A peça é dedicada a Heleny Guariba,
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assassinada nas prisões de Torquemada
(p. 101), e a primeira cena ocorre numa câmara de tortura, onde nos é mostrada a
chegada de frades, que iniciam o interrogatório após arrumarem os instrumentos de
tortura e posicionarem o subversivo — Dramaturgo — em um pau-de-arara, ao que se
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Heleny Telles Guariba formou-se em Filosofia, em 1964, na
USP
;
em 1965, foi à França, onde
permaneceu até 1967. Lá, inscreveu-se em um curso de doutorado em teatro, que lhe possibilitou estágios
em teatros franceses, sobretudo no Théatre de La Cité, de Roger Planchon, encenador e intérprete que se
tornou mundialmente conhecido como diretor do Teatro Nacional Popular francês. Quando retornou ao
Brasil, foi lecionar na Escola de Arte Dramática, onde se aproximou de seus alunos de Santo André.
Nessa cidade, caracterizada como “operária” e onde havia uma entidade representativa dos universitários
— a Associação dos Universitários de Santo André —, Heleny vislumbrou possibilidades de pôr em
prática seu ideário de popularização e interiorização do teatro: surgia, assim, em 1968, o grupo Teatro da
Cidade. Caracterizado pela descentralização programada, o grupo constituiu uma via alternativa ao teatro
empresarial da capital e encenou a peça Jorge Dandi, de Moliére, sob direção de Heleny, com cenário de
Flávio Império e, no elenco, atores que já atuavam naquele município e depois concluíram o curso da
Escola de Arte Dramática. Em 1969, ela ministrou um curso de interpretação no Teatro de Arena, junto
com a esposa de Boal, Cecília Thumin. Em 1971, foi presa pelos militares, sob acusação de atividades
subversivas. Heleny era militante da Vanguarda Popular Revolucionária (
VPR
), organização que
procurava desencadear a luta armada e o foco guerrilheiro contra a ditadura. Conforme estudo de Judith
Lieblich Patarra, Heleny manifestou à amiga Iara Iavelberg o desejo de entrar na
VPR
e,
então, foi
recrutada para tarefas semelhantes às de Iara. Dentre outras tarefas, Heleny recebeu a de acolher Lamarca
em sua casa (cf. P
ATARRA
, Judith L. Iara: reportagem biográfica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
1992, p. 287 e 291). A
VPR
resultou da fusão, em 1968, entre a Organização Revolucionária Marxista —
Política Operária de São Paulo (
ORM
-
POPOP
) e a seção paulista do Movimento Nacionalista Revo-
lucionário (
MNR
), de inspiração brizolista. Em 1970, a organização fundiu-se com o Comando de
Libertação Nacional (
COLINA
), formando a Vanguarda Revolucionária-Palmares (
VAR
–Palmares). Diver-
gências políticas levaram à reconstituição da
VPR
, em setembro desse mesmo ano — cf. F
REIRE
, Alipio;
A
LMADA
, Izaías; P
ONCE
, J. A. de Granville. Glossário de termos, siglas e expressões. In: ___. Tiradentes,
um presídio da ditadura: memórias de presos políticos. São Paulo: Scipione, 1997, p. 518.
Heleny Telles Guariba nasceu em Bebedouro, São Paulo, em 1941, e provavelmente morreu após
ser torturada em meados de 1971. Mesmo na prisão, Heleny não deixou de manter contato com a
organização. Sobre o episódio da prisão e as torturas a que foi submetida, o relato de Patarra demonstra a
sua insistência em manter as atividades clandestinas independentemente dos riscos: Em Serra Negra, São
Paulo, Heleny escondeu-se no sítio da fazenda do companheiro, José Olavo, depois que o rapaz caiu num
ponto. O pai, pressionado pela política, indicou o lugar e pediu ajuda a Ulisses. — Chegou em casa
chorando e disse que Heleny foi presa. Torturaram-na a noite inteira na
OBAN
. Ulisses recorreu a um dos
algozes, capitão Maurício, ex-namorado da irmã em tempos de paz. O militar já o auxiliara quando
prenderam o inocente proprietário da garçonnière Bexiga. Transferida ao presídio, Heleny mandava
bilhetes à
VPR
através de Ulisses, que os escondia na boca. Descoberto com um recado a Sérgio Ferro,
foi preso também. Os dois saíram em abril de 1971. — Acabou, desmobilizou-me — consentiu Heleny. O
advogado José Carlos Dias conseguira-lhe liberdade vigiada para cuidar dos filhos. Mas o periquito
laborioso, como a chamavam na cadeia devido ao poncho verde e os sapatos que matraqueavam passos
ligeiros, não dizia a verdade. P
ATARRA
, Judith Lieblich. Iara: reportagem biográfica. Rio de Janeiro:
Rosa dos Tempos, 1992, p. 380.
Augusto Boal esteve com Heleny no Presídio Tiradentes e, segundo seu relato, insistiu para que,
quando solta, viajasse para Buenos Aires, onde tinham amigos; porém, Heleny falava do seu dever:
retornar à luta. Foi assassinada dias depois de livre. Emboscada — declarações militares falavam de
combate. A ditadura não prendia duas vezes: matava. B
OAL
. A. Hamlet e o filho do padeiro..., op. cit., p.
282. Sobre Heleny Guariba, ver: V
ERAS
, Valdecirio Teles. Memorial: Heleny Guariba. Abecês, nº 5
(versão virtual, abrigada na revista Loquens). Disponível em: <www.loquens.hpg.com.br/abc5.htm>.
Acesso em: 30 dez. 2002; T
ORTURA NUNCA MAIS
. Disponível em www.torturanuncamais.org.br/
desaparecidos122.html. Acesso em: 19 fev. 2003; M
OSTAÇO
, Edelcio. O “Nacional-popular” no novo
pacto com o estado: surgem o
SNT
e a política nacional de cultura. In: Teatro e Política: Arena, Oficina e
Opinião (uma interpretação da cultura de esquerda). Rio de Janeiro: Proposta Editorial, 1982., p. 173–
174.