Download PDF
ads:
FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA
LUIZ FELIPE XAVIER
A PRIMEIRA FASE DA INVESTIGAÇÃO CRÍTICA SOBRE A VIDA DE JESUS
UMA COMPREENSÃO DA ANÁLISE DE ALBERT SCHWEITZER DA PRIMEIRA BUSCA DO
JESUS HISTÓRICO
Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. Johan Konings
BELO HORIZONTE
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Agradecimentos
- A Deus, pela fé em Jesus Cristo, meu Salvador e Senhor.
- Ao orientador Johan Konings, por seu grande interesse e significativa contribuição.
- À minha amada Thaís, pelo amor e incentivo.
- Aos meus queridos pais, Luiz Carlos e Marília, pelo exemplo de vida.
- À minha irmã Mariana e aos meus amigos, pelo apoio.
- À minha avó Dayse e à Redê no Planalto, pelas constantes orações.
- Ao Beto e à Fátima, pelo estímulo.
- À Igreja Batista da Redenção, especialmente ao colegiado de pastores, pela nutrição
espiritual.
- Ao Christian, meu pastor e amigo, por me ajudar a discernir e seguir os passos de Jesus.
- A todos os meus professores da FAJE, especialmente ao Ulpiano, pela excelência no ensino.
- À Ir. Carmelita, pela bolsa de estudos da CAPES.
- À Dulcinéia, por sua alegria em servir.
- Aos meus companheiros de sala, pelo tempo de convivência.
- À direção da FATE-BH, Sidney, Regina e Ebenezer, pela oportunidade de ensinar.
- Às professoras Daniela e Súsie, pelas revisões.
- Aos demais professores, funcionários e alunos da FATE-BH, pelo companheirismo.
- À direção, coordenação, professores, funcionários e alunos do Instituto Cristão do Caiçara,
pelo carinho.
- A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram com a realização desse sonho.
ads:
Resumo
A primeira busca do Jesus histórico se inicia com a publicação de sete fragmentos
de Reimarus, por Lessing, em 1778. Tal busca se estende por todo o século XIX e chega ao fim
com a publicação da obra A Busca do Jesus Histórico, de Albert Schweitzer. Esses quase dois
séculos de pesquisa sobre a vida de Jesus deixaram um grande legado para a teologia. Uma
vez que, em geral, esse período é tratado com certa superficialidade nos manuais de história da
teologia, a presente pesquisa objetiva a compreensão dessa fase inicial da investigação crítica
sobre a vida de Jesus. Logo, essa dissertação tecomo ponto de partida e como instrumental
teórico a análise que Schweitzer faz da primeira busca do Jesus histórico. Portanto, o primeiro
capítulo apresentará a vida e a obra de Schweitzer. O segundo capítulo apresentará o método
exegético por trás da primeira busca do Jesus histórico, o método histórico-crítico. O terceiro
capítulo apresentará a fase inicial da primeira busca do Jesus histórico, isto é, de Reimarus a
Strauss. O quarto capítulo apresentará a fase final da primeira busca do Jesus histórico, ou
seja, de Strauss até Schweitzer.
Palavras Chaves
Busca do Jesus histórico; Evangelhos Sinópticos; Evangelho de João; Método
Histórico-Crítico; Vidas de Jesus; Milagre; Mito; Escatologia.
Abstract
The first quest of the historical Jesus begins with the publication of seven fragments
of Reimarus, by Lessing, in 1778. This search occurs throughout the XIX century and ends with
the publication of the work The Quest of the Historical Jesus, by Albert Schweitzer. These
almost two centuries of research about Jesuslife left a great legacy for theology. As this period
is treated, in general, with certain superficiality in the manuals of history of theology, the present
research aims the comprehension of this initial phase of the critical investigation about the life of
Jesus. Therefore, this dissertation will have as a starting point and as the theorical instrument
the analysis that Schweitzer makes of the first quest of the historical Jesus. Consequently, the
first chapter will present the life and work of Schweitzer. The second chapter will present the
exegetic method behind the first quest of the historical Jesus, the historical-critical method. The
third chapter will present the initial phase of the first quest of the historical Jesus, this is, from
Reimarus to Strauss. The fourth chapter will present the final phase of the first quest of the
historical Jesus, which is from Strauss to Schweitzer.
Keywords
The Quest of the Historical Jesus; Gospels; Historical-Critical Method; Lifes of Jesus;
Miracle; Myth; Eschatology.
Sumário
Introdução....................................................................................................................................08
1. A vida e a obra de Albert Schweitzer.......................................................................................12
1.1. Introdução.........................................................................................................................12
1.2. O filho de pastor luterano..................................................................................................14
1.3. O jovem doutor em teologia..............................................................................................16
1.4. O médico dos negros africanos.........................................................................................28
1.5. Conclusão.........................................................................................................................41
2. Método histórico-crítico............................................................................................................43
2.1. Introdução.........................................................................................................................43
2.2. Origem e características do método histórico-crítico........................................................43
2.2.1. Círculo maior: Iluminismo........................................................................................44
2.2.2. Círculo intermediário: primeiros traços da teologia liberal protestante....................47
2.2.3. Círculo menor: método histórico-crítico....................................................................50
2.2.3.1. Origem histórica do método histórico-crítico...............................................50
2.2.3.2. Principais Características do método histórico-crítico.................................59
2.2.3.3. Análise dos passos metódicos de uma exegese histórico-crítica...............62
2.2.3.4. Relação entre o método histórico-crítico e a primeira busca do Jesus
histórico.......................................................................................................64
2.3. Conclusão.........................................................................................................................67
3. A Fase Inicial da Primeira Busca do Jesus Histórico Segundo Albert Schweitzer...................68
3.1. Introdução.........................................................................................................................68
3.2. A apresentação do problema............................................................................................68
3.3. As considerações de Albert Schweitzer sobre a busca do Jesus histórico de Hermann
Samuel Reimarus..............................................................................................................77
3.4. As considerações de Schweitzer sobre as vidas de Jesus do racionalismo primitivo......81
3.5. As considerações de Schweitzer sobre as primeiras vidas fictícias de Jesus..................86
3.6. As considerações de Schweitzer sobre o racionalismo plenamente desenvolvido em
Paulus...............................................................................................................................92
3.7. As considerações de Schweitzer sobre a última fase do racionalismo, Hase e
Schleiermacher................................................................................................................96
3.8. Conclusão.......................................................................................................................101
4. A Fase Final da Primeira Busca do Jesus Histórico Segundo Albert Schweitzer..................102
4.1. Introdução.......................................................................................................................102
4.2. As considerações de Schweitzer sobre Strauss e a sua primeira “vida de Jesus”.........102
4.3. As considerações de Schweitzer sobre os oponentes e defensores de Strauss............115
4.4. As considerações de Schweitzer sobre a Hipótese Marcana.........................................123
4.5. As considerações de Schweitzer sobre Bruno Bauer e a primeira vida de Jesus
cética...............................................................................................................................129
4.6. As considerações de Schweitzer sobre as outras imaginativas vidas de Jesus.............136
4.7. As considerações de Schweitzer sobre Renan...............................................................145
4.8. As considerações de Schweitzer sobre as vidas “liberais” de Jesus..............................148
4.9. Considerações finais de Schweitzer sobre o período pós-Strauss.................................156
Conclusão..................................................................................................................................158
Referência Bibliográfica.............................................................................................................163
Siglas e Abreviaturas
Cf. Conforme / Confira
ed. Edição
et. al. Et Alii.
Ibid. Na mesma obra
Idem. Do mesmo autor
In. Na obra
n. Número
Op.cit. Opus Citatum / Na mesma obra
Org. Organizador ou Editor
p. Página
reimpre. Reimpressão
v. Volume
Livros Bíblicos
Mt. Mateus
Mc. Marcos
Lc Lucas
At. Atos dos Apóstolos
Rm Romanos
Tg Tiago
Introdução
A primeira busca do Jesus histórico
1
tem origem com a hipótese de distinção entre o
Jesus real da história Jesus histórico e a interpretação do Novo Testamento sobre ele
Cristo da . Tal busca se iniciou na Europa, mais especificamente na Alemanha, no final do
século XVIII. Os primeiros estudiosos que empreenderam essa busca pensavam que o Jesus
histórico correspondia à figura de um simples mestre de religião, ao passo que a figura do
Cristo da cristã, tal como descrita no Novo Testamento, não passava de uma interpretação
equivocada por parte dos escritores da igreja primitiva. Essa primeira fase da investigação
crítica acerca da vida de Jesus se estendeu por todo o século XIX e chegou ao fim com a
publicação da obra A Busca do Jesus Histórico
2
, de Albert Schweitzer. Esses quase dois
séculos de pesquisa sobre a vida de Jesus deixaram um grande legado para a teologia,
especialmente para a cristologia e para a exegese do Novo Testamento.
Tendo em vista que a primeira busca do Jesus histórico foi muito importante para a
história da teologia, surgem algumas questões: quando se iniciou a primeira busca do Jesus
histórico? Qual era o ambiente filosófico-teológico no qual ela teve início? Qual método
teológico ela utilizou para ler as Escrituras? Como ela se dividiu? Quando começa e quando
termina cada fase? Quais são os principais expoentes de cada fase? Quais são os principais
acentos de cada fase?
Na tentativa de se encontrar respostas para essas questões, a maioria dos
estudiosos da teologia se volta para os manuais de história do pensamento teológico. O
problema é que, na maior parte das vezes, as respostas não são encontradas porque o assunto
é tratado de maneira superficial. Logo, diante disso, o pesquisador percebeu a necessidade de
lançar um pouco mais de luz sobre esse assunto. Para que isso fosse possível, era preciso
fazer uma análise mais detida da primeira busca do Jesus histórico. Porém, por onde e como
começar? Depois de algumas pesquisas sobre o assunto, a obra A Busca do Jesus Histórico,
1
Entre os estudiosos do assunto, não existe um consenso no que se refere à divisão das etapas da busca do Jesus
histórico. A maioria defende uma tripla divisão: a primeira busca, de 1778 a 1906; a nova pergunta pelo Jesus
histórico (ou segunda busca do Jesus histórico), de 1953-1985; e a terceira busca do Jesus histórico, de 1985 a os
dias atuais. Dentre eles se encontram, por exemplo: Juan J. Bartolomé (cf. art. La Búsqueda Del Jesus Histórico
Uma Crônica), Sean Freyne (cf. art. A Busca do Jesus Histórico. Algumas reflexões teológicas) e Julio Lois (cf. art.
Estado actual de la investigación histórica sobre Jesús). Mas, essa não é a única possibilidade de se dividir as
etapas da busca do Jesus histórico. Gerd Theissen, por exemplo, faz uma divisão em cinco etapas: impulsos críticos
para a pesquisa sobre Jesus (Reimarus, Lessing, Herder e Strauss); pesquisa liberal sobre Jesus (Holtzmann, Hase
e Beyschlag); colapso da pesquisa sobre a vida de Jesus (Schweitzer, Bultmann, Dibelius, Schmidt e Wrede); a
“nova pergunta” pelo Jesus histórico (Käsemann; Bornkann, Fuchs, Ebeling e Braun); e a Third quest for the
historical Jesus (Sanders, Vermes, Theissen, Burchard e Crossan). Para maiores detalhes, cf. a sua obra O Jesus
Histórico: um manual. A presente pesquisa optou pela divisão tripla.
de Schweitzer, se apresentou como uma boa possibilidade. Isso porque ele destina grande
parte dela à análise dessa primeira fase da investigação crítica acerca da vida de Jesus.
Portanto, a compreensão da análise que Schweitzer faz da primeira busca do Jesus histórico se
tornou o objetivo da presente pesquisa.
É sabido que essa não é a única maneira de se buscar a compreensão da primeira
busca do Jesus histórico, todavia, é uma maneira. Uma vez que a obra A Busca do Jesus
Histórico, de Schweitzer, já se encontra editada na língua portuguesa
3
e que o autor foi
considerado o responsável pelo fim da primeira fase da investigação crítica acerca da vida de
Jesus, o pesquisador entende que esses são motivos suficientes para se buscar uma
compreensão maior do assunto lançando mão desse recurso.
A pesquisa, contudo, não cobrirá toda a obra A Busca do Jesus Histórico, de
Schweitzer. Ela se restringirá à análise que ele faz da investigação crítica acerca da vida de
Jesus desenvolvida entre os séculos XVIII e XIX. Durante essa análise, Schweitzer se mostra
muito sensato. Ele procura fazer uma leitura honesta desse período, leitura essa caracterizada
por uma postura intelectual aberta e sempre disposta a encontrar os acertos mais que os erros.
Esse talvez seja o fator determinante para que ele tenha chegado às conclusões que chegou.
Conseqüentemente, a presente dissertação se insere dentro da teologia histórico-
dogmática. Isso não quer dizer que nessa área da teologia se encerre todo o seu conteúdo.
Muito pelo contrário. A própria maneira como Schweitzer apresenta o desenvolvimento da
primeira busca do Jesus histórico evidencia que a reflexão sobre esse tema tem suas origens
na teologia bíblico-exegética. Assim, por questões metodológicas, é necessário deixar bem
claro que durante toda a dissertação essas duas áreas da teologia, histórico-dogmática e
bíblico-exegética, estão em profunda relação. É difícil falar de uma sem que a outra esteja
intimamente implicada.
O primeiro capítulo apresentará a vida e a obra de Schweitzer. Ele está dividido em
três partes. A primeira parte, cujo subtítulo é O filho de pastor luterano, aborda da infância de
Schweitzer ao fim dos anos escolares. A segunda parte, cujo subtítulo é O jovem doutor em
teologia, aborda do início do curso de teologia e filosofia à ida para a África como médico-
missionário. A terceira e última parte, cujo subtítulo é O médico dos negros africanos, aborda da
chegada à África ao fim da sua vida. O principal objetivo desse primeiro capítulo é perceber o
contexto no qual Schweitzer estava inserido e como tal contexto o influenciou de maneira
2
A obra A Busca do Jesus Histórico, de Albert Schweitzer, foi publicada pela primeira vez na língua alemã, em 1906
e em dois volumes. O título era: Geschichte der Leben-Jesu-Forschung.
significativa. Essa influência será notada, especialmente, naqueles aspectos relacionados à
produção de sua obra A Busca do Jesus Histórico.
O segundo capítulo apresentará o método exegético por trás da primeira busca do
Jesus histórico, o método histórico-crítico. Partindo do pressuposto que esse método pode
ser compreendido à luz do contexto no qual ele está inserido, se buscará uma aproximação do
contexto filosófico-teológico no qual ele surge. Por um lado, o contexto filosófico é marcado pelo
Iluminismo. Isso porque ele é considerado como a expressão filosófica da modernidade. Por
outro lado, o contexto teológico é marcado pelos primórdios da teologia liberal protestante. Será
dito primórdios porque o liberalismo teológico teve sua origem na Alemanha, espaço acadêmico
no qual convergiram várias correntes teológicas e filosóficas, apenas no século XIX. Assim
sendo, embora a teologia liberal protestante tenha seu início apenas no século XIX, antes disso,
é possível notar algumas de suas marcas na teologia do século XVIII. Esse é o contexto no
qual tem origem o método histórico crítico. Como será visto, tanto suas características quanto
seus passos metódicos são profundamente influenciados tanto pelo Iluminismo quanto pelos
primórdios da teologia liberal protestante.
O terceiro capítulo apresentará a fase inicial da primeira busca do Jesus histórico,
segundo Schweitzer. Essa primeira fase corresponderá aos seis primeiros capítulos da sua obra
A Busca do Jesus Histórico. A abordagem de Schweitzer partirá da apresentação do problema
histórico acerca do estudo sobre a vida de Jesus, passará pelas considerações de Schweitzer
sobre a busca do Jesus histórico de Hermann Samuel Reimarus, sobre as vidas de Jesus do
racionalismo primitivo, sobre as primeiras vidas fictícias de Jesus, sobre o racionalismo
plenamente desenvolvido de Paulus e sobre a última fase do racionalismo, mais
especificamente, até as considerações de Schweitzer com relação a Schleiermacher. É
exatamente nessa fase de sua análise que Schweitzer tecerá suas críticas ao racionalismo
existente por trás da primeira fase das pesquisas sobre o Jesus histórico.
O quarto capítulo apresentará a fase final da primeira busca do Jesus histórico,
segundo Schweitzer. Essa segunda corresponderá aos capítulos sete a quatorze da sua obra A
Busca do Jesus Histórico. A abordagem de Schweitzer partide Strauss e abordará todo o
período posterior a ele
4
. Strauss é considerado por Schweitzer um divisor de águas.
Conseqüentemente, a investigação crítica acerca da vida de Jesus é uma antes dele e outra
depois dele. É por isso que o último capítulo começará com Strauss, passará pelos seus
3
A primeira edição em português saiu no ano de 2003, pela Editora Cristã Novo Século, sob o título A Busca do
Jesus Histórico. Uma segunda reimpressão saiu dois anos depois. Elas são praticamente idênticas, exceto por uma
formatação diferente e pelo prefácio de Jaime dos Reis Sant’Anna nessa última reimpressão.
4
Isto é, até Schweitzer.
oponentes e defensores, pela Hipótese Marcana de Weisse, por Bruno Bauer e sua primeira
vida de Jesus cética, pelas outras vidas imaginativas de Jesus, por Renan e irá até às
chamadas vidas “liberais” de Jesus. No fim de todo esse percurso, Schweitzer fará suas
considerações finais acerca do período pós-Strauss. Nesse momento, será ressaltada a
importância da escatologia no que tange à conexão entre as ações de Jesus e os eventos de
sua vida.
Por fim, cumpre ressaltar que a presente pesquisa nasceu de um desejo profundo
por parte do pesquisador de conhecer melhor esse período tão rico e significativo na história da
teologia. Sem dúvida alguma, o tempo investido em estudo foi de grande valia para o seu
desenvolvimento acadêmico e para o aprimoramento dos seus conhecimentos sobre a primeira
busca do Jesus histórico. Embora o pesquisador acredite que o Jesus histórico possa ser
conhecido pelo Cristo da fé, mesmo assim, a coragem, a sinceridade e o rigor com que o
assunto foi estudado durante a primeira fase da investigação crítica acerca da vida de Jesus
serviram como grande inspiração e como meio de ser interpelado por essa problemática. É
válido ressaltar que o produto dessa pesquisa já está sendo e será ainda mais utilizado no meio
acadêmico com o objetivo de divulgar a reflexão sobre o assunto. A que surja uma
oportunidade de dar prosseguimento aos estudos, o pesquisador estará submetendo os
resultados da presente pesquisa a testes e eventuais correções.
1. A vida e a obra de Albert Schweitzer
1.1. Introdução
A presente pesquisa tem como objetivo principal a compreensão da análise que
Schweitzer faz da primeira busca do Jesus histórico. É por isso que o primeiro capítulo se
propõe a fazer uma aproximação biobibliográfica do mesmo. Essa aproximação é relevante
porque contribui para uma melhor compreensão do contexto no qual Schweitzer estava inserido
e como esse contexto o influenciou.
Mas, a tarefa de se reconstruir a vida e a obra de Schweitzer apresenta algumas
dificuldades que não podem ser desconsideradas. Em primeiro lugar, tal reconstrução poderia
partir de seus escritos autobiográficos como, por exemplo, seus livros De Minha Vida e
Pensamento
5
, Memórias de Infância e Juventude, seus relatórios do trabalho na África A Beira
da Mata Virgem, O Hospital em Lambarené, e alguns dos seus panfletos posteriores sem título.
Porém, exceto no livro De Minha Vida e Pensamento, as informações nesses escritos
autobiográficos estão dispersas e o acesso aos mesmos é muito difícil. Desses escritos, o único
com o qual o pesquisador teve contato direto foi o De Minha Vida e Pensamento. No entanto,
sua utilização na pesquisa se restringirá à confirmação de dados. Isso porque, nele, o relato de
Schweitzer sobre a sua vida termina em 1929. Sendo assim, a utilização dessa obra como
ponto de partida prejudicaria a compreensão dos anos seguintes de sua vida.
Em segundo lugar, tal reconstrução poderia partir de biografias de Schweitzer
publicadas hoje, como, por exemplo, Albert Schweitzer: Uma Biografia (Albert Schweitzer: A
Biography), uma das mais reconhecidas atualmente, escrita por James Brabazon, em
comemoração ao centésimo vigésimo quinto aniversário do nascimento de Schweitzer.
Todavia, o acesso à mesma também é muito difícil.
Em terceiro lugar, tal reconstrução poderia partir de livros em cujos conteúdos se
encontram referências a Schweitzer com, por exemplo, um artigo da Enciclopédia Histórico-
Teológica da Igreja Cristã, editada por Walter A. Elwell, um artigo do Dicionário Ilustrado dos
Interpretes da Fé, editado por Justo L. González, e, até mesmo, um artigo da Enciclopédia
Barsa. Contudo, o conteúdo existente em cada um desses artigos é muito limitado. Por serem
apenas nteses biográficas, o mais longo não passa de três páginas. Eles serão utilizados na
pesquisa apenas como referenciais teóricos para a confirmação ou não de dados importantes.
Em quarto e último lugar, tal reconstrução poderia partir de sites da Internet sobre
Schweitzer. Entretanto, dentre os inúmeros que fazem referência a ele, apenas alguns podem
5
SCHWEITZER, Albert. Out of my life and thought: an autobiography. Baltimore: Johns Hopkins, 1998.
ser considerados como confiáveis como, por exemplo, o site da Associação Schweitzer
(www.schweitzerfellowship.org), o site da Fundação Internacional do Hospital do Dr. Albert
Schweitzer em Lambarené (www.schweitzerlambarene.net), o site do Prêmio Nobel
(www.nobelprize.org), o site da Enciclopédia Britânica (www.britannica.com), e, até mesmo, o
site do conhecido Rubem Alves que, por apreciar Schweitzer, escreve algo sobre a vida dele
em seu site pessoal (www.rubemalves.com.br). Embora cada um deles tenha sido pesquisado,
nenhum poderia servir como ponto de partida. Isso porque o conteúdo dos mesmos, apesar de
confiável, é muito limitado.
Diante disso, é necessário fazer uma opção metodológica sobre o ponto de partida.
Assim sendo, o presente capítulo, acerca da vida e obra de Albert Schweitzer, tem como
principal ponto de partida o livro O Profeta das Selvas, de Hermann Hagedorn. Essa obra foi
publicada primeiramente em inglês, com o título Prophet in the Wilderness, no ano de 1949.
Sua tradução para o português aconteceu seis anos depois, em 1955. O tradutor responsável
foi Ilydio Burgos Lopes. Na ocasião, O Profeta das Selvas saiu pela União Cultural Editora, de
São Paulo, com duzentas e vinte e duas páginas. Atualmente, esse livro está esgotado.
A opção evidenciada acima pode ser considerada como a melhor por algumas
razões. Em primeiro lugar, pela facilidade de acesso ao livro O Profeta das Selvas. Em segundo
lugar, pela pesquisa do autor em todas as obras de Schweitzer e em mais vinte e sete autores
que escrevem sobre ele (as referências podem ser consultadas na extensa bibliografia da
obra)
6
. Em terceiro lugar, pela confiabilidade demonstrada pelo contato direto de Hagedorn com
o próprio Schweitzer, onde esse último lhe escreve, de próprio punho, quarenta e sete páginas.
Tais páginas correspondem aos dezoito anos seguintes ao fim de sua principal autobiografia,
De Minha Vida e Pensamento.
Apesar dessas razões, é sabido que algumas dificuldades ainda permanecem. A
primeira é com relação à data de publicação do livro O Profeta das Selvas. Ele foi publicado
dezesseis anos antes da morte de Schweitzer. Então, a parte final da sua vida lhe escapa e
teve que ser reconstruída pelo pesquisador a partir de outras fontes, explicitadas ao longo do
texto. A segunda é que Hagedorn utiliza um estilo literário com traços poéticos. Tendo isso em
vista, tentou-se fazer algumas adaptações para se retirar esses traços poéticos e adotar um
estilo mais narrativo.
Por fim, o capítulo está dividido em três partes. A primeira parte, cujo subtítulo é O
filho de pastor luterano, aborda da infância de Schweitzer ao fim dos anos escolares. A segunda
parte, cujo subtulo é O jovem doutor em teologia, aborda do início do curso de teologia e
6
Cf. HAGEDORN, Hermann. O Profeta das Selvas. São Paulo: União Cultural Editora, 1955. p. 216-220.
filosofia à ida para a África como médico-missionário. A terceira e última parte, cujo subtítulo é
O médico dos negros africanos, aborda da chegada à África ao fim da sua vida.
1.2. O filho de pastor luterano
7
Albert Schweitzer nasceu no dia 14 de janeiro de 1875, em Kaysersberg, na Alsácia
(na época, sob domínio alemão). Seu pai, descendente de uma estirpe de pastores,
professores, organistas e lavradores, era pastor da igreja evangélica de Günsbach, no vale de
Münster. Sua mãe era filha de um pároco do Vale, um devoto do órgão e quase uma autoridade
em matéria de construção de órgãos. Schweitzer tinha quatro irmãos e o seu lar inspirava
serenidade e um tranqüilo ambiente de crescimento. Tanto o pai quanto a mãe priorizavam uma
disciplina doméstica rígida, e conciliavam bem as tradições alemã e francesa.
8
Ainda bem jovem, Schweitzer demonstrava uma profunda e sincera receptividade
ao apelo religioso. Ele gostava muito dos sermões semanais do pai. Uma vez por mês, nos
cultos menos formais da tarde, o pastor contava histórias de missionários nos longínquos
recantos da terra, especialmente daqueles seus conterrâneos que trabalhavam entre os negros
africanos. Mas, o que mais chamava a atenção de Schweitzer era o senso de consagração, a
profunda quietude e a reverência que notava nos cultos da pequena igreja.
À medida que crescia, Schweitzer se mostrava como um menino sincero e se dava
muito bem com os demais garotos. Porém, o sentimento de tristeza que observava no mundo o
afetou bem cedo, fazendo-o perceber que estava rodeado por sofrimento. Tal sofrimento estava
presente até mesmo em seu próprio lar, onde há anos o pai se arrastava, vítima de reumatismo
muscular e de enfermidades no estômago. A mãe, por sua vez, estava sempre sobrecarregada,
com os cinco filhos para alimentar e vestir, apenas com o salário de um pároco rural.
9
Aos nove anos de idade, pela primeira vez, Schweitzer tocou órgão num culto na
igreja que o seu pai pastoreava. Todavia, na escola, ele não era nada brilhante. Aos dez anos
foi enviado ao colégio, o Gymnasium de Mulhouse, na Alta Alsácia. Mudando-se para lá, a vida
disciplinada se tornou ainda mais intensa por parte dos seus tios-avós paternos, em cuja casa
ficou alojado. Os dias de Schweitzer foram regulados minuto por minuto. De manhã, escola,
depois do almoço, piano, mais escola, exercícios escolares em casa e outra vez piano. Quase
não tinha recreação. Apesar de tudo isso, por baixos rendimentos escolares, quase perdeu a
bolsa de estudo que lhe cabia como filho de pastor. Após uma forte repreensão do pai teve seu
aproveitamento escolar melhorado, começou a ler e leu bastante. Lia até jornais, especialmente
7
Cf. HAGEDORN, O Profeta, p. 19 – 42.
8
Cf. SCHWEITZER, Out of my life, p. 1-2.
o caderno de política. Em meio a essa nova fase da vida, ele se aprimorava cada vez mais na
música. Foi durante esse período que o Eugênio Münch, seu professor, lhe deu a oportunidade
de tocar Johan Sebastian Bach.
10
Schweitzer recebeu a Confirmação aos catorze anos. Na Alemanha do século XIX,
na década de 80 a 90, a Confirmação era parte inevitável do ritual da adolesncia. O ato
solene, no Domingo de Ramos, início da primavera, era precedido de um ano de aulas
semanais de instrução nos elementos da fé luterana. A mente e o espírito de Schweitzer
estavam em estado de incandescência. Apesar da desilusão ao seu redor, para o jovem
idealista tudo parecia possível. A classe de catecúmenos para a Confirmação, dirigida pelo
pastor Wennager, parecia-lhe uma oportunidade enviada por Deus para compreender o motivo
da desilusão que o cercava e descobrir o que fazer. Contudo, logo soube que, na opinião do
pastor, fazer perguntas era prerrogativa exclusiva do professor. O Evangelho era matéria de
e não da razão, e na presença das realidades da fé, afirmava o pastor, a razão deve ficar
calada. Quanto a isso, Schweitzer possuía suas próprias idéias. A razão foi dada ao ser
humano, dizia de si para consigo mesmo, para que ele possa compreender as concepções da
religião. Após uma conversa franca com ele, o pastor Wennager disse à sua tia Sofia, com
muita tristeza, que para o jovem a Confirmação nada significava.
No colégio, Schweitzer sempre se interessou mais por história que por matemática e
línguas. Ainda aos catorze anos, sua fome de saber e de compreender, e a resolução da sua
mente honesta de pesquisar e enfrentar as realidades da existência, fizeram dele um verdadeiro
incômodo para todos. Com freqüência, o adolescente lançava suas opiniões em qualquer
conversa, desafiava qualquer afirmação e discutia qualquer assunto. Logo, tornou-se uma das
principais disciplinas da sua vida suportar conversas sem dar palpites. A única pessoa que tinha
liberdade para conversar sobre todo e qualquer assunto era o seu pai.
11
A caminho de alcançar a maioridade, Schweitzer bem quisera persuadir-se de que
seus dons eram apenas boa sorte e que ninguém tinha nada com isso. Entretanto, uma Voz
12
íntima lhe dizia que todo aquele que é cumulado de alegria e beleza tem uma dívida a que não
pode fugir. Isto é, quem não conhece a dor tem o dever de aliviar o sofrimento dos menos
afortunados.
9
Ibid., p. 2.
10
Ibid., p. 2-4.
11
Ibid., p. 4.
12
O termo Voz é citado com letra maiúscula porque Schweitzer entendia ser a voz de Deus.
Os anos escolares de Schweitzer terminaram com um terrível exame final onde o
examinador-presidente, oriundo de Estrasburgo, após pôr à mostra os espaços vazios nos
conhecimentos do rapaz, se surpreendeu com compreensão que o mesmo tinha de história.
13
1.3. O jovem doutor em teologia
14
Quatro meses depois, Schweitzer foi a Paris. Tinha dezoito anos e nunca havia
saído da sua província natal, nem visto cidade maior que Estrasburgo, capital da Alsácia. Em
outubro de 1893, graças a uma tia que morava em Paris, ele foi apresentado a Charles Maire
Widor, sucessor de César Franck como professor de órgão no conservatório. Deste dia em
diante, Widor se tornou seu professor e amigo. Também foi no final desse mês que Schweitzer
se matriculou em Estrasburgo para estudar teologia e filosofia. Recentemente, tal universidade
havia sido renovada pelas autoridades germânicas, logo depois da guerra franco-prussiana.
Nova em anos, também era nova em espírito. Havia sido fundada no século XVI e sua nova
fase retinha mais do espírito da Reforma Protestante do que porventura agradasse à população
predominantemente católica.
15
As universidades germânicas, em geral, priorizavam a pesquisa independente muito
mais do que a assistência às aulas. Portanto, as conferências sobre os três primeiros
Evangelhos lançaram Schweitzer à leitura de comentários, e esses o fizeram pensar por si
mesmo. Desde bem cedo, percebia que algumas passagens dos Evangelhos não faziam
sentido, pelo menos na base dos dogmas aceitos. Por outro lado, notava que havia episódios
que não se enquadravam no resto da narrativa, e, no entanto, tinham um cunho de
historicidade. Enquanto o jovem teólogo meditava sobre esse problema, o Kaiser estendeu o
braço e o arrastou para o exército alemão. Durante um ano teria que prestar serviço obrigatório.
Schweitzer levou consigo um Novo Testamento grego e um exemplar dos comentários de
Holtzmann. Nesse um ano de serviço, entremeou exercícios e manobras com estudos dos
textos originais e erudita exegese.
16
Ao retornar, Schweitzer foi sondado pelo professor Holtzmann acerca do que ele
havia estudado durante o verão. Mas o jovem se absteve de insinuar ao seu erudito mentor que
as teorias dele não tinham sentido. Na hora certa, ele o faria, não em simples conversa, porém
num livro. Enquanto isso, Schweitzer fortalecia-se por meio de pesquisas independentes nos
13
Cf. SCHWEITZER, Out of my life, p. 4.
14
Cf. HAGEDORN, Op.cit., p. 43 – 96.
15
Cf. SCHWEITZER, Out of my life, p. 4-5.
16
Ibid., p. 5-6; 10.
Evangelhos sinópticos e nos problemas da vida de Jesus, e alargava seus pensamentos por
meio de estudos filosóficos.
17
Schweitzer ficou empolgado com grandes filósofos, como, por exemplo, Kant, Fichte
e Hegel. Ele pensava que todos eles haviam enchido a segunda metade do século XVIII e os
primeiros anos do XIX com grande brilho. No entanto, Schweitzer voltou-se para Goethe, que
lhe fora contemporâneo. Sua intenção era perceber como o maior poeta da Europa daquele
período havia sido influenciado no seu pensamento pelos maiores filósofos europeus. Embora
reverenciasse os gigantes, seu realismo o atraiu para pensadores mais elementares.
Durante esse período, Schweitzer encontrou amigos entre os estudantes e nas
famílias dos professores, e tornou-se integrante de um grupo de jovens intelectuais, de ambos
os sexos, atraídos pelo comum amor à natureza e por uma inebriante certeza de serem arautos
de uma nova época. Seu pensamento político era muito influenciado pelo socialista cristão
Frederico Naumann, que lutava por uma síntese entre a crescente consciência nacional e a
aspiração pela justiça social e econômica.
Teologia, filosofia, palestras, contatos, natureza. Tudo isso entrelaçado pela música.
A idéia de consagrar-se à música, como carreira, vez por outra estava presente na mente de
Schweitzer. Todavia, ele a repelia. Embora tirasse bons resultados do seu dom hereditário de
improvisação e fosse um excelente intérprete, reconhecia não possuir o dom da criação
musical. O jovem músico, aos dezoito anos, era considerado como um dos maiores
conhecedores de Bach de Estrasburgo. Durante suas rápidas viagens a Paris, também estudou
piano. Contudo, seus conhecimentos de ópera vinham do teatro municipal de Estrasburgo, lugar
que costumava freqüentar.
18
No terceiro ano que estava na universidade, Schweitzer atingiu a maioridade.
Naquela época, tudo ao seu redor anunciava o progresso do século XIX e tinha por segura a
civilização ocidental. A ignorância estava sendo vencida, a superstição praticamente não
existia, durante um quarto de século não havia guerra de grandes proporções na Europa, a
economia mundial crescia, a facilidade de comunicações estava quebrando os muros do
nacionalismo e quase todos viajavam (os que ficavam em casa liam sobre outros países e
outros povos). Estava nascendo uma sociedade internacional, a ciência se expandia cada vez
mais e o progresso era visto como algo automático. Entretanto, Schweitzer não se deixava
convencer por tal opinião. Ele sentia apreensões e desconfianças quanto à convicção
generalizada de que a humanidade estivesse em constante avanço do bom para o melhor e do
17
Ibid., p. 6-10.
18
Ibid., p. 11-13.
melhor para o ótimo. Percebia também uma estranha fadiga intelectual e espiritual entre os
homens que dirigiam os negócios do mundo. No lugar da justiça que fora proclamada, no século
XVIII, via apenas uma certa esperteza, no século XIX.
De acordo com Schweitzer, os anos de estudante passaram com a rapidez das
férias de verão. Ele se considerava uma pessoa muito feliz e, por isso, pensava que tinha que
pagar por essa felicidade. Tal pagamento consistia em servir aqueles que, na sua opinião,
nunca tiveram a mesma felicidade que ele tinha, aqueles que morriam de fome no corpo e na
alma, aqueles que se contorciam nas garras da dor. Mas, sempre que era assaltado por tal
idéia, procurava expulsá-la de sua mente.
19
Em uma manhã de domingo de Pentecostes, na casa pastoral em Günsbach,
Schweitzer foi novamente interpelado pela Voz que tanto tentara silenciar. Surgiram-lhe
palavras familiares na mente, como, por exemplo, “quem perde a sua vida por minha causa a
encontrará” (Mt. 10:39 - NVI). Desta vez, ele não resistiu. Lembrando-se que Jesus se dedicou
a uma oficina de carpinteiro até aos trinta anos, decidiu que gozaria a vida até a mesma idade e
depois se entregaria, sem reservas, a Deus e à humanidade. Ainda lhe restavam nove anos.
Os anos seguintes seriam dedicados a uma melhor preparação para o tempo em
que, no futuro, serviria a Deus servindo à humanidade. Exames, teses e mais exames. A
dissertação sobre o problema da última ceia de Jesus e um doutorado em teologia. A tese
sobre a filosofia religiosa de Kant e um doutorado em filosofia.
20
Um pmio de viagem levou Schweitzer a Paris. Ali dedicou todas as suas noites ao
estudo de Kant. Como descanso, tocava órgão sob a direção de Widor, considerado na época
como o maior organista da França. Widor admitia que seu aluno sabia mais do que ele sobre
Johann Sebastian Bach. Em tardes sucessivas, estavam eles sentados ao piano de Widor, lado
a lado, tocando todos os prelúdios corais de Bach. À medida que Schweitzer os explicava, um
após o outro, o grande organista reconheceu que pela primeira vez estava travando
conhecimento com o verdadeiro Bach. Neste mesmo dia Widor pediu a Schweitzer que, por
amor aos colegas de órgão na França, escrevesse tudo que havia dito sobre os prelúdios
corais. Tal escrita deveria ser sobre o fundo da música religiosa alemã do tempo de Bach.
21
O mesmo otimismo de Estrasburgo foi percebido por Schweitzer em Paris. Embora
abatidos, os intelectuais não tinham sérias preocupações com o futuro. Os livros daquele
período e a imprensa diária pareciam ter por certo não que o mundo ocidental havia feito
coisas miraculosas na ciência e na mecânica, senão também que no terreno intelectual e ético
19
Ibid., p. 13.
20
Ibid., p. 16; 24.
havia atingido alturas nunca antes alcançadas. Porém, Schweitzer duvidava disso. A ele parecia
que, na vida mental e espiritual, o ocidente estava não só abaixo do nível das gerações
anteriores, todavia, sob muitos aspectos, vivia das vitórias passadas. Ele o comparava a um
herdeiro extravagante a dissipar a fortuna da família.
22
Após essa temporada em Paris, Schweitzer foi a Berlim com o objetivo de estudar
filosofia e ouvir as preleções de Adolf Harnack, de Frederich Pausen e de outros reconhecidos
nomes da universidade. Na imprensa e nos livros que circulavam em Berlim, notou a mesma
disposição para aceitar aquilo que era moralmente inaceitável, como já havia notado nos jornais
e livros em Estrasburgo e Paris. Tal disposição era permeada por um senso de fadiga moral e
espiritual, aliado a um otimismo quanto ao futuro. A palavra mais falada em Berlim naquela
época era Realpolitik. Essa palavra carregava um sentido de fazer tudo quanto é bom para a
nação, sem ter em conta os princípios ou quaisquer concepções da decência. Ou seja, a força é
que faz o direito. O mais impressionante é que, com tudo isso, esse século ainda havia
conservado clara a sua percepção da realidade, seu senso dos direitos humanos e do valor do
indivíduo.
23
Certa vez, na casa da viúva do humanista Ernersto Curtius, Schweitzer se
encontrou com muitas das mentalidades dirigentes da nova Alemanha. Estavam presentes
eruditos, cientistas, artistas e homens de letras. Por entre o rumor da conversação geral,
Schweitzer apanhou uma exclamação de intensa desilusão: “Qual! Todos nós, nada mais
somos senão herdeiros do passado!Ao voltar para casa, tais palavras ainda lhe soavam na
mente. Ao que lhe parecia, ele não estava tão errado sobre o seu julgamento da época em que
estava vivendo. Aquela exclamação lhe confirmara a idéia de que não tinha havido progresso, e
sim retrocesso. Ele ainda havia de escrever um livro que receberia o título Nós, herdeiros do
passado. Nesse livro pintaria o quadro de uma grande civilização que, no seu orgulho por
conquistas de valor secundário, estava renunciando aos princípios éticos dos quais dependia a
sua existência.
Como mesmo havia dito, Schweitzer viveria a sua própria vida até os trinta anos.
Dos nove anos, quando tomara essa decisão, três haviam se passado. Nesses três anos,
investiu em estudos, meditações e nos exercícios musicais. Durante esse período também se
fixou na universidade de Estrasburgo e obteve um lugar de coadjutor na igreja de São Nicolau.
Schweitzer se tornou assistente de dois velhos e piedosos cavalheiros que eram seus pastores
21
Ibid., p. 16-21.
22
Ibid., p. 23.
23
Ibid., p. 21-23.
regulares. Ele apreciava muito os cultos nas tardes de domingo, especialmente porque podia
usar o estilo simples e íntimo que havia herdado do pai.
24
Schweitzer trabalhava os seus sermões, escrevia-os e confiava-os à memória.
Muitas vezes, no último minuto, dava-lhes uma nova orientação. O número dos seus ouvintes
crescia domingo após domingo. Cresciam também as queixas quanto à brevidade dos sermões.
Eles eram muito curtos. Três vezes por semana, Schweitzer ensinava uma classe de meninos
candidatos à Confirmação. Usando palavras simples, facilmente compreendidas e guardadas,
ensinava as verdades do Evangelho, a natureza da Igreja e a necessidade de reservar, pelo
menos, uma hora por semana para adoração. A essa hora ele dava o nome de “hora solene
para a alma”. Caracteristicamente, não fazia muita questão dos dogmas. Gostava sempre de
enfatizar o limite do conhecimento humano, tanto no campo da religião como no da história.
Afirmava que para algumas perguntas não havia respostas deste lado do infinito. Era nesse
ponto que a fé entra.
25
Além do trabalho de coadjutor, seu ensino, suas pesquisas e seus escritos,
Schweitzer exercia funções administrativas como guardião do colégio teológico, o que incluía,
no seu modo de entender, relações pessoais com os jovens teólogos que moravam na escola.
Dava-lhes toda liberdade possível, contudo, tinham que trabalhar muito.
26
Paralelamente a todas essas atividades, Schweitzer adquiria experiência no serviço
social. Ele quis contribuir para a educação de crianças negligenciadas ou sem recursos,
entretanto, o Estado não “precisava” do seu auxílio. Uma vez que não lhe permitiam ajudar as
crianças desamparadas, resolveu fazer o que pudesse pelos desocupados. Para isso, se aliou
ao coadjutor de uma igreja vizinha na direção de uma espécie de albergue. Os recursos para
tocar o projeto social vinham das doações de amigos. Todo seu trabalho era inspirado em
Goethe, que uma vez havia posto de lado um trabalho importante para empreender uma
jornada, em pleno inverno, para visitar um amigo necessitado de amparo espiritual. Tal
influência acompanhou Schweitzer pelo resto da sua vida. Ele sempre dizia que, na vida, é
preciso fazer outras coisas mais além de estudar, escrever, pregar e ensinar.
27
Enquanto isso, à noite e pela manhã, Schweitzer estudava Johann Sebastian Bach.
O ensaio que havia prometido escrever aos organistas da França estava alcançando
proporções inesperadas. Se tivesse que dizer tudo o que pensava que devia ser dito, escreveu
certa vez a Widor, seria preciso escrever um livro muito grande. Widor respondeu
24
Ibid., p. 25.
25
Ibid., p. 25-28.
26
Ibid., p. 25.
27
Ibid., p. 28.
entusiasmado, se propondo a escrever a introdução. Em meio a tantas atividades, respirou e
pôs as mãos à obra.
28
Foi no quarto do Colégio de São Tomás, onde havia passado tantas horas felizes
quando estudante, que Schweitzer prosseguia nas pesquisas sobre a vida de Jesus. Tal
assunto o empolgava desde os primeiros anos da universidade e durante o período de
serviço militar obrigatório. Ele não estava envolvido simplesmente com interpretações de
passagens controversas. Também se dedicava a questões que atingiam o âmago da fé cristã. A
intenção inicial de Schweitzer era destruir, de uma vez por todas, a concepção, a seu ver
errada, da história de Jesus que os teólogos do século XIX, procurando tornar Jesus
compreensível ao seu tempo, haviam tornado “canônica”. O retrato que eles haviam traçado era
simpático a uma época em que os dogmas se estavam enfraquecendo e os intelectuais se
irritavam com referências ao sobrenatural. Tal retrato apresentava Jesus como a mais
avançada floração da natureza humana no processo evolutivo e, conseqüentemente, o
acomodava com a era do progresso social e científico.
29
Em suas pesquisas, Schweitzer encontrou algo diferente do quadro que a erudição
do século XIX havia tornado popular, mas não menos magnífico. Diz-se que era a infusão, na
tradicional concepção do Reino, de um espírito ético tão poderoso que poderia galvanizar e
refazer toda a estrutura social do mundo ocidental. O carpinteiro Galileu dissera ao seu povo
que o Reino sobrenatural de Deus estava próximo. Porém, eles não poderiam esperar ter parte
nele se, nesse ínterim, não se preparassem. A compreensão dos ensinos morais de Jesus
abalou Schweitzer. Tal abalo se deu enquanto ele os estudava, novamente, à luz das predições
de Jesus tangentes ao iminente fim do mundo. Schweitzer completava um aspecto do seu
estudo para logo encetar outro. A única maneira de dissipar o mito popular e romântico seria
apresentar a figura histórica de Jesus em tão vivo relevo que mito algum pudesse subsistir ao
seu lado.
30
Assim, Schweitzer buscou o Jesus da história com muita intensidade. Estudou,
praticamente, todas as tentativas anteriores de reconstruir a história de Jesus. Qual teria sido,
enfim, a verdade sobre Jesus? À medida que ia reunindo os livros de que necessitava para
cada capítulo da obra, empilhava-os nos cantos do escririo. A sua recomendação era que
ninguém mexesse nessas pilhas. Mês após mês, ano após ano, dava continuidade à
pesquisa.
31
28
Ibid., p. 30-31.
29
Ibid., p. 25.
30
Ibid., p. 32-42; 46-50.
31
Ibid., p. 44-45.
Schweitzer tinha agora vinte e sete anos. A cada ano crescia a exultação que lhe
davam a pregação e o ensino. Os estudos históricos lhe empolgavam e também a idéia de
interpretar Bach para o povo da sua segunda pátria, a França. O simples fato de estar vivo em
Estrasburgo, de trocar idéias com seus companheiros das diversas faculdades, de passear
pelos belos arredores, de pensar no livro sobre a decadência da civilização que tencionava
escrever um dia, tudo isso era felicidade genuína, algo que aprofundava sua resolução de
pagar em serviço à humanidade o que havia recebido.
Todavia, em meio a sua felicidade, Schweitzer, era levado a pensar sobre mistério e
o sofrimento existentes no mundo. A simpatia pelos povos desprezados, despertada na infância
pelas leituras que o seu pai fazia das memórias do missionário africano Casalis, e aprofundada
pela contemplação do “Negro” de Bartholdi, em Colmar, era alimentada por tudo que lia sobre a
exploração dos negros pelos homens brancos, no Congo e em outros lugares, e pelos relatórios
que das condições da África faziam os missionários alsacianos que iam para casa em gozo de
férias. Uma pergunta lhe perturbava: como podia a mente européia, tão sensível em outros
sentidos, ser tão empedernida nesse ponto? Talvez, algum dia, alguém os despertaria da sua
apatia, alguém que se impressionasse a ponto de oferecer sua vida pela causa.
Schweitzer não era um doutrinador. Embora conversasse demais, em geral, ouvia
mais do que falava. De Goethe, ele havia aprendido a reverenciar as mulheres. Apreciava, de
maneira especial, as senhoras idosas que houvessem entretecido a experiência com a filosofia
e tivesse uma visão pessoal da vida. Ele gostava muito da companhia dessas senhoras.
32
Certo dia, em Paris, Schweitzer encontrou Romain Rolland. Esse último era autor
teatral e poeta, historiador e biografo. Na ocasião estava com quase quarenta anos. Acima de
tudo, era um tolstoiano e um internacionalista. Buscava a integração da Europa numa
consciência européia que transcendesse os temores e os preconceitos nacionais. Quando
Schweitzer se encontrou com ele, Rolland acabara de publicar, numa revista obscura, a
primeira parte de uma novela de dez volumes. Era a história de um grande músico, um alemão,
que devia reunir em sua personalidade e espírito o fogo e a luz de todos os povos da Europa.
Quando Rolland faz o Rei Luís IX dizer, no leito da morte, que é glorioso lutar pelo inatingível,
quando o inatingível é Deus, estava reverberando uma idéia do próprio Schweitzer. Da mesma
forma, Schweitzer reverberaria uma iia de Rolland ao escrever em sua autobiografia que não
há heróis de ação; há heróis unicamente da renúncia e do sofrimento.
33
32
Ibid., p. 29-30.
33
Ibid., p. 28-29.
O encontro com Rolland foi muito marcante para Schweitzer. Ele sentiu-se
encorajado ao encontrar, numa geração intoxicada pelo êxito material e pelas conquistas
científicas, um homem tão possuído por uma grande idéia ética. À semelhança do amigo
alsaciano, Rolland não alimentava ilusões quanto ao caráter automático do progresso e sua
inevitabilidade. Ele pensava que a civilização repousa sobre bases éticas. Quando essas bases
são negligenciadas toda a estrutura se desmorona. Rolland alargou o horizonte internacional de
Schweitzer e o grupo de Estrasburgo, com o qual se reunira desde seus dias de estudante lhe
estimulou a consciência social.
34
Entre as pessoas do grupo de Estrasburgo estava a filha de um distinto professor de
história na universidade. Seu nome era Helena Bresslau. Certo dia, conversando sobre os
sermões de Schweitzer, eles concordaram no reconhecimento de que suas vidas não eram
deles mesmos. Ambos haviam determinado uma data após a qual assumiriam uma
responsabilidade sobre a vida de outros. Schweitzer decidira que aos trinta. Helena Bresslau,
aos vinte e cinco. Ambos também reconheciam que eram comissionados, obrigados para com
Deus e para com os homens a passar a outros o bem que a vida lhes outorgara. Além disso,
ambos estavam empenhados em descobrir o campo especial em que os seus dons pudessem
ser mais úteis para o serviço à humanidade. Helena Bresslau, de posse de um diploma de
professora, concluíra um curso de enfermagem e trabalhava na área social. Recentemente,
havia sido chamada para organizar uma maternidade. Em tal organização, contou com a ajuda
de Schweitzer. Por esse e outros motivos, eles se aproximavam cada vez mais.
Era nesse ambiente de humana camaradagem, enriquecendo os sentimentos e a
mente, que Schweitzer prosseguia suas pesquisas teológicas. Descobriu que o trabalho lhe
desafiava nos mais profundos recursos do seu espírito. A essa altura, ele já percebia as
conclusões revolucionárias que derivavam das suas pesquisas, bem como os efeitos que elas
poderiam produzir no mundo cristão. Apesar de saber que convinha resolver problemas
históricos e situar Jesus, inquietava-lhe a possibilidade de levar confusão aos corações dos
crentes. Tal inquietação era produto de um coração pastoral que o mesmo possuía. Esse
sentimento lhe perturbou, porém não lhe deteve. Em meio a tudo isso, acabou concluindo que
era necessário deixar os cristãos encarar o fato de que o mundo em que Jesus nasceu e
morreu não era o mundo deles, nem o mundo do século XX era o mundo de Jesus. Am disso,
era preciso deixá-los enfrentar o fato, ainda mais perturbador, de que, a verdade religiosa varia
de época para época. Contudo, a religião do amor era a mesma para sempre.
34
Ibid., p. 28-29.
Paralelamente aos seus estudos sobre a vida de Jesus, Schweitzer trabalhava na
sua biografia de Johann Sebastian Bach. O pequeno ensaio previsto se transformara em um
livro de quatrocentos e cinqüenta páginas. Sua publicação em Paris havia agitado os
entusiastas de Bach em toda a Europa. De além do Reno veio o pedido de uma tradução
alemã. Sem hesitar, começou a trabalhar, não tardando, entretanto, em verificar que era
incapaz de traduzir sua própria obra. Concluiu que, se quisesse produzir algo que merecesse
ser lido, deveria voltar às suas fontes e escrever um novo livro. Seus esforços iniciais foram em
vão. O livro não sairia, por enquanto.
35
Dos nove anos que Schweitzer pretendia viver para si mesmo, lhe restava um.
Mas, ainda não tinha a nima idéia do modo como realizaria o serviço direto à humanidade.
Certo dia viu uma revista de capa verde, na sua mesa do colégio teológico. Era o relatório da
Sociedade Missionária de Paris. Essa sociedade ocupava um lugar querido em seu coração.
Isso porque fora ela que enviara o dedicado Casalis, cujas cartas seu pai havia lido no púlpito,
em Günsbach, quando ele ainda era menino. À noite, lendo um dos artigos que lhe chamara a
atenção, Schweitzer ficou atônito. O presidente da sociedade, um compatriota alsaciano,
apresentava a necessidade de obreiros para o Congo Francês. O quadro que traçava dos
selvagens torturados pela superstição despertou Schweitzer. Ele fechou a revista e começou o
seu trabalho noturno. Estava terminada a busca. sabia qual seria o seu serviço direto à
humanidade.
36
No dia 15 de janeiro de 1905 haviam expirado os nove anos. Schweitzer pensava na
sua resolução, pensava na África e pensava nos seus recursos. Se fosse mesmo, deveria ser
na qualidade de médico-missionário. Ele pensava que não era suficiente falar da religião do
amor, porém era forçoso praticá-la. Além disso, o que o Congo precisava não era de um pastor
ou professor, todavia, de um médico. Com base em tal pensamento, começou a preparação
para estudar medicina. Apenas nove meses depois, Schweitzer colocou numa caixa do correio
meia dúzia de cartas, nas quais contava à família e aos amigos mais íntimos a sua decisão de ir
para a África como médico-missionário. A notícia estourou como uma bomba em Paris,
Günsbach e Estrasburgo.
A oposição prevista foi imediata. Alguns chegaram a pensar que Schweitzer estava
enlouquecendo. Apenas na família houve o reconhecimento de que, se estava tomando essa
decisão, ele deveria ter uma razão muito profunda para isso. Para sua maior surpresa,
encontrou resistência até entre a comissão diretora da Sociedade Missionária Evangélica de
35
Ibid., p. 61-65.
36
Ibid., p. 81-86.
Paris. Isso porque, embora ainda não publicado, circulava o primeiro ensaio do seu livro
sobre Jesus, e o mesmo era visto por muitos com suspeita. O diretor se sentiu aliviado
quando Schweitzer deixou bem claro que planejava ir ao Congo como médico. Contudo, os
companheiros dele continuaram nos seus temores.
37
No fim de outubro do mesmo ano, Schweitzer voltou a ser estudante e, para sua
manutenção, continuou com todas as atividades anteriores. Não conseguia nem pensar na
possibilidade de abandonar as aulas na universidade, as pregações, as pesquisas, a música e o
trabalho com os meninos da classe de confirmados. Entretanto, Schweitzer estava cônscio que
um dia teria que deixar tudo isso. Era o preço do serviço. Era o que Jesus queria dizer quando
falou de perder a vida para ganhá-la.
38
A vida de Schweitzer seguia em ritmo acelerado. Viagens a Paris, Barcelona e
muitos concertos. Noite após noite trabalhava na versão alemã do livro sobre Bach e no estudo
sobre a vida de Jesus. Vasculhando as pilhas de livros que lhe enchiam o escritório e
procurando a verdade através dos séculos, finalmente, Schweitzer achou o que, segundo ele,
era o Jesus histórico. A verdadeira significação e o verdadeiro poder de Jesus começaram a
alvorecer em sua alma. O que lhe empolgava não era o poder da figura histórica, pregando uma
doutrina que o século XX podia aceitar e aplaudir porque era universal. O Jesus histórico havia
negado o mundo. A mente moderna o afirmava.
39
Schweitzer dizia que os teólogos haviam enfraquecido a mente contemporânea.
Isso porque recusavam reconhecer o abismo existente entre o Jesus histórico e o homem do
mundo moderno. Tal recusa fazia com que o conflito entre o homem do mundo moderno e o
Jesus histórico fosse evitado. Mas, para Schweitzer, era esse conflito, que implicava em uma
rejeição pessoal pelo mundo, que fazia com que a religiosidade dos tempos de Jesus fosse
comunicada ao homem moderno.
Enquanto trabalhava, parecia que a própria relação de Schweitzer com o Jesus
histórico se desenrolava sem nenhum raciocínio consciente da sua parte. De acordo com ele,
Jesus não havia julgado necessário dar aos seus amigos e seguidores nenhum discernimento
do segredo da sua personalidade. A única coisa que havia pedido era que, em tudo quanto
fizessem e por onde fossem, provassem ser homens por ele obrigados a deixar para ts uma
vida egocêntrica e a tomar uma vida teocêntrica. Trabalhando mês após mês, chegou a
conhecer Jesus não como o protagonista da suprema história de amor e sacrifício desse
37
Ibid., p. 86-95.
38
Ibid., p. 96.
39
Ibid., p. 96-100.
mundo, nem como o maior mestre e profeta da história, porém, acima de tudo, como uma
pessoa que tinha autoridade sobre ele.
A longa tarefa se aproximava do fim. O último capítulo, a última página e o último
parágrafo estavam sob suas mãos. Finalmente, as últimas frases:
Ele se nos chega como Um desconhecido, sem um nome, como antes, ao lado
do lago, quando Ele chegou junto aqueles homens que não O conheciam. Ele
nos fala a mesma palavra: Siga-me!e nos estabelece as tarefas que Ele tem
de cumprir para o nosso tempo. Ele ordena. E para aqueles que O obedecem,
quer sejamos sábios ou simples, ele revelará a si mesmo nas obras, nos
conflitos, nos sofrimentos que eles passarão em sua companhia, e, como um
ministério inefável, eles aprenderão em suas próprias experiências Quem Ele
é.
40
Estava concluída a sua obra sobre a busca do Jesus histórico. Em 1906, a
publicação do livro intitulado A Busca do Jesus Histórico causou apenas uma ligeira agitação na
pacata vida acadêmica alemã daquele período. A Faculdade Teológica de Estrasburgo acolheu
sem grande avidez as reflexões de Schweitzer. A julgar pelas repercussões imediatas, ele
poderia persuadir-se de que o mundo acadêmico alemão considerara insignificante o seu livro.
Todavia, foi da Inglaterra que veio o primeiro reconhecimento do seu trabalho. Em Oxford e
Cambridge, os entendidos do assunto aceitaram as conclusões de Schweitzer como
autorizadas. Seus comentários também tiveram repercussões continentais. Entre o clero, de
Amsterdã a Königsberg, começaram a ouvir sussurros de que algo de cataclísmico estava
convulsionando a teologia cristã. Pastores, antes instalados na sua ortodoxia, ficaram
alarmados com os resultados apresentados por Schweitzer. A confusão e a dor entre os crentes
cristãos, como era previsível, manifestaram-se em eloqüentes impropérios contra ele.
41
Schweitzer, porém, não teve tempo para se preocupar com o que o mundo estava
dizendo do seu livro ou dele mesmo. Sua mente estava ocupada com anatomia, fisiologia,
química, física, zoologia, botânica, entre outras coisas. Durante seis anos prosseguiu seus
estudos científicos e médicos. Apesar do segundo ano de medicina ter sido muito apertado,
Schweitzer não quis abandonar seus trabalhos na paróquia nem suas conferências. Ele
também estava convicto que era preciso terminar a versão alemã do livro sobre Bach antes de
ir para a África. Assim sendo, dava concertos para custear suas despesas. Mesmo com todo
trabalho que lhe dava um único recital, achava tempo para ir a Paris, pelo menos seis vezes por
ano, para os concertos da Sociedade de Bach. Schweitzer ajudava a preparar os programas,
escrevia as notas, ia aos ensaios e incentivava cada membro da orquestra e do coro com a sua
40
SCHWEITZER, Albert. A Busca do Jesus Histórico. São Paulo: Novo Século, 2003. p. 477.
41
Cf. SCHWEITZER, Out of my life, p. 45; 53-60.
empolgação. Em meio a tudo isso, vez por outra, era obrigado a tentar silenciar a Voz que lhe
ordenava perder tudo para ganhar tudo. Ele suplicava: Ainda não! Ainda não!
42
Ainda durante esse período, Schweitzer passou a se concentrar na cruzada para
estabelecer padrões na construção de órgãos. Num campo limitado, estava ele lutando contra a
degeneração dos produtos de um sistema industrial mecanizado, e, de maneira indireta, contra
a desintegração da própria civilização. Schweitzer publicou um panfleto intitulado A Arte de
Construir e Tocar Órgãos na Alemanha e na França. Em tal panfleto sumariou uma década de
pesquisas e de estudos da natureza e das possibilidades dos órgãos velhos e novos. Esse
trabalho fez dele a maior autoridade da Europa em maria de órgãos e alvo de muito trabalho
em um novo campo.
43
Schweitzer passou noites e noites estudando projetos de órgãos. Ele escreveu
centenas de cartas a bispos, reitores, prefeitos, fabricantes de órgãos e organistas. Também
viajou para lugares distantes com o propósito de estudar questões de restauração, reconstrução
e substituição de órgãos. Além disso, advogou diante de consistórios e conselhos de igrejas.
44
À medida que caminhava rumo à conclusão do curso de medicina, a fadiga de
Schweitzer aumentava cada vez mais. Contudo, nem assim pensava na possibilidade deixar
alguma das suas atividades antes de ir para a África. Nesse período, achar tempo para dormir
era um grande desafio. Nos raros feriados, Schweitzer ia para a casa pastoral em Günsbach. Ali
parecia o único lugar que conseguia descansar um pouco.
45
Com a ajuda de Helena Bresslau nos seus exercícios de órgãos e nas suas
publicações, a afinidade entre Schweitzer e ela crescia. Desde que resolvera estudar medicina
e ir para a África, ficara entendido que iriam juntos. Entretanto, nunca falavam disso, nem
mesmo entre si.
Em 1910, Schweitzer foi aprovado nos exames finais de medicina. Mas, ainda lhe
restava um ano de serviço interno e uma tese para escrever. Seis meses depois, Helena
Bresslau e ele estavam casados. No fim de 1912, ambos estavam prontos para a partida, mas
os esforços dos anos de estudo de medicina estavam apresentando seus resultados.
Schweitzer precisou de mais seis meses para restaurar suas energias. Durante esse período,
com a ajuda de Helena Bresslau, ele preparou uma nova edição do livro A Busca do Jesus
Histórico.
46
42
Ibid., p. 96-98.
43
Ibid., p. 100.
44
Ibid., p. 71-80.
45
Ibid., p. 105.
46
Ibid., p. 107, 111, 117.
Quando se aproximava o tempo em que encerraria sua vida acadêmica e musical,
Schweitzer percebeu, como nunca antes, o peso da decisão que havia tomado. Então, perderia
para sempre a sua independência financeira. No dia em que renunciou à cátedra teológica na
universidade e ao seu cargo em São Nicolau, foi como se arrancasse o coração do peito.
47
Em meio à dor da renúncia, Schweitzer foi para Paris fazer um curso de medicina
tropical e obter suas credenciais de missionário-médico. À Sociedade Missionária de Paris, não
pediu nenhum auxílio financeiro, porém, apenas um lugar para erguer um hospital. Schweitzer
pretendia construir um hospital no terreno da missão, em Lambaréné, colônia do Gabão, na
África Equatorial Francesa, ao sul de Camarões. Após um longo período de negociações com a
diretoria da missão, recebeu a autorização para construir o hospital que tanto desejava.
Todavia, ele não deveria se pronunciar a respeito de questões teológicas na África.
48
Agora, antes de partir, só restava a Schweitzer levantar fundos para a construção do
hospital. Os recursos vieram de amigos, especialmente alemães, da paróquia de São Nicolau,
de alguns concertos e dos direitos autorais do seu livro sobre Bach, agora em edição inglesa. A
soma total que recolheu era suficiente para manter o hospital por um ano.
49
Enquanto arrumava suas malas para a partida, contando com a possibilidade de
uma guerra que parecia às portas, Schweitzer separou dois mil francos, em ouro. Se a guerra
acontecesse, o ouro não perderia o seu valor. No domingo de Páscoa de 1913, com a esposa
ao lado, setenta caixas de materiais no porão e todos os sinos da França tocando o Evangelho
da Ressurreição, Schweitzer embarcou para a África.
50
1.4. O médico dos negros africanos
51
Ao chegar na África, Schweitzer se instalou em Lambaréné, às margens do rio
Ogooué. A Missão de Lambaréné tinha sido estabelecida há cerca de, aproximadamente,
quarenta anos antes da sua chegada. Seu precursor também foi um missionário-médico
americano cujo nome era Nassau. Contudo, quando a França tomou posse do Gabão, a missão
passou para a Sociedade Missionária de Paris. Era nesta selva virgem que Schweitzer
pretendia, sozinho, sem o amparo de um governo ou de uma instituição particular, fundar um
hospital. A localização da Missão de Lambaréné era estratégica para esse empreendimento.
47
Ibid., p. 110.
48
Ibid., p. 111-112.
49
Ibid., p. 112-116.
50
Ibid., p. 136.
51
Cf. HAGEDORN, Op.cit., p. 97 - 204.
Isso porque os doentes poderiam ser trazidos, por água, de lugares distantes, rio acima ou rio
abaixo.
52
Um dos pacientes de Schweitzer, um nativo que havia sido cozinheiro, possuía certo
conhecimento do francês e do inglês. Utilizando tal conhecimento, tornou-se o primeiro ajudante
e intérprete do doutor. Seu nome era José Azvawami. Os nativos, seus conterrâneos,
apelidaram Schweitzer de “Oganga”, isto é, feiticeiro, porque executava mágicas com
instrumentos misteriosos e brilhantes. Bem cedo, observando seus filhos da selva, Schweitzer
percebeu que, além de curar-lhes as doenças, era preciso curar-lhes o medo. Oportunidade
para isso não faltava, pois, normalmente, tratava de trinta a quarenta pessoas por dia.
Schweitzer percebeu que o lugar escolhido para o hospital era pequeno e, por isso,
impróprio. Logo, decidiu ir a Samkita, estação missionária situada rio acima. Ali, seus objetivos
eram assistir a uma conferência, fazer alguns contatos com outros missionários e obter
permissão para construir o hospital em um lugar mais conveniente. A conferência proporcionou
a Schweitzer a primeira oportunidade de passar uma semana com outros missionários que
também trabalhavam na região do rio Ogooué. Ao voltar, levava consigo a licença para construir
seu hospital onde quisesse e também 4.000 francos para iniciar a construção. Após o seu
regresso, começou a obra.
À medida que o tempo ia passando, a música ajudava Schweitzer a manter o
equilíbrio espiritual. Certo dia, doze nativos chegaram à sua casa trazendo uma grande caixa.
Era um piano, com implementos de órgão de pedal, construído para os trópicos. A Sociedade
de Bach, de Paris, o havia enviado como presente ao seu organista. Apesar de poder separar
apenas meia hora por dia para tocar, Schweitzer considerava isso uma grande compensação.
Compensação maior ainda era poder partilhar a mensagem de Cristo, de maneira simples, a
homens e mulheres para quem o Evangelho ainda não havia sido anunciado. Na selva, os
dogmas cristãos deixavam de ter valor. O que importava era a vida e os ensinos básicos de
Jesus expressos em termos capazes de libertar os nativos da sua escravidão ao terror.
Portanto, pregava um dia por semana com os lábios, da mesma forma como pregava sete
dias por semana com a vida.
Depois de algum tempo em Lambaréné, Schweitzer desceu pelo rio até Cabo
Lopes. Ele precisava tratar um abscesso. Aproveitou a forçada inação para escrever um
relatório aos seus mantenedores. Afinal, eles precisavam estar cientes do trabalho que o doutor
52
Cf. SCHWEITZER, Out of my life, p. 136-161 – As primeiras atividades de Schweitzer na África têm início em 1913
e terminam em 1917, quando ele recebe ordens para voltar à Europa como prisioneiro de guerra.
realizava na África. Na vagarosa viagem de volta a Lambaréné, a bordo de um barco mercante,
ele escreveu outro trabalho sobre os problemas sociais da selva.
Dois dias após o retorno, Schweitzer e sua esposa receberam a triste notícia de que
a Europa estava em guerra. Ambos ficaram muito preocupados, pois eram dois súditos
germânicos vivendo em colônia francesa. Entretanto, foram prevenidos de que deveriam
considerar-se prisioneiros de guerra. Podiam permanecer em casa, mas sem se comunicar com
os nativos e nem com os europeus. Além disso, deviam obedecer, sem discussão, às ordens
dos soldados negros destacados para vigiá-los. Pela primeira vez desde que havia começado
seus estudos médicos, Schweitzer achou-se, de manhã, sentado à sua mesa de trabalho. Se o
mundo estava enlouquecendo, isso não era motivo para que ele deixasse de acabar seu livro
sobre o misticismo do apóstolo Paulo.
Porém, não demorou muito para Schweitzer perceber que, naquele momento, não
poderia concentrar-se em Paulo. Na mesma época, em Cambridge, um erudito católico
apresentava seu livro A Busca do Jesus Histórico ao mundo de ngua inglesa. Certo dia, um
nativo subiu a colina em direção à sua casa e lhe apresentou um bilhete do administrador local
francês. Ele e todos os outros que portassem um bilhete semelhante poderiam ser atendidos
pelo doutor. Pouco tempo depois, o comandante do distrito recebeu comunicação de que o
Monsieur Schweitzer já não era considerado uma ameaça. Aliviado da carga de escrever
bilhetes, anunciou ao doutor que poderia voltar ao hospital.
Chegara o fim de 1914. A vida de Schweitzer continuava na pequena casa da colina
e no hospital embaixo. Ele permanecia preocupado com a guerra, todavia, dava graças a Deus
porque lhe havia sido concedido salvar vidas ao invés de destruí-las. A essa altura, o alimento
se tornava escasso. Schweitzer e sua esposa, algumas vezes, foram obrigados a se
contentar com carne de macaco. Nessa situação, a idéia de um livro, que havia concebido
quinze anos antes e que deveria se chamar Nós, os Herdeiros do Passado, tornou-se um apelo
para a restauração. Ele interpretava a tragédia do pensamento europeu como produto do
divórcio entre, a afirmação do mundo e da vida, e as concepções éticas recebidas da cristã.
Ou seja, a vontade de progredir permanecia, contudo, sem um alvo moral. Conseqüentemente,
o homem vagava sem rumo.
Depois de pensar muito sobre esse assunto, Schweitzer encontrou a resposta que
tanto esperava. Segundo ele, o pensamento do qual surgira essa filosofia fora nobre e
entusiástico, mas não fora profundo o suficiente. A idéia que a afirmação da vida e do mundo
deve ser permeada pela ética tinha sido mais matéria de sentimento e experiência que de
prova, mais matéria de crença que de pensamento. Assim, para Schweitzer, a decadência da
civilização era o resultado inevitável desse ceticismo acumulado com referência a uma
concepção que, por mais inspiradora e criadora que fosse, não passava, em última análise, de
um simples e magnífico postulado.
Entretanto, por mais que estreitasse os laços com os irmãos da igreja de
Lambaréné, Schweitzer sentia-se ainda perseguido pela pergunta: que há de comum na ética e
na afirmação da vida e do mundo? Embora tivesse buscado a resposta na filosofia, não a
encontrou. Para manter a mente concentrada no problema, de vez em quando, rabiscava no
papel palavras, frases e sentenças desconexas. Por dois dias ficou fazendo isso. Ao entardecer
do terceiro dia, enquanto os barcos abriam caminho por entre um rebanho de hipopótamos, a
frase reverência pela vida brilhou em sua mente. Assim sendo, havia encontrado a concepção
comum entre a ética e a afirmação da vida e do mundo, que era a dinâmica do processo. De
acordo com Schweitzer, a civilização não repousava num belo sentimento, numa tradição ou
superstição. À mercê de qualquer cético, repousava sobre uma idéia. Em meio a muita reflexão,
findou o ano de 1915.
Enquanto isso, a alma da Europa estava enferma. Mensagens ocasionais chegavam
da Alsácia. Um dia, a guerra feriu Schweitzer no mais íntimo da sua alma. Chegou-lhe a notícia
de que sua mãe havia sido pisada e morta pela cavalaria na rua da aldeia. Seguiram dias
difíceis.
53
Mais dois anos se passaram. Chegavam ao fim, 1916 e 1917. Schweitzer
continuava trabalhando em Lambaréné. Na Europa, devido à guerra, seus amigos estavam
impossibilitados de renovar suas contribuições para o seu trabalho. Mas os enfermos
continuavam a chegar, em número sempre crescente. Schweitzer não podia recusar-lhes seu
auxílio. Então, foi obrigado a tomar dinheiro emprestado na Sociedade Missionária de Paris.
Vez por outra, pensava em como pagaria tal empréstimo.
Depois de quase cinco anos em Lambaréné, Schweitzer e sua esposa receberam
ordens para voltar à França. Ali seriam internados como prisioneiros de guerra. Com o auxílio
dos missionários e de alguns nativos, ele e sua esposa empacotaram seus objetos pessoais.
Em menos de três dias, embarcaram em uma viagem que, para eles, não tinha destino certo.
Nos quartéis de Bordéos, Schweitzer, que nunca ficara gravemente enfermo,
contraiu uma disenteria. Ainda fraco, ele e sua esposa foram enviados para um campo de
internação em Garaison, nos Pirineus. Durante um rigoroso inverno viveram num mosteiro
abandonado, em companhia de um agregado de gente sem lar que uma guerra poderia
reunir. Ali se encontravam pessoas de todos os níveis e classes sociais. Schweitzer, generoso e
53
Ibid., p. 2.
expansivo, logo se tornou o médico do campo e o melhor amigo do teosofista que era o
governador. Todos os dias, num pedaço de madeira marcado como um teclado de órgão, e com
os pedais imaginários, no chão, memorizava peças de Bach ou de Widor. Quando tinha
oportunidade, traçava o esboço do quarto e último volume da sua obra filosófica sobre a
decadência e restauração da civilização.
54
Ainda abatido pela disenteria, Schweitzer sofreu muito com a transferência, dele e
da esposa, para outro mosteiro abandonado nos bosques de oliveiras de S. Remy de Provence,
perto de Arles. Porém, no meio do verão, foram permutados e enviados à Suíça. De lá,
seguiram para Estrasburgo. Günsbach estava nas linhas de frente, quase sempre debaixo de
fogo. Schweitzer, ainda fraco, teve que andar até Colmar. Ali encontrou seu pai ainda vigoroso.
Mesmo anos mais tarde, Schweitzer se recusava a falar das suas experiências de guerra.
O armistício, finalmente, foi assinado. A guerra acabara. Devido a uma enfermidade,
Schweitzer precisou ser operado em Estrasburgo. Agora, sua saúde estava abalada e seu
hospital em ruínas. A situação não era nada fácil. Além de todos esses problemas, não tinha
recursos para quitar suas dívidas com a Sociedade Missionária de Paris e com alguns amigos.
Pior, Schweitzer nem sabia se poderia ganhar o suficiente para sustentar sua mulher e sua filha
que havia nascido no dia do seu próprio aniversário, dois meses depois do armistício. Uma
possibilidade seria lecionar novamente, mas ninguém sabia o que havia de ser da universidade,
agora que Estrasburgo voltara às mãos dos franceses.
55
Visando levantar recursos para suprir suas necessidades imediatas, Schweitzer
aceitou o convite de um amigo para servir como médico no hospital municipal de Estrasburgo e
como pároco na igreja de São Nicolau. Sua residência seria a casa pastoral da igreja. Vez por
outra, Schweitzer era assaltado pelo sentimento de fracasso. Tinha um sonho e esse sonho fora
frustrado. As atividades no hospital de São Nicolau o deixavam ainda mais deprimido. Isso
porque ele, constantemente, se lembrava dos anos de muito sucesso que precederam sua
partida para a África. Agora, amesmo entre os intelectuais, ele não passava de um fantasma
do passado.
A necessidade de uma segunda operação, e a própria operação, um ano depois da
volta de Schweitzer ao seu país natal, aprofundaram o seu senso de fraternidade com todos os
que sofrem. Certo dia, ele teve uma idéia: a fraternidade dos que trazem as marcas da dor.
Segundo Schweitzer, isso implicaria que todos os homens, mulheres e crianças, que
54
Ibid., p. 162-174 Sob o título de Garaison and St. Rémy, Schweitzer narra o tempo em que esteve preso e
enfermo.
55
Ibid., p. 175-188 – De volta a Alsácia, Schweitzer descreve as dificuldades de readaptação, especialmente aquelas
relacionas à obtenção de sustento.
conhecessem a dor, se empenhassem, enquanto tivessem vida, em aliviar a dor do próximo.
Desse dia em diante, passou a aplicar esse princípio enviando alimentos aos amigos que
passavam fome na Alemanha.
No fim de 1919, Schweitzer recebeu um convite do Orfeão Catalão de Barcelona
para tocar órgão em um dos seus concertos. O mundo da arte lhe abrira, novamente, uma
porta. Mesmo entre os eruditos, ele não estava tão esquecido como supunha. Na Suécia, um
notável filósofo da religião, o mais alto dignitário eclesiástico do seu país, se lembrara do
trabalho de Schweitzer e o convidara para uma série de conferências na Fundação Olaus-Petri
da Universidade de Upsala. Tal fundação solicitava também a publicação das suas
conferências. Com muita alegria, aceitou ao convite e, no ano seguinte, mesmo doente, foi até
com sua esposa. Em Upsala, as conferências de Schweitzer seguiram o plano geral dos
capítulos da Filosofia da Civilização. Na última palestra, quando apresentou as idéias
fundamentais da ética da reverência pela vida, a reação dos ouvintes foi tão positiva que ele
mal pode dominar sua emoção e terminar o seu discurso. Finalmente, começou a sarar.
Mesmo com o sucesso das conferências, Schweitzer estava preocupado com as
dívidas e com os constantes apelos que lhe chegavam de Lambaréné. Todavia, após uma
conversa com o arcebispo que o hospedava, seu coração se encheu de esperança. Como a
Suécia havia ganhado muito dinheiro com a guerra, Schweitzer poderia dar concertos e
palestras sobre o seu trabalho na África. Através desses concertos e palestras, levantaria
recursos para o pagamento das dívidas e para a retomada do trabalho em Lambaréné. Foi isso
que ele fez. Viajou pelas principais cidades suecas e visitou paróquias remotas. Em seu
discurso, Schweitzer sempre enfatizava a fraternidade dos que trazem as marcas da dor. O
resultado não poderia ter sido melhor. Ao terminar sua jornada de seis semanas, percebeu que
dois movimentos estavam tomando forma: um para preservar o gosto público em matéria de
órgãos e outro para uma associação de amigos de Lambaréné.
Uma vez que o povo europeu apreciava seus concertos e suas palestras sobre seu
trabalho na África, Schweitzer percebeu que já poderia pagar suas dívidas e reabrir o hospital
em Lambaréné. Contudo, voltaria sozinho, deixando a esposa e a filha na Europa. Quando
chegou a Estrasburgo novamente, Schweitzer era um novo homem. A Suécia lhe havia
devolvido a segurança perdida durante a guerra. Como primeiro passo para Lambaréné,
escreveu À Beira da Floresta Virgem, um livro das reminiscências africanas. Tal livro foi
publicado em sueco e alemão e, posteriormente, saiu também em inglês. Essa obra criou um
círculo, cada vez maior, de amigos e mantenedores, o que proporcionou ao autor bons direitos
autorais.
56
Após uma série de conferências por diversos lugares da Europa, Schweitzer
renunciou aos seus cargos em Estrasburgo e mudou-se com a família para a casa pastoral, em
Günsbach. Pensava que ali encontraria a calma necessária para trabalhar na sua Filosofia da
Civilização. Entretanto, não foi bem isso o que aconteceu. Novos convites o levaram novamente
a um giro pela Europa. Aonde ia, também dava recitais de órgão e aproveitava cada
oportunidade que tinha para falar em favor do seu hospital.
57
Schweitzer estava na Europa havia quase quatro anos. Nos intervalos dos seus
giros, estabeleceu nova base para ele e sua família, em Königsfeld, na Floresta Negra. A saúde
de sua esposa exigia altitude. Logo, Schweitzer construiu uma casa na periferia de uma vila
pacífica dominada pela presença dos Irmãos Morávios, que tinham ali um retiro. Desde sua
adolescência, ele sentia-se atraído pelos Irmãos e pela Sociedade dos Amigos (Quakers).
Schweitzer também desejava muito que sua filha, Rhena, agora com três anos, crescesse no
meio deles e freqüentasse sua escola. Para facilitar esse processo, ele mesmo estabeleceu
estreitas relações com muitos dos Irmãos.
Em Königsfeld, quando suas conferências e seus concertos lhe permitiam,
Schweitzer continuava sua Filosofia da Civilização. Para ele, as pessoas do seu tempo estavam
vivenciando o colapso da civilização. É com essa idéia que começa a Decadência e
Restauração da Civilização, o primeiro volume da sua obra. Schweitzer pensava que a única
maneira de reconstruir o mundo no qual eles estavam vivendo era a partir da mudança interior
do caráter de cada ser humano. Homens novos sob velhas circunstâncias. Portanto, como
sociedade, deveriam suavizar a oposição entre as nações para que uma verdadeira civilização
se tornasse possível. Página por página, Schweitzer ia escrevendo suas idéias acerca do
pensamento e da conduta, individual e social. Ao mesmo tempo, fazia suas últimas correções
na Civilização e Ética, o segundo volume da sua obra, e encaixotava as provisões para reiniciar
os seus trabalhos em Lambaréné.
58
Schweitzer, pela segunda vez, partiu para a África. Agora, estava acompanhado por
um jovem estudante de química, em Oxford, cujo nome era Noel Gillespie. Ao chegar em
Lambaréné, sete anos depois, Schweitzer encontrou uma verdadeira desolação. Tudo estava
destruído, inclusive o centro dico e a casa que havia morado com Helena Bresslau, sua
esposa. Diante de tal situação, decidiu construir um hospital maior, em um lugar mais amplo,
56
Ibid., p. 189-190.
57
Ibid., p. 197.
perto dali, onde o rio Ogooué se bifurcava. Tal perspectiva o encheu de nova esperança, mas a
realidade da África Equatorial ainda era muito complicada. O antigo problema da mão-de-obra
estava tão difícil como sempre. Schweitzer não desistiu, porém, resolveu começar o seu
trabalho em Lambaréné pela restauração do velho centro médico.
59
No dia seguinte, os doentes começaram a chegar. Com eles também vieram alguns
trabalhadores para fazer os reparos mais urgentes. Duas semanas depois, sob vigilância de
Noel, a farmácia e a sala de exames já estavam restauradas para o uso. Agora, faltava
recuperar o telhado. Schweitzer passou várias tardes numa canoa, indo de aldeia em aldeia,
pedindo doação de telhas. Delas, talvez, dependesse o futuro do hospital.
Logo após a recuperação do telhado, as obras de um novo edifício foram iniciadas.
Essas obras eram levadas adiante por trabalhadores voluntários, sob a supervisão do próprio
Schweitzer. Com todas as complicações e demoras, o programa da nova construção ia sendo
executado. Os meses passavam, as obras prosseguiam e a fadiga apoderara-se do doutor.
Havia muita coisa para fazer e pouco tempo disponível. Embora a maior necessidade fosse de
um médico auxiliar, a chegada de uma enfermeira formada de Estrasburgo lhe foi de grande
valia. Quando as forças de Schweitzer já chegavam ao fim, ouviu o apito estridente do vapor no
rio. Tal vapor trazia o médico auxiliar que ele tanto desejava. O Dr. Nessmann era filho de um
dos seus amigos de Estrasburgo e chegou para assumir todo o trabalho do hospital. Seu
coração se alegrou sobremaneira. Agora tinha um assistente.
Depois da chegada do Dr. Nessmann, tudo mudou. Ele parecia talhado para a
África. Era prático, bem humorado, organizado e habilidoso. Agora, Schweitzer podia passar
dias no trabalho da construção, certo de que os doentes seriam muito bem cuidados. A equipe
de Lambaréné, aos poucos, foi se robustecendo. Auxílios de fora estavam chegando, como, por
exemplo, outra enfermeira da Alsácia, um barco a motor de amigos da Suécia, e outro médico,
desta vez, da Suíça. Como o trabalho estava sob controle, Schweitzer pode voltar ao seu livro
sobre o misticismo de Paulo, no qual vinha trabalhando esporadicamente, havia mais de vinte
anos, e ansiava por terminar. Com o trabalho mais estruturado e com uma equipe bem
preparada, os pacientes vinham a Lambaréné como nunca antes.
O tempo foi passando. A fome do interior espalhou-se pela região do Ogooué.
Conseqüentemente, desencadeou-se uma epidemia de disenteria. O hospital inteiro estava
ficando infectado. Todavia, a fome e a disenteria aprofundaram em Schweitzer a convicção que
o havia assaltado no regresso à África. Ele precisava mudar o hospital para um lugar com maior
58
Ibid., p. 198-199.
espaço para expandir-se e terra para fazer plantações. O lugar para tal obra, já conhecia bem.
Sem consultar ninguém, Schweitzer tomou sua decisão e requereu ao Comissário do Distrito o
direito de utilizar o espaço desejado. Depois, satisfeitas as exigências, legais reuniu sua equipe
e disse-lhes o que havia feito. Houve um grande silêncio seguido por brados de alegria. O
doutor percebeu que todos haviam comprado a idéia.
As obras se iniciaram com o trabalho dos convalescentes e dos companheiros dos
enfermos. Todos, sob a supervisão de Schweitzer. Contudo, era muito difícil fazê-los trabalhar.
Com a chegada de uma inteligente amiga canadense, Schweitzer teve uma excelente idéia.
Embora os nativos não quisessem trabalhar, para uma mulher, provavelmente, o fariam. Assim,
desde que chegou, C. B. Russel assumiu a supervisão do trabalho dos nativos.
Vagarosamente, um após outro, os prédios apareciam, indicando ruas e, por fim, uma aldeia.
Finalmente, o hospital também dispunha de uma horta. Schweitzer deu-lhe o nome de Jardim
do Éden, e cercou-a de árvores frutíferas.
Enquanto tudo isso acontecia, o trabalho de medicação continuava no velho e
pequeno hospital recuperado. A essa altura, Schweitzer já se resignara a pôr de lado o
pensamento de trabalhar no seu livro sobre o apóstolo Paulo. Entretanto, deu um jeito de
continuar a prática diária do órgão, a que se havia devotado doze anos antes. Afinal, seus
dedos precisavam continuar ágeis para os concertos na Europa. Era através desses concertos
que ele sustentava o trabalho em Lambaréné.
Quinze meses depois de Schweitzer ter anunciado sua decisão de mudar o hospital,
os enfermos foram transferidos para os novos edifícios. Num gesto de alegria, tal como
raramente experimentara antes, elevou seus pensamentos em gratidão a Deus e aos amigos da
Europa que haviam investido muito no trabalho por ele iniciado ali. Mas ainda havia muito
serviço a fazer. Cada minúcia deu cuidadosa atenção. Seis meses após a mudança dos
pacientes para o novo hospital, Schweitzer partiu para a viagem à Europa para rever a esposa e
a filha. A bordo do vapor, pela primeira vez, quatorze anos depois de ter iniciado o trabalho em
Lambaréné, sentiu a emoção da vitória. Juntamente com ele, voltaram duas enfermeiras que
também serviam aos negros africanos.
Ao chegar em Königsfeld, na Floresta Negra, a menina de cinco anos, que ali ficara
quando seu pai foi para a África pela segunda vez, tinha agora oito anos. Como Schweitzer
queria, Rhena freqüentava a escola dos Irmãos Morávios. A altitude e os bosques de pinheiros
59
Ibid., p. 207-215 O segundo período de Schweitzer na África têm início em 1924 e terminam em 1927, quando
ele retorna à Europa pela segunda vez.
haviam restabelecido a saúde de Helena Bresslau. Assim sendo, a família reunida gastava
horas compartilhando a narrativa dos diferentes eventos de três anos de separação.
60
Schweitzer não podia ficar com a família por muito tempo. De vários lugares
chegavam convites para palestras, concertos e histórias de Lambaréné. Em Estrasburgo, ele
tinha seus aposentos. Ali dormia quando tinha que consultar a biblioteca da universidade para
concluir o seu livro sobre o misticismo de Paulo. Agora havia decidido terminá-lo. Naquele
apartamento de quatro quartos Schweitzer também armazenava os fornecimentos que estava
comprando para Lambaréné. Nesse trabalho, lhe ajudavam algumas enfermeiras que estavam
de licença. Ele não parava de pensar no hospital um minuto sequer. Por meio de postais e
cartas, procurava se informar de sobre tudo que estava acontecendo lá, enquanto estava
ausente.
Suécia, Dinamarca, Holanda e Inglaterra. Schweitzer apreciava, especialmente,
visitar os ingleses. Afinal, eles foram os primeiros a receber, de maneira positiva, suas reflexões
sobre o Jesus histórico e também apoiavam o trabalho em Lambaréné. Por insistência desses
amigos ingleses, Schweitzer escreveu suas idéias e convicções sobre a política básica e as
condições sociais na África. Tais idéias e convicções foram publicadas na Revisão
Contemporânea. Com os olhos colocados no humanitarismo do século XVIII, fez uma lista dos
direitos fundamentais do homem que o negro deveria esperar gozar. No seu ensaio,
aparentemente inocente, acabou estabelecendo um código de direitos para as raças
submetidas e um programa de uma nova ordem social para a África.
Ao deixar a Inglaterra, Schweitzer retornou à Holanda. Ali conheceu a pastora
Royden. Juntamente com a sua igreja, ela se tornou uma mantenedora fiel do trabalho em
Lambaréné. Da Holanda, Schweitzer foi para a Alemanha. Ali, a municipalidade de Frankfurt
sobre o Reno tinha criado o Prêmio Goethe, de vinte mil marcos, em honra a um dos maiores
alemães. Esse prêmio seria concedido anualmente a um escritor que expressasse, na sua vida
e obra, as qualidades ligadas ao mais nobre dos poetas germânicos. O prêmio de 1928 foi
concedido a Schweitzer. Ele respondeu com uma felicidade igualada, nos seus escritos,
pelas Memórias de Infância e Juventude.
Günsbach ainda era o lar de Schweitzer, embora a casa pastoral não estivesse
nas mãos da família. Seu pai havia falecido e um novo pastor estava residindo na velha casa.
Com os vinte mil marcos do Prêmio Goethe, Schweitzer construiu uma casa melhor e mais
espaçosa em nigsfeld. Com o hospital estabelecido, quando a velhice chegasse, poderia
passar férias cada vez mais longas na Europa. Depois de um ano a casa ficou pronta.
60
Ibid., p. 216.
Com exceção de algumas conferências e recitais na Alemanha, Schweitzer
trabalhou durante o ano de 1929, em Königsfeld, levando até o fim sua obra O misticismo de
Paulo. Em certo sentido, o livro era o complemento da obra A Busca do Jesus Hisrico, e
revelava Paulo como participante da ilusão de uma iminente e cataclísmica vinda do Reino. O
capítulo final e o prefácio foram completados, no fim de dezembro, durante a viagem que levava
Schweitzer e sua esposa de volta a Lambaréné. Essa era a terceira vez que o doutor estava
indo para a África.
61
Schweitzer descansou muito durante os dois anos que passou na Europa. Além
disso, fez novos amigos e conseguiu novos mantenedores para o trabalho na África. O novo
hospital funcionava como nunca. O Jardim do Édencrescia cada vez mais. Numa torre de
madeira agora havia um sino, vindo de uma fundição da Alsácia, que servia para chamar o povo
à oração. Ao completar cinqüenta e cinco anos, Schweitzer realizou mais um sonho, o de enviar
uma unidade ambulante às regiões circunvizinhas. O objetivo era servir aqueles que,
eventualmente, não podiam fazer uma viagem a Lambaréné.
Por insistência de dois dos seus colegas médicos, Schweitzer passou a dedicar
grande parte das suas manhãs a escrever uma história da sua própria vida. Ele já havia escrito
uma breve autobiografia para uma coleção intitulada A Filosofia Contemporânea à Luz da
Autobiografia. Esse esboço provocara um pedido do editor e dos seus amigos para que
Schweitzer o desenvolvesse num livro. O título se tornaria De Minha Vida e do Meu
Pensamento.
O próprio Schweitzer se considerava vida que deseja vida, no meio da vida que quer
viver. Ele aceitava, como bom, o preservar a vida, o promover a vida e o elevar a vida ao mais
alto valor que é capaz de desenvolvimento. Por outro lado, considerava, como mau, o destruir a
vida e o reprimir a vida susceptível ao desenvolvimento. Então, de acordo com Schweitzer, a
ética da reverência pela vida é a ética do amor ampliado aa universalidade. Isto é, onde
vida deve haver uma reverência pela vida, evidenciada pelo amor.
A reverência pela vida queria dizer respeito a toda e qualquer vida: a vida humana,
em primeiro lugar; também a vida animal e até a vida vegetal. Em alguns casos, sem dúvida, o
homem deve destruir vida. Todavia, destruí-la para preservar ou aumentar a vida em suas
formas mais altas. Segundo Schweitzer, o grande problema existente em, praticamente, todas
as éticas até os seus dias, é o fato das mesmas se preocuparem única e exclusivamente com
as relações entre os seres humanos. Logo, a ética das relações do homem para com o homem
61
Ibid., p. 220-221. – A última referência de Schweitzer é à publicação da obra O Misticismo de Paulo.
não deveria ser considerada com algo à parte por si mesma. Ela é apenas uma relação
particular, corolário da relação universal.
Logo após o término de sua autobiografia, Schweitzer recebeu uma mensagem da
municipalidade de Frankfurt, lhe convidando para fazer o discurso comemorativo do centenário
da morte de Goethe. Na ocasião, ele possuía as obras completas do poeta-filósofo alemão na
sua biblioteca, em Lambaréné. Apesar de muito cansado, passou várias noites, durante
semanas e meses, estudando sobre ele. Schweitzer terminou o seu discurso a bordo de um
navio que o levava à Europa. Era o início de 1932. Do princípio ao fim, seu discurso foi um
desafio a Adolf Hitler, que, na ocasião, manipulava as massas, roubando-lhe o direito de pensar
por conta própria.
Após o compromisso em Frankfurt, Schweitzer foi à Alemanha, Holanda e Inglaterra.
Em Oxford, sua lista de doutorados foi aumentada com um diploma honorário em Teologia. St.
Andrews conferiu-lhe um doutorado em jurisprudência. Edimburgo deu-lhe o capelo de Teologia
e Música. Glasgow saudou-lhe com um banquete cívico. Na volta da Inglaterra, Schweitzer
passou por diversos lugares na Alemanha, até chegar em Günsbach.
Durante o tempo que passou em Günsbach, Schweitzer pôde trabalhar no terceiro
volume da sua Filosofia da Civilização, que tratava da filosofia da ação concretizada na
reverência pela vida. Apesar de ocupado, sempre encontrava tempo para receber aqueles que
o ajudavam a manter o trabalho na África. Dentre outros visitantes, Schweitzer recebeu um
professor americano e sua esposa. Esse casal voltou para casa, em Vermont, para organizar a
Fraternidade Schweitzer. O principal objetivo de tal fraternidade era levantar fundos para manter
o hospital em Lambaréné.
Passado o tempo de muitos compromissos, Schweitzer se dedicou ao estudo do
pensamento chinês e hindu. Enquanto estudava, começou a formar-se nele uma nova
concepção. Agora, seus horizontes, com relação ao desenvolvimento do pensamento humano,
se expandiam ainda mais. Schweitzer trabalhou muito até o dia da sua quarta partida para a
África, em março de 1933.
Desta vez, o tempo em Lambaréné foi curto. Dez meses depois, Schweitzer
estava de volta à Europa. Ele faria duas conferências, uma em Oxford, outra em Edimburgo.
Durante todo esse período, seu terceiro volume da Filosofia da Civilização lhe intrigava. Embora
tenha lutado para integrar a história da marcha do pensamento filosófico na apresentação de
um conceito da existência humana em termos de reverência pela vida, a integração não
aconteceu. Portanto, Schweitzer publicou uma parte do inassimilável material num pequeno
volume, intitulado O Pensamento Hindu e seu Desenvolvimento. Algum dia, ele pensava,
haveria um volume gêmeo sobre os pensadores da China.
Europa, África. Europa novamente, África novamente. Schweitzer passou um ano
na Europa, seis meses na África. Um ano e meio na Europa, dois anos na África. Durante o
restante de sua vida, ora estava em um lugar, ora em outro. Em Günsbach, sempre descansava
bastante. Era muito agradável viver em um lugar que lhe trazia ótimas lembranças da infância,
tocar órgão, pregar no púlpito do seu pai e, às vezes, no do seu avô, lá no vale. Passou o
inverno na Suíça, com a esposa e a filha, agora com dezesseis anos. Contudo, quando estava
na Europa, dificilmente, Schweitzer podia ficar em um lugar por muito tempo. Os convites eram
muitos e, por causa do hospital, em Lambaréné, não podia recusar-se a atendê-los. Em todos
os lugares, na Europa ou na África, sua mensagem era uma só: reverência pela vida.
Em meio a tudo isso, Schweitzer ainda elaborava o seu terceiro volume da Filosofia
da Civilização. Entretanto, não demorou muito para desistir desse trabalho temporariamente.
Ele estava muito decepcionado com a situação na qual vivia a Europa. Aos seus olhos, a
civilização estava enlouquecida. Por causa dessa decepção, Schweitzer decidiu se dedicar ao
estudo da simplicidade do mundo primitivo, cujos fetichismos e encantações tinham mais
sentido do que os discursos e atos dos estadistas europeus. Ele possuía volumes de notas
sobre os costumes tribais e incidentes esclarecedores do hospital. Conseqüentemente, reuniu
todas essas notas em um livro intitulado Narrativas Africanas.
No outono de 1938, as manobras diplomáticas entre Inglaterra, França e Alemanha
convenceram Schweitzer de que a guerra era iminente. Assim, era preciso reunir estoques de
provisões e de remédios. Em janeiro de 1939, Schweitzer estava na África e foi à Europa rever
a família. Por mais que em todos os outros lugares houvesse perturbação, encontraria paz em
Günsbach. Ali poderia, eventualmente, dar forma e coerência ao terceiro volume da sua
Filosofia da Civilização. Mas antes mesmo de alcançar a França, Schweitzer viu quão ilusória
eram suas esperanças. A guerra estava prestes a começar. Antes de desembarcar, estava
decidido a voltar à África no mesmo vapor, quinze dias depois. No auge da guerra, precisava
estar à frente do hospital, em Lambaréné.
Durante o tempo que esteve na Europa, Schweitzer pôs em ordem os seus
negócios pessoais e fez compras para o hospital. Na primeira semana de março, estava de
volta a Lambaréné e lançou-se ao trabalho de acumular reservas de medicamentos, material
cirúrgico e alimentos. Schweitzer esperava a guerra para julho, porém, ela veio em setembro.
Sete meses depois, a guerra já estava às portas. Durante semanas, houve intensos
combates por Lambaréné. Todavia, os comandos dos dois lados ordenaram que seus
bombardeiros poupassem o hospital. Assim sendo, a guerra abalou a economia da floresta.
Contudo, nem todas as transformações que a guerra trouxe foram más, como, por exemplo,
foram construídas novas estradas, pontes e balsas. Então, Schweitzer podia agora visitar as
estações das missões interiores em um tempo muito menor. O colapso do comércio de madeira
barateara o trabalho. Logo, o doutor viu a oportunidade de livrar alguns dos nativos da fome e,
ao mesmo tempo, empreender certas obras que, há muito, vinha adiando. Aos poucos, o
hospital começou a funcionar de novo.
No segundo ano da guerra, as reservas começaram a escassear. Como a França
livre conquistou a colônia, as relações postais com a Grã-Bretanha e com os Estados Unidos
foram restabelecidas. Paulatinamente, os recursos começaram a chegar de novo. Entretanto,
tais recursos não seriam suficientes por muito tempo. O movimento no hospital crescia e as
prateleiras ficavam cada vez mais vazias.
No fim do quinto ano da guerra, Schweitzer e sua esposa já não agüentavam mais o
cansaço. O trabalho duro os exauria. Seu plano de passar a direção do hospital aos sessenta e
cinco anos não passara de um mero plano. Ele estava com quase setenta e ainda precisava
manter um alto ritmo de trabalho. Certo dia, Schweitzer recebeu, por rádio, uma homenagem da
British Broadcasting Company. Tal homenagem lhe alegrou muito. Quatro meses depois, um
dos seus pacientes brancos chegou à janela e lhe deu a notícia que mais esperava: o rádio
alemão anunciara que havia sido concluído o armistício na Europa. Finalmente, a guerra
terminara.
Durante o restante dos seus dias, Schweitzer jamais deixou de lutar em prol da
reverência pela vida. Em 1952, ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Com os trinta e três mil lares
que recebeu, começou um leprosário em Lambaréné. Mesmo em idade já avançada, ele foi um
forte oponente das armas atômicas. Schweitzer morreu no dia 4 de setembro de 1965, e foi
enterrado em Lambaréné.
62
1.5. Conclusão
Uma vez conhecida a vida e a obra de Schweitzer, é possível perceber o contexto
no qual ele estava inserido e como tal contexto o influenciou de maneira significativa. Isso se
torna evidente, por exemplo, quando se percebe que, bem cedo, desde que começou as
faculdades de teologia e filosofia, ele já se interessava pelas questões acerca do Jesus
histórico. É por esse interesse que Schweitzer é motivado a se dedicar, de maneira muito
62
Cf. Disponível em: <http://nobelprize.org/nobel_prizes/peace/laureates/1952/schweitzer-bio.html>. Acesso em: 25
fev. 2007.
especial, ao estudo desse tema. Pela sua história, fica claro que nesse estudo ele investiu os
melhores anos de sua vida.
Além disso, Schweitzer fez a sua pesquisa sobre o Jesus histórico de maneira muito
acurada, investigando, cuidadosamente, os principais escritos existentes em sua época sobre
esse assunto. Quando ele conclui suas pesquisas, é interessante notar sua preocupação com
relação à publicação da obra A Busca do Jesus Histórico. Como cristão que era, pastor de
igreja e professor de teologia, Schweitzer pensava que não poderia publicar nada que abalasse,
de alguma forma, a fé dos crentes. Por fim, também é válido destacar que Schweitzer escreve A
Busca do Jesus Histórico em um momento que ele mesmo duvidava do enorme progresso que
os seus contemporâneos pensavam que o mundo estava vivendo.
Como pode ser percebido, esses e outros fatores contribuem muito para a
compreensão da obra A Busca do Jesus Histórico, de Albert Schweitzer. No capítulo seguinte,
será feita uma análise do método histórico-crítico. Isso porque a grande parte dos autores,
senão todos, estudados por ele, utilizavam esse método.
2. O método histórico-crítico
2.1. Introdução
O capítulo anterior se concentrou na vida e na obra de Albert Schweitzer. Esse
primeiro capítulo tinha como objetivo principal uma aproximação biobibliográfica. Tal
aproximação se faz necessária à medida que contribui de maneira significativa para uma melhor
compreensão da sua obra A Busca do Jesus Histórico. Isso porque a presente pesquisa se
propõe a fazer uma análise dessa obra. Feita essa aproximação biobibliográfica de Schweitzer,
é possível seguir adiante e se aproximar do ambiente filosófico e teológico no qual nasce a
chamada primeira busca do Jesus histórico. Essa aproximação tem como objetivo principal a
compreensão do método exegético utilizado pelos primeiros que se lançaram na busca do
Jesus histórico.
A primeira busca do Jesus histórico se origina com a hipótese de distinção entre o
Jesus real da história Jesus histórico e a interpretação do Novo Testamento sobre ele
Cristo da . Os primeiros estudiosos que empreenderam essa busca pensavam que o Jesus
histórico correspondia à figura de um simples mestre de religião, ao passo que a figura do
Cristo da cristã, tal como descrita no Novo Testamento, não passava de uma interpretação
equivocada por parte dos escritores da igreja primitiva.
A partir dessa compreensão, dois elementos característicos dessa busca se tornam
evidentes. O primeiro elemento é a crítica. A crítica remete à dúvida acerca de algo previamente
estabelecido. No caso da primeira busca do Jesus histórico, essa dúvida se dirige ao Cristo da
fé, ou seja, à interpretação do Novo Testamento sobre Jesus. O segundo elemento é a
pesquisa histórica. Uma vez que a interpretação do Novo Testamento acerca de Jesus é
colocada sob suspeita, busca-se reconstruir a figura de Jesus a partir da pesquisa histórica
sobre ele. Tanto a crítica quanto a pesquisa histórica fizeram parte do método que foi usado
pelos estudiosos que se lançaram na primeira busca do Jesus histórico. Esse método é
denominado histórico-crítico.
2.2. Origem e características do método histórico-crítico
O método histórico-crítico só pode ser compreendido a partir do contexto no qual ele
está inserido. Como ilustração desse contexto, é possível pensar em três círculos de tamanhos
diferentes. Do maior para o menor, esses círculos se sobrepõem um ao outro. No círculo maior
e mais externo se encontra o Iluminismo, expressão filosófica da Modernidade. No círculo
intermediário, os primeiros traços do que, posteriormente, será chamado de teologia liberal
protestante. No círculo menor e mais central, o método histórico-crítico. Logo, um olhar atento
sobre os princípios do Iluminismo e sobre os primeiros traços do que, posteriormente, será
chamado de teologia liberal protestante facilitará a compreensão do que seja o método
histórico-crítico.
2.2.1. Círculo maior: Iluminismo
No primeiro capítulo do livro Teologia do Século 20, Stanley J. Grenz e Roger E.
Olson sintetizam o que seria o Iluminismo
63
. De acordo com eles, o nascimento do Iluminismo
encontra-se no início do século XVII e pode ser analisado de dois modos: 1) sócio-político,
caracterizado pela Paz de Westfalia (1648) que encerrou a chamada Guerra dos Trinta Anos; 2)
intelectual, no qual se destaca a obra de Francis Bacon (1561-1626)
64
.
Segundo Grenz e Olson (2003), a mudança de perspectiva ocorrida durante o
Iluminismo foi resultado de rios fatores sociais, políticos e intelectuais. Uma série de conflitos
militares –decorrentes da Guerra dos Trinta Anos havia devastado a Europa no começo do
século XVII. Por causa de desentendimentos entre confissões cristãs discordantes, essas
guerras provocaram um questionamento sobre a validade das disputas doutrinárias. Além
dessas brigas religiosas, abriu-se caminho para o espírito crítico através de duas revoluções
relacionadas entre si: uma na filosofia e outra na ciência
65
.
A revolução filosófica teve origem com o pensador francês René Descartes (1596-
1650), conhecido como pai da filosofia moderna. A intenção de Descartes era desenvolver um
método de investigação que levasse ao descobrimento daquelas verdades que fossem
absolutamente certas. Dando um passo am de Francis Bacon, ele procurou introduzir o rigor
da demonstração matemática em todas as áreas do conhecimento. Em sua argumentação,
dizia que a matemática surge da natureza da própria razão e, portanto, é mais certa do que o
conhecimento resultante da observação empírica, que está sujeita a erros. A contribuição mais
significativa de Descartes foi a introdução da “dúvida” como primeiro princípio de raciocínio. Daí
para frente, a compreensão do sujeito como ser pensante passou a ser o ponto de partida para
a filosofia
66
.
Quanto à revolução científica, essa marcou um distanciamento radical da visão de
mundo da Idade Média. Para esse novo pensamento, foi de grande importância uma mudança
na cosmologia, preconizada pela descoberta de Copérnico de que a Terra não constituía o
63
Cf. GRENZ, Stanley J.; OLSON, Roger E.. A Teologia do Século 20. o Paulo: Cultura Cristã, 2003. p. 13-23.
64
Cf. GRENZ; OLSON, A Teologia, p. 14.
65
Cf. GRENZ; OLSON, Op.cit., p. 16-17.
66
Ibid., p. 17.
centro do universo. Essa mudança na cosmologia significou a rejeição da estrutura medieval de
três níveis: céu, terra e inferno.
Ainda mais fundamental para a revolução científica foi a forma de compreender o
mundo físico em si e a maneira correta de encará-lo. Essa mudança foi marcada pela
substituição da terminologia qualitativa pela quantitativa. Antes, as ciências medievais, seguindo
Aristóteles, afirmavam que existiam “princípios naturais”, isto é, uma tendência “natural” de todo
objeto cumprir o seu propósito interior. Rejeitando essa compreensão, o Iluminismo introduziu
uma visão matemática e quantitativa do empreendimento científico. O pioneiro dessa visão foi
Galileu (1564-1642). Os métodos precisos de medição e a aceitação da matemática como o
modo mais puro de pensamento se tornaram as ferramentas para a abordagem adequada ao
estudo dos processos naturais. Conseqüentemente, os observadores passaram a descrever os
fenômenos em termos de leis da natureza que geravam resultados quantificáveis. Assim, a
adoção desses métodos significava que o Iluminismo aceitava como reais aqueles aspectos
do universo que podiam ser medidos. Essa metodologia passou a ser aplicada a todas as
disciplinas do conhecimento, inclusive à teologia
67
.
Grenz e Olson seguem apontando cinco princípios que caracterizam o Iluminismo
68
.
O primeiro princípio do Iluminismo foi a razão. O princípio da razão significava que havia uma
ordem e estrutura dentro da realidade, que se tornava evidente no funcionamento da mente
humana. Assim sendo, o princípio da razão referia-se à capacidade humana de aprender com a
ordem fundamental de todo o universo. Duas conseqüências desse princípio foram: 1) a
racionalidade objetiva do universo fazia com que as leis da natureza fossem compreensíveis e
tornava o mundo capaz de ser transformado e governado pela atividade humana; 2) a
consonância do mundo racional com o funcionamento da mente humana também fazia com que
o exercício do pensamento crítico fosse tão importante
69
.
O segundo princípio do Iluminismo foi a natureza. A mentalidade do Iluminismo
postulava que o universo era um reino ordenado, dentro do qual encontravam-se as leis da
natureza. Natureza e lei natural tornam-se, portanto, palavras de ordem na busca intelectual. A
ordem encontrada “dentro da natureza inerente das coisas” era considerada como obra do
“Grande Arquiteto” da natureza. Logo, para se encontrar as leis de Deus, os iluministas se
67
Ibid., p. 18.
68
Alguns outros estudiosos caracterizam o Iluminismo de maneira semelhante, mas utilizando princípios diferentes.
J. B. Libânio é um exemplo disso. Ele caracteriza o Iluminismo utilizando os seguintes princípios: 1) Razão (científica
e filosófica, mas marcada por uma atitude crítica); 2) Subjetividade (emergência da interioridade), por exemplo, eu
acho”, “eu penso”); 3) História (possibilidade de se fazer algo diferente da natureza); e 4) Práxis (em oposição a idéia
do destino ou da providência divina, o ser humano se constrói agindo). Esses princípios foram ensinados aos seus
alunos do Mestrado em Teologia, na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, no dia 8 de
agosto de 2005.
voltaram para o “livro da natureza”. A natureza se transformou na corte de julgamento, no
árbitro de todos os desentendimentos. O objetivo do empreendimento intelectual humano
passou a ser alinhar a vida com as leis da natureza que haviam sido descobertas pela razão
70
.
O terceiro princípio do Iluminismo foi a autonomia. O caminho para a autonomia foi
aberto pela razão e pela natureza. A compreensão de ser humano como autônomo destronou a
autoridade externa como árbitro da verdade e da ação. Um apelo ao ensino da igreja, à Bíblia
ou ao dogma cristão já não era suficiente para a obediência no âmbito da crença ou da conduta
e se fazia necessário testar todas as declarações externas de autoridade. Porém, o princípio da
autonomia não permitia a ausência de leis. Ele pressupunha a presença de um conjunto de leis
que podiam ser conhecidas pela razão humana. Portanto, cada pessoa deveria descobrir e
seguir a lei natural universal. Todo este processo seria mediado pela razão
71
.
O quarto princípio do Iluminismo foi a harmonia. Baseava-se na idéia de moderação
e ordem dentro do universo. Apesar das atividades aparentemente egoístas e independentes
de cada ser no universo, o todo acabaria prevalecendo. A harmonia inerente do mundo também
significava que a verdade é um único e harmonioso todo. Conseqüentemente, o pensamento
iluminista ressaltava a “metodologia adequada”. Através da aplicação correta do método, as
várias disciplinas do conhecimento seriam purificadas dos seus elementos irracionais. Um outro
ponto que merece destaque é que a antropologia iluminista facilitou a desejada
correspondência da vida humana com a harmonia do cosmos. Os estudiosos da ética
argumentavam que, se a mente humana começava limpa como uma tábua rasa (John Locke),
podia ser moldada pela natureza divinamente criada. Assim, o emprego da razão poderia criar a
harmonia entre a vida e a ordem natural universal
72
.
O quinto princípio é a crença otimista no progresso. Esse princípio está ligado ao
princípio da harmonia. Isaiah Berlin afirmou que o Iluminismo foi “o último período da história da
Europa ocidental em que se pensava que a onisciência humana era objetivo alcançável”
73
. De
acordo com o pensamento iluminista, o conhecimento das leis da natureza tinha implicações
práticas. Seu descobrimento e aplicação preparavam o caminho para tornar os seres humanos
felizes, racionais e livres. O método científico seria capaz de mudar o mundo
74
.
69
Cf. GRENZ; OLSON, Op.cit., p. 19.
70
Ibid., p. 19.
71
Ibid., p. 20.
72
Ibid., p. 20-21.
73
BERLIN, Age of Enlightenment, 14, apud GRENZ; OLSON, Op.cit., p. 21.
74
Cf. GRENZ; OLSON, Op.cit., p. 21.
Para Grenz e Olson, o Iluminismo termina nas últimas décadas do século XVIII,
quando Immanuel Kant publica sua Crítica da Razão Pura (1781)
75
.
2.2.2. Círculo intermediário: primeiros traços da teologia liberal protestante
Uma vez conhecidos os princípios do Iluminismo é possível dar um passo adiante e
tentar compreender os primeiros traços do que, posteriormente, será chamado de teologia
liberal protestante. Serão apontados apenas os primeiros traços porque, de acordo com Pierard,
“o liberalismo teológico teve sua origem na Alemanha, onde convergiram várias correntes
teológicas e filosóficas no século XIX”
76
. Assim sendo, é preciso voltar à história e compreender
os movimentos que antecederam a teologia liberal protestante.
Para fazer esse retorno histórico aos movimentos que antecederam a teologia
liberal protestante, o artigo de R. V. Pierard, intitulado Liberalismo Teológico, da Enciclopédia
Histórico-Teológica da Igreja Cristã é sintético e esclarecedor
77
. Ao descrever as origens e
desenvolvimento do Liberalismo Teológico, Pierard destaca a influência de algumas pessoas.
Segundo ele:
O idealismo ético de Kant e sua rejeição de todo raciocínio transcendental a
respeito da religião tiveram o efeito de limitar o conhecimento e de abrir o
caminho para a . Schleiermacher introduziu a idéia da religião como uma
condição do coração, cuja essência é o sentimento.
78
Se, por um lado, Kant liberta a fé do domínio do conhecimento estritamente racional,
por outro lado, Schleiermacher a coloca no âmbito da subjetividade. Para esse último, a se
dá na experiência individual de dependência absoluta de Deus.
Pierard segue afirmando que:
Hegel tomou outra direção com seu idealismo absoluto, sendo que este
enfatizava a existência de uma estrutura racional no mundo, a parte das mentes
individuais dos seus habitantes. Aquilo que é real é racional, e toda realidade é
a manifestação da idéia absoluta ou da mente divina. Através de um processo
dialético de fluxo e refluxo da luta histórica, a razão está triunfando sobre o
mal.
79
As principais contribuições do idealismo de Hegel foram o apoio à idéia da
imanência divina e a fomentação das críticas histórica e bíblica. Antes, a vinha de Deus ao
homem por meio das Sagradas Escrituras. Agora, a fé se tornava produto da subjetividade
humana e as Sagradas Escrituras, alvo de críticas.
75
Ibid., p. 15.
76
PIERARD, R.V. Liberalismo Teológico. In: ELWELL, Walter A. (org.) Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja
Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1990. p. 424-429. v. 2.
77
Cf. PIERARD, Op.cit., p. 426.
78
Ibid., p. 426.
79
Ibid., p. 426.
Aplicados ao estudo da Bíblia, os princípios da evolução histórica hegeliana
produziram muitos resultados. Como exemplos, podem ser citados Graf e Wellhausen, nos
estudos do Antigo Testamento, e F. C. Baur e os representantes da Escola de bingen, a
respeito das origens e do desenvolvimento inicial do cristianismo e do Novo Testamento.
De acordo com Pierard:
A alta crítica questionou a autoria e a data de boa parte da literatura bíblica e
rejeitou o modo tradicional de entender as Escrituras como oráculos
divinamente revelados. O cristianismo era visto apenas como o cumprimento
histórico da religião natural, a auto-revelação culminante do Espírito imanente.
80
Sobre a relação entre a compreensão da alta crítica e a compreensão da vida de
Jesus, Pierard afirma que:
Começando com D. F. Strauss, continuando com E. Renan e J. R. Seeley, e
chegando ao auge com Harnack, a “vida de Jesus” era estudada com a
intenção de se removerem as formulações dogmáticas da Igreja e de se voltar à
personagem humana concreta e histórica. Eles acharam, oculto pela cortina de
fumaça da teologia e da filosofia helenística, o ensinamento de uma religião
ética simples, resumida na paternidade de Deus e na fraternidade do homem.
Insistindo que o cristianismo deve ser fundamentado sobre o exato tipo de
pessoa que Cristo era, acharam necessário ir além do “Cristo dos credos”, a fim
de chegar ao “Jesus da história”.
81
Como se percebe, a dúvida acerca do Cristo da foi produto da aplicação dos
princípios da evolução histórica hegeliana ao estudo da Bíblia, mais especificamente, ao Novo
Testamento. Todavia, para Pierard:
O domínio de Hegel foi abalado por Ritschl, que enfatizava a importância da
e da experiência religiosa. Ele apoiava a reivindicação do cristianismo quanto à
sua singularidade, mas argumentava que a experiência cristã deveria ser
baseada nos dados objetivos da história e não no sentimento pessoal. Ele
entendia que o cristianismo era uma vida de ão que libertaria o homem das
paixões escravizadoras da sua própria natureza e do determinismo do seu meio
ambiente físico. As declarações religiosas são julgamentos de valores que
dizem respeito à situação espiritual da pessoa e que tem conseqüências
práticas. Sua teologia de valores morais relaciona o evangelho com dois pólos –
a obra redentora de Cristo e a comunhão dos redimidos (o reino de Deus). No
reino, a pessoa atinge a perfeição moral e, portanto, assemelha-se a Cristo.
Deus é imanente, transcendente e pessoal, tudo ao mesmo tempo.
82
Ainda de acordo com Pierard:
Os liberais acolheram bem as descobertas da ciência e se adaptaram
prontamente aos desafios do darwinismo. (...) O processo científico foi aplicado
à teologia e à crítica bíblica, e estas foram consideradas abertas a toda
verdade. Assim como acontecera no âmbito físico, a cultura e a religião tinham
80
Ibid., p. 426.
81
Ibid., p. 426.
82
Ibid., p. 426-427.
se desenvolvido, e não havia antagonismo fundamental entre os âmbitos da
e da lei natural.
83
Ao abordarem as características da teologia liberal protestante, Stanley J. Grenz e
Roger E. Olson sintetizam o que seriam as cinco principais características desta teologia
84
.
Em primeiro lugar, assim como Schleiermacher, os liberais estavam decididos a
reconstruir a cristã à luz do conhecimento moderno. Segundo eles, certos desenvolvimentos
culturais desde o Iluminismo não podiam ser ignorados pela teologia cristã, mas deveriam ser
assimilados de forma positiva
85
.
Em segundo lugar, a teologia liberal enfatizava a liberdade que o pensador cristão
possuía, como indivíduo, de criticar e reconstruir crenças tradicionais. Isso implicava uma
rejeição da autoridade da tradição ou da hierarquia da igreja e do controle exercido por elas
sobre a teologia
86
.
Em terceiro lugar, a teologia liberal concentrava-se na dimensão prática ou ética do
Cristianismo. Ritschl, importante expoente do protestantismo alemão moderno, e seus
seguidores, por exemplo, tinham a tendência de evitar aquilo que consideravam especulação
vazia e tentavam moralizar a doutrina centrando todo o discurso teológico em torno do conceito
de reino de Deus
87
.
Em quarto lugar, a maioria dos teólogos liberais procurava basear a teologia em
alguma outra fundação que não fosse a autoridade absoluta da Bíblia. Para eles, o dogma
tradicional da inspiração sobrenatural das Escrituras havia sido irremediavelmente enfraquecido
pela pesquisa histórico-crítica. Consideravam não apenas as tradições da igreja, mas também
grande parte da própria Bíblia como a “palha do milho”, que esconde os “grãos” preciosos da
verdade imutável. Isso não quer dizer que os teólogos liberais desprezavam a Bíblia ou a
consideravam sem valor. Na verdade, eles procuravam dentro dela o “evangelho”, ou seja, o
cerne e o referencial eterno da verdade que não podia ser corroído pelos ácidos do
conhecimento científico e filosófico moderno. A tarefa da teologia era identificar o grão, a
“essência do Cristianismo”, e separar claramente toda a palha de idéias culturais e expressões
83
Ibid., p. 427.
84
Cf. GRENZ; OLSON, Op.cit., p. 58-60 – Outra excelente síntese do novo Cristianismo que emergiu do Iluminismo é
apresentada por Augustus Nicodemus Lopes, em sua obra A Bíblia e seus intérpretes: 1) A Bíblia não é o registro
infalível e inspirado da revelação divina, mas o testemunho escrito da religião que os judeus e os cristãos praticavam;
2) A doutrina ou declarações proposicionais, como as que encontramos nos credos e confissões da Igreja, não são
essenciais ou básicas para o Cristianismo, visto que o que molda e forma a religião é a experiência e não a
revelação; 3) O Cristianismo é diferente das demais religiões quantitativamente e não qualitativamente; 4) Existe
uma centelha divina em cada pessoa; 5) Jesus Cristo é o Salvador somente no sentido em que ele é o exemplo
perfeito do homem; 6) O caráter de Deus é de puro amor, sem padrões morais.
85
Ibid., p. 58.
86
Ibid., p. 58-59.
que o envolviam. De acordo com a maioria dos teólogos liberais, essa palha incluía os milagres,
os seres sobrenaturais como anjos e demônios e os acontecimentos apocalípticos
88
.
Em quinto lugar, talvez o fundamento inconsciente de todas as demais
características seja o movimento contínuo da teologia liberal em direção à imanência divina às
custas da transcendência. Antes do Iluminismo, os teólogos enfatizavam a separação entre
aquilo que era radicalmente sagrado o Deus transcendente e os seres humanos finitos e
pecadores, e viam a Encarnação como o acontecimento dramático em que Deus havia criado
uma ponte sobre esse abismo. Começando no Iluminismo e encontrando seu ápice no
liberalismo, os teólogos passaram a construir seus pensamentos sobre a ligação entre o divino
e o humano manifesta, por exemplo, nas capacidades racionais, intuitivas ou morais. Então
Jesus era visto como um ser humano exemplar e não como o Cristo interventor
89
.
2.2.3. Círculo menor: método histórico-crítico
Como dito anteriormente, o método histórico-crítico nasce do Iluminismo e dos
primeiros traços do que, posteriormente, será chamado teologia liberal protestante. Para
compreendê-lo melhor é preciso voltar à Reforma Protestante e perceber a novidade
introduzida por esse movimento em relação à leitura da Bíblia.
2.2.3.1. Origem histórica do método histórico-crítico
A Reforma Protestante se inicia com uma mudança hermenêutica radical. Durante
toda a Idade Média predominou entre os estudiosos das Sagradas Escrituras o uso do método
que ficou conhecido como Quadriga. A origem desse método é incerta. Alguns o atribuem a
Agostinho de Hipona, outros a João Cassiano. A Quadriga era um método de leitura bíblica que
enfatizava a presença de quatro sentidos no texto. O primeiro sentido é o histórico ou literal. É o
sentido evidente e óbvio do texto. O segundo sentido é o alegórico ou cristológico. É o sentido
mais profundo, geralmente apontando para Cristo. O terceiro sentido é o tropológico ou moral. É
o sentido que determinava as obrigações do cristão e a sua conduta. O quarto e último sentido
é o anagógico ou escatológico. É o sentido que apontava para as coisas vindouras
90
.
A mudança hermenêutica radical empreendida pelos reformadores consiste no
abandono da Quadriga e na adoção do método literal. Embora Lutero tenha utilizado a
Quadriga no início dos seus estudos, posteriormente a abandona. Ao estudar a Bíblia, passa a
87
Ibid., p. 59.
88
Ibid., p. 59.
89
Ibid., p. 59.
90
Cf. LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 149-150.
buscar o sentido literal. Para Lutero, a tarefa da exegese consiste na busca pelo sentido literal
do texto bíblico.
Além da ênfase no sentido literal, dois outros aspectos decorrem do pensamento de
Lutero. O primeiro é o Sola Scriptura. Contudo, para encontrar o sentido literal não se depende
mais de uma instância superior ou externa à Escritura. Ou seja, a tradição e o magistério
eclesiástico não determinam mais a compreensão do texto bíblico. A Escritura é a única e
última fonte de Revelação. O segundo aspecto é a compreensão de que a Bíblia interpreta a
própria blia. Isso quer dizer que uma passagem difícil deve ser interpretada à luz de
passagens mais fáceis. Por ser considerada por si mesma muito clara, a Bíblia é o seu próprio
intérprete.
Toda esta ênfase nas Sagradas Escrituras tem como conseqüência uma crítica
teológica e uma crítica histórica em relação a certos livros que a compõem. Os livros de
Hebreus, Judas, Apocalipse e, principalmente, Tiago, por exemplo, são colocados no final da
edição feita por Lutero. Ao que tudo indica, o ponto de partida desse posicionamento crítico é a
constatação de certas incongruências entre os diversos escritos. O critério para essa avaliação
é em que sentido e até que ponto o escrito aponta para Cristo e o testemunha como Senhor
91
.
Outro reformador que compartilha, em grandes traços, desse pensamento é João
Calvino. Para ele, toda a Escritura também é a única fonte de Revelação. Isto é, a teologia de
Calvino também partia do princípio Sola Scriptura. Ao exegeta cabe esclarecer o sentido literal
do texto bíblico. Para tal, ele pode utilizar todos os meios possíveis. É exatamente por isso que
Calvino, ainda mais que Lutero, utiliza todos os meios históricos e filológicos à disposição para
conseguir uma exegese bíblica contextual. Pelo que parece, o objetivo último dessa
interpretação bíblica era provocar a fé.
Assim como Lutero, a ênfase de Calvino nas Sagradas Escrituras e a utilização de
todos os meios possíveis para analisá-la também o levam a um posicionamento crítico frente a
certos livros que a compõem. Um exemplo claro disso é o livro de Josué.
Martin Volkmann resume bem a novidade introduzida pela Reforma Protestante em
relação à leitura da Bíblia. De acordo com ele:
A Reforma, com o postulado de que a Escritura é a única fonte da Revelação,
coloca-a como centro das atenções e desencadeia com isso o surgimento da
ciência bíblica. Tal concentração na Escritura leva, por outro lado, a um
posicionamento crítico frente à Escritura que desembocará na análise histórico-
crítica da Bíblia.
92
91
Cf. VOLKMANN, Martin; DOBBERHAHN, Friedrich Erich; CÉSAR, Ely Éser Barreto. todo histórico-crítico. São
Paulo: CEDI, 1992. p. 11.
Contudo, a caminhada seguida após a Reforma Protestante acabou enveredando
por dois caminhos distintos: 1) de um lado, a continuidade de um posicionamento mais crítico;
2) de outro lado, o fechamento da posição na ortodoxia. Segundo Volkmann, ambos os
desenvolvimentos são também uma conseqüência do posicionamento assumido pela Igreja
Católica no Concílio de Trento (1546). Ele sintetiza o conteúdo dos decretos Sobre os livros
sagrados e as tradições que se hão de aceitar e Sobre a edição Vulgata dos livros e sobre a
maneira de interpretar a Sagrada Escritura da seguinte maneira:
A Vulgata é o texto canônico para a Igreja Católica; os textos originais
hebraicos e gregos não são determinantes para a doutrina católica. Bíblia e
tradição são aceitas e reconhecidas “com a mesma afeição e reverência de fé”.
O modelo exegético medieval do quádruplo sentido é sancionado como o único
válido.
93
Para compreender melhor os dois caminhos citados acima é necessário explicitá-los
um pouco mais. Primeiramente toma-se o caminho da ortodoxia. Com o objetivo de resguardar
o princípio Sola Scriptura, a ortodoxia se fecha a qualquer tipo de posicionamento crítico.
No intuito de fazer frente ao dogma católico da Escritura e Tradição, bem como do
quádruplo sentido da Escritura, a ortodoxia desenvolve a chamada doutrina da Escritura. Para
Volkmann, “esta doutrina caracteriza-se por dois aspectos fundamentais: a doutrina da
inspiração verbal, e características das Sagradas Escrituras”
94
.
De acordo com a doutrina da inspiração verbal, entendida como inspiração por
ditado divino, a Bíblia é a autoridade suprema e fonte exclusiva de Revelação, porque os
autores bíblicos escrevem palavras inspiradas literalmente pelo Espírito Santo. Eles perdem
totalmente sua identidade, pois o que escrevem não são suas idéias, mas a Palavra de Deus. É
o Espírito Santo quem dita diretamente a profetas e apóstolos o que devem escrever.
95
A inspiração verbal tem duas causas. A primeira é chamada causa eficiente
principal. O Deus triúno não só inspira os conteúdos, mas também as próprias palavras do
escrito. A segunda é chamada causa eficiente ministerial. Os profetas, evangelistas e apóstolos,
ao escreverem, teriam sido incapazes de cometer erros por causa da iluminação recebida do
Espírito Santo.
96
Segundo Volkmann, quatro conseqüências decorrem da doutrina da inspiração
verbal, tal como elaborada pela ortodoxia. A primeira é a identificação da Bíblia com a Palavra
92
VOLKMANN; DOBBERHAHN; CÉSAR, Método, p. 12.
93
Ibid., p. 13.
94
Ibid., p. 14.
95
Ibid., p. 14
96
Ibid., p. 15.
de Deus. A segunda é a infalibilidade da Bíblia. Se ela é a Palavra de Deus ela é,
necessariamente, infalível. A terceira é a perda total da historicidade. Isso porque a inspiração
verbal direta, de caráter sobrenatural, torna a relação histórica do autor com o evento histórico
de Jesus totalmente irrelevante. A quarta e última é a negação da encarnação da verdade
revelada, porque nega a dimensão histórica de Jesus
97
.
A segunda característica da doutrina da Escritura é a elaboração das chamadas
características da Sagrada Escritura. Para Volkmann são três as características da Escritura:
autoridade, perfeição ou suficiência e transparência ou eficácia.”
98
Autoridade porque a
Escritura é Palavra inspirada de Deus. Perfeição porque a Escritura é suficiente para se
conhecer a vontade de Deus e as condições da salvação. Conseqüentemente, a tradição
eclesiástica não é mais necessária. E transparência porque, na Escritura, a vontade salvífica de
Deus pode ser claramente percebida. Mais uma vez, não é necessária a interpretação do
magistério da igreja.
O objetivo por trás de tal argumentação da ortodoxia é se dirigir contra a doutrina
católica de que a Escritura necessita de complementação da tradição eclesiástica para que a
mensagem alcance o seu objetivo. Disso decorrem duas conseqüências: 1) a ortodoxia
desenvolve uma doutrina da Escritura que a compreende como documento infalível da
Revelação de Deus; 2) isso faz com que este documento seja distante da realidade humana a
quem tal Revelação se destina.
99
Percebe-se que, o princípio hermenêutico literal se desenvolve em concordância
com a doutrina da inspiração verbal. Mas, o intérprete das Escrituras pode fazer uma distinção
entre um sentido místico e um sentido literal. O sentido místico é possível onde o próprio
Novo Testamento um sentido alegórico ao texto. O sentido literal, considerado o mais
importante, recebe uma dupla diferenciação: sentido literal não propriamente dito e sentido
literal propriamente dito. O primeiro se ocupa com o sentido da letra, ou seja, esclarecer, com
auxílio da filologia, o significado das palavras, das formulações. O segundo diz respeito àquele
que o próprio Espírito Santo visa expressar em si através das palavras inspiradas. De acordo
com Volkmann, o que realmente importa para a ortodoxia é captar o que o Espírito Santo diz
através do sentido literal.
100
97
Ibid., p. 15-16.
98
Ibid., p. 16.
99
Ibid., p. 16.
100
Ibid., p. 17.
Aqui surge uma pergunta muito importante: como o intérprete passa a ter parte no
Espírito Santo para compreender o sentido literal propriamente dito? Johann Gerhard a
responde utilizando três regras:
Quem pretende interpretar a Escritura deve pedir a iluminação do Espírito
Santo, porque Deus o Espírito aos que o pedem (Lc 11.3) e confere
sabedoria aos que a pedem em suas preces (Tg 1.5). Não há uma regra
infalível para a interpretação. Uma interpretação coerente deve ser feita
segundo a analogia fidei (Rm 12.6). Nessa interpretação, segundo a analogia
da importa observar que: a Sagrada Escritura, por força da inspiração, forma
uma unidade orgânica; o Credo Apostólico representa a melhor síntese da fé; o
intérprete não deve deixar-se seduzir, e apoiar uma interpretação que contradiz
esta fé.
101
De tal resposta decorrem três implicações. A primeira implicação é que, com essas
três normas, Gerhard, conscientemente, mantém o princípio de que a iluminação pelo Espírito
Santo não se em nenhum outro lugar a não ser no encontro com a própria palavra da
Escritura. A segunda implicação que se destaca é a advertência contra uma interpretação
baseada puramente na razão humana. Um exemplo claro disso é a distinção entre sentido
literal não propriamente dito e sentido literal propriamente dito. No caso do primeiro, a sua
abstração é produto da razão humana. Porém, isto não é decisivo. O que realmente importa é o
sentido literal propriamente dito. Este último, só o Espírito pode dar. A terceira implicação é que,
assim como na doutrina da Escritura o aspecto histórico é deixado de lado, na interpretação da
Escritura isso também não poderia ser diferente. Novamente, o que realmente importa é que o
Espírito restabeleça a sintonia com o seu falar fixado por escrito no livro sagrado. O falar de
Deus é considerado eternamente igual.
102
Encerrando a análise sobre o fechamento da questão histórica na ortodoxia,
Volkmann afirma:
O objetivo da ortodoxia não foi o fechamento do princípio reformador; foi
resguardar o sola escriptura [sic!]. Mas a maneira de como a Escritura foi
impermeabilizada a qualquer conotação histórica através da doutrina da
inspiração verbal fez com que a leitura histórica se tornasse impossível.
103
Uma vez compreendido o retrocesso do princípio reformador na ortodoxia luterana
pode-se dar um passo adiante. Então, o segundo caminho da leitura bíblica após a Reforma
Protestante foi aquele marcado pela tentativa de continuidade da crítica. É desse caminho que
irá surgir o método histórico-crítico. Sua ênfase recai, principalmente, sobre uma interpretação
histórica da Bíblia.
101
GERHARD, Johann, apud VOLKMANN; DOBBERHAHN; CÉSAR, Op.cit., p. 18.
102
Cf. VOLKMANN; DOBBERHAHN; CÉSAR, Op.cit., p. 18-19.
103
Ibid., p. 19.
Segundo Volkmann:
o primeiro exemplo dessa tentativa de continuidade nas passadas dos
reformadores são os dois volumes da Clavis Scripturae Sacrae (Chave de
interpretação da Sagrada Escritura) de Matthias Flacius Illyricus (1520 1575).
Esta obra publicada em 1567 representa a primeira tentativa de uma descrição
sistematizada da hermenêutica luterana de sorte que pode ser considerada o
início da ciência hermenêutica da Bíblia.
104
Flacius tem duas intenções com a obra Chave de interpretação da Sagrada
Escritura. A primeira é reagir contra a mistura de princípios bíblicos e filosóficos de
interpretação que gerou o todo da Quadriga. A segunda é retornar a uma interpretação
genuinamente bíblica, como dizia Lutero, da Escritura que a si mesmo se interpreta. Para fazer
esse retorno, ele propõe quatro regras: 1) Extrair claramente o sentido gramatical original do
texto bíblico. Para tal, os princípios ou interesses dogmáticos não podem se sobrepor ao
sentido original e o intérprete deve fazer uma observação acurada do contexto no qual o texto
se insere. 2) Todos os textos e livros bíblicos contribuem para o todo da doutrina sobre a fé.
Flacius diz que Cristo é o centro e o argumento de toda a Escritura. 3) A Escritura representa
uma unidade orgânica. Logo, não contradições em seus escritos. 4) Toda compreensão e
interpretação da Escritura acontecem segundo a analogia da fé. Em outras palavras, tudo o que
é dito sobre e a partir da Escritura deve estar em concordância com os artigos da fé.
105
Embora, na primeira regra, Flacius tenha colocado o papel dos interesses
dogmáticos em segundo plano, na quarta regra ele os retoma novamente. Isso quer dizer que,
em última análise, ele está interessado em uma interpretação teológica da Escritura. Para
Volkmann:
Flacius se aproxima do que mais tarde dirá a ortodoxia e o germe para uma
análise histórica da Bíblia é novamente abafado, porque: a Bíblia deve ser vista
como uma unidade orgânica e não pode haver contradições; a interpretação
dogmático-teológica é o objetivo último de maneira que a interpretação histórica
passa a ser mera ciência auxiliar subordinada e a serviço da dogmática, cujos
resultados de forma alguma podem estar em discordância com os princípios
dogmáticos.
106
Todavia, apesar do abafamento do germe para uma análise histórica da Bíblia,
Flacius toma um ponto de partida correto: a compreensão do sentido literal e a interpretação da
Escritura a partir de si mesma. É desse ponto que seus sucessores darão continuidade à
caminhada rumo a uma interpretação histórica.
104
Ibid., p. 19.
105
Ibid., p. 19 - 20.
106
Ibid., p. 21.
Segundo Volkmann:
Um segundo exemplo dessa caminhada rumo a uma interpretação histórica é a
contribuição de Hugo Grotius (1583-1645) em suas Annotationes in Novum
Testamentum e as Annotationes in Vetus Testamentum. Grotius é um profundo
conhecedor da literatura latina e grega.
107
As contribuições de Grotius foram muitas e muito significativas no que diz respeito
ao avanço da caminhada rumo a uma interpretação da Bíblia. Em primeiro lugar, ele explica o
texto bíblico, inserindo-o no contexto religioso da sua época. Em segundo lugar, Grotius foi o
primeiro a considerar a Antigo Testamento e o Novo Testamento como duas grandezas
históricas distintas. Em terceiro lugar, ele coloca o Antigo Testamento no âmbito da literatura e
história universais, livrando-o da tutela do Novo Testamento. Em quarto lugar, Grotius afirma
que o que importa na interpretação do Antigo Testamento é encontrar o sensus primarius
(senso primordial). Isso é possível quando o mesmo é interpretado livre da influência do
Novo Testamento e da Dogmática. Em quinto lugar, ele levanta suspeitas históricas quanto a
alguns textos da Escritura, como por exemplo, II Tessalonicenses e II Pedro.
108
Apesar de todos esses avanços, a tentativa de Grotius foi insuficiente para romper a
posição a-histórica relacionada à Bíblia. Contudo, um impulso significativo foi dado por alguns
pesquisadores que se ocuparam com a edição do Novo Testamento grego com base numa
avaliação crítica dos manuscritos, o que deu origem à chamada crítica textual.
109
Para Volkmann, Richard Simon, sacerdote jesuíta francês, foi um terceiro exemplo
na caminhada rumo a uma interpretação histórica da Escritura:
O sacerdote francês Richard Simon (1638-1712) procura estabelecer os fatos
históricos em torno do surgimento do Novo Testamento. Mesmo tendo sido
expulso de sua ordem (jesuíta) por causa da publicação da obra, em dois
volumes, História crítica do Antigo Testamento (1678), não se deixou intimidar,
continuou as pesquisas e publicou outras obras críticas. Em 1689, ele escreve a
História crítica do texto do Novo Testamento, a qual segue em 1690 a História
crítica das traduções do Novo Testamento.
110
Simon, em última análise, deseja demonstrar que a doutrina protestante da
Revelação e da Inspiração da Bíblia não tem fundamento, pois, em seu processo de formação,
o texto bíblico passou por uma longa e conturbada história.
Em suas pesquisas, Simon utiliza como ferramentas a observação crítica dos
Padres da Igreja e de todos manuscritos disponíveis. Ele chega a dois resultados: o primeiro é
107
Ibid., p. 21.
108
Ibid., p. 21-22.
109
É válido destacar que, em 1516, Erasmo, o humanista, havia editado o Novo Testamento grego. Essa edição
passou a ser o textus receptus e declarado inspirado pelos teólogos ortodoxos.
110
VOLKMANN; DOBBERHAHN; CÉSAR, Op.cit., p. 22-23.
que os títulos dos Evangelhos foram acrescentados, e o segundo é que o fim do Evangelho de
Marcos não é original. Pode-se dizer que o objetivo de Simon, em suas pesquisas, é
demonstrar a necessidade da tradição eclesiástica na orientação segura para a fé. Sem dúvida
alguma, seus estudos contribuem para um impulso significativo na empreitada de análise do
texto do Novo Testamento. Entretanto sua principal limitação é a ausência de conclusões
devido às suas premissas dogmáticas.
111
De acordo com Volkmann, Johann A. Bengel é um quarto exemplo na caminhada
rumo a uma interpretação histórica da Escritura. Ele afirma que:
Em 1734 Johann A. Bengel (1687-1752) publica uma edição do Novo
Testamento grego com algumas alterações em relação ao textus receptus. Mais
importante do que essas alterações, no entanto, foi o extenso aparato crítico
que ele acrescentou ao texto e onde ele classifica, em cinco grupos, as
variantes: as já impressas que devem ser encaradas como originais; as de
manuscritos que devem ser encaradas como originais; as de mesmo valor do
texto; as que têm menor probabilidade de serem originais; as não aceitáveis,
mas que são aceitas por alguns.
112
Bengel, nesta classificação, segue alguns critérios bem definidos. Por exemplo, o de
que os diversos manuscritos podem ser classificados em famílias. Uma família é a coleção de
manuscritos que foram copiados ou remontam a um mesmo original. Além disso, Bengel
estabeleceu uma regra de avaliação dos manuscritos. Esta regra é a seguinte: sobre a lição
fácil deve prevalecer a mais difícil.
113
A contribuição de Bengel abriu a brecha para uma análise do texto do Novo
Testamento com base nas fontes. É exatamente nessa brecha que um de seus
contemporâneos, o suíço Johann J. Wettstein (1693-1754), adentra com sua nova perspectiva.
Volkmann o considera como o quinto exemplo na caminhada rumo a uma interpretação
histórica da Escritura.
114
Duas podem ser consideradas as contribuições de Wettstein. A primeira é que ele
edita o Novo Testamento grego, conforme o textus receptus, mas com referências bem claras,
no aparato, às variantes que ele considera originais. A segunda é que ele acrescenta um
segundo aparato com paralelos da literatura grega e judaica. Esse acréscimo visa uma maior
compreensão dos textos neotestamentários sobre o pano de fundo histórico.
115
Segundo Volkmann:
111
Ibid., p. 23-24.
112
Ibid., p. 24.
113
Ibid., p. 24.
114
Ibid., p. 25.
115
Ibid., p. 25.
No final da edição, Wettstein acrescenta um apêndice, De interpretatione Novi
Testamenti, no qual estabelece certas regras de interpretação: Observar o texto
e a estrutura interna do texto. Sondar o significado das palavras não à base de
especulações etimológicas, mas mediante observância rigorosa da linguagem
do autor. Buscar textos paralelos do mesmo autor, de toda a Bíblia, de fontes
extrabíblicas e de autores gregos. Explicar passagens de difícil compreensão a
partir de outras passagens facilmente compreensíveis. Considerar que os
autores blicos nem sempre manifestam sua própria opinião, mas aderem à
opinião geral de sua época. Levar em conta que os textos não tem um sentido
especial atribuído pelo Espírito Santo.
116
Em síntese, segundo Wettstein apud Volkmann, o Novo Testamento deve ser lido
como qualquer outro escrito de sua época e com os olhos dos leitores originais. A caminhada
rumo a uma interpretação histórica das Escrituras, chega ao fim com duas considerações: 1) a
leitura histórica pressupõe a libertação das premissas dogmáticas; 2) a razão passa a ser o
critério de avaliação das Escrituras.
Como se percebe, o surgimento do método histórico-crítico de interpretação da
Bíblia está associado às mudanças que ocorrem no pensamento humano (Iluminismo) e na
teologia (primórdios da teologia liberal protestante).
Johann S. Semler (1725-1791) é considerado o pai do método histórico-crítico. Ele
traz uma proposta hermenêutica radical, que implica em um total rompimento com a tutela da
tradição ortodoxa. No entanto, para compreender a radicalidade de sua proposta hermenêutica
é necessário observar o momento que se impõe à pesquisa bíblica no século XVIII, sob as
influências do deísmo inglês e do iluminismo alemão.
Para Volkmann:
O deísmo exerceu grande influência na interpretação blica de Jean A.
Turrettini (1671-1737) que, em seu Tratado sobre o método de interpretação da
Sagrada Escritura, parte do princípio de que a blia deve ser interpretada
como qualquer outro livro e que a razão humana é o critério de avaliação.
117
Ele segue afirmando que:
Outro que sofre a influência deísta e que assume posição muito semelhante à
de Turrettini é o seu quase contemporâneo Johann A. Ernesti. Ele defende,
além disso, uma análise separada de Antigo Testamento e Novo Testamento,
devido à diferença histórica entre ambos. Mas, apesar desses avanços, Ernesti
ainda permanece preso à opinião de que a Escritura o pode errar por ser
inspirada.
118
Portanto, Turrettini e Ernesti representam um grande passo rumo a uma alise
genuinamente histórica da Bíblia. Porém, ainda falta um último passo que será dado por
116
Ibid., p. 25-26.
117
Ibid., p. 27.
Semler: o rompimento com a tutela da tradição ortodoxa. É exatamente por esse passo que ele
é considerado o pai do método histórico-crítico.
Semler parte de duas premissas. A primeira é a distinção entre Palavra de Deus e
Escritura. Isso se deve ao fato de que, para ele, nem todas as partes do Cânon podem ser
consideradas inspiradas. A segunda é que o Cânon não é uma grandeza inconteste. Semler
considera que todo ele deve ser submetido à crítica, uma vez que a pertença de um livro a ele é
uma questão meramente histórica. Isto é, a decisão de incluir um livro no Cânon é produto de
um acordo entre as diversas regiões eclesiásticas acerca dos livros considerados válidos para a
leitura no culto.
119
Partindo dessas duas premissas, Semler conclui que os escritos bíblicos devem ser
analisados historicamente com todo rigor e com todas as conseqüências. Seu programa
hermenêutico pode ser analisado por dois pontos de vista. Por um lado, importa, num primeiro
momento, analisar e destrinchar o texto puramente em seu significado histórico, e, apenas num
segundo momento, dizer o conteúdo dos textos de forma nova para os dias atuais. Por outro
lado, sendo o Cânon uma grandeza histórica não idêntica à Palavra de Deus, ele deve ser
analisado criticamente
120
.
Volkmann conclui sua exposição sobre a origem do método histórico-crítico
afirmando o porquê de Semler ser considerado o seu pai:
> a Bíblia como livro não é a Palavra inspirada de Deus; > o Cânone de livros
sagrados é uma grandeza histórica que deve ser analisada criticamente; > cada
um dos livros deve ser visto em sua inserção histórica e como testemunho
dessa história passada.
121
É exatamente por essa postura com relação à Bíblia que Semler é considerado pela
maioria dos estudiosos do método histórico-crítico como seu pai.
2.2.3.2. Principais Características do método histórico-crítico
Uma vez compreendida a origem do método histórico-crítico, é possível dar um
passo adiante e apontar algumas de suas características. Em sua obra, A Bíblia e seus
intérpretes, tratando da interpretação das Escrituras na modernidade, Augustus Nicodemus
Lopes apresenta sete características desse método
122
. Como não é possível conceitua-lo de
118
Ibid., p. 27.
119
Ibid., p. 28.
120
Ibid., p. 28.
121
Ibid., p. 29.
122
Cf. LOPES, A Bíblia, p. 183-195.
maneira precisa, pode-se apenas compreendê-lo melhor, a partir de suas principais
características.
Numa tentativa de introduzir o assunto, Lopes destaca alguns importantes
resultados da influência do Iluminismo sobre a interpretação bíblica:
O principal, sem dúvida, foi a negação da intervenção divina, quer na História,
quer nos registros bíblicos. A História passou a ser vista como simplesmente
uma relação natural de causas e efeitos. O conceito de que Deus se revela ao
homem e de que intervém e atua sobrenaturalmente na História humana foram
excluídos a priori.
123
A primeira característica do método histórico-crítico é a rejeição dos relatos
miraculosos. Já que os milagres dependem das intervenções sobrenaturais de Deus na História
e essas jamais ocorrem, segue-se que os milagres não existem. Assim, os relatos de milagres
contidos nas Escrituras devem ser interpretados como fabricação do povo de Israel, nos casos
do Antigo Testamento, e da Igreja, nos casos do Novo Testamento.
124
A segunda caractestica é a distinção entre fé e história. Em relação à primeira
característica surge a seguinte pergunta: os milagres são produtos da ou fatos históricos? A
resposta para aqueles que adotam esse método é que os milagres encontrados na Bíblia são
produtos da fé dos israelitas e da Igreja primitiva.
125
Lopes aponta como terceira característica do método a compreensão de que
existem erros nas Escrituras. Tal compreensão pontua o rompimento com o dogma da
infalibilidade da Bíblia. Como o fundamento do dogma da infalibilidade é o dogma da inspiração
divina da Bíblia, esse último também é abandonado. De acordo com os estudiosos
racionalistas, a neutralidade da exegese bíblica depende desse abandono. Todavia, tais
estudiosos não param por aqui. Eles vão além e defendem a idéia de que todos os dogmas
deveriam ser deixados de lado no momento da interpretação das Escrituras, sob pena de uma
leitura viciada da mesma. Parte-se da premissa de que a pressuposição de algum dogma no
ato da leitura da Bíblia produz uma pesquisa cujos resultados o tendenciosos. Assim sendo,
para se interpretar corretamente a Bíblia seria necessária uma abordagem “não religiosa”,
desprovida de conceitos do tipo “Deus se revela”, ou “a Bíblia é a revelação infalível de Deus”
ou ainda, “a Bíblia não pode errar”. Aos poucos, os próprios estudiosos começaram a ver a
Escritura como um livro cheio de erros e contradições.
126
123
Ibid., p. 184.
124
Ibid., p. 184.
125
Ibid., p. 185.
126
Ibid., p. 186.
A quarta característica do método apontada por Lopes refere-se ao controle da
exegese pela razão. Sob a influência do Iluminismo, a razão passa a ser a medida da verdade
também em questões teológicas. Os intérpretes críticos argumentam que, para se chegar aos
fatos por detrás do surgimento da religião de Israel e do Cristianismo, é necessário reconstruir
os fatos daquela época, que estavam por detrás do texto bíblico, utilizando para isso os
métodos racionalistas. Nessa empreitada, o principal critério é a razão.
127
A quinta característica do método histórico-crítico é a aplicação do conceito de mito
aos relatos miraculosos do Antigo e do Novo Testamento.
128
Para os intérpretes críticos, mito
era a maneira pela qual a raça humana, em tempos primitivos, articulava aquilo que não
conseguia compreender; por isso, as fontes usadas pelos autores bíblicos estavam revestidas
de mitos.
129
A sexta característica citada por Lopes detem-se na separação dos dois
Testamentos, Antigo e Novo. O Antigo Testamento passa a ser lido sem interferência do Novo
Testamento e o Novo Testamento passa a ser lido sem a interferência dos dogmas da Igreja.
De acordo com os intérpretes críticos é somente lendo os dois Testamentos dessa forma que
se faz justiça aos autores bíblicos.
130
E, por fim, a última característica do método histórico-crítico destacada por Lopes é
a influência da dialética de Hegel. Sem entrar nos méritos da questão, pode-se dizer que tal
influência corresponde a uma “visão da História sem Deus”. A filosofia hegeliana foi uma marca
importante do fim desse período. Hegel propunha uma explicação para os acontecimentos, não
em termos da intervenção divina, mas em termos de um movimento conjunto do pensamento,
fazendo sínteses entre os movimentos contraditórios (tese e antítese). Ele afirmava que o
processo dialético contínuo leva ao conhecimento absoluto.
131
O conhecimento dessas características possibilita uma compreensão do que é o
método histórico-crítico. Contudo, é necessário seguir adiante e analisar os passos metódicos
de uma exegese histórico-crítica.
127
Ibid., p. 187.
128
Para Lopes, o termo “alta crítica” surge para se referir a essa tarefa de “criticar” o relato bíblico e limpá-lo dos
acréscimos mitológicos. Ele afirma também que outros estudiosos preferem usar o termo “saga” para se referir às
lendas criadas por Israel sobre suas origens e pela igreja apostólica sobre Jesus.
129
Cf. LOPES, Op.cit., p. 188.
130
Ibid., p. 188.
131
Ibid., p. 189.
2.2.3.3. Análise dos passos metódicos de uma exegese histórico-crítica
A exegese histórico-crítica, em geral, trabalha com alguns “passos metódicos”. É
válido destacar que tais passos não foram elaborados todos ao mesmo tempo. Eles são, em
grande medida, frutos do desenvolvimento pelo qual passou o método histórico-crítico. Em seu
apêndice na obra Entendes o que lês, Ênio R. Mueller apresenta uma breve análise dos passos
metódicos de uma exegese histórico-crítica
132
.
O primeiro passo metódico de uma exegese histórico-crítica são a tradução e crítica
textuais. Como a ênfase é colocada no texto, a tradução pode ter caráter provisório. Isso
porque um dos fins da exegese seria uma tradução na linguagem do leitor ou ouvinte. O
objetivo é um texto que tenha a maior probabilidade possível de ser o original. É exatamente
nessa busca por um texto que se aproxime, ao máximo, do original que aparecem inúmeras
variantes textuais.
133
Como segundo passo metódico, ele menciona a crítica literária. A ênfase é colocada
na história das fontes escritas do texto. Segundo Wenham, a “crítica literária penetra [...] para
trás do texto canonizado e procura descobrir a história percorrida ao longo de sua formação”
134
.
Lopes acrescenta:
Negando a integridade e a autoria tradicional dos livros bíblicos, a crítica das
fontes tem como objetivo identificar e isolar as supostas fontes escritas que
foram usadas pelos arquivistas, colecionadores ou editores para compor o texto
bíblico como o temos hoje, e estudar a “teologia” dessas fontes.
135
O terceiro passo metódico é a história traditiva. A ênfase é colocada na história da
transmissão oral do texto. “O objetivo da história traditiva é descobrir a história percorrida por
determinado trecho, no âmbito de sua transmissão oral, ou seja, na fase anterior à sua fixação
antiga”
136
. Se, por um lado, a crítica literária determina, analiticamente, o caminho percorrido por
um texto na fase de sua tradição escrita, por outro lado, a história traditiva o faz na sua fase
oral. Entretanto, na maioria das vezes, os resultados da história traditiva são, inevitavelmente,
ainda menos seguros do que os da crítica literária.
Mueller destaca como quarto passo metódico a história redacional. A ênfase é
colocada na história do texto desde sua primeira versão escrita até a sua configuração última.
Para Kirst, a história redacional tem por objetivo “traçar a história de um texto desde sua
primeira versão escrita, passando pelos acréscimos sofridos, examinando ainda o
132
Cf. FEE Gordon D.; STUART, Douglas. Entendes o que lês? São Paulo: Vida Nova, 1998. p. 237-318.
133
Cf. FEE; STUART, Entendes, p. 256.
134
Wenham apud FEE; STUART, Op.cit, p. 256.
135
LOPES, Op.cit., p. 189.
136
Kirst apud FEE; STUART, Op.cit., p. 257.
enquadramento do texto em complexos maiores, até chegar em sua configuração última, dentro
do contexto literário atual”
137
. Como se percebe, na prática, é muito difícil diferenciar a história
redacional da crítica literária. Ainda de acordo com Kirst, “quanto à relação com a crítica
literária, a história redacional toma os resultados que aquela obteve num procedimento
analítico, e os trabalha sinteticamente, reconstruindo o caminho percorrido por um texto na fase
da transmissão escrita”
138
. Em síntese, a tarefa da história redacional é determinar como o
editor (ou redator) de um texto utilizou suas fontes, o que omitiu e o que acrescentou. Embora
as limitações da história redacional sejam as mesmas da crítica literária, seu trabalho tem dado
bons frutos, especialmente no que diz respeito ao estudo dos Evangelhos.
Acrescenta Lopes:
Esse método centralizou suas atenções na figura dos escribas, arquivistas,
editores ou colecionadores que haviam combinado as fontes para formar o texto
escrito em sua forma final. Para os críticos das fontes e da forma, as fontes
originais e o processo histórico e social da formação do texto final eram de
inestimável valor para se recuperar a teologia das comunidades que produziram
esses textos. Da mesma forma, os motivos teológicos que levaram um editor a
colecionar determinados documentos, utilizar-se de várias fontes e colocá-las
juntas no mesmo trabalho, certamente revelaria também muita coisa sobre a
teologia do período em que ele elaborou a sua obra. E assim, dos meros
técnicos literários desajeitados, os editores passaram a ser vistos como
escritores, com suas próprias crenças, preocupações teológicas e habilidades
literárias. E tornou-se tarefa da crítica da redação descobrir a “teologia” destes
redatores, os princípios teológicos que controlaram sua redação das fontes e
das tradições, alcançando a forma final que hoje temos.
139
Mueller aponta como quinto passo metódico a história da forma. A ênfase é
colocada na compreensão metodicamente adequada da disposição e intenção do texto. “Para
tanto, ela apura a forma e a configuração lingüística específica de uma unidade textual,
determinando o seu gênero e perguntando por seu lugar vivencial. Ao fazê-lo, pressupõe que
existe uma correlação entre forma e conteúdo”
140
. Segundo Nicodemus, a crítica da forma:
Vai mais além que a crítica das fontes e ocupa-se com a pré-história das fontes
escritas que compuseram o texto. De acordo com a crítica da forma, boa parte
dos livros que compõem o Antigo e o Novo Testamento são, em sua forma final,
o resultado de um processo de coleção, edição e harmonização de tradições
antigas, fontes anteriores (escritas ou orais) por parte de editores e escribas.
Essas fontes adquiriram sua forma, como sagas, lendas, ditos dominicais,
parábolas, etc., no processo de reflexão, evangelização e apologia por parte da
igreja, e refletem a teologia da igreja (Gemeindetheologie). A crítica da forma,
portanto, preocupa-se com o estágio oral pelo qual o texto passou antes de
adquirir forma escrita. O alvo do intérprete é reconstruir o ambiente vivencial
137
Ibid., p. 258.
138
Cf. FEE; STUART, Op.cit., p. 258.
139
LOPES, Op.cit., p. 193.
140
FEE; STUART, Op.cit., p. 259.
(Sitz im Leben) em que essas fontes foram produzidas para assim chegar ao
sentido do texto.
141
Quanto ao sexto passo metódico de uma exegese histórico-crítica, ele se refere à
história temática. A ênfase é colocada na chamada “história das tradições”. Em poucas
palavras, “sua finalidade é estudar determinados conteúdos, valores ou complexos temáticos
que aparecem no texto em questão, mas que tiveram sua própria vida antes, ao lado e depois
dele”
142
.
O timo passo metódico de uma exegese histórico-crítica é a análise de detalhes.
A ênfase é colocada no decurso, no conteúdo e nas intenções do enunciado do texto. Estão
incluídos o esclarecimento das indicações geográficas e históricas, o esclarecimento de
dados concretos apresentados pelo texto e o esclarecimento das análises terminológicas.
Também é preciso especificar, com relação ao texto, os resultados da história temática e
analisar o material contra o pano-de-fundo cultural e religioso da época. Um grande número de
estudiosos considera esse ponto de vital importância para a compreensão do texto que está
sendo analisado.
143
E, por fim, o oitavo e último passo metódico listado por Mueller são o conteúdo
teológico e o escopo. Neles se valoriza a síntese da análise de detalhes visando à
compreensão do conteúdo teológico do texto. O conteúdo teológico ênfase ao conteúdo
teológico do trecho analisado, ao passo que o escopo deve reproduzir a mensagem central do
texto em poucas linhas. O resultado pode ser usado como indicativo se o texto foi ou não
compreendido corretamente.
144
2.2.3.4. Relação entre o método histórico-crítico e a primeira busca do Jesus
histórico
145
Para concluir esse capítulo, é preciso responder a uma pergunta: qual a relação
entre o método histórico-crítico e a primeira busca do Jesus histórico? Para responder essa
pergunta, será necessária uma análise das características do método histórico-crítico à luz do
que fizeram aqueles que estavam envolvidos nessa primeira busca. Serão tomados apenas
alguns nomes com o intuito de exemplificar essa relação.
141
LOPES, Op.cit., p. 192.
142
Kirst apud FEE; STUART, Op.cit., p. 259.
143
Cf. FEE; STUART, Op.cit., p. 260.
144
Ibid., p. 260.
145
Cf. LOPES, Op.cit., p. 184-189 – Essa nota é válida para todo o conteúdo desse tópico. As citações não foram
feitas de maneira específica porque esses nomes serão analisados, detalhadamente, por Schweitzer.
Em concordância com a rejeição dos relatos miraculosos, o racionalista Heinrich
Paulus, em sua obra Das Leben Jesu (A vida de Jesus), rechaça a importância dos milagres de
Cristo. Ele argumenta que a coisa verdadeiramente miraculosa a respeito de Jesus é ele
mesmo, a pureza, a santidade serena de seu caráter, o qual é genuinamente humano e
adaptado para ser imitado e emulado pela humanidade. Comentando sobre as ressurreições
registradas nos Evangelhos, Paulus diz que se trata de “libertação de enterros prematuros”. Ele
explica a existência desses casos, dizendo que o apego judaico por milagres fazia com que
tudo fosse atribuído imediatamente a Deus, esquecendo-se as causas secundárias.
Conseqüentemente, não se pensava em como evitar esses casos de enterro prematuro.
Alinhado com a distinção entre e história, o teólogo liberal alemão Bruno Bauer
reduz a ressurreição de Cristo à dos discípulos. Ele afirma que é somente dessa forma
indireta que sua pessoa continuou a viver. Isso se deu à medida que os seus ideais foram
aceitos por seus seguidores, os discípulos, e pela comunidade cristã. Para Bauer, os milagres
de Jesus foram inventados pelos seus discípulos após a morte dele, quando passaram a crer
que ele era o Messias. Ou seja, Jesus teria começado a realizar milagres quando, na fé da
Igreja primitiva, ele ressurgiu dos mortos como Messias. Assim, os fatos de que ele ressurgiu
dos mortos como Messias e que fez milagres são um único e mesmo fato.
Ainda nesta mesma linha, em um panfleto intitulado O alvo de Jesus e seus
discípulos, o estudioso alemão Herman Reimarus defende que os apóstolos haviam criado suas
próprias idéias. De acordo com o seu pensamento, é justo traçar uma absoluta distinção entre o
ensino dos apóstolos, produto da dos mesmos, e o ensino que o próprio Jesus proclamou e
ensinou com a sua vida, produto da sua história concreta.
Influenciado por Reimarus, David Strauss diz, em sua obra Vida de Jesus, que a
declaração explícita que os Sinóticos atribuem a Jesus descrevendo a sua morte como um
sacrifício propiciatório, pode muito bem pertencer àquele sistema de pensamento que se
desenvolveu após a morte de Jesus. Isto é, o próprio Jesus não teria, necessariamente, dito
nada a esse respeito. Strauss acrescenta também que o dito que o Quarto Evangelho coloca
em sua boca sobre a relação entre sua morte e a vinda do Parácleto parece ser uma profecia
(fé) após o evento (história) ter acontecido.
Defendendo a compreensão de que existem erros nas Escrituras, Reimarus afirma
que nenhum milagre pode provar que dois mais dois fazem cinco, ou que um círculo tem quatro
cantos. Por mais numerosos que sejam os milagres na blia, eles não poderão remover a
contradição existente nela.
É também com base nessa compreensão de que existem erros nas Escrituras que
Johann Semler faz a separação entre palavra de Deus e Escritura Sagrada. A palavra de Deus
está contida nas Escrituras, mas isso não significa que cada livro canônico das Escrituras é
palavra de Deus. Por ser escrita por homens falíveis, a palavra de Deus está sujeita a erros.
Seguindo os passos de Reimarus e Semler, em sua Leben Jesu, o teólogo alemão
Karl Hase declara que os três primeiros Evangelhos são compilações de várias narrativas que
surgiram independentemente. Suas narrativas são estruturas compostas e a apresentação
delas da História é de tal forma que ninguém pode ter uma idéia de como ajuntar os eventos.
Em um artigo sobre os Evangelhos Sinóticos, David Strauss diz que os ditos de
Jesus não foram dissolvidos pelo dilúvio da tradição oral, mas foram levados pela torrente de
suas posições originais e, como pedregulhos rolados pelas águas, depositados em lugares (no
relato dos Evangelhos) aos quais não pertencem propriamente.
Em favor de uma exegese controlada pela razão, Franz Reinhard, estudioso
alemão, afirma que tudo que é chamado miraculoso e sobrenatural deve ser entendido apenas
de forma relativa. Isso porque tudo que se enquadra nessas categorias não é nada mais que
uma exceção óbvia ao que pode ser produzido por causas naturais. Diz também que um
pensador cauteloso não deveria se aventurar a pronunciar que um evento é tão milagroso que
Deus não poderia tê-lo produzido por causas naturais.
Karl Hase, na tentativa de manter a fé em Deus e um compromisso com as
Escrituras e, ao mesmo tempo, manter um compromisso com o racionalismo acaba destruindo
o valor histórico e teológico dos milagres. Segundo Hase, tanto faz se Jesus ressuscitou dos
mortos (que o Criador deu uma nova vida a um corpo que estava realmente morto) ou
simplesmente reviveu (que a vida latente em um corpo que estava aparentemente morto
reacendeu-se), pois ambos os casos são compatíveis com a fé cristã.
Em sua obra, La Vie de Jesus, Ernest Renan, o cético francês, afirma que nenhum
dos milagres, dos quais as antigas histórias estão repletas, aconteceu sob condições científicas.
Para ele, a observação, que nunca foi contradita sequer uma vez, ensina que os milagres nunca
acontecem, a não ser em épocas e lugares nos quais as pessoas acreditam neles. Renan
declara que nenhum milagre jamais ocorreu diante de um homem capaz de testar seu caráter
miraculoso.
Em consonância com a afirmação de que existem mitos na Bíblia encontra-se David
Strauss. De acordo com ele, como nenhum Evangelho foi escrito por uma testemunha ocular;
os mesmos são misturas de história e mito. Conforme Strauss, tão logo um homem morre as
lendas se ocupam de sua vida. É exatamente isso que aconteceu com a vida de Jesus. O
intervalo de, aproximadamente, uma geração entre a sua morte e a redação dos Evangelhos foi
suficiente para permitir que o material histórico se misturasse com mitos.
Renan também possui idéias semelhantes às de Strauss. Ele afirma que é evidente
que os Evangelhos são, em parte, legendários. Essa evidência se deve à presença de
elementos milagrosos e sobrenaturais.
A separação entre os dois Testamentos era uma exigência dos críticos para uma
leitura isenta dos textos bíblicos.
Em último lugar, a influência da dialética de Hegel é encontrada principalmente na
obra de Ferdinand Baur. Usando a dialética hegeliana, ele tentou explicar a história da Igreja
primitiva como sendo o embate entre o Cristianismo de Pedro (legalista) e o de Paulo (mais
aberto). A síntese desses movimentos opostos seria o surgimento da Igreja católica incipiente
no segundo século.
2.3. Conclusão
Como pôde ser percebido, o método histórico-crítico, principal referência para a
primeira busca do Jesus histórico, tem como pano de fundo o Iluminismo e surge como método
exegético nos primórdios da teologia liberal protestante. Isso porque, como fora dito
anteriormente, o Iluminismo é a expressão filosófica da Modernidade e nos primórdios da
teologia liberal protestante surge uma necessidade da teologia tentar oferecer algumas
respostas às questões impostas pela modernidade à fé cristã. Como o objetivo dessa pesquisa
é analisar a compreensão de Schweitzer acerca da primeira busca do Jesus histórico, foi
necessário que o presente capítulo se concentrasse na compreensão do método por trás de
toda esse movimento: o método histórico-crítico.
3. A Fase Inicial da Primeira Busca do Jesus Histórico Segundo Albert Schweitzer
3.1. Introdução
No primeiro capítulo da presente pesquisa, se enfocou a vida e a obra de Albert
Schweitzer. O objetivo era compreender o contexto no qual ele estava inserido e como esse
contexto o influenciou, especialmente na obra A Busca do Jesus Histórico. No segundo
capítulo, se enfocou o método utilizado pelos primeiros autores que empreenderam a busca do
Jesus histórico. Tal abordagem foi necessária porque é sobre esses autores que Schweitzer
elabora as duas primeiras partes da sua obra. Logo, compreender o método histórico-crítico é
importante para compreender a sua obra A Busca do Jesus Histórico.
No presente capítulo será analisada a fase inicial da primeira busca do Jesus
histórico, segundo Schweitzer. Essa primeira fase corresponde aos seis primeiros capítulos da
sua obra. A abordagem de Schweitzer vai desde a apresentação do problema histórico acerca
do estudo sobre a vida de Jesus até suas considerações com relação a Schleiermacher. É
exatamente nessa parte que Schweitzer tecesuas críticas ao racionalismo existente por trás
da primeira fase das pesquisas sobre o Jesus histórico.
De antemão, é necessário evidenciar duas opções metodológicas que serão
adotadas daqui para frente, na presente pesquisa. Primeiramente, discorrendo sobre confecção
de monografia ou dissertação, Libânio diz que, em geral, em estudos monográficos sobre
determinado livro ou autor, nunca se usam outras fontes a não ser para explicitar, criticar e
ampliar a idéia do autor estudado.
146
Tendo como base tal afirmação, optou-se, prioritariamente,
pela utilização das fontes pririas, ou seja, a própria obra A Busca do Jesus Histórico, de
Albert Schweitzer. Quando necessário, outras fontes serão utilizadas apenas para explicitar,
criticar ou ampliar a idéia do autor.
Em segundo lugar, optou-se pela reconstrução histórica da investigação crítica
acerca de Jesus, a partir das considerações feitas pelo próprio Schweitzer na obra A Busca do
Jesus Histórico. Isto é, Schweitzer será a chave hermenêutica para se compreender todo o
desenvolvimento dos estudos críticos sobre a vida de Jesus anteriores a ele.
3.2. A apresentação do problema
Schweitzer começa A Busca do Jesus Histórico afirmando que a maior conquista da
teologia aleé a investigação crítica acerca da vida de Jesus. De acordo com ele, a história
146
Cf. LIBÂNIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 228.
do estudo ctico da vida de Jesus tem um valor intrínseco muito maior do que a história do
estudo do antigo dogma ou das tentativas de se criar um novo dogma. Isso porque:
No estudo da história do dogma, a teologia alemã acertou suas contas com o
passado; na tentativa de criar uma nova dogmática, ocupou-se em manter um
lugar para a vida religiosa no pensamento do presente; no estudo da vida de
Jesus ela trabalhou para o futuro – em pura fé na verdade, não olhando em que
terreno se metia.
147
Numa tentativa de explicar como a teologia cristã sempre tendeu a um afastamento
do Jesus histórico, Schweitzer destaca quatro momentos distintos. Primeiro momento: desde o
cristianismo primitivo, é possível perceber uma absoluta indiferença em relação à vida do Jesus
histórico. Segundo ele:
O cristianismo primitivo estava, portanto, certo em viver no futuro com o Cristo
que estava por vir, e em preservar do Jesus histórico apenas ditos isolados,
alguns milagres, sua morte e ressurreição. Ao abolir tanto o mundo quanto o
Jesus histórico, ele escapou da divisão histórica acima descrita, e permaneceu
consciente em seu ponto de vista.
148
Schweitzer nisso um ponto positivo. Os primeiros cristãos não deixaram
biografias de Jesus, porém, deixaram apenas Evangelhos. Graças a tal legado é possível se ter
a Idéia e a Pessoa com um mínimo de limitações históricas e contemporâneas. Todavia, o
mundo continuou a existir. Sua continuação trouxe um fim a essa visão unilateral e conduziu ao
segundo momento.
Segundo momento: o Cristo supra-mundano e o Jesus de Nazaré histórico se
unificaram numa única personalidade. Tal personalidade era, ao mesmo tempo, histórica e
elevada acima do tempo. Isso foi conseguido pelo Gnosticismo e pela Cristologia do Logos.
Embora de pontos de vistas opostos, ambos buscaram alcançar a mesma meta, concordando
em sublimar o Jesus histórico na Idéia supra-mundana. Para Schweitzer:
O resultado deste desenvolvimento, que prosseguiu com o descrédito da
escatologia, foi que o Jesus histórico foi novamente introduzido no campo da
visão da cristandade, mas de tal forma que toda justificativa para, e em
interesse na, investigação de Sua vida e personalidade histórica tinham sido
eliminados.
149
Com o decorrer da história, uma conseqüência se tornou inevitável. Terceiro
momento: a teologia grega era tão indiferente ao Jesus histórico que sua vida se ocultou nos
Evangelhos, como foi o caso da primitiva teologia escatológica. Mais do que isso, a teologia
grega era perigosa para o Jesus histórico. De acordo com Schweitzer, “ela criava um novo
147
SCHWEITZER, Albert. A Busca do Jesus Histórico. São Paulo: Novo Século, 2003. p. 8.
148
SCHWEITZER, A Busca, p. 9.
Evangelho sobrenatural-histórico, e podemos considerar uma sorte que os sinóticos
estivessem tão firmemente estabelecidos que o Quarto Evangelho não conseguiu afastá-los”
150
.
A partir desse momento, a igreja passa a ser obrigada a conviver com a antítese.
Contudo, tal antítese se constitui em um elemento construtivo para o seu pensamento. Isso
porque essa igreja tem que manter dois Evangelhos antitéticos um do lado do outro. Os
sinóticos são um Evangelho e o Evangelho de João é o outro.
Com os grandes concílios ecumênicos, surge um novo momento. Quarto momento:
quando em Calcedônia, o oeste sobrepujou o leste, sua doutrina das duas naturezas dissolveu
a unidade da Pessoa, e, com isso, encerrou a última possibilidade de retorno ao Jesus histórico.
A partir desse momento, a autocontradição foi elevada a uma espécie de lei. Os resultados
avançaram pelos séculos. Segundo Schweitzer, “por um engodo, a fórmula manteve a vida
prisioneira e impediu os espíritos mais elevados da Reforma de alcançarem a idéia de um
retorno ao Jesus histórico”
151
.
Portanto, antes que os homens pudessem, novamente, sair em busca do Jesus
histórico e antes que pudessem alcançar o pensamento da sua existência, o dogma de
Calcedônia tinha que primeiro ser despedaçado. Nos dias em que Schweitzer escreve, o Jesus
histórico era considerado como totalmente diferente do Jesus Cristo da doutrina das duas
naturezas. Entretanto, para Schweitzer, “mesmo quando Ele foi novamente chamado à vida, Ele
ainda estava, como Lázaro, preso de pés e mãos com vestes sepulcrais as vestes sepulcrais
do dogma da Natureza Dual”
152
.
Após apresentar o início e o desenvolvimento da história do dogma como pano de
fundo do problema, Schweitzer tenta explicitá-lo de fato. Para fazer isso, ele apresenta,
inicialmente, as três fases da investigação histórica acerca da vida de Jesus. Em seu
pensamento, essas ts fases são precedidas por uma afirmação muito importante: a
investigação histórica acerca da vida de Jesus não teve suas causas num interesse puramente
histórico.
Conseqüentemente, a primeira fase pode ser definida como: uma volta para o Jesus
histórico como um aliado na luta contra a tirania do dogma. Isso quer dizer que, num primeiro
momento, a investigação histórica acerca da vida de Jesus foi utilizada com o objetivo de
enfraquecer o dogma. Tal utilização é coerente com o que Schweitzer pensava sobre a força do
dogma. Ou seja, se o dogma continuasse forte, não haveria a possibilidade de se buscar o
149
SCHWEITZER, Op.cit., p. 9.
150
Ibid., p. 9.
151
Ibid., p. 10.
152
Ibid., p. 10.
Jesus hisrico. Assim, coerentemente, a primeira fase deveria investir suas forças no
enfraquecimento do dogma.
153
Uma vez livres do dogma, a segunda fase pode ser definida como: a apresentação
do Jesus histórico numa forma compreensível ao seu próprio tempo. Tal apresentação ganhou
tantas formas quantos foram os seus apresentadores. Assim sendo, cada época sucessiva da
teologia encontrou seus próprios pensamentos sobre Jesus. Conforme pensavam, essa era a
única forma de fazê-lo viver.
154
Schweitzer compreendia a terceira fase como uma conseqüência natural da
segunda. É na tentativa de explicitá-la que ele pronuncia uma das suas frases mais conhecidas:
“Mas não foi apenas cada época que encontrou seu reflexo em Jesus; cada indivíduo criou-O
de acordo com o seu próprio caráter. Não há tarefa histórica que revele o verdadeiro interior do
homem como a de escrever uma vida de Jesus”
155
. Então, de acordo com Schweitzer, a busca
do Jesus histórico, que começou tão bem, tentando ir além do que afirmava o dogma sobre ele,
acabou não o encontrando, mas encontrando apenas os seus próprios investigadores. Em
outras palavras, ao invés de encontrar o Jesus histórico, seus investigadores encontraram a si
mesmos, pois eles projetavam nele o que eram.
Segundo Schweitzer, as maiores vidas de Jesus foram escritas com ódio. Seus
investigadores tinham uma característica comum: “Eles estavam ávidos por retratá-Lo como
verdadeira e puramente humano, de despi-Lo das vestes de esplendor com que Ele foi
paramentado, e revesti-Lo com as grosseiras vestimentas com as quais ele caminhava pela
Galiléia”
156
. Porém, apesar da ofensa em que incorreram, Schweitzer considerava que eles
haviam contribuído de maneira significativa para o avanço dos estudos sobre Jesus. Tal avanço
se devia ao fato do ódio ter afiado a visão histórica dos mesmos.
Para Schweitzer, o caráter pessoal do estudo, no entanto, não se deve apenas ao
fato de que uma personalidade pode ser trazida à vida pelo toque de outra personalidade.
Sem dúvida, esse fato esna natureza do problema. Isso porque o problema da vida de Jesus
não tem análogo em todas as escolas da história. Isto é:
Nenhuma escola histórica criou cânones para a investigação desse problema,
nenhum historiador profissional prestou sua ajuda à teologia para lidar com ele.
Cada método ordinário de investigação histórica mostrou-se inadequado para a
complexidade das condições. Os padrões da ciência histórica ordinária são aqui
inadequados, seus métodos não são imediatamente aplicáveis. O estudo
153
Ibid., p. 10.
154
Ibid., p. 10-11.
155
Ibid., p. 11.
156
Ibid., p. 11.
histórico acerca da vida de Jesus teria que criar seus próprios métodos por si
mesmo.
157
De acordo com Schweitzer, das cinco ou seis tentativas de se criar seus próprios
métodos, o estudo histórico acerca da vida de Jesus se encontrou diante de um problema. Ele o
descreve da seguinte maneira:
Não há, no entanto, nenhum método direto para resolver o problema em sua
complexidade; tudo que pode ser feito é experimentar continuamente,
começando de pressupostos definidos; e nesta experimentação o princípio
mestre deve apoiar-se, em última instância, na intuição histórica.
158
Esse é o problema. A sua causa está na natureza das fontes sobre a vida de Jesus
e no caráter do conhecimento acerca do mundo do pensamento religioso no qual ele estava
inserido. Schweitzer afirma:
Não é que as fontes sejam ruins em si mesmas. Se aceitarmos em nossas
mentes que não temos os materiais para estabelecer uma vida completa de
Jesus, mas apenas uma imagem do Seu ministério público, entretanto,
devemos admitir que há poucas figuras da antiguidade sobre quem temos tanta
informação histórica indubitável, de quem temos tantos discursos autênticos.
(...) Jesus está mais a nossa frente, pois Ele foi representado por cristãos
simples, sem dons literários.
159
Nesse ponto surge uma dupla dificuldade. Em primeiro lugar, o que foi dito acima se
aplica apenas aos três primeiros Evangelhos. O Evangelho de João, no que se refere ao seu
caráter, aos dados históricos e ao material discursivo, forma um mundo à parte. Enquanto ele é
escrito do ponto de vista grego, os outros três são escritos do ponto de vista judaico. Logo, “a
diferença irreconciliável dos dados históricos compeliram o investigador crítico a decidir, desde
o princípio, em favor de uma fonte ou da outra”
160
. Todavia, é válido destacar que esse dilema
não foi reconhecido no princípio das investigações sobre Jesus. Seu surgimento foi resultado do
próprio curso dos estudos.
Em segundo lugar, a dificuldade relativa às fontes se evidencia na ausência de
qualquer fio de conexão no material que nos fornecem. Segundo Schweitzer, enquanto os
sinóticos são apenas coleções de passagens (no melhor senso histórico da palavra), o
Evangelho de João como registra em suas palavras de encerramento apenas professa
fornecer uma seleção de eventos e discursos
161
.
157
Ibid., p. 12-13.
158
Ibid., p. 13.
159
Ibid., p. 13.
160
Ibid., p. 13.
161
Ibid., p. 13-14.
Portanto, desses materiais, Schweitzer conclui que é possível ter apenas uma Vida
de Jesus com muitas lacunas. Conseqüentemente, surge uma pergunta importante: como
essas lacunas devem ser preenchidas? Ele sugere que, na pior das hipóteses, com frases, e,
na melhor das hipóteses, com imaginação histórica. Para Schweitzer, “não realmente outro
meio de chegar à ordem e conexão interna dos fatos da vida de Jesus do que pelo
estabelecimento de proposições e testes de hipóteses”
162
.
Schweitzer pressupõe que, se a tradição encontrada nos Sinópticos, realmente,
inclui tudo o que ocorreu durante o tempo que Jesus passou com os seus discípulos, a tentativa
de descobrir a conexão deve ter sucesso, mais cedo ou mais tarde. Assim, essa pressuposição
se torna condição de possibilidade para a investigação crítica acerca de Jesus
163
.
Contudo, não são apenas os eventos que não possuem conexão histórica. As ações
e os discursos de Jesus também não possuem. De acordo com Schweitzer isso se deve ao fato
de que as fontes não fornecem nenhum indício sobre o caráter de sua auto-consciência
164
. Elas
se limitam aos fatos externos. Schweitzer afirma que “nós poderemos começar a
compreender estes [fatos externos], historicamente, apenas quando pudermos localizá-los
mentalmente numa conexão inteligível e concebê-los como atos de uma personalidade
claramente definida”
165
. Segundo ele, tudo o que se sabe sobre o desenvolvimento de Jesus e
sua auto-consciência messiânica foi obtido por uma série de hipóteses. Assim sendo, qualquer
conclusão sobre isso pode ser considerada válida quando não se mostra incompatível com
os fatos registrados como um todo
166
.
Além da falta de conexão histórica entre os fatos, as ações e os discursos de Jesus,
as fontes ainda exibem, em si mesmas, uma grande contradição. Ao mesmo tempo em que elas
afirmam a auto-consciência de Jesus, elas o representam agindo de maneira não compatível
com essa auto-consciência. Entretanto, Schweitzer afirma que “uma vez que se admite que os
atos externos não são a expressão natural de Sua auto-consciência, todo o conhecimento
histórico exato se acaba”
167
. Então, para ele, é impossível dissociar o conhecimento histórico
confiável de Jesus da sua auto-consciência expressa em suas ações. Ou seja, é possível
chegar ao conhecimento de quem é Jesus e de sua auto-consciência com base nas ações
atribuídas a ele pelas fontes.
162
Ibid., p. 14.
163
Ibid., p. 14.
164
Por auto-consciência, Schweitzer entende a dimensão interior de Jesus que define claramente a sua
personalidade messiânica.
165
SCHWEITZER, Op.cit., p. 14.
166
Schweitzer afirma que, em cada caso, além disso, o desenvolvimento experimental da hipótese leva a uma
conclusão que nos força a rejeitar alguns dados das próprias fontes.
167
SCHWEITZER, Op.cit., p. 15.
Logo, o único modo de se chegar a uma conclusão válida é experimentando,
testando. É necessário desenvolver as duas hipóteses: uma que Jesus via-se a si mesmo como
o Messias, como afirmam as fontes; outra que ele não se via assim, como sua conduta dava a
entender. Ainda, uma terceira possibilidade também teria que ser desenvolvida: conjeturar
acerca de que tipo de consciência messiânica ele devia ter e se ela deixava de afetar sua
conduta e seus discursos. De acordo com Schweitzer, uma coisa é certa: “todo o relato dos
últimos dias em Jerusalém seria ininteligível se tivéssemos que supor que a massa do povo
tinha uma sombra de suspeita de que Jesus se reconhecia como o Messias”
168
.
Segundo Schweitzer, o universo mental judeu contemporâneo a Jesus não é claro.
Caso fosse, seria possível ter acesso a informações mais seguras sobre a sua personalidade.
Schweitzer afirma que:
Mesmo supondo que conseguíssemos obter uma informação mais exata a
respeito das expectativas messiânicas populares nos tempos de Jesus, ainda
não saberíamos que forma elas assumiram na auto-consciência de Alguém que
sabia ser o Messias mas achava que ainda não havia chegado o tempo para
revelar-Se como tal.
169
Portanto, o único aspecto que se pode conhecer é o exterior. Por exemplo, uma
espera pelo Messias e pela Era Messiânica. Em outras palavras, a única certeza é que havia
uma expectativa escatológica. Sendo assim, para a forma da auto-consciência de Jesus é
necessário se contentar com as conjeturas. Schweitzer é bem incisivo: “Tal é o caráter do
problema, e, como conseqüência, experimentos históricos devem aqui tomar o lugar da
pesquisa histórica”
170
. Isto é, diante das incertezas com relação ao universo mental
contemporâneo a Jesus, universo esse que poderia contribuir para a formação da sua
personalidade, o máximo que se pode fazer são experimentos históricos.
Conseqüentemente, se o máximo que se pode fazer são experimentos históricos,
Schweitzer diz que, “é fácil compreender que ao se fazer uma avaliação do estudo da vida de
Jesus se é confrontado, à primeira vista, com uma cena da mais completa confusão”
171
. O que
se encontra em tal estudo são experimentos repetidos com modificações que variam
constantemente e que são sugeridas pelos resultados das ciências auxiliares. Mas, na maioria
das vezes, a grande parte dos autores está apenas repetindo um experimento que foi feito
antes do dele. Por isso, o progresso é também inconstante, com longos intervalos entre seus
avanços.
168
Ibid., p. 15.
169
Ibid., p. 16.
170
Ibid., p. 16.
171
Ibid., p. 16.
Assim, Schweitzer afirma que não realmente um padrão comum pelo qual se
possa julgar as obras com que temos de lidar”
172
. Porém, “uma vez que tenhamos nos
acostumado a procurar por características definidas nesta aparente confusão, começamos a
descobrir um vago contorno do caminho seguido, como o progresso feito, pelo estudo crítico da
vida de Jesus”
173
. Pode-se dizer que esse é o método adotado por Schweitzer em toda a sua
pesquisa sobre o estudo crítico da vida de Jesus. No meio da confusão encontrada, à primeira
vista, ele tenta descobrir características comuns, características que, eventualmente, lhe
proporcione um contorno do caminho seguido por aqueles se lançaram na busca do Jesus
histórico.
De imediato, Schweitzer divide o estudo crítico da vida de Jesus em dois períodos:
antes de Strauss e depois de Strauss. Ele caracteriza esses dois períodos:
O interesse dominante no primeiro é a questão do milagre. Que termos são
possíveis entre um tratamento histórico e a aceitação de eventos
sobrenaturais? Com o advento de Strauss, este problema encontrou uma
solução, qual seja, que esses eventos não tem lugar na história, mas são
apenas elementos míticos nas fontes. O caminho foi assim aberto.
174
Assim sendo, para Schweitzer, Strauss é um divisor de águas no que se refere à
primeira busca do Jesus histórico.
No que diz respeito às questões literárias, Schweitzer também considera que houve
um divisor de águas. Tal divisor foi iniciado por Strauss e concluído pela chamada hipótese de
Marcos, que viria posteriormente. Até Strauss, todos os estudiosos do assunto ainda baseavam
suas operações na harmonia dos Sinópticos com o Quarto Evangelho. Isso significa que eles
ainda não tinham sentido a necessidade de um delineamento historicamente inteligível da vida
de Jesus. Todavia, após a Strauss e a chamada hipótese de Marcos, surgiu a necessidade de
escolher entre os Sinópticos e João. Conquanto a escola de Tübingen, primeiramente, tenha
estabelecido tal necessidade, a correta relação desta questão com a hipótese de Marcos só foi
demonstrada, subseqüentemente, por Holtzmann.
175
No que tange à questão histórica, ela se desenvolve paralelamente às questões
literárias. Nesse desenvolvimento, o principal problema histórico da vida de Jesus, levemente,
vinha à tona. Então, uma questão começa a ser levantada: qual era o significado da escatologia
para a mente de Jesus? Como se percebe, tal questão está, diretamente, relacionada ao
problema da auto-consciência de Jesus. O aspecto escatológico, introduzido por Reimarus, foi
172
Ibid., p. 17.
173
Ibid., p. 17.
174
Ibid., p. 17.
175
Ibid., p. 17-18.
redescoberto por Johannes Weiss, no início da década de 1890. De acordo com Schweitzer, em
certo sentido, essa redescoberta do aspecto escatológico, por Weiss, se tornou um divisor de
águas na questão histórica.
176
Concluindo sua apresentação do problema, Schweitzer destaca que, em seus dias,
estava acontecendo uma grande atividade, no que diz respeito ao estudo crítico da vida de
Jesus. De um lado, era oferecida uma solução literária e, de outro lado, era oferecida uma
solução histórica. Contudo, a grande questão para Schweitzer era: A dificuldade de explicar a
personalidade histórica de Jesus está na história em si, ou apenas no modo como ela é
representada nas fontes?
177
. Essa é questão que ele tenta responder ao longo da sua obra A
Busca do Jesus Histórico.
Além de tentar responder à questão levantada acima, Schweitzer afirma que tal
questão ocupará os estudos críticos dos anos que lhe sucederão. Ele considerava que, até o
presente momento, a história do estudo da vida de Jesus havia recebido uma atenção muito
modesta. Exceto por notas esparsas em histórias da teologia, Schweitzer consultou toda a
literatura sobre o assunto presente nos seus dias. Seu objetivo com a obra A Busca do Jesus
Histórico é tentar ordenar o caos das vidas de Jesus existentes até os seus dias. Em suas
próprias palavras:
Mas agora, quando os métodos de solução literários e escatológicos levaram a
resultados complementares, quando o período pós-Strauss de investigação
parece ter chegado a um término temporário, e o objetivo ao qual ele parecia se
dirigir tornou-se claro, o tempo parece propício para uma tentativa de traçar
geneticamente, nas sucessivas obras, a modelagem do problema como agora
nos parece, e dar um relato histórico sistemático do estudo crítico acerca da
vida de Jesus.
178
Logo, como pode ser percebido, o esforço de Schweitzer será o de fornecer uma
descrição organizada de todas as tentativas de lidar com a investigação crítica acerca de Jesus.
Toda a sua análise visa destacar como cada tentativa contribui, a seu tempo e modo, para o
progresso da formulação do problema.
176
Ibid., p. 18.
177
Tal questão é apresentada por Schweitzer de maneira mais desenvolvida: É possível explicar a contradição entre
a consciência messiânica de Jesus e Seus discursos e ações não-messiânicos por meio de uma concepção de Sua
consciência Messiânica que faça parecer que Ele poderia ter agido de outra forma que não a descrita pelos
evangelistas; ou devemos nos aventurar a explicar a contradição tomando os discursos e ações não-Messiânicos
como nosso ponto fixo, negando a realidade de Sua consciência Messiânica e considerando-a como uma
interpolação tardia das crenças da comunidade cristã na vida de Jesus?
178
SCHWEITZER, Op.cit., p. 20.
3.3. As considerações de Albert Schweitzer sobre a busca do Jesus histórico
de Hermann Samuel Reimarus
A análise que Schweitzer faz da investigação crítica acerca de Jesus começa com
Hermann Samuel Reimarus. Isso porque, antes dele, ninguém tinha tentado formar uma
concepção histórica da vida de Jesus
179
. Reimarus nasceu no dia 22 de dezembro de 1694, em
Hamburg. Lá, passou sua vida como professor de línguas orientais e morreu em 1768. A
maioria dos escritos de Reimarus apareceu durante a sua vida. Todos eles defendiam as
afirmações da religião racional como contrária à fé da Igreja. Entretanto, sua principal obra,
aquela que firmou a base histórica dos seus ataques, circulou durante a sua vida entre seus
conhecidos, como um manuscrito anônimo. Apenas em 1774, Lessing começou publicar suas
partes mais importantes. Até 1778, ele publicou sete fragmentos. São eles: A Tolerância dos
Deístas; A Desmoralização da Razão no Púlpito; A impossibilidade de uma Revelação em que
todos os homens teriam bons motivos para acreditar; A Passagem dos Israelitas pelo Mar
Vermelho; Demonstrando que os livros do Antigo Testamento não foram escritos para revelar
uma religião; Acerca da história da Ressurreição; Os objetivos de Jesus e seus discípulos.
180
Schweitzer destaca que a obra de Reimarus marca a primeira vez que uma mente
realmente histórica e profundamente conhecedora das fontes empreendeu a crítica da tradição.
Logo, Lessing tinha dois objetivos ao publicar essa obra: o primeiro era demonstrar a
profundidade das críticas apresentadas por Reimarus; e o segundo era convocar alguém para a
defesa da religião cristã.
181
Reimarus parte da questão acerca do conteúdo da pregação de Jesus. Segundo
ele, era correto traçar uma distinção entre os ensinamentos dos apóstolos, em seus escritos, e
o que o próprio Jesus, em seu tempo de vida, proclamou e ensinou. O que pertence às
pregações de Jesus é o anúncio da proximidade do Reino dos Céus. Mas o Reino dos Céus
deve ser compreendido como os modos de pensamentos judaicos. Portanto, o Evangelho
significava que, sob a liderança de Jesus, o Reino do Messias estava próximo.
182
Para Reimarus, Jesus tomou partido pela Lei, compartilhou da exclusividade racial
judaica, não pretendia fundar uma nova religião, esperou em vão um levante popular, e foi
179
Pode se dizer que, antes de Reimarus, foram feitas duas obras sobre a Vida de Jesus, mas nenhuma delas foi
muito importante. A primeira foi escrita por um jesuíta em língua persa. De acordo com Schweitzer, tratava-se de
uma engenhosa falsificação da vida de Jesus na qual as omissões e as adições tiradas dos Apócrifos são inspiradas
pelo propósito único de apresentar ao governante de mente aberta um Jesus glorioso, obra na qual nada haveria que
o ofendesse. A segunda foi escrita por Johann Jakob Hess, em 1768, do ponto de vista do racionalismo mais antigo.
Como ela retém tanto de sobre-naturalismo e segue tanto as linhas de uma paráfrase dos Evangelhos, nada havia
nela que indicasse ao mundo o que o espírito da época estava preparando.
180
Cf. SCHWEITZER, Op.cit., p. 21-23.
181
Ibid., p. 24.
182
Ibid., p. 24-26.
abandonado por Deus na sua intenção de estabelecer um Reino terreno e libertar os judeus da
opressão política. Conseqüentemente, os discípulos interpretaram tal virada como a destruição
de todos os sonhos pelos quais eles tinham seguido Jesus.
183
De acordo com Reimarus, tudo isso deixa claro que Jesus e seus discípulos não
viam o tempo da consumação dessas esperanças como algo muito distante. Assim, os
discípulos estavam preparados para qualquer coisa, exceto para o que aconteceu. Porém, eles
superaram esse golpe passando para a segunda forma de esperança messiânica judaica. Até
então, tanto os seus pensamentos quanto os de seu mestre tinham sido dominados pelo ideal
político dos profetas, o rebento da linhagem de Davi que deveria surgir como libertador político
da nação. Todavia, existia outra expectativa messiânica que transferia tudo para a esfera
sobrenatural. Surgindo, primeiramente, com Daniel, tal expectativa pode ser detectada nos
apocalipses, no Diálogo com o Judeu Trifo de Justino e em alguns ditos rabínicos.
184
Assim sendo, quando o primeiro sistema, como Reimarus o chama, foi aniquilado
pela morte de Jesus, os discípulos implantaram o segundo e reuniram seguidores que
compartilhavam suas expectativas de uma segunda vinda de Jesus, o Messias. Então, para se
verem livres da dificuldade da morte de Jesus, eles deram-lhe uma importância de uma
redenção espiritual. Contudo, essa interpretação espiritual de sua morte não os teria ajudado se
eles não tivessem inventado também a ressurreição. Logo, os discípulos roubaram o corpo de
Jesus e o esconderam. Em seguida, anunciaram a todo o mundo que ele voltaria em breve.
185
Reimarus conclui que a esperança da parusia era o ponto fundamental no
cristianismo primitivo. Esse último era produto muito mais dessa esperança do que dos
ensinamentos de Jesus. Entretanto, enquanto o não cumprimento de sua escatologia não é
admitido, o cristianismo se baseia em uma fraude. Segundo Reimarus, o único argumento que
poderia salvar a credibilidade do cristianismo seria uma prova de que a parusia realmente
ocorreu no tempo para o qual foi anunciada. Mas, obviamente, tal prova não pode ser
apresentada.
É a partir dessa exposição do pensamento de Reimarus que Schweitzer começa a
tecer suas dez considerações. Em primeiro lugar, ele afirma que a obra de Reimarus é “talvez a
mais esplêndida realização em todo o curso da investigação histórica acerca de Jesus, pois ele
foi o primeiro a perceber o fato de que o mundo mental no qual Jesus se movia era
essencialmente escatológico”
186
.
183
Ibid., p. 26-29.
184
Ibid., p. 29-30.
185
Ibid., p. 30.
186
Ibid., p. 32.
Em segundo lugar, Schweitzer destaca que a ofensa de Reimarus foi aumentada
porque “ele via a escatologia numa perspectiva errada. Ele afirmava que o ideal messiânico que
dominava a pregação de Jesus era a [Sic!] do líder político, o filho de Davi”
187
. Portanto, todos
os outros enganos cometidos por Reimarus são vistos por Schweitzer como conseqüência
desse erro fundamental.
Em terceiro lugar, Schweitzer diz que:
À luz da clara percepção dos elementos do problema alcançada por Reimarus,
todo o movimento da teologia, até Johannes Weiss, parece retrógrado. Em toda
a sua obra é ignorada ou obscurecida a tese de que Jesus, como personalidade
histórica, deve ser encarada não como o fundador de uma nova religião, mas
como o produto final do pensamento escatológico e apocalíptico do judaísmo
tardio.
188
Em quarto lugar, para Schweitzer, “Reimarus foi o primeiro, depois de dezoito
séculos de equívoco, a ter uma noção do que a escatologia realmente era”.
189
O grande
problema é que a teologia a perdeu novamente para reencontrá-la apenas cem anos depois. De
acordo com Schweitzer, essa perda se deu ao engano de Reimarus em sua suposição de que a
escatologia era de caráter terreno e político.
Ainda analisando esse ponto, Schweitzer pontua algo muito importante:
A solução oferecida por Reimarus pode estar errada; porém, os dados
observacionais de que ele parte estão, sem dúvida, corretos, porque o dado
primário de todos é genuinamente histórico. Ele reconheceu que dois sistemas
de expectativa messiânica estava [Sic!] presentes lado a lado no judaísmo
tardio. Ele se aventurou a colocá-los em relação mútua para, assim, representar
o real movimento da história. Ao fazer isto ele caiu no engano de colocá-los em
ordem consecutiva, atribuindo a Jesus a concepção política de Filho-de-Davi, e
aos apóstolos, após sua morte, o sistema apocalíptico baseado em Daniel, em
vez de sobrepor um ao outro, de forma que o Rei Messiânico pudesse coincidir
com o Filho do Homem, e o antigo conceito profético pudesse se inscrever na
circunferência da apocalíptica vinda em Daniel, e elevada junto com ela ao
plano supra-sensorial. Mas, o que importa o engano comparado ao fato de que
o problema tinha sido realmente percebido?
190
Em quinto lugar, segundo Schweitzer, Reimarus “formulou o conceito de que Jesus
não foi um fundador religioso e um mestre, mas simplesmente um pregador”
191
. Tal conceito se
deve ao grande e rápido sucesso da pregação de Jesus, sem ele sequer definir o principal
termo dos seus discursos: o Reino de Deus.
187
Ibid., p. 32.
188
Ibid., p. 33.
189
Ibid., p. 33.
190
Ibid., p. 33-34.
191
Ibid., p. 34.
Em sexto lugar, Schweitzer nota que Reimarus “harmonizou as narrativas Sinópticas
e Joanina ao praticamente deixar esta última fora da análise”
192
. Para ele, a percepção que
Reimarus teve da atitude de Jesus perante a lei e do progresso pelo qual os discípulos tomaram
uma atitude mais livre com relação à mesma é o acurada que a moderna ciência histórica não
precisa adicionar nada mais ao que ele falou.
Em sétimo lugar, de acordo com Schweitzer, Reimarus “reconheceu que o
cristianismo primitivo não foi algo que cresceu, por assim dizer, dos ensinamentos de Jesus,
mas que surgiu como uma criação nova, em conseqüência de eventos e circunstâncias que
acrescentavam algo a esta pregação, algo que ela não continha originalmente”
193
.
Em oitavo lugar, Schweitzer faz quatro considerações importantes acerca de
Reimarus: 1) Ele notou que o fato do “evento da Páscoa” ter sido proclamado primeiro no
Pentecoste constituía um problema; 2) Ele reconheceu que a solução do problema da vida de
Jesus pede uma combinação dos métodos da crítica histórica e da literária; 3) Ele percebeu que
meramente enfatizar o papel desempenhado pela escatologia não seria suficiente, mas que
seria necessário assumir um elemento criativo na tradição, ao qual ele atribuiu os milagres, as
histórias que levam ao cumprimento das profecias messiânicas, os traços universalistas e as
predições da paixão e da ressurreição; 4) Ele observou que a recomendação de silêncio, no
caso dos milagres de cura e de certas comunicações aos discípulos, constitui um problema que
deve ser solucionado.
194
Em nono lugar, Schweitzer considera que “ainda mais notável é seu [de Reimarus]
olho para o detalhe exegético”
195
. Como exemplo, ele cita a interpretação que Reimarus faz de
Mt. 10:23 e 16:28
196
. Tal citação se deve ao fato que essas passagens são muito importantes
para toda a história da investigação crítica acerca de Jesus. Conseqüentemente, a opinião de
Reimarus sobre as mesmas deveria receber toda a atenção nos estudos ulteriores.
Em décimo e último lugar, Schweitzer destaca que “Reimarus desacreditou a
teologia progressiva”
197
. Com tal afirmação, ele pretende dizer que as incisivas afirmações de
Reimarus causaram um grande insegurança nos estudiosos da época, forçando-os a procurar
novos referenciais para darem continuidade à pesquisa sobre Jesus.
192
Ibid., p. 34.
193
Ibid., p. 34.
194
Ibid., p. 34.
195
Ibid., p. 34.
196
“Quando forem perseguidos num lugar, fujam para outro. Eu lhes garanto que vocês não terão percorrido todas as
cidades de Israel antes que venha o Filho do homem.” (Mt. 10:23); “Garanto-lhes que alguns dos quais aqui se
acham não experimentarão a morte antes de verem o Filho do homem vindo em seu Reino.” (Mt. 16:28). A versão da
Bíblia utilizada nessa e em todas as demais citações ao longo de todo o trabalho é a NVI – Nova Versão
Internacional.
197
SCHWEITZER, Op.cit., p. 35.
Schweitzer encerra suas considerações afirmando que, devido à absoluta
incapacidade da teologia moderna de levar adiante o grande progresso dado por Reimarus, sua
obra foi negligenciada e o estímulo que ela era capaz de transmitir perdeu seu efeito.
Schweitzer diz também que Reimarus não teve nem predecessores nem discípulos. Ao seu ver,
a obra de Reimarus era tão grandiosa que estava à frente do seu tempo. Embora as gerações
posteriores lhe prestem justo tributo de admiração, elas não lhe devem nenhuma gratidão.
198
3.4. As considerações de Schweitzer sobre as vidas de Jesus do racionalismo
primitivo
Após analisar Reimarus, Schweitzer passa às vidas de Jesus do racionalismo
primitivo. Por racionalismo primitivo ele entende aquele racionalismo anterior ao racionalismo
pleno. É um racionalismo menos completo, e ainda não completamente dissociado de um
sobrenaturalismo ingênuo. Segundo o próprio Schweitzer, aqui, “o racionalismo cerca a religião
sem tocá-la, e como um lago cercando algum antigo castelo, reflete sua imagem com curiosas
refrações”
199
. Como representantes dessa etapa, ele destaca cinco nomes: Johann Jakob Hess,
Franz Volkmar Reinhard, Ernst August Opitz, Johann Adolph Jakobi e Johann Gottfried Herder.
Johann Jakob Hess nasceu em 1741 e morreu em 1828. Depois de dezessete anos
como vigário, tornou-se um dos clérigos assistentes no Frauminster de Zurique. Mais tarde, se
tornou “Antistes”, presidente, do sínodo cantonal. Hess não era um pensador profundo, porém,
era bastante ilustrado e habilidoso. Sua obra História dos Três Últimos Anos da Vida de Jesus,
embora se mantenha nas linhas da paráfrase dos Evangelhos, é considerada por Schweitzer
como um excelente trabalho. Toda ela está baseada na harmonia dos Evangelhos.
200
Mesmo destacando que os milagres são essenciais para a narrativa dos Evangelhos
e para a revelação, Hess afirma que os estudiosos da vida de Jesus precisam tomar cuidado
para não valorizá-los por si mesmos. Tais estudiosos, todavia, devem olhar primeiro para o
valor ético dos milagres. Acima de todos eles, Hess considerava ser necessário conservar o
nascimento sobrenatural e a ressurreição corpórea de Jesus. Isso porque, do primeiro, depende
a sua ausência de pecados e, do segundo, depende a certeza da ressurreição generalizada dos
mortos. Contudo, apesar de conservar o nascimento sobrenatural e a ressurreição corpórea de
Jesus, Hess racionaliza a narrativa do Evangelho sempre que possível. Da peculiar beleza das
198
Ibid., p. 36.
199
Ibid., p. 37.
200
Ibid., p. 39-40.
falas de Jesus não resta um traço sequer. Além disso, as ocorrências mais simples da narrativa
dão ocasião a um retrato sentimental que, às vezes, beira o ridículo.
201
Franz Volkmar Reinhard nasceu em 1753 e morreu em 1812. Em 1792, após ter
trabalhado por quatorze anos como docente em Wittenberg, foi nomeado Capelão Sênior da
Corte em Dresden. Schweitzer considera que a obra de Reinhard, intitulada Ensaio sobre o
plano que o fundador da religião cristã adotou para o benefício da humanidade, está num nível
distintamente superior à obra de Hess. De estilo prosaico, Reinhard é impressionado pelos
escritores moralistas. Em seu discurso, prioriza os pensamentos justificáveis pelas leis da lógica
e pelos cânones da razão crítica. Mesmo assim, para ele, certos pilares da visão
sobrenaturalista da história permanecem inabaláveis.
202
Reinhard, deliberadamente, coloca poucos milagres em sua narrativa. De acordo
com Schweitzer, sua definição de milagre
203
desintegra tal conceito por dentro e deixa clara sua
descrença com relação ao mesmo. Algo semelhante pode ser percebido na compreensão de
Reinhard a respeito da divindade de Cristo. Embora ele a assuma, sua obra não se propõe a
prová-la. No máximo, ela leva à conclusão de que o Fundador do Cristianismo deve ser visto
como um maravilhoso mestre “divino”. De acordo com Schweitzer, quando propõe que todas as
condições dogmáticas sejam excluídas da pesquisa sobre Jesus, Reinhard faz a primeira
tentativa de dar um relato histórico dos seus ensinamentos.
204
Dentre as várias nuanças do plano de Jesus, Reinhard destaca, sobretudo, sua
universalidade. Segundo ele, Jesus conecta seu ensinamento à escatologia judaica. Em tal
conexão, os termos Reino dos Céus e Reino de Deus passam a significar uma organização
ética universal da humanidade. Conseqüentemente, para Reinhard, o plano de Jesus é
inteiramente independente da política e sua morte voluntária é explicada como resultado de um
esforço de ruptura entre o Estado e a religião. Assim, para tornar o Reino de Deus uma
realidade prática, era necessário que Jesus o dissociasse de todas as forças desse mundo, e
conectasse profundamente a moralidade e a religião.
205
Ainda de acordo com a maneira que Reinhard compreende o plano de Jesus, o
primeiro passo para a conexão entre a moralidade e a religião era derrubar a superstição e
201
Ibid., p. 40-42.
202
Ibid., p. 42.
203
“Tudo o que nós chamamos de miraculoso e sobrenatural deve ser considerado assim apenas de forma relativa, e
implica em nada mais do que uma óbvia exceção ao que pode ser obtido por causas naturais, tais como as
conhecemos e temos experiência de sua capacidade. Um pensador cuidadoso não se aventurará em nenhuma
instância a declarar que um evento é tão extraordinário que Deus não pudesse produzi-lo pelo uso de causas
secundárias, mas que tivesse que intervir diretamente. (p. 42)”
204
Cf. SCHWEITZER, Op.cit., p. 42-43.
205
Ibid., p. 43-44.
trazer a religião para o domínio da razão. Para tal, em primeiro lugar, os sacerdotes teriam que
ser privados para sempre de sua influência. Em segundo lugar, uma melhora da condição social
da humanidade teria que ser introduzida. Isso porque o nível da moralidade depende de
condições sociais. Assim sendo, Jesus foi, acima de tudo, um reformador social. Por meio da
busca da mais alta perfeição de que a sociedade é capaz, a paz universal seria, gradualmente,
alcançada.
206
Na segunda parte de sua obra, Reinhard demonstra que, antes de Jesus, nenhum
grande homem da antiguidade havia elaborado um plano benéfico numa escala comparável a
toda a humanidade. Na terceira parte, ele chega à conclusão de que Jesus é um mestre
singularmente divino. Mas, no que tange a relação entre a religião racional ensinada por Jesus
e a teologia cristã que Reinhard aceitava, ele não se sente obrigado a responder.
207
Segundo Schweitzer, em sua obra História de Jesus, com Esboço do Seu Caráter,
Ernst August Opitz segue as mesmas linhas de Reinhard. Porém, ela é desfigurada por uma
quantidade de lapsos de gosto e por um grosseiro sobrenaturalismo na descrição dos milagres
e experiências do Grande Mestre.
208
Em sua obra A História de Jesus para leitores pensantes e de boa vontade, Johann
Adolph Jakobi admite que grande parte do miraculoso é adição posterior aos fatos. Embora
admita isso, ele desconfia do racionalismo pleno. Isso porque, para Jakobi, as explicações do
racionalismo são, freqüentemente, mais estranhas que os próprios milagres. Uma certa medida
de milagre deveria ser mantida, todavia, não com o propósito de fundamentar a fé. A única
intenção dos milagres é cercar a vida de Jesus com uma guarda de honra.
209
De acordo com Schweitzer, o último representante das vidas de Jesus do
racionalismo primitivo é Johann Gottfried Herder. Suas duas obras, O Redentor dos homens,
segundo nossos três primeiros evangelhos e O filho de Deus, o Salvador do mundo, segundo o
evangelho de João marcam a transição do racionalismo primitivo para o racionalismo. Ambas
se encontram na fronteira entre essas duas etapas da investigação crítica acerca da vida de
Jesus. Com ajuda muito mais da poética que da análise crítica, Herder observa que todas as
tentativas de harmonizar os Sinópticos são vãs. Segundo Schweitzer, ele é o primeiro e o único
estudioso, antes de Strauss, a observar que a vida de Jesus só poderia ser construída segundo
os Sinópticos ou segundo João, nunca segundo os quatro Evangelhos.
210
206
Ibid., p. 44.
207
Ibid., p. 44-45.
208
Ibid., p. 45.
209
Ibid., p. 45.
210
Ibid., p. 45-46.
Para Herder, o Quarto Evangelho não é uma fonte histórica primária, contudo, é um
protesto contra a estreiteza dos chamados Evangelhos Palestinos. O Evangelho de João
campo livre, como as circunstâncias da época pediam, às idéias gregas. Herder afirma também
que as adições e omissões desse Evangelho são igualmente bem planejadas. João mantém
apenas aqueles milagres que são símbolos de um milagre contínuo e permanente, pelo qual o
Salvador do Mundo age constante e ininterruptamente entre os homens.
211
Ao lidar com os Sinópticos, Herder compreende o problema com a mesma
percepção intuitiva. Ele diz que o Evangelho de Marcos não é um resumo. Entretanto, ele é um
Evangelho original. Isto é, o que os outros têm e ele não tem, foi adicionado a eles, não omitido
por ele. Então, Marcos é uma testemunha de um esquema de Evangelho original, mais curto,
para o qual os assuntos adicionais dos outros podem ser encontrados como um suplemento.
212
Logo, de acordo com Herder, uma história pura não deve ser procurada nem nos
três primeiros Evangelhos nem no quarto. Ele os considera como o épico sagrado de Jesus, o
Messias. Afirma também que eles modelam a história do seu herói sobre palavras proféticas do
Antigo Testamento. Segundo Schweitzer, nesse aspecto, Herder também é um precursor de
Strauss.
213
Schweitzer também diz que, em essência, Herder representa um protesto da arte
contra a teologia. Portanto, se alguém pretende encontrar vida nos Evangelhos deve lê-los com
gosto. Se assim o fizer, os milagres deixam de ofender. Os milagres estão além da
possibilidade da prova e pertencem à mera “crença da Igreja”. Apesar de tudo isso, Herder
considerava que, num sentido limitado, os milagres devem ser aceitos com base em evidência
histórica. Mesmo assim, a realidade dos mesmos é de pequena importância em comparação
com seu valor simbólico.
214
Ainda comentando sobre Herder, Schweitzer o situa entre os racionalistas
primitivos. Isso porque ele permite que o sobrenatural se intrometa nos eventos da vida de
Jesus e não sente que a adoção do ponto de vista histórico envolva a necessidade de livrar-se
dos milagres. Para Schweitzer, uma primeira leitura de Herder poderia sugerir um salto direto
para Strauss, mas foi necessário que um espírito muito prosaico, Paulus, interviesse e atacasse
a questão do milagre de um ponto de vista puramente histórico.
215
211
Ibid., p. 46.
212
Ibid., p. 47.
213
Ibid., p. 47.
214
Ibid., p. 48.
215
Ibid., p. 48.
Sobre as vidas de Jesus dos cinco autores acima citados, Schweitzer tece seis
considerações. Em primeiro lugar, esse racionalismo semidesenvolvido, estava consciente de
um impulso manifesto pela primeira vez na história da teologia:
Escrever a Vida de Jesus; a princípio sem saber para onde esta empreitada a
levaria. Nenhuma mão rude seria posta sobre a concepção doutrinária de
Jesus; pelo menos estes escritores não tinham intenção de por suas mãos
sobre ela. Seu propósito era simplesmente conseguir uma visão mais clara do
curso da vida de nosso Senhor em sua vida terrena e humana. Os teólogos que
empreenderam essa tarefa pensavam em si mesmos meramente como
escrevendo um suplemento histórico à vida do Homem-Deus Jesus.
216
Em segundo lugar, a essa altura, a batalha sobre o milagre ainda não havia
começado. Porém, o papel do milagre já não era tão importante. Conseqüentemente, o único
aspecto verdadeiramente racionalista nessas primeiras obras é o tratamento dos ensinamentos
de Jesus. Sobre os cinco autores acima citados, Schweitzer afirma que:
Todos eles tomam como princípio não perder uma chance de reduzir o número
de milagres; onde podem explicar um milagre por causas naturais, eles o
hesitam por um momento. Mas a rejeição deliberada de todos os milagres, a
eliminação de todo sobrenatural que se intromete na vida de Jesus, ainda não
apareceu. Este princípio foi primeiramente desenvolvido consistentemente por
Paulus.
217
Em terceiro lugar, o período desse racionalismo primitivo é inteiramente não
histórico. Isso porque o que ele procura não é o passado, mas a si mesmo no passado. De
acordo com Schweitzer:
Para ele, o problema da vida de Jesus está solucionado no momento em que
consegue trazer Jesus para perto do seu próprio tempo, ao retratá-lo como o
grande mestre da virtude, e mostrar que o seu ensinamento é idêntico à
verdade intelectual que o racionalismo deifica.
218
Em quarto lugar, os limites temporais desse racionalismo primitivo não podem ser
definidos facilmente. Schweitzer sugere o seguinte:
Para o estudo histórico da vida de Jesus, o primeiro marco que ele oferece é a
obra de Hess, que surgiu em 1768. […] E quando Strauss deu o golpe de
misericórdia do racionalismo pleno, o racionalismo parcial não pereceu com ele,
mas aliou-se ao neo-sobrenaturalismo que o tratamento de Strauss para a vida
de Jesus chamou à existência.
219
Durante o período em que Schweitzer está escrevendo a sua obra A Busca do
Jesus Histórico, traços desse racionalismo primitivo ainda podiam ser encontrados em uma
216
Ibid., p. 38.
217
Ibid., p. 38.
218
Ibid., p. 38.
certa parte da literatura denominada conservadora. Todavia, o mesmo já não contava mais com
duas de suas principais características: a ingenuidade e a honestidade.
Em quinto lugar, do ponto de vista estético, as primeiras vidas de Jesus estão entre
as menos agradáveis de todas as produções teológicas. Schweitzer pontua os seguintes
aspectos:
O sentimentalismo de suas representações não tem limites. Sem limite também,
e ainda mais inaceitável, é a falta de respeito para com a linguagem de Jesus.
Ele tem que falar de uma forma racional e moderna, e portanto todas as suas
falas são reproduzidas num estilo da mais polida modernidade. […] Em todas
essas Vidas de Jesus, nenhuma de suas falas mantém sua forma
autêntica.
220
Por fim, em sexto e último lugar, o que os autores das vidas de Jesus do
racionalismo primitivo pretendiam era trazer Jesus para perto do próprio tempo deles. Assim
fazendo, tornaram-se os pioneiros do estudo histórico de sua vida. Schweitzer destaca que:
Os defeitos de suas obras, em relação ao senso estético e ao fundo histórico
são suplantados pela atratividade do pensamento propositado e não
preconceituoso que aqui desperta, espreguiça-se e começa a mover-se com
liberdade.
221
Essas são as seis considerações de Schweitzer acerca das vidas de Jesus do
racionalismo primitivo. O seu próximo passo é analisar as primeiras vidas fictícias de Jesus.
3.5. As considerações de Schweitzer sobre as primeiras vidas fictícias de
Jesus
Após analisar as vidas de Jesus do racionalismo primitivo, Schweitzer passa a
analisar as primeiras vidas fictícias de Jesus. Bahrdt e Venturini são os dois principais nomes
dessa etapa. Eles escrevem no fim do século XVIII e no início do século XIX. De acordo com
Schweitzer, as suas obras, representam uma primeira tentativa de aplicar, com consistência
lógica, uma interpretação não-sobrenatural às histórias dos milagres dos Evangelhos. Além
disso, as vidas fictícias de Bahrdt e Venturini representam também uma primeira tentativa de
apresentar uma conexão entre os eventos da vida de Jesus. Contudo, como tal conexão não
pode ser apresentada, os próprios autores tiveram que provê-la por si mesmos. O grande
problema é que suas explicações o caracterizadas pelo improviso e ambos utilizam a
hipótese de uma sociedade secreta da qual Jesus é a ferramenta. Apesar de tudo isso, essas
vidas de Jesus, por sua tintura de ficção, são as primeiras a merecer o nome.
219
Ibid., p. 39.
220
Ibid., p. 39.
Karl Friedrich Bahrdt nasceu em 1741, em Bischofswerda. Primeiro foi catequista e
depois professor de filologia sacra em Leipzig. Em 1766, devido a uma vida escandalosa, foi
obrigado a renunciar. Depois de rias aventuras e de ter, por algum tempo, um cargo de
professor em Giessen, Bahrdt recebeu de Zedlitz, ministro de Frederico, uma autorização para
lecionar em Halle. Durante o tempo que passou ali, lecionou para quase novecentos alunos.
Entretanto, após a morte de Frederico, teve que renunciar ao seu cargo e foi cuidar de uma
pousada perto de Halle. Por ridicularizar o edito de Wöllner (1788), Bahrdt foi confinado por um
ano em uma fortaleza. Em 1792, morreu em desgraça.
222
Schweitzer destaca que Bahrdt começou com clérigo ortodoxo. Mas, em Halle,
rejeitou sua crença na revelação e dedicou-se a explicar a religião com base na razão. A esse
período pertencem as Cartas populares sobre a Bíblia e Uma explicação dos planos e objetivos
de Jesus. Ainda segundo Schweitzer, a grande quantidade de diálogos torna a sua obra sem
forma e antiartística. Além disso, a maneira como ele inclui personagens imaginários é
espantosa.
223
Para Bahrdt, a chave para a explicação da vida de Jesus é a presença de
Nicodemus e Jode Arimatéia na narrativa do Evangelho. Ambos pertenciam às classes mais
altas da sociedade e eram Essênios. Essa ordem tinha membros secretos em todos os
seguimentos da sociedade, até mesmo no Sinédrio. Seu principal objetivo era desvincular as
esperanças messiânicas da nação de Israel de uma compreensão que apelasse aos sentidos e
conduzi-la a um conhecimento superior das verdades espirituais. Assim sendo, com o propósito
de libertar o povo das limitações da nacional, eles tinham que encontrar um Messias que
destruiria essas falsas expectativas messiânicas.
224
De acordo com Bahrdt, a Ordem
225
conheceu Jesus imediatamente após o seu
nascimento. Durante a sua infância, ele foi vigiado constantemente por membros da Irmandade.
Com o passar do tempo, sob a influência de judeus alexandrinos também ligados à Ordem,
Jesus passou a conhecer a falsidade dos sacerdotes, a ter horror aos sacrifícios do Templo e a
conhecer Sócrates e Platão. Foi inspirado pela morte de Sócrates que ele passou a desejar o
martírio. Aos doze anos, Jesus tinha avançado tanto em seus conhecimentos que foi capaz
de argumentar contra a possibilidade de milagres com os escribas no Templo.
226
221
Ibid., p. 39.
222
Ibid., p. 50.
223
Ibid., p. 50.
224
Ibid., p. 50-51.
225
As palavras Ordem e Irmandade sempre se referem aos Essênios.
226
Cf. SCHWEITZER, Op.cit., p. 51.
Quando se sentem prontos a aparecer publicamente, Jesus e seu primo João
Batista deliberam sobre a melhor maneira de ajudar o povo. A conclusão é que deveriam abrir
os olhos de todos quanto à tirania e à hipocrisia dos sacerdotes. Por instrumentalidade de
Haram, um membro da Ordem Essênia, o médico Lucas foi apresentado a Jesus e colocou toda
a sua ciência à disposão dele. Então, partindo das superstições do povo, Jesus apresentou
sua sabedoria sob a capa do espetáculo. Paralelamente, a Ordem cuidava de encenar os
milagres. A esperança era que, levadas pelo exterior aparente, as pessoas admitissem em suas
mentes a revelação da verdade racional. Depois de algum tempo, elas mesmas seriam capazes
de emancipar-se das superstições. Foi por causa disso que Jesus viu-se obrigado a aparecer
no papel de Messias da expectativa popular e a operar por meio de milagres e ilusões.
227
Segundo Bahrdt, os membros da Ordem eram divididos em três classes: Batizados,
Discípulos e Escolhidos. Primeiro, os Batizados eram aqueles que recebiam apenas o ensino
comum ao povo. Segundo, os Discípulos eram aqueles que possuíam um conhecimento mais
avançado, porém, não chegavam a conhecer os mistérios mais elevados. Terceiro, os
Escolhidos eram aqueles que possuíam um conhecimento pleno. Logo, por se encontrarem no
grupo dos discípulos, os apóstolos não suspeitavam do plano secreto que estava em ação.
Portanto, os Evangelhos escritos por eles relatam apenas as astutas ilusões produzidas pelos
Essênios. Ou seja, relatam a vida de Jesus somente como vista pelo populacho.
228
No que diz respeito aos eventos miraculosos registrados nos Evangelhos, nem
sempre é possível descobrir como eles realmente aconteceram. A única certeza é que, em
todos os casos, o processo foi natural. Dois exemplos disso são: 1) na alimentação de cinco mil
pessoas, Jesus estava à porta de uma caverna cheia de pães e os recebia das mãos dos
membros da Ordem que lá dentro se encontravam escondidos; 2) ao caminhar sobre as águas,
Jesus tinha sob os seus pés uma balsa flutuante. No que se refere às curas, elas eram
atribuídas à arte de Lucas. No ensino, Jesus possuía dois métodos: um exotérico, simples, para
o mundo utilizando uma linguagem clara e universalmente inteligível; outro esotérico, místico,
para os iniciados – utilizando uma linguagem obscura e velada. Ora falava de uma maneira, ora
de outra. A maioria dos discursos esotéricos foi preservada por João e pode ser encontrada no
seu Evangelho.
229
Para Bahrdt, quando os evangelistas relatam que Jesus se retirava para orar, não
era isso o que de fato acontecia. A verdade é que ele se ausentava apenas para participar das
227
Ibid., p. 51-52.
228
Ibid., p. 52.
229
Ibid., p. 52-53.
reuniões da Ordem que aconteciam nas cavernas situadas entre as colinas da região.
Naturalmente, os discípulos nada sabiam sobre isso.
230
Para que o plano da Ordem pudesse ser levado adiante com sucesso, Bahrdt afirma
que o Messias judaico teria que morrer e ressurgir. Conseqüentemente, as falsas concepções
sobre o Messias que a multidão acalentava seriam substituídas por uma compreensão
espiritualizada acerca do mesmo. Assim, Nicodemus, Haram e Lucas elaboraram um plano
acerca da suposta morte de Jesus. Com a ajuda de poderosas drogas, Lucas garantiu que
Jesus seria capaz de suportar a dor, o sofrimento e resistir à morte por muito tempo. A
Nicodemus caberia influenciar as decisões do Sinédrio, em especial, a execução imediatamente
após a sentença e a permanência do condenado por pouco tempo na cruz. A peça foi encenada
com perfeição. Em seguida, José de Arimatéia removeu o corpo para uma das cavernas dos
Essênios onde deram início às medidas de ressuscitamento. Ali, os mais fortes nutrientes lhe
foram dados. Na manhã do terceiro dia, eles deslocaram a pedra que fechava a entrada do
túmulo. Ao ver Jesus descendo a encosta o vigia acordou e fugiu apavorado. Em forma de anjo,
um dos essênios apareceu às mulheres e lhes anunciou a ressurreição de Jesus. Depois disso,
Jesus apareceu à Maria e, vez por outra, aos seus discípulos. Finalmente, no Monte das
Oliveiras, deu-lhes algumas orientações, despediu-se e subiu a colina até ser encoberto por
uma nuvem. Do alto da montanha, retornou à sede principal da Irmandade. Outras aparições
públicas foram muito raras. Um exemplo foi a Paulo, na estrada de Damasco. Assim sendo, até
a sua morte, Jesus dirigiu os destinos da Ordem Essênia.
De acordo com Schweitzer, o segundo grande nome a empreender uma vida fictícia
de Jesus é Venturini. A sua obra História natural do grande profeta de Nazaré é semelhante à
obra de Bahrdt. Ambas dão a impressão de um quadro terminado ao esboço. Karl Heinrich
Venturini nasceu em Braunschweig, em 1768. Após completar seus estudos teológicos, ele
tentou, em vão, assegurar um cargo como docente na faculdade de teologia em Helmstadt, ou
como bibliotecário em Wolfenbüttel. Embora sua vida fosse exemplar e sua piedade acima de
qualquer crítica, Venturini era considerado livre demais em suas idéias. Então, a falta de
reconhecimento o levou a abandonar o trabalho teológico e a se dedicar ao registro dos
eventos da história contemporânea. Venturini desempenhou tal atividade até 1841 e morreu em
1849.
231
Venturini partia de um pressuposto fundamental: para se fazer entendido pelo
judaísmo de seu tempo, até o mais nobre espírito da humanidade precisava cobrir seu ensino
230
Ibid., p. 54.
231
Ibid., p. 55-56.
espiritual com uma veste sensível. Somente dessa maneira tal espírito agradaria à imaginação
oriental. Logo, o mensageiro de Deus estava moralmente obrigado a operar milagres para os
judeus. O propósito desses milagres era ético. Os mesmos eram especialmente preparados
para contrapor-se à impressão criada pelos supostos milagres dos enganadores do povo e
apressar a derrubada do Reino de Satã.
232
Todavia, Venturini insiste que, para a moderna ciência médica, os milagres não são
miraculosos. Ele diz que Jesus nunca curou sem remédios e sempre levava sua maleta portátil
de medicina consigo. Quanto às ressurreições, elas eram casos de coma. Muitas histórias de
milagres se devem a óbvios mal entendidos. Por exemplo: no milagre em Cana, Jesus havia
trazido consigo alguns jarros de bom vinho como presente de casamento e os havia deixado em
outro cômodo.
233
Semelhantemente a Bahrdt, segundo Venturini, Jesus também possuía ligações
com os Essênios. Os membros dessa Ordem tinham vigiado o pequeno Jesus ano Egito. À
medida que ele crescia, eles se encarregavam da sua educação e também da educação do seu
primo, João Batista. Enquanto a não como um todo esperava por uma insurreição como meio
de libertação, eles sabiam que a liberdade só poderia ser alcançada através de uma renovação
espiritual.
234
Devido à profunda experiência de sua vida interior e após se destacar entre os
demais da Ordem, Jesus decidiu assumir o seu ofício. Para pontuar tal decisão, ele pediu o
batismo de João Batista. Venturini afirma que enquanto isso era feito, começou uma
tempestade. Uma pomba, assustada pelos raios, desceu sobre a cabeça de Jesus. Tal fato foi
interpretado por ambos, Jesus e João Batista, como uma confirmação de que a hora de Deus
havia chegado. Por sua vez, as tentações no deserto e no pináculo do Templo são
interpretadas por Venturini apenas como maquinações de um fariseu chamado Zadok. Contudo,
Jesus não obteve sucesso em destruir a velha crença messiânica com suas pretensões
terrenas. A cada dia, crescia o ódio dos grupos dominantes contra ele. Foi exatamente por essa
razão que Jesus proibiu seus discípulos de pregar o Evangelho além das fronteiras do território
judeu.
235
Para Venturini, a essa altura, chegava o tempo para um importante movimento. A
Sociedade Secreta decidiu que Jesus deveria subir à Jerusalém e lá se proclamar,
publicamente, como o Messias. O propósito principal de tal ato era desenganar o povo de suas
232
Ibid., p. 56.
233
Ibid., p. 56.
234
Ibid., p. 57.
235
Ibid., p. 57-58.
expectativas messiânicas terrenas. Na entrada triunfal, todo o povo o aclamou. Tudo estava
dando certo. Entretanto, quando Jesus tentou substituir a figura que eles tinham do Messias por
outra de caráter diferente, quando ele falou de duras provações que viriam para todos e quando
ele mesmo mostrou-se poucas vezes no Templo em vez de tomar seu lugar à frente do povo,
eles começaram a duvidar dele. Jesus foi imediatamente capturado e morto
236
.
Ainda de acordo com Venturini, quando Jesus entregou a sua alma tão
rapidamente, José de Arimatéia, também membro da Ordem, foi a Pôncius Pilatus requisitar o
corpo. Ao sair do Pretório encontrou-se com Nicodemus e foram juntos para o Gólgota. Depois
de preparar o corpo e depositá-lo em uma cova escavada na rocha, mandou notícias à
Irmandade Essênia. Por possuírem um depósito perto dali, prometeram que tomariam conta do
corpo. No primeiro dia, não houve movimento de vida. No entanto, depois de um terremoto, um
irmão com vestes brancas da ordem, seguia para o túmulo por um caminho secreto. Ao ser
visto após um relâmpago, foi confundido por alguns irmãos que vigiavam o túmulo. Eles saíram
todos correndo. Ao amanhecer, esse irmão ouviu um som vindo da cova: Jesus estava se
movendo. Muitos irmãos da Ordem correram para o local e removeram Jesus para seu abrigo.
Depois de quarenta dias e algumas poucas aparições públicas, Jesus se despede dos irmãos.
Venturini destaca que a cena da despedida dá a falsa impressão de sua ascensão.
Acerca das primeiras vidas fictícias de Jesus, Schweitzer faz duas importantes
considerações. Em primeiro lugar:
estas vidas não são performances tão desprezíveis quanto se pode supor.
muita observação perspicaz nelas. Bahrdt e Venturini estão certos em sentir
que a conexão entre os eventos na vida de Jesus ainda está para ser
descoberta; os Evangelhos dão apenas uma série de ocorrências, e não
oferecem uma explicação sobre por que elas aconteceram exatamente como
foram.
237
A segunda importante consideração de Schweitzer diz respeito à relação entre a
morte de Jesus e a sua intenção de fundar o Reino. Portanto, em segundo lugar:
Bahrdt e Venturini foram os primeiros a perceber que, de todos os atos de
Jesus, Sua morte foi mais distintamente Sua própria, porque foi por meio desta
que Ele pretendia fundar o Reino.
238
Finalmente, Schweitzer encerra suas considerações sobre as primeiras vidas
fictícias de Jesus afirmando que a obra de Venturini é re-publicada anualmente até os seus
dias. Isso porque todas as vidas fictícias de Jesus voltam, direta ou indiretamente, ao tipo que
236
Schweitzer não deixa claro se Jesus realmente morreu ou não.
237
SCHWEITZER, Op.cit., p. 59.
238
Ibid., p. 59-60.
ele criou. O próximo passo de Schweitzer em sua obra A Busca do Jesus Histórico é analisar e
criticar o racionalismo plenamente desenvolvido. Toda a sua atenção recai sobre Paulus.
3.6. As considerações de Schweitzer sobre o racionalismo plenamente
desenvolvido em Paulus
Após analisar as primeiras vidas fictícias de Jesus, Schweitzer passa a analisar o
racionalismo plenamente desenvolvido. Tal análise se concentra, especialmente, na obra de
Paulus intitulada A Vida de Jesus como Base de uma Narrativa Puramente Histórica do
Cristianismo Primitivo. Segundo Schweitzer, Paulus não foi um mero racionalista, mas um
homem de habilidades muito versáteis. A sua limitação era que ele desconfiava radicalmente de
tudo que saísse dos limites do pensamento lógico.
Paulus era filho de um diácono em Leonberg. É muito provável que o seu
racionalismo tenha sido herdado do pai. Paulus estudou teologia em Tübingen. Em 1789, foi
chamado a Jena como professor de línguas orientais. Quatro anos depois, ele sucedeu à
terceira cátedra ordinária de teologia. Entre 1800 e 1802, Paulus publicou seu comenrio sobre
os Evangelhos Sinópticos, onde defendia uma interpretação naturalista dos milagres.
239
casado, em 1803, Paulus aceitou um convite para se tornar conselheiro do
consistório e professor, em Würzburg. Ali, Montgelas, um ministro liberal, estava desejoso de
estabelecer uma universidade fundada sobre os princípios do Iluminismo. Porém, o plano
falhou. Paulus renunciou ao cargo e, em 1807, tornou-se membro do conselho educacional
Bávaro. A essa tarefa, ele dedicou quatro anos. Em 1811, ele foi para Heidelberg como
professor de teologia. Ali permaneceu até a sua morte, em 1851, com noventa anos de idade.
240
Os quarenta anos como professor de teologia em Heidelberg foram muito
produtivos. Paulus escreveu sobre quase todos os segmentos do conhecimento. Esses escritos
apresentavam traços anti-semitas, uma grande influência de Kant e Spinoza, e uma profunda
aversão a Schelling. Schweitzer destaca que, por sua consistente execução da explicação
racionalista, Paulus prestou à teologia um serviço mais valioso do que aqueles que se
imaginam tão superiores a ele estão dispostos a reconhecer.
241
Para Schweitzer, a vida de Jesus de Paulus é horrivelmente arranjada. Na primeira
parte ele faz uma exposição histórica dos Evangelhos, seção por seção. Na segunda, faz uma
sinopse entremeada com material suplementar. Não se percebe uma tentativa intencional de
captar a vida de Jesus como um todo conexo. Sua obra pode ser considerada como apenas
239
Ibid., p. 61 e 62.
240
Ibid., p. 62.
uma harmonia dos Evangelhos com comentários explicativos, cujo plano básico é tomado do
Quarto Evangelho.
242
O principal interesse de Paulus está centrado nas explicações dos milagres.
Todavia, Schweitzer destaca que Paulus se esforçou em alertar seus leitores contra os
mesmos. Nessas tentativas de explicar os milagres, Paulus parte, basicamente, de dois
pressupostos: 1) que alterações inexplicáveis do curso da natureza não podem nem derrubar
nem atestar uma verdade espiritual; 2) que tudo que acontece na natureza emana da
onipotência de Deus. Apesar disso, de acordo com Paulus, os Evangelistas pretendiam relatar
os milagres. Isso porque, em seu tempo, os milagres estavam no plano de Deus, no sentido de
que as mentes das pessoas tinham que ser impressionadas e subjugadas por fatos
inexplicáveis.
243
Schweitzer segue apresentando parte das explicações de Paulus para os milagres.
Segundo Paulus, os milagres eram relevantes apenas no passado. Tais eventos foram narrados
por testemunhas oculares que desconheciam as causas secundárias do que chamavam
milagre. Isto é, o conhecimento que tais testemunhas tinha acerca das leis da natureza era
insuficiente para que pudessem compreender o que realmente aconteceu.
244
No que diz respeito aos milagres de curas, Paulus a entender que todos
possuem uma explicação. Por exemplo: algumas vezes, Jesus agiu pelo seu poder espiritual
sobre o sistema nervoso do sofredor; outras vezes, usou remédios que só ele conhecia. Quanto
aos milagres naturais, os mesmos também sugerem sua própria explicação. Por exemplo: o
caminhar sobre as águas foi uma ilusão dos discípulos; Jesus andou pela praia, e, na névoa, foi
tomado como sendo um fantasma pelos assustados e excitados ocupantes do barco.
245
A explicação de Paulus para a multiplicação dos pães é simples. Diante da multidão
faminta, Jesus queria deixar um bom exemplo aos ricos acerca da divisão dos suprimentos.
Para tal, distribuiu suas próprias provisões e tamm as dos discípulos às pessoas que
estavam perto dele. O seu objetivo era que, vendo isso, os ricos fizessem o mesmo. Contudo, a
explicação da transfiguração é um pouco mais complexa. Durante um passeio à noite, por uma
região montanhosa, com três de seus discípulos, Jesus teve uma conversa com dois homens
de aparência dignificada. Seus discípulos pensaram que era Moisés e Elias. Pela manhã,
enquanto o sol se levantava, os três discípulos, apenas meio despertos, viram Jesus
241
Ibid., p. 62-64.
242
Ibid., p. 64.
243
Ibid., p. 64.
244
Ibid., p. 64-65.
245
Ibid., p. 65-66.
conversando com dois estranhos sobre a parte mais alta da montanha. Na conversa, ambos
estavam iluminados pelos raios do sol. Sua sonolência e as nuvens do alvorecer outonal não
lhe permitiram relembrar claramente o que aconteceu. Isso apenas aumentou o espanto da
vaga e indefinida impressão de terem estado em contato com aparições de uma esfera
superior.
246
No que tange à ressurreição dos mortos, Paulus se sente à vontade com a
explicação tomada de Bahrdt. Para ambos, tais relatos se referem apenas a casos de coma. De
acordo com Paulus, essas narrativas não devem ser intituladas ressurreição dos mortos,
contudo, resgate de enterros prematuros. Ele insiste que o amor dos judeus pelo milagre fez
com que tudo fosse imediatamente creditado à Divindade e as causas secundárias fossem
ignoradas. Conseqüentemente, a ressurreição de Jesus deve ser posta na mesma categoria.
247
O último milagre que Paulus tenta explicar é o da ascensão de Jesus. De acordo
com ele, quando Jesus sentiu que o seu fim estava próximo retornou à Jerusalém. À luz do
amanhecer, no Monte das Oliveiras, juntou seus seguidores pela última vez. Levantou suas
mãos para abençoá-los e afastou-se deles. Assim, uma nuvem o encobriu de tal forma que os
seus olhos não puderam seguí-lo. Depois disso, vestidos de branco, dois seguidores secretos
de Jesus em Jerusalém apareceram diante de todos. Esses dois eram as mesmas figuras
dignificadas que os três discípulos pensaram ser Moisés e Elias. Tais homens os exortaram a
não permanecerem ali. Todos deveriam continuar vivendo suas vidas. Entretanto, onde Jesus
realmente morreu, eles nunca ficaram sabendo. Foi exatamente por causa disso que acabaram
descrevendo sua partida como uma ascensão.
248
Acerca da obra de Paulus, Schweitzer tece algumas considerações. Em primeiro
lugar, ele afirma que “esta obra não foi escrita sem sentimento”
249
. Em momentos de exaltação,
o autor apela até para os versos. Em segundo lugar, “Paulus constantemente cai num estilo que
arrepia os cabelos”
250
. Por exemplo: o tulo dado a morte de João Batista é Intrigas de corte-e-
Sacerdote crescem para um assassinato judicial. Em terceiro lugar, Schweitzer destaca que
“muita coisa é estragada por um tipo de banalidade”
251
. Dois exemplos claros disso são os
seguintes: em vez de discípulos, Paulus diz alunos; em vez de , sinceridade de convicção.
Em quarto lugar, Schweitzer afirma que:
246
Ibid., p. 66-67.
247
Ibid., p. 67-69.
248
Ibid., p. 69.
249
Ibid., p. 69.
250
Ibid., p. 69.
251
Ibid., p. 69.
entre os problemas históricos, Paulus esespecialmente interessado na idéia
de messianidade e nos motivos da traição. Suas setenta e cinco páginas sobre
a história da concepção do Messias são uma real contribuição para o assunto.
(...) Por outro lado, ele interpreta corretamente a morte de Jesus como o ato
pelo qual ele pensava ganhar a messianidade própria do Filho do Homem.
252
Em quinto lugar, Schweitzer aprecia a questão escatológica. Ele diz:
A importância da escatologia na pregação de Jesus é claramente reconhecida,
mas Paulus continua anulando este reconhecimento ao fazer o Senhor
ressurreto cortar todas as questões dos discípulos sobre este assunto com a
admoestação “que de qualquer forma que isso viesse a ocorrer, e se fosse cedo
ou tarde, sua tarefa era cuidar para que tivesse feito a sua parte”.
253
Já caminhando para a conclusão final, Schweitzer tece mais três considerações. Em
sexto lugar afirma que “assim foi a Vida de Jesus consistentemente racionalista, e que levantou
tanta oposição na época de seu surgimento, e que, sete anos mais tarde, recebeu o golpe de
misericórdia pelas mãos de Strauss”
254
.
No que tange ao método, Schweitzer diz que o mesmo:
é condenado a falhar porque o autor apenas salva sua sinceridade às custas
das de seus personagens. Ele faz os discípulos de Jesus verem milagres onde
não poderiam tê-los visto; e faz o próprio Jesus permitir que se imagine
milagres onde ele mesmo deveria ter protestado contra tal ilusão.
255
Por fim, a última consideração de Schweitzer se dirige à exegese de Paulus. Ele
afirma que “sua exegese também é, algumas vezes, violenta”
256
. Ao mesmo tempo que faz essa
crítica, Schweitzer sai em defesa de Paulus. Ele diz que, com relação a isso, nenhum dos seus
contemporâneos tinha o direito de julgá-lo. Ou seja, se não todos, pelo menos a grande maioria
estava cometendo o mesmo erro: fazer uma exegese violenta do texto bíblico. Além de não
terem o direito de julgá-lo, seus contemporâneos devem reconhecer que, boa parte de suas
explicações, a princípio, está correta.
Schweitzer termina sua análise de Paulus ironizando seus contemporâneos. Tal
ironia consiste no seguinte: em seus dias, todo teólogo bem treinado deveria renunciar aos
racionalistas e todas as suas obras, mas o seu tempo era muito mais pobre que o deles. Essa
pobreza se expressa, principalmente, na falta de lealdade a um ideal. Isto é, por mais que os
racionalistas tenham errado, eles nunca podem ser acusados de falta de sinceridade.
252
Ibid., p. 70.
253
Ibid., p. 70.
254
Ibid., p. 71.
255
Ibid., p. 71.
256
Ibid., p. 71.
O próximo passo de Schweitzer é analisar a última fase do racionalismo. Tal análise
colocará um ponto final no período antes de Strauss. Os principais nomes a serem analisados
são Hase e Schleiermacher.
3.7. As considerações de Schweitzer sobre a última fase do racionalismo,
Hase e Schleiermacher
Após analisar o racionalismo plenamente desenvolvido, Schweitzer passa a analisar
a última fase do racionalismo. Nesse período é possível notar as primeiras evidências de uma
espécie de crise no pensamento racionalista dentro da teologia. Hase e Schleiermacher são os
nomes que aqui recebem toda a atenção. Ambos podem ser chamados de céticos do
racionalismo. Por um lado, esses ticos do racionalismo ainda estão dominados por ele. Ou
seja, eles ainda se agarram à explicação racionalista do milagre. A única diferença é que eles
não possuem aquela ingênua confiança em tal explicação como tinham os seus predecessores.
Nos casos decisivos, ambos se contentam em deixar um ponto de interrogação, em vez de
oferecer uma solução. Por outro lado, eles apontam para algo além do alcance do racionalismo.
Isto é, eles ousam tocar na conexão íntima dos eventos do ministério de Jesus. É exatamente
por isso que as suas vidas de Jesus são consideradas transicionais. Entre Hase e
Schleiermacher, o primeiro demonstra o maior progresso. Schweitzer começa sua análise por
ele.
Nascido em 1800, Hase terminou seus estudos teológicos em Tübingen. Ali se
qualificou como livre-docente em 1823. Entre 1824 e 1825, passou onze meses na prisão de
Hohenasperg, onde teve tempo para meditação e planos literários. Em 1830, foi para Jena. Ali
trabalhou até 1890. A principal obra de Hase é A Vida de Jesus, primariamente para o uso de
estudantes. É sobre essa obra que Schweitzer tece suas considerações.
257
Segundo Schweitzer, a obra de Hase “é a primeira tentativa de um estudioso
plenamente equipado, de reconstruir a vida de Jesus numa base puramente histórica”
258
. Nela,
Hase demonstra força criadora, clareza, concisão e elegância. Porém, pondera Schweitzer, “a
nota central da obra é racionalista, que Hase recorre à explicação racionalista dos milagres,
sempre que parece possível”
259
. Além disso, Schweitzer também afirma que, ao longo da obra,
Hase “parece dar espaço para a “sociedade secreta” de Bahrdt e Venturini”
260
. Ao se referir à
257
Ibid., p. 74.
258
Ibid., p. 74.
259
Ibid., p. 74.
260
Ibid., p. 74.
sociedade secreta de Bahrdt e Venturini, Schweitzer quer dizer que é possível perceber na obra
de Hase a conexão de Jesus com a Ordem dos Essênios.
Schweitzer segue suas considerações dizendo que Hase ainda alterna dois outros
momentos em sua obra: um momento em que pode ser considerado como um tico do
racionalismo e um outro momento em que pode ser considerado como um anti-racionalista
sobrenaturalista intelectual. Por cético do racionalismo ele entende que, em alguns momentos,
Hase deixa aberta a possibilidade do milagre
261
. Por anti-racionalista sobrenaturalista intelectual
ele entende que, em outros momentos, para explicar o milagre, Hase recorre ao argumento da
ação de leis da natureza desconhecidas
262
.
O maior exemplo de Hase como um cético do racionalismo se dá na sua explicação
da ressurreição de Jesus. A princípio, para ele, não uma prova cabal de que a morte tenha
realmente ocorrido. Tal prova depende da evidência da decomposição do corpo
263
. Assim
sendo, Hase apresenta duas possibilidades: a de um retorno à consciência depois de um
transe; ou a ressurreição por um evento sobrenatural. Em seu sistema de pensamento, ambas
são compatíveis com a fé cristã.
264
No que diz respeito aos milagres, Schweitzer destaca um progresso de Hase com
relação aos racionalistas que o antecedem. De acordo com os racionalistas, todos os milagres
estavam no mesmo plano, e todos deveriam ser igualmente abolidos por meio de uma
explicação naturalista. Todavia, Schweitzer afirma que:
se estudarmos Hase cuidadosamente, percebemos que ele aceita apenas os
milagres joaninos como autênticos, enquanto que os dos sinópticos podem ser
vistos como baseados num mal-entendido por parte dos autores, pois não são
reportados de primeira mão, mas da tradição.
265
Hase descreve a história da natividade, as “lendas da infância” (a expressão é dele
mesmo), os anjos, os milagres no tempo da morte de Jesus e a ascensão como toques míticos.
Nem mesmo a porção não miraculosa da história de Jesus consegue escapar dos seus traços
racionalistas. Por exemplo: o celibato de Jesus se deve ao fato dele não ter encontrado um
coração digno de entrar nessa aliança com ele.
Schweitzer pontua que:
261
Por exemplo: a possibilidade de Jesus ter acalmado a tempestade usando um poder sobrenatural.
262
Por exemplo: para os dois grandes milagres joaninos, a transformação da água em vinho e a multiplicação dos
pães, nenhuma explicação naturalista pode ser admitida.
263
Essa é uma herança de Paulus.
264
Conforme Schweitzer, Hase ainda apresenta uma terceira possibilidade. No entanto, ele deixa claro que ela não é
compatível com a cristã. Essa possibilidade é a seguinte: Jesus ter se entregado a seus inimigos para derrotá-los
pelo audaz golpe da morte aparente e uma ressurreição habilmente preparada.
265
SCHWEITZER, Op.cit., p. 76.
Hase novamente surge acima dessa concepção racionalista da história quando
se recusa a dispensar os elementos judaicos no plano e nas pregações de
Jesus como sendo devidos a mera acomodação, e mantém a visão de que o
Senhor realmente, até certo ponto, compartilhava este sistema de idéias
judaico.
266
O progresso de Hase sobre a concepção racionalista também pode ser percebido
na distinção que ele faz entre dois períodos na atividade messiânica de Jesus. Segundo
Schweitzer:
aqui encontramos, pela primeira vez, a idéia de dois diferentes períodos na vida
de Jesus, que, especialmente pela influência de Holtzmann e Keim, tornou-se a
visão prevalente e que, até Johannes Weiss, determinou o plano de todas as
Vidas de Jesus.
267
Além disso, para Schweitzer, “Hase criou o moderno quadro histórico-psicológico de
Jesus. A apresentação desta psicologia mais penetrante seria, sozinha, suficiente para colocá-
lo à frente dos racionalistas”
268
.
Schweitzer atenta que:
outro ponto interessante é a forma intensa com a qual ele traça as
conseqüências históricas e literárias desta idéia de desenvolvimento. Os
apóstolos, pensa ele, não entenderam este progresso do pensamento por parte
de Jesus, e não distinguiram entre os ditos do primeiro e do segundo período.
Eles permaneceram ligados à visão escatológica. (...) Apenas João
permaneceu livre deste erro. Por isso, o Quarto Evangelho não-escatológico
preserva, em sua forma pura, as idéias de Jesus em seu segundo período.
269
Encerrando suas considerações sobre Hase, Schweitzer destaca que ele observou,
corretamente, “que a messianidade de Jesus não representa praticamente nenhum papel em
sua pregação
270
. Antes do incidente em Cesaréia de Filipe, nem mesmo os discípulos estavam
convictos de que Jesus era o Messias. Então, essa indicação da importância central da
declaração da messianidade em Cesaréia de Filipe é outro sinal apontando a direção que o
estudo da vida de Jesus viria a tomar.
O segundo nome a ser analisado por Schweitzer é Schleiermacher. De acordo com
Schweitzer, a vida de Jesus de Schleiermacher “nos apresenta uma ordem diferente das idéias
transicionais. Seu valor está na esfera da dogmática, não da histórica”
271
. Em 1819,
266
Ibid., p. 76.
267
Ibid., p. 77.
268
Ibid., p. 77.
269
Ibid., p. 77.
270
Ibid., p. 77.
271
Ibid., p. 77.
Schleiermacher foi o primeiro teólogo a lecionar sobre o Jesus histórico. Contudo, sua vida de
Jesus não surgiu antes de 1864.
Schweitzer deixa claro que Schleiermacher “não busca o Jesus histórico, mas o
Jesus Cristo de seu próprio sistema de teologia; isto quer dizer, a figura histórica que lhe parece
apropriada para a auto-consciência do Redentor como ele a representa”
272
. A sua dialética não
gera a realidade. Ela é uma dialética meramente expositiva. Nesse aspecto dialético literário,
ele é considerado o maior mestre que já existiu.
Segundo Schleiermacher, as limitações do Jesus histórico, tanto para cima quanto
para baixo, são as mesmas que se aplicam ao Jesus do dogma. Logo, quando o assunto é a
singularidade de sua Divina auto-consciência não pode haver descuidos. Dois extremos
precisam ser evitados: o extremo do ebionismo, que suprime o divino em Jesus; e o extremo do
docetismo, que destrói a sua humanidade. Entretanto, Schweitzer pondera que, no curso do
tratamento dialético de Schleiermacher, todas as questões históricas envolvidas na vida de
Jesus vem à tona uma após a outra, mas nenhuma delas é proposta ou resolvida do ponto de
vista do historiador”
273
. O que sempre prevalece é o enfoque dogmático.
Com sua dialética, Schleiermacher um passo além do racionalismo. Mas,
algumas vezes, a adoção desse método o deixa atrás do conhecimento histórico do seu tempo.
Um claro exemplo disso é a sua avaliação da importância dada à história do batismo de Jesus.
Para Schleiermacher, o que mais importa é que a visão seja histórica. Schweitzer diz que “esta
dialética, freqüentemente tão fatal para visões históricas sóbrias, pode ter sido expressamente
criada para lidar com a questão do milagre”
274
. Ele segue afirmando que ninguém mais mostrou
a mesma habilidade de Schleiermacher em esconder quanto do milagre ele aceita ou rejeita.
Sua solução para o problema do milagre não é histórica, porém, dialética. Nisso fica evidente a
sua tentativa de transcender a necessidade de uma explicação racionalista do milagre.
Ainda tratando dos milagres, Schleiermacher os arranja numa escala ascendente de
probabilidade de acordo com o grau em que se nota a dependência da influência conhecida do
espírito sobre a matéria orgânica. Os mais facilmente explicáveis são os milagres de curas.
Todavia, quando a atuação de Jesus transcende à esfera da vida humana, as dificuldades
envolvidas na explicação se tornam insolúveis. Numa tentativa de resolver tal problema,
Schleiermacher lança mão de dois expedientes. Em primeiro lugar, ele admite que, em casos
particulares, o método racionalista pode ter uma certa aplicação limitada. Em segundo lugar, ele
272
Ibid., p. 78.
273
Ibid., p. 78.
274
Ibid., p. 79.
reconhece uma diferença entre as próprias histórias dos milagres, mantendo os milagres
joaninos e, praticamente, relegando os milagres dos Sinópticos.
275
Como não poderia ser diferente, Schweitzer pontua que Schleiermacher ainda se
encontra sob a influência do racionalismo. Contudo, tal racionalismo está mais próximo de Hase
do que de Paulus. Isso porque, por exemplo, no que tange a ressurreição de Jesus, ele tanto
admite um retorno de um estado de transe à consciência, quanto uma restauração sobrenatural
da vida, vista como uma ressurreição. É exatamente por isso que Schweitzer o inclui,
juntamente com Hase, entre os céticos do racionalismo.
276
Entretanto, embora admita as duas possibilidades, Schleiermacher pensa que o que
aconteceu foi uma reanimação depois de uma morte aparente. De acordo com ele, a única
diferença entre o passado (período do ministério blico de Jesus) e o presente (período pós-
reanimação) é que agora ele não mais se mostrava ao mundo. Além disso, no que diz respeito
à ascensão, Schleiermacher também mantém uma explicação racionalista. Segundo ele, algo
aconteceu, mas o que se viu era incompleto, e foi suplementado pelas conjecturas.
277
A crítica de Schweitzer a essa concepção de Schleiermacher aparece em forma de
duas perguntas:
Mas, se a condição em que Jesus seguiu vivendo após Sua crucifixão era “uma
condição de reanimação”, com que direito Schleiermacher fala dela
constantemente como “ressurreição”, como se ressurreição e reanimação
fossem sinônimos? E mais, será verdade que para a fé não importa se foi como
que erguido dos mortos ou como meramente recuperado de um estado de
animação suspensa que Jesus mostrou-se a seus discípulos? Nesse ponto,
parece-nos, os racionalistas eram mais diretos.
278
Schweitzer segue aprofundando sua crítica à dialética de Schleiermacher:
No momento em que tentamos agarrar essa dialética, ela se quebra entre os
nossos dedos. Schleiermacher não se arriscaria a um jogo tão perigoso se o
tivesse uma segunda posição para a qual se refugiar, baseada na distinção
entre as histórias dos milagres joaninos e dos sinópticos. Nesse ponto, ele
simplificou o assunto para si mesmo, se comparando com os racionalistas, mais
até do que Hase.
279
Um pouco mais adiante, Schweitzer muda o foco de suas críticas. Ele deixa um
pouco de lado a questão da dialética e passa a abordar a questão da dogmática. Para ele,
Schleiermacher “permitiu que a dogmática, não exatamente a histórica, desse um salto
275
Ibid., p. 79-80.
276
Ibid., p. 80.
277
Ibid., p. 80-81.
278
Ibid., p. 81.
279
Ibid., p. 81.
gigantesco por sobre a questão do milagre”
280
. Ainda de acordo com Schweitzer, “o que é mais
fatal para uma visão histórica equilibrada é a preferência unilateral [de Schleiermacher] pelo
Quarto Evangelho”
281
. Segundo Schleiermacher, é apenas nesse Evangelho que a consciência
de Jesus é realmente refletida. Também para o esboço da vida de Jesus, o Quarto Evangelho é
o único que possui autoridade.
Schleiermacher considera que os três primeiros Evangelhos são compilações
formadas por várias narrativas que surgiram independentemente. Seus discursos são estruturas
compostas e sua apresentação da história é tal que o se pode formar uma idéia do
agrupamento dos eventos. Porém, Lucas é o único deles que tem alguma aparência de ordem
histórica. Schleiermacher também afirma que as contradições não poderiam ser explicadas se
todos os Evangelhos estivessem em igual proximidade a Jesus.
Para Schweitzer, a razão para a antipatia de Schleiermacher pelos sinópticos é
mais profunda do que uma mera visão crítica quanto a sua composição. O fato é que sua
“imagem de Cristo” não concorda com a que ele quer inserir na história”
282
. Portanto, ele
encerra suas críticas a Schleiermacher considerando que, com tais premissas, é possível
escrever apenas uma vida de Cristo, não uma vida de Jesus.
3.8. Conclusão
Como fora dito anteriormente, análise que Schweitzer faz da primeira busca do
Jesus histórico pode ser dividida em duas partes: antes de Strauss e depois de Strauss. O
presente capítulo se ocupou da primeira fase dessa análise. Ele partiu da apresentação do
problema, passou pelas considerações de Schweitzer sobre a busca do Jesus histórico de
Hermann Samuel Reimarus, sobre as vidas de Jesus do racionalismo primitivo, sobre as
primeiras vidas fictícias de Jesus, sobre o racionalismo plenamente desenvolvido de Paulus e
sobre a última fase do racionalismo. O próximo capítulo se ocupará da segunda fase da análise
de Schweitzer, ou seja, do período depois de Strauss.
280
Ibid., p. 82.
281
Ibid., p. 82.
4. A Fase Final da Primeira Busca do Jesus Histórico Segundo Albert Schweitzer
4.1. Introdução
No capítulo anterior foi analisada a fase inicial da primeira busca do Jesus histórico,
segundo Schweitzer. Essa primeira fase corresponde aos seis primeiros capítulos da sua obra.
A abordagem de Schweitzer partiu da apresentação do problema histórico acerca do estudo
sobre Jesus e chegou até suas considerações com relação a Schleiermacher. É exatamente
nessa parte que Schweitzer tece suas críticas ao racionalismo existente por trás da primeira
fase das pesquisas sobre o Jesus histórico.
No presente capítulo será analisada a fase final da primeira busca do Jesus
histórico, segundo Schweitzer. Essa segunda fase vai do capítulo sete ao capítulo quatorze. Ela
começa em Strauss e aborda todo o período posterior a ele
283
. Como fora dito anteriormente,
Strauss é considerado por Schweitzer como um divisor de águas. Conseqüentemente, a
investigação crítica acerca da vida de Jesus é uma antes dele e outra depois dele. É
exatamente por isso que esse último capítulo começa com Strauss e vai até as chamadas vidas
“liberais” de Jesus. No fim de todo esse percurso, Schweitzer faz suas considerações finais
acerca do período pós-Strauss.
4.2. As considerações de Schweitzer sobre Strauss e a sua primeira “vida de
Jesus”
David Friedrich Strauss nasceu em 1808, em Ludwigsburg. De 1821 a 1825, foi
aluno no “seminário menor”, em Blaubeuren. Entre seus mestres estava Ferdinand Christian
Baur, com quem ele voltaria a se encontrar na universidade. Schweitzer destaca que Strauss
não foi o maior nem o mais profundo dos teólogos, todavia, foi o mais sincero. Durante os anos
da universidade, começou a ser muito influenciado pelos escritos de Hegel. Mais tarde, ele e
seus colegas ingressariam em atividades como clérigos.
284
Depois de lecionar por algum tempo como professor visitante em Maulbronn,
Strauss recebeu seu título de doutor com a dissertação sobre A restauração de todas as coisas,
baseada no texto bíblico de At. 3:21. Contudo, essa obra foi perdida. Em outubro de 1831,
Strauss foi a Berlim para ouvir Hegel e Schleiermacher. Entretanto, o plano da Vida de Jesus
surgiu durante o contato de Strauss com Vatke. O que primeiro se pretendia não era um plano
para uma vida de Jesus, mas uma história das idéias do cristianismo primitivo, pensado para
282
Ibid., p. 83.
283
Isto é, até Schweitzer.
servir como padrão pelo qual se poderia julgar o dogma eclesiástico. Assim, a Vida de Jesus foi
originalmente planejada, pode-se dizer, como um mero prólogo para essa obra, cujo plano foi
posteriormente desenvolvido sob o título Teologia cristã em seu desenvolvimento histórico e em
seu antagonismo com o moderno conhecimento científico. Tal obra foi publicada entre os anos
de 1840 e 1841.
285
Em 1832, Strauss retornou a Tübingen para assumir o cargo de mestre assistente
no colégio teológico. Os mestres assistentes tinham o direito de ensinar filosofia. Assim sendo,
Strauss começou a lecionar sobre a lógica de Hegel. Em tal empreitada, ele foi muito bem
sucedido. Além disso, ele também ensinou sobre Platão e sobre a história da filosofia moderna.
Em uma carta de 1833, Strauss disse que, em sua teologia, a filosofia ocupa uma posição tão
predominante que suas opiniões teológicas podem ser desenvolvidas completamente por
meio de um estudo mais profundo da filosofia.
286
Pouco tempo depois, a faculdade de filosofia restringiu o direito dos mestres
assistentes e Strauss foi obrigado a voltar para a teologia. Foi após esse retorno que ele
começou seus estudos sobre a vida de Jesus. A princípio, o que o motivou foi a necessidade de
escrever uma revisão crítica do livro texto de Hase sobre esse assunto. Schweitzer pondera
que, considerando o seu caráter, a obra foi produzida rapidamente. Seus dois volumes
apareceram já em 1835. Na ocasião, o nome do autor era totalmente desconhecido, exceto por
alguns estudos críticos sobre os Evangelhos. Porém, tal obra o projetou em um instante. Além
dessa projeção, também destruiu completamente suas perspectivas e fez com que ele fosse
removido do cargo de mestre assistente.
287
Inicialmente, Strauss aceitou uma transferência para o cargo de professor visitante
em Ludwigsburg. Todavia, em menos de um ano, decidiu abandoná-lo e retornou a Stuttgart. Ali
ele viveu alguns anos, ocupado, principalmente, com a preparação de novas edições da Vida
de Jesus e com as respostas aos ataques que lhe eram feitos. com trinta anos, Strauss
deixou de lado o segundo volume de polêmicas e publicou a terceira edição da Vida de Jesus
(1838 e 1839). Tal obra continha uma série de impressionantes concessões. Debaixo de uma
grande culpa por duvidar da legitimidade e credibilidade do Quarto Evangelho, ainda em 1839,
Strauss compôs os monólogos intitulados Elementos transientes e permanentes no
cristianismo. No ano seguinte, esses mesmos monólogos reaparecem sob o título de Folhas da
paz. Durante esse período, parecia que sua reabilitação seria alcançada. Contudo, em janeiro
284
Cf. SCHWEITZER, Albert. A Busca do Jesus Histórico. São Paulo: Novo Século, 2003. p. 81-82.
285
Cf. SCHWEITZER, A Busca, p. 86-87.
286
Cf. SCHWEITZER, Op.cit., p. 87-88.
287
Ibid., p. 88-89.
de 1839, sua indicação para a cátedra vaga de dogmática em Zurique foi revogada.
Curiosamente, Strauss foi aposentado sem nunca ter trabalhado ali. Ainda nesse tempo faleceu
a sua mãe e, dois anos depois, o seu pai.
288
Entre 1840 e 1841, Strauss publicou sua segunda grande obra, intitulada Teologia
Cristã. Na ocasião, o sucesso dessa obra serviu de consolo para o seu desapontamento de
Zurique. De acordo com Schweitzer, em conceito, talvez a Teologia Cristã seja maior que a
Vida de Jesus e, em profundidade, ela deve ser classificada junto com as mais importantes
contribuições para a teologia. Entretanto, essa obra nunca atraiu tanta atenção quanto a
anterior. Nela, o ponto em que Strauss aplica sua crítica é a forma pela qual a teologia cristã,
que nasceu das idéias do mundo antigo, foi posta em harmonia com o cristianismo do
racionalismo e da filosofia especulativa. O seu objetivo era substituir esse procedimento
rudimentar por um método melhor. Tal método seria baseado numa crítica histórica preliminar
do dogma. Strauss considerava que, somente dessa maneira, o pensamento não mais teria que
lidar com a forma presente de teologia da Igreja, mas com as idéias que trabalharam como
forças vivas em sua formação.
289
O resultado da Teologia Cristã de Strauss é uma teologia hegeliana negativa.
Segundo ele, a religião não se preocupa com seres supra-mundanos e um futuro divinamente
glorioso, porém, com realidades espirituais presentes que surgem como “momentos” no eterno
ser e vir a ser do Espírito Absoluto. No fim do segundo volume, a imortalidade pessoal é
rejeitada sob qualquer forma. Para Strauss, a imortalidade não é algo que se estenda para o
futuro. Ela é apenas a qualidade presente do espírito, sua universalidade interior, seu poder de
elevar-se acima de qualquer coisa finita para a Idéia. Schweitzer faz questão de pontuar que é a
abordagem de Strauss acerca da imortalidade pessoal que o divide dos demais teólogos.
290
Quando começava a respirar livremente de novo, Strauss decidiu não mais lecionar.
Foi tamm nesse período que se casou com Agnese Schebest, uma cantora famosa. Todavia,
depois dos filhos e de algum tempo afastados, eles se divorciaram. A custódia dos filhos ficou
com o pai. Em alguns dos seus escritos, fica claro que Strauss sofreu muito com tudo isso.
291
Em 1848, Strauss subscreveu as listas em favor dos esforços dos pequenos
Estados alemães de formar uma Alemanha unificada, separada da Áustria, sob a hegemonia da
Prússia. Depois de um conturbado período como deputado em Würtenberg, Strauss começou
um outro período de migração, durante o qual investiu em produções literárias. Ele escreveu,
288
Ibid., p. 89-90.
289
Ibid., p. 90.
290
Ibid., p. 90-91.
291
Ibid., p. 91-92.
entre outros, sobre Lessing, Hutten e Reimarus, redescobrindo esse último para os seus
contemporâneos.
292
Em meados da década de 1860, Strauss retornou, mais uma vez, à teologia. Em
1864, lançou sua Vida de Jesus adaptada para o povo alemão. Sua última obra, A velha fé e a
nova, foi lançada em 1872. Nessa obra, ele já se encontra sob grande influência do darwinismo.
Ela também demonstra que Strauss havia abandonado, completamente, suas bases
hegelianas. De acordo com Schweitzer, não há força nem grandeza nesse livro. Strauss
afirmava que ele e os seus contemporâneos não eram mais cristãos. A religião que mais os
influenciava tinha seus fundamentos no panteísmo. Muitos teólogos da época chegaram a
declarar a falência de Strauss. Um ano depois, no fim de 1873, ele contraiu uma úlcera interna.
Em 8 de fevereiro de 1874, Strauss morreu, em Ludwigsburg, sua cidade natal. Ali também foi
sepultado em um dia tempestuoso.
293
Após destacar os principais aspectos biobibliográficos de Strauss, Schweitzer se
concentra na análise de sua obra Vida de Jesus. Segundo ele, em mais de mil quatrocentas
páginas, tal obra não contém sequer uma frase supérflua. O estilo é simples e pictórico, às
vezes irônico, contudo, sempre digno e distinto. No que tange à aplicação da explicação
mitológica à Sagrada Escritura, a distinção entre Strauss e seus predecessores consiste nisto:
antes dele, o conceito de mito não tinha sido verdadeiramente captado e nem consistentemente
aplicado. Sua aplicação era restrita à narração de Jesus vindo ao mundo e à narração de sua
partida dele. O verdadeiro núcleo da tradição as seções entre o batismo e a ressurreição
sempre foi deixado de lado. Usando a imagem do próprio Strauss, o mito formava os grandes
portais da entrada e da saída da história dos Evangelhos. Entretanto, entre esses dois grandes
portais situavam-se as estreitas e acidentadas ruas da explicação naturalista.
294
Para Strauss, dois obstáculos barravam o caminho para uma aplicação ampla do
mito. O primeiro consistia na suposição de que os Evangelhos de Mateus e João eram registros
de testemunhas oculares. O segundo consistia na ofensa causada pela palavra mito, devido a
sua associação com a mitologia pagã. Por um lado, Strauss supunha que, mesmo que a vida
terrena de Jesus tenha se passado num período histórico, e ainda que apenas uma geração
tenha se passado entre sua morte e a composição dos Evangelhos, tal período teria sido
suficiente para permitir que o material histórico fosse misturado como mito. Isto é, não é preciso
que um grande homem esteja morto muito tempo para que a lenda já se ocupe da sua vida.
Por outro lado, a ofensa da palavra mito desaparece para qualquer um que tenha
292
Ibid., p. 92-93.
293
Ibid., p. 93-95.
compreendido o caráter essencial do mito religioso. É nesse ponto Schweitzer deixa claro o que
Strauss entende por mito. Mito, nada mais é do que as idéias religiosas vestidas em uma forma
histórica, modeladas pelo inconsciente poder inventivo da lenda, e corporificado numa
personalidade histórica.
295
Utilizando outras palavras, Schweitzer novamente enfatiza a principal diferença
entre Strauss e seus predecessores. Enquanto esses se questionavam, ansiosamente, sobre o
quanto da vida histórica de Jesus restaria como fundamento para a religião (se eles se
atrevessem a aplicar consistentemente o conceito de mito), Strauss não se preocupava com
essa questão. A filosofia de Hegel o havia libertado internamente. Tal libertação se deu a partir
do momento que Strauss percebeu a relação entre idéia e realidade. Então, ele chegou à
seguinte conclusão: Teo-antropia, a mais elevada idéia concebida pelo pensamento humano é,
na verdade, concretizada na personalidade histórica de Jesus
296
. Logo, em última análise, é
indiferente em que extensão a teo-antropia
297
se concretizou na pessoa de Jesus. O importante
é que a idéia agora está viva na consciência comum daqueles que foram preparados para
recebê-la por sua manifestação em forma sensível.
298
Strauss deixa transparecer que, no período que o antecede, uma representação
puramente histórica da vida de Jesus era completamente impossível. A única possibilidade era
uma lembrança criativa agindo sob o impulso da idéia que a personalidade de Jesus tinha
chamado à vida entre a humanidade. Ou seja, o que ficou representado acerca Jesus foi a
recordação de algumas pessoas que estavam debaixo da influência da idéia Teo-antropia
trazida ao mundo por ele. De acordo com Strauss, essa idéia Teo-antropia é a realidade eterna
na Pessoa de Jesus, que nenhuma crítica pode destruir. Portanto, com a consciência de que
Jesus, como criador da religião da humanidade, está além do alcance da crítica, ele começa
seu trabalho sem temor.
299
Observando a condição de exaustão que caracterizava a teologia contemporânea,
Strauss intui que é chegado o tempo para sua empreitada. Antes dele, mesmo sem
desaparecer completamente, a explicação sobrenaturalista dos eventos da vida de Jesus havia
sido sucedida pela explicação racionalista. A primeira tornava tudo sobrenatural. A última se
294
Ibid., p. 97.
295
Ibid., p. 97-98.
296
Por trás dessa conclusão de Strauss existe um pressuposto: o pensamento verdadeiro, que chegou pela genuína
razão crítica a uma liberdade mais elevada, sabe que nenhuma idéia pode concretizar-se perfeitamente no plano
histórico. Sua verdade não depende da prova de ter recebido uma perfeita representação externa, mas sua perfeição
surge através daquilo que a idéia leva para a história, ou pelo caminho pelo qual a história é sublimada na idéia.
297
Embora essa expressão tenha sido traduzida para como Deus-humanidade, é melhor utilizar teo-antropia.
298
Cf. SCHWEITZER, Op.cit., p. 98-99.
299
Ibid., p. 99.
dispunha a tornar todos os eventos inteligíveis como ocorrências naturais. Da oposição entre
essas duas explicações, surge a explicação ou interpretação mitológica de Strauss. Tal
explicação ou interpretação evidencia a influência do método hegeliano sobre ele. A explicação
sobrenaturalista era a tese; a explicação racionalista era a antítese; e a explicação mitológica
era a síntese.
300
Conseqüentemente, a Vida de Jesus, de Strauss, é o produto de concepções
antitéticas. É exatamente essa dialética hegeliana que determina o seu método de trabalho.
Cada incidente da vida de Jesus é considerado separadamente. Em primeiro lugar, cada um é
explicado sobrenaturalmente. Em segundo lugar, cada um é explicado racionalisticamente.
Assim, uma explicação é refutada pela outra. Em cada caso, toda a gama de opiniões
representativas é revisada. As interpretações consideradas necessárias para a explicação
naturalista levam o leitor de volta para a sobrenaturalista. Em terceiro e último lugar, ele propõe
que os elementos inexplicáveis, por alguma razão, são míticos.
301
Schweitzer continuidade à sua análise citando alguns exemplos das explicações
de Strauss acerca de cada incidente da vida de Jesus. Nas histórias antes de batismo, tudo é
mito. Na narrativa do batismo em si, a revelação da dignidade messiânica de Jesus ao Batista
não é histórica, pois, caso fosse, ele nunca teria duvidado disso mais tarde. Mas, se sua
mensagem para Jesus é histórica, isso permanece como uma pergunta aberta. Assim sendo, o
resíduo histórico seria o seguinte: Jesus foi, por algum tempo, um dos seguidores do Batista, foi
por ele batizado, apareceu na Galiléia com a mesma mensagem que ele proclamava e nunca
deixou de tê-lo em alta estima.
302
Porém, Strauss diz que, se o batismo de João era um batismo de arrependimento
(com vistas a aquele que de vir), Jesus não poderia se considerar sem pecado quando se
submeteu a ele. Caso contrário, seria necessário supor que ele o fez apenas pelas aparências.
Quanto à possibilidade do despertar da consciência messiânica após o batismo, Strauss afirma
que nada pode ser dito. Segundo ele, a concepção de Jesus como tendo recebido o Espírito em
seu batismo era independente e anterior à concepção que o tomava como tendo nascido de
forma sobrenatural do Espírito. Então, para Strauss, os Sinópticos possuem diversas camadas
de lendas e narrativas. Em alguns casos elas se cruzam e em outros elas se sobrepõe umas às
outras.
303
300
Ibid., p. 99.
301
Ibid., p. 99-100.
302
Ibid., p. 100-101.
303
Ibid., p. 101.
Strauss considera igualmente insatisfatória a história da tentação. Ela é uma lenda
cristã primitiva, construída a partir de sugestões do Antigo Testamento. No que diz respeito ao
chamado dos primeiros discípulos, de acordo com Strauss, ele não pode ter acontecido como é
narrado, sem que antes eles nada soubessem acerca de Jesus. A missão dos setenta, por sua
vez, o é histórica e nada pode ser determinado com relação à purificação do templo por
Jesus.
304
Segundo Strauss, a liberdade com que o material histórico foi trabalhado pode ser
percebida nos grupos de histórias que cresceram de um único incidente. Um exemplo claro
disso é a unção de Jesus por uma mulher desconhecida, em Betânia. Lucas a considera como
uma pecadora penitente e João a chama de Maria de Betânia. No que tange às curas, Strauss
pondera que algumas delas, certamente, são históricas. Todavia, não da forma como a tradição
as preservou. o reconhecimento de Jesus como Messias pelos demônios, imediatamente,
levanta suspeitas. Tal reconhecimento deve ser creditado à tendência posterior de representá-lo
como recebendo, em seu caráter messiânico, homenagem até mesmo do mundo dos espíritos
maus. Contudo, a libertação do endemoninhado na sinagoga de Cafarnaum pode ser histórica.
Histórica no sentido de uma influência psíquica de Jesus sobre o sofredor.
305
Algumas vezes, para Strauss, uma única cura deu origem a três ou quatro
narrativas. Ele pontua que, com um pouco de esforço, é possível chegar ao conhecimento das
influências que contribuíram para moldar uma determinada história. Por exemplo: a
incapacidade dos discípulos de Jesus de libertar um rapaz endemoninhado lembra a
incapacidade de Geazi, servo de Eliseu, de trazer um rapaz morto à vida. A história dos dez
leprosos, por sua vez, mostra claramente uma tendência didática. Por isso, seu valor histórico
se torna duvidoso. De acordo com Strauss, embora ninguém possa garantir a historicidade da
cura do cego de Jericó, todas as demais curas de cegueira remetem a ela. As curas dos
paralíticos dizem mais respeito aos apetrechos do Messias que à história propriamente dita. As
curas por meio do toque em roupas e as curas à distância são, evidentemente, míticas. Strauss
deixa claro que, em todas narrativas de curas, a intenção é mostrar que os feitos do Messias
ultrapassam os feitos dos profetas. É exatamente por isso também que a ressurreição de
mortos está presente entre seus milagres.
306
Strauss intitula a coleção dos milagres na natureza de História do mar e história de
peixes. Segundo ele, todos esses milagres têm um teor ainda maior de mito. Quanto à repetição
da história da alimentação da multidão, Strauss diz que tal repetição levanta suspeitas sobre a
304
Ibid., p. 101.
305
Ibid., p. 102.
credibilidade do que é narrado e invalida a hipótese da autoria apostólica do Evangelho de
Mateus. Além disso, o incidente foi tão naturalmente sugerido por exemplos do Antigo
Testamento que seria um milagre essa história não entrar, de alguma forma, na vida de Jesus.
A maldição sobre a figueira, para Strauss, deriva de uma parábola de Jesus que foi
transformada em história.
307
No que diz respeito aos milagres relacionados ao próprio Jesus, Strauss afirma que
a transfiguração tinha que encontrar lugar na vida de Jesus devido ao resplendor do rosto de
Moisés. Em se tratando das narrativas da ressurreição de Jesus, todas são míticas. Também a
ascensão é tomada, evidentemente, como mito.
308
Ao que tudo indica, Schweitzer considera como suficientes os exemplos citados
acima. Após apresentá-los, ele inicia suas críticas à Vida de Jesus de Strauss. Sua primeira
declaração é breve: “Tais, e tão radicais, são os resultados a que finalmente chega a crítica de
Strauss ao sobrenaturalismo e às explicações racionalistas para a vida de Jesus”
309
. Schweitzer
destaca que esse caráter radical de Strauss é amenizado pela sua admirável habilidade
dialética. Utilizando tal habilidade, Strauss demonstra a total impossibilidade de qualquer
explicação acerca de cada incidente da vida de Jesus que não reconheça o papel do mito.
Entretanto, de acordo com Schweitzer, no todo de sua Vida de Jesus, “a explicação
sobrenaturalista, que pelo menos representa o sentido pleno das narrativas, sae-se muito
melhor do que a racionalista, cuja artificialidade é exposta por toda parte sem remorsos”
310
.
Depois de tecer esses dois breves comentários Schweitzer pontua um detalhe
importante presente na Vida de Jesus de Strauss:
As seções que resumimos estão longe de ter perdido sua significância nos dias
de hoje. Elas marcaram o terreno que agora é ocupado pelo moderno estudo
crítico. E elas deram o atestado de óbito para uma série de explicações que, à
primeira vista, têm toda a aparência de estarem vivas, mas que realmente não
estão.
311
À luz do contexto, é possível afirmar que tais palavras se dirigem à explicação
racionalista acerca dos incidentes da vida de Jesus (especialmente, à questão do milagre).
Essa afirmação se deve a dois motivos. O primeiro motivo é que, nos dias de Strauss, a
explicação racionalista havia sucedido a explicação sobrenaturalista. O segundo motivo é que o
moderno estudo crítico ao qual Strauss se refere é subordinado à explicação racionalista.
306
Ibid., p. 102.
307
Ibid., p. 102-103.
308
Ibid., p. 103.
309
Ibid., p. 103.
310
Ibid., p. 103.
Considerando mais atentamente a explicação mítica de Strauss, Schweitzer diz:
Os resultados até agora considerados não representam os elementos da vida
de Jesus que Strauss estava preparado para aceitar como históricos. Ele tentou
fazer as fronteiras do mítico abarcarem a maior área possível e torna-se claro
que ele as expandiu demasiadamente.
312
Como se percebe, embora Schweitzer reconheça os méritos de Strauss em
introduzir a explicação mítica, ele não deixa de ressaltar o excesso de tal utilização por parte
dele. Ainda segundo Schweitzer, Strauss:
superestima a importância dos motivos do Antigo Testamento em referência à
atividade criativa da lenda. Ele não percebe que enquanto em muitos casos ele
mostrou com suficiente clareza a fonte da forma da narrativa em questão, isso
não basta para explicar a sua origem. (...) A história no Evangelho tem
demasiada individualidade para isso, e está, além disso, numa conexão
histórica muito bem articulada. Ela deve ter como base algum fato histórico. Não
é um mito, ainda que haja mito nela.
313
Em outras palavras, o substrato de fato histórico na vida de Jesus é muito maior do
que Strauss esteja disposto a admitir. Schweitzer afirma que, algumas vezes, Strauss “descarta
afirmações ao assumir sua impossibilidade por motivos puramente dialéticos, ou por jogar as
narrativas uma contra a outra”
314
. Para Schweitzer, isso acontece porque Strauss,
freqüentemente, não consegue perceber a forte confirmação que as narrativas derivam de sua
conexão com o contexto precedente e seguinte. Isto é, como Strauss faz uma opção
metodológica de considerar cada incidente da vida de Jesus separadamente, ele se concentra
tanto no micro que perde o macro. O grande problema dessa opção é que as conexões que dão
sentido ao fato histórico se encontram nas inter-relações entre os micros que formam o macro.
Schweitzer pondera que, seção após seção, Strauss examina e compara os relatos
sobre cada ponto. Ele o faz até os mínimos detalhes. Em seguida, declara em que proporção
uma parcela de mito entra em cada um deles. É exatamente nesse ponto que Schweitzer
percebe algo de inovador e corajoso da parte de Strauss: “em cada caso a decisão é
desfavorável ao Evangelho de João. Strauss foi o primeiro a tomar esta posição”
315
. Até então,
o Quarto Evangelho era o favorito dos racionalistas, pois eles achavam que ele continha menos
milagres que os Sinópticos.
De acordo com Schweitzer, Strauss mostra que a representação joanina da vida de
Jesus é dominada por uma teoria. Além disso, sua figuração mostra um maior desenvolvimento
311
Ibid., p. 103.
312
Ibid., p. 104.
313
Ibid., p. 104.
314
Ibid., p. 104.
das tendências que são perceptíveis nos Sinópticos. Logo, se o Evangelho de João relata
menos milagres, os milagres que ele mantém são proporcionalmente maiores. Na verdade, eles
são o grandes que o seu caráter absolutamente miraculoso está além de qualquer dúvida.
Além disso, ao Quarto Evangelho é adicionado um significado moral ou simbólico. Portanto,
segundo Strauss, “não é mais a ação inconsciente da lenda que seleciona, cria e agrupa os
incidentes, mas uma apologética e um propósito dogmático claramente determinados”
316
.
Schweitzer faz questão de destacar a compreensão de Strauss acerca de João.
Para ele:
João representa um estágio mais avançado do processo mitopoético, já que ele
substitui a concepção messiânica judaica pela concepção metafísica grega da
Filiação Divina, e, baseado em seu conhecimento da doutrina alexandrina do
Logos, até faz Jesus aplicar a si mesmo a concepção especulativa grega da
pré-existência.
317
Conseqüentemente, Schweitzer diz que a questão está decidida. Ou seja, de acordo
com Strauss, “o Evangelho de João é inferior aos Sinópticos como fonte histórica exatamente
na proporção em que ele é mais fortemente dominado do que aqueles pelos interesses
teológicos e apologéticos”
318
. Como pode ser visto, o que definiu a questão não foi uma
comparação dos dados históricos, mas o caráter teológico das duas linhas de tradição.
Assim, segundo Schweitzer, a avaliação que Strauss faz do Evangelho de João traz
consigo uma reversão da ordem em que se acredita que os Evangelhos tenham se originado.
“Em vez de João, Lucas e Mateus, temos Mateus, Lucas e Jo o primeiro é o último e o
último é o primeiro”
319
. Porém, Schweitzer afirma que “tão cedo Strauss abriu o caminho ele
também o fechou novamente, ao recusar-se a admitir a prioridade de Marcos. (...) Para ele,
Marcos é um narrador resumido, um mero satélite de Mateus sem luz própria
320
.
Para Schweitzer, o preconceito de Strauss contra Marcos tem duas causas:
Em primeiro lugar, este Evangelho com seus detalhes pictóricos prestou grande
serviço à explicação racionalista do milagre. (...) Além disso, é apenas quando
os Evangelhos são analisados do ponto de vista do plano da história e da
conexão interna dos eventos que a superioridade de Marcos é claramente
percebida. Mas esse modo de olhar o assunto não entra no esquema de
Strauss.
321
315
Ibid., p. 105.
316
Ibid., p. 105-106.
317
Ibid., p. 106-107.
318
Ibid., p. 107.
319
Ibid., p. 108.
320
Ibid., p. 108.
321
Ibid., p. 108-109.
Schweitzer pontua que Strauss escreve sua Vida de Jesus num período onde
predominavam várias hipóteses relacionadas à questão sinóptica. Como sua posição era
profundamente insatisfatória, ele não faz nenhum registro estrito sobre esse assunto. De acordo
com Schweitzer, Strauss “é um eclético cético. No geral pode-se dizer que ele combina a teoria
da origem secundária de Marcos, conforme Griesbach, com a Diegesentheorie de
Schleiermacher, respondendo este a seu método de tratar as seções separadamente”
322
.
Segundo Griesbach, Marcos foi composto por pedaços de Mateus e de Lucas. Para
Schleiermacher, o material primário não se encontrava em um Evangelho, todavia, em notas
isoladas; dessas, coleções de passagens foram posteriormente compostas, que no período
pós-apostólico fundiram-se em descrições contínuas da vida de Jesus como as três que se
conservaram nos Evangelhos Sinópticos.
Assim sendo, Schweitzer ressalta que “a rejeição do Quarto Evangelho, por Strauss,
deixou-o sem qualquer meio de conectar as seções”
323
. De fato, ele não se preocupava mesmo
com isso. Foi justamente essa sua falta de preocupação que fez sua obra parecer tão extrema.
No que tange à formação e estrutura dos discursos sinópticos e joaninos,
Schweitzer também deixa transparecer a opinião de Strauss:
Os discursos sinópticos, assim como o joanino, são estruturas compostas,
criadas pela tradição posterior a partir de ditos que originalmente pertenciam a
diferentes tempos e circunstâncias, arranjados sob certas idéias centrais de
modo a formar discursos conexos. (...) Pelo quanto se pode supor que a
justaposição original preservou-se em uma ou outra parte, Mateus é, sem
dúvida, a autoridade mais confiável para isso.
324
Com relação à crítica de Strauss às parábolas, Schweitzer o considera mais
extremo: Ele parte do pressuposto de que elas se influenciam mutuamente umas às outras, e
que aquelas que podem possivelmente ser genuínas foram preservadas apenas numa forma
secundária”
325
. De acordo com Schweitzer, Strauss também considera extremas as conexões
entre as narrativas dos Evangelhos.
caminhando para o fim das suas considerações gerais, Schweitzer diz que é
praticamente impossível determinar a concepção própria de Strauss sobre da vida de Jesus:
A tendência da obra para a análise puramente crítica, o cuidado com que evita
qualquer expressão positiva de opinião, e não menos, a maneira de encarar os
Sinópticos como meros apanhados de narrativas e discursos, torna difícil na
verdade, impossível determinar a concepção própria e distintiva de Strauss
322
Ibid., p. 109.
323
Ibid., p. 109.
324
Ibid., p. 110.
325
Ibid., p. 110.
sobre a vida de Jesus, descobrir o que ele realmente acha que se move atrás
da cortina do mito.
326
Schweitzer continua fazendo quatro críticas à Vida de Jesus de Strauss. Essas
críticas que podem ser resumidas nas quatro frases seguintes: 1) a obra pode se tornar uma
vida de Jesus positiva ou negativa, dependendo da posição tomada para encará-la; 2) Strauss
não segue uma linha para sua concluo; 3) Ele não arrisca uma solução para nenhum
problema; 4) quando ele es chegando a alguma conclusão, se esquiva e lugar ao
ceticismo.
327
Após fazer essas quatro críticas citadas acima, Schweitzer analisa alguns aspectos
mais particulares da Vida de Jesus de Strauss. Ele havia feito isso anteriormente, mas
retoma sua análise a partir do que considera mais importante na obra. Então, no que se refere à
duração do ministério de Jesus, Schweitzer afirma que Strauss “não oferece sequer uma vaga
conjectura”
328
. Diz também que, quanto à conexão de certos eventos, “nada pode, segundo ele,
ser conhecido”
329
. Isso porque o esboço joanino não pode ser aceito e os Sinópticos arranjam
tudo com um olho nas analogias e associações de iias. Logo, não se tem pontos fixos que
permitam reconstruir, mesmo de forma parcial, a ordem cronológica dos incidentes da vida de
Jesus.
Para Schweitzer, a discussão de Strauss sobre o título Filho do Homem é
especialmente interessante. Em alguns textos, esse título pode significar apenas homem. Por
exemplo: “o Filho do Homem é Senhor do sábado” (Mt. 12:8). Contudo, em outros textos, tem-
se a impressão que Jesus fala do Filho do Homem como uma pessoa sobrenatural, bem distinta
dele mesmo, entretanto, identificado com o messias. Por exemplo: Em Mt. 10:23, ao enviar os
discípulos, Jesus promete que eles não percorreriam todas as cidades de Israel antes que
viesse o Filho do Homem. Nesse exemplo, Jesus fala do Messias como se ele mesmo fosse
seu predecessor. Portanto, esses ditos poderiam estar no primeiro período, antes que Jesus
mesmo soubesse que era o Messias. Schweitzer afirma: “Strauss não percebe o significado
deste comentário incidental; ele contém o germe da solução do problema do Filho do Homem
nas linhas de Johannes Weiss. Mas, imediatamente, o ceticismo triunfa de novo”
330
.
No que diz respeito ao momento em que Jesus reclamou para si a dignidade
messiânica, Schweitzer declara que Strauss considera tal questão insolúvel. Mas, de acordo
326
Ibid., p. 111.
327
Ibid., p. 111.
328
Ibid., p. 111.
329
Ibid., p. 111.
330
Ibid., p. 112.
com ele, “seria historicamente possível, sem dúvida, assumir que gradualmente veio-Lhe a
percepção de que Ele era o Messias de qualquer forma: não antes do seu batismo por João
(...)”
331
. Conseqüentemente, segundo Strauss a consciência messiânica de Jesus foi um fato
histórico, não um mito. Na síntese feita por Schweitzer, Strauss compreendia a consciência
messiânica de Jesus da seguinte maneira: “Jesus pensava em sua messianidade (...) na forma
de que Ele, ainda que de linhagem humana, após sua vida terrena haveria de ser levado aos
céus, e de lá viria novamente para trazer Seu Reino”
332
.
É exatamente a partir da compreensão de Strauss sobre consciência messiânica de
Jesus que Schweitzer passa a analisar sua compreensão da visão escatológica de Jesus. Ele
diz:
Em seu tratamento da escatologia, Strauss faz um valoroso esforço para
escapar do dilema ou espiritual ou político” a respeito dos planos messiânicos
de Jesus, e de tornar a expectativa escatológica inteligível como uma que não
coloca suas esperanças na ajuda humana, mas na intervenção divina. Esta é
uma das mais importantes contribuições para uma real compreensão do
problema escatológico. Algumas vezes parece que se está lendo Johannes
Weiss.
333
Schweitzer deixa claro que, para Strauss, uma das principais provas que a pregação
de Jesus era escatologicamente condicionada é a última ceia. Porém, Strauss faz questão de
lembrar que as expectativas do cristianismo primitivo podem ter moldado esses ditos. Assim,
ele trata com cautela, por exemplo, os discursos da Parusia de Mt. 24. Isso porque, de acordo
com Strauss, essas profecias encontradas nos Sinópticos não podem ter vindo do próprio
Jesus.
334
No que tange ao tempo da exaltação de Jesus, Schweitzer pondera que, segundo
Strauss, a possibilidade de compreensão também gira em torno do título Filho do Homem. Isto
é, se Jesus se descreveu como Filho do Homem, ele deve ter esperado a vinda nas nuvens que
Daniel associou ao Filho do Homem. Todavia, é possível se questionar se ele pensava nisso
como uma exaltação que aconteceria em seu tempo de vida ou como algo que teria lugar
após a sua morte. Assim sendo, Strauss considerava o problema do Filho do Homem como
algo central referente à consciência messiânica de Jesus e à escatologia. Para Schweitzer, toda
essa compreensão de Strauss foi influenciada por Reimarus.
335
331
Ibid., p. 112.
332
Ibid., p. 113.
333
Ibid., p. 113.
334
Ibid., p. 114.
335
Ibid., p. 115.
Schweitzer ainda destaca que, de acordo com Strauss, a idéia da realização
sobrenatural do Reino de Deus deve ser o ponto de partida para o entendimento da atitude de
Jesus perante a Lei e os gentios. Ele sem dúvida previa a abolição da Lei e a remoção das
barreiras entre judeus e gentios, contudo, apenas no Reino futuro. Então, na visão de Strauss,
as passagens escatológicas são as mais autênticas de todas. Se algo histórico sobre Jesus
é sua afirmação da reivindicação de que no Reino vindouro ele se manifestaria como Filho do
Homem. Em contrapartida, quanto às previsões sobre a paixão e a ressurreição não nada
certo. A única certeza de Strauss é que os detalhes sobre a morte de Jesus são, sem vida,
posteriores ao evento.
336
Schweitzer conclui sua análise da Vida de Jesus de Strauss fazendo duas
considerações: a primeira se refere ao que significou a obra de Strauss para os seus
contemporâneos e a segunda se refere ao que significou a obra de Strauss para ele mesmo,
Schweitzer. Para os contemporâneos de Strauss, sua Vida de Jesus pôs fim ao milagre como
questão de crença histórica e deu à explicação mitológica o seu devido lugar. Para Schweitzer,
a obra de Strauss tem um aspecto histórico de caráter positivo. Isso porque a personalidade
histórica que emerge das nevoas do mito é um reclamante judeu à messianidade e cujo
universo de pensamento é puramente escatológico.
337
4.3. As considerações de Schweitzer sobre os oponentes e defensores de
Strauss
Depois de analisar a Vida de Jesus de Strauss, Schweitzer passa a analisar as
conseqüências da mesma sobre os seus contemporâneos. Primeiramente, ele pontua que tal
obra causou uma grande controvérsia. Entretanto, essa controvérsia foi demasiadamente estéril
de resultados imediatos. Nos cinco anos seguintes, dos quarenta a cinqüenta ensaios que
surgiram sobre o assunto apenas quatro ou cinco tiveram algum valor, mesmo assim, pequeno.
Schweitzer declara que a primeira idéia de Strauss foi lidar com cada um de seus
oponentes separadamente. Logo, em 1837, ele publicou as três sucessivas Réplicas à Crítica
de Minha Obra Sobre a Vida de Jesus; com uma Avaliação da Teologia atual. Tais ensaios são
habilidosos e escritos com mordaz desprezo. Mas, Strauss não se mostra um debatedor à
altura na controvérsia.
338
De acordo com Schweitzer, nessa controvérsia:
336
Ibid., p. 115-116.
337
Ibid., p. 116-117.
338
Ibid., p. 120.
havia três desses problemas: O primeiro era composto pelas questões
correlatas a respeito de milagre e mito; a segunda [sic!] referia-se à conexão
entre o Cristo da e o Jesus da história; o terceiro referia-se à relação entre o
Evangelho de João e os Sinópticos.
339
A estrutura dada por Schweitzer à sua análise dos oponentes e defensores de
Strauss segue a ordem de apresentação desses problemas. Portanto, ele começa pelas
questões correlatas a respeito de milagre e mito. Schweitzer faz questão de ressaltar que esse
foi o problema que mais atraiu atenção. Em números, mais da metade dos críticos de Strauss
se dedicaram a ele, porém, sem percebê-lo completamente. A única coisa que viram com
clareza é que Strauss nega completamente os milagres. Todavia, o alcance pleno da explicação
mitológica, conforme aplicada aos registros tradicionais da vida de Jesus, e a extensão do
material histórico que Strauss está preparado para aceitar, continua um enigma para eles.
340
Schweitzer destaca que a atitude para com o milagre assumida na literatura anti-
Strauss demonstra o quanto a reação anti-racionalista levara a teologia que se declarava
científica na direção do sobrenaturalismo. Aqui, é muito provável que ele esteja se referindo a
uma nova escola que, algumas vezes, ele intitula Teologia Mediadora (Vermittlungstheologie).
Tal escola, ao mesmo tempo que admite a posição científica de que nenhum ato que
transcenda as leis da natureza pode ter procedido de Cristo, abre um espaço para a visão
mediadora de sua atividade milagrosa. Essa visão mediadora consiste na atuação de forças
misteriosas da natureza na história de Cristo. Por exemplo: as forças magnéticas. Contudo, o
caráter essencial dessa nova escola apareceu, primeiramente, quando Strauss a provou. Tal
prova consistia em usar um simples sim ou não no lugar das freqüentes frases ambíguas
utilizadas para fugir das dificuldades dos milagres. O resultado foi o seguinte: a nova escola se
demonstrou perplexa, patética e desesperada.
341
Segundo Schweitzer, dois nomes que pertencem a essa nova escola o Tholuck e
Neander. Tholuck nasceu em 1799, em Breslau. Em 1836, tornou-se professor em Halle, onde
trabalhou até a sua morte, em 1877. A sua obra tem como objetivo confesso apresentar um
argumento histórico para a credibilidade das histórias de milagres dos Evangelhos. Como não
poderia ser diferente, ele tenta alcançar esse objetivo utilizando a linha de argumentação da
Teologia Mediadora. Entretanto, Schweitzer considera espúrio o racionalismo que Tholuck
utiliza para questionar Strauss quanto a sua rejeição do milagre.
342
339
Ibid., p. 121.
340
Ibid., p. 121.
341
Ibid., p. 121-124.
342
Ibid., p. 123-124.
Wilhelm Neander nasceu em 1789, em Göttingen. Filho de pais judeus, seu
verdadeiro nome era David Mendel. Ele foi batizado em 1806. Após estudar teologia, em 1813,
foi indicado para a cátedra em Berlim. Ali Neander mostrou uma atividade multi-facetada e
exerceu uma influência benéfica. Ele faleceu em 1850. Neander era um homem não apenas de
profunda piedade, mas também de grande firmeza de caráter. Para Schweitzer, em sua Vida de
Jesus Cristo, Neander trata da questão do milagre com maior delicadeza de toque, mais no
estilo Schleiermacher. Ele diz que os milagres de Cristo devem ser entendidos como um
influenciar da natureza, humana ou material. Porém, de acordo com Schweitzer, Neander não
dá tanta proeminência quanto Schleiermacher deu à dificuldade envolvida na suposição de uma
influência exercida sobre a natureza material. Ele repete as afirmações de Schleiermacher,
todavia, sem a poderosa dialética que nas mãos do mesmo quase obriga à aceitação. Ainda
sobre os milagres, Schweitzer afirma que Neander faz questão de encontrar não apenas a
explicação do milagre, contudo, o seu significado simbólico maior.
343
Schweitzer segue dizendo que, em comparação com os teólogos mediadores, os
teólogos puramente racionalistas acharam muito mais difícil ajustar sua atitude à nova solução
da questão do milagre proposta por Strauss. Isso porque ele expôs a inconsistência do método
racionalista e recusou aceitar seus defensores como aliados na batalha pela verdade.
Entretanto, segundo Schweitzer, não seria correto dizer que Strauss baniu o racionalismo. Um
exemplo claro disso é a obra Desenvolvimento do Cristianismo em uma Religião Mundial de
Ammon.
344
Ammon nasceu em 1766, em Bayreuth. Em 1790, ele tornou-se professor de
teologia em Erlangen. De 1794 a 1804, Ammon foi professor em Göttingen. Em 1813, de volta a
Erlangen, tornou-se capelão sênior da corte e Oberkonsistorialrat em Dresden, onde faleceu em
1850. Para Schweitzer, Ammon foi o mais distinto representante do racionalismo histórico-
crítico. Em sua obra, citada acima, é possível encontrar um racionalismo muito peculiar
inspirado por Kant. De acordo com Ammon, um evento miraculoso pode existir se suas
causas naturais tiverem sido descobertas. Isso porque o puramente sobrenatural não existe
para a experiência humana condicionada ao tempo e ao espaço. Conseqüentemente, deve-se
chamar a atenção para o lado natural dos milagres de Jesus, uma vez que, à parte disso,
nenhum fato pode tornar-se objeto da fé. Ammon também rejeita a força magnética da Teologia
Mediadora e afirma que a cura de males psíquicos pela força da palavra e da fé é a única forma
343
Ibid., p. 124-125.
344
Ibid., p. 127-128.
de cura na qual o estudante da ciência natural pode achar qualquer base para uma conjectura
sobre o modo como as curas de Jesus foram realizadas.
345
Segundo Schweitzer, no caso dos outros milagres, Ammon prefere um tipo de
ocasionalismo, no sentido de que a Providência Divina pode ter concretizado em fato as
promessas confiantemente expressas por Jesus. Mas, na maioria dos casos, ele se contenta
em repetir a explicação racionalista, e retrata um Jesus que faz uso de medicamentos. É
somente quando se trata da explicação da ressurreição que Ammon rompe com o racionalismo.
Ele decide que a realidade da morte de Jesus é historicamente provada, porém, não se
aventura a supor um real retorno à vida. Schweitzer considera a obra de Ammon uma mera
reaparição do racionalismo, cuja refutação de Strauss a Paulus havia relegado ao
passado.
346
Para Schweitzer, até a teologia católica sofreu o impacto da obra de Strauss. Nessa
época, a maioria dos teólogos católicos não tinha uma atitude de isolamento absoluto em
relação à academia protestante. Eles adotaram diversas idéias racionalistas e foram
especialmente influenciados por Schleiermacher. Assim, esses estudiosos estavam quase
dispostos a ver Strauss como um inimigo comum, contra o qual seria possível pensar em uma
aliança com os protestantes. Uma outra marca desse período, pondera Schweitzer, é que o
catolicismo francês também deu atenção à obra de Strauss. Esse fato marca a introdução do
conhecimento da teologia crítica alemã no mundo intelectual das nações latinas.
347
De acordo com Schweitzer, um exemplo claro da reação católica a Strauss é Edgar
Quinet. Em sua obra, Revue des deux mondes, publicada em dezembro de 1838, ele um
relato claro e acurado da influência da filosofia hegeliana sobre as idéias religiosas da
Alemanha culta. Numa eloqüente conclusão, Quinet revela o perigo que ameaçava a Igreja da
nação de Strauss e Hegel. Todavia, segundo Schweitzer, ele poderia ter prestado um melhor
serviço aconselhando o Papa a editar, como contragolpe à obra descrente de Strauss, a vida de
Jesus que tinha sido revelada à da beata Anna Katharina Emmerich. A maneira como ela
refutava Strauss pode ser vista pelo fragmento O amargo Sofrimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo, editado por Brentano em 1834, onde até mesmo a idade de Jesus no dia de sua morte é
dada com exatidão.
348
Desejando fundamentar tal opinião, Schweitzer cita Hug. Johann Leonhard Hug
nasceu em 1765, em Constance. Desde 1791, foi professor de teologia do Novo Testamento,
345
Ibid., p. 128-129.
346
Ibid., p. 129-130.
347
Ibid., p. 132.
348
Ibid., p. 132-133.
em Freiburg. Ali mesmo faleceu em 1846. Em suas aulas, Hug chamou a atenção para a exata
concordância da topografia da história da paixão nas visões de Katharina com a descrição da
localidade em Josefo. Para Schweitzer, se Hug tivesse conhecido toda a Vida de Jesus de
Katharina, ele teria expressado sua admiração pelo modo como ela harmoniza João e os
Sinópticos, pois a harmonia é realmente engenhosa e cuidadosamente planejada.
349
Encerrando suas considerações sobre o primeiro problema, as questões correlatas
a respeito de milagre e mito, Schweitzer declara:
Por fim, no entanto, todos os esforços na teologia mediadora, do racionalismo e
do sobrenaturalismo, nada podiam fazer para abalar a conclusão de Strauss de
que era o fim do sobrenaturalismo como um fator a ser considerado no estudo
histórico da Vida de Jesus, e que a teologia científica, em vez de retornar do
racionalismo para o sobrenaturalismo, deveria mover-se diretamente em frente
entre os dois e busca um novo caminho para si mesma.
350
Ele continua:
O método hegeliano havia provado ser a lógica da realidade. Com Strauss
começa o período da visão não-miraculosa da Vida de Jesus; todas as outras
visões esgotaram-se na luta contra ele, e em seguida abandonaram posição
após posição sem esperarem para ser atacadas. (...) o sobrenaturalismo
praticamente separou-se do estudo sério da história. Não é possível datar os
estágios deste processo. Após o primeiro surto de excitação tudo parece seguir
tão calmamente quanto antes; a única diferença é que a questão do milagre cai
mais e mais para um segundo plano. No período moderno do estudo da Vida de
Jesus, que começa em meados dos anos sessenta, ela já perdeu toda a
importância.
351
Schweitzer faz questão de ressaltar que isso não significa que o problema do
milagre estivesse resolvido. Do ponto de vista histórico é realmente impossível resolvê-lo.
Contudo, o que se ganhou é apenas que a exclusão do milagre da visão de história foi
universalmente reconhecida como um princípio da crítica. Dessa forma, o milagre já não
preocupa o historiador, seja positiva ou negativamente.
352
O segundo problema causado pela controvérsia da obra de Strauss analisado por
Schweitzer se refere à conexão entre o Cristo da e o Jesus da história. Schweitzer diz que,
comparando com o problema do milagre, a questão sobre a explicação mítica da história ocupa
um lugar inferior na controvérsia. Isso porque poucos compreenderam qual era realmente a
intenção de Strauss. A impressão geral era que ele tinha dissolvido toda a vida de Jesus em
mito. Um exemplo disso foram três sátiras que surgiram ridicularizando o método de Strauss. A
349
Ibid., p. 132-134.
350
Ibid., p. 135.
351
Ibid., p. 135-136.
352
Ibid., p. 136.
primeira mostra como, para a ciência histórica do futuro, a vida de Lutero se tornaria um mero
mito. A segunda trata a vida de Napoleão de forma semelhante. Na terceira, o próprio Strauss
torna-se um mito.
353
De acordo com Schweitzer, o único autor que realmente encara o problema da
maneira como ele foi levantado por Strauss é Wilke, em sua obra Tradição e Mito. Wilke
reconhece que Strauss deu um impulso inestimável para a superação do racionalismo e do
sobrenaturalismo, e para a rejeição da abortiva Teologia Mediadora. Segundo ele, havia
chegado o tempo para um misticismo racional. Sem fazer concessões ao sobrenaturalismo e
superando o racionalismo truculento da crítica kantiana, esse misticismo racional deveria
preservar intocada a honestidade do velho racionalismo. Além disso, deveria ser permeado por
uma concepção religiosa na qual mais calor e mais sentimento de piedade. Tal misticismo
racional tamm critica o “idealismo mítico” de Strauss porque nele a filosofia violenta a história
e o Cristo histórico mantém sua importância apenas como um mero ideal. Assim sendo, Wilke
propõe um novo exame das fontes para decidir sobre a extensão do elemento mítico.
354
Para Wilke, o Evangelho de Mateus não pode ter sido obra de uma testemunha
ocular. No Evangelho de Marcos, ele reconhece a vivacidade pictórica de muitas das descrições
e supõe que ele remonta à tradição de Pedro. Quanto ao Evangelho de João, Wilke afirma que
o autor também não é uma testemunha ocular. Ele recebeu a tradição, direta ou indiretamente,
do apóstolo, entretanto, deu-lhe a forma dialética gnosticizante da teologia alexandrina. Então,
Wilke defende a independência e originalidade dos Evangelhos individuais. Ou seja, nenhum
dos evangelistas conhecia os escritos de qualquer um dos outros. Cada um produziu uma obra
independente traçada de uma fonte separada. Schweitzer pontua que, na obra de Wilke, se
percebem indícios do fator “matemático” do problema sinóptico. Dois anos mais tarde, esse
fator “matemático” seria utilizado de maneira convincente em favor do argumento literário para a
prioridade de Marcos.
355
Como naquele período a questão filosófica da relação entre o Jesus histórico e o
Cristo ideal era mais interessante que a questão “mito ou história”, Schweitzer destaca que
Wilke decidiu esclarecer melhor a relação geral entre a filosofia hegeliana e a crítica teológica.
Ele admite que a filosofia de Hegel é ambígua sobre esse assunto. Isto é, não está claro se o
fato evangélico como tal, não isolado, mas junto com toda a série de manifestações da idéia
(Teo-antropia) na história do mundo, é verdade, ou se a corporificação da iia naquele simples
fato é apenas uma fórmula usada pela consciência para formar seu conceito. Uma coisa é
353
Ibid., p. 136-137.
354
Ibid., p. 137-138.
certa: Hegel não era pessoalmente amigo da crítica histórica. Isso porque lhe desagradava ver
as figuras históricas da antiguidade assaltadas por dúvidas críticas.
Após o esclarecimento de Wilke, Schweitzer abre um parêntese para relembrar o
pensamento de Strauss sobre esse assunto. Ele afirma:
Mas mesmo disposto a admitir que acrescentou ao edifício da filosofia de Hegel
um anexo de crítica histórica, que dificilmente o mestre teria aprovado, Strauss
está convencido de que é o único representante lógico da visão essencial de
Hegel. “A questão que pode ser decidida, do ponto de vista da filosofia da
religião, não é se a narrativa dos Evangelhos realmente aconteceu ou não, mas
se, em vista da verdade de certos conceitos, ela necessariamente teria que ter
acontecido. E a respeito disso, o que eu afirmo é que, do sistema geral da
filosofia hegeliana, não é de forma nenhuma necessário que tal evento tenha
que ter acontecido, mas que, do ponto de vista do sistema, a verdade dessa
história, da qual o conceito realmente surgiu, é reduzida ao ponto da
indiferença, e a tarefa de decidir sobre esse ponto pode tranqüilamente ser
deixada para a crítica histórica.”.
356
Schweitzer encerra sua análise desse segundo problema sem uma conclusão clara,
porém, acrescentando mais um ponto ao pensamento de Strauss:
Strauss lembra-nos que, mesmo segundo Hegel, a crença em Jesus com Deus-
feito-homem não é imediatamente apresentada com Seu surgimento no mundo
dos sentidos, mas apenas depois de Sua morte e da remoção de sua presença
sensível.
357
O terceiro e último problema causado pela controvérsia da obra de Strauss
analisado por Schweitzer se refere à relação entre os Sinópticos e o Evangelho de Jo. A
respeito desse problema, Schweitzer diz que não houve resposta. O único dos críticos de
Strauss que compreendeu o que estava em questão foi Hengstenberg. Wilhelm Hengstenberg
nasceu em 1802, em Fndenberg, no “condado” de Mark. Em 1826, tornou-se professor de
teologia em Berlim e, em 1869, ali faleceu. Apenas ele percebeu que a última fortaleza da
teologia crítica, o Evangelho de João, estava sendo sitiada por Strauss. O processo foi o
seguinte: em primeiro lugar, a teologia crítica admite elementos míticos no Antigo Testamento;
em segundo lugar, ela os admite no início e no final da história dos Evangelhos; e, em terceiro
lugar, ela abandona os três primeiros Evangelhos e retém apenas o Quarto (especialmente
Hase e Schleiermacher). Agora, Strauss coloca o Quarto Evangelho sob suspeita.
358
Diante da percepção de Hengstenberg, Schweitzer considera duas atitudes: uma
por parte dos teólogos mediadores e outra por parte de Ammon. Os teólogos mediadores
355
Ibid., p. 138.
356
Ibid., p. 140.
357
Ibid., p. 140.
358
Ibid., p. 140-141.
simplesmente ignoraram o problema que Strauss havia levantado. Eles continuaram tomando o
Evangelho de João como moldura autêntica e ajustando nele as seções da narrativa sinóptica
nos espaços que melhor se adequassem.
359
Por outro lado, de acordo com Schweitzer, Ammon foi o único autor que, em certa
medida, entra nas dificuldades do problema levantado por Strauss e percebido por
Hengstenberg. Ele esplenamente consciente da diferença entre os Sinópticos e o Evangelho
de João. Todavia, segundo Ammon, não basta ter consciência dessa diferença, é preciso
encontrar uma solução, ainda que forçada, para ela. Essa solução implicaria em subordinar os
dados cronologicamente indefinidos dos Sinópticos à narrativa ordenada do Evangelho de
João. Isso porque entre os autores dos três primeiros Evangelhos apenas um foi ou poderia ter
sido uma testemunha ocular.
360
Deixando o problema da relação entre os Sinópticos e João um pouco de lado,
Schweitzer afirma que, para a visão racionalista de Ammon, a obra de Jesus consistiu
precisamente na transformação da idéia judaico-messiânica na concepção de um “Salvador do
mundo”. Aqui, Ammon utiliza sua filosofia kantiana. Tal visão serve especialmente para explicar-
lhe a consciência da pré-existência reconhecida para o Jesus da narrativa joanina como sendo
algo puramente humano. Logo, Jesus é, para si mesmo, uma iia bíblica, com a qual ele se
identificou.
361
Já caminhando para suas considerações finais, Schweitzer diz que o apoio de
Ammon à autenticidade do Evangelho de João não é, mesmo do ponto de vista puramente
literário, tão irrestrito como no caso dos outros oponentes de Strauss. Em segundo plano
permanece a hipótese de que o Quarto Evangelho é apenas uma re-elaboração do autêntico
João, uma sugestão sobre a qual Ammon pode reclamar prioridade.
362
Portanto, de acordo com Schweitzer, o primeiro estágio da discussão sobre a
relação dos Sinópticos com o Evangelho de João passou sem resultados. A teologia mediadora
continuou a manter suas posições sem se sentir incomodada. No que diz respeito ao próprio
Strauss, na terceira edição de sua Vida de Jesus, ele insere adições e retratações em
consideração às obras não críticas de Tholuck e Neander. Wilke, o único dos seus críticos de
quem ele poderia ter aprendido algo, ele ignora. Segundo Schweitzer, o mais sério é que ele
começou a hesitar em sua negação do caráter histórico do Quarto Evangelho, o próprio
359
Ibid., p. 141.
360
Ibid., p. 142.
361
Ibid., p. 143.
362
Ibid., p. 144.
fundamento de sua visão crítica. Contudo, na quarta edição ele se retratou de todas as suas
concessões.
363
Para Schweitzer, o principal equívoco de Strauss foi não ter tentado encontrar uma
conexão proposital nos Sinópticos por meio da qual ele pudesse testar o plano do Evangelho de
João. Ele simplesmente restaura sua forma anterior inalterada. Isso revela que, no ponto
decisivo, ela foi incapaz de desenvolvimento. No ano em que Strauss preparava sua edição
melhorada, lembra Schweitzer, Weisse lançou a hipótese de que Marcos seria o documento-
base. Com isso ele levou a crítica além do ponto que Strauss nunca conseguiu ultrapassar. O
fato que é esse último tinha verdadeira antipatia pela Hipótese Marcos.
364
Schweitzer chega ao fim de suas considerações sobre os oponentes e defensores
de Strauss com dois breves comentários. Primeiro, que foi uma pena que nesta controvérsia as
sugestões altamente importantes sobre rios problemas históricos feitas acidentalmente no
curso da obra de Strauss nunca tenham sido realmente discutidas. Segundo, que Strauss teve
o mesmo destino de Reimarus, isto é, a ofensa causada pelo lado negativo de sua obra impediu
que fossem percebidas as suas soluções positivas.
365
4.4. As considerações de Schweitzer sobre a Hipótese Marcana
Depois de analisar as conseqüências da Vida de Jesus de Strauss sobre os seus
contemporâneos, Schweitzer passa a analisar a Hipótese Marcana, que consiste na elaboração
sobre a prioridade de Marcos por Weisse. A História do Evangelho de Weisse foi escrita por um
filósofo que foi posto para fora da filosofia e forçado de volta à teologia.
Christian Hermann Weisse nasceu em 1801, em Leipzig. Em 1828, ele tornou-se
professor extraordinário de filosofia na universidade de Leipzig. Sendo impedido de avançar na
docência ordinária, em 1837, Weisse afastou-se do ensino acadêmico à preparação da obra
citada acima. Em 1841, tendo-a completado, começou novamente como Privat-Docent em
filosofia e, em 1845, tornou-se professor ordinário. Entretanto, de 1848 em diante Weisse
lecionou também teologia. Sua obra sobre dogmática filosófica, ou filosofia do cristianismo
também é muito conhecida. Em 1866, ele faleceu, de cólera.
366
De acordo com Schweitzer, Weisse admirava Strauss e saudou sua Vida de Jesus
como um passo adiante em direção à reconciliação entre religião e filosofia.
Conseqüentemente, sua obra, assim como a de Strauss, conduz a uma exposição filosófica na
363
Ibid., p. 144-145.
364
Ibid., p. 146.
365
Ibid., p. 146.
366
Ibid., p. 147.
qual ele mostra como o Jesus da história torna-se o Cristo da fé. Segundo Schweitzer, Weisse é
o sucessor direto de Strauss. Fora das limitações das fórmulas hegelianas, ele começa no
ponto onde Strauss parou. Seu objetivo é descobrir, se possível, algum fio de conexão geral
nas narrativas da tradição evangélica. Caso exista esse fio, ele poderia representar um
elemento historicamente certo na vida de Jesus. Além disso, poderia servir como um melhor
padrão pelo qual determinar a extensão do mito do que pode possivelmente ser encontrado na
impressão subjetiva sobre a qual Strauss se apóia.
367
Schweitzer estrutura sua análise da Hipótese Marcana em duas partes. Na primeira,
ele apresenta três pilares da hipótese de Weisse. Na segunda, ele faz algumas considerações
sobre sua obra. O primeiro pilar da hipótese de Weisse é o seguinte: a idéia de que o
Evangelho de Marcos pode ser o mais antigo dos quatro, lhe ocorreu primeiramente durante o
progresso de sua obra. Weisse observou que os detalhes gráficos de Marcos, que até então
tinham sido vistos como uma tentativa de ornamentar uma narrativa interpretativa, eram muito
insignificantes para terem sido inseridos com esse propósito. Assim, tornou-se claro para ele
que permanecia apenas uma outra possibilidade: que sua ausência em Mateus e Lucas devia-
se à omissão. Um exemplo disso é a descrição do primeiro dia do ministério de Jesus em
Cafarnaum. A relação de Mateus com Marcos naquelas partes do Evangelho que são comuns a
ambos é, com poucas exceções, geralmente a de um comentarista.
368
De acordo com Schweitzer, o segundo pilar da hipótese de Weisse é o seguinte: o
argumento decisivo para a prioridade de Marcos é, ainda mais do que seu detalhamento
gráfico, a composição e o arranjo do todo. Weisse afirma que o Evangelho de Marcos
demonstra ter surgido de discursos falados. Em si mesmos, esses discursos falados não eram
ordenados ou conectados, mas desconexos e fragmentários. Em sua forma original, eles eram
baseados em notas dos incidentes relatados por Pedro. Assim sendo, o evangelista foi guiado
em sua obra por uma recordação clara do curso geral da vida de Jesus. Weisse também explica
que, em Marcos, um estudo mais próximo revela que os comentários incidentais não separam e
isolam as diferentes narrativas. Porém, eles tendem a uni-las umas às outras. Então, dessa
união transparece uma história conexa, não uma série de episódios agrupados fortuitamente.
Segundo Weisse, uma conexão desse tipo não é tão clara em Mateus e Lucas e é totalmente
ausente em João.
369
Para Schweitzer, o terceiro pilar da hipótese de Weisse é o seguinte: a simplicidade
do plano de Marcos é um argumento para sua prioridade mais forte do que a mais elaborada
367
Ibid., p. 147-148.
368
Ibid., p. 148.
demonstração. Aprofundando um pouco mais, Schweitzer diz que o argumento de Weisse pela
prioridade de Marcos funda-se basicamente sobre cinco proposições: 1) Em Mateus e Lucas
encontram-se traços de um plano comum apenas nas partes que eles têm em comum com
Marcos; 2) naquelas partes que os Sinópticos têm em comum, a “concordância” dos outros dois
é mediada por Marcos; 3) naquelas seções que Mateus e Lucas têm, mas Marcos não tem, a
concordância consiste na linguagem e nos incidentes, não na ordem. Logo, sua fonte comum, a
“Logia” de Mateus, não contém nenhum tipo de tradição que dá uma ordem de narrativa
diferente da de Marcos; 4) A divergência das frases entre Mateus e Lucas é, em geral, maior
nas partes onde ambos se baseiam no documento “Logia” do que onde Marcos é sua fonte; 5)
Mateus reproduz o documento “Logia” mais fielmente do que Lucas, contudo, seu Evangelho
parece ser de origem mais tardia. Schweitzer destaca que esse argumento histórico pela
prioridade de Marcos foi confirmado um ano depois pela obra de Wilke, intitulada O primeiro dos
Evangelhos. Tal obra aborda o problema mais pelo lado literário e fornece a confirmação
matemática da hipótese.
370
De acordo com Schweitzer, no que tange ao Evangelho de João, Weisse
compartilha plenamente a visão negativa de Strauss. De forma semelhante, a impossibilidade
de que o Jesus histórico tenha pregado a doutrina do Cristo joanino é tão clara para Weisse
como o é para Strauss. Segundo Weisse, para a imagem de Cristo nos Evangelhos Sinópticos,
a mente dos discípulos que o descrevem é um meio neutro. Entretanto, para a imagem de
Cristo no Evangelho de João, a mente dos discípulos que o descrevem é um fator que
contribuiu para a produção da imagem. Portanto, para Weisse, o que importa para o estudo
histórico da vida de Jesus é simplesmente que o Quarto Evangelho deveria ser descartado.
Além disso, os discursos, apesar de sua autoridade apostólica, não são históricos.
Conseqüentemente, eles não precisam ser levados em conta ao descrever o sistema de
pensamento de Jesus.
371
Schweitzer pontua que a hipótese levantada na mesma época por Alexander
Schweitzer, com a intenção de salvar a autenticidade do Evangelho de João, não faz nenhuma
contribuição real à questão. Alexander Schweitzer nasceu em 1808, em Murten. Em 1835, ele
foi indicado professor de teologia pastoral em Zurique. Ali continuou até a sua morte, em 1888.
Alexander Schweitzer permaneceu leal às iias de seu mestre Schleiermacher, ainda que
lidando com elas com certa liberdade. A leitura dos fatos que foram seu ponto de partida é
369
Ibid., p. 149.
370
Ibid., p. 150.
371
Ibid., p. 151-154.
quase o oposto exato daquela de Weisse. Isso porque ele não toma os discursos, mas certas
partes da narrativa como sendo joaninas.
372
Dando um passo adiante, Schweitzer declara que Weisse está longe de ter usado
Marcos irrestritamente como fonte histórica. Muito pelo contrário, ele diz claramente que o
quadro que esse Evangelho de Jesus é traçado por um imaginativo discípulo da fé. Além
disso, ele é preenchido pela glória de seu assunto e, às vezes, o entusiasmo do evangelista é
mais forte do que seu julgamento. De acordo com Weisse, mesmo em Marcos a tendência
mitopoética está agindo ativamente. Assim, a tarefa da crítica histórica é explicar como tais
mitos podem ter sido aceitos por um narrador que está tão perto dos fatos como está Marcos.
373
No que se refere aos milagres, segundo Schweitzer, Weisse faz uma distinção entre
milagres não genuínos e genuínos. Ele inclui a alimentação da multidão entre os milagres não
genuínos e afirma que ela clama por uma explicação. Sua força histórica está no fato de estar
firmemente entranhada com o contexto anterior e posterior (isso se aplica a ambas as
narrativas de Marcos). Assim sendo, é impossível ver a história como puro mito, como Strauss
propõe fazer. Porém, é necessário demonstrar como, vinda de algum incidente pertencente a tal
contexto, ela assumiu a presente forma literária. A explicação de Weisse é a seguinte: O dito
autêntico sobre o fermento dos fariseus, que em Marcos 8:14-15 está conectado com os dois
milagres da alimentação das multidões, base à suposição de que eles se baseiam num
discurso parabólico repetido em duas ocasiões nas quais Jesus falou, talvez com alusão ao
maná, de um alimento miraculoso dado através dele. Mais tarde, a tradição transformou esses
discursos em distribuições reais e milagrosas de alimento. Para Schweitzer, fica claro que
Weisse tenta substituir a concepção “não histórica” de mito de Strauss por uma concepção
diferente, que em cada caso tenta descobrir uma causa histórica suficiente. Essa mesma
concepção é aplicada aos milagres no batismo de Jesus, à transfiguração e à ressurreição.
374
Como fora dito anteriormente, a segunda parte da análise de Schweitzer sobre a
Hipótese Marcana é caracterizada por suas considerações acerca da obra de Weisse. Ele se
concentra, principalmente, nos avanços proporcionados por esse em comparação com Strauss,
seu antecessor. Schweitzer diz:
A concepção de mito de Strauss, que não conseguiu fazer nenhum ponto de
conexão com a história, não forneceu nenhuma escapatória para o dilema
oferecido pelas visões racionalista e sobrenaturalista da ressurreição. Weisse
preparou uma nova base histórica para a solução. Ele foi o primeiro a lidar com
o problema de um ponto de vista que combinava considerações históricas e
psicológicas, e ele está plenamente consciente da novidade e das
372
Ibid., p. 154-155.
373
Ibid., p. 155-156.
374
Ibid., p. 156-158.
conseqüências de longo alcance de sua tentativa. A ciência teológica não o
ultrapassou por sessenta anos. (...) Sua discussão da questão é, tanto do ponto
de vista religioso quanto do histórico, o tratamento mais satisfatório que
conhecemos.
375
Schweitzer, todavia, afirma que a psicologia de Weisse requer apenas uma
correção: a inserção nela da premissa escatológica. Em geral, a avaliação de Schweitzer é
positiva e sutil. De acordo com ele:
Não é apenas a mistura de mito, mas todo o caráter da representação de
Marcos, que nos impede de usá-lo sem reservas como uma fonte para a vida
de Jesus. O inventor da hipótese Marcos nunca se cansa de repetir que mesmo
no Segundo Evangelho é apenas o esboço básico da vida de Jesus, não o
modo como as várias seções são agrupadas, que é histórico. Ele não se atreve,
por isso, a escrever uma Vida de Jesus, mas começa com um “Esboço Geral da
História Evangélica” no qual ele os contornos básicos da Vida de Jesus
segundo Marcos, e então prossegue expondo os incidentes e discursos em
cada um dos Evangelhos na ordem em que ocorrem. Ele evita a
professadamente interpretação histórica do detalhe. (...) Weisse es livre
desses refinamentos excessivos.
376
Segundo Schweitzer, Weisse não admite que alguma falha tenha ocorrido na obra
de Jesus e que a morte tenha vindo sobre ele de fora, como uma necessidade inevitável. Ele
também não pode encarar a idéia do sofrimento como sendo forçado sobre Jesus por eventos
externos. Então, para Weisse, Jesus não foi movido por nenhuma circunstância externa quando
ele saiu para Jerusalém para morrer. Tal atitude se deu única e exclusivamente em
obediência a uma necessidade superior supra-racional.
377
Com relação à duração do ministério de Jesus, Schweitzer diz que Weisse discorda
do resultado da exegese mais tardia. De acordo com ela, o fato de Marcos não mencionar
ocorrência de viagens de Páscoa durante o ministério público de Jesus levaria a crer que tal
ministério começou depois de uma Páscoa e encerrou-se com a seguinte. Ou seja, uma
duração inferior a um ano completo. Contudo, Weisse pensa que é impossível compreender o
sucesso do ensinamento de Jesus a menos que se assuma um ministério de vários anos,
possivelmente, mais de três. Quanto à missão dos doze, ele pondera que o registro também é,
por motivo de probabilidade intrínseca, explicado de modo que não está de acordo com o
sentido puro das palavras. Segundo Weisse é mais natural supor que Jesus apenas enviou dois
de cada vez, mantendo os outros ao seu redor. Schweitzer enfatiza que essas duas são as
únicas liberdades sérias que Weisse toma em relação às afirmações de Marcos.
378
375
Ibid., p. 158.
376
Ibid., p. 158-159.
377
Ibid., p. 160.
378
Ibid., p. 161.
Em se tratando de consciência messiânica, Schweitzer afirma que, para Weisse, o
batismo parece ter marcado a concretização dos pensamentos de Jesus acerca de si mesmo
como sendo o Messias. Entretanto, isso não significa que ele não tenha tido tais pensamentos
antes. Além disso, Weisse propõe um período, entre o batismo e o início do ministério de Jesus,
durante o qual ele descartou as idéias messiânicas do judaísmo e apegou-se a uma concepção
espiritual de messianidade. Quando Jesus começou a ensinar, seu desenvolvimento estava
terminado, mas ele não permitiu que o povo percebesse que ele via a si mesmo como Messias
até sua entrada triunfal em Jerusalém. Apesar de todas essas nuances, Schweitzer ressalta
que, assim como Strauss, Weisse reconhece que a auto-designação “Filho do Homem” é a
chave para a explicação da consciência messiânica de Jesus. Porém ele não assumiu o seu
significado do Antigo Testamento, antes, quis que ela tivesse algo de misterioso, algo que
levasse os seus ouvintes a refletir sobre o seu significado.
379
Diante dessa interpretação de Weisse, Schweitzer diz:
Weisse, portanto, rejeita apaixonadamente qualquer sugestão, por mais
modesta que seja, de que a auto-designação de Jesus, Filho do Homem,
implique em qualquer medida a aceitação do sistema de idéias apocalíptico
judaico. (...) A verdadeira missão da crítica é, segundo Weisse, mostrar que
Jesus não tinha parte naqueles fantásticos erros que lhe são falsamente
atribuídos quando é dada uma interpretação judaica literal se Seus grandes
ditos sobre o futuro do Filho do Homem, e remover todos os obstáculos que
parecem ter até então impedido o reconhecimento do caráter novo e do
significado especial da expressão, Filho do Homem, na boca d’Aquele que, por
sua própria vontade, aplicou este nome a si mesmo.
380
Schweitzer declara que essa decisão fundamental determina o restante das
opiniões de Weisse. Dentre elas, se encontram as seguintes: Jesus não pode ter compartilhado
do particularismo judaico; ele não considerava a Lei como vinculante; ele, distinta e
repetidamente, expressou a convicção de que sua doutrina era destinada a todo mundo; ele
não falou a seus discípulos sobre a sua ressurreição, sua ascensão e sua Parusia como três
atos distintos, que o evento para o qual ele olhava não era idêntico a nenhum dos três,
todavia, era composto por todos eles. De acordo com Weisse, a única conclusão certa é a de
que Jesus falava do futuro de sua obra e seu ensinamento de uma forma que implicava na
consciência de uma influência a ser continuada após sua morte.
381
Schweitzer conclui sua análise da Hipótese Marcana com duas significativas
afirmações e um breve comentário. A primeira afirmação é: em sua determinada oposição ao
reconhecimento da escatologia na primeira Vida de Jesus de Strauss, Weisse estabelece as
379
Ibid., p. 161-163.
380
Ibid., p. 163-164.
linhas a serem seguidas pelas vidas de Jesus “liberais” dos anos sessenta e seguintes. Como
uma conseqüência da primeira, a segunda afirmação é: a única obra que foi uma continuação
consciente da obra de Strauss tomou um caminho errado. Apesar da sua justa apreciação do
caráter das fontes, foi desviada pela idéia equivocada da “originalidadede Jesus. Somente
após um longo desvio o estudo da escatologia encontrou o caminho certo novamente. Nos anos
seguintes, toda luta sobre esse assunto nada mais será do que uma eliminação gradual das
idéias de Weisse. Logo, foi apenas com Johannes Weiss que a teologia escapou da influência
de Christian Hermann Weisse.
382
4.5. As considerões de Schweitzer sobre Bruno Bauer e a primeira vida de
Jesus cética
Depois de analisar a Hipótese Marcana, Schweitzer passa a analisar a primeira vida
de Jesus cética, de Bruno Bauer. Aqui se encontra a explicação puramente literária de Marcos.
O Cristo da história do Evangelho passa a ser visto como produto da imaginação da Igreja
primitiva e a sua existência é negada.
Bruno Bauer nasceu em 1809, em Eisenberg, no ducado de Sachsen-Altenburg. Na
filosofia, ele esteve primeiramente associado à direita hegeliana. Como Strauss, Bauer recebeu
um forte impulso de Vatke. Entre 1835 e 1836, ele resenhou a vida de Jesus de Strauss e, em
1838, ele escreveu uma Crítica da História do Apocalipse. Quatro anos antes, Bauer tornara-se
Privat-Docent, em Berlim. Contudo, em 1839, ele mudou-se para Bonn. Sua estada ali não
durou mais que três anos. Ele foi obrigado a deixar de lecionar e retirou-se para Rixdorf, perto
de Berlim. Muito triste pela forma como saíra de Bonn, em 1843, Bauer escreveu uma obra
intitulada Cristianismo Exposto e voltou sua atenção para a história secular. Por volta de 1850,
ele retornou aos assuntos teológicos, entretanto, sem exercer qualquer influência. Em 1882
faleceu esse homem de caráter puro, modesto e altivo.
383
Segundo Schweitzer, ao abordar a investigação da história do Evangelho, Bauer
poderia optar pelo método histórico
384
ou pelo método literário
385
. Ele optou pelo método
literário. Tomando primeiro o Evangelho de João, sua tarefa era encontrar a solução literária do
problema da vida de Jesus. Nessa empreitada, Bauer foi especialmente atraído por Filo.
Portanto, em João, aluno de Filo, não se deve procurar história, mas arte. Para Bauer, o
381
Ibid., p. 164.
382
Ibid., p. 164-165.
383
Ibid., p. 167-168.
384
O método histórico toma como ponto de partida a concepção messiânica judaica e trata de responder à questão
de como a idéia profética intuitiva do Messias tornou-se uma concepção reflexiva fixa.
385
O método literário começa pelo lado oposto da questão, do fim e não do começo da história do Evangelho.
Evangelho de João é uma obra de arte. Schweitzer destaca que essa foi a primeira vez que
alguém percebeu esse fato. Dessa maneira, Bauer, um artista, mostra que a profundidade da
visão religiosa e intelectual do Quarto Evangelho é arte cristã. Porém, em Bauer, o esteta é
também um crítico.
386
De acordo com Schweitzer, em sua obra Crítica da História do Evangelho de João,
Bauer trata apenas do Quarto Evangelho. Os Sinópticos são abordados somente de forma
incidental. Bauer interrompe o curso dessa obra no começo da história da paixão. Isso porque,
nesse ponto, seria necessário introduzir os paralelos com os Sinópticos.
387
Schweitzer pontua que, tendo como referência a composição do Quarto Evangelho,
Bauer introduz uma pergunta chave: se no Evangelho de João não há uma partícula, por menor
que seja, que não tenha sido afetada pela reflexão criativa do autor, como ficará no caso dos
Sinópticos? Essa pergunta introduz a possibilidade de os Sinópticos, assim como João, terem
sido escritos com base em uma reflexão criativa de seus autores. Todavia, no lugar de uma
diferença de tipo, Bauer encontra uma diferença de grau. O seu pensamento acerca desse
assunto é desenvolvido na obra Crítica da História do Evangelho dos Sinópticos. Depois de
Strauss, Weisse e Wilke, Bauer considerava a discussão em torno da Hipótese Marcos
consolidada. Contudo, seu rumo sobre a história de Jesus ainda teria que ser determinado.
Conseqüentemente, o pensamento de Bauer tomou a seguinte direção: uma vez que a crítica
do Evangelho de João conduz ao reconhecimento que um Evangelho pode ter uma origem
puramente literária, Marcos também pode ter uma origem puramente literária.
388
Schweitzer segue ponderando que, segundo Weisse e Wilke, a Hipótese Marcos
não havia implicado nesse resultado. Ambos sustentavam que Mateus e Lucas utilizaram uma
coleção Logia”, e também deviam parte de seu material suplementar ao uso livre de uma
tradição flutuante. Entretanto, Bauer pensava que a afirmação de Papias sobre a coleção de
“Logia” poderia não ter valor. Se isso pudesse ser demonstrado pelos dados literários, Mateus e
Lucas seriam meramente expansões literárias de Marcos e, assim como ele, puras invenções
literárias. Objetivando exemplificar tal pensamento, Bauer recorre aos fenômenos das histórias
da natividade. Se essas fossem derivadas da tradição, elas não poderiam diferir tanto entre si
como ocorre. Assim, as histórias da infância não são versões literárias de uma tradição, mas
invenções literárias.
389
386
Cf. SCHWEITZER, Op.cit., p. 168-169.
387
Ibid., p. 169-170.
388
Ibid., p. 170-171.
389
Ibid., p. 171.
Schweitzer afirma que, para Bauer, o material narrativo que se encontra em Mateus
e Lucas, adicional ao de Marcos, não consiste em material tradicional oral ou escrito, porém, em
um desenvolvimento literário de certas idéias e sugestões encontradas no primeiro autor. Assim
sendo, Lucas forma o estágio de transição entre Marcos e Mateus. Agora, a Hipótese Marcos
toma a seguinte forma: o conhecimento da história do Evangelho não se apóia em qualquer
base de tradição, todavia, apenas em três obras literárias. Duas dessas não são independentes,
sendo meramente expansões da primeira. A terceira, Mateus, é também dependente da
segunda. Então, não existe uma tradição da história do Evangelho, apenas uma fonte
literária.
390
De acordo com Schweitzer, aqui Bauer lança uma segunda pergunta chave: se for
assim, quem pode assegurar que essa história do Evangelho era um assunto de
conhecimento geral antes de ser fixada por escrito, e que não tenha sido primeiramente
conhecida numa forma literária? Ele propõe que um homem teria criado de idéias gerais a
tradição histórica definida nas quais essas idéias estão incorporadas. Logo, a “Concepção
reflexiva do Messias” o foi tomada pronta do judaísmo. Esse dogma surgiu primeiramente na
comunidade cristã, ou melhor, o momento em que ela nasceu foi o mesmo em que a
comunidade cristã teve seu nascimento.
391
Portanto, Schweitzer conclui:
Enquanto no final da primeira obra de Bauer parecia que ele tomava apenas o
Evangelho de João como sendo uma criação literária, aqui o mesmo é dito do
Evangelho original. A única diferença é que encontramos uma reflexão mais
primitiva nos Sinópticos, e mais elaborada na representação dada pelo Quarto
Evangelho; o primeiro é de caráter mais prático, o último mais dogmático.
392
Apesar disso, Schweitzer ressalta que, no início de sua investigação, Bauer não diz
que o primeiro evangelista inventou a história do Evangelho e a personalidade de Jesus. Foi
somente no decorrer dessa investigação que sua opinião tornou-se mais radical. Inicialmente,
seu propósito era apenas continuar a obra de Strauss. Contudo, segundo Bauer, o conceito de
mito e lenda de Strauss é muito vago. Conseqüentemente, no lugar do mito, Bauer coloca
“reflexão”. Ele pensa que a vida que pulsa na história do Evangelho é demasiado vigorosa para
ser explicada como criada por uma lenda. Ela é “experiência” real, que não experiência de
Jesus, entretanto, da Igreja. A representação dessa experiência da Igreja na vida de uma
pessoa não é obra de várias pessoas, mas de um único autor. Para Bauer, é exatamente nesse
duplo aspecto (como composição de um homem, corporificação da experiência de muitos) que
390
Ibid., p. 171-172.
391
Ibid., p. 172-174.
a história do Evangelho deve ser encarada. Como arte religiosa, ela contém uma verdade
profunda. Assim, quando encarada desse ponto de vista, as dificuldades que se encontram na
tentativa de concebê-la como real imediatamente desaparecem.
393
Schweitzer afirma também que, de acordo com Bauer, é necessário tomar como
ponto de partida a crença na morte e ressurreição de Jesus. Tudo o mais se liga a isso como a
seu centro. Por exemplo: 1) a história da tentação incorpora uma experiência da Igreja primitiva.
Essa narrativa representa seus conflitos íntimos sob a forma de um conflito do Redentor; 2) a
missão dos doze, como ocorrência histórica, é inconcebível. Esse discurso se refere às lutas da
Igreja com o mundo e o sofrimento que ela deve suportar; 3) as parábolas apresentam
dificuldades nada menores. Elas não tornam as coisas claras, antes, têm o intuito de exercitar a
inteligência dos discípulos. Assim sendo, segundo Bauer, muitos dos discursos são meros
feixes de ditos heterogêneos. Isto é, os discursos de Jesus não avançam de um ponto para
outro pelo desenvolvimento lógico de uma idéia. Além disso, os pensamentos são meramente
enfileirados um após o outro. A única conexão deve-se a um tipo de molde convencional no
qual o discurso é fundido.
394
Para Schweitzer, aqui o método de Bauer se estanca. O motivo é apresentado em
forma de pergunta: partindo do pressuposto que Marcos é uma unidade artística, produto de
uma única mente, como explicar que, am de outras duplicações menos importantes, ele
contenha dois registros da alimentação da multidão? Essa pergunta é apresentada por
Schweitzer apenas como um recurso literário cujo objetivo é apresentar uma falha significativa
no pensamento de Bauer. De acordo com Schweitzer, para responder a essa pergunta, Bauer
conta com a ajuda de Wilke. Wilke distingue o Evangelho de Marcos de um Ur-Markus
395
e
atribui essas duplicações a uma interpolação posterior. Porém, tal distinção tem uma ria
implicação. Schweitzer a sintetiza da seguinte maneira:
Assim que Bauer admite que a unidade artística de Marcos, sobre a qual ele
deposita tanta importância, foi maculada, ele não pode manter sua posição
exceto fechando os olhos para o fato de que pode ser o caso de
incorporação de fragmentos da tradição, não de invenção de um imitador. Mas
se ele admite uma vez a presença de material tradicional, toda a sua teoria do
primeiro evangelista como criador do Evangelho cai por terra.
396
392
Ibid., p. 175.
393
Ibid., p. 175-176.
394
Ibid., p. 176-179.
395
Schweitzer mantém o termo alemão que se naturalizou na crítica sinóptica como a designação de um Evangelho
primário proposto que estaria por trás do Marcos canônico. Seria um “Proto-Marcos”.
396
SCHWEITZER, Op.cit., p. 179.
Todavia, Schweitzer diz que Bauer continua a pensar em Marcos como uma obra de
arte, na qual a interpolação nada altera. Ele faz questão de discutir, por exemplo, as passagens
em que Jesus proíbe as pessoas que curou de falar sobre sua cura. Segundo Bauer, essas
passagens não podem ser históricas, uma vez que muitas curas relatadas aconteceram na
presença de uma grande multidão. Então, essa proibição deve ser derivada do evangelista.
Bauer também afirma que o modo pelo qual Jesus torna conhecida sua messianidade é
baseado em outra teoria do evangelista original. Isso porque a ordem de Marcos não pode
fornecer nenhuma informação sobre a cronologia da vida de Jesus. Esse Evangelho não é uma
crônica. Com relação a ele, não se pode afirmar nem mesmo que haja uma lógica deliberada no
modo como as seções são conectadas. Contudo, um princípio fundamental de arranjo vem à
tona: foi apenas em Cesaréia de Filipe, no período final de sua vida, que Jesus se fez conhecer
como Messias. Ele não era anteriormente tomado como tal seja por seus discípulos ou pelo
povo. Logo, como se percebe, Bauer considera que o curso implícito dos eventos é
determinado pela arte, não pela história.
397
Schweitzer segue sua análise enfatizando a compreensão de Bauer acerca da
relação entre os milagres e a messianidade de Jesus. Para Bauer, Jesus podia ser tomado
como o Messias em conseqüência da realização de milagres. Entretanto, ele começou a
realizar milagres quando, na fé da Igreja primitiva, ele ergueu-se dentre os mortos como
Messias. Portanto, os fatos de que ele ergueu-se como Messias e que ele fez milagres são um
e o mesmo fato. Mas, a concepção e a representação de Marcos para esse assunto transportou
para o passado o desenvolvimento posterior pelo qual finalmente nasceu uma comunidade
cristã para a qual Jesus tornara-se o Messias. Conseqüentemente, o instinto artístico de Marcos
o leva a desenvolver a origem da fé gradualmente.
398
De acordo com Schweitzer, Bauer foi um pioneiro em dois sentidos. Ele foi o
primeiro a dar a prova real, por evidência interna, da prioridade de Marcos. Essa prova real foi
dada por meio da comparação entre a narrativa de Marcos e as narrativas dos demais
Sinópticos acerca da messianidade de Jesus. Segundo Bauer, o incidente em Cesaréia de
Filipe, narrado por Marcos, é o fato central da história evangélica. A partir dele é possível
agrupar e criticar as outras afirmações do Evangelho. Foi exatamente isso que ele fez. Sua
conclusão foi a seguinte: a narrativa do incidente em Cesaréia de Filipe, narrado por Marcos, é
anterior às narrativas encontradas nos demais Sinópticos acerca da messianidade de Jesus.
Por isso, ela deve ser a versão original. Bauer também foi o primeiro a descobrir a dificuldade
397
Ibid., p. 180-181.
398
Ibid., p. 181.
envolvida na concepção de milagre como prova da messianidade de Jesus. Para ele, a única
inferência a ser tirada da representação de Marcos é que milagres não estão entre as marcas
características do Messias. Foi somente mais tarde, na comunidade cristã, que essa conexão
entre milagres e messianidade foi estabelecida. Ou seja, foi apenas na Igreja primitiva que o
Jesus milagreiro se transformou em Jesus Messias. Na opinião de Schweitzer, quando Bauer
expôs a impossibilidade hisrica e literária de Jesus ser saudado pelo povo como Messias, ele
deveria ter prosseguido e concluído que Jesus, em Marcos, não fez uma entrada messiânica
em Jerusalém.
399
Caminhando para a conclusão, Schweitzer diz que foi um feito notável por parte de
Bauer ter exposto claramente as dificuldades históricas da vida de Jesus.
400
Segundo Bauer, o
quarto evangelista traiu o segredo de Marcos, qual seja, que ele também pode ser explicado por
meios puramente literários. Porém, logo no início de sua síntese da análise de Bauer,
Schweitzer se vê obrigado a abrir um grande parêntese. Nesse ponto, ele deixa claro que Bauer
odeia os teólogos e o cristianismo. Na opinião de Bauer, o cristianismo expressa uma verdade
de forma errada. Ele é uma religião que se petrificou numa forma transicional. Assim, nessa
forma petrificada, ela mantém prisioneiras todas as forças da religião. Para Bauer, a religião é a
vitória do ego auto-consciente sobre o mundo. Todavia, antes que as condições necessárias
para a religião universal estejam presentes é necessário ocorrer duas coisas: o ego perceber a
si mesmo em sua antítese com o mundo como um todo; e, assim sendo, ele não se contentar
em desempenhar o papel de mero “cavalheiro andante” no drama mundial, contudo, encarar o
mundo com independência e reserva. De acordo com Bauer, o cristianismo nasceu das idéias
de vitória sobre o mundo pela alienação do mundo. Entretanto, ele não foi a verdadeira vitória
sobre o mundo, pois permaneceu no estágio de violenta oposição ao mesmo.
401
Segundo Schweitzer, a compreensão de Bauer acerca do cristianismo afeta
completamente a sua compreensão acerca do milagre e do retrato de Jesus como traçado nos
Evangelhos. Bauer afirma que ambos são símbolos apropriados dessa falsa vitória sobre o
mundo. Para ele, o Cristo da história do Evangelho, pensado como uma figura realmente
histórica, seria uma figura perante a qual a humanidade tremeria, uma figura que só poderia
inspirar espanto e terror. Em contrapartida, o Jesus histórico, se ele realmente existiu, só
poderia ser um que reconciliou em sua própria consciência a antítese que obcecava a mente
judaica, a separação entre Deus e o homem. De acordo com Bauer, o encanto maligno do ego
399
Ibid., p. 182-183.
400
Aqui, dentre outros exemplos, Schweitzer afirma que, de acordo com Bauer, os discursos escatológicos não são
história. Eles são uma mera expansão daquelas explicações sobre os sofrimentos da Igreja, nos mesmos moldes da
narrativa da missão dos doze.
auto-alienado é quebrado no momento em que alguém prova ao senso religioso da humanidade
que o Jesus Cristo dos Evangelhos é sua criação, e deixa de existir assim que isso é
reconhecido. A formação da Igreja e o surgimento da idéia de que o Jesus dos Evangelhos é o
Messias não são duas coisas diferentes. Elas são uma e a mesma coisa, coincidem e se
sincronizam. Mas, a idéia foi apenas a concepção imaginativa da Igreja, o primeiro movimento
de sua vida e a expressão religiosa de sua experiência.
402
Schweitzer diz que Bauer vai ainda mais além. Segundo ele, a questão que tanto
agitou a mente dos homens, isto é, se Jesus foi o Cristo histórico (Messias), é respondida de
forma que tudo o que é o Cristo histórico, tudo o que é dito dele, tudo o que se sabe sobre ele,
pertence ao mundo da imaginação da comunidade cristã e nada tem a ver com qualquer
homem que pertença ao mundo real. Agora, para Bauer, o mundo está livre e maduro para uma
religião mais elevada na qual o ego superará a natureza, não pela auto-alienação, porém, por
penetrá-la e enobrecê-la. Então Schweitzer afirma:
A tarefa que Bauer se propôs no início de sua crítica da história do Evangelho,
tornou-se, antes que terminasse, em algo diferente. Quando começou, ele
pensava em salvar a honra de Jesus e restaurar Sua pessoa do estado de
inanição à qual os apologistas a reduziram, e esperava, ao fornecer uma prova
de que o Jesus histórico não poderia ter sido o Jesus Cristo dos Evangelhos,
trazê-Lo para uma relação viva com a história. Esta tarefa, no entanto, foi
relegada em favor de uma ainda maior de libertar o mundo do ídolo judaico-
romano, Jesus o Messias, e ao realizar esta empreitada a tese de que Jesus
Cristo é um produto da imaginação da Igreja primitiva é formulada de tal forma
que a existência de um Jesus histórico torna-se problemática, ou, de qualquer
forma, até indiferente.
403
Schweitzer continua:
No final do seu estudo dos Evangelhos, Bauer está inclinado a fazer com que a
questão da eventual existência de um Jesus histórico dependa do resultado de
uma próxima investigação que ele se propõe fazer nas epístolas paulinas. Foi
apenas dez anos mais tarde (1850-1851) que ele completou esta tarefa, e
aplicou o resultado em sua nova edição da “Crítica da História dos Evangelhos.
O resultado é negativo: nunca houve qualquer Jesus histórico. (...) A
transferência das epístolas para o segundo século é efetuada de forma tão
arbitrária que refuta a si mesma. Entretanto, esta obra afirma ser apenas um
estudo preliminar para uma maior na qual a nova teoria seria completamente
elaborada. Esta não surgiu antes de 1877; intitulava-se “Cristo e os Césares;
Como o Cristianismo Originou-se da Civilização Greco-Romana”. A base
histórica para esta teoria, que ele aqui oferece, é ainda mais insatisfatória do
que a sugerida na obra preliminar sobre as epístolas paulinas. Não mais a
menor pretensão de seguir um método histórico, a coisa toda se desenvolve
como um retrato imaginário da vida de Sêneca.
404
401
Ibid., p. 185-186.
402
Ibid., p. 186-189.
403
Ibid., p. 189.
404
Ibid., p. 190.
Schweitzer diz que, de acordo com Bauer, o Evangelho nada mais é do que o
estoicismo desenvolvido mais iias neoplatônicas. Uma vez que tudo isso foi anexado ao
judaísmo, o resultado é o cristianismo. Todavia, Schweitzer pondera que, no surgimento dessa
última obra, Bauer já tinha sido esquecido pela maioria dos teólogos.
Schweitzer conclui sua análise de Bruno Bauer e da primeira vida de Jesus cética
com quatro considerações: 1) apesar de suas duas infelicidades (aparecer em uma época tão
próxima a Strauss e derrubar com sua poderosa crítica a hipótese que atribuía valor histórico
real a Marcos), foi um equívoco enterrar junto com o Bauer do segundo período também o
Bauer do primeiro período; 2) o único crítico com quem Bauer pode ser comparado é Reimarus,
pois ambos exerceram uma influência terrificante e incapacitante sobre o seu tempo
405
; 3) a
Crítica da História do Evangelho de Bauer vale uma dúzia de vidas de Jesus, pois ela é a mais
hábil e mais completa coleção das dificuldades da vida de Jesus que se pode encontrar
406
; 4)
Além de Bauer, ninguém mais tinha percebido com a mesma perfeição a idéia de que o
cristianismo primitivo e o cristianismo inicial não eram meramente o resultado direto da
pregação de Jesus, nem meramente um ensinamento posto em prática. Contudo, eles eram
muito mais, já que à experiência da qual Jesus foi objeto juntava-se a experiência da “alma do
mundo” numa época em que seu corpo, a humanidade sob o Império Romano, estava nas
garras da morte. Com essas quatro considerações Schweitzer conclui mais uma parte de sua
obra.
407
4.6. As considerações de Schweitzer sobre as outras imaginativas vidas de
Jesus
Depois de analisar Bruno Bauer e a primeira vida de Jesus tica, Schweitzer passa
a analisar outras imaginativas vidas de Jesus. Essas vidas de Jesus combinam crítica com
ficção. Embora Schweitzer comece pela obra de Hennell, sua análise se concentra nas obras
de três pessoas: Gfrörer, Ghillany e Noack. Ela está estruturada da seguinte maneira: um breve
405
Schweitzer afirma que ninguém foi o consciente como Reimarus e Bauer da extrema complexidade do problema
oferecido pela vida de Jesus. Em vista desta complexidade, eles sentiram-se compelidos a buscar uma solução fora
dos limites da história verificável. Reimarus encontrou a base da história de Jesus numa impostura delicada por parte
dos discípulos. Bauer encontrou a base da história de Jesus postulando um evangelista original que inventou a
história.
406
Schweitzer diz que os contemporâneos de Bauer não podiam suspeitar que a anormalidade de suas soluções era
devida à intensidade com que ele percebia os problemas como problemas, e que ele tinha se tornado cego para a
história por examiná-la muito microscopicamente.
407
Cf. SCHWEITZER, Op.cit., p. 192-193.
comentário sobre a obra de Hennell; considerações sobre a obra de Gfrörer; considerações
sobre a obra de Ghillany; e considerações sobre a obra de Noack.
Charles Christian Hennell era um comerciante em Londres. Entretanto, por dois
anos, ele retirou-se de suas atividades comerciais com o intuito de realizar os estudos
preparatórios para sua vida de Jesus, intitulada Uma Pesquisa Sobre a Origem do Cristianismo.
Segundo Schweitzer, essa obra de Hennell não é nada mais do que a História não Miraculosa
do Grande Profeta de Naza, de Venturini, enfeitada com uma fantástica parafernália de
conhecimento. Schweitzer afirma que as Importantes Revelações Sobre a Forma da Morte de
Jesus e as Revelações Históricas Sobre as Reais Circunstâncias do Nascimento e da
Juventude de Jesus também são “transportadas” sem grande habilidade daquele clássico
romance de Venturini. Mas isso não impediu que elas causassem alguma sensação quando
surgiram. O Jesus de Hennell foi o filho de um membro da Ordem dos Essênios. Enquanto
criança, ele foi observado pela Ordem e preparado para sua futura missão. Logo, ele entrou
para seu ministério público como ferramenta dos Essênios, que após sua crucificação retiraram-
no da cruz e o ressuscitaram.
408
Ainda destacando a dependência de Hennell em relação a Venturini, Schweitzer diz:
Estas Revelações” preservaram apenas as características mais externas da
representação de Venturini. Sua Vida de Jesus era mais do que um mero
romance, era uma solução imaginativa para o problema que ele tinha percebido
intuitivamente. Ela pode ser encarada como precursora da crítica racionalista.
Os problemas que Venturini percebeu intuitivamente não foram solucionados
nem pelos racionalistas, por Strauss ou por Weisse.
409
Antes de começar sua análise das obras de Gfrörer, Ghillany e Noack, Schweitzer
faz um significativo comentário. Ele afirma:
Coerentemente, diversas vidas imaginárias de Jesus iniciaram uma nova era no
estudo do assunto, pois elas aventuraram-se a compreender Jesus com base
em idéias puramente judaicas, em alguns casos afirmando-as, em outros
opondo-se a elas em favor de uma concepção mais espiritual. Em Gfrörer,
Richard Von der Alm [Ghillany] e Noack começam as lutas preparando para a
futura batalha sobre a Escatologia.
410
O primeiro grande nome que Schweitzer analisa é Gfrörer. August Friedrich Gfrörer
nasceu em 1803, em Calw. Ele foi Repetent no seminário teológico de Tübingen na mesma
época em que Strauss estudava. Em 1830, após um ano como vigário na principal igreja de
Stuttgart, Gfrörer desistiu da profissão clerical para dedicar-se completamente aos estudos
408
Ibid., p. 195-196.
409
Ibid., p. 196.
410
Ibid., p. 196-197.
religiosos. Nesse mesmo tempo, ele tamm abandonou o cristianismo. Com isso, ele
objetivava enfrentar sua tarefa de um modo puramente histórico, visando mostrar quanto do
cristianismo é a criação de uma Personalidade excepcional e o quanto pertencia ao tempo em
que surgiu. No entanto, em 1853, Gfrörer se converteu à Igreja Católico-Romana. Em 1861, ele
faleceu.
411
Schweitzer deixa claro que, no primeiro volume de sua História Crítica do
Cristianismo Primitivo, o plano de Gfrörer era responder às seguintes perguntas: Que fim Jesus
tinha em mente? Por que ele morreu? Que modificações sua obra sofreu nas mãos dos
apóstolos? No segundo volume, intitulado A lenda sagrada, ele não segue o mesmo plano. Isso
porque as obras de Strauss e Weisse tornavam necessário um novo método de tratamento.
Portanto, a obra é quase uma polêmica contra Weisse por sua falta de senso histórico e termina
postulando idéias que Gfrörer ainda não tinha pensado no primeiro volume.
412
Schweitzer diz que, para Gfrer, a tradição sobre Jesus passou de boca em boca
por mais de uma geração e absorveu muito de lendário. Conseqüentemente, como mostra seu
prefácio, Lucas foi o primeiro que contestou esse processo e decidiu separar o que era genuíno
do que não era. Isso fez com que ele se tornasse o mais confiável dos evangelistas. Mais ainda,
ele mantém-se próximo a suas fontes e nada adiciona de si próprio. Mateus, por sua vez,
escrevendo em data posterior, usou fontes de menor valor e inventou material próprio. Uma
outra evidência da data tardia de Mateus é a sua tendência de transportar o Antigo Testamento
para o Novo.
413
De acordo com Gfrörer, afirma Schweitzer, Lucas e Mateus foram escritos muito
depois da destruição de Jerusalém. Ele diz que no segundo século muitos cristãos tiveram
dúvidas sobre a veracidade dos Sinópticos. O próprio Marcos é a primeira testemunha dessas
dúvidas dentro da comunidade cristã primitiva sobre a credibilidade de seus predecessores.
Como Lucas e Mateus ainda não eram livros sagrados, ele desejava reconciliar suas
inconsistências e, ao mesmo tempo, produzir um Evangelho composto de materiais cuja
autenticidade podia se defendida até mesmo contra os duvidosos. Assim sendo, ele omite a
maioria dos discursos, ignora a história da natividade e retém dos milagres apenas aqueles que
estão mais profundamente imersos na tradição. Segundo Gfrörer, o Evangelho de Marcos,
provavelmente, foi produzido entre 110 e 120. Sua conclusão “não genuína” foi uma adição
posterior, porém, feita pelo próprio evangelista.
414
411
Ibid., p. 197-201.
412
Ibid., p. 197-198.
413
Ibid., p. 198.
414
Ibid., p. 198-199.
Schweitzer também ressalta que, para Gfrörer, todas as objeções contra a
legitimidade do Quarto Evangelho caem. Gfrörer reconhece que, em comparação com os outros
Evangelhos, o de João não oferece um relato historicamente acurado dos discursos de Jesus.
Ele simplesmente o apresenta como o Cristo-Logos e o faz falar neste caráter, o que Jesus
certamente não fez. Todavia, de acordo com Gfrörer, isso não importa, pois as condições
históricas são corretamente representadas. Jerusalém era a cena da maior parte do ministério e
os cinco milagres joaninos devem ser mantidos.
415
Encerrando suas considerações sobre Gfrörer, Schweitzer pontua que, segundo ele,
chegaram o fim da era da negação e o início da era da afirmação. Essa afirmação deveria ter
como ponto de partida a chamada Matemática Histórica. Tal “matemática” consiste em
desenvolver todo argumento a partir de um único postulado. Então, aplicando esse método,
Gfrörer conclui que a messianidade de Jesus era espiritual, não política. Em certo sentido, ele
declarou-se o Messias esperado, contudo, em outro sentido, ele não o era. Sua pregação
movia-se na esfera das idéias de Filo e mesmo que ele não aplicasse explicitamente a doutrina
do Logos, ela estava implícita em seu pensamento
416
. Logo, para Gfrörer, os discursos do
Quarto Evangelho têm uma verdade essencial. Ele também afirma que a Igreja Cristã nasceu
da Ordem Essênia e encerra sua obra com uma rapsódia
417
sobre a Igreja e seu
desenvolvimento para o sistema papal.
418
O segundo grande nome que Schweitzer analisa é Ghillany. Friedrich Wilhelm
Ghillany nasceu em 1807, em Erlangen. Seus primeiros estudos foram em teologia, entretanto,
sua visão racionalista compeliu-o a abandonar a profissão clerical. Em 1841, Ghillany tornou-se
bibliotecário em Nürenberg e dedicou-se a escritos controversos de caráter anti-ortodoxo. Em
1863, sob o pseudônimo de Richard von der Alm, ele publicou sua obra intitulada Cartas
Teológicas às Classes Cultas da Nação Alemã. Um ano depois, Ghillany também publicou As
Opiniões de Escritores Pagãos e Cristãos dos Primeiros Séculos Cristãos sobre Jesus Cristo.
Em 1855, ele mudou-se para Munique e, em 1876, ali faleceu.
419
Schweitzer começa suas considerações sobre Ghillany com o seguinte comentário:
Incomparavelmente melhor e mais profunda é a tentativa de escrever uma Vida
de Jesus encarnada nas “Cartas Teológicas às Classes Cultas da Nação
Alemã”. Seu autor toma os resultados de Gfrörer como seu ponto de partida,
mas em lugar de espiritualizar injustificadamente ele se aventura a conceber o
mundo do pensamento judaico no qual Jesus viveu em seu simples realismo.
415
Ibid., p. 199.
416
Para Schweitzer, Gfrörer enxerta uma quantidade de material tirado de Filo no plano de Venturini. Embora seu
primeiro volume levasse a esperar um resultado mais original e científico, isso não aconteceu.
417
Rapsódia é um trecho de uma composição poética.
418
Cf. SCHWEITZER, Op.cit., p. 199-200.
419
Ibid., p. 201.
Ele foi o primeiro a posicionar a escatologia reconhecida por Strauss e
Reimarus num cenário histórico o do plano de Venturini e a escrever uma
Vida de Jesus inteiramente governada pela idéia da escatologia.
420
No que tange à questão das fontes, Schweitzer diz que a posição de Ghillany se
aproxima da posição de Tübingen, exceto por considerar Mateus posterior a Lucas e Marcos
como sendo extraído, não desses Evangelhos, mas das fontes deles. Ainda de acordo com
Ghillany, o Evangelho de João não seria autêntico.
421
Schweitzer segue a sua análise apresentando a compreensão de Ghillany acerca do
culto cristão e do próprio cristianismo. Segundo ele, o culto oferecido a Jesus pela comunidade
cristã após a sua morte é derivado de um judaísmo influenciado por religiões orientais. Um
exemplo disso é a influência do culto à Mitra. Tanto no culto à Mitra quanto no culto cristão
encontram-se o nascimento virginal, a estrela, os homens sábios, a cruz e a ressurreição. Para
Ghillany, todo o mundo oriental naquele tempo estava impregnado de idéias gnósticas, que se
centravam na revelação do divino no humano. Portanto, ele considera que o próprio
cristianismo é uma espécie de gnose. De qualquer forma, a concepção metafísica da filiação
divina de Jesus é de origem secundária.
422
Quanto à relação entre Jesus e João Batista, Ghillany afirma João Batista
provavelmente veio de entre os Essênios, considerava-se Elias e pregava um reino
espiritualizado no céu. Conseqüentemente, em sua origem, os objetivos de Jesus eram
semelhantes aos de João. Seu ensinamento era rabínico, ele considerava-se o Messias e
esperava uma breve chegada do Reino. Assim, a chave hermenêutica desse ensinamento de
Jesus é a idéia do arrependimento.
423
No que diz respeito à escatologia, Ghillany diz que o Judaísmo não era estranho à
idéia de um Messias sofredor. Porém, esse Messias sofredor não era identificado com o
Messias celestial de Daniel. De acordo com Ghillany, os rabinos distinguiam dois Messias: um
de Israel e um de Judá. Primeiro, o Messias do Reino de Israel, denominado Filho de José, viria
da Galiléia sofrer a morte nas os dos gentios para expiar os pecados da nação hebraica.
Somente depois, o Messias predito por Daniel, o filho de Davi, da tribo de Judá, surgiria em
glória sobre as nuvens do céu. Assim sendo, a expectativa messiânica, dirigida para eventos
sobrenaturais, não tinha caráter político. O Messias esperaria que todas as coisas fossem
providenciadas pela intervenção divina. Nesse ponto, segundo Schweitzer, Ghillany percebe
420
Ibid., p. 201.
421
Ibid., p. 202.
422
Ibid., p. 202.
423
Ibid., p. 202-203.
claramente o caráter da escatologia de Jesus. Ninguém antes dele havia percebido com tanta
clareza.
424
Então, é à luz dessa compreensão escatológica que Ghillany dá forma à sua vida de
Jesus. Para ele, Jesus foi membro de uma seita stica ligada aos Essênios, cuja cabeça era
José de Arimatéia. Esse partido desejava provocar a vinda do Reino dos Céus por meios
místicos. Logo, no pregador de um Reino dos Céus espiritual (o mesmo que estava resolvido a
morrer por sua causa), o partido descobriu, como Messias, o Filho de José, e reconheceu que
sua morte era necessária para tornar possível a vinda do Messias celestial previsto por Daniel.
Todavia, uma dúvida permanecia na mente de Jesus: caso o povo se arrependesse, Deus
ficaria satisfeito e entenderia que a condição necessária para a vinda do Reino dos Céus fora
realizada, ou seria necessária uma expiação pelo sangue oferecida pela morte do Messias,
Filho de José? Em meio a essa incerteza, explicaram-lhe que quando chegasse o ano calculado
da graça, ele deveria subir à Jerusalém e tentar levar os judeus a um entusiasmo messiânico. O
objetivo era compelir Deus a vir em sua ajuda com suas hostes celestiais. Portanto, da ação de
Deus seria possível descobrir se a pregação do arrependimento e o batismo seriam suficientes
para expiação pelo povo perante Deus ou não. Sendo assim, se Deus não aparecesse, uma
expiação mais profunda deveria ser feita. Jesus deveria pagar o preço da morte pelos pecados
dos judeus. Contudo, no terceiro dia voltaria de entre os mortos, ascenderia ao trono de Deus e
de lá viria novamente para fundar o reino dos céus.
425
De acordo com Ghillany, somente perto do fim de sua vida Jesus revelou aos seus
discípulos a possibilidade de que o Filho do Homem poderia ter que sofrer e morrer antes que
pudesse fundar o Reino Messiânico. Conseqüentemente, com essa possibilidade à sua frente,
Jesus foi à Jerusalém e aguardou a intervenção divina. Enquanto isso, José de Arimatéia fez
a sua parte para assegurar sua condenação no Sinédrio. Jesus deveria morrer no dia da
Páscoa. Um pouco antes, juntamente com seus discípulos, ele fez uma celebração do amor
segundo o costume Essênio (não foi uma ceia pascal). Assim, ele associou pensamentos de
sua morte com o partir do pão e o derramamento do vinho.
426
Ainda segundo Ghillany, quando o grupo armado veio para prendê-lo, Jesus rendeu-
se a seu destino. Entretanto, mesmo na cruz, ele parece ter continuado a esperar pela
intervenção divina que não aconteceu. Assim sendo, José de Arimatéia providenciou seu
enterro. Para Ghillany, a crença em sua ressurreição apóia-se nas visões dos discípulos. Tais
424
Ibid., p. 203.
425
Ibid., p. 204.
426
Ibid., p. 204-205.
visões são explicadas por seu intenso desejo pela Parusia, da qual Jesus havia feito a
promessa.
427
Ghillany afirma que a confissão de fé da comunidade cristã primitiva era simples:
Jesus, o Messias, havia chegado, não como um conquistador temporal, mas como o Filho do
Homem previsto por Daniel, e morreu pelos pecados do povo. Em outros aspectos, esses
primeiros cristãos eram estritamente judeus, guardavam a Lei e estavam constantemente no
Templo. Porém, apenas a comunhão dos bens e a refeição fraternal eram de caráter essênio.
Então, para Ghillany, o cristianismo da comunidade original era uma mistura de zelotismo e
misticismo. Ele não incluía nenhum elemento absolutamente novo.
428
De acordo com Schweitzer, do plano de Venturini, apenas a “parte mística” foi
mantida por Ghillany. A parte racionalista foi transformada em uma concepção histórica.
Schweitzer diz:
Assim, nesta Vida de Jesus, a força do motivo é tomada inteiramente de fontes
históricas, e a falta de um arranjo automático para a partida é um mero
anacronismo. Elimine-se o papel supérfluo de José de Arimatéia, e a distinção
entre os dois Messias, que não está clara mesmo nos Rabis, e substitua pela
simples hipótese de que Jesus, no curso de sua vocação messiânica, quando
Ele pensa que o tempo para a vinda Reino chegou, segue livremente para
Jerusalém, e, como foi, compele o poder secular a condená-lo à morte, para
com esse ato de expiação ganhar para o mundo a vinda imediata do Reino, e
para Si mesmo a glória do Filho do Homem – faça estas alterações, e terá uma
vida de Jesus na qual a força motriz é uma força puramente histórica.
429
Schweitzer ainda faz algumas considerações sobre a obra de Ghillany: 1) a solução
que ele dá para os problemas que envolvem a vida de Jesus e o surgimento da Igreja é simples
e fundamentada em intuição histórica e experimento de introduzir a vida de Jesus no mundo do
pensamento escatológico judaico; 2) em seus dias, ninguém suspeitava que na esquecida obra
de Reimarus havia uma perigosa descoberta histórica; 3) ele realizou um destacado serviço,
pois sua negação é radical. Antes de passar para o terceiro grande nome, Schweitzer comenta:
A nova Igreja, que deveria ser fundada sobre esta superação histórica do
cristianismo histórico, deveria combinar “apenas o que fosse coerente com a
razão no judaísmo e no cristianismo”. Do judaísmo tomaria a crença em um
Deus, perfeito e espiritual; do cristianismo a exigência de um amor fraternal
para com todas as pessoas. Por outro lado, ela deveria eliminar o que fosse
contrário à razão em cada uma: do judaísmo o sistema ritual e os sacrifícios; do
cristianismo a deificação de Jesus e a doutrina da redenção pelo sangue.
430
427
Ibid., p. 205.
428
Ibid., p. 205-206.
429
Ibid., p. 206.
430
Ibid., p. 207-208.
O terceiro grande nome que Schweitzer analisa é Noack. Ludwig Noack nasceu em
1819, de uma família clerical em Hesse. Em 1842, tornou-se pastor assistente e professor de
religião em Worms, no palatinado de Hesse. Todavia, em 1844, Noack foi retirado desse cargo.
Cinco anos depois, tornou-se mestre assistente em filosofia na Universidade de Giessen. Em
1855, foi promovido a professor extraordinário. com 51 anos, em 1870, foi nomeado
assistente na biblioteca universitária e recebeu o título de professor ordinário. Em 1885, Noack
faleceu. Ele levou uma vida que pode ser descrita como um constante martírio. Foi um escritor
produtivo, sempre engenhoso e possuidor de amplo conhecimento. Apesar de crítico, era muito
poeta. Em 1870-1871, Noack publicou sua obra mais importante, intitulada Das Margens do
Jordão ao Gólgota; Quatro Livros Sobre o Evangelho e os Evangelhos. Contudo, tal obra
passou desapercebida. Logo, em 1876, ele lançou uma edição revisada sob o título A História
de Jesus, com Base na Livre Investigação Histórica Acerca do Evangelho e dos Evangelhos.
Semelhantemente à primeira, essa também não fez sucesso.
431
Schweitzer enfatiza que, até aquele momento, a vida de Jesus de Noack é a única
escrita consistentemente do ponto de vista joanino, do início ao fim. Isso porque, de acordo com
Noack, Strauss não havia demonstrado, conclusivamente, a incompatibilidade absoluta entre os
Sinópticos e o Quarto Evangelho. Quanto à inconsistência do Evangelho de João, ele afirma
que a mesma não se deve a um único autor. Ela é resultado de um longo processo de redação
no qual agiram várias tendências divergentes. Portanto, a única alternativa é colocá-lo no início.
Nele se deve procurar o Evangelho original do qual o processo de transformação se iniciou.
Noack ainda levanta um outro problema: ou Jesus foi o Messias judaico dos Sipticos, ou um
filho de Deus no sentido espiritual, grego, cuja auto-consciência deveria ser interpretada por
meio da doutrina do Logos. Uma coisa é certa: Ele não poderia ter sido ambos ao mesmo
tempo. Conseqüentemente, segundo Noack, também nesse aspecto, o Evangelho primitivo que
se pode recuperar de João tem a vantagem. Foi só mais tarde que esse “Filho de Deus” tornou-
se o Messias judaico.
432
Para Noack, o caminho que conduz ao escrito joanino primitivo passa pelo
cancelamento, no Quarto Evangelho, de toda a doutrina judaica e de todos os milagres. Assim,
esse escrito joanino primitivo foi escrito no ano 60, por Judas, o discípulo amado. Seu objetivo é
apresentar um trecho da história de Jesus, uma representação de sua atitude de mente e
espírito. Assim sendo, os eventos de caráter extraordinário estão ausentes. Por exemplo: a
alimentação da multidão foi efetuada por meios naturais e a cura do aleijado no poço de
431
Ibid., p. 208-209.
432
Ibid., p. 209-210.
Betesda foi o desmascaramento de um farsante. De acordo com Noack, dez anos mais tarde
surgiu a forma original de Lucas. Essa forma original de Lucas pode ser reconstruída do que é
conhecido como o Lucas de Marcion. Esse evangelista está sob influência paulina e escreve
com propósito apologético. Entretanto, essa forma original de Lucas nada sabia acerca da
jornada de Jesus à Jerusalém para morrer. Então, ao tentar fazer a topografia do Quarto
Evangelho harmonizar-se com os Sinópticos, Noack conclui que o Cristo joanino trabalhou na
Galiléia, não na Judéia, e que uma reconciliação do Evangelho de João com os Sinópticos
pode ser feita transferindo-se algumas localidades joaninas para o norte.
433
Segundo Noack, por cinqüenta anos, Judas (autor do escrito joanino primitivo) e
Lucas (autor da forma original de Lucas), apesar de sua pobreza de detalhes, foram suficientes
para as necessidades dos cristãos. Depois desse período, a forma original de Lucas tornou-se o
ponto de partida para o estágio seguinte de desenvolvimento. Logo, surgiu o Evangelho de
Marcos. Marcos não era um nativo da Palestina, mas um homem de origem romana vivendo em
Decápolis, que não tinha o menor conhecimento das localidades em que se passou a vida de
Jesus. Ao compor seu Evangelho, ele fez uso, além de Lucas, de uma fonte tradicional que
encontrara em Decápolis. Marcos deliberadamente omitiu as freqüentes viagens a Jerusalém,
que ainda eram encontradas no Lucas original, e inseriu no lugar a viagem de Jesus para sua
morte.
434
Quanto ao Evangelho de Mateus, Noack diz que ele surgiu em cerca de 135. Nele,
lenda e ficção crescem sem controle. Além disso, parábolas e ditos judaicos são colocados na
boca de Jesus, enquanto ele nada tinha em comum com o mundo das idéias judaicas. Para
Noack, mais ou menos na metade do segundo século, os originais de João e Lucas sofreram
edição. Portanto, a redação do Evangelho do Logos foi completada com a adição do vigésimo
primeiro capítulo e, provavelmente, a última redação do Evangelho de Lucas foi feita por Justino
Mártir, logo após completar seu “Diálogo com Trifo”. Isso quer dizer que, somente em sua forma
final, cheia de contradições, os Evangelhos de João e Lucas são os últimos. Schweitzer afirma
que as conclusões de Noack são arbitrárias e que a sua proposta é, na verdade, um resgate da
velha tentativa de harmonizar o Evangelho de João como os Sinóticos.
435
De acordo com Noack, a vida pública de Jesus durou de inícios do ano 35 até o 14
de Nisan de 37. Ele considera tudo o que era messiânico na consciência Jesus secundário. Seu
pensamento foi guiado por idéias gregas sobre filhos de Deus, pois tais idéias eram comuns no
solo da Galiléia. Uma vez que Jesus nasceu fora dos laços do matrimônio, seu temperamento
433
Ibid., p. 210-212.
434
Ibid., p. 212.
era pré-disposto ao êxtase. Conseqüentemente, foi o entusiasmo extático que o levou às
inebriantes alturas da união espiritual com o Pai no céu. Em pensamento, Jesus projetou-se
para além de seu nascimento terreno e concluiu que seu ego existia antes do corpo terreno.
Por fim, a decisão tomada por Jesus de prestar um serviço a Deus, oferecendo-se a si mesmo,
foi marcada pela ambição.
436
Schweitzer termina sua análise das outras imaginativas vidas de
Jesus de maneira abrupta. Ele não amarra suas idéias, apenas termina.
4.7. As considerações de Schweitzer sobre Renan
Depois de analisar as imaginativas vidas de Jesus, Schweitzer passa a analisar
Renan. A obra de Renan é a primeira vida de Jesus para o mundo católico e teve grande
aceitação inclusive no Brasil. Ela foi escrita em francês e, de certa forma, seguindo Strauss. Em
sua Vida de Jesus Renan deixa transparecer um tom sentimentalista e traços de um novelista
imaginativo. No entanto, em um único livro, ele ofereceu ao mundo latino o resultado de todo o
processo da crítica alemã. Mais do que isso, sua obra foi responsável por colocar o problema
que até então ocupava apenas os teólogos perante todo o mundo culto.
Ernest Renan nasceu em 1823, em Tréguier, na Bretanha. Visando o sacerdócio,
ele entrou para o seminário de St. Sulpice, em Paris. Porém, em conseqüência da leitura da
teologia crítica alemã, Renan começou a duvidar da verdade do cristianismo e de sua história.
Em 1845, ele deixou o seminário e começou a trabalhar como professor particular para se
sustentar. Quatro anos depois, Renan recebeu uma bolsa do governo que possibilitou uma
viagem à Itália para prosseguir seus estudos. Em 1856, ele tornou-se membro da Académie des
Inscriptions, em 1860, recebeu de Napoleão III os meios para fazer uma viagem à Fenícia e
Síria, e, em 1862, após seu retorno, conseguiu a cátedra de línguas semíticas no Collège de
France. Todavia, a indignação generalizada devido à sua Vida de Jesus, que saiu no ano
seguinte (1863), forçou o governo a removê-lo do cargo. Depois de recusar um cargo de
bibliotecário na Biblioteca Imperial, Renan viveu afastado até que a república de 1871 restaurou
sua cátedra. Tanto na política quanto na religião sua posição era indefinida. No fundo, ele era
um cético. Em 1892, Renan faleceu.
437
Schweitzer destaca que Renan planejou sua Vida de Jesus para formar parte de um
registro completo da história e do dogma da Igreja primitiva. Seu propósito era puramente
histórico. Assim, com base na história, ele planejou e conseguiu produzir um novo sistema de
dogma. Contudo, o sentido estético pela natureza que deu origem a essa vida de Jesus não era
435
Ibid., p. 213.
436
Ibid., p. 213-216.
puro e muito menos profundo. Além disso, Renan aceitou muitas coisas sem o mínimo
questionamento. Conforme Schweitzer:
Dificilmente haverá outra obra sobre este assunto com tão abundantes lapsos
de gosto e do tipo mais deprimente como a Vie de Jésus de Renan. É arte
cristã no pior sentido do termo – a arte da imagem de cera. (...) Ainda assim, há
algo de mágico sobre ela. Ela ofende e atrai. Ela nunca será realmente
esquecida, nem é provável que seja superada em sua própria linha.
438
Renan começa sua Vida de Jesus com um ensaio sobre as fontes. Em tal ensaio,
ele informa seus leitores sobre a crítica de Strauss, de Bauer, de Reuss e de Colani. Também,
de forma rápida e objetiva, ele indica a relação de João com os Sinópticos. Como o dilema fica
claro, um ou outro caminho deve ser escolhido. Embora Renan diga que os discursos do Quarto
Evangelho não sejam autênticos, ele deve, de alguma forma, remontar ao discípulo amado de
Jesus. João o escreveu como um homem de idade. Após a leitura dos demais Evangelhos,
duas coisas o incomodaram: em primeiro lugar, algumas inexatidões encontradas; em segundo
lugar, o pouco espaço que recebeu dentro da história. Assim sendo, enquanto escreve, a sua
memória alterna bons e maus momentos. Agora, ele vivia num mundo diferente. Além disso, ele
havia se adaptado ao ambiente sincrético, filosófico e gnóstico de Éfeso. Então, o mundo dos
pensamentos de Jesus tomou outra forma para ele. Apesar de tudo isso, João continua sendo o
melhor biógrafo.
439
No que se refere à questão do milagre, Renan fala como historiador. Ele não diz que
o milagre seja impossível, apenas afirma que jamais houve um milagre satisfatoriamente
autenticado. Logo, Schweitzer segue fazendo as seguintes considerações:
Em vista do método de tratamento adotado por Renan não pode haver,
evidentemente, qualquer idéia de um plano histórico. Ele apresenta cada fala no
lugar onde lhe parece mais apropriado. Nenhuma é deixada de lado, mas
nenhuma aparece em sua colocação histórica. Ele puxa eventos individuais
para lá e para da forma mais arbitrária. (...) Certas cenas são transpostas do
último período para o primeiro, porque não são melancólicas o bastante para o
período final. Outras ainda servem de base para generalizações injustificadas.
(...) Passagens de pouca importância são às vezes elaboradamente descritas
por Renan enquanto outras mais importantes mal são abordadas. (...) Desta
forma é possível inserir algum milagre sem dar nenhuma explicação sobre
ele.
440
Segundo Schweitzer, a Vida de Jesus de Renan se divide em prelúdio, primeiro ato,
segundo ato, terceiro ato e epílogo. Portanto, a história da ascensão do cristianismo é descrita
437
Ibid., p. 217.
438
Ibid., p. 219.
439
Ibid., p. 219-220.
440
Ibid., p. 221.
como uma peça pastoral. No prelúdio, Renan diz que Jesus vivia na Galiléia antes de se
encontrar com João Batista. Na época desse encontro, ambos eram jovens e Jesus tornou-se
imitador do Batista. Entretanto, esse último logo sai de cena.
441
O primeiro ato começa com o retorno à Galiléia. Ao retornar, Jesus voltou a ser ele
mesmo. Do Batista, restara apenas a arte da pregação e a capacidade de influenciar as
massas. Conseqüentemente, desse momento em diante, ele pregou com mais força e ganhou
grande influência sobre as pessoas. Por um ano, Jesus pregou sobre o Reino do Céu, homens
e mulheres tornaram-se seus seguidores e constantemente se referiam a ele como o Messias.
Durante esse período, três ou quatro mulheres devotas da região disputavam entre si o prazer
de ouvir seus ensinamentos e cuidar do seu conforto. A mais devota entre elas era Maria
Madalena, cuja mente atormentada havia sido curada pela influência da pura e graciosa beleza
do jovem rabi. Assim, Jesus cavalgou em sua mula de vila em vila pregando a teologia do amor.
Por onde quer que ele fosse, as pessoas faziam festas. Mas, quando sobe para a Páscoa no
final desse primeiro ano, ele entra em conflito com os rabis da capital. Assim sendo, quando
retornou à Galiléia, Jesus havia abandonado totalmente suas crenças judaicas e um ardor
revolucionário brilhava em seu coração.
442
O segundo ato começa com essa mudança: o cativante moralista tornara-se um
revolucionário transcendental. Até o momento, Jesus pensava em causar o triunfo do Reino de
Deus por meios naturais, ensinando e influenciando as pessoas. Agora, a escatologia judaica
tornava-se proeminente. Na busca de sua causa, ele torna-se um fazedor de milagres. Agora,
porém, Jesus se via obrigado a assumir a sério o papel que antes ele tomava, pode-se dizer,
como brincadeira. Então, contra a sua vontade, ele é compelido a fundar sua obra sobre o
milagre. Nisso, ele contava com a ajuda de alguns amigos. Foi exatamente nessa linha que
Jesus desempenhou seu ministério por dezoito meses. Da Páscoa de 31 até a Festa dos
Tabernáculos de 32. Seu discurso toma uma certa dureza de tom e sua pregação do Reino se
alinha com os escritos apocalípticos. Ao mesmo tempo em que parece apostar tudo num
cumprimento sobrenatural de suas esperanças, ele produz a base de uma Igreja permanente,
nomeando doze apóstolos e instituindo a refeição da comunhão. No fim desse período, Jesus
tinha lançado fora todas as ambições terrenas. Uma estranha busca por perseguição e martírio
tomou conta dele. A idéia da morte se tornou familiar pela consciência de que ele havia entrado
por um caminho no qual seria impossível sustentar seu papel por muito tempo. Logo, ele segue
441
Ibid., p. 222.
442
Ibid., p. 222-223.
para Jerusalém. Externamente, um herói, por dentro, em completo desânimo por haver se
afastado de seu verdadeiro caminho.
443
O terceiro ato apresenta os últimos acontecimentos da vida de Jesus. Por ciúme de
João, Judas se torna o traidor. Quanto a Jesus, ele teve que vencer sua hora de trevas no
Getsêmane e, não muito mais tarde, já está morto. Agora resta o epílogo e esse mal é
ouvido: Jesus nunca terá um rival. Sua religião se renovará sempre e sempre; sua história
causará intermináveis lágrimas; seus sofrimentos amolecerão os corações dos melhores. Cada
século consecutivo proclamará que entre os filhos dos homens nunca houve um maior que
Jesus. Dessa maneira termina a Vida de Jesus de Renan. O livro teve oito edições em três
meses. Paralelamente, os escritos dos que a ele se opuseram tiveram igual sucesso.
444
Schweitzer conclui sua análise de Renan com as seguintes considerações: 1) por
falta de consciência, Renan não foi escrupuloso onde deveria ter sido; 2) no livro todo, do início
ao fim, uma espécie de insinceridade; 3) Renan declara apresentar o Cristo do Quarto
Evangelho, todavia, não acredita na autenticidade ou nos milagres desse Evangelho; 4) embora
ele declare escrever uma obra científica, está sempre pensando no grande público e como
interessá-lo; 5) ele fundiu duas obras de caráter distinto, uma científica e outra popular; 6) a
obra de Renan sempre manterá certo interesse, tanto para franceses quanto para alemães; 7) a
fraqueza dessa obra se encontra no fato que ela foi escrita por alguém para quem o Novo
Testamento era extremamente estranho. Com essas sete considerações Schweitzer conclui sua
análise de Renan.
4.8. As considerações de Schweitzer sobre as vidas “liberais” de Jesus
Depois de analisar Renan, Schweitzer passa a analisar as vidas “liberais” de Jesus.
Essa análise marca o fim do período pós-Strauss. As vidas “liberais” de Jesus têm uma visão
restrita, possuem uma atordoadora originalidade, são auto-contraditórias e apresentam a
terrível ironia no pensamento de Jesus. Além disso, elas acreditam que Marcos pretende
apresentar uma vio definida do curso do desenvolvimento do ministério público de Jesus e
preparam o caminho para uma visão histórica mais profunda. Entre os principais nomes dessa
última etapa, Schweitzer destaca Strauss, Schenkel, Weizsäcker, Holzmann, Keim, Hase,
Beyschlag e Weiss.
443
Ibid., p. 223-225.
444
Ibid., p. 225-226.
O primeiro nome a ser analisado por Schweitzer é Strauss. Essa análise se
concentra, principalmente, na sua nova vida de Jesus, intitulada A Vida de Jesus para o Povo
Alemão. Schweitzer inicia tecendo algumas considerações gerais sobre essa obra. Ele afirma:
Apesar de seu título, o livro não era para o povo. Ele não tinha nada de novo a
oferecer, e o que ele tinha a oferecer não estava numa forma calculada para se
tornar popular. É verdade que Strauss, assim como Renan, era um artista, mas
ele não escrevia, como um novelista imaginativo, com um olhar constante para
o efeito. Sua arte era despretensiosa, até mesmo austera, atraente para
poucos, não para a massa. (...) Até mesmo o arranjo da obra é completamente
infeliz. Na primeira parte, que leva o título “A Vida de Jesus”, ele tenta combinar
num quadro harmonioso aqueles dados históricos que têm algum direito a
serem considerados históricos; na segunda parte, ele traça a Origem e
Crescimento da História Mítica de Jesus”.
445
Schweitzer segue comparando essa segunda obra de Strauss com a primeira. Ele
diz que a primeira era diferente e mais cheia de vida. Afirma também que no segundo retrato de
Jesus falta a riqueza de sugestões do primeiro. Strauss agora tende à definição. Além disso,
nessa segunda vida de Jesus, a escrita não é mais espontânea. As idéias que Strauss está
apresentando já demonstram uma certa rigidez e tudo se transforma em razão sóbria, uma idéia
sóbria. Para um livro popular, falta-lhe a relação entre reflexão e narrativa, sem o qual o leitor
comum não consegue ligar-se à história. Para Schweitzer, a Vida de Jesus para o Povo Alemão
“é meramente uma exposição, em forma mais ou menos popular, da avaliação do autor sobre o
que havia sido feito no estudo do assunto nos trinta anos anteriores, e mostra o quanto ele
aprendeu e o quanto ele deixou de aprender”
446
.
No que diz respeito à questão dos Sinópticos, Schweitzer afirma que Strauss não
aprendeu nada. Além de considerar que a crítica dos Evangelhos se esvaiu, ele trata com
desprezo tanto os primeiros quanto os mais recentes defensores da hipótese de Marcos.
Quanto à questão joanina, Strauss sente-se compelido a expressar sua gratidão pelo trabalho
feito pela escola de Tübingen. Ele mesmo foi capaz de lidar com a questão de maneira
negativa, ou seja, demonstrando que o Quarto Evangelho não era uma fonte histórica, mas uma
invenção teológica. Contudo, eles trataram da questão de maneira positiva, isto é, dando ao
documento seu lugar correto na evolução do pensamento cristão. Portanto, Strauss discorda
apenas em um ponto: Bauer tornou o Quarto Evangelho muito completamente espiritual,
enquanto esse é o mais material de todos.
447
Nesse ponto Schweitzer diz:
445
Ibid., p. 232.
446
Ibid., p. 233.
447
Ibid., p. 233-234.
Estritamente falando, no entanto, o Strauss da segunda Vida de Jesus não tem
o direito de criticar o Quarto Evangelho por sublimar a história, pois ele mesmo
nos dá algo que nada mais é do que uma espiritualização do Jesus dos
Sinópticos. E ele o faz de forma tão arbitrária que somos compelidos a
perguntar até onde ele o faz em boa consciência. Um caso típico é a exposição
da resposta de Jesus à mensagem do Batista. “Será possível”, diz Jesus, “que
você deixe de encontrar em Mim os milagres que espera do Messias? E
diariamente eu abro os olhos dos espiritualmente cegos e os ouvidos dos
espiritualmente surdos, faço o cocho andar ereto e vigoroso, e até dou nova
vida àqueles que estão moralmente mortos. Qualquer um que compreenda o
quão maiores são estes milagres espirituais, não se ofenderá com a ausência
de milagres corpóreos; apenas aqueles que qualquer um pode receber, e que
merece, a salvação que eu trago à humanidade.”.
448
Schweitzer também afirma que o método de Strauss é frágil e que o seu grandioso
aparato para a evaporação do mítico não funciona. Strauss é puramente um crítico e tem muito
pouco de um historiador criativo. Para ele, o fato que Jesus realmente tenha vivido num mundo
de idéias judaicas e que tomava a si mesmo como o Messias no sentido judaico é uma
impossibilidade. Conseqüentemente, nessa segunda vida de Jesus de Strauss a visão
escatológica é deixada de lado.
449
Do ponto de vista da ciência teológica, Schweitzer pontua que a Vida de Jesus para
o Povo Alemão de Strauss evidencia uma calmaria. Ou seja, esse foi o resultado líquido de
trinta anos de estudo crítico da vida de Jesus. Assim, a vida de Jesus de Schleiermacher agora
pode vir à luz. Não havia mais razão para que ela se envergonhasse de si mesma, pois suas
marcas de nascença racionalista estavam cobertas por sua brilhante dialética. De acordo com
Schweitzer:
E o único avanço real neste meio tempo foi o reconhecimento geral de que a
Vida de Jesus não devia ser interpretada numa linha racionalista, mas histórica.
Todos os outros resultados históricos, mais definidos, mostraram-se mais ou
menos ilusórios; não vitalidade neles. As obras de Renan, Strauss,
Schenkel, Weizsäcker e Keim o, em essência, apenas meios diferentes de
concretizar um único plano básico. Lê-los um após o outro é ficar simplesmente
espantado com a uniformidade estereotipada do mundo mental em que eles se
movem. Sente-se que se pode ler exatamente a mesma coisa nos outros,
quase que com frases idênticas.
450
Ele continua:
Toda a discussão a respeito das fontes é apenas fracamente conectada com o
processo de chegar ao retrato de Jesus, que este retrato é fixado desde o
início, sendo determinado pela atmosfera do mental e o horizonte religioso dos
448
Ibid., p. 235.
449
Ibid., p. 235.
450
Ibid., p. 239.
anos sessenta. Todos eles retratam o Jesus da teologia liberal
451
; a única
diferença é que uns são mais conscientes em suas colorações do que outros, e
uns têm, talvez, mais gosto do que outros, ou são menos preocupados com as
conseqüências.
452
Segundo Schweitzer, o desejo de escapar, de alguma forma, da alternativa entre os
Evangelhos Sinópticos e o Evangelho de João era natural para a hipótese Marcos. Weisse
chegou a efetuar isso distinguindo entre as fontes no Quarto Evangelho. Ele via os discursos
como históricos e as porções narrativas como sendo de origem secundária. Schenkel e
Weizsäcker
453
são mais modestos. Ambos contentam-se em usar como histórico o que quer que
seus instintos os levem a aceitar. Schenkel diz que Jesus não esteve sempre com a realidade,
entretanto, ele estava sempre com a verdade. Weizsäcker afirma que no Evangelho de João
encontram-se genuínas reminiscências apostólicas tanto quanto em qualquer parte dos
Evangelhos Sinópticos. Mas, entre os fatos sobre os quais as reminiscências se baseiam e sua
reprodução em forma literária, seu possuidor se desenvolve em um grande místico. Além disso,
existe também a influência de uma filosofia que aqui, pela primeira vez, uniu-se dessa forma
com o Evangelho. Assim sendo, essas reminiscências devem ser criticamente examinadas.
Mais ainda, a verdade histórica desse Evangelho, grande como seja, não deve ser mantida com
uma dolorosa literalidade.
454
Sobre o segundo momento da hipótese Marcos, Schweitzer diz:
Assim, no segundo período da hipótese Marcos, o mesmo espetáculo nos é
apresentado assim como no primeiro. A hipótese tem uma existência literária,
na verdade ela é desenvolvida por Holtzmann a um tal grau de demonstração
que o pode mais ser chamada de mera hipótese, mas não chega a ganhar
uma posição assegurada no estudo crítico da Vida de Jesus. É terra aberta
ainda não cultivada.
455
Antes de apresentar o plano de Holtzmann a partir de Marcos, Schweitzer faz duas
importantes considerações. A primeira é que Holtzmann não trabalhou a hipótese por seu lado
histórico, porém, em linhas literárias. Essa abordagem lembra Wilke. A segunda é que, no
prefácio de sua obra Os Evangelhos Sinópticos. Sua Origem e Caráter Histórico, Holtzmann
expressa discordância com a escola de Tübingen. Tal escola desejava deixar uma alternativa
451
Schweitzer deixa transparecer um pouco mais quem é o Jesus da teologia liberal no primeiro parágrafo da página
243, no segundo parágrafo da página 248 e no terceiro parágrafo da página 258.
452
SCHWEITZER, Op.cit., p. 239.
453
Karl Heinrich Weizsäcker nasceu em 1822, em Öhringen, Würtenberg. Em 1847, ele graduou-se como Privat-
Docent. Depois de ter atuado nesse tempo como capelão e conselheiro do consistório superior, em Stuttgart, tornou-
se sucessor de Bauer, em Tübingen. Weizsäcker faleceu em 1899. Sobre a vida de Schenkel, Schweitzer nada
informa.
454
Cf. SCHWEITZER, Op.cit., p. 240.
455
Ibid., p. 241-242.
entre o Evangelho de João, por um lado, e os Evangelhos Sinópticos por outro. Todavia,
Holtzmann aprova a tentativa de fugir ao dilema por uma forma ou outra, e acha que pode
encontrar na narrativa didática do Quarto Evangelho os traços de um desenvolvimento de Jesus
semelhante ao retrato nos Sinópticos. Então, ele não tem nenhuma objeção fundamental ao
uso de João junto com os Sinópticos. Primeiramente, era preciso reconstruir separadamente os
retratos de Cristo dos Sinópticos e de João, compondo cada um de seu próprio material
distintivo. Depois que isso fosse feito, seria possível fazer uma comparação frutífera entre
ambos. Sessenta e sete anos antes, essa posição foi tomada por Herder.
456
De acordo com Schweitzer, o plano que Holtzmann desenvolveu a partir de Marcos
era muitíssimo detalhado para ter o peso do material de Mateus e Lucas. Holtzmann distingue
sete estágios no ministério de Jesus na Galiléia. São elas: o primeiro estágio é Mc. 1; o
segundo é Mc. 2:1-3:6; o terceiro é Mc. 3:7-19; o quarto é Mc. 3:19-4:34; o quinto é Mc. 4:35-
6:6; o sexto é Mc. 6:7-7:37; e o sétimo é Mc. 8:1-9:50. Desses estágios, o mais importante é o
sexto, onde Jesus deixa a Galiléia e vai para o norte. Schweitzer resume o que Holtzmann viu
nesse em Marcos da seguinte maneira:
Holtzmann viu neste Evangelho que Jesus ousou na Galiléia fundar o Reino de
Deus num sentido ideal; que Ele ocultava sua consciência de ser o Messias,
que ficava constantemente mais segura, até que Seus seguidores chegaram
por iluminação interior a uma visão mais elevada do Reino de Deus e do
Messias; que quase no final de seu ministério galileu Ele declarou-se a eles
como o Messias em Cesaréia de Filipe; que na mesma ocasião Ele começou a
apresentar para eles um Messias sofredor, cujos contornos gradualmente se
tornaram mais definidos em sua mente em meio à crescente oposição que Ele
encontrava, até que, finalmente, Ele comunicou a Seus discípulos Sua decisão
de testar a causa messiânica na capital, e que eles o seguiram para e viram
como Seu destino se cumpriu. Foi essa visão fundamental que fez o sucesso da
hipótese.
457
Ainda sobre o plano que Holtzmann desenvolveu a partir de Marcos, Schweizer
afirma:
O modo pelo qual Holtzmann exibiu esta visão característica dos anos
sessenta, como surgindo naturalmente do detalhe de Marcos, era tão perfeito,
tão artisticamente atraente, que esta visão pareceu, daí em diante, ser
inseparavelmente ligada à tradição de Marcos. Dificilmente uma descrição da
vida de Jesus exerceu uma influência tão irresistível quanto este curto esboço –
ele mal abarca vinte páginas com o qual Holtzmann encerra seu exame dos
Evangelhos Sinópticos. Este capítulo tornou-se o credo e o catecismo de todos
os que lidaram com o assunto durante as décadas seguintes. O tratamento da
vida de Jesus tinha que seguir as linhas aqui colocadas até que a hipótese
Marcos fosse liberada de suas cadeias para a visão do desenvolvimento de
Jesus. Até então, qualquer um podia aliar-se à hipótese Marcos, significando
456
Ibid., p. 242.
457
Ibid., p. 243.
isto apenas aquela visão geral do curso interior e exterior do desenvolvimento
na vida de Jesus, e podia tratar do restante do material sinóptico como
quisesse, combinando com ele, a seu prazer, material tirado de João. A vitória
pertencia, portanto, não à hipótese Marcos pura e simples, mas à hipótese
Marcos como interpretada psicologicamente por uma teologia liberal.
458
Como Weisse representa a primeira hipótese Marcos, Schweitzer ressalta os pontos
de distinção entre a sua interpretação e a nova interpretação: 1) Weisse é cético quanto ao
detalhe; a nova hipótese Marcos chega a basear conclusões mesmo sobre comentários
incidentais no texto; 2) segundo Weisse não houve períodos distintos de sucesso e fracasso no
ministério de Jesus; a nova hipótese de Marcos afirma com certeza essa distinção, e chega a
situar a trajetória de Jesus para além da Galiléia sob a epígrafe “Fugas e Viagens”; 3) a primeira
hipótese Marcos nega expressamente que circunstâncias externas influenciaram a resolução de
Jesus morrer; segundo a última, foi a oposição das pessoas, e a impossibilidade de cumprir sua
missão de outra forma que o forçou a seguir a trilha do sofrimento; 4) o Jesus da visão de
Weisse havia completado seu desenvolvimento ao tempo de seu surgimento; o Jesus da nova
interpretação de Marcos continua a desenvolver-se no curso de seu ministério público.
459
Contudo, Schweitzer faz questão de ressaltar que tanto a primeira quanto a
segunda hipóteses de Marcos concordam na rejeição da escatologia. Para Weisse, assim como
para Holtzmann, Schenkel e Weizsäcker, Jesus deseja fundar um Reino interior de
arrependimento. Ele faz reivindicações messiânicas apenas no sentido espiritual. Além disso,
todo o seu ensinamento tem como objetivo arrancar as esperanças teocráticas do coração dos
discípulos e transformar suas idéias messiânicas tradicionais. Logo, Jesus é somente um
libertador ético e espiritual de Israel. Que ele tenha previsto uma segunda vinda para
estabelecer um Reino terreno, isso é improvável e impossível. Schweitzer diz que foi num
momento posterior que os expoentes da posição de Marcos se dispuseram a encarar o retorno
de Jesus como pessoal e corpóreo. Talvez, isso possa ter acontecido porque essa escola tinha
como axioma que os discursos de Jesus não correspondem com os registros dos
evangelistas.
460
Portanto, tendo Schenkel como seu ponto de partida, Schweitzer apresenta uma
característica de todas as vidas “liberais” de Jesus:
Esta falta de visão para a amplidão, a espantosa originalidade, a auto-
contradição e a terrível ironia no pensamento de Jesus, não é uma
458
Ibid., p. 243-244.
459
Ibid., p. 244-245.
460
Ibid., p. 245-247.
peculiaridade de Schenkel; é uma característica de todas as Vidas de Jesus
liberais, de Strauss até Oskar Holtzmann.
461
De acordo com Schweitzer, a obra de Schenkel marca a última vez que alguma
excitação popular foi causada em relação ao estudo crítico da vida de Jesus. Entretanto, ele
afirma que toda essa excitação foi apenas uma tempestade em uma xícara de chá. Daí em
diante, a opinião pública ficou quase completamente indiferente a qualquer coisa que surgisse
nessa área. A questão fundamental de se a crítica histórica deveria ser aplicada à vida de Jesus
tinha sido decidida em conexão com a primeira obra de Strauss sobre o assunto. Schweitzer
também diz que a maioria das vidas de Jesus que surgiram nada tinha de muito excitante e
eram meras variações do tipo estabelecido durante os anos sessenta. Como contribuição à
crítica, a História de Jesus de Nazaré de Keim foi a mais importante vida de Jesus que surgiu
em um longo tempo.
462
Karl Theodor Keim nasceu em 1825, em Stuttgart. De 1851 a 1855, ele foi mestre
assistente em Tübingen. Depois de cinco anos no ministério, Keim tornou-se professor em
Zurique. Em 1873, ele aceitou um chamado para Giessen, onde faleceu em 1878. Segundo
Schweitzer, o fato de Keim acreditar na prioridade de Mateus não faz muita diferença. Isso
porque, em linhas gerais, sua apresentação da história segue o plano de Marcos, que também
é preservado em Mateus. Na opinião de Keim, a vida de Jesus deve ser reconstruída a partir
dos Evangelhos Sinópticos, seja Mateus ou Marcos ocupando o primeiro lugar. Ele também
defendeu a tese de que os Sinópticos mostram o progressivo desenvolvimento de Jesus como
jovem e como homem. Conseqüentemente, suas obras posteriores são desenvolvimentos
desse esquema. No que tange à questão joanina, Keim nega a possibilidade de se usar o
Evangelho de João lado a lado com os Evangelhos Sinópticos como fonte histórica. Para ele, o
plano da vida de Jesus depende da forte antítese entre os períodos de sucesso e fracasso.
Aqui, a psicologia liberal claramente vem à luz.
463
Quanto à questão escatológica, de acordo com Schweitzer, Keim faz justiça aos
textos. Sua atenção à escatologia se deve à utilização de Mateus como fonte primária. Isso
porque nesse Evangelho os discursos são carregados de idéias escatológicas. Keim admite que
a escatologia, um Reino de Deus vestido de esplendor material, desde o início, forma parte
integrante da pregação de Jesus. Ele nunca rejeitou nem transformou a idéia messiânica
sensual numa puramente espiritual. No entanto, no fim de sua obra, Keim permite que os
461
Ibid., p. 248.
462
Ibid., p. 251.
463
Ibid., p. 251-252.
elementos espirituais praticamente cancelem o escatológico. Para resolver a dificuldade, ele
assume um desenvolvimento. Assim, a consciência de Jesus quanto à sua vocação foi
reforçada tanto pelo sucesso quanto pelo desapontamento. Keim pensa no Reino como
sofrendo um desenvolvimento, mas não com um horizonte ilimitado e infinito como supõe os
modernos. Tal horizonte é delimitado pela escatologia.
464
Segundo Schweitzer, menos crítica em caráter é a Hisria de Jesus de Hase. Em
1876, essa obra substituiu as várias edições do Manual sobre a Vida de Jesus que surgiu em
1829. Nela, a questão do uso do Evangelho de João lado a lado com os Evangelhos Sinópticos
é deixada em suspenso. Influenciado por Strauss, Hase adotou a crea de que a verdadeira
vida de Jesus está am do alcance da crítica. Ele também deixa em aberto se a consciência de
Jesus quanto à sua messianidade vem desde os dias de sua infância ou se ela surge no
desenvolvimento ético de sua maturidade como homem. No que diz respeito à ocultação de
suas alegações messiânicas, Hase afirma que ela é atribuída, como por Schenkel e outros, a
motivos pedagógicos. Era necessário que Jesus primeiro educasse o povo e os discípulos até
uma visão ética mais elevada de seu ofício. Na importância dada à escatologia, Hase está
alinhado com Keim. Am disso, agora ele está preparado para tornar a escatologia a
característica dominante tamm no último período da vida de Jesus. Assim sendo, ele não
hesita em representar Jesus morrendo com a expectativa de retornar sobre as nuvens do
céu.
465
Dando um passo a diante, Schweitzer diz que o principal diferencial da vida de
Jesus de Beyschlag consiste em seu arranjo. Christoph Willibald Beyschlag nasceu em 1823,
em Frankfurt-am-Main. Em 1860, foi para Halle como professor. Sua esplêndida eloqüência fez
dele um dos principais oradores do protestantismo alemão. Como professor, Beyschlag exerceu
uma influência notável e salutar, ainda que suas obras científicas estivessem sob o domínio de
um apologista de coração. Em 1900, ele faleceu. Ainda que reconheça que o Evangelho de
João não tem o caráter de uma fonte essencialmente histórica, Beyschlag produz sua vida de
Jesus combinando e amalgamando elementos sipticos e joaninos. Além disso, ele um
espaço muito grande à escatologia, de forma que, para combinar a visão espiritual com a
escatológica seu Jesus deve passar por três estágios de desenvolvimento: no primeiro, ele
prega o Reino como futuro, um evento sobrenatural a ser esperado; no segundo, ele prega a
presença do Reino, em desenvolvimento gradativo, por meios silenciosos e imperceptíveis; no
terceiro, depois do túmulo, ele prega seu retorno glorioso para conquistar e julgar o mundo.
464
Ibid., p. 253-254.
465
Ibid., p. 255-256.
Então, Schweitzer afirma que Beyschlag não forma uma concepção clara da escatologia e faz
Jesus pensar de uma forma meio joanina meio sinóptica. Ele afirma tamm que uma
escatologia desse tipo não é assunto para a história.
466
Por fim, Schweitzer inclui Weiss entre as vidas “liberais” de Jesus, porém, junto com
suas falhas e mais algumas outras. Bernhard Weiss nasceu em 1827, em Königsberg. Ali
mesmo se qualificou como Privat-Docent, em 1852. Um ano depois, Weiss foi como professor
ordinário para Kiel. Em 1877, ele foi chamado à Berlim para o mesmo cargo
467
. Com os autores
das vidas “liberais” de Jesus, Weiss compartilha a iia de que Marcos pretende apresentar
uma visão definida do curso do desenvolvimento do ministério público de Jesus. Com base
nisso, ele sente-se justificado em dar um significado muito abrangente aos detalhes oferecidos
por esse evangelista. Todavia, a arbitrariedade com que aplica essa teoria é tão ilimitada
quanto a de Schenkel e, em seu gosto pelo “argumento do silêncio”
468
, ele até o ultrapassa.
Para Schweitzer:
Esta psicologização moderna, no entanto, está intimamente combinada com
uma dialética que busca mostrar que não oposição irreconciliável entre a
crença no Filho de Deus e Filho do Homem que a Igreja de Cristo sempre
confessou, e uma investigação crítica da questão sobre o quanto os detalhes de
Sua vida foram acuradamente preservados pela tradição, e como eles devem
ser historicamente interpretados. Isto significa que Weiss cobrirá as dificuldades
e pedras de tropeço com o manto de caridade cristã que ele teceu dos mais
plausíveis dos sofismas tradicionais. Como peça de dialética nesta linha sua
Vida de Jesus revitaliza em importância com qualquer outra exceto a de
Schleiermacher. Em pontos de detalhe muitas observações históricas
interessantes. Analisando tudo, podemos apenas lamentar que tanto
conhecimento e tanta habilidade foram usados a serviço de uma causa tão sem
esperança.
469
4.9. Considerações finais de Schweitzer sobre o período pós-Strauss
Com Weiss, Schweitzer encerra sua análise da investigação crítica acerca da vida
de Jesus. Contudo, ainda lhe resta apresentar o resultado líquido das vidas “liberais” de Jesus.
Isso ele o faz em quatro importantes considerações:
1) Elas contribuíram para o esclarecimento da relação entre o Evangelho de João e
os Evangelhos Sinópticos. Esse esclarecimento é simples: não combinação entre essas
duas tradições. No fim da década de 1870, a rejeição do Quarto Evangelho como fonte histórica
era quase universalmente reconhecida no campo crítico.
466
Ibid., p. 257-258.
467
Schweitzer não informa o ano e o local de sua morte.
468
Por “argumento do silêncio”, Schweitzer entende o “ler nas entrelinhas”.
469
SCHWEITZER, Op.cit., p. 248.
2) Elas levaram ao reconhecimento completo do caráter fundamentalmente
escatológico do ensinamento e influência do Jesus de Marcos e de Mateus. É apenas quando a
questão escatológica está decidida que o problema da relação entre João e os Sinópticos é
finalmente resolvido. Entretanto, as vidas “liberais” de Jesus perceberam sua incompatibilidade
apenas no aspecto literário, não em todo o seu significado histórico.
3) Elas perceberam que, se o plano de Marcos é aceito, logo, exceto pelas
referências ao Filho do Homem em Mc. 2:10-28, antes do incidente em Cesaréia de Filipe,
Jesus nunca se mostrou como Messias ou foi reconhecido como tal. De acordo com
Schweitzer, tal percepção marca um dos maiores avanços no estudo do tema.
4) Elas inconscientemente prepararam o caminho para uma visão histórica mais
profunda. Uma compreensão profunda de um assunto pode ser alcançada quando uma
teoria é levada a seus limites extremos e finalmente prova sua inadequação. Isso existe em
comum entre o racionalismo e o método crítico liberal, em que cada qual seguiu sua teoria até
suas últimas conseqüências. Por uma psicologia “natural”, a escola crítica liberal levou a seu
limite a explicação da conexão entre as ações de Jesus e os eventos de sua vida. Portanto, as
conclusões a que foram levados prepararam o caminho para o reconhecimento de que a
psicologia natural não é aqui a psicologia histórica. Conseqüentemente, através do trabalho
meritório e magnificamente sincero da escola crítica liberal a psicologia “natural” a priori deu
lugar ao escatológico. Este é o resultado líquido, do ponto de vista histórico, do estudo da vida
de Jesus no período pós-Strauss.
470
470
Ibid., p. 260-263.
Conclusão
mais de um século, A Busca do Jesus Histórico, de Albert Schweitzer, tem sido
considerada uma referência para o estudo da investigação crítica acerca da vida de Jesus.
Embora depois de Schweitzer a problemática envolvendo o Jesus histórico tenha passado por
um período de certo desinteresse, na década de 50, ela reaparece com toda força entre os
discípulos de Bultmann. Essa segunda fase parte do Jesus querigmático e pergunta se sua
exaltação, fundada na cruz e na ressurreição, tem alguma “base” na pregação pré-pascal de
Jesus. Tal pergunta é basicamente determinada pelo interesse teológico de fundamentar a
identidade cristã, ao distingui-la do judaísmo, e de garanti-la, ao separá-la de heresias cristãs
primitivas. Por isso, ela deu preferência às fontes “ortodoxas” e canônicas, e foi chamada de
segunda (ou nova) busca do Jesus histórico. Três décadas depois, com o fim da escola
bultmaniana, a problemática envolvendo o Jesus histórico entra em uma nova fase, na qual
permanece até os dias atuais. O interesse dessa terceira fase é muito mais histórico-social que
teológico. Por isso, ela se abriu às fontes não-canônicas (em parte heréticas) e foi chamada de
terceira busca do Jesus histórico.
Conseqüentemente, embora a investigação crítica acerca da vida de Jesus tenha se
desenvolvido consideravelmente depois de Schweitzer, a sua sistematização da chamada
primeira busca do Jesus histórico continua sendo extremamente importante para se
compreender parte do desenvolvimento da problemática envolvendo o assunto. Como foi visto,
a presente pesquisa apresentou a análise que Schweitzer fez desse primeiro momento da
investigação crítica acerca da vida de Jesus. O que segue, é uma breve ntese do que,
segundo ele, representou esse importante período da história da teologia.
O primeiro capítulo demonstrou que a problemática do Jesus histórico ocupava a
mente de Schweitzer desde o tempo em que ele começou a estudar teologia e filosofia, em
Estrasburgo. Do início dos estudos, em 1893, até a publicação da obra A Busca do Jesus
Histórico, em 1906, passaram-se treze anos. Durante a preparação dessa obra, Schweitzer
estudou, praticamente, todas as tentativas anteriores de reconstruir a história de Jesus. Assim,
ficou evidente que sua obra A Busca do Jesus Histórico foi produto de um longo tempo de
pesquisa e reflexão sobre o assunto.
Como os teólogos do século XIX haviam traçado um retrato de Jesus simpático à
postura anti-dogmática e anti-sobrenatural, predominante na época, verificou-se que a primeira
intenção de Schweitzer foi destruir esse retrato. Isso porque tal retrato apresentava Jesus como
a mais avançada floração da natureza humana no processo evolutivo e, assim sendo, o
acomodava a essa era de progresso social e científico. Entretanto, embora existisse em sua
época um clima de euforia com relação ao progresso do século XIX e à segurança da
civilização ocidental, percebeu-se que Schweitzer não se deixou convencer por tal opinião. A
ele parecia que, tanto intelectual quanto espiritualmente, o ocidente estava não só abaixo do
nível das gerações anteriores, mas, sob muitos aspectos, vivia das vitórias do passado. Para
Schweitzer não houvera progresso, porém retrocesso. Essa visão realista com relação ao
mundo que o cercava evidenciou-se durante a análise de sua obra A Busca do Jesus Histórico,
especialmente na maneira como ele tratou os eruditos que antes dele escreveram.
O segundo capítulo apresentou o método histórico-crítico. Ficou claro que esse
método exegético tinha como pano de fundo o Iluminismo e surgiu nos primórdios da teologia
liberal protestante. Isso porque o Iluminismo foi a expressão filosófica da modernidade e a
teologia liberal protestante surgiu a partir de uma necessidade de diálogo entre a teologia e a
modernidade. Como o objetivo da presente pesquisa é análise de Schweitzer acerca da
primeira busca do Jesus histórico, foi necessário que o segundo capítulo se concentrasse na
compreensão do método por trás de todo esse movimento, o método histórico-crítico.
Por conseguinte, constatou-se que o método histórico-crítico surgiu da continuidade
de um posicionamento crítico oriundo da Reforma Protestante. A sua primeira característica
destacada foi a rejeição dos relatos miraculosos. A ela seguiram a distinção entre fé e história, a
compreensão de que existem erros nas Escrituras, o controle da exegese pela razão, a
aplicação do conceito de mito aos relatos miraculosos do Antigo e do Novo Testamento, a
separação entre os dois Testamentos, o Antigo e o Novo e a influência da dialética de Hegel.
Como se observou, nem todas essas características se encontravam no início da
investigação crítica acerca da vida de Jesus, todavia, elas se desenvolveram paulatinamente.
Esse desenvolvimento foi percebido através dos chamados passos metódicos. O primeiro
passo metódico da exegese histórico-crítica foram a tradução e a crítica textuais. O segundo foi
a crítica literária. O terceiro foi a história traditiva. O quarto foi a história redacional. O quinto foi
a história da forma. O sexto foi a história temática. O sétimo foi a análise de detalhes. E, por fim,
o oitavo e último passo metódico foram o conteúdo teológico e o escopo. Novamente, esses
passos que hoje compõem a exegese histórico-crítica não foram elaborados todos de uma
vez e nem todos durante o período que correspondeu à primeira busca do Jesus histórico.
Contudo, direta ou indiretamente, tanto as características do método histórico-crítico quanto os
passos metódicos do seu desenvolvimento estão ligados ao Iluminismo ou aos primórdios da
teologia liberal protestante.
O terceiro capítulo destacou a análise de Schweitzer da fase inicial da primeira
busca do Jesus histórico. Essa fase, também chamada de pré-Strauss, foi de Reimarus a
Schleiermacher. Como se demonstrou, ela surgiu numa tentativa de voltar ao Jesus histórico
para encontrar nele um aliado contra a tirania do dogma. Reimarus, também conhecido como “o
fragmentista”, foi o primeiro que tentou formar uma concepção histórica da vida de Jesus.
Depois dele, apareceram as primeiras vidas de Jesus do racionalismo primitivo. Anteriores ao
racionalismo pleno, essas vidas não estão completamente dissociadas de um sobrenaturalismo
ingênuo. Logo após, Schweitzer enfatizou as primeiras vidas fictícias de Jesus. Como o próprio
nome indica, elas são marcadas pela ficção. Essas vidas fictícias de Jesus representaram a
primeira tentativa de aplicar, com consistência lógica, uma interpretação não sobrenatural às
histórias dos milagres no Evangelho. Mais do que isso, elas também tentaram, pela primeira
vez na história da investigação crítica acerca de Jesus, apresentar uma conexão entre os
eventos da sua vida.
Logo em seguida, Schweitzer apresentou o racionalismo plenamente desenvolvido.
O principal nome dessa etapa foi Paulus. Como foi visto, nele já se encontrava presente uma
desconfiança insuperável em tudo o que saísse dos limites do pensamento lógico. Por fim, na
última fase desse racionalismo primitivo, Schweitzer ressaltou os nomes de Hase e
Schleiermacher. Suas vidas de Jesus foram consideradas como transicionais. Por um lado, eles
ainda estavam completamente dominados pelo racionalismo, isto é, ainda se agarravam à
explicação racionalista do milagre. Por outro lado, eles apontaram para algo além do alcance do
racionalismo, ou seja, ousaram tocar na conexão íntima dos eventos do ministério de Jesus.
Então, até Strauss, todos aqueles que se dedicaram a uma investigação crítica
acerca da vida de Jesus ainda se baseavam na harmonia dos Sinópticos com o Quarto
Evangelho. Isso significa que eles ainda não tinham sentido a necessidade de um delineamento
historicamente inteligível da vida de Jesus. A presente pesquisa também destacou a ênfase
dada ao milagre nessa fase pré-Strauss. Devido à grande influência racionalista, muitas vidas
de Jesus desse período se limitavam a contar sua história com o único objetivo de explicar
racionalmente os milagres atribuídos a ele nos Evangelhos.
O quarto capítulo abordou a análise de Schweitzer da fase final da primeira busca
do Jesus hisrico. Ficou evidente que Strauss foi um divisor de águas no que se refere à
primeira busca do Jesus histórico. A sua contribuição foi particularmente importante porque ele
foi o primeiro a fazer a síntese entre a tese sobrenaturalista e a antítese racionalista da
explicação do milagre. Tal síntese se consistiu na explicação mitológica. Isto é, Strauss pôs um
fim no milagre como questão de crença histórica e deu à explicação mitológica o seu devido
lugar. Schweitzer também pontuou que a obra de Strauss tem um aspecto histórico de caráter
positivo. A personalidade histórica que emerge das névoas do mito é um reclamante judeu à
messianidade, cujo universo de pensamento é puramente escatológico.
Pela análise de Schweitzer, verificou-se que a obra de Strauss teve grande
influência sobre o mundo intelectual da época. Alguns lhe fizeram oposição, outros o
defenderam. No entanto, Schweitzer destacou que esse foi um período infrutífero para a história
da investigação crítica acerca da vida de Jesus. Percebeu-se que os problemas levantados
nessa época tiveram três ênfases: a relação entre milagre e mito; a relação entre o Cristo da fé
e o Jesus histórico; e a relação entre os Evangelhos Sinópticos e o Evangelho de João. No
período imediatamente posterior à turbulência causada pela obra de Strauss, Weisse propôs a
chamada Hipótese Marcana. A partir de então, ficou clara a prioridade de Marcos sobre os
demais Evangelhos. Schweitzer enfatizou que após Strauss e a chamada hipótese de Marcos,
surgiu a necessidade de escolher entre os Sinópticos e João. Além disso, com sua Hipótese
Marcana, Weisse estabeleceu as linhas que foram seguidas pelas vidas liberais de Jesus.
Depois da Hipótese Marcana de Weisse, Schweitzer apresentou a primeira vida de
Jesus cética, de Bruno Bauer. Seguindo pelo caminho aberto por Weisse, Bauer propôs uma
explicação puramente literária do Evangelho de Marcos. Segundo Bauer, o Cristo da história do
Evangelho é produto da imaginação da Igreja primitiva. O ceticismo era tão grande no fim de
sua vida que ele chegou a afirmar que esse Cristo da história do Evangelho, na verdade, nunca
existiu. Após ter analisado Bauer, Schweitzer focalizou as outras vidas imaginativas de Jesus.
Essas vidas combinaram crítica com ficção. Depois delas, Schweitzer ressaltou Renan. A obra
de Renan foi escrita em francês e foi a primeira destinada ao mundo católico. Para Schweitzer,
ela foi caracterizada por um tom sentimentalista e por traços de um novelista imaginativo.
Finalmente, Schweitzer analisou as vidas liberais de Jesus. Essas vidas marcaram o
fim da fase pós-Strauss. Como se evidenciou, elas já partiram do pressuposto que o Evangelho
de Marcos pretende apresentar uma visão definida do curso do desenvolvimento do ministério
de Jesus. Além disso, essas vidas também prepararam o caminho para uma visão histórica
mais profunda. De acordo com Schweitzer, essa última fase da investigação crítica acerca da
vida de Jesus ganhou tantas formas quantos foram os seus apresentadores. Isso porque esses
apresentadores conectaram as ações de Jesus e os eventos da sua vida utilizando a
imaginação psicológica natural. Contudo, segundo Schweitzer, essa psicologia natural não é
psicologia histórica. Sendo assim era necessário que a psicologia natural a priori cedesse seu
lugar à escatologia. É exatamente desse ponto que Schweitzer parte para apresentar a sua
própria vida de Jesus.
Logo, a presente pesquisa se encerra com o fim da análise de Schweitzer da
primeira busca do Jesus histórico. A sua obra, A Busca do Jesus Histórico, não termina nesse
ponto. Ela continua abordando as questões relacionadas à escatologia e apresentando a sua
compreensão de quem era, de fato, o Jesus histórico. No entanto, essa continuação se torna o
ponto de partida para eventuais estudos posteriores como, por exemplo, um doutorado.
Portanto, essa dissertação buscou apresentar a análise feita por Schweitzer da
primeira busca do Jesus histórico. Partindo do ambiente no qual ele estava inserido, passando
pelo método utilizado nessa primeira busca e, finalmente, explicitando os principais aspectos da
sua análise sobre da investigação crítica acerca da vida de Jesus desenvolvida nos séculos
XVIII e XIX.
Por fim, de maneira alguma essa pesquisa se propõe exaustiva. Ela representa
apenas uma lente pela qual é possível analisar a primeira busca do Jesus histórico. Sem dúvida
existem outras lentes que também podem ser utilizadas e cujos resultados podem ser de
grande valia para a compreensão e o desenvolvimento desse assunto. Se pelo menos um
pouco mais de luz foi lançada sobre o entendimento da investigação crítica acerca de Jesus,
pode-se dizer que a pesquisa cumpriu o seu objetivo.
Referência Bibliográfica
1. Instrumentos de pesquisa
ALAND, Bárbara et al. The Greek New Testament. 4.ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft;
United Bible Societies, 1994.
BIBLIA SAGRADA. Edição Revista e Atualizada. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil,
1997.
BIBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional. São Paulo: Vida, 2000.
CENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. São
Paulo: Vida Nova, 2000. 2 v.
DOUGLAS, J.D. (Org.). O novo dicionário da Bíblia. 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 1995.
ELWELL, Walter (Org.). Enciclopédia histórico-teológica da Igreja cristã. São Paulo: Vida Nova,
1993. 3 v.
FRIBERG, Bárbara; FRIBERG Timothy. O Novo Testamento grego analítico. São Paulo: Vida
Nova, 1987.
GARSCHAGEN, Donaldson M. (Org.). Enciclopédia Barsa. Rio de Janeiro São Paulo:
Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 1995. 16 v.
GONZÁLEZ, Justo L. (Org.). Dicionário ilustrado dos inrpretes da . Santo André: Editora
Academia Cristã, 2005.
HUCK, Albert. Sinopse dos três primeiros Evangelhos. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1986.
KITTEL, Gerhard (Org.) Theological Dictionary of the New Testament. Michigan: WM. B.
Eerdmans Publishing Company Grand Rapids, 1977. 10 v.
KONINGS, Johan. Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e da “Fonte Q. São
Paulo: Edições Loyola, 2005.
LASOR, William Sanford. Gramática Sintática do Grego do Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 1998.
NESTLE-ALAND. Novum Testamentum graece. 27.ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft,
1993.
PARENTE, Pietro; PIOLATI, Antonio; GAROFALO, Salvatore. Dizionario di teologia dommatica.
Barcelona: Liturgica Espanhola, 1955.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para a exegese do Novo Testamento. São
Paulo: Vida Nova, 2002.
RIENCKER, Fritz ROGERS, Cleon. Chave lingüística do Novo Testamento Grego. o Paulo:
Vida Nova, 1995.
TAYLOR, W.C. Dicionário do NT grego. São Paulo: Editora Batista Regular, 2000.
WINTER, Ralph; WIGRAM, George. Concordância Fiel do Novo Testamento. São José dos
Campos: Fiel, 1994. 2 v.
2. Obras de Albert Schweitzer
[1906] Geschichte der Leben-Jesu-Forschung. Hamburg: Siebenstern, 1972. 2 v.
[1906] The Quest of the Historical Jesus. New York: Macmillan, 1968.
[1906] A Busca do Jesus Histórico. São Paulo: Novo Século, 2003. [[reimpre. 2005]]
[1929] O misticismo de Paulo – o apóstolo. São Paulo: Novo Século, 2003.
[1931] Out of my life and thought: an autobiography. Baltimore: Johns Hopkins, 1998.
3. Outras obras e artigos
AGUIRRE, Rafael. El Jesús histórico a luz de la exégesis reciente. Revista RELaT
<http//www.servicioskoinonia.org> acesso em 25 de fev. 2007.
BARTOLOMÉ, Juan J. La búsqueda del Jesús histórico: una crónica. Estudios Bíblicos, Madrid,
v. 59, n. 2/3, p. 179-241, 2001.
BERKHOF, Louis. História das doutrinas cristãs. São Paulo: PES, 1992.
____. Princípios de interpretação bíblica. 4.ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1988.
BLANK, Josef. El Jesús histórico y la Iglesia. Revista Seleciones de Teologia, Barcelona, v. 12,
n. 46, p. 83-94, 1973.
BOFF, Leonardo. O Jesus histórico e a Igreja. Revista Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v.
5, n. 9, p. 157-171, 1973.
BORCHERT, Otto. O Jesus histórico. São Paulo: Vida Nova, 1990.
BRAKEMEIER, Gottfried. A autoridade da Bíblia: controvérsias – significadofundamento. São
Leopoldo: Editora Sinodal, Centro de Estudos Bíblicos, 2003.
BRUCE, F.F.. Merece confiança o Novo Testamento? 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 1999.
BRUGGEN, Jakob van. Cristo na terra: as narrativas dos Evangelhos como história. São Paulo:
Cultura Cristã, 2005.
CAIRNS, Earle E. Cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. 2.ed. São
Paulo: Vida Nova, 1998.
CARSON, D.A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo:
Vida Nova, 1997.
CERFAUX, Lucien. Jesus nas origens da tradição. São Paulo: Paulinas, 1972.
CHARPENTIER, Etiene. Dos evangelhos ao Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977.
COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Raízes da teologia contemporânea. São Paulo: Cultura
Cristã, 2004.
CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento. 8.ed. São Leopoldo: Editora Sinodal,
2001.
____. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Líber, 2001.
DUPUIS, Jacques. Introdução à cristologia. 2.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
DUQUOC, Christian. Christologie: essai dogmátique, I’homme Jesus. Paris: Cerf, 1968.
____. Christologie: essai dogmátique, le Messie. Paris: Cerf, 1972.
ELWELL, Walter A.; YARBROUGH, Robert W. Descobrindo o Novo Testamento. São Paulo:
Cultura Cristã, 2002.
FEE, Gordon D.; STUART, Douglas. Entendes o que lês? São Paulo: Vida Nova, 1998.
FERREIRA, Júlio Andrade (Org.). Antologia teológica. São Paulo: Novo Século, 2003.
FIORENZA, Elisabeth Schussler. Jesus e a política da interpretação. São Paulo: Edições
Loyola, 2005.
FORTE, B. Jesus de Nazaré: história de Deus, Deus da história. São Paulo: Paulinas, 1985.
FREYNE, Sean. A busca do Jesus histórico. Algumas reflexões teológicas. Revista Concilium,
Petrópolis, v. 1, n. 269, p. 49-65, 1997.
GEISLER, Norman; NIX, William. Introdução bíblica: como ablia chegou até nós. São Paulo:
Vida, 1997.
GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
GONZALEZ FAUS, J.I. La humanidad nueva: ensaio de cristología. Santander: Sal Terrae,
1984.
GONZÁLEZ, Justo L.. Uma história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. 3
v.
____. Uma história ilustrada do cristianismo. São Paulo: Vida Nova, 1995. 10 v.
GRENZ, Stanley J.; OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de
transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 1998.
GUNDRY, Stanley. Teologia contemporânea: uma análise dos pensamentos de alguns dos
principais teólogos do mundo moderno. 2.ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1987.
HAGEDORN, Hermann. O profeta das selvas: a história de Alberto Schweitzer. São Paulo:
União Cultural Editora, 1955.
HAGGLUND, Bengt. História da teologia. 6.ed. Porto Alegre: Concórdia, 1999.
HAIGHT, Roger. El impacto de la investigación del Jesús histórico sobre la cristologia. Revista
Seleciones de Teologia, Barcelona, v. 37, n. 146, p. 127-134, 1998.
HALE, Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2001.
HÜNERMANN, P. Cristologia. Barcelona: Herder, 1997.
JEREMIAS, Joachim. El significado central del Jesus Histórico. Revista Seleciones de Teologia,
Barcelona, v. 9, n. 33, p. 13-16, 1970.
KAISER JR., Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica. São Paulo: Cultura
Cristã, 2002.
KÄSEMANN, Ernst. El Jesús histórico y el Cristo de la fe. Revista Seleciones de Teologia,
Barcelona, v. 11, n. 42, p. 87-104, 1972.
KASPER, W. Jesús el Cristo. 7.ed. Salamanca: Sígueme, 1989.
KIRSCHNER, Estevan F.. O papel normativo das Escrituras. Revista Vox Scripturae, São Paulo,
v. 2, n.1, p. 2-13, 1992.
KONINGS, Johan. Jesus nos Evangelhos Sinóticos. Petrópolis: Vozes, 1977.
____. O “Jesus histórico”: a nova fase e a divulgação do debate. Perspectiva Teológica, Belo
Horizonte, v. 25, n. 67, p. 357-370, 1993.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1982.
LAMBIASI, F. Autenticidade histórica dos Evangelhos: estudo de criteriologia. São Paulo:
Paulinas, 1978.
LANE, Tony. Pensamento Cristão. 3.ed. São Paulo: Abba Press, 2003.
LIBÂNIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. 2.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
LOEWE, William P.. Introdução à cristologia. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2005.
LOHSE, Bernhard. A fé cristã através dos tempos. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1981.
LOIS, Julio. Estado actual de la investigación histórica sobre Jesús. Revista RELaT
<http//www.servicioskoinonia.org> acesso em 25 de fev. 2007.
LOPES, Augustus Nicodemus. A blia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação.
São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
MCGRATH, Alister E. Teologia: sistemática, histórica e filosófica. São Paulo: Shedd
Publicações, 2005.
MACHKINTOSH, Hugh R.. Teologia moderna: De Schleiermacher a Bultmann. São Paulo: Novo
Século, 2004.
MAIER, Gerhard. The end of the historical-critical method. St. Louis: Concordia Publishing
House, 1977.
MEIER, John P.. El Jesús histórico: revisando conceptos. Revista Seleciones de Teologia,
Barcelona, v. 31, n. 123, p. 222-232, 1992.
MEYER, Ben F.. Os desafios do texto e do leitor ao método histórico-crítico. Revista Concilium,
Petrópolis, v. 1, n. 233, p. 16-26, 1991.
MONDIN, Batista. Os grandes teólogos do século vinte. São Paulo: Teológica, 2003.
MOSCONI, Luis. Para uma leitura fiel da Bíblia. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2002.
OLSON, Roger. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Vida,
2001.
PALÁCIO, Carlos. Jesus Cristo: história e interpretação. São Paulo: Edições Loyola, 1979.
____. O “Jesus histórico” e a cristologia sistemática. Revista Perspectiva Teológica, Belo
Horizonte, v. 16, n. 40, p. 353-370, 1984.
PELÁEZ, Jesús. El universalismo de Jesús en los evangelios. Revista RELaT
<http//www.servicioskoinonia.org> acesso em 25 de fev. 2007.
____. Los milagros de Jesús en los evangelios sinópticos: posibilidad e historicidad. Revista
RELaT <http//www.servicioskoinonia.org> acesso em 25 de fev. 2007.
____. Un largo viaje hacia el Jesús de la história. Revista RELaT
<http//www.servicioskoinonia.org> acesso em 25 de fev. 2007.
PERROT, Charles. Jesús y la historia. Madrid: Cristandad, 1982.
PIERARD, R.V. Liberalismo Teológico. In: ELWELL, Walter A. (org.) Enciclopédia Histórico-
Teológica da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1990. p. 424-429. v. 2.
PIKAZA, Xabier. El Jesús histórico. Revista RELaT <http//www.servicioskoinonia.org> acesso
em 25 de fev. 2007.
POTTERIE, Ignace de la. Cómo plantear hoy el problema del Jesús histórico. Revista
Seleciones de Teologia, Barcelona, v. 9, n. 33, p. 30-34, 1970.
RICHARD, Pablo. El Jesús histórico y los cuatro evangelios. Revista RELaT
<http//www.servicioskoinonia.org> acesso em 25 de fev. 2007.
SCHILSON, Arno; KASPER, Walter. Cristologia: abordagens contemporâneas. São Paulo:
Edições Loyola, 1990.
SILVA, Moisés. Abordagens contemporâneas na interpretação bíblica. Revista Fides Reformata,
São Paulo, v. 4, n. 2, 1999.
SPROUL, R.C.. Os últimos dias segundo Jesus. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. 2.ed. São Paulo: Edições
Loyola, 2004.
VERMES, Geza. Jesus e o mundo do judaísmo. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
VIELHAUER, Philipp. História da literatura cristã primitiva. Santo André: Editora Academia
Cristã, 2005.
VOLKMANN, Martin; DOBBERAHN, Friedrich Erich; CÉSAR, Ely Éser Barreto. Método
Histórico-crítico. São Paulo: CEDI, 1992.
ZUBERO, Imanol. El Reino predicado por Jesús: ¿profecia incumplida o promesa por realizar?
Revista RELaT <http//www.servicioskoinonia.org> acesso em 25 de fev. 2007.
ZUURMOND, Rochus. Procurais o Jesus histórico? São Paulo: Edições Loyola, 1998.
WATSON, S.L.; ALLEN, W.E.. Harmonia dos Evangelhos. 7.ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1988.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo