Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA
A
A
M
M
Í
Í
D
D
I
I
A
A
I
I
M
M
P
P
R
R
E
E
S
S
S
S
A
A
N
N
A
A
P
P
R
R
O
O
M
M
O
O
Ç
Ç
Ã
Ã
O
O
D
D
E
E
D
D
I
I
S
S
C
C
U
U
R
R
S
S
O
O
S
S
S
S
O
O
B
B
R
R
E
E
P
P
O
O
L
L
Í
Í
T
T
I
I
C
C
A
A
S
S
D
D
E
E
I
I
G
G
U
U
A
A
L
L
D
D
A
A
D
D
E
E
R
R
A
A
C
C
I
I
A
A
L
L
:
:
O
O
N
N
E
E
G
G
R
R
O
O
E
E
A
A
R
R
E
E
V
V
I
I
S
S
T
T
A
A
R
R
A
A
Ç
Ç
A
A
Amanda Batista Braga
São Carlos
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA
A
A
M
M
Í
Í
D
D
I
I
A
A
I
I
M
M
P
P
R
R
E
E
S
S
S
S
A
A
N
N
A
A
P
P
R
R
O
O
M
M
O
O
Ç
Ç
Ã
Ã
O
O
D
D
E
E
D
D
I
I
S
S
C
C
U
U
R
R
S
S
O
O
S
S
S
S
O
O
B
B
R
R
E
E
P
P
O
O
L
L
Í
Í
T
T
I
I
C
C
A
A
S
S
D
D
E
E
I
I
G
G
U
U
A
A
L
L
D
D
A
A
D
D
E
E
R
R
A
A
C
C
I
I
A
A
L
L
:
:
O
O
N
N
E
E
G
G
R
R
O
O
E
E
A
A
R
R
E
E
V
V
I
I
S
S
T
T
A
A
R
R
A
A
Ç
Ç
A
A
Amanda Batista Braga
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Lingüística da
Universidade Federal de São Carlos
como parte dos requisitos para obtenção
do Título de Mestre em Lingüística.
Orientadora: Profª Drª Vanice Maria
Oliveira Sargentini.
São Carlos
2008
ads:
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar
B813mi
Braga, Amanda Batista.
A mídia impressa na promoção de discursos sobre
políticas de igualdade racial : o negro e a revista Raça /
Amanda Batista Braga. -- São Carlos : UFSCar, 2008.
112 f.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São
Carlos, 2008.
1. Análise do discurso. 2. Mídia impressa. 3. Raça.
4. Poder. 5. Ação afirmativa. 6. Cabelo. I. Título.
CDD: 401.41 (20
a
)
À Aladyana Gomes (in memorian), dedico.
Por tudo que fomos e por tudo que sonhamos juntas.
Na minha idéia
Vives plenamente
És a pessoa
Com todas as canções
Os momentos bons e as horas más
Que a memória coa
[Chico Buarque, Romance, 1993]
A
GRADECIMENTOS
A Deus.
A meus pais, que me oferecem sempre mais do que mereço.
A minhas tias e primos, que estão comigo sempre.
A Maíra Nunes, por ter multiplicado sentidos na minha vida e por ter trilhado esse caminho
ao meu lado.
A Matheus Andrade, pelo apoio absoluto, por todas as conversas e, claro, por todas as
fofocas acadêmicas.
A Vanice Sargentini, que me acolheu com sorrisos e abraços maternais, e que transformou
em certeza tudo que era movediço. Vanice é um presente pra qualquer orientando, não foi
diferente comigo.
A Rosário Gregolin, por me ter aberto as portas de sua casa e de sua vida (pessoal e
acadêmica), sempre com carinho e atenção.
A Lúcia Maria de Assunção Barbosa, pela leitura cuidadosa da dissertação e pela atenção
que teve com meu trabalho desde o início do mestrado.
Aos amigos do GEADA (Claudiana, Rubens, Carlos Piovezani, Nilton Milanez, Paulo
Barbosa, Flávia, Pedro Navarro e Fernanda) onde (tantas vezes) descobri Foucault.
A Luzmara Curcino, meu agradecimento especial pelo carinho de sempre e pela atenção de
ter feito o resumé desta dissertação.
A Diogo Moraes, Eduardo Alves, Renan Belmonte, Valéria Pisaneschi, Michelle Tralli e
Taísa Oliveira, que brindaram com (muitos) sorrisos a minha estadia em Araraquara e me
ajudaram sempre no que foi preciso.
A João Paulo Lima, por ter sido o abraço mais gostoso e o olhar mais compreensivo durante
esse mestrado.
A Ivone Lucena, pelo amor incondicional e por ter me iniciado na Análise do Discurso de
forma tão bonita e prazerosa.
A Jaqueline Prazeres e a Eliana Bezerra, porque juntas construímos um sonho que nos une
até hoje.
A Soraya Sane, Juliene Osias e Pedro Rogério, que me mostraram com carinho as
flores e os espinhos da Língua Portuguesa.
A Julyanna Kumamoto, minha sócia, amiga e irmã, pelo apoio incessante, pelo
companheirismo e pelas palavras sempre tão compreensivas.
A Emanuele Aguiar, que me incentivou e me apoiou quando os tempos eram, ainda, de
incertezas.
A Célia Maria, pela redescoberta de uma amizade num momento tão precioso e pelas tantas
vezes que me entendeu e me escutou depois disso.
A Allana Wanderley, por tudo que representa na minha vida.
A Anna Alice Manabe, por ter compartilhado tantos e tantos momentos ao meu lado e pelo
sorriso que me ofereceu num momento de dúvida.
A Adriana Carvalho e a Flávia Carvalho, por me chamarem de amiga 21 anos e por
nunca terem sido menos que isso.
A Eduardo Pinto, por tudo de bom que aprendemos juntos e pelos sorrisos que
descobrimos no meio do caminho.
A Moama Marques, por ter escutado/sentido Chico comigo entre um capítulo e outro da
dissertação (e até no decorrer deles).
A FAPESP, por ter acreditado em mim e financiado minha pesquisa.
R
ESUMO
Nossa pesquisa problematiza os discursos que sustentam a construção da igualdade racial no
Brasil (ou a tentativa desta), focando os enunciados veiculados pela mídia impressa acerca das
Políticas de Ações Afirmativas. Essas políticas representam uma nova forma de combate ao
preconceito: o Brasil assume, a partir de 1996, políticas de identidade em detrimento das
políticas de integração. Desse modo, o combate ao racismo passa a ser operado por uma ótica
afirmativa: ratificando positivamente as diferenças, através do discurso do orgulho negro.
Nosso objetivo é discutir a trajetória discursiva dessas políticas, analisando como esses
discursos são construídos, mantidos ou modificados pela mídia impressa, captando seus
enfrentamentos discursivos e o modo como constroem identidades. Para tanto, teremos a
revista Raça Brasil como foco. Lançada em setembro de 1996, no auge de todas as discussões
acerca da questão racial no Brasil, a Raça apresenta-se como A revista dos negros brasileiros,
com fins de proporcionar auto-estima e visibilidade ao negro no mercado da mídia e da moda,
abrindo uma via de valorização racial que não esteja pautada apenas no combate ao racismo,
mas na afirmação de uma identidade. E, a fim de entendermos e discutirmos a produção
dessas identidades, lançamos luz sobre a relação que o negro estabelece com sua estética.
Nesse contexto, encontramos no cabelo crespo um símbolo produtor de sentidos a partir do
modo como é significado e re-significado. Cenário de relações de poder, a relação do negro
com o cabelo não é unilateral, queremos demonstrar como os usos e os sentidos atribuídos a
ele são parte do processo de construção de uma identidade. Nossa pesquisa é, portanto, uma
análise dos efeitos de sentido inscritos nos discursos das políticas afirmativas, das relações de
poder que os atravessam e dos modos de produção identitária que daí emerge.
Palavras-chave: discurso; poder; Raça; Políticas de Ação Afirmativa, cabelo crespo.
R
ESUMÉ
Notre recherche problématise les discours qui soutiennent la construction de l’égalité raciale
au Brésil (ou bien, l’effort pour), représentés par des énoncés sur les Politiques d’Actions
Positives transmis par les médias imprimées. Ces politiques represéntent une nouvelle façon
de combat au préjugé au Brésil grâce à l’adoption, a partir 1996, des politiques d’identité, au
détriment des politiques d’intégration. Ainsi, le combat au racisme est mené selon une optique
affirmative, en ratifiant de manière positive, les différences par les biais du discours de la
fierté noire. Nous avons comme objectif débattre la trajectoire discoursive des ces politiques,
en analysant comment ces discours sont produits, soutenus ou modifiés, par de médias
imprimée et de quelle façon ils construisent des identités. Le corpus de notre recherche est
constitué, plus particulièrement, par les discours qui sont inscrit dans le magazine Raça
Brasil. Ce magazine a été publié, pour la première fois, en septembre 1996, à l’apogée de
toutes les discussions sur la question raciale au Brésil. Il se présente comme Le magazine des
noires brésiliens, dont le but est celui de redonner aux noirs l’estime de soi et de visibilité
dans le marché médiatique et de la mode, donc, ouvrir une voie pour la valorisation des races
qui ne soient que basée sur le combat au racisme, mais sur l’affirmation de l’identité. Avec le
but de comprendre et
de discuter de la production de ces identités dans les médias, surtout
dans le magazine Raça, nous avons essayé de lancer quelques lumières sur le rapport établi
par le biais du discours entre les noires et son esthétique. Dans ce context-là, nous trouvons
dans le signe du cheveu crépu, frisé, un symbole producteur des signifiés pluriel, variable en
accord avec les conditions de production discursifs. Basées sur ce contexte de pouvoir dans
lequel s’inscrit dans les discours médiatiques les rapports de gens noirs avec son cheveu, nous
voulons démontrer comment les discours sur les usages des cheveux, et ainsi les sens qui lui
sont attribués, font partie du processus de construction d’une certaine identité. Notre
recherche est, donc, une analyse des discours des politiques affirmatives, des rapports de
pouvoir qui les traversent et des modes de production d’identité qui sont inscrit dans les
médias imprimées.
Mots-clé: discours; pouvoir; Raça; politiques d’action positives, cheveu crépu.
S
UMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1
DAS FERRAMENTAS TEÓRICAS: DISCURSO, MEMÓRIA E PODER
16
1.1 A constituição de um novo campo 17
1.2 Os discursos retornam: pré-construído, interdiscurso e intradiscurso 21
1.3 Memória discursiva e a constituição do corpus na Análise do Discurso 25
1.4 O poder enquanto soberania 30
1.5 O poder enquanto relação 32
1.6 Relações de poder no interior das relações raciais 35
2
DE NEGRO ESCRAVIZADO A AFRO-BRASILEIRO
39
2.1 O período negro na história do país 40
2.2 Dos conceitos de raça: discursos transversos 45
2.3 Democracia racial: produção de sentidos e impactos no Brasil 54
2.4 O desenvolvimento das políticas de inclusão racial no Brasil 59
3
A MÍDIA COMO TABULEIRO: O JOGO DO PODER NAS RELAÇÕES
RACIAIS
71
3.1 Das posições e representações da Raça Brasil 72
3.2 Cabelo crespo: re-significações na construção de identidades negras 80
3.3 Solte, enrole, alise 87
3.4 A raça cantada, politizada e vendida 94
4
CONCLUSÃO
101
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 105
10
I
NTRODUÇÃO
Para introduzir nossa pesquisa, é preciso nos deter, por um instante que seja,
aos (des)caminhos que nos trouxeram até aqui. Caminhos porque acreditamos, não sem
receio, que chegaremos a algum lugar (embora muito provisório). Descaminhos porque
existem mais curvas que retas ao longo da estrada e, não raras vezes, nos perdemos em
algumas delas. Não seria possível descrever esse sentimento que nos acompanhou ao longo
do mestrado sem fazer referência a Adélia Prado: a palavra é disfarce de uma coisa mais
grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror
1
. Foi essa a sensação que
nos acompanhou durante esse trajeto: apanhar um peixe vivo com a mão, puro susto e terror.
No entanto, pesquisar e escrever sobre relações raciais no Brasil é, antes de
mais nada, acolher com graça a sensação de ter em mãos algo que se debate e se transforma a
cada instante: os discursos que circulam sobre a questão negra no Brasil ora se enfrentam, ora
se ratificam, ora se (con)fundem. É possível perceber o caráter mutável de nosso objeto de
pesquisa uma vez que as relações humanas, assim como a sociedade e as identidades, são
passíveis de constante transformação, como algo que se esquiva e foge de qualquer moldura
limitada. Não é possível, portanto, apanhar esse objeto com as mãos sem sentir (e participar
de) sua inquietude. Vamos a ele.
De modo geral, nossa pesquisa tem o intuito de analisar o discurso das Políticas
de Ações Afirmativas voltadas para o público negro. O Brasil assume o compromisso de
lançar políticas dessa natureza em 1996, no governo de Fernando Henrique Cardoso
2
. Pela
primeira vez, um presidente admitia a existência de racismo no Brasil e as ações afirmativas
representam, pois, não uma mudança do governo frente à questão racial, mas
representavam também uma nova forma de combate ao racismo, uma vez que essas ações se
configuram como políticas de identidade, em detrimento das políticas de integração praticadas
anteriormente. Essas políticas de identidade propõem uma mudança na configuração das
1
Referência ao poema Antes do Nome.
2
Fernando Henrique Cardoso doravante FHC.
11
relações raciais: o objetivo não era inserir o negro numa sociedade branca, fazendo-o
acolher uma cultura branca e produzindo um apagamento das diferenças. O que as ações
afirmativas propõem é uma mudança na forma de olhar o negro, ratificando positivamente as
diferenças e buscando afirmar identidades negras de um modo positivo.
Dentre os tantos discursos que são produzidos sobre (e por) essas políticas,
interessa-nos aqueles construídos pela mídia impressa, tendo em vista que a mídia constrói,
mantém ou modifica esses discursos, jogando com a produção de “verdades” e identidades.
Para Gregolin, “o que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que
permite o leitor produzir formas simbólicas de representação da sua realidade concreta”
(2003, p. 97). Assim, um dos papéis da mídia na sociedade contemporânea é a construção de
identidades ilusoriamente singulares (uma vez que não são construídas apenas pelo sujeito,
embora ofereça esse rótulo), que servem de mediação para a relação do indivíduo consigo
mesmo e com os outros.
Sobre o âmbito das mídias impressas, é preciso dizer que a grande quantidade
de discursos veiculados sobre as políticas de ão afirmativa nos coloca um problema ao
mesmo tempo em que nos conforta. O imenso volume de discursos que se oferecem como
corpus se dá, entre outros motivos, pelo traçado histórico que essas iniciativas
governamentais ou não resgatam. A questão racial está posta desde o momento em que se
inicia o sistema escravista no Brasil, isto é, no culo XVI. A problemática da miscigenação,
os diversos (e confusos) conceitos de raça, os tantos sentidos produzidos pela democracia
racial e o racismo velado presente no Brasil são algumas das discussões que ganham mais
visibilidade com a implementação e o desenvolvimento das políticas de ação afirmativa. E as
mídias têm papel central nesse processo, produzindo e fazendo circular os mais variados
discursos e sentidos.
Em meio a tantos discursos, recortamos como objeto de pesquisa a revista
Raça Brasil. A iniciativa do Governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1996, de
desenvolvimento e implementação das políticas de ação afirmativa, daria vazão a inúmeros
empreendimentos que não estavam, necessariamente, ligados ao governo, mas que também
nasciam com a proposta de mudar o tratamento destinado aos negros até então. É nesse
contexto que surge a revista Raça Brasil, em setembro daquele mesmo ano. Desde o seu
lançamento, a Raça está, a todo tempo, criando formas de se colocar como um instrumento
das lutas anti-racistas no Brasil, se apresentado como causa e conseqüência das mesmas e,
portanto, assumindo o lugar de instrumento das políticas afirmativas. Para tanto, a Raça
nascia com uma proposta afirmativa: aumentar a auto-estima e a visibilidade do negro no
12
mercado da mídia e da moda, abrindo uma nova via de valorização racial para a classe. O que
temos na Raça é, portanto, uma re-significação de beleza negra, pautada em discursos como
black is beautiful, orgulho negro, 100% negro. Essa postura incentiva a auto-estima de seu
público a partir de uma valorização cultural pautada em uma identidade positiva, forte e
bonita esteticamente. Nesse sentido, a revista é uma combinação entre história e consumo,
entre cultura e mercado.
No interior das diversas temáticas abordadas pela Raça Brasil, a questão do
cabelo crespo será o foco de nossas análises. Segundo Gomes (2006), no interior das
civilizações africanas ocidentais, cabelo era sinônimo de linguagem. Tudo poderia ser visível
a partir do estilo de penteado adotado: desde o estado civil, a religião, a posição social, a
identidade étnica, até um sinal de luto. Não é à toa, por exemplo, que os negros escravizados
eram obrigados a raspar a cabeça: um sinal de violência e uma tentativa de tirar-lhes todo e
qualquer símbolo identitário que os remetessem à cultura africana. Além disso, no interior do
sistema escravista, o tipo de cabelo e o tom de pele serviam de critérios para estabelecer a
classificação do escravo no interior do sistema, definindo suas atribuições e atividades. Essa
classificação desenvolvia a preferência por um tipo de cabelo que não era crespo, mas
cacheado, herança da miscigenação racial (GOMES, 2006).
No entanto, ainda segundo Gomes (2006), muitos dos elementos simbólicos
ou não – envolvidos no processo de pentear os cabelos não se perderam no caminho da África
ao Brasil. Muitos desses elementos foram recriados e re-significados mediante novos
discursos e outros sentidos, mas ratificam, ainda assim, que a forte simbologia do processo de
manipulação dos cabelos continua sendo ponto central quando se trata de cultura negra.
Assim, o cabelo crespo continua sendo visto como uma linguagem e discutido, atualmente,
numa perspectiva de revalorização. Ele atinge todo o grupo étnico-racial do qual é símbolo,
de modo que o sentido atribuído ao estilo de cabelo nos suporte para analisar de que
maneira os sujeitos se identificam ou não com um pertencimento étnico-racial. São esses
sentidos que pretendemos analisar.
Assim, de forma resumida, nossa pesquisa pretende analisar os discursos que
circulam sobre as políticas de ação afirmativa no Brasil, usando, para tanto, a Raça Brasil
como objeto de análise e, mais especificamente, a linguagem do cabelo crespo como tema
central. Contamos, para isso, com as ferramentas teóricas e metodológicas da Análise do
Discurso de linha francesa. Vejamos, agora, de que forma nosso trabalho está organizado.
Esta dissertação apresenta-se com três capítulos. O primeiro deles Das
ferramentas teóricas: discurso, memória e poder discute as questões teóricas e
13
metodológicas da Análise do Discurso
3
das quais fazemos uso neste trabalho. Iniciamos com
uma abordagem geral do panorama histórico e político do momento em que emerge a nova
disciplina, nos fins da década de 60, quando Michel Pêcheux principal nome da Análise do
Discurso – elaborava uma corrente de estudos interdisciplinar onde estão envolvidos a língua,
os sujeitos e a História. Em seguida, localizamos os conceitos fixados na reflexão teórica de
Michel Pêcheux: pré-construído, interdiscurso, intradiscurso e memória discursiva. São
conceitos que nos permitem entender a cadeia discursiva pela qual nos chegam discursos
produzidos por sujeitos desconhecidos, em momentos outros, e que são, portanto,
fundamentais se quisermos analisar os discursos que circulam sobre as relações raciais no
Brasil.
Por último, apresentamos, ainda neste primeiro capítulo, a discussão sobre a
analítica do poder foucaultiana: conceito-chave para nossa pesquisa, através do qual
analisaremos as relações de força e os modos de resistência no corpus selecionado. A análise
que Michel Foucault faz do poder vai de encontro ao poder tal qual descrito pelo direito:
central, localizado, de máxima individualização. Para Foucault, ao contrário, o poder é algo
que se exerce, que circula e que estabelece relações, quase sempre de modo sutil, tático e
estratégico. A resistência, por sua vez, é concomitante às manifestações do poder e
semelhante a ele em sua natureza: estratégica, móvel, produtiva. Assim, segundo Foucault, o
poder está difundido nas múltiplas relações estabelecidas num contexto social.
Assim, o primeiro capítulo de nossa dissertação apresenta-se com a proposta de
discutir as ferramentas teóricas das quais faremos uso ao longo desta dissertação, trazendo as
contribuições de Michel Pêcheux e Michel Foucault. Apesar da sempre divergência, tanto
teórico como política, frente ao marxismo, essa era uma relação que se estabelecia desde o
surgimento da Arqueologia do Saber, em 1969. As idéias foucaultianas disseminadas nos
trabalhos da Análise do Discurso se materializam desde o conceito de formação discursiva,
passando pela distinção feita entre enunciado e enunciação, até a concepção de discurso como
prática, como jogo estratégico entre saber e poder. Além disso, é a partir das análises
foucaultianas sobre a resistência que Pêcheux retifica o conceito de sujeito totalmente
assujeitado considerado na primeira fase da Análise do Discurso. Essa e outras questões serão
melhor discutidas no decorrer do capítulo.
O segundo capítulo De negro escravizado a afro-brasileiro pretende
discutir as condições de produção de alguns dos discursos criados em torno das relações
3
Análise do Discurso doravante AD.
14
raciais no Brasil. Num primeiro momento, apresentaremos, ainda que em linhas gerais, os
sentidos que queremos mobilizar ao indagar a escravidão no Brasil. No entanto, não
pretendemos narrar assim como narra a história “oficial” – as “verdades” cristalizadas sobre
o período em que os africanos escravizados chegaram em nosso país. Nosso olhar não está
comprometido com a história “oficial”, mas está comprometido, principalmente, com os focos
de resistência desse período.
Além disso, discutiremos também os conceitos de raça, apresentando a visão
de alguns teóricos e apontando os diversos discursos produzidos sobre esse conceito. Alvo de
debates e conflitos, a discussão sobre o conceito é permeada sempre por muitas pesquisas e
controvérsias. Discutiremos a passagem de um discurso religioso para um discurso científico
nas várias tentativas de conceituação do termo raça, observando as continuidades e
descontinuidades desse processo ao longo dos séculos.
Outra questão igualmente importante e responsável por inúmeros embates
(tanto discursivo, quanto político) é o discurso da democracia racial. Já nas últimas décadas
do século XIX, a idéia de um paraíso racial brasileiro estava difundida por todo o mundo.
Construiu-se a imagem de um Brasil no qual não havia barreiras institucionais perante a
ascensão social dos negros: uma sociedade que, apesar do passado escravista, constituía-se
sem “linhas de cor”. Pretendemos investigar, nesse segundo capítulo, a origem, a
disseminação, os impactos causados no país e os efeitos de sentido produzidos por esse
discurso da democracia racial. Além, claro, de tentar analisar de que modo ele vem à tona
ainda hoje.
Para finalizar esse segundo momento, discutiremos o desenvolvimento das
Políticas de Ações Afirmativas, partindo do momento da redemocratização do Brasil até sua
representação atual. Interessa-nos apresentar a origem do termo, as iniciativas de cada
governo e a mudança de postura que propõem essas políticas.
O último capítulo A mídia impressa como tabuleiro: o jogo do poder nas
relações raciais parte das discussões já colocadas nesta dissertação para analisar, agora
mais detalhadamente, os discursos que entram em jogo na construção da revista Raça Brasil,
principal objeto desta pesquisa.
Para tanto, num primeiro momento, problematizaremos a Raça Brasil enquanto
objeto de análise, a fim de localizá-la enquanto suporte capaz de produzir, moldar e
multiplicar identidades. Discutiremos aquilo que salta como mais recorrente e conflituoso no
discurso dessa mídia: o embate discursivo que se forma em torno de questões como cor,
cabelo e imagem pessoal dos negros. Queremos discutir as relações de poder que atravessam
15
essa problemática, buscando analisar os discursos e as memórias dos quais a revista Raça se
apropria e de que forma esse entrelaçamento está posto.
Assim, nosso último capítulo tem o intuito de afunilar e aprofundar nossas
análises, fazendo uso de imagens e enunciados propostos por nosso objeto, analisando os
efeitos de sentido que são produzidos e as relações de poder que se apresentam em torno da
questão do cabelo do negro.
Antes de passarmos ao desenvolvimento de nossa pesquisa, efetivamente, é
preciso fazer uma observação. Há, no decorrer de nossa dissertação, algumas imagens
apresentadas com o intuito de ilustrar as discussões teóricas. Entendemos que uma grande
quantidade de discursos produzidos acerca da questão racial no Brasil, assim como
entendemos, também, que esses discursos estão interligados, inclusive por uma cadeia
discursiva. Apesar de nosso corpus de análise ser a revista Raça Brasil, trazemos alguns
enunciados de um exterior discursivo que dialogam com os enunciados da revista. Isto porque
entendemos que um arquivo é heterogêneo, uma vez que comporta uma multiplicidade de
enunciados. Não é nosso objetivo, no entanto, analisar essa imensa cadeia discursiva, nem
achamos que seria possível. O que faremos, nesse caso, é trazer imagens de um exterior
discursivo nos dois primeiros capítulos, que vêm ilustrar e apoiar a discussão teórica. No
capitulo de análise, entretanto, apenas a Raça Brasil aparecerá como objeto empírico.
I
D
as ferramentas teóricas:
discurso, memória e poder
Discurso, sentido, sujeito: são essas as cartas que a Análise do Discurso Francesa coloca em
jogo. E são essas as cartas das quais lançaremos mão neste trabalho: o discurso como conceito
basilar, tesouro inesgotável (como diria Foucault
4
), que toma suas infiltrações como
constitutivas de si; o sentido como uma noção sempre plural, esquiva, que põe em xeque a
soberania do significante e se aproveita das infiltrações do discurso para voltar sempre com
nova forma; o sujeito constituído pela linguagem, pelo inconsciente e pela ideologia, que
volta à tona e caminha, agora, na contramão da proposta estruturalista.
Neste primeiro capítulo, portanto, nossa tarefa é apresentar e discutir os conceitos trazidos
pela Análise do Discurso Francesa no final daquela década de 60, movimentando o
pensamento crítico francês e se colocando com um papel não só teórico, mas também político.
4
2005, p. 139.
17
1.1 A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO CAMPO
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.
[Caetano Veloso, Livros, 1997]
O percurso histórico-ideológico que traçou a nova disciplina que surgia nos
fins da década de 60 (con)funde-se com a trajetória intelectual de seu principal nome: Michel
Pêcheux. Discutiremos, a seguir, alguns momentos desse trajeto, fazendo uso da retrospectiva
feita por Denise Maldidier
5
.
Segundo Maldidier (2003), na Escola Normal Superior da rua d’Ulm, lugar de
grande fervor teórico, Pêcheux obtém o diploma de filósofo em 1963 e presencia o encontro
de grandes pensadores revolucionários: Althusser elaborava Lire Le Capital, Lacan trazia a
Psicanálise em seminários de 1965-1966, além dos círculos Marxista-Leninista e de
Epistemologia. São encontros que trazem uma grande ruptura teórica para Pêcheux, decidindo
sua entrada na política - a partir das discussões de Althusser - e na História das Ciências e na
Epistemologia - a partir de Canguilhem. no Centro Nacional de Pesquisa Científica, em
1966, Pêcheux encontraria Paul Henry (que vinha da Matemática e da Lingüística) e Michel
Plon (vindo da Psicologia), trabalhando na crítica da análise de conteúdo e da psicologia
social. Esse encontro seria a vanguarda de um projeto teórico maior.
Ainda segundo Maldidier (2003), a entrada de Michel Pêcheux em uma teoria e
análise do discurso (e, conseqüentemente, os primeiros passos dessa disciplina) se em
1967-1968, ainda com o pseudônimo de Thomas Hebert, com a publicação de dois textos que
tratavam das diferenças entre uma “análise de conteúdo” e uma “análise do discurso”. É o
momento em que Pêcheux está voltado para duas problemáticas principais: a constituição de
uma teoria geral das ideologias e a construção de caminhos que possibilitassem a
transformação das Ciências Humanas em ciência de fato, as quais eram tidas por Pêcheux
apenas como ideologias teóricas. É perseguindo essas metas que Pêcheux chega à Análise do
Discurso. A fundação da nova disciplina se dá no coração das idéias estruturalistas que
dominavam o campo das Ciências Humanas até então na Europa, numa intensa tentativa de
formatação do pensamento e do mundo. No entanto, o movimento de Maio de 68, na França,
traz à tona questionamentos que colocam em xeque o paradigma estrutural que reinava até ali.
5
Referência ao livro A inquietação do discurso – (Re)ler Michel Pêcheux hoje, de 2003.
18
A Análise do Discurso surgiria, então, com uma proposta de combater o formalismo
lingüístico que se tinha, trazendo uma proposta de ruptura, vindo na contramão do
pensamento de sua época.
O surgimento de Análise Automática do Discurso, em 1969, é, assim, o marco
de um caminho que começara anteriormente. Paul Henry afirma que o projeto funcionaria
como uma espécie de “cavalo de Tróia destinado a ser introduzido nas ciências sociais para aí
produzir uma reviravolta” (MALDIDIER, 2003, p. 19).
Pêcheux propunha uma “análise automática” por meio da qual se buscava
colocar em evidência traços do processo discursivo, determinando os enunciados de base
produzidos pela “máquina discursiva”. Era o modelo de uma máquina de ler que extrairia a
leitura da subjetividade. A Análise Automática do Discurso postulava “uma teoria do discurso
enquanto teoria geral da produção dos feitos de sentido, que não será nem o substituto de uma
teoria da ideologia, nem de uma teoria do inconsciente, mas poderá intervir no campo dessas
teorias” (MALDIDIER, 2003, p. 21).
O novo campo de estudo constituiu-se, então, como uma corrente de estudos
interdisciplinar onde estão envolvidos a língua, os sujeitos e a História, numa relação tensa
com Saussure (que chegava pela releitura do próprio Pêcheux), Freud (relido por Lacan) e
Marx (pela influência constante de Althusser), o que Pêcheux chamaria mais tarde de Tríplice
Aliança. A Lingüística, a Psicanálise e o Materialismo Histórico estavam, pois, na base de um
projeto que visava à construção de uma teoria materialista do discurso, além de um projeto
político que interviria na luta de classes.
À inquietação do filósofo, que fundava uma nova forma de conhecimento e
estabelecia um novo objeto de linguagem que fazia parte das disciplinas
de interpretação mas que exigia um gesto descritivo respondia o balbucio
precavido de intelectuais sustentados em suas disciplinas já estabelecidas e
ciosos das grande crise política (que respingava na ciência) daquele tempo.
Diante desse objeto novo, a reação foi, muitas vezes, a de tentarem forçar o
autor a abrir mão desse objeto, seja integrando-o a lingüística, ou a
psicanálise, ou a história. Não por acaso mas porque era no campo dessas
regiões teóricas e suas contradições que cheux pressentia a importância
da instalação desse seu “objeto”: o discurso (ORLANDI, 2003, p. 11).
Segundo Maldidier (2003), um novo objeto é pensado, então, no interior da
“máquina discursiva”, que não deveria ser confundido nem com o discurso empírico de um
sujeito, nem com o texto, mas, além disso, é um conceito que supera qualquer compreensão
comunicacional da linguagem. E, é preciso frisar que a noção de discurso construída por
Pêcheux não nasce com a pretensão de superar a dicotomia língua/ fala de Saussure. Pêcheux
19
considera o deslocamento feito por Saussure - de uma função para um funcionamento da
língua -, como uma grande aquisição científica. O “corte saussuriano” diz respeito apenas à
idéia de uma língua sistemática, ou seja, a concepção da língua como um sistema, proposta
por Saussure em Curso de Lingüística Geral.
A língua que seria trabalhada na Análise do Discurso não é a língua da
Lingüística estrutural: transparente, autônoma, imanente. A língua considerada aqui é a língua
da ordem material, opaca, construída também por equívocos, por marcas da historicidade.
Como aponta Ferreira, “é a língua da indefinição do direito e avesso, do dentro e fora, da
presença e ausência” (FERREIRA, 2005, p. 17).
A Análise do Discurso desenvolve uma concepção de língua em que a
constituição dos sentidos é colocada em foco e o caráter rígido e categorizador atribuído pelo
Estruturalismo é fortemente combatido, o que indica uma postura de ruptura da nova
disciplina frente a toda uma conjuntura política e epistemológica de sua época. A partir dessa
nova abordagem, é possível pensar o conceito de discurso através da metáfora da rede:
Uma rede, e pensemos numa rede mais simples, como a de pesca, é
composta de fios, de nós e de furos. Os fios que se encontram e se
sustentam nos nós são tão relevantes para o processo de fazer sentido, como
os furos, por onde a falta, a falha se deixa escoar. Se não houvesse furos,
estaríamos confrontados com a completude do dizer, não havendo espaço
para novos e outros sentidos se formarem (FERREIRA, 2005, p. 19).
A metáfora da rede nos serve, então, para pensar o discurso como uma
completude que, no entanto, permite brechas, furos, passagens, por onde os sentidos chegam e
saem, encaixam e escoam. É o lugar da instabilidade, os sentidos escorregam, permitem a
formação de outros. “É a língua como o todo que comporta em si o não-todo”, como ressalta
Ferreira (2005, p. 20).
Dito isto, é preciso observar o deslocamento feito entre o novo objeto criado
por Pêcheux e o legado saussureano. Segundo Maldidier (2003, p. 22), “Michel Pêcheux
constitui o discurso como uma reformulação da fala saussuriana, desembaraçada de suas
implicações subjetivas”. Esse era, portanto, o momento em que a questão do sujeito voltava
aos pólos de discussão, aparecendo como figura central e reivindicando outro lugar para sua
aplicação.
O apego às noções de estrutura e de sistema trazidas por Saussure (considerado
pai da Lingüística e fundador do Estruturalismo) faz com que inúmeros estudiosos, imersos
nessa corrente de pensamento, considerassem o sujeito como um fator que viria perturbar as
20
análises do objeto científico. Tal posição tem como conseqüência a exclusão desse elemento.
Era o preço a ser pago pelos estruturalistas. Em meio ao sistema lingüístico vigente, não havia
lugar para o sujeito sem que houvesse “prejuízos” para a análise.
É a partir dessas questões que a Análise do Discurso vai procurar campo para a
constituição do sujeito com o qual se queria trabalhar. E acaba por encontrá-lo no sujeito
descentrado e inconsciente da Psicanálise: constituído pela linguagem e interpelado pela
ideologia.
A partir daí, temos, por um lado, a noção de um sujeito afetado pelo
inconsciente, trazido por Lacan e, por outro, um sujeito interpelado pela ideologia, trazido por
Althusser. O sujeito com o qual a Análise do Discurso vai trabalhar, porém, ainda teria mais
um fator: a intervenção da linguagem. Assim como nos diz Paul Henry, parceiro de Pêcheux,
em A Ferramenta Imperfeita: "O sujeito é sempre e ao mesmo tempo sujeito da ideologia e
sujeito do desejo inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem
atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação" (HENRY, 1992, p. 188)
6
.
Enfim, a Análise Automática do discurso acabou por trazer deslocamentos que
são marcos na história das Ciências Humanas. A obra causou estranhamentos de uns, euforia
de outros, e trouxe mais perguntas que respostas, assim como qualquer pensamento que
desloca toda a conjuntura intelectual e política de uma época. A criação de um novo método,
de um novo objeto, o passeio por diferentes disciplinas, um novo tratamento da ideologia e a
volta do sujeito ao centro das discussões são apenas alguns dos fatores que apontam sua
importância.
Por outro lado, o próprio Pêcheux, anos mais tarde, concluirá que a obra foi
produzida numa “urgência teórica”, era o clímax de todo um pensamento que abriria portas,
agora, para importantes produções durante mais de uma década. No entanto, essa “urgência
teórica” acabou por acarretar críticas consistentes na época de seu aparecimento. Segundo
Maldidier, por exemplo, “a máquina discursiva não tem nada de máquina universal para
analisar discursos” (MALDIDIER, 2003, p. 24), a obra iniciaria apenas uma teoria do
discurso e apresentaria, ainda, algumas fragilidades. No entanto, ainda de acordo com
Maldidier (2003), nada diminui a lança original que representa a AAD-69, com suas questões
fundamentais sobre o texto, a leitura e os sentidos.
6
Essa noção de um sujeito completamente interpelado pela ideologia e, portanto, que tem quase impossibilidade
de resistência, será revisto por Pêcheux nos anexos de Les Vérités de La Palice, como veremos adiante.
21
1.2 OS DISCURSOS RETORNAM: PRÉ-CONSTRUÍDO, INTERDISCURSO E
INTRADISCURSO
Quem não sabe de cor essa história
Refresque a memória e me preste atenção
Não sou eu quem repete essa história
É a história que adora uma repetição
Uma repetição
[Chico Buarque, Rebichada, 1981]
Os desdobramentos que derivam da AAD-69 não são poucos, entre eles, o livro
que apareceria em 1975, Semântica e Discurso (Les Vérités de La Palice). Encontramos a
exploração de conceitos-chave para uma teoria do discurso, e, além disso, a obra traz certo
realinhamento de conceitos já explorados anteriormente.
A primeira questão que nos interessa em Semântica e Discurso diz respeito ao
sujeito. Segundo Maldidier (2003), a obra denuncia a permanência de uma estreita relação
entre Pêcheux e Althusser, materializada com discussões em torno da interpelação. No
entanto, três anos após a publicação do livro, em 1978, a versão inglesa de Les Vérités de La
Palice trazia três anexos. No último deles, intitulado causa daquilo que falha ou o
inverno político francês: início de uma retificação, Michel Pêcheux confessa que tudo se abre
novamente a questionamentos.
Pêcheux deixa claro que não existe um sujeito pleno, ou seja, não
interpelação ideológica sem falhas. Marca-se, portanto, uma ruptura com a noção de sujeito
completamente assujeitado e que tem, portanto, quase impossibilidade de resistência,
admitido na primeira fase da Análise do Discurso. Seria preciso rever e repensar esse
conceito: “Não se deixa jamais um erro dormir impunemente em paz, pois esse será um meio
seguro para que ele perdure” (PÊCHEUX, 1997, p. 299).
Michel Pêcheux reconhece que “certas análises de Michel Foucault fornecem a
possibilidade de retificar a distinção althusseriana entre interpelação ideológica e violência
repressiva” (PÊCHEUX, 1997, p. 301). Assim, ainda segundo o próprio Pêcheux, Foucault
trazia contribuições que ajudavam na compreensão das lutas revolucionárias do nosso tempo,
apesar de não esclarecer objetivamente os lugares de resistência. O que nos interessa, aqui, no
entanto, é que entra em cena a problematização do processo de resistência-revolta-revolução.
Assim, admite-se a presença da resistência na condição do assujeitamento: “é preciso ousar se
revoltar. (...) é preciso ousar pensar por si mesmo (PÊCHEUX, 1997, p. 304).
22
Para além dessa retificação em relação ao assujeitamento, interessa-nos
também, em Semântica e Discurso, fazer um levantamento de conceitos elaborados em prol
de uma teoria do discurso. Em especial, nos tocam os conceitos de: pré-construído,
interdiscurso e intradiscurso. É com o desenvolvimento desses conceitos que Pêcheux vai
pesquisar o que ele chamaria de fio do discurso. O primeiro deles, o pré-construído, é
proposto por Henry e retomado aqui por Pêcheux como sendo uma “construção anterior,
exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é construído pelo enunciado. Trata-
se, em suma, do efeito discursivo ligado ao encaixe sintático” (PÊCHEUX, 1997, p. 99), e é
essa ligação entre o lógico-linguístico e a teoria do discurso que coloca o pré-construído
como conceito primordial.
Dessa forma, tanto em Henry, como em Pêcheux, tal conceito aparece sempre
ligado ao que se chamaria de articulação dos enunciados, isto porque “o efeito de pré-
construído, ligado ao encaixe sintático, é o de uma distância entre ‘o que foi pensado antes,
em outro lugar e independentemente, e o que escontido na afirmação global da frase’”
(MALDIDIER, 2003, p. 48), de modo, então, que tanto o pré-construído, como a articulação
dos enunciados, além de designarem um funcionamento lingüístico, são conceitos que
possuem também o elo para a teoria do discurso. Eles são, portanto, a linha de ligação entre o
discurso recente e o discurso já-lá.
A partir, então, das reflexões feitas em conjunto com Henry sobre o pré-
construído, percebia-se a presença de elementos discursivos que apontavam para discursos
produzidos anteriormente e cujos enunciadores havia se perdido. Daí decorria o conceito de
interdiscurso, formulado sob a idéia de uma produção discursiva a partir de um discurso
anterior já-lá. Segundo Pêcheux, o interdiscurso
reside no fato de que algo fala sempre antes, em outro lugar e
independentemente, isto é, sob a dominação do complexo das formações
ideológicas (...), ele é o todo complexo dominante das formações
discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de
desigualdade-contradição-subordinação (PÊCHEUX, 1997, p. 162).
Assim, o conceito de interdiscurso trazia uma linguagem althusseriana para
indicar o intricamento das formações ideológicas e discursivas. E é no interior do
funcionamento interdiscursivo que os sujeitos terão a evidência do sentido, isto porque sua
intricação com as formações ideológicas “fornece a cada sujeito sua realidade, enquanto
sistema de evidências e de significações percebidas-aceitas-experimentadas” (PÊCHEUX,
1997, p. 162).
23
A partir dessas considerações, seria possível, então, uma aproximação entre o
conceito de interdiscurso e os conceitos trabalhados anteriormente (pré-construído e
articulação), de modo que estes são, na verdade, elementos do interdiscurso, materializados
em sua estrutura. O interdiscurso é, pois, um saber discursivo que volta à tona possibilitando
o dizível através de um pré-construído, colocando à disposição do sujeito, saberes que lhe
permitam significar numa dada conjuntura discursiva, sustentando seu dizer.
O funcionamento interdiscursivo opera, pois, na relação de um já-dito com
toda uma filiação de dizeres, historicidades, identificações, etc. Disso se extrai a ligação entre
esse mesmo já-dito e o discurso ora produzido, isto é, a constituição e o esquecimento de um
sentido e sua nova formulação agora a partir de pré-construídos. Essa formulação daria
origem a mais um conceito da teoria discursiva: o intradiscurso, definido por Pêcheux como
o funcionamento do discurso em relação a si mesmo (o que eu digo agora,
com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto, o
conjunto dos fenômenos de co-referência que garantem aquilo que pode se
chamar fio do discurso’, enquanto discurso de um sujeito) (PÊCHEUX,
1997, p. 166).
O interdiscurso seria, assim, o lugar em que o sujeito colhe o intradiscurso,
como se pudéssemos ter um conjunto de todos os dizeres ditos e esquecidos numa base
através da qual o sujeito formularia seus dizeres numa determinada condição. Desse modo, é
o interdiscurso que produzirá a matéria-prima através da qual sujeito-falante irá se constituir
como tal, no interior da formação discursiva pela qual é afetado. O intradiscurso é, assim, a
materialização de uma das possibilidades oferecidas pelo interdiscurso.
Assim, podemos considerar o intradiscurso na sua relação com o
interdiscurso, e através desse fio discursivo é possível pensar que aquilo que é dito hoje é pré-
determinado por sujeitos outros, por momentos outros, e é justamente por isso que as palavras
fazem sentido: porque há um conjunto de dizeres que foram esquecidos e que retornam hoje
em nossas palavras na condição de pré-construídos. Assim,
o
sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não
existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade
do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições
ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as
palavras, expressões, e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas)
(PÊCHEUX, 1997, apud GREGOLIN, 2001, p. 17).
24
Portanto, não somos o início e nem o fim das palavras, nós não as possuímos.
Os discursos estão sempre em cadeia, num ciclo de esquecimento e retorno, nós é que
participamos dela, e, desse modo, todo discurso é também - e ao mesmo tempo -,
interdiscurso. Isso proporciona uma reflexão sobre discursos produzidos na atualidade.
Posições políticas, comportamentos, educação, religiosidade, tudo isso é construído
discursivamente e através do funcionamento interdiscursivo, isto é, através de uma cadeia
discursiva, discursos produzidos anteriormente, em outro lugar, por enunciadores que
desconhecemos, nos tocam ainda hoje. Assim se dá porque os discursos entram pela história e
nos marcam sem que possamos percebê-los.
A produção discursiva feita em torno da questão negra no Brasil é, pois,
inconcebível de uma desvinculação do passado escravista do país e de todas as vozes que nos
chegam desse momento. O modo como o negro é tratado na sociedade atual, a maneira como
seu corpo é visto, a idéia de uma raça inferior e pobre é uma produção discursiva que nos
chega e nos toca a partir de discursos produzidos no interior de um sistema em que 3,6
milhões de negros foram escravizados durante mais de três séculos no Brasil. É, portanto, no
interior de um funcionamento interdiscursivo que produzimos discursos que, por sua vez,
darão vazão a outras produções.
Com isso, essa primeira época da Análise do Discurso, O tempo das grandes
construções, que compreende o período entre 1969 e 1975, teria explorado ao extremo o
projeto primeiro proposto por Michel Pêcheux. Inicia-se, posteriormente, um período para
buscas de novas idéias. É nessa busca que Pêcheux, Henry e Plon lançam, em janeiro de 1976,
um seminário intitulado Pesquisas sobre a teoria das ideologias. O seminário duraria três
anos e meio e discutiria o termo ideologia pensada através de uma luta teórica fundada no
interior de uma luta de classes. De fato, muitas discussões e muitos deslocamentos teóricos
nascem desse encontro, principalmente no que diz respeito às aproximações que a Análise do
Discurso já fazia entre língua, psicanálise e política.
Afinal, o que é ser marxista em Lingüística? Segundo Maldidier (2003, p. 57),
nesse momento, a teoria apareceria, pois, diretamente governada pela política; e Pêcheux
conduzia, com os althusserianos, a batalha teórico-política contra o reformismo. Além disso,
estava em foco a análise de uma suposta crise da Lingüística, que agora se impunha com mais
força, trazendo à tona as divergências no que concernem as questões da língua e do sujeito.
Assim, a Lingüística formal estaria em declínio, o Estruturalismo numa crise irreversível e
apenas a sociolingüística floresceria, apesar de Michel Pêcheux nunca ter considerado sua
teoria como parte de uma sociolingüística.
25
São dois os principais textos desse período: Remontemos de Foucault a
Spinoza, de 1977, e causa daquilo que falha, de 1978. Entre os dois, havia a irrecusável
crise do marxismo. “Como a Lingüística francesa saiu do marxismo? Em silêncio: poucas
análises (...). Deslocamentos furtivos, páginas discretamente viradas, um certo incômodo...”
(COURTINE, 1999b, p. 07).
1.3 MEMÓRIA DISCURSIVA E A CONSTITUIÇÃO DO CORPUS NA ANÁLISE DO
DISCURSO
De acordo com Maldidier (2003), o período que compreende os anos de 1980 a
1983 é o momento em que aparecem os últimos escritos de Michel Pêcheux, ora retificando
pontos de sua caminhada teórica anterior, ora ratificando-os. Os principais textos desse
período são Lecture et Mémoire: project de recherche e Discourse: Structure or Event?, em
ambos é possível perceber os deslocamentos teóricos apontados por Pêcheux, aprofundando o
conceito de interdiscurso e aproximando-se das teorias de Foucault e Bakhtin.
Ainda de acordo com Maldidier (2003), em Lecture et Mémoire: project de
recherche, Pêcheux aborda elementos que J.J. Courtine trazia das suas leituras de Foucault,
entre eles, estava a questão da memória discursiva, abordada por Courtine a partir do discurso
político. Tomando a noção de ordem do discurso como ordem do enunciável, interrogando-se
sobre o fio de um discurso para um sujeito tomado nas contradições históricas do campo
político, retomando a idéia do corte saussureano e as propostas althusserianas sobre as
ideologias, é que Courtine (1981) reelabora o conceito de interdiscurso ligado ao domínio da
memória proposto por Foucault:
Série de formulações marcando, cada uma, enunciações distintas e dispersas,
articulando-se entre elas em formas lingüísticas determinadas (citando-se,
repetindo-se, parafraseando-se, opondo-se entre si, transformando-se...). É
nesse espaço interdiscursivo, que se poderia denominar, seguindo M.
Foucault, domínio de memória, que constitui a exterioridade do enunciável
para o sujeito enunciador na formação dos enunciados préconstruídos, de
que sua enunciação apropria-se (COURTINE, 1999a, p. 18).
É possível perceber que a mídia está, a todo tempo, retomando memórias: os
velhos discursos renovam-se em rótulos atuais. Para estabelecermos uma articulação inicial
entre a noção de domínio de memória e o nosso objeto de análise, apresentamos a seguir
26
algumas imagens. Elas retratam bem esse conceito. A primeira delas é uma pintura em óleo
sobre tela de Lucílio de Albuquerque intitulada Mãe Preta, de 1912
7
. A segunda é uma
ilustração de Ivan Wasth Rodrigues
8
e está publicada em Casa-Grande e Senzala, livro de
Gilberto Freyre, lançado em 1933. E a terceira é uma campanha publicitária da Benetton,
intitulada Breastfeeding, de 1989
9
.
Há, entre as três imagens, uma
negociação de sentidos: todas elas retratam uma
mulher negra amamentando uma criança branca.
Percebemos, assim, que uma memória que
perpassa essas imagens e que é atualizada,
produzindo novos efeitos de sentido a cada vez
que volta à tona. Sabemos que, no período
colonial, havia a figura da ama de leite: uma
mucama responsável por amamentar os filhos
brancos do senhor. Em se tratando da primeira
imagem a que fizemos referência, a pintura em
óleo sobre tela, a mucama aparece amamentando
uma criança branca enquanto olha seu filho
negro. Com um olhar de desconsolo, a mucama
expressa tristeza por ter de amamentar uma criança branca em detrimento de seu filho. A
imagem representa a opressão a que estiveram sujeitos os africanos escravizados no período
colonial e marca uma memória que seria atualizada recorrentemente.
Na segunda imagem, a ilustração de Ivan Wasth Rodrigues que está publicada
em Casa-Grande e Senzala, observa-se o mesmo ato: uma mucama negra amamenta uma
criança branca. Aqui, no entanto, esse gesto não parece tão dolorido como antes: a mucama
sorri. Além disso, o espaço se apresenta com outra configuração: na primeira imagem, o filho
da mucama está deitado no chão enquanto ela, também no chão, segura nos braços uma
criança branca, num lugar que parece escuro e desconfortável. Os tons escuros usados na
pintura representam não a tristeza do ambiente, como também a tristeza da mucama. Na
segunda imagem, além de sorrir, a mucama aparece sentada e num lugar que não parece
7
Disponível em: LEITE, José Roberto Teixeira, 500 anos de pintura brasileira. CD-rom fabricado pela
Microservice Indústria Brasileria; produzido e distribuído pela Log On Informática Ltda, 1999.
8
Disponível em: http://www.expo500anos.com.br/painel_21.html (acesso em 03.07.07).
9
Disponível em: http://benettongroup.com/en/whatwesay/sottosezioni/campaigns_photo_gallery.htm (acesso em
03.07.07).
27
escuro e nem desconfortável. A alegria do
ambiente está marcada no sorriso da mucama e no
papagaio que aparece ao fundo, trazendo mais cor
e vida à imagem. No entanto, é preciso considerar
que essa ilustração é uma didatização da imagem
da mucama, isto é, ela não foi produzida para
espelhar uma “verdade”, ela foi produzida apenas
com fins ilustrativos.
A terceira imagem – e mais recente
é uma campanha publicitária da Benetton,
intitulada Breastfeeding, de 1989. Aqui também
se repete o gesto de amamentação de uma criança
branca por parte de uma mulher negra. No
entanto, a negra, aqui, não é mucama, não se apresenta com roupas de mucama e, muito
menos, está retratada num contexto colonial. Pelo contrário, a mulher negra é cidadã, usa
roupas da Benetton e se apresenta num contexto publicitário, retratando a campanha de uma
grande marca. Atualiza-se,
assim, a memória da mucama.
Por mais que haja uma memória
atravessando a imagem, o que
temos aqui é uma memória
atual, que não está
comprometida com a volta da
mucama, mas sim com quebra
de padrões publicitários. Se
considerarmos que essa é uma
campanha de 1989, é possível afirmar que ela traz um discurso de resistência que o negro
não aparecia nas campanhas publicitárias até então. A Benetton veste uma mulher negra num
ato historicamente marcado e vende roupas a partir do momento em que renegocia essa
memória, fazendo circular novos sentidos.
Percebemos nas imagens, portanto, a reinterpretação de uma memória que,
apesar de fazer soar as vozes de um período remoto que volta à tona pelas mãos da mídia,
oferece a ela novas possibilidades de interpretação. Porque “o novo não está no que é dito,
mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2004, p. 26).
28
Assim, é nesse interdiscurso, ou nesse domínio de memória, como aponta
Foucault, que se fundem e se articulam formulações que nos chegam através de uma memória
e formulações outras que retomam as primeiras, num sempre jogo entre memória e
esquecimento. Com isso, aceitava-se a idéia de uma exterioridade da memória e do
interdiscurso, que aquilo que é enunciado é exterior ao sujeito enunciador. Segundo
Gregolin, é partindo dessa concepção de exterioridade que Pêcheux propõe seu conceito de
memória:
pensando no interdiscurso como fonte da memória, ele (Pêcheux) não
pretende discutir o valor ontológico da problemática neurobiológica que
supõe a existência (tanto no homem, quanto nos animais superiores) de uma
fonte de memória constituída pelo sistema nervoso central. Sua proposta visa
a tratar do estatuto social da memória como condição de seu funcionamento
discursivo na produção e interpretação textual. Dessa perspectiva, a
memória refere-se não a traços corticais dentro do organismo, nem a traços
cicatriciais sobre o organismo, nem mesmo a traços comportamentais
depositados por ela a partir de um mundo exterior, mas sim a um conjunto
complexo, pré-existente e exterior ao organismo, constituído por uma série
de 'tecidos de índices lisíveis', que constitui um corpo sócio-histórico de
traços (GREGOLIN, 2001, p. 22).
Segundo Gregolin (2001), Pêcheux considera, portanto, a existência de uma
memória sócio-histórica sendo formada num espaço de inscrição de traços discursivos, que
seria a língua natural. E, esse conjunto de traços é o que a Análise do Discurso tomaria
como objeto, trabalhando na construção de um corpus heterogêneo e estratificado, que está
em constante atualização e reconfiguração. É, portanto, a partir de uma memória discursiva
que o corpus a ser trabalhado pela Análise do Discurso teria de ser montado, isto é, ao
longo de sua produção, já que aquilo que é dito nesse momento, já está dito anteriormente,
em determinadas condições sociais, históricas e ideológicas de produção. A escolha do
corpus não seria determinada, pois, a partir de um saber histórico, mas no interior do campo
discursivo, em meio à circulação dos enunciados. Segundo Gregolin:
Percebe-se, nesse novo conceito, a forte influência de Foucault e de sua
Arqueologia: o corpus é pensado como relacionamento de seqüências
discursivas singulares, com seus feixes de memória, a abertura sobre um
espaço interdiscursivo; ele não remete a um momento inaugural, a uma
decisão definitiva. Se a memória discursiva é constituída de vestígios que
se inscrevem no interdiscurso, na formação discursiva, o analista do
discurso abandonando a idéia da ordem fixa do arquivo vai, agora,
tratar de estados de corpus, integrando cumulativamente o lingüístico e o
discursivo, na produção em espiral de reconfigurações do corpus
(GREGOLIN, 2001, p. 29).
29
Assim, o surgimento do conceito de memória discursiva provoca mudanças
no que diz respeito à constituição do corpus na Análise do Discurso. Segundo Sargentini
(2006), na primeira fase da Análise do Discurso, o corpus era extraído de seqüências
discursivas inerentes a um exterior, que tais discursos eram pré-determinados de direita
ou de esquerda. Essa forma de elaboração esbarrou justamente na necessidade de se
considerar um exterior discursivo, ou seja, na necessidade de se extrair o corpus de um
âmbito universal, e não a partir de modelos preexistentes.
Esse exterior vai ser incorporado, num segundo momento, a partir do
conceito de interdiscurso, pensando-o como fonte da memória. A noção de formação
discursiva, tomada de empréstimo de Michel Foucault (como diz o próprio Pêcheux
(1993)), traz a noção de um corpus que está sempre em processo de construção, e que é,
principalmente, heterogêneo, uma vez que a formação discursiva é um espaço aberto,
“constitutivamente invadida por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras FD)”
(PÊCHEUX, 1993, p. 314). Assim, é preciso entender que o discurso que se quer analisar
dialoga com outros tantos discursos, que são, também, interdiscursos e constituem, por isso,
um corpus heterogêneo.
Segundo Sargentini (2006), num terceiro momento, a Análise do Discurso
passa a analisar não uma formação discursiva, mas a leitura de um arquivo a partir da
irrupção de um acontecimento discursivo. Para Foucault, o arquivo é “a lei do que pode ser
dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares”
(FOUCAULT, 2005, p. 147). Assim, o arquivo é o que determina a maneira pela qual os
enunciados são atualizados, voltando novamente à tona e impedindo que o conjunto de
coisas ditas não se perca na poeira da história. Dessa forma, o arquivo é o sistema que
permite a renovação e a volta de enunciados e, portanto, “é um modo de acompanhar as
práticas discursivas de uma sociedade” (SARGENTINI, 2006, p. 41).
Sendo assim, podemos falar de uma heterogeneidade do arquivo, uma vez
que ele comporta uma multiplicidade de enunciados. É por isso que apresentamos, ao longo
de nosso trabalho, algumas imagens que não fazem parte, necessariamente, de nosso objeto
empírico, mas que dialogam com o mesmo. Isso evidencia o caráter heterogêneo do
arquivo, no qual estão presentes os discursos que nos propomos a analisar.
Assim, o surgimento do conceito de memória discursiva e as mudanças
operadas no que diz respeito à concepção do corpus na Análise do Discurso (a partir do
conceito de formação discursiva, de Foucault) denunciavam, pois, mais uma relação teórica
que se estabelecia entre Michel Pêcheux e Michel Foucault, apesar da sempre divergência,
30
tanto teórico como política, frente ao marxismo. No entanto, essa era uma relação que se
estabelecia desde o surgimento da Arqueologia do Saber, em 1969. As idéias foucaultianas
disseminadas nos trabalhos da Análise do Discurso se materializam desde o conceito de
formação discursiva, passando pela distinção feita entre enunciado e enunciação, até a
concepção de discurso como prática, como jogo estratégico entre saber e poder.
Assim, tanto em Pêcheux, quanto em Foucault, a Análise do Discurso esteve
preocupada sempre com o sujeito e a produção de sentidos. Michel Pêcheux, partindo das
problemáticas da Lingüística saussuriana, retoma o discurso, o sentido e a história no interior
dos estudos da linguagem, além de trazer a discussão sobre o sujeito novamente à tona.
Michel Foucault, a partir da problematização da história, de suas continuidades e
descontinuidades, coloca em discussão um sujeito descentrado e imerso nas práticas
discursivas que constituem os saberes na sua relação com os micro-poderes. E é justamente
essa idéia de micro-poder vinda de Foucault que tomaremos agora como foco, seguindo no
levantamento dos conceitos que usaremos em nossas análises.
1.4 O PODER ENQUANTO SOBERANIA
O papel da história será o de mostrar que as leis enganam, que os reis se
mascaram, que o poder ilude e que os historiadores mentem.
[Foucault, Em defesa da sociedade, 1999, p. 84]
O poder não existe, dizia Foucault numa entrevista concedida em 1976. De
certo, a afirmação não traduzia a reviravolta nos estudos sobre o poder que Foucault, de fato,
causou. Entretanto, logo o filósofo se faria entender.
A princípio, pode-se dizer que as pesquisas foucaultianas acerca do poder
partem da estreita ligação entre direito e poder. Como diz o próprio autor: “parece-me que nas
sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se faz em
torno do poder real. No Ocidente, o direito é encomendado pelo rei” (2006b, p. 180). Daí
destaca-se a centralidade do rei no edifício jurídico da época, de modo a fixar e legitimar seu
poder, ratificando que o soberano é personagem principal de toda teoria do direito. É sobre
ele, seu poder e seus limites que tratam os saberes jurídicos.
Essa imagem de um poder tátil, concreto, é, sem dúvida, a imagem do poder tal
qual o direito lhe atribui. Central, localizado, de máxima individualização. Silenciosamente,
31
isso faz com que relações de dominação sejam veiculadas através desse poder, acarretando a
produção de discursos de verdade sobre o direito. Tais discursos produzem efeitos violentos
acerca dessa dominação: um deles torna legítimo o poder do soberano, o outro, faz da
obediência uma obrigação legal. Isto prova a produção, circulação e o funcionamento
discursivo atrelado às relações de poder em nossa sociedade.
Sendo assim, Foucault afirma que existem apenas dois modos de se analisar as
relações de poder. O primeiro deles, aquele apresentado pelo sistema jurídico - com todas as
suas considerações acerca de leis, proibições - depois de muito aplicado, mostra-se impróprio.
“Sabemos que o direito não descreve o poder” (FOUCAULT, 2006a, p. 241).
Tendo nosso país como referencial, entre as décadas de 30 e 60, temos duas
leis que diziam atender às reivindicações do movimento negro da época: a Lei de Amparo ao
Trabalhador Brasileiro Nato (1931), que estabelecia que dois terços dos trabalhadores dos
estabelecimentos industriais teriam de ser brasileiros natos, era uma forma de barrar a vinda
dos imigrantes e, ao mesmo tempo, incorporar o negro no mercado de trabalho; e a Lei Afonso
Arinos (1951), que julgava contravenção penal qualquer preconceito de raça ou de cor: “Art
Constitui contravenção penal, punida nos termos desta Lei, a recusa, por parte de
estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou
receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito de raça ou de cor”.
Esse discurso democrático adotado pelo país após a reabertura política atende a
todo um sistema interessado em colocar em prática certas técnicas de normalização que
causam um silenciamento das diferenças. São leis produzidas por um edifício jurídico como
uma forma de controle, de dominação social, de modo a fazer com que a percentagem negra
de população se sinta realmente amparada, tornando-se obediente a toda uma conjuntura
jurídica produzida por um sistema dominante, a seu favor e mediante seus interesses. Isso
demonstra a produção de um apagamento da real problematização da questão racial no Brasil.
O que temos são políticas que atuam na criação de formas menos visíveis das desigualdades e
na produção de corpos dóceis, satisfeitos com as formas de inclusão oferecidas pelas forças
políticas do país.
O discurso jurídico estaria, pois, associando relações de dominação a técnicas
de sujeição, produzindo discursos capazes de tornarem legítimas suas leis e instituições, sem
que os indivíduos - imersos numa fiel obediência - possam questioná-lo em qualquer hipótese.
O que não se questiona nessa imagem centralizada e unilateral do poder são os jogos
(discursivos ou não) que atuam nesse campo. É o que Foucault pretende descrever no segundo
modelo de análise das relações de poder.
32
1.5 O PODER
ENQUANTO RELAÇÃO
O segundo modelo de análise vai, pois, desenhar o inverso do primeiro.
Foucault direciona sua analítica em busca de extrair o fato da dominação encravada no
discurso do direito, afirmando e evidenciando esse discurso como portador das relações de
dominação. O princípio norteador desse modelo é a substituição do olhar sobre a soberania e a
obediência, para analisar o problema da dominação - entendida por Foucault como “as
múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade” (2006b, p. 181) - e da
sujeição. O que estava em jogo agora não era, portanto, a centralidade de um poder soberano,
mas as múltiplas relações estabelecidas num contexto social. Um poder descentrado,
difundido, pulverizado (GREGOLIN, 2004, p. 55).
E a primeira preocupação metodológica de sua pesquisa diz respeito justamente
a descentralidade do poder, de modo a não considerá-lo como procedendo de uma localidade
específica. Esse aspecto justifica a descrição de sua pesquisa como uma analítica, visto que o
objetivo é alcançar elementos que possam fazer uma análise dos princípios de funcionamento
do poder, e não teorizar sobre ele, assim como esclarece o próprio autor:
O poder não existe. Quero dizer o seguinte: a idéia de que existe, em um
determinado lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um
poder, me parece baseada em uma análise enganosa e, que, em todo caso, não
conta de um número considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é
um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos
piramidalizado, mais ou menos coordenado. Portanto, o problema não é
constituir uma teoria do poder (...), o problema é munir-se de princípios de
análise que permitam uma analítica das relações de poder (FOUCAULT,
2006c, p. 248).
Sendo o poder um feixe de relações, é preciso analisá-lo, portanto, numa
racionalidade móvel, que alcance sua produtividade, sua exterioridade, baseada no
antagonismo de estratégias estabelecido entre poder e resistência, visto que “o poder pode
ser analisado como algo que circula, como algo que funciona em cadeia” (FOUCAULT,
2006b, p. 183). Há, portanto, uma interação indissolúvel, um encadeamento estrutural, onde
poder e resistência interagem um sobre o outro de maneira cíclica, permanente. E, além de
coexistirem, poder e resistência possuem, ambos, as mesmas características: “para resistir, é
preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto
ele. Que, como ele, venha de baixo e se distribua estrategicamente” (FOUCAULT, 2006a, p.
241).
33
Devendo ser observado, portanto, a partir de confrontos estratégicos entre
relações, a analítica foucaultiana subtrai, assim, a idéia de um poder como propriedade, como
um patrimônio, mas antes, como um exercício, móvel, dinâmico, tático, onde os indivíduos
estão sempre em posição de praticá-lo e de sofrer sua ação. Assim como afirma Revel:
A análise dos vínculos entre as relações de poder e os focos de resistência é
realizada por Foucault em termos de estratégia e de tática: cada movimento
de um serve de ponto de apoio para uma contra-ofensiva do outro (REVEL,
2005, p. 75).
Dessa forma, o poder se a partir do momento em que se estabelece um jogo
tático entre poder e resistência. Um tabuleiro de xadrez nos oferece essa imagem: a jogada de
um está estreitamente relacionada à jogada de seu oponente, e como decorrência disso, o
tabuleiro passa a ser um campo estratégico em que atuam várias forças concomitantemente.
Sob esse ponto de vista, podemos dizer que aquilo que define uma relação de poder é sua
maneira de agir, isto é, não agindo diretamente sobre o outro, mas sobre sua ação. O poder é,
portanto, “uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes”
(FOUCAULT, 1995, p. 243).
Essa imagem reforça a noção do poder como exercício, se contrapondo, mais
uma vez, à idéia de um poder central, unilateral e localizado. Tal oposição descarta a
possibilidade de uma análise decrescente do poder, isto é, uma análise que parte do que se
consideram os “grandes poderes” até chegar às parcelas mínimas da sociedade. Surge daí
mais uma preocupação metodológica da analítica foucaultiana: Foucault vai propor uma
análise de micro-relações, onde seriam travadas micro-lutas e onde seriam produzidos micro-
poderes. Uma análise, portanto, ascendente do poder, partindo de elementos moleculares do
corpo social:
Deve-se fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos
infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois
examinar como estes mecanismos de poder foram e ainda são investidos,
colonizados, utilizados, subjugados, transformados, deslocados,
desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de
dominação global (FOUCAULT, 2006b, p. 184).
Essa é, sem dúvida, uma maneira de considerar um poder invisível, que viria e
estaria em todo lugar. Assim sendo, podemos entender que a análise foucaultiana vem na
contramão da concepção tradicional na qual o poder está ligado a lutas-de-classe, o que
significa dizer que o poder em Foucault não traz a noção althusseriana de aparelhos
34
ideológicos. Segundo Deleuze, “as instituições são práticas, mecanismos operatórios que não
explicam o poder, que supõem as relações e se contentam em fixá-las sob uma função
reprodutora e não produtora” (2005, p. 83).
O poder estaria, portanto, diluído na sociedade em inúmeros micro-poderes, e é
justamente esse feixe de relações de poder que irá produzir sujeitos através de processos de
subjetivação, o que significa dizer que é um poder que possui mecanismos de controle que
acabam por se tornar inerentes ao corpo social, de modo que os sujeitos interiorizam o
comportamento ditado pelo poder de comando. Foucault analisa, então, as relações
estabelecidas no interior daquilo que ele chama de “sociedades disciplinares”, onde se procura
ter o maior controle possível sobre os corpos e sobre os discursos, nem sempre, porém, de
modo violento, mas, antes, sutil e estrategicamente organizado.
O “regime disciplinar” caracteriza-se por um certo número de técnicas de
coerção que exercem um esquadrinhamento sistemático do tempo, do corpo
e do movimento dos indivíduos e que atingem particularmente as atitudes,
os gestos, os corpos (REVEL, 2005, p. 35).
A disciplina traz, portanto, a necessidade de produção de corpos dóceis através
de técnicas de individualização do poder, isto é, técnicas que permitam interferir e controlar o
comportamento dos indivíduos, de modo a aumentar, cada vez mais, suas habilidades e
competências para colocá-lo, em seguida, no lugar onde será melhor “aproveitado”. Essa
forma de poder aplica-se à vida cotidiana dos indivíduos, impondo-lhes uma identidade com
fins de categorizá-lo numa verdade que deve ser reconhecida por ele e pelos outros. E é
justamente contra essas técnicas que agem as micro-lutas sociais às quais Foucault faz
referência.
A análise das relações de poder que passeiam pela questão racial do Brasil não
partiria, pois, das verdades produzidas pelos aparelhos de Estado acerca da questão, nem do
discurso das leis criadas por um sistema jurídico a partir da necessidade de controle e de
dominação social. Ao contrário disso, a análise dessas questões parte das micro-lutas travadas
cotidianamente, nas menores esferas possíveis, e que estariam resistindo não a um outro
adversário, mas a uma forma de poder.
35
1.6 RELAÇÕES DE PODER NO INTERIOR DAS RELAÇÕES RACIAIS
Após discutir as preocupações metodológicas que Michel Foucault apresenta
de sua analítica do poder, faremos, agora, uma discussão – ainda que breve – sobre o
funcionamento dessas relações de poder no seio das relações raciais.
Um dos modos de perceber a dinâmica do poder nesse contexto é na relação
estabelecida entre o negro e a estética negra. Essa relação passa por conflitos na medida em
que é entrecortada por discursos que se opõem. O discurso do branqueamento, por exemplo,
assume o discurso identitário de uma elite que se autodenomina branca, assumindo
características de uma beleza européia. Essa elite acataria uma superioridade étnica nesse
modelo de beleza, fazendo com que seja mais bem aceito aquele que mais se aproxime do tipo
branco europeu (FERREIRA, 2000).
Por outro lado, a relação do negro com a estética negra passa por mudanças a
partir do momento em que entram em cena as políticas afirmativas, que não buscam inserir o
negro numa sociedade branca, mas que busca afirmar identidades negras sob uma ótica
positiva. Daí surgem enunciados como orgulho de ser negro, Black is beautiful, 100% black.
Assim, a partir do momento em que o Brasil assume o compromisso de buscar saídas para o
preconceito racial, inicia-se uma grande produção discursiva que tenta re-significar a cultura
afro-brasileira. Essa nova significação atualiza o estereótipo do negro escravista: subtraindo a
imagem de sua submissão e inserindo elementos que procuram afirmá-lo de um ponto de vista
positivo. Para tanto, as políticas de inclusão racial evocam um sentimento de exaltação étnica
frente às dificuldades e preconceitos que o negro enfrentou historicamente e enfrenta ainda
hoje.
Como reflexo dessas políticas podemos citar o crescimento de modelos negros
na publicidade, a criação de produtos específicos para o público negro, e, ainda, o aumento do
número de negros que se declaram como tal
10
. Essa mudança de postura do governo, do
mercado e também de um número considerável da população negra – nos oferece suporte para
discutir as relações de poder presentes nas relações raciais. Para tanto, recortamos como
objeto de análise os discursos que circulam em torno do cabelo crespo. Isto porque estamos de
acordo com aquilo que Foucault sugeriu como uma análise ascendente do poder, isto é, uma
análise que se inicie nos elementos mínimos da sociedade, onde são travadas micro-lutas.
10
A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), elaborada por meio de pesquisas em 145,5 mil
domicílios de todo o país, constatou que 1,34 milhão de pessoas a mais se auto-declararam negros em 2006, em
relação ao ano anterior. Os brasileiros que se declararam negros eram 6,3% em 2005, e, em 2006, representam
6,9% da população. Os pardos atingem 42,6%. Dados disponíveis em: www.ibge.org.br
36
Como veremos detalhadamente no terceiro capítulo, o cabelo crespo é,
historicamente, elemento simbólico e identitário da população negra. No interior do sistema
escravista, era o tipo de cabelo e o tom de pele que determinavam as funções do escravizado.
Os conflitos vivenciados na relação com o cabelo e, ao mesmo tempo, as simbologias que os
negros traziam neles, nos chegam, porém, de variadas formas e sustentadas pelos mais
diversos discursos, num sempre jogo entre mercado, história, mídia, cultura, moda, tradição,
etc.
Acreditamos que o cabelo afro, por exemplo, usado numa textura mais natural,
passa, atualmente, por re-significações. Por um lado, esse uso pode marcar um lugar de
resistência, assumindo um estilo político frente às formas de opressão identitária pelas quais o
negro passa. Por outro lado, não podemos esquecer que, atualmente, esse uso é re-significado.
O mercado é porta-voz de relações de força que produzem a necessidade desse uso, a partir da
transformação de bens simbólicos africanos em mercadorias esteticamente estilizadas, como,
por exemplo, o estilo Black, produzido em salões étnicos.
Esse jogo tático entre poder e
resistência faz com que venham à tona
enunciados como o da imagem ao lado
11
: Na
minha cabeça mando eu. Primeiramente,
observamos a marcação de um sujeito que fala
por si. Se levarmos em conta uma concepção
de sujeito proposta na primeira fase da Análise
do Discurso, diríamos que esse enunciado se
configura como uma ilusão de liberdade, isto é,
uma ilusão de que o sujeito não estaria
assujeitado. No entanto, assim como admite
Pêcheux, no anexo de Les Vérités de La Palice,
não existe interpelação ideológica sem falhas.
O que se marca, aqui, portanto, é um lugar de
resistência, assim como propõe Foucault, onde
o sujeito escapa, foge do assujeitamento. É possível perceber, ainda pela imagem, que a
marcação dessa resistência é concomitante à marcação do exercício do poder. Explico: a
modelo desta publicidade, ao esclarecer que ela fala por si quando se trata de seu cabelo, o faz
11
Veiculada pela revista Raça Brasil, ano 12, nº115, p. 79.
37
com a proposta de desmerecer (e negar) o discurso do branqueamento, que indicaria um
alisamento do cabelo como modelo de beleza. No entanto, essa “liberdade” é marcada não por
um discurso de resistência, mas por um discurso de poder, materializado na proposta do
mercado: Linha Herbal Force Tânagra.
Assim, percebemos que há um jogo entre poder e resistência nessa publicidade:
por um lado, o enunciado Na minha cabeça mando eu marca uma negação ao alisamento
do cabelo crespo e representa, portanto, o discurso das ações afirmativas, exaltando uma
identidade negra de forma positiva. Por outro lado, percebemos que essa exaltação é feita pelo
viés do mercado. E, se “o poder produz coisas, induz ao prazer” (FOUCAULT, 2006, p. 8),
aceitamos, nesse caso, os discursos do mercado, da mídia e da moda como seus portadores.
Não podemos esquecer que se trata de uma campanha publicitária que tem a finalidade,
portanto, de lançar produtos ao mercado. Com isso, paralelamente à marcação de um lugar de
resistência, que se mediante à autonomia de um sujeito que pensa por si, também a
penetração de relações de força que tornam o cabelo crespo como um bem simbólico
vendável. Os penteados africanos feitos por gerações e gerações de negros na África são
reproduzidos e estilizados, hoje, ao sabor do mercado.
Daí temos o jogo travado entre poder e resistência nessa mesma publicidade:
enquanto afirma-se uma liberdade para o uso do cabelo crespo que não esteja compatível com
o modelo branco, afirma-se também, o lugar do mercado, que cria necessidades e estilos
vendáveis da cultura negra. Além disso, não podemos esquecer que a apropriação dos bens
simbólicos africanos por parte de um mercado, não é apenas negativo. Essa apropriação
resulta numa popularização desses bens, o que provoca uma socialização não só entre negros,
mas entre todos aqueles que se identificam com essa cultura. Essas e outras questões tanto
históricas quanto discursivas – serão discutidas em terceiro capítulo de nosso trabalho.
Fica claro, enfim, que o exercício do poder se em lugares múltiplos do
campo social: no interior das relações raciais, na família, na estética, na vida sexual, nas
relações afetivas, etc. O poder não é, portanto, algo que está acima do social: no Estado, nos
reis ou no sistema jurídico, não é algo que se possua, se administre ou se imponha. Mas, ao
contrário disso, o poder é algo que se exerce, que circula e que estabelece relações, quase
sempre de modo sutil, tático e estratégico. A resistência, por sua vez, é concomitante às
manifestações do poder e semelhante a ele em sua natureza: estratégica, móvel, produtiva.
“Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação, em
condições determinadas e segundo uma estratégia precisa” (FOUCAULT, 2006a, p. 241). É a
38
essa possibilidade que chamamos de resistência. E, assim como o poder, ela está, a todo
tempo, imersa em micro-lutas.
Assim chegamos ao final de nosso primeiro capítulo, onde discutimos a
constituição e alguns dos conceitos propostos pela Análise do Discurso, também como as
contribuições que aceitamos de Michel Foucault para este trabalho. Seguimos agora para a
discussão das condições de produção dos discursos que pretendemos analisar. O capítulo
seguinte pretende, portanto, apresentar e discutir questões que estão sempre em pauta quando
se trata de relações raciais no Brasil: poder e resistência no sistema escravista, a democracia
racial, os diversos conceitos de raça e as mudanças no trato com a questão negra trazida com
o desenvolvimento das políticas afirmativas.
II
D
e negro escravizado a afro-brasileiro
O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus
próprios olhos
12
. Sendo assim, é preciso discutir as verdades construídas pelo discurso acerca
de nosso objeto de pesquisa, é hora de colocar em xeque e analisar essas verdades, realçando
as condições de produção desses discursos. Neste capítulo, portanto, traremos algumas das
discussões que auxiliam na análise de nosso objeto, uma vez que colocam em foco os
discursos produzidos sobre a questão negra no Brasil, e, conseqüentemente, as verdades
construídas sobre a mesma.
12
FOUCAULT, 2004, p. 49.
40
2.1 O PERÍODO NEGRO DA HISTÓRIA DO PAÍS
Por trás da história desordenada dos governos, das guerras e da fome,
desenham-se histórias, quase imóveis ao olhar histórias com um suave
declive: história dos caminhos marítimos, história do trigo ou das minas de
ouro, história da seca e da irrigação, história da rotação das culturas,
história do equilíbrio obtido pela espécie humana entre a fome e a
proliferação.
[Foucault, Arqueologia do saber, 2005, p. 03]
Antes de iniciar as discussões deste capítulo, é preciso dizer que não temos,
aqui, a intenção de narrar assim como narra a história oficial” os (des)caminhos dos
negros no Brasil, desde a chegada dos navios negreiros até hoje. Isto porque entendemos, com
a Nova História, que os relatos contados e recontados sobre esse período são efeitos de
discurso, capazes de produzir não uma, mas muitas verdades. Assim, nosso objetivo é
discutir, ainda que em linhas gerais, os sentidos que queremos mobilizar ao indagar a
escravidão no Brasil. E esse olhar não está comprometido com a história oficial, mas está
comprometido, principalmente, com os focos de resistência do período escravista.
A princípio, é preciso dizer que a Lei 10.639, criada em 2003 pelo governo
Lula, que torna obrigatória a temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo
nacional, é um marco nas mudanças das “verdades” impressas nos livros didáticos. cerca
de 10 anos, percebemos que a relação da escola com a temática da história e cultura afro-
brasileira passa por mudanças, trazendo à tona novas “verdades” sobre essa história e
produzindo novos sentidos em torno da questão. São alguns desses novos sentidos que nos
propomos discutir.
Em 2006, Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes lançam o livro O Negro
no Brasil de hoje. Voltada para Educação de Jovens e Adultos (antigo supletivo), a obra
também está sendo usada em cursos de graduação e mostra muito bem essa mudança de
postura dos livros didáticos. O livro traça os movimentos de resistência dos negros do período
escravista e discute as atuais políticas afirmativas como continuação desses processos de
resistência.
Como resultado desse novo olhar teoricamente trazido pelos livros didáticos
mais recentes, não são raras as vezes em que o papel do colonizador europeu no tráfico de
africanos é colocado em xeque. Essa alusão se faz por diversos motivos. O principal deles
reside no fato de que a exploração das terras brasileiras a partir da mão-de-obra escrava não
inaugura um sistema de trabalho. Com isso, quero dizer que a prática da escravidão é
41
apresentada como uma prática antiga na história da humanidade: civilizações como a egípcia,
a grega e a romana já faziam uso desse sistema.
Nosso papel, no entanto, enquanto analistas do discurso, é questionar essas
práticas e os sentidos produzidos por elas. Enveredando por esse caminho, é possível afirmar
que, apesar dessa aproximação, o conceito de escravo adotado na África pouco ou nada – se
assemelha ao conceito de escravo desenvolvido no Brasil colonial. São práticas diferentes
remetidas a um mesmo termo.
Segundo Munanga (2006, p. 25), “na África tradicional, o conceito de escravo
designava todos aqueles que estão ou estiveram em uma relação de sujeição ou subalternidade
leiga ou religiosa com um parente mais velho, um soberano, um protetor, um líder, etc”.
Assim, o chefe de família detinha sob seu controle as esposas, as filhas, os protegidos de sua
sociedade. E a obrigatoriedade do trabalho atingia todos esses que estão condicionados ao
patriarca, dependendo apenas deste as obrigações e regalias gozadas por cada um.
Além disso, quando havia guerra entre duas sociedades, os integrantes da
sociedade derrotada ficavam em relação de sujeição à sociedade vitoriosa, que poderia ocupar
ou incorporar o território conquistado. Nestes casos, os habitantes da sociedade vencida
ficavam em relação de sujeição aos conquistadores, que podiam deixá-los livres e apenas
cobrar-lhes impostos, ou podiam capturar algumas pessoas. No interior da sociedade
vitoriosa, essas pessoas incorporadas eram chamadas de estranhas cativas. No caso de serem
homens, trabalhavam como servos do rei. Sendo mulheres, integravam os haréns com fins de
procriação. Todas as crianças nascidas nessas sociedades eram livres, o que significa dizer
que esse não era um sistema de exploração renovado automaticamente. Também houve casos
em que não era atribuída nenhuma função aos cativos. Sua presença na sociedade era apenas
um símbolo de vitória em guerras.
A aquisição dos cativos, além de ser decorrente de lutas, também poderia ser
decorrente de penhor humano. Por ordens do patriarca, um clã (grupo, linhagem, família)
poderia emprestar um de seus membros a outro clã, a fim de pagar-lhe uma dívida. Esse grupo
credor poderia usar o cativo gratuitamente até que a vida estivesse totalmente paga. Os
membros empenhados não eram, portanto, o próprio pagamento de um débito. O pagamento
era feito com seu trabalho e, sendo assim, sua condição de cativo era perfeitamente reversível
e provisória.
Através dessa breve descrição da ordem social desenvolvida na África
tradicional, queremos demonstrar que, antes do tráfico transatlântico de negros comandado
pelos europeus, não existia nenhuma relação comercial entre os povos africanos que fizesse
42
uso de seus integrantes como mercadorias: vendendo-os ou comprando-os em mercados
regulares, até mesmo pela economia de auto-subsistência em que viviam.
Todas as situações de exploração existentes na África tradicional (...) não se
constituem em sistemas escravistas, porque a exploração não era renovada
sistematicamente e não suscitava uma categoria de indivíduos mantida
institucionalmente (de fato ou e direito) em uma relação de subordinação. A
escravidão como modo de exploração pode existir se se constituir uma
classe distinta de indivíduos com um mesmo estatuto social (MUNANGA,
2006, p. 26).
Desse modo, no interior de um sistema escravista, essa classe distinta de que
fala Munanga (escrava) deve ser restaurada constantemente, com o objetivo de garantir uma
exploração contínua na execução de trabalhos a ela destinados. Mas não foi esse sistema que
se desenvolveu na África, uma vez que as crianças, mesmo que filhas de cativos, nasciam
livres. Já no Brasil, até a adoção da Lei do Ventre Livre (e até mesmo depois dela, visto que
os senhores encontravam formas de burlar a Lei), filhos nascidos de escravos eram,
sistematicamente, escravizados também. Isso alimentava o sistema exploratório e alargava,
automaticamente, o número de escravos para mão-de-obra.
Assim, é possível perceber que, no deslocamento da África ao Brasil, muitas
práticas sofreram deslocamentos de sentido, e, por isso, não podem ser apontadas como
legitimação do sistema escravista desenvolvido aqui. Não é o mesmo sistema, nem o mesmo
método, e, muito menos, os mesmo sentidos. É preciso repensar, pois, o escravismo tal qual
desenvolvido no Brasil, buscando reapresentar alguns de seus principais pontos, na contramão
das narrativas oficiais. E, com isso, desnudar histórias imóveis ao olhar. Para isso, partimos,
mais uma vez, de Michel Foucault:
Não relação de poder onde as determinações estão saturadas - a
escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado
(trata-se então de uma relação física de coação) mas apenas quando ele
pode se deslocar e, no limite, escapar (FOUCAULT, 1995, p.244).
A maneira como o escravismo foi adotado e implantado no Brasil oferece-nos,
porém, outra interpretação. Não vidas, por exemplo, dos focos de resistência criados
pelos negros durante o período em que o escravismo esteve em vigor, apesar de isso não
ilustrar as narrativas oficiais do período. Por isso é preciso buscar respaldo na Nova História:
a fim de reconhecer que, a história tradicional, ao tomar os textos históricos como narrações
que reconstroem um real, na verdade, não dá conta daquilo que Foucault chamaria de “saberes
43
desqualificados como não-conceituais” (FOUCAULT, 1999), isto é, as narrativas que ficaram
à margem da história oficial. Segundo Gregolin,
o sentido criado no texto histórico é produto da intervenção do historiador
que escolhe os documentos, extraindo-o do conjunto de dados do passado,
preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho, que, pelo
menos em parte, depende da sua própria posição na sociedade de sua época
(GREGOLIN, 2004b, p. 23).
O valor de verdade que se quer para a história tradicional aquela que
reconhece apenas uma submissão dos negros no interior do sistema escravista - é, pois,
colocado em xeque se pensarmos que os textos que nos chegam são selecionados e
interpretados anteriormente pelo olhar dos historiadores. Os sentidos atribuídos aos textos são
e apenas isto efeitos de discurso. Sob esse ponto de vista, podemos pensar que muitas das
narrativas que dizem respeito aos grupos socialmente marginalizados foram sucumbidas, visto
que os relatos mais difundidos estão baseados apenas na vida dos grandes reis e na irrupção
das grandes guerras. Poderíamos, então, reconhecer que micro-relações de poder foram
travadas no decorrer da história (inclusive no interior do sistema escravista), e, apesar de não
estarem figurando por entre as narrativas oficiais, são narrativas locais que reconstroem a
memória excluída pelas “verdades” cristalizadas.
São muitos, então, os momentos em que os negros travaram lutas contra
mecanismos de dominação. Uma vez que a trajetória escrava no Brasil foi repleta de revoltas
e insurreições negras, queremos perceber de que maneira essa resistência se dava em setores
da vida cotidiana. Como exemplo, podemos citar o desenvolvimento do Candomblé em
contraposição ao catolicismo. Nesse ponto, o jogo entre poder e resistência é extremamente
visível: a partir do momento em que se a suposta conversão dos negros ao catolicismo, é
permitido a estes a expressão de sua religiosidade, que se deu, à época, baseada numa
identificação entre orixás e santos católicos. No entanto, os cultos tribais continuavam isentos
do catolicismo, a identificação era feita por uma questão de resistência à religião branca, isto
é, caso não houvesse identificação, a expressão dessa religiosidade seria reprimida sob o juízo
de que fosse bruxaria. O Candomblé que se desenvolveu no Brasil é fruto dessa resistência.
Este é, portanto, um modo de enfrentamento que a cultura negra encontrou para resistir às
relações de força que impunham identidades e categorizações.
É, portanto, a partir desses setores da vida habitual que percebemos o jogo
travado entre poder e resistência, que, apesar de não serem narrados pelos historiadores,
funcionavam concomitantemente à exploração tantas vezes relatada. Esse jogo, no entanto,
44
não se esgota no interior desse sistema, mas toma novos contornos e atua ainda hoje contra
novas formas de dominação e sujeição.
O modo como a mídia conduz
esse enfrentamento discursivo nos parece
bastante interessante. A forma como é
colocado o 13 de maio (dia da abolição da
escravatura), por exemplo, nos permite uma
breve ilustração desse embate. Ao lado, temos
uma peça publicitária da color-aid
curativos
13
. A imagem resgata essa
comemoração do dia 13 de maio perante o
seguinte enunciado: Libertação de quem,
cara-pálida? A expressão cara-pálida, usada,
principalmente, na referência aos povos
indígenas, aparece aqui na produção de novos
sentidos. O enunciado se vale do adjetivo
pálida para fazer uma alusão à pele branca,
fazendo deslizar seu sentido, uma vez que pálida também pode significar descorada, algo de
cor pouco viva. A peça traz, ainda, um texto crítico: Como nos contos de fada, precisou de
uma princesa para nos libertar. Mas foram os brancos que, como num passe de mágica,
libertaram-se da culpa pelos 300 anos de escravidão. As feridas do passado tornaram-se
cicatrizes, lembrando que a discriminação continua até hoje. o devemos esquecer também
que a conquista da liberdade não se faz por decreto. É uma luta que acontece todos os dias. É
nossa responsabilidade. Com muito orgulho, somos afro-brasileiros fazendo do Brasil um
país onde as cores são fortes. Muito fortes.
Percebemos, nesse texto, que há um reposicionamento do discurso da
libertação. No momento em que o texto menciona que, na verdade, não foram os negros que
se libertaram da escravidão, mas os brancos que se viram livres de toda a culpa, percebemos
que um deslizamento de sentido no que diz respeito ao 13 de maio. Entendemos, portanto,
que essa é uma data introduzida pela elite branca e que, na verdade, não representa nenhuma
conquista popular, muito menos uma mudança no trato com as relações raciais. O 13 de maio
seria mais um discurso produzido com fins de limpar a imagem do branco, na tentativa de
13
Empresa que desenvolve curativos específicos para pele negra. Campanha disponível em:
http://www.ampltda.com.br/br/br/img/campanha_03.jpg (acesso em 01.07.2007).
45
deslocar sentidos: o branco passaria de explorador a herói histórico e piedoso. Assim, a data,
em momento algum, representa um resgate da auto-estima negra. Pelo contrário, o objetivo
seria afirmar um sentimento de eterna gratidão do negro perante o branco, principalmente
àquela que assinou a Lei Áurea como se liberdade não fosse um direito natural do ser -
humano. Assim, percebemos que essa publicidade foi construída a partir de um jogo de
sentidos em torno do 13 de maio, re-significando a data e os discursos construídos por ela.
Ao final do texto, percebemos, ainda, que a expressão cara-pálida aparece,
mais uma vez, para lembrar a palidez do branco: povo de cores pouco fortes, pouco vivas, que
se choca com as cores fortes, muito fortes, dos negros.
Em oposição a uma data criada pelas autoridades oficiais, o movimento negro
cria o Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado em 20 de Novembro como forma de
lembrar o escravo fugitivo Zumbi dos Palmares, morto nesse mesmo dia do ano de 1695.
Segundo o movimento, esse era o verdadeiro símbolo da liberdade.
Assim, é em busca de visualizar esse embate discursivo produzido pela mídia
acerca das relações raciais no Brasil que desenvolveremos esse capítulo. Passaremos, agora, a
discutir esse jogo do poder mediante os discursos que se articulam em torno dos conceitos de
raça, desde o século XV, até o atual sistema de cotas proposto pelo governo federal.
2.2 DOS CONCEITOS DE RAÇA: DISCURSOS TRANSVERSOS
A problemática racial no Brasil é perpassada por múltiplos discursos que se
cruzam em conflitos e concordâncias. , desde a Independência, um sempre embate no que
diz respeito às raças e às mesclas destas na formação da sociedade nacional, trazendo à tona,
recorrentemente, toda uma discussão sobre o conceito de raça, permeada sempre por muitas
pesquisas e controvérsias. Neste tópico, em específico, queremos discutir a passagem de um
discurso religioso para um discurso científico nas várias tentativas de conceituação do termo,
observando as continuidades e descontinuidades desse processo ao longo dos séculos.
O conceito de raça tal qual o concebemos na atualidade é, na verdade, uma
construção histórica. O termo, assim como aponta Munanga (2004, p. 15), tem origem na
palavra latina ratio, designando sorte, categoria, espécie, que no latim medieval assume
outros sentidos, indicando descendência, linhagem. No entanto, o termo ainda sofreria
grandes metamorfoses até operar os efeitos de sentidos que produz na sociedade atual.
Resgatemos, pois, alguns caminhos percorridos.
46
Ainda de acordo com Munanga (2004, p. 15), a descoberta de novas terras no
século XV coloca em xeque o conceito de humanidade que se tinha até então. Afinal, quem
eram os novos povos descobertos? Que explicação atribuir à sua existência? A questão que
ora se apresentava era totalmente nova para o momento histórico, de modo que poderia ter
aberto caminho para as mais diversas especulações. No entanto, consideremos todo poder que
exercia a igreja até então, apresentando-se como um ‘sopro de calmaria’ que debelava todas
as inseguranças da época. Essa estabilidade da igreja acabava por tornar tudo uma questão
teológica, e a explicação para os novos povos vinha, assim, do mito dos Reis Magos, que
aponta cada um deles como pertencente de uma raça. Baltazar, o mais escuro dentre os três,
passou a ser considerado como representante da raça negra.
No entanto, esse poder exercido pela igreja seria contestado no século XVIII.
Apresentado historicamente como ‘século das luzes’, esse momento abriria um debate e ao
mesmo tempo uma reivindicação – acerca do privilégio exclusivo que a igreja detinha sobre o
conhecimento. Assim, a luz posta pela igreja sobre a origem dos recém–descobertos seria
questionada, e os filósofos iluministas usariam, pois, o termo raça na designação desses
povos.
Talvez nesse momento a humanidade tenha cometido o pecado chave rumo ao
pensamento racialista que viria nos séculos seguintes. Isto porque, segundo Munanga (2004,
p. 16), o que deveria exercer uma função metodológica, ou seja, o que deveria funcionar como
uma ferramenta para organização de um pensamento desemboca numa questão hierárquica.
Essa classificação deu voz, portanto, a toda uma escala de valores construída através do
conceito de raças.
A partir, então, dessa classificação, é ainda no século XVIII que a cor da pele é
incorporada como critério para a divisão (segregação?) da diversidade humana. Daí surge a
organização da humanidade em três raças: branca, negra e amarela. Além desse aspecto, já no
século XIX, outros critérios aliam-se nessa tentativa de caracterização: forma do nariz, dos
lábios, do crânio, etc. No entanto, tais critérios não se sustentariam frente às pesquisas sobre a
Genética Humana operadas no século XX. A primeira observação a ser feita sobre isso é que
tanto a cor da pele quanto a cor do cabelo e dos olhos é determinada pela concentração de
melanina no corpo humano, e esse, como é de fácil percepção, não constitui um critério capaz
de organizar uma classificação eficaz da diversidade humana. Um segundo ponto a ser
discutido diz respeito aos critérios químicos encontrados no sangue pelos geneticistas, os
chamados marcadores genéticos. Tais marcadores são responsáveis pelo grupo de sangue,
47
pelas doenças hereditárias e por diversos fatores presentes na hemoglobina. Alguns desses
aspectos seriam, pois, mais freqüentes em algumas raças que em outras.
Assim, são muitos os fatores que tentam uma explicação eficaz para a grande
diversidade da espécie humana. Se fizéssemos um entrelace entre todos aqueles postos, isto
é, a cor da pele, os critérios morfológicos do rosto e ainda as variações químicas apresentadas
pela genética, teríamos, como ressalta Munanga, inúmeras raças, sub-raças e sub-sub-raças.
Através desse pensamento é possível, então, chegar a conclusão de que
a raça não é uma realidade biológica, mas sim apenas um conceito, aliás,
cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-
la em raças estancas. Ou seja, biológica e cientificamente, as raças não
existem (MUNANGA, 2004, p. 19).
Assim, o grande embate construído ao longo da história e que ainda respinga
em nosso tempo reside na associação feita entre características sociais e genéticas, além,
claro, da hierarquização feita entre esses atributos e, conseqüentemente, entre as raças.
E essa hierarquização produziria ainda frutos piores, uma vez que daria vazão
ao desenvolvimento de uma teoria no culo XX denominada de Raciologia, que, ainda
segundo Munanga,
apesar da máscara científica, a Raciologia tinha um conteúdo mais
doutrinário que científico, pois seu discurso serviu mais para justificar e
legitimar os sistemas de dominação racial do que como explicação da
variabilidade humana (MUNANGA, 2004, p. 19).
Assim, a Raciologia operou um discurso que, aos poucos, estaria volatilizado
na sociedade, e que ainda validaria, por exemplo, os horrores praticados na II Guerra Mundial
em nome de uma raça pura.
Em termos de Brasil, a preocupação com a miscigenação estava presente
desde o período colonial, ganhando força com as declarações do Conde de Gobineau entre as
décadas de 50 e 70 do século XIX, segundo o qual a miscigenação era inevitável e provocaria
uma degenerescência tanto física quanto mental da raça humana. Em visita ao Brasil, em
1876, Gobineau teria escrito para o imperador Dom Pedro II relatando que esta tinha sido uma
péssima experiência (COBRA, 2001).
no início do século XX, apareciam trabalhos preocupados com a
caracterização das raças. Autores como Oliveira Viana, Roquette Pinto e Arthur Ramos, ao
dedicarem-se a análises antropológicas acerca das raças, asseguravam, ou, no nimo,
48
deixavam transparecer, a existência de propriedades morais, culturais e até psicológicas que
seriam picas de uma ou outra raça, de uma ou outra mestiçagem, de modo que, a partir de
uma pré-determinada estrutura, seria possível a distinção entre puros e impuros, superiores e
inferiores. É o que afirma Octavio Ianni, que, ao resgatar essas pesquisas, ainda acrescenta
que nelas
as coletividades anormais, fetichistas, fanáticas, carismáticas podem ser
compostas de raças classificadas como inferiores, ou mestiços nos quais
predominam os traços dessas raças classificadas como inferiores. Fala-se, às
vezes, em mestiços superiores, os raros que têm a sorte de ganhar os traços
dos brancos que entram na mescla (IANNI, 2004, p. 124).
É também importante perceber que, no interior dessas categorizações, já estava
posto o conflito entre fatores sociais e biológicos, na incessante busca de reconhecer em qual
deles estaria a causa das propriedades distintas de cada raça. Roquette Pinto, por exemplo,
defendia que a análise dos cruzamentos raciais deveria ser efetuada a partir não só dos fatores
biológicos, mas também dos fatores sociais. Arthur Ramos, que estaria mais ligado ao fator
biológico, desfez a noção de uma “degenerescência” trazida pela mestiçagem, afirmando que
havia formação de fenótipos resistentes a partir desta, além de trazer já a idéia de um
progressivo “branqueamento” da população devido à diminuição da vinda do negro ao país.
Havia, portanto, um crescente número de debates sobre a problemática racial,
que caminharam até hoje com suas continuidades e descontinuidades (como afirmaria
Foucault). A oposição feita entre puros e impuros, ou entre superiores e inferiores
descontinuou ao longo da história. No entanto, o debate fervoroso entre fatores sociais e
biológicos (apimentados agora pela genética) está entre aqueles que continuam em pauta.
No momento atual, essa discussão toma novos contornos e faz uso de suportes
variados, obtendo respaldo em muitos
campos e enunciados. A dia
impressa seria, pois, um desses
suportes para produção discursiva
acerca da questão. Com todo poder de
alcance e de penetração que tem na
vida social, a dia participa da
discussão e intervém com posições que
ora combatem, ora ratificam o racismo.
49
Sobre a questão específica de uma raça biológica, trazemos uma campanha
14
lançada pela
Benetton, em 1996. A fim de criar uma identidade anti-racista para a empresa, a peça
publicitária mostra três órgãos do corpo humano (três corações) lado a lado. A imagem não
apresenta nenhuma diferença entre os órgãos, mas, no entanto, cada coração traz sua legenda:
white, black e yellow. A campanha faz, ao mesmo tempo, uma menção e uma crítica ao
conceito de raças biológicas, pois ao mesmo tempo em que sua abordagem faz referência ao
debate que existe em torno da questão, a campanha também aponta para uma posição
contrária àqueles que reivindicam discrepâncias biológicas entre brancos, negros e amarelos,
uma vez que apresenta órgão de mesma natureza para legendas diferentes.
Segundo Hofbauer (2003), em meio aos inúmeros discursos produzidos na
atualidade sobre a questão, podemos visualizar basicamente dois pólos de discussão
antagônicos. Um deles são os estudos do campo sociológico, voltados para uma análise das
relações entre negros e brancos e para as desigualdades que surgem destas. O outro pólo diz
respeito às pesquisas feitas no âmbito da Antropologia Social e Cultural. Essa corrente aponta
o Brasil como tendo um modo particular de construir e lidar com suas diferenças, e esse etos
brasileiro
15
seria, pois, o grande empecilho para uma legítima democracia racial.
No entanto, apesar de trazer contribuições para uma análise das construções
identitárias no Brasil, a tradição antropológica tende a resvalar-se para uma justificativa dos
mitos sociais, justamente por entender as relações raciais como ocasionadas por um etos
brasileiro que estaria além do processo histórico. Por outro lado, os estudos sociológicos
também pecam ao estabelecer categorias fixas (brancos e negros), o que inviabiliza uma
análise da intricada identidade nacional.
Ainda segundo Hofbauer, “autores de ambas as linhas interpretativas (a
“cultural-antropológica” e a “sociológica”) afirmam que raça não deve ser entendida como
um dado biológico, mas como uma construção social” (HOFBAUER, 2003, p. 66). No
entanto, seria possível ler nas entrelinhas de toda essa discussão, uma forma de colocar esse
conceito (assim como outros) em dependência de fatores sociais que teriam uma existência
mais concreta, como um sistema econômico ou uma estrutura classificatória, como forma de
fazer uma discriminação racial escorregar para uma discriminação econômica.
Desse modo, fica clara a grande fusão de discursos que se entrelaçam na
questão racial. discursos históricos, discursos sociológicos, antropológicos, políticos,
14
Disponível em: http://press.benettongroup.com/ben_en/image_gallery/campaigns/?branch_id=1174 (acesso
em: 28.06.07).
15
É importante lembrar que a grafia etos (em detrimento de ethos) está marcada pelo autor ora citado:
HOFBAUER (2003).
50
etc. Daí a imensa quantidade de estudos produzidos no interior da questão, que, ao tentarem
enquadrar opiniões em classificações fixas, formatando suas brechas e alianças, caem na
armadilha dos sentidos: que são esquivos a qualquer prisão, a qualquer captura. Daí a
necessidade de uma discussão aberta e mesmo conflituosa do conceito.
A posição de Guimarães (2002), por
exemplo, está em pleno combate com as idéias
apresentadas pelas linhas interpretativas acima a
“cultural-antropológica” e a sociológica”.
Primeiramente por entender os termos de cor
criados no Brasil (moreno, marrom) como
metáforas do termo raça, não entendendo, pois,
brancos e negros como categorias fixas. Um bom
exemplo nesse caso é o que acontece com a
cantora Alcione, nacionalmente conhecida como
Marrom. Esse reconhecimento está colocado na
capa ao lado
16
, que além de trazer o termo que
identifica a cantora, ainda traz o enunciado o
tom, produzindo aí uma ambigüidade: por um lado, tom pode está referindo-se ao tom
musical, visto que a matéria diz respeito ao tema; por outro lado, pode também ser uma
referência direta ao tom de pele ao qual a cantora está associada.
Além disso, Guimarães também critica radicalmente o disfarce das
discriminações raciais em discriminações de classe, isto é, o uso do termo classe como
subterfúgio frente ao racismo.
Para melhor entender, portanto, o uso que faz do termo raça, Guimarães
começa por apontar duas formas opostas de se fazer tal uso. aqueles que defendem
fervorosamente o esvaziamento do conceito, sob a justificativa de que, além de ser um léxico
que pertence a um discurso autoritário e antidemocrático, nada pode ser classificado como
raça biológica” no que diz respeito à espécie humana. Todavia, há também aqueles que,
mesmo estando em concordância no tocante a não existência de uma raça biológica”,
ratificam o uso do termo com caráter de luta social. Nesse caso, o uso de termo auxiliaria na
construção e no reconhecimento de identidades, viabilizando compromissos político-
democráticos.
16
Revista Raça Brasil, ano10, nº 94.
51
Segundo Guimarães (2002), esse uso seria facilmente perceptível na realidade
brasileira se levarmos em conta que, uma vez a recorrência do termo raça foi extinta (entre os
anos de 1930 e 1970), um aumento considerável nas reclamações sobre desigualdades e
discriminações. Assim, a retomada da categoria, atualmente, significou uma intensificação do
discurso identitário com fins de retomar as lutas anti-racistas e de atribuir à parcela da
população que se auto-define como branca, a responsabilidade pelas desigualdades e
discriminações sofridas pelos negros no Brasil.
O nome da revista que analisaremos nessa dissertação a Raça Brasil nos
oferece um bom exemplo do uso do termo raça enquanto categoria de luta política. A Raça
Brasil foi lançada em 1996 e surge num momento crucial das políticas anti-racistas no país: é
o momento em que o Brasil adota as políticas de ações afirmativas em detrimento das
políticas de integração que eram adotadas até então
17
. Esse momento marca uma mudança de
postura do governo no que diz respeito à questão racial no Brasil: a partir de 1996, não se
busca mais incluir o negro numa sociedade branca a partir do chamado processo de
branqueamento; o que se busca, a partir de então, é a afirmação de uma identidade
historicamente marginalizada. Essa mudança de postura resgata o termo raça numa tentativa
de marcar sim uma diferença. Mas, nesse contexto, essa diferença está marcada por um
discurso positivo, que afirma as identidades negras e subtrai estereótipos racistas. Assim, a
tentativa de expor e ratificar as diferenças se porque o silenciamento das diferenças não
resulta em relações igualitárias. E a retomada do termo raça é fundamental nesse processo,
daí seu uso como nome da revista, uma vez que a Raça Brasil coloca-se, a todo tempo, como
instrumento das ações afirmativas, buscando exaltar a cultura negra sob um foco positivo e
inaugurando um espaço capaz de inserir o negro no mercado da mídia e da moda.
No entanto, o uso do termo como uma forma de resistência não garante uma
linearização dos discursos que dele se apropriam. Pelo contrário, são muitos, agora, os modos
de aplicabilidade da categoria de raçano interior das lutas anti-racistas. Ainda segundo
Guimarães (2002a, p. 51), são quatro as formas possíveis.
A primeira delas diz respeito às crenças racialistas as quais fizemos
referência. Essas crenças resgatam pesquisas feitas no início do século e apontam marcadores
biológicos características morais, psicológicas e intelectuais - na distinção de raças. No
entanto, essa é uma concepção que não resistiria a uma análise mais apurada. Sua fragilidade
reside no fato de que, apesar de aceitar as diferenças de atributos tanto físico quanto
17
O surgimento e o desenvolvimento das Políticas de Ações Afirmativas serão discutidos ainda neste capítulo.
52
psicológicos essas crenças não acatam a existência (fatal para as afirmações postas) de uma
hierarquia entre elas.
A segunda possibilidade de aplicação do termo aponta para a aceitação de
raças sociais. Essa postura não crê, portanto, haver nenhuma forma de raça biológica, mas
entendem que as raças são identidades construídas socialmente e que organizariam, pois, as
lutas anti-racistas. Assim, tanto as crenças racialistas, quanto as crenças em raças sociais
buscam um melhor funcionamento das relações raciais no âmbito do convívio social, mas, de
modo algum, se colocam contra ou buscam meios de superação da divisão da humanidade sob
a categoria de raça.
Tais crenças, apesar de parecerem estagnadas, obtêm ainda respaldo em
enunciados produzidos pela mídia e que acabam por sustentar essas posições, que,
entrelaçadas ou bifurcadas, continuam a se fazer presentes. É o caso de uma das matérias de
capa da revista Raça Brasil
18
, intitulada Proteja-se. A matéria é um alerta aos negros do
Brasil: Diferenças fisiológicas ou sociais fazem com que a anemia falciforme, deficiência de
glicose, foliculite, diabetes, câncer de próstata e hipertensão sejam os seis principais males
que atingem os negros. Da forma como está posto, entendemos que o enunciado acaba por
abarcar duas crenças de uma vez, isto é, ele aponta as diferenças entre negros e brancos
tanto como fisiológicas quanto como sociais, o que deixa clara a (con)fusão dos diversos
discursos presentes na questão. Além disso, é preciso perceber que o enunciado o faz sem
lançar mão do termo raça. Essa omissão não representa, no entanto, uma superação do
conceito, mas confessa uma instabilidade em seu uso.
Ainda seguindo Guimarães (2002), duas posturas podem ser apontadas. Tais
posturas implicariam, por sua vez, a superação da noção de raça. A terceira possibilidade diz
respeito ao tratamento de raças como epifenômenos no que concerne a ciência, ou seja, como
aponta o próprio autor, como categoria nativa
19
. E no que concerne ao social, como formas de
identificação que precisariam, necessariamente, serem abolidas para, desse modo, extirpar o
racismo. Assim, está apontada aqui uma possibilidade de aceitação social sobre a inexistência
das raças, a partir da qual se daria a total erradicação do racismo.
18
Revista Raça Brasil, ano 10, nº 94.
19
Em Guimarães (2001, p. 01), “fazemos sempre uma distinção, nas ciências sociais, entre dois tipos de
conceitos: os analíticos, de um lado, e os que podemos chamar de ‘nativos’; ou seja, trabalhamos com categorias
analíticas ou categorias nativas. Um conceito ou uma categoria analítica é o que permite a análise de um
determinado conjunto de fenômenos, e faz sentido apenas no corpo de uma teoria. Quando falamos de conceito
nativo, ao contrário, é porque estamos trabalhando com uma categoria que tem sentido no mundo prático,
efetivo. Ou seja, possui um sentido histórico, um sentido específico para um determinado grupo humano”.
53
Existiria, ainda, uma última possibilidade, a qual Guimarães se diz filiar e que
acredita numa superação das classificações raciais a partir de dois procedimentos centrais. Um
deles é a tantas vezes discutida inexistência da idéia de raças biológicas; o outro perpassa pela
metamorfose constante da idéia de raça em tantas formas e tropos como cor, classe, etc.
Assim, uma vez atestada a inexistência das raças biológicas, o uso do termo ainda se faz
necessário como forma de captar o sentido atribuído a determinadas classificações feitas
socialmente. Desse modo, para Guimarães,
“raça” não é apenas uma categoria política necessária para organizar a
resistência ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica
indispensável: a única que revela que as discriminações e desigualdades que
a noção brasileira de “cor” enseja são efetivamente raciais e não apenas de
“classe” (GUIMARÃES, 2002a, p. 50).
No entanto, para além da discussão sobre categorias de lutas ou ferramentas
analíticas, o autor também não descarta (nem poderia, num país como o nosso) as marcas
fenotípicas como forma de identificação dos negros, o que não diz respeito à noção de raça
biológica, desenvolvida no século XVIII, mas se apresenta como forma de considerar aquilo
que, de fato, produz movimentos de segregação em relação ao negro.
Quando uso os termos “raça” ou “raciais” refiro-me a formas de identidade
social ou formas de classificação dos indivíduos em coletivos, baseadas em
marcadores fisionômicos ou fenotípicos, tais como cor da pele, textura do
cabelo, formato do nariz ou dos lábios, etc., que remetem, direta ou
indiretamente, à noção de raça biológica, ainda que saibamos que estas não
existem, de fato (GUIMARÃES, 2005, p. 02).
Apesar, portanto, de todos os sentidos que podem – e são atribuídos ao
termo, a idéia de uma raça biológica continua a fazer parte do vocabulário (e do imaginário)
nacional. Mais que isso, o sentido cristalizado no dicionário
20
e, conseqüentemente, o sentido
estabilizado pelo senso comum, ainda traz sua carga histórica de segregação por meio de
critérios fisionômicos:
Raça: 1.Conjunto de indivíduos cujos caracteres somáticos, tais como a cor
da pele, a conformação do crânio e do rosto, o tipo de cabelo
21
, etc., são
semelhantes e se transmitem por hereditariedade, embora variem de
indivíduo para indivíduo.
20
Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.
21
Grifo nosso.
54
2.Restr. Antrop. Cada uma das grandes subdivisões da espécie humana, e
que supostamente constitui uma unidade relativamente separada e distinta,
com características biológicas e organização genética próprias
22
.
Assim, seja como categoria de luta, seja como ferramenta analítica ou como
forma de identificação social, o termo raça continua a causar diálogos e discrepâncias em
discursos que ora se unem, ora se distinguem, em constantes relações de força.
Por fim, queremos ainda acrescentar a definição atribuída ao termo raça pelo
discurso oficial do governo. O conceito aparece no parecer da Lei 10.639/ 2003, que
estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Esse relatório foi
redigido pela professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e sancionado pelo governo,
trazendo a seguinte observação:
É importante destacar que se entende por raça a construção forjada nas
tensas relações entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como
harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito biológico de raça cunhado no
século XVIII e hoje sobejamente superado (BRASIL, 2005, p. 13).
Desse modo, percebemos os constantes entraves conceituais que existem entre
os vários discursos que perpassam essa questão. Esse embate se em várias instâncias,
destacamos aqui o papel da mídia impressa nesse jogo, oferecendo respaldo a todos os
discursos aqui explorados: científico, senso-comum, oficial. A partir daqui, tentaremos
perceber de que forma as relações de poder que perpassam esse conceito interferiram nas
relações raciais no Brasil: desde a eminência da democracia racial até a implementação das
políticas de ação afirmativa no Brasil.
2.3 DEMOCRACIA RACIAL: PRODUÇÃO DE SENTIDOS E IMPACTOS NO
BRASIL
"Democracia racial" rima com "homem cordial".
Não é uma solução. Mas vou pôr isso na letra de uma música.
[Caetano Veloso, Folha de São Paulo, 10.06.2006]
22
Grifo nosso.
55
Esse tópico de nossa pesquisa procura investigar os efeitos de sentido
produzidos pelo discurso da democracia racial no Brasil. Alvo de polêmicos debates e
críticas, esse discurso causa, ainda hoje, muitas controvérsias. Seus sentidos, sua origem, sua
disseminação e os impactos causados no país são alguns dos pontos que queremos esclarecer.
nas últimas décadas do século XIX, a idéia de um paraíso racial brasileiro
estava difundida por todo o mundo. Construiu-se a imagem de um Brasil no qual não havia
barreiras institucionais perante a ascensão social dos negros: uma sociedade que, apesar do
passado escravista, constituía-se sem “linhas de cor”. Desse modo, havia uma maior
tolerância ao sistema escravista desenvolvido no Brasil, uma vez que não se sedimentava
nenhum preconceito de cor no país e a ascensão dos negros na sociedade se daria por mérito
individual, e não por classificações raciais.
De início, a utopia de um paraíso racial não seria colocada em xeque nem
mesmo no interior dos movimentos negros da época. A Frente Negra Brasileira, formada nos
anos 30, apresenta a população negra como desprovida de instrução, além de fazer referência
a seus tradicionais costumes como obsoletos. Esses fatores e não outros –seriam
responsáveis pela situação em que viviam os negros. Até mesmo os preconceitos de cor
dos quais os negros se diziam alvo, eram tidos não como racismo, mas como resposta a
fraqueza moral dessa população (GUIMARÃES, 2003, p. 248).
O termo democracia racial surge, portanto, da tentativa de estabelecer um
caráter científico para a idéia de um paraíso racial. Embora esse discurso democrático racial
tenha sua origem delegada à Gilberto Freyre, a expressão foi usada pela primeira vez por
Arthur Ramos, em Guerra e Relações de Raça (1943), enquanto narra sua fala durante um
seminário que discutia a democracia no mundo pós-fascista, em 1941.
Poucos anos mais tarde, em 1944, Roger Bastide também lançaria o do
termo. Nesse ano, Bastide faz uma viagem ao Nordeste brasileiro e forma, a partir daí, uma
primeira percepção acerca das relações raciais no Brasil. A narrativa de sua visita a Freyre,
em Recife, oferece uma reflexão sobre a democracia brasileira, fundamentada na falta de
rigidez perante a distinção entre brancos e negros.
Segundo Guimarães (2002a, p. 144), a democracia elaborada por Bastide é
social e racial. O social, nesse caso, diria respeito a uma forma de organização em que a raça
teria evoluído para a classe, resultando numa construção cultural miscigenada. Ou seja: uma
forma de ordem social que não se restringe a direitos e liberdades civis, mas alcançaria uma
região mais sublime: a liberdade estética e cultural, de criação e convívio miscigenado”
(GUIMARÃES, 2002a, p. 144).
56
o termo racial, também empregado por Bastide, oferece-nos pistas para
entender o uso acadêmico do conceito de raça. Ora, uma vez feita alusão à formação de uma
classe a partir de uma raça, se torna contraditória a construção da expressão democracia
racial. Isso nos deixa perceber a resistência existente perante a abolição das raças no contexto
acadêmico.
No entanto, nem a evolução para classes e nem a recomendação de uso do
termo etnia impediram a disseminação do termo tal qual ele foi proferido pela primeira vez:
democracia racial. É assim que ele nos chega ainda hoje. Contudo, veremos que Gilberto
Freyre, apesar de tido como autor dessa expressão, lidava de forma diferente com essa
nomenclatura.
Em meio a uma conjuntura política que militava contra o Integralismo (vigente
no Brasil de 1932 a 1937), Freyre passa a usar a expressão democracia étnica. Com isso, o
autor enfatizava uma democracia étnica/social em detrimento de uma democracia política,
por entender que apenas com a primeira estaríamos imunes ao racismo. Além disso, o autor se
posicionava contra a adoção de medidas e políticas universais no Brasil, uma vez que nossa
sociedade é marcada pela diversidade. Em relação ao termo democracia racial, Gilberto
Freyre o usará apenas em 1962, ao criticar a influência de movimentos estrangeiros sobre os
negros brasileiros, em especial, a negritude.
Assim, diante das ligações que existem entre as discussões e as nomenclaturas
desses autores, é preciso dizer que não se sabe ao certo se Arthur Ramos e Roger Bastide
criaram a expressão democracia racial ou se ela é resultado de diálogos travados com Freyre.
Segundo Guimarães, “provavelmente, trata-se de uma tradução livre das idéias de Freyre
sobre a democracia brasileira” (GUIMARÃES, 2002a, p. 138).
No entanto, independente de sua origem, o termo está intimamente ligados aos
estudos sobre relações raciais no Brasil. Vejamos agora de que forma a expressão democracia
racial transitou por vários sentidos até ser tida como mito.
Entre os anos de 1952 e 1955, a UNESCO financiou uma pesquisa sobre as
relações raciais no Brasil e chegou à conclusão de que a discriminação racial no país estava
sob controle. Entretanto, dois intelectuais se posicionaram contra essa concepção: Roger
Bastide e Florestan Fernandes. Para tanto, justificaram que o discurso da democracia racial
não deveria ser considerado como algo palpável, ou seja, essa não era a ordem social que, de
fato, funcionava na sociedade brasileira; ao contrário, esse discurso deveria ser visto apenas
como um modelo ideal de conduta.
57
Desse modo, para os autores em questão, o funcionamento real da sociedade
a existência do preconceito racial e o modelo ideal de uma democracia racial não são
discursos excludentes. No entanto, não são discursos aproximados. Devem ser tratados,
respectivamente, como prática e norma sociais. Percebe-se, portanto, que aqui uma
oscilação dos efeitos de sentidos produzidos pelo discurso da democracia racial, fazendo
deslizar seu significado: de paraíso racial a modelo ideal de conduta.
A pesquisa empreendida pela UNESCO produziu, portanto, uma ruptura na
crença de uma sociedade isenta do racismo, criando duas concepções opostas a seu respeito.
Entretanto, o discurso da democracia racial permanece, ainda assim, consensual, mesmo
provocando uma heterogeneidade em seus sentidos. Esse discurso seria colocado em xeque,
de fato, apenas a partir da ruptura democrática, em 1964, por Florestan Fernandes. A partir
daí, desenvolve-se a idéia de que a democracia racial deveria ser vista não apenas como um
modelo ideal, utópico, mas como mito.
Por fim, é preciso esclarecer que durante o período em que o Brasil esteve sob
Ditadura Militar (1964 – 1984), o governo veta qualquer tipo de substrato político que
pudessem ter os ativistas negros. Desse modo, torna-se inviável um compromisso político
orientado pela democracia racial. Essa postura assumida pelo governo militar faz com que a
militância negra trate tanto as relações entre negros e brancos, quanto o modelo ideal dessas
relações, sob o rótulo de mito da democracia racial. Com isso, a finalidade era colocar-se
contra a ideologia oficial financiada pelos militares (GUIMARÃES, 2002a, p. 156).
Assim, percebemos que os efeitos de sentido produzidos por esse discurso ao
longo de sua origem e disseminação não são homogêneos. Anunciada como mito por
Florestan Fernandes e massacrada pelo movimento negro contemporâneo como sendo uma
ideologia racista, a democracia racial é, atualmente, fonte de pesquisas sociais e históricas.
A princípio, prevaleceu a compreensão de que se tratava realmente de um
mito fundador da nacionalidade. (...). Em meados dos anos 90,(...) alguns
antropólogos lembraram que o mito, antes de ser uma falsa consciência, é
um conjunto de valores que tem efeitos concretos nas práticas dos
indivíduos. O mito da democracia racial, portanto, não poderia ser
interpretado como ‘ilusão’, pois em grande medida fora e ainda é um ideário
importante para amainar e coibir preconceitos (GUIMARÃES, 2006, p.
269).
São muitos, portanto, os discursos que se cruzam na tecelagem da expressão:
paraíso racial, normal social, exemplo de conduta, utopia, mito fundador. O discurso da
58
democracia racial perpassa os anos e nos chega com todas as suas controvérsias. Sob a ótica
da mídia impressa, é possível vislumbrar seu funcionamento em dias atuais.
Ao lado, a capa da revista Veja,
de 16 de agosto de 2006. Com o seguinte texto:
Ela pode decidir a eleição: nordestina, 27 anos,
educação média, 450 reais por mês, Gilmara
Cerqueira retrata o eleitor que será o fiel da
balança em outubro. A reportagem é uma
referência a aceitação do então presidente Luiz
Inácio Lula da Silva candidato a reeleição
na região Nordeste. No entanto, muitos sentidos
são produzidos no modo como a Veja relata
essa associação.
De antemão, percebemos a
ausência de uma referência direta à raça negra
na descrição que a revista apresenta da eleitora.
A Veja optou por fazer essa referência de forma indireta, fazendo uso de outros atributos que
fazem ecoar essa referência: baixo nível de escolaridade, nordestina e pertencente à classe
média baixa, ou seja: negra. O sentido que se produz é de que um modelo de eleitor que
atenda aos critérios descritos na capa da revista não poderia ser outro que não um negro. Isto
porque o negro figura, na maioria das vezes, como representante dos grupos marginalizados
(social e economicamente), como é o caso dos nordestinos
23
.
Assim, observamos que, se, por um lado, a Veja estampa que Gilmara
Cerqueira pode decidir a eleição; por outro lado, a revista não constrói esse poder de decisão
de um modo positivo. Isto é, a eleitora não é capaz de decidir a eleição por ter uma boa
condição econômica e um bom nível de escolaridade, mas por ser nordestina, negra,
pertencente à classe média baixa e ter apenas uma educação média. O que a Veja tentou (e
conseguiu) dizer é: “olha só na mão de quem nós estamos”!
Os sentidos vão, ainda, além. Suporte de ideologias políticas que atendem a
interesses de direita, a Veja ainda mostra indícios de que a identificação entre o Nordeste e o
então candidato Lula, está subsidiada por uma questão de não-esclarecimento político,
materializado no momento em que a revista faz referência à escolaridade da eleitora. Ou seja,
23
Segundo o último senso do IBGE (2002), o Nordeste possui mais de 26 milhões de habitantes pretos e pardos.
59
a boa aceitação que Lula tem no Nordeste se apenas porque o nordestino não tem um bom
nível de esclarecimento político. Caso o tivesse, não votaria em Lula. A Veja produz, aqui,
sentidos discriminatórios e xenófobos que apenas ratificam a imagem de uma democracia
racial mítica.
Com efeito, também é possível perceber que a Veja se vale do discurso da
democracia racial a fim de moldar relações igualitárias entre brancos e negros. Nesses casos,
portanto, o discurso da democracia racial faz com que o preconceito seja constitutivo da
sociedade brasileira, dificultando, cada vez mais, o combate efetivo a tais discriminações.
Veremos, agora, de que modo, a partir da década de 80 fim da Ditadura
Militar o Brasil aposta em novas formas de combate ao racismo, através da implementação
das Políticas de Ações Afirmativas.
2.4 O DESENVOLVIMENTO DAS POLÍTICAS DE IGUALDADE RACIAL NO
BRASIL
A redemocratização do Brasil, na década de 80, trazia à tona reivindicações e
compromissos políticos que são discutidos ainda hoje. Uma das maiores lacunas ainda não
resolvidas diz respeito à questão racial; principalmente, ao desenvolvimento e à
implementação das chamadas Políticas de Ações Afirmativas. Neste tópico, interessa-nos
discutir a trajetória discursiva dessas políticas, partindo do momento da redemocratização até
sua representação atual.
O termo ação afirmativa é criado nos Estados Unidos, na década de 60, num
contexto de reivindicações políticas que buscavam o fim das leis segregacionista e a
ampliação da igualdade de direitos e oportunidades. Já a partir da década de 70, essa forma de
compromisso político seria também adotada por inúmeros países como a Índia, Austrália,
Canadá, África do Sul, Argentina, Cuba, além de diversos países da Europa Ocidental. Assim,
as ações afirmativas (ou ação positiva, como foi chamada na Europa, em 1976), passam a
ganhar novos contornos e produzir novos sentidos de acordo com seus vários lugares de
atuação. Segundo Moehlecke,
Nesses diferentes contextos, a ação afirmativa assumiu formas como: ações
voluntárias, de caráter obrigatório, ou uma estratégia mista; programas
governamentais ou privados; leis e orientações a partir de decisões jurídicas
ou agências de fomento e regulação (MOEHLECKE, 2002, p. 199).
60
Ainda segundo a autora, embora o termo ação afirmativa seja usado no Brasil
apenas a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, é ainda na década de 70 que se
tem um primeiro movimento rumo à aplicação dessas políticas. Trata-se da mobilização de
técnicos do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho para implementação
de uma lei que tivesse como objetivo a obrigatoriedade, por parte das empresas privadas, de
contratar uma percentagem mínima de empregados de cor (palavras da lei). No entanto, a lei
não chega sequer a ser criada. Apenas em 1983 seria formulado um projeto de lei, pelo então
Deputado Federal Abdias do Nascimento, que apoiaria uma política compensatória aos
negros. O projeto de 1332 proporia, entre outras ações, reserva de vagas para negros na
seleção de candidatos ao serviço público, promoção de uma imagem positiva dos afro-
brasileiros no sistema de ensino, assim como a inserção da história da África e do africano no
Brasil. Todavia, o projeto não passa pelo Congresso Nacional
24
.
De acordo com as discussões em Silvério (2004, p. 321), apenas a partir da
abertura política do Brasil e a conseqüente redemocratização do país, em 1984, entram em
cena os movimentos populares, tomando o discurso das leis e dos direitos como componente
de lutas sociais. Faziam-se, agora, exigências no que diz respeito à participação política. Entre
esses movimentos, voltava à tona o movimento negro, que vinha denunciar a persistência das
práticas discriminatórias racistas, colocando em pauta a questão social como ponto relevante.
É a partir desse momento que o governo lança novos olhos sobre a questão e estabelece
mudanças em seu tratamento.
Assim, é ainda na década de 80, momento de grande reivindicação e
contestação política (que se alia, ainda, ao centenário da abolição da escravatura), que são
criadas a Fundação Cultural Palmares, em 1988; a Instituição de Zumbi como herói
nacional, em 1995; e em 1984, o governo brasileiro reconhece a Serra da Barriga (localizada
no município de União dos Palmares, no estado de Alagoas), local do antigo Quilombo dos
Palmares, como patrimônio histórico do país.
Além disso, esse é também o período em que seria promulgada a Nova
Constituição, trazendo uma Lei que criminalizava o racismo: no Título II (Dos direitos e
garantias fundamentais), Capítulo I (Dos direitos e deveres individuais e coletivos), Artigo 5º
(Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
24
Abdias do Nascimento declara em 2001: “Quando eu era deputado federal e falava em políticas públicas para
atenuar a desigualdade racial no Brasil, faltaram me enjaular. As discussões que eu tinha com os outros
deputados eram ferozes. Parecia que eles se sentiam agredidos quando eu falava dos direitos dos negros”.
Entrevista ao Portal Afro:
www.portalafro.com.br/entrevistas/abdias/internet/abdias.htm (acesso em: 28.06.07).
61
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:), § XLII - a
prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,
nos termos da Lei. A regulamentação do parágrafo vem com a Lei 7.716, de 1989, que
seria modificada pela Lei 8882, de 1984, e, logo em seguida, pela Lei 9459, de 1997:
Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceitos de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Segundo Guimarães, é a partir desse momento que “o movimento negro
passará a tomar a forma de uma constelação de organizações não-governamentais, financeira,
ideológica e politicamente autônoma” (GUIMARÃES, 2005, p. 05). Essas ONGs adquiriram
uma postura política tanto de integração dos negros no que diz respeito à vida nacional, como
também de construção de uma consciência racial, possibilitando a produção de certo
pertencimento étnico. Eram, portanto, organizações que ganharam uma identidade transversal:
com atuação no âmbito social, político e cultural.
A partir do governo Collor, em 1990, as ONGs negras ganham mais força.
Infelizmente, não por apoio governamental, mas por razões diretamente inversas: adotando
um discurso liberal e visando a reorganização de seus aparelhos, o governo enxuga os órgãos
de planejamento estatal, atribuindo às ONGs, na forma de parcerias, a maioria das suas
funções de assistência social. Segundo Guimarães,
O estado brasileiro deixa de certo modo de se preocupar com a gestão da
política de identidade nacional, retirando-a da pauta dos Ministérios da
Educação e da Cultura, adotando um discurso de multiculturalismo e
passando aos agentes não-governamentais a responsabilidade e a liberdade
de gerenciá-la (GUIMARÃES, 2005, p. 05).
Contudo, o Movimento Negro começa a perceber que a luta pela conquista de
direitos não se sustentava apenas com o combate aos crimes de racismo, era necessário,
portanto, acatar a proposta de ações afirmativas para o Brasil. Assim, devido a uma junção de
fatores, é Fernando Henrique Cardoso, em 1996, que abre caminhos para a implantação das
políticas de ações afirmativas no país e faz com que o governo absorva as reivindicações do
movimento negro.
Segundo Guimarães (2003, p. 251), o espaço aberto pelo novo presidente se
daria por diversas razões, entre elas, e aquela que nos parece mais forte, reside em certa
desilusão que já se tinha com a imagem de uma democracia racial no Brasil. Na verdade, esse
debate pairava pelo país desde os anos 80 (época do centenário da abolição e da
62
implantação da Nova Constituição), quando a lei de criminalização do racismo possibilitou
uma grande quantidade de denúncias e perseguições contra os atos de descriminação,
provocando larga repercussão na dia acerca do mito: a democracia racial, por anos
cultivada, caía em descrença.
Essa desilusão se mostrava nítida em diversos fóruns internacionais nos
quais as ONGs negras se faziam presentes, principalmente sob a forma de denúncia das
desigualdades raciais amparadas pelas estatísticas oficiais. E, apesar de todo arsenal de fatores
que se denunciava, o Brasil não tinha nenhum histórico de combate às disparidades
apresentadas. Assim, o debate acerca das ações afirmativas aliado ao governo se apresentava
como uma resposta (e uma saída) política para o Brasil.
Em julho de 1996, seria promovido o Seminário Internacional
Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos
contemporâneos, promovido pelo Ministério da Justiça. Na ocasião, o então presidente, em
suas palavras de abertura, reconhece que há, de fato, preconceito racial no Brasil, o que até
então não havia ocorrido na história do país. Desse modo, o presidente acaba por protagonizar
um dos grandes momentos de sua atuação política sob essa questão:
O Brasil é uma nação multirracial e disso se orgulha porque considera
que essa diversidade cultural e étnica é fundamental para o mundo
contemporâneo. (...) Houve época em que o Brasil se contentava em dizer
que, havendo essa diversidade, ele não abrigava preconceitos. Não é
verdade. (...) O Brasil passou a descobrir que não tínhamos assim tanta
propensão à tolerância como gostaríamos de ter
25
.
A afirmação do presidente confessa, pois, o que durante muito tempo foi
sucumbido, além de reconhecer a necessidade de medidas que combatessem a intolerância
racial. Com isso, o governo esperava obter apoio e alianças na nova tarefa a que se propunha.
A primeira grande aposta do governo foi criar, através de Decreto Presidencial
de 20 de novembro de 1995, o Grupo de Trabalho Interministerial para valorização da
população negra (GTI). O grupo foi composto por integrantes de oito Ministérios, duas
secretarias e ainda oito representantes do Movimento Negro, tendo como meta a introdução
da questão negra no âmbito nacional. Segundo Bernardino,
25
Atos e palavras do presidente Fernando Henrique Cardoso, 1995 a 1998. Seminário Internacional
Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos contemporâneos. Palácio do
Planalto, 02 de julho de 1996. Disponível em: www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/RACIAL1B.HTM
(acesso em 28.06.07).
63
parecia que pela primeira vez na história o negro deixaria de ser assunto
apenas do Ministério da Cultura, e passaria a integrar o rol de preocupações
de outros Ministérios, principalmente do Ministério do Trabalho
(BERNARDINO, 2002, p. 258).
No ano seguinte, em Decreto Presidencial de 20 de março de 1996, também é
criado o Grupo e Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação
(GTDEO), que deveria oferecer ações estratégicas de combate à discriminação no emprego e
na ocupação. No entanto, o GTDEO não chega a promover atividades regulares, talvez pela
sua composição tripartite, que acabou por deixar em aberto decisões fundamentais para o
grupo.
Também nesse momento, surgem dois projetos de lei que reivindicam a
aplicação de ações afirmativas para o negro. O primeiro deles é o projeto 14, de 1995, da
Senadora Benedita da Silva, que propunha a instituição de cota mínima para os setores
etnoraciais socialmente discriminados em instituições de ensino superior
26
. E o segundo é o
projeto de 75, de 1997, do Senador Abdias do Nascimento, que por sua vez, reivindicava
medidas de ação compensatória para a implementação de princípio da isonomia social do
negro
27
. Desse modo, a apresentação das duas propostas seria fundamental no acirramento
dos debates em torno da inclusão racial, principalmente, no que diz respeito ao que seriam as
cotas.
Em continuidade às medidas tomadas, o governo divulga, em 1996, o Plano
Nacional dos Direitos Humanos (PNDH), por meio do Decreto Presidencial 1904, onde
estabeleceria planos de curto, médio e longo prazo para a população negra. Além de apoio ao
GTI e ao GTDEO, o PNDH também propunha:
Estimular a presença dos grupos étnicos que compõem a nossa população
em propagandas institucionais contratadas pelos órgãos da administração
direta e indireta e por empresas estatais do Governo Federal; Apoiar a
definição de ações de valorização para a população negra e com políticas
públicas; Apoiar as ações da iniciativa privada que realizem discriminação
positiva; Desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos
cursos profissionalizantes, à universidade e ás áreas de tecnologia de ponta;
Estimular que os livros didáticos enfatizem a história e as lutas do povo
negro na construção do nosso país, eliminando esteriótipos e
discriminações
28
.
26
Detalhes do projeto em: www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=24291 (acesso em
28.06.07).
27
Detalhes do projeto em: www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=26657 (acesso em
28.06.07).
28
Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH), 1996. Grifos nossos. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/dados/pp/pndh/textointegral.html (acesso em 28.06.07).
64
Assim, esse é o momento em que o Brasil assume políticas de identidade em
detrimento das políticas de integração cultivadas anteriormente; isto é, o combate ao racismo
passa a ser operado pela ótica das ações afirmativas, ratificando positivamente as diferenças,
através do discurso do orgulho negro. As ações afirmativas apresentam-se, portanto, como
uma nova forma de combate ao preconceito. Assim como apresenta Silvério, as políticas de
ação afirmativas
são um conjunto de ações e orientações do governo para proteger as
minorias e grupos que tenham sido discriminados no passado. Em termos
práticos, as ações devem agir positiva, afirmativa
29
e agressivamente para
remover todas as barreiras mesmo que informais ou sutis (SILVÉRIO, 2004,
p. 324).
Uma boa forma de exemplificar e
discutir sobre a atuação dessas ações afirmativas é
o modo como a mídia impressa veicula seus
discursos. Ao lado, temos uma campanha
30
feita
numa parceria da Fundação Pró-sangue
(Hemocentro de São Paulo) com a Color-aid
(fabricante de curativos exclusivos para pele
negra).
O enunciado posto Nossa força
está no sangue. Doe. – resgata uma discussão sobre
a diversidade humana ao mesmo tempo em que a
coloca como diferencial positivo. Assim, a questão
do sangue passa a ser usada por alguns enunciados
como categoria de luta e de auto-afirmação, de
modo a fazer com que a diferença apontada pela genética exerça um papel construtivo no
combate ao racismo, ratificando, assim, a proposta das ações afirmativas: reivindicar a
diferença por uma via positiva.
29
Grifo nosso.
30
Veiculada pela revista Raça Brasil, ano 9, nº 88, pág 47.
65
Desse modo, são muitas as mudanças ocorridas durante o governo FHC. Um
tanto de oportunismo político
31
, mais um tanto de necessidade do apoio político internacional,
desenham bem o que foi o governo de Cardoso.
Na passagem para o governo Lula, ao mesmo tempo em que se mantém o
projeto de incorporação de ações afirmativas, o governo busca novas formas de implementá-
las. Para Guimarães,
o estado procura absorver em grande parte as reivindicações dos
movimentos sociais, através da incorporação de seus quadros aos aparelhos
de estado, tornando mais fluida a comunicação entre estado e ONGs
(GUIMARÃES, 2005, p. 05).
Para tanto, uma das primeiras iniciativas do governo Lula nesse aspecto foi a
criação, através da Lei nº 10678, de 23 de maio de 2003, da Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). A Secretaria é o primeiro órgão federal criado
exclusivamente para prestar assessoria ao Presidente da República no que diz respeito à
formulação, coordenação e articulação de políticas e diretrizes para a promoção da
igualdade racial
32
. Assim, a secretaria funcionaria tanto como forma de apontar caminhos ao
governo, como seria também um elo entre governo e Movimento Negro (agora representado
pelas diversas ONGs).
Além disso, a criação de uma secretaria ligada ao governo federal desencadeou
ações em estados e cidades, no sentido de criar centros negros ligados ao estado ou à
prefeitura. Muitos desses órgãos foram assumidos por representantes de ONGs locais, o que
as aproxima ainda mais da máquina estatal, tornando a comunicação mais sólida e as
reivindicações mais visíveis.
Como exemplo da atuação política dessas organizações durante o governo
Lula, trazemos uma campanha nacional lançada em 2004 por 40 ONGs. O objetivo era propor
uma auto-avaliação com fins de identificar e a partir daí, eliminar o racismo. O mote da
campanha era: Onde você guarda seu racismo?
33
A auto-avaliação foi feita e o racismo mais uma vez foi comprovado. Dessa
vez, em números que falam por si. O mote de campanha traz uma pergunta estratégica, que
não oferece alternativas. O questionamento vem ao encontro de várias discussões que
31
Visto que o momento era totalmente favorável à incorporação dessas políticas. Não pelas lutas travadas
pelo Movimento Negro nacionalmente, como também pelas denúncias e críticas que vinham do âmbito
internacional.
32
Texto oficial, disponível em: www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/2003/L10.678.htm (acesso em 28.06.07).
33
www.dialogoscontraoracismo.org.br (acesso em 28.06.07).
66
acontecem nesse âmbito. Entre elas, a campanha desmascara, mais uma vez, o rótulo de
democracia racial que o país carregou durante anos, além de proporcionar uma auto-crítica e
um reconhecimento pessoal de um racismo que é intrínseco. Desse modo, a campanha revela
o que pode estar por trás da aparência, e que nem por isso deixa de estar:
o mito da democracia racial encobre o preconceito e torna muito mais difícil
o combate efetivo das injustiças para com indivíduos e grupos etno-raciais
diversos do branco europeu. Assim, a discriminação opera no nível dos
indivíduos de maneira inconsciente e nem sempre identificável como tal
(FERREIRA, 2000, p. 40).
Daí a grande diferença entre dois questionamentos: Quem de nós é racista? E
quem de nós admite seu racismo? Ao final da campanha, os dados mostram que 87% dos
entrevistados acreditam que preconceito racial no país. E, contraditoriamente, apenas 4%
admitem que sejam racistas. Disso depreendemos que o racismo no Brasil lugar ao
discurso do politicamente correto. No entanto, como se sabe, essas situações são coexistentes.
A campanha ratificaria, mais uma vez, a necessidade de apoio governamental
na implementação de políticas afirmativas. Traçaremos, agora, as principais medidas tomadas
pelo governo Lula a partir da SEPPIR.
Uma das primeiras atividades da Secretaria Especial foi rever as disposições
contidas no Decreto 3.912, de 2001
34
, acerca da regulamentação das terras de
remanescentes de quilombos. Tal decreto seria revogado por Lula através do Decreto nº 4-
887, de 20 de novembro de 2003
35
, que teria por função regulamentar o procedimento de
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades de quilombos.
Ainda em 2003, o governo Lula criaria a Lei 10.639, alterando a lei que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Com isso, a rede de ensino ficaria
obrigada a incluir a temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo nacional, como
modo de reconstruir uma história dos negros que não seja aquela contada apenas do ponto de
vista do colonizador; além de disseminar um pouco da cultura afro-brasileira, ainda alvo de
preconceito. No entanto, ainda é cedo para uma avaliação eficaz dos resultados que essa
mudança pode trazer, uma vez que a proposta ainda é muito recente e as medidas tomadas
ainda estão em fase de adequação.
34
Decreto de FHC. Disponível em: www.planalto.gov.br/CCivil_03/decreto/2001/D3912.htm (acesso em
28.06.07).
35
Texto completo disponível em: www.planalto.gov.br/CCivil_03/decreto/2003/D4887.htm#art25 (acesso em
28.06.07).
67
Assim, feita a pontuação do desenvolvimento das políticas afirmativas desde a
redemocratização até hoje, é preciso agora retomar algumas críticas recebidas pela nova
proposta desde o governo de FHC, quando se inicia a discussão no Brasil. Com isso, traremos
algumas das mais eminentes discussões do que diz respeito ao sistema de cotas, considerada
como uma das mais ousadas medidas do governo Lula.
Apesar, portanto, de todo esforço do Movimento Negro para incorporação das
ações afirmativas pelo estado brasileiro, a reação da sociedade civil não foi homogênea. As
políticas de cunho racial despertaram posições contrárias tanto de intelectuais, como do senso
comum, amparado largamente pelos meios de comunicação de massa. Os argumentos
desfavoráveis residiam em duas idéias centrais: o transplante de uma política norte-americana
para a realidade brasileira e a falta de definição das fronteiras raciais no Brasil.
A discrepância entre a realidade brasileira e a norte-americana havia sido
trabalhada por FHC em seu discurso de abertura do Seminário Multiculturalismo e Racismo,
em 1996:
Aqui temos discriminação, aqui temos preconceito, mas as aves que aqui
gorjeiam, não gorjeiam como lá. Ou seja, não é o mesmo tipo de
discriminação, não é o mesmo tipo de preconceito de outras formações
culturais. Por isso, nas soluções para esses problemas não devemos
simplesmente imitar. Temos que usar a criatividade
36
.
No entanto, aliado às diferenças culturais, também havia um distanciamento no
que diz respeito às fronteiras raciais. Os dois argumentos, na verdade, se entrelaçam. Nos
Estados Unidos, é clara a distinção entre brancos e negros, o que contribui significativamente
na identificação daqueles que podem ser assistidos por políticas afirmativas. No entanto, no
Brasil, como legado do discurso de uma democracia racial, a classificação racial incorporou o
mulato, descartando totalmente um princípio monorracial, o que gera certo conflito entre a
autoclassificação e a alterclassificão
37
. Para Guimarães,
o argumento é melhor como efeito discursivo, desarmando os adversários
pelo apelo ao senso comum e às representações consensuais de si mesmo,
que como apelo substantivo ou racional (GUIMARÃES, 2003, p. 263).
Para tanto, o autor usa uma pesquisa feita entre alunos da USP, na qual se
interroga sobre a cor dos alunos de acordo com as categorias oferecidas pelo IBGE
38
. Na
36
Disponível em: www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/RACIAL1B.HTM (acesso em 28.06.07).
37
Termos empregados por Bernardino (2002).
38
Branco, preto, amarelo, pardo e indígena.
68
pesquisa, fica claro que há, entre os universitários, o culto a identidades de cor, de modo que
as fronteiras raciais não-estáveis presentes no Brasil não impedem, por exemplo, a
empregabilidade de políticas como o sistema de cotas
39
, empregado pela primeira vez em
2003, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pela Universidade Estadual do Norte
Fluminense.
Ademais, críticas que nascem da ausência de responsáveis pela escravidão.
Quem de nós, brancos, sente culpa pelos mais de 300 anos de escravidão? Segundo
Guimarães (2002a, p. 70), existem posições contrárias que atestam, por exemplo, que as
políticas afirmativas são desfavoráveis aos valores liberais, democráticos e igualitários; além
de serem, também, contrárias à inteligência nacional, uma vez que suas medidas ratificariam o
racismo e entrariam, de certo modo, em conflito com nossa tradição cultural.
No entanto, longe de serem desfavoráveis aos valores liberais e democráticos,
as políticas afirmativas são a radicalização desses valores, uma vez que foram exatamente
esses sentimentos políticos que levaram o país a desenhar políticas de cunho racial nas
décadas de 40 e 60
40
. Além disso, o argumento de que as políticas poderiam ferir uma
identidade nacional não-racialista também não é viável, uma vez que um sentimento não-
racialista (isto é, a não distinção de raças), o traduz um sentimento não-racista. Sendo
assim, o discurso de uma democracia racial acabaria por encobrir e alimentar as
desigualdades e preconceitos no interior do convívio social, em nome de um mito nunca
alcançado pelo país.
Essa resistência seria revista a partir da positiva repercussão que as medias
adotadas teriam em fóruns internacionais, principalmente na Conferência Mundial Contra a
Discriminação Racial, realizada na cidade de Durban, em 2001. Quando, finalmente, a idéia
de uma democracia racial seria totalmente desvalidada e o país reconheceria suas
desigualdades raciais, ao mesmo tempo em que firmava compromissos para combatê-la.
39
Foram entrevistados 14.794 alunos de graduação. Numa amostra de 1.509 alunos, o percentual de não-
resposta, isto é, aqueles que não se identificaram com uma “cor”, foi de 1,7%.
40
Menção a chamada Lei de 2/3, que acabou por sedimentar a incorporação de negros e mestiços no mercado de
trabalho nas regiões Sul e Sudeste; e o dispositivo de incentivo fiscal conhecido com 34/18.
69
Por fim, é preciso comentar a
reportagem veiculada pela revista Veja, em 6 de
junho de 2007. A reportagem - de capa traz o
conflito vivido por dois estudantes que tentaram
ingressar pelo sistema de cotas na Universidade
de Brasília. Os estudantes são gêmeos idênticos,
univitelinos; e, no entanto, não foram
considerados como pertencentes à mesma raça
pela banca responsável. Isto é, um deles foi
considerado branco, e o outro foi considerado
negro. A reportagem gerou grande polêmica na
mídia e o sistema de cotas foi, mais uma vez,
apontado com uma medida segregacionista,
comparada às atitudes Nazistas e ao Apartheid
Sul-Africano. Essa comparação trouxe à tona, mais uma vez, os vários discursos que
perpassam o conceito de raça, e entram em jogo todas as relações de poder que atravessam
essa questão. Afinal, raça não existe? (assim como mostra a capa da revista?). Em suma, a
matéria é uma ameaça aos critérios estabelecidos pelo sistema de cotas implantados na UNB:
No momento da inscrição, o candidato deverá assinar declaração específica
relativa aos requisitos exigidos em edital e tirar uma foto no local de
inscrição. O pedido de inscrição e a fotografia serão analisadas pela banca,
que decidirá pela homologação ou não da inscrição do candidato no Sistema
de Cotas para Negros (Manual do cotista, UNB
41
).
Desde 2004, a Universidade de Brasília reserva 20% de suas vagas para o
Sistema de Cotas. Desde então, a seleção dos candidatos é feita através de fotografias
avaliadas por uma banca examinadora. Na Veja, esse critério é apontado como perigoso e
passível de desastre. No entanto, a matéria vai além, e acaba por fazer afirmações tão frágeis
quanto os argumentos que utiliza para sustentá-las.
A reportagem aponta como absurda a assertiva de que existe racismo na
sociedade brasileira, lembrando que as manifestações racistas são punidas por lei. Além disso,
a revista afirma que após a abolição da escravatura, em 1888, nunca houve barreiras
41
Disponível em: http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/downloads/manualdocotista.pdf (acesso em:
24.04.2008).
70
institucionais aos negros no Brasil, e a associação feita entre negros e pobres tem raízes,
apenas e tão somente, históricas.
No entanto, é de fácil percepção que as afirmações trazidas pela Veja fazem
parte de um discurso sustentado pelo idealismo da democracia racial. E muitas de suas
declarações estão na contramão das atuais discussões sobre a questão negra no país. Até
mesmo do que se refere à Lei de combate ao racismo: é preciso saber até que ponto ela
mantém sob controle os atos de discriminação racial. Caso contrário, voltamos ao senso-
comum de que as Leis representam um poder maior e atingem, por isso, 100% dos casos.
Sabemos que o poder não funciona dessa forma. Além disso, o fato de haver a necessidade de
uma Lei que criminalize o racismo já dispensa qualquer dúvida sobre sua existência.
As declarações da Veja parecem inscrever-se, ainda, nos idos anos em que a
democracia racial ainda reinava por aqui. Mas é preciso (e completamente possível) admitir
que há, de fato, preconceito racial no Brasil, e que a baixa renda da população negra não tem
apenas raízes históricas. sempre a necessidade de transpor o preconceito de cor ao
preconceito de classe, na tentativa de forjar uma relação igualitária entre brancos e negros,
usando o termo classe como reposta àquilo que é, decididamente, racista. O combate ao
racismo requer, portanto, instrumentos contundentes, que se sobreponham às tentativas de
minimizar a importância das políticas afirmativas no Brasil.
Finalizamos, assim, o segundo capítulo, que pretendeu apresentar as condições
de produção dos discursos que tomamos como objeto de pesquisa. O capítulo seguinte se
apresenta como capítulo de análise e traz as discussões necessárias para tanto: a primeira
delas é a apresentação de nosso objeto empírico, a revista Raça Brasil; em seguida, temos a
discussão sobre o cabelo crespo, a fim de apresentar e justificar o enfoque que daremos a esse
elemento em nossas análises, e, por fim, traremos recortes da Raça Brasil para que possamos
aplicar os conceitos já discutidos e proceder, assim, com a metodologia de análise.
III
A
mídia como tabuleiro:
o jogo do poder nas relações raciais
A Análise do Discurso (...) o desvenda a universalidade de um sentido; ela mostra à
luz do dia (...) a não generosidade contínua do sentido, a não monarquia do
significante
42
. O papel do analista do discurso, portanto, o é listar as possibilidades de
sentidos de um objeto. A Análise do Discurso não busca apreender um sentido,
indicando-o como único e não passível de deslize. A Análise do Discurso laa luz sobre
a produção desses sentidos, sobre a forma como estes sentidos foram construídos. É isso
que pretendemos fazer nesse capítulo: indagar nosso objeto a revista Raça Brasil
sobre o modo como constrói sentidos, isto é, o modo como este objeto significa.
Sabendo, de antemão, que a linguagem significa apenas porque se inscreve na história, duas
discussões antecedem a análise propriamente dita de nosso objeto: a apresentação do mesmo,
buscando entender a proposta com a qual a Raça chega ao mercado, em 1996; e, em seguida,
uma discussão sobre os sentidos que o elemento cabelo mobilizou em determinados
momentos da história do povo africano e afro-brasileiro.
42
FOUCAULT, 2004, p. 70.
72
3.1 DAS POSIÇÕES E REPRESENTAÇÕES DA RAÇA BRASIL
A revista é uma arte da palavra ilustrada.
[Luzmara Curcino Ferreira, 2006, p.150]
No ano de 1996, o então presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso,
abria caminhos em condições vistas aqui para a criação e implementação das Políticas
de Ações Afirmativas no país. Esse passo daria vazão a inúmeras iniciativas que não estavam,
necessariamente, ligadas ao governo, mas que também nasciam com a proposta de mudar o
tratamento destinado aos negros até então. É nesse contexto que surge a revista Raça Brasil,
em setembro daquele mesmo ano. Nesse tópico, discutiremos a proposta apresentada por essa
mídia, procurando analisar seu papel social, político e econômico. Faremos uso,
principalmente, de duas edições da Raça Brasil: são as edições que marcam o nono (nº 90) e o
décimo (nº 102) aniversário de publicação da revista
43
.
No dia 2 de setembro de 1996, chegava às bancas o primeiro número da Raça
Brasil. Apresentando-se como a revista dos negros brasileiros, a Raça trazia, textualmente,
em seu primeiro editorial, a seguinte proposta:
“Todos os meses, Raça Brasil vai falar de nossos problemas e apresentar
soluções. Vai ajudá-lo a se cuidar melhor, a viver com mais alegria e
segurança. Vai também discutir nossa identidade, resgatar nossa herança
cultural e mostrar que a negritude é alegre, rica, linda” (Raça Brasil, ano 1,
nº 1).
A Raça surgia, portanto, com a proposta de aumentar a auto-estima e a
visibilidade do negro no mercado da mídia e da moda, abrindo uma nova via de valorização
racial para a classe. Sob a direção de Aroldo Macedo, a primeira edição da Raça alcançava o
índice recorde de 200 mil exemplares vendidos apenas na primeira tiragem.
De acordo com diversos pesquisadores, a Raça Brasil é, hoje, a mais
importante publicação comercial etnicamente segmentada. Dentre todas as outras publicações
desse segmento
44
, a Raça é a mais conhecida e aquela que possui maior tiragem, a partir de
uma linha editorial que busca a ascensão social do negro, além de trazer uma forte valorização
desse grupo em termos de beleza e moda.
43
A escolha das edições se deu pelo seguinte motivo: nessas edições de aniversário, a Raça expõe diretamente
em matérias e campanhas o papel que acredita exercer na sociedade. É esse papel que queremos analisar.
44
De acordo com Dias Filho (2000), há, além da Raça, outras publicações que partem desse segmento racial:
Agito Geral, Black People, A Cor do Ébano, Raízes, Negro Cem por Cento, Etnic, Rap.
73
Desde o seu lançamento, a Raça está, a todo tempo, criando formas de se
colocar como um instrumento das lutas anti-racistas no Brasil, apresentando-se como causa e
conseqüência das mesmas. O momento de seu lançamento que acontece com o início das
discussões sobre as relações raciais no país e o visível aumento da participação do negro na
sociedade e no mercado após sua aparição são fatores que corroboram essa visão. Um dos
fatores que podemos usar como termômetro dessa participação é o aumento da criação de
produtos destinados exclusivamente ao público negro. A edição que comemora o nono ano de
edição da Raça explora bem essa mudança de comportamento por parte do mercado.
Já em seu editorial, a edição comemorativa do nono ano de publicação da Raça
Brasil
45
, agora sob a direção de Liliane Santos, aponta para uma espécie de revolução
silenciosa que estaria acontecendo na sociedade brasileira e da qual a Raça seria espelho e
reflexo:
Raça Brasil pode ter nascido de um sonho, mas cresceu alimentada por uma
realidade - o aumento da participação do negro na sociedade. Numa espécie
de revolução silenciosa, temos ocupado um espaço cada vez maior no
mercado de trabalho, no mundo dos negócios, nas escolas e universidades -
tudo isso puxado por uma auto-estima em alta. Estamos, como nunca,
tingindo o Brasil. Ao completar este mês nove anos de existência, Raça é ao
mesmo tempo espelho e reflexo dessa mudança (Raça Brasil, ano 9, nº 90, p.
8).
Assim, a Raça se coloca tanto como conseqüência, quanto como instrumento
motivador dessa maior participação do negro na sociedade. E seria a partir de sua atuação que
o negro teria alcançado maior visibilidade nas mais diversas esferas da vida pública. A fim de
ratificar seu papel perante essas mudanças, a Raça traz, ainda, nessa mesma edição, duas
páginas que trazem a imagem ao lado,
expressando sua visão em relação ao
maior espaço obtido pelos negros a
partir de 1996. A imagem representa
uma espécie de linha do tempo que se
inicia em 1500, ano de chegado dos
portugueses ao Brasil, passa pelo ano
de 1996 e segue adiante. É
fundamental, no entanto, perceber que,
de 1500 até 1996, a página é branca e existe apenas uma linha negra que percorre o tempo. A
45
Revista Raça Brasil, ano 9, nº 90.
74
partir de 1996, ao contrário, o cenário muda de cor, ele agora é todo negro e apenas a linha
que percorre o tempo é branca. Nesse exato momento de mudança, expresso pelo ano de
1996, não existe nenhuma referência a qualquer mudança na postura política do Brasil no que
diz respeito ao tratamento das relações raciais. Ao contrário, no ano de 1996, está expresso
apenas o nome da revista: Revista Raça Brasil. 9 anos. Além disso, é possível perceber que o
cenário branco é totalmente branco, liso, sem qualquer tipo de mancha. No cenário negro,
uma textura que indica uma espécie de pintura, de pinceladas. Assim como diz o editorial, a
Raça estaria, como nunca, tingindo o Brasil. Através dessa imagem, a Raça apresenta,
portanto, um Brasil onde não há uma cor única, lisa e uniforme. O que há é um cenário rajado,
tingido, mesclado e, principalmente, onde a predominância não é do branco, mas do negro. E,
além disso, essa mudança teria como ponto crucial o lançamento, em 1996, da Raça Brasil.
Essa imagem sintetiza uma identidade que a revista quer criar de si: instrumento ativo e
motivador de todas as mudanças ocorridas no cenário racial brasileiro.
Há, também nessa edição
46
, uma reportagem que ratifica, ainda, essa
identidade. A matéria se chama Revolução na prateleira: nove anos depois do lançamento de
Raça, a indústria de cosméticos lota as gôndolas de produtos específicos para o negro e abre
as comportas de um mercado reprimido. a partir do título, vê-se a indicação do surgimento
da Raça como ponto propulsor de toda uma transformação no comportamento do mercado.
No interior da matéria, há, ainda, outros enunciados que remetem à mesma indicação, como:
O sucesso instantâneo da Raça acordou o setor [o mercado]; ou ainda: Após Raça mostrar
em suas páginas a beleza negra brasileira com matizes até então desconhecidas, as
mudanças nesse setor [o mercado] começaram a surgir.
Na dinâmica do consumismo, a Raça teria, portanto, apontado às indústrias de
cosméticos o vasto potencial do público negro nesse âmbito. E as indústrias, por sua vez,
teriam apostado na conquista desse mercado até então inexplorado. Segundo a Raça, inicia-se,
daí, uma escala evolutiva na fabricação de produtos voltados ao público negro:
46
Revista Raça Brasil, ano 9, nº 90.
75
1989 - Início da comercialização de produtos étnicos pela Muene.
1990 - Alisante Wellin.
1995 - Lançamento da linha Essenza; Base líquida Naomi (O Boticário); Linha completa de
permanente (Niely).
1966 - Linha Sphere para cabelos crespos, cacheados e muito crespos (Nazca).
1999 - Chega ao mercado Vasenol, o primeiro hidratante voltado para às necessidades de
cuidado e combate ao ressecamento freqüente comuns na pele morena e negra (Unilever).
2000 - A Avon lança linha Advance Techniques, que se preocupa com os cabelos crespos. No
futuro, lança a linha Hidrabalance; Linha Seda Keraforce (Unilever).
2001 - Sistema de Relaxamento e Alisamento Affirm e a linha de Tratamento e Manutenção
KeraCare (Avlon); Linha Wellapon Cacheados.
2002 - Wellin Color Lux Skincare o primeiro sabonete para pele morena e negra (Unilever).
2003 - Lançamento do adesivo Color-Aid; Lançamento da linha Hidraforte, para cabelos
crespos e muito crespos (Niasi); Desodorantes antitranspirantes Rexona Ebony (Unilever).
2004 - Linha Illumine, o primeiro protetor solar do mercado para a pele morena e negra
(Johnson & Johnson); Linhas Hidraplant e Controlplant para cabelos crespos e cacheados
(Natura); Lançamento do desodorante Pelle a Pelle NYX; A tintura Garnier teve como
garotapropaganda Camila Pitanga; Friboi (sabonetes Albany) lançamento dos sabonetes
Albany pele morena e negra masculino e feminino.
2005 - Linha O Boticário com ampla opção para rosto, boca, olhos, e tonalidades específicas
para pele morena e negra; Ekos Murumuru, para cabelos crespos e cacheados (Natura);
Bozzano lança linha de barbear Pele Negra Morena; A Johnson & Johnson lança esse ano
ainda um pós-sol com poder de hidratação três vezes maior.
Revista Raça Brasil, ano 9, nº 90
76
Como se pode verificar no quadro anterior, na segunda metade da década de
90, houve uma explosão de produtos étnicos no mercado. E essa produção está, ainda, em
ebulição: do ano de 2000 até hoje, essa produção não parou de crescer. Segundo a Raça
47
,
dados da Abihpec (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e
Beleza) mostram que esse segmento movimentou R$ 950 milhões em 2004 e tem uma
projeção de crescimento de 18,16% ao ano.
A criação de produtos étnicos está cada vez maior e esse mercado mostra-se
cada vez mais competitivo, incentivando a expansão e a melhoria na qualidade dos diversos
itens colocados à venda. Um fator que chama a atenção nessa produção é o uso de modelos
negras(os) como garotas-propaganda, o que estimula o consumo e eleva a auto-estima da
população negra. Isso comprova, mais uma vez, o poder aquisitivo dos negros no Brasil e o
potencial de um mercado que estava, até então, reprimido.
No entanto, é preciso observar que, no momento em que a Raça veicula e,
principalmente, se coloca como protagonista nessa exaltação de um mercado étnico, ela
também se coloca como suporte de um discurso midiático que pasteuriza a construção de uma
cultura afro-brasileira contemporânea, deixando-se seduzir por um padrão estético que atende
a solicitações mercadológicas, com fins de tornar vendável essa cultura.
Acreditamos, portanto, num primeiro momento, que a Raça acontece num
cenário de movimentos de resistência que reivindicam um novo espaço capaz de representar a
cultura afro-brasileira. No entanto (e para tanto), ela perpassa por um discurso de resistência,
apropria-se de alguns dos seus elementos e pasteuriza-os ao sabor do mercado. Seria,
portanto, uma revista que se inscreve de forma inevitável dentro da dinâmica do consumismo
e que acabou por descobrir o potencial do público negro nesse âmbito, “industrializando” uma
cultura com fins de conquistar um mercado até então inexplorado.
Vejamos, agora, um outro ponto dessa questão. A identidade criada pela Raça
de si mesma, isto é, um marco das lutas anti-racistas no Brasil, aparece também na edição
comemorativa de seu décimo aniversário de publicação
48
, porém sob outros enfoques. A capa
dessa edição faz uma homenagem ao primeiro mero da revista, com modelos apresentados
na mesma disposição e a seguinte chamada: 10 anos com você. O que mudou em nossa vida
na última década. Percebe-se, a partir da chamada, que a Raça enfatiza apenas as mudanças
ocorridas após seu lançamento. É recorrente a idéia de que muitas das conquistas da
população negra desencadearam-se a partir do lançamento da Raça.
47
Revista Raça Brasil, ano 9, nº 90.
48
Revista Raça Brasil, ano 10, nº 102.
77
Algumas dessas conquistas estão
relatadas na matéria que comemora os 10 anos da
revista: o aumento da participação do negro no
mercado de trabalho, a aprovação da Lei 10.639
(que estabelece a obrigatoriedade do ensino de
história da África e da cultura afro-brasileira em
escolas de Ensino Fundamental), a redução da taxa
de analfabetismo funcional entre negros e pardos, a
adoção do sistema de cotas, o crescimento do
número de políticos negros, a ascensão de
cantores(as) negros(as) com a popularização de
estilos musicais negros como samba, axé-music,
funk e hip hop, a criação e expansão de produtos
étnicos, a maior participação de modelos negras(os) nas campanhas publicitárias e o início da
solidificação de um cinema negro.
A imagem ao lado faz parte dessa
matéria e apresenta, de forma circular, essas
mudanças. Um detalhe significativo dessa imagem é
que as mudanças apresentadas têm a primeira edição
da Raça como ponto de partida e o exemplar que
comemora seus 10 anos como ponto de chegada. Por
um lado, essa ligação continuidade aos discursos
produzidos pela edição apresentada aqui
anteriormente. Isto é, ela flagra, mais uma vez, a
criação de uma identidade que tem a Raça como
instrumento propulsor de várias conquistas. Por
outro lado, se antes essa identidade era fixada
apenas por meio dos avanços mercadológicos,
marcados, principalmente, pela expansão dos produtos étnicos, aqui ela é fixada também sob
outros fatores. As conquistas apresentadas não se restringem apenas à esfera econômica, mas
também aos planos social, educacional, político, midiático e cultural.
Percebe-se, portanto, os jogos discursivos que operam na Raça Brasil. Para
afirmar uma identidade, essa mídia faz uso ora de um discurso de mercado, ora de discursos
políticos. Essa oscilação entre discursos políticos e mercadológicos gerou polêmicas no que
78
diz respeito à postura da revista, e teria causado, inclusive, uma baixa nas vendas e na
aceitação da Raça junto ao público receptor.
Segundo a jornalista e colaboradora da Raça Sandra Almada (2002), em 1999,
três anos depois de seu lançamento, a Raça teve uma queda nas vendas e, decorrente disso,
sua periodicidade foi alterada. Naquele momento, os jornalistas foram convocados para
replanejar o projeto da revista e discutir os possíveis erros cometidos.
Nossa conclusão foi de que deveríamos politizar a Raça. Verificamos que
sobre a publicação caíam os estigmas de que ela estava estetizando e
despolitizando a questão negra, caminhando em sentido contrário ao das
forças progressistas e efetivamente o colaborando para o avanço das lutas
dos movimentos sociais negros (...). Então, naquele momento, o que éramos
nós? Capachos do mercado que se apropriava de uma questão que estava
sendo, até então, trabalhada politicamente pelos movimentos sociais e por
alguns intelectuais? (ALMADA, 2002, p. 54).
Chegava-se, portanto, à conclusão de que, se, por um lado, a Raça apresentava-
se com o objetivo de subtrair o discurso da submissão negra, inserindo elementos que
despertam a consciência da negritude; por outro lado, essa atuação era pautada pela busca de
um padrão estético que atende a solicitações do mercado. No entanto, esse perfil não
apresentava retorno do público. De acordo com Almada (2002), para reverter esse quadro,
seria preciso adotar algumas medidas. Entre elas, existia a necessidade de se discutir a relação
entre empenho político e mercadológico no interior da Raça.
Outra jornalista que também se deteve à questão da Raça foi Suzana Tavares
49
,
que ratifica as críticas sofridas pela revista, mas apresenta o outro lado da questão. Segundo
ela, de acordo com alguns militantes, a revista teria sim assumido uma postura mais
mercadológica do que política. Ou seja, estaria excessivamente voltada para o consumismo e
teria aberto mão de questões políticas mais urgentes. Esse discurso consumista, no entanto,
não abre portas para a maioria da população negra, ou seja, fazer uso desse discurso para
tratar de consciência racial faz com que grande parte do público não seja, de fato, alcançada.
Alguns militantes negros defendem, pois, que afirmar uma identidade através da estética,
além de não resolver a causa política, não está acessível à maioria dos negros.
No entanto, ainda segundo a jornalista Suzana Tavares, que se considerar
também o ponto de vista daqueles que apóiam a Raça. Esse público chama a atenção para o
fato de que a sociedade contemporânea incorpora o consumo e a estética como instrumento de
49
Revista Raça Brasil: Identidade, afirmação e polêmica. Disponível em:
www.palmares.gov.br/005/00502001.jsp?ttCD_CHAVE=604 (acesso em: 26.03.2008).
79
luta pela cidadania. Isto porque esses fatores provocariam mudanças no imaginário social e,
conseqüentemente, a construção de novas identidades.
É preciso ver, portanto, que as mudanças pelas quais passa a sociedade afetam
diretamente as identidades e os comportamentos. Os grupos historicamente excluídos têm,
agora, seus bens simbólicos vendidos, numa negociação de sentidos entre cultura e mercado.
O discurso publicitário estampado na Raça Brasil é a prova de que o Capitalismo encontrou
formas de se apropriar daquilo que, mais do que mercado, é identidade. No entanto, para além
de um negócio, o que temos na Raça é uma produção e uma popularização dos bens
simbólicos afro-brasileiros, e essa atuação merece destaque.
Essa comercialização, além de causar uma popularização de bens simbólicos,
produz também a socialização de expressões culturais que foram, por muito tempo,
marginalizadas. Por isso, apesar das críticas sofridas, das crises editoriais
50
e da queda nas
vendas, não se pode negar o papel social empreendido pela Raça Brasil. Assim, se a Raça,
por um lado, mercantiliza uma cultura com fins de mercado, esse processo, por outro lado,
age como forma de compartilhamento e valorização dessa cultura.
Essa revista [a Raça] trouxe uma contribuição crucial para o movimento
negro, para o jornalismo e para a imprensa negra. Não apenas em termos
mercadológicos, mas também porque colaborou de forma importante para
uma mudança na cultura de imagem, apresentando uma imagem do negro
que, de certa forma, desmistifica as imagens tradicionais que nós víamos na
mídia, do pagodeiro ou dos nossos excluídos, que compunham as manchetes
do noticiário policial (ALMADA, 2002, p. 52).
É, portanto, resgatando o discurso do orgulho negro que a Raça procura
exercer seu papel social: incentivando a auto-estima de seu público a partir de uma
valorização cultural pautada em uma identidade positiva, forte e bonita esteticamente. E essa
mudança de valores estimula a participação do negro na sociedade, a partir de um sentimento
de pertencimento étnico que não se prende aos velhos estereótipos, mas que se relaciona com
uma identidade racial positiva.
50
Depois de Liliane Santos, Romário de Oliveira assumiu o cargo de editor-chefe da Raça Brasil, onde se
mantém até hoje. E em julho de 2007, a Raça foi vendida pela editora Símbolo à editora Escala.
80
3.2
CABELO CRESPO: RE-SIGNIFICAÇÕES NA CONSTRUÇÃO DE
IDENTIDADES NEGRAS
Sabemos que o cabelo crespo é um dos traços mais marcantes da estética negra
no Brasil. Neste trabalho, tomaremos esse elemento como símbolo produtor de sentidos.
Discutiremos, aqui, de que forma o cabelo crespo está ligado à criação de identidades negras.
Para tanto, faremos um breve levantamento histórico a respeito dos penteados africanos e do
legado deixado por estes no Brasil. Para essa discussão, aceitaremos as contribuições de
Nilma Lino Gomes, que discute essa temática no livro Sem Perder a Raiz: Corpo e cabelo
como símbolos da identidade negra, de 2006.
Segundo Gomes (2006), é possível observar a forte ligação do povo africano
com o corpo através da arte. É no corpo que são marcados, por exemplo, os aspectos da vida
social e cultural de cada etnia. Não é à toa, pois, que as esculturas africanas apresentam, em
sua grande maioria, detalhes como tipo de penteado, tatuagens, escarificações e sinais de
prestígio. Tais esculturas nos permitem entender o modo como, com o passar dos tempos, os
penteados africanos foram sendo criados e recriados. Esse legado, aliado a relatos de
viajantes, mapas e desenhos, abre portas para estudos históricos sobre o contexto cultural de
etnias passadas.
Ainda de acordo com Gomes (2006), comparando-se os penteados
reproduzidos nas esculturas africanas e aqueles que são feitos, hoje, nos salões étnicos do
Brasil, demonstra-se, claramente, que muitos dos elementos – simbólicos ou não envolvidos
no processo de pentear os cabelos não se perderam com a diáspora. Muitos desses elementos
foram recriados e re-significados, ratificando que o uso e a forte simbologia do processo de
manipulação dos cabelos é ponto central quando se trata de cultura negra, desde o surgimento
das civilizações africanas até os dias atuais.
No interior das civilizações africanas ocidentais, cabelo era sinônimo de
linguagem. Tudo poderia ser visível a partir do estilo de penteado adotado: desde o estado
civil, a religião, a posição social, a identidade étnica, até um sinal de luto, um ritual religioso
ou o desejo de atrair uma pessoa do sexo oposto. Além disso, por ser o ponto mais elevado do
corpo e, conseqüentemente, o mais próximo dos deuses, os africanos acreditavam poder
alcançar a alma por meio do cabelo
51
(GOMES, 2006).
51
Essa idéia do cabelo ligado aos deuses encontra correspondente no Candomblé desenvolvido no Brasil. Nos
rituais de iniciação, é feita a raspagem do cabelo do iniciado como símbolo de renascimento (GOMES, 2006).
81
Devido, portanto, ao grande poder simbólico e espiritual atribuído aos cabelos,
o cabeleireiro ocupava um lugar de destaque nessas comunidades. Segundo Gomes (2006),
acreditava-se que o cabelo de uma pessoa abrigava seu espírito e, por isso, apenas alguém de
confiança poderia tratá-los. Na tradição Iorubá, por exemplo, o ofício de cabeleireira era
repassado entre os integrantes da família. Os instrumentos de trabalho e a responsabilidade
eram deixados pela mestra, antes de morrer, para uma sucessora. O tempo de trabalho
dedicado ao tratamento dos cabelos também é um fator interessante. Descrita por Gomes
(2006) como longa e complicada, essa tarefa reunia muitas etapas desde lavar e pentear, até
decorar o cabelo – e poderia levar várias horas. Para tanto, o cabeleireiro utilizava um
entalhador de mão feito de madeira e um tipo de óleo. Juntos, esses instrumentos ajudavam a
pentear o cabelo, desembaraçando-o sem dor.
Segundo Gomes (2006), a partir de 1444, no seio de toda efervescência cultural
das comunidades africanas, iniciam-se as trocas econômicas entre europeus e africanos.
Espantados com a organização social e cultural daquelas comunidades, os europeus
mantiveram, durante mais de cem anos, relações comerciais de exploração na costa ocidental
da África. Entre outros produtos, um pequeno número de negros escravizados servia como
moeda de troca e eram levados pelos europeus com fins também comerciais. Mais tarde,
diante da necessidade de mão-de-obra para as novas terras colonizadas, os europeus
intensificam o comércio naquela região, transformando o transporte de cargas humanas numa
atividade extremamente lucrativa, tanto em termos financeiros, como em termos “materiais”.
Nesse contexto, alguns negros foram capturados e vendidos por integrantes da sua própria
família ou por membros de outras comunidades, dos quais eram devedores ou prisioneiros.
Durante esse processo de captura e venda, uma prática muito violenta tornou-se
comum na relação explorador-escravizado. Além de toda exploração física, os negros
escravizados eram obrigados a raspar a cabeça: um sinal de violência psicológica mediante
toda simbologia que aquelas comunidades traziam no cabelo e, mais que isso, uma tentativa
de tirar-lhes todo e qualquer símbolo identitário que os remetessem à cultura africana.
Nesse sentido, quanto mais elementos simbólicos fossem retirados, capazes
de abalar a auto-estima dos cativos, mais os colonizadores criavam
condições propícias para alcançar com sucesso a sua empreitada comercial.
Hoje, podemos compreender que dada a importância social e simbólica do
cabelo para o africano, ter a cabeça raspada era um ato de violência, um
crime indizível. Naquele contexto, a cabeça raspada era interpretada como
perda de identidade (GOMES, 2006, p. 359).
82
Os europeus, portanto, certos da necessidade de distanciar os negros
escravizados da cultura desenvolvida por eles até ali, faziam a raspagem de suas cabeças
estrategicamente. Essa atitude, salvaguardada sob o argumento de necessidades higiênicas
(que, em si, traz uma carga preconceituosa), tinha o intuito de minar qualquer sentimento
de pertencimento étnico que aqueles povos pudessem carregar a partir da relação com o
cabelo. Desse modo, esses negros escravizados chegavam anônimos ao Novo Mundo,
apresentavam-se ao novo continente sem nenhuma das referências antes inscritas em seus
cabelos. Mas a identidade africana resistiu, mesmo que sobre outras simbologias.
Mesmo que não lhe fosse permitido esculpir e adornar majestosamente os
seus cabelos, essa prática continuou guardada na memória. E não só na
memória. A prática de manipular e enfeitar os cabelos foi sendo, aos poucos,
mesmo sob o domínio da escravidão, transformada e ressignificada. Os
africanos escravizados não perderam o seu objetivo de enfeitar os cabelos e
fazer deles uma assinatura (GOMES, 2006, p. 360).
Dessa forma é que percebemos a fusão entre simbologias negras e brancas, de
modo que a manipulação do cabelo pelos africanos escravizados passa a transitar entre
modelos africanos e europeus. Era de se esperar, portanto, que as representações estéticas
inspiradas no modelo de beleza europeu passassem a figurar como objeto de desejo dos
negros, da prática de alisar os cabelos. Para Gomes (2006), essa fusão de culturas provoca
um confronto de padrões, no qual o padrão estético europeu destacava-se com autenticidade e
beleza superiores, provocando certo conflito identitário por parte dos africanos escravizados.
Além disso, o contexto de violenta humilhação ao qual estavam expostos e a
postura do colonizador perante os escravizados cultivavam nos negros um desejo de
aproximar-se do modelo de beleza europeu. Isto porque o tipo de cabelo e o tom de pele
serviam de critérios para estabelecer a classificação do escravo no interior do sistema,
definindo suas atribuições e atividades. Ao mesmo tempo em que criava uma hierarquização
entre os escravos, essa classificação desenvolvia a preferência por um tipo de cabelo que já
não era crespo, mas cacheado, herança da miscigenação racial (GOMES, 2006).
Subordinados aos europeus, os negros escravizados sofreram grandes
dificuldades na tentativa de construir e afirmar uma identidade. Tal dificuldade tornava-se
ainda mais nítida nas novas gerações, que nasciam e cresciam num contexto totalmente
adverso, inaugurando, desde então, um novo trato com a questão do cabelo. Essa nova postura
estava, certamente, atravessada pela imposição de um padrão estético europeu, e o olhar do
negro sobre sua estética partia, agora, não do seu olhar, mas também do olhar do outro.
83
Para Gomes (2006), mesmo nesse contexto tenso, as novas gerações nos trouxeram o legado
das técnicas de manipulação e da criação de penteados, numa produção re-significada e, claro,
perpassada por outros discursos.
O tratamento dado ao cabeleireiro, a duração dos penteados e os instrumentos
usados o, pois, alguns dos elementos presentes na confecção dos penteados africanos que
encontram correspondentes no atual tratamento oferecido ao cabelo pelos negros brasileiros.
Para Gomes (2006), o cabeleireiro afro ocupa sim um lugar de prestígio em comparação aos
profissionais brancos. Por pertencer à mesma raça e, conseqüentemente, ter a fibra do cabelo
parecida, esse profissional é reconhecido pela clientela por ser especialista no tratamento de
cabelos crespos. A revista Raça Brasil contempla bem essa realidade. Em matéria intitulada
Cachos de ouro
52
, a cabeleireira e empresária Heloísa Helena Assis confessa que ficou
milionária com os seis salões de beleza que abriu entre os anos de 1993 e 2007. Segundo a
matéria, o salão Beleza Natural “tem sua própria indústria de cosméticos, com laboratório de
pesquisas e desenvolvimento, a Cor Brasil, que produz mensalmente 50 toneladas de 25
diferentes produtos”. Fruto do reconhecimento, a empresária é convidada para fazer
participações em programas de grande audiência e para ministrar palestras em universidades.
Esse tratamento dado ao cabeleireiro negro é, pois, um dos elementos simbólicos trazido pelos
africanos e que sobreviveu – com seus deslocamentos – aos efeitos da diáspora.
Em relação ao tempo de preparo, a jornada dedicada ao tratamento do cabelo
continua longa, existem penteados que duram de 8 a 12 horas, e outros que levam adois
dias para serem concluídos. Sobre aos instrumentos usados, o entalhador de mão feito de
madeira lugar ao ouriçador de ferro ou de madeira, que possui o mesmo desenho e a
mesma finalidade do instrumento usado pelos
cabeleireiros africanos. Por sua vez, o óleo foi
substituído por cremes de tratamento
fabricados com tecnologia avançada e
destinada exclusivamente ao público negro.
Essa tecnologia faz uso, no entanto, de
elementos como a manteiga de karité, usada
pelas comunidades africanas desde o século
XV para os mesmos fins (GOMES, 2006). A
52
Revista Raça Brasil, ano 10, 99, p. 54: Cachos de ouro: Heloísa Helena Assis ou simplesmente Zica,
como prefere ser chamada conta os segredos que a tornaram milionária relaxando o cabelo de mil mulheres
todos os dias.
84
imagem retrata uma linha de produtos da marca Niely
53
disponível no mercado atualmente. Os
produtos trazem a manteiga de karité em sua fórmula, o que, segundo a empresa, assegura seu
alto poder de hidratação. É, portanto, a partir desses elementos que percebemos que a
simbologia africana em relação à manipulação dos cabelos encontra, ainda hoje,
correspondentes no Brasil.
A etnografia dos penteados africanos nos mostra que o cabelo nunca foi
considerado um simples atributo da natureza para os povos africanos,
sobretudo os habitantes da África Ocidental. O seu significado social,
estético e espiritual constitui um marco identitário que tem se mantido forte
por milhares de anos. É o testemunho de que a resistência e a força das
culturas africanas perdura até hoje entre nós através do simbolismo do
cabelo (GOMES, 2006, p. 357).
Como forma de exemplificar a trajetória dos penteados africanos, Gomes
(2006) traz uma pesquisa feita pelo historiador de arte François Neyt (1993, apud Gomes,
2006), que pesquisou a cultura dos luba (República Democrática do Congo, antigo Zaire) e
mostrou, claramente, o modo como os penteados produzidos pelas comunidades africanas
chegaram até a atualidade. De início, é preciso saber que, para os luba, a mulher é a fonte do
sagrado e seu corpo está presente nas mais diversas expressões artísticas.
Entre os luba, o corpo da mulher destaca-se tanto nas representações
esculpidas quanto na vida cotidiana. Em ambas, os penteados apresentam-se
como uma característica marcante. Eles são extremamente sofisticados e
exprimem, ao mesmo tempo, a unidade da cultura luba e sua grande
diversidade (GOMES, 2006, p. 342).
A partir daí, é possível perceber, mais uma vez, o valor simbólico que os
penteados ocupavam entre os povos africanos. As esculturas produzidas não pelos luba,
mas por muitos povos africanos, eram fiéis aos penteados reais. Os luba acreditavam que o
ofício artístico era aprendido com os espíritos, e isso fazia com que os escultores recebessem
tratamento especial no grupo (GOMES, 2006). Tal tratamento ratifica não só a importância do
artista para esses grupos, mas ratifica, principalmente, o uso do penteado enquanto suporte
simbólico de uma identidade.
Vários signos, portanto, estavam postos a partir do modo como se penteava o
cabelo. A esfera econômica, por exemplo, fazia-se presente no tipo de penteado. A autora cita,
entre outros, dois tipos de penteados perpassados por essa dimensão: o primeiro se chamava
53
Imagem disponível em www.niely.com.br (acesso em: 07/03/2008).
85
kibanga, era feito de ráfia
54
e era usado pelas mulheres responsáveis pela cozinha real. O
segundo, em forma de cruz, representava o papel real e simbólico da mulher, além do status
social de certas princesas. Tal penteado era feito a partir da divisão do cabelo em quatro
partes, que eram, cada uma, trançadas e preenchidas por cabelos falsos, se necessário. Depois
de feitas, as tranças eram presas a um chifre de cabrito, onde formavam uma cruz. Por fim,
eram colocados alfinetes ou espetos presos ao início dos fios.
Ao relatar uma entrevista concedida por uma mulher negra sexagenária, Gomes
(2006) mostra que um penteado muito semelhante ao penteado em forma de cruz dos luba era
usado durante a infância da entrevistada aqui no Brasil.
Segundo ela [a entrevistada], no seu tempo de menina, as negras usavam
sempre o mesmo penteado. Ela não se lembra de um nome específico, mas o
resultado era uma divisão de todo o cabelo em quatro partes, formando uma
cruz. (...) Cada um dos montes era trançado, dando origem a quatro grupos
de tranças, parecidos com almofadas. O acabamento variava de acordo com
o comprimento dos cabelos (GOMES, 2006, p. 345).
Antes de ressaltar a semelhança entre os penteados, é importante salientar que
modificações o estéticas, mas simbólicas, foram, certamente, sofridas por esse tipo de
penteado após a chegada dos negros africanos ao Brasil. Além disso, salientamos que seu
desaparecimento no país coincide com a criação e divulgação dos cremes de alisamento. A
partir daí, o penteado em forma de cruz migra da casa para o salão: ele pode ser feito, ainda
hoje, em salões étnicos, numa versão contemporânea e estilizada (GOMES, 2006).
A diferenciação dos penteados que, na África, ganhava uma explicação
simbólica de status, de realeza, de riqueza e de confiança vai se perdendo,
aos poucos, e transformando-se em simples diferenciação estética. Essa
diferenciação, ao perder o caráter étnico e identitário de “assinatura”
presente nos penteados africanos, torna-se mais uma possibilidade estética,
dentro de modelos já padronizados pela cultura ocidental, por isso os vários
estilos de penteados do cabelo do negro podem ser vistos, atualmente, como
uma questão de moda ou como um estilo de vida (GOMES, 2006, p. 364).
Desse modo, é possível visualizar, aqui, o deslocamento de sentidos atribuídos
ao penteado. Na África, o penteado em forma de cruz feito pelos luba, identificava o status
social das princesas; tinha, portanto, um sentido de nobreza. No Brasil, durante a primeira
metade do século XX, era um penteado comum, feito a cada dois dias por mulheres negras.
54
1.Gênero de palmeiras da família das palmáceas, nativas da África e da América do Sul, de grandes folhas
pinuladas, que figuram entre as maiores do mundo, inflorescências espiciformes, e frutos escamosos. 2. O fio
obtido das fibras da ráfia, us. industrialmente. 3. Fio sintético semelhante à ráfia (FERREIRA, 2004).
86
Usado no cotidiano, o penteado não simbolizava nenhum tipo de posição social. Atualmente,
re-significado – e estilizado – pelos salões étnicos, o penteado em forma de cruz ganha novos
sentidos. Esse tipo de penteado é visto, por muitos daqueles que o consomem, como portador
de um sentido político, isto é, como uma forma de posicionar-se politicamente. Isto porque o
penteado resgataria raízes africanas e afirmaria, teoricamente, sua raça. No entanto, é preciso
destacar, aqui, o deslocamento de um discurso cultural e identitário (atribuído pelos luba) para
um discurso capitalista (a partir do uso contemporâneo): atualmente, o penteado é, como dito
anteriormente, consumido, numa relação econômica. Além disso, destaca-se o papel da mídia
e da moda nesse processo, haja vista os modos de subjetivação aos quais estamos expostos e a
maneira pela qual o mercado se apropria desses símbolos culturais.
Como é próprio das sociedades capitalistas, o mercado se apropria de algo
que é construído ideologicamente como marca identitária e uma produção
cultural de grupos alijados do poder, transformando-o em mercadoria. Os
estilos de cabelo do negro não conseguem ficar imunes aos efeitos da
indústria cultural e da moda e muitas vezes são traduzidos em visual fashion,
produzidos para o consumo de negros e brancos (GOMES, 2006, p. 206).
Um reflexo dessa apropriação é o grande crescimento de produtos
desenvolvidos especificamente para o público negro. É visível o aumento do trabalho nas
indústrias de cosméticos que focam a produção de artigos para os negros. Tal produção
comprova o potencial de consumo do blico no mercado, o que movimenta (e aumenta) os
investimentos em produtos étnicos, que tomam, agora, um grande espaço nas prateleiras dos
supermercados.
Paradoxalmente, para além de uma denúncia de exploração cultural por parte
de um mercado, o êxito alcançado com a comercialização de emblemas étnicos afro-
brasileiros é mais uma prova de que os símbolos culturais africanos principalmente aqueles
ligados à estética não foram sepultados com a escravidão, pois “o corpo, a manipulação dos
cabelos são depósitos da memória” (GOMES, 2006, p. 364). E, apesar de todo conflito
identitário sofrido pelas primeiras gerações africanas aqui nascidas, essa memória matém viva
a relação ancestral do negro com o cabelo. O que temos, pois, atualmente, é uma negociação
de sentidos entre cultura e mercado, temos um processo de recriação e re-significação de
símbolos, que podem atuar das mais variadas formas de sujeito para sujeito.
87
3.3 SOLTE, ENROLE, ALISE
Se eu quero pixaim, deixa
Se eu quero enrolar, deixa
Se eu quero colorir, deixa
Se eu quero assanhar, deixa
Deixa, deixa a madeixa balançar
[Chico César, Respeitem meus cabelos, brancos, 2002]
Levando-se em conta as considerações tecidas nos dois tópicos anteriores,
faremos, agora, uma análise discursiva de algumas matérias publicadas pela revista Raça
Brasil.
A imagem abaixo corresponde a uma matéria publicada na Raça Brasil
Especial Beleza e traz a seguinte chamada: SOLTE A JUBA. Cabelo crespo é lindo, mas, para
que tenha brilho e seja sedoso, alguns cuidados são necessários. Sugerimos três looks com os
produtos adequados. Aproveite e fique bem mais bonita. O recorte apresentado não se por
acaso.
O primeiro ponto a ser analisado é o título central da matéria: Solte a juba. O
termo juba, usado na matéria para designar o grande volume do cabelo crespo, ao contrário do
que pode parecer, não produz um sentido pejorativo. O termo aparece como uma forma de
aproximar-se do leitor, criando nesse leitor a sensação de uma relação próxima com a revista,
de intimidade, pois apenas alguém muito próximo lançaria mão desse termo sem temer que
Revista Raça Brasil Especial Beleza, ano 4, nº 7
88
seu sentido deslizasse, isto é, sem temer que seu uso tomasse dimensões pejorativas. Ao usar
o termo, a Raça marca um lugar de prestígio e de confiança na vida dos negros.
O segundo ponto de análise é a chamada da matéria que aparece logo após o
título (Cabelo crespo é lindo, mas, para que tenha brilho e seja sedoso, alguns cuidados são
necessários. Sugerimos três looks com os produtos adequados. Aproveite e fique bem mais
bonita.). Percebermos que o enunciado posto produz um embate discursivo materializado na
conjunção adversativa mas. Para operacionalizar a análise desse embate, levaremos em conta
uma análise do poder que parte de sua racionalidade móvel, que alcança sua produtividade,
sua exterioridade, baseada no antagonismo de estratégias estabelecido entre poder e
resistência. Sabemos, com Foucault, que o poder não é apenas negativo ou repressor. Mas
além disso, o poder é criativo, tático e produtor de necessidades.
Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a o ser
dizer não, você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se
mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa como uma
força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao
prazer, forma saber, produz discurso (FOUCAULT, 2006d, p. 8).
Sendo assim, acreditamos que há, aqui, tanto uma produtividade estratégica de
poder, como a marcação de um lugar de resistência. Isto porque, no momento em que enuncia
cabelo crespo é lindo, essa mídia incorpora o discurso auto-afirmativo proposto pelas
políticas de igualdade racial, colocando-se como instrumento destas e, portanto, como um
lugar de resistência.
Após esse enunciado, a marcação da conjunção mas materializa
lingüisticamente o confronto de estratégias presente na reportagem. A conjunção indica uma
adversidade, produzindo efeitos de sentido contrários àqueles que se construiu com o
enunciado posto anteriormente. Isto é, apesar do cabelo crespo ser lindo, existem
procedimentos necessários para que tenham brilho e sejam sedosos. É nesse momento que o
poder atua, mas não como uma força repressora, o poder atua como uma força que produz
necessidades, que induz ao prazer, que produzirá uma maior aceitação social daquele negro
que se inserir num padrão estético pré-determinado. Daí a idéia do uso de produtos adequados
para cada tipo de cabelo.
Visualizamos aí, portanto, o confronto de estratégias entre poder e resistência.
Há, portanto, um conflito que se sustenta a partir dessas forças, mais precisamente, a partir de
seus jogos táticos oponentes (mas igualmente criativos e produtivos): ao mesmo tempo em
que a matéria apresenta uma modelo usando cabelo crespo solto e incentiva seu uso, esse
89
mesmo uso é apresentado com condicionais, ou seja, existem pré-requisitos a serem seguidos
por aqueles que desejam usá-lo.
Esse jogo continua, ainda, nas formas de recepção do sujeito. Explico: é visível
a forma como o poder produz e faz circular necessidades. Nesse caso, necessidades de
mercado. No entanto, entendemos, também com Foucault, que o sujeito resiste. E a forma
como o sujeito resiste produz, ainda, novas micro-relações de poder, sempre táticas e
inventivas.
É preciso observar que, nesse jogo, os lugares de poder e resistência mudam a
cada instante. A atuação do poder pode se dá, por exemplo, como um modo de resistência ao
olhar do outro. Sabemos que a manipulação do cabelo é parte de um processo identitário que
não se constitui apenas a partir do olhar de si, mas, por ser um processo coletivo, se constitui
também pelo olhar do outro. Assim, visto que as relações de poder são taticamente pensadas e
se caracterizam por ser uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou
presentes” (FOUCAULT, 1995, p. 243), ser mais bem aceito socialmente a partir de uma
manipulação do cabelo tal qual recomenda um discurso de mercado pode caracterizar-se
como um lugar de resistência. Ou seja, é uma ação que prevê e se esquiva de uma ação futura:
o preconceito.
Assim, o jogo do poder, além de estratégico, é móvel. No caso de nossa
análise, poder e resistência mudam de lugar, travam conflitos, atacam e esquivam. Como
vimos, guiar-se pelo poder também significa resistir. E, mais que isso, significa travar novos
combates, novas micro-lutas.
Acreditamos, ainda, que essas micro-lutas presentes na relação do negro com
uma expressão estética decorrem de uma memória escravista e das tentativas de superação
dessa memória. Sabemos que um dos pilares mais importantes para o funcionamento de um
sistema escravista foi o processo de negação de uma identidade. Como vimos, a
coisificação da figura do negro, a tentativa de anulação de seus bens simbólicos (inclusive no
que diz respeito aos penteados africanos) e o contexto de humilhação em que viviam os
negros escravizados produziu um sistema de hierarquização estética. Sabemos que o tipo de
cabelo e o tom de pele eram os critérios usados para estabelecer as atribuições e atividades do
negro no interior do sistema escravista. Isto acabou por gerar um sistema hierárquico entre os
próprios negros, que tinham, agora, os padrões estéticos europeus como símbolo de beleza e
objeto de desejo. Daí decorre a preferência pelos cachos em detrimento do cabelo crespo e,
mais tarde, a prática do alisamento.
90
No entanto, paradoxalmente, esse mesmo contexto de violência – não física,
mas também cultural foi propulsor de movimentos que eram, desde já, contrários a essa
sujeição:
Essa mesma condição de coisificação social também pode ser vista como
propulsora dos movimentos efetivos de resistência e rebeldia. Mais ainda, o
desejo de reversão desse quadro é considerado como o propulsor da luta pela
liberdade e pela afirmação dos valores culturais negros (GOMES, 2006, p.
153).
Sendo assim, percebemos que as relações de poder que atravessam a questão
negra, hoje, possuem raízes e justificativas históricas. A tentativa de supressão de bens
simbólicos africanos no século XVI colide, atualmente, com a re-significação dessa cultura. E
esse embate, como vimos, materializa-se na língua e esgarça sentidos.
Esse conflito que não é apenas histórico, é, conseqüentemente, identitário
também está posto na matéria abaixo. Essa matéria foi publicada pela Raça Brasil e traz a
seguinte chamada: ENROLADOS E ENVOLVENTES. Na contramão da onda da chapinha e
dos fios esticados, a opção pelos cachos pode dar mais força ao seu visual. Além disso, os
resultados comprovam: presos ou soltos, você vai ficar poderosa.
Como podemos ver, a matéria faz uma exaltação ao uso de cachos em
detrimento ao processo de alisamento do cabelo. Dois pontos podem ser observados nesse
caso. O primeiro deles é o fato de que a matéria não faz menção, em nenhum momento, ao
uso do cabelo crespo, que é, afinal, o tipo de cabelo natural dos negros africanos.
Revista Raça Brasil, ano 10, nº 97
91
O segundo ponto a ser observado é justamente a preferência por cachos. Como
foi dito, também do tipo de cabelo dependia as atribuições do escravo no sistema. Ao
mesmo tempo em que criava uma hierarquização entre os escravos, essa classificação
desenvolvia a preferência por um tipo de cabelo que já não era crespo, mas cacheado, herança
da miscigenação racial (GOMES, 2006). Entendemos essa preferência, portanto, como uma
memória discursiva que, além de atribuir um estatuto superior ao cabelo cacheado, re-
significa seu lugar. Assim, entendemos que a matéria atualiza a memória de um tipo de
cabelo: os cachos que são, hoje, desejo de consumo dos negros brasileiros não é mais aquele
almejado pelos negros escravizados no século XVI. O tipo de cacho que se deseja,
atualmente, figura nos discursos da mídia, da moda e é estilizado em salões étnicos. Desse
modo, temos a atualização e a re-significação de uma memória que produz, agora, outros
sentidos e aparece em outros discursos.
Além disso, a matéria traz, ainda, no canto inferior esquerdo, um pequeno
texto que nomeia o penteado apresentado pela modelo e explicita os procedimentos
necessários para se obter um penteado da mesma natureza: ABUNDANTE. Esse look ousado
recebeu musse sobre os cabelos molhados, que depois foram secos com secador com difusor,
para ficarem naturalmente crespos. A parte lateral foi puxada para trás da cabeça e presa
com grampos, sem esticar muito os fios e valorizando o rosto (grifo nosso).
No decorrer da explicação dos procedimentos necessários para se chegar a esse
penteado, percebemos o uso da palavra naturalmente. Esse uso, no entanto, é feito a partir de
um deslizamento de sentido desse termo. O cabelo é dito natural depois de receber musse e
de ser seco com secador e difusor. Assim, temos que o termo naturalmente, aqui, não produz
o efeito de sentido estabilizado no dicionário.
No dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004), o termo natural significa “1.De, ou
referente à natureza, 2.Produzido pela natureza, 3.Em que não há trabalho ou intervenção do
homem”. No texto apresentado pela revista, porém, esse mesmo termo produz um sentido de
naturalidade plástica, moldada, produzida, industrial. Esses embates discursivos denunciam
um antagonismo de estratégias: por um lado, tem-se a re-significação de uma cultura negra e,
de outro, a pasteurização dessa cultura e sua absorção pelo mercado: vejamos que o termo
naturalmente, usado no sentido que aparece na matéria, tem uma ligação com o consumo de
produtos estéticos que remodelam essa naturalidade, tornando-a industrial. É como se a
indústria de cosméticos pasteurizasse um cabelo que era, antes, naturalmente crespo.
Esse sentido atribuído ao termo também pode ser percebido na matéria
apresentada a seguir, o que denuncia uma regularidade discursiva. Aqui, se apresenta o
92
seguinte título: LISOS PARA VARIAR. O segredo para deixar os cabelos alisados naturais e
sedosos ainda é uma boa escova, seguida da chapa. O trio xampu, condicionador e leave-in
garante o resultado perfeito.
Também nessa matéria, ao lançar mão da expressão cabelos alisados naturais,
fica visível o deslizamento de sentido do termo natural. Ora, se tomarmos o termo natural
segundo seu sentido cristalizado no dicionário, não existe um cabelo que seja, ao mesmo
tempo, alisado e natural. Tanto nesse caso, como no caso da matéria anterior, a re-significação
do termo está ligada à atuação do mercado, que corrompe essa naturalidade e vende uma nova
imagem estética. E essa nova imagem não está comprometida apenas com uma afirmação de
uma cultura negra, mas está comprometida, principalmente, com a industrialização de bens
simbólicos africanos, como é o caso da manipulação dos cabelos.
Além disso, a chamada da matéria Lisos para variar produz uma
ambigüidade. A chamada produz dois efeitos de sentido: um deles indica a continuidade de
um processo que é repetitivo: o alisamento do cabelo. Nesse caso, o título seria uma ironia
perante essa constante repetição e teria o mesmo sentido da expressão Lisos, como sempre.
Isso indicaria que a matéria é apenas mais uma a retratar esse processo. O segundo efeito de
sentido, antagonicamente, expressa o rompimento de um processo contínuo. Assim, a matéria
seria uma quebra diante de um comportamento recorrente, trazendo um conteúdo que não é
sempre explorado ou que não atrai grande público. Essa flutuação de sentidos denuncia a
ambivalência do enunciado posto e aponta para o conflito que existe em torno da manipulação
do cabelo crespo, principalmente no que diz respeito ao alisamento.
Revista Raça Brasil Especial Beleza, ano 4, nº 7
93
A memória da manipulação dos cabelos no período colonial como
discutimos anteriormente – pode ser tida como um discurso precursor dos sentidos produzidos
atualmente em torno dessa questão. No entanto, considerar a prática do alisamento apenas
como um espelhamento do padrão de beleza branca empobrece a problemática e não nos
permite enxergar além.
Podemos empreender a análise do alisamento, hoje, por dois ângulos. A prática
de alisamento dos cabelos por parte dos negros pode se configurar tanto como uma absolvição
do sujeito pelo discurso de mercado, quanto como um modo de resistência ao olhar do outro,
uma forma de resistir às ações do poder. No entanto, na maioria dos casos, essas esferas se
confundem, o sujeito negro incorpora uma estética branca não apenas por acreditar que vai ser
mais bem aceito socialmente, mas também porque esse tipo estético já está cristalizado
também pra ele como um modelo de beleza.
Esse comportamento, porém, é passível. Segundo Gomes (2006), ele deve ser
analisado de acordo com o contexto social em que acontece. Em outras palavras, é preciso
estar atento às condições de produção dos sentidos atribuídos à manipulação do cabelo:
O uso do alisamento entendido como um comportamento social pode ser
visto, por um lado, como resultado da introjeção da opressão branca
imputada ao negro, o que inclui e imposição de um determinado padrão
estético. Mas, por outro lado, esse comportamento também pode ser visto
como integrante de um estilo de o negro usar o cabelo, construído dentro de
um sistema opressor, porém, com características que são próprias da
comunidade negra e do seu padrão estético (GOMES, 2006, p. 203).
Assim, é preciso entender que não temos um sujeito de identidade estável.
Os símbolos culturais transitam, flutuam e se absorvem mutuamente. Os padrões – o estético,
por exemplo – desfazem-se em diversos outros, que nascem de outros discursos, que carregam
novos sentidos, que constroem novas identidades. O cabelo crespo não está fora desse ciclo:
ele já não é aquele usado na África do qual tivemos notícia. Ele se desdobra em muitos, e nem
por isso (aliás, justamente por isso), continua sendo símbolo de gerações e gerações de negros
no Brasil. O alisamento não impede, pois, que o negro se reconheça como tal, mas denuncia a
convergência de símbolos culturais, o que é indiscutível num país como o nosso.
94
3.4 A RAÇA CANTADA, POLITIZADA E VENDIDA
Ondulado, permanente
Teu cabelo é de sereia
E a pergunta que sai da mente
Qual'é o pente que te penteia?
[Rubens Soares e David Nasser, Nega do cabelo duro, 1969]
Dentre tantos ícones que se destacam como característicos dos negros no
Brasil, o cabelo é, sem dúvida, um dos mais cantados pela música popular brasileira. Das
marchinhas do carnaval de 1932, passando pela MPB de Elis Regina em 1969, pelo ade
Luiz Caldas em 1979, até o samba-rock contemporâneo de Max de Castro, o cabelo crespo é
personagem reconstruído continuamente em cada canção. Essas letras constituem uma teia
interdiscursiva que possibilita a emergência de diversos enunciados. Tais enunciados
produzem e re-produzem sentidos através de um funcionamento intradiscursivo, isto é, os
sentidos vão-se deslocando a partir de novas formulações materiais (o intradiscurso).
No carnaval de 1932, numa composição de Lamartine Babo e Irmãos Valença,
a marchinha chamada O teu cabelo não nega mulata apontava a forte ligação entre raça e
cabelo, materializada no verso o teu cabelo não nega mulata, porque és mulata na cor. Em
1969, Elis Regina gravava o disco Aquarela do Brasil, que trazia a composição de Rubens
Soares e David Nasser chamada Nega do cabelo duro. Essa canção foi regravada por Planet
Hemp, em 1997, e, não o seu nome Nega do cabelo duro –, como também o seu famoso
verso Qual é o pente que te penteia?, teriam, ainda, muitas aparições, nos mais diversos
contextos. Uma dessas aparições foi no axé de Luiz Caldas, no carnaval de 1986, numa
composição de Luiz Caldas e Paulinho Camafeu chamanda Fricote, que trazia à tona o verso
nega do cabelo duro.
Já em 2002, a memória desse verso é atualizada e Max de Castro desponta com
o samba-rock chamado O nego do cabelo bom, enunciado que estampa também a matéria da
Raça Brasil.
95
Tanto no caso da música de Max de Catrso, como no caso da Raça Brasil, os
sentidos do enunciado são construídos levando-se em conta tanto o processo interdiscursivo
que abre a possibilidade para que esses enunciados voltem à tona, quanto o intradiscurso: a
formulação desses enunciados na atualidade. No entanto, entre o enunciado nego do cabelo
duro e negro do cabelo bom existe uma relação polissêmica: um deslocamento de sentido em
relação ao que foi posto anteriormente. Há uma ruptura no processo de constituição dos
sentidos. Essa quebra representa um novo olhar perante nosso objeto: não que o nego do
cabelo duro tenha, agora, outro tipo de cabelo. O cabelo é o mesmo, o que muda são os
sentidos atribuídos a ele.
Toda vez que falamos, ao tomar a palavra, produzimos uma mexida na rede
de filiações de sentido, no entanto, falamos com palavras ditas. E é nesse
jogo entre paráfrase e polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o já-dito
e o a se dizer que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus
percursos, (se)significam (ORLANDI, 2003, p. 36).
Assim, o cabelo bom faz sentido na letra de Max de Castro porque existe um
discurso anterior a ele que o sustenta, isto é, existe um processo interdiscursivo que torna
possível a formulação desse dizer. Por outro lado, ao mesmo tempo, esse enunciado irrompe
outro sentido, e inaugura outro dizer. É o jogo entre interdiscurso e intradiscurso: no enlace
desses dois eixos da constituição e da formulação os dizeres produzem e re-produzem
sentidos.
A polissemia produzida do cabelo duro ao cabelo bom é atravessada por outros
discursos que não estão ligados, necessariamente, a manipulação dos cabelos, mas estão
Revista Raça Brasil, ano 12, nº115
96
ligados à permanente afirmação de uma identidade. Os discursos produzidos com o início das
políticas afirmativas nascem na tentativa de redirecionar o olhar do negro e do “outro” sobre
si. O que temos agora, portanto, são políticas de identidade em detrimento de políticas de
integração ou assistencialistas. É a afirmação de identidades negras sob uma perspectiva
positiva que produz, por exemplo, enunciados como Orgulho de ser nego, Black is beautiful,
100% negro. Da polissemia instaurada entre o cabelo duro e o cabelo bom: o enunciado
nego do cabelo bom é atravessado por outros discursos e provoca um deslocamento de sentido
em relação ao enunciado posto anteriormente.
Outro enunciado que volta recorrentemente à tona é Qual é o pente que te
penteia? que faz parte do refrão da música Nega do cabelo duro interpretada por Elis em
1969, regravado por Planet Hemp em 1997 e que, aparece, agora, na Raça Brasil, como
vemos na imagem abaixo.
No entanto, ao ser usado nessa matéria, em específico, os sentidos produzidos
pelo enunciado também se deslocam. Abaixo dele, a matéria ressalta: Black power, cabeça
raspada, com trançinhas... Apresentamos seis sugestões de visuais pra você arrasar e desfilar
por com o mais tradicional estilo afro. Assim, se, em outros momentos de aparição do
enunciado – Qual é o pente que te penteia? – a pergunta surgia como uma sátira para indicar a
inexistência de “solução” para o cabelo crespo, isto é, a carência de um pente capaz de
penteá-lo, o que a Raça apresenta, na matéria, é um leque de possibilidades que se apresentam
quando se trata da manipulação desse cabelo: Black power, cabeça raspada, com trançinhas,
Revista Raça Brasil, ano 12, nº115
97
não importa. Importa que são vários os pentes, são vários sentidos, vários estilos, muitos
discursos e a afirmação de inúmeras identidades. Temos também aqui, portanto, um processo
polissêmico, um deslocamento de sentido no decorrer das aparições de um mesmo enunciado.
Através da re-aparição e da re-significação desses dois enunciado é possível
analisar a mudança nos modos de resistência do negro após a aparição dos diversos discursos
produzidos pelas políticas de ação afirmativa. Essas políticas nascem com a proposta de
alterar a relação do negro com uma imagem de si e, com isso, alteram não somente os modos
de resistência, como também a que se resistir. Explico: num contexto de politicas de
integração, que buscavam incluir o negro numa sociedade branca sem reconhecê-lo como tal,
era preciso resistir a uma relação preconceituosa na qual a estética negra estava sempre
relegada à inferioridade. Essa resistência, como analisamos no tópico anterior, apresentava-se,
na maioria dos casos, como uma aproximação, por parte dos negros, de um padrão estético
branco. Por dois motivos: tanto por esse negro acreditar que seria mais bem aceito
socialmente, como também por ter esse padrão estético cristalizado como uma modelo de
beleza.
Por outro lado, a partir da apariação das políticas de ação afirmativa, essa
relação do negro com sua estética é, pelo menos teoricamente, alterada. Essas políticas,
chamadas políticas de identidade, mudam essa relação na medida em que não buscam mais
inlcuir o negro numa sociedade branca, mas buscam, principalmente, reconhecer, afirmar e
valorizar identidades negras. Essa postura modifica os modos de resistência do negro uma vez
que ele não tem que resistir ao preconceito de uma sociedade branca (e que o quer branco),
ele precisa resistir, agora, a uma opressão identitária. Na maioria dos casos, essa mudança faz
com que a prática do alisamento não se configure como um modo de resistência, daí a
pouca apariação dessa prática em revistas como a Raça Brasil, que se colocam como
instrumentos das políticas afirmativas. O que temos como resistência, agora, é a exaltação do
cabelo crespo e penteados afros.
Essa postura pode ser vista em diversos enunciados presentes na Raça Brasil,
assim como percebemos na imagem que segue: Afros com estilo e muita raça!
98
É possível perceber, aqui, a direta e positiva afirmação de uma identidade. Essa
afirmação materializa-se na palavra raça. Como vimos no capítulo anterior, o termo raça é
usado, atualmente, como categoria de luta política. E, portanto, seria preciso lançar o do
termo para marcar diferenças estéticas, genéticas entre brancos e negros e afirmá-las do um
ponto de vista positivo, uma vez que o apagamento das diferenças não supera o racismo.
Seria, preciso, portanto, marcar a diversidade. E, para tanto, lança-se mão do termo raça.
Nesse cenário de afirmação de uma diversidade positiva é que percebemos a exaltação do
cabelo afro como símbolo identitário. Ao se apresentar num estilo negro, o cabelo crespo
inaugura um novo lugar de resistência dos negros, do qual é elemento central.
O enunciado abaixo, veiculado pela revista Raça Brasil, ratifica, ainda, a
proposta anterior: ele também está comprometido com uma mudança de postura em relação
aos modos de resistência dos negros.
Revista Raça Brasil, ano 11, nº113
Revista Raça Brasil, ano 11, nº111
99
O que se tem, tanto nesse enunciado Afros sim, e com muito estilocomo no
enunciado anterior Afros com estilo e muita raça é uma uma luta identitátia. Essa luta por
uma identidade positiva está materializada aqui pelo advérbio de afirmação sim. Esse
advérbio aparece como uma resposta às formas de opressão e anulação dessa identidade,
marcando um lugar afirmativo para ela.
Além disso, os dois enunciados acima Afros com estilo e muita raça e Afros
sim, e com muito estilo – trazem a palavra estilo. Essa palavra materializa um jogo de sentidos
que está presente nas duas matérias acima apresentadas. Se, por um lado, a palavra estilo está
ligada à dinâmica da moda, associando o penteado afro a uma esfera de mercado; por outro
lado, a palavra estilo está ligada, também, à atribuição de um sentido político ao cabelo
crespo. O que se chama de estilo político corresponde ao uso do cabelo crespo enquanto
elemento identitário, capaz de resgatar e afirmar uma cultura negra.
No entanto, esse estilo político atribuído ao cabelo não inaugura um novo
tratamento destinado ao cabelo crespo, mas atualiza uma memória desse uso. De acordo com
Gomes (2006), o cabelo afro usado com cunho político era usado por movimentos sociais
norte-americanos, como, por exemplo, os Panteras Negras na década de 60 e o Movimento de
Consciência Negra na África do Sul na década de 60 e 70. Esses movimentos faziam uso do
cabelo crespo em sua textura natural numa tentativa de resgatar raízes africanas e de travar
lutas anti-hegemônicas. Os estilos dreadlocks e black power eram usados, nesse contexto,
para expressar uma valorização estética e negar o lugar de inferioridade atribuído ao negro. O
cabelo era, portanto, um mbolo identitário que deveria ser re-significado de um ponto de
visto político, de modo a exaltar a cultura africana. Segundo Gomes (2006, p. 221), “foi
necessário construir politicamente o discurso da naturalidade do cabelo e da estética negra”.
Isto porque esses estilos se mostraram radicais no uso de uma estética “natural”, descartando
qualquer intervenção de um padrão europeu ou norte-americano. No entanto, ainda segundo
Gomes,
Mesmo que alguns negros e negras norte-americanos e brasileiros adotem
tais estilos de cabelo com o intuito de “retorno à mãe África”, não como
negar que eles o fazem valendo-se de uma orientação moderna e
contemporânea e da representação de uma África mítica criadas por sujeitos
que vivem nas metrópoles e nos centros urbanos ocidentais de onde retiram a
sua imagem da negritude (GOMES, 2006, p. 227).
Assim, quando falamos de um estilo político atribuído ao dreadlocks e ao black
power, estamos atualizando a memória que se apresenta, agora, perpassada por discursos da
100
mídia e da moda. Temos, portanto, que esses penteados nascem de um discurso político mas
são, por outro lado, estilizados ao sabor do mercado. “Estética, política, identidade, mercado e
moda são, hoje, inseparáveis e mantém entre si relações complexas e, por vezes, tensas”
(GOMES, 2006, p. 228). E são essas relações que encontramos na Raça Brasil. Na imagem
que segue, o modelo afirma: “É impossível passar despercebido com um black power. A onda
agora é resgatar o penteado que teve seu auge na década de 70”.
Fica claro, nessa fala, o entrelaçamento discursivo que se no uso
contemporâneo desse penteado. Há, por um lado, o resgate de um estilo que foi usado na
década de 70. No entanto, o que tinha um sentido político nas décadas passadas, está posto,
atualmente, sob discursos comerciais, que vendem um penteado estilizado e promovem um
deslizamento de sentido. Para Gomes (2006), além de uma re-significação do cabelo crespo, o
que temos, atualmente, é um esvaziamento político desses penteados, uma vez que, na maioria
das vezes, o uso dos mesmos não é feito de forma a explicitar uma dada consciência política.
Mesmo assim, entedemos que o cabelo crespo deve ser discutido como uma
linguagem que não se perdeu no caminho da África ao Brasil. As simbologias são re-
significadas e se apresentam como marcas identitárias para todo um grupo etnico-racial. Os
sentidos atribuídos ao cabelo são muitos e escorrem por entre os dedos (e pelos olhos) a cada
instante, de modo que tentar fixá-lo é uma tarefa impossível. Da política à moda, temos de
tudo. Como diria Chico César, deixa, deixa a madeixa balançar.
Revista Raça Brasil, nº115, ano 12
101
C
ONCLUSÃO
Em nossa época líquido-moderna,
o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados,
enquanto as nossas existências individuais são fatiadas
numa sucessão de episódios fragilmente conectados.
[Bauman, Identidade, 2005, p.18-19]
É bem verdade que o cenário de discussão que se forma com a criação e
implementação das Políticas de Ações Afirmativas no governo de Fernando Henrique
Cardoso se oferece como objeto de pesquisa e inaugura um outro olhar sobre a questão negra,
qual seja: um olhar sobre as possíveis identidades negras.
Entendemos que um dos modos de discutir e buscar essas identidades é lançar
luz sobre a relação que o negro estabelece com sua estética. Nesse contexto, encontramos no
cabelo um símbolo produtor de sentidos a partir do modo como é significado e re-significado
em uma identidade.
Cenário de relações de poder, a relação do negro com o cabelo não é unilateral.
De nossas análises, depreendemos que os usos e os sentidos atribuídos a esse cabelo estão
perpassados por relações de poder e são parte do processo de construção de uma identidade.
Levando-se em conta a mobilidade e a dinâmica do poder e da resistência, é possível
reconhecer a produção de diferentes sentidos a partir de um mesmo estilo de penteado. A
prática do alisamento, por exemplo, pode ser tida como um funcionamento das relações de
poder impostas pelo mercado, que condiciona consumidores a um modelo de beleza; ou, por
outro lado, pode ser vista como um lugar de resistência se considerarmos o papel do outro
nessa relação. Nesse caso, o alisamento seria uma reposta – e uma defesa – ao olhar do outro.
O uso do cabelo do negro em sua textura natural, que está cada vez mais em
alta, também ocupa os mais diversos lugares. É possível perceber, claramente, que os
discursos produzidos sobre/pelas políticas afirmativas colocam em xeque o modelo de beleza
europeu como sinônimo de perfeição, e o uso do cabelo crespo está cada vez mais presente
nos mais diversos contextos. Essa visibilidade é captada pelo mercado a partir de um poder
que produz necessidades, transformando bens simbólicos africanos em mercadorias
102
esteticamente estilizadas, como por exemplo os estilos Black, produzidos em salões étnicos.
Por outro lado, não se pode esquecer que o cabelo crespo também é ícone de resistência
política em movimentos sociais das décadas de 60 e 70. No entanto, é importante salientar
que, na maioria dos casos, os usos que apresentamos aqui se (con)fundem, assim como se
(con)fundem as identidades construídas nesse processo.
Assim, o que queremos frisar aqui não é a permanência desses usos em esferas
homogêneas e singulares. O que queremos destacar aqui é exatamente o contrário: é o jogo
móvel e dinâmico promovido pelo poder e pelas resistências, realçando a convergência de
símbolos culturais, o entrelaçamento de identidades negras (e brancas), a miscigenação
estética, o cruzamento de memórias. Queremos, portanto, destacar que os usos e sentidos
atribuídos ao cabelo estão em permanentes diálogos e duelos. As possíveis significações que
apontamos anteriormente fazem parte de um jogo onde as identidades estão em permanente
construção e que, portanto, estão em permanente reciclagem. Como diria Bauman: “estar fixo
ser identificado de modo inflexível e sem alternativa é algo cada vez mais malvisto”
(BAUMAN, 2005, p.35).
Desse modo, entendemos o cabelo crespo como parte de um processo de
construção identitária que, longe de ser homogênea, estável e individual, é, antes,
heterogênea, conflitiva e coletiva.
Qualquer processo identitário é conflitivo na medida em que ele serve para
me afirmar como um “eu” diante de um “outro”. A forma como esse “eu” se
constrói está intimamente relacionada com a maneira como é visto e
nomeado pelo “outro”. E nem sempre essa imagem social corresponde à
minha auto-imagem e vive-versa. Por isso, o conflito identitário é coletivo,
por mais que se anuncie como individual (GOMES, 2006, p. 20).
Assim, a fim de entender de que modo essas identidades são construídas sob o
aspecto de conflitivo, aceitamos as contribuições de Gomes (2006), que entende o aspecto
coletivo como uma das razões para que se estabeleça esse conflito, uma vez que não se trata
apenas da relação de um “eu” consigo mesmo, mas, mais que isso, se trata da relação
estabelecida com o “outro”.
Além disso, falar em heterogeneidade, nesse caso, é basear-se em autores como
Canclini e Bauman. Canclini discute a construção de uma identidade cultural baseada na
negociação entre classes: “já não podemos mais considerar os membros de cada sociedade
como elementos de uma só cultura homogênea, tendo portanto uma única identidade distinta e
103
coerente” (CANCLINI, 1999, p. 248). Sendo assim, essas identidades não são construídas sob
pilares fixos e homogêneos, elas estão em trânsito permanente e possuem um caráter plural.
Zygmunt Baumam também discute essa heterogeneidade, considerando um
sujeito portador de identidades múltiplas, líquidas, fluidas. Bauman (2005) usa, para tanto, a
imagem de um quebra-cabeça como metáfora para a construção identitária. Esse quebra-
cabeça, no entanto, pouco se assemelha ao jogo com o qual estamos acostumados, do qual
partimos de uma imagem predeterminada que se configura como a única possibilidade de
resultado final. No processo de construção identitária, as peças do quebra-cabeça estão
incompletas, a imagem final não é dada previamente e não existe um caminho “certo” a ser
seguido. Ao contrário, são múltiplos os resultados a que podemos chegar com a junção das
peças, assim como são múltiplos os modos de se chegar a esses resultados. Isto porque, no
quebra-cabeça da identidade, não partimos de uma imagem clara e predeterminada, partimos
das peças já obtidas e seguimos com as possibilidades de peças disponíveis.
Estamos agora passando da fase “sólida” da modernidade para a fase
“líquida”. E os “fluidos” são assim chamados porque não conseguem manter
a forma por muito tempo e, a menos que sejam derramados num recipiente
apertado, continuam mudando de forma sob a influência até mesmo das
menores forças. Num ambiente fluido, não como saber se o que nos
espera é uma enchente ou uma seca é melhor estar preparado para as duas
possibilidades. Não se deve esperar que as estruturas, quando (se)
disponíveis, durem muito tempo. Não serão capazes de agüentar o
vazamento, a infiltração, o gotejar, o transbordamento – mais cedo do que se
possa pensar, estarão encharcadas, amolecidas, deformadas e decompostas
(BAUMAN, 2005, p.57-58).
Assim, o sujeito da “modernidade líquida” constrói suas identidades mediante
possibilidades mutáveis, sem apego à lógica da continuidade e da homogeneidade. É assim
que entendemos os sujeitos e as identidades apresentadas pela Raça Brasil, por isso não
entendemos essa revista como veículo de uma única identidade, clara e singular, mas como
um suporte para muitas (e múltiplas) identidades, construídas sob pilares tão plurais quanto
instáveis.
Além disso, é preciso dizer que a dinâmica do poder e as ações estratégicas da
resistência constituem, nessa mídia, um campo de forças onde a relação do negro com o
cabelo crespo é colocada em xeque a todo tempo. Verdades e sentidos deslocam-se com o
movimento dessas forças, construindo e re-construindo identidades. É assim que a Raça
apresenta novas peças e oferece, ao sujeito-leitor, múltiplos caminhos para a montagem de seu
quebra-cabeça identitário.
104
Desse modo, podemos afirmar que as políticas de identidade, como são
chamadas as políticas afirmativas, trazem à tona uma série de fontes, carregadas das mais
variadas possibilidades, onde negros e negras podem adquirir peças que auxiliam na
construção de seus quebra-cabeças e, conseqüentemente, na construção de suas identidades.
105
R
EFERÊNCIAS
ALMADA, Sandra. A imprensa e o racismo. In: RAMOS, Silvia. (Org.). Mídia e racismo.
Rio de Janeiro: Pallas, 2002, p. 52 – 58.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Lingüística Geral II. Tradução de Eduardo
Guimarães. 2 ed. Campinas, SP: Pontes, 2006.
BERNARDINO-COSTA, Joaze. Ação afirmativa e a rediscussão do mito da democracia
racial no Brasil. Estudos afro-asiáticos, Rio de Janeiro, v. 24, n. 02, p. 247 – 273, 2002.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR). Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD).
Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o
ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília, DF, 2005.
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da
globalização. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1999.
COBRA, Rubem Queiroz. Gobineau. 2001. Disponível em:
<http://www.cobra.pages.nom.br/fcp-gobineau.html>. Acesso em: 24 abr. 2008.
COURTINE, Jean-Jacques. O chapéu de Clementis: observações sobre a memória e o
esquecimento na enunciação do discurso político. Tradução de Marne Rodrigues de
Rodrigues. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro. (Org.). Os
múltiplos territórios do discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999a. p. 15 – 22.
______. O discurso inatingível: marxismo e lingüística (1965 1985). Tradução de Heloisa
Monteiro Rosário. In: Cadernos de tradução. Porto Alegre, n. 6, p. 5 – 18, abr-jun, 1999b.
______. Quelques problèmes théoriques et méthodologiques en analyse du discours: à propos
du discours communiste adressé aux chrétiens. In. Langage 62, 1981
106
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo:
Brasiliense, 2005.
DIAS FILHO, Antonio Jonas. Ebonização estética e cosmética auto-estima, mídia,
mercado consumidor e a opção fashion do resgate da cidadania em magazines para afro-
brasileiros (1990-1999), 2002. Disponível em: <http://www.desafio.ufba.br/gt6_lista.html>.
Acesso em: 27 mar. 2008.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio versão 5.0.
3ª ed. Ed. Positivo, 2004.
FERREIRA. Maria Cristina Leandro. O quadro atual da análise de discurso no Brasil: um
breve preâmbulo. In: Michel Pêcheux e a Análise do Discurso: uma relação de nunca
acabar. São Carlos: Claraluz, 2005. p. 13 – 22.
FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendente: identidade em construção. São Paulo:
EDUC; Rio de Janeiro: Pallas, 2000.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio.
11 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
______. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Morais. 3 ed. Rio de Janeiro: Nau, 2003a.
______. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7 ed. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 2005.
______. Diálogos sobre o poder. In: ______. Ditos e escritos IV: estratégia, poder-saber.
Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003b. p. 253
– 266.
______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. Não ao sexo rei. In: ______. Microfísica do poder. Tradução: Roberto Machado. 22
ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006a. p. 229 – 242.
______. O Sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault,
uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1995. p. 231–249.
107
______. Soberania e disciplina. In: ______. Microfísica do poder. Tradução de Roberto
Machado. 22 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006b. p. 179 – 191.
______. Sobre a história da sexualidade. In: ______. Microfísica do poder. Tradução de
Roberto Machado. 22 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006c. p. 243 – 276.
______. Verdade e poder. In: ______. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado.
22 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006d. p.1 – 14.
GREGOLIN, Maria do Rosário. Análise do Discurso: os sentidos e suas movências. In:
______; CRUVINEL, Maria de Fátima; KHALIL, Marisa Gama. (Org.). Análise do
Discurso: entornos do sentido. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2001. p. 9 – 34.
______. Discurso, história e a produção de identidades na mídia. In: FONSECA-SILVA,
Maria da Conceição; POSSENTI, Sírio. Mídia e rede de memória. Vitória da Conquista:
Edições UESB, 2007. p. 39 – 60.
______. Foucault e Pêcheux na construção da Análise do Discurso: diálogos e duelos. São
Carlos: Claraluz, 2004a.
______. Michel Foucault: o discurso nas tramas da história. In: FERNANDES, Claudemar
Alves; SANTOS, João Bôsco Cabral dos. (Org.). Análise do Discurso: unidade e dispersão.
Uberlândia: Entremeios, 2004b. p.19 – 42.
______. (Org). Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade
negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Acesso de negros às universidade públicas.
Cadernos de pesquisa da Fundação Carlos Chagas, São Paulo, n. 118, p. 247 – 268, 2003.
______. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São
Paulo; Ed. 34, 2002a.
______. Como trabalhar com “raça” em sociologia. In: GESTÃO LOCAL,
EMPREGABILIDADE E EQÜIDADE DE GÊNERO E RAÇA: UMA EXPERIÊNCIA DE
POLÍTICA PÚBLICA NA REGIÃO DO ABC PAULISTA. CEBRAP (Centro Brasileiro de
Análises e Treinamento), São Paulo, 2001. Disponível em:
<
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
97022003000100008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 07 maio 2008.
108
______. Contexto histórico-ideológico do desenvolvimento das ações afirmativas no
Brasil. In: AÇÕES AFIRMATIVAS NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS BRASILEIRAS:
O CONTEXTO PÓS-DURBAN, 20 a 22 de setembro, 2005, Brasília. Disponível em:
<http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/>. Acesso em: 28 jun. 2007.
______. Democracia racial. Cadernos PENESB (Programa de Educação sobre o negro na
sociedade brasileira). Niterói, n. 04, p. 33 – 60, 2002b.
______. Depois da democracia racial. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. v. 18, n.
02, p. 269 – 287, 2006.
HENRY, Paul. A ferramenta imperfeita: língua, sujeito e discurso. Tradução de Maria
Fausta Pereira de Castro. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.
HOFBAUER, Andreas. O conceito de “raça” e o ideário do “branqueamento” no século XIX:
bases ideológicas do racismo brasileiro. In: Teoria e Pesquisa. Programa de Pós-graduação
em Ciências Sociais Universidade Federal de São Carlos, n. 42 e 43, p. 63 110, janeiro -
julho, 2003.
IANNI, Octavio. Pensamento social no Brasil. Bauru: EDUSC, 2004.
LEITE, José Roberto Teixeira. 500 anos de pintura brasileira. CD-rom fabricado pela
Microservice Indústria Brasileria; produzido e distribuído pela Log On Informática Ltda,
1999.
MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Tradução de
Eni Orlandi. Campinas: Pontes, 2003.
MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de
Pesquisa. São Paulo, v. 117, p. 197 – 217, nov. 2002.
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade
e etnia. In: BRANDÃO, André Augusto (Org.). Cadernos PENESB (Programa de
Educação sobre o negro na sociedade brasileira), Niterói, RJ: EdUFF, n. 05, p. 15 34,
2004.
______; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006.
NAVARRO-BARBOSA, Pedro Luis. O papel da imagem e da memória na escrita jornalística
da história do tempo presente. In: GREGOLIN, Maria do Rosário (Org.) Discurso e mídia: a
cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003. p. 111 – 124.
109
ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003.
______. O objeto de ciência também merece que se lute por ele. In: MALDIDIER, Denise. A
inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Campinas: Pontes, 2003. p. 9 – 13.
PECHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica a afirmação do óbvio. Tradução de
Eni Orlandi. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
RAMOS, Silvia. (Org.). Mídia e racismo. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
REVEL, Judith. Foucault: conceitos essenciais. Tradução de Carlos Piovezani Filho e Nilton
Milanez. São Carlos: Claraluz, 2005.
SARGENTINI, Vanice Maria Oliveira. Arquivo e acontecimento: a constituição do corpus
discursivo em Análise do Discurso. In: NAVARRO, Pedro. (Org). Estudos do texto e do
discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz, 2006. p. 35 – 44.
______; NAVARRO-BARBOSA, Pedro. (Org.). M. Foucault e os domínios da linguagem:
discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. Tradução de Antônio Chelini, José
Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2006.
SILVERIO, Valter Roberto. Ação afirmativa: percepções da “casa grande” e da “senzala”. In:
BARBOSA, Lúcia Maria de Assunção; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e; SILVERIO,
Valter Roberto. De preto a afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre as relações étnico-
raciais no Brasil. São Carlos: EdUFSCar, 2004. p. 321 – 341.
TAVARES, Suzana. Revista Raça Brasil: identidade, afirmação e polêmica. Disponível em:
<http://www.palmares.gov.br/005/00502001.jsp?ttCD_CHAVE=604>. Acesso em: 26 mar.
2008.
REVISTAS ANALISADAS
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Símbolo, ano 1, nº 1, set. 1996.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Símbolo, ano 9, nº 88, jul. 2005.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Símbolo, ano 9, nº 90, set. 2005.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Símbolo, ano10, nº 94, jan. 2006.
110
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Símbolo, ano 10, nº 97, abr. 2006.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Símbolo, ano 10, nº 99, jun. 2006.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Símbolo, ano 10, nº 102, set. 2006.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Símbolo, ano 11, nº109, abr. 2007.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Símbolo, ano 11, nº111, jun. 2007.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Escala, ano 11, nº113, ago. 2007.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Escala, ano 12, nº115, out. 2007.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Escala, ano 12, nº118, mar. 2008.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Escala, ano 12, nº119, abr. 2008.
RAÇA BRASIL, São Paulo: Ed. Escala, ano 12, nº120, maio 2008.
RAÇA BRASIL ESPECIAL BELEZA, São Paulo: Ed. Símbolo, ano 4, nº 7.
VEJA, São Paulo: Ed. Abril, ano 39, nº 32, 16 ago. 2006.
VEJA, São Paulo: Ed. Abril, ano 40, nº 22, 6 jun. 2007.
SITES CONSULTADOS
<http://www.expo500anos.com.br/painel_21.html>. Acesso em: 03 jul. 2007.
<http://benettongroup.com/en/whatwesay/sottosezioni/campaigns_photo_gallery.htm>.
Acesso em: 03 jul. 2007.
<www.ibge.org.br>. Acesso em: 01 maio 2008.
<http://www.ampltda.com.br/br/br/img/campanha_03.jpg>. Acesso em: 01 jul. 2007.
<http://press.benettongroup.com/ben_en/image_gallery/campaigns/?branch_id=1174>.
Acesso em: 28 jun. 2007.
<www.portalafro.com.br/entrevistas/abdias/internet/abdias.htm>. Acesso em: 28 jun. 2007.
<www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/RACIAL1B.HTM>. Acesso em: 28 jun. 2007.
<www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=24291>. Acesso em: 28
jun. 2007.
<www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=26657>. Acesso em: 28
jun. 2007.
<http://www.dhnet.org.br/dados/pp/pndh/textointegral.html>. Acesso em: 28 jun. 2007.
<www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/2003/L10.678.htm>. Acesso em: 28 jun. 2007.
<www.dialogoscontraoracismo.org.br>. Acesso em: 28 jun. 2007.
<www.planalto.gov.br/CCivil_03/decreto/2001/D3912.htm>. Acesso em: 28 jun. 2007.
<
www.planalto.gov.br/CCivil_03/decreto/2003/D4887.htm#art25>. Acesso em: 28 jun. 2007.
<http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/downloads/manualdocotista.pdf>. Acesso em: 24
abr. 2008.
111
<www.palmares.gov.br/005/00502001.jsp?ttCD_CHAVE=604>. Acesso em: 26 mar. 2008.
<www.niely.com.br>. Acesso em: 07 mar. 2008.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo