’ para o país. As pranchas do
pintor-viajante não só figuram um Brasil, como ensinam a figurá-lo, a
descrevê-lo. E se mostram bastante eficazes (SÜSSEKIND, 1990, p. 39).
Ao longo da história, as imagens elaboradas pelos pintores-viajantes foram
utilizadas como suportes imagéticos de um Brasil “real”. No âmbito da educação, por
exemplo, estão presentes em livros didáticos, como ilustrações de “autoridade didática”.
Nos meios de comunicação, ainda transitam como “legítimas” representantes do cenário e
da história brasileira. Assim, ajudam a formar um imaginário sobre os povos que aqui
viviam antes da chegada do colonizador.
Diante disso, percebe-se que sem uma leitura crítica e aprofundada do contexto das
produções imagéticas, o que se observa é uma seqüência de equívocos no entendimento da
história e de seus personagens. As pesquisadoras do Museu Paulista da Universidade de
São Paulo, conhecido como Museu Ipiranga, Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de
Carvalho, relatam um desses equívocos ao desenvolverem uma pesquisa junto ao público-
alvo do museu. Segundo as pesquisadoras, muitos visitantes confundem a data do evento
histórico com sua representação pictórica e, conseqüentemente, a produção e a circulação
da obra artística. A pesquisa identificou o problema de anacronia que não deve ser um fato
isolado na observação das pinturas históricas. Para Lima & Carvalho (2005, p. 54), cabe
aos pesquisadores das ciências humanas, envolvidos com os sistemas documentais
institucionais, “fornecer elementos necessários para que o repertório formal das imagens
possa ser compreendido e utilizado pedagogicamente em experiências que extrapolam o
âmbito restrito da academia”.
Em rápida investigação nas capas dos livros empilhados nas livrarias, é possível
perceber que categorias como História, Arte ou Literatura estão recheadas de conteúdos
73
imagéticos produzidos pelos pintores-viajantes do século XIX. São escolhas visuais muitas
vezes aleatórias, seja por falta de critério ou por desconhecimento. Tais contextos acabam
configurando novas leituras dos trabalhos iconográficos. Mas, ao reproduzir cenas,
ambientes e personagens, o campo mercadológico de difusão cultural parece apenas
reproduzir estereótipos.
O missiólogo Paulo Suess, ao tratar do trabalho político-pastoral, que visa o
protagonismo dos povos indígenas, alerta que a imagem enquanto representação, visão de
mundo e paradigma, tem muito mais força de comunicação nas relações humanas que os
conceitos. O imaginário, em vários momentos e de várias formas, confunde-se com a
realidade. De fato, imagens mentais e realidade estão de tal forma imbricadas que pautam
as relações com o “outro”:
A imagem cria afetos e sentimentos operacionais [...]. Historicamente, a
sociedade brasileira privilegia a imagem do colonizador sobre o
colonizado. Nesta visão, o índio é preguiçoso, improdutivo, atrasado e
infantil. Trabalhar o imaginário e as representações negativas nas
respectivas sociedades nacionais é um imperativo pedagógico (SUESS,
1997, p. 30).
Imagens visuais se projetam a partir de imagens mentais. Em compasso próprio, a
visualidade se constrói nesta interação. Conforme a abordagem do campo de estudos em
cultura visual, a visualidade se refere aos discursos e práticas, historicamente situados, que
constituem a experiência visual (MENESES, 2003). Por isso, nesta pesquisa, o termo
visualidade étnica é utilizado para compreender o processo de construção da imagem que,
no terreno da percepção visual, forma uma projeção a respeito do “outro”.
A visualidade étnica se desenvolve graças a diversos atores em interação, a saber:
(1) o artista que retrata; (2) o retratado que pode ou não ter acesso às imagens, mas que não
deixa de apropriar-se desse mecanismo artístico para construir suas próprias representações;
(3) o que cria novamente, manipulando a posteriori e, em outros meios modificando
sentidos, (4) os observadores externos que encontram a criação em diferentes momentos,
aliando um repertório próprio de significação. Do conjunto de observações e interpretações,
surge a experiência visual. No caso da imagem com conteúdo histórico, a leitura se
processa no senso comum enquanto uma experiência de contato com o passado. Na
visualidade étnica, então, uma imagem incluída, repetidamente em diferentes
circunstâncias históricas, serve às posturas e visões com respeito a esse “outro”.
74
2.2. A iconografia indígena de Hércules Florence
À primeira vista, parecem ser poucas as ilustrações de Hércules Florence que
participam do repertório da visualidade étnica se comparadas a outros pintores-viajantes do
mesmo período. Essa é apenas uma afirmação superficial, pois não há subsídios suficientes
e, não é prioritário, nesta pesquisa, levantar uma estatística sobre o uso e apropriações
dessas imagens. A iconografia de Florence ligada ao interior paulista, como a retratação
das monções, é bem mais difundida. Afonso d´Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay,
chamou Hércules Florence de patriarca da iconografia paulista. Em seu livro Relatos
Monçoeiros, Taunay escreve que
Não fora o benemérito artista filho de Nice e radicado na Província de
São Paulo, e em Campinas, nada teríamos, por assim dizer, da iconografia
monçoeira. Acha-se escusado e lembrado o nome de Hercules Florence
inapagavelmente ligado à nossa xeno-iconografia pelo vulto dos
inestimáveis serviços a ela prestados (TAUNAY, 1981, p. 25).
Quanto à iconografia indígena, Taunay aponta que “a sua contribuição
matogrossense não é menos preciosa e os seus esboços etnográficos amazônicos
mereceram os mais rasgados elogios de altas autoridades etnológicas” (TAUNAY, 1981, p.
26). Para Thekla Hartmann (1970, p. 154), os registros de Florence colocaram em
evidência grupos indígenas brasileiros que estavam “até então ausentes do panorama
iconográfico”. Hartmann (1970, p. 154) afirma que Hércules Florence e Aimé-Adrien
Taunay foram “os melhores desenhadores de índios de todos quantos visitaram o Brasil no
século XIX, em termos do valor documental de seus trabalhos”.
Ao constatar a significativa contribuição etnográfica dos relatos de Florence, pode-
se deduzir ser tímido o seu consumo em arquivos e publicações. A princípio, sugere-se
quatro questões baseadas na inferência acima.
Primeiramente, a maior parte dos documentos concernentes à Expedição
Langsdorff permaneceram quase um século nos porões da Academia de Ciências de São
Petersburgo. Dessa forma, ainda hoje, o acervo presente no Brasil é desconhecido por
muitos (KOMISSAROV, 1994). Em segundo, imagens e relatos em documentos que
ficaram no Brasil estão sob a guarda da família, o que reforça seu acesso restrito. Em
terceiro, o trabalho do artista com o processo fotográfico pode ter se sobreposto aos seus
75
registros iconográficos da expedição, de modo que lembra-se mais de Hércules Florence
como “inventor no exílio”, que como pintor-viajante
9
. Em estudo sobre arte e ciência no
século XIX, Rosana Horio Monteiro (2004, p. 20) discute o trabalho de descoberta da
fotografia no Brasil por Hércules Florence. A autora critica a intitulação “inventor no
exílio” abordando que foram múltiplas descobertas da fotografia. A visão do contexto
brasileiro na época de Florence, como totalmente contrária ao desenvolvimento científico e
tecnológico, é um dos muitos estereótipos sobre o país no século XIX. Para os amantes de
uma boa polêmica é certo que a descoberta da fotografia tenha maior atenção.
Outra colocação, importante para este trabalho, diz respeito às características do
registro visual de Florence ou em linguagem artística, seu estilo de representação. Os
desenhos e pinturas de Hércules Florence são realistas e descritivos e não guardam
elementos poéticos. O traçado é nítido e predomina a linha sobre a cor na maioria dos
estudos realizados durante a expedição (COSTA, 1995). O desenhista buscava organização
e, por isso, era criterioso. Seus critérios pareciam mais balizados pela ciência do que pela
arte em si.
Supõe-se que se o estilo de representação de Hércules Florence com pormenores
científicos não deixa espaço para a imaginação. Logo, sua apropriação contemporânea tem
menor impacto para redações e editoriais de mercado, (re)produtores da mesma sensação
de fantasia, chegando ao teatral, da literatura de viagem do século XIX. A imaginação diz
respeito às leituras iconográficas que sustentam a imagem de um índio “primitivo”,
“exótico” e “estagnado no tempo” (CUNHA, 1992, p. 135). Essa observação crítica aponta
para a possibilidade de vários momentos em que o desejo refletido na imagem do “outro” é
qualquer um, menos o que o “outro” quer que seja.
Boris Kossoy (2006) explica que o olhar científico do artista preenchia exatamente
as demandas da expedição. “Os conhecimentos de cartografia confirmam um dos seus
múltiplos interesses científicos” (KOSSOY, 2006, p. 63). Somam-se a isso um espírito de
aventura e um talento artístico.
9
Trabalho recente da estudiosa Dayz Peixoto Fonseca, que se dedica à história cultural da cidade
de Campinas, destaca Hércules Florence enquanto desenhista e pintor. O livro intitulado O Viajante
Hércules Florence – águas, guanás e guaranás foi lançado pela Editora Pontes, Campinas, 2008.
76
Entretanto, Florence tinha dificuldades de representação quando se tratava de
paisagens, tema em voga nos cânones artísticos do período (HARTMANN, 1970, p. 156).
Para interpretar paisagens, Florence se valeu da composição de cenas, guardando
semelhança com pintores acadêmicos do século XVIII (COSTA, 1995). Com esboços
precisos, o relato buscava a realidade na retratação. O seu olhar diferenciado, já
preconizava seu interesse pela fotografia. Do ponto de vista da trajetória pessoal do pintor-
viajante, essa afirmação confere coerência de um curioso pelo processo de fixação da
imagem.
A narrativa de Florence tem como fio condutor uma clara preocupação com o
prosseguimento de suas anotações. Do seu empenho na viagem dependeria o destino de
suas colocações textuais e visuais.
Talvez se tornem por fim enfadonhas as descrições que faço das
cachoeiras, porque sou obrigado a repetir quase sempre a mesma coisa e
tudo se resume em água, espumas, rochas e ruídos, mas delas todas dou
conta, do mesmo modo que um diário de bordo relata as menores
alterações da atmosfera. Para trabalho posterior e mais limado, ficará
suprimir o que for supérfluo: entretanto tenho para mim que tais
pormenores não deixam de interessar, ainda quando se reproduzam
algumas vezes, por darem o conhecimento circunstanciado dos lugares e
a história individuada de uma navegação penosa e um tanto fora do
comum (FLORENCE, 1977a, p. 82).
Chegar a “dar conhecimento” superava a narrativa, que poderia ser “enfadonha”,
mas útil para seus propósitos. E “suprimir o que for supérfluo” indica o molde seletista que
envolvia a literatura de viagem. Para Florence, o leitor estava entre o enfado e o
entusiasmo. Da descrição repetitiva e detalhista, o enfado. Das expressões absolutas que
encerram a natureza, o entusiasmo. A literatura de viagem era avidamente consumida
como bem cultural (SALLAS, 2006). Essa nova configuração demandava imagens e mais
imagens do novo continente. Os autores e ilustradores esperavam a recompensa da
publicação, o que não foi diferente com Florence.
77
Após a expedição, em 1836, no manuscrito L´Ami des arts livré à lui-même, (O
Amigo das Artes abandonado à própria sorte), nas páginas 135 e 136, Florence reclama
para si
10
:
A genialidade consiste tanto em inventar como em ter satisfação com o
que é inventado. [...] O que mais nos interessa conhecer é o ser humano,
ou seja, nós mesmos. Ora, um filósofo que queira escrever sobre o
homem moral se vê obrigado a falar de si, ou a descrever a si mesmo,
pois conhece a si mesmo mais do que conhece os outros e, nesse caso, ele
pode, pelo menos, escrever para aqueles que sejam vítimas das mesmas
paixões ou fraquezas. O homem nada é sem o homem. Quem inventa
uma arte deve trabalhar por muito tempo sem lucrar coisa alguma e se
arrisca a jamais colher os frutos de sua invenção por toda a vida. Daí, a
infelicidade de tantos homens de gênio que passaram por uma vida de
amarguras e da glória deste mundo (levam) apenas o túmulo (KOSSOY,
2006, p. 355).
De fato, Florence não se considera um gênio. Em seus escritos demonstra se sentir
isolado do mundo, o “mundo civilizado”.
O gênio não conhece entraves. Quanto a mim, conheci-os durante toda a
minha vida! Mistérios sublimes foram-me desvelados em meu sepulcro
de trinta anos. Não me faltou coragem, mas um peso férreo tombava
sobre mim, a cada esforço que eu fazia. Sei que não sou o único que vive
na sombra! (FLORENCE, 1977b, p. 55).
Entre um viajante-cientista e um viajante-desenhista, é possível inferir que
Hércules Florence se exaltava mais em seus conhecimentos do que nas habilidades com a
pena e o papel. A busca da realidade imagética não deve ser tratada apenas pela ótica
romântica de mais uma “descoberta”. O descobrimento é filtrado pelas demandas da
ciência. A configuração da narrativa parte de uma metodologia positivista de dar conta da
totalidade dos fatos e artefatos, tornando-os úteis nas relações com o Novo Mundo. Esse
embate, sempre presente, constrói uma vitrine da fauna, da flora e dos diferentes povos
contatados.
10
O texto se encontra, transcrito e traduzido, no livro Hercule Florence: A Descoberta Isolada da
Fotografia no Brasil, de Boris Kossoy, 3 ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2006.
78
Os desenhos e as pinturas de Florence revelam um observador-cientista com o
apoio de um observador-artista para se expressar. Ambos, porém, são revestidos de um
toque de modéstia por quem ansiava os efeitos da publicação dos seus escritos.
A vigorosa variedade das mais pitorescas paisagens constitui, aqui, muito
com que possa ocupar-se um pintor. E a um geólogo não escapariam, nas
formas abruptas do São Jerônimo e nas camadas longitudinais das
montanhas, os traços de formidáveis revoluções, que, se não culminaram
com a subversão da crosta terrestre, abrangeram, seguramente, todo o
centro da América.
Todo esse sublime panorama, porém, é tão somente o proscênio das
maravilhas que nos esperam um quarto de légua mais adiante. Onde me
abasteceria de expressões para descrever o que vi? Sei que não passo de
iletrado autor, cujos escritos jamais se publicarão. Mas, se todos os dons
do gênio e da fortuna me deviam ser recusados, por que recebi a
faculdade de sentir, conhecer, inventar, tanto quanto realizaram muitos
dos grandes valores de que se honra a humanidade? Para pintar o que vi
na chapada, só me faltam expressões. Se as encontrasse, tão exatas e
adequadas, quero crer que as poderia repetir vinte vezes, narrando esse
meu encontro com a suprema beleza: meus leitores me leriam até o fim,
sem se cansarem de meu entusiasmo (FLORENCE, 1977b, p. 69).
Nessa perspectiva, seu registro se submete ao cumprimento de suas tarefas em
viagem, que eram relacionadas à ilustração. Logo, o código da representação iconográfica
perpassava a visualidade étnica pelo cunho científico. As paisagens e cenas de “suprema
beleza” eram apropriadas pelo pintor-viajante, elaborando ações ativas e imperativas.
Conforme Mário Carelli (1994), o projeto da Expedição Langsdorff guardava
características tão fortes de cientificismo que na contratação dos viajantes, o barão desejou
contemplar o máximo de especialidades que fosse possível. Isso tem conseqüências diretas
no trabalho de Florence, pois este nutria um bom relacionamento com Langsdorff, além de
se mostrar mais comprometido com o destino da expedição (COSTA, 1995, p. 18). Assim,
expõe Carelli: “Este cuidado taxinômico estende-se aos acidentes geográficos, às
observações climatológicas, assim como aos índios, às suas línguas, aos seus usos e
costumes” (CARELLI, 1994, p. 94). Esse prolongamento na forma de ver a natureza,
incidindo sobre as populações nativas, faz parte da concepção forjada nos esquemas do
século XIX. As culturas evoluíam em conjunto com a evolução biológica dos seres
humanos (HARRIS, 1995).
Dentre os desenhos de Florence, destacam-se os relacionados à flora, à fauna e aos
seres humanos, respectivamente, demonstrando o ponto de vista científico de sua
79
representação (Figuras 8 a 13). As legendas de flora e fauna seguem ordem: nome
científico, responsável por sua classificação, ano de classificação/reconhecimento e nome
comum. Para avaliar a importância científica do material obtido pela Expedição Langsdorff,
grande parte dos exemplares coletados só veio a ser cientificamente descrito muitos anos
depois (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 16). Em todos está presente o que é observado com
detalhamento de vistas e suas especificidades.
Figura 8: Vellozia flavicans Mart. ex Schultzes. Canela-de-ema
(MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 278).
80
Figura 9: Crotalus durissus Linnaeus. 1758. Cascavel (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 305).
Figura 10: Ageneiosus brevifilis Valenciennes, 1840. Peixe-palmito (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 300).
Figura 11: Detalhe de Crecnicichla vittata Heckel, 1840. Joana-guenza. Acestrorhynchus altus Menezes, 1969. Peixe-cachorro
(MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 296/97).
83
Figura 12: Negra Cabinda. Diamantino. Fevereiro de 1828 (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 330).
84
Figura 13: Índia da Chapada, filha de um Paresi e uma Bororo. Guimarães, Maio de 1827
(MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 108).
Percebe-se que todos os desenhos seguem uma configuração bem parecida. O todo
e as partes estão em alternância de cor e traço. A segmentação da informação visual reside
na busca da maior compreensão do foco da observação. Os inscritos destacam no canto
inferior esquerdo o local e a data do desenho, precedidos pela designação do retratado no
centro. No canto inferior direito, a assinatura do pintor-viajante, com a expressão em latim
fecit, que quer dizer feito por Hércules Florence. Tudo parece ser descrito para não escapar
detalhes da pesquisa científica, de modo que a paleta do pintor busca quase uma ação
microscópica. Na Figura 8, a Canela-de-ema (Vellozia flavicans), planta nativa do cerrado
brasileiro, de uso ornamental e medicinal, tem detalhes da superfície do caule em duas
perspectivas. A cobra Cascavel (Crotalus durissus), na Figura 9, está retratada pelas
divisões cabeça, corpo e cauda, remetendo-se à dissecação realizada em laboratório. Na
85
Figura 10, a retratação do Peixe-palmito (Ageneiosus brevifilis) destaca a lateral e a vista
superior. Na Figura 11, o pintor-viajante registra também no canto superior direito as
medidas do peixe retratado.
No caso das ilustrações de tipos humanos, ambos possuem vista frontal e lateral. A
Figura 12 retrata uma mulher negra com marcas pelo corpo. O desenho da vestimenta
fornece a pista de que foi despida para a retratação das marcas. As escarificações são
marcas culturais que indicam sua condição social, passagem da adolescência para idade
adulta. Cabinda é a região de onde ela provém, noroeste da Angola (MONTEIRO & KAZ,
1998, p. 374). A Figura 13, da índia, em perfil, valoriza o registro da hipertrofia no
pescoço, chamado bócio, enfermidade ligada à falta de iodo no organismo. O Barão
Langsdorff, que era médico, deu especial atenção às doenças e pestes, e também tinha
grande interesse por fórmulas medicinais provenientes da natureza.
Durante a navegação penosa, através do percurso fluvial rumo ao encontro com as
tribos indígenas, Florence discursa sobre vários assuntos. Para todos, possui detalhamento,
como pequenas ramificações de uma grande árvore de conhecimento. Descrições de usos e
costumes, para populações de pardos, mulatos e índios. O pintor-viajante discorre com
desenvoltura sobre economia, medicina e as vias de comunicação. Paisagens, flora e fauna
se somam em uma narrativa que privilegia as referências científicas e concludentes. Há
uma mistura de uma didática extrema, com termos especializados e uma linguagem prolixa.
A relação de Florence com a ciência chega a ser perturbadora. No diário concluído após a
expedição, ele desabafa: “Minha linguagem extravagante resulta, todavia, de minha
particular situação: a de quem tanta amargura experimentou, por apaixonar-se pela ciência
(FLORENCE, 1977b, p. 15).
Sobre as narrativas de Florence, Maria de Fátima Costa afirma que
Seus textos não foram concebidos como um relato pessoal de aventuras e
impressões subjetivas de uma viagem; sua intenção foi a de documentar
as etapas do empreendimento de pesquisa científica do qual participara. O
espírito de busca, de pesquisa e de criação foi uma constante durante toda
a sua vida (COSTA, 1995, p. 18).
Para Boris Kossoy é possível que o pintor-viajante fez uso da câmera escura. A
câmera obscura remonta os tempos de Leonardo da Vinci (1452-1519) que deixou
minuciosa descrição em seu livro de notas sobre os espelhos (MORAIS DE OLIVEIRA,
86
2005). Princípio básico da máquina fotográfica, tratava-se de uma caixa portátil de 60 cm
com um pequeno orifício para entrada de luz. A imagem se projetava invertida na parede
oposta sobre um espelho. Através de um vidro, o artista podia traçar a imagem vista no
papel. Desde o século XVIII, muitos artistas estudavam a realidade projetada através desse
mecanismo, para aprimorar suas gravuras.
Em trabalho fotográfico, elaborado seguindo os passos da expedição, o historiador
Kossoy registrou a semelhança entre as fotografias e os desenhos de Florence (Figuras 14 e
15). As fotografias ilustram a edição do diário Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas –
pelas províncias brasileiras de São Paulo, Mato Grosso e Grão-Pará (1825-1829), editado
pelo Museu de Arte de São Paulo, com tradução de Francisco Álvares Machado e
Vasconcellos Florence (1977). Trata-se do manuscrito reescrito por Florence a partir de
1849.
A partir do registro do mesmo local e ponto de vista, aspectos como a perfeita
perspectiva reforçam, segundo Kossoy, a “fidelidade” da representação de Hércules
Florence.
Figura 14: Expedição no Porto de Cuiabá, contra os índios Guaicurú. (Col. Cyrillo Hércules Florence) (FLORENCE, 1977b, p.62).
Figura 15: Vista do local onde se situava o antigo porto do Rio Cuiabá (Boris Kossoy) (FLORENCE, 1977b, p.62).
89
Além da representação próxima do real, os seus registros iconográficos surpreendem
nas questões cartográficas e históricas, como, por exemplo, quando a expedição encontra o
marco de Jauru (Figuras 16 e 17), na embocadura do rio Jauru. Marco limítrofe das colônias
de Portugal e Espanha, fixado por ocasião do Tratado de Madri, em 1750.
Figura 16: Pirâmide “Sub Ferdinando VI” (FLORENCE, 1977a, p. 208).
90
Figura 17: Vista do marco representativo do Tratado de Madri (1750). Foi trasladado da margem
direita da embocadura do rio Jauru para a praça da cidade de Cáceres, MT (BORIS KOSSOY)
(FLORENCE, 1977b, p. 94).
91
Verifica-se que a fidelidade com o padrão “realístico” é quebrada por meio de um
desenho de paisagem que apresenta uma vista dos rochedos da chapada próxima a Cuiabá
(Figura 18). Nesse desenho, visualiza-se um grupo de índios à direita. Porém, no texto escrito,
nas duas edições analisadas, o pintor-viajante não deixa clara a presença do grupo de índios
Guaná no momento da retratação.
Nela pus um grupo de índios Guaná que vinham trabalhar nas fazendas por
60 réis diários. O traje que mal lhes cobre a nudez do corpo e os cabelos
compridos dão-lhes tal ou qual parecença com certas tribos que vivem perto
de ruínas célebres no Oriente (FLORENCE, 1977a, p. 154).
Na derradeira vista, introduzi um grupo de índios Guaná, que se dirigiam às
fazendas, para trabalhar a 60 réis por dia. As roupas que só pela metade lhes
tapa a nudez do corpo, assim como suas compridas cabeleiras, lhes
emprestam bastante semelhança com certas tribos que vivem perto de
conhecidas ruínas no Oriente” (FLORENCE, 1977b, p. 63).
Vale ressaltar que, por um lado, as expressões de Florence, “colocar” e ”introduzir”,
podem ou não se relacionar com o fato de o grupo estar presente à cena. Contudo, por outro
lado, como o esboço está a lápis e sem muitos detalhes, não há como conferir tal informação.
Figura 18: Vista dos rochedos da Chapada, nos arredores de Cuiabá (FLORENCE, 1977a, p. 153). Destaque para o grupo de índios Guaná.
93
A paisagem representada, entretanto, não se guia por sua relação com a realidade,
pois não cabe a objetos visuais uma idéia positivista do documento. Interpretá-la como
fonte de informação é apenas uma das possibilidades que o debate historiográfico pode
propor (MENESES, 2003, p. 29). Diante disso, o historiador Boris Kossoy e outros
estudiosos sustentam o grande rigor documental da obra de Florence.
As vistas de Florence, tomadas durante e após a Expedição Langsdorff,
são cuidadosamente construídas segundo os cânones tradicionais da
perspectiva. São imagens que muitas vezes reproduzem de forma
simplificada o assunto, porém revelando a sua essência; inexiste a
montagem ou a idealização da paisagem. Apenas o traço puro ou a cor
discreta e necessária para retratar o mundo visível, tal como se apresenta
em sua implantação espacial, em sua natural distribuição topográfica
(KOSSOY, 2006, p. 64).
Diante das análises realizadas neste trabalho, percebe-se que o rigor documental de
sua obra não se opõe a uma dinâmica interpretativa com eventuais lacunas na
representação visual. O debate gira em torno do seu estilo de representação, que confere
características e usos específicos do seu relato.
Ainda, segundo Boris Kossoy, em anúncio de jornal
11
, antes do seu ingresso na
expedição, o próprio pintor-viajante anuncia suas habilidades:
Em julho de 1825, comunicava, em periódico local, que: ‘todas as
pessoas que tiverem de mandar copiar mapas, plantas e desenhos de
qualquer objeto podem falar com Hercules Florence, em casa do Sr.
Plancher, Rua do Cano, 113, na certeza de que ele se apressará a
desenhar as suas obras com todo o asseio e exatidão necessária’. Pouco
tempo se passaria para que Florence tivesse a oportunidade de colocar
todo o seu talento à prova (KOSSOY, 2006, p. 51). (Grifo meu).
Em suas anotações L´Ami des arts livré à lui-même, de 1837, na página 57, ao
relatar suas pesquisas sobre a fixação das imagens na câmera escura, Florence afirma que
Conhecendo todo o trabalho que exige a arte da pintura – penetrada pelas
inúmeras belezas que oferece a natureza, às quais muitas vezes é preciso
11
Diário do Rio de Janeiro, 20 de julho de 1825 (KOSSOY, 2006, p. 51).
94
renunciar em função de dificuldades que provêm da própria arte e de mil
circunstâncias da vida que parecem se opor, e eu até diria, com pesar,
condenar uma arte tão bela -, disse a mim mesmo: não haveria meios de
obter desenhos de todos os objetos sem tanto trabalho quanto o que
empregamos? (KOSSOY, 2006, p. 385).
Sobre as possibilidades do registro pela câmera escura, Florence ainda acrescenta
na página 59 que
Entretanto, e apesar da atual precariedade, este meio de obter desenhos
feitos pela natureza – e não pela mão do homem – não seria um fato novo
e muito interessante nas artes? Não seria possível aperfeiçoá-lo? Não
teria eu iniciado uma arte, mais do que maravilhosa, de desenhar qualquer
objeto, de reproduzir qualquer paisagem, sem ter o trabalho de fazê-lo
pessoalmente? (KOSSOY, 2006, p. 387).
A fidelidade da representação em relação ao objeto é a base para a argumentação
do valor etnográfico. Esse valor se constrói na etapa da observação. A força motriz de
Florence parecia ser a captação e reprodução do real, tanto que na busca pela fixação da
imagem, as experiências posteriores lhe permitiriam chegar ao processo fotográfico.
O diálogo da representação iconográfica, partindo da etnografia dos grupos
visitados, elabora diferentes interfaces com os documentos textuais e visuais. Portanto, sem
a menor pretensão de contradizer, tão respeitados estudos, aqui se expõem outros caminhos
para “ler” a iconografia indígena nos relatos de Florence.
2.3. As duas faces dos registros dos viajantes
Os relatos dos viajantes têm instigado vários pesquisadores no estudo dos povos
indígenas brasileiros. A imagem construída nas viagens é encarada como um signo
convencional, tão arbitrário quanto à linguagem verbal. Aqui, minimamente, o signo é
entendido como código, indício ou sinal de uma matéria com a finalidade de comunicar
sobre ela, não guardando em si uma única interpretação, mas ampliando as possibilidades
de compreensão. Assim, a imagem se desloca do recorte da realidade observada pelo
pintor-viajante, para uma reflexão interpretativa de cunho histórico e antropológico.
95
No campo historiográfico, a iconografia dos viajantes tem sido fonte e objeto de
pesquisa com diferentes abordagens focando, principalmente, o período colonial brasileiro.
Alguns estudiosos se empenharam, até por volta da década de 1970, na observação e
análise de imagens com a crença na extinção de grupos étnicos. Os esforços provenientes
desse equívoco não produziram, entretanto, estudos apurados de rigor teórico-
metodológico. Nos últimos anos, uma tendência nas pesquisas tem sido a investigação de
amplo material iconográfico. No legado dos relatos está grande contribuição no diálogo
entre o “nós” e os “outros”. Na visão de Tzvetan Todorov,
A descoberta e conquista da América é sem dúvida o encontro mais
surpreendente de nossa história. Na ‘descoberta’ dos outros continentes e
dos outros homens não existe, realmente, este sentimento radical de
estranheza. [...] No início do século XVI, os índios da América estão ali,
bem presentes, mas deles nada se sabe, ainda que, como é de esperar,
sejam projetadas sobre os seres recentemente descobertos imagens e
idéias relacionadas a outras populações distantes [...]. A conquista da
América anuncia e funda nossa identidade presente. Apesar de toda data
que permite separar duas épocas ser arbitrária, nenhuma é mais indicada
para marcar o início da era moderna do que o ano de 1492, ano em que
Colombo atravessa o oceano Atlântico. Somos todos descendentes diretos
de Colombo, é nele que começa nossa genealogia – se é que a palavra
começo tem um sentido (TODOROV, 2003, p. 6-7).
Quando se trata da familiaridade com o universo imagético, o caminho percorrido
pelo fazer antropológico é mais longo. Segundo o antropólogo Luis Nicolau Pares (2000),
“com a crise dos discursos antropológicos de caráter totalizante, houve uma crescente
tendência a experimentar formas etnográficas parciais, abertas, metafóricas”.
A imagem é um “conjunto articulado de categorias e esquemas de percepção”, que
se desdobra em construções discursivas e representações (FABRIS, 1991, p. 201). As
representações dos grupos indígenas, além de participantes de um corpus iconográfico, são
imagens em formação. O desafio é compreender a trajetória entre o momento de sua
criação e a reflexão sobre sua leitura e apropriação no contexto contemporâneo.
Uma das características do relato de viajantes é a mistura de eventos históricos,
mitos, contos, memórias de família ou de grupos sociais específicos. “Lapsos e inventos
próprios à arte de narrar, que só faz aumentar o valor historiográfico da literatura dos
viajantes como repositório da memória popular e de antigas tradições orais” (HARDMAN
& KURY, 2004, p. 390). A divulgação dos escritos poderia render ao viajante boas
96
perspectivas e prestígio em meio aos seus pares. Para tanto, precisava corresponder à
expectativa daqueles que o patrocinavam, cumprindo demandas claras. Concomitante, era
importante instigar um público leitor para garantir narrativas futuras.
A preocupação com a forma de registro, para alguns viajantes, significava até
conjugar a criatividade na narrativa. A pesquisadora Lorelai Kury, analisando o relato do
botânico alemão Carl Philipp von Martius, Flora Brasiliensis (1996), discorre que
A tentativa de registrar a totalidade dos fenômenos naturais e a
consideração dos fatos da cultura como integrantes das paisagens naturais
levou diversos naturalistas a buscarem auxílio na vivacidade das
descrições literárias para delinear fisionomias. O botânico von Martius
recorre inúmera vezes a citações literárias e poéticas que o auxiliem na
tarefa de descrever com precisão as sensações vividas (KURY, 2001, p.
869).
Embora não demonstrasse ser adepto da ficção e, buscasse transparecer
neutralidade, Florence também foi refém de sua memória e retórica. Mesmo com olhar
científico não se descartam representações românticas e uma realidade seletiva pelas
categorias eurocêntricas. Acontecimentos, pessoas e cenários eram registrados, de forma
que nada poderia ser esquecido. Assim, muitos eram os detalhes dignos de nota. Dessa
forma, configura-se o relato em transformação, tanto das linhas quanto de quem as escreve.
Para Francismar Lopes de Carvalho (2005, p. 16), é na transfiguração que mora o fascínio
do relato do viajante, “a todo momento o viajante testa seus preconceitos diante do ‘outro’,
que está em toda parte, seja homem ou natureza, e nessa experiência inevitavelmente o
viajante se transfigura”. Segundo Frederico Augusto Garcia Fernandes,
O viajante está em contínua transformação, pois habita um presente
vazado pelo passado. O relato, feixe de histórias a que se somam
acidentes, desilusões, aventuras, esperanças, saudades, engendra-se pelo
exercício da atividade do olhar. [...] Trata-se, em síntese, de um mundo
assimétrico, em que a irregularidade da paisagem, com todas as suas
cores e os ruídos e em contínua transformação, é captada pelo olhar do
viajante e acrescida de um recorte, que esquadrinha este mundo
observado (FERNANDES, 2003, p. 41).
O viajante interage com um mundo desconhecido, estimulante em sensações
diferentes. Com todas suas anotações e registros, elabora um recorte do meio que o
envolve com fascinação. O exótico era o passado conservado, um lugar de contemplação e
97
de encontro com uma sensibilidade perdida na sociedade moderna. A natureza continua
com a personificação do exotismo das terras americanas, do território privilegiado
12
.
Na descrição abaixo, Florence relata, a caminho de Vila Maria (atual Cáceres, Mato
Grosso), suas expectativas com a natureza tipificada ao seu redor:
No meio dessas verdejantes campinas, onde tudo tomava ares festivos,
travamos conhecimento com o carandá, palmeira de elevado caule cheio
de espinhos e cujos pecíolos lisos e espinhosos sustentam um leque de
folíolos a modo do buriti. Também o encanto da novidade exaltou ainda
mais o bem-estar, que em nós infundia uma natureza inimiga da
monotonia e pródiga, sobretudo para o viajante, de novas perspectivas
(FLORENCE, 1977a, p. 176).
A configuração da paisagem, do cenário natural é estimulante para o viajante e para
todos os demais. Bem-estar e falta de monotonia são sensações de quem adentra um
mundo paradisíaco. É certo que esse paraíso também se tornava extremamente monótono,
como evidenciam as palavras do viajante:
Em viagens como esta, a vista de um rio em que se tem de navegar, ou da
foz de outro que se vai deixar, ou de qualquer paragem notável, de um
quadrúpede mesmo, de um pássaro que pela primeira vez se mostre, essa
vista rompe a monotonia da jornada. Cantam então os remadores; com
grita jovial ferem os ares, ao passo que os proeiros batem com a mão no
chato da pá e à proa, onde estão sempre de pé, redobram a cadência o
sapateado habitual (FLORENCE, 1977a, p. 54).
São sensações difusas de um mesmo contato: com a natureza do interior que se
avulta na jornada. A natureza selvagem é sinônima do exotismo de terras ainda não
trilhadas. Lugares ainda não submetidos ao jugo da ciência e seu racionalismo. A viagem é
o caminho para o conhecimento. A exploração máxima de uma história em constante
mudança. A novidade move o viajante, quanto mais a conhecer, mais a retratar, mais
experiências para trazer à tona. Desvelar o desconhecido significa apresentá-lo aos demais.
Quanto mais adentrava ao interior do Brasil, mais se tornava evidente o “espírito
12
Interessante ver o livro Cocanha. A História de um país imaginário. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. Hilário Franco Júnior trata do imaginário medieval, a partir de um manuscrito do
século XIII sobre a terra de Cocanha, um país maravilhoso onde impera abundância, ociosidade,
juventude e liberdade.
98
desbravador”. O viajante é o homem da ciência, o homem civilizado que carrega consigo o
desenvolvimento, o progresso. Como lembrou Flora Süssekind a respeito dessa
personagem-viajante:
Mais importante até que o relato da viagem, que a narrativa, parece ser o
inventário de paisagens, tipos e quadros locais, aos quais se deve ir
classificando à medida mesmo que aparecem. E segundo o olhar não de
um viajante qualquer, mas de um naturalista (SÜSSEKIND, 1990, p. 82).
Afinal era a época em que
Cabia não só a essas enciclopédias sob forma de periódicos trazer a ‘terra
inteira’ aos gabinetes de leitura locais, também à produção literária
cumpria instruir, servir de mapa e manual histórico e científico
(SÜSSEKIND, 1990, p. 82).
Em visita aos arredores de Cuiabá, atual Chapada dos Guimarães, Florence escreve
o resultado do seu trabalho: “Satisfeito por levar no meu álbum as quatro mais notáveis
vistas desses sítios” (FLORENCE, 1977a, p. 157). Em outra edição: “Após desenhar
durante a manhã inteira, contente por minha pasta abrigar as quatro mais bem apanhadas
vistas desses sítios encantados e, por isso mesmo, encantadores, retomei o caminho da
fazenda” (FLORENCE, 1977b, p. 72). Além de presenciar e atestar a paisagem, o pintor-
viajante pode partir com ela. De posse do seu álbum, ele pode dar a conhecer. É a imagem
enquanto experiência. A personagem-viajante se apóia em seus próprios olhos. A
legitimidade da narrativa se encontra na testemunha:
No relato de viagem, o olho fala, dado que o testemunho, no pacto com
seu leitor, afirma-se como aquele que ‘viu’. Para dizer o outro, ele recorre
a uma retórica da alteridade que se apóia sobre comparações, analogias,
inversões, metáforas (CARELLI, 1994, p. 28).
Os pintores-viajantes do século XIX podem ser considerados empreendedores do
imagético, pois havia objetivos exploratórios a cumprir. Perseguiam imagens que, de
antemão, já se perfilavam de alguma forma em sua memória e percepção. Fazendo assim,
transitavam em auto-representações, no empenho pela aproximação cultural. Na verdade,
ocorria o reforço das suas distâncias (SALLAS, 2006).
99
Ao analisar as representações gráficas dos pintores-viajantes, Maria Sylvia Porto
Alegre aponta para a discussão em torno da imagem do índio. Essa discussão retoma
“novos caminhos para a reconstituição de antigos dilemas do discurso do confronto”
(PORTO ALEGRE, 1992, p. 279). Os viajantes
13
, em sua maioria, estrangeiros, lançaram
olhares sobre o território brasileiro, sua natureza, povos e costumes. Segundo Ana Maria
Belluzzo (1996, p. 11), foram culturas que se olharam e a iconografia ficou como registro
do cruzamento de pontos de vista díspares. Observam-se, dessa maneira, identificações e
auto-referenciamentos de um Brasil que não se representava, mas era representado
(PESAVENTO, 2004, p. 2).
Impulsionados pela retratação da natureza, os pintores-viajantes olharam como
precursores, definiram origens, nomearam lugares, detalharam a flora e fauna a partir dos
cânones científicos europeus. Esse foi o momento de modelar o que estava diante dos
olhos. “Os europeus, em contato com o Novo Mundo, vão codificando esse conhecimento
para si ao mesmo tempo em que padronizam uma forma de conhecimento ‘modelar’ sobre
o Brasil” (ORLANDI, 1990, p. 19).
O pintor-viajante é aquele que observa e modela. O papel em branco não garante
uma leitura isenta de percepções e pontos de vista distintos. Com o advento da fotografia,
apesar de toda áurea inicial de captação do real, continuou a persistir o ponto de vista do
observador. Assim também se enquadram os meios audiovisuais, como vídeo e cinema. O
pintor, o fotógrafo, o cinegrafista “vê” impulsionados pelo que “tem visto”: sua bagagem
sócio-cultural e sua visão de mundo. Não se pode, portanto, simplesmente relegar o
registro visual, ao ditado “uma imagem vale mais que mil palavras”. Pois historicamente, a
constatação das particularidades do autor/executor da imagem e do seu contexto em si,
envolve uma “gama de informações advindas de diferentes áreas do conhecimento”
(KOSSOY, 2006).
13
É raro encontrar um texto sobre viajantes do século XIX que contemple também as mulheres
viajantes. É certo que as mulheres não participavam das expedições com finalidades específicas
como os homens, mas no trabalho da historiadora Miriam Lifchitz Moreira Leite encontra-se um
estudo aprofundado sobre o assunto: MOREIRA LEITE, M. L. Livros de Viagens (1803-1900). Rio
de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997; MOREIRA LEITE, M. L.; MOTT, Maria de Lucia de Barros;
APPENZELLER, Bertha Kauffmann. A Mulher no Rio de Janeiro no Século XIX (Um índice de
referências em Livros de Viajantes Estrangeiros). São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1982;
MOREIRA LEITE, M. L. Mulheres viajantes no século XIX. Cadernos Pagu, n. 15, p. 129-143,
2000.
100
2.4. Ciência e arte como suportes da representação iconográfica
No século XIX, com os estudos em História Natural, as viagens com motivos
científicos ganharam grande peso no território brasileiro. Para Komissarov & Braga (1993),
se for considerar as imigrações asiáticas há milhares de anos e a chegada de Cabral como a
primeira e a segunda descobertas do Brasil, a Abertura dos Portos, em 1808, com a vinda
da família real portuguesa, pode ser a terceira descoberta, principalmente no que tange à
ciência e à cultura européia.
Ao longo do período colonial, as viagens sofreram um processo de secularização.
Ou seja, da transcendência medieval para a racionalização da natureza e das atividades
produtivas. Entretanto, o maravilhoso não deixou de todo o imaginário europeu
(RAMINELLI, 2000, p. 37). Por certo, esse processo influenciou também a forma do
europeu ver o indígena, a representação caminhou das explicações religiosas do século
XVI (demônio, canibal feroz) para as teorias com respeito à humanidade (incivilizado,
bom selvagem) (RAMINELLI, 2000, p. 32).
Com toda a instrumentalização das viagens científicas, surgiram muitas
personagens além dos viajantes. Mamelucos, negros, grupos indígenas e estrangeiros
alteraram a dinâmica das cidades paulistas que fervilhavam na época das monções com
novas relações sociais, constituindo grande diversidade em transição. Em estudo recente,
Francismar Alex Lopes de Carvalho (2006) trabalha a história de grupos sociais com
pautas culturais diferenciadas, envolvidos nas viagens ao interior do Brasil no século
XVIII. Para Francismar (2006), a maioria dos estudos sobre viajantes toma como partida a
cosmovisão do viajante para entender a cultura das populações visitadas. O autor também
aponta para a pluralidade de interesses públicos e privados, individuais e coletivos nas
viagens. Analisa ainda que as viagens pela rota das monções só foram possíveis porque
setores da população paulista se especializaram profundamente nas práticas do sertão,
graças ao intercâmbio cultural com os indígenas (LOPES DE CARVALHO, 2006).
Mesmo correspondendo ao período final das monções, Florence expressa a
“atmosfera” da viagem e seus personagens:
Aqui a terra produz muito mais alimento do que podem os habitantes
consumir. Mesmo no Brasil já não hoje nas cidades marítimas tanta
facilidade de vida, não só pelo aumento da população, afluência de
101
estrangeiros, como pelo luxo próprio dos grandes centros (FLORENCE,
1977a, p. 10).
Mas como eram as viagens que facilitaram esse encontro de diversidade étnica, que
mesmo identificada e representada passou longe de ser celebrada? Considerando os
estudos sobre viagem e viajantes, Ronald Raminelli levanta críticas e sugestões para as
definições correntes. Raminelli destaca a contribuição da Antropologia através do trabalho
de João Pacheco de Oliveira Filho ao classificar viagens e viajantes em “quatro variáveis:
origem do financiamento, qualificação intelectual dos viajantes, composição da viagem
(individual ou coletiva) e, prêmios e recompensas alcançados pelos viajantes depois da
viagem” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1987, p. 85).
A maior parte das missões científicas era financiada por governantes da França,
Inglaterra e Alemanha. A Expedição Langsdorff patrocinada pelo governo russo era a
tentativa da Rússia em demonstrar que nada devia às demais nações européias
(HARDMAN & KURY, 2004, p. 386). A Academia de Ciências da Rússia esperava um
relatório da expedição. A viagem presumia além do deslocamento, a exploração do espaço.
Os inventários nada mais eram que tentativas de colocar uma ordem em mundo
desconhecido. Ao viajar se narrava o que ainda não havia sido explorado e revelado. Sob o
olhar dos viajantes, “nasciam” formas, cores e personagens.
A efervescência da literatura de viagem, incrementada com a descoberta da
litografia
14
no século XIX, fomentava as expedições com conteúdos para um público leitor
garantido. Um dos objetivos dos desenhistas em viagem era alcançar o registro exato de
plantas, animais, artefatos e costumes, sendo possível sua transposição e reprodução para
livros, mapas e jardins botânicos dos países financiadores. Sem os “testemunhos reais da
viagem”, uma expedição cairia no esquecimento e suas descobertas não seriam asseguradas
(RAMINELLI, 1998, p. 6). Por um bom tempo, foi essa a trajetória dos relatos da
expedição russa.
14
As primeiras pranchas litográficas, com sentido artístico, datam do século XVIII. O processo
consiste em um desenho executado sobre pedra calcária, em superfície plana com tinta gordurosa.
A impressão é baseada no princípio da repulsão entre água e óleo, com uma prensa litográfica que
desliza sobre o papel. Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais, disponível em
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm>. Acesso em 01/06/2007.
102
Antes da descoberta da fotografia, os desenhos constituíam o meio valioso de
ilustrar o relato dos viajantes. As produções dos pintores-viajantes eram utilizadas como
material de pesquisa e estudo. Para os naturalistas, era importante observar e classificar.
“Não era permitido criar, apenas perceber e ordenar” (CASTAÑEDA, 1995, p. 34). Nesse
cenário, havia uma “tensão entre o gosto estético e a demanda por um trabalho que tivesse
a preocupação com a exatidão das formas e das cores, já que essas imagens seriam
utilizadas para a difusão do conhecimento científico” (ROSSATO, 2005, p. 180). Por outro
lado, essa relação aproximou artistas e cientistas em busca da representação exata.
Diante dessa aproximação, a natureza seja na retratação da paisagem ou no
detalhamento compartimentado deveria ser exposta diretamente das regiões inóspitas para
os gabinetes da Europa. Este pensamento era fruto do período da Revolução Industrial que
transformou drasticamente a paisagem do velho continente, por isso a urgência na estética
do passado, um saudosismo da paisagem pitoresca (SALGUEIRO, 1997). A natureza no
velho continente foi sufocada pelas mudanças advindas do impulso da ciência e da técnica.
Os métodos de produção afetaram as relações sociais, econômicas e políticas. Um grande
abismo surgiu entre as nações que viviam o processo da industrialização e também sobre as
demais. Nesse sentido, o Novo Mundo representava um elo com uma natureza perdida e
transformada das terras européias.
Viajar e relatar, como parte do pensamento naturalista europeu direcionou
comportamentos e crenças. A representação do índio, independente de suas configurações,
obedeceu aos valores eurocêntricos e transitou como imagem “legada pela tradição de uma
civilização a outra remontando séculos anteriores” (GIMENEZ, 2001, p. 208).
Com o pensador Jean Jacques Rousseau (1712-1778), o “estado natural” do homem
foi exaltado. Neste período, felicidade, abundância, ausência de classes, vida em comum
eram aspectos míticos projetados na sociedade indígena. Contudo, no século XIX, com a
idéia de progresso, não era mais interessante enaltecer o bom selvagem. Como avalia Lígia
Osório Silva ao confrontar as idéias de propriedade privada e os “espaços vazios” em terras
coloniais,
A idéia da inadaptação irremediável dos índios à vida regrada da
sociedade civilizada e sua incapacidade de se submeter à lei, justificava
sua classificação como selvagem e sua extinção em nome do progresso e
da civilização. [...] A Europa do século XIX capitalista viu o estado
natural ao invés de admiração, como ‘evidência de desperdício’ e toda
103
apropriação ‘produtiva’ legitimava a violência exercida sobre as
populações ‘perdulárias’ (OSÓRIO SILVA, 2002).
A imagem do índio como “selvagem” era forte nos primeiros séculos da
colonização. Traços de bondade ou maldade, conferidos ao nativo, estavam ligados à sua
submissão aos desígnios da civilização ocidental (ORLANDI, 1990). O “bom selvagem”
vivia feliz e virtuoso no “estado de natureza”, que correspondia aos primórdios da história
da humanidade (OSÓRIO SILVA, 2002). Orlandi (1990) afirma que, para o colonizador,
concentrar a percepção do “outro” nas esferas da cultura se tornou condição de dominação.
O indígena das terras recém-descobertas precisava ser observado, compreendido e
traduzido. Para o viajante europeu, manter a disparidade cultural era seguir a ciência. Esta,
por sua vez, ligada aos ideais burgueses de progresso, servia aos interesses dos países
expansionistas.
O discurso cientificista fortalecia a idéia do índio americano com valores absolutos
e positivistas. A iconografia indígena, nesse discurso, fascinava o mundo com cenas do
exótico e indomável habitante do Novo Mundo. A imagem, portanto, se tornava uma
extensão do discurso da conquista, legitimando olhares sobre o “outro” descoberto. “O que
era desconhecido representava um desafio à interpretação” (THEODORO, 1992, p. 48).
Os estudos de Antropologia Física, com a reprodução do corpo e suas partes para
comparações, posteriormente se desdobraram em discursos sobre as diferenças raciais. Na
verdade, como indica Marcos Morel em seu trabalho Cinco imagens e múltiplos olhares:
‘descobertas’ sobre os índios do Brasil e a fotografia do século XIX, a objetividade da
ciência não podia disfarçar a “tênue fronteira entre o exato e o exótico” (MOREL, 2001, p.
1044). O viajante estava dividido entre as demandas da ciência e o êxtase do contato com o
diferente e o desconhecido, antes somente imaginados.
Muitos desenhistas da época se pautaram nos escritos do naturalista Alexander von
Humboldt, que, em 1799, conseguiu autorização para viajar livremente pelo interior das
colônias espanholas na América. Mary Louise Pratt destaca, no pensamento do naturalista,
a idéia das viagens a regiões longíquas, que eram “muito mais propícias”, pois ali a
natureza se desvelava e a ciência se expandia. Conforme explicação de Maria de Fátima
Costa,
104
Humboldt, na introdução a Viagens às regiões equinociais, publicado em
Paris em 1816, estabelece uma comparação entre viagens marítimas e
viagens ao interior, deixando claro que só é possível conhecer um lugar
quando se consegue penetrar no seu espaço continental (COSTA, 2001, p.
994).
Humboldt ainda difundia a figura de um “viajante-filósofo” sinalizando, assim, o
pensamento enciclopedista e o romantismo da época (LOPES DE CARVALHO, 2005, p.
3). As representações da flora e da fauna deveriam ser descritas em seu ambiente natural,
com uma interação entre seres humanos e natureza. Diferentemente, outros estudiosos
enfatizavam os detalhes com vistas e cortes diversos, apoiados na taxonomia. Outra ênfase
do naturalista era quanto à popularização da ciência através do intercâmbio com as artes,
segundo Humboldt,
O uso das ilustrações serviria não apenas como objeto de interesse do
estudioso e do cientista, mas como meio de popularizar a ciência,
conquistando um público leitor sempre ávido por satisfazer o antigo
fascínio pelo ‘mundo selvagem’, através da literatura de viagem (PORTO
ALEGRE, 1992, p. 279).
O momento era conveniente para essa popularização da ciência, já que a
industrialização na Europa necessitava de mercados e matéria-prima (PRATT, 1991, p.
151). Os viajantes, mesmo com o discurso em tom filosófico e com metáforas da travessia,
focalizavam as condições de produção nas regiões visitadas (LOPES DE CARVALHO,
2005, p. 11). As relações entre ciência e poder estavam presente nos relatos que auxiliavam
as potências financiadoras nos projetos expansionistas. Homem e natureza americana
deveriam se alinhar aos moldes da civilização européia. Mary Louise Pratt explica que
Ao longo de todo o século XIX a exploração e descrição do interior do
continente foram uma atividade de capital importância para este processo
expansionista, tanto do ponto de vista instrumental (confecção de mapas,
documentação, contatos iniciais) quanto ideológico. Da mesma maneira
que em anteriores momentos expansionistas, a literatura de viagens
constitui um veículo importante para a criação de conhecimentos e
formas de compreensão que, no sentido teatral, `produziram` o projeto
expansionista para a imaginação européia (PRATT, 1991, p. 152).
Em outro trabalho, Pratt (1999) sugere uma “anti-conquista” quando o viajante-
naturalista em disfarce pacífico se apropria discursivamente de áreas coloniais.
105
Para Alexander von Humboldt, a viagem era essencial para a ciência natural,
embora muitos outros naturalistas valorizassem mais o trabalho de gabinete. O que
coletava não era necessariamente o que sistematizava o conhecimento (KURY, 2001).
Rossato explica os pensamentos de Humboldt que influenciaram seus contemporâneos:
Os seres vivos só podiam ser compreendidos quando relacionados com os
lugares onde se desenvolveram e com os outros seres vivos com os quais
estavam relacionados. O outro aspecto refere-se às impressões estéticas
experimentadas pelo viajante em cada região por onde passava. Para ele,
essas impressões eram parte integrante do trabalho científico, e não
podiam ser substituídas por estudos de amostras ou descrições feitas em
gabinetes. Essas concepções de Humboldt é que iriam contribuir para
justificar a utilização de artistas viajantes nas expedições (ROSSATO,
2005, p. 185).
Alguns artistas e viajantes no Brasil do século XIX são: Louis de Choris, russo,
esteve no Brasil em 1815, na ilha de Santa Catarina. O francês naturalista Auguste Saint-
Hilaire percorreu o Brasil de 1816 a 1822. Thomas Ender fez parte da Missão Científica
Austríaca em 1817. O alemão botânico, que também aportou nessa expedição, Carl Philipp
von Martius, trabalhou ao lado do zoólogo alemão Johann Baptiste von Spix entre 1817 e
1820. Estes viajantes estiveram com o Barão Langsdorff na fazenda Mandioca, em Minas
Gerais. O príncipe alemão Maximilian zu Wied-Neuwied esteve também com o Barão
Langsdorff que apoiou sua expedição entre 1815 e 1817 (BECHER, 1990, p. 47). O pintor
alemão Johann Moritz Rugendas, que abandonou a Expedição Langsdorff, esteve entre
1822 e 1825. Com a Missão Artística Francesa, em 1816, desembarcaram no país Jean-
Baptiste Debret e Aimé-Adrian Taunay, primeiro desenhista da Expedição Langsdorff e
seu pai Nicolas Antoine Taunay.
Segundo Boris Komissarov (1994, p. 18), o Barão Langsdorff conheceu “as obras
de Humboldt e dos cientistas e viajantes que estiveram no Brasil no começo do século XIX,
tendo redigido extratos desses trabalhos e submetendo-os a uma rigorosa crítica”. O barão,
talvez influenciado pelo pensamento de Humboldt, planejava adentrar o continente sul-
americano, nas costas norte e oeste, subindo o rio Negro até Casiquiare, a fim de alcançar a
foz do Orinoco (BECHER, 1990, p. 72). O alemão Humboldt e o francês Aimé Bonpland
viajaram pela América do Sul entre 1799 e 1804. Conforme Mary Louise Pratt, o viajante
imaginário de Humboldt encontra o rio Orinoco como um novo Colombo, que penetra o
interior repetindo o gesto fundador (PRATT, 1991, p. 156).
106
2.5. O inventário por Hércules Florence
Segundo Ronald Raminelli, as viagens científicas e exploratórias permitiram
“conhecer o Brasil em três aspectos básicos: a geografia, o povoamento e os reinos da
natureza”. O autor se debruça sobre três inventários: inventário do espaço, mapeando o
território para conquistá-lo ou para manutenção; inventário dos costumes das comunidades
indígenas, que, no período colonial, era possível ser elaborado por meio dos testemunhos
de viajantes e missionários, mas, no século XIX, expandiu-se com a consolidação da
etnografia; e inventário da natureza, fauna e flora, mais expressivo no Brasil após a vinda
da família real portuguesa (RAMINELLI, 2000, p. 37).
Aqui o importante é que, para cada inventário, há uma narrativa do pintor-viajante.
Esta oscila entre a descrição e o julgamento, o que ele capta se amolda à sua percepção. A
tensão da narrativa reside na história a ser contada, e também em dar conta do real e da
transfiguração artística.
Mesmo não sendo uma viagem para garantir territórios, a Expedição Langsdorff
encontra vestígios dessa história. Em setembro de 1827, Hércules Florence escreveu sobre
o marco que demarcava a fronteira dos imrios português e espanhol na embocadura do
rio Jauru, conforme já mostrado nesta explanação.
Não é possível enxergar com indiferença um monumento qualquer de
mármore branco e de arquitetura regular que de repente se nos depara no
meio dessas vastas regiões, onde sem partilha reina a natureza. É a
pirâmide quadrangular e tem 15 e meio pés de alto, incluindo o pedestal e
a cruz de pedra que a coroa. No lado N. 54º O estão gravadas as armas da
Espanha [...]. No lado S. 54º E estão as armas de Portugal (FLORENCE,
1977a, p. 207).
Interessante a indagação que surge após a descrição do marco:
As duas coroas das armas de Espanha e Portugal estão mutiladas; pelo
tempo ou pelos homens? Na minha infância vi os sinais da realeza
destruídos pelos revolucionários de 92. Inclino-me a crer que o mesmo
sentimento impeliu os americanos a apagarem o assinalamento da antiga
servidão (FLORENCE, 1977a, p. 209).
107
Em outra edição, Florence afirma que
Apagadas, destruídas as coroas, tanto as de Espanha como as de Portugal,
cabe perguntar: obra do tempo ou dos homens? Vi, quando menino,
enxovalhados ou extintos pelos revolucionários de 92, os emblemas, os
brasões, as armas da realeza. Inclino-me, pois a convir em que os
americanos, impelidos por igual sentimento, cuidaram de mutilar ou
inutilizar todas as marcas ou símbolos que lhes recordassem a antiga
sujeição (FLORENCE, 1977b, p. 93).
Os referenciais do jovem Florence são a Revolução Francesa (1789-1795). Sinais
de um tempo histórico em sua memória, que o faz indagar sobre o que presencia no marco:
a degradação do monumento. Essa não é a única passagem em que Florence se espelha na
sua experiência enquanto cidadão francês. Quando avista o rio Paraná, o pintor-viajante
escreve:
À vista dessa planície aquática e dessa margem tão afastada, lembra-me a
sensação que se experimenta no mar, quando se vê uma costa que é o
objetivo final de quem viaja. E se por ventura esse trato de terra é a
França, que a gente revê após ausência de anos e anos, o coração
estremece de alegria, pois há a certeza de que um povo civilizado está
aguardando quem assim o busca (FLORENCE, 1977b, p. 31).
A viagem de Florence é uma sucessão de experiências vividas, balizadas por sua
ótica anterior. Referenciar paisagens à primeira vista significa decodificá-las para outras
mais familiares. Como explica Frederico Fernandes, o relato do viajante é composto por
experiências que antecedem a viagem em si.
Fruto de percepções anteriores que servem de parâmetros para o sujeito
compor a paisagem. O olhar então amalgama, e o processo de fusão conta
com o estranhamento, com o desejo de comunicá-lo, a necessidade de
explicá-lo e de torná-lo assimilável ao leitor de seu relato, cujo suporte
cultural e mundo percebido – como acredita o viajante ao urdir sua
escritura –, seja mais ou menos semelhante ao seu (FERNANDES, 2003,
p. 42).
Na interação com o indígena, Florence identifica as leituras da sua época a seu
respeito. “Felicitava-me ao entrar no Paraná, porque ia entrar em contacto com os
habitantes das selvas, isto é, ia ver no século XIX o homem primitivo, tal como ele devia
108
ser na aurora do mundo” (FLORENCE, 1977b, p. 31). E na outra edição: “Aqui, porém, só
podíamos ver selvagens e míseras tocas, espetáculo ainda assim cheio de interesse e
novidade para quem quer estudar o homem em seu tipo primitivo” (FLORENCE, 1977a, p.
54).
O indígena visto como tipo primitivo estava ligado à idéia de hierarquia entre os
seres humanos e fazia parte da doutrina racialista. O racialismo, segundo Todorov, é um
movimento de idéias nascido na Europa ocidental, cujo grande período vai de meados do
século XVIII a meados do século XX. Difere-se do racismo por ser uma doutrina. O
racismo é um comportamento. Não andam necessariamente juntas. Mas quando o racismo
se apóia em um racialismo os resultados são catastróficos, como o caso do nazismo
(TODOROV, 1993, p. 107). Um dos grandes difusores da doutrina racialista foi o
naturalista francês Buffon, em meados do século XVIII, com Histoire naturelle. Para
Buffon, as espécies animais da América eram diferentes das do Velho Mundo e, em muitos
casos, inferiores. O homem americano era débil porque não conseguiu dominar sobre a
natureza, também débil e mesquinha (GERBI, 1996, p. 23).
Essa afirmação nasce da proposição de uma hierarquia universal de valor, ou seja,
de um padrão universal de avaliação com o qual todas as sociedades são julgadas. Para
Buffon, havia solidariedade entre unidade de espécie. Todos os homens formavam uma
única espécie e, conseqüentemente, existia o absolutismo dos julgamentos de valor
(TODOROV, 1993). Por meio da constatação de qualquer diferença social, seja de
costume ou de técnica, aí residia um julgamento de valor, aproximando ou não os seres
humanos dos animais. As conotações de selvageria e barbárie estavam nesse caminho.
Observa-se no comentário de Florence sobre o cultivo do arroz entre os Guató, a
gradação de valores mensuráveis:
Nessas vastidões alagadas cresce em grande abundância o arroz selvagem,
cuja altura há de exceder de sete a oito pés, pois só fora d’água tem dois a
três, sendo o terreno submerso em profundidade de cinco a seis. Quando
os Guató, índios canoeiros, fazem a colheita, sacodem as espigas dentro
de suas barquinhas e num instante as enchem até as bordas; entretanto
por falta de cultura, é a qualidade do grão inferior à do nosso
(FLORENCE, 1977a, p. 98-99). (Grifo meu).
A abundância nas terras recém-descobertas aqui também não significava a
produtividade da visão ocidental. O discurso predominante tratava da natureza grande e
109
viva, mas frágil e bem menos forte do pensamento de Buffon (GERBI, 1996, p. 20). Não
era forte, nem saudável. As explicações sobre o clima e o grande número de insetos e
serpentes transmitiam o estado de degradação do continente americano. Um ambiente
quente e úmido, com um número exacerbado de ínfimas criaturas, fortalecia a idéia de
decadência ou mesmo de imaturidade. Buffon influenciou o olhar de seus contemporâneos
sobre as terras e os habitantes do Brasil, já que se tornou grande autoridade entre os
cientistas (PALAZZO, 2007). O que diria Buffon se adentrasse as águas da região
pantaneira, como fez Florence? No seu relato do dia 19 de dezembro, saindo de
Albuquerque (atual distrito de Corumbá), Florence descreve:
Também nos movíamos com morosidade desesperadora, que os
mosquitos, a chuva e a monotonia transformavam em sofrimento quase
intolerável [...]. Ao chegar ao pouso, achávamos um solo encharcado,
onde não se podia dar um passo sem meter o pé no lodo. Não havia
remédio senão dormir em rede e dentro do mosquiteiro, sob o qual
sentíamos dobradamente o calor daquele clima abrasador (FLORENCE,
1977a, p. 110).
Calor, umidade e insetos, combinação nada agradável, pelo contrário,
extremamente degradante, sinais de corrupção e decadência, para as concepções
naturalistas de Buffon.
Outro naturalista, o abade Corneille De Pauw, no mesmo período, foi além na
polêmica do bom selvagem. Para ele, “A natureza é fraca e corrompida na América, fraca
porque corrompida, inferior porque degenerada” (GERBI, 1996, p. 58). De Pauw exagerou
ao tratar os americanos como crianças, enquanto seres incorrigíveis, ao mesmo tempo
como velhos, em via de degeneração. Como o homem americano estava no chamado
“estado natural” era um bruto sem capacidade de progresso. Segundo De Pauw, o homem
só se aperfeiçoava na sociedade.
Para Buffon, também os “bárbaros” eram seres “não-sociáveis”. A sociabilidade
estava relacionada à capacidade de submissão, assim como a existência de leis, de uma
ordem estabelecida, de usos constantes, de costumes fixos. A sociabilidade também
implicava na multiplicação da espécie, na qual quantidade significa qualidade (TODOROV,
1993). Muitos dos primeiros relatos de viajantes se referiam ao continente americano,
como um lugar de gente rude, sem reis, sem lei.
110
Segundo Todorov, a relação entre as explicações de Buffon e a doutrina racialista
Considera a existência das raças como uma evidência, afirma a
solidariedade do físico e da moral, subentende a determinação do
indivíduo pelo grupo, proclama bem alto um sistema único de valores,
enfim, tira de sua doutrina conseqüências práticas e políticas. Inclusive, a
legitimidade da escravidão (TODOROV, 1993, p. 119).
As diferenças entre os continentes e seus povos pareciam encontrar nas teses desses
cientistas causas e conseqüências de uma inferioridade do homem americano. Na verdade,
são muitos os desdobramentos que atravessaram os séculos.
Outra conseqüência da solidariedade em Buffon era que a estética já não podia ser
separada da ética. Ou ainda, os julgamentos estéticos devem desempenhar um papel capital.
Os ideais estéticos também se pautavam pelas visões etnocêntricas (TODOROV, 1993, p.
119).
Se fosse possível demonstrar as predileções de Florence, os Guató certamente
estariam na frente, e os Bororo por último. Os motivos são físicos e culturais, sempre
balizados pelo típico europeu:
Tive notícia de que outrora os Guató de São Lourenço haviam morado
entre os brancos e se misturado com eles, voltando, porém depois, por
gosto pela vida primitiva, aos antigos hábitos. Talvez daí provenha a
parecença com os europeus, sem que por isso tenham os cabelos e a cor
sofrido alteração (FLORENCE, 1977a, p. 118).
Como escreve Todorov, “nossa idéia de beleza tem de particular o fato de que ela é
a beleza” (TODOROV, 1993, p. 120). Para Florence, aquilo que transparecia belo no
“outro” era senão uma extensão do seu “eu”. Longe de encarar isso como simples
manifestação de egoísmo, configura-se uma visão estabelecida, naturalizada com o aval do
conhecimento, seja este do ponto de vista científico, político ou social.
O pintor-viajante ao reencontrar um grupo em certa altura do caminho escreve:
“Índios Guató aparecem. Revejo tão boas criaturas com o contentamento que sentimos
quando, à fresca da tarde, propícia ao repouso, avistamos velhos amigos” (FLORENCE,
1977b, p. 59). Em outra edição do diário, afirma que “Alcançaram-nos umas canoas de
Guató. Tornei a ver esses índios com o prazer com que, ao frescor de uma bela tarde,
111
avistam-se amigos de antiga data” (FLORENCE, 1977a, p. 206). Ainda acrescenta que “A
fisionomia não indicava selvajaria como a dos Bororo” (FLORENCE, 1977a, p. 206).
Os Guató são valentes, altivos e nobres, e os Guaná são covardes (FLORENCE,
1977b, p. 58). Mas, para Florence, os Guaná também se parecem com os chineses:
Notavelmente chinês é seu tipo, não só quanto a traços fisionômicos,
trajes, maneiras e acento de linguagem, mas também, como se verá
depois, quanto a caráter: desse ponto de vista, igualmente se assemelham,
um pouco, à gente que povoa o maior país do extremo oriente
(FLORENCE, 1977b, p. 52).
Em outro momento, Florence relata algo que leu sobre o encontro de um índio
Guaicurú e um branco:
Li, em Diamantino, diálogo travado entre guaicuru e branco nativo, que,
por imperdoável incúria, não copiei. Continha sublimes idéias, em meio a
crenças bárbaras. Tudo pode, antes, parecer tão somente fantasias de
narrativa, mas não é de duvidar que tal povo tenha suas crenças religiosas
(FLORENCE, 1977b, p. 48). (Grifo meu)
Alguns comentários mensuráveis se estendem aos negros e “gente forra”. Ao
chegar à Fazenda Camapuã, em decadência quando da visita da expedição, Florence
destaca:
Extrema é a miséria dos habitantes. Pelos bens que possuem pouco
distam do estado selvagem, mas nem por isso são ou se consideram mais
infelizes. Não há senão alguns homens, tidos por dinheirosos, que andam
vestidos com calças e camisa de pano grosso. O resto não usa senão de
ceroula, quase tanga; a maior parte das mulheres traz sobre o corpo uma
saia (FLORENCE, 1977a, p. 74).
Para comparar os trabalhadores e escravos da fazenda com o “estado selvagem”, os
pressupostos do pintor são a condição humana, a forma de ver a vida e o modo de se vestir.
Descrição semelhante também faz dos Guaná, com a observação de suas vestimentas.
Cobrir a nudez é desfazer desse estado “natural”, indicado por Sérgio Buarque de Holanda
(1969) como referenciais paradisíacos, o Jardim do Éden demarcado em terras recém-
descobertas.
112
As mulheres também trazem o pano enrolado à cintura e caindo até os
joelhos [...] mostrando-se assim menos nuas que os homens. Às vezes
também cobrem com ele (panão) os ombros e deixam-no cair até meia
canela. Já muitos Guanás usam de calças e camisas de algodão grosseiro
que se tece em Cuiabá, bem como em todo o interior do Brasil. É o traje
da gente miúda (FLORENCE, 1977a, p. 108).
As vestimentas das mulheres Guaná lhe rendem muitas outras observações, tanto
que o autor quase se desculpa ao leitor pela extensão de detalhes. Vale, contudo, reproduzir,
a seguir, sua narrativa para identificar sua visão com respeito a essas mulheres:
Do mesmo modo que as damas da antiguidade, essas índias ajeitam o
traje [...]. A vestimenta, pitoresca por suas grandes dobras e pela
extravagante mistura de cores, não lhes permite caminhar livre,
desembaraçadamente, como nossas damas, mas transforma a andadura
em algo de teatral, como a das mulheres da Albânia, vistas por Lord
Byron, o que também se nota nos povos do Oriente e do Sul, que
preferem as vestes amplas, nestes incluídos o Brasil, onde as mulheres
menos pobres, de certa camada social para baixo, gostam de trajar-se com
sedosa baeta, guarnecida por larga ourela.
Penso que não me excedo, quando falo da graça de ambas essas mulheres
das selvas: é da arte de vestir que a estatuária retira um de seus mais
nobres ornamentos, que lhe inspiram encantadoras posturas e
movimentos realmente graciosos. Somente em relação a isso, descubro
graça nessas guanás: observei-as, aliás, ao máximo, como artista
(FLORENCE, 1977b, p. 52-53).
Quem são essas mulheres senão objetos de observação? Pertencentes a um universo
distante, as selvas? Novamente as concepções sobre a natureza se estendem para a
representação do índio. As roupas, o andar, a comparação com mulheres de outros povos.
São os “outros” povos de um lado, e o observador europeu de outro.
Observa-se que a noção de felicidade também está ligada ao ideal do bom selvagem,
que vive em harmonia com todos, principalmente com a natureza. A “felicidade” dos
Guató, em situações adversas pelo ponto de vista do viajante, reflete um estado de
encantamento e paz, o que se evidencia nas palavras de Florence: “Desembarcando,
avistamo-nos uma família feliz” (FLORENCE, 1977a, p. 124).
O pintor-viajante ao discorrer sobre os índios Guaná anuncia: “Narrarei, quando
tratar dos Guatós, cujo caráter é sob todos os aspectos completamente oposto, um fato que
113
deixa bem patente a índole destes dois povos, ou melhor, destas duas tribos” (FLORENCE,
1977a, p. 110). Anteriormente ele havia afirmado “em todo caso é tipo digno de atenção e
que apresenta um contraste interessante com o das outras nações indígenas” (FLORENCE,
1977a, p. 109). Seria tal tratamento representações que sinalizam identidades? Lampejos
no sentido da alteridade?
Difícil definir a linha tênue entre representar e reconhecer o “outro”. O desafio da
mediação sobre o “outro” diz respeito a uma tradução interpretativa em mutação. Ainda
mais ao personificar um olhar científico, em que a representação está a serviço de um
conhecimento específico, que pretende dar conta do “outro”. Não é simples tal conjugação,
afinal:
Quando a ciência passa a se constituir no principal instrumento para a
leitura do Outro, ela passa também a explicá-lo, e a razão se torna a chave
para descrever os comportamentos não europeus. Mas o que se pode
observar é que o pensamento racional e a compreensão da diferença, com
base nas novas aquisições da História Natural, não se constituem na
garantia de maior tolerância para com a diversidade do mundo. O
abandono do maravilhoso medieval, longe de ter representado um avanço
na descrição do desconhecido, traduziu-se numa perda para o
entendimento mais rico e complexo da alteridade (PALAZZO, 2007, p.
138).
A natureza também é personificada para ser mensurada, de forma que os reinos da
natureza são classificados a partir dos conhecimentos da ciência européia. Isso se evidencia
quando Florence elogia as águas do rio Paraguai:
É uma extensão de 600 léguas, livre do menor obstáculo, sem cachoeiras,
nem corredeiras: em todo o percurso deslizam mansas águas fundas e
largas. É o mais belo canal que a natureza formou para permitir ao
homem devassar desertos tão dilatados, para povoá-los e dar-lhes as
regalias de ativa navegação e imenso comércio (FLORENCE, 1977a, p.
99).
A visualidade do viajante reconhece a exuberância da natureza, mas sinaliza a
necessidade de sua domesticação. Faltava à grande imensidão natural a imposição do
progresso regido pelo homem civilizado.
No século XIX, o que prevalecia com respeito às diferentes culturas era a idéia do
progresso. Assim, as culturas seguiam um movimento uniforme em etapas de
114
desenvolvimento que culminavam com a chamada “civilização”, entendida a partir da vida
européia. É possível perceber que mesmo com as diferentes formas de entendimento do ser
civilizado, em várias partes do mundo, a civilização geralmente era identificada com
progresso. E o termo se aplicava ao que era racional, universal, assumindo de certa forma
“uma aura sagrada. Representar algo como contrário à civilização significava demonizá-
lo” (KUPER, 2002, p. 52).
Em Hércules Florence, há uma tensão nas narrativas textuais e visuais. O que
transparece é um esforço de isenção, que reflete essencialmente em seus desenhos e
pinturas. Mas, escorrega em sua própria metodologia de registro e nos enunciados sobre os
desenhos e pinturas (montagens e nomeação dos desenhos). Florence, em sua escrita,
expõe um jovem europeu, com apenas 24 anos na ocasião, influenciado pela ciência e pelas
teorias evolutivas do seu tempo.
Seguindo o mesmo raciocínio de Guillermo Giucci, ao refletir sobre o texto
Naufrágios de Alvar Nunez Cabeça de Vaca, “a noção de ‘diversidade’ não denota o
questionamento automático dos valores eurocêntricos” (GIUCCI, 1992, p. 170). Dessa
forma, é possível notar nas pinturas de Florence sua preocupação com as diferenças étnicas,
bem como com as relações de contato e os cuidados na descrição da cultura material. Tudo
convergindo para a diversidade. Sua percepção dos agrupamentos, das formas de vida
indígena não carrega a imagem do índio idealizado de outros viajantes. Embora, possa se
pensar em uma idealização científica, uma retratação que não esconde predileções.
Em suas observações, o que Florence faz é exatamente medir o “outro” pelos
referenciais europeus. Mesmo valorizando as diferenças e prezando pelo perfeito registro
do real, Florence trabalha com diferentes gradações de valor. Os indígenas são vistos como
mais ou menos próximos do europeu. O espaço da diferença só se constrói entre os grupos
indígenas e a partir da referência externa a eles. A similaridade, desde traços fisionômicos
até costumes, garante ou não traços da civilização. É essa escala, qualitativa e quantitativa,
que o registro visual explora.
Ao longo dos séculos, as formas de ver e contar ou ainda silenciar as relações entre
colonizador e nativo compuseram a própria história brasileira. Em Terra à Vista: discurso
do confronto: velho e novo mundo, a lingüista Eni Orlandi (1990) desenvolve a idéia da
descoberta como uma forma de apropriação. O discurso da descoberta é o discurso da
conquista. Tal colocação é importante na perspectiva de que a história se faz por uma
115
sucessão de discursos que criam e reciclam sentidos. Conforme Orlandi (1990, p. 15), a
característica mais forte do discurso colonial brasileiro é “reconhecer apenas o cultural e
des-conhecer (apagar) o histórico, o político”. Quando determinados discursos prevalecem
sobre outros, confere-se ao sujeito e à sociedade visões unilaterais na leitura de sua
existência. O pensamento do naturalista Humboldt já previa “A estetização está separada
de um ser humano histórico” (PRATT, 1991, p. 164).
Em relação à identidade nacional e o índio, Orlandi aponta ainda três modos de
domesticar as diferenças: pelo conhecimento através da ciência, pela mediação através da
política social ou indigenismo e pela salvação através da religião. Para a autora, esses três
contribuem “de algum modo, para que se apague a identidade do índio enquanto cultura
diferente e constitutiva da identidade nacional” (ORLANDI, 1990, p. 57).
Para o sociólogo Edgard Lander, na conquista ibérica do continente americano se
instaura dois processos que conformam a história que prossegue: a modernidade e a
organização colonial do mundo. E, nessa narrativa, “a Europa é – ou sempre foi –
simultaneamente o centro geográfico e a culminação do movimento temporal”, ou seja, de
onde partem as construções de uma grande versão universal do que é história (LANDER,
2005, p. 26). Lander vai mais adiante, referindo-se à constituição histórica das disciplinas
científicas na academia ocidental. Segundo o sociólogo:
Supõe-se a existência de um metarrelato universal que leva a todas as
culturas e a todos os povos do primitivo e tradicional até o moderno. A
sociedade industrial liberal é a expressão mais avançada desse processo
histórico, e por essa razão define o modelo da sociedade moderna. A
sociedade liberal, como norma universal, assinala o único futuro possível
de todas as outras culturas e povos. Aqueles que não conseguirem
incorporar-se a esta marcha inexorável da história estão destinados a
desaparecer (LANDER, 2005, p. 34).
Em seu livro O Selvagem e o Novo Mundo, o antropólogo Klaas Woortmann indica
que o ameríndio se diferenciava de tudo o que a civilização representava:
A América foi a nova oportunidade para retrabalhar o selvagem, sempre
tão necessário para o imaginário europeu sobre si mesmo e agora
necessário para dar conta de novos dilemas, como o do Dilúvio. [...] Se o
homem havia sido criado à imagem e semelhança de Deus, e se o europeu
era o paradigma de tal criação, tudo que se afastava do europeu, vale
116
dizer, do cristão, era monstruoso, fosse em sentido físico ou moral
(WOORTMANN, 2004, p. 74).
Dessa maneira, as formas de conhecimento se tornam reféns da visão eurocêntrica.
A relação entre colonizador/nativo ou ainda observador/observado reproduz interpretações
de qualquer outra sociedade a partir da versão ocidental moderna. Os discursos estão
pautados pelo modo de representar, vestindo-se da naturalidade para estabelecer em todo
lugar e em qualquer sociedade, seus padrões de verdade e razão. Como bem expressou
antropólogo Marvin Harris: “Termos como ‘selvagerismo’, ‘barbárie’ e ‘civilização’
expressam simplesmente o etnocentrismo de quem pensa que sua forma de vida é mais
normal que a forma de vida de outras pessoas” (HARRIS, 1995, p. 661).
No discurso do confronto, as diferenças que o “outro” possui são formas não
naturais, pois não coadunam com o referencial ocidental. Quando a realidade se apresenta
passível de naturalização, as relações de poder se fortalecem. Como se refere Norbert Elias,
ao tratar dos conceitos de civilização e suas conseqüências na história da sociedade
ocidental,
A história coletiva neles se cristalizou e ressoa. O indivíduo encontra essa
cristalização já em suas possibilidades de uso [...]. Usa-as porque lhe
parece uma coisa natural, porque desde a infância aprende a ver o mundo
através da lente desses conceitos (ELIAS, 1994, p. 26).
O que dizer então das leituras possíveis, séculos depois, dos registros iconográficos
frente a novas imposições da representação indígena? A institucionalização de um discurso
científico predominante sobre o discurso histórico contribuiu para um “brasileiro como
sujeito-cultural e negou-lhe o estatuto de sujeito-histórico” (ORLANDI, 1990, p. 14). Por
isso, persiste a equivocada idéia de que a história das sociedades indígenas brasileiras se
inicia com sua “entrada” na sociedade colonial e, conseqüentemente, na civilização
ocidental.
Entretanto, não há razão para a persistência dos erros. Desde Franz Boas (1858-
1942) e o conhecido Particularismo Histórico reagindo ao evolucionismo do século XIX,
as culturas foram visualizadas por meio de caminhos únicos e particulares de
desenvolvimento e, para entendê-las, se fazia necessário estudá-las em separado. Daí um
dos paradigmas da antropologia moderna, o relativismo cultural, em que não existem
117
formas superiores ou inferiores de cultura. Nessa perspectiva, é que se somam os estudos
da história indígena. E a leitura da iconografia de Hércules Florence, do ponto de vista
etnográfico, é uma tentativa de dialogar com uma trajetória não naturalmente exposta, ou
seja, da inserção dos índios e da natureza americana na história brasileira sob o prisma do
enfrentamento das diferenças e de produção da alteridade.
118
3. ETNOGRAFIA E ICONOGRAFIA NOS REGISTROS DE HÉRCULES
FLORENCE
3.1. O Pantanal e a Bacia do Alto Paraguai
O país é uma planície imensa que começava a ser inundada pelo
transbordamento do Paraguai, em cujas cabeceiras já haviam caído
chuvas. É aí que começa o vasto Pantanal que se estende de norte a sul
desde a embocadura do Jauru até à do Taquari, 45 léguas portuguesas
15
,
no meio das quais correm os rios Jauru, São Lourenço e Taquari, e
limitados ao ocidente por uma serra paralela ao curso do Paraguai. Essa
vasta zona encharcada vem assinalada por muitos geógrafos debaixo da
especificação de Lagoa dos Xaraies ou Laguna Xaraies (FLORENCE,
1977a, p. 98).
Seis meses após a partida de Porto Feliz, em dezembro de 1826, a Expedição
Langsdorff alcançou a região pantaneira, conhecida pela cartografia ocidental desde o
século XVII até meados do século XVIII como Laguna de los Xarayes ou Lago Xarayes.
Sua localização provavelmente indicava apenas um pequeno trecho da região próximo às
atuais lagoas Uberaba e Gaíva. A designação é proveniente do termo guarani xaray ou
jaray, que significa “dono do rio” ou “dono da água”, e refere-se ao grupo indígena Xaray,
de língua Aruák, que vivia na região e foi exterminado ou sofreu um violento processo de
desterritorialização pelos conquistadores luso-brasileiros do século XVIII (EREMITES DE
OLIVEIRA, 2003, p.161). Em seu percurso fluvial, os membros da expedição encontraram
a parte inundável da região no período de cheia e ali todo o fascínio e mistério. Em meados
15
A légua portuguesa equivale a 6.179m (arredondada para 6.000m), segundo FIGUEIRA, D.
Garcia. Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP:
FAPESP, 2001. p. 194.
119
do século XVIII, surgiu a denominação “pantanais” e, então, o termo Pantanal, de pântano
+ al, com a descoberta de ouro no vale dos rios Coxipó e Cuiabá pelos conquistadores de
São Paulo.
Essa região era vista como um lugar de passagem. Após um período de ocupação
jesuítica permaneceu até a segunda metade do século XVIII sob o domínio de populações
indígenas, época em que os primeiros núcleos de ocupação portuguesa foram implantados
em pontos estratégicos (BASTOS, 1972, p. 45). Para Costa (1999, p. 32), a demarcação
tardia de suas fronteiras foi ponto positivo para a preservação da geografia e da identidade
indígena.
Mas se em terras brasileiras Pantanal é o termo conhecido para terras paraguaias,
argentinas e bolivianas, a palavra mais usada é Chaco. O Pantanal pertencendo a diferentes
países forma uma grande planície sul-americana, composta de sub-regiões com
prolongamentos comuns. Diferentemente do senso comum, o Pantanal não é uma única
paisagem ou mesmo um ecossistema homogêneo, é formado por várias sub-regiões ou
pantanais, conforme se observa no mapa da Figura 19.
120
LOCALIZAÇÃO
Brasil
0 20 40 60 80 KM
ESCALA GRÁFICA
Figura 19: Mapa localizando o Pantanal matogrossense e suas sub-regiões ou pantanais
(MAGALHÃES, 1992, p.17 apud EREMITES DE OLIVEIRA, 2002, p. 157).
121
Existem as chamadas “terras baixas”, áreas de planície e também as “terras altas”,
formações serranas, morros isolados e terraços fluviais. Essas últimas são protegidas das
enchentes, com solos naturalmente mais férteis e favoráveis à agricultura se comparados
com as áreas alagáveis. Ambas são banhadas pela bacia do Alto Paraguai e diferem-se
entre si em recursos hídricos e naturais, como também sofrem a influência biogeográfica
dos biomas vizinhos, especialmente dos Cerrados, do Chaco, da Amazônia e da Mata
Atlântica existente na Serra da Bodoquena, no Mato Grosso do Sul (EREMITES DE
OLIVEIRA, 2004, p. 26).
As principais características do Pantanal são a sazonalidade das águas com ciclos
de cheias e secas e o longo período de armazenamento das águas. Em relação à Bacia do
Alto Paraguai no Brasil, sabe-se que sua extensão territorial fica em torno de 600.000 km
2
,
sendo 362.376 km
2
em território brasileiro, englobando os estados do Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul (CONEJO & ALÍPAZ, 2004, p. 35). O Pantanal foi considerado Patrimônio
Nacional pela Constituição de 1988. Tendo em vista sua importância, pesquisas com
diferentes enfoques têm sido realizadas na Bacia do Alto Paraguai, para conhecer e
gerenciar suas potencialidades e vulnerabilidades (CONEJO & ALÍPAZ, 2004, p. 10).
Entre as pesquisas e os estudos desenvolvidos na região estão os ligados à Arqueologia,
como o Projeto Corumbá (1989-2001). O projeto ligado à Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (UNISINOS), de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, realizou pesquisas
arqueológicas e etnoistóricas a respeito das sociedades indígenas pretéritas e
contemporâneas na região pantaneira.
Com uma posição estratégica na porção central do continente sul americano, o
Pantanal tem especial valor para o conhecimento da pré-história sul-americana. Para
Bastos, toda a região chaquenha favorecia a fixação de grande população indígena, pois
As populações indígenas do Chaco não só retiravam dos recursos
vegetais elementos de subsistência, como recorriam à enorme variedade
de espécies animais, que caracterizam a fauna da região. Os mais
variados tipos de herbívoros, de répteis existiam em número elevado. O
índio chaquenho encontrava na riqueza faunística elemento básico de sua
sobrevivência (BASTOS, 1972, p. 40).
Com isso, é possível perceber que o Pantanal recebeu diferentes influências
ambientais e culturais (EREMITES DE OLIVEIRA & VIANA, 1999, p. 144). Jorge
Eremites de Oliveira (2004) explica que pouco ainda se conhece sobre os sítios
122
arqueológicos mais antigos da bacia do Alto Paraguai e da região pantaneira. Entre o que já
foi estudado observa-se, por exemplo, com relação à ocupação indígena que
Grupos agricultores lingüisticamente guarani e aruák ocuparam,
preferencialmente, as porções das terras altas mais favoráveis ao cultivo e
próximas a cursos d´água permanentes, ao passo que grupos canoeiros
como os Guató, Guasarapo e Payaguá estabeleceram seus domínios sobre
grandes extensões das terras baixas. Ademais, áreas serranas como os
planaltos residuais de Urucum e Amolar, além de morros isolados que
ocorrem na planície de inundação, foram importantes locais para a
obtenção de matéria-prima para a indústria lítica de grupos pré-coloniais,
quaisquer que sejam eles (EREMITES DE OLIVEIRA, 2004, p. 32-33).
Antes da Expedição Langsdorff, o luso-brasileiro naturalista Alexandre Rodrigues
Ferreira e sua equipe já haviam trilhado parte do Pantanal a serviço da metrópole
portuguesa, em 1789 e 1791. Mas o livre acesso de expedições científicas neste território
se deu somente com a vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808. Tais
incursões em prol das ciências naturais visavam coletar, catalogar e, posteriormente,
divulgar as descobertas em academias européias fortalecendo a busca do conhecimento
científico. Todo esforço era empreendido para nutrir uma racionalidade científica que
reordenasse a materialidade da natureza e seus habitantes em imagens envolvidas de
interesse econômico e expansionista (RAMINELLI, 2000, p. 28). O projeto das viagens
buscava o conhecimento da flora, da fauna e dos tipos humanos. Por isso, o vasto Pantanal
era um conjunto tão atraente que combinava grande biodiversidade natural com populações
indígenas em intensos contatos.
Em sua última correspondência oficial à Academia de Ciências de São Petesburgo,
Langsdorff revelou suas impressões da região pantaneira. No mês de dezembro, a
expedição alcançou o rio Taquari, afluente do rio Paraguai. Nesse período, até fevereiro, as
altas temperaturas são comuns e os resíduos vegetais e sedimentos estão presentes nas
águas em virtude das cheias. Além disso, conforme Becher,
Uma quantidade enorme de mosquitos nos cobria a todos, remeiros
desnudos e as canoas, e nos cercavam como uma nuvem. [...] A vida de
cada um de nós se tornou pouco alegre. [...] A água do Paraguai, que flui
lentamente, estava sobrecarregada de toda espécie possível de corpos
estranhos: barro vermelho, folhagem, raízes apodrecidas, peixes em
decomposição. [...] E, além disso, a temperatura atmosférica à sombra era
comumente de 26º a 29º. A temperatura da água era quase
123
invariavelmente de 24º, dia e noite. Sob esse calor incessante, ao ar livre,
com uma sede angustiosa, acossados por nuvens atormentadoras de
mosquitos, permanentemente molhados de suor, era-nos impossível obter
algo fresco para beber e assim nem se podia pensar em qualquer
ocupação intensa e séria (BECHER, 1990, p.12-13).
As dificuldades impostas pelo ciclo das águas corroboravam para o imaginário
europeu e suas aventuras pelo Novo Mundo. Através do registro atencioso das viagens
científicas era possível montar um grande cenário da natureza exótica. As produções
iconográficas, que combinavam arte e conhecimento, eram de grande utilidade para os
interesses marítimos e comerciais somados ao conhecimento científico (ROSSATO, 2005,
p. 179). Para a Expedição Langsdorff, e em especial para Hércules Florence, além da
natureza exuberante, o Pantanal reservava ainda outra realidade instigante: a experiência de
contato com os povos indígenas.
3.2. A representação visual indígena por Hércules Florence
O material recolhido sofreu grandes desfalques ainda durante a viagem, devido ao
péssimo estado de saúde do Sr. Langsdorff, chefe da expedição, acometido de febres que
lhe tiraram a memória. As remessas à Europa ocorreram de forma regular somente até
Cuiabá (HARTMANN, 1970, p. 156).
Com relação aos trabalhos de Hércules Florence, parte permaneceu com seus
descendentes e parte foi enviada à Rússia. Nesse envio, um lote considerável foi perdido
(COSTA & DIENER, 1995, p. 85). Assim, as publicações de seus desenhos exibem sua
obra de forma fragmentada, nas três edições do diário de Florence (1875, 1948, 1977). Nos
livros de arte e outras publicações (CARELLI, 1992; COSTA & DIENER, 1995;
MONTEIRO & KAZ, 1998; FLORENCE, 2000; MANIZER, 1967). Há também
reproduções presentes em acervos de museus e centros de documentação, como o Museu
Paulista, em São Paulo; o Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas –
Unicamp, em Campinas, e a Casa de Oswaldo Cruz – COC, da Fundação Oswaldo Cruz –
Fiocruz.
O artista-viajante, no exercício de sua função comumente, desenhava os esboços
durante a viagem, retocando e concluindo posteriormente para publicação. Para isso, fazia
124
uso de técnicas como aquarela e nanquim. Muitos artistas, financiados por países europeus,
e em conexão com as gravuras e livros que fomentavam a ciência no século XIX,
terminavam e até adaptavam suas obras bem longe do contexto da retratação. Contavam
apenas com suas anotações e sua memória.
O foco desta pesquisa são suas representações dos indígenas Guaná, Guató e
Bororo, grupos localizados na Bacia do Alto Paraguai. No seu estilo de representação,
Florence possui particularidades muito interessantes sob vários aspectos. É fato que ele não
voltou à Europa para dar conta de sua produção gráfica; e o destino infortunado da
expedição também não propiciou tais desdobramentos. Por outro lado, terminou alguns de
seus desenhos em Cuiabá, onde a expedição permaneceu por dez meses e, há indicações de
desenhos finalizados em São Paulo na década de 1830. Seus desenhos serviriam ainda
como referência para uma técnica de reprodução por ele desenvolvida, a “Poligrafia”
(KOSSOY, 2006, p. 52).
As fontes iconográficas estão ordenadas conforme os contatos realizados entre
Florence e os grupos indígenas. Seguem a ordem cronológica do itinerário fluvial, pois
mesmo com desenhos finalizados em datas posteriores, optou-se por um balizamento na
lógica da experiência de contato intercultural. São valorizados elementos como o espaço, o
contexto e as impressões que se desenrolavam na percepção do artista-viajante. Os
levantamentos realizados são de caráter introdutório ao debate iconográfico. Não tendo
aqui a pretensão de discorrer em profundidade sobre as questões etnoistóricas de cada povo.
Os desenhos documentais de Florence são acompanhados de anotações feitas em
seu diário de viagem. Em seu livro O Brasil dos Viajantes, Ana Maria de Moraes Belluzzo
descreve assim as características de representação do pintor-viajante:
Os desenhos etnográficos traduzem o rigor da observação das figuras por
meio de vistas de frente e perfil, de maneira a individualizar fisionomias e
afirmar a diversidade étnica, em vez de fazê-las tender a padronizações
tipificantes. [...] Florence é primordialmente desenhista e, mesmo quando
se vale da aquarela, orienta o foco de sua atenção para uma certa
´objetividade´ da representação (BELLUZZO, 2000, p. 131).
Silvia M. Schmuziger Carvalho (1998), em seu texto sobre os grupos indígenas na
região do Chaco e suas relações com a Bacia do Paraná e o sul matogrossense, classifica o
trabalho de Florence como um dos mais importantes relatos de viajantes do século XIX.
125
Dessa maneira, mesmo contando com um material pouco difundido no país, os registros do
pintor-viajante representam uma faceta importante da produção iconográfica no contexto
da história indígena brasileira. Em meio à sua busca por objetividade, Florence forneceu
pistas diversas sobre as populações nativas.
Mesmo com o rigor técnico adotado, não se exclui sua forma de ver através de sua
própria vida e experiência. Para a proposta deste trabalho, é importante perceber a tensão
criada na representação do indígena e na interpretação ao seu respeito, construindo um
diálogo entre as culturas distintas em contato.
3.3. O encontro com os Guaná
Os Guaná, também chamados de Guaná-Chané, fazem parte da família lingüística
Aruák. O termo Guaná refere-se a grupos que migraram para a margem direita do rio
Paraguai em fins do século XVIII, em virtude do processo de colonização espanhola e das
relações interétnicas com outros povos indígenas (SCHUCH, 1995, p. 54). Tal designação
genérica é encontrada em vários relatos de viajantes e religiosos do século XIX. Segundo
Roberto Cardoso de Oliveira, Guaná trata-se de uma designação especial, dada pelos
conquistadores espanhóis, aos grupos Txané da bacia do Paraguai. Foram quatro grupos
que atravessaram o rio e se estabeleceram nas margens orientais: Terena, Layana,
Kinikináu e Exoaladi (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 25).
Os relatos do pintor-viajante Hércules Florence apenas indicam o termo Guaná,
sendo possível supor, pela localidade do encontro com tais índios, a região de Albuquerque,
tratar-se de índios Exoaladi e Kinikináu (SCHUCH, 1995, p. 55).
Os Guaná, que foram instalados nas mediações de Coimbra, foram
aldeados na aldeia de Albuquerque, que posteriormente foi transformada
em missão [...] À medida que os diferentes grupos Chané foram deixando
o Paraguay eles foram se estabelecendo em parte na região de
Albuquerque e Coimbra, onde além dos referidos Guaná havia também
uma aldeia de Quiniquinao (SCHUCH, 1995, p. 56).
126
A aldeia transformada em missão trata-se do trabalho de catequese do Frei José
Maria de Macerata, que instalou a Missão Nossa Senhora da Misericórdia a partir de 1819
(SCHUCH, 1995, p. 55). Verone Cristina da Silva assim discorre:
O número acentuado da sua população, bem como a notável experiência
que tinham com agricultura, além da prática de intercâmbio e o comércio
despertaram a curiosidade de viajantes e o interesse das autoridades
locais, que logo procuraram investir na catequese desses índios. Ali, além
das atividades voltadas à moral e à religião cristã, estimulava-se a aptidão
agrícola dos índios para o fornecimento de gêneros alimentícios aos
comandos militares de Coimbra e Miranda, instalados na região do Baixo
Paraguai (CRISTINA DA SILVA, 2001, p. 6).
Atualmente, apenas os Exoaladi, aparentemente, não possuem remanescentes. Os
Kinikináu vivem espalhados por algumas aldeias da porção ocidental do estado de Mato
Grosso do Sul. Há uma concentração do grupo na aldeia São João, ao sudeste da Reserva
Indígena Kadiwéu, município de Porto Murtinho. Também há notícias de membros desse
grupo residindo em aldeias terena, nos municípios sul-mato-grossenses de Aquidauana,
Miranda e Nioaque (SOUZA & JOSÉ DA SILVA, 2005). Dentre as quatro classificações
citadas, os Terena são os mais conhecidos pela sociedade nacional (AZANHA, 2004, p. 2).
Desde o século XVI, os Guanás habitavam as regiões do Chaco e Pantanal. Tais
regiões, por serem ligadas por vias fluviais como o rio Paraguai, experimentaram “ao
menos em parte, os intensos contatos registrados entre povos indígenas das duas regiões
durante os três primeiros séculos da Conquista Ibérica” (EREMITES DE OLIVEIRA, 2003,
p. 164). Em virtude da expansão portuguesa em busca de ouro e do domínio sobre as vias
fluviais, esses índios permaneceram próximos aos povoados e fortificações militares luso-
brasileiras. Assim, no século XVIII, haviam Guanás na região de Corumbá e Ladário até o
rio Apa, no atual Mato Grosso do Sul. O propósito da metrópole era utilizá-los como
muralhas do “sertão” e guardiões das fronteiras (EREMITES DE OLIVEIRA & PEREIRA,
2005, p. 3).
Predominantemente agricultores, os Guaná mantinham alianças baseadas na troca
recíproca e no comércio justo com outros grupos étnicos e com a sociedade brasileira.
Segundo Luiz D´Alincourt, plantavam milho, cará, aipim, batatas, etc. (D´ALINCOURT,
1828, p. 103). Comercializavam alimentos, tecidos e diversos produtos e, conforme
Florence, os Guaná mantinham outras práticas:
127
Lavradores, cultivam o milho, o aipim e mandioca, a cana-de-açúcar, o
algodão, o tabaco e outras plantas do país. Fabricantes possuem alguns
engenhos de moer cana, e fazem grandes peças de pano de algodão, com
que se vestem, além de redes e cintas. Industriais, vão, em canoas suas ou
nas dos brasileiros, até Cuiabá para venderem suas peças de roupa, cintas,
suspensórios, cilhas de selim e tabaco (FLORENCE, 1977a, p. 103).
O Barão Langsdorff também relata a respeito desse grupo em seu diário:
Depois de ouvir o parecer técnico do comandante, eu estava resolvido a ir
visitar os arredores da Povoação de Albuquerque (aldeia dos índios
guanás) e a Missão, mas principalmente o Forte Coimbra e as grutas
subterrâneas das montanhas calcárias.
Quando eu conseguir levantar mais informações, falarei sobre esses
índios, de sua operosidade e de sua produção, de como passaram da
condição de selvagens para a de pessoas civilizadas, graças à ação do
atual bispo. [...] Assim como os habitantes, também a nação dos índios
guanás é tida como trabalhadora e, segundo dizem, muito honesta. Eles se
estabeleceram no caminho daqui para o Forte Coimbra e nas diversas
expedições entre Porto Feliz e Camapuã (BERNARDINO DA SILVA,
1997, p. 29-32).
Os Guaná eram organizados em aldeias populosas, com ruas divididas em quadras
e no meio uma praça grande. Configuravam metades e estratos sociais endógamos. Mesmo
sendo agricultores, não deixavam de aproveitar da coleta, da caça e da pesca do rio
Paraguai, segundo a potencialidade cíclica dos recursos naturais. A divisão do trabalho
entre os Guaná estabelecia-se assim: trabalho agrícola, guerra, caça, pesca e cestaria como
atividades masculinas. Já tarefas de fiação, cerâmica e cuidados caseiros eram atividades
femininas (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 44). Uma característica dinâmica e
expansiva das aldeias guaná era a possibilidade de se fragmentar para conquistar outros
territórios (SUSNIK, 1978, p. 110-112). Os deslocamentos implicavam na busca por terras
propícias para o plantio e por intercâmbio de “bens” como mostrava a relação estabelecida
com o grupo Mbayá-Guaicurú.
Esta relação era baseada no casamento entre as etnias: os chefes Guaná cediam
mulheres da sua casta para casar-se com os “maiorais” Mbayá, consolidando, ao longo do
tempo, uma estrutura social complexa. Os Guaná, como cultivadores, necessitavam de
objetos de ferro e de segurança para suas roças, além da adoção do cavalo que era
128
interessante para as lavouras; já os Mbayá tomavam as mulheres e garantiam o
abastecimento do grupo.
O Barão Langsdorff observou desenhos feitos pelos Guaná em árvores
correspondendo aos mesmos desenhos encontrados nos cavalos roubados pelos espanhóis.
Ele associa os desenhos às marcas de passagem por determinados lugares:
Desenhos que os guanás e guaicurus fazem nas árvores: são figuras ou
marcas, as mesmas encontradas nos cavalos roubados dos espanhóis.
Com certeza, os guaicurus possuem o mesmo ferro com que os espanhóis
marcam os animais. [...] Imagino que esses desenhos sirvam como uma
espécie de brasão ou de marca, para anunciar que aquela pessoa esteve ali
(BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 64).
A relação entre Guaná e Mbayá-Guaicurú era uma das relações interétnicas que
movimentavam o sistema social no Pantanal. Assim, os Guaná negociavam estratégias de
defesa do grupo, em dependência mútua e ao contrário de uma relação “escravo-senhor”
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 32). Tal relação foi desfeita na intensificação do
contato com os brasileiros e suas vantagens na obtenção de ferro e gado em trocas
comerciais.
Para os administradores locais e para o olhar ocidental em geral, os Guaná eram
“índios civilizados”, pois
Andavam vestidos com seus panos coloridos e bem tramados, praticavam
a agricultura, eram reconhecidos como possuidores de beleza física e
elegância, viajavam e realizavam intercâmbios, conseguiam uma fácil
comunicação com a população neo-brasileira e realizavam comércio
troquista (CRISTINA DA SILVA, 2001, p. 7).
Em poucos dias de parada em Albuquerque, atual distrito de Corumbá, Florence
não fez observação diferente. Ele encontrou um grupo de índios Guaná procedente de uma
aldeia “um pouco acima do Miranda” (FLORENCE, 1977a, p. 103). De pronto, identificou
um índio já velho, por sua insígnia junto ao governo local, uma patente de capitão-mor
assinada pelo governador geral da província, João Carlos Augusto D´Oyenhausen e
Gravenberg. (1807-1819). As patentes funcionavam como parte das ações e retribuições
vivenciadas pelos Guaná com a sociedade envolvente, e os “índios provavelmente
129
acreditavam que a Carta Patente lhes garantiria algum privilégio e aproveitavam de tal
documento para fazer pedidos e reinvidicações” (CRISTINA DA SILVA, 2001, p. 61). Os
Guaná faziam parte do grupo de etnias que, durante o século XIX, eram aldeados e
vigiados pelo Diretório dos Índios da Província de Mato Grosso. A estratégia já traçada
pelo governo colonial era a fixação dos grupos indígenas nos aldeamentos, promovendo a
sedentariedade e liberando terras e espaços (CUNHA, 1986, p. 170).
São cinco os desenhos que retratam os Guaná, entre esboços rápidos e desenhos em
aquarela. Infelizmente, algumas legendas não possuem todas as informações que seriam
necessárias para o seu entendimento. Hartmann (1970) sinaliza que mais desenhos deste
grupo poderiam estar no arquivo russo. Mas apenas um, desconhecido pela autora na época,
foi publicado até então. Existe também a retratação de um índio Chamacoco, segundo
Florence, criado entre os Guaná. Este desenho, aqui não apresentado, faz referência à
relação simbiótica entre Guaná e Chamacoco. Era possível que os índios capturados
fossem utilizados como mão-de-obra servil, porém a observação do viajante reflete um
corpus interpretativo específico da sociedade ocidental, muito limitado e fragmentado
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1968, p. 21-25).
Segundo Hartmann (1970), é bem provável que o desenho da Figura 20 seja
formado por esboços inéditos, representados separadamente em outras composições.
Poucos traços definem o cenário, e aparenta ser uma montagem. O relato textual indica que
o desenho foi executado em São Paulo, em 1830, após o fim da expedição científica. Isso
reforça a hipótese de ser uma composição com esboços avulsos. O desenho enfatiza as
vestimentas guaná, conhecidas como panões.
Figura 20: Índios Guaná. Aquarela negra, 25,9 x 41,1 cm. São Paulo, 1830 (CARELLI, 1992, p. 42-43).
131
O corte de cabelo é bem característico. Destaca-se também a trança da personagem ao
centro da ilustração, um penteado igual se encontra em outro desenho do grupo (Figura 22 e
23). No canto direito, a figura de uma criança com chapéu e panões não aparenta total
integração ao restante da composição. Para a hipótese da montagem executada após a
expedição, o pintor-viajante parece ter economizado nos detalhes do cenário para a
composição. Teria ele porventura alguma pressa? O pesquisador Boris Komissarov indica que,
no ano de 1830, o botânico Riedel preparava uma remessa de material da expedição para São
Petersburgo. Riedel chegou a pressionar Florence, informando que aguardava a parte que lhe
cabia (KOMISSAROV, 1994, p. 33).
A Figura 21 mostra um esboço de traços rápidos, em nanquim aguado, tamanho 19,9 x
30,7 cm (CARELLI, 1992, p. 123). Sem muita informação adicional, foi um registro
suficiente das cartolas e vestimentas utilizadas pelos índios. O uso de cartolas foi comentado
pelo etnógrafo alemão Karl von den Steinen, em 1899 (HARTMANN, 1970, p. 158). Os
Guaná usavam também “calças e camisas de algodão grosseiro que se tece em Cuiabá, bem
como em todo o interior do Brasil. É o traje de gente miúda” (FLORENCE, 1977, p. 108).
Figura 21: Duas pirogas de Guaná. 1827 (CARELLI, 1992, p. 43).
132
Quanto ao percurso para Cuiabá, o diário do Barão de Langsdorff descreve as viagens
dos Guaná de Albuquerque para Cuiabá, a fim de estabelecer trocas, em fluxo quinzenal com
suas próprias canoas, realizando paradas pelo caminho (BERNARDINO SILVA, 1997, p. 61).
No ano de 1803, Ricardo Franco de Almeida Serra em seu Parecer sobre o aldeamento dos
índios uaicurús e guanás, relatou o comércio dos panões e outros bens apontando para um
enriquecimento considerável desse grupo se comparados aos Mbayá-Guaicurú.
Florence se intrigou com a técnica de manufatura dos famosos panões dos Guaná. O
fascínio do olhar ocidental, impregnado dos desdobramentos da Revolução Industrial,
enxergava nesses índios um modo de ser muito útil. Modo que deveria ser integralmente
incorporado à vida produtiva da província. Ele descreveu importantes considerações sobre a
tecelagem entre os Guaná:
As peças de algodão trançado, que aqui são conhecidas por panões, não têm
ordinariamente mais de quatro varas de comprimento e duas ou três de
largura. São tramadas de um modo para mim desconhecido, os fios verticais
inteiramente cobertos pelos horizontais de lado e de outro, o que faz com
que o tecido seja muito espesso e próprio para barracas, por não dar
passagem à mais violenta chuva (FLORENCE, 1977a, p. 106).
Usualmente as peças etnográficas ficavam a cargo do pintor Aimé-Adrien Taunay,
mas a fascinação de Florence pela tecelagem guaná o levou a desenhar tais peças, esboçando
o ponto do tecido. Infelizmente, estes desenhos são desconhecidos, embora sejam citados,
mas não publicados, pelo etnógrafo Manizer (HARTMANN, 1970, p. 158). Os tecidos, de
ótima qualidade, eram comercializados em diferentes localidades, entre elas Albuquerque,
Miranda, Coimbra e Cuiabá.
As mulheres Guaná eram responsáveis por esta atividade. Florence relatou a
composição e as dimensões do tear, como também o tempo gasto na confecção e
provavelmente descreveu uma troca cultural com mulheres de Cuiabá, que seguiam o mesmo
sistema. É provável que o algodão fosse por eles cultivado, por isso serem conhecidos como
agricultores. Os panões eram tingidos a partir de extratos vegetais e minerais, “os panões têm
riscas largas e de diferentes cores: escuro carregado, preto, branco, pardacento, ruivo e azul-
claro” (FLORENCE, 1977a, p. 108).
Eremites de Oliveira (2002, p. 239), ao caracterizar a cerâmica dos Kadiwéu do
pantanal de Nabileque, detalha as cores da seguinte forma: as cores enegrecidas obtidas
133
provavelmente da maceração de vegetais e minerais, como a resina de pau-santo (Bulnesia
sarmientoi), a mistura de pó de carvão vegetal, suco de jenipapo (Genipa americana) e água.
As cores em branco, extraídas de calcário branco, argila branca ou ainda por meio de uma
mistura de cal e água. Cores vermelhas a partir de óxido de ferro (hematita) ou do urucu (Bixa
orellana). Pode ser que tais processos para a obtenção de cores também fizesse parte das
atividades relacionadas à tecelagem guaná.
A impressão que Florence teve dos Guaná foi do índio “bom selvagem”, aquele que se
aproximava dos padrões sociais, morais e culturais dos europeus e euro-americanos. Assim,
se houvesse pudor e andasse vestido, se submetido às leis e condutas imperiais, seria
enquadrado no perfil do “índio civilizado”. Florence expressou pelo desenho de suas feições
tal concepção, um “quê de ameno e de suave muito especial” (FLORENCE, 1977a, p. 108).
A Figura 22 é um esboço de três índios Guaná, em lápis, 20 x 25 cm, datado de 1826,
em Albuquerque.
Figura 22: Índios Guaná. Lápis, 20 x 25 cm. 1826 (CARELLI, 1992, p. 42).
135
Na Figura 23, o mesmo desenho encontra-se finalizado em cores, datado de novembro
de 1827, em Cuiabá. Os três índios Guaná estão com suas vestimentas e corte de cabelo
peculiares, retratando o “costume de tosquiar a parte anterior da cabeça, permitindo ao cabelo
crescer em escovinha e deixando-o livre e solto a partir daí” (HARTMANN, 1970, p. 159-
160).
Figura 23: Índios Guaná. Aquarela 27,7 x 21,5 cm. Novembro de 1827, Cuiabá (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 328-329).
137
A estética dos tipos humanos fez parte de um conjunto de registros visuais da vida
pulsante no interior do Brasil. O inventário dessas categorias seguia uma lógica própria em
que “a vontade de formar é mais uma vontade de conformar” (GOMBRICH, 1986, p. 67). O
diálogo estreito com os objetivos científicos tornava o desenho uma extensão dele e, por isso,
comprometido com certa objetividade e direção.
Muitos índios pintados por Florence estão de frente e de perfil, para valorizar suas
características físicas. O estilo de Florence parece mesmo escolher formas diretas. De pronto,
a posição dos índios pode parecer ignorar a pose, pouco aparece dos seus membros superiores,
mas os olhares são fixos e diretos. O terceiro índio possui a mesma trança presente na Figura
20, o que poderia até ser o esboço do mesmo indivíduo. Apesar da diferença de suas feições,
seguem certa linearidade no traçado do nariz, boca e ombros. Assim, Florence os descreve em
seu diário; “Não marcam a pele, nem mutilam o nariz, o lábio inferior ou as orelhas; não se
pintam de urucum como tantas outras tribos. Se em épocas anteriores tiveram essas práticas
singulares, já são por demais civilizados para nelas perseverarem” (FLORENCE, 1977a, p.
109).
Como viajante e observador, Florence buscava traduzir a cultura autóctone ou nativa
para os referenciais culturais que compartilhava. Nesta trajetória, a descrição é sempre de algo
novo, e tenta-se organizá-lo no tempo e espaço (FERNANDES, 2003, p. 44). O contato gerou
posturas ambíguas, próprias do momento de encontro entre diferentes trajetórias e bagagens
culturais distintas.
Se não se chegam tanto ao tipo europeu como os Guató, não são, contudo,
indiáticos puros a modo dos Caiapó ou Xamacoco, dos quais tive ocasião de
ver alguns indivíduos. Sem a expressão traiçoeira e má dos Guaikurú, nem a
ferocidade dos Botocudo e Bororo, talvez se pareçam com os Apiaká; em
todo caso é tipo digno de atenção e que apresenta um contraste interessante
com o das outras nações indígenas (FLORENCE, 1977a, p. 108-109).
Aqui se contrapõem as idéias do “bom selvagem”, fruto de um paraíso tropical, e o
selvagem-bárbaro, rodeado de uma natureza hostil e perigosa. O ameno suave versus o
traiçoeiro e o mau; o indiático puro versus o tipo europeu. Este enfrentamento significava em
terras coloniais pleitear conquista e domínio, ou degradação e extermínio. Luciana Murari,
baseando-se nas idéias de Tzvetan Todorov (1993), escreve:
138
Esses povos eram vistos, por muito de seus observadores, como os
habitantes de um mundo natural dotado de igualdade e liberdade, o contrário
da vida artificial e desigual do Velho Mundo [...]. A partir dessa idealização
do selvagem, chegar à América tornava-se uma forma de acesso às origens,
o que levou a caracterizá-la como primitiva. [...] Essa visão da América
exótica foi bastante fértil, mas dividiu terreno, desde o início, com a
condenação da barbárie e a defesa da superioridade da civilização (MURARI,
1999, p. 48).
A postura de Florence frente ao “bom selvagem” encontrou ressonância em outras
observações. Na descrição da beleza das mulheres Guaná, por exemplo, chamou sua atenção
por se aproximarem dos padrões europeus. Por outro lado, Florence questionou a prática de
“prostituição” das mesmas, ao se referir a “mais completa devassidão, tanto mais quanto os
próprios maridos, desconhecendo o que seja ciúme, as entregavam a estranhos com a maior
facilidade, mediante algum dinheiro ou peças de roupas” (FLORENCE, 1977a, p. 109). Tal
observação deve ser encarada a partir da observação do contexto social, com critérios
etnocêntricos e, por vezes, confusos. Em seu relato, Florence afirmou não ter presenciado as
práticas por ele condenadas, somente ouviu a respeito.
O Barão Langsdorff distinguiu assim Guaná e Guató:
A língua dos guatós é como a sua nação: mais forte e mais rude do que a dos
guanás; a língua destes é mais macia, mais musical. As duas tribos não se
entendem. Em termos de costumes, hábitos e língua, os guanás se
assemelham mais aos guaicurus.
Os guanás têm mais traços mongóis do que os guatós. Por não terem barba,
os guanás, como todo o seu tamanho, têm uma aparência feminina, enquanto
que os guatós, mesmo com a barba curta, são mais másculos, inclusive por
serem mais altos (BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 63).
Langsdorff relata também outras impressões sobre os Guaná, associando traços de
civilização como o trabalho de catequese, em contraposição com o selvagem sem religião.
Os guanás têm um nível cultural bem mais elevado, foram civilizados pelo
atual bispo de Cuiabá, e a maioria é batizada. Eles vivem da comercialização
de seu artesanato; são monógamos, asseados, andam vestidos e moram em
aldeias, em cabanas bem construídas.
139
Certamente por causa dos seus hábitos de higiene, eles aparentam ser mais
brancos do que as demais nações indígenas brasileiras que já observei até
hoje (BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 43-44).
Para Langsdorff, os homens Guaná possuíam apenas uma mulher e que um acordo
para oferecimento dela só era possível com o consentimento da mulher (BERNARDINO DA
SILVA, 1997, p. 34). Como já mencionado, havia também a aliança entre os Guaná-Mbayá,
alicerçada no casamento, de forma que os chefes Guaná cediam mulheres da sua casta para os
“maiorais” Mbayá. O cronista Visconde de Taunay, cerca de quarenta anos mais tarde, frisou
a beleza Guaná e até certo “acanhamento”.
São as suas mulheres belas; pela mistura de raças, fácil nessa tribo mais
relacionada com os brancos e negros e a estes encostada. A cor lhes é de
uma amarelo escuro de canela ou de um branco ligeiramente rosado. Neste
caso, tem as faces delicadamente coradas; a tez pura, os lábios rubros, as
gengivas vermelhas. Quase todas compreendem o português: fazem esforços
para o falar, apesar do acanhamento que em tal caso mostram experimentar
(TAUNAY, 1931, p. 18).
Se até aqui, os desenhos de Florence foram tão concernentes ao seu estilo, há certo
estranhamento na Figura 24, último desenho a ser analisado do grupo Guaná. Com traços
fisionômicos diferentes dos demais desenhos, uma jovem Guaná e o capitão Guaná,
conhecido como Guanitá, aparecem ambientados em um cenário exótico. Thekla Hartmann
explica:
Provavelmente elaborada após a volta da expedição. Nele se notam todas
aquelas características de “montagem”, de tendência ao embelezamento, de
exotismo, tão avessas à pena de Florence. Inaproveitável do ponto de vista
documental desmente as descrições do autor no que diz respeito ao vestuário
dos Guaná e não se coaduna com os demais desenhos de tipo físico desses
índios. Mesmo o pano de fundo da vegetação é inverossímil para as
condições fitogeográficas da área (HARTMANN, 1970, p. 159).
140
Figura 24: Jovem Guaná e Guanita. Aquarela 39,9 x 24,8 cm. 1826 (CARELLI, 1992, p. 45).
141
Entretanto, a dissonância desse desenho, mesmo com a argumentação plausível de
Hartmann, não está de todo solucionada. Mesmo porque a imagem tem certa coerência com
outras descrições, como de Alfredo D´Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, por
ocasião da Guerra do Paraguai, entre 1865 e 1868. O cronista relata as mulheres Guaná como
belas, elegantes, de traços finos, cabelos grossos e compridos, trajando uma julata de algodão
“abaixo dos seios, com uma das pontas passadas entre as coxas e segura à cintura” (TAUNAY,
1931, p. 17-48).
É fato que a finalização do desenho ao fim da expedição limita a retratação, nem ao
menos corresponde à característica da maioria dos desenhos de Florence. Talvez seu desenho
possa ter sofrido influência de um processo de impressão gráfica, experiência não de terceiros,
mas do próprio desenhista, como o caso do desenho de um índio Bororo (Figura 37). Quando
se estabeleceu na Vila de São Carlos, Florence criou a primeira tipografia da localidade. A
criação artística do pintor-viajante limitava-se ao tempo histórico e às suas demandas.
Entende-se que mesmo assim possui seu caráter documental, pois subsiste como um
registro do tempo pretérito, impossível de se conceber em neutralidade. Tal discussão, sobre
as questões concernentes às fontes imagéticas, era incipiente na época das conclusões de
Thekla Hartmann. Fatores como memória e imaginação estarão sempre presentes na produção
imagética, atuando decisivamente ou não. Pois, a imagem é “uma construção discursiva, que
depende de formas históricas de percepção e leitura, das linguagens e técnicas disponíveis,
dos conceitos vigentes” (MENESES, 1996, p. 152). Quanto ao desenho Jovem Guaná e
Guanita pode-se apenas inferir que faltam dados ou informações que sejam capazes de
entendê-lo no conjunto dos demais.
3.4. O encontro com os Guató
No dia 26 de dezembro de 1826, a Expedição Langsdorff aportou no chamado morro
dos Dourados, no rio Paraguai, pouco antes da embocadura com o rio São Lourenço. Ali
Florence avistou canoas cheias de índios Guató:
Em pé à proa os maridos remam; as mulheres sentadas à popa vêm
governando por meio de uma pá: as crianças acocoram-se no meio sobre
142
esteiras. As embarcações, com três palmos e meio de largo sobre 20 ou 25 de
comprido se tanto, levam sempre no bojo cães, arcos e flechas para caçadas e
pescarias (FLORENCE, 1977a, p. 114).
Além dessa região, Florence encontrou índios Guató no alto rio Paraguai, na
embocadura com o São Lourenço. De um grupo vivendo na lagoa Gaíva teve apenas notícias,
“dois mil selvagens muito bravios, inimigos de qualquer contato com brancos, embora em
nada malfeitores” (FLORENCE, 1977a, p. 117). Tal descrição parece, de forma contraditória,
confrontar as percepções do viajante e sua experiência, com testemunhos de terceiros. O
pintor-viajante descreveu o grupo na perspectiva da figura do “bom selvagem”, o índio do
convívio pacífico frente às regras do colonizador.
Remanescentes dos Guató habitam hoje na região do morro do Caracará, às margens
do rio São Lourenço, e na cidade de Corumbá. Estudos recentes, envolvendo pesquisas
etnoistóricas e etnoarqueológicas, redimensionaram a trajetória deste grupo étnico desde a
Conquista Ibérica até os dias atuais (EREMITES DE OLIVEIRA, 1995; 2002).
Representantes de grupos canoeiros, que ocupavam as áreas inundáveis do Pantanal
Matogrossense, os Guató possuíam grande mobilidade espacial em virtude do uso da canoa,
intimamente ligado à vivência cultural desse povo. Dentre os povos canoeiros, como os
Payaguá e os Guaxarapo, os Guató são os últimos representantes. Branislava Susnik os
descreveu como “os típicos representantes da gente do rio [...]. Viviam da pesca, caça e
coleta” (SUSNIK, 1978, p. 17-18). Entre as áreas de suas prováveis ocupações estão o alto
curso do rio Paraguai, passando por rios como o Cuiabá e São Lourenço; além da Ilha Ínsua e
lagoas Gaíva, Uberaba, Mandioré, Vermelha e Cáceres (EREMITES DE OLIVEIRA, 2002, p.
247).
A língua Guató faz parte da família de mesmo nome e único membro, ligada
diretamente ao tronco Macro-Jê, conforme explica Eremites de Oliveira (2002, p. 252), em
estudo que se referencia nos trabalhos de Adair Pimentel Palácio (1984), Max Schmidt (1942)
e Greg Urban (1998). Para Florence, a língua Guató parecia “rápida”, sendo o “sim uma forte
inspiração seguida de um som gutural” (FLORENCE, 1977a, p. 121).
De todos os grupos contactados por Florence, são os Guató que traduzem o ícone do
selvagem idealizado que mais se parece com o tipo europeu, dóceis no trato e atenciosos com
a família. “São bem feitos, robustos, de tez cobreada escura e cabelos corridos, o que os
prende ao tronco indiático, porque no mais parecem tipo europeu. Vi um homem de porte alto,
143
boa figura e nariz aquilino: outros contudo apresentavam o cunho característico da raça”
(FLORENCE, 1977a, p. 118).
A organização social dos Guató tradicionalmente se configura em famílias nucleares
independentes ou autônomas, observando que
Para os Guató, a família nuclear, embora sendo a menor unidade de sua
organização social, não está limitada unicamente a uma situação de
consangüinidade, mas também a vários outros fatores que fazem parte da
totalidade de seu sistema sociocultural: demografia, territorialidade,
ideologia, subsistência, mobilidade espacial e outros aspectos relacionados
ao seu ethos e à sua visão de mundo (EREMITES DE OLIVEIRA, 2002, p.
258).
Para Florence, ao contrário dos Guaná, os Guató “são muito ciosos de suas esposas a
quem amam extremosamente e das quais recebem grande provas de ternura e fidelidade. Aos
filhos dedicam vivo afeto e os mais cuidadosos carinhos” (FLORENCE, 1977a, p. 118-121).
Chegou ao seu conhecimento que os Guató vivem com mais de uma mulher e, por isso, ele
registrou seu encontro com um índio Guató que tinha na sua canoa três mulheres. Ele
perguntou se todas eram suas, ao que o índio respondeu que sim. Ao indagar se poderia ter
uma, o índio lhe respondeu que Florence deveria ter trazido a sua, para então promover uma
troca. Ao buscar a reciprocidade, o Guató contava com seu bem muito precioso, pois as
mulheres participavam da vida doméstica, produzindo excedentes nas atividades econômicas
para eventuais festas (EREMITES DE OLIVEIRA, 2002, p. 262). Ainda é necessário
compreender que “A poligamia deve ter sido um motivo de diferenciação social entre os
homens, um privilégio atribuído ou conquistado por uma minoria, segundo explicação mais
corrente em estudos de parentesco e organização social” (EREMITES DE OLIVEIRA, 2002,
p. 266).
Outros viajantes também relataram a poligamia entre os Guató, como descreveu o
General Couto de Magalhães (1940):
O Guató não é monógamo: tem uma, duas ou três mulheres, segundo a
agilidade que mostra na caça, pesca e colheita de diversos frutos que
constituem a base de sua alimentação. [...] O que interessa à minha tese é o
recato das mulheres; se uma Guató nos trazia um peixe, uma caça, uma fruta
silvestre, ou para obedecer a ordem do marido, ou para procurar obter algum
144
objeto nosso que cobiçava, fazia-o sempre com olhos fitos no chão ou
voltados para seu marido (COUTO DE MAGALHÃES, 1940, p. 149-150).
Langsdorff relaciona o número de mulheres de um Guató com sua riqueza, reforçando
a relação socioeconômica com as mulheres:
Os melhores caçadores são os mais ricos. Eles só têm o número de mulheres
que podem alimentar. O chefe têm três, e dizem que um outro tem quatro. Os
mais pobres só têm uma. As mulheres remam sozinhas, parece que os
homens confiam nelas. Algumas meninas ainda em fase de formação – não
têm nem 11 anos – já são casadas. É o caso de uma das três mulheres [do
chefe] (BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 47-48).
Importa frisar, neste momento, que as percepções do viajante são balizadas, no plano
ideológico, pelos valores morais, religiosos e culturais vinculados no momento da observação
e da narração (FERNANDES, 2003, p. 40). O encontro com “caos” do Novo Mundo é uma
missão em busca da sacralização e da ordenação. O indígena, personagem do “outro”, é visto
como parte deste tempo mítico no espaço do “maravilhoso” associado ao profano e
condenado à submissão (BAUMANN, 1992, p. 58). É necessário, portanto, entender as
narrativas das viagens nesta dimensão histórica e perceber que suas contribuições são
limitadas quando falam da dinâmica societária de um grupo indígena em suas diversas facetas.
A proposta de João Pacheco de Oliveira esclarece que a narrativa de caráter etnográfico
encontra-se em uma conjuntura histórica específica, estruturada em torno de uma tríade
formada pelo “pesquisador, os nativos e os brancos que os dominavam” (PACHECO DE
OLIVEIRA, 1999), como expresso graficamente na Figura 25:
Figura 25: Situação etnográfica, no contexto de Florence, visualizada conforme considerações de
João Pacheco de Oliveira (1999).
145
Diferentemente de outros grupos, os Guató não se organizam por aldeias, como entre
povos xinguanos. A ocupação do espaço está ligada à sazonalidade, período de seca e cheia, e
como foi dito, com intensa mobilidade espacial e fluvial. Apesar de a pesca ser a atividade de
subsistência básica, também viviam da caça e da coleta de arroz e frutos na região próxima ao
assentamento. Florence descreveu o processo de coleta do arroz-do-pantanal (Oryza latifolia),
colhido no período de cheia, quando amadurece (EREMITES DE OLIVEIRA, 1995, p. 144).
Ainda pela observação dos desenhos elaborados por Florence, observam-se outros
aspectos da vida desse grupo. São oito desenhos apresentados, um na técnica de aquarela
negra, um em cor e o restante apenas esboços. Infelizmente, conforme Costa & Diener (1995),
é provável que boa parte dos desenhos finalizados desse grupo façam parte do lote perdido no
trajeto para a Rússia.
Thekla Hartmann (1970) apontou que registros etnográficos, não citados ao longo no
diário da Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas, aparecem nos desenhos do grupo. Texto e
imagem estão associados em suas preposições, embora distintos na forma de análise e
codificação. Trata-se de entender a imagem do ponto de vista histórico, seguindo a linha
explicitada por Ana Maria Mauad Andrade em seu trabalho sobre fotografias:
Uma atitude mental/intelectual necessária à composição de categorias de
análise relacionadas às temáticas históricas; um apuro do sentido visual, no
esforço de ver para além da analogia da imagem e do fascínio pelas emoções,
memórias, tons e meios-tons inscritos numa fotografia oficial antiga, num
instantâneo jornalístico, ou numa foto de família (ANDRADE, 1994, p. 7).
Assim, os traços de Florence revelam observações particulares expressas com
diferentes plataformas. Mas sempre com o mesmo intuito, perenizar uma experiência de
observação.
Primeiramente, quanto à Figura 26, Guató em duas canoas em traços rápidos,
Florence retrata a estrutura do remo, como “pás lanceoladas”. A respeito das canoas, Florence
foi o primeiro, segundo Hartmann (1970, p. 163), a dar as suas verdadeiras dimensões “três
palmos e meio de largo sobre 20 ou 25 de comprido se tanto, levam sempre no bojo cães,
arcos e flechas para caçadas e pescarias” (FLORENCE, 1977a, p. 114). E ainda
146
Vivem quase sempre sobre a água [...]. Quando toda a família está
embarcada, a borda da canoa fica com dois dedos acima d´água, o que não
os impede de manejarem com a maior habilidade as flechas para fisgarem
peixes ou traspassarem pássaros (FLORENCE, 1977a, p. 114).
Figura 26: Guató em duas canoas (FLORENCE, 1977a, p. 115).
No diário do Barão de Langsdorff há o relato dessa relação dos Guató com as canoas:
Eles sempre carregam consigo, nas canoas, todos os seus bens: arco e flecha,
mulheres e crianças, cobertas feitas de folhas de palmeira, paninhos contra
mosquitos, além da roupa do corpo. Alguns tem animais domésticos, como
galos ou galinhas, que eles criam por diversão ou amor aos animais;
cachorros e papagaios (que falam a língua dos índios e não o português, para
espanto dos remadores); filhotes de mutuns dentro de uma cestinha; às vezes,
algum pássaro abatido e com as asas quebradas; e vimos também um
colhereiro (Platalea) domesticado, uma rolinha e panelas de cozinha
(BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 51).
O binômio “canoa-pesca” é ainda maior nos meses de cheia, exatamente o período do
encontro de Florence com os índios Guató, mês de dezembro e início de janeiro de 1827. Os
147
campos inundados facilitam a navegação e a visibilidade dos peixes na água. As grandes baías
se tornam redutos de peixes e a fartura é considerável. Em Cuiabá, Florence desenhou o peixe
pacu (Piaractus mesopotamicus) (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 295), uma das espécies
“mais exploradas e apreciadas, rica em gordura e comumente pescada com arco e flecha”
(EREMITES DE OLIVEIRA, 1995, p. 136).
O próximo desenho, Figura 27, aponta para a integração do grupo Guató com o meio
ambiente. A paisagem representa um típico final de dia ensolarado no Pantanal. A vegetação
segue pelo rio com os igarapés e por toda a encosta. A imagem parece apontar para vastidão
da planície pantaneira com suas matas ciliares e o clima quente e úmido. Sob a canoa, a
família, as armas, os remos e um cachorro. Conforme os estudos realizados por Eremites de
Oliveira, os cachorros são importantes para a proteção do grupo. Sinalizam para a presença de
animais silvestres e participam das caçadas. Os cachorros são, portanto, animais de estimação.
Possivelmente, foram introduzidos no século XVIII, com os primeiros contatos com os
conquistadores de São Paulo (EREMITES DE OLIVEIRA, 2002, p. 352).
Figura 27: Guató (FLORENCE, 1948, p. 161).
148
A respeito do próximo desenho (Figura 28) não há descrição ao longo do diário sobre
sua personagem.
Figura 28: Índio Guató, Albuquerque, Rio Paraguai, 1826. Nanquim a pena. 25,4 x 20,2 cm
(Carelli, 1992, p. 48).
149
Trata-se de um jovem Guató, que apenas pela legenda é mencionado pelo nome de
Tobé. No livro História dos Índios no Brasil, encontra-se a reprodução deste desenho com a
seguinte legenda “Índio Guató, caçador do comandante de Albuquerque, chamado Tohé.
Nanquim a pena de Hercules Florence” (SCHMUZIGER CARVALHO, 1998, p. 461), mas
não foi possível confirmar esta informação. O desenho apresenta o arranjo de cabelo e brincos
que, segundo Hartmann, seria o penteado tradicional dos Guató. Os brincos eram feitos de
“penas vermelhas, negras ou de cores várias” (FLORENCE, 1977a, p. 114). Pela observação
do desenho, pode-se supor que este brinco é composto por um par de tufos, que se refere a
duas ou mais plumas de igual tamanho ou diferentes (RIBEIRO, 1987, p. 196).
Hartmann expõe ainda outro desenho, que teria sido executado por Francis Castelnau
(Figura 29), retratando dois Guató. Castelnau (1949) também apontou a beleza da etnia, como
Florence, “são bonitas de feições, e é impossível deixar de admirar os longos cabelos pretos
que lhes caem livremente sobre os ombros” (CASTELNAU, 1949, p. 322).
Figura 29: Desenho de Guató atribuído a Castelnau (HARTMANN, 1970, s/ n).
Ainda sobre o tema de adornos corporais, a figura seguinte Velho e menina Guató
(Figura 30), foi provavelmente realizada na parada do morro de Dourados. Quando Florence
cita as vestimentas dos Guató, referencia apenas este velho totalmente nu. As calças e saias
150
eram obtidas através de trocas com os brasileiros, o que demonstrava a interação deste grupo
com os brasileiros da região. Assim, explicitou Florence: “Os homens apresentam-se vestidos
de uma calça de algodão; as mulheres com uma saiazinha, deixando o resto do corpo
descoberto. [...] Não vi senão um velho completamente nu: trazendo o membro viril preso por
um cordel que dava volta à cintura” (FLORENCE, 1977a, p. 114).
Figura 30: Velho e menina Guató (FLORENCE, 1977a, p. 116).
151
Para Langsdorff, os homens guató possuem um “senso de pudor muito diferente de
nós, europeus. Eles consideram que, para estar vestido, basta esconder a glande do pênis, o
que eles fazem de uma forma estranha, amarrando o prepúcio na ponta” (BERNARDINO DA
SILVA, 1997, p. 45). Observa-se como a descrição do barão está impregnada do seu ponto de
vista, a diferença que se evidencia por um comportamento ou prática estranha ao europeu.
Segundo o Dicionário do artesanato indígena, de Berta Ribeiro (1988), o velho índio
está usando um adorno de tronco, o estojo peniano “protetor sexual masculino feito de folíolo
de broto de palmeira. Consiste em uma dobradura afunilada, com orifício na ponta, para
imprensar o prepúcio e ocultar a glande” (RIBEIRO, 1988, p. 170-171).
É interessante notar também na representação desse velho índio, o uso do tembetá ou
labrete:
Do tupi e do guarani [...] composto de tembé, seu lábio inferior, e itá, pedra
(...). Tornou-se costume chamar de tembetá todo o objeto duro e inflexível
que os índios se introduzem no furo artificial do beiço inferior, com exceção
do botoque. O tembetá, quanto sabemos até agora, é privilégio exclusivo do
sexo masculino. Em geral, a sua forma e a espécie de material (osso, concha,
pedra, resina endurecida e madeira) variam segundo a idade do portador.
Reservamos o vocábulo tembetá apenas para os confeccionados com
matéria-prima mineral. Outros adornos labiais, de conformação alongada,
são chamados labrete, adjetivados segundo os materiais que são feitos
(RIBEIRO, 1988, p. 183).
Langsdorff também anotou a presença do tembetá:
Alguns homens velhos exibem um orifício ou buraco no lábio inferior ou no
queixo, onde eles enfiam um osso, fixando-o dentro da boca, e usam como
enfeite. Parece um carretel de linha. Não vimos nenhuma mulher com esses
enfeites. Homens, mulheres e crianças usam, nas orelhas, um pequeno
penacho feito com belas penas rubras de colhereiros (Platalea), que ainda
não vimos aqui (BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 48).
Susnik (1982, p. 126) explica que os adornos que deformam ou alteram o corpo estão
relacionados ao contexto. O ser humano dentro da natureza e dentro do grupo social. Este
ainda por sua vez se transforma do “eu-homem” ao “nós-homens”, conforme suas pautas
culturais. O uso do labrete, por exemplo, é essencialmente masculino, interpretando
“varonilidade”, e o seu uso é bastante difundido no âmbito sul-americano.
152
Tais adornos também são abordados na Suma Etnológica Brasileira, por Berta Ribeiro
(1987), como fatores de sociabilidade intercultural, pois “são símbolos visíveis de identidade
étnica, entendida esta em sua definição mais simples: os fatores – raciais, culturais, etc., – que
unem uma comunidade para contrastá-la com outra” (RIBEIRO, 1987, p. 25).
Estudos aprofundados, como o de Vidal & Müeller (1987), sobre Pintura e adornos
corporais, caminham neste sentido dos significados simbólicos de adornos corporais. Eles
configuram todo um corpus de fatos e valores da coletividade e que, como outros aspectos da
cultura do grupo, sofrem adaptações conforme as diferentes situações sociais e históricas
vividas. Portanto, seria muito interessante que se, em uma tarefa futura, fosse possível
observar esta iconografia de tempos remotos e buscar as continuidades e descontinuidades
dessas práticas culturais nos grupos indígenas em questão.
Ainda sobre a Figura 30, com pouca nitidez, nota-se na articulação esquerda da mão
do índio um protetor ou uma ligadura feito de fibras de algodão. O seu uso se dá em virtude
da distenção do arco que exige bastante força e garante maior proteção contra o impacto da
corda (EREMITES DE OLIVEIRA, 1995, p. 151). A citação do protetor também é
encontrada no diário de Langsdorff ao apontar que “para os homens, é vital usar uma faixa em
volta do braço esquerdo, para evitar que a tira do arco ricocheteie ao lançar a flecha”
(BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 49).
Difícil é identificar o que ele leva nas costas, embora outro desenho esboce um jovem
guató com um pescado pendurado da mesma forma, no mesmo lado. Há também uma criança
que usa um adorno de tronco, o saiote. Provavelmente, este saiote foi confeccionado de tucum
(Bactris glaucescens), espécie florística de palmeira que os Guató utilizavam cordões para fiar.
Outra criança com saiote está retratada na Figura 31, no desenho Guató na Passagem
Velha. O índio parece carregar nas costas um pescado. Mesmo sem detalhes, Florence parece
indicar o uso de jarreteira. Trata-se de um adorno imediatamente abaixo do joelho e
tornozeleira, que cinge o tornozelo. A fisionomia carrega a suavidade típica da retratação
deste grupo étnico por Florence. O jovem índio revela o tipo físico adaptado à vida anfíbia e
ao predominante canoerismo. Menor desenvolvimento das extremidades inferiores, em
contraste com a forte musculatura dos braços. Percebe-se também a presença da barba de
pouca pilosidade (SUSNIK, 1978, p. 19).
No diário de Langsdorff, apresenta-se assim a descrição do tipo físico dos Guató:
153
Praticamente todos os guatós têm barba, pelo menos embaixo do queixo, no
baixo-ventre e em outras partes, ao contrário dos guanás, que são totalmente
desprovidos de pêlos. Em função do seu modo de vida, eles não cuidam da
higiene do corpo e são mais sujos. [...] Eles têm constituição forte, são
grandes; tanto os homens como as mulheres têm feições bonitas. São
morenos, sobretudo porque ficam constantemente expostos ao sol e ao ar
livre (BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 44 e 47).
Figura 31: Guató na Passagem Velha (FLORENCE, 1977a, p. 122).
154
Na Figura 31, observa-se a face de uma criança detalhada no canto superior direito,
talvez utilizando um colar de sementes presas a um cordel de sustentação (RIBEIRO, 1988, p.
164). Segundo Max Schmidt (1942, p. 143-144), o pouco que se encontra de vestuário e
enfeites na cultura indígena guató é visto em crianças e mulheres. Não se verificou outros
desenhos que esbocem esta mesma criança.
É possível verificar que as ilustrações demonstram o dia-a-dia da expedição. O diário
de Florence era composto pela mistura não uniforme de texto e imagem (Figura 32), baseado
apenas no roteiro de sua experiência cotidiana e lances de memória que volta e meia lhe
recorria. Nota-se, pela página exibida a seguir, que as descrições se apresentavam no diário
conforme o desenrolar dos acontecimentos e em traços rápidos. A organização feita
posteriormente e com formato distinto com certeza influenciou na ordem da leitura
combinada destes elementos.
155
Figura 32: Página do diário de Hércules Florence. Encontro com os índios Apiacá
(KOSSOY, 2006, p. 57).
156
Seguindo caminho em direção aos dois últimos desenhos analisados, estão os registros
de habitações dos Guató. As mesmas trazem maiores informações sobre a cultura material,
compreendida na seguinte perspectiva:
Por cultura material poderíamos entender aquele segmento do meio físico
que é socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém
pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio
físico, segundo propósitos e normas culturais. Essa ação, portanto, não é
aleatória, casual, individual, mas se alinha conforme padrões, nos quais se
incluem os objetivos e projetos. Assim, o conceito pode tanto abranger
artefatos, estruturas, modificações de paisagem (...). Para analisar, portanto,
a cultura material, é preciso situá-la como suporte material, físico,
imediatamente concreto, da produção e reprodução da vida social. Conforme
esse enquadramento, os artefatos – que constituem (...), o principal
contingente da cultura material – tem que ser considerados sob duplo aspecto:
como produtos e como vetores das relações sociais (MENESES, 1983, p.
112-113).
Ao analisarem a cultura xinguana, Heckenberger & Franchetto acrescentam que a
cultura material juntamente com a organização espacial demonstra mais aparentemente a
continuidade cultural dos indígenas, embora não se restrinja a elas. Assim, “os resíduos
tangíveis das atividades humanas passadas não apenas refletem a forma como foi manipulado
o mundo material, mas, sobretudo, a forma com que os indivíduos experienciaram e
compreenderam esse mundo material” (HECKENBERGER & FRANCHETTO, 2001, p. 12).
A percepção destes traços de continuidade, entre o presente e o passado, mesmo identificado
as mudanças de condições iniciais, fortalece a interação entre relações sociais e identidades.
A respeito da Figura 33, Costa & Diener (1995) fornecem maiores informações sobre
a composição do desenho. Segundo eles, Florence fez uso da técnica de lápis, nanquim e
aquarela, nas dimensões 19,9 x 24,9 cm, com inscrições datadas de 27 de dezembro de 1826.
Existe outra reprodução deste desenho em A descoberta da Amazônia (1992), com detalhes
em cores (Figura 34).
Figura 33: Índios Guató, na confluência do rio São Lourenço. Técnica mista. 19,9 x 24,9 cm (FLORENCE, 1977a, p. 123).
Figura 34: Índios Guató, na confluência do rio São Lourenço. Técnica mista. 19,9 x 24,9 cm (CARELLI, 1992, p. 48).
159
Nessa reprodução, podem-se notar algumas informações textuais abaixo do
desenho. Segundo Costa & Diener, trata dos dizeres “As mulheres usam saias que os Guató
trocam com os comerciantes por pele de onça. Os Guató são pescadores e caçadores. Eles
são mais francos que seus vizinhos” (COSTA & DIENER, 1995, p. 86). Florence citou as
trocas com os brasileiros, de peles de onça ou canoas por facas (FLORENCE, 1977a, p.
117), mas o atributo de franqueza ao índio Guató, em relação ao vizinho, deve estar
relacionado ao modo peculiar como o viajante compreendeu a cultura desse povo. É bem
provável que o desenho tenha sido executado durante o percurso, no lugar citado. Os
retratados parecem corresponder a este momento “espontâneo”, assim como o
enquadramento visual escolhido, ou seja, os planos divididos: os objetos os índios no
primeiro plano, o abrigo no segundo plano, e por último a vegetação circundante.
Os desenhos (Figura 33 e 34) apresentam um grupo de mulheres e os filhos na
confluência do rio São Lourenço com o Paraguai, em um abrigo provisório. Segundo
Eremites de Oliveira, essa habitação, menos elaborada que a casa tradicional possui
pequenas dimensões e serve para a família passar a noite ou permanecer por poucos dias.
Em suas palavras,
Constitui-se de dois esteios centrais fincados na terra e que sustentam um
frechal improvisado por uma zinga. O frechal é fixado por uma
amarração de enlace que deve ter sido feita com cipó. Dez flechas
funcionam como caibros para sustentar um revestimento improvisado
com dois tipos de esteiras de dormir que servem de cobertura: uma de
junco (Typha dominguensis) e outra de palma de acuri (Scheelea
phalerata) (EREMITES DE OLIVEIRA, 1995, p. 123).
É importante notar o uso das fibras de palmeira na cultura material e sua presença
ao redor da habitação. As flechas funcionam como caibros para sustentação e demonstram
o caráter provisório da habitação, pois a qualquer momento, o grupo pode deixar o local,
levando suas armas.
Durante a Expedição Langsdorff, na altura da embocadura do rio São Lourenço, os
índios que os acompanhavam montaram acampamento em abrigos semelhantes, feitos com
folhas de palmeiras, esteiras e peles, que não agüentaram a chuva (FLORENCE, 1977a, p.
121). A vestimenta das mulheres corresponde às descrições escritas do uso de saias e os
cabelos corridos. Uma das crianças parece usar o mesmo tipo de brinco identificado
anteriormente na Figura 28.
160
No canto esquerdo, visualiza-se um arco de tamanho considerável, geralmente o
tamanho do arco guató é superior ao seu dono (EREMITES DE OLIVEIRA, 1995, p. 150).
Uma das crianças sustenta um abanador de mosquitos feitos de algodão. Nos relatos dos
membros da Expedição Langsdorff, é unânime o relato do aumento de mosquitos ao
adentrar pela região pantaneira. Florence comentou a respeito dos mosquiteiros e dos
abanadores produzidos pelos Guató:
A indústria manufatora consiste em tecer com casca de tucum grosseiros
mosquiteiros, dentro dos quais dormem; abrigos, porém por tal modo
espessos e pesados, que só por força de hábito é possível suportar o calor
que debaixo deles se desenvolve. Fazem ainda um tecido quadrado de pé
e meio a dois de lado e que prendem por duas extremidades a um pau
para servir de ventarola e com ela afugentarem os temíveis pernilongos
(FLORENCE, 1977a, p. 117).
O Barão Langsdorff também descreve os abanadores guató:
Como os índios também são vulneráveis aos mosquitos, inventaram uma
forma bastante peculiar de se proteger deles. É um pedacinho de pano
grosso, feito de fibra de tucum, todo rodeado de franjas, com duas pontas
presas em uma vareta, que eles penduram nos ombros nus. De vez em
quando, com muita habilidade, eles o sacodem em volta do corpo, para a
direita e para a esquerda, e assim espantam os mosquitos
(BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 46).
O Dicionário do artesanato indígena, de Berta Ribeiro (1988, p. 80) registra que o
abanador ou abano de tecido (Figura 35) é uma “ventarola feita segundo o sistema de
tecelagem (entretorcido) pelos índios Guató para conforto pessoal”. O desenho detalhado
confirma o uso descrito por Florence, evidenciando um objeto de uso doméstico a partir de
uma situação ecológica específica.
161
Figura 35: Abano tecido. Índios Guató, M. N. n
o
3880. Esc. 1:7,5. Vista da peça. B. Detalhe do
tecido. C. Detalhe da alça. D. Detalhe do suporte (RIBEIRO, 1988, p. 80).
Max Schmidt (1942, p. 190), em Estudos de Etnologia Brasileira, relata ter
encontrado apenas um pequeno exemplar infantil do abano para mosquitos de tucum
(Bactris glaucescens) (Figura 36). O trançado dessa peça, segundo Schmidt, segue o
mesmo princípio das esteiras de junco (Figuras 33 e 34), só que usam fibras de tucum
(Bactris glaucescens) frouxamente enroladas.
162
Figura 36: Abano de mosquitos de fibra de tucum (SCHMIDT, 1942, p. 191).
Quanto às esteiras das Figuras 33 e 34, Ribeiro (1988:52) destaca o “trançado de
duas dimensões e tamanhos variados usados como leito, assento, cobertura e divisória
interna das casas, tapume das entradas da casa e como paravento. E, ainda, para cobrir a
carga nas canoas” Schmidt (1942, p. 177) acrescenta que “todos os trabalhos entrelançados
de acuri, típicos dos Guató, como esteiras, abanos ou cestos, terminam em tranças que, na
extremidade, levam um nó final”. Por fim, estão presentes no desenho cabaças e uma
vasilha cerâmica utilizada provavelmente para armazenar líquidos (EREMITES DE
OLIVEIRA, 1995, p. 124). Essa última, também chamada de bilha de barro, poderia ter cor
avermelhada e consistência porosa, onde a água, graças à evaporação, esfriasse
consideravelmente (SCHMIDT, 1942, p. 166).
O Barão Langsdorff deixou registrado em seu diário que as mulheres guató faziam
panelas de barro e se ocupavam em cozinhar peixe em água sem sal. Em trocas com os
viajantes adquiriram sal por suas peles de onça (BERNARDINO DA SILVA, 1997, p. 50).
Outro desenho de Florence retrata uma habitação tradicional permanente, e se trata
de um desenho finalizado em aquarela negra, com 28,5 x 34,5 cm, datado de dezembro de
1826. Conforme apresentado na Figura 37, Florence desenhou ricos detalhes dos Guató
nesta composição.
163
Figura 37: Família Guató (MONTEIRO & KAZ, 1998, p. 325).
164
O destaque do remo com pá lanceolada na composição em contraste com a
discrição da canoa no canto esquerdo inferior indica a continuidade e peculiaridade do
modo de ser deste grupo canoeiro. Esses elementos ajudam a entender o “ethos” do grupo
Guató:
O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de vida, seu estilo
moral e estético e sua disposição; é a atitude subjacente em relação a ele
mesmo e ao mundo que a vida reflete. A visão de mundo é o quadro das
coisas como são na realidade, o conceito que um povo tem da natureza e
de si mesmo. Esse quadro contém suas idéias mais abrangentes sobre a
ordem (GEERTZ, 1978, p. 143-4).
Florence chamou a habitação de cabana, e a família é descrita como uma família
feliz. O desenho realmente transparece um ar bucólico bastante calmo:
O marido voltava da caça e trouxera um jacaré: a mulher era moça de
fisionomia agradável: dois filhinhos, o mais velho com menos de quatro
anos, mereciam-lhes os mais ternos cuidados. Essa boa gente tinha
bananas, raízes de cará e mandioca, uma canoa, arcos, flechas, esteiras,
cestos, panelas, dois mosquiteiros e matapás. Um cão guardava a casa
(FLORENCE, 1977a, p. 124).
A localização desta habitação, como observado no desenho, era provavelmente
perto do rio. No caso, o rio São Lourenço próximo à confluência com o rio Paraguai, na
região do morro Caracará. Pelo relato de Florence, a família guató foi convidada por
Langsdorff a seguir viagem com eles até Cuiabá. A família teria aceitado prontamente e
embarcado na canoa, levando nela tudo o que tinham (FLORENCE, 1977a, p. 124).
Quanto à construção da habitação, o teto é de duas-águas sem cobertura parietal.
Possui fachada frontal, apoiada por esteios enterrados no chão. Dois esteios centrais em
forquilha apóiam a cumeeira e quatro esteios periféricos sustentam os frechais sobre a
forquilha. A cobertura é de palma de acuri (Scheelea phalerata) (EREMITES DE
OLIVEIRA, 1995, p. 126).
No interior da casa, está um jirau, pequena estrutura composta de quatro varas em
forquilha com varas em forma de estrado, utilizado para pendurar um cesto e apoiar
algumas flechas. Há ainda um fogão, vasilhas de cerâmicas com a finalidade utilitária para
a cozinha, esteiras e cestos. Além do remo em destaque, o arco está apoiado na palmeira. O
165
arco guató, descrito por Schmidt (1942), é utilizado na caça e pesca, mas também em
guerras. Este é feito exclusivamente da madeira da palmeira carandá (Copernicia alba) e
apresenta uma configuração do tipo circular, ou seja, “arco cuja secção reta transversal na
altura da empunhadura é de forma circular” (RIBEIRO, 1988, p. 216).
No desenho, a vegetação se divide em um primeiro plano, caracterizado como o
plano do rio. Um segundo plano que corresponde aos troncos da árvore e da palmeira que
definem o plano da habitação. E, por último, um plano mais afastado com outras espécies.
Na vegetação, parece haver predominância da palmeira acuri (Scheelea phalerata), em
interação na presença dos cestos e esteiras confeccionados a partir desta palmácea.
O desenho construído e fixado no tempo ganha certa “áurea”. Característica própria
das imagens que precedem uma tragédia, tão familiar ao nosso tempo de espetáculos. Na
Viagem Fluvial, a história dessa família retratada é de um fim trágico, bem detalhado por
Florence. A ida da família guató para Cuiabá foi de grande valia para os viajantes. Pela
habilidade do índio em caçar e pescar, não lhes faltou aves e peixes (FLORENCE, 1977a,
p. 124). Segundo o relato de Florence:
Quinze dias depois de nossa chegada à capital, o sr. cônsul despediu-os,
presenteando-os com facas, machados, anzóis e outros objetos de grande
estimação entre aquela gente. Estas dádivas, porém lhes foram funestas.
Excitaram a cobiça de dois Guaná que moravam no porto de Cuiabá e que,
depois da partida, seguindo-os numa canoinha, foram atacá-los à falsa fé
e os mataram a todos, homem, mulher e criancinhas, atirando os
cadáveres à água para que as piranhas os devorassem (FLORENCE,
1977a, p. 126).
Os assassinos, voltando para suas casas, acreditando que não seriam descobertos,
contaram aos outros o ocorrido. A notícia, entretanto, chegou até o tenente-coronel
Jerônimo, na época comandante da fronteira e que realizava expedições contra os Guaicurú,
que mandou prender os criminosos, levando-os a Cuiabá. No grupo deste tenente-coronel,
estavam alguns Guató que buscaram vingança, requerendo os prisioneiros ao comandante
que negou o pedido. Não conseguindo o pretendido, os índios espalharam a notícia e
atacaram a canoa durante o percurso conduzido pelos brasileiros, matando os prisioneiros
guaná.
166
Por fim, Florence relata que voltando ao tenente-coronel Jerônimo, trazendo as
correntes de ferro, os índios assim disseram “eis o que vos pertence. Guató não é ladrão.
Guaná tinha matado Guató: Guató mata Guaná” (FLORENCE, 1977a, p. 128).
Tal relato mostra a organização dos Guató, confirmando entre eles parentelas
organizadas seja por laços consangüíneos ou por afinidades, formando uma complexa teia
de reciprocidades (EREMITES DE OLIVEIRA, 2002, p. 276-277).
A partir da leitura da imagem da família guató (Figura 37) e da passagem
subseqüente escrita de sua tragédia, fica evidente a posição de Florence em sua preferência
e simpatia com os Guató. As cordialidades cercavam a relação de Florence com esses
índios na expedição. Mas eram os serviços prestados e a interação com diligência que
garantiam o trato. Sobre o chefe da família guató que com eles embarcou para Cuiabá,
Florence destacou que “como todos os de sua tribo, era este hábil em caçar e pescar, de
modo que nos trouxe a mesa sempre farta de aves e peixes” (FLORENCE, 1977a, p. 124).
Do ponto de vista das trocas produtivas e da reciprocidade entre os grupos humanos, pode-
se perceber a importância da relação entre Florence e os demais viajantes com os Guató.
3.5. O encontro com os Bororo
A Expedição Langsdorff permaneceu dez meses e cinco dias na cidade de Cuiabá.
Partindo dali, grupos divididos realizaram incursões nos arredores da capital da província.
No dia 26 de agosto de 1827, Riedel e Taunay partiram de Cuiabá para explorar
Diamantino. Já Rubzoff e Florence foram para Vila Maria, atual Cáceres, Mato Grosso.
Neste percurso, no dia 1 de setembro, Florence chegou à fazenda Jacobina que, segundo
seu relato, “era a mais rica fazenda da província” (FLORENCE, 1977a, p. 180).
Foi ali que Florence se encontrou os índios Bororo e, posteriormente, com um
grupo maior em Vila Maria, à margem do rio Paraguai. O etnônimo
16
Bororo pode ter
16
Etnônimo refere-se ao nome de povos, de tribos, de castas, e, p. ext., de comunidades políticas ou
religiosas, quando a designação destas últimas possa ser tomada em seu sentido étnico. FERREIRA,
Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999.
167
origem nos cantos executados pelos índios, que os primeiros exploradores paulistas
escutaram em repetição freqüente e entenderam formar a palavra bororo (BORDIGNON,
1987, p. 1). Apesar de utilizarem até hoje esta nominação para se distinguirem de outros
grupos sociais, a auto-denominação Bóe é a que exprime de fato sua condição e pode ser
traduzida por gente, ser humano (ZAGO, 2005, p. 25).
A área ocupada por estes índios, segundo a Enciclopédia Bororo (ALBISETTI &
VENTURELLI, 1962a), abrangia uma área aproximada de 350.000 km
2
, situada
aproximadamente entre os rios Araguaia e Paraguai no sentido Leste-Oeste e rios da Morte
e Taquari no sentido Norte-Sul. Tal região correspondia às regiões pantaneiras de Barão de
Melgaço, Cáceres, Paraguai e Poconé e abarcava também parte da Bolívia (EREMITES
DE OLIVEIRA, 2002, p. 247).
Os primeiros contatos com os não-índios aconteceram em meados do século XVII.
Exploradores paulistas no curso do rio Paraguai buscavam ouro e aprisionavam os índios
para servir de mão-de-obra em São Paulo. Durante o século XVIII, estes contatos se
intensificaram com a descoberta de ouro na região de Cuiabá principalmente ao longo dos
rios Cuiabá e Coxipó, região habitada pelos Bororo. Uma das origens do nome Cuiabá vem
exatamente de Ikuia-pá, com som semelhante, que significa “lugar de pesca com flecha
arpão” (ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 126). No período da mineração, época
altamente conflituosa, os conquistadores dividiram o grupo em Bororo Ocidentais e Bororo
Orientais. O ponto de referência para essa divisão era o rio Cuiabá. A história desse grupo
étnico seguiu o mesmo caminho de outros na história indígena brasileira: o contato
interétnico marcado pelo enfrentamento, pela negociação, inclusive através de fugas para
evitar o conflito, como refletido por John Monteiro, em Negros da Terra (1994).
Florence encontra-se com os Bororo Ocidentais e os descreve como selvagens e
perigosos, já que são os que mais ofereceram resistência às investidas das guerras punitivas,
um dos métodos de apropriação direta de mão-de-obra nativa. Florence relata um episódio
acontecido entre a população local da fazenda Jacobina e os índios bororo:
Não há 10 anos eram esses Bororós ainda mais selvagens, pois não
tinham relações algumas com brasileiros. Faziam muito dano ao tenente-
coronel, matando-lhe escravos e devastando as plantações. Não podendo
mais suportar tais hostilidades, e tendo já em várias épocas perdido 11
escravos mortos por eles, pediu João Pereira Leite a D. João VI
permissão para repeli-los à força. Ora, o governo português tinha para
com os índios intenções muito filantrópicas, mas concedeu essa licença, e
168
os brasileiros, que não eram menos inclinados à ferocidade do que os
selvagens, aproveitaram-se dela para exercerem toda a casta de
barbaridades. O coronel fez-lhes uma guerra que durou seis anos, durante
a qual sua gente matou 450 Bororós e agarrou 50 prisioneiros que mais
ou menos se sujeitaram aos trabalhos da fazenda, principalmente costeio
dos gados (FLORENCE, 1977a, p. 197).
Este trecho evidencia uma ação adotada pelo estado nacional que não podendo
aldear os índios “bravios”, através da domesticação e incorporá-los à “civilização” – não se
reconhecia neles próprios uma sociedade – declarava guerra contra eles (CUNHA, 1986, p.
170). Longe de “intenções filantrópicas”, como expressou o viajante, a política era de
extermínio imediato dos grupos indígenas que dificultavam a expansão colonialista e
resistiam ao aldeamento representando um entrave aos interesses econômicos na região. A
imagem do índio como “selvagem se apresentava no momento da resistência, quando o
nativo não se submetia aos desígnios da civilização ocidental (ORLANDI, 1990).
O relato seguinte demonstrou as conseqüências dessa guerra contra os Bororo: “não
foi senão depois de aprisionado o cacique, esse mesmo que viera ver-nos, que esses índios
consentiram em se tornar amigos” (FLORENCE, 1977a, p. 198). São esses índios que
fizeram uma “surpresa” aos visitantes da expedição no pátio da fazenda, por convite do
tenente-coronel João Pereira Leite, apresentando seus jogos e danças. Tornaram-se esses
índios mansos? A grande perda durante o combate, citada por Florence, pressupõe que os
índios não buscaram outras investidas, pelo contrário, estabeleceram uma relação
harmoniosa com os habitantes da fazenda.
Os Bororo são caracterizados por uma complexa organização social dualista e rica
em sua vida cerimonial. A língua Bororo faz parte do tronco lingüístico Macro-Jê e o
termo Bororo na língua nativa significa “pátio da aldeia”. Este espaço tradicional,
composto por casas dispostas em círculo, é a unidade política e também psíquico-cultural
deste povo (SERPA, 2001). A regra de descendência é matrilinear. Assim, a criança, ao
nascer, é identificada por um nome do clã materno. A aldeia é dividida em duas metades
iguais. Em cada metade vivem quatro clãs e em cada clã, vários sub-clãs. As metades se
caracterizam pela reciprocidade de serviços, associadas e opostas ao mesmo tempo. O
casamento, por sua vez, só ocorre entre as metades, casamentos exogâmicos. O funeral,
cerimônia mais rica dos Bororo, também é realizada pelos membros da metade oposta
(LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 145). As atividades de subsistência consistiam na coleta, caça
e pesca, vivendo em uma região rica em recursos naturais.
169
Dos onze desenhos elaborados pelo viajante, este trabalho analisa apenas cinco.
Florence esteve com os Bororo da Campanha (referência aos Bororo próximos à região da
atual Cáceres) na fazenda Jacobina e em Vila Maria. Já Taunay realizou importantes
desenhos de outro grupo, situado na localidade de Pau Seco, entre os rios Paraguai e Jauru,
possivelmente Bororo Cabaçais (nome referente ao grupo localizado nas proximidades do
rio Cabaçal) (HARTMANN, 1970, p. 167).
Na Figura 38, está representado um índio Bororo de frente e perfil, desenhado
durante a Expedição Langsdorff em Mato Grosso, no mês de setembro de 1827. Este
desenho foi utilizado por Florence nas experiências de fixação da imagem, a “Poligrafia”, e
resultou em um retrato em cores (Figura 39). Ambos fazem parte da Coleção Cyrillo H.
Florence.
170
Figura 38: Índio Bororo. Nanquim a pena e aguado. 25,5 x 20 cm (KOSSOY, 2006, p. 52).
171
Figura 39: Índio Bororo (CARELLI, 1992, p. 63).
Quando o etnólogo alemão Karl von den Steinen esteve no rio São Lourenço em
1886, mostrou-se admirado com a semelhança dos Bororo por ele vistos e os descritos por
Florence, embora não fizessem uso dos adornos nasais (HARTMANN, 1970, p. 168). O
adorno nasal ou narigueira e o tembetá eram feitos com pequenos ossos de animais (Figura
40). Sobre a cabeça, a coroa com garras de onça. Esta foi documentada por Berta Ribeiro
172
(1989) e classificada no grupo de adornos de materiais ecléticos, indumentária e toucador
(Figura 41). Essa classificação exclui os adornos plumários, pois são de grande número e
possuem técnica específica de atadura e colagem das penas. Ademais, nas culturas
indígenas, a diversidade dos ornamentos gerou classificações específicas a partir do
material empregado na confecção, como sementes, frutos, cocos, ossos, dentes, conchas,
etc. (RIBEIRO, 1988, p. 16). No caso dos Bororo, segundo Sônia Ferraro Dorta (1987), os
detentores da técnica de confecção e do uso dos ornamentos corporais são os adultos do
sexo masculino.
Figura 40: Índio preparado para cerimônia (ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 329).
173
Figura 41: Coroa de garras de onça. Índios Bororo. Coleção Museu Nacional. Foto: Pedro Lobo
(RIBEIRO, 1989, prancha XI).
Na Figura 42, da Enciclopédia Bororo, observa-se o índio com a coroa de garras,
utilizada em cerimônias.
174
Figura 42: Cabeça de um mestre de canto coroada (ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 51).
Quanto ao corte de cabelo observado no índio da Figura 39, sabe-se que o corte
tradicional pela Enciclopédia Bororo é assim descrito (Figura 43):
Aparam na fronte, horizontalmente até às têmporas, que depilam, e
depois até à altura da parte superior das orelhas verticalmente. Com outro
corte horizontal, reduzem os cabelos sobre as orelhas que ficam assim
parcialmente descobertas e os deixam crescer naturalmente na parte
posterior da cabeça (ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 12).
175
Figura 43: Corte tradicional dos cabelos dos Bororo (ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a,
p. 12).
A seguir, Florence descreve o estilo do corte de cabelo bororo:
Todos eles, homens e mulheres, tinham os cabelos da frente cortados em
duas fileiras horizontais sobre a testa, isto é, as das fontes caíam sobre a
linha das orelhas, ao passo que a da testa era no meio ultrapassada por
uma madeixa flutuante que descia até às sobrancelhas (FLORENCE,
1977a, p. 187).
Outro adorno, representado no índio da Figura 39, parece ser um auricular, que no
Dicionário do artesanato indígena (1988) exemplifica um modelo feito de madrepérola.
Florence (1977a, p. 184) imprimiu na representação dos índios Bororo o aspecto
“selvático” por ele denominado “fereza sem igual”. Seu texto não exclui comentários
permeados desta concepção do “outro” que se apresenta, de forma emblemática, na figura
do “indomável”. “Falam depressa; articulam entrecortadamente as palavras, e tem quase
todos voz rouca. Tudo isso está de harmonia com suas outras qualidades físicas e morais”
(FLORENCE, 1977a, p. 197).
176
A descrição textual traz uma informação complementar, que não está presente na
retratação imagética: a presença de pintura corporal no índio Bororo da Figura 39. “A cara,
peito e cabelos estão pintados de vermelho por meio do urucu. Faltam sobrancelhas que ele
arrancara; igualmente a barba: quanto a esta não sei se pelo mesmo motivo” (FLORENCE,
1977a, p. 195). Seria tal motivo a apresentação a uma visita oficial na fazenda Jacobina?
Segundo a Enciclopédia Bororo, os Bororo “não realizam festas sem se pintarem”
(ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 181). Ao que tudo indica, o desenho foi
reproduzido posteriormente a partir da experiência de Florence com a fixação da imagem.
Mas não é possível inferir que o processo alterou a coloração de cores. Por isso, permanece
intrigante o fato dessa pintura não estar representada no desenho.
Na Figura 44, tem-se um casal de índios bororo. O índio usa um diadema, que
conforme Berta Ribeiro (1987, p. 202), é um “[...] ornato de cabeça, em que as penas de
adorno ou varetas que as sustém se concentram na frente, aproximadamente de orelha a
orelha. De um modo geral, as penas ultrapassam bastante o suporte, diminuindo
gradativamente de tamanho do centro para os lados”.
177
Figura 44: Índio Bororo e mulher. Nanquim a pena e aguado, 25x20 cm (FLORENCE, 1977a,
p. 193).
As cores do diadema são descritas pelo desenhista em várias cores: amarelas,
vermelhas, pardacentas, azuis e brancas. Os diademas se dividem em vertical, horizontal e
transversal conforme sua colocação sobre a cabeça.
178
Figura 45: Diadema com penas amarelas (ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 550).
A plumária desses índios foi assim definida pelos estudos significativos de Sônia
Ferraro Dorta:
A plumária constitui um dos veículos mais significativos da cultura
material borôro para se atingir o entendimento do contexto sócio-cultural
global. É que se apresenta como uma atividade associada não só a
padrões de ordem estética, mas, sobretudo, a padrões de conduta humana.
Funcionando como um código transmissor de mensagens sobre
diferenciação social (posições, hierarquia clânica), identifica, pelo seu
significado, unidades sociais e indivíduos, refletindo o estilo de vida do
grupo. Reveste-se, assim, de suma importância por seu duplo caráter de
objeto codificado, uma vez na esfera da classificação social e outra, na da
criatividade artística (DORTA, 1987, p. 227).
Os grupos Tupi e Macro-Jê são conhecidos como plumistas, pela especial vocação
de desenvolver essa arte. Contudo, os primeiros dão ênfase a obras de detalhe, como
iluminuras que exigem grande habilidade técnica. Já o grupo Macro-Jê executa obras de
grande porte e efeito cenográfico, como se seus usuários estivessem adentrando um palco
teatral (RIBEIRO, 1989, p. 44).
179
O uso dos adornos plumários e de outros enfeites tem relação direta com a estrutura
social bororo. O pertencimento a determinado clã ou sub-clã significa ter ou não acesso a
estes componentes. Até mesmo antes do seu uso, a confecção dos adornos segue uma
lógica cromática conforme seu público final. A plumária bororo carrega códigos culturais
que só podem ser decifrados quando se penetra, em profundidade, na concepção do mundo
de seus detentores e se conhece o status dos portadores (RIBEIRO, 1989, p. 98). Sob esse
prisma, a análise iconográfica de tempos remotos é limitada, embora forneça pistas no
conjunto das narrativas factuais.
Para Renate Brigitte Viertler, pouco se sabe sobre o significado econômico e
ecológico da arte plumária dos Bororo. Também se desconhece acerca das práticas antigas
de caça de aves e o seu efeito sobre a organização social humana e sobre os circuitos de
troca de penas (VIERTLER, 1987, p. 119).
Os Bororo também fazem uso do estojo peniano, chamado pela Enciclopédia
Bororo de estojo peniano cotidiano. Trata-se da única e indispensável indumentária do
homem bororo. Depois de iniciado, o índio não se apresenta em público sem o , o estojo
peniano, que pode ser de palmeira de babaçu (Orbignya speciosa) (ALBISETTI &
VENTURELLI, 1962a, p. 189).
Para tratar da índia Bororo na Figura 44, remete-se também às mulheres retratadas
na Figura 46. Florence se esmerou notavelmente na iconografia bororo, para Hartmann, a
Figura 46 é seu melhor trabalho:
A incrível armação de cestas e esteiras enroladas, amarradas com voltas e
voltas de tiras de entrecasca, e que avulta quase meio corpo acima da
cabeça das mulheres; o peso da carga, suspensa por uma única faixa ao
alto da testa, apoiado na região lombar; a confusão das crianças, [...] e a
postura típica da carregadora, foram tão bem expressos com tão poucos e
certeiros traços (HARTMANN, 1970, p. 168).
180
Figura 46: Mulheres Bororo, com grande carga (FLORENCE, 1977a, p. 203).
A índia da Figura 44 carrega menos peso e faz uso de um cesto-cargueiro. Seu
aspecto arredondado remete ao cesto-cargueiro coniforme, do Dicionário do artesanato
indígena (1988), definido como: “Cesto-cargueiro cilíndrico, com fundo cônico ou
arredondado, geralmente feito com trançado hexagonal e borda extrovertida. Característico
dos índios Nambikuára e Paresí, é empregado no transporte de carga, principalmente
provisões” (RIBEIRO, 1988, p. 49).
181
Todas utilizam o cinto mulíebre, típico do vestuário da mulher Bororo, quando
essas atingem a adolescência – a primeira menstruação. É uma faixa rígida e larga de pau-
jangada (Alchornea triplinervia), de cor preta devido à maceração na lama, chamada de
Kogu. O cinto mulíebre (Figura 48) é utilizado ao redor do ventre, apertado como um
espartilho (ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 89). A Ruguri e a faixa íntima das
mulheres (Figura 47) são os sinais externos e oficiais de que a mulher não é mais criança.
Ela não pode se apresentar em público sem ao menos usar a faixa íntima. Esta iniciação
não possui solenidade como dos meninos.
Figura 47: Faixa íntima das mulheres. Para o período do puerpério e dos mênstruos (ALBISETTI
& VENTURELLI, 1962a, p. 89).
182
Figura 48: Kogu, cinto mulíebre de entrecasca de pau-jangada (Alchornea triplinervia)
(ALBISETTI & VENTURELLI, 1962a, p. 89).
O trabalho de carregar todos os utensílios durante os deslocamentos é função
feminina e, segundo a Enciclopédia Bororo, os homens permanecem armados de arcos e
flechas, prontos para qualquer eventualidade de caça e defesa (ALBISETTI &
VENTURELLI, 1962a, p. 90). Para o pintor-viajante, as mulheres se apresentavam em
situação de subordinação e injustiça, pois ele chegou a descrevê-las como “infelizes,
desgraçadas e animais de carga” (FLORENCE, 1977a, p. 204). Entretanto, tal percepção
não considera a estrutura social das famílias bororo, em que a organização matrilinear dos
clãs sinaliza uma quase completa independência social das mulheres.
Em outro desenho, na Figura 49, Florence representou um cesto-cargueiro menor,
utilizado por uma criança. Aqui, é interessante supor que o desenho seja uma versão
“miniatura” dos casais bororo. Essa suposição é possível pela observação da idade das
crianças. Elas aparentam ter menos idade do que a necessária para o uso das vestimentas
ligadas aos ritos de iniciação.
183
Figura 49: Crianças Bororo, 1827. Nanquim a pena, 25,2 x 20 cm (CARELLI, 1992, p. 60).
Bartolomeu Meliá, em seu livro Educação Indígena e Alfabetização, escreve que os
brinquedos das crianças indígenas são miniaturas dos objetos de trabalho dos adultos. E
aponta que “Quem brinca de trabalhar, no futuro trabalhará brincando” (MELIÁ, 1970, p.
11).
De qualquer forma, uma das crianças tem à mão um arco e duas flechas,
verdadeiras armas, mas, para uso infantil. Florence indica no relato textual que a menina
tinha o corpo pintado de urucu. Porém, não registrou motivos decorativos na pintura, nem
referenciou outra cor que não o vermelho. Já Aimé-Adrien Taunay representou com
maiores detalhes pinturas corporais dos Bororo Cabaçais, mas em sua maioria também
fazendo uso do vermelho-vivo. Esta investigação persiste, visto que além das metades e
184
clãs terem diferenciações de cores, para os grupos Jê, estudos apontam que a pintura
corporal é “como um sistema autônomo de comunicação – crenças, atividade ritual,
mitologia, expressão simbólica” (VIDAL & MÜLLER, 1987, p. 120).
Por último, na Figura 50, está representado novamente um casal bororo. O desenho
do homem é mais nítido do que da mulher. Seu penteado difere dos vistos até aqui.
Figura 50: Bororo, sexdigitário, em Jacobina. Nanquim a pena e aguado, 25x20 cm (FLORENCE,
1977a, p.196).
185
Os cabelos amarrados como um cone de pé sobre a cabeça não são vistos em outras
fontes. O índio parece usar alguns pregos na cabeça, como alguns encontrados na
Enciclopédia Bororo. (Figura 51).
Figura 51: Par de pregos, cada sub-clã possui privacidade sobre o uso dos pregos (ALBISETTI &
VENTURELLI, 1962a, p. 89).
A cabacinha cheia de furos presa ao pescoço pode corresponder a um instrumento
musical de sopro, ou como um apito. Na Enciclopédia Bororo, há indicações de uso
semelhante para acompanhar certos cantos e danças (ALBISETTI & VENTURELLI,
1962a, p. 55). O cordel serve para carregar o instrumento e ornamentá-lo. O índio carrega
três flechas longas, que parecem de uso próprio grupos Bororo presentes na região
pantaneira.
Florence teve uma oportunidade especial no encontro com esses índios, de
experimentar o registro composto com dupla visualidade. Aqui não só o pintor-viajante
interpreta o que vê, mas os próprios índios, muitos deles, paramentados com trajes e
adornos festivos, forjam antecipadamente o que deve ser visto. Tanta preparação
impressionou o pintor-viajante e após os relatos dos confrontos com os habitantes da
Jacobina, só era possível confirmar o caráter “selvático” do grupo. Todas as impressões a
186
respeito dos Bororo caminham para a barbárie, a selvageria do grupo indomável e arredio
que se apresentou com tudo que o exotismo poderia alimentar.
Os índios vestidos, como se para suas cerimônias, não estão de fato preparados para
um ritual do grupo que promovia a interação profunda dos seus indivíduos. Como já
tratado, esse grupo havia experimentado uma forte repressão, que legou outras estratégias
de contato e sobrevivência junto aos não-índios. Havia uma demanda exterior de recepção
dos visitantes, os viajantes distantes e os de passagem pela fazenda Jacobina. Assim, os
conteúdos simbólicos dos ornamentos mudaram de foco e emolduraram a nova realidade
da fazenda desde a guerra brutal com os homens do coronel João Pereira Leite.
187
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a Expedição Langsdorff, entre 1826 e 1829, o pintor-viajante Hércules
Florence teve contato com diferentes grupos étnicos, no Pantanal e na bacia do Alto
Paraguai. Os registros iconográficos e etnográficos realizados nessa ocasião se
caracterizam pela busca da objetividade, por meio de uma observação atenta e minuciosa.
O pintor-viajante, em virtude das exigências da ciência do século XIX e por seu anseio em
fixar a realidade no papel, persegue com exaustividade a observação dos grupos indígenas
e suas diferenças. Na sua retratação, ciência e arte se propõem em organizar e moldar um
mundo naturalmente desorganizado. Dos membros da expedição, Florence foi o artista
mais empenhado e pronto a responder às demandas de uma ideologia baseada em
indagações sobre a humanidade dos índios no século XIX.
Uma leitura do material imagético produzido pelo artista exemplifica como as
representações sobre o “outro” trafegam pelo universo dos códigos visuais. Entende-se por
visualidade, no caso uma visualidade étnica, o processo amplo que conjuga práticas e
experiências visuais que se desdobram em tempos diferentes e em suportes específicos
como livros didáticos, literários, catálogos de arte, etc. As imagens expressam pontos de
vista da contingência social e são produzidas por agentes que estão sempre reelaborando as
formas de ver, em um ciclo contínuo de criação. Por isso, neste trabalho, quanto maior o
número de informações e subsídios, mais coerente se torna o cruzamento das
potencialidades da leitura imagética com o estudo das sociedades retratadas.
A representação visual utilizada em diferentes disciplinas e meios de comunicação
reforça a imagem dos povos indígenas por meio de conceitos como primitivismo,
atemporalidade e exotismo. É preciso, então, desnaturalizar a percepção da fonte
iconográfica restrita a uma realidade pretérita, sem construções discursivas específicas.
188
Nesse sentido, é importante o diálogo interdisciplinar entre História e Antropologia,
semeando posturas abertas e não estanques. As imagens analisadas, enquanto registros
etnográficos, enquadram-se com suas possibilidades e limites nos questionamentos
próprios do contexto colonial e pós-colonial.
A dimensão antropológica contribui com: (1) A experiência da disciplina que já faz
uso há mais tempo de desenhos, fotografias, filmes e vídeos. (2) O aporte teórico-
metodológico baseado na etnoistória, entendido como um método interdisciplinar que
coleta e analisa tradições orais e escritas. (3) A compreensão da prática etnográfica e o que
as fontes etnográficas representam enquanto registros dos dados culturais dos povos
indígenas em questão.
No âmbito da História, os estudos que contemplam a problemática do registro
visual têm crescido consideravelmente nas últimas décadas; contudo, persiste um
descompasso entre a leitura teórica e a práxis. Pode-se sustentar que os desenhos de
Florence são pouco explorados se comparados a de outros pintores-viajantes. A suposição
é que os registros etnográficos, que ainda seduzem em nossos dias, priorizam descrições
fantasiosas e exóticas, tal qual a demanda da literatura de viagem do século XIX, dando
continuidade a uma visualidade étnica distorcida e estereotipada.
No discurso científico do século XIX, fortaleceu-se a História Natural e seu afã em
inventariar tudo que se encontrasse no Novo Mundo. Assim, as mesmas elaborações
teóricas realizadas para a natureza do continente americano foram utilizadas para suas
populações nativas.
A imagem do índio como “selvagem” é forte no relato de Florence. O caráter do
índio oscila entre a “bondade” ou a “maldade”, de acordo com sua submissão aos desígnios
da civilização ocidental. Uma paleta de percepções determina a presença ou não de
humanidade e cultura. Para o pintor-viajante, manter a disparidade cultural era seguir a
ciência, que, por sua vez, estava atrelada aos ideais burgueses de progresso e servia aos
interesses dos países expansionistas. O indígena ameno e suave versus o traiçoeiro e o mau;
o indiático puro versus o tipo europeu. Este enfrentamento escondia no contexto colonial
os embates entre domínio e submissão, ou luta e extermínio.
São três grupos registrados por Hércules Florence tratados em suas particularidades:
Guaná, Guató e Bororo. A designação Guaná é um termo genérico, encontrado em vários
relatos de viajantes e religiosos do século XIX e diz respeito a quatro grupos que
189
atravessaram o rio Paraguai e se estabeleceram nas margens orientais: Terena, Layana,
Kinikináu e Exoaladi. Todos pertencentes à família lingüística Aruak. Os relatos do pintor-
viajante, Hércules Florence, apenas indicam o termo Guaná. Supõe-se, pela localidade do
encontro, região de Albuquerque, tratar-se de índios Exoaladi ou Kinikináu. Atualmente,
apenas os Exoaladi, aparentemente, não possuem remanescentes em território sul-mato-
grossense.
Os Guató são de língua filiada genética e diretamente ao tronco Macro-Jê. Dentre
os povos canoeiros, como os Payaguá e os Guaxarapo, os Guató são os últimos
representantes. Seus remanescentes estão na periferia de Corumbá, na Ilha Ínsua e no
morro Caracará, próximo à confluência do rio Paraguai com o São Lourenço. Florence
encontrou com índios Guató na região do Rio São Lourenço e teve notícias de um grupo
vivendo na lagoa Gaíva.
Os Bororo, de língua do tronco lingüístico Macro-Jê, viviam aproximadamente
entre os rios Araguaia e Paraguai no sentido Leste-Oeste e rios da Morte e Taquari no
sentido Norte-Sul. Florence encontrou um grupo na fazenda Jacobina, em Vila Maria, atual
Cáceres, Mato Grosso. Hoje em dia, os Bororo habitam seis terras indígenas demarcadas
no estado do Mato Grosso.
A partir de uma escala imaginária entre civilização e barbárie, em que giram todas
as descrições da vida dos grupos indígenas contatados, pode-se inferir que os Guató se
apresentam em primeiro lugar nos registros etnográficos. Para Florence, esse grupo
representa o ícone do “selvagem” idealizado. As referências descritivas do modo de ser,
das características físicas e da docilidade no trato refletem um ideal de felicidade. Não
deve faltar ao ideal do “bom selvagem”, ou seja, viver em harmonia com todos e com a
natureza. Isso significa maior abertura à relação social e à reciprocidade em um contexto
intercultural.
Em segundo lugar, estão os Guaná que em decorrência do uso de panões e de sua
tecelagem são classificados como “selvagens intermediários”. Cobrir a nudez já sinalizava
um avanço para os padrões ocidentais. Além disso, a imagem da nudez estava ligada ao
paraíso terrestre, ao estado “natural” de Rousseau. A descrição da tecelagem guaná dá
ênfase no processo produtivo. O pintor-viajante parece compreender certa evolução no
ciclo do trabalho dos Guaná: tecer, vestir e vender.
190
Em terceiro e último, os Bororo, com aspectos mais “selváticos”. As feições e os
trajes dos Bororo fascinam enquanto cenas do exótico e indomável habitante do Novo
Mundo. Dentre os três, os Bororo são os únicos que se apresentam em conflito com os
habitantes locais. É certo, que entre os Guaná e Guató, Florence descreve um caso de
violência para com uma família guató. Parece ser uma violência distinta da exercida pelos
Bororo aos moradores da província, pois envolvia as leis da sociedade nacional, às quais os
índios deveriam se submeter, formando um corpo civil, uma sociedade, afinal não se
reconhecia neles próprios uma sociedade.
Em todas as três etnias, pode-se observar a cultura material retratada nos diferentes
desenhos. A análise dos desenhos de Florence favorece maior didática na exposição das
práticas culturais. Por isso, uma possibilidade de desdobramento dessa pesquisa seria um
estudo voltado para a cultura material, contemplando diferentes registros etnográficos e
iconográficos, em momentos históricos distintos. Tal método é conhecido na Antropologia
como método comparativo. Seria possível tratar de um período temporal abrangente,
cruzando mudanças e continuidades nos usos e apropriações de diversos objetos do
cotidiano.
Outra possibilidade de pesquisa, que também teria como foco o uso e apropriações
da imagem do índio, seria levantar sua circulação nos meios impressos, partindo da
premissa que o interesse pelo exótico, continua a ser contemporâneo. Durante a pesquisa,
foi identificado desenhos de Florence utilizados indistintamente, chegando a ilustrar
assuntos díspares em propostas textuais. Como se trata de uma imagem em que pouco se
aplica a legislação específica, por vezes, nem a legenda indicativa é utilizada.
Para finalizar, seguindo a linha interdisciplinar entre Antropologia e História, um
trabalho
17
de campo enriqueceria o contato intercultural entre pesquisador e informantes. A
proposta poderia promover um diálogo entre os apontamentos da pesquisa e suas
possibilidades interpretativas e um dos grupos remanescentes dos nativos retratados por
Hércules Florence.
17
Este trabalho não é novidade em sua concepção. Na comemoração dos 500 anos do Brasil, em
2000, a artista-plástica, tetraneta de Hércules Florence, Adriana Florence refez o caminho da
Expedição Langsdorff, pintando e registrando os lugares, paisagens e, principalmente, interagindo
com os indígenas nas aldeias que encontrava. Essa viagem resultou em um livro-arte e um
documentário de quarenta minutos, traduzido para vários países em co-produção da Discovery
Channel e Petrobrás.
191
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Autorizo a reprodução não comercial deste trabalho.
Dourados, _____de ________________ de 2008.
____________________________________
SONIA MARIA COUTO PEREIRA.
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