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André Luiz Portela Martins Filho
A MEMÓRIA CÓSMICA:
GÊNESE DA POÉTICA MANOELINA
Rio de Janeiro, 2º semestre de 2008
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A MEMÓRIA CÓSMICA:
GÊNESE DA POÉTICA MANOELINA
André Luiz Portela Martins Filho
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do título de Mestre em Letras
Vernáculas (Literatura Brasileira).
Orientador: Prof. Doutor Ronaldes de Melo e
Souza
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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??? MARTINS FILHO, André Luiz Portela.
A memória cósmica: gênese da poética manoelina /
André Luiz Portela Martins Filho. Rio de Janeiro, 2008.
100 f.:
Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, 2008.
Orientador: Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza
1. Literatura Brasileira. 2. Manoel de Barros.
3. Letras Vernáculas – Teses.
I. Souza, Ronaldes de Melo e (Orient.). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de
Letras. III. Título.
CDD: ????
A memória cósmica: gênese da poética manoelina
André Luiz Portela Martins Filho
Orientador: Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas
(Literatura Brasileira).
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza
_________________________________________________
Profa. Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens – UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Antônio José Jardim e Castro– UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto – PPG Ciência da Literatura – UFRJ, Suplente
_________________________________________________
Prof. Doutor Manuel Antonio de Castro – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
A meus pais, que me deram (a)o mundo.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por ter
fomentado a realização de um sonho;
Ao Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza, pela liberdade e confiança em mim
depositadas durante a orientação de meus estudos;
Aos meus pais, pela insistência quando ousei vacilar;
A Alê, minha irmã, responsável pelo meu despertar para a língua portuguesa e suas
literaturas;
Aos queridos amigos e amigas, verdadeiros irmãos nessa jornada sobre a terra, pela
compreensão;
Às demais pessoas que deram sentido a este sonho, mesmo sem sabê-lo, ou, sabendo, não
mais se encontram próximas.
Tudo o que não invento é falso.
(Manoel de Barros)
1
Naquele tempo de dantes não havia limites
para ser.
(Manoel de Barros)
2
Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das
coisas, antes delas acontecerem...
(João Guimarães Rosa)
3
1
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 11.ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.67.
2
____. Retrato do artista quando coisa. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.77.
3
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Círculo do Livro, 1986, p. 25.
RESUMO
MARTINS FILHO, André Luiz Portela. A memória cósmica: gênese da obra manoelina.
Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
O estudo que se empreende versa sobre a questão da memória, na obra de Manoel
de Barros, como um componente inventivo. Nota-se uma diferença entre uma memória de
história e uma memória de cosmos. Na poesia manoelina, a memória apresenta uma
peculiaridade que a distancia da memória geral. Trata-se de uma memória criativa,
cosmogônica que inventa a própria poesia. As forças imaginantes criam, ao mesmo
tempo, o novo e o profundo e anterior. O puro relato decompõe, enquanto a memória
poética gera. O principal objetivo da dissertação reside na natureza da criação literária
moldada pela poesia de Manoel de Barros. Toma-se, como preocupação maior, a
investigação da gênese dessa poesia cósmica, destacando-se as cinco temáticas geradoras
de sua poética : memória, infância, terra, (meta)linguagem e inutilidades . A fim de
conhecer o processo e o sentido cosmogenético da poesia de Manoel de Barros, o método a
ser utilizado será o da hermenêutica . A principal fonte hermeneuta a que se recorreu
foram as teorias filosóficas de Gaston Bachelard. A memória, se criativa, restaura a poiésis
e instala um novo cosmos. Em Manoel de Barros, a memória é o princípio, a gênese de um
cosmos que se arraiga no nada.
ABSTRACT
MARTINS FILHO, André Luiz Portela. A memória cósmica: gênese da obra manoelina.
Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
The study which undertakes turns to the question of memory, in Manoel de
Barros` work, as an inventive component. There is a difference between a memory of
history and a memory of cosmos. In Manoel`s work, memory presents a peculiarity that
keeps it far from the general memory. This is a creative memory, cosmogonical - that
invents its own poetry. The imaginative forces creates, at the same time, the new and deep
and previous. The pure report decomposes, while the poetic memory generates. The main
objective of the dissertation resides in the nature of the literary creation shaped by Manoel
de Barros` poetry. Takes up, as major concern, the investigation of the genesis of that
cosmic poetry, standing out the five thematic creators of its poetic: memory, infancy, land,
(meta)language and inutilities. In order to know the cosmogenetic process and sense of
Manoel de Barros` poetry, the method being used will be of the hermeneutics. The main
hermeneutist source which was called were the philosophical theories of Gaston Bachelard.
The memory, if creative, restores the poiésis and installs a new cosmos. In Manoel de
Barros, the memory is the beginning, the genesis of a cosmos in which deppen its roots into
the nothingness.
Sumário
1 Introdução 11
1.1 Breve nota sobre a crítica 14
2 Recordações poéticas 22
2.1 Poesia, fonte do ser – temáticas cosmogônicas 27
3 Memória, potência cósmica 33
4 (Meta)linguagem: despalavra 46
5 O berço das origens 57
6 A geopedagogia dos ensinamentos pelo chão 66
7 Inutensílios – refugo do utilitarismo 75
8 Pórtico; ou roteiro metapoético; ou Manoel por Manoel 84
9 Últimas palavras 88
10 Referências bibliográficas 93
1 Introdução
Filho legítimo da modernidade literária, cujos propagadores principais foram
Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud, Manoel Wenceslau Leite de Barros possui obra poética
de relevo no cenário da literatura brasileira (e mundial, diríamos, uma vez que algumas de
suas obras foram traduzidas para o francês Les paroles sans limites, de 2003 –, espanhol
Todo lo que no invento es falso, de 2003 –, inglês Para encontrar o azul eu uso
pássaros, livro de edição bilíngüe, de 1999 e até mesmo para o alemão Das Buch der
Unwissenheiten, em edição de 1996 da revista Alkzent). Nascido no ano de 1916, em
Cuiabá, Mato Grosso, Manoel de Barros inicia a publicação de sua obra em 1937, com
Poemas concebidos sem pecados, sempre com intervalos de tempo consideráveis entre as
datas de publicação dos livros, chegando a ficar 14 anos sem publicar novo título
(referimo-nos à distância cronológica entre Face imóvel, de 1942, e Poesias, de 1956). A
informação, por si, faz suspeitar do cuidado que o artista tem com a produção de seus
versos: é poeta meticuloso, que trabalha exaustivamente a palavra.
A modernidade pode ser contemplada sob vários pontos de vista; consideramos a
poesia manoelina
4
como exercício do pensamento moderno sob o ponto de vista do uso da
linguagem. Em sua obra, o enfoque não está na significação das palavras (ao menos não no
sentido usual), mas na construção poética e nos desdobramentos do significado. O artista
moderno tem o hábito de refletir sobre seu objeto estético; Manoel de Barros reflete sobre
a linguagem. continuidade, pois, à tradição da ruptura, inserindo-se na tradição
4
Sobre a opção pelo adjetivo manoelino(a): Andréa Serpa de Mendonça e Ricardo Alexandre
Rodrigues, em seus respectivos estudos, adotam o adjetivo barreano(a); Afonso de Castro usa
tanto a primeira quanto a segunda formas (utiliza barreano com maior freqüência); optamos por
manoelino(a), obedecendo aos versos do poeta, em que diz escrever em “idioleto manoelês
archaico” (Barros, 2004-b, p.43). Ambas as denominações, entretanto, estão corretas.
moderna do poeta-crítico da palavra. Ao se desdobrar em poeta crítico e teórico da própria
poesia, Manoel de Barros não pode deixar de recorrer à metalinguagem, ao metapoema.
O tema principal deste estudo é a função instauradora da memória na poesia de
Manoel de Barros. Trata-se de uma memória cósmica, poética, que se diferencia da
memória biográfica, que apenas rememora. O puro relato decompõe, enquanto a memória
poética gera, é cosmogônica. A memória cósmica, na obra manoelina, tem o condão de
trazer as coisas de suas ancestralidades enterradas nas origens para a vida do poema. A
partir deste tema principal, pensaremos a obra manoelina em outras quatro fontes temáticas
genéticas: (meta)linguagem, infância, terra e inutilidades. Dificilmente se poderá
estabelecer uma hierarquia entre os temas, e cada um deles merecerá capítulo à parte na
dissertação, sempre com a preocupação de estabelecer as relações de cada temática com as
demais. A obra de Manoel de Barros reclama este cuidado: todos os temas articulam-se na
poesia.
A questão da memória, portanto, é principal para o nosso estudo, por acreditarmos
que contribui para a crítica manoelina examinando um aspecto até então pouco
aprofundado; para a obra manoelina, a memória é tema que se iguala aos demais, não
possuindo soberania sobre nenhum outro. Para abordar os cinco temas, guiar-nos-emos
principalmente pelos ensaios do filósofo Gaston Bachelard (em especial, A poética do
devaneio e A intuição do instante) e do ensaísta Ronaldes de Melo e Sousa (com o ensaio
“A criatividade da memória”). Nos textos de ambos os pensadores encontramos
observações com as quais concordamos e julgamos serem adequadas ao presente estudo.
Feitas as advertências necessárias, cumpre ressaltar o cuidado com o texto poético.
Estamos diante de uma poesia que deixa o leitor desorientado, que não fornece referências
por onde o leitor possa se escorar, se amparar, diante do delírio da palavra. É o exercício
da língua que foge do costumeiro, e não se pode classificar aquilo que foge aos padrões da
normalidade (classificar é comparar; com o que o leitor poderia comparar a poesia
manoelina?). A obra de todo grande autor requer leitura própria, viés específico. Manoel
de Barros, nome celebrado pela crítica mais séria e douta, não pode ser compreendido
senão por sua própria poesia, i.e., a poesia manoelina orienta sua própria leitura. Nas
palavras de Antonio Houaiss, na introdução a Arranjos para assobio, de 1982: a poesia
de Manoel de Barros tem a sua máxima expressão na poesia de Manoel de
Barros.” (Barros, 1982, p.10). O escopo teórico faz-se oportuno na medida em que
enriquece aquela leitura, desdobrando-se em outras. Contudo, é necessário refrear o uso
excessivo das teorias, evitando o agravo à palavra inaugural de Manoel de Barros, tão
refratária ao racionalismo, com o risco de nos afastarmos daquilo que nos move – a poesia.
Tomemos o sábio ensinamento do verso drummondiano: Não nos afastemos muito,
vamos de mãos dadas.” (Andrade, 2004, p.158). Prossigamos, pois, ladeando a poesia.
1.1 Breve nota sobre a crítica
De acordo com o que registra Afonso de Castro, em A poética de Manoel de
Barros: a linguagem e a volta à infância (sobre o qual se falará adiante), de 1991, as
primeiras manifestações da crítica acerca da obra do poeta mato-grossense têm início a
partir de 1988. São artigos específicos, publicados em jornais e revistas, com o intuito
jornalístico de divulgação. Por se destinarem a um público de certa forma amplo e
variado, abordam o fazer poético manoelino em linguagem acessível, sem ousados vôos
críticos, sendo, muitas vezes, repetitivas as observações. A esta época, a obra de Manoel de
Barros era alheia à grande massa; hoje, embora sua obra não se tenha massificado
(felizmente, talvez, e dificilmente tal poesia meticulosa e trabalhada alcançaria uma
compreensão massiva), é já amplamente conhecida e reconhecidamente notória. Os críticos
de outrora, desbravadores, tiveram acesso a um projeto poético ainda em formação. É bem
certo que a maturidade poética de Manoel de Barros se evidencia, principalmente, a partir
de 1974, com Matéria de poesia, e muito provavelmente a crítica não se encontrava ainda
preparada para compreender o esplendor e a singularidade de sua poesia. Os grandes
poetas estão sempre um passo adiante de seu tempo, de modo que serão estudados pela
crítica futura. Por fim, convém ressaltar, lembra-nos Afonso de Castro, o trabalho de
alguns críticos, a saber, o de Ana Accioly, de Berta Waldman e de Sérgio Rubens Sossélla,
que, em suas notações, “foram além dos objetivos primeiros dos artigos dar informações
e aventuraram a aprofundar a sua crítica, estabelecendo parâmetros mais originais e
pontos de vista como hipóteses de leituras da obra de Manoel de Barros.” (Castro, 1991, p.
62).
O estudo monográfico pioneiro, assim nos parece, foi o de José Fernandes,
publicado em 1987, intitulado A loucura da palavra. Creditando à poesia manoelina
características de uma estética madura e aguçada, Fernandes identifica imediatamente na
potência poética da palavra (i.e., a “loucura da palavra”), três aspectos ímpares de sua
poesia: a organização singular das idéias, o lide com a linguagem e a preocupação em
registrar sua poética (metalinguagem). Partindo da linguagem, o crítico destaca o exercício
imagético manoelino, centrado, segundo crê, no cromatismo. Parece acertar, em alguns
momentos, ao observar que a imagética trabalhada através da cor é, na poesia de Manoel
de Barros, um rico processo de revitalização da língua, do léxico. Entretanto, o viés crítico
de Fernandes procura equiparar a obra manoelina com o projeto estético-artístico de 1922,
de modo que tende a enquadrá-la dentro de um tipo de regionalismo literário (por repetidas
vezes, Fernandes parece ler nosso poeta à luz de Cassiano Ricardo, tão recorrentes que são
as citações que faz deste). Assim, partindo de uma noção de telurismo cromático, chega à
concepção de um tropicalismo telúrico. Embora seja inegável que, na obra manoelina, “o
artista se valha da natureza e das tradições locais” (Fernandes, 1987, p.12), nota-se a
exasperada preocupação de ler Manoel de Barros com a lupa do Modernismo.
O grande exagero descompassado que José Fernandes comete, parece-nos, é a
aproximação forçada do poeta à estética surrealista, ao dizer que o processo poético
manoelino “alia à técnica cubista os princípios estéticos surrealistas referentes à realidade,
quando cria imagens explosivas que visam a ultrapassar a gratuidade do mundo com sua
lógica e suas leis (i) racionais.” (Fernandes, 1987, p.20). Obstinado, o crítico vai ao
extremo: “Conhecedor profundo dos filetes estéticos do modernismo, filia-se ao
surrealismo (...)” (Fernandes, 1987, p.24). Sem compreender talvez o onirismo poético da
palavra manoelina, entende que sua poesia apresenta uma visão surreal da realidade. Ora,
será que existe arte verdadeiramente fiel ao real, mimética a ponto de sê-lo? Em certo
sentido, toda arte é su-real, pois é um novo real, reordenado a partir do original. Maurice
Joyeux, em ensaio intitulado “O surrealismo em questão”, chama atenção para um quadro
mais abrangente:
Estaríamos tentados a escrever que o procedimento intelectual, cujo fruto será o
surrealismo, teria sido um procedimento clássico no avançar das idéias, no
decorrer da história, se o surrealismo não tivesse escolhido, num determinado
momento, romper com o sistema econômico, político, social e moral, cuja
expressão cultural havia sido até ele, o prudente apaziguador. (Coêlho, 2001, p.
27).
Desvincular o surrealismo do contexto político, colhendo dele apenas o apelo
estético, parece-nos tendencioso. Manoel de Barros, assim como os surrealistas, esnoba o
racionalismo (o que, para os surrealistas, era, primeiramente, uma postura ideológica) e
investe no onirismo além de apresentar outros pequenos pontos de contato. Teria a obra
manoelina se abastecido de influências surrealistas? Em parte, sim, e este fato não faz de
sua poesia surrealista. Em outra parte, abasteceu-se do classicismo. Do romantismo. Dos
poetas árcades enfim, a literatura nutre-se de literaturas, de modo que o esquema de
referências é múltiplo.
Em alguns trechos, porém, José Fernandes se contradiz e, ao fazê-lo, acerta:
“Falar é fugir do nada. Através da linguagem o poeta cria realidades contrárias à lógica,
mas que possuem uma verdade: a de sua própria existência” (Fernandes, 1987, p.61). Criar
“realidades contrárias à lógica” pragmática não torna necessariamente surrealista a poesia.
Os acertos que o crítico faz surgem a partir do momento em que se vale das leituras de
Martin Heidegger. Quando abandona o homem e examina as coisas, confere mais
consistência às suas observações: “O poeta, no momento da criação, é um deus que infunde
vida às coisas através do nome.” (Fernandes, 1987, p.54). Ou, ainda, ao entender que a
essência da poesia manoelina “é a transmigração das essências das coisas.” (Fernandes,
1987, p.71). Ainda assim, como nota Afonso de Castro, Fernandes não domina a teoria
heideggeriana, e talvez por isso não se aprofunde nas questões do ser distanciando-se,
então, do poço poético de Manoel de Barros.
Na conclusão, reafirma e conclui sua intenção primeira, ou seja, examinar a obra
manoelina tendo-se como parâmetro o modernismo (em especial, o brasileiro), de forma a
enquadrá-la dentro da estética modernista, realçando-lhe forçosamente os tons surrealistas.
Toda leitura se faz a partir do aparato crítico que se tem às os; no caso de Fernandes,
seus óculos foram as teorias surrealistas (em nosso caso, serão as da hermenêutica); não
crítica que abarque a totalidade. Ressalvados os exageros, contudo, o estudo do professor
José Fernandes foi fundamental para o surgimento de novos caminhos para o estudo da
poesia de Manoel de Barros, particularmente o competente trabalho de Afonso de Castro.
Em 1991, surge, no meio acadêmico, A poética de Manoel de Barros: a linguagem
e a volta à infância, de Afonso de Castro, defendida como dissertação de mestrado na
Universidade de Brasília. A crítica da obra manoelina avança qualitativamente, em
trabalho de firme competência teórica que se utiliza, como fonte, das teorias hermenêuticas
de Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Gaston Bachelard bem como das
concepções de Paul Ricoeur sobre a metáfora. Não é apenas o domínio da teoria que
confere vigor ao estudo de Afonso, mas, principalmente, sua capacidade de ler a poesia
manoelina a partir dela própria entendimento de que a própria poesia estabelece os
roteiros de sua leitura. A grande conquista deste ensaio monográfico é a de investigar os
caminhos poéticos que definam a poética manoelina. Logo, parece-nos louvável o
resultado obtido, uma vez que Afonso não dispunha de Fortuna Crítica em que se pudesse
amparar; teve de desbravar nova rota, e, tratando-se de explicitar a poética de um autor,
encontrou pela frente intransponível Adamastor. Ao se propor a descobrir a poética
manoelina, obteve êxito explicitando as principais características da composição de sua
poesia.
Atento, Afonso de Castro identifica já em Poemas concebidos sem pecados (1937),
primeiro livro de Manoel de Barros, algumas das características estéticas que marcam sua
obra, tais como o aproveitamento engenhoso do linguajar corumbaense (em vocábulos
como “disremelar”, “disilimina”, “bigiando”, “disaprender”, etc.), a escolha de tipos como
crianças, loucos, exóticos, etc. e a presença da metáfora como ferramenta de trabalho do
poeta. Aponta certeiramente, acreditamos para a existência de metáforas-gérmens
recorrentes ao longo de sua obra posterior. A função particular da metáfora na obra
manoelina mereceu importante capítulo em seu trabalho, no qual soube mostrar a relação
genética entre a metáfora e a imagem na estruturação da poesia a metáfora como tensão
entre identidade e diferença durante a criação poética, veículo da imaginação inaugurando
o novo, no esplendor da imagem, aurora da palavra: “Tudo depende da imaginação para
poder ver a diferença e produzir-se um sentido novo.” (Castro, 1991, p.80).
Todavia, é ao abordar o poder instaurador da palavra e o retorno à infância que o
estudo de Afonso de Castro define seus contornos de louvor. Preocupado com a
linguagem, o ensaísta destaca com minúcias o processo criativo por meio das palavras
comuns, das criações vocabulares, seja por paradigmas (“olhoso”, “pedral” e “vespral”, por
exemplo, em que se vale do paradigma da derivação sufixal para constituir tais palavras),
por associações sinestésicas (“amareluz”, “anubranco”) ou por livre inovação vocabular
(como em “boquiabriu-se”, “peschibeque”) – ou, ainda, por “aderências” às palavras, a fim
de captar-lhes o encantamento e fluir suas essências. O poeta inaugura a agramaticalidade
como possibilidade de revitalização lúdica da linguagem.
O crítico parece encontrar o sentido da poética manoelina na medida em que
reconhece em seus temas variações do mesmo, o encantamento da palavra inaugural:
“Transforma-se em poeta de um tema: a palavra a ser inventada e, com ela, toda a
realidade.” (Castro, 1991, p.12). na palavra, realmente, a fonte do ser; contudo e
apesar de que todos os temas da poética manoelina se apresentem de fato como espécies de
variações deste mesmo tema –, outros temas igualmente importantes em sua obra, que
serão discutidos mais adiante. O poeta ausculta o emergir das palavras, nomeando o ser nas
coisas emergentes, conferindo-lhes presença na vida do poema. Em contato com o cosmos,
a matéria enérgica atravessa a voz poética da poesia manoelina, tomando corpo pela
palavra. A palavra é original e originante. Neste processo, a nadificação se faz necessária
para constituir o deveniente: “Ninguém é pai de um poema sem morrer” (Barros, 1982, p.
23). O poeta, pai do poema, precisa descer ao nada para o acontecer poético. Assim, torna-
se necessário dizer com Bachelard: “Não poesia anterior ao ato da palavra poética. Não
realidade anterior à imagem literária.” (Castro, 1991, p.104). Manoel de Barros,
encantador de palavras, comunga da visão a partir do horizonte das coisas, pois “o que
desabre o ser é ver e ver-se.” (Barros, 2003-d, p.23). Chega-se, então, à descoberta maior
de Afonso de Castro, revelação principal de seu estudo: “Atingir a linguagem inaugural é o
objetivo poético de Manoel de Barros.” (Castro, 1991, p.142).
Sobre a palavra, de se destacar ainda a relevante observação que o ensaísta faz
sobre dois processos de utilização da linguagem na obra manoelina: os arquissemas e as
gags. Os primeiros são “palavras ancestrais que poderosamente lhe comandam o
subterrâneo de seu ser. São mais ou menos as seguintes: Parede, árvore, sapo, lesma,
antro, musgo, boca, , água, pedra e caracol.” (Castro, 1991, p.144-145). Já as gags, são
molecagens do idioma, espécies de piadas poéticas, de humor imagético. Nas palavras do
próprio Manoel de Barros: “gags são alegres sandices cometidas com imagens. Eu faço
gags com as palavras.” (Barros, apud Castro, 1991, p.145). Exemplo de gags: “Lagartixas
têm odor verde.” (Barros, 2004-d, p.29).
Se a palavra é fulcral para o poeta, a infância, contato primeiro com a linguagem,
não poderia deixar de sê-lo, igualmente. Deslumbramento na contemplação do mundo pela
primeira vez, lugar/tempo ideal da vida, a infância é, ao mesmo tempo, a revitalização do
presente e o mergulho na ancestralidade. É o berço das origens, ou, como menciona
Ronaldes de Melo e Souza: “A infância é a potência poética do homem (...) A infância
permanente é a garantia da poesia da vida (...)”. (Souza, apud Castro, 1991, p.176). O
retorno à infância, potência cósmica de todas as possibilidades, permite uma
cosmicização do homem e uma humanização do universo.” (Castro, 1991, p.178).
A partir do tema da infância, portanto, Afonso de Castro traça o elo invisível entre
infância e palavra, em que a infância é a verdadeira matriz da linguagem. Parece-nos,
assim, uma observação atenta ao fazer poético de Manoel de Barros, uma vez que o retorno
às origens, em sua obra, é a origem das coisas; a transubstanciação das coisas e dos seres
tem na infância seu manancial, raiz liquida. Afonso aponta, com Bachelard, para o poder
da inocência no arquétipo da infância, esplendor maravilhado do onirismo mágico,
instauração incessante de novas imagens, de um novo cosmos: “Só a inocência, como
estado de beatitude, desprezível aos preocupados homens em conquista da vida, instaura o
mundo sonhado pelo poeta.” (Castro, 1991, p.187). Palavra e infância, então, apresentam-
se indissociáveis na obra do poeta mato-grossense. Adiante retomaremos alguns
apontamentos de Afonso – em especial, um ponto com o qual concordamos: a memória, na
obra manoelina, não lembra fatos históricos.
Por fim, Afonso de Castro conclui que a evolução poética de Manoel de Barros tem
na palavra o centro e o substrato de seu motivo de ser. A princípio, ao se referir aos
primeiros livros do poeta, o estudioso fazia menção, constantemente, a um projeto poético.
Foi competente, no decorrer do estudo, ao identificar, com a publicação de Arranjos para
Assobio, de 1982, a consolidação da poética manoelina. Soube, inclusive, rastrear com
acerto os futuros passos da poesia manoelina (publicada após 1991), de modo que seus
apontamentos são atualíssimos, podendo ser notados inclusive no último livro do poeta,
Memórias inventadas: a segunda infância, de 2006 (cronologicamente, livro mais
recente, Poeminha em língua de brincar, de 2007; contudo, Memórias é livro mais
relevante). Crítico atento e minucioso, Afonso não deixa de condenar, implicitamente, no
último parágrafo de seu estudo, a insistência catalográfica de José Fernandes para com o
surrealismo: “O presente trabalho não teve a finalidade ou pretensão de querer relacionar o
poeta Manoel de Barros a qualquer outro poeta nacional, a correntes poéticas ou a
movimentos literários contemporâneos.” (Castro, 1991, p. 215). Afirma e concordamos
que Manoel de Barros é único, e sua obra não aceita rótulos ou agrupamentos forçados.
Sua força vigora pela originalidade, pela diferença – indiferente às correntes literárias.
O referido estudo, pelo acima exposto, abriu caminho para estudos mais maduros,
mais atentos às peculiaridades da poesia manoelina, à metapoética do autor. Não se encerra
aqui a Fortuna Crítica da obra de Manoel de Barros; porém, acreditamos que os referidos
estudos são os mais dignos de notao de José Fernandes, pelo pioneirismo, e o de Afonso
de Castro, por desvendar os alicerces da poética manoelina, pondo em foco questões
originais por meio de observações tão justas que ainda hoje não foram superadas.
2 Recordações poéticas
O verso inaugural de Poemas concebidos sem pecado (1937) funda o processo
poético de Manoel de Barros, batizando o nascimento de “Cabeludinho”
5
, uma
representação mnêmica de uma infância inventada:
Sob o canto do bate-num-quara nasceu Cabeludinho
bem diferente de Iracema
desandando pouquíssima poesia
o que desculpa a insuficiência do canto
mas explica a sua vida
que juro ser o essencial
- Vai desremelar esse olho, menino!
- Vai cortar esse cabelão, menino!
Eram os gritos de Nhanhá. (Barros, 2005, p.9).
Em livro recente portanto, distanciado no tempo em relação ao de 1937 -,
intitulado Memórias inventadas: a infância (2003), a figura de “Cabeludinho” retorna em
texto homônimo (espécie de prosa poética), juntamente com outras fabulações de um
tempo anterior:
Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos:
Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que
eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu.
Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de
palhaço. Minha avó entendia de regências verbais. Ela falava de sério.
Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer
de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a
beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento
de rir. De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina
esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo
trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a
brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não
gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar.
5
Afonso de Castro informa, inclusive, que o primeiro livro de Manoel de Barros, cujo título
conhecido é Poemas concebidos sem pecado, teve por título, inicialmente, Cabeludinho (Castro,
1991, p.19).
Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo
que elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade:
Ai morena, não me escreve / que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao
verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro. (Barros, 2003, p.37).
O episódio da avó (Nhanhá) que “fantasia” o neto de ateu, a partida de futebol em
que se encena o inusitado neologismo e a cantiga do vaqueiro (cujo nome – Cláudio – pode
inferir o leitor que cotejar ambos os livros) encontram-se presentes, cada qual, em
diferentes poemas de Poemas concebidos sem pecado. Os episódios são agora
reencenados, e o vínculo factual com a realidade é desautorizado na epígrafe destas
Memórias inventadas: “Tudo o que não invento é falso” (outro dialogismo interno, uma
vez que o verso se encontra em Livro sobre nada, de 1996). Sem nos esforçarmos em
busca de originalidade, aceitamos a lição do mestre português: “o poeta é um
fingidor” (Pessoa, 1977, p.164).
A questão da memória, como se começa a perceber, apresenta-se na obra de
Manoel de Barros em um sentido que ultrapassa o senso comum. Não se trata da memória
que rememora um episódio vivido. Segundo o entendimento aqui adotado, a rememoração
é partícula, composição minúscula da memória em sua poesia. Seria mais oportuno
entendê-la, a memória, como uma espécie peculiar: a recordação poética é invenção,
imaginação. Para ser mais apropriado a um estudo da poesia de Manoel de Barros, busca-
se entender que o pensamento imaginário resulta da produção de encantamentos. A
estruturação da realidade interna da poesia manoelina leva em consideração o poder do
encantamento, apoiando-se assiduamente nas percepções e reminiscências externas sem,
com isso, distanciar-se totalmente do real (a função anímico-poética do encantamento
expõe-se com maior acuidade ao leitor em Ensaios fotográficos, de 1998). A imaginação é
elemento imanente à composição artística (em especial, no caso da poesia), de modo que
associá-la ao estruturar-se de uma outra realidade a do objeto artístico tornou-se uma
assertiva freqüente nos discursos da Crítica. Todavia, a ressalva sensível ao poder mágico
da poesia consiste num aspecto característico da poética do mato-grossense Manoel de
Barros. Aquilo que é conservado pela memória (os núcleos de infância, para Bachelard
6
)
está em comunhão íntima com uma (re)criação desta memória a partir da
imaginação/invenção: a transformação da realidade e a formação das (novas) imagens. Nas
palavras de Manoel de Barros a seu editor: “Quando falei um dia que não seria capaz de
continuar as Memórias Inventadas com as partes da mocidade e da velhice, falei que era
porque eutive infância! (...) Porque me abasteço na infância e minha palavra é Bem-de-
raiz e bebe na fonte do ser”
7
(contracapa de Memórias inventadas: a segunda infância, de
2006). Fonte, nascedouro, jorro cosmogônico da memória, da palavra, da poesia de tudo.
A infância é o instante poético cristalizado, fragmento puntiforme de uma memória
cósmica capaz de dinamizar toda uma poética. Distanciado no tempo pela cronologia do
relógio em relação à infância, sob o olhar encantado do poeta, está próximo até mesmo das
ancestralidades primitivas, pois “Quem se/ aproxima das origens se renova.” (Barros,
2006-a, p.59). Beber na infância, fonte do ser, é a garantia de uma poesia encantada pela
magia da palavra poética, cosmogônica.
Nota-se uma diferença entre uma memória de história e uma memória de cosmos.
Não se trata de observações feitas pelo biógrafo, registros datados no espaço-tempo, à
revelia da dinâmica mnêmica. A memória de cosmos é incapaz da rememoração
cronológica: “Um dia Nhanhá Gertrudes fazia bolo de arroz./ Negra Margarida socava
6
Na Poética do devaneio, em capítulo sobre “Os devaneios voltados para a infância”, Gaston
Bachelard procura mostrar como o devaneio poético se vale da infância para (re)criar memórias.
Para o filósofo, o poeta é uma criança solitária, que se isola para encontrar no fundo de si a origem
das origens. (Bachelard, 2006, p. 94).
7
Também na Poética do devaneio, Bachelard menciona que “a infância é o poço do ser” (Id., p.
109).
pilão./ E eu nem sei o que fazia mesmo.” (Barros, 2005, p.40). Não certeza factual, de
modo que a veracidade histórica dos acontecimentos não importa e nem pode ser
comprovada. O fato, na memória de cosmos, é fluido. Éter! Na obra de Manoel de Barros,
portanto, a memória apresenta uma peculiaridade que a distancia da memória geral. Seja a
memória (inventada) do eu”, seja a das coisas e dos seres, seja a da terra ou mesmo a da
própria memória, em sua poesia, a memória é criativa, cosmogônica e inventa a própria
poesia: “Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que/ são inventadas.” (Barros,
2004-b, p.69). As forças imaginantes criam, ao mesmo tempo, o novo e o profundo e
anterior. É sempre uma potência criativa na obra de Manoel de Barros, memória da
imaginação, e aglutina o que passou e o que virá (presentificado no vir-a-ser do poema).
Simultaneamente, a memória instaura a palavra, a palavra instala a memória: “Nunca
morei longe do meu país./ Entretanto padeço de lonjuras” (Barros, 2003-a, p.49). A
inventividade mnêmica da palavra manoelina reflete uma necessidade por lonjuras
primitivas, que a biografia do homem por trás do poeta não registrou, pois dorme no poço
do homem, na infância coletiva e anônima. Curiosamente, os versos citados são de poema
intitulado “Doença”, em que assume seu olhar para as coisas rentes do chão e perdidas na
memória órfã das origens como um exílio da morada racionalista do ser, como busca da
memória cósmica. A memória como fundamento cósmico de uma obra de arte é o que
ressalta a função poética de seu discurso. O puro relato decompõe, enquanto a memória
poética põe em estado de geração contínua e daí se compreende que episódios como os
de Cabeludinho “fantasiado” de ateu possam ressurgir de forma diversa na obra de um
mesmo autor, porque em incessante recriação. Além disso, a cada nova obra o poeta morre,
como anunciam os versos do poema “Auto-retrato”, de Ensaios fotográficos (2000):
“Depois eu morri 14 vezes./ (...) Escrevi 14 livros” (Barros, 2003-a, p.45). E a cada obra
renasce: “São todos repetições do primeiro.” (Id., ibid.).
2.1 Poesia, fonte do ser – temáticas cosmogônicas
O principal objetivo do nosso estudo reside na natureza da criação literária moldada
pela poesia de Manoel de Barros. Toma-se, como preocupação maior, a investigação da
gênese dessa poesia cósmica, destacando-se as cinco temáticas geradoras de sua poética:
memória, (meta)linguagem, infância, terra e inutilidades. Chamamos de inutilidades as
miudezas, os inutensílios poético-telúricos, as insignificâncias e desimportâncias
privilegiadas ao longo de sua obra, tais como pregos, latas, brejos, pedras, estrumes,
mendigos, liquens, índios bugres, etc. Todos seres de miúda importância para o mundo
pragmático dos homens.
Ao reconhecer os temas, procura-se não estabelecer hierarquias, uma vez que todos
eles se apresentam inter-relacionados e de modo que nenhum dos temas possui
autonomia absoluta (ainda assim, porém, a simples enumeração dos temas implica uma
relação valorativo-hierárquica.). Uma análise estanque de cada tema soa empobrecedor.
Antes, porém, procura-se agregar os cinco temas, uma vez que exploram resoluções
diferentes para um mesmo impulso criador.
As temáticas voltadas para a terra e miudezas envolvem forças germinativas
materiais. Suscitam nas palavras de José Américo Motta Pessanha, em “Bachelard: as
asas da imaginação”, estudo introdutório a O direito de sonhar, de Gaston Bachelard as
“quatro raízes ou elementos primordiais que Empédocles de Agrigento apontava como as
quatro grandes províncias-matrizes do cosmos: o ar, a água, a terra, o fogo.” (Pessanha,
1991, p.xiv). Quando da verificação de tais temas, será de extremo relevo para nosso
estudo a contribuição dada pelas teorias de Bachelard acerca da imaginação material. A
fim de conhecer o processo e o sentido cosmo-genético da poesia de Manoel de Barros, o
método a ser utilizado será o da hermenêutica. As duas principais fontes hermeneutas a que
se recorrerá serão as teorias filosóficas de Gaston Bachelard e o ensaio “A criatividade da
memória”, de Ronaldes de Melo e Souza (que nos será fundamental para o entendimento
cósmico e telúrico da memória).
A teoria filosófica fulcral em que se apoiará a dissertação será a do hermeneuta
Gaston Bachelard. Afastando-se da concepção bergsoniana, Bachelard compreende a
matéria como força vital e de elementaridade energética. Posiciona-se à distância do
primado racionalista e ocupa-se da constituição poética do devaneio humano. Este filósofo
procura entender o devaneio como uma fuga para fora do real, para um novo universo
regido por leis próprias. Neste sentido, o devaneio é poético e cósmico, atemporal e
anônimo (daí se poder equiparar o sonho da criança ao devaneio dos poetas). Bachelard
aproveita para suas teorias o rendimento poético da memória, da terra e da infância – o que
reforça a importância de seus apontamentos para o presente estudo. Segundo o hermeneuta,
o cosmo antecede o homem (por isso, uma memória cósmica/poética não tem data e é
anônima; decorre daí não se poder entendê-la como rememoração). Destacam-se, ainda, o
papel da imagem e o da imaginação na poesia. Enquanto uma imagem poética pode ser o
germe de um mundo, a imaginação tem sua importância, para Bachelard, na medida em
que existe como processo criador. A imaginação opera a imagem. Pode-se entender que, na
criação poética, a consciência imaginante está relacionada à criatividade da memória.
O referido estudo do professor e ensaísta Ronaldes de Melo e Souza nos pareceu de
fundamental e inovadora relevância para um exame da gênese da poética manoelina. Nesse
ensaio, Ronaldes recupera, via tradição helênica (e pré), a conexão entre cultura, culto,
mito, memória e criação. Distanciando-se da memória que rememora (como bem entende o
senso comum), o ensaísta repara (n)o poder de ampliação criativa que o mito opera ao
atualizar a memória. A memória, se criativa, restaura a poiésis e instala um novo cosmos.
Em Manoel de Barros, a memória é o princípio, a gênese de um cosmos que se arraiga no
nada.
Ainda no mesmo ensaio, o exame da Teogonia, de Hesíodo, e do Hino a Zeus, de
Píndaro, permite contemplar a filiação da memória. O ensaísta aponta para duas
genealogias: segundo uma delas, Gaia (a origem de tudo), contrai núpcias com Ouranos,
gerando Mnemósyne e das núpcias de Mnemósyne e Zeus surgem as Musas; conforme a
outra, as Musas são telúricas, forças germinativas da natureza e, portanto, anteriores às
Musas Olímpicas. Ronaldes demonstra como os étimos possíveis da palavra “musa” são as
raízes mons (Monte) e men/mon (Memória). Após detalhada argumentação, conclui que o
sentido mais coerente é aquele que remonta à Calipso, à gruta originante. Se se pode
relacionar intimamente memória, musa e terra, não como não pensar em Manoel de
Barros cujo processo poético é marcado por uma cosmo-gênese ontológica. Uma
cosmologia só é possível porque existe uma gestação caótica (escondida na gruta, na terra),
uma deformação que se enforma na sua constituição. A memória, na poesia manoelina,
vem do poço do ser, vem do fosso do ser da gruta do ser. É telúrica, por isso cósmica:
“Nas minhas memórias enterradas/ Vão achar muitas conchas ressoando...” (Barros, 2006-
b, p.65).
Os temas da memória e da infância (em consonância direta), portanto, serão
debatidos no bojo dos textos críticos citados. o tema da palavra, da (meta)linguagem,
será aquele que melhor articulará os demais temas, uma vez que o devaneio da palavra é a
origem da poesia. Ao tratar de cada tema, se estará tratando do tema da linguagem, uma
vez que seria improvável entender as entidades cósmicas do poema sem reparar na força
germinativa do verbo.
As imagens da terra e da infância estão ligadas à intimidade de dentro (um interno
anterior e cosmogônico). Com isso, deve-se explorar a relação entre imagem e imaginação
entre a criação e sua materialidade. A imagética da poesia de Manoel de Barros merece,
portanto, atenção especial. Não se pode pensar em poesia sem antes pressupor uma
linguagem poética. Ou, ainda: Não se pode saber sem pressupor.” (Souza, 2001, p.10).
Assim como a imagem, a palavra poética é instauradora. Em Manoel de Barros, encontra
suas origens dentro e antes, em plumagens e infâncias que dormem num caos a ser
cosmificado. O vir-a-ser deste cosmos, no caso da linguagem, é, em si, a própria
constituição da poesia, con-fundindo-se constituinte e constituído. O berço caótico e
silencioso da palavra é o nada, som que ignora surdamente a grandiloqüência dos grandes
temas da poesia, pois não toca harpas, “Só uma viola quebrada/ Surda como uma porta/
Mais nada.” (Barros, 2005, p.69).
Além das teorias críticas mencionadas acima, os pensamentos filosóficos de Martin
Heidegger poderão ser oportunos na medida em que sua filosofia hermenêutica pensa o ser
em seu des-velamento, num sentido de retorno à essência do ser, de encantamento e
revelação (e, pode-se dizer, de surgimento, vir-a-ser). Heidegger concede especial atenção
aos silêncios originantes do discurso (o ente se realiza no discurso) e da linguagem daí
ser possível crer que sua filosofia está em consonância com a poesia cósmica de Manoel de
Barros. Para o filósofo, no lide com linguagem desvenda-se o ser das coisas. Em Manoel, a
linguagem converte o ser das coisas.
Uma vez mais, insistimos: pretende-se evitar uma concepção da memória como
rememoração. Ler a poesia que trata da memória como recordação do vivido é desconhecer
sua natureza poética. É mesmo difícil crer na reprodução fidedigna e irretocável que a
recordação que rememora pode fazer de uma realidade vivida; convém destacar, ainda, a
falta de acordo com que boa parte dos estudos da crítica voltada ao tema trata do
biografismo (em sua maioria, destinada a obras de ficção). Deve-se, ainda, evitar uma
aproximação exagerada da poesia de Manoel de Barros com a poesia surrealista, como
José Fernandes parece fazer em A loucura da palavra (1987). A rigor, toda obra se arte se
alça para além do real. No caso do poeta mato-grossense, há uma originalidade na gestação
da realidade poética que se afasta da estética surrealista. Não se pode esperar de uma obra
verdadeiramente poética que ela não reestruture a sintaxe e a semântica das coisas, dos
sentidos e do real.
O estudo que ora se inicia sobre a obra de Manoel de Barros parte do inconteste
pressuposto de que a obra cria a sua própria poética. Ou seja: cada obra cria os parâmetros
que regulam a sua existência. Ou, ainda: toda obra elabora os roteiros teóricos de sua
interpretação. Assim, cremos que se deve encontrar na poesia de Manoel de Barros
argumentos que justifiquem as interpretações da obra manoelina (novamente, explica-se o
viés predominantemente hermenêutico de nosso exame). Ampliando-se esta observação
para uma macro-leitura, pode-se pensar na obra como uma metapoética da poética.
Em nenhuma outra poesia a natureza, os pássaros, os pregos, os ciscos, os nadas
etc. adquirem uma dimensão ontológica como na de Manoel de Barros. Como o canto de
Orfeu, o encanto da poesia manoelina desperta a vida que fervilha enraizada nos subsolos
de suas existências. O deslumbramento das origens multiplica a vida nas coisas, exilando-
se da morada histórico-racionalista do homem.
O princípio criativo-imaginativo enforma imagens que transformam o universo dos
seres em um cosmos encantado, à maneira de uma flauta órfica. A palavra deslumbrada, na
poesia manoelina, é o veículo do vir-a-ser do ser das coisas. Com isso, amplifica-se o valor
dos ínfimos e desimportantes entes, uma vez que adquirem o status vivaz do ser. A palavra
em estado encantado de poesia, palavra órfica, fonte do ser: “Orfeu canta a memória das
origens” (Souza, 2001, p.24). Manoel de Barros, porém, recusará a flauta ou a harpa por
sentir nas vibrações surdas da viola de cocho elemento mais íntimo do solo pantaneiro,
onde dormem as origens de sua poesia. Torna-se mais fácil compreender, então, a
peculiaridade da memória cósmica, que conserva a mesma potência mitopoética do canto
órfico.
3 Memória, potência cósmica
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo
.
8
Como bem notou Afonso de Castro, no estudo A poética de Manoel de Barros: a
linguagem e a volta à infância (1991), pode-se encontrar nos primeiros livros do poeta
uma recorrência aos temas do passado em Corum (Poemas concebidos sem pecado, de
1937; A face imóvel, de 1942; e Poesias, de 1956). A partir de 1960, com Compêndio para
uso de pássaros, o encanto pela palavra reclama seu lugar de destaque na obra manoelina.
de se destacar, contudo, que o tema da memória não abandonou seus poemas, de sorte
que é possível notá-lo ao longo de suas publicações. Em Livro de pré-coisas, de 1985, o
primeiro verso do poema “Narrador apresenta sua terra natal” abre o livro para o cenário
poético da memória toponímica: “Corum estava amanhecendo.” (Barros, 2003-b, p.11).
Ao resgatar os lugares do passado, o poeta inclina-se para o chão, para as aves e árvores,
“Quando os meus olhos estão sujos da civilização” (Id., ibid.). Anuncia, assim, o abandono
que fará no poema seguinte; ao virar a página, o leitor encontra no primeiro verso do
segundo poema do livro (“Em que o narrador viaja de lancha ao encontro de seu
personagem”), a renúncia à lembrança biográfica em favor de uma memória de cosmos,
fagulha que lhe serve de ponto de partida para o poético: “Deixamos Corumbá
tardeando.” (Id., ibid.). Empreende, assim, viagem que dura toda a sua obra, garimpando
nas memórias fósseis o som da vida, tentando “ouvir nas conchas as origens do
8
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 11.ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.75.
mundo” (Barros, 2003-c, p.63) ouvir as conchas narrarem a memória arqueológica do
cosmos.
Iniciada em 2003, a série de livros Autobiografia inventada reunirá três volumes,
dos quais foram publicados Memórias inventadas: a infância (2003) e Memórias
inventadas: a segunda infância (2006). Ambos livros contêm a mesma epígrafe (“Tudo o
que não invento é falso”) e o seguinte texto poético (que se afigura como primeiro poema
em ambos os casos), intitulado “Manoel por Manoel”:
Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo
não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui.
Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância.
Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular
muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em
vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra
era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal
resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e
sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do
que comparação.
Porque se a gente falar a partir de ser criança, a gente faz comunhão:
de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um
pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a
visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que
o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu
falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido
criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e
comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o
sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores. (Barros, 2006-a, p.5).
Não se pode cair na tolice de confundir a voz poética com o poeta, a persona lírica
com a pessoa física. O “Manoel” que fala pelo Manoel” é espécie de poeta-autor
implícito-inventado. Sobre estas entidades uma vez que nos interessa separar a memória
inventada da biográfica –, é conveniente fazer rápidas observações.
De Charles Baudelaire em diante, com o desenvolvimento da modernidade na
poesia, a corrente que balizou os estudos literários foi a crítica imanentista, hermenêutica.
Os esforços iniciais de Hans Robert Jauss, em 1967, em Konstanz, delinearam os passos
de um caminho que se acreditava distinto do hermeneuta, e que se convencionou
denominar estética da recepção.
Até então, o foco da crítica estava voltado para a interação entre texto e autor.
Valorizando um pólo relevante desconsiderado pela crítica textual, a estética da recepção
localiza no leitor o elemento-chave para o vir-a-ser do texto. Os estudos literários,
portanto, não mais deveriam entender a literatura centrando-se no texto como um sistema
fechado, “mas tão-só através de uma teoria da história que desse conta do processo
dinâmico de produção e recepção e da relação dinâmica entre autor, obra e público”.
(Jauss, 2002, p.71). Após estas breves notas sobre a evolução da crítica literária durante o
século passado, anunciadas as linhas teóricas da hermenêutica e da recepção, exige-se, por
conseguinte, o exame do conceito de autor implícito.
Antes, porém, de a estética da recepção se desenvolver por meio das teorias de seus
propagadores, em 1961, Wayne C. Booth publica The rhetoric of fiction. Pondo à prova os
limites do conceito de autoria, Booth apresenta a noção de autor implícito.
Tradicionalmente, entende-se “autor” como aquele que produz (do latim auctor, óris).
Logo, escritor, entidade física. O texto ficcional, pela própria natureza de sua gênese, é
uma transformação, uma duplicação distanciando-se, na medida em que se forma, do
mundo físico, extralingüístico, de que partiu. Assim sendo, o autor, segundo a concepção
mais difundida, não está presente na obra uma vez que existe no ambiente da realidade
empírica.
No entanto, Booth entende que vestígios do autor na obra. Segundo o crítico, a
presença está mesmo além do mero indício:
Enquanto escreve, o autor não cria, simplesmente, um “homem em geral”, ideal
e impessoal, mas sim uma versão implícita de si próprio, que é diferente dos
autores implícitos que encontramos nas obras de outros homens. Na verdade,
pareceu a alguns romancistas que se estavam a descobrir ou a criar à medida
que escreviam. [Cuando escribe, no crea simplesmente “um hombre em
general”, ideal, impersonal, sino también una versión implícita de mismo
que es diferente de los autores implícitos que nos encontramos en las obras de
otros. Por cierto que parece como si, al escribir, algunos novelistas estuvieram
descubriéndose o creándose a sí mismos. (Booth, 1974, p.66).].
Espécie de alter ego do escritor, o autor implícito inscreve na obra literária uma
persona que lhe é externa. De certa forma, parece-nos plausível que um criador, ao se
empregar cautelosamente na gênese de sua criatura, nela se reconheça, como parte de si.
Assim, o artista identifica em sua arte um self de si mas não ele mesmo. De acordo com
Booth, portanto, o autor implícito é uma entidade que não é o autor, mas que não pertence
à obra. Estaria, se entendemos bem, situado num intervalo: o espaço entre a ficção e a
realidade extralingüística. Seria uma presença que subjaz ao texto. Chega-se, deste modo, à
idéia de que o autor implícito reflete um complexo de mundividências e conceitos
pertencentes ao próprio autor. Põe-se em dúvida.
As teorias que deram conta da noção de autor implícito tiveram como foco a ficção,
não a poesia. Quando mencionamos neste estudo o Manoel de “Manoel por Manoel” como
espécie de poeta-autor implícito-inventado, tomamos a liberdade criativa de relacionar a
invenção poética como reordenação da realidade primeira, sob uma alcunha provisória que
ressalta seu caráter poético. O Manoel que rememora tem os resquícios do Manoel que
vivenciou a memória, mas, a partir do momento em que se inventa na poesia, não é mais o
Manoel conhecido, e sim a figura poética sob o signo encantado da memória cósmica.
Voltemos a “Manoel por Manoel”.
Note-se, no referido poema, a presença de todas as temáticas geradoras da poética
manoelina presentes: a memória transcriada, travessuras inventadas pela ausência de
memórias de peraltagens” pregressas; a infância dinamizada pela própria linguagem,
envolta em sonhos de um menino solitário; a terra, testemunha e cúmplice com quem o
menino imagina/brinca suas brincadeiras telúricas, “no chão, entre formigas”; as
inutilidades miúdas e insignificantes que inauguram nova significância no devaneio de
comunhão que solidariza pedra e lagarto no mesmo patamar de utilidade. Com a licença do
poeta, alegaríamos que todas as temáticas fazem comunhão. Na raiz da solidão, da criança
isolada, está o poeta que cria. No devaneio da criança solitária brota a palavra cosmogônica
do poeta, a graça verbal da criança que “faz comunhão” com a natureza. Ora, em que outro
espaço geográfico uma poesia de comunhão com a physis poderia se dar senão no
Pantanal? Berço cosmogônico de uma riqueza sem-par de vidas e organismos, filhos do
Nada e do húmus que latejam sob a terra complexo transformacional que Manoel de
Barros, desde criança, contempla e admira.
Assim entende Bachelard: “Toda a nossa infância es por ser reimaginada. Ao
reimaginá-la, temos a possibilidade de reencontrá-la na própria vida dos nossos devaneios
de criança solitária.” (Bachelard, 2006, p.94). A memória é imaginativa e cósmica;
imagina e cria antes de lembrar, e, ao lembrar, recria, cosmos novo à memória: “Assim,
a infância está na origem das maiores paisagens. Nossas solidões de criança deram-nos as
imensidades primitivas.” (Bachelard, 2006, p.97). Infância, exercício da imaginação
parindo “paisagens”, imagens. A solidão da criança no espaço-tempo noturno do sonho (“o
escuro me ilumina”), devaneia sobre a origem primeva; não sobre a origem da memória,
mas sobre a memória da origem o que de anterior ao antes: “esse retorno ao passado
não pode ser mediante lembranças de fatos históricos, mas, por meio do devaneio, do
sonho, atinge-se a verdadeira dimensão de uma infância poetizada.” (Castro, 1991, p.
189-190). Deste mesmo devaneio poético experimenta a memória na obra de Manoel de
Barros. Perceba-se que nos referimos à obra, uma vez que é possível notar em cada um de
seus livros (em cada um de seus poemas, diríamos, com certa ousadia) a memória cósmica
articulando a poesia.
A infância solitária e anterior que reside na palavra não tem nome: é anônima, é um
manancial de imaginação e criatividade; é cósmica, pois está sob o signo do encantamento.
As raízes da poesia manoelina estão nas infâncias geradoras da terra, da memória, da
infância, das inutilidades e da linguagem. Na busca pelo berço nascedouro das palavras e
de todo um cosmos, uma ontologia poética transpõe os limites da lógica para encantar as
coisas e trazê-las ao ser. Inaugura-se um novo ordenamento de tudo, uma sintaxe
ontológica do real poético.
Na poesia de Manoel de Barros, todo o entorno extralingüístico é transcriado num
real reorganizado. Destaca-se, então, a importância cósmica da memória, que gera o ser
nas coisas (inclusive e, principalmente, nos ínfimos), modelando os elementos da matéria
energética profunda – que provêm das mais primitivas grutas radicadas na terra. O que não
há, o que ainda não existe, prontamente é convertido em presença:
Entifica-se o que se conforma, nadifica-se o que se transforma. O extremo limite
do que se representa é o ermo limiar do que não se apresenta na forma. (...) Para
formar o não-formado, o poeta tem de situar-se entre o anverso orgânico do
cosmos e o reverso não-orgânico do caos. (...) De acordo com a tensão
heraclítica dos contrários ou com o uno harmonicamente oposto (harmonisch
entgegengesetzt Eines), caos e cosmos reciprocamente se correspondem, e a
nadificação de um arranjo cósmico é a gestação de outro.” (Souza, 2001, p.
20-21).
Por isso a memória de um Cabeludinho, já cosmificada em Poemas concebidos sem
pecado, pode tornar ao nada e ser re-cosmificada pela memória poética em Memórias
inventadas. Com isso, põe-se em cheque o pressuposto do passado (e mesmo a expectativa
do futuro). O tempo articula-se em sua totalidade, unindo as possibilidades de conjugar
passado e futuro no presente: “Hoje estou quando infante. (...)/ Como quem aprecia de ir às
origens de uma coisa ou de um ser.” (Barros, 2006-a, p.63).
Em A intuição do instante, Bachelard debate sobre a questão temporal, opondo
entre si as teorias de Henri Bergson e Gaston Roupnel. Resumidamente, a filosofia
bergsoniana é aquela em que a realidade do tempo está na duração, ao passo que a filosofia
roupneliana é aquela cuja realidade do tempo reside no instante. Duração e instante se
opõem. Partidário da concepção roupneliana do tempo, e à luz das teoria da relatividade,
de Albert Einstein, Bachelard abandona de vez a intuição do tempo como duração. Ao
relativizar a duração, negamos o que poderia haver de absoluto em sua concepção. O
mesmo não acontece com o instante: o instante, estabelecido com bastante precisão,
permanece, na doutrina de Einstein, um absoluto.” (Bachelard, 2007, p.34). O que se
cristaliza na memória, a fonte primeira do acontecimento, é o instante. A duração é
relativizada, e sofre toda sorte de alterações quanto está sujeita a trajetória de uma vida: “a
lembrança da duração está entre as lembranças menos duradouras. Lembramo-nos de ter
sido não, porém, de ter durado.” (Bachelard, 2007, p.38). A memória guarda somente o
instante, e ignora qualquer continuidade que lhe imponham à força. O tempo é
descontínuo, fragmentado, e nos restam as luzes isoladas de instantes-memórias. Ao
poeta, resta-lhe o instante poético; onde, no êxtase da palavra, descortina-se o mundo:
“eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo/ mas com tamanha intensidade que
se petrifica e nenhuma força o resgata” (Andrade, 2004, p.301).
Segundo Bachelard, portanto, o que é o instante. Passado e futuro são formas
que derivam do instante. A consciência de passado e futuro nos chegaria pelo instante
(presente). Lembrança e previsão, passado e futuro, seriam hábitos do instante, do
presente. Assim, torna-se necessário entender o passado pelo presente e não rastrear no
passado justificativas para o presente. Afonso de Castro, ao se deter no universo da casa
natal, centro onírico do nosso mundo, observa a força da intensidade para a palavra poética
que instaura a memória, ressaltando, com palavras diferentes, o que entendemos por
instante poético: “O espaço e o tempo na casa natal registram-se, pelo devaneio, num
onirismo, em que a função vital da felicidade rege-os por uma cronologia e topologia
poéticas, ressaltando a intensidade da alegria e a duração da vida feliz,
oniricamente.” (Castro, 1991, p.203).
O poeta, ao se deparar diante do instante poético de uma memória que dura nele,
usa a imaginação criativa da memória para reconstruí-la. O passado acontece, passa – e, se
passou, significa dizer que aquilo que foi já não é mais. Quando retorna, ressurge renovado
pelas forças do instante, que permanece nas cercanias do presente. Eis que se chega ao
salto da criação poética dinamizada pela memória: o retorno é o retorno para o que será
criado, o retorno para frente – e não para trás; o antes é o que está por ser escrito. Toda vez
em que se volta para uma lembrança, volta-se para o instante primeiro dessa lembrança, o
fragmento instantâneo que permanece presente. Ao recordá-la, adiciona-se a ela nova cor,
nova paisagem, novos ares, daí o retorno ser um movimento renovação portanto,
anterógrado. Recria-se e existe enquanto passado na medida em que lhe trazemos para o
futuro no presente. Nos domínios da gênese poética, tudo é movente, e nas plagas
indefinidas da memória cósmica, caos e cosmos obedecem à dinâmica da reversibilidade
dos contrários. Memória diacosmética, pois, ao criar, uma energia sagrada traspassa o
poeta, que sente o toque do divino: “Experimento o gozo de Deus.” (Barros, 2004-c, p.21).
A existência da memória manoelina é, pois, fluida. Não se fixa, nem mesmo se
deixa reter: “Eu sou quando e depois/ Entro em águas...” (Barros, 2001-a, p.32). O tempo
do instante poético é alheio à cronologia, como o poeta nos ensina em seu penúltimo livro
publicado (Memórias inventadas: a segunda infância): “Por tudo isso que eu não/ gostasse
de botar data na existência. Por que o/ tempo não anda pra trás.” (Barros, 2006-a, p.63).
Novamente, afirmamos: o tempo da memória cósmica, ao se voltar para o passado, cria um
salto para o futuro, amplificando o presente. O isótopo radioativo carbono-14 é incapaz de
datar a intensidade de uma memória, a potência de um instante. A ciência ainda não
inventou máquina capaz de aferir quantos cavalos de força no vigor de um instante de
sincera felicidade cristalizado pela memória.
Em “Literatura, pra que serve?”, inspirado ensaio sobre as questões que envolvem a
literatura, Alberto Pucheu expõe entendimento semelhante acerca do retorno ao passado,
que ultrapassa a marcação cronológica:
(...) um retorno ao passado: assim, o refluxo continua sendo um disparo para
continuar seguindo adiante, um gatilho para o futuro, uma denotação de mais
intensidade. Nada na literatura volta para trás. A literatura é sem passado, a
literatura é sem retorno. O passado da literatura é um transbordamento de um
presente em direção a um futuro. (Pucheu, 2004, p.228).
A memória cósmica, portanto, resgata do instante sua força poética: “Acho que o
que faço agora é o que não pude fazer na infância.” (Barros, 2003-c, p.3). O que faz é ser,
agora, porém, experienciado na poesia. Transforma a infância do menino solitário em
lembranças de peralta metido a atrevimentos. vida a latas e pregos enferrujados. Faz
brinquedos com as palavras – ordena seu próprio cosmos:
(...) a obra de arte é a memória concriadora da patência simultaneamente
desveladora e veladora da latência ontológica, e o a mera imitação da
multiplicidade dos entes circunstantes nem a repetição fidedigna de um ente
paradigmaticamente concentrado em sua unicidade absoluta. (Souza, 2001, p.
22).
Dissolvido pontualmente pelo instante do passado-presente-futuro, o eu”
recordado/recriado na obra poética de Manoel de Barros se despersonaliza e estende-se aos
demais seres, repersonalizando-se, como se pode notar no seguinte poema de Poesias, de
1956:
Meus ombros emigraram de mim para os pássaros
e o corpo foge roçando nos cactos secos do
deserto.
Oh Deus, amparai-me.
Os limites me transpõem! (Barros, 1956, p.23).
Ou ainda em inúmeras outras passagens da obra manoelina. A palavra encantada,
toca no tom do canto órfico, e instaura a todo instante um novo cosmos mesmo, novas
realidades. A matéria maleável se curva diante da força poética da imaginação criadora e
da memória cósmica, permitindo ao poeta-oleiro moldar seus poemas e torná-los habitados
por suas criaturas de barro, recém retiradas do forno do caos. Na surpreendente metáfora
de Ronaldes: “o nada (...) é o véu do ser” (Souza, 2001, p.31). O poeta é o noivo que, ao
desposar da palavra, estende as mãos para desvelar este tecido mágico, num matrimônio
encantado. Poeta: Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu/ Espécie de
vazadouro para contradições” (Barros, 1982, p.37), maestro que arranja as coisas dispostas
na quadratura céu-terra-divino-mortal, sujeito inviável”, que não é via, veículo, não é
caminho é, pois para ser poeta é necessária a experiência de ser, “de ver e ver-
se.” (Barros, 2003-d, p.23).
Em um rasgo de ousadia, o poeta, que humanizou o universo e cosmicizou a si,
humaniza o tempo, e nesta arrojada tarefa, o próprio poeta se impressiona, como indica a
metalinguagem:
Por primeiro havia que humanizar a Manhã.
Torná-la biológica. Fazê-la mulher. Antesmente
eu tentara coisificar as pessoas e humanizar as
coisas. Porém humanizar o tempo! (Barros, 2003-c, p.15).
Fundar os organismos do tempo para poder dissecá-lo. Humanizado, o tempo
pode surgir sob símbolo do feminino, pois é matéria poética, fértil, e desperta a memória
ancestral do ser. Com o tempo humanizado, pode inventar a partir do nada, como faz em
entrevista concedida a Antônio Gonçalves Filho para a Folha de S. Paulo:
Bom é inventar. Vou inventar. um silêncio parado banhando as moscas. Eu
tenho nostalgia do aventureiro nômade, que eu nunca fui. Sou isso de livro.
Esse aventureiro anda agarrado em minhas palavras como craca. Quando uma
palavra obtém um lado do poeta é que essa palavra está suja dele, de seus
abismos, de sua infância, de seus escuros. (Barros, 1990, p.321).
Reavivar a memória, no mais das vezes, incita a buscar na infância a fonte das
recordações, a tornar o adulto criança, vivenciando novamente as brincadeiras pueris, num
ludismo de linguagem, manuseando a elementaridade enérgica da imaginação. A memória
que é poética (e cósmica), re-instaura o instante vivido num novo instante, fundindo os
tempos na novidade da palavra poética. A palavra instauradora é, como a Fênix (mais um
tema para a fenomenologia da imaginação, como crê Bachelard), surgimento ininterrupto:
“ela se inflama em seus próprios fogos; ela renasce de suas próprias cinzas.” (Bachelard,
1990, p.52). Nos versos de Manoel de Barros: “A língua era torta/ Verbos sumiam no
fogo” (Barros, 2001-a, p.47). Boca, por exemplo, meio de exteriorização da fala (também
do repouso, silêncio), é “Brasa verdejante que se usa em música” (Barros, 1982, p.36).
Brasa, em que cinzas. A palavra cósmica é o fiat lux da poesia, o fogo que a origina. O
poeta que se move pela dinâmica da memória cósmica quer encontrar as origens na
palavra, quer encontrar “o feto do verbo”, pois urge buscar sentidos para o que é insensato
diante de um mundo dominado pelo razoável resgatar a palavra antes de ser contaminada
pelos imperativos utilitaristas da Lógica:
Depois que iniciei minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até na ausência da voz?
(Ausência da voz é infantia, com t, em latim.)
Pois como não ascender até a ausência da voz –
Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo –
ainda sem movimento.
Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes –
ainda sem penugens.
Por que não voltar a apalpar as primeiras formas da
pedra. A escutar
Os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras cores do amanhecer.
Como não voltar para onde a invenção está virgem?
Por que não ascender de volta para o tartamundo! (Barros, 2001-b, p.41).
O poço originante para o poeta é onde palavras não têm penugens, substância pura.
Memória pura, intacta instante poético. O adulto se restaura na infância, terreno
encantado pela magia das palavras e imagens nascentes. Eis o acontecer cósmico,
impulsionado pelo poetar pensante do encantador de palavras e pela memória
incessantemente originante. Se a infância é a ausência da voz, o silêncio é a continuidade
caótica do nada, à espera da memória vir resgatar-lhe suas criações e criaturas, seu cosmos.
onde os pios, as cores, os sons são primeiros, onde a palavra é virgem, mundo do
tártaro, subterrâneo aonde o poeta deve descer, tal Orfeu, e operar a catábase poética para o
mundo das possibilidades de vir-a-ser do ser das coisas: “O poder de Orfeu decorre de sua
descida ao subsolo materno do mundo, onde fervilham as raízes da vida. No seu canto se
respira o divino zoogônico, que subage na criação de todos os entes.” (Souza, 2001, p.
23-24). Paradoxalmente, este poema da descida ao “tartamundo” tem o título de
“Ascensão”, o que nos faz crer, como mencionado anteriormente, que o retorno para
baixo é, na verdade, um movimento para cima. A elevação é um movimento vertiginoso de
queda para o chão (mais adiante, ao mencionarmos a figura do avô em um poema de
Manoel de Barros, desenvolveremos esta imagem). A memória cósmica, na ânsia
catabática de retornar à origem das origens, lança-se à frente, projetando para além da
palavra encantada o nascer de uma poesia: “A gente é cria de frases” (Barros, 1982, p.27) –
a palavra nos dá à luz.
4 (Meta)linguagem: despalavra
Poesia é a loucura das palavras
9
Que faz o poeta sem palavras? Que ofício teria não fosse um encantador de
palavras? En-canta, pluripotencializando os acordes deste canto, poeta-aedo o portador
da palavra. Na obra de Manoel de Barros, o poeta se reconhece contaminado por um dom,
como doença. De ver loucura nas palavras, de ouvir o alarme nos nomes, de sentir o cheiro
líquido no sopro das vogais, a enxurrada tátil e pedregosa das consoantes, o sabor áspero
da palavra terra. O poeta manoelino vive a linguagem, sente pela palavra, sensibiliza-a. Põe
o termômetro na boca da palavra boca, pois quer o delírio do verbo. Em sua peregrinação
lingüística, abandona os despojos da Dona “Lógica da Razão” (Barros, 2007, p.8), pois é
vivenciando a língua ainda não contaminada pelo racionalismo utilitarista, onde o feto do
verbo tem penugens mas não tem ordenamento pragmático, ainda –, que se pode
encontrar o tesouro poético manoelino: a despalavra. Olhando rente ao chão, com o rosto à
altura de coisas inominadas pela tradição poética, numa curiosidade de deus infante,
ansioso pelo resgate da ancestralidade que pulsa em sua anima, o poeta pode ter na
palavra encantamentos, surgimentos: “Em poesia que é a voz do poeta, que é a voz de
fazer/ nascimentos.” (Barros, 2006b, p.15). É um dar-se mútuo: a palavra é serviçal do
poeta, mas é ele quem serve a ela. O escritório de ambos é a poesia: “Oficina de
Desregular a Natureza.” (Barros, 2006a, p.19). Nos versos dessa língua “Devaneiam
palavras” (Barros, 2003d, p.32).
A primeira reação do leitor diante dos versos de Manoel de Barros talvez seja a de
perplexidade, desorientação. No leitor do mundo pragmático, causa estranhamento a falta
de utilitarismo da linguagem, sua agramaticalidade e sua pregada desvinculação dos
9
Barros, Manoel de. Matéria de poesia. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.26.
ditames da lógica racionalista (a gramática, tal como conhecemos, é serviçal da lógica). O
poeta deseja desgastar o uso cristalizado e canônico da palavra, subverter a gramática:
“Não gosto de palavra acostumada.” (Barros, 2004b, p.71). Busca esvaziar seu sentido útil,
para preenchê-lo com novidade, com originalidades originantes de novos sentidos (atitude
presente até mesmo nos inusitados títulos de seus livros: Arranjos para assobio,
Compêndio para uso dos pássaros, Concerto a céu aberto para solos de ave, Gramática
expositiva do chão, Livro de pré-coisas, O guardador de águas, O livro das ignorãças,
Para encontrar o azul eu uso pássaros, entre outros.). Destina à palavra novos
significados, novas funções, usos renovados; roça os nomes para obter o rumor de uma
nova língua, fazendo “casamentos incestuosos entre/ palavras.” (Barros, 2001-c, p.9).
Poesia da modernidade, experimenta o código lingüístico, testando seus limites o que
implica, em última instância, em deslocar o significado do foco das atenções (i.e., o
significado usual das coisas). O ludismo da linguagem adquire destaque, a ponto de
Manoel de Barros fazer brinquedos de palavra em “Língua de brincar” (Barros, 2007, p.7).
Desloca, ainda, a relevância do eixo significante/significado para o anúncio pela imagem
(sua poesia é, veremos, essencialmente imagética). Ora, se o poeta pretere a lógica,
menospreza os significados e conceitos já dominados pelo pragmatismo lógico. Abdica da
sensatez em hino ao feitiço das palavras: “Não quero a boa razão das coisas.” (Barros,
2004c, p.61). Com as lupas do racionalismo não se vê (sente) o encantamento, não se pode
conhecer a verdade da poesia. A força impactante do inesperado faz-se indispensável na
medida em que surpreende expectativas e regras cartesianas.
[Ingrato trabalho tem o ensaísta. Estranhamente, disserta-se sobre uma linguagem
que se distancia do racionalismo com os instrumentos que ele próprio, racionalismo,
fornece-nos. Logo, parece-nos que para o presente texto não como fugir da megera:
torna-se necessário usar da lógica para examinar a não lógica, paradoxalmente. O poeta
perdoar-nos-ia, pois “as antíteses congraçam.” (Barros, 2004-b, p.49)].
A razão, pois, na obra manoelina, não conta da vida. Ao recusar o racionalismo,
põe a voz na boca de loucos, bocós, bêbados, andarilhos: “Poetas e tontos se compõem
com palavras” (Barros, 2003-d, p.31). Uma nova razão (ilógica) se faz necessária, e o
poeta precisa fundar as premissas de sua validação. Urge, então, uma metalinguagem, a
linguagem como razão de si mesma: “Não tem margens a palavra./ Sapo é nuvem neste
invento.” (Barros, 1982, p.16). A metalinguagem é o exercício de dar voz à linguagem para
falar e falar-se.
Ao inaugurar novos sentidos numa língua sem margens, o poeta relaciona um
inventário de possibilidades, de palavras, de coisas, de seres: rã, caramujo, sapo, mosca,
pedra, cisco, traste, prego, lodo, estrume, raiz, árvore, pássaro, fóssil, infância, lata, prego,
besouro abstêmio, parafuso de veludo, alicate cremoso et cetera. Tudo pode neste novo
invento. A palavra inventa o invento, é água fontana de um novo cosmos: “A água passa
por uma frase e por mim” (Barros, 2003-d, p.44). Não margens entre poeta, linguagem,
seres, trastes.
O processo de apropriação da palavra, aquilo que confere importância à palavra, dá-
se, assim, de dentro para fora. Se o poeta não quer a palavra acostumada, ele deve partir
dela. O processo de desconhecimento parte do conhecimento da língua. A palavra
acostumada, gramatical, é plena de significado, preenchida pelo conceito. que se
apropriar dela para esvaziá-la, fazer uma assepsia às avessas, desabrigando dela a razão
pura, substituindo-a pelas impurezas poéticas do inútil. Se o sentido normal das palavras
não faz bem ao poema, o anormal passará a ser a norma: “A única língua que estudei com
força foi a portuguesa./ Estudei-a com força para poder errá-la ao dente.” (Barros, 2003-a,
p.17). Não é gratuito este processo de transformação da palavra em despalavra, nem
mesmo se opera por passe de mágica; o poeta manoelino luta com as palavras, com força
bruta, tal qual boiadeiro que doma boi teimoso no braço:
– E sobre a palavra, ela?
– Mexo com palavra
como quem mexe com pimenta
até vir sangue no órgão. (Barros, 1982, p.31).
Em entrevista concedida a José Otávio Guizzo, para a revista Grifo, Manoel de
Barros afirma, sobre a palavra, que ele “Obsessiva e sadicamente as trabalha, dobrando-as
até seus pés, arrastando-as no caco de vidro, até que elas sejam eles [os poetas]
mesmos.” (Barros, 1990, p.310). Na lide violenta com a palavra, o poeta ganha intimidades
com esta. Se, a princípio, o contato é rude, aguerrido, aos poucos, o gesto esbanja carinhos,
como na prosa poética intitulada “Escova”, de Memórias inventadas: a infância, em que o
olhar do menino se encanta com a inusitada atividade do arqueólogo, de escovar ossos:
“Logo pensei de escovar palavras. (...) Eu queria então escovar as palavras para escutar o
primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda
bígrafos.” (Barros, 2003-c, p.7). Na arqueologia das palavras, busca encontrar o som dos
primórdios, o “sotaque das origens” (Barros, 2006-a, p.23). Se, como vimos, a memória na
obra manoelina resgata a memória das origens, é nos fósseis do mundo, no berço ancestral
dos primórdios que a língua manoelina encontrará uma palavra que a expresse: “Os
mestres pregavam/ que o fascínio poético vem das raízes da fala.” (Barros, 2006-a, p.59).
Empreender a busca pela memória da palavra, na obra manoelina, na medida em
que o retorno instaura o novo pela palavra renovada, significa constituir a palavra poética:
“Não poesia anterior ao ato da palavra poética. Não realidade anterior à imagem
literária.” (Bachelard, apud Castro, 1991, p.104). A inauguração do novo explora tanto as
possibilidades que a palavra, em si, manifesta, quando o que resguarda em seu silêncio.
Expõe o que é posto, ilumina o que é velado: “Na poesia de Manoel de Barros, a
dialética do não-dito institui a orla do dizer” (Castro, 1991, p.158). A palavra poética é o
elo com o mundo, é o dar-se do novo mundo cosmificado, estrutura ontológica em
deveniência sempiterna. Trata-se, pois, da despalavra, como se pode ler no poema
homônimo:
Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da
despalavra.
(...)
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo
com suas metáforas.
(...)
Daqui vem que os poetas podem compreender
o mundo sem conceitos. (Barros, 2003-a, p.23).
Despalavra: logro da palavra (poética) sem os conceitos utilitaristas, plena pela
imagem sua função é a de abrir a Imagem, dando ser a ela. Os recursos da metáfora e da
construção imagética são imprescindíveis para dar voz ao que a palavra não tem meios de
dizer: Imagens são palavras que nos faltaram./ Poesia é a ocupação da palavra pela
Imagem./ – Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.” (Barros, 2003-d, p.57). Nas palavras
de Octavio Paz:
O sentido da imagem (...) é a própria imagem: não se pode dizer com outras
palavras. A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que
quer dizer. Sentido e imagem são a mesma coisa. Um poema não tem mais
sentido que as suas imagens. (Paz, 1976, p.47).
Na renúncia à lógica, pulula o rompimento originante do ilógico, destituindo o
conceito. Aloja-se na palavra o revés do conhecimento pragmático-racionalista: para
dessaber deve-se esquecer os conceitos formais, pois é necessário ressaber pela primeira
vez. O poeta abandona a cartilha retilínea do saber, trilhando por veredas ínvias em
perseguição ao “antióbvio” (Barros, 2003-b, p.49). Se o poeta refuta o que há de gramatical
na língua, como anteriormente mencionado, não de haver para ele valor no peso
coercitivo da correção lingüística. Se uma escrita “correta” tende ao reto, ao retilíneo,
tende à exatidão, à configuração estática do conceito. A poesia manoelina é sinuosa,
antióbvia, avessa ao trivial e axiomático, não-retilínea, em espiral, e move-se de acordo
com a dinâmica do abrir do novo, de uma escrita cosmogenética que flui por águas
pantaneiras ancestrais. Como nota Ricardo Alexandre Rodrigues, em A poética da
desutilidade: um passeio pela poesia de Manoel de Barros, de 2006, o “óbvio reclama o
equívoco das interpretações fechadas” (Rodrigues, 2006, p.29).
Escrever com a palavra que é raiz do ser, matriz cósmica, abre caminho para o
descobrimento dos avessos do mundo conhecido, do imundo de ontologia deveniente:
“Notei que descobrir novos lados de uma/ palavra era o mesmo que descobrir novos lados/
do Ser.” (Barros, 2004-a, p.27). É o verbo em delírio, onirismo devaneante cujo destino
natural é “imaginar um cosmos” (Bachelard, 2006, p.24). Ou seja: trazer o ser à luz na
morada da imagem imaginada.
No percurso em direção a uma linguagem antióbvia, de subversão da ordem lógica,
a negação do racionalismo converte-se em um dos aspectos máximos da obra manoelina: a
sensibilização da palavra. O poeta despe a privilegiada face altiva da palavra, o significado
que nos chega via intelecto:
– Difícil de entender, me dizem, é sua poesia, o senhor
concorda?
– Para entender nós temos dois caminhos: o da
sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da
inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo
Poesia não é para compreender mas para incorporar
Entender é parede: procure ser uma árvore. (Barros, 1982, p.29)
O ser não tem entendimento, compreensão; tem sensibilidade, tem ser. O caminho
para leitura da poesia manoelina é a fruição, o sensível assentado no ser. Eis um
desdobramento do pêndulo secular razão/emoção. Entender com o espírito é ver pelo
intelecto, com o instrumental da razão. Desta forma, o poeta não pode ser uma árvore, pois
a lógica nos forneceria o discernimento entre o verdadeiro e o falso, entre possível e
impossível. Contrariadas as regras da lógica, ser árvore é de difícil compreensão lógica (o
que move a indagação dos dois primeiros versos supracitados). Entender com o corpo é
sentir, é tomar corpo na árvore, incorporá-la (ou a árvore incorporar o poeta). Para sentir
não é condição indispensável o entendimento racional. As rígidas normas no intelecto são
muitas vezes, em diversas experiências de vida, incapazes de traduzir um sentimento. Em
entrevista concedida a Martha Barros, sua filha, para o Correio Brasiliense, Manoel de
Barros questiona: “A lascívia é vermelha, o desejo arde, o perfume excita. Tem que
compreender isso? Ou apenas sentir?” (Barros, 1990, p.316). A razão, soberana da
civilização pragmática, comumente não consegue, com suas máquinas de calcular o
entendimento, entender os sentimentos mais singelos quais de nós fomos incapazes de
entender racionalmente a gratuidade de um afeto sincero? Para entender a poesia
manoelina, deve-se entendê-la fruindo-a, sem tentar explicá-la. Vivenciá-la, experimentá-
la. Ser árvore, pedra, rã, rio, passarinho... Ver as coisas a partir delas, pois, segundo o que
se pode ler no esplendoroso verso de Manoel de Barros, “o que desabre o ser é ver e ver-
se” (Barros, 2003-d, p.23). Entender é obstáculo, muro que pode ser sentido com o
rosto ao chão, sentindo a parede erguer-se do solo, e o que há de potência cósmica nas suas
frinchas, nos seus musgos.
Para sensibilizar a palavra, não há, talvez, mecanismo lingüístico melhor do que a
sinestesia: “Um perfume vermelho me pensou” (Barros, 2006, p.69). Além de quebrar a
expectativa lógica da linearidade do pensamento, a sinestesia sugere uma contaminação
sensorial, em que o poema não tem margens, operando transfusões entre os seres que o
habitam: “Manoel de Barros sempre utiliza elementos como som, cor, imagem e a palavra
o mais distante possível de sua formulação conceitual, quando quer proporcionar a maior
sensibilização do ser.” (Mendonça, 2002, p.28). Não se pode confundir, pois, como o fez
José Fernandes, o recurso do cromatismo na obra manoelina com um objetivo estético
surrealista. O poeta pretende sensibilizar a palavra, a poesia, e não caminho mais
conveniente do que o dos sentidos em profusão e confusão; transmigram as essências das
coisas. Assim nos lembra Manoel de Barros: “Aquilo que mestre Aristóteles falou: Todo
conhecimento passa antes pelos sentidos. O poeta é o primeiro a tocar nos ínfimos. Nas
pré-coisas.” (Barros, 1990, p.324).
Desabrir o ser, eis o objetivo da poesia manoelina. Teria, então, o poeta algum
desabridor de seres, desabridor de palavras ou qualquer inutensílio equivalente em sua
oficina de transfazer a natureza? O instrumento de ser um desobjeto, subversor da
ordem das coisas: “Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao/ pente funções de
não pentear. Até que ele fique à/ disposição de ser uma begônia. Ou uma
gravanha.” (Barros, 2006-b, p.11). Desta forma dessabida, o poeta as coordenadas para
que se possa sentir o mistério de suas inusitadas combinações, indica o modo como
esteriliza um objeto/palavra de suas funções tradicionais (pois, racionais) para que possam
inaugurar novos usos, funções mais livres de um ordenamento controlado pela lógica,
potencializadas sob o signo do encantamento. O nome, a palavra poética, por si só, ensina
ao homem sensibilizado suas comunhões e semelhanças. Romper a casca do conceito, dar
visão ao ser, ver através dele e por ele; experimentar a visão do ser, fundindo poeta, coisa,
natureza, pente, chão, etc. É preciso perder a inteligência das coisas para vê-las. Ser a
coisa: “– A gente é preciso de ser traste.” (Barros, 2001-a, p.25). Fazer comunhão com o
traste, transubstanciar-se em todas as substâncias, de modo que não haja margens dentro da
poesia: “Quando o rio está começando um peixe,/ Ele me coisa” (Barros, 1999-c, p.21).
Aderir à coisa confere mais verdade à palavra, mais imagem à visão. Ora, se a poesia
manoelina escreve-se com o corpo, há de haver transfusões entre as coisas; só consegue ser
um caracol, por exemplo, ao “conhecer o chão por intermédio de ter visto uma
lesma” (Barros, 1999-b, p.33), vendo, por coalescência, a partir da lesma e vendo-se.
Pela transubstanciação, o poeta torna-se um apêndice da natureza.
Para desabrir o ser, o poeta optou pela palavra poética, pela língua em que a
potência cosmogônica pulsa, desinventando objetos, errando a língua a ponto de depurá-la,
brincando de nadeiras de palavras, metamorfoseando-se em traste, lata, caramujo, árvore,
exercendo-os pelo e no “olhar” do traste, da lata, do caramujo, da árvore. Ampliou os
horizontes a partir do inútil, nutrindo-se dos repousos cosmogônicos do silêncio, do nada.
Para criar, o poeta manoelino deve descer ao tártaro inominado e caótico do nada para
empreender, pela palavra poética, a gênese de um novo cosmos: “Ninguém é pai de um
poema sem morrer.” (Barros, 1982, p.23). Em O guardador de águas, de 1989, ao tratar do
tema do nada, antecipa alguns versos do depurado Livro sobre nada, de 1996:
O nada destes nadifúndios não alude ao infinito menor
de ninguém.
Nem ao Néant de Sartre.
E nem mesmo ao que dizem os dicionários: coisa que
não existe.
O nada destes nadifúndios existe e se escreve com letra
minúscula.)
Se trata de um trastal. (Barros, 2003-d, p.14).
Contudo, convém dizer com Andréa Serpa de Mendonça, de acordo com o que se
pode ler em Manoel de Barros: o poeta sobre nada, de 2002, que a simplicidade do menor,
do ínfimo minúsculo, para o poeta, sustenta-se “por si só, e alçam dimensões estéticas para
além do conceito formal de simples, mínimo e “ínfimo”.” (Mendonça, 2002, p.40). O nada,
na obra manoelina, é o nada mesmo. Não é o nada filosófico, metafísico (aliás, não seria
correto falar em metafísica na poesia de Manoel de Barros, pois a transcendência
movimenta-se na palavra, e não para além dela). O nada é terreno vasto e de propriedade
inominada; pode ser de ninguém, pois na poesia manoelina não identificação de um
sujeito. os vários habitantes do nada, rastejantes e semoventes seres que existem do
nada (do latim exsisto, “elevar-se acima de”, “provir de”). Seres que pro-vêm do nada, em
incessante devir cosmogônico. Sua palavra busca no nada um alarme para o silêncio, na
dialética do dito e do não-dito, busca em nadifúndios a “vivência espontânea de tudo que
se torna matéria de sua poesia” (Mendonça, 2002, p.44). É a manifestação latente pela
urgência do nada originário, que a tudo não cessa de criar e recriar, a emergência poética
do ser e de ser outros, afinal, é o que se na epígrafe de Fernando Pessoa que inicia
Retrato do artista quando coisa, de 1998: “Não ser é outro ser.” (Barros, 2004-c, p.9). A
despalavra, palavra poética manoelina, rompe com o conceito, corrompe o racionalismo e
toma posse dos nadifúndios da ilógica.
O poeta manoelino desce à morada do ser, ao nada, raiz telúrica, infância de tudo,
para resgatar, pela memória ancestral da despalavra, a origem de tudo, a força
cosmogônica capaz de dar vida aos seres e inutilidades em sua obra. Portanto, não há,
como entendemos, a ocorrência pontual e isolada de um tema, apenas (no caso do presente
capítulo, o tema da linguagem). Ao ferir a sintaxe lógica da gramática em busca da
despalavra, só o faz ao percorrer a palavra pelo delírio da linguagem em estado de infância,
exercitada na boca de crianças anônimas, de uma memória inventada a partir de núcleos de
infância, de instantes resgatados pela memória dinâmica, que bebe da terra a fonte do ser,
aderindo-se aos seres desprezados pela civilização por sua falta de utilidade, que rastejam
pelo chão, fazendo comunhão com a natureza; são indissociáveis, pois, do tema da
(meta)linguagem, os temas da memória, da infância, da terra e das inutilidades. Todos os
temas advêm do nada, dínamo silencioso, matriz poética que concilia a oposição dos
contrários, elo entre mundo e imundo (reflexo invertido daquele), catalisador do caos em
sua conversão em cosmos única máquina que a palavra aceita, único sentido que a
despalavra tem para entender que “A 15 metros do arco-íris o sol é; cheiroso.”, pois “A
ciência ainda não pôde/ provar o contrário.” (Barros, 1999-c, p.91). Despalavra: aurora do
ser, abridor de amanhecer.
5 O berço das origens
Trago das raízes crianceiras a visão comungante das coisas
10
Aparentemente, toda a raça humana, em algum momento da vida adulta na
velhice, principalmente –, sente pulsar dentro de si a urgência por um retorno à infância. A
literatura, em seu relacionamento de tensão com a vida, demonstra ser solo fértil para que a
infância irrompa. Por ser o crono-tópos ideal da vida, visitar a infância revitaliza o
presente.
Traduz-se para o homem como visão primeira das coisas, contato primordial com o
mundo. A infância, para um poeta, possibilita a liberdade da renovada existência de tudo,
ignorando a lógica das coisas postas e de muito reveladas. É o dar-se primitivo, em
um mundo ainda inominado, em que os sentidos, em êxtase, percorrem cada fagulha de
vida com encantamento e curiosidade, desejosos de experimentar a felicidade pululante da
existência. No abrir-se primeiro para o mundo, deslumbramento na sua contemplação
inicial, toda novidade é alumbrada pelo encantamento, vivenciada com a intensidade
originante das revelações.
Assim, pela latência iminente de seres, sensações, nomes, etc., no contato primeiro
com o mundo, a infância é a matriz do ser, potência cósmica de todos os desdobramentos e
possibilidades. A criança, exploradora nata de tudo, verbaliza a inauguração do mundo
diante de seus olhos. Ignora a lógica do conhecimento arbitrado, construindo o mundo com
suas sensações e palavras. Não carece de gramática, pois a inventa tal qual mais um de
seus brinquedos. Inventa os seres, as coisas, os bichos, a natureza confabula o mundo:
“Toda infância é fabulosa, naturalmente fabulosa.” (Bachelard, 2006, p.112); ou seja, toda
10
Barros, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003-c, p.3.
infância, ao deparar-se com o mundo, falsifica memórias (vide a primeira citação na
epígrafe deste trabalho: “tudo o que não invento é falso”). O rendimento literário da
infância para o poeta é infinito, pois, como lembra Ronaldes de Melo e Souza, “A infância
permanente é a garantia da poesia da vida” (Souza, apud Castro, 1991, p.176). O poeta
manoelino busca no onirismo devaneante da palavra em estado de infância o motor de sua
linguagem, a visão do ser que comunga com todas as coisas. A palavra da criança bebe as
águas mananciais da vida, pois “a infância é o poço do ser” (Bachelard, 2006, p.109).
Se, como vimos ao abordar o tema da despalavra, a poesia manoelina busca o
esvaziamento da palavra para dizer o novo, procura o lugar onde o verbo nasce, não pode
fugir da infância para falar pela primeira vez a palavra. A força expressiva peculiar da
linguagem infantil não seria capaz de encontrar na palavra acostumada, na linguagem
gramatical de uso comum, o fluir do pensamento poético imaginativo e cosmogônico. A
língua, na fala da infância, é poesia – eis o que nos ensina Manoel de Barros em entrevista:
“a poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os homens.” (Barros, 1990, p.
311).
A infância está presente em toda a obra de Manoel de Barros, desde o primeiro
livro, Poemas concebidos sem pecados, de 1937, até o último, Poeminha em língua de
brincar, de 2007. Este último, inclusive, trata-se de edição voltada para o público infanto-
juvenil, ilustrado pelas iluminuras da artista plástica Martha Barros (filha do poeta), que
anuncia logo nos primeiros versos a opção pela temática infantil: Ele tinha no rosto um
sonho de ave extraviada./ Falava em língua de ave e de criança.” (Barros, 2007, p.1). As
obras de Manoel de Barros com edições voltadas para o leitor infanto-juvenil são
consideráveis; além deste último livro, foram publicados Exercícios de ser criança, de
2000, O fazedor de amanhecer, de 2001, e Cantigas por um passarinho à toa, de 2003. O
primeiro deles, de 2000, recebeu o Prêmio Odílio Costa Filho pela Fundação do Livro
Infanto Juvenil (2000) e o Prêmio Academia Brasileira de Letras (2000), enquanto O
fazedor de amanhecer rendeu a Manoel de Barros o Prêmio Jabuti de 2002, na categoria
“livro de ficção do ano”.
Dentre as inúmeras manifestações da infância na obra do poeta mato-grossense,
destacamos a primeira parte de Compêndio para uso dos pássaros, de 1960, intitulada “De
meninos e de pássaros”, por ser bastante representativa do aproveitamento literário da
temática infantil. Compõe-se por cinco poemas: “Poeminhas pescados numa fala de João”,
“A menina avoada” dedicado “para Martha”, “O menino e o córrego” dedicado ao
Pedro”, “Noções sobre João-Ferreio” e “Um bem-te-vi”. João, Martha e Pedro são os
nomes dos três filhos de Manoel de Barros, que visitam sua obra poeticamente nestes
poemas. No primeiro poema, a poesia é pescada na fala agramatical e cósmica de João, do
menino em contato com rio, peixe, jacaré, cobrona (pois é deste modo que o aumentativo
das gramáticas infantis compõe a palavra “cobra”), sapos, andorinhas, etc. Todos eles seres
que tocam, em algum momento, a água rasa do rio:
João foi na casa do peixe
remou a canoa
depois, pan, caiu lá embaixo
na água. Afundou.
Tinha dois pato grande.
Jacaré comeu minha boca do lado de fora. (Barros, 1999-b, p.11).
A visão da criança arma a morada do peixe por comparação com a moradia do
homem, que habita casas. Para o poeta-menino, o lugar onde mora o peixe tem sentido
se for a “casa do peixe”. Mergulha na água para visitar o peixe pan”. Ora, não deve
haver processo de criação de palavras que se adapte com mais justeza à fala infantil do que
a onomatopéia, na qual a criança tenta traduzir o que os sentidos lhes transmitem, pela
observação e tentativa de imitação do fenômeno, ignorando, pois, as regras gramaticais: “O
menino caiu dentro do rio, tibum (Id., ibid.). A onomatopéia é a ngua em potência de
infância.
O poeta tenta aproximar-se ao máximo da linguagem infantil, usando um sem
número de recursos para conferir veracidade à sua criança inventada: “Tinha dois pato
grande.” (Id., ibid.) em que ignora o plural gramatical, em face da patente obviedade do
plural semântico; “Veio Maria-preta fazeu três araçás pra mim.” (Id., ibid.), “Você viu um
passarinho abrido naquela casa” (Id., p.13) e “Queria que sêsse” (Id., p.21) vale-se do
erro gramatical na conjugação verbal para potencializar a criação poética; utiliza o
neologismo “cobrona” (Id., p.12) em vez de “cobra grande” ou mesmo evitando outro
neologismo, “cobrão”, por querer talvez marcar o gênero feminino da palavra cobra –,
simulando a atividade lingüística comum na fala das crianças, de criar expressões a partir
de comparações com paradigmas da língua; aproveita as ricas possibilidades do diminutivo
para a palavra em estado de infância, em expressões como “boca pequenininha” (Id., ibid.),
“meu lambarizinho” (Id., ibid.), “porcariinha” (Id., p.15), “minhoquinhas” (Id., p.16), etc. –
note-se que o diminutivo, além de denotar afetividade, proximidade, ingenuidade, é usado
pelo poeta também para diminuir sobremaneira o que é diminuto:
pequena/pequenininha, lambari/lambarizinho, porcaria/porcariinha, minhoca/minhoquinha.
Enfim, são processos lingüísticos que permitem ao poeta liberdade verbal para cosmicizar:
“Então se a criança muda a função de um verbo, ele/ delira.” (Barros, 2006-b, p.15). O
verbo delira pela força criativa da linguagem, que instala a imagem. A palavra poética
precisa delirar para atingir o desconhecimento almejado pelo poeta: “Para voltar à infância,
os poetas precisariam também de/ reaprender a errar a língua.” (Barros, 2003-d, p.64).
A figura do passarinho é tratada com especial cuidado na obra manoelina. Surge
comumente ligada à inocência da infância, sendo, sobretudo, elo que verticaliza e
horizontaliza o leve e o pesado. O pássaro, símbolo clássico de liberdade, une Céu e Terra,
pois é habitante do ar que rasteja pelo chão, distribui sua existência pelo vôo
ziguezagueante entre o chão e as alturas, entre a rasura das águas e a copa das árvores,
entre os insetos que cata na terra e as nuvens longínquas da troposfera. Ascende do chão,
assim como a palavra almeja elevar-se para a sublimidade da fala infantil (que,
curiosamente, é uma descida para a origem do ser), e tem a liberdade de percorrer todos os
espaços da natureza: “Os passarinhos se molhavam de/ vermelho na manhã” (Barros,
1999-b, p.22). O pássaro é o fio que tece o cosmos poético de Manoel de Barros, como o
bem-te-vi cartola do poema “Um bem-te-vi”:
O leve e macio
raio de sol
se põe no rio.
Faz arrebol...
Da árvore evola
amarelo, do alto
bem-te-vi cartola
e, de um salto
pousa envergado
no bebedouro
a banhar seu louro
pelo enramado...
De arrepio, na cerca
já se abriu, e seca. (Id., p.31).
O bem-te-vi “faz arrebol”, abre o dia. Desce “do alto” e pousa no bebedouro rente
aos ramos do chão. Criatura poética que, altivo, escorado triunfalmente sobre a cerca,
encontra o destino da poesia abrir o ser. O bem-te-vi aguarda o momento do salto na
árvore, lugar que marca a transitoriedade do vôo do pássaro, é elemento que, de acordo
com Bachelard, pode contribuir para a verticalização transcendente do ser, como se verá no
capítulo seguinte. A criança está sempre maravilhada com a apreciação do mundo, “de
estar o puro entardecer/ dentro de suas mãos/ carregadinhas de amor” (Id., p.19). Quer
carinhosamente abraçar o mundo, com inocência e intimidade que despertam nela o poeta
– ou é o despertar da criança no adulto que faz nascer a poesia: “Crianças/ Em pleno uso de
poesia/ Funcionam sem apertar o botão” (Barros, 2001-a, p.29). A imagem surpreendente
diminui qualquer objeto utilíssimo da civilização, inclusive as exasperadas evoluções
tecnológicas da telemática e o incomensurável poder “limpo” de uma usina nuclear: apenas
as crianças têm o condão de encantar sem que, para isso, seja preciso acionar algum
botão.
O tratamento que o poeta dá à palavra, como se pôde examinar no capítulo anterior,
visa a desgastá-la de seus sentidos ordinários, conhecidos e aceitos por todos, uma vez que
seguem as regras lógicas e gramaticais. A poesia manoelina trata a palavra acostumada
com vigor e violência, “Como quem lava roupa no tanque dando porrada nas
palavras.” (Barros, 1990, p.314). É preciso fazer a sangria da palavra, para que as purezas
impuras do utilitarismo escoem para o ralo. O poeta deve conhecer a língua para errá-la, e
para tanto não fala melhor do que a infantil: “Crianças descrevem a língua. Arrombam/
as gramáticas.” (Barros, 2003-b, p.62). O ludismo lingüístico, a expressividade lúdica
composicional, aliada à agramaticalidade, anuncia gratuitamente o acontecer do mundo;
brincar com palavras, seres, cores, sensações, trastes, natureza, etc., permite ao poeta-
menino reordenar o mundo ordenado à sua vontade, com a liberdade de quem fabula seu
entorno – intensificada pelas possibilidades ilimitadas da poesia. A partir do olhar inocente
da criança, uma troca dinâmica das essências: o homem é cosmicizado, o cosmos é
humanizado.
O delírio poético da palavra em estado de infância é a palavra em estado fontal.
Para Bachelard, a cosmicidade da infância reside no homem, e deve ser resgatada pelos
devaneios solitários do poeta, que os encontra em agrupamentos de instantes poéticos, num
território longínquo e de tempo íntimo (unindo imaginação e memória, de tal modo que
não é mais possível dissociá-las), que o teórico chama de núcleos de infância, i.e., “uma
infância imóvel mas sempre viva, fora da história, oculta para os outros, disfarçada em
história quando a contamos, mas que tem um ser real nos seus instantes de
iluminação” (Bachelard, 2006, p.94).
Imerso nos devaneios verbais voltados para a infância, o poeta manoelino parece
perseguir o arquétipo da criança feliz e inocente, arquétipo da felicidade simples que
dorme no homem antes de conhecer as agruras do percurso terreno. As entidades que
visitam a poesia manoelina, no resgate criativo da memória, compartilham uma aura de
pureza feliz: a avó Nhanhá, que surge em sua obra em alguns momentos, dotada de
carinhosa bondade com as crianças; o avô que está sempre a ensinar as crianças a falar a
partir do chão; o pai e a mãe, com poucas aparições, mas sempre envoltos por sentimentos
alegres (o pai é que, em algum momento, desaprova uma atitude do filho porém, sem
veemência); os tipos adultos – andarilhos, loucos, bêbados, prostitutas e figuras transeuntes
– conversam com as crianças como iguais, tratando-as no mais das vezes com ternura. Não
espaço para a tristeza ou mesmo para a melancolia na obra manoelina quando trata da
infância ou de qualquer outro tema. Ao contrário, é no exercício da infância que encontra a
felicidade. É a inocência em estado de beatitude, criação pura:
(...) o mundo retratado por Manoel de Barros é o mundo de sua infância ou o
mundo de sua região natal. O cenário e as metamorfoses que conferem o brilho,
o poder e a alegria aos poemas, é povoado de pássaros, rios, cobras, estrelas,
peixes, árvores e de uma alegria que sai do sol, da natureza exuberante, da terra,
da água, de uma infância impregnada pela proximidade com essa natureza forte
e vibrante. (Castro, 1991, p.184).
O poeta é o filho da terra que, em Face imóvel
11
segundo livro publicado pelo
poeta (1942), quando residia longe da terra natal –, em poema intitulado “Balada do
Palácio do Ingá” (referência ao Rio de Janeiro), um suspiro solitário: Ai que saudades
do Pantanal!” (Barros, 1990, p.71). A necessidade do retorno à infância fala mais alto em
sua poesia, reclamando a exclamação saudosista. Vivenciar novamente a criança feliz
revigora o homem, reverdece o velho: “Quando eu crescer eu vou ficar criança.” (Barros,
2001-c, p.59).
Quando revisita a infância, o poeta sabe que não mais traços de temporalidade
ou espacialidade. O tempo e o terreno movediços da infância são os da memória. Ademais,
o arquétipo da criança feliz deforma de tal forma as referências que apaga a auto-
referenciação:Remexo com um pedacinho de arame nas/ minhas memórias fósseis./ Tem
por um menino a brincar no terreiro” (Barros, 2004-c, p.47). A voz que pronuncia os
versos reconhece as memórias pertencentes ao próprio sujeito, a si, marcadas pelo pronome
possessivo minhas”. Trata-se, pois, das memórias dele, poeta, e nelas uma entidade
indeterminada, desconhecida, marcada pelo artigo indefinido “um”. O poeta não reconhece
mais a criança que foi. Aquele menino é o poeta, agora distanciado e inominado. A
infância, para ser poética, deve ser anônima, para permitir que o poeta a seja novamente
pode, inclusive, ser tantas crianças quantas quiser: Nossa infância testemunha a infância
do homem, do ser tocado pela glória de viver.” (Bachelard, 2006, p.119). Por ser anônima,
11
Sobre este livro, é oportuno registrar que nele se encontra a maior parte dos raros momentos em
que o poeta faz referências à História. Trata-se de um livro publicado em 1942, e Manoel de
Barros, assim como tantos outros poetas brasileiros, não conseguiu ficar imune às reverberações da
Segunda Guerra Mundial. Aparecem nos poemas palavras como “soldados”, “guerra”, “bala”,
front”, etc., como registra o primeiro verso do “Poema do menino inglês de 1940”: “A rua onde eu
morava foi bombardeada.” (Barros, 1990, p.62).
garante ao poeta a certeza da infância como origem de tudo, latência do mundo, berço da
visão de tudo, nascedouro da linguagem, memória fóssil de todas as memórias, fonte
poética cosmogônica. Na infância habitam os devaneios subterrâneos, raízes ancestrais dos
seres, comuns a todos eles, e nominá-la significa retirar-lhe a força poética de instauração
do novo e de todas as possibilidades do ser. Se a palavra poética é atemporal,
destemporalizada, seu testemunho poderá ser anônimo, sob a pena de inviabilizar o
poético; assinar é datar.
Resgatar a infância é ter a memória do mundo sempre-presente, do instante em
estado poético de atualização da palavra, da memória, da natureza, da terra, dos inúteis
seres execrados. A criança dura na palavra poética manoelina. Faz brinquedos com as
palavras, transfunde-se para as coisas inexpressivas do chão, oriundos da terra, os
bichinhos, “porcariinhas”, vendo o mundo a partir delas (é as coisas), inventa as memórias
universais, de todos os meninos perdidos no fóssil do instante. O tema da infância é,
portanto, indissociável dos temas da memória, da palavra, da terra e das inutilidades.
Na poética manoelina, a sintaxe lógico-gramatical é subvertida diante das normas
originantes de sua poesia. Assim, o discurso ensaiado pela criança, repleto de oscilações e
invenções lingüísticas e gramaticais, diante da contemplação primeira do mundo,
balbuciando as palavras com que deverá compor seu entorno e os seres que o habitam
seu cosmos –, aproxima-se da busca pelas origens, do retorno aos nascedouros (a memória
das memórias) da palavra que empreende a poesia de Manoel de Barros: “Sou hoje um
caçador de achadouros de infância. Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no
meu quintal vestígios dos meninos que fomos.” (Barros, 2003-c, p.59). Criança anônima, o
poeta foi vários meninos, e nele avigora o adulto que é, bugre velho.
6 A geopedagogia dos ensinamentos pelo chão
De tudo haveria de ficar para nós um sentimento
longínquo de coisa esquecida na terra
12
Na idade adulta, quando o homem resgata a infância para revigorar-se, o lugar de
seu onirismo é o da aconchegante casa natal, adubo íntimo. Pisa novamente nas terras onde
deu os primeiros passos, ou revive as brincadeiras da infância mais feliz sobre a terra.
Mesmo em um mundo urbano, o resgate da infância pela memória recorda o sabor de
frutas colhidas na árvore, brincadeiras sujas de poeira da terra, a curiosidade diante dos
pequenos insetos e seres que povoam o chão, enfim, para voltar à infância é necessário pôr
os pés novamente na terra.
A terra é a grande mãe, fêmea que gesta os devaneios da infância feliz. Mas terra
não é mundo,que se fazer esta diferenciação. O professor Emmanuel Carneiro Leão, no
capítulo intituladoA técnica e o mundo no pensamento da terra”, do segundo volume de
Aprendendo a pensar, ensina-nos:
A Terra é mais antiga do que o homem e a história. Por isso a terra não pode ter
nem lugar nem data nem certidão de nascimento. O Homem é mais antigo do
que o mundo, a técnica e a tecnologia. O mundo, a técnica e a tecnologia têm
lugar e data marcada, possuem certidão de nascimento. Por isso a técnica
pretende submeter o homem com a tecnologia, dirigindo a história e substituindo
a terra pelo mundo. (Leão, 2000, p.09).
Mundo é ordenação. O homem, filho tão pequeno da terra, nela intervém
subvertendo-a à ordem, convertendo-a em mundo. Portanto, é na terra uma vez que
origem que se pode encontrar um refúgio contra o aprisionamento imposto pelos
discursos do mundo, encontrar a liberdade ágrafa da palavra poética. Ainda com Carneiro
12
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 11.ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.17.
Leão: “o mundo da cnica total sabe mesmo produzir e nada mais. (...) No mundo sem
terra, tudo ou é produto, ou é consumo, ou é produção.” (Id., p.13). de se resgatar a
vigência da terra e da linguagem para que seja possível o viço originário da criação. O
discurso pragmático da técnica, tão útil para a contemporaneidade, torna-se inútil e
insuficiente quando comparado ao discurso poético. O artista intui a precedência da terra,
sente o jorro cosmogônico que brota deste húmus ancestral, pois o poeta “sabe os atalhos
do chão” (Barros, 2003-d, p.17).
Na referida entrevista concedida pelo poeta à filha, Martha Barros, percebe-se
que Manoel de Barros compreende a fundamental importância da terra como substrato de
seu cosmos poético:
O que escrevo resulta de meus armazenamentos ancestrais e de meus
envolvimentos com a vida. Sou filho e neto de bugres andarejos e portugueses
melancólicos. Minha infância levei com árvores e bichos do chão. Essa mistura
jogada depois na grande cidade deu borá: um mel sujo e amargo. Se alguma
palavra minha não brotar desse substrato, morrerá seca. (Barros, 1990, p.315).
A palavra é a raiz do ser, fonte ancestral da vida, e a poesia manoelina resgata na
memória anônima a anterioridade de tudo (mistura-se, às memórias ancestrais, primitivas,
o caldo cultural da ascendência bugre e portuguesa). Viveu uma infância trepado em
árvores, ser cujas raízes unem o céu às profundezas, e que os versos do poeta definem
como “aquilo que ensina de chão” (Barros, 1982, p.40). Criança que explorou o rico solo
pantaneiro, e que em determinado momento teve de cultivar suas raízes crianceiras em solo
urbano, em vaso raso. A terra primeira foi seu quintal, o chão pantaneiro foi o laboratório
das experiências de ser criança, tutor que lhe instruiu os rudimentos da cartilha poética, da
palavra encantada: “O chão é um ensino” (Id., ibid.). Por meio da geopedagogia, o poeta
aprendeu a ver o mundo a partir do chão, i.e., a partir de conhecer a terra, de encostar o
rosto no chão, de colear as coisas desprezíveis do chão, de se transfundir para todas as
substâncias da natureza, transnominando-as, pôde ordenar o mundo poético pela palavra
cósmica. Colhe no chão a cartilha de sua agramática: “Das vilezas do chão/ vêem-lhe as
palavras” (Barros, 2003-d, p.31).
Manoel de Barros é poeta da terra. Os temas de sua poesia ignoram a lógica
pragmática do mundo contemporâneo. É, portanto, criador que se ocupa das forças
primitivas da linguagem, que, em eterna gestação, participa da brotação órfica das coisas.
A poesia manoelina é arcaica: “Escrevo o idioleto manoelês archaico” (Barros, 2004-b, p.
43). O estudioso Jaa Torrano, em “O mundo como função de musas”, ensaio que introduz
Teogonia: a origem dos deuses, de Hesíodo, observa que, ao rastrearmos o sentido da
palavra arcaico, devemos ter em conta tanto o sentido historiográfico, que aponta para “a
anterioridade e a antiguidade” (Torrano, 2006, p.15), quanto o sentido etimológico, que
suscita a idéia de “um princípio inaugural, constitutivo e dirigente de toda a experiência da
palavra poética.” (Id., ibid.). Ao mesmo tempo em que retorna ao antes, na descida à
ancestralidade do ser, projeta-se para frente, com o brotar inaugural que constitui e orienta
os percursos da palavra poética. É o retorno para criar-se, catábase que possibilita a gênese:
“No achamento do chão também foram descobertas as/ origens do vôo.” (Barros, 2003-d,
p.11). Terra e céu unificados pelo princípio cósmico da palavra poética, “Coisa que sonha
de retraves.” (Barros, 2004-b, p.43).
Entre o céu e a terra, um elemento vertical se faz presente ao longo da obra de
Manoel de Barros a árvore: “por meio de ser árvore podia adivinhar se a terra/ era fêmea
e dava sapos” (Barros, 1999-b, p.15). Elemento-chave na verticalidade da transcendência, a
árvore pertence à categoria aérea do vôo onírico, que traz leveza ao que é pesado. Com
suas raízes em contato íntimo com as profundezas da terra, alcança o airado espaço das
alturas, servindo de ligação simbólica entre céu e terra, elevando o ser para uma ascensão
ou, mesmo, para a queda (sem, talvez, que a descensão implique em abatimento moral;
antes, a descida é, tanto quanto a elevação, um movimento de alteamento, de ampliação do
ser). Ilustração maior deste fenômeno na obra manoelina é o longo poema “Introdução a
um caderno de apontamentos”, de Concerto a céu aberto para solos de ave (1991), em que
uma árvore surge e cresce dentro de casa, por debaixo de um gramofone, e o avô do poeta-
menino passa a morar na árvore, espécie de terceira margem na espacialidade do poema:
Meu avô ainda não estava morando na árvore.
Se arrastava sobre um couro encroado no
assoalho da sala.
(...)
meu avô escorregou pelo couro com a sua
pouca força, pegou do Gramofone, que estava
na sala, e o escondeu no porão da casa.
(...)
Durante anos e anos raros desceram mais
àquele porão da casa, salvo uns morcegos
frementes.
Em 1913, uma árvore começou a crescer no
porão, por baixo do Gramofone.
(Os morcegos de certo levaram a semente)
Um guri viu o caso e não contou para ninguém.
Toda a manhã ele ia regar aquele início de planta.
(...)
Com menos de dois anos, as primeiras folhas
da árvore já empurravam o teto do porão.
O menino começou a ficar preocupado.
O avô foi acordado de repente com os esforços
da árvore para irromper o assoalho da sala.
(...)
No Pentecostes, a árvore e o Gramofone
apareceram na sala.
O avô ergueu a mão.
Depois apalpou aquele estrupício e pôde
reconhecer, com os dedos, algumas reentrâncias
do Gramofone.
A árvore frondara no salão.
Meu avô subiu também, preso nas folhas e nas
ferragens do Gramofone.
Pareceu-nos, a todos da família, que ele estava
feliz.
Chegou a nos saudar com as mãos.
O pé direito da sala era de dois metros e a telha
era vã.
Meu avô flutuava no espaço da sala entrelaçado
aos galhos da árvore e segurando o seu
Gramofone.
Todos olhavam para o alto na hora das
refeições, e víamos o avô lá em cima, flutuando
no espaço da sala e com o rosto alegre de quem
estava encetando uma viagem.
(...)
Meu avô agora estava bem sorrindo de pura
liberdade, pousado nas frondes da árvore, ao ar
livre, com o seu Gramofone.
(...)
Falam que meu avô, nos últimos anos, estava
sofrendo do moral. (Barros, 2004-a, p.9-11).
O avô testemunha a elevação para um horizonte de pássaros, para uma quase
sublimação do ser, em sofre do moral deve-se advertir, porém, que, na obra manoelina,
este sofrimento tem a função de despertar o olhar poético: “Estou na categoria de sofrer do
moral, porque faço coisas inúteis.” (Barros, 1999-c, p.19). Aproxima-se do olhar da
criança, que tudo poeticamente. Submergindo das profundezas da terra, a árvore
irrompe do porão (tema tão caro ao psiquismo), tomando corpo e presença no cerne da
casa, dividindo com a família a importância do espaço “Corpo em árvore feito” (Barros,
1956, p.16). Costumeiramente, a árvore é abrigo de pássaros, insetos, roedores, etc., e não
habitação para o homem: “Habitar poeticamente a árvore é participar do seu universo
simbólico, advindo pelo devaneio, é viver de seu vegetalismo (...) enquanto fonte geradora
da vida que a árvore é.” (Castro, 1991, p.206). No escalar da árvore que cresce por dentro
da casa a simbologia do vôo verticalizante do homem em busca de novos e elevados
horizontes sem, com isso, desprender-se do chão. É atingir livremente as alturas quando
fixo no chão, é buscar a libertação feliz pela poesia, pela palavra poética, transpondo os
limites físicos do corpo humano. Ora, o que não transmite o verso eu sou o apogeu do
chão.” (Barros, 1982, p.39), senão a tensa fusão entre o baixo, chão, e o alto, apogeu (ou
seja, posição orbital apresentada por um satélite terrestre quando, em sua revolução, se
encontra mais afastado da Terra)?
A ancestralidade da palavra desce ao subsolo das origens, falando rente ao chão,
aderindo-se aos musgos, trastes, ciscos, na dicção mineral e áspera da pedra, “Indivíduo
que tem as ruínas prosperantes de sua boca/ avidez de raiz.” (Id., ibid.). Escora-se na
árvore, exercita o céu a partir do chão, pois, para o poeta manoelino, não como saber
uma coisa senão sendo-a (“ver e ver-se”): “Queria apenas me ser nas coisas. Ser
disfarçado.” (Barros, 1990, p.325). Sua ancestralidade bugra, nostalgia de selva, fez com
que recolhesse ao seu redor os pedacinhos de “eu” perdidos e desprezados, reclamando
existência no poema. A palavra manoelina brinca com terra, e sobre ela; rasteja pelo solo,
dando voz aos ecos das grutas profundas: “Uma coisa que o homem descobre de tanto seu/
encosto no chão é o êxtase do nada.” (Barros, 2004-a,p.57). A trajetória pedagógica rumo
ao conhecimento poético manoelino percorre inevitavelmente os atalhos do chão. É na
terra, quintal de todos nós, mãe coletiva de todas as infâncias, que gestam as forças
germinativas da natureza, morada das Musas: “Elas habitam o silêncio e a liberdade dos
domínios telúricos como divindades das campinas em flor, das fontes e das
montanhas.” (Souza, 2001/2002, p.12). O silêncio telúrico é o êxtase do nada, atingido pela
palavra manoelina no curso geopedagógico dos ensinamentos pelo chão.
As referências à terra, na obra de Manoel de Barros, são muitas vezes inundadas
pela água não poderia ser diferente em uma poesia que tem seu berço telúrico no
Pantanal. Aparentemente, não há como conceber a terra como fonte da vida sem a presença
das águas. O solo pantaneiro obedece a um sistema hidrológico de constantes alagamentos,
servindo de referencial para os habitantes da região: Os homens deste lugar são mais
relativos a águas do que a terras.” (Barros, 2003-b, p.12). Geologicamente, consiste em
uma depressão no relevo que escoa as águas do interior do continente sul-americano; é a
maior planície inundável do planeta. A água é tromba-d’água que engravida a terra,
semeando os seres. É a eterna luta entre terra e água, alternando-se as vitórias ao longo dos
ciclos da vida. Nesse embate, uma sempre vencerá a outra, que não se dará jamais por
vencida; a terra absorve a água, que insiste em inundar o chão na dialética perpétua das
imagens do duro e do mole. Água é vida; terra, repouso, espera para que a vida se torne
líquida. Uma vez liquefeita, a vida ganha a mobilidade dinâmica para que circule por
transfusão no poema, traspassando seres, objetos, palavras, imagens. As águas fornecem ao
poeta a intimidade do espelho (tão cara a Narciso) que permite a refletorização de uma
paisagem recosmificada: Desse tempo adquiri a mania de mirar-me no espelho/ das
águas...” (Barros, 2005, p.40). A palavra poética flui pela água: “o olho da terra é a água
(...), é a senhora da linguagem fluida, contínua, que modela o ritmo, uma matéria uniforme
para ritmos diferentes.” (Castro, 1991, p.112-113). Em O guardador de águas, de 1989,
por exemplo, à semelhança de Alberto Caeiro (guardador de rebanhos), nosso poeta é
também pastor porém, o que pastoreia é o incontido. Nas paradas águas, o poeta
pastoreia o vir-a-ser dos seres ínfimos: rãs, larvas, moscas, besouros. É um Dialeto-Rã,
palavra em que “entram coaxos” (Barros, 2003-d, p.9), na qual se alinhavam os “passos
para a transfiguração” (Id., p.29). Coisifica-se a palavra, a voz poética o próprio poeta,
boiando no manancial cosmogônico das águas.
No entrecruzamento destes lugares, surge a lama, o barro de Manoel de Barros,
matéria de poesia: “Depois se espraia amoroso, libidinoso animal de/ água, abraçando a
terra fêmea” (Id., p.19). Terra fêmea grande útero, pura inauguração genésica. Cobertos
pela lama, as pré-coisas do poeta ganham forma, edificam-se no ser: “No garfo da árvore
seca uma casa de amassa-/ barro! Ele edifica com lama. A gula do podre/ influi em seus
traços.” (Id., p.64). Surge a imagem do poeta oleiro, que põe a mão no barro, na matéria
amorfa, povoando de seres a sua olaria, o cenário de seu cosmos. A palavra poética,
energizada pela imaginação material, toca o dedo do poeta, pois as imagens terrestres,
segundo Bachelard, configuram-se por matéria tátil e modelável na manufatura do artista:
“são estáveis e tranqüilas; temo-las sob os olhos; sentimo-las nas mãos, despertam em nós
alegrias musculares assim que tomamos o gosto de trabalhá-las.” (Bachelard, 2001, p.1).
Em contato com a terra, o poeta reencontra a infância feliz, via palavra poética. As
imaginações e imagens voltadas para o materialismo terrestre precedem a percepção do
mundo (uma vez que ordenação, como vimos), são primitivas, ancestrais. Na teoria
bachelardiana, é a massa, “um barro primitivo, apto para receber e para conservar a forma
de qualquer coisa.” (Id., p.65). No entendimento acertado de Afonso de Castro, trata-se de
uma “coexistência da água e da terra, oferece-se, no devaneio, como imaginação material à
mão do artista ou ao poeta para transformá-la, para tocá-la e descobrir as virtualidades
artísticas.” (Castro, 1991, p.107). Liga de terra e água que modela a voz do poeta.
Ao descer à terra, portanto, o poeta resgata nas forças germinativas do subsolo a
fonte do ser, a memória ancestral do ser, jorro primitivo que reside nos sonhos de todas as
crianças. Em contato com a água, trava-se a batalha dialética entre firmeza e moleza, e
deste combate resulta o barro, lodo, lama, massa matéria indecisa do “devaneio
mesomorfo” (Bachelard, 2001, p.62) entre os elementos pelejadores. A palavra
pronunciada rente à terra, ao barro, é rica, poética, instauradora. O verso de Heráclito
citado em Livro de pré-coisas (1985) alude ao ensinamento pelo chão: “Tudo, pois, que
rasteja partilha da terra” (Barros, 2003-b, p.59). O poeta de abaixar-se para colher no
chão a voz da terra, a fala dos seres miúdos e inúteis que a civilização rejeita. Meditar
sobre o tema da terra na obra manoelina é meditar sobre todos os demais. Apresentam-se
indissociáveis não nos cansamos de afirmar –, pois, as temáticas da terra, da
(meta)linguagem, da memória, da infância e das inutilidades.
7 Inutensílios – refugo do utilitarismo
Tudo aquilo que a nossa
Civilização rejeita, pisa e mija em cima
Serve para poesia
13
Já no primeiro livro de Manoel de Barros, manifesta-se a escolha pelos tipos e seres
rejeitados pela sociedade: “Pela rua deserta atravessa um bêbado comprido” (Barros, 2005,
p.31). O poeta demonstra apreço por bugigangas, pela urina da avó, pela graça verbal das
criações lingüísticas dos meninos que jogam futebol, por lugares ermos, por loucos,
bêbados, ferrugens... afinal, “se eu não sei parar o sangue, que que adianta/ não ser imbecil
ou borboleta?” (Id., p.27). A razão não explica a poesia, não equaciona ao poeta de
ancestralidade bugre o porquê do jorro de poesia no silêncio da noite; logo, não motivo
para não ser imbecil ou praticar o inútil, se a poesia não tem amarras com os imperativos
do utilitarismo. Bêbados, loucos, crianças e poetas, na medida em que ignoram as
imposições feitas pela lógica para o que é possível e o que não é, redescobrem sempre as
coisas, pois vêem na linguagem a possibilidade de ver o novo.
As coisas “desimportantes” apresentam o estado potencial da metamorfose. Na
medida em que o poeta explora os limites da utilidade das coisas, inaugurando novas
funções para o inútil dentro da poesia, considera-as como iminência do vir-a-ser, devir
puro. Ricardo Alexandre Rodrigues contribui significativamente para o entendimento do
processo de utilização funcional das coisas, na obra manoelina, a partir do exame do traço,
contorno conceitual que determina a função de uma coisa:
E porque um elemento não existe em sua totalidade, é que podemos perceber
seu traço. O traço é aquilo que evidencia a presença de um componente pela
13
BARROS, Manoel de. Matéria de poesia. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001-a, p.13.
ausência do mesmo, não chegando a ser uma representação no sentido de
substituir ou estar no lugar dele. Justamente por não fornecer informações
precisas e exigir do observador exercícios de suposição, eis que o traço revela
sua pertinência dentro da literatura escrita por Manoel de Barros como forma de
ler o mundo através de outras perspectivas, tentando uma originalidade
(experiência primitiva) por meio de uma sintaxe peculiar, chegando ao ponto de
tornar-se extravagante. (Rodrigues, 2006, p.10-11).
Segundo a lógica, um pente é pente enquanto serve para pentear a função
determina o pente. Deve ser útil, deve ter função, para que tenha existência no mundo
pragmático. Na obra de Manoel de Barros, torna-se urgente desabilitar a função utilitarista
das coisas, como nos versos seguintes, mencionados no início do estudo: Desinventar
objetos. O pente, por exemplo. Dar ao/ pente funções de não pentear. Até que ele fique à/
disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.” (Barros, 2006-b, p.11). Ao poeta cabe
arrastar as coisas para fora do círculo de referenciais do cotidiano, apagar os traços do
pente, tornar seus contornos indefinidos, sem margens para ser uma begônia, ou gravanha,
ou coisa qualquerdesde que destituída de sua função tradicional. A força criadora traz as
coisas à existência no poema distanciando-se da expressão do mundo. Uma coisa
transmuta-se em outra, adquire funcionalidade da outra coisa por incrustações e aderências
a ela, pois tudo pode no poema: “o poema é antes de tudo um inutensílio” (1982, p.23).
Ademais, as transubstanciações são provisórias (pois a matéria poética é enérgica e
variável, moldável e malemolente), o que explica o ressurgir renovado nas recorrências a
um mesmo tema (ou coisa) ao longo da obra manoelina.
A riqueza e originalidade das imagens poéticas da poesia manoelina nos chamam a
atenção. Em um primeiro contato com sua obra, chegam a causar estranheza. Há, por
vezes, atribuições de sentidos e características a uma determinada coisa/ser pertencentes a
outro paradigma de coisas/seres, de modo que algumas atribuições, de tão novas e
impensáveis num discurso dominado pela lógica, acabam sendo descartadas pelo leitor.
Dizem os versos do poema citado anteriormente que as semelhanças e comparações podem
ocorrer entre elementos incomparáveis: semelhanças de pessoas com árvores, pessoas com
rãs, pessoas com pedras. O uso da imagem se articula com o artifício da imaginação na
poesia. Enquanto uma imagem poética pode ser o germe de um mundo, a imaginação
poética tem sua importância na medida em que existe como processo criador e por vezes
instaurador da própria imagem. Ora, é imanente à poesia a função poética da língua. Não
se trata da linguagem corriqueira, prática e comunicativa das situações cotidianas do
mundo. Aliás, como se afirmou, não é uma poesia sobre o mundo, mas a partir da terra.
A sabedoria, legado cartesiano de nossa era, é, na poesia de Manoel de Barros, a sabedoria
das coisas não-pensadas, da intimidade das coisas, do encantamento poético-funcional que
as palavras, imagens e construções frasais adquirem no inaugurar-se de sua poesia. É o
poder do encantamento. Uma coisa não vale por sua funcionalidade ao menos não por
sua função canônica, preconizada pela lógica do mundo. Num âmbito de cosmo-gênese,
deve-se pensar num rearranjo dos elementos poéticos. Não se pode esperar de uma obra
verdadeiramente poética que ela não reestruture a sintaxe e a semântica das coisas, dos
sentidos e do real. Na poesia manoelina, todo o entorno extralingüístico é transcriado num
real reorganizado, o que possibilita ao homem praticar as características de um pássaro,
árvore, pedra ou coisa desimportante qualquer.
O poeta rejeita o uso acostumado das coisas, tendo predileção pelo refugo: me
preocupo com as coisas/ inúteis” (Barros, 1982, p.23). Deseja a palavra em delírio verbal,
sedição desorientada da linguagem, despalavra que abre o ser e apaga do signo seus
referentes: “Para perceber o mundo em sua singularidade ou dizer a intimidade é preciso
antes despir os signos lingüísticos de seus significados convencionais, a fim de evitar que o
seu peso impeça a expressividade do espírito lírico.” (Rodrigues, 2006, p.74). A valoração
das coisas é um atributo arbitrário, orientado pela praticidade utilitarista, pelo
determinismo funcional estipulado pelo homem. Ao nivelar as coisas, ignorando a mão
humana que as ordenou, Manoel de Barros aproxima-se do questionamento constante de
Martin Heidegger: “Por que simplesmente o ente e não antes o Nada?” (Heidegger,
1999, p.33). O filósofo alemão resgata a questão da anterioridade, da precedência do Nada,
para observar o aparecimento do ente e, sobretudo, o surgimento do ser. A questão
heideggeriana fundamental é o esquecimento do ser, e o homem, ente privilegiado (pois é
o ente que investiga a questão dos entes), tem papel decisivo neste olvidar. Mencionado o
problema, convém opinar que a solução manoelina, de irmanar os entes (em vez de apagar
o homem, o que seria um erro), de fazê-los comungar com a natureza, com a physis, revela
a sensibilidade do poeta, que não investiga as coisas, “Mas terá o condão de sê-
las” (Barros, 2004-c, p.17). Na poesia manoelina o ser encontra sua transcendência em ser,
compreende a descida às grutas do ser, à mansidão potencial do nada, como metafísica em
si, sem insinuar-se para além; em outras palavras, parece ser o que adverte Emmanuel
Carneiro Leão na apresentação a Introdução à metafísica, de Heidegger: “que o homem
possa transcender o mundo dos entes na medida em que nele se encarna e mergulha,
mostra a finitude inexpugnável de sua transcendência.” (Heidegger, 1999, p.15).
Transcender, na obra manoelina, equivale a exercer a inutilidade das coisas, dos seres:
“Achava que a partir de ser inseto o homem poderia/ entender melhor a
metafísica.” (Barros, 2006-b, p.101).
Portanto, as coisas tornam-se inúteis (leia-se: de utilidade poética, na poesia
manoelina) quando não exercem mais a função útil que lhes foram arbitradas, ou mesmo
quando a própria função que o homem lhes é a de inutilidade. São inúteis as coisas que
se despojaram do peso conceitual, da roupagem utilitarista, encontrando no âmago, no
íntimo, o encantamento de ser:Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser./ Garante a
soberania de Ser mais do que Ter.” (Barros, 2001-c, p.43). Na poesia de Manoel de Barros,
a importância das coisas não depende se uma eficiência que possam ter para a civilização,
mas da magia encantatória que podem despertar. O ordinário, diminuto de qualquer
grandiloqüência, é modo de se expressar na poesia manoelina. de se falar simples para
ter grandezas, balbuciar a palavra rente ao chão, como quem deseja “chegar a traste para
ter grandezas...” (Barros, 2004, p.25). É a teologia do traste, as ruínas da palavra, em que o
poeta relaciona os bens de sua poesia: “um fazedor de inutensílios, um travador de
amanhecer, uma teologia do traste, uma folha de assobiar, um alicate cremoso, uma
escória de brilhantes, um parafuso de veludo e um lado primaveril” (Barros, 1982, p.26). O
tamanho das coisas não se revela pelos limites físicos da matéria, mas pela intimidade que
o poeta tem com elas, pelo poder de seus encantamentos para a palavra poética:
Um fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja
que pingo de sol no couro de um lagarto é
para nós mais importante do que o sol inteiro
no corpo do mar. Falou mais: que a importância
de uma coisa não se mede com fita métrica nem
com balanças nem com barômetros etc. Que a
importância de uma coisa há que ser medida
pelo encantamento que a coisa produza em nós. (Barros, 2006-a, p.39).
Ora, não pode a ciência, com sua lupa racionalista, calcular o potencial encantatório
de um “parafuso de veludo”, “alicate cremoso”, ou mesmo de uma begônia, lata ou pingo
de sol. Enquanto o olhar do homem tenta encontrar nas coisas uma serventia, uma função,
o pensamento poético manoelino busca inaugurar olhares que contemplem o lado oculto
das coisas, dando grandiosidade ao ínfimo e importância ao que, aos olhos da sociedade,
não tem préstimo. Eis, talvez, mais um sentido para o rendimento literário da infância na
poesia manoelina, pois, sob o signo da criança, a linguagem importância ao que, aos
olhos do adulto, é insignificante, ínfimo. A criança coleciona os objetos, palavras, seres,
imagens, para com elas ordenar o seu mundo; na palavra em estado de infância, tudo tem
serventia, tem ser. Conhecer é sensibilizar: “Somente as crianças, os bichos e as coisas
inúteis, prestes à deterioração (metamorfose) podem conhecer através do parâmetro
proposto (...) pelo poeta. Somente quem experimenta as coisas, sendo-as, pode
compreender o mundo.” (Castro, 1991, p.30). A visão inocente da criança ainda não está
contaminada pelo conceito, mas caminha, inevitavelmente, para este destino. Por isso, o
adulto que contraria o conceito, encontrando importância nas coisas inúteis, o faz sob o
signo da demência (imagem recorrente da figura do avô na obra manoelina; em alguns
momentos, refere-se até mesmo ao poeta), atributo dos loucos. A demência apresenta-se
principalmente por meio de Bernardo da Mata figura poética do homem em comunhão
com a physis, energia totalizadora da natureza, substância de tudo –, que ensaia sua
aparição em Arranjos para assobio, de 1982, ainda inominado “O homem estava parado
mil anos nesse lugar sem/ orelhas” (Barros, 1982, p.15) –, mas que tem seu “nascimento”
poético na obra seguinte, Livro de pré-coisas, de 1985:
Quando de primeiro o homem era só, Bernardo era.
Veio de longe com a sua pré-história. Resíduos de um
Cuiabá-garimpo, com vielas rampadas e crianças pa-
pudas, assistiram seu nascimento. (Barros, 2003-b, p.41).
Bernardo da Mata arrasta consigo as coisas inexpressíveis, carregando-as com ele;
são os inutensílios garimpados no chão, em solo cuiabano. Espécie de aler-ego do poeta,
como se depreende de entrevista concedida por Manoel de Barros a Antônio Gonçalves
Filho, para a Folha de S. Paulo: Bernardo da Mata é um bandarra velho, andejo, fazedor
de amanhecer e benzedor de águas. (...) Ele mora em minha fazenda (...) constrói objetos
lúdicos, fivela de prender silêncio, aparelhos de ser inútil, beija-flor de rodas vermelhas,
etc.” (Barros, 1990, p.322). Pelo corpo de Bernardo a natureza se expressa, nele vivenciam
as coisas, inaugurando o avesso da normalidade e da utilidade, dando sentido à falta de
sentido, pois a importância das coisas é regida pelo encantamento, pelo poder mágico.
Bernardo é o homem quando o homem não está presente; é o homem ainda não possuído
pelo conceito de homem, pelos roteiros funcionais que a ele foram atribuídos: “Poder-se-ia
falar de um humanismo trastal, coisal, adâmico ou edênico” (Castro, 1991, p.168).
Bernardo é o homem enquanto traste, coisa, lata, parafuso ou água: é a substância de todas
as coisas reles.
Em seus dois livros da série Autobiografia inventada (Memórias inventadas: a
infância, 2003, e Memórias inventadas: a segunda infância, de 2006; espera-se ainda uma
terceira publicação), o poeta volta-se contra os objetos fabricados pelo homem, que viram
sucatas, pois não têm ser: “Vi que/ tudo o que o homem fabrica vira sucata: bicicleta,
avião, automóvel.o/ que não vira sucata é ave, árvore, rã, pedra. Até nave espacial vira
sucata.” (Barros, 2003-c, p.63). Se até mesmo a evoluída nave espacial vira sucata, o poeta
não consegue ver a utilidade deste objeto. Plantar bandeirola no solo de marte é grandioso
para o homem histórico; para o homem em comunhão com a natureza, o vôo de uma garça
branca é mais útil (porque tem mais encanto) do que o decolar da nave: “Porque a máquina
é uma geringonça fabricada pelo homem. E não tem ser.” (Barros, 2006-a, p.11). A mão do
homem não é capaz de animar a sucata; a mão do poeta que busca experimentar o ser é
animada por este, numa operação reflexiva recíproca, transubstanciação plena.
A opção do poeta pelo ínfimo é tão explícita que se manifesta até mesmo no título
de alguns de seus livros: Livro de pré-coisas (1985), Retrato do artista quando coisa (1998
em bem-humorada alusão à obra de James Joyce, Retrato do artista quando jovem) e
Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001). A obra Retrato apresenta-se quase como
um tratado metapoético sobre a utilização do inútil em sua poesia:
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata – cresce de importância para o meu
olho.
Ainda não entendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão (Barros, 2004-c, p.27).
A instantânea associação que se faz, ao mencionar a barata, é com o asqueroso, o
repugnante. Aos olhos da sociedade, além de ser inútil e indesejada, a barata é maléfica,
pois veículo de contaminação. Da mesma forma o olhar utilitarista demonstra repulsa pelos
seres inúteis, que contaminam a eficiência dos discursos da lógica. Para o olho do poeta,
entretanto, os seres refugados pela sociedade têm utilidade, têm lugar cativo em seus
versos. Na medida em que ativa a criança anônima em si, rastejando rente ao chão, íntimo
da terra, filho do substrato dos pântanos, distribui seus olhares para as coisas do chão,
miúdas e sem importância, cultivando um “olhar para baixo”, que, sem saber, herdou de
uma ancestralidade que tem urgência por origens, pelos berços primitivos do ser, e que se
manifesta na palavra poética. Criança criada no mato, o poeta, adulto, ao recuperar a
infância que não teve (e as que teve, renovando-as pelas atualizações da memória poética),
tem carinho especial com tudo o que é pequeno e rebaixa-se na escala de importâncias da
sociedade, dando voz e dando-se para as coisas: “Um João foi tido por concha” (Barros,
2001-a, p.14). Os seres insignificantes, na poesia manoelina, usam-se do homem. Inverte-
se por completo, desta forma, a ordem do mundo. Na poesia de Manoel de Barros, oficina
de transfazer a natureza e de encantar as coisas, o homem participa do processo
encantatório, na medida em que assume o condão de ser as coisas: tudo que vem da terra
para ele sabe a lesma” (Barros, 1999-b, p.16). A palavra poética congraça todas as
substâncias, realçando o princípio vital que atravessa todas coisas, objetos, lembranças,
etc., bens do poeta. Exercita a harmonia das existências, que transmigram dos corpos que
as aprisionam, ganhando importância poética nas substâncias que assumem para o poeta:
lesmas e lacraias também eram substantivos
verbais
Porque se botavam em movimento
Sei bem que esses nomes fertilizaram a minha
linguagem.
Eles deram a volta pelos primórdios e serão
para sempre o início dos cantos do homem. (Barros, 2006-a, p.27).
Os seres inúteis e inexpressivos para o mundo racionalista têm expressão verbal na
poética manoelina. Isto é: as coisas reles têm importância principal, de verbo, chumbo da
dicção. Para fertilizarem a linguagem e serem a substância verbal da fala poética, as
inutilidades assumem uma dicção coisal de humanismo trastal. A palavra poética, veículo
do vir-a-ser das coisas na poesia manoelina, é discurso dos seres que se dizem pelo
homem, pois a palavra poética é raiz do ser que encontra nos primórdios de tudo o rastejar
fertilizante de lesmas e lacraias a dar início aos cantos, contornos do homem. Na poesia de
Manoel de Barros, o homem é definido a partir do ínfimo e do inútil, alterando
violentamente o ordenamento do mundo: “As coisas jogadas fora/ têm grande importância/
Como um homem jogado fora” (Barros, 1999-b, p.17). É nas memórias fósseis, anteriores
a tudo, que o poeta resgata a origem do ser; talvez por experimentar a palavra poética em
estado de criança, o poeta, em suas memórias inventadas, encontre nos seus brinquedos
vivos e ínfimos que andam sobre a terra a potência significativa da inutilidade valência
mor em sua escala de encantamentos.
8 Pórtico; ou roteiro metapoético; ou Manoel por Manoel
Por fim, apresentadas e comentadas as temáticas que orientam a poesia de Manoel
de Barros, apresenta-se para nós um poema que reclama lugar no estudo, por se aproximar
de um pórtico, espécie de arte poética do artista mato-grossense. Referimo-nos ao poema
“Pre-texto” (sic.), que se encontra em Para encontrar o azul eu uso pássaros, de 1999,
obra ricamente ilustrada com fotografias do Pantanal:
Que as minhas palavras não caiam de
louvamentos à exuberância do Pantanal.
Que eu não descambe para o adjetival.
Que o meu texto seja amparado de
substantivos. Substantivos verbais.
Quisera apenas dar sentido literário
aos pássaros, ao sol, às águas e aos
seres.
Quisera humanizar de mim as paisagens.
Mas por quê aceitei o desafio de glosar
esta obra exuberante de Deus?
Aceitei para botar em prova minha
linguagem.
Que eu possa cumprir esta tarefa sem
que o meu texto seja engolido pelo cenário. (Barros, 1999-c, p.17).
A força deste poema talvez não se encontre no exercício mais fiel ao estilo
manoelino; de fato, trata-se de um poema atípico, em que a voz do poeta assume-se diante
da criação, em que a voz do poeta não cede a vez aos seres. Porém, em seus versos há uma
orientação para a leitura da obra manoelina, com as escusas eventuais de descaminhos
quaisquer. O poeta reflete não apenas sobre o fazer poético, mas, de forma inequívoca
sobre o conjunto da obra. Daí sua importância maior como roteiro poético do que como
poema exemplar.
A escolha pelo título, “Pre-texto”, suscita uma dupla leitura: 1. pré-texto trama
poética que antecede a urdidura da poesia, que remete à anterioridade, à ancestralidade da
palavra (texto) e do ser; 2. pretexto alegação, escusa, justificativa do poeta para o pré do
texto, exposição dos motivos de seu fazer poético. Ambas são leituras que se
complementam, ampliando e sustentando a palavra do poeta.
Manoel de Barros não renunciou jamais à capacidade que seus versos têm de
militar por uma ecologia, mas esse é um desvio de função. Abdicou de inúmeros rótulos e
títulos catalográficos, tais como “Guimarães Rosa da poesia”, “poeta dos ínfimos”, poeta
da ecologia”, “poeta do pantanal”, etc. É inconteste a relevância do solo natal para a poesia
manoelina, mas sempre o cuidado de não ser engolido pelo Pantanal: “Que as minhas
palavras não caiam de/ louvamentos à exuberância do Pantanal.”. O cenário é exuberante, e
diante dele poeta e poesia correm o risco de sumir, tão diminutos que são. A poesia de
Manoel de Barros, consciente desta arapuca, soube nutrir-se do Pantanal sem nele se
afogar, sem relegar à sua poesia a tarefa escrava de dizer apenas a cena. Em entrevista a
Martha Barros (referida anteriormente), ao responder a pergunta sobre como o poeta a
poesia sul-mato-grossense, Manoel de Barros reforça a idéia central do presente poema:
Quero dizer: é preciso evitar o grave perigo de uma degustação contemplativa
dessa natureza, sem a menor comunhão do ente com o ser. o perigo de se
cair no superficial fotográfico, na pura cópia, sem aquela surda transfiguração
epifânica. A simples enumeração de bichos, plantas (jacarés, carandá, seriema,
etc.) não transmitem a essência da natureza, senão que apenas a sua aparência.
Aos poetas é reservado transmitir a essência. Vem daí que é preciso humanizar
de você a natureza e depois transfazê-la em versos. (Barros, 1990, p.315).
Não louvar o Pantanal implica a recusa ao adjetival. Raríssimas e pontuais são as
quedas para o confessionalismo na poesia manoelina. O adjetival, para a palavra que rodeia
o Pantanal, abre espaço para um lirismo confessional do eu; sua poesia, ao contrário, apaga
as referências do eu, de modo que traz para o poema novos eus, de pedras, larvas, aves,
coisas, seres inúteis. Quer preencher seu texto com substância, substantivos verbais, não
adjetivos. O poeta tem avidez por sensibilizar, isto é, por participar intimamente do ser, de
“ver e ver-se”, dando sentido literário “aos pássaros, ao sol, às águas e aos/ seres.” Dar
sentido literário é não cair no adjetival do Pantanal, mas nutrir-se de sua essência. Apagar
as referências externas do eu, de modo a misturar-se com o cosmos: “Quisera humanizar
de mim as paisagens.”. Sensibilizar o ser, humanizar o traste, coisificar o homem. Tudo se
equipara pela substância vital da palavra cosmogônica.
Pela dialética pergunta/resposta, o poeta questiona o sentido de seu fazer poético.
Afinal, por quê um poeta aceita o desafio de glosar a obra exuberante de Deus? O que
move o poeta para o impulso divino? Qual o motivo de desafiar Deus, imitando-o? Se o
faz, é porque o poeta é demasiado humano: “Aceitei para botar em prova minha/
linguagem.”. Em outras palavras: o caminho até a poesia é um percurso de provação, em
que o homem se redime, diante de Deus, de suas limitações infinitesimais. Se o homem é
limitado, a poesia, com as imagens imaginadas pela palavra cosmogônica, é uma saída para
a expansão do ser humano, para ampliar seus limites, apagá-los, fazendo a comunhão de
todos os seres com a naturezapermitindo que o homem, este que pisa a terra com os pés,
alce vôo experimentando-se enquanto passarinho, exerça o artista enquanto coisa.
Ser poeta é uma destinação obstinada, em que o homem aceita o desafio
monumental de glosar a obra de Deus: “Que eu possa cumprir essa tarefa”. Ora, não há,
talvez, poeta na literatura brasileira que tenha assumido a tarefa trabalho a ele imposto
de dar vida aos minúsculos seres que a sociedade rejeita pisa e mija em cima. A obra de
Manoel de Barros empenha-se em resgatar a origem primeira da palavra e do ser, a
memória ancestral que deverá inventar para trazer as coisas ao ser. Desce ao subsolo fértil
do nada, nascedouro de achamentos poéticos, balbuciar da linguagem e, por isso, como
vimos, a infância não poderia deixar de aparecer entre as principais temáticas de sua
poesia. Falar a partir da criança é abrir o ser, possibilitar a inauguração das memórias
fósseis, é reparar as coisas sem importância, sem utilidade para o mundo dos homens, mas
de encantamento enérgico para o olhar da criança feliz que explora o cosmos. Resgatar nas
memórias inventadas da criança a palavra instauradora que confere encantamento às coisas
e seres inúteis significa dar o testemunho poético do homem enquanto mais um ser que
rasteja sobre a terra, e, sob este ponto de vista, é tão importante ou inútil quanto uma
lesma, caracol, lata ou estrume, pois é ser aos demais seres irmanado, comungando das
potências cósmicas pantaneiras. Eis o que teve de fazer Manoel de Barros: inaugurar o
poeta, transfigurando a exuberante natureza epifânica do Pantanal sem “que o meu texto
seja engolido pelo cenário.”.
9 Últimas palavras
Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
– Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta
Kublai Khan.
– A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra –
responde Marco –, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois
acrescenta:
– Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
– Sem as pedras o arco não existe.
14
Embora tenha começado a ser produzida cedo, a obra de Manoel de Barros teve de
esperar aproximadamente quatro décadas para alcançar o apreço da crítica literária. O
público leitor com acesso à obra manoelina sempre foi restrito, dada a aparente dificuldade
que implica a leitura de seus versos. Não é obra com propensões à massa, porém também
se distancia do eruditismo hermético de uma poesia “difícil”. É uma poesia em que a
palavra é trabalhada meticulosamente, com o cuidado do poeta desejoso de desgastar o
sentido normal que nela se encerra. Manoel de Barros inverte diametralmente as regras do
jogo lógico que visa ao conhecimento: saber é desconhecer. Sabedoria não é, em sua
poesia, erudição, legado que se conquista via intelecto, mas sensibilidade, patamar que só
atinge quem persegue a ignorância. A ascensão para a desaprendizagem garante a
soberania do ser, que se liberta da densa camada do aparato racionalista, que torna o ser
obscuro. Somente ignorando o racionalismo é que se atingem as essências, moeda
encantada do poeta para a fatura do poema. Como o arco da ponte e a pedra, na citação de
Italo Calvino: a palavra é pedra fundamental do arco manoelino.
Divulgada pela crítica apenas por volta de 1980, a obra manoelina foi estudada pela
primeira vez na monografia do professor José Fernandes. Preocupado em ler a obra à luz
14
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.79.
da estética modernista, Fernandes acabou por limitar sua abordagem a uma tentativa de
enquadramento da poesia de Manoel de Barros dentro do modernismo (insistiu, inclusive,
em uma filiação surrealista). Equívocos à parte, abriu caminho para o sólido estudo de
Afonso de Castro, principalmente ao lançar o foco de sua atenção sobre a ontologia das
coisas, citando Heidegger. Afonso empreende a delicada tarefa de esboçar os contornos da
poética manoelina, identificando na palavra e no retorno à infância os motores da poesia
manoelina. De fato, acerta, chegando a prever com acerto os caminhos da obra que Manoel
de Barros produziu posteriormente à publicação de seu estudo. Juntamente com os
apontamentos de Gaston Bachelard, as observações de Afonso sobre a linguagem, o
retorno à infância e a permanência da terra foram fundamentais para que pudéssemos
definir nossa leitura da obra do poeta mato-grossense.
Por se tratar de um estudo que se apóia amiúde em teorias hermenêuticas,
consideramos necessária uma discriminação do escopo teórico utilizado. Ressaltamos
como e de que forma as formulações filosóficas de Gaston Bachelard e o ensaísmo crítico
de Ronaldes de Souza e Melo nos foram indispensáveis. Mencionamos também, ainda que
brevemente, de que forma a filosofia heideggeriana nos foi útil em especial, no capítulo
voltado para o tema dos inutensílios.
Iniciamos verdadeiramente o estudo a partir do tema da memória na obra
manoelina. Se exercitar a memória é resgatar as origens, pensar sobre as origens da
memória, na obra manoelina, levou-nos ao verso inaugural de sua poética, quando, sob o
barulho da roupa lavada sendo batida na pedra, “nasceu” Cabeludinho. Eis a certidão de
nascimento da representação mnêmico-poética de uma infância longínqua. Tal verso
primeiro, colhido de seu primeiro livro, de 1937, se desdobra em novas representações de
Cabeludinho, em livro publicado 66 (sessenta e seis!) anos depois, em 2006. Raiz de
memória, Cabeludinho é o instante poético de uma infância que dura. Não se trata,
portanto, de simples rememoração. O processo de revitalização da infância ultrapassa a
reminiscência rememorada, pois é mote da criação, da transformação. A infância fala pela
palavra encantada; os núcleos de infância, que conservam os instantes vividos quando
criança, são remodelados pela imaginação criativa de uma memória cósmica (e, por isso,
poética).
Além da memória, pôde-se ver de que forma as outras quatro temáticas geradoras
(meta)linguagem, infância, terra e inutilidades atuam na poética manoelina. Enfatizamos
sempre a ausência de hierarquias, e procuramos mesmo demonstrar como as temáticas se
coadunam para formar o tecido poético. Demos maior destaque à memória por se tratar do
enfoque privilegiado por nossa investigação. Parece-nos que a memória dinamiza,
juntamente com a palavra, a terra, a infância e as inutilidades, o vir-a-ser do poema. A
palavra é a fonte do ser, aurora do cosmos que surge na imagem. Falar é falar-se: a palavra
poética, na obra de Manoel de Barros, instaura o ser e reflete sobre a instauração. Ao
procurar pelo feto do verbo, o poeta encosta o rosto na terra para aprender pelo chão, para
sentir o pulsar da terra fêmea, brotação ininterrupta da vida, banhada pela fertilidade das
águas. Retorna à gruta primeva do ser, âmago das intimidades anônimas, fonte sagrada do
ser (assim como a morada de Calipso), para encontrar o olhar e a palavra da infância
ainda não contaminados pelos conceitos –, da contemplação do universo pela primeira vez.
A palavra poética da criança feliz resgatada nas grutas e lapas da terra pela memória
cósmica ainda não conhece o ordenamento do homem, o mundo. Por este motivo,
desconhece o sentido arbitrado para o que é útil e o que não é. O adulto, sim, conhece o
ordenamento, e pode, exercendo em si as memórias de uma infância inventada, descartar as
coisas úteis, redescobrindo funções poéticas para as inutilidades. O poeta colhe na terra e
na natureza as matérias enérgicas para a imaginação poética, trabalhando, à semelhança de
um alquimista, a elementaridade da terra, do ar, da água e do fogo. O laboratório do poeta
é a palavra: labor e oratorìum, lugar em que trabalha e ora, exercendo o sacro ofício divino
da criação. Todos os temas se unem para empreenderem simultaneamente a gênese da
poesia manoelina. Palavra, terra, infância, inutilidades, memória elementos tocados pelo
encantamento.
O exame do papel especial da memória na obra de Manoel de Barros, portanto, não
pode ser ingênuo se amparado em teorias filosóficas da envergadura de Bachelard e
Heidegger, tanto como não pode ser desatento se guiado pelo pensamento crítico de
Ronaldes. Descarta-se, então, o vínculo biográfico. Manoel de Barros, pessoa física, não
nos interessa. Queremos o poeta.
A memória do poeta. A imaginação criativa do poeta infante, da criança solitária
que modela nuvens, raios de sol, córregos e barro em sua memória cósmica. Vimos como o
instante de infância retido pela memória é molécula, átomo que constrói a recordação
poética. O adulto recria a infância tal qual aquela que não viveu, marcada por peraltices. É
na infância, fonte do ser, silêncio das palavras no caos do Nada, que a memória cósmica
garimpa seus brinquedos para montar a poesia. Poeta-criança que na solidão imaginativa
abandona a sensatez sisuda da razão adulta, e se permite o devaneio poético, o canto
encantado e mágico da palavra poética.
Palavra cosmogônica, flauta que executa o sopro da vida no retorno à memória das
origens. No retorno, no revolver dos princípios de tudo, a procura pela própria fonte, lugar
onde se gesta o feto do verbo”, onde os nomes não têm penugens, onde o pio do pássaro
não conhece o fio do divino, onde o dia mistura suas cores, abrindo o amanhecer lugar
onde tudo comunga da uniformidade do não-formado. No retorno ao passado de uma
memória ancestral, o movimento anterógrado. Pois o que é anterior não está formado;
forma-se para frente. A idéia do passado é criada no futuro. Voltando-se para as origens de
tudo, a memória cósmica recria os instantes encantados e procria um novo cosmos. Esta,
sim, a verdadeira memória, a da terra, da infância, das palavras, das coisas sem
importância. Memória do indefinido, matéria prima da criação poética.
O percurso da crítica é, quase sempre, repetir o mesmo. Raros são os casos em que
a escrita é capaz de inaugurar caminhos desconhecidos ou não percorridos. Dificilmente
são feitas descobertas novas. Entretanto, repetir o dito pode ser feito de forma a renovar
o conhecido. Escrever sobre a obra de Manoel de Barros, atualmente, não enceta
surpreendentes descobertas. Sua poesia, porém, permanece sob o signo do encantamento,
inaugurando renovações no espírito de quem a lê. Movidos por paixão, portanto,
justificamos nossa insistência em reforçar o dito, contribuindo modestamente com mais
um capítulo da Fortuna Crítica da obra de Manoel de Barros.
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