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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
BEATRIZ DOS SANTOS FERES
COMPETÊNCIAS PARA L/VER ZIRALDO
SUBSÍDIOS TEÓRICOS PARA
FORMAÇÃO DE LEITORES
Tese de Doutorado
Niterói/RJ
2006.
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BEATRIZ DOS SANTOS FERES
COMPETÊNCIAS PARA L/VER ZIRALDO
SUBSÍDIOS TEÓRICOS PARA FORMAÇÃO DE LEITORES
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do título de doutor. Área de
concentração: Estudos da Linguagem. Linha de
pesquisa: Lingüística e Ensino de Língua.
Orientadora: Profª Drª Rosane Santos Mauro Monnerat
Niterói
2006.
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BEATRIZ DOS SANTOS FERES
COMPETÊNCIAS PARA L/VER ZIRALDO
SUBSÍDIOS TEÓRICOS PARA FORMAÇÃO DE LEITORES
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do título de doutor. Área de
concentração: Estudos da Linguagm. Linha de
Pesquisa: Línguísitica e Ensino da Língua.
Aprovada em 18/07/2006
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________
Profª Drª Rosane Santos Mauro Monnerat - Orientadora Universidade Federal
Fluminense
_____________________________________
Prof. Dr. Agostinho Dias Carneiro- Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________
Prof. Dr. André Crim Valente Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________
Profª Drª Lygia Maria Trouche Universidade Federal Fluminense
_____________________________________
Prof. Dr. Fernando Afonso de Almeida Universidade Federal Fluminense
_____________________________________
Profª Drª Regina Souza Gomes Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________
Profª Drª Norimar Pasini Mesquita Júdice Universidade Federal Fluminense
Niterói
2006
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SINOPSE
Estudo da competência de linguagem
(Charaudeau, 2001b) e da competência fruitiva
de leitura no processo de formação de leitores.
Análise dos livros infantis (Ziraldo 1989, 1994ª,
1994b, 1999) e de exercícios interpretativos
realizados por leitores em formação.
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1 UM CONVITE À LEITURA
9
Se a leitura não é um ato de comunicação imediata, é, certamente,
um objeto de partilhamento. (Pennac, 1993:84)
1 UM CONVITE À LEITURA
Percorrendo a história humana, percebe-se como a palavra escrita e a atividade de
ler sedimentaram valores, mas também criaram outros; trouxeram influências, status,
poder, manipulação e, além disso, fizeram arte.
Embora sob a forte influência de uma mídia fundamentada na imagem, a sociedade
atual, veloz e de tecnologia avançada, não prescinde da escrita: ao contrário, nela baseia sua
organização, o registro de grande parte de sua herança cultural e muito de suas interações
sociais. A inserção na coletividade, o conhecimento enciclopédico, a participação em um
mundo do trabalho globalizado e informatizado, assim como a própria capacidade crítica
que pode servir de defesa para o indivíduo pressupõem o domínio da escrita/leitura,
associado ou não à compreensão do universo das imagens.
O papel exercido por essa ferramenta de socialização, portanto, exige cuidados e
perpetuação: é uma questão de acesso aos meios de produção, de consumo, de cultura. Por
conseguinte, a instituição escolar assume a responsabilidade de alfabetizar e dotar os alunos
de habilidades para ler e escrever com independência. Ziraldo, em suas entrevistas, costuma
refletir sobre essa preocupação da sociedade atual, dizendo que “ler é básico. Quem não lê
nem escreve é um deficiente físico. Como um mudo ou um cego”. Mas até onde se estende
essa responsabilidade? Estará a escola realmente desenvolvendo em seus alunos uma
verdadeira proficiência em leitura e escrita?
Feres (2003), ao analisar a atividade de leitura-compreensão-interpretação de textos
realizada pela escola de ensino fundamental, mostra a inconsistência do encaminhamento
que se dá ao ensino/aprendizagem dessa habilidade. A partir da análise de questões
elaboradas por professores, a pesquisa conclui que não são exploradas com eficiência
estratégias leitoras que trariam autonomia ao aluno-leitor. Antes de servirem como
orientadoras para a compreensão e a interpretação, essas questões objetivam apenas a
avaliação da leitura efetuada pelo aluno, mas a necessária orientação para a aplicação de
estratégias que auxiliem na construção do sentido textual é quase inexistente o que nos
leva a questionar os objetivos desse tipo de exercício escolar e a sua (existente?) base
teórica.
O problema intensifica-se quando se fala em leitura de literatura. Embora se saiba
que a literatura pressupõe uma idéia de refinamento e elitismo às vezes distante de um
público sempre mais superficial e consumista, ela guarda importantes funções culturais,
refletindo o mundo e as pessoas. É a literatura, como expressão artística, que enriquece e
povoa o imaginário de um grupo social, acrescentando experiências e obrigando a parar
para pensar, além de acostumar o homem à contemplação estética. No entanto, por
vivermos um momento de “alta velocidade”, massificados pelos meios de comunicação
cada vez mais “epidêmicos” e, por isso mesmo, necessitados de criticidade para lutar
contra o caos estabelecido e banalizado o tempo disponível para nós mesmos, para a
leitura e para a reflexão tem sido diminuído, ou até mesmo anulado. Destarte, torna-se
decisiva a função da escola, e exacerbada sua intenção educadora, reflexiva e
transformadora. É preciso ensinar a ler e a escrever, com autonomia e autoridade,
como um dos requisitos para que se forme um cidadão completo, apto para atuar
socialmente e modificar a realidade. É preciso aprender a ensinar a ler e a escrever
para o sucesso desse projeto social e talvez essa seja a maior preocupação do
presente trabalho.
Ainda sobre o problema da formação do leitor/cidadão/“mais humanizado”, pelo
qual deve-se responsabilizar a escola, preocupa também a maneira superficial e sem
fundamentos como essa questão é introduzida no ambiente educacional e, mais
especificamente, na sala de aula, quando envolve a relação direta entre professor e aluno; é
necessário encontrar um caminho que não afaste do trabalho com a leitura de literatura
esses que são os sujeitos diretamente envolvidos no processo ensino/aprendizagem.
Em conseqüência dessa preocupação, este trabalho pretende, a princípio,
problematizar o ato de ler e o processo de produção de sentido. A partir, principalmente,
da identificação das marcas textuais que orientam a leitura, o leitor em formação deve ser
levado a ser capaz não só de decodificar o texto, como também de relacionar idéias
presentes ou selecionar aquelas que, embora ausentes, sejam pertinentes e necessárias à
interpretação. São aspectos que dizem respeito ao desenvolvimento de uma competência de
linguagem, ou ao uso (na produção e na recepção, numa troca constante) de competências
que vinculem a camada superficial do texto aos níveis discursivo e situacional, num
processo de influências mútuas com vistas à construção do sentido. Esse é o processo que
possibilita a formação de um leitor autônomo, que sabe investigar o texto com
independência, apoiando-se naquilo que este oferece explícita ou implicitamente,
superficialmente ou com qualquer grau de complexidade; que re-conhece o sentido do texto
a partir da consciência de sua atuação como co-enunciador, de sua participação na leitura.
Contudo, mais do que investigar o processo interpretativo instigado pela leitura, por
causa da preocupação voltada à leitura de literatura, este é um estudo que se torna
necessário à delimitação de uma competência “extra”, que devolva a sensibilidade ao
leitor em formação. A essa competência vai caber o refinamento de seu sentido-
percepção, a fim de provocar um “ajuste” entre leitor e texto que não só o aproxime
da realidade textual, como também proporcione uma transformação interna a partir
do efeito poético que o afeta. Assim, o sentido interpretado na leitura do texto torna-se
suporte de um sentido-sentimento, tão necessário à retomada de um processo sensibilizador
cada vez mais distante do encrudelecimento do mundo e a formação do leitor assume a
importância de uma trans-formação pessoal que, mais cedo ou mais tarde, poderá ter forte
influência sobre o outro.
Em virtude dessa necessidade, torna-se privilegiado o espaço ocupado por uma
investigação que favorece a interseção entre língua e literatura a fim de estudar a
linguagem numa dimensão enunciativa. De acordo com Almeida (2000:93), autores
como Bakhtin e Benveniste enfatizaram “os diferentes fatores que explicam a relação dos
enunciados com o contexto interacional em que circulam”. Desta maneira, teriam aberto um
novo espaço para os estudos da linguagem, antes tão divididos entre língua e literatura
porque havia a “desvinculação do sistema lingüístico e do texto literário de suas condições
de uso, produção e interpretação” (op.cit.). Ainda segundo o autor, esses estudos “adotaram
uma tônica mais relacional, em que ganham peso os aspectos funcional, subjetivo e social
conscientes ou não que podem ser depreendidos do exercício da palavra”.
Nesse espaço investigativo, é possível trabalhar-se com todas as potencialidades da
língua, com seus recursos expressivos baseados no sistema lingüístico mesmo, ou com as
potencialidades ancoradas em pressupostos pragmáticos, de clara influência do e sobre o
social. Observa-se a construção da superfície textual, não per se, mas organizada em função
da atividade intersubjetiva, da coerção cultural, dos efeitos expressivos e poéticos, da maior
complexidade provocada pela atuação do eixo da seleção sobre a superfície textual,
característica do objeto literário. A partir da dimensão enunciativa em que se inscreve a
interseção língua/literatura, falar de “todas as potencialidades da língua” é uma
referência ao possível grau máximo de afetamento dos sujeitos envolvidos no ato de
linguagem por meio do texto artístico, seja no interessante inusitado de sua forma,
seja na adesão ao mundo textual propiciada pelos “excessos” das relações entre texto e
cultura, ou entre texto e situação comunicativa (privilegiando-se, aqui, o leitor).
Esses são os motivos que justificam a opção pela obra de Ziraldo, autor
multifacetado e consciente da problemática a que se refere o presente estudo. É uma obra
rica, para todas as idades “leitoras”, poética, sensível, metalingüística, que recorre
freqüentemente ao tema “por que ler é imprescindível”. Na obra “infantil” de Ziraldo, nas
“potencialidades da língua”, incluem-se as do signo icônico (que também se baseia
discursiva e situacionalmente), seja nas ilustrações, seja na escolha das cores, na
diagramação e na sua constituição poética.
Ziraldo Alves Pinto. Mineiro de Caratinga, formado em Direito, mas desenhista,
cartunista, quadrinista, jornalista, pintor, teatrólogo, escritor, declaradamente bom leitor
(assíduo e competente). Profundo e crítico, tem feito de sua vasta e variada obra a defesa da
imaginação, da criatividade, da sensibilização, de valores mais humanos. Obra que carrega
uma importância fundamental: grande parte dela pode ter como interlocutores também as
crianças e, em parte por isso, pertence ao universo da literatura infantil. Sua característica
fundamental é a natureza analógica de seu texto, tanto na relação verbal/não verbal, quanto
na sedução obtida por meio de estratégias de identificação mundo real/mundo textual,
baseadas na sensibilização do leitor, na emergência de sensações e de sentimentos.
Além dessas características, destaca-se o valor considerado central para este
estudo: a sedução obtida através de recursos lingüísticos e discursivos baseados tanto
na interação quanto na competência de linguagem. É uma obra que atrai o leitor,
envolvendo-o lentamente, tomando-o como co-participante, fazendo-o aderir às suas idéias
e sensações, facilitando seu posicionamento como um “fruidor” da obra.
O estudo da interação humana tem oferecido, nas últimas décadas, uma nova
abordagem para as investigações acerca da linguagem. Do dialogismo de Bakhtin aos
trabalhos de Benveniste e Ducrot (entre outros), da Análise do Discurso à Análise da
Conversação, problemas relativos não somente à fala e à conversação, mas aos vários
aspectos que envolvem a linguagem em sua dimensão enunciativa têm sido levantados. Em
relação à leitura e às estratégias acionadas pelo leitor para a produção de sentido textual (ou
estratégias leitoras), essa nova abordagem muito tem contribuído, já que o texto escrito e,
especialmente, o texto literário é, ainda que de maneira mediata, um legítimo meio de
interação que necessita ser explorado e explicado, através, principalmente, da observação
de fatores pragmático-enunciativos (próprios da competência de linguagem), dada sua
complexidade constitutiva e sua importância para o desenvolvimento da capacidade
interpretativa daquele que lê fato de especial interesse para quem se envolve com o
processo ensino/aprendizagem de língua e de literatura.
Nesse sentido, volta-se à epígrafe, que mostra a leitura como um “objeto de
partilhamento” tanto social quanto interpessoal. Isso significa que tanto escritor quanto
leitor tomam parte, mesmo que em extremidades opostas (mas mutuamente determinadas),
de uma mesma e diferente experiência de adentramento no texto: o escritor transforma
idéia em signo tentando imaginar formas de interpretação possivelmente acionadas pelo
leitor, enquanto o leitor transforma signo em idéia tentando calcular, a partir de um
material cheio de lacunas e reentrâncias, intenções e desdobramentos, filtrado em sua
própria experiência, o(s) sentido(s) do texto. É um jogo interlocutivo que necessita de
conhecimento sobre suas regras, sobre o mundo, sobre os sujeitos envolvidos no processo,
assim como sobre as já mencionadas marcas enunciativas inscritas no próprio discurso.
Além disso, sendo esse “objeto de partilhamento” uma obra literária, a interação
estabelecida pressupõe especial capacidade de interpretação dada a natureza estética do
texto e, se, segundo Bakhtin, “a literatura é a linguagem total, a convocação de todas as
potencialidades da língua”, nela reside a maior necessidade de investigação, de estratégias
leitoras bem definidas e utilizadas adequadamente principalmente quando se trata de
ensino/aprendizagem relativo ao texto como obra de arte e de seu efeito poético. As
variadas noções e conceitos próprios dos estudos de linguagem assumem, neste caso, forte
apelo interpretativo e explicam os mecanismos de obtenção de sentido em um espaço de
natureza plurissignificativa e desautomatizada.
O partilhamento entre os sujeitos, no caso do texto literário, ainda abarca outro
aspecto relativo à investigação científica e à abordagem pedagógica: a formação do
indivíduo além daquilo que diz respeito à sua atuação como leitor pois a leitura de
literatura ultrapassa o conhecimento objetivo e transborda a simples assimilação de idéias a
fim de se alcançar a troca de experiências, a exacerbação da sensibilidade.
...trabalhar com a linguagem, leitura e escrita pode ensinar a utopia. Pode
favorecer a ação numa perspectiva humanizadora, que convida à reflexão, a
pensar sobre o sentido da vida individual e coletiva. Essas questões remetem
à responsabilidade social que temos, no sentido de provocar como propõe
Adorno a auto-reflexão crítica, engendrando situações nas quais se torne
possível ajudar a frieza a adquirir consciência de si própria, de sua
consciência coisificada, de sua indiferença pelo outro. É com essa meta que
se justificam a leitura e a escrita. (Kramer, 2001: 114)
Pelas características fundamentais que envolvem o trabalho com a linguagem
literária, é relevante a perspectiva trazida pelas bases teóricas que envolvem tanto a
interação verbal, quanto a competência de linguagem. Assim, este trabalho basear-se-á,
especialmente, na Teoria Semiolingüística de Análise do Discurso, preocupada com a
linguagem num espaço psicossocial. Contudo, tanto para a análise do texto sincrético,
como a do efeito poético produzido pela literatura infantil, também encontrará
respaldo em noções da Semiótica Peirceana. É uma perspectiva que pretende subsidiar
teoricamente o ensino da leitura de literatura, suplantando o mero conhecimento de língua,
normalmente privilegiado pela escola.
As variadas estratégias produtoras de sentido (e de poesia) que aqui serão
observadas na leitura da obra de Ziraldo não só pretendem mostrar a necessidade de
um refinamento maior do esforço interpretativo na leitura de literatura, como
também nos revelam a complexa tarefa de formação do leitor, proporcionando um
movimento ao mesmo tempo cognitivo, interpretativo, contemplativo e crítico.
Assim, no segundo capítulo (“O que é ‘sentido’ na leitura”), será descrita a
construção do sentido operada na leitura como processo interativo, no qual o leitor exerce o
papel (ativo e necessariamente bem posicionado) de sujeito de suas leituras. Para tal, serão
utilizados principalmente os pressupostos trazidos pela Semiolingüística, seja na
problematização da semiose textual, seja da identificação dos vários “sujeitos” envolvidos
no “contrato de comunicação” estabelecido durante a leitura, seja na delimitação de uma
“competência de linguagem” exigida por todo ato comunicativo, abarcando os níveis
semiolingüístico, discursivo e situacional de construção de sentido. À observação dessa
multifacetada “competência de linguagem”, estará vinculada a investigação de estratégias
produtoras de sentido. Além das idéias postuladas por Charaudeau, especialmente, serão
incluídas noções da Semiótica Peirceana acerca do processo significativo, como a distinção
entre signos icônicos”, “indiciais” e “simbólicos”, a fim de um maior aprofundamento de
análise do texto sincrético, como o de literatura infantil, objeto de análise do capítulo
subseqüente.
No terceiro capítulo (“O que há de infantil na literatura?”), será alvo de interesse a
literatura infantil. Nesse capítulo, será relatado o percurso histórico-cultural que justifica,
de certa forma, a dupla caracterização de que passou a ser alvo: a utilitário-pedagógica e a
artística. Para contrapor essa visão inicial, analisa-se o estado da literatura infantil
brasileira, sobrepondo-se sua referência literária, artística, a uma possível depreciação
advinda do adjetivo infantil. Em substituição à idéia de simploriedade, ou de infantilização
das obras (o que diminuiria sua qualidade estética), a qualidade de ser infantil passa a ser
vista como caracterização de uma obra lúdica e poética, de processamento
predominantemente analógico, que provoca a adesão (quase total) do leitor ao seu “projeto
de afetamento”. Quando se trata da obra de Ziraldo, o adjetivo infantil ainda adquire a força
de traço estilístico, com inúmeros títulos que incluem o menino como recorrência temática.
Já no quarto capítulo (“Ziraldo para l/ver”), a produção de sentido via leitura será
evidenciada a partir da análise da obra de Ziraldo. O estudo do dialogismo sob diversas
formas evidenciará o processo interativo de construção de sentido na leitura do livro O
menino quadradinho. A necessidade de desenvolvimento da competência de linguagem na
formação do leitor será investigada com a observação de constituintes textuais advindos dos
níveis situacional, discursivo e semiolingüístico em Flicts e em O menino mais bonito do
mundo. Este último nível terá seus elementos mais particularmente explorados para a
exacerbação do efeito poético na leitura de Uma historinha sem (1) sentido.
Se, para a leitura de textos “ordinários” são necessárias competências
equilibradamente acionadas a partir da própria superfície textual, do discurso e da situação
comunicativa, a leitura de textos envolvidos em “excessos” poéticos e lúdicos (os “textos
de fruição”), como os de literatura infantil, depende de um refinamento interpretativo que
possibilite a percepção de traços delicados (às vezes detalhes, às vezes sobrepostos aos
elementos superficiais, às vezes sutilmente implicados), nascidos na aproximação de
elementos (presentes e/ou ausentes), na identificação de suas semelhanças, de suas
qualidades. Para essa singularidade textual, faz-se preciso descrever um outro tipo de
competência: a fruitiva. É uma competência que não só habilita o produtor de sentido a
reconhecer esses traços, ou “excessos” do texto, como também o predispõe ao sentido
sentido, aos afetos e afetamentos acionados pela obra artística. Para a formação do leitor, o
desenvolvimento dessa competência é necessário para sensibilizá-lo, para que se desperte o
gosto pela leitura, pelas palavras, pela literatura a partir do sentido-feeling sobreposto ao
sentido-meaning. Esse será o tema do quinto capítulo, finalizado com a análise de
exercícios de leitura sobre os livros de Ziraldo escolhidos, realizados por alunos dos níveis
fundamental e médio.
Com essa análise do processo leitor, pretende-se delimitar subsídios teóricos
para a formação do leitor de literatura, mas, sobretudo, evidenciar a “função
sensibilizadora” da arte, tão necessária à re-humanização de um mundo preso à
superficialidade, descrente dos direitos humanos e sem motivos para a contemplação.
2
O QUE É “SENTIDO” NA LEITURA
Ler é uma forma de escrever com mão alheia.
Affonso Romano de Sant’Anna
2
O QUE É “SENTIDO” NA LEITURA
Affonso Romano de Sant’Anna (s/d), em uma crônica que fala da leitura como
processo de decifração dos “sinais à nossa frente” (não só as palavras, mas também as urnas
eleitorais, os sintomas das doenças, uma partida de futebol, ou a forma como um jornal é
feito) associa a leitura dos signos à capacidade de ler o mundo. Em outras palavras, a
capacidade de reconhecer experiências e de relacionar essas experiências à situação em que
o “texto” se insere é fundamental ao ato de atribuição de sentido: a destreza como leitor, ou
como decifrador, depende de uma certa habilidade de projetar a si mesmo, através do
conhecimento adquirido ao longo de sua vida, no texto que lê.
Paulo Freire, em A importância do ato de ler (2003), a partir do relato de sua
experiência como “leitor" do mundo e da palavra, revela a estreita ligação entre, de um
lado, a percepção das coisas ao redor, da natureza, das pessoas, das crenças, dos valores
culturais e, de outro, a leitura da palavra propriamente dita: percebe-se o mundo para
interpretar a palavra; lê-se a palavra, para interpretar o mundo.
A leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por
uma certa forma de escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de
transformá-lo através de nossa prática consciente. (Freire, 2003:20)
A experiência perceptiva vivida por Freire desde a infância, repleta de sensações e
sentimentos, aprendizado e memória, compreensão de seu mundo particular e
interpretação do “sentido” tanto o que é sentido pelo coração, afetivo, quanto o sentido
referente à cognição, intelectivo revela a “primeira leitura” a que estão os homens
expostos, desde que nascem. Na interação com o mundo, com a vida, com o social, vai-se
construindo um modo singular de “leitura”, na atribuição de significados mais tarde tão
necessários para outras “leituras” e interpretações.
Freire ainda defende uma “segunda leitura”, a da “palavra escrita”. Na verdade,
defende um modo de ler e de escrever (“no fundo indicotomizáveis”) crítico, profundo,
ligado àquilo que há de essencial aos indivíduos. Somado a esse modo, entende a leitura
da “palavramundo” como um meio para uma profícua leitura do mundo, já que,
acionadora do conhecimento prévio e partilhado, vai além das letras e das palavras,
solidariza texto e experiência: “... a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e
a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele” (op.cit.: 20).
Sob a perspectiva semiolingüística, pode-se afirmar que Freire prega uma leitura
verdadeiramente interpretativa, que leva em conta o plano discursivo da linguagem e
pressupõe estratégias leitoras não-mecanizadas, abarcando todo o universo enunciativo em
que se insere cada ato de ler. Segundo Charaudeau (1983), para se construir o sentido que
corresponda à intencionalidade do enunciador, é preciso relacionar as palavras e as
seqüências portadoras de sentido com outras palavras e outras seqüências portadoras de
sentido que se acham registradas na memória da experiência do sujeito: trata-se,
justamente, da leitura de mundo que subjaz a leitura da palavra e se enriquece com ela.
Ao mostrar como são inseparáveis a leitura da palavra e do mundo, Freire expande
a noção do que é ler, considerando como tal não só a (ultra)passagem da simples
compreensão da palavra escrita até a importância da compreensão crítica do mundo
através do ato de ler, mas também a influência que uma constante e apurada leitura do
mundo, fruto da experiência ao mesmo tempo individual e social do leitor, pode ter sobre o
resultado de suas leituras posteriores. Pode-se afirmar que Freire aponta para dois tipos de
leitura: uma, conhecimento e re-conhecimento do vivido, atividade mnemônica impregnada
tanto de racionalidade quanto de afetividade; outra, decodificação e interpretação do
simbólico, dos signos convencionados pelo homem para a comunicação em sua prática
social sobretudo do símbolo-palavra-escrita. Em ambos os casos, porém, há um traço
que os une e justifica: a atribuição de sentido depende de um sujeito que relacione os dois
pólos.
Para se tornar um leitor proficiente e crítico, portanto, é preciso desenvolver
competências relativas não só ao conhecimento dos signos partilhados por um determinado
grupo social através de textos de variada natureza, mas também aos rituais nos quais os
sujeitos se envolvem e aos papéis que assumem em sua relação com o mundo. A
Semiolingüística define e explica as competências envolvidas no ato de linguagem. O
leitor, atuando com essas competências, reivindica sua posição de produtor de sentido, de
autor do sentido do texto que lê, “escrevendo, com mão alheia”, sua própria história.
Ainda que restrinjamos a noção de leitura ao ato de construir o sentido de um texto,
verbal e/ou não-verbal, intencionalmente produzido em determinada circunstância
comunicativa, o processo significativo a que o indivíduo se submete incessantemente
(inclusive em relação a fenômenos sem emitente humano, ou com emitentes sem
consciência de que comunicam algo a outrem) alimenta sua capacidade leitora com dados e
pontos de vista posteriormente usados em novos processos de leitura.
Como demanda uma capacidade interpretativa baseada, sobretudo, na sensibilidade
para aproximar dois mundos, o textual e o real, o “sucesso” da leitura de literatura (como
finalização de um sentido verossímil interna e externamente) estará vinculado, em especial,
à sua capacidade de focalização, obtida no cruzamento de diferentes competências: a
semiolingüística, a discursiva e a situacional (Charaudeau, 2001b). Quando se trata de
literatura infantil, cujos textos, dedicados também às crianças (na maioria, leitores em
formação) inserem palavras e ilustrações em uma atmosfera poética, impactante, rica em
“sentidos” (significados, sensações, afetividade, direções), a aproximação desses mundos
ocorre de maneira analógica, lúdica, sensível.
Para a investigação do ato de ler será utilizada, essencialmente, a teoria
semiolingüística, que, apesar de privilegiar a palavra como forma de expressão, entende
que a semiotização pode ocorrer em diferentes sistemas semiológicos sendo, portanto,
uma teoria adequada também para a investigação de textos mistos, como O menino
quadradinho, Flicts, O menino mais bonito do mundo e Uma história sem 1 sentido, de
Ziraldo, objetos de análise neste trabalho. Além disso, noções advindas de outras correntes
teóricas (Teoria da Enunciação, Pragmática, Análise da Conversação e, especialmente, da
Semiótica peirceana) serão coadjuvantes na constituição desta fundamentação teórica.
A interação verbal é a realidade fundamental da linguagem.
Bakhtin
2.1 O leitor, “sujeito” à interação
Interação. Mais do que simples troca de informações, do que somente comunicação
de dados. Ação recíproca entre duas ou mais pessoas. Um ser que age sobre outro e que se
vê alvo da ação do outro; que se sabe sujeito através dessa constante troca fecundamente
ativa.
Segundo Kerbrat-Orecchioni (1990), uma fórmula tão radical quanto a de Bakhtin,
afirmando que “a interação verbal é a realidade fundamental da linguagem”, pode ser
sustentada pela idéia de que os “interactantes” de uma troca comunicativa qualquer
exercem sobre os outros uma “rede de influências mútuas”. Adotada essa perspectiva,
pode-se entender que o processo comunicativo implica uma determinação recíproca e
contínua dos comportamentos dos participantes. Mais do que emissor e receptor (presos a
uma abordagem unidirecional do ato de linguagem), os coenunciadores
1
correspondem a
seres que se determinam mutuamente, produzindo, ambos ativamente, o sentido textual de
acordo com fatores pragmático-enunciativos inerentes ao esforço engendrado na interação.
O que existe de novo e característico da abordagem interacional é considerar
que o sentido de um enunciado é o produto de um “trabalho colaborativo”, que
ele é construído conjuntamente pelas diferentes partes presentes a interação
podendo então ser definida como o lugar de uma atividade coletiva de produção
de sentido, operação que implica em implementar negociações explícitas ou
implícitas, que podem ser bem sucedidas ou fracassar (...). (Kerbrat-Orecchioni,
op.cit.:29)
Da mesma forma, em relação à interação realizada através do texto escrito, a
produção de sentido se dá não somente por aquele que escreve, organizando, ajustando o
material de acordo com uma intenção comunicativa (e, tratando-se de literatura, objeto de
1
Visto o caráter interativo de que se investiram as análises lingüísticas, para Maingueneau (2002: 54),
coenunciadores (no plural e sem hífen) designa com mais propriedade os parceiros do discurso; co-
enunciador (com hífen) substitui destinatário.
análise deste trabalho, uma intenção comunicativa e estética), mas também pelo próprio
leitor, numa dinâmica dialógica. Em um primeiro plano, o leitor interage com o texto (que é
palavra do autor), integrando-se ao mundo textual, via ato de ler e, em outro plano, interage
com o autor, via texto, na sua relação com o mundo real, como um indivíduo que, através
da interpretação efetivada, conhece, depreende e adiciona mais uma vivência à sua
experiência de vida.
O produto do trabalho de produção se oferece ao leitor, e nele se realiza a
cada leitura, num processo dialógico cuja trama toma as pontas dos fios do
bordado tecido para tecer sempre o mesmo e outro bordado, pois as mãos
que agora tecem trazem e traçam outra história. Não são mãos amarradas
se o fossem, a leitura seria reconhecimento de sentidos e não produção de
sentidos; não são mãos livres que produzem o seu bordado apenas com os
fios que trazem nas veias de sua história se o fossem, a leitura seria um
outro bordado que se sobrepõe ao bordado que se lê, ocultando-o, apagando-
o, substituindo-o. São mãos carregadas de fios, que retomam e tomam os
fios que no que se disse pelas estratégias de dizer se oferece para a tecedura
do mesmo e outro bordado. (Geraldi, 1997:166)
A própria expressão ato de ler carrega pressupostos ligados ao âmbito interacional.
Ato porque, primeiramente, é necessária a ativação de capacidades cognitivas e relacionais
para decodificação, compreensão e interpretação do material escrito e, além disso, porque
pressupõe uma não-passividade daquele que lê. Isso significa que aquele que lê não
encontra um produto acabado, imutável, do qual seria extraído o sentido. De acordo com a
própria individualidade do leitor, com suas experiências acumuladas, com o
momento/espaço que ocupa, o resultado da leitura poderá ser diferente.
Ato de ler significa, então, um agir em direção à construção de sentido de um texto.
Isso não depende apenas do conhecimento da estrutura superficial, mas do estabelecimento
de relações semânticas, lógicas, pragmáticas e enunciativas operadas pelo leitor para a
obtenção da macroestrutura textual, do sentido global, numa relação leitor-texto.
De acordo com Bakhtin (2000: 290), existe sempre uma reação àquilo que é
recebido por meio da linguagem.
De fato, o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um
discurso adota simultaneamente, para com esse discurso, uma atitude
responsiva ativa, (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável); toda
compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a
produz: o ouvinte torna-se locutor.
Ampliando o foco desse princípio bakhtiniano para a problematização da leitura,
vislumbramos um leitor compreendendo e interpretando o texto através de um movimento
que, por si só, traz inscrita essa atitude responsiva ativa, pois, ao assumir o papel de
interlocutor, ele aceita, responde ao desafio, cooperando, com suas habilidades e
competências, para a produção do sentido.
Mais além, temos um outro leitor, ou uma outra dimensão desse mesmo leitor, que,
apreendendo o que leu, adiciona novas experiências à sua própria vida, no espaço que
ocupa fora do circuito da palavra, no mundo real.
Ao buscar a compreensão do texto, a partir das referências sugeridas pelos
signos impressos que compõem o documento, o sujeito executa as atividades de
constatação, cotejo e transformação. Na constatação, o sujeito situa-se nos
horizontes da mensagem, destacando e enumerando as possibilidades de
significação; no cotejo, o sujeito interpreta os significados atribuídos; na
transformação, o sujeito responde aos horizontes evidenciados, re-elaborando-
os em termos de novas possibilidades. (Silva, 2000, p.95)
Justamente por causa dessa capacidade trans-formadora, engendrada pela dupla
atitude responsiva ativa adotada por esse sujeito-leitor, a literatura ganha especial
importância na análise da interação verbal: de um lado, evidencia-se o trabalho
interpretativo junto ao texto propriamente; por outro, aborda-se o poder do texto literário
numa constituição de “sujeitos-homens” mais “cheia de sentidos”. Afinal, como Ricoeur
defendia:Que saberíamos do amor e do ódio, dos sentimentos éticos, e em geral de tudo o
que chamamos de si mesmo, se isso tudo não tivesse passado à linguagem, articulado pela
literatura? (Ricoeur, apud Nunes, 1999: 196)
Segundo Martins (1994: 31), as inúmeras concepções vigentes a respeito da leitura
podem ser sintetizadas em duas caracterizações: a perspectiva behaviorista-skinneriana,
que considera o ato de ler “uma decodificação mecânica de signos lingüísticos, por meio de
aprendizado estabelecido a partir do condicionamento estímulo-resposta”, e o ponto de
vista cognitivo-sociológico, segundo o qual que esse ato é visto “como um processo de
compreensão abrangente, cuja dinâmica envolve componentes sensoriais, emocionais,
intelectuais, fisiológicos, neurológicos, bem como culturais, econômicos e políticos”.
Numa visão mais moderna, sabe-se que tanto a decodificação de sinais quanto a
compreensão são indispensáveis à leitura, que, gradativamente, passou a ser considerada
um processo dependente da atuação do leitor, que participa com uma aptidão ligada mais à
sua capacidade de compreender os sinais, do que simplesmente a uma capacidade de
decifração. Martins (op.cit., p. 32) entende por sinal “qualquer tipo de expressão formal ou
simbólica, configurada pelas mais diversas linguagens”, e enfatiza que essa aptidão,
“mesmo em se tratando da escrita”, submete-se mais à experiência pessoal, à vivência de
cada um, do que ao conhecimento sistemático da língua.
Leffa (1999) diferencia três grandes abordagens teóricas que tratam do fenômeno
cognitivo/social da leitura, com ênfase no processo de construção do sentido: a ascendente,
a descendente e a interacionista. Uma “visão panorâmica” evidenciará a influência dessas
perspectivas na condução do processo de leitura na escola, praticamente único espaço
responsável pela formação de leitores nos dias atuais.
Principalmente nas décadas de 50 e 60, nos Estados Unidos, predominaram as
abordagens ascendentes, que estudam a leitura na perspectiva do texto (processo
ascendente: bottom-up, em inglês, fluindo do texto para o leitor). Nesse caso, a construção
de sentido é vista como um processo de extração. Acreditava-se na invisibilidade do texto e
toda opacidade era rigorosamente combatida. O texto, intermediário entre o leitor e o
conteúdo, deveria ser transparente, totalmente claro. Com isso, os livros didáticos eram
preparados seguindo as fórmulas de inteligibilidade de acordo com as séries escolares.
Buscava-se clareza, mesmo em detrimento da proficiência em leitura. Se ler, neste caso, é
extrair significados, um texto produz sempre os mesmos significados. Assim, o leitor mais
competente dita o significado para o menos competente; por conseguinte, nessa
perspectiva, na sala de aula, o texto significa aquilo que o professor diz que ele significa. A
capacidade de reconhecer letras e palavras é considerada essencial, enfatizando-se, assim, o
processamento de baixo nível. “Ler é sair do código escrito para o código oral” (Leffa,
1999:19).
Nas abordagens descendentes (concept-driven, em inglês), a ênfase está no leitor: a
leitura é um processo de atribuição de significados, que dependerá da experiência de vida
do leitor e envolverá conhecimentos lingüísticos, textuais e enciclopédicos, além de fatores
afetivos. A informação não-visual, residente na memória do leitor, é mais importante que o
texto impresso. A perspectiva da leitura com foco no leitor transforma-o em elemento
ativo, que atribui significado, faz previsões, separa amostras, confirma e corrige hipóteses
sobre o texto. Em relação à escola, o ponto negativo dessa concepção de leitura foi ver o
leitor como o “soberano absoluto na construção do significado” (op.cit., p.28); em outras
palavras, podendo atribuir ao texto o significado que lhe aprouver, sem a preocupação com
o “certo” e o “errado”; o significado que o leitor-aluno atribuir ao texto prevalece, inclusive
em relação ao significado dado pelo professor. Ignoravam-se completamente os aspectos da
injunção social da leitura.
Já as outras abordagens enfatizam a relação com o outro, a interação; conciliam
texto e leitor, além de descreverem a leitura como um processo interativo/transacional. Na
abordagem transacional, é focalizada a perspectiva do leitor, considerando o contexto em
que ele atua e as mudanças que sua atuação produz; já na teoria da compensação, parte-se
do princípio de que a leitura envolve várias fontes de conhecimento (lexical, sintático,
semântico, textual, enciclopédico etc) e de que essas fontes interagem para a construção do
sentido. Se o leitor falhar em uma dessas fontes, poderá compensar essa deficiência através
do acionamento de outra fonte. Levando em consideração o papel do leitor na interação
com o outro/autor via texto literário, a própria observação das estratégias leitoras ganha
nova dimensão, já que essas passam a ser extraídas do processo interativo.
É preciso recordar, entretanto, que nem sempre o sujeito teve o status de enunciador
nos estudos lingüísticos. Antes, exclusivamente ligado à realidade gramatical, ou na
retórica antiga, o sujeito não aparecia como ser da enunciação, na relação com o outro
através da linguagem. Mesmo nas teorias estruturalistas, com sua orientação para a
atividade da comunicação, assim como na teoria gerativa de Chomsky, o ato de linguagem
era feito de um “locutor-ouvinte-ideal”, num processo simétrico entre aquele que o produz
e o que o decodifica.
Com Bakhtin, uma nova perspectiva, baseada no dialogismo, é inaugurada:
...o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, de sua visão e de
sua memória; memória que o junta e o unifica e que é capaz de lhe proporcionar
um acabamento externo. Nossa individualidade não teria existência se o outro
não a criasse. (Bakhtin, 2000:55)
De acordo com Bakhtin (op.cit.), a constituição do sujeito e sua tomada de
consciência em relação à posição única que ocupa no mundo não só pressupõe como
depende efetivamente da existência do outro. O homem, a partir da perspectiva interna de
sua própria subjetividade, não é capaz de apreendê-la por inteiro, por isso oferece-se ao
acabamento que somente a alteridade é capaz de lhe proporcionar: ele só pode ter
consciência de sua integridade na relação que estabelece com o outro através da linguagem:
Para a minha consciência, essa imagem global está dispersa na vida e não
penetra no campo da minha visão do mundo exterior senão fortuitamente, de
forma fragmentária, pois faltam-lhe precisamente a unidade externa e a
continuidade. O homem não pode juntar a si mesmo num todo exterior
relativamente concluído, porque vive sua vida na categoria de seu eu. Não é por
falta de material no plano de sua visão externa ainda que sua insuficiência
seja considerável mas por falta de um princípio valorativo interno que lhe
permitisse, de dentro de si, ter uma abordagem para sua expressividade externa.
Espelho, fotografia, auto-observação nada mudarão. Na melhor das hipóteses,
obtém-se uma falsificação, um produto estético criado de modo interesseiro, a
partir do outro possível, desprovido de autonomia. (op. cit.: 54-55)
Nessa relação com o outro, faz-se sujeito, assim como transforma o outro em sujeito
também. É o sujeito dialógico, multifacetadamente constituído, depositário da experiência
alheia, que, num processo simbiótico, mesmo que nem sempre simétrico, possibilita a
formação do sujeito-outro, igualmente impregnado da vivência que agora também lhe
pertence, tão reprodutor de juízos e de idéias quanto seu parceiro.
Um sujeito dialógico só é assim caracterizado através de um discurso que o
representa, assim como ele próprio é composto por outros discursos, alguns explicitamente
revelados; outros, na sua implicitude, mascaram-no, protegem-no, impulsionam-no, ou,
simplesmente, constituem-no. Sujeito dialógico que se dá a perceber em um enunciado
dialógico, não necessariamente porque organizado como uma troca de réplicas entre dois
interlocutores, mas porque polifonicamente estruturado, capaz de heteregeneidades
mostradas (formalmente marcadas) ou apenas constitutivas (Authier-Revuz, 1990), ou
porque intertextualmente construído. Assim, o dialogismo, intrínseco ao sujeito, instala-se
no discurso que o representa, deixando, nos textos, vestígios ou marcas efetivas de sua
existência.
Quando materializado na forma de falas presentes em um texto, o dialogismo é mais
comumente visto como fenômeno da polifonia.
Entende-se polifonia como a multiplicidade de sujeitos responsáveis pelo ponto
de vista das falas, em um texto. Conseqüência natural da vida em sociedade, a
polifonia reflete a interação do homem, como ser social, na troca de
informações, nas tomadas de posição, enfim, no fenômeno da aculturação do
ser humano, no decorrer de sua existência. (Angelim, 2003:15)
Quando perceptível através da incorporação de um texto em outro, “seja para
reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo” (Fiorin,1999:30), o dialogismo é
considerado um processo de intertextualidade
2
, realizado, de acordo com o autor, por meio
de citação, alusão ou estilização.
Na citação, o sentido do texto citado pode ser confirmado ou alterado e, no caso de
textos literários, não é explícita, com indicação da fonte, como nos textos não-literários. Já
na alusão, não são citadas as palavras (todas ou quase todas), mas são reproduzidas as
construções sintáticas em que certas figuras são substituídas por outras, sendo que todas
mantêm relações hiperonímicas com o mesmo hiperônimo ou são figurativizações do
mesmo tema. Quando o que ocorre é “a reprodução do conjunto dos procedimentos do
‘discurso de outrem’, isto é, do estilo de outrem” (Fiorin, op.cit.), temos a estilização. Para
tal, há recorrências formais no plano da expressão e no do conteúdo manifestado que
produzem um efeito de sentido de individualização.
Assim, pode-se afirmar que cada sujeito é, de certa forma, uma reunião de
experiências que, embora individuais e únicas (por não serem repetíveis), estão
impregnadas das experiências dos outros sujeitos com quem interage. É, portanto, a visão
oriunda do outro, do “tu”, que o torna único, que o torna “eu”. Um “eu” que também se
investe do papel de “tu” para o outro; ora “acabado” pelo outro, ora “dando-lhe
acabamento”.
2
Outros aspectos acerca da intertextualidade serão abordados a partir da página 33, ao se tratar do nível discursivo da
linguagem.
A Teoria da Enunciação, que teve como precursor Bakhtin e ganhou impulso com a
obra de Benveniste, propôs-se a estudar a subjetividade na língua, o “aparelho formal da
enunciação”: “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito;
porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito
de ‘ego’”(Benveniste, 1976: 286).
Com isso, tanto a presença dos responsáveis pelo ato de linguagem, quanto suas
identidades, seus estatutos e papéis são levados em consideração. Os conceitos de emissor e
receptor já haviam sido defendidos por Jakobson (s/d), com as funções emotiva e conativa
da linguagem, entretanto, somente com Benveniste (1976) surge a primeira mudança
teórica importante: “A subjetividade é a capacidade do locutor de se colocar como sujeito”.
Assim, a enunciação sobrepõe-se ao enunciado e o caminho para os novos estudos
fundados pela oposição “Eu/Tu” está aberto (Charaudeau, 2001a).
Além dessa concepção essencialmente enunciativa, a Pragmática passou a levar em
conta o estatuto linguageiro do sujeito falante para explicar os performativos, assim como a
Semiótica tentou distinguir, nos objetos literários, vários tipos de enunciadores,
destinadores, destinatários etc., como em Barthes; destarte, o sujeito amplia e solidifica seu
lugar na análise lingüística.
Expandido o campo de atuação dos estudos da linguagem para além do enunciado,
nasce a Análise do Discurso (AD), considerando que a linguagem “enquanto discurso é
interação, e um modo de produção social” e, ainda, “elemento de mediação necessária entre
o homem e sua realidade“ e “forma de engajá-lo na própria realidade” (Brandão, 2004: 11).
A princípio voltada para o estudo da linguagem como espaço privilegiado de
manifestação da ideologia e, conseqüentemente, concebendo o sujeito como um ser
assujeitado ideologicamente, incapaz de ser “dono” de sua voz, como em Pêucheux, a AD
assume, mais tarde, outras perspectivas, que devolvem ao sujeito sua natureza “original”,
não no sentido adâmico, mas admitindo a singularidade de sua posição no processo
interativo; singularidade essa constituída no próprio dialogismo a que o sujeito se submete
na relação com o outro. Um tanto produto da interação, um tanto produtor.
Corroborando essa concepção mais recente, a Semiolingüística adota a perspectiva
pragmático-enunciativa e defende que o homem é uma amálgama de um ser nem
completamente individual, nem completamente coletivo (Charaudeau, 2001a). É um sujeito
social, criado ou condicionado pela sociedade e pela cultura do lugar onde vive, como um
ser falante que repete” a voz do social, mas que precisa ter valorizado seu lado
psicossocial-situacional, que lhe garante também uma individualidade. Ora assumindo o
papel de sujeito-comunicante, ora o de sujeito-interpretante, o homem busca, por meio da
palavra, de um lado, sua inserção no mundo e, de outro, conseqüentemente, a si mesmo
via interação.
A Semiolingüística explica o ato de linguagem através da atuação de quatro sujeitos
(Charaudeau, op.cit.). Dois deles são exteriores ao enunciado: o sujeito-emissor ou sujeito-
comunicante e um sujeito-receptor ou interpretante. Esses são os Seres do Fazer. O
sujeito-comunicante cria mais dois sujeitos, internos ao ato de linguagem: o sujeito-
enunciador e o sujeito-destinatário: Seres da Palavra, protagonistas da enunciação. São os
Seres do Dizer. Entre o sujeito-comunicante (externo) e o sujeito-enunciador (interno), há o
sujeito-locutor, e entre o sujeito-destinatário e o sujeito interpretante, há o sujeito-
interlocutor, criando uma “ponte” entre os mundos (real externo e da palavra
interno).
MUNDO REAL EXTERNO
SERES DO FAZER: sujeito-comunicante sujeito-interpretante
SUJEITO-LOCUTOR SUJEITO-INTERLOCUTOR
“PONTE” ENTRE OS MUNDOS
SERES DO DIZER: sujeito-enunciador sujeito-destinatário
ENUNCIADO
MUNDO DA PALAVRA INTERNO
Fig. 1 Os sujeitos da linguagem
Para a Semiolingüística, todos os atos de linguagem são “encenações”, no sentido
teatral do termo, que resultam da combinação entre uma determinada situação de
comunicação, uma determinada organização discursiva e um determinado emprego de
marcas lingüísticas, empregadas conforme a intencionalidade exigida pelas circunstâncias
o que os torna essencialmente interativos.
Presumindo que o le itor exerça seu papel de co-enunciador que significa
acreditar ser ele capaz de assumir a contrapalavra (Bakhtin, 2000), isto é, uma atitude
responsiva ativa e não aja como mero “decodificador de letras”, ele ocupará a posição
que Charaudeau denomina sujeito-interpretante, com características individuais e
experiências próprias, externas ao Mundo da Palavra, que, mesmo intuitivamente, incorpora
o papel do sujeito-destinatário para quem o texto foi “virtualmente” escrito.
2.2 Leitura de um mundo semiotizado
Como foi visto anteriormente, a construção de sentido por meio do ato de ler
envolve um complexo processo que abarca desde a simples decodificação até a extração de
informações e de intencionalidade subjacentes à materialidade textual. Enfatizar as
estratégias leitoras que dependem da observação de marcas inscritas e escritas no
texto significa privilegiar um aspecto que engloba tanto a superfície textual (no âmbito da
compreensão) quanto o plano discursivo (na dimensão interpretativa). Para Koch e
Travaglia, o estudo do sentido textual é visto como o estudo da coerência.
O estudo da coerência poderia ser visto como uma teoria do sentido do texto
(seja ele uma frase ou um livro todo, não importa a dimensão), dentro de um
ponto de vista de que o usuário da língua tem competência textual e/ou
comunicativa e que a língua só funciona na comunicação, na interlocução,
com todos seus componentes (sintáticos, semânticos, pragmáticos,
socioculturais etc.) (Koch e Travaglia, 2000, p.13)
Embora a coerência pertença ao plano discursivo, os autores apontam para o fato de
que a competência textual é obtida através de vários componentes, dentre os quais são
listados elementos que se localizam na superfície do texto, no plano de língua e outros, na
situação que envolve a produção de sentido. Em outras palavras, o sentido do texto só pode
ser finalizado se forem levadas em consideração articulações entre os dois planos, de língua
e discursivo, assim como entre os vários componentes desses planos, considerando-se as
circunstâncias da enunciação.
Charaudeau (1983) explica que o sujeito-comunicante intervém em dois espaços de
organização dos sentidos: o da tematização e o da relação. No espaço da tematização, ele
faz operações linguageiras de identificação dos seres do mundo (através dos substantivos);
de qualificação (através dos adjetivos); de representação dos fatos e das ações (usando
verbos e advérbios) e de operações de explicação (com operadores lógicos). Para a
semiotização do mundo, o sujeito-comunicante precisa mobilizar o sentido das palavras e
suas regras de combinação. Com isso, constrói um sentido literal ou explícito, um sentido
de língua, que se mede segundo critérios de coesão, num movimento centrípeto.
Com a mesma finalidade, ele deve construir um sentido que corresponda à sua
intencionalidade, que lhe permita passar do sentido das palavras ao sentido de seu discurso;
um sentido indireto ou implícito, que se mede segundo critérios de coerência, num
movimento centrífugo um sentido de discurso. No espaço da relação, o sujeito-
comunicante faz operações destinadas a significar a finalidade do ato de comunicação e a
identidade dos protagonistas. Para isso, deve fornecer índices semiológicos (cenários,
scripts, roteiros de ação) e sua “identidade discursiva”.
Já o sujeito-interpretante deve efetuar diferentes operações a partir das marcas
formais do texto, como reconhecer o sentido das palavras e as “instruções de sentido” mais
prováveis, a coesão contextual propiciada pelas operações de identificação, de
qualificação, que presidem a construção do sentido da língua do mundo significado pelo
sujeito comunicante. É o trabalho de compreensão do texto.
Em outra dimensão, ele deve reconstruir o sentido indireto, implícito mas verossímil
em função da intertextualidade. São operações de ordem inferencial, que permitem
reconstruir a “problematização” do sentido do discurso do mundo significado pelo sujeito-
comunicante. Assim, o sujeito-interpretante reconhece o quadro contratual do ato de
comunicação, pois relacionando as marcas do texto e as características deste quadro, ele
sinaliza outras inferências que testemunharão a finalização do mundo significado. É pelo
grau de ajustamento do trabalho inferencial (texto - quadro contratual) que se medirá a
justeza do sentido do discurso. É esse processo duplo (discursivo e situacional) que leva ao
reconhecimento-construção do sentido do discurso problematizado e finalizado. É o
trabalho de interpretação.
PROCESSO DE SEMIOTIZAÇÃO DO MUNDO
(CHARAUDEAU)
Fig. 2 Processo de semiotização do mundo
Até então, o sujeito utilizou sua competência leitora e aproximou-se da experiência
do outro ao depreender as idéias contidas no texto. Tratando-se de um texto escrito, o
sujeito-leitor atingiu a fase de conhecimento do texto. Entretanto, o verdadeiro
adentramento de que fala Paulo Freire (1997), com a ativação da capacidade reflexiva do
leitor, tornando-o um sujeito crítico, ultrapassa os limites dessa fase: é uma outra instância,
mais profunda, alcançada através da leitura, mas extrapolando-a, que irrompe no espaço da
sabedoria, na qual o leitor sente-se diferente, trans-formado a partir da relação que travou
com o texto e com o outro, através do texto. Somente nessa fase o “eu-indivíduo-social”,
externo ao texto, terá finalizado o circuito interativo autor-leitor, que se estende além do
universo interno, textual, mas que depende unicamente da (boa) relação leitor-texto.
2.3 Para ler com competência(s), numa perspectiva semiolingüística
“Ler bem”, ou “ler com competência” é tarefa que pressupõe, em primeiro lugar,
um trabalho incessante na direção do sentido particular veiculado pelo texto, em um
determinado momento, de acordo com uma intenção do produtor do texto em função de um
(suposto) recebedor; em segundo, o conhecimento dos elementos e dos níveis constituintes
da textualidade como forma de entender a construção desse sentido. Para isso, Charaudeau
(2001b) postula a noção de competência de linguagem
3
.
A Semiolingüística, ao absorver noções trazidas pela Pragmática (como a idéia de
ato de linguagem), pela Teoria da Enunciação (considerando o espaço enunciativo) e pela
Sociolingüística (que propõe vincular o enunciado ao contexto social e cultural), trata de
uma competência de linguagem referente à capacidade que sujeito (comunicante ou
interpretante) deve dominar para construir o sentido textual: “Para que haya sentido, es
preciso que lo dicho esté vinculado con lo conjunto de las condiciones dentro de las cuales
lo dicho esté dicho” (op.cit.:13).
Essa competência se subdivide em três tipos intensamente relacionados
situacional, discursivo e semiolingüístico de acordo com os três níveis a que
pertencem os recursos de linguagem usados para a construção do sentido.
Que se diga que se trata de tres competencias o de una sola compuesta por tres
aptitudes del hacer, lo que importa es que se aborde dicha competencia (por mi
parte, tiendo a hablar de “una triple competencia de lenguaje”) como el
resultado de un movimiento de ida y vuelta permanente entre la aptitud para
reconocer las condiciones sociales de comunicación, la aptitud para conocer-
manejar las estrategias del discurso y la aptitud para reconocer-manejar los
sistemas semiolingüísticos, las cuales se hallan mutuamente insertadas. Esta
competencia si bien no puede ser un juicio, tal como en el uso cotidiano, es, en
cambio, el resultado de un andamiaje del cual se articulan saber-hacer y
conocimientos. (Charaudeau, 2001b: 17-18)
3
Para Chomsky, diferentemente da Semiolingüística, competência se refere à capacidade, que o falante de
qualquer língua possui, de produzir incontáveis orações (inclusive inéditas) a partir de alguns enunciados
primários submetidos a transformações conforme um sistema de regras complexas.
Remetendo-se à metáfora do iceberg, a pequena porcentagem visível “acima do
nível do mar”, aquilo que está “na superfície”, corresponderia ao nível semiolingüístico. O
não-dito, as informações pressupostas, as ironias, a pluralidade de sentidos do texto
literário, enfim, tudo o que está além do texto, além do que é concretamente percebido,
estaria “abaixo do nível do mar”; pertenceria, então, aos níveis discursivo e situacional
ou estaria simplesmente na relação abstrata entre os três níveis.
Fig. 3 Os níveis de construção de sentido textual
Muitas vezes a separação desses níveis é tênue, ou quase impossível, visto que a
identificação dos recursos de linguagem utilizados na construção do sentido parte de algum
elemento formal (nível semiolingüístico), liga-se a um pressuposto discursivo (nível
discursivo) e está seriamente comprometido com a situação que preside o contrato
comunicativo (nível situacional), em virtude da imersão enunciativa que sofre. Ainda que o
nível discursivo abarque uma quantidade infinita de recursos, é o nível situacional que
determina o acionamento, ou o reconhecimento de cada um deles pelos sujeitos envolvidos
no contrato comunicativo, a partir dos elementos (percebidos como marcas, ou como
“pistas”) oferecidos pela superfície textual.
NÍVEL SEMIOLINGÜÍSTICO
NÍVEL DISCURSIVO
NÍVEL SITUACIONAL
SUPERFÍCIE TEXTUAL
Por isso a noção de texto, presa ao processo interativo, como um conjunto de
enunciações coerentes, intencionalmente estruturadas e estreitamente ligadas a fatores
comunicativos e referenciais encontra-se submetida a elementos oriundos da situação
entre eles, os papéis sociais dos parceiros envolvidos na troca, o momento/espaço de sua
realização como texto, a busca de seu propósito comunicativo. São esses elementos que
orientam várias opções de construção de sentido, principalmente relativas ao processo
inferencial. As inferências, como será visto, dependem do nível discursivo, como “arquivo”
de possibilidades interpretativas, mas sua validade só será comprovada na relação
estabelecida com o nível situacional, que, de acordo com a intencionalidade/aceitabilidade
intrínseca à troca, sentenciará a favor ou contra certo cálculo interpretativo.
2.3.1 A competência situacional e os limites do texto
A competência situacional refere-se às aptidões para perceber as circunstâncias da
comunicação, como a identidade dos protagonistas envolvidos no ato de linguagem, a
finalidade desse ato, seu propósito e suas circunstâncias materiais (comunicação inter ou
monolocutiva). É essa competência que “determina lo que está en juego con un acto de
lenguaje, y esto es fundamental, puesto que no hay acto de lenguaje sin propósito” (op.cit.:
15).
Uma noção bastante relevante tanto para a análise do processo interativo, quanto
para a observação do nível situacional, é a dos postulados conversacionais de Grice, que
regem a comunicação humana e aos quais os falantes vão recorrer para finalizar o sentido
textual. Segundo o filósofo americano, os diálogos são esforços cooperativos porque cada
participante reconhece neles um propósito comum, ou um conjunto de propósitos, ou uma
direção mutuamente aceita, por isso, “faça sua contribuição conversacional tal como é
requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio
conversacional em que você está engajado”. Nisso consiste o PRINCÍPIO DE COOPERAÇÃO
(Grice, 1979).
Compõem-no quatro “máximas”: a) a Máxima da Quantidade (“não diga nem mais
nem menos do que o necessário”; b) a Máxima da Qualidade (“só diga coisas para as quais
tem evidência adequada; não diga o que não sabe ser verdadeiro”; c) a Máxima da Relação,
ou da Relevância (“diga somente o que é relevante”) e d) a Máxima do Modo (“seja claro e
conciso; evite a obscuridade, a prolixidade etc.”). Se uma dessas máximas for violada, o
cálculo do sentido pode ser prejudicado; entretanto, o locutor pode infringi-la
intencionalmente, com o objetivo de comunicar um sentido de maneira sub-reptícia e,
conseqüentemente, provocar um cálculo mais complexo por parte do interlocutor: essa
“infração” seria, então, considerada uma implicatura conversacional. As ironias, os
subentendidos e as metáforas são explicáveis a partir dessas implicaturas.
Segundo Levinson (1992), a implicatura conversacional explica a influência de
fatores pragmáticos e interacionais na construção do sentido textual, ao provocar no
interlocutor inferências a partir de todo seu conhecimento experiencial armazenado na
memória e compartilhado com o locutor. Salienta-se que a explicação sobre as implicaturas
e sobre as inferências é uma das que carrega, em seu bojo, além da obediência ao princípio
cooperativo, a observância de uma intenção comunicativa.
Maingueneau (2002) cita algumas leis do discurso, como a da pertinência, que
estipula a adequação da enunciação ao contexto no qual acontece; a da sinceridade, que diz
respeito ao engajamento do enunciador no ato de fala que realiza; a da informatividade,
que exige dos enunciados uma informação nova para os co-enunciadores; a da
exaustividade, que mostra que o enunciador deve oferecer informação máxima,
considerando-se a situação. Além delas, cita as leis da modalidade, que prescrevem clareza
e economia na construção dos enunciados de acordo com os gêneros do discurso a que
estão ligados. Como é possível notar, há, nessas leis, pontos de convergência com os
postulados de Grice fato que comprova sua pertinência e capacidade de abrangência nas
investigações.
Essas leis orientam a produção de sentido. Os co-enunciadores partilham um
contrato implícito de comunicação a partir de convenções tácitas que ordenam a
interpretação dos enunciados (Maingueneau, 2002). A partir dessas noções, Ducrot
ultrapassou a idéia de significação (ligada à frase e ao sentido literal) para chegar à de
sentido que se obtém de acordo com o valor ilocutório ou perlocutório dos enunciados,
considerados como atos de linguagem (essencialmente ligados à enunciação e às intenções
do enunciador), assim como explorou a diferença entre a pressuposição (ligada a um
componente lingüístico) e o subentendido (ligado a um componente retórico).
Imagina-se, então, um processo de interpretação do enunciado que comportaria
duas etapas sucessivas: a primeira iria da frase à significação, e a segunda da
significação ao sentido. Somente a segunda etapa levaria em consideração as
circunstâncias da fala, a primeira sendo, por definição, independente. (Ducrot,
1987:91)
Complementando o circuito “extralingüístico” iniciado pelas leis do discurso, é
importante mencionar a Teoria das faces, de Erving Goffman, que analisa processos de
figuração que orientam, entre outros fatores, a construção do sentido na conversação. A
preservação da face justificaria determinados atos verbais e não-verbais através dos quais,
por um lado, a pessoa expressaria sua visão da situação e, por outro, sua avaliação dos
participantes e, principalmente, de si mesma.
O termo face pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa
efetivamente reclama para si mesma através daquilo que os outros presumem
ser a linha por ela tomada durante um contato específico. Face é uma imagem
do self delineada em termos de atributos sociais aprovados (...). Goffman, 1980:
76-77)
A teoria desse americano oferece pressupostos para uma análise das relações sociais
que se efetivam via linguagem e serve de inspiração para a teoria da preservação das faces,
desenvolvida por P. Brown e S. Levinson. Por causa de sua natureza socializante, a
comunicação verbal submete-se a regras de polidez: transgredir uma das leis do discurso é
se expor a ser chamado de “mal-educado”.
São leis e aspectos de suma importância para o estudo da leitura como processo
interativo. Ainda que esta guarde particularidades de uma locução monolocutiva por causa
da impossibilidade de ajustes na construção do texto (como poderia ocorrer em uma
interlocução face a face), com essas noções, privilegia-se a participação dos sujeitos na
construção do sentido, vinculado às circunstâncias da enunciação e à capacidade
interpretativa dos interlocutores o que explica, na maior parte dos casos, as divergências
de interpretação entre os muitos sujeitos-interpretantes, ou entre diferentes momentos, ou
espaços enunciativos; mas também inibe o exagero interpretativo, que extrapola os limites
impostos pelas características do próprio contrato de comunicação via texto.
Eco (1993 e 2000) prevê três tipos de intenções “interpretativas”: a intentio operis, a
intentio auctoris e a intentio lectoris. A intenção da obra desempenharia um papel de fonte
de significados (não redutíveis à intenção pré-textual do autor) que limitariam a intenção
do leitor. O texto deve ter como objetivo construir um leitor-modelo (que parece convergir
para sujeito-destinatário da Semiolingüística), diferente do leitor-empírico (sujeito-
interpretante) e do leitor-implícito (sujeito-interlocutor), que “pode ter o direito de fazer
infinitas conjeturas. O leitor-empírico é apenas um agente que faz conjeturas sobre o tipo
de leitor-modelo postulado pelo texto” (Eco, 1993:75).
Em outras palavras, embora o texto abrigue um sentido latente e tenha sido
intencionalmente elaborado para que esse sentido “venha à tona”, a destreza do leitor, até
mesmo em relação à percepção do leitor-modelo instaurado no texto, ou quanto às
informações contextualizadoras referentes à produção mesma da obra, será fundamental
para a efetivação do sentido. Como autor, Eco (op.cit.) reconhece a distância entre esse
sentido latente, imaginado pelo produtor do texto, e aquele realmente produzido de acordo
com as circunstâncias reais de enunciação, quando o leitor empírico, detentor de uma
singularidade, de um lugar-espaço, engendra seu esforço interpretativo.
...quando um texto é produzido não para um único destinatário, mas para uma
comunidade de leitores, o/a autor/a sabe que está interpretado/a não segundo
suas intenções, mas de acordo com uma complexa estratégia de interações que
também envolve leitores, ao lado de sua competência na linguagem enquanto
tesouro social. Por tesouro social entendo não apenas uma determinada língua
enquanto conjunto de regras gramaticais, mas também toda a enciclopédia que
as realizações daquela língua implementaram, ou seja, as convenções culturais
que uma língua produziu e a própria história das interpretações anteriores de
muitos textos, compreendendo o texto que o leitor está lendo. (...) O ato de ler
deve evidentemente considerar todos esses elementos, embora seja improvável
que um leitor sozinho possa dominar todos eles. Assim, o próprio ato da leitura
é uma transação difícil entre a competência do leitor (o conhecimento de
mundo do leitor) e o tipo de competência que um dado texto postula a fim de
ser lido de forma econômica. (Eco, 1993: 79-80)
Mesmo havendo textos cuja construção torna mais ou menos evidente o sentido
latente, é clara a importância do circuito externo para a interpretação. Eco dá o exemplo a
respeito do verso “A poet could not but be gay” (“Um poeta só poderia ser alegre”):
Lembro que em 1985, durante um debate na Universidade de Northwestern,
disse a Hartman que ele era um desconstrucionista “moderado” porque se
absteve de ler o verso [mencionado] como um leitor contemporâneo leria se o
verso fosse encontrado na revista Playboy. Em outras palavras, um leitor
sensível e responsável não é obrigado a especular sobre o que se passou na
cabeça de Wordsworth ao escrever aquele verso, mas tem o dever de levar em
conta o sistema léxico da época de Wordsworth. No tempo dele, gay não tinha
nenhuma conotação sexual, e reconhecer este ponto significa interagir com um
tesouro cultural e social. (op. cit.: 80-81)
Assim como é necessário observar a época em que o poema fora produzido,
observar a alteração de sentido operada em função de o mesmo verso ser proferido em
outro momento/espaço (o contemporâneo, considerando-se o conhecimento do suporte
revista Playboy como uma publicação voltada para temas relativos ao sexo) implica
considerar a situação comunicativa como fator de orientação, de delimitação da construção
de sentido. O leitor competente deve ser capaz de lançar mão de seus conhecimentos e de
perceber a situação comunicativa a fim de interpretar o texto, mas, sobretudo, deve ser
capaz de eliminar os sentidos que entrem em desacordo com o conjunto de fatores
mencionados. E disso depende a delimitação interpretativa.
A interpretação competente, que não admite exageros ou desvios, precisa ajustar-se
aos limites impostos pelas circunstâncias enunciativas ainda que não configurem o
único fator responsável por interpretações “bem” ou “mal feitas”. São essas circunstâncias
que sinalizam a necessidade de se considerar, por exemplo, os papéis sociais dos
interlocutores projetados no texto, se a produção textual é mono ou interlocutiva (e esse
fator liga-se ao suporte a que se submete o texto), ou mesmo a função de cada gênero
textual (na medida em que esse fator orienta, ou cria uma expectativa quanto à finalidade
do texto).
Em um diálogo familiar, por exemplo, a frase “Olha a toalha molhada em cima da
cama!” só vai adquirir o estatuto de ordem se o sujeito-comunicante exercer real autoridade
sobre o sujeito-interpretante (a mãe diz a frase ao filho, com a intenção de fazê-lo reagir,
colocando a toalha em um lugar adequado), além de ser preciso acionar o conhecimento
partilhado relativo àquela situação. Caso não haja o reconhecimento da autoridade que o
papel social impingido ao sujeito-comunicante transfere para o sujeito-enunciador, a
mesma frase acaba por adquirir outro estatuto, como, por exemplo, o de uma brincadeira
maldosa (quando um filho diz essa frase para a mãe, no intuito de delatar a “infração”
cometida pelo irmão, ou quando, entre irmãos, um diz isso ao outro, numa tentativa de
mostrar-se superior, em função de uma autoridade que ele próprio tenta assumir em tom de
escárnio). São situações cotidianas, face a face, interlocutivas, nas quais o direito à resposta
e o “ajuste” dos papéis estão inseridos, mas que se estendem ao texto monolocutivo, de
produção mediata de sentido.
Numa reportagem publicada no jornal O Globo de 02/02/05 (Segundo Caderno, p.
2), Jaime Biaggio mostra a reação do público brasileiro ao filme recém-lançado Closer:
perto demais. Após discorrer sobre o paradoxo causado pela combinação do subtítulo
nacional “perto demais” (indicando necessidade de afastamento) com o título “closer”
(“mais perto” sentido corroborado pela canção-tema do filme, “Come-on closer”,
“chegue mais perto”), Biaggio atribui a rejeição de parte da platéia em relação ao filme à
“quebra de expectativa”: muitos vão ao cinema esperando por uma comédia, mas
encontram um texto “ácido”, que fala sobre sexo o tempo todo.
Nessas duas semanas, em que já foi visto por mais de 600 mil pessoas,
"Closer", adaptação da peça de mesmo nome de Patrick Marber (já encenada
no Brasil), tem seduzido parte da platéia na mesma proporção em que repele
outra parte. As razões para isso podem ser de ordem estética. Há um certo
formalismo, herança da origem teatral, que tanto confere personalidade ao
filme quanto o engessa às vezes. Ou até pode ser mero ruído na
comunicação, expectativa errada. É visível numa sessão do filme que muita
gente entrou na sala esperando uma comédia de costumes leve, rasgada (as
risadas fora de hora, como se estivessem em busca desse tom gaiato
inexistente, são o sintoma disso). Há quem se adapte a esse erro de
julgamento durante a sessão e veja o filme pelo que é. Há quem não consiga.
(...) Mas o trunfo/problema potencial mais óbvio é a acidez do texto no que
se refere ao falar de sexo (e só falar; não há uma cena de suadouro a dois),
sem poupar o ouvido do espectador de palavrões. (O Globo, 02/02/05: 2)
Segundo o jornalista, o desvio interpretativo revelado pelas “risadas fora de hora,
como se estivessem em busca desse tom gaiato inexistente”, deveu-se, provavelmente, a
“um ruído na comunicação, expectativa errada”. Em outras palavras, o espectador deve ter
criado, talvez a partir da própria propaganda do filme, a idéia de que se confrontaria com o
gênero comédia cinematográfica, e que poderia, portanto, buscar ali diversão. Por causa
dessa expectativa, externa ao texto-filme, baseada na projeção de um sujeito-destinatário-
espectador de comédia à qual parte do público aderiu a interpretação foi
condicionada à construção de sentidos obedientes a uma certa perspectiva. Entretanto, a
superfície textual acabou revelando outro tom, mais pesado e reflexivo, que não
correspondia àquela expectativa. Foi necessário, então, um ajuste interpretativo,
fundamentado na reconstrução do papel desempenhado pelo sujeito-interpretante, agora
espectador de outro gênero textual, mais centrado no questionamento da essência humana,
ou no escracho verborrágico, como relatado na reportagem.
Como se vê, a posição que o sujeito-interpretante reconhece como sua e decide
assumir na interpretação dos textos pode ser essencial para uma leitura competente. Essa
posição pertence ao circuito externo do texto, à situação comunicativa a que está vinculada
toda produção de sentido, mas sobretudo ao sentido mais profundo, que determina o
propósito do texto. Isso pode ser verificado após a apreensão da totalidade do material
interpretado na reportagem citada: afastando o “foco” da leitura para que se perceba o
“todo” macrotextualmente, chega-se a vislumbrar a situação, o momento/espaço da
enunciação, os papéis sociais dos protagonistas, enfim: o sentido finalizado pressupõe a
inclusão das circunstâncias da enunciação.Vejamos novamente o caso da reportagem de
Baggio, a partir de uma perspectiva mais abrangente, para que seja investigada a
“verdadeira” finalidade do texto.
Participando de um circuito interpretativo de outra amplitude, há o contrato entre o
leitor (sujeito-interpretante) da reportagem (texto-objeto de análise) e o autor, Baggio
(sujeito-comunicante). Superficialmente, o comentário, embalado por motivações
discursivas, se instaura no distanciamento provocado pelo emprego da 3ª. pessoa (“Curioso
é o quanto isso espelha a reação do público ao filme”), por recursos de impessoalização
(“se atentou por aí para o paradoxo do título brasileiro do filme "Closer", de Mike
Nichols, em cartaz no país há duas semanas”), pela predominância do tempo presente (“O
termo significa ‘Mais perto’ e soa como um chamado”; “ ‘Closer’ ...tem seduzido parte da
platéia na mesma proporção em que repele outra parte”), pela modalização (“As razões para
isso podem ser de ordem estética”), pela variada polifonia explicitada nos depoimentos
(“Um filme altamente sacana, mas sem sacanagem define o empresário Ricardo
Amaral”).
Inserido no Segundo Caderno, reconhecidamente o espaço oferecido pelo jornal
para a divulgação da programação de eventos e das críticas aos espetáculos, filmes e
exposições, apesar de revestir-se do gênero comentário/opinião, o texto age sobre o
interlocutor como uma propaganda, alterando, sem que se perceba, seu papel no contrato:
de leitor a consumidor. Soma-se a isso o fato de o título “Todos falam sobre sexo; logo,
todos falam sobre ‘Closer’” estar organizado em forma de um raciocínio lógico que traz em
si a indução da necessidade de incluir o leitor no grupo daqueles que falam sobre o filme e
que, para isso, precisam vê-lo (ainda que o raciocínio parta de uma discutível
generalização).
O texto age sobre a vontade do leitor, e seu poder persuasivo lhe confere a
sobreposição da função apelativa sobre a referencial (Jakobson, s/d), da persuasão sobre a
“inocente” informação. Em outras palavras, essa interpretação “por inteiro”, crítica, que
percebe o propósito “maior”, sobredeterminante, do texto como publicidade só se efetiva
quando, com o “afastamento” da perspectiva, o leitor consegue ultrapassar o limite do texto
e enxerga, nos elementos constitutivos da situação, a mudança de seu papel no contrato.
Em outros casos, a situação “embarga” certos sentidos, proibindo exageros
interpretativos calcados em falsos fatores extratextuais, ou na desconsideração de
circunstâncias interpretativas fundamentais. A frase “Estou morrendo de fome” é
hiperbólica se dita por um adolescente de classe média, e não pode ser entendida como
literal por causa da situação psicossocial em que se insere, mas se dita por uma criança na
zona de fome africana, ou do nordeste brasileiro, é interpretada como tristemente
denotativa. O cartaz com a inscrição “Não alimente os animais” não pode ser lido pelo
tratador do zoológico da mesma forma que os visitantes o lêem, senão poderia se
transformar em indução ao extermínio das espécies que ali se encontram. O que orienta a
leitura, neste caso, é tão-somente o papel social que cada leitor, sujeito-interpretante do
texto-cartaz, desempenha papel esse que leva cada um a identificar não só a finalidade
do texto, como também o sujeito-destinatário a quem se dirige a ordem.
Uma placa, na parede de um canto de um restaurante, com a imagem de um cigarro
sem a faixa vermelha sobreposta não pode significar apologia ao fumo (em virtude do
conhecimento prévio que a maior parte das pessoas domina a respeito da campanha
antitabagismo em franca divulgação nos dias atuais), mas o espaço reservado para
fumantes. O sentido “é permitido fumar” só é alcançado em função do cruzamento dos
níveis semiolingüístico (no reconhecimento da imagem), discursivo (no acionamento do
conhecimento prévio) e situacional (no vínculo estabelecido entre texto-placa e
circunstâncias enunciativas), mas a finalidade do texto só pode ser especificada em virtude
da situação: “Aqui, neste canto do restaurante, é permitido fumar”. Se desconsiderada a
situação, interpretações como “Adeus à campanha antitabagismo: fume-se à vontade”
seriam possíveis, ao menos na perspectiva de fumantes inveterados.
A atividade de leitura, como processo interpretativo a que se submete o ser humano
incessantemente, exige um mergulho na complexidade (nem sempre aparente) da malha
textual. Colocar-se como aquele que quer entender o que o outro diz pressupõe aceitação
do vínculo em que se transforma o texto, assim como demanda um esforço interpretativo
que depende de todas as suas experiências como ser social, como leitor, como investigador
do fim a que se destina o texto. “Ler bem”, ou “ler criticamente” é saber identificar o
propósito do texto, a finalidade que moveu seu produtor em direção à determinada
organização dos signos, e que impregnou o texto a ponto de provocar reações naquele que
o lê. Com essa identificação, o leitor, distanciado do destinatário, aceita ou não essa
provocação. Para isso, é preciso conhecer os signos, re-conhecer os recursos discursivos,
relacionar esses fatores entre si e à situação na qual o texto se faz texto, sendo enunciado.
Seja nas ocorrências cotidianas, seja nos textos impressos em jornais, em
enunciados clicherizados, nos textos humorísticos, ou em quaisquer outros, a situação
exerce uma função primordial na produção do sentido; é ela que o ajusta. Uma leitura que
não se ocupa das circunstâncias da enunciação dificilmente encontrará o fim a que se
propôs o texto, pois uma mesma construção enunciada em situações diferentes pode
suscitar sentidos diferentes e adquirir propósitos diversos.
Em relação a essa suposta leitura “bem feita”, “certa”, Freire (1996) ensina:
“Pensar certo”. Não se lê criticamente como se fazê-lo fosse a mesma coisa
que comprar mercadoria por atacado. Ler vinte livros, trinta livros. A leitura
verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que
me dou e de cuja compreensão fundamental me vou tornando também
sujeito. Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do texto como se
fosse ela produção apenas de seu autor ou de sua autora. Esta forma viciada
de ler não tem nada que ver, por isso mesmo, com o pensar certo e com o
ensinar certo.
Como mostra o educador, ler exige, acima de tudo, autoria, trabalho, esforço,
determinação para relacionar os diversos recursos produtores de sentido a fim de interpretar
o texto, percebendo a que veio, para que foi construído, que reação pretende provocar no
leitor. Tendo consciência disso, o fato de deixar-se levar ou não pelo fim a que foi
destinado o texto já é outra questão: a da liberdade de posicionamento.
2.3.2 A competência discursiva e suas estratégias
A competência discursiva relaciona-se às aptidões para manipular/reconhecer as
estratégias de encenação (delimitadas pela situação) enunciativa, enunciatória e
semântica e para recorrer a relações intertextuais
4
. É a competência que permite acionar,
nas relações que estabelece, as inferências.
2.3.2.1 Eu, tu, ele: as estratégias enunciativas
As estratégias enunciativas decorrem dos elementos de identificação e de inter-
relação com a situação comunicativa, assim como da imagem que o sujeito comunicante faz
de si mesmo e a que atribui ao interpretante; são obtidas através da modalização discursiva
e da construção dos papéis enunciativos (elocutivos, revelando o comprometimento do
locutor com o que diz; alocutivos, centrados no interlocutor e na obtenção de resultados e
4
Em conferência proferida em 10 de outubro de 2005, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, por ocasião do I Fórum
Internacional de Análise do Discurso, Charaudeau desmembra o nível de construção do sentido semântico do discursivo,
tomando, portanto, a competência semântica à parte da discursiva, como uma quarta divisão. Por causa da forte
imbricação entre esses níveis, porém, optamos pela versão já consagrada desses postulados (Charaudeau, 2001).
delocutivos, revelando distanciamento, tanto do locutor quanto do interlocutor). São
estratégias que delimitam a situação de enunciação (Charaudeau, 1992) e devem ser
reconhecidas pelo sujeito interpretante a fim de se posicionar, aderindo ou não ao papel a
ele atribuído: ou volta o olhar para si mesmo, em virtude da alocução anunciada e
enunciada; ou focaliza o outro/sujeito comunicante, por causa da elocução proveniente
daquele que comunica; ou, ainda, motivado pela delocução instaurada no texto, prende sua
atenção num espaço enunciativo que não pertence a nenhum dos dois, mas a um terceiro.
2.3.2.2 Os modos de organização discursiva: as estratégias enunciatórias
As estratégias enunciatórias estão ligadas aos “modos de organização do discurso”:
o descritivo, que consiste em saber nomear e qualificar os seres, objetiva ou
subjetivamente; o narrativo, que se baseia em saber relatar as ações nas quais os atores
intervêm e o argumentativo, que se resume em um saber organizar seqüências causais que
explicam acontecimentos e as provas do verdadeiro, do falso, ou do verossímil.
A distinção entre os modos, entretanto, nem sempre exclui dúvida e questionamento
especialmente porque, ainda que haja a predominância de um dos modos na feitura de
um texto, os outros podem coexistir, numa co-participação bem distribuída, ou sobreposta.
Como mostra Charaudeau (2004: 34), desde a Antigüidade, há quem defenda a idéia
de que tudo é argumentação e quem defenda a de que tudo é narração: basta perguntar, no
primeiro caso, por que alguém disse o que disse?, ou por que alguém disse o que disse
assim, e estaria configurada a orientação argumentativa; no outro caso, basta acreditar que a
linguagem serve essencialmente para descrever a busca do destino humano, então, a
narração estaria satisfazendo essa necessidade quando permite ao homem relatar o mundo.
Evidentemente, esses dois aspectos estariam ligados, mas, em cada uma
dessas posições, uma dominaria a outra: para a argumentação, a narração
seria uma expansão descritiva necessária para preencher de carga semântica
os argumentos da cadeia de raciocínio; parra a narração, a argumentação só
viria como um apoio da descrição dos fatos. (Op.cit.,: 34)
Ainda de acordo com o autor, consideradas atitudes complementares do sujeito
falante, a narração e a argumentação apresentam propostas diferentes: enquanto aquela não
se impõe ao outro, oferecendo-lhe, projetivamente, uma trama da qual pode fazer parte,
identificando-se com os personagens, esta, impositivamente, obriga o outro a se incluir num
certo esquema de verdade, ao explicar o porquê e o como dos fatos. Embora sempre
apareçam mescladas, “conforme as situações e o que está em jogo na comunicação, cada
uma, a seu turno, será dominante” (op. cit.: 35).
Pode-se, então, afirmar que, globalmente, o texto é organizado discursivamente
através da narração, da argumentação, ou mesmo da descrição, mas trará explícita ou
implicitamente momentos variados de estratégias enunciatórias.
Alguns fatores ajudam a identificar esses momentos. O modo narrativo tem como
característica intrínseca a evolução cronológica de ações que, vistas sob uma determinada
lógica, constroem uma história. Já um texto predominantemente argumentativo, mesmo que
não apresente explicitamente um questionamento, ou uma tomada de posição, pode induzir
o leitor a isso, pois o enunciador coloca no texto dados implícitos provocadores de
inferências; são eles que orientam o raciocínio do receptor na direção desejada pelo
argumentador de forma mais ou menos evidente.
Segundo Fiorin e Platão (1997), no interior de um texto narrativo (em outras
palavras, no qual predomina o modo narrativo de organização), há sempre uma progressão
temporal entre os acontecimentos relatados. Já que o ato de narrar ocorre, por definição, no
presente, dado que, como vimos, o presente indica uma concomitância em relação ao
momento da fala (no caso, da fala do narrador), ele é posterior à história contada, que, por
conseguinte, é anterior a ele; por isso, o subsistema do pretérito (pretérito perfeito, pretérito
imperfeito, pretérito mais-que-perfeito e futuro do pretérito) é o conjunto de tempos por
excelência da narração.
Assim, pode-se dizer que, ao ocupar o momento presente em seu cerne, o ato de
narrar, em si, é de fácil adesão para o interlocutor, este tão presente na troca comunicativa
quanto o próprio ato; já o relato contido na atitude narrativa, distanciado temporalmente,
pode ou não sofrer processo identitário. Por isso o uso do presente em narrações, acio nado
pelas formas verbais, pelas palavras e expressões temporais, é considerado um profícuo
recurso de aproximação e de sedução do leitor.
Os autores afirmam ainda que a narratividade (diferentemente da narração) é um
componente que pode existir em textos que não são narrações. A narratividade é a
transformação de situações; uma mudança de estado operada pela ação de uma personagem
(ou alguém passa a ter alguma coisa que não tinha, ou alguém deixa de ter alguma coisa
que tinha). “Pode-se ter um texto tipic amente dissertativo com componente narrativo, se
contiver mudanças de situação”. Em outras palavras, isso significa que, num texto em que
predomina o modo argumentativo, é possível a presença do modo narrativo, ou da
narratividade, seja em forma de ilustrações, seja como exemplo específico, usados como
provas do verdadeiro.
Em contrapartida, a dissertação (forma como os autores nomeiam a argumentação,
seguindo modelos vigentes) é um texto temático, no qual existe a transformação de situação
no texto; a progressão dos enunciados obedece a uma relação lógica e não cronológica (um
enunciado é anterior a outro não por causa de uma progressão temporal, mas por causa de
uma concatenação lógica). É o tipo de texto que analisa, interpreta, explica e avalia os
dados da realidade. O tempo por excelência da dissertação é o presente no seu valor
atemporal. Além disso, as referências a casos concretos e particulares, ou seja, narrações ou
descrições que aparecem em seu interior, ocorrem apenas para ilustrar afirmações gerais ou
para argumentar a favor delas ou contra elas.
Corroborando essas idéias, e também estabelecendo a distinção entre o modo
argumentativo de organização discursivo e o tipo textual dissertativo, Infante fala do
“papel central da argumentação” nos textos dissertativos, pressupondo, assim, a
coexistência dos outros modos (ao menos em tese):
É a atitude lingüística da dissertação que nos permite fazer uso da linguagem
a fim de expor idéias, desenvolver raciocínios, encadear argumentos, atingir
conclusões. Os textos dissertativos são produto dessa atitude e participam
ativamente do nosso cotidiano falado e escrito. (Infante, 1998: 159)
O texto puramente descritivo, como tipo textual em que não só predomina o modo
descritivo, mas também serve tão-somente para retratar a realidade, torna-se mais raro;
apesar da constante ocorrência desse modo, sua utilização nas trocas comunicativas está
sempre vinculada aos outros modos, como complementaridade informativa que auxilia na
referência aos seres do mundo.
2.3.2.3 Entre as inferências e a intertextualidade: as estratégias semânticas
As estratégias semânticas referem-se ao “entorno compartido” (Charaudeau, 2001b:
9), representado por conhecimentos procedentes de percepções ou definições mais ou
menos objetivas sobre o mundo, ou relativo a crenças e valores de um determinado grupo
social. São essas as estratégias as quais permitem as inferências, que consistem “en
relacionar el enunciado con la identidad de los que conversan, con su historia interpersonal
y las circunstancias en las cuales están comunicándose” (op.cit.: 9).
De acordo com Charaudeau, para definir os componentes dessa competência
semântica, seria necessária uma teoria das inferências que estudasse os fenômenos da
interdiscursividade ou, como são conhecidos, do “dialogismo bakhtiniano” (cf. pág.26).
Sem essa pretensão, mas buscando compreender melhor esse tipo de estratégia
interpretativa, seguem algumas reflexões a respeito não só do processo inferencial, como
também da intertextualidade como condição da legibilidade literária (Jenny, 1979).
Koch e Travaglia (2000:70) entendem por inferência “aquilo que se usa para
estabelecer uma relação, não explícita no texto, entre dois elementos desse texto” e citam
Charolles ao explicar que as inferências podem ser ou não lingüisticamente fundadas.
Considera-se, aqui, a inferência um processo de extração de implícitos através de
relações que podem surgir tanto no plano da língua, através da coesão, quanto no plano do
discurso, através da pressuposição, da conotação e do subentendido. É importante ressaltar
que, para este estudo, a inferência sempre ocorre a partir de marcas textuais, mesmo que
em graus diferentes de contato com o material lingüístico. A noção de Dell’Isola (2001,
p.44) sintetiza essa perspectiva.
Inferência é, pois, uma operação mental em que o leitor constrói novas
proposições a partir de outras já dadas. Não ocorre apenas quando o leitor
estabelece elos lexicais, organiza redes conceituais no interior do texto, mas
também quando o leitor busca, extratexto, informações e conhecimentos
adquiridos pela experiência de vida, com os quais preenche os “vazios”
textuais. O leitor traz para o texto um universo individual que interfere na sua
leitura, uma vez que extrai inferências determinadas por contextos (...).
Percebemos, através dessa noção, duas naturezas distintas para as inferências: uma,
operada a partir dos “elos lexicais” e das “redes conceituais no interior do texto” e outra,
processada com o auxílio de informações extratextuais.
Em outras palavras, a inferência é a operação que desvela as “significações
implícitas”, presentes em qualquer tipo de texto. De acordo com Ducrot (1987), essas
“significações implícitas” são acionadas de duas maneiras: a partir de componentes
lingüísticos que atribuem aos enunciados, independente do contexto, uma certa significação
(o implícito, desta forma, é considerado um pressuposto) ou a partir de componentes
retóricos, que obrigam a mobilização das circunstâncias da enunciação para que a
significação implícita seja extraída (considerado o implícito, neste caso, um subentendido).
Os pressupostos, segundo Zandwais (1990:22), são acionados a partir de palavras
que já possuem significados pré-estabelecidos pela língua e que pertencem, por isso, a um
componente lingüístico. Isso não quer dizer somente os significados literais, mas, assim
como eles, também os não-literais, cujos valores aparecem inscritos no próprio léxico,
pertencem ao componente lingüístico. No atual estudo, porém, será tratada como
pressuposto apenas a inferência extraída a partir do componente lingüístico de sentido
literal e como conotação, aquela realizada através do cálculo do sentido não-literal,
figurado. Com isso, pretende-se visualizar mais claramente o processo na sua totalidade, já
que, ao depender de um duplo movimento (textual e discursivo), a conotação apresenta um
grau de inferenciação mais elaborado que a simples pressuposição. Já os subentendidos
constituem-se em informações novas obtidas pelo interlocutor a partir de um cálculo
semântico-discursivo acionado pela própria seleção e combinação de palavras na superfície
do texto.
As noções mencionadas são necessárias para o leitor perceber que há sempre, no
texto, um Projeto de Palavra, que implica considerar, de acordo com Geraldi (1997), que o
enunciador tem o que dizer; tem uma razão para dizer o que tem a dizer; tem para quem
dizer o que se tem a dizer; responsabiliza-se por suas falas e escolhe estratégias para
realizar as ações precedentes. Assumir o papel de co-enunciador é aceitar essas “condições
de enunciação” e ativá-las na construção do sentido textual mesmo, ou principalmente,
na leitura de literatura, alvo de investigação neste trabalho.
A intertextualidade como condição de legibilidade não só, mas especialmente
dos textos literários é também um caro componente oriundo das estratégias semânticas.
O reconhecimento, no texto lido, da presença de textos anteriores possibilita a criação de
elos extratextuais que orientam a construção do sentido. Jenny (1979) chega a afirmar que a
compreensão da obra literária pressupõe uma competência “a mais”, adquirida no contato
com uma multiplicidade de textos, a fim de que se possa vinculá-los entre si, tornando
visível o fenômeno da intertextualidade.
Assim como qualquer texto pode se vincular ao que há de cultural, ou ideológico,
em termos de conteúdo, com a intertextualidade, além de a construção do sentido se
relacionar com o material sígnico oferecido ao leitor, ela ultrapassa essa “materialidade
primeira” e é relacionada a outros textos, outros contextos, outras idéias, repetindo-os, ou
negando-os; corroborando-os, ou subvertendo-os; mas sempre expandindo enormemente as
fronteiras da significação.
Se, como Julia Kristeva, a quem se deve a invenção do termo intertextualidade,
pensa-se nos textos como “sistemas de signos”, acredita-se, então, numa acepção mais
ampla, que “qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é absorção e
transformação dum outro texto” (apud Jenny, 1979: 13). Num sentido mais estrito, porém,
“a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o
trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado num texto centralizador,
que detém o comando do sentido” (Jenny,1979: 14).
Mais especificamente em relação ao texto sincrético de literatura infantil, como é o
interesse do presente trabalho, a intertextualidade constante que se verifica nas obras está a
meio caminho do mosaico proposto por Kristeva e a meio caminho da
transformação/assimilação organizada num texto centralizador, como quer a Literatura.
Quando se depara com uma referência intertextual, o leitor, ao mesmo tempo em que vê
nela um fragmento do todo textual, vê também o texto-origem e isso traz (ou deve
trazer) conseqüências para a leitura.
Cada referência intertextual é o lugar duma alternativa: ou prosseguir a
leitura, vendo apenas no texto um fragmento como qualquer outro, que faz
parte integrante da sintagmática do texto ou então voltar ao texto-origem,
procedendo a uma espécie de anamnese intelectual em que a referência
intertextual aparece como um elemento paradigmático ‘deslocado’ e
originário duma sintagmática esquecida. (...) É em simultâneo que estes dois
processos operam na leitura e na palavra intertextual, semeando o texto
de bifurcações que lhe abrem, aos poucos, o espaço semântico. (Jenny,
1979:21).
Essa operação semântico-discursiva, dependente de um conhecimento prévio
adquirido experiencialmente ao longo dos anos e das freqüentes leituras, promove o texto
assimilado ao estatuto de uma “super-palavra” que tem o poder “infinitamente superior ao
do discurso monológico corrente” (Jenny, 1979:22).
Basta uma alusão para introduzir no texto centralizador um sentido, uma
representação, uma história, um conjunto ideológico, sem ser preciso falá-
los. O texto de origem lá está, virtualmente presente, portador de todo o seu
sentido, sem que seja necessário enunciá-lo. (...) Isto confere à
intertextualidade uma riqueza, uma densidade excepcionais. Mas, em
contrapartida, é preciso que o texto “citado” admita a renúncia à sua
transitividade: ele já não fala, é falado. Deixa de denotar, para conotar. Já não
significa por conta própria, passa ao estatuto de material (...). (op.cit.:22)
Ainda que presente em vários universos textuais, o fenômeno da intertextualidade,
como se vê, caracteriza-se como estatuto do que é literário, já que a literatura se alimenta
dos próprios produtos, (auto)gerando novas obras, através dos tempos, dos ideais e das
formas. É no reconhecimento do texto-origem da relação intertextual que os sentidos
emergem, transformados, ou transformando o material em que se inserem. Se a construção
do sentido, em termos gerais, depende do acionamento de estratégias advindas dos mais
variados níveis e meios, no caso da literatura, o uso da linguagem em sua potência máxima
requer um condicionamento às retomadas textuais. Visto como “super-palavra”, o intertexto
se impõe como item a ser compreendido e interpretado em função não só do texto de
origem, mas, principalmente, em função do cruzamento deste com o texto que o atualiza.
2.3.3 A competência semiolingüística e os textos sincréticos
Para a manipulação/reconhecimento da forma dos signos, de suas regras
combinatórias e de seu sentido, que consiste em saber reconhecer e usar os signos em
função de seu valor de identificação e de sua força portadora de verdade, há a competência
semiolingüística. É neste nível que se constrói o texto que, conforme Charaudeau, deve ser
entendido como “el resultado de un acto de lenguaje producido por un sujeto dado dentro
de una situación de intercambio social dada y poseyendo una forma peculiar” (2001b:17).
A formalização do texto compreende três níveis, cada qual com seu saber-fazer, seja
em termos de composição textual (em relação à diagramação, por exemplo, ou,
internamente, relativa à coesão), seja em termos de construção gramatical (tipos de
construção, marcas lógicas, uso de pronomes etc.), ou de uso adequado das palavras e do
léxico segundo seu valor social.
Em relação aos textos sincréticos, essa formalização inclui elementos não-verbais,
que também precisam estar adequados à composição do texto, não só agindo uns sobre os
outros, sistematicamente, mas também se vinculando ao verbal, redundante ou
complementarmente, a fim de constituir uma unidade realmente coesa. No caso da literatura
infantil, esses dois universos sígnicos, imbricados, constroem, além do sentido
propriamente dito, a poeticidade.
2.3.3.1 Os signos de Peirce
Como a competência semiolingüística requer uma capacidade de identificação e de
valorização dos signos e este estudo pretende investigar textos de natureza mista, torna-se
necessária uma ampliação teórica em relação àquela comumente usada para o estudo do
signo verbal. Por isso, serão vislumbradas algumas noções postuladas por Charles S.
Peirce, que se prestam para a análise de qualquer tipo de signo (e não só do signo verbal).
Em termos gerais, segundo Peirce (2003), de acordo com sua aparência (isto é, a
maneira como ele aparece), o signo pode ser considerado um ícone, um índice ou um
símbolo. É ícone o signo que guarda uma relação de semelhança ou identidade entre o
significado e o significante. Mais do que representar o objeto a que se refere, ele o
apresenta. Toda imagem, portanto, é, em princípio, um ícone. Também as onomatopéias,
por causa da semelhança com o objeto que representam, guardam essa característica
icônica. A metáfora, “cujo traço principal é a similaridade na significação” (Valente,
1997:26), corresponderia, da mesma forma, a essa relação icônica.
índice é o signo que apresenta uma conexão direta entre significante e
significado, tendo, portanto, como traço principal a contigüidade: ele “indica outra coisa
com a qual está factualmente ligado” (Santaella, 2003:66). Todo índice é constituído por
ícones, mas nele “é mais proeminente seu caráter físico-existencial, apontando para uma
outra coisa (seu objeto) de que ele é parte” (op.cit.). De acordo com Valente (1997:26), a
relação indicial “pode guardar uma correspondência com a figura de linguagem chamada
metonímia, cuja característica principal é a contigüidade na significação”.
Finalmente, o símbolo “extrai seu poder de representação porque é portador de uma
lei que, por convenção ou pacto coletivo, determina que aquele signo represente seu objeto”
(Santaella, 2003:67). A convenção presente no símbolo não é gratuita: há sempre uma
relação acionada por contigüidade instituída. A cruz simboliza o cristianismo porque Jesus
Cristo, sua figura central, morreu em uma cruz; a raposa simboliza a astúcia, porque
culturalmente é considerada um animal astuto. É um signo que provoca uma cadeia
relacional de significações, dependente de nossa concepção de mundo.
O símbolo faz deslanchar a remessa de signo a signo, remessa essa que só
não é para nós infinita, porque nosso pensamento, de uma forma ou de outra,
em maior ou menor grau, está inexoravelmente preso aos limites da abóbada
ideológica, ou seja, das representações de mundo que nossa historicidade nos
impõe. (Santaella, 2003: 69)
As palavras, por sua convencionalidade, são símbolos; aquilo que representam são
objetos gerais, não singularizados; constituem-se em idéias abstratas. Para adquirirem um
poder de referência específico às situações de uso, precisam ser acompanhadas por índices;
passam, pois, a símbolos indiciais (por exemplo, Avenida Amaral Peixoto, nossa irmã).
Após essa caracterização (ainda que geral), podemos afirmar que o termo
sincretismo sígnico aponta para a coexistência de universos distintos em um único texto.
Esse sincretismo revela-se, no caso específico do corpus utilizado neste trabalho, na
concomitância da palavra, signo verbal caracterizado pela arbitrariedade e pela
linearidade, e da imagem, signo icônico caracterizado pela similaridade e pela
superficialidade (Almeida, 1999). O sentido textual será construído, neste caso, através da
complementação a que esses universos submetem-se reciprocamente.
Ler um texto misto, portanto, exige a observação desses dois campos interpretativos
e das relações que estabelecem entre si. Quanto ao âmbito da imagem, assim como no da
palavra, é preciso considerar a relevância do emprego desse ou daquele elemento icônico
para a construção do sentido global. Desde as cores do ambiente à expressão fisionômica
das personagens, os signos icônicos podem carregar uma relação de semelhança com o
objeto representado, num sentido primeiro, “literal”, como também relações aproximativas,
através de metonímias (com os índices), ou de metáforas, numa “dupla similaridade”, num
sentido “conotativo”. E essa possibilidade de produção de sentido depende do cálculo do
não-dito, das operações inferenciais, da intertextualidade e de outras estratégias de leitura,
tanto quanto na interpretação do signo verbal.
2.3.3.2 Entre a palavra e a imagem; entre significado e sentido
Na leitura, a competência semiolingüística (relativa a esse nível de construção
textual) abarca, a princípio, a capacidade de reconhecer os signos; depois, é preciso saber
relacioná-los não só entre si, mas também ao contexto sempre levando em consideração
os elementos trazidos pela situação comunicativa.
No caso do texto sincrético, ou misto, de literatura infantil, o nível semiolingüístico
opera com signos icônicos, além de se valer da palavra. Esses dois tipos sígnicos obedecem
a certas estratégias de leitura, ora de mesma natureza, ora de natureza diversa.
A diferença básica entre o signo verbal e o não-verbal, pertinente ao ato de ler, diz
respeito à sua maneira de significar. O signo não-verbal, sobretudo o figurativo,
primeiramente exige do leitor a percepção, o re-conhecimento, através dele, dos seres do
mundo iconicamente (em outras palavras, através da semelhança que esses signos
estabelecem, eles próprios, com aquilo a que se referem).
Logo a seguir, na relação entre esse signo e os demais que constituem o texto, assim
como entre ele e a situação comunicativa, o sujeito-interpretante “des-cobre” seu “sentido
segundo”, aquele que contribui para a construção do macro-sentido textual. Já com as
palavras, esse processo é mais lento por causa de seu duplo processamento : inicia-se com a
compreensão do simbólico (palavras); passa-se à identificação de sua “transparência”
(iconicidade), ou de sua “opacidade” (movimento indicial ou novamente simbólico) e,
finalmente, obtém-se a interpretação do sentido.
Além disso, as imagens trazem, aparentemente, um caráter universal, visto que o
homem as produz desde a pré-história até nossos dias e a similaridade entre esses
elementos e a realidade que representam induz a esse engano. Isso traz a impressão de que
a leitura desses elementos seja “natural”, ou “automática”; contudo, segundo Joly (1996:
99) “a interpretação das formas, assim como a das ferramentas plásticas, é essencialmente
antropológica e cultural”.
Por essas características, o signo icônico atrai o leitor pela aparente “facilidade” de
leitura, mas está, o tempo todo, exigindo uma outra leitura, mais profunda, sempre
ativadora do plano discursivo/situacional, para permitir sua interpretação. São ícones
incessantemente transformados em índices e símbolos, que precisam ser, além de
reconhecidos/compreendidos, interpretados.
A confusão é freqüentemente feita entre percepção e interpretação. De fato,
reconhecer este ou aquele motivo nem por isso significa que se esteja
compreendendo a mensagem da imagem na qual o motivo pode ter uma
significação bem particular, vinculada tanto a seu contexto interno quanto ao
de seu surgimento, às expectativas e conhecimentos do receptor. [...]
Portanto, ainda hoje, reconhecer motivos nas mensagens visuais e interpretá-
los são duas operações mentais complementares, mesmo que tenhamos a
impressão de que são simultâneas.
Por outro lado, o próprio reconhecimento do motivo exige um aprendizado.
[...] É esse aprendizado, e não a leitura da imagem, que é feito de maneira
“natural” na nossa cultura, na qual a representação pela imagem figurativa
tem tanta importância. (Joly, 1996: 42-43)
Percebe-se, pois, que a referência quase imediata ao mundo propiciada pelo signo
icônico sobretudo o figurativo não pressupõe uma interpretação automática: é
necessário recorrer à “significação segunda”, à conotação imagística.
Conforme Barthes (apud Joly, 1996: 83), a imagem figurativa constitui um signo
pleno (um significante ligado a um significado), que se torna significante de um significado
segundo, perfazendo um circuito de significação assim representado:
Significante Significado
Significante Significado
Fig. 4 Imagem figurativa como signo pleno
Joly (op.cit.: 83) explica:
Foi assim que Barthes conceitualizou e formalizou a leitura “simbólica” de
imagem e, mais particularmente, da imagem publicitária. Para ele, esse
processo de conotação é constitutivo de qualquer imagem, mesmo das mais
“neutralizantes”, como a fotografia, por exemplo, pois não existe imagem
adâmica”. Que o motor dessa leitura segunda, ou interpretação, seja a
ideologia, para uma sociedade e história determinadas, em nada invalida o
fato de que, para Barthes, uma imagem pretende dizer algo diferente do que
representa no primeiro grau, isto é, no nível da denotação.
Essa leitura segunda ou interpretação de que trata Joly ao se referir a Barthes, liga-
se ao plano discursivo da linguagem, que leva em consideração aspectos outros que se
localizam além da superfície textual, visível, primeiramente reconhecida. Esse duplo
processo é explorado pelos lingüistas, em relação ao signo verbal, para se referir ao sentido
discursivo, dependente do cálculo interpretativo, como representado a seguir, a partir das
idéias de Coseriu e de Charaudeau sobre os planos da língua e do sentido.
PLANO DA LÍNGUA “...o plano do sentido é (...) duplamente
semiótico...” (Coseriu, 1980)
SIGNIFICANTE
+
SIGNIFICADO LINGÜÍSTICO “SIGNIFICANTE”, “PARTE MATERIAL”
+
“SIGNIFICADO TEXTUAL” OU
SENTIDO DO TEXTO
(COSERIU) PLANO DO SENTIDO
sentido lingüístico (CHARAUDEAU) sentido discursivo
(REFERÊNCIA TRANSPARENTE”; (OPACIDADE EM RELAÇÃO AO MUNDO ;
ÂMBITO DA COMPREENSÃO) ÂMBITO DA INTERPRETAÇÃO )
Fig. 5 Sentido lingüístico e sentido discursivo
Afirmando que “o plano do sentido é duplamente semiótico”, Coseriu revela a dupla
função do significado lingüístico (no plano da língua), que, além de fazer uma referência ao
mundo, permite que esse conteúdo veiculado pelo signo sirva de “significante” para um
outro significado, específico à enunciação a que se incorpora, agora denominado sentido.
Charaudeau, evidenciando o tipo de relações necessárias para a obtenção desse sentido,
chama-o discursivo. O que Barthes postula a respeito da imagem figurativa, portanto,
abarca, na verdade, a constituição de todo e qualquer signo, já que todo processo de
significação que se origina no texto pressupõe a relação de cada elemento sígnico com o
sistema ao qual pertence e com os fatores externos que regem a textualidade.
A competência semiolingüística, portanto, exige do sujeito-interpretante, em
primeiro lugar, uma capacidade de reconhecimento dos signos que compõem a superfície
textual e, em segundo, uma habilidade para relacionar essa evidência aos fatores
“invisíveis”, tanto do nível discursivo quanto situacional, que serão, eles próprios, as
marcas textuais dos conteúdos implícitos e das referências à situação comunicativa.
De acordo com Joly (op.cit.), a análise dos diversos elementos (verbais ou não-
verbais) que constituem o texto pode ser feita pela oposição e pela segmentação ainda
que, para a autora, o estudo da linguagem verbal seja mais simples, por causa de sua
descontinuidade que favorece o isolamento das unidades discretas que a formam. A
linguagem visual apresenta maior dificuldade devido à continuidade de seus elementos, que
podem ser interpretados, sobretudo, pelo que não são, através de associações mentais que
permitem, por permutação, a distinção de elementos “relativamente autônomos”.
Ainda quanto à diferença entre a análise do signo verbal e do não-verbal, Almeida
(1999: 26) diz:
A “imagem” acústica do signo lingüístico é definida com precisão, pois ele
se articula a partir de um número reduzido de unidades mínimas dotadas de
características distintivas.
A linguagem icônica, por sua vez, flexibiliza a articulação do signo visual. O
significante não é identificado a uma estrutura formal rígida, composta por
unidades mínimas isoláveis. As próprias características “articulatórias” mais
evidentes dos significantes visuais (comprimento, espessura, nitidez,
contraste, cor etc.) não são objeto de um consenso como os fonemas. Não se
estabelece, a partir delas, um jogo de oposições binárias ou radicais (espesso
x não espesso; comprido x não comprido); não oscilam entre o sim e o não.
Ao contrário, deslocam-se do mais para o menos e vice-versa. Não são,
portanto, traços distintivos.
Cada tipo de signo, portanto, guarda sua característica e se articula com outros
signos de forma diferenciada, mas, na convergência de suas atuações para finalizar o
sentido textual, privilegia-se o que significam em função do todo, um pouco em detrimento
de como significam, acima de tudo porque a linguagem visual estará sempre “mais sujeita
às variações idioletais do que a verbal, embora conserve seu caráter social, convencional,
sem o qual não seria uma linguagem, nem haveria comunicação” (Almeida, 1999:27). Na
junção dessas diversas linguagens, nasce, em termos de literatura infantil, na opacidade do
texto, o que há de original, desautomatizado, plussignificativo, poético e lúdico.
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A Literatura não é, como tantos supõem, passatempo. É uma nutrição.
Cecília Meireles
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Tratar de uma literatura qualificada como infantil traz inúmeras questões à tona.
Entretanto, uma questão antecede todas as outras, especialmente pelo valor tanto objetivo
quanto negativo que se atribui a essa literatura, e que é exatamente a do peso do adjetivo
infantil. Por que não simplesmente literatura, arte, texto de natureza estética?
Essa questão está ligada à sua constituição ao longo do tempo, ao longo dos textos
que a representam. Será infantil porque seu público leitor é formado por crianças (ou
também por crianças?), ou porque seus autores agem como crianças, produzindo obras
infantilizadas, óbvias, “mastigadas”? Ou porque, em virtude de uma gênese vinculada às
obrigações de fortalecimento do ideal burguês, essa literatura tornou-se uma das vias de
acesso a uma sociedade homogeneizada, conseqüentemente fazendo-se “menor”, mais
reflexo do que reflexiva? Ou, ainda, porque a simplicidade de sua linguagem (tão cheia de
imagens e de palavras “facilitadoras”), para muitos, significa simploriedade de sentidos,
menosprezo da capacidade contemplativa e reflexiva de seus leitores? Quantos valores,
impregnados do que é histórico, cultural, ideológico, ou situacional, atingem a semiose dos
textos ditos infantis? Que tipo de evolução essa vertente literária vem sofrendo desde seus
primórdios?
Para se refletir sobre essas questões, é preciso verificar o percurso histórico da
literatura infantil até os dias atuais, até as obras que hoje se orgulham da denominação
“infantil”, como as de Ziraldo, objeto de análise neste trabalho.
3.1 Percurso histórico-cultural da literatura infantil: dos primórdios a Ziraldo
A origem dessa literatura já revela dados importantes. A atração fácil do popular
sobre a criança fez com que os primeiros textos ditos para crianças fossem exatamente os
mesmos que circulavam oral e popularmente em todos os meios. Apesar das adaptações
sofridas a fim de tornarem-nos “acessíveis” à compreensão infantil, a única verdadeira
novidade que traziam era o próprio público, até o momento sem lugar na sociedade. Eram
textos que atraíam por causa dos mitos, da fantasia, que conquistavam o público
espontaneamente, tanto no meio popular em geral, quanto no meio das crianças.
Em razão disso, Cecília Meireles, em seu importante livro Problemas de literatura
infantil (1984) escrito a partir de três conferências proferidas pela autora em 1949, em
um curso de férias sobre Literatura Infantil, promovido pela Secretaria de Educação de
Minas Gerais afirma que deveria ser classificada como infantil a literatura assim vista a
posteriori e não a priori, já que muitos dos títulos (até então) admirados pelas crianças e
guardados por toda a vida em sua memória não eram destinados, a princípio, a elas; outros,
produzidos intencionalmente para a infância, foram deixados de lado, não conquistaram seu
público-alvo. Embora seja uma perspectiva parcial em relação à produção literária infantil,
dada a época, reflete aspectos relevantes, já que muitas obras “tradicionais” citadas pela
autora como prediletas de leitores como Goethe e Rousseau conquistam leitores até hoje.
O que a constitui [a Literatura Infantil] é o acervo de livros que, de século em
século e de terra em terra, as crianças têm descoberto, têm preferido, têm
incorporado ao seu mundo, familiarizadas com seus heróis, suas aventuras,
até seus hábitos e sua linguagem, sua maneira de sonhar e suas glórias e
derrotas. (Meireles,1984: 31-32)
A Psicologia explica a semelhança entre a empatia do povo pela arte popular e a
empatia da criança pela sensação imediata, impactante dos livros a ela destinados, ou do
produto, em geral, a ela oferecido, em virtude de sua completa identificação com o objeto,
seja por meio de sua percepção sensorial do mundo, seja por meio das emoções nela
suscitadas.
Segundo dados da psicologia, a mentalidade popular e a infantil identificam-
se entre si por uma consciência primária na apreensão do eu interior ou da
realidade exterior (seja o outro, seja o mundo). Isto é, o sentimento do eu
predomina sobre a percepção do outro (seres ou coisas do mundo exterior).
Em conseqüência, as relações entre o eu e o outro são estabelecidas,
basicamente, através da sensibilidade, dos sentidos e/ou das emoções. (...)
Em outras palavras, no povo (ou no homem primitivo) e na criança, o
conhecimento da realidade se dá através do sensível, do emotivo, da
intuição... e não através do racional ou da inteligência intelectiva, como
acontece com a mente adulta e culta. Em ambos predomina o pensamento
mágico, com sua lógica própria. Daí que o popular e o infantil se sintam
atraídos pelas mesmas realidades. (Coelho, 2000:41)
Em outras palavras, sendo uma vertente que se constitui de elementos figurativos,
de tramas embebidas em fantasia, nas quais a imaginação é mola propulsora de uma
experiência interior muitas vezes indizível, intuitivamente concretizada em analogias que
evidenciam a superposição mundo narrado e mundo real, a literatura infantil (como a
popular, em geral) é muitas vezes acusada de carecer de refinamento, por meio de
implicações, abstrações; algo que a elevasse a um patamar de elite, para poucos,
considerados “escolhidos”, melhores.
Assim, desde o princípio de sua existência, o caráter popular e de “fácil empatia”
dessa consciência primária acionada pelos textos infantis não parece configurar um aspecto
positivo em relação ao perfil literário, artístico de uma obra. Em 1697, ao publicar Os
contos de mamãe gansa (originalmente Histórias ou narrativas do tempo passado com
moralidades), Charles Perrault, membro da Academia Francesa, temeroso em manchar sua
imagem de intelectual escrevendo uma obra popular, credita sua criação a seu filho mais
novo (Lajolo e Zilberman, 2003). No entanto, é essa publicação que aguça o interesse pelos
contos de fada, até então só presentes na oralidade, além de impulsionar enormemente a
disseminação de uma literatura para crianças, englobando obras como as Fábulas de La
Fontainne (1668 e 1694) e As aventuras de Telêmaco, de Félenon (1717).
Essas narrativas ditas primordiais caracterizam-se pela exemplaridade e pela
transmissão de valores culturais via matéria literária, com personagens-tipo e forte
simbolização. Sua efabulação inicia-se com o motivo central da história e resulta,
normalmente, das três necessidades básicas do ser humano: estômago, sexo e vontade de
poder. As tramas se desenvolvem em torno de situações de trabalho, que visam a
superação da miséria em que vivem as pessoas; situações de casamento, com as provas
vencidas para o “herói” se casar com a “princesa” e situações de exploração do homem
pelo poder. O mistério e o enigma, presenças constantes, mostram a perplexidade do
homem diante daquilo que rege a vida. A repetição exaustiva dos esquemas básicos
(argumentos, invariantes e variantes, tipos e atributos de personagens, valores ideológicos)
é outra característica importante desses textos, e vai ao encontro de uma exigência
psicológica de seu leitor/ouvinte, já que antecipar as ações é algo que lhe dá prazer e
sensação de segurança interna. “É como se pudesse dominar a vida que flui e lhe escapa”
(Coelho, 2000: 106).
Um fato que muito contribuiu para a difusão da literatura infantil foi, especialmente
na Inglaterra, a industrialização do séc. XVIII, revolucionária pela transformação
econômica, política, social e ideológica que provocara, criando a urbanização, o
proletariado e a burguesia. Evitando confrontos diretos e sangrentos como na França, em
1789, a burguesia revela-se como uma classe que “procura tornar sua violência menos
visível” (Lajolo e Zilberman: 2003,17) e, por isso, incentiva instituições que a favoreçam.
Primeiramente, a família passa a ser tomada como finalidade existencial do
indivíduo, com seu modo doméstico, menos público e participativo de viver. A criança
assume, nela, novo papel social, a de alvo da atenção dos adultos, tendo ressaltadas sua
fragilidade, sua desproteção e sua dependência virtudes estas que, por um lado, a
promovem coletivamente, mas, por outro, qualificam-na de modo depreciativo. Esse papel
atribuído à criança não só estimula a criação de novos ramos da ciência (Psicologia infantil,
Pedagogia, Pediatria), como motivam o aparecimento dos brinquedos (industrializados) e
dos livros. Direcionadas às crianças, as histórias precisavam preservar certas características
muitas vezes consideradas prejudiciais às obras.
Ligada desde a origem à diversão ou ao aprendizado das crianças,
obviamente sua matéria deveria ser adequada à compreensão e ao interesse
desse peculiar destinatário. E como a criança era vista como um “adulto em
miniatura”, os primeiros textos infantis resultaram da adaptação (ou da
minimização) de textos infantis escritos para adultos. Expurgadas as
dificuldades de linguagem, as digressões ou reflexões que estariam acima
da compreensão infantil; retiradas as situações ou os conflitos não-
exemplares e realçando principalmente as ações ou os conflitos de caráter
aventuresco ou exemplar... as obras literárias era reduzidas em seu valor
intrínseco, mas atingiam o novo objetivo: atrair o pequeno leitor/ouvinte e
levá-lo a participar das diferentes experiências que a vida pode
proporcionar, no campo do real e do maravilhoso. (...) Compreende-se,
pois, que até bom pouco, em nosso século, a literatura infantil fosse
encarada pela crítica como um gênero secundário, e fosse vista pelo adulto
como algo pueril (nivelada ao brinquedo) ou útil (nivelada à aprendizagem
ou meio para manter a criança entretida e quieta). (Coelho, 2000: 29-30)
Outra importante instituição burguesa é a escola, obrigatória para as crianças a
partir do séc. XVIII. Como a família, serve de mediação entre a criança e a sociedade. O
livro infantil, produzido em série e destinado a um mercado específico (literatura para
crianças), em função do status de mercadoria, acaba provocando um elo entre a escola e a
literatura, pois é preciso habilitar as crianças para o consumo de obras impressas,
ensinando-lhes ler. Assim, a literatura passa a intermediar, mesmo que involuntariamente, a
relação entre a criança e a sociedade de consumo, assumindo sua intenção orientadora,
endossando os valores burgueses, imitando o comportamento social de seu meio.
A liberdade de imaginação, característica tão cara à literatura infantil mais do que às
“outras literaturas”, pode ser fator de forte persuasão ideológica. Escrito por adultos, o texto
infantil, por extravasar as fronteiras do realismo, permite a fácil idealização de um mundo
ainda ficcional, mas que transmite o projeto adulto de realidade histórica. É um fato que
revela o perigo ao escapismo, ou à doutrinação a que se expõe a literatura infantil. Por outro
lado, ao representar, no texto, o universo afetivo e emocional da criança, exige dela uma
capacidade interpretativa para “decifrar” o signo-texto que é assimilada por sua
sensibilidade. Em outras palavras, é um exercício de leitura, de construção de sentido, que a
habilita à competência de linguagem por meio da projeção do sujeito-interpretante naquele
mundo da palavra, numa identificação completa, como se a criança fosse parte dele.
A partir do séc. XVIII, o indivíduo passa a ser valorizado pelo que ele é, sabe, ou
faz. Em outras palavras, os valores são ditados agora por uma nova razão: a do direito a ter
oportunidades iguais de auto-realização. Assim, junto às narrativas primordiais (fábulas,
contos de fadas, contos maravilhosos), começam a ser adaptados, para jovens e crianças,
romances ou novelas famosas, os livros cultos, antes destinados somente aos adultos.
Podem ser elencados nesse caso títulos como Aventuras de Robinson Crusoé (1719), Vinte
mil léguas submarinas (1870), O três mosqueteiros (1844). São dessa época obras como
Alice no país das maravilhas (1862), Aventuras de Pinóquio (1881) (Coelho: 2000, 118).
A novidade da literatura infantil de raiz romântica, em relação às obras primordiais,
que fundiam o registro do real à invenção do maravilhoso, é a sua preocupação com o
realismo, aproximando a obra da vida dos homens, cada vez mais fantasticamente acelerada
pelas máquinas e magicamente centrada no poder da inteligência humana. As obras desse
período substituem a concisão e objetividade das antigas narrativas exemplares por um
estilo lógico-explicativo. Quanto mais avança o cientificismo do séc. XIX, mais racionais
tornam-se os estilos literários: o tempo histórico passa a predominar; as descrições
precisam ser minuciosas; o antigo maravilhoso cede lugar ao romance científico; as
personagens-tipo são substituídas por exemplares personagens-caráter (sua personalidade e
comportamento importam mais que sua função social). As aventuras protagonizadas por
jovens, como em O último dos moicanos, de James Fenimore Cooper (1826), as obras de
Jules Verne (a partir de 1826), As aventuras de Tom Sawyer (1876), A ilha do tesouro, de
Robert Louis Stevenson (1882), assim como a apresentação do cotidiano da criança, como
em As meninas exemplares, da Condessa de Ségur (1857), Mulherzinhas, de Louise M.
Alcott (1869) são as novidades do período.
Segundo Lajolo e Zilberman (2003), essas publicações confirmam a literatura
infantil como parte importante da publicação literária burguesa e capitalista. Por isso,
quando se começa a editar livros para as crianças no Brasil, desde a implantação da
Imprensa Régia (1808), as características comuns se reforçam, pois a literatura infantil
brasileira parte do acervo europeu cristalizado e modelar: a tradução de As aventuras
pasmosas do Barão de Munkausen (1808) e a coletânea de José Saturnino da Costa Pereira
(1818) são as primeiras esporádicas realizações, importadas da Europa. O aparecimento da
literatura infantil, entretanto, só se consolida efetivamente em solo brasileiro entre o fim do
século XIX e início do XX, fruto da necessidade de uma recém surgida massa urbana, que
não só vem corroborar a ambição de uma imagem de país em franca modernização, como
também servir de mercado consumidor de uma industrialização irrefreável.
Em 1905, surge a revista infantil O Tico-Tico, de importante sucesso, cujas
personagens ajudam a construir o imaginário infantil nacional e, nessa mesma época, abre-
se espaço para a produção didática e literária para as crianças. Além das muitas traduções e
adaptações, Olavo Bilac e Coelho Neto editam Contos pátrios em 1904, Júlia Lopes de
Almeida lança as Histórias da nossa terra em 1907, além da longa narrativa Através do
Brasil, também editada por Olavo Bilac, junto com Manuel Bonfim, entre outros. São
textos que incluem, na aventura vivida pelos personagens, lições de geografia, história,
higiene, como atesta a “Advertência e explicação” de Através do Brasil:
O nosso livro oferece bastantes motivos, ensejos, oportunidades,
conveniências e assuntos, para que o professor possa dar todas as lições,
sugerir todas as noções e desenvolver todos os exercícios escolares para boa
instrução intelectual de seus alunos. (Bilac e Bonfim, apud Lajolo e
Zilberman, 2003: 35)
A poesia infantil, que, em 1893, já apresentara algumas participações em Coração,
de Zalina Rolim, em 1897, com o Livro das crianças, tem seu espaço garantido, graças ao
projeto de Zalina em parceria com João Köpke. Olavo Bilac, em 1904, edita suas Poesias
infantis e, em 1912, Francisca Júlia e Júlio da Silva lançam Alma infantil. Antologias
folclóricas e temáticas também são editadas com o intuito de constituírem material
adequado para celebrações escolares.
Nas lamentações da ausência de material de leitura e de livros para a infância
brasileira, fica patente a concepção, bastante comum na época, da
importância do hábito de ler para a formação do cidadão, formação que, a
curto, médio e longo prazo, era o papel que se esperava do sistema escolar
que então se pretendia implantar e expandir. (Lajolo e Zilberman, 2003:28)
Em 1921, Monteiro Lobato publica Narizinho Arrebitado (Segundo livro de leitura
para uso das escolas primárias), preocupado com a necessidade de se escreverem histórias
para crianças com uma linguagem mais apropriada para elas. Já autor de sucesso, Lobato
investe em literatura para crianças, não como autor, mas como editor. Até 1944, cria um
ciclo de aventuras dos netos de Dona Benta. Nesse período, surgem novos autores, como
Francisco Marins, Maria José Dupré, Lúcia Machado de Almeida, Viriato Correia e Malba
Tahan, entre outros, assim como editoras interessadas no público infantil, como a
Melhoramentos e a Editora do Brasil. Romancistas e críticos passam a publicar para as
crianças, como José Lins do Rego, com as Histórias da velha Totonha (1936), Graciliano
Ramos, com A terra dos meninos pelados (1939) e com Alexandre e outros heróis (1944) e
ainda Érico Veríssimo, com As aventuras do avião vermelho (1936), entre muitos outros.
Conforme é atestado por Lajolo e Zilberman (2003), o período entre 1920 e 1945
corresponde à progressiva emancipação da literatura infantil brasileira. Foram criadas
histórias originais, carregadas das “preocupações nacionais”, como atesta o universo do
Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Lobato, palco de disseminação de ideais, inclusive
pedagógicos fato comprovado pela publicação de Emília no país da gramática (1934),
Aritmética da Emília (1935), Geografia de Dona Benta (1937) e Histórias das invenções
(1935).
Entre 1940 e 1960, ganham relevo a profissionalização e a especialização da
produção literária infantil. Dessa época são as obras A mina de ouro e O cachorrinho
Samba na Bahia (1940), Éramos seis (1943) e A ilha perdida (1946), de Maria José Dupré.
Outros importantes escritores, como Ofélia e Narbal Fontes, Lúcia Machado de Almeida,
Maria Lúcia Amaral também produzem quantidade considerável de obras, muitas vezes
consideradas repetitivas, explorando filões conhecidos e evitando a pesquisa renovadora.
Até Cecília Meireles, com Rui: pequena biografia de um grande homem (1949) segue uma
tendência, a da ficção histórica, utilizando um modelo seguido igualmente por Francisco
Marins, Baltazar de Godói Moreira e Virgínia Lefèvre.
O menor reconhecimento artístico e maior marginalização acabam por marcar a
literatura infantil, especialmente se comparada aos demais gêneros existentes, de caráter
comprometidamente estético. Além disso, as aventuras que recheiam as obras infantis,
ainda que não se recusem a expor a realidade nacional, optam, muitas vezes, por uma
tendência escapista comprovada, inclusive, pelas histórias que “viajam” no tempo, seja em
direção ao passado, na “ficção bandeirante” explorada, por exemplo, por Jerônimo
Monteiro, ou com as Aventuras de Xisto (1957), de Lúcia Machado de Almeida, seja em
direção ao futuro, com Xisto no espaço (1967), Xisto e o saca-rolha (1974), da mesma
autora.
...apesar do ufanismo que as epopéias bandeirantes ou os livros de história
comportam, ambos dilapidam o primitivo vale dizer, aquilo que, em outra
época, encarnara o Brasil. É notável que possam fazê-lo, conciliando com o
elogio ao arcaísmo verificável nos sítios e outros locais amenos do campo;
mas isso é possível porque, nesses ambientes, índios e caboclos foram
previamente exterminados ou submetidos pelos primeiros colonizadores e
atuais proprietários. (...) É como fruto e motor da ideologia desse período que
os textos destinados à infância e juventude podem ser encarados. Por isso,
não denunciam a realidade, mas a encobrem, sem deixar de transmitir ao
leitor os valores que endossam. A postura, por escapista, mostra-se
reveladora; contudo, é dela que proveio a eficiência do gênero. Este perdurou
e tomou corpo, adquiriu solidez e deu segurança aos investidores, em virtude
da utilidade que demonstrou e da obediência com que seguiu as normas
vigentes. (Lajolo e Zilberman, 2003: 121 e 122).
A partir dos anos 60, multiplicam-se programas e instituições de fomento do livro
infantil, como a Fundação do Livro Escolar (1966), Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil (1968), o Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil (1973), a Academia
Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil (1979). Por parte da iniciativa privada, houve
também um grande investimento de capitais em literatura infantil, inclusive, no que diz
respeito ao desenvolvimento do hábito de ler, em relação à inserção de instruções e
sugestões didáticas em livros direcionados às escolas. Mesmo autores consagrados como
Vinícius de Morais, Cecília Meireles, Clarice Lispetor e Mário Quintana usufruíram desse
espaço.
É uma literatura mais ambientada na urbanização, que aponta crises e problemas da
sociedade contemporânea, tematizando a pobreza, a miséria, a injustiça, os preconceitos,
como em Pivete (1977), de Henry Coréia de Araújo, A casa da madrinha (1978), de Lygia
Bojunga Nunes, Coisas de menino (1979), de Eliane Ganem. São títulos que ousam abordar
temas até então tidos como tabus e impróprios para menores e desvinculam o livro infantil
do autoritarismo, do conservadorismo e do maniqueísmo anteriores. Assim, surgem A fada
que tinha idéias (1971), de Fernanda Lopes de Almeida, A fada desencantada (1975), de
Eliane Ganem, História meio ao contrário (1979), de Ana Maria Machado, Onde tem
bruxa, tem fada (1979) de Bartolomeu Campos Queirós, subvertendo valores e inaugurando
um período de maior reflexão acerca do mundo social. A ficção científica e o mistério
policial também são amplamente explorados, graças ao incentivo da industrialização da
cultura. O gênio do crime (1973), de João Carlos Marinho, O caso da estranha fotografia
(1977), de Stella Carr são alguns das dezenas de livros publicados nessa época.
Um importante traço da modernidade atestado pela produção contemporânea
infantil diz respeito à ênfase nos aspectos gráficos como elementos autônomos,
praticamente auto-suficientes, e não mais como subsidiários do texto verbal. Isso ocorre em
Chapeuzinho Amarelo (1979), de Chico Buarque, Flits (1969), de Ziraldo, Ida e volta
(1976), de Juarez Machado, entre vários outros.
A poesia para crianças, a partir de 1960, começa a incorporar as conquistas do
Modernismo, como em Ou isto ou aquilo (1962), de Cecília Meireles, Pé de pilão (1968),
de Mário Quintana, O peixe e o pássaro (1974), de Bartolomeu Campos Queirós, A arca de
Noé (1974), de Vinícius de Morais. Ao lado disso, livros como os de Clarice Lispector, A
vida íntima de Laura (1974), O mistério do coelho pensante (1967) e A mulher que matou
os peixes (1968), assim como Uma idéia toda azul (1979), de Marina Colasanti, passam a
se afastar da representação realista. Além disso, a linguagem utilizada nos livros, mais
coloquial, próxima da oralidade, representa uma tentativa de aproximação das propostas
modernistas e da herança lobatiana, assim como traz para as histórias infantis o heterogêneo
universo das crianças marginalizadas, de pobres, de índios. Os valores dominantes, tanto no
enredo, quanto na linguagem, deixam de ser exemplares.
São, assim, as muitas formas pelas quais o texto infantil contemporâneo
busca romper com a esclerose a que o percurso escolar e o compromisso com
uma pedagogia conservadora parece ter confinado o gênero. A ruptura
acarreta ainda a produção de textos autoconscientes, isto é, de textos que
explicitam e assumem sua natureza de produto verbal, cultural e ideológico.
Reside aí o ponto de radicalidade mais extrema a que chega o texto infantil
das duas últimas décadas. (op.cit.: 161)
Se até os dias atuais a imposição mercadológica limita a criação artística em todos
os setores, já se pode notar, como revelam Lajolo e Zilberman (2003), uma consciência
maior acerca da divisão desse gênero em dois: o de literatura utilitária (mais utilitária que
literatura) e o da literatura infantil (mais literatura que infantil). Afinal, usar o suporte
livro não significa que este trate de literatura, nem fazer literatura para criança significa
escrever de modo inocente, pior, menor.
Se há uma força extratextual, cultural que se “intromete” na construção do texto,
tematizando-a nos limites dos valores que a sociedade pretende disseminar, hoje há também
outra, orientada por outra natureza discursiva, que reside e resiste no texto, criando
efeitos, surpreendendo, emocionando, fazendo imaginar. No que há de utilitário, evidencia-
se esse objetivo instrutor, tendo, no sentido, somente a força da direção (e uma única!). Já
no que há de literário, emerge a intenção de extasiar, tendo, nos sentidos, mais que simples
direção, mas sentimentos, interpretações e isso tem sido constante na produção literária
infantil atual, como será visto, neste trabalho, durante a investigação da obra de Ziraldo.
No encontro com a literatura (ou com a arte em geral), os homens têm a
oportunidade de ampliar, transformar ou enriquecer sua própria experiência de
vida, em um grau de intensidade não igualada por nenhuma outra atividade.
(Coelho, 2000: 29)
3.2 A literatura infantil de hoje e de Ziraldo
Em geral, os livros ditos infantis, por causa da estereotipia de uma literatura voltada
para a disseminação da “verdade social” da escola e da sociedade de consumo, carregam,
muitas vezes, o peso do esvaziamento de sua qualidade poética, como afirmam Palo e
Oliveira (2001:9): “Desde os primórdios, a literatura infantil surge como uma forma
literária menor, atrelada à função utilitário-pedagógica que a faz ser mais pedagogia do que
literatura”. Por muito tempo, em diversos espaços institucionais, o livro infantil tem sido
visto como “fácil”, “pueril”, “não-literário” e, conseqüentemente, “de pouco peso artístico”.
Apesar disso, o movimento de valorização do livro infantil, a partir das últimas décadas do
séc. XX, tem tido sucesso quanto à categorização dessa arte, acima de tudo, como
literatura.
A partir da síntese histórica acerca da literatura infantil, percebe-se a preocupação
atual com os valores estéticos sobrepujando a condição utilitário-pedagógica de publicações
voltadas para um universo disciplinar, conformador, repetidor. Denominar de infantil certa
parcela da criação literária pode, hoje, significar um caráter de exacerbação do potencial
poético das obras, imbricando universos sígnicos distintos mas convergentes, ou significar
simplesmente o alargamento em termos de expectativas quanto ao leitor-modelo que se
estende, nesse caso, (também) ao universo das crianças.
Como um dos maiores expoentes na área, Ziraldo Alves Pinto, em várias entrevistas
e palestras, e em alguns de seus livros infantis carregados de metalinguagem, enfatiza a
necessidade de trazer o ser humano para o “convívio” com sua própria humanidade por
meio da literatura, da aquisição da experiência de outrem via ato de ler. Por isso, sua opção
por fazer literatura para crianças (de todas as idades), conforme declara em O ABZ de
Ziraldo (2003: 163): “Este é um livro para a criança que qualquer pessoa grande já foi.
Todas as pessoas foram um dia crianças. (Mas poucas se lembram disso.)”.
Em outras palavras, literatura infantil, para Ziraldo, é sim literatura para crianças:
para a espontaneidade e capacidade imaginativa como a das crianças que qualquer
um pode ter, mas, acima de tudo, literatura, texto com função poética, voltado para o
prazer estético da linguagem. No entanto, ele conhece a posição “inferior” que a literatura
denominada infantil ocupa na sociedade. Isso pode ser comprovado quando explica no
prefácio do “ABZ”:
Escrevi e ilustrei vinte e seis livrinhos com a história de cada uma das
minhas primeiras companheiras de aventuras [as letras]. (...) Muita gente
acreditou, pelas letras nas capas, que se tratava de livrinhos para
alfabetização. Não eram. Eu estava querendo era fazer literatura para
crianças. Literatura, mesmo. (Ziraldo, 2003:3)
Por isso a necessária explicação de Ziraldo, reiterativa e modalizante, negando o
suposto valor utilitário de sua obra, ao mesmo tempo em que ressaltava sua intenção
artística: “Eu estava querendo fazer literatura para crianças. Literatura, mesmo”. E
consegue. E “sua” literatura não é infantil, ou pior; é infantil, pelo processo associativo
característico do gênero.
[...] Tomando-se literário no sentido estrito que lhe dá Jakobson, isto é,
enquanto função poética (projeção do eixo da similaridade sobre o da
contigüidade), assumir a dominante poética nos textos de literatura infantil é
configurar num espaço onde equivalências e paralelismos dominam, regidos
por um princípio de organização basicamente analógico, que opera por
semelhanças entre os elementos. Espaço no qual a linguagem informa, antes
de tudo, sobre si mesma. Linguagem-coisa com carnadura concreta,
desvencilhando-se dos desígnios utilitários de mero instrumental. [...] Leitura
que segue trilhas, lança hipóteses, experimenta, duvida, num exercício
contínuo de experimentação e descoberta. Como a vida. [...] ao se falar dos
textos de literatura infantil sob a dominante estética, põe-se em risco a
própria categorização de infantil e, mais ainda, do possível gênero de
literatura infantil, já que não se trata mais de falar a esta ou àquela faixa
etária de público, mas assim de operar com determinadas estruturas de
pensamento as associações por semelhança comuns a todo ser humano.
(Palo e Oliveira, 2201:11-12)
A construção da poeticidade evidencia-se no nível semiolingüístico; surge na
contigüidade dos signos, que mantêm entre si relações de similaridade, seja entre seus
significantes, seja entre seus significados, ou do vínculo motivado entre expressão e
conteúdo. Segundo Jakobson (s/d: 128), a função poética da linguagem, revelada pelo
enfoque da mensagem por ela própria, nem deve ser estudada “desvinculada dos problemas
gerais da linguagem”, nem pode ser descartada de sua análise: configura-se como a função
dominante, determinante em relação às demais; é considerada constituinte subsidiária de
todas as atividades verbais.
Como critério lingüístico empírico dessa função, o estudioso afirma que “a função
poética projeta o princípio de equivalência do eixo da seleção sobre o eixo da combinação.
A equivalência é promovida à condição de recurso constitutivo da seqüência” (op.cit.:130).
Isso ocorreria nas rimas, por exemplo, quando a semelhança entre os significantes projeta a
relação paradigmática no eixo sintagmático, ou nas metáforas, quando a relação
paradigmática projetada pertence aos significados. Para o lingüista, o efeito poético seria
obtido na combinação da estrutura paradigmática com a estrutura sintagmática: a análise da
mensagem não dispensaria a análise do sistema. Obra poética seria, pois, aquela em que a
função poética tem primazia sobre as demais.
Por causa dessa transposição do eixo paradigmático sobre o sintagmático, a
semiótica greimasiana, explorada por Jean-Marie Floch (apud Pietroforte, 2004:8) no
estudo das artes plásticas e do marketing, entre outros objetos, postula a poeticidade das
relações semi-simbólicas, nascidas de um modo de articulação entre o plano de expressão e
o de conteúdo arbitrário (por ser fixado em determinado contexto) e motivado (pela relação
estabelecida entre os dois planos da linguagem). O plano de expressão, além de veicular um
conteúdo, passaria, ele próprio, a “fazer sentido” (op.cit.: 21).
...a relação entre uma forma de expressão e uma forma de conteúdo manifesta-se
quando há uma relação entre os eixos paradigmáticos de cada uma delas, e
quando eles são projetados no eixo sintagmático. Se em uma pintura, por
exemplo, as cores quentes são relacionadas a conteúdos do sagrado, e as cores
frias, do profano, em seu texto há uma projeção no eixo sintagmático da relação
entre os paradigmas que formam a categoria de expressão cor quente vs. cor fria
e a categoria de conteúdo sagrado vs. profano. Assim, toda relação semi-
simbólica é poética, mas nem toda relação poética é simbólica. (Pietroforte,
2004: 9 e 10 grifos nossos)
Embora o efeito poético não pressuponha uma relação semi-simbólica (nos termos
da semiótica greimasiana), visto que nem toda projeção do eixo paradigmático sobre o
sintagmático carrega em si obrigatoriamente uma relação motivada entre uma forma de
expressão e uma forma de conteúdo (como nas rimas, ou no ritmo dos poemas em prosa),
toda relação semi-simbólica é poética justamente por causa da implicação entre
expressão e conteúdo. Em outras palavras, toda vez em que for notada uma relação entre
formas de expressão que corresponda a uma outra relação entre formas de conteúdo,
ocorrerá um efeito poético.
No caso específico do texto sincrético de literatura infantil, a complementaridade de
que participam freqüentemente diferentes universos sígnicos quase sempre obriga um
vínculo motivado entre expressão e conteúdo a fim de se estabelecer a unidade textual,
assim como de provocar a ludicidade e esse vínculo tem uma natureza
fundamentalmente poética, como foi visto. Tanto a simples reiteração de um conteúdo
através da co-presença de elementos verbais e não-verbais, quanto a própria sistematização
a que se submetem esses elementos necessitam de uma correspondência ao plano de
conteúdo para serem efetivadas e percebidas. Além disso, a figurativização característica
do gênero literatura infantil, de essência analógica, exige a ratificação dessa
correspondência muitas vezes a partir de uma simbologia estereotipada intrínseca ao
gênero; outras, a partir de cálculos interpretativos mais complexos, dependentes da
apreensão desse vínculo motivado.
Para a análise de textos de literatura infantil, sincréticos, torna-se necessário,
portanto, expandir o processo de semiotização até a solidarização entre o verbal e o não-
verbal.
A conclusão (...) será que sem dúvida a linguagem verbal é o artifício
semiótico mais poderoso que o homem conhece; mas que existem, não
obstante, outros artifícios capazes de cobrir porções do espaço semântico
geral que a língua falada nem sempre consegue tocar [...] Para tornar-se mais
poderoso do que é, como de fato ocorre, deve valer-se da ajuda de outros
sistemas semióticos. (Eco, 2003: 154)
Mesmo atentando para a supremacia da linguagem verbal quanto à sua capacidade
de semiotização do mundo, tão essencial para dar sentido às coisas, não se deve desprezar a
aptidão para a sensação imediata, intrínseca a outras linguagens, especialmente àquelas
mais presas à percepção sensorial (como a música, ou a pintura). Essa sensação imediata,
primeira, impactante, anterior ao processo simbólico a que se submete o verbal antes que
desperte sensação equivalente, só é possível em meios semióticos não-lineares, apreendidos
global e instantaneamente, como nos livros de literatura infantil, cujas características
estéticas os elevam à condição de objetos artísticos.
Desta forma, se considerarmos as associações por semelhança como aquelas que,
por um lado, sustentam a estruturação do pensamento da criança, proporcionando uma
identificação imediata com o objeto “lido”, ou “interpretado” (nos livros infantis, acionadas
principalmente pelo signo não-verbal), e, por outro, como aquelas que provocam o efeito
estético, sobrepondo o eixo paradigmático (da similaridade) sobre o sintagmático (da
contigüidade), então a literatura infantil, nos moldes de autores como Ziraldo, alcança um
nível duplamente analógico, com o dobro de possibilidades poéticas, desde seu modo de
referir ao mundo, até a conformação de seu texto caso sua semiose pressuponha o “sentir
as formas” do fazer artístico.
Além disso, o fato de o adjetivo infantil despertar, muitas vezes, a idéia de que esse
ramo literário só encontra receptividade em leitores de tenra faixa etária é redutor e bastante
questionável. Azevedo (2003: 80) condena a estratificação etária como fator classificatório,
já que ser adulto ou criança não qualifica a pessoa como mais ou menos experiente,
especialmente “quando falamos em vida mesmo e da experiência humana ou da
literatura”. Assim como há crianças mais experientes que adultos (ou porque têm uma vida
mais dura, ou porque são alfabetizadas e muitos adultos não o são), é preciso lembrar que
um homem de oitenta anos ainda está em processo de aprendizagem. Para Azevedo
(op.cit.:82), “a divisão de pessoas em faixas etárias é apenas um procedimento histórico,
cultural e ideológico, que vem sendo tratado, equivocada e infelizmente, como ‘natural’”.
Dividir a literatura em “adulta” e “infantil”, segundo critérios puramente etários é,
portanto, no mínimo, um contra-senso, sobretudo no que se refere ao componente humano
da expressão artística. Ser leitor de literatura, mais do que idade, ou experiência, requer
sensibilidade. Acima de características sobretudo quantitativas (referindo-se ao número de
anos de vida, ou de escolaridade), um leitor “maduro” de literatura deve ser alguém aberto
para a identificação com os personagens e com as vivências fictícias, para a emoção e a
fantasia, predisposto à beleza opaca do texto. Leitores com esse perfil talvez possam ser
encontrados mais facilmente entre aqueles “menos endurecidos”, “mais crianças”, mais
humanos e não necessariamente entre os mais idosos. Por isso Ziraldo escreve para “a
criança que qualquer pessoa grande já foi”.
Falar em literatura, como sabemos, significa falar em ficção e em discurso
poético, mas muito mais que isso. Significa abordar assuntos vistos,
invariavelmente, do ponto de vista da subjetividade. Significa a motivação
estética. Significa remeter ao imaginário. Significa entrar em contato com
especulações e não com lições. Significa o uso livre da fantasia como forma
de experimentar a verdade. Significa a utilização de recursos como a
linguagem metafórica. Significa o uso criativo e até transgressivo da Língua.
Significa discutir verdades estabelecidas, abordar conflitos, paradoxos e
ambigüidades (...). Significa, enfim, tratar de assuntos tais como a busca de
autoconhecimento, as iniciações, a construção da voz pessoal, os conflitos
entre gerações, os conflitos éticos, a passagem inexorável do tempo, as
transgressões, a luta e o caos e a ordem, a confusão entre a realidade e a
fantasia, a inseparabilidade do prazer e da dor (um configura o outro), a
existência da morte, as utopias sociais e pessoais entre outros. (Azevedo,
2003: 79 80).
Ser um leitor “maduro” de literatura requer uma disponibilidade para transposição
ao mundo paralelo da criação artística; uma sensibilidade acirrada para os detalhes da
construção textual e para a emoção provocada pelos temas humanos, universais,
atemporais; uma predisposição ao esforço interpretativo, não como cansativo trabalho de
extração de sentido (unicamente intelectivo), mas como prazeroso desafio do desvelamento
de sentidos (perceptivos e afetivos), presentes no texto, mas nossos. Por isso, o adjetivo
infantil assume uma nova significação, a do investimento na infância de cada leitor que,
durante o ato de ler (qualquer “tipo” de literatura) surge do texto, adicionando um
importante aspecto mnemônico-afetivo, em vez de limitar a qualidade da literatura infantil
Jouve (2002: 107) trata a leitura de narrativas como “uma experiência de libertação
(‘desengaja-se’ da realidade) e de preenchimento (suscita-se imaginariamente, a partir dos
signos do texto, um universo marcado por seu próprio imaginário)”. Isso se dá justamente
por causa da forte ação do imaginário sobre a ilusão: o leitor interage com ela e aceita-a (da
mesma forma como um dia acreditamos em Papai Noel), mostrando haver um
“consentimento eufórico” na ficção que não desaparece totalmente (a relação com a figura
de Papai Noel resiste à tomada de consciência de sua ficcionalidade). É um fato que
predispõe o leitor à reativação de suas crenças infantis quando exposto a certas condições
entre elas a da leitura revelando a “criança que lê em nós”.
Ler, de certa forma, é reencontrar as crenças e, portanto, as sensações da
infância. A leitura, que outrora ofereceu para nosso imaginário um universo
sem fim, ressuscita esse passado cada vez que, nostálgicos, lemos uma
história. (op.cit.: 117)
Respeitando certos limites dos leitores (nem sempre assíduos, desde a infância,
quanto aos textos literários), alargando o espectro da leitura às histórias contadas pelos
familiares, ou por cantadores de cordel, ou assistidas nas telas dos cinemas e da televisão,
ou ouvidas na reprodução de long-plays, CDs, fitas videocassetes, DVDs, enfim, suportes
outros que não os livros, o universo narrativo-ficcional convida o espectador para fazer
parte de seu mundo, na mesma proporção que tem somado a esse mundo toda a carga
experiencial do leitor, desde sua infância. Desta forma, literatura infantil denominaria toda
literatura (ou toda a literatura), desde que soubesse envolver o leitor nesse movimento das
recordações em direção ao mundo ficcional e poético e vice-versa.
Como Jouve (2003: 119), ao afirmar que “ uma única palavra às vezes pode fazer
surgir um passado: por meio da leitura, o texto remete cada um à sua história íntima”,
Freire (2003), se refere à infância como fonte de experiências de leitura de mundo que
preencheram toda sua concepção do ato de ler (a palavra) de modo crítico, responsável e
responsivo. Seria uma forma de considerar infantil toda leitura que se dispusesse a ser,
antes que informativa, formativa, ao incitar a integridade do homem que lê a partir da
lembrança de sua vivência com os outros e com o mundo, desde a idade mais tenra, desde
os sentimentos mais profundamente (res)guardados.
(...) a compreensão crítica do ato de ler não se esgota na decodificação pura da
palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na
inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que
a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura
daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. (...) Ao ensaiar
escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado e até
gostosamente a ‘reler’ momento fundamentais de minha prática, guardados
na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha
adolescência, de minha mocidade em que a compreensão crítica da importância
do ato de ler se veio em mim constituindo. (Freire, 2003: 11)
Seguindo os passos de Freire e de Jouve, lendo o mundo, Ziraldo torna possível a
correlação entre o mundo simbólico e o mundo real por meio dos processos analógicos,
primeiramente, e, mais profundamente, pragmático-discursivos, integrando, nos livros,
palavra e imagem: é uma simbiose criativa, que desperta o prazer estético, graças à
singularidade e à plurissignificação dos traços, das cores, da palavra, da “fantasia
concretizada”. Na medida em que apresenta essas características, a literatura infantil de
Ziraldo (assim como de outros importantes autores do gênero, como Ruth Rocha, Sylvia
Orthof, Eva Furnari, Bartolomeu Campos Queirós, entre outros) não é simplesmente “livro
para distrair criança”, ou “para dar lição de moral”, mas expressão artística da condição
humana.
Outra característica singular, porém, é salientada por essa fórmula sincrética,
tornando-se traço estilístico dos livros de Ziraldo e justifica mais uma vez o adjetivo
infantil, ratificando a crença de reviver as sensações da infância via leitura, como afirma
Jouve: a centralidade da criança, seja na presença constante do personagem-menino (como
comprovam os títulos O Menino Maluquinho, O menino mais bonito do mundo, O menino
marrom, O menino quadradinho), seja nas suas tramas voltadas para o universo infantil
(por exemplo, em O joelho juvenal, Vito Grandam, ABZ). É a infância tematizada e
concretizada conscientemente, provocando a emersão do menino que há no leitor.
As marcas dessa consciência (da escrita) ganham ênfase na concepção de
seres os mais distintos, humanizados e nutridos poeticamente, quando
conduzidos por ações e impulsos, impregnados de emoção, e por impactos
inventivos. Sejam eles partes do corpo que funcionam como metonímias da
totalidade do ser, sejam bichinhos ou cores, todos carreiam uma afetividade
contagiante nas relações com tudo o que compõe o espaço mais imediato e
com tudo o que a vivência angaria nas investidas de maior porte, em
arremessos com que vão ao encontro do mundo. Todavia, quando os seres
que desempenham a ação poética são meninos (...) paradigma da infância
a recarga de afeto e de vibração, que move comportamentos latejantes de
vitalidade, é extraordinária. São dotados de traços comuns, depreendidos no
proceder de qualquer criança, quando não prejudicada na sua condição de ser
naturalmente livre, mas ao mesmo tempo, configuram um perfil cativante de
meninos poetas que se caracterizam por um modo de estar no mundo e de se
relacionarem com tudo que há no caminho, de maneira inconfundível com o
do adulto, no geral, face às coisas (sem surpresas e curiosidade, sem a alegria
e a espontaneidade para se envolver e amar os seres, reconhecendo suas
particularidades). (Resende, 1988: 139)
É o menino-Ziraldo que transborda das páginas, revisitando seus primeiros anos, ou
enxergando a vida com os mesmos olhos daqueles tempos, aparentemente resguardados da
influência de um amadurecimento que pode calar a espontaneidade, a simplicidade, a
brincadeira, a alegria de viver. Esse é menino-Ziraldo que repete insistentemente, em O
menino mais bonito do mundo: “Menino, como você é bonito!”. Ou que revela,
deslumbrado, o poder da palavra, especialmente da palavra escrita, como, ao mostrar em O
menino quadradinho, a (trans)formação do leitor, fazendo do múltiplo espaço quadradinho
(das histórias em quadrinhos) a “geografia total de sua infância”, até se deparar com o
“espaço em branco” e com a palavra “exatamente no Começo de tudo!” É também o
Ziraldo-menino com quem se identifica o leitor-menino, criança ou adulto, que se
reconhece nos personagens, nas atitudes, nos sentimentos, pela semelhança entre os
mundos (imaginário e real), pela semelhança entre forma e sentido, pela semelhança entre
texto e emoção.
Assim, a “infantilidade” dos livros de Ziraldo aqui mencionados adota um valor
lúdico, sensível, original e profundo, muito diferente da conotação pejorativa antes
relacionada a essa parcela da literatura. Essa literatura infantil acima de tudo, literatura;
infantil, pelo processamento é uma das artes de Ziraldo, explorada neste estudo; arte na
expressão e na escolha temática; na poeticidade. Temas universais, abordagens cheias de
imaginação, sentidos exigentes de interpretação e de emoção.
4 ZIRALDO PARA ER
4 ZIRALDO PARA ER
Desenhista, cartunista e escritor, entre outras atividades que desenvolve; criativo e
sensível para a importância da leitura na formação de indivíduos reflexivos, profundos e
críticos, Ziraldo é visto neste estudo como escritor de livros infantis, papel que assumiu
definitivamente após o sucesso estrondoso de seu Menino Maluquinho, merecedor de igual
prestígio do público, que teve uma versão adaptada para o cinema e originou uma série de
revistas em quadrinhos.
Concomitante à tarefa de escritor, o autor aposta em outras atividades: a
revitalização de jornais impressos (mais recentemente, o Jornal do Brasil além de o
Pasquim, peça de resistência à ditadura); as páginas da Internet ligadas à educação, em que
interage com as crianças, criando, com elas, livros virtuais; a reedição dos quadrinhos da
Turma do Pererê, de cores brasileiras, adaptadas para a televisão; as palestras gratuitas por
todo o Brasil, assim como participação de campanhas de distribuição de livros; a criação de
vinhetas para a televisão, charges veiculadas por diversos meios (desde as revistas O
Cruzeiro e A Cigarra); ilustrações de livros com texto de Carlos Drummond de Andrade
(História de dois amores, pela Editora Record), de Chico Buarque (Chapeuzinho Amarelo,
pela José Olympio Editora, premiada com o prêmio Jabuti,) de Manoel de Barros (O
fazedor de amanhecer, pela Editora Salamandra); a campanha pela anistia política e contra
a censura, entre outras
5
, além de ser tema de enredo de escola de samba (Nenê de Vila
Matilde), estrela de documentário (Ziraldo em Profissão Cartunista, por Marisa Furtado) e
vencedor de prêmios como o Oscar Internacional de Humor em Bruxelas (1969).
5
Cf. Marthe, 2002.
Para este trabalho, a fim de evidenciar os processos de construção do sentido
requeridos na interpretação de obras litero-visuais, foram selecionados quatro de seus livros
infantis, obedecendo a dois critérios: a criação da parte verbal dos textos tem a assinatura
do próprio Ziraldo e a da parte icônica, se não tem sua assinatura, fora regida por ele (caso
de O menino mais bonito do mundo); além disso, o padrão de construção textual, tanto
estético quanto temático, revela alto nível de competência de linguagem, como será
comprovado nas análises.
Um menino que atravessa o limite das histórias em quadrinhos (mundo onde vive,
sentindo-se livre, e que domina) e de repente se encontra no Reino das Palavras é
protagonista em O menino quadradinho (1998). Na análise desse livro, a interação via
texto literário será abordada através do estudo do dialogismo sob diversas formas.
Na investigação de Flicts e de O menino mais bonito do mundo, a competência de
linguagem será vista como a base para a compreensão do ato de ler. No primeiro, a
dificuldade de “ser diferente” é vivida por uma cor, que não consegue se identificar com
nada deste mundo. Já no segundo, trata-se da necessidade de completude obtida na relação
com o outro.
Além disso, o nível semiolingüístico, como palco de inúmeras articulações sígnicas,
nas quais se concretizam a poeticidade e o estilo do autor, será explorado em Uma história
sem (1) sentido,que toca na necessidade de saber ler a palavra, como o sexto sentido de que
se vale o ser humano.
4.1 O diálogo com O menino quadradinho
De acordo com Almeida (2000:93), os autores que enfatizaram “os diferentes fatores
que explicam a relação dos enunciados com o contexto interacional em que circulam”
(como Bakhtin e Benveniste) teriam aberto um novo espaço para os estudos da linguagem,
antes tão dividido entre língua e literatura porque havia a “desvinculação do sistema
lingüístico e do texto literário de suas condições de uso, produção e interpretação”.
Ainda segundo o autor, esses estudos “adotaram uma tônica mais relacional, em que
ganham peso os aspectos funcional, subjetivo e social conscientes ou não que podem
ser depreendidos do exercício da palavra” (op.cit.:93). É justamente nesse espaço da
investigação sobre o processo interativo que se desenvolve este trabalho sobretudo
porque, adotando como objeto um texto literário, partirá da relação primeira entre
lingüística e literatura, naquilo que diz respeito à construção do sentido efetuada pelo
leitor.
Por causa de seu efeito estético (tão exigente do acionamento de estratégias leitoras
mais complexas), o texto literário desperta especial interesse de investigação. As noções e
conceitos usados na análise lingüística de variados gêneros textuais assumem, neste caso,
forte apelo interpretativo e explicam muitos mecanismos de obtenção de sentido em um
espaço de natureza plurissignificativa e desautomatizada fato relevante especialmente
para aqueles que se preocupam com o despertar para os livros e com o processo de
ensino/aprendizagem de leitura e/ou de literatura.
Se para a literatura convoca todas as potencialidades da língua, na obra de Ziraldo,
escolhida para a atual investigação, essa totalidade é ainda mais abrangente, pois não se
limita à língua: alastra-se até a forma, até o não-verbal, através de seus desenhos,
ilustrações, cores, quadrinhos.
Remetendo-nos à literatura e às potencialidades da língua, ressalta-se que a presente
análise privilegiará a linguagem total, vinculada aos desejos de um mundo real onde se
colocam os sujeitos envolvidos na interação linguageira, transformadora de signos,
literária, poética mesmo, explorada por Ziraldo em seu livro “O menino quadradinho”:
Fig. 6 Ziraldo, 1989: 20
Fig. 7 Ziraldo, 1989: 21
Num movimento metalingüístico, as próprias palavras, personagens indispensáveis
em O menino quadradinho, ensinam-lhe seu mistério. Vendo-se vencido, o menino toma
consciência de seu amadurecimento e torna-se verdadeiramente leitor, capaz de
compreender as palavras e o mundo por elas criado.
4.1.1 Dialogismo interlocutivo
“O menino quadradinho” guarda em si características pertinentes à depreensão do
jogo dialógico estabelecido tanto pela linguagem, entre os coenunciadores do processo de
leitura (autor/Ziraldo ó leitor/indivíduo), quanto na linguagem, na relação mesma
engendrada pelo leitor com o material literário, lido e interpretado, tão susceptível a seu
esforço cooperativo e à percepção das marcas orientadoras de sentido.
A primeira característica, destacada nesta seção, é a especial sedução ao jogo
dialógico, interativo, provocado pela voz do narrador através da informalidade do texto e
dos comentários inseridos na narrativa, num claro engajamento enunciativo, envolvendo,
sutilmente, o leitor.
Benveniste (1976), estudando os sistemas verbais, diferenciou dois planos
enunciativos, a história e o discurso. Na história, há o relato de eventos passados, sem o
envolvimento do locutor. As narrativas, em geral, fazem parte desse plano. No discurso,
entretanto, num determinado momento/espaço, alguém se “apropria” da língua,
instaurando-se como “eu” e, concomitante e conseqüentemente, instaurando o outro como
“tu/você”: “é uma enunciação que pressupõe um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a
intenção de influenciar o outro de alguma maneira” (Koch,2000: 15).
Apesar de ser uma noção criticada posteriormente, e apurada por outros estudiosos,
a idéia dos planos distintos hoje não considerados tão rigorosamente opostos e
excludentes é interessante, pois torna mais evidentes não só certas estratégias de
produção de sentido, assim como, de maneira especial e formalmente marcada, o
envolvimento, o engajamento dos partícipes da interação via texto.
Seguindo raciocínio análogo ao de Benveniste, Weinrich (1974:69) distingue duas
situações comunicativas: o relato e o comentário. Naquela, o locutor adota uma postura
mais relaxada, distanciada do objeto de sua narração. O mundo relatado, pois, está marcado
especialmente pelos tempos verbais do passado
6
: “Empleamos en particular los tiempos del
relato. Su función en el lenguaje consiste en informar al que escucha una comunicación
que esta comunicación es un relato”. Já na situação de comentário, o falante se compromete
com o que diz, assumindo uma atitude tensa, justamente pela falta de distanciamento em
relação ao objeto de seu comentário. Marcam o mundo comentado os tempos verbais do
presente, do futuro do presente e do pretérito perfeito.
Em ella [na situação de não-narração, ou de comentário] el hablante está en tensión y
su discurso es dramático porque se trata de cosas que le afectan directamente. Aqui
el mundo no es narrado, sino comentado, tratado. El hablante está comprometido;
tiene que mover y tiene que reaccionar y su discurso es un fragmento de acción que
modifica el mundo en un ápice y que, a su vez, empeña al hablante también en un
ápice. (op. cit.: 69)
Por sua vez, Maingueneau (2002) trata esses planos, ou mundos, conforme a relação
que se estabelece entre o enunciado e a situação de enunciação, como planos embreados e
não embreados. O enunciado embreado apresenta marcas que o aproximam da situação de
comunicação, além daquelas que evidenciam a presença do enunciador, como apreciações,
interjeições, exclamações, ordens, interpelação do co-enunciador. Já o enunciado não
embreado é desprovido de embreantes, permanece distante da situação de enunciação,
construindo um universo autônomo.
Em “O menino quadradinho”, conta-se uma história; narra-se. É constante a
presença de tempos verbais do mundo narrado: pretérito imperfeito, formando o plano de
fundo, e perfeito, relativo às ações propriamente ditas e que faz progredir o texto:
6
Koch (2001:53) faz importante ressalva quanto às noções postuladas por Weinrich baseadas no sistema
verbal do francês: “No entanto a classificação dos tempos verbais de Weinrich, que, como dissemos, tomou
por base o francês, apresenta alguns problemas, pelo menos no tocante ao português: o mais sério deles é que,
na nossa língua, o pretérito perfeito simples é extremamente freqüente, tanto em textos do mundo comentado,
como do mundo narrado. É preciso, pois, admitir sua presença nos dois “mundos”, embora com valores
diferentes: no mundo narrado, ele é o tempo-zero, o tempo-base, sem perspectiva; no mundo comentado, o
tempo-zero é o presente, e o pretérito perfeito tem valor retrospectivo com relação ao tempo-zero.
Era uma vez um menino que morava dentro de uma história em
quadrinhos. Todos diziam que ele estava era preso aqui dentro. E, por isso,
o chamavam e menino quadradinho. (...) Certa vez, a noite chegou com a
lua e as estrelas. E, mais uma vez, o dia foi amanhecendo... Aí... (Ziraldo,
1989: 3-5 e 18 e 19)
De acordo com Kleiman (2000), estruturalmente, caracteriza-se como um texto
narrativo por causa da marcação temporal cronológica e pela causalidade, além de outros
elementos da estrutura narrativa canônica, como ambientação, a complicação e a resolução.
“Era uma vez” é a fórmula clássica de despertar o conhecimento prévio do leitor
para que se crie uma expectativa em relação ao texto narrativo e a seus elementos
constitutivos. No caso dessa história, a voz que se apresenta como do narrador é
representada, a princípio, como de um pássaro, que anuncia o protagonista das futuras
ações: o menino.
Fig. 8 Ziraldo, 1989: 3
Fig. 9 Ziraldo, 1989: 4-5
No decorrer do texto, logo a inicial história em quadrinhos se transforma em simples
prosa, sem ilustrações, mas o processo, apesar de não ser lento, é gradativo.
Conseqüentemente, todos os elementos da narrativa, a princípio apresentados de forma
mista (verbal e não-verbal), assumem seu lugar no universo das palavras. Ao longo desse
caminho, o narrador-pássaro cede a vez e a voz ao protagonista-menino, que, numa relação
direta com o leitor, se apresenta, instaurando-se como enunciador de um mundo comentado,
marcado por embreantes ou dêiticos como aqui, eu, verbos na primeira pessoa do singular
do presente do indicativo (conheço, vivo), ligados à situação comunicativa, que tem, nesse
momento, como único e claro co-enunciador o leitor, a quem se dirige.
Fig. 10 Ziraldo, 1989: 8 e 9
Mais tarde, o narrador retoma a palavra, ocupando o pequeno espaço das legendas no
alto dos quadrinhos, como observador dos acontecimentos, que elabora seu texto de acordo
com o mundo narrado, utilizando o pretérito perfeito (chegou, foi amanhecendo) e
distanciando-se através da 3
a
. pessoa (ou da não-pessoa, de acordo com Benveniste, 1976).
Fig. 11 Ziraldo, 1989: 18 e 19
A partir da página 22, a história assume globalmente sua natureza literária, verbal.
Mesmo assim, o autor ainda utiliza um recurso visual: à medida que o personagem
compreende o papel das palavras e “amadurece”, o tamanho das letras, a princípio
agigantado, vai diminuindo, até que, na última página, já apresenta o tamanho comumente
usado nos livros em geral.
Na fase verbal da narrativa, o narrador-locutor ora relata o embate do menino com
as palavras-personagens, ora trava com o leitor uma relação de cumplicidade a respeito da
própria história narrada: faz um comentário sobre os acontecimentos e dirige-o ao leitor,
convocando sua participação ao longo da história, aproximando-se dele, interpelando-o,
fazendo-o identificar-se com suas idéias. Permite-se assim que o mundo comentado insira-
se no mundo narrado, “roubando-lhe a cena” (enunciativa), transferindo a responsabilidade
antes depositada nas figuras que concretizam o valor ilocutório do texto para a interferência
de um locutor-narrador, que engaja o leitor na interação, assim como evidenciando a tese
pretensamente defendida a respeito do amadurecimento do leitor e sua relação com as
palavras.
A seguir, serão destacados alguns recursos do plano embreado utilizados pelo
narrador-locutor em alguns trechos do livro (Ziraldo, 1989), que dão forma à interação com
o leitor instalada no texto.
A) ” É possível que o menino tenha achado a ordem muito complicada, mas
as palavras são assim mesmo: pedem à gente para ter muita calma e, ao
mesmo tempo, vão-nos empurrando com a maior impaciência. Ainda bem
que o empurrão é para frente.” (p.24)
B) “Agora, ele estava aqui no meio deste mundo preto e branco, onde tudo
era novo, nave, névoa, nó, novidade.” (p.24)
C) Agora elas que iam de ter paciência com ele, tadinho, que havia
acordado do lado de fora de sua infância.” (p.25)
D) ”Vocês podem não acreditar, mas o menino entendeu. Entendeu que
existem palavras, por exemplo, que são palavras leves de coisas pesadas e
palavras pesadas de coisas leves; palavras bonitas de coisas feias e palavras
feias de coisas bonitas, palavras de coisas que parecem que não são e
palavras que são de coisas que não parecem. Entendeu que as palavras
podem viver sozinhas e, todas lindas, se reunirem num jardim de palavras
sem ter que ser nome de nada, só palavras, quebranto, paladar,
crisântemo, barco, celacanto, bardo, sânscrito, parto, porto, trocadeiro,
fortaleza, ileso, amor.” (p.27)
E) ”Ah, meu Deus, conversa de personagem de história em quadrinhos!
Quem venceu, quem perdeu? Será que o menino, mal começando a vida, já
se achava um herói vencido?” (p.27)
F) “Como vocês sabem, o Oh! tem uma grande experiência em história em
quadrinhos.” (p. 28)
G) “É que elas não estão preocupadas com definições, embora definições
empreguem muitas palavras. Elas ficam felizes mesmo é quando aparecem
sozinhas e todos entendem o que cada uma quer dizer.” (p. 28)
H) “O branco é, pois, o vazio, o nada, o Fim. Mas o Branco é também o
começo, pois o branco é a Luz e a Luz foi a primeira coisa que se fez (Fiat
lux, lembram-se?). Logo, se o branco é, ao mesmo tempo, o Fim e o
Começo, o Fim é o Começo. Lógico! E o que está exatamente no começo de
tudo? O que está no Começo é a palavra! (Está escrito: no princípio era o
Verbo.)” (p.30)
I) “Agora, leitor, que vo também chegou até aqui, estou certo de que vai
me dizer: ‘Momento, isto não é um livro para crianças.’ E eu responderei:
‘Não. Não é. Este é um livro como a vida. Só é para crianças no começo’.”
(p. 30)
Nesses trechos, o sujeito-locutor e sujeito-interlocutor (este, representado pelo leitor
“convocado” pelo texto e aquele, pelo narrador que “provoca” a interação com o leitor) são
revelados explicitamente, ora através dos pronomes pessoais eu e você (em D, F e I), ou da
expressão a gente (em A), ora pelas desinências verbais principalmente de 1
a
. pessoa do
singular, mas também pela 1
a
. pessoa do plural, referindo-se a dupla eu-você (vão-nos
empurrando, em A). O próprio vocativo leitor evidencia o “convite à interação” (em I),
assim como a pergunta diretamente voltada para os leitores (Fiat lux, lembram-se?, em H).
Quanto à embreagem temporal, exceto em B, C e E, os verbos desses trechos estão
no presente do indicativo, correspondendo ao momento propriamente da enunciação
(ativado justamente na e pela leitura) e os que estão no futuro ou no passado (como em
responderei e chegou, respectivamente em I), também se referem à situação comunicativa.
A palavra agora foi usada com a mesma finalidade (em B, C e I).
Como embreantes espaciais, destacam-se as palavras aqui (em B e I), assim como
deste mundo preto e branco (em B), isto e este (em I), referindo-se ao próprio livro, ou ao
“mundo das palavras”, como lugar da ação e da enunciação.
Com a mesma finalidade de ancoragem na situação, encontram-se marcas de
modalidade indicando “a atitude do enunciador face o que diz, ou a relação que estabelece
com o co-enunciador por meio de seu ato de comunicação” (Maingueneau, 2000: 107). Em
A, a expressão é possível revela um juízo sobre a ação do personagem, assim como ainda
bem, exprimindo forte valor apreciativo. Em F, como vocês sabem e, em I, estou certo de
que vai me dizer são expressões que, por um lado, pressupõem o papel cooperativo do
interlocutor-leitor e, por outro, enredam-no no processo inter-ativo, obrigando-o a agir
conforme a sutil determinação do locutor-narrador.
Ainda a respeito da relação instituída entre autor/texto e leitor, vale ressaltar que,
apesar de ocupar o espaço textual, essa relação ultrapassa o universo da interlocução para
atingir o co-enunciador, por causa da preocupação intrínseca com a preservação da face
positiva de seus interlocutores que esses mecanismos de inserção do leitor no processo
interativo carregam.
Maingueneau (1996: 130) afirma que “as múltiplas fórmulas de polidez visam fazer
o destinatário reconhecer a intenção que se tem de poupá-lo, isto é, a consciência que o
locutor tem de estar ameaçando-o.” Esse fato pode ser mais facilmente detectado nas
expressões modalizadoras destacadas ou nos próprios comentários a respeito do conteúdo
do texto, por seu caráter persuasivo, que mistura orientação de sentido a um “convite à
interação”, sem que o leitor sinta-se ou inibido a aceitar seu papel, ou à vontade para não
aceitar, a fim de não prejudicar a face positiva do locutor-narrador.
Além dessas marcas enunciativas que evidenciam a preservação das faces operada
durante a leitura, pode-se ressaltar todo o cuidado com que o percurso narrativo do livro foi
construído para que o leitor se sentisse realmente convidado, envolvido, seduzido a
participar dessa interação, não lhe sendo cogitada a recusa: primeiramente, tem-se a
transformação dos quadrinhos em texto com letras gigantes (como nos livros para leitores
iniciantes) e, depois, em texto com letras pequenas (como nos livros para leitores
avançados); em outro patamar, há a “dissimulada” aproximação do locutor-narrador, a
princípio um pássaro qualquer que, à distância, inicia a construção do universo textual, mas
que, mais tarde, assume o papel de comentarista da história e cúmplice do leitor, na
interação direta que estabelece com ele (como pode ser visto no trecho I, que finaliza o
texto do livro).
Por conta desses fatores interativos que seduzem o leitor, a natureza narrativa do
texto abre a guarda para a argumentação, para o conve ncimento, para a persuasão operada
sobre o leitor a respeito de seu próprio papel, problematizado e colocado à vista para
reflexão. É o adentramento proposto por Paulo Freire, suscitado através desse movimento
narração-comentário que, aproveitando-se do “e spírito” cooperativo inerente à
comunicação, sorrateiramente, provoca o leitor.
4.1.2 Dialogismo polifônico
Até então foram observadas marcas da interação leitor-autor/texto. A partir de então,
será observado o dialogismo no âmbito da polifonia, das vozes que coexistem
intratextualmente, configuradas em marcas que Authier-Revuz (1990) chama de formas de
“heterogeneidade mostrada”, inscrevendo o outro da seqüência do discurso. O texto em
questão é rico polifonicamente e, para evidenciar essa característica, foi selecionado o
trecho seguinte.
Fig. 12 Ziraldo, 1989: p.22
Fig. 13 Ziraldo, 1989: 23
A voz predominante é a do narrador, que conduz e posiciona todas as outras
inclusive a do leitor, quando supõe o que ele diria no final do texto. É a voz de um narrador
que tudo observa, fazendo-se onipresente e onisciente, em especial, através do discurso
direto e indireto que introduz, mas, acima de tudo, através do discurso indireto livre que lhe
dá poder sobre o pensar e o agir dos personagens.
Há vários casos de discurso direto (DD), demarcados graficamente pelas aspas, em
que personagens antes tomados como não-pessoas assumem o papel de enunciadores
(inclusive na “fase quadrinhos” do livro, quando o protagonista se apresenta, tendo
representadas por balões as marcas de seu DD).
Mesmo quando o DD relata falas consideradas como realmente proferidas, trata-se
apenas de uma encenação visando criar um efeito de autenticidade: eis as palavras
exatas que foram ditas, parece dizer o enunciador. O DD caracteriza-se com efeito
pelo fato de supostamente indicar as próprias palavras do enunciador citado: diz-se
que ele faz menção de tais palavras . (Maingueneau, 2002: 141)
Por causa da “reconstrução” mesma operada pelo narrador-locutor, fica clara a
subjetividade que impregna o texto, mesmo porque se trata de um texto literário e de um
narrador “dono da verdade”.
A) “E, súbito, ele ouve uma voz que lhe diz: ‘trouxeste a chave’?” (p.22)
B) “ ‘Quem são vocês?’ ele perguntou.” (p.22)
C) “Quatro palavras se juntaram à sua frente e disseram: ‘Nós somos as palavras’.”
(p.23)
D) “Vem, com calma e paciência! disseram.” (p.23)
E) “O menino respondeu que não que ria: ‘Não quero conviver com vocês. Só entendo
de cor e de sons, de quadrinhos, de figuras e de balões’.” (p.23)
F) “Logo em seguida, uma voz lhe disse: ‘Pegue a palavra, lavra; pegue a palavra,
pá!’ ” (p.23)
Além das aspas, podem ser observados verbos de elocução que não só indicam que
houve um ato de fala como delimitam o espaço do discurso do outro, como diz (A),
perguntou (B), disseram (C e D), respondeu (E) e disse (F).
Nota-se em E que o verbo responder antecipa o valor ilocutório da fala que
introduz, pois, antes mesmo que essa se apresente, um trecho de discurso indireto (DI) que
a corrobora (“respondeu que não queria”).
O DI é visto como uma forma independente do DD, que reproduz o conteúdo do
pensamento expresso pelo enunciado do outro e não exatamente as palavras do outro, por
isso oferece mais liberdade àquele que cita e mais subjetividade à fala “filtrada” por ele,
privilegiando uma parte ou outra da informação, acrescentando ou omitindo seu juízo,
como será visto a seguir.
G) “Aí, resolveu responder que não sabia de que chave estavam falando e coisa e tal.”
(p.22)
H) “E foram explicando que elas estavam ali, em estado de dicionário. Que ele, agora,
podia convocá-las para começar a conviver com elas.” (p.23)
I) “Pelo tom, o menino sentiu que estavam entregando a ele uma coisa de muito
valor: que ele tomasse cada uma daquelas palavras com muito cuidado.” (p.23)
A “filtragem” do narrador pode ser claramente percebida no exemplo G com a
expressão e coisa e tal, que substitui parte da fala omitida ao mesmo tempo em que
evidencia essa omissão e salienta a importância da parte reproduzida. Em H, a pausa
marcada pelo ponto entre as duas orações subordinadas ao verbo explicar demonstra uma
tentativa de reprodução fiel de uma possível pausa entre as duas informações, que, por
outro lado, revela uma preocupação com a própria maneira pausada, cuidadosa, com que
foram dadas as explicações.
Já em I não há verbo de elocução, mas o sinal de dois-pontos marca o limite entre os
enunciados e a expressão pelo tom aponta para uma fala (“que ele tomasse cada uma das
palavras com muito cuidado”) indiretamente reproduzida o que o verbo no subjuntivo
vem comprovar. Da forma como foi registrada pela escrita, essa fala parece absorvida pelo
personagem a quem se dirige por causa de uma certa indeterminação de seu enunciador,
causada pela ausência de marcas mais “convencionais” do discurso citado.
Mais subjetivo ainda se mostra o discurso indireto livre (DIL), amplamente utilizado
no texto em questão.
O DIL é o tipo mais clássico de hibridismo, já repertoriado há muito tempo pelas
gramáticas. Cabe-lhe combinar os recursos do DD e do DI. (...) ele não tem marcas
próprias e, fora do contexto, não pode ser identificado como tal. A polifonia do DIL
não é a de duas vozes claramente distintas (DD), nem a absorção de uma voz por
outra (DI), mas uma mistura perfeita de duas vozes: em um fragmento no DIL, não
se pode dizer exatamente que palavras pertencem ao enunciador citado e que
palavras pertencem ao enunciador citante. (Maingueneau, 2002:153)
Por essa natureza, o DIL serve-se perfeitamente para um narrador onisciente
principalmente quando se investe do papel de locutor que conduz a enunciação e que espera
a interação do leitor.
J) “Que chave, meu Deus, se ele nem sabia que havia portas!? Vai ver, era a chave
para abrir o Reino das Palavras, onde ele foi penetrando, assustado e caladinho.”
(p.22)
Nesse trecho, a voz do narrador mistura-se à voz do personagem, de forma que o
pensamento do menino e a narração dos fatos coincidem e, com isso, é “apagado” o limite
que poderia diferenciá-los. Ao retomar a 3
a
. pessoa do singular (“onde ele foi penetrando,
assustado e caladinho”), o narrador reassume seu papel, distanciando-se da voz da
personagem.
É interessante notar que, ao tomar para si as palavras da personagem, o narrador, ao
mesmo tempo em que se confunde com ele, absorve seus pensamentos e palavras a fim de
dirigir-se ao leitor, co-enunciador desse ato de linguagem, e revelar-lhe não só o domínio a
respeito daquilo que relata, como também estabelecer novamente seu canal de
comunicação com ele, aproximando-se, tornando-se parceiro dessa interação. Ao retomar
seu papel de narrador, reforça esse convite à interação, pois reafirma tanto seu papel de
enunciador (em relação ao leitor) quanto o próprio papel do leitor como alguém que está
inscrito, enunciado e anunciado como quem ter o poder e o dever de assumir também seu
papel, reagindo, respondendo às “provocações” discursivas engendradas pelo narrador
através da atenção que dispensa à leitura.
Outro recurso, ou apelo à cumplicidade é exercido pelos intertextos que aparecem
salpicados durante a narrativa, como será visto a seguir.
4.1.3 Dialogismo intertextual
Outro processo de instauração de vozes no texto é a intertextualidade que,
diferentemente da polifonia, incorpora textos em outros. No caso do material analisado,
reconhece-se, mesmo que não estejam graficamente marcados, trechos e expressões
pertencentes a poemas, a histórias famosas e ao discurso bíblico.
Em A, cita-se o poema Procura da poesia, de Carlos Drummond de Andrade
(Barbosa, 1988), mais especificamente os versos “Penetra surdamente no reino das
palavras”; “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas
sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ Trouxeste a chave?”.
A) “E, súbito, ele ouve uma voz que lhe diz: ‘Trouxeste a chave?’ Assim mesmo:
trouxeste a chave? Que chave, me u Deus, se ele nem sabia que havia portas!?
Vai ver, era a chave para abrir a porta do Reino das Palavras, onde ele foi
penetrando, assustado e caladinho.” (p.22)
Nota-se que, com essa citação, o autor pretende reproduzir o sentido incorporado,
pois que o sentido global do texto agora constituído converge para o mesmo sentido do
poema citado, revelando o laborioso processo de compreensão da palavra através da figura
de um reino (mundo singular, com regras próprias), devidamente guardado (por isso as
figuras das portas e das chaves).
A retomada do poema de Drummond reitera e orienta o sentido textual, assim como
cria um laço interpretativo com o leitor aquele que é capaz de reconhecer a
intertextualidade , mais uma vez reforçando a cadeia interativa a qual tanto leitor, quanto
autor e texto pertencem.
Em B, a presença de elementos de narrativas outras corroboram para a produção de
sentido: é citada a Emília, personagem de Monteiro Lobato, e seu famoso “pozinho de
pirlimpimpim”, mágico, como também as naves espaciais e a “kriptonita” referentes à
história do Super Homem.
B) “E rodopiou naqueles desenhos como um pássaro bêbado, como uma Emília
inundada por seu pozinho de pirlimpimpim e viajou em todas as naves
espaciais, impregnado de kriptonita e de interjeições.” (p.30)
Nesse caso, não são retomados trechos, nem mesmo expressões recorrentes nas
referidas histórias, mas elementos bastante característicos são citados como, mais uma vez,
meio de relacionar “realidades” e aproximar o leitor, interagente, do texto.
Já no trecho a seguir, impregnado pelo discurso bíblico, a intervenção do narrador
deixa claro o convite ao reconhecimento da intertextualidade: “Fiat lux, lembram-se?” e
“Está escrito: no princípio era o Verbo”. São citações que incorporam o sentido do texto
original, mas o direcionam, simultaneamente, para a construção de sentido pretendida pelo
100
autor. Isso se dá através da focalização exercida pelos parênteses do narrador, oferecendo à
palavra, e ao papel que lhe é intrínseco, a importância desejada.
C) “O branco é, pois, o vazio, o nada, o Fim. Mas o branco é também o Começo,
pois o branco e a Luz e a Luz foi a primeira coisa que se fez! (Fiat lux,
lembram-se?). Logo, se o branco é, ao mesmo tempo, o Fim e o Começo, o Fim
é o Começo! Lógico! E o que está no Começo de tudo? O que está no Começo é
a palavra (Está escrito: no princípio era o Verbo.)” (p.30)
É interessante notar como a própria forma textual traz elementos que comprovam a
heterogeneidade que constitui todo e qualquer discurso. Mas é especialmente intrigante
perceber como o autor no caso, Ziraldo toma essa capacidade da linguagem a favor
de uma argumentação que envolve o leitor, tornado-o cúmplice, verdadeiramente
participante. Ora cria um sujeito-locutor bem equilibrado entre o mundo real e o mundo da
palavra e tão revelador desses mundos, ora trama uma tessitura afeita à figurativização,
mas, ao mesmo tempo, próxima da realidade por causa das interpelações diretas ao leitor. É
a exploração do processo interativo e do dialogismo em suas várias instâncias, presente nas
falas do narrador e dos personagens, ou na sedução que envolve o leitor a fim de que
perceba o sentido maior que o texto pretende revelar. O produto final da leitura, para um
leitor competente, é a da satisfação de se identificar com a realidade daquele mundo das
palavras, vendo-se amadurecer como aquele menino quadradinho.
4.2 Estratégias para ler Flicts e O menino mais bonito do mundo
Partindo do princípio de que há três níveis de construção de sentido textual que
coexistem e se influenciam mutuamente o situacional, o discursivo e o semiolingüístico
as estratégias acionadas pelo leitor para ler Flicts e O menino mais bonito do mundo
serão distribuídas igualmente em três tip os, de acordo com os níveis a que pertencem.
101
4.2.1 No nível situacional
Antes mesmo de iniciar a leitura propriamente dita, o leitor aciona estratégias
ligadas ao nível situacional, que provocam seu posicionamento como leitor, sujeito-
interpretante, externo ao mundo semiotizado, simbolizado, a que terá acesso assim que der
início ao imbricamento das diversas estratégias leitoras. Durante a leitura, é esse nível que
posiciona o leitor e permite ou limita os sentidos que constrói.
No nível situacional, a primeira dessas estratégias diz respeito aos papéis do
contrato comunicativo via livro de literatura infantil entre o leitor, sujeito-interpretante que
deverá empreender esforços para (re)construir o sentido através de todas as marcas e
indícios presentes no texto, e o autor, sujeito-comunicante que imaginou um sujeito-
destinatário ideal com o qual o leitor pode ou não se identificar. É uma relação
assimétrica (sobretudo se pensarmos que um dos prováveis leitores desse livro poderá ser
uma criança, menos experiente na “leitura do mundo”, com pouca habilidade no
estabelecimento de relações e acionamento de estratégias). No entanto, atraído pela
originalidade, pela beleza, pela graça do texto que, desde o projeto gráfico ao conteúdo
temático ligado à essência humana, o envolvem sedutoramente, o leitor aceita o desafio da
construção de sentido.
Ao assumir seu papel, o leitor cria expectativas quanto ao gênero textual, aceitando
as responsabilidades que um texto dessa natureza propõe: é um sujeito-interpretante sem
direito a interferências, haja vista a natureza monológica do texto, produzido em um outro
momento/espaço que não aquele da leitura.
Além disso, precisa estar atento a todas as pistas que ampliam e limitam o cálculo
do sentido, num movimento ora centrífugo, ora centrípeto; ora preso à superficialidade dos
signos, ora extrapolando o texto em direção ao discurso e à própria situação, até que esteja
totalmente finalizado. Sendo um texto poético, tanto na originalidade das escolhas e das
combinações das palavras, quanto nas relações inusitadas que aproximam o icônico e o
“real”, a surpresa dos significados entrelaçados e multiplicados provoca o leitor, exigindo-
lhe dedicação no cálculo do sentido.
102
Se for um sujeito-interpretante que pressupõe a finalidade desse livro de
“verdadeira” literatura infantil, coincidirá com o sujeito-destinatário previsto por Ziraldo e
estará aberto para o prazer do texto, mas, se esperar a mera instrução que caracteriza o livro
infantil de cunho moralizante/pedagógico, terá suas expectativas quebradas e,
provavelmente, nem entenderá o texto, nem gostará dele.
A apresentação das capas desses livros é um bom exemplo desse vínculo criado
entre autor/texto e leitor, pois, a partir delas, compreende-se a situação em que se “fecha o
contrato comunicativo” via texto literário: elas representam o ritual de abordagem
(Charaudeau, 1992: 638). Além disso, no estabelecimento desse vínculo, são criadas
expectativas em relação ao texto que será lido.
Fig. 14 Capas de Flicts e O menino mais bonito do mundo
São capas coloridas, nas quais os títulos são acompanhados por ilustrações (um
arco-íris, em Flicts, e um grande olho, em O menino mais bonito do mundo) que, de algum
modo, apontam para a narração que será desenvolvida. Assim como elas, os títulos,
originais e simples, convidam para o universo da fantasia diferentemente de uma parcela
de outros livros para crianças, altamente realistas e óbvios, fadados à finalidade
pedagógica.
103
Esses são elementos que apontam, por um lado, para o papel assumido por Ziraldo,
que, na capa, se identifica como autor de um texto poético, misto, para crianças (de todas as
idades), e pelo leitor, que é atraído por ela, por tudo que apresenta de colorido, fantástico,
imaginário e se identifica como a outra ponta do “contrato de comunicação”.
As estratégias de leitura ligadas ao nível situacional pertencem ao plano da
interpretação. Em outras palavras, dependem de indícios oferecidos pela camada superficial
do texto, mas se justificam em elementos extratextuais, presos à situação comunicativa
propriamente dita e à intencionalidade intrínseca a ela como na análise das capas, em
que essas estratégias se concretizam no título, no colorido, no autor que tem seu nome ali
impresso, no leitor, mas dizem respeito às informações oferecidas pela situação (identidade
dos parceiros, finalidade e propósito do intercâmbio, circunstâncias materiais), como se
observa abaixo.
ELEMENTOS DO NÌVEL SITUACIONAL
nos quais se baseiam as estratégias para a leitura da obra de Ziraldo
Identidade dos
parceiros
Finalidade do
intercâmbio
Propósito do
intercâmbio
Circunstâncias
materiais
Sujeito-interpretante:
leitor (que reconhece
como sujeito-
comunicante o
autor/Ziraldo).
Incitar o prazer de
ler.
Temas relativos à
essência humana, às
emoções.
Texto monolocutivo,
que não dá ao leitor
direito à palavra.
Fig. 15 Elementos do nível situacional
Durante todo o processo interpretativo do texto, a situação determinará muitas
escolhas que o leitor fará, principalmente quando considerar o universo de fantasia, próprio
da literatura, no qual estará mergulhado, dando abertura à plurissignificação e ao acesso à
afetividade, através de relações sígnicas baseadas sobretudo na similaridade ou seja,
principalmente quando se investir do papel de leitor de literatura.
Como esse nível de construção de sentido, apesar de essencial, torna-se perceptível
a partir da observação das formas textuais, na análise dos elementos dos níveis discursivo e
semiolingüístico serão retomados alguns aspectos influenciados pela situacionalidade,
como será visto adiante.
104
4.2.2 No nível discursivo
No nível discursivo, o leitor precisa ser capaz de reconhecer as estratégias de
encenação “que se desprenden de las necessidades inherentes al marco situacional”
(Charaudeau, 2001:15). Como foi visto anteriormente, são estratégias enunciativas,
enunciatórias e semânticas, também pertencentes ao plano interpretativo do texto, que
orientam como dizer. Elas podem aparecer concretizadas nas marcas textuais, ou implícitas
de acordo com a situação comunicativa.
As estratégias enunciativas delimitam a situação de enunciação a partir do tipo de
envolvimento dos sujeitos em determinado ato comunicativo; assim, são essenciais não só a
modalização do discurso, como também os papéis construídos passo a passo durante a
enunciação.
É a modalização que permite explicitar a posição do sujeito-locutor
7
em relação ao
interlocutor, a ele mesmo e à sua proposta; para isso, é composta de atos locutivos:
elocutivos, quando o locutor revela sua posição quanto ao que diz, referindo-se a si mesmo;
alocutivos, quando o locutor impõe ao interlocutor suas idéias, referindo-se diretamente a
ele; delocutivos, quando há um afastamento do locutor e do interlocutor quanto ao ato de
enunciação (Charaudeau, 1992).
A esses atos locutivos correspondem as modalidades enunciativas. A opinião, a
apreciação, a promessa, pelo compromisso do locutor com aquilo que diz, estão no âmbito
da elocução; já a injunção, a interrogação, a interpelação, por sua referência direta ao
interlocutor, pertencem à alocução. A asserção e o “discurso reportado”, pelo
distanciamento operado tanto pelo locutor quanto pelo interlocutor, pertencem à delocução.
Nos textos examinados, prevalece a delocução, visto que os interlocutores estão
posicionados como testemunhas dos acontecimentos, aos quais são feitas referências
através da terceira pessoa do discurso. Além disso, o discurso reportado se apresenta
freqüentemente nas vozes atribuídas aos personagens.
7
É considerado, aqui, locutor o “intermediário” entre o sujeito-comunicante, externo ao ato de linguagem, e o
enunciador, interno ao ato; já interlocutor refere-se ao sujeito “intermediário” da outra extremidade: parte,
sujeito-interpretante, externo; parte, destinatário, interno ao ato.
105
EXEMPLOS DE DELOCUÇÃO
Flicts
O menino mais bonito do mundo
Evidências do mundo real
X
Evidências do mundo narrado
Discurso reportado
Tudo no mundo tem cor
tudo é
Azul
Cor-de rosa
ou Furta-cor
é Vermelho ou
Amarelo
quase tudo tem seu tom
Roxo
Violeta ou Lilás
Mas
não existe no mundo
nada que seja Flicts
nem a sua solidão
Flicts nunca teve par
nunca teve um lugarzinho
num espaço bicolor
(e tricolor muito menos
pois três sempre foi demais)”
“O menino
abriu os braços
e fez “Ahhhhh!”
se espreguiçando.
Sentou-se na grama
Olhou em volta
E descobriu
entre ele e o Sol
os galhos
de uma árvore.
E ouviu o que
a árvore lhe dizia:
Menino,
como você é bonito!”
Fig. 16 Delocução
Esse posicionamento delocutivo dos textos estudados é ratificado pelo modo
narrativo, que pertence a outro tipo de estratégias de encenação, as estratégias
enunciatórias, responsáveis pelo modo de organização do discurso (descritivo, narrativo,
ou argumentativo).
El modo descriptivo, que consiste en un saber nombrar e calificar los entes del
mundo, de manera objetivo y/o subjetiva; el modo narrativo que consiste en un
saber describir las acciones del mundo con la búsqueda de los distintos actuantes
que en ellas intervienen; el modo argumentativo que consiste en un saber
organizar las secuencias causales que explican los acontecimientos, así como las
pruebas de lo verdadero, lo falso e lo verosímil. (Charaudeau, 2001: 15-16)
106
Nos textos observados, o modo de organização narrativo apresenta-se
prototipicamente, com personagens que agem, em determinado momento e lugar, até que se
dissolva o conflito que justifica a narração. Esse modo pode ser facilmente identificado pela
“fórmula clássica” de abertura, encontrada nos três livros, sinalizando para o devido
distanciamento no tempo e no espaço, e, concomitantemente, para o personagem que viverá
as ações centrais da história, já caracterizado por uma breve descrição.
Elementos característicos do modo narrativo:
“era uma vez” + apresentação de personagem
Flicts
O menino mais bonito do mundo
Era uma vez
uma cor/ muito rara e muito
triste/ que se chamava Flicts.”
Era uma vez uma noite/ que não acabava
mais. / E era uma vez um menino/ que ainda
dormia/ quando a manhã/ finalmente/
nasceu.”
Fig. 17 Elementos característicos do modo narrativo
Kleiman (2000) insiste na importância do conhecimento prévio para a compreensão
de textos e considera o saber a respeito do modo de organização (que ela denomina
“conhecimento textual”, ou “conjunto de noções e conceitos sobre o texto”) parte desse
conhecimento. Re-conhecer a estrutura textual incorre na própria construção do sentido,
pois faz com que o leitor abrigue ou descarte hipóteses interpretativas.
Ainda a respeito do conhecimento prévio, Charaudeau (2001:15) destaca o entorno
cognitivo partilhado como origem das estratégias semânticas: “Se trata del hecho de que,
para comprenderse el uno al outro, es necesario que ambos protagonistas del intercambio
apelen a conocimientos supuestamente compartidos.” São conhecimentos partilhados por
certo grupo social, seja por discernimento, seja por crenças.
O enunciado “Todo mundo tem cor...” remete ao discernimento que procede de
“percepciones y definiciones más o menos objetivas en torno al mundo” (op.cit.:15). Já o
trecho “pois três sempre foi demais” aponta para um sistema de valores, que “sustenten los
107
juicios de sus miembros y, a la vez, dotan a éste de su razón de ser en términos de
identidad” (op.cit.:15).
Todo processamento de caráter inferencial durante a leitura depende estreitamente
desse tipo de conhecimento prévio compartilhado pelos parceiros do ato de comunicação
via leitura.
Nas páginas seguintes de Flicts, pode-se perceber, através dos elementos dados,
como se alcança o sentido através do processamento da inferência.
Fig. 18 Ziraldo, 1999:16 e 17
Relacionando, por um lado, a imagem do arco-íris ao texto (“Um dia ele viu no céu/
depois da chuva Cinzenta/ a turma toda feliz/ saindo para o recreio/ e se chegou pra
brincar”) e, por outro, ao contexto, que trata da história de uma cor (Flicts), infere-se que a
“turma” que estava “saindo para o recreio” é formada pelas cores do arco-íris, já que, de
acordo com o conhecimento de mundo, sabe-se que “depois da chuva Cinzenta” pode surgir
no céu esse fenômeno visual (o arco-íris) e, de acordo com o universo cultural partilhado, o
cinzento pressupõe tristeza e o colorido do arco-íris, alegria (por isso, a “turma toda feliz”).
108
Além disso, a partir do contexto, da trajetória do personagem, infere-se que, após as
decepções já sofridas (subentendidas pela “chuva Cinzenta”), estaria na hora de um
momento de alegria que o “recreio” (reconhecidamente, um lugar/espaço de brincadeiras de
crianças e, conseqüentemente, de alegria) poderia trazer.
Em O menino mais bonito do mundo, a apresentação das imagens e sua forma de
significar provocam inúmeras inferências, apoiadas em informações extratextuais.
Págs. 8 e 9 e 16 e 17
Fig. 19 Ziraldo, 1994a: 6-7 Fato narrativo inicial
109
Ao comparar a imagem que é parte de fato narrativo inicial (que inaugura a
seqüência de ações) à imagem que constitui o começo do clímax da história, percebem-se
os mesmos elementos icônicos, mas construídos diferentemente.
Fig. 20 Ziraldo, 1994a: 16-17 Começo do clímax
É esse contraste plástico que exige e enfatiza a relação entre os ícones, agora
carregados de indícios não só relevantes para a progressão temporal da seqüência narrativa,
mas também significativos quanto à perspectiva do próprio homem/personagem,
observador daquela paisagem, que não é representado iconicamente uma única vez, apenas
referido delocutivamente, e que dialoga com os elementos da natureza ali representados
(árvores, sol, céu). Ou do próprio leitor, que adota a mesma visão que o personagem,
identificando-se, portanto, com seu ponto de vista (em relação ao que vê efetivamente, mas
também ao que sente e pensa).
Na aproximação das duas imagens, no contraste de suas formas e na relação entre
essas imagens e o conhecimento a respeito de como pessoas de diferentes faixas etárias
desenham, infere-se o crescimento do homem, seu amadurecimento: de início, formas
infantis, com cores primárias, como vistas, significadas e reproduzidas por uma criança;
110
depois, formas bem talhadas e firmes, com cores pastéis, bem elaboradas, como vistas,
significadas e reproduzidas por um adulto.
Outro recurso do nível discursivo de construção do sentido é a intertextualidade,
fenômeno que depende das experiências de “leitura” anteriores. Segundo Koch (2000: 48),
é ela a “relação de um texto com outros textos previamente existentes, isto é, efetivamente
produzidos”. Muitas inferências são suscitadas a partir desse recurso, seja pela semelhança
na forma ou pelo conteúdo referido.
Em O menino mais bonito do mundo, a intertextualidade estrutura todo o texto, já
que é apresentada a condição humana numa releitura da criação do mundo e, sobretudo, do
homem, como consta na Bíblia. O texto se inicia com a passagem das trevas à luz, da noite
ao dia (como no texto bíblico: “Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Deus
chamou à luz DIA e às trevas NOITE” Gn 1, 4 - 5), no exato momento do nascimento do
“menino”, a partir do sopro que recebe nas narinas (“O Senhor Deus formou, pois, o
homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou
um ser vivente.” Gn 2, 7).
Págs. 3 e 4 O menino...
pp.3-4
Fig. 21 Ziraldo, 1994a: 3-4
Era uma vez uma noite
que não acabava mais.
E era uma vez um menino
que ainda dormia
quando a manhã
finalmente
nasceu.
Um sopro roçou o seu rosto
era a Brisa da Manhã
e ele acordou.
Aí, abriu os olhos, devagarinho...
...e a luz tomou
todo o lugar da escuridão.
Era o Sol.
e o Sol olhava para ela
direto nos olhos
e dizia bem alto:
Como você é bonito, menino...
111
A passagem das trevas à luz, como na criação do mundo, passa a significar o
“acordar” do menino, sua “passagem” para o mundo no qual vivemos, para a vida. Além do
texto, as cores de fundo das páginas reforçam a idéia de escuridão (fundo preto) e de luz
(fundo amarelo forte).
Há uma referência ao texto bíblico que fala da criação da mulher, como se compara
abaixo.
Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele
dormia, tomou-lhe uma costela e fechou a carne em seu lugar. E da costela que
tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do
homem. (Gn 2, 21 2)
Quando a noite chegou/ ele nem se lembrou de ouvir a voz da lua/ e das estrelas./
E foi dormir em silêncio. / Mais uma manhã nasceu./ E ele acordou/ sentindo
mais uma coisa/ que ainda não tinha sentido antes: / uma dor (muito de leve)/ um
pouco debaixo do peito/ bem debaixo da costela/ (uma dor assim como aquele/
que a gente sente/ quando corre muito e se cansa). / Ele nem teve tempo/ de
prestar atenção/ na dor que sentia/ pois antes mesmo/ de se espreguiçar/ abriu
seus olhos/ e descobriu/ ali, na sua frente, / a visão mais bonita/ de toda a sua
vida:/ mais bonita do que o Sol/ mais bonita do que o mar/ do que a árvore/ as
montanhas e as flores/ do que todas as coisas/ ao seu redor./ Ele não disse nada. /
Ficou ali: só olhando. / E foi, então,/ que ouviu o som/ mais bonito do mundo. /
O som de uma voz/ que dizia para ele/ a frase/ que ele sempre escutou/ e sempre
entendeu./ E a voz lhe dizia, / como numa canção: / Como você é bonito,
Adão!” (Ziraldo, 1994: 28, 29 e 31)
Com isso, é provocada uma inferência suscitada pela imagem que, também
intertextualmente, retoma a Vênus, símbolo de beleza e da feminilidade para a cultura
ocidental.
112
Fig. 22 Ziraldo, 1994a: 30
Nesse processo intertextual acionado pelo autor, os textos originais, apesar de
claramente referidos, sofreram alterações que lhes acrescentaram um sentido ao mesmo
tempo novo e mais amplo, profundo.
O fato bíblico de a mulher, Eva, ter sido criada a partir de uma costela de Adão é
retomada quando o personagem de O menino mais bonito do mundo sente uma dor “um
pouco debaixo do peito/ bem debaixo da costela” e, depois, a imagem completa aquilo que
o leitor toma conhecimento a partir da descrição feita sob o ponto de vista do personagem:
“a visão mais bonita/ de toda a sua vida:/ mais bonita do que o Sol/ mais bonita do que o
mar/ do que a árvore/ as montanhas e as flores/ do que todas as coisas/ ao seu redor.”
Instaura-se, destarte, a perspectiva do autor, provocando novas inferências a respeito do
homem e da mulher, de sua relação interpessoal, da própria condição humana: o homem,
sozinho desde o início, recebe, da natureza, o constante elogio, reiterado ao longo do livro:
como você é bonito! E isso o enchia de felicidade:
113
Fig. 23 Ziraldo, 1994a: 22-23
Mais tarde, porém, esse estado de plenitude cede espaço para um certo vazio, como
se vê, a seguir, tanto na pouca luminosidade que vai envolvendo a paisagem, quanto pelo
fato de ser outono, estação intermediária entre a forte luz do verão e a escuridão do inverno.
Todos esses elementos sinalizam para o entristecimento do homem.
Fig. 24 Ziraldo, 1994a: 24-25
114
Essas informações a respeito de seu estado emocional justificam a satisfação do
encontro com a mulher. O ponto de vista adotado na narrativa transcende o sentido original
do texto bíblico, com o qual a narrativa dialoga, sendo acrescentado, um valor afetivo aos
acontecimentos.
Como se vê, no nível discursivo estão abrigadas as informações ou as orientações de
sentido pertencentes a um plano extratextual, invocado através dos elementos textuais, mas
localizado além deles; disponível, mas, estando apenas latente, depende do acionamento
operado pelo sujeito-interpretante; possível de ser alcançado, mas ansioso pelo esforço
interpretativo do leitor. É um plano que diz respeito ao “mundo real”, à experiência dos
sujeitos envolvidos na troca, e do qual depende a construção de sentido especialmente
quando se trata de um texto poético, plurissignificativo, de linguagem desautomatizada,
como são os de Ziraldo.
4.2.3 No nível semiolingüístico
O nível semiolingüístico de construção se localiza na superfície textual,
materializando, no plano da expressão, os signos com que o homem exprime suas idéias,
sentimentos, ou com os quais impõe sua vontade, seu ponto de vista. Esse nível encontra-se
apoiado na organização submetida pelo nível discursivo que, por sua vez, fora orientado
pelo plano situacional. É a parte material, concreta que, explícita ou implicitamente, deixa
transparecer o discurso (na medida em que se limita nos e aos seus direcionamentos) e,
além disso, é moldada pelas exigências situacionais.
La competencia semiolingüística postula que todo sujeto que se comunica e
interpreta pueda manipular-reconocer la forma de los signos, sus reglas
combinatorias y su sentido, a sabiendas de que se usan para expresar una intención
de comunicación, de acuerdo con los elementos del marco situacional y las
exigencias de la organización del discurso. (Charaudeau, 2001: 16)
115
Esse é o nível visto pelo leitor em primeiro plano, mas ele logo percebe a obediência
aos outros níveis, através das relações intratextuais e inferenciais, remetendo o cálculo do
sentido para além do texto. Nele, o sujeito-interpretante-leitor opera no espaço da
tematização. Para isso, identifica os seres do mundo (como nos livros, usando substantivos
“cor”, “Flicts”, “menino”), qualifica-os (através de caracterizações como “muito rara”,
“muito triste”, “que ainda dormia”), representa os fatos e ações (como em “abriu os olhos,
devagarinho”), e, além disso, faz operações lógicas (“Um sopro tocou o seu rosto” ... “e ele
acordou”).
EXEMPLOS DE OPERAÇÕES DO ESPAÇO DA TEMATIZAÇÃO
Flicts (págs. 5 e 11) O menino mais bonito do mundo (págs. 3 e 5)
Era uma vez uma cor
muito rara e muito triste
que se chamava Flicts [...]
Era apenas o frágil e
feio
e aflito
Flicts.
E era uma vez um menino
que ainda dormia
quando a manhã
finalmente
nasceu.
Um sopro tocou o seu rosto
era a Brisa da Manhã
e ele acordou.
Aí, abriu os olhos, devagarinho...[...]
Como você é bonito, menino!
Fig. 25 Operações do espaço da tematização
É também a partir do nível semiolingüístico que o leitor, no espaço da relação, faz
as operações necessárias para significar a finalidade do ato de comunicação e a identidade
dos protagonistas através de índices semiológicos (cenários, frames, scripts) e de sua
“identidade discursiva”. A maneira de significar (por semelhança, contigüidade, ou
convenção uma mescla desses processos) contribui efetivamente para a orientação do
sentido.
Na imagem a seguir, três círculos, um vermelho, um amarelo e outro, verde,
dispostos um acima do outro, formam um ícone, pois é um signo através do qual pode-se
identificar um semáforo objeto do mundo real, representado, pois, por semelhança. No
entanto, ao se reconhecer que o vermelho, no semáforo, representaria uma ordem de
IDENTIFICAÇÃO
QUALIFICAÇÃO
QUALIFICAÇÃO
IDENTIFICAÇÃO
Representação
dos fatos
Causa/conseqüência
116
parada; o amarelo, de atenção e o verde, para seguir, admite-se o caráter convencional
desses signos/cores, considerados, então, como símbolos.
Fig.26 Ziraldo, 1999: 35
Ao se relacionar a imagem do semáforo ao verbal que o acompanha, podemos
considerar suas cores índices dos sentimentos que incorporam e são expressos pelas falas
atribuídas às “personagens-cores”, que, mais uma vez, rejeitam Flicts: o Vermelho diz
“não” quando tem sua amizade “requisitada” por Flicts; o Amarelo adverte: “Espera”; e o
Verde, obriga-o ir adiante : “Vai embora”.
Culturalmente, as cores apresentam forte carga simbólica. Segundo Guimarães
(2000), há constantes universais da cor, depreendidas dos sistemas de códigos socialmente
compartilhados (em outras palavras, da cultura), que constituem importantes informações.
Como exemplo, há o vermelho e o verde, já presentes no semáforo acima.
Guimarães (op.cit.) explica que o vermelho, além de sua agressividade imanente,
advinda da capacidade de visão humana (o comprimento de onda e outros dados da
fisiologia do olho revelam que essa cor está no limite do visível, provocando essa
agressividade), identifica-se com o elemento mitológico fogo; é a cor não só da proibição
(como no semáforo), do não poder tocar (porque pode ser perigoso), do controle (que
117
expressa a expulsão de um jogador) como também do sangue, da violência; é a cor do amor
divino, na cultura cristã, ou de Dionísio, na cultura pagã.
Já o verde, em oposição “original e clássica” ao vermelho, está relacionado à
relação água-fogo. Ocupando uma posição central, eqüidistante de seus dois extremos, onde
a retina encontra seu ponto de maior sensibilidade, essa cor predispõe à tranqüilidade
mas é também a cor do jogo, a expressão do destino calcada nos duelos feudais sobre o
verde prado, na grama dos campos de futebol, na mesa verde do bilhar ou do tênis de mesa;
é a cor do dólar, a “verdinha:” (papel antes desempenhado pelo amarelo do ouro); é a cor da
permissão, e do equilíbrio (por ser a mistura do amarelo, luz, e do azul, sombra).
É interessante notar que, ao investigar as relações entre as cores e seus valores
sociais, Guimarães parte de aspectos fisiológicos próprios da percepção, do (ainda)
indizível, que seria explicada por Peirce como a primeiridade das coisas, daquilo que é só
qualidade, sensação, percepção; passa por relações de contigüidade “natural”, própria do
que é reativo, experiencial (vermelho/fogo/perigo), indicial, explicada na Semiótica
peirceana como uma secundidade; até chegar aos aspectos culturais, próprios do que é
convencional, simbólico, de caráter geral, significativo, característicos da terceiridade.
Esse peso cultural permite a personificação em Flicts (Ziraldo, 1999: 5 - 11),
justamente a história de uma cor, infeliz por não corresponder a nenhum ser no mundo, por
ser diferente, por não se ajustar a um elemento, nem o caracterizando, nem o simbolizando,
por não significar nada. O impacto das personagens-cor, porém, é ainda maior pela
primeiridade da percepção sensorial, atuando fisicamente sobre o leitor, despertando
sensações e sentidos.
118
Fig. 27 Ziraldo, 1999: 5-11 Seqüência que provoca o contraste entre Flicts e as outras cores
Mais uma vez, ao se relacionarem as cores aos signos verbais com os quais
compõem o texto, a personificação é ratificada por meio de características e ações
humanas, em virtude das constantes universais de que trata Guimarães: Vermelho, força;
Amarelo, luminosidade; Azul, paz e, em contraste com estas, Flicts, uma cor rara, triste,
frágil e feia.
não
tinha
a
força
do
Vermelho
119
A utilização de duas páginas inteiras para o Amarelo e para Vermelho, de uma
página e meia para o Azul e apenas partes de páginas para Flicts também significam, pelo
contraste entre os espaços ocupados, a importância que cada uma assume no mundo ao
menos na visão da personagem Flicts.
Todo esse reconhecimento de referências, assim como o acionamento de valores
sociais, ocorrem a partir do nível semiolingüístico; a partir do que surge na superfície, mais
aparente, e das associações entre os elementos, chega-se às inferências, à dedução de que as
cores não são meros “panos de fundo”, mas personagens; de que as palavras ali usadas
(mais lentamente interpretadas do que os ícones, pois antes disso exigem decodificação,
depois compreensão) não são simplesmente “legendas” para aquelas cores, mas a limitação
do sentido necessária para o desenvolvimento da narrativa. Enfim, são partes de um mesmo
sistema significativo, de um mesmo texto coeso e coerente.
Esse complementação entre os tipos sígnicos ocorre em todo o texto, como se
percebe adiante.
Fig. 28 Ziraldo, 1999: 24-25 Complementação sígnica
O Vermelho, o Branco e o Azul, dispostos como em uma bandeira (referência
cultural), característicos de várias bandeiras de países “desenvolvidos”, como a França,
insistem em dizer “Não há vagas”, rejeitando Flicts, uma cor sem lugar no mundo. O trecho
“Será que eu/ não posso ter/ um cantinho/ ou uma faixa/ em escudo/ ou em brasão/ em
120
bandeira ou/ estandarte?” direciona a interpretação da imagem para o “limite” de uma
bandeira e não para uma simples justaposição das cores.
Fig. 29 Ziraldo, 1999: 26 Fig. 30 Ziraldo, 1999: 27
O reconhecimento das bandeiras, nas páginas reproduzidas, requer que esses signos
sejam vistos como símbolos, ou seja, que se reconheça, antes de chegar a seu sentido
textual, seu caráter convencional. A esse reconhecimento que estaria ainda em um grau
mais “transparente” de significação alia-se um valor afetivo, subjetivo, revelado na
relação com o texto verbal que acompanha a imagem: metonimicamente representado por
sua bandeira, o Brasil é exemplo das “terras mais bonitas” e o Japão (também representado
por sua bandeira) é “terra distante”.
Em O menino mais bonito do mundo (Ziraldo, 1994), a seqüência de imagens que
inicialmente apresentam um traço reconhecidamente infantil, mas, aos poucos, vão
“amadurecendo”, tornando-se mais firmes e definidas, como as dos adultos, reitera a idéia
de sucessividade, progressão temporal, sobretudo por causa da verbalização da passagem
do tempo (“outras noites e outras estrelas vieram. / O tempo passou e cada manhã ensinou/
para ele que era bom ver as coisas, todas / as vezes, / como se fosse a primeira vez”).
Além disso, o homem, personagem principal, em nenhum momento da narrativa
aparece figurativizado (a não ser pelo olho que aparece na capa numa relação metonímica):
121
a perspectiva do leitor, que pode ver a natureza e a vê, primeiro, através de traços
infantis e, depois, adultos é a provável perspectiva do homem/personagem, que divide
com ele a tomada de posição e ajuda a assumi-la.
Segundo Bakhtin (2000:55), o homem tem necessidade do acabamento
proporcionado pelo outro: “Nossa individualidade não teria existência se o outro não a
criasse.” Na história, porém, vendo-se sozinho no mundo, ele não tem ninguém que
pudesse presenteá-lo com essa completude. A natureza, única companheira, só tem voz pela
própria voz do homem, como reflexo daquilo que ele mesmo pensa, de acordo com sua
visão solitária e altamente subjetiva (principalmente pela falta do outro, da voz social)
até o momento em que é criada a mulher.
Essa explicação a respeito da solidão em que vive o homem naquele momento é
dada através do verbal (“As vozes do Sol,/ das montanhas e do mar,/ da árvore e das flores /
e de todas as coisas / que ele descobriu naquela manhã / não eram ouvidas, de verdade, /
pois coisas não falam. / Vai ver / era a própria voz do menino / que a tudo que via, dizia: /
Que bonito!”), mas é reforçada pela visão desértica que preenche as páginas da história.
Fig. 31 Ziraldo, 1994a: 12-13
A imagem anterior, por exemplo, é composta de ícones facilmente identificados,
como as árvores, as flores, o mar, as montanhas, o sol etc. que, em conjunto, indicam a
natureza, e, na sua relação com os outros elementos da história, significam a própria solidão
do homem.
122
Em Flicts, depois da infrutífera busca por um lugar no mundo, a cor desprezada
segue para a Lua, que é Flicts, apesar da aparência que se tem a respeito desse satélite do
ponto de vista aqui do planeta Terra, conforme atesta Neil Armstrong, ao final do livro.
Fig. 32 Ziraldo, 1999: 48
A certeza de um final feliz para a personagem Flicts é importante ao caráter
analógico da literatura infantil, visto que, ao haver a identificação (da história com a
realidade, e do leitor com o que acontece na história), deseja-se que aquela solidão,
acompanhada pela falta de espaço no mundo, reverta-se em possibilidade de solução.
Para corroborar o bem-estar proporcionado por esse final, um “certificado” de
validade para a solução encontrada é oferecido por ninguém menos do que o primeiro
astronauta que pisou na lua fato que ganha força argumentativa na relação que
estabelece com o texto. A assinatura de Armstrong, mesmo pertencendo a um universo
123
factual e, por isso, além da ficção construída na história, é um signo de grande força
persuasiva e, ao mesmo tempo, é reconfortante.
Como se pode perceber, as forças centrífuga e centrípeta que atuam no texto, como
afirma Charaudeau, fazem com que, no nível semiolingüístico, o leitor mergulhe nos níveis
mais profundos, que dizem respeito ao discurso e à situação. Por outro lado, se o enfoque
da análise é o próprio discurso ou a situação comunicativa, sua presença ou importância
será revelada através das marcas textuais, dos indícios encontrados na superfície do texto.
Do transparente ao opaco, do plano do texto ao plano do discurso, do universo microtextual
ao macrotextual, de dentro para fora do texto, ou de fora para dentro, o sentido do texto só
é calculado e com competência se os diversos fatores que regem a textualidade, de
acordo com os níveis de construção, são constantemente acionados e relacionados, ora
ampliando, ora limitando o escopo do sentido a ser engendrado.
4.2.4 A competência de linguagem na prática pedagógica
Colocar em prática o conhecimento teórico não é tarefa simples: requer, além do
entendimento dos conceitos, consciência da dinâmica do processo pedagógico e clareza nos
objetivos a serem alcançados.
No caso do desenvolvimento da competência leitora, através da aplicação da noção
de competência de linguagem postulada por Charaudeau, é necessário ter em mente a
imbricação dos níveis de construção do sentido e, ao formular uma proposta de abordagem,
ou questão de exercício, saber que, ao acionar uma estratégia de leitura, fatalmente far-se-á
uma ligação complexa entre vários elementos de constituição textual.
No entanto, o professor não pode deixar de observar os graus de dificuldade
inerentes a cada proposta dificuldade essa imposta, sobretudo, pelos dois planos de
estrutura textual: o da compreensão, superficial, explícito e o da interpretação, profundo,
implícito (ainda que este plano só seja acionado a partir do nível semiolingüístico, ou seja,
das marcas textuais, formais, deixadas na superfície do texto).
Observando alguns exemplos de propostas de abordagem, pode-se verificar a que
plano pertencem e a que nível de construção se referem.
124
PROPOSTA
PLANO DE
ESTRUTURA
NÍVEL DE CONSTRUÇÃO
TEXTUAL
A) Observe a capa do livro, o que consta
nela e como são dispostas as informações
(título, autor, imagens, cores): que
expectativas podem ser criadas a respeito
de seu conteúdo?
Plano da
interpretação
Foco no nível situacional
B) Em O menino mais bonito do mundo,
pág. 29, o homem tem uma visão que
considera “mais bonita que o sol/ mais
bonita que o mar/ do que a árvore/ as
montanhas e as flores/ do que todas as
coisas/ ao seu redor”. Que moti
vos ele teria
para considerar essa a “visão” mais bonita
de sua vida?
Plano da
interpretação
Foco no nível discursivo
C) O que a comparação com tantos
elementos (sol, árvore, montanhas, flores)
sugere em relação ao que o homem pensa a
respeito da mulher?
Plano da
compreensão e da
interpretação
Foco nos níveis
semiolingüístico e
discursivo
D) Em Flicts (p. 35), aparece uma imagem
bastante conhecida: qual é?
Plano da
compreensão
Foco no nível
semiolingüístico
E) Que relação há entre o significado d
o
vermelho, do amarelo e do verde do
semáforo (pág. 35) e aquilo que as cores-
personagens dizem para Flicts?
Plano da
interpretação
Foco no nível discursivo
Fig. 33 Propostas de abordagem
Na proposta A, fazendo com que o aluno detenha-se na observação dos elementos
apontados na superfície do texto, será focalizado o nível situacional, já que o
reconhecimento do tipo de leitura que vai empreender (gênero literatura infantil) guarda
expectativas específicas, de domínio geral, no caso de alunos e pessoas inseridos numa
sociedade letrada, acostumada, ao menos, a ver os livros.
Criar essa expectativa traz em si outro objetivo: fazer o aluno assumir seu papel de
sujeito-interpretante no contrato de comunicação (a partir desse momento, ele é o leitor a
125
quem se destina o texto que tem em mãos). Concomitantemente, o professor/mediador, com
essa questão, aponta, na outra extremidade do contrato, para Ziraldo, o autor, sujeito-
comunicante, que tem algo a dizer e de uma maneira especial, muito própria. Assim, o
professor revela com quem a troca se dará, “ensinando”, ou “preparando” o aluno para as
estratégias que acionará não só para esse tipo de leitura, mas para a obra desse autor
especificamente.
Em B, ao questionar os motivos que o homem teria para considerar “aquela visão”
como a melhor de todas, o professor levará o aluno a estabelecer relações de causa/efeito:
antes, o personagem encontrava-se triste, solitário; já agora, feliz, ao ver a inesperada
“visão” da mulher, extasia-se e a considera a mais bonita em relação a tudo o que conhece.
Os motivos estariam, portanto, subentendidos e exigentes de inferências; logo,
dependeriam dessa relação de causalidade, de ligação a fatos anteriores, necessariamente
“detectados”: a mulher teria preenchido sua solidão, portanto, seria considerada “mais
bonita” que tudo, capaz de acabar com sua tristeza.
Ainda quanto a esse trecho do livro, focaliza-se, em C, no plano superficial, uma
enumeração de várias comparações entre a “visão” e os elementos que o homem já
conhecia: “mais bonita que o sol/ mais bonita que o mar/ do que a árvore/ as montanhas e
as flores/ do que todas as coisas/ ao seu redor”. Ao apontar cada um dos vários elementos
comparativos, intensifica os valores atribuídos à mulher, conferindo-lhe uma idéia de
superioridade.
Neste caso, é bastante sutil o limiar entre o plano da compreensão e o da
interpretação. Ao se apontar para a construção, para as várias comparações, o professor já
indica um recurso do plano da língua; porém, além disso, ao focalizar esse recurso, ele
revela sua importância para a interpretação, com o efeito de intensificação e a conseqüente
supervalorização da mulher. Ao ultrapassar a simples percepção do recurso lingüístico e
chegar ao plano estratégico de produção do sentido que está “invisível”, além da superfície,
alcança-se o nível discursivo, a que pertence a inferência exigida pela proposta. É uma
dupla estratégia, textual e discursiva.
Em D, mais uma vez, o foco está no nível semiolingüístico, que leva ao simples
reconhecimento do signo icônico “semáforo”, comumente encontrado nos centros urbanos.
No caso de o leitor não pertencer a uma localidade onde haja semáforos, o foco no ícone
126
trará a oportunidade de o mediador-professor explicar sua simbologia. A justificativa do
acionamento de estratégia tão simples está no fato de as cores componentes desse semáforo
carregarem significados que corroboram o sentido das falas das então “cores-personagens”,
abordado na questão seguinte.
Em E, o aluno é levado a relacionar a idéia contida no vermelho do semáforo (parar)
àquilo que o Vermelho diz (“Não”), assim como a idéia que o amarelo traz (atenção,
esperar), àquilo que o Amarelo exige (“Espera!”), além daquilo que o verde representa
(seguir em frente) ao que o Verde manda (Vá embora”). Essa questão provoca um
“mergulho” no texto, pois, a partir da identificação do ícone (camada superficial), passa-se
ao conhecimento de mundo (nível discursivo), através da simbologia contida em suas cores
e, a seguir, ao contexto da narrativa, atribuindo a característica de cada simbologia às
personalidades que as cores adquiriram.
Outras questões poderiam ser propostas, entretanto, como aqui o objetivo é
evidenciar a importância do conhecimento dos níveis de construção para o estabelecimento
de estratégias leitoras que provoquem compreensão e interpretação competentes, o prazer
de ler com proficiência, a reflexão e a autonomia leitora, essas questões parecem satisfazer
o objetivo.
4.3 Traços poéticos de Uma história sem (1) sentido
Se a inter-relação dos níveis da linguagem é fundamental para a construção do
sentido tanto para quem produz quanto para quem interpreta , para se obter o efeito
poético e para se traçar o estilo do autor, é essencial burilar o nível semiolingüístico. É nele
que se percebe, como defende Jakobson (s/d: 130) em relação à função poética da
linguagem, a projeção do eixo paradigmático no sintagmático.
A seleção é feita em base de equivalência, semelhança e dessemelhança, sinonímia e
antonímia, ao passo que a combinação, a construção da seqüência, se baseia na
contigüidade. A função poética projeta o princípio da equivalência do eixo de
seleção sobre o eixo da combinação. A equivalência é promovida à condição de
recurso constitutivo da seqüência (...).
127
Em toda a obra de Ziraldo essa projeção é constante e bem aproveitada, seja
lingüisticamente, seja iconicamente, como pode ser observado em alguns elementos do
livro Uma historinha sem (1) sentido (1994b), abordados a seguir.
Nesse texto, Ziraldo se vale de recursos oriundos das histórias em quadrinhos
(HQs), como a divisão da história em quadros seqüenciais, nos quais são representados,
num desenho muito colorido e cheio de expressividade, os movimentos dos personagens.
Ainda assim, faz-se presente a voz constante do narrador, em legendas que acompanham
8
as imagens na parte inferior das páginas fato que vincula o texto ao gênero literatura
infantil, sincrético, analógico e lúdico.
Por causa dessa disposição gráfica, a apreensão textual (que, na cultura ocidental, se
encontra tão presa ao movimento de cima para baixo, da esquerda para a direita), efetiva-se
privilegiando automaticamente o icônico e sua dinamicidade.
Observa-se, na primeira cena, o protagonista, anunciado após a fórmula clássica,
introdutória das narrativas, “era uma vez”, caracterizado como um “super-herói” idéia
ligada ao imaginário popular daquele que utiliza poderes especiais no intuito de vencer o
mal. A imagem revela um homem, trajado nos moldes dos super-heróis, com máscara,
malha colorida, botas, capa voadora etc., de tranqüila expressão facial, apesar dos perigos
por que passa estes representados por ícones de foguetes, balas de canhão, armas
futurísticas, raios, explosões e por onomatopéias que corroboram o ataque ao personagem.
8
Note-se que, nesse livro, diferentemente daqueles anteriormente analisados, o texto verbal acompanha o
não-verbal, coincidindo e reforçando as idéias; são textos paralelos, “co-referenciais”, que utilizam suas
características próprias para significar o mesmo objeto, num jogo de similaridades.
128
Era uma vez um super-herói que tinha um punhado de
hiperinimigos que só pensavam em eliminá-lo e fazia
tudo para conseguir realizar seus torpes objetivos.
Fig. 34 Ziraldo, 1994b: 3
Martins (2000:14), ao reafirmar as palavras de Jakobson, dá a seguinte explicação:
Jakobson mostra que o efeito poético repousa sobre uma combinação de duas
estruturas: a análise da mensagem não deve dispensar a análise do sistema,
do código. O efeito de um vocábulo depende não só da frase, do contexto em
que se encontra, como da tonalidade significativa que se sente em confronto
com outros vocábulos equivalentes.
Assim, notamos que, além de a legenda do texto corroborar o sentido veiculado pelas
imagens, denominando o personagem como super-herói, com “um punhado de
hiperinimigos” o que se comprova pelo ataque que sofre, mostrado pelos elementos
129
icônicos , a utilização de prefixos intensificadores como super- e hiper- (que, numa
gradação, pressupõe os poderes superiores do herói, mas também a periculosidade ainda
maior dos seus inimigos), assim como expressões como “um punhado de hiperinimigos”
(conotando uma quantidade razoável de oponentes), pensavam em eliminá-lo”
(realçando a exclusividade das ações), “faziam tudo” (indefinindo, infinitivizando a
dimensão de seus atos) e “torpes objetivos” (caracterizando negativamente os propósitos de
seus antagonistas), incluem aos perfis estereotipados dos personagens uma exagero próprio
do lúdico e do dinâmico. A escolha dessas formas, evidenciada numa combinação que a
todo tempo ratifica semelhanças e aproximações, é orientada pela “tonalidade significativa”
que as impregna.
Além do constante par verbal/não-verbal, a estrutura macrotextual apresenta um
outro paralelismo que orienta uma das acepções da palavra “sentido” como percepção
sensorial, de grande importância para a defesa da personagem (e, por extensão, dos
indivíduos em geral); em função disso, essa percepção é colocada como superpoder
utilizado pelo herói. São mostradas várias seqüências de cenas em que cada um dos cinco
sentidos é acionado como estratégia de salvação perante as “forças do mal”. Após cada uma
delas, justifica-se a possibilidade de salvação pelo uso da percepção sensorial, salientando-
se seu valor.
A primeira dessas seqüências mostra a utilização do paladar para salvar o herói do
envenenamento. Na leitura das imagens seguida do verbal, aponta-se para o discursivo e
para o simbólico; no ritmo dado ao texto pelas construções originais e pela sonoridade dos
neologismos, de forte sugestão onomatopéica, envolve-se o texto numa atmosfera de muita
ação e aventura, reforçada pela representação dos movimentos do personagem (com gestos,
posição dos membros, traços e “fumacinhas” que indicam rapidez de ação etc., comuns à
linguagem das HQs).
130
Fig. 35 Ziraldo, 1994b: 5-7
131
Intertextualmente, dialoga-se com outro herói, o Batman, o “homem-morcego”, seja
através dos objetos presentes no ambiente (geladeira e fogão com pontas que se
assemelham àquelas características do personagem citado), seja na referência à “bat-
cozinha” (o universo de Batman é todo designado através de neologismos que incluem o
elemento bat morcego aos substantivos). Além disso, acionando o conhecimento de
mundo do leitor, reconhece-se a caveira com ossos cruzados, estampada no copo de
laranjada, como símbolo de perigo o que torna anunciado o risco que o herói corria.
A narração das seqüências, envolta em um mundo relatado bastante prototípico,
guarda não só o distanciamento da 3ª. pessoa, como o jogo pretérito imperfeito/perfeito,
apoiado em expressões adverbiais temporais (“um dia”, “antes de bebê-la”), distinguindo o
que é constante, daquilo que é momentâneo, passageiro, e também as relações de
causa/efeito, apontadas pelos articuladores (“como”, “porque”). Mescla-se constantemente
a essa narratividade, o comentário, ainda que revestido por numa metáfora temporal,
sempre vinculado à ênfase que se pretende dar à importância da percepção sensorial
(“Como sabia sentir o gosto das coisas, o herói não morreu. Abateu o inimigo e salvou-se
porque era bom de paladar”). A parte verbal do texto não oferece descrições detalhadas,
nem minúcias das ações esse papel é desempenhado pela parte visual, mais imediata e
impactante. Ao verbal é conferida a responsabilidade de ser original, dinâmico, lúdico,
engraçado, ainda que objetivo.
Um aspecto do nível semiolingüístico relevante nesse livro é o da estruturação dos
neologismos. Vejamos a parte verbal do texto por inteiro, destacando-se as palavras criadas
por Ziraldo (1994).
Uma historinha sem (1) sentido
Era uma vez um super-herói que tinha um punhado de hiperinimigos que só
pensavam em eliminá-lo e faziam tudo para conseguir realizar seus torpes objetivos.
Um dia estava muito calor o herói sentiu sede, foi até a sua bat-cozinha
e pediu ao seu fiel escudeiro para lhe dar uma uif-laranjada caprichada.
Na laranjada do infiel escudeiro havia um argh-veneno mortal; mas, antes de
bebê-la, o herói teve o cuidado de testá-la com uma chuip-provadinha e descobriu
tudo.
Como sabia sentir o gosto das coisas, o herói não morreu. Abateu o inimigo e
salvou-se porque era bom de paladar.
Certa vez, o herói vinha atravessando uma rush-avenida com sinal verde
quando ouviu zipper-pneus cantarem no asfalto e alguém gritar-lhe: “Cuidado,
super-herói!”
132
No meio da rua vinha um rabit-carro da perigosa Mulher-Coelho, mas o
herói, avisado, deu um vapt-pulinho esperto pra trás e o bólido assassino passou
raspando.
Como o herói sabia ouvir os sons do perigo, mais uma vez salvou-se. Porque
escutou os avisos providenciais.
De noite, tronch-cansado, o herói resolveu ir para o seu cav-apartamento a
fim de dormir. Então apagou a luz do quarto e logo, logo já estava zzz-ressonando.
No quarto escuro havia uma gretinha por onde começou a entrar, no meio da
noite, uma dânger-fumacinha, e seu cheiro acordou o herói, que deu um vupt-salto na
cama.
Como o herói sabia sentir o cheiro das coisas, acordou para não morrer. Foi
salvo porque tinha um bom olfato.
Acordou e de olhos bem abertos, só aí o herói constatou que estava numa
darc-escuridão e precisava, com uma zip-zap-urgência, acender a luz para poder
localizar-se.
Na parede do quarto havia, certamente, push-tomadas, pin-apliques, etc. O
herói então foi passando a mão na parede, tateando aqui e acolá, até encontrar o clic -
interruptor.
Como o herói sabia usar a sensibilidade dos seus dedos, acendeu a luz
salvadora. Porque, de fato, tinha tato.
O quarto ficou, então, todo flash-iluminado, e o herói pôde ver que o fogo
crescia lá fora e ele precisava de uma top-saída que fosse uma garantia de salvação.
No quarto havia muitas saídas: muitas plim-janelas e muitas open-portas
libertadoras, e, com os olhos mais abertos ainda, o herói, bem rápido, enxergou todas
elas.
Como o herói sabia enxergar as coisas, ficou pronto para escapar. Porque ele
tinha uma excelente visão.
Em seguida o fogo crescendo! o herói juntou todas as suas big-forças,
tomou uma tchan-distância, avançou para a porta escolhida e, como um raio,
atravessou-a, veloz.
Na porta que o herói escolheu para escapar, havia uma placa, onde estava
escrito com letras bastante nítidas: “Em caso de incêndio, NÃO saia por esta porta”.
Como o herói não sabia ler, morreu tost-queimado.
THE FIM
Em todos os casos, elementos de base nominal foram precedidos por outros,
oriundos do inglês ou onomatopéicos. Os acréscimos apresentam um vínculo com o
elemento-base, seja semântico e/ou discursivo, ou pragmático (referente à situação
representada no texto). O caráter dessas combinações é altamente expressivo, não só por
causa da motivação que os acompanha numa construção original, distante do simplesmente
arbitrário, mas também por aquilo que a sonoridade dessa construção representa de
dinâmico e lúdico, afastando-a cada vez mais de um modo referencial.
133
VÍNCULOS ENTRE OS ELEMENTOS FORMADORES DOS NEOLOGISMOS
SEMÂNTICO-DISCURSIVO
PRAGMÁTICO
bat-cozinha
rabit-carro
dânger-fumacinha
darc-escuridão
push-tomadas
flash-iluminado
open-portas
big-forças
tost-queimado
uif-laranjada
argh-veneno
chuip-provadinha
zipper-pneus
vapt-pulinho
zzz-ressonando
vupt-salto
zip-zap-urgência
pin-apliques
clic-interruptor
plim-janelas
tchan-distância
Fig. 36 - Neologismos
O vínculo semântico surge entre o elemento oriundo do inglês e a base, conferindo-
lhe uma espécie de caracterização, muitas vezes intensificadora. Em “bat-cozinha”, “bat”
indica uma cozinha própria de um super-herói, especialmente porque, discursivamente,
encontra-se atrelada à idéia de outro importante e conhecido herói, como vimos, que a tudo
acrescentada o elemento “bat” como identificador de sua propriedade. Da mesma forma,
“rabit-carro” especifica o carro pertencente à Mulher-Coelho (rabit, coelho). Nos outros, o
elemento vindo do inglês repete e/ou caracteriza a base: “dânger-fumacinha” (danger,
perigo/perigosa); “darc-escuridão” (dark, escuro); “push-tomadas” (push, empurrar, que se
empurra); “flash-iluminado” (flash, clarão); “open-portas” (open, abertas); “big-forças”
(big, grande) e tost-queimado (toast, torrar, torrado).
Já no outro grupo, percebe-se a utilização de elementos onomatopéicos relativos a
sons produzidos na situação designada pelo elemento-base, às vezes bastante próximos das
interjeições (como em “argh-veneno”, “argh” podendo substituir todo um enunciado e, por
isso, ser considerado interjeição). Em alguns casos, além do caráter pragmático, o
discursivo, por causa de sua origem cultural, se faz presente (como em “zzz-ressonando”,
“zzz” utilizado nas HQs para representar o próprio ressonar, ou em “tchan-distância”,
“tchan” fazendo referência ao suspense, vindo de “tchan tchan tchan tchan”, que imita a
melodia de Beethoven instituída como “hino do suspense”).
134
Estrangeirismos ou onomatopéias, em todos os casos, torna-se evidente a força que
a sonoridade confere à ação, relacionando o termo à situação, acrescentando-lhe matizes
afetivos, desautomatizando completamente a linguagem, introduzindo a brincadeira na
formação das palavras. Ao criar e usar essas palavras novas, o autor evidencia seu trabalho
de elaboração da camada superficial do texto (claro, sempre vinculando essa tarefa à de
localizar o sentido discursiva e pragmaticamente), conferindo-lhe uma poeticidade,
particularmente voltada não para as rimas, mas para o lúdico. Esse conjunto de
características configura um estilo próprio à obra, bem enquadrada como pertencente ao
gênero literatura infantil, mas perpassada por aspectos relevantes da linguagem dos
quadrinhos e das aventuras, impregnados de dinamismo.
Na última cena, o super-herói morre, para surpresa do leitor, que gerou a expectativa
da imortalidade do protagonista por causa de sua condição. No entanto, essa surpresa se
justifica pela intencionalidade do texto, numa dimensão global: ele morre por não ter sido
capaz de ler a placa “Em caso de incêndio, NÃO saia por esta porta”.
Fig. 37 Ziraldo, 1994b:22
135
A partir de então, o leitor rechaça a idéia de que a história pudesse ser “sem
sentido”, sem nexo, sem coerência mesmo porque foi colocado, parecendo que
posteriormente, um numeral “1” antes da palavra sentido (“Uma historinha sem (1)
sentido”), indicando que o homem, super-herói, armado com seus cinco sentidos para se
defender e acabar com o mal, carece de mais um, de um outro tipo de sentido, o da leitura,
se quiser sobreviver. Ou ainda: não basta ter uma ótima percepção sensorial; é preciso
sentir os signos, saber significar, construir sentidos, na e pela linguagem; na e pela
literatura. O “sentido” mencionado no título significa o “sexto sentido” de que Ziraldo tanto
fala, o da capacidade interpretativa adquirida via literatura.
136
5 DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA FRUITIVA
NA FORMAÇÃO DO LEITOR
137
É preciso que (...) haja acesso à leitura de ficção, ao discurso poético, à
leitura prazerosa e emotiva. É necessário que alguém chore, sonhe, dê
risada, fique emocionado, fique identificado, comungue, enfim, com o texto,
para que ocorra a formação do leitor. (Azevedo, 2003: 79)
5 DESENVOLVIMENTO DA
COMPETÊNCIA FRUITIVA NA FORMAÇÃO DO LEITOR
Considerando a noção de competência como um conjunto de aptidões adquiridas
por um sujeito ao longo de suas experiências, pode-se afirmar que é adquirida, ou formada
obedecendo aos limites de cada campo de atuação humana. Assim, antes de ser delimitada
claramente a competência fruitiva necessária à formação do leitor de literatura, é preciso
tomar algumas noções: primeiramente, serão vistas várias definições para competência
próprias do universo dos estudos da linguagem; depois, serão destacadas características do
texto poético que o tornam propício para o desenvolvimento da competência fruitiva. Por
fim, serão analisados trabalhos realizados por crianças, com o intuito de se observar o
emprego dessa competência na leitura de textos literários (como são os de Ziraldo, usados
nesta pesquisa) e, conseqüentemente, na formação de/dos leitores.
5.1 De quantas competências se nutre a competência fruitiva
Como visto anteriormente (cap.2), Chomsky postula uma competência lingüística,
inata, desenvolvida à medida que se internalizam as estruturas gramaticais de uma
determinada língua. Charaudeau trata de uma competência de linguagem, formada por três
“sub-competências”, ou “co-competências”, a situacional, a discursiva e a semiolingüística,
que, conjugadas, habilitam o falante para uma proficiente inserção no mundo social via
138
linguagem. A competência fruitiva, como se pretende dimensionar neste trabalho, é
utilizada na apreensão da poeticidade dos textos, como veremos, e depende da co-
laboração dessas e de outras competências igualmente importantes. Algumas noções,
portanto, serão abordadas neste início de capítulo com o objetivo não só de delimitação,
como também de definição da competência fruitiva.
Maingueneau (Charaudeau & Maingueneau, 2004), mais ligado à “escola francesa
de Pêcheux”, fala de uma competência discursiva limitada às capacidades de produzir e
interpretar enunciados decorrentes de uma formação discursiva específica, sócio-
historicamente circunscrita, de acordo com o posicionamento do enunciador (discurso
comunista, discurso dos patrões, dos camponeses etc.). Soma-se a essa a competência
genérica (Maingueneau, 2002:41), que depende do domínio das leis e dos gêneros do
discurso como componente essencial da competência comunicativa, “ou seja, nossa aptidão
para produzir e interpretar os enunciados de maneira adequada às múltiplas situações de
nossa existência”. É uma competência adquirida por impregnação, em virtude da inserção
social a que se submete o ser humano, e se constitui de outras competências, a lingüística e
a enciclopédica. Essa classificação, como se nota, guarda certa equivalência com as
competências postuladas por Charaudeau.
Eco (1986) trata da competência do leitor, que compreende conhecimentos cujo
domínio poderia corresponder às divisões postuladas por Charaudeau. Eco parte de dois
tipos de conhecimento que instrumentalizariam o leitor para a compreensão do texto
escrito: um “dicionário de base” (que pode ser entendido, em termos gerais, como o
domínio do código lingüístico atualizado no texto) e as “regras de co-referência” (ou da
identificação da dêixis e da anáfora). São conhecimentos que estariam no mesmo plano da
competência semiolingüística de Charaudeau, vinculada à constituição da superfície
textual.
Além disso, Eco destaca a capacidade de detectar as “seleções contextuais e
circunstanciais” e a de “interpretar o código retórico e estilístico”. É uma capacidade
ligada aos níveis “extratextuais” e, portanto, colocada nas dimensões das competências
discursiva e situacional da Teoria Semiolingüística: a primeira capacidade, mais
relacionada ao contexto situacional e a segunda, vinculada à compreensão de certas formas,
mais ou menos estereotipadas, legadas pela história literária.
139
Ainda relacionando texto e discurso, o autor fala da “hipercodificação ideológica”,
que orientaria a interpretação das estruturas axiológicas e se referiria a uma “competência
ideológica”, de que pode depender a criticidade própria dos leitores competentes, ou de que
pode se valer a manipulação intrínseca aos textos formadores de opinião, como os de
massa, por exemplo.
Já mais especificamente, Eco se refere a uma competência “de leitura literária” e
enfatiza o reconhecimento de fórmulas próprias desse universo, como o de frames
acionados por expressões do tipo “era uma vez” (que inserem o leitor numa dimensão
ficcional, de tempo indeterminado, com fins de entretenimento), por encenações comuns
(como “supermercado”, “festa de criança”), ou ainda pelas inferências de encenações
intertextuais, “esquemas retóricos e narrativos que fazem parte de um repertório
selecionado e restrito de conhecimento que nem todos os membros de uma determinada
cultura possuem” (Eco, 1986: 66). Baseando-se em Kristeva (apud Eco, op. cit.: 64), ele
explica que essas inferências dizem respeito a uma competência intertextual responsável
pelo acionamento de um conhecimento enciclopédico que abrange todos os sistemas
semióticos familiares. Cita os esquemas-padrão (dos romances policiais em série, por
exemplo), as encenações-motivo (do tipo “mocinha perseguida”, “castelo tenebroso”) e as
encenações situacionais (duelo xerife e preso, no antigo far-western), a partir dos quais se
percebe, numa perspectiva atual, a preocupação do estudioso com a recorrência formal que
se vincula à estruturação de certos gêneros ficcionais.
Nota-se, entretanto, que o estudioso não se refere, nesse momento, a uma
competência intertextual que, como em Jenny (1979), exige a presença de citações ou
alusões a obras (ou trechos) anteriores, “reconhecíveis”, que, nessa “recapitulação” em
novo ambiente textual, reiteram ou contradizem o texto-origem embora se possa admitir
que esse aspecto configure um importante item para o estabelecimento de uma possível
competência intertextual, ou até mesmo uma competência literária.
Genette (apud Maingueneau, 1996), no entanto, com o termo transtextualidade,
açambarca tanto a competência intertextual, de Eco, quanto o “reconhecimento do dito”, de
Jenny. Seguindo o lastro do dialogismo bakhtiniano, que atribui unicamente a um Adão
mítico a construção de um discurso “virgem”, ainda não dito, Genette explora a
“transcendência textual do texto”, “tudo que [o] coloca em relação, manifesta ou secreta,
140
com outros textos”. Assim, além da intertextualidade (que supõe a co-presença de pelo
menos dois textos, o atual e o original, “retextualizado”), a transtextualidade pode se dar
através da a) paratextualidade (com os títulos, advertências, prefácios, posfácios, notas
etc.); b) metatextualidade (com as diversas formas de comentários); c) arquitextualidade
(com as designações genéricas, comédia, novela, etc.) e da hipertextualidade (engendrada
pelas relações que unem um texto que se enxerta num texto anterior, por transformação ou
imitação). Como se vê, são relações que dependem do reconhecimento do leitor a fim de
compor uma (sua) competência transtextual.
Ao afirmar que “a produção literária consiste menos em fazer surgir ex nihilo do
que em deslocar, inverter, etc. o já dito” e que “de certa forma, só é legível o que
corresponde a esquemas já interiorizados”, Maingueneau (op.cit.:27) ratifica, de certo
modo, a importância da competência intertextual (como em Eco, ou em Jenny) ou
transtextual (como em Gennette) para a construção de sentido na literatura, já que o
conhecimento prévio dos textos precursores possibilita o “melhor aproveitamento” do
objeto de leitura. A literatura, que se alimenta das experiências, das angústias dos homens,
de seus momentos históricos, também carece de se nutrir de suas próprias entranhas, de
seus modelos arquetípicos e de uma auto-referencialidade.
Corroborando a necessidade de um conhecimento mais profundo do objeto literário,
Aguiar e Silva (1984:79) explica que para ler, por exemplo, Fernando Pessoa, o
falante/leitor precisa conhecer “outros códigos que, em interacção com o código da língua
portuguesa, estruturam (determinado texto) como texto literário”: são “códigos métricos,
códigos estilísticos, códigos retóricos, códigos estéticos, códigos ideológicos” que,
utilizados pelo emissor/autor na codificação textual, devem ser decodificados pelo
hipotético receptor/leitor.
O texto literário, como outro acto significativo e comunicativo, só é
produzido e só funciona como mensagem, num específico circuito de
comunicação, em virtude da prévia existência de um código
9
de que têm
comum conhecimento não confundir com conhecimento idêntico um
emissor e um número indeterminado de receptores. (Aguiar e Silva, 1984:
75)
9
Para Aguiar e Silva, código designa um conjunto de regras. (Aguiar e Silva, 1984: 75)
141
Segundo Jonathan Culler (apud Ceia, 2005), o domínio dessa gama de
conhecimentos habilitaria o indivíduo para uma competência literária da qual dependeria
“a leitura crítica de um texto literário de forma tecnicamente correcta”. Apesar de um tanto
combatida em função de sua origem na gramática gerativa de Chomsky (pois sendo
determinada por fatores culturais e adquirida por meio de um ensino especializado, essa
competência não seria inata, como a lingüística), essa noção distingue a capacidade para
uma leitura singular, que exige o reconhecimento do texto literário, respeitando seu modo,
o gênero a que pertence, o contexto que o caracteriza e a tradição em que se inscreve.
Na fase em que os estudos literários se aproximaram teoricamente da orientação
lingüística, como no formalismo russo e no estruturalismo, a competência literária passou a
ser tida como competência poética e passou a observar o texto literário em termos de
performance lingüística, dispensando a interpretação livre dos textos e a refutação de
sentido. Já os estudos literários pós-estruturalistas (como a estética da recepção)
privilegiaram uma nova forma de hermenêutica, dando à competência literária um caráter
individual, de responsabilidade do leitor. Numa perspectiva contemporânea, entretanto,
pode-se afirmar a prevalência do caráter interativo, que postula não só a intervenção do
leitor, como o reconhecimento de marcas textuais orientadoras da leitura, além da
observação de fatores contextuais que incluem o autor, seu lugar histórico, seu papel social,
entre outros elementos. A esta nova visão, para a leitura literária, atrela-se uma
competência que exacerbaria a análise de aspectos discursivos específicos. Embora sejam
aspectos transcendentes ao texto, estão de alguma maneira nele inscritos, ou são
possivelmente identificados por meio de informações contextuais, participando, destarte, de
uma “competência contextual”, necessária a uma interpretação ao mesmo tempo paralela e
incidente em relação ao texto.
Valéry (apud Costa Lima, 1983:10), ao tentar definir a Estética, traz à luz reflexões
que podem ser consideradas auxiliares à delimitação de uma competência literária. Em
uma síntese que se espera não excessivamente reducionista, pode-se relatar que ele traça,
primeiramente, um esboço dos esforços filosóficos que, ao longo do tempo, a humanidade
empreendeu a fim de definir o estudo voltado para a criação artística. Esse estudo, a
princípio, fora desenvolvido no espaço do pensamento puro (e “colocava um certo gênero
de prazer” muitas vezes “indizível”); mais tarde apreendera a Idéia do Belo (que poderia
142
restringir o prazer estético à conformação altamente regrada das obras), até substituir seu
caráter universalizante por outro original, que abriu espaço, por exemplo, para o verso livre
e para a opção entre o clássico (Arte Clássica, ou Arte guiada pela Idéia do Belo) e o
moderno ainda que considere bastante profícuos os esforços de regulação dos meios
produtivos engendrados pelos antigos.
Ela (a Estética) fornece leis sob as quais é possível alinhar as inúmeras
convenções e das quais se podem derivar as decisões de detalhe que uma
obra de arte reúne e coordena. Semelhantes fórmulas podem, aliás, possuir
em certos casos uma virtude criadora, sugerindo muitas idéias que nunca
surgiriam sem elas. A restrição é inventiva, tanto quanto, pelos menos, a
superabundância das liberdades pode sê-lo. (Op. cit.: 16-17)
Além disso, mas sem obter um resultado definitivo, Valéry finda por colocar a
Estética no imbricamento de uma Estésica e de uma Poética. Esta estaria ligada à produção
das obras; ao estudo da invenção e da composição, ao papel do acaso, ao da reflexão, ao da
imitação, ao da cultura e do meio-ambiente; ao exame e à análise das técnicas,
procedimentos, instrumentos, materiais, meios e suportes de ação; já aquela, estaria
vinculada a tudo que se relacionaria ao estudo das sensações, aos trabalhos que têm como
objeto as excitações e as reações sensíveis que não possuem um papel fisiológico uniforme
e bem definido. A Estética se inscreveria, portanto, em um lugar vago, ou penosamente
determinado, pois, de acordo com Valéry, estudar, definir, explicar o prazer da obra de arte
só é possível pontualmente; poder-se-ia dizer que só é possível a partir do espaço singular
onde a obra se encontra ou é colocada no momento da análise.
Existe uma forma de prazer que não se explica; que não se circunscreve; que
não fica restrita ao órgão do sentido onde nasce, e nem mesmo ao domínio da
sensibilidade; que difere de natureza, ou de motivo, de intensidade, de
importância e de conseqüência segundo as pessoas, as circunstâncias, as
épocas, a cultura, a idade e o meio-ambiente; que induz a ações sem causa
universalmente válida, ordenadas segundo fins incertos, de indivíduos
distribuídos como que ao acaso dentro do conjunto de um povo; e essas ações
engendram produtos de diversas categorias, cujo valor de uso e de troca
dependem muito pouco do que eles são realmente. (...) (op. cit.: 22)
143
Segundo Valéry, portanto, a Estética teria a difícil tarefa de estudar um objeto
muitas vezes movediço, submisso a fatores outros que não a simples materialidade do
produto analisado. Pode-se afirmar, então, que o belo, o prazer oriundo da obra, o valor
estético seriam determinados a partir do ponto circunstancial em que se intercruza o
produto com o valor que lhe é atribuído numa perspectiva identificada no tempo/espaço.
Assim, para os estetas, torna-se imprescindível um certo distanciamento para relacionar
produto e produção, a fim de se estudar o “valor de prazer” que dessa relação emerge; já
para o leitor comum de literatura, é fundamental a associação entre o texto e os valores
culturais que dele emanam com a sua experiência pessoal para poder, além de construir o
sentido-significado (intelectivo), deixar fruir o sentido-emoção originado tanto na forma
(que encanta ou, pelo menos, provoca), quanto na identificação sujeito-texto-cultura, no
abalo transformador sofrido interiormente, na solidão de sua subjetividade, ao interagir
com o objeto artístico.
Em outras palavras, há algo imprescindível e que, embora se apresente em
diferentes graus, ou mesmo com diversas importâncias, é comum a qualquer leitor de
literatura: a fruição. Para os estetas, além da “simples” construção do sentido, surge uma
necessidade maior daquela competência literária, ou poética, que possibilita a análise
técnica das obras de arte, de seu valor artístico: um saber dizer a fruição ainda que a
fruição seja primordial para sua análise e obviamente determinada pela sensibilidade (antes
de analistas da obra, foram leitores, é claro). Já para o leitor de literatura sem compromisso
“técnico” mais efetivo, a necessidade maior é a da fruição propriamente e, para isso, precisa
ser acionada, além da competência de linguagem, que lhe permite interpretar o texto, e de
uma competência literária mínima, que orienta discursivamente a construção do sentido, a
mesma sensibilidade usada pelos estudiosos, mas limitada à dimensão do impacto, do
indizível.
O que une e identifica os leitores, estetas ou apreciadores é, efetivamente, o gosto
pela sensação (ainda que em doses e perspectivas distintas), que nasce na capacidade de ser
humano. Há, portanto, uma competência para sentir, tão inata quanto à da linguagem. Essa
competência pode ser atrofiada ou desenvolvida, de acordo com a relação que se estabelece
(ou que se aprende a estabelecer) com a obra, com o mundo, com o Outro. Por isso a defesa
de Susan Sontag: “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”. Com
144
essa frase, Sontag (1987) conclui um artigo intitulado “Contra a interpretação” (publicado
em 1964 numa revista e posteriormente incluído numa coletânea), em que condena os
“exageros hermenêuticos” dos críticos de arte modernos e defende a fruição como razão
maior da existência da arte.
A filósofa, cineasta e romancista teve como objetivo opor-se à análise de obras cujo
valor é mensurado de acordo com seu conteúdo latente (seu “sentido verdadeiro”), “des-
coberto” a partir do conteúdo manifesto (conforme palavras de Freud). Sontag defende o
“direito” da obra de arte ser o que é, e a responsabilidade dos críticos de mostrar como ela é
o que é e não o que ela significa: “...valiosa seria a crítica que fornecesse uma descrição
realmente cuidadosa, aguda, carinhosa da aparência da obra de arte” (Op.cit.:22). Para ela,
o excesso de estímulos da vida moderna embotaria a acuidade de nossa experiência
sensorial. Por isso, ela defende essa “erótica da arte”, pois “o que importa agora é
recuperarmos nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais”
(Idem : 23).
Apesar de ter a preocupação de rechaçar análises preocupadas em encontrar nos
textos, ainda que subliminarmente, o sentido de certa doutrina (marxista ou freudiana, na
maior parte dos casos), a defesa de Sontag ratifica a necessidade de privilegiar a
sensibilidade no embate com a obra, deixando fluir sensações, sentimentos, descrevendo
sua forma (e não a prescrevendo, como explica). Seu artigo propaga a defesa de uma
“Estética da Sensibilidade”, conforme sinalizam os editores na orelha da coletânea, e
expressa a eminência das sensações e dos sentimentos, essência de toda obra e reflexo
da essência humana, que urge por constante expressão, por concreta materialidade. Em
outras palavras, se representa a defesa da sensibilidade na análise das obras, diminuída
pelos “excessos interpretativos” da modernidade, pode-se afirmar que esse artigo torna-se,
aqui, a evidência dessa competência para sentir, necessária à leitura (em sentido amplo) da
obra de arte.
A partir destas reflexões, percebe-se que a leitura do texto literário depende,
primeiramente, de um “quesito” a mais, exigido por sua própria estrutura: uma competência
literária desenvolvida com o passar dos anos, das experiências leitoras; que exige um
conhecimento, de certo modo, quantitativo, caracterizado por um acúmulo de lembranças,
de enquadramentos e de relações texto/contexto histórico. Contudo, além desse repertório
145
prévio, há uma “outra” competência primordial para a leitura de literatura, de caráter
essencialmente qualitativo: uma competência própria da sensibilidade.
É uma competência que diria respeito às “habilidades do sentir”, não só por meio da
percepção sensorial (ainda que o “abalo” do contato com mundo via obra seja
imprescindível), mas também daquilo que é impactante para o ser humano em termos de
emoção; é a “competência da fruição estética”. Essa competência, aqui, será denominada
competência fruitiva, pois depende da capacidade de o leitor fruir, de se deixar afetar pelo
texto. Para isso, é preciso que ele domine a capacidade de sentir a qualidade das coisas a
partir de relações analógicas, pois isso vai permitir que, utilizando e ultrapassando as
competências literária, estética, genérica, transtextual etc., muito além de construir o
sentido intelectivo, ele construa o sentido-sensação (sensorial e emotivo), não trabalhando
somente com a interpretação, mas com o sentimento (entendido como ato de sentir,
feeling) do texto.
5.2 A Qualidade da fruição e a originalidade do texto poético
Peirce, que dedicou o primeiro ano de seus estudos filosóficos à Estética (fato que
marcaria, de certa forma, todo seu pensamento), diz-se possuidor de uma “capacidade para
a fruição estética” semelhante à competência fruitiva do leitor comum, como aqui tratada.
É a fruição estética que nos interessa; ignorante que sou em Arte, possuo
uma boa parcela de capacidade para a fruição estética. Parece-me que,
enquanto na fruição estética nos entregamos ou nos dedicamos à totalidade
do Sentimento especialmente a resultante da Qualidade do Sentimento
total apresentada na obra de arte que estamos contemplando trata-se, no
entanto, de uma espécie de afinidade intelectual, da idéia de que aqui há um
Sentimento que pode ser exatamente o que é, mas é uma consciência que
pertence à categoria da Representação, embora representando algo na
Categoria da Qualidade do Sentimento. (Peirce apud Pignatari, 2004b:71)
Visto que busca compreender a significação como um processo triádico, iniciado
numa primeiridade circunscrita à qualidade das coisas e desenvolvido a partir tanto de uma
146
secundidade “reativa” a essa imersão sensível, quanto de uma terceiridade que completaria
o circuito da semiose, atribuindo um símbolo para dizer o anteriormente indizível, a análise
da apreensão do sensível tem para esse estudioso um importante valor.
Para ele, o signo estético apresenta-se contraditoriamente, pois atribui uma
“afinidade intelectual”, consciente, representativa da “totalidade do Sentimento”
experimentada na fruição estética. Em outras palavras, é um signo que se pretende
sensação, sentimento; é um símbolo (convenção) que se pretende ícone (qualidade). Por
isso, pode-se afirmar a singularidade desse signo, que exige do leitor não só a exacerbação
de uma competência da linguagem, mas de uma outra, da sensibilidade, da fruição.
Assim sendo, um texto poético, densamente marcado por mecanismos de
sensibilização (tanto sensorial quanto emotiva), abriga um conjunto de recursos que
emergem do processo de semiotização através dos níveis semiolingüístico, discursivo e
situacional às vezes privilegiando elementos de um único nível, mas quase sempre se
valendo de relações equilibradas entre os três. São recursos que buscam a surpresa, a
originalidade, o impacto, a ruptura, com o propósito de provocar uma resposta sensível,
emocional, anterior mesmo (no sentido de mais imediata) à apreensão do sentido-
interpretado e, conseqüenteme nte, suscitar o gosto, a fruição.
Como a inferência, que só presentifica idéias (antes implícitas) a partir da solução
do jogo interpretativo, a fruição não está inscrita na superficialidade do texto: ela
presentifica sensações e sentimentos de acordo com a percepção do jogo semiótico-sensível
e, através dele, com o reconhecimento do vivido. Sem inferir, o leitor/interlocutor não
atinge o sentido final do texto; por isso é preciso que o escritor/locutor saiba deixar as
marcas certas, nos lugares adequados para o leitor as relacionar e chegar ao implícito. Sem
fruir, o leitor/interlocutor não atinge o gosto pela leitura; por isso o escritor/locutor precisa
ter a sensibilidade bastante aflorada para arrumar a superfície do texto com tanta
originalidade, com tantas combinações surpreendentes, tocando o imaginário do
leitor/interlocutor com tanta profundidade, que ele se sinta magicamente encantado,
sedutoramente envolvido, irresistivelmente aliciado.
Kleiman (2000: 25) afirma: “há evidências experimentais que mostram com clareza
que o que lembramos mais tarde, após a leitura, são as inferências que fizemos durante a
leitura; não lembramos o que o texto dizia literalmente”. Após as considerações acerca da
147
fruição, pode-se ultrapassar a afirmação de Kleiman e dizer que, vista como “inferência
afetiva”, a fruição imprime em nós uma lembrança da ordem da experiência pessoal tão ou
mais profunda que a da “inferência cognitiva” (apesar de poderem estar totalmente
vinculadas); por causa do “afetamento” provocado, é uma lembrança que se enraíza no
sujeito, passando a fazer parte dele.
Paul Zumthor (2000: 90-91), ao defender o “ponto de vista do corpo” (expressão
que parece sintetizar bem sua tese), toca em “conhecimentos poéticos” que pertencem à
“ordem da sensação” e que “não afloram no nível da racionalidade”:
...pode-se dizer que o discurso poético valoriza e explora um fato central, no
qual se fundamenta, sem o qual é inconcebível: em uma semântica que
abarca o mundo (é eminentemente o caso da semântica poética), o corpo é ao
mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do
discurso. O corpo dá a medida e a dimensão do mundo; o que é verdade na
ordem lingüística, na qual, segundo o uso universal das línguas, os eixos
espaciais direita/esquerda, alto/baixo e outros são apenas projeção do corpo
sobre o cosmo. É por isto que o texto poético significa o mundo. É pelo
corpo que o sentido é aí percebido. O mundo tal como existe fora de mim
não é em si mesmo intocável, ele é sempre, de maneira primordial, da ordem
do sensível: do visível, do audível, do tangível. O mundo que me significa o
texto poético é necessariamente dessa ordem; ele é muito mais do que objeto
de um discurso informativo. O texto desperta em mim essa consciência
confusa de estar no mundo, consciência confusa, anterior a meus afetos, a
meus julgamentos, e que é como uma impureza sobrecarregando o
pensamento puro... que, em nossa condição humana, se impõe a um corpo (se
assim se pode dizer!). Daí o prazer estético, que provém, em suma, da
constatação dessa falta de firmeza do pensamento puro. Está aí o fundamento
primeiro de todo conhecimento, mas especialmente e de maneira exclusiva,
daquilo que se denominava conhecimento poético [...]. (Merleau Ponty)
estabeleceu a existência de um conhecimento antepredicativo [...] O contexto
indica muito claramente que se trata de uma acumulação de conhecimentos
que são da ordem da sensação e que, por motivos quaisquer, não afloram no
nível da racionalidade, mas constituem um fundo de saber sobre o qual o
resto se constrói.
Esse “conhecimento antepredicativo” está na base da experiência poética. É
por isso que o sentido que percebe o leitor no texto poético não pode se
reduzir à decodificação de signos analisáveis; provém de um processo
indecomponível em movimentos particulares.
Em outras palavras, pode-se dizer que, especialmente para Zumthor, o sentido de
um texto une modos de perceber: o intelectivo, no nível do racional, “decodificável”,
“analisável”, e o sensorial, no nível das sensações, “indecodificável”, “inanalisável”. Para
8
ele, a “obra” não coincidiria com o “texto poético” justamente por esse “excesso” de
“sentidos”. Se expresso oralmente, a performance adicionaria ao texto poético gestos,
entonação, movimentos do corpo, “formas lúdicas de comportamento, desprovidas de
conteúdo predeterminado”, “barulho de fundo existencial” (Op. cit.: 88), enfim, novos
“significantes” (ainda que “originais”); no produto final da performance, então, estaria a
“obra”. De acordo com ele, se lido (e não ouvido/visto), o texto poético também alcançaria
o estatuto de “obra”, mas em um grau menor, por causa da articulação interiorizada,
expressa por uma “voz inaudível”: seria uma leitura que tenta dispensar as “limitações
semânticas” próprias à ação de ler (entenda-se: ler silenciosamente, individualmente).
Parece, entretanto, que a leitura interiorizada consegue atingir profundidades (emocionais,
especialmente) muito mais abrangentes que um sentido que se forma externamente, muito
mais próximo do Outro de onde emana, do que da vivência do sujeito que o constrói.
Com o “ponto de vista do corpo”, Zumthor trata de uma “semântica poética” que
ultrapassa a “semântica das palavras” e inclui sensações internalizadas, “re-conhecíveis”
pelo leitor/ouvinte, mas “indizíveis”, apesar de expressas (na verdade, indiretamente
expressas). São sensações que afloram a partir do sentido (intelectivo, interpretado)
produzido pelo texto; são conseqüência desse texto; são provocadas pelo texto (por alguma
palavra dita, ou pela situação criada e compreendida) e sentidas (como sensações) pelo
leitor/ouvinte, que aciona seu “conhecimento poético”, “antepredicativo”, “armazenado”
numa “lembrança experiencial”, tantas vezes inominável. O texto poético significa o
mundo; consegue transportar esse mundo para o interior, para o íntimo, para a profundidade
do leitor/ouvinte por causa de sua vivência prévia, ou melhor, por causa da “re-vivência
ocorrida no ato de ler. Conduzido ao seu interior, o leitor/ouvinte retorna de lá modificado
pelo texto, pelas sensações provocadas por ele:
o discurso que alguém me faz sobre o mundo (qualquer que seja o aspecto do
mundo de que ele me fala) constitui para mim um corpo-a-corpo com o
mundo. O mundo me toca, eu sou tocado por ele; ação dupla, reversível,
igualmente válida nos dois sentidos. (op. cit.: 89)
“Pensamento puro”, “conhecimento antepredicativo”, experiência poética;
“Categoria da Qualidade de Sentimento”, experiência da fruição estética; “erótica da arte”,
149
superposição do sentir sobre o interpretar; “excitações e as reações sensíveis”, “Estésica”:
nessas noções, os estudiosos apontam para a “dimensão maior” do texto poético. É uma
dimensão fluida, percebida (sentida) ora mais, ora menos em função do investimento
“sensível” do leitor em relação ao texto, ou do “afetamento” sofrido por ele internamente
durante o ato de ler. Dessa forma, “sentir-se tocado pelo texto”, como defende Zumthor, é
expressão quase literal; significa deixar-se invadir pelas sensações/sentimentos, que
emanam do “laço pessoal” estabelecido entre leitor e texto. É esse sentimento de
reconhecer-se tocado, atingido, transformado que constitui a dimensão poética. É a latente
dimensão do fruir, viabilizada pelo texto poético, que fornece ao leitor elementos para
despertar o sentimento (aqui entendido como processo de sentir) e, assim, faz-se convite
(irrecusável); por isso “frouxo” em termos de objetividade, por isso mais “aberto” quanto à
interpretação, por isso necessariamente “original”.
Originalidade: a característica primordial do texto poético. Para entender seu papel
no universo da poesia, é preciso retornar à idéia peirceana da primeiridade e analisar as
diferentes maneiras de o texto ser poético e, conseqüentemente, ou concomitantemente, ser
um texto de fruição.
Para Peirce, a originalidade é uma característica que “designa o ser tal como ele é,
em nível primário” (Araújo, 2004: 47), sem nem mesmo ter significado, ou melhor, sem
nem mesmo ter sido significado, sem ter sido veiculado por um signo. É ser o que é, antes
de se ter a consciência de que algo é (a consciência já corresponderia a uma secundidade).
A originalidade é própria da Qualidade, da sensação pura, ainda não respondida por uma
tentativa de significação. Ser original é guardar a possibilidade de ser a origem de uma
sensação (reação reconhecida na secundidade) que pode vir a ser significada (na
terceiridade, por um símbolo). A originalidade, portanto, implica uma “primeiridade”, que
é a simples existência das coisas:
(Primeiridade) são as coisas fora de qualquer suporte ou de relação
referencial, tais como: espirrar nesse momento, ter nascido no século passado
na Terra e não em Marte, o ruído das teclas do computador. No nível da
primeiridade, tem-se a novidade, vida, liberdade, tudo o que pode ser, os
fenômenos simples e livres, completos em si. Já em outro nível, o futuro se
apresenta nas formas mentais, intenções e expectativas. (Idem)
150
O texto do dia-a-dia, de compreensão automática, torna-se transparente, apenas
meio de comunicação; na condição de símbolo, de convenção, funciona como lei, por isso
não causa estranheza, pois o que interessa é seu conteúdo e não sua forma. Precisa ser
discreto, quase imperceptível, “desimportante” para informar melhor, mais claramente. Não
interessa como ele é, mas o que diz. Sua função está além dele, está em apontar referências
para fora dele, objetivamente. É texto de rápido processamento. Já o texto poético é
caracteristicamente opaco, sedutoramente visível; é impactante, provocador de estranhezas;
desafiador de sentidos. Não pode nem mesmo ser resumido, pois nessa tarefa perder-se-ia
sua essência: “Posso resumir um conceito, mas não posso resumir uma forma” (Pignatari,
2004b:24). É impossível passar por ele sem percebê-lo: tornar-se chamativo é sua meta, isto
é, revestir-se de uma camada que seja vista, que “incomode”, que provoque sensações, seja
pela estranheza de suas formas, seja pelos temas centrados no humano que suscita.
Na opacidade de sua superfície, guardam-se os “excessos” acionadores do
“conhecimento das sensações”, conforme explica Zumthor; por isso é um texto imerso em
rico universo de “primeiridades” expostas ao sentimento (mais uma vez, ainda aqui
entendido como ato de sentir), em função da Qualidade das coisas.
Peirce postula várias tricotomias, cujas categorias, onipresentes, funcionam como
“modos coordenados e mutuamente compatíveis pelos quais algo pode ser identificado
semioticamente” (Santaella, 2000: 96). Para o semioticista, um símbolo (signo “genuíno”,
legi-signo) funciona como lei, convenção; guarda em si uma primeiridade, uma
secundidade e uma terceiridade. O primeiro corresponde à Qualidade pura das coisas,
àquilo que é, num patamar de “pré-existência” sígnica; o segundo corresponde à reação
perceptiva a essa Qualidade; já o terceiro, à “lei que um existente corporifica” (Idem). Nada
impede, porém, que o modo de ser de um signo limite-se ao nível da primeiridade (quali-
signo) ou, ultrapassando essa primeiridade, alcance apenas a secundidade (sin-signo),
abstraindo-se sua terceiridade.
Assim, o modo de ser de um signo depende do modo como esse signo é
apreendido, isto é, do ponto de referência de quem o apreende. Se essa
apreensão abstrai o existente individual no qual uma ou várias qualidades
inerem, abstrai-se a lei que esse existente atualiza; então, esse ponto de
referência retém apenas a qualidade de aparência daquilo que se apresenta,
ou seja, seu tout ensemble qualitativo. Nesse caso, temos um primeiro que
prescinde do segundo e do terceiro.
151
Se o ponto de referência abstrai a lei que um existente corporifica e retém
deste apenas sua singularidade no aqui e agora da ação e reação perceptiva,
temos, então, um segundo que engloba evidentemente as qualidades (nível
primeiro) que compõem esse existente, mas prescinde da modalidade do
terceiro ou lei. Já no caso de apreensão da lei, esta necessariamente
pressupõe um existente no qual toma corpo, assim como este pressupõe as
qualidades que nele inerem. [...] Se o fenômeno se apresenta como habitual,
armazenado na memória, familiar e, como tal, geral, já funciona
automaticamente como signo. Se vem provocando surpresa ou se vem
desacompanhado e despojado de qualquer elemento que não seja sua pura
“talidade” (sentimentos assim se presentificam) serão seres intermediários,
fronteiriços, quase signos: não são mais completamente fenômenos, mas
ainda não são inteiramente signos. (op. cit.: 96-98)
Pode-se afirmar, portanto, que o texto “comum”, é constituído, basicamente, por
legi-signos; conta com sua terceiridade, com sua “força de lei”. Já o texto poético, apesar
de, em princípio, ser constituído por legi-signos como os “comuns” (caso contrário não
comunicaria nada, nem seria texto), numa segunda perspectiva, mais profunda, presentifica
quali-signos a partir das transformações que opera nos legi-signos, das comparações que
faz, dos recursos analógicos de que se vale, além de também trabalhar exaustivamente com
a reação a esses quali-signos, o que significa dizer que também presentifica sin-signos.
Assim, pode-se sustentar que o tipo sígnico característico da poeticidade é o quali-
signo; ele é sua “razão de ser”, pois a poesia vive da eterna tentativa de (quase) dizer o
indizível; de provocar, no leitor, a sensação das Qualidades amorfas de certas existências;
de usar exaustivamente estratégias para a apreensão de quali-signos. Camões, ao tentar
significar o “insignificável”, diz que “Amor é fogo que arde sem se ver/ É ferida que dói e
não se sente”: nas aproximações incomuns que estabelece, o poeta faz surgir determinadas
Qualidades, próprias dos seres que foram “aproximados”; ele usa, portanto, quali-signos,
ou seja, limita-se às Qualidades exacerbadas por aquela aproximação para chegar o mais
perto de uma (impossível) corporificação do Amor, não obtendo um resultado sígnico
“com força de lei”, mas provocando o sentimento das qualidades que o identificam. Há
existentes, como o Amor, que só podem ser “sub-significados” por meio de quali-signos.
152
Explicando: o quali-signo funciona como signo por intermédio de uma
primeiridade da qualidade, qualidade como tal, possibilidade abstraída de
qualquer relação empírica espaço-temporal da qualidade com qualquer outra
coisa. Exemplo: suponhamos que um professor de dança esteja ensaiando
uma determinada configuração das posições do corpo como um todo: certas
curvações dos braços, certos pontos de apoio dos pés, certos equilíbrios entre
o peso e a leveza do tronco, uma certa inclinação com a cabeça; trata-se,
enfim, de um conjunto harmônico que captura a totalidade do corpo na
unidade de uma configuração que não pode ser descrita nos fragmentos de
suas partes, nem definida verbalmente. É algo que só pode ser mostrado e
imitado. Para compor seus corpos numa configuração similar àquela que o
professor apresenta (presentifica), os alunos abstraem da qualidade dessa
configuração tudo que lhes é irrelevante: a diferença específica de cada corpo
singular (mais alto, mais baixo, mais gordo ou mais magro, mais jovem ou
mais velho), o lugar específico que cada um daqueles corpos ocupa no
espaço naquele momento, ou seja: trata-se de reter única e exclusivamente a
qualidade in totum com que o corpo aparece no desenho indescritível de sua
compleição. (op. cit.: 99)
No exemplo de Santaella lido, o quali-signo seria “extraído” da apreensão das
qualidades dos movimentos do professor enquanto dança; ele paira sobre o texto e sobre
seu sentido. A partir da percepção visual daquele conjunto, seria possível entender seu
“como”. O próprio exemplo dado pela autora para dizer o que significa um quali-signo é,
ele mesmo, um quali-signo. Quando não é mais possível atribuir um significado exato a
algo, tenta-se explorar as características de outra coisa semelhante para, a partir delas,
chegar-se próximo ao significado pretendido.
No caso citado, a percepção das características se dá por meio de “sensores físicos”,
entretanto, poderia ocorrer por meio de “sensores afetivos”, de natureza emocional, como
acontece muitas vezes no efeito poético. Alimentada somente por “comos”, a poesia só
existe mediante presentificações oriundas das qualidades das coisas; ela não precisa (nem
pode) ser “entendida”, “explicada” (como as piadas, se uma poesia é explicada, perde a
graça) quando muito, pode ser analisada. Ou melhor: o “entendimento” da poesia é, na
verdade, o “sentimento” (ato de sentir) que o quali-signo provoca.
Quando Peirce fala sobre o quali-signo, uma qualidade que é signo, é certo
que isso pressupõe uma relação de comparação entre duas qualidades,
necessária para que a qualidade funcione como signo. Há inclusa na
dimensão monádica do qualitativo a possibilidade pré-sígnica, quase-SIN,
mas ainda NÃO-signo, que preside a tudo que, no universo, está sob o
desgoverno do acaso, do potencial e, no ser humano, sob a casualidade do
153
sentimento (feeling), única manifestação que, na sua indiscernibilidade, pode
caracterizar aquilo que é exclusiva e especificamente humano. Só o
sentimento é próprio apenas do homem. [...] O sentimento é tão-
exclusivamente humano, ou melhor, é o tipo específico de manifestação
monádica que a espécie humana introduziu no universo. [...] O demônio das
associações por semelhança é atiçado justamente pela lei daquilo que é
ingovernável. (op. cit.: 97-98)
O texto poético traz em si um componente “extra” em relação aos “textos comuns”:
ela é basicamente original (no sentido dado por Peirce), feito de primeiridades, de quali-
signos; se há uma função para o texto poético é a de ser sentido, provocar sentimento: “E o
sentimento não é senão mônada ressoante nos influxos das similitudes” (op.cit.: 98).
5.3 Textos poéticos e seus processos analógicos produtores de quali-signos
Como visto nos pontos destacados neste trabalho até então, e apesar da sabida co-
existência dos pensamentos lógico e analógico, a elaboração poética fundamenta-se em
processamentos analógicos, pois são eles os criadores de quali-signos. A poesia trabalha
com elementos “indizíveis”, mas “caracterizáveis”, “experienciáveis”. Isso significa dizer
que é preciso aproximar e comparar seres para que se produza o efeito poético.
Para controlar as coisas, o homem precisa digitalizá-las traduzi-las para a
forma de números e palavras (dígito vem do latim digitum, dedo e implica
a idéia de contar). A digitalização é fundamental para as operações mentais,
as operações lógicas do pensamento. É fundamental para a ciência e para a
tecnologia. Mas a ciência não deixa de lado, completamente, o pensamento
analógico, que é o pensamento das formas: o homem também precisa medir e
comparar ele não pode apenas contar. (Pignatari, 2004a: 51)
Na aproximação e comparação dos seres (e de suas formas), produzem-se “quali-
signos”. No texto poético, essa produção pode ser observada a partir de três processos
analógicos, relativos aos níveis de construção de sentido: no nível semiolingüístico, a
relação intratextual, na combinação incomum das formas presentes na superfície,
evidenciando sua seleção; no nível discursivo, a relação intersígnica, na aproximação de um
154
texto a outro, do texto atual a um modelo cognitivo, na intertextualidade; e, no nível
situacional, a relação extra-textual, na identificação mundo textual /mundo real por meio
das escolhas temáticas em que normalmente se baseiam os textos literários.
Quali-signos são produzidos na conjunção dos elementos constitutivos da
textualidade poética, por causa de sua necessária originalidade, da singularidade de suas
formas e conformações, da evidente projeção do eixo paradigmático sobre o sintagmático.
São movimentos que fogem da normalidade do uso comum dos textos, da transparente
objetividade dos textos não-poéticos. Ser poético, em termos de materialidade textual, do
nível semiolingüístico da linguagem, é ser diferente, estranho, interessante; é produzir uma
combinação incomum de formas que se assemelham (de algum modo) e “obrigar” a
percepção do processo de seleção, sempre curioso, desafiador, original.
Essa projeção de um eixo sobre o outro numa relação intra-textual é a responsável
pela “exacerbação” de Qualidades que pertencem a um dos seres combinados e que, por
causa da aproximação estabelecida, “impregnam” o outro, quase sempre de maneira
inusitada. Nessa “impregnação”, paira o quali-signo.
Charles Morris faz uma esclarecedora distinção entre os signos. Diz ele que
há signos-para e signos-de. Um signo-para conduz a alguma coisa, a uma
ação, a um objetivo transverbal ou extraverbal, que está fora dele. É o signo
da prosa, moeda corrente que usamos automaticamente todos os dias. Mas
quando você foge desse automatismo, quando você começa a ver, sentir,
ouvir, pesar, apalpar as palavras, então as palavras começam a se transformar
em signos-de. Fazendo um trocadilho, o signo-de pára em si mesmo, é signo
de alguma coisa quer ser essa coisa sem poder sê-lo. Ele tende a ser um
ícone, uma figura. É o signo da poesia.[...] ...o signo-para é um signo por
contigüidade, enquanto o signo-de é um signo por similaridade. (Pignatari,
2004b:11)
10
De acordo com Morris, o texto poético é feito de “signos-de”, que querem ser a
coisa que significam, sem poder sê-lo (e correspondem aos quali-signos de Peirce). É o
caso, por exemplo, da frase “Era apenas/o frágil e/feio/e aflito/Flicts (Ziraldo,1999:11): a
aliteração (que evidencia a combinação incomum de formas que se assemelham por causa
10
Note-se que poesia, em Pignatari, designa o texto em versos, que usa toda a potencialidade da linguagem, e prosa, o seu
contrário; entretanto, para este trabalho, a noção de poético é estendida para todo texto, em prosa ou em versos, sincrético
ou não, que é original. Em outras palavras, aqui é considerado poético aquele texto que, em sua constituição, opera
especialmente com relações analógicas para daí extrair a Qualidade das coisas e afetar o leitor com sua originalidade.
155
da sonoridade) não só acentua a identificação do personagem Flicts com características
depreciativas (frágil, feio e aflito), como também, ao reiterar o som fricativo lábio-dental
como o de quem bufa, remete o estado de ânimo do personagem à idéia de desconforto,
rejeição, esmorecimento. Percebem-se os “excessos de sensações” provocados por essa
combinação incomum, que explora a seleção em virtude da Qualidade que quer expressar.
Da mesma maneira, são “signos-de” os neologismos criados por Ziraldo (1994) em
Uma historinha sem (1) sentido: zip-zap-urgência, zzzz-ressonando, tchan-distância etc.
São eles também combinações incomuns de formas que se assemelham, neste caso, nas
relações entre a onomatopéia e a palavra que a acompanha: aquela corrobora a expressão do
significado desta a partir da situação que evoca com sua sonoridade: zip-zap remete à
situação de rapidez, de urgência, como algo que vai e volta correndo, produzindo o som
representado pela onomatopéia; zzzz imita o som do ressonar e já é fórmula fixa das
histórias em quadrinhos para representar alguém dormindo, ressonando; tchan está
vinculado ao suspense, talvez como forma abreviada de trecho da sinfonia de Beethoven,
usada como fundo musical para situações de medo, de aventura; no caso, da distância a ser
saltada.
Essa “novidade textual” apresenta ainda outro papel: motivar um forte impacto, ou
um “estado de alerta” no leitor: é preciso aceitar o desafio de entendimento dessas
combinações inusitadas, senão estará condenado a não usufruir o texto, a não desfrutar das
sensações que ele provoca. A busca de compreensão dessas “surpresas textuais” representa
a possibilidade do sentimento (feeling), de alcance do prazer sugerido pelo texto.
Em outra instância, o vínculo com a Qualidade, com a primeiridade das coisas,
aparece também nas várias similitudes provocadas pelas relações intersígnias, do texto em
relação com o mundo, ou com outros textos. Analogicamente, por aproximações em virtude
das Qualidades dos seres, imagens são suscitadas, seja por meio de “imitações” da
realidade, seja por meio de figuras de linguagem, seja por meio de processos intertextuais,
ou de convergência sincrética. O confronto com o que há de semelhante é, na verdade, o
confronto com a Qualidade; é sua exacerbação; é explorar a primeiridade presente na
relação “entre signos”. Neste caso, temos analogias baseadas, sobretudo, em relações do
nível discursivo da linguagem.
156
Por exemplo, em O menino quadradinho, (Ziraldo, 1989) a expectativa da presença
de um menino é criada a partir da apresentação de uma bola, um tênis, uma cafifa, um
skate, desenhados, figurativizando elementos do mundo real; imitando-os: como os outros
elementos, a bola desenhada é toda e qualquer bola e apresenta as qualidades básicas para
ser reconhecida como tal. A Qualidade de ser brinquedo desses elementos os qualifica
como caracterizadores de um menino, por isso criam aquela expectativa. Em outras
palavras, esses elementos antecipam a presença da criança presentificando sua Qualidade
de brinquedo, intimamente ligada à Qualidade de ser criança.
Nesse livro, outro caso interessante: as letras grandes, desenhadas e preenchidas
das mais diversas maneiras (observem-se as Qualidades destacadas) são como as de uma
história em quadrinhos, que abusam de recursos plásticos; à medida que o menino cresce,
elas diminuem progressivamente até assumirem uma forma como as letras de um romance,
pequenas, uniformes, sem o acompanhamento de ilustrações. A gradativa substituição de
um tipo de letra por outro remete analogicamente à substituição dos quadrinhos por
romances, conforme se dá enquanto o leitor amadurece e se torna experiente. Essas
analogias se deram aproveitando conhecimentos do nível discursivo da linguagem, mas,
acima disso, em função das Qualidades dos elementos (das letras).
Ainda outra vez, o processo analógico pode ser verificado por meio da
intertextualidade: com a frase “Trouxeste a chave”, aproxima-se o texto de Ziraldo ao de
Drummond, de onde o verso fora extraído, tornando-os, ainda que parcialmente, parecidos.
Nesse “ponto de contato”, as palavras são “suporte” de suas Qualidades trans feridas, que
podem atribuir ao “enxertado” a idéia de ser enigmático, desafiador, opaco. Como nos
outros casos mencionados, essas Qualidades não são denominadas, mas (pré)sentidas no
confronto dos seres aproximados. Essas Qualidades (pré)sentidas são o que chamamos aqui
de quali-signos.
Também é de responsabilidade dos quali-signos a sensação de amadurecimento
experimentada pelo leitor de O menino mais bonito do mundo (Ziraldo, 1994) quando,
paralelamente à leitura de um texto verbal que revela a evolução cronológica dos fatos, vê-
se a transformação dos traços das ilustrações, que vão se tornando, aos poucos, cada vez
mais firmes, seguros, detalhados, como se trocassem os traços de uma criança pelos de um
adulto. O ponto de vista do leitor coincide com o do protagonista e, por seus olhos, ele vê o
157
mundo representado nas ilustrações se modificar, esclarecer-se, significando, assim, o
amadurecimento desse protagonista (ao qual o leitor adere). Esse é um exemplo de
convergência sígnica: conhecimentos paralelos e aparentemente isolados, apreendidos em
meios sígnicos diversos (verbal e icônico), vão largando excedentes de sensação (quali-
sígnicos) muito semelhantes, até que se perceba a coincidência de sua Qualidade, a
convergência desses sentimentos com o propósito de imprimir no leitor a sensação de
“tornar-se homem adulto”.
São muitos os exemplos que se valem da aproximação de objetos semelhantes para
que suas qualidades sejam exploradas, como se fossem apresentadas antes mesmo de ter-se
consciência dos objetos a que se vinculam. Assim, o poeta tenta expressar, pelas
parecenças, algo considerado inexprimível.
A poesia situa-se no campo do controle sensível, no campo da precisão da
imprecisão. A questão da poesia é esta: dizer coisas imprecisas de modo
preciso. As artes criam modelos para a sensibilidade e para o pensamento
analógico. Uma poesia nova, inovadora, original, cria modelos novos para a
sensibilidade: ajuda a criar uma sensibilidade nova. (Pignatari, 2004a: 53)
Da mesma forma, é percebida a exploração da primeiridade própria do que é
Qualidade nas escolhas temáticas comuns aos textos poéticos, relacionando mundo
textual/mundo real: porque falam a respeito de ser humano, a consciência de nossa
humanidade automaticamente coloca o leitor (e suas experiências que, afinal, o constituem)
em relação icônica com a realidade expressa pelo texto; há identificação; o eu que habita o
leitor assemelha-se ao eu do mundo textual, justamente por causa da semelhança
humana/humanística, que fatalmente emergirá das situações criadas no texto.
O herói que usa seus cinco sentidos para escapar dos perigos em Uma historinha
sem (1) sentido representa o ser humano, que conta com sua percepção sensorial para entrar
em contato com o mundo, mas que precisa, além ou acima disso, de contar com a leitura
como um sentido a mais; o menino mais bonito do mundo representa todo ser humano, e
cada um de nós em particular, em sua necessidade do Outro; o personagem Flicts,
discriminado, representa todo aquele que alguma vez sentiu-se rejeitado por uma qualidade
diferente; finalmente, o menino quadradinho representa o leitor em formação, como aquele
158
que assume, aos poucos, o texto exclusivamente verbal e sabe extrair dele não só
conhecimento, mas prazer, deleite. É como se o leitor fosse cada um deles e sentisse as
Qualidades ali suscitadas pelas analogias como suas: ele, como sujeito-interpretante
(empírico) adere ao projeto de um sujeito-destinatário implicitado no texto pelo sujeito-
comunicante-autor. É do lugar em que se encontra que essa adesão ocorre; se isso acontece,
pode-se afirmar que houve uma perfeita comunhão entre os fatores de intencionalidade e de
aceitabilidade do texto. Neste caso, observa-se o leitor investindo em elementos do nível
situacional da linguagem.
Não seria possível explicar essas condições somente descrevendo-as ou talvez
até se pudesse descrevê-las, mas o sentido dessa descrição seria apenas intelectivo,
informativo. Só é possível saber essas condições em profundidade, conhecendo-as
verdadeiramente, criando um sentido-sensação, fazendo com que o leitor se identifique
com as personagens e com as situações, tornando-o idêntico a elas, a fim de transportá-lo
para o mundo textual, ao mesmo tempo em que o mundo textual se transporta para o mundo
real do leitor. Ter o amor como referência “distante” (ou o amadurecimento, ou a rejeição
etc.) não é sentir o amor; mas, por meio das provocações que o texto opera, é possível
experimentar sua sensação. Assim, no processo identificatório operado pelo leitor,
trabalha-se, mais uma vez, a primeiridade, a Qualidade daquilo que é “sentido”, mas que
não pode ser explicado (a não ser vagamente).
Ser um texto poético pressupõe, portanto, constituir-se de estratégias que visam a
primeiridades. O prazer do texto poético advém daí, dessas primeiridades intraduzíveis,
sem significado (isto é, sem ainda transformar-se em signo), que marcam profundamente,
muitas vezes inconscientemente, aquele que lê. O que se assemelha a outra coisa não é a
outra coisa; o que interessa daquela outra coisa aproximada por uma semelhança é apenas a
qualidade que as identifica. É preciso conhecer (ou sentir) a Qualidade e isso acontece no
processo analógico; uma primeiridade pode ser sentida quando essa Qualidade é
exacerbada e detectada, embora nem sempre possa ser “traduzida” em signo. Para ser um
leitor competente de textos poéticos (e saber fruir) é preciso, além das habilidades
semiolingüísticas, discursivas e situacionais, ter a capacidade de perceber as Qualidades
expressas indiretamente por meio das analogias. Só dessa maneira o leitor atingirá o
sentido-sensação, o gosto do texto e, afetado pelo texto, perceberá a re-novação, a trans-
159
formação já consumada. Dessa forma, pode-se postular, quanto ao efeito poético, um
princípio: a poesia existe quando, a partir de analogias, são suscitadas Qualidades a fim
de delimitar o inexprimível.
5.4 A competência fruitiva da linguagem
Entendendo a fruição como um processo de sentimento (feeling) que se diferencia
do processo cognitivo (meaning) a que o leitor se submete, passa-se a exigir uma
competência fruitiva que o capacite a apreender o sentido-sensação emanado pelo texto.
Dependente das outras competências de linguagem (conforme postuladas por Charaudeau)
e das literárias (como vistas em Eco, Sontag, Valéry entre outros e consideradas partícipes
das primeiras), a competência fruitiva age em um “nível extra” de construção de sentido, o
nível fruitivo, que paira sobre os outros níveis; está sobreposta às outras, já que vinculada
aos “excessos” do texto, àquilo que transborda da intelegibilidade vinculada aos outros
níveis. Além disso, é uma competência extremamente subjetiva, altamente suscetível ao
sujeito externo que atua sobre o texto, por causa da influência que sofre da situação “de
leitura” na qual se posiciona o sujeito-leitor, seja quanto a seu momento/espaço ocupado
no mundo, seja quanto a seu ponto de vista interior, mais ou menos aberto ao afetamento
de acordo com o grau de aceitabilidade colocado à disposição durante o ato de ler.
Para apreender o impacto da leitura no sujeito é preciso se lembrar da
distinção estabelecida por Jauss entre o “efeito” que é determinado pela
obra e a “recepção” que depende do destinatário ativo e livre.
Significativamente, encontra-se uma oposição parecida em Iser (1985):
“Pode-se dizer que a obra literária tem dois pólos: o pólo artístico e o pólo
estético. O pólo artístico refere-se ao texto produzido pelo autor, enquanto o
pólo estético diz respeito à concretização realizada pelo leitor” (p.48).
Existem sempre, portanto, duas dimensões na leitura: uma, comum a todo
leitor porque determinada pelo texto; outra, infinitamente variável porque
depende daquilo que cada um projeta de si próprio. (Jouve, 2002: 127)
11
11
A citação de Jouve (2002) refere-se a ISER, W. L’acte de lecture. Trad. franc. Bruxelles: Mardaga, 1985.
160
Na distinção dessas perspectivas, pode-se sustentar que a competência fruitiva diz
respeito ao conjunto de habilidades que o leitor deve dominar não só para perceber as
sensações provocadas pelas estratégias analógicas articuladas na tessitura textual,
como também para criar um “estado de aceitabilidade favorável” a fim de deixar-se
afetar interiormente pelo texto; a fruitiva é a “competência maior” necessária à leitura
literária (embora não seja exclusiva dela).
Fig. 38 Nível fruitivo de construção do sentido
O texto poético afeta o leitor, porque possui recursos que provocam sensações,
sentimento a partir das relações de semelhança que ele próprio induz nos três níveis de
construção do sentido (intelectivo). Quando submetido a uma leitura individual, o texto
para se ler, produzido para um leitor-destinatário “genérico”, transforma-se em fruto de
uma perspectiva “personalizada”. Aderindo ao texto por meio das semelhanças que percebe
entre sua vivência e as situações lidas, o leitor assume (em maior ou menor grau) como sua
a experiência veiculada pelo texto, abrindo-se para o sentimento (ainda como ato de sentir)
das Qualidades emanadas pelas analogias que constrói de acordo com seu olhar único para
o mundo. Ler passa a ser, então, sentir os “afetos” do texto.
MUNDO REAL
SUJc
MUNDO TEXTUAL
SUJe SUJd
nível semiolingüístico
nível discursivo
nível situacional
SUJ
i
(adesão)
161
Pensar a Semiolingüística como uma Teoria de Análise do Discurso de perspectiva
psico-sócio-comunicativa, fundamentada como uma “teoria dos Sujeitos da linguagem”, faz
parecer bastante pertinente a seu escopo teórico a tarefa de atribuir à situação comunicativa
a responsabilidade maior pela fruição. Assim como pertence ao nível situacional a “palavra
final” em termos de interpretação “mais justa” de qualquer texto, pois é da posição ocupada
pelo leitor que o sentido é calculado (inclusive em relação ao produtor e à sua intenção, aos
papéis sociais envolvidos na comunicação e ao espaço em que se insere a enunciação), da
mesma forma, é desse nível a responsabilidade maior quanto à fruição.
É preciso que, na extremidade da produção, haja a expectativa de sensibilização;
que o produtor use intencionalmente os recursos de textualidade para esse fim. Da mesma
forma, na outra extremidade, a da recepção, o leitor precisa dispor de uma boa
aceitabilidade, a fim de que os recursos analógico-poéticos tenham seu sentido interpretado,
mas, acima disso (ou mesmo antes disso), tenham o seu sentido sentido”. O sentido
intelectivo tem o texto como seu lugar de ancoragem, o nível semiolingüístico; lá ele se
comprova, se finaliza. Já o sentido-sensação tem como ancoradouro o espaço fluido e
incerto do nível situacional, da “caixa de ressonância” do sujeito interpretante, senhor da
posição única capaz de ajustar o sentimento (feeling) daquela leitura.
Em O prazer do texto, Barthes (2001) tenta distinguir prazer e fruição no que se
refere à literatura. Para o estudioso, mais do que estágios de um mesmo processo, prazer e
fruição são explicados (ou quase) como “efeitos” diversos: aquele, como um confortável
“reforço do ego” oriundo da cultura e de um momento, passível de definição e de crítica;
este, incômoda ruptura, extrema perversão, destruição de suas bases culturais, “detonador
de transformações pessoais.
Qualquer pessoa pode provar que o prazer do texto não é certo: não há nada
que diga que este mesmo texto nos agradará uma segunda vez; é um prazer
friável, cortado pelo humor, pelo hábito, pela circunstância, é um prazer
precário (obtido através de uma prece silenciosa, dirigida à Vontade de nos
sentirmos bem e que essa Vontade pode revogar) [...]. A fruição do texto não
é precária, é pior: precoce ; não aparece na altura própria, não depende de
nenhum amadurecimento. Tudo se arrebata de uma só vez. [...] Tudo se joga.
Tudo se joga, tudo se frui na primeira visão. (Barthes, 2001: 97-98)
162
Ainda segundo Barthes, paradoxalmente, prazer e fruição podem ser atributos de
um mesmo texto, em função de um certo “modo de leitura”. O leitor pode, no embate com
um único texto, ser seduzido pelo gostoso reconhecimento de experiências e, ainda, ser
arrebatado pelo impactante encontro com o inusitado, por algo que vai deslocá-lo de sua
posição ocupada no mundo. O prazer do texto é precário, pois eufórico em relação a um
seguro ponto de referência; a fruição é precoce, pois surpreendente, anterior ao
“racionalizável”; é disfórica em relação às certezas pessoais do leitor. Em ambos os casos,
trata-se de estados atingidos pelo leitor, “palco” das afetações propaladas pelo texto.
Pode-se afirmar, dadas as diferenças apontadas pelo estudioso, que o prazer e a
fruição recebem doses diferentes de influências: o prazer estaria mais impregnado de uma
certa adesão à cultura e ao social; por isso, o nível discursivo influenciaria
predominantemente sua emanação; já a fruição, que afeta mais profundamente o leitor, é
dependente do sentimento das Qualidades suscitadas pelo texto, por isso sofre
principalmente as influências do nível situacional, de onde se posicionam os sujeitos. Nota-
se que, apesar de trilharem, prazer e fruição, a mesma relação “transnivelar”, o primeiro
adere melhor à estabilidade do “profundo hedonismo de qualquer cultura” (cf. Barthes,
2001: 50) de que participa o leitor; portanto, alimenta-se da própria discursividade
constitutiva do texto. Já o segundo quer romper com esse hedonismo, contradizendo-o:
quando o sujeito “frui a consistência de seu ego (é seu prazer) e procura a sua perda (é sua
fruição)”, ele se liberta do envolvimento com a cultura a que se submete todo imaginário
social e passa a ocupar um lugar original, único, intimamente seu, apoiando-se mais
detidamente na situacionalidade em que se inscreve como sujeito-interpretante.
Em outras palavras, o leitor usa a competência semiolingüística no embate com o
texto e interpreta seu sentido a partir dos dados obtidos por meio de suas competências
discursiva e situacional, mas só com sua competência fruitiva, que se sobrepõe às outras,
ele poderá ser, enfim, afetado. Se as competências discursiva e situacional pertencem a
dimensões invisíveis, imateriais, a competência fruitiva atua num espaço que não só
transcende a materialidade do texto (como ocorre com essas competências), mas também as
próprias dimensões do que é discursivo e situacional. Nessa perspectiva, quando mais
próxima dos elementos discursivos, ou mais suscitada por eles, pelo conforto do
enquadramento cultural operado pelo leitor, a fruição (como sentimento do texto),
163
graduando-se minimamente, inclui o prazer. No entanto, quando se distancia da
“impregnação” dos valores culturais e se aproxima mais dos elementos situacionais que
personalizam a experiência do leitor, a fruição vai sendo, aos poucos, graduada até o
máximo, ultrapassando o prazer: primeiro, ela o cativa, depois, torna-o vulnerável até o
desestabilizar despudoradamente, alterando aquilo que ele é (ou era). Após a leitura, o
prazer do ato será uma boa lembrança e a fruição, a ruptura.
O prazer do texto reforça o que somos; a fruição transforma. A mesma competência
fruitiva será usada nos dois casos, embora, no primeiro, para o leitor se reconhecer e
reafirmar sua posição no mundo e, no segundo, para se reconhecer e se reestruturar
interiormente. Em ambas as experiências, o afetamento será necessário; a diferença estará
no resultado obtido: a gostosa certeza de nós mesmos, ou a perturbadora necessidade de
mudança seja em termos estéticos ou pessoais.
Neste trabalho, como a fruição está centralizada no sentimento (como ação de
sentir) do texto, e não no resultado desse ato, é uma noção que abarca tanto o prazer quanto
a fruição de Barthes. Pareceu, entretanto, importante salientar a diferença proposta pelo
semiólogo em virtude da demilitação da competência fruitiva aqui postulada, responsável
pelo maior ou menor “aproveitamento poético” possibilitado ao leitor, de acordo com a
origem do afetamento, do sentimento do texto. Sabendo-se estabelecer o alcance dos textos
(em termos de fruição, como aqui defendida), é possível fazer valer sua força, tanto
transformadora, quanto humanizadora, na formação de/dos leitores não só proficientes, mas
cônscios de sua posição no mundo e certos de sua atuação na sociedade.
5.5 A experiência escolar no desenvolvimento da competência fruitiva
A formação de leitores tem sido preocupação constante dos educadores da
atualidade, especialmente em virtude das constantes notícias acerca do péssimo resultado
de pesquisas relativas à avaliação da proficiência em leitura do cidadão brasileiro. É preciso
estudar a leitura, portanto, para que um trabalho mais profícuo seja realizado nas escolas e
em outros ambientes educativos. É preciso conhecer estratégias de leitura e ensiná-las aos
estudantes; é preciso colocar os leitores inexperientes em contato com livros, revistas,
164
jornais para que experimentem o processo e conheçam seus frutos. Para isso teorias como a
Semiolingüística, base deste trabalho, têm sido de grande valia, pois, a partir de seus
conceitos e análises, o trabalho com o texto e com o processo leitor tem-se tornado sempre
mais consciente e proveitoso. Contudo, não basta formar leitores, ou simplesmente
transformar “decodificadores de alfabeto” em “interpretadores de textos” (apesar de esta já
ser uma tarefa bastante difícil e necessária): é preciso ir além; é preciso formar os leitores.
A escola não percebe que a literatura exige do leitor uma mudança, uma
transferência movida pela emoção. Não importa o que o autor diz mas o que
o leitor ultrapassa. E a literatura é feita de palavras, e é necessário um projeto
de educação capaz de despertar o sujeito para o encanto das palavras. Eles
não descobririam, por exemplo, que toda palavra é composta. Quando se diz
a palavra “pai”, sei que cada indivíduo ouvinte adjetiva essa palavra com sua
experiência. Para alguém, pai é aquele que o abandonou, para outros, o que
adoçou, para outros, o que eles não conheceram, e assim por diante.
Nenhuma palavra é solitária. Cada palavra remete o leitor ou o ouvinte para
além de si mesma. Haverá tarefa mais significativa para a escola do que esta
de sensibilizar o sujeito para desvendar as dimensões da palavra? Por ser
assim, trabalhar com a palavra é compreender seus deslimites e apresentar
para o leitor um convite para adivinhar o que está obscuro no texto e só ele
pode desvendar. (Queirós, 2002: 160)
Depois de fazer com que os alunos aprendam a ler com desenvoltura, sabendo
inferir, refletindo sobre o texto, opinando a partir de seu ponto de vista, é preciso que essa
formação de leitores (transformação de não-leitores em leitores) se converta em formação
dos leitores (de leitores em verdadeiros cidadãos, mais humanos). Já aptos a uma leitura
“completa”, proficiente, é preciso que tenham também burilada sua imaginação (como
atividade analógica), sua sensibilidade (como capacidade de sentir), pois só assim o
trabalho com a literatura (mais do que com outros tipos de textos) poderá surtir o efeito de
sentimento textual que toca profundamente a intimidade do leitor, fazendo com que não
seja mais o mesmo após a leitura. A formação do leitor (já “letrado”, mas ainda incapaz de
“metamorfoses do ego”), depende disso, do desenvolvimento de sua competência fruitiva,
para ser tocado, alterado, amadurecido em sua humanidade. “Desvendar as dimensões da
palavra” significa ultrapassar os limites do texto até chegar a seu sentido e a seu
sentimento; a partir daí, a “forma” do leitor-indivíduo pode ser reformulada, melhorada, re-
feita.
165
Nesta seção, serão analisadas produções de crianças motivadas pela leitura da obra
de Ziraldo. Nessa análise, a partir dos depoimentos dos alunos, pretende-se demonstrar o
desempenho semiolingüístico, discursivo, situacional e fruitivo em relação ao ato de ler,
relativo à aplicação das competências envolvidas no processo.
Atividade A
A partir de Flicts (Ziraldo, 1999), a professora solicitou a alunos de 1ª. série do
Ensino Fundamental
12
que percebessem o sentimento resultante da situação imaginada e o
expressassem por meio de palavras.
Fig.39 1º. Caso
Além da inferência necessária para estabelecer a relação de causa/efeito, foi
necessária a adesão à cena enunciada e imaginada a partir da vivência pessoal do aluno, já
que não fora figurativizada no livro, apenas ilustrada com vários pequenos quadrados
multicoloridos que representam as cores-personagens brincando no parque. O leitor se
identificou com Flicts, fazendo uma analogia entre sua experiência e a de alguém na
12
Atividade realizada em 2005, na Terravento Escola, em Niterói RJ, pela Prof ª Cecília Pereira.
166
situação da personagem, e imaginou sentir o que ela sentiria. Apesar da pouca idade, o
aluno conseguiu significar o sentimento não só com as palavras selecionadas,
apropriados substantivos abstratos (especialmente “preconceito”), mas também pelos
recursos plásticos que utilizou, especialmente a letra tremida para “tristeza” e
“preconceito”, participando, assim de uma dupla experiência fruitiva, tanto pela leitura que
fez, quanto pelo produto de sua criatividade.
Fig. 40 2º. Caso
167
Fig. 41 3º. Caso
Nesses outros casos, além de substantivos abstratos (que denominariam
precisamente o sentimento suscitado pela cena), foram selecionados substantivos concretos,
adjetivos e verbos, que não significam aquele sentimento “central”, mas estão intimamente
associados às “Qualidades” resultantes do isolamento imposto à personagem. São palavras
que denunciam os “efeitos colaterais” da discriminação sofrida, os “excessos de sensações”
percebidos na cena através da analogia operada. Mais do que inferências, essas palavras
revelam o resultado da fruição vivida pelas crianças. Não são objetivas, como talvez fosse o
intuito da professora, mas, em sua subjetividade, revelam a riqueza do sentimento vivido.
168
Atividade B
Em um segundo momento, a professora discutiu o sentimento revelado na atividade
anterior e, provocando a subjetividade das crianças, perguntou-lhes como agir numa
situação de preconceito, discriminação situação vivida intensamente por alguns alunos
daquela aquela escola, que trabalha com inclusão de “pessoas com necessidades especiais”,
vítimas constantes dessa experiência. (Por causa da ilegibilidade dos textos originais, as
respostas abaixo precisaram ser digitadas).
1º. Caso
Quando um amigo fica sozinho. ele fica ofendido e fica muito
triste com o outro. Fazer ela ficar alegre e depois chamar ela
para brincar e fazer ela fica feliz. (Matheus)
2º. Caso
Preconceito é quando uma pessoa não deixa uma outra brincar sem
saber como é ela, parece evitar que aconteça isso primeiro comece
a ver ela é legal ou chata, se ela tem idade para essa
brincadeira. (Pedro)
3º. Caso
Tristeza Quando o Kaka fica triste é porque a mamãe briga com
ele. Para Kaka fica feliz jogar videogmae com Yves. (Brenno)
Esses casos mostram claramente a transposição dos sentimentos suscitados pelo
texto para a intimidade das crianças, estimulada pela pergunta da professora. Nos dois
primeiros, ainda que com diferenças na clareza das respostas, os alunos revelam ter um
“conhecimento prévio” daquela sensação vivida pelo personagem (“Quando um amigo fica
sozinho. ele fica ofendido e fica muito triste com o outro”; “Preconceito é quando uma
169
pessoa não deixa uma outra brincar sem saber como é ela, parece evitar que aconteça isso”)
e, por isso, respondem com facilidade à questão proposta.
No segundo momento, as sugestões representam a atitude “exemplar” de aceitação,
após a “vivência” íntima que todos tiveram na leitura da história o que permitiu aos
alunos “normais” uma “transferência” de posições; antes, de dentro de sua “normalidade”,
como alguém que pudesse discriminar; já por analogia ao personagem Flicts, no papel de
“discriminado”, a tristeza de se sentir discriminado fez com que se modificassem
interiormente.
O terceiro caso é ainda mais interessante, pois traz o texto de um menino autista
que, por causa de suas limitações, tem uma enorme dificuldade de expressar o que sente e
de se colocar como sujeito de sua própria vivência. Por isso, ele transfere a “Kaká” e a
“Yves” (seus ídolos no futebol) seus próprios sentimentos que, em relação àquela
experiência de leitura, devem ter brotado com uma força maior do que nos outros alunos
em virtude das tristezas já sentidas em outras (e talvez várias) ocasiões.
Ele chama de “tristeza” o que para outros seria “discriminação”, “preconceito”. Para
ele, a conseqüência da rejeição sofrida faz com que haja completa identificação entre os
dois sentimentos, confundindo-os. Afirmar que “Kaka fica triste é porque a mamãe briga
com ele” deixa indícios de que o menino enxerga suas tristezas e frustrações pelo olhar de
sua deficiência, revelando sua profunda tristeza por causa da impossibilidade de se sair
melhor em suas atitudes (causada pelo autismo) para não ser admoestado pela mãe.
A frase “Para Kaka fica feliz jogar videogmae com Yves”, aparentemente
desconexa em relação à tarefa realizada, é de enorme importância expressiva para o aluno,
que, analogicamente, se iguala ao sentimento de discriminação ao mesmo tempo em que
projeta nos ídolos sua própria individualidade. A tarefa, para esse menino autista, com
dificuldades quanto às relações lógicas de significação, trouxe a possibilidade de falar de si
mesmo, através das relações analógicas que faz. A experiência poética, para ele, cumpriu
totalmente seu papel de sensibilização, afetando seu sentimento e extraindo, de seu íntimo,
o sofrimento que a condição de discriminado lhe impõe.
170
Atividade C
Solicitou-se que os alunos (os mesmos que realizaram as atividades anteriores)
respondessem, após a leitura do livro, quem seria O menino mais bonito do mundo (Ziraldo,
1994). Os registros abaixo foram escritos pela professora a partir dos depoimentos dos
alunos.
1º. Caso: “Eu não sei o que é ou quem é, só sei que é belo”
2º. Caso: “Tudo que está ao redor da natureza.”
3º. Caso: “Todos os homens do mundo”.
4º. Caso: “O primeiro menino do mundo...”
5º. Caso: “São sentimentos, ele sentiu dor na costela”
6º. Caso: “Se ele é parecido com a tarde, ele é como o pôr-do-sol.”
Observa-se que, no 1º. caso, a criança não finalizou o processo analógico, pois,
apesar dos indícios deixados ao longo do texto, não conseguiu inferir uma possível
identidade e, conseqüentemente, não aproximou sua vivência ao espaço ocupado pelo
enigmático personagem.
Nos 2º., 3º. e 4º. casos, os alunos inferem, a partir das marcas textuais, variadas e
plausíveis respostas: não sendo nem denominado nem figurativizado, o menino mais bonito
do mundo só pode ser identificado pela perspectiva única oferecida ao leitor a partir das
ilustrações que representam aquilo que ele vê. Assim, as respostas viabilizam aquilo que o
texto aponta como apenas provável.
Já no 5º. e no 6º. casos, os alunos ignoraram a interpretação oriunda das relações
entre os níveis semiolingüístico, discursivo e situacional, mas revelaram quali-signos
interessantes (ainda que equivocados, por causa da não consideração do sentido-
intelectivo): aproximando a sensação de dor ao “personagem enigmático”, o aluno do 5º.
caso apresenta um “personagem” existente apenas no nível da fruição; comparando o
“personagem enigmático” à tarde e ao pôr-do-sol, o aluno do 6º. caso também cria um
171
“personagem” fluido, sensação total, da mesma forma existente somente na fruição, como o
anterior.
Atividade D
A “Ciranda de Ziraldo” foi um projeto realizado por alunos de 1ª. a 4ª. séries com o
objetivo de disseminar a leitura da obra de Ziraldo, ali representada por inúmeros títulos
13
.
Da primeira atividade proposta pelo projeto, um trabalho foi analisado por ser relativo a um
dos livros analisados nesta pesquisa. Na primeira parte da tarefa, a aluna de 3ª. série
parafraseou sinteticamente a história; na segunda, tentou fazer uma avaliação subjetiva do
livro.
13
Atividade realizada em 2004, no Colégio Joan Miró, em Niterói RJ, pela Prof ª Carolina dos
Santos.
172
Fig. 42 Caso único
Nota-se, em primeiro lugar, que a aluna demonstrou compreender totalmente a
história além de ter sabido expressar suas idéias com clareza e objetividade (“Uma
história de um menino que vive no mundo dos quadrinhos então ele acorda em um lugar
sem cores tudo era preto e branco então ele descobre que está no meio de uma multidão de
palavras ele fica assustado mas descobre que todas as palavras tem sentido”).
A criança estaciona nesse nível de análise, não revelando os motivos de sua
avaliação positiva (representada pela “carinha contente” ilustrada antes do texto verbal),
nem algum tipo de analogia operado. Para representar a “parte que mais gostou”, ela opta
pela cópia do cachorrinho presente em uma das primeiras páginas do livro. A opção pela
cópia pode revelar pouca habilidade com o desenho, mas a escolha dessa imagem (e não de
outra, entre tantas) deve estar ligada a motivos bastante pessoais (como, por exemplo, ao
desejo de ter um animalzinho de estimação, ou de se eximir de apontar qualidades positivas
em um texto que, na verdade, para ela, talvez não as apresentasse.), já que não pode ser
associada a uma “parte da história” que relatara anteriormente (ela nada dissera a respeito
de cachorros). Por não ultrapassar o nível da compreensão, essa atitude tanto pode revelar
uma certa “incompetência leitora”, quanto esconder as reais Qualidades “fruídas” durante a
leitura.
Atividade E
Em outra atividade do projeto, os alunos da 4ª. série deveriam significar, por meio
de ícones (ilustrações), o sentido de um dos neologismos empregados por Ziraldo em Uma
historinha sem (1) sentido (1994) e, depois, criar um outro neologismo, utilizando o mesmo
recurso analógico, ali denominado “associação entre idéia e som”.
Tendo escolhido o neologismo chuip-provadinha”, a partir de uma relação
analógica entre mundo real e a cena desenhada, o aluno “explica”, por meio da ilustração,
que se trata de uma “provadinha descuidada” de alguma bebida (conforme a história
relatava): um super-herói toma um líquido por um “canudinho”. A onomatopéia “chuip”,
173
grafada ao lado do personagem, refere-se ao som produzido quando o personagem sorve o
líquido do copo.
Fig. 43 Caso único
Ao lado, ele cria o neologismo “zip-zíper” e desenha um fecho que, analogicamente,
reforça o sentido da palavra criada. Apreendendo claramente o recurso empregado por
Ziraldo, ele associa o som produzido ao fechar um zíper (“zip”) a seu nome, obtendo o
174
dinamismo pretendido. Em outra perspectiva, percebe-se que, ao “imitar” o recurso com
tanta desenvoltura, ele demonstrou ser capaz de fazer associações icônicas, por Qualidades,
e criar, a partir delas, novos “signos poéticos”.
Atividade F
Como exercício de Produção Textual, foi proposta a seguinte questão aos alunos de
duas turmas do 1º. ano do Ensino Médio
14
: Considerando-se que mesmo uma narração
apresenta um ponto de vista acerca de um questionamento, qual é o tema contido em
Flicts e qual é a tese defendida nessa história (ou por ela)? Pretendia-se, com isso, além
de avaliar a compreensão das noções de tema e de tese, verificar o grau de amadurecimento
da competência leitora dos alunos. Ainda que seja um livro simples para a faixa etária, sua
leitura depende de boa capacidade inferencial, sobretudo se é exigido do leitor o registro do
resultado de seu esforço interpretativo por meio da palavra: o aluno deveria, portanto,
observar, perceber, relacionar, inferir e verbalizar.
Apesar de não ser a finalidade dessa tarefa a fruição em si
15
, por causa do caráter
lúdico e poético do livro, pode-se verificar, conforme mostram os registros, na
interpretação que acompanha e justifica as respostas, o acionamento “compulsório” da
competência fruitiva. Foram recolhidos cinqüenta e um exercícios, dos quais um fora
descartado por completa incoerência na interpretação. As respostas apresentaram caráter
discursivo e foram dadas imediatamente após a leitura feita pela professora, sem que fosse
proposto um debate, ou uma rodada de perguntas para que as respostas não sofressem
influências externas. A única explicação preliminar dizia respeito à diferenciação entre
tema e tese.
Na delimitação do tema verbalizada pelos estudantes, percebe-se um grande número
(quase a metade) de respostas pautadas pelo nível da compreensão, pela (segura) superfície
do texto, apresentando elementos figurativos, concretos, com os quais o aluno pode
comprovar o que diz: 22 (vinte e dois) alunos afirmaram que o tema era a cor/Flicts
(freqüentemente caracterizada como feio, solitário, “sem lugar no mundo”). Ainda assim, a
14
Atividade realizada em maio de 2006, com turmas do Colégio Marília Mattoso, em Niterói.
15
Infelizmente, como na maioria das escolas, esta não privilegia o desenvolvimento da percepção
estética, nem inclui nos programas projetos voltados exclusivamente para a sensibilização; os
professores que algumas vezes ocupam os alunos com esse tipo de atividade o fazem extra-
oficialmente.
175
maioria dos exercícios revelou boa capacidade interpretativa, pois os alunos apontaram
como tema uma idéia inferida, não explicitada em nenhuma parte da história, então
dependente de relações entre o nível semiolingüístico (superficial) e os níveis subjacentes
(discursivo e situacional): 11 (onze) afirmaram ser o preconceito/a discriminação; 4
(quatro), o desprezo/isolamento/discriminação/exclusão sofrida por Flicts; 9 (nove), a
solidão; 4 (quatro), a procura de um lugar no mundo/o merecimento de um lugar no
mundo.
É interessante apontar que apenas quinze respostas estão direcionadas ao cerne da
problematização proposta pelo livro, a discriminação, sendo onze de forma objetiva e
quatro, revelando a relação analógica entre mundo textual e mundo real, numa aproximação
que favorece a emergência da qualidade verbalizada (desprezo, isolamento, discriminação,
exclusão). Treze respostas, porém, fixam-se em conseqüências da discriminação, ou, em
outra perspectiva, nas razões para não discriminar: a solidão, em nove casos (corroborada
pela repetição de “o frágil e feio e aflito Flicts”) e, em quatro, a necessidade de um lugar no
mundo (ratificada pela incansável procura de Flicts, em todos os cantos do mundo até fora
dele).
Ainda que essas idéias marginais não devessem ser apontadas como tema, mas
como informação nova trazida pela combinação de elementos que constituem aquele texto,
é interessante notar que o desvio do foco interpretativo provocou (e/ou foi provocado por)
uma ênfase no sofrimento causado pela atitude discriminatória, utilizado, implicitamente,
como argumento principal para a não-discriminação. Em outras palavras, o sentimento
(como ato de sentir) do estado emocional do personagem Flicts, num alto nível de adesão
operado pelo leitor em função da combinação sígnica acionadora de sentidos variados,
obscureceu o tema central, ou seja, a “inferência afetiva” exagerada suplantou a inferência
intelectiva. Mesmo configurando um descuido interpretativo, são fatos que comprovam a
ação dessa competência fruitiva, que torna o leitor suscetível ao afetamento.
Quanto à tese defendida, esperava-se que os alunos fossem capazes não só de inferir
a defesa de um posicionamento acerca do tema abordado (discriminação), como também de
verbalizar suas idéias de forma clara. Em 28 (vinte e oito) respostas, já sendo revelada uma
capacidade lógica maior em alguns casos, lê-se que a tese contida na história é a de que
“todos têm/devem ter seu lugar no mundo”, ou, semelhantemente, a de que “Flicts acaba
176
por encontrar seu lugar no mundo”. É uma quantidade significativa de respostas que
demonstram certa capacidade de inferência, mas que se encontram bastante presas aos
elementos superficiais do texto o que se comprova com a farta reincidência da expressão
“seu lugar no mundo”, retirada da história. Entretanto, em 12 (doze) casos, os estudantes
foram incapazes de apreender o “ponto de vista defendido pelo autor”, numa incapacidade
interpretativa ocasionada pela supervaloziração de elementos da camada superficial do
texto. Seguem alguns exemplos.
§ “A tese, trata-se se a lua é ou não Flicts, e que todas as cores podem ser
Flits, idéia essa apreendida implicitamente”.
§ “Ao longo da história percebemos que na opinião do autor, não existe nada
que seja Flicts”.
§ “A tese defendida é que essa cor é feia e ninguém gosta dela”.
§ “Ele defende que o Flicts é muito solitário”.
§ “A tese do texto é que Flicts nunca arranjará alguém que o queira, que o
ame”.
§ “Ziraldo acha que não vale a pena ter preconceito até mesmo porque todas as
cores citadas no texto precisavam do Flicts de uma forma ou de outra”.
Percebe-se, nesses casos, a tomada de uma constatação (nem sempre verdadeira)
como se fosse a opinião defendida: todas as respostas, muito presas às figuras usadas no
texto, apontam (ou tentam apontar) ainda para o tema, ou para o problema abordado pelo
texto, sem demonstrar que os alunos tenham o grau necessário de competência de
linguagem, seja para relacionar elementos e inferir, com mais profundidade, a tese que
perpassa a obra e diferenciá-la do tema, seja para expor verbalmente suas idéias.
Em 8 (oito) casos, o foco interpretativo aparece desviado para elementos
secundários. Distintamente dos casos mencionados no grupo anterior, aqui houve um
esforço interpretativo maior, ainda que desajustado, ou fracamente verbalizado. Note-se
que, nestes casos, o fato de ser diferente e, como conseqüência dessa característica, sofrer
discriminação, não parece ter sido privilegiado. Assim, a tese acerca da necessidade de se
177
combater justamente aqueles que discriminam é ofuscada por idéias focalizadas
(desequilibradamente) pelos leitores. (Os grifos são nossos.)
§ “Para Ziraldo, tudo tem seu tempo para acontecer. Não adianta querermos
apressar as coisas, elas só acontecerão quando menos esperarmos.”
§ “A tese é de que mesmo não tendo lugar para você perto de algumas pessoas
sempre haverá alguém que lhe aceite”.
§ “A opinião de Ziraldo é que uma cor que não é desejada por ninguém no final
faz parte de uma coisa a qual todos desejam chegar e conquistar”.
§ “O autor põe a tese de que não se deve despresar as ‘pessoas’ por elas serem
mais feias”.
§ “Flicts era uma cor solitária, excluída por todos, mas na verdade era única e
que somente alguns tinham o privilégio de vê-la e apreciá-la”.
§ “A tese apresenta que Flicts é uma cor tão triste, que o texto inteiro fala
que ninguém quer aceitá-la, mas no final Flicts vira uma cor importante”.
§ Que todo ser tem seu lugar no espaço. Cada um tem seu próprio brilho, ou
seja, cada um tem seu próprio valor, mesmo que os outros não percebam”.
§ “A tese do autor é que mesmo se sentindo sozinho, diferente de todos, tem
sempre alguém em algum lugar que se assemelha a você”.
Um único aluno afirmou que “o que importa é o valor da pessoa independente do
lugar onde ela esteja e de como ela seja” podendo ser considerado o maior grau de
abstração obtido nesse grupo. Dois alunos não responderam à questão relativa à tese.
Nas respostas dos alunos, percebe-se, numa conjugação de sua capacidade
interpretativa com sua capacidade comunicativa (a partir do momento em que produzem
suas respostas), suas competências de linguagem e de fruição. Embora a fruição, no caso
analisado, não esteja ligada ao seu valor estético da obra, é importante salientar que,
“ardilosamente” direcionada pelos variados elementos textuais, ela pôde ser acionada e,
mesmo nos casos em que a interpretação revelou-se “desajustada”, ela esteve presente: o
sentimento fora afetado.
178
Nas relações analógicas operadas durante a interpretação, houve a identificação
entre leitor e texto; foram suscitadas sensações, emoções que tomaram parte do processo
leitor: leu-se a experiência, leu-se o mundo por meio das aproximações. Essa identificação
pode ser atestada em algumas respostas, com a utilização da 1ª. pessoa, numa auto-inclusão
quanto à situação abordada; em outras, com o pronome “você”, como “sujeito
indeterminado”, ou bastante abrangente, que também aponta para o sujeito-leitor,
incluindo-o. Ainda em outros casos, desfazendo a personificação, deixa-se de citar as
“cores” e passa-se a falar de “pessoas”.
Percebe-se que um grau maior de fruição costuma acompanhar um grau também
elevado de interpretação (jntelectiva), em respostas em que prevaleceram as inferências,
nas quais os elementos dos vários níveis de construção de sentido foram conjugados em
função do resultado final. Na dificuldade na elaboração efetiva das respostas, na
verbalização de suas próprias idéias e conclusões, com nominalizações às vezes
equivocadas, evidencia-se a preferência por elementos presentes no texto-origem, por
termos usados repetidamente na história, ou por situações citadas ainda no nível mais
superficial.
Enfim, com esse exercício, pôde-se constatar o profícuo trabalho com o texto
poético, com o poder de sua semiose, envolvendo o leitor, mesmo que ainda imaturo para
verbalizar, saltando do analógico para o lógico, suas impressões e conclusões. Na
experiência vivida, a certeza de um sentido/sentimento, embora sem a segurança de um
sentido intelectivo claramente verbalizado. Na “leitura com sentido”, a conjugação entre
palavra e mundo, lógico e analógico, superfície e profundidade, cognição e percepção/
sensação/emoção.
Atividade G
A partir da leitura de O menino mais bonito do mundo, 26 (vinte e seis) alunos do
7º. ano (que corresponde à 6ª série do Ensino Fundamental) da Rede Municipal de Ensino
de Niterói
16
responderam a questões propostas pela professora da seguinte maneira:
16
O exercício foi proposto a alunos da Escola Municipal Honorina de Carvalho, em Niterói, em
maio de 2006.
179
ü 22 (vinte e dois) disseram NÃO conhecer anteriormente nenhuma outra história
relacionada àquela lida e 4 (quatro) afirmaram relacioná-la à história de Adão e Eva.
ü 9 (nove) afirmaram que “o menino mais bonito do mundo” seria identificado
como Adão, conforme informações oferecidas pelo próprio texto; 5 (cinco)
afirmaram não haver nenhum menino mais bonito” (“porque existem vários
meninos”; “porque nós podemos ser diferente por fora mais somos iguais por
dentro”), ou não responderam; 1 (um) disse que o “menino” seria o sol; 10 (dez)
nomearam esse “menino mais bonito”:
§ “Deus. Eu nunca vir ele mais já por ele ter criado nós já faz de ele ser
lindo”;
§ “Meu namorado Ediley”;
§ “eu, porque a pessoa tem se gosta pra depois gosta de outra pessoa”;
§ “Maycom. Eu não sou boiola”;
§ “Eu porque as meninas meacha Bonito”;
§ “Eu. Porque as garotas acham eu muito bonito”;
§ “Eu, porque sou alegre e sou muito di bem com a vida”;
§ “Meu irmão! Porque eu gosto dele e ele é lindo”;
§ “O menino que eu gosto. Gostando dele de verdade como eu nunca
gostei de nimguem”;
§ “Eu. Me olhando no espelho”.
ü 16 (dezesseis) alunos afirmaram que a história NÃO teria despertado neles
NENHUM sentimento, ou deixaram a resposta em branco; 1 (um) disse que a
história despertou nele curiosidade; 1 (um) citou a tristeza (“Porque a minha
vida so e de tristeza”); 4 (quatro) disseram alegria e 4 (quatro) referiram-se a
um sentimento basicamente transcendental:
§ “Como pode ter existir todas essas coisas, como a gente pode existir” ;
§ “Me lembra de que Deus fez o homem primeiro depois a mulher”;
180
§ “Do sol. De Deus ter criado o sol e tudo”;
§ “O sentimento de saber que eu não estou sosinha em nenhum momento.
Eu acho que (o que causou esse sentimento) foi o trabalho da minha
mãe anoite”.
Percebe-se, nos casos mencionados, uma baixa competência em relação à
linguagem, seja na interpretação, seja na produção textual. Tendo um parco conhecimento
de mundo (atestada na primeira resposta, só registrada após a professora motivar a turma
para se lembrar da história bíblica) e pouca habilidade para a escrita.
Na identificação de “o menino mais bonito do mundo”, observa-se uma pequena
parcela que se baseia na superfície do texto, afirmando ser Adão esse personagem, mas a
maioria parte de elementos circunstanciais para identificá-lo (não se pode provar se por
mais facilidade de projeção de seu limitado mundo experiencial, se por convicção, ou ainda
se por mera brincadeira). Através da perspectiva oferecida pela própria narratividade do
texto que faz do leitor o personagem “dono” da visão dos fatos narrados o aluno
identifica o menino com sua própria imagem, ou com a imagem de alguém amado,
revelando uma associação entre a qualidade de ser bonito e o sentimento de amor (mesmo
que amor próprio), ou de respeito. Cinco, desconsiderando a idéia de que cada ser humano
é individualmente importante, como se fosse o mais amado, ou o mais bonito, posicionam-
se de maneira ética, afirmando não haver ninguém mais bonito, pois todos são iguais.
Curiosamente, a maior parte dos alunos não aponta um sentimento suscitado pelo
texto. Em função de sua dificuldade expressiva, acredita-se que possa haver, nesse caso,
uma incapacidade para a verbalização, ou para uma inferência mais profunda. Ainda assim,
as poucas respostas são revestidas de forte caráter fruitivo, dada a natureza de sua
motivação. Um dos alunos que mencionam a alegria relaciona-a ao prazer da leitura
(“muita alegria porque a estória é legau”) e o aluno que cita a tristeza revela o completo
afetamento sofrido (“Porque minha vida so e de tristeza”), talvez incomodado pela
constante reafirmação “Que menino bonito!”, distante da realidade vivida por ele ou
mesmo contrária às suas experiências. Dois alunos que apontaram um sentimento ligado à
religiosidade pertencem ao grupo que afirmou conhecer a história bíblica a qual se
181
relaciona o texto; contudo, os outros se deixam levar pela perplexidade de pensar a
existência.
Com esses registros, embora pobres em relação às competências (tanto de
linguagem quanto fruitiva) esperadas para a faixa etária, considera-se pertinente apontar a
urgência do trabalho com a literatura e com a arte em geral, ao menos porque, como se
percebeu nas respostas mais elaboradas, há um importante potencial a ser explorado, há
indivíduos propensos à reflexão, abertos à percepção, que dependem de um trabalho de
desenvolvimento dessas competências. Quanto aos indivíduos incapazes da mais simples
reflexão acerca de seus próprios sentimentos, ou, pelo menos, incapazes de expressão;
indivíduos que não conhecem quase nada do mundo que os cerca, nem de sua própria
intimidade; que não conseguem ter uma opinião, ocupando um lugar de onde consigam se
posicionar para estes, não há somente urgência de desenvolvimento; há necessidade de
humanizá-los através da conscientização de sua subjetividade e de sua capacidade reflexiva.
Retomando a epígrafe do capítulo:
É preciso que (...) haja acesso à leitura de ficção, ao discurso poético, à
leitura prazerosa e emotiva. É necessário que alguém chore, sonhe, dê risada,
fique emocionado, fique identificado, comungue, enfim, com o texto, para
que ocorra a formação do leitor. (Azevedo, 2003: 79)
Se há um bom motivo para a existência da arte (ou finalidade), só pode ser a de
colocar o homem em contato consigo mesmo, por meio da desafiadora originalidade de um
livro, de um filme, de um quadro, de uma música. O objeto artístico provoca o homem,
surpreendendo-o com o inusitado, com o encantador, com a urgência de ser sentido,
experimentado, entendido. A intimidade com o “conhecimento das sensações”, ou com as
qualidades que foram atribuídas pelo leitor às suas experiências propicia um “afetamento”
mais contundente, mais profundo, tornando-o cada vez mais sensível. Os “excessos de
sensações” de que fala Zumthor, numa performance, estão nos gestos, no tom de voz, no
movimento pelo palco, por exemplo; na leitura solitária do texto, essas primeiridades, essas
qualidades vão surgindo internamente a partir das relações que o leitor engendra no
universo de suas próprias e únicas experiências prévias, entre seus pensamentos e
182
seus sentimentos; no contato com o que há de mais íntimo, mais profundamente conhecido,
num laço pessoal ainda maior com a poesia.
É preciso, portanto, que o professor, como mediador da leitura na escola e
responsável pela formação do leitor, estabeleça o alcance dos textos (em termos de fruição,
como aqui defendida), para poder fazer valer sua força, e proponha atividades que tragam à
luz seus sentidos (interpretados e fruídos). A partir, então, do “atingimento” obtido, o
educador pode considerar, rememorando Paulo Freire, seu aluno alguém que não só lê o
mundo, como também se nutre dele através dos textos.
183
6 (IN)(CON)FORMAR E TRANSFORMAR
184
Ler, sempre digo, é mais importante que estudar. (...)
Aprendendo a ter paixão pelas palavras, nos primeiros anos depois
da alfabetização, vamos ler como quem respira. (Ziraldo, 2006:16)
6 (IN)(CON)FORMAR E TRANSFORMAR
“Ler é mais importante que estudar.” Essa frase provocativa, incansavelmente
retomada em entrevistas por Ziraldo, impõe-nos um deslocamento, ou uma relocação de
certezas especialmente aos estudiosos, cientistas, mestres e doutores, ávidos por
conhecimento, por um sentido orientador de suas vidas-pesquisas. Tomando, por um
lado, a leitura (de literatura) como atitude de prazer/fruição, na qual o homem se projeta no
outro, lá enxergando o que de mais profundo há nele próprio, e, por outro lado, o estudo
como atitude (que também pode trazer prazer/fruição, mas não em princípio), na qual o
homem intenta, grosso modo, compreender a vida, essa afirmação guarda o peso de um
questionamento: é preferível imaginar a constatar? É preferível a ficção aos fatos? Sentir a
pensar? Olhar o ser humano que somos distante de nossa própria humanidade a guardar-
nos internamente? Deixar-nos seduzir pelos sentidos a controlar o sentido do mundo? Ou,
antes mesmo de contrapor ler a estudar, é possível considerar essas atitudes extremidades
de um único processo, motivado pelo mesmo desejo de apreender, de tomar para nós o
mundo que nos cerca e nos engloba? De nos saber diante do insondável? O que seria mais
producente nessa tarefa: ler, ou estudar?
Se, como Affonso Romano de Sant’Anna, acreditarmos que tudo é leitura, tudo é
decifração, ler será tomado como ato de criação de significados e, por isso mesmo, mais
abrangente do que o processo que envolve somente a palavra escrita. Ler não só seria mais
importante do que estudar, mas seria também um pressuposto para isto, já que precederia
185
essa tarefa como um requisito para a compreensão do mundo e do homem. Estudar traria a
consciência do conhecimento, racionalizando as experiências, nomeando-as, classificando-
as, dissecando seus sistemas de funcionamento. Ler, nesse caso, residiria na condição
humana de perceber, memorizar, reconhecer, significar; estudar estaria subordinado a essa
condição; estaria circunscrito à atitude de, isentando-nos (ainda que momentaneamente)
dos sentimentos e das intuições, propor e comprovar teses, soluções para problemas;
decorar fórmulas, citar formalmente outros seres humanos igualmente estudiosos; mostrar,
cientificamente, como somos e o que fazemos no e para o mundo onde vivemos. Afinal, o
estudo tem feito o mundo evoluir; tem feito vacinas, tratamentos de saúde; pontes,
aeronaves, radares e sondas; computadores (ah, os computadores!), cinema, televisão;
carros, conforto, escadas rolantes e elevadores. Mas, omitindo o pressuposto da
sensibilização advinda da (pouca) leitura (de livros e do mundo), o homem ignorou a
dificílima dangerosíssima viagem de si a si mesmo; deixou de obri-lo a pôr o pé no chão
do seu coração e experimentar, colonizar, humanizar o homem, descobrindo, em suas
próprias inexploradas entranhas, a perene, a insuspeitada alegria de conviver como
diria Drummond. Por isso, Iraque, Bush, Rocinha, fome, anorexia, violência, homens-
bomba, prisão, solidão, shoppings e mais shoppings, e pouquíssima arte. Hoje é preciso
muita ciência para que, racionalmente, seja provada a fragilidade humana perante o próprio
ser humano, pois sua capacidade intuitiva, sensível, parece embotada por tanta tecnocracia.
Ler, criar significados a partir da perspectiva única de cada homem (e não os reproduzir
simplesmente!), portanto, realmente deveria ser mais importante que estudar.
Se, como em Paulo Freire, a leitura da palavra for vista como fim e caminho para a
leitura do mundo, “movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da
leitura que dele fazemos” (Freire, 2003:20), outra vez ler torna-se mais importante que
estudar, pois a leitura coloca o homem em simbiose com o mundo, dando-lhe a
oportunidade da autoria da posição ocupada, por meio da palavra, da leitura que faz, de sua
atuação via palavra. Para Freire, o estudo só tem sentido se o educando aprender a se
posicionar, a criticar, a se ver inserido socialmente; se aprender a ler sua condição de vida e
transformá-la. Para isso, não basta memorizar mecanicamente conceitos, be-a-bá; é preciso
encontrar sentido, significar a existência do educando como gente, possibilitando uma
“compreensão diferente de sua indigência” (op.cit.: 21). A importância do ato de ler, para o
186
educador, justifica o ensino/aprendizagem da palavra escrita, mas sobretudo por
oportunizar uma mudança de perspectiva, de leitura do mundo, que está acima de qualquer
estudo robotizado, repetidor, manipulador de caminhos, de sentidos. Os homens que
parecem estar à frente de sua época, certamente, aprenderam a ler o mundo antes
mesmo de mergulhar no estudo; usaram a sensibilidade, e muitas vezes a intuição, como
guia, ou motivo de suas investigações. Ler, o mundo e a palavra, nesse movimento
complementar que provoca a criticidade, continua devendo ser mais importante que
estudar.
Se, como Pennac, Kramer, Queirós, Calvino e tantos outros, a leitura de literatura
tem o papel primordial de colocar o homem em contato consigo mesmo, mais uma vez, ler
é mais importante que estudar, porque é imprescindível a ele conhecer-se, saber-se
humano, particularmente racional, mas especialmente capaz de perceber o mundo e os
sentimentos e significá-los, para se lançar em direção ao futuro, ao passado, aos projetos, às
lembranças, aos mundos imaginados, às expectativas de felicidade. O estudo, sobretudo
como tem sido visto na maioria das escolas de nível fundamental e médio, não passaria do
mesmo “repetitório” a que se refere Drummond. O ensino da palavra unicamente por meio
de seu valor gramatical, conforme tem sido feito, produz “o enjôo pelo estudo, o desamor
pelas letras, a repugnância pelo trabalho mental” (Geraldi, 1997: 121). Classificar textos
literários de acordo com suas características não ensina o gosto pela leitura. Desvincular
compreensão de interpretação, dissociando a construção textual do conteúdo, não suscita o
amor pelas palavras, pelas combinações originais, pela tessitura que o leitor refaz, juntando
pontos do texto, alçando memórias, costurando as marcas textuais à sua vida.
E não só em gramática. Também o que se lê, um universo empobrecido,
entre outras razões porque desambigüizado, o universo para o qual aponta a
literatura escolar. Esse empobrecimento pode ser considerado o primeiro
traço que jovens leitores aprendem em manuais e antologias e que, repetido
ao longo da vida escolar, pode incapacitá-los permanentemente para a fruição
de obras que não sigam à risca o modelo proposto pela cartilha escolar.
(op.cit.:121)
A escola pode pretender ensinar a ler, mas confunde essa tarefa com estudar. A
literatura “escolar” está lá para ser compreendida, racionalizada, classificada, ou
187
simploriamente usada como suporte para outros assuntos, outras matérias. Ler na escola
dificilmente é tarefa associada ao prazer, à experienciação, à construção de um mundo
“virtual”, indolor, em que se pode ter uma vida que não é nossa, mas da qual nos
apoderamos durante os momentos da leitura e que nos torna definitivamente outras
pessoas. Ler na escola é, quase que tão-só, estudar a literatura, friamente, racionalmente; é
tornar útil o livro, muitas vezes estendendo seu propósito existencial para além dele
mesmo especialmente nas séries mais adiantadas. O texto não é objeto de apreciação, de
“curtição”; serve principalmente como exercício de decodificação, ou ainda, de gramática.
Além disso, nas palavras de Geraldi, a “desambigüização” do universo para o qual a
literatura escolar aponta resultaria na “incapacidade para a fruição”. Isto é, a mecanização
da (confusa) leitura escolar impediria a fruição, o gosto pela leitura. A impossibilidade de
ter desenvolvida a criticidade através do desenvolvimento da verdadeira capacidade de
ler, de buscar sentidos apagaria a cha nce de se gostar da leitura. Assim, na escola, quase
sempre estudar vence a importância de ler.
A reflexão proposta pelo presente trabalho tem como objetivo principal
problematizar a leitura. Entendendo seu processamento, surge a oportunidade não só de se
conhecerem as estratégias necessárias para a leitura profícua, bem finalizada, como
também de se verificar a razão de uma leitura equivocada, que extrapola os limites do
texto. Vista como uma atividade de linguagem baseada em pressupostos interacionais e
comunicativos, é possível compreender que há maneiras para se desenvolver a competência
leitora dos indivíduos, focalizando elementos negligenciados durante a leitura, ou
motivando a relação entre elementos dos vários níveis de construção de sentido. Em outras
palavras, é possível ensinar a ler com competência, sobretudo através da literatura,
sobretudo quando se pretende não apenas desenvolver intelectivamente o leitor em
formação, mas também sensivelmente, tornando-o mais sagaz na percepção dos elementos
constitutivos do sentido, na relação entre signos, idéias, circunstâncias. Este é um trabalho
que propõe um maior aprofundamento das bases teóricas que suportam a leitura a fim de se
realizar uma mudança na formação dos leitores. É um modo de estudar, lendo.
É importante salientar, entretanto, que uma formação integral do leitor não se
circunscreve à infância, ou aos jovens: a maturação do leitor não está simplesmente
vinculada à faixa etária, pois, ainda que o tempo seja responsável pelo armazenamento de
188
seu conhecimento de mundo e pelo alcance de certos estados psicológicos, nem um nem
outro é acrescentado automaticamente por imposição cronológica; necessita-se de
engajamento do sujeito-leitor, de oportunidades de experienciação, de refinamento da
sensib ilidade, de educação. Por isso as atividades relatadas neste trabalho não foram
direcionadas a uma idade específica, mas ao leitor em formação, de maneira geral; um
leitor em fase de crescimento (seja com sete, dezessete, ou ainda trinta e sete anos, se
fosse possível relatar ainda mais experiências). O desenvolvimento de competências
leitoras não depende simplesmente de tempo, mas de abertura à sensação, à percepção do
mundo que nos cerca, à significação, à conformação textual, à apreensão dos sentidos.
Descartando-se uma minoria de leitores autodidatas, normalmente compete à escola
a tarefa de ensinar a ler e a formar leitores. A própria noção de cidadania exige e pressupõe
a proficiência em leitura e em escrita, pois a sociedade, norteada pela capacidade de
verbalização, faz do domínio da palavra uma de suas condições de inclusão/exclusão.
Embora a mídia eletrônica e outras facilidades tecnológicas tenham trazido muitos meios
de significação icônica que substituem ou acompanham a palavra, a complexidade dos
suportes baseados na imagem, ou no sincretismo sígnico, ainda varia de acordo com seu
público-alvo: aquele capaz de uma profundidade maior de abstração e de significação, de
verbalização e de leitura sobrepujará o outro, mero decodificador superficial, propenso às
ciladas consumistas. E nesta relação assimétrica está fundamentada a desigualdade social e
o desrespeito humano. Por isso a urgência de intervenção no processo educativo, no
desenvolvimento de indivíduos leitores, de seres mais humanos, mais capazes de encontrar,
na significação, algumas respostas para suas inseguranças. Essa necessidade justifica a
presença da literatura na escola.
A obra de Ziraldo em especial os livros selecionados para este estudo
constitui-se de fantasia, palavras, cores e imagens e é dessa constituição que transbordam o
lúdico e a poesia. Não chega a ser um convite à leitura, pois, ao mais leve contato, ela
envolve o leitor na brincadeira, na emoção, na beleza, tomando-o de assalto precocemente.
No entanto, dada a riqueza de sua constituição, carece de cuidados, de atenções: é preciso
observar bem seus signos, perceber suas relações, participar da construção de seu sentido
e do nosso sentido aceitando seu enleio, com certo esforço interpretativo, até que se
entendam suas intenções, seus propósitos. Até que o leitor se descubra diferente,
189
modificado pela leitura, pelo que sentiu, pelo que permitiu deixar aflorar, na fruição. O
menino quadradinho nos coloca à frente da própria formação do leitor, que se des-loca dos
quadrinhos, do predominantemente analógico, de código tão peculiar, ao reino das
palavras, lugar de aprender a entendê-las e amá-las. Em Flicts, deparamo-nos com nossa
própria necessidade de aceitação, com a solidão de nossa interioridade, com a compaixão
pelo diferente, por termos sido tocados naquilo que afasta os outros de nós. O menino mais
bonito do mundo enche nossos olhos para a contemplação, tornando-nos o mais bonito,
pois reflexo do que contemplamos, porém necessitados do outro, numa incompletude que
causa dor. Em Uma historinha sem (1) sentido, vemo-nos, divertidamente, com a
necessidade de desenvolver nosso “sexto sentido”, com o qual seremos capazes de
heroísmos e, através dessa brincadeira, sentimo-nos compromissados com a leitura.
Com a qualidade que emana das palavras, dos nossos sentimentos mais íntimos
quando tocados, da contemplação e da leitura, como tematizado em cada um dos livros
mencionados, observamos diferentes momentos de fruição, que, como vista neste trabalho,
é um estado de emergência de qualidades, propiciado por um texto poético. O ato de fruir é
essencial à poesia, pois é ele que faz o leitor sentir o texto. Para fruir, é necessária uma
competência específica, diversa da competência da linguagem, que habilita o leitor para o
sentido sentido, aquele que nem sempre é passível de verbalização não por
incompetência linguageira, mas por pura impossibilidade de concretização. A fruição
pertence à ordem da experiência: é preciso sentir, viver, experimentar através e por meio
do texto para apreendê-la. Se todo ser humano é um ser sensível, então qualquer um pode
desenvolver essa competência. Isso se prova com os exercícios dos alunos, pois, desde os
mais simples registros de suas sensações, é possível comprovar o afetamento acionado pelo
texto; o sentido-feeling despertado pelo poético; o sentimento-resposta ao estímulo textual.
Os textos das crianças apresentados demonstram como a(s) escola(s) tem(têm)
tratado a leitura de literatura, aqui representada pelos livros de Ziraldo. Nas primeiras
tarefas (atividades de A a E), direcionadas a crianças menores, de seis a oito, nove anos, em
escola de orientação construtivista, a literatura é trabalhada como fonte de prazer, de
reflexão, de transformação interior. Os próprios alunos revelam-se propensos a se deixar
afetar pela poesia; dispõem-se à tarefa como brincadeira. O contato com a leitura é
realmente um contato com o outro, além do “sujeito-eu”, que deixa de lado sua “reserva
190
interior”, parte para o embate com o exterior e retorna renovado às profundezas de sua
interioridade. É uma leitura, além de prazerosa, trans-formadora, pois que forma
transcendendo, ultrapassando, alterando o que somos como resposta àquilo que o outro é,
porque nos deixamos afetar.
Já os trabalhos das crianças mais velhas (Atividade F), alunos de uma escola
tradicional de boa reputação, apresentam um indício de sua sólida” formação,
especialmente no grande número de respostas enlaçadas na superfície textual,
concretamente comprovadas e, na maioria dos casos, com um confortável nível expressivo.
A pouca habilidade com o poético, com o lúdico, com o sensível pode ser detectada nos
desvios interpretativos: ou o leitor, ao se envolver com a fruição, desloca suas inferências
para o sentimento ao qual adere mais profundamente, ou não consegue se desvencilhar da
concretude textual, repetindo seus elementos nas respostas em vez de abstrair e trazer as
qualidades emergentes no mundo textual para o mundo real, de acordo com sua
subjetividade, numa atitude mais ousada. É uma leitura formadora, ou melhor,
conformadora, que se pretende “correta”, dentro de padrões pré-estabelecidos, sem riscos;
comprovadamente concreta, transparente, mas que não se diz prazerosa: é uma tarefa a ser
cumprida.
Com os leitores da escola pública (Atividade G), por um lado, toda a dificuldade de
um grupo quase completamente ignorante daquilo que diz respeito ao processo cognitivo
em geral, e, por outro, uma potencialidade latente, livre de formas, pronta a desabrochar,
revelada pela adesão ao projeto textual representado pela obra de Ziraldo. É uma leitura
que informa, um texto considerado “quente” pelos alunos, repleto de informações novas, às
vezes de difícil compreensão, mas que também transforma, porque é um convite para a
mudança, para o preenchimento do espaço destinado a cada ser humano que se torna
consciente de seu lugar no mundo. Pela pouca capacidade linguageira, entretanto, a
inconsistência de algumas respostas, mais vinculadas à intuição, ao sentimento, porém
pouco esclarecedoras quanto ao sentido apreendido.
Comparando-se os grupos, tendo sido considerado o fato de que nenhum compõe o
perfil de um leitor bem formado (competente quanto à linguagem, por ler e se expressar
demonstrando clareza, e quanto à fruição, por ser capaz de maiores aprofundamentos e
transformações pessoais), percebe-se uma relação estreita entre as diferentes dificuldades
191
de interpretação e as condições pedagógicas a que os alunos se submetem. Para os
pequenos, que vivem um processo de construção de conhecimento, a mediação das
professoras orienta o foco da leitura, mas a autoria das respostas repousa sob a
responsabilidade das crianças, passando pelo crivo de sua experiência com o objeto-livro.
Assim, a competência fruitiva, tão dependente de uma subjetividade em busca de
afirmação, revela-se mais aflorada. Pode-se verificar, nesse caso, a transformação pessoal
baseada numa experiência interior, in-conformada com situações de negação vividas pelas
crianças através do texto. Nessa transformação, pode residir o desejo futuro de mudanças.
O grupo mais velho, de orientação tradicional, embora demonstre ter desenvolvido
mais a sua competência de linguagem (afinal, tem mais anos de escolaridade, além de bom
nível de informação), revela pouca desenvoltura ao que se refere à competência fruitiva.
Sua formação se baseia em repetir um “estilo” consagrado de vida, com a possibilidade de
acesso fácil ao ensino superior e às profissões mais rentáveis; com a satisfação pessoal
garantida pelo modelo social vigente, baseado em desigualdades, que reserva para esse
jovem um lugar privilegiado: ajusta-o à sociedade como ela é; não o sensibiliza
suficientemente para engajá-lo nem em um projeto de transformação pessoal, nem social.
Apesar das boas condições pedagógicas a que esse tipo de aluno está acostumado, somadas
à influência normalmente positiva de uma família que prima pela educação de qualidade (e
a obtém, na medida em que a escola corresponde às aspirações dessa parcela da sociedade),
é negligenciada a oportunidade de se formar um cidadão completo, que se preocupa e se
ocupa com o outro, que deseja e planeja mudanças para si e para o mundo. Prepara-se o
jovem, nesse caso, para a con-formção.
para as crianças da escola pública, com “fome de tudo”, o terreno mostra-se
praticamente limpo (embora, às vezes, deserto) para todo processo formativo: necessitam
de motivação, disciplina, informação, educação, desenvolvimento (já bastante atrasado),
sonhos. A literatura, para eles, tem gosto de brincadeira. Diferente de sua realidade, o livro
passa a ocupar um espaço inusitado: é o momento do silêncio e da ativação de suas
habilidades perceptivas que, na leitura feita pela professora, ganha a cooperação do
outro, dos colegas, dando opiniões e lançando, abertamente, sua contrapalavra ao sentido
sentido. É uma tarefa também transformadora, embora diferente daquela da escola
construtivista, acostumada à arte e ao sonho, que transforma aquilo que os alunos são em
192
sujeitos mais refinados nas suas relações com o outro e com o mundo. Para as crianças da
escola pública, esse processo transforma o pouco a que têm direito de ser em alguém que
pode vir a ocupar um lugar no mundo. É a chance de saber-se, do reconhecer-se
potencialmente cidadão, dono de sua voz, in-con-formado para desejar mudanças.
Por isso estudar é importante, mas ler é muito mais. Aprender, conhecer, classificar,
decorar nomes, aplicar regras, repetir noções às vezes incompreensíveis. Fazer provas. Isso
é estudar. Ler é aprender a aprender. Autonomamente, ainda que com o auxílio de um
professor. É saber observar, raciocinar, avaliar, duvidar, contestar, não se conformar. É
querer saber o porquê. É não precisar provar nada. Ler implica curiosidade, desejo de
saber, investimento na construção de sentido. Ler poesia é saber sentir, é “eu no outro”, é
aceitar o convite para nos deixar afetar pelo outro. Ler poesia implica sensibilidade,
abertura, riso e mudança: fruição. Ensinar a ler poesia é acreditar no poder de
transformação do ser humano através do afetamento, do afetivo, do afeto.
No entanto, dificilmente encontram-se alunos que, espontaneamente, leiam
principalmente textos com efeitos poéticos dependentes de constantes inferências. A busca
pela fruição não é uma realidade comum. O desafio da construção de sentidos não tem sido
uma necessidade freqüente. O prazer de desenvolver uma atividade com livros como os de
Ziraldo dificilmente se encontra na sala de aula. Os motivos que explicam esse estado de
coisas são muitos, mas, em relação à escola, estão estreitamente ligados à falta de
oportunidade de se realizar um trabalho de sensibilização, sobretudo. Além disso, a
crescente “obrigatoriedade” de se trabalhar os diversos gêneros textuais (tendência que se
percebe nos livros didáticos mais modernos), por um lado tornou o trabalho com o texto
mais próximo à realidade da maioria dos alunos, contudo, por outro, tomou o espaço do
contato com o poético e do costume com o desafio do sentido sentido, que desestabiliza as
certezas de uma sociedade organizada sob a égide da racionalização. E racionalizar, ter
objetivo, ter utilidade nem sempre são fatores pertinentes ao prazer de ler e à fruição.
Para agravar esse quadro, os resultados de pesquisas sobre o desempenho em leitura
dos alunos brasileiros têm mostrado a ineficiência da escola. O ensino fundamental, de uma
maneira geral, não consegue ensinar a decodificar a palavra escrita, no máximo formando
“leitores” que compreendem os textos no nível mais superficial de sentido, sem que saibam
inferir ou relacionar a realidade textual à sua própria. Há universitários incapazes do menor
193
grau de abstração, incompetentes para extrair do texto seu tema e sua tese o que
comprova a igual ineficiência do ensino médio. Os professores, por sua vez, seja por falta
de oportunidade para estudar devido ao parco salário, seja por falta de tempo em função
das longas jornadas de trabalho, não têm embasamento teórico suficiente para saber como
lidar com essa dificuldade e apresentar projetos pedagógicos que modifiquem o quadro.
Afirmam que os jovens escrevem mal porque não lêem, como se produção e interpretação
exigissem o mesmo desempenho em relação à linguagem, e os acusam da falta de “hábito
de leitura”, como se isso fizesse crescer o gosto pela palavra, o prazer de ler, a curiosidade
pelo funcionamento da linguagem. Não sabem esses professores que ler e escrever não
dependem de quantidade (ainda que o exercício constante amadureça o leitor/escritor), mas
de qualidade; de reconhecer a (possível) dificuldade e seu nível de atuação; de fazer o
aluno perceber, relacionar e tomar posição diante do texto (estas, sim, atitudes presentes em
todo ato de construção de sentido, seja na produção, seja na interpretação). Se não sabem
interpretar os textos, especialmente os poéticos, plurissignificativos e cheios de lacunas
para a construção dos sentidos, como atingir o grau apropriado de fruição? Ainda que seja
fundamental a fruição, em termos de formação do leitor, só é possível chegar a ela se for
desenvolvida a competência de linguagem mínima para a interpretação do texto. Como
fazer gostar de ler, se os alunos saem da escola, muitas vezes, sem saber interpretar? Como
falar em fruição, em afetamento, em transformação?
Desenvolver competências deve ser, pois, a proposta pedagógica das escolas que
não querem só informar e conformar, mas principalmente transformar. Apresentar textos,
os mais variados, e investir em um certo conhecimento “semiolingüístico”, fazendo o aluno
perceber os signos e suas relações; aprender sua recorrência, suas “maneiras de ser”.
Mostrar o mundo, sua história, seus povos, as diversas culturas, a atualidade, os gêneros
textuais constantemente renovados, oferecendo-lhe um certo conhecimento “discursivo”;
proporcionando oportunidades para o aluno relacionar texto e contexto; leitura de mundo e
mundo de leitura. Conscientizar o estudante de seus direitos e deveres, de seu lugar na
sociedade, na importância de sua existência, na pertinência de sua perspectiva única em
relação à vida e fazê-lo adequar a expressão ao momento/espaço que ocupa, dando-lhe o
conhecimento “situacional” necessário à construção dos sentidos. Sensibilizar o “leitor” em
194
formação, convidando-o à poesia, ao sentimento, à experiência da fruição, do gosto pela
leitura e pela arte em geral, transformando-o em um ser mais humano.
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