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que continua no país vizinho e de tempos em tempos atravessa o Lago para se
encontrarem, rever os filhos e participar da vida familiar.
Quando fala do outro lado, o discurso de Cleonice provoca a sensação ou o
sentimento de extensão, como se, para além ou aquém das divisas, houvesse uma
continuidade de um país com o outro; nessa narrativa, é como se já não houvesse nem o
Brasil e nem o Paraguai, mas um terceiro lugar, independentemente de onde se reporta o
discurso; ou seja, há uma mistura de dois países, formando um lugar alternativo composto
por sentimentos e lembranças tanto de ausências quanto de presenças. Mas mesmo essas
impressões são marcadas pelo sentimento da propriedade. Nas suas palavras: “quando a
gente está lá, a gente nem lembra que é Paraguai; lá a gente está... vamos dizer... no que é
da gente. A gente está assim, não é? A gente se sente bem, como se estivesse aqui. Não
existe diferença” (I
DEM
). Quando questionada sobre a permanência dessa situação, ela
responde que pretendem continuar com as terras no outro lado e morando no Brasil. Sobre
este ponto de vista, percebe-se que há a homogeneização da fronteira como algo que existe
e está entre o aqui e o lá, o aqui remetendo ao Brasil, e o lá remetendo ao Paraguai.
Outro ponto que mostra a peculiaridade fronteiriça no relato de Cleonice é a
incidência forte do senso comum
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, tanto na sua maneira de falar, quanto na interpretação
que elabora sobre a situação, “a principal dificuldade é a gente viver assim né, um longe
do outro, que nem eu vivo aqui, praticamente assim, só com os meus filhos, e ele vive lá no
trabalho” (I
DEM
). Sob esta perspectiva, podemos entender a fronteira como um lugar que
provoca a separação e por vezes a desagregação familiar, pois a própria casa deixa de ser
um espaço comum, pois um cônjuge vive para cuidar do trabalho lá, e o outro para cuidar
dos filhos aqui. Percebemos a fronteira como separação, como denota a autora Iara Regina
Castello, pois a fronteira corresponde a espaços de dualidades.
A dualidade dos espaços de fronteira é uma característica bastante evidente, explicitada,
de um lado pela necessidade de se estabelecer separações, em nome de uma diferença
cultural e da preservação da soberania nacional e, de outro, pelas práticas sociais e trocas
que, em face da proximidade física e dos interesses comuns, se estabelecem. A fronteira
é, a um só tempo, área de separação e de aproximação, linha de barreira e espaço
polarizador. É, sobretudo, um espaço de tensões, de coexistência das diferenças, e do
estabelecimento de novas realidades sócio-culturais (C
ASTELLO
, 1995, p. 18).
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Tornou-se freqüente em nosso trabalho, uma vez que são pessoas simples, humildes, agricultores,
pescadores e assim por diante.