Download PDF
ads:
0
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
FABIANE A. MONTEIRO PEREIRA
A CATEGORIA DE ASPECTO: FORMA E FUNÇÃO
Niterói
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
COORDENAÇÃO DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
LINHA DE PESQUISA: DISCURSO E INTERAÇÃO
ÁREA: SOCIOLINGÜÍSTICA
A CATEGORIA DE ASPECTO: FORMA E FUNÇÃO
Por:
FABIANE A. MONTEIRO PEREIRA
Dissertação de Mestrado apresentada à
Coordenação de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre.
Orientadora:
Profa. Dra. Cláudia Nívia Roncarati de Souza
Niterói
2008
ads:
2
PEREIRA, Fabiane A. Monteiro. A categoria de aspecto: forma e função. 2008. 129 f.
Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) Instituto de Letras, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2008.
COMPOSIÇÃO DA BANCA
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Cláudia Nívia Roncarati de Souza (Orientadora, UFF)
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Darcília Marindir Pinto Simões (UERJ)
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Emília Barcellos da Silva (UERJ)
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Mariângela Rios de Oliveira (UFF, Suplente)
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Rosângela Ávila Dantas (UERJ, Suplente)
Examinada e aprovada em:
3
Dedico esta dissertação ao meu querido
Alex, que foi o apoio mais seguro nos
momentos mais difíceis.
4
AGRADECIMENTOS
À querida Profª Orientadora, Cláudia Nívia Roncarati de Souza, por ver em mim o potencial
que eu mesma não conseguia enxergar direito. Agradeço por todos os momentos de
aprendizado não apenas acadêmico, mas também pelas valiosas lições de vida e coragem, das
quais jamais me esquecerei. Agradeço pelos momentos nos quais elaboramos este trabalho,
pela orientação sempre segura e pela confiança que depositou em mim ao longo de todo este
processo.
À Profª Rosângela Dantas, por acompanhar meus passos acadêmicos e por todo o incentivo e
conselhos. Agradeço por aceitar o convite para participar desta banca.
Às professoras Mariângela Rios de Oliveira e Maria Emília Barcellos pelas valiosas sugestões
na ocasião da qualificação deste trabalho e por aceitarem o meu convite para a banca
examinadora.
À Prof
a
Darcília Simões por aceitar fazer parte da banca examinadora.
À Equipe da Pós-Graduação em Letras da UFF, pelo zelo com que administra e cuida da
qualidade do Curso e pelo atendimento sempre competente e carinhoso.
A meus pais e meus irmãos, Dudu, pela valiosa ajuda com a parte de informática, e ao
Gustavo, pelo auxílio no tratamento estatístico. Agradeço também a minha querida cunhada.
Todos vocês compreenderem minhas ausências, meu isolamento e falta de tempo durante a
realização deste trabalho. Agradeço por terem se empenhado em me auxiliar, na medida do
possível, e por saberem entender a importância deste momento.
Ao Alex, agradeço em especial por todo seu apoio, pela sua ajuda incondicional em todos os
momentos, por ter vivido também a realização deste processo. Agradeço pela compreensão
em todas as ocasiões em que não pude estar em sua companhia. Obrigada por ter feito sempre
o que esteve ao seu alcance para que este trabalho saísse da melhor forma possível, me dando
sempre a força necessária nos momentos de maior ansiedade e cansaço. Sem a sua presença, a
realização deste momento não seria completa.
À minha querida amiga Cátia, que, mesmo estando distante, tenho certeza de que está
torcendo por mim. Obrigada por todo o apoio, por ter sido a primeira a me mostrar que esta
realização seria possível.
A Deus, por quem sou, e por tudo que Ele faz de mim, me dando todas as chances de chegar
onde cheguei, sabendo que tudo que Ele pode me dar será sempre maior e melhor do que
qualquer coisa que eu possa conquistar aqui.
À CAPES, pelo auxílio concedido durante a realização deste trabalho.
5
RESUMO
Neste estudo focalizamos as expressões lingüísticas que codificam o aspecto a partir de um referencial
teórico em que se conjugam noções funcionais, semântico-discursivas e pragmáticas. Ao tomarmos o
aspecto verbal como foco de nosso estudo, partimos do pressuposto de que os valores aspectuais,
perspectivados em termos da estrutura interna de uma dada situação projetada pela enunciação
lingüística, podem contribuir para a atribuição de sentidos a respeito do desenrolar de um dado evento
e das intenções pragmáticas do usuário da língua. O problema com que nos defrontamos relacionou-se
com o escopo conferido ao tratamento do aspecto. Assim, por acreditarmos que apenas a consideração
da natureza lexical do verbo não é suficiente para o estudo do aspecto, conferimos a essa categoria
uma perspectiva mais abrangente, examinando, dentro da estruturação no enunciado, a atuação de
elementos extraverbais capazes de influenciar a interpretação aspectual. Em consonância com essa
hipótese, examinamos a contribuição de outros fatores lingüísticos, como núcleos temáticos e tipos de
seqüências textuais, transitividade verbal, classificação semântica dos verbos, tempos verbais e
advérbios aspectualizadores. Trabalhamos com corpora da fala, entrevistas semi-informais, e da
escrita, crônicas literárias, segmentados através de uma correlação entre núcleos temáticos e
seqüências textuais expositivas, narrativo-descritivas e argumentativas. Nossos resultados
quantitativos e qualitativos sugerem que: as categorias de tempo e de aspecto estão intrinsecamente
relacionadas, mas se distinguem em alguns pontos fundamentais: o tempo pressupõe o aspecto, mas o
aspecto não pressupõe o tempo; o aspecto não exibe natureza dêitica; a descrição do aspecto representa
uma atualização espacial qualitativa do processo verbal; o aspecto fornece informações sobre a
focalização da estrutura temporal interna da situação, sendo, portanto uma propriedade da sentença e
não da enunciação; o aspecto tende a expressar um ponto de vista subjetivo do falante em relação ao
desenvolvimento e ao grau de realização da ação; a interpretação aspectual está associada à
modalidade: modalidade marcada aspectualmente = realis; modalidade não marcada aspectualmente =
irrealis; os planos discursivos estão associados a diferentes configurações aspectuais e graus de
transitividade: plano da figura = aspecto perfectivo = alta transitividade; plano do fundo = aspecto
imperfectivo = baixa transitividade. As diferentes configurações dos valores aspectuais, assim como a
atuação dos fatores com que esses valores co-ocorrem, constituem, pois, um dos recursos lingüísticos
de que o usuário da língua dispõe para produzir efeitos de sentidos locais, resultantes das escolhas das
expressões lingüísticas e das dimensões semântico-discursivas dos processos verbais, a depender da
orientação argumentativa pretendida.
Palavras-chave: interpretação aspectual; fatores co-ocorrentes; escrita e fala; efeitos de sentido.
6
ABSTRACT
This study focuses on the linguistic expressions that codify the aspect in the light of a theoretical
framework which conjugates functional, semantic-discoursive and pragmatic notions. Considering the
verbal aspect as the focus of our study, we hypothesize that the aspectual values, viewed in terms of
the internal structure of a given projected situation in the linguistic enunciaton, can contribute to the
attribution of meaning regarding the development of a given event, and the pragmatic intentions of the
speaker. The problem with which we confront is related to dimension conferred to the treatment of the
aspect. Thus, believing that the consideration of the lexical nature of the verb is not sufficient for the
study of the aspect, we attribute to this category a broader perspective, examining, within the
structuration of the statement, the actuation of extraverbal elements which can influence the aspectual
interpretation. In accordance with this hypothesis, we examine the contribution of other linguistic
factors, as thematic nuclei and types of textual sequences, verbal transitivity, semantic classification of
the verbs, and aspectualizers adverbs. Our database are constituted by oral interviews and literay
chronicles, segmented through a correlation between thematic nuclei and expositive, narrative-
descriptive and argumentative textual sequences. Our quantitative and qualitative results suggest that:
the categories of time and aspect, though intrinsically related, are distinct in some basic points: the
time estimates the aspect, but the aspect does not estimate the time; the aspect does not display a
deictic nature; the description of the aspect represents a qualitative spatial actualization of the verbal
process; the aspect supplies information concerning to the focalization of the temporal internal
structure of the situation, being, therefore, a property of the sentence and not of the enunciation; the
aspect expresses a subjective point of view of the speaker in relation to the development and to the
degree of the realization of the action; the aspectual interpretation is associated with the modality:
aspectual marked modality = realis; unmarked aspectual modality = irrealis; the discoursive plans are
associated with different aspectual configurations and degrees of transitivity: foreground figure =
perfective aspect = high transitivity; background figure = imperfective aspect = low transitivity. The
different configurations of the aspectual values as well as the actuation of the co-occuring factors
constitute, therefore, one of the linguistic resources that the speakers can use in order to produce local
semantic effects, resulting from the choices of the linguistic expressions and from the dimensions of
the verbal processes, depending on the intended argumentative orientation.
KEY-WORDS: Aspectual interpretation; co-occurring factors; speech and writing; semantic effects.
7
LISTA DE QUADROS:
Quadro 1: Posicionamento do falante em relação ao processo verbal.............................. 22
Quadro 2: Desdobramento da perspectiva temporal segundo Bechara (2004)................. 22
Quadro 3: Adaptação da tipologia aspectual proposta por Bechara (2004)...................... 24
Quadro 4: Tipologia aspectual proposta por Travaglia (1994)......................................... 27
Quadro 5: Tipologia aspectual proposta por Castilho (1968)........................................... 34
Quadro 6: Representação espacial das modalidades aspectuais, adaptado de Castilho
(1968)...............................................................................................................
36
Quadro 7: Configuração espacial dos valores aspectuais.................................................. 37
Quadro 8: Temas ou tópicos abordados na constituição do corpus argumentativo
(GRYNER, 1980-1983)...................................................................................
46
Quadro 9: Constituição da amostra da escrita................................................................... 48
Quadro 10: Grupo de fatores............................................................................................... 49
Quadro 11: Núcleos temáticos da amostra escrita.............................................................. 55
Quadro 12: Quadro aspectual adotado, adaptado de Castilho (1968)................................. 57
Quadro 13:
Parâmetros de gradiência da transitividade......................................................
59
Quadro 14: Ilustração de orações-figura/fundo.................................................................. 63
Quadro 15: Grau de transitividade na amostra da fala........................................................ 96
Quadro 16: Grau de transitividade na amostra da escrita.................................................... 96
LISTA DE TABELAS:
Tabela 1:
Valores aspectuais na amostra da fala...........................................................
72
Tabela 2:
Valores aspectuais na amostra da escrita......................................................
74
Tabela 3: Transitividade na amostra da fala................................................................. 76
Tabela 4: Transitividade na amostra da escrita............................................................. 85
Tabela 5: Advérbios aspectualizadores na amostra da fala........................................... 87
Tabela 6: Advérbios aspectualizadores na amostra da escrita...................................... 88
Tabela 7: Classificação semântica dos verbos na amostra da fala................................ 90
Tabela 8: Verbos afetivos na amostra da fala............................................................... 91
Tabela 9: Classificação semântica dos verbos na amostra da escrita .......................... 92
Tabela 10
Tempos verbais da amostra da fala...............................................................
93
Tabela 11:
Tempos verbais da amostra da escrita........................................................... 95
LISTA DE FIGURAS E GRÁFICOS:
Figura 1: Representação espacial do processo (TRAVAGLIA, 1994)........................ 28
Figura 2: Esquema de incidência entre duas ações (ILARI, 2004).............................. 33
Figura 3: Esquema de interação verbal (DIK, 1989).................................................... 41
Gráfico 1:
Valores aspectuais por tipo de amostra......................................................... 94
Gráfico 2:
Transitividade verbal por tipo de amostra..................................................... 95
Gráfico 3:
Advérbios aspectualizadores por tipo de amostra......................................... 98
Gráfico 4:
Classificação semântica dos verbos por tipo de amostra.............................. 99
Gráfico 5:
Tempos verbais por tipo de amostra............................................................ 100
8
S U M Á R I O
I INTRODUÇÃO
1.1 Delimitação do objeto, dos objetivos e da composição dos capítulos...........................9
1.2 Apresentação do problema e sua relevância.................................................................12
II QUADRO TEÓRICO
2.1 Breve histórico dos estudos sobre aspecto....................................................................15
2.2 Distinção entre tempo e aspecto....................................................................................17
2.3 Categoria de aspecto: noções pertinentes......................................................................21
2.4 Contribuição dos advérbios aspectualizadores............................................................. 37
2.5 Interpretação aspectual e argumentatividade................................................................40
2.6 Síntese: a perspectiva adotada.......................................................................................43
III QUADRO METODOLÓGICO
3.1 Universo da investigação .............................................................................................45
3.2 Grupos de fatores e suas previsões...............................................................................49
IV ANÁLISE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DAS EXPRESSÕES
ASPECTUAIS
4.1 Valores aspectuais na fala e na escrita..........................................................................72
4.2 Valores aspectuais na fala e na escrita: um confronto..................................................94
V CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................102
VI REFERÊNCIAS........................................................................................................105
VII ANEXOS
ANEXO A Corpus da fala (entrevistas)...................................................................110
ANEXO BCorpus da escrita (crônicas)..................................................................125
9
I - INTRODUÇÃO
1.1 Delimitação do objeto, dos objetivos e da composição dos capítulos
Ao tomarmos o aspecto verbal como foco de nosso estudo, partimos do pressuposto de
que essa categoria pode contribuir para a atribuição de sentidos a respeito do desenrolar de um
dado evento e das intenções pragmáticas do usuário da língua.
Em nosso estudo, conferimos à categoria uma perspectiva mais abrangente,
examinando, dentro da estruturação no enunciado
1
, a atuação de elementos extraverbais
capazes de influenciar a interpretação aspectual. O aspecto é uma categoria de natureza
léxico-sintática, visto que, em sua caracterização, interagem não somente o sentido que a raiz
do verbo contém, mas, também, elementos sintáticos, tais como adjuntos adverbiais,
complementos e tipo oracional.
Buscamos examinar como se atribuem às formas aspectuais valores perspectivizados
ou focalizados em termos da estrutura interna de uma dada situação projetada pela
enunciação
2
lingüística. Interessou-nos, também, discutir como os valores aspectuais podem
produzir efeitos de sentidos locais, resultantes das escolhas das expressões lingüísticas e das
dimensões semântico-discursivas dos processos verbais.
Em função desse enfoque mais amplo, na presente pesquisa, adotamos um referencial
teórico em que se complementam noções funcionais, semântico-discursivas e pragmáticas,
visando a uma observação mais acurada da relação entre a forma como é apresentado o
aspecto verbal nos enunciados e a sua possível relação com a interpretação aspectual
pretendida. A fundamentação teórica, detalhada no capítulo 2, baseou-se, portanto, na
conjugação entre estudos funcionalistas (cf. CASTILHO, 1968, 2002; GIVÓN, 1995;
HOPPER e THOMPSON, 1980, 1985; VOTRE, 1992) e estudos voltados para a organização-
textual interativa e discursiva (cf. COSTA, 2002; CORÔA, 2005; CASTILHO, 1968, 2002;
TRAVAGLIA, 1991, 1994; BRONCKART, 1999; FIORIN, 1998, 2005; CHARAUDEAU,
2008; PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).
1
Por ‘enunciado’ entendemos uma unidade de comunicação elementar, uma seqüência verbal investida de
sentido e sintaticamente completa.
2
Adotamos, aqui, a noção de enunciação, em âmbito estritamente lingüístico, como um conjunto de operações
constitutivas de um enunciado, o conjunto de atos que o sujeito falante efetua para construir, no enunciado, um
conjunto de representações comunicáveis (cf. CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 193-194).
10
Em consonância com o recorte aqui adotado, nosso objetivo geral é:
? Descrever as configurações sintáticas e semântico-pragmáticas das expressões
lingüísticas que contribuem para expressar valores aspectuais em corpora da fala (entrevistas
semi-informais) e da escrita (crônicas).
A essa meta principal estão associados os objetivos específicos e as respectivas
hipóteses de trabalho em que eles se ancoram:
(i) Estabelecer diferenças entre as categorias de tempo e aspecto.
Hipótese correlacionada:
Muito embora essas categorias sejam intrinsecamente relacionadas, elas apresentam
pontos de distinção, dentre os quais, se destaca o caráter não-dêitico do aspecto em
contraposição à categoria de tempo que é vinculada ao momento da enunciação (cf.
CORÔA, 2005; COSTA, 2002; ILARI, 2001, 2004).
(ii) Examinar os valores aspectuais das expressões lingüísticas em corpora da fala e da
escrita.
Hipótese correlacionada:
A interpretação dos valores aspectuais nos corpora pode diferir, a depender dos
núcleos temáticos (NTs) ou tópicos
3
propostos pelo entrevistador (CASTILHO, 1968,
2002; ILARI, 1992, 2004; TRAVAGLIA, 1994) e, assim também, das modalidades
realis, factual, e irrealis, não-factual (GIVÓN, 1995).
(iii) Analisar o grau de transitividade verbal em que se inserem as expressões
aspectuais, observando sua conexão com os planos discursivos.
Hipótese correlacionada:
Os traços de transitividade mantêm algum tipo de relação com os núcleos temáticos,
mais especificamente com aqueles que contêm seqüências narrativas, em que
pressupomos que o plano da figura, mais relevante, apresente maior grau de
transitividade e o do fundo, menos relevante, menor grau (HOPPER; THOMPSON,
1980, 1985; NEVES, 2001; PEZZATI, 2004; FURTADO DA CUNHA et al., 2003;
SILVEIRA, 1997).
3
Adotamos aqui a noção de tópico proposta por Brown e Yule (1986, p. 69-70): aquilo sobre o qual estamos
falando (aboutness).
11
(iv) Avaliar a contribuição dos advérbios aspectuais para a interpretação aspectual.
Hipótese correlacionada:
A atribuição de um determinado valor aspectual pode ser influenciada pelo uso de um
dado advérbio aspectualizador (ILARI, 1992, 2001, 2004).
(v) Proceder a uma classificação semântica dos verbos.
Hipótese correlacionada:
O falante figurativiza semanticamente o processo verbal ao se posicionar de acordo
com o núcleo temático em questão (GARCIA, 2004; VOTRE, 1992).
(vi) Classificar o tempo e o modo verbal.
Hipótese correlacionada:
Há um consenso entre os autores de que o principal, mas não o exclusivo, mecanismo
de expressão do aspecto é o tempo verbal.
(vii) Observar a correlação entre diferentes configurações aspectuais e a orientação
argumentativa pretendida pelo falante.
Hipótese correlacionada:
Há uma motivação pragmático-discursiva reguladora dos valores aspectuais, a
depender da orientação argumentativa pretendida (FIORIN, 2005; CHARAUDEAU,
2008; PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).
Cumpre enfatizar ainda os seguintes pontos: (a) os grupos de fatores em que baseamos
nossa análise quantitativa e qualitativa foram definidos em função desses objetivos
específicos; (b) o exame dos corpora, a partir desses grupos, vai confirmar ou infirmar as
hipóteses de trabalho postuladas; (c) os núcleos temáticos em que os corpora foram
segmentados foram tratados como uma variável constante a que todos os grupos de fatores se
referiram.
Este trabalho se organiza da seguinte forma: no capítulo 1, tratamos da apresentação
do tema e da relevância deste estudo.
Após a definição do tema de estudo, no capítulo 2 procedemos a uma revisão da
bibliografia a respeito dos estudos existentes sobre o aspecto verbal, ressaltando a distinção
entre tempo aspecto, a contribuição dos advérbios aspectualizadores e a correlação entre a
12
interpretação aspectual e argumentatividade, e no final, apresentamos uma síntese da
perspectiva teórica adotada.
No capítulo 3, definimos o universo de investigação e o tratamento metodológico dos
dados. Apresentamos a constituição da amostra e a especificação dos grupos de fatores que
orientam nossas hipóteses de trabalho.
No capítulo 4, incluímos o tratamento metodológico dos dados baseado nos grupos de
fatores e o confronto entre os resultados de nossas amostras.
No capítulo 5, destacamos os resultados relevantes, contrapondo-os ao objetivo geral e
às hipóteses de trabalho.
No capítulo 6, incluímos as referências, e no 7, os excertos das entrevistas da fala e as
crônicas literárias utilizadas na amostra da escrita.
1.2 Apresentação do problema e sua relevância
Nosso interesse pelo estudo do aspecto foi despertado a partir de um primeiro contato
com o assunto na graduação. Dois fatos chamaram nossa atenção: por um lado, o fato de que
o verbo apresentava noções semânticas particulares não diretamente associadas às noções
gramaticais de tempo, modo, número e voz e, por outro, a própria avaliação de Camara Jr.
(1969, p. 148) enfatizando que os estudos sobre a divisão das formas verbais priorizam a
categoria de tempo em detrimento da categoria aspectual.
Na época, passamos a conhecer um interessante relato do etnógrafo polonês Bronislaw
Malinowski
4
, citado por Camara Jr. (Ibid., p. 147-148), que bem ilustra a importância de se
conhecer a funcionalidade da codificação aspectual do sistema lingüístico em foco:
“Quando comecei a usar a língua trobriândica em meus trabalhos de campo”
conta-nos ele (Malinowski, 1938, 303/4) “não me ocorria em absoluto o que havia
de traiçoeiro em considerar a gramática selvagem pelas suas superficiais aparências,
e cingi-me à maneira dos missionários de aplicar e interpretar as flexões nativas.
Bem depressa aprendi, contudo, quanto havia nisso de incorreto; e aprendi-o graças
4
Bronislaw Malinowski foi o fundador do campo da Antropologia Social conhecido como Funcionalismo, que se baseava no
princípio de que todos os componentes da sociedade interagem para formar um sistema bem equilibrado. Ele estudou
características de crenças, cerimônias, costumes, instituições, religião, rituais e tabus sexuais dos grupos sociais. Iniciou seu
primeiro trabalho de campo em 1915-18, quando estudou os trobianeses de Nova Guiné no Pacífico Sul, buscando explicar
cada fato cultural em função de outras estruturas sociais mais abrangentes. Segundo Macedo (1988, p.72), sua postura pode
ser definida como teleológica (termo chave no funcionalismo), uma vez que adota uma abordagem que analisa e explica uma
coisa em função de outra. Ele contribuiu para o estudo da antropologia transcultural, através de suas observações sobre
relações de parentesco.
13
a um equívoco meu, que perturbou algum tanto a marcha das minhas pesquisas e
forçou-me a assimilar o sistema flexional nativo à custa do meu conforto pessoal.
De certa feita, dedicava-me a fazer observações sobre uma cerimônia
interessantíssima que se realiza numa aldeia lacustre da Trobriândia entre os
pescadores litorâneos e os lavradores do interior. Propuseram-me a assistir a certos
preparativos na aldeia; mas apesar disso não queria perder o espetáculo da chegada
das canoas à praia. Estava assim atarefado em tomar notas e tirar fotografias do que
se passava entre as choças, quando começou a correr de boca em boca a frase “eles
já vieram” “boge laymase”. Interrompi o meu trabalho na aldeia a fim de correr à
praia, um quarto de milha distante; mas, para meu grande desapontamento e
mortificação, eis que diviso as canoas ainda muito ao largo, avançando
morosamente em direção à praia. Achava-me dez minutos adiantado, justamente o
bastante para me fazer perder muitas oportunidades no interior da aldeia”.
“Foi preciso certo tempo e uma muito melhor apreensão da língua nativa” conclui
Malinowski “para me ser dado perceber a natureza do meu equívoco e o emprego
adequado das palavras e formas que exprimem as sutilezas da seqüência temporal. A
raiz ma, que significa vir, mover-se para cá, não coincide com a área significativa
que o nosso verbo chegar (ing. to arrive) abrange. Não há qualquer determinante
mórfico que lhe empreste a peculiar definição temporal das nossas frases eles
vieram, eles chegaram. A locução boge laymase, que eu ouvi nessa memorável
manhã na aldeia lacustre, significa para os nativos eles já estão em movimento
para cá, e não eles já vieram.
Depois das nossas considerações sobre a categoria do aspecto, é fácil perceber a
natureza do equívoco.
O preverbo boge, traduzido por (ing. already), e o prefixo lay equiparado a uma
desinência de pretérito, emprestam à tradução um sentido inexistente no original.
Neste apenas impera a idéia de uma ação começada (aspecto inceptivo) e que está
em desenvolvimento (aspecto resultativo). Se a raiz verbal ma corresponde à noção
de mover-se, a partícula boge indica que eles se moveram, ou melhor, executaram
um movimento, e o prefixo lay acentua a ação que daí se desdobrou. Em boge e lay
não há a idéia de passado, em referência ao momento que se fala, mas de um
impulso realizado e de cujo bojo saiu uma conseqüência a vinda deles. O sentido
mais aproximado da frase trobriândica é assim: “eles puseram-se em movimento e
estão em movimento para cá”.
Como vemos, a interpretação aspectual conferida pelo antropólogo foi feita com base
na sua língua nativa, cuja codificação recorta diferentemente as noções aspectuais terminativa
e inceptiva específicas da língua trobriândica. Esse exemplo ilustra dois pontos focais: (1º) o
aspecto pode ter morfologia própria em algumas línguas e em outras, não; (2º) a configuração
aspectual pode contribuir para a atribuição de sentidos acerca do evento e das intenções
pragmáticas em foco.
Ao ingressarmos na Pós-Graduação, freqüentamos um curso
5
sobre tempo, aspecto e
modalidade. A partir de então, nosso interesse começou a ser direcionado para o estudo das
propriedades semântico-pragmáticas das formas aspectuais, tema apresentado para o projeto
de ingresso ao Mestrado em Letras da UFF.
No entanto, ao procedermos à revisão bibliográfica, constatamos que, apesar de haver
uma rica bibliografia dedicada ao aspecto em diversas línguas, os resultados das pesquisas
5
Trata-se do curso “Tempo, modalidade e enunciação”, ministrado pela Profa. Cláudia Roncarati na Pós-Graduação em
Letras da UFF no segundo semestre de 2005.
14
não foram ainda suficientes para sistematizar essa categoria, conforme enfatiza Castilho, em
sua tese de 1968 (p. 39):
Um número tão grande de estudos deveria ter esclarecido o problema; tal
infelizmente não se deu. Em verdade, são tão díspares os conceitos de aspecto na
rica bibliografia existente que um exaustivo levantamento analítico deste ponto nos
levaria a todo um variado corpo de doutrinas lingüísticas; quem se lançasse a tal
empresa encontraria problemas muito complexos, e os menores não lhe adviriam
daqueles autores que emitem logo de entrada sua opinião acerca dessa categoria.
Pois dentre a centena de autores que pudemos consultar, nada raros são os que,
esquecidos de que a conceituação do aspecto está longe de ser matéria pacifica,
põem-se logo a enumerar seus casos, forçando o leitor a deduzir por conta própria
aquela conceituação.
Assim, o problema com o qual nos defrontamos parece relacionar-se com o escopo
conferido ao tratamento do aspecto que, como já mencionamos, por ser uma categorização
semântica e léxico-sintática, não pode ser analisado isoladamente, pois há elementos
extraverbais, como afirma Ilari (2001, p. 20), que colaboram para a caracterização da noção
aspectual de um enunciado: “[...] a interpretação aspectual de qualquer frase sofre o efeito de
outros fatores, como a flexão, a presença de certos auxiliares, a quantificação do sujeito e dos
complementos e a natureza da ação descrita”. Travaglia (1991, p. 16) igualmente compartilha
deste ponto de vista: “[...] o aspecto é uma categoria que, embora “localizada” no verbo, sofre
influência dos mais diversos elementos presentes na frase e é impossível estudá-lo sem tratar
de sua relação com os demais elementos”.
Desse modo, o enfoque mais amplo que aqui adotamos se justifica e se torna relevante
na medida em que apenas a consideração da natureza lexical do verbo não é suficiente para o
estudo do aspecto. Para tanto, é necessário levar em conta outros elementos do enunciado.
Como pontuou Castilho (1968), a necessidade de observar a atuação desses elementos
extraverbais foi justamente um dos fatores que impulsionou o desenvolvimento do estudo do
aspecto, dando início à chamada fase semântico-sintática das investigações.
15
CAPÍTULO II QUADRO TEÓRICO
2. 1 Breve histórico dos estudos sobre aspecto
Nesta seção, detalhamos a abordagem teórica que fundamenta nossa pesquisa sobre o
aspecto. Inicialmente, apresentamos uma breve trajetória dos seus estudos e delimitamos a
distinção entre tempo e aspecto; a seguir, destacamos alguns pontos de divergência e
convergência entre os autores no que concerne à sua definição, pontuamos a contribuição dos
advérbios aspectuais para a interpretação aspectual, correlacionamos a interpretação dos
valores aspectuais à argumentatividade e, por fim, apontamos o recorte teórico adotado.
A definição básica da noção aspectual está relacionada à duração de um determinado
processo. Segundo Castilho (1968, p. 14-15), o aspecto é considerado a categoria verbal mais
antiga por expressar uma idéia concreta e objetiva de tempo e por estar essencialmente
vinculada à idéia de processo, não levando em conta o momento da enunciação. A primeira
vez que se falou em uma categoria hoje denominada de aspecto, foi para considerá-la uma
‘qualidade do tempo’:
[...] com o andar das pesquisas, notou-se que a nova categoria, conquanto
relacionada em diversos pontos com o tempo, dele se afasta nisto que representa
uma atualização espacial, qualitativa do processo verbal, enquanto que o tempo se
empenha sobretudo em sua vinculação com um dado momento (Ibid., p. 39).
A categoria de aspecto já era analisada no grego antigo e no latim. No trabalho de
Castilho (1968, p. 21), consta que o gramático Georg Curtius (1936), estudando o verbo
grego, identificou os “graus de tempo”, a saber: o passado, presente e futuro e a “qualidade do
tempo” (Zeitart), que comporta três possibilidades: ação durativa, expressa pelo presente;
ação incipiente, expressa pelas formas do aoristo, e ação completa, representada pelo perfeito.
Com esses pressupostos, Curtius chamou a atenção para a categoria de aspecto, que começou
então a ser objeto de pesquisa em diversos domínios lingüísticos.
É importante destacar que o estudo de Curtius possuía caráter comparatista, pois
buscava na língua grega a noção aspectual observada por ele anteriormente no eslavo. A partir
dessa investigação, o aspecto, que havia sido identificado primeiramente no eslavo, foi
também identificado no grego, no indo-europeu, no latim e nas línguas românicas.
Dentro desses domínios lingüísticos, o estudo do aspecto desenvolveu-se do modo que
se segue.
16
A Lingüística Histórica teve fundamental importância como modelo teórico de análise,
pois a categoria de aspecto foi identificada a partir de um estudo comparatista. Dentro desse
enfoque teórico, buscou-se fixar uma tipologia aspectual, ainda com base na comparação
entre o grego e o eslavo, o que acarretou uma certa confusão terminológica ao se misturarem
termos utilizados para o estudo do aspecto nas duas línguas. Posteriormente, Guillaume
(1929) desenvolveu teorias psicológicas sobre o verbo, fundindo a fase do desenvolvimento
do processo (aspecto) ao momento em que se encontra situado (tempo), afirmando que o
aspecto é “tempo implicado” e tempo (categoria verbal) é “tempo explicado”. O tempo
implicado refere-se à fase do desenvolvimento do processo e o tempo explicado, ao momento
em que se encontra o desenvolvimento dessa ação por ocasião do momento da enunciação.
Como vemos, a relação intrínseca entre as categorias verbais de tempo e aspecto já era então
considerada nesse estágio das análises.
Lembremos que, conforme salienta Castilho (2002, p. 84-85), o aspecto não dispõe de
morfologia própria no português e que, portanto, para codificar os valores aspectuais, o
falante faz uso de diversos recursos lingüísticos, cujo estudo acabou por desenhar a própria
história da aspectologia, cujas fases foram assim delimitadas:
1) Fase léxico-semântica: nela foram identificadas as classes semântico-aspectuais do
verbo, também denominadas Aktionsarten. Essa fase, que atribuiu noções aspectuais ao
semantema verbal, estendeu-se até a década de 1960. Dentro dessa perspectiva estão
observações de Diez (1876), Bello (1883), Jesppersen (1924) e Bull (1960).
2) Fase semântico-sintática ou composicional: nessa fase o aspecto é examinado como
resultante da combinação da Aktionsart (ou modo de ação) do verbo com a flexão, com os
verbos auxiliares, os argumentos e os adjuntos verbais. A partir daí, o aspecto passa a ser
concebido como uma propriedade da predicação. O trabalho de Castilho (1968, 2002) e de
Travaglia (1991,1994) estão inseridos nessa fase.
3) Fase discursiva: observa a significação contextual da emergência dos aspectos. São
investigadas as condições discursivas. Destacam-se Hopper e Thompson (1980, 1985).
Após esse breve histórico do desenvolvimento dos estudos do aspecto, apontaremos
alguns traços distintivos entre tempo e aspecto.
Na revisão da literatura dentro das diferentes perspectivas observadas, optamos por
discutir a noção de aspecto com base em certas noções pertinentes: a definição de aspecto
17
como fases, a distinção entre aspecto e Aktionsart, a definição de tempo interno, a
representação espacial da ação e a natureza não dêitica do aspecto.
2.2 Distinção entre tempo e aspecto
Na literatura pesquisada, as definições de aspecto estão intrinsecamente relacionadas à
categoria verbal de tempo. Uma vez que a relação entre as categorias de tempo e aspecto é
intrínseca, torna-se necessário que ambas as categorias estejam delimitadas.
Vejamos, então.
Para Castilho (2002), embora tempo e aspecto sejam propriedades da predicação, há
uma forte distinção entre eles. Para o autor, a natureza dêitica do tempo decorre do fato de ele
remeter à situação de fala. Devido ao seu vínculo com a situação de fala, a categoria de tempo
pode expressar as noções de anterioridade, simultaneidade e posterioridade. Nos termos do
autor, o tempo pressupõe o aspecto, mas o aspecto não pressupõe o tempo e este é o
primeiro diferencial entre ambas as categorias.
Para que essas duas categorias sejam bem definidas, é necessário compreender que o
conceito de tempo pode ser utilizado em três sentidos básicos:
1) o tempo como uma categoria verbal (assim como as demais categorias de modo,
número e pessoa);
2) o tempo como flexão temporal, indicada, por exemplo, pelos morfemas verbais das
conjugações, como presente do indicativo, pretérito imperfeito do indicativo e futuro do
subjuntivo; nessa concepção, falamos de tempos flexionais;
3) o tempo como idéia geral e abstrata, sem indicação no verbo ou em qualquer outro
elemento da frase. É a noção física de tempo, inerente ao processo verbal. Ao longo do
trabalho, o tempo nessa definição será escrito TEMPO.
As noções de tempo como algo geral e abstrato e a de tempo flexional podem ser mais
esclarecidas a partir dos exemplos apresentados por Travaglia (1994, p. 42):
(1) Amanhã irei a Santos
Tempo: futuro
Tempo flexional: futuro do presente
18
(2) Amanhã vou a Santos
Tempo: futuro
Tempo flexional: presente do indicativo
Nos exemplos (1) e (2), independente da flexão verbal, temos a idéia de tempo futuro.
Já o aspecto é uma categoria ligada à idéia de TEMPO, pois ele indica o espaço
temporal ocupado pela situação em curso, o tempo gasto na realização de uma determinada
ação. Tanto as categorias verbais de tempo quanto as de aspecto são ligadas a essa noção de
TEMPO.
O segundo ponto que difere as duas categorias é a natureza não dêitica do aspecto,
que focaliza o tempo interno da situação. A referência feita pelo aspecto não está vinculada ao
momento da enunciação, trata-se de uma propriedade da sentença.
O aspecto e o tempo são categorias temporais (referentes ao tempo cronológico) no
sentido de que têm por base referencial o tempo físico. Distinguem-se, contudo, do ponto de
vista semântico, basicamente a partir da concepção do chamado tempo interno (o aspecto),
diferente do tempo externo (o tempo como categoria verbal). As noções semânticas do âmbito
do tempo dizem respeito à localização do fato enunciado relativamente ao momento da
enunciação; trata-se, em linhas gerais, das noções de presente, passado e futuro e suas
divisões. Já as noções semânticas do âmbito do aspecto são: duração, instantaneidade,
começo, desenvolvimento e fim. Para exemplificar melhor essa noção, observemos os
exemplos apontados por Costa (2002, p. 19):
Quando um falante diz:
(3) Caminhei muito ontem,
sua intenção é expressar que a ação ocorreu antes do momento em que ele se situa
temporalmente. O fato “caminhar” está ancorado na dêixis, ou seja, há um momento de
referência temporal que define o “ontem”, de modo que não se trata de um referente fixo, a
depender do momento de referência.
Quando o falante diz:
(4) Estive caminhando por muito tempo,
sua intenção é expressar não só a referência ao tempo em que a ação ocorreu com relação ao
momento da fala, mas também com relação ao desenvolvimento dessa ação. O falante chama
atenção para o tempo interno ao fato; é como se “víssemos” o tempo se escoando, como se ele
19
se concretizasse no espaço. Assim, enquanto a categoria de tempo trata o fato como ponto
distribuído na linha do tempo, a categoria de aspecto trata o fato como passível de conter
frações de tempo que decorrem dentro de seus limites.
Com relação à dêixis, a referência à ação feita pelo aspecto independe do ponto dêitico
da enunciação, visto que “[...] centra o tempo no fato, e não o fato no tempo” (COSTA, op.
cit., p. 21). A referência temporal feita pelo aspecto não pressupõe o momento de referência,
pois enfoca a constituição temporal interna do fato. Ainda segundo Costa, o tempo inerente ao
próprio processo denomina-se aspecto. É o que há de não-dêitico, pois ao passo que o tempo é
uma propriedade da sentença e da enunciação, o aspecto é propriedade apenas da sentença,
uma vez que não se refere ao momento em que esta se dá. A autora, ao definir as
características do aspecto, destaca que muitas vezes, ele é identificado como a duração do
processo. No entanto, consideramos que essa identificação é inadequada, pois a noção
temporal que se expressa no aspecto transcende a uma representação linear do tempo.
Dessa forma, podemos concluir que as categorias verbais de aspecto e tempo, embora
tenham como base referencial o tempo físico, distinguem-se pelo fato de o aspecto representar
uma atualização espacial qualitativa do processo verbal, enquanto o tempo vincula o evento
ou processo em um dado momento da enunciação. Alguns autores, como Costa (op. cit.),
destacam que o tempo no sentido cronológico é uma propriedade da sentença e da enunciação,
ao passo que o aspecto, como já salientamos, é uma propriedade apenas da sentença, pois não
faz referência ao ponto dêitico da enunciação.
É ponto pacífico entre os autores que o aspecto é uma categoria verbal não dêitica, ao
passo que a categoria de tempo é dêitica, como enfatiza Travaglia (1994, p. 43):
[...] as duas categorias não se confundem, pois o tempo situa a ocorrência do fato
verbal em relação ao momento da fala como anterior (passado), simultâneo
(presente), ou posterior (futuro). O tempo é uma categoria dêitica, pois indica o
momento do fato relativamente à situação de enunciação. Já a categoria de aspecto
não é dêitica, pois se refere ao fato em si, sem colocá-lo em relação com o momento
da enunciação. Para efeito de distinção, pode-se dizer que o tempo é externo à
situação, e o aspecto é um tempo interno à situação.
Considerando que tempo e aspecto são categorias interligadas e levando em conta a
natureza não dêitica do aspecto em relação à natureza dêitica da categoria de tempo, alguns
autores (cf. CORÔA, 2005, p. 41; FIORIN, 2005, p. 145; MATEUS et al., 2003, p. 131)
distinguem três momentos relevantes para a descrição estrutural do tempo na localização dos
eventos e aqui temos o terceiro ponto diferenciador entre tempo e aspecto:
20
(i) o momento da fala (MF), também chamado momento da enunciação, momento da
realização da fala; momento em que se faz a enunciação sobre o evento (processo ou ação); é
o tempo da comunicação;
(ii) o momento do evento (ME), que diz respeito ao tempo do acontecimento descrito
na frase, ou seja, o momento em que se dá o evento (processo ou ação) descrito; é o tempo da
predicação;
(iii) e o momento de referência (MR), que serve como ponto básico a partir do qual se
situa o evento em questão; é o sistema temporal fixo com respeito ao qual se definem
simultaneidade e anterioridade; é a perspectiva do tempo relevante, que o falante transmite ao
ouvinte.
Mateus et al. (op. cit, p. 131) assim ilustram esses três momentos essenciais da
localização temporal:
(5) A Maria vive no Porto.
Neste exemplo, os três momentos coincidem (MR=MF=ME), uma vez que o presente
marca uma coincidência entre o momento do acontecimento e o momento de referência
presente.
(6) O Pedro saiu.
Nesse exemplo, o momento do evento (ME) ocorre no passado, sendo anterior ao
momento da fala.
(7) João já tinha sido demitido quando adoeceu.
Aqui as duas ações descritas são anteriores ao momento da fala, porém, a demissão de
João ainda é anterior à sua doença.
Esses três momentos (MF, ME, MR) são fundamentais para a compreensão da
temporalidade de um enunciado, pois o vínculo ao momento de referência destaca a natureza
dêitica da categoria de tempo, sendo este o principal ponto que o difere da categoria de
aspecto.
Essa perspectiva tricotômica do tempo se deve ao fato de os tempos gramaticais serem
articulados em três domínios (passado, presente e futuro), que permitem falar de uma relação
de anterioridade, simultaneidade ou posterioridade do tempo relativamente ao momento
escolhido como o de referência.
21
A distinção entre esses três momentos relevantes será posta em confronto com a
análise do tempo e do modo verbal.
Um quarto e último ponto a ser considerado é a questão da visão objetiva ou subjetiva
associada à interpretação aspectual. Há duas correntes em foco: aquela que, baseada na
representação espacial do processo, estabelece uma relação objetiva entre o processo e o
estado expressos pelo verbo e a idéia de duração ou desenvolvimento. Tal definição,
conforme afirma Castilho (1968, p. 14), leva em conta a realidade etimológica da palavra
‘aspecto’ (que encerra a raiz * spek = ‘ver’) e prioriza a objetividade característica da noção
aspectual. A essa visão, podemos contrapor a subjetividade da noção temporal. O aspecto
pode ser visto como o ponto de vista subjetivo do falante em relação ao desenvolvimento e ao
grau de realização da ação e não a sua natureza própria, que é a Aktionsart. Tal visão se
reveste de caráter pragmático, no sentido de que para organizar suas expressões lingüísticas, o
falante tece cálculos de estimativa acerca da informação pragmática reinante no evento
interativo, e o faz visando provocar alguma mudança na informação pragmática do
interlocutor (cf. DIK, 1989).
Após apresentar os quatro aspectos tidos como fundamentais para distinguir entre
tempo e aspecto, destacamos, na seção seguinte, as noções teóricas sobre o aspecto que
julgamos relevantes para sua melhor caracterização.
2. 3 Categoria de aspecto: noções pertinentes
Conforme já mencionamos na introdução, observamos que, no tratamento conferido à
categoria de aspecto, nem sempre há consenso com relação à sua definição. Na perspectiva
dos estudos tradicionais, embora algumas obras utilizem a terminologia “aspecto”, elas tratam
prioritariamente da forma de conjugação em detrimento das noções semânticas que o definem.
Vejamos, nessa perspectiva, o tratamento conferido ao aspecto por Cunha e Cintra
(1985), Bechara (2004) e Camara Jr. (1969).
Cunha e Cintra (op. cit., p. 370) conceituam a categoria de aspecto como “[...] o ponto
de vista do qual o locutor considera a ação expressa pelo verbo.” Os autores consideram as
oposições entre pontual/durativo, incoativo/conclusivo e contínuo/descontínuo, e afirmam que
estas baseiam-se fundamentalmente na formação de perífrases verbais:
Como vemos, tais oposições se baseiam fundamentalmente na diversidade de
formação das perífrases verbais.
22
De um modo geral, pode-se dizer que as perífrases construídas com o particípio
exprimem o aspecto acabado, concluído; e as construídas com o infinitivo ou o
gerúndio expressam o aspecto inacabado, não concluído. (CUNHA; CINTRA, 1985,
p. 370).
Para Bechara (op. cit., p. 213-220), que adota uma visão coseriana, as categorias de
tempo e aspecto são relacionadas entre si, e as características apresentadas não se referem a
uma categoria somente. Nos termos coserianos, a interpretação do verbo românico em relação
às categorias de tempo e aspecto fundamenta-se nas seguintes subcategorias verbais:
1) Nível de tempo refere-se a uma estrutura temporal dupla do verbo românico: há
um plano que coincide com a linha do tempo presente (nível atual) e outra paralela, na qual se
situam ações que não se referem a essa linha do tempo e representam outra ação (nível
inatual). O nível atual teria como centro o presente e o inatual, o imperfeito.
2) Perspectiva primária Enquadra a posição do falante (F) em relação ao processo
verbal. O falante pode conceber a ação como paralela a si mesma, antes desse ponto, ou
depois dele. Dentro desses parâmetros, a perspectiva primária pode ser paralela, retrospectiva
ou prospectiva:
passado
retrospectiva
presente
paralela
futuro
prospectiva
atual fiz faço farei
inatual fizera fazia faria
Quadro 1: Posicionamento do falante em relação ao processo verbal segundo Bechara (2004)
3) Perspectiva secundária Consiste no fato de que cada espaço temporal delimitado
pela perspectiva primária pode ser disposto novamente segundo o mesmo princípio:
presente
tenho feito
tinha feito
faço
fazia
vou fazer
ia fazer
passado tive feito
tivera feito
fiz
fizera
fui fazer
fora fazer
futuro terei feito
teria feito
farei
faria
iria fazer
irei fazer
Quadro 2: Desdobramento da perspectiva temporal segundo Bechara (2004)
23
4) Duração Categoria que se refere ao lapso em que se dá a ação verbal. A ação
pode ser durativa, momentânea ou intermitente.
5) Repetição A categoria da repetição diferencia-se da duração por distinguir a ação
única (semelfactiva) da ação repetida (freqüentativa).
6) Conclusão Categoria que afirma que uma ação pode ser considerada conclusa,
inconclusa ou sem traços de conclusão.
7) Resultado Permite observar que uma ação pode ser assinalada como com
resultado (resultativa) ou sem resultado (não resultativa). Esse resultado pode ser subjetivo se
afetar o sujeito agente ou objetivo se representar um produto.
8) Visão Categoria segundo a qual o falante pode considerar a ação verbal em seu
todo ou parcialmente.
9) Fase Trata-se da relação entre o momento da observação e o grau de
desenvolvimento da ação observada. Para Bechara, distinguem-se as seguintes fases:
? fase iminente observa a ação em seu começo. É indicada por perífrases verbais,
como estar para + infinitivo (estar para escrever).
? fase inceptiva marca o ponto inicial da ação, como a combinação lexical começar
a, e perífrases como pôr-se a + infinitivo, meter-se a + infinitivo.
? fase progressiva considera a ação em seu desenvolvimento. É expressa pela
perífrase ir + gerúndio (vou dizendo).
? fase continuativa considera a ação no meio de seu desenvolvimento. Expressa-se
por seguir + gerúndio ou por combinações léxicas (sigo escrevendo, continuo a).
? fase regressiva e conclusiva - considera a ação em seu término ou em sua fase final.
Expressa-se exclusivamente com perífrases verbais (terminar de + infinitivo).
? fase egressiva considera a ação após seu término. Expressa-se por acabar de +
infinitivo.
Destacamos aqui que a perspectiva adotada por Bechara não observa a separação das
características das categorias de tempo e aspecto, tratadas conjuntamente. Esse tratamento
pode gerar uma certa confusão na distinção entre as duas categorias. Eis a síntese do
tratamento proposto por Bechara, aqui já comentado:
24
Aspecto Valor
Pontual assinala um processo realizado de maneira súbita ou instantânea;
durativo assinala a duração do processo, podendo ser cursivo, ao desenrolar-se simplesmente ou iterativo
ao repetir uma série de processos pontuais;
permansivo determina o processo como permanente em seus efeitos;
inceptivo marca apenas o início de um processo;
cessativo marca o fim de um processo;
resultativo registra resultados do um processo já realizado
Quadro 3: Tipologia aspectual proposta por Bechara (2004)
Ainda segundo Bechara (op. cit.), em português, alguns aspectos são radicados na
significação do próprio verbo, como partir e chegar, inceptivo e cessativo respectivamente.
Outros aspectos por sua vez, codificam-se por meio de sufixos, como o iterativo (saltitar). No
nível lexical, observamos esses dois casos de expressão aspectual, ao passo que, no
gramatical, observamos as conjugações compostas, que expressam o aspecto cursivo (estou
cantando, estive cantando, estarei cantando). As formas verbais simples trazem em si uma
significação aspectual, como os processos iterativos, indicados pelo presente do indicativo
(levanto cedo, saio de casa às sete horas). A oposição entre o pretérito perfeito e imperfeito
constitui a distinção entre os aspectos concluso e inconcluso (cantava/cantei, partia/parti).
Camara Jr. (1969, p. 140-148), por sua vez, define o aspecto como a maneira de ser da
ação, apresentando o processo verbal do ponto de vista da sua duração. É o aspecto que define
partir como uma ação inceptiva e chegar, como terminativa. Para o autor, a divisão das
formas verbais pela categoria de tempo assinala a época da ocorrência do evento em relação
ao momento em que se fala. Sendo assim, torna-se necessário observar o aspecto, que
considera a duração do processo em si mesmo, apresentando-o a partir das seguintes
perspectivas: (1) como um ponto, ou instantâneo; (2) como uma linha apreciável de duração,
contínua ou repetida; (3) como apenas iniciado; (4) como concluso e (5) como permanecendo
em seus efeitos depois de realizado.
Na perspectiva textual-interativa, um dos estudos mais exaustivos a respeito do
aspecto verbal é o trabalho de Travaglia (1991, 1994), no qual se encontra uma detalhada
revisão da literatura e uma reformulação do quadro aspectual proposto por Castilho (1968),
este último retomado mais adiante.
Com base nas definições de aspecto revistas em sua obra, Travaglia (1994, p. 44)
apresenta a seguinte definição:
25
Aspecto é uma categoria verbal de TEMPO, não dêitica, através da qual se marca a
duração da situação e/ou suas fases, sendo que estas podem ser consideradas sob
diferentes pontos de vista, a saber: o do desenvolvimento, o do completamento e o
da realização da situação.
A definição de aspecto de Travaglia focaliza a noção de fase, que diz respeito ao ponto
de vista da realização aspectual:
(a) A fase em que a situação ainda não começou. É apresentada como algo ainda por
fazer:
(8) Esta gaveta está por arrumar, mas só farei isso quando tiver tempo.
(9) Seu irmão está para chegar.
(b) A fase em que a situação já esta começada:
(10) Os rapazes continuam jogando apesar da chuva.
(11) Mesmo percebendo notas de desagrado, o conferencista prosseguia expondo seu
ponto de vista.
(c) A fase em que a situação já terminou:
(12) O treinador do time esteve doente.
(13) Pedro pulara o muro com facilidade.
A partir do momento em que a situação entra em realização, dizemos que ela já está
em curso, e, a partir desse ponto, podemos delimitar as fases de seu desenvolvimento.
Vejamos alguns exemplos extraídos do nosso corpus da fala
6
:
a) Início a noção aspectual que caracteriza a ação em seu início é denominada
inceptividade:
(14) Mas já tá... já tá... a partir a partir do momento que a gente começa a se conhecer
melhor já tá... já tá dando pra... se comunicar melhor. (LUC, 63)
(15) É, várias coisas. Então eu não sabia por onde começar. Aí comecei falando o negócio
de vestibular. Depois achei que num tinha nada a ver. Aí começa a vir o Alexandre
falando lá na frente... a tua redação tá errada... aquele negócio, eu já tava cheia de
tanto fazer questão. (MAR, 59)
6
Por convenção, as gravações de nosso corpus da fala são identificadas com as três primeiras letras do nome informante,
para preservar sua identidade, e o respectivo número da entrevista. Ressaltamos que os critérios para a constituição e a
caracterização de nossos corpora encontram-se no capítulo 3.
26
b) Meio quando a ação é apresentada em pleno curso, temos a cursividade. Nesse
caso, é concebida como já passados seus primeiros momentos e ainda não tendo atingido seus
momentos finais:
(16) Ontem, por acaso, é, eu tava voltando da cidade, né? Eu tava pra atravessar a rua,
quando eu olhei pra trás, tinha uma criança sozinha e já vinha atravessando também.
(GUAL, 56)
(17) Tava ele conversando com os colegas, chegou o assaltante levou o carro. (LUC, 63)
c) Fim a noção aspectual de terminatividade ocorre quando a ação é apresentada em
seus momentos finais, ou no seu ponto de término:
(18) Você parava pra ver, ou às vezes sem vela mesmo, como se tivesse acabado de ser
acidentado. Parava pra ver, era um assalto. (LUC, 63)
(19) E: Você acha que as mulheres continuam ganhando menos do que o homem, agora?
F: Não. Isso tá acabando. (MAR, 59)
Travaglia (1994, p. 85) apresenta um detalhado quadro aspectual englobando essas
noções de fases, e que sintetiza os pontos focais que aqui já discutimos:
27
NOÇÕES ASPECTUAIS
ASPECTOS
a. Limitada Durativo
A. Contínua
b. Ilimitada Indeterminado
a. Limitada Iterativo
1. Duração
B. descontínua
b. Ilimitada Habitual
I. DURAÇÃO
2. Não-Duração ou Pontualidade Pontual
A. Por Começar Não-começar
B. Não-acabado ou Começado
Não-acabado ou
começado
1. Fase
Realização
C. Acabado Acabado
A. Início (No ponto de início ou nos
primeiros momentos)
Inceptivos
B. Meio Cursivo
2. Fase de
Desenvolvimento
C. Fim (No ponto de término ou nos
últimos momentos)
Terminativos
A. Completo Perfectivo
II. FASES
3. Comple-
tamento
B. Incompleto Imperfectivo
Ausência de noções aspectuais
Aspecto não-
atualizado
Quadro 4: Tipologia aspectual proposta por Travaglia (1994)
Outro ponto relevante no estudo do aspecto é sua definição como estrutura temporal
interna de um determinado evento, conforme observa Travaglia (op. cit., p. 43):
A categoria de aspecto não é uma categoria dêitica, pois se refere à situação em si.
Como diz Comrie (1976), o aspecto são as diferentes maneiras de ver a constituição
temporal interna da situação, sua duração. Assim, para efeitos de distinção
podemos dizer que o tempo é “um tempo externo à situação” e o aspecto á “um
tempo interno à situação”. (Grifo do autor)
A definição de aspecto como estrutura temporal interna é ponto pacífico entre os
estudiosos do assunto, como veremos nas definições adiante.
Com relação à representação espacial do processo, Travaglia (op. cit., p. 46), ao
considerar o TEMPO envolvido na ocorrência de uma situação, propõe a seguinte figura:
28
A A’ B B’
_ _ a_ _ _ ___¦______¦________________________¦_______¦___ _ _ _ ß _ _
Figura 1: Representação espacial do processo (TRAVAGLIA, 1994)
Na representação proposta por Travaglia, a é o TEMPO em que a situação ainda não é
começada e ß o tempo em que ela é acabada. A é o ponto de início da situação, B o ponto de
término. O segmento AB é a duração da situação, seu TEMPO de desenvolvimento. AA’
representam os momentos iniciais da situação e BB’ os momentos finais.
Identificando os segmentos do esquema de Travaglia com os aspectos por eles
representados, teríamos o seguinte esquema:
AB - aspecto imperfectivo cursivo
AA’- aspecto imperfectivo inceptivo
BB’- aspecto imperfectivo terminativo
É importante destacar que a Figura 1 enquadra a expressão da duração somente. O
perfectivo e suas submodalidades não são representados linearmente por representarem ações
pontuais.
O autor ainda cita ações cujos limites temporais não são definidos. Os limites A e B
não são aplicáveis a essas ações por não serem definidos nem sugeridos. Podemos citar como
exemplo dessas ações atemporais frases que expressam princípios científicos ou verdades
“eternas”. Esclarecemos que os dois primeiros exemplos foram extraídos do nosso corpus da
fala, sendo os demais de Travaglia.
(20) Enquanto vida, esperança. (NOR, 58)
(21) Acho que felicidade, pô! Pra mim é um troço complexo (PAU, 51)
(22) A Terra gira em torno do Sol.
(23) A verdade não envergonha.
Fiorin (2005, p. 150) denomina esse tipo de ação, cujo momento de referência é
ilimitado, de presente omnitemporal ou gnômico. O autor lista as circunstâncias expressas
pelo presente gnômico:
29
(a) Provérbios e máximas:
(24) Deus ajuda a quem cedo madruga.
(b) Definições:
(25) O homem é um animal racional.
(c) Descrição de estados tidos como imutáveis:
(26) O rio Tietê passa por São Paulo.
(d) Relato de transformações consideradas necessárias:
(27) Quem ama perdoa.
O presente gnômico será observado na análise dos nossos corpora da fala e da escrita.
A representação espacial do processo e, assim também, a noção de aspecto como fases
representam um importante passo na definição da categoria de aspecto, pois ela nos permite
observar melhor o desenvolvimento das fases de uma ação, independentemente do ponto
dêitico da enunciação, enfatizando a natureza não dêitica do aspecto.
Uma observação crítica merece ser destacada. De modo geral, cumpre enfatizar que a
caracterização do aspecto verbal em relação aos usos funcionais e à produção discursiva é
tópico ainda não suficientemente explorado nos estudos em que nos detivemos. Em nosso
trabalho, propusemos uma análise aspectual associada à função discursivo-interativa dos
advérbios aspectualizadores, à classificação dos verbos em um continuum semântico e à
utilização das modalidades realis e irrealis, a partir de corpora da fala e da escrita.
Acreditamos que esses elementos contribuíram para uma análise global do aspecto dentro da
sua estruturação no enunciado.
Costa (2002) apresenta as definições de Comrie (1976), as quais afirmam que “[...]
aspectos são diferentes modos de observar a constituição temporal interna de uma situação”, e
de Lyons (1979), que assevera que o aspecto não diz respeito ao tempo, mas ao “contorno ou
distribuição temporal” de um acontecimento ou estado de coisas, e não à sua “localização no
tempo”. Com base nas definições já estabelecidas, Costa (op. cit.) aponta as características
atribuídas à categoria de aspecto que merecem destaque:
a) o aspecto não faz referência à localização temporal;
b) refere-se à constituição temporal interna;
30
c) vincula a categoria a situações, processos ou estados;
d) indica a “representação espacial” do processo.
As características apresentadas serão mais bem desenvolvidas e exemplificadas ao
longo do trabalho.
Para Costa (op. cit.), a referência ao TEMPO na língua portuguesa conta com duas
categorias lingüísticas para sua expressão: o tempo e o aspecto. Ambas as categorias têm o
tempo físico como base referencial, porém, distinguem-se do ponto de vista semântico, a
partir da concepção de tempo interno (aspecto) e tempo externo (tempo).
Já Mateus et al. (2003, p. 129) afirmam que o aspecto fornece informações sobre a
forma como é perspectivada ou focalizada a estrutura temporal interna de uma situação
descrita pela frase, em particular pela sua predicação. Castilho (2002, p. 83) define o aspecto
como uma propriedade de predicação que consiste em representar os graus de
desenvolvimento de uma situação, ou seja, as fases que ele pode compreender. Essas
definições diferem das demais por inserir na conceituação da categoria a relação de
predicação.
Tradicionalmente, distingue-se aspecto de Aktionsart (ou modo de ação)
considerando-se o primeiro fundamentalmente gramatical, realizando-se através de morfemas
flexionais e o segundo, natureza lexical. Para Mateus et al. (op. cit. p. 133), no entanto, essa
distinção não é completamente adequada, pois é possível veicular informação aspectual
recorrendo a diferentes processos lingüísticos, que não sejam exclusivamente por meio de
morfemas flexionais e da natureza lexical do verbo. Em português, além da natureza
semântica dos predicados, as informações aspectuais distribuem-se pelos afixos que
contenham informação temporal e por construções perifrásticas. Observem-se os exemplos
que os autores põem em confronto:
(28) Ontem, a criança comeu um chocolate.
(29) A criança comeu o chocolate num minuto.
(30) A criança está comendo um chocolate.
(31) A criança tem comido um chocolate todos os dias.
(32) A criança come chocolates.
Neles, observamos que as diferenças aspectuais provêm dos advérbios, como em (31),
onde o adjunto adverbial todos os dias enfatiza a idéia de repetição, favorecendo o aspecto
iterativo. As construções perifrásticas em (30) (está comendo) e, em (31), (tem comido)
31
favorecem o aspecto cursivo e o iterativo, respectivamente. A natureza do complemento em
(32) (chocolates) também reforça o aspecto iterativo.
A Aktionsart é, pois, uma definição relacionada à natureza da ação, representada pela
natureza do lexema verbal. Para Castilho (1968, p. 40), o modo de ser ação representa uma
compreensão mais ampla das noções aspectuais, e reside no próprio valor semântico do verbo.
No trabalho de 2002, o mesmo autor define a Aktionsart como a natureza da ação,
distinguindo as ações às quais se aplica a noção de fases ou não. O autor propõe uma análise
do sentido lexical dos verbos com base nos seguintes exemplos:
(33) A criança brinca no jardim.
(34) A criança caiu do balanço.
Em (33) não é necessário que a ação de brincar chegue ao seu fim para que ela tenha
existência. Já em (34), é necessário o término da ação para que ela exista. A ação de brincar
basta apenas ter sido iniciada para que a predicação centrada nesse verbo passe a existir. A
ação de cair, por sua vez, necessita de um começo e fim quase simultâneos. A esse tipo de
ação se atribui uma propriedade de instantaneidade. É essa a noção de Aktionsart proposta
pelo autor. Com base nessa noção, podemos distinguir verbos de fase e verbos de ação global,
também denominados verbos atélicos e télicos, respectivamente.
Para esclarecer a idéia de verbos télicos e atélicos, pode-se aplicar o seguinte teste,
proposto por Castilho (2002, p. 89):
Se a resposta a esse teste for afirmativa, o estado de coisas descrito não necessita de
um desfecho para afirmar que a ação efetivamente ocorreu. O verbo então será atélico. Se a
resposta for não, a ação necessita de um desfecho para afirmar sua ocorrência. Nesse caso, o
verbo é télico.
Podemos usar os seguintes exemplos, ainda de Castilho (op. cit. p. 89), para melhor
esclarecer essa noção:
(35) Se alguém estava cantando, mas foi interrompido quando cantava, pode-se dizer que
cantou? A resposta é afirmativa, a ação ocorreu ainda que por pouco tempo. Logo, o
verbo cantar é atélico.
Se alguém estava-ndo, mas foi interrompido quando va/-ia, pode-se dizer que dizer que - ou?
32
(36) Se alguém estava caindo, mas foi interrompido quando caía, pode-se dizer que caiu?
A resposta é negativa, a ação não chegou ao seu fim, logo não ocorreu. Dessa forma,
o verbo cair é télico.
Cumpre salientar que esse teste, sem que se leve em conta algumas exceções, pode
gerar algumas complicações de classificação, uma vez que podemos nos deparar com verbos
cuja telicidade ou atelicidade pode ser relativizada de acordo com seu contexto de uso.
Tomemos como exemplo o verbo ganhar.
A ação de ganhar pode ser ‘faseável’ ou não, a depender de sua significação. No
exemplo “Os alemães estavam ganhando a guerra”, notamos que a ação de ganhar não está
sendo considerada em seu todo, ou seja, de forma télica. Podemos considerar a ação, neste
exemplo, como possível de chegar ao seu final. Já em “A doença estava ganhando terreno,
mas foi erradicada pela saúde pública”, observamos o caráter atélico da ação de ganhar,
representada como ‘faseável’, pois a ação aconteceu em parte, sem necessariamente ser
mencionado seu fim, como ocorre com as ações denominadas télicas.
De qualquer modo, a depender do contexto, o exame dos dados pode revelar se a
categoria de telicidade poderia ou não exibir um continuum ou gradiência.
É importante destacar, porém, que a menção às fases internas de uma situação é
condicionada pela natureza do verbo. A noção de fase de desenvolvimento da ação só é
aplicável a verbos atélicos. Nesse ponto, a Aktionsart influencia a aplicabilidade de noções
aspectuais, uma vez que as formas verbais télicas são observadas no seu todo, expressando
ações não marcadas em suas fases internas.
A conceituação da categoria de aspecto em fases representa um ponto importante do
estudo sobre o aspecto, pois tornou possível uma melhor apreciação do aspecto como
construto teórico, sendo a tendência atual no seu estudo, conforme observamos em Ilari
(2004, p. 19):
As formas do verbo, em português, exprimem simultaneamente tempo, modo e
aspecto. Aspecto é uma questão de fases. Dizemos que o verbo do português
exprime aspecto porque ele nos dá a possibilidade de representar o mesmo fato, ora
como um todo indivisível, ora como composto de diferentes “fases”, uma das quais
é posta em foco.
A definição do aspecto como fases torna possível a criação de esquemas de incidência
entre duas ações, relacionando dois fatos. O autor exemplifica a noção de fases analisando o
seguinte segmento narrativo:
33
(37) Quando esteve preso no Rio de Janeiro, Graciliano Ramos estava escrevendo
Angústia.
A relação entre as duas ações se dá por meio de um esquema de incidência. A prisão de
Graciliano Ramos representa uma ação indivisível e localizada, e a redação do romance é
representada como uma ação que tem início antes da prisão, desenvolve-se durante essa prisão
e conclui-se após a soltura. A ação de escrever o romance apresenta fases em seu
desenvolvimento. O esquema de incidência pode ser representado da seguinte forma:
Graciliano escreve Angústia
prisão de Graciliano
Figura 2: Esquema de incidência entre duas ações (ILARI, 2004)
Esse esquema nos permite observar que os dois fatos são relacionados entre si: a
prisão de Graciliano, representada como um todo indivisível, e a redação do romance,
representada como uma ação que se inicia antes da prisão do escritor e concluída após sua
libertação.
Antes de observarmos as definições de cada uma das fases do desenvolvimento de
uma determinada ação, convém que se estabeleça a oposição aspectual básica de perfectivo e
imperfectivo. Essa oposição se define com relação ao ponto de vista da observação dos
acontecimentos. Um fato enunciado pode ter sua constituição temporal interna considerada ou
não pelo falante. Quando essa constituição é considerada, a ação é vista de forma
imperfectiva, quando não, a ação é vista de forma perfectiva.
O fato tratado perfectivamente é visto de maneira global, não é observado em suas
fases de desenvolvimento. Já a ação imperfectiva é observada em sua constituição temporal
interna.
O perfectivo apresenta a ação como um todo inanalisável com começo e fim
observados de forma quase simultânea. Não há possibilidade de dividir a situação em suas
fases de desenvolvimento. Os exemplos a seguir foram extraídos do nosso corpus da fala:
34
(38) Aí, eu pedi licença e botei a chave pra abrir a porta, ele deu a volta atrás de mim,
encostou o revólver, pediu tudo, mas só levou o relógio, porque eu não tinha nada.
(MAR, 59)
(39) É, eu estava atrasado, tinha uma entrevista, pra ver se arranjava um emprego e
quando eu cheguei na rua, tava um cidadão sentado no meu carro. (MAR, 59)
O imperfectivo é definido pelo autor como capaz de apresentar a situação como
incompleta, em uma das fases de seu desenvolvimento, isto é, normalmente, junto à noção
que caracteriza o aspecto imperfectivo, aparecem as noções aspectuais representadas pelas
fases do desenvolvimento da ação:
(40) Para mim felicidade é uma coisa que eu sei que vai pintar, basta que eu continue
levando as coisas assim e leve um pouquinho de sorte, entende? (PAU, 51)
(41) Não sei por que, que demorou tanto tempo, pra começar a se descobrir esse tipo de
coisa. (NOR, 58)
Costa (op. cit., p. 38) compartilha do mesmo ponto de vista de Travaglia ao conceber
fases internas de desenvolvimento somente quando a situação é vista de forma imperfectiva.
Para a autora, apenas ações que portem o traço semântico [+ durativo] apresentam fases, que
podem ser: ação em curso, fase inicial, fase intermediária, fase final e ação resultativa.
Após as definições das noções aspectuais, e das definições das noções de perfectivo e
imperfectivo, vamos observar o quadro aspectual proposto por Castilho (op. cit., p. 49):
Valor Aspecto
duração
completamento
repetição
neutralidade
imperfectivo
perfectivo
iterativo
indeterminado
Quadro 5: Tipologia aspectual proposta por Castilho (1968)
Consideramos que o Quadro 5 não considera as noções presentes em cada
submodalidade aspectual. A expressão da duração, por exemplo, apresenta matizes aspectuais
que devem ser considerados. O autor representa esses matizes graficamente, ilustrando a
definição de representação espacial do processo.
Dentro da modalidade aspectual do imperfectivo (valor de duração), o autor reconhece
três submodalidades (op. cit., p. 49), com suas respectivas representações gráficas:
35
a) A duração da qual são conhecidos os primeiros momentos, pressentindo o
prosseguimento do processo: aspecto imperfectivo inceptivo, representado graficamente da
seguinte forma: ¦ — ...
Essa representação espacial permite observar o ponto de início, seus primeiros
momentos e seu pressuposto desenvolvimento. A inceptividade evidencia o começo de ação
somente (inceptivo propriamente dito) e o começo de ação com conseqüente mudança de
estado (inceptivo incoativo).
b) A duração da qual não são conhecidos os momentos iniciais e finais, sendo
observada em seu pleno desenvolvimento: aspecto imperfectivo cursivo, representado
graficamente por ... — ....
A representação gráfica demonstra que não se faz menção de início ou fim. O autor
identifica duas variantes do aspecto perfectivo cursivo: o cursivo propriamente dito e o
cursivo progressivo, que pressupõe um desenvolvimento gradual do processo.
c) A duração da qual é conhecido o término ou os momentos finais: aspecto
imperfectivo terminativo, representado graficamente por ... —¦
A representação demonstra os momentos finais e o término da ação.
Na modalidade aspectual do perfectivo (valor de completamento), o autor destaca a
indicação precisa do começo e fim do processo, que são separados por um intervalo de tempo
bastante curto e não significativo. O perfectivo apresenta as seguintes subdivisões:
a) perfectivo pontual: ação representada graficamente por um ponto (.);
b) perfectivo resultativo: indica o resultado decorrente do completamento de uma
ação; nesse caso, a ação é acabada, mas seus efeitos permanecem;
c) perfectivo cessativo: pressupõe um término de ação que se reporta até o presente.
O valor de repetição, indicado pelo aspecto iterativo, representa um coletivo de ações,
que podem ser durativas, caracterizando o aspecto iterativo imperfectivo, representado
graficamente por ¦ ¦ ¦¦ ¦¦, ou podem ser pontuais, caracterizando o aspecto
iterativo perfectivo, representado graficamente por . . . . . . ..
A partir da identificação das submodalidades aspectuais e de suas respectivas
representações aspectuais, obtivemos o seguinte quadro:
36
Valores Aspectos/representação espacial
1- Duração Imperfectivo
Inceptivo ¦-...
Cursivo ...-...
Terminativo ...
2- Completamento Perfectivo
Pontual .
Resultativo ... // ?
Cessativo ... // (...)
3- Repetição Iterativo perfectivo .............
Iterativo imperfectivo ¦ ¦ ¦ ¦ ¦ ¦
4- Negação da duração e do completamento Indeterminado
Quadro 6: Representação espacial das modalidades aspectuais, adaptado de Castilho (1968)
Com relação à representação espacial proposta no Quadro 6, cabe uma explicação.
Castilho apresenta as configurações espaciais para os todos os aspectos incluídos no Quadro
6, exceto para o resultativo e o cessativo, que foram propostas por nós.
A definição de aspecto como representação espacial do processo constitui um
importante passo na definição da categoria: é relevante, então, destacarmos a significação dos
símbolos do quadro acima.
As representações espaciais dos valores aspectuais nos permitiu elaborar o seguinte
quadro:
37
Aspecto Representação espacial
Imperfectivo
inceptivo
¦-... O símbolo ¦representa o marco inicial da ação, e - representa seus
momentos iniciais, com prosseguimento da ação indicado por ....
Imperfectivo
cursivo
...-... O imperfectivo cursivo enfoca o meio de uma ação, representado por -,
não observando seus momentos iniciais ou finais, representados por ....
Imperfectivo
terminativo
... O aspecto imperfectivo terminativo enfoca os momentos finais e o término
da ação, representados respectivamente por - e ¦ .
Perfectivo
pontual
. O aspecto perfectivo pontual é representado por um ponto, indicando uma
ação observada de forma global, sem menção a suas fases de desenvolvimento.
Perfectivo
resultativo
... // ? O perfectivo resultativo é representado por ..., que pressupõe o
desenvolvimento da ação, seguido de uma interrupção, indicada por // e o resultado
dessa ação representado pelo símbolo matemático ? , denominado produtório.
Perfectivo
cessativo
... // (...) O perfectivo cessativo pressupõe o desenvolvimento prévio de uma
ação, uma interrupção, podendo haver desenvolvimento ou não, com a
representação (...) indicando esse desenvolvimento posterior como opcional.
Iterativo
perfectivo
............. O iterativo perfectivo é representado por uma seqüência de pontos,
representando ações perfectivas ocorridas de forma sucessiva.
Iterativo
imperfectivo
¦ ¦ ¦ ¦ ¦ ¦ O aspecto iterativo imperfectivo é representado por uma
seqüência de ações ocorridas de forma sucessiva e que não apresentam
necessariamente um término.
Quadro 7: Configuração espacial dos valores aspectuais
É esse o quadro que vamos adotar, ao analisarmos os valores aspectuais presentes nos
nossos corpora (cf. capítulo 3).
2.4 Contribuição dos advérbios aspectualizadores
Ao observarmos a natureza gramatical do aspecto, que é diferente da natureza lexical
da Aktionsart, verificamos que as informações aspectuais de um enunciado distribuem-se por
diversos elementos, tais como advérbios e a natureza sintático-semântica dos sintagmas
nominais, por exemplo. Nesta seção, serão observados mais atentamente os advérbios que
cooperam na caracterização aspectual dos enunciados. Para tanto, partiremos da categorização
proposta por Ilari (1992, p. 153) referente à classe de advérbios aspectualizadores.
38
Os advérbios aspectualizadores, por observarem a natureza da ação por eles descrita,
devem estar correlacionados com a especificidade do tempo interno dessa ação. Devido a esta
relação de compatibilidade, observamos a existência de um tipo particular de restrição de co-
ocorrência que envolve o aspecto. Para ilustrar essa restrição, o autor cita os seguintes
exemplos:
(42) O pai não se desloca a um campo de futebol para levar o menino, então geralmente
ele está indo com o tio.
(43) O pai não se desloca a um campo de futebol para levar o menino, então geralmente ele
tem ido com o tio.
Em (42) e (43), o advérbio não apresenta restrições com formas verbais no presente.
(44) O pai não se desloca a um campo de futebol para levar o menino, então geralmente
ele foi com o tio.
O exemplo (44) soa estranho, o que sugere que o advérbio geralmente apresenta
restrições de aplicabilidade com o perfeito do indicativo, ao passo que o advérbio aplicado ao
imperfeito do indicativo soa de forma apropriada, como em (45):
(45) O pai não se deslocava a um campo de futebol para levar o menino, então geralmente
ele ia com o tio.
Levando em conta que a distinção entre o perfeito e o imperfeito é aspectual e que o
advérbio geralmente expressa um tipo de generalização de fatos que se repetem, a idéia de
que alguns advérbios possuem relação com o aspecto fica justificada.
A partir da noção de duração interna, que aparece em diversas definições, observamos
que, em português, há diferentes maneiras de se expressar essa duração. A escolha feita pelo
falante é condicionada, entre outros fatores, também pela característica do processo. Para
observarmos as diferentes formas possíveis de marcar essa duração, é fundamental levar em
conta a natureza do processo. Há três tipos fundamentais: processos pontuais; processos
duráveis, que evocam a idéia de “tempo gasto” e “tempo empregado”, e processos duráveis
que evocam a idéia de “tempo escoado”. Essa distinção leva em conta a natureza do adjunto
aos quais podem associar-se, como será visto adiante.
Os processos pontuais são aqueles aos quais não se aplica a noção de fases. É
importante destacar que esses processos possuem uma duração interna, ainda que
extremamente breve, ao ponto de não poder ser dividida em fases. Devido a essa restrição
39
aspectual, de não poder ser marcada sua duração interna, as ações pontuais não podem
combinar-se com adjuntos que indiquem duração:
(46) * A menina caiu do balanço durante uns segundos.
O tipo de ação presente no exemplo acima apresenta restrições à sua
imperfectivização, visto tratar-se de um verbo télico.
Os processos duráveis que evocam a idéia de tempo empregado respondem às
perguntas como “em quanto tempo?” ou “quanto tempo levou para?”:
(47) Fiz a arrumação do armário em dois dias.
(48) Em uma semana de trabalho, já havia preenchido todo tipo de relatório.
A diferenciação dos tipos de processo permite observar melhor as compatibilidades de
diferentes tipos de adjuntos quando aplicados a diferentes tipos de ação. Ilari (1992) destaca
alguns casos dessas singularidades de interpretação e restrições de uso:
a) Expressões como há dois anos, se interpretadas fora de contexto, podem ter sentido
durativo (durante os últimos dois anos) ou pontual (dois anos atrás), como em:
(49) Estou nesse emprego há dois anos. (durativa)
(50) Aprendi a dirigir há dois anos atrás. (pontual)
b) Adjuntos que contenham a palavra agora não podem ser aplicados a ações que expressem a
idéia de tempo escoado:
(51) * Agora na semana santa ele está morando no exterior.
(52) Agora na semana santa ele viaja para o exterior.
c) O advérbio recentemente só é compatível com predicados pontuais:
(53) * Recentemente ele morava no exterior.
(54) Recentemente ele morou no exterior.
40
d) O adjunto naquele instante quando relacionado a ações durativas pode expressar uma idéia
de inceptividade (início de ação):
(55) Naquele instante, Pedro empurrou o carro. (começou a empurrar)
(56) Naquele instante Pedro correu. (começou a correr)
É importante destacar que os advérbios aspectualizadores estão inseridos em um
conjunto maior de advérbios e expressões adverbiais que expressam tempo. Esse conjunto é
formado pelos adverbiais de localização temporal, que localiza o evento em um dado
momento (Quando meu namorado foi assaltado, faz uns 6 meses, aqui em frente de casa,
levaram o carro dele, ele foi ameaçado, ameaçado de matar, né? SHEI, 60); pelos adverbiais
de freqüência (Sei lá, a gente se sente bem, eu gostei se for pensamento antigo, acredito que
não, porque você vai todo dia aí nas igrejas, se você for fazer uma estatística aí, chove, não
tem nem vaga, parece até comércio, o padre faz três, quatro casamentos de uma vez. LUC,
63), que expressam a quantificação fora da localização temporal na qual estão inseridos, e
pelos adverbiais de duração, que fazem referência ao evento independente de sua localização
temporal (Sobre assim o que que é afinal da história, a tal da felicidade, sabe? Porque tanta
gente corre atrás dela a vida inteira e tal. PAU, 51)
A classificação dos advérbios de duração obedece a critérios aspectuais, por não
depender do ponto dêitico de enunciação.
Na análise dos nossos corpora, observaremos mais detidamente os advérbios que
expressam a duração interna da ação. Inspirando-nos em Ilari (1992), classificaremos os
advérbios de acordo com sua indicação básica: localização temporal, freqüência e duração.
2.5 Interpretação aspectual e argumentatividade
Observando as descrições da categoria de aspecto na perspectiva tradicional,
ressaltamos que o tratamento dado unicamente à forma não é suficiente para dar conta das
possíveis funções que o aspecto pode exercer no enunciado.
Como já aludimos, em nossa pesquisa partimos de um enfoque conjugado, no qual se
complementam noções funcionais, semântico-discursivas e pragmáticas, visando a uma
observação mais acurada da relação entre a forma como é apresentado o aspecto verbal nos
enunciados e a sua possível relação com a orientação argumentativa pretendida pelo falante.
41
Foi essa a motivação para incluirmos, entre nossos objetivos específicos, aquele que visa a
observar a correlação entre a configuração aspectual e a orientação argumentativa pretendida
pelo falante.
Apresentamos a seguir o modelo de interação proposto por Dik (1989, apud NEVES,
2001, p.19), que trata do papel da expressão lingüística dentro da interação:
Formas do falante Construtores do destinatário
antecipa
reconstrói
Figura 3: Esquema de interação verbal (DIK, 1989)
Com base nesse esquema, observamos que as expressões lingüísticas atuam no nível
pragmático, tal como afirma Neves (2001, p. 20):
Em qualquer estágio da interação verbal o falante e o destinatário têm informação
pragmática. Quando o falante diz algo ao destinatário, sua intenção é provocar
alguma modificação na informação pragmática dele. Por isso, o falante tem que
formar uma espécie de intenção comunicativa, uma espécie de plano mental
concernente à modificação particular que ele quer provocar na informação
pragmática do destinatário. O problema do falante é formular sua intenção de tal
modo que tenha alguma chance de levar o destinatário a desejar a modificação da
sua informação pragmática do mesmo modo como o falante a pretende. O falante,
então, tenta antecipar a interpretação que o destinatário, num determinado estágio da
sua informação pragmática, possivelmente atribuirá à sua expressão lingüística.
Os valores aspectuais das expressões lingüísticas são, assim, observados em função da
situação de comunicação e das intenções argumentativas do locutor: leva-se em conta a
motivação discursiva que justifica a utilização de determinadas formas aspectuais.
Adotamos aqui a noção de argumentação em um sentido amplo. Segundo Fiorin
(1998, p. 129):
São argumentos tantos as provas argumentativas, aquelas que mostram a verdade de
uma conclusão, ou, pelo menos, sua relação necessária com as premissas, aquelas
cuja validade independe de opinião pessoal, quanto as persuasivas, isto é, aqueles
que buscam a adesão de indivíduos para uma determinada tese, apelando para o
preferível. A adesão pode ter intensidade variável e depender de diferentes razões: a
tese pode ser considerada verdadeira, oportuna, socialmente justa, útil, equilibrada,
INTENÇÃO
INTERPRETAÇÃO
Informação
pragmática do falante
Informação pragmática
do destinatário
expressão
lin
güística
42
etc. Enquanto nas provas demonstrativas a verdade de uma tese implica a falsidade
da outra, as provas persuasivas mostram que uma tese é melhor que a outra. Essa
concepção de argumentação está de acordo com a etimologia da palavra argumento,
que vem do latim argumentum, vocábulo formado como tema argu-, que também
está presente nos termos arguto, argúcia, argênteo, argentum e significa “fazer
brilhar”, “fazer cintilar”. O argumento é, pois, tudo aquilo que ressalta, faz brilhar,
faz cintilar uma idéia. Argumento é todo procedimento lingüístico utilizado pelo
enunciador com vistas a fazer seu interlocutor aceitar o que está sendo dito, a
persuadi-lo, a levá-lo a crer, a conduzi-lo a fazer o que foi proposto, a compartilhar
determinadas opiniões.
Para Charaudeau (2008), o modo de organização textual argumentativo leva em conta
a experiência humana, usando certas operações do pensamento. Segundo o autor (op. cit., p.
205), os elementos básicos para que haja uma argumentação são: uma proposta sobre o
mundo que provoque questionamento em alguém; um sujeito que se engaje nesse
questionamento e desenvolva um raciocínio para estabelecer uma verdade ou uma
aceitabilidade quanto à essa proposta e um outro sujeito que constitua o alvo dessa
argumentação. Esse sujeito é a pessoa a quem se dirige o sujeito que argumenta, com o
objetivo de conduzi-lo a participar da mesma verdade. O sujeito argumentante tem
consciência da relatividade da verdade e se predispõe a fazer o jogo do verdadeiro e da
universalidade das explicações, pois seu engajamento em face dessa verdade depende do olhar
do outro.
Para Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 52), a argumentação é uma tentativa de
modificar as representações do interlocutor; é uma atividade que visa a intervir sobre a
opinião, atitude e comportamento de qualquer indivíduo. Para tanto, o falante pode evidenciar
certas propriedades das coisas, ocultando umas e evidenciando outras.
Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 16), toda argumentação visa à adesão dos
espíritos e pressupõe a existência de um contato intelectual. Para os autores, a argumentação
subentende o apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento e pela sua adesão
mental. É com base na opinião do ouvinte que o sujeito argumentante deve ajustar seu
discurso persuasivo, observando sua informação pragmática, conforme o esquema de
interação verbal proposto por Dik (1989, cf. Figura 3). O importante na argumentação não é
saber o que o próprio orador considera verdadeiro ou probatório, mas qual é o parecer
daqueles a quem se dirige.
Uma argumentação é considerada bem sucedida quando se obtém a adesão do
interlocutor, ou, pelo menos, quando cria nele uma predisposição para a ação, que venha a
manifestar-se em um momento oportuno (cf. PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, op. cit,
p. 50).
43
A relação que buscamos entre a argumentatividade e os usos aspectuais em nosso
trabalho baseia-se no fato de que a argumentação é o fator básico da textualidade e faz uso de
qualquer forma e categoria verbal. Segundo Travaglia (1991, p. 112), todos os fenômenos do
verbo têm sempre uma dimensão argumentativa. Isso significa que a comunicação não é
apenas a transmissão de informações, mas uma ação que realizamos sobre nosso destinatário.
Conforme afirma Fiorin (1998, p. 126), “[...] comunicar significa obter adesão. Esta depende
de opiniões prévias, de crenças, de aspirações, de valores, de normas de conduta que se
admitem como válidas, de convicções políticas, de emoções, de sentimentos, de visão de
mundo, etc.”
2. 6 Síntese: a perspectiva adotada
Com base no quadro teórico exposto, apresentamos nesta seção os pontos que
julgamos mais pertinentes para fundamentar a postulação de nossos grupos de fatores
analíticos:
1. A distinção entre as noções de tempo e aspecto é fundamental para observamos os eventos,
independentemente do estabelecimento de um ponto de referência.
2. A importância de se adotar uma visão mais abrangente do aspecto reside no fato de
podermos observar a categoria por um prisma enunciativo, o qual torna possível melhor
avaliar a caracterização aspectual dos enunciados de uma forma global.
3. A noção de fase nos apresenta uma visão abrangente dos eventos, ao enfatizar um
determinado momento do desenvolvimento desses eventos.
4. A abordagem tricotômica, que considera o momento da fala (MF), o momento do evento
(ME) e o momento da referência (MR), permite estabelecer uma relação de anterioridade,
simultaneidade ou posterioridade do tempo, tendo como base o MR. Esses três momentos
relevantes serão observados na análise do tempo e do modo verbal, ainda que de modo
assistemático.
5. A adoção de uma visão subjetiva do aspecto permite observar o ponto de vista do falante
em relação ao desenvolvimento e ao grau de realização da ação.
44
6. A adoção do quadro aspectual, adaptado de Castilho (1968), apresenta as subdivisões das
noções de desenvolvimento da ação que serão contempladas na análise.
7. A contribuição dos advérbios aspectualizadores evidencia a relação da expressão do
aspecto verbal com elementos extraverbais, fazendo com que a caracterização aspectual seja
vista como uma propriedade da sentença.
8. A interpretação aspectual e a argumentatividade nos possibilitam melhor avaliar até que
ponto a categoria do aspecto exprime efeitos de sentido e de orientação discursivo-
pragmática.
Por fim, cumpre enfatizar que, no capítulo 4, outros aspectos de fundamentação
teórica, até então não contemplados, poderão ser incluídos na análise qualitativa.
45
CAPÍTULO III QUADRO METODOLÓGICO
3.1 Universo da investigação
Em função de nossos objetivos gerais e específicos, expostos no capítulo introdutório,
utilizamos amostras da fala e da escrita, seguindo o princípio funcionalista de observar as
estruturas lingüísticas em diferentes situações de comunicação.
Na amostra da fala, trabalhamos com um corpus especialmente projetado o Banco de
Dados do Discurso Argumentativo (GRYNER, 1980-1983) , para dar conta da interpretação
aspectual no plano das operações enunciativas, em correspondência à fase discursiva da noção
aspectual já mencionada.
Esse banco, que pertence ao acervo do Programa de Estudos dos Usos da Língua
(PEUL UFRJ), é constituído de 76 entrevistas semi-informais no formato diálogo entre
informante (I) e entrevistador (E), com temas pré-determinados pelo E. A finalidade primeira
desse banco foi propiciar situações em que os falantes utilizassem orações condicionais. O
banco foi projetado para a constituição de um corpus para tese de doutoramento de Gryner
que trabalhou com a condicionalidade. Por essa razão, as perguntas foram codificadas nas
modalidades realis e irrealis, definidas mais adiante.
Esta amostra, organizada pela Profa. Helena Gryner, compreende um conjunto de 76
entrevistas de 60 minutos realizadas entre 1980 e 1983 com falantes nascidos na área
metropolitana do Rio de Janeiro ou que aí se radicaram antes dos cinco anos de idade. A
amostra cobre um amplo espectro de grupos sócio-econômicos e profissionais. Os
informantes estão regularmente distribuídos por quatro faixas etárias (15-24 anos, 25-34 anos,
35-49 anos e 50 anos ou mais), por quatro níveis de escolaridade (de 0-4 anos, 5-8 anos, 9-11
anos, 12-16 ou mais anos) e por gênero (masculino e feminino). Cumpre esclarecer que na
pesquisa, esses fatores extralingüísticos não foram contemplados.
Adotamos aqui a transcrição original das gravações feitas para a constituição desse
corpus. No curso da pesquisa, já foram apresentados alguns exemplos extraídos desse corpus,
com a devida indicação da entrevista da qual foram extraídos.
As entrevistas, que visam à elicitação de enunciados argumentativos, propiciam o
debate de temas polêmicos (por exemplo: a adoção da pena de morte, a legalização do aborto,
a utilização da medicina alternativa etc.), instigados pelas perguntas do E. As respostas do I
refletem, então, defesa de ponto de vista e posicionamento argumentativo.
Listamos, a seguir, a totalidade de temas propostos pelo E:
46
Pergunta
1 O que deixaria você bem feliz?
2 O que deixa você muito aborrecido?
3 Você sabe guardar segredo?
4 Você já foi assaltado?
5 Você já esteve em situação de ajudar algum vizinho?
6 Do que você tem mais medo?
7 Você acha que uma pessoa pode viver sem religião?
8 Gostaria de trabalhar em outra coisa? Ou está satisfeito com sua
profissão?
9 Você acha errado deixar fumar na escola?
10 Você acha que a educação sexual tem que ser dada na escola?
11 Você acha que toda pessoa deve casar? Que o casamento não é coisa de
antigamente?
12 Você acha que as moças devem casar virgens?
13 O que você acha do aborto?
14 Você acha que a gente vive melhor do que antigamente?
15 Você gosta de morar na cidade? Pra você, quais são os piores problemas
da cidade?
16 Você acha que as associações de bairro ajudam?
17 Se acabasse a fome, a violência acabava?
18 Você participaria de uma greve?
19 Você deixaria seu filho numa creche?
20 Para você, a nossa alimentação é pior do que a do índio?
Quadro 8: Temas ou tópicos abordados na constituição do corpus argumentativo (GRYNER, 1980-1983)
Para o exame da amostra da fala, procedemos a um recorte desses temas ou tópicos.
Com base em uma análise preliminar, observamos que em determinados tópicos, os
posicionamentos argumentativos eram mais variáveis e exibiam caracterizações mais
diferenciadas de valores aspectuais. As respostas selecionadas em função desse critério foram
agrupadas em núcleos temáticos (NTs). Esses núcleos, categorizados em função da
modalidade (realis e irrealis) e do teor argumentativo, são constituídos das respostas dos
47
falantes a uma mesma pergunta feita pelo E. Os excertos das entrevistas utilizadas nesse
trabalho encontram-se nos Anexos A e B.
A opção de trabalhar com NTs auxilia na caracterização dos usos aspectuais em
função dos tópicos em pauta. Consideramos que a seleção com base nesses núcleos poderia
favorecer a comparação das respostas dos informantes, visando melhor verificar se há ou não
correlação entre os usos aspectuais, o assunto em curso e seus efeitos no teor argumentativo
pretendido. Não era esperada uma unanimidade nos julgamentos e nas avaliações dos
informantes. Uma vez observados os diferentes posicionamentos dos informantes, foi possível
depreender os variados recursos lingüísticos utilizados para defendê-los.
Seguem abaixo os NTs selecionados:
NT 1 Modalidade irrealis (seqüência expositiva)
O que deixaria você bem feliz?
1 Info nº 51 PAU masc.
2 Info nº 56 GUAL masc.
3 Info n° 58 NOR fem.
4 Info n° 59 MAR masc.
5 Info n° 60 SHEI fem.
6 Info n° 63 LUC fem.
7 Info n° 64 JOS masc.
NT 2 Modalidade realis (seqüência expositiva)
O que te deixa aborrecido?
1 - Info n° 51 PAU masc.
2 - Info n° 56 GUAL masc.
3 - Info n° 59 - MAR - masc.
4 - Info n° 60 SHEI fem.
5 Info n° 64 JOS masc.
NT 3 Relato de experiência de vida (seqüência
narrativa)
Você já foi assaltado?
1 Info n° 58 NOR fem.
2 Info n° 59 MAR masc.
3 Info n° 60 SHEI fem.
4 Info n° 63 LUC fem.
5 Info n° 64 JOS masc.
48
NT 4 Assumpção de ponto de vista (seqüência
argumentativa)
Você acha que o casamento é coisa de antigamente?
1 Info n° 56 GUAL - masc.
2 Info n° 59 - MAR masc.
3 Info n° 60 SHEI fem.
4 Info n° 63 LUC - fem.
Você acha que as associações de bairro ajudam?
1 Info n° 51 PAU masc.
2 Info n° 58 NOR fem.
3 Info n° 60 SHEI fem.
4 Info n° 64 JOS masc.
As seqüências que tipificam os excertos selecionados enquadram-se dentro de uma
categorização dos tipos textuais. Para tanto, tomamos como base a classificação de Marcuschi
(2002, p. 23), que inclui as seguintes designações: narração, argumentação, descrição,
injunção e exposição, especificadas na seção seguinte.
Para a análise da escrita, de acordo com nosso objetivo de observar a temporalidade e
a aspectualidade, selecionamos algumas crônicas, que, por se tratar de um gênero que narra
eventos e acontecimentos, apresenta maior conexão com a temporalidade. É importante
destacarmos que o recorte da amostra escrita também foi feito com base na seleção por temas,
e na alternância de tempos e das modalidades realis e irrealis (GIVÓN, 1995). Optamos por
manter na amostra da escrita os NTs estabelecidos, de modo que a crônica 01, em que
predominam seqüências expositivas enquadra-se na modalidade irrealis, a crônica 02 em que
predominam seqüências argumentativas e, a crônica 03, em que predominam seqüências
narrativo-descritivas, na modalidade realis. Seguindo esses critérios, obtivemos o seguinte
quadro:
Título Autor Fonte
01
Meu ideal seria
escrever
Rubem Braga BRAGA, Rubem. A traição das elegantes. Rio de Janeiro:
Editora Sabiá, 1967. p. 91.
02
O quase Luís
Fernando
Veríssimo
Autoria atribuída a Luís Fernando Veríssimo, mas que ele
mesmo diz ser de Sarah Westphal Batista da Silva; publicada
na coluna do autor em 31 de março de 2005 do jornal O
Globo.
03
O cego, Van
Gogh, Renoir e
o resto
Ivan Ângelo Ângelo, Ivan. O comprador de aventuras e outras crônicas.
São Paulo: Ática, 2000. p. 9-11.
Quadro 9: Constituição da amostra da escrita
Os procedimentos analíticos de que nos valemos foram:
49
(a) levantamento de ocorrências de expressões lingüísticas aspectuais nos corpora da
fala e da escrita;
(b) aplicação dos grupos de fatores aos dados levantados;
(c) análise quantitativa e qualitativa dos grupos de fatores;
(d) avaliação dos resultados obtidos.
A análise foi feita tendo como base teórica os grupos de fatores listados no Quadro 10
a seguir.
3.2 Grupos de fatores e suas previsões
Selecionamos, com base na revisão da literatura referente ao aspecto, uma série de
fatores a serem aplicados nos corpora. Esses fatores nos permitem investigar se os usos
aspectuais são funcionalmente motivados e se há interferência entre os grupos de fatores
postulados. Dessa forma, observamos os recursos lingüísticos mais recorrentes para a
expressão do aspecto, ou que estivessem diretamente relacionados a ele. Interessou-nos,
também, verificar possíveis correlações entre os grupos de fatores e as especificidades dos
NTs e as direções pragmático-argumentativas pretendidas.
Os dados foram submetidos a tratamento quantitativo e qualitativo. Na análise
lingüística, correlacionamos as evidências extraídas dos índices numéricos com as previsões
projetadas para cada grupo de fator. Esses resultados foram, por sua vez, cotejados com os
objetivos gerais e específicos da pesquisa.
Eis o quadro dos grupos de fatores:
1. Núcleo temático
2. Valores aspectuais das formas verbais
3. Transitividade verbal
4. Função discursivo-interativa dos advérbios
aspectualizadores
5. Classificação semântica dos verbos
6. Tempos do verbo
Quadro 10: Grupo de fatores
50
Fator 1: Núcleo temático (NT)
Neste primeiro grupo de fator, objetivamos examinar os NTs das entrevistas, que
constituem os tópicos ou assuntos propostos pelo E, visando a observar de que modo os
empregos aspectuais estão associados às atitudes e aos enfoques argumentativos do I.
Conforme já especificamos na seção 3.1, na constituição dessa amostra da fala, as perguntas
seguiram uma agenda projetada para estimular a produção de enunciados argumentativos. No
recorte que estabelecemos, chegamos a cinco núcleos com diferentes números de informantes
cada um. Nossa expectativa seria a de que os valores aspectuais observados poderiam estar
correlacionados com o conteúdo proposicional desses núcleos. Pretendíamos, também,
observar se a modalidade empregada nas perguntas exerce efeito gatilho na resposta do I, ou
seja, esperávamos que uma pergunta formulada na modalidade irrealis, por exemplo, tivesse
uma resposta também nessa mesma modalidade.
Mas antes de descrevermos cada um desses NTs, precisamos explicitar a noção de tipo
textual e as suas designações. Não é nosso intuito aqui apresentar uma discussão abrangente
sobre a complexa questão da tipologia dos gêneros e tipos textuais. Pretendemos, tão-somente
chegar a uma definição básica em termos de operacionalidade analítica, uma vez que a noção
de seqüência textual em nossa pesquisa constituiu um fator bastante relevante na análise de
nossos NTs. Sendo assim, adotamos a conceituação de Marcuschi (2002, p. 22-23) que
distingue entre gênero textual e tipo textual. O primeiro se refere a textos materializados
encontrados na vida cotidiana e que exibem características sócio-comunicativas definidas por
conteúdos, propriedades funcionais, estilo, canal, suporte e composição característica. Já o
segundo designa uma espécie de construto teórico definido por propriedades lingüísticas
composicionais, abrangendo um conjunto limitado: narração, argumentação, exposição,
descrição e injunção. O tipo textual constitui seqüências lingüísticas ou seqüências de
enunciados. Em nosso estudo, estamos usando a expressão ‘seqüência’ na acepção de ‘tipo
textual’.
Dentre os tipos textuais, vamos trabalhar com seqüências expositivas, narrativas e
argumentativas.
Para defini-los de modo bem conciso e simples, recorremos à classificação de Silveira
(1997, p. 50):
? Narrativa: relato lingüístico de eventos passados e acabados, estocados e disponíveis
na memória do falante.
51
? Descrição: relato lingüístico que aponta especificidades e características de
componentes do mundo real.
? Argumentação: relato lingüístico que explana o ponto de vista do falante sobre
determinadas informações.
É oportuno aqui fazer menção ao esquema de análise de narrativas, formulado por
Labov (1972), que apesar de ter sofrido formulações posteriores, continua sendo uma
referência fundadora na metodologia da análise sociolingüística: a narrativa é um método de
recapitular experiências passadas, em que há uma seqüência verbal de orações que
corresponde à seqüência de eventos que realmente ocorreram. As orações narrativas são
caracteristicamente ordenadas e contêm juntura temporal (orações temporalmente ordenadas),
orações independentes (coordenadas) e orações contendo tempo (passado).
Já as seqüências descritivas, conforme aponta Bronckart (1999, p. 222-223), não
apresentam uma ordem linear obrigatória, mas uma decomposição de atributos ou
propriedades.
Em termos gerais, segundo Roncarati (2001), descrever é caracterizar uma cena, um
estado, um momento vivido ou sonhado através de nossa percepção sensorial e de nossa
imaginação criadora. A visão, o tato, a audição, o olfato e o paladar nossos cinco sentidos
constituem os alicerces da descrição. A técnica descritiva implica uma contemplação e uma
apreensão de algo subjetivo ou objetivo. A descrição focaliza cenas ou imagens, não fotografa,
mas reproduz a imagem do objeto, a impressão sensorial que a coisa vista nos traz. A
descrição faz uso de mecanismos de listagem (exposição seriada). Há dois tipos de descrição:
a técnica (descrição objetiva, denotativa) e a literária (descrição subjetiva, conotativa). A
descrição técnica busca o rigor da exatidão, enfatiza o conjunto dos traços principais. A
descrição varia em função do ponto de vista e da atitude adotados pelo descritor (i. é. em
função da perspectiva em que ele se coloca para observar os traços mais singularizantes e os
detalhes mais relevantes do objeto reservado). A atitude está ligada a operações mentais do
observador que resultam das impressões captadas.
Quanto ao tipo textual expositivo, optamos aqui por apresentar uma definição por nós
particularizada: trata-se de relato lingüístico de caráter subjetivo. Como todos os demais tipos,
possui teor argumentativo, não tão acentuado quanto aquele presente nas seqüências mais
tipicamente argumentativas (NT 4: Você acha que as associações de bairro ajudam?/ Você
acha que casamento é coisa de antigamente?). Nessas seqüências ditas expositivas, o
informante manifesta, dá a conhecer uma atitude ou ponto de vista que possivelmente adotaria
52
em uma determinada situação hipotetizada (NT 1: O que te deixaria bem feliz?) ou mesmo que
já adotou ou costuma adotar (NT2: O que te deixa aborrecido?). Nossa definição se afasta,
portanto, do tipo textual dissertativo-expositivo, próprio da divulgação científica, que tem
como fonte um discurso anterior, o da ciência (cf. BRANDÃO, 2001, p. 39).
De qualquer modo, estamos cientes de que essa classificação de tipo ou seqüência
textual que adotamos não é isenta de problemas, principalmente se considerarmos a
possibilidade de imbricamento ou gradiência entre as seqüências. Nesse sentido, poderíamos
admitir que as seqüências dos NTs 1 e 2 também exibem propriedades de outras seqüências,
como a narrativa e a argumentativa. Enfatizamos, novamente, que uma detalhada discussão de
gênero, tipo textual e seqüencia textual foge ao escopo do nosso trabalho.
Feitas essas considerações, passamos a detalhar cada um desses NTs.
Núcleo temático 1: O que deixaria você bem feliz? (Modalidade irrealis, seqüência
expositiva)
Por tratar-se de uma frase interrogativa enunciada na modalidade irrealis, hipotética,
não-factual, nossa pressuposição é a de que não haja uma atualização da categoria de aspecto,
já que esta só refere a fatos, eventos, entidades e estados de coisas factuais. As formas de
codificação verbal seriam o futuro do pretérito do indicativo e o presente do subjuntivo,
tempos que não atualizam o aspecto. Com relação aos tipos de verbos, esperamos encontrar
maior recorrência de verbos emotivos (indicando desejo, como desejar, gostar, querer,
preferir, estimar, apreciar), de ansiedade epistêmica (imaginar, achar) e de modalidade
alética (eixo das possibilidades)
7
. Seria esperado que os informantes apresentassem uma
listagem ou particularizassem uma determinada situação hipotética que lhes proporcionasse
algum tipo de satisfação. A resposta é de cunho subjetivo, e observamos neste núcleo uma
atitude mais relaxada, menos tensa do falante.
Nos termos givonianos (1995, p. 112-115), as modalidades proposicionais,
formuladas em termos cognitivos e comunicativos, distribuem-se em uma hierarquia:
supermodalidade> modalidade> submodalidade, ou não-fato> irrealis
> deôntica/epistêmica.
Em um enfoque funcional, a modalidade passa a ser tratada no contexto comunicativo, com
tipos lógicos redefinidos em: pressuposição (verdade necessária), asserção ‘realis’ (verdade
atual), asserção irrealis’ (verdade possível), asserção negada (não-verdade). Entendemos
7
A categorização semântica dos verbos encontra-se na descrição do grupo de fator 5.
53
aqui por modalidade parte da atividade ilocucionária, uma vez que esta revela a atitude do
falante em relação ao enunciado que produz.
Para nossos fins, entendemos como irrealis a modalidade na qual os eventos e as
proposições são afirmados como possíveis, incertos ou necessários, e, como realis, a
modalidade na qual os eventos ou proposições são fortemente afirmados como verdade. De
uma maneira geral, a modalidade realis trata de eventos reais, e a irrealis, de eventos não
reais, hipotéticos.
Núcleo temático 2: O que te deixa aborrecido? (Modalidade realis, seqüência expositiva)
Por tratar-se de uma frase interrogativa enunciada na modalidade realis, factual, nossa
pressuposição é a de que haja uma atualização da categoria de aspecto. A forma de
codificação prototípica seria o presente do indicativo. Seria esperado que os informantes
também listassem ou particularizassem situações que lhes desagradassem, uma vez que a
natureza da pergunta induz a relatos de ações e situações. Quanto às informações codificadas
nesse núcleo, esperamos as que referenciam fatos, ações e processos extraídos do mundo real.
Esperamos também que sejam utilizados verbos emotivos (psicológicos, como preocupar-se,
e temor epistêmico, como temer). A resposta é de cunho subjetivo. Esse NT pressupõe um
certo grau de envolvimento emocional dos falantes e uma atitude menos relaxada.
Núcleo temático 3: Você já foi assaltado? (Relato de experiência de vida, seqüência
narrativa)
Por tratar-se de uma frase interrogativa enunciada na modalidade realis, nossa
expectativa é de que as respostas sejam codificadas em segmentos narrativos, em que
preponderam os valores aspectuais perfectivos do pretérito perfeito e imperfeito. Seria
esperado que os informantes produzissem relatos de experiências individuais nas quais
houvesse situações de risco. Esse NT pressupõe maior grau de envolvimento emocional dos
falantes e uma atitude mais tensa, menos relaxada, menos distanciada. O informante pode
relatar fatos estocados e disponíveis em sua memória, relativamente distantes ou não.
Como este núcleo favorece a elaboração de narrativas de eventos, é possível
depreender nessas narrativas os planos discursivos de figura e fundo
8
. No caso, a figura seria
o elemento focal, codificado pelo pretérito perfeito, fundamental para a progressão textual, e o
8
A definição dos planos discursivos está detalhada no grupo de fator 3, que se refere à transitividade verbal.
54
fundo seria a ambientação, codificado pelo pretérito imperfeito, que não contribui para a
progressão da narrativa. Especificamente nesse NT, destacamos esses planos, a fim de
verificar com mais clareza sua relação com a transitividade e os tempos verbais utilizados.
Núcleo temático 4: Você acha que o casamento é coisa de antigamente?
Você acha que as associações de bairro ajudam? (Assumpção de ponto de vista, seqüência
argumentativa)
Nesse NT, em que se inserem duas perguntas feitas pelo E, por tratar-se de uma frase
interrogativa direcionada para a apresentação de enunciados opinativos e de defesa de pontos
de vista, de teor argumentativo, seria esperado o emprego do presente do indicativo, em
verbos epistêmicos (como achar, imaginar, supor, considerar), condicionado pelo uso do
verbo epistêmico na própria pergunta do E (achar), condicionamento este conhecido como
efeito gatilho. As respostas seriam de cunho subjetivo-argumentativo.
Especificamente, neste NT incluímos os verbos copulativos ser e estar, excluídos nos
outros NTs. Esperamos que haja predominância dos verbos no presente do indicativo devido
ao caráter argumentativo mais acentuado neste núcleo, pois esse tempo, conforme afirmam
Perelman e Olbretchs-Tyteca (2005), “[...] permite agir sobre o auditório. O tempo presente
expressa o universal, a lei, o normal. O presente é o tempo da máxima, do adágio, ou seja,
daquilo que é considerado sempre atual, jamais invalidado.” Por estas características, o uso do
presente poder ser considerado uma estratégia argumentativa, a partir do momento em que o
interlocutor deseja exprimir informações apresentadas como máximas cuja validade ou
veracidade não sejam postas em questão.
Com relação à amostra escrita, justificamos a escolha do gênero crônica. Moisés
(1974, p. 131-133) define a crônica como um tipo de texto que, em seu ápice, na Idade Média,
tinha por objetivo registrar eventos, sem analisar suas causas ou dar-lhes algum tipo de
interpretação. Com o passar do tempo, a crônica adquiriu caráter literário, e, atualmente, tem
como temática algum acontecimento diário que tenha chamado a atenção do cronista. Como
gênero literário, não tem limites muito precisos, muitas vezes tendendo para o conto. A
característica mais notória da crônica, entretanto, é seu caráter subjetivo. Normalmente, as
crônicas giram em torno de acontecimentos cotidianos como as CRs 1 (Meu ideal seria
escrever) e 3 (O cego, Van Gogh, Renoir e o resto), sobre os quais o cronista discorre,
tornando evidente seu posicionamento com relação ao tema. Também pode ser constatado um
caráter de reflexão sobre algum assunto, como na CR 2 (O quase), onde o autor defende uma
55
tomada de posição pontual, desfavorável à desilusão de um quase. Na análise das crônicas,
procuraremos observar de que modo os grupos de fatores aqui postulados contribuem para
dimensionar o teor de subjetividade presente nas crônicas em que predominam as
modalidades irrealis e realis, as seqüências narrativo-descritivas e as seqüências
argumentativas.
A amostra escrita obedeceu à mesma categorização dos parâmetros dos NTs da
amostra da fala. Assim, obtivemos o quadro a seguir:
Irrealis/expositiva
Argumentativa
Realis/narrativo-descritiva
CR 1
Meu ideal seria escrever
CR 2
O quase
CR 3
O cego, Van Gogh, Renoir e o resto
Quadro 11: Núcleos temáticos da amostra escrita
A crônica 1 (Meu ideal seria escrever) enquadra-se na modalidade irrealis. Seu enredo
é o seguinte: o autor, comovido com a situação de uma jovem que se encontra sempre doente
em uma casa cinzenta próxima à sua, expõe o desejo de escrever uma história que fosse tão
alegre a ponto de confortá-la. Sua expectativa era a de que, ao fim da estória, a moça dissesse:
Ai, meu Deus, que história mais engraçada” e, depois, a contasse para a cozinheira e para
algumas amigas. Ao longo da crônica, o autor prossegue imaginando outras audiências (um
casal mal-humorado, presos nas cadeias, doentes em hospitais e pessoas em salas de espera) e
os efeitos de sua contagiante história: os presos seriam soltos pelo comissário do distrito e as
pessoas tratariam melhor seus semelhantes. O desejo do contador da história é que ela
circulasse anônima pelo mundo, a tal ponto que sua autoria, já mitificada, pudesse ser
atribuída a um anjo tagarela, sendo uma história do céu que se filtrou entre nós por acaso.
Enquadramos essa crônica na modalidade irrealis por ela apresentar uma série de fatos
hipotéticos, através de frases optativas cujo teor perlocucionário provocasse mudanças no
modo de agir das pessoas. Nessa crônica, tipicamente marcada pela modalidade irrealis,
predominam tempos verbais que não codificam o aspecto: o futuro do pretérito do indicativo e
o presente do subjuntivo. Em princípio, o seu caráter expositivo poderia ser justificado pela
enumeração de situações através das quais o cronista dá a conhecer o seu ponto de vista
subjetivizado e hipotetizado.
56
Na crônica 2 (O quase) transparece um caráter argumentativo. O autor faz uma crítica
a um tipo de comportamento associado a uma vida ‘morna’, que, dividido entre a alegria e a
dor, prefere sentir o nada, permanecendo estancado em um meio termo que nunca chega a
uma completude, fica no quase. Trata-se de uma crônica que ilustra uma moral: “[...] embora
quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu”. O cronista, sujeito argumentante,
apresenta uma proposta sobre o mundo que provoca um questionamento (a idéia de que se
deve viver intensamente, sem meios termos) e, para tanto, estrutura seu raciocínio através de
uma série de argumentos visando a obter a adesão do sujeito que constitui o alvo de sua
argumentação. Em virtude de seu caráter persuasivo, enquadramos esta crônica no NT da
argumentatividade. Nessa crônica, predomina o presente do indicativo, atemporal, gnômico.
A crônica 3 (O cego, Van Gogh, Renoir e o resto) apresenta um caráter híbrido,
contendo seqüências narrativo-descritivas, codificadas na modalidade realis. Nesta crônica,
há três participantes, um visitante do museu, um cego e seu acompanhante. O enredo da
narrativa é o seguinte: um visitante do museu se impressiona ao perceber a presença de um
acompanhante descrevendo, de forma amorosa, os quadros para um cego - um fotógrafo que
perdeu a visão em um acidente - com riqueza de minúcias, através de seqüências descritivas
de cunho literário, em que transfere suas impressões sensoriais e subjetivas para o cego. O
visitante se comove com essa descrição que equivale a uma “construção de um quadro na
mente de alguém por meio de palavras”, fato este que o leva a questionar a profundidade
humana dessa cena. Nessa crônica, nas seqüências narrativas, predomina o aspecto perfectivo
pontual, codificado através do perfeito do indicativo; nas seqüências descritivas, o
imperfectivo cursivo, codificado através do presente do indicativo.
É importante esclarecer e enfatizar que, na descrição dos outros grupos de fatores, as
previsões se referem, de modo geral, tanto à amostra da fala quanto da escrita.
Fator 2: Valores aspectuais das formas verbais
Conforme vimos na revisão da literatura, tempo e aspecto são categorias co-
ocorrentes, e, juntas, compõem o paradigma da conjugação verbal. Observamos que, com
base no paradigma das conjugações verbais, há uma distinção de base aspectual: a distinção
entre o pretérito imperfeito do indicativo (imperfectivo + passado) e o pretérito perfeito do
indicativo (perfectivo + passado).
57
Procuramos correlacionar o valor aspectual às respectivas formas verbais com base em
Castilho (1968, p. 51).
Nossa previsão, com relação ao aspecto, é de que, no núcleo referente à modalidade
irrealis, não houvesse sua atualização; que na modalidade realis houvesse predominância do
aspecto perfectivo cursivo; que no núcleo referente à seqüência narrativa predominasse o
aspecto perfectivo pontual e que naquele referente à argumentação predominasse o aspecto
imperfectivo cursivo e o gnômico (presente atemporal).
Observamos na análise dos corpora que as perífrases verbais expressam basicamente o
aspecto imperfectivo cursivo. Para efeitos de análise, consideramos perífrase como um
aglomerado verbal no qual há um verbo auxiliar e um principal em uma das formas nominais,
marcando uma noção aspectual específica. Segundo Bechara (2004, p. 230), a locução verbal
é a combinação das diversas formas de um verbo auxiliar com o infinitivo, gerúndio ou
particípio de outro verbo que se chama principal (hei de estudar, estou estudando, tenho
estudado). Muitas vezes, o auxiliar empresta um matiz semântico ao verbo principal, dando
origem aos chamados aspectos do verbo. Nesse sentido, muitas vezes, o verbo auxiliar pode
fazer menção a diferentes fases de desenvolvimento interno da ação, com perífrases como
começar a + auxiliar, terminar de + auxiliar, continuar a + auxiliar. Entre o auxiliar e o verbo
principal no infinitivo pode aparecer ou não uma preposição (de, em, por, a para). Na locução
verbal é somente o auxiliar que recebe as flexões de pessoa, número, tempo e modo:
haveremos de fazer, estavam por sair, iam trabalhando, tinham visto.
Veja-se aqui a reprodução do quadro de valores aspectuais que adotamos:
Valores Aspectos/representação espacial
1- Duração Imperfectivo
Inceptivo ¦-...
Cursivo ...-...
Terminativo ...
2- Completamento Perfectivo
Pontual .
Resultativo ... // ?
Cessativo ... // (...)
3- Repetição Iterativo perfectivo .............
Iterativo imperfectivo ¦ ¦ ¦ ¦ ¦ ¦
4- Negação da duração e do completamento Indeterminado
Quadro 12: Quadro aspectual adotado, adaptado de Castilho (1968)
58
Fator 3: Transitividade verbal
Hopper e Thompson, em 1980, discutiram a natureza da transitividade em uma oração
e sua função na comunicação, observando que os estudos sobre transitividade tiveram por
base sentenças artificialmente elaboradas e narrativas faladas ou escritas. Na época,
propuseram uma escala de transitividade com dez parâmetros. No artigo de 2001, colheram
evidências adicionais, extraídas de conversações espontâneas, de que sentenças de
transitividade relativamente alta caracterizam um primeiro plano, a figura, ao invés de um
segundo plano, o fundo. A noção de transitividade toma por escopo a oração inteira e não a
relação entre um verbo e seu objeto.
A transitividade não é determinada por um fator único, mas resulta da co-determinação
de diversos parâmetros, sendo que a co-ocorrência do maior número deles resulta em um
maior nível de transitividade. Assim, entendemos que a transitividade pode ser dividida em
traços constituintes, cada qual focalizando um diferente ponto em cada parte da oração.
Os traços componentes da transitividade possuem relação com o componente
discursivo, individualmente, operando em um continuum. Quando tratados isoladamente, os
traços possuem apenas uma relação arbitrária entre si. Votre (1992, p. 43) afirma que a
categoria passou a ser compreendida como um domínio funcional complexo, de natureza
escalar, manifestado sob a forma de um aglomerado de dez traços dicotômicos de natureza
semântica e sintática.
Neste grupo de fator, a transitividade das formas verbais baseia-se, pois, na proposta
inaugural de Hopper e Thompson (1980):
59
Transitividade alta
Transitividade baixa
1. Participantes dois ou mais um
2. Cinese ação não-ação
3. Aspecto télico atélico
4. Pontualidade pontual não-pontual
5. Volição volitivo não-volitivo
6. Afirmação afirmativo negativo
7. Modalidade realis irrealis
8. Agentividade agentivo não-agentivo
9. Afetamento do
objeto
afetado não-afetado
10. Individuação do
objeto
individuado não-individuado
Quadro 13: Parâmetros de gradiência da transitividade
Detalhemos, então, cada um desses traços.
O primeiro parâmetro, o número de participantes, prevê que ter dois ou mais
participantes é essencial para uma alta transitividade.
Com relação à cinese (traço [+/- dinâmico]), observamos que orações-figura narram
eventos com traço [+ dinâmico] e orações-fundo apresentam o traço [- dinâmico].
O aspecto refere-se ao término ou não da ação do predicado. Um predicado que
pressuponha um final de ação é considerado télico e geralmente identifica-se com a figura. Já
os predicados não-télicos são apresentados como progressivos, repetidos ou simultâneos aos
eventos da figura. O aspecto, segundo Hopper e Thompson (1985, p. 35), é definido em
termos semânticos e não puramente morfológicos. Assim, uma oração codificada como de
alta transitividade para o aspecto é télica, uma ação completada por um sujeito.
O traço de pontualidade diz respeito ao inesperado de uma ação ou à falta de
delimitação clara entre seu início e seu término. Nessa distinção, verbos pontuais diferenciam-
se de durativos e iterativos, e denotam normalmente eventos discursivos que ocorrem em
orações- figura, cuja duração da ação é muito curta e não apresenta fases transicionais desde o
seu início até a sua completude (cf. HOPPER; THOMPSON, 1985, p. 35).
60
Os traços volição e agentividade referem-se ao grau de envolvimento do sujeito na
atividade do verbo. Como as orações-figura codificam ações, o sujeito gramatical apresenta o
traço animado, caracterizando-se como agente da ação verbal (cf. SILVEIRA, 1997, p. 52).
Essas duas propriedades predominam como figura já que a ação narrada é desenvolvida por
pessoas que desempenham ações e que deliberadamente as iniciam.
Os traços de modalidade (já especificados no NT 1) e de afirmação implicam a não
predominância de orações negativas em figura, uma vez que a negação representa um mundo
possível, mas não real, ao passo que eventos afirmativos implicam acontecimentos reais. As
orações-figura afirmam situações cujas formas verbais são expressas no modo indicativo. Em
orações-fundo, segundo avalia Silveira (op. cit, p. 54), as formas verbais referenciam
situações irreais, expressas no subjuntivo e no imperativo e também marcadas com a negação.
As propriedades de afetamento e individuação do objeto são aplicadas à sua natureza.
A afetabilidade do objeto depende da perfectividade da ação, que tem um final temporalmente
marcado, o que explica sua correlação com o plano da figura. Por individuação do objeto
compreende-se o argumento referencial definido. Objetos indefinidos são associados a
estruturas intransitivas, o que sugere que um argumento indefinido não constitui um objeto,
mas um acompanhamento adverbial.
Hopper e Thompson relacionam a transitividade à função comunicativa. Seu maior ou
menor grau reflete o modo como o falante estrutura seus enunciados, visando a atingir seus
propósitos comunicativos, tendo em vista as necessidades de seu interlocutor. A fim de que a
comunicação se processe satisfatoriamente, o emissor orienta o receptor para o que é
periférico e o que é central na sua construção discursiva. Os planos discursivos construídos
pelo falante correspondem à distinção entre figura e fundo.
As línguas possuem recursos morfológicos e sintáticos para delimitar o relevo
discursivo. Esses recursos podem ser codificados através de partículas discursivas, como
marcadores discursivos (como agora), estrategicamente posicionadas para sinalizar para o
ouvinte que a oração seguinte é figura ou fundo, ou através da elaboração de paradigmas
verbais (tempo e aspecto) específicos para essa distinção.
A fundamentação cognitiva para a oposição dos planos discursivos de figura e fundo
provém da psicologia gestaltista, que pressupõe que, primeiramente, identificamos as
entidades que são apresentadas em primeiro plano, com seus recortes específicos e
61
focalizados em oposição ao que se apresenta como periférico, sendo identificado como plano
de fundo.
O grau de transitividade revela a função discursiva das orações, de forma que orações
com alta transitividade correspondem a porções centrais do texto (figura) e orações com baixa
transitividade, a porções periféricas (fundo). A figura compreende, na porção de um texto
narrativo, a seqüência temporal de eventos concluídos, pontuais, afirmativos, realis, sob a
responsabilidade de um agente. Já o fundo compreende a descrição de eventos e ações
simultâneas à figura, a descrição de estados, a localização dos participantes da narrativa e os
comentários avaliativos.
Observaremos a relação estabelecida entre grau de transitividade e os planos
discursivos de figura e fundo exclusivamente no NT 3, relato de experiências pessoais em
seqüências narrativas (Você já foi assaltado?). Nesse caso, correlacionamos a interpretação
aspectual com os planos discursivos, demonstrando que a cada plano discursivo corresponde
uma caracterização aspectual.
Examinaremos as relações de temporalidade entre esses dois processos (figura e
fundo), tendo como oposição básica os usos do pretérito perfeito e imperfeito. Para tanto,
postulamos que todo discurso constitui o resultado de um ato de produção realizado com uma
certa duração e veicula também um conjunto de processos com propriedades aspectuais
diversas. A função de temporalidade entre esses dois planos consiste em situar um processo
em relação a outro. Na análise, examinaremos as relações entre dois eventos narrados no
passado, onde um é narrado como central e outro, como secundário, e essa oposição apresenta
diferentes características aspectuais. Cabe aqui salientar que Bronckart (1999, p. 284-296)
também distingue na narrativa dois fatos postos em correlação: a função de temporalidade
primária (figura, central, em nossos termos) e temporalidade secundária (fundo), noção esta
que remete ao esquema de incidência de Ilari (2004) anteriormente exposto (cf. seção 2.3).
Esclarecemos que, na presente pesquisa, não chegamos a mensurar quantitativamente
os planos discursivos. Nesta seção 3.2, apresentamos apenas uma ilustração do procedimento
analítico adotado no NT 3, com base em Votre (1992), Silveira (1997) e Furtado da Cunha et
al. (2003, p. 40-42), visando a apontar a operacionalidade desse construto teórico para a
mensuração do grau de transitividade.
Na porção de texto seguinte, extraída do corpus da fala, destacamos os planos de
figura e fundo:
62
Info. nº 64 JOS- masc.
E: Você já foi assaltado?
F: Já. Há pouco tempo.
E: Como é que foi?
F: É, eu estava atrasado, tinha uma entrevista, pra ver se arranjava um emprego e quando eu cheguei na
rua, tava um cidadão sentado no meu carro, sentado no carro não, encostado assim perto, aqui na rua
Rainha Guilhermina.
Geralmente quando o cara pressente que o carro é seu e que você vai sair, ele geralmente se afasta.
Esse aí, não se afastou. Aí, eu pedi licença e botei a chave pra abrir a porta, ele deu a volta atrás de
mim, encostou o revólver, pediu tudo, mas só levou o relógio, porque eu não tinha nada. Estava com
uns trinta, quarenta cruzeiros, no bolso. E foi o que ele levou.
Mas ficou a sensação, aquela sensação desagradável, de saber, que podia morrer ali, estupidamente,
meio-dia. Ficou a marca, aquela marca custou a sair da minha barriga, aquela sensação, aquele contato
da boca do revólver na barriga da gente, é um negócio desagradabilíssimo. Foi uma experiência bem
chata. Aliás, todo assalto é chato, né? Como eu estava com a minha cabeça muito ligada, ao fato de já
estar casado, eu na hora assim, a minha reação foi bem normal. Que dizer eu não fiquei apavorado.
Disse: “Amigo, eu não tenho nada aqui, tá? Tou com pouco dinhe...só tenho o relógio”. E fui logo
dando o relógio pra ele. Ele acabou levando o relógio, ficou satisfeito e sumiu.
63
Figura Fundo
É, eu estava atrasado, tinha uma entrevista, pra ver se arranjava um emprego
e quando eu
cheguei na rua,
tava um cidadão
sentado no meu
carro
sentado no carro não, encostado assim perto, aqui na rua Rainha Guilhermina.
Geralmente quando o cara pressente que o carro é seu e que você vai sair, ele geralmente
se afasta.
Esse aí, não se afastou. Aí, eu pedi licença e botei a chave pra abrir a porta
ele deu a volta
atrás de mim,
encostou o
revólver, pediu
tudo
mas só levou o relógio, porque eu não tinha nada. Estava com uns trinta, quarenta
cruzeiros, no bolso. E foi o que ele levou.
Mas ficou a sensação, aquela sensação desagradável, de saber, que podia morrer ali,
estupidamente, meio-dia. Ficou a marca, aquela marca custou a sair da minha barriga,
aquela sensação, aquele contato da boca do revólver na barriga da gente, é um negócio
desagradabilíssimo. Foi uma experiência bem chata. Aliás, todo assalto é chato, né?
Como eu estava com a minha cabeça muito ligada, ao fato de já estar casado, eu na hora
assim, a minha reação foi bem normal. Quer dizer, eu não fiquei apavorado.
Disse: “Amigo, eu
não tenho nada
aqui, ta?
Tou com pouco dinhe...só tenho o relógio
E fui logo dando o
relógio pra ele.
Ele acabou levando o relógio, ficou satisfeito e sumiu.
Quadro 14: Ilustração de orações-figura/ fundo
O quadro acima mostra a oposição entre os planos de figura e fundo. A coluna da
figura compreende a porção central do texto, que contribui para melhor expressar os
propósitos comunicativos do falante e representa sua estrutura básica, com predominância de
ações pontuais, enquanto a coluna de fundo corresponde a partes periféricas do texto, que
64
ampliam, comentam ou embasam a narrativa básica, sem contribuir para a progressão
discursiva.
A transitividade pressupõe uma atuação no campo discursivo relacionada à formação
dos referidos planos. A relevância comunicativa governa a escolha das estruturas oracionais,
nas quais porções narrativas de alta transitividade exibem maior relevância discursiva e
porções de baixa transitividade representam o plano de fundo da progressão textual. Esses
pressupostos implicam um relacionamento intrínseco entre as determinações discursivo-
pragmáticas e as da gramática.
Fator 4: Função discursivo-interativa dos advérbios aspectualizadores
A interpretação aspectual de qualquer enunciado, como já enfatizamos em diversos
momentos, é influenciada por outros fatores, como a flexão verbal, a presença de auxiliares, a
classificação semântica dos verbos e a natureza da ação descrita.
Essa classe específica de advérbios define, juntamente com outros fatores, a forma
como é descrita a temporalidade interna da ação. Buscamos observar se há relação entre o uso
de um tipo específico de caracterização aspectual na oração e um tipo específico de advérbio.
Levando em conta a natureza dos NTs, esperamos uma maior ocorrência dos
advérbios de localização. Essa expectativa se baseia no fato de os três primeiros núcleos
induzirem a relatos de situações e eventos localizados temporalmente. No NT 4 (assumpção
de ponto de vista/seqüência argumentativa) e na CR 2 (argumentatividade) nossas
expectativas também se baseiam na localização de eventos, mas exibindo maior teor
argumentativo. Calculamos que as localizações temporais presentes no NT 4 sejam
decorrentes da exposição de fatos, usados como exemplificação ou prova evidencial para
conferir maior credibilidade a uma determinada opinião.
Nesse fator, vamos analisar especificamente a função dos advérbios aspectuais,
apresentada na seção 2.4 e aqui repetida, com sua respectiva exemplificação:
• de localização temporal - localizam o evento em um dado momento: Ela conseguiu fazer
isso comigo, uns meses atrás. (PAU, 51)
65
• de freqüência - expressam a quantificação fora da localização temporal na qual estão
inseridos: Próximo onde eu moro, ali no Sendas, uma Sendas enorme, super-atacado Sendas
que tem lá na Penha, de vez em quando eu via esses pivete. (LUC, 63)
• de duração - fazem referência ao evento independente de sua localização temporal: Fiquei
aborrecido por isso, bem umas... duas semanas, aborrecido mesmo, tava aborrecido.
(PAU, 51)
Os casos de gramaticalização não foram considerados, como por exemplo, algumas
ocorrências de agora, nas situações em que ele perde sua função adverbial e passa a funcionar
como marcador discursivo, como em “Tem bastante coisas que me fazem ficar contente.
Agora feliz, é difícil eu colocar isso.” (PAU, 51),
Fator 5: Classificação semântica dos verbos
A classificação semântica dos verbos nos permite observar a atitude do falante em face
do que está sendo dito. Essa atitude é importante para a validação dos argumentos
apresentados. Adotamos a taxionomia de Garcia (2004) e Votre (1992), ressaltando que,
muito embora, a proposta de Garcia seja por demais detalhada, ela serve para nossos fins.
Cumpre dizer que, via de regra, ainda não dispomos de um estudo em português sobre a
natureza semântica dos verbos mais rentável em suas projeções analíticas.
Especificamente nos verbos aqui denominados afetivos, apresentaremos a visão dos
dois autores em foco.
Na classificação de Garcia, os verbos são divididos em três grupos básicos:
relacionais, que indicam o tipo de relação entre os elementos de seu domínio; ativos, que
indicam um processo e auxiliares. Garcia classifica os verbos poder, dever, ter que/de, haver
de/que costumar e ousar como auxiliares. Observamos que a denominação “auxiliar” não dá
conta do valor modal dos verbos por ele assim considerados como auxiliares. Por isso,
decidimos enfatizar seu valor modal, destacado por Votre, nomeando-os como deônticos.
Os verbos relacionais estabelecem relação entre eles e a realidade. De acordo com o
tipo de relação que expressam, subdividem-se em:
66
Designativos indicam os traços de aspecto, representado
primeiramente pelo caráter aspectual de permanência de estado da
ação verbal: continuar, permanecer, ser, estar, ficar, continuar,
costumar.
“Isso me deixou muito aborrecido.
Fiquei aborrecido por isso bem umas
duas semanas.” (PAU, 51)
Equativos a classe dos equativos compreende apenas dois verbos:
ser e significar. O primeiro estabelece relação de identificação entre
dois elementos e o segundo, de identificação no sentido
metalingüístico. Os verbos equativos são identificados pela
possibilidade de ter qualquer classe de palavras funcionando como
seu sujeito.
“eu acho que isso significa talvez uma
tentativa de fazer do Rio de Janeiro, que
é uma cidade retalhada por bairros,
fazer pequenas cidadezinhas.” (JOS,
64)
Existenciais estabelecem relação entre um determinado elemento e
o universo, sendo ele real ou imaginado. Os verbos existenciais são:
haver, existir, ter, ser, faltar, carecer, abundar, sobejar, restar,
sobrar, ocorrer, acontecer, suceder, dar-se, sobrevir, realizar-se,
surgir, aparecer, manifestar-se, sumir, desaparecer, extinguir-se,
acabar.
“problemas de família, eles existem
(GUAL, 56)
“eu acho que tem pessoas que tem uma
predisposição” (PAU, 51)
Partitivos estabelecem relação parte-todo entre os elementos do
seu domínio: compor, formar, constituir, participar, consistir,
constar, compreender, incluir, implicar, completar, complementar,
dividir-se, partir-se, comportar, conter, participar.
Eu acho que têm pessoas, que têm
assim uma predisposição a fazer coisas
pelos outros nesse nível, entende? De
participar dos problemas alheios e a
nível comunitário, sabe? ( PAU, 51)
Locativos estabelecem relação de localização entre os elementos
de seu domínio: morar, encontrar, espalhar-se, cruzar, circundar,
ladear, juntar-se, aliar-se, vincular-se, aproximar-se, separar-se,
apartar-se, isolar-se, afastar-se.
“onde eu moro, fica numa praça”
(LUC, 63)
“esse aí não se afastou” (JOS, 64)
Possessivos estabelecem relação de posse: ter, possuir, manter,
conter, encerrar, pertencer, carecer, bastar, sobrar, restar, obter,
reaver, perder.
“os grandes bairros têm dificuldades de
fazer isso” (PAU, 51)
Afetivos constituem uma classe bastante numerosa, e são assim
denominados por conterem em seu domínio um elemento afetado por
outro ou pela situação descrita pelo verbo; indicam uma sensação
subjetiva. Subdividemse em: afetivos sensitivos: ver, divisar, olhar,
perceber, mostrar, apresentar, desvelar, denotar, expressar,
aparecer, sumir, esconder, parecer, fingir, ouvir, soar; cheirar,
saber (de paladar); provar, sentir, etc; afetivos cognitivos: saber,
reconhecer, entender, inferir, aprender, ensinar, decorar, explicar,
exprimir, ler, decifrar, ignorar, lembrar, esquecer, pensar, supor,
acho que felicidade pra mim é um
troço complexo” (PAU, 51)
“eu penso mais nos outros do que em
mim mesmo” ( SHEI, 60)
“eu me aborreço facilmente” (PAU, 51)
“uma pessoa que a gente considera
como amigo” ( MAR, 59)
“tenho pavor de pensar em ser
67
sonhar, intuir, prever, enganar, ponderar, etc; afetivos volitivos:
querer, ambicionar, pretender, decidir, determinar, esperar, temer,
ameaçar; desesperar, animar, hesitar, visar, etc; afetivos emotivos:
gostar, agradar, desgostar, detestar, aborrecer, irritar, suportar,
condescender, resistir; amar, respeitar, preferir, atrair, maravilhar,
interessar, sentir, sofrer, afetar, excitar, divertir, aliviar, atenuar,
torturar, angustiar, magoar, ofender, envergonhar, celebrar,
importar, repudiar, antipatizar, simpatizar, surpreender, confundir;
desapontar, humilhar, etc; afetivos avaliativos: achar, supor; crer,
suspeitar, provar, aprovar, desaprovar, concordar, discordar,
apoiar, merecer, valer; desvalorizar, acertar; errar, convir, avaliar,
qualificar, acusar, desculpar, etc.
assaltada, porque hoje em dia é a coisa
que mais se ouve” (LUC, 63)
“quando o cara pressente que o carro é
seu e que você vai sair, ele geralmente
se afasta” (JOS, 64)
“é o quase que me incomoda” (CR 01)
Comunicativos possuem as mesmas características dos verbos
afetivos, apenas com o diferencial de conter em seu domínio
elementos que designam texto: dizer, referir, mencionar, sugerir,
insinuar, calar, emudecer, declarar, argumentar, segredar, fofocar;
tagarelar, frisar, conversar, perguntar, responder, negar, recusar,
confirmar, consentir; criticar, elogiar, insultar, praguejar, reclamar,
cumprimentar, cortejar, lamentar, ordenar, pedir, aconselhar,
avisar, comunicar, escrever, manifestar, declamar, acusar,
denunciar, ler, alegar, explicar, ditar; predizer, mentir, proibir,
permitir, discutir, oferecer, prometer; repetir, ameaçar, consentir,
persuadir.
disse: amigo, não tenho nada aqui,
tá?” (JOS, 54)
“o cidadão se sente frustrado, se sente
fracassado. Apenas ele não declara, não
diz” (GUAL, 56)
“se você conversa com uma pessoa da
zona sul, vai notar que ela tem uma
mentalidade toda diferente” (SHEI, 60)
Comparativos estabelecem uma relação de comparação entre
elementos da mesma natureza: igualar, parecer, comparar-se,
diferir, opor-se, exceder, preponderar, inferiorizar.
“eu não parecia muito com meu irmão
não” (MAR, 59)
Condicionais indicam relação de condicionalidade, de modo que
um determinado elemento possibilite a ocorrência de uma
determinada situação: precisar, necessitar, carecer, depender,
prescindir.
principalmente, se essa greve não
necessita ser violenta. Porque eu não
preciso
cometer violência”
(GUAL, 56)
Delimitativos delimitam determinado lugar, quantidade ou evento:
medir, distar, pesar, custar, valer, durar, somar.
“se fizesse isso iam queimar o exército,
não ia durar nada” (PAU, 51)
As classificações de Garcia e Votre apresentam alguns pontos de convergência e
divergência. Como nossa amostra é baseada em entrevistas de cunho argumentativo, é de se
esperar que a maioria dos verbos sejam emotivos. Com relação a este tipo de verbos, Votre
(1992, p. 161) os denomina emotivos, subdividindo-os em verbos designadores de: desejo
68
(gostar, desejar, querer, preferir, estimar, apreciar); atitude psicológica (preocupar-se,
alegrar-se, admirar-se); pretensão (pretender, tentar com); sugestão (sugerir, propor);
pressão explícita (desafiar, requerer, insistir, exigir) e causação forte (possibilitar, facultar,
facilitar, autorizar, aprovar, permitir, proibir). Uma vez que a conceituação de Garcia
prioriza critérios semânticos enfocando a postura do falante, optamos por esta última para
basear nossa classificação de verbos afetivos, segmentados em sensitivos, cognitivos,
volitivos, emotivos e avaliativos. Pretendemos observar mais detidamente essa classe de
verbos, pois nossa hipótese é de que sua ocorrência em nossa amostra seja significativa, tendo
em vista o caráter subjetivo das respostas.
Nossas hipóteses são que, no NT 1 (modalidade irrealis, O que ter deixaria bem
feliz?), os afetivos cognitivos sejam maioria devido à necessidade de um posicionamento
diante de situações. No NT 2 (modalidade realis, O que te deixa aborrecido?) esperávamos
que, devido à exposição de situações que envolvam algum tipo de preferência, os verbos
afetivos emotivos, como chatear, irritar, aborrecer, fossem mais freqüentes. No NT 3 (relato
de experiência de vida, Você já foi assaltado?), pressupomos maior ocorrência de verbos
afetivos sensitivos, devido à narração de situações-limite. Além desses verbos, esperamos
também uma ocorrência significativa de verbos operativos por conta da narrativa de eventos
neste núcleo. No NT4 (assumpção de ponto de vista, Você acha que casamento é coisa de
antigamente? Você acha que as associações de bairro ajudam?) esperamos maior ocorrência
de verbos afetivos avaliativos, por conta dos juízos de valor construídos pelos informantes
neste núcleo.
Os verbos ativos se caracterizam por funcionarem como respostas a perguntas do tipo: o
que acontece? ou o que alguém/algo faz? Subdividem-se em:
Operativos expressam a forma como determinada ação se
processa, a qual é determinada pelo contexto da ação: fazer, praticar,
cometer, exercer, exercitar; cumprir, acontecer, começar, repetir,
parar, deixar de; encerrar, completar, agir, buscar, dedicar-se a,
ensaiar, preparar(-se), persistir, falhar, ajudar, transtornar, facilitar,
dificultar, usar, operar, preparar, aprontar, adequar para, destinar
a, fazer, permitir, conseguir, impedir, embaraçar, mandar, pedir,
isentar, liderar, governar, obedecer, cumprir.
“porque tanta gente corre atrás dela a
vida inteira” (PAU, 51)
“não reagi, não fiz nada, peguei tudo
na maior calma” (SHEI, 60)
“você conseguir querer fazer as coisas,
e conseguir um sucesso rápido , né?
(MAR, 59)
Descritivos descrevem processos que envolvem apenas um
elemento, o sujeito. Quando processos descritos por esses verbos
envolvem mais de um elemento, normalmente apenas o sujeito vem
“somos praticamente recém-casados,
eu pretendo viver bem com ele, ser bem
feliz com ele” (LUC, 63)
69
expresso, pois a complementação é facilmente inferível a partir do
contexto. Os verbos descritivos são: acordar, dormir, viver, morrer,
nascer, crescer, diminuir, mofar, queimar, adoecer, curar-se, descer,
subir, luzir, rir, chorar, corar, tremer, palpitar, roncar; ofegar, suar,
sentar(-se), cair.
“Essas comunidades, elas começarem a
crescer e tentar uma união” (PAU, 51)
Meteorológicos indicam tempo climático: anoitecer, chover,
nublar, clarear, relampejar, ventar, orvalhar, esquentar.
“se você for fazer uma estatística aí,
chove, não tem vaga” (LUC, 63)
Incoativos exprimem uma mudança de estado ou uma característica
do sujeito: virar, afrouxar, alargar, amadurecer, amarelar, aquecer,
arredondar, avermelhar-se, bichar, clarear, derreter, emagrecer,
empobrecer, endurecer, envelhecer, esfriar, gelar; melhorar, piorar,
rançar, resfriar.
“ele falou que eles incentivavam, que
não, que ele pode melhorar” (LUC, 63)
“tendo em vista esses números que eu
citei, a coisa não piorou” (GUAL, 56)
Efetivos pressupõem dois elementos, um agentivo ou instrumental e
outro, objetivo, sendo que um determina um efeito sobre o outro:
abafar, abolir, abraçar, abranger, abrir, acender, afogar, afrouxar,
alagar, amarrar, amolecer, parar, ancorar, apagar, apertar, arrasar,
assaltar, atacar, aumentar, balançar, beber, brecar, calçar, cavar,
chutar, cobrir, confeitar, copiar, cozinhar, derrubar, descascar,
desfazer, despedaçar, dilatar, duplicar, emendar, encerar,
encharcar, encontrar, engolir, entupir, esculpir, espremer, ferir,
hidratar, inalar, inundar, largar, limpar, morder, partir, pilotar,
pregar, ralar, regar, serrar, sujar, tecer, torrar, trancar, trazer,
varrer, visitar.
encontrar a mulher da minha vida é
uma coisa que me faz ficar alegre”
(PAU, 51)
“eu abri a janela e vi” (SHEI, 60)
“é o quase que me incomoda, que me
entristece, que me mata trazendo tudo
que poderia ter sido e não foi” (CR 02)
Causais expressam relação de causa e efeito entre dois elementos.
Essa relação é vista como um acontecimento. Os causais são: causar,
provocar, garantir, acarretar, ocasionar; originar; resultar em;
derivar, provir, proceder, advir, resultar de; suscitar.
“não há coisa melhor do que o
casamento para garantir uma formação
social” (GUAL, 56)
Factivos relacionam um agente/causa a um produto/efeito.
Designam processos que apresentam resultado e normalmente
admitem voz passiva: fazer, produzir; fabricar, preparar, construir,
criar, inventar, formar, compor, fundar.
“Ainda não inventaram outra. Assim é o
casamento” (GUAL, 56)
“o padre faz três, quatro casamentos de
uma vez” (LUC, 63)
Descritivo-relacional expressam situações que envolvem apenas o
sujeito, e indicam a localização que se dá em um lugar específico:
andar, nadar, voar, passar, sentar, descansar, pousar, decolar,
mergulhar, pular, deslizar, rodar, inclinar-se.
“você tá andando na rua, você é
desrespeitado pelos motoristas” (PAU,
51)
Efetivo-relacional são aqueles nos quais um elemento agentivo
determina uma relação existente entre dois outros elementos.
Normalmente admitem a voz passiva. Os verbos efetivos-relacionais
“Mas que os dois no seu convívio, na
sua convivência, na sua permanência
junto com o outro, que procurem
70
são: apoiar, meter, encher, cobrir, inclinar, ajustar, interpor,
suspender, descer, alternar, revezar, juntar, combinar, adicionar,
ajuntar, aliar, casar, ligar, ajustar, misturar, partilhar, completar,
acompanhar, achar, tocar, bater, atingir, procurar, prender, separar,
desprender, tirar, partir, arrancar, afastar, evitar, atacar, brigar,
campear; enfrentar, vencer, rechaçar, vingar, castigar, perder;
desafiar, surrar, trair, render-se.
ajustar os seus pontos de vista, ajustar
os seus problemas de educação”.
( GUAL, 56)
“Eu quero casar, sabe? Eu acho
legal, eu curto esse casamento,
sabe?” (SHEI, 60)
Transferenciais ou transmutativos pressupõem uma mudança de
origem ou fonte para uma meta ou destino. Os verbos transferenciais
são: dar, prestar, render, dedicar, receber, entregar, ganhar,
recolher, comprar, vender; trocar, alugar, emprestar; roubar,
devolver, recuperar, deixar, herdar; transmitir, suprir, usurpar,
roubar, delegar, pagar, dever, cobrar, mudar, degenerar, passar,
traduzir, variar, ir, chegar, voltar, jorrar, passar, sair, entrar, virar.
“em princípio eu acho que vou entregar
tudo a Deus” (NOR, 58)
“o cara me assaltou, roubou minha
jóias” (SHEI, 60)
“nessa praça há um colégio, e lá é
muito calmo , saindo do horário
escolar” (LUC, 63)
Por fim, temos os verbos auxiliares, que aqui tratamos como deônticos. Eles indicam
obrigatoriedade ou permissão: poder, dever, ter que/de, haver que/de:você tem que fazer
aquilo pra agradar” (SHEI, 60); “o cidadão casado tem que ter responsabilidade, menor que
seja” (GUAL, 56).
Fator 6: Tempo dos verbos
Com relação aos tempos verbais, a divisão por NTs induz a algumas expectativas.
Primeiramente, esperamos um efeito gatilho com relação aos tempo verbais empregados nas
perguntas. No NT 1 (seqüência expositiva, irrealis), esperamos a predominância do modo
subjuntivo e do futuro do pretérito do indicativo, pela influência (gatilho) do tempo da
pergunta (O que te deixaria bem feliz?), uma vez que este modo está vinculado a eventos não
factuais, hipotéticos.
No NT 2 (seqüência expositiva, realis), esperamos a predominância do presente do
indicativo, apontando eventos reais, factuais, em concordância com o tempo empregado na
pergunta (O que te deixa aborrecido?). No NT 3 (relato de experiência de vida, seqüência
narrativa), hipotetizamos maior incidência do pretérito perfeito e imperfeito do indicativo,
tempos predominantes na narrativa de eventos, condicionados também pelo tempo da
pergunta (Você já foi assaltado?). No NT 4 (asumpção de ponto de vista, seqüência
argumentativa, Você acha que a associações de bairro ajudam?/Você acha que casamento é
71
coisa de antigamente?), a previsão é de maior incidência do presente do indicativo, tempo
preferido do discurso de caráter argumentativo, conforme afirmam Perelman e Olbretchs-
Tyteca (2005, p. 181).
Concluída a descrição e exemplificação dos grupos de fatores, cumpre enfatizar
novamente que:
(a) o NT foi considerado o fator a partir do qual foram estabelecidas as
correlações com os outros grupos de fatores;
(b) ao longo da análise estatística e interpretativa, poderão ser introduzidas
algumas outras noções teóricas pertinentes.
72
CAPÍTULO IV - ANÁLISE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DAS EXPRESSÕES
ASPECTUAIS
Neste capítulo serão apontados os resultados da análise quantitativa, a partir dos quais
observaremos se os objetivos gerais e específicos e as hipóteses concernentes a cada um dos
grupos de fatores foram confirmadas ou infirmadas.
Antes de passar à apresentação dos resultados, é necessário tecer algumas
considerações sobre o tratamento dos dados. Obtivemos um total de 665 verbos (N = 665):
490 do corpus da fala e 175, da escrita.
Encerramos esse capítulo confrontando as evidências obtidas com os dados da fala e da
escrita.
4.1 Valores aspectuais na fala e na escrita
Os resultados referentes aos valores aspectuais estão expostos em duas tabelas: uma
referente à fala e a outra, à escrita.
Aspecto NT 1- seqüência
expositiva/
irrealis (O que te
deixaria bem
feliz?)
N = 95
NT 2-seqüência
expositiva/ realis
(O que te deixa
aborrecido?)
N = 96
NT 3 relato de
experiência de
vida/ narração
(Você já foi
assaltado?)
N = 139
NT 4 assumpção de ponto de
vista/ argumentação (Você acha
que o casamento é coisa de
antigamente?/Você acha que as
associações de bairro ajudam?)
N = 160
imperfectivo
inceptivo
0 0 0 2/160 = 1,25%
imperfectivo
cursivo
41/95 =
43,15%
50/96 = 52,08% 38/139 =
27,33%
83/160 = 51,87%
imperfectivo
terminativo
0 0 0 0
perfectivo
pontual
4/95 = 4,21% 8/96 = 8,33% 70/139 =
50,35%
17/160 = 10,62%
perfectivo
resultativo
0 1/96 = 1,04% 0 2/160 = 1,25%
perfectivo
cessativo
0 0 0 0
iterativo
perfectivo
0 0 0 0
iterativo
imperfectivo
1/95 = 1,05% 4/96 = 4,16% 10/139 = 7,19% 2/160 = 1,25%
indeterminado 49/95 =
51,57%
33/96 = 34,37% 21/139 =
15,10%
54/160 = 33,75%
Tabela 1: Valores aspectuais na amostra da fala
73
Os resultados da amostra da fala apontam que:
? Com relação ao NT 1 (seqüência expositiva, irrealis, O que te deixaria bem feliz?), nossas
expectativas foram parcialmente confirmadas: o valor aspectual de indeterminação atingiu
51,57%, sinalizando a não atualização da categoria de aspecto. No entanto, a expressiva
ocorrência do imperfectivo cursivo (41/95= 43,15%) evidencia que o efeito gatilho não foi
muito atuante, já que alguns informantes não responderam na modalidade irrealis, usando o
tempo presente, mais associado ao imperfectivo cursivo.
? No NT 2 (seqüência expositiva, realis, O que te deixa aborrecido?), as expectativas de
maior ocorrência do aspecto imperfectivo cursivo (52,08%) foram confirmadas. Atribuímos
essa predominância ao efeito gatilho da pergunta do E. Esse resultado também ilustra a
coincidência entre dois momentos da enunciação: no momento da fala (MF), da comunicação,
o informante relata fatos em concomitância com o momento de evento (ME): os fatos ainda se
estendem ao momento da fala (MF = ME).
? No NT 3 (relato de experiência de vida, narrativa, Você já foi assaltado?), nossas
expectativas de que a ocorrência mais expressiva fosse do aspecto perfectivo pontual
(50,35%) se confirmaram, já que as seqüências narrativas têm como tempo principal o
pretérito perfeito e o imperfeito. No entanto, não se descarta a atuação do efeito gatilho. O
índice que o aspecto imperfectivo cursivo atingiu (27,33%) pode ser explicado pelo fato de
ele ser tido como o tempo do comentário relativo a situações narradas. Segundo Koch (2006,
p. 35), a narração e o comentário são situações comunicativas nas quais predominam sistemas
temporais específicos. Sendo assim, temos o aspecto imperfectivo cursivo reservado para os
comentários e o perfectivo pontual, para a narrativa.
? No NT 4 (assumpção de ponto de vista, argumentação, Você acha que as associações de
bairro ajudam?/Você acha que casamento é coisa de antigamente?), a hipótese de que os
valores aspectuais imperfectivo cursivo (51,87%) e indeterminado (33,75%) estivessem
correlacionados à orientação argumentativa confirmaram-se. Esses dois aspectos mais
recorrentes são expressos por formas verbais do presente do indicativo. A escolha do tempo
presente parece constituir uma estratégia de teor argumentativo: em nossos dados,
observamos tanto o presente indicando ação em curso quanto um presente atemporal,
expresso pelo aspecto indeterminado gnômico (33,75%).
74
Vejamos, agora, que valores aspectuais foram mais recorrentes na escrita.
Aspecto Crônica
irrealis/expositiva (Meu
ideal seria escrever)
N = 48
Crônica 2 seqüência
argumentativa (O quase)
N = 58
Crônica 3 realis/ narrativo-
descritiva (O cego, Van Gogh,
Renoir e o resto)
N = 69
imperfectivo
inceptivo
2/48 = 4,16% 0 0
imperfectivo
cursivo
11/48 = 22,9% 40/58 = 68,96% 38/69 = 55,07%
imperfectivo
terminativo
0 0 0
perfectivo pontual
11/48 = 22,9% 5/58 = 8,62% 20/69 = 28,98%
perfectivo
resultativo
2/48 = 4,16% 0 0
perfectivo
cessativo
0 0 0
iterativo
perfectivo
0 0 0
iterativo
imperfctivo
0 0 0
indeterminado 22/48 = 45,8% 13/58 = 22,41% 11/69 = 15,94%
Tabela 2: Valores aspectuais da amostra da escrita
Os resultados apontam que:
? Na CR 1 (irrealis/expositiva), os resultados atestam as previsões de prevalência do
aspecto indeterminado (45,8%), sinalizando não-atualização do aspecto em função da
modalidade irrealis.
? Na CR 2 (seqüência argumentativa), as ocorrências mais expressivas foram o aspecto
imperfectivo cursivo (68,96%) e o indeterminado (22,41%). A maior ocorrência do valor
aspectual cursivo está associada ao caráter argumentativo dessa crônica, pois, conforme foi
postulado na análise da amostra escrita, o uso deste aspecto tem a função de apresentar pontos
de vista como verdadeiros, a fim de que se obtenha, com isso, a adesão do interlocutor às
idéias expostas. Nesta crônica, o uso do presente estabelece os juízos de valor em afirmações
como: “o nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que
cada um traz dentro de si.” Os usos de aspecto e tempo verbal contribuem para criar um efeito
de universalidade às explicações, para com isso obter uma maior adesão às idéias expostas.
? Na CR 3 (realis, narrativo-descritiva), observamos a predominância do aspecto
imperfectivo cursivo (55,07%). Podemos atribuir esta ocorrência significativa aos trechos
descritivos presentes na crônica. O aspecto perfectivo pontual (28,98%) justifica-se pelas
seqüências narrativas.
75
A seguir, vamos apresentar os resultados relativos à transitividade, lembrando que
seus traços determinantes operam em um continuum. A mensuração de transitividade não
pode ser feita por um único fator, justamente a co-ocorrência de traços é que resulta em maior
grau de transitividade. Nesta seção, vamos discutir a transitividade nos planos discursivos
(figura/fundo) no NT 3 (relato de experiência de vida, narrativa, Você já foi assaltado?), que
apresenta seqüências narrativas. Nesses planos discursivos, a transitividade atua de forma
diferenciada. Como já especificamos, o plano da figura tende a apresentar maior grau de
transitividade, e do fundo, menor grau.
A Tabela 3 demonstra o efeito da transitividade na amostra da fala:
76
Traço NT 1- seqüência
expositiva/
irrealis (O que te
deixa
aborrecido?)
N = 935
NT 2-seqüência
expositiva/ realis
(O que te deixa
aborrecido?)
N = 950
NT 3 relato de
experiência de
vida/ narração
(Você já foi
assaltado?)
N = 1381
NT 4 assumpção de ponto de
vista/ argumentação (Você acha
que o casamento é coisa de
antigamente?/Você acha que as
associações de bairro ajudam?)
N = 1442
participantes
dois ou mais 10/935 = 1,06% 10/950 = 1,05% 10/1381 = 0,72% 16/1442 = 1,10%
m 85/935 = 9,09% 86/950 = 9,05% 129/1381 =
9,34%
129/1442 = 8,94%
cinese
ação 44/935 = 4,70% 73/950 = 7,68% 114/1381 =
8,25%
129/1442 = 8,94%
não-ação 49/935 = 5,24% 23/950 = 2,42% 25/1381 = 1,81% 15/1442 = 1,04%
aspecto
télico 3/935 = 0,32% 19/950 = 2% 59/1381 = 4,27% 13/1442 = 0,90%
atélico 91/935 = 9,73% 78/950 = 8,21% 67/1381 = 4,85% 132/1442 = 9,15%
pontualidade
pontual 4/935 = 0,42% 10/950 = 1,05% 72/1381 = 5,21% 13/1442 = 0,90%
não-pontual 89/935 = 9,51% 86/950 = 9,05% 55/1381 = 3,98% 131/1442 = 9,08%
volição
volitivo 57/935 = 6,09% 51/950 = 5,36% 105/1381 =
7,60%
105/1442 = 7,28%
não-volitivo 38/935 = 4,06% 46/950 = 4,84% 28/1381 = 2,02% 40/1442 = 2,77%
afirmação
afirmativo 91/935 = 9,73% 78/950 = 8,21% 125/1381 =
9,05%
164/1442 = 11,37%
negativo 3/935 = 0,32% 12/950 = 1,26% 14/1381 = 1,01% 40/1442 = 2,77%
modalidade
realis 65/935 = 6,95% 91/950 = 9,57% 128/1381 =
9,26%
140/1442 = 9,70%
irrealis 24/935 = 2,56% 1/950 = 0,10% 7/1381 = 0,50% 4/1442 = 0,27%
agentividade
agentivo 67/935 = 7,16% 65/950 = 6,84% 117/1381 =
8,47%
105/1442 = 7,28%
não-agentivo 27/935 = 2,88% 28/950 = 2,94% 22/1381 = 1,59% 36/1442 = 2,49%
afetamento
afetado 28/935 = 2,99% 10/950 = 1,05% 72/1381 = 5,21% 47/1442 = 3,25%
não-afetado 66/935 = 7,05% 87/950 = 9,15% 64/1381 = 3,91% 100/1442 = 6,93%
individuação
individuado 60/935 = 6,41% 35/950 = 3,68% 100/1381 =
7,24%
77/1442 = 5,33%
não-
individuado
34/935 = 3,66% 61/950 = 6,42% 38/1381 = 2,75% 82/1442 = 5,68%
Tabela 3: Transitividade na amostra da fala
O traço de 1 participante, que codifica baixa transitividade, preponderou em todos os
NTs. A interpretação desse resultado pode estar associada às condições de produção da
amostra da fala aqui analisada, pautada no modelo das entrevistas sociolingüísticas, em que
um entrevistador (E) faz perguntas, seguindo um roteiro prévio, a um só informante (I).
77
Quanto à cinese, que está associada ao traço [± dinâmico], os resultados atestaram a
incidência da não-ação (5,24%) somente no NT 1 (seqüência expositiva, irrealis, O que te
deixaria bem feliz?), constituído por seqüências expositivas codificadas com verbos
epistêmicos ou afetivo-avaliativos e verbos de estado ou designativos (conhecer, achar,
considerar, ficar, sentir, ter, etc.) que são [-dinâmicos]. Nos demais NTs, predominaram
verbos de ação.
Quanto ao aspecto, a atelicidade foi o traço mais recorrente nos NTs, sinalizando baixa
transitividade. Mas no NT 3 (relato de experiência de vida, narrativa, Você já foi assaltado?),
os traços télico e atélico estão aproximados, 4,27% e 4,85% respectivamente, sugerindo uma
co-atuação com os planos discursivos. O plano da figura seleciona o aspecto télico e o do
fundo, o atélico. Logo mais adiante, nessa mesma seção, detalhamos essa correlação. O fato
de o NT 3 apresentar ações pontuais (5,21%) está condicionado à prototipicidade das
seqüências narrativas, usualmente codificadas no passado. Nos núcleos 1 (irrealis, seqüência
expositiva, 9,51%), 2 (realis, seqüências expositivas) e 4 (argumentação, Você acha que as
associações de bairro ajudam?/Você acha que casamento é coisa de antigamente?) os verbos,
com índices bastante aproximados, são não-pontuais (9,51%, 9,05% e 9,08%
respectivamente) por não apresentarem ações com início e término delimitados, como nas
narrações. Uma vez que o afetamento é correlacionado com a pontualidade da ação, o
resultado encontrado no NT 3, cujas ações são pontuais, ilustra o imbricamento entre esses
dois traços, cujos índices são exatamente iguais: 5,21% para [+pontual] e [+afetado]. Nos
outros núcleos, observamos o efeito reverso esperado: a co-ocorrência entre [-não-pontual] e
[-afetado].
Os traços volição e agentividade se referem ao grau de envolvimento do sujeito na
atividade do verbo. Os resultados atestam esse imbricamento em todos os NTs da fala: todos
exibem um sujeito [+humano ^ + animado], caracterizando-o como o agente da ação verbal.
Novamente, podemos supor que essa evidência reflete as condições de produção da entrevista,
que já define a priori os traços do sujeito, estimulado-o a expor seu posicionamento subjetivo
diante de situações, eventos e de relatos de vida em que esteja diretamente envolvido.
O traço afirmativo, revelador de alto grau de transitividade, predominou em todos os
NTs, possivelmente atestando o efeito gatilho da pergunta, formulada na forma afirmativa.
O traço [+ individuado] predominou em quase todos os NTs exceto do NT 2
(seqüência expositiva/realis). Podemos atribuir esse resultado ao fato de a maior parte dos
núcleos selecionar objetos [+ humanos ^ + animados].
78
No NT 4 (assumpção de ponto de vista, argumentação, Você acha que as associações
de bairro ajudam?/Você acha que casamento é coisa de antigamente?), os traços afirmativo
(11,37%) e negativo (2,77%) merecem comentários específicos no que concerne à função
argumentativa. O fato de destacarmos o traço de negação nesse núcleo se justifica por ele ter
apresentado os percentuais mais altos de todos os NTs para estes traços. Em vista disso, nos
propusemos a fazer uma análise qualitativa complementar, observando até que ponto esses
traços contribuem para expressar argumentatividade.
Os verbos copulativos (que indicam estados ou qualidades, ser e estar), em geral, não
contribuem para a interpretação aspectual em virtude de seu caráter não-dinâmico. Mas, no
NT 4, computamos a sua ocorrência considerando que a atribuição de qualidades ou estados
pode ser utilizada com fins estratégicos. Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 175), a
atribuição de qualidades para efeitos argumentativos justifica-se pelo fato de que atribuir uma
qualidade a um objeto é escolhê-la entre muitas outras, porque a consideramos importante ou
característica. Nesse sentido, os verbos copulativos podem contribuir para melhor avaliar a
expressão de pontos de vista subjetivizados. Também para Charaudeau (2008, p. 221), um
processo argumentativo não se confunde com uma simples asserção ou proposição. Não basta
apenas que o sujeito argumentante diga se está de acordo ou não com uma asserção, é
necessário que ele diga por que apresenta ou não uma tomada de posição. Dentre os recursos
lingüísticos que conferem veracidade à sua asserção ou proposição, a negação é um deles.
Nesse NT 4, pudemos avaliar mais claramente a contribuição desses recursos para a
interpretação aspectual. Foi justamente essa uma das motivações que nos levou a incluir esse
NT.
Para a pergunta ‘Você acha que o casamento é coisa de antigamente?’, observamos a
tomada de posição do informante GUAL, 56 relativamente à pergunta colocada como quadro
de questionamento.
O informante emprega a negação como uma estratégia argumentativa, visando a obter
a adesão do sujeito que constitui o alvo de sua argumentação: Mas até hoje ninguém
descobriu nada melhor do que o exame. Pode mudar de nome. De teste pra isso pra aquilo,
mas na realidade se trata de um exame. De uma avaliação de competência. Porque não há
outra. Ainda não inventaram outra. Assim é o casamento. Ainda não há coisa melhor do que
o casamento para garantir uma formação social.
Os verbos de ligação no tempo presente atemporal (aspecto indeterminado, 33,75%,
cf. Tabela 1), nesse mesmo informante, também exibem teor argumentativo, ancorando
79
posicionamentos argumentativos, que, em razão, de sua natureza gnômica, servem para
imprimir às definições um caráter inquestionável: “Que ainda é uma necessidade.
É coisa que a natureza deixou para o homem e para a mulher: o casamento. E até
hoje não há nada que o substitua. Isso é como o exame para o estudante. Não é coisa
perfeita.”
Ainda nesse informante, registramos a presença de argumentos pragmáticos, que,
segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 303) permitem apreciar um ato ou
acontecimento em função de suas conseqüências, presentes ou futuras, favoráveis ou
desfavoráveis, e que tem uma importância direta para a ação, que pode ser prevista, cabal ou
puramente hipotética. O informante em tela tende a apresentar argumentos favoráveis ao
casamento de modo categórico, imprimindo à atividade verbal um caráter de atelicidade e
não-pontualidade: “Porque enquanto houver uma sociedade que se preze, o casamento ainda
é uma instituição. A não ser que inventem outra melhor. Por enquanto, não tem outra. E
quando os casamentos fracassam, quando as famílias fracassam, entre as melhores famílias
com as maiores justificativas aceitam uma desagregação”. A seleção lexical de verbos com
baixa transitividade contribui para tornar mais incisiva a defesa de seus argumentos.
O informante MAR, 59 não acredita que o casamento seja coisa de antigamente, mas
não o considera tão necessário como o informante anterior. É menos incisivo, supõe que o
casamento seja uma escolha pessoal, e não algo absolutamente necessário. Para fundamentar
seu ponto de vista, também faz uso de verbos copulativos e negações: não é coisa de
antigamente, não é coisa necessária, é coisa que vai de pessoa a pessoa”.
A informante SHEI, 60 apresenta uma tomada de posição algo subjetivizada e associa
o desejo de querer casar-se ao fato ser moradora do subúrbio: mas pra mim, aqui do
subúrbio, da Piedade, eu ainda curto casamento, véu e grinalda, esse negócios todinho,
sabe? Eu curto ainda”. Temos aqui uma ilustração dos três momentos relevantes para a
descrição estrutural do tempo na localização dos eventos: o momento da fala (MF), em que a
informante enuncia sua asserção; o momento do evento (ME), que se refere ao tempo da
realização da ação (hipotético), codificado no presente do indicativo com valor aspectual
imperfectivo cursivo; o momento da referência (MR), que constitui a perspectiva do tempo
relevante que o informante transmite ao seu interlocutor: a simultaneidade, codificada através
de verbos cursivos.
A informante LUC, 63 inicialmente não apresenta tomada de posição. Na avaliação de
Charaudeau (2008, p. 223), o sujeito argumentante pode optar por não engajar-se quanto à
80
veracidade da proposição em questão. Para o autor, “Esse processo de questionamento é
frequentemente apresentado no início de um texto cuja seqüência desenvolve uma
argumentação”. A nosso ver, trata-se de uma estratégia provisória: a informante logo a seguir
apresenta provas contestando a falsidade da proposição: “Depende da cabeça de cada um [...]
quer dizer, o casamento é uma coisa importante na vi... e de repente passa a ser uma coisa de
comércio, né? Não é uma coisa antiga, se fosse antiga, teria muita gente aí encaixada na
antiguidade”. Seu posicionamento vai sendo delineado a partir de um raciocínio progressivo e
ponderativo, até concluí-lo, através de uma asserção afirmativa com verbo copulativo com
valor atemporal, gnômico.
Com relação à segunda pergunta deste NT 4, ‘Você acha que as associações de bairro
ajudam?’, o informante PAU, 51 apresenta, desde o início, provas a favor dessa proposição,
engatando um argumento atrás do outro: “Sobre as pessoas as pessoas mais ativistas. Eu acho
que têm pessoas, que têm assim uma predisposição a fazer coisas pelos outros nesse nível,
entende? De participar dos problemas alheios e a nível comunitário, sabe? Daí então, a elas
tomarem partido e virem eventualmente aí a serem ativistas mesmo. Serem partidárias da
violência. Eu acho tudo isso válido conforme a conscientiza... conscientização em termos
comunitários, tá? Então as... associações de moradores é uma coisa válida por vários
aspectos: primeiro, porque ela tende a resolver pequenos probleminhas de bairro que
geralmente aporrinha a vida de quem mora lá, como por exemplo, uma obra que não acaba
nunca, é uma falta de estacionamento, uma falta de um ponto de ônibus, então um ponto de
ônibus colocado no lugar errado, sabe?”. Sua escolha lexical dos tipos de verbos exibe
diferentes valores aspectuais (imperfectivo cursivo, verbo afetivo avaliativo, achar;
imperfectivo cursivo, verbo existencial, ter; indeterminado, verbo partitivo, que estabelece
relação parte-todo entre os elementos do domínio, participar; indeterminado, verbo
designativo, ser).
A informante NOR, 58, desde o início, adota a estratégia de uma pretensa
neutralidade, esquivando-se de tomar uma posição relativamente à asserção proposta. A sua
fala apresenta marcas de hesitação (alongamentos), negação atenuadora e advérbios
aspectualizadores: “Eu nunca compreendi bem... não compreendi porque nunca me interessei,
nunca tomei parte ativa em nenhuma dessas associações de bairro, mas não sei, que elas
trazem algum proveito principalmente numa mútua, por exemplo, um ajuda o outro...”. Nesse
excerto, observamos a presença de advérbios aspectualizadores de freqüência (nunca), verbos
afetivos cognitivos de aspecto indeterminado (epistêmicos, compreender e saber), verbo
afetivo emotivo de aspecto indeterminado (interessar), e verbo transferencial de aspecto
81
indeterminado (trazer). Quando o entrevistador insiste, solicitando confirmação
(“Representa, né? A comunidade”), a informante apresenta argumentos pontuais, mas parece
propensa a manter sua pretensa neutralidade:Ӄ representa a comodi...a comodidade e auxilia
um ao outro, por exemplo, o que tem mais possibilidade de arranjar os víveres pra uma praça
e outro que não sabe disso vai lá e já...já tá tirando proveito daquilo, né? Mas eu sei como é
que se faz isso, sabe? Eu nem sei como é funciona”. Segundo Charaudeau (2008, p. 223),
nessa atitude de não tomada de posição, o sujeito que argumenta se dispõe a admitir sua falta
de conhecimento a respeito do tema e a não se posicionar argumentativamente, defendendo
um ponto de vista. Observe-se a contribuição da aspectualidade e dos fatores co-ocorrentes
aqui estudados: verbo designativo de valor aspectual imperfectivo cursivo (representa), verbo
operativo de valor imperfectivo cursivo (auxilia, funciona), afetivo cognitivo de aspecto
indeterminado (saber) e verbo designativo de valor aspectual imperfectivo (ser).
A informante SHEI, 60 desde o início posiciona-se a favor, apresentando uma série de
argumentos pontuais favoráveis: “Ah, pra mim, não. Eu quero casar, sabe? Eu acho legal, eu
curto esse casamento sabe? De antigamente ainda, eu sou de antigamente, a minha criação
que ainda é a moda antiga, como...eu moro aqui em Piedade, sabe? Se você conversa com
uma pessoa da zona sul, vai notar que ela tem uma mentalidade toda diferente, você já deve
saber que lá eles têm outro tipo de vida, outro tipo de mentalidade, mas pra mim aqui
Piedade, eu já sei disso que eu trabalho na zona sul, eu trabalho Humaitá, então eu sinto essa
diferença das minhas amigas pra mim, eu sinto a diferença do modo delas viver com o meu
modo de viver, meu modo de pensar com o modo delas pensarem, entendeu? Mas pra mim
aqui do subúrbio, da Piedade, eu ainda curto casamento, véu e grinalda esses negócios
todinho, sabe? Eu curto ainda.”
Por fim, o informante JOS, 64, embora afirme que nunca tenha participado, posiciona-
se a favor das associações. É incisivo em sua defesa de ponto de vista, apresentando
argumentos por analogia (através da comparação das associações de bairro brasileiras com as
reuniões de condomínio, que ele já freqüentou bastante, e com as comunas existentes na
Suíça) e argumentos pontuais favoráveis que levam à conscientização das pessoas acerca da
importância dessas associações: Mas de qualquer maneira eu estou achando
interessantíssimo. Não sei por que, que demorou tanto tempo, pra começar a se descobrir
esse tipo de coisa. Talvez pelo fato de se saber, que isso aqui é uma imensa cidade; ninguém
individualizava. Ficava tudo muito aéreo, muito vago. Observem-se os efeitos de sentido
argumentativo produzidos pela aspectualização verbal: aspecto imperfectivo cursivo (estou
achando, verbo afetivo avaliativo, epistêmico), aspecto perfectivo pontual (demorou,
82
individulizava, ficava), aspecto imperfectivo inceptivo (começou a se descobrir) e aspecto
indeterminado (saber, afetivo cognitivo).
Antes de discutirmos os resultados do parâmetro da transitividade na amostra escrita,
vamos destacar, conforme já anunciamos anteriormente, a correlação entre telicidade,
pontualidade e planos discursivos. Para tanto, vamos adotar os mesmos procedimentos
analíticos utilizados para ilustrar o excerto do informante JOS, 64. A ilustração dos planos
discursivos será aplicada ao NT 3 (cf. 3.2) Esclarecemos que as respostas dos informantes
NOR, 58 e LUC, 63 tiveram de ser excluídas, uma vez que, nelas, não há relatos sobre
assaltos, já que os informantes afirmaram não ter passado por esse tipo de violência. A
pergunta em tela era: Você já foi assaltado?
Muito embora os excertos das entrevistas com que trabalhamos constem dos Anexos,
consideramos importante reproduzi-los aqui, para fins de melhor visualização dos resultados
obtidos. A análise qualitativa encontra-se ao final dos dois excertos contemplados.
Info n° 59 MAR masc.
E: É. Escapou, né? Você já foi assaltado, alguma vez?
F: Não. Já tive uma tentativa de... já tentaram me assaltar. Já tentaram me assaltar, mas não
conseguiram, né?
E: Mas você foi ameaçado assim?
F: Não com arma, né? A pessoa tava desarmada. Eu tava indo pro colégio, né? A pessoa me
ameaçou de dar um tiro. A pessoa, ameaçou não. Ela fez menção que tava armada, né? Aí,
tentou puxar alguma coisa do bolso. Pra me dar um tiro e tal. Mas eu não fiz, queria levar o
meu relógio. Era um rapaz da minha idade... Queria levar o meu relógio e a grana que tava
comigo. Aí, eu falei que não ia dar o relógio...Eu cheguei a abrir o relógio e fechei. Aí vendo a
minha reação, eu verifiquei que tava todo mundo desarmado. Ainda tentei, falei com ele que
teria que brigar comigo e tal. Quer dizer, eu enfrentei. Quer dizer se... tivesse com uma arma.
Eu nunca ia fazer isso não sou tão corajoso a esse ponto, mas eu enfrentei. Ele correu, né?
depois veio com pedra tacou. Fui atrás dele. Fui na polícia. Mas como sempre a polícia, nunca
tá perto, né? A gente procura a joaninha, pô, não tem nenhuma. Às vezes a gente tá à-toa na
rua, os caras param pra pedir documento. Documento, putz grila, dá um azar. Mas nunca fui
assaltado. Graças a Deus, assalto assim à mão armada, nunca fui assaltado. Deve ser uma
experiência horrível.
83
figura fundo
Não com arma, né? A pessoa tava desarmada. Eu tava indo pro
colégio, né?
A pessoa me ameaçou de dar um tiro.
A pessoa, ameaçou não. Ela fez menção que tava armada, né?
Aí, tentou puxar alguma coisa do bolso pra me
dar um tiro e tal.
Mas eu não fiz, queria levar o meu relógio. Era um rapaz da
minha idade... queria levar o meu relógio e a grana que tava
comigo.
Aí, eu falei que não ia dar o relógio...Eu
cheguei a abrir o relógio e fechei. Aí vendo a
minha reação, eu verifiquei que tava todo
mundo desarmado. Ainda tentei, falei com ele
que teria que brigar comigo e tal. Quer dizer,
eu enfrentei
Quer dizer se ... tivesse com uma arma. Eu nunca ia fazer isso
não sou tão corajoso a esse ponto, mas eu enfrentei
Ele correu, né? depois veio com pedra tacou.
Fui atrás dele. Fui na polícia.
Mas como sempre a polícia, nunca tá perto, né? A gente
procura a joaninha, pô, não tem nenhuma. Às vezes a gente tá
à-toa na rua, os caras param pra pedir documento. Documento,
putz grila, dá um azar. Mas nunca fui assaltado. Graças a Deus,
assalto assim à mão armada, nunca fui assaltado. Deve ser uma
experiência horrível.
Info n° 60 SHEI fem.
E: Você já foi assaltada?
F: Já, uma vez dentro do ônibus, eu tava sentada, veio um rapaz, me assaltou, roubou minhas
jóias, eu tava com minhas jóias, me encostou o revólver, fiquei completamente apavorada, mas
não reagi, não fiz nada, peguei tudo na maior calma. Depois que cheguei em casa que fiquei
nervosa, que eu senti perigo, aí que eu fiquei né? nervosa, eu estava com jóias, tinha 200
cruzeiros na bolsa e aí entreguei. E aqui na minha casa não foi problema de dinheiro, né?
quando meu namorado foi assaltado, faz uns 6 meses, aqui em frente de casa, levaram o carro
dele, ele foi ameaçado, ameaçado de matar, né? Se ele gritasse mais eu abri a janela vi, abri a
janela e vi, minha irmã saiu, mas conseguiram pegar os caras com a polícia.
84
figura fundo
Já, uma vez dentro do ônibus, eu tava sentada
veio um rapaz, me assaltou, roubou
minhas jóias, eu tava com minhas jóias,
me encostou o revólver fiquei
completamente apavorada, mas não
reagi, não fiz nada, peguei tudo na maior
calma.
Depois que cheguei em casa que fiquei nervosa, que eu senti perigo,
aí que eu fiquei né? nervosa, eu estava com jóias, tinha 200
cruzeiros na bolsa e aí entreguei. E aqui na minha casa não foi
problema de dinheiro, né? quando meu namorado foi assaltado, faz
uns 6 meses, aqui em frente de casa, levaram o carro dele, ele foi
ameaçado, ameaçado de matar, né? Se ele gritasse mais eu abri a
janela vi, abri a janela e vi, minha irmã saiu, mas conseguiram pegar
os caras com a polícia.
Como verificamos, a narrativa é estruturada em dois planos, um salientado em relação
ao outro. O plano da figura constitui a seqüência de fatos que se sucederam, e o plano do
fundo contém o suporte e os comentários em relação ao que está sendo tratado na figura. Essa
diferente estruturação entre dois planos requer marcas lingüísticas específicas, como o aspecto
e o grau de transitividade.
A observação dos planos discursivos permite verificar com mais clareza as diferentes
configurações aspectuais. Os fatos expostos na figura expressam ações perfectivas, acabadas e
que compõem a seqüência de fatos que constituem a base da narrativa. No plano do fundo, os
processos e estados normalmente são apresentados como inacabados, sendo caracterizados
como imperfectivos e constituem o cenário dos episódios narrados.
No plano da figura, o grau de transitividade é maior do que no plano do fundo. Com
relação à cinese, a figura apresenta verbos que narram eventos com o traço [+dinâmico], ao
passo que o fundo contém a ambientação desses eventos, apresentando verbos com o traço
[dinâmico]. Na coluna da figura, notamos verbos pontuais como ameaçou, assaltou e sumiu,
e, no fundo, percebem-se seqüências que constituem comentários do informante. Mais
especificamente, com relação aos traços de transitividade, podemos afirmar que a figura
85
apresenta traços [+ pontuais], [+ dinâmicos] e [+ télicos], enquanto o fundo apresenta
traços [- pontuais], [- dinâmicos] e [- télicos].
Após apresentar a análise complementar relativa aos planos discursivos associados ao
parâmetro da transitividade, vamos avaliar de que modo esse parâmetro se configurou na
amostra da escrita, constituída por crônicas literárias:
Traço Crônica-irrealis/expositiva
(Meu ideal seria escrever)
N = 480
Crônica 2 seqüência
argumentativa
(O quase)
N = 509
Crônica 3 realis/
narrativo-descritiva (O
cego, Van Gogh, Renoir e o
resto)
N = 611
participantes
dois ou mais 8/480 = 1,10% 3/509 = 0,58% 9/611 = 1,47%
um 40/480 = 8,33% 49/509 = 9,62% 53/611 = 8,67%
cinese
ação 48/480 = 10% 52/509 = 10,21% 54/611 = 8,83%
não-ação 0 0 7/611 = 1,14%
aspecto
télico 13/480 = 2,70% 5/509 = 0,98% 10/611 = 0,16%
atélico 35/480 = 7,29% 47/509 = 9,23% 52/611 = 8,51%
pontualidade
pontual 12/480 = 2,5% 5/509 = 0,98% 10/611 = 0,16%
não-pontual 36/480 = 7,5% 41/509 = 8,05% 51/611 = 8,34%
volição
volitivo 42/480 = 8,75% 31/509 = 6,09% 45/611 = 7,36%
não-volitivo 6/480 = 1,25% 21/509 = 4,12% 15/611 = 2,45%
afirmação
afirmativo 48/480 = 10% 41/509 = 8,05% 60/611 = 9,81%
negativo 1/480 = 0,20% 8/509 = 1,57% 1/611 = 0,16%
modalidade
realis 9/480 = 1,87% 50/509 = 9,82% 56/611 = 9,16%
irrealis 39/480 = 8,12% 1/509 = 0,19% 7/611 = 1,14%
agentividade
agentivo 42/480 = 8,75% 37/509 = 7,26% 45/611 = 7,36%
não-agentivo 5/480 = 1,04% 15/509 = 2,94% 14/611 = 2,29%
afetamento
afetado 13/480 = 2,70% 17/509 = 3,73% 15/611 = 2,45%
não-afetado 34/480 = 7,08% 33/509 = 6,48% 46/611 = 7,52%
individuação
individuado 33/480 = 6,87% 0 42/611 = 6,87%
não-
individuado
24/480 = 5% 52/509 = 10,21% 19/611 = 3,10%
Tabela 4: Transitividade na amostra da escrita
Tal como na amostra da fala, preponderou a baixa transitividade em relação a 1
participante em todas as crônicas. Como estamos tratando do gênero literário da crônica,
86
atribuímos o traço de 1 participante ao fato de existir um narrador personagem, que é o agente
das ações, o que também induz à maior ocorrência de um sujeito volitivo. O registro da
incidência, embora muito pouco expressiva, de dois ou mais participantes, dá conta dos
personagens retratados nas crônicas.
Em todas as crônicas, foi alto o grau de transitividade da cinese, em que configuram
eventos com o traço [+ dinâmico]; este resultado pode ser atribuído às condições de produção
e à prototipicidade da crônica, que tem por característica retratar eventos do cotidiano. Exceto
na CR 3 (realis, narrativo-descritiva), em que preponderam seqüências narrativo-descritivas, o
traço da ação foi categórico. A natureza híbrida das seqüências da CR 3 motivou a ocorrência
bastante inexpressiva (1,14%) do traço não-ação, associado às seqüências descritivas.
Constatamos o imbricamento esperado entre os traços de atelicidade, não-pontualidade
e não-afetamento em todas as crônicas, caracterizando baixa transitividade. Na CR 1
(irrealis/expositiva), marcada pela preponderância da modalidade irrealis, predominam
verbos no futuro do presente do indicativo, que não são marcados aspectualmente, sendo,
portanto, atélicos, não-pontuais e com objetos não afetados. Na CR 2 (seqüência
argumentativa), o traço de atelicidade é mais recorrente, porque os verbos são codificados no
presente do indicativo, com valor aspectual indeterminado, gnômico. O não-afetamento
decorre da não perfectivização ou completamento das ações, cujo momento de referência
(MR) é indeterminado. Na CR 3 (realis, narrativo-descritiva), o não-completamento das ações
se verifica em função do caráter de estaticidade das seqüências descritivas, o que induz ao
não-afetamento; a atelicidade se verifica em função do uso do tempo presente nas seqüências
descritivas.
Os traços volitivo e agentivo, que tipificam alta transitividade, confirmaram a
característica mais prototípica da crônica: o seu caráter subjetivo presente no ponto de vista
adotado no registro dos eventos em tela.
Os resultados relativos à modalidade confirmaram as expectativas. Na CR1 onde
predominam seqüências expositivas irrealis, esse traço foi de baixa transitividade. Na crônica
com preponderância de seqüências argumentativas e de seqüências narrativo-descritivas, a
alta transitividade associada ao traço realis se justifica, na CR 2, pelo caráter incisivo de
argumentos pontuais codificados no presente do indicativo atemporal, gnômico. Na CR3, pelo
caráter factual das ações retratadas e das descrições subjetivizadas no registro de uma
experiência vivenciada quando da visita a um museu. Os expressivos índices percentuais do
traço de afirmação presente em todas as CRs pode ser explicado como uma estratégia de
argumento pragmático (cf. PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 303-304), em
87
que as conseqüências de argumentações ou provas evidenciais codificadas em orações
afirmativas podem ser cabais (CR 2, marcada por um tom incisivo) ou puramente hipotéticas
(como na CR 1, marcada por ações não factuais).
Por fim, o traço não-individuado, de baixa transitividade foi categórico na CR 2
(10,21%), em que predominam seqüências argumentativas, selecionando argumentos
[- animados ^ - humanos] relacionados à atitudes mornas que sempre se situam em um meio
termo, e, portanto, não configuram ações perfectivas e pontuais. Na CR1 em que predominam
seqüências expositivas na modalidade irrealis e, na CR 3, em que predominam seqüências
narrativo-descritivas, a alta transitividade do traço individuado pode ser explicada em função
da presença de objetos referenciais, definidos e humanos. Na CR 1, os objetos se referem às
mudanças de comportamento que o cronista gostaria de ver adotadas pelas pessoas nomeadas
na crônica. Na CR 3, os objetos individuados se referem aos participantes envolvidos na
trama narrativa: o cronista, o acompanhante e o cego.
Detalhamos, agora, os resultados referentes à contribuição dos advérbios
aspectualizadores para a interpretação aspectual.
Advérbio aspectualizador
NT 1
seqüência
expositiva/irrealis
N = 9
NT 2
seqüência
expositiva/realis
N = 16
NT3
relato de
experiência de
vida/narração
N = 16
NT 4
Assumpção de ponto
de
vista/argumentação
N = 38
freqüência 2/9 = 22,22% 3/16 = 18,75% 11/16 =
68,75%
6/38 = 15,78%
localização temporal 5/9 = 55,55% 8/16 = 50% 5/16 = 31,25% 19/38 = 50%
duração 2/9 = 22,22% 5/16 = 31,25% 0 13/38 = 34,21%
Tabela 5: Advérbios aspectualizadores da amostra da fala
? No NT 1 (seqüência expositiva, irrealis, O que te deixaria bem feliz?), a previsão da
hegemonia dos advérbios de localização temporal (55,55%) se confirmou. Nesse núcleo, há
menção a eventos e situações, e os informantes localizam essas ações temporalmente, fazendo
uso dos seguintes advérbios: hoje, hoje em dia, no momento, atualmente e agora.
? No NT 2 (seqüência expositiva, realis, O que te deixa aborrecido?), também se
confirma a atuação mais expressiva dos advérbios de localização temporal (50%). Atribuímos
tal resultado ao fato de serem expostas neste núcleo situações que ocasionam algum tipo de
aborrecimento, pontualmente datadas. Os advérbios de localização identificados foram: não
88
muito tempo atrás, uns meses atrás, agora, de repente, a partir de um momento, desde que eu
me entendo como gente, outro dia.
Observamos também neste NT, a ocorrência algo expressiva de advérbios de duração
(31,25%), que, ao que parece, sinaliza fatos e eventos dimensionados em um estado de
aborrecimento temporalmente delimitado. Essas ocorrências foram: umas duas semanas,
desde pequenininho, durante muitos anos e momentaneamente.
? No NT 3 (relato de experiência de vida, narrativa, Você já foi assaltado?), a
predominância dos advérbios de localização foram infirmadas. Os advérbios de freqüência
prevaleceram (68,75%): normalmente, geralmente, de vez em quando, às vezes, nunca, uma
vez, etc. Para se entender melhor esse resultado, é importante ter em conta que eles ocorrem
em seqüências de comentário (fundo).
? NT 4 (assumpção de ponto de vista, argumentação, Você acha que casamento é coisa
de antigamente?/Você acha que as associações de bairro ajudam?), a ocorrência dos
advérbios de localização temporal confirma o esperado (50%). Atribuímos esse resultado à
estratégia argumentativa de fornecer provas para validar um argumento. Notamos que esse
tipo de advérbio ocorre em seqüências nas quais o informante expõe fatos para comprovar
suas afirmações. O informante GUAL, 56, a favor do casamento e bastante incisivo ao
defender seu posicionamento, ilustra sua defesa afirmando que há uma fraqueza moral na
sociedade, ocasionada pela desvalorização do casamento: “que aliás, o que está acontecendo
agora de ruim na sociedade”, localizando temporalmente seu argumento com o advérbio em
destaque, assim como em “mas até hoje não há nada que o substitua”. Os advérbios de
localização temporal desse NT 4 são: até hoje, agora, por enquanto, já, em cinco minutos, de
repente, antes e nunca.
Com relação à amostra escrita, obtivemos os seguintes resultados:
Advérbio
aspectualizador
CR 1 irrealis/expositiva
(Meu ideal seria escrever)
N = 12
CR 2
Seqüência
argumentativa (O
quase)
N = 4
CR 3
realis/narrativo-descritiva (O
cego, Van Gogh, Renoir e o
resto)
N = 3
freqüência 2/12 = 16,66% 1/4 = 25% 1/3 = 33,33%
localização
temporal
8/12 = 66,66% 1/4 = 25% 1/3 = 33,33%
duração 2/12 = 16,66% 2/4 = 50% 1/3 = 33,33%
Tabela 6: Advérbios aspectualizadores da amostra da escrita
Na amostra escrita, esse grupo de fator, conforme demonstram os percentuais,
apresentou baixa freqüência, sendo que, em alguns casos, houve coincidência nos índices.
89
? Na CR 1 (irrealis/expositiva, Meu ideal seria escrever), predominam os advérbios de
localização (66,66%). Podemos considerar que tal predominância se deve à sucessão de fatos
hipotéticos, em sua maioria localizados temporalmente, que o cronista descreve como efeitos
desejados de sua história: “aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse
minha história”, “que ela mesma ficasse admirada com seu próprio riso, e depois repetisse
para si própria: mas essa história é mesmo muito engraçada!”, “mas depois que esta, apesar
se sua má vontade, tomasse conhecimento da minha história.”, “e quando todos me
perguntassem mas de onde é que você tirou essa história?”. Neste crônica, os advérbios de
localização temporal mais recorrentes são: quando, depois que, nunca, até hoje, quando,
ontem.
Nas demais crônicas, (CR 2, seqüência argumentativa e CR 3, realis, narrativo-
descritiva), o baixo índice de ocorrência não nos permite correlacioná-los a nenhuma de
nossas hipóteses, já que os eventos não são quantificados nem especificados temporalmente.
A classificação semântica dos verbos na amostra da fala apresentou os seguintes
resultados, expostos nas tabelas 7:
90
Tipo de verbo
NT 1-
seqüência
expositiva/
irrealis (O que
te deixaria bem
feliz?)
N = 95
NT 2-seqüência
expositiva/
realis (O que te
deixa
aborrecido?)
N = 97
NT 3 relato
de experiência
de vida/
narração (Você
já foi assaltado?)
N = 139
NT 4 assumpção de ponto
de vista/ argumentação
(Você acha que casamento é
coisa de antigamente?/Você
acha que as associações de
bairro ajudam?)
N = 160
deôntico 9/95 = 9,47% 9/97 = 9,27% 3/139 = 2,15% 8/160 = 4,90%
designativo 5/95 = 5,26% 3/97 = 3,09% 6/139 = 4,31% 5/160 = 3,06%
equativo 0 0 0 1/160 = 0,61%
existencial 9/95 = 9,47% 7/97 = 7,21% 3/139 = 2,15% 17/160 = 10,42%
partitivo 0 0 0 6/160 = 3,68%
locativo 0 1/97 = 1,06% 5/139 = 3,59% 3/160 = 1,84%
possessivo 6/95 = 6,31% 2/97 = 2,06% 13/139 = 9,35% 9/160 = 5,52%
afetivo 32/95 = 33,68% 47/97 = 48,45% 26/139 = 18,70% 48/160 = 29,44%
comunicativo 7/95 = 7,36% 2/97 = 2,06% 6/139 = 4,31% 8/160 = 4,90%
comparativo 0 1/97 = 1,06% 0 0
condicional 1/95 = 1,05% 3/97 = 3,09% 1/139 = 9,71% 12/160 = 7,36%
delimitativo 0 0 0 0
operativo 6/95 = 6,31% 9/97 = 9,27% 22/139 = 15,82% 21/160 = 12,88%
descritivo 3/95 = 3,15% 0 12/139 = 8,63% 2/160 = 1,22%
meteorológico 0 0 0 1/160 = 0,61%
incoativo 8/95 = 8,42% 1/97 = 1,06% 3/139 = 2,15% 2/160 = 1,22%
efetivo 0 0 16/139 = 11,51% 0
causal 0 0 0 2/160 = 1,22%
factivo 0 1/97 = 1,06% 0 7/160 = 4,29%
descritivo-
relacional
0 5/97 = 5,15% 0 0
efetivo-
relacional
7/95 = 7,36% 3/97 = 3,09% 0 9/160 = 5,52%
transferencial 2/95 = 2,10% 3/97 = 3,09% 25/139 = 17,98% 12/160 = 7,36%
Tabela 7: Classificação semântica dos verbos na amostra da fala
Os dados numéricos confirmam nossas expectativas de predominância dos verbos
afetivos em todos os NTs. As outras classificações semânticas não se mostraram significativas
nos NTs 1 e 2. Mas, conforme demonstra a tabela 7, os percentuais mais expressivos do NT
3 (relato de experiência de vida, narrativa, Você já foi assaltado?) foram muito próximos:
afetivo (18,70%), transferencial (17, 98%) e operativo (15,82%). Como esse núcleo envolve
relatos de experiências relacionadas a assaltos, a presença dos verbos operativos expressa o
modo das ações descritas (tentar, conseguir); já os verbos transferenciais pressupõem uma
mudança de origem ou fonte: entregar uma posse a outrem (roubar, entregar e levar).
Como os verbos afetivos foram os mais recorrentes, julgamos importante refinar a
análise, quantificando seus subtipos, mas somente na amostra da fala:
91
Verbos
afetivos
NT 1- seqüência
expositiva/irrealis
N = 95
NT 2-seqüência
expositiva/realis
N = 97
NT 3 relato
de experiência
de vida/
narração
N = 139
NT 4 assumpção
de ponto de vista/
argumentação
N = 160
sensitivo 12,90% 16,66% 30,43% 13,33%
cognitivo 35,48% 6,25% 21,73% 22,22%
volitivo 19,35% 14,58% 17,39% 13,33%
emotivo 6,45% 50% 8,69% 17,77%
avaliativo 25,80% 12,5% 21,73% 33,33%
Tabela 8: Verbos afetivos na amostra da fala
A ocorrência desses verbos está relacionada ao posicionamento do informante com
relação ao tipo de discurso que ele produz, com viés subjetivo. No NT 1 (seqüência
expositiva/irrealis, o que te deixaria bem feliz?), predominam os cognitivos (35,48%); no NT
2 (seqüência expositiva, realis, O que te deixa aborrecido?) os emotivos predominam (50%),
no NT 3 (relato de experiência de vida, narrativa, Você já foi assaltado?), os sensitivos
predominam (30,43%) e, no NT 4 (assumpção de ponto de vista, argumentação, Você acha
que as associações de bairro ajudam?/Você acha que casamento é coisa de antigamente?), os
avaliativos (33,33%).
No NT 1, os afetivos cognitivos estão relacionados à exemplificação das situações
que, supostamente, deixariam o informante feliz (pensar, saber, conhecer). No NT 2, o
informante apresenta uma atitude mais comprometida com o real e com maior grau de
envolvimento e afetamento (aborrecer, superar, irritar, chatear e magoar). Destacamos,
ainda, que o efeito gatilho do verbo aborrecer da pergunta desse NT pode ter contribuído para
a ocorrência expressiva dos verbos afetivos emotivos. No NT 3, os verbos sensitivos (sentir,
olhar, pressentir, esconder, ver) podem estar refletindo iconicamente as sensações físicas e
psicológicas desagradáveis geralmente associadas a situações de risco.
O NT 4 apresenta maior ocorrência de verbos avaliativos (achar, supor, acreditar e
concordar), em função dos julgamentos ou razões persuasivas que o informante elenca
visando a obter a adesão do entrevistador com relação aos pontos de vista defendidos.
Com relação à amostra escrita, nossas expectativas de ocorrência de verbos afetivos
se confirmaram nas CR 2 (22, 41%) e CR 3 (26,08%), mas não na CR 1, que apresenta maior
ocorrência de verbos comunicativos (27,08%).
92
Tipo de verbo Crônica 1
irrealis/expositiva (Meu
ideal seria escrever)
N = 48
Crônica 2 seqüência
argumentativa
(O quase)
N = 58
Crônica 3 realis/
narrativo-descritiva (O
cego, Van Gogh, Renoir e
o resto)
N = 69
deôntico 2/48 = 4,16% 2/58 = 3,44% 2/69 = 2,88%
designativo 1/48 = 2,08% 1/58 = 1,72% 3/69 = 4,34%
equativo 0 0 0
existencial 1/48 = 2,08% 3/58 = 5,17% 1/69 = 1,44%
partitivo 0 0 0
locativo 1/48 = 2,08% 0 3/69 = 4,34%
possessivo 1/48 = 2,08% 1/58 =1,72% 4/69 = 5,79%
afetivo 10/48 = 20,83% 13/58 = 22,41% 18/69 = 26,08%
comunicativo 13/48 = 27,08% 2/58 = 3,44% 11/69 = 15,94%
comparativo 0 0 0
condicional 0 0 0
delimitativo 0 0 0
operativo 2/48 = 4,16% 14/58 = 24,13% 5/69 = 7,24%
descritivo 7/48 = 14,58% 9/58 = 15,51% 7/69 = 10,14%
meteorológico 0 0 0
incoativo 3/48 = 6,24% 1/58 = 1,72% 0
efetivo 0 8/58 = 13,79% 6/69 = 8,69%
causal 0 0 0
factivo 1/48 = 2,08% 0 0
descritivo-
relacional
0 0 0
efetivo-
relacional
4/48 = 8,33% 0 0
transferencial 2/48 = 4,16% 4/58 = 6,89% 9/69 = 13,04%
Tabela 9: Classificação semântica dos verbos na amostra da escrita
Na CR 1 (irrealis/expositiva), o índice dos verbos comunicativos (escrever, ler,
dizer, contar, repetir, perguntar, responder), que contém elementos metalingüísticos em
sentido próprio (cf. KOCH, 2002, p. 97), são correlacionados ao desejo do cronista de
escrever uma história ideal que afetasse a vida das pessoas (nesse sentido, explica-se o índice
de 20,83% atingido pelos verbos afetivos cognitivos, ver, ouvir, lembrar, pensar). Na CR 2
(seqüência argumentativa), os verbos afetivos se subdividem em emotivos (incomodar,
afligir, acalmar), cognitivos (saber, pensar, sonhar) e avaliativos (contestar, preferir). O
percentual dos verbos descritivos (15,51%), que envolvem apenas um participante (viver,
morrer, inspirar), pode ser explicado pelo fato de eles refletirem uma apreensão e
contemplação subjetiva do comportamento morno das pessoas, contestado pelo cronista. Na
CR 3 (realis, narrativo-descritiva), os verbos afetivos (26,08%) subdividem-se em emotivos
(estranhar, fingir, inquietar), cognitivos (perceber, lembrar, compreender, destacar) e
sensitivos (olhar, ouvir, tocar). A ocorrência de verbos descritivos (10,14%, brilhar, contrair,
tremular, refletir) está associada às impressões sinestésicas e subjetivas que o acompanhante
93
tece a respeito dos quadros e as transmite (daí a incidência relativamente expressiva dos
verbos transferenciais, 13,04%: passar, prestar, dar) ao cego.
Vejamos, por fim, os resultados referentes à classificação dos tempos verbais:
Tempo
verbal
NT 1
seqüência
expositiva/
irrealis (O que
ter deixaria bem
feliz?)
N = 95
NT 2-seqüência
expositiva/
realis (O que te
deixa
aborrecido?)
N = 96
NT 3 relato de
experiência de
vida/ narração
(Você já foi
assaltado?)
N = 139
NT 4 assumpção de ponto
de vista/ argumentação
(Você acha que casamento é
coisa de antigamente?/Você
acha que as associações de
bairro ajudam?)
N = 160
presente do
indicativo
48/95 = 53,9% 60/96 = 65,9% 46/139 = 34,3% 153/160 = 66,52%
pretérito
perfeito
indicativo
3/95 = 3,37% 7/96 = 7,69% 57/139 = 42,53% 21/160 = 9,13%
pretérito
imperfeito
indicativo
1/95 = 1,12% 0 17/139 = 12,6% 5/160 = 2,17%
pretérito
mais-que-
perfeito ind.
0 0 0 0
futuro do
presente
indicativo
0 0 0 2/160 = 0,86%
futuro do
pretérito
indicativo
7/95 = 7,86% 2/96 = 2,19% 1/139 = 0,74% 5/160 = 2,17%
presente do
subjuntivo
3/95 = 3,37% 1/96 = 1,09% 1/139 = 0,74% 7/160 = 3,04%
pretérito
imperfeito
subjuntivo
1/95 = 1,12% 0 1/139 = 0,74% 0
futuro do
subjuntivo
0 0 0 1/160 = 0,43%
imperativo 0 0 0 0
infinitivo 26/95 = 29,2% 16/96 = 17,58% 8/139 = 5,97% 30/160 = 18,75%
gerúndio 0 4/96 = 4,39% 3/139 = 2,23% 4/160 = 1,73%
particípio 0 1/96 = 1,09% 0 2/160 = 0,86%
Tabela 10: Tempos verbais na amostra da fala
No NT 1 (seqüência expositiva, irrealis, O que te deixaria bem feliz?), a previsão de
que, condicionados pela modalidade irrealis, os tempos verbais do modo subjuntivo e do
futuro do pretérito do indicativo predominassem, foram infirmadas. A ocorrência mais
expressiva foi a do presente do indicativo (53,9%). O efeito gatilho da pergunta não se fez
sentir, uma vez que os informantes tenderam a responder na modalidade realis, utilizando o
presente do indicativo, atribuindo-lhe um valor atemporal, cujos limites não estão definidos
nem sugeridos, configurando, assim, um caso de presente gnômico, omnitemporal.
94
No NT 2 (seqüência expositiva, realis, O que te deixa aborrecido?), confirmaram-se
as expectativas da maior presença do presente do indicativo (65,9%). Esse resultado pode ser
imputado ao efeito gatilho do tempo verbal da pergunta do E.
No NT 3 (relato de experiência de vida, narrativa, você já foi assaltado?), a ocorrência
do pretérito perfeito do indicativo (42,53%) confirma nossas expectativas, atesta o gatilho do
tempo do verbo e ratifica a hipótese de que as seqüências narrativas são linearmente
ordenadas e codificadas no tempo passado: narram-se eventos pontuais.
O uso do presente do indicativo (66,52%) no NT 4 (assumpção de ponto de vista,
argumentação,você acha que casamento é coisa de antigamente?/ Você acha que as
associações de bairro ajudam?), conforme previsto, está relacionado ao efeito persuasivo que
o falante quer imprimir ao seu enunciado: o presente propicia a criação de um efeito de
veracidade em seus argumentos, como em “Que ainda é uma necessidade. É coisa que a
natureza deixou para o homem e para a mulher: o casamento. E até hoje não nada que o
substitua. Isso é como um exame pro estudante. Não é coisa perfeita”. GUAL, 56).
Eis, agora, os tempos verbais da amostra escrita:
95
Tempo verbal
Crônica 1
irrealis/expositiva (Meu
ideal seria escrever)
N = 48
Crônica 2 seqüência
argumentativa (O
quase)
N = 58
Crônica 3 realis/
narrativo-descritiva (O
cego, Van Gogh, Renoir e o
resto)
N = 100
presente do
indicativo
0 36/58 = 47,36% 42/100 = 42%
pretérito
perfeito
indicativo
9/48 = 18,75% 8/58 = 10,52% 16/100 = 16%
pretérito
imperfeito
indicativo
2/48 = 4,16% 0 16/100 = 16%
pretérito mais-
que-perfeito
ind.
1/48 = 2,08% 0 0
futuro do
presente
indicativo
0 1/58 = 1,31% 0
futuro do
pretérito
indicativo
7/48 = 14,58% 3/58 = 3,94% 1/100 = 1%
presente do
subjuntivo
0 4/58 = 5,26% 0
pretérito
imperfeito
subjuntivo
23/48 = 47,91% 2/58 = 2,63% 10/100 = 10%
futuro do
subjuntivo
0 0 0
imperativo 0 4/58 = 5,26% 1/100 = 1%
infinitivo 5/48 = 10,41% 11/58 = 14,47% 7/100 = 7%
gerúndio 1/48 = 2,08% 7/58 = 9,21% 7/100 = 7%
particípio 0 0 0
Tabela 11: Tempos verbais da amostra da escrita
Na CR 1 (irrealis/expositiva), diferentemente do que ocorreu na amostra irrealis da
fala, confirmaram-se as expectativas de uso de verbos no pretérito imperfeito do subjuntivo,
em consonância com a modalidade empregada: 47,91%.
Na CR 2 (seqüência argumentativa), o uso do presente do indicativo adquire um teor
argumentativo gnômico (47,36%): “Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz”.“A
paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai. “O nada não ilumina, não inspira, não
aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si”. Para defender seus
pontos de vista, o autor afirma explicitamente que contesta o estilo de vida morno: “Pergunto-
me às vezes o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor, não me pergunto,
contesto”. Essa contestação bem ilustra o posicionamento de Charaudeau (2008, p. 221), ao
afirmar a necessidade de o sujeito argumentante dizer por que está de acordo ou não com uma
determinada tese, fornecendo provas de veracidade. Para provar sua contestação, o cronista
96
afirma o seguinte: “se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os
dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza”.
Cabe comentar o percentual relativamente expressivo do infinitivo (14,47%, pensar,
viver, decidir, escolher, preferir, desperdiçar, merecer, cercar, economizar), que parece
cumprir a função de criar um efeito de atemporalidade nas avaliações subjetivas de teor
argumentativo.
Embora de baixa ocorrência (5,26%), destacamos, ainda, o imperativo: uma vez que a
finalidade precípua do sujeito argumentante é mudar as representações do interlocutor,
provocando a adesão deste, o imperativo codifica a direcionalidade das mudanças esperadas:
Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de
tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando,
fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja
vivo, quem quase vive já morreu”.
A CR 3 (realis, narrativo-descritiva) apresenta maior ocorrência do presente do
indicativo (42%). Podemos atribuir esse resultado às passagens descritivas, que decorrem da
temática da crônica, nas quais há a descrição dos quadros. As ocorrências do pretérito perfeito
(16%) e do pretérito imperfeito do indicativo (16%) decorrem da narratividade, da
pontualidade dos fatos narrados. O emprego desses tempos verbais ratificam o caráter híbrido,
narrativo descritivo desta crônica.
94
4.2 Valores aspectuais na fala e na escrita: um confronto
Nesta seção, apresentamos os resultados gerais, visando a fornecer uma visão
global dos fatores analisados na fala e na escrita, ressaltando que só comentamos as
evidências mais relevantes.
Com relação ao aspecto verbal, o gráfico apresenta-se da seguinte forma:
0,40%
43,26%
0,00%
20,20%
0,61%
0,00%
0,00%
3,46%
32,04%
1,14%
50,85%
0,00%
20,57%
1,14%
0,00%
0,00%
0,00%
26,28%
0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00%
imp. inceptivo
imperfectivo cursivo
imp. terminativo
perf. pontual
perf. resultativo
perf. cessativo
iterativo perfectivo
iterativo imperf.
indeterminado
ESCRITA
ORAL
Gráfico 1: Valores aspectuais por tipo de amostra
O aspecto imperfectivo cursivo apresenta maior índice de ocorrência nos dois tipos de
amostra. Na da escrita (50,85%) sua incidência é ligeiramente maior do que na da fala
(43,26%). Os resultados relativos à fala foram puxados pelos NTs 2 (realis, seqüência
expositiva) e 4 (assumpção de ponto de vista, argumentação). Na escrita, esse aspecto
preponderou na CR 2 (seqüência argumentativa), em razão dos argumentos expostos no
presente atemporal; na CR 3 (realis, narrativo-descritiva), o aspecto imperfectivo cursivo foi
mais recorrente nas seqüências descritivas.
Em segundo lugar, temos o aspecto indeterminado, com 32,04% na fala, e 26,28% na
escrita. Esses resultados, no entanto, devem ser interpretados com cautela: ele se aplica
somente a um NT, o 1 (irrealis, seqüência expositiva) e a uma CR, a 1 (irrealis, expositiva),
em que os índices percentuais foram muito mais altos, para além do dobro. Essa evidência
95
sugere que o aspecto é uma categoria vinculada à modalidade realis, a ações e eventos
factuais, factualidade esta que favorece uma caracterização aspectual definida, podendo
apresentar uma de suas fases, o início, o curso ou seu término e completamento, delimitados.
Em terceiro e último lugar, destaca-se o perfectivo pontual, cujos valores são bastante
aproximados nas duas amostras (na escrita, 20,57% e na fala 20,20%). Ressalte-se que esse
valor aspectual só se aplicou também a um NT, o 3 (relato de experiência de vida/narração) e
a uma CR, a 3 (realis, narrativo/descritiva). Esse resultado confirma, portanto, a previsão de
que o aspecto perfectivo pontual, que expressa ações terminadas e completadas, associa-se ao
relato de experiências de vida, ou seja, à narrativa de eventos, cujo tempo prototípico é o
pretérito perfeito.
Passemos, agora, a observar o que o confronto entre os dados da fala e da escrita pode
revelar acerca da correlação entre transitividade e interpretação aspectual. Especificamente
para este grupo de fator, elaboramos um quadro, mensurando o grau de transitividade das
amostras da fala e da escrita. O parâmetro da transitividade foi, pois, avaliado a partir de um
gráfico por tipo de amostra e de dois quadros de grau de transitividade, apresentados em
seqüência:
0,97%
9,11%
7,64%
2,37%
2,12%
7,94%
2,12%
7,96%
6,75%
3,22%
9,73%
1,01%
9,00%
0,76%
7,52%
2,40%
3,33%
6,73%
5,77%
4,56%
1,24%
8,86%
9,61%
0,43%
1,74%
8,36%
1,68%
7,99%
7,37%
2,62%
9,30%
0,62%
7,18%
2,93%
7,74%
2,12%
2,81%
7,18%
4,68%
5,93%
0,00% 2,00% 4,00% 6,00% 8,00% 10,00% 12,00%
2 ou mais participantes
1 participante
ação
não-ação
télico
não-télico
pontual
não-pontual
volitivo
não-volitivo
afirmativo
negativo
realis
irrealis
agentivo
não-agentivo
afetado
não-afetado
individuado
não-individuado
ESCRITA
ORAL
Gráfico 2: Transitividade verbal por tipo de amostra
96
Traço Alta transitividade Baixa transitividade
participantes
NT 1, NT 2, NT 3, NT 4
cinese NT 2, NT 3, NT4 NT 1
aspecto NT 1, NT 2, NT 3, NT 4
pontualidade
NT 3 NT1, NT 2, NT 4
volição NT 1, NT 2, NT 3, NT 4
afirmação NT 1, NT 2, NT 3, NT 4
modalidade NT 1, NT 2, NT 3, NT 4
agentividade
NT 1, NT 2, NT 3, NT 4
afetamento NT 3 NT 1, NT 2, NT 4
individuação
NT 1, NT 3 NT2, NT 4
Quadro 15: Grau de transitividade na amostra da fala
Traço Alta transitividade
Baixa transitividade
participantes
CR1, CR 2, CR 3
cinese CR1, CR 2, CR 3
aspecto CR1, CR 2, CR 3
pontualidade
CR1, CR 2, CR 3
volição CR1, CR 2, CR 3
afirmação CR1, CR 2, CR 3
modalidade CR 2, CR 3 CR 1
agentividade
CR1, CR 2, CR 3
afetamento CR1, CR 2, CR 3
individuação
CR 1, CR 3 CR 2
Quadro 16: Grau de transitividade na amostra da escrita
A transitividade é baixa no que concerne ao número de participantes, fato este que
julgamos estar associado, na fala, às condições de produção das entrevistas, que já seleciona
previamente 1 participante, que expõe e relata eventos e experiências de vida e, na escrita, ao
posicionamento argumentativo, traduzido em seqüências avaliativo-subjetivas do cronista em
face dos eventos do cotidiano retratados.
A transitividade é alta com relação ao traço da cinese na fala e na escrita, em função
do aspecto imperfectivo cursivo, empregado no relato de ações em que ocorre simultaneidade
entre o momento do evento (ME) e o momento da fala (MF). A exceção é o NT 1 (seqüência
expositiva, irrealis, O que te deixaria bem feliz?), cuja baixa transitividade cinética pode estar
associada à predominância da não-ação, codificada através de verbos de estado, que
expressam situações de maior envolvimento emocional.
O aspecto categoricamente apresentou baixa transitividade nas duas amostras, o que
podemos atribuir ao caráter de atelicidade das ações verbais.
97
Os traços pontualidade e afetamento demonstraram o imbricamento que os entrelaça,
configurando na fala, baixa transitividade: [- pontual] implica [- afetamento]. No NT 3 (relato
de experiência de vida/narração) da fala, a configuração de alta transitividade pode ser
atribuída às seqüências narrativas no tempo passado nesse núcleo, o que explica o traço de
afetamento relacionado à perfectividade das ações télicas.
Os traços volição, afirmação e agentividade exibem alta transitividade em ambas as
amostras. Os traços volição e agentividade podem ser associados às condições de produção
das entrevistas, à existência de 1 participante expondo e avaliando subjetivamente, através de
sentenças afirmativas, eventos e experiências de vida. O traço realis configura alta
transitividade na amostra da fala e na escrita, exceto na CR 1 (irrealis/expositiva), codificada
na modalidade irrealis.
Já o grau de transitividade do traço individuação apresentou variação tanto na fala
quanto na escrita. Na amostra da fala, tendeu a apresentar alta transitividade, por conta da
seleção de objetos [+ animados ^ + humanos]. A exceção foi o NT 2 (seqüência
expositiva/realis), cuja baixa transitividade pode imputada à seleção de objetos retratando
eventos e situações. Na escrita, o parâmetro de individuação mostrou-se baixo, por influência
da CR 2 (seqüência argumentativa), em que predominam seqüências argumentativas que
selecionam argumentos [- animados ^ - humanos] associados à complementação de verbos
com valor aspectual imperfectivo e não-pontual.
Apresentamos a seguir, os resultados relativos aos advérbios aspectualizadores:
98
27,84%
46,83%
22,78%
21,05%
52,63%
31,57%
0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00%
freqüência
localização temporal
duração
ESCRITA
ORAL
Gráfico 3: Advérbios aspectualizadores por tipo de amostra
Os advérbios de localização temporal foram os mais freqüentes. Na fala, só foi
recorrente no NT 3 (relato de experiência de vida/narração). Na escrita, na CR 2 (seqüência
argumentativa). A contribuição desses advérbios para a interpretação aspectual é, portanto,
mais nítida em seqüências expositivas, em se expõem fatos e eventos temporalmente situados
e, em seqüências argumentativas, em que os fatos e eventos são invocados como provas de
validação de pontos de vista.
Outro resultado digno de nota é a maior ocorrência dos advérbios de freqüência na
fala (27,84%) e aqueles de duração, na escrita (31,57%). Esses resultados foram puxados
pelos índices percentuais bastante altos do NT 3 (68,75%, relato de experiência de
vida/narração, cf. Tabela 5). Na amostra da escrita a ocorrência desse advérbio, tal como os da
localização temporal e da duração, foi muito discreta.
99
Vejamos os resultados da classificação semântica dos verbos:
5,90%
3,86%
0,20%
7,33%
1,22%
1,83%
6,10%
31,16%
4,68%
0,20%
3,46%
0,00%
3,46%
0,20%
2,85%
3,25%
0,40%
1,62%
1,00%
3,86%
8,55%
3,42%
2,85%
0,00%
2,85%
2,28%
2,28%
3,42%
23,42%
14,85%
0,00%
0,00%
0,00%
12,00%
13,14%
0,00%
2,28%
8,00%
0,00%
0,57%
0,00%
2,28%
8,57%
11,81%
0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00% 30,00% 35,00%
deôntico
designativo
equativo
existencial
partitivo
locativo
possessivo
afetivo
comunicativo
comparativo
condicional
delimitativo
operativo
descritivo
meteorológico
incoativo
efetivo
causal
factivo
descritivo-relacional
efetivo-relacional
transferencial
ESCRITA
ORAL
Gráfico 4: Classificação semântica dos verbos por tipo de amostra
Quanto à classificação semântica dos verbos, os dados atestam que os verbos
afetivos na fala obtiveram os índices percentuais mais altos em todos os NTs e, na escrita, só
não foi mais atuante na CR 1 (irrealis, expositiva). Na fala, os afetivos apresentaram variação
de subtipos, a depender no NT em questão: afetivo cognitivo no NT 1 (irrealis, seqüência
expositiva), afetivo emotivo no NT 2 (realis, seqüência expositiva), afetivo sensitivo no NT 3
(relato de experiência de vida, narração) e afetivo avaliativo no NT 4 (assumpção de ponto de
vista, argumentação).
Observe-se que a diferença percentual um pouco mais elevada dos verbos afetivos na
fala do que na escrita sugere que, na fala, esses verbos constituem um recurso de
posicionamento subjetivo, sinalizando menor distanciamento com relação aos eventos, ações
e pontos de vista narrados e expostos.
Destacam-se ainda os verbos operativos, que expressam a forma como se dá uma ação,
com índices bastante aproximados entre a fala (12,00%) e a escrita (11,81%). Na fala, eles
foram mais recorrentes no NT 3 (relato de experiência de vida/narração) e no NT 4
(assumpção de ponto de vista/argumentação) e, na escrita, na CR 2 (seqüência
argumentativa). Nessa amostra da fala esses verbos estão correlacionados à descrição de
100
desenvolvimento de ações e à apresentação de fatos utilizados como provas argumentativas.
Na amostra da escrita esses verbos estão associados ao emprego do presente do indicativo
com valor argumentativo atemporal.
O fato de os verbos descritivos terem sido mais recorrentes na escrita explica-se em
razão das seqüências descritivas da CR 3 (realis/narrativo-descritiva).
Por fim, ressaltam-se os verbos transferenciais, cujos índices foram bastante
aproximados: na fala, 8,57% e na escrita, 8,55%. Na fala, associam-se aos relatos de assaltos,
cujos verbos expressam transferência de posse ou de valores; na escrita, à transferência de
percepções sensoriais do acompanhante para o cego durante a visita ao museu.
O confronto entre os índices percentuais da fala e da escrita com relação aos tempos
verbais pode ser visualizado no Gráfico 5:
56,43%
16,17%
4,22%
0,00%
0,36%
2,75%
2,20%
0,36%
0,18%
0,00%
14,70%
2,02%
0,55%
34,82%
14,73%
8,03%
0,44%
0,44%
4,91%
1,78%
15,62%
0,00%
2,23%
10,23%
6,69%
0,00%
0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00%
presente do ind.
pret. perf. do ind.
pret. imperf. do ind.
pret. mais-que-perf. ind
futuro do presente ind.
futuro do pretérito ind
presente do subjuntivo
pret. imperf. subj.
futuro do subjuntivo
imperativo
infinitivo
gerúndio
particípio
ESCRITA
ORAL
Gráfico 5: Tempos verbais por tipo de amostra
O tempo verbal mais recorrente nas amostras foi o presente do indicativo, sendo que
na fala seu percentual (56,43%) é muito mais nítido do que na escrita (34,82%). Esse
resultado justifica-se, na fala, pela maior ocorrência dos aspectos imperfectivo cursivo em
quase todos os NTs, exceto naquele da narrativa em que predomina o aspecto perfectivo
pontual; na escrita, pela maior ocorrência do aspecto indeterminado na CR 1
101
(irrealis/expositiva) sinalizando a não-atualização do aspecto em função da modalidade
irrealis.
Em segundo lugar, destaca-se o pretérito perfeito do indicativo com índices bem
aproximados na fala (16,17%) e na escrita (14,73%). Esse resultado é puxado pelo alto
percentual do NT 3 (relato de experiência de vida/narração), 42,53%, cf. Tabela 10. Na escrita
ele está associado aos quantitativos da CR 1 (irrealis/expositiva), referentes aos comentários
avaliativos subjetivos do cronista em relação à razão de ser da sua crônica. Na fala, está
associado aos relatos de experiências de vida do NT 3, em que prepondera o aspecto
perfectivo pontual.
Observa-se uma contraposição muito acentuada quanto à atuação do pretérito
imperfeito do subjuntivo: ele é praticamente hegemônico na escrita (15,62%, o percentual
mais alto dos tempos verbais na amostra escrita) em oposição à fala (0,36%). A interpretação
de tal resultado se deve à modalidade irrealis da CR 1, em que predomina o aspecto
indeterminado.
Já os percentuais relativos ao infinitivo tendem a ser um pouco mais altos na fala
(14,70%) do que na escrita (10,23%), resultado este associado a uma estratégia de criação de
efeito de atemporalidade nas avaliações subjetivas de teor argumentativo na CR 2 (seqüência
argumentativa) e ao aspecto indeterminado do NT 1 (irrealis, seqüência expositiva), o
segundo percentual mais alto dos tempos verbais.
102
V- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nosso estudo sobre aspecto verbal, adotamos um referencial teórico em que
conjugamos noções funcionais, semântico-discursivas e pragmáticas, uma vez que
consideramos que, na interpretação aspectual, devemos considerar a contribuição de outros
fatores lingüísticos, como os núcleos temáticos e tipos de seqüências, a transitividade verbal,
a classificação semântica dos verbos, os tempos verbais e os advérbios aspectualizadores.
Acreditamos que o nosso estudo possa ter contribuído para a descrição das
configurações sintáticas e semântico-pragmáticas que regulam a interpretação aspectual das
expressões lingüísticas, meta central que nos propusemos.
Para dar conta desse objetivo básico, optamos por trabalhar com corpora da fala
(entrevistas semi-informais do Banco de Dados Argumentativo, GRYNER, 1980-1983) e da
escrita (crônicas literárias), segmentados através de uma correlação entre núcleos temáticos e
seqüências textuais. O levantamento das expressões lingüísticas registrou um total de 665
verbos, 490 da amostra da fala e 175 da amostra da escrita.
Uma vez que reservamos um capítulo específico para confrontar os resultados na fala
e na escrita (cf. 4.2), neste capítulo final, apresentamos somente uma síntese das evidências
mais relevantes, postas em confronto com o referencial teórico, as hipóteses de trabalho e as
previsões dos grupos de fatores postulados.
Essas evidências são as seguintes:
(a) as categorias de tempo e de aspecto, conforme registra a literatura, estão
intrinsecamente relacionadas, mas se distinguem em pontos fundamentais:
1) o tempo pressupõe o aspecto, mas o aspecto não pressupõe o tempo; 2) o
aspecto não exibe uma natureza dêitica; 3) a descrição estrutural do tempo
observa três momentos relevantes: o momento da fala (MF), o momento do
evento (ME) e o momento da referência (MR); a descrição do aspecto
representa uma atualização espacial qualitativa do processo verbal; 4) o
aspecto fornece informações sobre a perspectivização ou focalização da
estrutura temporal interna da situação, sendo, portanto, uma propriedade da
sentença e não da enunciação; 5) o aspecto tende a expressar um ponto de
vista subjetivo do falante em relação ao desenvolvimento e ao grau de
realização da ação; 6) a postulação dos valores aspectuais está associada a
103
fases internas de desenvolvimento de realização de ações e eventos; 7) as
fases internas de uma situação parecem estar condicionadas pela natureza
da ação: verbos télicos não apresentam fases de desenvolvimento interno e
os atélicos as apresentam; o aspecto perfectivo não é passível de ser
analisado em suas fases de desenvolvimento, pois apresenta a ação como
um todo inanalisável com começo e fim bem delimitados; 8) a interpretação
aspectual está associada à modalidade: modalidade marcada
aspectualmente = realis; modalidade não marcada aspectualmente =
irrealis; 9) os planos discursivos estão associados a diferentes
configurações aspectuais e graus de transitividade: plano da figura =
aspecto perfectivo = alta transitividade; plano do fundo = aspecto
imperfectivo = baixa transitividade.
(b) os valores aspectuais das expressões lingüísticas estão correlacionados aos
núcleos temáticos e às modalidades. O valor aspectual mais recorrente,
tanto na fala quanto na escrita, foi o aspecto imperfectivo cursivo. Na fala,
ele foi associado às seqüências expositivas realis e à assumpção de um
ponto de vista. Na escrita, preponderou em função do presente atemporal
nas seqüências argumentativas e nas seqüências descritivas;
(c) o grau de transitividade verbal apresentou correlação com os núcleos
temáticos da fala e da escrita: baixa transitividade com relação ao número
de participantes (1); alta transitividade com relação à cinese; baixa
transitividade de aspecto em razão do caráter de atelicidade das ações
verbais; imbricamento e baixa transitividade entre pontualidade e
afetamento na fala; imbricamento e alta transitividade entre volição,
afirmação e agentividade; variação no grau de transitividade do traço
individuação (alta transitividade na fala, e baixa transitividade na escrita).
Com relação à modalidade realis, a mensuração do grau de transitividade
foi alto na amostra da fala e da escrita, exceto na CR 1 (irrealis, expositiva),
codificada na modalidade irrealis;
104
(d) os advérbios de localização temporal foram os mais recorrentes, sendo que
a sua contribuição para a interpretação da aspectualidade foi mais
transparente em seqüências expositivas e argumentativas;
(e) os verbos que mais contribuíram para a interpretação aspectual foram os
afetivos, tanto na amostra da fala quanto da escrita.
(f) o tempo verbal mais freqüente nas amostras foi o presente do indicativo,
sendo que, na fala, sua atuação é mais nítida do que na escrita.
As diferentes configurações dos valores aspectuais, assim como a atuação dos fatores
com que esses valores co-ocorrem, constituem, pois, um dos recursos lingüísticos de que o
usuário da língua dispõe para produzir efeitos de sentidos locais, resultantes das escolhas das
expressões lingüísticas e das dimensões semântico-discursivas dos processos verbais, a
depender da orientação argumentativa pretendida.
Um estudo mais aprofundado das condições contextuais e estruturais que exercem
pressão sobre os valores aspectuais na perspectiva de uma abordagem sócio-funcional e
textual-interativa, com base em um corpus da fala e um corpus da escrita contemplando
outros gêneros textuais e outros tipos de seqüências textuais, poderá confirmar ou infirmar as
evidências até aqui obtidas e referendar a pertinência dos grupos de fatores aqui testados.
Consideramos que um dos pontos mais relevantes de nossa pesquisa foi demonstrar
que o tratamento da categoria aspectual exige um escopo mais amplo de abordagem:
conforme enfatiza Travaglia (1991, p. 16), a categoria de aspecto, embora localizada no
verbo, não pode ser analisada isoladamente, uma vez que sofre influência de outros elementos
lingüísticos e extralingüísticos co-ocorrentes.
105
VI- REFERÊNCIAS
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev. e aum. Lucerna: Rio de Janeiro,
2004.
BELLO, A. Gramática de la lengua castellana. Santiago: Universidad de Chile, 1883.
BRANDÃO, Helena Nagamine. Texto, gêneros do discurso e ensino. In: ___. (Coord.).
Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel, discurso político, divulgação científica. 2.
ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 17-45.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo
sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999.
BROWN, Gillian; YULE, George. Discourse analysis. Cambridge: Cambridge University
Press, 1986.
BULL, W. Time, tense and verb. Berckeley: University of California Press, 1960.
CAMARA JR., Joaquim Mattoso. Princípios de lingüística geral. 4. ed. rev. e aum. Rio de
Janeiro: Livraria Acadêmica, 1969.
CASTILHO, Ataliba Teixeira Introdução ao estudo do aspecto verbal no português. Marília:
FFCL, Coleção Teses, 1968.
______. Aspecto verbal no português falado. In: ABAURRE, M. B.; RODRIGUES, A.C. S.
(Org.). Gramática do português falado. v. 8, Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2002.
p. 83-121.
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso modos de organização. São Paulo:
Contexto, 2008.
106
______; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo:
Contexto, 2004.
COMRIE, B. Aspect. An introduction to the study of verbal aspect and related problems.
Cambridge: Cambridge University Press, 1976.
CORÔA, Maria Luiza Monteiro Sales. O tempo nos verbos do português. Uma introdução à
sua interpretação semântica. São Paulo: Parábola, 2005.
COSTA, Sônia Bastos Borba. O aspecto em português. São Paulo: Contexto, 2002.
CUNHA, Celso; CINTRA L. Nova Gramática do português contemporâneo. 2. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
CURTIUS, Giorgio. Grammatica della lingua greca. Torino: Edizione Chiantore, 1936.
DIEZ, Friedrick Christian. Grammaire des langues romanes. 3. ed. Paris: F. Vieweg Libraire-
Éditeur, 1876.
DIK, S. C. The theory of functional grammar. Part I: The structure of the clause. Dordecht-
Holland/Providence RI-USA: Foris Publications, 1989.
FIORIN, José Luiz. Notas para uma didática do português. In: BASTOS, N.B. (Org.). Língua
portuguesa história, perspectivas, ensino. São Paulo: EDUC, 1998. p. 123-134.
_____. As astúcias da enunciação - as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo:
Ática, 2005.
FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica; COSTA, Marcos Antonio; CEZARIO, Maria
Maura. Pressupostos teóricos fundamentais. In: ___ et al. (Org.). Lingüística functional
teoria e prática. Rio de Janeiro: FAPERJ/ DP&A, 2003. p. 28-55.
GARCIA, Afrânio da Silva. Uma tipologia semântica do verbo no português. Soletras, Rio de
Janeiro, v. 4, n. 8, p. 53-70, 2004.
107
GIVÓN, T. Functionalism and grammar. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1995. p.
112-115.
GRYNER, Helena. Banco de dados do discurso argumentativo. Rio de Janeiro: Programa de
Estudos dos Usos da Língua (PEUL/UFRJ), 1980-1983.
GUILLAUME, Gustave. Temps et verbe. Paris: Éditions de Minuit, 1929.
HOPPER, Paul; THOMPSON, Sandra A. Transitivity in grammar and discourse. Language,
v. 52, n. 2, p. 251-299, 1980.
______. The iconicity of the universal categories ‘noun’ and ‘verbs’. In: HAIMAN, J. (Org.).
Iconicty in syntax. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1985. p. 151-183.
ILARI, Rodolfo. Sobre os advérbios aspectuais. In:___. (Org.). Gramática do português
falado, v. 2. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992. p. 153-192.
______. A expressão do tempo em português. São Paulo: Contexto, 2001.
______. Introdução à semântica: brincando com a gramática. São Paulo: Contexto, 2004.
JEPPERSEN, Otto. The philosophy of grammar. London: G. Allen & Unwin, 1924.
KOCH, Ingedore G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002
______. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2006.
LABOV, William. The transformation of experience in narrative syntax. In: ______.
Language in the inner city. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972. p. 354-396.
LYONS, Jonh. Introdução à lingüística teórica. São Paulo: Companhia Editora Nacional/
USP, 1979.
108
MACEDO, Alzira Verthein Tavares. Funcionalismo. Revista Veredas, v.1, n. 2, p. 71-88, jan.
jun. 1988.
MALINOWSKI, B. The problem of meaning in primitive languages. Supplement I, In:
Ogden, C. K.; I. A. Richards. The Meaning of Meaning: A Study of the Influence of Language
Upon Thought and of the Science of Symbolism. London: Kegan Paul, Trench, Trubner & Co.,
1938.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO,
A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.). Gêneros textuais e ensino. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2002. p. 19-57.
MATEUS, Maria Helena Mira et al. Gramática da língua portuguesa. 5. ed. Lisboa: Editorial
Caminho, 2003.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
NEVES, M. H de Moura. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação a nova
retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PEZATTI, E. G. O funcionalismo em lingüística. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C.
Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos. v. 3. São Paulo: Cortez, 2007. p. 165-
218.
RONCARATI, Cláudia. Tipos de texto estrutura do texto narrativo, dissertativo e
argumentativo. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2001. Mimeografado.
SILVEIRA, Elisabeth. O aluno entende o que se diz na escola? Rio de Janeiro:
Qualitymark/Dunya, 1997.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Um estudo textual-discursivo dos verbos no português do Brasil.
Campinas, 1991. Tese (Doutorado em Lingüística) - Departamento de Lingüística, Instituto de
Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 1991.
109
______.O aspecto verbal no português: a categoria e sua expressão. 3. ed. Uberlândia/MG:
Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 1994.
VOTRE, Sebastião Josué. Lingüística funcional teoria e prática. Relatório de Estágio de
Pós-Doutorado Sênior, Université Laval, Québec, 1992.
110
ANEXOS
ANEXO A Corpus da fala (entrevistas)
Núcleo temático 1 (Seqüência expositiva, irrealis, O que te deixaria bem feliz?)
A O que te deixaria bem feliz?
1 Info nº 51 PAU masc.
2 Info nº 56 GUAL masc.
3 Info n° 58 NOR fem.
4 Info n° 59 MAR masc.
5 Info n° 60 SHEI fem.
6 Info n° 63 LUC fem.
7 Info n° 64 JOS masc.
1 - Info n° 51 PAU masc.
E: Paulinho, o que te deixaria assim bem feliz? Uma coisa que caísse assim do céu.
F: É a tal história, né? (Risos.) Acho que felicidade, pô! Pra mim é um troço complexo, cê
entende? Quer dizer, ficar alegre, ficar contente, isso é fácil. Tem bastante coisas que me
fazem ficar alegre, ficar contente. Agora feliz, é difícil eu colocar isso. Acho que a maioria
das pessoas considera assim felicidade é... estar bem, estar confortável, estar seguro, cê
entende? Coisas desse tipo, sabe? Então, pô! Eu tenho vários problemas, por melhor dizer, eu
já discuto esse... esse tema comigo mermo, sabe? Sobre assim o que que é afinal da história, a
tal da felicidade, sabe? Porque tanta gente corre atrás dela a vida inteira e tal. Então pra mim
eu tenho assim um arquétipo, um arquétipo de felicidade já definido. Então dizer assim, uma
coisa que vai me fazer muito feliz é... num tem muito sentido.
Agora uma coisa que me faria ficar alegre, uma coisa que me faria ficar satisfeito, assim, é se
as pessoas que... próximas a mim, é se ficassem numa boa, assim se elas... superasse os
problemas que elas têm.
Eu fico muito contente sabe, quando eu encontro um amigo, sabe? Que eu sei dele, conheço
ele, sabe? né? Sei que ele tá, sabe? Claro! Todos pensamos assim, temos uns amigos que vão
bem e tem uns que vão mal. Mas quando eu encontro uma pessoa que eu conheço, e sei então
ajuizar isso, né? Que superou os seus poblemas negativos, seus... ruins e tá tudo bem com ela,
aí eu fico alegre, contente mermo, sabe? Esse tipo de coisa me faz contente, num tem muita
coisa que me faz contente não, sabe?
111
E: Mas num tem nada de imediato, assim, que acontecesse? Se eu te perguntasse assim
de repente: me diz rápido uma coisa que te deixaria alegre, né?
F: Acho que sei lá! Encontrar a mulher da minha vida, é uma coisa que me faz ficar alegre,
entendeu? Mas são coisas assim, que... é... que é como eu te falei, o meu conceito de
felicidade é uma coisa muito complicada, por causa que, eu considero assim que... a minha
vida é uma coisa mais ou menos assim predestinada, tendeu? Eu sei mais ou menos o que vou
fazer na minha vida, cê entende? Sob o ponto de vista assim, de gastar meu tempo com isso,
sabe? Então a minha vida é mais ou menos programada assim, apesar de ser uma coisa que as
pessoas geralmente num gostam de... disso, sabe? Agora é mais ou menos assim pogramada.
Então eu sei o que eu preciso na minha vida, sei o que vou fazer nela. De repente num vai dar
nada certo, mas hoje, pra mim vai dar, eu acredito que vai dar. Então, pôrra! Sabe? para mim
felicidade é uma coisa que eu sei que vai pintar, basta que eu continue levando as coisas assim
e leve um pouquinho de sorte, entende? É meio enrolado.
2 - Info nº 56 GUAL masc.
E: Senhor Gualberto, o que deixaria o senhor assim, bem feliz?
F: Viver tudo certo, tudo direito, tudo exato do nosso lado. A família correta, direita, tudo
certo pra eles, eu ficaria feliz.
3 - Info n° 58 NOR fem.
E: Dona Norma, o que deixaria a senhora bem feliz?
F: Ah, isso é uma coisa quase impossível porque a minha felicidade se resumia na minha
família e hoje em dia infelizmente eu não tenho mais ninguém. Não tenho mais irmãos minha
mãe, meu marido faleceram de forma que, completamente feliz eu acho que nunca mais eu
serei.
E: E num teve assim nada que digamos que como a gente diz, né? Que caísse do céu que
faria...
F: Ah, isso é, é o que todo mundo deseja, é uma paz, uma compreensão entre os homens, né?
Que todos vivessem em paz, fossem unidos, houvesse compreensão, isso também é uma coisa
mui... meio difícil é pelo que a gente reza todo dia, né? Para que haja paz e compreensão, não
haja mais guerra, isso é que a gente pede, compreensão entre todos, né?
112
4 - Info nº 59 MAR masc.
E: Mas falando desse negócio todo, vamos falar um pouquinho mais de você. O que...
que deixaria você feliz agora?
F: O que me faria feliz? Bom, seria o reconhecimento do que eu faço. Do meu trabalho, né?
Porque não sou muito reconhecido o que eu faço. E, uma oportunidade, né? Eu to muito bem
nesse campo profissional, né? E eu acho que nos outros planos, aí é difícil ter uma pessoa
realizada, né? Mas, nesse campo profissional, principalmente, eu né? sinto muito limitado,
né? Tenho muito a dar de mim, ainda. E procuro, né? Mas, é um problema de
reconhecimento. O problema é que eu sei que pode ser até um pouco de paciência minha. Eu
posso até tá um pouco apressado. Mas isso, eu acho que é uma coisa natural. Você conseguir,
querer fazer as coisas. E conseguir um sucesso rápido, né?
E: Dá um exemplo.
F: Como exemplo?
E: Por exemplo, uma situação que deixaria você feliz? Dentro desse reconhecimento.
F: Oh! Sim! Seria, não sei, uma estabilidade no emprego. Numa carreira profissional, né?
Uma coisa mais profissional. Porque, tira essa imagem de empregado, tudo bem. Você ter o
seu serviço... é uma coisa mecânica. Partir pra uma coisa mais... que você pense, que você,
enfim, mais responsabilidade, né? Eu acho que eu...
E: Enfim, uma promoção.
F: Uma promoção. Não. Seria uma promoção. Seria uma promoção. Mas que, não com o fato
de se... é... querer estar por cima dos outros. Pra explorar mais. Pra ter oportunidade de
explorar mais, aquilo que eu acho que eu tenho pra oferecer pra empresa, né? Porque é uma
coisa muito chata, né? Você saber que pode realizar uma coisa e você não poder por causa dos
outros, né? Por causa de uma política adotada.
113
5 - Info nº 60 SHEI fem.
E: Sheila, o que deixaria você assim bem feliz?
F: Oh! você poderia ver as pessoas é uma coisa que me deixa muito feliz... achar que elas
poderiam ser muito felizes, o que me deixaria bem feliz é me realizar, ver meus parentes
realizados,com saúde, me deixa feliz às vezes mais ver as pessoas felizes do que eu própria.
Eu penso mais nos outros do que em mim mesmo,é engraçado, né? Sinto feliz vendo minha
mãe feliz, meus irmãos felizes, eu me sinto feliz em poder servir as pessoas.
6 - Info nº 63 LUC fem.
E: O que deixaria você assim bem feliz?
F: Bem feliz? Viver bem, né? principalmente com meu marido, porque somos praticamente
recém-casados, você vê...eu pretendo viver bem com ele, ser bem feliz com ele.
E: Você tinha pensado num meio anterior a este que lhe deixaria muito feliz?
F: Era poder concluir a faculdade, né? seria uma felicidade, poder concluir falta pouco eu
acho, né?, falta pouco nada, faltam dois anos, né? Maria?
E: Um ano...que que há?
F: É no momento, eu acho que o que me deixaria feliz, seria isso.
7 - Info nº 64 JOS masc.
E: O que faria, assim, você, bem feliz?
F: Bem feliz?
E: Sim, bem feliz?
F: Atualmente, ganhar na loteria esportiva, na loteca.
E: Só isso?
F: O que faz a gente feliz é o momento, a situação. Quem não tá com saúde, quer ter saúde.
Eu por enquanto estou com saúde. Agora, estou sem dinheiro, então seria uma muito boa, um
prêmio, aí da loteca, pra aliviar a situação. Agora, é claro, o que faz a felicidade da gente
mesmo, são as coisas. Não são essas de loteca. É estar sabendo que as crianças tão bem, que
tá tudo correndo bem...
114
Núcleo temático 2 (Seqüência expositiva, realis, O que te deixa aborrecido?)
B-O que te deixa aborrecido?
1 - Info n° 51 PAU masc.
2 - Info n° 56 GUAL masc.
3 - Info n° 59 MAR - masc.
4 - Info n° 60 SHEI fem.
5 Info n° 64 JOS masc.
1- Info n° 51 PAU masc.
E: Paulinho, você tem alguma situação que te deixa muito aborrecido?
F: Uma porção delas. (Risos.)
E: Me conta quando foi que uma vez isso aconteceu.
F: Ah... Tem uma porção. Tem vários gêneros diferentes na minha... situação assim porque,
que aborreceu em nível assim familiar.
É situações sa... que te aborrecem, assim coisas supérfluas, como você tá andando na rua é...
É... Vamos supor, hum! ... Você é desrespeitado é... ou... pe.....pe... pelos motoristas de... de
automóveis, que não param pra você passar; pessoas que andam na rua e não olham pra onde
tão andando e ficam esbarrando em você.
Enfim, têm vários tipos de situações, não? Você pode ser... Se aborrecer por diversas
maneiras, eu, pô! Volta e meia assim quando eu não to... numa muita boa, eu me aborreço
facilmente, quer dizer, não denoto, não exteriorizo este aborrecimento, não brigo, não
reclamo, mas que fico aborrecido fico. Isso é bastante comum.
E: Que mais outra coisa que assim... a ponto de você se lembrar?
F: Eu acho que... sabe? Esse tipo de coisa que você tá querendo dizer, seria aborrecimentos
assim a nível de mágoa, né? Coisas que te... te aborrecem e você guarda, quer dizer, te magoa,
te marca bastante.
É um caso assim que tem acontecido... não... muito tempo atrás, foi com uma irmã minha, por
exemplo. Ela é uma pessoa muito inteligente, ela usa assim, faz um jogo de palavras pra
conseguir então, é... me irritar. Ela conseguiu fazer isso comigo, uns meses atrás. Isso me
deixou muito aborrecido Fiquei aborrecido por isso, bem umas... duas semanas, aborrecido
mermo, tava aborrecido, muito aborrecido, pôrra! Num era pra fazer aquilo, entende? Num é
uma coisa comum não, assim sabe, sem necessidade. Se fosse uma outra pessoa qualquer,
tudo bem, mas uma pessoa que, pôrra! Eu conheço desde pequenininho.
115
Essa situação existiu durante muitos anos, foi superada, isso agora... não me aborreceu
durante muitos anos e agora de repente ressurge então uma situação dessas, sabe?
E a ponto de tirar teu controle, cê não conseguir superar coisa que você superaria se fosse uma
cunhada, uma outra pessoa qualquer, entende?
Esse tipo de coisa me aborrecem, mas normalmente, não me exteriorizo, sabe? Não deixo que
você se aperceba... sabe? Não deixo que você se aperceba...
2- Info nº 56 GUAL masc.
E: E tem alguma coisa que deixaria assim o senhor muito aborrecido?
F: Não, poucas coisas são capazes de me aborrecer.
E: Nunca aconteceu, assim, alguma coisa muito chata, que deixou o senhor muito
aborrecido?
F: Ah, sim! Têm acontecido várias. Ninguém pode ter vivido 67 anos, sem ter tido
aborrecimento, evidentemente, né? Mas especificamente, tal ordem de coisas, me aborrecem,
não. Pode momentaneamente uma determinada coisa me aborrecer, mas não que aquilo seja
classificado como assunto de aborrecidos. Será que eu estou sendo sério e exato, tá me
entendendo?
3- Info nº 59 MAR masc.
E: O que te deixa mais aborrecido?
F: O que me deixa mais aborrecido?
E: É. Qual é a coisa assim, que quando acontece, você.... você fica possesso?
F: Bom, muita coisa que eu não gosto, né?
E: Mas aquela que te tira do sério?
F: Que me tira do sério? Bom tem muita coisa que me aborrece, né? Mas, é saber, por
exemplo, não é que me aborreça; me deixa muito chateado. Uma certa coisa, uma pessoa
muito querida da gente, passa, né? a gente não espera uma atitude da pessoa. A gente gosta
muito... Uma pessoa que a gente considera como amigo. E a partir do momento, ela, sei lá, ela
parece que a verdade aflora, né? Sei lá. E demonstra que não é nada daquilo. Que aquela
amizade que a gente perde um amigo assim, né? De repente não é o que a gente esperava da
pessoa. Uma coisa... me aborrece muito. A gente, ter uma idéia da pessoa, e descobrir a
pessoa ser outra. Então, me aborrece muito. Fico chateado. Ter que me isolar da pessoa. É
uma pena, né? Que aconteça isso. Me aborrece muito.
116
4- Info n° 60 SHEI fem.
E: Tem alguma coisa que te deixa muito aborrecida?
F: Quando alguém me chateia me contraria e eu não posso fazer nada, a coisa que mais me
irrita, é isso quando alguém me chateia e eu não posso fazer nada, não posso reagir, me deixa
completamente chateada da vida, geralmente acontece essas coisas assim, quando você
trabalha em colégio, quando você tem uma pessoa que segura você, né? que você tem que
fazer aquilo pra agradar, no trabalho decidem aquilo que você tem que fazer, você faz
contrariada mas não pode fazer nada.
5- Info nº 64 JOS masc.
E: Qual a coisa que normalmente te deixa muito aborrecido?
F: Olha, uma derrota do Flamengo, desde que eu me entendo como gente, me deixa muito
aborrecido. Isso, de certa forma é até engraçado, mas eu acho, por exemplo, pra uma pessoa
ser feliz ela não tem que...não são grandes metas, não são grandes horizontes que fazem a
felicidade de gente, e, sim, o conjunto de uma porção de pequenas coisas. Entre essas
pequenas coisas, estão a vitória do Flamengo, um gol de pelada, enfim, pequenas coisinhas.
Outro dia eu fiquei satisfeitíssimo, porque entrou um passarinho aqui em casa. Essas coisinhas
pequenininhas que fazem a gente feliz. Eu acho que são esses conjuntos de pequenas coisas
que fazem a felicidade de uma pessoa. Não é assim, ganhar na loteria esportiva, grandes
acontecimentos, não. Você me perguntou o que me faz triste, né?
117
Núcleo temático 3 (Relato de experiência de vida, narrativa, Você já foi assaltado?),
C Você já foi assaltado?
1 Info n° 58 NOR fem.
2 Info n° 59 MAR masc.
3 Info n° 60 SHEI fem.
4 Info n° 63 LUC fem.
5 Info n° 64 JOS masc.
1- Info nº 58 NOR fem.
E: A senhora já foi assaltada?
F: Graças a Deus ainda não.
E: Não?
F: Não, ainda não fui.
E: A senhora nem imagina qual vai ser a sua reação se um dia a senhora for assaltada?
F: Olha, em princípio eu acho que vou entregar a Deus e entregar tudo o que eu tenho pra
eles, porque eu prefiro perder meus bens materiais do que perder minha vida, né? Que eu acho
preciosíssima, eu num, minha reação seria essa, de pavor em primeiro lugar apavorada e
depois ia entregando, nem deixava eles pedir, ia entregando logo tudo, sabe?
2- Info n º59 MAR masc.
E: É. Escapou, né? Você já foi assaltado, alguma vez?
F: Não. Já tive uma tentativa de... já tentaram me assaltar. Já tentaram me assaltar, mas não
conseguiram, né?
E: Mas você foi ameaçado assim?
F: Não com arma, né? A pessoa tava desarmada. Eu tava indo pro colégio, né? A pessoa me
ameaçou de dar um tiro. A pessoa, ameaçou não. Ela fez menção que tava armada, né? Aí,
tentou puxar alguma coisa do bolso. Pra me dar um tiro e tal. Mas eu não fiz, queria levar o
meu relógio. Era um rapaz da minha idade... Queria levar o meu relógio e a grana que tava
comigo. Aí, (até este ponto predominou o imperfeito) eu falei que não ia dar o relógio...Eu
cheguei a abrir o relógio e fechei. Aí vendo a minha reação, eu verifiquei que tava todo
mundo desarmado. Ainda tentei, falei com ele que teria que brigar comigo e tal. Quer dizer,
eu enfrentei. Quer dizer se ... tivesse com uma arma. Eu nunca ia fazer isso não sou tão
corajoso a esse ponto, mas eu enfrentei. Ele correu, né? depois veio com pedra tacou. Fui
118
atrás dele. Fui na polícia. Mas como sempre a polícia, nunca tá perto, né? A gente procura a
joaninha, pô, não tem nenhuma. Às vezes a gente tá à-toa na rua, os caras param pra pedir
documento. Documento, putz grila, dá um azar. Mas nunca fui assaltado. Graças a Deus,
assalto assim à mão armada, nunca fui assaltado. Deve ser uma experiência horrível.
3- Info n° 60 SHEI fem.
E: Você já foi assaltada?
F: Já, uma vez dentro do ônibus, eu tava sentada, veio um rapaz, me assaltou, roubou minhas
jóias, eu tava com minhas jóias, me encostou o revólver, fiquei completamente apavorada,
mas não reagi, não fiz nada, peguei tudo na maior calma. Depois que cheguei em casa que
fiquei nervosa, que eu senti perigo, aí que eu fiquei né? nervosa, eu estava com jóias, tinha
200 cruzeiros na bolsa e aí entreguei. E aqui na minha casa não foi problema de dinheiro, né?
quando meu namorado foi assaltado, faz uns 6 meses, aqui em frente de casa, levaram o carro
dele, ele foi ameaçado, ameaçado de matar, né? Se ele gritasse mais eu abri a janela vi, abri a
janela e vi, minha irmã saiu, mas conseguiram pegar os caras com a polícia.
4- Info nº 63 LUC fem.
E: E, você já foi assaltada?
F: Não, gracas a Deus tenho pavor de pensar em ser assaltada, porque hoje em dia é coisa que
mais se ouve, né? Fulano foi assaltado, Sicrano foi degolado e coisa parecida, embora onde eu
moro, fica numa praça e nessa praça, há um colégio, é lá é muito calmo, saindo do horário
escolar, é bastante calmo mesmo, tanto é que quando eu vou passar, quando venho do meu
trabalho ou vice-versa, eu vou passar nesse pedacinho, um pouco morto, normalmente eu tiro
as coisas que tenho, por exemplo, o relógio, normalmente eu tiro o relógio e escondo, o
relógio eu usava um brinco de argola, agora não uso mais porque esse prédio, próximo onde
eu moro, ali no Sendas, uma Sendas enorme, super-atacado Sendas que tem lá na Penha e de
vez em quando eu via esses pivete, né? eles pegam assim é ouro? pa... se metem o dedo,
rasgam ele com tudo e lá vai o brinco, quer dizer a gente fica apavorada, se a gente anda com
dinheiro sempre a gente está com um dinheirinho, dinheiro pra lá, dinheiro pra cá, a minha
prima, você vê, a garota do meu irmão, a garota do meu irmão, você sabe, não foi perto da
minha casa não, foi distante, ela não tinha nada de valioso pro cara levar, porque ela anda com
bijouterias, não tem nada valioso, acredita que o cara, olhou pro tênis, sabia que o tênis valia
mais que cinco mil cruzeiros, o cara, fez a menina tirar, tirou o tênis, eu fiquei pasmada, você
119
vê nem um tênis bom você pode pôr no pé, se você não tiver nada pra levar eles catam alguma
coisa, uma blusa...tenho pavor, graças a Deus eu nunca fui assaltada, mas também faço por
onde, sou bastante cautelosa, também isso vem da minha própria profissão, ser cautelosa, né?
porque a gente é bastante visada...
5- Info n° 64 JOS masc.
E: Você já foi assaltado?
F: Já. Há pouco tempo.
E: Como é que foi?
F: É, eu estava atrasado, tinha uma entrevista, pra ver se arranjava um emprego e quando eu
cheguei na rua, tava um cidadão sentado no meu carro, sentado no carro não, encostado assim
perto, aqui na rua Rainha Guilhermina.
Geralmente quando o cara pressente que o carro é seu e que você vai sair, ele geralmente se
afasta.
Esse aí, não se afastou. Aí, eu pedi licença e botei a chave pra abrir a porta, ele deu a volta
atrás de mim, encostou o revólver, pediu tudo, mas só levou o relógio, porque eu não tinha
nada. Estava com uns trinta, quarenta cruzeiros, no bolso. E foi o que ele levou.
Mas ficou a sensação, aquela sensação desagradável, de saber, que podia morrer ali,
estupidamente, meio-dia. Ficou a marca, aquela marca custou a sair da minha barriga, aquela
sensação, aquele contato da boca do revólver na barriga da gente, é um negócio
desagradabilíssimo. Foi uma experiência bem chata. Aliás, todo assalto é chato, né? Como eu
estava com a minha cabeça muito ligada, ao fato de já estar casado, eu na hora assim, a minha
reação foi bem normal. Que dizer eu não fiquei apavorado. Disse: “Amigo, eu não tenho nada
aqui, tá? Tou com pouco dinhe...só tenho o relógio”. E fui logo dando o relógio pra ele. Ele
acabou levando o relógio, ficou satisfeito e sumiu.
120
Núcleo temático 4 (Assumpção de ponto de vista, argumentação, Você acha que casamento
é coisa de antigamente?/ Você acha que as associações de bairro ajudam?)
E Você acha que o casamento é coisa de antigamente?
1 Info n° 56 GUAL - masc.
2 Info n° 59 - MAR masc.
3 Info n° 60 SHEI fem.
4 Info n° 63 LUC - fem.
F Você acha que as associações de bairro ajudam?
1 Info n° 51 PAU masc.
2 Info n° 58 NOR fem.
3 Info n° 60 SHEI fem.
4 Info n° 64 JOS masc.
E Você acha o casamento coisa de antigamente?
Info n° 56 GUAL. masc.
E: Para muitos o casamento é coisa de antigamente. O que o senhor acha?
F: Que ainda é uma necessidade. É coisa que a natureza deixou para o homem e para a
mulher: o casamento. E até hoje, não há nada que o substitua. Isso é como o exame pro
estudante. Não é coisa perfeita.
Mas até hoje ninguém descobriu nada melhor do que o exame. Pode mudar o nome. De teste
pra isso pra aquilo, mas na realidade se trata de um exame. De uma avaliação de competência.
Porque não há outra. Ainda não inventaram outra. Assim é o casamento. Ainda não há coisa
melhor que o casamento para garantir uma formação social.
Que aliás, o que está acontecendo agora de ruim na sociedade, na humanidade, podemos
garantir é exatamente esse conceito que nada mais indica que uma fraqueza moral da
sociedade que nós vivemos. Que o cidadão não quer assumir compromissos. Não quer
assumir responsabilidade. Se tiver certeza que se casaria, e que esse casamento não obrigaria
a ele a uma nova situação de responsabilidade, quer queira, quer não queira, tem porque o
cidadão casado tem que ter responsabilidade a menor que seja. Porque já então ele já não age
mais singularmente, pois já não é mais um singular, ele é plural. Ele não poderá mais agir em
função de si próprio, e sim tem mais alguém para dar responsabilidade, para dar satisfação...
Enfim, para viver em conjunto. Então, o cidadão não quer com esse permissivismo, essa
liberdade que não é liberdade, é libertinagem que não explica nada. Porque enquanto houver
uma sociedade que se preze, o casamento ainda é uma instituição. A não ser que inventem
outra melhor. Por enquanto, não tem outra. E quando os casamentos fracassam, quando as
famílias fracassam, entre as melhores famílias com as maiores justificativas, aceitam uma
121
desagregação. Ainda digo mais: mesmo que não haja... o cidadão se sente frustrado, se sente
fracassado. Apenas ele não declara, não diz. Mas os casos que eu conheço, inclusive
problemas de família, eles existem, existem e acompanham o indivíduo até a morte.
2- Info n° 59 MAR masc.
E: Agora mudando de um pólo a outro. Pra muita gente, o casamento é uma coisa de
antigamente. Você concorda com isso?
F: O casamento não é uma coisa de antigamente, tá? Agora, não é uma coisa necessária. Não
é uma coisa necessária. Pra você ter um relacionamento com outra pessoa, você não precisa
recorrer ao casamento. Você pode muito bem, viver muito bem com a pessoa, muito tempo,
né? Sem ter esse, essa instituição, o casamento...? as costas, né? Mas, não é coisa de
antigamente. É coisa que todo mundo tá... é coisa... vai de pessoa a pessoa, né? Não é uma
coisa que o casamento é coisa do passado, né? Isto depende de cada um.
3- Info nº 60 SHEI fem.
E: Para muitos o casamento é coisa de antigamente. O que você acha?
F: Ah, pra mim, não. Eu quero casar, sabe? Eu acho legal, eu curto esse casamento, sabe? de
antigamente ainda, eu sou de antigamente, a minha criação que ainda é a moda antiga,
como...eu moro aqui em Piedade,sabe? Se você conversa com uma pessoa da zona sul, vai
notar que ela tem uma mentalidade toda diferente, você já deve saber que lá eles têm outro
tipo de vida, outro tipo de mentalidade, mas pra mim aqui Piedade, eu sei disso que eu
trabalho na zona sul, eu trabalho Humaitá, então eu sinto essa diferença das minhas amigas
pra mim, eu sinto a diferença do modo delas viver com o meu modo de viver, meu modo de
pensar com o modo delas pensarem, entendeu? Mas pra mim aqui do subúrbio, da Piedade, eu
ainda curto casamento, véu e grinalda esses negócios todinho, sabe? Eu curto ainda.
4- Info n 63 LUC fem.
E: Bem, então vamos falar do casamento. Por que muitas pessoas acham que é coisa de
antigamente, o que é que você acha?
F: Bem, se for uma coisa antiga eu já me encaixei, casei...
122
E: E como você acha que é coisa de antigamente?
F: Depende da cabeça de cada um, eu casei não quero dizer que todo mundo deve casar não,
eu casei porque teve também aquela coisa, né? minha mãe gostaria, é o sonho de toda mãe,
minha mãe é maravilhosa comigo, entende, eu não ia não casar, também aquela mordomia
toda, né? sei lá a gente se sente bem, eu gostei se for pensamento antigo, acredito que não,
porque você vai todo dia aí nas igrejas, se você for fazer uma estatística aí, chove, não tem
nem vaga, parece até comércio, o padre faz três, quatro casamentos de uma vez e quando você
atrasa o padre age até de forma meio ignorante, sabe? devido ao atraso e tal, a cerimônia será
realizada em cinco minutos, porque após este outro mais não sei o quê. Quer dizer, o
casamento é uma coisa importante na vi... e de repente passa a ser uma coisa de comércio, né?
não é uma coisa antiga, se fosse antiga, teria muita gente aí encaixada na antiguidade.
F Você acha que as associações de bairro ajudam?
1- Info n° 51 PAU masc.
E: Muita gente acha que as associações de bairro ajudariam. Pra você, pra que que elas
servem?
F: Associações de moradores?
E: É.
F: Eu acho que é aquilo que eu tava falando antes, sabe? Sobre as pessoas as pessoas mais
ativistas. Eu acho que têm pessoas, que têm assim uma predisposição a fazer coisas pelos
outros nesse nível, entende? De participar dos problemas alheios e a nível comunitário, sabe?
Daí então, a elas tomarem partido e virem eventualmente aí a serem ativistas mesmo. Eu acho
tudo isso válido conforme a conscientiza... conscientização em termos comunitários, tá? Então
as... associações de moradores é uma coisa válida por vários aspectos: primeiro, porque ela
tende a resolver pequenos probleminhas de bairro que geralmente aporrinha a vida de quem
mora lá, como por exemplo, uma obra que não acaba nunca, é uma falta de estacionamento,
uma falta de um ponto de ônibus, então um ponto de ônibus colocado no lugar errado, sabe?
Certas coisas que normalmente é, pôrra! Uma bobagem, mas atazana. E o cara mora ali é
obrigado a todo dia a passar pelo aquele problema. Então, eu acho que a associação de
moradores pra esse nível de coisa muito bom. É uma coisa excelente mesmo. É uma pena que
os bairros grandes têm dificuldades de fazer isso.
123
2- Info nº 58 NOR fem.
E: Dona Norma, a senhora, a senhora acredita no trabalho da, por exemplo, das
associações de bairro que têm por aí, a senhora assim, entende alguma coisa? Acha
bom?
F: Eu nunca compreendi bem é... não compreendi por que nunca me interessei, nunca tomei
parte ativa em nenhuma dessas associações de bairro, mas não sei, que elas trazem algum
proveito principalmente numa mútua por exemplo, é um ajuda o outro...
E: Representa, né? A comunidade.
F: É representa a comodi... a comunidade e auxilia um o outro, por exemplo, o que tem mais
possibilidade de arranjar, os viveres pra... uma praça e o outro que não sabe disso vai lá e já...
já tá tirando proveito daquilo, né? Mas eu sei como é que se faz isso, sabe? Eu nem sei como
é funciona,
3- Info n° 60 SHEI fem.
E: Muita gente acha que associação de bairro ajudaria. Você concorda?
F: Eu concordo, nós estamos vendo aí que essas associações já estão conseguindo muita coisa,
né? Vê lá na Tijuca, a associação começou agir, o metrô, rapidinho conseguiu, né? É
compensar as obras. Cada vez tava piorando mais a situação e aquela lenga-lenga, tenda eu
acho que isso ajuda à beça, agora esse jornal que sai toda semana, né? Sobre os bairros, eu
acho que permite a população, não é? O pessoal dali daquela área se entrosar mais, porque
tem gente que não tem tempo de tá conversando com vizinho, de tá indo nesses grupos, esse
jornalzinho já permite que as pessoas saibam o que está acontecendo, o que não tá
acontecendo, possa fazer alguma coisa, eu acho que isso ajuda.
4- Info n 64 JOS masc.
E: Você acha que esse movimento que tem aparecido nos últimos anos, de associação de
bairro, ajuda alguma coisa?
F: Ajuda, eu acho. Eu nunca participei, só sei de ouvir falar, pela televisão e outras pessoas
que fazem parte desse movimento. Eu acho que isso significa, talvez uma tentativa de fazer do
Rio de Janeiro, que é uma cidade retalhada por bairros, fazer pequenas cidadezinhas. Voltar à
unidade novamente. Dar consciência de um determinado lugar, das necessidades, das
vicissitudes que o lugar tem, dos problemas e tal. Conscientizar essas pessoas, em reuniões de
124
que a união faz a força. Isso aí, eu acho que é importante. Já que essa unidade natural, que
seria as reuniões de condomínio, não funcionam. Isso aí, eu tenho por experiência, já
freqüentei uma porção delas. Eu sei que isso aí é uma fonte de grilos tremenda, de problemas
de desajustamento entre vizinhos. Mas, nas comunidades de bairros, essas associações de
moradores, eu acho uma tentativa muito válida e interessante. Pode ser que nessas comunas,
como existe, inclusive na Suíça tem, essas comunidades de bairros. Que há um representante,
isso tudo regulado. Há um representante pra falar, o que foi decidido nessas reuniões. E o
negócio funciona. Bem, o suíço é suíço. Brasil é Brasil. Mas de qualquer maneira eu estou
achando interessantíssimo. Não sei por que, que demorou tanto tempo, pra começar a se
descobrir esse tipo de coisa. Talvez pelo fato de se saber, que isso aqui é uma imensa cidade;
ninguém individualizava. Ficava tudo muito aéreo, muito vago.
125
ANEXO B Corpus da escrita (crônicas)
Crônica 01 - (Irrealis/expositiva)
Meu ideal seria escrever
Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente
naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a
chorar e dissesse "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a
cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela
contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha
história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça
reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois
repetisse para si própria "mas essa história é mesmo muito engraçada!".
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido
com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido
pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da
mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história,
ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir
mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e
reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse _
e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu
coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história,
mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e
lhes dissesse "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E
que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em
alegre e espontânea homenagem à minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e
fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em
Chicago _ mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu
encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito
126
sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda
a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido
inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos
de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história
do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".
E quando todos me perguntassem "mas de onde é que você tirou essa história?" eu
responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a
contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um
sujeito contar uma história..."
E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha
história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que
sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu
bairro.
127
Crônica 02 - (Seqüência argumentativa)
O quase
Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez, é a desilusão de um quase.
É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia
ter sido e não foi.
Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu
está vivo, quem quase amou não amou.
Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por
medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.
Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me
pergunto, contesto.
A resposta eu sei de cor, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na
frouxidão dos abraços, na indiferença dos "Bom dia", quase que sussurrados.
Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz.
A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.
Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada,
mas não são.
Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam
nublados e o arco-íris em tons de cinza.
O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que
cada um traz dentro de si.
Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as
coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência, porém, preferir a derrota
prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.
Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo. De
nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é
instantâneo ou indolor não é romance.
Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de
tentar.
Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que
sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre
esteja vivo, quem quase vive já morreu.
128
Crônica 03 - (Realis, narrativo-descritiva)
O cego, Van Gogh, Renoir e o resto
Vistos de costas, pareciam apenas dois amigos conversando diante do quadro Rosa e
azul, de Renoir, comentando o quadro. Porém, quem prestasse atenção nos dois perceberia, e
talvez estranhasse que um deles, o de elegantes óculos de sol, parecia um pouco
desinteressado, apesar de todo o empenho do outro, traduzido em gestos e eloqüência quase
murmurada. O que dava ao de óculos a aparência de desatento era a cabeça, um pouco baixa
demais para quem estivesse olhando o quadro, cabeça que também não estava de frente, mas
um pouco virada para a direita com relação à pintura, como se ele enfocasse outra coisa, a
assinatura de Van Gogh no pé do quadro vizinho, por exemplo.
O que falava segurava às vezes o antebraço do de óculos com uma intimidade solícita e
confiante. Como se fossem amantes. Aproximei-me do quadro, fingindo olhar de perto a
técnica do pintor, voltei-me e percebi: o de óculos era cego.
Cego! O que fazia um cego no Masp? Ninguém parecia interessado neles; nem o guarda,
treinado para olhar as pessoas em vez de quadros. De perto, pude ouvir o rapaz que falava:
__ ... os olhos dessa menina de rosa brilham como se estivessem marejados, como se ela
estivesse a ponto de chorar, e a boca, de um rosa muito vivo, quase vermelho, ajuda a dar essa
impressão, parece que se contrai. É muito mágico não se pode ter certeza. Por cima do
corpinho do vestido ela usa uma espécie de colete também de musselina rosa franzida,
adornada por uma espécie de babado de alto a baixo.
__ Você já falou “espécie de” três vezes.
__ Tá bom, vou evitar. Essa... esse colete é preso na cintura por uma faixa bem larga de
cetim cor-de-rosa, larga mesmo, de quase um palmo, usada como cinto. Ela tem o dedo
polegar da mão direita enfiado nessa espécie de, perdão, nessa faixa de cetim, o que parece
um truque do pintor para dar movimento ao braço e graça infantil à figura da menina.
Algo extraordinário acontecia ali, que eu só compreendia na superfície: um homem
descrevendo para um amigo cego um quadro de Renoir. Por que tantos detalhes?
__ A saia rodada franzidinha é do mesmo tecido cheio de luz. As meias são de uma tal
transparência diáfana rosada que mal se destacam das perninhas sadias dela. Vão até a metade
da perna, e os sapatos são pretos de alcinha com uma fivela, não, não é uma fivela, é um
enfeite dourado, um na alça e outro no peito do pé, bem discretos. Ela dá a mão esquerda para
129
outra menina de vestido igualzinho o dela, só que em azul, bem brilhante, e esta tem os
cabelos mais claros.
__ Azul como quê? Fale mais desse azul pediu o cego, como se precisasse completar
alguma coisa dentro de si.
__ É um azul claro, muito claro, um azul que tem movimento e transparência e muita
luz, um azul tremulando, azul como de uma piscina muito limpa eriçada pelo vento, uma
piscina em que o sol se reflete e que tremula em mil pequenos reflexos... Lembra-se daquela
piscina em Amalfi?
__ Lembro... lembro... – e sacudia a cabeça, reforçando.
__ É parecido. A menina de azul é um pouco mais alta e está quase sorrindo... ao
contrário da outra. Parecem irmãs, devem ser irmãs, mas ela tem os cabelos mais claros,
louros mesmo, e mais compridos. A mão esquerda dela tem um movimento gracioso, como se
ela segurasse com o indicador e o polegar um raio de luz do vestido brilhante...
Afastei-me, olhei-os de longe. Roupas coloridas, esportivas. Depois de poucos minutos,
passaram para outro quadro de Van Gogh. Pouco a pouco a compreensão do que faziam ali
me inundou, e fechei os olhos para ver melhor. O guarda treinado para vigiar pessoas estava
ao meu lado e contou, aos arrancos:
Eles vêm muito aqui. Só conversam sobre um quadro ou dois de cada vez. É que o
cego se cansa. Era fotógrafo, ficou assim de desastre. É cego, mas é rico.
Disse rico como se fosse uma compensação justa. O mistério da alma humana não o
inquietava aquela necessidade de ver, dentro do não ver. A construção de um quadro na mente
de alguém por meio de palavras. Não o tocava a dedicação do narrador de quadros seria
amor? -, o seu esforço amoroso de fazer as palavras brilharem como tintas, concretas.
Saí, passei por eles, ocupados em pintar O filho do carteiro, de Van Gogh:
__ ... um amarrotado boné de carteiro, azul marinho com uns debruns dourados na pala e
na copa, e tem olhos azuis muito abertos, como assustado...
130
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo