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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
SONIA REGINA LYRA
JUNG LEITOR DE NIETZSCHE: ACERCA DA “MORTE DE DEUS”
CURITIBA
2007
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10
SONIA REGINA LYRA
JUNG LEITOR DE NIETZSCHE: ACERCA DA “MORTE DE DEUS”
Dissertação apresentada ao curso de Pós-
Graduação em Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná como
requisito à obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Edmilson
Paschoal.
CURITIBA
2007
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SONIA REGINA LYRA
JUNG LEITOR DE NIETZSCHE: ACERCA DA “MORTE DE DEUS”
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná como
requisito à obtenção do título de Mestre.
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. Antonio Edmilson Paschoal (Presidente)
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Profa. Dra. Anna Hartmann Cavalcanti
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Francisco Verardi Bocca
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Curitiba, 28 de junho de 2007.
12
Ao meu Pai
com amor.
13
Um artista que não quer
descarregar seu sentimento
acumulado em obras e aliviar-se,
mas sim transmitir o sentimento de
acumulação, é bombástico, e seu
estilo é aquele inflado.
F. Nietzsche
14
RESUMO
O objetivo desta dissertação é constatar o modo como Jung interpreta a “morte de
Deus” anunciada por Nietzsche em Assim Falou Zaratustra. Para tal, faz-se
necessário abordar o pensamento de Nietzsche no sentido de situar o surgimento e
o desenvolvimento daquela obra, assim como discorrer sobre o niilismo,
conseqüência da “morte de Deus” e da possibilidade do Übermensch. Ao prever e
diagnosticar o niilismo, a crise de valores e a cadence, Nietzsche propõe uma
reavaliação de todos os valores que fazem de sua filosofia um contramovimento às
condições que o determinam. Também com a expressão “morte de Deus”, Nietzsche
está contribuindo para a construção do conceito fundamental desenvolvido por Jung:
o Si-mesmo. Nos Seminários Nietzsche’s Zarathustra, Jung apresenta o
personagem Zaratustra como um símbolo do Si-mesmo (Self/Selbst) e levanta a
polêmica questão de que Zaratustra é uma confissão involuntária da psique do
autor. As conseqüências da “Morte de Deus” na perspectiva da Psicologia Analítica
são entendidas como catástrofe tanto para o indivíduo como para a civilização em
função da hybris humana exacerbada e, também, como possibilidade de realização
do processo de individuação.
Palavras-Chave: Zaratustra; morte de Deus”; niilismo; Si-mesmo; processo de
individuação.
15
ABSTRACT
This thesis aims to verify how Jung has interpreted the “death of God” announced by
Nietzsche’s Thus Spake Zarathustra. For this it was necessary to approach
Nietzsche’s thought in terms of specifying how this work appeared and was
developed as well as presenting nihilism, consequence of “death of God” and the
possibility of Superman (Übermensch). When Nietzsche foresees and diagnoses
nihilism, value crisis and decadence (décadence), he proposes a re-evaluation of all
values that make his philosophy a countermovement to the conditions that determine
it. Moreover with the expression “death of God” Nietzsche contributes for the
construction of the fundamental concept developed by Jung: the Self. In Seminars
Nietzsche’s Zarathustra Jung presents the character Zarathustra as a symbol of the
Self (Selbst) and raises the controversial question that Zarathustra is an involuntary
confession of the author’s psyche. The consequences of “death of God” under
Analytical Psychology perspective are understood as a catastrophe for the individual
as well as for civilization due to exacerbated human pride (hybris) and also as a
possibility of accomplishment of the individuation process.
Key words: Zarathustra, “death of God”, nihilism, Self, individuation process.
16
Abreviaturas das obras de Nietzsche citadas nesta pesquisa
GC A Gaia Ciência
Z Assim Falou Zaratustra
AC O Anticristo
GM Genealogia da Moral
ABM
Além do Bem e do Mal
HH
Humano Demasiado Humano
EH
Ecce Homo
CI
O Crepúsculo dos Ídolos
FITG
A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos
CW/NCW
Caso Wagner/Nietzsche contra Wagner
DT
Despojos de uma Tragédia
17
Abreviaturas das obras de Jung citadas nesta pesquisa
DI/ Vol. VIII
A Dinâmica do Inconsciente
ST/ Vol. V Símbolos da Transformação
TP/ Vol. VI Tipos Psicológicos
EPA/ Vol. VII Estudos sobre Psicologia Analítica
PROO/ Vol. XI Psicologia da Religião Ocidental e Oriental
EAC/ Vol. XV O Espírito na Arte e na Ciência
PA/ Vol. XII Psicologia e Alquimia
AIC/ Vol. IX/1 Arquétipos do Inconsciente Coletivo
PP/Vol. XVI A Prática da Psicoterapia
PT/Vol. X Psicologia em Transição
VS/Vol. XVIII/1 A Vida Simbólica
MC/Vol. XIV/II Mysterium Coniunctionis
MSR Memórias, Sonhos e Reflexões.
NZ SemináriosNietzsche’s Zaratustra
WI Word and Image
18
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO......................................................................................................19
2. A “MORTE DE DEUS” NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE....................................23
2.1 Zaratustra e a “Morte de Deus” na perspectiva de Nietzsche.......................23
2.2 A crítica de Nietzsche à idéia de Deus como valor supremo........................34
2.3 O que entende Nietzsche por valor .................................................................39
2.4 Niilismo ..............................................................................................................42
2.4.1 Niilismo Clássico/Niilismo Europeu ..................................................................47
3. JUNG E OS SEMINÁRIOS NIETZSCHE’S ZARATHUSTRA...............................55
3.1 Jung em relação a Nietzsche ...........................................................................55
3.2 Os Seminários Nietzsche’s Zarathustra..........................................................56
3.3 Libido..................................................................................................................68
3.4 Psique: o consciente e o inconsciente............................................................76
3.4.1 Psique e Inconsciente Coletivo ........................................................................79
3.5 O Selbst e a Individuação.................................................................................81
3.6 Deus e sua morte ..............................................................................................84
3.7 O Zaratustra de Nietzsche, nos Seminários Nietzsche’s Zarathustra ..........88
3.8 “Deus como Salvação da Alma” (Selbst) na Psicologia Analítica................95
4. “MORTE DE DEUS”: CONTRIBUIÇÕES DE JUNG E NIETZSCHE .................101
4.1 Pressuposições filosóficas e o caráter peculiar da leitura de Jung da
filosofia de Nietzsche............................................................................................112
4.2 Contribuição de Nietzsche no aprofundamento psicológico da questão
“morte de Deus”....................................................................................................115
5. CONCLUSÃO.....................................................................................................121
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................124
19
1. INTRODUÇÃO
Esta dissertação resulta da proposta de analisar a “morte de Deus”
em Nietzsche, especialmente sob a perspectiva da leitura feita por Jung da obra
Assim Falou Zaratustra, nos Seminários Nietzsche’s Zarathustra, ministrados entre
1934 e 1939. Essa análise da filosofia de Nietzsche a partir dos Seminários de Jung
é feita, certamente, pela primeira vez no Brasil com este trabalho. Entre os autores
estrangeiros que se ocuparam das fontes aqui utilizadas, pode-se apontar: Giovanni
Rocci, em 1999 publicou La Maschera e L’Abisso – Una lettura Junghuiana di
Nietzsche; Patricia Dixon, em 1999 publicou Nietzsche and Jung Sailing a Deeper
Night, além de alguns autores reunidos, Mario Pezzella, Fulvio Salza, Dario Squilloni
e Giorgio Concato, que em 1996 publicaram Lo Spirito e L’Ombra I Seminari di
Jung su Nietzsche.
Na forma como Jung compreende, Zaratustra é Nietzsche e a
expressão “morte de Deus” que se encontra no Zaratustra significa que o Deus de
Nietzsche está morto. Por decorrência dessa morte, o processo de individuação,
termo central na psicologia de Jung, em Nietzsche não é alcançado, uma vez que
falta a ele a configuração da anima e a diferenciação entre consciente e
inconsciente. Com base na leitura de Jung, pode-se inferir que o excesso de lucidez
ou a megalomania em Nietzsche podem decorrer da morte de Deus de acordo com
os Seminários Nietzsche’s Zaratustra.
O propósito deste estudo é analisar como se desenvolvem tais
proposições, avaliando se, com elas, Jung estaria fazendo apenas uma análise
psicológica de Nietzsche ao longo das mais de mil e quinhentas páginas de seus
seminários sobre o Zaratustra, ou se ele apresenta uma contribuição a ser
considerada pelos estudiosos de Nietzsche, em especial para a compreensão de
seu Zaratustra. Trata-se, assim, de “ver” o modo como Jung “viu” a percepção de
Nietzsche sobre a “morte de Deus”, explicitada em Assim falou Zaratustra.
Reunir tema tão peculiar como a morte de Deus em autores de
áreas diferentes Filosofia e Psicologia não é uma tarefa simples, especialmente
porque pressupõe a compreensão do pensamento do psicólogo suíço em seus
aspectos mais importantes: psique processo de individuação, libido, Self, consciente,
inconsciente e outros correlacionados. Requer ainda uma compreensão de que Jung
20
toma Nietzsche no contexto da Psicologia Analítica, tendo como seu aspecto mais
essencial a religião, entendida como uma re-ligação do indivíduo consigo mesmo, e
da experiência do numinoso, enquanto que Nietzsche quer conduzir o homem à
supressão de “toda religião”, assim como ela vem sendo entendida até agora; mais
que isso, quer levá-lo à experiência do ateísmo que, segundo ele, é idêntica a uma
segunda inocência, decorrente da morte de Deus.
Esta pesquisadora se ateve, a título de recorte na filosofia de
Nietzsche, ao seu Zaratustra, no qual se tocou de forma breve em algumas
passagens nas quais o “profetafala diretamente sobre a “morte de Deus” ou de
suas conseqüências. Como decorrência imediata desta “morte de Deus”,
considerou-se também o tema do niilismo, bem como a idéia nietzscheana de
valores, tendo em vista a crítica de Nietzsche ao Deus Cristão, compreendido como
o fundamento último da moral.
Quanto aos Seminários dados por Jung sobre o Zaratustra de
Nietzsche, também foi preciso uma delimitação a algumas passagens espeficas
sobre a morte de Deus. Em tais Seminários, criteriosamente anotados e analisados,
depara-se com aspectos idênticos aos levantados pelos comentadores
mencionados, dentre os quais destacamos o que mais nos interessa: que Jung faz
uma espécie de análise pessoal do Senhor Frederico Nietzsche, confundindo-o com
a obra em vários momentos sem deixar, porém, de apontar a grandiosidade
simbólica da obra. Nesse ponto encontrou-se a questão controvertida de uma
análise de Nietzsche feita por Jung: de que Nietzsche foi o primeiro a viver em si
mesmo, a hybris que será reproduzida na história da civilização, compensando seu
sentimento de inferioridade com uma megalomania, um querer ser Deus, ele
mesmo. Essa mania de grandeza de Nietzsche surge do ponto de vista de Jung,
quando esse o identifica com o personagem Zaratustra e com toda a trama do
poema, uma vez que Zaratustra, para Jung, é um símbolo do Si-mesmo (Selbst).
Nietzsche, no pensamento de Jung, não está em condições de fazer a diferenciação
entre consciente e inconsciente, entendida como uma diferenciação entre o eu e o
Si-mesmo, pessoal e individual. Embora para Jung essa visão do Zaratustra, como
ele mesmo diz, seja “mórbida”, o psicólogo suíço aproveita em toda a sua Psicologia
Analítica os ensinamentos do filósofo, inclusive para aprofundar seus estudos com
relação aos símbolos e deixará aos seus seguidores a mensagem paradoxal de que
para aqueles a quem “Deus está mortoficam duas possibilidades: de “atingir” o
21
processo de individuação em sua plenitude, caso extremamente raro, ou o caos
resultante de não se ter mais um suporte, uma proteção por meio das crenças
criadas pela religião cristã e, com isso, um crescente desequilíbrio do qual deriva um
sem número de patologias psíquicas.
Distribuiu-se o trabalho em três capítulos. No primeiro apresentou-se
uma abordagem do pensamento de Nietzsche acerca da morte de Deus explicitado
em Assim falou Zaratustra. Quer-se examinar quem é Zaratustra para Nietzsche
como surgiu e o que pretende ensinar o profeta por meio de suas palavras. Pontuar-
se-á algumas passagens da obra que indicam o que Nietzsche entende por valor e o
que o leva à crítica do Deus Cristão. Como decorrência direta da “morte de Deus”, o
niilismo se visto sob diferentes perspectivas, atendo-se sempre, a modo de
limitação, ao texto do Zaratustra com algumas citações de outras obras. Ao prever e
diagnosticar o niilismo, Nietzsche propõe a transvaloração ou a reavaliação de todos
os valores, sendo toda a sua filosofia um contramovimento às condições que
determinam o niilismo passivo, bem como a proposição de o homem descer até as
suas últimas profundezas. É uma jornada para o centro, o lugar da transformação
criativa que será experimentada por Zaratustra em toda a sua trajetória, como se
fosse ele à frente, o primeiro a mostrar o caminho, o modo de ser da experiência.
“Morte de Deus” para Nietzsche não será algo, como se poderia esperar, triste e
sombrio, mas sim uma espécie de encorajamento ou, como dirá ainda: “novamente é
permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento” (GC, 343).
Em seguida, no segundo capítulo, apresentar-se-ão alguns aspectos
do pensamento de Carl Gustav Jung e de seu interesse pela obra de Nietzsche,
Assim Falou Zaratustra, na qual será abordada a “morte de Deus”, explicitada em
seus Seminários Nietzsche’s Zaratustra e de rapidamente em outras obras do
psicólogo suíço. A morte de Deus é apenas um dos aspectos da obra de Nietzsche
pontuados ao longo dos Seminários. Tratar-se-á também de alguns conceitos
fundamentais, mencionados, com o intuito de reconstituir o pensamento de Jung
no que é necessário para examinar a questão da “morte de Deus”.
No terceiro capítulo será analisado o caráter peculiar da leitura de
Jung sobre a filosofia de Nietzsche e a contribuição do pensamento dele, com
relação à questão “morte de Deus”, à Psicologia Analítica de Jung. Conforme se
verá, uma das contribuições fundamentais de Nietzsche encontra-se nos conceitos
do eu e Self (Z, I, p. 51). O outro termo utilizado por Jung e apontado por Nietzsche
22
com outras palavras, presente ao longo de suas obras é enantiodromia. Perceber-
se-á que os dois autores concordam em várias passagens sobre a importância
desses conceitos. Ainda que suas visões aparentemente divirjam, elas também se
encontram em alguns aspectos paradoxais, excetuando-se porém, a visão que Jung
tem de Nietzsche, de que esse, ainda que genial, estava patologicamente inflado.
23
2. A “MORTE DE DEUS” NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE
O objetivo deste capítulo é apresentar Zaratustra do modo mais próximo
de como Nietzsche fala dele, como surgiu e como veio a ser evidenciado e, em
seguida, acompanhar o modo como é abordado o anúncio da “morte de Deus”.
Também se analisará o que Nietzsche entende por valores, sua crítica à idéia de
Deus como valor supremo e, como decorrência da “morte de Deus”, o niilismo, suas
manifestações e suas conseqüências.
2.1 Zaratustra e a “Morte de Deus” na perspectiva de Nietzsche
A expressão “morte de Deus” em Nietzsche, inferida a partir do
Zaratustra, pode ser entendida somente se se conhecer quem é Zaratustra para
Nietzsche. Naturalmente cair-se-á, para isso, numa rede de controvérsias infiltradas
nas mais distintas interpretações dos mais diferentes autores. Para evitar tal rede,
procurar-se-á apresentar Zaratustra a partir das notas do próprio autor, que o aponta
como “a mais desarticulada das minhas criações” (DT, p. 277), em uma carta a Peter
Gast.
Nietzsche sugere que sua obra, Assim Falou Zaratustra (1983), pode
ser considerada, inteira, como música, uma música que ensina a arte de ouvir.
“Certamente um renascimento da arte de ouvir era uma précondição para ele” (EH,
Assim Falou Zaratustra, 1). De acordo com a avaliação crítica do filósofo à sua
própria obra, essa é “a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto
alcançar” (EH, Assim Falou Zaratustra, 1). A esse pathos afirmativo par excellence
Nietzsche denominou pathos trágico e confessa estar possuído por esse, ao
escrever o Hino à Vida, uma obra do período posterior ao nascimento de Zaratustra.
Segundo Nietzsche, Assim Falou Zaratustra nasceu como um “parto
súbito, acontecido nas mais inverossímeis circunstâncias” (EH, Assim Falou
Zaratustra, 1)) em fevereiro de 1883, numa situação pouco favorável devido ao
inverno frio e chuvoso ao extremo, quando sua saúde não era das melhores. O que
chama a sua atenção é o fato de Zaratustra ser concluído “exatamente na hora
24
sagrada em que Richard Wagner morria em Veneza”
1
(EH, Assim Falou Zaratustra,
1) sendo resultado de um tempo de “dezoito meses de gravidez” (EH, Assim Falou
Zaratustra, 1). A essa obra Nietzsche se referirá muitas vezes como seu filho
Zaratustra; dirá ainda: “mais corretamente, ele caiu sobre mim...(EH, Assim Falou
Zaratustra, 1).
De acordo com Nietzsche, o pensamento essencial do Zaratustra
vinha se delineando na penúltima parte da Gaya Ciência. Chama a atenção nessa
parte sobre a necessidade urgente de uma “nova saúde”, uma espécie de grande
saúdepara todo aquele que almeja “haver vivido o inteiro compasso dos valores e
desejos até então vividos; para todo aquele que quer fazer sua a vivência de um
descobridor e conquistador do ideal” (Assim Falou Zaratustra, 2) ou seja, todo
aquele que quer compreender o modo como um artista se sente, “um santo, um
legislador, um sábio, um erudito, um beato, um divino erudito de outrora” (EH, Assim
Falou Zaratustra, 2), esse, necessita de uma grande saúde, pois o que tem à frente
é “uma terra desconhecida
2
, um mundo belo, estranho, questionável, terrível, divino”
(EH, Assim Falou Zaratustra, 2). Não se trata, dirá Nietzsche, de ser “mera
encarnação, mero porta-voz, mero medium de forças poderosíssimas” (EH, Assim
Falou Zaratustra, 3), mas, sim, de uma inspiração, de algo que “simplesmente
descreve o estado de fato” algo que se ouve, sem que seja preciso perguntar quem
dá. Jamais “tive opção”, dirá o filósofo, em escrever ou o Zaratustra. Descreve
esse estado que vive como “um êxtase”, no qual “o que é mais doloroso e sombrio
não atua como contrário” (EH, Assim Falou Zaratustra, 3), estado esse que Jung virá
a denominar como uma conseqüência do processo de individuação, misteryum
coniunctionis (MC, XIV/II) e que, afirmará, Nietzsche não experimentou. Tudo
acontece, explica Nietzsche, “de modo sumamente involuntário, mas como que em
um turbilhão de sensação de liberdade, de incondicionalidade, de poder, de
divindade” (EH, Assim Falou Zaratustra, 3). O que lhe ocorre de maneira radical é o
símbolo
3
, como expressão mais notável da involuntariedade da imagem.
1
Uma sincronicidade na linguagem de Jung. Sincronicidade: um princípio de conexões acausais, é
capítulo da obra de Jung, A Dinâmica do Inconsciente, Vol. VIII, Petrópolis: Ed. Vozes: 1984, p.
437ss.
2
O inconsciente na linguagem de Jung.
3
O símbolo será apresentado como tema central da Psicologia Analítica.
25
No verão seguinte, de volta a Nice, nasceu o “segundo Zaratustra”,
criado em dez dias; no inverno que se seguiu, o “terceiro Zaratustra”, tendo então
concluído a obra. Nietzsche experimentará, após o Zaratustra, tempos de grande
infortúnio. Entende que “tudo grande, uma obra, um ato, uma vez completado volta-
se incontinenti contra aquele que o fez. Precisamente por tê-lo feito está fraco – não
mais suporta seu ato, não consegue mais encará-lo”
4
(EH, Assim Falou Zaratustra,
5). Após essa inspiração inicial, deparou-se com o filósofo adoecido e melancólico
em Roma “quando apenas tolerei a vida” (EH, Assim Falou Zaratustra, 4) descreve,
local do qual “tentou escapar” porque permanecia ali sem tê-lo “escolhido
livremente”, estando em tudo uma fatalidade que o obrigava a ficar. Foi dessa
permanência a contragosto em Roma que nasceu o “O canto noturno” (Z, II, p. 118)
do Zaratustra, em 1885. Com relação às três Canções, O canto noturno, O canto da
dança e O canto do túmulo (Z, II, p. 118ss.), Safranski (2001) comenta que eles
tratam “da relação entre vida e amor e se mostram os fatais aspectos de auto-
referência do amor” (Id., 2001, p. 255). Para aquele autor, Zaratustra é, também,
expressão de auto-superação “no criar um mundo totalmente imaginário de idéias,
imagens e cenários, como o desenvolve o projeto Zaratustra, é mais do que
autopreservação. É autodesenvolvimento” e complementa: “O si mesmo é uma força
expansiva, uma tendência de crescimento, é acumulação própria do ser humano”
(Id., p. 258).
Da mesma forma, para o próprio Nietzsche, Zaratustra passa a ser
uma “obra à partedevido à “profusão de energia do qual foi concebido, quando o
conceito de dionisíaco torna-se ato supremo” (EH, Assim Falou Zaratustra,6)
momento esse, que Zaratustra, diz o filósofo, tem o direito de dizer: “Eu traço
círculos e fronteiras sagradas em torno de mim; sempre mais raros são os que
comigo sobem montanhas sempre mais altas eu construo um maciço de
montanhas sempre mais sagradas” (EH, Assim Falou Zaratustra, 6).
A contradição, porém, aponta Nietzsche, “está em cada palavra”
deste ”mais afirmativo dos espíritos, pois nele todos os opostos se fundem numa
nova unidade” (EH, Assim Falou Zaratustra, 6). O filósofo fala da presença viva dos
4
Parece haver aqui o que Jung virá denominar enantiodromia, uma inversão de estados, de que
trataremos no segundo capítulo desta dissertação.
26
opostos como aquilo que “flui de uma nascente com certeza perene”
5
(EH, Assim
Falou Zaratustra, 6). E, então, “o conceito de ‘super-homem’
6
fez-se ali realidade
suprema” (EH, Assim Falou Zaratustra, 6) quando nessa “acessibilidade aos
contrários” Zaratustra “se sente como a forma suprema de tudo o que é” (EH, Assim
Falou Zaratustra, 6). Sua linguagem daqui em diante se o ditirambo, enquanto
Zaratustra mesmo tornar-se-á dançarino. Sua dança cantará “não” a tudo que até
então se disse “sim”, sem ser, no entanto, um “espírito de negação” (EH, Assim
Falou Zaratustra, 6).
Dirá o filósofo e poeta que, em Zaratustra, o “Canto Noturno” (Z, II,
p. 118) é um ditirambo à solidão e a “resposta a um tal ditirambo da solidão do sol e
da luz é Ariadne...” (EH, Assim Falou Zaratustra, 8). Solidão aqui, segundo a
tradução de Vereisamung, é o processo de tornar-se e não o estado de solidão
(Eisamkeit) que vai ser entendido e comentado por Jung como isolamento doentio,
no caso pessoal de Nietzsche, embora o estado de solidão seja, no processo de
individuação, experiência fundamental. O próprio Jung ao falar de seus anos de
estudante menciona que: “O que me extraviara fora a paixão de estar só, o fascínio
da solidão” (JUNG, 1963, p. 42).
Zaratustra ainda é entendido por Nietzsche como aquele cujo nojo
ao homem foi superado. O homem “é para ele algo informe, um material, uma pedra
feia que necessita de escultor” (EH, Assim Falou Zaratustra, 8). Para esculpi-la a
tarefa exige que todos os criadores/escultores do “homem” tornem-se “duros”.
De acordo com Daniel Halévy (1989) os primeiro 23 cantos do
Zaratustra foram “um exórdio”. Compõem o momento em que Zaratustra desce para
a grande cidade e adverte a multidão, por meio de seus ensinamentos, que “nossa
salvação está entre as nossas mãos” (Id., p. 227). Para esse estudioso a obra é
serena, ao mesmo tempo que exalta “a força e não a brutalidade; a expansão e não
a agressão” (Id., p. 227). Halévy faz uma ligação entre a morte de Wagner e o último
canto/texto de Zaratustra, entre os 23 primeiros, cujo título é Da virtude dadivosa (Z,
I, p. 88).
5
Imagem esta que fará jus ao que Jung denominará Si-mesmo (Selbst), em sua psicologia.
6
“Super-homem” é o Übermensch de Nietzsche, cuja tradução será mantida como Superman quando
tratarmos dos seminários ministrados por Jung: Nietzsche’s Zarathustra.
27
Em uma carta de 14 de fevereiro 1883, Nietzsche, segundo Halévy,
escreve ao seu editor:
Tenho hoje alguma coisa a dizer-lhe: acabo de dar um passo decisivo
quero dizer, lucrativo para o senhor. Trata-se de uma pequena obra, mal
dando cem páginas, intitulada: Assim Falou Zaratustra, um livro para todos
e para ninguém. É uma poesia, ou um quinto evangelho; ou qualquer outra
coisa, que não tem nome; de longe, a mais séria, a mais feliz também, das
minhas produções e acessível a todos... (Id., p. 229).
Depois de muita espera Zaratustra foi lançado em junho de 1883
pela primeira vez, estando Nietzsche em Roma e parece que Zaratustra (1983) foi
recebido como seu autor, como se viesse “de um país não habitado”. Essa
expressão tinha sido usada por Erwin Rodhe, que recebeu a visita de Nietzsche
em Lipzig, e espantado com sua fisionomia três anos depois, comenta: “Ele parecia
vir de um país que ninguém habita” (HALÉVY, 1989, p. 230-232).
Entre os comentários a Zaratustra estavam o de Lisbeth e Malwida:
“Como é áspero!”, disseram. E Nietzsche escreve a Peter Gast: “E eu que julgava
meu livro tão suave!” (Id., p. 233).
Ao comentar o momento em que Nietzsche escreve a segunda parte
de Zaratustra, Halévy traz um dado significativo para a psicologia de Jung:
“Zaratustra não é mais aquele herói que Nietzsche tinha criado para arrancar-se de
suas melancolias, para acrescentar ao seu gênio perturbado a serenidade que lhe
faltava. O herói e o poeta confundiram-se lentamente e Zaratustra tende a tornar-se
a voz lírica do solitário, o eco de suas cóleras e de suas queixas” (Id., p. 234).
À partir de 24 de junho, Nietzsche encarrega Peter Gast e Lisbeth de
fazerem as correções e as negociações junto ao editor. “A crise inspiradora esgotou-
o” (Id., p. 236). Passados alguns meses, em janeiro de 1884, volta-lhe a inspiração e
surge a terceira parte de Zaratustra. “Em abril deste mesmo ano Nietzsche publica
juntas a segunda e a terceira partes de Assim Falou Zaratustra(Id., p. 247). Tantos
outros meses se passam e, em abril de 1885, Lanzky o encontra: “Estou doente, dei
à luz”, ao que seu interlocutor exclama: “O que está dizendo?” e Nietzsche afirma: “A
quarta parte de Assim Falou Zaratustra está escrita” (Id., p. 260).
Safranski
(2001)
assim como Halévy parecem, ao falar de Nietzsche,
pensar de modo semelhante a Jung que, ao comentar as anotações de Nietzsche,
28
diz: “O mestre consegue incorporar sua própria doutrina ensinando-a”
(SAFRANSKI, 2001, p. 253).
É com Zaratustra que se iniciará o comentário da expressão “morte
de Deus”, quando no Prólogo da obra “desceu a montanha sozinho” e deparou-se
com um velho, de cujo diálogo segue o comentário: “Se possível? Esse velho
santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!” (Z, Prólogo, p. 28).
A “morte de Deus” para Nietzsche, em especial em Assim Falou
Zaratustra”, chega como o anúncio de uma rejubilante notícia, decorrente de uma
mudança gestada ao longo de dez anos. “Mudado está Zaratustra, tornou-se uma
criança” (Z, Prólogo, p. 27). Despertou e diz: “Agora, um deus dança dentro de mim”
(Z, II, p. 58). Que fará então entre os que dormem, senão tentar despertá-los e
difundir-lhes o segredo: “Deus está morto!”. Para levar a “novidade” aos homens é
preciso falar-lhes, de certo modo, com muita força: “Com trovões e celestes fogos
deve falar-se aos sentidos langues e adormecidos” (Z, II, p. 107), ou dirá ainda: “A
sentidos débeis e adormecidos é preciso falar com trovões e divinos fogos de
artifício” (Z, II, p. 117). Zaratustra vai ensinar os homens a “não mais enfiar a cabeça
na areia das coisas celestes, mas, sim, trazê-la erguida e livre, uma cabeça terrena,
que cria o sentido da terra!” (Z, II, p. 49). Até então entendia-se Deus, como quem
constituía um “mundo do além”, distante da terra e das “aparências”. Era o “mundo
verdadeiro” (Z, II, p. 49). Outros autores falarão sobre o Zaratustra de Nietzsche.
7
Zaratustra está alegre, não porque Deus está morto, mas porque
está alegre é que Deus está morto. Segundo o profeta, nosso único pecado é que
nos alegramos pouco demais. “Desde que os homens existem, sempre o homem se
alegrou pouco demais: é somente este, meus irmãos, o nosso pecado original!” (Z,
II, p. 102). É essa alegria, esse pensamento afirmativo que vem derrubar por terra
toda dualidade produzida pela leitura cristã que criou a oposição entre este mundo e
o mundo do além. Nesse sentido, a “morte de Deus” não significa a crucificação de
7
Entre eles: Martin Heidegger em Chi é lo Zarathustra di Nietzsche?, em Saggi e discorsi em O
“Zaratustra” de Nietzsche, Pierre Héber-Suffrin quer “ajudar” a “entrar em Zaratustra aqueles
desencorajados, e Roberto Machado quer expor a forma dramática como Zaratustra é apresentado
pelo filósofo, apresentando “as experiências do personagem central” em sua obra Zaratustra tragédia
Nietzschiana. Para Karl Jaspers, a obra Zaratustra não pode ser subsumida em nenhum tipo
tradicional: ao mesmo tempo é poesia, profecia e filosofia e, mesmo assim, ela não pode ser
entendida de modo adequado em nenhuma destas formas”.
29
Jesus Cristo, mas antes de tudo a supressão da crença em um outro mundo, um
mundo do além, do modo como vem sendo entendido, sendo esse, um mundo de
aparências, de dor e sofrimento e aquele, um mundo do além, de felicidade.
Zaratustra libertou-se: “Sofredor, superei a mim mesmo, levei a minha cinza para o
monte e inventei para mim uma chama mais clara. E eis então que o fantasma
desapareceu!” (Z, I, p. 48). Esse fantasma do qual se sente liberto é o fantasma do
Deus cristão. Outrora, conta Zaratustra, “eu também projetei minhas ilusões para
fora do mundo, para um além mundo”. E questiona: “mas para além do homem,
realmente? (Z, I, p. 48), pois esse Deus que eu criava era também obra humana,
loucura humana, como todos os deuses. Era um Deus que envelheceu. [...] Ficou
velho e mole, e combalido e compassivo, mais semelhante a um avô que a um pai.
[...] Quedava-se murcho, sentado a um canto do fogão, queixando-se da fraqueza
das pernas, cansado do mundo, cansado de ter uma vontade e, um dia, morreu
sufocado por sua excessiva compaixão” (Z, IV, p. 263). Embora Zaratustra, ao ouvir
essa passagem do “velho papa” no Sem Ofício (Z, IV, 261), diga-lhe que pode ter
sido assim e também de outro modo. Mas tanto faz, prossegue: “está morto!”.
O anúncio da “morte de Deus” começa no encontro com o velho
eremita da floresta e em seguida é levado ao aglomerado de pessoas reunidas na
praça: ... ‘permanecei fiéis à terra’ e não acrediteis nos que vos falam de
esperanças ultraterrenas”! (Z, Prólogo, p. 30).
A cultura ocidental encontra-se, para uma maioria, permeada por
esta dualidade que fala do sagrado e do profano, de existência terrestre e de vida
sobrenatural, do sensível e da idéia, do fenômeno e do númeno, do aparecer e do
Ser, de corpo e alma. Encontra-se nela, para Nietzsche, uma negação da vida para
a qual este mundo não tem valor, sendo um amálgama de ilusões, em que tudo é
maculado pelo pecado. Se aquilo que representa este mundo, unilateralmente
pendente para o além e para o negativo, Deus morre, então o que está ocorrendo é
a primeira etapa de um novo advento, que também será visto como algo
extremamente positivo, mas também como uma terrível catástrofe. No ensinamento
de Zaratustra uma outra dualidade que pode ser repensada: o “ser próprio” ou o
Selbst, também traduzido como Si-mesmo. “E sempre o ser próprio escuta e
procura: compara, subjuga, conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador do
eu” (Z, I, p. 51). Zaratustra sabe que no homem um anseio que aponta para além
do homem e chama a isso de o anseio do anel. “Há em vós a sede do anel:
30
alcançar-se de novo a si mesmo; para isso luta e gira todo o anel” (Z, II, p. 108),
porque “tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo se desfaz, tudo é
refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo se separa, tudo volta a
encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser. Em cada
instante começa o ser, [...] o meio está em toda parte” (Z, III, p. 224).
Zaratustra apresenta em parábola o eterno retorno do mesmo,
sendo que esse anseio é o mesmo anseio pelo religar-se de novo a si mesmo, pois
assim grávido estará esse portador das luzes do futuro. E dirá Zaratustra: “Oh, como
não deveria eu almejar a eternidade e o nupcial anel dos anéis o anel do retorno?
[...] Pois eu te amo, ó eternidade!(Z, III, p. 234). É da morte ou da ausência de
Deus que surge o anseio pelo anel: a religação consigo mesmo como o que de
mais profundo no homem. É para isso, para despertar nos homens o anseio por
essa busca que Zaratustra traz consigo, também, o amor aos homens: “Amo os
homens” (Z, Prólogo, p. 45).
Amor aos homens é o que o velho da floresta não sente, mas ele diz
que ama a Deus. Zaratustra, porém, “tendo juntado mel em excesso” (Z, Prólogo, p.
27) e desejando distribuí-lo como “uma taça que quer transbordar” (Z, Prólogo, p.
27), anuncia que “o homem é algo que deve ser superado” (Z, Prólogo, p. 29). A
obra de Nietzsche, Assim falou Zaratustra, aponta para essa questão da superação,
a qual é possível se o desejo do homem for o desejo de libertação, do despeito,
do ódio vingativo, do amargor, se essa superação for um processo de transformação
que conduza o homem para além do homem, assim como ele tem sido até agora,
cujo maior perigo é permanecer numa indiferença resignada, num pessimismo ou
cinismo diante de si mesmo, porque “quem realmente ama, ama acima de prêmio e
castigo” (Z, IV, p. 263), ou seja, acima de toda dualidade. Nesse sentido, Zaratustra
é o difícil fio da afirmação que se fundamenta no amor transbordante de
generosidade, quando a maior plenitude é ameaçada pelo maior perigo de malograr,
o perigo da distorção, do despeito e da vingança, pois ensina Zaratustra: “E não
souberam amar o seu Deus de outro modo, senão crucificando o homem” (Z, II, p.
106). Quanto a ele, diz: “eu acreditaria somente num Deus que soubesse dançar” (Z,
II, p. 58). Zaratustra mostra ao povo que ser homem é ser ponte, é ser transição:
”uma corda sobre um abismo” (Z, Prólogo, p. 31), cuja condição para a transição é o
ocaso, a descida, ou dito de outra forma, sucumbir é o anúncio do crepúsculo e a
passagem para o além do homem. Ir ao fundo, ao profundo do homem, àquela
31
dimensão distorcida e reinterpretá-la, ao reencontro da vida ali onde ela se faz
anêmica, mascarada por falsas e fixas interpretações como, por exemplo, a moral
que foi inventada pelo Zaratustra persa ou Zoroastro (660 a 580 a C.). A ele se
atribui a composição do Zend-Avesta, livro sagrado do Mazdeísmo, cujo dogma
essencial é o dualismo de dois deuses em luta: o da luz e o das trevas, o qual
deverá agora ser questionado pelo Zaratustra de Nietzsche, numa espécie de
oposição ao dualismo criado de seus princípios, entre eles o bem e o mal que
chegou mesmo a extrapolar-se para a dimensão teológica.
Mas “por que fui falar de amor!” (Z, Prólogo, p. 25), diz Zaratustra,
como se tivesse se arrependido de tocar nisso. Porém, ainda na praça, falando ao
povo, fala também de como são os homens que ama: “Amo aquele cuja alma é tão
transbordante, que se esquece de si mesmo e de que todas as coisas estão nele:
assim, todas as coisas tornam-se o seu ocaso” (Z, Prólogo, p. 32). Todas as coisas
estão nele (Eis aqui algo a que se ruminar), pois todo aquele que não aprender a
ruminar não ficará livre da sua aflição, da sua grande aflição que hoje se chama
náusea. Zaratustra é “o vencedor da grande náusea (Z, IV, p. 271), da grande
aflição. Jung não comenta essa passagem de Zaratustra como o vencedor da
grande náusea e também não explica onde percebe morbidez em Zaratustra,
simplesmente expressa: “Achei Zaratustra mórbido” (JUNG, 1981, p. 99).
Ainda falando de amor, prossegue Zaratustra em O menino com o
espelho (Z, II, p. 97): “Meu impaciente amor jorra em torrentes, descendo para
levante e poente. [...] Uma boca tornei-me por inteiro. [...] Decerto um lago em
mim, um lago solitário que se basta a si mesmo; mas a minha torrente de amor o
arrasta consigo para baixo para o mar!”(Z, II, p. 98). Esse amor que quer jorrar
impaciente, em torrentes de dádivas, não é mencionado por Jung em sua análise do
Zaratustra, o que vai colaborar na construção de uma visão unilateral da obra,
tendendo para reafirmar sua morbidez.
Em que consiste o ocaso senão nesse movimento de avançar, fixar,
“liquidificar”, reorganizar-se sempre de novo, num “retorno às origens”, na aquisição
de novas visões e novas perspectivas? Comentará o profeta que esse segredo a
própria vida lhe confiou: “Vê”, disse, “eu sou aquilo que deve sempre superar a si
mesmo” (Z, II, p. 127). Zaratustra prossegue ensinando que tudo isso é uma coisa só
e um único segredo, pelo qual vale preferir o próprio ocaso: “Onde há ocaso e cair
de folhas, sim, é ali que a vida se sacrifica – pelo poder!” (Z, II, p. 128).
32
Zaratustra, por um lado, vem livrar o homem do além e não, partilhar
seu fardo, como o fez Jesus Cristo, segundo Héber-Suffrin (2003). Por outro lado,
ainda mais difícil, vem fazê-lo portador deste segredo: encontrar seu fardo em si
mesmo. Aqui, postula-se que, ao carregar seu próprio fardo e, com ele, ser uma
ponte, uma transição, o próprio homem é aquilo que deve ser, conseqüência da
“morte de Deus”, pois diz Zaratustra: “O que eu não sou, isso é, para mim, Deus e
virtude!” (Z, II, p. 108). Mas, nessa perspectiva, depara-se com uma total escuridão
que nasce do confronto do homem consigo mesmo e da ausência da idéia de Deus,
surgida de seu próprio delírio e cuja sombra ainda viverá por milênios, sendo ela
quem o homem deverá vencer: “Deus está morto; mas, tal como são os homens,
durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada” (GC, III,
108).
Falando de Deus Zaratustra ensina: “Deus é uma suposição; mas
quero que a vossa suposição não além da vossa vontade criadora” (Z, II, p. 99).
Nos limites do pensado, da vontade criadora, encontramos o bem e o mal como os
frutos da “árvore do conhecimento” e, para além dela, a “árvore da vida” (Gênesis, I,
10). Para Zaratustra o bem e o mal são representados por símbolos, assim
definidos: “Símbolos são todos os nomes do bem e do mal; nada exprimem,
somente aludem. Tolo quem deles quiser tirar conhecimento” (Z, I, p. 90). É ali,
quando o espírito fala por símbolos, diz Zaratustra, que está a origem da virtude, é
ali que o corpo se acha elevado e ressuscitado, deliciado. “Poder é essa nova
virtude” (Z, I, p. 90). É essa virtude desvirtuada que Zaratustra ensina aos discípulos
que deve ser trazida à terra, pois “de cem modos desorientaram-se e enganaram-se,
até aqui, tanto o espírito quanto a virtude” (Z, I, p. 91) e “é pelo saber que o corpo se
purifica, é procurando o saber que ele se eleva. Para o sabedor, todos os instintos
tornam-se sagrados; no homem que se elevou, a alma torna-se alegre” (Z, I, p. 91).
Poder-se-ia dizer que o homem que tem saber, esse tem o símbolo, ou ele é o
próprio símbolo.
Zaratustra continuamente informa sobre o estado de alma daquele
que experiencia sua própria elevação. E: “Com os vossos valores e palavras do bem
e do mal, exerceis poder, sois vós que estabeleceis valores; e este é o vosso amor
oculto e o esplendor e o frêmito e o transbordamento da vossa alma(Z, II, p. 128).
Desse transbordamento que acompanha Zaratustra, aparece um poder mais forte, a
necessidade de uma superação contínua dos próprios valores, pois: “um bem e um
33
mal que fossem imperecíveis isto não existe(Z, II, p. 128), como o repete, com
outras palavras, ao falar de volúpia, ambição de domínio e egoísmo: “Ambição de
domínio: o terremoto que rompe e destroça tudo o que é carcomido e oco; a rolante,
reboante, punitiva, destruidora de sepulcros caiados” (Z, III, p. 195). Zaratustra
parodia o Evangelho (MT, 23, 27) que aponta o farisaísmo humano e suas
hipocrisias. Criar ensina Zaratustra, mas criar é antes “destroçar valores” (Z, II, p.
128) conhecer, um conhecimento que tenha aprendido a “sorrir e a não ter ciúmes”
(Z, II, p. 130). Uma vontade criadora que finalmente se redimisse a si mesma diz
Zaratustra, até tornar-se: “seu próprio redentor e trazedor de alegria, desaprendeu o
espírito de vingança?(Z, II, p. 152). Desaprendido o espírito de vingança, ambição
de domínio, deixa de ser destruição para sepulcros caiados e passa a ser “virtude
dadivosa”, simplesmente ambição, o mais sadio dos anseios. Uma ambição que
conduza à mais alta potência.
Mais ainda, essa ambição, a ambição máxima é amar-se a si
mesmo, como ensina Zaratustra: “[...] Não é um mandamento para hoje ou amanhã,
o de aprender a amar-se a si mesmo. Ao contrário, de todas as artes é a mais sutil, a
mais astuciosa, a última e mais paciente” (Z, III, p. 199). Também esse ensinamento
é uma paródia ao Evangelho de Mateus (MT, 23, 40), e o ouvido surdo da
humanidade ainda não aprendeu como fazê-lo. Zaratustra quer agora contradizer
sua primeira mensagem, aquela que gerou todo o moralismo e dualismo que veio a
impregnar a cultura. O Zaratustra histórico ao qual Nietzsche vem contrapor seu
Zaratustra, foi “exatamente como Nietzsche – lúcido e sincero”
(HÉBER-SUFFRIN,
2003
, p. 32) tendo sido o seu Zaratustra o primeiro a ver esse dualismo moralista.
Ser sincero é, pois, “ser sincero em relação a si mesmo, ter a coragem de suas
opiniões, a coragem da verdade; é ter, antes da coragem de dizê-las, a coragem de
pensá-las, de VÊ-LAS”. (Id., p. 34) De certa forma, essa lucidez e esse
discernimento que permeiam a obra de Nietzsche é que será posta quando Jung
pergunta se o que houve com o filósofo foi um excesso de lucidez (uma iluminação,
uma consciência divina) ou se foi uma megalomania, estado doentio de grandeza
que compensa um igual sentimento de inferioridade.
Pode-se entender que o Zaratustra de Nietzsche destrua a antiga
cultura que repousava sobre a idéia cristã de Deus, não deixando porém de, na
mesma medida em que destrói as velhas tábuas, ir criando um novo modelo, novas
34
tábuas, enquanto reavalia os valores fixos ditados em nome de Deus: fala de amor,
de como são os homens que ama, os homens de valor, os homens fiéis à terra.
Esses conhecerão o Übermensch, conseqüência da morte de Deus, pura vontade de
poder. “Depois da morte de Deus, se não tomar o duro caminho do super-homem, o
homem último homem vai soçobrar no pior desamparo: a ausência total de toda
moral. Para ele, se Deus não existe, tudo é permitido, no sentido de não haver mais
nenhuma razão para proibir – e proibir-se – o que quer que seja” (Id., p. 86).
2.2 A crítica de Nietzsche à idéia de Deus como valor supremo
Para tratar da idéia de Deus como valor supremo, reportar-se-á
também a outros conceitos nem todos explicitados diretamente por Zaratustra, que
levarão à crítica de Nietzsche aos conceitos: Deus, valor e Deus como valor
supremo.
A idéia de uma “história do conceito de Deus”, uma “história natural
da moral” e uma “história do mundo verdadeiro” dentro da obra nietzscheana
inserem-se num mesmo projeto filosófico, ou seja, numa relação de “continuidade e
de mútua implicação nas manifestações do niilismo nas grandes religiões, na moral
e na filosofia” (ARALDI, 2005, p. 72), passando o cristianismo a ser visto como o
grande movimento niilista, enquanto forma de corrupção dos instintos que atingiu os
fracos, oprimidos e degenerados.
Nesse sentido, o cristianismo surge na Antiguidade como
decorrência de uma doença da vontade, isto é, no enfraquecimento e no
empobrecimento dos instintos naturais, ocasionando uma negação da natureza em
função da afirmação de um poder, seja ele a lei, a divindade ou uma idéia
transcendente. Equiparados, “Budismo e Cristianismo, tornam-se as duas grandes
religiões niilistas, visto que criam um deus a partir do nada (do caos da decadência
fisiológica) e desembocam no nada” (Id., p. 73).
De acordo com Jaspers (1981), desde a juventude o cristianismo era
para Nietzsche não uma forma de “descer às profundezas”, mas o objeto de um
problema. Pensava que poderia haver grandes transformações antes que a massa
pudesse compreender que todo o cristianismo “se fundamenta em exceções: a
35
existência de Deus, a imortalidade, a autoridade da Bíblia, a inspiração, sempre
foram problemas” (Id., p. 80).
Nietzsche não diz que Deus não existe. Tampouco afirma que não
crê em Deus. Diz apenas: “Deus está morto”. O que importa aqui é a sua concepção
filosófica originária que aparece sempre como uma dupla atividade criar e destruir,
negar e afirmar, aniquilar e produzir. Os valores bem e mal “adquirem significação e
legitimidade em sua referência a um poder ou divindade transcendente” (ARALDI,
2005, p. 75). Com isso, os valores morais se desvalorizam na medida em que
perdem sua legitimação religiosa, mostrando assim as implicações existentes entre
religião, moral e niilismo. “Tendo sua origem na religião (nesse caso, o judaísmo e o
cristianismo em sua relação), a moral se manifesta como niilismo em três formas:
como ressentimento, como má consciência e como ideal ascético” (Id., p. 76).
São justamente esses aspectos que tornam o homem interessante
para Nietzsche, distinguindo-o dos outros animais por constituir seu mundo interior
ou, sua alma. Esse seu mundo interior é resultado de um “longo processo histórico
que culminou na sociabilização do homem” (PASCHOAL, 2006, p. 72), o qual
aprendeu a conter os antigos instintos que lhe davam segurança, num movimento de
interiorização que, ao mesmo tempo em que dilatava as membranas deste mundo
interior, dava origem à -consciência. Na perspectiva de Nietzsche,
“diferentemente de uma indigestão psíquica que se cura por meio do esquecimento
ativo ou do ressentimento que pode ser eliminado como um movimento brusco para
fora”
(Id., p. 72), a má-consciência não deve ser eliminada, nem desviada com o
propósito de aliviar o sofrimento dela decorrente, mas ao contrário, ao se dar ênfase
ao conflito, possibilitar a elevação do homem.
A moral passou a ser entendida como a vontade de Deus e igual à
verdade enquanto o portador dessa verdade, foi o sacerdote, o qual reina, segundo
Nietzsche “graças à invenção do pecado” (AC, 49).
Ao tratar da história do mundo verdadeiro em diferentes
perspectivas, Nietzsche entende que “em todas as posições teóricas metafísicas
haveria uma motivação moral, a busca de sentido, de uma direção à vontade” (Apud
ARALDI, 2005, p. 76). Entrelaçado a essa motivação moral está o sentimento de
culpa e a consciência, uma vez que “o advento do Deus cristão, o deus máximo
até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa”
(GM, 2, 20). A dedução que o filósofo tira disso é que “considerando o irresistível
36
declínio da fé no Deus cristão” (GM, 2, 20), observa-se, também, um igual declínio
da consciência de culpa do homem. O sentimento de Deus como valor supremo não
deixou de crescer ao longo dos milênios, segundo Nietzsche, na mesma proporção
em que “toda história de luta, vitória, conciliação e fusão étnica, tudo que antecede a
definitiva hierarquização de todos os elementos populares” (GM, 2, 20) também
cresce, em progressões universais, em direção a divindades universais.
A crítica de Nietzsche ao Deus cristão é uma crítica à concepção
cristã de Deus, isto é, onde se compreende “Deus como Deus dos doentes, Deus
que tece como aranha, Deus como espírito” (AC, 18) que, segundo o filósofo, é “um
dos conceitos mais corruptos de Deus que surgiram na face da Terra” (AC, 18) e em
nome do qual “expressa-se o ódio à vida, à natureza, à vontade de viver” (AC, 18).
No texto de Zaratustra Das Tarântulas (Z, II, p. 112), essa teia é tecida como o
desejo de “igualdade” que prorrompe de “tarântulas e bem ocultas almas vingativas
[...] que se assemelham aos entusiastas; não é o coração, contudo, que os
entusiasma, mas a vingança” (Z, II, p. 113). Também previne contra o que está
oculto nessas teias: “Suspeitai de todos aqueles que falam muito de sua justiça!,
assim como quando se chamam a si mesmos os bons e os justos o esqueçais
que, para se tornar fariseus, nada lhes falta senão o poder!” (Z, II, p. 114). Justiça
divina é também o que proclama o cristianismo prometendo redenção no mundo do
além. Também se falou de Deus como espírito enquanto uma visão curta de um
“povo de vista curta, povo que ignora o que é espírito!” (Z, II, p. 117). Para Zaratustra
“espírito é a vida que corta na própria vida; graças ao seu sofrimento, aumenta seu
saber”. E, assevera: “É pouco que o espírito remova montanhas” (Z, II, p. 117). Essa
vista curta proclamadora da “igualdade” em nome do espírito, é que tece a teia da
vingança e do ressentimento dos quais o homem precisa ser redimido. Aqui surge a
questão da libertação mencionada, como a libertação necessária do despeito, do
ódio vingativo, do amargor em que o maior dos perigos é o cinismo, o pessimismo
ou a indiferença resignada: Pois que o homem seja redimido da vingança: é esta
para mim a ponte que conduz à mais elevada esperança e um arco-íris após longos
temporais” (Z, II, p. 113). Conseqüência da redenção do espírito de vingança e do
ressentimento que o acompanha, o amor agora é poder! Na Virtude dadivosa (Z, I, p.
88) poder significa ou você pode ou não pode: “Tornar-vos vós mesmos oferendas e
dádivas” (Z, I, p. 89) quando “obrigais todas as coisas a ir a vós e a estar em vós,
para que voltem a fluir do vosso manancial como dádivas do vosso amor” (Z, I, p. 89)
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porque, quando falta a alma dadivosa, ali “sempre adivinhamos a presença da
degenerescência” (Z, I, p. 89). É essa virtude dadivosa que será idêntica ao amor
redimido do espírito de vingança, desde que se possa manter a limpidez do seu
ardor guiada pelo conhecimento. Virtude dificílima de se possuir aponta para a
superação do homem que se entende como sempre-em-movimento-de-auto-
superação, encontra-se na estrutura de Dos transmundanos (Z, I, p. 47); Dos
desprezadores do corpo (Z, I, p. 51); Do pálido criminoso (Z, I, p. 54); Dos
pregadores da morte (Z, I, p. 64) etc., nos discursos de Zaratustra. Nos textos surge
a estrutura do além. Do espírito, em oposição ao corpo. Conceitos como julgar, juízo,
norma, valorizar, condenar, parecem reforçar a interpretação cristã de Deus.
Deus, então, tornou-se para o cristianismo a “fórmula para toda a
difamação do ‘aqui e agora’, para toda a mentira do além”! (AC, 18). De acordo com
Nietzsche, isso remete à busca da origem do cristianismo, solo esse do qual nasceu
e nele se fixou, permanecendo preso à crença ou, ainda, a uma falsa idéia de
verdade, um ideal. “Falseado o conceito de Deus, falseado o conceito de moral os
sacerdotes judeus não pararam por aí” (AC, 26) diz Nietzsche, ao afirmar que o povo
hebreu traduziu “em termos religiosos o seu próprio passado nacional” (AC, 26). O
que Nietzsche quer dizer com isso é que, “cristão”, no fundo, é “todo aquele que leva
adiante o ideal que outorga ao valorar humano substituir os determinantes da
natureza dos construtos fictícios e que cria, dessa forma, outros meios para os
esgotados se protegerem reciprocamente” (BARROS, 2002, p. 50). Nietzsche não
refuta o cristianismo enquanto formação religiosa, ou enquanto inconsistência
teórica, mas sim, dirige sua crítica às “monstruosidades e resíduos de declínio, que
se nomeiam ‘igreja cristã’, ‘fé cristã’, ‘vida cristã’” (Id., p. 50).
Diz o filósofo: “O que
Cristo negou? Tudo aquilo que hoje se chama cristão” (Id., p. 50). Ao desenvolver
uma crítica a esse pensamento, Nietzsche encontra a marca distintiva com a qual
Paulo vem garantir seu êxito teológico: “Desvirtuar a morte de Cristo para que esta
viesse à luz como o assentimento ao sacrifício de alguém cujo único objetivo era
redimir a culpa dos outros” (Id., p. 55). Deus surge como o que paga a si mesmo a
dívida que seu devedor, o homem, não conseguirá pagar, pois afinal sua dívida é
uma dívida eterna, posto que carrega consigo um “castigo eterno” (GM, 2, 21). Para
Nietzsche, dessa idéia horrível, dessa vontade de se torturar, para fins de
domesticação do “bicho-homem interiorizado” (GM, 2, 22), emerge a consciência
ligada à suposição religiosa que leva ao automartírio, na interpretação dos seus
38
próprios “instintos como culpa em relação a Deus” (GM, 2, 22). A partir de então,
toda felicidade passa a ser interpretada como prêmio e toda infelicidade como
castigo pela desobediência a Deus, como pecado, isto é, como falseamento da
moral. Sendo assim, o valor de um povo ou de um indivíduo passou a ser avaliado
de acordo com sua maior ou menor obediência às exigências de Deus, ou à vontade
de Deus. Segundo Nietzsche, o poder do sacerdote foi constituído como que à
sombra de Deus, ou seja, o assim denominado poder de Deus passou a ser
propriedade do sacerdote, cuja presença tornou-se: “indispensável em toda parte;
em todas as ocorrências naturais da vida, no nascimento, no casamento, na doença,
na morte” (AC, 26). É nesse momento que a desobediência a Deus insurge-se como
desobediência ao sacerdote, à lei de Deus e torna-se pecado. A tradução
nietzscheana é: “Deus perdoa a todo que faz penitência, isto é, o que se sujeita ao
sacerdote”. (AC, 26).
Igualar a idéia de verdade com o valor supremo fornece um sentido
ao homem e busca afastar de si a ameaça do niilismo, do vazio de sentido, do em
vão. Desde Platão o mundo verdadeiro insurge-se enquanto idéia, popularizando-se
no cristianismo e “gerando uma noção dualista de mundo” (ARALDI, 2005, p. 90).
Para Nietzsche no entanto, a verdade cristã é
um exército móvel de metáforas, de metonímias, de antromorfismos, numa
palavra, uma soma de relações humanas que foram poética e retoricamente
intensificadas, transpostas e adornadas e que depois de um longo uso,
parecem a um povo fixas, canônicas, vinculativas; as verdades são ilusões
que foram esquecidas enquanto tais, metáforas que foram gastas e que
ficaram esvaziadas do seu sentido, moedas que perderam o seu cunho e
que agora são consideradas não como moedas, mas como metal (AC,
13).
Eis o modo como a verdade se tornou uma bula. O esforço de
Nietzsche está em mostrar que a verdade, tendo sido instituída pelo cristianismo
como valor supremo, “acabou por se tornar uma fábula” (CI, p. 35-36). Assim, para
que se possa compreender o que Nietzsche combate no cristianismo é preciso, de
qualquer forma, ascender à compreensão da crítica dos valores por ele elaborada, a
moral, e com ela reavaliar as falsas interpretações criadas pelo pensar de
representação que criou Deus como uma interpretação distorcida de algo originário.
39
Assiste-se, portanto, desde o Prólogo de Zaratustra, à destruição e à
criação de valores em conseqüência da derrocada do valor supremo Deus a
partir do qual será constituída uma nova ordem, reanimada por uma vontade
criadora e afirmativa, denominada Übermensch, fazendo com isso uma “reabilitação
total de todos os valores esgotados em nossa cultura: a razão, a moral e suas
virtudes, e até os conceitos de metafísica tradicional são reintroduzidos” (HÉBER-
SUFFRIN, 2003, p. 72). Qual é então para Nietzsche o valor mais alto? Diz
Zaratustra: ”uma virtude dadivosa é a mais alta virtude” (Z, I, p. 89).
2.3 O que entende Nietzsche por valor
Para compreender o que Nietzsche entende por valor, retoma-se
sua obra Assim Falou Zaratustra, começando pelo discurso Dos mil e um fitos (Z, I,
p. 73.), quando Zaratustra diz o ter encontrado na terra nenhum poder maior que
o bem e o mal. Diz o profeta: “Em verdade, foram os homens a dar a si mesmos o
seu bem e o seu mal” (Z, I, p. 74). Portanto, é o homem quem avalia, quem cria os
valores. O homem conferiu valores às coisas e assim, ao avaliar, criava. “Somente
há valor graças à avaliação: e sem a avaliação, seria vazia a voz da existência” (Z, I,
p. 75). Ao dizer que “nenhum povo poderia viver se antes não avaliasse o que é bom
e o que é mau” (Z, I, p. 75), Nietzsche aponta para o papel decisório que possuem
os valores. Ao mesmo tempo, aponta para a questão de que, sendo criados pelo
homem, não nenhuma suposta divindade criando tais valores, uma vez que a
própria criação do valor supõe uma dada avaliação. Nesse caso, resta buscar sua
origem, seu ponto de partida, isto é, quais as apreciações que os engendraram. No
prólogo da Genealogia da Moral, este problema é colocado pelo filósofo como uma
necessidade de reavaliar os próprios valores. “Enunciemo-la, esta nova exigência:
necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores
deverá ser colocado em questão para isto é necessário um conhecimento das
condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e
se modificaram” (GM, Prólogo, 6). Sendo assim criação humana, o que o filósofo
quer mostrar é que não existe nenhum valor em si, pois, ao investigar a gênese da
moral percebe que medir e valorar “num certo sentido constituiu o pensamento” (GM,
2, 8) dos povos gregários, quando a própria palavra “[Mensch, em alemão]
40
designava-se como o ser que mede valores, valora e mede, como o ‘animal
avaliador’” (GM, 2, 8). Sentimentos de troca, contrato, débito, direito, obrigação,
hábito de comparar e medir, calcular um valor sobre o outro, tudo isso logo conduziu
à grande generalização: “Cada coisa tem seu preço; tudo pode ser pago” (GM, 2, 8).
Quanto mais superficialmente e grosseiramente o mundo for ‘resumido’,
tão mais cheio de valor, determinado, belo e cheio de significado ele
aparece. Quanto mais profundamente discernimos, mais rapidamente
desaparecem nossas estimativas de valor: a ausência de significado se
aproxima! Nós criamos o mundo que tem valor! Reconhecendo isso,
reconhecemos também que a veneração da verdade é já o resultado de
uma ilusão que era deus e que, mais alta do que ela, avaliou-se a
força figurativa, simplificadora, configuradora, inventiva. Tudo é falso!
Tudo é permitido! (ARALDI, 2005, p. 405-406).
Decisivo para compreender a crise de valores é perguntar o que os
criou, se foi “a fome ou a abundância que se tornou criativa” (Id., p. 394). Nietzsche
procura compreender a ambigüidade da própria criação de valores, a saber,
segundo o filósofo:
O desejo de destruição, mudança, vir-a-ser, pode ser a expressão da
força repleta, grávida de futuro, [...] mas pode ser também o ódio do
malogrado, do desprovido, do enjeitado, que destrói, que tem que
destruir, porque para ele o subsistente, e aliás todo subsistir, todo ser
mesmo, revolta e irrita (ARALDI, 2005, p. 394).
Dessa forma, tendo perambulado pelas muitas morais, das mais
finas às mais grosseiras, Nietzsche percebeu certos traços que geralmente se
agrupam em torno dos criadores de valores: se os valores afirmativos predominam,
“há uma moral dos senhores”, e se os valores de decadência predominam “há uma
moral dos escravos(ABM, 260). As diferenciações morais de valor, desse modo,
correspondem a valores que se originaram dentro de uma espécie de homens
dominantes ou de homens dominados, sendo os primeiros também denominados
nobres. Quando os dominantes “determinam o conceito de ‘bom’, são os estados de
alma elevados e orgulhosos que são considerados distintivos e determinantes da
hierarquia” (ABM, 260). Bom, então, passa a significar nobre, enquanto ruim passa a
ser o desprezível, em que o que se despreza é “o covarde, o medroso, o mesquinho,
o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar
obstruído, que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa
41
maltratar, o adulador que mendiga, e sobretudo o mentiroso” (ABM, 260). onde
quer que predomine a moral dos escravos, a linguagem tende a equivaler a bom e a
estúpido. Nesse sentido, o próprio niilismo é também valor, como condição da
possibilidade de gerar elevação ou decadência do homem, por meio da moral.
Assim, a questão do valor de uma determinada coisa, diz Nietzsche,
“reside por vezes não no que se alcança com ela, mas no que se paga por ela o
que ela nos custa (CI, 38). Por exemplo, “o egoísmo é tão valoroso quanto é
fisiologicamente valoroso aquele que o possui: ele pode ser muitíssimo valoroso, ele
pode não ser digno de nada e desprezível” (CI, 33), pois “todo e qualquer indivíduo
precisa ser considerado em função do fato de representar a linha ascendente ou
descendente da vida” (CI, 33), isto é, “prazer e dor são juízos de valor” (CI, 33). O
que então Nietzsche entende por valor? Entende-se que valorizar é o modo de uma
estrutura dinâmica de autopotencialização e auto-superação na qual se o valor
como o sentido, o peso, a importância das coisas. É essa estrutura que
significação vital às coisas como se fosse seu “suco vital”, por assim dizer.
Zaratustra levanta esta questão em Do caminho do criador (Z, I, p. 77), quando
pergunta: “Dizes-te livre? Teus pensamentos dominantes, quero ouvir, e não que
escapaste de um jugo. És tal que tinhas direito a escapar a um jugo? os que, ao
deitarem fora sua condição de servos, deitaram fora seu derradeiro valor” (Z, I, p.
78). Que valor é esse que se cria a partir do e no jugo que se suporta ou, ainda, que
liberdade é essa proposta por Zaratustra? Entende-se que essa estrutura aponta
para um poder quando diz “tinhas o direito” e também para um valor. Ter o direito
parece ser algo adquirido, assim como uma força propulsora, como energética vital,
como valor no sentido de apontar a liberdade como estando em íntima conexão com
o valor.
42
2.4 Niilismo
O pensamento de Nietzsche aborda o homem como aquele que cria
e destrói valores. Valores tradicionais, como concepções metafísicas, morais,
religiosas, etc., tornam-se fixos bloqueando o desenvolvimento e exigindo para que
isso volte a ocorrer, uma reavaliação de todos os valores. Enfraquecido e sem
coragem o homem pergunta: para quê? uma falta de sentido, uma ausência de
valor, de verdade, assim como de finalidade e de unidade.
De acordo com Paschoal (1999, p. 134), o vácuo criado pela morte
de Deus produz o que Nietzsche chama de “estado psicológico”
,
um estado de
desvalorização que emerge para a consciência por três formas que se combinam.
“São três, portanto, os conceitos básicos que se articulam a esse sentimento de
ausência de valor (Wertlosigkeit): o de finalidade (Zweck), o de unidade (Einheit) e o
de verdade (Wahrheit)” (Id., p. 135). Estas categorias que levavam ao mundo um
valor e com ele o seu fundamento, sendo retiradas deixam o niilismo presente como
uma radical falta de meta (para quê)?, bem como uma indisposição para a busca de
novas metas que, reavaliadas, porém, fundamentam o novo processo criativo que
delas pode emergir como conseqüência da morte de Deus. Afirma Nietzsche:
Não caímos, justamente com isso, na suspeita de uma oposição, de uma
oposição entre o mundo em que até agora nos sentíamos em casa com
nossas venerações em virtude das quais, talvez, tolerávamos viver e
um outro mundo, que somos nós próprios: uma inexorável, radical,
profundíssima suspeita sobre nós mesmos, que se apodera de nós,
europeus, cada vez mais, cada vez pior, e facilmente poderia colocar as
gerações vindouras diante deste terrível ou – ou: “Ou abolir vossas
venerações, ou vós mesmos!”. Este último seria o niilismo; mas o
primeiro não seria também... o niilismo? Esse é nosso ponto de
interrogação (GC 346).
Nessa “inexorável, radical, profundíssima suspeita sobre nós
mesmos” pode-se perceber que o “eu” mais radical que até agora se é, não é o eu
que se encontra como sujeito e sim que o eu Self, o eu mesmo, possui o próprio
vigor da produção do niilismo. Talvez esteja ai à espreita o conceito de Self de Jung,
como na abertura de uma nova dimensão que se como um não-eu, como em Da
visão e do enigma (Z, III, p. 164) o instante: “Dois caminhos aqui se juntam; ninguém
ainda os percorreu até o fim” (Z, III, p. 166). Não se está tomando esses dois
43
caminhos que se juntam, na filosofia de Nietzsche, como identidade eu/Self, mas
metaforicamente talvez possam representar o instante de abertura para uma
dimensão nova.
Como se verá, segundo Jung, o que decorre da morte de Deus é a
hybris luceferina de Zaratustra/Nietzsche e da civilização, por um lado, e por outro, a
possibilidade do indivíduo tornar-se quem ele realmente é, presente nessa
identidade eu/Self. Qual será a relação desta hybris com o mais estranho dos
hóspedes, o niilismo, para Nietzsche? Parece apontar para um germe de morte esse
niilismo em sua relação com a hybris.
A interrogação, essa mesma deixada por Nietzsche e que constela
em torno de si uma rede de tantas outras é, naturalmente, que mundo era esse
supostamente venerado por nós, europeus, que poderia ou pode ser abolido, e que
nós é esse que pode, ainda, ser abolido também. Haverá de fato esse ou-ou? Quem
se é afinal? Quem é o “eu” portador da hybris?
O mundo assim venerado era o mundo da Verdade, como descrito
em: Como o “Mundo-Verdade” tornou-se enfim uma fábula (CI, 5). Não se vai
explorar aqui esse sentido de Verdade, mas sim reportar ao Zaratustra de Nietzsche
e de outras obras suas.
Nietzsche diz que os homens são os veneradores, aqueles que
inventaram valores que excederam o valor do mundo real, “pois justamente disto
acabamos de retornar, como de um acentuado extravio da vaidade e insensatez
humanas, que longamente não foi reconhecido como tal” (GC, 346). O erro do
preconceito que faz entender homem e mundo como sendo dois, chega a fazer rir o
filósofo da presunção assumida pela simples palavrinha “e”. É a partir dessa
palavrinha “e” que vem a questão: e não seria isso niilismo e... também isso?
Toda a veneração constituída pelos valores não foi também
constituída pelo homem, ou seja, pelo seu instinto de fraqueza, transfigurado em
força? Tendo por base Assim falou Zaratustra, para buscar como é ali anunciado o
niilismo, o encontradas várias passagens, por exemplo: “O homem é uma corda
estendida entre o animal e o super-homem uma corda sobre um abismo” (Z,
Prólogo, p. 33).
O homem é exortado a torna-se uma ponte (Z, Prólogo, p. 31; GM,
II, 16), uma passagem e não uma meta. Exortado ainda a uma vontade de ocaso a
sucumbir, a ser dadivoso e não querer se conservar; a sacrificar-se à terra como
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aquele que “cumpre mais do que promete, pois quer o seu ocaso”(Z, Prólogo, p. 32),
a uma alma tão transbordante que se esqueça de si mesmo. Para tornar-se uma
passagem é preciso não fixar-se, não apropriar-se, seguir o devir sem buscar
nenhum propósito. Nada. Mas como não querer nada provar, nada contradizer?
Como pensar nesse niilismo a partir do próprio niilismo, talvez seja algo a ser
examinado.
Que ensina o profeta Zaratustra senão a libertação da hybris, que
parece estar na base de todo niilismo, quando temos o esclarecimento de Nietzsche:
“Híbris é hoje nossa atitude para com a natureza, nossa violentação da natureza. [...]
Violentamos a nós mesmos hoje em dia, não há dúvidas, nós, tenazes quebra-nozes
da alma, questionadores e questionáveis...” (GM, III, 9) quando não nos tornamos
mais que “crentes”.
Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem que ser
comandada, torna-se “crente”; inversamente, pode-se imaginar um
prazer e uma força na autodeterminação, uma liberdade da vontade, em
que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza,
treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e
em dançar até mesmo à beira de abismos. Um tal espírito seria o espírito
livre por excelência” (GC, 347).
Em Dos compassivos (Z, II, p. 102), o tema do niilismo insinua-se
nas palavras do profeta, quando palavras de escárnio chegam aos seus ouvidos:
“Aquele que busca o conhecimento anda entre nós como se estivesse entre animais”
(Z, II, p. 102). Mas, continua, “para aquele que busca o conhecimento, o próprio
homem chama-se, o animal que tem faces vermelhas” (Z, II, p. 102). O que deixa as
faces do homem vermelhas são os valores, é o que fez com que o homem tivesse,
com demasiada freqüência, de envergonhar-se e de ter má-consciência. Vergonha,
diz Zaratustra, essa é a história dos homens. Vergonha não do que fazem comigo ou
com outros, mas do que fazem consigo mesmos. E o que fazem esses
envergonhados a ponto de não conseguirem perdoar a si mesmos imaginado
que é ao outro que não perdoam, senão revoltar-se, reagir, tomados de
ressentimento. Apropriar-se. Chegar ao ponto de apropriar-se da própria compaixão
e de posse dela, usá-la para “atentar duramente contra a sua altivez” (Z, II, p. 102).
Ensina o profeta que grandes favores não geram gratidão e sim ressentimento, uma
vez que ao favorecido, ao ajudado, ao mendigo, de certa forma pesa esse
sentimento de impotência, de não poder. Diz Zaratustra: “Irrita dar-lhes alguma coisa
45
e irrita não dar-lhes nada” (Z, II, p. 103), isto em função de que, o que mendiga não
é o homem nobre. Esse, “impõe a si o dever de não envergonhar os outros: impõe a
si mesmo o pudor diante de todos os que sofrem” (Z, II, p. 103), além do que espera
encontrar em seu caminho, postos pelo destino, “gente sem sofrimentos, como vós,
e tal com quem eu possa ter em comum esperança e refeição e mel!” (Z, II, p.103).
Aos que sofrem, aos que não têm esperança, ali ronda a hybris
bailarina, conseqüência de sua própria pequenez. “Aprendermos a alegrar-nos
melhor será esse o melhor modo de desaprendermos a fazer sofrer os outros e a
inventar novos sofrimentos” (Z, II, p. 103), ensina a profecia. Ao finalizar o texto Dos
compassivos (Z, II, p. 102) ficam as palavras marcantes: “todo o grande amor está
ainda acima da sua própria compaixão, porque ainda quer criar o amado!” (Z, II, p.
104).
Ali onde o homem ainda quer criar, ali se delineia a possibilidade do
grande amor, para além de sua própria compaixão, pois diante da experiência do
niilismo encontra-se o homem amesquinhado, revoltado, empenhado em “apagar do
horizonte da vida todo e qualquer risco(FOGEL, 2003, p. 206). O tipo revoltado,
l’homme revolté, caracterizado por Dostoievski, é o portador da dor e da amargura
contra o finito, contra o limite, contra o carente e o deficiente como o que não deve
e não deveria ser (Id., p. 206). Numa atitude de eliminar o esforço, eliminar a
incerteza, eliminar o risco, o que se busca é o niilismo, isto é, busca-se um auto-
asseguramento que apenas revela a fraqueza, o cansaço, a vontade de nada. Hybris
e crescimento incontido, em tantos sentidos, revelam uma apropriação e um
amolecimento, um achatamento do homem para quem, agora, Deus está morto.
Zaratustra quer dizer niilismo quando afirma:
Chamaram Deus àquilo que se lhes opunha e os fazia sofrer; e, na
verdade, havia muito de heróico em sua adoração! E não souberam
amar o seu Deus de outro modo, senão crucificando o homem! (Z, II,
ps.105 - 106).
Falsos valores e palavras ilusórias foram as soluções provisórias às
quais o homem denominou Deus. Mas, Deus está morto e, então, “não há verdade –
logo, tudo é verdadeiro. Logo, tudo é falso. Verdadeiro ou falso; verdade ou erro
nada disso importa” (FOGEL, 2003, p. 208). Esses valores hoje talvez tenham se
tornado nada mais que caprichos de uma subjetividade exacerbada. Tudo é tão
somente eu. Mesmo em Dos renegados (Z, III, p. 186), essa hybris parece ter
46
acometido o próprio Deus, diz Zaratustra, quando pronunciou: “Existe somente um
Deus! Não terás outros deuses ante mim!”(Z, III, p. 187). Que tipo de necessidade
haveria nesse Deus para fazer tal imposição ao homem? Ou terá acometido os que
“voltaram a ser devotos que, como renegados, teriam se acovardado” (Z, III, p. 187)
É “o teu demônio covarde dentro de ti” (Z, III, p. 187), diz Zaratustra, “que gostaria de
ficar de mãos cruzadas sobre o ventre e levar vida mais cômoda, é esse demônio
covarde que te inculca: Existe um Deus!”(Z, III, p. 187). Diante de tal niilismo,
Zaratustra ensina a fidelidade à terra. De acordo com G. Fogel, “assim como a
natureza não procede segundo fins” (FOGEL, 2003, p. 210), isto é, dá-se, acontece
de nenhum lugar para nenhum lugar, de nada para nada. Assim, algo
extraordinário nessa fidelidade à terra que precisa ser investigado e não se
desenvolverá aqui. Falando da morte de Deus, cuja conseqüência é o niilismo,
Zaratustra outros indícios de quem era esse Deus, em Sem ofício (Z, IV, p. 261),
pelo diálogo com o Papa: “Era um Deus oculto, cheio de mistérios” (Z, IV, p. 261). E
prossegue: “Quem o gaba como um Deus do amor, não forma do amor um conceito
bastante elevado, pois não queria, esse Deus, ser também juiz? Mas quem
realmente ama, ama acima de prêmio e castigo” (Z, IV, p. 262). “Fora de vez com
semelhante Deus! É melhor não termos nenhum Deus, é melhor forjarmos nosso
próprio destino com as nossas mãos, é melhor sermos doidos, é melhor sermos
Deus nós mesmos’!” (Z, IV, p. 263). Jung tomou literalmente estas palavras de
Zaratustra e, mais que isso, tomou-as ainda como sendo do próprio Nietzsche, para
si mesmo, sinônimo da mais pura expressão de arrogância, uma vez que faz o
homem querer ser Deus ele mesmo.
Nesse texto Zaratustra se diz o ímpio, o sem Deus, e o seu
interlocutor, o Papa, lhe contrapõe: “Não é, acaso, a tua própria devoção que não te
deixa mais acreditar em Deus? A tua suprema honestidade ainda te há de levar para
além do bem e do mal!” (Z, IV, p. 264). O que podemos encontrar para além do bem
e do mal senão o revelar-se sagrado como “evidência do fundo, por cujo fundamento
ou princípio não mais é preciso se perguntar; a evidência do fundamento, portanto,
que não mais precisa reivindicar nenhum direito, nenhuma razão de ser ou para ser
tal fundamento é mesmo o raso do profundo ou a superfície do fundo como fundo”
(FOGEL, 2003, p. 211). De nada para nada, também niilismo.
Embora pareça que o homem possa aprender a pensar com a
natureza, não parece ser o homem da praça que o vai poder fazer, pois nele não
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uma escuta como ausculta. Zaratustra mesmo diz em Do homem superior (Z, IV, p.
287): “Na primeira vez que fui para o meio dos homens, pratiquei a estultície do
eremita, a grande estultície: fui à praça do mercado. E, como falasse a todos, não
falei a ninguém”, [...] na praça do mercado, ninguém acredita em homens superiores”
(Z, IV, p. 287). O que proclama o povo do mercado o é senão a igualdade, a
identidade, “somos todos iguais, um homem é um homem: diante de Deus, somos
todos iguais!” (Z, IV, p. 287). Mas Zaratustra completa:
“Não mais Deus, Deus está morto! Somente com a morte de Deus,
podem ressuscitar os homens superiores, aqueles que não querem ser
iguais. Deus morreu; nós queremos, agora, que o super-homem viva” (Z,
IV, p. 288).
Queremos o reino da terra e não o reino dos céus, diz Zaratustra.
Nietzsche parece estar sugerindo aqui a necessidade da auto-superação do niilismo
até a sua suprema afirmação:
Uma filosofia experimental, tal como eu a vivo, antecipa
experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo radical; sem
querer dizer com isso que ela se detenha em uma negação, no não, em
uma vontade de não. Ela quer, em vez disso, atravessar até o inverso
até a um ‘dionisíaco dizer-sim ao mundo’, tal como é, sem desconto,
exceção e seleção -, quer o eterno curso circular: - as mesmas coisas, a
mesma lógica e ilógica do encadeamento. Supremo estado que um
filósofo pode alcançar, estar dionisiacamente diante da existência
minha fórmula para isso é amor fati....(Apud. ARALDI, 2004, p. 124).
2.4.1 Niilismo Clássico/Niilismo Europeu
O niilismo pode ser entendido como uma atitude ou concepção
particular e subjetiva, na qual se tudo a partir do negativo e na direção dele, do
nada (nihil). É algo como rejeição pessimista e depressiva da vida. O niilismo do qual
Nietzsche fala, no entanto, denomina-se niilismo europeu, embora Nietzsche mesmo
reconheça as diversas camadas de significação do niilismo em diferentes momentos
de sua obra, ainda que constitutivos de um mesmo movimento. O adjetivo europeu
do niilismo de Nietzsche também não está se referindo à Europa geográfica,
podendo ser entendido também como sinônimo de “ocidental”- “empregados na
acepção espírito-cultural” (ARALDI, 2004, p. 55). O niilismo europeu torna-se para
48
Nietzsche o termo para indicar o movimento que caracteriza e domina a história do
Ocidente ou, melhor ainda, o movimento que é a própria História do Ocidente. Trata-
se, portanto, de um processo cujo evento máximo, cuja consumação, se expressa e
se resume nas palavras “Deus está morto”.
É um movimento que vem, diagnosticado por Nietzsche, constituído
por um horizonte obliterado pela sombra do homem-anão. “O que nele se
empreende, mais de três séculos, é, para o filósofo, uma tentativa global em
sentido inverso da auto-superação do homem, a saber, o ensaio de auto-
rebaixamento, de congelamento do “tipo homem” numa figura medíocre e banal”
(GIACÓIA, JR, 2005, p. 51). Trata-se, portanto, de um fenômeno da História do
Ocidente, suscitando oposições e ambigüidades, ao mesmo tempo em que é situado
historicamente. Esse fenômeno é pensado no interior do projeto filosófico que
partindo da crítica da modernidade, tem “a pretensão de construir um tipo de homem
afirmativo” (ARALDI, 2004, p. 34), visando a atingir uma superação da oposição
entre homem e mundo, isto é, apresenta a necessidade de radicalização do niilismo,
visando à sua superação. A crise da modernidade é decorrente do predomínio de
uma prática científica desmedida, com predomínio também do declínio do poder e da
disciplina do espírito.
De acordo com Giacóia Jr., Nietzsche não recusa a objetividade
científica, “desde que seja considerada como interpretação, no caso, como esquema
de formulação e simplificação, com vistas à comunicação e ao cálculo” (GIACÓIA
JR., 2005, p. 38), pois o que a ciência faz é criar, a partir de modelos lógico-
matemáticos, uma linguagem simbólica comum a todos os fenômenos. A partir daí, a
descrição dos acontecimentos insere-se em esquemas de calculabilidade, o que
facilita a operacionalização dos processos mas, ao mesmo tempo, traz consigo o
problema da “pretensão científica de apresentar tais esquemas como verdade,
arrastando consigo os irrefletidos artigos de fé na lógica e na gramática da
linguagem, hipostasiando ‘coisas’, substâncias, agentes, pacientes, propriedades,
causas e efeitos” (Id., p. 39). Para Nietzsche, segundo Araldi, as fontes iniciais do
niilismo encontram-se em vestígios da leitura do “romance Pais e Filhos, de Ivan S.
Turgueniev, bem como do prefácio de Prosper Mérimée a esta obra” (Id., p. 56).
Além do acima citado, o que caracteriza o niilismo europeu é a perda
de credibilidade do Deus Cristão, interpretado como o sobrenatual (o metá-físico), o
mundo supra-sensível, o mundo dos valores e das idéias que constituem a meta, o
49
fim para o qual tende a vida. O niilismo é a conseqüência da desvalorização dos
valores morais, metafísicos e religiosos da tradição ocidental, cuja raiz está na
interpretação moral da existência e do mundo. A tentativa de substituir esses valores
por uma infinidade de “ismos”, sejam eles denominados, um mundo melhor,
sociedade, progresso, Estado, razão, etc., é a tentativa de preencher o vazio
deixado pelos diferentes valores que foram desvalorizados (GC, 125) e, nesse
sentido, produzindo o que Nietzsche denomina niilismo incompleto.
8
Para que não fique incompleto, deve sobretudo constatar e
considerar a desvalorização de todos os valores, para que não haja substituição dos
antigos valores por valores novos similares. Sobrecarregado de impressões, o
homem moderno não consegue mais “digerir” os estímulos externos, apenas
reagindo a eles. Sobrevêm-lhe, então, um cansaço e um peso, conseqüências do
enfraquecimento da força de digestão, sendo marcado por uma irritabilidade doentia,
por um caos de instintos e pulsões que não mais estão ordenados hierarquicamente.
O desdobramento da História do Ocidente coloca as condições que
apontam o grande temor de Nietzsche como a mais fatal das fatalidades: é o “grande
nojo ao homem; e também a grande compaixão pelo homem”, [pois] “supondo que
esses dois um dia se casassem, inevitavelmente algo monstruoso viria ao mundo, a
‘última vontade’ do homem, sua vontade do nada, o niilismo” (GM, III, 14). Esse nojo
e compaixão ecoam em O grito de socorro (Z, IV, p. 244), no Zaratustra, em que a
chegada do adivinho traz consigo o anúncio do grande cansaço, que ensinava:
“Tudo é igual, nada vale a pena, o mundo não tem sentido, o saber nos sufoca” (Z,
IV, p. 244), e pode ser designado com a expressão passivo niilismo”, isto é,
“entendido como aspiração ao nada e como tendência à compaixão, à resignação, à
quietude”
(GIACÓIA, JR., 2005, p. 116), que dispõe também, as condições para a
emergência de uma outra forma de niilismo, o niilismo ativo”, isto é, como
inquietude e vontade de destruir” (Id., p. 116), sendo que a destruição é
compreendida “como afeto, pathos ou instinto em que predomina o não, a negação
determinada e apaixonada” (Id., p. 118).
O termo passivo designa ainda, para Nietzsche, “um movimento de
resistência e de reação”, uma forma de ser que se caracteriza pelo bloqueio, pela
8
Este estado de desvalorização está mencionado na página? (cf. Paschoal).
50
inibição (Gehemmt), quando se trata de “lançar-se agressivamente para frente”
(PASCHOAL, 1999, p. 113), no qual a força do espírito pode estar cansada e
esgotada. Por outro lado o ativo niilismo aponta para uma disposição que faz com
que, em momentos de pressão das condições da existência, “um ser se distenda,
cresça e ganhe poder...” (Id., p. 114).
Do fenômeno da vida participa o agregar-se e o desagregar-se de
forças, o que significa que a decadência, proveniente desse processo de dissolução
não é necessariamente negativa, mas parte de um processo. A degeneração da
antiga composição é denominada, então, decadência. Uma vez que são os valores
que compõem uma determinada agregação de forças, dando manutenção e
elevação a uma determinada organização, é sempre uma crise de valores que
estabelecerá o início de um processo de decadência. Essa crise sugere a
necessidade de aniquilar uma organização aentão mantida, surgindo a partir de
uma outra necessidade, isto é, de sua reinterpretação.
Essa reinterpretação quer um exame mais atento daquilo que
passou a ser o “revestimento, jogo de máscaras, seu ocasional endurecimento,
ressecamento, dogmatização” (GM, III, 25), para liberar nele a vida que foi
bloqueada em função de uma superestimação da verdade ou, “mais exatamente, na
mesma crença na inestimabilidade, incriticabilidade da verdade” (GM, III, 25). Essa
liberação ou expansão do homem interior vem desde uma pressão produzida em
qualquer processo de socialização que se encontra na base da construção dessas
organizações, incluindo a repressão de antigos instintos, que ao não poderem mais
ser satisfeitos, nem extravasados, nem suprimidos, voltam-se para dentro do próprio
homem, o que pode levar a uma expansão do Homem Interior, tonando-o profundo,
largo, alto, ou pode, ainda, torná-lo não mais que o portador da “má-consciência”,
que tem a função de despertar no culpado o sentimento de culpa, aquela reação
psíquica chamada “remorso”. A esse movimento dos instintos denominou-se alma.
Com isso “um enorme quantum de liberdade” (GM, II, 17), tendo sido
eliminado do mundo ou, pelo menos, do campo de visão e tornado como que latente
à força, como um instinto de liberdade reprimido, encarcerado no íntimo, apenas
isso, foi em seus começos a consciência. Como todo processo é contraditório, a
mesma força que gera a consciência é também “a matéria na qual se extravasa
a natureza conformadora e violentadora dessa força” (GM, II, 18), que é o homem
mesmo e da qual o “deleite em se dar uma forma”, essa “oculta violentação de si
51
mesmo”, essa “crueldade de artista”, lutando para impor-se a si mesmo “a ferro e
fogo uma vontade”, “uma crítica”, “uma contradição”, é desse molde que será
forjado, dessa horrendamente cindida alma, o “vir à luz de uma profusão de beleza e
afirmação nova e surpreendente” (GM, II, 18). Fala-se assim de uma má-consciência
ativa.
Nesse sentido, os termos ativo e reativo comportam a possibilidade
de “agrupar alguns sintomas que caracterizam certas formas de vontade de poder
por seu atuar” (PASCHOAL, 1999, p. 119), isto é, que a “crise do niilismo que a
dissolução dos valores ocasiona, possibilita uma reierarquisação das forças” (Id., p.
120). Tratando-se deste jogo de forças, o niilismo pode ser também entendido,
segundo Michel Haar, como caos: “o caos seria o nome ‘natural’ do niilismo” (Id., p.
120). Aqui, caos é pressuposto como a condição de base a partir do qual “poderiam
desenvolver-se e intensificar-se todos os impulsos criativos da vontade de potência”
(Id., p. 121), pois, segundo Zaratustra: “é preciso ter ainda caos dentro de si para
poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: ainda caos dentro de vós” (Z,
Prólogo, p. 34), mas em seguida prevê que chegará o tempo em que “o homem não
dará mais à luz nenhuma estrela” (Z, Prólogo, p. 34), deixando entrever o duplo
aspecto do sentido do caos, o de criar ou aniquilar ou, ainda, nesse caso e em casos
extremos, quando na inocência, “o jogo de criar e destruir é, antes de mais nada,
uma conquista que pressupõe a libertação dos juízos morais” (Id., p. 416).
De acordo com Araldi, “o esforço em caracterizar o niilismo em suas
várias formas e em suas metamorfoses, a tentativa de fornecer um diagnóstico, uma
anamnese e um prognóstico que atestem o caráter do processo de transcurso
histórico dessa questão não resultam, contudo, na elaboração de uma obra
acabada, em que o autor expõe seus pensamentos de modo inequívoco e
conclusivo” (2005, p. 46).
Esse processo do niilismo ocidental parece ter sido iniciado por
Sócrates, com a pergunta básica “para quê/ por qual finalidade?” (PASCHOAL,
1999, p. 120), e pressupõe um “olhar inquisidor do homem para o seu interior
(“conhece-te a ti mesmo”) na busca de causas para o seu agir, do significado e valor
de uma intenção que deve expressar uma finalidade (Ziel) que autorize seu agir. A
questão é que a legitimação dessa ação era, normalmente, entendida como algo
que vem de fora, como de uma autoridade sobre-humana”, que parecia ser externa,
e passa a ser substituída por uma autoridade pessoal”, por uma autoridade da
52
razão”, pelo “instinto social”, ou ainda pela compreensão da “história com um espírito
imanente, o qual tem a sua finalidade em si...” (Id., p. 121). Isso tudo ocorre na
mesma medida em que o homem se afasta de uma prática religiosa, mas não dos
pressupostos dessa prática. Desse modo, no campo religioso, a decadência
(pressuposto para o niilismo) garante “sua hegemonia, por meio da imposição do
seu Deus como Deus único, absoluto” (Id., p. 126), ou seja, ela opera por uma
“esperteza de moedeiros falsos”, seus valores são antes uma transfiguração da
fraqueza em valor. Enquanto opção por formas de expansão e afirmação da vida,
quanto a que opta pela fraqueza e pela supressão dos impulsos básicos, pode-se
dizer que ambas, enquanto estratégias de domínio, querem exteriorizar e expandir
seu poder.
Considerando-se que o projeto cultural da decadência é um homem
fraco que prima, sobretudo, pela “felicidade do repouso, da o perturbação, da
saciedade e da unidade enfim alcançada, ou ‘sabá dos sabás’” (Id., p. 125), tanto na
vida quanto na sua extensão, a vida eterna, essa meta, parece mais uma loucura.
Trata-se de propor o próprio estrangulamento da vontade de poder, do próprio
movimento da vida.
Essa sensação de perda de sentido surge como um modo de ser
submisso, de um “cansaço e fraqueza”, ou como um modo de ser de revolta, de
hybris, que se traduz numa espécie de dever de destruição diante da natureza, de
Deus e do próprio homem. Ambos são modos de ser do niilismo passivo, em que se
constata que “o mundo não tem mais nenhum sentido” e que, ao mesmo tempo, cria
também as condições de pensar em novas formas de valorar que não precisam
pressupor nem velhos nem novos fundamentos.
Isso significa que, uma inversão de valores, uma auto-superação da
moral, uma superação do niilismo passivo, se faz necessária. Nesse sentido,
Nietzsche “considera o niilismo uma necessidade para o homem, pois graças a ele o
homem tornou-se capaz de fazer experimentos, permitindo à sua alma ‘se tornar
má’” (Id., p. 143). Ainda que isto se dê, num primeiro momento, num movimento
irrefreado e sem controle, é essa mesma crise que produz aquela “magnífica tensão
do espírito”, com a qual “pode-se agora mirar nos alvos mais distantes” (Id., p. 143)
.
Aqui, o “último homem” e o “além do homem” são realidades que se tornam
possíveis pelo desdobramento do mesmo processo.
53
O homem se torna interessante para Nietzsche quando nele se
acentua o conflito, principalmente por meio da introjeção dele e da perturbação que
a ascese produz, gerando a possibilidade da preparação e explosão do ativo
niilismo: é quando a vontade de verdade ascende à consciência como um problema.
Essa preparação pode dar-se por meio do experimentar.
O experimentalismo é concebido por Nietzsche como um niilismo
completo, desde que possa ser experimentado o desnorteamento causado pela
derrocada da moral e da metafísica. Esse é o momento, o que possibilita lançar o
homem na grande aventura, no mar aberto, no improvável, no não descoberto. Tal
momento pressupõe o conhecimento dessa moral de décadence e de todos os
valores que se encontram nas bases dos conceitos de bem e mal, “como condição
para ‘deshipostasiar’ a moral vigente” (Id., p. 143). Para Nietzsche, o ideal ascético
foi “até agora o único sentido; qualquer sentido é melhor que nenhum; o ideal
ascético foi até o momento, de toda maneira, o faute de mieux par escellence(GM,
III, 28). A contradição do ideal ascético esem negar a vida sensível, combater a
vida em si mesma, denominando esse processo de sacrifício de si, gera ao mesmo
tempo, um desgosto da vida, desejo de fim, pessimismo, um movimento niilista.
Com o niilismo ativo, o receio de que não haja um solo onde fundar
a verdade, valores, etc. e “a falta de resposta à pergunta pelo sentido são levados às
suas conseqüências mais extremas com a afirmação de que realmente não
qualquer tipo de “solo estável”, “fundamento”, “verdade” ou “coisa em si”. Sua
negação a tudo o que é “absoluto” significa um ‘sim’ ao mundo como ele é, e que
eternamente retorna como é” (Id., p. 149 – 150). “Essa é a forma extrema do
niilismo: o nada (o ‘sem sentido’) eterno” (Id., p. 150), cuja postura traz em si a
inversão/transvaloração de todos os valores, bem como também ela é a condição
para o homem criador de valores. Tem-se, aqui, a forma do niilismo extremo, como
última expressão do niilismo ativo, que é um desdobramento do niilismo completo e
cuja característica admite a mais terrível de todas as hipóteses possíveis: o eterno
retorno do mesmo. De acordo com Nietzsche,
[...] a negação que ele lança à vida traz à luz, como por milagre, uma
quantidade de afirmações mais delicadas; sim, mesmo quando ele se
fere, esse mestre destruidor, destruidor de si mesmo é ainda a ferida
que o obriga a viver. (GM, III, 13).
54
É essa ferida e o sofrimento nela implícitos que obriga os “fortes a
serem fortes e a manterem a sua robustez” (Id., p. 150), enquanto que, nos homens
fracos e doentes, o sofrimento “aguça o desejo de fim” (Id., p. 150), nesse caso sob
o pretexto de conservar sua existência. No niilismo completo, tem-se então a
possibilidade da fundação da nova ordem da afirmação da Terra, da Vida, o niilismo
chega à sua consumação podendo ser denominado niilismo clássico, o niilismo
europeu. Para fazer jus a essa absoluta afirmação da Vida, Nietzsche indica o
Princípio de uma nova valorização.
55
3. JUNG E OS SEMINÁRIOS NIETZSCHE’S ZARATHUSTRA
Neste segundo capítulo, apresenta-se Jung e o modo como surgiram
os Seminários, bem como alguns comentários de James Jarret (NZ, X), o editor dos
Seminários. Introduz-se alguns comentários de Jung a Nietzsche e sua obra,
deixando para analisar, posteriormente, de modo mais detalhado, a presença do
Zaratustra nos Seminários. Antes disto, analisam-se alguns conceitos básicos da
Psicologia Analítica, necessários para se introduzir o pensamento de Jung e sua
compreensão da “morte de Deus”, bem como os aspectos que, segundo Jung,
apontam a hybris luciferina de Zaratustra e a conseqüente megalomania, estendida
da análise do autor, para a história da civilização, em que “o número das neuroses
vai aumentando consideravelmente, mostrando uma ausência inquietante de
equilíbrio” (PROO, XI, p. 514).
3.1 Jung em relação a Nietzsche
Carl Gustav Jung (1875-1961) diz ter vindo “da psiquiatria, bem
preparado por Nietzsche, para a psicologia moderna” (EP, VII, p. 199). Fará menção
de reconhecer, tanto no Fausto como em Zaratustra, uma estranha figura
compensatória que vem responder à crise da tradição paterna, à tradição cristã, a
qual dará vida a uma outra personalidade, indicada como nº. 2, provindo de um
“espírito coletivo cuja idade é contata em séculos” (CAROTENUTO, 1992, p. 68). Em
seu confronto com Nietzsche/Zaratustra delineia-se a direção fundamental da
interpretação de Jung, pois o seu nº. 2 identifica-se, a seu ver, com o Zaratustra de
Nietzsche e, conseqüentemente, com o Self/Selbst ao ver “desenvolver-se o mesmo
drama que tinha se expressado nele, que, na infância havia emergido do
inconsciente” (Id., p. 70). Tanto para Jung quanto para Nietzsche, segundo o próprio
Jung, o tema da “morte de Deus” leva a um reentrar na terra, na natureza, o que
ressoa do começo ao fim na interpretação do Zaratustra. “Esta afirmação de que
Deus está morto é obviamente da maior importância” comenta Jung, pode-se dizer
56
mesmo que “nela está exposto todo o problema do Zaratustra(Id., p. 70). Para
Jung, Zaratustra começa lá, onde o espírito cristão sucumbe. Com a morte de Deus
perde-se toda orientação estável para uma civilização, trata-se nada menos que a
experiência de um caos inevitável. Mas, desse caos, surge a nova possibilidade:
inaugura-se uma nova criação. Jung traz, portanto, de Nietzsche, a idéia da morte de
Deus como característica da nossa época. Eu sei apenas e com isso exprimo o
que sabe um número infinito de homens que o tempo presente é um tempo de
morte e de desaparecimento do deus” (Id., p. 72). Em uma conferência de 1937,
Jung cita Nietzsche:
Quando Nietzsche disse: “Deus está morto”, ele enunciou uma verdade
que vale para a maior parte da Europa. Os povos foram influenciados,
não porque ele fez esta constatação, mas porque se tratava da
constatação de um fato psicológico universalmente difuso. As
conseqüências não tardaram a surgir: o obscurecimento e o
ofuscamento dos ismos e a catástrofe (PROO, XI, p. 87).
Jung deixa entrever aqui a grande contribuição do pensamento de
Nietzsche, para a formação e renovação da cultura, a partir da “morte de Deus”.
Porém, ao longo dos Seminários Nietzsche’s Zarathustra, Jung mostrará profundas
ambivalências em torno da sua compreensão.
3.2 Os Seminários Nietzsche’s Zarathustra
Cumpre reportar, inicialmente, ao modo como surgem e decorrem os
Seminários, bem como a sua influência no próprio Jung.
No ano de 1923, Jung inicia, para um grupo seleto de analistas,
seminários intitulados Dream Analysys e na primavera de 1934 ele leva a termo tais
seminários no Clube Psicológico em Zürich, quando surge uma discussão acerca do
tema para os seminários seguintes. Foi proposto analisar a obra de Nietzsche Assim
falou Zaratustra. Os Seminários Nietzsche’s Zarathustra, apesar da advertência de
Jung de que a análise da obra era, de um lado por ser de Nietzsche, “cuja mente era
altamente perturbada e perturbadora(NZ, p. 10) e, por outro lado, pelo fato de a
obra ser um escrito que poderia lhes custar duro trabalho, o constrange o grupo,
57
que decide assumir o trabalho no mês de maio de 1934, interrompendo-o na
iminência da segunda guerra mundial no verão de 1939.
Para a transcrição dos seminários foi contratada uma secretária
profissional que tomava notas editadas por Mary Foote, com a ajuda de vários
membros do grupo que, juntamente com os demais, também faziam anotações. As
cópias encadernadas e multiplicadas eram colocadas à disposição para a avaliação
dos participantes e de outros associados da Psicologia Analítica, mas com a
advertência de que seriam de uso exclusivo dos membros do seminário de que sem
o consentimento do Professor Jung não poderiam ser emprestadas e nenhuma parte
delas copiadas ou citadas para publicação. Para quem não participava dos
seminários, ali estava uma oportunidade de se familiarizar com o pensamento do
Professor Jung. Falando informalmente, expondo questões e fazendo observações,
não se incomodava se, na discussão, se afastavam do tema principal, mas oferecia
sugestões de leitura, mencionando situações políticas e econômicas dos
acontecimentos contemporâneos, fazendo gracejos entre outras situações.
A primeira publicação surgiu em 1957 e o aparecimento em 1984 de
Dream Analysis, editada por William McGuire, inaugurava o projeto de publicação da
maioria das notas dos seminários de Jung. Já em suas primeiras obras Jung discutiu
Nietzsche, atestando a importância dele para a sua maturidade intelectual como
filósofo e poeta-psicólogo.
Em seu livro, Memórias, sonhos e reflexões, comentando sobre seus dias de
estudante, Jung conta sobre suas leituras e estudos filosóficos e fala também de
Nietzsche:
Tinha medo de descobrir que, como Nietzsche, eu era um ser à parte.
Naturalmente si parva componere magnis licet ele era um professor
universitário, escrevera livros, atingira alturas vertiginosas; provinha, é
certo, de uma família de teólogos da grande e vasta Alemanha que se
estendia té o mar, enquanto eu era um suíço, filho de um modesto pastor
de uma cidadezinha fronteiriça. Ele falava um alemão erudito, sabia
latim, grego e talvez francês, italiano e espanhol, enquanto eu dispunha
com alguma firmeza apenas do dialeto germânico-basileu. De posse de
todas essas maravilhas ele tinha direito a certas excentricidades; quanto
a mim, devia ignorar até mesmo em que medida poderia ser parecido
com ele. Apesar de meus temores estava curioso e me dispus a lê-lo
(MRS, p. 98).
Jung, nessa época, entusiasma-se com a leitura de Nietzsche.
58
Caiu-me nas mãos o livro Considerações Inaturais. Entusiasmei-me e li
em seguida Assim falava Zaratustra. Essa leitura, como a do Fausto, de
Gothe, foi uma de minhas impressões mais profundas. Zaratustra era o
Fausto de Nietzsche, e a personalidade nº. 2, o meu Zaratustra
naturalmente respeitando a distância que separa um monte de terra
levantado por uma toupeira e o Mont Blanc. Achei Zaratustra mórbido.
Seria ele também o meu nº. 2? (MSR, p. 98-99).
Nessa obra Jung nomeia o eu=ego como número 1 e o Si-
mesmo=Self/Selbst como número 2. “Nietzsche descobrira o seu número 2 mais
tarde, depois da segunda metade de sua existência, ao passo que eu o conhecia
desde a juventude” (Id., p. 99), diz Jung. E prossegue:
Nietzsche falava ingênua e irrefletidamente desse arrheton (segredo),
como se fizesse parte da ordem comum.[...]Seu equívoco mórbido –
pensei- fora expor seu nº. 2 com uma ingenuidade e uma falta de
reserva excessivas a um mundo totalmente ignorante de tais coisas e
incapaz de compreendê-las. Ele alimentava a esperança infantil de
encontrar homens que pudessem experimentar seu êxtase e
compreender a ‘transmutação de todos os valores’[...]não se
compreendeu a si mesmo ao cair no mundo do mistério e do indizível,
pretendendo além do mais exibi-lo a uma massa amorfa e abandonada
pelos deuses (Id., p. 99).
Terminados os seus estudos na escola médica, Jung vai para o
Hospital Burghöltzli de Zürich como psiquiatra residente. Ali ocorreu o encontro
histórico com Freud. Jung surpreende-se com a declaração de Freud, “homem tão
versado e lido nas coisas da cultura e do espírito” (NZ, p. 11), de que ele, nunca
tinha lido Nietzsche. Depois da ruptura com Freud em 1913 e durante o isolamento
forçado pela guerra, Jung dedica-se à leitura mais intensa de Além do Bem e do Mal,
A Gaya Ciência, Genealogia da Moral e naturalmente também de Zaratustra. Jung
então fica fortemente impressionado pelo fato de quão poderosamente o caso de
Nietzsche ilustrava sua própria compreensão crescente de que as crenças, as mais
básicas de uma pessoa, possuem seus caminhos para a personalidade e, assim,
pode-se descobrir mais acerca da personalidade própria de um autor do que de seus
escritos. Em Tipos psicológicos (1921) ele reconhece Nietzsche como altamente
introvertido/intuitivo, com a função fortemente desenvolvida do pensar, mas com
sérias fraquezas em sensação e sentimento.
59
Schopenhauer e Kant, que tiveram grande influência sobre Jung,
eram ambos tipos-pensamento
9
(de acordo com a teoria de Jung, acerca dos tipos
psicológicos) (TP, VI), função essa que aparece fortemente também em Nietzsche,
nos seus escritos aforísticos. Mas, aqui, “estava-se diante de um filósofo cujos
interesses eram mais psicológicos do que metafísicos, e que estava constantemente
em busca da visão do mundo que guiaria e enriqueceria a vida”(NZ, IV). Jung
percebe então que ninguém melhor do que Nietzsche para ilustrar a necessidade de
se valorizar não tanto o que o filósofo diz ou escreve, mas de examinar as palavras
no contexto da qualidade da sua vida. Nesse caso, comenta Jung, Nietzsche parece
ter sido o primeiro a perceber isso na Filosofia da Idade Trágica dos Gregos,
quando diz terem sido os gregos os “admiráveis na arte de aprender dando frutos; e
deveríamos, como eles, aprender com os nossos vizinhos a utilizar os
conhecimentos adquiridos como apoio para a vida e não para o conhecimento
erudito” (FITG, p. 19).
No parágrafo 37 de Estudos sobre Psicologia Analítica, Jung aponta o fato de
que Nietzsche quis dizer “sim” ao instinto, mas não pôde vivê-lo. Disse: “Nietzsche
quis ensiná-lo e foi honesto em seu empreendimento. Com rara paixão sacrificou
sua vida inteira e a si mesmo à idéia do super-homem, isto é, à idéia do homem que,
obedecendo ao seu instinto, também excedesse a si mesmo. E como transcorreu
sua vida? Da maneira como ele a profetizou no Zaratustra: naquela queda mortal,
premonitória, do saltimbanco, o “homem” que o queria que “lhe passassem por
cima” (EPA, VII, p. 23). Jung cita ainda nessa obra a passagem em que Zaratustra
diz ao moribundo: “Tua alma morrerá mais depressa que o teu corpo!”
10
(NZ, p.
136). E, em seguida, a passagem em que o anão fala a Zaratustra em Da visão e do
enigma (III, p. 164): “Ó pedra da sabedoria! Arremessaste-te para o alto; mas toda a
pedra arremessada deve - cair![...]. Condenado a ti mesmo e ao teu próprio
apedrejamento, ó Zaratustra, bem longe, sim, arremessaste a pedra - mas é sobre ti
9 Jung refere-se aos tipos-pensamento” como portadores de uma função psicológica predominante,
denominada pensamento: “o processo da sensação constata essencialmente que algo existe; o
pensamento vai dizer o que significa; o sentimento, qual o valor dela; e a intuição é suposição e
pressentimento sobre o “de onde” e “para onde”. (Tipos Psicológicos. Jung, C.G. Vol. VI, 1054,
Petrópolis: Ed. Vozes, 1991).
10
“Thy soul will be dead even sooner than thy body”, p. 136. Nietzsche’s Zarathustra – Notes of the
Seminar Given in 1934-1939 by C.G.Jung. Edited by James L. Jarrett. Bollingen Series XCIX,
Princeton University Press.
60
que ela cairá de volta!” (Z, III, p. 165). Essa é a profecia que, segundo Jung,
Nietzsche faz sobre sua própria vida, pois embora tenha ensinado o “sim” ele
mesmo vivia o “não”, isto é, “Nietzsche viveu muito além do instinto, prenunciando
seu desastre psíquico. Foi-lhe possível manter-se nessas alturas graças à mais
meticulosa dieta, num clima privilegiado e ingerindo grande quantidade de soníferos,
até que a tensão lhe estourou os miolos” (EPA, VII, p. 23).
Ainda nesse capítulo, intitulado “Outro ponto de vista: a vontade de poder”,
Jung apresenta Nietzsche como aquele cuja vida não demonstra seu ensinamento,
pois assevera ele: “Sem menosprezar sua grandeza e importância, ele foi uma
personalidade mórbida” (EPA, VII, p. 24), pois “como é possível, que a natureza
instintiva do homem o tenha justamente afastado do convívio dos homens,
relegando-o ao mais absoluto isolamento, defendido pelo nojo do contato com o
rebanho?” (EPA, VII, p. 24). Jung como isolamento uma solidão que Nietzsche
exaltava como parte do caráter dos grandes filósofos gregos: “Tales, Anaximandro,
Heráclito, Parménides, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e Sócrates, todos
esses homens são talhados de uma pedra. [...] Todos eles são, numa solidão
extraordinária, os únicos homens que então viviam votados ao conhecimento” (FITG,
p. 20). Para Zaratustra essa solidão é um modo de ser que faz surgir o eu-mesmo
como a auto-identidade em Das moscas da feira (Z, I, p. 67).
Segundo Jung, entre os dois grandes instintos, o instinto de
conservação da espécie e o instinto de autoconservação, é deste último que
Nietzsche nos fala, isto é, “da vontade de poder” pois explica o psicólogo: “Como é
possível, perguntamo-nos surpresos, que a natureza instintiva de um homem o
tenha justamente afastado do convívio dos homens, relegando-o ao mais absoluto
isolamento, defendido pelo nojo do contato com o rebanho?” (EPA, VII, p. 24). E
prossegue: “Então o instinto não junta, não copula, não gera, não busca o prazer e a
vida gostosa, a satisfação de todos os desejos sensuais?” (EPA, VII, p. 24). Dirá
com isto que, para Nietzsche, predominou o instinto de autoconservação, apontando
com isso para o perigo da unilateralidade neurótica quando se faz abstração do
cristianismo. Para ele, “tudo que existe de instintivo é decorrência da vontade de
poder.[...] Nietzsche sentiu em toda a sua profundidade a renegação cristã da
natureza animal e buscou a totalidade humana mais elevada, que superasse o bem
61
o mal” (EPA, VII, p. 24). Tal comentário aponta a vontade de poder como uma
vontade de tornar-se “um herói ou deus, com uma grandeza muito acima do
humano. Sente-se como se estivesse a ‘6 mil pés além do bem e do mal’” (EPA, VII,
p. 24) em um estado designado “identificação com a sombra” (EPA, VII, p. 25).
Jung acredita, como aparece acima, que a psicose de Nietzsche se
anuncia bem antes do seu colapso no ano de 1889 e a neurose estava todo o tempo
ali, ao longo da vida presente. Ao mesmo tempo que “mantinha firmemente a
posição de que a arte não é uma morbidez” (EAC, XV, p. 87), reconhecia que “uma
pessoa deve pagar caro pelo divino dom do fogo criativo” (EAC, XV, p. 87). E isso é
especialmente válido para o gênero de artistas que chamamos de “visionários”,
aqueles com presciência aterradora, como Goethe e Joyce, e certamente “para esse
estranho, solitário, angustiado, gênio produtivo como o foi Nietzsche” (EAC, XV, p.
87). Ele sabe, desde o estudo dos gregos, que a forma como um filósofo aparece,
depende da civilização e de como ela “pode responder a pergunta relativa à tarefa
do filósofo em geral” (FITG, p. 22), porque essa civilização sabe que o filósofo
não é alguém que surge aqui ou ali, pois “há uma necessidade férrea que acorrenta
o filósofo a uma civilização autêntica. Mas o que acontece quando essa civilização
não existe?” (FITG, p. 22). A resposta de Nietzsche é que, então, “o filósofo é como
um cometa imprevisível e assustador” (FITG, p. 22).
Jung Nietzsche como alguém que viveu em si a experiência da
redescoberta do inconsciente feita no século XIX (“è il precursore della scopperta
dell’inconscio, è il profeta delle forze psichiche colletive che inquietano la coscienza
moderna(PEZZLLA et al., 1996, p. 11). A essa redescoberta do inconsciente atribui
os conteúdos da obra Assim Falou Zaratustra como sendo trazidos à luz por
Zaratustra, “principalmente os conteúdos do inconsciente coletivo de nossa época e,
por isso encontramos também nele as características decisivas: a revolta iconoclasta
contra a atmosfera moral tradicional e a aceitação do homem ‘mais feio’ que leva à
tragédia comovente e inconsciente, apresentada em Zaratustra(TP, VI, p. 188).
Jung quer dizer com isto que certos “espíritos criadores” extraem do inconsciente
coletivo algo que já existe e que mais cedo ou mais tarde “aparecerá como
fenômeno das massas” (TP, VI, p. 188).
Os seminários (1934-1939) surgiram numa época em que, segundo
Jung, a reputação de Nietzsche estava em alta pois, diz Jung, “no seu curto tempo
de vida - ele teve pouco mais de 15 anos de trabalho maduro, criativo antes de seu
62
colapso em 1889 -, ele foi mais assunto de fofocas ou até ignorado do que levado a
sério” (NZ, XI). Muitos de seus escritos foram publicados “com recursos próprios ou
a expensas” (NZ, XI) e continua ele:
Somente no fim estava começando a ser reconhecido pelas pessoas fora
do estrito círculo dos seus conhecidos: August Strindberg, Georg
Brandes, Hippolyte Taine. Depois do seu colapso mental, suas idéias
facilmente eram rejeitadas como doentias, embora brilhantes. Nos anos
próximos a 1925, um manual popular de história da filosofia na América
não menciona Nietzsche no rol dos pensadores do século XIX. No
entanto, mesmo sem ser reconhecido totalmente, Nietzsche teve notável
efeito sobre os escritores do século XX: Thomas Mann, Schaw,
Lawrence, Remy de Gourmont, Heidegger, Jaspers etc” (NZ, XI).
De acordo com a visão de Jung, o brilhantismo da mente de
Nietzsche aparece desde o início de seus estudos. Fez a sua especialização
acadêmica em filologia clássica em Bonn e em Leipzig. Era reconhecido por seus
professores e companheiros como destinado a uma brilhante carreira acadêmica,
tendo sido indicado, com a idade de 24 anos, para a promoção ao professorado na
Universidade de Basel. Mas o seu primeiro escrito O nascimento da tragédia no
espírito da música foi uma decepção para os que esperavam dele que seguisse as
linhas convencionais acadêmico-escolares. É aqui que Nietzsche, segundo Jung,
estabelece a sua identidade com Dioniso, deus da música e da escuridão, ao lado
do qual colocava, ao modo de contrapeso, Apolo, o padroeiro da escultura grega,
forma e luz. Quando jovem, comenta Jung Nietzsche, “foi seguidor fiel de
Schopenhauer e ao se encontrar com Wagner, pensou ter encontrado o exemplar
vivo do filósofo que ensinava que, na música e na contemplação das idéias eternas,
estava a saída da roda da vontade, à qual todos estamos miseravelmente presos”
(NZ, XI). Estes dois “heróis”, ao ver de Jung, são celebrados na obra Ensaios
intempestivos e isso é antes da ruptura com eles. Schopenhauer, assim pensava
Nietzsche, tinha razão na importância que dava à vontade mas falhava em não
celebrar a vontade na forma da Vontade de Poder, como Nietzsche entende
especialmente o poder do gênio criativo, fundado no rigor da disciplina. “Todos os
criadores são duros” (EH, Assim Falou Zaratustra, 8). Considerava Wagner como um
dos maiores exemplares da criatividade artística, mas infelizmente nele havia uma
parte de decadência, uma suavidade, uma fraqueza romântica, justamente uma
nostalgia romântica pelo cristianismo: veja Parsifal! (NZ, XIV).
63
Jung vê nas oscilações radicais de mudança de julgamento em
Nietzsche o que ele chamava de enantiodromia, termo emprestado de Heráclito, a
saber, a oscilação pendular de um julgamento ou crença no seu oposto. Significa:
“correr em sentido contrário” (TP, VI, p. 405), gerando a concepção de que “tudo o
que existe se transforma em seu contrário” (TP, VI, p. 405). Jung cita como um
exemplo a deificação feita por Nietzsche de Wagner “e o subseqüente ódio” (TP, VI,
p. 405), e mostra o filósofo como um mestre, excelente e fino em Basel, mas que,
depois de alguns anos de ensino, os deveres da docência tornam-se-lhe onerosos
demais para a sua delicada saúde, obrigando-o a pedir uma licença e mais tarde a
retirar-se da docência. O resto da sua vida Nietzsche viveu de uma modesta pensão,
suficiente para suprir cama e mesa, caneta e tinta, e adquirir bilhetes de viagem que
o levavam de Basel a Turin, a Gênova, a Nice, a Veneza, continuamente em
movimento, em busca de um clima adequado à sua saúde e que lhe permitisse
escrever, apesar da miséria e da sua saúde debilitada: enxaquecas, indigestão,
olhos enfraquecidos, insônia, necessidade de dietas, etc. Mas ainda pior, diz Jung,
entre os seus sofrimentos está a solidão: “O pior de todos os destinos paira
ameaçadoramente sobre o aventureiro: a muda e abissal solidão” (PROO, XI, p.
561), embora Nietzsche tenha escrito a Georg Brandes: “Minha doença tem me sido
o maior dom: ela me desbloqueou, me deu a coragem de ser eu mesmo”. E a
Zaratustra ele o chamou de “um ditirambo a solidão” (NZ, XIV).
Ainda que escrevesse obras reconhecidas pelos filósofos, como A
genealogia da moral, Além do bem e do mal, Crepúsculo dos ídolos, O Anti-Cristo, A
gaya ciência, Nietzsche mesmo reconhece Zaratustra como a sua maior obra,
composta, como ele gostava de dizer, a seis mil s além do bem e do mal. “Se
uma obra escrita sob inspiração, Zaratustra certamente o é” (NZ, XIV).
Seguindo as idéias de Jung, no Assim Falou Zaratustra emerge o
imoralista auto-anunciado, a vontade de poder, o eterno retorno do mesmo, a morte
de Deus e o Übermensch. Diz o psicólogo que foi no profeta persa Zaratustra que
Nietzsche encontrou seu locutor para a necessidade da completa reversão das
atitudes da humanidade, suas crenças e aspirações. “Mais tarde Nietzsche disse a
um amigo que talvez o título de seu Zaratustra, devesse ter sido A tentação de
Zaratustra, referindo-se possivelmente à tentação de Jesus no deserto” (NZ, XII),
assim pensa Jung.
64
Nos Seminários, de acordo com a visão de Jung, para Nietzsche
tudo que é reverenciado especialmente por cristãos deve ser denunciado e
abandonado, e o que é aviltado deve ser abraçado e praticado.
No que ele chama de ‘transvaloração de todos os valores’, ele celebra
não o amoralismo, mas o que a tradição ocidental chamou de imoralismo
e imoralidade. Em renunciando à antítese de bem e de mal, ele abraça a
oposição de bem e de mal. Mas que é bem? Tudo o que potencializa a
sensação de poder no homem, a vontade para o poder, o poder ele
mesmo. Que é mal? Tudo que é nascido da fraqueza. Essa formulação
acima vem mais tarde, mas o sentimento, a idéia, já está em Zaratustra
(NZ, XV).
Sustenta Jung que apesar de Nietzsche se orgulhar de ter
“desaprendido a auto-comiseração”, é necessário ser um Superman (com o qual
Nietzsche não faz questão de ser identificado) para suportar o silêncio em que é
relegada essa obra que ele reconhece ser uma grande obra. Para compensar essa
negligência dos seus pares, Nietzsche sente necessidade de reivindicar mais
fortemente a favor de si mesmo como “a melhor mente do século” (NZ, XV), e isto
quatro meses antes do seu colapso. Jung o cita: “Com esse Zaratustra eu conduzi a
língua alemã ao estado de perfeição” (NZ, XV). E explica: “Agora ele precisava
determinar para sua auto-afirmação que o seu tempo tinha chegado: algumas
pessoas nascem postumamente” (NZ, XV). estava uma outra fonte de ansiedade
muito maior.
Quando Jung começou os seus seminários Nietzsche’s Zaratustra,
surgiam várias biografias de Nietzsche, inclusive uma, escrita por sua própria
irmã, com a qual Jung diz ter mantido contato. A acuidade do seu pensar recebia
crescente reconhecimento, a maestria no domínio da língua alemã também era cada
vez mais reconhecida. A sua exigência de ser reconhecido como psicólogo era
aceita, principalmente entre os psicólogos da Psicologia Analítica, mas ao mesmo
tempo começava a crescer o alarmante espetáculo de trombetear e aclamar
Nietzsche como o profeta do Nacional Socialismo. Jung sabia que esse clamor se
baseava num completo equívoco e desconhecimento das atitudes e dos
pensamentos de Nietzsche, equívoco que jamais considerou, quanto ao seu total
desprezo, por tudo quanto se referia ao germânico ou ao seu ódio contra o anti-
semitismo, bem como suas exposições acerca da assim chamada neurose do
nacionalismo.
65
Jung parece estar consciente da importância do Zaratustra como
presságio do cataclismo que estava para abater-se sobre a Europa e o mundo. Mais
tarde, nos Seminários, Jung disse: “Talvez eu tenha sido o único que nos detalhes
de Zaratustra captou a perturbação que haveria de vir, bem mais do que alguém o
pudesse pensar. Assim, ninguém realmente compreendeu em que extensão ela
estava ligada com o inconsciente e, portanto, com o destino da Europa em geral”
(NZ, XVII). Essa análise de Jung está embasada no conceito de inconsciente
coletivo que será desenvolvido ainda neste capítulo.
Apesar de toda essa tensão, Jung, como sempre, está muito
ocupado. Além desse seminário, ele conduz um seminário na Alemanha sobre os
sonhos das crianças. Também viaja para Londres, para dinamizar as Tavistock
Lectures; para a Universidade de Yale para assistir a Terry Lectures, a Psicologia da
Religião; para a Índia, onde recebe três doutorados honoris causa. Naturalmente
continua a escrever: Uma revisão da teoria do complexo”, Arquétipos do
inconsciente coletivo”, O simbolismo do sonho individual na alquimia”, O que é
psicoterapia?”, O uso prático da análise de sonho”, O desenvolvimento da
personalidade”, Yoga e Ocidente”, para mencionar apenas alguns títulos das
publicações desse período. Ele, além de tudo isso, tem uma práxis clínica muito
intensa. Participa do serviço militar da Suíça; é pai de família, com inúmeros deveres
domésticos, além da correspondência intensa que mantém com seus amigos.
James L. Jarrett (NZ, XV), editor dos Seminários, tenta fazer um
paralelo entre Jung e Nietzsche. Ao conhecer Jung tão de perto, acredita que
embora ele não diga “nós, nietzscheanos”, partilha muita coisa com Nietzsche.
“Ambos foram perseguidos pelo cristianismo. Ambos eram da elite não por causa da
riqueza, da família, classe ou raça, mas no que diz respeito à inteligência, à
compreensão e à consciência (NZ, XV). Sugere que para Nietzsche, que
conscientemente endereçou suas obras para “bem poucos”, a grande distinção está
entre a moralidade escrava (atitude de acomodação, passividade e perdão que
oferece a outra face) e a moralidade do senhor - do Superman. Afirma que também
Jung muitas vezes fala em termos do desenvolvimento consciente, pois a maioria
das pessoas não foi além da Idade Média e ainda dormita na salinha familiar ou nas
saletas de atendimento das igrejas. Para ambos, o caminho da individuação - para
usar o termo de Jung é solitário e árduo, especialmente se houver uma lacuna
grande da compreensão da missão ou mesmo beligerância contra ela. Ambos, para
66
Jarret, “eram filósofos da escuridão, não menos da luz. Uma celebração do espírito
dionisíaco, onde se encontra o pânico do inconsciente com seus sonhos alarmantes,
ali eles se tornam uma grande fonte da criatividade humana. Ambos deploram o que
Nietzsche chamou de ‘personalidade diminuída’” (NZ, XVIII), com sua cautelosa e
medrosa concepção destilada do que é real e importante. Ambos concordam que
nenhuma realização intelectual ou artística de uma pessoa pode ser devidamente
compreendida ou abordada sem considerar o todo, Selbst, da pessoa criativa. Nos
termos de Jung, ambos são altamente desenvolvidos na intuição, no pensar; ambos
são introvertidos. Ambos reconhecem seu débito para com Heráclito, Goethe,
Schopenhauer e Dostoievsky. Jung, diz Jarret, “se regozija em ver Nietzsche
identificar a grandeza de uma pessoa com sua ‘compreensividade’ e multiplicidade,
com a largueza da sua totalidade em abarcar a diversidade – quantas e quão
grandes coisas uma pessoa pode carregar e assumir sobre si, quão longe a pessoa
consegue estender a sua responsabilidade” (NZ, XIX). Diz J. Jarrett: “Como deve ter
sido grande o espanto do inventor da psicologia dos arquétipos, quando ele depara
com o louvor de Nietzsche sobre Siegfried: uma maravilhosa, acurada juventude
arquetípica” (NZ, XIX). Melhor ainda, agora sobre o Ring (Anel): “Um tremendo
sistema de pensamento sem a forma conceptual de pensamento uma descrição,
aliás, extraordinária do arquétipo” (NZ, XIX).
As diferenças importantes entre eles virão à luz no decorrer dos
comentários que podem ser lidos nas notas do seminário, mas explicitam-se aqui as
principais diferenças entre os dois pensadores, observadas por J.Jarrett (NZ, XIX).
A primeira diferença é que para um é a dimensão estética e para
outro é a dimensão religiosa a mais importante. Não é acidental que Nietzsche tenha
tido uma grande amizade com um músico, cuja maior ambição era fazer com que
suas óperas (músicas-dramas, como ele preferia chamar) transcendessem as
trivialidades do entretenimento público e se tornassem uma grande síntese da
música, da literatura, do desenho visual, da dança, da mitologia e da filosofia.
Nietzsche concordava plenamente com essa aspiração e se fica decepcionado com
Wagner, é porque esse esperava por fim incluir a religião e pior ainda o
cristianismo nessa síntese. Como Nietzsche, também Jung é filho de pastor
protestante e ambos facilmente podem ser vistos como portadores de uma reação
contra o pietismo reinante nas suas famílias de origem. Jung, porém, diferentemente
de Nietzsche, vê nas várias religiões do mundo uma inevitável e muitas vezes
67
profunda tentativa de simbolizar a eterna busca do homem pelo sentido da vida. Ao
contrário de Nietzsche, Jung acredita que as grandes religiões universais
representam corajosas tentativas de captar a natureza da alma e as possibilidades
embora bem remotas da salvação. Assim, negligenciar as profundas questões das
origens e dos destinos da consciência humana é como uma autodeficiência humana
tanto quanto negligenciar sonhos e mitos.
Certamente o empenho que acompanha a profissão de Nietzsche
“quase desesperado na sua intensidade - de adquirir para cada um dos seus multi
propósitos o estilo justo, o último caminho para integrar forma e conteúdo, era uma
idéia fixa que Jung dificilmente toleraria” (NZ, XV), diz Jarret.
Uma outra diferença dos caminhos que para Jung e Nietzsche vinha
à luz está dada claramente numa crítica antiga de Jung: ambos concordando sobre
a necessidade de “não perder contato” com os instintos (p. ex., pela excessiva
intelectualização ou por outras formas de espiritualidade).No entanto, eles diferem
no que se refere ao melhor caminho para alcançar um nível mais alto de
consciência. Segundo Jung,
Nietzsche indubitavelmente sente a negação cristã da natureza
animal de modo muito profundo e, portanto, busca uma totalidade mais alta para
além do bem e do mal. Mas, assim, ele que critica seriamente as atitudes básicas do
cristianismo, carece da proteção que essas atitudes lhe outorgam. E ele se entrega a
ele mesmo, irresistivelmente, a psique animal.
Este é o momento do frenesi dionisíaco, a manifestação do ataque
esmagador da ‘besta loira’, que se apossa da alma confiante, com
inomináveis calafrios. O ataque o transforma num herói ou num ente
semelhante a deus, uma entidade super-humana [...] quando o heroísmo
se torna crônico, termina numa paralisia e esta leva à catástrofe (NZ,
XX).
Não obstante, em resposta à crítica de Jung, Nietzsche pode dizer:
“Eu sou uma coisa, meus escritos, outra” (NZ, XX). Certamente Jung concorda que
pode haver discordâncias entre a obra de uma pessoa e sua vida. E a obra criativa
(em algum médium) pode representar uma extensão imaginativa do que passa por
realidade, justamente uma compensação para as limitações de caráter que pode
condenar o maior dos gênios ao stress da mediocridade da existência cotidiana. Não
obstante, poder-se-ia pensar ainda que Jung continue a dizer: “Todo esse seminário
é dedicado à análise de um dos seus melhores livros’, para determinar o quanto é
68
possível detectar a qualidade da vida do seu autor, e como uma pessoa pode não
ser idêntica às suas criações” (NZ, XX). Afirma ainda: “Eu julgo um filósofo nisso, se
ele está, ou não, habilitado para servir como um exemplo” (NZ, XX).
A derradeira questão que Nietzsche coloca em seus livros é simples:
“Compreendem-me? (EH, Porque sou um destino, 3). Poder-se-ia então
acrescentar: “Jung fará justiça à grandeza de Nietzsche como filósofo e escritor?”
(NZ, XXI). E (de novo com presunção), diz J. Jarrett, alguém poderia imaginar o
espírito de Jung a responder: “A questão é a de nos perguntarmos se, pela nossa
análise do seu texto e do que ele nos apresenta sobre a sua vida, teremos entendido
melhor a condição humana” (NZ, XXI).
Ao chegar em De velhas e novas buas (Z, III, p. 202), os seminários são
interrompidos e todas os demais textos de Zaratustra permanecem não analisadas
por Jung. Para situar o pensamento de Jung de acordo com seus próprios conceitos
aprsentam-se, brevemente, alguns deles.
3.3 Libido
Embora ao longo dos Seminários Jung não faça referências
explícitas ao conceito de libido, o problema é abordado contínua e especialmente
em torno da questão “morte de Deus”, o que busca-se examiná-lo com o intuito de
apreender o que Jung quer dizer ou entende com esse conceito.
O desenvolvimento inicial do conceito de libido ocorreu em 1912,
com a edição de Transformações e Símbolos da Libido, ampliado e corrigido em
1952, com o título definitivo de Símbolos da Transformação. De modo geral, o termo
é usado por Jung para designar uma tendência instintiva sem ser, porém, um instinto
específico. Enquanto uma tendência ou um voltar-se para, a libido é entendida como
um movimento e, particularmente, um movimento cujos atributos são conhecimento
e afeto. Enquanto energia psíquica, a libido pode ser pensada como capaz de
assumir formas diversas, isto é, pode ser entendida como o motor de manifestação
de cada ação humana natural e cultural.
Desse modo, a libido está sujeita a transformações de uma forma à
outra, de um modo de expressão a outro devido à presença, na psique humana, de
um aparato de conversão que comumente é denominado função simbólica. No seu
69
processo de transformação, que em 1916 foi denominado função transcendente, a
libido vai assumindo diferentes formas cuja expressão é o símbolo.
11
O conceito está sujeito a diferentes teorizações e, nesse caso,
estreitamente ligado à teoria da individuação, dos símbolos e dos tipos. Jung faz
referência aos conceitos de progressão e regressão da libido ao tratar de
determinados aspectos do Zaratustra de Nietzsche, considerados inerentes às
configurações das várias partes da psique deste autor, especialmente, ao falar de
arquétipos (AIC, IX/1, p. 16).
Etimologicamente, libido coincide com lubido (com libet, mais antigo
lubet), agrada, e líbens ou lubens = com prazer, com vontade; sanscr. Lúbhyati =
sente forte desejo, lôbhayati = deseja excitadamente, lubdha-h = ávido, lôbha-h =
desejo, cobiça; got. liufs; antigo alto-alemão liob = querido. Acrescentam-se got.
lubains = esperança, e antigo alto-alemão lobôn = louvar, elogio, glória; e búlgaro
antigo ljubiti, amar, ljuby = amor; lituano liáupsinti = louvar, glorificar” (ST, V, p. 119).
Outro dos termos usados para libido é “Mulungu”, sendo que a
imagem se desenvolveu em sempre novas variações ao longo da história, como, por
exemplo, na sarça que arde em chamas diante de Moisés, na descida do Espírito
Santo em forma de línguas de fogo, como “o fogo eternamente vivo” (EPA, VII, p. 61)
de Heráclito, como a viva luz do fogo haoma(EPA, VII, p. 61) dos persas, como o
calor primordial dos estóicos, sendo esse, a “força do destino(EPA, VII, p. 61), ou,
ainda, variações dessa imagem, as chamas da cabana dos santos, ou como o Sol e
sua plenitude de luz. Ainda, para interpretações mais antigas, a própria alma é essa
energia com sua idéia de imortalidade e de conservação. São os mitos solares que,
segundo Jung, configuram esse arquétipo, sendo o arquétipo entendido como uma
“aptidão para reproduzir constantemente as mesmas idéias míticas” (EPA, VII, p.
61).
Jung vai reinterpretar o conceito de libido não apenas como inerente
à sexualidade, mas como a expressão da energia psíquica, que indica um desejo ou
um impulso que não é refreado por qualquer instância moral ou outra. A libido é um
11
Está-se referindo ao conceito de símbolo, assim como ele é desenvolvido em Símbolo e Alegoria –
a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche, por Anna Hartmann Cavalcanti, São Paulo:
Annablume Editora, 2005, em que o termo, após sofrer deslocamentos de sentido, culmina no modo
de equivalência entre símbolo e alegoria, indicados como imagens que representam a “visão
irrepresentável” do Uno Primordial ou de Dioniso” (p. 276).
70
appetitus em seu estado natural. “Filogeneticamente são as necessidades físicas
como fome, sede, sono, sexualidade, e os estados emocionais, os afetos, que
constituem a natureza da libido” (ST, V, p. 123).
O que se sabe sobre a libido ou o appetitus que a constitui, segundo
Jung, “é uma interpretação do processo psíquico sobre o qual, em última instância,
sabemos tanto quanto sobre o que a psique em si mesma é” (ST, V, p. 124). Com
isso é possível manter a hipótese de que “não é o instinto sexual, mas uma energia
em si indiferente que leva à formação de símbolos: luz, fogo, sol, etc.” (ST, V, p.
127). Aos paralelos das imagens internas formadoras dos símbolos religiosos, Jung
chama mais tarde de inconsciente coletivo; “não se trata de idéias hereditárias, e sim
de uma predisposição inata para a criação de fantasias paralelas, de estruturas
idênticas, universais, da psique” (ST, V, p. 145).
Assim, “quando se venera Deus, o Sol ou o Fogo, venera-se
diretamente a intensidade ou a força da libido, portanto o fenômeno da energia
psíquica, da libido” (ST, V, p. 74). Psicologicamente, Deus é o nome de um
complexo de representações que se agrupam em torno de um sentimento muito forte
cuja tonalidade afetiva “é o fator característico e ativo do complexo” (ST, V, p. 74).
Em outras palavras, a imagem de Deus, sob o ponto de vista psicológico, “é um
fenômeno real, mas de início subjetivo” (ST, V, p. 24). Arquetipicamente, “trazer um
Deus dentro de si significa muito: é a garantia de felicidade, de poder e a de
onipotência, uma vez que esses o atributos divinos. Trazer Deus em si mesmo
quer dizer quase tanto como ser o próprio Deus” (ST, V, p. 75).
Será abordada, sob esse aspecto, a visão que Jung tem sobre o
Zaratustra de Nietzsche a partir das imagens que o constituem sob a perspectiva da
libido e suas representações, ou seja, cada passagem das dos discursos do
Zaratustra poderá ser entendida como expressão da libido. Como afirma Jung, a
energia produz a sua própria imagem, de modo que a energia psíquica, a libido,
produz a imagem de Deus usando modelos arquetípicos e que o homem, em
conseqüência da força anímica que nele age, reverencia o divino. Um exemplo disto
ocorre na transformação de um sintoma em símbolo quando, a partir de uma dor,
pode-se encontrar a imagem que a represente e, com isso, o movimento ou a
estagnação da libido.
A energia (libido) que produz sua própria imagem pode ser
compreendida por meio de três tipos de representação:
71
a) A comparação analógica: como Sol e fogo.
b) As comparações causativas: a) comparação com o objeto: a libido é
designada por seu objeto, por exemplo, o sol benfazejo; b) comparação
com o sujeito: a libido é designada por seu instrumento ou pelo análogo
dele, por exemplo, pelo falo ou pela serpente (seu análogo).
c) A comparação de atividade: onde o tertium comparationisé a ação, por
exemplo, a libido fecunda como o touro; é perigosa, pela força da paixão,
como o leão ou o javali, etc.
Em Símbolos da Transformação (1986), Jung compara o poema de
Nietzsche O Sinal de Fogo”, como a imagem da chama, com a libido,
teriomorficamente, isto é, em forma de animal, também representada como serpente
e simultaneamente como imagem da alma. O poema que, segundo Jung, foi gerado
na “grande solidão de Nietzsche” (ST, V, p. 83) diz:
O Sinal de Fogo
Aqui, onde entre mares cresceu a ilha,
Uma pedra sacrifical erguida bruscamente,
Aqui, sob um céu escuro,
Zaratustra acende seu fogo celestial...
Esta chama com ventre esbranquiçado
- até frias distâncias lança labaredas seu anseio,
para alturas cada vez mais puras estende seu pescoço –
uma serpente se impacienta impertigada:
este sinal diante de mim ergui.
Minha própria alma é esta chama:
Por novas distâncias insaciável,
Sobe, sobe, seu silencioso ardor...
Tudo que é solitário procuro agora:
72
Respondei à inquietação da chama,
Apanhai para mim, pescador em altos montes,
Minha sétima, derradeira, solidão! (ST, V, p. 83).
Para Jung aqui “a libido se transformou em fogo, chama e serpente”
(ST, V, p. 83-84). Assim, “o símbolo é uma expressão indeterminada, ambígua, que
indica alguma coisa dificilmente definível, não reconhecida completamente, bem
como toda mitologia solar é psicologia projetada para o céu” (ST, V, p. 112). A
proposição básica é: “assim como o homem consiste de um elemento mortal e outro
imortal, também o Sol é um par de irmãos dos quais um é mortal, o outro imortal. O
homem de fato é mortal, mas exceções, existem homens imortais, ou alguma
coisa em nós que é imortal [...]. A comparação com o Sol sempre de novo nos
mostra que a dinâmica dos deuses é energia psíquica; ela é a nossa parte imortal,
representando aquele elo através do qual o homem se sente integrado para sempre
na continuidade da vida” (ST, V, p. 186). Os símbolos que tenham uma conotação
de determinação e de repetição da imagem, surgem, dessa forma, em função de
alguns símbolos esvaziados de seu sentido latente, tornam-se símbolos culturais,
em outras palavras signos ou sinais, ou seja, abreviações convencionais de “alguma
coisa conhecida ou uma indicação corretamente usada da mesma” (ST, V, p. 112).
Isso não impede que os mesmos símbolos culturais tornados signos não possam
outra vez ressurgir como símbolos naturais (HSS, 1977).
A libido é percebida, também, como uma ânsia dirigida para um
determinado fim, sendo essa uma força natural boa e ao mesmo tempo,
portanto, moralmente indiferente” (ST, V, p. 113). Jung adota-a num sentido muito
amplo, resumidamente, o que os homens fizeram “por vontade arbitrária, o
guiados pela razão”. Assim, por exemplo, “o mais nobre de todos os símbolos da
libido é a figura do demônio ou do
herói” (ST, V, p. 157).
Os heróis geralmente são símbolos da peregrinação, isto é, imagens
da alma em sua ânsia, sua nostalgia pelo inconsciente, em “sua busca insaciada e
raramente saciável pela luz da consciência” (ST, V, p. 190). Jung fará referências ao
Zaratustra de Nietzsche como um herói ou, ainda, como Nietzsche mesmo, sendo o
herói identificado a Zaratustra, seu alter-ego, e a própria obra, Assim Falava
Zaratustra, como uma peregrinatio (peregrinação) (ST, V, p. 190). Assim comenta
Jung:
73
“O herói que precisa realizar a renovação do mundo, vencer a morte,
personifica a força criadora do mundo que, chocando-se a si mesma na introversão,
como serpente envolvendo o próprio ovo, ameaça a vida com a mordida venenosa
para conduzi-la à morte e, desta noite, vencendo-se a si mesma, a faz renascer”
(ST, V, p. 370).
Diz que reconhece essa imagem na linguagem de Nietzsche:
Há quanto tempo estás sentado sobre teu infortúnio?
Ouve! Ainda hás de colocar um ovo,
Um ovo de basilisco
De tanto te lamentares” (ST, V, p. 370).
Não heróis, mas deuses e deusas, sob o ponto de vista de sua
dinâmica, são símbolos da libido. A libido, sempre outra vez, se expressa “na
comparação com o sol, com luz, fogo, sexualidade, fertilidade e crescimento” (ST, V,
p. 210). De fato, para o pensamento de certos povos primitivos, havia algo como
uma força universal gica chamada mana, que é o equivalente ao que “Lovejoy
qualificou como primitive energetics’” (ST, V. p. 210). De acordo com Jung, a esse
conceito corresponde a idéia de “alma, espírito, deus, saúde, força corporal,
fertilidade, poder mágico, influência, poder, respeito, remédio, bem como certos
estados
de ânimo caracterizados pela liberação dos afetos” (EPA, VII, p. 60).
Assim, toda unidade de significado está nas alegorias da libido, cuja
natureza se revela pelas nossas realizações. É a força criadora que se oculta em
imagens. São os símbolos que funcionam como transformadores da energia
psíquica, “conduzindo a libido de uma forma ‘inferior’ para uma forma superior” (ST,
V, p. 221), ou seja, como um movimento de regressão pelo qual se pode verificar,
por exemplo, a evolução de um sistema sexual a um sistema espiritual. Para
representar a regressão da libido à imago materna, Jung chega a considerar a
regressão como um caso limite da progressão. Assim, por exemplo, os pensamentos
que assaltam irresistivelmente são como flechas, isto é, símbolos da libido que não
atingem o herói de fora, “mas é ele que caça, combate e martiriza a si próprio” (ST,
V, p. 284), mostrando que “não vem de fora a tortura que o aflige (ST, V, p. 283-
284).
74
Nele mesmo, acrescenta Jung, “instinto se voltou contra instinto”
(ST, V, p. 284), razão porque o poeta Nietzsche diz: “encravado em ti mesmo” (Z, p.
367s, citação de Jung), isto é, ferido pela própria flecha, sendo que o ato de
encravar simboliza uma união consigo mesmo, uma “espécie de autofecundação,
também uma autoviolação, um suicídio” (ST, V, p. 284). Este mitologema não ocorre
por um ato voluntarístico, mas acontece no homem, sendo que, nesse caso, “o
simbolismo de seu sofrimento é arquetípico, isto é, coletivo (AIC, IX/1), podendo ser
considerado como sinal de que um tal homem não mais sofre em si mesmo, mas no
espírito de sua época. Ele sofre por uma causa objetiva, impessoal: seu inconsciente
coletivo, ele o tem em comum com todos” (ST, V, p. 284).
Jung quer dizer que o ferimento pela flecha significa a libido que
penetra em seu próprio fundo, uma introversão. Se a libido fica presa ao mudo
interior, o homem fica como morto para o exterior ou gravemente doente, mas se ela
se liberta de sua viagem ao submundo, volta a jorrar “como uma fonte de juventude
para ela e da morte aparente desperta novo vigor” (ST, V, p. 285).
Ao interpretar a terceira dissertação do Prólogo de Humano,
demasiado Humano
(HH, Prólogo, 7), como uma separação da mãe que, nesse
caso, simboliza o próprio inconsciente, Jung sugere que o impacto da separação é
proporcional à ligação com a mãe (o inconsciente): “Quanto mais forte o cordão
rompido, tanto mais perigosamente a “mãe” o enfrenta na forma do inconsciente.
Pois é esta a mater saeva cupidinum”, a selvagem e dos desejos, que ameaça
devorar o recém-libertado de uma outra forma” (ST, V, p. 303). O que Jung está
chamando de “mãe” é na realidade uma “imago materna”, isto é, “uma simples figura
psíquica que possui conteúdos inconscientes muito importantes, embora variados. A
‘mãe’, como encarnação do arquétipo-anima, até personifica todo o inconsciente”
(ST, V, p. 319), isto é, representa-o como símbolo por meio da imagem da mãe ou
seu equivalente feminino.
Depara-se aqui com a porta que abre para o inconsciente, ou seja, a
regressão como introversão, ou ainda, aquela “espécie de autofecundação” que
aponta para a união consigo mesmo. Quem entra, diz Jung, “submete toda a sua
personalidade consciente de seu eu à influência dominadora do inconsciente; [...] a
regressão, se o for dificultada, não estaciona na ‘mãe’, mas regride para além
75
dessa, até um assim chamado ‘eterno-feminino’ pré-natal, ao mundo primitivo das
possibilidades arquetípicas onde ‘envolta por visões de infinitas criaturas’, a ‘divina
criança’ dorme procurando o despertar de sua consciência” (ST, V, p. 320). A libido
aparece também na figura do pai, uma vez que o herói “representa o eu inconsciente
do homem, e este se revela empiricamente como a soma e o conteúdo de todos os
arquétipos, incluindo também o tipo do “pai” e o do bio ancião. Neste sentido o
herói é seu próprio pai e se gera a si mesmo (ST, V, p. 323). Semelhante
interpretação é dada por Jung ao designar inflação a identidade
Nietzsche/Zaratustra como uma identificação entre o consciente e o inconsciente, ou
entre o sábio ancião Zaratustra e o autor da obra (herói).
Inflação e suas derivações apontam para uma concentração
específica da libido que, por meio de inervações transbordantes, provoca um estado
geral de tensão que está vinculado às expressões comumente usadas como:
imagens de transbordamento, não agüentar mais, explodir, etc. Jung cita como
exemplo o super-homem no Fausto, de Goethe, em que “o nascimento e a
transformação que se seguem à “coniunctio” se dão no além, isto é, no inconsciente,
deixando o problema em aberto (PA, XII, p. 500). Nietzsche, segundo Jung,
retomará em seu Zaratustra a “transformação em super-homem, que ele aproximou
perigosamente do homem terrestre. Isso provocou inevitavelmente o ressentimento
anticristão, pois o seu super-homem é uma hybris da consciência individual, que se
choca necessariamente com o poder do cristianismo levando à destruição
catastrófica do indivíduo” (PA, XII, p. 500). Inflação, então, será em Fausto “a
identificação com aquilo que devia ser transformado” e em Nietzsche “era a
identificação com o super-homem Zaratustra, com a parte da personalidade que
chegara até a sua consciência” (PA, XII, p. 498/499). Para concluir, Jung diz que
“uma consciência inflacionada é sempre egocêntrica e tem consciência de sua
própria presença” (PA, XII, p. 500).
Ao retomar o conceito de libido, Jung sugere ser melhor considerar
também o Selbst como energia, para evitar mal entendidos vitalistas, “assim como é
preciso rejeitar cabalmente a hipóstase do conceito de energia, adotada pelos
energiticistas modernos. O conceito de energia é inseparável da idéia de opostos,
sendo que o mesmo acontece com o conceito de libido. Os símbolos da libido, sejam
eles de natureza mitológica ou filosófico-especulativa, apresentam-se diretamente
como opostos ou podem ser considerados como tais” (TP, VI, p. 199).
76
3.4 Psique: o consciente e o inconsciente
Na terminologia junguiana, a totalidade do mundo psíquico se
chama: psique (psyché). Jung utiliza-se do termo alemão Seele e vai tomá-lo
intercambiavelmente como anima, alma, ou psique. Sua etimologia provém do grego
e indica o sopro, que ao animar um corpo, torna-o vivo. Aristóteles utiliza o conceito
psyché como bios, ou seja, como vida, enquanto o termo anima abre o dualismo
entre psíquico e físico, teorizado por Descartes com a distinção entre res cogitans e
res extensa e que, de qualquer modo, havia sido apresentado por Platão. Diante
de suas implicações morais e metafísicas, o termo anima é substituído por psique,
considerado mais neutro e técnico.
A Psicologia Analítica, denominação utilizada por Jung a partir de
1913 (WI, p. 222), passa a representar as relações entre consciência e inconsciente
ou entre superfície e profundidade, daí ser designada também como Psicologia
Profunda. Nessa modalidade de psicologia, a psique é uma atividade funcional, cuja
dinâmica é constituída e, ao mesmo tempo, vem a constituir pares de opostos,
como: eu-sombra; persona-anima; eu-Si-mesmo, etc. Como órgãos funcionais da
psique são entendidas as transformações da libido, por meio de diferentes imagens,
as quais podem ser percebidas como símbolos, signos, complexos e arquétipos.
A psique divide-se aqui, em duas “partes”: o consciente ou a
consciência (das Bewusst, das Bewusstsein) e o inconsciente (das Umbewusst). O
conceito de psique estende-se para além de qualquer limite válido, tendo uma base
somática e uma base psíquica. Sabe-se que existem estímulos endossomáticos que
jamais tonar-se-ão conscientes e, uma vez que o processo vital é um conceito amplo
demais, Jung propôs que “o conceito de psíquico fosse aplicado àquela esfera em
que exista uma vontade comprovadamente capaz de alterar o processo reflexivo ou
instintivo” (AIC, IX/1, p. 15).
Aquela “parte’ da psique, denominada consciência, tem como centro
o Eu (Ich), um fator que é “impossível descrever com exatidão” e que se apóia sobre
o campo global da consciência, o que não quer dizer que seja constituído por ele. É
apenas o ponto central da consciência, fundado e delimitado por fatores somáticos
ligados ao seu caráter psíquico. Seu desenvolvimento constitui uma aquisição
77
empírica da existência individual, resultando do entrechoque entre o mundo exterior
e o mundo interior, vindo a constituir um sujeito real.
A consciência, quanto mais ampla se torna, tanto mais proporciona
ao indivíduo a capacidade de diferenciação com relação aos demais, tornando-se a
ampliação da consciência proporcional ao grau de liberdade empírica. Quanto ao
inconsciente, termo central na Psicologia Analítica, é usado como adjetivo para
qualificar os conteúdos não presentes na consciência, e como substantivo para
especificar um “lugar” da psique. Jung situa historicamente a noção de inconsciente
pela primeira vez em Leibniz e a idéia de uma zona propriamente inconsciente surge
com a escola wolffiana (C. Wolff, Psychologia rationalis, Halle 1734, p. 58ss) e
também em Kant (DI, VIII, p. 359). Porém, a idéia de inconsciente como identidade
de natureza e espírito, bem como de um dos aspectos do absoluto, torna-se o
elemento central na filosofia de Schelling.
em Schopenhauer, diz Jung, encontra-se “a vontade inconsciente
como nova definição de Deus” (DI, VIII, p. 177), como aquela vontade de viver que
constitui o noumeno do mundo para além do tempo e do espaço e que, em Carus, é
a região do inconsciente, o lugar que contém a chave para a compreensão da vida
consciente (Psyche, zur Entwicklungsgeschichte der Seele, Leipzig, 1846, p. 148).
Em Hegel, “a identificação e a inflação, a equiparação prática da razão filosófica ao
espírito puro e simples” (DI, VIII, p. 177). É quando surge von Hartmann que, a partir
das reflexões de Schelling e Schopenhauer, introduz o termo em sua filosofia,
afirmando que a matéria e o espírito são duas diferentes manifestações do mesmo
princípio que ele denomina inconsciente.
Jung cita os filósofos com o intuito de dizer que o termo psique não
coincide com consciência, uma vez que a psique “funciona inconscientemente, à
semelhança ou diversamente da parte capaz de se tornar consciente.[...] À primeira
vista não se sabe como funciona esse inconsciente, mas como se trata,
supostamente, de um sistema psíquico, provavelmente contém todos os elementos
que integram a consciência, tais como a percepção, a apercepção, a memória, a
fantasia, a vontade, os afetos, os sentimentos, a reflexão, o julgamento, etc., mas
tudo isto sob forma subliminar” (DI, VIII, p. 179). Na área médica, Charcot, Janet,
Ribot e Flournoy referiram-se ao inconsciente com o objetivo de compreender
melhor os automatismos psíquicos. Com Freud e a psicanálise, o inconsciente vem a
ser identificado com as tendências sexuais que, de vários modos, se encontram na
78
psique, revelando-se acima de tudo enquanto sintoma e não isso. Para Jung, o
inconsciente foi entendido inicialmente como inconsciente relativo e inconsciente
absoluto, vindo, posteriormente, a ser designado como inconsciente pessoal e
inconsciente coletivo. Jung acrescenta ainda, mais tarde, uma amplificação do
conceito de inconsciente como inconsciente criativo. Explicitamente, o conceito de
inconsciente desenvolve-se a partir de duas questões fundamentais: a da auto-
regulação da vida psíquica, quando se fala de “dinâmica compensatória do
inconsciente”, e do dinamismo da imaginação de modo geral, mas particularmente,
da imaginação onírica, isto é, dos sonhos, quando se fala então de “dinamismo
compensatório imaginativo” (DI, VIII, p. 179).
Para que esses processos psíquicos tenham acesso à consciência,
faz-se necessária uma certa intensidade de energia para que transponham o limiar
da consciência, “o que torna necessário admitir a existência de um sujeito que os
controle e para o qual a ‘coisa foi representada’” (DI, VIII, p. 180).
Se é comum os conteúdos da consciência se tornarem subliminares
em função da perda de energia e os processos inconscientes se tornarem
conscientes devido a um aumento da energia, então é possível pressupor que
uma espécie de consciência secundária subliminar que se separou da consciência
do eu. Essa dissociação favorece a percepção de dois aspectos distintos do
inconsciente: “um conteúdo originariamente consciente, que se tornou subliminar ao
ser reprimido por causa de sua natureza incompatível. No segundo caso, a
consciência secundária consiste em um processo que jamais pôde penetrar na
consciência, porque nela não a mínima possibilidade de que se efetue a
apercepção desse processo, isto é, a consciência do eu não pode recebê-lo por falta
de compreensão e, por conseguinte, permanece essencialmente subliminar, embora,
do ponto de vista energético, ele seja inteiramente capaz de tornar-se consciente”
(DI, VIII, p. 162). O que ocorre é a atuação da consciência secundária sobre a
consciência do eu por meio de símbolos, ou seja, de representações, cujos
conteúdos aparecem na consciência como sintomas. Na maioria das vezes, o que
aparece como sintomas não são conteúdos reprimidos no inconsciente, mas
“simplesmente conteúdos que ainda não se tornaram conscientes, isto é, ainda não
foram percebidos subjetivamente” (DI, VIII, p. 182).
Na tentativa de esclarecer o conceito de inconsciente, Jung
apresenta-o como:
79
Tudo aquilo que, supostamente, não se distinguiria dos conteúdos
psíquicos conhecidos, quando chegasse à consciência, “[...] retratando assim um
estado de coisas extremamente fluido: tudo o que eu sei, mas em que não estou
pensando no momento; tudo aquilo que um dia esteve consciente, mas de que
atualmente estou esquecido; tudo o que os meus sentidos percebem, mas minha
mente consciente não considera; tudo o que sinto, penso, recordo, desejo e faço
involuntariamente e sem prestar atenção; todas as coisas futuras que se formam
dentro de mim e somente mais tarde chegarão à consciência; tudo isto são
conteúdos do inconsciente” (DI, VIII, p. 191).
Nesse sentido, pelo fato de esses conteúdos serem capazes de se
tornarem conscientes, “o inconsciente é a fringe of consciousness [uma franja da
consciência], como o caracterizou outrora William James” (DI, VIII, p. 191). Essa
dimensão do inconsciente Jung denominou inconsciente pessoal para diferenciá-lo
do inconsciente coletivo, cujos componentes são os arquétipos, inatos, sendo que a
sua numinosidade se situa inteiramente fora da volição, uma vez que podem levar o
indivíduo a estados de inspiração, êxtase, arrebatamento, “numa entrega em que a
vontade está inteiramente ausente” (DI, VIII, p. 193).
3.4.1 Psique e Inconsciente Coletivo
É evidente que o fenômeno global da psique não coincide com o eu,
nem com a “parte” consciente, mas inclui toda a dimensão inconsciente que, de
qualquer forma, não pode ser captada em sua totalidade e que foi denominada
Selbst (Si-mesmo). Essa expressão foi adotada da filosofia oriental, mais
propriamente desenvolvida em Symbole und Erfahrung des Selbstes in der Indo-
Arische Mystik, 1934, a filosofia dos Upanishads, a qual corresponde a uma
psicologia que, segundo Jung, há muito já advertiu sobre a relatividade dos deuses.
O reino dos deuses é o reino do inconsciente coletivo e acessá-lo é,
simultaneamente, acessar a dimensão religiosa da psique, termo que contém, uma
estrutura psíquica que Richard Semon chamou de mneme e Jung, de inconsciente
coletivo. A imagem primordial, que também foi chamada arquétipo (AIC, IX/1, p.
16s), é sempre coletiva, isto é, comum a todos os povos e tempos.
80
Quando fala de imagem (Id., p. 16s), Jung não está se referindo a
um retrato psíquico do objeto exterior, mas a uma representação imediata oriunda da
linguagem poética, analógica, ou seja, da imagem da fantasia que se relaciona
indiretamente com a percepção do objeto externo. Apresenta-se como expressão
concentrada da situação psíquica como um todo e não, sobretudo ou simplesmente,
dos conteúdos do inconsciente e constela-se como resultado de uma atividade
espontânea do inconsciente, por um lado e, por outro, pela situação momentânea da
consciência. Portanto, chama-se imagem primordial ou arquétipo a expressão da
psique que possui caráter arcaico, isto é, quando a imagem apresenta uma
concordância explícita com motivos mitológicos conhecidos. Finalmente, não é
possível distinguir a psique de suas próprias manifestações. Embora constitua o
objeto da Psicologia, ela é também seu sujeito e, em última análise, está-se
expressando simbolicamente aquilo que se pode imaginar como o mais obscuro,
pois, apesar de se ter uma “física da alma”, não se pode observá-la e julgá-la a partir
de um ponto arquimédico externo e, portanto, nada de objetivo sabe-se a seu
respeito, pois tudo o que dela se sabe é ela própria, a alma é a experiência direta de
nosso ser e existir. Ela “é para si mesma a experiência única e direta e a conditio
sine qua non da realidade subjetiva do mundo em geral” (ST, V, p. 220).Assim,
chegamos à conclusão paradoxal de que não um conteúdo consciente que não
seja também inconsciente sob outro aspecto. É possível igualmente que não haja
um psiquismo inconsciente que não seja, ao mesmo tempo, consciente” (DI, VIII, p.
194).
Quanto ao inconsciente coletivo, é observado nos produtos da
fantasia da psique moderna, sendo possível distinguir duas categorias em tais
produtos: fantasias de caráter pessoal, representações de vivências pessoais que
podem ser explicadas pela anamnese individual e outra, de caráter impessoal, que
não pode ser atribuída a vivências pessoais, portanto, à história individual e que,
conseqüentemente, não podem ser explicadas por meio dela. Tais imagens da
fantasia ou imagens arquetípicas possuem analogias com os motivos mitológicos.
Segundo Jung, presume-se por esse motivo que elas correspondam a certos
elementos estruturais coletivos (e não pessoais) da alma humana em geral e que
são herdadas tais como os elementos morfológicos do corpo humano” (AIC, IX/1, p.
262). Jung desenvolve a questão dessa herança em A Dinâmica do Inconsciente, no
81
capítulo VI: O significado da constituição e da herança para a psicologia (DI, VIII, p.
111).
3.5 O Selbst e a Individuação
A categoria fundamental da psicologia de Jung é designada Selbst,
traduzido para: ingl. Self; fr. Soi; it. . Selbst significa o mesmo, daí a encontrá-lo
em português como Si-mesmo. Expressa a totalidade e a unidade global da psique
que, como conceito empírico, implica necessariamente ser em parte potencialmente
empírico e, portanto, na mesma proporção, um postulado. Engloba o experimentável
e o não experimentável ou o ainda não experimentado. Na medida em que, como
totalidade, compondo-se de conteúdos conscientes e inconscientes é um postulado,
seu conceito pode ser entendido como transcendente, isto é, como uma entidade
que só pode ser descrita em parte e que, de outra parte, permanece irreconhecível e
não dimensionável. O Selbst aparece empiricamente em sonhos, mitos e contos de
fadas, etc., representado por figuras superiores, sejam, reis, heróis, profetas,
salvadores, demônios, etc., formando um complexio oppositorum, ou seja, um jogo
de luz e sombra cujos símbolos podem ser reconhecidos por sua numinosidade,
constituindo, assim, uma representação arquetípica.
As representações do Selbst de natureza inconsciente são
projetadas, isto é, vistas como fazendo parte de situações ou coisas, pessoas,
pertencentes ao mundo exterior, o que leva à percepção da divisão sujeito/objeto.
Assim, quando o homem moderno, a partir da morte de Deus não mais pode projetar
a imagem divina, representação do Selbst, sofre como conseqüência uma
experiência de abandono, achando-se ameaçado pela inflação de um lado,
enquanto que, de outro lado, essa é a única possibilidade para a integração do
próprio Selbst inconsciente à consciência. Quando a idéia de Deus, portanto, não se
acha mais projetada como realidade autônoma, o inconsciente cria a idéia de um
homem deificado ou divino, encarcerado, escondido, protegido, aprisionado e que
precisa ser libertado. Essa é a razão, segundo Jung, pela qual os homens sempre
precisaram de deuses e demônios, exceto “alguns espécimes recentes do homo
82
occidentalis’, particularmente dotados de inteligência, super-homens cujo ‘Deus está
morto’, razão pela qual eles mesmos se transformam em deuses, isto é, deuses
enlatados, com crânios de paredes espessas e coração frio” (EPA, VII, p. 63). Jung
está, outra vez, referindo-se a Nietzsche e reiterando aqui sua compreensão da
conseqüência da morte de Deus para o filósofo.
O Si-mesmo como símbolo da totalidade é uma “’coincidentia
oppositorum’, portanto contém luz e trevas ao mesmo tempo” (ST, V, p. 356). Para
que o Si-mesmo seja uma experiência, o processo de individuação é um fenômeno
limite que necessita de condições especiais para se tornar consciente, havendo uma
necessidade constante de diferenciação entre tornar-se consciente e realizar-se a si-
mesmo (individuação).
A individuação é um processo de análise interior, que deve ser
experimentado como uma transformação penosa e demorada. Conceito central da
psicologia de Jung é entendido genericamente como o devir da personalidade e,
particularmente, do processo de contínua transformação dessa individualidade.
O termo foi trazido da Filosofia com um sentido que soa como: o que
faz de uma substância comum esta substância específica? A questão surgiu
primeiramente com o intuito de superar três problemas fundamentais: a) a
individualidade depende da matéria das coisas; b) a individualidade depende da
forma; c) a individualidade depende da matéria, da forma e do seu composto. A
primeira solução, para a qual o princípio da individuação é a matéria, foi dada por
Avicena (PIERI, 1998, p. 350). Para São Tomás
,
“o princípio da individuação é
representado por aquela matéria comum que faz com que um homem seja “este
homem” enquanto unido a um corpo que o determina no espaço e no tempo”
(AQUINO, 1999). Considerando a vontade como substância comum a todos os
homens a mesma resposta será dada por Shopenhauer (PIERI, 1998, p. 350) na
idade moderna.
A segunda solução, de que a individualidade depende não apenas
da matéria mas também e sobretudo da forma foi adotada por o Boaventura
(PIERI, 1998, p. 351), expoente máximo da escola filosófica franciscana, o qual
propunha que o princípio de individuação fosse buscado na comunicação que deve
existir entre forma e matéria. A terceira solução foi proposta por Duns Scottus
(PIERI, 1998, p. 351), filósofo e teólogo inglês, de cuja perspectiva o indivíduo é
83
composto de matéria e forma, caracterizado pela riqueza e complexidade das suas
determinações.
Finalmente, em Jung não uma busca de compreensão no sentido
nem ontológico, nem epistemológico, mas sim de uma relação que considera a
natureza psíquica individual e a comum ou coletiva como de mútua inclusão e de
recíproca remissão, entendida ainda como um processo complementar designado
diferenciação e integração, ou seja, a diferenciação remete à integração e vice-
versa, particularmente, fazendo referência à diferenciação-integração,
respectivamente, entre eu e Si-mesmo, e eu e mundo. Em 1928, no livro O Eu e o
Inconsciente, Jung (1928, VII) apresenta uma definição de individuação como:
Individuação pode ser traduzido como ‘atuação do próprio Si-mesmo’ ou ‘realização
do Si-mesmo’” (EPA, VII, p. 163). Em 1939, em Consciência, inconsciente e
individuação (AIC, IX/1, p. 268), explica:
Uso o termo ‘individuação’ para designar o processo que produz um
‘indivíduo’ psicológico, isto é, uma unidade separada, indivisível, um
todo, entendido como o processo de desenvolvimento que nasce do
conflito entre consciência e inconsciente. A tarefa é invulgar, pois a
psique é constituída de duas metades incongruentes que, juntas,
deveriam formar um todo (AIC, IX/1, p. 269).
A dificuldade consiste em expor adequadamente quais as mudanças
que se verificam no sujeito, uma vez que a integração, a assimilação do inconsciente
na consciência provoca também uma transformação da mesma. Nesse caso,
embora o complexo do eu seja capaz de preservar sua estrutura, ele é
como que arrancado de sua posição central dominante, passando,
assim, ao papel de um observador passivo a quem faltam os meios
necessários para impor sua vontade em qualquer circunstância, o que
acontece não tanto porque a vontade se acha enfraquecida em si
mesma, quanto, sobretudo, porque certas considerações a paralisam
(DI, VIII, p. 229).
Esse fator mais forte ao qual o eu se submete é o representante da
totalidade denominado Si-mesmo. De acordo com Jung, quando o eu se dissolve,
identificando-se com o Si-mesmo, “o resultado é uma espécie de vago super-
homem, com um eu inflado e um Si-mesmo deflacionado” (DI, VIII, p. 230),
passagem esta na qual Jung está se referindo a Nietzsche e seu Zaratustra. Jung
menciona que essa dissolução do eu também pode ocorrer, como de fato ocorreu,
84
na experiência dionisíaca experimentada por Nietzsche. “É o horror da destruição do
princípio de individuação e, ao mesmo tempo, o ‘feliz êxtase’ de que seja destruído.
Por isso o dionisíaco é comparável à embriaguez, que dissolve o individual nos
instintos e conteúdos coletivos, uma explosão do enclausurado eu por influência do
mundo” (TP, VI, p. 140/141). Jung descreve essa experiência como aquela para a
qual a individualidade “deve estar, então, abolida, pois nela “o homem não é
artista, tornou-se obra de arte” (TP, VI, p. 141). Jung diz ainda que não é esse o
caso de Nietzsche, dado o desfecho que teve sua vida. Daí que, como se disse no
início, Jung conclui que em Nietzsche o processo de individuação não foi alcançado.
3.6 Deus e sua morte
Será desenvolvido agora, a partir dos conceitos já expostos, os
pressupostos junguianos decorrentes da “morte de Deus” e abordados por Nietzsche
em Assim Falou Zaratustra, envolvendo passagens dos textos de Zaratustra, bem
como de sua análise nos Seminários Nietzche’s Zaratustra.
Assim, de acordo com Jung, Nietzsche, em seu Zaratustra,
traz à luz, principalmente, os conteúdos do inconsciente coletivo de
nossa época e por isso encontramos nele as características decisivas: a
revolta iconoclasta contra a atmosfera moral tradicional e a aceitação do
homem ‘mais feio’ que leva à tragédia comovente e inconsciente,
apresentada em Zaratustra (TP,VI, p. 188).
Uma vez que os deuses são representações mitológicas da libido, e
Deus renovado, isto é, morto e ressuscitado, significa uma atitude renovada, ou seja,
a possibilidade renovada de vida intensa, uma nova consecução de vida. Isso
significa que, psicologicamente, Deus representa sempre o valor maior, a maior
quantidade de libido, a maior intensidade de vida, o ótimo da vitalidade psíquica. O
significado fundamental, aqui, é que a morte de Deus e seu renascimento, sua
renovação, é a tentativa de solução em forma de uma renovação da atitude geral.
Daí que “a idéia de um princípio criador universal é uma projeção da percepção do
ser que vive no homem” (TP, VI, p. 199) e que coincide com aquela idéia de uma
força dinâmica ou criadora que foi denominada libido. Por exemplo, ainda na filosofia
85
oriental, a palavra brama, que coincide com o Selbst, significando oração, rmula
mágica, discurso sagrado, saber sagrado (veda), conduta santa, o absoluto, casta
sagrada (brâmanes), deriva de barth, farcire, a inflação, isto é, oração, concebida
como “a vontade do homem que procura atingir o sagrado, o divino” (TP, VI, p. 198).
No volume XI das Obras Completas, Jung apresenta Deus como
uma experiência primordial do ser humano e desde épocas imemoriais o
homem se entregou ao esforço inaudito de expressar de algum modo
essa experiência inefável, de integrá-la em sua vida mediante a
interpretação e o dogma ou então negá-la (PROO, XI, p. 323).
Como conteúdo psíquico, Deus ou o Demônio “atuam de maneira
poderosíssima e avassalam a consciência em todas as épocas, com exceção dos
últimos tempos, em que nos tornamos de tal modo recatados em assuntos de
religião (ainda bem!) que falamos, aliás acertadamente, de ‘inconsciente’, pois Deus
se tornou realmente inconsciente” (PROO, XI, p. 322).
Na concepção de Jung o pressuposto da existência de deuses e
demônios invisíveis é uma formulação do inconsciente muito adequada, embora se
trate de uma projeção antropomórfica. Mas como o desenvolvimento da consciência
moderna exige a retirada de todas as projeções que podem ser alcançadas, isto é,
uma “des-animação” do mundo, ou, o que é a mesma coisa, a retirada das projeções
continuar avançando, “tudo quanto se acha fora, quer seja de caráter divino ou
demoníaco, deve retornar à alma, ao interior do homem desconhecido de onde
aparentemente saiu” (PROO, XI, p. 84). Assim, os antigos iconoclastas, diz Jung,
para derrubarem ídolos pagãos tinham consciência de estar servindo a um novo
deus, enquanto que os modernos, “não sabem em nome do que destroem os
antigos valores” (PROO, XI, p. 84). Jung está se referindo a Nietzsche, pois esse,
sucumbiu à estranha necessidade de respaldar-se num Zaratustra
redivivo, à guisa de segunda personalidade, de um alter ego (sombra)
com o qual identificou sua grande tragédia: Assim falava Zaratustra. O
resultado dessa morte foi sua cisão interior que o compeliu a personificar
seu outro “Si-mesmo” (Selbst) como “Zaratustra” ou, em outra fase,
como ‘Dionísio’.[...] A tragédia de Assim falava Zaratustra consiste em
que o próprio Nietzsche, não sendo ateu, se transformou em deus,
porque seu Deus havia morrido (PROO, XI, p. 84).
Porém, diz Jung, o eu individual é demasiado pequeno e seu
cérebro demasiado débil para assimilar todas as projeções retiradas do mundo.
86
Numa eventualidade dessas, o eu e o cérebro romper-se-iam em pedaços (que os
psiquiatras chamam de esquizofrenia) (PROO, XI, p. 84).
A morte de Deus, de acordo com a Psicologia Analítica, não constitui
apenas um símbolo cristão, mas faz parte de todos os símbolos de transformação,
pois “toda vez que um valor desaparece, a impressão é de que foi perdido para
sempre” (PROO, XI, p. 89), sendo a sua volta um fato completamente inesperado.
No caso do Deus cristão “o que se sabe é que estamos numa época ou de morte ou
de desaparecimento de Deus. Essa morte ou perda deve repetir-se: Cristo sempre
morre e sempre torna a nascer. [...] Diz o mito que ele não foi encontrado onde seu
corpo havia sido depositado” (PROO, XI, p. 89). Sendo um valor supremo que
pertence ao inconsciente, a morte de Cristo e sua descida aos infernos simboliza “o
mergulho do valor desaparecido no inconsciente, onde vitorioso sobre o poder das
trevas, estabelece uma nova ordem de coisas e de onde volta, para elevar-se até o
mais alto dos céus, ou seja, até a claridade suprema da consciência” (PROO, XI, p.
89). A questão é: “Onde voltaremos a encontrar o Ressuscitado?” (PROO, XI, p. 89).
No mito cristão encontramos o próprio Cristo como a prefiguração do
arquétipo
12
, isto é, “Cristo representa o tipo do Deus que morre e se transforma”
(PROO, XI, p. 88). Se se quiser saber o que acontece quando a idéia de Deus não
se acha mais projetada como realidade autônoma, “a resposta é esta: o inconsciente
cria a idéia de um homem deificado ou divino, encarcerado, escondido, protegido,
quase sempre privado de sua personalidade e representado por um símbolo
abstrato” (PROO, XI, p. 95), por exemplo, as mandalas
13
. por meio da psique e
de seus símbolos pode-se constatar que a divindade age em s. Daí que sendo
Deus e o inconsciente conceitos limites para conteúdos transcendentais, não temos
como saber se são duas grandezas diferentes.
12
Em Os arquétipos do inconsciente coletivo, vol. IX/I, p. 16, Jung apresenta os arquétipos como
sendo os conteúdos do inconsciente coletivo. Jung diz: “O termo archetypus se econtra em FILO
JUDEU como referência à imago dei no homem. Em IRINEU também, onde se lê: “Mundi frabricator
non a semetipso fecit haec, sed de alienis archetypis transtulit” (O criador do mundo não fez essas
coisas diretamente a partir de si mesmo, mas copiou-as de outros arquétipos). No Corpus
Hermeticum, Deus é denominado a luz arquetípica. Em DIONISO AREOPAGITA encontramos esse
termo diversas vezes como De coelesti hierarchia(os arquétipos imateriais), bem como De divinis
nominibus”. O termo arquétipo não é usado por AGOSTINHO, mas sua idéia, no entanto, está
presente; por exemplo, emDe diversis quaestionibus”, “ideae... quae ipsae formatae non sunt... quae
in divina intelligentia continentur” (idéias... que não são formadas, mas estão contidas na inteligência
divina). Archetypus é uma perífrase explicativa do eidos platônico.
87
Para Jung, Nietzsche “não foi senão um dos casos entre milhares e
milhões de alemães que na época ainda não haviam nascido em cujo
inconsciente se desenvolveu, no decurso da Primeira Guerra Mundial, o primo
germâmico de Dioniso: Wotan.
14
“Na biografia de Nietzsche encontramos
testemunhos irrefutáveis de que o Deus ao qual ele se referia, originariamente, era
na realidade Wotan; mas como filósofo clássico dos anos setenta e oitenta do século
XIX denominou-o Dioniso” (PROO, XI, p. 27). Assim, é possível que “da mesma
forma que a revelação do homem se fez, outrora, a partir de Deus, assim também é
possível que, no momento em que o anel se fechar, Deus se revele a si próprio a
partir do homem, [...] provocando uma inflação do sentimento desmesurado de seu
próprio valor, cujo prelúdio se achara claramente delineado no caso de Nietzsche”
(PROO, XI, p. 179). A inconsciência do problema religioso gera o perigo do uso
abusivo do núcleo divino que há em si “para uma ridícula e demoníaca inflação de
sua própria pessoa, em vez de perceber que mais não é do que um estábulo no qual
nasce o Senhor” (PROO, XI, p.180).
Tal situação, diz Jung, faz perceber que
quanto maior for o nosso conhecimento acerca do complicado
entrelaçamento do Bem e do Mal, tanto mais inseguro e mais confuso se
tornará nosso julgamento moral (PROO, XI, p. 180).
A dedução de Jung, a partir da leitura da morte de Deus, de
Nietzsche, é a de que seu Zaratustra
não é mais filosofia e, sim, um processo dramático de transformação
que engoliu completamente o intelecto. Não se trata mais de um modo
de pensar [...] mas do pensador do pensamento no mais alto sentido e
isto é o que transparece em cada página do livro: um novo homem, um
homem completamente transformado deve aparecer em cena, um ser
que quebrasse as cascas do homem velho e não olhasse apenas para
um novo céu e uma nova terra, mas fosse, ele mesmo, quem os criasse
(PROO, XI, p. 553).
13
Sobre o simbolismo da mandala ver Os arquétipos do inconsciente coletivo. Jung, C.G. Vol. IX/1.
Petrópolis: Ed. Vozes, 2000, p. 351-387.
14
Wotan é considerado o deus nacional germânico, considerado também como “o demônio da
floresta e da tempestade”. É comparado ainda a Hermes-Mercúrius-Wotan. Estudos Alquímicos. Vol.
XIII, C.G.Jung. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003, p. 196/199. Wotan também é reconhecido por Nietzsche
como “o declínio dos consolos religioso-morais da tradição ocidental e a ascensão de um pensamento
destrutivo-criador” Niilismo, Criação, Aniquilamento. Araldi, C. L., São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí:
UNIJUÍ. 2005, p. 51. Nietzsche também faz referência a Wotan: “Um coração duro me colocou Wotan
no peito”, diz uma velha saga escandinava – e está se referindo a alma “nobre” (ABM, 260).
88
Por outro lado, Jung afirma também que “somente as tragédias
espirituais do Fausto, de Goethe, e do Zaratustra, de Nietzsche, marcam a primeira
irrupção, apenas pressentida, de uma experiência da totalidade em nosso hemisfério
ocidental” (PROO, XI, p. 561).
3.7 O Zaratustra de Nietzsche, nos Seminários Nietzsche’s Zarathustra
Jung analisa, juntamente com o grupo de estudiosos, a obra Assim
Falou Zaratustra, que compõe os Seminários Nietzsche’s Zaratustra voltado,
especialmente, para o fenômeno da “morte de Deus” e as conseqüências
decorrentes dessa morte, tanto para o indivíduo Nietzsche como para o inconsciente
coletivo, ou seja, como a necessidade própria de uma época. Dado a grande
quantidade de citações que são utilizadas para configurar o pensamento de Jung em
torno da morte de Deus no Zaratustra, serão omitidas as notas de rodapé que
seriam citações no original inglês, optando-se pela tradução livre.
Ao introduzir o tema para o grupo, Jung começa por explicar que
esses capítulos do Zaratustra “são uma espécie de sermões em verso e que
Zaratustra não é de modo algum uma figura metafórica ou poética, inventada pelo
autor” (NZ, p. 13). Comenta que Nietzsche certa vez escreveu à sua irmã que
Zaratustra lhe havia aparecido em sonhos quando era menino (Nietzsche’s Sister,
Introdução, 13).
Prossegue, dizendo ter quase certeza de que o que Nietzsche diz
sobre Zaratustra, ele o experimentou como identidade em si mesmo, embora essa
identidade tenha existido a centenas de anos antes dele. Na verdade, “ela sempre
existiu. [...] Esse Zaratustra diz ter trinta anos e nele descobrimos uma certa analogia
com Cristo” (NZ, p. 13-14).
Para Nietzsche, Zaratustra é mais que uma figura poética, é uma
confissão involuntária. Ele também se perdera na obscuridade de uma
vida descristianizada, distante de Deus. Por isso, veio a ele o revelador e
iluminador como fonte expressiva de sua alma. Esta é a origem da
linguagem hierática do Zaratustra, pois este é o estilo do arquétipo (NZ,
ps. 13-14).
89
Nietzsche, de acordo com Jung, invocou “pela sua reencarnação no
Zaratustra, o espírito superior de uma idade quase homérica, para tornar-se portador
e porta-voz de sua própria iluminação e êxtase dionisíaco. Para ele, Deus tinha
morrido, mas o daimon da sabedoria tornou-se, por assim dizer, seu desdobramento
físico” (AIC, IX/1, p. 78).
Essa identidade de Nietzsche com Zaratustra representa a presença
do “arquétipo do velho sábio” (NZ, p. 21), afirma Jung. Quando o “arquétipo do velho
sábio aparece, geralmente está se referindo a certas situações: existe alguma
desorientação, inconsciência, as pessoas estão confusas e não sabem o que fazem”
(NZ, p. 24). Por isso, esses homens sábios ou profetas aparecem em tempos de
dificuldades, quando os homens estão confusos, quando uma antiga orientação
não serve e a nova ainda não existe. Então “Zaratustra aparece no momento em que
sua presença se faz necessária, momento ao qual Nietzsche denomina “morte de
Deus”. Quando Deus morre, o homem necessita de uma nova orientação” (NZ, p.
24) e nesse momento, comenta Jung, “o pai de todos os profetas, o homem sábio,
deve aparecer e trazer uma nova revelação, dar à luz uma nova verdade. Isto é o
que Nietzsche destina Zaratustra a ser” (NZ, p. 24).
Deparara-se aqui com o problema proposto inicialmente, ou seja, a
questão está em saber se, de fato, havia em Nietzsche excesso de lucidez, uma
“iluminação”, ou se, patologicamente, estava tomado por um estado de
“megalomania” ao ser Zaratustra, o profeta, o porta-voz dessa nova revelação.
Embora a proposta inicial do projeto desenvolvido seja especular em torno desta
questão e logo em seguida se apresente a visão de Jung distanciado em alguns
anos da época dos Seminários, como contraditória a tudo que vem dizendo até aqui,
a questão é: até que ponto é relevante filosoficamente, para a questão da morte de
Deus, e suas conseqüências se o estado demais, quer dizer, excessivo vivido pelo
filósofo, positivamente como iluminação ou negativamente como megalomania
influenciou sua obra ou a obra do próprio Jung?
Jung apresenta Zaratustra, com o qual diz Nietzsche estar
identificado, como uma necessidade da época, como que evocado pelo próprio
inconsciente coletivo e, ao mesmo tempo, como porta-voz de um indivíduo grave e
mentalmente enfermo: sua consciência está caracterizada acima de tudo por uma
‘iluminação’ e isto é, naturalmente, demais, é uma espécie de consciência divina.
90
Naturalmente isto sugere uma megalomania, e é preciso, de fato, supor que essa
megalomania aconteceu em Nietzsche (NZ, p. 26-27).
O Zaratustra, de Nietzsche, diz Jung, “representou com rara
consistência e com a paixão de um homem verdadeiramente religioso a psicologia
daquele super-homem cujo Deus está morto, daquele ser humano que se
despedaça pelo fato de haver encerrado o paradoxo divino no estojo exíguo do
homem mortal” (AIC, IX/1, p. 190). Na edição revista de Psicologia e Alquimia, em
1952, Jung escreve: “Surpreendentemente, o paradoxo pertence ao bem espiritual
mais elevado” (PA, XII, p. 18). Alguns anos mais tarde, ao escrever o prefácio à obra
de Suzuki, A Grande Libertação, Jung parece ter alterado sua perspectiva, quando
afirmou: “Nunca estamos em condição de decidir, definitivamente, se uma pessoa foi
realmente ‘iluminada’ ou ‘redimida’, ou se apenas imagina que o tenha sido. Falta-
nos para isso qualquer critério” (PROO, XI, p. 550). Prosseguindo em sua análise do
Zaratustra, Jung diz que Nietzsche, e também Zaratustra, “está identificado com o
arquétipo e isto é uma inflação” (NZ, p. 27), pois “o arquétipo do velho sábio retém
Zaratustra nove séculos a .d. e Zaratustra agora. Ele pode ser Cristo, pode ser
Mohamed, pode ser Mani” (NZ, p. 45).
Mas, no caso de Nietzsche, continua Jung, “ele o está em
condições de fazer a diferença entre ele mesmo e Zaratustra” (NZ, p. 28). “Quando
uma inflação, quando alguém está identificado com o arquétipo, o ser humano
experimenta um sentimento de inferioridade que ele não admite, e então usa
particularmente linguagens exacerbadas” (NZ, p. 56).
Tendo mencionado a idéia da morte de Deus nos Seminários, Jung
propõe ao grupo: “Como devemos entender esta declaração feita por Nietzsche, de
que Deus está morto?” (NZ, p. 38). Sugere que, para ele mesmo, Jung, “podemos
entender Deus psicologicamente como um princípio orientador supremo” (NZ, p. 38).
Deus como sendo o princípio orientador, certamente é possível. Um deus é
usualmente caraterística de um certo sistema de pensamento ou moralidade,
acrescenta Jung. Como exemplo, cita o Deus Cristão, o summum bonum: Deus é
amor, amor como sendo o mais alto princípio moral e Deus é espírito, o espírito
sendo a idéia suprema de sentido. Todos os nossos conceitos morais cristãos
derivam dessa suposição, e à essência suprema de todas elas nós chamamos Deus
(NZ, p. 40). Então, quando Nietzsche diz ‘Deus está morto’, isso significa que esse
91
princípio orientador supremo está morto, o espírito, o amor – o amor cristão é claro –
o que quer que se acredite sobre o Deus Cristão (NZ, p. 40).
Como se declarou no início, para Jung essa declaração de que
Deus está morto é obviamente muito importante. “É, até onde eu posso dizer, a
exposição de todo o problema do Zaratustra” (NZ, p. 43). Nas páginas seguintes dos
Seminários, Jung analisa, parte por parte, as dissertações de Zaratustra. Deter-se-á
principalmente, nas que estão diretamente ligadas ao problema de pesquisa.
Jung começa a analisar a presença do funâmbulo (Z, Prólogo, p.
36), pois é o momento em que Zaratustra inicia seu sermão sobre o Übermensch.
“Não está claramente indicado que Zaratustra é o funâmbulo, mas é óbvio na
continuação da história que ele é Nietzsche” (NZ, p. 49), diz Jung, pois “é quando ele
começa o seu sermão sobre o Superman(NZ, p. 49). Claro, “cada criação é uma
criação para além de si, porque algo sempre existe e se alguma coisa é criada
deve ser para além. A essência, o mais alto princípio da criação poderia ser o
homem-para-além de si mesmo, isto é o Superman”, pois, Nietzsche diz aqui: “O
homem é algo que precisa ser ultrapassado, algo que precisa ser superado” (NZ, p.
49).
Que acontece ao homem “quando ele declara que Deus está morto”
(NZ, p. 50), questiona Jung junto ao grupo: “Aqui está o resultado do que ocorre
quando ele declara que Deus está morto: inflação” (NZ, p. 50).
Anarquia e destruição experimentaram os seus efeitos sobretudo sobre
Nietzsche: morto Deus, a “hybris humana elege o eu na sua mais ridícula
mesquinhez a assenhorear-se do universo. Esse é o caso Nietzsche, um
menosprezado signo precursor de toda uma época. O eu humano é
muito minúsculo e o seu cerebelo muito impotente para poder incorporar
em si, sem explodir, todas essas projeções após tê-las retirado do
mundo. “Eu” e “cerebelo” romper-se-iam em pedaços (isto é o que os
psiquiatras chamam de esquizofrenia) (CAROTENUTO, 1992, p. 69).
Inseriu-se essa passagem outra vez, uma vez que é essa idéia do
“eu” identificado ao arquétipo que parece sustentar a compreensão de Jung sobre o
Superman de Nietzsche. O problema da coniunctio (conjunção dos opostos) foi
retomado do Fausto, de Goethe, por Nietzsche, diz Jung, como se mencionou ao
tratar da individuação:
Como sabemos, no Zaratustra Nietzsche experimenta o processo da
transformação em super-homem, que ele aproximou perigosamente do
92
homem terrestre. Isso provocou inevitavelmente o ressentimento
anticristão, pois o seu super-homem é uma hybris da consciência
individual, que se choca necessariamente com o poder coletivo do
cristianismo, levando à destruição catastrófica do indivíduo (NZ, p. 50).
Jung parece saber que essa destruição aconteceu a Nietzsche
“tanto moral quanto fisicamente, sendo que a resposta dada pelos tempos
subseqüentes ao super-homem de Nietzsche foi o ‘coletivismo’, o ‘amontoamento
das massas’, a ‘asfixia da personalidade’ e a ‘impotência do cristianismo talvez
mortalmente ferido’” (PA, XII, 559) como balanço final uma vez que o “exagero de
Nietzsche era a identificação com o super-homem Zaratustra, com a parte da
personalidade que chegara aa sua consciência” (PA, XII, 560). Essa identificação
aos olhos de Jung será designada inflação, ou seja, um estado que em Nietzsche
estará sendo experimentado como megalomania.
“A idéia do Superman é, de fato, a conseqüência da morte de Deus,
o que faz com que o homem não possa permanecer homem” (NZ, p. 52). O que
ocorre, segundo Jung, é que quando uma inflação acontece ao homem, ele se torna
o criador de si mesmo. Portanto, Nietzsche continua agora a falar do Superman
como capaz de criar a si mesmo: “Zaratustra é então a expressão do homem mais
Deus” (NZ, p. 52). Zaratustra, agora, “em toda esta dimensão, torna-se Deus ele
mesmo” (NZ, p. 53), e isto é inflação.
Inflação é algo anormal e não é necessariamente parte do processo
criativo, embora infelizmente apareça, quase sempre, em conexão com ele e, “como
vocês sabem”, diz Jung nos Seminários, “essas forças criativas estão em Nietzsche
ou em mim ou em quem quer que seja e isso causa uma inflação, porque o homem
não possui poderes criativos, ele é possuído por eles” (NZ, p. 57).
Ainda abordando e analisando os textos do Zaratustra, de Nietzsche,
e buscando enfocar sua interpretação da morte de Deus, Jung cita o item três do
Prólogo, uma passagem onde Zaratustra diz: “Mas o mais sábio dentre vós não
passa de uma discrepância e de um hybrido de planta e fantasma. Mas vos mando
eu, porventura, tornar-vos fantasmas ou plantas?” (NZ, p. 61; Z, Prólogo, p. 30).
Nietzsche, diz Jung, nos apresenta a idéia do Superman em
contradição com as plantas e o espírito. “A planta é completamente inconsciente e o
espírito não tem carne, nem corpo, portanto, isso é como um espírito metafísico
conectado com uma planta e formando uma unidade, completamente inconsciente e
93
fechada na matéria” (NZ, p. 62). O Superman, nesse mesmo texto, é entendido
como algo ou alguém, muito distante do ensinamento de Zaratustra com relação a
terra. “Nós acreditamos que o Superman possa ser o Self”[...]. Se você entende que
o Superman é o Self, então, como pode o Self expressar a si mesmo, ou como você
que é apenas espírito, pode expressar você mesmo?” (NZ, p. 63). Entende-se que
isso é o que Nietzsche quer dizer aqui: “O Superman, o Self, é o sentido da terra e
consiste no fato de que nós entendemos a terra” (NZ, p. 64). Veja-se, por exemplo,
esta passagem: “Eu vos conjuro, meus irmãos, permanecei fiéis a terra” (NZ, p. 67).
O que o Superman diz é uma outra questão e ele é estrondoso nesse ponto. Ele diz
que o pensamento mais terrível é uma blasfêmia, contrária a terra e à superestima, o
não saber sobre essas coisas, assim como elas são, como é a relação com a terra
[...]. Ele pensa que é direito blasfemar sobre o espírito e afirma que deve ser a
condição para ser a verdade da terra, ou que alguém pode dar valor ao corpo mais
que ao espírito” (NZ, p. 67). No entanto, continua Jung, “é uma coisa engraçada,
contudo, por toda parte, no todo de Zaratustra você pode sentir como se este Deus
que ele diz estar morto não estivesse absolutamente morto” (NZ, p. 72).
“Deus, é claro, não está morto” (NZ, p. 92), dirá Jung. Mas, então, de
que se trata? Para Jung, Nietzsche está anunciando nessas passagens a idéia do
Superman como o relâmpago que vem para derrubar as condições adormecidas do
mundo, pois então o homem poderia mudar.
Isto não é exatamente a transformação cristã, a tina da graça de Deus
ou do batismo. Isto é devido ao homem, porque quando Deus está
morto, Ele aparece como o próximo a quem Ele mesmo mata; então a
faculdade criativa divina necessita e deve permanecer no homem. E
esse homem tem a faculdade de transformar-se no Superman, embora
isso o seja para o homem uma grande virtude; mas um homem que é
simplesmente o homem de hoje, uma criatura diferente, é óbvio, um
homem a quem cabe parte da sombra da natureza humana (NZ, p. 80).
A interpretação de Jung parece ir ficando cada vez mais distante do
objetivo de Zaratustra, pois ele acrescenta: “Zaratustra alcança a culminância real
quando ele diz: ‘Veja, eu vos ensino o Superman; ele é o raio, ele é esta loucura’”
(NZ, p. 92), o Superman pode somente trazer a destruição para o homem como ele
é. [...] Nosso atual inconsciente coletivo busca a destruição de milhões” (NZ, p. 93).
[...] E Nietzsche diz, comenta Jung que ele “ama aquele que destrói: por isso ele
prega a guerra” (NZ, p. 93). Sua interpretação, até aqui, no anúncio da morte de
94
Deus destruição e loucura, o que parecia condizer com a chegada da guerra e todas
as suas conseqüências.
Para Jung, o pensamento da morte de Deus implica em vir à fala o
não-poder do homem. Para ele, Zaratustra, o sem Deus, proclama o anúncio epocal
da “morte de Deus e, assim como para Plutarco, Tamo grita: o grande Pan está
morto! e num gemido se atira ao mar” (NZ, p. 51). Assim, com esse gemido
Nietzsche necessita criar para si um apoio como um “Zaratustra redivivo, como uma
espécie de personalidade secundária, uma espécie de alter ego, com o qual ele
identificou a sua grande tragédia Assim Falou Zaratustra (PROO, XI, p. 84).
Nietzsche, diz Jung, “não era ateu, mas o seu deus estava morto. O resultado dessa
morte foi uma cisão interior em Nietzsche, e sentir-se obrigado a personificar um
outro Si-mesmo em Zaratustra e ainda, em outro momento, em ‘Dioniso’“ (PROO, XI,
p. 84). [...] A tragédia de Assim falou Zaratustra foi “porque o seu deus estava morto,
Nietzsche mesmo tornou-se deus e isso acontece porque ele não era ateu. Era uma
natureza muito positiva para poder suportar a neurose metropolitana chamada
‘ateísmo’. Aquele para quem “Deus morre” sucumbirá à inflação” (NZ, p. 50-2, p.
113-4)
15
.
De acordo com Giovanni Rocci, em La Masquera e l’Abisso (1999), Jung
o Zaratustra, de Nietzsche, “como uma vibrante confissão do seu mundo
profundo, como a história da sua experiência interior e do confronto com os seus
demônios internos, com os abismos e as alturas da sua interioridade” (ROCCI, 1999,
p. 92). A obra, portanto, traduz-se como um reflexo da vida interior do próprio autor.
Poder-se-á questionar um indivíduo que diz, pela boca de Zaratustra, o que
Nietzsche disse, e não ter vivido o que diz? Jung escreve no livro O eu e o
inconsciente (1928): “Individuar-se significa tornar-se um ser singular e entendendo
por individualidade nossa mais íntima, última, incomparável e singular peculiaridade,
tornar-se si mesmo, atuar o próprio Si-mesmo” (Id., p. 92). Aqui todo escavar e
buscar, debaixo de todas as máscaras, nas profundidades psíquicas, significa
alcançar e realizar a profundidade do Si-mesmo.
De acordo com Jung, embora Nietzsche tenha perseguido
assiduamente essa meta, não pôde alcançá-la, seja porque qualquer coisa de
15
“What happens to man when he declares that God is dead? Something must happen, because
other human beings hold that God lives, declaring by that that they delegate certain of their vital
processes into an impersonal sphere which they call God”. [...] “But there is a definite effect which
takes place when you declare that God is dead. – Inflation – Of course”.
95
orgânico interferiu, seja porque no confronto sufocante com o seu próprio
inconsciente faltou-lhe a força necessária para a integração desses conteúdos na
consciência, ou seja, faltou uma relação positiva com o inconsciente, tendo faltado
uma “adesão ao princípio de realidade” (Id., p. 93).
É mais uma vez o problema da sombra que, segundo Jung,
Nietzsche não pode aceitar: “Esta é a hýbris luciferina de Zaratustra!” (Id., p. 163).
Essa mesma inflação que Jung em Nietzsche/Zaratustra, ele a como o quadro
de psicopatologia geral e coletiva, como o diagnóstico de nossa época.
3.8 “Deus como Salvação da Alma” (Selbst) na Psicologia Analítica
De acordo com Jung, a idéia de Deus é uma idéia arquetípica, isto é,
quando não é consciente, é inconsciente, sendo uma função psicológica
absolutamente necessária, que nada tem a ver com a existência de Deus, pois,
segundo o autor, “não pode haver qualquer prova da existência de Deus, o que,
aliás, é supérfluo” (EPA, VII, p. 63). O que acontece é que um
impulso ou um complexo qualquer que concentra em si a maior parcela
da energia psíquica, obriga o eu a colocar-se a seu serviço, [...] sendo
usualmente tão intensa a força de atração exercida por esse foco de
energia sobre o eu, que esse se identifica com ele, passando a acreditar
que fora ou além dele não existe outra necessidade (EPA, VII, p. 64).
Esse acúmulo de energia em torno de uma paixão ou monomania é
o que os antigos chamavam de “deus”. Assim, “os deuses não podem e não devem
morrer” (EPA, VII, p. 64). O que é preciso fazer é distinguir o eu do o-eu, ou seja,
da psique coletiva e assim “escapar à crueldade da enantiodromia” (EPA, VII, p. 65),
isto é, tornar-se aquele que é capaz de diferenciar-se do inconsciente. A
enantiodromia surge aqui, como uma ameaça inevitável para “qualquer movimento
que alcança uma indiscutível superioridade” (EPA, VII, p. 65), porque sua
desorganização é tão cega quanto sua organização. Conforme Jung, Nietzsche
passou por esse estado no início de sua doença mental, sofrendo, como Zagreu, o
estraçalhamento por ter se tornado como deus. Como exemplo de enantiodromia,
Jung cita “a psicologia de São Paulo e sua conversão ao cristianismo, também a
história de conversão de Raimundo Lullo, a identificação com Cristo do doentio
96
Nietzsche, seu endeusamento de Wagner e sua hostilidade posterior contra ele...”
(TP, VI, p. 405-406).
Aquilo que se nomeou Deus e designado pela fórmula bem supremo
significa, como o próprio termo o diz, o valor psicológico supremo. Em outras
palavras, “é um conceito ao qual se atribui, ou realmente possui, a maior e mais
geral importância na determinação de nossos pensamentos e ações. Na linguagem
da Psicologia Analítica o conceito de Deus se confunde com o complexo
representativo que, segundo a definição anterior, concentra em si a maior soma de
libido (energia psíquica)” (TP, VI, p. 58). A partir dessa perspectiva, o conceito de
Deus pode ser diferente nas diversas pessoas, pois, “como se sabe, o valor atuante
mais alto da alma humana está localizado bem diversamente. pessoas “cujo
Deus é a barriga” (Fil. 3,19) e, para outras, ele é o dinheiro, a ciência, o poder, o
sexo, etc.” (TP, VI, p. 58), variando conforme a localização do bem supremo e
indicando com isso a psicologia do indivíduo.
Salvar-se a si mesmo, tornar-se aquele que se é, isto os deixam,
Jung e Nietzsche, como ensinamento de suas obras. Em outras palavras, o que
Jung chama de salvação pode ser pensado como união de opostos ou processo de
individuação, enquanto Nietzsche chama de “redenção” (Z, II, p. 151ss) aquilo que
“pode conduzir o homem a tornar-se aquele que se é” (Z, II, p. 126).
Porém, como se teve oportunidade de acompanhar com Jung,
Nietzsche é esta identidade inflacionada, não diferenciada de Zaratustra. Se, porém,
lermos o que diz Zaratustra em A Saudação (Z, IV, p. 279), ver-se-á que ele aponta
para essa não identidade ou, ainda, para um outro modo de ser de tal identidade
que não é experimentada no sentido inflacionado indicado por Jung. Zaratustra diz:
“Para mim, ou seja, para o ser inexorável que, em mim, guarda silêncio [...] ainda
pode vir gente melhor, aqueles últimos restos de Deus, ou seja, todos os homens do
grande anseio, que não querem viver sem que aprendam de novo a ter esperança, a
grande esperança!” (Z, IV, p. 283).
Quando Zaratustra refere-se “ao ser inexorável” (Z, IV, p. 283) que,
em si, “guarda silêncio” (Z, IV, p. 283) deixa claro a presença dos “dois”, isto é, do
algo ou alguém que, “em mim” (Z, IV, p. 283), guarda silêncio. Também Zaratustra
aponta para essa distinção em Do amigo (Z, I, p. 72): “Eu e mim estamos sempre em
colóquio por demais acalorado” (Z, I, p. 72). Jung não chegou em seus Seminários a
essa parte quatro do Zaratustra, o que talvez justifique, em parte, ele não ter
97
reconhecido a consciência clara que Nietzsche tinha dessas existências de
Zaratustra e do “outro”.
Ao longo dos Seminários, Jung pressupõe que em Zaratustra, falta a
configuração da anima como arquétipo do feminino presente na psique, razão pela
qual o pode haver uma integração dos opostos em Zaratustra e,
conseqüentemente, em Nietzsche, uma coniunctio, porque de acordo com Jung,
Nietzsche é Zaratustra. Para Jung o importante motivo da anima desenvolve-se em
vários autores, porém quando “um gênio perigoso, FRIEDRICH NIETZSCHE,
envolveu-se, e um Zaratustra ergueu a sua voz sem ter como parceiro do diálogo
nenhuma mulher sábia” (VS, XVIII/2, p. 1281), isto é, uma voz que, segundo o
psicólogo, vinha de um “solteiro atacado por enxaquecas a seis mil pés além do bem
e do mal, isso só pode ser sintoma da consternante loucura, que fez aquelas
confissões que tanto escandalizaram sua irmã” (VS, XVIII/2, 1281) cujos traços
podem ser encontrados em sua história clínica. Essa ausência da configuração da
anima, segundo Jung, revela-se como a insaciável procura pela luz, a insaciável
procura pela individuação não alcançada. Tal união em Nietzsche/Zaratustra não
ocorre, segundo Jung, porque para Nietzsche Deus está morto, ou seja, “o seu Deus
morreu e a conseqüência desta morte é a inflação e o Superman (NZ, p. 44).
A ânsia pela procura da luz, por sua vez, está baseada no
pressuposto junguiano do inconsciente como consciência ltipla. Jung traz essa
hipótese da existência de múltiplas luminosidades, da alquimia antiga, então
denominadas scintillae (centelhas). “Essas centelhas eram emanações da Anima
Catholica, da Alma Universal (alma do mundo) que é idêntica ao Espírito de Deus.
As scintillae eram também chamadas “sementeiras do futuro”, em outras palavras,
formae rerum essentiales (formas essenciais das coisas) (ST, V, p. 320).
Psicologicamente, a única scintilla deve ser considerada como um símbolo do Si-
mesmo (ST, V, p. 320). Como exemplo desse símbolo, Jung cita Paracelso, para o
qual as scintillae são luminosidades germinais que brilham de dentro da escuridão
do inconsciente, assim como o sol, pois “o Sol é invisível no homem, mas visível
para o mundo, embora os dois sejam um e mesmo sol”. Da mesma forma diz a
Escritura em Mt, 5 14: “Vós sois a luz do mundo”. Luz do mundo e fidelidade a
terra, afirmação da vida, por sua vez, é o que vem anunciado pela boca de
Zaratustra.
98
Zaratustra saúda o sol e toda a sua trajetória é acompanhada pelo
sol e seus contínuos ocasos e alvoradas. Zaratustra anuncia em Do homem
superior: “Deus morreu; s queremos, agora, que o super-homem viva” (Z, IV, p.
288). Para que o Übermensch viva, o homem, assim como ele tem sido até agora,
precisa ser superado. Zaratustra anuncia primeiro a morte de Deus ao povo da praça
do mercado, mais tarde a seus discípulos e, finalmente, a alguns poucos “homens
superiores”, que ainda “não acompanham o seu passo”, ficando o anúncio a ser
ouvido, quem sabe, pelos homens do futuro. Enquanto nas Escrituras Deus morre
para salvar o homem, em Zaratustra o homem pode redimir-se a si mesmo, porque
Deus está morto. Zaratustra diz em Da ciência (Z, IV, p. 302): “Essa coragem,
finalmente afinada, espiritualizada, essa coragem humana com asas de águia e
prudência de serpente, essa coragem, ao que me parece, chama-se hoje:...
“Zaratustra!”... (Z, IV, p. 304).
Em Jung, salvação da alma não tem o significado que povoa o
imaginário popular e, de certa forma, de todos nós, de livrar-se das penas e castigos
eternos que a alma viria sofrer no além, no mundo após a morte, na eternidade, e
que coincidiria com os méritos morais adquiridos, segundo o modo de vida de cada
indivíduo. Na Psicologia Analítica, o sentido de salvação da alma pode ser
encontrado nas passagens em que fala de redenção e de seu significado como
sendo a libertação da flutuação dos afetos e, conseqüentemente, da tensão gerada
pelos opostos, pois “como o sofrimento é um afeto, a libertação dos afetos significa a
salvação, sendo seu sinônimo a libertação da ‘tensão dos opostos’, como caminho
da salvação que leva gradualmente ao estado de brama” (TP, VI, p. 348). O conceito
de brama é tirado por Jung da Filosofia Oriental, em que “Brama é designado como
sat e asat, ser e não-ser, satyam e asatyam, realidade e não-realidade” (TP, VI, p.
338). A esse estado, a Psicologia Analítica designa Si-mesmo (Selbst), que aparece
como representação dos opostos, que colidem não apenas na sociedade, mas no
indivíduo, sendo que o indivíduo procura uma espécie de “ótimo vital” (TP, VI, p.
323). Essa qualidade de união dos opostos aparece projetada como “Deus
mediador, Messias, intermediário, etc.” (TP, VI, p. 323). O Oriente contrapondo-se ao
Ocidente coloca sua doutrina psicológica da salvação no campo da intenção
humana, retirando a projeção em Deus como salvador, porque, enquanto mantida,
“salta aos olhos a infantilidade dessa concepção” (TP, VI, p. 323).
99
Segundo Nietzsche, a interiorização dos antigos impulsos inibidos e
contidos geraram a -consciência, cujos frutos, por meio da luta do homem
consigo mesmo, apontam para um além do homem, um caminho de redenção.
Admoestações célebres confirmam esse caminho de individuação ou de salvação
como sendo “tarefa essencialmente ética, o se deixar influenciar pelos opostos
(nirdvandva = livre, imune aos opostos), mas elevar-se acima deles, porque a
libertação dos opostos conduz à salvação” (TP, VI, p. 325). Esta idéia é sustentada
por Roberto Machado (1999), ao falar do Zaratustra, de Nietzsche, quando diz que o
“Super-homem é todo aquele que supera as oposições terreno-extraterreno,
sensível-espiritual, corpo-alma; é todo aquele que supera a ilusão metafísica do
mundo do além e se volta para a terra, valor à terra” (MACHADO, 1999, p. 46).
Nietzsche insurge-se, em Além do bem e do mal e fala não de opostos, mas de seu
refinamento, “pois embora a linguagem, nisso e em outras coisas, não possa ir além
de sua rudeza e continue a falar em oposições, onde somente degraus e uma
sutil gama de gradações...” (ABM, 24).
O significado fundamental é que a morte de Deus e seu
renascimento, sua renovação é a tentativa de solução em forma de uma renovação
da atitude geral. Daí que “a idéia de um princípio criador universal é uma projeção da
percepção do ser que vive no homem” (TP, VI, p. 199) e que coincide com aquela
idéia de uma força dinâmica ou criadora que foi denominada libido. Por exemplo,
ainda na Filosofia Oriental, a palavra “brama”, que coincide com o Selbst”, significa:
oração, rmula mágica, discurso sagrado, saber sagrado (veda), conduta santa, o
absoluto, casta sagrada (brâmanes), deriva de barth, farcire, a “inflação”, isto é,
“oração”, concebida como “a vontade do homem que procura atingir o sagrado, o
divino” (TP, VI, p. 198).
Da mesma forma Giovani Rocci (1999) comenta as palavras de
Nietzsche que dizem que o eu e o Tu não são mais que imagens. Essere,
temporalità, Volontà di potenza, tutto ciò è rappresentazione. Noi dobbiamo essere
uno specchio dell’essere: noi siamo Dio in piccolo”. (“Ser, temporalidade, Vontade de
Potência, tudo isto é representação. Nós devemos ser um espelho do ser: nós
somos Deus em miniatura”) (ROCCI, 1999, p. 219). E continua: “Tudo que em
nós de alto ou de baixo deve ser entendido como necessariamente pertencente ao
ser do mundo. Não são as nossas perspectivas através das quais vemos as coisas;
mas o as perspectivas de um ser da nossa espécie, porém maior: nós vemos em
100
imagens o que ele vê” (Id., p. 219). Para Jung esse “più grande”, esse “maior” é o Si-
mesmo, que também pode ser visto como Atman-Braman e que, empiricamente,
pode ser experienciado como um estado ao qual se chega através da “morte de
Deus”, estado este decorrente do maior de todos os perigos e, simultaneamente, o
único caminho para a salvação da alma, do mistério da união dos opostos pelo
processo de individuação.
A noção de “Deus” foi inventada, segundo Nietzsche, como antítese
à vida, inventada como uma noção de além” para desvalorizar o único mundo que
existe, “para não deixar à nossa realidade terrena nenhum fim, nenhuma razão,
nenhuma tarefa” (EH, Porque sou um destino, 8). Da mesma forma a noção de alma,
de salvação da alma “entre convulsões de penitência e histeria de redenção!” (EH,
Porque sou um destino, 8), bem como as inversões de bom e mau, “nisso tudo
acreditou-se como a moral” (EH, Porque sou um destino, 8).
Zaratustra, porém, embora não fale de salvação da alma, sabe que
no homem um anseio que aponta para além do homem, para algo muito
semelhante ao Selbst de Jung, pois afirma: “Melhor terias feito dizendo: ‘Inexprimível
e sem nome é o que faz o tormento e a delícia da minha alma, e que é, também, a
fome das minhas entranhas’” (Z, I, p. 53). Esse anseio aponta também para a
libertação do homem, libertação do despeito, do ódio vingativo, do amargor, que
conduza o homem para além do homem, assim como ele tem sido até agora, cujo
perigo é permanecer numa indiferença resignada, num pessimismo ou cinismo
diante de si mesmo, porque “quem realmente ama, ama acima de prêmio e castigo”
(Z, IV, p. 263 ), ou seja, para além de todas as oposições. Por um momento, ainda
que não chame isto de salvação da alma, esse amor, que ama acima de prêmio e
castigo parece coincidir com o que Jung denomina salvação da alma como união
dos opostos, ou mysterium coniunctionis.
A ambição máxima que pode ser alcançada está à mão, ensina
Zaratustra: “quem deseja tornar-se leve e ave, deve amar-se a si mesmo [...] de um
amor sadio e saudável [...] em verdade, não é um mandamento para hoje ou
amanhã, o de aprender a amar-se a si mesmo. Ao contrário, de todas as artes, é a
mais sutil, a mais astuciosa, a última e mais paciente” (Z, III, p. 199). É o tornar-se o
que se é pois “o homem é difícil de descobrir e, mais difícil que tudo, descobrir-se a
si mesmo” (Z, III, p. 200).
101
4. “MORTE DE DEUS”: CONTRIBUIÇÕES DE JUNG E NIETZSCHE
Após a apresentação feita, de alguns aspectos das obras de
Nietzsche e Jung, retoma-se aqui a contribuição dada por ambos, tanto de Nietzsche
para a psicologia de Jung, quanto de Jung, eventualmente, para a leitura da filosofia
de Nietzsche. Particularmente, deseja-se retomar o tema da “morte de Deus”, agora
como uma contribuição especifica do filósofo à psicologia junguiana, entre elas, em
Nietzsche, o conceito de Self/Selbst, ou Si-mesmo,
que
foi traduzido por Mário da
Silva, no Zaratustra, como “o ser próprio”, designado por Zaratustra como “um
soberano poderoso, um sábio desconhecido” (Z, I, p. 51); é ele quem “quer criar para
além de si” (Z, I, p. 51). Verificar-se-á que, para Jung, Zaratustra mesmo é um
símbolo do Self, o qual, segundo Jung, também pode ser chamado de “Deus em
nós” (EPA, VII, p. 397). O conceito de enantiodromia, de Heráclito, será retomado,
como citado por Nietzsche:
Quanto mais fortemente um homem desenvolve seu instinto, tanto mais
é atraído a precipitar-se no seu oposto”. Vale dizer: “Demonstrar a
necessidade de que, a um consumo sempre mais econômico de homem
e humanidade, a uma ‘maquinaria’ sempre mais firmemente intrincada
uma na outra de interesses e rendimentos, pertence um contra
movimento. A isto eu denomino como separação de um excedente de
luxo da humanidade: nela deve vir à tona um tipo mais forte, mais
elevado, o qual tem outras condições de emergência e de conservação
que aquelas do homem mediano. Meu conceito, minha alegoria para
esse tipo é, como se sabe, a palavra Übermensch”. (KSA XII, 10 [17]) .
Ponto de vista também corroborado por Jung: “Tudo que existe se
transforma em seu contrário” (DI, VIII, p. 790).
Curiosamente, percebe-se que ambos, Jung e Nietzsche, apontam
indícios de um “para além” dos opostos, seja no caminho de individuação como
“tarefa essencialmente ética não se deixar influenciar pelos opostos, mas elevar-se
acima deles” (TP, VI, p. 325), seja em Para além de bem e mal quando, nas palavras
de Roberto Machado (1999), ao falar do Zaratustra, diz que “Super-homem é todo
aquele que supera as oposições” (MACHADO, 1999, p. 46). O convite Para o qual
Nietzsche nos impele é para “além do homem” numa expectativa de que surja um
tipo mais elevado de homem: o homem individuado de Jung.
102
A questão central abordada tanto na psicologia de Jung quanto na
filosofia de Nietzsche é a totalidade, entendida na perspectiva da conjunção dos
opostos. A experiência dessa totalidade é citada por Jung como sendo uma vivência
“inteiramente estranha ao nosso tempo, mas que hoje seria mais necessária que em
qualquer outra época anterior. É evidente que este é o principal problema com que
se confronta a arte da psicoterapia contemporânea” (PP, XVI, p. 267). A essa crise
da cultura moderna Nietzsche chamou niilismo, sendo a décadence uma expressão
da fragmentação e da unilateralidade da alma moderna. Jung denominou processo
de individuação à busca pela cura da dissociação, processo que requer a integração
mútua de consciente e inconsciente, quando então um novo equilíbrio é encontrado,
surgindo para além de consciente e inconsciente, um terceiro, isto é, um novo centro
da personalidade: o Si-mesmo (Selbst).
O Si-mesmo “tem o caráter de algo que é um resultado, uma
finalidade atingida pouco a pouco e através de muitos esforços”
(EPA, VII, p. 228).
Jung afirma que o Si-mesmo pode ser sentido como algo irracional e indefinível em
relação ao qual o eu não se opõe nem se submete, mas simplesmente se liga,
girando por assim dizer em torno dele como a terra em torno do sol chegamos à
meta da individuação, sendo que o eu individuado sente-se como objeto de um
sujeito desconhecido e de origem superior (EPA, VII, p. 228).
Ambos, Jung e Nietzsche usam expressões como: “síntese dos
opostos” e “tensão dos opostos” (DIXON, 1999, p. 5) intercambiavelmente,
lembrando que síntese é o resultado da tese e da antítese. Ambos compreendem
como sinônimo da conjunção dos opostos a totalidade, a qual implica uma mudança
de atitude. Ao nascimento dessa nova atitude Jung denominou “função
transcendente”. Neste sentido, segundo Dixon, a “função transcendente” de Jung é
idêntica ao conceito de “extra-moral” de Nietzsche, quando transcende a tradicional
dicotomia de um ou outro. Transformação através da “união dos opostos é o que
Nietzsche chama de self-overcoming (Id., p. 6) superar a si-mesmo. Em
Zaratustra, diz Nietzsche: “Nele todos os opostos se fundem numa nova unidade”
(EH, Assim Falou Zaratustra, 6). Assim, por exemplo, diz o Profeta: “Como não teria
a alma que mais ama a si mesma, em que todas as coisas têm suas correntes e
contracorrentes e preamar e baixa-mar; oh! como a alma mais excelsa não teria os
piores parasitas?”(Z, III, p. 19).
103
Ao expressar seu pensamento como experiência viva dos opostos,
Nietzsche é mal compreendido por Jung, que o acusa de “imoralista”, “irracionalista”,
“ateísta” e “niilista” ou, ainda, aquele para quem o seu Deus está morto” (NZ, p. 50-
2, p. 113-4). Nietzsche não é compreendido como gostaria de ser. O que o filósofo
faz é revestir esses conceitos com novos significados. Ele afirma: “Todo espírito
profundo necessita de uma máscara; mais ainda, ao redor de todo espírito profundo
cresce continuamente uma máscara, graças à interpretação perpetuamente falsa, ou
seja, rasa, de cada palavra, cada passo, cada sinal de vida que ele dá“ (HH, 40).
Nesse jogo entre os opostos, ao se dizer “eu sou o primeiro imoralista e com isto sou
um destruidor par excellence (EH, Porque ou um destino, 4), Nietzsche diz que
deviam lhe ter perguntado quem é Zaratustra em sua boca, pois o Zaratustra persa
criou o mais fatal dos erros, a moral; em conseqüência, deve ser também o primeiro
a reconhecê-lo porque o negar e o destruir são condições para o afirmar” (EH,
Porque sou um destino, 4).
Jung parece não compreender Nietzsche quando o interpreta como
“o campeão do dionisismo no sentido de uma tendência fatal para o irracionalismo”
(DIXON, 1999, p. 7), entendido como uma personalidade patológica. É quando Jung
diz:
Nietzsche não viveu esse instinto, esse instinto animal de vida. Podemos
acusá-lo de ter praticamente negado o seu instinto animal? Sem dúvida,
ele próprio não concordaria com tal acusação. E até poderia nos provar,
sem dificuldade, que viveu o instinto em seu sentido mais elevado. Como
é possível, perguntamo-nos surpresos, que a natureza instintiva do
homem o tenha justamente afastado do convívio dos homens,
relegando-o ao mais absoluto isolamento, defendido pelo nojo do contato
com o rebanho? (EPA, VII, p. 24).
Mas, continuará Jung, “não existe unicamente o instinto de
conservação da espécie, existe também o de autoconservação, e é sem dúvida
deste último instinto que Nietzsche nos fala, isto é, da vontade de poder(EPA, VII,
p. 24).
Para Jung a vontade de poder da qual trata Nietzsche conduz à
hybris, assim como quem
discorda a fundo das linhas básicas do cristianismo, também abre mão
da proteção que o mesmo proporciona. Rende-se forçosamente à alma
animal. É o momento do delírio dionisíaco, a revelação subjugadora da
‘besta loura’, que se apodera do incauto, que assim subjugado torna-se
um herói ou um deus, com uma grandeza muito acima do humano.
104
Sente-se como se estivesse a “6 mil pés além do bem e do mal” (EPA,
VII, p. 24).
Dirá Jung que nesse caso há uma identificação com a sombra.
Embora se possa inferir a compreensão por Jung em vários aspectos, muito da
filosofia de Nietzsche na psicologia daquele. Assim também ambos, Nietzsche e
Jung, eram, igualmente, intensamente religiosos, diz Dixon. Foi ao dizer: “Deus está
morto” em Assim Falou Zaratustra que, em Nietzsche, essa consciência religiosa
atingiu seu mais alto grau de expressão, o ateísmo. Da mesma forma, ao falar da
reavaliação dos valores, estava dizendo com outras palavras o mesmo que Jung
chamou de processo de individuação, isto é, um processo de integração de si
mesmo que, “ao reconhecer e afirmar os aspectos opostos de suas naturezas
entre o racional e o irracional, consciente e inconsciente, bom e ruim, homem e
mulher juntos transcendem a dicotomia e vêm a ser transformados no processo
com um alto nível de consciência moral e espiritual” (DIXON, 1999, p. 10). Isso
ocorre desde que seja respeitada a natureza instintiva do homem, a qual Nietzsche
propõe continuamente e que Jung critica como o tendo sido vivida pelo filósofo,
mas que vivê-la é a condição para a conjunção dos opostos que chamou “salvação
da alma”. Diz Jung: “O homem moderno acaba perdendo de vista a sua natureza
instintiva originária, substituindo sua verdadeira essência pela visão que projeta de si
mesmo” (PT, X, p. 558), no sentido de uma consciência alienada e “desenraizada de
sua base instintiva, ou seja, a cisão que leva ao conflito inevitável entre consciência
e inconsciente, espírito e natureza, fé e saber” (PT, X, p. 558). De acordo com Jung,
nesse tipo de situação o que acontece é “de início uma pura inversão: o que está
abaixo vai para cima, a escuridão ocupa o lugar da luz e, como isso sempre se dá de
maneira anárquica e turbulenta, a liberdade do oprimido “libertado” precisa ser
necessariamente restringida” (PT, X, p. 558). Como que contradizendo a si mesmo,
Jung Nietzsche como um “exemplo clássico” da “ampliação da consciência”, isto
é, “o encontro de Nietzsche com Zaratustra” transformou-o de “aforista crítico em
poeta trágico e profético” (AIC, IX/1, p. 216). O que Jung está chamando de
ampliação da consciência é a conscientização de “um alargamento que emana de
fontes internas” (AIC, IX/1, p. 215). Diz-se contradizendo porque esse alargamento
da consciência é próprio de um processo de individuação bem sucedido.
De modo semelhante, segundo Dixon, (1999, p. 11), a “inteira
filosofia de Nietzsche é um contramovimento às condições que ele chama de
105
niilismo, o qual ele foi o primeiro a prever e a diagnosticar”. Ao prever e diagnosticar
o niilismo, Nietzsche propõe a “reavaliação de todos os valores” (Id., p. 11), mas,
insiste, “não com belas palavras ou com uma simples reflexão socrático/racional ou
ainda uma instrospecção intelectual. Isto requer um radical exame de si mesmo
radical no sentido original da palavra” (Id., p. 11). Para isso Nietzsche nos convida a
“descer a nossas últimas profundezas”, pois a reavaliação dos valores é uma
jornada para o centro, o lugar da transformação criativa” (Id., p. 11). Como uma
confirmação de suas palavras, em uma carta ao Barão de Gesdorff, datada de junho
de 1883, Nietzsche escreve:
Eu tenho já atrás de mim um largo e rigoroso ascetismo do espírito,
ascetismo que professei voluntariamente e que nem todos os homens
puderam exigir de si próprios. O meu Zaratustra que te enviarei esta
semana, revelar-te-á a elevação do vôo da minha vontade
(DT, 1944,
p. 125).
A reavaliação dos valores ou a transvaloração de todos os valores é
decorrente do niilismo e, conseqüentemente, da morte de Deus sendo o niilismo o
grande perigo da civilização. Depois de ter tentado refugiar-se no além, toda
interpretação da moral termina no niilismo, o qual é “a rejeição radical dos valores,
do sentido, do desejável” (DIXON, 1999, p. 11)). É numa “interpretação
perfeitamente determinada que está o niilismo” (Id., p. 11). Assim, diz Nietzsche aos
interpretadores e apregoadores da moral: “Verdadeiramente vocês entendem da arte
contrária à alquimia, a desvalorização do que é valioso! Não seria tempo de falar a
respeito da moral, como mestre Eckhart: “Peço a Deus que me livre de Deus”? (GC,
292).
Jung, por sua vez, sem usar a expressão niilismo, aponta a morte de
Deus (ou o seu desaparecimento) como um símbolo universal que se repete sempre
como um “processo típico da alma(PROO, XI, p. 149), a perda do valor supremo
que vida e sentido às coisas. O que sei, diz Jung, é o que o sabe grande número
de pessoas, que “estamos numa época ou de morte ou de desaparecimento de
Deus” (PROO, XI, p. 149). Como exemplo, Jung sugere a comparação ao mito
cristão, que diz:
Ele não foi encontrado onde seu corpo havia sido depositado. O
‘corpo’ corresponde à forma externa visível da versão até então conhecida, mas
passageira, do valor supremo. O pequeno número de pessoas que o
106
Ressuscitado é uma prova de que não são poucas as dificuldades com que se
tropeça quando se aspira a reencontrar e a reconhecer o valor transformado (PROO,
XI, p. 149).
O valor transformado e o processo de transformação ao qual
Nietzsche designa como Reavaliação dos Valores, Jung, como foi dito, designa
como Processo de Individuação. Não prometo com isto, diz Nietzsche, melhorar a
humanidade. “A realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade,
na medida em que forjou um mundo ideal. O ‘mundo verdadeiro’ e o ‘mundo
aparente’- leia-se: o mundo forjado e a realidade o que levou a humanidade a adorar
os valores inversos” (EH, Prólogo, 12).
O filósofo, porém, prenuncia o maior dos acontecimentos recentes, o
“fato de que ‘Deus está morto’ de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito”
(GC, 343), cujas primeiras conseqüências são, para o homem, não como se poderia
esperar, tristes e sombrias, mas, sim,
uma espécie de luz, de felicidade, de alívio, contentamento,
encorajamento, aurora. De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’ ante a
notícia de que ‘o velho Deus morreu’ nos sentimos como que iluminados
por uma nova aurora, nosso coração transborda de gratidão, espanto,
pressentimento, expectativa novamente é permitida toda a ousadia de
quem busca o conhecimento (GC, 343).
Por outro lado, para os outros, isto é, para os espíritos não livres
Jung fala que, “paralelamente à decadência da vida religiosa, o número de neuroses
vai aumentando consideravelmente” (PROO, XI, p. 514) mostrando uma “ausência
inquietante de equilíbrio” (PROO, XI, p. 514). Afirma o psicólogo que o homem
moderno não importa a que religião pertença - “perdeu a proteção dos muros da
Igreja a vida se tornou mais rápida e intensa. Nosso mundo é inundado por ondas
de inquietação e medo” (PROO, XI, p. 84). Isso significa que, com a morte de Deus,
“o homem ver-se-á despojado de todos os dispositivos de segurança e meios de
defesa espirituais que o protegem contra a experiência imediata das forças
enraizadas no inconsciente que esperam a sua libertação” (PROO, XI, p. 85).
O problema fundamental é, em última instância, o problema do valor
da vida, da religiosidade, pois, diz Nietzsche: “Aquilo que assombra, na religiosidade
dos antigos gregos, é a exuberante gratidão que ela irradia é uma espécie muito
nobre de homem, a que assim se coloca perante a vida e a natureza! Mais tarde,
107
quando o populacho atinge a preponderância na Grécia, o medo prolifera também
na religião; o cristianismo se preparava” (ABM, 49).
Ao longo dos Seminários, Jung deixou transparecer continuamente a
suposta identidade entre Nietzsche e Zaratustra, bem como apontou o Übermensch
(lido como Superman) como a conseqüência da morte de Deus e, com isso, a
emergência da hybris luciferina de Zaratustra e de toda a civilização. Viu ainda no
filósofo “sem menosprezar sua importância que, ele foi uma personalidade mórbida”
(EPA, VII, p. 23/24). Comenta Jung que: “O par de amigos distorcidos pela inflação
na figura de Nietzsche e Zaratustra está diante de nossos olhos e nos alerta dos -
perils of the soule à periculosidade e ambigüidade dos deuses” (AIC, IX/1, p. 254).
Com isso, parece que viu um dos lados, que de fato pode acontecer como
decorrência da morte de Deus quando se mantém uma visão unilateral da
experiência.
Confundir o personagem Zaratustra, o “profeta”, com o autor, parece
implicar uma visão de Jung anterior a como ela o seria a partir de uma “segunda
inocência”, como o diz Nietzsche. O psicólogo de Zürich, embora estivesse de
posse do conhecimento teórico, ainda não o tinha como experiência. Também como
psiquiatra e tendo conhecido a irmã de Nietzsche, foi profundamente influenciado
por sua história pessoal, deixando a dimensão filosófica do seu pensamento em um
segundo plano, focando por isso, com especial ênfase, a patografia do filósofo. É
fato, porém, que Jung entendeu a “morte de Deus” também como a grande
possibilidade, para alguns indivíduos, de conhecerem a si mesmos (como resultado
do processo de individuação) e é essa, sem vida a maior contribuição de
Nietzsche para a sua Psicologia Analítica.
É possível ver como Jung viu, se Nietzsche estivesse falando a partir
de uma inocência ingênua”, uma insciência, um não saber, ignorante e cego, que é
de fato o que predomina na civilização. Pode-se discordar de Jung em muitos
pontos, entre eles o fato de que, na própria obra Assim Falou Zaratustra, percebe-se
em várias passagens, que foram assinaladas, que sim uma identidade, mas é,
por assim dizer, uma segunda identidade, semelhante a uma segunda inocência”,
citada por Safranski como a “primeira espontaneidade do que é vivo: Inocência é
criança e esquecimento, um recomeçar, um jogo, uma roda que gira por si, um
primeiro movimento, um sagrado dizer-sim” (2001, p. 254).
108
O que se fará rapidamente aqui, pois isto pode vir a ser
desenvolvido em trabalhos futuros, é comentar justamente a questão da identidade.
Para Nietzsche alguém é artista, “é ator pelo fato de ter uma percepção à frente dos
outros homens: o que deve ter efeito de verdade não pode ser verdadeiro” (CW, 8,
26). Comentando sobre a arte Nietzsche, diz estar “à frente dos psicólogos todos”
por “ter um olhar mais agudo para a difícil e insidiosa espécie de inferência
regressiva, na qual se comete a maioria dos erros a inferência que vai da obra ao
autor, do ato ao agente, do ideal àquele que dele necessita, de todo modo de pensar
e valorar à necessidade que por trás dele comanda” (NCW, Nós Antípodas, 60). O
filósofo completa sua reflexão apontando para uma não identidade de artista e obra:
“O grande estadista, o conquistador, o descobridor está disfarçado, escondido em
suas criações, até um ponto irreconhecível: a obra, a do artista, do filósofo, ela
inventa quem criou, quem a teria criado...” (NCW, O Psicólogo toma a palavra, 69).
A visão de Jung, sobre a filosofia de Nietzsche, especialmente em
seu Assim Falou Zaratustra, está profundamente sustentada pela questão de uma
identidade, porém, baseada em uma insciência a hybris luciferina, o que nos faz
pensar a inferência acima relatada por Nietzsche.
A questão da identidade é demasiado complexa e o próprio Jung
busca abordá-la por meio do processo de individuação, o caminho da diferenciação,
o caminho inicial como um começo, mas, ao longo do processo, o que se verifica é
que da diferenciação brota uma nova unidade, a conjunção dos opostos pela função
transcendente. A essa nova unidade Jung denomina, mysterium coniunctionis. É
essa segunda unidade o que Jung insiste que Nietzsche não pode alcançar, pois
nele estaria faltando a configuração da anima, configuração esta designada como a
representação do feminino ou, ainda, como a personificação feminina do próprio
inconsciente à qual pertencem certos estágios, sendo o último deles representado
por Sofia, a própria sabedoria. Mas é com ela que Zaratustra dialoga ao longo de
muitas dissertações, como por exemplo em Do grande anseio (Z, III, p. 228).
Excesso de lucidez? Excesso de clareza? Se se pode medir a sabedoria de alguém
por seus frutos, o que se experimenta do Zaratustra, de Nietzsche, são frutos de
sabedoria e não os frutos podres da demência.
É provável que na época dos Seminários essa temática, a da
identidade, ainda não tivesse sido amplamente construída por Jung, posto que ele
mesmo parece que ainda não havia chegado a essa experiência. Entende-se que a
109
partir de um processo gradativo de clareza da consciência, o que já havia em
Nietzsche/Zaratustra, é nessa segunda união que se a identidade de
Nietzsche/Zaratustra, e, neste sentido, “quem” está presente é e não é mais o Dr.
Nietzsche. É uma personalidade mais ampla, uma “consciência divina”, como tentou
intuir Jung, e achou que “era demais” concordar com isto, optando por diagnosticá-la
como megalomania. Nietzsche por certo não concordaria com nenhuma dessas
visões, elas seriam ainda conceitos identitários, congelados, que tentam mumificar o
devir. Necessidades humanas, dirá Nietzsche. O homem necessita construir um
mundo de identidades, mesmo que não existam entidades, ele precisa delas para
conservar e expandir suas forças.
Assim, “morte de Deus” para Nietzsche/Zaratustra traz como
conseqüência o nada, o vazio de sentido, o niilismo, condição da possibilidade do
nascimento da própria personalidade ou, quem sabe, da ressurreição de Deus, na
figura do Si-mesmo, ou, ainda, nada, apenas o devir.
Para se compreender esse processo do tornar-se quem se é, foi
preciso recorrer às origens da idéia de culpabilidade e de castigo e à valoração dada
a esses valores é que o mantém contaminado, fundamentalmente, pela moral cristã.
O que Nietzsche designa por moralidade, como foi dito, é o “sentimento de costume”
(A, I, 19) o qual representa experiências passadas do homem, sendo que não dizem
mais respeito a elas, mas “sim à idade, santidade, indiscutibilidade do costume” (A, I,
19), e por isso Deus tem que morrer. com a “morte de Deus” o homem pode
resgatar o homem, conhecendo sua inocência a as raízes pode transpô-la,
atravessar a ponte que leva o homem para o além do homem, entendido em suas
muitas perspectivas.
De acordo com o pensamento de Nietzsche, já não a partir do
Zaratustra mas sim, um pouco mais tarde, em Aurora, tem-se: “nós homens de hoje,
vivemos numa época muito pouco moral; o poder do costume está espantosamente
enfraquecido...” (A, I, 9). E ao falar de costumes, está falando de uma maneira
tradicional de agir e avaliar e não, como se poderia supor, de uma crítica da moral,
somente. “Em coisas nas quais nenhuma tradição manda, não existe moralidade” (A,
I, 9). Assim, “o homem livre é não-moral porque em tudo quer depender de si, não
de uma tradição em todos os estados originais da humanidade, mau’ significa o
mesmo que ‘individual’, ‘livre’, ‘arbitrário’, ‘inusitado’, ‘inaudito’, ‘imprevisível’” (A, I, 9)
Afinal, pode-se deduzir, que o ateísta, o não-teísta, isto é, alguém que não segue
110
nenhuma tradição religiosa, nos moldes como ela é ditada pelo sacerdote ascético
ou pelo costume, é aquele que segue a si mesmo. Nesse sentido, Nietzsche faz uma
alusão ao ateísmo, que é idêntico a uma segunda inocência. Alude, mas não
explicita. Oculta, baixando o véu, do recém revelado.
O filósofo explica que então podem abrir-se os “escuros propileus
da salvação cristã” (A, I, 9), porque agora pode ter efeito a promessa de uma
segunda inocência e, ironiza - stuma! Naturalmente está, mais uma vez, fazendo
referência à afirmação da vida como o contramovimento que oferece ao niilismo uma
reavaliação de todos os valores, na linguagem de Dixon, uma transvaloração de
todos os valores, como é dito em outras traduções. A reavaliação de todos os
valores é um dos pontos centrais de toda a obra do filósofo, juntamente com a
afirmação da vida e o ideal do Übermensch em Zaratustra. Diz Nietzsche: “O ideal
do homem mais exuberante, mais vivo e mais afirmador do mundo, que não
aprendeu a se resignar e suportar tudo o que existe e é, mas deseja tê-lo
novamente, tal como existiu e é(ABM,56); “quero ser, algum dia, apenas alguém
que diz sim!” (GC, 276). E conclui: “O mundo é perfeito”- assim fala o instinto dos
intelectuais, o instinto que diz sim: a imperfeição, o abaixo-de-nós de qualquer
espécie, a distância, o pathos da distância os homens mais espirituais encontram
felicidade onde os outros deparariam com a sua ruína” (AC, 57).
O ponto de vista de Jung, embora designado freqüentemente como
filosófico é, naturalmente, o ponto de vista psicológico e, como tal, empírico, uma
vez que quer se ater fiel ao material proporcionado pela experiência, pois “como
reflexo do mundo e do homem, a alma é de tal complexidade que pode ser
observada e analisada a partir de um sem-número de ângulos” (DI, VIII, p. 283).
Dada a necessidade de enquadrá-la para fins de observação empírica, torna-se
necessário distinguir entre vários grupos e fatos psíquicos, e o modo como parece a
consciência fluir em torrentes para dentro de nós, vindo de fora sob a forma de
percepções sensoriais. Assim, tudo é transmitido pela psique: traduzido, filtrado,
alegorizado, desfigurado e mesmo falsificado. A psique é constituída essencialmente
de imagens, sendo essa uma realidade da alma, que é válida em si mesma. Por
exemplo: a ciência nunca descobriu um Deus e a crítica epistemológica prova que é
impossível o conhecimento de Deus; mas eis que surge a alma com a afirmação da
experiência de Deus. “Deus é um dado psíquico da experiência imediata. Se assim
não fosse nunca se poderia falar de Deus” (DI, VIII, p. 338). Para que esse dado da
111
experiência imediata possa ser traduzido para alguma forma de linguagem e
interpretação, essa parte desconhecida da alma foi designada inconsciente, termo
do qual se apropriou Jung, desdobrando-o, ainda, em inconsciente pessoal e
inconsciente coletivo - expressando-se simbolicamente.
O inocente em Jung é necessária e amplamente inconsciente e, com
isso, caótico, confuso, doente, enquanto que para se chegar a uma segunda
inocência, termo o propriamente utilizado por Jung, mas dito em outras palavras,
transformado, individuado, aquele que se tornou livre, tornou-se si mesmo, é preciso
que ocorra um processo de transformação, o qual decorre obrigatoriamente de uma
transformação da energia psíquica, da força com que lutam entre si os instintos e os
afetos dentro do homem. Tais fatores dinâmicos, concebidos também como
potências, espíritos, demônios, deuses, leis, idéias, ideais ou qualquer outra
denominação que o homem lhes atribua, devem sua existência a um fator que
Rudolf Otto designou numinoso”. Jung procura deixar claro que utiliza o termo
religião como uma atitude do espírito humano, que pode ser qualificada como uma
consideração e observação cuidadosas desses citados fatores dinâmicos, que virá a
denominar mais tarde como arquétipos. Nesse caso, não está tratando de modo
nenhum com algum tipo particular de confissão religiosa, embora conclua que foram
elas, originalmente experiências, que cristalizadas e dogmatizadas enrijeceram
dentro de uma construção mental inflexível e de valor afetivo. No entanto, diz Jung,
sem dúvida alguma não Buda, Maomé, Confúcio ou Zaratustra constituem
fenômenos religiosos, igualmente Mitra, Cibele, Átis, Manes, Hermes e muitas outras
religiões exóticas. Desconstruir essas aparentes petrificações e recriar, com isso, o
fluxo e o vigor da vida que elas ocultam, eis hoje o trabalho do ‘novo psicólogo’.
Fatores externos denominados ‘costume’, ‘bom nome’, ‘opinião pública’,
‘respeitabilidade’, tornam o homem envergonhado e humilhado diante de si mesmo,
ocultando, até mesmo de si, confessar certas coisas, o que o deixará cada vez mais
à mercê de uma moralização dos costumes, uma vez que ‘toda neurose é
acompanhada por um sentimento de desmoralização” (PROO, XI, p. 12). e que,
nessa mesma medida, ele perde a confiança em si mesmo, ou seja, na proporção da
sua neurose, da sua falta de sentido. Nessa “feliz inconsciência” e como que
dormindo sobre um vulcão, o homem converte-se em uma partícula da massa e,
como tal, desce inconscientemente a um nível moral e intelectual inferior, que
112
permanece sob o limiar da consciência, a “sombra”. Neste sentido, a moral pode ser
entendida, também, como a sombra de Deus” (O’KANE, 1999).
Em nome de certas confissões religiosas, diz Jung, foram
construídos muros de proteção em torno do homem que, ao necessitar confrontar
sua experiência interior, vem derrubando alguns desses muros, sem amparos de
guias ou dogmas, o que é o caso de católicos e protestantes, principalmente,
indivíduos que alimentam uma “inclinação secreta ou manifesta para o ateísmo”
(PROO, XI, p. 34), posto que o absolutismo da Igreja Católica parece exigir uma
negação igualmente absoluta. Outra vez Jung, está se referindo a Nietzsche. A uma
religião degenerada e corrompida pelo mundanismo e pelos instintos do vulgo não
resta senão um sentimentalismo religioso que substitui o numinoso da experiência, o
que significa que uma religião desse tipo não representa uma ajuda, nem sequer
produz qualquer efeito moral. O indivíduo é deixado a sós consigo mesmo e com seu
sofrimento. Esse sentimento de a sós-consigo-mesmo também pode conduzir ao
conceito fundamental de Jung, qual seja o Selbst, experimentado como
conseqüência da “morte de Deus”.
A grande contribuição de Jung, ao analisar o Zaratustra, de
Nietzsche, é ter agregado à Psicologia Analítica o simbolismo profundo contido
nessa obra, por meio de um método comparativo com as religiões e mitologias de
várias épocas.
4.1 Pressuposições filosóficas e o caráter peculiar da leitura de Jung da
filosofia de Nietzsche
A psicologia de Jung, com base no pressuposto filosófico das
oposições, aponta para a conclusão de que é “esta tensão dos opostos a condição
para o crescimento da humanidade” (DIXON, 1999, p. 281). Para Jung, “a estrutura
polarizada da psique, objeto da experiência imediata, é um fato(AIC, IX/1, p. 264).
Essas oposições serão designadas em sua psicologia como consciente e
inconsciente, e poderão representar outros muitos pares de opostos, entre eles o
dionisíaco e o apolíneo. Mas para falar das tensões das oposições Jung utilizará o
símbolo (HARTMANN, 2005). É o símbolo quem fará o papel de quem “une os
113
opostos”, cuja união Jung designará por função transcendente e que Nietzsche
designará por para além de. Para se falar de união dos opostos precisa-se falar de
símbolo.
Uma interpretação simbólica coincide com um evento simbólico,
sendo que não se um sem o outro e, devido a isto, o símbolo é transformador,
isto é, muda o horizonte do intérprete, quer dizer, “o símbolo é um acontecimento
Ureinfall”, simultaneamente evento, dissolução, intuição originária e transformação”
(Id., p. 90). O símbolo se oferece como uma perspectiva unificante, mas a sua
energia provém do conflito. Em Nietzsche’s Zarathustra, Jung reconhece que na
grande confusão entre os povos “eles estão repletos e um reconhecimento do
símbolo é revelado então como a verdade, a nova base da consciência; o alemão
tem Weltanschauung (mundivisão)que o expressa” (NZ, p. 975).
O símbolo ocorre como simultaneidade de compreensão e
ultrapassamento; a imagem simbólica é, portanto, sinal de uma mudança iniciada
e, ao mesmo tempo, representação de uma ligação que desfaz e de uma
perspectiva que se abre. Integração e diferenciação caracterizam o Verstehen, a
“compreensão” que Jung distingue do que Giacóia Jr. (2004) apresenta em
Nietzsche como psicólogo, como “primado da consciência” e que significa
“reconhecer no material inconsciente uma posição e um ponto de vista opostos à
consciência, isto é interpretar “finalisticamente” esta oposição como manifestação de
uma transformação em ato, de uma mudança em direção a uma nova visão de
mundo, não apenas derivada da antecedente, mas da dissolução da precedente.
Significa, em outras palavras, reconhecer a subjetividade como o cenário possível de
um confronto entre forças opostas, confronto destinado a romper a unilateralidade
de um ponto de vista consciente” (DIXON, 1999, p. 93). De qualquer forma não é
suficiente, sustenta Jung, ver no símbolo apenas a representação estética das
manifestações do inconsciente, mas aponta para a contínua construção do
significado que surge pela tensão e pelo conflito. A individuação é, assim, uma
contínua atividade de diferenciação entre o eu e o inconsciente e, simultaneamente,
uma integração das várias tendências complexuais na consciência. É daqui que
surge o postulado junguiano do Selbst como uma configuração originária
virtualmente unitária, dado que uma dissociação ameaça continuamente essa
“unidade, que não coincide com o eu, mas com um possível equilíbrio na
multiplicidade” (NZ, p. 935). O Selbst “é ao mesmo tempo um conceito e uma meta
114
virtual (NZ, p. 983), um “existente não-existente” (NZ, p. 419) mas é, sobretudo, “o
princípio criativo no qual têm origem simultaneamente o mundo e a psique” (NZ, p.
139, 289, 325, 978). O Selbst é “o campo onde jogam os deuses, o lugar ou a forma
na qual o drama divino, a transformação do deus, é representado” (NZ, p. 725). E
Jung, conclui: “O Superman é realmente o super homem, para além de e acima do
homem, e isto é o Self” (NZ, p. 725).
Ao desenvolver o tema do símbolo, em torno do Selbst, em sua
representação cristã, Jung aponta para a existência do dogma, sugerindo que a
eficácia do dogma não repousa, porém, de modo algum na realidade histórica, que é
única, mas em sua natureza simbólica, em virtude da qual é expressão de um
pressuposto anímico relativamente ubíquo, que independe da existência do dogma.
Logo, existe um Cristo “pré-cristão”, bem como um Cristo “não-cristão”, na medida
em que se trata de uma realidade anímica existente por si mesma” (PROO, XII, p.
253).
Como símbolo do Selbst, Cristo, a figura do Anthropos ou do Poimen
pode aparecer “no homem moderno, isento de pressupostos religiosos, uma vez que
está presente em sua própria psique” (PA, XII, p. 253). Isto significa para Jung que o
lugar da divindade hoje “acha-se ocupado pela totalidade do homem” (PROO, XI, p.
139) - o Selbst - o que designa a soma de seus aspectos conscientes e
inconscientes. Jung considera um erro lamentável que sejam tomadas as suas
observações acerca da idéia da existência de Deus como uma espécie de
demonstração. Sugere que suas idéias demonstram somente “a existência de uma
imagem arquetípica de Deus” (PROO, XI, p. 102), mas que, como a experiência
desse arquétipo, tem freqüentemente “a qualidade de numinoso, cabe-lhe a
categoria de experiência religiosa” (PROO, XI, p. 102).
É nesse sentido de experiência religiosa que a ascese, convertida em
ideal ascético, bem como a moral, convertida em moral dos costumes ou moral
cristã, induzida por sua interpretação e necessitada de uma transvaloração, cada
qual de modo mais rigoroso e profundo, pode conduzir o homem para além do
homem e, ao mesmo tempo, mantê-lo aprisionado como escravo de uma “inocência
original”, de um “pecado original”, de uma “culpa original”, como que crucificado no
próprio paradoxo. Nietzsche propõe essa passagem pela ponte da transvaloração de
todos os valores, enquanto Jung o faz de modo lento e gradativo, o adentrar-se ao
interior do homem para encontrar o Homem Interior, para que a falta que foi um dia
115
suprida pelos ideais ascéticos (dos males o menor) seja hoje preenchida com a
autonomia, no sentido da auto-afirmação de si mesmo, da liberação da culpa e do
sentimento de ter encontrado um sentido no não sentido, por meio de uma vida
simbólica. Nietzsche afirma ter sido o primeiro a ter visto a verdadeira oposição, “o
instinto que degenera, que se volta contra a vida com subterrânea avidez de
vingança (o cristianismo, a filosofia de Shopenhauer, em certo sentido a filosofia
de Platão, o idealismo inteiro, como formas típicas) em contraste com a mais
elevada percepção: o mais radiante, mais exaltado-exuberante, Sim à vida” (EH, O
nascimento da tragédia, 2).
Nietzsche diz que “compreender tudo isto pode causar dores
profundas, mas depois um consolo: elas são as dores do parto” (HH, 107). Tudo
poderá compor a experiência para saber se a humanidade “pode se transformar de
moral em sábia” (HH, 107).
4.2 Contribuição de Nietzsche no aprofundamento psicológico da questão
“morte de Deus”
No texto Dos desprezadores do corpo (Z, I, p. 51), em Zaratustra,
encontra-se possivelmente uma das maiores contribuições da filosofia de Nietzsche
à psicologia de Jung nos conceitos de Eu e Selbst. “Eu, dizes, e ufanas-te desta
palavra” (Z, I, p. 51). E continua Zaratustra: “instrumentos e brinquedos são os
sentidos e o espírito; atrás deles acha-se, ainda, o ser próprio. O ser próprio procura
também com os olhos dos sentidos, escuta também com os ouvidos do espírito” (Z,
I, p. 51). O ser próprio, corresponde ao Si-mesmo junguiano, enquanto que o eu,
corresponde ao ego junguiano. Diz Zaratustra: “O teu ser próprio ri-se do teu eu e de
seus altivos pulos” (Z, I, p. 51). O ser próprio de Zaratustra é um “soberano
poderoso, um sábio desconhecido aquele que diz ao eu: Eu sou as andadeiras do
eu e o insuflador dos seus conceitos” (Z, I, p. 51). O ser próprio é aquele que “quer
criar para além de si, é este o seu mais férvido anseio” (Z, I, p. 51). Em Nietzsche
temos certamente uma base para a psicologia de Jung. Em Relações com o eu
superior, o filósofo indícios de como isto acontece. “Muitos vivem no temor e na
humildade frente a seu ideal, e bem gostariam de negá-lo: temem o seu eu superior,
porque esse, quando fala, fala de modo exigente; além do que diz, esse eu superior
116
possui uma espectral liberdade de aparecer ou de permanecer ausente” (HH, 624),
sendo, porém, a própria pessoa.
Nietzsche diz que sua filosofia é uma filosofia experimental. Se isso
implicou em um processo de transformação, então coincide com o que Jung
designou processo de individuação. Afirma o filósofo: “Uma impaciência comigo
mesmo me tomou; vi então que era hora de refletir, retornar a mim” (EH, Humano
demasiado humano, 3). A esse distanciar-se de si e da necessidade de retornar,
Nietzsche aponta para a civilização, quando fala do entorpecimento e da
“sensação de vazio”, infortúnio de muitos jovens, quando “não são poucos os
condenados a decidir-se prematuramente e logo definhar, sob um peso de que
não podem se desvencilhar...” (EH, Humano demasiado humano, 3).
Na história do Zaratustra, Nietzsche indica ainda o símbolo do Selbst
por excelência na psicologia junguiana, quando diz: “na pedra dorme para mim uma
imagem, a imagem das imagens! [...]. Agora se enfurece cruelmente o meu martelo
contra a sua prisão (EH, Assim Falou Zaratustra, 8). Realizar o processo de
individuação é criar, trazer à fala a imagem das imagens que dorme na pedra, no
centro da alma, o Si-mesmo. Aqui Nietzsche sintetiza toda a alquimia antiga
(LYRA,
1999) trabalhada por Jung como uma analogia ao processo de individuação. O
próprio termo individuação é utilizado por Nietzsche em diferentes acepções. Uma
delas, porém, coincide com a interpretação junguiana: “A enorme importância que o
indivíduo atribui ao instinto sexual não é uma conseqüência da importância desse
instinto para a espécie; ao contrário, o gerar é o rendimento próprio do indivíduo e
também do seu interesse supremo, a sua mais alta expressão de potência
(naturalmente, não julgando a partir da consciência, mas do centro de toda
individuação) (DIXON, 1999, p. 281).
Na psicologia de Jung, como vimos, o Selbst não está identificado
com o ego, mas, sim, uma submissão dele ao centro da personalidade.
Naturalmente que se deve entender centro como aquilo que abraça ambos,
consciente e inconsciente. O termo centro refere-se ao arquétipo do Selbst e contém
em si suas expressões simbólicas, bem como diz respeito ao modo de organização
dos opostos. Esse centro, diz Jung, “é-nos estranho e, no entanto, próximo, é algo
incognoscível, um centro virtual de misteriosa constituição” (EPA, VII, p. 226). Num
paralelo com o conceito de Deus, análogo ao Si-mesmo, Jung completa: “O si-
mesmo também pode ser chamado ‘o Deus em nós’” (EPA, VII, p. 226), pois todos
117
os primórdios de nossa vida psíquica “parecem surgir inextrincavelmente deste
ponto e as metas mais altas e derradeiras parecem dirigir-se para ele” (EPA, VII, p.
226).
Jung comenta nos Seminários que Nietzsche é Zaratustra e que
Zaratustra é o símbolo do Self. Nessa passagem, também afirma que o Self é “Deus
em nós”; no entanto, em Nietzsche, diz o psicólogo, “o homem é um ser solitário,
como ele mesmo era, neurótico, financeiramente dependente, sem Deus e sem
mundo” (EPA, VII, p. 225- 226). Ainda que essa descrição de Jung coubesse, não
poderia lançar sobre a profundidade e grandeza de Zaratustra nenhuma sombra, ou
melhor, toda sombra daí advinda que possa ser lançada sobre essa obra de arte,
pode torná-la “mais”, torná-la, por assim dizer, para além de si mesma.
De qualquer forma, mesmo pensando em Nietzsche como um
“neurótico” (EPA, VII, p. 226) toda a psicologia de Jung gira em torno dos conceitos
de eu e de Si-mesmo/Selbst, dando uma visão de ambos os conceitos como se
estivessem um para o outro, “assim como o sol está para a terra” (EPA, VII, p. 226).
Aprofundamento psicológico aponta, diante da questão da “morte de Deus”, para até
onde queremos ver, até onde podemos ver? Entendemos com isso que uma das
contribuições possivelmente mais claras de Nietzsche está na passagem do
Zaratustra:
Para que ninguém possa ver no fundo de mim e de minha última vontade
para isso inventei o longo, luminoso silêncio, pois ‘os seres claros, valorosos,
transparentes, ao contrário, são, para mim, os mais sutis dos silenciosos, pois
seu fundo é tão profundo, que também a água mais límpida não o trai’ (Z, III,
p. 181).
Com essas palavras Nietzsche revela o segredo resultante da “morte
de Deus”. Então ele, o sem Deus, no dizer de Jung, encontra o lugar mais profundo
a transparência mais clara, por meio da união dos opostos, da enantiodromia?
Nietzsche ainda completa: “E acaso, não devo esconder-me, como alguém que
engoliu ouro para que o me rasguem a alma? (Z, III, p. 182). [...] Assim, eu lhes
mostro somente o gelo e o inverno dos meus cumes – e não que o meu monte ainda
amarra nos flancos todos os cintos do sol!” (Z, III, p. 182), pois “como poderiam
tolerar a minha felicidade, se eu não a cobrisse de desgraças e invernais tribulações
e gorros de pele de urso e capas de céu nevoso!” (Z, III, p. 182). E prossegue:
“Ocultar-me a mim mesmo é a minha riqueza isso aprendi embaixo pois ainda
118
achei todos pobres de espírito. [...] Redimido, por fim, está meu nariz do cheiro dos
seres humanos” (Z, III, p. 192-193).
É aqui, neste não revelado, que surge a lucidez do filósofo, na
expressão de Zaratustra: “Quanto a mim, digo que não na loucura ou na psicose
nenhuma ‘rósea calma’ e nenhum ‘silêncio sem nuvens’” (Z, IV, p. 244) e muito
menos um tempo dado pelo destino, “sem paciência nem impaciência, mas, antes,
como alguém que desaprendeu a ser paciente porque não ‘padece’” (Z, IV, p.
243). Eis outro modo de dizer a enantiodromia, ou ainda: “A cada crescimento do
homem em grandeza e altura, cresce também a sua terribilidade e profundidade: não
é licito querer uma coisa sem a outra, ou ainda quanto mais profundamente se quer
uma, tanto mais profundamente se obtém a outra” (DIXON, 1999, 207). Este
processo de enantiodromia parece ser assimilado por Jung da filosofia de Nietzsche,
não apenas como uma ocorrência individual mas da civilização, quando afirma: “O
processo cultural consiste na repressão progressiva do que há de animal no homem;
é um processo de domesticação que não pode ser levado a efeito sem que se
insurja a natureza animal, sedenta de liberdade” (EPA, VII, p. 17).
A enantiodromia é inversão dos contrários, identidade, encontro dos
contrários. Em se tratando da identidade inconsciente Nietzsche/Zaratustra, não se a
como Jung a vê, mas vê-se a identidade consciente/inconsciente quando
Zaratustra diz: “Fisga para mim, com a tua luz, os mais lindos peixes humanos![...].
.Para dentro, para baixo, isca da minha felicidade! Pinga o teu mais doce orvalho,
mel do meu coração! Morde, ó meu anzol, morde no ventre de todas as negras
angústias” (Z, IV, p. 244). Como identificar a consciência e o inconsciente agora, se
luz e trevas se encontram?
Também a expressão com a tua luz torna distintos os “eus” aqui
presentes, mesmo porque é preciso ver no conceito de “eu” toda a sua genealogia e,
em conseqüência, sua possível transvaloração. Para Nietzsche esse conceito
aparece em Zaratustra: “Na verdade, difícil de demonstrar é todo o ser, e difícil é
fazê-lo falar. Dizei-me, meus irmãos, acaso não se demonstra melhor a mais
estranha das coisas? Sim, esse eu e a contradição e confusão do eu é ainda quem
mais honestamente fala do seu ser; esse eu que cria, que quer, que estabelece
valores e que é a medida e o valor de todas as coisas” (Z, I, p. 49). Retomando a
questão da identidade em outra passagem Zaratustra, atraído por um grito de
socorro, depara-se com vários homens, que acaba encontrando por fim reunidos à
119
noite em sua caverna: o rei da direita e o rei da esquerda, o velho feiticeiro, o papa,
o mendigo voluntário, a sombra, o homem consciencioso do espírito, o triste adivinho
e o burro, o mais feio dos homens; e lhes diz: “Não sois bastante elevados e fortes.
Para mim, ou seja, para o ser inexorável que, em mim, guarda silêncio, mas que não
guardará para sempre” (Z, IV, p. 283). Há uma clara, distinta igualdade entre o “eu” e
o “outro”, o que, outra vez, pode ser o indicador de uma identidade consciente que
tem discernimento, mas não inconsciente que não sabe do que fala.
Nietzsche sabe o que é uma inflação quando, por Zaratustra, está
dito: “Para o que é grande, os olhos mais sutis são grosseiros, hoje em dia. É o
reinado da plebe. vários encontrei, a dilatar-se e inchar, [...] mas que aproveitam
todos os foles? No fim, o vento sai. No fim, de tanto inchar, rebenta a rã; e, então, o
vento sai” (Z, IV, p. 260). As expressões aqui usadas fazem referência a esse estado
psíquico inflado, se se quiser ler psicologicamente.
Apresentando o saber de Nietzsche sobre a modéstia, uma vez que
Jung não a em Nietzsche, esse diz que existe modéstia verdadeira, ou seja,
existe o reconhecimento de que não somos nossas obras e que essa modéstia é a
que convém aos grandes espíritos. Somente eles são capazes de “apreender a idéia
da completa irresponsabilidade (também para o que criam de bom)” (HH, 588)
.Segundo Nietzsche, não é a imodéstia dos grandes o que as pessoas odeiam, mas
sim o modo como expressam a própria força, quando querem usá-la para ferir os
demais, “tratando-os imperiosamente e vendo até onde suportam” (HH, 588).
Em se tratando da sombra, a qual Jung viu como um conteúdo não
assimilado por Nietzsche, parece-nos que Nietzsche o viu como viveu a sua
sombra no mais profundo sentido do termo, tendo deixado como herança seu
conhecimento e sua experiência para a psicologia junguiana. Numa linguagem que
aponta para a integração da sombra Zaratustra, encontra, dialoga e transforma cada
um dos pedidos de socorro dos homens superiores, entre eles o mais feio dos
homens. Ele assim diz a todos: “Ó vós todos, meus amigos, [...] que vos parece?
por causa do dia de hoje estou contente, pela primeira vez, de ter vivido a vida
toda. [...] Vale à pena viver na terra: um só dia, uma só festa com Zaratustra
ensinaram-me a amar a terra. ‘Era isso a vida’, hei de dizer à morte. ‘Pois muito
bem! Outra vez’” (Z, IV, p. 318). Assim, todos tomaram consciência de sua mudança
e da cura que ocorrera. E o próprio Zaratustra pensava: “Oh, como gosto, agora,
destes homens superiores!” (Z, IV, p. 318). O que quer que signifiquem esses
120
homens superiores, de qualquer forma, “hoje” estão contentes. Hoje, todos juntos,
quando acaba o mundo de Zaratustra, de atingir a perfeição, quando “os mais puros
devem ser os senhores da terra” (Z, IV, p. 322).
Tudo então parece se tornar paradoxo. Aqui, “a dor é também um
prazer, a maldição é também uma bênção, a noite é também um sol [...] e um sábio
é também um louco” (Z, IV, p. 324).
121
5. CONCLUSÃO
Jung cita uma interpolação apócrifa de Lucas (Lc 6,41): “Ó homem,
se sabes o que estás fazendo, és feliz; se, porém, não sabes o que estás fazendo,
és um maldito e um transgressor da lei” (PROO, XI, 435). Em sua linguagem
psicológica, fica traduzido mais ou menos assim: Ó homem, se és consciente, és
bendito, mas se és inconsciente, és maldito. Essa citação de Jung e sua possível
interpretação leva à epígrafe de abertura desta dissertação, quando nas palavras de
Nietzsche se lê: “Um artista que não quer descarregar seu sentimento acumulado
em obras e aliviar-se, mas sim transmitir o sentimento de acumulação, é bombástico,
e seu estilo é aquele inflado” (A, IV, 332).
Esse modo inflado com que se revela o Zaratustra, de Nietzsche,
numa linguagem exacerbada para mais ou para menos (homens superiores ou
último homem, por exemplo) é justamente o que Jung exalta ao longo dos
Seminários, interpretando como a principal característica da patologia de Nietzsche
em conseqüência da “morte de Deus”. Também fica evidente a opção que Jung faz,
entre tratar o Zaratustra como obra, ou como o fruto de um excesso de lucidez, ou
de uma megalomania, tendo preferido analisar a obra sob o segundo enfoque, uma
vez que parecia ser “demais” pensar a obra, como expressão de um excesso de
lucidez, pois tratar-se-ia nada menos que de “uma consciência divina”. Ficou
faltando, nessa percepção, segundo o modo de ver desta pesquisadora, a tão
acentuada “união dos opostos”. Não será esta loucura sabedoria e o patologia?
Sabe-se que em várias passagens possivelmente se fez com Jung o mesmo
psicologismo que ele fez com Nietzsche, se, analisando a obra, a confunde com o
autor. Assim como a postura unilateral de Jung diante da análise do Zaratustra, inclui
Nietzsche entre os malditos, ou seja, entre os que não sabem o que estão fazendo.
Parece estar aqui a chave da questão: Jung prefere pensar o
Zaratustra, de Nietzsche, como mórbido (ainda que genial), como resultado da
inflação inconsciente de Nietzsche. pois, segundo Jung, Nietzsche não está em
condições de discernir entre consciente e inconsciente, como dito na introdução. É
essa sua visão, que, tornando-se unilateral, deixa de ver a inflação como
expressada por Nietzsche, ou seja, como um estilo capaz de transmitir o sentimento
de acumulação, presente na obra de arte poética e filosófica, usado
122
conscientemente, o que incluiria Nietzsche entre os “benditos”. Como exemplo desse
estilo pode-se citar Nietzsche:
Toda arte, toda filosofia pode ser vista como remédio e socorro da
vida em crescimento ou em declínio: elas pressupõem sempre sofrimento e
sofredores. Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de
superabundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e, desse modo, uma
compreensão e perspectiva trágica da vida e depois os que sofrem de
empobrecimento da vida, que requerem da arte e da filosofia silêncio, quietude, mar
liso, ou embriaguez, entorpecimento, convulsão (NCW, Nós, Antípodas, 59).
É a partir dessa compreensão da experiência filosófica e poética de
Nietzsche, como superabundância, em Jung com sentido de excesso, que o
psicólogo, interpreta a “morte de Deus” anunciada por Zaratustra como a expressão
da hybris luciferina de Zaratustra e, conseqüentemente, de Nietzsche, com o qual
Zaratustra, segundo o psicólogo, está identificado. Pelo prisma de uma primeira
inocência, ou seja, de uma insciência, na linguagem de Nietzsche, o filósofo esta
mesmo patologicamente inflado, uma vez que, para Jung, Nietzsche é Zaratustra e
esse é um símbolo do Self. Nesse caso, não diferenciação entre consciente e
inconsciente, e Nietzsche está entre os “malditos” do logion acima citado. Dessa
perspectiva, a visão de Jung é coerente, ainda que unilateral. Por outro lado, a
mesma experiência, vista sob o prisma de uma segunda inocência, como é
entendida por Nietzsche, ou de uma consciência ampliada, na linguagem de Jung,
mostra que Nietzsche sabe o que é uma inflação e, mais que isto, usa
conscientemente esse modo de ser, como um estilo. E aqui, o indivíduo Nietzsche,
autor de Assim falou Zaratustra, experimenta, ao contrário do que propõe Jung, um
processo de individuação, de uma re-ligação tal consigo mesmo que ficam
escancaradas as polaridades, as quais continuamente interagem, ora afirmando, ora
negando, numa espécie de jogo de sobe e desce, expressão plena dos paradoxos.
União dos opostos, no entender desta pesquisadora, não significa anulação dos
opostos, mas a percepção refinada de que sequer existem opostos, mas sim uma
sutil gama de gradações.
Essa segunda inocência, na filosofia de Nietzsche, surge como
conseqüência da “morte de Deus” e como sinônimo de ateísmo. Naturalmente, como
experiência, ela possivelmente não será experimentada por muitos, uma vez que na
grande maioria dos indivíduos, predomina o caos e o desequilíbrio de não ter mais
123
nenhum suporte, ou o que quer que seja para “se agarrar”, nenhum Deus e sim, o
nada, o niilismo.
Jung não parece entender a proposta de Nietzsche, ao prever e
diagnosticar o niilismo como uma reavaliação de todos os valores, embora ele diga,
com outras palavras, que o que quer com sua psicologia analítica nada mais é que
“dissolver as formas de pensar historicamente petrificadas e transformá-las em
concepções da experiência imediata” (PROO, XI, p. 148), o que, de certa forma,
implica em uma reavaliação de todos os valores. Isso é evidente quando se trata do
processo de individuação, quando então coincide a psicologia de Jung com a
filosofia de Nietzsche.
Portanto, se Nietzsche, de acordo com esta autora, não estivesse
experimentando, uma vez que chama sua filosofia de experimental, em cada
movimento de seu Zaratustra um estado ampliado de consciência, ter-se-ia que
concordar com Jung, e pensar que a filosofia de Nietzsche não seria mais que um
modelo de vontade de poder pessoal, entendida como uma identidade de consciente
e inconsciente, ou seja, uma hybris luciferina. Concorda-se porém, que esse
processo de identidade inconsciente – ego/Self – é experimentado pela grande
maioria dos indivíduos para os quais “Deus está morto” ou, quem sabe, agonizante.
Jung, de fato, não tenta fazer prevalecer o ponto de vista psicológico
sobre a filosofia de Nietzsche, pois não é a filosofia de Nietzsche o objeto de seu
estudo e, sim, o próprio Nietzsche, deixando com isso uma dúvida se fez ou não fez
“psicologismos”, uma vez que sabia que se propôs a analisar aquele autor por meio
da sua obra. Com isso, Jung obriga que sejam reavaliados seus pontos de vista e
investigado, cada vez mais a fundo, as origens de seu pensamento.
Conclui-se que Assim Falou Zaratustra, na perspectiva do anúncio
da “morte de Deus”, pode ser entendido de muitos pontos de vista, dependendo do
campo de visão em que se situa quem o lê ou analisa. Para efeito desta dissertação,
pensa-se que é a partir de uma experiência da segunda inocência que se pode fazer
jus ao desejo de Nietzsche: “Fui compreendido”?
124
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