Download PDF
ads:
LEANDRO BALLER
CULTURA, IDENTIDADE E FRONTEIRA:
Transitoriedade Brasil/Paraguai (1980-2005)
DOURADOS
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
LEANDRO BALLER
CULTURA, IDENTIDADE E FRONTEIRA:
Transitoriedade Brasil/Paraguai (1980-2005)
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da Faculdade de
Ciências Humanas da Universidade Federal
da Grande Dourados, para obtenção do
título de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Eudes Fernando Leite
Dourados - 2008
ads:
LEANDRO BALLER
CULTURA, IDENTIDADE E FRONTEIRA:
Transitoriedade Brasil/Paraguai (1980-2005)
COMISSÃO JULGADORA
DISSERTAÇÃO PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
Presidente e orientador: ______________________________________
Prof. Dr. Eudes Fernado Leite
2º Examinador: ______________________________________
Prof. Dr. José Luis Bendicho Beired
3º Examinador: _______________________________________
Profª. Drª Marisa de Fátima Lomba de Farias
Dourados, _____de________________de_____.
DADOS CURRICULARES
LEANDRO BALLER
NASCIMENTO: 05/04/1978 – Santa Helena – Pr.
FILIAÇÃO: Oterno Baller
Leonida Baller
FORMAÇÃO:
2000/2004: Curso de Graduação em História, Universidade Estadual do Oeste
do Paraná – Unioeste, Campus de Marechal Cândido Rondon – Pr.
2006/2008: Curso de Pós-Graduação em História, nível de Mestrado,
Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, Dourados – Ms.
RESUMO
A dissertação intitulada “Cultura, identidade e fronteira: transitoriedade Brasil/Paraguai
(1980-2005)”, tem como objetivo compreender o amplo fluxo migratório entre os dois
países. O complexo movimento de pessoas que contempla os recortes estipulados leva em
consideração questões amplas e agentes que o se definem facilmente no interior das
Ciências Humanas. Por meio de diferentes tipologias de fontes como entrevistas, matérias
jornalísticas e imagens, a pesquisa foi direcionada para identificar cultural e socialmente os
agentes fronteiriços que vivem entre Brasil e Paraguai e vice-versa, mais precisamente no
extremo-oeste paranaense e no extremo-leste do departamento de Canindeyu. Neste
contexto encontram-se aspectos de fundamental importância para a análise histórico-sócio-
cultural do complexo fluxo de pessoas, especialmente na segunda metade do século
XX
. O
trabalho trata também de questões como a abertura das fronteiras agrícolas, o stroessnismo,
Itaipu Binacional, a queda dos regimes autoritários, as influências culturais entre os povos,
a questão de terras, os trabalhadores, as formas de trabalho e de vivência no conturbado
ambiente fronteiriço sul americano.
Palavras-chaves: Migração internacional, Brasiguaios, Identidade, Fronteira, Cultura.
ABSTRACT
The dissertation entitled “Culture, identity and frontier: Brazil/Paraguay transitoriness
(1980-2005)”, has as objective to comprehend the ample migratory flux between the two
countries. The complex movement of the people that contemplate the records stipulated
takes in consideration ample questions and agents that don’t define easily in the interior of
the Human Sciences. Through different typology of sources as interviews, journalistic
matter and images, the search was conducted to identify culturally and socially the frontier
agents who live between Brazil and Paraguay and vise-versa, more precisely in the
western-extreme from Parana and in the eastern-extreme of the department of Canindeyu.
In this context there are aspects of fundamental importance for the analysis historical-
cultural-social from the complex flux of people, specially in the second half of century XX.
The work treats questions like the opening of the agricultural frontiers, the stroessnismo,
Binacional Itaipu, the fall of the authoritarian regimes, the cultural influences among the
people, the question of lands, the forms of work and of life in the troubled frontier south
American environment.
Key-words: International migration, Brasiguaios, Identity, Frontier, Culture.
Para todos que fazem parte da minha vida;
indistintamente.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente para toda a minha família que sempre me empurrou ao encontro
de meus objetivos, aos meus pais e irmãos, com toda consideração.
Aos professores do programa de pós-graduação em História da Universidade
Federal da Grande Dourados, grandes formadores de opinião e construtores do árduo
conhecimento na área de humanas.
Ao orientador Eudes Fernando Leite, sempre ponderando coerentemente nas
minhas pesquisas e na tarefa da escrita.
À Selma e a Gisele que me abriram as portas de sua casa num primeiro momento.
À todos os amigos da turma que entrou na pós-graduação em 2006, em especial
àqueles com quem compartilhei momentos de boas conversas e alguns que por algum
tempo tornaram-se parte da minha própria família, Márcia, Thiago e Adilso.
À professora e pesquisadora Luíza Mandotti por se mostrar disposta em me
auxiliar pondo a disposição seu rico acervo de entrevistas e por ser uma pessoa
maravilhosa.
Agradeço à CAPES por ter me dado subsídios financeiros durante esse
importante período de minha vida; foi primordial.
A toda população fronteiriça entre Brasil e Paraguai, que entendeu o propósito do
trabalho e auxiliou para que esse pudesse se desenvolver.
Para todos os titulares e funcionários dos Núcleos de Estudos, Centros de
Pesquisas e de Documentação, dos Museus, das Prefeituras e Municipalidad visitados,
tanto no Brasil quanto no Paraguai, que se dispuseram a encaminhamentos e aberturas de
materiais para pesquisa.
Aos professores Antônio Paulo Benatte, Antônio Marcos Myskiw e Danieli de
Oliveira por seus depreendimentos com leituras, confecção de mapas e também de abstract
do trabalho.
Meu sincero obrigado, com a certeza de outros encontros entre nós; gracias!
“Quer se trate de jornal ou de Proust, o texto tem sentido
graças aos leitores, muda com eles, ordena-se conforme
códigos de percepção que lhe escapam. Ele se torna texto
através de sua relação com a exterioridade do leitor, por um
jogo de implicações e de ardis entre duas expectativas
combinadas: aquela que organiza um espaço legível – uma
literalidade e aquela que organiza uma diligência, necessária
à efetuação da obra – uma leitura.”
Michel De Certeau
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................................ 05
ABSTRACT.........................................................................................................................06
LISTA DE FIGURAS..........................................................................................................11
LISTA DE QUADROS E TABELAS..................................................................................12
LISTA DE SIGLAS / ABREVIATURAS...........................................................................13
INTRODUÇÃO....................................................................................................................14
Capítulo. I Expansionismo: o movimento sulista brasileiro e o desenvolvimento interno
paraguaio.....................................................................................................................33
1.1 – A experiência de quem foi e voltou.......................................................................38
1.2 – Brasiguaio: ator indefinido....................................................................................41
1.2.1 – Do conturbado retorno até a chegada...........................................................47
1.3 – A perspectiva de alguns setores paraguaios sobre o fluxo....................................52
1.4 – A propriedade estrangeira nas fronteiras paraguaias.............................................56
1.4.1 – Expansão: desenvolvimento ou crise............................................................58
1.4.2 – Campesinos no Paraguai...............................................................................64
1.5 – A perspectiva paraguaia sobre o latifúndio estrangeiro........................................70
1.5.1 – As leis paraguaias.........................................................................................78
Capítulo II – O imaginário social em ambiente de fronteira................................................84
2.1 – Fronteira................................................................................................................86
2.2 – Compreensões e experiências das pessoas............................................................89
2.3 – A Itaipu como um limitador................................................................................105
2.4 – A prática e a teoria em uma relação de habitus...................................................111
2.5 – Questões acerca do nacionalismo paraguaio.......................................................117
Capítulo III – Cultura e Identidade.....................................................................................125
3.1 – Cultura: reflexões acerca das fronteiras..............................................................133
3.2 – Práticas culturais: multiplicação de variáveis.....................................................138
3.3 – O outro: análises pertinentes...............................................................................144
3.4 – Supremacia paraguaia e a luta pela hegemonia cultural e identitária..................152
3.5 – Processos históricos.............................................................................................157
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................162
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................167
FONTES.............................................................................................................................173
ANEXOS............................................................................................................................176
LISTA DE FIGURAS:
Figura 01 Mapa da área de maior influência da pesquisa.................................14
Figura 02 Fotografia de uma frase de manifestação em Assunção...................81
Figura 03 Fotografia de Porto Mendes possivelmente das décadas de 50/60...92
Figura 04 Fotografia atual de Porto Mendes.....................................................92
Figura 05 Mapa dos municípios lindeiros do lado brasileiro..........................107
Figura 06 Fotografia do Porto Mendes Gonçalves de 1982............................108
LISTA DE QUADROS E TABELAS:
Quadro 01 Denominações do termo brasiguaio pela imprensa..........................43
Quadro 02 Distribuição de terras no Paraguai e suas extensões.........................57
Quadro 03 Produção e rendimento da soja no Paraguai.....................................60
Quadro 04 Propriedades urbanas e rurais desapropriadas................................107
Quadro 05 Municípios atingidos e sua população............................................108
Quadro 06 Principais destinos dos expropriados..............................................109
LISTA DE SIGLAS / ABREVIATURAS:
BRAVIACO Companhia Brasileira de Viação e Comércio
CBr Correio Brasiliense
CIPASA Compañia Industrial Paraguayo Argentina S.A.
CPT Comissão Pastoral da Terra
CTG Centro de Tradições Gaúchas
EPH Estadísticas, Encuestas y Censos
ESP Estado de São Paulo
FAO Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
FNC Federação Nacional Campesina
FSP Folha de São Paulo
HAS Hectares
IBR Instituto de Bienestar Rural
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
JB Jornal do Brasil
KM Quilômetros
MCNOC Mesa Coordinadora Nacional de Organizaciones Campesinas
MST Movimento Trabalhadores Rurais Sem-Terra
PY Paraguai
SMT Antigo Sul de Mato Grosso
TERRASUL Departamento de Terras do Estado de Mato Grosso do Sul
UH Ultima Hora
INTRODUÇÃO
O objetivo desta pesquisa é compreender historicamente a movimentação de
pessoas entre o Brasil e o Paraguai durante os anos de 1980 a 2005, na região oeste
paranaense, espaço que faz divisa com a zona alta do departamento de Canindeyu, no leste
paraguaio. Dentre os grupos de pessoas que se movem constantemente entre um país e
outro, com deslocamentos temporários curtos ou mais longos, destacam-se como
representantes típicos dessa transitoriedade os chamados brasiguaios. Permeia o estudo a
tríade que contorna a gama de aspectos de formação do grupo social: as categorias de
cultura, identidade e fronteira. O estudo se estende aos grupos fixos nas margens do
ambiente fronteiriço no Brasil e no Paraguai.
Fonte: Elaborado por Antônio Marcos Myskiw e Leandro Baller.
A utilização do termo transitoriedade no tulo do trabalho deriva das reflexões do
sociólogo José de Souza Martins sobre “a vida privada nas áreas de expansão da
sociedade brasileira”.
1
Martins emprega a denominação transitório em referência aos
movimentos sociais que se processam na fronteira, movimentos estes marcados pelos
valores e concepções residuais do transitório, atrelados ao desdobramento do indefinido. O
termo é aqui adotado por nós para designar o movimento que ocorre nos espaços
1
Título original do último capítulo do livro “História da vida privada no Brasil 4: contrastes da intimidade
comtenporânea”.
15
fronteiriços entre Brasil e Paraguai, ou seja, a transitoriedade no sentido de fluxo ou de
movimentos populacionais.
A análise terminológica da historiografia busca auxílio em teorias sociológicas e
antropológicas na tentativa de explicar o fenômeno da transitoriedade. Muitos são os
fatores ligados a essa questão e a principal está na propriedade de terras no Paraguai.
Procuramos estender o assunto para além dos recortes da pesquisa, com o objetivo de
mostrarmos a complexidade do tema, especialmente para o Paraguai.
O primeiro capítulo trata dos principais fatores que influenciaram o fluxo de
pessoas, mostrando como o movimento migratório iniciou com os governos ditatoriais
militares do Brasil e do Paraguai, especialmente com a política de desenvolvimento interno
do então presidente Stroessner.
Na segunda metade do século
XX
, aumenta gradativamente a imigração e a
presença brasileira no Paraguai atinge aproximadamente 10% da população paraguaia, ou
seja, entre 350 a 400 mil brasileiros.
2
Nesse tempo, ocorre a repulsão agrícola no sul do
Brasil, que sofre uma aceleração na modernização da agricultura. Nesse contexo, milhares
de agricultores procuram meios para sobreviver buscando espaços de cultivo para
plantarem e se fixarem. Por outro lado, há a atração às terras paraguaias devido a própria
semelhança com as terras do sul do Brasil; são férteis, clima agradável, bom rendimento,
grandes extensões de terras planas e especialmente o baixo preço.
Ao longo da década de 1980, tanto do lado brasileiro quanto paraguaio, os
brasiguaios são objeto de importantes e variadas análises nas ciências sociais; no mesmo
momento em que pesquisadores começam a investigar as características de tal fenômeno,
os discursos políticos contrários à Stroessner constróem a representação de que o Paraguai
estaria a sofrer uma verdadeira invasão estrangeira.
No final dos anos 1980 e adentrando pela década seguinte, assisti-se a um
significativo retorno de agricultores brasileiros. Não podemos chamar o retorno de um
contra-fluxo, pois uma grande quantidade de pessoas que diariamente atravessam essas
fronteiras tanto de um lado quanto do outro, aumentando ainda mais a dinâmica fronteiriça.
As fronteiras secas do Estado de Mato Grosso do Sul com o Paraguai representam
uma grande complexidade nos movimentos de retorno, até mesmo por possuir um melhor
2
Os dados quantitativos acima expostos não são exatos, pois não existia um controle alfandegário rigoroso.
vários autores que trabalham com números diferentes do contingente na época, mas os números giram
entre 300 a 400 mil pessoas.
16
acesso de transposição, o que não ocorre na fronteira com o Estado do Paraná, que tem
como divisão territorial o Rio Paraná, e posteriormente o Lago Internacional de Itaipu.
No ambiente fronteiriço a corrupção das autoridades dos dois países, que
fomentam a cobiça dos exploradores das terras paraguaias. O desmatamento e o
contrabando de madeiras abriram caminho para a plantação de grandes extensões de soja
no país vizinho, com o consentimento das autoridades fiscais, políticas e militares.
Na tentativa de compreender as implicações sociais inerentes ao fluxo de pessoas,
formulamos a hipótese da dinâmica cultural que tais mudanças geram, não apenas no
tocante à questão identitária da população “flutuante”, mas, sobretudo no que concerne à
condição das populações fixas. Ou seja, no vai-e-vêm dos fluxos, a população paraguaia
encontra-se em números comparativamente menores nas cidades fronteiriças em seu
próprio país, o que tem conseqüências diretas ou indiretas na educação dos filhos, nos
modelos de cultivo e produção agrícola, no idioma, no comércio, nos meios de
comunicação, entre outras práticas cotidianas; estas são algumas questões que apontam
para a complexidade do fenômeno em estudo.
Com a grande demanda de brasileiros ao Paraguai começam a surgir problemas de
ordens diversas, especialmente ligados à agricultura, com os campesinos criticando a
propriedade da terra pelos brasileiros e o seu modelo de cultivo. Assim nascem outras
divergências que vão culminar em um retorno em massa de pequenos agricultores ao país
de origem, os denominados Brasiguaios.
Esses brasileiros que migraram para o Paraguai e depois de aproximadamente
quatro décadas voltaram e continuam voltando para o Brasil, aumentam as frentes de
acampamentos de trabalhadores rurais sem-terra no Mato Grosso do Sul , ou, como no caso
mais específico do Paraná, engrossam as periferias das pequenas cidades do Oeste do
Estado.
Nesse sentido, buscamos saber quem são os brasiguaios, como se deu o retorno ao
Brasil e ainda como foram recebidos de volta no país os grupos que vieram organizados
em grande número de integrantes. Chegando ao Brasil motivados por promessas políticas
de reforma agrária os agricultores encaram outros dilemas, pois não eram mais
reconhecidos como brasileiros e, portanto, vêem seus direitos de cidadania serem
questionados e sua identidade nacional ser deteriorada.
Embora houvesse e continue a haver o retorno desses agricultores ao Brasil, as
propriedades e a população brasileira nas fronteiras do Paraguai ainda é grande, o que
17
preocupa as autoridades paraguaias, pois fere várias leis de segurança nacional referente a
agricultura, impostos, migração e até mesmo de relações internacionais, pois obedecem a
uma dinâmica fronteiriça diferenciada.
Assim sendo, percebe-se a continuidade de uma luta que não cessou desde o dia em
que essas populações começaram a fazer parte da massa de manobra de um plano de
desenvolvimento interno no Paraguai, política intermediada pelos governos ditatoriais de
ambos os países.
Um dos fatores que norteia a pesquisa é a lógica expansionista brasileira em
detrimento do país vizinho. Para além dos problemas agrícolas internos ao Paraguai,
mostrar esse processo é perceber como os dois países, em diferentes momentos históricos,
sofreram intervenções para que a demanda de brasileiros ao Paraguai ocorresse.
O contexto de Marcha para Oeste do governo brasileiro estreita as relações
posteriormente com o programa Marcha al Este do governo paraguaio, momento em que o
Brasil pretende povoar mais suas fronteiras do oeste, e o Paraguai busca um impulso
econômico para se desenvolver. Neste sentido, os mecanismos de migração se produzem
em maior escala entre os dois países originando outras questões, em geral tensas e
conflituosas.
É claro que a população paraguaia não compactua com os mesmos ideais em
relação ao fluxo de pessoas do Brasil para o seu país. Os camponeses, os pesquisadores,
estudiosos e até mesmo os artistas possuem diferentes e divergentes pontos de vista sobre a
demanda de pessoas, especialmente porque uma grande concentração de propriedades
de terras em mãos de estrangeiros em uma zona de risco, que são as fronteiras
internacionais com o Brasil.
Ao mesmo tempo em que assistimos, naquele momento, a uma tentativa de
desenvolvimento paraguaio, vimos que esta provável expansão caracteriza uma intensa
crise, não econômica ou monetária propriamente dita, mas que envolve diversos setores
internos no Paraguai.
A perspectiva nacional paraguaia sobre os proprietários estrangeiros em seu país
sofre influências bilaterais, em primeiro lugar por haver um conflito interno entre
campesinos e governo quanto à reivindicação de terras. Em segundo lugar, porque as leis
criadas pela Constituição Nacional do Paraguai de 1967 e posteriormente reformuladas em
1992 não atendem aos direitos e às reclamações da maioria da população paraguaia que
necessita da proteção dessas leis.
18
No segundo capítulo procuramos compreender os diversos sentidos da fronteira,
adentrando em um campo conflituoso de análise: o imaginário social que permeia o
ambiente estudado, intimamente ligado com a relação de habitus das pessoas.
A noção de fronteira, nesse contexto, comporta vários significados; atentamos à
experiência das pessoas que produzem esses sentidos, entender o “real” significado dos
limites entre os dois países e as ações dessas pessoas no intrincado meio social fronteiriço.
A fronteira muda de forma e conteúdo passando do Rio Paraná para o Lago Internacional
de Itaipu, e tal mudança afeta os agentes sociais que vivem e transitam entre os limites
territoriais; é nesse meio que surge a maior usina hidrelétrica do mundo, Itaipu.
A instalação da Usina Hidrelétrica de Itaipu funciona como um marco fronteiriço
importante nesse ambiente. O número de migrantes brasileiros que foram ao Paraguai
devido à construção da usina não é elevado; mas tentamos mostrar que a dinâmica
fronteiriça se altera significativamente na região por causa de sua construção, o que afeta a
vida cotidiana de grandes contingentes de pessoas em ambos os países.
Para a compreensão das relações sociais fronteiriças, são importantes os estudos
sociológicos em torno da teoria de habitus. Norbert Elias e Pierre Bourdieu auxiliam nosso
entendimento sobre as experiências dessas pessoas, levando em consideração os sentidos
múltiplos de fronteira por elas externalizados. O habitus age como uma mediação entre as
estruturas que se organizam e passam a ter uma determinada configuração e as aquisições
que ela mesma produz. Instrumentalizando as ferramentas teóricas dos dois sociólogos,
buscaremos compreender melhor o processo de relação entre os indivíduos, por mais
diferentes que sejam relativamente a outros membros da sociedade, um pequeno grupo,
uma família ou um Estado nacional.
Nesse sentido, surgem várias questões acerca do nacionalismo paraguaio. Os
produtores agrícolas buscam meios para sobreviver no espaço fronteiriço e vão surgindo
problemas de ordem internacional, como a frágil soberania cultural e identitária que o
Paraguai exerce em seus territórios fronteiriços. Quanto a esses problemas, uma breve
discussão sobre o conceito de nação, nacionalismo e consciência nacional ajuda-nos a
adentrar em tais questões.
No terceiro e último capítulo trabalhamos especificamente com abordagens em
torno da cultura e da identidade das pessoas no espaço estudado. Para buscar apreender e
compreender o comportamento cultural dos agentes sociais e as formas como estes se
identificam com o espaço ora pesquisado, consideramos desde o início essas pessoas como
19
produtores de uma cultura mesclada entre dois países; duas linguagens, duas histórias,
produzindo a si mesmos na intermediação diária com o diferente, com o outro, com a
alteridade.
As possibilidades de análise em torno da cultura e da identidade assumem direções
diferentes e variadas. Partimos de um pressuposto em que é possível perceber as
semelhanças e as discrepâncias que atuam no complexo campo fronteiriço local, onde
convivem etnias díspares com traços culturais transpostos por migrações, viagens, fugas,
mudanças, perdas de propriedade, entre outros fatores que motivam o fluxo migratório das
pessoas.
Assim, atrelamos a noção de cultura diretamente à compreensão das práticas
culturais e da história cultural, formando um corpus teórico-metodológico passível de ser
utilizado na análise dos agentes que fomentam a multiplicação de variáveis culturais.
Dessa forma contribuimos com o trabalho coletivo não apenas no que diz respeito às
reflexões acerca das fronteiras culturais, mas também e, sobretudo, das culturas
fronteiriças, algo presente e perceptível no campo de pesquisa.
Para o tratamento das questões identitárias buscamos apoio nas teorias
antropológicas, bem como nas reflexões sobre a cultura, também presente no corpo teórico
e empírico dessa ciência social; desnecessário dizer que os conceitos de identidade e os de
cultura guardam entre si estreitas relações. Evidentemente, não temos a pretensão de entrar
em longas discussões teóricas sobre esses complexos conceitos, mas tão somente aplicá-los
o mais coerentemente possível ao nosso esforço de compreensão histórica das identidades
e culturas de fronteira. Enfim, os conceitos de cultura e identidade são responsáveis por
promover grandes debates atualmente nas ciências sociais e humanas. Podemos até mesmo
falar de uma identidade cultural em que o partilhamento de uma mesma “essência” é
possível por diferentes indivíduos, grupos, Estados ou nações.
Para tanto, partimos de um pressuposto que é o reconhecimento do eu enquanto
indivíduo ou grupo social em oposição ao outro. Identidade e alteridade se determinam
recíproca e dialeticamente. A imagem do outro permeia a construção relacional da imagem
de si mesmo, contantemente constrastado com alguém exterior à identidade, um não-eu.
Assim, ao trabalharmos com as fontes, consideramos o processo de formação identitária de
um grupo, no caso, os brasiguaios no contexto histórico aqui estudado. Para a
historiografia contemporânea, apesar das inúmeras pesquisas levadas a efeito, o
entendimento sobre o termo identidade ainda não é bastante claro; ademais, conforme os
20
paradigmas da interdisciplinaridade, multidisciplinaridade ou da transdisciplinaridade o
auxílio de outras disciplinas é fundamental para podermos desenvolver nossas análises e
reflexões acerca do tema; a convivência com o diferente é fundamental para aflorar tais
discussões e o trabalho de campo nos dá respaldo para que isso ocorra de maneira salutar.
A análise em torno da cultura e da identidade nos limites fronteiriços nos leva a
uma questão delicada para o país vizinho. A luta paraguaia pela hegemonia cultural e
identitária evidencia problemas ligados à soberania nacional daquele país; a perda de
maneiras tidas como essenciais para manter hegemonicamente as bases nacionais preocupa
as autoridades políticas, especialmente nas fronteiras territoriais. O idioma, os costumes, a
moeda, os meios de comunicação podem ser citados como tais bases para a manutenção da
soberania nacional.
Ao final do trabalho apresentamos rapidamente, várias questões que apareceram no
decorrer da pesquisa e não compreendem os eixos centrais de análise sugeridos, e nem
mesmo respondem a problemáticas levantadas. Essas questões, no entanto, as
consideramos parte de um processo histórico com início na segunda metade do século
XIX,
a partir da Guerra do Paraguai
e que se estende até aos dias atuais, perpassando diferentes
fases e contextos, e que ganham minimamente um espaço aqui. Entendemos que tão ou
mais importante que responder a questões é suscitar problemas históricos pertinentes,
capazes de suscitar pesquisas a serem desenvolvidas por nós mesmos ou por outros
pesquisadores, individual ou coletivamente.
As fontes documentais utilizadas no decorrer dos três capítulos da pesquisa são de
diferentes tipos e naturezas. Buscamos cotejar, cruzar e combinar as narrativas orais, os
textos da imprensa escrita (jornal) e as imagens fotográficas sobre a região, seus
personagens, sua cultura e sua história. Esse tipo de tratamento documental faz emergir
problemáticas como a memória, a seleção de fatos, os traumas, as diferenças de narrativas,
o esquecimento, as múltiplas perspectivas, a composição material dos meios de
informação, entre outros fatores percebidos que inconscientemente ou não modificam e/ou
transformam os acontecimentos e processos.
Sabe-se que a memória, produção intrinsecamente social, é permeada não somente
por lembranças exclusivamente pessoais, mas também por idéias e discursos correntes em
uma época; as entrevistas, que permitem coletar e registrar memórias de indivíduos e de
grupos possibilitam “recuperar” a narrativa e a tradição oral daqueles que não deixam
registros sobre suas experiências vividas.
21
Conforme afirma Montenegro.
Os trabalhos com história oral podem divulgar para um público mais vasto o que antes
estava confinado em seus próprios limites. A visão de mundo dos indivíduos, suas
experiências passadas e presentes adquirem novo sentido quando divulgadas. Fortalece-se,
dessa forma, a história como campo de luta
(M
ONTENEGRO
,
1992,
p.
27).
A metodologia da história oral busca apreender registros da memória; memória que
deve ser entendida, sobretudo, “como um fenômeno coletivo e social, construído
coletivamente e submetido a flutuações, transformações e mudanças constantes” (P
OLLAK
,
1992, p. 201). Esses registros da memória evidenciam acontecimentos e processos vividos
pessoalmente, diretamente ou por tabela, e podem ser tratados pelo historiador como um
fenômeno de projeção ou de identificação com um determinado passado coletivo.
As relações entre memória e identidade são muito estreitas. Quando a memória é
organizada em função de preocupações pessoais e/ou políticas, torna-se um fenômeno
construído; quando se trata de memória herdada, Pollak diz “que uma ligação
fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade” (
I
DEM
, p.
204). Ainda para este autor, “a memória é um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva” (
IBIDEM
). É necessário considerar ainda que
tanto a memória quanto a identidade podem ser negociadas e constantemente o são ao
longo da história portanto não deveriam ser tomadas como essências ou substâncias
imutáveis de pessoas ou grupos sociais. E mais ainda, tanto a memória quanto a identidade
“são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais” (
IDEM
, p. 205).
O recurso às fontes orais implica em uma sensibilidade epistemológica específica e
aguçada, algo diferente de uma metodologia histórica estritamente positivista. Obviamente,
a crítica às fontes orais deve ser rigorosa, mas isso vale para qualquer tipologia
documental.
Todavia, é certo que o uso das técnicas da história oral coloca a historiografia mais
do lado dos métodos qualitativos das ciências sociais que dos métodos quantitativos e
seriais. Talvez por isso tenha-se criado uma oposição entre história oral e história social
quantificada, opondo assim o “científico” ao “literário”; nesse jogo de oposições e
desqualificações, a história social foi considerada um discurso capaz de atingir e explicar
mais objetivamente a realidade, enquanto a história oral, mais subjetiva e
epistemologicamente fraca, não poderia transcender relatos impressionistas. Obviamente
22
não concordamos com tal caracterização, principalmente quando levamos em conta o
pluralismo que o uso das evidências orais introduz nas ciências humanas.
Quanto a isso Pollak diz que:
se nos proporcionamos os meios e as condições para construir cientificamente, com todas
as técnicas das quais dispomos hoje em dia, temos condições de produzir um discurso
realmente sensível à pluralidade das realidades. Temos uma possibilidade, não de
objetividade, mas de objetivação, que leva em conta a pluralidade das realidades e dos atos
(I
DEM
, p. 211).
Nesse sentido, Joan del Alcàzar i Garrido defende a idéia de que devemos
incorporar as fontes orais e seus estilos como uma fonte documental entre outras, sem
desconsiderar suas especificidades. A fonte oral é fruto da dualidade investigador-
testemunho, que é a entrevista. Para Ronald Fraser, nas palavras de Garrido (1993) a
utilização de fontes orais permite articular a experiência daqueles que a partir de uma
perspectiva histórica estão desarticulados. Garrido (1993) citando Paul Thompson
caracteriza ainda o sentido humano das fontes orais, portadoras de dois elementos
essenciais: a democratização da própria história, e a vitalidade de uma história que de
alguma forma devolve às pessoas seu passado a partir de suas próprias palavras.
Em outras palavras.
Facilita o estudo de atos e situações que a racionalidade de um momento histórico concreto
impede que apareçam nos documentos escritos, (...) possibilita incorporar não apenas
indivíduos para a construção do discurso do historiador, mas nos permite conhecer
situações insuficientemente estudadas até agora” (
GARRIDO
, 1993, p. 36).
Não por que pensar que as fontes orais sejam mais ou menos impuras que
qualquer outro tipo de fonte. As técnicas da história oral, a despeito de seus abusos, têm
sido muito utilizadas pelos historiadores que estudam a experiência de pessoas que
raramente deixam escritos. O seu uso é mais conseqüente quando cruzado com outros tipos
de evidência empírica.
Como diz Gwin Prins.
Os dados orais servem para confirmar outras fontes, assim como as outras fontes servem
para confirmá-los. Eles também podem proporcionar detalhes significantes que de outra
forma são inacessíveis e, por isso, estimular o historiador a reanalisar outros dados de
maneiras novas”. (
PRINS
. In:
BURKE
, 1992, p. 194-195).
23
Há, portanto, que se estabelecer uma relação dialética entre registros orais e outras
fontes documentais, a fim de compreender e problematizar a experiência das chamadas
“pessoas comuns”.
A aproximação crítica é fundamental para garantir o bom uso metodológico da
fonte oral; mas isso é uma regra geral do método histórico, pois toda fonte histórica deve
ser tratada e interpretada de uma perspectiva crítica, visto que também as fontes escritas,
imagéticas, imprensa, etc., são manipuladas por pessoas e grupos com interesses, valores,
crenças e ideologias próprias.
Nesse sentido, é interessante percebermos e mesmo estimular a tensão dialética
entre diferentes tipos de evidências. A metodologia, em suma, pretende combinar e cruzar
várias formas de documentação: dados orais, obtidos pela coleta de entrevistas; fontes
escritas, obtidas pela heurística dos arquivos; dados etnográficos, obtidos pela observação
participante. Para Goldenberg, “A combinação de metodologias diversas no estudo do
mesmo fenômeno [...] tem por objetivo abranger a máxima amplitude na descrição,
explicação e compreensão do objeto de estudo”.
(G
OLDENBERG
, 2002, p. 63). O cotejo e
cruzamento de indícios coletados através de técnicas variadas tendem a contribuir para a
riqueza das informações e, conseqüentemente, para o produto final do estudo.
Assim, buscamos utilizar jornais, fotografias e alguns documentos escritos com a
intenção de discutir melhor as hipóteses levantadas no decorrer da pesquisa. As palavras de
Garrido reforçam a idéia da proveitosa relação dialética que se pode estabelecer entre as
fontes orais e documentos de outra natureza; cita Joutard que, a proprósito, chega “a
afirmar que sem fontes escritas que permitam estabelecer a distância entre o dito e o não-
dito, ou o que foi dito de forma diferente, não verdadeira história oral” (G
ARRIDO
,
1993, p. 38).
Ao trabalhar com fontes orais, muitos pesquisadores formam uma rede de
informantes com estudiosos que tenham experiências nos assuntos e com os sujeitos que
permeiam estes temas; isso auxilia numa maior compreensão de assuntos e problemas.
Garrido nos fala da organicidade e coerência necessárias para organizar um conjunto de
entrevistas passíveis de serem utilizadas como fonte oral de informação histórica.
Dizendo que é necessário;
não esquecer que aquilo a que chamam de história oral embora seja nossa preferência
falar da utilização de fontes orais para fazer história não é uma soma de entrevistas
independentes entre si, mas um conjunto orgânico e coerente de entrevistas. Uma entrevista
24
concreta não é mais que uma parte do conjunto e somente adquire seu real significado no
todo que integra a amostra (
IBIDEM
).
Esse ponto de vista não é simplista, pois a memória é seletiva e o entrevistado está
sujeito a operar essa seleção e relatar o seu ponto de vista como uma verdade histórica.
Segundo Garrido, “a memória é essencialmente seletiva, e por isso mesmo, parcial e
interessada” (
IBIDEM
). A seletividade é um dos pontos mais complexos no trabalho com
fontes históricas; todas as tipologias de fontes possuem tal problemática, pois sofrem ou
sofreram algum tipo de manipulação ou organização; aqui entra em cena a complexa
discussão sobre a objetividade e a subjetividade das fontes.
Quanto a isso, Garrido diz que:
Um dos aspectos mais interessantes do uso das fontes orais é que não apenas se chega a um
conhecimento dos fatos, mas também à forma como o grupo os vivenciou e percebeu. É de
importância capital resgatar a subjetividade, mas é um grave erro passar a confundi-la com
fatos objetivos. Esta aproximação crítica ao testemunho oral consegue-se mediante dois
procedimentos de caráter interativo: um, com a documentação escrita existente, e outro,
com o resto do corpus de documentos orais. Daí a importância de se estabelecer uma
relação dialética entre os diversos tipos de fontes (
IDEM
, p. 39).
As questões colocadas por Garrido comportam os principais debates em torno do
método, quais sejam: a aproximação crítica, a memória, a subjetividade e a relação
dialética com outras fontes, embora o autor apresente ainda outras perspectivas, como o
problema da narratividade, que não trataremos aqui.
Em nosso conjunto de fontes, fizemos uso também das fontes imagéticas no
caso, a fotografia. Numerosos historiadores contemporâneos têm chamado a atenção para
as possibilidades do uso da fotografia como fonte de informação histórica. A importância
desta fonte, como dos materiais iconográfico em geral, também é seriamente questionada.
Pois são consideradas suas especificidades, a imagem torna-se uma unidade auto-suficiente
de manifestação, um texto ou discurso num todo de significação suscetível de análise. A
fotografia o registra a realidade, mas as suas representações. Refletir sobre estas
possibilidades nos leva a um grande desafio.
Segundo Ana Maria Mauad e Ciro F. Cardoso, a principal dificuldade está em
“como chegar àquilo que não foi revelado pelo olhar fotográfico. Tal desafio impõe-lhe a
tarefa de desvendar uma intricada rede de significações, cujos elementos homens e
signos interagem dialeticamente na composição da realidade” (
CARDOSO
e
MAUAD
,
25
1997, p. 405). Tal composição auxilia-nos na compreensão de significados, que seria
fundamental para se operar sobre a realidade.
A fotografia mais especificamente está pautada em códigos socialmente
convencionais, ligada a um caráter conotativo que remete às formas de ser e agir. Portanto,
entre o sujeito que elabora a imagem e o que a olha, existe muito mais do que os olhos
podem ver, e essa relação não é automática. A imagem fotográfica é uma fonte que tem o
poder de nos remeter ao passado e até mesmo de trazê-lo à superfície da atualidade,
revelando um tempo e um espaço que fazem sentidos individuais ou coletivos. O
individual envolve uma escolha realizada, e o coletivo remete ao sujeito e sua época,
tornando-se uma imagem/documento, como uma mensagem que se processa através do
tempo.
A fotografia “revela” elementos com características detalhadas, que a descrição
verbal não daria conta. Conforme Cardoso e Mauad, a sua crítica documental exige “uma
leitura que ultrapasse a avaliação da fotografia como mera ilustração” (
IDEM
, p. 406).
Ela, a fotografia, está inserida em um mais amplo sistema de significados não-verbais e de
fundamentos sociais, fruto de um trabalho social; ela compõe o quadro cultural de uma
sociedade e é este sistema de significados que faz com que haja a compreensão da cultura
imagética enquanto forma de apreender e representar as relações sociais. Os procedimentos
críticos mostram as implicações ideológicas e culturais deste processo de produção de
sentido, pois a imagem coloca-se como uma escolha realizada, num conjunto de escolhas
possíveis. Assim, o cuidado ao trabalhar com essa tipologia de fonte é essencial.
Para compreendermos a fotografia como uma fonte imbuída de mensagens
compostas por significados não-verbais, devemos acima de tudo, como nos alerta Emílio
Garroni, considerar (...) a imagem no interior de um paradigma que relaciona o efetivo
ao possível, o realizado às possibilidades de realização. Além da própria referência
sintagmática. Ao compor essa dupla referência, a fotografia é mensagem” (
GARRONI
, apud
CARDOSO
e
MAUAD
, 1997, p. 408).
As significações estabelecem o conteúdo e o plano da forma de expressão; a sua
identificação se dá pelo desenvolvimento da mensagem de base conotativa a partir de uma
mensagem de códigos, o código em questão é histórico e cultural. Com o código
conotativo a leitura é histórica, pois a prática social é o que une o significado e o
significante, ou seja, a transmissão e a recepção finalizam o plano semiótico. Os
historiadores buscam na mensagem fotográfica elementos que se localizam num
26
determinado tempo e espaço. Os elementos são capazes de informar aspectos materiais e
imateriais, e revelar uma imagem, um monumento, ou ainda a memória capaz de mostrar
“fatos” e personalidades que a própria sociedade pereniza. A fotografia, nesse sentido,
pode ser considerada uma das formas de registro, construção e transmissão de memórias e
identidades sociais.
A tarefa que o historiador exerce ao perceber e esclarecer estas representações nos
leva a ver que as imagens figurativas não são modelos fidedignos e reais do passado, ou de
fatos. Ana M. Mauad, esclarece que, “na estruturação da mensagem fotográfica, múltiplos
recortes espaciais se entrecruzam e, através de sua delimitação precisa, pode se chegar
(...) aos códigos de representação social inerentes à própria construção da noção de
espaço” (
MAUAD
, 1993, p. 27). A análise interpretativa da fotografia por trás da imagem na
sociedade, e não de suas especificidades técnicas, “atua como importante meio através do
qual se podem reestruturar os quadros de representação social e os códigos de
comportamento dos diferentes grupos socioculturais, em contextos e temporalidades
diversos” (
CARDOSO
e
MAUAD
, 1997, p. 411-412).
Utilizaremos ainda as fontes oriundas da imprensa escrita — no caso, os jornais. Na
perspectiva da história tradicional, as fontes jornalísticas eram desprezadas como
documento, pela extrema subjetividade nelas implícita. Contudo, dadas as transformações
na concepção de história, como diz Vavy Pacheco Borges, “Hoje é sabido que um órgão
da imprensa está sempre defendendo posições, querendo formar opiniões, através de uma
venda de informações” (B
ORGES
, 1988, p. 59-60). E é exatamente esse caráter formativo e
informativo que torna a imprensa interessante para os historiadores.
Os textos jornalísticos são aqui considerados essencais em nosso conjunto de
fontes, e colocados em diálogo constante com evidências de outras naturezas. Ao
historiador/pesquisador, os textos jornalísticos são tidos como um segmento da grande
imprensa. Obviamente, os textos dos periódicos devem ser analisados com o mesmo rigor
e espírito crítico empregados no tratamento das fontes orais e imagéticas.
Fazer história “por meio” da imprensa é um desafio aos historiadores, embora
reconheçamos que, com a abertura historiográfica do final do século
XX
, novas
abordagens, novos problemas e novos objetos” reconfiguraram a historiografia,
oferecendo-lhe um amplo instrumental de análise e uma variada tipologia documental.
Nesse contexto, a imprensa e aqui mais propriamente o “jornal escrito” —, aparece
como um das principais fontes indiciárias. Especialmente a chamada História do Tempo
27
Presente tem demonstrado as potencialidades desse tipo de fonte ou objeto da história, uma
vez que não devemos entendê-la como um modelo exclusivo para jornalistas; o campo
histórico é participativo nesse sentido, e a interdisciplinaridade fomenta as possibilidades
quanto a esses novos suportes de pesquisa.
Os usos dos discursos da imprensa como fonte vêm acompanhando o desenvolver
do saber histórico contemporâneo; ainda que de forma tímida, a história informada por esse
tipo de evidência adentra a prática historiográfica, antes mesmo dos historiadores
acadêmicos se aterem ao seu valor enquanto fonte, e antes mesmo de serem analisadas
teoricamente; ou seja, uma valoração prática fora das universidades, por historiadores
“amadores”, para daí encontrarem legitimidade nos meios acadêmicos.
Um ponto principal nessa questão é a transformação da imprensa de meio de
comunicação de segmentos privilegiados em veículo de comunicação e cultura de massas;
e isso nos leva diretamente a outra dificuldade, qual seja, perceber a atuação do emissor e
do receptor. Francisco Rüdiger expressa essa questão da seguinte maneira:
A relação entre emissor e receptor não depende da vontade do primeiro nem pode ser por
ele controlada: é uma variável, entre outras, do sistema social em que está inserida (...) a
concepção do público como coletivo de receptores mais ou menos passivos cedeu lugar à
idéia de sujeito ativo, que se conduz de maneira consciente e motivada, visando satisfazer
certas necessidades via os meios de comunicação. (
RÜDIGER
, 2002, p. 56-57).
Nesse diálogo, nem a imprensa nem o público fazem o papel de manipulados ou
manipuladores, mas essa propensão depende de suas necessidade de crer em algo. Ou seja,
independente da notícia ou do anúncio, é necessário que se os analise em um plano
estrutural, descobrindo assim os significados da mensagem, admitindo que o “processo”
pode ser por ambos os lados organizado.
Para transformarmos nossas discussões em algo embasado cientificamente,
optamos por não exaurir as especificidades teóricas possíveis da imprensa escrita como
notícias, anúncios, fatos entre outras “narrativas” ou discursos que os especialistas
abordariam. Trabalharemos de um modo próximo ao modelo de análise formulado por
Luiz Gonzaga Motta, quando enfatiza que,
não se trata (...) de tentar ‘enquadrar’ este tipo de notícia num suposto conceito universal.
O que pretendemos é explorar a peculiaridade delas e a sua aparente negação do conceito
usual de notícia, para entender mais profundamente os mecanismos envolvidos na relação
entre o real e o simbólico na produção jornalística” (
GONZAGA MOTTA
, In:
DAYRELL
PORTO
,
MOUILLAUD
, 2002 p. 307).
28
A utilização do jornal como fonte pode suscitar muitas divergências de ordem
teórico-metodológica, e muitas tem sido as críticas que se lhe faz. Ora, é evidente que as
fontes da imprensa também são manipuladas por interesses de indivíduos, instituições e
grupos sociais. Mas poderíamos perguntar: qual fonte não é? Melhor que alimentar a
suspeição generalizada quanto a uma ou outra linguagem, é buscar desenvolver
ferramentas críticas capazes de lidar com as especificidades de cada uma delas.
Nossa pesquisa de matérias veiculadas pelos meios de comunicação estrangeiros
esteve focada principalmente em dois jornais: os periódicos Ultima Hora e o ABC Color,
ambos de Assunção. Preocupamo-nos em analisar as especificidades de postura desses
jornais frente à sociedade de fronteira, especialmente quanto aos períodos cronológicos em
que mais utilizamos suas matérias para fomentar a pesquisa; logicamente, a trajetória deles
é o que fica mais evidente num primeiro momento.
O periódico ABC Color, desde sua fundação em 8 de agosto de 1967, caracteriza-se
por representar uma grande força política contestatória: foi fechado e proíbido de operar
em 22 de março de 1984 por defender a liberdade democrática no país. Reiniciou suas
atividades editoriais e de publicação em 22 de março de 1989, exatamente cinco anos após
ter sido barrado e coincidentemente no ano em que Stroessner deixou o controle político
ditatorial paraguaio. Durante a época da ditadura paraguaia, o ABC Color defendeu e
estimulou atitudes democráticas de liberdade social ou que minimamente pudessem se
assemelhar a tais propósitos, especialmente contra os intentos stroessnistas. Atua sob a
divisa patriótica de “un diario joven con fe en la pátria”.
Atualmente, o periódico possui circulação diária e é de propriedade de um
empresário; nos últimos tempos, vem sofrendo algumas críticas por distorções ou
desinformações, especialmente em matérias de cunho político. A opinião pública acredita
que seu jornalismo esteja sendo influenciado por forças políticas do país, embora
reconheça que não há envolvimento direto com partidos ou indivíduos da política.
Comenta-se que o periódico não possui mais a mesma credibilidade jornalística que tinha
em tempos passados, mas é destacado como um dos jornais de maior reputação,
juntamente com o Ultima Hora.
O jornal Ultima Hora foi criado em 8 de outubro de 1973; incialmente pertencia ao
então Coronel e logo General Pablo Rojas. Através da pessoa de Isaac Kostianovski,
reconhecido jornalista, o periódico possuía uma postura crítica da sociedade e do cotidiano
paraguaio e internacional, dentro da relativa liberdade que lhe era permitida. Ao final do
29
regime ditatorial de Stroessner, lutou por democracia e em alguns momentos foi a única
“voz” de oposição ao sistema. Em fevereiro de 1976, Kostianovski foi exilado por ter
afrontado o Ministro do Interior em assuntos diretamente ligados à liberdade de imprensa;
depois disso, assumiu a direção o filho de Pablo Rojas, o licenciado Demetrio Rojas; e em
dezembro de 1976 o jornal Ultima Hora volta às ruas mais moderno e sofisticado. Pode ser
considerado o periódico mais aprimorado do Paraguai, com tecnologia aperfeiçoada.
Em 1999, o jornal passou a publicar edições matutinas e vespertinas, e em julho de
2002 voltou a publicar apenas a matutina. Em março de 2003, Antonio J. Vierce,
conhecido empresário paraguaio, entrou como sócio majoritário do periódico que acabou
fazendo parte de uma rede de empreendimentos do ramo de comunicação, juntamente com
o canal de televisão Telefuturo e com as emissoras de rádio Estación e Urbana,
consideradas as maiores e de maior abrangência no país.
Em 2004, após 30 anos de existência, publicou sua primeira edição dominical. Em
2006 se tornou o primeiro jornal paraguaio eletrônico, com muitas novidades, oferecendo
canais de informação de hora em hora e com portais comunicativos, departamentos
comerciais e outros setores disponíveis ao público leitor. Com uma evolução própria
dentro desse mercado, o jornal Ultima Hora trabalha com o intuito de elaborar um “diário
plural, crítico, independente, embasado em credibilidade”.
A opinião pública acredita que a grande expansão desse empreendimento se deu
por influência e manipulação política no país em épocas passadas, hipóteses que não se
comprovam ou não nos foi possível apurar; também não nos foi possível perceber se estes
meios ou seus proprietários estiveram ligados à grupos ou pessoas políticas. Nos seus
primórdios, o periódico tinha certa fragilidade e era obrigado a obedecer ao poder de
mando das classes dirigentes no poder; mas, com o processo de democratização, essas
relações se tornaram mais complexas e “difusas”.
3
Após períodos turbulentos na vida nacional do Paraguai, o jornal Ultima Hora
adquiriu autonomia e, na atualidade, age sem distinção e com independência na sua
publicação diária, seja em aspectos políticos, econômicos, sociais, agrícolas ou quaisquer
outros temas; alcançou uma grande reputação e é um dos maiores jornais do Paraguai ao
lado do periódico ABC Color.
3
As informações referentes aos dois periódicos aqui destacados foram colhidas dos históricos de ambos e
também em trabalho de análise editorial dos mesmos. No que concerne à opinião pública que também
buscamos mostrar, ocorreram diálogos com cidadãos de locais fronteiriços e da capital Asunción, de forma
geral destacamos o que previlegia a pesquisa e o comportamento desses periódicos nesse contexto.
30
O trabalho de pesquisa nos leva a fazer recortes, seleções, escolhas, enfim nos faz
elaborar uma triagem do que oferece maiores possibilidades para o desenvolvimento dos
estudos. A escolha dos periódicos ABC Color e Ultima Hora, não se deu de forma
aleatória, mas sim por se constatar que são jornais que surgiram em um contexto
conturbado da vida política no Paraguai e acompanham os temas que buscamos entender,
desde longa data, seja nas maiores cidades ou mesmo em ambientes fronteiriços no interior
do país vizinho. É valido lembrar que de forma alguma desprezamos ou menosprezamos
outros periódicos, tanto que ao longo da pesquisa se constata a internalização de outros
jornais na pesquisa.
As questões do poder, da política, da ideologia e da propriedade dos meios de
comunicação merecem ser destacados; certamente jogos de interesses que norteiam o
material divulgado. Por outro lado, existem as questões que afloram buscando o interesse
do leitor; nesse ponto, a coerência e a severidade para com a análise do periódico são
fundamentais, muito embora saibamos que a recepção é o ponto mais crítico desta análise.
Vera Regina Veiga França em suas reflexões estabelece que,
muito tem sido dito sobre as relações nem sempre limpas e transparentes mantidas pelo
jornal com os grupos no poder. Reputo da maior importância tais estudos que se propõem a
deslindar e denunciar expedientes de toda sorte já utilizados pelo jornal, contrários e
danosos ao papel que se espera da imprensa. A mim, no entanto, interessava um outro
aspecto. O que mantém um jornal não são (apenas) favores e dinheiro, mas leitores
(inclusive é importante lembrar que um jornal apenas serve ao poder na medida de sua
força e repercussão junto ao seu leitorado) (
VEIGA FRANÇA
, In:
DAYRELL PORTO
,
MOUILLAUD
, 2002 p. 484).
Nesse sentido, ao trabalharmos com fontes jornalísticas, dois aspectos importantes
foram percebidos, os quais a autora muito bem destaca. Em primeiro lugar, a “construção
do problema”, e em segundo a “constituição de uma concepção abrangente e circular do
processo de comunicação”. A imprensa não pode ser vista sob uma única perspectiva.
Maurice Mouillaud, estudioso que trabalha vários anos as formas de análise do jornal
escrito, utiliza-se das afirmações dinâmicas de Labrousse para descrever o jornal como
uma membrana viva, um campo de atividade e que elabora um trabalho de criação cio-
simbólica.
Mouillaud abre ainda mais esse campo ao explicitar que
O jornal e a mídia em seu conjunto não está, entretanto, face a face ao caos do
mundo. Está situado no fim de uma longa cadeia de transformações que lhe entregam (não
apenas por intermédio das agências internacionais, mas de uma multiplicidade de agências,
31
descritas por Mark Fishmann, de instituições públicas e privadas), um real domesticado.
O jornal é apenas um operador entre um conjunto de operadores sócio-simbólicos, sendo,
aparentemente, apenas o último: porque o sentido que leva aos leitores, estes, por sua vez,
remanejam-no a partir de seu próprio campo mental e recolocam-no em circulação no
ambiente cultural. Se, na origem, o acontecimento não existe como um dado de ‘fato’,
também o tem solução final. A informação não é o transporte de um fato, é um ciclo
ininterrupto de transformações (
MOUILLAUD
, In:
DAYRELL PORTO
,
MOUILLAUD
, 2002 p.
51).
Assim, podemos minimamente estabelecer alguns pontos de reflexão que tiveram
ao longo da pesquisa um aprofundamento maior. A utilização de várias tipologias de fonte
torna o trabalho de pesquisa e escrita da história ainda mais árduo; porém, insistimos que
esse tipo de combinação, cruzamento e confronto de evidências empíricas torna mais
sólidas ao menos assim desejamos as bases do fazer historiográfico. Levando em
consideração a especificidade do objeto a cultura transitória da fronteira esse ideal
nos levou a combinar o mais dialeticamente possível as fontes orais, imagéticas e da
imprensa.
Da mesma forma, o trabalho foi conduzido de maneira mais acentuada e elaborada
mostrando os percalços no Paraguai, compreendemos que esse movimento possui
dinâmicas extensas de trocas, reclamações, interesses e contribuições em ambos os países.
Ou seja, assim como acreditamos que em torno de 450 mil brasileiros no Paraguai,
concordamos que esses números coincidem com a quantidade de paraguaios no Brasil.
Embora a pesquisa voltou-se mais para a preocupação da influência brasileira no lado
paraguaio, esse movimento não é, e não pode ser visto de maneira unilateral, a
dualidade na dinâmica migracional e no Brasil existem centenas de milhares de
paraguaios.
4
No campo de pesquisa e na pesquisa de campo, levando em consideração a
problemática das fontes e da dualidade migracional que existe, observamos que as
mudanças na imagem e na vivência das pessoas, a partir de uma série de aspectos
destacados por nós possivelmente repercutiram nas características culturais, na política, no
imaginário social e identitário, especialmente das pessoas ligadas a essa mudança e
processo migratório fronteiriço. Entender a transitoriedade na relação que se estabeleceu
4
Acentuamos ainda a intensa disputa por terras atualmente envolvendo os brasiguaios que ocorre na
localidade de Marangatu no extremo leste do Departamento de Canindeyu PY. Questões que remontam a
mais de quatro décadas voltam a ser discutidas afoitamente, esse “problema” não foi possível de ser
analizado nesse estudo, mas encontramos a grande maioria dos agentes históricos que identificamos ao longo
da nossa pesquisa nessa disputa recente. Isso mostra também a relevância do trabalho para questões que
ainda devem ser discutidas.
32
entre o rio, o indivíduo e a sociedade são pertinentes, e, para buscar os fragmentos da
memória que dão sentido à história, a análise da imagem, da oralidade, e dos discursos
jornalísticos é essencial.
I EXPANSIONISMO: O MOVIMENTO SULISTA BRASILEIRO E O
DESENVOLVIMENTO INTERNO PARAGUAIO
O desenvolvimento agrícola que ocorreu no sul do Brasil a partir da década de
1960 trouxe significativas transformações econômicas e sociais. A principal característica
desse desenvolvimento é a modernização nas lavouras, com a prática e a utilização de
maquinários para o cultivo. Para Gregory, “até o início da década de 60, a diversificação
e, em alguns casos, a recuperação da agricultura se fez lentamente, sem trazer maiores
alterações na base tecnológica ou na estrutura de mercado, salvo exceções localizadas”
(G
REGORY
, 2002, p. 65). Nas décadas posteriores, a intensificação do processo de
modernização da agricultura altera esse panorama até certo ponto calmo e acaba
acelerando os setores agrícolas no sul do Brasil. A expulsão de pequenos agricultores
especialmente e da mão-de-obra agrícola braçal é um dos resultados mais evidentes e
dramáticos desse processo.
Em grande parte, o êxodo de agricultores brasileiros foi promovido como um
marco da política de expansão das fronteiras agrícolas na região contígua ao Brasil,
empreendida especialmente por Stroessner no Paraguai. Posta em prática como um amplo
programa de colonização pública, essa política respondia a dois critérios ambivalentes e
contraditórios. De um lado, o objetivo consistia na criação de zonas de pequena agricultura
no Paraguai, com a finalidade de acabar com a pressão pela terra existente nas regiões de
antigos povoamentos rurais no Brasil especialmente no sul, onde o empobrecimento da
população agrícola se tornava cada vez mais notório e crítico. Por outro lado, esta política
consistia na expansão e modernização capitalista da estrutura agrária, incentivando a
difusão de unidades produtivas empresariais, com alta tecnologia intensivamente aplicada
na produção voltada para a exportação.
Embora o aspecto de expansão e ocupação territorial brasileiro no Paraguai
permeie o tema, não podemos desconsiderar, nesse mesmo contexto, o plano de
desenvolvimento interno do governo paraguaio, fundamental para que a migração
alcançasse números tão elevados. Segundo o senador e escritor paraguaio Domingo Laino
ainda em fins da década de 1970, o governo ditatorial de Stroessner permitiu em grande
parte que houvesse uma verdadeira ocupação brasileira nas fronteiras entre os dois países.
Grandes latifúndios, terra virgem e fértil, riquezas florestais, cafezais, plantações de erva
e serrarias são alienadas em favor de brasileiros. E como complemento, a moeda, os
34
costumes e muitas vezes até a educação e o idioma das fronteiras nacionais com o Brasil
não são paraguaios. O regime de Stroessner tolera com complacência toda essa
situação e ainda muito mais. As instituições oficiais encarregadas dos créditos e do
regime das terras no Paraguai concedem todo o tipo de ajuda e facilidades às empresas e
colonos do país vizinho (L
AINO
, 1979, p. 35).
O regime de doação do governo de Stroessner das riquezas do Paraguai, conforme
diz Laino, recebe o respaldo tanto do Brasil quanto dos Estados Unidos, potência
interessada que houvesse na fronteira dos dois países o domínio de sociedades e pessoas de
nacionalidade brasileira em detrimento da nacionalidade paraguaia.
Nesse sentido, para Domingo Laino
é evidente que o governo militar do Brasil está concedendo um apoio sem precedentes ao
general Stroessner e este apoio nunca foi tão oportuno como é agora. O regime
paraguaio, mais do que nunca debilitado, obsoleto e corrupto, completou 23 anos de
poder absoluto mediante a ajuda externa que recebe especialmente dos Estados Unidos, e
a utilização difundida dos instrumentos de repressão contra opositores paraguaios
(I
DEM
,
p. 34).
O apoio dos Estados Unidos aos governos ditatoriais do terceiro mundo
caracteriza de maneira bem objetiva a política de Washington por se tratar de uma maneira
tradicional de agir naquele contexto.
No Brasil, uma ampla difusão de tecnologias sendo empregadas na agricultura,
especialmente no sul do país, o que de certa forma torna-se uma faca de dois gumes
quando lembramos que o que marca esse movimento é o dilema dos agricultores
brasileiros como portadores da modernização em um país estrangeiro Paraguai ao
mesmo tempo em que haviam sido vítimas desse mesmo processo que os expulsara de seu
próprio país.
Para o historiador Valdir Gregory, a idéia de ocupação é inicialmente pensada nas
fronteiras nacionais, em zonas próximas ao Paraguai e a Argentina, mas não com o intuito
de invasão.
No que tange à ocupação do território, foi promovida uma ação administrativa agressiva
através do programa “Marcha para o Oeste”. Em regiões de fronteiras nacionais, como
era o caso do Sudoeste e do Oeste Paranaense, onde a população e a economia possuíam
laços estreitos com argentinos e paraguaios, a atuação do poder público buscava
evidenciar e explicar os sentimentos nacionalistas. Até impô-los quando necessário
.
(G
REGORY
, 2002, p. 65).
35
No plano das respectivas políticas de governo, as estratégias de aproximação entre
o Brasil e o Paraguai favoreceram a entrada de brasileiros no território paraguaio; mas não
podemos concluir que a presença de milhares de brasileiros na fronteira foi somente obra
das políticas governamentais dos dois países. O que ocorreu foi também, ou
principalmente, a junção de um processo espontâneo de deslocamento populacional,
devido à concentração da propriedade fundiária nos Estados do sul do Brasil. Esse
movimento migratório de certa forma foi ao encontro dos interesses geopolíticos do
governo brasileiro em ter um maior controle das fronteiras do oeste, bem como dos
interesses do governo paraguaio em desenvolver o país. Com efeito, é difícil separar, como
causa eficiente dos fluxos migratórios, processos socio-econômicos e políticas de Estado; é
mais correto observar que eles se determinam mutuamente.
A segunda questão a se destacar é decorrente da implantação da Usina
Hidrelétrica de Itaipu, no oeste do Estado do Paraná, no lado brasileiro e que faz fronteira
com o Paraguai. Construída para utilizar o potencial energético das águas do Rio Paraná,
Itaipu foi um projeto pensado nos anos 1960 e que toma proporções na década seguinte
para se concretizar no início da década de 1980. Esse fator é historicamente relevante, por
que há a desapropriação da terra de milhares de famílias de agricultores cujas propriedades
margeavam o Rio Paraná, posteriormente represado para formar o Lago Internacional de
Itaipu. A construção de grande porte como foi o caso da Usina Hidrelétrica de Itaipu
que se prolongou por anos a fio contribuiu para que houvesse transformações de grande
monta em diversos cenários, seja econômico, político, cultural, social, nas esferas rurais e
urbanas, tanto no Brasil quanto no Paraguai. As interseções desse mega-projeto também
ocasionaram relevantes transformações na Argentina, mas que não é o interesse maior na
pesquisa.
Para o sociólogo José de Souza Martins, modificações dessa magnitude refletem
conseqüências visíveis tanto geográfica quanto historicamente. Analisando o avanço das
fronteiras internas provocadas pela expansão do capitalismo, escreve que “a ocupação
territorial do interior distante ganhou um sentido totalmente diverso. Para os pobres, é o
movimento de fuga de áreas que os grandes proprietários e as empresas vêm ocupando
progressivamente.” (M
ARTINS
, 2002, p. 664).
Para o trabalhador ou pequeno agricultor, o
sentido diverso a que se refere o sociólogo se pelos interesses ou necessidades de
migrar, num movimento impulsionado por planos governamentais ou grandes ações
empresariais capitalistas.
36
Situar historicamente a região sul no momento em que essa demandava um
contingente razoável de pessoas para as mais diferentes fronteiras é uma operação um tanto
complexa. Suas fronteiras territoriais, políticas, agrícolas direcionam-se para vários lugares
nas últimas décadas do século
XX
.
Gregory constrói uma ótima síntese do processo:
Durante o século
XX,
a diversificação econômica do país tirou do setor cafeeiro o mando
político exclusivo, exigindo governos que articulassem, democraticamente ou
ditatorialmente, novas forças políticas alicerçadas em outros setores da economia. As
classes médias urbanas, os militares, a burguesia foram reivindicando e ocupando
espaços econômicos, culturais e políticos em articulação com oligarquias regionais. Esta
diversificação se manifestou de formas diferentes nas diversas regiões. Na região sul, os
eurobrasileiros foram conquistando espaços em conseqüência da criação e do
desenvolvimento de colônias. Ou seja, houve uma redistribuição espacial do poder e da
economia no Brasil. Alguns destes novos espaços, no caso do Sul, seriam ocupados e
criados pela população migrante. (G
REGORY
, 2002, p. 65).
As reflexões de Gregory deixam transparecer a multiplicidade de fatores
econômicos e políticos envolvidos nas diferentes conjunturas ao longo do século
XX
.
Certamente, a passagem citada não mostra as especificidades do processo, mas pode-se
dizer, de modo geral, que simultaneamente uma pressão social contra as formas mais
tradicionais naquele momento, inclusive a ditadura nacional brasileira. As novas fronteiras
de certa forma representam uma possibilidade de mudança, a busca da modernidade, da
ruptura com a tradição. Os denominados eurobrasileiros vão em busca dessas novas
fronteiras estimulados pela Marcha para o Oeste, e é na continuidade desse processo que
adentram o Paraguai.
Enfatizar a questão das migrações é algo complexo; trata-se de um movimento
dinâmico, comportando vários aspectos a serem percebidos, que influenciaram ou
influenciam fluxos e refluxos de pessoas, e que envolvem fatores políticos, territoriais,
identitários, fronteiriços, etc; em suma, esses fatores estão inseridos em uma ampla gama
sócio-cultural que envolve as populações residentes nesses espaços, e não obedecem a uma
lógica única: cada caso se torna diferenciado pelas características de seus habitantes, de
seus territórios e de seus interesses.
As diferenças culturais que de alguma forma afetam as consciências no tocante à
identidade nacional, cultural e étnica, mostra o comportamento social das pessoas na busca
de adaptações menos traumática e de uma relação harmônica com o “outro”; esses
indivíduos, todavia, participavam de um mesmo espaço-nação e tendem a promover, nas
37
novas condições e circunstâncias, um modus vivendi que se assemelhe com o estilo de vida
construído social e culturalmente no país de origem.
As reflexões de Martins mostram esses movimentos modernizantes com a
constância sócio-cultural nas fronteiras.
São essas ondas revoltas de modernização superficial, nem sempre duradouras, essas
formas irracionais de expansão territorial e econômica, que revelam um fenômeno
singular e essencial para a compreensão histórica e sociológica das persistências
culturais, dos costumes antigos que afloram constantemente nesse cenário que combina
temporalidades com datas e historicidades distintas (M
ARTINS
,
2002, p. 683).
Certamente não podemos generalizar. Irracional na perspetiva de quem? Do
capital? Dos trabalhadores? Dos proprietários? Do sistema? De uma razão superior e
transcendente ao processso histórico? Difícil responder. Mas não é difícl constatar que, ao
menos no sul do Brasil, a experiência dos brasiguaios não aparece para eles próprios sob
formas irracionais; é necessário, para tentar melhor compreeender, atentarmos aos anseios
de uma população específica que via nas novas fronteiras a possibilidade de produzirem e
sobreviverem.
A maioria da população sulina
5
possui especificidades, como o poder de posse e a
proliferação familiar nas áreas rurais, mantendo em seu desenvolvimento elementos
característicos nas formas de produção da vida material e espiritual; percebe-se isso nos
três estados sul-brasileiros: quando a busca da formação do modus vivendi não se de
maneira satisfatória, indivíduos, famílias e grupos sociais inteiros demandam novos
espaços de vida e trabalho. Fundamental na origem desses deslocamentos é a questão do
acesso a terra: “Os colonos sulinos tornaram-se policultores em base à unidade da
produção familiar e, quando o acesso à propriedade rural era dificultada na terra natal, a
migração para novas fronteiras agrícolas era a alternativa à proletarização e ao êxodo
rural das regiões” (I
DEM
, 2002, p. 15).
Obviamente, essa realidade, bastante típica do capitalismo agrário ou do processo
de capitalização da agricultura, não se apenas internamente à região, mas em vários
outros tempos e espaços em que o mesmo processo se efetiva. Na segunda metade do
século
XX
, ocorre inclusive uma demanda populacional “camponesa” para outros países,
conforme “as fronteiras agrícolas que se lhes apresentavam nos diferentes espaços e nos
5
Não negamos a especificidade da migração no Paraguai de outras regiões; mas evidenciamos, ainda que
brevemente, apenas as características marcantes das populações migrantes oriundas do sul do Brasil, em
conformidade aos objetivos da pesquisa.
38
diferentes tempos e de acordo com as exigências das estruturações e restruturações das
realidades locais, nacional e internacional” (I
DEM
, p. 16).
Buscamos situar brevemente a movimentação populacional em dois diferentes
momentos no sul do Brasil, deslocamentos estes que contribuíram para que a entrada de
agricultores brasileiros se desse de maneira intensa no Paraguai a partir da segunda metade
do século
XX
, tendo por um lado a modernização agrícola e por outro a implantação de
Itaipu, cada qual com suas especificidades e obedecendo a diferentes conjunturas espaço-
temporais.
Pontuamos minimamente os anseios do governo paraguaio em desenvolver
economicamente o país; essa política era implantada ditatorialmente e recebia apoio dos
governos do Brasil e dos Estados Unidos para fortalecer um sistema interno de dominação
política e controle social interno baseado muitas vezes na violência. A entrada de milhares
de brasileiros era vista por parte do governo paraguaio como um meio de estimular o
progresso interno; por outro lado, a oposição à ditadura de Stroessner via que “dentro do
contexto das nações afetadas surgem as fronteiras do Paraguai como as de penetração
mais sensível, sistemática e de mais fácil acesso” de populações estrangeiras (L
AINO
, 1979
p. 11).
A seguir passamos a discutir as influências da transitoriedade fronteiriça entre os
dois países, em que a experiência das pessoas será levada em consideração, a imprensa será
visualizada como um meio de propagação de idéias e as imagens vez por outra aparecerão
no intuito de mostrar as características visuais do espaço em análise.
1.1 – A experiência de quem foi e voltou
Situar historicamente um começo para o movimento de migração brasileira ao
Paraguai é algo complexo, mas mostrar o seu apogeu nas décadas de 1970 e 1980 é a
prioridade desta pesquisa. O movimento sulista de agricultores se deslocando para o
Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e outros Estados brasileiros, é direcionado também ao
país vizinho. Dizer que apenas pressão social contra governos ditatoriais no Sul do
Brasil não abrange a gama de especificidades do setor agrícola, pois ocorre uma
modernização conservadora, além do início de alguns latifúndios agrários.
39
Intimamente ligado às características da Marcha para o Oeste e tendo como
principal causa a intensa modernização agrícola no sul, o movimento vai ao encontro da
Marcha al Este no Paraguai, pensado por Stroessner para desenvolver a agricultura e abrir
as fronteiras agrícolas do país à economia de mercado. Em grande parte, a imigração foi
promovida como um marco da política de expansão das fronteiras agrícolas, na região
contígua ao Brasil, empreendida especialmente pelo governo paraguaio e posta em prática
como um amplo programa de colonização pública.
Portanto, não apenas fatores de repulsão por parte dos agricultores sulistas,
como citamos acima; também fatores de atração derivados da política econômica do
país vizinho, como também salientamos. A proximidade das fronteiras e a facilidade de
trânsito é algo indiscutível: são aproximadamente 1440 km de fronteiras entre Brasil e
Paraguai, o que aumenta a viabilidade de migrar em direção a esse país. Os baixos preços
das terras e a sua grande fertilidade vêm ao encontro das necessidades de muitos pequenos
agricultores do sul do Brasil, e cujo trabalho na terra é o único e tradicional meio de vida.
Condições geográficas semelhantes estimulam também o deslocamento populacional, pois
o clima do leste paraguaio é similar ao da região sul brasileira; enfim, outros aspectos
poderiam ser mostrados aqui, mas de modo geral podemos dizer que as terras vizinhas
oferecem tudo (ou quase tudo) o que lhes seria necessário para cultivar a agricultura.
Uma rápida abordagem dos agentes envolvidos nesse movimento entre Brasil e
Paraguai permite ver que as soluções da política desenvolvimentista implementada pelos
dois governos autoritários não eram tão “simples” quanto parecia aos tecnocratas.
Os objetivos desenvolvimentistas eram claros para ambos os governos. Em
primeiro lugar, o governo Stroessner objetivava alcançar maior desenvolvimento interno,
especialmente na produção agrícola; para tanto, a tecnologia e a mão-de-obra brasileira já
eram consagradas neste aspecto e foram de suma importância. Em segundo lugar, o
governo brasileiro esperava resolver em curto espaço de tempo o problema de
desvalorização da mão-de-obra “exportando” ao país vizinho trabalhadores que não
competiam com a modernização agrícola incentivada por subsídios estatais.
A maioria das pessoas que fizeram parte dessa migração ao Paraguai e
posteriormente retornaram ao Brasil, ou mesmo as pessoas que permaneceram em trânsito
constante entre um país e outro percebem isso como algo dissociável ou até desconhecem
as “artimanhas” dos planos políticos. Para eles, mais uma vez se viram como
“desbravadores” que, ao fim de uma jornada de trabalho em um determinado lugar,
40
tiveram que regressar, atraídos por uma promessa de Reforma Agrária destinada a assentar
trabalhadores rurais sem terra.
As famílias de “cultura” sulista especialmente as do Rio Grande do Sul —,
com traços fortes da imigração européia ao Brasil meridional, têm como uma de suas
principais características a busca de uma vida melhor e também o desejo de garantir
alguma posse a seus filhos. Esses traços culturais, funcionando como motivações
econômicas de deslocamento geográfico, leva essas famílias a buscarem os mais distintos
lugares para “melhorar de vida”; migrações internas deste tipo ocorrem desde o início do
século
XX
, tendo uma intensificação especificamente ao Paraguai a partir da segunda
metade do século
XX
. Nesse período um elevado número de pessoas do sul migrando
para garantir alguma posse e cultivar a terra, especialmente no cultivo de grãos.
A migração de sulistas brasileiros ao Paraguai era motivada por intensa
propaganda, que prometia terras férteis e baratas e apoio bilateral dos dois governos.
Do outro lado da fronteira, a população paraguaia assistia a uma legítima invasão
estrangeira ao seu país, especialmente de brasileiros. Estes cumpriram as várias etapas do
ciclo agrícola, dando condições ao solo paraguaio de um “bom” plantio. Ou seja, uma
espécie de fluxo de mão única desse tipo de mão-de-obra entre os dois países, com o Brasil
exportando trabalhadores e o Paraguai absorvendo-os, bem como aos investidores; o
resultado a médio prazo foi uma ampla capacidade de produção, especialmente de grãos,
como nunca ou raramente se viu na história do Paraguai.
No início, os objetivos do movimento foram se concretizando de maneira
“coerente”, conforme haviam pensado os respectivos governos. Na década de 1960,
quando tem início de maneira mais forte a migração brasileira ao Paraguai, o país vizinho
tinha mais de 60% de sua população vivendo nas cidades, especialmente na capital
Assunção; de maneira semelhante, a maior parte do percentual restante estava localizada
nas principais cidades e departamentos, como Ciudad del Este, Salto del Guairá e em
Caazapá. Percebe-se que o espaço rural é pouco habitado, e a cultura de grãos é
praticamente de subsistência, vivendo de acordo com a sua cultura originária, em grande
parte descendente de indígenas. Da década de 1980 em diante, um número considerável
de agricultores brasileiros retornando ao país de origem, do que se pode depreender que
aquela acessibilidade à terra verificadas no começo dos anos 1960 não vigorava mais no
Paraguai.
41
Num primeiro momento, a migração ao Paraguai não é a do grande fazendeiro, do
latifundiário, embora isso também ocorresse; mas é especialmente o deslocamento de
agricultores que possuíam pequenas propriedades no Brasil, e que se viam acuados pela
modernização, sentindo a necessidade de se reproduzirem enquanto agricultores e ao
mesmo tempo não tinham a perspectiva de dar um futuro substancial a seus descendentes.
A mão-de-obra braçal foi aos poucos sendo substituída no sul do Brasil pelas máquinas e
muitas das características que levaram os agricultores ao Paraguai daí derivam e se
explicam, embora muitos outros sejam os fatores que permeiam o fenômeno. Não
queremos insistir numa determinação tecnológica da história, apenas ressaltar que, nesse
contexto e conjuntura específicos, a mecanização da agricultura teve um papel fundamental
como fator migratório.
De modo algum a síntese que brevemente esboçamos expressa a totalidade dos
acontecimentos e processos desse conturbado movimento de pessoas do Paraguai com
destino ao Brasil que se iniciou mais especificamente na década de 1980; mas serve para
adentrarmos no assunto e entendermos como o retorno ocorreu e ainda continua a ocorrer,
até mesmo originando uma nova denominação e um novo “sujeito” nesse meio, ou seja, o
brasiguaio.
1.2 – Brasiguaio: ator indefinido
Adentramos o diálogo sobre o movimento fronteiriço dos dois países,
desenvolvendo uma discussão em torno do indivíduo e da palavra brasiguaio. A
apreciação e significado deste termo parecem simples, uma vez que tem a intenção de
designar as pessoas brasileiras que de alguma forma mantêm algum tipo de atividade no
Paraguai em torno da agricultura. O senso comum designa-as pessoas brasileiras que
possuem terras no país vizinho e lá trabalham. Para alguns pesquisadores o significado não
condiz com o aparecimento do indivíduo de maneira que contemple todas as suas
especificidades, mas ao mesmo tempo esses pesquisadores não discordam de seu sentido.
De modo geral, entre os pesquisadores brasileiros consenso em relação ao seu emprego
e significado, o mesmo ocorrendo entre alguns pesquisadores do Paraguai, onde a
denominação também é de uso corrente; porém e isso é significativo os sentidos e
usos de brasiguaio não são os mesmos de um país a outro.
42
Ao analisarmos fontes como entrevistas e jornais, e também em leituras de
autores de ambos os países, percebemos que a denominação, para a maioria dos
pesquisadores brasileiros, gira em torno de indivíduos brasileiros que foram ao Paraguai
trabalhar e, com o passar do tempo, não conseguiram se estabelecer enquanto agricultores
retornaram ao Brasil, aumentando com isso a massa de pessoas nas margens das estradas,
especialmente junto ao movimento de trabalhadores sem-terra e nas periferias das cidades
no oeste do Estado do Para e de Mato Grosso do Sul. Ou seja, ao retornarem são
denominados de brasiguaios.
Os pesquisadores do tema no Paraguai os definem como os brasileiros que
trabalham no Paraguai, e não necessariamente retornam ao Brasil; que continuam lá a viver
e voltam para passeio e/ou talvez encaminhar os filhos em escolas ou coisas desse gênero.
Brasiguaios, para os estudiosos paraguaios, são os brasileiros que vivem entre eles, não se
identificam com eles, não adquirem seus costumes, não comem suas comidas, em suma,
não internalizam a cultura e permanecem no país apenas na condição de exploradores de
sua economia.
Parece que essas pessoas têm tal denominação a partir do momento em que se
tornam um “problema” em um ou outro país. São chamados de brasiguaios no Brasil
quando retornam e são responsabilidades deste governo, e são chamados de brasiguaios no
Paraguai quando estão , sob a responsabilidade de suas autoridades. Num e noutro caso,
atribui-se aos brasiguaios uma espécie de “identidade estigmatizada” contraposta a uma
identidade nacional “pura”: não são nem brasileiros, nem paraguaios, são “mistos
perdidos entre duas culturas e duas nacionalidades.
A discussão teórica sobre o agente e também sobre o termo contempla várias
visões nos dois países; outros estudos que refletem sobre o tema auxiliam para maiores
conclusões. O que percebemos claramente é que muitos desses trabalhos foram escritos no
calor dos acontecimentos, quando houve um retorno mais acentuado de brasileiros vindos
do Paraguai em meados da década de 1980.
As análises fomentam vários trabalhos de pesquisa. Um ponto que julgamos
importante ressaltar é que, no princípio dos acontecimentos, a denominação do termo é
praticamente indiscutível e sua conceituação é do brasileiro que retornou ao país; mas, com
o passar do tempo, outros trabalhos vão se desenvolvendo na cada de 1990 e até no
século
XXI
. Alguns surgem trazendo novos olhares sobre os agricultores; constatamos que
há um alargamento teórico em relação à terminologia “brasiguaio”. Em hipótese alguma os
43
primeiros trabalhos são carentes de informações; mas, com o desenrolar do processo
histórico, outros elementos vão sendo agrupados nesse complexo movimento e a
ampliação do termo. Para nós o termo brasiguaio, por conseguinte, é algo indefinido ou
está ainda em formação.
Um exemplo pode ser percebido na pesquisa de mestrado da historiadora e
antropóloga Márcia Anita Sprandel, denominado “Brasiguaios: conflito e identidade em
fronteiras internacionais”, de 1992; o tema é trabalhado com evidências empíricas do
momento em que ocorria o retorno acentuado de brasileiros do Paraguai. Em um breve
balanço, Sprandel encontra mais de uma dezena de denominações diferentes na imprensa
relativa aos anos de 1985 e 1986 para designar os brasiguaios. Segundo Sprandel
6
, a
imprensa denominava-os como:
Quadro 01 – Denominações do termo brasiguaio pela imprensa
Definição de Brasiguaios Fonte
“Colonos brasileiros que se mantêm ilegalmente em território paraguaio,
passando necessidades”
CBr 10/09/85
“Lavradores brasileiros que trabalham no Paraguai e tiveram que voltar
movidos pela pressão do trabalho quase escravo a que lá estavam
submetidos”
O Globo
15/09/85
“Agricultores brasileiros expulsos do Paraguai” FSP 20/09/85
“Colonos que trabalhavam no Paraguai e retornaram ao Estado” UH 20/09/85
“Os últimos exilados (...) agricultores brasileiros banidos para o Paraguai
pela falta de emprego resultante de uma política de mecanização agrícola e
concentração fundiária iniciada nos anos 70 no oeste dos Estados do Paraná
e Santa Catarina (...) lavradores sem terra”
FSP 22/09/85
“Conseguem driblar a vigilância, colocando em polvorosa a cúpula da
sociedade novo-mundense”
O Repórter
03/10/85
“Como são conhecidos na região os brasileiros que vivem em território do
país vizinho próximo à fronteira com o Brasil”
UH 10/10/85
“Nome dado aos brasileiros que, depois de viverem algum tempo no
Paraguai como agricultores, resolvem retornar ao Brasil, na condição de sem
terra (...) com os membros da Pastoral da Terra, as famílias dos sem terra,
logo receberiam a denominação de brasiguaios”
Diário da Serra
08/12/85
“Colonos brasileiros vindos do Paraguai” CBr 08/12/85
“O lado feio do Programa Globo Repórter” Diário da Serra
12/12/85
“Colonos brasileiros que vivem explorando agricultura no Paraguai” O Norte 27/02/86
“Brasileiros que habitam território paraguaio” UH 05/03/86
“Colonos brasileiros que há mais de 15 anos vivem da agricultura, em
províncias paraguaias, que estão atravessando a fronteira”
JB 21/03/86
“Agricultores brasileiros que são no Paraguai meeiros, arrendatários, e bóias-
frias”
GM 02/04/86
“São trabalhadores rurais que trabalhavam no Paraguai e resolveram retornar JB 09/05/86
6
SPRANDEL, 1992 p. 57/58.
44
ao Brasil”
“Trabalhadores rurais brasileiros que vivem no Paraguai” FSP 10/06/86
“São agricultores brasileiros no Paraguai, que voltaram ou estão pretendendo
voltar para o Brasil, estimulados pelo anúncio da Reforma Agrária”
CBr 27/06/86
“Por definição, trabalhadores rurais brasileiros que migraram para o
Paraguai nos últimos 20 anos”
Jornal O Estado
09/07/86
“Sem-terra que depois de deixar o Paraguai vieram para a região” ESP 15/07/86
“Camponeses brasileiros que ocupam área no Paraguai e que já
manifestaram seu desejo de regressar”
UH 23/01/86
Atualmente ainda permanecem dúvidas e confusões teóricas sobre a denominação
do termo. É importante sua correta interpretação por que é daí que surgem os sujeitos que
nessa terminologia de alguma maneira se encaixam ou dela fazem parte. Nossa correta
intepretação é fundamental para que haja no contexto do estudo a externalização do objeto
de nossa pesquisa de forma que se entenda quem realmente é e onde realmente estão.
O termo pode ser compreendido como uma identidade de fronteira e híbrida,
formada pela junção das identidades nacionais, isto é, seriam ao mesmo tempo brasileiros e
paraguaios. Mas o termo adquire sentidos variados ao longo dos anos, funcionando como
uma identidade ambígua conforme os interesses que necessitam ser explicitados ou não. A
identidade “brasiguaia”, assim como a terminologia que a designa, é imprecisa e mutável.
Quanto a seus sentidos, a “categoria” pode ser atribuída ao imigrante pobre que foi para o
Paraguai, e não conseguiu ascender socialmente e que muitas vezes regressou ao Brasil;
aos grandes fazendeiros brasileiros no Paraguai; aos filhos dos imigrantes que nasceram
naquele país e têm a nacionalidade paraguaia; aos imigrantes e aos descendentes que
misturam, mas não plenamente, a cultura brasileira com traços da cultura paraguaia; e a
todos os imigrantes brasileiros que vivem na nação vizinha.
As constatações sobre o uso do termo são bem gerais e praticamente englobam
todos os migrantes brasileiros no país vizinho, independentemente se voltaram ou não.
Quase todas as definições que Sprandel aborda em sua pesquisa são contempladas nesses
cinco sentidos; essa constatação também é feita pelo sociólogo José Lindomar Coelho
Albuquerque.
O geógrafo Luiz Carlos Batista emprega o termo para designar os agricultores
brasileiros ainda no Paraguai e não somente os que retornaram; reflete-se nos brasiguaios
um forte sentimento de desejo de voltar ao Brasil” (B
ATISTA
, 1990, p. 64). Constata-se que
os trabalhadores são considerados brasiguaios quando ainda viviam ou vivem no país
vizinho.
45
Nivalcir Pereira de Almeida, em sua monografia, afirma que: “o Brasiguaio o]
brasileiro que viveu ou vive no Paraguai”, caracterizando-o “pela busca incessante da
terra para produção” (A
LMEIDA
, 1994, p. 06); e mais ainda do que para a produção, para a
sua própria sobrevivência enquanto agricultor.
No livro Brasiguaios: destino incerto, o jornalista José Luiz Alves trata os
brasiguaios como “os brasileiros que residem em território Guarani” (A
LVES
, 1990, p.
08). Especialmente os que estão ao longo da fronteira que divide os dois países e que
vivem um clima tenso e se vêem ameaçados de expulsão.
A jornalista Cácia Cortêz vai um pouco mais longe ao postular o termo como
algo palpável em sua obra Brasiguaios. A jornalista é reconhecida como uma pessoa que
acompanhou em grande parte o movimento de retorno ao Brasil dos agricultores que
vieram do Paraguai e se estabeleceram no município sul mato-grossense de Mundo Novo
em 1985. Para ela, “brasiguaios são o resultado da expropriação e expulsão violenta de
centenas de milhares de agricultores do sul do país, iniciada na década de cinqüenta, no
sudoeste e oeste do Paraná” (C
ORTÊZ
, 1992, p. 13).
Para o então diretor do Terrasul Departamento de Terras do Estado de Mato
Grosso do Sul —, Aparício Rodrigues de Almeida, brasiguaio é uma “auto-denominação
em busca de impacto na imprensa e na opinião pública” (I
DEM
, p. 131). Manipulando essa
identidade mista, buscam de forma geral desestabilizar o meio rural em seus diferentes
segmentos, especialmente a agropecuária. Observemos, de passagem, que os agricultores
não tinham a intenção de provocar o transtorno que o diretor afirmara, e não seria a auto-
denominação que causaria empecilhos ao latifúndio, ou até mesmo ao governo.
Segundo o jornalista Carlos Wagner, o termo nasceu em uma reunião na cidade
de Mundo Novo, em 1985, quando se discutia a articulação do retorno dos agricultores
para o Brasil, um deles falou “então quer dizer que nós não temos os direitos dos
paraguaios porque não somos paraguaios; não temos os direitos dos brasileiros porque
abandonamos o país. Mas, me digam uma coisa: afinal de contas, o que nós somos?”
(W
AGNER
, 1990, p. 20). Ao que o Deputado Federal Sérgio Cruz respondeu, “vocês são
uns brasiguaios, uma mistura de brasileiros com paraguaios, homens sem pátria”
(I
BIDEM
). O termo a partir de então tornou-se de uso corrente e passou a denominar de
modo geral todos os agricultores que vivem ou que viveram naquele país.
Na obra da professora paraguaia Fernanda Feliú, “Canindeyú zona alta: los
brasiguayos”, a autora trata como brasiguaios as pessoas que, segundo ela, “pasaron las
46
décadas, crecieron los hijos nacidos en esta tierra apareciendo un nuevo grupo humano:
los brasiguayos” (F
ELIÚ
, s/d, p. 11). A autora complementa dizendo que “actualmente,
hay una nueva generación de niños y jóvenes, nacidos en la región e hijos de padres de
distintas nacionalidades. Son ellos los nuevos ‘mestizos’ que conforman la nueva sociedad
pluricultural en esta parte del território paraguayo” (I
DEM
, p. 41). A visão da autora para
uma possível definição do termo é diferente dos demais autores brasileiros; outros
elementos além de serem agricultores: a questão do tempo de permanência no país,
além das novas gerações que vão nascendo e se firmando no país. Observemos que esses
valores são importantes de serem percebidos e levados em conta, se quisermos buscar uma
definição antopologicamente mais densa do termo e da identidade que ele designa.
Para o sociólogo paraguaio Ramón Fogel, que pesquisa sobre o movimento na
fronteira dos dois países, há que se perceber que
hay diferencias, en destinto momiento de tiempo en destintas regiones y tambien entre
los propios brasileños y brasiguayos”, e que “este a que le lhamamos brasiguayos lo es
un problema (...) porqué teoricamente san os que mantiene la identidade brasileña, lo
gran problema del Paraguay” (E
NTREVISTA
.
R
AMÓN
F
OGEL
,
2006).
A visão do sociólogo é de que o brasiguaio é assim denominado como o
brasileiro que vive no Paraguai e que mantém a identidade brasileira; independentemente
se houve ou não o retorno ao Brasil, esta referência ao termo é relacionada à identidade.
Tanto no decorrer da pesquisa quanto da escrita lançamos vistas sobre algumas
possíveis auto-identificações dos próprios atores sociais aqui trabalhados – brasiguaios. As
análises referente a essa tentativa de enquadramento identitário em que ‘eles’ moldam
comportamentos, atitudes, e até mesmo estabelecem sentidos de valores distintos,
aparecerão na seqüência do trabalho escrito, momento em que nos detivemos sobre o
“outro” com uma investigação mais específica.
Ao trazermos o diálogo propondo minimamente entender a definição do que é o
brasiguaio, não pretendemos de forma alguma anular outras perspectivas de entendimento
deste. Privilegiamos autores que possuem trabalhos sólidos e reconhecidos sobre o tema e
em áreas distintas, unimos um cabedal interdisciplinar. Nosso objetivo com isso é mostrar
as rupturas que vem ocorrendo em relação a esses atores sociais não apenas na
historiografia, mas também em outras áreas. Um ponto que fica perceptível é quanto à
produção destes trabalhos, historicamente, a grande maioria das análises elaboradas
corresponde a momentos de grande efervescência desse processo. Ou seja, muitos pontos
47
de vista lançados sobre os brasiguaios ocorreram quando houve grandes manifestações
e/ou em ápices de conflitos entre estes e outros segmentos dentro do Paraguai ou mesmo
no Brasil.
Nossas fontes trazem nuances importantíssimas que auxiliam na busca de uma
melhor conceituação do termo e do agente histórico em si, pois a aproximação
terminológica nos leva a proximidade dos atores que permeiam o ambiente fronteiriço.
Esta questão é enfatizada por nós, por que conseguimos perceber as discrepâncias em seu
meio social, no momento em que suscitamos temas como a “internalização” cultural, o
nacionalismo, o sucesso econômico ou o seu fracasso, entre outros aspectos. Pensamos que
a correta interpretação dessas questões nos leva a um estreito conhecimento do brasiguaio
e com a possibilidade de compreensão de suas bases identitárias, por mais complexas que
sejam, e as fontes nos dão ‘suportes’ para que ocorra esta auto-identificação.
Enfim, a presente discussão tem o intuito de contribuir para a problematização do
termo e do agente denominado de brasiguaio. Nossa posição frente a essas várias
concepções por meio da análise bibliográfica e das fontes deixa transparecer que houve um
significativo alargamento das definições feitas num primeiro momento. De maneira geral,
praticamente todo brasileiro da área rural que tem algum tipo de atividade no país vizinho
não estaria fora da abrangência semântica do termo “brasiguaio”, e em conseqüência disso
o seu personagem. Este ponto de vista defendido por nós leva em consideração as
abordagens feitas sobre o tema nos dois países indistintamente, o que fica mais evidente
para nós é que a evolução do significado acompanhou o desdobramento do processo
histórico.
1.2.1 – Do conturbado retorno até a chegada
Na atualidade há um intenso movimento na fronteira entre os dois países; é
impossível designar esse movimento como um todo, a atitude das pessoas que vão ao
Paraguai ou de estão voltando, indiferentemente se as travessias dos limites nacionais
sejam por terra ou mesmo pelo Lago Internacional de Itaipu; ou ainda quais os motivos e
interesses que impulsionam essas ações de travessia. Destacamos de maneira mais
acentuada os primeiros movimentos organizados, de retorno ao Brasil, dos agricultores que
48
vieram do Paraguai, uma vez que em grande parte é a partir daí que se tem a definição
mais acentuada termo.
A década de 1980 foi para muitos brasileiros um período de manifestações
políticas que resultaram em grandes transformações, uma vez que se assistiu ao término da
ditadura militar iniciada com o golpe civil-militar de 1964. Novos horizontes permitiam a
manifestação de outros setores da população; mudanças na cultura e na educação também
eram significativas; em suma, houve a abertura do sistema que vinha acuando parte da
população através de meios coercitivos, como repressão, prisão, ameaças, torturas, entre
outros. A década de 1980 pôs em cheque o poder ditatorial com o amplo movimento das
Diretas Já, visto por muitos como um dos golpes finais no regime militar.
As conseqüências nefastas de duas décadas de governo autoritário são sentidas
em muitos setores, como, por exemplo, o que aconteceu com inúmeros produtores rurais de
pequeno porte especialmente no sul do país, com relação ao Plano Nacional de Reforma
Agrária. também a conclusão das obras e o início do funcionamento da Usina
Hidrelétrica de Itaipu, pensada e elaborada pelo poder ditatorial, apontada como
impulsionadora do movimento na fronteira. No Paraguai, nesse contexto, ocorre uma forte
repressão aos campesinos que reinvindicavam acesso às terras tomadas pelo latifúndio.
Na segunda metade da década de 1980, o governo brasileiro anuncia o projeto de
Reforma Agrária incrementado pelo INCRA. naquele momento a busca, por parte dos
agricultores e trabalhadores rurais no Brasil, em saber como funciona a burocracia para
assentar as famílias sem-terra do país.
Os trabalhadores brasileiros no Paraguai também se organizam para voltar, pois a
vida no Paraguai ficava difícil por motivos de irregularidades nas propriedades e ainda
com a documentação das pessoas, que sofriam com abusos de poder e corrupção das
autoridades paraguaias. Entre outros, esses são alguns dos motivos que os impulsionam a
atravessar em sentido contrário a fronteira e retornar ao Brasil: alimentava-os a ilusão de,
em curto espaço de tempo, serem assentados como proprietários de terras no país de
origem.
A organização das pessoas para que fosse possível o retorno ao Brasil não pode
ser vista separadamente das ações do MST, de alguns Sindicatos Rurais, de Comissões da
Igreja Católica como, por exemplo, a CPT, bem como do apoio da Igreja Luterana. Além, é
claro, do próprio desejo dos agricultores de voltarem à terra natal.
49
A organização evidencia-se na fala das lideranças. Por exemplo, o relato de José
Farias, líder de uma comunidade no Paraguai. Percebemos na obra de Cácia Cortêz em que
ela afirma :
as reuniões eram marcadas em Mundo Novo ou Paranhos, do lado Brasileiro, com os
líderes, para pensar no jeito de voltar: “lá a gente se encontrava com o pessoal dos Sem-
Terra, da CPT e do sindicato. Cada líder tinha que reunir na sua comunidade, ir de casa
em casa ou nos roçados pra repassar o acontecido e fazer a lista de quem tava com planos
de deixar o Paraguai” (C
ORTÊZ
, 1992, p. 46).
O que impressiona é a capacidade de organização dentro do país vizinho, pois os
agricultores estavam em localidades diferentes, morando “espalhados” por várias cidades e
departamentos no Paraguai, e percebem a necessidade de organização para voltar ao Brasil
e que deveria ser feita em grupo. Isso exigia um aparelhamento cuidadoso e preciso, não
poderia ser como o movimento de entrada naquele país, que foi feita isoladamente. Para
Carlos Wagner,
os camponeses que haviam emigrado para o Paraguai estavam usando dois caminhos: o
primeiro e mais antigo era pela Foz do Iguaçu, que faz fronteira com o Alto Paraná, uma
das primeiras regiões colonizadas pelos brasileiros. Por esta trilha estavam voltando
desorganizadamente. O outro caminho era por Mundo Novo, Oeste do Mato Grosso do
Sul, onde vinham organizadamente. Criaram um dos maiores focos de tensão, no que diz
respeito à questão fundiária, daquele Estado (W
AGNER
, 1990, p. 24).
Apesar da Ponte da Amizade que liga a cidade de Foz do Iguaçu à Ciudad del
Este ter sido o principal caminho de retorno ao Brasil pelos agricultores que vinham do
Paraguai, estes não conseguiram com êxito se organizar no Estado do Paraná; no Estado
de Mato Grosso do Sul essa organização foi maior. A dificuldade se explica pelo fato das
propriedades paranaenses serem na maioria de pequeno porte nessa região do Estado, não
suportando assim uma Reforma Agrária que suprisse as necessidades de terra das pessoas
que estavam retornando, muito menos dos trabalhadores do movimento sem-terra, o que
desmantelava os grupos vindos do Paraguai. Em contrapartida, Mato Grosso do Sul era
visto nesse contexto como um dos Estados com maior concentração fundiária do país, e,
portanto, alvo em potencial de uma política séria de reforma agrária.
Um dos marcos iniciais do retorno dos então brasiguaios ao Brasil ocorreu,
segundo Carlos Wagner, no início do segundo semestre de 1985, quando,
950 famílias de brasiguaios invadem a cidadezinha de Mundo Novo, no Oeste de Mato
Grosso do Sul, e, depois de algum tempo acampados, conseguem forçar as autoridades
50
nacionais a reassentá-los. É o primeiro movimento de massa reivindicatório feito pelos
brasiguaios” (I
BIDEM
).
A organização para o retorno ao país de origem foi algo que conseguiu num
primeiro momento mostrar a capacidade associativa e mobilizatória dos agricultores. Após
o episódio, outros fatos importantes vieram também a aumentar o contingente de
trabalhadores rurais e reforçar o seu movimento.
O cenário nacional naquele contexto era agitado. Houve o plano de estabilização
da economia nacional com o chamado Plano Cruzado, o Plano Nacional de Reforma
Agrária e por último uma ampla campanha publicitária que teve na época a intenção de
reativar o sentimento cívico, o que de algum modo contribuiu para atrair as pessoas de
volta ao Brasil. É necessário lembrar, por fim, que a instabilidade política e econômica no
Paraguai era grande em fins de 1986, o que estimulava o sentimento de desejo de retorno.
Conforme Sprandel, o ano de 1985 é particularmente importante por que:
não obstante existirem registros de retornos anteriores de grupos organizados ao Brasil,
nenhum foi tão numeroso, e utilizou-se de uma identidade como bandeira de luta, como o
levado a efeito pelos chamados brasiguaios (...). Ao se definirem como brasiguaios,
trataram de diferenciar-se dos demais grupos camponeses organizados no Brasil, que
também reivindicavam terras via reforma agrária; e dos demais brasileiros residentes no
Paraguai, com trajetórias sociais distintas, e que pretendiam permanecer naquele país
(S
PRANDEL
, 1993, p. 83).
A ênfase na data de 1985 por estes e outros autores reúne uma série de
acontecimentos que funcionaram como um marco inicial concreto para os agricultores;
esses acontecimentos são realmente significativos, tanto que até na atualidade permanecem
na memória da população, sejam os sujeitos participantes deles, seja a população de modo
geral. O próprio termo brasiguaio foi construído e empregado pragmaticamente naquele
momento de luta, mesmo que sofresse um significativo alargamento em fases posteriores.
A partir do momento em que um grande número de pessoas começou a chegar, a
manutenção dos que retornavam ao país foi dificílima; o “acampamento” nasceu da noite
para o dia e o crescimento da população era inevitável, chegando diariamente em média 15
famílias, aumentando o núcleo improvisado que a jornalista Cássia Cortês chamou de a
cidade de lona”. Instalaram-se em um terreno baldio ao lado da prefeitura do município de
Mundo Novo. Aos poucos, as adversidades foram sendo vencidas; criaram-se comissões
51
para que certas estruturas fossem organizadas, criando-se assim mínimas condições de vida
onde estavam instalados.
A situação era administrada pelas próprias famílias que retornaram; era um
ambiente totalmente insalubre, sem condições mínimas de higiene, limpeza, saúde e
segurança; sem água potável, sem esgoto ou qualquer outro tipo de fossa coberta. Foi
criada a Comissão de Higiene, responsável pela orientação para manter a limpeza nos
barracos e também nas fossas coletivas e queimar o lixo acumulado.
Outro grupo formou a Comissão de Imprensa, responsável por atender e
acompanhar os jornalistas dentro do acampamento, uma vez que era grande a
“curiosidade” em torno do fenômeno que movimentou o município e a região do Mato
Grosso do Sul.
A Comissão de Saúde ficou sob a responsabilidade de uma enfermeira prática de
Santa Catarina, Dirce Gorch. No local não havia suprimentos médicos para atender de
maneira salutar os pacientes; era comum acontecerem surtos de gripes especialmente em
épocas chuvosas, e outras doenças como pontada de pneumonia, desidratação,
hemorragias, entre outros males.
Havia a Comissão de Segurança para manter o local com um mínimo de ordem;
as incumbências dessa comissão eram amplas, desde vigiar para evitar um possível ataque
surpresa da própria polícia, até vigiar internamente o assentamento para evitar desordens,
desentendimentos familiares e até a promiscuidade que era algo comum em um meio tão
adverso.
Num primeiro momento esses foram os principais problemas, sem contar a falta
de alimentos, pois a maioria dos agricultores sairam do Paraguai praticamente fugidos,
largando tudo e trazendo a família e algumas coisas básicas; outros deixaram suas coisas
em troca de dívidas ou as perderam na viagem. Em suma, as conseqüências atingiram
ordens diversas e a manutenção dessas pessoas no Brasil foi negociada de maneira que
tivessem as mínimas condições, ou seja, a pressão social sobre o grupo se tanto no
Paraguai quanto no Brasil.
O que denotava uma preocupação maior das lideranças é que o Plano Nacional de
Reforma Agrária não parecia tão concreto como se apresentava no início, e os
assentamentos definitivos transformaram-se em acampamentos provisórios, onde muitas
famílias permaneciam anos sem serem contempladas com algum tipo de propriedade rural.
Outras tiveram a infelicidade de conseguir terras de baixa produtividade, sendo
52
praticamente impossível colher os frutos da terra em quantidade ou qualidade suficiente
para se manterem. Havia (como ainda há) a falta de auxílio para plantios, moradias,
escolas, enfim, a infra-estrutura necessária para mover a atividade agrícola. Embora
houvesse grande apoio ao grupo por parte de entidades religiosas, populares e até mesmo a
mobilização da imprensa auxiliando a luta dos agricultores, as dificuldades foram grandes,
tanto que muitos se dispersaram, abandonando os próprios sonhos.
1.3 – A perspectiva de alguns setores paraguaios sobre o fluxo
Desde o início da migração brasileira ao Paraguai, os discursos sobre o fluxo de
pessoas são muitos e contraditórios, seja entre os cidadãos brasileiros, seja entre os
paraguaios. Pretendemos minimamente evidenciar a visão paraguaia sobre esse movimento
migratório.
É relevante destacar que, para os brasileiros, especialmente os agricultores e
independentemente de que país estejam habitando, a migração tem caráter de trabalho. Ou
seja, em suas representações, eles foram para o país vizinho para desenvolver a agricultura
e torná-lo um dos grandes produtores de grãos soja com destaque internacional,
fomentando assim a economia de exportação de um país “subdesenvolvido” que até então
apresentava um setor agrícola praticamente de subsistência. Esse discurso autojustificador
parece desconsiderar o fato de que os grandes produtores de soja são em geral grandes
proprietários estrangeiros, especialmente brasileiros.
Da perspectiva dos paraguaios, estas são algumas situações que vêm ao longo dos
anos se alterando, especialmente no cenário político, não apenas pelo término da ditadura,
mas também porque a abertura das fronteiras internacionais não possui mais o mesmo
significado de perda de autonomia, como era a sua preocupação primeira com o início da
migração; no contexto mais atual, ela significa a abertura da economia entre os países da
América Latina, onde as fronteiras são móveis. Territorialmente, os países cumprem com
acordos, como por exemplo, a lei de fronteiras que Brasil e Argentina possuem, e que o
Paraguai luta para constituir
7
.
Nas últimas décadas, a mentalidade paraguaia foi se transformando em forte
oposição à propriedade estrangeira e aos produtores brasileiros naquele país. Quando não
7
Esse tema receberá maior atenção no Capítulo 3.
53
está em jogo a soberania do país com a acusação de invasão, ou os poderes políticos desses
estrangeiros no Paraguai, acusam os brasileiros de praticamente acabarem com as matas,
transformando o seu território em um “deserto verde” com as plantações de soja, acabando
com os bosques e as florestas nativas, entre outros problemas que o movimento campesino
daquele país denuncia.
O movimento campesino paraguaio sempre existiu, mesmo antes de se ter
intensificado de maneira mais acelerada a migração brasileira ao Paraguai nos anos 1960.
O movimento lutava especialmente pelo direito de terras, lembrando que no Paraguai se
encontra um dos maiores índices de desigualdades de distribuição em toda a América
Latina. Segundo Galeano e Yore,
el más importante antecedente de las organizaciones campesinas que existe en la
actualidad han sido las Ligas Agrárias. Estas, constituídas hacia finales de los sesenta, a
su vez tuvieron como precedente a la Tercera Orden Franciscana, organización laical que
durante las décadas del 40 y del 50 tuvo gran difusión e implantación en los sectores
campesinos
(G
ALEANO
;
YORE
, 1994 p. 45).
Atualmente, há uma grande mobilização em torno do problema de terras no
Paraguai; as manifestações do campesinato vêm de longa data, mas outrora eram caladas
pelos ditames do poder centralizador e ditatorial de Stroessner, enquanto que agora os
campesinos encontram forças para minimamente se organizar e reivindicar direitos em seu
próprio país, a começar pelo direito a terra.
As denúncias quanto à presença dos imigrantes brasileiros em território nacional
são freqüentes no movimento campesino paraguaio; os objetos de denúncia são
principalmente as compras de terras dos campesinos, o desmatamento com uma atitude
predatória em relação ao meio ambiente e em especial com as pulverizações nas plantações
de soja que envenenam os campesinos e afetam o ecossistema. Essa agricultura predatória
acarreta a expulsão das famílias campesinas de suas propriedades, destrói as matas,
inclusive as matas ciliares, contaminando com agrotóxicos os pequenos rios existentes no
interior do país.
Neste sentido, Sprandel destaca que:
os campesinos afirmam que as propriedades dos brasileiros são ilegais e que foram
presenteadas pelo General Stroessner. Em tom nacionalista afirmam que os brasileiros
têm ‘tierras ilegales y no son ni paraguayos’ enquanto ‘nosotros, que somos paraguayos
legítimos, no tenemos tierras’” (R
ODRÍGUEZ
N
UNES
, líder campesino, apud S
PRANDEL
,
1992, s/p).
54
No meio campesino essa reclamação é corrente; em rios discursos pudemos
observar esse fato.
Por outro lado, paraguaios que incorporaram o modelo de produção
implantado pelos brasileiros e reforçam a opinião de muitos brasileiros de que o paraguaio
não gosta de trabalhar; afirmam ainda que os que trabalham aprendem muito com os
brasileiros. Nesse tipo de discurso, os brasileiros aparecem como uma espécie de agente
econômico modernizador que contribui para colocar o país na trilha do progresso.
Um agricultor paraguaio diz.
Aprendi a respetar y a apreciar el esfuerzo de los inmigrantes. Creo que ellos están
haciendo un gran aporte a la economia del país. (...) Los paraguayos estamos
aprendiendo a romper nuestras limitaciones, para incorporarmos a esta forma de
agricultura más moderna, que nos ayude a progressar” (E
MÍLIO
P
ERALTA
, apud
A
LBUQUERQUE
2005, p. 168-169).
Alguns agricultores paraguaios elogiam o modelo agrícola brasileiro e toda a
modernização tecnológica levada ao país, como maquinários, adubos, fertilizantes,
controle de pragas, entre outras técnicas e insumos. Atualmente a cooperação entre
segmentos de agricultores imigrantes e nacionais. Ressalta José Giacomelli que,
se desarrolla actualmente una de las más interesantes experiencias de cooperación e
integración entre brasileños y paraguayos. Los inmigrantes no solo prestan sus tractores
y maquinarias para mecanizar las parcelas de campesinos e indígenas, sino que muchos
de ellos acuden personalmente a enseñar las técnicas modernas de producción” (U
LTIMA
H
ORA
, 01/10/2003, p. 18).
Essa mesma reportagem do jornal Ultima Hora mostra que o maior fator de
colaboração entre os dois povos foi a compreensão de suas diferenças e posteriormente o
diálogo no sentido de possibilitar ajudas mútuas nos trabalhos da produção agrícola.
Destaca ainda que “una organización de brasiguayos que asisten a 368 familias
campesinas, aproximadamente” (I
BIDEM
).
Outro aspecto destacado por alguns agricultores paraguaios diz respeito ao
trabalho do imigrante brasileiro em geral. Admiram-no por trabalharem aos sábados,
domingos e feriados, em jornadas que se estendem por várias horas seguidas durante o dia.
O paraguaio Balbino Benítez, reportando-se aos brasileiros, diz:
con ellos aprendí a trabajar en serio, también los domingos, los feriados, hasta en
Semana Santa. Aprendí lo que es economía familiar. Ellos tienen outra manera de ver las
cosas y están haciendo mucho por el país. Creo que, en lugar de atacar-los tanto, tenemos
55
que conocerlos, dialogar. Hay muchas cosas que corregir, pero es innegable que su
presencia favorece al país
(I
DEM
, 23/09/2003, p.07).
O agricultor paraguaio reconhece que várias coisas a serem repensadas para
melhorar a situação interna do Paraguai e o imigrante pode ajudar neste sentido, embora
perceba que precisam ser revistos alguns trâmites legais de permanência de brasileiros no
país, bem como a interação cultural destes com a população de origem. Quanto a esse
ponto, há que se observar que existem diferenças culturais muito acentuadas entre o
campesino paraguaio “típico” e o imigrante brasileiro “típico”. Essas diferenças
manifestam-se em traços étnicos, lingüísticos, religiosos, de mentalidade, etc. Essas
diferenças são históricas e por vezes tão sinificativas que qualquer comparação corre o
risco de parecer etnocêntrica.
Por outro lado, como enfatizam os estudos da antropóloga paraguaia Raquel
Peralta, a expansão rural capitalista comandada pelos brasileiros no Paraguai fez e ainda
faz milhares de vítimas entre os indígenas. trinta anos atrás, segundo dados por ela
coletados, existiam 17 etnias e aproximadamente 30 mil índios em solo paraguaio; na
atualidade, não passam de 15 mil. Para a autora, um fator que agrava ainda mais esse
quadro próximo do etnocídio é sem dúvida o processo de modernização agrícola, somado
às práticas pré-capitalistas de escravização indígena.
Comentando o trabalho de Peralta, Konig escreve.
La antropóloga paraguaya Raquel Peralta, que hace ocho años trabaja como misionera en
la región, le da el nombre de esclavitud moderna. Según ella, después de pasar por
torturas físicas y psicológicas, ellos son forzados a trabajar casi sin remuneración en
cosechas y carbonerías, la mayoría de brasileños. Los brasileños se asocian a políticos
influyentes para expulsar a los indios. Además de perder su espacio, etnias como la Pai
Tavyterã, Avá-guarani y Ache miran que su cultura es violentada por la imposición de
costumbres extranjeras (K
ONIG
, 2004, Apud A
LBUQUERQUE
, 2005, p. 161).
A constatação da antropóloga parece condizer com a realidade do Paraguai, uma
vez que é perceptível esse tipo de atitude com relação aos indígenas em outras partes da
América do Sul e da América Latina de modo geral. Sua denúncia condiz com a real
situação vivida por essas minorias. Entretanto, muitas posições levadas ao conhecimento
da opinião pública são estritamente nacionalistas, especialmente o discurso da imprensa e
dos meios de comunicação em geral; a mídia paraguaia evoca um discurso difuso entre a
população e reproduzem-no nos periódicos, amplificando-os e assumindo a autoria de tais
56
enunciados. Em outras palavras, uma nacionalização de discursos sociais portadores de
anseios emancipatórios e de justiça.
As contradições sobre este assunto são grandes e abrangem diversos segmentos.
O compositor e músico paraguaio Victor “Pato” Brítez reflete com uma postura bastante
crítica.
No seu modo de ver,
los brasileños no solo plantan soja transgénicas sino que nos imponen su cultura en la
frontera, su lengua, su dinero (...). Es un fenômeno que, además de cultural, es político y
económico. Es de anexión directa. Hoy resulta que el 80% de los dueños de tierra son
brasileños. Obviamente se necesita una política contraria a eso y no creo que este
gobierno pueda impulsar algo favorable en este sentido. Lenta e inexorablemente se va
destrozando nuestra identidad (U
LTIMA
H
ORA
, 09/05/2004, p. 39).
Alguns pontos da fala do artista exageram a real compreensão desse fluxo de
pessoas entre os dois países; não obstante, ela traz pontos de vista e informações
importantes para analisarmos discursos e representações não apenas de pesquisadores,
campesinos e políticos, como da população paraguaia de modo geral.
Como se por essas poucas fontes citadas, a complexidade do problema é
enorme; ele envolve as maneiras de luta do movimento campesino paraguaio; a grande
presença de brasileiros não apenas nas regiões fronteiriças; e até mesmo a complexa
questão fundiária no Paraguai. Obviamente não poderemos aqui aprofundar todas essas
questões presentes quando se discute transitoriedade e cultura de fronteira no caso aqui
estudado. Mas é necessário ter em mente que a preocupação desses trabalhadores frente a
um problema visível como o da propriedade estrangeira é real e merece a nossa atenção.
Os pontos de vista sobre esse fluxo dentro do Paraguai são diferenciados; existem
posições favoráveis e posições contrárias aos imigrantes brasileiros; certamente no Brasil
essas posições se repetiriam em certos pontos comuns e em outros apresentariam
discrepâncias. Temos então um conjunto de temas e situações em pleno desenvolvimento
com uma ampla dinâmica do processo em consonância com as transformações históricas
vivenciadas nas regiões de fronteira.
1.4 – A propriedade estrangeira nas fronteiras paraguaias
57
É desafiador mostrar as amarras de um poder externo no Paraguai, como a
discussão sobre a propriedade privada, especialmente de grandes latifúndios,
principalmente por que a maior parte dessas propriedades estão direta ou indiretamente nas
mãos de políticos influentes. Para contemplar a discussão é importante destacar três
tópicos de maneira mais específica, embora as questões gerais sobre o tema permeiem o
trabalho.
As queixas dos habitantes paraguaios giram em torno da propriedade estrangeira
da terra, cuja expansão apresenta uma tripla face. Em primeiro lugar, sempre é vista como
desenvolvimento para o Paraguai, embora acarrete uma verdadeira crise sócio-ambiental
no país. Em segundo, grande parte dessa propriedade estrangeira é explorada por capitais
externos que não giram economicamente dentro do Paraguai, num processo perverso que
acaba por excluir amplos segmentos da população; partes desse contingente engrossam os
movimentos migratórios, especialmente o êxodo rural, provocando graves problemas
internos, como o que ocorre com os campesinos sem-terra. Por último, é necessário atentar
para os movimentos sociais e os conflitos sócio-políticos como os que envolvem esses
mesmos trabalhadores sem-terra, ou o campesinato de maneira mais geral, suas
reivindicações por propriedades nacionais.
A concentração de terras, especialmente grandes propriedades obedece a um
índice elevado, enquanto as pequenas propriedades geralmente nas mãos dos paraguaios os
índices são menores. Ou seja, quando se trata da grande propriedade, a presença do capital
estrangeiro é comparativamente maior que a do capital nacional, o que repercute
diretamente na economia, especialmente na agricultura.
A desigualdade na distribuição de terras no Paraguai vem de longa data. Os dados
do Ministério da Agricultura y Ganaderia daquele país, no relatório elaborado em 1992, dá
uma idéia da disparidade sobre a distribuição de terras no país.
Quadro 02 – Distribuição de terras no Paraguai e suas extensões
Tamaño Distribuición de la
propriedad
% do territorio
Menores de 5 has 40.1% 1
De 5 a menos de 10 has 21.7% 2
De 10 a menos de 20 has 21.6% 3
De 20 a menos de 100 has 12.7% 6
58
De 100 a menos de 500 has 2.4% 7
De 500 y más de has 1.55% 81
Total 100% 100
Fonte: Ministério da Agricultura e Ganaderia, 1992.
Percebe-se a desigualdade na distribuição de terras no Paraguai, por exemplo,
somando-se as propriedades com menos de 20 hectares, cujo total representa mais de 83%
das propriedades existentes no país, ocupam apenas 6% do território nacional. As
propriedades com mais de 500 hectares representam 1,55% das propriedades existentes e
ocupam 81% do território nacional.
As grandes propriedades estrangeiras no Paraguai contribuem para fomentar esses
dados, mesmo que aqui não apareçam separadas da grande propriedade paraguaia, ela
encontra-se inserida nestas estatísticas.
Uma das constantes queixas dos campesinos, como também enfatizou a
antropóloga Raquel Peralta, é que os grandes proprietários estrangeiros contam com o
apoio interesseiro de políticos influentes no país, mostrando como a política paraguaia é
adversa; pois enquanto uns trabalham na intenção de resolver o conflito interno
envolvendo particularmente o movimento campesino, outros fomentam o capitalismo
estrangeiro abrindo-lhes as portas e proporcionando-lhe um amplo campo de exploração.
Dentre os estrangeiros que possuem terras no Paraguai, podemos afirmar que a
maioria é de empresários agrícolas brasileiros; também os norte-americanos, os
menonitas que defendem seu território; os chineses, e ainda outros povos sul-americanos
que em menor grau possuem propriedades no Paraguai.
1.4.1 – Expansão: desenvolvimento ou crise
Em poucas décadas o Paraguai conquistou posições importantes no comércio
exterior especialmente devido à produção de soja. Os dados estatísticos mostram o “salto”
da produção nacional relativamente aos números de décadas anteriores e revelam o
aumento da extensão das áreas de plantio. Em contraposição, é perceptível que
problemas ambientais, como dissemos; além disso, a concentração de terras para produção
anexa progressivamente as propriedades de pequenos agricultores paraguaios, aumentando
com isso o “domínio” brasileiro e de empresários de outros países naquele país. Estudos
59
mostram que dos dezessete Departamentos existentes no Paraguai, doze deles sofrem
influências dos chamados “brasiguaios”, e apenas cinco Departamentos não estão
“ocupados” pelos estrangeiros.
De los 17 departamentos que tiene el país, 12 departamentos han sido ocupados por
inmigrantes de origen brasileño, 5 departamentos sin “brasiguayos”. Según estimaciones
de la Cancillería del Brasil (Itamaraty), en Paraguay viven cerca de 500.000 inmigrantes
brasileños. El Gobierno paraguayo, hasta ahora, no admitido más de 108.000
brasileños en forma oficial. La Pastoral del Migrante llegó a estimar la presencia de
inmigrantes brasileños en 350.000. Un alto porcentaje se encuentra en situación ilegal,
sin documentación. Los únicos departamentos, donde aún no se registra presencia masiva
de “brasiguayos” son, Presidente Hayes, Cordillera, Guairá, Paraguarí e Central.
(
Cf. la
Resolución 83, Ministério del Interior, julio 2003. “Población, migración e
información básica sobre actores estratégicos en la frontera Paraguay-Brasil.” Marcial
Antonio Riquelme, PhD. em Sociologia, Agosto 2003). In: (U
LTIMA
H
ORA
,
17/09/2003,
p. 17).
O termo expansão, freqüentemente utilizado quando se discorre sobre a presença
de brasileiros no Paraguai, designa um meio de alavancar a economia do país no mercado
exterior, mesmo quando se reconhece que essa “expansão” não tem um efeito positivo
sobre o social, especialmente em relação a outros trabalhadores do mesmo segmento, ou
seja, os agricultores paraguaios e os indígenas.
As constatações sobre a pobreza e a distribuição de terras no Paraguai
lógica que parece estar em pleno desenvolvimento — são inversas ao desenvolvimento que
sugere ser tão positiva em algumas regiões do país. É o que relatava em 1990, em sua
obra Los campesinos sin tierra en la frontera, o sociólogo Ramón Fogel.
Outra constante es la renuncia, por parte de los gobiernos, al ejercicio de la soberania
política y económica, a favor de las empresas de capital extranjero. La idea que el
desarrollo viene con la inversión extranjera tenido un fuerte arraigo en los grupos
dominantes, a pesar de la evidencia histórica que muestra mayores niveles de pobreza
crítica, de la población criolla, en las regiones más tocadas por la inversión extranjera
(F
OGEL
, 1990, p. 15-16).
O alerta do sociólogo não se apenas em constatações sobre a condição das
pessoas na agricultura, mas, sobretudo, denuncia as benesses políticas que esse capital
estrangeiro recebe e de alguma forma concebe, o que constitui uma economia baseada num
“apoio” que os paraguaios, especialmente os mais pobres, não possuem. Nesse sentido,
também Albuquerque ressalta que:
el movimiento fue más fuerte en la frontera paraguaya por causa tanto de la ausencia del
Estado paraguayo, como también de la complicidad y hasta el incentivo del Gobierno
60
dictatorial para la inmigración brasileña de descendência europea” (A
LBUQUERQUE
, p.
150. Apud F
OGEL
, 2005).
No início, a “ocupação” brasileira de terras paraguaias para o cultivo era mais
acentuada nas faixas de fronteiras; essa prática, na atualidade, se em vários
departamentos localizados no interior do país, e não apenas nos departamentos fronteiriços.
Um caso particular acena para o fato de que, no contexto das nações afetadas, as fronteiras
do Paraguai surgem como de penetração mais sensível, sistemática, e de mais fácil acesso
para a expansão agrícola que age sob os ditames de capital estrangeiro.
A preocupação com a ação do Estado é nítida nos discursos; com efeito, a
intervenção estatal no processo de redistribuição de terras se projeta em grande escala,
sendo de inteira responsabilidade deste a determinação de seus possíveis futuros
proprietários. Percebe-se de modo geral que aos “investidores” estrangeiros geralmente são
dadas, ou vendidas as melhores terras para o cultivo, enquanto aos campesinos são
distribuídas terras de baixa produtividade.
A projeção da soja paraguaia que teve como impulso a propriedade
latifundiária estrangeira e colocou o país no mercado internacional como exportador de
peso é visível tanto em quantidade como em área cultivada, embora se reconheça a
retração econômica do país nesse contexto. O quadro estatístico abaixo mostra a evolução
da produção e rendimento da soja paraguaia nas duas últimas décadas do século
XX
.
Quadro 03 – Produção e rendimento da soja no Paraguai
Prod. rend./anos
1982 1988 1989 1990 1992 1994 1995 1996 1997
Prod. mil/ton.
7769
11615 11795 11033 11793 22212 22395 22670 33000
Rend. ton./há.
11,94
11,88 11,98 11,87 22,82 33,01 22,87 22,84 22,82
Área cult. mil/ton
3397
8860 9907 5552 6635 7735 8833 9940 11065
Fonte: Fogel y Hay, 1999.
É notável o aumento gradativo na produção de soja no Paraguai desde o início
dos anos 1980; esse aumento na produção foi acompanhado por um acelerado processo de
concentração do principal fator produtivo, a terra, e da desnacionalização da sua
propriedade; as grandes extensões de terra que o Estado relegou aos trabalhadores rurais
foram destinadas aos que conhecemos como “empresários agrícolas”, isto é, estão em
posse de grandes proprietários estrangeiros.
61
Observemos que os dados acima não estão inseridos no contexto dos anos 1970,
período até então considerado o boom da soja naquele país; esses dados estão inseridos no
cenário de grandes mudanças características das décadas mais recentes. Dentre essas
mudanças, podemos citar o funcionamento da Itaipu com o início de geração de energia
elétrica em 1982; o retorno de trabalhadores brasileiros — brasiguaios vindos do
Paraguai em 1985; ou ainda as transformações políticas com o fim da ditadura de
Stroessner em 1989.
É nesse tumultuado cenário que a soja vem tendo um aumento gradativo nas
lavouras paraguaias. Essa tendência acentuou-se nos anos seguintes. Dados recentes da
FAO
8
, mais precisamente de 2003, mostram que a plantação de soja no Paraguai atingiu
seu boom real entre os anos de 1995 e 2001, passando de 735.000 hectares para 1.350.000
hectares, um aumento de praticamente 84% na superfície cultivada, e em torno de 50% da
superfície total de terra cultivada no país. Com isso o Paraguai emerge no ano de 2002
como o sexto maior produtor mundial de soja bruta.
Entre 1983 e 1989, um período marcado pela crise inicial do modelo bimodal
agro-exportador impulsionado pelo Estado autoritário, que apostou na consolidação das
formas modernas de produção no campo. O desenvolvimento do setor praticamente triplica
sua superfície cultivada, mas evidencia-se a retração da economia campesina com a queda
de preços de produtos primários no mercado internacional. Ou seja, diminui a expansão da
fronteira agrícola pela via pensada por Stroessner com o consentimento do governo
brasileiro, a chamada “colonização programada”. O valor das exportações começa a cair.
Com a economia em retração e o baixo preço dos produtos primários, a
insatisfação no meio rural é generalizada, e a saída dessa situação não tem uma fórmula
rápida pensada pelas autoridades. A situação atingiu um ponto crítico com os
desentendimentos e conflitos no setor agrário, com invasões de aproximadamente 15 mil
famílias de campesinos aos latifúndios e também às terras livres no país. Mas, não uma
organização conjunta do movimento pela propriedade de terras: muitos aderem à luta com
objetivos esparsos, o que de certa forma debilita a chance da ascensão das famílias à terra;
8
FAO, fundada em 1945, tem por objetivos elevar os níveis de segurança alimentar, de nutrição e vida e de
melhorar a produtividade agrícola e as condições da população rural e de gerir os recursos naturais de forma
sustentável.
62
isso faz com que os movimentos tornem-se incipientes, por seus objetivos não terem uma
reivindicação homogênea para a categoria e seus esforços não serem coordenados.
Com o incremento da produção de soja no Paraguai, a crise social e econômica
torna-se mais nítida. também, denúncias partidas de ativistas “verdes” contra esses
agricultores, por estarem eles provocando um sério problema ambiental, ou melhor, sócio-
ambiental, uma vez que provoca uma série de danos não apenas ao meio ambiente, como
também às pessoas que dependem dele de forma mais direta para produzir suas condições
materiais de existência.
A intenção não é falar dos impactos do cultivo em grande escala no Paraguai,
mesmo porque, segundo Fogel, este impacto não é direto, mas provoca “a reducción del
empleo, la concentración del ingresso y de la tierra, la degradación ambiental y la
corrupción que alimenta(
FOGEL
, 2005, p. 46). Abordemos brevemente os impactos mais
diretos, como a pulverização das plantações e suas conseqüências nefastas especialmente
para o trabalhador campesino.
Este assunto vem sendo discutido algum tempo; mas, na atualidade, ganha
proporções, pois evidências de que esta ação de uso indiscriminado de agrotóxicos e
defensivos agrícolas nas plantações de soja — algo comum nas lavouras brasileiras — vem
causando males à saúde das pessoas, como podemos perceber pelas manifestações das
pessoas, especialmente nos jornais paraguaios. Dentre os muitos atritos que se têm
verificado entre campesinos e produtores de soja, a questão das pulverizações está sempre
presente. Pela análise do ABC Color, percebemos que sojeros y productores acordaron
una nueva reunión, con el objetivo de intercambiar opiniones técnicas, en torno al uso de
agroquímicos” (A
BC
C
OLOR
, 08/01/2004, p. 16); mas estas tensões chegam aos extremos
do conflito e não ficam apenas em reuniões. O mesmo periódico destaca que “cinco
policías heridos y algunos lesionados fue el resultado de um intenso fuego cruzado entre
campesinos y policías registrado en una colônia ubicada a unos 300 Km al este de
Asunción. Los pobladores querían impedir la fumigación” (I
DEM
, 21/01/2004, p. 15). Com
os acontecimentos envolvendo ambos os lados, o conflito passa a ser “comum” entre
plantadores de soja e campesinos.
o Diário Última Hora enfatiza a morte de um menino campesino por
intoxicação, dizendo que “la muerte del niño de 11 años es el primer caso de intoxicación
por químicos agrícolas que llegó a la justicia. La causa que se tramita em los tribunales,
está ya a un paso del juicio oral, y podría sentar jurisprudência para el futuro” (U
LTIMA
63
H
ORA
, 10/12/2003, p. 19). Mesmo com a matéria enfatizando o primeiro caso que foi aos
tribunais, esses temores dos campesinos frente à pulverização são anteriores; o que
freqüentemente ocorre são “acertos” com pagamentos de despesas ou tratamentos médicos,
ou, em outras vezes com propina ou suborno para abafar o caso. É o que evidencia a
mesma matéria do jornal, “la família (...) no se dejó subornar. Le ofrecieron hasta 200
millones de guaraníes para renunciar la causa por la muerte de su hijo” (I
BIDEM
). Isso
significa que essa prática é utilizada para silenciar os campesinos e tornar possível a
continuidade da pulverização, que segue fazendo novas vítimas.
A discussão em torno desse problema, a partir dos registros nos periódicos mais
atuais, parece discrepar dos interesses ou até mesmo dos recortes propostos para a
pesquisa; mas é evidente que, senão no todo ao menos em parte, esse problema é fruto da
expansão da economia agroexportadora, especialmente com o aumento do cultivo de soja a
partir da região fonteiriça do Paraguai.
Esses problemas, obviamente, não se dão em decorrência apenas dos brasileiros
produtores de soja, como também dos Menonitas, chineses, norte-americanos e alguns
europeus. A culpabilização recai em grande parte sobre os brasileiros brasiguaios
devido ao grande número, em termos comparativos, de propriedades brasileiras no
Paraguai. Agricultores paraguaios denunciam que não um estudo de impacto por parte
dos produtores antes de começarem a desmatar e cultivar aquelas terras; denunciam ainda a
poluição dos rios e pequenos arroios que abastecem as localidades; as técnicas
mecanizadas de cultivo que contribuem para a perda gradual da riqueza dos solos e ainda
pontuam que os brasileiros não se comprometem em reparar os danos ecológicos que eles
provocam com tal “expansão”.
Em um estudo elaborado no Paraguai com a ajuda de organismos internacionais,
comprovou-se que, entre os anos de 1976 e 1991, o leste do país perdeu mais de 20% de
suas florestas para o avanço sojero; o relatório sugere ainda que, no ano 2000, os
paraguaios estariam sem bosques.
9
Com efeito, é o que se constata na atualidade, ao
menos onde essa expansão é mais notável, como nas zonas fronteiriças, em especial com
divisas brasileiras.
9
“El censo sobre el avance de la frontera agrícola realizado por el Ministério de Agricultura, con cooperación
de la GTZ alemana, indica un elevado incremento de las tierras de lambranza a expensas de los recursos
forestales. Este uso de la tierra es particularmente alto en la Región Oriental, en donde la agricultura
mecanizada en departamentos como Canindeyú, Alto Paraná, Caagazú, San Pedro, principalmente, es causa
de deforestación indiscriminada de los bosques.” (
LA OPINIÓN
,
27/07/2001,
s/p).
64
1.4.2 – Campesinos no Paraguai
Um ponto interessante na discussão é que, muito embora o movimento campesino
exista no Paraguai desde meados da década de 1950, ele foi durante a maior parte desse
período sufocado pela ditadura; com o processo de redemocratização e o avanço de
conquistas sociais, a luta do campesinato aos poucos vem tomando corpo, buscando a
“homogeneidade” em suas reivindicações.
O movimento social campesino sofre especialmente por falta de uma maior
organização de base para que suas reivindicações possam ser atendidas da melhor maneira
possível no jogo político de correlação de forças; mas, mesmo com muitas dificuldades, o
movimento conseguiu crescer e ganhar visibilidade, tanto em termos numéricos como em
organização, uma vez que conta com apoio mínimo de autoridades políticas -
especialmente aquelas situadas ideologicamente no centro-esquerda do espectro político.
Fazendo uma “guerra solitária” contra os grandes investidores agrícolas no Paraguai,
contam com apoio de igrejas e outros segmentos; mas na esfera da política institucional, o
apoio e cooperação obtidos são mínimos.
dois pontos centrais nessa questão; primeiramente, as atitudes do poder
político do Paraguai em relação aos campesinos, historicamente marcadas por tentativas de
repressão e desmobilização de líderes e militantes, embora haja esporadicamente algumas
ações a seu favor. O segundo ponto vem a ser o conflito interno ao próprio movimento,
marcados por tensões e cisões que, conjugadas às dificuldades externas, ameaçam a sua
continuidade como movimento social organizado e impõe significativos limites às suas
conquistas.
Trabalhamos a noção de “conflito interno” como decorrente da falta de
organização do movimento campesino, que vem se aprimorando, mas ainda é deficiente do
ponto de vista político de conquistas pragmáticas nas condições da democracia
representativa. Neste caso os campesinos acabam desnorteando os interesses do seu povo
em benefícios de estrangeiros, denotando um conflito não apenas no país, mas também no
corpus representativo deste segmento.
Um exemplo do conflito é notado nos periódicos. No ABC Color, os senadores
informaram sobre a venda de terras feita pelo IBR a empresários brasileiros, denunciaron
la masiva venta de tierras a empresarios brasileños en Vaqueria, departamento de
Caaguazú con la anuencia del Instituto de Bienestar Rural (IBR) y la complicidad de
65
fiscales y policías”(F
OGEL
, 2006, p. 98). A coluna política do ABC Color retratada por
Fogel, mostra que a situação interna no Paraguai frente a estes problemas rurais é frágil e
compromete a distribuição de terras aos campesinos, privilegiando os empresários
estrangeiros.
Na entrevista do Secretário Geral da FNC, Odilón Espínola, percebe-se que,
enquanto o movimento tenta tomar corpo frente a esse novo cenário político paraguaio, o
governo continua com discursos vazios para o setor e não alimenta grandes esperanças aos
campesinos. A frase marcante do Secretário é quando diz que, “el Estado paraguayo
nunca tuvo ni tiene una política de desarrollo rural”, (U
LTIMA
H
ORA
, 01/11/2004, p. 19).
Essa afirmação do Secretário da FNC uma das organizações que se caracterizam por
apresentar propostas e projetos ao governo diz ainda que “el gobierno no pasa de los
discursos” (I
DEM
).
Outro fator é comentado pelo dirigente da MCNOC, Belarmino Balbuena, que
fala sobre o novo Código Agrário paraguaio e suas alterações feita pela Câmara dos
Senadores.
Las críticas de los campesinos hacia el proyecto del nuevo Código Agrário se van
haciendo cada vez más fuertes (...) dijo que el documento no les sirve a los campesinos y
que sólo empeorará las cosas para ellos, y que, sin embargo mantiene intocables los
privilégios de los ganaderos. Por su parte, estos últimos están conformes con las
modificaciones introducidas
(L
A
O
PINIÓN
, 27/07/2001, s/p).
Não uma política voltada aos interesses dos campesinos. Percebe-se a alusão
que faz o dirigente aos ganaderos, ou seja, uma propensão à grande propriedade e estas
em grande parte pertencem a empresários agrícolas de fora do país.
Os freqüentes diálogos entre governo e lideranças campesinas não são produtivos
para nenhuma das partes: enquanto o governo cede, os campesinos invadem propriedades;
quando a proposta dos campesinos adentra no governo, batem de frente com os interesses
de empresários agrícolas como, por exemplo, o desmatamento, a pulverização com
agrotóxicos, e especialmente a distribuição de terras.
Em meio a propostas e desarranjos do poder governamental para com os
campesinos, existe até mesmo o estigma a esses trabalhadores paraguaios; essas
representações negativas alimentam o imaginário social, motivado por matérias que
desabonam a cultura paraguaia, relegando a estes toda a culpa de um sistema
governamental que não contribui ativamente para mudar a situação. Nesse sentido, o ABC
66
Color de 29/04/2004 faz críticas gerais ao sistema paraguaio desde o campesinato até a
política:
El sistema democrático no tiene viabilidad en una sociedad que lleva como lastre una
pesada carga de campesinos ignorantes. La corrupción de la clase política y la dirigencia
social se nutre de la miséria que impera en el sector rural. El primer paso para romper
esta perversión es convertir a los campesinos en agricultores productivos, capaces de
obtener la renta necesaria para llevar una vida digna (A
BC
C
OLOR
, 29/04/2004, p. 22).
A matéria acima mostra que além de todos os percalços da política e em especial
aos “inimigos internos” dos campesinos no Paraguai, é relegado a estes o estigma de serem
ignorantes, sem condições de produzirem seus próprios alimentos, ou ainda que o
agricultor paraguaio trabalha como na Idade da Pedra, tendo que haver uma inversão
cultural para que o “desenvolvimento” técnico seja introjetado em seu meio.
Norbert Elias destaca que o estigma imposto a um grupo social é visto pelo grupo
estigmatizador como natural, imposto por uma força maior. Para este autor, o estigma
social que seus membros atribuem ao grupo (...), transforma-se em sua imaginação, num
estigma material é coisificado. Surge como uma coisa objetiva, implantada (...) pela
natureza ou pelos deuses(E
LIAS
, 2000, p. 35). Tal concepção acaba por eximir o grupo
estigmatizador de qualquer responsabilidade com relação ao preconceito. O estigma, ainda
segundo Elias, provém da necessidade de um grupo se afirmar enquanto superior.
um conjunto de representações impostas ao grupo que constroe uma imagem
deteriorada dele. Parafraseando Roger Chartier, poderíamos dizer que essas representações
são construídas a partir do real e, por vezes, são consideradas elas próprias a realidade. Ou
seja, algo que é visto como natural é produzido por grupos, que forjam representações
segundo suas intenções. Portanto, as representações o são neutras nem tampouco
naturais, são elaboradas para legitimar ou consolidar interesses específicos (C
F
.
C
HARTIER
,
1988 p. 16).
A questão cultural não é o alvo neste momento da análise; mas podemos
antecipar que a proposta de conversão do campesino em produtor técnico não se
rapidamente; pelo contrário, é um processo lento e problemático, pois a cultura de um povo
não é melhor ou pior, ela é diferente, seus interesses são divergentes, enfim, uma gama
de fatores que permeiam essa problemática.
O importante é enfatizar aqui que de algum modo os “brasiguaios” como
denomina a imprensa paraguaia os agricultores brasileiros no Paraguai fazem parte
67
deste truncado jogo “democrático” dentro do país. trabalhadores brasileiros dos dois
lados, tanto entre os membros do campesinato quanto entre os empresários agrícolas. Em
suma, a questão campesina no Paraguai embora apareça bastante no decorrer deste
trabalho é tema a ser objeto de reflexões mais profundas, e que o tratem de maneira
específica e detalhada. Não fizemos mais que observar alguns aspectos do problema que
interessam mais diretamente aos brasiguaios.
Um ponto de vista interessante é o do sociólogo Paraguaio Ramón Fogel nos
anos 1990, e que parece não despertar maiores interesses dos intelectuais que refletem
sobre a questão de terras no Paraguai.
Hace algunos años, parecía un absurdo hablar en Paraguay de campesinos sin tierra. En
un país de grandes extensiones de campos, bosques y tierra fértil en la mayor parte de su
território y al mismo tiempo de escasa población, el tema no merecia siquiera la atención
de organismos privados que se esfuerzan por llenar los vacíos del Estado (F
OGEL
, 1990
p. 09).
Em decorrência da baixa densidade demográfica do país, bem como do fato de
mais de 60% de sua população estar concentrada nas principais cidades, a agricultura de
forma alguma poderia sofrer com o problema de falta de terras. A luta e as reivindicações
de propriedades por parte desses trabalhadores rurais possuem influência brasiguaia, uma
vez que há muitos brasiguaios nas áreas rurais do Paraguai, especialmente nas fronteiras.
Notamos alguns valores dos campesinos para com as ações tomadas, como por
exemplo, a sua própria visão de mobilização que se opõe a invadir grandes áreas que não
serão exploradas - latifúndios improdutivos. É fato que o grupo ocupa uma fração de terras
suficiente para cobrir seu sustento de maneira digna e honesta, cultivando-a para não se
verem obrigados a roubar. Nas formulações de planos e projetos, não se assume que a
distribuição dos direitos sobre a terra seja o único passo; mas é considerado o mais
importante, acompanhado da organização campesina que possibilite uma participação
efetiva dos cultivadores nos processos agrários.
A repercussão mais recente das reivindicações é motivada pela imobilidade ou a
própria ausência do governo paraguaio em relação a esta questão
10
, se caracterizando
10
A questão central neste ponto não vem a ser a discussão em torno dos problemas governamentais dentro do
Paraguai. Se esta ausência e imobilidade é uma opção política ou falta de interesse político pelo segmento
reivindicador. Mas mostrar a caracterização de um governo de pouca atuação na área rural para com os
campesinos, resultando quase que em um descaso com a situação.
68
especialmente pelas invasões de imóveis de grandes extensões, principalmente de
estrangeiros, mesmo os imóveis legais dentro do país.
Embora a onda de invasões tenha crescido amplamente no Paraguai, o que
reaviva o tenso conflito seja no interior do país seja em áreas fronteiriças, nesse sentido
detecta-se que a violência não é corriqueira da polícia para com os campesinos ou vice-
versa; o que de certa forma reafirma a legítima intenção da busca pacífica pela terra para
sua sobrevivência e reprodução enquanto agricultores.
O que ocorre de maneira mais comum, é que civis contratados para cuidar dessas
propriedades contra-atacam, mas com a intenção primeira de intimidar o movimento. De
modo geral, não se registra grandes ocorridos com relação à violência entre campesinos e
policiais; o clima fica mais tenso quando essas reivindicações ganham as cidades ou a
capital, quando aí invadem prédios públicos, bancos entre outras repartições; então a
contenção dessas invasões é mais severa.
Para as lideranças da FNC, o termo utilizado pelo governo para definir as ações
dos agricultores em busca de terras está deslocado de sua realidade. De acordo com o ABC
Color, para essas lideranças as invasiones son lo que hacen los menonitas y brasileños en
nuestro território, dijo estar de acuerdo con implementar medidas para que los
campesinos recuperen todos los inmuebles que hoy se encuentran en manos de
inmigrantes” (A
BC
C
OLOR
, 21/04/2004, s/p). Ao que parece, as ações tomadas pelos
campesinos por suas lideranças não é normal entrar em propriedades particulares
especialmente dos grandes latifundiários estrangeiros mas se caracteriza como forma
tática de luta do movimento.
As contradições sobre o assunto estão inseridas no próprio corpo governamental,
pois o governo afirma que não aceitará novas invasões de terra. Por outro lado, autoriza a
compra de terras para entregar aos que estão ameaçando efetuar novas invasões. O
Ministro da Agricultura e Ganaderia, Antonio Ibáñes, assegurou que desconhecia a
situação; “no tengo conocimiento de eso, no puedo opinar, no tengo conocimiento de la
promesa del gobierno” (I
BIDEM
). Nota-se, dentro do governo, contradições
11
claras que
deixam o movimento campesino ainda mais descrente em uma solução para o problema.
Enquanto o governo fica praticamente imóvel, os campesinos continuam ameaçando fazer
invasões e também ameaçam barrar a imigração ao Paraguai: o campesino Elvio Benítez
11
As contradições estão nas narrativas das pessoas do governo e não nos planos agrários, ou seja, um
mesmo segmento falando coisas diferentes e contraditórias.
69
declarou que “si el Gobierno no frena la inmigración, varias organizaciones actuarán por
su cuenta” (I
DEM
).
A pressão dos campesinos ao governo com ameaças de novas invasões é o que
faz a política paraguaia desnortear-se em alguns momentos; por exemplo, quando ocorrem
as contradições decorrentes dos discursos do Ministro e do Presidente, alimentando a
controvérsia. Por outro lado, entendemos que a possível radicalização por parte de algumas
organizações não é contra os brasileiros que migram para o Paraguai, mas sim contra os
sojeros que exploram grandes parcelas de terras naquele país.
Dessa forma, a situação fica cada vez mais crítica também para os denominados
brasiguaios, que “sofrem” com as indecisões internas do governo paraguaio, que de alguma
forma gera esse “conflito interno” provocando um clima tenso e de insegurança, pois vêem
a possibilidade de serem expulsos daquele país.
O que motiva a ação de muitos campesinos são as estatísticas de ocupações de
terras no Paraguai. Puente Kyjhá, localizada no Departamento de Canindeyú, em 2004
contou com dados da FNC e constatou que o Departamento tem em torno de 1.446.884
hectares de terras, das quais somente 205.350 hectares estão nas mãos de pequenos
produtores — em grande parte paraguaios. Foram recenseadas mais ou menos 3.000
famílias na região
12
. Os números apontam que mais de 85% das terras estão nas mãos dos
grandes proprietários. Em todo território fronteiriço com o Brasil, cerca de 80% de
brasileiros nos departamentos; logo, conclui-se que grande parte desses latifúndios
pertencem a brasileiros — ou melhor, brasiguaios (Cf.: U
LTIMA
H
ORA
, 20-21/09/03 p. 26).
A luta dos campesinos pela terra no Paraguai afeta diretamente os agricultores
brasileiros que possuem terras ou trabalham naquele país. Porém, essa luta é legítima e
necessita ser mais bem direcionada e até criar organismos de coordenação que trabalhem
com o intuito de auxiliar os campesinos e que ao mesmo tempo formulem uma política
migratória cuja execução seja eficiente.
A luta pela terra no Paraguai possui vários lados a serem analisados; a
discussão em torno da legalidade da propriedade estrangeira versus o movimento
campesino; a indulgência do governo paraguaio; também a acusação, por parte dos
campesinos, de que as melhores terras foram vendidas ou repassadas aos imigrantes
estrangeiros.
12
Conforme la Dirección General de Estadísticas, Encuestas y Censos – EPH 2004.
70
Um ponto desfavorável aos campesinos é a acusação de que eles adquiriram
terras, venderam aos brasiguaios por preços irrisórios e agora que as terras estão
mecanizadas e prontas para o plantio e, portanto, valendo bem mais do que o preço que
venderam querem recuperá-la a força, montando acampamentos para reprimir os
proprietários quando das épocas de plantio. Mas observemos que esta prática não é comum
entre os campesinos na busca pela terra.
Até a alguns anos, a terra no Paraguai não era motivo de tanto conflito, embora
existisse, como dissemos, um movimento campesino relativamente organizado; mas os
problemas se resolviam mais facilmente, dada as grandes extensões de terras cultiváveis e
a fertilidade delas no país relativamente à rala população que a reivindicava, como muito
bem pontua Fogel. Com a imigração brasileira àquele país, as terras foram sendo
mecanizadas e valorizadas por meios de técnicas e a produção em larga escala de soja e
milho; isso fez com que a disputa no campo aumentasse e houvesse uma inversão de
valores.
Essa inversão significa passar do predomínio de uma economia de subsistência —
historicamente praticada pelo campesino paraguaio para o predomínio de uma
economia especulativa que norteia em grande parte as ações capitalistas dos empresários
agrícolas. Esse processo é permeado por interesses corruptos de autoridade fiscais,
militares, políticas entre outras, e marcado pela completa ausência do Estado enquanto
agente de resolução desses problemas, tanto do lado brasileiro quanto do paraguaio. A
partir daí, a luta pela terra cria seus próprios conflitos que se desenrolam até a atualidade; e
a “expansão” é vista como seu principal causador.
1.5 – A perspectiva paraguaia sobre o latifúndio estrangeiro
A questão fundiária na América Latina apresenta “problemas” em vários países e
no Paraguai a situação não é diferente; esses problemas vão desde as tensões no campo e as
reivindicações do movimento campesino até o gradativo aumento da produção agrícola
tendencialmente monocultora e voltada à exportação, em especial a da soja.
Para o paraguaio ocorre quase um processo de expropriação, a terra a que ele tem
“direito” lhe é tirada e (re)passada para o empresário agrícola. Os pontos mais perceptíveis
na visão dessa população e que perpassam até mesmo alguns setores como o
71
governamental, a imprensa, as lideranças do movimento campesino e os próprios
campesinos — esses elementos são pertinentes de serem minimamente trabalhados.
Na intenção de ordenar esses pontos para análise, enfatizo o contraste entre a
produção estrangeira e a nativa, ou seja, a cultura paraguaia e o seu modelo de exploração
agrícola, que estão geralmente cercados por grandes extensões. O “enclave sojero” se
materializa em meio à ‘merma de soberania e pobreza’ no país. Essas transformações,
como insistimos, causam não apenas problemas sociais, econômicos e ambientais, mas até
mesmo problemas de saúde ocasionados pela freqüente utilização de agrotóxicos nessas
propriedades, doenças e até mortes de pessoas.
Uma das principais características históricas da estrutura agrária no Paraguai foi
(e em parte continua sendo), o alto nível de concentração de terra, conseqüência da
vigência do antigo sistema formado pelo latifúndio, que até certo ponto caracteriza a atual
estrutura agrária. Esta posição é praticamente unânime entre os pesquisadores que estudam
a questão; ao mesmo tempo, esses ressaltam o complexo e dinâmico processo que vem
transformando a estrutura agrária nas últimas décadas, fato ligado diretamente à economia
campesina e às pequenas propriedades naquele país; essas propriedades embora em
superfície representem números comparativamente pequenos, atingem um grande número
de agricultores e propriedades. Em contrapartida, verifica-se, nesse mesmo contexto, um
crescente aumento das grandes plantações, especialmente de soja, feita por estrangeiros.
Um dos principais aspectos referentes à exploração de terras no país vizinho é
sem dúvida o acentuado contraste entre a produção estrangeira ou melhor, latifundiária
— e a do campesinato paraguaio. As características que percebemos nos padrões de
produção situado em Puente Kyjhá, no departamento de Canindeyu, leste do Paraguai, o
aqui analisadas com mais rigor; a forma de trabalhar e produzir ali verificada é bastante
representativa de grande parte dos pequenos agricultores e campesinos daquela região; ou
seja, denotam traços da cultura paraguaia e do seu modelo de exploração agrícola.
O campesino paraguaio cultiva a terra segundo técnicas herdadas dos
antepassados indígenas — guaranis — que demonstraram serem válidas estas técnicas pelo
simples fato de terem vivido até os dias atuais. A utilidade e a exploração das terras pelo
paraguaio têm ainda outros significados. A propriedade serve-lhe como um lugar que supre
suas necessidades; a pesca e a caça eram práticas freqüentes e auxiliavam na alimentação
da família; o cultivo da mandioca, do feijão, do milho, a criação de animais domésticos,
entre outros produtos básicos, supriam a família e os grupos sociais campesinos.
72
A diferenciação existente entre técnicas de cultivo e exploração de recusros
naturais reside nas características culturais de cada povo, como mostram as pesquisas na
área da antropologia econômica; falamos aqui de brasiguaios, que possuem outras técnicas:
sua cultura, além de diferenciar-se da indígena, assemelha-se aos costumes europeus, uma
vez que descendem em grande parte daqueles povos migrados para o sul do Brasil; por isso
seus interesses são outros. Seguindo esse raciocínio Gregory diz que:
a localização e expansão dessas regiões coloniais [no sul brasileiro] obedeceram a
critérios e interesses do próprio latifúndio e do sistema como um todo, que objetivavam o
desbravamento, a inserção de novas áreas nas relações capitalistas de produção e a
continuidade das migrações dos eurobrasileiros. Portanto são áreas controladas e se
localizam nas fronteiras pioneiras do espaço capitalista” (G
REGORY
, 2002, p. 21).
Herdeiros da expansão capitalista, essa era a mentalidade predominante entre as
pessoas que migravam para Paraguai.
Por outro lado, para os oriundos da terra, a produção para venda ou o excedente
se dava quando havia uma parte considerável de produtos que não seriam utilizados; então,
essa produção era vendida, caso contrário esses mantimentos seriam utilizados na
manutenção da casa ou de sua propriedade como um todo. A propriedade, até poucas
décadas atrás, não tinha para os paraguaios a expressão que tem atualmente; a utilização da
terra era feita aos poucos com a derrubada e a plantação de pequenas áreas, com trabalho
braçal, e aumentava lentamente; o valor da terra enquanto bem de troca era mínimo, servia-
lhe quase que exclusivamente para o sustento da família.
Assim, a lógica de desenvolvimento do setor pode ser explicada a partir do
modelo de exploração paraguaio da terra; esse elemento cultural não foi implantado de um
momento para outro, é algo que se vem introjetando de geração em geração no meio social
e cultural, e que não pode lhes ser tirado ou simplesmente substituído sem operar uma
espécie de genocídio ou etnocídio. O modelo de cultura da terra é um dos mais arraigados
estilos de vida do homem, seja em que país ou continente for, e sua mudança requer
décadas, senão culos de exploração para sofrer alterações que surtam alguns efeitos
coletivos no setor. Evidentemente, a expansão do capitalismo no campo não leva em conta
esses determinantes ou condicionantes sócio-culturais.
Não queremos afirmar que as pessoas do campo não tenham como ascender a
níveis de desenvolvimento econômico por causa do conservadorismo agrícola visível em
muitos lugares; mas sim, que a estrutura agrária de um país é algo muito complexo, e
73
“alterá-la” de maneira uniforme na busca de uma “melhor” ou “pior” forma de cultivo da
terra é algo mais difícil do que pressupõem os que brandem estatísticas e argumentam em
termos das supostas leis de mercado. Essas mudanças ocorrem, obviamente, mas são elas
também mudanças históricas que se processam na longa duração, e a partir de “causas” que
não são elas mesmas puramente econômicas, mas também culturais.
Sobre isso algumas ponderações podem ser feitas, pois a cultura agrícola
paraguaia é compreendida por muitos como “primitiva”, essa questão é visível, não apenas
no Paraguai como em outros países, todavia não podemos deixar o Estado e até mesmo
outras instituições, como, por exemplo, a Igreja, isenta do papel de auxílio à população.
Com o aumento da imigração estrangeira, e especialmente de brasileiros, àquele país,
muitos vêem com preocupação essa situação, defendendo que algo seja feito para que essa
mudança no setor agrário aconteça de maneira ordenada e o menos traumática possível
para os contingentes populacionais envolvidos. Como esclarece Roque Gonzáles Vera,
El Ministério de Agricultura y el IBR tienen absoluta conciencia de que la entrega de
tierras no sirve para nada. Los campesinos cultivan en forma rudimentaria, aislados de
los centros de comercialización y carentes de un mínimo de organización que les permita
negociar con êxito el precio de sus productos. Los asentamientos campesinos no tienen
futuro porque no tienen rentabilidad. Los ingresos obtenidos con la producción no
garantizan una vida digna para las famílias. Si apenas tienen para comer, mejor ni
entremos en detalhes como salud, educación, servicios básicos y planificación familiar
(A
BC
C
OLOR
, 29/04/2004, p. 22)
Na visão de alguns órgãos da imprensa escrita paraguaia, como o ABC Color, La
Opinión e Ultima Hora, a situação dos campesinos e seu modelo de produção é em certo
ponto compreensiva, por que é resultado de um “modelo de cultivo indígena” que
enfrentou um longo período de ditadura. O sistema político vigente não permitia e nem
mostrava interesse em proporcionar o acesso interno à tecnologia e à educação,
evidenciando com isso uma das máximas da política ditatorial, a de que a imposição da
ignorância é um elemento de dominação social.
Em grande parte, os conflitos verificados na fronteira são oriundos de
“historicidades desencontradas”, conforme a sugestiva expressão do sociólogo José de
Souza Martins. Para ele, esses encontros expressam uma:
dimensão de conflitos por distintos projetos históricos ou, ao menos, por distintas versões
e possibilidades do projeto histórico que possa existir na mediação da referida situação
de fronteira. Essa situação de fronteira é um ponto de referência privilegiado para a
pesquisa sociológica por que encerra maior riqueza de possibilidades históricas do que
outras situações sociais. Em grande parte porque mais do que o confronto entre grupos
74
sociais com interesses conflitivos, agrega a esse conflito também o conflito entre
historicidades desencontradas. (M
ARTINS
, 1997, p. 182).
Martins destaca que os diferentes meios de cultura se dão, com efeito, como um
conflito de historicidades, podendo estar desencontradas em um projeto de mediação entre
os povos irmãos. Essa forma de sociologia histórica mostra que a fronteira não aparece
apenas como um marco territorial, político ou geográfico, mas, sobretudo, como um lugar
de desencontro das relações sociais.
Vera diz que na atualidade o IBR e o Ministério da Agricultura paraguaio não
têm prioridade quanto às famílias campesinas; as instituições pouco ou nada fazem a não
ser enganá-los com discursos vazios, e as melhorias que esse movimento conseguiu com o
passar dos anos é mérito exclusivamente conquistado com esforço próprio dos
trabalhadores, em suas reivindicações.
El principal engaño es la distribuición de tierras, en las condiciones actuales. Se compran
tierras, que en menos de un año tendrán un 40% de abandono. No existe un modelo de
colonización, mucho menos un acompañamiento técnico, que permita a los campesinos
llegar a convertirse en agricultores” (A
BC
C
OLOR
, 29/04/2004, p. 22).
Há a clara impressão de abandono dos campesinos paraguaios pelo Governo, pois
a agricultura na atualidade necessita da intermediação pública por parte dos governantes
para criar infraestrutura e condições mínimas de produção e reprodução.
Nesse contexto a ampla discussão que leva diretamente aos brasiguaios; pois
como os campesinos paraguaios irão “competir” com os agricultores que vêm do Brasil e
aí se instalam? Não é necessário precisar diferenças econômicas ou conhecimento técnico e
tecnológico de “uns” em contrapartida dos “outros”; mas sim a carência de organização
dos produtores, a falta de mecanismos de comercialização e ainda a ausência de caminhos
minimante aceitáveis, se somando aos valores de propriedade que a terra possui para o
paraguaio e o seu modelo de cultivo.
Para Martins, esses desencontros da historicidade em detrimento do outro se dão
porque “a história do recente deslocamento da fronteira é uma história de destruição. Mas
é também uma história de resistência, de revolta, de protesto, de sonho e de esperança”
(M
ARTINS
, 1997, p. 147). As práticas econômicas capitalistas dos grandes proprietários,
latifundiários, fazendeiros ou empresários agrícolas fomentam essas revoltas; esses agentes
75
representam mais de 80% dos estrangeiros no Paraguai; desse contingente, mais de 85%
são brasileiros, denominados por eles em grande parte como brasiguaios.
O Departamento de Canindeyú aparece como o terceiro maior produtor de soja do
Paraguai, ficando atrás de Alto Paraná e de Itapúa. A soja, introduzida recentemente,
impõe-se massivamente no extremo leste do país, caracterizando nessa região o chamado
Enclave Sojero, com plantios de grandes extensões de lavoura totalmente mecanizada, e
que, portanto, nem mesmo empregam mão-de-obra paraguaia. As exportações de soja no
final do século
XX
representam mais de um terço do valor total das exportações
13
paraguaias, e são destinadas ao Brasil praticamente 30% de seu total (
CF
.
F
OGEL
, In:
R
IQUELME
, 2005, p. 44).
Embora seja visível que a questão fundiária no Paraguai está mais voltada para a
produção de gado do que para a de soja, que é caracterizada por plantações médias e
grandes, a segunda sempre foi mais debatida, porque o modelo agrícola de exploração é
diferenciado da exploração campesina que observamos acima, bem como o da criação de
gado.
Ao se tratar de grandes plantações, o auxílio ou não do Governo não impedirá que
ocorra a produção, pois a influência dos proprietários em empresas de comercialização de
produtos e insumos agrícolas é grande, obtendo assim o apoio ou o financiamento
necessário para que o plantio e a colheita ocorram sem atrasos; o mesmo não acontece
com os campesinos, que ficam na dependência de certos auxílios.
Uma das características da cultura sojeira é a monocultura, com solos planos e
utilização intensa de tecnologia desde a preparação dos solos até a colheita, com utilização
de maquinário pesado, como esclar Sylvain Souchaud.
La producción de soja corresponde a las explotaciones familiares medianas y grandes.
Exigentes de una alta productividad, la monocultura intensiva se reserva para ella los
suelos más ricos y los de relieve plano. Desde las primeras cosechas las parcelas son
trabajadas con máquinas pesadas (tractores, cultivadoras y hasta avionetas). Es necesario
señalar igualmente que la superficie agrícola tenido una progresión histórica en los
últimos treinta años y el monocultivo de la soja há favorecido la aparición de la
propriedad “mediana”, aunque el modelo de agricultura capitalista que se impone
mantiene las dificultades del acceso al recurso tierra (S
OUCHAUD
, 2005, p. 28).
Sinteticamente, as palavras de Souchaud refletem a maneira como funciona a
exploração da terra por parte dos grandes plantadores, e também o seu valor que está
13
Trata-se de exportações legais com dados que comprovam as transações.
76
inserido diretamente no modelo capitalista com uma supervalorização da propriedade. É
importante ainda perceber a dinâmica do espaço com relação a essa exploração de grandes
parcelas de terras; segundo o mesmo autor, a produção de soja;
se distingue en el paisaje oriental por estar asociada a una estrutura agrária entonces
desconocida en Paraguay, marcada por la presencia de campos abiertos, así como de una
baja densidad humana rural y un dispositivo urbano muy dinámico. En los departamentos
donde la progresión es muy fuerte, (...) el mosaico de parcelas sin linderos constituye un
paisaje uniforme; la soja se extiende hasta el horizonte, interrumpida solamente por
algunos árboles, remanecente del monte nativo (I
DEM
, p. 27).
O autor mostra que a cultura de soja provoca um grande desmatamento no
Paraguai, bem como uma baixa densidade populacional, pois se caracteriza as grandes
extensões para o plantio com poucos moradores nesses espaços; enquanto que na
exploração das terras por parte dos paraguaios, a concentração de pessoas é grande.
Em síntese, podem-se caracterizar dessa forma a diferença entre os modelos de
exploração dos campesinos paraguaios e o modelo de exploração dos grandes proprietários
e seus devidos valores. Os primeiros produzem de maneira a conseguirem a subsistência e
a própria reprodução enquanto agricultores; e os segundos, inseridos numa produção
agrícola capitalista, voltam-se para a exportação em grande escala, concentrando a
propriedade e explorando-a para o mercado; essas propriedades, em sua maior parte, estão
nas mãos de estrangeiros.
Porém, a visão dos primeiros com relação aos segundos é de que estes se utilizam
de suas terras para desenvolverem a produção em grande escala, em busca apenas do lucro,
e não revertem nada dessa renda obtida da produção em benefícios para o país. Percebe-se
nas palavras do jornalista José Duarte esse ponto de vista, que tenta até mesmo fazer uma
diferenciação entre empresários e agricultores naquele país.
Hay empresarios brasileños y hay agricultores brasileños. Los empresarios son aquellos
que después se han venido a Alto Paraná, al departamento de Canindeyú con las tierras
rojas, tierras fértiles, tienen dinero para comprar esas tierras. Son grandes empresarios
que no viven acá, son gente que vienen a comprar extensiones de tierra, que muchas
veces lo tienen aquí como un capital para sacar créditos, esos son los empresarios. Los
agricultores son aquellos que tienen sus tierras, adquieren su plata, pero no se van, están
montados en sus tratores, trabajando, sembrando, montados en sus cosechadoras y en sus
camiones. (J
OSÉ
D
UARTE
. Apud, A
LBUQUERQUE
, 2005, p. 78).
Este ponto de vista é interessante e faz sentido em muitos aspectos; mas os
interesses dos campesinos chocam-se diretamente com os interesses das grandes e médias
77
propriedades de cultivo, especialmente de estrangeiros. Não pudemos constatar, no
discurso do campesinato paraguaio, essa diferenciação sócio-econômica entre empresários
brasileiros e agricultores brasileiros, uma vez que indistintamente o “brasiguaio” que
contém grandes ou médias propriedades de terras e vive naquele país vive sob ameaça,
especialmente se situado na faixa de fronteira. Segundo Konig e Iunovich, em 1999 os
campesinos já denunciavam que:
dezenas de propriedades rurais das principais colônias brasileiras no Paraguai, na
fronteira com o Paraná, estão sob permanente ameaça de invasão. Nem mesmo escrituras
e décadas de cultivo são suficientes para assegurar a centenas de imigrantes o direito às
terras compradas no país. Há três meses, grupos de sem-terra paraguaios estão saqueando
e invadindo fazendas de brasileiros na localidade de Porto Índio, às margens do
reservatório da Usina de Itaipu. Expulsos pelas invasões e ameaças, muitos dos
agricultores estão acampados em Foz do Iguaçu, no Brasil (K
ONIG
&
I
UNOVICH
. Apud,
A
LBUQUERQUE
, 2005, p. 118).
O ambiente é tenso, gerado por inseguranças e incertezas, uma vez que nesse
contexto se discute a lei de fronteiras no Paraguai. Essa lei tem como principal objetivo
criar uma faixa de segurança nacional de aproximadamente 50 km na fronteira do Paraguai
com o Brasil; ela diz que os estrangeiros não podem ocupar essa zona de demarcação, mas
não deixa claro o que aconteceria com os agricultores que estão há anos vivendo nessa
área. A incerteza quanto ao futuro cria intranqüilidade nas pessoas sejam estrangeiros ou
paraguaios.
A temática desenvolvida em torno da questão fundiária no Paraguai é um
“problema” complexo e, na medida em que essa discussão vai se prolongando, muitos
aspectos vêm à tona. A tentativa de esclarecer alguns pontos nesse sentido nos fez perceber
“os vários lados de uma mesma moeda”.
Notamos que a indiferença política para com a questão; não uma
organização elaborada para reivindicações por parte dos campesinos; o que é certo que há,
é o latifúndio sojero, que domina a paisagem e não apenas ela. Esse vai aumentando em
grandes proporções no Paraguai e se reproduz rapidamente, deixando o paradoxo de
expansão e pobreza.
Ao mesmo tempo, faz-se necessária a discussão sobre os valores e modelos de
exploração agrícola latifundiária estrangeira e da pequena propriedade paraguaia; esta
última se prejudicada diante da fúria e avareza do capital, que coloca até mesmo a
questão da sobrevivência alimentícia de populações inteiras.
78
Por último vale destacar que ainda o problema da intoxicação decorrente das
pulverizações nas grandes propriedades de soja, que deixam ilhados milhares de
campesinos em seus pequenos sítios onde desenvolvem um outro tipo de cultura agrária.
14
1.5.1 – As leis paraguaias
Para esta pesquisa não há como deixar de tangenciar as grandes transformações
sociais, econômicas e especialmente políticas ocorridas tanto no Paraguai como no Brasil
nas últimas décadas do século
XX.
A questão da propriedade de terras no Paraguai se insere
em todos os âmbitos destacados e adentra a esfera cultural de sua população. Na
Constituição Nacional do Paraguai percebe-se que um movimento “retrógrado” em
relação ao desenvolvimento agrário campesino, momento em que a discussão sobre a
questão, em 1992, com relação a uma versão anterior, datada de 1967.
A legislação paraguaia que regula e garante a propriedade de terras e a
propriedade em geral se faz presente em vários corpos legais, como a Constituição
Nacional, o Código Penal, o Código Civil, entre outras. As várias leis existentes sobre a
questão agrária não estão isentas de contradições, sendo em alguns casos parciais e em
outros impraticáveis.
Por exemplo, o artigo 83 da Constituição Nacional de 1967, eliminado na nova
Constituição de 1992, textualmente o artigo expressa.
Toda familia tiene derecho a um hogar asentado sobre tierra propia para lo cual se
perfeccionarán las instituiciones y se dictarán las leyes más convenientes a fin de
generalizar la propiedad inmobiliaria urbana y rural y promover la construcción de
viviendas económicas, cómodas e higiénicas, especialmente para trabajadores asalariados
y campesinos” (A
RTIGO
83,
C
ONSTITUCIÓN
N
ACIONAL DE LA
R
EPÚBLICA DEL
P
ARAGUAY
, 1967, s/p).
14
Os danos à saúde dos agricultores paraguaios que tem seus pequenos sítios encravados entre as grandes
extensões de terras dos imigrantes são praticamente inevitáveis. As casas desses agricultores ficam
margeadas por todos os lados pelas plantações; quando chegam as épocas de pulverização de agrotóxicos, a
situação piora, pois não como conter os efeitos dos venenos e a intoxicação é questão de tempo para ser
constatada. Esta situação gera conflitos entre os trabalhadores, e faz com que muitos campesinos vendam
suas propriedades por causa desse motivo; assim, o grande proprietário geralmente agrega várias pequenas
propriedades, formando fazendas de grandes extensões especialmente destinadas ao cultivo de soja, enquanto
muitos dos campesinos não conseguem adquirir novas terras para produzirem.
79
A lei que garantia os direitos acima descritos para todos os cidadãos e obrigava o
Estado a cumprí-la desaparece na Constituição Nacional de 1992, que fala apenas do
direito a uma casa digna Artigo 100 sem fazer qualquer menção à terra e à sua
propriedade.
O Artigo 100 destaca.
Todos los habintantes de la República tienen derecho a una vivienda digna. El Estado
establecerá las condiciones para hacer efectivo este derecho y promoverá planes de
vivienda de interés social, especialmente las destinadas a familias de escasos recursos
mediante sistema de financiamento adecuado (A
RTIGO
100,
C
ONSTITUCIÓN
N
ACIONAL
DE LA
R
EPÚBLICA DEL
P
ARAGUAY
,
1992,
s/p).
Hipoteticamente, o objetivo com a alteração, é liberar o Estado da
responsabilidade que tinha anteriormente sobre esta questão, e abrir espaço para o mercado
ditar suas regras e intermediar as transações imobiliárias; os conflitos decorrentes disso são
relegados à lei de oferta e procura.
O artigo 107 da Constituição de 1992 garante a competência ao mercado, mas
menciona a igualdade de oportunidades. Conforme dita o texto do Artigo 107.
Toda persona tiene derecho a dedicarse a la actividad económica lícita de su preferencia,
dentro de un régimen de igualdad de oportunidades. Se garantiza la competencia en el
mercado. No serán permitidas la creación de monopolios y el alza o la baja artificiales de
precios que traben la libre concurrencia. La usura y el comercio no autorizado de
artículos nocivos serán sancionados por la Ley Penal (A
RTIGO
107,
C
ONSTITUCIÓN
N
ACIONAL DE LA
R
EPÚBLICA DEL
P
ARAGUAY
,
1992,
s/p).
Contudo, ponderamos que a igualdade é superada por quem possui mais capital;
ora, esta falta de capital é o grande problema do campesino; logo, essas relações socio-
econômicas não seriam igualitárias.
O artigo 109 fala da indenização com pagamento antecipado para terras
desapropriadas. Os “dispositivos legais” incorporados nas leis agrárias comprometem o
regulamento da propriedade de terras pela intervenção do mercado e restringe o papel do
Estado nessa questão. Nesse contexto, a intervenção dos latifundiários e a participação de
setores empresariais foram decisivas na “reformulação” da Constituição Nacional em
1992, enquanto a participação de representantes do setor campesino e de pequenos
proprietários foi praticamente nula no momento em que foram aprovados artigos que lesam
o processo de mudanças no setor rural paraguaio. Essa característica não afasta a idéia de
autoritarismo, mesmo esse regime tendo caído em 1989.
80
Um dos principais embates nesse sentido é o artigo 109; este Artigo apregoa que:
se garantiza la propiedad privada, cuyo contenido y límites serán establecidos por la ley,
atendiendo a su función económica y social, a fin de hacerla accesible para todos. La
propiedad privada es inviolable. Nadie puede ser privado de su propiedad sino en virtud
de sentencia judicial, pero se admite la expropiación por causa de utilidad pública o de
interés social, que será determinada en cada caso por ley. Ésta garantizará el prévio pago
de una justa indemnización, establecida convencionalmente o por sentencia judicial,
salvo los latifúndios improductivos destinados a la reforma agrária, conforme con el
procedimiento para las expropiaciones a establecerse por ley” (A
RTIGO
109,
C
ONSTITUCIÓN
N
ACIONAL DE LA
R
EPÚBLICA DEL
P
ARAGUAY
,
1992,
s/p).
A sua aplicação gerou várias expropriações que não puderam ser legalizadas por
não ocorrer o acordo sobre o valor da propriedade entre os interessados e o Estado,
inclusive sobre os latifúndios improdutivos que não estão contemplados por pagamento
prévio, conforme reza o artigo 109. Um exemplo dessa situação é a CIPASA Compañia
Industrial Paraguayo Argentina S.A. – latifúndio improdutivo cuja destinação continua sem
solução por desacordos de preços depois de dez anos de sua expropriação.
Na Constituição Nacional de 1992, o Artigo 114 reconhece a Reforma Agrária
como um fator fundamental para o bem estar rural, e posterga um plano de distribuição
praticamente perfeito. Infelizmente, a passagem desse plano do papel para a prática é algo
precário e quem fica a mercê dessas decisões e sofrem as conseqüências são os
campesinos. E a falta de capital aos campesinos nessa “lei” de mercado acaba com os
preceitos de igualdade que a Constituição Nacional determina.
O Artigo 114 de 1992 expressa.
La reforma agraria es uno de los factores fundamentales para lograr el bienestar rural.
ella consiste en la incorporación efectiva de la población campesina al desarrollo
económico y social de la Nación. Se adoptarán sistemas equitativos de distribución,
propiedad y tenencia de la tierra; se organizarán el crédito y la asistencia técnica,
educacional y sanitaria; se fomentará la creación de cooperativas agrícolas y de otras
asociaciones similares, y se promoverá la producción, la industrialización y la
racionalización del mercado para el desarrollo integral del agro (A
RTIGO
114,
C
ONSTITUCIÓN
N
ACIONAL DE LA
R
EPÚBLICA DEL
P
ARAGUAY
,
1992,
s/p).
Para os legalistas tudo funciona conforme a lei, e essas questões são indiscutíveis.
Para os campesinos, tudo é discutível; para eles, a lei foi feita para proteger os poderosos e
os estrangeiros, e argumentam que a vida e a dignidade das pessoas estão acima da lei.
81
Para o campesinato que
“obedece” culturas ancestrais, a
terra é parte de seu modo de ser; é
a vida, é a mãe de tudo e essa
visão possui raízes históricas
profundas; o que predomina é a
consciência da maioria dos
campesinos. Muitas ocupações
seguem um pretexto bíblico de que
Deus criou a terra para todos, e os
humanos é que a distribuem mal; afinal, Adão não deixou testamento.
As manifestações que reivindicam o direito à terra para todas as pessoas também
aparecem freqüentemente nas ruas da capital paraguaia, fixados em muros e paredes de
casarões; frases de impacto fortalecem as matérias de jornais e conseqüentemente a luta
pela terra dos campesinos.
A consciência campesina quanto ao valor da terra evoluiu no Paraguai. O
campesino percebeu que ela é um bem pelo qual vale a pena lutar; essa consciência
aumenta com a organização campesina em todo o país; por meio disso, o campesinato
percebe as relações sociais que giram em torno dela enquanto propriedade, não apenas
como um produto, mas também como uma ferramenta de trabalho e sobrevivência.
Embora se critique a inversão agrícola de estrangeiros e latifundiários no
Paraguai nos tempos de Stroessner, a análise procura mostrar que foi após a sua saída do
poder que houve transformações mais significativas na Constituição Nacional,
prejudicando mais os campesinos e beneficiando os grandes proprietários. Atualmente, as
leis que beneficiariam o país, na grande maioria das vezes são negligenciadas.
A discussão sobre direito e leis de propriedade enfoca atualmente o desrespeito às
leis paraguaias especialmente por parte de latifundiários estrangeiros que muitos
identificam aos brasiguaios que desviam mercadorias ou mesmo as comercializam no
Paraguai, por terem nesse país menos impostos a pagarem; e, após a transação de compra
ou venda de produtos, não aplicam os lucros e rendas obtidas naquele país. a nítida
prática de exploração das terras paraguaias, sem qualquer retorno monetário ou benefício
econômico.
O sociólogo Ramon Fogel diz que:
Fonte Acervo particular Leandro Baller, Assunção
82
este és un fenomeno muy freqüente; esa colonización significa todo que no atendien
nostras leyes y (...) que 90% no pagan impuesto, impuesto territoriales; y tienen 10% que
pagan, san paraguayos, so que no san todos, san los pocos paraguayos que están alla, no
pagan, no respectan entonces nuestras leyes impositivas nen tampoco las leyes de
migraciones, nen tampoco las leyes agrarias. Perdimos en todas las instâncias judiciales
em todos los pleitos. (E
NTREVISTA
.
R
AMÓN
F
OGEL
,
2006).
Este “fenômeno”, como o chama o sociólogo, acontece anos e tem ficado
impune; ele enfatiza essa prática de desvio de mercadorias.
Ahora Paraguay sigue-se nun paraíso fiscal; nosotros pagamos la pension tributaria, que
lhega a 10% en Produto Intierno Bruto; en Brasil varian a 32 e 36% por qué? Porque los
Estados tambien cobran impuestos, algunos Estados cobran más que otros. algun
tiempo que aca és un paraíso fiscal (I
DEM
).
Para Fogel, o Paraguai serve como um bom local para venda desses produtos por
que sua carga tributária é menor em relação ao Brasil e a outros países; mas não
aplicação do dinheiro no país, o que caracteriza uma forma de colonização e não atende às
leis em vários setores, sejam leis territoriais, agrárias ou de migração.
Outro aspecto diz respeito à utilização das terras indígenas para plantio, em que a
maioria dos envolvidos são estrangeiros que desconhecem as leis nacionais e acabam
fomentando uma prática altamente prejudicial em vários sentidos ao vizinho país.
La descomposición de la organización social de estas comunidades se ve alimentada en
esas colonias por la corupción — inducida por los sojeros — de los líderes, y sectores de
los asentamientos indígenas, que se benefician con el arriendo ilegal de tierras, no
prevista en la cultura de las etnias involucradas, y expresamente prohibida por leyes
vigentes (F
OGEL
, 2005, p. 44).
Na afirmação de Fogel, nota-se a influência que o “brasiguaio impõe” sobre a
cultura dos paraguaios, passando por cima de suas leis e pervertendo a própria cultura
étnica defendida por essas leis. A maioria das ações está sendo alimentada pela corrupção;
em primeiro lugar, dos estrangeiros, por arrendar as terras e usufruírem do lucro
expropriado; e posteriormente das lideranças, que se vêem condicionadas a aceitar quantias
muitas vezes irrisórias por extensões de terra e verem suas reservas serem tomadas pela
plantação de soja.
A desobediência das leis paraguaias ocorre em vários âmbitos e seus principais
infratores são latifundiários estrangeiros. Essa prática, conforme alerta o sociólogo
paraguaio, é “antiga” e a justiça daquele país não consegue fazer-se respeitar. Além disso,
83
o desrespeito acaba atingindo setores que fizeram ou estabeleceram leis baseadas em
aspectos culturais para proverem indígenas de certos direitos que se anulam pela corrupção
externa e interna.
Em grande parte, a atuação de estrangeiros nas fronteiras do Brasil com o
Paraguai se de maneira corruptível e corruptora, especialmente com relação aos
brasiguaios sempre pensando o termo como mais flexível do que o modo como alguns
pesquisadores o definiram. É necessário, para nossa melhor compreensão, mostrar o
contraponto dessa investida a partir da perspectiva paraguaia, atrelando uma discussão em
âmbito social, político, agrário e econômico, para então analisarmos algumas dinâmicas
culturais nessa fronteira, especialmente quanto às identidades e ao imaginário.
II – O IMAGINÁRIO SOCIAL EM AMBIENTE DE FRONTEIRA
Os sistemas simbólicos em que assenta e através do qual opera o
imaginário social são construídos a partir da experiência dos
agentes sociais, mas também a partir dos seus desejos, aspirações e
motivações. (BACZKO, 1985, p.311).
A realidade da fronteira é permeada de imaginários sociais. Diversos teóricos se
debruçaram sobre o problema dos imaginários sociais, que rendeu até mesmo um verbete
na prestigiosa Enciclopédia Einaudi. Nesse texto, fundamental para a discussão, Bronislaw
Baczko considera o imaginário social um tema de estudo que, nos anos 1980, estava se
difundindo nas ciências humanas; “o estudo dos imaginários sociais se tornou um tema da
moda” (B
ACZKO
, 1985, p. 297), ganhando terreno no campo discursivo, especialmente nas
áreas da antropologia, sociologia, história e psicologia, cujos estudos reconhecem as
funções múltiplas e complexas do imaginário. Aludiremos aqui apenas aos aspectos mais
significativos dessa problemática para a construção do objeto da pesquisa, qual seja, a
transitoriedade da/na cultura de fronteira.
Nas palavras de Baczko,
o imaginário social elaborado e consolidado por uma coletividade é uma das respostas que
esta aos seus conflitos, divisões e violências reais ou potenciais. Todas as coletividades
têm os seus modos de funcionamento específicos a este tipo de representações.
Nomeadamente, elaboram os meios da sua difusão e formam os seus guardiães e gestores,
em suma, o seu pessoal. (I
DEM
, p. 309)
Desta forma, e trabalhando o conceito em relação ao estudo do nosso objeto de
pesquisa, o imaginário seria uma das forças reguladoras da vida em coletividade na
fronteira, considerando-se os conflitos simbólicos ou reais entre os diferentes agentes que
constituem historicamente a cultura de fronteira.
Para o antropólogo Gilbert Durand, o imaginário faz parte de um conhecimento
funcionando com comunicações entre o interno e o externo, como um trajeto onde ocorrem
as traduções das coisas novas que terminam sendo vistas como tradições, fundamentos
existenciais e epistemológicos do sujeito histórico; quando o imaginário é configurado
acaba construindo-se como objeto do presente-passado.
Durand diz que o imaginário (...) é o conjunto das imagens e relações de imagens
que constitui o capital pensado do homo sapiens aparece-nos como o grande
85
denominador fundamental onde se vêm a encontrar todas as criações de pensamento
humano” (D
URAND
, 1997, p. 18).
Seja o sujeito histórico individual ou coletivo, são estes acordos mentais que criam
formas de estabelecer as comunicações de seu interior com o exterior; seguindo o
pressuposto apresentado por Durand, essa perspectiva nos leva da psicologia para a
sociologia, e simultaneamente à história.
O sociólogo Pierre Ansart também tece proposições quanto ao tema; para o autor, o
imaginário social abarca um conjunto de evidências implícitas das normas e dos valores
que legitimam as relações sociais. O imaginário está intimamente relacionado às
ideologias. Os ideólogos, nesse caso, possuem a função de racionalizar e criar as formas de
legitimação das ideologias, conduzindo a população a um conjunto de práticas objetivadas
pelo poder político. Assim, para Ansart, os imaginários atendem claramente às finalidades
políticas que alguns intelectuais difundiam e difundem no Estado ou Nação, com vários
dispositivos de veiculação, especialmente através da imagem como propaganda. (Cf.
A
NSART
, citado por, F
REITAG
, 2001, p. 41).
As noções de imaginários sociais trabalhados na pesquisa se qualificam como um
conjunto de imagens no inconsciente coletivo de um grupo social, o depósito de imagens
de memória e imaginação; não é algo independente da vida cotidiana, pelo contrário,
representam as “coisas” e relações que temos em nosso cotidiano.
As abordagens teóricas acima destacadas são relevantes e viaveis, mas é
interessante interligarmos os conceitos de representação e imaginário, colocando-os lado a
lado com o conceito de cultura. Com efeito, as imagens mentais constituem elementos da
cultura, e tanto o material iconográfico quanto as entrevistas orais e o discurso da imprensa
reproduzem imagens, figuras da memória representações das relações socioculturais de
uma época. Dessa forma, a pesquisa elaborada não deve discutir conceitos em abstrato,
mas levar em conta o contexto histórico a partir de uma análise crítica das fontes
selecionadas.
Ao problematizar os imaginários sociais aproximamo-nos das reflexões de Roger
Chartier. Parafraseando-o, podemos dizer que toda representação do mundo social é
construída pelos interesses do grupo que a elaborou, sendo necessário observar as
representações e os discursos a partir da posição social de quem os utilizam.
Assim como existe a luta econômica na sociedade em torno das relações materiais,
existe também a luta de representações em torno das relações simbólicas, cada grupo,
86
classe ou segmento social tentando impor seus próprios valores; isso permite afirmar que
não existe uma clara distinção entre a objetividade das estruturas e a subjetividade das
representações. Ou seja, para conhecer as representações de um grupo temos de conhecer
todo seu sistema social, o imaginário perpassa todos esses elementos e pode ser
estudado em interação com a observação da totalidade da estrutura social, evidentemente
por meio de recortes precisos e variações de escala. A história cultural se apresenta, assim,
como um dos campos de pesquisa que integra a história das representações, tornando-se
uma história social das representações coletivas.
Na visão da historiadora Helenice Rodrigues da Silva; Chartier estabelece em seus
escritos sobre “O estatuto da História”
15
que:
o conceito de representação permite associar antigas categorias que a história social, a
história das mentalidades e a história política mantinham separadas. Desse modo, ele
possibilita unificar três dimensões constitutivas da realidade social (...), a matriz das
formas de percepção, de classificação e de julgamento; em seguida as formas simbólicas
por meio das quais os grupos e os indivíduos percebem suas próprias identidades, e por
fim a delegação atribuída a um representante (indivíduo, coletivo, instância abstrata) da
coerência e da permanência da comunidade representada (S
ILVA
, 2002, p. 126).
A noção de imaginário social serve neste contexto para compreendermos a
demanda de brasileiros para o Paraguai, seus modos de vida na fronteira, bem como os
diferentes sentidos atribuídos à fronteira por esses mesmos agentes. Muitos dos elementos
teóricos acima esboçados lançam luz sobre as complexas relações entre os diferentes
grupos sociais que se encontram e se desencontram na fronteira, movidos por diferentes
motivações e interesses; tanto os proprietários de grandes extensões rurais naquele país,
terras que estão nas mãos de estrangeiros, e entre estes muitos empresários agrícolas do
Brasil que apenas exploram sua produção em conluio com autoridades fiscais, políticas
e/ou militares; quanto às pessoas que vivem em consonância nesse espaço, seja no
trabalho, lazer ou como meio de vida.
2.1 – Fronteira
É importante definir conceitualmente o termo fronteira, que irá situar as relações
entre as populações dos dois países. Percebemo-la como algo mais complexo do que
15
No original: CHARTIER, Roger (1996). “Le statut de l’histoire”. Esprit, out.
87
apenas divisas entre territórios. Embora o termo pareça designar algo totalmente fixo um
espaço traçado por marcos geopolíticos, uma dinâmica fronteiriça que se estabelece na
região, tornando-a uma realidade móvel e com ambíguos significados.
De forma alguma reduzo ou resumo as tradicionais abordagens da fronteira sob a
perspectiva da História Diplomática. É claro que as separações geográficas e políticas são
fundamentais e importantes, e possuem um sentido mais estável para o termo, como bem
ressalta Helen Osório.
Tradicionalmente a história diplomática e a história militar fazem da fronteira um espaço
privilegiado, mas geralmente ela é abordada ou como fruto de tratados e de negociações
hábeis de diplomatas pela primeira, ou como resultado de vitórias heróicas em campo de
batalha pela segunda. Trata-se antes de tudo, de uma fronteira política e estatal. (O
SÓRIO
,
1995, p. 110).
Sob este ponto de vista, e no caso em tela, as reflexões do historiador José Adilçon
Campigoto nos auxiliam mostrando ainda que:
na perspectiva da história diplomática, baseada no documento escrito, a fronteira acontece
como resultado da luta dos diplomatas, dos militares e de administradores. A linha dos
limites aparece como resultado de uma disputa na qual os bandeirantes desempenharam um
papel equivalente ao dos diplomatas e militares (C
AMPIGOTO
, 2000, p. 22).
Não buscamos contar como se constituiu especificamente a linha fronteiriça que
demarca os limites entre duas regiões, territórios ou países como aqui em questão. Quanto
a isso, o relato diplomático valoriza a história dos grandes personagens, que batalharam
pela conquista e defesa do território ao qual pertencem, enfatizando, além dos interesses
em jogo das nações envolvidas, o patriotismo, a coragem e a honra. Estas disputas não
competem apenas à luta em campo aberto, mas, sobretudo e também, desde os gabinetes
dos palácios governamentais.
Os novos enfoques sociológicos, antropológicos e historiográficos têm propiciado
uma abertura de estudos referente ao tema. Esses estudos focam as relações sociais e as
práticas culturais e, por que não dizer, a cultura específica dessas populações no ambiente
de fronteira. O aprofundamento do sentido mais amplo da definição de fronteira se faz
necessário para o entendimento dela pela população, bem como para os teóricos que
refletem sobre a temática.
Nesse sentido, trabalhamos aqui com uma definição de fronteira que possui grande
proximidade com as reflexões do sociólogo José de Souza Martins.
88
É fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização, fronteira espacial,
fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da história e da
historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano. Nesse sentido, a fronteira tem
um caráter litúrgico e sacrifícial, porque nela o outro é degradado para, desse modo,
viabilizar a existência de quem domina, subjuga e explora. (M
ARTINS
, 1997, p. 13).
Na concepção de Martins, a fronteira ultrapassa em muito a tradicional definição
construída pela História Diplomática e Militar. Para ele, a noção de fronteira comporta
uma ampla gama de significados culturais, políticos e econômicos que se inter-cruzam
na(s) sociedade(s) que a constrói historicamente; especialmente nas questões de etnicidade
e relação com o “outro” o que nos leva diretamente às problemáticas identitárias,
freqüentemente presentes nas pesquisas sobre o tema.
Procuramos mostrar, através desses conceitos, a estreita ligação entre identidade,
fronteira e cultura da população em questão; por isso, levando em conta as mutações da
historiografia contemporânea, buscamos novas formas de escrita da história que ultrapasse
e redimensione o registro limitado aos acontecimentos políticos, diplomáticos e militares.
A história cultural, entre outras coisas, comporta estes sentidos para quem pesquisa-a e
escreve sobre, contribuindo para expandir e transfigurar o campo do historiador. Quanto a
isso, Peter Burke diz que “... a expansão do campo do historiador implica o repensar da
explicação histórica, uma vez que as tendências culturais e sociais não podem ser
analisadas da mesma maneira que os acontecimentos políticos. Elas requerem mais
explicação estrutural” (B
URKE
, 1992, p. 31).
A história tradicional, como querem algumas perspectivas políticas, acaba por
diminuir o sentido das fronteiras. As teorias geopolíticas também compactuam com essas
opções manipuladoras, percebendo em cada ponto um problema de hegemonia,
especialmente relativo ao espaço e ao tempo que geram um país ou nação, o que busca
evidenciar a fragilidade das culturas locais em detrimento desse complexo espaço
fronteiriço.
Estas concepções tradicionais de fronteira muitas vezes acabam por influenciar e
direcionar até mesmo os cientistas sociais. Lembremos a advertência de Campigoto, que
conjuga as discussões da História Cultural no contexto das fronteiras para situar os agentes
históricos, em especial as “pessoas comuns” que habitam este espaço.
A tese de que o Estado-nação esboroa as culturas locais evidentemente não se sustenta.
Trata-se de um pressuposto aceito tacitamente pelos historiadores do social. Deriva da
convicção de que as relações de poder explicam” a epistemologia das ciências e todo o
89
fenômeno humano. Ora, se acreditamos que tais relações exercem tamanha virtualidade,
até mesmo sobre os cientistas sociais, o que pensar das pessoas comuns, dos grupos locais,
dos não letrados, dos semi-alfabetizados e daqueles que nem sabem utilizar os códigos da
escrita? Forçosamente, o espaço destes excluídos aparece como uma região cultural débil e
em extinção ou já suprimida. No máximo, as relações que estes sujeitos estabelecem com a
fronteira adquirem o significado de espaço de resistência, conceito emprestado da física
pela história política
(C
AMPIGOTO
, In: S
CHALLENBERGER
(org.), p. 23, 2006).
Sinteticamente, Campigoto abre várias questões no seu sentido amplo de ver a
fronteira, o que designa a cultura e o modo de vida das pessoas, e que tem um grande grau
de importância no espaço fronteiriço, pois esses agentes não são neutros e muito menos
devem permanecer apagados: são eles que provocam a dinamização da fronteira.
A compreensão desses agentes é fundamental; isso será possível por meio do
enfoque das experiências das pessoas. O senso comum, nesse contexto, será levado em
consideração, em conjunto com os pressupostos teóricos abordados sobre a fronteira e a
cultura, na tentativa de mostrar a dinamização do espaço fronteiriço entre o Brasil e o
Paraguai. É nesse sentido que nos posicionamos em relação à fronteira, como um espaço
dinâmico de relações.
2.2 – Compreensões e experiências das pessoas
As experiências das pessoas que vivem na fronteira devem ser entendidas como um
modelo de respostas. Por meio da análise de suas narrativas percebem-se as suas vivências
a todo o momento com “o outro”. Ou seja, a relação do simbolismo que é a fronteira
permeia o estilo de vida dessas pessoas, embora elas não compreendam de maneira
objetiva a complexa gama dos significados que envolvem a noção de fronteira de um modo
mais amplo.
Como dissemos na introdução, as significações da fronteira, bem como a sua
compreensão por parte da população, deram-se nesta pesquisa especialmente com o uso da
metodologia da história oral; a partir dela, a coleta de entrevistas formou grande parte do
corpus de fontes para fomentar e posteriormente desenvolver o trabalho escrito. As
imagens utilizadas se dão no intuito de demonstrar essas alterações.
Reiteramos que a fonte oral é utilizada aqui com o rigor metodológico que toda
fonte exige; preocupamo-nos com as pessoas a serem entrevistadas, a transcrição integral
90
das falas, a cessão dessas entrevistas ao nosso uso e finalmente com análises baseadas em
diversos autores que trabalham com essa tipologia de fonte, bem como com severos
questionamentos sobre as problemáticas que ela suscita.
As peculiaridades da fonte e sua relação com o tema e o espaço ora trabalhado
também depreendeu grande cuidado e atenção, por se tratar de um lugar de relações tensas,
onde na atualidade não se apenas um movimento de trabalhadores formais, mas um
espaço que proporciona ampla margem de manobra para atividades ilícitas, como roubos,
tráfico de drogas e entorpecentes, contrabando de mercadorias, brinquedos, cigarros e
principalmente equipamentos de informática.
16
Trata-se, além do mais, de um lugar que é
facilitador para a circulação de armas de ambos os países, servindo ainda como refúgio
temporário de pessoas que por motivos dúbios ocultam-se da sociedade, retornando
posteriormente na tentativa de inserção nas cidades ribeirinhas ou lindeiras, como são
chamados os municípios margeados pelo Lago Internacional de Itaipu.
Permeiam também este ambiente de fronteira, atividades comuns para as
populações ribeirinhas, como as colônias de pescadores que existem em vários municípios,
e que buscam o sustento próprio e o comércio de pescados. ainda o trafego de balsas e
barcos que atravessam os limites dos dois países em pontos onde existe demanda de
produtos agrícolas ou mesmo de pessoas. Os lugares mais comuns são as travessias entre
Santa Helena e Puerto Índio, Porto Britânia em Pato Bragado e Marangatu, Porto Mendes e
Puerto Adela, e, mais acima, entre Guaíra e Salto del Guairá; não desconsidero outros
pontos de passagens, legais e/ou clandestinos, apenas evidenciei os que mais se destacam.
Dessa forma, podemos perceber que é um ambiente tanto de atividades lícitas de
trabalho, quanto de formas ilícitas de ganhos que ocorrem nesse espaço fronteiriço entre
Brasil e Paraguai.
Na entrevista com Neusa Probst, referente ao Lago Internacional de Itaipu, ela
deixa transparecer, mesmo ou principalmente em suas reticências, uma série de
16
Nos utilizamos das informações do Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros, realizado pela Rede de
Informação Tecnológica Latino Americana (Ritla) e que comporta dados entre os anos de 2004 e 2006 e foi
divulgado no dia 29/01/2008. Ele mostra que as regiões de fronteira e ligadas ao desmatamento concentram
os maiores índices de homicídios por habitante. Entre as sete primeiras cidades mais violentas, vale destacar
que aparecem em primeiro lugar Coronel Sapucaia, que é limite brasileiro com o Paraguai na altura do
Estado de Mato Grosso do Sul. E em quinto e sétimo lugares estão Foz do Iguaçu e Guaíra respectivamente,
ambas localizadas no oeste do Paraná que fazem divisas com o Paraguai. Tais informações foram
amplamente difundidas na imprensa nacional, tanto escrita quanto radiofônica e televisiva. Embora o período
pesquisado pelo Mapa da Violência não compreende ao da totalidade do período da pesquisa aqui
desenvolvida, podemos ter uma idéia do seu tenso ambiente social. (Cf.: www.estadao.com.br
acessado em
14/02/2008).
91
preocupações quanto às condições e situações fronteiriças. Segundo Neusa, aumentou
principalmente os níveis;
(...) de violência, o que mudou de crime, vamos dizer assim. A gente antes estava
comentando mesmo, assaltos que na época não aconteciam, depois [da construção do
Lago] com essa mudança ali, aconteceu assaltos, vamos supor de agricultores. Depois. A
gente atualmente pelos jornais, não é? Você tem muitas notícias do que acontece
assim. Eu acredito que nessa parte de fronteira... É, eu, se for analisar a minha opinião, é
que era bem melhor antes e na parte assim de Brasil e Paraguai; eu não posso falar também
como que funciona, eu sei que é uma coisa assim meio complicada pra gente entrar nessa
história assim, o é? Tem que ter um conhecimento pra você estar mesmo falando, assim
eu já não tenho todo esse conhecimento pra estar falando; mas, na parte econômica, eu
acho que piorou bastante; na parte assim também de mudanças não é? E essa fronteira
assim, não é? Essa fronteira é complicado, porque você vê, você pega a dimensão que tem
essa fronteira; você pega essa dimensão para você vê, a gente tem..., está aqui e fala: “ah
ali é o Paraguai e aqui é Brasil”, não é? que tem muita coisa que você não tem
conhecimento; então eu não sei se..., eu acredito que essa mudança e essa fronteira é meio
complicada.
(E
NTREVISTA
.
N
EUSA
P
ROBST
, 2007).
A entrevistada aponta alguns problemas, embora seja perceptível que há certo medo
de adentrar em assuntos polêmicos que ocorrem às margens do Lago; esse conjunto de
problemas é sintetizado na rmula “essa fronteira é meio complicada”. A todo o
momento notamos em sua fala a comparação entre o antes e o agora, que seria o contraste
da vida social nessas fronteiras antes do alagamento e depois dele, e como isso se
atualmente. O discurso é levemente crítico da situação atual, posto que era bem melhor
antes”.
O alagamento em partes significou para as pessoas dessa região uma mudança na
própria imagem da fronteira. Conforme nos conta Neusa, antes do alagamento a largura do
Rio Paraná, no espaço situado em Porto Mendes, era bem menor; “eu acredito que mais ou
menos assim uns 400 metros de largura, mais ou menos isso”
(I
DEM
). Atualmente, essa
“dimensão”, como as pessoas mesmo tratam o Lago, teria aproximadamente 10
quilômetros de largura, uma grande alteração da área navegável.
Certamente, a alteração na imagem da fronteira, passando de um rio de
aproximadamente 400 metros de largura, para um Lago de aproximadamente 10
quilômetros não explica de todo os acontecimentos que se dão em suas margens
atualmente. Porém, em grande parte se pela boa navegabilidade, que é possível de ser
feita e que antes depreendia muita prática e pontos específicos de atracar, como no caso do
Porto Mendes Gonçalves. Hoje é possível atracar em qualquer lugar nas margens do Lago,
92
tanto no lado brasileiro como no paraguaio; isso facilita o fluxo de mercadorias, produtos e
pessoas, ao mesmo tempo em que dificulta sobremaneira o policiamento e a fiscalização.
As imagens acima e abaixo mostram as mudanças da fronteira especificamente em
Porto Mendes, distrito do município de Marechal Cândido Rondon. A primeira é uma
fotografia a qual não foi possível definir o exato momento em que foi produzida, retrata as
margens brasileiras de Porto Mendes Gonçalves vista do lado paraguaio, possivelmente
nos anos 1950/60. Na parte inferior da imagem é possível ter uma idéia da largura do Rio
Paraná e as dimensões de suas barrancas.
A segunda imagem é uma fotografia atual, produzida em 13 de março de 2007;
nota-se minimamente a extensão do Lago Internacional de Itaipu e suas brandas margens
em Porto Mendes; ao fundo temos a margem paraguaia vista do lado brasileiro.
As pessoas que vivem o cotidiano da cultura fronteiriça muitas vezes são os
indivíduos que para a justiça situam-se “nas margens” da sociedade, seja como criminosos
e contraventores ou como trabalhadores informais. Para a história, a experiência dessas
mesmas pessoas contribui para mostrar a problemática das divisas, entendida não apenas
como um marco limitador de territórios, regiões ou países, mas como algo inserido no
processo histórico e permeado com suas tensas relações sociais.
Fonte acervo particular Leandro Baller.
Fonte Museu Histórico Willy Barth – Toledo – PR. Ficha Catal. Reg.: 174
93
Neste sentido, consideramos interessante retomar algumas especificidades da
história oral e a liberdade que ela nos dá em inserir os agentes sociais em um contexto mais
amplo e não apenas no “mundo limitado da fronteira” que eles vivem. Paul Thompson nos
indica várias proposições e possibilidades ao trabalhar com a metodologia.
A história oral possibilita novas versões da história ao dar voz a múltiplos e diferentes
narradores. (...) Propicia, sobretudo, fazer da história uma atividade mais democrática, a
cargo das próprias comunidades, já que permite construir a história a partir das próprias
palavras daqueles que vivenciaram e participaram de um determinado período, mediante
suas referências e também seu imaginário. O método da história oral possibilita o registro
de reminiscências das memórias individuais; enfim, a reinterpretação do passado, pois
segundo Walter Benjamin, qualquer um de nós é uma personagem histórica (
T
HOMPSON,
1992, p. 19).
O autor considera todo e qualquer personagem como ator histórico, pois todas as
pessoas, de uma forma ou de outra, fazem parte da história e atuam sobre ela. Com relação
a esse ponto, trabalhamos na intenção de compor uma rede de informantes sobre as
situações e condições de vida na fronteira. Uma rede fornece dados e informações que,
articulados e colocados em série com outros registros, permite responder às questões
problematizadas pela pesquisa.
Não entendemos a metodologia da história oral como um emaranhado de
entrevistas pré-dispostas em locais diferentes e diversos, mas sim com a recolha consciente
desses relatos tendo como meta responder a questões específicas. Buscamos tratar com o
máximo respeito os nossos entrevistados, pois, para Thompson, a história oral é uma
história construída em torno de pessoas.” O autor direciona nosso olhar para percebermos
a inserção das pessoas na história e, para tanto, é necessário atentarmos à problemática da
memória, que é de fundamental importância para o andamento da entrevista e o posterior
uso das narrativas individuais.
As memórias devem ser analisadas e observadas sob diversos ângulos, porque elas
expressam inúmeros aspectos caracterizadores: pode expressar a cultura de um
determinado grupo, a recordação de certas tradições, ou indiciar processos de construção
de identidades sociais. Neste sentido, Michael Pollak traz importantes reflexões sobre a
organização e a diversidade da memória.
A memória é seletiva (...) sofre flutuações (...) é fenômeno construído (...). Se podemos
dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e
individualmente, quando se trata da memória herdada podemos dizer que uma ligação
fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade” (P
OLLAK
,
1992, p. 203-204).
94
A seletividade e a “inconstância” da memória
17
por muito tempo foram os alvos
principais das críticas que a fonte oral sofreu; certamente, ela é seletiva, pois é impossível
registrar mnemonicamente tudo o que ocorre ou ocorreu no transcorrer da história, ou de
uma vida. Neste sentido, a mesma “acusação” pode ser imputada ao documento escrito, à
imagem, à imprensa, em suma, a todas as tipologias de fontes documentais.
Antes de examinarmos algumas entrevistas, que lembrar que a permanência das
pessoas nas margens do Lago Internacional de Itaipu, na fronteira entre os dois países,
geralmente se pela experiência de terem ido ao Paraguai, posteriormente voltado ao
Brasil por causas diversas e permanecerem com vínculos de trabalho e principalmente de
propriedade naquele país, permanecendo em trânsito nas fronteiras territoriais. Essa
situação de nomadismo, itinerância e transitoriedade são marcantes em várias narrativas
orais. Mas igualmente os elementos de fixação das pessoas, como a propriedade e os meios
de produção, são elencados.
Na entrevista concedida pela agricultora Elizete T. Pancera destaca-se notoriamente
as atividades de trabalho no Paraguai, ela atribui grande importância ao fato de possuírem
terras no outro país; inicia dizendo que “lá a gente tem terra da gente, as coisas da gente
tudo, (...) lá a gente tem casa, tem terras, tem maquinários, tudo lá, temos moradia boa lá”
(E
NTREVISTA
.
E
LIZETE
T
EREZINHA
P
ANCERA
, 2003).
A propriedade de terras por parte de brasileiros no Paraguai, como foi visto no
capítulo anterior, é um fator decisivo para a sobrevivência de muitas famílias que moram
no Brasil. Neste caso, nota-se que é um proprietário que cuida de seus afazeres em suas
terras naquele país. A permanência do marido da entrevistada no país vizinho ocorre no
sentido de dar conta do trabalho com a terra. Ambos atravessam periodicamente o Lago
Internacional de Itaipu para estarem com a família em Porto Mendes. Segundo Elizete,
“Que nem agora o meu marido: agora que ele plantou tudo, ele vem toda semana;
senão, quando é época de plantio ou de colheita, ele fica lá até terminar vêm uma vez cada
quinze dias. Mas eu vou pra lá, daí né, ajudar” (I
DEM
).
A experiência de viverem entre os dois países não é algo excepcional para Elizete e
seu esposo. Em Porto Mendes moram várias famílias que têm algum tipo de atividade no
país vizinho, não apenas com propriedades de terras, mas de estabelecimentos comerciais,
17
A analogia entre Memória e História Oral não é consensual entre os pesquisadores que trabalham com a
metodologia; enquanto alguns defendem os pontos de afinidades na relação entre ambas, outros teóricos
preferem destacar que elas não têm nada a ver uma com a outra. Essa discussão é atual, e não a
aprofundaremos aqui.
95
bem como em outros ramos; mas a grande maioria é de proprietários rurais, ou de
atividades direta ou indiretamente ligadas à agricultura.
O caso do gerente empresarial Marcelo de Almeida, ilustra bem essa outra
atividade, ele reside no município de Guaíra e é gerente de uma empresa em Paloma, no
Paraguai, há aproximadamente 18 anos. Nascido em Maringá, no norte do Paraná, desde
jovem viu no Paraguai um bom local de trabalho; sua profissão está diretamente ligada à
agricultura, com a revenda de implementos agrícolas, transportadora, processadora de
sementes, insumos, entre outros bens e produtos necessários ao funcionamento do
complexo agrícola no país vizinho.
O entrevistado narrando sua trajetória de vida, seus trabalhos e dias, dá-nos uma
imagem da fronteira como essencialmente uma fronteira de trabalho entre os dois países;
no entanto, sua narrativa nos leva a perceber outros valores neste mesmo espaço.
Pra você estar bem dentro [do Paraguai], você tem que respeitar o costume deles, a
língua deles (...), [há que se ter ] o respeito mútuo (...). Conheço gente que entrou e
ninguém gosta dele porque não sabe respeitar a cultura do pessoal (E
NTREVISTA
.
M
ARCELO
D
E
A
LMEIDA
, 2004, grifos nossos).
A atitude de respeito, que em muitos casos o parece importante, é adequada
segundo o entrevistado para se manter boas relações no Paraguai. Ele nos oferece alguns
exemplos, como pudemos perceber acima, mas a gama de aspectos a serem levados em
consideração quanto a esse fator é ampla. As diferenças étnicas, lingüísticas, culturais, etc.
entre brasileiros sulistas (a maioria eurobrasileiros) e paraguaios da fronteira (a maioria da
etnia guarani), são em potencial e muitas vezes real fator de conflitos; daí a necessidade do
respeito à cultura do outro como condição sine qua non de boas relações de reciprocidade.
Em outra entrevista, a agricultora Cleonice A. Menegotto conta sobre a saída da
família de Tupãssi, no oeste do Paraná, a inserção no Paraguai e o posterior retorno para
Porto Mendes, onde reside;
a gente ouvia falar muita coisa [do Paraguai]; mas depois, com o passar do tempo, quando
eu fui viver lá, não né, nossa! A gente foi se acostumando como se hoje fosse assim, morar
no Brasil (...); o outro lado é maravilhoso (E
NTREVISTA
.
C
LEONICE
A
PARECIDA
M
ENEGOTTO
, 02/12/2003, grifos nossos).
No decorrer do relato de Cleonice, há a expressão de um sentimento de afinidade ao
Paraguai, até mesmo pelo fato de dependerem da renda da propriedade no outro lado do
Lago; faz questão de destacar sempre o trabalho e o sacrifício de estar longe do marido,
96
que continua no país vizinho e de tempos em tempos atravessa o Lago para se
encontrarem, rever os filhos e participar da vida familiar.
Quando fala do outro lado, o discurso de Cleonice provoca a sensação ou o
sentimento de extensão, como se, para além ou aquém das divisas, houvesse uma
continuidade de um país com o outro; nessa narrativa, é como se já não houvesse nem o
Brasil e nem o Paraguai, mas um terceiro lugar, independentemente de onde se reporta o
discurso; ou seja, uma mistura de dois países, formando um lugar alternativo composto
por sentimentos e lembranças tanto de ausências quanto de presenças. Mas mesmo essas
impressões são marcadas pelo sentimento da propriedade. Nas suas palavras: “quando a
gente está lá, a gente nem lembra que é Paraguai; lá a gente está... vamos dizer... no que é
da gente. A gente está assim, não é? A gente se sente bem, como se estivesse aqui. Não
existe diferença” (I
DEM
). Quando questionada sobre a permanência dessa situação, ela
responde que pretendem continuar com as terras no outro lado e morando no Brasil. Sobre
este ponto de vista, percebe-se que há a homogeneização da fronteira como algo que existe
e está entre o aqui e o lá, o aqui remetendo ao Brasil, e o remetendo ao Paraguai.
Outro ponto que mostra a peculiaridade fronteiriça no relato de Cleonice é a
incidência forte do senso comum
18
, tanto na sua maneira de falar, quanto na interpretação
que elabora sobre a situação, “a principal dificuldade é a gente viver assim né, um longe
do outro, que nem eu vivo aqui, praticamente assim, só com os meus filhos, e ele vive lá no
trabalho” (I
DEM
). Sob esta perspectiva, podemos entender a fronteira como um lugar que
provoca a separação e por vezes a desagregação familiar, pois a própria casa deixa de ser
um espaço comum, pois um cônjuge vive para cuidar do trabalho lá, e o outro para cuidar
dos filhos aqui. Percebemos a fronteira como separação, como denota a autora Iara Regina
Castello, pois a fronteira corresponde a espaços de dualidades.
A dualidade dos espaços de fronteira é uma característica bastante evidente, explicitada,
de um lado pela necessidade de se estabelecer separações, em nome de uma diferença
cultural e da preservação da soberania nacional e, de outro, pelas práticas sociais e trocas
que, em face da proximidade física e dos interesses comuns, se estabelecem. A fronteira
é, a um só tempo, área de separação e de aproximação, linha de barreira e espaço
polarizador. É, sobretudo, um espaço de tensões, de coexistência das diferenças, e do
estabelecimento de novas realidades sócio-culturais (C
ASTELLO
, 1995, p. 18).
18
Tornou-se freqüente em nosso trabalho, uma vez que são pessoas simples, humildes, agricultores,
pescadores e assim por diante.
97
uma variedade de compreensões quanto ao significado da fronteira, como
percebemos em algumas narrativas orais acima citadas, e que permanecem
questionamentos por essa fronteira ser tratada como a idéia de “lugar”, especialmente entre
os dois países. Quanto a isso, as reflexões de Julie Cruikishank são interessantes, pois dão
conta de mostrar as particularidades da oralidade no que se refere à idéia de lugar.
A tradição oral vincula a história ao lugar, mas também põe em xeque nossa noção do que
seja realmente lugar. Em geral consideramos o lugar simplesmente como uma localização
um cenário ou um palco onde as pessoas fazem as coisas”
(C
RUIKISHANK
,
J. Apud.
A
MADO
,
J.;
F
ERREIRA
,
M
DE
M. 1998, p. 162).
É nesse sentido que utilizamos o termo lugar, por se aproximar das idéias que a
tradição oral passa de um agente a outro.
Sobre este aspecto é interessante assinalar que (...) as tradições orais podem
contribuir para documentar a grande variedade de abordagens históricas em áreas do
mundo onde documentos escritos ou são relativamente recentes ou nem sequer existem”
(I
DEM
,
p. 149). No caso em questão, especificamente entre Brasil e Paraguai, na fronteira
com o estado do Paraná, a contribuição dessa metodologia é relevante, pois a área de
influência do Lago Internacional de Itaipu realmente é nova, remonta há um pouco mais de
três décadas, e as chamadas “pessoas comuns”, em geral analfabetas, semi-alfabetizadas ou
precariamente letradas, não deixam registros escritos de suas histórias de vida.
19
As alterações na forma física da fronteira que antes era o Rio Paraná e
transformou-se no Lago — também fica evidente na fala das pessoas. Alguns entrevistados
reconhecem a existência da fronteira, mas não conseguem defini-la. O ponto de vista de
Sonia J. Vicente realça a complexidade do espaço fronteiriço e a relativa incompreensão
quanto a seus significados.
A fronteira ela existe, mas pra mim ela não existe, porque eu sou bem tratada aqui como
sou bem tratada lá, não tem diferença. Para mim ela, se existe, vão ter que me explicar
onde que ela está e o que significa, porque (risos) eu não sei ainda. A gente vive muito bem
lá, muito bem tratado, com as pessoas, com os bras (interrompeu), paraguaios, autoridades
paraguaios, não é? Aqui no Brasil também... a diferença, é..., é... A fronteira pra mim é o
Lago né, a única coisa que separa, porque senão seria uma coisa (E
NTREVISTA
.
S
ONIA
J
ANDIRA
V
ICENTE
, 2003)
.
19
A fronteira entre Brasil e Paraguai sempre existiu nestas extensões na região oeste do Paraná; o que
discutimos nesse ponto em específico é a sua transformação, passando de um Rio para um Lago. Essa
mudança é historicamente recente, como apontamos anteriormente.
98
A confusão da entrevistada no tratamento da questão é peculiar, pois ao mesmo
tempo em que a fronteira existe, não existe mais para ela, ou quase deixa de existir; sob
seu ponto de vista, este espaço é visto como unificador, porque separa e aproxima e não
tem diferenças, a única diferença seria o lago. Logo, podemos entender que, se houvesse
uma fronteira seca neste lugar, a diferença seria praticamente nenhuma, pois a
compreensão não ocorre por falta de significados do que seja o lugar da fronteira, mas
porque o Lago os separa.
Muitos dos entrevistados permanecem com interesses de voltar ao Paraguai, mesmo
depois de estarem estabelecidos novamente no Brasil, pois houve uma “modernização” no
país vizinho que auxiliou a vida dessas pessoas. Isso pode ser verificado, por exemplo,
quando Sonia enfatiza que “o valor de um alqueire de terra aqui, três ou quatro lá;
então é a mesma coisa: a produção valorizou, nós temos luz elétrica, o conforto é o mesmo
que tem aqui, a gente tem celular lá, a gente tem telefone. É a mesma coisa, a única
dificuldade é o estudo das crianças” (I
DEM
).
A modernização neste contexto é analizada por nós como um fator que veio a
reduzir alguns problemas antes percebidos por eles como dificultadores. Acreditamos que
estes aspectos não explicam as permanências ou os estabelecimentos integrais das famílias
no país vizinho, pois ao mesmo tempo em que ressalta alguns aspectos que trazem maior
conforto já surgem outros problemas, e estes são novamente questionados pela fonte.
Na fala da entrevistada supracitada, notamos que ela designa as menores diferenças
e distâncias entre o Brasil e o Paraguai pelo “desenvolvimento” ou “progresso” deste
último país; condições de vida e valores econômicos como o conforto, o preço da terra, das
mercadorias produzidas e a educação escolar das crianças passam a ser os significados
fronteiriços. O sentido do lado de não entra na esfera identitária, cultural, territorial, mas
sim em uma escala de valores imediatos de educação e de patrimônio, assemelhando-se ou
diferenciando-se do daqui, ou seja, nos parece haver uma equiparação de valores entre
ambos.
Os sentidos locais de vivência perpassam os mesmos lugares sempre que as pessoas
voltam de outras regiões do país. A experiência dessas pessoas, na grande maioria das
vezes, mostra que a “mudança” não se deu da primeira vez ao Paraguai, mas existem
sucessivas idas e vindas que compõem uma trajetória em “ziguezague”. Na narrativa de
Maria de Lurdes Berno, essas expressões aparecem a todo o momento.
99
Nasci em Palotina; me casei; com 27 anos fui para o Mato Grosso, e fiquei dois anos lá;
voltei para Palotina, fiquei quase cinco [anos] ali; daí fui para o Paraguai. Ali a gente ficou
quase sete anos; eu não, meu marido ta ainda lá; daí vim pra [para Porto Mendes], por
causa do estudo da menina! Mas lá, pra nós o futuro é melhor, é melhor do que aqui
(E
NTREVISTA
.
M
ARIA
D
E
L
URDES
P
ALUDO
B
ERNO
, 2003 grifos nossos).
Para Maria de Lurdes, há a diferenciação de estilos de vida, entre a vida dela e a do
marido, pois se separaram em prol dos interesses da filha, que necessita estudar na pátria
de origem, e não no lugar de destino; não obstante, ela ressalta que pra nós o futuro é
melhor [no Paraguai]”. É comum, na região de fronteira abordada por esta pesquisa,
encontrar casais separados pela distância, um - geralmente o marido - cuidando dos
interesses econômicos e financeiros na propriedade agrícola no Paraguai; e a esposa
cuidando dos filhos ou até mesmo exercendo outras profissões no Brasil.
Essas características transitoriais nas regiões de fronteiras se sobrepõem aos breves
espaços fronteiriços locais e adentram vários quilômetros de ambos os lados, afetando não
apenas as estruturas familiares, mas também a estrutura social de que as unidades
familiares fazem parte. Neste caso José de Souza Martins diz que:
A verdadeira estrutura social de referência das populações camponesas da fronteira não é
a local e visível. Ela se espalha por um amplo território, num raio de centenas de
quilômetros, e é uma espécie de estrutura migrante, uma estrutura social intensamente
mediada pela migração e pela ocupação temporária ainda que duradoura de pontos do
espaço percorrido, os estudos sociológicos que tomam como referência uma localidade
específica o apanham a realidade social mais profunda que sentido à existência
dessa espécie de sociedade transumante
20
(M
ARTINS
, 1997, p. 176).
É impossível abranger a totalidade dos espaços de fronteira neste estudo; mas é
perceptível a intensa movimentação que ocorre não apenas de um país para outro, mas
também o nomadismo dentro do Brasil, como no caso de Maria de Lurdes, acima relatado;
o queo deixa de ser movimentos transumantes nas fronteiras, mas possuem outras
particularidades. Esse tipo de movimentação ou itinerância aparece em outras entrevistas.
Ivete Allig, por exemplo, relata que: “Eu nasci em Cascavel, e nós viemos morar
em Medianeira. Em Medianeira moramos até meus dezoito anos; daí mudamos para Foz.
Em Foz eu fiquei uns dois anos, depois voltei para o Paraguai, aqui na Gleba Seis (...).”
(E
NTREVISTA
.
I
VETE
A
LLIG
, 2003).
Citamos essas passagens na intenção de mostrar como
20
Utiliza-se o termo “transumante”, que deriva de “transumanar”, ou seja, de dar natureza humana a certos
movimentos emigratórios; um exemplo seria os rebanhos de carneiros que vão das planícies às montanhas e
vice-versa.
100
essa intensa mobilidade das pessoas no interior do país, passando por várias cidades
ou mesmo estados, antes de ir ao Paraguai; ocorre uma migração interna em busca de
melhores condições de vida antecedendo a imigração, esta última aparecendo como o
derradeiro recurso quando a própria nação ou “pátria” nada tem a oferecer.
Voltemos aos significados atribuídos à fronteira. Para esta entrevistada, o sentido
de fronteira não existe a não ser um rio (lago), que para ela atrapalha; não aparecem
sentimentos, interesses, é como se com o costume tudo fica idêntico.
Para mim, o Brasil, o Paraguai, morar em Porto Mendes e morar no Paraguai, para mim é
igual. Eu já estou acostumada tanto lá como aqui, não é? Então, não acho diferença
nenhuma. Apesar das diferenças de língua..., apesar disso, apesar do rio que atrapalha
também, não é? Porque se tivesse, digo, estrada, fosse fronteira seca! Vixi né! Aí não tinha
diferença nenhuma quase. Mas eu já estou acostumada tanto lá como aqui! (I
DEM
)
.
Tornou-se comum levar a vida em qualquer que seja dos dois países, pois não
existem grandes diferenças, a não ser um rio represado que atrapalha o deslocamento
rápido e o idioma, a que ela relativamete acostumou também; tirante essas
especificidades da fronteira ora analisada, não importa muito onde é sua residência ou onde
está vivendo. Percebe-se, na fala acima, que a fronteira aparece muitas vezes como uma
barreira apenas física, como ocorre com o Lago Internacional de Itaipu; caso houvesse uma
fronteira seca, outras evidências como, por exemplo, o idioma falado poderia nem
sequer aparecer. José de Souza Martins nos alerta para o fato de que. “É preciso distinguir
no Brasil as fronteiras políticas, demográficas e econômicas, nem sempre essas são
relacionadas entre si.” (M
ARTINS
, 1997 p.155). Ou seja, elas correm o risco de não serem
mencionadas, pois não tem importância real na vida das pessoas, ou não são percebidas no
cotidiano da vida vivida na transitoriedade.
As entrevistas tornam-se ferramentas para a investigação histórica do sujeito e
seu mundo. Para Janaína Amado e Marieta de Moraes Ferreira, “o uso sistemático do
testemunho oral possibilita à historia oral esclarecer trajetórias individuais” (A
MADO
e
F
ERREIRA
, 1998, s/p). Essas técnicas de coleta de material revelam também pontos de vista
individuais expressos na fonte oral, incorporando desta forma elementos e perspectivas
ausentes de outras práticas históricas, porque através delas se revelam sentidos e
sentimentos relacionados somente ao indivíduo, como as subjetividades, as emoções ou o
cotidiano. As entrevistas aumentam ainda mais seu conteúdo sociológico e cultural quando
investigam o indivíduo inserido no processo histórico e no seu círculo de relações sociais.
101
O fluxo de pessoas nas margens do Lago Internacional de Itaipu envolve indivíduos
que vêm de diferentes lugares em busca de trabalho rentável; pescadores profissionais que
vêem na extensão das águas bons pontos de pesca; mas, quanto à pesca, em geral as
condições de trabalho não correspondem às expectativas. No Lago, os obstáculos para
esses pescadores não são apenas de ordem natural, como ventanias, maretas
21
, tormentas,
marés, ou ainda a dificuldade de se manterem em determinadas épocas do ano, quando os
peixes não emergem à superfície das águas, levando em consideração a profundidade das
águas em Porto Mendes. Os obstáculos são também, econômicos e sociais.
Para o pescador Miguel Pereira, 50 anos, oriundo de Naviraí, Mato Grosso do Sul, e
residente há aproximadamente 25 anos em Porto Mendes, estes lugares de fronteira não
dão oportunidade fácil de passagem para outros locais e também não oferecem empregos,
embora sejam lugares maravilhosos em beleza natural e possuem boa infra-estrutura. Em
seu relato, ele diz que “morar aqui é bom, sossegado; aqui é bom, é beleza pra morar
aqui, aqui não é ruim não. Mas, em contrapartida, as oportunidades econômicas são
limitadas.
que é o seguinte: não tem emprego, não tem nada, não é? Aqui é pra aposentado
viver aqui dentro, os pescadores e os que trabalham com agricultura, e tirou disso aí
acabou; que aqui não tem fábrica, não tem nada, aqui é fim de linha (E
NTREVISTA
.
M
IGUEL
P
EREIRA
,
2003).
O significado de fronteira para o pescador é bastante claro: é como se ali fosse o fim
da linha, pois não oferece condições de trabalho e emprego que muitos procuram; essas
carências, para ele, decorrem dos limites impostos ao movimento, especialmente o
movimento das pessoas: “o povo vem aqui dentro, olha, dali pra é Paraguai, não é?
O pessoal vem dali, daqui tem que voltar pra Marechal Cândido Rondon, que não segue
pra frente” (I
DEM
). Quanto questionado sobre o que quer dizer a expressão fim da linha, o
pescador busca novas interpretações para o sentido da fronteira.
Tem essa linha na fronteira, tem, tem essa linha. Agora aqui, essa divisa nossa aqui, é o
Lago; aqui é o rio, do meio do rio pra cá é o Paraná, e do meio do rio pra lá já é Paraguai. E
nós estamos pescando aqui, nós estamos indo pescar aqui dentro, tranqüilo; chegou no
meio do rio mais ou menos, nós temos que parar. No lado paraguaio, se nós não tiver
liquidado tudo certinho, com os documentos do Paraguai, se nós atravessar, eles prende nós
(I
DEM
).
21
Espécie de pequenas ondas que se produzem especialmente em leitos de rios. Embora dificilmente
ultrapassem um metro de altura, elas se tornam um problema para os pescadores que possuem pequenos
barcos, geralmente frágeis e não suportam a violência das ondas.
102
Neste trecho da entrevista, notamos que o pescador vários sentidos à fronteira.
Ele evidencia as barreiras burocráticas e diplomáticas dos limites territoriais de seu espaço
de trabalho; até onde se pode ir para pescar, caso contrário corre o risco de perder seu
produto caso a documentação não estiver em dia, o que mostra o sentido de fim da linha
para ele.
Ainda é interessante perceber que, embora já se passem aproximadamente três
décadas desde a inundação das margens do Rio Paraná para formar o Lago Internacional de
Itaipu, muitas pessoas ainda se dirigem e se referem àquelas águas como o Rio Paraná. Ou
seja, para os agentes que extraem das águas, mediante o trabalho, os frutos de seu sustento
e de suas famílias, o Rio é algo presente e que se mistura com o Lago; ou seja, a memória e
a lembrança guardam a presença do passado no presente.
A psicóloga social Ecléa Bosi, ao teorizar sobre os processos de lembrança,
evidencia o caráter coletivo e mutante da memória, mesmo da memória individual.
A memória não é um sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do
passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma
imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de
representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a
lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na nossa
infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e,
com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o
passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua
diferença em termos de ponto de vista (B
OSI
, 1994, p. 55).
O pescador Miguel Pereira fala do Lago como se fosse o Rio Paraná; isso mostra
que a construção da identidade de um trabalha na “exclusão” do outro. As imagens são
diferentes, mas guardam suas semelhanças por se tratar, afinal, de água; mas suas
discrepâncias são nítidas, porque lembra do passado fazendo a reconstrução com imagens e
idéias de hoje e com as experiências do passado.
Os discursos trabalhados até o momento mostram a complexidade dos sentidos, das
significações e até mesmo do simbolismo da fronteira, não apenas no sentido oficial de
suas definições, como no caso de divisões territoriais e/ou políticas; mas também porque
envolvem segmentos sociais diferenciados e que procuram demonstrar suas
particularidades em relação a este espaço, seja em âmbito cultural, político ou social, cada
qual denotando a singularidade idiossincrática da fronteira.
Para o trabalhador agrícola, uma vasta rede de sentidos em uma fronteira; para
as famílias separadas, esse sentido é outro; aos indivíduos que compactuam com atividades
103
ilícitas, será um significado totalmente diferente; aos pescadores, como vimos, os sentidos
produzidos são outros. Ou seja, a interpretação da fronteira é muitas vezes determinada
pela categoria, posição ou situação social e/ou pela classificação profissional dos agentes
questionados.
Na intenção de promover um debate maior sobre a temática, procuramos privilegiar
vários segmentos, independentemente da posição social ou de gênero. A fronteira é uma
produção simbólica que responde ou corresponde aos interesses, às condições, as
circunstâncias, aos valores e visões de mundo das pessoas envolvidas no processo histórico
concreto de sua constituição. Com relação a essas produções simbólicas, Pierre Bourdieu
diz que:
as diferentes classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente s
imbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e
imporem o campo das tomadas de posições sociais ideológicas reproduzindo em forma
transfigurada o campo das posições sociais
(B
OURDIEU
, 2005, p. 11).
No caso da fronteira é perceptível que de certa maneira, ocorrem lutas por meio das
quais os diferentes agentes sociais procuram fazer prevalecer seus interesses no local,
estabelecendo e definindo seus sentidos a partir de uma visão individual, ou do coletivo de
um grupo ou segmento específico. Nesse sentido, não se cria apenas uma versão para o
local; há algo maior que busca aparecer no contexto pesquisado. Isto é, estes grupos
inserem-se no cotidiano construindo o regional, não apenas nas margens do Lago
Internacional de Itaipu, mas como municípios lindeiros, como uma região ribeirinha, ou
ainda como um caminho ou uma rota turística no oeste do Paraná. uma identificação
regional para a vivência dos grupos pertencentes a este espaço.
O historiador Valdir Gregory, com relação a esta construção simbólica, procura
contribuir com reflexões sobre o processo de construção da região.
O regional [...] vem a ser uma construção baseada em alguns elementos escolhidos a partir
de objetivos estabelecidos e da busca da configuração de espaços simbólicos. O regional é
mais e diferente do que o local. E, como tal, as suas delimitações, os seus elementos
constitutivos, os seus marcos simbólicos vão sendo construídos por e a partir de grupos
inseridos em seus contextos vivenciais. Ou seja, identidades e memórias que compõem o
regional são socialmente contextualizadas. (G
REGORY
. In: S
CHALLENBERGER
(org), 2006,
p. 85).
Como exemplo, podemos citar o município de Santa Helena, que é conhecido por
ter um espaço infra-estruturado para abrigar grandes eventos e comemorações, como é o
104
caso da praia artificial do Lago de Itaipu, que banha aquele município. Regionalmente, é
conhecido como “a terra das águas”, por ter inundado aproximadamente 1/3 de seu
território, e atualmente esse slogam funciona como um instrumento de marketing. Outros
exemplos poderiam ser citados, mas incorreria em outros aspectos construtivos de
identidade e memórias, como bem ressalta Gregory. Os elementos que atuam nessa
construção assumem formas especiais de transparecer no produto social, bem como na
reposição dos pressupostos, imbricando dialeticamente em uma forma especial de
reprodução do capital, de lutas de classe intimamente ligados aos poderes econômicos e
políticos neste espaço regional.
Ao trabalharmos com as entrevistas orais, notadamente a percepção de sentidos
que não aparecem em livros teóricos referente ao espaço fronteiriço ou mesmo da dinâmica
entre os países envolvidos.
A exaltação do Paraguai deriva de vários aspectos independentes da nacionalidade
das pessoas que cederam seus relatos. Tomemos como exemplo a fala de Helena de
Almeida Franz, nascida em Santa Rosa no Paraguai, mas residente em Guaíra; ao falar de
Canindeyu e de Alto Paraná, ela resume de certa forma a vida de muitas pessoas que se
deram bem no país vizinho, especialmente em relação à agricultura.
Essa região do Paraguai deu muita oportunidade pra gente, sabe. Eu acho que como pra
minha família também como pras outras famílias (...); gente que veio do nada, do Paraná,
do Rio Grande [do Sul], de Santa Catarina e ali nessa região, onde eu morava, hoje são
milionários, hoje eles têm fortuna que nem eles sabem quanta terra eles têm (...). Paraguai
não é Ciudad del Este e Salto, tem tanta riqueza, tanta coisa boa que tu no Paraguai,
que nessa parte os brasiguaios que estão lá, não viram no Brasil sabe? Não conseguiram
achar, e que o país deu oportunidade, está todo mundo crescendo (...) (E
NTREVISTA
.
H
ELENA
D
E
A
LMEIDA
F
RANZ
,
2004).
A menção às famílias que obtiveram êxito econômico no Paraguai, e também a
denominação de brasiguaios, é a maneira como a entrevistada os naquela região; fala
especialmente sobre o poder de propriedade, o que dá o sentido de produção como símbolo
de capital econômico; ou seja, são elementos que atuam na construção simbólica da região
onde Helena morava e ali conseguiram se reproduzir enquanto agricultores ou grandes
produtores.
Novamente se confirma aqui o fato de que os sentidos de fronteira para as pessoas
que margeiam o Lago Internacional de Itaipu são diversos e diferentes. Ao longo das falas
dessas pessoas foi possível estabelecer um diálogo que procurou perceber como a atuação
105
delas se dava em relação a estes significados. A vivência de pessoas tanto indo do Brasil ao
Paraguai quanto no movimento inverso, pode tornar-se um esquema de estruturas da
representação da realidade, articulado com uma estrutura social mais ampla existente na
região. É o que Bourdieu define como produtoras de habitus.
As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiais de
existência características de uma condição de classe), que podem ser apreendidas
empiricamente sob a forma de regularidade associadas a um meio socialmente estruturado,
produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas pré-dispostas a
funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das
práticas e das representações que podem ser objetivamente reguladas e regulares sem ser o
produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção
consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e
coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizada de um regente
(B
OURDIEU
, In: O
RTIZ
, 1994, p. 60-61).
Nesse sentido buscamos aqui brevemente estabelecer as diferenças individuais nas
falas dos entrevistados, aprofundando esse diálogo nas significações e sentidos da fronteira
com uma rede estabelecida de pessoas que vivem na região e participam desse complexo
movimento fronteiriço; procuramos compreender essas falas como exemplos dados em
modelos possíveis de serem detectados na construção da fronteira.
Gregory mostra a utilização desses conteúdos na tentativa de construir-se possíveis
identidades locias e regionais; para ele, “os mesmos conteúdos não são criados do nada.
Em outras palavras, a construção de identidades ocorre a partir de vivências vividas.
seleções, descartes, ênfases que interferem nestas construções ideológicas locais”.
(G
REGORY
, In: S
CHALLENBERGER
, 2006 p. 97). Todavia, esses emissores diluem-se em um
tecido social mais amplo, emitindo suas próprias construções locais para o regional,
aparecendo outros fatores, aspectos e agentes.
2.3 – A Itaipu atuando como um limite
Ao falar sobre a Itaipu em nosso estudo, de modo algum atingiremos toda a
complexidade que envolveu e envolve a maior Usina Hidrelétrica em geração de energia
do mundo. Seja desde os seus primeiros projetos de análise do potencial das águas do Rio
Paraná, sua construção, as polêmicas desapropriações e tratados, tanto com proprietários
106
rurais, urbanos e indígenas quanto com o Paraguai, ‘parceiro’ na obra, bem como no início
de sua atividade geradora.
Itaipu foi um projeto pensado desde o início do século
XX
, embora sua execução se
desse apenas na segunda metade do século com as políticas desenvolvimentistas e
intervencionistas do Estado. Teve como principal objetivo o aproveitamento das águas do
Rio Paraná para a geração de energia e a aproximação com o Paraguai para resolver
questões da área de litígio que remonta à Guerra do Paraguai.
É relevante situar Itaipu em um contexto internacional, pois é um agente que
permeia a pesquisa; ou seja, a discussão que se estabelece em torno da transitoriedade de
pessoas na fronteira entre Brasil e Paraguai e os aspectos culturais e identitários que se
apresentam nesse contexto são indissociáveis da construção e funcionamento da usina.
No decorrer de sua instalação, Itaipu passou de um projeto econômico de grande
interesse em esfera internacional, para um projeto político implicando em complexas
relações, desde seu espaço de contato até as relações no campo internacional envolvendo
os dois países. A sustentabilidade do projeto não seria possível por parte apenas do Brasil;
ela só seria viável em condomínio com o Paraguai.
Com a construção da barragem de Itaipu, houve o represamento do Rio Paraná, que
se deu no lado brasileiro desde no município de Foz de Iguaçu, tendo como limite o
município de Guaíra, no Paraná, e Mundo Novo, em Mato Grosso do Sul. No lado
paraguaio, desde Ciudad del Este, no departamento de Alto Paraná, até Salto del Guairá,
departamento de Canindeyu. Nos limites da represa se localizavam os Saltos das Sete
Quedas, que, com o alagamento, ficaram encobertos pelas águas do reservatório da
hidrelétrica, conhecido como o Lago Internacional de Itaipu.
No lado brasileiro foram atingidos 16 municípios
22
. O rervatório tem o equivalente
a 170 quilômetros de comprimento, em um total de 1.350 km
2
de área, sendo 770 km
2
no
lado brasileiro e 580 km
2
no lado paraguaio, com potência instalada de 12.600 MW.
23
22
Foz do Iguaçu, Santa Teresinha de Itaipu, São Miguel do Iguaçu, Medianeira, Itaipulândia, Missal,
Diamante do Oeste, Santa Helena, São José das Palmeiras, Entre Rios do Oeste, Pato Bragado, Marechal
Cândido Rondon, Mercedes, Terra Roxa, Guaíra e Mundo Novo.
23
Fonte: Centro de Documentação da Itaipu Binacional, 1984.
107
O interesse central não é mostrar as extensões que demanda o empreendimento
energético entre os dois países, o
que é relevante. Mas, sobretudo,
trazer algumas evidências que
mostram como ela contribuiu na
dinâmica migracional,
especialmente para os brasileiros
com destino ao Paraguai. Itaipu
não representou apenas o
desenvolvimento que é
enaltecido pela empresa, mas
também foi causadora de
grandes impactos ambientais,
econômicos e sociais.
Fonte: www.itaipu.com.br
Conforme o historiador e geógrafo Tarcísio Vandelinde:
A construção do mega-projeto impactou profundamente a região oeste do Paraná
provocando uma nova territorialização e rearranjos socioeconômicos. Ocorreram perdas
irreparáveis de sítios arqueológicos, mas a perda emocional do espaço diante da arrogância
e cinismo do discurso do progresso foi sem precedentes (V
ANDERLINDE
. In: Prefácio
L
IMA
, 2006, p. 29).
Quanto aos impactos ocasionados pela empresa, iremos nos ater especificamente
sobre a questão das propriedades no lado brasileiro, uma vez que objetivamos
minimamente mostrar a demanda de pessoas decorrente de sua implantação para o
Paraguai, mais propriamente com as áreas desapropriadas.
Quadro 04 – Propriedades urbanas e rurais desapropriadas
Zona Número de propriedades Área (ha.)
Urbana 1.606 484.789
Rural 6.913 100.607.732
Total 8.519 101.092.521
Fonte: Centro de Documentação da Itaipu Binacional, 1984.
Mais de 80% das propriedades desapropriadas estavam localizadas em áreas rurais.
Estas compreendiam pequenas propriedades agropecuárias com menos de 20 alqueires
cada uma; cultivavam em geral soja, trigo, milho, além de animais e cultivares de
108
subsistência como mandioca, feijão, arroz, hortaliças, etc. A demografia era bem uniforme
ao longo da faixa. Itaipu conseguiu amigavelmente desapropriar quase todas as áreas;
havia um grande número de questões jurídicas no tocante às propriedades que remontavam
a outras datas e aspectos.
24
As áreas urbanas
correspondiam a postos de
combustíveis, comércios e casas
comerciais, clubes, escolas, igrejas,
terrenos com benfeitorias, dentre
outros. Os portos existentes se
localizavam nas extensões urbanas e
rurais, geralmente cercados por
várias casas, caracterizando um
núcleo urbanizado. A desapropriação das áreas urbanas foi mais “tranqüila” que nas áreas
rurais, as últimas contavam com movimentos organizados
25
para terem seus pedidos
atendidos ou minimamente previstos pela empresa que fez as desapropriações.
26
A imagem acima é do Porto Mendes, localizado no distrito de mesmo nome no
município de Marechal Cândido Rondon, momento em que as águas do Rio Paraná
subiam, com o fechamento da barragem formando o Lago Internacional de Itaipu.
Após termos idéia do número de propriedades e suas concentrações em detrimento
as áreas urbanas e rurais no Brasil, bem como a mínima idéia do que ali se produzia,
passamos a apresentar a população em números de atingidos na região oeste do Paraná.
Quadro 05 – Municípios atingidos e sua população
Municípios Total da população População atingida Percentuais
Foz do Iguaçu 49.538 5.609 11,32
Guaíra 47.482 3.659 7,71
Marechal Cândido Rondon 63.458 10.600 16,70
Matelândia 35.473 70 0,20
24
O oeste do Estado do Paraná é conhecido pela tardia ocupação agrícola de seu espaço; sendo assim, haviam
questões não resolvidas no tocante a grilagens, ocupações, arrendatários, posseiros entre outras formas de uso
da terra. Haviam casos jurídicos que apresentavam problemas nesse sentido ou que ainda tramitavam nas
varas locais ou regionais, foi uma das últimas fronteiras agrícolas a se cultivar e as medidas dessa conquista
nem sempre foram amigáveis.
25
Um exemplo era o Movimento Justiça e Terra; a Comissão Pastoral da Terra também se fazia presente nas
reuniões. As principais questões levantadas giravam em torno da concessão de títulos e do preço das terras,
que a empresa avaliava e pagava.
26
A Itaipu designou a empresa MATRIX para desenvolver os trabalhos junto aos proprietários das terras a
serem desapropriados.
Acervo do Museu Histórico Padre José Gaertner
(S/registro) Porto Mendes – Pr.
109
Medianeira 45.216 1.540 3,41
Santa Helena 38.831 12.181 31,37
São Miguel do Iguaçu 36.436 8.639 23,71
Terra Roxa 55.268 146 0,26
Total 371.702 42.444 11,42
Fonte: Biblioteca da Itaipu Binacional / IBGE em articulação com o censo de 1975.
O quadro acima mostra os municípios e sua população total na época das
desapropriações, bem como a população atingida. Em um breve balanço podemos
constatar que, com exceção de Foz do Iguaçu houve uma redução demográfica nos
municípios após a instalação de Itaipu, e esses números na atualidade ainda não se
reverteram. Ou seja, após três décadas, esses municípios não tiveram uma retomada
significativa do crescimento demográfico, e todos, com exceção de Foz do Iguaçu,
possuem atualmente população numericamente inferior do que possuíam em 1982.
Logicamente não podemos citar Itaipu como a causa única das adversidades no
oeste do Paraná; mas por algum tempo a usina agiu como limitadora no tocante ao
crescimento populacional. E na atualidade esse limite remonta a questões fronteiriças,
culturais e identitárias para as pessoas que habitam esse espaço, seja do lado brasileiro ou
paraguaio.
O rastreamento das pessoas que saíram do oeste do Paraná em decorrência do
alagamento não é uma tarefa fácil; mas podem-se apresentar alguns números que
esclarecem a problemática desta pesquisa. Os dados abaixo elencados mostram os
principais fluxos migratórios ocasionado pelas desapropriações da Itaipu.
Quadro 06 – Principais destinos dos expropriados
Local de destino Percentual
Paraná 86,29
Mato Grosso 8,89
Santa Catarina 1,16
Paraguai 1,03
Rio Grande do Sul 0,76
Rondônia 0,76
Bahia 0,35
Pará 0,31
Amazonas 0,18
São Paulo 0,18
Minas Gerais 0,09
Fonte: Centro de Documentação da Itaipu Binacional, 1984.
110
Nosso foco de atenção aqui se em relação ao Paraguai; conforme a tabela, a
grande maioria das pessoas permaneceu no Estado do Paraná, e, desses, cerca de 90%
conseguiram propriedades no oeste do estado. Logo em seguida, os que partem com
destino ao Mato Grosso e Santa Catarina. O Paraguai é o quarto destino mais procurado
para os expropriados de Itaipu. Não é um número tão significativo, se analisarmos o fluxo
migratório da década de 1960 e 70, por exemplo. Temos, no contexto das desapropriações,
poucas pessoas migrando ao país vizinho em decorrência do alagamento do Rio Paraná. É
considerado como um baixo índice se levarmos em conta a proximidade espacial e a
similitude das terras em qualidade e produtividade, que são fatores de atração no contexto
anterior.
Ao mesmo tempo em que as comportas de Itaipu se fechavam para resolver em
partes a demanda de energia elétrica, nascia outro problema que Julio José Chiavenato
havia levantado, e que Ivone de Lima novamente ressalta sobre a situação do lado
paraguaio. Segundo ela, “foram 800 quilômetro de terras paraguaias inundadas, que
desalojaram aproximadamente 20 mil pessoas (...). Interessante observar que 80% dos
atingidos eram constituídos por migrantes brasileiros que haviam se aventurado em terras
guaranis”
(L
IMA
, 2006, p. 374)
.
O problema é que o governo brasileiro se mantinha alheio quanto a isso, pois
“segundo a Constituição paraguaia, os estrangeiros não poderiam residir na faixa de
fronteira” (I
DEM
p. 375). Ou seja, a Itaipu surgia como uma obra governamental através
da qual a população fronteiriça era prejudicada pela omissão do governo com os
desapropriados no Paraguai, não lhes cabendo qualquer forma de movimento, pois eram
reprimidos pela ditadura stroessniana.
Enfim, podemos situar Itaipu como um marco
27
na história do extremo-oeste
paranaense e do leste do Paraguai. O tema é relevante e provocaria discussões amplas por
meio das fontes de análise, surgindo posições favoráveis e contrárias ao empreendimento.
Sobretudo, podemos afirmar que os mais prejudicados foram os municípios margeados
pelo Lago Internacional de Itaipu, quando lhes foram submersos extensas faixas de terras
produtivas, bem como seus munícipes que ficaram descontentes com os preços oferecidos
27
Alguns autores utilizam esse marco para falarem das cidades que permeiam a Itaipu, como muito bem faz
Maria de Fátima Bento Ribeiro com relação a Foz do Iguaçu em sua obra “Memórias do Concreto; mas, em
geral, podemos articular especificidades a toda a região atingida por Itaipu.
111
por elas no processo de indenização; mas, por outro lado, veio a resolver outros problemas,
em nível nacional.
Conforme Ivone Teresinha Carletto de Lima,
O Brasil estava preocupado com o seu desenvolvimento e, nesse processo, viu-se
envolvido por questões diversas que deram destaque ao aspecto político. Na desencadeada
busca pelo aproveitamento hidrelétrico dos saltos de Sete Quedas, depois de intermináveis
e incipientes estudos, recebeu um projeto que indicava o desvio das águas para o lado
brasileiro. Tentativa que avivou históricas contendas no vizinho Paraguai. Dentre as
situações que teve que enfrentar foi a dos limites territoriais, onde Itaipu serviu como
acalmador e solucionador da divergência. Algo que para o Brasil era incontestável, no
entanto forjou momentos inflamados como o da ocupação militar que fez parte da política
de segurança nacional e, igualmente, serviu como uma demonstração de poder. Entretanto,
teve que reconhecer o direito às águas ao Paraguai (I
DEM
, p. 409).
Quando situamos Itaipu como um agente limitador entre Brasil e Paraguai, foi na
intenção de mostrar seu papel no processo de fluxo migratório dos expropriados ao
Paraguai; não que os baixos números momentâneos expliquem a complexidade do tema
com a fronteira, mas que ainda funciona nas “divisas” internacionais, especialmente
fomentando a variedade cultural e identitária dos dois povos.
Itaipu representa um marco na política ambiental em relação à construção de
barragens, servindo atualmente como modelo nesse aspecto com seus vários programas de
preservação. A partir de Itaipu questiona-se o impacto sobre o meio ambiente como custo
de desenvolvimento e progresso.
Uma maneira para melhor percebermos Itaipu como agente nesse território seria o
questionamento dos significados dela para os que foram desapropriados e para os
trabalhadores que construíram a usina, pois se misturam atualmente, alguns sem
propriedades desde então, e outros sem trabalho. Essas questões demandariam uma
pesquisa específica sobre o tema em torno da memória dessas pessoas para mostrar a
dimensão desses significados.
Os estudiosos têm salientado o fato de que a memória não é um receptáculo
passivo, mas atua como uma força ativa, que molda e é dinâmica (cf. Samuel, 1997); o que
ela “escolhe” sintomaticamente esquecer é tão importante quanto o que ela lembra; entre a
lembrança e o esquecimento operam as vozes de sujeitos para manter uma memória.
2.4 – A prática e a teoria em uma relação de habitus
112
A proposta de trabalharmos o habitus social no ambiente de fronteira estimula
questões históricas que não são percebidas na maioria das vezes. Elaboramos a discussão
em torno de alguns operativos sociológicos com uma interpretação historiográfica dos
agentes que permeiam a pesquisa. A abordagem é de caráter teórico e enfoca alguns
autores, especialmente da sociologia, que buscam explicar e conceituar o habitus.
A sociologia produz teorias que proporcionam diálogos profícuos com as
disciplinas nas áreas das ciências humanas; com a história isso não é diferente. Para
trabalharmos as noções de habitus, o conhecimento das obras de Norbert Elias e Pierre
Bourdieu é fundamental; esse contato, ainda que mínimo, ajuda-nos a pontuar nossas
abordagens quanto à experiência das pessoas que vivem em trânsito constante nas
fronteiras entre o Brasil e o Paraguai.
Nesse sentido, é importante assimilar conceitos como habitus social,
configuração, processo e evolução, os quais estão interligados. As obras de Elias, em
especial, destacam a relação entre os laços sociais e a consciência de si. Como destaca
Helenice Rodrigues da Silva, “os indivíduos se relacionam entre si em razão dos laços de
dependência recíproca constituídos pela própria sociedade. É, pois, sob o efeito dessa
imbricação que os comportamentos sociais se modificaram” (S
ILVA
, 2002, p.122)
.
Apercebemo-nos, por exemplo, que a cultura e a identidade de indivíduos e grupos sociais
são elementos que sofreram a influência da transformação da fronteira na relação com os
migrantes, tanto brasileiros quanto paraguaios.
O conceito de habitus social, formulado por Elias, permite compreender melhor a
relação entre indivíduo e sociedade no ambiente fronteiriço, por estar próximo da idéia de
estrutura social da identidade, a qual foge da necessidade de opção entre indivíduo e a
sociedade. Para o autor, cada homem apresenta um caráter específico que partilha com os
outros membros da sociedade. Esse caráter seria o hábito social do indivíduo, o qual lhe
daria a identidade que o distingue dos demais membros da coletividade.
O conceito de habitus em Elias não é totalmente definido, mas se constrói a partir
da teoria do processo civilizador. Neste processo se dão as relações entre grupos sociais, as
chamadas relações de força; estas se ligam e se opõem, colocando os indivíduos em
estruturas de campos de força, equilíbrio e competição, relacionando-a diretamente ao
contexto da fronteira.
113
A idéia de processo parte de modelos que evoluem em conjunto, substituindo a
noção de causa, como por exemplo, nas relações de poder. Helenice Rodrigues da Silva diz
que é possível perceber a relação existente entre o indivíduo e a sociedade.
O pensamento de Norbert Elias, sem dúvida, rompe com a falsa dicotomia entre
perspectivas deterministas, que negam toda possibilidade de invenção ou de criação por
parte dos agentes, e com o postulado idealista de uma criação fundada numa invenção
livre do sujeito, que afirma a independência total do sujeito em relação às estruturas
sociais (I
DEM
, p.125)
.
O conceito de configuração implica a idéia de que existem duas imagens, a do
indivíduo e a da sociedade, está rompida. Para Elias, o poder é formado por relações no
interior do mundo social, parecendo um jogo, no qual existe a relação entre “eu” e “ele” ou
“nós” e “eles”. Existe uma interação em grupos com instabilidades, em movimento; dessa
forma, “o conceito de mudança social é assim substituído pelo conceito de configuração”
(I
DEM
, p.124).
Ao vincularmos o indivíduo em cadeias de interdependências, inserindo-o em
configurações sociais diversas, entendemo-lo como resultado do processo, e que sofreu
mudanças em sua personalidade, permitindo o processo de evolução funcional. É o que se
dá na fronteira após a transformação do Rio Paraná em Lago Internacional de Itaipu.
Algumas dessas configurações sociais são percebidas no relato de Sonia J.
Vicente ao falar de como as pessoas agem nesse contexto às margens do Lago.
Eu, muitas vezes fui maltratada aqui, eu até digo que isso seja racismo, por ser,
brasiguaio, como que se isso fosse uma doença, contagiosa né, comprei muita bronca
aqui por causa disso, normalmente brasiguaio se é..., que come mandioca. É brasiguaio,
são mal vestidos. Brasiguaios não usam perfume. Esse tipo de coisa, que chateia a gente
(E
NTREVISTA
.
S
ONIA
J
ANDIRA
V
ICENTE
, 2003).
Nesta perspectiva, compreendemos cada indivíduo como singularidade dentro de
um grupo, e que possui uma personalidade interagindo com os demais; mas seu habitus
social é construído em meio à sua relação com os meios culturais. O habitus pode ser
considerado tanto como uma identificação pessoal quanto servir de marca distinguindo o
indivíduo dos demais.
Não percebemos que haja este tipo de tratamento com indivíduos por pertencerem
a um grupo distinto, como no caso aqui com os brasiguaios; isso que a entrevistada deixa
transparecer em seu relato não é comum, embora não descartemos a existência de certas
114
antipatias de um grupo para com indivíduos de outros grupos. Quanto a isso uma visão
essencialmente obscura desse complexo movimento polifônico dos grupos ao longo do
tempo.
Para Norbert Elias.
A abordagem de uma figuração estabelecidos-outsiders
28
como um tipo de relação
estática, entretanto, não pode ser mais do que uma etapa preparatória. Os problemas com
que nos confrontamos numa investigação como essa se evidenciam quando se
considera que o equilíbrio de poder entre esses grupos é mutável e compõe um modelo
que mostra, pelo menos em linhas gerais, os problemas humanos inclusive
econômicos — inerentes a essas mudanças
(E
LIAS
;
S
COTSON
, 2000, p. 36).
O habitus tem múltiplas facetas, por apresentar um entrelaçamento ambíguo de
configurações, o que permite entendê-lo como um sistema. Nessa perspectiva comprova-se
a premissa de não poder pensar as idéias desvinculadas da história da sociedade; a
evolução da racionalização precisa necessariamente andar de mãos dadas com as
transformações sociais. Com seu modelo interpretativo constituído na percepção das
configurações sociais a que chama de sociedades e as personalidades dos indivíduos, Elias
nos permite entender a idéia de evolução e desenvolvimento social. Assim, objetiva-se
“sublinhar a originalidade de uma teoria que começa a ser introduzida na pauta de
preocupações dos cientistas sociais brasileiros”
(M
ALERBA
, 1996, p. 88)
.
E,
acrescentemos, é um modelo que pode contribuir para desenvolver-se este vasto campo das
representações fronteiriças.
Elias atribui a uma mudança no habitus — ou hábito social, como ele por vezes o nomeia
fruto da curialização da sociedade guerreira, o surgimento do terreno propício para o
distanciamento crescente entre o homem e a natureza ou, em outras palavras, para
uma crescente objetivação do mundo. Investigando a construção da estrutura social da
psicologia, num ensaio seminal sobre a relação do equilíbrio nós-eu, em que procura
superar a falsa dicotomia ou o princípio gerador entre indivíduo e sociedade, Elias [...]
sugere em que campo de entendimento deve-se enquadrar o conceito de habitus
(M
ALERBA
, 2000, p. 214).
Em nossa intenção de “desdobrar” as matizes teóricas do habitus em Elias,
notamos que a complexidade de uma sociedade torna seu habitus cada vez mais
28
Os termos estabelecidos e outsiders correspondem ao título da obra de Norbert Elias e John L. Scotson. Os
estabelecidos de maneira geral correspondem a um grupo social que habita um espaço há vários anos,
apresentando-se como residentes a mais tempo naquele espaço social. Os outsiders de maneira geral são as
pessoas que m de fora e passam a viver no mesmo espaço social. Essa classificação é genérica e não
representa uma diferenciação entre os grupos, seja em relação à etnia, classe social, cargos empregatícios,
entre outras possíveis diferenças.
115
discrepante. Isso depende, em parte, dos níveis de integração do indivíduo com o seu
grupo; nesse sentido, o pertencimento à sociedade juntamente com o caráter coletivo da
personalidade individual humana tem como finalidade o desempenho do habitus social.
“Elias concebe a possibilidade de transformações do habitus decorrentes de mudanças
históricas, as quais incidem sobre a hierarquia das posições” (I
DEM
, p. 217)
.
Pierre Bourdieu é outro autor que faz reflexões interessantes ao conceituar a
teoria de habitus; inicia considerando suas capacidades criadoras, ativas, conscientes e
inconscientes dos agentes em ação num campo e estabelecendo uma cumplicidade
ontológica com o mundo. Conforme Malerba, Bourdieu pondera a idéia de que o
habitus talvez melhor se defina como os limites de ação, das soluções ao alcance do
indivíduo em uma determinada situação social concreta. É, portanto, um produto da
história que produz práticas individuais e coletivas e que estabelece os limites dentro dos
quais os indivíduos são ‘livres’ para optar entre diferentes estratégias de ação (I
DEM
, p.
216).
A relativa liberdade de ação dentro desses limites é perceptível no contexto
fronteiriço entre Brasil e Paraguai. Na fala do pescador Miguel Pereira podemos notar a
ação e os limites da ação.
Lá [Paraguai] é o seguinte: as coisas deles é o que vale não é? Você vai lá, faz uma roça,
é tudo teu conhecimento, é o que eles pagam, tudo bem assim , qualquer coisa; quem
faz a lei é eles mesmos, não..., não tem aquele negócio de dono; se você compra um
pacote de açúcar, chega lá, tem que pagar de novo pra atravessar para o Paraguai; é desse
jeito, tudo é meio de ganhar dinheiro; mas aqui é a mesma coisa, é, tanto faz você vive
aqui como no Paraguai; quer dizer, é melhor ainda no Paraguai que aqui, com certeza
tem muitas coisas mais barato que aqui (E
NTREVISTA
.
M
IGUEL
P
EREIRA
, 2003).
Aspectos relevantes de análise são evidenciados no discurso acima, a questão do
trabalho, da lei, da propriedade, da economia e, por último, da moradia. A ação dos agentes
em trânsito na fronteira mostra peculiaridades permeadas pelos limites em outro país.
Mesmo que seja melhor de viver, ou que se encontram mercadorias mais baratas.
Na compreensão de Bourdieu, é representado assim o mundo social em forma de
espaço, com base na diferenciação ou na distribuição num conjunto que atua no universo
social.
Os agentes e grupos de agentes são assim definidos pelas suas posições relativas neste
espaço. Cada um deles está acantonado numa posição ou numa classe precisa de posições
vizinhas, quer dizer, numa região determinada do espaço (...). Na medida em que as
propriedades tidas em consideração para se construir este espaço são propriedades
116
atuantes, ele pode ser descrito também como campo de forças, quer dizer, como um
conjunto de relações de forças objetivas impostas a todos os que entrem nesse campo e
irredutíveis às intenções dos agentes individuais ou mesmo às interações diretas entre os
agentes (B
OURDIEU
, 2005, p.134).
Notamos que os valores se dão em variáveis diferentes e pertinentes como em um
espaço multidimensional de posições; os agentes distribuem-se neste espaço de uma
maneira ou de outra; Bourdieu assim descreve o campo social da ação. O antropólogo e
sociólogo Loïc Wacquant deixa transparecer a sua preferência pelo modelo proposto por
Bourdieu, inserindo a discussão no debate filosófico, bem como assegurando a renovação
sociológica do conceito. Para Wacquant, a teoria do habitus de Bourdieu mostra
uma noção mediadora, que nos ajuda a revogar a dualidade que há no senso comum entre
o individual e o social, capturando a interiorização da externalidade e a externação da
internalidade, ou seja, a maneira pela qual a sociedade é depositada nas pessoas sob a
forma de disposições duráveis, ou, ainda, capacidades treinadas e propensões
estruturadas de pensar, sentir e agir de um determinado modo, as quais então as orientam
em suas respostas criativas às restrições e solicitações do meio em que se encontram
(W
ACQUANT
, 2004, p. 12).
Certamente Norbert Elias e Pierre Bourdieu são os maiores expoentes a refletirem
sobre o conceito de habitus; nossa intenção aqui não é comparar ou identificar
semelhanças e diferenças entre os dois autores, mas operacionalizá-los na tentativa de
entender a ação de determinados sujeitos no campo fronteiriço entre o Brasil e o Paraguai.
Ambos são plausíveis de serem utilizados no decorrer da pesquisa; embora haja vários
pontos comuns em suas teorias, outras tantas questões divergentes, não obstante, o que
marca sem dúvida esses dois autores são as suas longas discussões acerca do tema no
decorrer de suas vidas; e talvez o que marca de maneira mais evidente as diferentes
concepções são os contextos em que aplicam suas teorias.
Concordamos com as suposições de Jurandir Malerba quanto a isso.
Uma dificuldade suplementar que emerge quando se intenta comparar ambas as matrizes
repousa no fato de que, se em Elias é possível encontrar uma unidade orgânica e
conceitual na obra produzida ao longo de mais de seis décadas, em Bourdieu, é
detectável uma permanente inquietação, que se manifesta na contínua revisão que opera
em seus conceitos, e em sensíveis nuances nesses conceitos ao longo da carreira
intelectual desse autor (...). Elias concebe a possibilidade de transformações do habitus
decorrentes de mudanças históricas, as quais incidem sobre a hierarquia das posições.
Por isso, seu conceito de campo é mais flexível do que o de Bourdieu: trata-se de uma
rede de relações estruturadas em espaço de posições, mas aberta e constantemente
trabalhada pelas contingências históricas, que fazem o papel de variáveis exógenas e que,
por certo, transformam a hierarquia das posições (M
ALERBA
, 2000, p. 213-217 )
.
117
Assim, a teoria de habitus brevemente discutida aqui a partir da leitura de Elias e
Bourdieu, traz uma propensão às ponderações de Norbert Elias, sem, todavia, descartar as
reflexões de Pierre Bourdieu, pois Elias contempla de maneira mais flexível as
contingências históricas na complexa discussão social na fronteira.
2.5 – Questões acerca do nacionalismo paraguaio
Trabalhar com o sentimento das pessoas em torno de um tema complexo como
são as relações sociais internacionais entre populações dos países latino-americanos, não é
uma tarefa fácil de ser levada a efeito. Brasil e Paraguai não apresentam apenas números,
não são hipóteses calculáveis que demonstram os problemas entre ambos; pudemos
perceber que há uma intricada rede decorrente de demandas como questões fronteiriças,
econômicas, culturais, políticas e sociais que estão especialmente ligadas aos movimentos
populacionais.
Discutir estas abordagens tendo como foco a população paraguaia torna a
pesquisa ainda mais instigante; entender a gama de significados de uma outra nação tendo
como destino preocupações internacionais que refletem diretamente no Brasil é incorrer
em possibilidades múltiplas de equívocos. Nossa intenção é atrelar alguns pontos que
aparecem especialmente na cultura paraguaia, bem como outras possibilidades no meio
agrícola do país vizinho, tendo como local a fronteira com o Brasil.
É importante pontuarmos algumas considerações sobre o conceito de nação,
embora o eixo central da discussão não se aproxime de uma tentativa de postular o que
realmente seja nação, nacionalismo ou mesmo consciência nacional; é preciso, não
obstante, mostrar nosso entendimento sobre essa questão. Certamente a amplitude do tema
demandaria uma reflexão mais demorada e aprofundada, o que não fazemos aqui. Quanto a
isso, as colocações de Eric Hobsbawm são pertinentes ao contexto estudado.
Fenômenos duais, construídos essencialmente pelo alto, mas que, no entanto, não podem
ser compreendidas sem ser analisadas de baixo, ou seja, em termos das suposições,
esperanças, necessidades, aspirações e interesses das pessoas comuns, as quais não são
necessariamente nacionais e menos ainda nacionalistas (H
OBSBAWM
, 1994, p. 19-20).
O autor toca em um ponto essencial quanto ao entendimento da nação vista não
apenas por governos ou ativistas de certos movimentos nacionalistas, mas sim pelas
118
pessoas comuns que são difíceis de serem descobertas enquanto formadores dessa nação.
Ou seja, a nação deve ser compreendida com outras exigências que ficam além dos espaços
territoriais que ela transpõe; a associação de fenômenos como as condições
administrativas, técnicas, políticas, econômicas, culturais, entre outras, compõe o substrato
que permeia o conceito de nação.
Nesse sentido, utilizamos o termo visto de baixo como pertencente a uma história
que não faz parte apenas dos grandes escalões nacionais de um país, visto, sobretudo pelas
pessoas que permeiam o tema de pesquisa, as chamadas pessoas comuns. Para os estudos
históricos, essa perspectiva proporciona um sentido rico de análise. Para Jim Sharpe.
A história vista de baixo é mais profunda do que apenas propiciar aos historiadores uma
oportunidade para mostrar que eles podem ser imaginativos e inovadores. Ela
proporciona também um meio para reintegrar sua história aos grupos sociais que podem
ter pensado tê-la perdido, ou que nem tinham conhecimento de existência de sua história
(S
HARPE
, In: B
URKE
, 1992, p.59).
Os ambientes fronteiriços contêm uma multiplicidade de idéias, indivíduos e
grupos que atribuem valores diferenciados aos sentidos de nação; a ambigüidade do tema
possibilita, quanto a esses atores sociais “de baixo”, deixar transparecer a inovação que os
historiadores buscam para as novas significações.
Utilizamos o conceito de nação neste espaço fronteiriço fazendo alusão a
Hobsbawm, que mostra-nos a fragilidade do tema, quando escreve a história da nação
ocidental moderna sob a perspectiva da margem da nação e do exílio de migrantes. Nas
palavras do autor, A identificação nacional e tudo o que se acredita nela implicado pode
mudar e deslocar-se no tempo, mesmo em períodos muito curtos. Em meu julgamento, esta
é hoje uma área dos estudos nacionais na qual se precisa urgentemente de reflexão e
pesquisa”.
(H
OBSBAWM
, 1994, p. 20).
Procuramos operar uma aproximação dessas teorias com a fronteira entre os dois
países, para mostrar um pouco além do que nos permitimos traçar. Parafraseando Homi K.
Bhabha, seria mais ou menos como perceber onde algo começa a se fazer presente; é nesse
sentido que a fronteira se torna um lugar a partir do qual possui um movimento dissimilar
ao da articulação ambulante. assim sendo, as idas e vindas não obedecem a modelos
elaborados nem quando se propõem à uma explicação política ou econômica, tendo–as
como maneira mais fixa de percepção, essas proposições ultrapassam simples
compreensões, e especialmente em relação a ambigüidade cultural existente nestas vidas de
119
fronteira esse movimento se torna ainda mais polivalente de significação. Neste sentido
Bhabha diz que:
o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do
continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de
tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou
precedente estético; ela renova o passado como, refigurando-o como um entre-lugar’
contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O ‘passado-presente’ torna-se
parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver (B
HABHA
, 1998, p. 27)
.
Seguindo essa reflexão, ou aplicando-a ao nosso caso concreto, podemos inserir
as fontes e suas narrativas neste espaço fronteiriço ambíguo, sempre percebendo essa
relação entre o e o aqui. Em suma, entendemos a fronteira como um espaço intercultural
produzido, também, pelas pessoas comuns de ambas as nações, e não apenas pelas elites
nacionais dos respectivos países. Os espaços interculturais são importantes de serem
vivenciados na fronteira, mas a ocorrência desse diálogo raramente se dá, pois grupos
maiores não buscam aproximações no interior do país vizinho.
Para o sociólogo Ramón Fogel,
Hay que haver um espacio intercultural de dialogo, pero se cuándo son pocos que
están em território paraguayo, dijo nun território controlado por paraguayos, entonces se
dá esto dialogo intercultural, dijo a usted que los paraguayos asimilan pautas, tecnologias
de los brasiguayos, de los brasileños, verdad? Y los brasileños se integran a la
organización de los paraguayos coperan, pero no cuándo ocurre la expansión grupal
(E
NTREVISTA
.
R
AMÓN
F
OGEL
, 2006).
Fogel nos uma amostra plausível de como o diálogo intercultural pode
acontecer no país vizinho. Certamente, a integração, as trocas e a assimilação de
modos/hábitos entre os povos ocorrem, mas acentua especialmente que isso acontece no
momento em que não a evidência de expansão de grupos de migrantes brasileiros. Ou
seja, o expansionismo resulta em uma força de repulsão aos diálogos interculturais para a
população paraguaia.
Nesse sentido, podemos identificar a falta de uma maior interação entre os dois
povos no Paraguai, porque a população nativa do país sente-se ameaçada pelo número
excessivo de brasileiros existentes em determinados lugares na fronteira de seu país,
“entoces dijo qué es precisio protegerse desse modelo en que 80 a 90% son brasileños, los
brasileños son beneficiados digamos por este modelo” (I
DEM
)
.
120
Pontua aqui o que queremos evidenciar sobre a ameaça sentida pelos paraguaios
em certos locais, atrelando diretamente à questão nacionalista, de que são necessárias
outras exigências para que sejam entendidos os sentidos de nação e nacionalismos. Como
por exemplo, o que diz o sociólogo paraguaio, sobre a necessidade de um estreitamento no
diálogo intercultural, que não pode deixar de ocorrer por causa do sentimento de ameaça
por um grupo expansionista naquele país.
Nosso estudo, mais uma vez, buscou essa perspectiva paraguaia nos jornais
daquele país, para minimamente mostrarmos alguns pontos em relação aos dois países
sobre a questão nacional. O músico Victor Brítez, paraguaio que viaja pelo interior e
cidades do país difundindo sua música, sua visão da situação na entrevista ao Ultima
Hora.
Los brasileños no solo plantan soja transgénica sino que nos imponen su cultura en la
frontera, su lengua, su dinero (...). Es un fenômeno que además de cultural, es político y
económico. Es de anexión directa. Hoy resulta que el 80 por ciento de los dueños de
tierra son brasileños. Obviamente se necesita una política contraria a eso y no creo que
este gobierno pueda impulsar algo favorable en este sentido (U
LTIMA
H
ORA
, 09/05/2004,
p. 39).
Novamente percebemos aspectos que Hobsbawm destaca com relação à nação, de
que são necessárias outras reivindicações para que esta seja percebida como entidade. Para
o músico, aparecem vários aspectos que precisam ser revistos em nível político para serem
resolvidos com relação ao grande movimento de brasileiros que moram atualmente no
Paraguai.
Para o jornalista Arnaldo Alegre, é notável que a intromissão dos brasileiros no
país vizinho contribue na geração de vários problemas, especialmente no tocante a
propriedades de terras e sobre a questão de dinheiro que entram por suas mãos no Paraguai.
La penetración brasileña en nuestro territorio es cada vez más profunda, llegando ya a los
departamentos de Caagua y Caazapá. Los colonos paraguayos adquierieron sus
terrenos por 130 mil guaraníes la hectárea y los agro-empresarios del Brasil le ofrecen 10
millones de guaraníes por cada hectárea de su propriedad. Los campesinos se ven
obligados a vender las tierras, aunque hay algunos que se resisten (U
LTIMA
H
ORA
,
01/09/2003, p. 21)
.
Novamente, os aspectos de exigências variáveis se percebem no discurso do
jornalista; no desenvolver da matéria, os apelos aos poderes políticos, especialmente ao
governo federal paraguaio, surgem como uma maneira de tentar frear algumas atitudes
121
com relação à permanência de brasileiros no Paraguai. Nesse sentido, a presença brasileira
é vista como uma invasão a nação paraguaia, uma vez que expulsa os campesinos de suas
terras.
Em outra oportunidade, percebemos que a opinião editorial do jornal Ultima
Hora, de Assunção, corrobora com o que estamos discutindo em relação à presença de
brasileiros no Paraguai.
El Estado debe ocuparse de los problemas generados por la descontrolada afluencia de
colonos brasileños a nuestro país. La presencia masiva de inmigrantes brasileños en las
zonas fronterizas y en gran parte del territorio nacional tiene considerables consecuencias
económicas, sociales y políticas, y plantea complejos problemas de asimilación cultural,
impacto ambiental, de uso de la tierra, de desplazamiento de la población campesina, de
legalidad y de soberanía. Es sencillamente inconcebible que el Estado paraguayo
continúe sin una política que comprenda esa realidad y regule ese proceso migratório que
ya lleva más de cuatro décadas
(U
LTIMA
H
ORA
, 19/09/2003, p. 24).
Como as demais passagens acima, o editorial também chama a atenção para
variáveis incomuns de notar a atuação de “outros” na nação, vários tipos de compreensão
de perda são notadas nos discursos. Um ponto particular a ser percebido aqui é a cobrança
para com o Estado ou Governo; uma questão peculiar que o editorial deixa transparecer é a
legalidade dessa ação no país vizinho, bem como a soberania paraguaia em relação ao
movimento populacional.
Outras questões aparecem nos periódicos paraguaios e poderiam ser discutidas
aqui, mas nos levariam a outros propósitos; nesse momento, privilegiaremos apenas as
manchetes de alguns periódicos que também contemplam a causa nacional.
O jornal Tempos del Mundo traz as matérias “La penetración brasileña en el
Paraguay es imparable: ¿Integración... o expulsión?” (T
EMPOS
D
EL
M
UNDO
, 04/09/2003,
p. 02). Continua com Modelos productivos tradicional y mecanizado ¿Coexistência o
enfrentamiento?” (T
EMPOS
D
EL
M
UNDO
, 19/02/2004, p. 02). E ainda a matéria sobre “Los
Brasiguayos” (T
EMPOS
D
EL
M
UNDO
, 04/03/2004, p. 02).
O jornal ABC Color também mostra algumas preocupações quanto à questão
nacional em suas manchetes. Por exemplo, dizem que “No existe proceso colonizador,
sino penetración económica” (A
BC
C
OLOR
, 07/04/2004, p 16). Outra manchete evidencia a
questão campesina, relacionada com a propriedade de uma brasileira; segundo o jornal,
“Campesinos sin tierra volvieron a invadir propiedad de una brasileña” (A
BC
C
OLOR
26/05/2004, p. 19). também a preocupação com o meio ambiente no Paraguai “Se abre
122
dialogo en busca de solución al grave problema ambiental: brasileños se comprometen a
reparar el daño ecológico” (A
BC
C
OLOR
24/09/2003, p. 14).
O periódico Ultima Hora reforça o espírito invasor e dominador dos brasileiros
no Paraguai; segundo o jornal, “Poder económico de agro-empresarios del Brasil desplaza
a carenciados productores paraguayos: penatración brasileña llega al centro del país y
provoca éxodo” (U
LTIMA
H
ORA
01/09/2003, p. 21). Em outra ocasião, relembram que
“Brasileños repitem el espíritu de los invasores bandeirantes” (U
LTIMA
H
ORA
,
03/09/2003, p. 22). E em relação aos aspectos culturais, afirmam que “Los brasileños nos
imponen su cultura” (U
LTIMA
H
ORA
,
09/05/2004,
P
.
39).
Essas passagens acima mostram, de alguma forma, que “a consciência nacional
se desenvolve desigualmente entre os grupos e regiões sociais de um país; essa
diversidade regional e suas razões foram notavelmente esquecidas” (H
OBSBAWM
, 1994, p.
21).
Procuramos buscar pessoas de diferentes setores e de diferentes formações que
percebem os problemas incomuns do Paraguai e mostram tais aspectos nos meios de
comunicação como os jornais. Entre eles estão cantores, jornalistas, editores, que
pesquisam e escrevem sobre o tema nos periódicos.
Analisar, por meio da imprensa escrita, questões complexas como nação,
consciência nacional e nacionalismo em um ambiente conturbado como a fronteira,
comporta uma série de exames em vários sentidos, na busca por uma aproximação de
idéias entre os problemas que ocorrem neste espaço e o que a imprensa deixa transparecer.
Nesse sentido, Benedict Anderson mostra a preocupação dos historiadores para
com a atuação da imprensa.
Se o desenvolvimento da imprensa (...) é a chave da geração de idéias inteiramente novas
de simultaneidade, ainda assim estamos simplesmente no ponto em que se tornam
possíveis comunidades do tipo ‘horizontal-secular, transversal ao tempo’. Porque, dentro
desse tipo, a nação se tornou tão popular? Os fatores envolvidos são obviamente
complexos e variados
(A
NDERSON
, 1989, p. 46).
Para encerrar a discussão em torno desses aspectos complexos e variáveis o que
caracteriza a ambigüidade referente às questões nacionais, apresentamos as reflexões de
Hobsbawm para evidenciar as atitudes da população paraguaia em relação à penetração
brasileira em seu país. Segundo ele, “o que caracterizava o povo-nação, visto de baixo,
123
era precisamente o fato de ele representar o interesse comum contra os interesses
particulares e o bem comum contra o privilégio” (H
OBSBAWM
,
1994, p. 32)
.
Ao longo da pesquisa, foi inevitável não entrar nessas questões com os agentes
que permeiam nosso estudo, ao que pudemos perceber as opiniões que essas pessoas
comuns possuíam assemelham-se em grande parte com as teorias nacionalistas.
As demandas de idéias especulativas que se percebe nos discursos paraguaios na
atualidade concebem o Brasil como um país imperialista. Essas idéias derivam de uma
longa história, que procede desde a Guerra da Tríplice Aliança, na segunda metade do
século
XIX
, momento em que se discutiu de maneira mais ávida as questões fronteiriças,
especialmente de delimitações das fronteiras entre os dois países.
Uma vez definido tais limites, ambos os países incorrem em equívocos e de tal
maneira em suposições até certo ponto conspiratórias que saem da alçada da historiografia.
A população que vive nesse território fronteiriço alimenta tais suposições e relega tanto
para o Brasil quanto ao Paraguai questões nacionalistas, sendo discutidos limites
fronteiriços, soberania, cultura, território, identidade, idioma, moeda, enfim uma gama de
anseios diretamente relacionado à consciência nacional. Entendemos que a formação
dessas idéias, assim como dos Estados-nação na contemporaneidade, não se de maneira
alguma de formas idênticas nem homogêneas.
Em um ambiente de fronteira, em que as relações entre as pessoas exigem
significações diferentes para os distintos segmentos dos agentes que a permeiam, a noção
de nação torna-se ainda mais complexa. Existe nesse intrincado território fronteiriço não
apenas afinidades e contra-sensos entre as populações migrantes, mas também identidades
híbridas e memórias em lutas. Grupos que apresentam e formam outros projetos de vida
nesse espaço, aparecendo até mesmo como um terceiro indivíduo, o brasiguaio,
ultrapassando as meras questões diplomáticas entre Brasil e Paraguai. Não apenas por suas
experiências únicas de vida, as memórias de brasileiros, paraguaios e brasiguaios devem
ser entendidas como algo seletivo, mutante e em constante disputa nesse ambiente
fronteiriço.
Uma vez definido tais limites, ambos os países incorrem em equívocos e de tal
maneira em suposições conspiratórias que escapam da alçada de uma historiografia
“realista”. A população que vive nesse território fronteiriço alimenta tais suposições e
associa tanto ao Brasil quanto ao Paraguai interesses nacionalistas, sendo discutidos limites
fronteiriços, soberania, cultura, território, identidade, idioma, moeda, enfim, uma gama de
124
anseios diretamente relacionado à consciência nacional. Entendemos que a formação
dessas idéias, assim como dos Estados-nação na contemporaneidade, não se de maneira
alguma de forma homogênea. Em um ambiente de fronteira em que as relações entre as
pessoas exigem significações diferentes para os distintos segmentos dos agentes que o
compõem, a noção de nação torna-se ainda mais complexa.
Existe nesse intrincado território fronteiriço não apenas afinidades e contra-
sensos entre as populações migrantes, mas também identidades híbridas e memórias em
luta. Diversos grupos se constituem com diferentes projetos de vida, aparecendo até
mesmo como um terceiro personagem entre o brasileiro e o paraguaio, o brasiguaio; essa
realidade complexa e mutante ultrapassa as questões meramente diplomáticas entre Brasil
e Paraguai: ela comporta não apenas trajetórias e experiências únicas de vida, como
também, de modo indissociável dessas mesmas trajetórias e experiências, um conjunto de
memórias que devem ser entendidas como seletivas e em constante disputa nesse ambiente.
As questões de cultura e identidade plasmam a constituição dessas memórias, como
veremos a seguir.
III – CULTURA E IDENTIDADE
O problema é saber como e por que os indivíduos percebem uns
aos outros como pertencentes a um grupo e se incluem
mutuamente dentro das fronteiras grupais que estabelecem ao
dizer ‘nós’, enquanto, ao mesmo tempo, excluem outros seres
humanos a quem percebem como pertencentes a outro grupo e a
quem referem coletivamente como ‘eles’. (ELIAS, 2000, p.37-38)
.
O presente estudo aborda características peculiares aos dois países; mas,
sobretudo, busca apurar um fenômeno que muitos percebem como a perda da hegemonia
cultural paraguaia, ou mesmo a desnacionalização identitária de sua população. O
entendimento dessa questão se sob a perspectiva de que uma cifra equivalente de
trocas, ou seja, de idas e vindas de brasileiros ao Paraguai e vice-versa. O que tentamos
mostrar é que o percentual de brasileiros no país vizinho é grande no período recortado
para a pesquisa, assim estaria havendo um processo de verdadeira ocupação e colonização
brasileira de extensas áreas fronteiriças do território paraguaio.
29
Em 1977, Domingo Laino publicou o livro Paraguai: fronteiras e penetração
brasileira. Na versão espanhola dizia que:
não se pode observar sem preocupação o fenômeno que gera a expansão brasileira sobre
os limites fronteiriços paraguaios: suas terras, seus recursos naturais, sua moeda, sua
divisa, seu idioma, seus costumes, se encontram dentro de um acelerado processo de
desnacionalização (L
AINO
, 1979, p. 07).
Na década de 1980, as preocupações de setores da sociedade paraguaia diziam
respeito não apenas a um problema agrário que durante muito tempo se manteve sufocado
pelo autoritarismo do governo ditatorial, e que nos últimos anos encontrara forças e
resistência para eclodir; mas, sobretudo, problematizavam situações concretas da realidade
fronteiriça, desde a infiltração estrangeira até a desindentificação ou a colonização cultural
dos paraguaios.
29
As estatísticas do período estudado por nós apresentam aproximadamente 10% de brasileiros no Paraguai;
são várias as fontes que apontam nessa direção, embora apresentem números diferentes umas das outras,
também acreditamos nessa estimativa de aproximadamente 450 mil brasileiros. Por outro lado uma cifra
equivalente de paraguaios no Brasil, mas devido as grandes extensões territoriais e demográficas eles não
aparecem com tanto destaque como ocorre com os brasileiros no Paraguai.
126
O discurso do sociólogo paraguaio Ramón Fogel no final de 2006, praticamente
após três décadas, mostra que essas preocupações persistem. Em seu relato sobre a questão,
o sociólogo considera que o
Brasil es lo país más poderoso, es el país qué más se espandió em toda la región, y
entonces eso hace que facilmente nos colonicen; conseguem viren a integrarse a nuestro
meyo cómo inmigrantes, si no vienem a colonizarnos haja que sosgladien las divisiones
(...). Bueno, prolongan la dinámica de Brasil, la dinámica prolongada de Brasil, este es un
fator important (...). Brasil es más poderoso de la región y nosotros estamos bastante
vulnerable nesta asinmetria; esto hace que este tenga la tendencia a colonisarnos, y a
esteriotiparnos (E
NTREVISTA
.
R
AMÓN
F
OGEL
,
2006).
Fogel externaliza aspectos múltiplos da interferência brasileira no Paraguai; faz
ver que a “colonização” brasileira do Paraguai fortalece a representação do Brasil como
uma potência regional, fazendo valer a sua dinâmica no país vizinho, havendo um
prolongamento ativo da sociedade e da cultura brasileira em terras paraguaias. Sobretudo,
aponta a construção de estereótipos que sustentam essas divisões, pois os brasileiros
tendem a estereotipar a população paraguaia por causa da vulnerabilidade do seu país. Com
efeito, essa estereotipia, como tem presenciado, alude a diferenças econômicas, étnicas e
históricas que supostamente atestariam a “superioridade” dos brasileiros sobre os
paraguaios. Entre outros fatores, o que fica evidente é a preocupação do sociólogo com a
falta de harmonia, coesão, proporções regulares, enfim não igualdade e simetria nas
relações entre Brasil e Paraguai.
Nesse contexto, muitos são os fatores presentes, compreendendo até mesmo um
sentimento xenófobo bastante acentuado. Esse sentimento pode representar, em uma parte
da população local, certo desprezo e medo por uma população que não se integrou de fato
à sociedade paraguaia, mas que também não é integrante da sociedade brasileira. Essa
ambigüidade identitária, ou identidade ambígua, dos brasiguaios é motivo de dificuldades
classificatórias e, em conseqüência, gera certo desconforto para com a sua presença no
país. Laino mostra sua preocupação quanto a isso, ao dizer que “o território de quase toda
a fronteira do país com o Brasil está sob o domínio de sociedades e pessoas de
nacionalidade brasileira” (L
AINO
, 1979, p.35). Isso leva a cultura brasileira a prevalecer
em vários aspectos sobre a cultura paraguaia.
A referência ao grande número de brasileiros no Paraguai é constante em várias
fontes por nós utilizadas; tomamos aqui o exemplo do periódico Ultima Hora, em que o
127
Embaixador brasileiro no Paraguai, Luiz Augusto de Castro Neves, refere-se aos números
de imigrantes brasileiros. No jornal, o embaixador
reconoce que no hay registros estadísticos precisos, pero las informaciones que
maneja la diplomacia brasileña permite precisar el número de brasiguayos em
aproximadamente 450.000 personas. De esta cantidad, el último censo solo
conoce oficialmente 110.000 personas. Es decir, cerca de 340.000 están em
situación ilegal
(U
LTIMA
H
ORA
, 27/09/2003, p. 26).
Na atualidade, o total de habitantes no Paraguai chega aproximadamente a 6,6
milhões de pessoas; portanto, esta quantidade de 450 mil brasileiros representa quase 7%
do total. A grande maioria delas se concentra nos departamentos fronteiriços, ocasionando
assim um superpovoamento de cerca de 80 a 90% de brasileiros em algumas cidades dos
departamentos fronteiriços com o Brasil.
Conforme aponta o periódico paraguaio acima citado, o reconhecimento desses
números pelas autoridades, embora eles não aparecem nos censos populacionais; isso gera
um problema ainda maior, porque se constata que a maneira como os brasileiros continuam
adentrando as fronteiras paraguaias permanece na ilegalidade, como ocorreu na década de
1960, no início do movimento migratório àquele país. Ou seja, o movimento de população
desrespeita as normas, acordos e a própria legislação instituída pelo direito internacional.
Nesse sentido, a observação de José de Souza Martins é interessante para
pensarmos essa ocupação, pois o sociólogo leva em conta os elementos de estratificação e
relação social que permeia o processo histórico. “Os agentes humanos do deslocamento e
ocupação da fronteira estão hoje divididos em classes sociais ou em grupos étnicos,
contrapostos por conflitos mortais pela terra. As mentalidades são outras, como são
outras as relações sociais” (M
ARTINS
, 2002, p. 664). O autor apresenta um mapa violento
em muitos desses deslocamentos, o que não comporta uma maior discussão nesse
momento, mas que já destacamos anteriormente.
De modo geral, a situação apresenta problemas semelhantes ao que ocorreu em
outros países, quando um determinado grupo manteve e impôs uma estrutura cultural
distinta ao ocupar um espaço, representando uma ameaça à identidade local enquanto
grupo étnico. Pode-se notar melhor esse ponto nas palavras de Horácio Capel, para quem,
la llegada de fuertes cifras de inmigrantes puede provocar muchas veces sentimientos de
miedo y rechazo. Los llegados puedem generar desempleo, sobrepoblación, aumento de
la marginacion, conflictos culturales cuando son tan numerosos que amenazen la
identidad cutural del grupo receptor (C
APEL
, 2001, s/p).
128
Não é o caso de refletir sobre a permanência de costumes sem alterações, mas sim
como é feita a integração social e cultural no país vizinho, integração esta diretamente
ligada a questões identitárias. As principais diferenças que se estabeleceram entre os
migrantes brasileiros naquele país, em grande parte vinham sendo historicamente
construídas no Brasil, especialmente as diferenças entre nortistas e sulistas; ao migrarem
para o Paraguai, essas e outras diferenças culturais continuam a se produzir, ou a se
reproduzir.
Para Martins, isso permite conhecer melhor
quais são os limites à disseminação da vida privada na fronteira e quais são as
dificuldades a que a vida cotidiana saia dos limites estreitos da rotina e do costume para
se desdobrar no que se poderia propriamente chamar de expressões da cotidianidade
(M
ARTINS
, 2002, p. 681).
Percebe-se que estamos em face de processos históricos e sociais nessa
transitoriedade fronteiriça.
A integração à sociedade paraguaia respondeu a pautas distintas, dependendo do
volume de indivíduos e famílias que compunham os grupos migrantes e suas comunidades
em um ou outro contexto regional, bem como a posição que esses mesmos grupos
assumiram na respectiva estrutura social. Observa-se uma tendência geral à manutenção da
cultura de origem, impondo-se a identidade do migrante sobre os tênues fatores de
mudanças culturais.
A tendência de manutenção de traços culturais teve lugar preferentemente nas
regiões de fronteira e nas comunidades em que predominavam grupos de ascendência
européia, fenômeno característico do sul do Brasil. De fato, percebemos isso na região sul
do departamento de Alto Paraná, que possui mais de 80% dos habitantes oriundos do sul
do Brasil. Nessa zona da fronteira, os elementos da cultura destes grupos sul-brasileiros se
mantêm com grande força frente aos de outros grupos étnicos, sejam do norte do Brasil, ou
mesmo grupos de paraguaios.
Quanto à essa permanência e imposição de costumes aos paraguaios, Fogel nos
um parecer importante de suas análises sobre o assunto. Nas palavras do sociólogo, A
discriminação de paraguaios por brasileiros constitui um caso sui generis na literatura
sociológica.
Nosotros somos minoria en la Argentina y nos discriminan; somos minoria en España y
nos discriminan; somos minoria en Itália, en Estado Unidos; a nosotros nos discrinam en
129
nosso proprio país, verdad? Pero, siendo todavia la mayoria, es un caso unico en la
literatura que yo conosco e que tengo leido. He gastado mucho de mi tiempo leyendo y no
encontré un caso de un país cuyo habitantes son tan descriminados en su proprio país por
inmigrantes extrangeros; este es un caso único. (E
NTREVISTA
.
R
AMÓN
F
OGEL
, 2006).
A vulnerabilidade paraguaia e o prolongamento das dinâmicas nacionais
brasileiras dentro do país vizinho fazem com que se ultrapassem as tendências culturais,
identitárias e étnicas. Ao analisar as fontes, é perceptível o fenômeno narrado pelo
sociólogo e como se dão as ações degradantes em relação aos habitantes paraguaios, pois
eles sofrem a falta de uma melhor ou maior integração; isso tudo é fruto de um erro inicial
do modelo stroessnista de ocupação em seu próprio país, pois impulsionou a discriminação
juntamente com o crescimento demográfico, agrícola e econômico. Esse fato atesta o que
se pontuou mais acima, que em muitos aspectos uma falta de simetria entre os dois
povos.
Esse processo é visto como sendo o resultado da política migratória implantada
pelo governo ditatorial paraguaio; a política dirigida impulsionou a imigração
indiscriminada, permitindo o povoamento de novas colônias, em praticamente sua
totalidade, por brasileiros, e com uma diminuta participação da população paraguaia. Nem
mesmo com equiparações numéricas posteriores, que tentaram re-equilibrar as proporções
populacionais, nem mesmo isso alterou as atitudes discriminalizantes dos brasileiros para
com os paraguaios.
No departamento de Canindeyú, a situação quanto ao predomínio de fatores
culturais trazidos pelos imigrantes brasileiros também segue um processo semelhante,
especialmente em relação ao idioma, pois de cada dez pessoas, oito freqüentemente falam
o português no cotidiano.
É importante percebermos que nas comunidades situadas mais ao norte de Alto
Paraná e de Canindeyú, a interação com a sociedade receptora criou um ambiente socio-
cultural mais aberto, que se em grande medida por ser um local de maior equilíbrio
existente entre os distintos grupos sociais e étnicos de migrantes, não havendo um
predomínio tão grande e evidente como no sul de Alto Paraná.
Segundo estimativas extra-oficiais, na colônia de Katueté havia na década de 1970
em torno de 60% de imigrantes brasileiros sobre o total da população. Nos anos
posteriores, essa relação se equilibrou ainda mais, contribuindo para uma mediação mais
igualitária entre os povos. Na atualidade, percebe-se que existe uma interação mais intensa
130
em Katueté, que pode ser considerado um exemplo de integração e união, não existindo ali
grandes diferenças entre brasileiros e paraguaios, pois há uma luta por interesses em
comum. Segundo a escritora e professora Fernanda Feliú de Soto, um exemplo disso se deu
no momento em que a população lutou pela emancipação de Katueté. Houve grande
entrosamento, união política e cumplicidade entre os cidadãos, para que a emancipação se
tornasse possível. Alguns defendem que Katueté é o lugar onde melhor se deu a integração
entre brasileiros e paraguaios, dentre todas as regiões fronteiriças (Cf.: F
ELIÚ DE
S
OTO
, s/d.
p. 75).
Experiências como essas mostram que a interação em uma comunidade, num
determinado contexto local, entre grupos sociais e étnicos diferentes se torna mais aberto e
dinâmico quando envolve uma ação coletiva, sustentada em interesses e motivações
amplas, e que se localizam acima dos interesses e valores específicos dos grupos ou setores
isoladamente. O sentido de comunidade mostra que um reforço identitário em relação
ao local onde estão residindo, bem como uma aproximação cultural com os povos
originários ou já existentes no local.
Nesse sentido, para Stuart Hall,
a idéia de cultura implícita nas “comunidades de minoria étnica” não registra uma relação
fixa entre Tradição e Modernidade. Não permanece no interior de fronteiras únicas nem
trasncende fronteiras. Na prática, ela refuta esses binarismos. Necessariamente, sua noção
de “comunidade” inclui uma ampla gama de práticas concretas. Alguns indivíduos
permanecem profundamente comprometidos com as práticas e valores “tradicionais” (...).
Para outros, as chamadas identificações tradicionais têm sido intensificadas (...). Para
outros ainda, a hibridização está muito avançada — mas quase nunca num sentido
assimilacionista. Esse é um quadro radicalmente deslocado e mais complexo da cultura e
da comunidade do que aqueles inscritos na literatura sociológica ou antropológica
convencional
(H
ALL
, 2003, p. 75-76).
O caso da luta em comum em Katueté que uniu nativos e imigrantes, fez com que
se alcançasse a autonomia distrital e municipal, nesse processo de luta política, muitas
diferenças e rivalidades foram — ao que parece — deixadas de lado, criando-se um
ambiente propício a trocas e assimilações culturais mais intensas e simétricas, conjuntura
que perdura até a atualidade.
Sem dúvida, os processos de convivência interétnica são complexos e estão
expostos a contradições de todo tipo, a marchas e contra-marchas. De qualquer forma,
esses momentos de grande interação ou integração comunitária na vida cotidiana marcam,
no espaço local, situações importantes. De modo geral, a lógica complexa desse tipo de
131
processo evidencia uma maior difusão das pautas culturais dos atores sociais em maior
número.
É compreensível que em praticamente todas as comunidades, tanto rurais quanto
urbanas, em que os imigrantes são maioria, observa-se uma ampla difusão de “sua” cultura.
Esta constatação se aproxima da realidade de qualquer uma das colônias de Alto Paraná,
em grande parte de Canindeyú e também de Concepción. Em todas elas é notável a
utilização corrente do idioma português no dia-a-dia, no comércio, nas ruas, nas casas, bem
como uma massiva penetração dos meios de comunicação brasileira como emissoras de
rádio e televisão, em uma dinâmica que projeta as festas, as atividades artísticas, culturais e
até mesmo as campanhas eleitorais de algumas cidades fronteiriças do lado brasileiro, entre
outras práticas.
Não podemos negar que esforços são feitos para que haja uma maior integração
dos dois povos, especialmente onde as zonas de fronteira são repletas de imigrantes
brasileiros, em alguns lugares chegando a mais de 90%. Os agentes religiosos das igrejas
são de extrema importância nesse contexto, pois buscam facilitar e estimular a interação e
a integração entre os distintos setores e grupos comunitários; mas nem sempre os fatores
destinados a tais aspectos religiosos obtem por vezes os resultados esperados.
Por exemplo, em Santa Rosa, no departamento de Alto Paraná, e em Katueté, no
departamento de Canindeyú, observa-se um importante esforço das Igrejas Católica e
Luterana por integrar as comunidades brasileira e paraguaia, não apenas no campo
religioso e ecumênico, como também nas ações dentro da comunidade.
O que primeiramente percebemos é que resistência à uma possível perda da
identidade brasileira em solo vizinho, enquanto cidadãos brasileiros. Isso se reflete em
várias práticas sociais cotidianas, como por exemplo, de fazer os Registros de Nascimento
dos filhos recém-nascidos no Brasil, isso quando não se faz os partos em alguma cidade
fronteiriça no lado brasileiro.
problemas que aumentam os desafios de uma maior interação; percebe-se que
muitos brasileiros que possuem condições monetárias mais favoráveis enviam seus filhos
para estudar no Brasil, ou mesmo os agricultores que enviam suas esposas para
acompanharem os filhos por algum tempo nos estudos no lado brasileiro. Isso ocorre em
grande parte por falta de centros educativos mais “desenvolvidos” no Paraguai, ou mesmo
pela inexistência de uma continuidade educacional nas colônias paraguaias, ou ainda pelas
132
dificuldades relacionadas à aprendizagem das crianças no idioma e cultura estrangeiras,
dada a própria inexistência de uma integração mais sólida e efetiva.
Notamos a preocupação com os estudos das crianças em diversas entrevistas
realizadas com pessoas que moram ou moraram no Paraguai e que atualmente estão no
Brasil. Elizete T. Pancera relata diz que morou
dezoito anos no Paraguai; eu morava no Paraguai, tenho terras ainda lá; [hoje] moro aqui,
vim aqui por causa das crianças, estudar, por isso [...]. Dai faz dois anos que eu
passei pra cá, para as crianças estudarem, que lá não tem como, têm aula mas é... eles não
aprendem, não é, as crianças. Os professores não ensinam as crianças lá, por isso que nós
mudamos pra cá; foi só o estudo. (E
NTREVISTA
.
E
LIZETE
T
EREZINHA
P
ANCERA
, 2003).
Percebemos que juízos de valor para com o sistema educacional paraguaio, em
que o senso comum supera as reais formas de aprendizagem existentes naquele país. Em
outra entrevista, Maria de L. P. Berno nos seu parecer sobre sua condição aqui no
Brasil; ela narra que veio“pra por causa do estudo da menina; mas lá, pra s o
futuro é melhor do que aqui [...]. É que tem até a sexta [série], daí não tinha mais
lá; e a gente veio pra cá, pra ela estudar.”
(E
NTREVISTA
.
M
ARIA
D
E
L
URDES
P
ALUDO
B
ERNO
,
2003, grifos nossos)
.
No discurso da entrevistada supra citada, a preocupação com a continuidade nos
estudos da filha se mostra presente, uma vez que no Paraguai havia apenas até a sexta
série. Somado a isso surgem outros fatores que, segundo as fontes, tornam a aprendizagem
um tanto quanto difícil para os descendentes de brasileiros no Paraguai. Quanto ao idioma,
uma difusa resistência a aprender e bem utilizar esta lingua “estranha”; quanto ao
sistema educacional, em geral os imigrantes brasileiros julgam que promovem uma
educação escolar deficiente; eles responsabilizam os professores paraguaios sem maior
formação o que, diga-se de passagem, atualmente vem se alterando de maneira
gradativa.
A experiência de vida das pessoas envolvidas diretamente nesse complexo
processo de busca de interação é importante para nos dar uma visão mais ampla e profunda
das circunstâncias sociais vividas nessas localidades paraguaias, bem como da memória
coletiva que aí se produz.
Estamos perante um processo sócio-cultural complexo, de interação e integração.
Necessariamente, ele requer certo tempo para que o transcurso comum atenda às
expectativas dos dois povos, ou seja, além de algumas gerações; também a questão
133
identitária arraigada nos imigrantes, e talvez seja esta uma das maiores barreiras a ser
“vencida”.
Um dos principais problemas é o dilema que se percebe no imaginário dos
imigrantes para com os campesinos. Este por vezes aparece como um dos obstáculos da
interação social, pois os campesinos são marginalizados e em grande parte submetidos
pelos imigrantes, especialmente por causa da exclusão, do acesso a terra, bem como, a
precariedade nos trabalhos assalariados para com essa categoria.
Além do caráter estrutural, existe também a marginalização da índole cultural e
ideológica, que consiste em diversas manifestações racistas, que os mais privilegiados
sustentam em relação aos menos favorecidos. Este tipo de ação vem diminuindo e perde
cotidianamente sua força. As comunidades brasileiras, nesse contexto onde os grupos de
migrantes são equiparados, relativamente pouco maiores ou pouco menores que as
comunidades nativas, vivenciam um processo de interação social mais aberto e dinâmico,
especialmente onde existem vínculos de dependências entre os atores sociais.
As questões identitárias passam então por uma adaptabilidade cultural, permeando
nesse conjunto, o idioma, a religião, a etnicidade, enfim uma ampla gama de costumes,
hábitos, práticas e representações. Entendemos a identidade social erigida para comportar a
sustentação das relações sociais, antropologicamente permite que a pessoa se torne similar
a si mesmo e diferente dos outros, o que implica todo um sistema de representações do
passado, de comportamentos de hoje e de formação de idéias para um possível futuro. A
identidade cultural sendo a partilha de uma mesma essência entre os diferentes indivíduos.
Em todos os casos percebe-se que a identidade não existe e não pode ser construída sem a
diferença, isto é, sem o “outro”.
A diversidade é algo presente em todo território paraguaio, sejam etnias, nguas,
moedas, educação, meios de comunicação, religiões, comidas, músicas, danças, costumes
comunitários, questões políticas, entre outros, as relações entre brasileiros e paraguaios é
um processo em pleno desenvolvimento.
3.1 – Cultura: reflexões acerca das fronteiras
A análise sobre a fronteira nesse espaço não se especificamente como limite
territorial como denotamos. Procura refletir os diferentes aspectos de fronteiras, sejam
134
étnicas, políticas, territoriais, entre outras. Iremos nos ater aqui a discussão cultural que
perpassa essas variadas conotações fronteiriças entre Brasil e Paraguai, aparecendo fatores
comuns e incomuns da realidade fronteiriça na população que transita no espaço estudado.
Para minimamente entender a cultura refletimos sobre as questões da teoria da
história cultural, que é imprescindível para a compreensão da pesquisa, e pensar nos vários
teóricos que designam densos trabalhos para discutir a cultura, as práticas culturais ou
ainda a história cultural no mundo acadêmico, elaboramos a discussão na intenção de
situar os atores históricos no espaço social estudado.
Para abrir o diálogo teórico em torno da cultura, utilizo as idéias de Edward
Tylor. Citar na íntegra Tylor é um tanto quanto complicado, pois suas definições são
trabalhadas desde os primórdios do século
XIX
, e se encontram esparsas ao longo de sua
obra, o que nos leva a parafrasear seus principais conceitos, sem deixar de lhe conferir as
idéias essenciais aqui posteriormente discutidas.
Para este autor a cultura é tudo aquilo produzido pela humanidade, tanto no plano
concreto ou imaterial, artefatos e objetos até idéias e crenças, compreendendo todo o
complexo de conhecimento e toda a habilidade humana empregada socialmente, ou ainda o
comportamento apreendido de modo independente da questão biológica.
A partir da constatação de Tylor, e sem descartar outras percepções sobre a
cultura. Outras áreas das ciências humanas e sociais começam a trabalhar as dimensões
culturais na humanidade, com a intensão de melhor compreender o comportamento social,
tais como a antropologia, a sociologia, a história, a psicologia, entre outras, mexendo até
mesmo com as teorias evolucionistas que defendiam que todas as culturas passavam pelas
mesmas etapas ou estágios em um desenvolvimento que se dápara elesdesde uma fase
primitiva até uma fase mais avançada.
A critica à teoria evolucionista foi inicialmente elaborada por Franz Boas no
início do século
XX.
Boas utiliza-se da aproximação entre História e Antropologia para
explicar a diversidade cultural humana. A partir das análises de Boas a cultura não é vista
mais de forma hierarquizada como queria a biologia. Ou seja, os comportamentos culturais
não são predeterminados pela natureza, mas sim por conjuntos socialmente compartilhados
de técnica, práticas, símbolos, valores.
Assim, não podemos mais falar em culturas atrasadas ou obsoletas, o que existe
são diferentes culturas, todas com estruturas próprias que mudam. Em suma todas as
135
culturas são dinâmicas e muitas delas estão em interação como é o caso em grande parte
das culturas de fronteira.
É comum atribuir o termo cultura para definir certa produção. Podemos falar de
cultura erudita, cultura de massa, cultura popular e assim por diante, é importante atentar a
esse fator, pois cada qual possui conceitos próprios e que determinam seus grupos sociais
ativos.
Perceber os grupos sociais ativos na fronteira aproxima o diálogo das reflexões de
Homi K. Bhabha. O autor se propõe a discutir esses locais de cultura a partir da fronteira,
como um ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente, um momento de trânsito
em que o espaço e tempo se cruzam para produzir figuras de diferença e identidade,
passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão, nos dando uma sensação de
desorientação, formando dessa maneira os entre-lugares.
Aborda a complexidade multicultural refletindo sobre os deslocamentos sociais
de comunidades camponesas e aborígenes, da migração pós-colonial e da diáspora cultural
e política. E nesse sentido, é que a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a
se fazer presente em um movimento dissimilar na transitoriedade, esse deslocamento pode
ser utilizado no contexto Brasil e Paraguai.
Para Bhabha;
Mais uma vez, é o desejo de reconhecimento, “de outro lugar e de outra coisa”, que leva
a experiência da história além da hipótese instrumental. Mais uma vez, é o espaço da
intervenção que emerge nos interstícios culturais que introduz a invenção criativa dentro
da existência. E, uma última vez, há um retorno à encenação da identidade como
interação, a re-criação do eu no mundo da viagem, o re-estabelecimento da comunidade
fronteiriça da migração. O desejo de reconhecimento da presença cultural como
“atividade negadora” (...) afina-se com minha ruptura da barreira do tempo de um
presente culturalmente conluiado (B
HABHA
, 1998, p. 29)
.
Entender o duplo discurso da ambivalência especialmente entre espaço e nação,
isto é, a disseminação em um ambiente de duas esferas em movimento, abordando a
cultura como ato presente, e cada vez que ocorre, toma posição na temporalidade efêmera
que habita o espaço.
A discussão mais acentuada que Bhabha estabelece, se na diferença cultural, e
é confrontada com uma disposição de saber ou com uma distribuição das práticas que
existem lado a lado, designando uma forma de contradição social que deve ser negociado
em vez de negado.
136
O objetivo da diferença cultural é rearticular a soma do conhecimento a partir da
perspectiva da posição de significação da minoria, que resiste à totalização e introduz no
processo de julgamento e interpretação cultural aquele choque repentino do tempo
sucessivo, da significação, ou a interrupção da questão suplementar. Tal processo exige
uma temporalidade cultural que é tanto disjuntiva quanto capaz de articular formas de
atividades que são ao mesmo tempo nossas e outras.
Discutir a complexidade do conceito de cultura e sua localização em meio a
movimentos que parecem acontecer naturalmente, como no caso com a migração e
imigração entre Brasil e Paraguai, e no interior desse processo a presença de um terceiro
“elemento” que é o brasiguaio, para isso temos que definir as percepções da representação.
Buscamos minimamente ao menos aqui mostrar como isso está presente na história e na
sociedade, e seus níveis de abrangência na historiografia de modo geral.
Neste sentido Roger Chartier diz que:
as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade
de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo
que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos
com a posição de quem os utiliza (...). Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de
delimitações não é, portanto, afastar-se do social como julgou durante muito tempo
uma história de vistas curtas muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de
afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais (C
HARTIER
,
1990, p. 17)
.
Muitas das escolhas metodológicas utilizadas por Chartier ao trabalhar as noções
sociais das representações na cultura apóiam-se em grande medida no trabalho de Pierre
Bourdieu, especialmente na ‘crítica social’, pois a sociedade produz práticas e estratégias
que se impõem, e estas não são discursos neutros, são antes de tudo colocadas em um
campo de concorrências e de competições, fazendo com que se compreendam os
mecanismos pelos quais os grupos impõem-se, ou tentam impor-se.
Nas nossas investigações sobre o espaço fronteiriço e as práticas culturais
buscamos situar o espaço social que é o seu, ou seja, as especificidades do presente na
cultura compreendendo-a interligada com as teorias da história cultural. Para Chartier
a história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito
às classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social
como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis
consoantes às classes sociais ou os meios intelectuais são produzidas pelas disposições
137
estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados
que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se
inteligível e o espaço decifrado (I
DEM
, p. 16-17).
Podemos compreender melhor a partir das postulações de Chartier a difusão das
práticas culturais em um dado espaço, como no caso em análise, entre Brasil e Paraguai,
entender os comportamentos que são partilhados pelo conjunto da sociedade, nem sempre
de maneira igual de uns com outros, mas se praticam e se interiorizam entre os agentes
sociais em trânsito na fronteira. A “função” da cultura nestes casos é entre outras coisas
consentir uma adaptação do indivíduo ao meio social e natural em que vive ensinando-a a
seus descendentes.
A conceituação da cultura é variável e também um dos principais termos
discutidos dentro das ciências humanas, várias ciências procuram desde o século
XIX,
limitar suas definições. A Antropologia, por exemplo, se constituiu enquanto disciplina
cientifica em torno do conceito de cultura, mas as áreas são diferentes, os resultados são
diversos, ocasionando visões múltiplas e até muitas vezes contraditórias, dentro de uma
mesma disciplina. A interdisciplinaridade vem sendo de extrema importância nas reflexões
do termo.
É interessante perceber como Robert Darnton fala desses desvios que assombram
as mais diversas teorias, o termo cultura integra suas preocupações quando faz reflexões
em um olhar interdisciplinar entre História e Antropologia o autor trata-a de
coisas que deslizam entre as categorias, que se encavalam nas divisões ou se espalham
para fora das margens, ameaçam nosso senso básico de ordem. Solapam-nos o terreno
epistemológico. Essas coisas são potentes e perigosas. E também possuem um nome,
pelo menos na antropologia: são tabu (D
ARNTON
, 1990, p. 290).
A cultura, a história cultural e as práticas culturais são amplos campos de
pesquisas e perpassam as mais variadas áreas de análise em diferentes tempos e espaços, o
que a impressão de um tabu, ou melhor, de um termo indefinido. Peter Burke em seu
livro “Variedades da história cultural”, esclarece que “não concordância sobre o que
constitui história cultural, menos ainda sobre o que constitui cultura (...), a história
cultural não tem essência. pode ser definida em termos de nossa própria história”
(
B
URKE
, 2000, p. 13).
Até o momento nossa intenção foi trilhar um caminho teórico sobre a cultura para
posteriormente inseri-la nas práticas culturais por meio das fontes no ambiente de fronteira
138
entre Brasil e Paraguai, atentando às diferentes formas dessa construção ser elaborada cada
qual com suas especificidades.
Incluímos as expectativas da pesquisa em sentido maior de análise de modo pelo
qual se reconhecem as culturas por meio de projeções não apenas de identidade, mas
também de alteridade, compactuando com as pretensões de Bhabha.
Talvez possamos agora sugerir que histórias transnacionais de migrantes, colonizados ou
refugiados políticos essas condições de fronteira e divisas possam ser o terreno da
literatura mundial, em lugar da transmissão de tradições nacionais, antes o tema central
da literatura mundial. O centro de tal estudo não seria nem a soberania de culturas
nacionais nem o universalismo da cultura humana, mas o foco sobre aqueles
‘deslocamentos sociais e culturais anômalos’ (B
HABHA
, 1998, p. 33)
.
Percebemos a intenção de um sentido maior a estes estudos culturais,
especificamente aqui em que os brasileiros e paraguaios que estão nas fronteiras sofrem
adendos dos dois países, assim sendo as práticas culturais se misturam ou se elaboram, isso
se em grande parte na tentativa de recriar o modus vivendi de seu antigo local em um
outro espaço, sejam brasileiros no Paraguai ou paraguaios no Brasil, motivando e
alimentando uma ampla gama de variáveis culturais.
3.2 – Práticas culturais: multiplicação de variáveis
O tratamento teórico acerca da cultura, da história cultural e das práticas culturais
nos leva a uma discussão com variados e diferentes autores. Os discrepantes aspectos
culturais perpassam as questões territoriais, sociais, políticas, étnicas. Enfim, a diplomacia
das fronteiras enquanto espaço de limites controlados não são obedecidos quando falamos
das dimensões culturais existentes nesses espaços de multiplicação de variáveis.
As práticas culturais existentes entre Brasil e Paraguai estabelecem-se também no
campo simbólico, como costumeiramente encontramos em autores que discutem a
temática. As análises das manifestações estão relegadas à interpretação dos símbolos por
parte dos historiadores/pesquisadores que atuam nesses estudos.
Um exemplo é o historiador Peter Burke, que ao se debruçar sobre os estudos
culturais no final do século
XX
e início do século
XXI
, em diferentes recortes pesquisados,
seja na Europa ou na América Latina, frisa que:
139
o terreno comum dos historiadores culturais pode ser descrito como a preocupação com o
simbólico e suas interpretações. Símbolos, conscientes ou o, podem ser encontrados
em todos os lugares, da arte à vida cotidiana, mas a abordagem do passado em termos de
simbolismo é apenas uma entre outras (B
URKE
, 2005, p. 10).
O cotidiano das pessoas que vivem no espaço fronteiriço entre os dois países é
algo que nos a imprecisão dos aspectos culturais e procuram fazer parte de um país ou
de outro, pois a difusão de práticas entre os atores sociais não se limitam oficialmente
como quer a História Diplomática.
Trabalharemos as práticas culturais obedecendo tanto ao que se localiza no
campo das representações simbólicas, o que parece estar mais presente nas manifestações
artísticas. E também o que ocorre na vida das pessoas diariamente, as manifestações
cotidianas são essenciais para refletirmos e entendermos a difusão das práticas culturais no
complexo movimento fronteiriço.
Para mostrar isso, iniciamos com um exemplo que não se fixou propriamente na
fronteira; utilizamos espaços inseridos no território paraguaio como a colônia de Santa
Rita, onde existe uma grande parcela de imigrantes originários do Rio Grande do Sul. Na
localidade há um Centro de Tradições Gaúchescas (CTG) denominado de Índio José.
Trata-se de maneira geral de um clube social que mantêm as tradições culturais da região
sul do Brasil, mais especificamente do Rio Grande do Sul.
Nas palavras do presidente do CTG de Santa Rita, esses centros existem por que.
nosotros adoptamos pensando en el bien de la familia un club, pensando en tener un
local donde podamos confiar la diversión de nuestra família (...) y cultivar la tradición
gaúcha, que es una cosa seria. Se cultivan las cosas buenas de antiguo: la seriedad, la
honestidad, el respecto...” (Relato do Presidente do Centro de Tradições Gaúchas CTG da
Localidade de Santa Rita no Paraguai. Citado por
GALEANO E YORE
, 1994b, p.98).
a busca de valores para manter alguns costumes, o que percebemos na
passagem acima denota como o cultivo de “la tradición gaúcha”, mesmo que estejam
vivendo em um outro país, como é o caso dos CTG’s no Paraguai, que nasceram com os
brasileiros naquele país.
As práticas culturais gauchescas do sul do Brasil se reproduzem nesse espaço em
âmbitos variados e compactuam com a participação das pessoas mais influentes do
Paraguai externalizando aspectos brasileiros como é o caso das vestimentas que obedecem
certos rigores, como a bombacha e o vestido de prenda. A alimentação que é composta
140
basicamente com a carne assada, ou seja, o churrasco. Hábitos cotidianos que não
obedecem simplesmente aos encontros nos clubes, mas que são compactuados entre os
povos dos dois países como o chimarrão
30
, são alguns exemplos que mostram visivelmente
que os costumes de um povo é compartilhado com o outro, logicamente não subentende-se
uma totalidade.
Ao mesmo tempo em que notamos certas manifestações compactuadas entre
brasileiros e paraguaios não podemos deixar de perceber que nem tudo se ajusta com
facilidade. O roco de Naranjal faz suas observações em torno dos aspectos culturais
entre os dois povos no Paraguai, mais propriamente na sua localidade.
Hay que decir no hay la integración de verdad. Hay una cultura totalmente diferente entre
los paraguayos y los brasileños, la lengua es diferente, la tradición diferente, la fe
diferente. Todo eso hace que, cuando hay un encuentro, una charla, todo el grupo está
escuchando, está participando. Cuando hay una cena, puede ser que estén allí juntos, más
terminada, brasileños e paraguayos... se separan. También está la mentalidad (...). Los
brasileños conservan su tradición y cultura; los alemanes hablan el alemán en casa; los
italianos y polacos un poco menos. Los paraguayos hablan en guarani en casa (...)
Después también está el nível cultural y económico. Ellos (los paraguayos) piensan que
los brasileños tienen plata, pueden pagar. Los paraguayos, no. (Relato do Pároco da
localidade de Naranjal no Paraguai. Citado por
GALEANO E YORE
, 1994b, p.100).
Com certeza as diferenças e as dificuldades acerca da aproximação dos dois povos
existem e é complexo como denota o Pároco, mas por outro lado existe um profuso
folclore entre os dois povos, nas rodas de tereré
31
, as anedotas, os ditados populares, as
lendas, as superstições, a carne assada, o chimarrão, entre outros, sendo lembrados por
eles. Há uma mescla de valores diferenciados entre ambos que proporciona um rico
repertório cultural de fácil assimilação por causa das raízes latinas terem bases calcadas
nesses costumes, e em meio a isso tudo, há a proximidade territorial da fronteira.
O Estado de Mato Grosso do Sul possui uma forte característica de ritmos
musicais e de danças herdada dos paraguaios: um exemplo fácil de perceber é o ritmo da
polca paraguaia que se difere em parte da polca européia, e é uma exigência habitual nos
bailes da região.
Outro exemplo é o chamamé, que é percebido como um autêntico estilo gaúcho,
essa dança é originária de Corrientes na Argentina e seu acesso ao Mato Grosso do Sul foi
30
Em síntese, seria o costume de tomar água quente com a erva-mate.
31
Em síntese, seria o costume de tomar água ou sucos gelados com a erva-mate.
141
através do Paraguai, sofrendo várias alterações, o que o deixa muito próximo de uma polca
paraguaia, pois possui um ritmo mais tênue do que o chamamé argentino.
Poderíamos citar vários exemplos de alguns aspectos culturais da música e da
dança que tem um estreito ‘diálogo’ em certas regiões entre Brasil e Paraguai e, em alguns
casos entre outros países da América do Sul, como a Argentina. Ritmos como a palomita, a
mazurca, a polca de carão, a dança do chupim, entre outras.
32
O sentido das expressões atribuído à produção artística como mostramos com as
influências paraguaias da dança, não descartam de maneira alguma os hábitos alimentares
em comuns, as bebidas, as roupas, as festas, as religiões, etc. Enfim, uma gama de
aspectos culturais que resultam primordialmente da diversidade cultural vivida com
intensidade pelos dois povos, independente do país em que estejam, pois a cultura é
composta por uma estrutura própria que se modificam e são dinâmicas.
As trocas culturais entre brasileiros e paraguaios, ocorrem especialmente ao longo
da fronteira; nesse espaço ela atinge de maneira mais evidente as pessoas e se misturam
havendo uma mescla cultural maior. Em muitos casos, chega a influenciar a própria
identidade de um povo, não que seja uma alteração identitária completa, mas ocorre em
alguns aspectos. O que se percebe é que há uma cultura fronteiriça significante.
Quanto a essa tentativa de entender a cultura fronteiriça Peter Burke trabalha-a
como
uma idéia..., atraente. Pode-se até mesmo dizer que é atraente demais, porque encoraja os
usuários a escorregar, sem perceber, dos usos literais aos usos metafóricos da expressão,
deixando de distinguir entre fronteiras geográficas e fronteiras de classes sociais, por
exemplo, entre o sagrado e o profano, o sério e o cômico, a história e a ficção (B
URKE
,
2005, p. 152)
.
Burke nos alerta para os vários sentidos de fronteiras culturais, o que é importante
perceber aqui são os dois sentidos que buscamos discutir ao longo da pesquisa. Em
primeiro lugar o que dificulta a transposição cultural na fronteira entre dois povos. Para ele
“há pelo menos alguns obstáculos físicos, políticos e culturais, inclusive a língua e a
religião, que diminuem a velocidade dos movimentos culturais ou que desviam para canais
diferentes” (I
DEM
, p. 153)
.
As barreiras culturais existem, mas não impedem o trânsito
dessas manifestações.
32
Para um aprofundamento maior sobre isso, ver Revista Arca, uma divulgação do Arquivo Histórico de
Campo Grande de 1993 p. 61-64.
142
Seguindo as reflexões de Burke atentamos ao segundo sentido de fronteira
cultural que é oposta à primeira. Para o autor é “um lugar de encontro ou zona de contato.
As fronteiras muitas vezes são regiões com uma cultura própria, claramente híbrida (...).
Em suma, as fronteiras são, freqüentemente, palcos de encontros culturais” (I
DEM
, p.
154)
.
Os relatos das pessoas; especialmente do lado paraguaio são confusos, momentos
de apreensão; não apenas por parte das pessoas que margeiam o Lago, mas também de
nossa parte. O gravador as vezes se torna um instrumento que dificulta um melhor
entendimento entre pesquisador e população, isso nos levou a abandonar várias vezes o
recurso da fonte oral para não prejudicar e/ou influenciar podendo alterar situações pela
mudança repentina das pessoas frente ao “aparelho”.
O adendo cultural para a maioria das pessoas “comuns e simples”, característica
da população fronteiriça, não é entendido como algo que influencie ou possa promover
encontros ou desencontros entre os moradores, seja do lado brasileiro ou paraguaio.
Percebemos situações importantes no trabalho de observação em campo e em conversas
sem o gravador, situações que seria difícil de fazer com tamanha proximidade de
percepções cotidianas se traduzindo em ações diárias tendo o gravador em nossa presença.
Ao contrário do entendimento das pessoas quanto a seus hábitos, costumes,
tradições, enfim, os comportamentos culturais que estão inseridos em seu adendo cultural
pudemos concluir como presumíamos, que a cultura interfere na condução de suas vidas
diariamente. Em algumas situações passam a acompanhá-los determinadas coisas e
ocasiões adversas ao seu anterior cotidiano, podemos dizer até mesmo desconhecidas, e
que muitas vezes os moradores insistem em discordar de aspectos visíveis que os
influenciam no seu dia-dia.
Além das danças e músicas paraguaias que se reproduzem enquanto ritmos e
estilos no Brasil como mostramos, e também das influências que os CTG’s criam no
Paraguai. Percebemos que na fronteira, mais especificamente na altura das divisas com o
Estado do Paraná com o Paraguai criam-se hábitos que eram incomuns às suas populações.
A predominância de migrantes europeus com forte característica gaúcha no oeste
paranaense logicamente faz com que se reproduzem culturas que lhes agradem nesse
espaço. Logo, essa migração se estende ao leste paraguaio onde notamos muitas dessas
semelhanças noutro território, fica evidente para nós o surgimento de costumes nativos dos
paraguaios no cotidiano desses migrantes e estes insistem em negar tais influências.
143
Um exemplo fácil de perceber é a ingestão de tererê pelos migrantes e seus
descendentes no oeste paranaense. Há pouco tempo, não havia o hábito de tomar tal
bebida. Esse costume por sua vez deriva dos paraguaios, muitos gaúchos negam a
incidência da bebida entre os seus no Paraná e até mesmo aos que estão no Paraguai, mas
comprovamos que especialmente nas estações quentes a prática ocorre entre eles. É
interessante frisar que alterações na maneira de preparo do tererê no Paraná onde a
maioria das pessoas prepara-o com sucos e/ou ervas temperadas.
A difusão do tererê no oeste do Paraná se deu em grande escala nos últimos anos e
está havendo uma procura ainda maior por parte da população para adquirir conhecimento
e saber os modos e maneiras de elaborar e de ingerir a bebida. As pessoas passaram a
adquirir ervas, cuias, bombas, compotas para água, diretamente no Paraguai e entre os
paraguaios. Ou seja, uma inserção da cultura paraguaia neste aspecto se enraizando
fortemente no oeste paranaense, embora reconheçam que em alguns aspectos esse costume
é reproduzido de maneira diferente até mesmo se adequando às realidades, necessidades e
ao gosto das pessoas que praticam o hábito.
33
O chimarrão não é tão comum para os paraguaios de origem como o tererê se
tornou para os brasileiros nas regiões fronteiriças, mas muitos paraguaios que gostam e
diariamente sevam o mate amargo para ingerir. Embora o chimarrão não tenha atingido a
mesma popularidade e proporção como ocorreu com o tererê, não podemos negar que
incidência entre os paraguaios fronteiriços que também praticam o hábito.
Definir o que pode ou não pode ser uma prática cultural não é nosso intuito aqui,
trabalhamos alguns fatores que possam nos auxiliar na compreensão desse movimento
transitório na fronteira, não apenas de pessoas, mas escolhendo o que melhor conseguimos
notar em suas vidas no cotidiano. Os hábitos alimentares sem dúvida compreendem uma
ampla e importante gama de aspectos culturais entre as pessoas dos dois países.
O churrasco tendo por base essencialmente a carne assada é típico no sul do Brasil
e em praticamente todo o sul da América do Sul. Compactuam desse hábito outros países,
o que colabora ainda mais para aumentar a incidência da característica dos pampas, onde a
33
Num primeiro momento defendíamos a idéia da originalidade do modo de preparar, bem como dos
ornamentos utilizados na ingestão da bebida. Posteriormente, percebemos que a idéia de originalidade não
comporta a totalidade das explicações que buscávamos para entender este fenômeno. Ou seja, entendemos
que os aspectos culturais são mutáveis e transitórios e sua disposição se ajusta ou se adapta ao ambiente e as
pessoas que as cultivam. Nesse aspecto conseguimos transpor a idéia de transitoriedade que trabalhamos na
pesquisa.
144
tradição da criação de gado é muito forte e comum, entre esses podemos citar o Uruguai e
a Argentina.
Em relação a essa reprodução das práticas culturais e as alterações possíveis de ser
elaboradas nessas manifestações, Bourdieu nos mostra um ponto de vista interessante na
tentativa de destacar sua reação; algumas idéias rígidas sobre as regras culturais desse
autor que confrome afirma Peter Burke, ele:
examinou a prática cotidiana em termos de improvisação sustentada numa estrutura de
esquemas inculcados pela cultura tanto na mente como no corpo. O termo habitus foi
tomado do historiador de arte Erwin Panofsky, para designar essa capacidade de
improvisação” (I
DEM
, p. 77).
Acreditamos que nesse caso não se trate ainda de uma improvisação, mas sim a
reprodução de costumes se adequando entre seus praticantes. Com isso podemos dizer
enfim que a diversidade é algo presente em todo território paraguaio, sejam comidas,
músicas, danças, costumes comunitários. Poderíamos trabalhar com um leque ainda maior
de possibilidades de práticas culturais atingindo até mesmo etnias, línguas, moedas,
educação, meios de comunicação, religiões, questões políticas, entre outros. Mostrar outros
lugares e suas especificidades dentro do Paraguai em relação à história cultural, cultura e
práticas culturais, aumentando a complexidade do que estamos aqui discutindo, porém
deixamos em aberto um processo que está em pleno desenvolvimento que são as relações
entre brasileiros e paraguaios.
3.3 – O outro: análises pertinentes
O outro é visto por nós neste contexto como aquele que pertence a outro local,
outro lado, outro idioma, uma cultura diferente, outro grupo social, outra moeda, um país
estranho, enfim obedece uma gama de “outras” possibilidades. Trabalhamos em nosso
estudo além do campo específico da pesquisa historiográfica as abordagens sociológicas e
também com viés antropológico que oferecem a possibilidade de um diálogo profícuo em
relação ao assunto trabalhado.
Ao discutir o outro, a abordagem antropológica nos auxilia nesse amplo campo de
conceitos que teorizam a identidade, que se através do outro, a partir do momento em
145
que reconhecemos o outro. O filósofo e linguista Tzvetan Todorov ao trabalhar as questões
identitárias diz que:
falar da descoberta que o eu faz do outro. O assunto é imenso (...). Podem-se descobrir
os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e
radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos
outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual
todos estão lá e eu estou aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim.
Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração
psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então
como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Este grupo, por sua vez,
pode estar contido numa sociedade: as mulheres para os homens, os ricos para os pobres,
os loucos para os ‘normais’. Ou poder ser exterior a ela, uma outra sociedade que,
dependendo do caso, será próxima ou longínqua: seres que em tudo se aproximam de
nós, no plano cultural, moral e histórico, ou desconhecidos, estrangeiros cuja língua e
costumes não compreendo, tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que
pertencemos a uma mesma espécie (T
ODOROV
, 1999, p. 03-04).
Todorov noção de sua ampla concepção sobre identidade neste breve trecho, e
segue chamando a atenção para uma tarefa que se pretende discutir sem poder concluí-la,
pois a “questão do outro” é difundida em aspectos variados tornando-se impossíveis
considerações fechadas acerca do tema. Nosso interesse é aproximar as teorias identitárias
com as fontes e o objeto em estudo, sem o objetivo de elaborar uma discussão acabada.
Não é possível rotular as pessoas que vivem em trânsito na fronteira entre Brasil e
Paraguai, pois a amplitude de fatores que as leva a passarem periodicamente esses limites
não são aspectos apenas de mera compreensão das atividades que elas exercem nos dois
países, mas sim uma gama de possibilidades que se produzem tanto no lado brasileiro
como no lado paraguaio. Podendo ser possibilidades agrícolas, monetárias, pessoais
parentescas, culturais, enfim uma série de probabilidades.
Isso minimamente denota a dificuldade de estarmos situando teoricamente os
atores sociais com os quais trabalhamos, mas por outro lado a perplexidade nos orienta na
medida de introduzi-los nos espaços e tempos de pesquisa.
Queremos dizer que não depende apenas da identidade de cada agente como se
fosse possível de fazer mas antes e, sobretudo da alteridade, pois compreendemos que há
interações interdependentes entre os indivíduos, permitindo que se afirme a existência
individual mediante esses contatos. A dificuldade de postularmos uma exata definição
compatível de compreensão da identidade das pessoas que estão em trânsito entre os dois
países passa evidentemente pela discussão da alteridade.
146
Assim sendo as reflexões de Homi K. Bhabha nos direcionam na intenção de
assumir uma determinada imagem em meio a essas transformações, levando em
consideração a identidade e a alteridade.
A questão da identificação nunca é a afirmação de uma identidade pré-dada, nunca uma
profecia auto-cumpridora é sempre a produção de uma imagem de identidade e a
transformação do sujeito ao assumir aquela imagem. A demanda da identificação – isto é,
será para um Outro implica a representação do sujeito na ordem diferenciadora da
alteridade. A identificação (...), é sempre o retorno de uma imagem de identidade que
traz a marca da fissura no lugar do Outro de onde ela vem (B
HABHA
, 1998, p. 76-77)
.
Sob o ponto de vista de Bhabha há incertezas que ameaçam o desmembramento
entre os atores sociais, e a identidade se torna um problema limiar que marca tal fissura.
Quando atentamos para o fato de inserir os atores sociais em determinado espaço
e tempo, estávamos nos referindo um possível limite e definir termos da identidade que
dependem de limites para serem construídas, inculcando em que são em relação ao que não
são. Conforme Laclau alerta ao se referir às emancipações, quando diz que “não se pode
afirmar uma identidade diferencial sem distingui-la de um contexto, e no processo de fazer
a distinção, afirma-se o contexto simultaneamente” (L
ACLAU
, 1996, citado por H
ALL
,
2003, p. 85).
Essa foi nossa preocupação nos capítulos anteriores: na medida do possível deixar
transparecer as delimitações da pesquisa e dos atores sociais, sendo brasileiros, paraguaios
ou brasiguaios.
O sentimento de pertencimento das pessoas para com os países que permeiam
nosso estudo na maioria dos casos se dá de forma confusa, pois várias questões que se
engalfinham na continuidade de suas vidas e vêem de outros tempos e outros episódios
havendo a continuidade desses sentimentos.
Na entrevista com Ivete Allig esse intrincado sentimento fica expresso em sua
fala em vários momentos. Na tentativa de tornar mais linear o discurso da entrevistada
iniciamos nossa análise pelos membros mais antigos da família de Ivete, para
posteriormente chegarmos até ela e entender a complexidade do trânsito fronteiriço.
Eu não sei se você ficou sabendo, claro que ficou sobre aquela guerra do Paraguai, (...)
então a minha avó naquela época, ela fugiu, do Paraguai com meu pai, ele tinha uns
quatro anos (...). Então a minha avó veio embora com ele, e meu avô ficou guerreando na
guerra, que meu avô, o pai do meu pai ele morreu na guerra. E minha avó conheceu
um brasileiro em Cascavel e se casou com esse brasileiro (...). E minha mãe é Argentina,
por que ela nasceu na Argentina, mas a minha, a minha avó que é mãe dela, ela é italiana,
vinda da Itália, vinda da Itália e morou em Argentina (E
NTREVISTA
.
I
VETE
A
LLIG
, 2003)
.
147
A entrevistada remonta uma trajetória dos antecedentes próximos da sua família,
denotando a perturbação que encontramos no ambiente fronteiriço. Com base no discurso
dela podemos questionar séries múltiplas de possibilidades identitárias, uma vez que seus
pais e avós compreendem nacionalidades discrepantes, seja de nascimento ou de criação
por ter sido levado de suas origens por ordens diversas.
Em outro momento Ivete se insere neste conturbado contexto familiar de que
descende e resume a situação, ou seja, a conjuntura se torna ainda mais complexa. Ela
narra da seguinte forma:
E eu sou de família paraguaia né, por que meu pai é paraguaio e minha mãe é
Argentina..., e eu sou brasileira porque nós nascemos no Brasil né, mas assim nossa
terra de origem é o Paraguai... Eu me sinto mais brasileira porque eu nasci no Brasil
né, eu me sinto totalmente, sou brasileira né (I
DEM
).
O sentimento de pertencimento a um, ou outro país, e aqui até mesmo um terceiro
país, deixa transparecer a complexidade que se estabelece nas questões nacionais. Ao
mesmo tempo em que seus pais não são de mesma origem, a sua própria nacionalidade não
compactua com nenhum de seus antecedentes paternos, fortalecendo a idéia de que “eu me
sinto mais brasileira porque eu nasci no Brasil”. Neste caso, o pertencimento nacional não
relega aspectos alguns congêneres de sua natureza, mas o fato de nascer em um
determinado país.
A migração constante que se observa nos relatos de Ivete Allig mostra que a
identidade não é passível de conceituações únicas, mas transborda a contingência de
possibilidades como muito bem expõe a Antropologia. Os atores itinerantes nessa fronteira
procuram relembrar suas raízes familiares e com isso as viagens migratórias perpassam
nossos espaços de análise, e vão em direção a Argentina e até mesmo para países europeus.
Mesmo que essas problemáticas compreendessem nacionalidades e países únicos a
definição identitária não se explica de maneira satisfatória.
A entrevistada constrói sua identificação; ela se considera uma brasiguaia, pois
reside em Porto Mendes e o marido trabalha como tratorista em uma fazenda no Paraguai,
ela passa periodicamente o Lago para encontrarem-se, ele da mesma forma faz a passagem.
Ela está no Brasil há aproximadamente onze anos e acompanha os estudos das crianças nas
escolas brasileiras.
Sobre ser brasiguaia Ivete conclui que:
148
eu acho que as pessoas vêem você..., assim..., olha..., as pessoas no começo né, eu acho
que eles achavam esquisito né? Mas como não..., tem bastante né, aqui nós falamos
brasiguaios né, tem bastante brasiguaio aqui em Porto Mendes né, então, acabamos se
acostumando e as pessoas também né, se acostumaram com essa vida dupla da gente
(I
DEM
).
A entrevistada se sente brasileira e também se reconhece como brasiguaia e tem
percepção plena de como as outras pessoas que estão estabelecidas nesse local as vêem, o
que a leva dizer que as pessoas se acostumaram umas com as outras, os brasileiros com os
brasiguaios e os brasiguaios com os brasileiros.
Ao trabalhar este grupo social na fronteira entre Brasil e Paraguai o historiador
José A. Campigoto leva suas reflexões ainda mais longe em relação ao local fronteiriço e
aos sentimentos de pertencimento.
Podemos dizer que neste lugar periférico, em que vivem e pelo qual transitam sujeitos
excluídos da sociedade brasileira e paraguaia (...). Imbricações que compõem um espaço
fundamental para compreendermos tal fenômeno em sua pluralidade. Além disso, trata-
se de um desvio que nos permite perceber a existência de uma história desenvolvida para
além do circuito fechado pela sociedade, porque é protagonizada pelos excluídos, por
sujeitos que não se definem como brasileiros nem como paraguaios. História construída
por tantos outros indivíduos e grupos tais como os contrabandistas, as prostitutas, os
atravessadores, os fugitivos, os pescadores de águas oficialmente alheias, os indígenas
rebeldes e outros transgressores de diferentes tempos
(C
AMPIGOTO
. In:
S
CHALLEMBERGER
, 2006, p.17-18)
.
É nesse ambiente conturbado e perigoso que a identidade brasiguaia vai se
constituindo e segue sendo reconhecida e se reconhece enquanto um grupo social diferente
dos demais, em um intenso movimento de atores sociais que circulam cotidianamente por
este logradouro que é o Lago Internacional de Itaipu. As relações entre estes grupos muitas
vezes ofuscam uma enormidade de conflitos de outras ordens, mas seus intercâmbios vão
se fortalecendo, subsistem e estreitam as variáveis culturais não apenas entre os dois
países, mas também no interior de cada grupo existente neste espaço.
Outra entrevistada nos a mesma noção de pertencimento com o país de
origem, nasceu no Brasil e após viver dezoito anos no Paraguai com o marido que possui
propriedades naquele país; atualmente ela reside em Porto Mendes para acompanhar os
filhos nos estudos. Segundo ela “a gente nasceu também aqui no Brasil né, tem que ser
brasileiro né”. (E
NTREVISTA
.
E
LIZETE
T
EREZINHA
P
ANCERA
,
2003)
.
149
O sentimento de ser brasileira não apenas faz com que a escolha de um local para
morar seja importante, como no caso aqui em que as propriedades ficam em um país e a
moradia em outro, mas acompanham outros fatores como os estudos dos filhos, por
exemplo.
Em outra oportunidade Helena, uma paraguaia que está residindo quatro anos
em Guaíra, deixa transparecer seus sentimentos nacionalistas de pertencimento àquele país.
Ela inicia seu discurso da seguinte forma:
eu nasci em Santa Rosa no Paraguai, cidade que meu avô botou o nome, ele chegou de
Santa Rosa no Rio Grande e deu o nome pra cidade, e eu fui uma das primeiras crianças
que nasceram ali naquela cidade. Depois o meu pai e a minha mãe foram pra Capanema,
ficaram lá, uns três ou quatro anos e voltaram denovo [novamente] pro Paraguai
(E
NTREVISTA
.
H
ELENA DE
A
LMEIDA
F
RANZ
, 2004).
O fato de ser uma das primeiras crianças descendentes de brasileiros nascida
naquela região do Paraguai faz com que a exaltação de seus avós e pais na “conquista” por
estes espaços enalteça seu sentido de pertencimento ao Paraguai. Foi possível perceber isso
também nos brasileiros que trabalham naquele país, mas que moram no Brasil.
Quanto à sua estadia no Brasil, Helena nos fornece um panorama de sentimentos
para com o país vizinho. Em um relato emocionante ela diz que:
é muito difícil pra mim me acostumar aqui no Brasil, meio complicado ainda porque
é..., é muito diferente sabe..., tudo é muito diferente e eu amo mesmo o Paraguai, é o meu
país, eu to aqui emprestando um pouquinho do Brasil, daí o dia em que eu puder
voltar, eu vou voltar com certeza (I
DEM
).
No relato percebe-se que mudanças que vão de uma identidade pessoal
passando para uma identidade cultural, quando diz que não consegue se acostumar no
Brasil”. Esse sentimento consiste na partilha de uma mesma essência entre indivíduos
diferentes. Ela não consegue construir uma forma de “encontros” com os outros, com o
diferente. Isso serve tanto individualmente quanto para grupos.
As diferenças que os outros partilham não atuam nas especificidades próprias de
Helena; percebe-se esses problemas com sociedades multiculturais, pois abarca diferentes
grupos. Para Stuart Hall:
uma sociedade multicultural sempre envolve mais que um grupo. Deve haver um
referencial no qual os conflitos mais graves de perspectiva, crença ou interesse podem
ser negociados, e ele não pode ser de um grupo (...). A diferença específica de um grupo
ou comunidade não pode ser afirmada de forma absoluta, sem se considerar o contexto
150
maior de todos ou “outros” em relação aos quais a particularidade adquire um valor
relativo
(H
ALL
, 2003, p. 84-85)
.
Parafraseando Laclau e Mouffe (1985) que refletem sobre a questão identitária
em espaços multiculturais, podemos dizer que toda identidade é fundada sobre uma
exclusão e, nesse sentido, é ‘um efeito de poder’. Devendo assim haver algo exterior a uma
identidade. E “esse exterior é constituído por todos os outros termos do sistema, cuja
ausência ou falta é constitutiva de sua presença” (H
ALL
, 1996b, citado por H
ALL
, 2003,
p.85).
A diferença em relação ao grupo onde está atualmente residindo leva Helena a
esta sensação de desconforto com a constatação de não estar se acostumando em outro
país. Existem carências por não se sentir pertencida enquanto sujeito àquele contexto
espacial, fazendo com que haja conflitos evidentes em sua maneira de agir ou mesmo por
não interagir nessa sociedade multicultural. Sobre isso Laclau diz que;
sou um sujeito precisamente porque não posso ser uma consciência absoluta, porque algo
constitutivamente estranho me confronta. Cada identidade, portanto, é radicalmente
insuficiente em termos de seus outros. Isso significa que o universal é parte de minha
identidade tanto quanto sou perpassado por uma falta constitutiva (L
ACLAU
, 1996, citado
por H
ALL
, 2003, p. 85).
Ao estabelecermos breves discussões com relação ao “outro” adentramos o
terreno da “diferença” levando em consideração Brasil e Paraguai e os atores sociais que
permeiam nossa pesquisa no ambiente de fronteira, com isso chegamos a uma discussão
estritamente filosófica da lógica da diferença que minimamente pontuamos aqui.
Neste sentido para Stuart Hall.
A lógica da différance significa que o significado/identidade de cada conceito é
constituído(a) em relação a todos os demais conceitos do sistema em cujos termos ele
significa. Uma identidade cultural particular não pode ser definida apenas por sua
presença positiva e conteúdo. Todos os termos da identidade dependem do
estabelecimento de limites (H
ALL
, 2003, p. 85).
Ao trabalharmos a “questão do outro” podemos perceber que não
simplesmente para dizer que se vive no Brasil e trabalha no Paraguai, ou se vive no
Paraguai e trabalha no Brasil, parecendo este ser um movimento fácil de entender.
questões ocultas como percebemos brevemente acima, que não são plausíveis de percepção
151
para as outras pessoas, também fatores visíveis como, por exemplo, as dificuldades de
travessia para essas pessoas que se denominam brasiguaios.
Quem possui propriedades no outro país sente as dificuldades, os medos, os
receios de atravessar periodicamente as águas do lago na fronteira. Cobram sem
expectativas uma maneira melhor de fazer a travessia, como balsas maiores, barcos mais
seguros e assim por diante, mas ao mesmo tempo sabem que essa melhoria é quase
impossível de ocorrer, pois a própria questão aduaneira não permite que isso se efetue.
A travessia atualmente é feita em frágeis barquinhos ou mesmo rabetas como são
conhecidas entre eles, e esses meios de comunicação fluvial criam sua própria dinâmica
fronteiriça em um vai e vem intenso, fundam-se lugares de encostas especialmente no lado
paraguaio onde fica melhor não apenas de desembarcar suas tralhas, mas que se
aproximam de suas propriedades naquele país.
Ao questionar sobre os problemas da travessia, uma entrevistada demonstra bem
a sensação de medo.
Atravessamos de barquinho, que pra atravessar tem um barco..., o vento ah! Quando tem
vento ai é perigoso Deus me livre, eu não sou tão medrosa, mas as meninas não
atravessam quando tem vento, elas não atravessam..., quando vem aquele vento que vira
pra lá e pra cá é perigoso (E
NTREVISTA
.
C
LEONICE
A
PARECIDA
M
ENEGOTTO
, 2003).
Cleonice nos dá a versão de quem atravessa às águas mais de uma vez por
semana, os riscos não são apenas materiais por causa da fragilidade dos barquinhos, mas
também as tempestades, chuvas e ventos se tornam obstáculos constantes nas travessias.
Nessa discussão intrínseca com os diálogos dos atores sociais e a identidade,
detectamos que a memória dos entrevistados está em disputa entre os lugares, bem como
uma ampla gama de seletividade de escolhas entre as possibilidades postas em análise.
A identidade apresenta certa hibridização e permanece em luta, pois se caracteriza um
grupo que apresenta outros projetos e que se formam nesses espaços entre os outros grupos
sociais, não consenso de ideologias, transformando-se em memórias divididas e
identidades fragmentadas, pois a idéia de nação perpassa questões unívocas e introduz
temporalidades performáticas nesse entre-lugar que é a fronteira.
A fronteira que assinala a individualidade da nação interrompe o tempo autogerador da
produção nacional e desestabiliza o significado do povo como homogêneo. O problema
não é simplesmente a “individualidade” da nação em oposição à alteridade de outras
nações. Estamos diante da nação dividida no interior dela própria, articulando a
heterogeneidade de sua população. A nação barrada Ela/Própria, alienada de sua eterna
autogeração, torna-se um espaço liminar de significação, que é marcado internamente
152
pelos discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, por
autoridades antagônicas e por locais de diferença cultural
(B
HABHA
, 1998, p. 209-210)
.
A articulação das discussões elaboradas nesse item transcorrem nos diversos
fatores que Bhabha dispõe. A identidade fronteiriça está diretamente ligada às
problemáticas nacionais, a alteridade se mistura com a heterogeneidade da população que
transita nesse espaço. A simbiose fronteiriça compreende muito mais do que os aspectos
divisórios e políticos como quer a História Diplomática, denotando a auto-geração de uma
dinâmica própria desse espaço que compreende o “outro”.
3.4 – Supremacia Paraguaia e a luta pela hegemonia cultural e identitária
Ao falarmos em supremacia parece estarmos relegando um denominado povo ou
local a uma forte dominação por parte de outra sociedade ou nação. Até certo ponto esse
termo designa uma conotação de precedente violência em que imperam o poder ou a
autoridade suprema de uma origem sobre outra. Podemos falar em supremacia territorial,
supremacia populacional, supremacia política, cultural, social, identitária, entre outros. Ou
seja, a preponderância dos diversos aspectos apontados estão inseridos em um espaço que
busca hegemonicamente se firmar enquanto cultura e identidade nacional na fronteira
paraguaia.
Embora o sentido literal de dominação dado à supremacia indica fatores verídicos
de poder e autoridade, o território fronteiriço paraguaio não sofre digamos assim uma
carga violenta de características ascendentes brasileira. A questão territorial e populacional
em grande parte do leste paraguaio é predominantemente de brasileiros como pudemos
verificar anteriormente, com aproximadamente 80% da população nos Departamentos de
fronteira, especialmente Alto Paraná e Canindeyu. Essa proporção se comprova nestes
locais, bem como com as propriedades de terras onde os cultivares de soja e milho em
grandes extensões se apresentam com traços caracteristicamente brasileiros desde os
moldes de preparo da terra até a colheita dos grãos, essa peculiaridade é visível.
Politicamente de se ter claro estas questões que são totalmente diferentes, em
que costumeiramente se confundem as influências políticas de uma localidade, cidade,
153
região ou departamento, pelos mandos políticos que estão em vigência nesses locais, estas
questões provocam equívocos por parte das pessoas.
Percebe-se nessas regiões uma recusa da população paraguaia especialmente
sobre as influências brasileiras na política, a obviedade dessa questão é evidente, pela
própria contingência brasileira nestes locais. E essa particularidade é confundida pelo
poder de mando, onde as autoridades políticas são paraguaias, embora muitas vezes
descendentes de brasileiros. O que ocorre são reivindicações de origem brasileira, por se
tratar de uma superioridade populacional em relação aos oriundos, sendo assim, os anseios
brasileiros em território estrangeiro fluem com maior intensidade do que urge a população
paraguaia.
A questão dos interesses políticos locais está diretamente ligada ao contingente
populacional; essa premissa é verdadeira e se reproduz não apenas por brasileiros na
fronteira paraguaia, mas em qualquer lugar democrático. Onde houver uma maioria que se
empenha em alcançar determinados objetivos em comum, haverá um poder político que
estará desempenhando atividades, obras, serviços, normas em favor da comunidade
requerente, indiferente da nacionalidade do poder de mando, com a grande comunidade
brasileira e descendente essa premissa se configura no Paraguai.
Territorialmente, o continente Sul americano está com suas divisões definidas
várias décadas, a hegemonia nacional de cada país é reconhecida internacionalmente.
34
Embora haja grandes extensões de propriedades de brasileiros e descendentes naquele país,
em hipótese alguma riscos de novas discussões sobre as fronteiras entre Brasil e
Paraguai. A nação paraguaia possui hegemonia territorial e política na América do Sul e a
soberania paraguaia é indiscutível dentro desses limites.
A década de 1990 marcou discussões intensas e a criação de projetos de leis que
estabelecem zonas de segurança nas fronteiras territoriais da República do Paraguai e
criam reservas, aos paraguaios, à propriedade dos imóveis situados nessas zonas.
Posteriormente, a essas discussões o Congresso Nacional sancionou com força de lei as
zonas de segurança.
34
Embora afirmamos a hegemonia de cada país na América do Sul, temos a consciência de que alguns fatos
isolados vem mexendo com as divisas postas de seus territórios. Um exemplo disso ocorreu entre Brasil e
Bolívia tendo como protagonista a questão da exploração de gás natural. Outro exemplo pode ser dado como
a “invasão” colombina no território equatoriano na busca pelos narco guerrilheiros das FARC’s. Ainda a
política venezuelana que vem provocando discussões excêntricas na América Latina. Ou seja, defendemos a
hegemonia de todos os países, mas sabemos que alguns acontecimentos m provocado distorções nesse
sentido em nosso continente.
154
As atitudes das autoridades políticas paraguaias referente a tais projetos e leis
estão em concordância com a vigência dessas leis em outros países como ocorre no Brasil
e na Argentina que obedecem a cerca de 150 e 100 quilômetros de fronteiras
respectivamente, enquanto o Paraguai promulga uma reserva de 50 quilômetros protegendo
assim sua faixa fronteiriça com os demais países e garantindo a propriedade dos imóveis
ali situados aos paraguaios.
A supremacia territorial paraguaia garante em forma de lei as discussões feitas
naquele país e que vem de longa data sendo prevista em 1940 pelo Estatuto Agrário.
Porém na época surtiam vários efeitos até mesmo duvidando do sentido de um projeto de
lei com tal demanda, mas que tinha um conteúdo e uma forma consagrada pela
legislação, sendo assim a legitimidade da lei nos anos 90 se dispõe não de um breve debate
momentâneo, mas de ações que perpassam décadas.
É importante perceber que a Lei de Zona de Segurança não tem como objetivo
afastar o Paraguai dos países vizinhos, ou mesmo fechar suas fronteiras, pois tal lei
presumiu a integração internacional dos países sul americanos. Mas por outro lado mostra
o sentido de prevenção a eventuais perigos contra a soberania nacional paraguaia, que
podem se constituir de várias maneiras até mesmo pela proximidade e fragilidade de suas
fronteiras diplomáticas.
35
O comportamento social das pessoas que ocupam os espaços turbulentos da
fronteira se de maneira normal. Os conflitos políticos dificilmente afetam os moradores
diretamente; o país vizinho oferece os meios que auxiliam a população na saúde, no
transporte, na educação e em outros setores dentro de suas possibilidades. Os moradores
descendentes ou que vieram do Brasil procuram auxílio nos municípios brasileiros
especialmente ajuda médica e também para dar continuidade aos estudos dos filhos.
As ações da população que conhece o funcionamento de órgãos de auxílio no
lado brasileiro não prejudicam o Paraguai, pois elas retornam ao país. Se vieram buscar
auxílio para saúde retornam medicadas, se buscam dar continuidade aos estudos, retornam
como mão-de-obra especializada ou como profissionais aptos ao mercado de trabalho.
Em contrapartida, o Paraguai oferece inúmeras oportunidades de negócios e
trabalho. A simbiose na região de fronteira entre os dois países especialmente entre as
populações que permeiam o espaço é muito grande; o comportamento social das pessoas
35
Referente ao Projeto de Lei; e sobre a Lei de Segurança das Fronteiras Territoriais, ver Anexo 01.
155
não compromete a supremacia política, territorial de nenhum dos dois países, e buscam a
melhor maneira de sobreviverem na fronteira. A luta pela hegemonia não é seu objetivo.
Tendo em vista que as questões territoriais, políticas, populacionais e sociais
compactuam de um espaço dinâmico na fronteira entre Brasil e Paraguai, em alguns locais
com a predominância de um povo e em outros com a maioria de outro, os países tomam
medidas protecionistas. Os países sul americanos buscam se proteger criando faixas, zonas
ou espaços de segurança nacional em que suas leis vão ao encontro de interesses comuns
especialmente no tocante à hegemonia dos espaços territoriais, mas nem sempre as pessoas
que vivem nesses espaços aceitam, concordem ou cumprem tais normas.
A cultura e a identidade adentram estas questões com um diferencial, elas se
reproduzem nesse mesmo espaço dinâmico vivendo praticamente em um ‘sistema de
trasnformações’ conforme argumenta o antropólogo francês Jean-Loup Amselle na obra de
Peter Burke. As teorias do antropólogo comprovam minimamente o que buscamos mostrar
neste complexo movimento fronteiriço; “não há fronteiras culturais claras (...), e os
indivíduos têm identidades fluidas ou múltiplas, distinguindo-se de diferentes “outros” de
acordo com as circunstâncias. A identidade é continuamente reconstruída ou negociada”
(B
URKE
, 2005, p. 128).
O que buscamos mostrar ao longo da pesquisa e na medida em que ampliamos
nosso olhar sobre as fontes e com a observação de campo vieram a se tornar mais paupável
para nós as respostas às problemáticas que levantamos desde o princípio do estudo.
A argumentação de Amselle é um fator a mais que vem no auxílio de fazer
perceber que os espaços dinâmicos da fronteira produzem grupos heterogêneos, sejam
brasileiros no Paraguai, paraguaios no Brasil ou ainda o terceiro indivíduo que vem a ser o
brasiguaio. Não é uma perspectiva simplista que pode considerar grupos sociais, culturas e
identidade como algo homogêneo, separados de um outro mundo, preso a suas
particularidades, imóveis diante de uma circulação intensa. Ou seja, é improvável que a
interetnicidade e a interculturalidade existente nesse espaço não atue sobre os agentes
sociais que permeiam o complexo ambiente fronteiriço causando assim um sistema de
transformações.
Não estamos propondo uma classificação para os diferentes grupos existentes,
uma vez que isso seria praticamente impossível realizar, mas em hipótese alguma podemos
abnegar-nos da compreensão dessa sociedade entendendo-a como uma multiplicação de
variáveis. Algo em torno do que Lucien Febvre chamou de “os materiais de idéias”, com a
156
noção de representação coletiva, permitindo e conciliando imagens mentais com esquemas
de categorias incorporadas que se estruturam internamente. Para Roger Chartier essa
noção obriga igualmente a remeter a modelação destes esquemas e categorias, não para
processos psicológicos, sejam eles singulares ou partilhados, mas para as próprias
divisões do mundo social. Dessa forma, pode pensar-se uma história cultural do social
que tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos ou, por outras palavras,
das representações do mundo social que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas
posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a
sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse (C
HARTIER
, 1990, p.
17).
Para termos estes esquemas confrontados e posteriormente qualificar as
categorias ou grupos sociais é necessário a identificação de todas as figuras de
representação tanto materiais quanto intelectuais, seus significados, objetos e atos devem
ser considerados, organizando assim o conceito do mundo social em que vivem
culturalmente e também seus aspectos identitários obedecendo aos mesmos esquemas.
No ambiente fronteiriço, levando em consideração toda a complexidade em torno
não apenas dos atores sociais, mas também do espaço, da ampla circulação e da
multiplicação de aspectos ocupacionais a discussão sobre hegemonia cultural e identitária
de um país para com outro, e vice-versa fica comprometida. Tais classificações não
obedecem a espaços, leis e/ou políticas, como foi possível estabelecer acima, porque os
adendos culturais e identitários rompem as divisas naturais e diplomáticas, estabelecendo
uma identidade cultural fronteiriça dinâmica e que se reproduzem, se transformam, enfim,
mudam as características categóricas e determinantes que conseguimos perceber em outras
sociedades ou grupos sociais.
As produções neste espaço são livres e a distinção não se aplica a quem domina
ou a quem é dominado gerando assim poderes supremos ou hegemônicos na fronteira, há
sim uma pluralidade de eventos que decorrem especialmente da multiplicidade de
diferenças que permeiam este lugar. Pierre Boudieu diria-nos que:
na realidade, o espaço social é um espaço multidimensional, conjunto aberto de campos
relativamente autônomos, quer dizer, subordinados quanto ao seu funcionamento e às
suas transformações, de modo mais ou menos firme e direto ao campo de produção
econômica: no interior de cada um dos subespaços, os ocupantes das posições
dominantes e os ocupantes das posições dominadas estão ininterruptamente envolvidos
em lutas de diferentes formas (sem por isso se constituírem necessariamente em grupos
antagonistas). (B
OURDIEU
, 2005, p. 153).
157
O diálogo sobre a idéia de espaço social de Boudieu é assimilado no contexto
fronteiriço por nós trabalhado. Na fronteira não é possível organizar um mundo social
unidimensional pondo blocos, povos, culturas e/ou identidades em oposições. Nesse
sentido, as questões econômicas, territoriais ou políticas são mais palpáveis para serem
canalisadas. No contexto estudado a cultura e a identidade não compactuam desses
enquadramentos.
A cultura e a identidade comportam uma ampla gama de simbolismos e
estabelecem os significados de todas as suas manifestações deixam lacunas, e esses
espaços não se preenchem pondo juízos de valores de um povo sobre o outro como um
poder supremo ou hegemônico, especialmente em locais fronteiriços.
Os estudos culturais e identitários alimentam o relativismo acadêmico por tratar
de análises profundas e que dependem em grande parte do trabalho de campo do
pesquisador. Além disso, as teorias sobre os assuntos são váriadas e interdisciplinares, o
que nos leva há um depreendimento ainda maior. As maneiras de perceber as diferenças e
similitudes são idiossincráticas; nosso ponto de vista sobre a hegemonia cultural fronteiriça
obedece a essa ampla gama de fatores entendendo-a como um processo em permanente
trasnformação, algo em torno do que Cliford Geertz na sua obra “interpretação das
culturas” chama de “descrição densa”, enfatizando o significado.
3.5 – Processos históricos
Brasil e Paraguai compartilham centenas de quilômetros em limites territorias na
América do Sul. Suas fronteiras mostram relações intensas desde outros tempos. Tendo em
vista estas prerrogativas, apresentamos algumas questões que não se vinculam diretamente
com a pesquisa ora desenvolvida, mas que insistiam em aparecer, em documentos,
entrevistas e jornais, assim como autores que fazem tais discussões acerca desses outros
temas.
Até a segunda metade do século
XIX
, a “história escrita” de Brasil e Paraguai não
despertou maiores interesses aos pesquisadores. Também não eram nações protagonistas
de grandes acontecimentos em âmbito mundial. Podemos considerá-las como nações irmãs
no continente.
158
O que inicia de maneira mais proeminente e marca a história brasileira em
detrimento à paraguaia e vice-versa foi a Guerra Grande, conhecida como a Guerra do
Paraguai ou ainda a Guerra da Tríplice Aliança ocorrida entre 1864 e 1870; naquele
contexto, a Tríplice Aliança era formada por Argentina, Brasil e Uruguai. A Guerra
resultou em mudanças radicais especialmente para o Paraguai que sofreu grandes perdas,
com sua população sendo dizimada em aproximadamente 75% (Cf.: C
HIAVENATTO
, 1990,
p. 149/150/151).
Após a Guerra, já nos fins do século
XIX
, há um fluxo considerável de pessoas que
ultrapassam os limites territoriais dos dois países, em grande parte por causa da exploração
da erva-mateilex paraguayenses extraída das matas do Sul de Mato Grosso, ou Antigo
Sul de Mato Grosso
36
. A erva-mate torna-se um dos principais produtos de exportação
daquela região, no início sua produção é praticamente toda exportada para a Argentina, o
movimento de pessoas nessa faixa fronteiriça se dá, pela experiência dos paraguaios no
manuseio da erva-mate.
A aptidão dos paraguaios nesse trabalho é o legado de sua própria descendência
indígeno guarani. Agregado a herança cultural que é transmitida entre os povos que
vários séculos se utilizavam da planta, como chá, remédio, e posteriormente como um
modo “cevado” de mate/tereré.
Nesse sentido, Gilmar Arruda afirma que.
A tradição foi legada pelos Guarani, que utilizavam a erva mate antes dos
conquistadores brancos chegarem e foi difundida, posteriormente, pelos jesuítas e suas
missões a partir do século
XVIII
. (...) Ou ainda, a suposta adaptação do paraguaio revela
a sua tradição cultural, o seu conhecimento e prática como ervateiros, cultivado por
alguns séculos (...), demanda não uma certa resistência phísica, como também uma
certa prática (A
RRUDA
, 1997 p.86-88).
O contingente paraguaio em território brasileiro se também pela proximidade
territorial levando em consideração que o oeste paranaense e o sul de Mato Grosso, nos
fins do século
XIX
e início do século
XX
, ainda era um terreno pouco habitado, com
fronteiras um tanto quanto “questionáveis”. As Companhias ervateiras, nesse contexto
36
O historiador Paulo R. C. Queiroz, nos ensina que em 1977/78 o desmembramento do Estado de Mato
Grosso formando o Estado de Mato Grosso do Sul, a denominação Sul de Mato Grosso ou do Antigo Sul de
Mato Grosso, é utilizada para designar a porção meridional do antigo Estado de Mato Grosso, atualmente
Mato Grosso do Sul. Alguns historiadores e pesquisadores utilizam a sigla SMT, para designar o Antigo Sul
de Mato Grosso.
159
especialmente a Mate Laranjeira empregavam milhares de trabalhadores paraguaios em
solo brasileiro.
Ao falarmos que essas regiões eram pouco habitadas, de maneira alguma
passamos a idéia de “espaço vazio”, mas sim, que havia pouca mão-de-obra nacional
brasileira – para ser utilizada nesses trabalhos. É interessante perceber que isso não ocorria
apenas com a erva-mate, mas também com a extração da madeira, uma situação que
começou a ser alterada nas primeiras décadas do século
XX
.
Conforme Gilmar Arruda.
A Lei de Nacionalização da mão-de-obra, no início dos anos 30, obrigou a Matte a
contratar trabalhadores nacionais para tentar substituir os paraguaios que representavam
a quase totalidade dos seus empregados. Com a colaboração do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio a empresa recrutou trabalhadores desempregados nas periferias das
cidades de São Paulo e Rio de Janeiro
(A
RRUDA
, 1997, p. 19).
Nem mesmo a medida do governo brasileiro conteve os trabalhadores paraguaios
de lidarem com a erva-mate, pois era grande o número deles nos ervais brasileiros.
Valdir Gregory mostra o aspecto da mão-de-obra paraguaia, se reportando a
extração da madeira no oeste paranaense. Quando diz que “eram contratados os
paraguaios, através de um líder de turma e combinava-se verbalmente o preço por metro
cúbico de madeira abatida e preparada em toras e o preço por metro linear para a
abertura dos carreadores” (G
REGORY
, 2002, p. 133)
.
Os trabalhadores paraguaios eram
conhecidos como mensus e era a principal força de mão-de-obra nas obrages, nas
barrancas do Rio Paraná.
Os paraguaios foram imprescindíveis nesse processo. Os trabalhadores vindos de
São Paulo, Rio de Janeiro, do Nordeste, ou ainda do sertão do Paraná, na grande maioria
não se “adaptaram” as condições de trabalho oferecidas pelas Companhias, incorrendo
assim, na permanência mesmo que ilegal da maioria da mão-de-obra paraguaia. Mesmo
depois da Lei de Nacionalização, que decorreu até os anos 1940, quando o governo
permitiu a entrada de latino-americanos de países fronteiriços com o Brasil em território
nacional.
As extensões e funcionamento de grandes propriedades que faziam divisas com o
Paraguai no final do século
XIX
e na primeira metade do século
XX
são interessantes de
perceber. A partir disso entende-se melhor o fluxo de pessoas e a dinâmica fronteiriça.
160
A companhia Mate Laranjeira, abrangia praticamente todo o cone sul do Estado
de Mato Grosso e atuava no oeste paranaense. No Mato Grosso, segundo Virgílio Corrêa
Filho, “em área de 1600 léguas quadradas, aproximadamente” (C
ORRÊA
F
ILHO
, 1925 p.
30). Ou ainda, quando o mesmo autor diz, que com a extinção do monopólio “a área
arrendada não excederia de 400 léguas quadradas = 1.400.000 hectares” (I
DEM
, p. 84).
Os dados que Corrêa Filho nos dispõe na obra À sombra dos Hervaes
Matogrossenses, mostram que as áreas da Companhia foram reduzidas praticamente em
um terço, com a lei 725 de 24/09/1915, e tinha antes disso apenas no Mato Grosso em
torno de cinco milhões de hectares de terras, para explorar a erva-mate. A Companhia
auxiliou na modernização de cidades do interior, como Guaíra no Paraná, construiu portos
fluviais, como Porto Mendes e fez estradas de ferro.
37
No oeste paranaense havia a Fazenda Britânia, que estendia seus domínios por
longas distâncias. Também havia o Império Allica, que conseguiu construir um pequeno
porto
38
às margens do Rio Paraná e se misturava com essas imensidões verdes, explorando
a erva-mate, a madeira e outros campos, na maioria das vezes com mão-de-obra paraguaia.
De acordo com Wachowicz.
Da sua diminuta propriedade onde estabeleceu seu porto, Allica estendia seus domínios
para centenas de quilômetros para o interior, chegando a alcançar para leste e sul a região
de Cascavel e para nordeste, Campo Mourão. Não se estendeu pelas barrancas do Paraná
e Mato Grosso, porque encontrou como vizinho setentrional, a Companhia Mate
Laranjeira. Por outro lado, sua propriedade legal não passava de um enclave dentro da
chamada Fazenda Britânia, latifúndio da Compañia de Maderas del Alto Paraná.
Expandiu-se então para leste. Sua principal linha era a que ia para Campo Mourão, com
aproximadamente 350 quilômetros (W
ACHOWICZ
, 1987, p. 63).
Com este breve levantamento de questões que apareceram ao longo da pesquisa
foi possível mapear alguns dos grandes latifúndios no oeste paranaense, e o domínio quase
que absoluto da Mate Laranjeira no cone Sul de Mato Grosso. Divisas próximas com o
Paraguai, e que denotam o ativo trânsito fronteiriço e a inserção no interior do Brasil de
37
Um exemplo foi a Ferrovia feita pela Companhia e que ligava os Portos de Guaíra com o Porto Mendes
Gonçalves no Rio Paraná, com aproximadamente 70 km de extensão. Ela facilitava a transposição dos saltos
das Sete Quedas, para posteriormente seguir destino com a navegação, bem como auxiliava na comunicação
entre estes locais.
38
O porto de Allica era denominado de Porto Artaza e ficava alguns quilômetros acima de Porto Britânia,
atual município de Pato Bragado e um pouco abaixo de Porto Mendes, ou seja, estava na barranca do Rio
Paraná entre dois grandes latifúndios. Não questiona-se se a Braviaco o maior latifúndio da história do
Paraná – tinha os reais conhecimentos da exploração de suas terras por Allica.
161
milhares de trabalhadores paraguaios; estes assuntos permeiam indiretamente a pesquisa.
Não descartamos, em hipótese alguma, outros segmentos.
No final do século
XIX
e início do século
XX
, uma demanda considerável de
pessoas do Rio Grande do Sul, a maioria de descendência alemã de primeira geração que
imigraram para o sul do Paraguai, mais propriamente para Encarnación, passando pela
Argentina, culminando na transposição das fronteiras nacionais.
Destacar as correntes que se deslocavam entre os dois países, tiveram como
intenção mostrar que os processos migratórios denotam um fluxo considerável de pessoas
entre os dois países, que ocorre a longa data e em diversos locais ao longo das fronteiras
Brasil e Paraguai. Bem como apontar práticas comuns entre os dois povos que ocorrem a
mais de um século e meio percebendo a importância da mão-de-obra, dos saberes, a
difusão desses conhecimentos entre os povos e que na atualidade continuam se
reproduzindo, especialmente na cultura, na identidade e no trabalho fronteiriço.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossas considerações giram em torno da tríade que pontuamos desde o início do
texto e trabalhamos no decorrer dele, fomentado por várias tipologias de fontes no intuito
de dar conta minimamente das problemáticas levantadas acerca da cultura, identidade e
fronteira, com a limitação que cada conceito possui. Arriscando-nos em outras áreas, em
uma discussão ligada a um grupo social que possui uma denominação, mas no qual nem
todos os reconhecem ou se reconhecem como brasiguaios.
O objetivo de entender a transitoriedade das pessoas na fronteira entre os dois
países nos fez perceber que esse limite não é simples de ser entendido como quer a História
Diplomática ou mesmo o senso comum. Não se trata apenas de demarcar espaços
territoriais, abrangência de mando político ou mesmo de linha divisória entre nações ou
Estados, mas de compreender os sentidos da fronteira para os agentes que permeiam o
espaço estudado.
Neste sentido, o espaço fronteiriço é compreendido por s como algo que se
move juntamente com os grupos migratórios; não são apenas os indivíduos, os grupos, as
marchas que se movem. As fronteiras, os Estados e as nações não são fixas, uma
modelação de aspectos de adaptação que percorre o habitus dos agentes sociais que
buscam as fronteiras como meio de trânsito entre um lugar e outro, quando ela mesma não
se transforma no meio de vida.
A fronteira é lugar dos encontros e desencontros, da proximidade e da lonjura, do
conhecido e do desconhecido, da dificuldade e da facilidade, das idas e vindas, dos
perdidos e encontrados, dos bons e dos ruins, do rico e do pobre. Enfim, obedece uma
gama de fatores que podem estar localizados nas fronteiras culturais, fronteiras étnicas,
fronteiras de trabalho, fronteiras de crime, fronteiras territoriais, fronteiras matrimoniais,
fronteiras políticas, fronteiras grupais, fronteiras familiares, fronteiras individuais,
fronteiras naturais entre outras.
O sentido de fronteira altera-se de indivíduo para indivíduo, de grupo para grupo
se reformulando e se transformando em um meio de vida, a dinâmica fronteiriça atinge
variadas formas. Diferentes imagens foram construídas sobre ela no decorrer da pesquisa,
não sendo possível denominá-la precisamente como algo fixo e/ou como significante
singular; entendemos a fronteira como algo complexo e sua definição é dada pelos atores
sociais que vivem em contato com ela.
163
A cultura por si e como segundo elemento da tríade, possui uma extensa
conceituação teórica. Em ambiente de fronteira expandem-se as prerrogativas atingindo
uma dinâmica complexa e múltipla. As pessoas que vivem entre o Brasil e o Paraguai
compartilham costumes, modos, maneiras, línguas, comidas, bebidas e até mesmo
tradições. Muitas festas são para elas importante independente da nacionalidade: se são
brasileiros no Paraguai ou paraguaios no Brasil, cultivam personagens, datas, eventos que
são significativas ou possuem um valor simbólico para o ‘seu’ país, para o ‘seu’ povo.
O fenômeno de elevação dos valores culturais de um país em detrimento de outro
e/ou de um povo em relação a outro, representa na atualidade uma força para que os
valores nacionalistas tenham vigor. Entendemos que os arranjos culturais carregados com
todo o seu complexo aparato de significantes estão diretamente ligados às ações de uma
população, independente do lugar onde estão residindo.
As práticas culturais que foram possíveis percebermos e entendermos como uma
maneira de melhor se adaptar no ambiente fronteiriço, é o modo por excelência da
representação do modus vivendi, das pessoas que vivem ou sobrevivem em meio a
transitoriedade fronteiriça.
Suas ações dão novas formas para um ambiente que se modela e se remodela a
todo instante. Uma vez que a imagem não é alterada apenas como percepção da fronteira,
mas sim, modificam os sentidos da fronteira de acordo com as práticas, os exercícios e as
ações dos agentes sociais e sua demanda cultural atuante, como foi possível perceber por
meio das práticas culturais, do adendo cultural existente e com a conceituação da história
cultural.
O último elemento que forma a tríade é a identidade. Em nossa pesquisa o
entendimento desse elemento considerado um dos pontos elevados dos estudos
historiográficos na atualidade é feito diretamente em oposição ao outro. A questão
identitária foi discutida em nossos estudos tendo como agente dinamizador para percepção
especialmente da imprensa e do discurso oral que moldam o sujeito alvo da análise que é o
brasiguaio.
Para os especialistas e pesquisadores brasileiros que trabalham o tema, o
brasiguaio é compreeendido como o migrante brasileiro que foi ao Paraguai e o
conseguiu se reproduzir enquanto agricultor. Sofreu o desgaste de décadas de trabalho em
terras estrangeiras e posteriormente retornou ao Brasil, fomentando as periferias das
164
cidades do oeste paranaense e/ou a população do movimento de trabalhadores sem terras, e
por último ainda vive em condições precárias no país vizinho ou no Brasil.
Tal constatação é visível no estudo do geógrafo Luiz Carlos Batista, intitulado
Brasiguaios na fronteira: caminhos e lutas pela liberdade”. O historiador Valdemir José
Sonda em sua dissertação de mestrado denominada “A emigração brasileira para Naranjal
Alto Paraná Paraguai (1973-1995): um estudo de caso”. E o denso estudo da
antopóloga Márcia Anita Sprandel Brasiguaios: conflito e identidade em fronteiras
internacionais”. Os estudos acima citados caracterizam por meio de pesquisas diferentes e
com pontos novos de análise o que é o brasiguaio; entre outros estes pesquisadores
alcançaram a compreensão acima citada por nós.
Por outro lado, a maioria dos pesquisadores paraguaios salvo algumas exceções
como o sociólogo Ramón Fogel compreendem como brasiguaios todos os brasileiros que
foram ao Paraguai desde o início do movimento migratório que deriva do final da década
de 1950, adentrando as décadas seguintes.
Outra percepção desse novo indivíduo que habita os dois países e é dinamizador do
espaço fronteiriço vem da imprensa, que amplia a noção de quem possa ser o brasiguaio.
Tanto a imprensa brasileira como a paraguaia não procuram especificar quem ele
realmente seja aumentando a disposição de pessoas que queiram ou não, são introjetadas
enquanto brasiguaios no cenário social.
Durante o desenvolvimento da pesquisa e com a agregação de vários pontos de
vista, e por meio da compreensão do adendo culutral existente na fronteira, conseguimos
atingir tanto a perspectiva brasileira quanto a paraguaia sobre quem vem a ser o brasiguaio.
No momento de abrirmos nossas ponderações sobre esse ator social, não nos
situamos entre uma ou outra versão sobre o brasiguaio, mas entendemos que houve e
ainda na atualidade uma ampliação do significado do termo desde as primeiras pesquisas
que foram desenvolvidas no início da década de 1980 até os finais da primeira década do
século
XXI.
Assim, o brasiguaio compreende um terceiro elemento social entre brasileiros e
paraguaios, independente dos fluxos migratórios que levaram descendentes de europeus do
sul do Brasil para o Paraguai.
Na discussão identitária situamos o ator social, os pontos de vista são limitados.
Acreditamos que não conseguimos pontuar com exatidão quem é o brasiguaio, mas
aumentamos o leque de compreensão sobre o ator social, seja para brasileiros ou para
paraguaios. Entender e conhecer a gama de ações culturais decorrentes da transitoriedade
165
fronteiriça implica em alterações ou adequações identitárias. Afinal a identidade é forjada e
não é isenta de adequações, que podem ser políticas, regionais, étnicas entre outras.
Nossa intenção com a pesquisa visou mostrar dois lados de uma questão polêmica
no período estudado, ao passo que se desenvolvia conseguimos atrelar idéias, pontuar
teorias, ponderar sobre as fontes e principalmente inserir brasileiros e paraguaios no
interior de nossa pesquisa. As dificuldades enfrentadas em campo se deram pela
adversidade com que grande parte da população paraguaia percebe a questão e ao mesmo
tempo não “fala” sobre ela. Foram várias entrevistas e imagens produzidas e utilizadas,
outro número igual não conseguimos fazê-lo, até mesmo pela desconfiança das pessoas
sobre nós pesquisadores.
O ambiente de pesquisa às vezes era absolutamente pacífico com observações
gratificantes e que nos renderam ótimas páginas de texto escrito, outras vezes éramos
acuados com falácias esparsas e por indivíduos totalmente externos ao nosso trabalho e que
além de não auxiliar em nada; atrapalhavam. As viagens ao interior do país vizinho eram
antecedidas de certa cautela e de análises para o bom conhecimento dos locais a serem
visitados e na maioria das vezes feito em conjunto de pessoas conhecidas das populações
locais.
Não estabelecemos valor de juízo sobre uma ou outra tipologia de fonte utilizada,
mas entendemos a fonte oral como uma representação. São visões de mundo dos
indivíduos entrevistados e não pode e nem deve ser vista como falsificadora no momento
em que contestam visões oficiais ou de outras fontes. Com isso, queremos dizer que o tema
das migrações ou dos movimentos migratórios na historiografia é um assunto tradicional.
Realmente não pode ser qualificado como tema não convencional como outras pesquisas
elaboradas, mas trabalhamos este tema na intenção de produzir uma abordagem inovadora,
especialmente por vincular outras tipologias de fontes e as perspectivas de dois países ou
povos diferentes em relação há um mesmo assunto que é a transitoriedade.
Acima destacamos a história oral por que a entendemos como uma força de
produção da identidade. Percebemos que a identidade está em constante luta e é brida.
Por outro lado, temos na história oral outro aspecto que mexe diretamente com as
excentricidades das falas das pessoas que é a memória. Percebemos a memória com amplo
poder seletivo e no contexto estudado em freqüente luta.
Com isso chegamos a um ponto em que não conseguimos perceber ou notificar um
consenso em relação aos agentes trabalhados no decorrer da pesquisa, não que esse fosse
166
nosso objetivo. Isso sepor que a memória é dividida entre a seletividade e a disputa que
quer aflorar, enquanto a identidade esta fragmentada nesses espaços por que é hibrida e
está permanentemente em luta.
Procuramos trabalhar com as tipologias de fontes que contemplassem minimamente
os objetivos da pesquisa, fazendo a relação dialética entre ambas. A retomada
frequentemente dos recortes pesquisados no decorrer do texto, se deu na intenção de ter
clara a historicidade do processo que está se desenvolvendo com a construção discursiva.
As escolhas são dificeis para um historiador elaborar, especialmente quando um
aprofundamento de estudos sobre o tema, percebemos várias falhas na pesquisa. A escolha
da tríade fronteira, cultura e identidade contempla uma série de indagações sobre o
assunto. Ao mesmo tempo ausências no estudo de abordagens que auxiliariam à
compreender melhor outros fatores, como por exemplo, a política e a economia que dariam
suportes importantes para o desenvolvimento das questões.
Enfim, podemos considerar que as dinâmicas migracionais se constituíram num dos
fenômenos mais relevantes e perceptíveis da realidade brasileira na fronteira nas últimas
décadas do século
XX
e início do século
XXI
. E vem ao longo de suas ocorrências alterando
a relação homem, espaço e sociedade no imaginário social, em estreita concatenação entre
cultura e identidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI, Verena. História Oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
– CPDOC, 1989.
ALVES, José Luiz. Brasiguaios: destino incerto. São Paulo: Global, 1990.
AMADO, Janaína. A culpa nossa de cada dia: ética e História Oral. In: Projeto História.
São Paulo: n. 15, abril 1997.
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
ARCA: Revista de Divulgação do Arquivo Histórico de Campo Grande. 4, Campo
Grande: Sergraph, 12/1993.
ARRUDA, Gilmar. Frutos da Terra: os trabalhadores da Mate Laranjeira. Londrina:
EdUEL, 1997.
BARRETO, Maribel. Código Araponga. Asunción: Uninorte, 2005.
BACZKO, Bronislaw. “Imaginação Social”. In: ROMANO, Ruggiero (org.). Enciclopédia
Einaudi. Vol. 5. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985, pp. 296-332. ,
BORGES, Vavy Pacheco. O que é História. 13ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. edição. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2005.
BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. Tradução de Magda
Lopes. São Paulo: EdUSP, 1992.
____. Variedades de história cultural. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
CAPEL, Horácio. Inmigrantes extranjeros en España. El derecho a la movilidad y los
conflictos de la adptación: grande expectativas y duras realidades. Escripta Nova. Revista
Electrónica de Geografia y Ciências Sociales, Universidade de Barcelona, 81,
01/02/2001, acessado em 15/07/2005.
CARDOSO, Ciro Flamarion; MAUAD, Ana Maria. “História e Imagem: os exemplos da
Fotografia e do Cinema”. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (orgs.). Domínios da
história – Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
CARTER, Michael; GALEANO, Luis A. Campesinos, tierra y mercado. Asunción:
Ediciones y Arte S.R.L., 1995.
168
CASTELLO, Iara Regina. Áreas de fronteira: territórios de integração, espaços
culturalmente identificados. In: HAUSEN, Ênio Costa, LEHNENE, Arno Carlos (orgs.)
Prática de integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre: EdUFRGS:
Instituto Goethe/ICBA, 1995.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria
Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990.
CHIAVENATTO, Julio José. Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai. 24ª edição.
São Paulo: Brasiliense, 1990.
COLODEL, José Augusto. Obrages e Companhias Colonizadoras: Santa Helena na
história do oeste paranaense até 1960. Santa Helena: Assoeste, 1988.
CORRÊA FILHO, Virgílio. À sombra dos hervaes matogrossenses. São Paulo: Editora São
Paulo, 1925.
CORTÊZ, Cácia. Brasiguaios: os refugiados desconhecidos. São Paulo: Brasil-agora,
1992.
CORTÊZ, Cácia; SILVA, Edsom; TAQUES, Luiz. A travessia do rio dos pássaros:
ocupação da Gleba Santa Idalina em Ivinhema – MS. Belo Horizonte: Segrac, 1985.
D’ASSUNÇÃO BARROS, José. O campo da História: especialidades e abordagens.
Petrópolis: Vozes, 2004.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Trad. Denise
Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à
arqueotipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
EDGAR, Andrew; SEDGWICK, Peter. Teoria cultural de A a Z: conceitos-chave para
entender o mundo contemporâneo. São Paulo: Contexto, 2003.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
ELIAS, N. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. Rio
de Janeiro: Zahar, 1993, vol. 1.
____. O processo civilizador. Formação do Estado e civilização. Trad. Ruy Jungmann.
Rio de Janeiro: Zahar, 1993, vol. 2.
FELIÚ, Fernanda. Los Brasiguayos: Canindeyú Zona Alta. Asunción: Imprenta LEO
S.R.L. s/d.
FOGEL, Ramón. Los campesinos sin tierra en la frontera. Asunción: Estilo Gráfica, 1990.
169
____. Las luchas campesinas: tierra y condiciones de producción. Asunción: Imprenta
Cromos S.R.L., 2001.
____. Estructura social y processos políticos. Asunción: Servi Libro, 2005.
____; RIQUELME, Marcial (org.). Enclave sojero: merma de soberanía y pobreza.
Asunción: Ed. CERI – Centro de Estúdios Rurales Interdisciplinarios, 2005.
____. La cuestión socioambiental en el Paraguay. Asunción: Ceri, 2006
FREITAG, Liliane da Costa. Fronteiras perigosas: migração e brasilidade no extremo-
oeste paranaense (1937-1954). Cascavel: Edunioeste, 2001.
GALEANO, Luis A.; YORE, Myriam. Poder local y campesinos. Asunción: Ediciones y
Arte S.R.L., 1994a.
____. Migrantes Brasileños en Paraguai: principales problemas y demandas. Assunción:
Ediciones y Arte S.R.L., 1994b.
GARRIDO, Joan del Alcàzar i. As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao
debate. In: Revista Brasileira de História – Memória, História, Historiografia: Dossiê
Ensino de História. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, vol. 13, n. 25/26, 09/1992 – 08/1993.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabarra, 1989.
GERMANI, Guiomar Inez. Expropriados. Terra e água: o conflito de Itaipu. Salvador:
EDUFBA: ULBRA, 2003.
GREGORY, Valdir. Os eurobrasileiros e o espaço colonial: migrações no oeste do Paraná
(1940-70). Cascavel: Edunioeste, 2002.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EdUFMG,
2003.
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
LAINO, Domingo. Fronteiras e penetração brasileira. São Paulo: Global, 1979.
LAINO, Rafaela Guanes. Familias sin tierra en Paraguay. Asunción: Ed. Intercontinental
e Ñanduti Vive, 1993.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1992.
LIMA, Ivan. A fotografia e a sua linguagem. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
170
LIMA, Ivone Teresinha Carletto de. Itaipu: as faces de um mega-projeto de
desenvolvimento (1930-1984). Marechal Cândido Rondon: Germânica, 2006.
MALERBA, J. Sobre Norbert Elias. In: Malerba, J. (org.). A velha história:
Teoria, método e historiografia. Campinas: Papirus, 1996.
MALERBA, Jurandir. “Para uma teoria simbólica: conexões entre Elias e Bourdieu”. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações: contribuição a
um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000.
MARTINS, José de Souza. “O tempo da fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo
histórico da frente de expansão e da frente pioneira”. In: ____. Fronteira: a degradação do
outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 145-203.
____. “A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira”. In: NOVAIS,
Fernando A. (Coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no
Brasil 4: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MAUAD, Ana Maria. O olho da história: análise da imagem fotográfica na construção de
uma memória sobre o conflito de Canudos. Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1-2, p. 25-40,
jan./dez. 1993.
MEDINA, Mário M. (Bispo Responsável). Migrantes Brasileños en Paraguay: principales
problemas y demandas. Asunción: Ediciones y Arte S.R.L., 1994.
MONTENEGRO, Antônio Torres. História Oral e Memória. A cultura popular revisitada.
São Paulo: Contexto, 1992.
MOUILLAUD, Maurice; DAYRELL PORTO, Sérgio (org.). O Jornal: da forma ao
sentido. Trad. Sérgio Grossi Porto. 2 ed. Brasília: EdUNB, 2002.
ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994.
OSORIO, Helen. Et alli (Orgs). “Espaço Platino: Fronteira Colonial no século
XVIII
In:
Praticas de Integração nas Fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre: EdUFRGS,
Instituto Goethe/ICBA, 1995.
PINSKY, Carla Bassanezi (Org). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Revista de Estudos Históricos. Rio
de Janeiro: SCT – CNPq – FINEP, vol. 5, n.10, 1992.
QUEIRÓZ, Paulo Roberto Cimo. “Temores e Esperanças: O Antigo Sul de Mato Grosso e
o Estado Nacional Brasileiro”. In: MARIN, Jérri Roberto; VASCONCELOS, Cláudio
Alves de (org). História, Região e Identidades. Campo Grande: Ed. UFMS, 2003.
RIBEIRO, Maria de Fátima Bento. Memórias do concreto: vozes na construção de Itaipu.
Cascavel: Edunioeste, 2002.
171
RIQUELME, Quintín. Los sin tierra em Paraguay: conflitos agrarios y mivimiento
campesino. Buenos Aires: Clacso, 2003.
RÜDIGER, Francisco. Ciência social crítica e pesquisa em comunicação: trajetória
histórica e elementos de epistemologia. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2002.
SAMUEL, Raphel. “Teatros da Memória”. In: Projeto História (Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP). São
Paulo, n. 14, 1997.
SCHWARCZ, Lilia; GOMES, Nilma (orgs.). Antropologia e História: debate em região de
fronteira. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da História intelectual: entre
questionamentos e perspectivas. Campinas: Papirus, 2002.
SPRANDEL, Márcia Anita. “Fronteiriços e Brasiguaios: na história de Mato Grosso do
Sul”. In: Revista Arca. Campo Grande, nº 04, pp. 82-85, 12/1993.
VERDECCHIA. José Miguel A. Algunas consideraciones sobre las condiciones de êxito y
fracaso em asociaciones cooperativas campesinas en el Paraguay. Asunción: Ed. Centro
Paraguayo de Estudios Sociológicos, 1989.
VIANNA, Hélio. História Diplomática do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1948.
VOVELLE, Michel. Imagens e Imaginário na História: fantasmas e certezas nas
mentalidades desde a Idade Média até o século
XX
. Trad. Maria Julia Goldwasser. São
Paulo: Ática, 1997.
WACHOWICZ, Ruy Christovan. Obrageros, mensus e colonos: história do oeste
paranaense. 2. ed. Curitiba: Vicentina, 1987.
WACQUANT, Loïc. “Mapeando o Habitus”. In: Habitus: Revista do Instituto Goiano de
Pré-história e Antropologia da Universidade Católica de Goiás. Vol. 02 02, Jan/Jun
2004. Goiania: Ed. UCG, 2004.
WAGNER, Carlos. Brasiguaios: homens sem pátria. Petrópolis: Vozes, 1990.
Teses e dissertações:
ALBUQUERQUE, José Lindomar Coelho. Fronteiras em movimento e identidades
nacionais: A imigração brasileira no Paraguai. Fortaleza, 2005. (Tese Doutorado Programa
de Pós-Graduação em Sociologia). Universidade Federal do Ceará.
172
ALMEIDA, Nivalcir Pereira de. O modo de vida dos brasileiros em Yby Yau: os
Brasiguaios. 1994 (Monografia de especialização em História da América Latina).
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Dourados, 1994.
BATISTA, Luiz Carlos. Brasiguaios na fronteira: caminhos e lutas pela liberdade. 1990
(Dissertação de Mestrado em Geografia Humana). Universidade de São Paulo, São Paulo,
1990.
CAMPIGOTO, José Adilçon. Hermenêutica de Fronteira: a fronteira entre o Brasil e o
Paraguai. 2000 (Tese Doutorado em História Cultural). Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2000.
SONDA, Valdemir José. A emigração brasileira para Naranjal Alto Paraná Paraguai
(1973-1995): um estudo de caso. 2003 (Dissertação de Mestrado em História Social).
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003.
SPRANDEL, Márcia Anita. Brasiguaios: conflito e identidade em fronteiras
internacionais. 1992 (Dissertação de Mestrado em Antropologia Social do Museu
Nacional). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.
FONTES
Documentos:
Constituição Nacional da República do Paraguai, 1967.
Constituição Nacional da República do Paraguai, 1992.
Entrevistas:
ENTREVISTA. Cleonice Aparecida Menegotto (Fita Demo Tape) Produção: Luíza
Mandotti, Porto Mendes: 02/12/2003: 21 min. (sonorização). Nasceu em Autônia no
Paraná, é agricultora e do lar, reside em Porto Mendes no Brasil.
ENTREVISTA. Elfride Else Rediss (Fita Demo Tape) Produção: Luíza Mandotti,
Marechal Cândido Rondon: 26/05/2004: 38 min. (sonorização). Nasceu em Monte Carlo
na Argentina, é aposentada e reside em Marechal Cândido Rondon no Brasil.
ENTREVISTA. Elizete Terezinha Pancera (Fita Demo Tape) Produção: Luíza Mandotti,
Porto Mendes: 02/12/2003: 13 min. (sonorização). Nasceu em Vitorino no Paraná, é
agricultora e do lar, atualmente reside em Porto Mendes no Brasil.
ENTREVISTA. Helena de Almeida Franz (Fita Demo Tape) Produção: Luíza Mandotti,
Guaíra: 06/02/2004: 26 min. (sonorização). Nasceu em Santa Rosa no Paraguai, é
agricultora e do lar, reside em Guaíra no Brasil.
ENTREVISTA. Irineu Zimpel (Digital) Produção: Leandro Baller, São Clemente:
03/11/2007: 20 min. (sonorização). Nasceu em Três Passos no Rio Grande do Sul, é
agricultor e reside em Santa Helena no Brasil.
ENTREVISTA. Ivete Allig (Fita Demo Tape) Produção: Luíza Mandotti, Porto Mendes:
02/12/2003: 36 min. (sonorização). Nasceu em Cascavel no Paraná, é agricultora e do lar,
reside em Porto Mendes no Brasil.
ENTREVISTA. Marcelo de Almeida (Fita Demo Tape) Produção: Luíza Mandotti, Guaíra:
16/01/2004: 34 min. (sonorização). Nasceu em Maringá, atualmente reside em Guaíra no
Paraná, é gerente de uma empresa de emplementos agrícolas em La Paloma no Paraguai.
ENTREVISTA. Maria de Lourdes Paludo Berno (Fita Demo Tape) Produção: Luíza
Mandotti, Porto Mendes: 02/12/2003: 12 min. (sonorização). Nasceu em Palotina no
Paraná, é agricultora e do lar, reside em Porto Mendes no Brasil.
ENTREVISTA. Miguel Pereira (Fita Demo Tape) Produção: Luíza Mandotti, Porto
Mendes: 02/12/2003: 38 min. (sonorização). Nasceu em Naviraí no Mato Grosso do Sul é
pescador, reside atualmente em Porto Mendes no Brasil.
ENTREVISTA. Neusa Probst (Digital) Produção: Leandro Baller e Marcelo Zeni, Porto
Mendes: 24/03/2007: 52 min. (sonorização). Nasceu em Porto Mendes, é Funcionária
Pública em Porto Mendes, município de Marechal Cândido Rondon no Brasil.
174
ENTREVISTA. Ramón Fogel (Digital) Produção: Leandro Baller, Assunção: 15/12/2006:
38 min. (sonorização). Nasceu no Paraguai, é Sociólogo e Advogado no Paraguai.
ENTREVISTA. Sonia Jandira Vicente (Fita Demo Tape) Produção: Luíza Mandotti, Porto
Mendes: 02/12/2003: 27 min. (sonorização). Nasceu em Três Barras no Paraná, é
agricultora e do lar, reside em Porto Mendes no Brasil.
Fotografias:
Fotografia de uma frase de manifestação em Assunção.
Fotografia de Porto Mendes possivelmente das décadas de 50/60.
Fotografia atual de Porto Mendes.
Fotografia do Porto Mendes Gonçalves de 1982.
Jornais:
“Cómo se pasó del enfrentamiento a la cooperación en Puerto Índio.” Andrés Colmán
Gutiérre. ULTIMA HORA, 01/10/2003, p. 18.
“Santa Rita no parece Paraguay: ‘aprendí de los brasileños a trabajar en serio.’” Andrés
Colmán Gutiérre. ULTIMA HORA, 23/09/2003, p. 07.
“Los brasileños nos imponen su cultura: ‘Victor Pato Brítez habla de los 24 años de
Tetãgua, resaltando la ausencia de una política de defensa de nuestra identidad’”. Mario
Rubén Álvarez. ULTIMA HORA, 09/05/2004, p. 39.
“Labriegos exigen que se erradique el cultivo de la soja y que se suspenda su
exportación.” Roque González Vera; César Martínez. ABC Color, 08/01/2004, p. 16.
“Campesinos se enfrentan a policías para impedir fumigación de soja.” Redação. ABC
Color, 21/01/2004, p. 15.
“Fumigadores son llevados a juicio oral para responder por una muerte.” Marcelo
Ameri. ULTIMA HORA, 10/10/2003, p. 19.
“Técnicas mecanizadas de cultivo contribuyen a la pérdida gradual de la riqueza del
suelo.” Editorial. LA OPINIÓN, 27/07/2001, s/p.
“El Estado paraguayo nunca tuvo ni tiene una política de desarrollo rural: ‘Odilón
Espínola, Secretario general de la FNC’”. María Angélica Ramos. 01/11/2004, p. 19.
“El nuevo Código Agrario no les sirve a los campesinos: declaraciones de dirigente de
la MCNOC.’” Editorial. LA OPINIÓN, 27/27/2001, s/p.
“La democracia no es viable en una sociedad hundida en la ignorancia.” Roque
González Vera. ABC Color, 29/04/2004, p. 22.
175
“Campesinos ocuparán latifundio si el Gobierno no entrega tierra.” Cristino Peralta
Bernal. ABC Color, 21/04/2004, p. 16.
“Hay más de 80% de brasileños en los departamentos de la frontera: ‘investigación
del sociólogo Marcial Antonio Riquelme’”. Andrés Colmán Gutiérrez. ULTIMA HORA,
20-21/09/2003, p. 26.
“Penetración brasileña llega al centro del país y provoca éxodo.” Arnaldo Alegre.
ULTIMA HORA, 01/09/2003, p. 21.
“La cuestión de los inmigrantes brasileños.” Editorial. ULTIMA HORA, 19/09/2003, p.
24.
“¿Integración... o expulsión?: ‘La penetración brasileña en el Paraguay es imparable.’”
Maria Diaz de Vivar. TEMPOS DEL MUNDO – PY, 04/09/2003, p. 02.
“¿Coexistencia o engrentamiento?: ‘Modelos productivos: tradicional e mecanizado.’”
Maria Diaz de Vivar. TEMPOS DEL MUNDO – PY, 19/02/2004, p. 02.
“Los ‘brasuguayos.’” Editorial. TEMPOS DEL MUNDO – PY, 04/03/2004, p.02.
“No existe proceso colonizador, sino penetración económica: presencia brasileña en el
Paraguay.’” Roque González Vera. ABC Color, 07/04/2004, p. 16.
“Brasileños se comprometen a reparar el daño ecológico: se abre dialogo en busca de
solucion al grave problema ambiental.’” Redação. ABC Color, 24/09/2003, p. 14.
“Campesinos sin tierra volvieron a invadir propiedad de una brasileña.” Pablo
Medina. ABC Color, 26/05/2004, p. 19.
“Brasileños repiten el espíritu de los invasores bandeirantes.” Arnaldo Alegre.
ULTIMA HORA, 03/03/2003, p. 22.
“Hay cerca de 450 mil brasiguayos que viven y trabajan en este país: embajador
brasileño dice que una franja de seguridad fronteriza será discriminatória y de contramano
con la historia.’” Andrés Colmán Gutiérrez, ULTIMA HORA, 27/09/2003, p. 26.
ANEXOS
177
Proyecto: Zona de Seguridad en las Fronteras Territoriales de La Republica y
reserva a los paraguayos la Propiedad de los inmuebles situados em dichas zonas.
Asunción, mayo de 1990.
Señor
Waldino Ramón Lovera, Presidente
Honorable Cámara de Senadores
E. S. D.
Tengo la honra de dirigirme al señor presidente y por su intermedio a los demás
miembros del Senado de la Nación, con el propósito de presentar el Proyecto de Ley (Art.
154 de la Constituición Nacional y Art. 106 del Reglamento Interno) “Que establece
Zonas de Seguridad en las Fronteras Territoriales de La Republica y reserva a los
paraguayos la Propiedad de los inmuebles situados em dichas zonas”.
Razones vinculados con la supervivencia de campesinos sin tierras y factores de
orden socio-económico obligan a que en nuestro país sean consagradas normas que
busquen la protección de los más necesitados que precisamente hoy, se encuentran en
zonas cercanas a nuestra fronteras. Si a ello se agrega las cuestiones relacionadas com la
defensa nacional y la seguridad de La República, se llega a la definitiva conclusión que es
de imperiosa necesidad que este Proyecto de Ley reciba favorable acogida por parte del
Congresso.
El Proyecto que se acompaña establece que serán consideradas “Zonas de
Seguridad” las áreas territoriales situadas en las fronteras terrestres y fluviales de la
República, en un ancho de cincuenta kilómetros, y reserva la propiedad de los inmuebles
rurales situados en ellas, a los paraguayos.
Al mismo tiempo dispone que los inmuebles rurales del Estado, que integran el
patrimonio del Instituto de Bienestar Rural, situados en las “Zonas de Seguridad” sean
destinados exclusvamente a la colonización oficial con paraguayos. Esta norma no
constituye una novedad para nuestro país. En alguna medida se encontraba prevista por el
Estatuto Agrário de 1940 por las autoridades del entonces Instituto de Reforma Agrária.
Quiere decir, que de aceptarse la tesis contenida en el Proyecto no haría outra cosa, que
volver a dar fuerza legal en forma más amplia y concreta, a un principio que ya fuera
consagrado por nuestra legislación hace cincuenta años.
El Proyecto encomienda a la Dirección de impuesto inmobiliario, en colaboración
con el Instituto de Bienestar Rural, la confección del catastro de los inmuebles situados en
las “Zonas de Seguridad” y dispone que dicho catastro este permanentemente a
disposición de las Fuerzas Armadas de la Nación, para los fines de la defensa nacional. La
elaboración de este catastro por parte de la dirección de Impuesto Inmobiliario ya se
encuentra a estúdio del Poder Ejecutivo, según lo expresara el señor Ministro de Hacienda.
Por otra parte, el Proyecto otorga a los extranjeros propietarios de inmuebles
ubicados en las “Zonas de Seguridad” que no se encuentran racionalmente explotadas, un
plazo de dos años para transferir a los paraguayos y los que así no lo hicieren sus
inmuebles quedan sujetos a expropiación. Para este caso, se aseguran las indemnizaciones
correspondientes, de acuerdo con lo dispuesto por el Art. 156 del Estatuto Agrário (Ley
854).
El Proyecto presentado consagra normas adecuadas a la realidad paraguaya, que
por lo demás en sus aspectos fundamentales se encuentran en vigencia en países limítrofes
como la Argentina y el Brasil, pero con alcances muchos más estrictos que los contenidos
178
en este Proyecto. Es que sin perjuicio de La hermandad que nos une a nuestros vecinos y a
las cordiales relaciones que con ellos mantenemos y la necesidad de una integración
regional, es indispensable para nosotros, por un lado mantener la paz social asegurando
tierras a nuestros campesinos, y por otro lado hacer que nuestra frontera se encuentren a las
que han establecido nuestro vecinos, mucho más poderosos, que nosotros, para resguardar
sus fronteras con el Paraguay.
Por lo demás, no podemos olvidar la lección de la historia universal en cuanto al
peligro que entraña la colonización territorial de fronteras, con ciudadanos extranjeros que
eventualemnte pueden constituir un médio de penetración que atente contra la soberania
nacional.
En el aspecto sócio econômico, es fácil compreender que las tierras más rica y
mejor situadas, deben ser adjudicadas a los paraguayos. De lo contrario corremos el riesgo
de que el país se desarrolle para beneficio exclusivo de empresários extranjeros, mientras a
los paraguayos solo lês reste la oportunidad de ingresar al proletariado rural, de tan triste
suerte en toda América Latina.
Termino esta breve exposición de motivos, recordando en ‘este Honorable cuerpo
que el proyecto adjunto, ya fue aprobado, por el Senado”, en las ultimas semanas del
período legislativo pasado, pero que por falta de tiempo no fue remitido a la Cámara de
Diputados.
Dios guarde a Vuestra Honorabilidad.
Rodolfo A. Gonzáles Garabelli
Senado Nacional
179
Ley: Que establece Zonas de Seguridad en las Fronteras Territoriales de La
Republica y reserva a los paraguayos la Propiedad de los inmuebles situados em
dichas zonas.
El congreso de la nación paraguaya sanciona com fuerza de Ley:
Art. 1º Créase La “comisión Nacional de Zonas de Seguridad”, cuya misión será, velar por
los intereses de la defensa nacional y la seguridad de las fronteras terrestres y fluviales del
país. Asimismo esta Comisión se avocará a planificar una política poblacional con
ciudadanos paraguayos, en las zonas de fronteras.
Art. 2º Las áreas territoriales situadas en las fronteras terrestres y fluviales les de la
República, en un ancho de cincuenta kilómetros serán consideradas “Zonas de Seguridad”.
Art. 3º Los extranjeros, y las personas jurídicas integradas total o parcialmente por estos no
podrán ser propietarios de inmuebles rurales situados dentro de las “Zonas de Seguridad”.
Art. Los inmuebles rurales privados del Estado y los demás que integran el patrimonio
del Instituto de Bienestar Rural, situados dentro de las, “Zonas de Seguridad”, serán
destinados exclusivamente a la colonización oficial con beneficiários paraguayos del
Estatuto Agrário, salvo que se les atribuya el fin de parques nacionales o reservas
ecológicas. Si es beneficiaria una firma cooperativa, ésta deberá estar integrada solo por
paraguayos.
Art. La Comisión Nacional de Zonas de Seguridad” estará integrada por: Un
representante del Ministério de Relaciones Exteriores; un representante del Ministério del
Interior; un representante del Ejército; un representante de la Armada Nacional; y un
representante del Instituto de Bienestar Rural. Presidirá la misma el representante del
Ministério de Relaciones Exteriores.
Art. Las personas mencionadas en el Art. 32 de esta ley, tendrán un plazo de dos años a
partir de su promulgación, para transferir a paraguayos los inmuebles de su propiedad,
situados dentro de la “Zona de Seguridad”, siempre que dichos inmuebles no se encuentren
racionalmente explotados.
Art. A los efectos de la presente ley, entendiese por explotación racional del cultivo de
la tierra de acuerdo con su capacidad agrológica y condiciones del mercado, admitiéndose
la existência de bosques en extensiones apropiadas para la conservación de los recursos
naturales y como reserva ecológica. En caso de establecimento ganaderos, la explotación
racional implicará la existência de campos de pastoreo apropiados para tal finalidad, con
aguadas suficientes y alambradas debidamente instaladas. La extensión de dichos campos
deberan estar proporcionada a la cantidad de ganado existente en el lugar de propiedad e
los tiutlares de los inmuebles.
Art. A partir de la vigência de la presente ley ningún propietario, poseedor, tenedor o
responsable directo o indirecto de la administración de un inmueble rural situado en las
“Zonas de Seguridad” de frontera podrá suscribir contrato alguno vinculado a su
explotación, uso, goce o tenencia, sea por el titulo que fuere, con persons que no sean
paraguayas.
180
Art. Los escribanos públicos o quienes ejerzan funciones, notariales no podrán autorizar
escrituras de transferencia de dominio de inmuebles situados dentro de las “Zonas de
Seguridad” ni de contrato alguno que implique su explotación indirecta, sin la previa y
fehaciente comprobación de la naconalidad paraguaya de la persona natural o de los
integrantes de la persona jurídica adquirente. La escritura mencionara los documentos
mediante los cuales se haya acreditado la nacionalidad.
Art. 10º La Drección de Impuesto inmobiliario en colaboración con el Instituto de
Bienestar Rural procede al catastro de todos los inmuebles situados en las “Zonas de
Seguridad”. D’icho catastro estará permanentemente a disposición de las Fuerzas Armadas
de la Nación para los fines de la defensa nacional.
Art. 11º Las boletas de pago de impuesto inmobiliario y los certificados de registro
catastral de los inmuebles situados en las “Zonas de Seguridad” llevarán impreso un sello
con la leyenda “Zona de Seguridad”.
Art. 12º El Registro General de la Propiedad no procederá a la inscripción de ninguna
escritura traslativa de dominio hecha en contravención con lo dispuesto por esta ley 854.
Art. 13º Sin perjuicio de las facultades del Congreso Nacional, el Instituto de Bienestar
Rural, por si o por intermedio de la Comisión Nacional de “Zonas de Seguridad”, podrá
solicitar la expropiación de los inmuebles cuyos propietarios no cumplan con los dispueste
por el Art. 62 de la presente ley.
Art. 14º Las indemnizaciones de los inmuebles expropiados conforme al artículo serán
aboandas de acuerdo con lo dispuesto por el artículo 156 del Estatuto Agrário (Ley 854).
Art. 15º Los gastos que demande el funcionamento de la Comisión Nacional de Zonas de
Seguridad, serán previstos en el Presupuesto de Gastos de la Nación.
Art. 16º El Poder Ejecutivo reglamentará la presente ley dentro de los sesenta días de su
promulgación.
Art. 17º Comuníquese al Poder Ejecutivo.
Dada en Sala de Sesiones de la Honorable Cámara de Senadores de la Nación, a los diez y
nueve días del mes de diciembre del año un mil novecientos ochenta y nueve.
Alberto Nogués
Presidente de la Cámara de Senadores
Gustavo Díaz de Vivar
Secretario Parlamentario
181
182
183
184
185
186
Autorizo a reprodução parcial e/ou integral deste trabalho.
Dourados, _______de______________de 2008.
____________________
Leandro Baller
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo