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S
ANDRA
A
LVES
F
IUZA
Práticas de tortura narradas em
Torquemada
(1971)
, de Augusto Boal
Universidade Federal de Uberlândia
Uberlândia–MG 2005
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S
ANDRA
A
LVES
F
IUZA
Práticas de tortura narradas em
Torquemada
(1971)
, de Augusto Boal
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História da Universidade Federal de
Uberlândia como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em História.
Orientadora: Profa. Dra. Rosangela Patriota Ramos
Universidade Federal de Uberlândia
Uberlândia 2005
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S
ANDRA
A
LVES
F
IUZA
B
ANCA
E
XAMINADORA
Profa. Dra. Rosangela Patriota Ramos (orientadora)
Prof. Dr. Alcides Freire Ramos
Prof. Dr. Maurício Broinizi Pereira
D
EDICATÓRIA
Para
Eduardo e
nosso bebê que vai chegar ...
e
Guilherme
A
GRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer o apoio essencial de algumas pessoas, que muito contribuíram
para a concretização deste trabalho.
À minha orientadora profa. dra. Rosangela Patriota Ramos, por sua orientação,
suporte teórico-metodológico em todo o trabalho, bem como por seu apoio e
compreensão.
Ao prof. dr. Alcides Freire Ramos, pela leitura atenciosa e contribuições
sugeridas no exame de qualificação.
Ao prof. dr. Maurício Broinizi Pereira, por ter aceito o convite para participar da
banca de defesa.
À profa. dra. Vera Lucia Puga, pela participação na banca examinadora de
qualificação, bem como pelo empréstimo de material.
À profa. dra. Jacy Alves de Seixas, pela generosidade com que dividiu a sua
sabedoria durante o curso de historiografia.
Aos professores do curso de Artes Cênicas da
UFU
,
dr. Luís Humberto Martins
Arantes, dra. Irley Machado e Yaska Antunes, pelo suporte teórico na área teatral.
Aos amigos e companheiros do curso de mestrado, Eliene, Miguel e Thaís, pela
convivência intelectual e afetiva.
À “equipe de salvamento”, pelo auxílio decisivo prestado na finalização desta
dissertação: Luciano, pelas leituras, indicações e sugestões precisas do trabalho; André,
pelo apoio emocional e pela tradução, Edinan e Anna Eugênia, pela revisão do texto.
Ao Eduardo, pelas leituras, disponibilidade, tolerância e carinho.
Aos meus pais, Inês e Orlando, por serem co-responsáveis das minhas
conquistas.
Aos meus irmãos, Neide, Udson e Claudia, pela alegria com que sempre
partilhamos as nossas vidas.
À Isabela, por seu otimismo e desprendimento, sempre tão motivadores.
À Júlia, pela sua espontaneidade.
Ao Guilherme, pela sua posição contestadora diante do mundo.
E à Valentina, que chegou com a primavera.
S
UMÁRIO
Introdução
1
CAPÍTULO
1. Teatro de Arena e participação de Augusto Boal
12
O
TEATRO POPULAR E O PÚBLICO POPULAR NO
A
RENA
13
Significados do teatro popular professados por participantes do Arena 16
A interpretação dos críticos 25
S
TANISLAVSKI E
B
RECHT
:
FORMAÇÃO ARTÍSTICA DE
B
OAL
35
CAPÍTULO
2. O Sistema Curinga
46
O
SISTEMA CURINGA APRESENTADO POR
A
UGUSTO
B
OAL
46
Reflexões teóricas sobre a encenação de Arena conta Zumbi (1965) 53
A teoria do curinga 56
Sobre o espetáculo Arena conta Tiradentes (1967) 60
C
OMENTADORES DO SISTEMA CURINGA
65
S
ISTEMA CURINGA NA TEORIA E NA PRÁTICA
:
APROPRIAÇÕES E TENSÕES
74
CAPÍTULO
3. As práticas de violência política
narradas em Torquemada (1971)
84
A
S EDIÇÕES DE
T
ORQUEMADA
:
OMISSÕES E ACRÉSCIMOS
86
I
NTERPRETAÇÕES DO TEXTO TEATRAL
T
ORQUEMADA
95
O
ASSUNTO E O ENREDO
99
A
CONSTRUÇÃO FORMAL
107
A
EXPERIÊNCIA TRÁGICA DA TORTURA E O FRACASSO REVOLUCIONÁRIO
112
O inquisidor Torquemada, os Nobres e Paulo, um nobre liberal:
representações do Estado militar e da burguesia
119
Presos políticos e a esquerda armada 124
A
M
OÇA
P
RESA
,
C
RISTINA
J
ACARÉ O
P
RESO DA
M
ALA
127
C
ONCLUSÃO
130
Referências
132
R
ESUMO
Este estudo teve como finalidade compreender e historicizar o texto teatral Torquemada
(1971), tanto por meio da investigação das representações construídas sobre a tortura no
período da ditadura militar no Brasil pelo dramaturgo Augusto Boal quanto através das
relações entre a forma dramática em que a peça está assentada — o sistema curinga — e
a experiência social.
Verificamos que na elaboração da ação das personagens havia a intenção do autor
em provocar um certo efeito no leitor/espectador, sempre oscilante e não excludente:
ora com recursos para suscitar a identificação com as vítimas de tortura, ora
promovendo a devida distância crítica para incitar o repúdio à violência mostrada em
quase todas as cenas.
Entretanto, para compreender a organização da narrativa com maneiras variáveis
de “implicar” o leitor/espectador em relação à cena (identificação ou distância) exigiu-
nos antes uma reflexão sobre o processo criativo do dramaturgo que buscasse
referências e o repertório a que ele recorria. Problematizamos questões relativas ao
público do Teatro de Arena embasadas nos depoimentos de participantes do grupo e
nas interpretações de críticos e de estudos acadêmicos posteriores e as referências
stanislaviskianas e brechtianas na atividade artística de Boal. Em seguida, nossa
discussão convergiu para a elaboração e reprodução de dada linguagem teatral o
sistema curinga — verificada nos textos teóricos escritos por Augusto Boal, e nas
interpretações elaboradas por críticos e por acadêmicos.
Por fim, procuramos interpretar o texto dramático Torquemada, cientes de que a
forma não existe em si, e que a estrutura do sistema curinga faz sentido apenas quando
associada a um conteúdo transmitido.
A
BSTRACT
The purpose of this study was understanding and historicizing the theatrical text
Torquemada (1971), by the way of the investigation of representations built about
torture during the brazilian dictatorship’s period by the dramatist Augusto Boal and also
through the connections of the dramatic form on which the play is settled — the
“curinga” system — with the social experience.
We found out that in the preparation of characters’ acting there was an intention of
the author to provoke a determinate effect in the reader/spectator, that’s ever oscillating
and non-excluding: sometimes using resources to suscitate the identification with the
victims of torture, sometimes promoting the right critical distance to stir up repugnance
against the violence shown in almost all the scenes.
However, for the understanding of the narrative’s organization with variable ways
of “implication” of the reader/spectator in regard to the scene (identification or distance)
was needful to reflect, previously, about the dramatist’s creative process, searching the
references and the repertory utilized by him. We detached the questions relative to the
Teatro de Arena’s public, on which we took as reference the testimonies of the group’s
members and also the interpretations of critics and academics studies after
accomplished, as well as the stanislaviskian and brechtian references on the Boal’s
artistical activity. After that, we’d focus the discussion about the elaboration and
reproduction of a specific theatrical language the “curinga” system by means of
the theoretical texts written by Augusto Boal and the interpretations elaborated by
critics and academicians.
At last, we sought to interpret the dramatic text Torquemada, taking into
consideration that form doesn’t exist in itself, but that the “curinga” system’s structure
just make sense when it’s associated with a transmited content.
Lembra?
O sujeito que foi torturado e que não escondia
O que não foi e dizia que tinha sido
O que tinha sido e que negava
O que foi e que escondia
Francisco Alvim, Elefante.
Este estudo teve como finalidade compreender e historicizar o texto teatral
Torquemada: tanto por meio da investigação das representações construídas sobre a
tortura no período da ditadura militar no Brasil pelo dramaturgo Augusto Boal quanto
pelas relações entre a forma dramática em que a peça está assentada o sistema
curinga
1
e a experiência social. O propósito principal da pesquisa foi apreender as
opções políticas e estéticas desse dramaturgo e os compromissos que ele estabeleceu
com seu presente ao participar, no campo artístico, da denúncia do uso da tortura como
instrumento político na radicalização do autoritarismo.
Escrita em 1971, Torquemada narra a fábula de Tomás de Torquemada, o
religioso inquisidor espanhol do século
XV
, e seus instrumentos para controlar a
subversão política. Numa alusão direta ao ataque do governo militar às organizações
políticas de esquerda empenhadas na luta armada, Augusto Boal apresenta, nessa
narrativa dramática, algumas das implicações de uma herança inquisitorial os
métodos de interrogatório e tortura usados pela Inquisição no século
XV
—, com os
procedimentos usados pelos torturadores e assassinos brasileiros dos anos de 1970.
Nomeado inquisidor-mor pelo Rei, Torquemada é incumbido de acalmar e pacificar o
povo. A partir daí, a ação repressiva desencadeia uma rápida queda de militantes
revolucionários — os presos políticos —, assim como a detenção de suspeitos de
subversão. Pela narrativa, Boal procura inscrever os procedimentos brutais de repressão
empregados pelo governo no combate a essas organizações revolucionárias, alvo de
verdadeiras operações de caça e extermínio que incluem prisão, tortura e assassinato.
A opção por estudar a construção narrativa do texto dramático (os temas que se
depreendem do texto, as personagens, o enredo etc., os quais facultam a percepção da
inter-relação arte–sociedade) vincula-se diretamente à inviabilidade de se conseguirem
documentos e vestígios mais substanciais sobre a encenação. Encontramos algumas
1
Adotaremos a grafia curinga, porém respeitaremos as citações de documentos quando estes apre-
sentarem grafado coringa. Segundo o dicionário Aurélio, “curinga” originária do quimbundo, língua
dos quimbundos, indígenas bantos de Angola significa carta de baralho, que, em certos jogos, muda
de valor segundo a combinação que o parceiro tem em mão. Pode também, em sentido figurado, ser
pessoa esperta, sem escrúpulos, que tira partido de qualquer situação, ou ainda jogador que joga em
muitas posições e por isso pode substituir qualquer companheiro. No teatro, curinga denomina o ator que
interpreta rios papéis numa mesma peça. F
ERREIRA
, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da
língua portuguesa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 512.
referências feitas pelo próprio dramaturgo que informam sobre a representação de
Torquemada realizada pelos alunos da New York University, em 1971:
Dirigi, na
NYU
, “Torquemada” — espiões na platéia; [...]
Os alunos não conseguiam imaginar a angústia prisioneira. Obtive autorização da
Universidade para que passassem 24 horas dentro do cenário: quatorze atores e
eu, comendo, limpando a cela, conversando, tocando violão. podiam dialogar
como personagens. Temas da peça, não da Universidade.
O dia inteiro, personagens no cenário — maravilhoso. Aconselho!
2
Também localizamos como apêndice do livro Técnicas latino-americanas do
teatro popular, de Augusto Boal, o texto “Para Boal é preciso eliminar as fronteiras
entre atores e público”, escrito por Robert Jacoby e publicado em 11/10/1972, no jornal
La Opinión, de Buenos Aires. Em parte do texto se lê:
Amanhã se representará na Sala Planeta a obra Torquemada, de Augusto Boal,
estreada em junho no Teatro do Centro. Esta primeira função especial, gratuita,
será oferecida pelo grupo de Boal com o fim de debater com grupos teatrais
juvenis as possibilidades de uma nova dramaturgia latino-americana.
Torquemada se apresentou em março no Teatro da Universidade de Nova York, em
abril no Teatro La Mamma de Bogotá e proximamente semontada em Lisboa,
Berlim, Paris, Lima e Quito. Além disso foi recém-editada e num pequeno volume,
que inclui El Gran Acuerdo Internacional del Tio Patilludo e Revolución em Amé-
rica del Sur, outras peças de Augusto Boal, nas Ediciones Noé de Buenos Aires.
3
Assim, embora não haja documentos que subsidiem um estudo dessas
encenações, a análise do texto teatral não se realiza sem a construção de um palco
imaginário e a ativação de processos mentais como em qualquer prática de leitura, mas
aqui ordenados num movimento que apreende o texto “a caminho” do palco.
4
Com essa
mesma acepção, Iná Camargo Costa revela a inextrincável relação entre texto e
encenação:
[Os] textos teatrais nem sequer fazem sentido se a sua leitura não assumir o
pressuposto óbvio de que foram escritos para encenação em condições físicas,
culturais e políticas determinadas; só em seu contexto é possível atinar com a sua
linguagem, tanto no sentido estritamente físico (emissão vocal, ênfases e demais
tópicos dos quais se ocupa a retórica) quanto no sentido gestual (o plano das
relações entre personagens e entre estas e sua circunstância).
5
(Grifo da autora).
2
B
OAL
, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 290
3
B
OAL
, Augusto. Técnicas latino-americanas de teatro popular. Uma revolução copernicana ao contrá-
rio. 3ª ed., São Paulo: Hucitec, 1988, p. 104-105.
4
R
YNGAERT
, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 25.
5
C
OSTA
, Iná Camargo. Prefácio. In: W
ILLIAMS
, Raymond. Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São
Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 9.
Metodologicamente, esta pesquisa se apóia em pressupostos nos quais se
reconhece a historicidade da arte e pelos quais buscamos fazer uma leitura
contextualizada da peça Torquemada. Tal leitura não pretende ser exemplo que ilustra a
história da literatura nem se filia a determinado gênero; trata-se, antes, de uma
possibilidade de estudo e interpretação pela ótica do historiador. Segundo Szondi,
O que constitui a historicidade da obra de arte é a discussão, em cada obra de
arte, [...] entre aquilo que o artista pretende e aquilo que ele pressente, entre a
intenção e a condição de sua realização, entre a forma historicamente tradicional
e a matéria historicamente atual, portanto um passado e um presente cuja
comunicação na obra de arte nunca é totalmente bem-sucedida, de modo que a
obra de arte também aponta para o futuro.
6
Numa perspectiva semelhante, estão as análises de Rosangela Patriota sobre a
pesquisa dos processos de criação de determinado texto, que deve ser tomado como
obra de arte-documento que tem vínculos imbricados com o momento histórico em que
foi produzida. Nas palavras da autora,
o resgate do processo de criação/produção da dramaturgia permite pensá-la
historicamente, pois desta forma, são trazidos à luz os embates presentes no
momento da escrita. Isto não significa dizer, porém, que as encenações, e,
consequentemente, os textos críticos escritos a propósito delas, não tenham lugar
na interpretação do historiador. Na verdade, quando se pensa na possível
contraposição existente entre a escrita do texto teatral e sua posterior montagem
cênica, deseja-se evidenciar como são construídas as diversas histórias do teatro.
Por isso, não parece correto reduzir tudo à história da encenação como se isso
pudesse dar conta da complexidade do fenômeno teatral. A história elaborada a
partir das encenações é apenas uma das possíveis histórias.
7
Outra análise importante para a nossa abordagem é a de Raymond Williams,
para quem cultura não é uma esfera da consciência separada do ser social, mas que
designa um processo central e uma arena de luta social e política. Por isso é
fundamental abordar crítica e historicamente a obra, com um olhar que a enfoque em
seu contexto imediato, apurando as idéias que produziu e quais relações estabeleceu
com obras e idéias contemporâneas à criação do texto dramático.
8
6
S
ZONDI
, Peter. Das Lyrische Drama des fin de siècle. Studienausgabe der Vorlesungen Band 4.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1975. Apud S
ÜSSEKIND
, Pedro. A teoria do drama e o método
interpretativo de Peter Szondi. Folhetin, Rio de Janeiro, nº 17, mai.–ago./2003, p. 20.
7
P
ATRIOTA
, Rosangela. Vianinha: Um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999,
p. 209.
8
W
ILLIAMS
, R., Tragédia moderna, op. cit., p. 34.
A princípio, tínhamos como uma das metas partir do estudo sobre o uso do efeito
de distanciamento e da empatia na peça Torquemada, pois ao prosseguirmos à análise
verificamos que na própria elaboração da ação dos personagens havia a intenção do
autor de provocar certo efeito no leitor-espectador, sempre oscilante e não excludente:
ora com recursos para suscitar identificação com as vítimas de tortura; ora promovendo
a devida distância crítica para incitar o repúdio à violência mostrada em quase todas as
cenas.
Entretanto, compreender a organização da narrativa com maneiras variáveis de
“implicar” o leitor-espectador em relação à cena (identificação ou distância) exigiu-nos
antes uma reflexão sobre o processo criativo do dramaturgo que buscasse referências e o
repertório a que ele recorria. Diversas fontes fazem menção (depoimentos, entrevistas,
artigos publicados) ao sistema curinga como um método teatral e a dois teatrólogos
Constantin Stanislavski (1863–1938): teórico, ator e diretor russo; Bertolt Brecht,
(1898–1956): dramaturgo alemão —, sobretudo na fala de Augusto Boal sobre escolhas
estéticas ao explicar sua posição política.
Assim, nossa discussão convergiu para a elaboração e reprodução de dada
linguagem teatral — o sistema curinga —, o que implicou, de imediato, uma dificuldade
metodológica: estabelecer o recorte para essa análise, de certo modo formal, já que
poderíamos incorrer numa separação pouco prudente entre forma e conteúdo, ou optar
por uma análise exclusivamente “formalista”?
9
Aliamos-nos aqui ao pensamento de
Williams: não é possível separar forma e conteúdo, pois
[...] o impulso do artista, como todo impulso humano de comunicação, é a
percepção da importância da sua experiência; mas a atividade do artista é o
trabalho real de transmissão. Desse ponto de vista, não pode haver separação
entre “conteúdo” e “forma”, pois encontrar a forma é, literalmente, encontrar o
conteúdo — este o significado da atividade a que chamamos de “descrever”.
10
9
Formalismo é um método de crítica literária elaborado por formalistas russos entre 1915 e 1930, em
oposição à crítica acadêmica e impressionista. Interessados nos aspectos formais da obra, os formalistas
evidenciam-lhe as técnicas e os procedimentos: composição, imagens, retórica, efeito de estranhamento
etc. Os aspectos biográficos, psicológicos, sociológicos e ideológicos não são descartados, mas se subor-
dinam à organização formal. Segundo Pavis, no contexto socialista o formalismo se tornou, com rapidez,
um insulto que servia para neutralizar o adversário por falta de engajamento social e complacência com a
experimentação estética. Há formalismo, ou pelo menos acusação de formalismo, quando a forma é
separada de sua função social. Para exemplificar, Pavis se refere a Brecht quando este diz que todo
elemento formal deve ser usado para nos ajudar a compreender a causalidade social; se, ao contrário,
impede de apreender a causalidade social, então deve desaparecer. Cf. P
AVIS
, Patrice. Dicionário de
teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 175.
10
W
ILLIAMS
, Raymond. The long revolution, [1961], p. 26. Apud CEVASCO, Maria Elisa. Para ler
Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 53.
Segundo Roberto Schwarz, o uso da forma narrativa no teatro brasileiro a partir
da década de 1950 estava associado à ascensão das lutas populares e à impropriedade de
representá-las conforme a convenções do drama;
11
as novas realidades sociais, ou seja,
os novos conteúdos como a greve exigiam novas formas de exposição teatral. Na
sua avaliação,
a elaboração de formas de teatro narrativo estava sendo reinventada localmente,
bem engrenada com as condições culturais e políticas do momento. É claro que em
seguida o corpus das experiências e teorias européias a respeito seria assimilado
com avidez, mas rebatido nestas condições, que tornavam francamente produtiva a
sua entrada.
12
Apesar da autenticidade, Schwarz assegura que o surgimento do teatro épico no
Brasil não se contrapunha a uma forma artística enraizada como na Europa, onde o
questionamento da norma dramática ocorreu paralelamente à crise da ordem burguesa e
o surgimento do teatro épico veio junto com as novas realidades populares e as
perspectivas de revolução social.
13
11
De acordo com Peter Szondi, o drama da época moderna surgiu no Renascimento, representando a
audácia espiritual do homem que voltava a si depois da ruína da visão do mundo medieval, a audácia de
construir, partindo unicamente da reprodução das relações intersubjetivas, a realidade da obra na qual
quis se determinar e espelhar (p. 29). O meio lingüístico do mundo intersubjetivo era o diálogo, tornado
domínio absoluto da textura dramática após a supressão do prólogo, do coro e do epílogo. Em seus traços
essenciais, segundo formulação de Szondi em Teoria do drama moderno, a forma do drama apresenta as
seguintes características: 1 Dramaturgo: ele está ausente do drama; as palavras são pronunciadas a
partir da situação e persistem nela; de forma alguma devem ser concebidas como provenientes do autor
(p. 30). 2 Relação espectador–drama: a fala dramática não é dirigida ao público. A sua passividade
total tem de se converter em atividade irracional: arrancado para o jogo dramático, torna-se o próprio
falante pela boca de todas as personagens. Assim, tal relação conhece a separação e a identidade
perfeitas, e não a invasão do drama pelo espectador ou a interpelação do espectador pelo drama (p. 31). 3
Forma do palco: é a do “palco mágico”, não conhece uma passagem para a platéia (escadas, por
exemplo), e se torna visível existente no início do espetáculo, e amiúde mesmo após as
primeiras palavras; assim, ele parece ser criado pelo próprio espetáculo (p. 31). 4 Relação ator–papel:
de modo algum deve ser visível; ao contrário, o ator e a personagem têm de se unir, constituindo o
homem dramático (p. 31). 5 Decurso temporal: o drama é primário; sua ação, bem como cada uma de
suas falas, é “originária”, ela se dá no presente; o decurso temporal do drama é uma seqüência de
presentes absolutos: cada cena produz a próxima, cada momento deve conter em si o germe do futuro,
deve ser “prenhe de futuro” daí a exigência pela unidade de tempo (p. 32–33). 6 Entorno espacial: o
entorno espacial deve ser eliminado da consciência do espectador; deve-se evitar as mudanças de cena —
a descontinuidade espacial, da exigência da unidade de lugar (p. 33). 7 Ação dramática: exclusão do
acaso e exigência de motivação. O contigente incide de fora; mas, ao ser motivado, ele é fundamentado,
isto é, enraíza-se no solo do próprio drama (p. 33). Cf. S
ZONDI
, Peter. Teoria do drama moderno [1880–
1950]. Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
12
S
CHWARZ
, Roberto. Uma evolução de formas e seu depoimento histórico. In: C
OSTA
, Iná Camargo. A
hora do teatro épico no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 13.
13
S
CHWARZ
, R., op. cit., p. 13.
Se no Brasil, a partir da década de 1950, dramaturgos e encenadores impri-
miram, de fato, uma ênfase às formas narrativas a fim de pôr em cena questões
“nacionais” e “populares”, e se estas não eram comparáveis ao processo sociopolítico
europeu, quais foram então as especificidades do contexto nacional e da recepção do
“teatro épico”? Que relação entre a teoria do sistema curinga e a sociedade que Boal
pretendeu representar?
A teoria dos gêneros, de genealogia aristotélica,
14
estabeleceu uma concepção
particular de forma que, segundo Szondi, não conhecia a história nem a dialética entre
forma e conteúdo, pois a forma tendo sido preestabelecida era considerada histo-
ricamente indiferente; os conteúdos historicamente condicionados eram consi-
derados realização histórica de uma forma atemporal.
15
O que autorizava as primeiras doutrinas do drama a exigir o cumprimento das leis
da forma dramática era sua concepção particular de forma, que não conhecia nem
a história nem a dialética entre forma e conteúdo. Parecia-lhes que, nas obras de
arte dramáticas, a forma preestabelecida do drama realizava-se quando unida a
uma matéria selecionada com vistas a ela. Se essa realização era malsucedida, se
o drama apresentava traços épicos, o erro se achava na escolha da matéria.
16
Para Szondi, o pensamento dialético e histórico de Hegel estabeleceu a identi-
dade e a relação entre forma e conteúdo, resultando na historicização do conceito de
forma e na historicização da própria poética dos gêneros. Logo, a lírica, a épica e a
dramática se transformam, de categoria sistemáticas, em categorias históricas.
17
Outros pensadores posteriores a Hegel avançaram rumo a uma estética histórica,
a exemplo de Georg Lukács, Walter Benjamin e Theodor W. Adorno. Esse último
compreendeu a forma como conteúdo “precipitado”: metáfora que expressa ao mesmo
tempo o caráter sólido e duradouro da forma e sua origem no conteúdo, ou seja, suas
14
Ver sobre a teoria dos gêneros: A
RISTÓTELES
. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 37-75;
W
ILLIAMS
, Raymond. neros. In: Marxismo e literatura. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1979, p. 178-184. Williams aborda neste capítulo as questões da continuidade e da variação
social, cultural e histórica dos componentes do gênero: “posição” (narrativa, dramática e lírica), “modo
formal de composição” e “assunto adequado”.
15
S
ZONDI
, Peter. Introdução: estética histórica e poética dos gêneros. In: Teoria do drama moderno
[1880-1950]. Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 24.
16
Ibidem, p. 23.
17
S
ZONDI
, P., op. cit., p. 24. Embora a estética hegeliana tenha rompido com o caráter normativo da
poética, as obras de arte ainda são consideradas como exemplos de seus neros, mesmo que eles sejam
pensados historicamente. Cf. S
ÜSSEKIND
, P., op. cit., p. 20.
propriedades significativas.
18
Nesse sentido, um dos caminhos decisivos da filosofia da
arte no século
XX
para Szondi foi o de teorias cujo objeto é a historicidade da própria
obra de arte, e não seus gêneros.
19
Posto isso, as obras de arte são interpretadas quanto
à sua forma e conteúdo, a fim de revelar a estrutura de continuidade ou de ruptura com
o gênero de que fazem parte.
20
Em seu estudo sobre a teoria do drama moderno, Szondi
renuncia à poética normativa como procedimento para problematizar historicamente
uma forma poética. Com esse pressuposto, ele revela a contradição entre a forma do
drama e os novos conteúdos assimilados pelas peças, buscando explicar as diversas
formas da dramática moderna com a resolução de tais contradições.
Numa perspectiva parecida, Anatol Rosenfeld afirma a inexistência de gêneros
absolutamente puros. A teoria estabelece um esquema a que a realidade literária
multiforme, na sua grande variedade histórica, nem sempre corresponde.
21
Por isso, a
teoria dos gêneros não deve ser entendida como um sistema de normas a que os autores
teriam de ajustar a sua atividade a fim de produzirem obras líricas puras, obras épicas
puras ou obras dramáticas puras.
22
Rosenfeld trabalha com a noção de traços
estilísticos, que nas obras estão presentes em maior ou menor grau, sejam quais forem o
gênero e as características ricas, épicas e dramáticas. Não se desconsiderar aqui que
geralmente no gênero se revela pelo menos certa tendência e preponderância estilística
essencial (na Dramática pelo dramático, na Épica pelo épico e na Lírica pelo lírico)
[...].
23
No entanto, diz Rosenfeld, atribuir os traços estilísticos à descrição dos gêneros
levará a tipos ideais, puros, mas inexistentes. Ao se proceder assim, desconsideram-se
as variações empíricas e a influência de tendências históricas nas obras individuais que
nunca são inteiramente puras.
24
Em O teatro épico, esse autor procura mostrar que o
uso de recursos épicos “épico” como gênero narrativo corresponde a transfor-
18
S
ZONDI
, P., op. cit., p. 25.
19
S
ÜSSEKIND
, P., op. cit., p. 20.
20
Ibidem, p. 20.
21
R
OSENFELD
, Anatol. A teoria dos gêneros. O teatro épico. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 16.
22
Ibidem, p. 16.
23
R
OSENFELD
, A., op. cit., p. 19.
24
Ibidem, p. 21.
mações históricas que suscitam o surgir de novas temáticas, novos problemas, novas
valorações e novas concepções do mundo.
25
A compreensão do procedimento que adotamos para discutir as obras teatrais e
suas teorias pode ser mais precisa com base no pensamento de Williams de que a
abordagem das relações entre análise social e análise histórica das categorias recebidas
deve reconhecer dois fatos:
primeiro, a existência de relações sociais e históricas claras entre determinadas
formas literárias e as sociedades e períodos nos quais foram originadas ou
praticadas; segundo, a existência de continuidades indubitáveis nas formas
literárias através e além de sociedades e períodos com os quais têm essas relações.
Na teoria dos gêneros, tudo depende do caráter e processo dessas continuidades.
26
Williams nos orienta, com esse ponto de vista, que o gênero
não é um tipo ideal nem uma ordem tradicional nem uma série de regras técnicas.
É na combinação prática e variável e até mesmo na fusão daquilo que constitui,
abstratamente, diferentes níveis do processo material social, que o gênero como o
conhecemos, se transforma num novo tipo de evidência constitutiva.
27
Posto isso, a não-existência de obras puras, a relação dialética entre forma e
conteúdo e a relação estreita entre teoria estética, produção dramática e realidade social
são, por assim dizer, as diretrizes que guiam nossa proposta, qual seja: discutir aspectos
da produção teórica de Boal de forma a mostrar como ele incorpora elementos da
concepção de teatro épico de Brecht à formulação da teoria do curinga sem descartar,
por exemplo, o repertório de correntes como o naturalismo. Isso porque os vários textos
dedicados a interpretar encenações baseadas no sistema curinga (depoimentos,
ensaios/críticas de participantes e analistas, contemporâneos ou não), tomados aqui
como documentos, apresentam versões diferentes para a mesma experiência. Parte da
crítica direcionada à encenação de Arena conta Zumbi
28
(1965) e Arena conta
25
Ibidem, p. 12. A primeira publicação de O teatro épico data de 1965. Segundo Sábato Magaldi, a obra
correspondia a um anseio geral de saber-se o que significava teatro épico, em virtude da grande voga
naqueles anos conhecida pelas peças e pelas teorias de Bertolt Brecht (ibidem, p. 8). Possivelmente, as
concepções de teatro épico e seus variados recursos demonstrados por Rosenfeld foram debatidos no
grupo do Teatro de Arena e por críticos e professores vinculados à Escola de Arte Dramática de São
Paulo (
EAD
), da qual participou também Augusto Boal, como docente logo, a obra pode ser uma das
referências para a apropriação da estética brechtiana que fizeram Boal e contemporâneos.
26
W
ILLIAMS
, R., Gêneros, op. cit., p. 182.
27
Ibidem, p. 184.
28
Arena conta Zumbi estreou em de maio de 1965, no Teatro de Arena de São Paulo. Com texto de
Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, a peça tinha, no elenco, Anthero de Oliveira, Chant Desian
Tiradentes
29
(1967) menciona uma apropriação indevida do efeito de distanciamento
brechtiano, ou mesmo certa inadequação aos propósitos dos autores as quais foram
problematizadas no decorrer desta pesquisa.
À parte a dificuldade metodológica para se abordar o sistema curinga, impôs-se
outra questão: com que critério um historiador fala das lutas e agentes de uma época
que não é a sua?.
30
Listar as variadas versões nos possibilita compreender melhor o
passado? O registro documental é capaz de nos falar sobre um passado? Para Vesentini,
analisar com rigor o documento, saber relacioná-lo, nesse labor, com textos
próximos, soa como nossa própria razão de ser. Ao lado do fato, o documento
surge como mais um ponto, quase irredutível, de referência obrigatória. Para nós,
uma época se expressa através dele.
31
Se “as versões herdadas” não nos satisfazem, melhor então deixarmos os
próprios agentes “falarem” sobre suas vivências,
[...] verificar quais os participantes, seu âmbito, seus textos, suas versões. Cotejá-
las. Diminuir o impacto de algumas. Dar vazão a percepções esquecidas, cuja
riqueza transparece aos nossos olhos, mas, lá, perdeu-se. Reunir dados, de valor
então não percebido, para problemas e perguntas que somente agora se tornam
possíveis. Por certo nada disso faltou através dos anos e das sucessivas
interpretações.
32
Foram essas as perspectivas que, em certo sentido, orientaram o manuseio dos
depoimentos dos participantes do Arena sobre a relação palco–público e os textos
teóricos de Boal acerca do sistema curinga. Buscamos, ainda, compreender a visão do
(Isaías Almada), David José, Dina Sfat (Susana de Morais), Gianfrancesco Guarnieri, Lima Duarte,
Marília Medalha, nya Santana; e, dentre os músicos, Carlos Castilo, Anunciação e Nenê. A música é
de Edu Lobo e a direção musical, de Carlos Castilho. A montagem cinematográfica ficou nas mãos de
Cecília Guarnieri, Flávio Império, Thomaz Farkas, Rodrigo Lefevre, Luís Kupter, Maurice Capovilla; e a
iluminação, a cargo de Orion de Carvalho.
29
Arena conta Tiradentes estreou em 21 de abril de 1967, no Teatro de Arena de São Paulo, sob direção
de Augusto Boal. Com texto assinado pelo diretor e por Gianfrancesco Guarnieri, a peça incluía, no
elenco, Gianfrancesco Guarnieri, Renato Consorte, David José, Jairo Arco e Flexa, Sylvio Zilber, Cláudio
Pucci, Dina Sfat, Vanya San’Anna. Cenários e figurinos foram concebidos por Flávio Império, e a
iluminação ficou por conta de Orion de Carvalho. As músicas foram compostas por Theo Barros, Sidney
Miller, Caetano Veloso, Gilberto Gil; a direção musical ficou com Theo Barros. As formulações teóricas
sobre o Sistema do Coringa foram apresentadas no programa da peça por meio de dois ensaios de Boal:
“Tiradentes: questões preliminares” e “Quixotes e Heróis”.
30
V
ESENTINI
, Carlos Alberto. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a memória história. o
Paulo: Hucitec, 1997, p. 15.
31
Ibidem, p. 80.
32
V
ESENTINI
, C. A. op. cit., p. 83.
dramaturgo das noções distância e identificação, relacionando-a com a maneira pela
qual ele manipulou tais efeitos na peça Torquemada.
Os pontos centrais do capítulo
I
,
“Teatro de Arena e participação de Augusto
Boal”, foram: a problematização de questões relativas ao público do Arena — embasada
no depoimento de membros-participantes do grupo e na interpretação de críticos e de
estudos acadêmicos posteriores e as referências stanislaviskianas e brechtianas na
atividade artística de Boal, considerando fundamentalmente o sistema curinga. Nos
depoimentos, muitas vezes encontramos elementos indicativos das formas de orga-
nização interna do Teatro de Arena e de participação dos diferentes indivíduos na sua
história, comungando idéias e projetos entre si, em certos momentos, e, em outros,
cindindo, em intensas discussões, posições e opiniões — cisões essas que sempre
provocaram mudanças na composição do grupo em sua trajetória de mais ou menos 18
anos.
No capítulo
II
, “O sistema curinga”, enfrentamos os textos teóricos escritos por
Augusto Boal, onde estão descritos os fundamentos do sistema curinga. Procuramos
compreender as formulações do autor, assim com as tensões evidentes na preparação da
encenação de Arena conta Tiradentes (1967). Verificamos também as interpretações
elaboradas por críticos e por acadêmicos.
No capítulo
III
, “As práticas de violência política narradas em Torquemada”,
procuramos interpretar o texto dramático Torquemada, cientes de que a forma não
existe em si e que a estrutura do sistema curinga faz sentido quando associada a um
conteúdo transmitido.
A relação entre a feitura de uma obra de arte e
sua recepção é sempre ativa e está sujeita às
convenções, que em si mesmas são formas de
organização social (cambiante) e de relações, e
isso é algo totalmente diferente do consumo de
um objeto.
33
Raymond Williams
33
R
AYMOND
, Williams. Base and superstructure in Marxist cultural theory. [1973]. In: Problems in
materialism and culture, p. 47. Apud C
EVASCO
, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz
e Terra, 2001, p. 161.
O Teatro de Arena de São Paulo foi criado em 1953, pelo diretor José Renato, e
desarticulado em 1971, em decorrência da edição do Ato Institucional nº 5 — em
dezembro de 1968, que impôs severas restrições à atuação do grupo e por causa de
graves problemas financeiros. Nessa trajetória, de mais ou menos 18 anos, o Arena
contou com a participação de numerosos artistas, colaboradores e espectadores. Os
projetos elaborados, a prática teatral, as perspectivas de engajamento, as obras
dramatúrgicas criadas e os espetáculos encenados foram tão variados e transformados
nesses anos de existência quanto a composição de seus participantes.
A produção artística e os debates constantes relativos à arte e política no interior
do grupo foram acompanhados, de perto, por críticos teatrais, jornalistas e comentadores
diversos, que compuseram um conjunto amplo de registros e fontes: reportagens
jornalísticas, ensaios críticos publicados em revistas especializadas e jornais, entrevistas
e depoimentos de participantes, entre outros. Tais fontes e documentos possibilitaram
estudos e pesquisas posteriores, que foram referências fundamentais à elaboração da
narrativa da história do Arena.
34
O trabalho de críticos e estudiosos do teatro resultou em uma produção sobre a
trajetória do grupo na qual os autores, com base nas críticas elaboradas durante os
acontecimentos e apropriando-se das reflexões e memórias produzidas pelos seus
34
Sobre a historiografia do Teatro de Arena, registros de críticas, ensaios e memórias dos participantes,
existe uma vasta bibliografia, dentre as quais destacamos: B
OAL
, Augusto. Teatro do Oprimido e outras
poéticas políticas. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977; G
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Arena e Teatro Oficina o político e o revolucionário. Campinas, 1977. Dissertação (Mestrado em
Ciência Política) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas,
Campinas (
SP
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MEC
/
SEC
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padeiro memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000; P
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ria e teatro: a historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: M
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Rosangela. Política, cultura e movimentos sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia:
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LIVEIRA
,
Sírley Cristina. A ditadura militar (1964–1985) à luz da Inconfidência Mineira nos palcos brasileiros: em
cena “Arena conta Tiradentes” (1967) e “As confrarias” (1969). 2003. Dissertação (Mestrado em
História) Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia 2003; A
LMADA
,
Izaías. Teatro de Arena: uma estética da resistência. 1ª ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
participantes, evitaram problematizá-lo. Esse procedimento, como observou a
historiadora Rosangela Patriota, mostra-nos que os registros foram usados com
recorrência, como se fossem portadores das interpretações mais corretas sobre os
acontecimentos.
35
Por isso, neste trabalho optamos por um fazer um recorte específico:
tratar de determinados aspectos da relação teatral entre autores, atores e platéia.
O
TEATRO POPULAR E O PÚBLICO POPULAR NO
A
RENA
Desde o início do Teatro de Arena, o palco circular foi determinante na relação
que se estabeleceu entre artistas e platéia.
José Renato integrou a primeira formação de artistas do grupo, constituída por
jovens atores formados pela Escola de Arte Dramática. Segundo ele, a opção pela forma
do palco em arena foi determinada pelo baixo custo, que viabilizava fazer teatro e
sobreviver da profissão: Teatro que podia ser feito de maneira despojada com
cenografia apenas sugerida e com recursos de iluminação também mais ou menos
simples.
36
Renato diz que, nos primórdios do Arena, o que se queria atingir era um
público diferente do que freqüentava o Teatro Brasileiro de Comédia (
TBC
).
37
Em 1956, o Teatro de Arena passou a contar com os atores Oduvaldo Vianna
Filho e Gianfrancesco Guarnieri, ligados ao movimento estudantil e oriundos do Teatro
Paulista do Estudante (
TPE
),
38
e o diretor Augusto Boal, que trazia na bagagem estudos
sistemáticos de dramaturgia e o contato com a teoria stanislaviskiana de representação
do ator, no Actor’s Studio, em Nova Iorque (
EUA
). Dessa formação, advém um projeto
estético-político orientado à idéia de um teatro com enfoque nas preocupações
sociohistóricas daquele momento. À dramaturgia, novos temas e personagens foram
35
P
ATRIOTA
, Rosangela. História, memória e teatro: a historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In:
M
ACHADO
, Maria Clara T.; P
ATRIOTA
, Rosangela. Política, cultura e movimentos sociais:
contemporaneidades historiográficas. Uberlândia: Edufu, 2001, p. 205.
36
R
ENATO
, José. Interview de JoRenato. In: R
OUX
, R. Le Theatre Arena (São Paulo 1953–1977). Du
“théatre en rond” au “théâtre populaire”. Provence: Université de Provence, 1991, p. 625.
37
R
ENATO
, José. Interview de José Renato. In: R
OUX
, R., op. cit., p. 629.
38
Grupo de teatro amador, o
TPE
era um órgão da União Paulista de Estudantes Secundários, fundado,
provavelmente, em 1955, sob a coordenação de Ruggero Jacobbi. Entre seus membros, estavam
Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Vera Gertel, Regina Helena e Mariusa Vianna. No
início de 19565, o Arena e o
TPE
formalizaram um acordo em aquele cedia o teatro a este para que
pudessem apresentar alguns espetáculos; posteriormente, os dois grupos se fundiriam.
incorporados: greve operária, corrupção no futebol, exploração dos trabalhadores,
excluídos e outros.
Tendo como referência essa composição do Arena, Paulo José, rememora
momentos nos quais participou como espectador
39
e recompõe a perspectiva do público
transmitindo-nos a idéia de que a relação entre três elementos o palco em arena, o
método stanislaviskiano de representação do ator e um conteúdo brasileiro propiciou
a criação de um novo tipo de teatro no qual a relação palco–platéia foi inteiramente
transformada.
Eu fazia teatro em Porto Alegre mas fui assistir o Black-tie, depois Chapetuba e
são grandes emoções de minha vida... de acabar o espetáculo e ficar sentado sem
conseguir sair do lugar [...].
Ao mesmo tempo, [...] havia essa temática brasileira e havia uma outra coisa
que estava muito ligada ao trabalho do Stanislavski e do Boal que era o trabalho
da inter-relação. De que se trata? É o teatro, não o teatro de vedete, é um teatro
sem publicotropismo, sem o cabotinismo teatral, do ator, individual, que faz o seu
espetáculo para o público. O Arena desenvolveu um jogo entre atores a partir da
idéia da inter-relação, do Stanislavski mesmo.
No teatro circular do Arena, isso era fundamental porque havia sempre alguém de
costas para um setor da platéia. Então, muitas vezes, a ação principal está com um
ator que está de costas sempre está de costas para alguém mas o espectador
percebe, exatamente, tudo o que está acontecendo com ele pelo rebatimento que a
atuação dele tem nos outros que estão apenas ouvindo. É a idéia que os outros
funcionam como espelhos. E cria um tipo de trabalho de grande coesão, no sentido
coletivo mesmo, de grupo.
E isso é novo, também. O público estava acostumado a ver os atores trabalhan-
do todos como se fossem solitários, no palco; cada um ocupando com a sua parte,
com a sua posição, com o seu lugar aonde vai ficar. E, geralmente, quer dizer no
teatro da estrela, a posição central era a posição do protagonista e o resto rodava
pela volta.
O teatro de Arena destrói esse espaço, inclusive, destrói o espaço autoritário do
palco italiano também. A relação palco/platéia é outra. É um espaço comunitário,
um espaço circular. Assim o Arena criou uma idéia de teatro inteiramente nova e
mobilizou muito mais pessoas para fazerem teatro também.
40
Consoante a avaliação de Paulo José, compreendemos que a alteração social dos
artistas e do lugar ocupado por eles no palco redimensionou de algum modo a recepção
do público, apontando inclusive para novas práticas teatrais do Arena.
No entanto, percebemos em alguns escritos que tratam da relação entre palco e
platéia, a concepção segundo a qual a propostas de seus artistas era contraditória com a
39
Paulo José se integrou ao grupo do Arena no ano de 1961 no espetáculo Revolução na América do Sul,
quando da sua encenação em Porto Alegre.
40
R
ENATO
, José. Interview de Paulo José. In: R
OUX
, R. op. cit., p. 438.
efetiva prática que desenvolviam. Esta interpretação consistia no julgamento de que o
projeto artístico do Arena, calcado na perspectiva de um teatro popular, não conseguia
atingir, de fato, o público popular. Algumas abordagens ainda apontavam que os
dramaturgos operavam uma manipulação ideológica do público por meio do espetáculo
teatral.
Ante tal constatação, procuramos questionar os significados que os próprios
participantes do Teatro de Arena atribuíram à noção de popular, teatro popular e
público popular. O que denominaram de um teatro popular? Que projeto artístico
tinham eles? Os projetos e propósitos foram homogêneos durante a existência do grupo,
ou foram divergentes e variáveis no decurso do tempo? Como os artistas do Arena
elaboraram (na escrita de textos explicativos e em depoimentos) a representação da
categoria público? A que público visavam?
Em seguida, confrontaremos algumas avaliações concernentes a essa questão
elaboradas por Roberto Schwarz, Edélcio Mostaço, Sírley Cristina Oliveira e
Mariângela Alves de Lima, cujos trabalhos foram selecionados por serem referências
importantes da narrativa histórica do Arena. Nossa intenção, portanto, é ressaltar as
divergências e/ou confluências dessas concepções e os projetos de alguns dos
participantes do Arena, assim como as transformações ocorridas no pensamento, no
posicionamento político e mesmo nos projetos desses artistas no decorrer do tempo.
Acreditamos que assim evitamos a redução de temas bastante complexos à época a um
sentido único para a história do Teatro de Arena.
Significados do teatro popular professados por participantes do Arena
Embora não esteja em nosso horizonte pesquisar a recepção no público do
Teatro de Arena, acreditamos que os registros nos quais parte dos participantes reflete
sobre a própria prática teatral podem oferecer-nos alguns indícios de como a produção
cultural do grupo pressupunha seus efeitos.
Em fins dos anos 50, no texto “O teatro como expressão da realidade nacional”,
Gianfrancesco Guarnieri apresenta um quadro de preocupações que permearam as
discussões do grupo sobre a construção de uma nova dramaturgia nacional,
41
cujo
41
Essas discussões foram realizadas durante os seminários de Dramaturgia, cujas atividades começaram
em abril de 1958; os integrantes eram Augusto Boal, Barbosa Lessa, Beatriz Segall, Flávio Migliaccio,
propósito era abordar temas sociais e problemas do povo, refletindo um conteúdo de
classe e a realidade objetiva; analisar e propor soluções de problemas; definir-se ao lado
do proletariado e das massas exploradas; bem como dizer algo de concreto sobre a vida,
movimentando os personagens em um ambiente concreto, e não de sonho.
Demarcados os objetivos, Guarnieri então define cultura popular como arte
popular fruto direto dos mais autênticos sentimentos populares,
42
contendo elementos
indispensáveis para uma apreciação acertada de tudo o que se diz sobre a vida, o ho-
mem, a sociedade.
43
Com base nessa arte, empírica e autêntica, o teatro popular deveria
alcançar realmente as grandes massas. Com espetáculos realizados para todas as
classes e o apenas para uma minoria (grifo nosso).
44
A cultura popular, então, é
tomada como fonte de inspiração para a criação das obras teatrais pressupondo que estas
deveriam ter a função social de falar dos problemas do povo (proletariados). Ansiava-se
que os espetáculos fossem vistos também por esse público.
No entanto, Guarnieri alerta para o fato de que os artistas e as companhias de
teatro não tinham como enfrentar os problemas econômicos que impediam esse projeto;
só o Estado poderia fazê-lo, e para isso era necessária uma conquista no terreno político.
Se o ideal de um teatro popular parecia utópico, o que os artistas podiam efetivamente
fazer? Poderiam, segundo Guarnieri,
Chico de Assis, Gianfrancesco Guarnieri, José Renato, Maria Tereza Vargas, Manuel Carlos, Miguel
Fábregues, Milton Gonçalves, Nélson Xavier, Oduvaldo Vianna Filho, Roberto Freyre, Raymundo Victor
Duprat, Roberto Santos, Sábato Magaldi e Zulmira Ribeiro Tavares. O Seminário de Dramaturgia do
Teatro de Arena foi organizado em caráter permanente, reunindo-se inicialmente todas as manhãs de
sábado e durou quase dois anos, com interrupções. Era constituído por um núcleo central de elementos
do próprio Arena. Reunia também gente não pertencente ao grupo interessada em discutir problemas
teatrais. Teve ramificações em várias cidades onde o Arena se apresentou, como Rio e Recife. A inclusão
de novos dramaturgos, que quisessem ter seus textos discutidos, estava condicionada à apresentação de
um original, que deveria ser aprovado em reunião do grupo (p. 67). Cf. G
UIMARÃES
, Carmelinda.
Seminário de dramaturgia: uma avaliação 17 anos depois. Dionysos, 24. Rio de Janeiro:
MEC
/
SEC
/
SNT
,
1978, p. 64–82.
Em agosto de 2000, no ciclo Odisséia do Teatro Brasileiro, no Ágora Centro para o Desenvol-
vimento Teatral, em São Paulo, Guarnieri disse, ao rememorar suas atividades no seminário, que Black-
tie impulsionou a produção dramatúrgica de um grupo de jovens, mas que nos seminários de Dramaturgia
a preocupação no início era mais fazer uma crítica “ideológica” do que discutir a peça e o papel do
dramaturgo. Com isso, segundo Guarnieri, o “dogmatismo”, o “esquerdismo” e o “sectarismo” acabaram
por afastar algumas pessoas do grupo. Ele acredita que depois, com o aprendizado, houve uma libertação
desse dogmatismo. G
UARNIERI
, Gianfrancesco. Mesa II Aimar Labaki e Gianfrancesco Guarnieri. In:
G
ARCIA
, Silvana (org.). Odisséia do teatro brasileiro. São Paulo: Senac, 2002, p. 68–69.
42
G
UARNIERI
, Gianfrancesco. O teatro como expressão da realidade nacional. Arte em Revista, 6
(Teatro). São Paulo:
CEAC
/Kairós, 1981, p. 7.
43
G
UARNIERI
, G. O teatro como expressão..., op. cit., p. 7.
44
G
UARNIERI
, G. O teatro como expressão..., op. cit., p. 7.
[...] fazer um teatro de temas populares, cantando as possibilidades, conquistas e
lutas de nosso povo, impondo uma cultura popular, demonstrando à minoria que
vai a teatro o que ela ignora, não perdendo oportunidade de uma vez ou outra,
realizarmos espetáculos para as grandes massas e, na platéia, através de uma luta
política, batalharmos pelas reivindicações mais sentidas de nosso povo, colocando
entre elas o teatro.
45
Em 1959, no texto “Tentativa de análise do desenvolvimento do teatro
brasileiro”, Augusto Boal afirma que o público popular ainda não existia; até aquele
momento, era composto, em essência, pela classe média e eventualmente pelo prole-
tariado, quando aconteciam encenações esporádicas em algum sindicato. Era necessário
criar condições para que uma platéia popular aparecesse com a nacionalização do teatro
brasileiro e com o surgimento de autores nacionais. Para Boal, essas questões
orientaram os seminários de Dramaturgia rumo a um teatro brasileiro com temas que,
uma vez mais objetivos e socialmente atuantes, provocariam, por conseqüência, o
crescimento do público popular.
E o que quer dizer teatro popular para Boal? Significa a junção de um teatro que
colocaria no palco personagens e temáticas da realidade da classe proletária com uma
platéia, também, constituída por trabalhadores. Diz ele:
não nos referimos ao teatro de “muita gente”. Popular não é sinônimo de casa
lotada. Significa que, prosseguindo o seu desenvolvimento dialético, o teatro bra-
sileiro incorporará, pela primeira vez, uma platéia operária. A inclusão de uma
nova platéia e o surgimento de uma nova dramaturgia não virão eclipsar o
existente.
46
Oduvaldo Vianna Filho, no texto “Momento do teatro brasileiro”, escrito em
outubro de 1958, ano da encenação da peça Eles não usam black-tie, falou sobre a
necessidade de definição do teatro nos seguintes termos: prevalece a então cômoda
realização de espetáculos bem montados com peças alienadas para o povo, de gosto
literário duvidoso e com interpretação baseada na superficialidade da emoção,
compondo um teatro alienado, que se requinta em pseudobeleza plástica,
pseudograndes interpretações e montagens, um teatro vazio, pretensioso; ou prevalece a
realização de espetáculos em que a procura pelo autêntico, pelo humano, pelo urgente
mesmo é o que estabelece a ligação imediata do teatro com nossa vida?
45
Ibidem, p. 7.
46
B
OAL
, Augusto. Tentativa de análise do desenvolvimento do teatro brasileiro. [1959]. Arte em Revista,
nº 6, op. cit., p. 10.
Um teatro comercial ou um teatro brasileiro, com raízes na nossa vida e na nossa
cultura, que é o único que pode sobreviver, criar e tornar-se um verdadeiro
teatro? A resposta vem dos jovens na sua maioria, e são os jovens que compõem a
maioria do teatro brasileiro: um teatro nacional. Um teatro que procure a reali-
dade brasileira, que apreenda o sentido do seu desenvolvimento e que lute ao lado
dele.
47
(Grifo nosso).
Guarnieri e Boal entendem teatro popular como o que tem como fonte de
produção a cultura e a realidade popular empírica e autêntica. Quanto ao público,
Guarnieri almejava “atingir realmente as grandes massas”; Boal, que constasse da sua
platéia, também, a classe operária. Vianna se preocupou em definir um teatro realmente
brasileiro, “com raízes na nossa vida e na nossa cultura”, e contato com a vida, com a
realidade brasileira. No pensamento dos três, observam-se pontos de confluência entre
os projetos artísticos: uma determinada visão sobre a função social do teatro.
No entanto, podemos ver com clareza que, embora houvesse um conjunto de
atitudes partilhadas no que se refere à arte nesse período, alguns dos participantes
divergiram e elaboraram projetos alternativos a essa hegemonia; dentre estes, o caso
mais expressivo é o de Oduvaldo Vianna Filho. A fim de redimensionar a própria
atuação artística, ele se desliga do grupo para ajudar a criar o Centro Popular de Cultura
(
CPC
), em 1961. Aqui, as diferenças individuais internas do Arena merecem atenção à
luz do que diz Williams:
[...] os indivíduos [...] que ao mesmo tempo constroem as formações e por elas são
construídos têm uma série bastante complexa de posições, interesses e influências
diferentes, alguns dos quais são resolvidos pelas formações (ainda que, por vezes,
apenas temporariamente) e outros que permanecem como diferenças internas,
como tensões e, muitas vezes, como os fundamentos para divergências e rupturas
subseqüentes, e para ulteriores tentativas de novas formações.
48
No texto “Do Arena ao
CPC
”, publicado em 1962, na revista Movimento, da
União Nacional de Estudantes (
UNE
), além de discutir aspectos da cultura popular,
Vianna revela as razões da ruptura com os pressupostos políticos e estéticos do Teatro
de Arena, ao qual faz severas críticas, sobretudo às relações entre palco e platéia. Ele
avalia a atuação do Arena nestes termos:
47
V
IANNA FILHO
, Oduvaldo. Momento do teatro brasileiro. In: P
EIXOTO
, Fernando (org.). Vianinha:
teatro–televisão–política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 23–24.
48
W
ILLIAMS
, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 85. O autor conceitua formação como
as formas de organização e de auto-organização dos produtores culturais.
O Arena era porta-voz das massas populares num teatro de cento e cinqüenta
lugares... O Arena não atingia o público popular e, o que é talvez mais importante,
não podia mobilizar um grande número de ativistas para o seu trabalho. A
urgência de conscientização, a possibilidade de arregimentação da intelectua-
lidade, dos estudantes, do próprio povo, a quantidade de público existente,
estavam em forte descompasso com o Teatro de Arena enquanto empresa. Não que
o Arena tenha fechado seu movimento em si mesmo; houve um raio de ação
comprido e fecundo que foi atingido com excursões, com conferências etc. Mas a
mobilização nunca foi muito alta porque não podia ser muito alta. E um
movimento de massas pode ser feito com eficácia se tem como perspectiva
inicial a sua massificação, sua industrialização. É preciso produzir conscien-
tização em massa, em escala industrial. assim é possível fazer frente ao poder
econômico que produz alienação em massa. O Teatro de Arena, esbarrando aí,
não teve capacidade, naquele movimento, de superar esse antagonismo. O Arena
contentou-se com a produção de cultura popular, não colocou diante de si a
responsabilidade de divulgação e massificação.
49
Outra crítica ao antagonismo do Arena, e também ao “sectarismo” do
CPC
, vem
do ator Nelson Xavier, despertada quando ele entrou em contato com o Movimento de
Cultura Popular de Pernambuco (
MCP
)
50
e aderiu a uma noção de teatro popular em que
era fundamental realizações práticas entre o povo, na comunidade e organizações, com
participação direta na sua luta.
[...] a partir de um certo momento ficou claro e a gente não quis mais o Arena. Por
isso que explodiu. Não dava para fazer teatro popular para palco pequeno-
burguês, para gente que pagava bilheteria assim.
51
No Nordeste, a minha cabeça pirou, porque não sabia que o Brasil era assim.
Fiquei muito ligado ao Nordeste e a Pernambuco, especialmente. Tanto que,
depois, eu voltei para lá, para trabalhar no
MCP
queexistia. Pois já existia uma
cultura popular e existia um fermento em torno disso, um trabalho, uma
militância em torno dessa plataforma que, aí, é que foi assumida.
52
49
V
IANNA FILHO
, Oduvaldo. Do Arena ao
CPC
. In: P
EIXOTO
, F. op. cit., p. 93.
50
O Movimento de Cultura Popular (
MCP
) foi fundado em 13 de maio de 1960, como sociedade civil
autônoma com sede no sítio de Trindade, localizado na estrada do Arraial, Pernambuco, e encerrou as
atividades em 1964, logo após o golpe militar. O movimento reuniu diversos artistas e intelectuais, entre
os quais, Paulo Freire, Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, Paulo Rosas, Anita Paes Barreto, Luiz
Mendonça, Norma Porto Carneiro Coelho. A divisão de teatro do
MCP
, o Teatro de Cultura Popular (
TCP
),
tinha como projeto um teatro popular que usasse a cultura popular nordestina para retratar o cotidiano, os
problemas e a cultura do povo, como caminho para uma visão crítica do contexto social. As atividades
teatrais aconteciam no Teatro do Povo — uma lona de circo com espaço para 500 pessoas — e na Concha
Acústica do Arraial de Bom Jesus que abrigava de três a cinco mil pessoas. Cf. T
ELLES
, Narciso. Um
teatro para o povo: a trajetória do Teatro de Cultura Popular de Pernambuco. ArtCultura, 1, v. 1,
Uberlândia, 1999, p. 29–33.
51
X
AVIER
, Nelson. Interview de Nelson Xavier. In: R
OUX
, R., op. cit, p. 499.
52
Ibidem, p. 487.
As minhas discordâncias políticas com o Vianna começaram quando eu vi o
Nordeste e vi como era o
MCP
. Porque o
CPC
era muito comunista, muito fechado,
muito sectário.
53
As atividades de teatro popular no
MCP
se referiam à assessoria teatral, ao
trabalho de alfabetização e à teatralização de debates em associações de bairro, dentre
outras instâncias, por meio dos quais se realizava o levantamento de problemas
(abastecimento de água, montagem de uma escola para alfabetizar adulto etc.). Assim, o
processo de passagem de um problema particular à dramatização desse problema
ocorria — segundo Xavier — assim:
a gente tinha contato com o pessoal [...] conversava, eu lia o material eu
escrevia um pequeno auto de uma página, só para iniciar, para estimular o debate.
[...] Então, a gente dramatizava um pouco [...] usando a linguagem deles. Mas era
uma coisa muito precária, muito rudimentar, para estabelecer o estímulo emo-
cional para debate. [...] A gente mesmo que escrevia ou estimulava quem escre-
vesse. Era uma coisa muito elementar mesmo; mas o que eu sentia com isso é que,
pelo tema, pela resposta, por tudo, era um teatro que estava junto, vivendo junto
com o povo.
54
(Grifo nosso).
O público de diferentes comunidades demonstrou, perante os espetáculos do
Arena, modos de recepção específicos, como podemos verificar na narrativa de Milton
Gonçalves, ator do Arena, ao revelar aspectos interessantes sobre os espectadores da
montagem de Revolução na América do sul no Recife:
Sei que quase não tivemos oportunidade de levar o teatro para o público que realmente
desejávamos. Não que não tivéssemos procurado esse público. Nós fomos atrás dele, anda-
mos pelo país, fizemos espetáculos em sindicatos, em bairros, em cidade do país onde
nenhum grupo de teatro jamais pensou em ir. Mas acontece que muitas vezes os nossos
espetáculos tinham uma certa rigidez que os tornava pouco interessantes para o povão. É
uma tristeza lembrar de um espetáculo que fizemos na Casa Amarela, no Recife, para
3.000 espectadores. Era Revolução na América do Sul. A maior parte do blico foi
embora. Chovia, havia um microfone e o som estava péssimo. Mas eu acredito que se a
coisa realmente tivesse interessante para eles, teriam ficado.
55
Luís Mendonça, coordenador do Teatro de Cultura Popular (
TCP
),
56
diz que esse
mesmo espetáculo obtivera enorme sucesso, na véspera, ante uma platéia estudantil e
53
Ibidem, p. 489.
54
Ibidem, p. 493-494.
55
G
ONÇALVES
, Milton. Milton Gonçalves: um depoimento. In: Dionysos, 24, Rio de Janeiro:
MEC
/
DAC
-
FUNARTE
/
SNT
, out./1982, p. 95.
56
Sobre o
TCP
, ver nota 18.
que, no entanto, não obteve boa recepção entre o público da Casa Amarela, composto
basicamente por proletários.
Ainda em Casa Amarela, na Concha Acústica do Arraial do Bom Jesus,
apresentamos Revolução na América do Sul, pelo Teatro de Arena de São Paulo,
que obtivera na véspera um sucesso enorme perante uma platéia estudantil. O
espetáculo foi recebido com frieza pelo público proletário da Casa Amarela. a
coisa mudava de figura: um espetáculo de S. Paulo com grandes nomes do
profissionalismo brasileiro, com um texto que nos parecia excelente e ainda não
dava certo? Foi por que a aparelhagem de som não estava boa? Ou o público não
tinha entendido aquele operário que não sabia “o que era sobremesa?”.
57
Tais considerações evidenciam que um mesmo espetáculo teatral apresentado
pelos mesmos atores mas em diferentes comunidades ou para segmentos sociais
distintos pode resultar em interações variáveis e imprevisíveis entre palco e platéia, o
que faz surgir outros significados e, muitas vezes, frustra as expectativas dos próprios
atores, habituados a determinado público. Nesse sentido, Hans Robert Jauss, ao discutir
a interação entre autores e leitores, alerta-nos sobre as diversas possibilidades de
construção de sentidos:
É de modo parcial que a necessidade estética é manipulável, pois a produção e
reprodução da arte, mesmo sob as condições da sociedade industrial, não
conseguem determinar a recepção: a recepção da arte não é apenas um consumo
passivo, mas sim uma atividade estética, pendente da aprovação e da recusa [...].
58
Pode-se depreender ainda que, na criação de uma peça, os dramaturgos tinham
no horizonte as práticas, as expectativas e as competências do público
59
que iria assistir
aos espetáculos do Teatro de Arena — e certamente compreenderia, em alguma medida,
os códigos, as relações subentendidas, as alusões, as alegorias, assim como as novas
formas de apresentar um conteúdo
60
e imprimiam no texto e na encenação as
57
M
ENDONÇA
, Luís. Teatro é festa para o povo. Experiência no Teatro de Cultura Popular de Pernam-
buco. Revista Civilização Brasileira. Caderno especial nº 2 — Teatro e realidade brasileira. Rio de
Janeiro, ano 1, julho de 1968, p. 153.
58
J
AUSS
, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In: J
AUSS
, H. R. et al. A literatura e o
leitor: textos de estética da recepção. Trad. Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 57.
59
C
HARTIER
, Roger. O mundo como representação. In: À beira da falésia: a história entre incertezas e
inquietude. Trad. Patrícia C. Ramos. Porto Alegre: Editora da Universidade (
UFRGS
), 2002, p. 76.
60
Podemos nos remeter também à noção de convenção teatral, que, segundo Pavis, é um contrato firmado
entre autor e público, segundo o qual o primeiro compõe e encena sua obra de acordo com normas
conhecidas e aceitas pelo segundo. A convenção compreende tudo aquilo sobre o que platéia e palco
devem estar de acordo para que a ficção teatral e o prazer do jogo dramático se produzam. P
AVIS
,
Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 71.
representações das divisões sociais. Ao escrever o texto de uma peça, o dramaturgo
supõe a encenação, da qual participa obrigatoriamente o público.
61
Com o golpe militar de 1964, a censura às produções culturais estabeleceu-se
paulatinamente, o que dificultou muito a situação do teatro, pondo fim até a
experiências de grupos teatrais como
CPC
e
TCP
. Foi preciso repensar as formas de
atuação e sobrevivência, e buscar soluções estéticas que considerassem tais fatores
conjunturais. Surgiu então, com a participação de artistas do extinto
CPC
, uma nova
formação teatral, o grupo Opinião; ao mesmo tempo, Arena e Oficina realizaram
espetáculos memoráveis, pelos quais conclamavam à resistência ao arbítrio. Em geral
associado a um divisor de águas na produção do Arena, esse marco político implicou
alterações consideráveis na atitude de seus artistas para com o público.
62
Embora houvesse a necessidade de se contrapor e criticar a condução política
dos militares, o teatro estava cerceado. Então, como articular um tipo de resistência?
Como ampliar a comunicação diante da Censura? Nessa nova conjuntura, uma das alter-
nativas adotadas pelos artistas foi estabelecer certa identidade com a platéia de jovens
estudantes e intelectuais por meio da linguagem musical. Sobre isso, diz Guarnieri:
[...] nós não queríamos abrir mão da nossa dramaturgia e estava difícil [...] porque
a Censura imediatamente radicalizou mesmo e não queria saber de nada. Existiam
temas-tabus, e então durante algum tempo muita gente de fibra partiu para a
História e começamos a descobrir analogias: “Vamos falar do hoje lançando mão
do ontem”. Outra coisa importante que descobrimos: a música. Sacamos que a
música poderia ter uma função realmente grande dentro dos espetáculos, certas
coisas que a gente não poderia falar no texto, a música poderia dizer...
63
Nós tínhamos conseguido, nesse processo, uma mudança notável na qualidade
desse público, que era um público jovem, aguerrido, que acreditava também em
muita coisa. Predominava aquele espírito de que algo pode ser conquistado,
aquela certeza de que vale a pena lutar por algo mais amplo, a certeza de que,
coletivamente, se chegássemos realmente a um coletivo, iríamos ter passos cada
vez mais decisivos para diante.
64
61
M
AGALDI
, Sábato. Iniciação ao teatro. 7
a
ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 16.
62
A avaliação que Augusto Boal fez do público no período posterior ao golpe militar de 1964 consta do
conjunto de textos publicados, em 1967, como introdução à edição do texto teatral Arena conta
Tiradentes, e são apresentados no capítulo 2 deste trabalho. Ver: B
OAL
, Augusto.
I
Elogio fúnebre do
teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena;
II
A necessidade do coringa;
III
As metas do coringa;
IV
– As estruturas do coringa;
V
Tiradentes: questões preliminares; Quixotes e heróis. In: B
OAL
,
Augusto e G
UARNIERI
, Gianfrancesco. Arena conta Tiradentes: Sagarana, São Paulo, 1967, p. 11–56.
63
G
UARNIERI
, G. [Depoimento prestado]. In: K
HOURY
, S., op. cit., p. 47.
64
G
UARNIERI
, G., Mesa II – Armar Labaki e Gianfrancesco..., op. cit., p. 70.
O ator Paulo José afirma que os espetáculos do Teatro de Arena eram dirigidos à
classe estudantil e que esse público influenciava os rumos dos espetáculos em razão da
bilheteria e do processo de discussão que havia entre artistas e estudantes:
[...] os estudantes começavam a comprar ingressos em grupos porque saía mais
barato: compra cinqüenta ingressos, então paga metade. Foi-se formando uma
espécie de consulado em cada sala de aula de cada faculdade e, de repente, havia
um representante do Teatro de Arena dentro daquela sala de aula. E o espetáculo,
antes de estrear, já estava, pelo menos, três meses, lotado, antes. [...]
E todo espetáculo era seguido por um debate. Inevitavelmente. Porque eles
haviam assistido ao espetáculo e queriam debater depois. [...]
Você podia jogar um espetáculo e, no processo de discussão com o público ir,
até, corrigindo o próprio espetáculo e reorientando o espetáculo.
65
Em 1968, Dias Gomes, em artigo publicado na Revista Civilização Brasileira,
no qual analisa questões relativas à articulação do movimento de protesto do teatro
paulista contra a censura instalada com a ditadura em abril de 1964, defendeu o
engajamento artístico como condição fundamental ao conhecimento da realidade,
afirmando que esses artistas desempenharam papel decisivo na formação da
consciência de que a liberdade é essencial à arte.
66
Além disso, Gomes apontou
questões importantes relativas ao público, dentre as quais, a de que o “grande público”
exercia certo controle sobre o teatro pois este, para sobreviver, precisava agradá-lo
e que o público jovem, “até certo ponto”, ofereceu sustentação moral e econômica a
espetáculos como Arena conta Tiradentes, O rei da vela e Roda viva. No dizer de
Gomes:
O teatro era, de todas as artes, aquela que oferecia condições para uma resposta
imediata e mais comunicativa. Era também a que possibilitava ao povo, tão
insatisfeito quanto os autores e participantes dos espetáculos, desabafar a sua
insatisfação, “lavar a alma”, desalienar-se. [...] A platéia que ia assistir ao show
Opinião, por exemplo, saía com a sensação de ter participado de um ato contra o
Governo.
67
(Grifo do autor).
O fechamento político advindo do
AI
-5 pôs fim, de fato, a esse tipo de
interlocução com o público, o que certamente levou Augusto Boal a redimensionar sua
prática teatral. O registro dessa nova posição consta no texto “Categorias de teatro
65
J
OSÉ
, Paulo. Interview de Paulo José. In: R
OUX
, R., op. cit., p. 446–447.
66
G
OMES
, Dias. O engajamento é uma prática de liberdade. Revista Civilização Brasileira. Caderno
especial nº 2 — Teatro e realidade brasileira. Rio de Janeiro, ano 1, julho de 1968, p. 17.
67
G
OMES
, D., op. cit., p. 10–11.
popular”,
68
escrito em 1970. As formas de teatro popular até então praticadas são
avaliadas, e uma nova categoria é formulada nesse texto, cuja tese central consiste no
deslocamento da função do próprio artista, que deixa de ser condutor da prática teatral
para se transformar em produtor de ferramentas (técnicas) a serem aplicadas pelo povo
na fabricação de seu próprio teatro. Nessa nova categoria, é o povo que faz o espetáculo
e o consome.
Em 2000, ao rememorar o processo de criação espetáculo Opinião, Boal retoma
o debate sobre a idéia homogeneizada de “povo” que se tinha naquele tempo. No tópico
“O povo — achado e perdido”, ele faz as seguintes considerações:
O Arena, no Nordeste, havia encontrado o nosso povo, o
CPC
, no Rio, encontrara
o seu. Embora dialogando com o povo, continuávamos donos do palco, o povo na
platéia: intransitividade. [...]
Consolo: nossos cantores eram a encarnação do povo em cena; outros, em
discórdia, diziam que eles ali estavam na condição de cantores, não na de povo.
Outros redefiniam o conceito de povo, para incluir setores da burguesia
interessados na emancipação econômica nacional isto é, os bons burgueses.
Ameaçava-se esvaziar a noção de povo. Se eu, tu, ele, nós, vós, eles, se tudo é
povo, povo não existe. Corria-se o risco da expropriação. O povo perderia sua
identidade, nome próprio: todo mundo passava a se chamar José da Silva e Maria
Ninguém.
Continuava a divisão de classes, perdão, palco e platéia: um falava, outro
escutava. A platéia cantava no coro mas não interferia no enredo. Agora, com a
repressão, nem palco nem platéia: o povo tinha sido expulso dos teatros,
sindicatos, associações, paróquias povo proibido. Teatro outra vez assunto de
classe média e intelectuais (grifo do autor).
69
Percebe-se que a crítica feita a essa noção de povo generalizante até então serve
a Boal como guia à sua visitação ao passado. Ele incorpora uma perspectiva crítica do
presente para reavaliar suas opções e descrever os acontecimentos passados. Mas como
negar ou ignorar hoje a importância dessa crítica, uma vez que significa uma conquista
do pensamento político e, também, do conhecimento histórico? Hoje não é mais
aceitável usarem-se categorias generalizantes para uma compreensão das lutas e dos
sujeitos do passado. Nesse sentido, os historiadores também participaram e avançaram
em suas reflexões e críticas, e quando investigam um tempo remoto no exercício da
interpretação e da compreensão desse tempo, as ferramentas analíticas usadas são
sempre as do seu próprio presente.
68
B
OAL
, Augusto. Categorias de teatro popular. In: Técnicas latino-americanas de teatro popular. Uma
revolução copernicana ao contrário. 3ª ed., São Paulo: Hucitec, 1988, p. 23–49.
69
B
OAL
, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p.
230.
Reconhecer tais avanços não implica desprezar a experiência, as crenças e os
valores dos sujeitos de outro tempo histórico, ou levar problemas de uma época a uma
outra, visto que eles não existiam. Certamente, o mais importante é não entrar em
uma disputa interpretativa em que o esforço se concentra em definir se a produção do
Arena foi ou não coerente com um teatro popular destinado a um público popular,
notada tanto nos registros dos críticos quanto nas rememorações (autocríticas) dos
próprios agentes. Em nosso caso, mesmo que tangencialmente e por meio de algumas
versões dos testemunhos que forneceram elementos para se perceber como
elaboraram e reelaboraram, no correr dos anos, as noções de teatro popular e público
popular —, procuramos problematizar a importância do amplo diálogo travado pelos
intelectuais do Arena com as questões da linguagem popular desde os fins de 1950 e na
década de 1960.
A interpretação dos críticos
Entre 1969 e 1970, Roberto Schwarz escreveu “Cultura e política, 1964–1969”,
ensaio dirigido a um blico francês que pode ser considerado matriz norteadora de
estudos posteriores sobre a produção cultural da década de 1960, em particular a teatral.
Tendo como tema as relações entre cultura e política, esse autor defende a tese de que a
produção cultural deu forma descompassada à experiência da derrota política em 1964,
selada em 1968 com uma ditadura militar: a esquerda derrotada triunfava sem crítica,
numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito.
70
Por isso, entende subsistir
na produção cultural brasileira desenvolvida após 1964 um desencontro entre
experiência social e forma artística.
71
Na visão de Schwarz, antes do golpe, a produção cultural estava em consonância
com os desígnios revolucionários: ligava-se às esperanças do socialismo, ao movimento
de democratização nacional etc. Com o golpe, tais perspectivas políticas foram
efetivamente cortadas. No entanto, a produção cultural da esquerda não foi exterminada
70
B
OAL
, Augusto. Hamlet..., op. cit., p. 41.
71
S
CHWARZ
, Roberto. Cultura e política, 1964–1969. In: Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001,
p. 44.
naquele momento; ao contrário, tornou-se relativamente hegemônica
72
e, em
conseqüência, deslocada de seu contexto adequado:
O processo cultural, que vinha extravasando as fronteiras de classe e o critério
mercantil, foi represado em 64. As soluções formais, frustrado o contato com os
explorados, para o qual se orientavam, foram usadas em situões e para público a
que não se destinavam, mudando de sentido. De revolucionárias passaram a símbolo
venvel da revolução. Foram triunfalmente acolhidas pelos estudantes e pelo
público artístico em geral. As formas políticas, a sua atitude mais grossa, engraçada
e didática, cheias do óbvio materialista que antes fora de mau-tom, transformavam-
se em símbolo moral da política, e era este o seu conteúdo forte. O gesto didático,
apesar de muitas vezes simplório e não ensinando nada além do evidente à sua
platéia culta que existia imperialismo, que a justiça é de classe —, vibrava como
exemplo, valorizava o que à cultura confinada o era permitido: o contato político
com o povo. [...] A infinita repetão de argumentos, conhecidos de todos nada
mais redundante, à primeira vista, que o teatro logo em seguida ao golpe —, não era
redundante: ensinava que as pessoas continuavam lá e não haviam mudado de
opinião, que com jeito se poderia dizer muita coisa, que era possível correr um
risco.
73
É importante ressaltar como Schwarz especifica a gênese dessa hegemonia
cultural de esquerda no período 1964–68 e sua vinculação estreita com o pensamento
político brasileiro. Sua origem está ligada ao tipo de socialismo difundido no Brasil
antes de 1964, uma espécie de “marxismo patriótico” que tinha como ponto forte a
demonstração de que a dominação imperialista e a reação interna estão ligadas, que não
se muda uma sem se mudar a outra,
74
e, como ponto fraco, a maneira de determinar
precisamente tal ligação: o
PCB
distinguia no interior das classes dominantes um setor
agrário, retrógrado e pró-americano, e um industrial, nacional e progressista ao qual se
aliava contra o primeiro.
75
Para Schwarz, esse complexo ideológico ambíguo obteve a primazia teórica no
país e, não obstante, a descrição da posição comunista consistiu em um engano, pois o
que efetivamente teve peso para o desfecho militar foi a oposição entre as classes
72
S
CHWARZ
, R, op. cit., p. 7. No dizer de Schwarz, os grupos ligados ao domínio cultural compostos por
estudantes, jornalistas, economistas, arquitetos, parte dos sociólogos, parte do clero etc., em certa medida
poupados pelo golpe, não foram presos nem torturados. De 1964 a 1968, ficaram estudando, ensinando,
editando, filmando, falando etc., e sem perceber [contribuíram] para a criação, no interior da pequena
burguesia, de uma geração maciçamente anti-capitalista (p. 9). Após 1968, começou a surgir uma “nova
massa”: os estudantes organizados na semiclandestinidade (p. 9). Ibidem.
73
Ibidem, p. 36.
74
Ibidem, p. 11.
75
Ibidem, p. 12.
proprietárias, em bloco, e o perigo comunista.
76
Ele ainda considera que, mesmo com
esse quadro político, um segmento do movimento cultural anterior a 1964
representado pelo
MCP
, de Pernambuco, e pelo
CPC
do Rio de Janeiro não é redutível
ao movimento ideológico referido acima. Destoavam da prática reformista do
PCB
por
romperem com o sistema de conciliação, sobretudo por orientar em termos distintos a
relação com as massas: o
MCP
, porque estimulava a organização do povo, inclusive a
democratização da cultura por meio, sobretudo, da alfabetização; os
CPC
s, porque
ensaiavam teatro político em lugares onde estavam as massas (fábricas, sindicatos,
grêmios estudantis, favelas etc.). Traziam o vento pré-revolucionário.
77
Com o público, mudavam os temas, os materiais, as possibilidades e a própria
estrutura da produção cultural. Durante este breve período em que polícia e
justiça não estiveram simplesmente a serviço da propriedade (notavelmente em
Pernambuco), as questões de uma cultura verdadeiramente democrática brotavam
por todo canto, na mais alegre incompatibilidade com as formas e o prestígio da
cultura burguesa.
78
Schwarz elege o período pré-1964 como a “fase mais interessante da história
brasileira”; é quando o país estava “irreconhecivelmente inteligente”. Essas qualifi-
cações são atribuíveis, também, ao teatro, pois nesse momento ocorre o rompimento
com as formas estéticas burguesas provocadas pelo contato com o público popular,
suscitando inovações formais conectadas com possibilidades políticas reais de trans-
formação; numa palavra, sobrevém um verdadeiro teatro político. Tal diagnóstico serviu
ao autor como referência importante para distinguir a produção teatral s-1964 como
inadequada, porque o tema da revolução não mais fazia sentido ante a derrota política.
Dado o destaque ao
MCP
e
CPC
, o próximo passo de Schwarz foi especificar o
cenário cultural seguinte ao golpe, passando pelo tropicalismo e por algumas das
produções do Teatro de Arena e do Oficina: Show Opinião; Liberdade, liberdade;
76
Para Schwarz, os termos dessa descrição, implantados como parte do arsenal ideológico de Getúlio
Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, podem ser assim apresentados: O aliado
principal do imperialismo, e portanto o inimigo principal da esquerda, seriam os aspectos arcaicos da
sociedade brasileira, basicamente o latifúndio, contra o qual deveria erguer-se o povo, composto por
todos aqueles interessados no progresso do país. Resultou no plano econômico-político uma proble-
mática explosiva mas burguesa de modernização e democratização; mais precisamente, tratava-se da
ampliação do mercado interno através da reforma agrária, nos quadros de uma política externa
independente. No plano ideológico resultava uma noção de “povo” apologética e sentimentalizável, que
abraçava indistintamente as massas trabalhadoras, o lumpenzinato, a intelligentsia, os magnatas
nacionais e o exército”. S
CHWARZ
, R., op. cit., p. 13 (grifo do autor).
77
Ibidem, p. 20.
78
Ibidem, p. 19–20.
Arena conta Zumbi; Arena conta Tiradentes; O rei da vela e Roda viva. Schwarz
considerou que tais projetos, embora tenham produzido inovações formais, radicais e
justas, não estabeleceram o contato efetivo com os excluídos. Quanto às produções, o
autor sublinha-lhes os limites e o ponto de interseção para constatar que não
conseguiram elaborar uma crítica severa ao populismo.
Apesar do tom quase cívico destes dois espetáculos [Opinião e Liberdade,
liberdade], de conclamação e encorajamento, era inevitável um certo mal-estar
estético e político diante do total acordo que se produzia entre palco e platéia. A
cena não estava adiante do público. Nenhum elemento da crítica ao populismo
fora absorvido. A confirmação recíproca e o entusiasmo podiam ser importantes e
oportunos então, entretanto era verdade também que a esquerda vinha de uma
derrota, o que dava um traço indevido de complacência ao delírio do aplauso. Se o
povo é corajoso e inteligente, por que saiu batido? E se foi batido, por que tanta
congratulação?
79
(Grifo nosso).
[...]
Qual a composição social e de interesses do movimento popular? Essa é a
pergunta a que o populismo responde mal. Porque a composição das massas não é
homogênea, parece-lhe que mais vale uni-las pelo entusiasmo que separá-las pela
análise crítica de seus interesses.
80
Nisso consiste o desencontro entre experiência social e formas artísticas: se
aquela empurrou os artistas para formulações mais radicais, estas nem sempre tiveram
competência qualitativa.
81
Entretanto, Schwarz reconhece que, mesmo com a baixa
acessibilidade da população brasileira à produção cultural por razões históricas, esta
chegou a refletir a situação dos que ela exclui, e tomou o seu partido. Tornou-se um
abcesso no interior das classes dominantes.
82
A posição de Schwarz é de que seria fun-
damental ter dado forma à crítica de homogeneização dos interesses e da constituição
das “massas” ou do “povo”, pois somente através desta crítica surgiriam os verdadeiros
temas do teatro político: as alianças e os problemas de organização, que deslocam
noções como sinceridade e entusiasmo para fora do campo do universalismo burguês.
83
Ainda que faça considerações restritivas à produção do Arena após 1964, pela
ausência de uma crítica severa ao populismo e pela falta de contato com os excluídos,
Schwarz como positivo o fato de as obras terem refletido a situação dos excluídos e
tomado o partido destes, o que incomodou a classe dominante. Além disso, ele oferece
79
S
CHWARZ
, R., op. cit., p. 37–38.
80
Ibidem, p. 43.
81
Ibidem, p. 44.
82
Ibidem, p. 54.
exemplos do que considera inovação formal do movimento teatral após 1964. Um deles
se refere à alteração do lugar social do palco: quase não havia separação social entre os
artistas e o público que os assistia; estabelecia-se, assim, uma grande cumplicidade,
viabilizada, em especial, pelo movimento estudantil ascendente. A platéia compunha-se,
sobretudo, de estudantes “politizados e inteligentes”, ativistas do movimento estudantil,
que tinham em comum com os artistas a idade a maioria era bem jovem —, o modo
de vida, a formação intelectual e o interesse político.
Para Schwarz, como continuidade do teatro de agitação pré-1964, ocorre uma
revolução brechtiana no teatro, em que a cena e com ela a língua e a cultura foram
despidas de sua elevação “essencial”, cujo aspecto ideológico, de ornamento das
classes dominantes, estava a nu.
84
Nesse sentido, a forma artística [...] aceita os efeitos
da estrutura social [...] como equivalentes aos seus. Em conseqüência distensão
formal, e a obra entra em acordo com o seu público; poderia diverti-lo e educá-lo, em
lugar de desmenti-lo todo o tempo.
85
Em um viés interpretativo comum a muitas análises de Schwarz, Edélcio
Mostaço considerou que as preocupações nos primórdios do Teatro de Arena com o
público, surgidas somente após as adequações formais à nova forma do palco em arena,
estavam diretamente associadas com o pensamento político do Instituto de Estudos
Brasileiros (
ISEB
) e as teorizações do Partido Comunista Brasileiro (
PCB
). Do
ISEB
emanavam idéias de exaltação desenvolvimentista e de um projeto nacional, da tomada
de consciência da nação e de transformação da realidade; do
PCB
, táticas políticas:
formação de uma frente única nacionalista e democrática, de que fariam parte o
proletariado, o campesinato, a pequena-burguesia e mesmo setores latifundiários: todos
contra o imperialismo norte-americano. Usando como fonte o artigo “Tentativas de
análise do teatro brasileiro”,
86
de Augusto Boal que apresenta a tarefa do Arena de
promover o surgimento de um teatro popular e de um público popular —, Mostaço
julgou, em suas considerações, que a busca pela ampliação do público traduziu-se na
definição do caráter do grupo: “teatral ideológico”.
87
83
Ibidem, p. 44.
84
S
CHWARZ
, R., op. cit, p. 38–39.
85
Ibidem, p. 40.
86
B
OAL
, A., Tentativas de análise..., op. cit.
87
M
OSTAÇO
, Edélcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião (uma interpretação da cultura de
esquerda). São Paulo: Proposta Editorial, 1982, p. 45–47.
Para Mostaço, os anos entre 1960 e 1964 foram os que apresentaram o mais
formidável movimento não apenas quantitativo como qualitativo no sentido de
implementar uma cultura de caráter participante e popular no Brasil.
88
Mas, em sua
análise desse período, ele afirma que o Arena, muito embora tenha desenvolvido uma
linguagem para popularizar o teatro (apresentada numerosas vezes em excursões que
buscavam novas platéias populares, sobretudo no Nordeste), mantinha a perspectiva da
cultura popular para um público pequeno-burguês.
89
Ao analisar a produção cultural pós-1964, Mostaço salienta que a prática cultural
entrara em perfeito acordo com a estratégia ideológica do
PCB
;
e também considera o
Opinião um grupo teatral ideológico atrelado aos pressupostos do
ISEB
e do
CPC
. Para
ele, tanto o show musical Opinião quanto o espetáculo Liberdade, liberdade transpu-
seram para o palco o conceito isebiano de povo,
90
que, eleito como agente transfor-
mador, estabeleceu com seu blico uma comunicação de circuito fechado: palco e
platéia irmanados na mesma fé.[...] O povo do palco era o mesmo povo da platéia.
91
Sobre o Teatro de Arena, Mostaço afirmou que o público do espetáculo Arena
conta Zumbi, predominantemente universitário (mesma origem social do grupo teatral),
era um público cúmplice, o que formava um circuito fechado entre palco e platéia.
92
Assim, para Mostaço, o Arena cometeu equívocos na análise política dos espetáculos
por reconhecer nos estudantes os depositários de uma missão política revolucionária.
Ainda que efetivamente a frente e os estudantes se posicionassem ideologicamente
como elementos transformadores, progressistas, idealisticamente companheiros de
caminho, atribuir prioridade transformadora a estes estratos demonstra pressa
analítica em matéria política (grifo do autor).
93
88
Ibidem, p. 55.
89
Ibidem, p. 70.
90
Mostaço se refere à publicação da obra Quem é povo no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, em 1962,
pela editora Civilização Brasileira, como volume da coleção Cadernos do Povo Brasileiro, criada pelo
ISEB
. Na leitura que faz da obra, ele diz que, para Werneck, povo é o conjunto das classes, camadas e
grupos sociais empenhadas na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolu-
cionário na área em que vive, o que é o retrato de uma frente (classes, camadas e grupos unificados);
e de um projeto político (as soluções objetivas das tarefas do desenvolvimento) e do caráter político/
ideológico deste projeto (progressista e revolucionário) (p. 78, grifo do autor). Mostaço critica as metas
de atuação do
PCB
antiimperialismo e reformas de base —, pois configuravam muito mais uma luta
interna de poder burguesia industrial versus aristocracia latifundiária para a criação de um mercado
interno mais desenvolvido, e portanto mais burguês, do que medidas revolucionárias em benefício das
camadas exploradas por este mesmo Estado burguês que tudo tutelava. Cf. Ibidem, p. 78.
91
Ibidem, p. 77.
92
Ibidem, p. 83.
93
M
OSTAÇO
, E., op. cit, p. 85.
Quanto ao espetáculo Arena conta Tiradentes, no dizer de Mostaço persistiu o
caráter ideológico, porém voltado à incitação e ao estímulo do público à intervenção e
ação na realidade: a estética não é mais do que mera arma de incitamento e o teatro
senão o lugar de encontro da seita para ouvir a palavra de ordem a ser cumprida na
rua.
94
A conclusão desse autor é que o público estudantil logo, “não popular” era
deliberadamente escolhido pelo Arena,
95
acentuando uma comunicação mistificadora
que o iludia em “rituais cívico-esquerdizantes”.
96
Se Opinião e Zumbi tinham primado em fornecer alimento para a platéia forrar-
se, saciando pela via teatral a incompetência demonstrada na realidade quanto à
mobilização e capacidade de luta, Tiradentes representa o auge destes rituais
cívico-morais destinados a encorajar a platéia com lenitivos estéticos/retóricos. A
exortação era um componente inalienável do espetáculo, culminando num hino
guerreiro que enfatizava “mais vale morrer com uma espada na mão do que viver
como carrapato na lama” [...].
97
Em estudo mais recente, Sírley Cristina Oliveira refuta a idéia de escolha
premeditada do público pelos artistas do Arena por serem as próprias condições de
produção teatral daquele momento que lhe definiam o perfil:
O Arena não atingia um número expressivo de espectadores pertencentes às
massas populares porque, em primeira instância o grupo nunca foi subvencionado
pelo poder público. A cobrança de ingressos, o tamanho e a localização do espaço
para a realização dos espetáculos, eram fatores que possivelmente não facilitavam
o acesso “popular” às atividades do grupo. Ao mesmo tempo, o Arena, sendo um
grupo teatral que não estava a serviço dos interesses políticos dos militares, nunca
seria subvencionado por esse governo. Assim, a possibilidade de realizar seus
espetáculos em praças e escolas públicas, em fábricas e ruas à fim de alcançar um
público popular mais expressivo, tornou-se essencialmente restrita. Portanto o
Arena não “escolheu” fortuitamente o público estudantil como platéia para seus
espetáculos. Circunstancialmente eram os únicos que, pelas questões pontuadas,
conseguiam chegar ao teatro e participar politicamente das discussões propostas
pelo grupo. Mas isso não significa que o grupo restringiu suas apresentações à
sede na rua Teodoro Bayma. Diante dos impasses, das contradições colocadas
pela necessidade de atingir o público popular, realizou incursões pelo Brasil,
visitando diversas cidades como o Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa e
Salvador.
98
94
Ibidem, p. 93. Para Mostaço, no espetáculo Arena conta Tiradentes, Boal reprovou a política frentista
das esquerdas ao aderir a uma posição da qual se vislumbrava a luta armada.
95
Ibidem, p. 91.
96
Ibidem, p. 86.
97
Ibidem, p. 94.
98
O
LIVEIRA
, Sírley Cristina. A ditadura militar (1964–1985) à luz da Inconfidência Mineira nos palcos
brasileiros: em cena “Arena conta Tiradentes” (1967) e “As confrarias” (1969). 2003. Dissertação
A partir de 1964, o Arena incorpora à sua estética a música popular brasileira,
99
cuja importância evocada refere-se à busca de uma nova linguagem e um procedimento
artístico que propiciem uma comunicação real com o público.
O contato sempre renovado com outras áreas culturais permitira uma associação
no plano das idéias com o grupo de músicos que se instalara no Arena desde o
início do Teatro das Segundas Feiras. Desse intercâmbio, e do pioneirismo do
musical encenado no Rio, Opinião, surge uma fase em que a linguagem do musical
é preponderante.
100
Segundo a crítica de teatro Mariângela Alves de Lima, quando o Arena incor-
pora a linguagem musical à sua estética, endereça-se a um público que dispõe das
mesmas informações do teatro.
101
Os espectadores não precisam ampliá-las, visto que a
questão central é encontrar uma expressão comum para um problema comum.
102
Na relação com o público os novos musicais propõem ainda um esforço analógico.
uma preocupação de enfatizar o momento geral da história para que o público
estabeleça as necessárias ligações com o presente.
Pode-se encontrar inclusive um denominador comum entre os vários musicais
criados no Arena. Por um lado, a linguagem teatral que se apoia basicamente na
análise e no conhecimento a longo prazo de uma realidade é substituída por uma
comunicação emocional intensa e direta com o espectador. Isso é feito através de
personagens cujo traço distintivo é imediatamente visível e que pedem do
espectador sua adesão ou recusa.
103
Podemos observar que os procedimentos de análise tomados tanto por Schwarz
quanto por Mostaço sobre a relação entre palco e platéia após 1964 desconsideraram
qualquer papel atuante do público: em seus estudos, este não tem voz, e o palco o
agente escolhe deliberadamente sua platéia, que responde como autômato às
(Mestrado em História) Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia 2003,
p. 115.
99
Quanto à dramaturgia de Augusto Boal, podemos nos referir às peças escritas e encenadas após o golpe
de 1964: Arena conta Zumbi, Arena canta Bahia e Arena conta Tiradentes. Antes, porém, podemos citar
o caso da composição formal da peça Revolução na América do Sul (1960), para a qual Boal recolheu
elementos trazidos do circo, da revista e das formas épicas; formas cuja linguagem musical exerce
importante função estética. Sobre a peça Revolução na América do Sul, ver P
ATRIOTA
, Rosangela.
Revolução na América do Sul de Augusto Boal a narrativa épica no Teatro de Arena de São Paulo.
ArtCultura, n. 2, v. 1, Uberlândia, 2000, p. 86–100.
100
L
IMA
, Mariângela Alves de. História das idéias. Dionysos, nº 24, op. cit., p. 56.
101
Ibidem, p. 57.
102
Ibidem, p. 57.
103
Ibidem, p. 56.
intenções ideológicas de autores, encenadores e atores. Ao público cabe ser cúmplice e
conivente com as idéias apresentadas no ritual criado pelo teatro.
De certo modo, na sua reflexão Oliveira não localizou historicamente as
diferentes relações que o Arena estabeleceu com seu público. Quando ocorre a
integração de artistas do Teatro Paulista de Estudante (
TPE
), entre os quais Oduvaldo
Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri e, depois, em 1956, Augusto Boal, o Arena
constrói um posicionamento alternativo ao teatro praticado pelo
TBC
presente desde a
sua fundação, em 1953, por José Renato e um projeto de produção de textos
dramáticos nacionais. E ainda, os artistas do Arena viam como necessário que os
espetáculos, além de representarem o trabalhador, o cotidiano dos excluídos e seus
problemas, fossem apreciados por um público popular: o povo como personagem no
palco e espectador na platéia. Todavia, esse público popular não freqüentava o teatro;
logo, certas questões quem é povo? como chegar até o público popular? Etc.
foram amplamente discutidas pelo grupo, que se empenhou em ir ao encontro do povo
nos lugares onde este estava; daí as apresentações em sindicatos, praças e as excursões
pelo interior do país etc.
Se não só as intenções internamente definidas, mas também as relações externas,
concretas e possíveis na esfera social, definem a prática teatral, então podemos verificar
que ampliar o público foi algo quase impossível após o golpe de 1964, e o que
sobreveio parece-nos ter sido a constituição social de um público cuja maioria era
composta de estudantes e intelectuais. Disso se pode inferir que o público freqüentador
do Teatro de Arena foi heterogêneo e variável quanto à composição no decorrer de sua
existência; e certamente recebera a produção artística, também, de modo diferente, pois
a significação dos textos depende das capacidades, dos códigos e das convenções de
leitura próprios às diferentes comunidades que constituem, na sincronia ou na
diacronia, seus diferentes públicos.
104
Sobre o que diz Lima, questionamos: é possível afirmar categoricamente que o
fato de atores e público partilharem uma experiência cultural comum necessariamente
implicou a não-ampliação das informações pelo público? A autora avaliou que os
musicais reduziram a linguagem teatral a uma comunicação emocional, a fim de
provocar exclusivamente empatia no público, e também considerou a recepção
previsível e determinada pelas intenções dos artistas expressas nos espetáculos.
104
C
HARTIER
, Roger. História e literatura. In: À beira da falésia..., op. cit., p. 257.
Ante as ponderações dos autores acima citados, as quais opõem claramente a
produção e a recepção de um produto cultural, parece pertinente o pensamento de Roger
Chartier sobre a noção de apropriação para abrandar a posição desses autores. Para esse
historiador, não há um corte entre produção e consumo que delimite ações a sujeitos
diferentes: as idéias produzidas não aparecem do nada nem são capazes de moldar a
maneira de viver e ver do outro, e o consumo nunca é passivo. Assim, toda produção
tem historicidade, que exige em primeiro lugar que o “consumo” cultural ou intelectual
seja ele próprio tomado como uma produção, que evidentemente não fabrica nenhum
objeto, mas constitui representações que nunca são idênticas às que o produtor, o autor
ou o artista investiram na sua obra.
105
Pode-se dizer que a recepção significa uma produção de sentido, de caráter
criativo; por isso, Chartier alerta para o fato de que ler, olhar e escutar demandam
atitudes intelectuais que, longe da submissão, na verdade, permitem a reapropriação, o
desvio, a desconfiança ou a resistência. Os textos e todas as categorias de imagens não
podem ser apreendidos como objetos que bastariam ser identificados ou cujo significado
seria universal; antes, estão presos na rede contraditória das utilizações que os
constituíram historicamente.
106
Nessa ótica, a questão fundamental, além do contexto
histórico em que foram produzidos, é saber como textos e documentos discursos
foram apropriados e usados. Essa apropriação tem por objectivo uma história social das
interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais,
institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem.
107
O que observamos como equivocado no tipo de raciocínio verificado em
algumas das interpretações aqui citadas é que, partindo-se de determinada crítica,
muitas vezes até pertinente em nosso presente, elabora-se um grande esquema no qual
são encaixadas as obras artísticas, reduzidas a veículo ideológico; em outro viés,
consideram que os sentidos da obra são impressos somente no momento de sua feitura.
Esses estudos não aprofundam questões sobre a especificidade de cada peça teatral
diretamente relacionada com o momento em que foi elaborada; tampouco consideram a
motivação dos produtores, as pesquisas de linguagem, as reformulações empreendidas
em busca da ampliação de público, as adequações impostas pelas dificuldades
105
C
HARTIER
, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro:
Difel/Bertrand Brasil, 1988, p. 59.
106
Ibidem, p. 61.
107
Ibidem, p. 26.
financeiras, e mesmo as questões relativas à recepção de uma obra artística, sempre
ativa e sujeita às convenções.
Posto isso, é essencial ressaltar que as relações entre palco e platéia o são
unilaterais; e compreendê-las requer que tenhamos no campo de visão o conjunto de
idéias, interesses e posições partilhadas ou divergentes entre produtores culturais e suas
platéias e, sobretudo, considerar as complexas e imbricadas relações entre a prática
teatral e a sociedade onde ela ocorre.
S
TANISLAVSKI E
B
RECHT
:
FORMAÇÃO ARTÍSTICA DE
B
OAL
A participação de Augusto Boal no Teatro de Arena de São Paulo vai de 1956 a
1971, o que coincide com a quase-totalidade da existência do grupo: cerca de 18 anos.
Nascido no Rio de Janeiro (em 1931), o teatrólogo se tornou químico industrial aos 21
anos, quando concluiu o curso de Química na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A seguir, foi para os Estados Unidos (
EUA
), especializar-se em Engenharia Química e,
paralelamente, estudar dramaturgia, direção e história do teatro, na Universidade de
Colúmbia, com John Gassner (professor de Arthur Miller e Tennessee Williams)
contato que lhe definiria o futuro profissional. Entre 1954 e 1955, Boal freqüentaria o
Actor’s Studio,
108
para o qual foi admitido, por intermédio de Gassner, como ouvinte. O
Actor’s era então uma dos principais representantes da escola de Stanislavski nos
EUA
,
cujo método marcou Boal profundamente.
109
De volta ao Brasil, o dramaturgo foi
108
Escola para atores profissionais de Nova Iorque, fundada em 1947, por Elia Kazan, Cheryl Crawford e
Robert Lewis. Em 1948, sai Lewis, entra Lee Strasberg, que se torna diretor artístico, em 1951, e fica
conhecido como o responsável pelos desdobramentos da teoria stanislavskiana nos
EUA
, ao usar o método
de trabalho centrado na exploração da memória afetiva do ator. O abuso do recurso exclusivo à memória
emotiva e aos exercícios de lembrança dos sentimentos, como a associação do sistema à psicanálise, é
produto de uma visão restrita e fragmentada do trabalho de ator proposta por Stanislavski e veiculada por
Strasberg e parte de seus discípulos americanos como o “Método”, decorrente, em parte, do grande
decurso entre a edição dos primeiros livros de Stanislavski: An actor prepares (1936) e Building a
character (1949). Essa visão mais restrita, no entanto, não foi hegemônica nos
EUA
: com base em
diversos depoimentos de artistas e profissionais do teatro, Eraldo Pêra Rizzo evidencia as divergências
com a orientação de Strasberg, salientando a fala de Marlon Brando, Arthur Miller, Laurence Oliveir e
Robert Lewis em que questionam e fazem severas restrições ao trabalho desenvolvido por Strasberg no
Actor’s Studio por exemplo: “divulgações vulgares”, “pregação e máximas impensadas”, “graves
desvios”, “ênfase excessiva aos problemas interiores da interpretação” etc. Cf. R
IZZO
, Eraldora. Ator e
estranhamento: Brecht e Stanislavski, segundo Kusnet. São Paulo:
SENAC
,
2001,
p. 54–57.
109
Stanislavski considerava suas teorias técnicas em movimento, princípios de trabalho, portanto distintas
das mistificações de seu pensamento, sobretudo nos
EUA
, onde recebeu o nome de método e se tornou um
manual a ser seguido. Iná Camargo Costa refere-se a dois momentos distintos da apropriação da teoria
stanislavskiana nos Estados Unidos. O primeiro, na década de 1930, a partir da estréia do
TAM
em Nova
indicado pelo crítico teatral Sábato Magaldi a José Renato, para trabalhar como diretor
no Teatro de Arena, onde encenou, dirigiu, produziu dramaturgia e adaptou textos
teatrais estrangeiros, consolidando-se em uma geração de intelectuais e produtores
culturais preocupados em discutir a realidade nacional por meio da arte, que apostavam,
sobretudo, na possibilidade libertária e revolucionária desta e no papel do artista ante os
problemas sociais do seu tempo.
110
Criador de um conjunto de prescrições para o desempenho do ator que ficou
conhecido como “método de interpretação”, Constantin Stanislavski (1863–1938),
teórico, ator e diretor russo, foi o fundador do Teatro de Arte de Moscou (
TAM
), em
1898, cujos colaboradores fixos incluíam Anton Tchecov autor de As três irmãs
(1901) e O jardim das cerejeiras (1903), textos escritos especialmente para a
companhia.
111
O principal da obra de Stanislavski está em quatro livros, que resumem
suas constantes pesquisas sobre a arte de interpretar. O primeiro My life in art
(Minha vida na arte) apareceu pela primeira vez em tradução inglesa em 1923 e
fornecia algumas indicações sobre o desenvolvimento do famoso sistema, mas quase
nada a respeito de teoria ou técnica específicas.
112
A formulação do seu sistema
aparece em três volumes, escritos quando se encontrava na França e a pedido de seus
amigos americanos Norman Hapgood e Elizabeth Reynolds Hapgood. Em An actor
prepares (A preparação do ator), publicado em 1936, Stanislavski enfatiza o
Iorque (jan./1923), quando a cultura relevante nos Estados Unidos era de esquerda e isso aparecia de
modo mais claro no teatro. Foi esta situação que permitiu aos adeptos de Stanislavski implantarem no
país uma cultura teatral infinitamente mais exigente em termos artísticos do que o establishment jamais
fora capaz de produzir. As condições materiais foram criadas pelo crack da Bolsa em 1929, que fez o
dinheiro das produções da Broadway virar e levou os “grandes produtores” a baterem em retirada.
O segundo momento deu-se após a Segunda Guerra Mundial, quando os grandes produtores se
realinharam e retomaram seus lugares. Então, ao mesmo tempo em que grandes acontecimentos teatrais,
amplos sucessos de público e bilheteria, eram promovidos pela esquerda, como a revelação de Tennessee
Williams em 1947 com Um bonde chamado desejo e a de Marlon Brando como um dos maiores atores de
sua geração, ou a de Arthur Miller em 1949 com A morte de um caixeiro viajante, eles iam sendo
neutralizados pelo establishment com o crescente processo de discussão e, finalmente, a desqualificação
do “método (grifo nosso). C
OSTA
, Iná Camargo. Stanislavski na cena americana. Estudos Avançados,
46, São Paulo, 2002, p. 111.
110
Nesse período, outros grupos de artistas de várias áreas (teatro, artes plásticas, música, cinema etc.)
engrossaram as fileiras da “arte engajada”, que apesar de suas múltiplas formas comungava a idéia da
necessidade de alterações consideráveis no caminho político e econômico do país. Na dramaturgia,
podemos citar como exemplos representativos o Teatro Oficina, de São Paulo; o
CPC
no Rio de Janeiro; o
o
TCP
de Pernambuco, ligado ao
MCP
; o Teatro Opinião no Rio de Janeiro etc.
111
Para maiores informações sobre Stanislavski e o movimento teatral russo e soviético das três primeiras
décadas do século XX, consultar: G
UINSBURG
, Jacó. Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou: do
realismo externo ao tchekhovismo. São Paulo: Perspectiva, 1985 e do mesmo autor, Stanislávski,
Meierhold & Cia. São Paulo: Perspectiva, 2001.
112
C
ARLSON
, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. Trad. Gilson
César C. de Souza. São Paulo: Editora da Unesp, 1997, p. 365.
desenvolvimento dos recursos interiores e a libertação da mente e do corpo para
responder às exigências do texto, estimulando a imaginação, amparada pela confiança
do ator em sua criação e enriquecida com as lembranças de suas emoções pessoais.
113
Em 1949, foi editado o segundo livro, composto de diversos rascunhos e com o título de
Building a character (A construção do personagem); neste, são abordados assuntos
como expressão corporal, dicção e tempo-ritmo da fala, provando que Stanislavski não
ignorava a técnica exterior em proveito de seu interesse pela exploração interior.
114
A
transcrição de suas derradeiras notas foi publicada em 1961, em A criação do papel, e
sugerem que, por volta de 1930, ele arrefecera a ênfase até então posta na vida interior
como fonte para um papel e voltara-se para o estudo do texto, e também das ações
físicas por este requeridas, como um meio de estimular a vida interior.
115
No conjunto de idéias, orientações e exercícios dramáticos elaborados por
Stanislavski, estão a memória afetiva recurso de interpretação do ator para recriar a
emoção pela memória — e o método das ações físicas baseado na dependência entre
ação física, comportamento, sensação e emoção. A memória afetiva tem por fim
estimular o ator a aderir à personagem o máximo possível, a fim de “vivê-la”: ao
rememorar nos nimos detalhes algum fato que no passado tenha impressionado sua
emoção, o ator provoca em si, outra vez, emoções similares àquelas sentidas original-
mente. Para Stanislavski, recorrer às recordações de diferentes sentimentos, no fundo,
significava a possibilidade de retornar aos próprios sentimentos, dependentes da
vontade e que devem ser provocados conscientemente pelo ator: em outras palavras,
este deve trazer à memória consciente lembranças de fatos passados, embora o objetivo
seja estimular sentimentos arquivados no subconsciente.
116
Nos últimos anos de vida, Stanislavski sistematizou o método das ações físicas,
uma nova abordagem para composição e caracterização do personagem, mas sobre a
qual ele trabalhava desde os anos 20, quando começou a estudar ópera. Assim, na
criação do personagem, a ênfase é deslocada do ponto de vista da psicologia para o das
ações físicas e do inter-relacionamento sensorial de atores com atores, ou do ator com
objetos circundantes. O primeiro passo para estabelecer um processo criativo orgânico
113
Ibidem, p. 368.
114
Ibidem, p. 368.
115
Ibidem, p. 368.
116
Cf. V
ASCONCELOS
, Luiz Paulo. Dicionário de teatro. Porta Alegre:
L
&
PM
Editores, 1987, p. 126–128.
passou a ser a relação física com os objetos e com as pessoas em volta a base das
sensações e emoções.
117
A propósito desse método, Jerzy Grotowski salienta que, na fase anterior à da
“memória emotiva”, Stanislavski
achava ainda que recorrer às recordações de diferentes sentimentos no fundo
significasse a possibilidade de retornar aos próprios sentimentos. Nisto havia um
erro a no fato de que os sentimentos dependem da vontade. No entanto, na
vida, podemos notar que os sentimentos são independentes da nossa vontade. Não
queremos amar alguém, mas amamos; ou então o contrário: queremos realmente
amar alguém, mas não conseguimos. Os sentimentos são independentes da vontade
e, justamente por esse motivo, Stanislavski, no último período de atividade,
preferia, no trabalho, colocar a ênfase naquilo que está sujeito à nossa vontade.
Por exemplo, na primeira fase, ele perguntava quais as emoções às quais o ator
tendia nas diversas cenas. E enfatizava os assim chamados “eu quero”. Mas, por
mais que possamos querer “querer”, isto não é a mesma coisa que o fato de
“querer”. Na segunda fase, deslocou a ênfase para o que é possível fazer. Porque
o que se faz depende da vontade.
118
Embora o diretor, nessa última etapa, ponha em dúvida muitas de suas
descobertas anteriores, ele não repudiou seu sistema primitivo: a tarefa do ator evolui,
de forma cíclica, da ação sica e da análise do texto para a criação da vida interior e
regressa à ação exterior no papel — tudo como parte de um mesmo processo.
119
Sobre como Boal explicita sua apreensão do pensamento de Stanislavski, merece
ser dito que tanto a emoção, emergida da memória afetiva, quanto a interação do ator
com o ambiente e, sobretudo, com a idéia que se quer transmitir foram elementos
importantes para sua prática teatral no Arena como diretor quando chegou dos
EUA
.
Dizia ele:
[...] o que Stanislavski fez de extraordinário, de genial? Em vez de uma linguagem
simbólica, ele criou uma linguagem sinalética. Qual é a diferença? Numa
linguagem simbólica, se você está apaixonado, faz assim, então é um gesto de
117
Sérgio de Carvalho, diretor do grupo teatral Companhia do Latão, de São Paulo, oferece-nos uma
explicação sintética sobre alguns aspectos do método das ões físicas: o Método propõe que os ensaios
de uma peça de teatro não comecem pelo “trabalho de mesa”, pela leitura seguida da discussão de
idéias, mas sim pelos exercícios de improvisação com os acontecimentos da história. Uma primeira
leitura do texto, por parte dos atores, pode até ocorrer, mas somente para que sejam estudados os fatos a
ser improvisados. Nunca haverá uma memorização das palavras anterior à experimentação prática. O
importante é descobrir, pelo ato de improvisar, as ações e relações que geram a necessidade das
palavras. [...] Como o trabalho de improvisação visa ao estudo da lógica das situações, seu pressuposto
conceitual é de que não são as emoções que movem um ator em cena. Ao contrário, são suas ações
(psicofísicas e verbais) que geram as emoções da cena. C
ARVALHO
, Sérgio de. Apresentação Eraldo
Rizzo e a síntese possível. In: R
IZZO
, E. P., op. cit., p. 20.
118
G
ROTOWSKI
, Jerzy. Resposta a Stanislavski. Folhetim, nº 9, jan.–abr./2001, p. 9.
119
C
ARLSON
, M., op. cit., p. 368.
amor, se você está com medo, é isso, se você está assustado, é aquilo. Então, tinha
uma série de gestos de mão, de expressões fisionômicas que eram características
de certas emoções, e você tinha de fazer aquilo, então era como se fosse em certos
teatros, em certos estilos, o Kathakali indiano, o No e o Kabuki, japoneses, onde a
cor amarela, a cor branca, tudo em um significado simbólico. Agora, o que é o
símbolo? É uma coisa que está em lugar de outra mas não é a outra, quer dizer, a
bandeira é o símbolo da pátria mas não é a pátria. Então, quando a pessoa estava
apaixonada, não interessa se o ator estava ou não apaixonado, estivesse sentindo o
que estivesse, importava era o gesto de amor que ele fazia. E o Stanislavski vem e
fala: “Não, não vamos fazer mais essa linguagem, que é simbólica, vamos fazer
sinalética”. Qual é a diferença? Primeiro sinta a emoção. Sentindo a emoção, ela
vai buscar a forma justa, quer dizer, por que apaixonado é assim? Apaixonado
pode ser “ôôôô... (faz uma careta), tem todos os tipos. Aquele com a língua de fora
e a mãozinha assim, que nem cachorrinho, apaixonado, ne? Então, ele falou,
você primeiro sinta o amor, sinta o ódio, sinta o medo, sinta não sei o que e vai vir
uma forma. Isso eu acho que é a diferença, e que todos s, diretores, somos
influenciados pelos Stanislavski, provavelmente. Acho que o Actor’s Studio pegou
isso e levou para a subjetividade especialmente pela influência do cinema, porque
eu via muitas peças naquela época, com atores do Actor’s Studio, Bem Gazzara, o
James Dean, e percebi que não era bem assim. Mas no cinema, pelo fato de você
ter a câmara em cima... por exemplo, o ator chegava e perguntavam: “Como é que
você vai?” Em vez de dizer “tudo bem”, não, ele olhava primeiro, segurava o
copo, olhava assim, dava uma volta... “I’m ok”, depois de meia hora. Ele dava
primeiro tudo o que estava na cabeça do ator, ele permitiu o tempo objetivo.
Então, o tempo objetivo se deformava. Quer dizer, o Stanislavski, pra mim,
pensava na subjetividade do ator, mas, sobretudo, pensava que essa subjetividade
é feita de interações. Então, tem um lado objetivo, quer dizer, são duas pessoas
falando uma com a outra, não é um e a câmara esperando que ele mostre os
movimentos da alma até que saia o “tudo bem”. O Actor’s Studio era baseado no
Stanislavski, mas eles fizeram uma espécie de “expressionismo stanislavskiano”, e
no Teatro de Arena porque foi naquela época que eu vim assim meio
embalado com o Actor’s Studio, com Stanislavski e tudo o que eu fazia era o
seguinte: “Olha, é a emoção que vai dar a forma, sim, mas vamos primeiro ver a
idéia. Qual é a idéia que vai gerar essa emoção, e essa idéia, concreta, gera uma
emoção que então vai dar sua forma”. Eu insistia na idéia (grifos nossos).
120
O contato com esse pensamento filtrado pelo Actor’s Studio possibilitou a Boal,
após entrar para o Arena, estudar sistematicamente a obra de Stanislavski no
Laboratório de Interpretação,
121
onde punha em prática as lições aprendidas:
A melhor maneira de ensaiar seria, desde o primeiro dia, praticar Stanislavski.
Expliquei como seria o trabalho, pedi que estudassem os primeiros capítulos da
Preparação do ator, que começaríamos a experimentar no primeiro ensaio, às duas
120
E
XILADO
. Caros Amigos. São Paulo, ano
IV
, 48, mar./2001, p. 29–30. Entrevistadores: Marina
Amaral, Marco Antônio Rodrigues, Carlos Castelo Branco, João de Barros, Sergio Pinto de Almeida, José
Arbex Jr., Márcio Carvalho, Wagner Nabuco e Sérgio de Souza.
121
O Laboratório de Interpretão no Teatro de Arena destinava-se ao estudo dos livros de Stanislavski e dos
métodos de interpretão teatral. Segundo bato Magaldi, o projeto era o de leitura, por um ator, de um
relatório sobre um capítulo da obra stanislavskiana, discutindo-o em seguida. Depois se montaria uma cena,
na forma tradicional e de acordo com a nova autenticidade procurada, para avaliação dos resultados.
M
AGALDI
, Sábato. Um palco brasileiro: o Arena de São Paulo. o Paulo: Brasiliense, 1984, p. 33–34.
horas da tarde, em ponto. Fui pra casa quarto emprestado reler anotações
sobre o Actor’s Studio, rever rabiscos nos livros do mestre russo. Stanislavski foi,
desde minha estréia profissional, setembro de 1956, e até o meu futuro, minha
referência como diretor.
122
Ainda nos Estados Unidos, Boal conheceu a obra de Bertolt Brecht, apresentada
a ele por Gassner: O meu contato com ele foi na universidade, mesmo. Havia o (crítico
e editor) Eric Bentley, que estava começando a divulgar o nome de Brecht. E o próprio
Brecht tinha feito, antes de eu chegar lá, o “Galileu Galilei”.
123
Todavia, naquele
momento, Boal não chegou a conhecer mais profundamente as idéias e teorias desse
dramaturgo.
Parece-nos que as primeiras referências explícitas à estética brechtiana no
trabalho de Boal no Teatro de Arena surgiram na peça Revolução da América do Sul
(1960). Mas foi a partir do “questionamento” de Boal acerca da ênfase dada à sua
dramaturgia e prática teatral aos elementos e técnicas stanislavskianas que elaborou
textos dramáticos como Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes:
começamos a ter medo de que esta emoção que desenvolvíamos, esta criação de
personagens às vezes tão sinceros, tão autênticos [...] pudesse, através da empatia,
levar o espectador a aceitar de uma forma um pouco fatalista as tragédias que
apresentávamos.
124
Na elaboração destas peças, acreditamos que Boal intensificou o diálogo com o
método de Brecht, sobretudo para compor seu sistema curinga. Nele, as influências do
pensamento brechtiano são evidentes, sobretudo, em seus mecanismos principais: a não-
apropriação do personagem por um ator (desvinculação ator–personagem) e a
presença de um curinga, um ator que maneja a cena e que, ao mesmo tempo, é o exegeta
do espetáculo em exibição. O curinga é o responsável por narrar acontecimentos
ocorridos fora de cena, comentar a ação da peça ou, ainda, ser o porta-voz do
pensamento do autor.
125
Tais técnicas visavam produzir um efeito de distanciamento
para impedir a identificação emocional do espectador e, assim, favorecer sua apreciação
122
B
OAL
, Augusto. Hamlet..., op. cit., p. 141.
123
B
OAL
, Augusto. [Depoimento prestado]. In: S
Á
, Nelson de; C
ARVALHO
, Sérgio de. O teatro globali-
zado. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6/9/1998, Mais!, p. p. 4.
124
B
OAL
, Augusto. O papel de Brecht no teatro brasileiro: uma avaliação. In: B
ADER
, Wolfgang (org.).
Brecht no Brasil: experiências e influências. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 251.
125
V
ASCONCELOS
, L. P., op. cit., p. 136.
crítica. Boal explica o modo como criou procedimentos estéticos à luz do pensamento
brechtiano:
[...] começamos elaborando o Sistema Coringa, que tinha pelo menos dois meca-
nismos que vinham de uma influência brechtiana. Um mecanismo que era da não
apropriação do personagem por um só ator. Todos os atores faziam todos os
personagens. Em alguns casos menos o protagonista. Isto é, cada cena era
representada por um ator diferente. Então isto permitia a nosso ver, naquela
época, que o ator se emocionasse plenamente, verificasse todo o personagem e ao
mesmo tempo o fato de que na cena seguinte não era mais ele, era um outro,
produziria um certo efeito de estranhamento. Este era um dos mecanismos, essa
não-identificação do ator e personagem. O segundo mecanismo era o mecanismo
da presença de um coringa que era uma espécie de meneur de jeu, uma espécie de
pessoa que maneja a cena e que ao mesmo tempo é o exegeta do espetáculo que
está sendo mostrado, isto é, mostrávamos a peça e a exegese da peça através da
personagem-função do “coringa”, que explicava, que retificava, que apresentava
as alternativas. Isto já foi uma influência brechtiana bastante séria no nosso
trabalho e que criou toda esta série Arena conta...
126
Segundo a interpretação que tem Paulo José do trabalho de Boal, houve de fato
uma passagem de Stanislavski a Brecht:
O Golpe de 64 — um golpe rudete colocou diante da necessidade de uma nova
estética. Nesse momento é que entra a estética de Brecht aí, a gente começa a
ler o Pequeno organon com outros olhos e, de repente, o teatro não é aristo-
télico. Porque você fica diante de uma emergência, você precisa dizer as coisas de
uma maneira muito mais direta; então o teatro épico aparece exatamente no golpe
de 64.
O Boal passa a ser professor na Escola de Arte Dramática e trabalha muito
com a poética de Aristóteles, com Hegel... [...] No golpe de 64, de alguma forma,
isso fica parecendo uma coisa distante que não chega a te instrumentar muito bem
para você falar da realidade que você está vivendo. é quando ele rompe com o
teatro aristotélico, com a poética hegeliana e passa a trabalhar com o Pequeno
organon com toda a estética, os Escritos sobre teatro, todo o trabalho de Brecht.
127
Além disso, podemos ver que se discutiam no grupo do Teatro de Arena
mudanças na forma narrativa como afirma Gianfrancesco Guarnieri: A gente sentia
que precisava mudar a forma narrativa. Não era uma discussão nova, mas se aguçou
neste período.
128
Em alguns depoimentos verifica-se o destaque dado à necessidade de
inovar a relação palco–platéia, de modo a explicitar o ponto de vista de quem narra ou
conta. Segundo Boal, surgiu a idéia de fazer uma peça que contasse, não a vida de
126
B
OAL
, A. O papel de Brecht..., op. cit., p. 252–253.
127
R
ENATO
, José. Interview de Paulo José. In: R
OUX
, R., op. cit., p. 450.
128
G
UARNIERI
, G. Entrevista a Fernando Peixoto. Encontros com a civilização brasileira, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1, p. 110, 1978. Apud C
OSTA
, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil.
alguém, mas um grupo teatral, o Arena, contando o que pensávamos.
129
Daí a série de
Arena conta, com a introdução de personagens narradores, como recurso dramatúrgico,
que, ao contarem histórias (de Zumbi dos Palmares, de Tiradentes, de Simon Bolívar),
veiculavam significados ou visões de mundo mais ou menos claros, apresentando
questões com sentidos precisos, expostos numa perspectiva a do coletivo, do Arena
— em que se evidenciavam sem camuflagem.
No entanto, questionamos se houve mesmo uma ruptura estética: podemos tomar
as mudanças na ênfase de inspiração — de stanislavskiana para brechtiana — nas
atividades teatrais de Augusto Boal como manifestações alternativas ou oposicionistas?
Se sim, como distinguir então se as iniciativas e contribuições alternativas estão nos
limites do que é dominante, ou se são, de fato, independentes?
130
Segundo Williams, a
dificuldade ocorre porque as manifestações oposicionistas estão, na prática, ligadas ao
hegemônico. Por outro lado, esse autor nos alerta para o fato de que não se pode
ignorar a importância de obras e idéias que, embora claramente afetadas pelos
limites e pressões hegemônicos, são pelo menos em parte rompimentos signi-
ficativos em relação a estes, e que podem em parte ser neutralizados, reduzidos ou
incorporados, mas que, em seus elementos mais ativos, surgem como indepen-
dentes e originais (grifo nosso).
131
Em geral, as peças Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes representam a
procura por respostas formais a mudanças na própria experiência social pós-golpe de
1964, além de ser experimentos de novas formas e combinações dramáticas. Pode-se
perceber nelas recursos dos métodos de Stanislavski e Brecht, aplicados para se
vivenciar uma experiência e, ao mesmo tempo, comentá-la com o espectador.
Todavia, a prática acadêmica habitual de procurar influências constitui um
“blefe” para Williams,
132
pois todas as tradições são seletivas. O exercício de explicar
tudo pela referência à fonte inibe um exame verdadeiro da variedade histórica do
passado: a experiência social concreta, suas formas mais singulares, os tipos de
organizações sociais, persistências ou transformações de formas de interpretações,
São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 113.
129
A
RAÚJO
, Alcione. O lavrador do mar. Palavra, ano 1, nº 11, Belo Horizonte, mar./2000, p. 100.
130
W
ILLIAM
, Raymond. Marxismo e literatura. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979, p. 117.
131
Ibidem, p. 117.
132
W
ILLIAMS
, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989, p. 34.
imagens e idéias. Williams parte do suposto de que ver a persistência de idéias e
imagens pode levar a um reducionismo das formas de interpretar os chamados símbolos
e arquétipos, ou seja, de abstrair até mesmo estas formas tão evidentemente sociais e
dar-lhes um status basicamente psicológico ou metafísico.
133
Para evitá-lo, Williams
reitera seu método: os historiadores devem saber explicar tanto a persistência quanto a
historicidade dos conceitos.
Muitas vezes, tal redução acontece quando constatamos que certas formas, imagens
e idéias importantes persistem durante períodos de grandes transformações. Mas,
se percebemos que a persistência depende das formas, imagens e idéias em
mudança ainda que muitas vezes de modo sutil, interna e, por vezes, incons-
cientemente —, podemos ver também que a persistência indica alguma necessidade
permanente ou praticamente permanente, que se reflete nas diferentes interpre-
tações que vão surgindo. Creio que há, de fato, uma tal necessidade, e ela é criada
pelos processos de um desenvolvimento histórico específico. Contudo, se não vemos
esses processos, ou se os vemos por acaso, recaímos em formas de pensamento
aparentemente capazes de criar a permanência sem a história. Isto pode nos
proporcionar satisfação emocional ou intelectual, mas então teremos encarado
metade do problema, pois em todas estas grandes interpretações é a coexistência de
persistência com transformações que é realmente impressionante e interessante, e
que é preciso explicar sem que uma seja reduzida à outra.
134
Mesmo achando difícil estabelecer todas as fontes inspiradoras do sistema
curinga, Cláudia de Arruda Campos sugere a existência de ecos da tragédia e comédia
gregas,
135
assim como a influência brechtiana. Para ela, é evidente que o fio que unifica
a maioria das técnicas e expedientes incorporados ao Sistema está na sua natureza
épica.
136
Com efeito, o sistema curinga parece ser uma forma e idéia que mantêm
ligações com o coro da tragédia grega e o teatro épico de Bertolt Brecht (que, consi-
derado em sua especificidade, também se relaciona com o coro da tragédia grega); no
entanto, a composição formal do sistema não se reduz à tragédia grega nem ao teatro
épico. Para nós, é necessário confrontar as idéias do sistema curinga com sua realidade
histórica de origem, pois relações sociohistóricas claras entre essa forma e a
sociedade e época em que foi originada, como também continuidades evidentes na
composição do sistema.
133
Ibidem, p. 387.
134
Ibidem, p. 387-388.
135
Segundo Pavis, o coro na tragédia grega, que desapareceu pouco a pouco, revela que, mesmo na
origem, o teatro recitava e dizia a ação, em vez de encarná-la e figurá-la a partir do momento em que
houve diálogos, entre pelo menos dois protagonistas. P
AVIS
, P., op. cit., p. 130.
136
C
AMPOS
, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes (e outras histórias contadas pelo Teatro de Arena de
São Paulo). São Paulo: Perspectiva/Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 121–122.
Então é justificável uma investigação sobre o sistema curinga com foco tanto na
aplicação da forma narrativa pelos autores quanto nos dispositivos formais inscritos nas
estruturas das peças, que podem nos auxiliar, por um lado, a ter algum “acesso” ao
público
137
que assistiu a encenações realizadas sob os fundamentos do sistema curinga
e, por outro, descrever o sistema de representação, interpretando-o segundo as conven-
ções admitidas e praticadas socialmente naquele período.
A pintura, a arte, o teatro sob todas as formas
e eu preferiria dizer o espetáculo visualizam
por um determinado tempo não os termos
literários e as lendas, mas as estruturas da
sociedade. o é a forma que cria o pensamento
nem a expressão, mas o pensamento, expressão
do conteúdo social comum de uma época, que
cria a forma.
138
P. Francastel
O
SISTEMA CURINGA APRESENTADO POR
A
UGUSTO
B
OAL
Ao examinarmos um documento, devemos questioná-lo em sua produção, reprodução e
apropriação. Trataremos, aqui, de investigar como foram produzidos os textos teóricos
sobre o sistema curinga, bem como os aspectos que envolvem sua memorização; em
outras palavras, o que o fez perdurar como depósito de memória?
139
Consideramos que
refletir sobre os preceitos do sistema curinga implica, igualmente, pensar sobre alguns
elementos da forma narrativa verificada em parte da dramaturgia produzida pelos
participantes do Teatro de Arena.
137
De acordo com as reflexões e proposições de Roger Chartier, os dispositivos formais, tanto os textuais
quanto materiais, inscrevem em sua própria estrutura as expectativas e as competências do público que
visam, portanto, organizam-se a partir de uma representação da diferenciação social. C
HARTIER
, R., O
mundo como representação, op. cit., p. 76.
138
F
RANCASTEL
, Pierre. La Réalité Figurative. Gonthier: Paris, 1965, p. 237-238. Apud P
AVIS
, Patrice.
Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 173.
139
M
ARSON
, Adalberto. Reflexões sobre o procedimento histórico. In: S
ILVA
, Marcos A. (org.)
Repensando a história. São Paulo/
ANPUH
: Marco Zero, 1984, p. 52.
Para Boal, o curinga representa, no teatro, uma realidade mágica criada pelo
dramaturgo: onisciente, polivalente, ubíquo, que adquire a consciência de cada
personagem que seu papel permite interpretar. Ele desempenha a função de narrador
explícito e contemporâneo ao público, atuando de maneira crítica e procura, sobretudo,
romper a ilusão ficcional, declarando os recursos teatrais empregados.
A descrição de como funciona o sistema curinga e seus pressupostos teóricos
estão formalizados no conjunto de ensaios publicados como introdução à peça Arena
conta Tiradentes (“Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena”;
“A necessidade do coringa”; “As metas do coringa”; “As estruturas do coringa”;
“Tiradentes: questões preliminares”; “Quixotes e heróis”).
140
Neles, estão inscritos, em
termos gerais, o sentido evolutivo e progressivo dado à trajetória do Arena por Augusto
Boal. Portanto, devemos nos esforçar para apreender a lógica de elaboração desses
textos, pois se tornaram referência para pesquisadores e comentadores que investigaram,
em especial, as produções “musicais” do Teatro de Arena. O que se a seguir é uma
síntese desses textos, com que esperamos caracterizar tanto o sistema curinga quanto a
interpretação construída por Augusto Boal acerca das práticas teatrais experimentadas
pelo grupo do Teatro de Arena.
Em nosso entendimento, deve-se ter em mente que, pela ênfase dada à
elaboração formal do sistema curinga, Boal fez o caminho de rever o passado para
explicá-lo e ordená-lo segundo o pressuposto de uma trajetória de avanço do Arena em
140
O interesse pela reflexão teórica sobre a produção artística do Teatro de Arena se evidencia pela
regularidade com que Augusto Boal documentou, em diversas publicações, tanto sua trajetória evolutiva
quanto a inovação formal implementada pelo sistema curinga. Em 1967, no programa da peça Arena
conta Tiradentes, Boal apresenta dois ensaios: “Tiradentes: questões preliminares” e “Quixotes e heróis”;
também reúne vários artigos e os publica como introdução à edição do texto teatral Arena conta Tira-
dentes, inclusive os dois ensaios publicados no programa da peça: (B
OAL
, Augusto.
I
Elogio fúnebre do
teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena;
II
A necessidade do coringa;
III
As metas do coringa;
IV
– As estruturas do coringa;
V
Tiradentes: questões preliminares; Quixotes e heróis. In: B
OAL
,
Augusto; G
UARNIERI
, Gianfracesco. Arena conta Tiradentes. São Paulo: Sagarana, 1967, p. 11–56).
O Anuário do Teatro Paulista, da Comissão Estadual de Teatro, publica, também em 1967, um texto
onde Boal mostra resumidamente o sistema curinga: (B
OAL
, Augusto. Rascunho esquemático de um novo
sistema de espetáculo e dramaturgia denominado Sistema Coringa. Anuário do Teatro Paulista de 1967.
Anuário da Comissão Estadual de Teatro. Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo do Governo do
Estado de São Paulo, 1967). Em 1968, esses ensaios são publicados pela Revista Civilização Brasileira
(B
OAL
, Augusto.
I
Elogio nebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena;
II
A necessidade
do coringa;
III
As metas do coringa;
IV
As estruturas do coringa;
V
Tiradentes: questões
preliminares; Quixotes e Heróis. Revista Civilização Brasileira. Caderno Especial nº 2 — Teatro e
Realidade Brasileira. Rio de Janeiro, ano 1, julho, 1968, p. 213–251).
Em 1974, na Argentina, Boal publica o livro Teatro do oprimido e outras poéticas políticas, cujo item
4 “Poética do oprimido” traz como subitens: a) Uma experiência de teatro popular no Peru; b) O
sistema coringa (
I
Etapas do Teatro de Arena de São Paulo;
II
A necessidade do coringa;
III
As
metas do coringa;
IV
As estruturas do coringa;
V
Tiradentes: questões preliminares;
VI
Quixotes e
suas diversas fases, em que a atual superava a precedente, salientando a vinculação
estreita e histórica entre um teatro comprometido com a sociedade na qual viviam.
Justamente por causa de uma situação de “crise” no teatro, e em toda a sociedade, havia
a necessidade de avaliar e organizar o percurso do Arena até ali para, então, propor
novas maneiras de atuação. Para Boal, o sistema curinga é uma resposta, no campo
formal, à crise do teatro paulista na metade da década de 1960.
Coringa é o sistema que se pretende propor como forma permanente de se fazer
teatro dramaturgia e encenação. Reúne em si todas as pesquisas anteriores
feitas pelo Arena e, neste sentido, é súmula do já acontecido. E, ao reuni-las, tam-
bém as coordena, e neste sentido é o principal salto de todas as suas etapas.
141
O empenho de Augusto Boal ao escrever, em 1967, o texto “Elogio fúnebre do
teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena” consistiu em denunciar a crise desen-
cadeada por razões econômicas pela qual passava o teatro brasileiro: inflação e perda da
capacidade de compra do público, que leva à retirada de apoio financeiro e à debandada
de artistas que migraram para
TV
, evidenciando, com isso, uma “iminente morte do
teatro”. Ante tal crise, Boal se põe a refletir sobre as possíveis causas: Devemos analisar
as causas do atual malogro, para melhor vislumbrar as vias de fuga ao desastre,
utilizando esta série de artigos como entendimento do passado e organização do
futuro.
142
Para que a situação de penúria não provocasse o retorno ao amadorismo, Boal,
tendo como marco inicial o ano de 1956, quando começaram suas atividades como
diretor do grupo, evoca o passado do Teatro de Arena para organizá-lo. Sua escrita
evidencia o ordenamento da trajetória do grupo numa linha evolutiva de tendência
revolucionária
143
em que cada etapa esgotou-se em sua proposta e, com isso,
desencadeou uma nova fase: seu desenvolvimento é feito por etapas que não se
cristalizam nunca e que se sucedem no tempo, coordenada e necessariamente. A
coordenação é artística e a necessidade social.
144
heróis). (B
OAL
, A. O sistema coringa. In: ____. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 6ª ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 185–234).
141
Os ensaios citados a seguir referem se à seguinte edição: B
OAL
, A.; G
UARNIERI
, G. Arena conta
Tiradentes, op. cit., 1967, p. 11–56.
142
B
OAL
, A.
I
– Elogio fúnebre do teatro brasileiro..., op. cit., p. 11.
143
O contrário dos elencos de tendência revolucionária, para Boal, são os elencos clássicos; não porque
montassem obras clássicas, mas porque procuravam desenvolver e cristalizar um mesmo estilo através de
seus vários espetáculos.
144
Ibidem, p. 13.
No ardor de entender o passado logo, na execução do exercício da rememo-
ração, em que não como realizá-lo sem acrescentar, selecionar e dar novos sentidos
—, Boal estabelece divisões quadripartidas para a trajetória do Arena: Primeira etapa:
“Não era possível continuar assim”; Segunda etapa: “A fotografia”; Terceira etapa:
“Nacionalização dos clássicos”; Quarta etapa: “Musicais”. Embora esquemática e
problemática essa divisão, podemos destacar desses textos tanto a intenção do autor de
demonstrar, sobretudo, como as opções estéticas, em todas as suas contradições, tinham
fortes vínculos com o tipo de conteúdo que se pretendia levar ao palco quanto, e em
especial, o esforço do autor no que se refere a refletir sobre as formas já experimentadas
da relação palco–platéia.
É claro, não compreendemos o texto como auto-explicativo e destituído da
intenção do autor de perpetuar, em documento, sua interpretação dos acontecimentos.
Todavia, neste momento optamos por examinar mais precisamente como esse autor
abordou questões de conteúdo e forma no teatro que foram amplamente pensadas,
discutidas, ensaiadas, concretizadas e documentadas por grande parte dos participantes
do denominado “teatro engajado” nos anos de 1960.
A opção pela estética realista
145
na primeira fase do Arena, em 1956, segundo
Boal, aconteceu porque era preciso contrapor-se à estética do Teatro Brasileiro de
Comédia, “feito por quem de dinheiro para quem também o tivesse”, de “luxo”, “com
encenações abstratas e belas”, “para mostrar ao mundo que aqui também se fazia bom
teatro europeu”. O realismo tinha entre outras vantagens, a de ser mais fácil de
realizar. [...] passávamos a usar a imitação da realidade visível e próxima. A interpre-
tação seria tão melhor na medida em que os atores fossem eles mesmos e não atores.
146
Nessa “primeira fase”, a estética realista buscava construir uma interpretação
mais brasileira, embora não houvesse peças nacionais que possibilitassem adotar essa
perspectiva. Boal destaca que nos restava utilizar textos modernos realistas, ainda
que de autores estrangeiros
147
. Assim, foram encenadas, entre outras, as peças Ratos e
homens, de John Steinbeck, e Juno e o Pavão, de Sean O’Casey. Também se buscava
uma aproximação com o público de classe média desejoso de atuações em que os
atores, sendo gagos, fossem gagos; sendo brasileiros, falassem português, misturando
145
De acordo com Patrice Pavis, a representação realista tenta dar uma imagem considerada adequada
ao seu objeto, sem idealizar, interpretar pessoal ou incompletamente o real. P
AVIS
, P. op. cit., p. 327.
146
B
OAL
, A.
I
– Elogio fúnebre do teatro brasileiro..., op. cit., p. 14–15.
147
Ibidem, p. 14.
tu e você.
148
Nesse sentido, Boal acentua que o espaço cênico denominado de arena,
diferentemente do palco italiano adotado pelo
TBC
,
mostrou ser a melhor forma para o teatro-realidade, pois ela permite usar a
técnica do close-up: todos os espectadores estão próximos de todos os atores; o
café servido em cena é cheirado pela platéia; o macarrão comido é visto em
processo de deglutição; a lágrima “furtiva” expõe seu segredo...
149
A estética realista, tal qual Boal a apresenta, tinha como características: a
imitação da realidade visível e próxima; a interpretação centrada na figura do ator; o
despojamento do cenário e a visibilidade dos mecanismos teatrais (refletores, entradas e
saídas, rudimentos de cenários), próprios do teatro em forma de arena. Somados à busca
de uma “interpretação brasileira”, esses elementos implicavam maior aproximação com
o público.
Boal classificou como segunda etapa a fotográfica, assinalando como marcos:
primeiro, a encenação da peça Eles não usam Black-tie (1958), de Gianfrancesco
Guarnieri; segundo, a fundação do Seminário de Dramaturgia, em abril de 1958. Nesse
período, o Arena fechou suas portas à dramaturgia estrangeira, independentemente de
sua excelência, abrindo-as a quem quisesse falar do Brasil às platéias brasileiras.
150
O
seminário estimulou a produção de uma dramaturgia preocupada com os problemas
nacionais, apresentados, muitas vezes, na perspectiva das pessoas comuns: suborno no
futebol interiorano, greve contra os capitalistas, adultério em Bagé, vida sub-humana
dos empregados em ferrovias, cangaço no Nordeste e a conseqüente aparição de
Virgens e Diabos, etc.
151
Boal apresenta a cenografia como uma novidade dessa fase, com a integração de
Flávio Império ao grupo.
152
Embora o estilo continuasse fotográfico e o modo de inter-
pretação, stanislavskiano,
148
Ibidem, p. 14.
149
Ibidem, p. 15.
150
B
OAL
, A.
I
– Elogio fúnebre do teatro brasileiro..., op. cit., p. 16.
151
Ibidem, p. 16.
152
Segundo Iná Camargo Costa, a cenografia de Flávio Império mudou a história do teatro brasileiro.
Sobre o trabalho dele no Teatro de Arena, diz: no estudo daquele espaço, a grande percepção de
arquiteto: o chão é a única referência a partir da qual se podem estabelecer as demais. Assim, enquanto
o cenário para Eles não usam black-tie foi feito à base de caixotes, numa concepção acentuadamente
naturalista; o de Zumbi tinha um elemento central: o tapete vermelho. Cf. C
OSTA
, Iná Camargo. Um
enredo para Flávio Império. In: Sinta o drama. Petrópolis (
RJ
): Vozes, 1998, p. 198–199.
a interpretação, nesta fase, continuou o caminho já trilhado antes, continuou
Stanislawsky. Porém, antes, a ênfase interpretativa era dada a “sentir emoções”,
agora, as emoções foram dialetizadas e a ênfase passou a ser posta no fluir de
emoções. [...] Assim, Stanislawsky foi posto dentro de um sistema. Apesar da
resistência do diretor russo em aceitar “sistemas”, todas as suas teorias cabiam
perfeitamente dentro deste.
153
Na descrição de Boal, os sentimentos sociais frente ao furor nacionalista o
nacionalismo político, com o florescimento do parque industrial de São Paulo, com a
criação de Brasília, com a euforia da valorização de tudo nacional
154
coadunam-se
com a ênfase conferida pelo Arena à estética stanislavskiana.
A passagem à fase seguinte do Arena — “nacionalização dos clássicos” —
acontece, segundo Boal, por causa de uma limitação da fase “fotográfica”: a reiteração
do óbvio: a platéia via o que acontecia.
155
Daí a necessidade de se dialogar não
com textos nacionais, mas também com textos dramáticos clássicos que propiciassem,
com seus temas, problematizações da realidade nacional. Boal informa que, tendo em
vista a validade no tempo presente de questões como “poder” e “hipocrisia religiosa”,
entre outras, e considerando-as em relação ao público, foram “nacionalizados” textos de
Maquiavel, Molière, Lope de Vega, Gogol e outros. Nesse sentido,
nunca o estilo vigente desses autores era proposto como meta de chegada. Para
que se pudesse radicar no nosso tempo e lugar [...]. Pensávamos naqueles a quem
nos queríamos dirigir, [...] nas interrelações humanas e sociais dos personagens,
válidas em outras épocas e na nossa.
156
Boal identifica nessa fase o deslocamento de uma interpretação mais individual
para uma interpretação cada vez mais social:
Os atores passaram a construir seus personagens a partir de suas relações com os
demais, e não a partir de um discutível essência. Isto é, os personagens passaram
a ser criados de fora para dentro. Percebemos que o personagem é uma redução
do ator, e não uma figura que paira distante e flutua até ser alcançada por um
instante de inspiração.
157
153
B
OAL
, A.
I
– Elogio fúnebre do teatro brasileiro..., op. cit., p. 17.
154
B
OAL
, A.
I
– Elogio fúnebre do teatro brasileiro..., op. cit., p. 16.
155
Ibidem, p. 17.
156
Ibidem, p. 19.
157
Ibidem, p. 19.
A quarta etapa — “musicais” — apresenta a síntese entre a “fotográfica”, que se
restringiu à análise de singularidades, e a “nacionalização dos clássicos”, que se reduziu
à síntese de universalidades. Boal arrola uma vasta produção de musicais realizados
pelo Arena, destacando como a mais importante Arena conta Zumbi (1965), de
Guarnieri, Boal e Edu Lobo, porque se localizava ali a destruição de todas [as]
convenções teatrais que se vinham constituindo em obstáculos ao desenvolvimento
estético do teatro.
158
O principal recurso introduzido vincula-se à perspectiva da
narrativa, que passa a ser a do Teatro de Arena e seus integrantes: a história não era
narrada como se existisse autonomamente: existia apenas referida a quem a contava.
159
Sobre esse ensaio, em particular, e suas implicações na escrita da história do
teatro paulista, o importante trabalho de reflexão da historiadora Rosangela Patriota:
“História, memória e teatro: a historiografia do Teatro de Arena de São Paulo”.
160
Após
sistematizar a historiografia que se debruçou sobre a experiência do Teatro de Arena, a
autora constatou que todos os estudos existentes sobre o grupo aceitam a periodização
proposta pelos agentes, em particular, a construída por Augusto Boal no ensaio
intitulado Etapas do Teatro de Arena de São Paulo” (grifo da autora).
161
Além de
tomar como referência esses marcos dos testemunhos, os estudiosos nem ao menos
questionaram-se a respeito do lugar em que estas interpretações ocorrem.
162
Patriota considerou, à luz das idéias do historiador Carlos Alberto Vesentini,
163
que a periodização estabelecida por Augusto Boal foi cristalizada e, com o passar dos
anos, transformou-se no próprio acontecimento.
No que toca à historiografia produzida sobre o Arena, observa-se que todos os
trabalhos consultados aceitaram a periodização construída por Boal, bem como os
argumentos que lhe deram sustentação. As diferenças existentes, entre esses
estudos, dizem respeito, inicialmente, à utilização da documentação: ora privi-
legiam as críticas existentes sobre os espetáculos, ora destacam os depoimentos e
as análises dos participantes. No entanto, independentemente da opção feita, o que
158
Ibidem, p. 20.
159
B
OAL
, A.
I
– Elogio fúnebre do teatro brasileiro..., op. cit., p. 20.
160
P
ATRIOTA
, Rosangela. História, memória e teatro: a historiografia do Teatro de Arena de São Paulo.
In: M
ACHADO
, Maria Clara Tomaz; P
ATRIOTA
, Rosangela (org.). Política, cultura e movimentos sociais:
contemporaneidades historiográficas. Uberlândia: Edufu, 2001.
161
Ibidem, p. 203. A autora tomou como documento o texto publicado no livro Teatro do oprimido e
outras poéticas políticas [1974]. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977; nele, Boal dá outro
título ao ensaio “Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena”: “Etapas do Teatro de
Arena de São Paulo”.
162
Ibidem, p. 203.
163
V
ESENTINI
, Carlos Alberto. A teia do fato. São Paulo: Hucitec/História Social,
USP
, 1997.
se evidencia é a ausência de um tratamento crítico do “corpus” documental. Isto
pode ser dito porque, na maioria das vezes, a documentação é usada como se fosse
portadora (sem maiores esforços analíticos) das interpretações mais corretas
sobre os acontecimentos. Em outros casos ilustram, com maior riqueza de
detalhes, os eventos.
164
Para responder a essa constante, Patriota verificou o lugar de produção da
historiografia do Teatro de Arena: instituições acadêmicas e referências teóricas dos
autores, e percebeu que estes, muitas vezes, desconsideraram tanto o momento da
escrita dos textos quanto a historicidade dos próprios acontecimentos, alertando-nos
para a importância da história e de seus procedimentos, sobretudo aqueles relativos à
crítica documental, para as pesquisas interdisciplinares.
Reflexões teóricas sobre a encenação de Arena conta Zumbi (1965)
Após esquadrinhar a trajetória do Teatro de Arena, distinguindo-a em quatro
fases no ensaio “A necessidade do coringa”, Boal tratamento teórico à encenação de
Arena conta Zumbi. Toma a peça como marco no trabalho do Arena porque pressupõe a
destruição de muitas das convenções que, até então, o grupo empregava,
fundamentalmente o estilo realista de representação, a forma de mostrar em cena a vida
brasileira por meio da “fotografia”. Para Boal,
convenção é hábito criado: em si mesma não é boa nem má. As convenções do
teatro naturalista, por exemplo, não são boas nem más foram e são úteis em
determinados momentos e circunstâncias. O próprio Arena, durante o período que
vai de 1956 a 1960, valeu-se fartamente do realismo, de suas convenções, técnicas
e processos. Esse uso respondia à necessidade social e teatral de mostrar em cena
a vida brasileira, especialmente nos seus aspectos aparentes [...] utilizávamos a
fotografia e todos os seus esquemas. Da mesma forma, estávamos dispostos a
utilizar o instrumental de qualquer outro estilo, desde que respondesse às ne-
cessidades estéticas e sociais de nossa organização como teatro atuante isto é,
teatro que procura influir sobre a realidade e não apenas refleti-la, ainda que
correntemente.
165
A hipótese de Boal é que o espetáculo provocou o caos necessário à etapa de
proposição de um novo sistema em Tiradentes, graças às técnicas aplicadas: a
164
P
ATRIOTA
, R., op. cit., p. 205.
165
B
OAL
, A.
II
– A necessidade do coringa, op. cit., p. 23.
desvinculação ator–personagem,
166
uma perspectiva única de narrativa; o ecletismo do
gênero e do estilo, e por fim a música. Ele reconhece que não fora invenção sua — ao se
referir à desvinculação no teatro brechtiano e, também, à tragédia grega dois atores
(depois três) mascarados, para não confundir a platéia, alternarem entre si a inter-
pretação de todos os personagens.
167
Em Zumbi, a desvinculação atores
representando todos os personagens visava cessar a influência da fase realista
anterior sobre o elenco.
A instrução para a desvinculação no texto Arena conta Zumbi é mostrada na
primeira rubrica do primeiro ato: Ritmo: atabaque, bateria. Todos os atores entram e
cantam. Os atores não saem nunca de cena assumindo os seus diferentes personagens
diante do público
168
(grifo nosso). Aqui, vemos ainda a indicação para não se omitirem
do público os recursos de teatralização.
Para definir claramente os personagens, era necessário que estes apresentassem
ações e reações mecanizadas. Segundo Boal,
Em Zumbi, independentemente dos atores que representavam cada papel
procurava-se manter, em todos, a interpretação da máscara permanente de cada
personagem interpretado. Assim, a violência característica do Rei Zumbi era
mantida, independentemente do ator que o interpretava em cada cena. A
“aspereza” de Don Ayres, a “juventude” de Ganga Zona, o caráter “material” de
Gongoba, etc., igualmente não estavam vinculados ao tipo físico ou características
pessoais de nenhum ator.
169
Objetivava-se, também, agrupar todos os atores numa perspectiva de
narradores: o espetáculo deixava de ser realizado segundo o ponto de vista de cada
personagem e passava, narrativamente, a ser contado por toda uma equipe, segundo
critérios coletivos.
170
Pela explicação de Boal, o ecletismo de gênero e estilo e a música terceira e
quarta técnicas constituíram procedimentos que visavam, também, à criação do caos
estético. Em Zumbi, o melodrama e a chanchada tomam parte na peça, e também se
166
A técnica de desvinculação ator–personagem provocou certa desordem voluntária nas convenções
teatrais, apresentando-se como a mudança mais profunda e original na forma de encenação do Teatro de
Arena. O personagem era caracterizado por elementos de linguagem cênica e independente do ator que
interpreta: no mesmo espetáculo, qualquer personagem podia ser feito por qualquer ator, e o mesmo ator
poderia interpretar vários personagens.
167
Ibidem, p. 24.
168
G
UARNIERI
, Gianfrancesco; A
UGUSTO
, Boal. Arena conta Zumbi (1965), 49p (datilografado), p. 1.
169
B
OAL
, A.
II
– A necessidade do coringa, op. cit., p. 24.
170
Ibidem, p. 25–26.
adota uma variação no estilo das cenas, que ora tendiam ao expressionismo, ora ao
surrealismo. Ambos os recursos acionam “quebras” no espetáculo, provocando o
desentorpecimento do espectador. A música, por sua vez, visava preparar a platéia a
curto prazo para receber textos simplificados; por exemplo, a melodia de Edu Lobo
propiciava à platéia acreditar que este é um tempo de guerra como dizia o texto em
Arena conta Zumbi.
Segundo Boal, o particular típico,
171
resultado da síntese, foi apenas em parte
resolvido em Arena conta Zumbi, que usa o mito de Zumbi, ao mesmo tempo em que
apresenta dados e fatos da história recente:
de um lado, a história mítica com toda a sua estrutura de fábula, intacta; de outro,
jornalismo com o aproveitamento dos mais recentes fatos da vida nacional. A
junção dos dois níveis era quase simultânea, o que aproximava o texto dos
particulares típicos.
172
Boal faz a seguinte formulação sobre a ntese das fases do Arena: na primeira,
adepta de uma estética realista, a dramaturgia e a interpretação do Arena buscavam o
detalhe, as singularidades, a descrição mais minuciosa da vida brasileira, resultando no
palco a reprodução exata da vida como ela era, sem que ela fosse necessariamente
interpretada; nesse período usava-se o instrumental naturalista, e de certa forma a obra
de arte se igualava à realidade, inviabilizando o exercício da análise. Na fase posterior,
no período da nacionalização dos clássicos, o Arena passou a lidar apenas com idéias,
vagamente corporificadas em fábulas nas quais os personagens se constituíam em
símbolos tornados significativos pela feição semelhante à de pessoas e situações
171
O conceito estético de particular típico advém de Georg Lukács (1885–1971), filósofo marxista
húngaro. Lukács, com base nas observações de Marx e Engels, sugeriu uma literatura de “realismo”,
isto é, que descrevesse acurada e abrangentemente a situação sócio-histórica de uma dada sociedade.
Seus personagens não deveriam nem ser exclusivos a ponto de inviabilizar a aplicabilidade geral, nem
abstratos a ponto de se intercambiarem, mas unir o geral e o particular em “tipos” emblemáticos das
leis universais da sociedade. A burguesia anterior a 1848, quando ainda constituía uma classe pro-
gressista, era capaz de produzir obras “realistas”, mas, no contexto social presente, prossegue Lukács,
apenas o proletariado revela essa limpidez de visão. C
ARLSON
, Marvin. Teorias do teatro: estudo
histórico-crítico, dos gregos à atualidade. Trad. Gilson César C. de Souza. São Paulo: Editora da Unesp,
1997, p. 374. O típico para Lukács expressa o caráter social dos personagens e as tendências do processo
histórico em cada momento determinado. É, portanto, uma síntese que une o singular e o universal, tanto
do ponto de vista dos caracteres como da situação histórico-social. Para Lukács, os personagens e
situações típicas são características básicas da grande literatura realista sensível às mutações históricas,
sempre contraposta à literatura menor que consegue criar personagens e situações médias, fixas e
estereotipadas. Cf. F
REDERIDO
, Celso. Lukács: um clássico do século
XX
. São Paulo Moderna, 1997, p.
48–55.
172
B
OAL
, A.
III
– As metas do coringa, op. cit., p. 28.
brasileiras. A síntese entre o singular e o universal o particular típico foi concre-
tizada nos musicais.
No texto “A necessidade do coringa”, Boal sustenta que Zumbi cumpriu a função
de pôr fim a uma etapa de investigação do Arena na qual se concluiu a “destruição do
teatro” e se propôs o início de novas formas: o sistema curinga, justapondo o “singular”
e o “universal”, pois a verdadeira síntese estaria em Arena conta Tiradentes.
A teoria do curinga
Nos ensaios “As metas do coringa” e “As estruturas do coringa”, Boal explica o
funcionamento do sistema curinga, pressupondo a peça Arena conta Tiradentes; ao
mesmo tempo, ele o dispõe como forma permanente de encenação teatral. O ponto mais
importante na estética do sistema curinga é a análise do texto teatral e a revelação dessa
análise à platéia atribuída ao ator-curinga durante as “Explicações”. Aqui, o
funcionamento dessa técnica não é camuflado ou escondido.
CORINGA
Nós, somos o Teatro de Arena. Nossa função é contar histórias. O
teatro conta o homem; às vezes conta uma parte só: o lado de fora, o lado que todo
mundo vê mas não entende, a fotografia. Peças em que o ator come macarrão e faz
café, e a platéia aprende a fazer café e comer macarrão, coisas que já sabia.
Outras vezes, o teatro explica o lado de dentro, peças de idéia: todo mundo
entende mas ninguém vê. Entende a idéia mas não sabe a que se aplica. O teatro
naturalista oferece experiência sem idéia, o de idéia, idéia sem experiência. Por
isso, queremos contar o homem de maneira diferente. Queremos uma forma que
use todas as formas, quando necessário. “Arena conta Tiradentes” história de
um herói da liberdade nacional.
173
O curinga é contemporâneo ao espectador: afasta-se dos demais personagens e
profere para a platéia as “Explicações” que ocorrem periodicamente [procurando] fazer
com que o espetáculo se desenvolva em dois níveis diferentes e complementares: o da
fábula (que pode utilizar todos os recursos ilusionísticos convencionais do teatro) e o
da “conferência”, na qual o Coringa se propõe como exegeta.
174
Quanto ao estilo, cada cena deve ser resolvida no plano estético segundo os
problemas que ela, isoladamente, apresenta; ou seja, cada cena pode ser resolvida
independentemente das demais; pode até haver estilos diferentes de uma cena para
173
B
OAL
, A.; G
UARNIERI
, G. Arena conta Tiradentes, op. cit., p. 60.
174
B
OAL
, A.
III
– As metas do coringa, op. cit., p. 32.
outra. Para evitar confusões, elabora-se as “Explicações” na mesma perspectiva,
fixando-se, assim, o estilo geral da obra:
[...] dá-se total ênfase às “Explicações”, de forma que o estilo em que são
elaboradas se constitua no estilo geral da obra, e ao qual todos os demais devem
ser referidos. [...] cada capítulo, cada episódio pode ser tratado da maneira que
melhor lhe convier sem prejuízo da unidade que será dada, não pela permanência
limitadora de uma forma, mas pela pletora referida à mesma perspectiva.
175
Para Boal, a variação formal do sistema é oferecida pelas duas funções opostas: a
protagônica: da realidade mais concreta (naturalismo fotográfico/singular), e a curinga:
abstração mais conceitual (universal). Embora essa estrutura se mostre pouco
modificável, deve ser, ao mesmo tempo, flexível e absorvente de qualquer descoberta;
por isso, cenas, capítulos, episódios e explicação devem ser tratados com originalidade.
Também fundamental no sistema é a opção explícita pela posição brechtiana do
personagem-objeto, derivada da consideração de que a ação determina o pensamento: o
personagem é o reflexo da ação dramática e esta se desenvolve por meio de
contradições objetivas, ou objetivas-subjetivas, isto é, um dos pólos é sempre a infra-
estrutura econômica da sociedade, ainda que seja o outro um valor moral.
176
Assim, no
curinga, a estrutura dos conflitos é sempre infra-estrutural: procura-se restaurar a
liberdade plena do personagem-sujeito dentro dos esquemas rígidos da análise social.
As metas do sistema não são apenas estéticas; são também econômicas: falta
mercado consumidor de teatro, falta material humano, falta apoio oficial a qualquer
campanha de popularização e sobram restrições oficiais (impostos e regulamentos).
177
Daí a importância da proposta, segundo Boal, pois o sistema permite apresentar qual-
quer texto com número fixo de atores, independentemente do número de personagens.
O sistema curinga presume uma estrutura fixa de elenco; a distribuição de papéis
para os atores se por meio das funções protagônica e curinga Boal determina que
aquela deve representar a realidade concreta e fotográfica; nela apenas um ator
desempenha o protagonista, assinalando a vinculação ator–personagem. A interpretação
do ator protagônico se realiza de modo stanislavskiano (o ator não pode desempenhar
nenhuma tarefa que exceda os limites do personagem enquanto ser humano real: para
175
Ibidem, p. 33.
176
B
OAL
, A.
III
– As metas do coringa, op. cit., p. 35.
177
Ibidem, p. 35.
comer necessita comida; para beber, bebida; para lutar, uma espada),
178
num espaço
composto conforme a estética naturalista (o espaço em que se move deve ser pensado
em termos de Antoine).
179
O ator deve ter a consciência do personagem, não a dos
autores, e será concebido cenograficamente (roupas e adereços) com autenticidade: ao
vê-lo, deve a platéia ter sempre a impressão da quarta parede ausente, ainda que
estejam ausentes também as outras três.
180
O estabelecimento de tais características
objetiva reconquistar a empatia; por isso, desempenha a função protagônica o
personagem que o autor deseja vincular empaticamente à platéia, que pode não ser o
principal.
178
B
OAL
, A.
IV
– As estruturas do coringa, op. cit., p. 37.
179
Ibidem, p. 37. André Antoine (1858–1943) fundou, em 1887, o Théâtre Libre, pequeno teatro livre em
Paris e associação de teatro amador dedicado a experimentar os princípios naturalistas de Émile Zola
(1840–1902), quais sejam, o meio determina os movimentos das personagens; o drama deveria ilustrar a
inevitabilidade das leis da hereditariedade e do ambiente e reproduzir com exatidão a vida. Fundamen-
talmente, Antoine procurou pôr em prática: uma exatidão minuciosa na imitação da realidade; trabalho
sobre a representação do ator, do qual tenta eliminar os artifícios para fazê-lo atingir um “natural”, uma
“cotidianidadeconforme a verdade dos modelos levados ao palco; reforma da iluminação; renovação da
cenografia integrando objetos e materiais diretamente tirados da realidade de maneira a prescindir dos
habituais truques ilusionistas; deslocamentos das fronteiras que separa a realidade do campo da
representação, tornando-as difusas. Cf. R
OUBINE
, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 114–115.
O naturalismo cênico movimento artístico teatral do fim do culo
XIX
na Europa
surge num contexto de crescente industrialização. Na era da máquina, tudo se
transformava rapidamente: a paisagem dos grandes centros urbanos, configurando em
novas organizações espaciais; novas formas de viver são inauguradas, posto que os
bairros operários se constituíram no entorno da fábrica; as relações de trabalho e lazer
também são alteradas. Nesse período, no campo do desenvolvimento das técnicas,
surgem a fotografia e o cinema, produzindo recortes da realidade em forma de imagens.
O teatro, por sua vez, se questiona sobre o tipo de representação que colocará no palco.
O naturalismo surge, então, como resposta a tal questionamento, como um estilo ou
técnica que pretende reproduzir nos palcos fotograficamente a realidade. Reflete o
grande entusiasmo da era positivista pelo progresso das ciências e representa o
resultado concreto de um antigo e constante interesse dos literatos pela investigação e
metodologia dos cientistas. O naturalismo preconiza uma total reprodução de uma
realidade não estilizada e embelezada, insistindo nos aspectos materiais da existência
humana. Suas características formais são: camuflagem da estrutura narrativa: a peça
não devia deixar transparecer nenhuma organização interior relativa à ação ou ao
personagem ao contrário, devia mostrar fatos e acontecimentos como se ocorressem
ao sabor do acaso, como na realidade; o palco deveria espelhar a realidade (caixa cênica
mostrando aposentos com portas praticáveis e janelas, tetos de madeira sustentados
por pesadas vigas, troncos de árvores naturais, gesso de verdade caindo das paredes,
postas de carne crua em ganchos de açougueiro etc.); os cenários deveriam ser tão
verdadeiros quanto a natureza (objetos reais); instituição da quarta parede (parede
imaginária situada na altura do arco do proscênio), separando o palco da platéia sua
prática exigiu o desenvolvimento de uma técnica de interpretação em que o ator simula,
por meio de seu comportamento, a continuidade do cenário através dos quatro lados do
palco. Em conseqüência, o ator representa ignorando a existência do espectador diante
dele. Cf. B
ERTHOLD
, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001, p.
452–459.
180
B
OAL
, A.
IV
– As estruturas do coringa, op. cit., p. 38.
Segundo Boal, durante a fase realista do Arena, o recurso da empatia não teve
um uso louvável. Supõe-se que, nesse momento, esse mecanismo precisa ser trabalhado
com a exegese, por meio da qual o curinga desencadeará o “esfriamento”: Tenta-se e
permite-se o reconhecimento exterior desde que se apresentem simultaneamente análi-
ses dessa exterioridade.
181
Assim, a função curinga é o outro pólo, oposto ao do
protagonista.
Sua realidade é mágica: ela a cria. Sendo necessário, inventa muros mágicos,
combates, banquetes, soldados, exércitos. Todos os demais personagens aceitam a
realidade mágica criada e descrita pelo Coringa. Para lutar usa arma inventada,
para cavalgar inventa o cavalo, para manter-se crê no punhal que não existe.
182
A consciência do ator-curinga deve ser a de autor ou adaptador que se supõe
acima, e deve estar além da consciência dos personagens, no espaço e no tempo. As
funções que desempenha são muitas: ele é onisciente, conhece o desenvolvimento da
trama e a finalidade da obra, e é responsável por todas as “Explicações” do espetáculo.
À função curinga, são conferidas todas as possibilidades teatrais: menneur du jeu”,
183
“raisonneur”,
184
mestre de cerimônias, dono do circo, conferencista, juiz e explicador,
exegeta, contra regra, diretor de cena, “regisseur”,
185
“kurogo”
186
etc.
187
Além do ator-protagonista e do ator-curinga, o elenco é composto por dois
grupos de atores ou dois coros —, cada qual com seu Corifeu (chefe do coro): o
Deuteragonista
188
e o Antagonista. O primeiro apoia o protagonista; o segundo é
181
Ibidem, p. 38.
182
Ibidem, p. 39.
183
Animador de um espetáculo ou programa.
184
Aquele que raciocina, argumenta; personagem que representa a moral ou o raciocínio adequado,
encarregada de fazer com que se conheça, através de seu comentário, uma visão “objetiva” ou “autoral”
da situação. Cf. P
AVIS
, P., op. cit., p. 323. No drama, aquele que esclarece a platéia sobre os significados
da peça; qualquer personagem que pode ser identificado como porta-voz do dramaturgo; é também
chamado de personagem-coro, pois no drama moderno ele assume as funções que cabiam ao coro no
teatro grego. Cf. V
ASCONCELOS
, Luiz Paulo. Dicionário de teatro. Porto Alegre:
L
&
PM
, 1987, p. 165.
185
Aquele que dirige o serviço interno de um teatro. Segundo Luiz P. Vasconcelos, a palavra francesa
regisseur na Alemanha e na Rússia é usada como sinônimo de diretor; na França, designa o diretor de
cena. No Brasil, emprega-se o termo para indicar o diretor de um espetáculo de ópera. Ibidem, p. 167.
186
Segundo Boal, é o ator que, na forma teatral japonesa de kabuki, vestido de preto e supostamente
invisível, realiza tarefas como a de retirar cadáveres ou cenografias de cena, para que a ação possa
continuar sem obstruções. B
OAL
, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de
Janeiro: Record, 2000, p. 231.
187
B
OAL
, A.
IV
– As estruturas do coringa, op. cit., p. 39.
188
Para os antigos gregos, protagonista era o ator que fazia o papel principal. O ator que fazia o segundo
se chamava deuteragonista e o terceiro, tritagonista. Historicamente, surgiram: o coro; depois o
integrado por todos os atores que representam papéis de desapoio. A essa estrutura de
elenco, junta-se a Orquestra Coral: os músicos podem manejar os instrumentos —
violão, flauta, bateria e outros de corda, sopro e percussão e também cantar
isoladamente ou em conjunto com o Corifeu os Comentários de caráter informativo ou
ilusionístico.
Boal define uma única estrutura de espetáculo e a divide em sete partes, como se
segue: 1 Dedicatória: todo espetáculo é iniciado com uma dedicatória a alguém ou a
alguma coisa: canção coletiva, cena, texto declamado etc.; 2 Explicação: funciona
como quebra na continuidade da ação dramática, é escrita em prosa e proferida pelo
curinga em termos de conferência; os recursos podem ser: slides, leitura de poemas,
documentos, cartas, notícias de jornais, exibição de filmes, mapas etc. As “Explicações”
dão o estilo geral do espetáculo (conferência, fórum, debate, tribunal, exegese, análise,
defesa de tese, plataforma etc.). A explicação introdutória apresenta o elenco, a autoria,
a adaptação, as técnicas, a necessidade de renovar o teatro, o propósito do teatro etc.; 3
Episódio: são cenas mais ou menos interdependentes; 4 Cena: uma cena é um todo
completo de pequena magnitude, contendo ao menos uma variação do desenvolvimento
qualitativo da ação dramática; 5 Comentário: liga as cenas; é escrito preferencial-
mente em versos rimados, cantados pelos Corifeus ou pela Orquestra, e pode ser
enunciado do local e tempo onde se passa a ação; os comentários deverão advertir a
platéia sobre mudança de estilo das cenas; 6 Entrevista: toda vez que for necessário
mostrar o “lado de dentro” do personagem, o curinga paralisará a ação, momenta-
neamente, a fim de que ele declare suas razões; 7 Exortação: o curinga estimula a
platéia segundo o tema tratado em cada peça: prosa declamada, canção coletiva etc.
Com a exposição dessas duas estruturas básicas de elenco e de espetáculo —, Boal
conclui a explicação de sua teoria do curinga.
Sobre o espetáculo Arena conta Tiradentes (1967)
No texto “Tiradentes: questões preliminares”, Boal apresenta aspectos sobre as
opções estéticas feitas pelos participantes do Arena na produção do espetáculo,
indicando até os critérios com os quais os críticos deveriam nortear suas análises: partir
protagonista, com Téspis; a seguir, o deuteragonista, com Ésquilo; e enfim o tritagonista, com focles.
P
AVIS
, P. op. cit., p. 310.
da validade de uma peça em função do público ao qual se destina e considerar o texto
um “fenômeno social presente”.
Na relação peça–público deve-se considerar este como parte da população, esta
como povo, este como nação, e esta no mundo de hoje. que se considerar o
texto como fenômeno social presente portanto liberto da historiografia teatral
idêntico ou semelhante a outros fenômenos sociais de natureza não estética:
comícios políticos, assembléias, partidos de futebol, lutas de box.
189
Boal quer deixar claro os objetivos e as motivações que antecederam a
concretização da peça Arena conta Tiradentes. O objetivo principal apóia-se na análise
de um movimento libertário a Inconfidência Mineira que, em tese, poderia ser
bem-sucedido, mas que, na prática, fracassou. Assim, a peça propõe: 1) extrair um
esquema analógico aplicável a situações semelhantes; 2) mostrar essa revolução
malograda segundo a perspectiva dos inconfidentes; 3) recusar as explicações causais
simplórias, optando por esquematizar o personagem em função do enredo e da ação
dramática, considerada como fábula, o que significa limitar o personagem ao seu
aspecto mais útil ao desenvolvimento da trama e da idéia;
190
4) a última questão se
refere ao uso da emoção ou de mecanismos e técnicas que conduzam à emoção:
propõe utilizar a emoção de forma tal que leve o público à compreensão de que a morte
de Tiradentes era evitável; porém não foi evitada. A inconfidência tinha todos os meios
concretos para libertar o Brasil e proclamar a República, porém a liberdade não veio e
a República não se proclamou.
191
Sobre a opção pela esquematização dos personagens, Boal acentua que
interessava aos autores da peça mostrar certos traços dos personagens para agredir a
atitude contemplativa, e justamente por isso não poderiam contemplativamente
conceder que foram esses mesmos intelectuais que lançaram as bases teóricas da
sedição.
192
Embora os intelectuais da Inconfidência não passassem o tempo apenas
fabricando dísticos para a bandeira, balançando-se em redes, discutindo o clima tropical
ou celebrando o aniversário da filha de Alvarenga, enquanto Barbacena punha seus
soldados na rua, os autores da peça focalizaram essas atitudes na composição das
189
B
OAL
, A.
V
– Tiradentes: questões preliminares, op. cit., p. 45.
190
B
OAL
, A.
V
– Tiradentes: questões preliminares, op. cit., p. 50.
191
Ibidem, p. 52.
192
Ibidem, p. 50.
situações representadas pelos personagens: selecionaram para as cenas elementos que os
mostrassem contemplando a vida ou apenas interpretando acontecimentos depois de
ocorridos em prejuízo da ação efetiva para a transformação:
Isto importa ao juízo definitivo daqueles personagens históricos falecidos,
porém em nada contribui para que nos questionemos todos nós, que estamos vivos,
diante de situações semelhantes: não estaremos todos batizando nossas filhas
enquanto Barbacenas e outros Viscondes põem seus soldados na rua?
193
Quanto ao personagem Tiradentes, Boal diz que preferiram mostrá-lo como um
homem que deseja a liberdade não para si mesmo, mas para o povo; preferimos aceitar
a visão que dele se tem tradicionalmente, ainda que seja essa talvez mistificada.
194
O tipo de emoção escolhida pelos autores sobrevém do conhecimento adquirido
e se alia à perspectiva brechtiana: Choramos com Mãe Coragem não porque seus filhos
morrem, mas porque entendemos a estrutura comercial à qual ela se alienou [...]
porque compreendemos (ao contrário da protagonista) a evitabilidade dessas
mortes.
195
Boal explica que, em Arena conta Tiradentes, a emoção é usada, primeiro, de
forma a propiciar a crítica distanciada e ajudar a mostrar as evitabilidades e
possibilidades de êxito. Aqui, pelas explicações, o curinga se distancia racionalmente da
trama; depois, a emoção é acionada para comover com o inevitado e o fracasso,
retirando a distância crítica. Nesse momento, o curinga passa a participar da trama, e o
interesse focaliza o acompanhamento do “herói” no seu martírio.
A inconfidência tinha todos os meios concretos para libertar o Brasil e proclamar
a República, porém a liberdade não veio e República não se proclamou. Portanto,
depois de mostrar todas as “evitabilidades” e “possibilidades de êxito”, o espe-
táculo se comove como o “inevitado” e o fracasso, sem que nesse momento, simul-
taneamente, mantenha qualquer distância crítica, que será recuperada no
epílogo.
196
193
Ibidem, p. 50. Boal manifesta suas preocupações com a recepção da crítica: Esta peça é cil de
rotular, especialmente seus personagens; nela, sem maiores dores de cabeça, pode-se afirmar que
Tiradentes é quase um santo, Silvério demônio, Cláudio pusilânime, Alvarenga a perfeição do canalha,
pois chega ao extremo de denunciar a sua própria mulher (p. 50). Acreditamos que tal censura à crítica
se deve ao fato de que esta provavelmente rotularia sem fazer um esforço para compreender o recurso de
esquematizar as personagens como resultado das opções estéticas e de uma posição política dos
dramaturgos, que consideravam a utilidade da peça naquele momento, quando, logo após o golpe militar,
instaurado em 1964, o autoritarismo dava mostras de enraizamento na sociedade e nas instituições
nacionais, confirmando a urgência de se constituir uma oposição decisiva ao governo militar.
194
B
OAL
, A.
V
– Tiradentes: questões preliminares, op. cit., p. 50.
195
Ibidem, p. 52.
196
Ibidem, p. 52.
Em “Quixotes e heróis”, Boal pretende descrever sua concepção de herói e por
que elevou à condição de herói a figura histórica de Tiradentes. Com exemplos de
composição heróica de personagens da literatura e da dramaturgia, Boal deduz que a
literatura, quando lida com heróis, pode apresentá-los como seres humanos reais, ou
mistificá-los,
197
e a forma de usá-los depende dos fins de cada obra.
Em sua exposição, Boal conceitua que mito é o homem simplificado e, quanto a
isso, não faz objeção, assim como em relação ao processo de mistificação do homem
quando se magnifica a essência do fato acontecido e do comportamento do homem
mitificado,
198
eliminando-se os dados circunstanciais. O que considera equivocado é
mitificar suprimindo-se fatos essenciais e elevando-se características circunstanciais à
condição de essência. Para ele, nisso consiste a mitificação mistificadora.
O modo como o mito de Tiradentes foi apropriado pelas classes dominantes,
segundo Boal, consistiu exatamente na mistificação do mito, quando lhe suprimiram do
comportamento o fato essencial de ser Tiradentes um revolucionário e enfatizaram o
sofrimento na forca, a aceitação da culpa, a singeleza com que beijava o crucifixo na
caminhada pelas ruas com baraço e pregação.
199
Assim, ao construir o personagem
Tiradentes como herói mítico, Boal expõe uma opção estética, vinculando-o aos ideais e
às ações revolucionárias que praticou e definem o aspecto essencial do mito.
A importância maior dos atos que praticou reside no seu conteúdo revolucionário.
Episodicamente, foi ele também um estóico. Tiradentes foi revolucionário no seu
momento como o seria em outros momentos, inclusive no nosso. Pretendia, ainda
que romanticamente, a derrubada de um regime de opressão e desejava substitui-
lo por outro, mas capaz de promover a felicidade do seu povo.
200
Boal afirma a necessidade do herói Tiradentes ante a infelicidade do povo. De
tal afirmação, podemos depreender que o critério usado pelo dramaturgo na composição
da personagem se vincula à interpretação que faz da realidade sociopolítica do país
naquele momento, a qual era preciso transformar, revolucionar com urgência.
197
B
OAL
, A. Quixotes e heróis, op. cit., p. 55.
198
Ibidem, p. 55.
199
B
OAL
, A. Quixotes e heróis, op. cit., p. 56.
200
Ibidem, p. 56.
Em síntese, consideramos bastante válidas a interpretação preparada por Boal
sobre a trajetória do Arena e a descrição do funcionamento do sistema curinga. A
exposição do dramaturgo revela aspectos importantes da prática teatral; ajuda-nos a
tomar contato com as referências teóricas que permeavam a discussão de artistas do
Teatro de Arena; informa-nos sobre recursos e procedimentos teatrais inspirados em
convenções de outros momentos históricos; além de trazer indícios da apropriação do
pensamento de diversos dramaturgos e, sobretudo, possibilitar a compreensão das
opções e justificativas do dramaturgo ao refletir sobre seu processo criativo.
Também percebemos que Boal, numa narrativa linear, deixa manifestar uma
concepção de história que o orienta: ele se ancora, firme, numa determinada noção de
processo histórico: a da época moderna, discutido por Hannah Arendt em “O conceito
de história antigo e moderno”, em que a verdade reside e se revela no próprio
processo temporal.
201
Para Arendt, a continuidade ininterrupta elimina a atribuição de
sentido às ocorrências particulares, pois todas se dissolveram em meios cujo sentido
termina no momento em que o produto final é acabado: eventos, feitos e sofrimentos
isolados não possuem mais sentidos do que martelo e pregos em relação à mesa
concluída.
202
Na elaboração teórica de Boal, está presente a identificação entre o sentido dos
acontecimentos e o fim a que as ações chegaram. Refletindo sobre a identificação de
sentido e fim derivada da noção do “fazer história” de Marx,
203
Arendt enfatiza a
extensa influência desse pensamento:
O sentido, que não pode ser nunca o desígnio da ação e que no entanto surgirá
inevitavelmente das realizações humanas após a própria ação ter chegado a um
201
A
RENDT
, Hannah. O conceito de história antigo e moderno. In: Entre o passado e o futuro. 3
a
ed.
São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 101.
202
Ibidem, p. 115.
203
No dizer de Arendt, Marx combinava sua noção de História com as filosofias políticas teleológicas
das primeiras etapas da época moderna, de modo que em seu pensamento os “desígnios superiores”, que
de acordo com os filósofos da História se revelavam apenas ao olhar retrospectivo do historiador e do
filósofo, poderiam se tornar fins intencionais de ação política. O ponto essencial é que a Filosofia
Política de Marx o se baseava sobre uma análise de homens em ação, mas, ao contrário, na
preocupação hegeliana com a História. Foi o historiador e filósofo quem se politizou. Ao mesmo tempo,
a antiga identificação da ação com o fazer e o fabricar foi como que complementada e aperfeiçoada
através da identificação da fixação contemplativa do historiador com a contemplação do modelo [...] que
guia o artesão e precede todo fazer. [...] O perigo de transformar os “desígnios superiores” desconhe-
cidos e incognoscíveis em intenções planejadas e voluntárias estava em se transformarem o sentido e a
plenitude de sentido em fins, o que aconteceu quando Marx tomou o significado hegeliano de toda
história, o progressivo desdobramento e realização da idéia de Liberdade, como sendo um fim da ação
humana, e quando, além disso, em conformidade com a tradição, considerou esse “fim” último como o
produto final de um processo de fabricação. Ibidem, p. 112–113.
fim, era agora perseguido com o mesmo mecanismo de intenções e meios
organizados empregado para atingir os desígnios particulares diretos da ação
concreta: o resultado foi como se o próprio sentido se houvesse separado do
mundo dos homens e a eles somente fosse deixada uma interminável cadeia de
objetivos em cujo processo a plenitude de sentido de todas as realizações passadas
constantemente se cancelasse por metas e intenções futuras. Era como se os
homens fossem subitamente cegados para distinções fundamentais tais como entre
sentido e fim, entre o geral e o particular, ou gramaticalmente falando, entre “por
causa de...” e “a fim de...” [...]. E, no momento em que tais distinções são
esquecidas e os sentidos são degradados em fins, segue-se que os próprios fins não
são mais compreendidos, de modo que, finalmente, todos os fins são degradados e
se tornam meios.
204
Parece-nos que, com a formulação do sistema curinga (o fim), Boal revela as
atividades do Arena (o sentido), ligadas pela causalidade, dadas pelo contexto e
associadas às palavras desenvolvimento” e “progresso”. Pode-se notar certa dificul-
dade do autor em pensar e considerar as singularidades e causas distintas e específicas
da trajetória do Arena, pois o que o guia são os espetáculos Arena conta Zumbi e, mais
precisamente, Arena conta Tiradentes. O procedimento consiste em encadear uma
narrativa de sua trajetória criativa rumo à afirmação do sistema curinga — o fim,
portanto que o leva a suprimir o sentido particular de cada produção artística do
passado, assim como das múltiplas interpretações dos contemporâneos participantes
daquela experiência do Teatro de Arena, que é engolfado pelo encadeamento pro-
gressivo a um objetivo cada vez mais avançado.
Tal procedimento pode estar apoiado na sua forma particular de contemplar
retrospectivamente os acontecimento do passado, rememorando-os e registrando-os
numa perspectiva individual. Isso não é de todo ilegítimo se considerarmos o campo das
lutas de memória; o problema ocorre no modo como pesquisadores apropriam-se de tais
registros e os perpetua na historiografia, ou quando, em ambos os textos — de agentes e
pesquisadores-intérpretes —, a visão sobre os acontecimentos tende a se assemelhar.
205
C
OMENTADORES DO SISTEMA CURINGA
204
Ibidem, p. 113–114.
205
Cf. C
HAUÍ
, Marilena. Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira. In: C
HAUÍ
,
Marilena; F
RANCO
, Maria Sylvia Carvalho Franco. Ideologia e mobilização popular. 2
a
ed., Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 22.
Em diversos momentos, as contradições, ambigüidades e inovações formais do
sistema proposto por Augusto Boal relativas às encenações de Arena conta Zumbi e
Arena conta Tiradentes foram debatidas e interpretadas diferentemente, mesmo pelos
autores de ambos textos: Gianfrancesco Guarnieri e Boal.
Numa avaliação da peça Arena conta Tiradentes, Guarnieri se refere à desvincu-
lação do ator com a personagem pressuposto do sistema curinga como empobre-
cedora: [...] houve a teorização a respeito do sistema que passou a ser sistema curinga,
e que foi usado também no Tiradentes. No meu modo de ver empobrecendo a peça.
206
Boal reconhece no sistema a síntese das etapas anteriores do Teatro de Arena: as fases
realista, fotográfica e da nacionalização dos clássicos.
Distintas interpretações podem ser verificadas, também, no âmbito da crítica
teatral dos estudos acadêmicos. A seguir, destacamos a reflexão de Roberto Schwarz,
Sábato Magaldi, Cláudia de Arruda Campos e Iná Camargo Costa, que tiveram por
referência os textos explicativos de Boal e a peça Arena conta Tiradentes, encenada
conforme as prescrições do sistema curinga.
Vejamos como Schwarz descreve o sistema curinga, apontando para o
funcionamento cênico, o impasse formal e seu resultado duvidoso na encenação da peça
Arena conta Tiradentes.
Teorizando a respeito, Boal observava que o teatro hoje deve tanto criticar como
entusiasmar. Em conseqüência, opera com o distanciamento e a identificação, com
Brecht e Stanislavski. A oposição entre os dois, que na polêmica brechtiana tivera
significado histórico e marcava a linha entre ideologia e teatro válido, é reduzida
a uma questão de oportunidade dos estilos. De fato, em Tiradentes a personagem
principal o mártir da independência brasileira, homem de origem humilde é
apresentada através de uma espécie de gigantismo naturalista, uma encarnação
mítica do desejo de libertação nacional. Em contraste as demais personagens,
tanto seus companheiros de conspiração, homens de boa situação e pouco
decididos, quanto os inimigos são apresentados com distanciamento humorístico, à
maneira de Brecht. A intenção é de produzir uma imagem crítica das classes
dominantes, e outra, essa empolgante, do homem que sua vida pela causa. O
resultado entretanto é duvidoso: os abastados calculam politicamente, têm noção
de seus interesses materiais, sua capacidade epigramática é formidável e sua
presença em cena é bom teatro; o mártir corre desvairadamente em pós a
liberdade, é desinteressado, um verdadeiro idealista cansativo, com rendimento
teatral menor. O método brechtiano, em que a inteligência tem um papel grande, é
aplicado aos inimigos do revolucionário; a esse vai caber o método menos
inteligente, o do entusiasmo.
207
206
G
UARNIERI
, Gianfrancesco. [Depoimento prestado]. In: A
LMEIDA
, Abílio Pereira et al. Depoimentos V.
Rio de Janeiro:
SNT
, 1981, p. 73.
207
S
CHWARZ
, Roberto. Cultura e política, 1964–1969. In: Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra,
2001, p. 42–43.
No ensaio “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, comentário feito em seguida
a uma leitura pública de A santa Joana dos Matadouros, organizada pela Companhia do
Latão, Schwarz retoma algumas questões da apropriação de Brecht pelo Teatro de
Arena e de como Augusto Boal empregou os procedimentos narrativos em seus
trabalhos na década de 1960. Schwarz enfatiza que havia uma funcionalidade do
espírito brechtiano para a esquerda terceiro-mundista devido ao projeto de experi-
mentação coletiva e à recusa do realismo socialista; porém, a apropriação de Brecht nos
anos 60 se caracterizou pela inadequação e pelo desajuste, sobretudo à idéia do
distanciamento. Para esse autor, o momento histórico quando predominava o
desenvolvimentismo e sua dimensão nacionalista requeria muito mais a identificação
mistificadora que o distanciamento brechtiano. E a fim de resolver o impasse o Teatro
de Arena desenvolveu uma “solução de compromisso” — afirma Schwarz:
No centro um herói popular e nacionalista, a quem o ator e o público se identi-
ficavam com fervor; à volta, os anti-heróis da classe dominante, a que os recursos
brechtianos da desidentificação e análise, com a correspondente cabeça fria,
emprestavam o brilho e a verdade que, por uma ironia da arte, ficavam fazendo
falta ao outro, o qual contudo devia nos servir de modelo.
208
Na avaliação de Schwarz, os procedimentos narrativos concebidos para propiciar
a distância crítica foram transformados por Boal no seu contrário: um veículo de
emoções nacionais, “de epopéia”, para fazer contrapeso à derrota política. Estava de
volta a identificação compensadora de que Brecht desejava livrar a cultura.
209
Na interpretação do crítico teatral Sábato Magaldi, a teoria do curinga, além de
ser vista como espécie de estranhamento brechtiano aplicado à realidade brasileira, teve
sua elaboração intimamente ligada às próprias circunstâncias do Arena, cujo palco era
pequeno impróprio para peças com muitos personagens e que se encontrava em
dificuldades financeiras para manter um grande elenco. Desse modo, a figura do
curinga, fazendo vários papéis, possibilitou, segundo Magaldi, resolver um problema
cênico (o pequeno palco) e um econômico (poucos atores).
210
Quanto ao uso de música
nos espetáculos, Magaldi vê a aproximação francamente brechtiana:
208
S
CHWARZ
, Roberto. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: ___. Seqüências brasileiras: ensaios.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 121.
209
Ibidem, p. 124.
210
M
AGALDI
, Sábato. Interview de Sábato Magaldi. In: R
OUX
, Richard. Le Theatre Arena (São Paulo
1953–1977) — Du “théâtre en rond” au “théâtre populaire”. Provence: Université de Provence, 1991, p.
Ela faz parte no próprio espetáculo brechtiano. Então como o Boal desenvolve a
teoria do Coringa, era normal que ele aproveitasse. A música tem uma comuni-
cação muito grande com o espectador. Ela filtra maravilhosamente as coisas e o
Arena desenvolveu toda uma fase ligada aos nossos músicos populares, inclusive
lançando Bethânia, Edu Lobo, tudo... É uma fase de espetáculos aproveitando
esses nossos músicos e os espetáculos funcionavam muito com toda essa música,
sem dúvida nenhuma; isso tornava o espetáculo muito interessante.
211
No entanto, não podemos nos esquecer de dois fatores. Primeiro, a ligação entre
política e música presente no teatro de revista brasileiro, que integrava o repertório de
Boal; a revista e o circo foram para o dramaturgo uma das inspirações na realização dos
musicais: Revista eu assistia desde pequeno [...] Eu ia muito. Ia ao teatro Recreio, que
destruíram. Eu via aquelas atrizes que vinham de Portugal. Beatriz Costa. O Walter
Pinto. Depois a revista ficou mais sexo, mas no começo era política, era música,
humor.
212
O segundo se refere à motivação ocorrida após ser empregado o recurso
musical na experiência do espetáculo Opinião, em 1964, dirigido por Boal.
213
Em 1988, o resultado da pesquisa acadêmica de Claudia de Arruda Campos
sobre as peças Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, orientada por Décio de
Almeida Prado, na
USP
, foi publicado em livro, intitulado Zumbi, Tiradentes (e outras
histórias contadas pelo Teatro de Arena de São Paulo).
214
Para Campos, a criação do
sistema curinga se vincula, em essência, ao seu caráter de solução econômica, ou seja, à
redução do ônus das montagens do Teatro de Arena. Campos argumenta ainda que as
simplificações presentes no espetáculo Arena conta Tiradentes podem ser atribuídas à
necessidade de se representar um conflito amplo a Inconfidência Mineira com
poucos atores.
519.
211
Ibidem, p. 520.
212
B
OAL
, Augusto. [Depoimento prestado]. In: S
Á
, Nelson de; C
ARVALHO
, Sérgio de. O teatro globali-
zado. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6/9/1998, Mais!, p. 5.
213
Sobre isso, diz João das Neves: Eu acho que o Arena, na Segunda fase do Arena, na fase dos musicais
do Arena, foi muito influenciado pelo Opinião, pela proposta do show Opinião. Essa nova vertente que o
Arena começou a explorar depois do Opinião: Arena conta Zumbi, inicialmente, depois Arena conta
Bahia etc., essa vertente vem da influência que o Boal teve do show Opinião. Que eles não faziam isso
antes. O Boal veio aqui (no Rio) dirigir o show Opinião e se entusiasmou pela idéia, jogou isso lá em São
Paulo e eles continuaram a pesquisar e fazer esse tipo de trabalho. N
EVES
, João das. Interview de João
das Neves. In: R
OUX
, R.,
op. cit., p. 604.
214
C
AMPOS
, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes (e outras histórias contadas pelo Teatro de Arena de
São Paulo). São Paulo: Perspectivas, 1988. A dissertação foi defendida no Mestrado de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Além de criticar a rigidez do sistema curinga, que poderia inviabilizar um teatro
político eficiente e ágil, a ponto de produzir até um efeito contrário àquele preconizado
por Boal, Campos censura o uso de diferentes estilos (naturalista e teatralista) porque
isso, na concepção dela, cria dois universos incomunicáveis.
215
Ela na elaboração do
sistema uma metáfora da crise das esquerdas brasileiras na tentativa de combinar e
unificar o inconciliável.
Muito menos fortuito será o discurso de Boal sobre o Sistema que pretende uma
unificação, mas na atitude agressiva de quem joga as cartas na mesa Esta é a
nossa posição: “que cada um diga a que veio”.
Por trás das tentativas de reagrupar forças transparece a divisão. Derrotada,
tocaiada, seu espaço para ação junto às massas, a esquerda entra em crise, des-
membra-se e consigo mesma digladia. Tiradentes tenta combinar o
inconciliável.
216
Na obra A hora do teatro épico no Brasil,
217
Iná Camargo Costa defende a tese
de que, a partir do golpe militar, em 1964, o teatro épico “passava de força produtiva a
artigo de consumo”. Iniciando seu estudo com Eles não usam black-tie, peça de
Gianfrancesco Guarnieri encenada em 1958, Costa conclui que se trata de um flagrante
desencontro entre forma dramática (conservadora) e conteúdo épico (progressista) o
assunto é uma greve operária, que não é encenada, mas narrada de maneira indireta
através de comentários, discussões e relatos pelos quais se aciona uma das modalidades
do efeito de distanciamento brechtiano: Como sabem os estudiosos da obra de Brecht,
greve o é um assunto de ordem dramática, pois dificilmente os recursos oferecidos
pelo diálogo dramático o instrumento por excelência do drama alcançam a sua
amplitude.
218
Costa associa essa contradição estética com a experiência sociopolítica do
país, também contraditória, onde o avanço progressista da luta dos trabalhadores era
contido/canalizado por formas conservadoras: o Partido Comunista Brasileiro (
PCB
), em
sua política de aliança de classe, e o Partido Trabalhista Brasileiro
(
PTB
), instrumento de
intervenção do governo nas organizações trabalhistas.
219
Seguindo a análise sobre o teatro épico no Brasil, Costa considerou Revolução
na América do Sul (1960), de Augusto Boal, um dos mais importantes exemplares do
215
C
AMPOS
, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes, sistema coringa: o teatro resiste (?), Arte em Revista,
n° 6 (Teatro), São Paulo,
CEAC
/Kairós, 1981, p. 14.
216
C
AMPOS
, Cláudia de Arruda. Uma proposta concreta: o sistema coringa. In: Zumbi, Tiradentes..., op.
cit., p. 159.
217
C
OSTA
, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996
.
218
Ibidem, p. 24.
219
Ibidem, p. 39.
teatro épico brasileiro.
220
Identificou na peça o parentesco com o teatro de revista e o
teatro épico de Brecht, em que Boal, com materiais recolhidos na tradição da revista
a farsa, a sátira, a caricatura explícita etc. —, construiu cada cena independentemente
das outras. Nesse sentido, Costa julga que Boal avança, entre outras coisas, por colocar
em cena o “processo da contra-revolução”:
Se Guarnieri introduzia um assunto novo, colocando a classe operária no centro
de sua peça, com as conseqüências que vimos, Boal percebeu que, na situação
histórica brasileira, por mais central que fosse o papel da classe, avançando em
suas reivindicações e organização, a contra-revolução em andamento é que se
colocava como protagonista.
221
A peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar Costa classificou como obra repre-
sentante do legítimo teatro épico nacional — como se depreende de suas palavras:
Foi portanto no
CPC
que se verificou no Brasil a revolução teatral legitimamente
comparável à que se produziu em outros lugares, a começar pela União Soviética,
que nos deu a conhecer dramaturgos da estatura de Maiakóvski e diretores como
Meyerhold. O segundo capítulo desta história passa pela Alemanha de Piscator e
Brecht e por países como França, Inglaterra e Estados Unidos (para nos limi-
tarmos aos que influem diretamente sobre as nossas preferências teatrais).
222
Segundo Costa, Arena conta Zumbi não é uma resposta ao golpe de 1964,
pois
a peça pretendeu ser uma alegoria das
lutas travadas no período anterior a 1964:
A idéia de que Zumbi é uma resposta ao golpe militar contém implícito um grão de mistificação. Supõe a avaliação de que o
“acidente de percurso” não foi uma derrota e, impertérritos, os guerreiros da véspera continuam a postos para os próximos
enfrentamentos. Assim Zumbi foi entendida, como tinha acontecido como Opinião. E por isso ambas as peças foram festejadas
como a senha para uma resistência política que o tinha acontecido nem estava acontecendo. Quando o nosso teatro político
começa a se dar conta de que em 1964 o caminho democrático, apenas entrevisto nas lutas que Zumbi não conta, estava
definitivamente bloqueado para a nossa história, a própria idéia de resistência tomava outros rumos. E o teatro, longe de
resistir, começaria a
abandonar as frágeis conquistas do teatro épico. 223
Segundo a interpretação de Costa, os autores, tendo como idéia básica a
identificação das lutas democráticas pré-golpe com Palmares em Zumbi, realizam uma
operação desastrada ao tratar dos negros em chave de tragédia recurso próprio do
drama —, e dos brancos em chave épica — recurso característico do gênero épico.
220
Ibidem, p. 40.
221
Ibidem,
p. 69.
222
C
OSTA
, I. C. Sinta o drama, op. cit., p. 185–186.
223
C
OSTA
, I
.
C. A hora do teatro épico...
,
op. cit., p.
127
.
Em Arena conta Tiradentes, pela interpretação dessa autora, instalou-se o marco
de retrocesso nas conquistas do teatro épico no Brasil até aquele momento.
O espetáculo do Arena mostrou que, no Brasil, com Brecht aconteceu o mesmo que
com outros produtos importados: foi reduzido a um material como outro qualquer
que se guarda no almoxarifado, podendo a qualquer momento ser posto em
circulação, e a serviço de não importa que assunto. A “marcha fúnebre” de Boal
era para o teatro épico.
224
Por que Boal, mesmo ciente de que a empatia tendência a sentirmos o que
sentiria outra pessoa caso se estivéssemos na situação experimentada por ela e o
ilusionismo deveriam ser combatidos, opta por mesclar empatia e distanciamento em
Arena conta Tiradentes? É possível que tenha reconhecido na empatia um mecanismo
válido para o teatro, passível de ser bem ou mal usado. Com efeito, em Tiradentes Boal
empregou tal recurso o exclusivamente, mas “esfriando” a identificação emocional
com o protagonista Tiradentes, por meio da exegese desempenhada pelo curinga. Para
Boal, a “Explicação”, elemento fundamental do sistema curinga, possibilita ao espetá-
culo se desenvolver em dois níveis diferentes: o da fábula e o da conferência.
A empatia não é um valor estético: é apenas um dos mecanismos do ritual
dramático, ao qual se pode dar bom ou mau uso. Na fase realista do Arena nem
sempre esse uso foi louvável e muitas vezes o reconhecimento de situações verda-
deiras e cotidianas substituía o caráter interpretativo que deve ter o teatro. No
“Coringa” esta empatia exterior será trabalhada lado a lado com a exegese.
Tenta-se e permite-se o reconhecimento exterior desde que se apresentem simulta-
neamente análises dessa exterioridade.
225
Provavelmente, Boal acreditou que a empatia pudesse, também, provocar a reflexão e o
posicionamento crítico.
226
224
Ibidem, p. 137–138.
225
B
OAL
, A.
I
– Elogio fúnebre do teatro brasileiro..., op. cit., p. 38.
226
Hans Robert Jauss propõe, na obra Por uma estética da recepção, uma tipologia das modalidades de
identificação com o herói: associativa, admirativa, simpática, catártica e irônica. A associativa estabelece
a relação jogo/competição: a disposição de recepção é pôr-se no lugar dos papéis de todos os partici-
pantes, cuja norma de conduta progressiva é o gozo de uma existência livre e a regressiva, o excesso
permitido (ritual). Na admirativa, há a relação entre o herói e o espectador e o herói perfeito, que provoca
admiração e conduz à emulação ou imitação. Na identificação simpática, a relação é estabelecida com “o
herói imperfeito”, que provoca a piedade e leva ao interesse moral ou à sentimentalidade. A identificação
catártica ocorre quando: a) o herói sofre e causa uma violenta emoção trágica ou a libertação da alma,
sendo a conduta do espectador o interesse desinteressado; b) o herói é oprimido, levando à zombaria,
libertação mica da alma e conduzindo o espectador ao prazer voyeur ou à zombaria. Na identificação
irônica, o herói desaparecido ou o anti-herói dispõe a recepção de espanto (provocação), conduzindo o
espectador à resposta pela criatividade, sensibilização da percepção ou ao culto do tédio, indiferença.
Retirado de: P
AVIS
, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectivas, 2001, p. 201.
A perspectiva de atribuir à empatia alguma validade se distingue da avaliação de
Costa, que considera seu efeito devastador. Diz ela:
Através da empatia, o espectador se projeta nos acontecimentos oferecendo seus
sentimentos e emoções à exploração pelo espetáculo. É um engano, ensina Brecht,
supor que um teatro que apela ao espírito de seu público é manipulador. Ao
contrário, é o viciado nas emoções baratas estimuladas pelo drama e seus
subprodutos da indústria cultural que oferece integralmente seu psiquismo à
manipulação. Da mesma forma que o consumidor de drogas tem em seu forne-
cedor um inimigo que o explora, o consumidor das emoções dramáticas baratas
tem nos seus dramaturgos, atores e diretores traficantes inimigos. A exploração
desse público viciado não tem limites e a prova mais cabal da periculosidade do
tráfico de emoções foi a espetacular ascensão democrática de Hitler ao poder,
cujas técnicas de propaganda foram inteiramente desenvolvidas a partir do
repertório dramático.
227
Segundo Costa, a recepção de Brecht pelos artistas do Teatro de Arena foi
bastante confusa; e a discussão passava pela opção “dogmática” entre Brecht e
Stanislavski:
nossos artistas pareciam mais preocupados em saber se um espetáculo (e o
trabalho de ator) deve ou não procurar estabelecer empatia com o público do que
em reconstituir e conhecer o processo que levou Brecht a realizar uma crítica tão
devastadora ao teatro que chamou Aristotélico.
228
Para Schwarz, Costa e Arruda, um descompasso estrutural em Arena conta
Zumbi, pois esta enfoca a luta pela liberdade numa evocação explícita à ação
revolucionária frente a uma derrota no campo político traduzida pela instauração do
golpe militar e o fim das expectativas de mudanças radicais então pretendidas por parte
da sociedade; numa palavra, para eles a produção de Zumbi está descontextualizada. A
interpretação de Costa aponta para uma suposta descontinuidade na trajetória de Boal:
enquanto Revolução na América do Sul é exemplo de teatro épico, Arena conta
Tiradentes é a sua decadência.
Se nas apropriações estéticas Boal parece ter adotado uma atitude mais
incorporativa perante as diferentes tradições do teatro (o stanislaviskiano e o
brechtiano), podemos perceber que a concepção de teatro político brechtiano adotada
pelos críticos como modelo a ser seguido na análise do sistema curinga demonstra uma
227
C
OSTA
, I. C. Sinta o drama, op. cit., p. 73.
228
C
OSTA
, I
.
C
.
A hora do teatro épico..., op. cit., p.
43. Boal discute essas questões no ensaio “O sistema coercitivo de
Aristóteles” (de 1973), publicado no livro O teatro do oprimido, op. cit., p. 15–67. Nesse sentido, é pouco
provável que ele desconhecesse o debate sobre a catarse descrita por Aristóteles na sua Poética, tampouco
a aplicação desse mecanismo no teatro europeu.
atitude excludente quanto ao repertório acumulado por Boal — o naturalismo e o
próprio sistema de Stanislaviski, dentre outros. Com efeito, o dramaturgo incorpora
Brecht, todavia mantém uma atitude mediadora para afirmar seu projeto estético: tanto
avalia as condições de recepção quanto considera, conforme sua interpretação, as
necessidades políticas do momento. Boal apropria-se de vários recursos do teatro de
Brecht, porém, diferentemente deste, reconhece pertinência na composição heróica do
personagem Tiradentes
229
na peça, em que destaca o papel revolucionário que
Tiradentes desempenhara na Inconfidência Mineira:
Tiradentes foi revolucionário no seu momento como o seria em outros momentos,
inclusive no nosso. Pretendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um
regime de opressão e desejava substituí-lo por outro, mais capaz de promover a
felicidade do seu povo. [...] No entanto esse comportamento essencial ao herói é
esbatido e, em seu lugar, prioritariamente, surge o sofrimento na forca, a acei-
tação da culpa, a singeleza com que beijava o crucifixo [...]. Hoje, costuma-se
pensar em Tiradentes como o Mártir da Independência, e esquece-se de pensá-lo
como herói revolucionário, transformador da sua realidade. O mito está misti-
ficado. Não é o mito que deve ser destruído, é a mistificação. Não é o herói que
deve ser empequenecido; é a sua luta que deve ser magnificada.
Brecht cantou: “Feliz o povo que não tem heróis”. Concordo. Porém nós não
somos um povo feliz. Por isso precisamos de heróis. Precisamos de Tiradentes.
230
Compreendemos que Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes
(1967), experimentos de novas formas e combinações dramáticas os “métodos” de
Stanislavski e Brecht, em seus princípios da empatia e do distanciamento —, são peças
representativas da procura por respostas formais às mudanças ocorridas na própria
experiência social, no que se refere não às lutas populares anteriores ao golpe militar
de 1964, mas também, e sobretudo, à posterior necessidade de segmentos da sociedade
articularem a resistência. Refutamos, portanto, a idéia de descompasso, inadequação e
desajuste; antes, procuramos compreender a forma articulada com o contexto histórico e
não trabalhar com a categoria privação, de que provém certo tom “normativo”.
231
229
A recepção de Brecht se dá de maneira seletiva, indicando, às vezes, posicionamentos parecidos, como
se depreende da análise de Luís Mendonça um dos fundadores do
MCP
sobre os recursos épicos e
frente à tradição popular: As inegáveis conquistas do teatro épico atual, por exemplo, dirigidas ao
intelecto, à reflexão, não chegam ao homem simples que está habituado a sentir a natureza e o mundo em
termos de mito. Cf. M
ENDONÇA
, Luís. Teatro é festa para o povo. Experiência no Teatro de Cultura
Popular de Pernambuco. Revista Civilização Brasileira, Caderno especial 2, Teatro e realidade
brasileira. Rio de Janeiro, ano 1, julho de 1968, p. 158.
230
B
OAL
, A. Quixotes e heróis, op. cit, p. 56.
231
C
HAUÍ
, M., op. cit., p. 23.
Os acontecimentos posteriores ao golpe militar, em especial os rumos do
fechamento político, não estavam determinados em 1964. Os contemporâneos não
poderiam ter previsto a gradativa hegemonia militar no sistema político e o fracasso
político do movimento oposicionista da “esquerda armada”;
232
logo, as possibilidades
de posicionamento se traduziam em resistência e denúncia, ou, ao contrário, em adesão
e mesmo em silêncio, frente aos preceitos do golpe. Os artistas do Arena optaram por
buscar maneiras de revitalizar a memória política por meio de movimentos de
resistência passadas: Palmares e Inconfidência Mineira. Estavam marcados pela
expectativa de que a realidade poderia e deveria ser transformada, daí a ênfase na
construção de protagonistas heróicos, “revolucionários” (Zumbi e Tiradentes), com os
quais o público deveria se identificar e os quais deveria admirar pela coragem que
tiveram de enfrentar situações opressivas.
O uso da empatia como recurso não pretendia — como explica Boal — propiciar
compensações ao público, que ante a derrota política na vida real precisava de vitórias
no palco. Antes, parece-nos que a forma incorpora [...] uma experiência compartilhada
e de fato coletiva.
233
S
ISTEMA CURINGA NA TEORIA E NA PRÁTICA
:
APROPRIAÇÕES E TENSÕES
O espetáculo Arena conta Zumbi foi tomado, em alguns estudos, como primeira
fase do trabalho do Arena, antes de o sistema curinga entrar em prática, em Arena conta
Tiradentes — como observa Richard Roux: Arena conta Zumbi peut, en fait, être
considéré comme une première phase du travail du groupe Arena, avant la mise en
pratique systématiqe du Coringa dans Arena conta Tiradentes.
234
Para análise dos
aspectos formais de Zumbi, Roux teve como base o texto teórico de Boal, que o
orientou, também, para sustentar a interpretação de que os musicais constituíram a
232
Segundo Codato, a militarização do sistema político é progressiva e começa a ser de fato
reconhecida quando são impostas restrições específicas sobre a atuação e a organização da “classe
política”. C
ODATO
, Adriano Nervo. O golpe de 1964 e o regime de 1968: aspectos conjunturais e
variáveis históricas. História: questões e debates, nº 40, Curitiba: Editora da
UFPR
, 2004, p. 19.
233
W
ILLIAMS
, Raymond. Tragédia moderna, Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p.
37.
234
R
OUX
, R., op. cit., p. 194.
síntese das concepções teatrais das fases anteriores do Arena, resultando em uma
evolução estética.
235
A formulação teórica de Augusto Boal, conforme nossa hipótese, é adotada
como relato convincente sobre as práticas do grupo, por isso exerce uma grande
influência sobre os estudos. Porém, muitas vezes não fica perceptível o rigor na análise
e crítica documental, pois ignoram as circunstâncias de elaboração dos textos. Quando a
peça Arena conta Zumbi foi criada e encenada, Augusto Boal não tinha teorizado sobre
o modo de interpretação denominado por ele de sistema curinga ou pelo menos não
o tinha ainda tornado público em ensaios.
O trabalho em conjunto e o ânimo que moviam os criadores do espetáculo são
destacados por Paulo José, que evidencia a circunstância em que tais inovações
surgiam: na prática da criação artística coletiva.
Então começa o Arena conta Zumbi a ser feito dentro desse sistema, Edu e
Guarnieri vão escrevendo durante o próprio processo, Edu Lobo fazendo a
música, o grupo trabalhando e a peça nasce. Nasce tudo ao mesmo tempo porque
a música estava sendo composta, o Guarnieri estava escrevendo a letra da música,
fazia mais uma cena, Boal trazia uma outra idéia, o elenco realizava. [...] Então
saiu alguma coisa muito interessante, também nesse sentido, nova também,
original e que o Boal, dentro do negócio de sistematização dele, sistematiza, passa
a chamar o sistema Coringa.
236
Segundo Guarnieri, em Zumbi não foram nomeadas as saídas e escolhas
referentes à forma de atuação dos atores ou da perspectiva da narração. Ainda não havia
sido feita a “sistematização”, ou seja, a explicação teórica de Augusto Boal. As
alternativas eram criadas no próprio processo de elaboração da peça, conforme a
necessidade de resolução de problemas: ou eram apresentadas durante uma cena, ou
nasciam das inviabilidades econômicas do Arena etc.
A bolação do sistema curinga surgiu na verificação do Zumbi. O Zumbi foi feito
com esse esquema, que não se chamava nada. A peça realmente permitia isso,
os personagens não existiam psicologicamente. Eles eram quase entidades. [...] Na
hora da necessidade da cena, qualquer ator que estivesse ali mais próximo faria
[...] Que o Ganga Zumba precisa ser um sujeito mais doce, então faz o ator que
tem um jeitinho mais doce. Na hora em que ele precisa ser mais durão, vai um que
tem um jeito assim mais duro, e assim por diante.
237
235
Ibidem, p. 196.
236
J
OSÉ
, P. Interview de Paulo José. In: R
OUX
, R., op. cit., p. 193.
237
G
UARNIERI
, G. [Depoimento prestado]. In: A
LMEIDA
, A. P. et al., op. cit., p. 73.
Essa confusão nos leva a supor uma conceituação de funcionamento cênico de
Arena conta Zumbi, em 1965, que se apropria do texto teórico explicativo, escrito e
publicado só em 1967, sobre o sistema curinga; enquanto neste Boal retoma Zumbi para
evidenciar ali o momento de ruptura, de instauração de uma forma de representação
teatral que se concretizaria com Arena conta Tiradentes. A esse procedimento
acrescenta-se outro: discutir o sistema curinga com base no livro Teatro do oprimido e
outras poéticas políticas,
238
que merece ser observado:
No “teatro do oprimido” são desmontadas as barreiras entre atores e especta-
dores. Mas também a relação dos atores entre si experimenta transformações,
sistematizadas por Boal em seu sistema-coringa.
A figura do coringa foi introduzida pela primeira vez pelo Teatro de Arena, na
encenação de Arena conta Zumbi, que tinha a direção de Augusto Boal.
239
Para abordar a função do curinga, Kathrin Sartingen se reporta, como fonte
documental exclusiva, ao conjunto de ensaios onde Boal explica o funcionamento do
sistema, publicados em Teatro do oprimido que reúne ainda outros textos. Vale a
pena nos determos sobre a organização da obra e a disposição que os ensaios “Elogio
fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena”, “A necessidade do coringa”,
“As metas do coringa”, As estruturas do coringa”, “Tiradentes: questões preliminares”
e “Quixotes e heróis” ocupam ali.
Primeira observação importante: esses ensaios assumirem uma nova feição no
livro. Boal, no exílio e participando de experiências de teatro popular na América
Latina, escreve textos que procura articular teoricamente uma nova forma de teatro
político. Eis sua explicação:
Este livro procura mostrar que todo teatro é necessariamente político, porque
políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas. Os que
pretendem separar o teatro da política, pretendem conduzir-nos ao erro — e esta é
uma atitude política. Neste livro pretendo igualmente oferecer algumas provas de
que o teatro é uma arma. [...] Por isso, as classes dominantes permanentemente
tentam apropriar-se do teatro e utilizá-lo como instrumento de dominação. Ao
fazê-lo, modificam o próprio conceito do que seja o “teatro”. Mas o teatro pode
igualmente ser uma arma de liberação. Para isso é necessário criar as formas
teatrais correspondentes. É necessário transformar.
240
238
B
OAL
, A. Teatro do oprimido..., op. cit.
239
S
ARTINGEN
, Kathrin. Brecht no teatro brasileiro. Trad. José Pedro Antunes. São Paulo: Hucitec, 1988,
p. 144.
240
B
OAL
, A. Teatro do oprimido..., op. cit., p. 13.
Teatro do oprimido é composto de vários ensaios segundo Boal — com
diferentes propósitos, desde 1962, em São Paulo, até fins de 1973, em Buenos Aires, e
que relatam experiências realizadas no Brasil, na Argentina, no Peru, na Venezuela e em
outros países latino-americanos. Além do ensaio “Maquiavel e a poética da virtù”, de
1962, e dos artigos sobre o sistema curinga, de 1967, o livro traz textos produzidos após
sua saída do Brasil, em 1971, os quais tratam de experiências realizadas em outros
contextos. São eles “O sistema trágico coercitivo de Aristóteles”, “Helgel e Brecht:
personagem–sujeito ou personagem–objeto”, “Uma experiência de teatro popular no
Peru” e “Conclusão: ‘espectador’ que palavra feia!” todos concluídos em 1973. O
último capítulo do livro é intitulado “Poética do oprimido”;
241
e nele são incorporados
os ensaios sobre o sistema curinga já publicados. Boal ressignifica esses ensaios quando
os incorpora para construir a concepção de “Poética do oprimido”:
Para completar o ciclo, faltava o que está atualmente ocorrendo em tantos países
da América Latina: a destruição das barreiras criadas pelas classes dominantes.
Primeiro se destrói a barreira entre atores e espectadores: todos devem
representar, todos devem protagonizar as necessárias transformações da
sociedade. É o que conta “Uma Experiência de Teatro Popular no Peru”. Depois,
destrói-se a barreira entre os protagonistas e o coro: todos devem ser, ao mesmo
tempo, coro e protagonistas — é o “Sistema Coringa”. Assim tem que ser a
“Poética do Oprimido”: a conquista dos meios de produção teatral.
242
O arranjo dos ensaios na seqüência em que estão dispostos no livro permite-nos
ver com clareza que Boal objetivou expor, conforme seu ponto de vista, as transfor-
mações fundamentais pelas quais o teatro passou no decorrer dos tempos: do sistema
trágico coercitivo de Aristóteles a uma poética da virtù, de Maquiavel, achegar às
proposições de feição hegeliana e brechtiana.
Ao final do livro, Boal propõe a poética do oprimido, que pretende transformar
o povo “espectador”, ser passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator, em
transformador da ação dramática.
243
Essa “nova poética” altera de forma significativa a
relação espectador–espetáculo; esquematicamente, assim se apresenta: a poética de
Aristóteles é a Poética da Opressão — o espectador delega poderes ao personagem para
241
Neste capítulo, encontramos a seguinte subdivisão:
A
Uma experiência de teatro popular no Peru;
Conclusão: “espectador”, que palavra feia! e
B
– O sistema coringa (
I
– Etapas do Teatro de Arena de São
Paulo;
II
A necessidade do coringa;
III
As metas do coringa;
IV
As estruturas do coringa;
V
Tiradentes: questão preliminares;
VI
– Quixotes e heróis).
242
B
OAL
, A. Teatro do oprimido..., op. cit., p. 14.
que este atue e pense em seu lugar; a de Brecht é a Poética da Conscientização o
espectador delega poderes para que o personagem atue em seu lugar, mas, como
espectador, reserva o direito de pensar por si mesmo, às vezes até em oposição ao
personagem; enfim, a poética do oprimido (de Boal), uma Poética da Liberação a
própria ação: o espectador assume seu papel como protagonista e, assim, desloca o
artista do centro do acontecimento artístico, modificando a ação dramática se julgar
necessário, ensaiando soluções e debatendo projetos de transformações.
244
Sobre a constituição do livro, diz Boal:
Escrevi o livro em várias etapas, em vários momentos. Eu estava com “Arena
conta Zumbi”, com “Tiradentes”. Antes, em 62, eu tinha feito “A Mandrágora”.
Peguei os textos que tinha escrito desde então e, quando me exilei na Argentina,
em 71, procurei um editor que tinha publicado outro livro meu e pedi para
publicar o novo. Mas ele falou que era pequeno. E eu, “então eu vou ao Peru
trabalhar um pouco com essas idéias”. No Peru, comecei com o teatro-foro, em
73, e desenvolvi toda essa parte do livro. Quando voltei, ele falou: “Já dá um livro
de bom tamanho”.
Mas o livro se chamava “Poéticas Políticas”. E ele, “os donos de livrarias
estão dizendo que, com esse título, não compram. Se você põe na parte de teatro
ninguém vai ler, porque parece poesia”. Eu sugeri “Poética do Oprimido. Ele
voltou, “não, os livreiros não querem. Eles querem “Teatro do Oprimido”. eu
não gostei, “pô, não é o teatro, é a poética inteira”. Mas queria muito ver o livro
publicado. Ficou “Teatro do Oprimido”. Mas o livro, então, é meio sobre toda
aquela época.
245
Podemos notar que ele desloca seus textos de um contexto de produção, de 1967, para
um outro, de 1974, quando imprime, então, outros significados advindos de novas
experiências de trabalho nos países em que esteve durante o exílio.
Em seu estudo, Kathrin indica certa desatenção à existência de tensões internas e
externas no grupo do Arena. Em depoimentos prestados ao
SNT
(em 1976) e a Simon
Khoury (em 1983), Guarnieri declara seu ponto de vista sobre as atividades teatrais do
Arena em que participou ativamente. Nas declarações manifestam-se algumas das
tensões que transitavam pelo Teatro de Arena e que, se observadas com atenção,
informam-nos, também, aspectos das práticas do grupo. Apesar da censura do pós-1964,
segundo Guarnieri, o Arena não queria abrir mão da dramaturgia brasileira: começamos
a descobrir analogias: Vamos falar do hoje lançando mão do ontem.
246
Para ele, a
243
Ibidem, p. 138.
244
Ibidem, p. 180–181.
245
B
OAL
, A. [Depoimento prestado]. In: S
Á
, N. de; C
ARVALHO
, S. de., op. cit., p. 5.
246
G
UARNIERI
, Gianfrancesco. [Depoimento prestado]. In: K
HOURY
, Simon. Atrás da máscara
I
. Rio de
criação do espetáculo Arena conta Zumbi foi muito importante para o grupo porque foi
trabalho coletivo.
Sacamos que música poderia ter uma função realmente grande dentro dos
espetáculos, certas coisas que a gente não poderia falar no texto a música poderia
dizer... Foi quando conheci Edu Lobo. Conheci Edu por intermédio de Luiz Ver-
gueiro, que tinha dito ao Edu, no Rio, que meu texto estava pronto e só faltava pôr
a música. Um belo dia chega o Edu em casa, meio tímido, e pede para ler o
texto. E eu meio sem graça disse: “Mas acontece que não tem texto não... estamos
pensando em fazer uma coisa assim, assim”, e explicamos o que era mais ou
menos o que queríamos fazer. Depois de muita timidez de lado a lado, ficamos
juntos até de madrugada, e no dia seguinte estávamos numa livraria para comprar
toda a bibliografia do Zumbi dos Palmares, e daí começamos um trabalho mara-
vilhoso. Augusto Boal estava no Rio montando aquele show Opinião. Nós fomos
trabalhando. Depois que ele chegou, entrosamos tudo: o elenco todo junto. Eu
nunca tinha tido um trabalho assim, quer dizer, de sentir realmente as pessoas
funcionando juntas, sabe, um relacionamento ótimo, uma vontade muito grande de
fazer, todo mundo pesquisando no mesmo sentido. Não tinha vertente, não tinha
atalho, a coisa ia para um lado só. Daí surgiu o Zumbi. Era a narrativa de um
elenco... quem funcionava era o ator com sua psicologia e com o seu modo de ser.
Realmente o Zumbi foi um “passozinho” na nossa dramaturgia.
247
Por outro lado, Guarnieri localiza no processo de criação e encenação de Arena
conta Tiradentes, aliado ao processo de fechamento político, o momento em que
começam a se evidenciar as divergências quanto à forma de trabalho entre os membros
do grupo, sobretudo entre ele e Boal:
Nós tivemos formas de trabalho distintas. No primeiro, o Zumbi, eu estava com um
tipo de espetáculo na cabeça. O fato dos personagens, de não existir um perso-
nagem fixo, foi preciso uma função muito grande por parte do Boal, no sentido de
botar freio, senão eu ia embora mesmo. em Tiradentes, nós chegamos a dividir
cenas. Você escreve essa, eu escrevo aquela. Tinha até briga de cena. Um queria
botar uma cena, o outro não queria que pusesse, e no dia seguinte o outro apa-
recia com a cena pronta. Foi um processo de trabalho inteiramente diferente.
248
Começamos a divergir! estávamos sofrendo um pouco com todo processo
político e começou-se a pensar em fazer um teatro que atuasse mais. Então é
criado o Núcleo Dois do Arena, e o Boal propõe o Teatro Jornal. Com isso, no
próprio elenco começa a surgir uma divisão de conceitos. Havia, de um lado, a
acusação de desvio formalista... Agora, essas diferenças, essas divergências numa
situação de liberdade, acho que são muito úteis e levam todos para a frente; numa
situação de sufoco, como aquela que agente estava vivendo em 1967, 1968, em que
a realidade estava explodindo, tínhamos que permanecer unidos; mas não foi o
que aconteceu! O Teatro Jornal não deu certo... Foi proposta a Feira Paulista de
Opinião, realmente a última grande proposta do Arena, bolada pelo Boal, que
Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 47.
247
G
UARNIERI
, G. [Depoimento prestado]. In: K
HOURY
, S., op. cit., p. 47–48.
248
G
UARNIERI
, G. [Depoimento prestado]. In: A
LMEIDA
, A. P. et al., op. cit., p. p. 73.
eram peças curtas baseadas numa pergunta: “O que acha do Brasil de hoje?”.
Esse era o tema. Quem responderia essa pergunta era o próprio povo, gente do
povo, compositores, artistas plásticos, dramaturgos, poetas, etc. E essa Feira
Paulista de Opinião foi realizada, mas não com a amplitude que se propunha.
Quem tomou parte foi: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Sérgio Ricardo,
Plínio Marcos, Jorge Andrade, Lauro Cesar Muniz, Bráulio Pedroso... Ficou um
espetáculo muito polêmico e foi praticamente a última coisa que conseguimos
realizar. Ainda tentamos fazer o Arturo Ui, de Brecht. Fizemos, mas...
249
Nos trechos seguintes, podemos observar os pontos em que a posição de
Guarnieri e a de Boal se diferem e entram conflito sobre a concepção de espetáculo e o
emprego do sistema curinga em Arena conta Tiradentes:
O Sistema Coringa pode dar certo quando a dramaturgia, e não a encenação,
propõe a possibilidade de um ator fazer vários papéis e até vários personagens. E
isso não pode depender da encenação, isso tem que vir da dramaturgia, porque se
não vier dela, em vez de ser um modo de narrar claro, acessível e tal, o Sistema se
torna confuso e acaba prejudicando, torna o espetáculo um jogo puramente
formal: de descobrir quem é quem durante o espetáculo. Isso aconteceu muito em
Tiradentes, o grande jogo do público era descobrir quem é quem naquela hora,
que perdendo tempo nessa busca estava perdendo o fundamental da ação: o que
estávamos querendo dizer.
250
[...] nós quebramos um pau terrível com isso. Até hoje não me consta que o
sistema coringa tenha sido utilizado com grande êxito. Se é chamar de sistema
coringa a um narrador e a troca de papéis, quer dizer, isto não é sistema nenhum.
Agora, eu acho que muita coisa não funcionou. Ficou muito como projeto no
papel. E o que eu acho mais interessante, é que também foi uma evolução que o
Boal teve, nesse sentido teórico e tal.
251
A minha discordância, às vezes com espetáculos de peças minhas, não é uma
discordância de montagem, e sim de concepção. Como ocorreu com Arena conta
Tiradentes, que eu achava que deveria ter sido feita dentro de uma concepção de
teatro tradicional, e não como foi feito.
252
[...] eram 22 atores e o ideal seria fazer esse espetáculo num palco italiano,
grande, mas nós não podíamos sair do Arena. Deu certo, mas sentimos que não
era esse o caminho, a peça não tinha sido escrito para essa finalidade, o problema
dos 22 atores era sico e não intelectual, quer dizer, não vindo da dramaturgia,
não pode dar certo.
253
O trabalho envolvido na criação de Zumbi e Tiradentes foi muito diferente para
Guarnieri e Boal. Se, com diz Guarnieri, houve uma grande interação no grupo (“elenco
249
G
UARNIERI
, G. [Depoimento prestado]. In: K
HOURY
, S., op. cit., p. 49.
250
G
UARNIERI
, G. [Depoimento prestado]. In: K
HOURY
, S., op. cit., p. 50.
251
G
UARNIERI
, G. [Depoimento prestado]. In: A
LMEIDA
, A. P. et al., op. cit., p. 73–74.
252
Ibidem, p. 90.
253
G
UARNIERI
, G. [Depoimento prestado]. In: K
HOURY
, S., op. cit., p. 50.
todo junto”, “entrosado”) em Zumbi, que resultou em um excelente espetáculo, em
Tiradentes começam as divergências: o sistema curinga foi considerado por Guarnieri
um fator de empobrecimento da peça; porque confundiu o público, que precisou gastar
energia para localizar quem era quem. Nesse sentido, Guarnieri argumenta que, se as
personagens se vinculassem aos atores, seriam mais claras as idéias que queriam
apresentar. Ele deixa transparecer que o texto dramatúrgico ficou descolado da
encenação. Parece-nos que Guarnieri não escrevia prevendo uma encenação toda dentro
da concepção do sistema curinga.
Para Boal, quanto à atuação do personagem protagonista, Tiradentes, deveria ser
possível imaginá-lo atuando sob a proteção da quarta parede típica, do palco italiano,
num ambiente naturalista, conforme Antoine, e com detalhes cênicos etc. Era esse
conjunto que acionaria a relação empática entre público e personagem-protagonista. No
entanto, foi encenada no palco arena, espaço pequeno e muito próximo da platéia.
Acreditamos que Guarnieri se refere a esse desencontro, uma formalização teórica que
em prática no palco se tornou confusa, anunciando a situação de desconexão e
desintegração do próprio processo de trabalho do grupo Arena.
A apresentação de motivos descrita abaixo por Sábato Magaldi e Maria Thereza
Vargas sobre o resultado da encenação de Arena conta Tiradentes nos fornece mais um
exemplo interessante das possíveis tensões no Arena. Eles isentam os autores e a
encenação da responsabilidade pelo resultado duvidoso, delegando aos músicos os
problemas do espetáculo:
A qualidade do texto e o amadurecimento da teoria faziam prever uma montagem
admirável, superior à de Zumbi. Entretanto, o resultado objetivo foi bem menos
apreciável, não por culpa dos autores, mas dos compositores, que não souberam
criar uma música à altura do espetáculo, embora entre eles estivessem alguns dos
maiores nomes dessa arte, no Brasil. A música de Arena conta Tiradentes é
assinada por Théo de Barros, Sidney Miller, Caetano Veloso e Gilberto Gil, en-
quanto Flávio Império desenhou os cenários e figurinos.
254
Podemos perceber que, em certo sentido, Kathrin Sartingen desconsidera as
implicações contidas entre a elaboração dos ensaios e as dinâmicas da prática teatral
durante a década de 1960, pois na figura do curinga, ao incorporar à sua análise a
interpretação de Boal, a gênese do que viriam a se transformar as novas relações
empreendidas entre atores e espectadores anunciadas após o Teatro do oprimido. Além
254
M
AGALDI
, Sábato; V
ARGAS
, Maria Thereza. Cem anos de teatro em São Paulo (1875–1974). São
Paulo: Senac, 2000, p. 298.
disso, Sartingen endossa a interpretação de que havia uma conceituação estabelecida
para o elemento curinga já na encenação de Arena conta Zumbi.
Torna-se pertinente, aqui, atentarmo-nos para a indeterminação inicial na tarefa
de compreender o passado e formular sobre ele uma interpretação como forma de
conhecimento. Com grande acuidade, Marilena Chauí aborda a problemática que certos
estudos interpretativos apresentam sobre um objeto completamente determinado: estes,
em geral, tendem a ignorar a indeterminação inicial.
Estamos habituados, de longa data, a assumir que o conhecimento é a apropriação
de um objeto graças à apreensão de todas as suas determinações, de sorte que um
objeto conhecido é um objeto completamente determinado. Essa verdade possui
um estranho efeito retroativo. Se conhecer é alcançar um objeto completamente
determinado, isto implica em que o ponto inicial do conhecimento, ou seja, a
situação que exige de nós o esforço para conhecê-la, de ser uma situação que
nos apareça como indeterminada. Ora, retroagindo sobre o ponto de partida, a
visão de um objeto completamente determinado tende a anular a indeterminação
inicial, isto é, aquilo que, ignorado pelos agentes sociais, ao tornar-se conhecido
pelo intérprete, leva-o a colocar no ponto de partida o que foi alcançado no
ponto de chegada. A determinação é tida como igualmente completa antes e depois
do trabalho do conhecimento.
255
(Grifo da autora).
Assim, quando os textos teóricos de Boal são pesquisados e analisados, em geral
os intérpretes os tomam como objeto totalmente determinado, endossam os marcos e a
interpretação testemunhal, ignoram as contradições na prática dos participantes do
Teatro de Arena, e nem ao menos buscam entender as lutas de representação e memória
na “história do Arena”.
(A noite começa a cair.
Na galeria do fundo, uma grande clarabóia
aberta deixa ver, no crepúsculo, a praça de la
Tablada, coberta de multidão. No centro da praça
está o quemadero, construção colossal, toda ela
guarnecida de tochas, e repletas de fogueiras,
postes e supliciados em sambenitos, que se entre-
vêem por entre o fumo. Vasilhas de pez e de
betume em chama, fixadas ao alto dos postes, são
esvaziadas a arder sobre a cabeça dos condena-
dos. Mulheres nuas, cujas vestes foram comidas
pelas chamas, chamejam encostadas a estacas de
ferro. Ouvem-se gritos. Nos quatro cantos do
255
C
HAUÍ
, M., op. cit., p. 28–29.
quemadero, as quatro estátuas gigantescas, cha-
madas as quatro evangelistas, estão vermelhas,
incandescentes como brasas. Têm buracos e
fendas, por onde se vêem passar cabeças a gritar
e braços a agitarem-se, de tal modo que mais
parecem tições vivos. Uma grande panorâmica
do suplício e do incêndio. O rei e a rainha assis-
tem a tudo isso aterrorizados. Gucho, debaixo da
mesa, levanta a cabeça e esforça-se para ver.
Torquemada, em contemplação, compraz-se
a olhar para o quemadero).
256
Victor Hugo, Torquemada
... sabemos, ou deveríamos saber, que todo
declínio de poder é um convite aberto à violência
mesmo porque os que detêm o poder e o
sentem escapando das mãos, sejam eles os gover-
nantes ou os governados, sempre acham difícil
resistir à tentação de substituí-lo pela
violência.
257
Hannah Arendt, Da violência
Como vimos, o sistema curinga refere-se à estrutura formal da peça Arena conta
Tiradentes, que, embora tenha sido propalada como forma permanente de se fazer
teatro dramaturgia e encenação,
258
não se manteve inalterada através da obra
dramatúrgica de Boal. Em Tiradentes, o sistema curinga foi organizado por meio de
duas estruturas: uma de espetáculo, uma de elenco; e a narrativa da história da
Inconfidência Mineira ocorreu em dois níveis: como fábula os recursos cênicos
foram os ilusionistas — e como conferência — cuja tarefa principal consistiu em
explicar o evento do ponto de vista do Arena mediante recursos épicos. Assim, a
estrutura de espetáculo tem esta disposição: a peça inicia-se com uma dedicatória e
termina com uma cena exortativa; a fábula se divide em episódios, que comportam um
256
H
UGO
, Victor. Torquemada, Cena
V
do Ato
IV
. Apud: L
EROY
, Béatrice. A Espanha dos Torquemadas:
católicos, judeus e convertidos no século
XV
. Mem Martins-Portugual: Editorial Inquérito, 1995, p. 166.
Segundo a autora, sambenito é um escapulário amarelo imposto como sinal de infâmia aos hereges
reconciliados e depois, suspensos com o nome dos ditos hereges na abóbada da igreja por eles
frequentada. (Ibidem, p. 175).
257
A
RENDT
, Hannah. Da violência. In: ___. Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 156.
258
B
OAL
, Augusto. A necessidade do coringa. In: B
OAL
,
Augusto.;
G
UARNIERI
, Gianfrancesco. Arena
conta Tiradentes. São Paulo: Sagarana, 1967, p. 28.
conjunto de cenas mais ou menos interdependentes. Explicações, comentários e
entrevistas
259
intercalam as cenas para quebrar a continuidade da ação dramática.
Compõem o elenco os personagens protagonista e curinga, um coro deutera-
gonista, um coro antagonista e uma orquestra coral. A função do protagonista é
estabelecer uma relação empática com o público, por isso o ator se vincula ao
personagem e o interpreta de modo stanislawskiano. Suas roupas, adereços, assim como
o espaço por onde se move, obedecem aos critérios da verossimilhança. Contrariamente,
o curinga é onisciente e sua função funda-se na análise do texto e na revelação desta à
platéia por meio das explicações, comentários e entrevistas. É responsável por explicitar
o ponto de vista do autor sem nenhuma camuflagem, ou seja, sem esconder o
funcionamento teatral. No coro deuteragonista, os atores desempenham papéis de apoio
ao protagonista e os atores do coro antagonista, de desapoio ao protagonista. Enfim, a
orquestra coral, que presta apoio musical, tocando instrumentos e cantando os
comentários.
Referindo-se à função protagônica em Arena conta Tiradentes, o crítico teatral
Anatol Rosenfeld afirmou que, na teoria do sistema curinga, foram inseridos
sistematicamente no teatro épico novos elementos empáticos, através de uma faixa
naturalista, no desejo expresso de não cair na negação unilateral da tradição.
260
A
despeito de todos os apontamentos feitos por Rosenfeld relativos às contradições e
ambigüidades do sistema curinga, sobretudo da função protagônica, o que percebemos
na poética do curinga foi mais a incorporação de elementos épicos, e menos a inserção
de uma faixa naturalista no teatro épico. A produção anterior do Arena não consolidara
apenas uma prática épica; antes, o naturalismo stanislavskiano é que fazia parte do
repertório dominante. Nesse sentido, não vemos ruptura com o estilo ilusionista nem
uma nova ênfase na estética brechtiana oposta a esse estilo; pelo contrário, nota-se
tensão entre a estética naturalista e a teatralista.
261
259
A entrevista integra a estrutura de espetáculo descrita na teoria do sistema curinga, em 1967. Segundo
Boal, pode-se recorrer a esse recurso sempre que for necessário mostrar o “lado de dentro” do
personagem. B
OAL
, A. As estruturas do coringa..., op. cit., p. 43. A necessidade do dramaturgo revelar à
platéia aspectos do personagem se assemelha ao monólogo, ao solilóquio, ao aparte, dentre outros.
Porém, na estrutura do curinga, Boal emprega elementos do ritual esportivo: Durante as disputas
esportivas, futebol, box, etc., nos intervalos entre um tempo e outro, ou durante as paralisações
temporárias e acidentais das partidas, os cronistas entrevistam atletas e técnicos que diretamente
informam a platéia sobre o sucedido em campo. Ibidem, p. 42–43.
260
R
OSENFELD
, Anatol. Heróis e coringas. Arte em Revista, nº 1, Ano
I
, São Paulo:
CEAC
/Kairós, 1979, p.
45.
261
Nos ancoramos nos conceitos do emergente e residual de Raymond Williams. O residual, por
definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não como
A seguir, verificaremos a historicidade da poética do curinga por meio da peça
Torquemada, de 1971, considerando as variações formais relativas tanto à peça Arena
conta Tiradentes quanto às diferentes edições de Torquemada.
A
S EDIÇÕES DE
T
ORQUEMADA
:
OMISSÕES E ACRÉSCIMOS
duas edições do texto Torquemada: uma de 1972, publicada originalmente
em espanhol, pela editora Casa de Las Américas, de Havana (Cuba), com tiragem de
nove mil exemplares;
262
outra de 1990, em português, publicada pela Hucitec, de São
Paulo, como parte da coleção Teatro de Augusto Boal, dirigida por Adalgisa Pereira da
Silva e Fernando Peixoto.
263
Se, como quer Roger Chartier, a historicidade inicial de
um texto [...] se inscreve em sua própria materialidade,
264
então impõe-se uma
comparação das diferentes edições do texto para ver em que ponto a materialização as
diferencia.
A estrutura de espetáculo da edição cubana de Torquemada compõe-se de três
episódios, divididos em cenas e intercalados por três noticieros
265
(jornais). A peça
inicia-se com a dedicatória e termina com uma cena exortativa. As explicações e
entrevistas estão presentes no texto e cumprem a função de revelar ao público os
mecanismos de dominação do governo de Torquemada. Foram eliminados os
comentários. Em Tiradentes, estes eram cantados pelo coro ou pela orquestra, que
anunciavam o lugar e o tempo onde se passava a ação; em Torquemada, parece ter sido
um elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente (p. 125). É pela incorporação
daquilo que é ativamente residual — pela reinterpretação, diluição, projeção e inclusão e exclusão
discriminativas — que o trabalho de tradição seletiva se faz especialmente evidente (p. 126). Por
emergente entendo, primeiro, que novos significados e valores, novas práticas, novas relações e tipos de
relação estão sendo continuamente criados (p. 126). O que importa, finalmente, no entendimento da
cultura emergente, em distinção da cultura dominante e residual, é que ela não é nunca apenas uma
questão de prática imediata. [...] o que temos de observar é, com efeito, uma emergência preliminar,
atuante e pressionante, mas ainda não perfeitamente articulado, e não o aparecimento evidente que pode
ser identificado com maior confiança (p. 129, grifo do autor). W
ILLIAMS
, Raymond. Dominante, residual
e emergente. In: Marxismo e literatura. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 124–129.
262
B
OAL
, Augusto. Torquemada. In: Teatro latinoamericano de agitación. 1ª ed., La Habana, Cuba: Casa
de las Américas, p. 63–176.
263
B
OAL
, Augusto. Torquemada. In: Teatro de Augusto Boal 2. São Paulo: Hucitec, 1990, p. 99–152.
264
C
HARTIER
, Roger. O texto de teatro: transmissão e edição. In: Do palco à página: publicar teatro e ler
romances na época moderna (século
XVI
XVIII
). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002, p. 63.
265
Noticiero: jornal; noticiador, informador. Na cena noticiero, o locutor assume a função curinga e
paralisa a ação para anunciar as notícias, e para argüir algum outro personagem, fazendo com que ele
revele as suas razões para o público.
desnecessário mantê-los, porque as ações acontecem apenas em dois espaços: numa
câmara de tortura e na cela, onde a própria cenografia indicada pelas rubricas
evidencia os lugares da ação.
A estrutura de elenco em Torquemada, bastante alterada em relação à de
Tiradentes, foi dividida em dois blocos de personagens: torturadores e vítimas. Aqui
não um personagem cuja função empática seja exclusiva; mesmo atores que
representam os presos timas da violência policial estão desvinculados dos
personagens. Boal compôs personagens tipificados reconhecíveis por sua “máscara de
comportamento”; apenas alguns são nomeados, mas ainda assim não possuem
identidade individual ou perfil psicológico representam grupos sociais. O curinga
não é nomeado no texto, tal como em Tiradentes, mas sua função permanece, sendo
realizada pelo locutor responsável por anunciar as notícias e realizar as entrevistas, e por
um ator que se dirige ao público no momento das explicações.
Da edição brasileira de 1990, foram suprimidos três noticieros, e em conse-
qüência desapareceu a entrevista e as notícias reveladas pelos Locutores. Nesta edição
também não aparece nomeado o ator curinga, embora sua função permaneça nas cenas
de explicação. Também foi excluído o personagem Desiderio, entrevistado pelo Locutor
no segundo Noticiero da peça e importante personagem para se compreender como Boal
pretendeu caracterizar o torturador. Ao ser entrevistado, Desiderio mostra ser um
torturador profissional:
LOCUTOR
2
[...]
¿cuál es su verdadera profesión?
DESIDERIO
— Bueno, es decir, desde el punto de vista profesional, es decir, el filete
de mis hijos (Nombrar la comida nacional del país donde se da el espectáculo.) Yo
lo gano con mi verdadera profesión, es decir, yo soy un torturador profesional, es
decir, yo torturo. Ese es mi filete. Cada uno tiene el suyo. Ese es el mío.
LOCUTOR
— ¿Y cómo se siente? bien?
DESIDERIO
Yo me siento como se siente cualquiera que trabaja por el bien de su
Patria, por la grandeza de su continente, por la libertad de su raza, por Dios, por el
filete, en fin por todas las cosas buenas de la vida. En fin... eso es...
LOCUTOR
¿Y cómo ve usted, la exhortación del Gobierno a efectos de que todos
los ciudadanos trabajen más por el bien de la Patria?
DESIDERIO
Con muy buenos ojos: Todos tenemos que trabajar más. Porque los
subversivos no colaboran. Demoran muchas horas, muchos días, para confesar muy
pocas cosas. Son anti-Patria. Consumen el dinero de la nación. Mi sueldo me lo
paga la Patria, los subversivos tienen que comprenderlo. Cuanto más rápido com-
fiesen, más productivo es nuestro trabajo y más rinde nuestro sueldo. Aquí, en su
programa, aprovecho la oportunidad para hacer un llamado a todos los subversivos:
¡sean patriotas! Cuando sean torturados, confiesen todo en lo primeros minutos.
Digan la verdad. Cuando iniciamos una tortura estamos dispuestos a ir hasta las
últimas consecuencias, es decir, hasta el Cementerio. ¿Me explico? Denuncien,
delaten, ¡el delator sirve a la Patria!
266
No primeiro Noticiero, o locutor/apresentador anuncia o novo processo de
alfabetização para adultos,
267
mostrando seu caráter essencialmente político: Proletarios
empieza con pro.../ Protesta también... / Sueldos con su.../ Huelga con hu.../ Calle con
ca.../ ¡En la calles, proletarios en huelgas protestan y exigen aumento de sueldo! / ¡¡Un
alfabetizado más!!/ Abajo el capitalismo, que empieza con ca....
268
No segundo Noticiero, intitulado “noticiero cruzado”, dois locutores informam
sobre acontecimentos mais recentes e novas medidas políticas, demonstrando uma
estreita relação entre o apoio de instituições financeiras internacionais e as ações de
Torquemada contra as organizações sindicais, estudantis e políticas.
LOCUTOR
1 Son desmanteladas todas las organizaciones rurales, sindicatos de
campesinos y grupos aislados.
LOCUTOR
2 Torquemada recibe el decidido apoyo internacional en su cruzada
contra la subversión.
266
B
OAL
, Augusto. Torquemada. In: Teatro latinoamericano..., op. cit., p. 115-116.
267
A referência é ao Método Paulo Freire de alfabetização de adultos desenvolvido durante o Movimento
de Cultura Popular, em Pernambuco, no início da década de 1960. Segundo Schwarz, esse método, muito
bem sucedido na prática, não concebe a leitura como uma técnica indiferente, mas como força no jogo
da dominação social. Em conseqüência procura acoplar o acesso do camponês à palavra escrita com a
consciência de sua situação política. Os professores, que eram estudantes, iam às comunidades rurais, e
a partir da experiência viva dos moradores alinhavam assuntos e palavras-chave “palavras gera-
doras”, na terminologia de P. Freire que serviriam simultaneamente para discussão e alfabetização.
Em lugar de aprender humilhado aos trinta anos de idade, que o vovô a uva, o trabalhador rural
entrava, de um mesmo passo, no mundo das letras e no dos sindicatos, da construção, da reforma agrá-
ria, em suma dos seus interesses históricos. Nem o professor, nesta situação, é um profissional burguês
que ensina simplesmente o que aprendeu, nem a leitura é um procedimento que qualifique simplesmente
para uma nova profissão, nem as palavras e muito menos os alunos são simplesmente o que são. Cada
um destes elementos é transformado no interior do método em que de fato pulsa um momento de
revolução contemporânea: a noção de que a miséria e seu cimento, o analfabetismo, não são acidentes
ou resíduo, mas parte integrada no movimento rotineiro da dominação do capital. Assim a conquista
política da escrita rompia os quadros destinados ao estudo, à transmissão do saber e à consolidação da
ordem vigente. S
CHWARZ
, Roberto. Cultura e política, 1964–1969. In: Cultura e Política. São Paulo: Paz
e Terra, 2001, p. 18–19. O processo de alfabetização pode ser descrito nos seguintes termos: um mínimo
de palavras, chamadas geradoras, oriundas do próprio universo vocabular do alfabetizando, com a
máxima polivalência fonêmica, é o ponto de partida para a conquista da leitura, que através da
combinação dos elementos básicos da palavra propiciam a formação de outras. Sendo os significados das
palavras representativos das situações e da experiência vivida do alfabetizando, eles passam para o mundo
dos objetos. Assim, o alfabetizando ganha distância para ver sua experiência e começa a descodificar, isto
é, a analisar e reconstituir a situação vivida, que mediada pela objetivação provoca a reflexão crítica.
Espera-se que ao objetivar uma palavra geradora íntegra, primeiro, e depois decomposta em seus
elementos silábicos —, o alfabetizando seja motivado para não só buscar o mecanismo de recomposição e
composição de novas palavras, mas, também para escrever seu pensamento, pensar o mundo e julgá-lo,
assumindo gradualmente a consciência de testemunha de sua história e a responsabilidade sobre ela. Cf.
F
IORI
, Ernani Maria. Aprender a dizer a sua palavra. In: F
REIRE
, Paulo. Pedagogia do oprimido. 27ª ed.,
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 9–21.
268
B
OAL
, A. Torquemada. In: Teatro latinoamericano..., op. cit., p. 85.
LOCUTOR
1 Los principales líderes estudiantiles, obreros y campesinos son
encarcelados. Estado de sitio. El gobierno se da el derecho de allanar cualquier cas,
cualquier comisario de policía local puede encarcelar por el término de cincuenta
días a cualquier ciudadano sin necesidad de autorización especial de ningún juez.
LOCUTOR
2 Retornan entusiasmados los capitales extranjeros, financiamientos
internacionales.
USAID
, mil setecientos quince millones de dólares,
BID
, quinientos
treinta y cinco millones de dólares,
EXIMBANK
, ciento cuarenta y siete millones.
LOCUTOR
1 Todos los principales opositores de Torquemada son privados de
sus derechos políticos por diez años.
269
No terceiro Noticiero, também “noticiero cruzado”, o locutor alterna informa-
ções sobre o crescimento econômico e o aumento da repressão, o sucesso do governo de
Torquemada e sofrimento dos excluídos. Entre as notícias, solicita-se a um embaixador
americano sua opinião sobre a revolução de Torquemada:
— Metas del gobierno: aumentar la producción de la energía eléctrica al doble.
— 5 000 presos políticos.
— Aumentar la producción del acero al triple.
— 12 000 presos políticos.
— Contención de la inflación.
— Formación de escuadrones de la muerte.
— Milagro.
— Conquista de los mercados internacionales.
Torquemada cierra el Congreso, suspende el habeas corpus, y todas las garan-
tías individuales.
— ¡Protestas internacionales!
— Pero usted, señor Embajador, que tanto ayudó a Torquemada, ¿cuál es su
opinión?
EMBAJADOR
Torquemada’s Revolution is perhaps as significant to the defense
of the Free World as the Sino-Soviet split and the success of the Marshall Plan.
TRADUCTOR
— La Revolución de Torquemada es tal vez un hecho tan significativo
como la ruptura sino-Soviética y el éxito del plan Marshall.
— Congelación de los sueldos
[...]
— Campesinos hambreados asaltan trenes llenos de alimentos.
Frente a las repetidas denuncias de tortura, Torquemada decide fundar la Comi-
sión de los Derechos del Hombre, cuyo objetivo es averiguar todas las posibles
violaciones de los derechos y libertades individuales.
— ¡El mundo aplaude a Torquemada, quien así garantiza libertad para todos!
Para la presidencia de esa comisión, Torquemada nombra a Torquemada. La
comisión después de exhaustivas investigaciones llega a la conclusión de que no
hay torturas en su país.
270
A edição brasileira eliminou também as divisões explicitas das cenas. O que era
nomeado como cena um, cena dois etc. foi substituído por um espaçamento entre as
269
Ibidem, p. 114–115
270
B
OAL
, A. Torquemada. In: Teatro latinoamericano..., op. cit., p. 162–163
cenas. A cena sete do primeiro episódio em que señores compram ações em alta numa
bolsa de valores, também, foi toda omitida:
ESCENA
7
BOLSA DE VALORES
(Entran cinco señores.)
SEÑORES
¡Bravo! ¡Bravo! ¡Bravo!
SEÑOR
Bravo por la defensa de las leyes.
SEÑOR
¡Bravo por la estabilidad de las instituciones!
SEÑOR
Bravo por nuestra tradición democrática.
(Otros slogans del momento.)
(Entra un corredor de bolsa. Los cinco señores juegan a las acciones de las
compañías imperialistas en alza en el momento de la representación.)
271
Foi suprimido da cena cinco do segundo episódio a rubrica indicativa da leitura
de jornal feita pelos presos:
(En las celdas de los presos políticos a veces es común la lectura de los diarios
después de la hora de silencio, a efectos de informar a todos sobre los últimos
acontecimientos. El que mejor comprenda el asunto tratado intenta dar expli-
caciones adicionales, contrainformar; los diarios son los porta-voces de las clases
dominantes: hay que traducirlos. Intereses también que el espectador de esta obra
no la tome como la fábula de una violencia que ocurrió en un país distante o en
otra época. Así que se recomienda la lectura de los diarios locales digamos de la
semana, y se cuenten todos los hechos del lugar que se parezcan a los aquí
narrados [...].)
272
Na cena em que o burguês Paulo é torturado até a morte por Torquemada
cena três do terceiro episódio —, os diálogos foram reduzidos pela metade. A cena é
nomeada “La muerte del burgués Paulo, liberal”, e Paulo é referido por “burguês”, e não
“nobre”, como na edição brasileira. Como exemplo disso, a fala de Paulo deixa clara
sua adesão à lógica do sistema de Torquemada:
PAULO
¡Gracias! ¡Gracias! ¡Aleluya! Nuestra ciudad estaba al borde del abismo.
No había autoridad, confianza en los negocios, jerarquía. Vino el buen Padre e
impuso el orden. Aleluya.
273
A fala de Torquemada a seguir, nessa mesma cena, também foi deixada de lado
na edição brasileira:
271
Ibidem, p. 113.
272
Ibidem, p. 142.
273
B
OAL
, A. Torquemada. In: Teatro latinoamericano..., op. cit., p. 166.
TORQUEMADA
La Bolsa es un juego de confianza, nada más. Los precios suben
y bajan por una cuestión de confianza, nada más. Por eso es necesario la muerte de
alguien que ni siquiera es culpable, alguien casi inocente.
274
.
A mais importante supressão da edição de 1990 a dos noticieros talvez se
explique pela necessidade de considerar o leitor-espectador circunscrito a outra
temporalidade, na qual muito provavelmente ele não consegue mais partilhar do quadro
referencial específico da realidade do início da década de 1970. Na peça Arena conta
Tiradentes, o artifício da entrevista objetivava mostrar as intenções e idéias de certos
personagens.
CORINGA
Visconde! Uma perguntinha. Por que essa reviravolta a respeito da
Derrama? O senhor não tinha dito que mais importante que o lucro era a humi-
lhação?
BARBACENA
Em política, meu amigo, é necessário antes de mais nada saber
conciliar. Percebi que essas novas leis são tão violentas que se eu me decidisse a
aplicá-las todas de uma só vez, eu ia acabar perdendo.
[...]
CORINGA
— Governador, o senhor se acha um canalha?
BARBACENA
Absolutamente. Sou um fiel servidor de Sua Majestade. Se tudo
que eu faço fizesse por minha livre e espontânea vontade, então sim poderia ser
classificado como canalha. Mas eu apenas cumpro com o dever que me é
imposto.
275
Nos noticieros da edição cubana de Torquemada, além da entrevista, os locu-
tores anunciam notícias cruzadas como estratégia para evidenciar as relações entre
ações repressivas e o projeto político-econômico de Torquemada. Ou mostrar o con-
traste entre crescimento econômico e desemprego, a redução dos salários etc. Nesse
sentido, com os noticieros Boal objetiva desmistificar a pretensa objetividade do
jornalismo, pois em sua apresentação põe lado a lado acontecimentos que, em geral,
aparecem desconectados no jornal.
A forma dos noticieros se difere da entrevista tal como foi definida na teoria do
curinga, em 1967, e resulta da experiência de trabalho desenvolvido por Boal e outros
artistas no Teatro de Arena, após o
AI
-5, com o teatro-jornal, que constituiu uma
alternativa ao modo de realizar espetáculos do Teatro de Arena até fins de 1968. Ante o
quadro obscuro de forte repressão e o estabelecimento da censura às produções culturais
por parte do regime militar, as peças que o grupo Arena queria montar estavam
274
Ibidem, p. 171.
275
B
OAL
, A.; G
UARNIERI
, G. Arena conta Tiradentes, op. cit., p. 91.
proibidas, as subvenções foram suspensas, e, enfim, a liberdade de atuação na área do
teatro convencional tinha sido perdida.
Com base nas técnicas de teatro-jornal desenvolvidas por Boal (leitura simples,
improvisação, leitura com ritmo, ação paralela, reforço, leitura cruzada, histórico,
entrevista de campo e concreção da abstração),
276
um grupo de jovens atores
277
que
haviam feito um curso de interpretação no Teatro de Arena em 1969, ministrado por
Heleny Guariba e Cecília Thumim, pesquisam e realizam, em criação coletiva, o
espetáculo Teatro-Jornal Edição, que estréia em setembro de 1970. Tratava-se da
demonstração dessas nove técnicas com as quais era possível transformar qualquer
notícia de jornal em cena de teatro. As dramatizações das notícias eram apresentadas em
sessões fechadas, restritas a grupos interessados. Após a apresentação, começava o
debate e, a partir do interesse despertado pela experiência, formavam-se novos grupos
de teatro-jornal. Segundo Boal, a idéia era formar grupos, numa espécie de corrente:
cada grupo de teatro-jornal que ajudamos a formar compromete-se a ajudar na
formação de outros, que ajudarão a formar outros mais e assim sucessivamente.
278
Segundo Celso Frateschi:
O teatro-jornal [...] surge a partir de um grupo de estudantes do Teatro de Arena
que soube, por acaso, que o Boal tinha uma pesquisa engavetada, que era fazer
uma revista semanal, uma Veja Teatral. Nas segundas-feiras, as pessoas sairiam
do trabalho e passariam no Teatro de Arena e veriam um espetáculo. Essa idéia
tinha sido engavetada por causa da censura prévia. [...] No caso do teatro-jornal
276
Em resumo, as técnicas são apresentadas por Boal assim: 1) leitura simples: os atores lêem notícias
destacadas do corpo do jornal; 2) improvisação: improvisa-se uma cena como exercício de laboratório
(notícia ou motivos anteriores ao fato, ou o que terá acontecido após o fato); 3) leitura com ritmo: ler com
ritmo, emprestando à notícia o conteúdo do ritmo escolhido, como na Primeira Edição: elegeu-se o
discurso de um deputado em favor da censura prévia de livros, revistas e jornais. O discurso é bastante
medieval em seu conteúdo. Nada melhor que o canto gregoriano para evidenciar este significado
subjacente (p. 44); 4) ação paralela: a notícia é lida por um ator ou no gravador, enquanto na cena se
desenrolam ações que explicam ou criticam a notícia; 5) reforço: a notícia serve de roteiro preenchido
com todo tipo de material, conhecido pelo público, ou previsto (jingles comerciais, slides, propaganda,
filmes documentários, frases de anúncios famosos etc.; 6) leitura cruzada: o elenco cruza duas ou mais
notícias (contrastes brasileiros): por exemplo, balança externa positiva e fome no Nordeste; 7) histórico:
fornecem-se informações históricas adicionais à notícia; 8) entrevista de campo: faz-se uma entrevista
quando se quer saber o que vai no íntimo do personagem (como um entrevistador televisivo); 9)
concreção da abstração: concretizar uma notícia em cena por exemplo, a morte, com pequenos
animais queimados, bonecas cujo fogo reproduz o cheiro do forno misturado com carne humana
queimada. Cf. B
OAL
, Augusto. Categorias de teatro popular. In: Técnicas latino-americanas de teatro
popular. Uma revolução copernicana ao contrário. 3ª ed., São Paulo: Hucitec, 1988, p. 44–46.
277
Esse grupo era integrado pelos atores Celso Frateschi, Dulce Muniz, Hélio Muniz, Elísio Brandão,
Denise del Vecchio e Edson Santana; por Marcos Weinstock, responsável pela parte visual, ao lado de
Mário Masetti, que contribuiu com sugestões e com o artesanato da parte sonora; e ainda pela direção de
Augusto Boal.
278
B
OAL
, A. Categorias de teatro popular, op. cit., p. 42.
isso era impossível porque, se a notícia era semanal, como é que poderia levar
trinta dias para ter a chancela, depois ensaiar, depois...? Não tinha jeito. E nós,
que havíamos acabado de fazer um curso com a Cecília Tumim, mulher do Boal, e
com a Eleni Guariba, pedimos autorização para o Boal para continuar pesqui-
sando essa prática, que seria o teatro-jornal. E existia o Areninha. [...] Nós come-
çamos a fazer esses espetáculos, primeiro quinzenalmente, com as notícias que a
gente tomava dos jornais e tentava traduzir teatralmente. Como não podiam ser
apresentados para a censura, eram feitos clandestinamente, a portas fechadas. A
gente chamava alguns amigos que iam até e participavam. E a gente acabava
experimentando o que tinha conseguido aprender com a Eleni e a Cecília. A
Cecília sempre foi mais stanislavskiana, mas porra-louca, e a Eleni tinha uma
visão brechtiana, via Planchon, era uma coisa super-racionalista e muito inte-
ressante. A nossa formação tinha essas duas pernas aí...
Eram espetáculos em que a gente fazia experiências bastante radicais. E isso
foi movimentando o meio, de forma que, em pouco tempo, tinha muita gente
assistindo aos espetáculos às segundas-feiras no Areninha, e esse grupo ia cada
vez mais aumentando. O que aconteceu foi que a maior parte desse grupo era de
estudantes como nós, e pediam orientação para formar grupos também, e a gente
acabou fazendo não o nosso trabalho, mas também coordenando alguns outros
grupos. O Boal, quando foi assistir ao exercício, gostou muito, e falou assim:
“Vamos montar”. Eu falei: “Mas não dá para montar”. Ele: “Não, a gente manda
para a Censura as notícias de jornal que estão censuradas, então eles não vão
poder censurar de novo”. Nós apresentamos essas notícias que foram chance-
ladas. Na hora do ensaio para a Censura, o Boal fez a seguinte indicação: “Vocês,
por favor, façam o pior possível. Gaguejem, errem o texto, tropecem, façam o
escambau, de forma que eles não entendam o que vocês estão falando”. E para o
Mário Masetti, que fazia trilha sonora e operava o som: “Em qualquer momento
que tiver alguma coisa possível de estragar, você, por favor, aumente o som”. [...]
O Boal teve uma sacação de transformar o teatro-jornal não numa peça de
teatro, mas em alguma coisa que tinha a ver com essa coisa extremamente
narrativa, que ia além. Ele começava o espetáculo com um prólogo que dizia que o
futebol no Brasil era muito popular. E era popular porque, de alguma maneira,
todo mundo jogava futebol. Ou aprendia a jogar futebol. E ele achava que o teatro
podia ser popular se todo mundo jogasse teatro. Então, o espetáculo era uma
demonstração de como dramatizar, ou de como teatralizar notícias. E ele acabou
estruturando um espetáculo bastante contundente, que rendeu uma discussão
muito interessante na época, uma discussão estética. Eu me lembro até hoje das
colocações do Anatol Rosenfeld. Foram importantes para nós todos, para o resto
das nossas vidas, porque eram muito pertinentes: colocavam exatamente essa
questão realidade/ficção que o Boal depois iria desenvolver para um outro lado,
quase eliminando a ficção para conseguir o efeito político, quer dizer, o teatro
invisível e todas as técnicas do Teatro do Oprimido que ele formulou depois. A
gente, de alguma maneira, se sente muito honrada por estar no berço dessa
história toda com o teatro-jornal.
279
Frateschi, ao abordar a questão da recepção, evidencia os limites do alcance da
proposta do grupo nos meios populares: se o Arena já era pequeno e todo mundo
reclamava que o sucesso do Arena não era sucesso, o sucesso do Areninha era menos
sucesso ainda porque eram setenta lugares, que ficavam numa arquibancada e a
279
G
ARCIA
, Silvana (org.). Odisséia do teatro brasileiro. São Paulo: Senac, 2002, p. 100–103.
gente fazia os espetáculos num palquinho.
280
Por outro lado, avalia positivamente o
papel que tal experiência desempenhou na esquerda: ao reagrupar “o pessoal da
esquerda” e provocar a discussão, e ao sugerir possibilidades de trabalho teatral naquela
conjuntura. Nessa perspectiva, Frateschi revela o tipo de “sucesso” que teve o teatro-
jornal:
O teatro-jornal, eu acredito hoje, fazendo uma análise bastante distanciada da
história, teve muito sucesso. Chegamos a fazer quase setenta grupos ao todo, vinte
na
USP
. Formavam-se os grupos, a gente coordenava, apresentavam-se nas
escolas, apresentavam-se também no Areninha, foi um movimento interessante.
Mas começamos a perceber que não existia nunca o segundo espetáculo do grupo.
Era sempre o primeiro, porque, depois, o pessoal ia formar o
DCE
de novo, ia
formar o Centro Acadêmico, ia formar as coisas que tinham sido destruídas pela
prisão dos líderes de Ibiúna. (Refere-se à prisão de toda a liderança estudantil
durante a realização do 30º Congresso Nacional da
UNE
, em Ibiúna, São Paulo,
em 1968. [N. da O.]). E a gente percebeu que o teatro-jornal foi, de alguma ma-
neira, útil para reestruturar aquele determinado movimento; foi, talvez, mais
importante porque serviu como... vou usar de uma maneira mística... uma varinha
de vodu, que juntou o pessoal de esquerda... Começamos a falar de uma maneira
cifrada e acabou funcionando como uma forma de essas pessoas se reorganizarem
e, através do teatro, voltarem a discutir, voltarem a trabalhar de uma maneira
mais efetiva.
281
Pudemos observar nos temas tratados nos noticieros, e também na sua forma,
como o dramaturgo estabeleceu, de maneira evidente, diálogos com os problemas e as
contradições vividos socialmente no momento da escritura da peça. As informações
noticiadas — parece-nos deviam ser atuais para que o público compreenda as
ligações entre os acontecimentos e a tortura. A notícia fornecia o contexto social, polí-
tico e econômico, ajudando o leitor/público a perceber as determinações que envolviam
a prática da tortura adotada pelo governo de Torquemada. Assim, o texto teatral nos
anos de 1990 necessitaria de outras notícias do presente para explicitar as conexões
entre Estado e violência. Essa poderia ser uma hipótese sobre o porquê de os noticieros
terem sido suprimidos da edição brasileira de Torquemada (1990); no entanto, não
indicações cênicas no texto que permitam a um encenador usar o recurso do teatro-
jornal; também não consta, nessa edição, explicação dos editores ou do dramaturgo
sobre essas alterações textuais.
280
G
ARCIA
, S., op. cit., p. 101.
281
G
ARCIA
, S., op. cit., p. 103.
Seja como for, não podemos ver o sistema curinga de modo estático, pois este
assumiu diferentes funções na dramaturgia de Augusto Boal, sempre derivadas das
circunstâncias de produção das peças.
I
NTERPRETAÇÕES DO TEXTO TEATRAL
T
ORQUEMADA
Torquemada foi analisada por Judith Bissett (“Victims and violators: the
structure of violence in Torquemada”)
282
e por Severino João Albuquerque
(“Conflicting signs of violence in Augusto Boal’s Torquemada”).
283
Ambos tiveram
como referência a edição cubana de 1972.
Bissett apresenta em seu estudo a idéia de que a peça tem como estrutura básica
oposições binárias entre vítimas e violadores. Nessa organização, os personagens
funcionam como signos: ou para a vítima, ou para o violador. Assim, encontramos no
grupo de violadores o governo, representado pelos personagens que retratam autori-
dades: Torquemada, padres, policiais, soldados, funcionários públicos e homens de
negócio; no grupo das vítimas, estão pessoas do país: artistas, ativistas políticos e
circunstantes pegos durante a turbulência política. Eis o plano geral das relações
binárias segundo essa autora.
No entanto, para Bissett, alguns personagens não se enquadram em nenhum dos
dois grupos; logo, servem de subsignos, como o personagem Cristina Jacaré. Faxineiro
da prisão e homossexual, ele abriga elementos de ambos os signos por ser igualmente
um prisioneiro e obrigado a passar por certas humilhações nas mãos dos carcereiros.
E, porém, é um deles porque cumpre-lhes as ordens e sua característica pessoal
espelha aquela mostrada por seus captores.
284
Tal interpretação parece convergir
metodologicamente mais para a semiologia teatral do que para uma discussão sobre as
relações da obra com a sociedade.
282
B
ISSETT
, Judith I. Victims and violators: the structure of violence in Torquemada. Latin American
Theatre Review, Lawrence, Kansas,
USA
, nº 15, vol. 2, spring 1982, p. 27–34.
283
A
LBUQUERQUE
, Severino João. Conflicting signs of violence in Augusto Boal’s Torquemada. Modern
Drama, Toronto, Canadá, nº 3, vol. 29, 1986, p. 452–459.
284
[...] he is likewise a prisoner and is forced to suffer certain indignities at the hands of his jailers. Yet
he is one of them because he carries out their orders and because his personal characteristics mirror
those displayed by his captors [...]. B
ISSETT
, J. I., op. cit., p. 30.
Tendo identificado os planos de oposição binária tal qual ocorrem no texto
Torquemada, o leitor deve dar um passo adiante em seu exame e projetar as
funções do signo em cada cena numa possível representação teatral. Deve
considerar o texto segundo os códigos de comportamento que vão constituir a peça
do palco. Uma vez que Torquemada trata a violência como ela aparece na relação
entre violador e vítima, a primeira tarefa do leitor é determinar se um dado
confronto entre representantes de cada grupo de signos terá o efeito necessário.
Se uma dada platéia deve experimentar empatia e horror, e não distância
emocional ou superioridade intelectual, quando observa as personagens repre-
sentarem vítimas ou violadores, certos elementos devem estar presentes em cada
signo e ser facilmente traduzíveis em ação no palco. As vítimas e os violadores que
são ou excessivamente monstruosos, ou deformados física ou emocionalmente vão
parecer reais ao observador. A dor sofrida ou provocada não produzirá empatia,
mas indiferença ou deleite.
285
(Grifo nosso).
Segundo Bissett, suscitar o efeito necessário no confronto entre os representantes
de cada grupo de signos e a conseqüente demonstração da violência dessa relação
requer, fundamentalmente, que tanto vítimas quanto violadores apresentem elementos
que produzam no leitor-espectador empatia e, por conseqüência, um horror à violência
de que participam.
É também objetivo da autora avaliar o efeito das oposições binárias numa
possível encenação; aqui o espectador deve se identificar com as vítimas e, ao mesmo
tempo, deve ser capaz de se ver no violador mesmo em situações horripilantes. É o
modo pelo qual se a produção de sentido no processo teatral, desde a leitura do texto
teatral até a projeção das funções do signo numa encenação o que interessa a essa
autora.
Como se vê, Bissett dedica especial atenção à organização formal, distinguindo e
decodificando os signos presentes no texto teatral escrito. E ao enfocar os elementos
estruturais da linguagem em sua análise de Torquemada, deixa entrever que
desconsidera as implicações e profundas ligações da obra com o lugar social onde foi
produzida.
285
Having identified the patterns of binary opposition as they occur in Torquemada’s text, the reader
must take his examination one step further and project the sign functions in each scene into a possible
performance. He must consider the text according to the codes of behavior that will constitute the play on
stage. Because Torquemada treats violence as it is expressed in the relationship between victim and
violator, the reader’s first task is to determine whether a particular confrontation between represen-
tatives of each sign group will produce the proper effect.
If an audience is to experience empathy and horror and not emotional distance or intellectual
superiority when it observes the characters portraying victims or violators, certain elements must be
present in each sign and must be translated easily into action on stage. Victims or violators who are
either outrageously monstrous or deformed physically or emotionally will seem unreal to the observer.
The pain they suffer or inflict will not produce empathy but indifference or amusement. Ibidem, p. 31–32.
A tese de Severino João Albuquerque é de que Boal fez uso em Torquemada de
dois tipos de signos da violência: as linguagens verbal e não verbal, ora ampliando os
signos da violência verbal por meio de informações não verbais, ora colocando os
signos não verbal e verbal em oposição para demonstrar a violência. Para ele, a
interação dos dois signos na expressão da violência é essencial à caracterização das
vítimas e dos opressores na peça. Desse modo, sua análise consiste em localizar os
signos conflitantes da violência na peça, pois na cena inicial o próprio figurino usado
pelos torturadores os dota de signos que são duplamente conflitantes: percebe-se que
têm outra ocupação (monges) e pertencem à outra época.
286
Esses monges-torturadores
em silêncio se ocupam com a preparação dos equipamentos de tortura, e na seqüência
um monge membro de uma ordem religiosa associada, por tradição, à busca da
verdade
287
ameaça o personagem Dramaturgo. Para Albuquerque, a ambigüidade
presente na cena, em que após um grande silêncio surge um religioso que ameaça
verbalmente um preso, constitui o primeiro signo lingüístico da peça, no qual interagem
os dois signos da violência — o não verbal que precede o verbal, ampliando-o e
contradizendo-o.
Para Albuquerque os signos conflitantes da violência se apresentam em vários
personagens: Desidério de Oliveira, Paulo, Zeca e Cristina Jacaré. Com Desidério, tal
mecanismo se mostra pelo fato de, no presente, ser ele um torturador profissional,
enquanto seu homônimo do passado — Desiderius Erasmus — era um humanista.
Desidério se interessa pelo seu emprego apenas como forma de ganhar a vida.
Diferentemente de seu homônimo histórico Desiderius Erasmus —, a perso-
nagem na peça de Boal não é um cristão humanista com aspirações espirituais
elevadas nem se preocupa com as ramificações e conseqüências de seus atos.
288
O mesmo ocorre com o personagem Paulo: no passado, discípulo de Cristo; na
peça, ex-seguidor de Torquemada cujos valores de homem de negócio da classe média e
286
[...] the costumes worn by the torturers endow them with signs which are doubly conflicting: they are
perceived as having another occupation (monks), and as belonging to another historical epoch.
A
LBUQUERQUE
, S. J., op. cit., p. 453.
287
[...] a member of a religious order traditionally associated with the pursuit of virtue. Ibidem, p. 454.
288
[...] Desiderio, is only interested in his job as a way to make a living. Unlike his historical namesake,
Desiderius Erasmus, the character in Boal’s play is no Christian humanist with lofty spiritual aspi-
rations, nor is he concerned with the ramifications and consequences of his deeds. A
LBUQUERQUE
, S. J.,
op. cit., p. 454.
cuja simpatia pelo pobre, por conseqüência, o desabonam.
289
Se na peça a destruição de
Paulo mantém o poder de Torquemada, no passado o discípulo assegurava o poder de
Cristo.
Diferentemente de Paulo discípulo de Cristo, que conseguia assegurar a confiança
do mestre e uma ampla parcela do poder em uma nova situação, o sistema de
Paulo em Torquemada deve ser destruído caso a ordem social, o progresso
econômico e a segurança nacional caminhem lado a lado.
290
O personagem Zeca também é dotado de signos conflitantes. Ocorre uma
confusão entre o signo lingüístico e signo visual: apelidado de Japonês, Zeca acredita
que é o Japonês da lista para liberação de presos políticos em troca de um embaixador
seqüestrado e, certo de sua liberdade, agride verbalmente os policiais, o que o leva à
morte. Quanto à Cristina Jacaré, o faxineiro gay, oscila entre vítima e opressor,
expressando signos conflitantes em vários níveis.
Cristina se identifica como mulher e se comporta conforme sua percepção de como
deve ser uma mulher. Na condição de prisioneiro, ele é uma vítima dos
torturadores; mas, por ser informante e colaborador dos opressores, Cristina sofre
abuso de outros prisioneiros, tanto quanto dos carcereiros.
291
Além desses, o autor destaca outros signos de violência, como aqueles na cena
em que Torquemada, antes de dirigir uma sessão de tortura, faz o sinal da cruz, ajoelha-
se e inicia um sermão sobre a justiça; ou quando Barba, um monge-torturador, prepara-
se para aplicar mais choques e diz ao Dramaturgo que este difama o país ao afirmar que
ali tortura; e ainda na cena que se inicia com Torquemada e Paulo conversando
normalmente e se desdobra com a mistura de duas ações diferentes: Torquemada ceia
enquanto Paulo é torturado.
289
[...] a former follower of Torquemada, whose middle-class businessman’s values and whose sympathy
for the poor eventually discredit him. Ibidem, p. 454.
290
Unlike Christ’s disciple, Paul, who was able to secure his master’s confidence and a larger share of
the power in a new state of affairs, in Torquemada’s system Paulo must be destroyed if social order, eco-
nomic progress, and national security are to march hand in hand. Ibidem, p. 454.
291
[...] Cristina identifies himself as a woman, and behaves in accordance with his perception of what a
woman should be. As a prisoner he is a victim of the torturers, but because he is an informer and a
collaborator of the victimizers Cristina gets as much abuse from he other prisoners as he does from the
jailers. Ibidem, p. 454.
O
ASSUNTO E O ENREDO
292
A escolha do assunto para compor uma obra artística inclui determinantes reais.
No caso da peça Torquemada, temos a intenção explícita do autor de denunciar tanto a
tortura quanto a aplicação dos métodos repressivos de um sistema que quer se perpetuar.
Augusto Boal começou a escrever Torquemada à época de sua prisão, em 1971, período
considerado a fase mais aguda do regime militar (após o
AI
-5, de 1968) e quando se
instaurou uma violência política radical e de forças desiguais: de um lado, o governo
militar; de outro, estudantes, trabalhadores, a classe artística, parte considerável da
imprensa e políticos de oposição. O teatrólogo concluiria o texto ainda em 1971
porém, exilado na Argentina.
Segundo o dramaturgo, da experiência trágica de quando esteve detido no presídio
Tiradentes, em São Paulo, ele extraiu idéias para elaborar o texto de Torquemada e,
também, o relato memorialístico Milagre no Brasil.
293
Pela fala de Boal, a peça é um
“retrato” pessoal da tortura: “Torquemada” conta minha vida na cela do Presídio
Tiradentes, tenta contar a vida do povo no imenso presídio em que transformaram o
Brasil.
294
Nela, representam-se cenas contundentes de um sistema de morte: a tortura.
Boal apresenta uma interpretação muito próxima do contexto sociopolítico do
seu próprio presente ao estabelecer um diálogo tenso, que envolve a explicitação do
funcionamento do poder; das relações entre Estado e classe dominante; da violência por
meio da representação realista de cenas de prisão, sessão de tortura e morte; da
intolerância e do preconceito políticos enraizados nos torturadores e que, em alguma
medida, também subsistem na visão de mundo dos presos políticos.
292
Estabelecemos como referência para nossa análise do texto teatral Torquemada a edição brasileira de
1990.
293
B
OAL
, Augusto. Milagre no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 1979. Trata-se do relato da
experiência de prisão arbitrária e violenta de Augusto Boal. O livro não se resume a uma descrição; ao
contrário, tem uma estrutura próxima da ficção devido às seqüências elaboradas e ao delineamento das
personagens. Originalmente publicado em Portugal, o livro ganhou edição nacional só em 1979.
294
B
OAL
, Augusto. Trajetória de uma dramaturgia, Augusto Boal. In: Teatro de Augusto Boal 1. São
Paulo: Hucitec, 1986, p. 13.
O principal personagem torturador é Torquemada,
295
que após ser nomeado
inquisidor-mor pelo Rei recebe a tarefa de “acalmar” e “pacificar” o povo. Sua primeira
ação foi ordenar que se prendesse todo o povo para interrogá-lo. Para Torquemada, a
confissão é o começo do processo [...]. Torturar significa vencer certas resistências
morais, ideológicas, ou afetivas [...].
296
Ele defende que, em seu sistema, a tortura é
aplicada cientificamente” e de forma progressista, pois tenta combinar o mais
adiantado desenvolvimento industrial e a escravidão para combater a subversão. Boal
recorre alegoricamente a figuras históricas, procedimento usado na época, muitas vezes,
para burlar a censura — como se nota na fala de Guarnieri:
momentos em que a metáfora é usada, realmente, não como uma expressão,
mas por uma necessidade. [...] Eu acho que é uma forma, um meio para dizer as
coisas. A metáfora às vezes amplia a coisa. Então, é um fato que, no Brasil, os
autores têm de usar fundamentalmente a metáfora, porque eles não podem falar
claramente. Então, esse não é um problema de escolha de estilo, é um problema de
realidade. [...] O problema é que nós temos um teatro, que tem de usar, que obriga
os autores a se igualarem até no estilo metafórico, alegórico, porque realmente ele
não pode falar claro.
297
O texto teatral destaca o cotidiano dos presos políticos enclausurados na prisão
por terem ligações com grupos e organizações revolucionárias.
298
Boal cria também
personagens que, mesmo não envolvidos em atividades subversivas, vêem-se atingidos
295
Religioso e inquisidor espanhol, Torquemada nasceu em Valladolid, em 1420, e morreu em Ávila, em
1498. Ingressou na Ordem Dominicana e foi feito grande inquisidor-geral da na Espanha. Os Reis
Católicos (Fernando e Isabel) conseguiram do papa Xisto
IV
uma bula instituindo a Inquisição na Espanha
(1480); a nomeação dos inquisidores era feita pelo papa, com base numa lista de candidatos apresentados
pelo rei. O Conselho Supremo funcionava em Sevilha. O cargo de grande-inquisidor durante o reinado de
Fernando de Aragão e Isabel de Castela foi ocupado, sucessivamente, por frei Tomás de Torquemada,
Deza e Cisneros. Em 1483, Torquemada foi nomeado inquisidor-mor dos reinos de Castela e Leão e, logo
a seguir, teve sua jurisdição estendida a Aragão, Valência, Catalunha e Majorca, para dirigir as operações
do Tribunal do Santo Ofício por 14 anos. Em 1484, estabeleceu um código de processo de 28 artigos,
depois publicado como Compilación de las instrucciones del oficio de la Santa Inquisición. Celebrizou-se
pelo fanatismo religioso e pela crueldade — a tal extremo levou o zelo inquisitorial que o papa Alexandre
VI
teve de conter-lhe os excessos e inspirou a medida de expulsão dos judeus da Espanha. Seu nome
viria a se tornar símbolo dessa temerosa instituição, bem como de intolerância e fanatismo. Sobre a
Inquisição espanhola, ver as seguintes obras: L
EROY
, Béatrice. A Espanha dos Torquemadas: católicos,
judeus e convertidos no século
XV
. Mem Martins-Portugual: Inquérito, 1995; B
ETHENCOURT
, Francisco.
História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália — séculos
XV
XIX
. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
296
B
OAL
, Augusto. Torquemada. In: Teatro de Augusto Boal 2, op. cit., p. 136. As referências de páginas
da peça Torquemada, neste capítulo, serão apresentadas no corpo do texto, no fim da citação.
297
G
UARNIERI
, Gianfrancesco. [Depoimento prestado]. In: A
LMEIDA
, Abílio Pereira et al. Depoimentos V.
Rio de Janeiro:
SNT
, 1981, p. 86.
298
As organizações de esquerda que optaram pela “resistência armada” entre 1969 e 1974, durante o
governo do general Emílio Garrastazu Médici, estão mostradas em seu momento de queda na peça. Por
meio da narrativa, o autor procura inscrever os procedimentos brutais de repressão utilizados pelo
pela perseguição do inquisidor-mor, em detenções por suspeita de subversão. Assim,
Torquemada condensa e representa na narrativa não apenas os diversos significados e
formas da tortura; também, o complexo e violento ambiente político no Brasil do início
dos anos 70.
governo para combater essas organizações.
A peça é dedicada a Heleny Guariba,
299
assassinada nas prisões de Torquemada
(p. 101), e a primeira cena ocorre numa câmara de tortura, onde nos é mostrada a
chegada de frades, que iniciam o interrogatório após arrumarem os instrumentos de
tortura e posicionarem o subversivo Dramaturgo em um pau-de-arara, ao que se
299
Heleny Telles Guariba formou-se em Filosofia, em 1964, na
USP
;
em 1965, foi à França, onde
permaneceu até 1967. Lá, inscreveu-se em um curso de doutorado em teatro, que lhe possibilitou estágios
em teatros franceses, sobretudo no Théatre de La Cité, de Roger Planchon, encenador e intérprete que se
tornou mundialmente conhecido como diretor do Teatro Nacional Popular francês. Quando retornou ao
Brasil, foi lecionar na Escola de Arte Dramática, onde se aproximou de seus alunos de Santo André.
Nessa cidade, caracterizada como “operária” e onde havia uma entidade representativa dos universitários
a Associação dos Universitários de Santo André —, Heleny vislumbrou possibilidades de pôr em
prática seu ideário de popularização e interiorização do teatro: surgia, assim, em 1968, o grupo Teatro da
Cidade. Caracterizado pela descentralização programada, o grupo constituiu uma via alternativa ao teatro
empresarial da capital e encenou a peça Jorge Dandi, de Moliére, sob direção de Heleny, com cenário de
Flávio Império e, no elenco, atores que já atuavam naquele município e depois concluíram o curso da
Escola de Arte Dramática. Em 1969, ela ministrou um curso de interpretação no Teatro de Arena, junto
com a esposa de Boal, Cecília Thumin. Em 1971, foi presa pelos militares, sob acusação de atividades
subversivas. Heleny era militante da Vanguarda Popular Revolucionária (
VPR
), organização que
procurava desencadear a luta armada e o foco guerrilheiro contra a ditadura. Conforme estudo de Judith
Lieblich Patarra, Heleny manifestou à amiga Iara Iavelberg o desejo de entrar na
VPR
e,
então, foi
recrutada para tarefas semelhantes às de Iara. Dentre outras tarefas, Heleny recebeu a de acolher Lamarca
em sua casa (cf. P
ATARRA
, Judith L. Iara: reportagem biográfica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
1992, p. 287 e 291). A
VPR
resultou da fusão, em 1968, entre a Organização Revolucionária Marxista
Política Operária de São Paulo (
ORM
-
POPOP
) e a seção paulista do Movimento Nacionalista Revo-
lucionário (
MNR
), de inspiração brizolista. Em 1970, a organização fundiu-se com o Comando de
Libertação Nacional (
COLINA
), formando a Vanguarda Revolucionária-Palmares (
VAR
–Palmares). Diver-
gências políticas levaram à reconstituição da
VPR
, em setembro desse mesmo ano cf. F
REIRE
, Alipio;
A
LMADA
, Izaías; P
ONCE
, J. A. de Granville. Glossário de termos, siglas e expressões. In: ___. Tiradentes,
um presídio da ditadura: memórias de presos políticos. São Paulo: Scipione, 1997, p. 518.
Heleny Telles Guariba nasceu em Bebedouro, São Paulo, em 1941, e provavelmente morreu após
ser torturada em meados de 1971. Mesmo na prisão, Heleny não deixou de manter contato com a
organização. Sobre o episódio da prisão e as torturas a que foi submetida, o relato de Patarra demonstra a
sua insistência em manter as atividades clandestinas independentemente dos riscos: Em Serra Negra, São
Paulo, Heleny escondeu-se no sítio da fazenda do companheiro, José Olavo, depois que o rapaz caiu num
ponto. O pai, pressionado pela política, indicou o lugar e pediu ajuda a Ulisses. Chegou em casa
chorando e disse que Heleny foi presa. Torturaram-na a noite inteira na
OBAN
. Ulisses recorreu a um dos
algozes, capitão Maurício, ex-namorado da irmã em tempos de paz. O militar o auxiliara quando
prenderam o inocente proprietário da garçonnière Bexiga. Transferida ao presídio, Heleny mandava
bilhetes à
VPR
através de Ulisses, que os escondia na boca. Descoberto com um recado a Sérgio Ferro,
foi preso também. Os dois saíram em abril de 1971.Acabou, desmobilizou-me consentiu Heleny. O
advogado JoCarlos Dias conseguira-lhe liberdade vigiada para cuidar dos filhos. Mas o periquito
laborioso, como a chamavam na cadeia devido ao poncho verde e os sapatos que matraqueavam passos
ligeiros, não dizia a verdade. P
ATARRA
, Judith Lieblich. Iara: reportagem biográfica. Rio de Janeiro:
Rosa dos Tempos, 1992, p. 380.
Augusto Boal esteve com Heleny no Presídio Tiradentes e, segundo seu relato, insistiu para que,
quando solta, viajasse para Buenos Aires, onde tinham amigos; porém, Heleny falava do seu dever:
retornar à luta. Foi assassinada dias depois de livre. Emboscada declarações militares falavam de
combate. A ditadura não prendia duas vezes: matava. B
OAL
. A. Hamlet e o filho do padeiro..., op. cit., p.
282. Sobre Heleny Guariba, ver: V
ERAS
, Valdecirio Teles. Memorial: Heleny Guariba. Abecês, 5
(versão virtual, abrigada na revista Loquens). Disponível em: <www.loquens.hpg.com.br/abc5.htm>.
Acesso em: 30 dez. 2002; T
ORTURA NUNCA MAIS
. Disponível em www.torturanuncamais.org.br/
desaparecidos122.html. Acesso em: 19 fev. 2003; M
OSTAÇO
, Edelcio. O “Nacional-popular” no novo
pacto com o estado: surgem o
SNT
e a política nacional de cultura. In: Teatro e Política: Arena, Oficina e
Opinião (uma interpretação da cultura de esquerda). Rio de Janeiro: Proposta Editorial, 1982., p. 173–
174.
segue o desenrolar de perguntas, acusações permanentes e pressão psicológica para a
confissão, bem com a aplicação de choques elétricos, respondidos com sucessivas
negativas pelo Dramaturgo até seu desbaratamento total, no final da cena.
Ao fim dessa primeira cena, o leitor-espectador é informado sobre a missão de
Torquemada, anunciada pelo Rei, que o nomeia inquisidor-mor responsável por
“acalmar” e escravizar” o povo. Aqui, ocorre a mistura de historicidade com um
embaralhamento dos significados, pois, no decorrer da primeira cena embora os
interrogadores tenham sido apresentados como frades-torturadores, em especial pela
caracterização da indumentária —, os diálogos elucidaram as relações estabelecidas
com o presente: uma cena de interrogatório policial em que um indivíduo suspeito de
atividades subversivas é submetido a choques elétricos: técnica eficiente para obtenção
de informações e de conhecimento público. O embaralhamento entre presente e passado
se no momento anterior à nomeação de Torquemada, quando o Ator (curinga) faz o
primeiro pronunciamento à platéia, que revela o artifício da construção dramática.
Segundo a rubrica, o ator que representa o papel de Dramaturgo avança para a platéia
e fala:
ATOR
Esta peça foi escrita na prisão Tiradentes, do Estado de São Paulo, Brasil,
no ano de 1971. Foi escrita também na Espanha, no fim da Idade Média. Continua
sendo escrita no Chile, depois de tantos anos, no Paraguai, em Salvador. Começa
sempre assim. (p. 111–112)
Como podemos perceber, o ator não está vinculado ao personagem: o perso-
nagem torturado, que ao fim da cena está deitado no chão, após os frades o terem
retirado do pau-de-arara, levanta-se, “saindo do personagem”, e diz à platéia em que
circunstâncias foi possível escrever a peça. O uso desse recurso por meio do qual se
insere a intervenção de um narrador objetiva evitar a identificação do leitor-espectador
com os personagens e as situações mostradas, e com isso impede o efeito de real
300
ao
ressaltar e deixar evidente as marcas da construção das situações cênicas
.
A associação da tortura com a Inquisição é explicitada; o Ator (curinga) alude a
momentos traumáticos da história, e assim estabelece o parentesco histórico entre o fim
da Idade Média e os acontecimentos na América Latina contemporânea. A partir daí, o
300
Existe impressão de real quando o espectador tem a sensação de estar assistindo ao acontecimento
apresentado, de ser transportado para a realidade simbolizada e de ser confrontado não com uma ficção
artística e uma representação estética, mas com um acontecimento real. P
AVIS
, Patrice. Dicionário de
teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 120.
que parecia crível começa a se tornar uma situação inverossímil: policiais-frades
aplicando métodos medievais a tortura para obter a confissão. Boal coloca dois
planos diferentes em coexistência: um passado “retrógrado”, “das trevas”, o da
inquisição, e um presente supostamente “moderno”, lugar de onde se insiste na
repetição desse passado tenebroso e que, por isso, torna-se também sombrio.
A seguir, uma seqüência de três pequenas cenas apresentam três tipos de prisão:
uma, a ação policial típica: abordagem e detenção para responder a perguntas; outra, a
espionagem; e a última, uma violenta perseguição policial com tiros, que resulta na
morte do homem perseguido. Aqui, quebrando a ilusão, um dos presos narra a ação
antes de representá-la efetivamente:
PRESO
A prisão é simples, quase higiênica. Uma pessoa vem andando e se
aproximam três. (Se apresentam a prisão de um homem na rua.)
[...]
PRESO
Às vezes há resistência, violência. Resistência. (Os atores representam a
prisão violenta de um homem na rua, com luta e tiros.) (p. 112–113)
Em seguida, com a chegada dos presos à cela do presídio, o cotidiano numa
prisão política é descrito. Primeiro momento: alguns policiais, proferindo insultos e
ameaças, deixam os presos na cela estes se defendem, alegando inocência. Segundo
momento: os presos narram como foram presos; avaliam também que, ante a possi-
bilidade de prisão e tortura, teriam preferido a morte. Terceiro momento: o personagem
Cristina Jacaré, homossexual e preso comum, felicita os presos políticos e, por causa
disso, é duramente repreendido por um policial. Quarto momento: o Preso da Mala é
apresentado: foi preso porque foi confundido com um subversivo. Quinto momento:
numa sala, a personagem Moça presa quando fazia sexo com seu namorado
subversivo — tenta mobilizar a família para socorrê-la; e a família busca, mediante uma
rede complexa de influência, a possibilidade de contato com Torquemada. Sexto
momento: os presos políticos Mestre, Ismael, Hirata e Fernando falam sobre suas
experiências em atividades clandestinas, suas afiliações ideológicas e táticas de ação
política. Sétimo momento: é representado um tipo de ação de espionagem infiltrada
dentro da prisão, na qual um policial fingindo-se de preso procura persuadir o
personagem Jovem a fornecer importantes informações sobre suas atividades
subversivas. Oitavo momento: os presos discutem sexualidade na prisão.
Na cena do interrogatório,
as ações se alternam em dois ambientes cênicos: no
lugar onde ocorrem os interrogatórios e no interior da cela. No primeiro, Torquemada e
os frades interrogam presos e os torturam no pau-de-arara, exigindo a confissão aqui
o personagem Moça o resiste à tortura e morre. Essa cena mostra, também, o
personagem Paulo: um nobre que, ao questionar os métodos de Torquemada para
eliminar a subversão interrogatório e tortura —, é preso, sob acusação de uma
suspeita de dúvida.
Em seguida, os nobres dispensam a ajuda de Torquemada, pois a subversão fora
vencida e a essência do sistema poderia ser, enfim, restabelecida. Porém, Torquemada
não renuncia ao poder e proclama que o sistema instaurado deve perpetuar-se. Com a
“tomada” definitiva do poder, ele não poupa sequer Paulo. Alguns nobres tentam
interceder por ele, mas, para libertá-lo, Torquemada exige que os solicitantes tomem
para si a responsabilidade dos atos cometidos por Paulo e que sejam punidos em seu
lugar. Os nobres recuam, e aceitam, covardemente, acusar Paulo.
Na cela, os presos ouvem pelo rádio a notícia sobre o seqüestro de um
embaixador, que deverá ser trocado por presos políticos. O personagem Zeca acredita
que a lista inclui seu nome para ser solto, desacata um policial e é retirado dali para ser
torturado; depois, é visto saindo numa maca provavelmente morto. Cristina entra na
cela limpando o chão e revela aos presos políticos sua condição de vítima de abusos
sexuais dos carcereiros.
Na próxima cena, na sala de interrogatório, Torquemada tortura Paulo; ao
mesmo tempo, ambos defendem suas posições sobre a eficiência da tortura. Um
industrial que, mediante pagamento, assiste às sessões de tortura é morto ao sair do
presídio; Torquemada, então, ordena que sejam mortos cinco presos para mostrar
rapidez na captura dos responsáveis pelo assassinato do industrial.
De volta à cela, os presos anunciam as autocríticas sobre as táticas e ações da
luta armada empreendida pelas organizações revolucionárias de esquerda e, ao mesmo
tempo, projetam expectativas para quando saírem da prisão. Depois, ouvem-se gritos
provenientes do fundo do pavilhão, quando constatam a violência sexual que os presos
comuns sofrem no presídio. Em seguida, soldados drogados entram na prisão e
escolhem seis presos, entre os quais Ismael e Cristina. O desfecho é trágico: Ismael e
outros presos são mortos enquanto alguns fogem. Findo o “trabalho”, os policiais,
friamente, calculam quantos já mataram: Digamos que cada um de nós matou um deles.
Fazendo as contas, este é o meu número dezoito./ O meu é o vinte e sete (p. 144).
Mosca, “olhando os presos ensangüentados”, concluí que o heroísmo é anti-higiênico e
feio.
Pela segunda vez, num momento de explicação, o Ator (curinga), saindo do
nível da fábula, revela à platéia os projetos políticos de Torquemada. Nessa explanação,
o curinga, além de associar o inquisidor-mor com o Estado governado por militares,
questiona o silêncio da sociedade frente ao extermínio do povo em nome dos seus
negócios internos e da supremacia do conceito de nação sobre o de Humanidade:
ATOR
Torquemada diz que o seu país é o país do futuro. E tenta fazer com que
todos os outros países sejam como o seu. Experimenta com dados econômicos e
métodos policiais da mesma maneira que durante os preparativos da Segunda
Guerra Mundial na Espanha se experimentaram as armas que iam depois ser
usadas. Claro, o problema de Torquemada é um problema nacional. Mas as Nações
são feitas de homens. O problema de Torquemada nos concerne a todos, porque
todos somos humanos. O conceito de Nação não pode ser maior que o conceito de
Humanidade. Com o pretexto de preservar a autodeterminação dos seus negócios
internos, teremos nós o direito de permitir em silêncio que um povo seja exter-
minado? (p. 144)
Para anunciar e preparar uma nova seqüência que inicia o terceiro episódio,
o
Ator (curinga) diz:
ATOR
Em nossa prisão, havia muitos sacerdotes presos. Um deles era muito
nosso amigo e à noite nos contava histórias. Esta é uma das histórias que nos
contou esse frade dominicano. (p. 144)
A primeira cena narra a história dos sete irmãos macabeus e de sua mãe — trata-
se de uma parábola cristã do Velho Testamento; aqui, transitam personagens que
interpretam essa história dentro do enredo da peça: Frade Dominicano, Mãe, Filho 1,
Filho 2, Filho 3, Filho 4, Filho 5, General, Soldado e Capitão. A história contada pelo
personagem Frade Dominicano é de efeito exemplar: Jesus Cristo, para evitar a delação
entre os soldados populares que lutavam contra os romanos e não resistiam às dores da
tortura, conta-lhes a história da Mãe dos sete irmãos macabeus, que assistiu à morte dos
seus sete filhos, torturados pelo imperialismo, mas que, na verdade, assistiu ao segundo
nascimento de cada um deles, ou seja, o nascimento de sete irmãos que se recusavam
denunciar o esconderijo de Judas Macabeu, líder da rebelião macabéia.
301
Ao usar a
parábola cristã, Boal propõe uma leitura metafórica da delação e da tortura: a cada filho
301
No livro Técnicas latino-americanas de teatro popular, Boal se refere à experiência de um dos grupos
que praticaram teatro-jornal em São Paulo dizendo que um espetáculo foi feito com textos tirados da
Bíblia, mostrando situações ainda vigentes hoje em dia, e quais soluções apontadas por Cristo e outros
personagens bíblicos. Ver: B
OAL
, A. Técnicas latino-americanas de teatro popular, op. cit., p. 47,
sobretudo a segunda parte do livro (escrito em Buenos Aires, entre 1973 e 1974), onde Boal registra
diferentes técnicas encontradas em vários países da América Latina, dentre as quais o teatro bíblia, que
torturado, concretiza-se cenicamente uma forma de tortura: pau-de-arara; cadeira do
dragão, espancamentos diários que não ocasione marcas; tortura de um filho e uma
mulher perante o pai e o marido; telefone e outras.
Antes de se iniciar a cena em que Paulo, mesmo sob tortura, exalta-se com o
aumento do valor das suas ações no mercado financeiro, o Ator exegeta desvela as
características do sistema de Torquemada e seu gradativo recrudescimento para
aumentar os lucros e promover a subida das ações na Bolsa. Denuncia que Torquemada
começou por matar todos os subversivos, depois todos os que os ajudaram e,
seguidamente, os amigos dos subversivos, os que tivessem simpatia pelos subversivos e
até os nobres que não se mostravam suficientemente cruéis.
ATOR
Torquemada tentava criar uma boa imagem de seu país. Propícia à
inversão de capitais. Buscava a pureza. Começou matando todos os subversivos e
depois aqueles que os ajudaram. E depois aqueles que não ajudaram mas que eram
amigos dos subversivos. E depois aos que não eram amigos nem ajudaram, mas
que talvez tivessem certa simpatia pelos subversivos. Cada vez a cidade estava
mais pura e cada vez mais subiam as ões na Bolsa. Finalmente, começou a
perseguição aos próprios nobres que não se mostravam suficientemente cruéis. A
nobreza estava encantada com a feroz pureza de Torquemada. E a Bolsa deu um
salto. (p. 149).
Após serem esclarecidas as causas profundas da tortura, na última cena,
exortativa, um dos presos estimula a platéia à ação para além do palco, sugerindo
alguma forma de resistência. Mesmo com o sistema de morte, o silenciamento ostensivo
da oposição política e o imenso presídio em que transformaram o Brasil,
302
os presos ao
fim da peça afirmam a vida, dando-lhe um sentido positivo de luta, de não-permanência
na inércia mesmo em situações opressivas:
PRESO
Torquemada nos matou. (Vários presos repetem a mesma frase.)
Torquemada nos matou um a um. Alguns morreram de bala, outros de covardia.
Alguns morreram lutando, outros morreram de medo. E todos foram morrendo. E o
país inteiro se transformou num imenso cemitério, onde o povo saiu de suas casas e
cada homem entrou na sua sepultura e os que já estavam mortos ali mesmo
apodreceram e os que estavam morrendo ali se endureceram. E todos estão mortos,
profundamente mortos.
[...] Mas existem entre nós alguns que não estão totalmente mortos. Entre nós
existem alguns que ainda com sua boca podem dizer baixinho: “eu estou vivo”. [...]
e talvez aconteça o milagre, talvez estejamos todos vivos, todos vivos gritando: “eu
estou vivo!” (Todos os presos começam a sair dos seus mocós; falando cada vez
consiste em interpretar historicamente a Bíblia para que a vida de seus personagens sirva de exemplo.
302
B
OAL
, A. Trajetória de uma dramaturgia, Augusto Boal, op. cit, p. 13.
mais alto “eu estou vivo!”, gritam cada vez mais desesperadamente: “Eu estou
vivo”. E é verdade: Eles estão vivos. Todos. Todos.). (p. 152)
Tratado pela linguagem do teatro, esse assunto oferece implicações
metodológicas importantes, pois estamos considerando que dar ênfase ao assunto é
insuficiente: na forma — isto é, na composição dramática disposta como um todo
organizado — também podemos evidenciar o modo como são narrados os aconte-
cimentos que sintetizam a experiência. Em outros termos, a forma é evidência cons-
titutiva de uma relação social, dada uma determinada forma de organização sócio-
cultural, e que modos de composição formal, indo do tradicional ao inovatório, são
necessariamente formas de uma linguagem social.
303
A idéia de uma forma épica na
apresentação do tema da tortura está ligada à negação da concepção trágica. Nesse
sentido, percebemos confluência nas perspectivas de Boal e Brecht, pois um
dos aspectos mais combatidos por Brecht é a concepção fatalista da tragédia. O
homem não é regido por forças insondáveis que para sempre lhe determinam a
situação metafísica. Depende, ao contrário, da situação histórica, que, por sua
vez, pode ser transformada. O fito principal do teatro épico é a “desmistificação”,
a revelação de que as desgraças do homem não são eternas e sim históricas,
podendo por isso ser superados.
304
A
CONSTRUÇÃO FORMAL
No quadro dessa concepção, é preciso compreender e mostrar como Augusto
Boal organiza esses conteúdos com procedimentos da construção ficcional: ordenação e
combinação de cenas; definição de caracteres dos personagens; forma de expor
contrastes e conflitos nas situações dramáticas, nos diálogos, no figurino etc; junção de
princípios contrários como identificação e distância; escolha por uma narrativa
fragmentária, descontínua e com cortes freqüentes, dentre outros. Toda essa estrutura
organizada tanto possibilita um determinado efeito no leitor ou espectador como tem a
função de ampliar os significados de assuntos e temas tratados na peça.
No título conciso Torquemada —, temos designado o nome do notório
inquisidor espanhol do século
XV
, anunciando, em certo sentido, o conteúdo a ser
revelado e o projeto narrativo do autor. O personagem-título ganha vulto como sujeito
303
W
ILLIAMS
, R., Gêneros. In: Marxismo e literatura. op. cit., p. 184.
304
R
OSENFELD
, Anatol. O Teatro épico. 4ª ed. São Paulo: Perspectivas, 2000, p. 150.
não heroicizado
305
para a descrição e representação da ação do torturador; é alçado à
categoria de protagonista e se torna o todo poderoso. Num primeiro momento, sua
atitude se coaduna com as forças sociais dominantes; depois, ele toma definitivamente o
poder.
Torquemada inicia-se com uma dedicatória, seguida de um prólogo, e termina
com uma cena exortativa. A peça divide-se em três grandes episódios nos quais as cenas
se desenvolvem algumas são nomeadas: cena interrogatório; cena explicação e cena
e última, dentre outras. A apresentação das ações é regida pelo princípio estrutural da
descontinuidade: em vez de se encadearem, saltam de um lugar a outro: da câmara de
tortura para a rua onde se representam três diferentes tipos de prisão; daí para a cela dos
presos; e então para a sala de interrogatório, alternando sucessivamente entre a cela e a
sala de interrogatório até o fim da peça.
Quando um texto dramático é organizado segundo uma estética da continuidade,
seu desdobramento não tem corte: as ações progridem num tempo linear, em que dentro
de cada situação é gerada a próxima, formado uma cadeia, até o desfecho.
306
Em
Torquemada ocorre o contrário: o que se verifica em suas cenas, do ponto de vista do
enredo e da intriga, é a desconexão; por exemplo, o personagem Dramaturgo, que
representa o artista capturado e torturado na primeira ação dramática, não aparece mais
depois disso; não sabemos, como leitor ou espectador, o que lhe acontece: se continua
preso, se está solto ou se sofre novas torturas. Na dramaturgia clássica, que almeja a
verossimilhança
307
pela continuidade da ação, sua história não estaria resolvida.
305
O personagem herói apresenta variações de sentido e tipologia: herói da mitologia grega; herói
clássico; herói do drama burguês, do naturalismo e do realismo; herói contemporâneo etc. No fim do
século
XIX
, ele começa a existir sob os traços de seu duplo irônico ou grotesco: o anti-herói. Estando
todos os valores aos quais era vinculado o herói clássico em baixa ou mesmo deixado de lado, o anti-
herói aparece como a única alternativa para a descrição das ações humanas. P
AVIS
, P., op. cit., p. 194.
Para Reis e Lopes, a função do anti-herói na estrutura dramática, do ponto de vista funcional, é idêntica a
do herói: tal como este, o anti-herói cumpre um papel de protagonista e polariza em torno das suas ações
as restantes personagens, os espaços em que se move e o tempo em que vive. A peculiaridade do anti-
herói decorre da sua configuração psicológica, moral, social e econômica, normalmente traduzida em
termos de desqualificação. R
EIS
, Carlos; L
OPES
, Ana Cristina. Dicionário de teoria da narrativa. São
Paulo: Ática, 1988, p. 192.
306
Tal estética se filia às estruturas tradicionais do drama: episódios ordenados conforme um esquema
formal normatizado para a construção da peça: exposição, aumento da tensão, crise, nó, catástrofe e
desenlace.
307
Para a dramaturgia clássica, a verossimilhança é aquilo que, nas ações, personagens,
representações, parece verdadeiro para o público, tanto no plano das ações como na maneira de
representá-las no palco. A verossimilhança é um conceito que está ligado à recepção do espectador, mas
que impõe ao dramaturgo inventar uma bula e motivações que produzirão o efeito e a ilusão da
verdade. Esta exigência do verossimilhante (segundo o termo moderno) remonta à Poética de Aristóteles.
P
AVIS
, P., op. cit., p. 428 — grifo do autor.
Torquemada não apresenta uma totalidade orgânica, mas, de forma diferente,
cada parte se mostra quase autônoma, porque ordenada de forma fragmentada, o que
exigiu procedimentos da colagem dramatúrgica
308
e de montagem
309
de cenas,
representando: a tortura, o arbítrio de um estado autoritário, o cotidiano dos presos
políticos, entre outros. Enfim, nada é resolvido, o fim não é o desfecho; apenas indica a
interrupção de uma ão que continua: os presos a resistir, juntando forças para
sobreviver ao horror.
No entanto, as cenas se articulam de modo especial por meio da função que
desempenha o Ator (curinga).
310
Algumas são cortadas pela intervenção de um ator que,
sem representar e como um narrador, fala diretamente ao público: ora comenta a cena
precedente; ora a conecta com a seguinte para anunciá-la; ora a explica. Anatol
Rosenfeld, referindo-se ao ator como narrador no teatro épico de Brecht, ajuda-nos a
compreender a função do Ator (curinga) em Torquemada:
Na medida em que o ator, como porta-voz do autor, se separa do personagem,
dirigindo-se ao público, abandona o espaço e o tempo fictícios da ação. No
momento, porém, em que o ator se retira do papel, ele ocupa tempo e espaço
diversos e com isso relativiza o tempo-espaço da ação dramática. Simulta-
neamente arranca a entidade ideal do público desse tempo-espaço fictício e a
reconduz à platéia, onde une à parte material do espectador. O personagem e a
ação são projetados para o pretérito épico, a partir do foco do ator, cujo espaço-
308
Consideramos colagem dramática (adição de textos ou elementos de jogos cênicos de origem diversa)
a parábola do velho testamento A e dos sete filhos macabeus e algumas idéias e alguns
pronunciamentos do personagem Torquemada retirados do Livro
V
da Ética a Nicômaco, de Aristóteles.
Segundo a conceituação de Pavis, colagem é um termo de pintura introduzido pelos cubistas, e depois
pelos futuristas e surrealistas para sistematizar uma prática artística: a aproximação através da colagem
de dois elementos ou materiais heteróclitos, ou ainda de objetos artísticos e objetos reais
procedimentos válidos para o teatro tanto na escritura quanto na encenação. Assim, proceder à colagem
de fragmentos é um modo de citar um efeito, o que constitui uma função metacrítica; o ato citacional
dobra o objeto e seu olhar, o plano factual e a distância tomada em relação a ele. Ibidem, p. 51–52.
309
Segundo Pavis, montagem é um termo proveniente do cinema, mas usado desde os anos trinta
(Eisenstein, Piscator, Brecht) para uma forma dramatúrgica onde as seqüências textuais e cênicas são
montadas numa sucessão de momentos autônomos. Quanto à montagem no teatro, Pavis esclarece que,
ela não é submissa ao modelo do cinema; antes, é uma técnica épica de narração. Na montagem
dramática, em vez de apresentar uma ão unificada e constante, uma “obra natural, orgânica,
construída como um corpo que se desenvolve”, a fábula é quebrada em unidades autônomas. Ao recusar
a tensão dramatúrgica e a integração de todo ato a um projeto global, o dramaturgo o aproveita o
impulso de cada cena para “lançar” a intriga e cimentar a ficção. O corte e o contraste passam a ser os
princípios estruturais fundamentais. Os diversos tipos de montagem se caracterizam pela descontinui-
dade, pelo ritmo sincopado, pelo entrechoque, pelos distanciamentos ou pela fragmentação. Ibidem, p.
249.
310
Um dos recursos mais importantes de distanciamento é o autor se dirigir ao público através de coros e
cantores. Nesse caso, Boal usa o Ator curinga para introduzir uma estrutura narrativa que, como tal,
implica o “gestus” da serena e distante objetividade do narrador em face do mundo narrado.
R
OSENFELD
, A., op. cit., p. 155–156.
tempo é mais aproximado do espaço-tempo empírico da platéia. [...] É evidente
que esse processo interrompe a ilusão, e com isso o processo catártico.
[...]
Ao distanciar-se do personagem, o ator-narrador, dividindo-se a si mesmo em
“pessoa” e “personagem”, deve revelar a “sua” opinião sobre este último; deve
“admirar-se ante as contradições inerentes às diversas “atitudes” do
personagem.
311
Tal recurso, como vimos, provoca rupturas no fluxo dos acontecimentos,
interrompe a continuidade da ação dramática e introduz a crítica social através do ponto
de vista do autor, narrada pelo Ator (curinga).
Embora as cenas sejam interindependentes, ligam-se por meio dos próprios
temas e significados evocados por associação, assim como pela intervenção das
explicações.
312
De fato, são as explicações do Ator (curinga) que vão indicar a
perspectiva do autor, ou seja, o ângulo sobre o qual o leitor-espectador supostamente
deverá perceber a seqüência de acontecimentos cênicos.
O figurino é definido pelo dramaturgo conforme as indicações cênicas: Os
presos estão de calças curtas, bermudas ou shorts e camisas de vários tipos (p. 101). E
os policiais se vestem como tal ou se vestem de frades. Deve haver uma mistura de
roupas históricas e modernas (p. 102). O figurino dos frades constitui elemento
conflitante na peça:
313
os personagens torturadores com trajes de frades provocam uma
espécie de ruído no que se refere aos aspectos verossímeis da situação representada
desde a primeira cena. A peça narra acontecimentos do presente: policiais torturando
ativistas políticos no início da década de 70; mas o figurino sombrio dos torturadores,
vestidos como frades, faz a situação mostrada ser associada com a Inquisição.
O cenário se define basicamente em dois lugares onde se desenrolam as ações:
um é a sala de tortura ou câmara de tortura. Pequena e com uma janela fechada, é
ocupada por duas mesas pequenas, algumas cadeiras e um pau comprido no chão;
ainda uma garrafa de água sobre uma das mesas, fios, cordas e algemas (p. 102); outro é
a cela, contendo cinco camas duplas (uma em cima da outra):
Três de frente e uma de cada lado. Uma porta com uma grade alta. [...] O preso
transforma a sua cama no seu “mocó”, quer dizer, o seu ninho: ali ele guarda os
311
R
OSENFELD
, A., op. cit., p. 161–162.
312
Os recursos para se alcançar esse efeito, segundo Boal, podem ser: slides, leitura de poemas,
documentos, cartas, notícias de jornais, exibição de filmes, mapas etc., que dão o estilo geral do
espetáculo (conferência, fórum, debate, tribunal, exegese, análise, defesa de tese, plataforma etc.).
313
A
LBUQUERQUE
, S. J., op. cit.
seus livros, discos, roupas, etc. A impressão que uma cela é a de um depósito:
roupas penduradas secando ao lado de lingüiças e carne-seca. (p. 101)
Os personagens torturadores em Torquemada são elaborados conforme o tipo
físico, e seus nomes derivam de certos traços: Barba, por causa da barba espessa;
Baixinho, em razão da estatura; e Atleta, em virtude da força. Socialmente, distinguem-
se por serem frades-torturadores. A construção das personagens caracteriza-se pela
inexistência de dimensões puramente individuais: todos desempenham ações
condizentes com seu grupo. Dos personagens detidos na prisão e submetidos à tortura,
são nomeados apenas os que representam a categoria dos presos políticos envolvidos na
luta armada: Fernando, Hirata, Ismael, Oscar, Mestre, Mosca, Buda, Zeca e Pavão. A
Moça Presa e o Preso da Mala são personagens presos por equívoco, pois não perten-
ciam a nenhuma organização política. Dentre os presos comuns, está o personagem
homossexual Cristina Jacaré, ao mesmo tempo detento e carcereiro. Os personagens que
de certo modo polarizam os segmentos sociais são Paulo e Torquemada: aquele
simboliza a burguesia; este personifica o governo autoritário ou o próprio Estado. Boal
coloca em cena, também, personagens tipo
314
ou planos,
315
reconhecidos por terem
atributos idênticos e pouco numerosos: Policial 1, Policial 2, Policial 3; Preso, Preso 1,
Preso 2; Nobre 1, Nobre 2, Nobre 3; Filho 1, Filho 2, Filho 3, Filho 4, Filho 5.
A
EXPERIÊNCIA TRÁGICA DA TORTURA E O FRACASSO REVOLUCIONÁRIO
Os pontos que examinaremos a seguir referem-se a estas preocupações: qual é
interpretação de Boal sobre a relação entre torturador e torturado? Como aparece no
texto? Quais foram as respostas dadas por Augusto Boal no texto dramático
Torquemada à experiência trágica da tortura e ao fracasso revolucionário? Quais
representações da tortura estão inscritas no texto teatral Torquemada? Como ele
314
O tipo é uma imagem mental comum a toda uma comunidade, uma figura que comporta geralmente
poucas constantes, das quais uma ou algumas são actualizadas em personagens que acrescentam ao tipo
acidentes provenientes de circunstâncias do contexto intraficção. G
IRARD
, Gilles et al. O universo do
teatro. Livraria Almedina: Coimbra, Portugal, 1980, p. 112.
315
Personagem plano, contraposto ao personagem redondo, mais complexo, se caracterizam por um
número pequeno de atributos, que os identifica facilmente perante o leitor. São pouco complexos como o
“tipo”, que é um personagem reconhecido por características típicas, invariáveis, quer sejam morais,
sociais, econômicas ou de qualquer outra ordem. Cf. G
ANCHO
, ndida Vilares. Como analisar
narrativas. São Paulo: Ática, 1977, p. 16.
simbolizou a violência e os torturadores? Embora a análise de Hannah Arendt acerca da
dinâmica burocrática no Estado nazista (Eichmann em Jerusalém) seja interessante para
nos ajudar a compreender a organização repressiva e a instrumentalização da violência
pelo Estado militar no Brasil para esfacelar a oposição política, aqui nos interessa,
sobretudo, a noção de ausência de pensamento para compormos uma reflexão sobre o
fenômeno da tortura.
Sobre esse debate, o cientista social João Roberto Martins Filho, no artigo
“Estado e regime no pós-64: autoritarismo burocrático ou ditadura militar?”,
316
refuta a
tese do “autoritarismo burocrático” para entendimento do caráter e da dinâmica do
regime militar brasileiro após 1964. Sua crítica se dirige à perspectiva da burocratização
do Estado e da autonomização da burocracia como traços fundamentais da ditadura no
Brasil. Em sua abordagem crítica de diversos estudos, Martins Filho suscita as seguintes
questões: por que caracterizar o regime brasileiro como burocrático, e não militar?; por
que a ênfase nos processos de burocratização, e não nos de militarização? Ao tentar
responder, apresenta como hipótese alternativa uma ênfase no aspecto militar das
burocracias militares. Assim, uma análise dos primeiros governos militares no Brasil,
deve dar relevância às seguintes características:
[...] os princípios de cooptação e de verticalidade que presidem as promoções
castrenses e as sua relação como a criação das redes de lealdade e formação de
verdadeiras “clientelas” na caserna; a reformulação política das hipóteses bélicas
elaboradas pelo Estado-Maior como fundamento do caráter contraditório e
essencialmente negativo da opinião militar; a visão do militar do inimigo
estratégico como base da fluidez das divisões militares; a influência da concepção
marcial do universo social sobre a ideologia militar e a preocupação com a
unanimidade e a unidade.
317
Embora, como quer esse autor, a compreensão da dinâmica do regime militar
exija ênfase nos processos de militarização, vislumbramos o uso sistemático de uma
tortura viabilizada por uma rede articulada nas esferas do poder policial e militar
burocraticamente organizada. Tendemos a considerar que o uso da tortura foi possível,
dentre outros múltiplos fatores, graças à montagem de um sistema de segurança e
316
M
ARTINS FILHO
, João Roberto. Estado e regime no pós-64: autoritarismo burocrático ou ditadura
militar? Revista de Sociologia e Política, nº 2, 1994, p. 7–23.
317
Ibidem, p. 17.
informação sofisticado portanto, burocrático
318
. Assim, consideramos fundamental
focalizar o caráter público da tortura, conforme ressalta Edward Peters:
Ao se focalizar o caráter público da tortura seja em processos legais rigorosos
ou em mãos de agências sublegais ou paralegais —, poderemos encará-la, no
século
XX
, não mais em termos simplistas de desordem de personalidade,
brutalidade étnica ou racial, primitivismo residual ou secularização de teorias
eclesiásticas, mas como um fenômeno de algumas formas de vida pública no
século
XX
; não poderemos mais considerá-la, como no passado, restrita a
processos penais juridicamente formais, mas sim como um fato que ocorre em
outras áreas, sob autoridade do Estado, menos regulamentado e menos controlado
que os processos legais, mas não menos essencial à noção de ordem do Estado.
319
Assim, para analisar as representações da tortura elaboradas pelo dramaturgo
Augusto Boal, acreditamos ser possível desde que a historicidade dos eventos seja
considerada a idéia de que, no exercício do terror, os administradores, mais que
supostos monstros movidos pelo ódio, podem ser “burocratas impessoaiscujo traço
essencial é serem indivíduos inacessíveis em virtude da ausência de pensamento.
320
Consideremos a primeira situação narrada na peça: a ação se desdobra numa câmara de
tortura; a cena mostra realisticamente o personagem Dramaturgo ser submetido ao
interrogatório pelos frades-torturadores, que, almejando a confissão, infligem-lhe
diversas formas de tortura. Nessa “câmara”, os torturadores executam o “trabalho”
deles: torturam para extrair informações. Como têm horários a cumprir e família que os
espera, precisam da “cooperação” do torturado para concluir a “tarefa”:
BAIXINHO
[...] E então, como é que é? Você quer fazer a gente ficar aqui
trabalhando a noite toda?/ [...]
BARBA
— Vai confessar ou não vai? [...]
FRADE
— Eu prometi à minha mulher que ia jantar com as crianças./ [...]
318
O Sistema Nacional de Informação (
SNI
), arquitetado por Golberi de Couto e Silva e criado pelo
decreto-lei de 13 de 1964, cresceu e espalhou seus tentáculos sobre toda a sociedade e sobre os aparelho
do Estado. Além da Agência Central e de agências regionais espalhadas pelo Brasil, o
SNI
dispunha das
Divisões de Segurança Interna
DSI
s em cada ministério e das Assessorias de Segurança e
Informações
ASI
s em outros órgãos públicos. O número de pessoas envolvidas em caráter perma-
nente nesse tipo de trabalho jamais foi tornado público. [...] seriam aproximadamente duas mil, além de
numerosos colaboradores eventuais. Tendo como cliente principal o presidente da Republica, o
SNI
expandiu suas atividades, ultrapassando os limites da área de informações e de operações. Tornou-se
também um gerenciador de atividades políticas e empresariais. D’
ARAÚJO
, Maria Celina; C
ASTRO
, Celso;
S
OARES
, Glaucio Ary Díllon. Os anos de chumbo — a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1994, p. 14.
319
P
ETERS
, Edward. Tortura. o Paulo: Ática, 1989, p. 8.
320
A
NSART
, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: B
RESCIANI
, Stella; N
AXARA
, Márcia.
Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas (
SP
): Editora da Unicamp,
2001, p. 14.
BAIXINHO
— [...] Diz pelo menos um nome pra gente continuar trabalhando. Porra,
não custa nada dizer um nome. Você tem que cooperar com a gente. Nós também
somos trabalhadores. [...]
BARBA
Aqui tem uns que agüentam bem a primeira vez, duas vezes, três vezes.
Mas nós temos tempo. Trabalhamos nisso, né? Temos todo o tempo do mundo.
Ganhamos pouco, é verdade, mas dá pra viver. (p. 107–111)
Pode-se observar que os torturadores não estavam impulsionados por um ódio
enlouquecido
321
no momento do interrogatório que os levasse a tomar atitudes
monstruosas, maldosas, infligindo torturas aos interrogados. Muito pelo contrário, suas
atividades — interrogar, exigir confissão, colocar o preso no pau-de-arara, aplicar
choques elétricos eram rotinas a serem cumpridas no exercício do trabalho
remunerado, atitude exigida de qualquer outro trabalhador.
O objetivo de Boal é, também, mostrar o funcionamento do interrogatório.
Enquanto Barba — chefe das operações — comanda “profissionalmente” a sessão
fazendo as perguntas, o torturador Atleta presta apoio logístico: ameaça o interrogado,
mostrando-lhe o aparelho elétrico; no decorrer da sessão, é ele quem manobra o
aparelho de choque elétrico, acionando-o sempre a mando de Barba.
BARBA
— Pode pendurar.
[...] Dois frades assim o fazem. O Dramaturgo fica com a cabeça para baixo
pendurado pelos joelhos. O pau é apoiado nas extremidades das duas mesas. O
Atleta faz a ligação elétrica, amarrando um fio a um dedo do e a um dedo da
mão e liga o aparelho na corrente elétrica da parede. O reostato ainda está em
zero.
BARBA
— Pronto?
ATLETA
— Está.
BARBA
— Quando foi que você conheceu Aluísio?
DRAMATURGO
— (Pendurado.) Eu não conheço nenhum Aluísio.
BARBA
— Começa.
O Atleta liga a corrente elétrica alguns instantes. O Dramaturgo grita. (p. 104)
O Baixinho, também interrogador, em certo momento pede Atleta para acionar o
choque, que, tornado sujeito, interroga a vítima:
BAIXINHO
Então como é que foram publicados tantos artigos difamando o nosso
país?
DRAMATURGO
— Eu não li nada.
BAIXINHO
Mas os artigos foram publicados! Sim ou o? (Para Atleta:)
Pergunta! (Choque e grito.) Na revista Temps Modernes. Sim ou não? (p. 105)
321
A
NSART
, Pierre, op. cit. p. 13.
Podemos perceber que na prática da tortura uma separação entre comando e
ação: Barba e Baixinho interrogam, mas não aplicam concretamente o choque; a tarefa
compete a Atleta, que sempre aciona o aparelho elétrico, isto é, aplica a tortura
embora pareça não se sentir responsável pela ação, que é executada automaticamente às
ordens de seu superior.
Boal retrata os torturadores como homens com preconceitos políticos; são,
sobretudo, anticomunistas;
322
para eles os presos políticos são subversivos e comunistas:
esses comunistas de merda (p. 110).
DRAMATURGO
– Mas como era essa canção?
BARBA
– A última. Uma coisa meio assim, de animais, de comunistas. [...] (p. 110)
Por pertencerem à classe média, os torturadores julgam que o Dramaturgo tem
uma vida sem dificuldades financeiras, que vive no luxo; por isso, ele e todos os
subversivos são intelectuais teóricos que não estão, de fato, na “pele” do povo.
BARBA
Estes subversivos falam, e falam e falam, porque o povo, o campesinato,
o proletário, e não sei que mais e as empregadas domésticas, e os pretos, e toma
que eles falam, e falam, e falam, mas ficam no bem-bom na sua casa, tomando
uísque importado, e viajam por toda parte, e dão a volta ao mundo e vão viver na
Europa.
[...]
BARBA
E eu, que não defendo nem os operários, nem as empregadas, nem o
povo, nem ninguém, nem nada, eu que defendo a democracia, eu o viajo. (p.
106)
Em Torquemada, Boal compõe o perfil do torturador na primeira cena. Durante
toda a ação de interrogatório do Dramaturgo — pressão psicológica, aplicação de
choques, repetição de perguntas, exigência da confissão etc. —, os torturadores Barba,
322
Segundo Rodrigo Patto Motta, o anticomunismo no Brasil começou a ganhar mais substância nos
anos de 1930, com o crescimento do Partido Comunista Brasileiro (
PCB
); mas foi a “Intentona
Comunista” (novembro de 1935) a maior responsável pela sua disseminação e consolidação, criando um
verdadeiro imaginário anticomunista. Em certos períodos, a presença do anticomunismo foi fraca, porém
em algumas conjunturas históricas houve radicalização do fenômeno, sempre ligada a fases de
crescimento da influência do
PCB
e da esquerda em geral. Pelo estudo de Motta, um dos momentos de
intensificação do anticomunismo foi em 1964, quando a “ameaça comunista” foi argumento político
decisivo para justificar os respectivos golpes políticos, bem como para convencer a sociedade (ao menos
parte dela) da necessidade de medidas repressivas contra a esquerda (p.
XXI
XXII
). Para Motta, os
comunistas foram representados por seus inimigos sempre na qualidade de personagens nefastos:
violentos, ateus, imorais (ou amorais), estrangeiros, traidores, tiranos etc. [...] Eles acreditavam ter
razões para defender os valores da tradição, família, religião e pátria, ou mesmo valores do mundo
moderno como democracia e livre-iniciativa, contra as investidas revolucionárias (p. 280). M
OTTA
,
Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917–1964). São
Paulo: Perspectiva:
FAPESP
, 2002.
Baixinho e Atleta expressam sua visão de mundo, sobretudo um imaginário anti-
comunista.
323
BARBA
— Nós temos muitas provas contra você.
DRAMATURGO
— Quais?
BARBA
Você tinha dólares em casa. De onde é que veio todo esse dinheiro? De
Cuba? Da Rússia?
BAIXINHO
— Ou de Tchecoslováquia?
Podemos verificar no depoimento do torturador e ex-tenente Marcelo Paixão de
Araújo algumas semelhanças com as representações anticomunistas construídas por
Boal em Torquemada. Nesse depoimento, dado à revista Veja em 1998, ele admite que
torturava presos políticos e explicita que suas convicções político-ideológicas é que
justificavam suas atividades “profissionais” de torturador.
VEJA
— O senhor fez isso cumprindo ordens ou achava que deveria fazê-lo?
ARAÚJO
Eu poderia alegar questões de consciência e não participar. Fiz porque
achava que era necessário. É evidente que eu cumpria ordens. Mas aceitei as
ordens. Não quero passar a idéia de que era um bitolado. Recebi ordens,
diretrizes, mas eu estava pronto para aceitá-las e cumpri-las. Não pense que eu fui
forçado ou envolvido. Nada disso. Se deixássemos
VPR
, Polop ou o que fosse tomar
o poder ou entregá-lo a alguém, quem se aproveitaria disso seriam os
comunistas.[...]
VEJA
— Por que o senhor participou disso tudo?
ARAÚJO
Eu achava que havia a necessidade de destruir as organizações de
esquerda do país. Era uma convicção íntima. Nunca gostei de marxismo. Sempre
fui visceralmente antimarxista. Isso é uma questão de formação. Meu pai sempre
foi antimarxista. A coisa complicou quando descobri que o método era rápido.
Bastava levar para o porão e pronto. [...] Tinha convicção quanto ao que estava
fazendo. Eu não tinha codinome, como quase todo mundo. Portanto, não sou o
maior torturador do país, mas sim um dos poucos que agiram de cara limpa.
324
Marcelo Paixão de Araújo não aceita a idéia de ter sido um mero receptor de
ordens burocráticas advindas de instâncias hierárquicas superiores. Ele afirma seu
323
Durante sete décadas, aproximadamente de 1920, a
URSS
ocupou lugar central no imaginário
anticomunista, desempenhando o papel de foco propagador da “ameaça revolucionária”. Mas à medida
que outros países entravam para a esfera do socialismo real”, a ameaça estrangeira perdeu o mono-
córdio tom russófobo. A partir dos anos de 1960, China [...] e Cuba [...], principalmente, também come-
çaram a ser denunciadas como fontes de conspiração comunista. As novas potências “vermelhas” foram
acusadas de fomentar a revolução no país por meio da divulgação de literatura subversiva, ou do envio
de agentes treinados para dirigirem a ação dos comunistas brasileiros. M
OTTA
, R. P. S., op. cit., p. 56.
324
Marcelo Paixão de Araújo servia como tenente no 1Regimento de Infantaria do Exército em Belo
Horizonte, de 1968 a 1971. A
RAÚJO
, Marcelo Paixão. [Depoimento prestado]. In: O
LTRAMARI
,
Alexandre. Porão Iluminado. Veja. 9 de dezembro de 1998, p. 45 e 49.
posicionamento antimarxista e seu alinhamento ideológico com a corporação militar no
combate às organizações de esquerda. Isso merece atenção, pois não podemos perder de
vista o fato de que a “ausência de pensamento” segundo Hannah Arendt consiste
em não tomar conhecimento da exigência de atenção do pensamento feita por todos os
fatos e acontecimentos em virtude de sua mera existência.
325
De outro modo, a atividade
do pensamento consiste no hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a
atenção independentemente de resultados e conteúdo específico.
326
Arendt não encontra em Eichmann sinais de firmes convicções ideológicas ou de
motivações especificamente más,
327
o que se podia perceber em seu comportamento era
a irreflexão.
[...] Ele nunca nutrira ódio aos judeus, e nunca desejou a morte de seres humanos.
Sua culpa provinha de sua obediência, e a obediência é louvada como virtude. Sua
virtude tinha sido abusada pelos líderes nazistas. Mas ele não era membro do
grupo dominante, ele era uma vítima, só os líderes mereceriam punição.
328
Se Marcelo Paixão se difere de Eichmann, não se pode dizer o mesmo do ex-
sargento Antonio Benedito Balbinotti,
329
que em depoimento admite ter torturado,
porém não reconhece sua responsabilidade: apenas cumpria o seu dever, [...]; obedecia
ordens (grifo da autora).
330
Eu não tive culpa de nada. Era apenas um soldado de plantão no quartel. Cumpria
ordens, não mandava fazer nada. [...] Se eu participei, infelizmente... Mas o que
posso fazer se a gente não tinha uma formação especial para lidar com aquelas
pessoas sem ser agressivo?
331
325
A
RENDT
, Hannah. A vida do Espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1995, p. 6.
326
Ibidem, p. 7.
327
Ibidem, p. 7.
328
A
RENDT
, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1999, p. 269.
329
Um dos problemas desse depoimento é a extensão: curta, o que dificulta a percepção de lacunas e
contradições nas justificativas; não há como perceber se houve mesmo conivência com a prática de
obtenção da confissão mediante tortura; se havia afiliação à filosofia política anti-subversiva e
antimarxista; ou se de fato se tratava de alguém dotado da virtude de obediência incondicional à
corporação militar. Talvez tal pronunciamento fosse uma maneira rápida de se livrar da pergunta do
entrevistador, pois nenhum acontecimento vinculado à violência dos presos políticos teve apuração legal.
330
A
RENDT
, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, p. 152.
331
Ex-sargento do Exército, Antonio Benedito Balbinotte serviu no Dops e na Polícia do Exército, em
Curitiba (
PR
), por dois anos. B
ALBINOTTE
, Antonio Benedito [Depoimento prestado]. In: O
LTRAMARI
, A.,
op. cit., p. 51.
A maneira como a corporação militar saiu do comando político e como conduziu
a Anistia coloca-se em evidência uma despreocupação com a apuração de
responsabilidades pela prática de ações violentas. Cecília Coimbra, hoje membro do
grupo Tortura Nunca Mais, foi presa e torturada em 1970, e diz que a Lei da Anistia
fortaleceu uma tradição da história do Brasil de manter a impunidade daqueles que
violam os direitos humanos.
332
Em 1979, a lei foi aprovada no Congresso, mas não sem
uma importante concessão: ao anistiar “crimes de qualquer natureza relacionados com
crimes políticos ou praticados por motivação política”, a lei abrangia também os
responsáveis pela prática da tortura. Não se deveria, de modo algum, investigar agentes
de órgãos de segurança implicados em violências, torturas ou qualquer ato ilegal contra
presos políticos. Como destaca Edgar Luis de Barros, aos torturadores, bem mais do
que aos torturados e desaparecidos, foi concedido perdão absoluto.
333
Os torturadores
no Brasil não foram responsabilizados.
Não é preciso culpa ou apuração de responsabilidades, segundo o general da
reserva Newton Cruz, chefe do antigo
SNI
, pois com a Lei da Anistia, tudo isso deveria
ficar para trás. Houve deslize de lado a lado, erro de lado a lado. [...] Muitas coisas
desse tipo ocorreram dos dois lados.
334
Compartilhamos com Arendt a avaliação de que
onde todos são culpados ninguém o é; confissões de culpa coletiva são a melhor
salvaguarda possível contra a descoberta de culpados e quanto maior é o crime, maior
é a desculpa para que nada se faça.
335
Voltando à Torquemada, os torturadores da composição de Boal apresentam
convicções ideológicas bem definidas, e a responsabilidade individual não faz parte das
questões dos personagens. Estes consideram os procedimentos do interrogatório como
próprios da atividade profissional; mas que devem ser bem executados. Boal descreve
esses procedimentos do seguinte modo: a princípio, o Dramaturgo é acusado de
atividades subversivas, como levar recados para Aluísio e artigos difamatórios para
Paris, que denunciam a existência de tortura e censura no país, e trazer de volta recados
sobre armas com fins subversivos etc. Tais acusações são feitas por meios de indícios
332
C
OIMBRA
,
Cecília. [Depoimento prestado]. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18/12/2000, p. A6.
333
B
ARROS
, Edgard Luiz de. Os governos militares. 6ª ed., São Paulo: Contexto, 1998.
334
C
RUZ
, Newton. [Depoimento prestado]. In: Petry, André. Porão Iluminado, op. cit., p. 43.
335
A
RENDT
, H.. Da violência, op. cit., p. 138.
levantados contra o Dramaturgo (como um caderno com endereços, dólares encontrados
na sua casa etc.); sem nenhuma acusação formal, estes ganham estatuto de prova inicial.
A confissão deve comprovar a veracidade das suspeitas, que são permanentemente
alimentadas com a inclusão de novas acusações. Os interrogadores/torturadores buscam
intimidá-lo e aterrorizá-lo com uso sistemático da tortura para extrair a confissão: a
“verdadeira” prova do crime. Por ironia, a única confissão obtida é a do Dramaturgo:
[...] eu escrevo peças e nenhuma a favor do governo, bem pelo contrário. Isso é uma
confissão (p. 108).
O inquisidor Torquemada, os Nobres e Paulo, um nobre liberal:
representações do Estado militar e da burguesia
Em Torquemada, a classe dominante está representada pelos personagens Paulo
e os Nobres estes personificando a classe burguesa, que aceita a interferência dos
militares para conter a pressão dos movimentos populares e eliminar a subversão.
Contudo, a partir do golpe de 1964, ocorre uma dominação gradativa dos militares
como instituição, e a burguesia, que num primeiro momento “fechara os olhos”, depois
se sem os canais institucionais de representação política.
336
Na peça, a tomada do
poder está formalizada no “sistema de Torquemada”;
337
e Torquemada é a
representação do Estado militar.
336
De acordo com Emir Sader, no início do golpe, os militares se propunham a “acabar com a corrupção
e a subversão” e em seguida devolver o poder às representações civis (p. 151). O corpo de oficiais era o
agente mais eficaz para a operação que interessava à burguesia. Mas ao fim do processo, as Forças
Armadas transformaram-se no verdadeiro “partido único” das classes dominantes. À medida que o
restabelecimento da ordem política e econômica produzia resistências em todos os níveis e que
lideranças civis da burguesia apoiavam-se nelas para levantar alternativas, revelando a incapacidade do
exercício da hegemonia, o aparelho militar foi avançando na depuração e transformação radical do
aparelho de Estado. Essa depuração irá, por sua vez, ao eliminar o jogo das representações políticas de
diferentes segmentos das classes dominantes, facilitar o processo de concentração e centralização do
capital, que já eram acelerados pela própria crise econômica. S
ADER
, Eder. Um rumor de botas. Ensaios
sobre a militarização do Estado na América Latina. São Paulo: Polis, 1982, p. 152–153.
337
Segundo Adriano Nervo Codato, o
AI
-5, em 13 de dezembro, simboliza o ponto decisivo de inflexão do
regime e o momento paradigmático do processo de reforço da centralização militar do poder de Estado.
Os limites severos fixados à atividade política e aos direitos civis revelam a disposição em continuar,
agora em estágio superior, o “movimento de 31 de março de 1964” e restringem bruscamente a possi-
bilidade da retomada do controle civil sobre a “Revolução”. C
ODATO
, Adriano Nervo. O golpe de 1964
e o regime de 1968: aspectos conjunturais e variáveis históricas. História: Questões & Debates, 40,
Curitiba: Editora da
UFPR
, 2004, p. 16. Sobre a posição da burguesia diante do golpe e após o
AI
-5 em
1968, Codato, na nota 8, ressalta a interpretação de Fernando Henrique Cardoso: Fernando Henrique
Cardoso sublinha que “a aceitação pela burguesia, no primeiro momento [i.e., em 1964] do aumento de
interferência militar para” desarticular os “instrumentos de pressão e defesa das classes populares”
Os Nobres solicitaram a intervenção e os métodos de Torquemada para acalmar
e pacificar o povo, fazendo-o trabalhar como escravo sem reclamar. Torquemada, além
de prometer um milagre — ampliar as riquezas deste grupo —, providenciou a prisão de
todo o povo para interrogá-lo. Agora, os Nobres acreditam ter vencido a subversão
(portanto, não precisam mais da ajuda de Torquemada) e que a essência democrática do
sistema pode ser restabelecida.
Torquemada, contudo, não concorda em renunciar ao poder: o sistema
instaurado deve perpetuar-se.
TORQUEMADA
Quando eu assumi o poder, em nosso país reinava o caos. Se
renuncio ao poder, o caos voltará.
[...]
TORQUEMADA
Senhores: um poder não existe em sua essência. Existe no dia-a-
dia. Quando é difícil ao povo aceitá-lo, o poder se manifesta em seus excessos. Ele
se aplica com suavidade ao povo dócil. Com energia ao amotinado. Não é por
capricho que o Estado se revela de uma ou de outra forma: é por necessidade, por
desejo de se conservar. Em uma democracia como essa, com que os senhores
sonham, o povo descontente elege e muda seus governantes. Elege e muda até o
próprio sistema. Mas num sistema come este em que vivemos, a impopularidade do
governo se compensada pela sua força. Os excessos de um sistema são a sua
verdadeira essência. E se os senhores lutam pelo retorno da antiga lei, não estarão
lutando somente contra os excessos do meu poder, mas contra o poder em si. Para
defendê-los, devo exercer o meu poder contra todos.
NOBRE
— Mas não contra nós mesmos. (p. 125–26)
Com a centralização do poder, as divergências no interior da burguesia são
reveladas. Paulo representa a dissensão, porque não concorda com o emprego da tortura
nem com a idéia de se atribuir todo o poder a Torquemada, que, em sua opinião, devia
exercer apenas o poder militar, enquanto os nobres continuariam a exercer o poder
político. Paulo aparece pela primeira vez na cena interrogatório entre os presos, na qual
Torquemada comanda a sessão de tortura. Contra ele, porém, não há acusação.
Surpreendido, Torquemada espera por uma auto-acusação: [...] de nada o acusam, nem
de nada se acusa você mesmo [...] (p. 124–125). Paulo então se acusa: nega os métodos
de Torquemada. Apesar de ser nobre como ele e o Rei, Paulo não concorda com a
tortura nem com os interrogatórios. Torquemada ordena sua prisão, e a cena interrompe-
se com a seguinte informação:
custará, “nos momentos seguintes, a impossibilidade de retomada do controle civil do processo político.
Para conter a “pressão de baixo” foram tomadas medidas que implicaram não apenas na liquidação do
regime populista, mas da própria expressão política direta da burguesia: o sistema de partidos ficou à
margem do sistema de decisões. Ibidem, p. 16.
FRADE
Padre, as ações começaram a subir na Bolsa. Todos os nobre se mostram
confiantes em vossa eminência.
TORQUEMADA
— Três vezes amém. (p. 125)
Aqui, a peça estabelece a relação entre a eficiência do sistema de Torquemada e
o crescimento econômico: prender e torturar significa controle e estabilidade financeira:
credibilidade para a elite financeira do país e para instituições financeiras no exterior. O
método consiste na captura, sem distinção, de qualquer pessoa suspeita de subversão. O
ato subversivo em Torquemada entende-se por: participar de organizações armadas de
oposição, tornar-se cúmplice de algum subversivo e duvidar ou questionar os métodos
violentos usados pelo governo, dentre outros.
Nem mesmo indivíduos pertencentes ao grupo ao qual nomearam Torquemada
como inquisidor-mor estão livres do tribunal. Até Paulo, um nobre/burguês foi preso
por uma suspeita de dúvida. Alguns nobres tentam interceder por ele, mas Torquemada
é irredutível: para libertar Paulo, exige como condição a liberdade e a vida dos nobres
solicitantes.
TORQUEMADA
(Violento.) Assim será. Os senhores afirmam que Paulo é ino-
cente. Muito bem: ele vai ser julgado do mesmo modo. Mas a partir de hoje estará
livre. Ficam os senhores em seu lugar. Como é inocente, não problema. Os
senhores serão libertados quando se prove a sua inocência. Mas se se prova a sua
culpa os senhores serão condenados. (p. 126–127)
Os Nobres retrocedem. Contudo, Torquemada ordena que sejam presos e, logo
em seguida, diz que pode libertá-los se aceitarem ser testemunhas de acusação contra
Paulo. Assim, a resolução do impasse é dada pelos senhores nobres, que covardemente
aceitam “culpar” Paulo:
NOBRE
3 Um momento. A verdade é que todos temos alguma culpa, inclusive
Paulo.
NOBRE
2 — Se está preso, alguma coisa fez. Era liberal demais.
NOBRE
3 Eu devo confessar que ele sempre me dizia que era necessário analisar
todas as sentenças para evitar injustiças. Esta é uma culpa de bom tamanho.
NOBRE
1 Ele sempre duvidou se nós nhamos direito à riqueza enquanto existe
fome. Enorme culpa.
NOBRE
2 E além disso nunca esteve de acordo em dar ao nosso Padre Torque-
mada todo o poder que agora tem. Culpa imensa.
NOBRE
3 Ele dizia que Torquemada devia exercer o poder militar, porque o
poder político competia a nós. (p.127–28)
Após Torquemada declarar que estão em liberdade, os Nobres saem da cena
andando de quatro, de forma desprezível, demonstrando total sujeição às determinações
do sistema do inquisidor-mor. As rubricas informam o desenlace da cena:
NOBRES
(Em coro.) Paulo é culpado. Paulo é culpado. Paulo é culpado. (Repe-
tem a mesma frase enquanto saem, andando de quatro.)
TORQUEMADA
Estão em liberdade. (Saem depois de beijar a mão de Torque-
mada que fica sozinho no meio do semicírculo de frades armados. Torquemada,
tristemente:) Quem será bastante meu amigo pra ir comigo no caixão? (p. 128)
Boal demonstra a ambigüidade da burguesia através do posicionamento de
Paulo. Embora discorde dos interrogatórios e da tortura, ideologicamente Paulo não está
em oposição aos pressupostos da sua classe.
PAULO
Não digo que não seja eficaz, mas questiono o seu caráter humano. Eu,
ideologicamente, penso como o senhor. Comprei até mesmo muitas ações na Bolsa,
desde que o senhor assumiu o poder. Mas questiono o aspecto humano. (p. 136)
Se, a princípio, houve dúvidas quanto à ampliação dos poderes políticos de Torque-
mada, posteriormente, com o crescimento econômico e o aumento dos lucros
indicado na peça pelo aumento do valor de ações na bolsa de valores —, a burguesia
torna-se grata a este governo.
O fato de Paulo morrer sob tortura por causa da suspeita de dúvida indica que o
sistema de Torquemada funda-se em bases seguras. Na cena final, quando as ações
começam a subir, Paulo lamenta estar morrendo. Mas, à medida que a notícia de sua
morte se espalha, as ações sobem rapidamente. Paulo deseja — se isso significa maiores
lucros — a morte.
PAULO
Tenho que resistir. Não posso morrer. Não posso! (Grita quando lhe
aplicam o choque elétrico.) Nossa cidade está purificada. Meu lucro, minha vida...
TORQUEMADA
— Será ainda mais pura com a tua morte.
(Falam todos como se estivessem rezando.)
PAULO
Eu tenho que ganhar, eu quero, eu vou. De 15 a 21 em menos de uma
semana, talvez 25, talvez 26.
TORQUEMADA
(Como um sacerdote.) Se você morrer, pode subir até 27, talvez
em poucos minutos. No instante mesmo em que se conheça a notícia da sua morte,
28. Os jornalistas estão fora. A notícia vai-se espalhar em poucos segundos. 28,
talvez 29. Em segundos, num instante, já. (Novos e mais violentos choques e
gritos.)
[...]
TORQUEMADA
– Com a tua morte, 35.
PAULO
Eu quero viver, quero os lucros. Quero morrer, quero morrer. 35, 35, 35.
Mais, mais, quero mais. (Mais choques, mais gritos.) No coração, no coração.
Avisem na Bolsa. No coração! Digam que eu já morri. Quanto? Quanto? Estou
morto. Estou morto! Quanto? Quanto? (p. 149–151)
Na sua última sessão de tortura, quando é agraciado com vultuosos lucros, Paulo
se convence que Torquemada, com autoridade e todos, impôs a “ordem” e
restabeleceu a confiança nos negócios. Para o perfeito funcionamento do capitalismo, a
ordem foi estabelecida por Torquemada através da violência e da humilhação. Segundo
síntese de Iná Camargo Costa, Raymond Williams demonstra que a tragédia de nosso
tempo é a incompreensão da dialética entre ordem e desordem/revolução:
[...] no sistema capitalista, o que aparece como ordem é por definição a produção
metódica da desordem (desigualdade, humilhação, violência, privação, injustiça),
enquanto a desordem a ser necessariamente produzida pela revolução tem por
finalidade a criação de uma nova ordem. [...] Decorre desse diagnóstico uma
tarefa artística revolucionária: a exposição da verdadeira desordem.
338
Essa reflexão de Williams sobre as relações entre ordem e desordem/revolução é
conveniente à nossa compreensão de como Augusto Boal dialoga com seu presente e
formaliza essa experiência em Torquemada. O período referido na peça é o do governo
do general Emilio Garrastazu Médici (1969–74), que pode ser considerado o do apogeu
da tortura promovida pela ditadura militar no Brasil; os anos mais duros. Médici tinha
sido chefe do Serviço Nacional de Informação (
SNI
) e como presidente representava a
corporação militar. Sua tarefa básica era o “combate à subversão”, quaisquer que
fossem as promessas de “restabelecimento da plena democracia”.
339
Seu governo
combinou autoritarismo com crescimento econômico. De um lado, houve o
fechamento temporário do Congresso, a segunda onda de cassação de mandatos e
suspensão de direitos políticos, o estabelecimento da censura à imprensa e às
produções culturais, a exacerbação da violência repressiva contra os grupos
oposicionistas, armados ou desarmados. É, por excelência, o tempo da tortura, dos
alegados desaparecimentos e das supostas mortes acidentais em tentativas de
fuga.
340
De outro, o festejado “milagre econômico”, que
338
C
OSTA
, Iná Camargo. Prefácio. In: W
ILLIAMS
, Raymond. Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof.
São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 16.
339
Cf. S
ADER
, E., op. cit., p. 161.
340
A
LMEIDA
, Maria H. T. de; W
EIS
, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe
média ao regime militar. In: S
CHWARCZ
, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil:
contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 332.
multiplicou as oportunidades de trabalho, permitiu a ascensão de amplos setores
médios, lançou as bases de uma diversificada e moderna sociedade de consumo, e
concentrou a renda a ponto de ampliar, em escala inédita no Brasil urbanizado, a
distância entre o topo e a base da pirâmide social.
341
O que Boal destaca em Torquemada é a associação entre desenvolvimento
econômico e o acirramento da violência, evidenciando que o sucesso e a ordem no
funcionamento da economia faz parte do caráter de escamoteação do capitalismo, de
gerar as desigualdades sociais, sobretudo pela violência política.
Presos políticos e a esquerda armada
Em Torquemada, as principais representações da esquerda armada se
concentram nos personagens Ismael, Fernando e Mestre. Pela fala dos presos, Boal
sintetizou a diversidade de atitudes e posições no quadro da esquerda no Brasil daquela
época. A narrativa apresenta o caminho seguido por cada preso em sua prática política:
como “caíram”,
342
as atividades que realizavam nas suas respectivas organizações
clandestinas, as estratégias e opções utilizadas, as causas do fracasso revolucionário e,
por fim, as projeções para quando fossem libertos.
Ismael parece representar a facção da esquerda que opta por combater o sistema
de Torquemada com ações efetivas: explodir quartéis, expropriar armas, assaltar bancos
etc. Ele critica duramente os setores da esquerda ditos teóricos; acredita que as
contradições do capitalismo são evidentes, por isso não é necessário desviar para
debates teóricos, mas sim fazer a revolução imediatamente.
ISMAEL
Vocês tão muito teóricos, são os teóricos das frações, das dissidências,
os teóricos das teorias. Eu, ao contrário, não entendo nada de teoria. Eu sou
dialético. Eu, pau-de-arara, sou dialético. [...]
[...]
ISMAEL
Ação. Eu assaltava bancos, por exemplo. É muito fácil assaltar um
banco, mais do que parece. O assalto a um banco interessa a todo mundo: a nós que
assaltamos e aos que são assaltados. me compreendendo? O dinheiro do banco
no seguro. Por isso quanto tem um assalto, todo mundo “mãos ao alto” muito
contentes. A gente leva, digamos, dez milhões. Nós ganhamos dez milhões. O
gerente diz que foram vinte, quem é que vai provar? O seguro paga. Nós ganhamos
341
Ibidem, p. 333.
342
A expressão “cair”, para a esquerda, significava: Tornar-se presa (pessoa, coisa ou informação) de
organismo de repressão. Ser preso ou ter sua identidade conhecida pelos órgãos de repressão. F
REIRE
,
A. et al, op. cit., p. 504.
dez, e o filho-da-puta do gerente fica com os outros dez sem fazer esforço. Assaltar
um banco é muito fácil por isso. Mas às vezes aparece um tira mais estúpido e quer
defender a grana do seguro. Ele tira o revólver, e eu tiro o meu. O mais rápido no
gatilho mata o outro. É dialético. Comigo nada de teoria. (p. 119)
Quanto à forma de organização política, Ismael diverge também do modelo de
partido político com diretrizes centralizadas. Para ele, primeiro as bases devem articular
os interesses comuns, desde que vinculados à ação prática, para depois se juntarem em
um partido.
343
Se houve fracasso, Ismael julga que foi porque houve algum erro, pois
um grupo tático armado é invencível. [...] Se ninguém comete nenhum erro, o
GTA
é
invencível (p. 142). Outro aspecto do seu ideário está no fato de entender que o operário
têm consciência. [...] O que falta é uma organização armada (p. 141). Ele discorda
da concepção de povo/massa de Fernando: [...] Que trabalhar com as massas o quê! [...]
Vocês vivem falando de massa e quando tão com a massa a um palmo do nariz, vocês
nem percebem. [...] eu sou a massa, eu sou o povo (p. 141).
Fernando tem posicionamentos opostos aos de Ismael. Parece não concordar
com as ações “práticas” defendidas por ele, pois está na prisão justamente porque
seqüestrou um avião sem ter habilidade para tal tarefa. Segundo Ismael, ele não tinha
muita prática, coitado. Ele tava só acostumado a assaltar bancos. Entrava com a
metralhadora e gritava assim: “todo mundo pro banheiro”. O comandante começou a
perceber que ele não tinha muita prática (p. 128). Para Fernando, o partido é funda-
mental à coordenação das ações revolucionárias, pois na sua avaliação foi por falta de
coordenação que metade das pessoas presas foram denunciadas pela outra metade.
Fernando tanto critica os rumos tomados pela esquerda armada quanto faz uma
autocrítica, cuja conclusão é que a fragmentação da esquerda e, sobretudo, a teoria do
foco
344
foram os maiores erros estratégicos da luta.
343
Essas informações são pronunciadas pelo personagem neste trecho da peça:
ISMAEL
A coisa é
assim: dois, três, cinco, dez pessoas se juntam. basta. Pra que um partido? Qual é a direção que você
precisa? Então será que todo mundo já não sabe o que tem que fazer? Explodir um quartel, expropriar
armas, dinheiro do povo... Nesta primeira etapa, o partido não serve para nada. Depois, mais tarde, pode
ser que sim. Esse grupo de cinco, de dez, vai incorporando gente. Vinte, trinta... Os grupos vão se
fundindo. E um belo dia nós vamos ter um partido. De baixo para cima. Mas sempre partindo da ação
prática. Ação, entende? Nada de teoria (p. 139).
344
Trata-se de uma teoria de esquerda de grande influência nos anos de 1960 e 1970, considerada uma
das matrizes intelectuais da luta armada. De acordo com esse pensamento, a implantação de um núcleo
(foco) de guerrilheiros bem-treinados e armados no campo seria o ponto de partida para a construção de
uma força revolucionária visando à tomada do poder. Essa visão comportava diversas variantes e combi-
nações, e seu principal teórico foi o francês Régis Debray, que difundiu tal entendimento por intermédio
do seu livro Revolução na revolução. O pensamento de Debray repousa na sua leitura da revolução
cubana e na universalização de suas conclusões. As organizações que assumiram mais radicalmente essa
teoria negavam a necessidade da organização partidária. F
REIRE
, A. et al., Glossário de termos..., op.
FERNANDO
Teoria do foco. Isso sim que faz um mal tremendo. Porque um
grupinho fazia o seu foco aqui, outro fazia o seu foco ali, e começaram a assaltar
banco, matar polícia, e tudo isso sem a menor coordenação. (p. 138)
FERNANDO
O problema é que não se pode organizar nenhum grupo que trabalhe
longe da massa. Ninguém tem o direito de começar fazendo ações se não está
trabalhando com a massa.
[...]
[...] É preciso trabalhar com os operários pra dar consciência a eles. (p. 141)
Boal, ao simbolizar o personagem Mestre, optou por tratá-lo como um mediador
entre as posições de Ismael e Fernando no âmbito da esquerda armada. Mestre também
cindiu com o “partido” para atuar na luta revolucionária e tomar o poder político;
militava no RTP. Aqui, ele explica a posição que tomou dentro das seguidas
dissidências:
MESTRE
Bom, é difícil de explicar, mas é mais ou menos assim: quando o
partido se dividiu, a fração menor das três linhas se dividiu em duas, uma um
pouco mais à esquerda do que a outra. Mas dentro dessa, depois de alguns meses,
houve uma discussão muito violenta na direção, por questões de método, e a
dissidência foi inevitável. Eu fiquei com a dissidência, lógico. Mas até aí, dentro da
dissidência, havia uns que pensavam em luta armada a longo prazo e outros que
eram a favor da luta armada imediata. Quer dizer que, salvo erro, o RTP vem a ser,
mais ou menos, o que se poderia chamar de dissidência da dissidência da ultra-
esquerda da terceira linha da microfração do partido. (p. 118)
Mestre como problemática a existência de apenas um partido, posto que isso
não é capaz de representar a diversidade dos grupos; mas considera possível a união
entre diferentes grupos se for preciso. Nesse sentido, atenua o radicalismo das posições
político-ideológicas através da tática de cooperação na tomada do poder.
MESTRE
— [...] Se a gente olha de uma certa maneira, essa atomização pode
parecer uma coisa errada. [...] Se existem tantos grupos é porque existem tantas
táticas. Qual é o problema?
FERNANDO
— Coordenação.
MESTRE
bom, coordenação sim. Mas a vel estratégico. O que me parece
estúpido é que a gente brigue entre nós mesmos. Eu estou no meu grupo, portanto
estou em desacordo com todos os outros grupos. Mas presta atenção: é um
desacordo tático. Se vocês tomam o poder, eu tou com vocês. Se vocês precisam da
minha cooperação, eu também estou com vocês. Mas se querem a minha opinião,
venham pro meu grupo. (p. 139)
cit., p. 512. Sobre as matrizes intelectuais da luta armada, ver: G
ORENDER
, Jacob. Receitas para a luta
armada. In: Combate nas trevas. 6ª ed. rev. e amp., São Paulo: Ática, 2003, p. 87–92.
Uma outra narrativa significativa que ilustra a posição mais branda de Mestre
diz respeito à avaliação que faz do fracasso da luta armada. Enquanto Ismael considera
que foram mortos os que estavam lutando de verdade, Mestre diz que muitos ainda
estão lutando. Então, Ismael, Pavão e Mosca lembram o heroísmo daqueles que
resistiram à tortura sem delatar:
MESTRE
Teve muita gente heróica também. Lembra da Elvira? Arrancaram o
mamilo dos seios dela e ela continuava dizendo “filhos-da-puta”, “filhos-da-puta”.
PAVÃO
E a Marta? Davam choques elétricos no nervo do dente aberto e mesmo
assim ela não disse uma palavra. Não confessou nem o nome dela.
MOSCA
Antes, eu pensava que heroísmo era andar a cavalo com uma espada e
uma bandeira na mão... (p. 138-139)
Quando soldados drogados matam alguns presos, Mosca torna a repetir a frase:
antes, eu acreditava que heroísmo era andar a cavalo com uma espada e uma bandeira
na mão. E, diante dos corpos ensangüentados dos presos, completa dizendo: Mas não é
assim... O heroísmo é anti-higiênico. E feio (p. 144).
Representando por meio destas personagens as diferentes perspectivas dos
grupos ligados à luta armada, Boal demonstra que as dificuldades do movimento de
oposição contra o regime militar, e mesmo o fracasso revolucionário, foram determi-
nados, também, pela heterogeneidade política e ideológica no seu interior, isto é, pela
existência de diferentes idéias e projetos políticos, muitas vezes contraditórios.
A Moça Presa, Cristina Jacaré o Preso da Mala
Ao compor os personagens Cristina Jacaré, Moça Presa e Preso da Mala, Boal
nos mostra a variedade social e ideológica presente em um presídio político, assim
como as motivações do Estado para deter, interrogar e torturar indivíduos.
Em Torquemada, um aspecto importante da visão de mundo dos militantes de
esquerda é indicado por Boal através da relação entre os presos políticos e o
personagem Cristina Jacaré, preso comum e um escandaloso homossexual que se veste
alucinadamente (p. 117). Nas falas abaixo, a homofobia deixa evidente as concepções
que os presos tinham sobre a homossexualidade:
ISMAEL
— (Gritando.) Tira essa bicha-louca daqui. Leva ele embora. (p. 117)
OSCAR
— (Bem alto.) Eu, de bicha não gosto. (p. 118)
OSCAR
Eu não gosto nada de viado. Eu gosto é daqueles que têm vergonha.
me entendendo? Viado, eu não gosto. Eu gosto dos homossexuais que m
vergonha. São mais apertados. Ou então aqueles que nem são homossexuais. É
desses que eu gosto. (p. 121)
FERNANDO
Escuta aqui, rapaz, você enganado, viu? Aqui nós todos somos
presos políticos.
OSCAR
— Eu não, eu não.
FERNANDO
— Por isso mesmo. Eu quero dizer que aqui nesta cela num tem
nenhum Cristina Jacaré, nenhum Miguel Pantera, nenhum Nonô Nanete. Aqui nós
todos somos presos políticos, e muito machos. (p. 121)
De acordo com o estudo de Miguel Rodrigues Sousa Netto sobre a sexualidade e
a esquerda armada, nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil, a
homossexualidade sofria tratamento violento, sendo considerada um vício peque-
no-burguês, algo que entravaria ainda mais as discussões de cunho “realmente”
político. [...] A esquerda proclamava-se preparada para transformar as massas e
promover a revolução, pegando em armas para tal, se necessário, mas que não
estava preparada para lidar com a diversidade sexual.
345
Boal também nos revela os procedimentos dramatúrgicos que implicam a
recepção do leitor/espectador. A cena na qual a Moça Presa é submetida ao interro-
gatório, nesse sentido, é reveladora:
MOÇA
Não, não, não é verdade. Eu fui na casa dele porque eu tava apaixonada.
Pelo menos eu pensava que estava. Foi por isso. Mas não sabia direito quem ele
era. Eu não sei de nada.
TORQUEMADA
— Ela nega.
[...]
TORQUEMADA
— Mais forte. (A moça grita.)
FRADE
— Desmaiou.
[...]
FRADE
— A moça abriu os olhos.
TORQUEMADA
Minha filha, nós estamos em guerra. Portanto, somos todos sol-
dados. Vocês caíram presos. [...] Você está mentindo. Você é um soldado indigno.
Esta é a tua última oportunidade de dizer a verdade.
MOÇA
— Eu não sabia. Eu pensava que gostava dele. Mas, juro, eu não sabia nada.
TORQUEMADA
— Ela insiste que não sabia.
[...]
TORQUEMADA
— Mais forte. (Torturam a moça mais duramente. Ela grita.)
FRADE
— A moça morreu.
TORQUEMADA
Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, podem levá-la. (p.
123–124)
345
S
OUSA
N
ETTO
, Miguel Rodrigues de. Homossexualidade e esquerda armada no Brasil das décadas de
60 e 70: uma leitura de O crepúsculo do macho, de Fernando Gabeira. In: P
ATRIOTA
, Rosangela e
R
AMOS
, Alcides Freire (orgs.). História e cultura: espaços plurais. Uberlândia: Asppectus, 2002, p. 252–
253.
Boal certamente quis imprimir maior impacto a esta cena, pois é a primeira
representação de interrogatório onde a tortura leva à morte. A ação da tortura é
representada e os argumentos da Moça se apresentam convincentes para o leitor/
espectador, sendo por isso capazes de provocar neste uma aproximação com o
personagem. Sugerimos que o sofrimento da Moça, sem que ela o mereça, predispõe o
receptor a pôr-se no lugar dela, incita-lhe a participação e faculta-lhe o repúdio a este
tipo de violência.
Sob este ponto de vista, o Preso da Mala é também um personagem significativo.
Durante toda a peça, ele repete insistentemente que foi preso por engano, fica
completamente vestido, segurando a sua mala, “preparado” segundo sua fala para
ser solto. Quase ao fim da peça, ele diz:
PRESO DA MALA
Eu tenho a impressão de que eu vou tirar a gravata. (Todos
aplaudem.)
TODOS
— Bravo! (O preso da mala tira a gravata e se senta.) (p. 142)
O Preso da Mala não narra a sua história nem passa por uma sessão de tortura. A
sua presença constante na cela, vestido, e com uma mala na mão — contrastando
completamente com o vestuário dos demais presos
346
transmitem a idéia de uma
firmeza inquebrantável sobre o engano cometido pela polícia ao prendê-lo. Os elemen-
tos cênicos combinados com o comportamento de quem espera confiante ser solto,
representado pelo ator, talvez possam suscitar a simpatia pelo personagem.
No que se refere à atuação cênica dos demais personagens presos, Boal manipula
os efeitos sobre o receptor de modo distinto. Eles são colocados em cena narrando as
suas trajetórias numa atitude demonstrativa, explicadas em diversas cenas alternadas.
Por exemplo, a trajetória política de Ismael não é representada numa cena de modo
contínuo; pelo contrário, é contada pelo personagem através de diálogos, em cenas sem
progressão, organizadas pelo dramaturgo de forma a não envolver o leitor/espectador
emocionalmente. Espera-se que tal procedimento promova a tomada de distância,
permitindo ao receptor exercer o seu juízo crítico. Certamente ocorreria de outro modo
se os personagens Ismael, Fernando e Mestre participassem de alguma representação
cênica de interrogatório e tortura na peça.
346
De acordo com a recomendação da rubrica, os presos se vestem com bermudas ou shorts e camisas de
vários tipos.
ISMAEL
Meus irmãos, meus irmãozinhos, companheiros! Eu o quero nem
contar pra vocês minha falta de sorte, nem quero contar. Comigo me aconteceu
uma desgraça. Pior do que tudo o que vocês podem imaginar. Foi trágico. Eu tinha
tudo, do bom e do melhor: pastilhas fresquinhas, um veneno que funcionava
perfeitamente bem, tinha uma metralhadora completamente carregada e tinha as
minhas mãos. Pra não cair preso vivo, que foi que eu fiz? Quando eu vi que já não
podia escapar, que estava rodeado de tiras por tudo que era lado, que foi que eu fiz?
PAVÃO
— Eu não sei.
ISMAEL
Eu engoli inteirinha a caixa de pastilhas de cianureto uma a uma.
Descarreguei todas as balas da minha metralhadora na minha cabeça, uma a uma. E
pra que não tivesse nenhuma dúvida, eu me agarrei pelo pescoço até que não podia
respirar mais, sufocado.
PAVÃO
— E o que foi que aconteceu?
ISMAEL
(Depois de uma pausa.) Morri, companheiro, eu morri! (Ismael solta
uma gargalhada. Os outros presos também riem.). (p. 116)
Boal não representa os presos políticos como “vítimas”, uma vez que não foram
surpreendidos pela repressão; tinham plena consciência das atividades arriscadas com as
quais estavam envolvidos, e sabiam que poderiam ser presos.
Nestas cenas narradas, Boal consegue demonstrar as práticas de violência
política, desestruturantes e humilhantes, as quais são fundamentais para a compreensão
e o exame das condições sóciohistóricas do Brasil durante a Ditadura Militar. Além
disso, buscou apresentar a idéia de que, de uma forma ou outra, toda a sociedade paga
um alto preço quando permite a centralização do poder e a ascensão de governos
autoritários.
C
ONCLUSÃO
A peça Torquemada parece ter sido elaborada tendo como base reflexões sobre o
fracasso da luta armada e a tortura como uma razão do Estado para ordenar o
capitalismo. Ao apresentá-las, Boal investe em recursos antiilusionistas para incitar o
leitor/espectador a reconhecer o funcionamento do sistema de Torquemada, no qual a
tortura é instrumento eficaz no estabelecimento da ordem social necessária para a
geração do lucro. Nesse sentido, a questão da tortura é tratada como uma estratégia para
manutenção do poder político ligada às ações de grupos sociais dominantes.
As respostas à derrota da esquerda são expressas por duas formas contraditórias
e coexistentes. Primeiro, não é mais possível falar em heroísmo diante de tanta
violência: “O heroísmo é anti-higiênico. E feio”. Assim, subsiste a necessidade de tomar
distância dos acontecimentos para avaliá-los e revê-los criticamente: por que
fracassamos? Segundo, é preciso heroísmo para resistir às torturas e não delatar durante
os interrogatórios, mesmo que não confessar resulte na própria morte. Uma morte com
glória, pois não se pode abandonar a luta: este é o legado que se deixará às gerações
futuras. Boal dialoga com as idéias de heroísmo revolucionário e sacrifício
347
compartilhadas socialmente naquele período.
F
ILHO
2 [...] Eu não sou um revolucionário. Por que devo morrer como um
herói? (p. 146)
M
ÃE
Nossa geração não ganhará nada, porque, quando se trocam as regras do
jogo, a geração que faz a troca é a mais sacrificada. Estamos lutando pelos que
virão depois de nós. (p. 148)
Mas se considerarmos que os personagens presos-políticos também narram ao
lado do Ator (curinga), podemos ver a ambigüidade conformada em Torquemada. Por
que ser um herói, se o heroísmo é feio? Mas se é necessário continuar lutando, como
não morrer em nome da revolução? Na composição formal, Boal estrutura essa
experiência vivida usando tanto os efeitos de estranhamento quando os da empatia.
D
OCUMENTAÇÃO
T
EXTOS TEATRAIS
B
OAL
, Augusto e G
UARNIERI
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Bauru, SP: Edusc, 2002. Aquele que se decide por uma vida dedicada à revolução, passa a conviver
permanentemente com a idéia de que a qualquer momento pode ser preso, torturado e morto. Para
enfrentar isso, alguns mecanismos de defesa precisariam ser construídos. As organizações concentram
suas forças na educação ideológica e na construção do ideal de sacrifício. O militante revolucionário
consegue prosseguir sua tarefa se racionalizar o suicídio. Em outros termos, a condição básica para que
os combatentes pudessem resistir às adversidades, era a introjeção da inevitabilidade/necessidade da
morte (iminente) em nome da revolução. Ibidem, p. 295.
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