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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FFLCH - Doutoramento
Composições Pictóricas na Obra de Eavan Boland:
Paisagens Interiores
Gisele Giandoni Wolkoff
São Paulo
2008
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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Gisele Giandoni Wolkoff
Composições Pictóricas na Obra de Eavan Boland:
Paisagens Interiores
Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-
graduação do Departamento de Letras Modernas da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo como requisito parcial à obtenção do título de
Doutora em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês.
Orientadora: Profa.Dra.Laura Patrícia Zuntini de Izarra.
São Paulo
2008
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Aos meus sobrinhos, o encanto do conhecimento.
Ao José Artur, o encanto do encontro.
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Laura Izarra, pela dedicada orientação.
À Profa. Dra. Munira Mutran, pelos primeiros ensinamentos na área de estudos literários em
língua inglesa, quando de minha graduação e, em todos esses anos, pelo exemplo de séria
dedicação aos estudos irlandeses. Também, pelo direcionamento deste trabalho, quando de meu
exame de qualificação ao doutoramento.
À Profa. Dra. Viviana Bosi, pelos atenciosos apontamentos sobre poesia e artes visuais, quando de
sua dedicada leitura de minha primeira escrita deste trabalho, à época de meu exame de
qualificação.
Ao Prof. Dr. Rui Carvalho Homem, que tão generosamente leu grande parte de minha escrita e
ajudou-me no encontro de novas referências, bem como no desenrolar de idéias. O diálogo sobre
poesia, artes visuais e tradução mostrou-se frutífero.
Ao Prof. Dr. John Milton e a equipe dos Cadernos de Literatura em Tradução (nas figuras de
Telma Franco e Marina Della Valle) com quem também estabeleci diálogos sobre tradução
poética.
À Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, que concedeu a Bolsa Santander
e à Universidade de Santo Amaro, na figura do Prof.Elon Macena, que me permitiu ausentar-me
por seis meses, a fim de que eu desenvolvesse a minha pesquisa.
Ao Rodrigo da Cunha Lima e Tatiane Santos Vieira, pelo apoio digital.
À Reitoria da Universidade do Porto e ao Departamento de Estudos Anglo-Germânicos, que na
figura do Prof. Dr. Rui Carvalho Homem, aceitou-me como investigadora internacional,
permitindo-me o acesso aos seus acervos e a convivência acadêmica necessária ao desempenho de
parte de minha tese.
Aos meus pais, por todo o apoio.
Quando
o ser da luz for
o ser da palavra,
no seu centro arder
e subir com a chama
(ou baixar à água),
então estarei em casa.
(Eugénio De Andrade. Branco no Branco Contra a Obscuridade)
RESUMO
Ao apresentar criticamente ao público de língua portuguesa a obra da escritora irlandesa
contemporânea Eavan Boland, por meio de uma seleção poética traduzida, que privilegia a
visualidade e a ekphrase, este trabalho tece uma leitura intermediática (artes visuais e literárias) e
verifica os efeitos de sentido da intermedialidade na construção do lirismo poético. Pressupondo-
se a inevitável incomunicabilidade da linguagem, esta tese examina a intermedialidade, presente
no processo de escrita entre as fronteiras do nacional e do cosmopolita e, sobretudo, do privado ao
público e deste àquele, enquanto um recurso artístico, característico da pluralidade identitária da
poesia, capaz de alcançar graus de comunicabilidade mais amplos, ou seja, menos deficitários. Por
fim, a seleção de poemas aqui recolhidos traça o percurso íntimo da produção artística de Eavan
Boland, momento em que os graus de articulação lingüística (seja por meio visual, verbal ou
intermediático) assistem a uma suspensão de sua incomunicabilidade, e conseguem atingir esferas
mais densas de sucesso comunicativo, fazendo vir à tona a natureza lírica da escrita: os
movimentos concomitantes entre as esferas pública e privada referem-se à busca da interioridade,
da subjetividade do eu-lírico, o auto-retrato da poetisa. Portanto, a partir do exercício
interpretativo das traduções poéticas, bem como do estudo da intermedialidade, lê-se aqui a
ekphrase como recurso poético na obra de Eavan Boland, capaz de metonimizar o transitar da voz
poética na tradição irlandesa a partir de onde a poetisa fala, a nação irlandesa e a ruptura com essa
tradição, a busca ao encontro do feminino, da voz da mulher e, acima de tudo, da voz poética
enunciadora do fluxo comunicativo.
Palavras-chave: Eavan Boland, ekphrase, intermedialidade, poesia irlandesa contemporânea,
subjetividade.
ABSTRACT
While presenting the work of the Irish, contemporary writer Eavan Boland to the public of
Portuguese readers, by means of a poetic selection that privileges visuality and ekphrasis, this
thesis establishes an intermediatic reading (visual and literary arts) and verifies intermediality´s
effects of meaning in the construction of poetic lyricism. While presupposing language´s
inevitable incommunicability, this thesis bears witness to the intermediality present in the process
of writing in the frontiers of the national and the cosmopolitan and, above all, of the private and
public and vice-versa, as an artistic tool, characteristic of poetry´s plural identity, which is capable
of reaching broader, less deficient levels of communicability. Ultimately, the selection of poems
here presented heeds to the intimate trajectory of Eavan Boland´s artistic production, which
reveals levels of linguistic articulation (being them visual, verbal or intermediatic) that suspend its
incommunicability and, then, are able to reach deeper spheres of communicative success, as it
brings up the lyric nature of writing. The movements that go from the public to the private spheres
of subjectivity refer to the search for interiority, for the self, the self-portrait in poetry. Therefore,
from the interpretative exercise of the poetic translations, as well as from the study of
intermediality, ekphrasis is here read as a poetic tool in the work of Eavan Boland, metonimic of
the poetic voice´s transit within the Irish tradition, from where the poet speaks, the Irish nation
and the rupture with such tradition, in search of the encounter with the Female, the woman´s voice
and, above all, the poetic voice as enunciator of the communicative flow.
Keywords: Eavan Boland, ekphrasis, contemporary Irish poetry, intermediality and subjectivity.
RESUMEN
Al presentarle críticamente al público de lengua portuguesa la obra de la escritora
irlandesa contemporánea Eavan Boland, por medio de una selección poética traducida que
privilegia la visualidad y la ekphrase, este trabajo teje una lectura intermediática (artes
visuales y literarias) y verifica los efectos de sentido de la intermedialidad en la construcción
del lirismo poético. Presuponiéndose la inevitable incomunicabilidad del lenguaje, esta tesis
averigua la intermedialidad presente en el proceso de escritura entre las fronteras de lo
nacional y de lo cosmopolita y, sobre todo, de lo privado a lo público y de éste a aquél, como
un recurso artístico, característico de la pluralidad identitaria de la poesía, capaz de alcanzar
grados de comunicabilidad más amplios, es decir, menos deficitarios. Por fin, la selección de
poemas aquí recogidos traza un camino íntimo de la producción artística de Eavan Boland,
momento en que los grados de articulación lingüística (sea por medio visual, verbal o
intermediático) asisten a un suspensión de su incomunicabilidad y consiguen llegar a esferas
más densas de éxito comunicativo, haciendo emergir la naturaleza lírica de la escritura: los
movimientos concomitantes entre las esferas pública y privada se refieren a la búsqueda de la
interioridad, de la subjetividad del yo lírico, el autorretrato de la poetisa. Por lo tanto, a partir
del ejercicio interpretativo de las traducciones poéticas, además del estudio de la
intermedialidad, se observa aquí la ekphrase como recurso poético en la obra de Eavan
Boland, capaz de metonimizar el transitar de la voz poética en la tradición irlandesa a partir de
donde la poetisa habla, la nación irlandesa y la ruptura con esa tradición, la búsqueda hacia el
encuentro con lo femenino, con la voz de la mujer y, por encima de todo, con la voz poética
enunciadora del flujo comunicativo.
Palabras clave: Eavan Boland, ekphrase, intermedialidad, poesía irlandesa contemporánea,
subjetividad.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 09
Parte I:
Visualidade, Olhar e Escrita na Esfera do Poético: um exemplo irlandês...............
39
Parte II:
Da Palavra à Imagem............................................................................................... 68
Do Quadro à Palavra................................................................................................ 89
Auto-Retrato: o hiato indefinido e certo.................................................................. 111
Considerações Finais ............................................................................................ 119
Referências bibiográficas......................................................................................
123
Anexo I: Poemas de Eavan Boland ..............................................................................
Anexo II: Outros Poemas .............................................................................................
136
147
9
INTRODUÇÃO
Poesia: Lembrar, Esquecer, Existir
Eavan Boland e a Tradição Poética Irlandesa
Nascida em Dublin, em 1944, Eavan Boland é filha de um diplomata e de uma famosa
pintora e, por causa da carreira do pai, teve acesso a diferentes geografias desde cedo. Aos seis
anos, mudou-se com a família para Londres, experiência que lhe rendeu o célebre poema “An
Irish Childhood in England: 1951”, que aparece no livro The Journey, de 1987. Passou a sua
adolescência em Nova Iorque e posteriormente retornou a Dublin, como aluna do Trinity College,
tendo sido colega do poeta Derek Mahon e da ex-presidente da República da Irlanda, Mary
Robinson, a quem dedicou o livro The Lost Land, de 1998. Casou-se com o romancista Kevin
Casey, com quem teve duas filhas, Sarah e Eavan, e a quem dedicou dois de seus livros – Outside
History, de 1990 e Code, de 2001. Ao casar-se, mudou-se ao subúrbio de classe-média,
Dundrum, o que foi, em sua opinião, freqüente motivo de desconsideração por parte de seus
companheiros literários, como se ela tivesse se tornado uma “poeta menor”, devido as tarefas
oriundas de uma vida mais doméstica. Contra esse tipo de perspectiva, a autora traz em seus
poemas técnicas de reapropriação da voz, enquanto questão ética e política e torna como eixos
centrais de sua poesia a condição feminina e o âmbito doméstico da vida. Considerada uma das
poetisas e críticas mais autorizadas da Irlanda atual, Boland discute o pertencimento irlandês
(“Irishness”) e a condição feminina como ressonâncias de opressão, humilhação e silêncio que
marcaram, sobretudo, a primeira metade do século XX. Um dos recursos técnicos de sua poesia
que mais chama a nossa atenção e ao qual o presente trabalho debruça-se é a intermedialidade do
discurso que se apresenta em sua poesia, ou seja, as várias formas do diálogo artístico mais que
intertextual, intermediático na comunicação poética: as palavras e a imagem, a visualidade e o
sentido dos sons (palavras poéticas).
Situar o trabalho de Eavan Boland no contexto irlandês contemporâneo significa, em
primeira instância, levantar as problemáticas que dizem respeito ao estado de pertencimento
irlandês (“Irishness”), a referência temporal mais precisa associada ao termo contemporâneo e,
por fim, o que significa falar em tradição poética neste caso. De fato, essas discussões são,
também, interrelacionadas e, em momento algum da crítica aqui utilizada, apresentam respostas
encerradas. Portanto, não se pode, por exemplo, pensar o valor da tradição, sem se
referir à questão do pertencimento irlandês ao longo da história do século XX e a repercussão
cultural da história sócio-política do país, revelada na literatura e, no caso específico deste
trabalho, na poesia.
10
Em se tratando de uma tese sobre poesia irlandesa contemporânea no Brasil, torna-se de
fundamental importância a contextualização da obra de Eavan Boland na tradição poética
irlandesa, para que pesquisas futuras possam mergulhar na complexidade tanto do universo
poético irlandês, quanto no da autora em questão. Assim, quando se fala em tradição,
categorizam-se critérios que delimitam fronteiras e este é apenas o início do problema da busca de
uma tradição irlandesa, uma vez que fragmentação e descontinuidade são as marcas de uma
literatura que, apesar de se estabelecer prioritariamente na língua inglesa, expande-se em
geografias para além da República da Irlanda e da Irlanda do Norte, no que se refere tanto à
representação, quanto ao local de onde se enuncia, com os tantos exílios de autores e de
sentimentos gerados pelo constante conhecimento de “não-pertencimento”. Desta maneira, vale
lembrar que Campbell (2003) pensa o início cronológico de uma tradição poética irlandesa
remissivo aos trabalhos de William Butler Yeats e James Joyce e que se estenderia a Austin
Clarke, Peter Fallon, Patrick Kavanagh, Louis MacNeice, Paul Muldoon, Michael Longley,
Thomas Kinsella, John Montague, Seamus Heaney, Derek Mahon, Ciaran Carson, Nuala Ní
Dhomhnaill, Eavan Boland e tantos outros sobre os quais falaremos adiante é a partir desses
autores que a poesia irlandesa adquire contornos nacionais. A esta altura, já apontamos a
complexidade e, portanto, difícil menção à idéia de tradição literária irlandesa, mas, também, de
sua inevitabilidade enquanto ponto de referência histórica aos estudiosos da cultura irlandesa que
tenham por base as literaturas. Embora Leersen (1996) acentue o caráter histórico na construção
de uma reputação identitária irlandesa, bem como na dinâmica interdisciplinar das fontes que a
norteiam:
A representação da Irlanda é uma estrutura textual, na qual o clima ideológico e a
convenção discursiva são urdidura e trama. Ambas as dimensões, a contextual e a
intertextual, devem ser igualmente levadas em consideração, quando se estuda história
literária irlandesa (p. 5).
1
O panorama que aqui se apresenta não leva em conta a divisão política entre Irlanda do
Norte e República da Irlanda.
Ainda assim, devemos acentuar o caráter histórico associado à escrita desses autores para,
então, justificar as escolhas temáticas mais recorrentes em suas obras, bem como as diferenças
entre os autores e épocas. Vale ressaltar que tais autores são, também, um consenso entre a vasta
crítica da literatura irlandesa, que se preocupa em delinear uma tradição desta literatura a partir do
Modernismo e com a tendência a se pensar a nação a partir da escrita
2
.
1
“The representation of Ireland is a textual fabric in which ideological climate and discursive convention are the warp and the woof.
Both dimensions, the contextual and the intertextual, should be taken equally into account when studying Irish literary history.”
(LEERSEN, 1996, p. 5).
2
Cabe dizer que apesar da existência do mito de uma unidade nacional e de uma tradição nacional homogênea, a literatura irlandesa,
em seus gêneros, autores e épocas, remete ao sentido de deslocamento de um espaço plural, de frequente mobilidade,
transculturação e diáspora. Assim, o agrupamento crítico de autores diferentes entre si e, muitas vezes, temporalmente distantes
11
Assim, convencionar W.B.Yeats e J.Joyce como ícones de uma tradição associa-se, para
além da notoriedade relacional à Irlanda, o fato de ambos os autores terem morrido em datas
próximas (1939 e 1941), a partir das quais outros autores, como Patrick Kavanagh e Austin
Clarke, começam a se tornar publicamente visíveis. Nomeadamente esses dois autores, ao
delinearem as feições que a poesia irlandesa em inglês ganharia, revelar-se-ão figuras de transição
e escritores que continuariam a publicar até as décadas de 1960 e 1970.
Além de Matthew Campbell (2003), faremos menção aqui a Christina Hunt Mahony
(1998) que criteriosamente agrupa os poetas contemporâneos de maneira cronológica e para quem
a tradição poética tem como fonte primária uma obra humana (MAHONY, op.cit., p. 58), além de
John Goodby (1996, 2000, 2003) que oferece uma contextualização da produção poética da
Irlanda ao longo de sua história e da história do mundo. Outros críticos mencionados aqui e de
fundamental relevância ao olhar crítico sobre a produção poética irlandesa são Dillon Johnston
(1985) e Robert Garratt (1986), que enfatizam a existência de uma tradição poética irlandesa,
nacional e única, caracterizada por uma preocupação fundamental com a questão da identidade.
Cabe ressaltar aqui a dificuldade de se agrupar escritores irlandeses em uma única tradição, pois é
a questão da identidade um tema central no debate da construção nacional que abrange a
multiplicidade religiosa e cultural presente no espaço irlandês. Neste sentido, Rui Carvalho
Homem (2000) chama-nos a atenção, por exemplo, à dificuldade em agrupar os diferentes poetas
do Norte, seja por geração, tendências estéticas ou políticas, por nos ser muito provável incorrer
em uma atitude simplista. Em outro artigo, Homem (1989) vê a questão do pertencimento
irlandês, ou seja, da construção nacional, em cruzamento ou sobreposição à questão de Yeats ser
considerado figura central à formação de uma tradição literária. Assim, apontar a dificuldade de se
falar em uma tradição literária irlandesa, sem ao mesmo tempo abandonar a busca por tal tradição
na tentativa de uma compreensão abrangente dessa literatura, mostra-se uma atitude adequada ao
presente trabalho.
Se descontinuidade é a palavra norteadora à percepção do encontro de uma identidade
irlandesa e de uma tradição literária nacional na Irlanda, devemos lembrar, então, que os temas do
exílio, da nação e do pertencer fragmentário mostram-se comuns à maioria dos poetas irlandeses
do século XX, sejam eles do Norte ou do Sul, que ora se posicionam muito a favor das discussões
políticas, ora, silenciados em relação a estas, permitem-se, assim, ausentarem-se ou aproximarem-
se do espaço geográfico sobre o qual discorrem. De Jonathan Swift, Oscar Wilde, Bernard Shaw,
James Joyce e Samuel Beckett a Seamus Heaney, Derek Mahon e Michael Longley, falar de fora
poderia ter significado falar de dentro, falar sobre o teor de deslocamento e fragmentação típico da
(como Yeats e Kavanagh) pretende retomar o sentido mítico de unidade de uma tradição literária nacional, em sua compreensão
crítica.
12
literatura irlandesa. É desta maneira que “a continuidade, a descontinuidade, a coerência, a
fragmentação, eis idéias e valores que assombram a imaginação poética irlandesa” (GARRATT,
1986, p. 278)
3
. Neste sentido, o exílio pode ser uma metáfora conveniente ao espaço da criação, o
local de refúgio de si e a si.
No que tange a herança poética da Irlanda, pode-se dizer que o conservadorismo ético-
político é uma de suas marcas importantes, o que, se por um lado, auxilia na construção de um
imaginário sobre a nação, bem como sobre o pertencimento irlandês (“Irishness”), por outro,
limita a maneira como se pode ler um poeta, já que este inserir-se-ia em uma geografia pré-
determinada. Segundo Garratt (1986, p. 291), se “a compulsão de poetas irlandeses,
particularmente desde Yeats, em reconsiderar e redefinir o estado de pertencimento irlandês na
expressão poética é dominante.”, “é inevitável que os poetas continuem a avaliar suas respostas
individuais no contexto cultural.” De fato, tal atitude irá definir os caminhos da continuidade
poética. Por exemplo, sabemos que a luta pelo nacionalismo acentua a necessidade constante de se
recriar artística e culturalmente o imaginário que dê conta da existência coletiva e social que
acompanha a história do país. Neste sentido, Gerald Dawe (1995, p. 46) afirma: “(...) inventamos
as tradições e as bases para essas invenções são tão políticas, quanto estéticas, tão sociais, quanto
poéticas.” No entanto, para o poeta Brian Coffey (nascido em 1905 e morto em 1995) “um sujeito
está em terra firme na poesia, quando se remete ao que é humano...o que nos faz deixar de lado a
qualidade nacionalista”
4
– de sua poesia. Coffey, ao lado de Samuel Beckett, Denis Devlin e
Thomas McGreevy, compôs o rol de figuras principais na órbita de James Joyce – tendo
McGreevy e Beckett, particularmente, mantido estreita relação com Joyce na Paris dos anos 1920
e 1930.
Quando se pensa a questão da influência, certamente, W.B.Yeats e J.Joyce configuram-se
como autores principais à compreensão inicial de uma tradição literária irlandesa, por suas
investidas nacionalistas, em uma tentativa de finalmente circunscrever o que significaria ser
irlandês, fosse através do Renascimento Irlandês, da celebração ao Drama como gênero cultural,
predominante a partir da criação do Abbey Theatre, ou, pelo recontar das narrativas míticas celtas
em gêneros como a Poesia – além da prosa. Além disso, deve-se aqui assinalar que o sentido de
“Irishness”, particularmente em Joyce, mostra-se complexa, pela representação satírica e hostil
desse pertencimento, sobretudo, através de seu expatriamento voluntário. Apesar da diferença nas
tendências ideológicas entre Joyce e Yeats, pode-se dizer que os sucessores imediatos de ambos
na esfera poética foram Padraic Colum e Austin Clarke. Para Augustine Martin (1996, p. 178),
3
Continuity, discontinuity, coherence, fragmentation, these are the ideas and values which haunt the Irish poetic imagination.”
(GARRATT, 1986, p. 278).
4
“I think one is on safest ground, in poetry, when one is addressing what is human...that strips away the nationalist quality”
(Eire/Ireland, v. 13, n. 11, p.12, 1961).
13
Austin Clarke escreveu “sobre a Irlanda e para ela”, a maneira justamente de Joyce e Yeats, que
conseguiram transportar a literatura irlandesa ao centro do mapa literário (JOHNSTON, 1985, p.
38). Apesar de igualmente complexa, vale apontar a visão de A.Martin, segundo a qual Clarke
rompe o domínio poético de Patrick Kavanagh, até então, considerado o grande nome da cena
poética pós-yeatsiana. Já Inês Praga Terente (1996) vê Austin Clarke como um autor de transição
da tradição yeatsiana para a joyceana. No entanto, segundo a estudiosa, A.Clarke, Padraic Fallon,
Frederick Robert Higgins (nascido em 1896, morto, em 1941), Denis Devlin (nascido em 1908 e
morto em 1959) e Patrick Kavanagh podem ser considerados os grandes seguidores de Yeats.
Vale lembrar que desde o Ato de 1719, que reafirmara a dependência irlandesa em relação
à Inglaterra, a formação de uma literatura anglo-irlandesa em inglês fez-se necessária para que se
garantisse ao país uma sucessiva desintegração que culminou nas ondas de Renascimento, a
primeira delas, entre 1780 e 1880, conhecida por Renascimento Celta. Deve-se ressaltar, também,
os anos da Grande Fome, 1847, 1848 e anos subseqüentes, como a experiência impossível ao
nacionalismo cultural, pelo caráter de intensa emigração irlandesa, dadas as condições ínfimas de
subsistência, para além do fato de apenas em 1905 os irlandeses nacionalistas fundarem o Sinn
Fein. Ainda assim, o surgimento do the Nation é parte memorável da tentativa de crer na cultura
como agente central na formação da política nova (DEANE, 1986, p. 76). Um dos exemplos da
constante dualidade política e ambiguidade marcantes da sociedade irlandesa é o caso da leitura
de J.Swift a propósitos políticos diferentes e, muitas vezes, totalmente opostos. O final do século
XIX assistiu a sucessiva formação de sociedades que buscavam a arte e a cultura como pontos de
apoio ao aparente desinteresse social pela política, embora o nacionalismo como ideologia já
tivesse assistido ao seu inicial desenvolvimento na virada do século XVIII ao XIX (LEERSEN,
1996, p. 10). Ironicamente, eram essas sociedades que buscavam o nacionalismo heróico (como
no caso de W.B.Yeats), através do retorno às lendas e mitologias nos escritos de Samuel
Ferguson, Standish O’Grady e o próprio Yeats, além das preocupações estéticas de Bernard Shaw
e Oscar Wilde. O foco de tais artistas voltara-se à questão da autenticidade (DEANE, 1994, p.
179), isto é, da busca por uma literatura nacional única. Tanto a Revolução, que acontecera entre
1916 e 1922, quanto o Renascimento cultural (conhecido como o “Irish Revival”) foram
responsáveis pela reconstrução de um passado irlandês seletivo, com vários “esquecimentos”, o
que garantia o desejo de se pensar o futuro. É desta maneira que se pode dizer que lembrar e
esquecer compõem o fazer do estado de ser irlandês, de se repensar a nação constante e
inacabadamente. Para Johnston (1985, p.1) “porque os escritores são tanto guardiões e
compositores de suas próprias tradições literárias, a situação real dos escritores da década de 1940
pode nos ajudar a entender a literatura irlandesa recente.”
14
Se os autores do Renascimento Irlandês, James Joyce, William Butler Yeats, John
Millington Synge, George Moore and Sean O’Casey, envolveram-se intensamente com os
problemas de linguagem, ou seja, a política da língua, a censura de vários tipos e, desta maneira,
com a busca da articulação de uma literatura única, reveladora da cultura irlandesa, foi o retorno
ao passado a fonte da mobilização cultural, que levou tal grupo a refletir sobre o futuro como
salvação às perdas sucessivas de poder político, econômico e, inclusive, de posição cultural que
viriam a assolar a Irlanda, em seguida, livre. Salienta-se que o Renascimento Irlandês – conhecido
em inglês como Irish Revival – aconteceu em torno de 1890 e 1922 e impulsionou a Irlanda na
criação de sua imagem como um país mítico, pastoril, que tanto viria a aparecer em produções
poéticas, como as de Austin Clarke e Seamus Heaney, salvaguardadas as diferenças.
A larga crítica histórica e cultural aponta a neutralidade da Irlanda na Segunda Guerra
Mundial como um dos motivadores de seu apagamento econômico, bem como da crescente perda
de status cultural até 1980. As décadas de 1950 e 1960 sofreram o término de muitas publicações
– a quê mais adiante nos referiremos – além do efeito das ondas migratórias de jovens que
buscavam melhores condições de vida em outras geografias. Ainda assim, tais décadas deram
vazão ao que viria a ser o reinício de uma acentuada escalada na produção poética do país. Deane
aponta o tempo entre as mortes de Yeats (1939) e de Joyce (1941) e o aparecimento de Seamus
Heaney, Derek Mahon, Michael Longley e James Simmons (nos anos 1960) como um intervalo
silencioso necessário à busca de “uma possibilidade alternativa à existente ordem das coisas”
(DEANE, 1994, p. 229). O ostracismo de tais autores tornou pública a notoriedade de seus estilos,
reveladores de exílios não apenas externos, mas também, internos. Outro crítico que também
compartilha de tal opinião é Johnston (1985), para quem a posição de neutralidade perante a
guerra e a censura governamental em relação aos artistas acaba por moldar os caminhos de
continuidade da tradição pós-Yeats e Joyce, na década de 1940. Vale notar que, de acordo com
Garrat (1986, p. 45), a poesia irlandesa até a década de 1940 permaneceu repetitiva em relação
aos temas do Renascimento Irlandês, centrados em geral na perda lingüística e na identidade
poética.
Construir um estado de espírito irlandês correspondeu, também, investir na discussão
religiosa, uma vez que para muitos autores desde o Renascimento Irlandês (Yeats, Russell,
Stephens e Joyce) até Seamus Heaney, posicionar-se em relação ao Cristianismo, fosse em relação
ao catolicismo, no caso dos primeiros, fosse na tradição protestante da Irlanda do Norte desde
Daniel Corkery, Padraic Colum, Seamus O’Kelly a Seamus Heaney significou definir os rumos
do pertencimento irlandês (referido na crítica anglófona a ‘Irishness’). Historicamente, a literatura
irlandesa, como todas as outras literaturas particular e denominadamente geográficas, isto é,
15
nacionais, é marcada pela forte presença da intenção política em estabelecer o nacional
5
e defini-
lo nas fronteiras móveis do catolicismo e do protestantismo como referenciais hegemônicos da
formação cultural do país. Leersen (1996) acredita que “o nacionalismo coloca a cultura e a
política em uma relação mútua altamente específica”
6
, pois o que define um grupo demográfico
como nação é a vontade, o desejo de tal grupo em executar uma definição própria, mais do que os
critérios que podem basear tal definição. Desta maneira, falar da Irlanda a partir do exílio
configurou-se em uma forma de se evidenciar a própria definição de “Irishness” no caso de vários
escritores de Joyce a Clarke – o que nos faria crer neste fato em si, ou seja, o exílio como o espaço
da distância necessária a reavaliação da “Irishness”, enquanto elo fundador de uma tradição móvel
e complexa. Por essa razão, Leersen (1996, p. 24) propõe examinar a questão do nacionalismo em
sua expressão internacional, em seu viés relacional e, assim, também, refletir sobre o papel da
poesia política na Irlanda, sobretudo, em suas representações do confronto Inglaterra-Irlanda. Ao
falar da tradição gaélica do bardo, Leersen (1996, p. 157) nos faz ver que:
Uma preocupação do poeta, então, seria dupla: a de censor da posição ritual, dos
privilégios e obrigações do chefe, bem como a de ser um árbitro da posição genealógica da
raça e territorialidade no sistema do clã. Seria sua obrigação formular o prestígio
interdependente do chefe e do clã.
7
Falando cronologicamente sobre a tradição histórica da Poesia irlandesa, Boland (1996b)
opõe a geração de poetas da década de 1950, agraciada pelas publicações da Dolmen Press
(Thomas Kinsella, John Montague e Austin Clarke) aos da geração anterior, de Patrick Kavanagh,
pois esta teria um sentido de exterioridade ao poema, ou seja, um sentido político muito mais
aguçado, diferentemente àquela que ignora o sentido social do deslocamento irlandês e confere à
visibilidade o caráter de invisível, como se o tangível do lugar, do lar e do ser desmerecesse
considerações na elaboração poética. Em outras palavras, Clarke, Montague e Kinsella teriam se
exposto menos à proposta política da poesia, comparativamente à Kavanagh, que por meio de seu
paroquialismo estabelece as bases de uma Irlanda rural, miserável e defende uma comunidade
movida a propósitos semelhantes. Cabe lembrar que Martin (1996) refere-se a uma poética
irlandesa nova, inesperada e renovada do fim dos anos 1960 e início dos 1970, representada por
Seamus Heaney (nascido em 1939), Seamus Deane (nascido em 1940), Derek Mahon (nascido em
1941), Michael Longley (nascido em 1939) e John Montague (nascido em 1929). Para Augustine
Martin, enquanto Seamus Heaney e John Montague revalidaram e reavaliaram Kavanagh e se
preocuparam em desenvolver uma unidade de voz à poesia irlandesa, Michael Longley e Derek
5
De acordo com Deane, “The character of nations is thematized repeatedly in nineteenth-century writing as the explanatory element
in the story of a progression from the narrow ambit of the national place into the new territory or space of the state.” (1997, p. 49).
6
No original, “Nationalism places culture and politics into a highly specific mutual relationship.” (1996, p. 14).
7
“A poet´s concern would, then, be twofold: to the censor of the chieftain´s ritual position, privileges and obligations, within the
clan, and to be the arbitror of the clan´s territorial and racial/genealogical position within the clan system. The interdependent
prestige of chieftain and clan was his to formulate.” (1996, p. 157).
16
Mahon ativeram-se à integração do paroquialismo e universalidade. Já, Mebdh McGuckian
(nascida em 1950 em Belfast), Paul Muldoon (nascido em 1951, na Irlanda do Norte) e Ciaran
Carson (nascido em 1948, Belfast) não temeram continuar a tradição consagrada (Yeats e Joyce).
Vale ressaltar, no entanto, que a poética de Michael Longley associa-se ao lar, à família e à
natureza, o que o distancia de qualquer cosmopolitismo, embora The Oxford Companion To
Irish Literature (Welsch, 1996) sustente existir uma “ressonância pessoal à integração do
paroquial e do universal.”
8
Para Gibbons (2000, p. 589), os anos 1960 e 1970 na Irlanda mostraram um senso
histórico particular e um conjunto interpretativo (cultural) moralista. Além disso, o crítico
considera que o Revisionismo
9
já se mostrara contundente nas décadas de 1930 e 1940, como uma
espécie de desafio à onda nacionalista. Tal fato é relevante a medida que temas mais intimistas
consagram-se na estética poética de autores como Seamus Heaney, Louis MacNeice (que viveu de
1907 a 1963), Patrick Kavanagh (que viveu entre 1904 e 1967), Thomas Kinsella (nascido em
1928, Dublin), John Montague (nascido em Nova York, em 1929) e Austin Clarke (que viveu
entre 1896 e 1974), dentre outros, levantando, assim, a discussão a respeito de valores particulares
e universais nos temas tratados em seus trabalhos poéticos, ou seja, sobre aquilo que de imediato
se reporta à Irlanda e as suas especificidades e o quê de comum aos grupos humanos, sociais
diversos faz referência. Para Johnston (op. cit., p. 53), “o poeta irlandês reporta-se não apenas a
uma audiência imediata, a uma orquestra insular, mas também ao público mais remoto e distante
de leitores britânicos e americanos (...)”
10
. É dessa maneira, também, que o escritor irlandês
mostra um tipo de ambivalência em relação a sua tradição e a sua audiência em seu
posicionamento no que concerne o objeto poético ou naquilo a que se chama de tom. Então,
pensarmos o local da poesia como o espaço de uma comunidade de leitores imaginados e
imaginários faz sentido, ao invés de uma comunidade situada em uma localidade geográfica, o
que nos remete exatamente à questão do particular e do universal.
Já em poetas como Derek Mahon (nascido no Ulster em 1941), Thomas Kinsella (nascido
em Dublin, 1928) e Paul Durcan (nascido em Dublin, 1944), notamos uma certa liberdade em
relação aos temas convencionais associados à questão política em detrimento da abordagem mais
subjetivista e privada, ou seja, um desapego maior ao que tange a política irlandesa retratada na
Poesia, diferentemente do que se vê em poetas como John Montague, Seamus Heaney e Tom
8
A referência ao original aponta: “The implicit identification of the aged Laertes with Longley´s own father adds a moving personal
resonance to the integration of the parochial and the universal, effected with a seasoned sureness of tone in these austerely
evocative poems.”(1996, p. 316).
9
Trata-se de um conceito associado tanto à crítica literária, quanto à historiografia e o qual desafia as leituras convencionais,
sobretudo nas três últimas décadas, mas que para Luke Gibbons encontra ressonância a partir dos anos 1930 e 1940. Uma das mais
aclamadas vozes dessa tónica do pensamento é Edna Longley.
10
“(…) the Irish poet addresses not only an immediate audience, an insular orchestra, but also the more remote lower and upper tiers
of British and American readers.” (op. cit, p. 53).
17
Paulin (Thomas Neilson Paulin, nascido em Leeds, Inglaterra, em 1949 e desde cedo habitante de
Belfast, por exemplo, intensamente ligados à discussão pública e política sobre o pertencimento
irlandês (‘Irishness’).
Ainda na esfera da discussão do pertencimento, escritores como Sean O’Faolain e Frank
O’Connor (embora na prosa) trouxeram em pauta questões pertinentes ao papel do artista, em
geral, como um “outcast”, um “misfit”, um sujeito à parte e marginalizado. No entanto, a maneira
dos autores que escrevem desde o Renascimento Literário aos da atualidade, como as poetisas,
Martin (1996, p.95) sustenta que “(...) deve haver um elo entre o artista e a sua sociedade.” Para
Martin (1995), apenas dessa maneira, pode o artista enfrentar o embate entre a aceitação e a
rejeição das condições sociais e de seu papel como escritor. Isso nos remete, novamente, à idéia
de que a escrita é um lar, um espaço de comprometimento, ou seja, ainda que sustente o refúgio
da dor e do conflito, é, também, uma parada para reflexão e discussão não apenas de si mesmo,
mas também sobre o homem social. Assim, há o comprometimento da escrita e a escrita do
comprometimento, ambas atitudes que condizem com os poetas irlandeses do século XX, com
atribuições diferentes de importância às discussões levantadas pelo engajamento da escrita.
Para Eavan Boland, em seu ensaio “New Wave 2: Born in the 50s; Irish Poets of the
Global Village” (DORGAN, 1996, p. 137): “todos os poemas em suas épocas fazem uma
negociação importante e frágil entre o mundo interior e o exterior.”
11
Isso significa, segundo Campbell (2003), que os poetas irlandeses da segunda metade do
século XX têm que lidar com os efeitos do descomforto político de uma ilha dividida, da luta pela
independência, bem como do sucesso artístico-cultural advindo dessa batalha. Definir o tempo da
contemporaneidade a partir da segunda metade do século XX, após as mortes de Yeats e Joyce,
respectivamente, 1939 e 1941, responde aqui a problemática do uso do termo contemporâneo. A
tradição irlandesa refere-se inicialmente a Yeats e Joyce porque foram esses, ao lado de Lady
Gregory e J.M. Synge, os responsáveis pela invenção da Irlanda, o seu “patentear”, segundo
Eavan Boland e Patrick Kavanagh (DORGAN, 1996). As origens do nacionalismo cultural
irlandês são definidas em torno de 1840, quando da Irlanda Nova e de seu projeto de legitimação
político-cultural, caracterizado por uma forte influência do Romantismo. Leerssen (1996) aponta a
poesia do século XVIII já como indicativa do confronto linguístico (em toda a sua dimensão, ou
seja, com todas as suas implicações sócio-culturais) entre o inglês e o gaélico, a que ele denomina
nacional, “ao aliar identidade cultural e aspiração política em uma relação de entrosamento”.
12
11
No original, “all poems in their time make a fragile, important negotiation between an inner and outer world.”
12
A citação completa aqui se apresenta: “The poetry of the XVIII century, in the wake of O´Rathaille, is indicative of an outlook on
the English-Gaelic confrontation in which religious, linguistic or more broadly cultural aspects, economic and legal factors and a
well-defined political stance (Jacobitism) have been welded into a coherently structured ideology which, I think, may be called
national in that it brings cultural identity and political aspiration together in an interlocking relationship.” (1996, p. 241).
18
Já sobre a questão do pertencimento irlandês (‘Irishness’), devemos considerar tanto as
abordagens temáticas, regionais como o pastoralismo e o anti-pastoralismo de Seamus Heaney e
Patrick Kavanagh, o feminismo de Nuala Ní Dohmhnaill (que nasceu em Lancashire, Inglaterra,
em 1952 e aos cinco anos foi morar com parentes em County Kerry e Tipperary), as diferenças
religiosas, dentre alguns tópicos e outros mais universais como a paixão, o amor, a sexualidade,
quanto o local/os locais a partir dos quais se fala em Irlanda. Essa última questão, a do local,
inicia-se modernamente no auto-exílio joyceano e abrange, inclusive, poetas como Matthew
Sweeney (nascido em Donegal em 1952 e em 1973, mudou-se para Londres) e Bernard
O’Donoghue (nascido em 1945, Cork), entre Londres e Oxford, Eamon Grenman, e Paul
Muldoon nos E.U.A. (desde 1987)) e Justin Quinn, em Praga, para nomear apenas alguns dos
autores que falam da Irlanda na ausência física, como se a distância geográfica permitisse a
autoridade necessária à voz poética, a fim de legitimar o pertencimento irlandês sempre
fragmentário. Segundo Mahony (1998, p. 5, 11)
13
,
Quando a geração mais velha de poetas irlandeses hoje iniciaram suas carreiras, eles
tinham uma riqueza de poesia irlandesa moderna, escrita em inglês e bem conhecida e
publicada, a partir da qual se inspirar (...). Os poetas irlandeses hoje questionam a
definição do pertencimento irlandês e exploram regionalismos, investigam a posição da
religião em suas vidas e em suas comunidades.
Além disso, esses poetas “têm um sentido aguçado de si mesmos enquanto cidadãos de um mundo
mais amplo e além das fronteiras da Irlanda.”
No rol de escritores a lidar com a política, deve-se mencionar Louis MacNeice, John
Hewitt (nascido em 1907 em Belfast e morto em 1987) e Padraic Pearse, nascido em 1879, Dublin
e executado em 1916 pelos ingleses no Levante (Easter Rising), onde fora, dentre outros poetas,
um dos líderes. Pode-se dizer, então, que a preocupação com a política acompanha a poesia
irlandesa desde a formação do Estado Livre até os movimentos poéticos mais recentes. Inclusive,
o cenário político do mundo ocidental do fim da década de 1960 não passou incólume pelos
irlandeses de 1969. É possível dizermos que o evento mais comentado na história da Irlanda em
termos culturais de poemas (de Heaney, Muldoon e Kinsella) a canções populares como as
apresentadas pelo grupo de rock U2 – tenha sido o janeiro sangrento de 1972, quando soldados
ingleses do 1º Batalhão do Regimento de paraquedistas mataram treze civis e feriram outros 26,
que prostestaram a favor de direitos cívicos contra o governo da Irlanda do Norte em 30/01/1972.
13
Nas palavras originais da autora, “(...) when the elder generation of Irish poets today began their writing careers, they had a wealth
of modern Irish poetry, written in English and well-known and published on which to draw for initial inspiration.”. (1998: 5).
“Today’s Irish poets interrogate definitions of Irishness, explore regionalism, investigate the position of religion in their lives and
in their communities (…) Irish poets in our era have a keen sense of themselves as citizens of a wider world beyond Ireland’s
boundaries. They bring their unique linguistic gift to this wider world so that we may relish it.” (op. cit, p. 11).
19
Para Campbell (2003, p.11), “coincidentemente ao levante da violência política na Irlanda em
torno de 1969, houve um aumento fora do comum no volume e qualidade da poesia irlandesa.”
14
Apesar disso,
A energia poética não foi advinda apenas de assuntos poderosos, sugeridos por eventos
locais. Os anos 1960 assistiram ao desenvolvimento de um cenário poético novo e bem
sucedido em Belfast, sempre em torno do famoso poeta e crítico Philip Hobsbaum.
(op.cit.)
15
.
Segundo Derek Mahon (2003) “Um bom poema é um paradigma de boa política, das
pessoas conversando umas com as outras com uma sutileza honesta, em um nível profundo. É
uma luz com o que se pode iluminar a escuridão, que tivemos suficientemente, Deus sabe, por
tempo demais.”
Mais uma vez, a escrita mostra ser um veículo de comunicação, ou seja, de encontro com
o que é desconhecido, fazendo deste o seu objeto de reflexão e investigação. Neste sentido, pode-
se dizer que Michael Longley, Seamus Heaney, Eavan Boland e Paul Muldoon voltaram-se a
formas como a écloga e a elegia pastoral nos anos 1950, a fim de colocarem em pauta tanto a
exaustão da guerra, quanto o desconhecido ambiente dos novos tempos, a partir de temas que
voltassem ao lar e ao retiro interior.
Por outro lado, “seria um erro pensar que todos os poemas irlandeses da época estivessem
preocupados com a violência ou atrocidades.” (MAHON, 2003, p. 14). O autor se refere ao
contexto da poesia da década de 1970, o qual assistiu a uma mudança no enfoque histórico do
retrato da Irlanda, passando a incorporar maiores preocupações relativas a subjetividades, ao
mundo privado e cosmopolita e menos ao mundo político da Irlanda. Já para Johnston (1985, p.
43), qualquer que fosse a tendência, os escritores das décadas de 1960 e 1970 “frequentemente se
alinharam contra os poderes que controlavam a economia.”
16
Campbell considera Eavan Boland
uma presença crítica e poética fundamental ao repensar dos valores perpetuados pela tradição
irlandesa. O peso da tradição, no entanto, possivelmente se apresenta menos oneroso as gerações
vindouras: “Jovens poetas irlandeses (...) lutam para expressar não apenas o pesadelo das gerações
mortas, mas, também, a necessidade de fugir da influência mortal.” (2003, p. 17)
17
, ainda que seja
justamente o “negócio inacabado” (‘unfinished business’) da poesia a grande mola propulsora
para toda e qualquer geração poética, segundo Boland (1996b, p. 139).
14
No original, “(...) Coincident with the upsurge of political violence in Ireland around 1969 was the extraordinary increase in the
volume and quality of Irish poetry.” (CAMPBELL, 2003, p. 11).
15
“Poetic energy did not come only from the powerful matter that local events now suggested. The 1960’s had seen the development
of a newly thriving poetry scene in Belfast, famously gathering around the poet and critit Phillip Hobsbaum.”(op.cit.).
16
“(…) the writers of the sixties and seventies were often aligned against the powers that controlled the economy.”(1985, p. 43).
17
No original, “Younger Irish poets (...) strive to express not only the nightmare of the dead generations but the need to get away
from their deathly influence.”
20
Um consenso entre os escritores irlandeses da segunda metade do século XX é o fato de
que falar de regionalismos significa explorar identidades e lugares sob um ponto de vista anti-
autoritário. Assim, falam as poetisas (Boland, McGuckian, Meehan, Ni Dohmnaill) e os poetas
que desafiam o sentido tradicional do pertencimento irlandês, como Austin Clarke, considerado
um construtor da cultura irlandesa
18
. O seu livro genuíno mais consagrado, Flight to Africa, foi
publicado em 1963 e seguido por Mnemosyne Lay in Dust, em 1966, tendo, porém, escrito mais
nada além de Night and Morning, em 1938 e Ancient Lights, em 1955. Clarke explorou críticas
sobre a Igreja e o Estado e lidou com a antinomia entre o nacionalismo cultural e a poética
modernista. Para Davis (2003, p. 77), Clarke concebeu o modernismo “como um fenômeno
internacional e transcultural”.
Patrick Kavanagh foi outra figura notável na tradição literária irlandesa e quem acabou
por inspirar uma série de outros poetas posteriores, como John Montague e Seamus Heaney.
Nasceu em 1904 em Inniskeen, County Monaghan e faleceu em 1967, Dublin. Em 1960 surge o
seu volume de poesias Come Dance with Kitty Stobling, seguido por Collected Poems, em
1964. Um de seus mais influentes poemas, “The Great Hunger” havia sido publicado pela editora
de Yeats, a Cuala Press, em 1942 e foi justamente este trabalho que o consagrou como “um dos
poetas irlandeses mais inovadores após Yeats” (ALLISON; JONATHAN, 2003, p. 45). A sua
postura era contrária à poesia e à ideologia do Renascimento Irlandês, a qual acreditava que a
Irlanda antiga oferecera à moderna, a sua identidade cultural. Tal posicionamento garantiu uma
voz particularmente pastoral e anti-pastoral. Isso significa que Kavanagh, apesar de enunciar
sobre a vida rural da Irlanda, consegue fazê-lo sem romantismo, ou seja, por meio de um olhar
realista e denunciador da miséria que tanto assolou o país e, assim, o poeta mantém uma postura
iconoclasta e isolacionista, significando que a poesia pudesse existir além de qualquer
nacionalidade e em qualquer circunstância. O sentido de paroquialismo formulado por Kavanagh
associa-se à idéia de uma comunidade rural ou urbana, mas que apresentasse uma homogeneidade
sócio-cultural, uma individualidade própria.
Para Augustine Martin, se a poesia de Kavanagh foi um modelo a obras como
Nightwalker, de Thomas Kinsella, Battle of Aughrim de Richard Murphy, Mnemosyne Lay in
Dust, de Austin Clarke, The Rough Field, de John Montague, Station Island, de Seamus Heaney
e Cromwell, de Brendan Kennelly, guardadas as diferentes proporções temático-estilísticas, isso
se deve ao fato de que Kavanagh “revelou aos escritores bem mais versados e cultos que a questão
18
O Oxford Companion To Irish Literature diz que Clarke “turned more deliberately to the drama of racial conscience which was
to become the dominant theme of his work (…) The poetry written after 1955 showed a renewed energy.”
21
da poesia nasce da problemática da vida.”
19
, em muito, portanto, tendo se insurgido em relação ao
momento fini-oitocentista da literatura irlandesa. Segundo Terente (1996), “o grande legado de
Kavanagh – e a sua grande alternativa em relação a Yeats – foi um novo olhar poético, um olhar
que se nutre daquilo que se constitui como nosso presente, ao invés de recorrer nostalgicamente a
um passado heróico”
20
. Cabe aqui ressaltar que para uma leitura de Kavanagh e seus sucessores, a
idealização do espaço rural e da figura do camponês acompanha e, segundo Goodby (2000), é
complacente às ideologias essencialistas da burguesia nacionalista irlandesa. No entanto, para
Garratt (1986, p. 142), Kavanagh combatera o nacionalismo e o pertencimento irlandês, cantado
por alguns de seus colegas, ao julgar tais atitudes extremamente pessoais e interiores. A sua
relação com a capital dublinense fora de renascimento à vida literária, a partir da reafirmação de
suas raízes rurais. Então, podemos pensar em Kavanagh como o poeta que dá continuidade aos
trabalhos de Yeats, Clarke e Joyce e, desta maneira, antecipa o que viria a ser escrito por Heaney
e Paul Durcan, dois poetas opostos no que tange o discorrer sobre o local. Se Heaney fala em um
“sentido de local” (“sense of place”), Durcan anuncia o “sentido de não-lugar” (“sense of non
place”), em uma espécie de surrealismo, tanto no quesito imagético, na técnica de justaposição de
imagens opostas e incongruentes, quanto nos questionamentos críticos a temas “tabus”, como a
religiosidade, o sexo e o poder.
Vale ressaltar que há várias maneiras de se ler didaticamente a poesia irlandesa, através
exatamente dos critérios que a tornam complexa: a religião (catolicismo e protestantismo), a
política (nacionalismo e unionismo), os espaços geográficos (Norte e Sul, campo e cidade, Irlanda
e Inglaterra), o pertencimento linguístico e cultural (inglês ou gaélico), dentre outros. Os
comentários que ora se apresentam vinculam-se a uma visão geral sobre todos esses critérios, de
maneira a tornar conhecidos aqui os principais autores e suas tendências, sem necessariamente
caracterizá-los a partir de uma perspectiva específica. Assim, podemos dizer que John Montague
(nascido em 1929 e católico), Thomas Kinsella (de origem dublinense, nascido em 1928) e
Richard Murphy (nascido em Mayo, 1927) redefiniram o imaginário irlandês na modernidade, o
qual passou a lidar com a influência externa advinda dos investimentos internacionais e
desenvolvimentos. Kinsella, apesar de viver no dilema entre duas Irlandas, sempre expõe as
tradições distintas e enuncia uma profunda alienação, desolação e caos sobre a raça humana.
Murphy elabora a arquitetura e a música em sua poesia e Montague, como um católico no Norte,
volta-se à inevitabilidade do exílio e da solidão literária, fazendo o local e o passado adquirirem
um sentido religioso, tão diferentemente de Patrick Kavanagh, para quem o local e o passado se
19
No original, “Kavanagh revealed to writers of far greater education and learning that the matter of poetry sprang from the given
matter of life.”(Martin, Augustine. “Kavanagh and After: an Ambiguous Legacy”In: Irish Poetry Since Kavanagh. Theo Dorgan,
editor).
20
“(…) el gran legado de Kavanagh – y su gran alternative respecto a Yeats – fue una nueva Mirada poética, una mirada que se nutre
de lo que constituye nuestro presente en vez de recurrir nostálgicamente a un pasado heroico.” (1996, p. 84).
22
traduziriam em experiências deslocadas e transformadas em um presente comunitário, na idéia de
paroquialismo. Podemos dizer que os sucessores de Yeats, Kavanagh e Clarke foram John
Montague, Thomas Kinsella e Richard Murphy na década de 1960, quando o “grupo de Belfast” –
Heaney, Longley e Simmons – encabeçou o movimento conhecido como “renascimento poético”.
Johnston (1985) aponta a ameaça à independência política como a causa da resposta unificada e
solidária dos poetas do Ulster e afirma:
Claro que em uma sociedade revolucionária como o Ulster ou, ainda, uma sociedade em
rápido desenvolvimento, como a Irlanda, o poeta deve conduzir os seus leitores a sua
revisão da sociedade e a renovação de suas tradições compartilhadas. Em uma sociedade
tão volátil como a que a Irlanda se tornou e na qual as tradições podem, no entanto,
ainda unir leitor e escritor, a relação do poeta com o seu público torna-se uma questão
central que realmente se insere na poesia.
21
Ademais, deve-se ressaltar que o crescimento da publicação de autores irlandeses durante
essa época fez-se mais contundente devido a iniciativa de editoras como a Dolmen Press e outras
que se dispuseram a publicar autores os quais, desta forma, não mais precisaram recorrer
primeiramente ao mercado editorial internacional – autores como Brendan Kenneally, Paul
Durcan e Eiléan Ní Chuilleaniann, que haviam recebido influências externas em suas escritas
(GOODY, 1996). Quando associamos a formação de uma literatura nacional as publicações
surgidas, devemos atentar à relevância do surgimento de periódicos como The Bell em 1941,
como parte do movimento de resistência contra a censura, seguido pelo Threshold em 1957 e o
Irish University Review, bem como a fundação do “National Arts Council” em 1951 e as leituras
poéticas enquanto evento público. Todas essas ações acabaram por propiciar ainda maior
visibilidade à questão do pertencimento irlandês e à dinâmica de reintegração da Irlanda no
mundo global. Deve-se notar, em relação a isso, que: “(...) a ameaça à independência poética é a
causa que propulsiona uma resposta uniforme e até mesmo uma solidariedade entre os poetas do
Ulster”.
22
Um tanto mais distante da questão da identidade nacional e mais próximo da preocupação
com a existência, Louis MacNeice (viveu entre 1907 e 1965) foi uma presença marcante na
continuidade da formação de uma tradição poética pós-Yeatsiana, também, à distância, pois
morou na Inglaterra e nos Estados Unidos, ausentando-se, portanto, da Irlanda. Apesar de nascido
no Norte e de origem protestante, via a sua terra natal como uma prisão e pensava o Sul, como
possibilidade de evasão. Sua reputação veio com as publicações de The Earth Compels (em
1937) e Autumn Journal (em 1939) pela Faber & Faber. O seu volume Collected Poems, de
1949, é bem menos aclamado pela crítica, provavelmente, pela influência do discurso midiático
21
“Of course in a revolutionary society, such as Ulster, or even a society rapidly evolving such as Ireland, the poet must win his
readers to his revision of society and his renewal of their shared traditions. In such a volatile society as Ireland has become, in
which the traditions can nevertheless still draw reader and writer together, the poet´s relation to his audience becomes a central
concern which actually enters into poetry itself.” (1985, p. 53).
22
“(…) the threat to poetic independence is the one cause that might evoke a uniform response, and even a solidarity, among the
Ulster poets.” (1985, p. 52).
23
que sua vida de jornalista o propiciara. No entanto, a sua poética sempre se volta ao lar
assombrado, ao espaço de luta, mesmo que imaginário: “(...) a poesia de MacNeice retoma
imagens de lares, de casas e locais de luta, como cenas de alienação e, por vezes, inclusive,
terror.” (McDONALD, PETER, 2003). Assim, Louis MacNeice é um poeta de espírito
cosmopolita e universal e vai além das particularidades locais.
Se pensarmos na categorização Norte-Sul da poesia da Irlanda, podemos dizer que a
poesia do Norte vê-se lançada a partir do primeiro aparecimento do Queen’s University Festival
em 1964, que viria a ser conhecido como o atual Belfast Festival e o qual foi responsável pela
divulgação de nomes como Seamus Deane, Seamus Heaney e Derek Mahon. Posteriormente, em
1968, James Simmons, poeta e editor nascido em Derry em 1933 e falecido em 2001, funda a
revista Honest Ulsterman. Para esses poetas, a necessidade de uma resposta à estética de
Kavanagh pareceu inevitável. Deve-se dizer, também, que a influência externa à poesia local foi
da França (com os estrondosos ecos de Whoroscope, de Samuel Beckett) aos Imagistas e demais
poetas americanos, como Ezra Pound, Robert Frost, William Carlos Williams e Hart Crane. John
Montague é um exemplo de poeta que dialogou com o que se produzia internacionalmente, a
partir de uma estética que fazia referência a um mundo privado e interior de sentimentos
universais, em seus livros Death of a Chieftain (de 1964), The Rough Field (de 1972) e The
Dead Kingdom (de 1984).
Além do diálogo intertextual que a obra de Heaney estabelece com a de Kavanagh, é a
partir de seus ensaios sobre este (em 1975 e em 1985) que Heaney considera Kavanagh o grande
precursor de um projeto cultural irlandês. Para Anthony Roche (1996, p. 74), “Seamus Heaney
escreveu eloqüentemente sobre a importância que Kavanagh exerceu sobre si, enquanto poeta, ao
encorajar tanto um apelo ao local, quanto uma fidelidade as condições do dia-a-dia”. O vencedor
do Prêmio Nobel em 1995 fala tanto de um país geográfico, quanto de um país mental, a partir da
atividade poética à semelhança da agrícola, uma escavação, cavar o significado das palavras, a
maneira como se cava a terra, fazendo desta e da literatura um plano transcendental. Heaney é
convicto em uma tradição advinda de Yeats e Kavanagh e, se a sua poesia tem o compromisso
político de repossuir o lugar, a partir da discussão dos distúrbios (“the troubles”), o compromisso
da poesia o permite mergulhar na interioridade humana a partir do mundo natural.
O fato é que se os investimentos internacionais na sociedade irlandesa dos anos 1960
fazem com que o país acompanhe as mudanças culturais advindas do fluxo do capital
transnacional, bem como da mídia eletrônica na representação da vida na Irlanda, o sentido de
uma identidade nacional de auto-negação
23
, conforme atesta Goodby (1996) persiste, sobretudo,
23
Para a poetisa contemporânea de Boland, Medbh McGuckian, o sentido de negação se estabelece na identidade feminina,
irlandesa e católica. Diz-nos: “I know being a woman for me for a long time was being less, being excluded, being somehow
24
na poesia e em suas tentativas de enunciar o que significava ser irlandês. Assim, surgem
posicionamentos que reiteram as tradições católica e protestante. Seamus Heaney, por exemplo,
volta-se à maestria da tradição lírica inglesa com Death of a Naturalist (de 1966) e revela,
também, a sua herança católica e nacional fragmentada pela perda de um sentido único e pela
questão da violência, retratados em Bogland, de 1969
24
. Ainda que haja um viés que continue a
herança católica na poesia irlandesa da década de 1960, há, também, a poesia que revigora o
passado protestante, como aquela escrita por Michael Longley, Derek Mahon e Tom Paulin e que
tanto sentido atribue ao período de transição que foi a década de 1960 para a poesia irlandesa,
sobretudo, no que tange a diversidade de estilos e temas daí apresentados, impulsionados pela
liderança de Philip Hobsbaum. Este, aliado a James Simmons, Derek Mahon, Michael Longley,
Seamus Heaney, Paul Muldoon, Ciaran Carson, Tom Paulin, Medbh McGuckian e Eavan Boland,
causou uma efervescência poética com a formação do “The Group”, que discutiu uma notável
diversidade de temas. De igual relevância são os movimentos libertários que passaram a ocorrer
na década de 1960 em outras geografias do mundo, que também se fizeram ecoar no território
politicamente partido da Irlanda: os movimentos estudantis de independência da África e o dos
negros nos Estados Unidos da América, este último, particularmente, segundo Goodby, em muita
ressonância ao movimento a favor dos Direitos Civis da Irlanda do Norte. Esses paralelos
históricos são possíveis a medida em que falamos da Irlanda na época de sua reinserção no
cenário da política internacional. A esta altura, faz-se necessária a remetência à idéia de Leerssen
sobre a validade da formação da nação enquanto esta acontece no diálogo relacional com o que é
internacional:
a dessemelhança entre os membros diferentes e definidos diferentemente, de uma única
nação proíbe, penso, uma equação linear, pela qual a definição de uma entidade
´nacional´ seria a simples inversão das distinções ´nacionais´. Uma ´nação´ pode ser
concebida, não implicitamente, em si mesma, mas somente em contradistinção com
outras. Estabeleço, então, que é mais profícuo considerar a questão da nacionalidade em
seus aspectos relacionais, abordá-la de um ponto de vista comparativo, estritamente
supranacional, considerar nacionalidade não como uma idéia ensimesmada ou discreta,
mas como a expressão de uma relação internacional.
25
cheap, being inferior, being sub. I associated being a woman with being a Catholic and being Irish with being from the North, and
all of these things being not what you wanted to be. If you were a woman, it would have been better to be a man; if you were
Catholic, it would have been a lot easier to be Protestant; if you were from the North, it was much easier to be from the South; if
you were Irish, it was much easier to be English. So it was like everything that I was was wrong; everything that I was was hard,
difficult, and a punishment.” (Disponível em: http://www.english.emory.edu/Bahri/McGuckian.html).
24
Apesar de se voltar à tradição inglesa do verso, Heaney, diferentemente de Kinsella e Montague, nunca a tem como uma fonte de
comprometimento à razão, ao sujeito unificado ou a forma bem acabada (GOODY, 1996).
25
“(…) the dissimiliarity between the different, and differently defined, non-members of any single ´nation´ forbids, I think, a
straightforward equation whereby the definition of a ´national´entity would be the simple inverse of ´national´distinctions. A
´nation´can be conceived of, not implicitly, in itself, but only in contradistinction to others. I put it then, that it is more fruitful to
consider the question of nationality in its relational aspects, to approach it from a strictly supranational, comparative point of
view, to consider nationality, not as a discrete, self-contained idea, but as the expression of an international relationship.” (1996,
p. 24).
25
Neste excerto, Leerssen permite-nos evocar não apenas a questão da poesia e da política,
mas também e, sobretudo, à idéia de nação, inevitavelmente presente em qualquer tradição
literária – e, não apenas desta de que aqui tratamos, a irlandesa.
Enquanto o presente trabalho atenta as associações intermediáticas na obra da poetisa
contemporânea, Eavan Boland, deve-se aqui ressaltar a importância dos diálogos interculturais
que afloram na poesia irlandesa. Assim, Eamon Grennan, além de poeta e crítico dublinense
nascido em 1941, declara que “a poesia irlandesa em inglês inicia-se com Whitman” (1996, p.
95), o que significa dizer que poetas como Padraic Fallon e Denis Devlin (nascido em 1908 e
morto, em 1959), bem como o próprio Patrick Kavanagh e seus sucessores, Thomas Kinsella e
John Montague sustentaram-se na produção norte-americana a fim de repensar o pertencimento
irlandês no que dissesse respeito ao fazer artístico, neste caso, particularmente, poético. Para
Grennan, porém, a intensa presença da poesia norte-americana nos versos irlandeses não
necessariamente acompanha inovações radicais ou novas tendências, exceção feita aos trabalhos
de Eavan Boland e Paul Muldoon, que trouxeram elementos bem inovadores à produção
irlandesa. O caso que mais nos interessa aqui é justamente o de Boland, que, mergulhada no
oceano de Sylvia Plath e Adrienne Rich, fez ecoar na Irlanda o sentido da atribuição da voz
feminina na poesia produzida no contexto irlandês, bem pouco afeito à tal voz.
O poeta e crítico Gerald Dawe pensa ser inevitável tanto o fato de um poeta ir além de seu
passado e de sua herança cultural, transcendê-los, a fim de se tornar verdadeiramente único,
quanto o de se relacionar, ainda que ilusoriamente, com a tradição irlandesa
26
, pois embora a
identidade artística seja herdada, é sobretudo criada
27
. Assim, torna-se um caminho acreditar na
linguagem poética como um refúgio natural, uma espécie de lar ao escritor. Pode-se ter, então, a
noção de que a linguagem artístico-poética salvaria a problemática da fragmentação, de uma
existência incompleta, desconhecida e descontínua. É com este olhar que prosseguiremos na nossa
leitura sobre a obra de Eavan Boland e de seu posicionamento como poetisa.
Dando continuidade às reflexões acerca do contexto de produção em que se insere Eavan
Boland, faremos a partir deste momento uma retrospectiva às escritoras e ao papel da figura
feminina na constituição do Estado irlandês. Assim, mulheres como Clair Wills, Nuala Ní
Dhomhnaill e Gerardine Meaney, dentre outras, ao comporem o quadro editorial dos volumes
dedicados à mulher da Field Day Anthology, relembram o fato de que as mulheres na Irlanda
costumeiramente se apropriaram da prática do verso por razões ideológicas ou políticas, o que
implicou no repensar de termos como autoridade e poder e em como tais termos se adequam à
26
Nas palavras de Dawe, “(...) only when a poet has actually separated his/herself from the past and his/her heritage, and has
imaginatively transcended it, can he or she become truly effective, truly him or herself. The process goes against the grain. The
Irish seek to maintain, at the very least, an illusion of being forever of the one place and of the one people through an eternal affair
with ‘the Irish tradition’. Seemingly, to cut across this inherited bond is taken as some kind of betrayal.” (1995, p. 63).
27
No entender de Dawe, “the artistic identity is made, not inherited” (1995, p. 169).
26
condição da mulher no fazer da nação irlandesa. Isso em si tem, por sua vez, relação com o papel
que a escrita exerce no universo da arte, pois essas questões são elaboradas não apenas pelas
autoras cá mencionadas, mas também, por outras mulheres, como a crítica literária Julia Kristeva,
que fala da escrita como atividade sublimatória. Se, tradicionalmente, o espaço da criação tem
tido o predomínio masculino, o grupo de mulheres dos anos 1960 na Irlanda foi o grande
responsável por desestabilizar a crença na hegemonia masculina, bem como em padrões
tradicionais cantados na poesia do país em questão.
Neste sentido, pode-se dizer que se a escrita da mulher no século XIX associa-se muito
mais ao nacionalismo e à política do que ao fazer poético estilístico, é no século XX,
principalmente, a partir da década de 1960 que as questões individuais e subjetivas, relativas à
existência da mulher ganham corpo na poesia. O tema do exílio interior, por exemplo, acompanha
a transposição do discurso oral à página impressa, atribuindo, desta maneira, a relevância das
formas populares de expressão poética e de oralidade. No entanto, a crítica atenta à
impossibilidade de se estabelecer uma compilação histórica e precisa do papel feminino ao longo
dos séculos, por causa da rápida e constante transição da figura feminina em sua produção literária
tanto em gaélico, quanto em inglês, uma vez que os motivos tenham sido com freqüência
circunstanciais.
A década de 1960 na Irlanda fez emergir uma importante ascensão da voz feminina na
poesia. Os principais nomes do movimento nascido nesta década são além de Eavan Boland,
Medbh McGuckian, Paula Meehan, Rita Ann Higgins e Sara Berkeley, Eiléan Ní Chuilleananáin e
Nuala Ní Dhomnaill. A fusão do pertencimento feminino e da constituição da nação é, na poesia
irlandesa, um fato tradicional e notável, que será desestabilizado a partir dessa nova emergência
feminina na poesia, pois se as mulheres existiam até então como objetos de descrição e
comparação à nação, agora, passam a existir como agentes, sujeitos, relatoras de suas próprias
histórias, autoras capazes de contemplar publica e privadamente a existência.
A respeito da emergência da voz feminina na poesia irlandesa, Nuala Ní Dhomhnaill
acredita que a estética poética está além da diferença dos gêneros (masculino e feminino): “um
poema é algo ocasional” (2000: 1292)
28
. Ní Dhomhnaill pensa, também, que há algo de novo na
poesia contemporânea que tenta criar um logos alternativo, capaz de incluir o feminino de
maneira diferente da poesia tradicional, não mais como objeto a ser contemplado, mas como
sujeito, agente, voz enunciadora de seu próprio discurso. Compor essa teia que tenta ir além do
usual e estabelecer uma nova estética implica em traduzir as dificuldades práticas do dia-a-dia
que formam a vida da mulher, perpassando a propriedade das editoras, predominantemente
masculinas. É como se o espaço da criação associar-se-ia com o da desordem, do caos doméstico,
28
“A poem is a sometime thing.” (2000, p.1292).
27
da liberdade possível apenas na interioridade feminina. A figura do poeta-profeta, oriunda do
Romantismo inglês, é, em geral, associada aos homens, como se o ilegítimo – que tem como uma
de suas faces a do poeta-profeta - fosse possivelmente gerado apenas na contra-esfera do
feminino, o masculino, legítimo per se. Para Dhomhnaill, a significação metafísica se desenrola
na transposição do místico, do eterno e do doméstico, geografia do poema na página. É o domínio
da voz que caracteriza, em sua opinião, a nova estética das poetisas que, por sua vez, têm a
herança literária masculina a ecoar em suas produções. Segundo Terente (1996, p.246), a poesia
contemporânea feminina expandiu o conceito engendrado por Heaney do “sentido de lugar”
(“sense of place”), fazendo-o ir além das raízes da terra e da história e transformando a identidade,
fruto de constante reelaboração:
As mulheres explorarão o passado e o presente, enforcarão os exteriores e
interiores de suas vidas, buscarão um lugar para elas, para a poesia, para a
sociedade. Mas, sobretudo, buscarão um lugar para uma voz que teve que
romper com o silêncio secular e imposto.
29
Em relação à falta histórica da escrita poética feminina na Irlanda, Goodby (2000, p. 177)
a justifica a partir do patriarcalismo nacional, da construção da subjetividade hipermasculinizada,
da existência das grandes famílias nos contextos predominantemente católicos, na falta de
assistencialismo social e na escrita masculina sobre as mulheres, que revelam sempre uma figura
feminina passiva. Além disso, Goodby (ibid idem) crê ser a poesia uma escrita elitista e, por isso
mesmo, a última das artes a permitir a presença feminina.
No que concerne a presença feminina delineada pelo universo masculino, deve-se lembrar
que Martin (1980) menciona 201 escritores ao longo de quatro séculos – do XVII ao XX, dos
quais 16 são mulheres. Igualmente notável é que ao falar de Eavan Boland, como pertencente à
geração de 1970, Martin faz referência a outros dezesseis poetas importantes, dos quais uma,
Eilleán Ní Chuilleanáin, é mulher. Vale lembrar que Thomas Kinsella, enquanto editor de The
New Oxford Book of Irish Verse, optou por não incluir mulheres, apesar de aí já ser
razoavelmente forte a presença feminina na poesia anglo-irlandesa. Além disso, Robert Garratt
(1986) oculta as vozes femininas em seu exame da literatura irlandesa e Johnston (1985) faz
menção às mulheres em apenas três de suas 292 páginas críticas. Ní Dhomhnaill também associa
o fazer de antologias poéticas a formas de validar uma tradição, consolidá-la. A esse respeito e à
exclusão da voz feminina, Dhomhnaill (2000:1291 e 1996) denuncia a falta de bom senso regente
da visão masculina de mundo, responsável pela marginalização da voz feminina.
29
“Lás mujeres explorarán el pasado y el presente, enforcarán los exteriores y los interiores de sus vidas, buscarán un lugar para
ellas, para la poesia, para la sociedad. Pero, sobre todo, buscarán un lugar para una voz que tuvo que romper un silencio secular e
impuesto”. (1996, p. 246).
28
Por isso, a escrita feminina na Irlanda dos anos 1980 torna-se um desafio ao establishment
literário, dominado pela voz masculina. De acordo com Goodby: “a emergência de poetisas,
então, desafia provavelmente a principal base na qual muita da poesia irlandesa está fundada.”
(2000, p. 228)
30
. Já na esfera sócio-política, devemos atentar as ações como a do Women’s
Education Bureau, que em 1980 organizou grupos de escrita para mulheres, ação que acabou por
se alastrar pelo país e impulsionar a produção literária nacional de maneira nova.
Isso significa que à recorrente associação da mulher à nação na poesia irlandesa e daquela
como objeto de contemplação, assistiremos a partir destas autoras da segunda metade do século
XX a uma revisão dessa relação tradicional entre mulher e nação, a partir de propostas
estratégicas: a separatista e a subversiva. Separar-se, desvincular-se de uma tradição é em si uma
condição primeira no entendimento de alguns autores, como Thomas Kinsella e Eavan Boland, ao
proclamarem uma “orfandade”, relativa à tradição. Assim, deve-se ter conhecimento de olhares
críticos como o de Longley (1994b), que vê uma falha no trabalho de Boland: a sua incapacidade
em questionar a noção tradicional de nação. Tal crítica é compreensível, na medida em que
percebemos a tendência que a poesia feminina a partir de então tem tanto em reforçar a visão
patriarcal de que as mulheres escrevem melhor sobre o ambiente doméstico, quanto o fato de tais
escritoras conseguirem transformar a experiência privada da mulher em objeto de debate público
irlandês. Assim, Goodby nos adverte:
Se os corpos e espaços femininos já são parte do discurso público promovido
pela Igreja e pelo estado, ao representar experiências tradicionalmente privadas de uma
maneira realista, só podem conter uma carga subversiva limitada. Ainda assim, a
descoberta da experiência feminina enquanto um valor em si mesmo por Boland foi uma
grande ruptura na poesia irlandesa. (2000, p. 232, 233).
Disso decorre a idéia de que se em Boland, como na maioria de suas contemporâneas
irlandesas, o desvincular-se concretiza-se apenas na imaginação, a subversão à tradição reúne a
experiência da escrita feminina da geração de que aqui estamos a tratar.
Ainda quanto à questão da formação e continuidade de uma tradição literária e poética
irlandesa, vale lembrar aquilo que os Revisionistas há muito ditaram: não se trata de relacionar
literatura e história, literatura e política, mas em como fazê-lo (LONGLEY, 1994, p. 37). Na
verdade, o diálogo revisionista estabelecido entre a tradição (uma particularidade politicamente
universal) e o ato da escrita, capaz de ir além das fronteiras do feminino ou de estabelecer
fronteiras estéticas, parece central à compreensão da leitura da obra de Eavan Boland.
Vale ressaltar, portanto, que há uma notável contradição que se faz presente na obra da
autora, pois, se por um lado, Boland vê o espaço da poesia como aquele do sagrado, por outro, ela
30
“The emergence of women poets then challenges perhaps the major basis on which much Irish poetry is founded.”(2000, p. 228).
29
admite a inevitabilidade da discussão da ausência/presença da mulher na cultura irlandesa (1999,
p. 302). Neste mesmo sentido, a poetisa explica a influência que o trabalho de Sylvia Plath
exerceu em sua formação poética e escrita: era como se os versos de Plath tivessem-na
influenciado a também escrever algo novo, trazer mudanças à literatura irlandesa,
especificamente, aquilo que estava até então ausente, que era “uma forte tradição da poesia sobre
a natureza.” (1999, p. 297). Para Fogarty (1999, p. 256), “tanto em sua poesia, quanto em sua obra
crítica, Boland consistentemente tentou evitar concordar com qualquer forma de política feminista
e resistiu especificamente ao falso consolo advindo de noções ingênuas e descuidadas acerca da
comunidade e de irmadade”.
31
Na “Introdução” escrita ao Colby Quarterly de 1999, dedicado a Eavan Boland, Jody
Allen-Randolph sustenta que foi justamente o encontro com o doméstico um indício fundamental
ao repensar do posicionamento tradicional do intelectual irlandês, tão responsável pela recusa da
figura feminina e, assim, também, aspecto central à redefinição dos papéis de gênero em
publicações crítico-literárias. Para Gelpi (1999), Boland sempre teve a preocupação em conjugar a
identidade poética com a questão da nacionalidade, redefinindo, no entanto, a herança de
Adrienne Rich que, se para Gelpi, tinha uma política revolucionária, em Boland, tal política far-
se-ia evolucionária (1999, 213) no sentido de que o feminismo estaria ausente em sua poética,
enquanto presença política, segundo a própria Eavan Boland. No entanto, devemos saber que isso
tão somente acentua a tentativa de Boland em diferenciar o espaço da poesia do espaço do
político, tarefa que se verifica em vão
32
e discursivamente contraditória, no caso da poetisa em
questão, pois se por um lado, ela se desvincula pronunciadamente do feminismo, por outro, tem-
no como base para suas discussões de pertencimento enquanto poeta. Isso se deve, sobretudo, à
inevitável herança do grupo de poetas do norte, influentes, principalmente a partir da década de
1960 e que abarcaram nomes como Brendan Kennelly, Derek Mahon, Seamus Heaney e Michael
Longley, conforme anteriormente apontado, e que escreveram muito em resposta aos distúrbios
que assolavam a região a partir desta época (“the troubles”). Boland em entrevista a Jody Allen
Randolph (1999), admite a presença dessas vozes como fundamental à continuidade de um
sentido de pertencimento irlandês (“Irishness”). Em outras palavras, tais poetas escreveram muito
em resposta as problemáticas advindas da injustiça social:
“apesar de todas as resoluções sobre
independência e o pertencimento irlandês, uma parcela da população da ilha era vítima de injustiça e se
31
No original, “Both in her poetry and her criticism, Boland has consistently avoided co-optation by any form of feminist politics
and has especially resisted the false consolation offered by unexamined and naive notions of community and sisterhood.” (1999,
p. 256).
32
Nas palavras de Gelpi, “(…) where Rich´s politics were revolutionary, Boland´s were evolutionary. She even made a distinction
between being a feminist and being a poet that Rich would unhesitatingly reject.” (1999, p. 213-214).
30
sentia excluída do significado de tais resoluções. (...) claro, a população católica do Norte.” (ibid idem, p.
295)
33
.
Tal posicionamento perante o contexto de conflito originou os escritos como os de John
Montague e Thomas Kinsella na década de 1950, bem como os de Richard Murphy e, sobretudo,
aqueles produzidos pelas mulheres, a partir de 1970. Eiléan Ní Chuilleanáin escreve Acts and
Monuments em 1972 e Site of Ambush em 1975, assim como Nuala Ní Dohmhnaill, que escreve
predominantemente em gaélico, contribuindo, desta maneira, ao que viria a ser conhecido como
mais um Renascimento Irlandês (Irish Revival) a partir de 1980. Medbh McGuckian é outra
autora do norte (Belfast) que se sobressai na poesia da década de 1980, juntamente com Eavan
Boland, que atualmente integra o quadro curricular dos programas escolares nacionais da Irlanda.
Para Matthews (1997), a poesia de Eavan Boland e Medbh McGuckian responde à
situação do Norte ao ir além da questão do conflito político e atentar à prática da escrita feminina
e da natureza como metáfora ao processo criativo. Então, podemos entender que se Heaney,
sobretudo, e seus colegas escreveram sobre os efeitos da modernidade e do cosmopolitismo que
acometeram o sul e o norte da Irlanda na década de 1960, bem como das relações entre política,
história e literatura, as poetisas como Boland, McGuckian e Ni Chuilleanain acabam por atribuir à
poesia um valor transhistórico e transcultural – aqui parafraseando Matthews, que diz que a
importância da poesia está em sua transhistoricidade e transculturalidade (1997, p.15), pois cabe a
ela (poesia) projetar a subjetividade pessoal à esfera político-nacional. Na opinião do crítico,
apesar de a poesia irlandesa pós-1969 abrir espaço à questões históricas e ao problema da
violência, as respostas literárias, enquanto relações de negociação e reavaliação da sociedade
34
,
constituem-se em poéticas de fragmentação. Paradoxalmente, podemos ler essa noção de
fragmentação como a fonte do discurso amplo e, por isso mesmo, mais complexo e completo do
universo feminino retratado por autoras como Boland, McGuckian, Ní Chuilleanáin e Ní
Dohmhnaill, que buscam escrever uma resposta à visão crítica sobre a política e a história,
conforme apresentada por seus colegas, poetas como Heaney, Mahon e Longley. Essa resposta
relacionar-se-ia ao alcance de uma lírica que transcendesse o valor estético modernista ao dialogar
com a tradição e com a tradicional discussão política, pois continuaria a idéia de um “sentido de
lugar” (o “sense of place”, de que fala Heaney) na vida privada, doméstica e interior das
mulheres, retratadas publicamente na poesia. Segundo Goodby (2000), o crescimento da poesia
irlandesa a partir da década de 1960 faz-se pela tônica de preocupações comuns, como a
modernização, a violência e a identidade. O autor compara a poesia irlandesa à produzida nos
33
No original em inglês, “despite all the statements about independence, and Irishness, a proportion of people on the island were
victims of injustice and felt themselves excluded from the meaning of those statements. I mean, of course, the Catholic population
in the North.” (1999, p. 295).
34
Segundo Matthews, “A Poesia é o espaço onde relações conscientes e inconscientes em relação à história interagem e são
questionadas e transformadas.” “Poetry is a place where conscious and unconscious relations towards history interact and are
questioned and transformed.” (1997, p. 25).
31
Estados Unidos da América e na Inglaterra, mediante as quais, ela se mostra conservadora,
igualmente preocupada com a questão da identidade e um tanto obsecada pelo passado. Neste
sentido, o crítico sustenta que a emergência das abordagens teóricas mais recentes, como o
feminismo, o marxismo, o pós-estruturalismo e o pós-colonialismo, em muito se adequaram ao
contexto irlandês de produção literária, que imergiu na questão da identidade. Além disso, o que
diferenciaria a poesia da geração de 1970 e a de sua predecessora seria o tipo de relação que
ambas mantêm entre a voz pública, a enunciação da problemática política e o próprio eu. Segundo
Goodby:
(...) um desafio geral as fronteiras do que é adequado ou aceitável está por trás de muito
do que há de melhor da poesia irlandesa da década de 1970 em diante. Na República,
isso se tornou ainda mais evidente com o aparecimento de uma voz feminina poderosa e
distinta na poesia. (2000, p. 9).
35
Da vila à globalização, fez-se uma Irlanda capaz de observar a diversidade da experiência
humana e é tal possibilidade de se preocupar com a diversidade e com o global que será retratada
na poesia irlandesa deste novo século, segundo Dorgan (1996, p. 157). Consequentemente, a
interrelação inevitável da poesia e da política vem à tona. McDonald (2001) discorre sobre a
associação da poesia, da identidade e da violência no caso da Irlanda do Norte e chega à
conclusão de que há uma aproximação inevitável entre elas (poesia, identidade e violência). O
autor também afirma que “pensar sobre literatura nos ajuda a pensar sobre política.” (2001, p.4).
Devemos perceber também a relevância das especificidades inerentes ao discurso poético e que se
torna evidente na leitura mais minuciosa que se faz quando do estudo particular de autores. Por
exemplo, quando W.H.Auden escreve o poema “In memory of W.B.Yeats”, o verso ‘For poetry
makes nothing happen: it survives’, ele articula uma reflexão sobre o papel da poesia, a qual é
retomada por R.T.Smith – em seu artigo sobre Boland – que nos lembra da diferença que Robert
Frost certa vez estabeleceu entre Política e Poesia, ao dizer que “política é sobre injustiça e poesia
é sobre mágoa.” (1993, p. 96).
Passemos, a partir deste momento, ao exame da fortuna crítica de Eavan Boland, a fim de
que, posteriormente, possamos estabelecer uma leitura que busque compreender como a sua
poética, a partir da esfera pública, consegue atingir os graus privados da intimidade da mulher e
da poetisa, através do recurso da ekphrase, que hipoteticamente para nós permitirá maior
acomodação comunicativa.
No que tange as publicações realizadas até hoje das obras da poetisa e de sua fortuna
crítica, devemos ressaltar a publicação trazida ao mercado pela Norton em 1997, cujo título é An
Origin Like Water. Collected Poems 1967-1987, que reúne cinco de seus livros (New
35
No original, “(…) a general challenging of the boundaries of what is proper or acceptable lies behind much of the best Irish poetry
from the late 1970s onwards. In the Republic this was most evident in the emergence of a distinct and powerful women’s voice in
poetry.”(2000, p. 9).
32
Territory, The War Horse, In Her Own Image, Night Feed e The Journey). De maneira
semelhante, em 2005, a Carcanet Press publica Eavan Boland New Collected Poems, que passou
a incluir Outside History, In A Time Of Violence e Code. Em relação à crítica, além da edição
completa da Irish University Review de 1993 dedicada à obra de Boland, devemos lembrar a
Colby Quarterly de dezembro de 1999, igualmente, também, em homenagem à autora. Os
trabalhos de Villar (2007) e Hagen e Zelman (2004) são as duas referências seminais até então
que condizem com estudos críticos aprofundados da obra da autora.
Para Eavan Boland, os eixos centrais de sua poesia são a condição feminina e o espaço
doméstico, como fontes de transformação da enunciação poética irlandesa tradicional: são a partir
de tais esferas (o feminino e o doméstico) que renascerá a poesia irlandesa escrita por mulheres.
Esse posicionamento se estabelece de maneira mais incisiva e explícita em seus ensaios críticos e
entrevistas, a partir dos quais temos a noção de que os territórios da poesia e da política são
distintos, embora seus poemas assinalem uma contradição sobre isso. Assim, em seu livro Object
lessons: The Life Of The Woman And The Poet In Our Time, de 1995, a autora discute a
política da linguagem como reapropriação constante do espaço do sujeito. Desta maneira, se a
figura da mulher sempre foi cantada como o objeto da representação poética na tradição literária
irlandesa, para Boland, tal figura deve iniciar a ocupação do espaço do sujeito da história, como se
o papel de musa às mulheres contemporâneas irlandesas não mais se efetivasse. A esse respeito, a
poetisa declara:
Passei a acreditar que a poetisa é uma figura emblemática na poesia atual da mesma
maneira que os poetas modernistas e românticos o foram. E pelas mesmas razões (…)
ela internaliza as marcas e verdades da poesia em um momento particular. O seu
projeto, portanto, não é nem marginal, nem especialista. É um projeto que se preocupa
com toda a poesia, tudo o que leva `a poesia no passado e aos seus caminhos futuros.
36
Para a autora, o sofrimento causado pela condição de deslocamento e da identidade
fragmentada (por questões de gênero, nacionalidade, regionalidade e religiosidade), bem como o
envolvimento no silêncio coletivo, fruto de anos de censura cultural no país, para além da questão
de gênero (a escrita de mulheres), jamais garantirão o sucesso na poesia. R.T.Smith (op. cit)
afirma que Boland é uma profeta capaz de ir além dos seus ideais políticos de injustiça e
mergulhar na aflição subjetiva e na tristeza. Autora de onze livros de poesia, dois de ensaios e um
sobre a vida de W.B.Yeats, atualmente divide o seu tempo entre os E.U.A. e a Irlanda. A sua
primeira antologia poética, 23 Poems, surgiu em 1962, seguida logo adiante, 1967, por New
Territory. Ambos já falam do universo feminino. Na verdade, há um consenso entre os críticos
de Boland a respeito de como a sua obra se articula no sentido de formular reflexões acerca do
36
“I have come to believe that the woman poet is an emblematic figure in poetry now in the same way the modernist and romantic
poets once were. And for the same reasons (…) she internalizes the stresses and truths of poetry at a particular moment. Her
project therefore is neither marginal nor specialist. It is a project which concerns all of poetry, all that leads into it in the past and
everywhere it is going in the future.”(1995, p. 235).
33
papel da arte e do fazer artístico, bem como o feminismo, a feminilidade, o pertencimento irlandês
e a construção da nação. Mahon (1993) compartilha com McGuckian (2000) o discernimento
acerca da influência de poetas românticos até William Butler Yeats na obra de Eavan Boland.
Como um complemento a este discurso da influência, que faz da obra da poetisa dialógica com a
tradição, ainda que no sentido de ruptura, Brown (1993) aponta ao fato de que Boland critica a
visão Yeatsiana de unidade nacional. Tal atitude é não apenas explicitamente poética, ao escrever
poemas que retratam imagens do conflito irlandês em seu livro The War Horse, surgido oito anos
após o New Territory de 1967, mas também, crítica, por meio de artigos, um posicionamento
paroquialista, como Patrick Kavanagh o formulara, ou seja, de uma unidade comunitária, sem
divergências e dissenções. Tais escritos revelam o comprometimento poético de Boland em
relação à ruptura com a tradição a que pertence: para a poetisa, a única união plausível seria o
próprio desmembramento do ser, da individualidade. Também, o afastamento da noção romântica
e alienada do poeta-profeta traz um distanciamento apenas necessário ao relato apaixonado e
comprometido da poesia. The War Horse lida com imagens da violência social e,
particularmente, também, com os efeitos de sentido da violência ao imaginário feminino, ou seja,
à mulher na sua individualidade, na sua experiência pessoal íntima, que viria a ser a tônica que lhe
garantiu o sucesso em obras posteriores, tais como o seu mais recente volume poético, Domestic
Violence, de 2007. Um dos mais notáveis poemas de The War Horse é “The Famine Roads”,
que retoma a associação do feminino à nação irlandesa, ao falar sobre a geografia tão comum das
“estradas da fome” ao tratar dos caminhos duros porque passavam as populações na época da
Grande Fome e, particularmente, na conseqüência mais direta desse acontecimento à população
feminina: a esterilidade.
Para Kelly (1993), é apenas a partir de In Her Own Image de 1980, que Boland teria
conseguido romper definitivamente com o desconhecimento acerca do sofrimento feminino, ao
anunciá-lo. Já Allen-Randolph (1993) sustenta a idéia mesma de que The War Horse é um
volume de transição, a um só tempo em que se movimenta da esfera pública à privada, ou seja,
revela como os diferentes tipos de violência (interna e externa, social e subjetiva) acontecem. Para
Allen-Randolph, se The War Horse revela as imagens da mulher partida, que transita entre os
seus papéis tradicional e poético, In Her Own Image condensa argumentos fundamentais aos
espaços da mulher na literatura e na cultura. Além disso, o livro seguinte, Night Feed, de 1982,
continua o mergulho na interioridade pessoal, como se a revelação das experiências pessoais
servisse de metáfora ao mundo da experiência social. Neste sentido, inversamente, também, a
presença da tradição da pintura através da menção de artistas plásticos como Jean Baptiste-
Siméon Chardin, Edgar Degas, Pierre Auguste Renoir e Jan Van Eyck situa o pertencimento do
feminino na esfera social, a mulher na sua privacidade interior, vista publicamente. No caso da
34
poesia de Boland, a mulher retratada a partir de um olhar cosmopolita (pois abrange a esfera da
pintura tradicional européia), acolhido no espaço do subúrbio, que é de onde se origina a voz
enunciadora da poetisa. Assiste-se, então, à revelação da interioridade, da esfera privada da
mulher no espaço público da poesia e das artes visuais em diálogo, estabelecendo-se, então, uma
comunicação intermediática hipoteticamente mais completa. Vale lembrar aqui que a questão do
controle artístico, que surge em Night Feed, reaparece em The Journey,de 1987 e Outside
History, de 1990.
A preocupação com a questão da identidade entre a escrita e a subjetividade, a poetisa e o
sujeito representado poeticamente, então, é intensa no livro The Journey, de tal maneira que
Augustine Martin chega a declarar que tal livro é “busca e visão” (“quest and vision”, 1993, p.
75). A poetisa, inserida na tradição “oca” – Boland, como Thomas Kinsella, fala de uma
“orfandade literária” – ao mesmo tempo em que, por meio da escrita, essa poetisa desenha o eu
feminino, a mulher no ambiente doméstico, com todo o peso da história irlandesa, emigrante. Já o
viés explicitamente político do sujeito retratado em seus poemas é muito criticado por Reizbaum
(1993), pois para a crítica há em Boland um movimento contraditoriamente ambíguo, uma vez
que a poetisa a todo o momento acusa o cânone da exclusão feminina e ajuda a perpetuar a
imagem da mulher como vítima do sistema – Reizbaum cita o poema “The Achill Woman”, além
da série de poemas descritivos da mulher em seu livro In Her Own Image. Cabe ressaltar que
esta obra fora publicada pela Arlen House, uma editora que viria a crescer enquanto representante
do público feminino – o próprio livro de Boland traz críticas à figura feminina como objeto de
representação ao longo da tradição poética irlandesa. Para Reizbaum (1993) a reflexão sobre a
marginalização da mulher, enquanto produto da própria conscientização do ato poético, torna-se
um emblema, mais incisivo que a figura da própria mulher. Ou seja, à poesia cabe impropriamente
a reflexão sobre o espaço ocupado e o papel exercido pela mulher, em detrimento da observação
da particularidade do feminino. Assim, a crítica aponta a importância da relação ética necessária,
para Eavan Boland, entre imaginação e imagem: “construtores de imagens são também inventores
de mitos e seus sujeitos são freqüentemente tidos como objetos.” (1993, p. 104).
Deve-se afirmar que a representação da mulher, a retomada e construção da história e da
mitologia são temas recorrentes no livro Outside History selected poems 1980-1990, publicado
pela Norton em 1990, e que é dividido em três sessões: “Object Lessons”, “Outside History: A
Sequence” e “Distances”. Se em Night Feed, a poetisa já fala do contentamento da vida feminina,
a maternidade, e, também, da reação feminina ao fenômeno do envelhecimento, bem como do
crescimento e amadurecimento (em poemas como “The Woman Changes Her Skin” e “The
Woman Turns Herself Into a Fish”), em The Journey, há a dimensão do nacional na imagem da
mulher. É, finalmente, em Outside History, no intenso diálogo completo entre as artes, na
35
intertextualidade histórica e mítica com a tradição, que a preocupação com a representação da
mulher encontrará uma ressonância na poesia, que é da esfera pública da comunicação, através,
sobretudo das recorrentes ekphrases que aparecem ao longo dos poemas aí apresentados. Neste
sentido, In A Time of Violence, publicado em 1994, ao questionar o valor da história em poemas
como “In Which The Ancient History I Learn Is Not My Own” e “Anna Liffey”, apresenta-se já
como um livro intensamente imagético, como nos poemas “This Moment” e “A Woman Painted
On a Leaf”. Em seguida, The Lost Land, publicado pela Norton em 1998, em suas duas partes,
`Colony´ e ´The Lost Land`, traz em discussão a condição nacional da Irlanda enquanto espaço
colonial e, também, a questão da linguagem, sendo dois dos mais célebres poemas, “The Mother
Tongue” e “A Habitable Grief”. O poema que dá título à obra, “The Lost Land”, encontra os
espaços do público e do privado entrecruzados. Nesta mesma direção – de entrecruzamento entre
o público e o privado – a Norton publica em 2001 a obra Against Love Poetry, que Boland
dedica a Kevin Casey, seu marido, e que é disposto em duas partes, “Marriage” e “Code”. Temos
aí, novamente, assuntos relacionados à subjetividade e à sociedade de maneira integrada, como no
poema “The Rooms of Exile”. Vale lembrar aqui que no mesmo ano a Carcanet Press apresenta
uma outra versão de Against Love Poetry sob o título de Code, com algumas sutis alterações.
Ao expor a subjetividade no lirismo poético, Eavan Boland é capaz de transitar no limiar
das artes, Poesia e Pintura, discutindo-as, colocando-as em relevo. Assim, verifica-se a presença
de três temas principais na obra da poetisa: a nação, a mulher e o fazer artístico. O resgate do
passado é bem além de um mero eco, pois trata da compreensão do papel exercido pela tradição
na escrita irlandesa e no diálogo inevitável que o pertencimento literário exige com a tradição e,
no caso de alguns escritores como Boland, tal diálogo trava-se com outras artes, a arte da
representação pictórica, enquanto recurso estilístico, chave na poesia de Boland. Este trabalho
observará os efeitos de sentido dessa comunicação intermediática como foco de uma comunicação
mais completa e, por isso mesmo, menos inviável como expressão do humano.
Podemos afirmar que o caráter de descontinuidade subjetiva e individual, ou seja, do
sujeito retratado nos poemas, a mulher em sua múltipla capacidade comunicativa e a mulher como
cidadã irlandesa a partir da segunda metade do século XX, em Eavan Boland dá-se pela sucessão
de rupturas tanto temáticas, quanto estilísticas no contexto de produção poética da Irlanda
contemporânea. Nos ensaios, bem como em seus poemas, na totalidade de seu processo
elocutório, Boland faz questão de explicitamente se posicionar como uma voz pertencente a uma
tradição, nos sentidos ético e estético. Isso quer dizer que, apesar de assumir um vácuo literário
precedente a sua própria produção, ao falar de “orfandade literária”
Se eu quisesse estar naquelas ruas de trás, falar sobre aquelas conspirações, eu teria de
ser homem. Afinal, o homem era o princípio ativo, a suscitar admiração. E eu era uma
36
garota adolescente, procurando não apenas admirar, mas pertencer (...) Com que figura
feminina eu poderia me identificar? Não havia mulheres naquelas ruas de trás.
37
a maneira de Thomas Kinsella, e admitir que “ao me sentar para escrever, tenho um estranho
sentido de identidade arruinada e de origem incerta”
38
, Eavan Boland admite a necessidade de
agrupamento de idéias e continuidade das mesmas, seja pela elaboração de temas concernentes ao
universo feminino, seja no compartilhar de reflexões que se dão no âmbito da poesia e do
pertencimento tanto feminino, quanto nacional: “Eu pertenceria a mim mesma e ao meu país,
desde que eu conseguisse traduzir esse mesmo eu naquele mesmo país.”
39
. Assim, lembrar
significa remeter-se à tradição descontínua, pois falar de tradição literária irlandesa é
demasiadamente complexo por, no mínimo, sua ambigüidade reinante entre Yeats e Joyce, e as
condições de elocução que formam essa tradição e, assim, também, “esquecê-las” no refazer
constante de tais condições, agora em outros tempos. Vale lembrar que a geração de artistas da
década de 1950 procurou se distanciar da geração anterior de escritores tão envolvidos com
assuntos políticos do nacionalismo. Para McHugh e Harmon, “os novos escritores queriam se
consagrar não como escritores irlandeses, mas apenas como escritores” (1982, p. 303).
Ironicamente, a auto-descoberta do pertencimento recupera o passado e se inscreve no olhar das
influências recebidas, em uma espécie de “sentido de história e de herança” (ibid idem, p. 305).
Portanto, a fuga da tradição é impossível e eis um dos pontos de convergência no trabalho de
Boland: por toda a sua obra, ouvimos ecos de outras vozes irlandesas, como a de dois dos poetas
que mais marcadamente a influenciaram, enquanto pensadores da tradição, William Butler Yeats e
Patrick Kavanagh. Para Boland, “Yeats criara uma literatura. Kavanagh fizera o único e ousado
ato de protesto que direcionou tudo o que veio a seguir.”
40
Se para Harmon, na sua “Introduction” ao Irish Poetry After Yeats – Seven Poets, “a
poesia irlandesa no todo é escrita aos ouvidos, ao invés dos olhos”(1974, p. 12), para Boland, a
poesia se torna um ícone à questão da representação pictórica da semântica poética e, desta
maneira, passa a ser a fonte de uma das mais notáveis rupturas, uma vez que os ícones são na
ordem hierárquica da semântica, desconstruídos pela prevalência das imagens que os formam.
Ao romper, então, com a tradição das palavras ouvidas, Boland prioriza os signos visuais
que se tornam imagens descritas na totalidade de sua obra. Para a autora, “os sistemas imagéticos
na poesia (...) são complexos, referenciais e históricos.” (1995, p. 209), o que envolve a arte da
37
No ensaio ‘In Search of a Nation’, presente no livro Object Lessons. The Life of the Woman And The Poet In Our Time, Eavan
Boland declara “If I wanted to be in those back streets, to speak in those conspiracies, I would have to be male. The male, after all,
was an active principle, inviting admiration. And I was a teenage girl, looking not just to admire but to belong. (…) What female
figure was there to identify with? There were no women in those back streets.” (1995, p. 65, 66).
38
“When I sit down to write, I have an uncanny sense of spoiled identity and uncertain origin.” (1995, p. 105).
39
“I belonged to myself and to my country insofar as I could translate that self into that country.” (1995, p. 70).
40
No original, “Yeats had made a literature. Kavanagh had made the single, daring act of protest which pointed the way forward.”
(Boland, 1995, p. 70).
37
expressão. Esta é a lembrança constante da inevitável inadequação comunicativa e, portanto, da
busca eterna pela completude. O objeto que é descrito em um ato de expressão poética compõe
uma estética que implica em uma ética. Em outras palavras, para Boland, o ofício da poesia
acontece tão somente na fusão do nacional e do feminino, no compromisso ético da discussão
desses dois elementos. Assim, Poesia e Política interpenetram-se em suas indissociabilidades,
possibilitando a compreensão humana em seus níveis subjetivo e social.
Podemos dizer que Boland se volta ao contexto de inserção do poeta irlandês como
alguém que se situa na luta entre o pertencer a uma tradição que recupera o Romantismo, na idéia
do poeta-profeta e que já tenha atingido a modernidade pós-Yeats e, também, o ter que ir além da
condição de pertencimento público no trato de questões políticas e seja capaz de mergulhar na
intimidade da escrita individual. O conflito entre o pertencer à tradição poética yeatsiana e o ir
além liricamente, por meio da voz própria é o espaço em que se situa a poesia de Eavan Boland,
que nos recorda que “nenhum poeta, seja jovem ou mal quisto, escreve sozinho. É um ato
relacionado”
41
, ainda que “aquilo a que chamamos de lugar seja realmente apenas um detalhe
disso, que entendemos como parte de nós mesmos”
42
.
Atestemos, então, a consideração de Matthews sobre a poética da autora:
A poesia ganha um status exemplar para Boland que, ao invés de traduzir o sofrimento
sectário de sua época, mantém-se remota a tal condição. Em resposta a essa crítica e
impelida a se posicionar e ter um interesse diferenciado, por uma forte convicção
feminista, a própria poesia de Boland situa-se largamente fora da problemática que
convencionalmente tem sido trabalhada por poetas (homens)...
43
.
Desta maneira, se para Heaney a relação entre história e experiência pessoal é central à
articulação da escrita irlandesa, para Boland, a fusão de ambas compõe aquilo que é inerente à
mulher, a experiência dolorosa da escrita e do pertencimento. Assim, nossa hipótese é a de que
para Boland, estabelecer a própria voz na continuidade da tradição poética irlandesa significa ir
além de questões políticas, ainda que sem desvinculá-las
44
, ao enunciar individualmente a
existência. Ou seja, a poetisa, ao se voltar à razões mais pertencentes ao universo da escrita e da
mulher, inicia a trajetória entre os mundos público e privado, em um processo de intermediação
que alcança a compreensão da subjetividade interior da mulher e da escritora.
Assim, a primeira parte deste trabalho, “Visualidade, Olhar e Escrita: Na Esfera do
Poético – um exemplo irlandês”, ater-se-á a apresentação de conceitos-chave à compreensão dos
41
“No poet, however young or disaffected, writes alone. It is a connected act.” (Boland, 1995, p. 103).
42
“(…) that what we call place is really only that detail of it which we understand to be ourselves.” (ibid idem, p. 155).
43
No original, “Poetry gains an exemplary status for Boland through its remoteness from the actualities of sectarian suffering, rather
than through its translation of them into its own form. Corresponding to this criticism, and impelled by a strong feminist
conviction of difference in position and interest, Boland’s own poetry is placed largely outside of the problematic which
conventionally has been dealt with by male poets…”(1997, p. 37).
44
Steven Matthews diz que para Boland, bem como para vários outros poetas do Norte e do Sul, “a história recai intensamente sobre
o presente – mesmo quando é uma história impigida um tanto diferentemente.”(1997, p.42).
38
estudos intermediáticos aplicados à leitura de Eavan Boland: definições como a de ekphrase, o
olhar e a comunicação poética. Os comentários críticos sobre esses conceitos aí apresentados e cá
eleitos como fundamentais à leitura que se fará de Boland acompanharão breves comentários
remissivos a exemplos poéticos em que ocorrem tais incidências e, a partir dos quais, percebemos
como a poética de Boland encaminha-se do público ao privado sem, contudo, deixar de fazer o
movimento inverso, ou seja, a partir do privado, alcançar o público.
A seguir, a segunda parte, A Descoberta de Si, desdobra-se em dois momentos, “Da
Palavra à Imagem” e “Do Quadro à Palavra”, a fim de examinar como se dão os tipos de
ekphrases diferentes na obra de Boland e quais os seus efeitos, isto é, como a intermedialidade
confere à palavra poética um valor comunicativo mais amplo e, portanto, mais eficaz. Portanto,
“Da Palavra à Retórica da Imagem”, a partir de viagens a geografias do exílio expostas nos
poemas “O Rio”, “Distâncias”, “Lar” e “Exílio! Exílio”, torna pública a mais íntima distância, a
de si mesmo. Esse movimento se inverte no momento seguinte desta parte, “Do Quadro à
Palavra”, quando o momento público da pintura revela-se subjetiva e liricamente nos poemas “Do
Quadro De Volta do Mercado de Chardin”, “A Mulher Na Cozinha” e “As Lavadeiras de Degas”,
levando-nos a reflexões sobre os graus de remetência (explícita e implícita) no diálogo entre as
artes e as repercussões metafóricas do mesmo.
Neste sentido, as análises poéticas aqui elaboradas, bem como o exercício interpretativo
realizado durante o processo das traduções poéticas, tarefa inédita relativa à obra de Eavan Boland
e que aqui acompanham os originais, além de trazerem ao público de língua portuguesa o acesso a
uma das mais aclamadas autoras contemporâneas da literatura irlandesa, visam compreender o
caráter plural e, por isso mesmo, mais completo e viável do universo comunicativo intermediático.
Cabe dizer que apesar da presença de uma textura musical poética na obra de Eavan Boland, a
leitura ekphrástica de que se vale este trabalho soprepõe a fundamentação imagética à musical, a
fim de se obter uma compreensão da ekhprase como um recurso para além da percepção visual
poética usual, conforme a fundamentação teórica adotada aqui (Arbex; Heffernan; Hollander;
Homem; Mitchell).
Concluímos, portanto, que os movimentos entre as esferas pública e privada da existência
revelam o encontro do “eu” com o seu auto-retrato – metonímia da obra da artista – constituído de
discursos tradicionais - a pintura européia e a poesia irlandesa que lhe serviu de formação - e
múltiplos - no sentido tanto de existência humana, a mulher, a mãe, a artista, quanto no de tipos de
arte.
39
Parte I
Visualidade, Olhar e Escrita: na eesfera do poético – um exemplo irlandês:
“O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!)
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem do desaprender.”
(Fernando Pessoa. Nova Aguillar, p.217).
Se, por um lado, a questão das especificidades dos gêneros literários (prosa, poesia,
drama) e de suas respectivas características técnicas, bem como as diferenças entre geografias e
tendências de expressão artística, ainda que literárias, seja, por ora, posta de lado, ao assumirmos
que
quanto mais a gente reflete sobre a significação da arte em geral, tanto mais certamente
surge por si mesma a hipótese de que a unidade fundamental das artes, frequentemente
afirmada, reside não tanto nos paralelos entre seus respectivos elementos ou nas
analogias entre suas técnicas, quanto na singularidade de sua importância característica,
o significado da significação em relação a cada uma e a qualquer delas. (LANGER,
1980, p. 25).
por outro lado, a discussão sobre a interrelação das partes que compõem o recorte artístico que se
pretende compreender merece aqui uma observação atenciosa. O crítico de arte e psicólogo da
percepção Arnheim (1974) pensa o ato artístico como mais uma maneira de encontrar (ou, no
mínimo, lançar-se em busca de) equilíbrio devemos acrescentar a essa idéia a possibilidade de
ser esse equilíbrio a própria desordem. Arnheim, ao comparar o princípio físico da entropia e a
sua pressuposição de sistemas isolados com a psicologia freudiana, que lê o desequilíbrio como
fonte do princípio do prazer, aproxima o desejo da criação à tentativa de comunicar um tema e,
nesse sentido, afirma que “o significado da obra emerge da interação das forças ativantes e
equilibradoras.” (1986, p. 29). Assim, sabe-se por Mitchell (1995) que os estudos sobre cultura
são indissociáveis das questões relativas à representação (MITCHELL, 1995). Portanto, pensar a
literatura e as artes pictóricas hoje implica redefinir posicionamentos que se associam a poder,
ética e conhecimento e que são plausíveis a partir de subjetividades (POLLOCK, 1995). Segundo
Pollock (1995), a visão só existe com base em alguma subjetividade, da mesma maneira que para
40
Louis Althusser, só há ideologia, a medida em que há subjetividade
45
. Esta fonte de significado,
por sua vez, conjuga-se na dinâmica da esfera social da existência e de seus efeitos perceptivos,
ainda que relativos à cognição, no nível interior do ser. Assim, este capítulo pretende refletir sobre
a relação dialógica entre as artes pictórica e poética e, sobretudo, compreender como se dá a
transição entre as esferas pública e privada da existência na poesia que aqui se estuda, como
movimentos simultâneos e esclarecedores da subjetividade maior que é a percepção linguística e
comunicativa.
Então, os conceitos de artes, subjetividade, representação e comunicação apresentam-se
entrelaçados: as artes fazem-se a partir de intersecções e relações fundadoras e fundamentais umas
com as outras, com os contextos de produção e com o(s) pertencimento(s) associado(s) à voz(es)
enunciadora(s). Isso nos permite dizer que inexiste arte pura ou purismo artístico, apesar de toda a
história da crítica de arte remeter-se a graus hierárquicos e valores distintos para as diferentes
artes. De Platão à Gotthold Lessing, notamos uma escala que diferencia os valores das artes de
maneira a atribuir a cada uma delas uma habilidade e um conjunto de características técnicas.
Assim, por exemplo, Lessing, ao analisar Laocoonte, em 1766 refere-se à “arte do espaço” e a
“do tempo” (1946), à instantaneidade descritiva relativa à visualidade e à narratologia (isto é, a
capacidade de narrar) relativa à textualidade. O binarismo apresentado por Lessing pode ser lido
de maneira oposta à corrente do pós-estruturalismo, que surge em fins do século XX e a qual
admite uma fusão integral das artes, desta maneira, tornando as fronteiras entre as mesmas
indistintas. Por isso, podemos dizer que ao relermos todo o desenvolvimento da crítica de arte a
partir do pós-estruturalismo, alcançamos a compreensão de que: “O visual e o textual estão
entrelaçados por uma retórica entendida nos termos de um significado que não é nem literário,
nem pictórico, nem narrativo, nem técnico, mas que, ao invés disso, foca em uma expressividade
que se apresenta”. (MELVILLE; READING, 1995, p. 9).
46
É nesse sentido que Reading (1995, p. 146) declara que visão e textualidade em fusão
apresentam-se como uma relação de negociação do espaço semiótico, que é predominantemente
textual. Para o autor, “a textualização do visual não é uma resposta a questões políticas, mas o
início da negociação política”
47
. No caso de Boland, tal fato tem a ver com a representação da
existência feminina, com o local e o posicionamento da enunciação poética. Todo o movimento
crítico, estético e poético de Boland associa-se à liberação das condições de subserviência da
linguagem, impostas pelo domínio masculino desta, conforme visto pela autora (bem como por
45
Para Althusser (s.d., p.91) “só existe prática através e sob uma ideologia; só existe ideologia através do sujeito e para sujeitos.” O
autor fala em “sujeitos ideológicos” e “indivíduos concretos”, sendo estes “sempre já sujeitos” (p.102). Só podemos falar em
subjetividade quando falamos de sujeito.
46
No original: “The visual and the textual are tied together by a rhetoric that is understood in terms of neither literary nor painterly
meaning, neither narrative nor design, but which aims instead at presentational expressivity.”
47
No original, “(…) the textualization of the visual is not the answer to political questions, but the beginning of political
negociation.” (1995, p. 146).
41
suas contemporâneas, como Medbh McGuckian e Paula Meehan, apesar de suas perpectivas
femininas e feministas distintas). Assim, o desenvolvimento de uma língua que cruze a fronteira
do masculino e pertença ao universo feminino e habite as condições plausíveis `a mulher é uma
das grandes tônicas apontadas pela crítica a respeito da obra de Boland. Cabe aqui lembrar a
importância exclusiva da preocupação histórica recorrente nos poetas irlandeses, conforme
apontada por Allen-Randolph (1999): “Desde os primórdios da tradição poética na Irlanda até o
presente momento, os poetas irlandeses tiveram maior obrigação para com a história de seu país
do que a maneira pela qual a maioria dos poetas americanos sentiu-se inclinada.”
48
Neste sentido, Cristina Pérez Valverde (1997, p. 406) afirma que: “Uma das primeiras
tarefas da poetisa – conforme visto por Boland, McGuckian ou Meehan, por exemplo - é arcar
com o ideal mítico, conquistado pelos seus próprios processos de desmitologização e
remitologização dos ícones nacionais
.”
49
Ao escrever “Letter To A Young Woman Poet” (“Carta A Uma Jovem Poetisa”), em
1997, Boland declara: “Esse excerto é sobre o passado e o nosso direito enquanto poetisas de nos
valermos dele. É sobre a arte e contra o silêncio.”
50
E, assim, admite que o passado relativo a
tradição poética precisa ser revisto: “O passado precisa de nós. Esse mesmo passado poético, que
nos simplificou como mulheres e nos excluiu como poetisas, precisa de nós para mudá-lo.”
51
A proposta de mudança acontece na esfera da erotização, termo usado pela poetisa não
apenas neste ensaio (1997: 4), mas também em outros ensaios como os que aparecem em Object
Lessons. The Life Of The Woman And The Poet In Our Time e que se refere ao objeto
imagético – real ou imaginário – manipulado pela poetisa no seu processo de ´sexualização´ no
poema (1995, p. 212), momento de encontro do objeto erótico, imagem aos olhos da poetisa, e da
perspectiva distanciada e necesssária à persona lírica em seu trabalho de expressão/ato expressivo.
Tal atitude se mostra possível no confronto do passado pelo presente e este, na simplicidade das
tarefas domésticas, em geral, associadas aos cuidados maternos e femininos, de maneira a
confirmar que a linguagem é proveniente da vida (e não, o contrário). Esse percurso possibilitaria,
então, a reconstrução do ser juntamente com a da figura poética:
(…) a única maneira de mudar uma tradição era se voltar as fontes que a constituíram
primeiramente: mas quais eram elas? Intuitivamente, tive a sensação de que a maneira
48
“From the beginnings of the poetic tradition in Ireland right down to the present time, Irish poets have been more obligated to the
history of their country than most American poets ever felt themselves to be.” (1999, p. 207).
49
No original, “One of the first tasks of the female poet – as felt by Boland, McGuckian ou Meehan, for instance – is the coming to
grips with the ideal mythic, which they have accomplished through their own demythologizing and remythologizing of the
national icons.” (1997, p. 406).
50
“This piece is about the past and our right as women poets to avail of it. It is about the art and against the silence.” (1997, p. 2).
51
“The past needs us. That very past in poetry which simplified us as women and excluded us as poets needs us to change it.” (op.
cit., p. 4).
42
de tocá-las era voltar a minha própria imaginação, procurar tornar-me não apenas a
autora do poema, mas a autora de mim mesma
.
52
No entanto, apesar da atitude da poetisa em relação a escrita mostrar-se sempre muito política e a
favor da retomada da voz feminina, por meio da reapropriação da lírica tradicional, a discussão
política estabelecida em torno da poesia vai além da questão de gêneros e sutilmente mergulha na
ética da arte. Segundo a autora, o conceito tradicional do poeta irlandês fundiu-se com idéias
sobre poder, que tão pouco tinham a ver com arte, mas que muito condiziam com uma cultura
ideologicamente conservadora e perseguida pela necessidade de construção imperial. De fato,
toda referência cultural e literária irlandesa inevitavelmente retoma a crise advinda da colonização
inglesa na Irlanda e de seus projetos unionista e nacionalista. Para Longley (2000, p. 316),
a poesia penetra naquelas zonas onde, no que se refere a Irlanda, a epistemologia da
história ou a história da epistemologia estão peculiarmente interrelacionadas. Alguns
lêem a história irlandesa como poesia. Prefiro ler poesia como história. Assim, isso não
exclui, nem favorece as estruturas cognitivas do Iluminismo. Talvez, a contrapartida da
poesia ao ‘diálogo com a evidência’ do historiador seja o diálogo intertextual entre
poemas. Provavelmente, também, a histórica capacidade avaliativa da poesia é
profundamente testada pelo tempo, uma vez que todos os seus elementos estruturais
estejam em jogo. Misteriosamente, a maneira como a história julga a poesia depende de
como a poesia julga a história.
53
Seguindo no entendimento revisionista de Longley acerca da literatura, neste caso, poética,
devemos notar a atribuição que Eavan Boland faz à poesia: uma dimensão política. Em seu artigo
“Writing the Political Poem In Ireland” (1995b), Boland vê a inserção das mulheres na construção
do poema político irlandês como “imagens fragmentadas de sua própria tradição” /“broken images
of its own tradition” (BOLAND, 1995, p. 10) e que o poema político “É uma ação contínua que
revisa de uma maneira decisiva e radiante as relações de poder percebidas entre o mundo interior
e o exterior.”
54
Além de ter mostrado “seu pertencimento irlandês (“Irishness”) através de uma
série sutil de gestos referenciais.”
55
Por essa razão, a associação entre mulheres no fazer poético adquire força na renovação
da tradição lírica, ainda que esteja aquém da verdadeira ética literária, que acontece na dimensão
comunicativa da linguagem, elaborada entre o silêncio e a fala, o silêncio presente naquilo que se
52
No original, “(…) the only way to change a tradition was to go to the sources which had made it in the first place: but what were
they? Intuitively I felt that the way to touch them was by reaching back into my own imagination, attempting to become not just
the author of the poem but the author of myself.” (ibid idem, p. 7).
53
No original, “Poetry penetrates to those zones where, as regards Ireland, the epistemology of history and the history of
epistemology are peculiarly intertwined. Some people read Irish history as poetry. I prefer to read poetry as history. As such, it
neither excludes nor favours Englightment cognitive structures. Perhaps, poetry´s counterpart to the historian´s ‘dialogue with
evidence’ is the intertextual dialogue between poems. Perhaps, too, poetry´s historical acumen is deeply tested by time since all its
structural elements are on the line. Mysteriously, how history judges poetry depends on how poetry judges history.” (LONGLEY,
2000, p. 316).
54
“It is a continuing action that revises, in some radiant and decisive way, the perceived relations of power between an inner and
outer world.” (In “Writing the Political Poem In Ireland”, IV).
55
“The political poem in Ireland (…) proved its Irishness by a subtle series of referential gestures.” (op.cit., p. V).
43
enuncia e que se localiza na esfera exterior do poema, e o dito, a fala comunicada e repleta mesmo
de silêncios e outras falas:
(…) a política do poema – e, também, o poema político – é uma negociação sutil e
arriscada, não apenas entre percepções de poder, mas entre o que está incluso no poema
e o que permanece a ele exterior. Essa relação entre o que está fora e dentro do poema é
a sua política dominante. (1995, p. vi).
56
A fim de melhor compreendermos a verdadeira ética literária, de que fala Boland, em seus
ensaios sobre poesia, especificamente irlandesa e escrita por mulheres, devemos voltar ao que diz
Octavio Paz sobre a poesia e o mundo. Segundo Paz (1993), a poesia reconstitui a memória e
contribui para o cultivo do leitor, atividade de produzir transformação e mudança ao longo do
tempo. Por isso, ao poeta e crítico Paz, “a poesia não procura a imortalidade e sim a ressurreição.”
(op.cit., p. 92), Ao procurar situar a poesia no mundo moderno, Paz assim a define:
entre a revolução e a religião, a poesia é a outra voz. Sua voz é outra porque é a voz das
paixões e das visões; é de outro mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo,
antiguidade sem datas. (...) Em um mundo regido pela lógica do mercado (...) a poesia é
uma atividade de rendimento nulo. (...) Para a mente moderna, embora ela mesma
reconheça isso, a poesia é energia, tempo e talento convertidos em objetos supérfluos.
Poema: forma verbal de pouca utilidade e preço vil. Poesia: gasto, dispêndio,
desperdício. (ibid, pp. 139, 142, 143).
O crítico aponta ao fato de terem os poetas participado de movimentos políticos, mas
assegura que a poesia esteja além dessas ambições: “a poesia toca a fronteira elétrica das visões e
das inspirações religiosas. Por isso tem sido, alternadamente e com parecido extremismo,
revolucionária e reacionária.” (ibid idem, p. 139). Assim, o poeta Paz liricamente postulou em
“Kavya: 10 Epigrams From The Sanskrit” (1997):
Posterity
Armed with rules and precepts,
many condemn my verses.
I don´t write for them,
but for that soul, twin to mine,
who will be born tomorrow.
Time is long and the world wide.
The Tradition
No one behind, no one ahead.
The path the ancients cleared has closed.
And the other path, everyone´s path,
Easy and wide, goes nowhere.
I am alone and find my way.
56
No original, “(…) the politic of the poem – and also the political poem – is a subtle and risky negotiation, not only between
perceptions of power, but between what is included in the poem and what remains outside it. That relation between the excluded
and the included is the dominant politic of the poem.” (1995, p. vi).
44
Essa colocação de Paz sobre o sentido solitário da escrita, perante a tradição revela-se
muito próxima do sentido de que fala Boland sobre o fazer poético feminino na Irlanda hoje e em
diálogo com a tradição. No entanto, a condição da poesia que aqui se tem por base é a de seu
papel para além das palavras e daquilo a que se propõe comunicar – ao mesmo tempo, por meio
de seu vínculo inevitável com a tradição sócio-cultural de origem e para além dele. A posição de
Eavan Boland a esse respeito é a de que: “Cada vez mais, a humanidade descobrirá que terá que
se voltar à poesia para interpretar a vida para nós, e muito do que hoje se entende por religião e
filosofia será substituído pela poesia.”
57
Então, a ética poética estabelece-se na dinâmica da palavra com o mundo, pelo poeta,
recriador de mundos e na verdade da leitura eterna. No caso de Boland, a ekphrase será o recurso
mediador ao encontro da verdade da mulher irlandesa.
Ao admitir que “a emergência das poetisas na Irlanda não garante nada”
58
, Boland lança a
seguinte questão: “como desenhar a realidade no poema e, portanto, estabelecê-la em uma relação
subversiva com a retórica (…)?”
59
A resposta aparecerá em outros ensaios, sobretudo, em
“Outside History” e “Making the Difference” em Object Lessons. The Life Of
The Woman
And The Poet In Our Time, na ideia da “retórica da imagem”, a erotização do ´eu´, a fim de
transformá-lo em uma autoridade poética, um ´eu´ situado fora do simplismo reducionista da
associação tradicional estabelecida entre a mulher e a nação, pois a poesia irlandesa comumente
vê a mulher como figura representativa, metonímica da Irlanda. A geração de poetisas da década
de 1960 lutará para reverter essa noção da mulher como objeto metonímico e transformá-la em
sujeito de sua própria história.
Eavan Boland mostra-nos como isso é possível a partir de uma comunicação mais
completa, que se dá no entrelaçamento das artes pictórica e poética. Ao relacionar dialogicamente
o mundo das artes visuais e o da poesia, a escritora torna público o seu próprio processo de auto-
conhecimento: a relação de seu próprio eu, de sua própria subjetividade com o mundo no qual se
insere, do qual origina e com o qual também dialoga, como se o mundo das palavras,
metonimicamente, o seu mundo privado, interior, subjetivo, ao representar um mundo exterior, o
das imagens pintadas, metonímia da sociedade, do que é público e visível, permite neste
entrelaçamento a descoberta de si, o processo de consciência da linguagem (sempre
representativa) e, portanto, dos graus de consciência que a constituem como poeta, escritora e
mulher.
57
“More and more mankind will discover that we have to turn to poetry to interpret life for us, to console us, to sustain us. Without
poetry our science will appear incomplete, and most of what now passes for religion and philosophy will be replaced by poetry.”
(ibid idem, p.8).
58
“(…) the emergence of women poets in Ireland garantees nothing (…)” (1995, p. x).
59
“(…)How to draw the reality into the poem, and therefore into a subversive relation with the rhetoric is the crucial question.
(1995, p.vi).
45
Portanto, o encontro do eu ocorre na medida em que os poemas ekphrásticos são
representações linguísticas daquilo que já existe visualmente e que em si também ressignificam
60
,
pois a linguagem é alteridade, tenta enunciar aquilo que está fora de si, ao se declarar outro
discurso e Outro, conceitos que emprestamos da Análise do Discurso, para designar
respectivamente “outra esfera da experiência pessoal/do local de origem de quem elocuciona” e
“outra voz, alteridade”.
Neste sentido, Hollander (1995) chama-nos a atenção ao fato de que, enquanto para os
historiadores da arte a ekphrase designa a representação verbal de uma obra de arte, para a teoria
literária, relaciona-se as maneiras pelas quais tempo e espaço configuram-se com a realidade, o
texto e o quadro. Apesar de leitores e observadores virem o texto como “idêntico ao quadro que
este tenta reproduzir, como se em um processo de transparência representacional o quadro e o
verbo tornassem-se mutualmente intercambiáveis”, conforme atesta Rui Carvalho Homem
61
, o
que se tem, nestes casos, é uma interarticulação ambivalente, pela qual a ekphrase articula a sua
dupla alteridade (“otherness”) e, por isso, apresenta-se como uma miniatura, um fragmento.
Mitchell (1995, p. 164-165) declara ser o processo ekphrástico “uma prática social” que se dá a
partir de duas formas aparentemente intraduzíveis e intercambiáveis.
Assim, pode-se dizer que a noção de ekphrase, que acompanha a idéia da inevitável
indissociabilidade entre imagem e escrita, responde o desejo de superação de outridade (ou seja, a
relação eu-outro), uma vez que ela propicia o encontro de modos de representação que se
complementam em uma cadeia sígnica infinita: o simbólico e o icônico, o meio visual e a
expressão verbal. Mitchell acredita que o procedimento de comparação entre meios – realizada,
por exemplo, em Erwin Panofsky, 1986 – merece ser revisto no que tange a compreensão das
implicações advindas das relações estabelecidas entre imagem e texto, as quais favorecem a
constituição de um sujeito a partir tanto da linguagem, quanto da imagem.
A questão real a se perguntar quando do confronto com esses tipos de relação entre
texto e imagem não é ‘qual a diferença (ou semelhança) entre palavras e imagens’, mas
‘que diferença as diferenças (e semelhanças) fazem?’ Isto é, por que nos interessa como
as palavras e imagens são juxtapostas, misturadas ou separadas?
62
Isso implica na noção de que existem diferenças relevantes nos meios verbais e visuais, no
nível das formas, dos tipos de signos, materiais de representação e tradição institucional
(MITCHELL, 1995, p. 161). No que tange à comunicação e à comunicabilidade, então, podemos
60
Os poemas ekphrásticos “share the common rhetorical predicament of representing in language what is itself representing visually
yet something else.” (HOLLANDER, 1995, p. 4)
61
Ao comentar a poesia de Derek Mahon, Rui Carvalho Homem diz que “(…) the reader of Mahon´s poem, as of other ekphrastic
poems that indicate their visual referents, may feel he is being prompted to accept the text as identical to the painting it purports to
describe, as if by a process of representational transparency the painting and its verbal depiction became mutually
interchangeable: “take it for the original”, or rather, “take my word for it”, the poet might be saying.
62
“The real question to ask when confronted with these kinds of image-text relations is not ‘what is the difference (or similarity)
between the words and the images’, but ‘what difference do the differences (and similarities) make?’That is, why does it matter
how words and images are juxtaposed, blended or separated?”(MITCHELL, 1995, p. 91).
46
dizer que texto e imagem produzem efeitos iguais no interlocutor
63
. Logo, o que o conceito de
ekphrase pressupõe é a observação da interarticulação mútua dos meios que expressam
subjetividade, tendo por base a ambivalência – comum aquela que nós, enquanto sujeitos, temos
em relação aos outros e, no caso irlandês, isso aparece no que se refere à identidade. Para Mitchell
(1995), esta ambivalência decorre daquilo que ele denomina de momentos da ekphrase: o medo, a
esperança e a indiferença. O medo referir-se-ia à redução da outridade/alteridade ao tema visual; a
esperança, à possibilidade de semelhança do objeto representado naquilo que se representa e a
indiferença, à constante impossibilidade de realização representativa.
Para Marin (1995, p. 205), crítico francês dedicado à filosofia, literatura e semiótica,
representar significa duplicar uma presença: “na e a partir da representação o homem se
representa”
64
. Já no caso da ekphrasis, a estrutura social de representação acontece em três
dimensões e, não apenas de maneira binária: o objeto visto, o sujeito enunciador e o público a
quem a obra é dirigida. Desta maneira, a ekphrase localiza-se em duas alteridades: a
transformação da representação visual em verbal e o retorno da representação verbal ao objeto
visual na recepção do leitor. Portanto, a dinâmica em que se apresenta concretamente a ekphrase
acontece entre o sujeito da representação visual, o objeto representado e o espectador/leitor, além
do meio a partir do qual tal dinâmica se configura. Em relação ao meio ambiente em que a
atividade de observação de uma obra se dá, vale lembrar a crença de que tal espaço é, em grande
parte, determinante da “anatomia do olhar” (De BOLLA, 1995, p. 283), ou seja, o local de
acontecimento em que a observação se dá determina a posição de onde se elocuciona o objeto
visto, o espaço de onde se vê e se determina o olhar. Também, apesar de sua rica interação, o
poema ekphrástico é sempre um fragmento, uma miniatura, uma metonímia de uma linguagem
mais ampla e apropriável a contextos diversos, de acordo com o olhar e a observação do
espectador/leitor. Bal (1995) estabelece toda uma diferenciação entre o ato de olhar e o de
observar (nos respectivos termos ingleses “glance” e “gaze”), ao mesmo tempo em que declara a
atitude de ‘focalizar’ - que em discurso, narratologia e crítica literária, conhece-se
respectivamente por ‘local de elocução’/ ‘posicionamento’ e ‘ponto de vista’, ou seja, emitir um
ponto de vista – como uma interpretação já subjetivizada: “O que vemos diante de nossos olhos
ou dos olhos de nossa mente já é uma imagem interpretada que apenas o olho da mente é capaz de
ver.”
65
63
Mitchell (1995, p.160) afirma que “Language can stand in for depiction and depiction can stand in for language because
communicative, expressive acts, narration, argument, description, exposition and other so-called ‘speech acts’ are not medium-
specific, are not “proper”to some medium or other. I can make a promise or threaten with a visual sign as eloquently as with an
utterance.”
64
No original, “the representation is at once aan instance of the doubling of a presence: in and through representation the man
represents himself.”(MARIN, 1995, p. 205).
65
No todo, a idéia original de Mieke Bal é “(...) focalization is already an interpretation, a subjectivized content. What we see, before
our eyes or before our mind’s eye, is an already interpreted image that only the mind’s eye is able to see.”(1995, p. 158).
47
Assim, no poema “Silenced”, a ser comentado mais adiante, o recontar lírico de uma
história mítica revela a reapropriação do local, a partir do qual se fala e da subjetividade da voz
que reconta o mito. Isso nos reporta a duas idéias centrais de Booth (1983): a primeira, de que
uma obra só existe fora dela, ou seja, não existe em si mesma e a segunda, para além da
deslealdade de cada e todo autor, a noção de que o seu eu público só vem à tona, enquanto
submetido as limitações de outros indivíduos, no caso, leitores
66
. Assim, novamente, a questão da
indissociabilidade entre tempo e espaço, entre formas de expressão e de vozes ressurge como
fundamental aspecto tanto de nossos tempos, quanto do fundamento mesmo da ekphrase: em
“Silenced”, o eu lírico elocuciona a história de Philomel, que passa a simbolizar a mulher
irlandesa.
A questão da ekphrase mostra-se cá relevante, uma vez que vários são os poemas de
Eavan Boland com uma natureza ekphrástica: eles tanto nos conduzem à imagens, a quadros que
formamos ao ler os seus versos, quanto renovam a capacidade do verso fragmentariamente
transpor telas em palavras, pela própria característica da linguagem, sempre incompleta.
Neste ponto, vale ressaltar a importância do gênero na autoria do sujeito que representa o
objeto. Pollock (1995, p. 59) acentua o caráter falocêntrico da cultura dominante na qual se insere
o público leitor/espectador da obra de arte e aponta ao fato de como as mulheres acabaram tendo
por criar “modos específicos de leitura e recepção”, novos modos de olhar, a fim de possibilitar
novas maneiras de representar na esfera já existente de representações. Notável a hesitação da
eficácia dessa atitude sócio-artística feminina, revelada pela própria autora, Pollock (1995), que
questiona: “Será que o que vemos pode ser representado nas telas existentes da representação?
Parecerá sempre obscuro isso?” (ibid idem)
67
. Na poesia irlandesa dos últimos cinqüenta anos, tal
questionamento desdobra-se na tentativa de compreensão acerca do papel da literatura nos
interstícios das diferenças sociais entre homens e mulheres. Então, devemos aqui mencionar o
poema “Mise Eire” de Eavan Boland, o qual assume o papel da mulher como objeto
representativo da nação, justamente para ir além dele, ultrapassá-lo e mostrar que as enumerações
descritivas da nação ao longo dos versos (velhos versos rimados, terra da corrente do Golfo,
pequena fazenda, memória escaldada, as canções, a história atada, as palavras...”/ “old dactyls,
land of the Gulf stream, the small farm, the scalded memory, the songs, that bandage up the
history, the words”) metonimizam a figura da imigrante irlandesa, migrante de si mesma, que
desconhece que “uma nova língua/é uma espécie de ferida/que se cura após um tempo/em uma
66
Várias são as ocasiões em que Booth expressa tais ideias: “The artist (…) a seer and a revelator (…) his private vision of things is
not great art simply through being his. It is made into great art, if at all, only by being given an objective existence of its own –
that is, by being made accessible to a public.”(1983, p. 395). Também, “(…) the work has no existence in itself (…) the
experiences of author and reader are indistinguishable.” E, “all authors are disloyal.” (op. cit., p. 39).
67
No original, “We have had to construct specific modes of spectatorship and reading to project femininity from the tedium its
threatening nature has pressed upon its public currency in a phallocentric culture. We have had to devise new ways of looking.
But then can what we see be represented on the existing screens of representation? Will it always seem veiled?”(1995, p. 59).
48
imitação que se transforma/no que fora antes.” (“a new language/is a kind of scar/and heals after a
while/into a passable imitation/ of what went before.”).
De fato, a representação já é a reapropriação do que se quer configurar, uma maneira de
enunciar o mesmo a partir de outros recursos. Representar é, assim, ressignificar. E,
provavelmente, o caráter mais importante da representação ekphrástica resida na questão da
consciência, ou seja, não se trata tanto da história pessoal do retratado ou de quem retrata, do
contexto de produção em relevo, mas, sim, dos efeitos que tais esferas causam no artista e,
também, no espectador/leitor. Assim, o ato de observar uma representação procede de maneira
mais completamente eficaz a medida em que o espectador/leitor é consciente de seu envolvimento
e no que este implica: a consciência de ser o objeto observado uma representação e não uma
realidade objetiva
68
. O espectador/leitor, enquanto coautor da obra, tem a percepção da linguagem
como eterno fragmento, pois a linguagem é em si representativa do pensamento e, como tal,
fragmentária. Nunca a linguagem significa aquilo que comunica, apesar de pretendê-lo, e nunca
comunica aquilo a que se propõe, pois o cerne do que se pretendeu com a comunicação escapa as
suas origens.
Nesse sentido, a união das artes, pela integração das idéias e percepções em meios
artísticos distintos (por exemplo, pintura e poesia) condensa uma maior capacidade comunicativa,
dada a própria diversidade de meios e recursos e revela ser a representação o ponto de contacto
entre o eu e o outro, a alteridade plausível a partir da linguagem, o encontro do estrangeiro na
fronteira do desencontro, o conhecimento desse desencontro comum a nós mesmos e que nos
caracteriza como falantes e enunciadores de discursos múltiplos e móveis, sem raízes fixas ou
paragens definitivas. Assim, a instantaneidade do olhar atesta a necessidade de observação mais
cuidadosa da narrativa exposta na linguagem que se molda entre versos: o quão estranho é o
estranho feminino no mundo das representações. Os versos de Eavan Boland que tratam da
domesticidade permitem essa leitura. Para Allen-Randolph (1999), o encontro com o doméstico
revela-se fundamental ao repensar do posicionamento intelectual e tradicional de recusa da figura
feminina como central à poesia irlandesa.
Verificaremos como Boland lida com a questão do estrangeirismo da existência –
feminina e poética – a partir do uso de ekphrase. Para isso, porém, notemos algumas outras
observações relevantes à compreensão da estrutura ekphrástica. A primeira delas, portanto,
relativa à escrita e ao estrangeirismo. Quando Kristeva (1991) escreve sobre a visão do
estrangeiro ao longo dos séculos em culturas diferentes, a autora retoma a noção psicanalítica de
68
Mieke Bal retoma a diferença entre o olhar e a observação proposta por Norman Bryson e declara: “(...) it is the involved look
where the viewer, aware of and bodily participating in the process of looking, engages in interaction and does not need, therefore,
to deny the work of representation, including its most material aspects like brush-pen-or pencil-work. The point of this mode of
looking is that the awareness of one’s own engagement in the act of looking entails the awareness that what one sees is a
representation, not an objective reality.”(1995, p. 150).
49
“alienação”, rompimento do “self”, o qual surge da repressão dos sentimentos e da idealização
que dele se faz. Para Kristeva (1991, p. 181): “o estrangeirismo está em nós: somos nosso próprio
estrangeiro, somos divididos.”
E é ao nos sabermos estrangeiros de nós mesmos que conseguimos conviver com os
outros
69
, o que se confirma nas manifestações das artes e da intersecção das mesmas, pois se uma
manifestação artística é estranha, lida com o estrangeiro do humano e o comunica, outra arte pode
confirmar isso na esfera do entrelaçamento, como por exemplo a pintura e poesia, na sua natureza
ekphrástica. Em ambos os casos, que se situam no universo das artes, há uma ruptura das
fronteiras entre imaginação e realidade, o que faz com que o estranhamento, o tema do
estrangeirismo de nós mesmos venha à tona
70
. Assim, escrever configura-se em uma tarefa de
exílio, de travessia de fronteiras, de conscientização do inconsciente, em um processo de
revelação do estrangeirismo de quem escreve a partir do olhar do outro, a alteridade do eu, a
mostrar os tantos outros que me compõem.
A segunda observação que se pretende fazer refere-se exatamente à prática do olhar do
leitor, que parte do mundo para atingir o sujeito, ainda que dependa da percepção subjetiva de
cada indivíduo, a qual se compõe também de processos físicos e, não apenas culturais – de
recepção de luz, de contração do nervo óptico e da relação da visão com os demais sentidos
corpóreos. O olhar é um encontro cultural do eu com o outro, do eu-peregrino na fixidez do objeto
e no fluxo da visualidade imagética, supostamente instantânea, mas que também provoca uma
“identificação”, conforme entende Hall (1998), para quem as identidades não são fixas, essenciais
ou permanentes, mas, ao contrário, momentâneas e adequadas as circunstâncias. A visão – como
Eros e autoconhecimento – denota o duplo especular que é a imagem: o nosso outro, motivo
assassino de Narciso. Neste sentido, a ekphrase guia-nos à percepção ótica, à visão e à
visualidade. Aquilo que se vê remonta à mente e à memória, tornando a atitude do olhar,
proveniente da imaginação, a fonte do conhecimento. Alfredo Bosi lembra-nos de que “uma teoria
completa do olhar (sua origem, sua atividade, seus limites, sua dialética) poderá coincidir com
uma teoria do conhecimento e com uma teoria da expressão.” (1988, p. 66). A implicação disso à
questão ekphrástica refere-se à articulação da linguagem no nível discursivo: “É no uso das
palavras que os homens trançam os fios lógicos e os fios expressivos do olhar.” (1988, p. 78).
Porém, Mitchell (1995) já nos advertiu sobre o conhecimento comum em relação à
incapacidade da representação verbal tornar o objeto da representação visual presente em sua
totalidade ou de maneira fiel – ao que ele denomina ‘indiferença’ quanto à consciência da ruptura
69
A citação de Julia Kristeva refere-se à versão em inglês: “foreignness is within us: we are our own foreigners, we are
divided.”(1991: 181). A idéia seguinte está precisamente em “(...) we know that we are foreigners to ourselves, and it is with the
help of that sole support that we can attempt to live with others.”(op. cit, p. 170).
70
“(...) uncanniness occurs when the boundaries between imagination and reality are erased.”(KRISTEVA, 1991, p. 188).
50
das barreiras no fluxo dos discursos (verbal e visual) e de quão problemático tal processo é no que
tange transformar o poeta e o ouvinte em instâncias permanentes e fixas – denominando esse
processo de ‘medo’. Ainda assim, é o outro momento que compõe a ekphrasis, o da ‘esperança’, o
que justifica propriamente a sua existência: a superação da impossibilidade comunicativa por
meio da imaginação e da metáfora. A motivação à investigação da ekphrasis surge, portanto, “(...)
quando descobrimos um ‘sentido’ no qual a linguagem pode fazer o que tantos escritores
quiseram realizar: fazer-nos ver.”
71
Há contida aí a idéia de que a ekphrase conduz à compreensão de uma obra de arte, revela
algo sobre uma obra ou a nomeia integralmente, diferentemente do que Paz (1986, p.110) postula
sobre as imagens, que são essas “irredutíveis a qualquer explicação e interpretação.” De acordo
com Paz (1986), “a imagem é um recurso desesperado contra o silêncio que nos invade, cada vez
que procuramos expressar a terrível experiência do que nos cerca e de nós mesmos.” (op. cit, p.
111).
Além disso, ao confrontar a linguagem verbal e a imagem, Paz declara que enquanto “a
linguagem indica, representa; o poema não explica, nem representa: apresenta (…) A imagem não
explicita: convida à recriação e literalmente ao reviver. ” (op. cit, p. 112-113).
Podemos dizer, então, que a imagem e a escrita apresentam representações do humano
mais completas e vivas da comunicação, sobretudo, quando em associação no discurso poético.
Se concordarmos com a filósofa brasileira Marilena Chauí (1988, p. 33), que afirma ser o
olhar um sair de si e, concomitantemente, trazer o mundo para dentro de si, podemos ler a
ekphrase como um desdobramento dessa atividade de ir e vir da alma, de constituir a
subjetividade do eu no outro e assim, também, inscrever o outro em minha própria subjetividade,
na ambivalência dinâmica da permeabilidade de fronteiras artísticas. A filósofa aproxima, desta
maneira, os termos janelas, espelhos, faróis e olhos na tarefa própria de abertura, de articulação
do pensamento, pois “Pensar parece nascer do olhar, será como um olhar ou um modo peculiar de
olhar (com o olho do espírito)” (1988, p. 39).
Enquanto que para Platão (Timeu e Alcibíades), os sentidos da visão e da audição
destinam-se ao conhecimento, na perspectiva de Chauí, o pensamento é um específico
afastamento no interior do ser: “O olhar ensina um pensar generoso que, entrando em si, sai de si
pelo pensamento de outrém que o apanha e o prossegue. O olhar, identidade do sair e do entrar em
si, é a definição mesma do espírito.” (op. cit, p. 61).
Assim, enquanto o poema ekphrástico transforma imagens em palavras e essas, novamente
ao leitor, devem retomar a forma visual, à visualidade mais próxima de onde partiram, o poema
71
No original, “(...) when we discover a ‘sense’ in which language can do what so many writers have wanted it to do: to make us
see.” (MITCHELL, 1995, p. 152).
51
intensamente imagético origina-se da imagem do olhar visionário que se veste de palavras para
poder ser visto. Se para o músico e crítico José Miguel Wisnik, “(...) a visão é uma evidência do
invisível, do indizível e do indivisível” (1988, p. 283), as palavras nos poemas ekphrásticos
tentam dar conta da fragmentação comunicativa das linguagens, tornando a ekphrase um gênero
particular, uma nova linguagem, que se adequa à pluralidade de nossas existências - transpostas
liricamente. Para Boland, a poesia e a imagem entrelaçam-se retoricamente, de maneira a compor
uma verdade.
a new language
is a kind of scar
and heals after a while
into a passable imitation
of what went before.
72
(BOLAND, 1996, p.157)
uma nova língua
é uma espécie de ferida
que, depois de um tempo, cura-se
e se transforma numa imitação
do que já existiu.
Para Anne-Marie Christin (ARBEX, 2006, p. 63), “a imagem revela o invisível”, pois
permite o acesso a linguagens referentes a outras realidades, ou seja, capazes de alcançar outros
“mundos”, a que o texto apenas se refere para além de si mesmo. Neste sentido, novamente, temos
a dimensão da importância da imagem na construção da significação poética e, sobretudo, no
diálogo entre as artes que reina o universo poético.
No caso da visualidade, todas as visões que tenho partem de uma anterior, que nunca se
deu por completo, apenas como afastamento, o que sugere a dúvida do visto: será o que vejo
aquilo que já vi em primeiro ou o padrão criado a partir daquilo que outrora vi? Em verdade, o
visto é um composto das duas experiências, acrescido daquilo que vejo como nova expressão do
objeto representado, o próprio poema ekphrástico que contém a imagem distorcida nas palavras e
na música destas a formar novas imagens. Ao retomarmos o nosso olhar sobre a articulação do
estrangeirismo da existência em Boland, devemos notar que existir já significa ser estrangeiro,
ocupar o estrangeirismo de si mesmo na linguagem. Podemos entender o fato de que sou
estrangeira de mim mesma, desconheço-me e só “me reconheço naquilo que eu reconheço”
(WISNIK, 1988, p. 285). Kristeva (1991, p. 10) atesta que “(…) o estrangeiro é um sonhador que
ama com ausência, alguém particularmente deprimido.”
73
. Então, o poeta é um estrangeiro, pois
profetiza na esfera da linguagem, do distanciamento do conhecimento e reconhecimento do eu no
Outro. Na existência poética irlandesa, a feminilidade aparece como mais um estrangeirismo, pois
a tradição de escrita é predominantemente masculina.
72
Assim nos ensina uma parte do poema “Mise Eire” de Eavan Boland, do livro The Journey (1987) que aparecerá publicado em
Outside History.
73
No original, “(...) the foreigner is a dreamer making love with absence, one exquisitely depressed.”
52
I see myself
On the underworld side of that water,
The darkness coming in fast, saying
All the names I know for a lost land:
Ireland. Absence. Daughter.
74
(BOLAND, 1998, p.41)
Vejo-me
Na escuridão dessas águas
O obscuro a invadir rapidamente e a pronunciar
Todos os nomes que conheço para uma terra perdida:
Irlanda. Ausência. Filha.
Tem-se aí, então, o estrangeirismo na sua dimensão pública e particular, íntima: a Irlanda,
espaço da emigração, origem do exílio de várias gerações, a certeza da ausência permanente da
existência social inconstante, cujo símbolo máximo seria o solo denso, incerto, o bog de que fala
Seamus Heany – a turfeira; a filha, aquilo que se oferece ao mundo e que se ausenta para sempre
do seio materno.
Verificaremos na próxima parte deste trabalho, então, os efeitos de sentido da ekphrase na
obra de Eavan Boland. Em outras palavras, perceberemos como a poética visual de Eavan Boland
compõe uma travessia do estado de estrangeiro público e comum, próprio da escrita e do fazer das
artes visuais ao estrangeiro particular, privado, de si mesmo. Partiremos do pressuposto de que
há tanto poemas visuais que partem das palavras – estas tendo se originado em idéias imagéticas –
e alcançam construções perfeitamente descritivas de imagens, quantos poemas que partem,
igualmente das imagens, mas estas enquanto objetos representados em palavras, que voltam, desta
vez, ao leitor, como imagens representadas verbal e musicalmente, ou seja, imagens em poemas
que são sons e, portanto, música – em ambos os casos apontados acima, estamos diante de poemas
ekphrásticos. Tal pressuposto também inclui a idéia de que a travessia do público ao privado
acontece no espaço da metalinguagem do fazer artístico, da avaliação do estrangeiro em si mesmo
e na manifestação artística disso, ou seja, da percepção da representação da subjetividade no
espaço público da pintura, que volta a ser íntimo, privado, no poema ekphrástico, bem como em
suas incontáveis leituras/audições – tanto no caso da leitura silenciosa, quanto no da leitura em
voz alta, dirigida a um ou mais ouvinte(s).
Desta maneira, observemos como alguns poemas de Boland podem ser vistos como etapas
dessa travessia do público ao privado, do estrangeiro comum ao estrangeiro particular. Cabe dizer
que tal movimento – do senso comum do estrangeirismo de nós mesmos ao conhecimento
particular e específico do ser estrangeiro – dá-se na obra de Boland como uma travessia do olhar,
que acontece simultaneamente, sem intervalos temporais. Assim, por exemplo, o mesmo livro
Outside History traz poemas exemplares dessa travessia: “In Exile” (“No Exílio”) e “The
Carousel In The Park” (“O Carrossel No Parque”), que se caracterizam predominantemente por
serem imagéticos, comporem o que Heffernan (2004), tomando emprestado os termos de
Hollander (1995) denomina de ekphrase conceitual (“notional ekphrasis”). Já o poema
74
Versos finais de “The Lost Land”, poema que dá título a obra de 1998.
53
“Photograph on My Father’s Desk” (“A Fotografia na Escrivaninha de Meu Pai”), na
nomenclatura de mesmas autorias, torna-se ekphrase real (“actual ekphrasis”).
O poema “In Exile” (“No Exílio”) descreve narrativamente um acontecimento social, que
implica em uma percepção individual: temos diante de nós cenas relativas ao encontro do
imigrante, do estrangeiro.
In Exile
The German girls who came to us that winter and
the winter after and who helped my mother fuel
the iron stove and arranged our clothes in wet
thickness on the wooden rail after tea was over,
5 spoke no English, understood no French. They were
sisters from a ruined city and they spoke rapidly
in their own tongue: syllables in which pain was
radical, integral; and with what sense of injury
the language angled for an unhurt kingdom – for
10 the rise, curve, kill and swift return to the wrist,
to the hood – I never knew. To me they were the sounds
of evening only, of the cold, of the Irish dark and
continuous with all such recurrences: the drizzle in
the lilac, the dusk always at the back door, like
15 the tinkers I was threatened with, the cat inching
closer to the fire with its screen of clothes, where
I am standing in the stone-flagged kitchen. There are
bleached rags, perhaps, and a pot of tea on the stove.
And I see myself, four years of age and looking up,
20 storing such music – guttural, hurt to the quick –
as I hear now, forty years on and far from where
I heard it first. Among these saltboxes, marshes and
the glove-tanned colors of the sugar maples, in
this New England town at the start of winter, I am
25so much south of it: the soft wet, the light and
those early darks which strengthen the assassin´s
hand; and hide the wound. Here, in this scalding air,
my speech will not heal. I do not want it to heal.
(BOLAND, 1991, p.46)
No Exílio
As meninas alemãs que vieram naquele inverno e
no inverno seguinte e ajudavam minha mãe a abastecer
o fogão com carvão e dispunham nossas roupas na grossa umidade
do trilho de madeira após tomarmos chá
5 não falavam inglês, nem compreendiam francês. Elas eram
irmãs de uma cidade arruinada e falavam rapidamente
em seus próprios idiomas: sílabas nas quais a dor era
radical, completa – e com que sentido de dor
a linguagem mirava a um reino contraditório – à
10 elevação, rodopio, queda e movimento de retorno ao pulso,
ao capuz – eu nunca soube. A mim, eram sons
apenas de uma noite, de uma treva, da escuridão irlandesa e
contínuos com todas as suas recorrências: a garoa no
lilás, o crepúsculo sempre na porta dos fundos, como
15 os ambulantes com que me sentia ameaçada, o gato a se aproximar
ainda mais da lareira com sua tela de roupas, onde
eu me porto na cozinha toda de pedra. Há
trapos alvejados e um bule de chá no fogão, talvez.
E eu me vejo, quatro anos de idade, crescendo,
20e guardando essa musicalidade gutural, ferida até o âmago -
conforme eu ouço agora, quarenta anos mais tarde e distante de onde
eu a primeiro ouvi. Entre essas casas coloniais, brejos e
cores castanhas dos bordos nesta
cidade da Nova Inglaterra no início do inverno, estou
25 tão ao sul disso: a umidade suave, a luz e
essas escuridões precoces que fortalecem a mão
do assassino e escondem a ferida. Aqui, neste ar escaldante,
meu discurso não irá curar. Não quero que ele a cure.
A descrição da dor, da noite, da garoa, da escuridão irlandesa acompanha dois tipos de
deslocamento: o temporal e o espacial. O primeiro origina-se na infância do eu-lírico (“And I see
myself, four years of age and looking up...”/ “Vejo-me, quatro anos de idade, crescendo”, linha
19) e alcança quarenta anos seguintes: “as I hear now, forty years on and far from where I heard it
first.”/ “enquanto ouço agora, quarenta anos mais tarde e distante de onde primeiro a ouvi.”,
linhas 21, 22) e o segundo, o espacial, parte da geografia irlandesa, que se refere ao ontem, e
chega à Nova Inglaterra, de onde elocuciona o eu-lírico. O advérbio “far”(“distante”) atribui o
sentido de exílio, título e tema do poema. Neste caso, o exílio é em relação à linguagem, aquilo
que nos escapa e nos dá a nossa própria consciência ao nos tornar estrangeiros (pela linguagem),
pois enunciar significa habitar a eterna impossibilidade comunicativa – que, no entanto, refaz-se a
cada instante na promessa futura de sua habilidade cumprida. Expressar-se verbalmente é um ato
54
advindo da promessa da eficácia comunicativa e que, dada a sua inevitável falha, também,
reproduz continuamente a promessa de origem: digo aquilo primeiro penso, mas que por nunca
corresponder ao pensamento primeiro faz-me dizer de novo e de novo. No poema, a consciência
da incapacidade comunicativa da linguagem revela-se na falta de vontade da persona-lírica ver
atingido o seu objetivo: “my speech will not heal. I do not want it to heal.”/ “meu discurso não irá
curar a ferida.. Não quero que ele a cure.” (“In Exile”, 1991, p. 46). Estas negações são um
recurso retórico a fazer valer o poder das imagens descritas narrativamente ao longo do poema e,
assim, legitimar verdadeiramente a habilidade comunicativa da linguagem.
O poema “The Carousel In The Park” (“O Carrossel No Parque”) convida o leitor/ouvinte
a embarcar em uma jornada à infância, embora o tempo da infância seja o conjunto de imagens
descritas no hoje do poema, que se mostra como o espaço do desafio do encontro.
The Carousel In The Park
Find it.
Down the park walks, on the path leading
past the sycamores.
There through the trees –
5- nasturtium rumps, breasts plunging
lime and violet manes
painted on
what was once the same as now littered
russet on their petrified advance.
10- Find the sun
in the morning rising later,
the chilled afternoons getting shorter and -
after dusk, in the lake, in the park –
the downtown city windows scattering
15- a galaxy of money
in the water.
And winter coming:
The manhandled indigo necks flexing and
the flared noses
20- and the heads with their quiffed carving.
And the walks leafless and
the squirrels gone,
the sycamores bare and the lake frozen.
Find the child,
25- going high and descending there – up and down,
up, down again –
her mittens bright as finger-paints, and holding fast
to a crust of weather now: twelve years of age in
a tigh-length coat,
30- unable to explain a sense of ease in
those safe curves, that seasonless canter.
(BOLAND, 1991, pp.56,57)
O Carrossel No Parque
Encontre-o.
Lá abaixo nas trilhas do parque, no caminho que passa
Junto aos plátanos
Lá no meio das árvores –
5- Ancas de nastúrcios, seios cravando
cal e crinas violetas
pintadas no
que uma vez fora o mesmo do que hoje é
sucata enferrujada, em progresso paralisado.
10- Encontre o sol
na manhã que chega mais tarde
as tardes frias encurtando-se e –
após o entardecer, no lago, no parque –
as janelas do centro da cidade a espalhar
15- uma galáxia de dinheiro
na água.
E o inverno a chegar:
Os bonequinhos azuis a se dobrarem e
os narizes ostensivos
20- e as cabeças com suas mechas buriladas
e as alamedas sem folhas e
os esquilos sumidos
e os plátanos despidos e o lago congelado.
Encontre a criança,
25- a ir à distância e a descender – para cima e para baixo,
para cima, e para baixo de novo.
as suas luvas radiantes como esmalte dos dedos e a se apegar
agora numa ousadia do tempo: doze anos de idade
num casaco até os joelhos
30- incapaz de explicar um sentido de alívio
naquelas curvas seguras, naquele trotar fora de estação.
Por três vezes, a persona-lírica impera “encontre” (“find it”, “find the sun”, “find the
child”). O primeiro objeto do verbo encontrar, o pronome “it”, designa o próprio objeto do poema:
o carrossel no parque. O segundo, “the sun”, o sol, metáfora da consciência de si e do mundo,
deverá iluminar o olhar daquele que se debruça sobre a passagem do tempo e dos efeitos dessa
passagem na paisagem que se observa (no caso, o mundo). Por fim, “the child”, a criança,
símbolo do olhar da inocência e da descoberta do mundo na esfera do lúdico – as crianças, a
55
alegria do mundo. Novamente, acompanhamos uma travessia que vai do espaço público, do objeto
lúdico do carrousel ao espaço íntimo e pessoal da criança, ambos relativos ao espaço do lúdico,
aquilo que também se busca encontrar na linguagem, o porto final do pensamento, que é a razão,
fuga da loucura. Para Landa (1988, p.431), “infância e loucura são inconfundíveis; enquanto na
infância tudo é desenvolvimento e perspectiva de progresso, os mesmos fenômenos, fora dela, são
regresso, e a perspectiva é a tragédia.”. Podemos dizer, então, que nos limites da sanidade habita a
linguagem, mediadora das percepções e sensações que subjetivizam o indivíduo, por sua vez, “um
que conhece e também um outro que não conhece e do qual nada pode saber” (op. cit, p. 427),
exceto pela representação da linguagem. A linguagem poética é o retorno à inocência do olhar
infantil: “Olhar de criança, olhar primeiro, olhar nítido – para consegui-lo é preciso parar de
pensar.” (PERRONE-MOISÉS, 1988, p. 334). A imagem vista, então, é a suspensão temporária
da razão e, ao mesmo tempo, a extensão de um sublime sentir, associado ao pertencimento social
e subjetivo do ser – a que Mitchell (1995) chama de ‘visualidade’, ligado às cadeias sígnicas dos
demais sentidos corporais (olfato, paladar, audição e tato). Para o autor, há um desconhecimento
sobre as relações entre linguagem e imagem, ao que ele propõe o conceito de hiperícone
(‘hypericon’), associado a uma iconologia crítica que vá além dos estudos comparativos entre as
artes.
A partir de 1960, a crença na arte como auto-analítica fez-se possível e, neste sentido, vale
observar a intertextualidade entre a obra de Panofsky (1986) e a de Mitchell (1995), pois se
Panofsky (ibid idem), ao fazer uma retrospectiva do pensamento filosófico ocidental, dissertou
sobre o espaço pictórico e a perspectiva e pretendeu estabelecer uma ciência discursiva de
imagens, Mitchell sugeriu ver quadros como discursos passíveis de auto-reflexão, metalinguagem,
ao que ele denomina “metaquadro”(“metapicture”):
O metaquadro é uma parte do apparatus cultural, mercadoria, que pode ter um papel
marginal enquanto recurso ilustrativo – um papel central, enquanto uma imagem
resumo, a que eu denominei hiperícone que contém todo um epistema, uma teoria do
conhecimento.
75
Além disso, Metaquadros tornam visível a impossibilidade de uma metalinguagem
estrita, uma representação secundária que se dissocia do alvo de sua primeira representação
.”
76
A esta altura, observemos comparativamente a estes dois poemas, o “The Photograph On
My Father’s Desk” (“A Fotografia Na Escrivaninha De Meu Pai”), o qual transpõe em palavras a
visão da persona-lírica sobre a imagem da fotografia na escrivaninha.
75
No original, “The metapicture is a piece of moveable cultural apparatus, one which may serve a marginal role as illustrative
device – a central role as a kind of summary image, what I have called a “hypericon” that encapsulates an entire episteme, a theory
of knowledge.” (MITCHELL, 1995, p. 49)
76
“Metapictures make visible the impossibility of a strict metalanguage, a second-order representation that stands free of its first-
order target.” (MITCHELL, op.cit, p. 83).
56
“The Photograph On My Father´s Desk”
It could be
any summer afternoon.
The sun is warm on
the fruitwood garden seat.
5- Fuchsia droops.
Thrushes move to get
windfalls underneath the crab apple tree.
The woman
holds her throat like a wound.
10- She wears
mutton-colored gabardine with
a scum of lace
just above her boot
which is pointed at
15- this man coming down the path with
his arms wide open. Laughing.
The garden fills up
with a burned silence.
The talk has stopped.
20-The spoon which just now
jingled at the rim of the lemonade jug
is still.
And the shrubbed lavender
will find
25- neither fragrance nor muslin.
(BOLAND, 1991, p.43)
A Fotografia Na Escrivaninha De Meu Pai
Poderia ser
qualquer tarde de verão.
O sol aquece
o banco do jardim de frutas.
5- A fuchsia se curva.
Tordos movimentam-se para alcançar
os frutos embaixo da macieira silvestre.
A mulher
ostenta sua garganta como uma ferida.
10- Ela veste
gabardina clara com
uma escória de renda
bem acima de sua bota
que aponta ao
15- homem que desce pelo caminho com
seus braços bem abertos. A rir.
O jardim se preenche
de silêncio ardente.
A conversa parou
20- A colher que há pouco
tinia na borda da jarra de limonada
está calma.
E a alfazema campestre
não encontrará
25- nem fragrância, nem musselina.
Trata-se de um poema ekphrástico, no qual, a partir de uma visão, temos o desenrolar
poético, o encontro da imagem vista com a elaboração lingüística da percepção sobre essa visão.
E aqui vale lembrar que fisiologicamente aquilo que se vê associa-se tanto a experiências
anteriores, registradas na memória do sujeito e percebidas reativamente, quanto à integração das
informações processadas em outros órgãos dos sentidos. Assim, a memória do objeto visto – a
fotografia na escrivaninha – regenera-se fragmentariamente na transposição imagética em versos
descritivos, que se fixam no tempo – no uso do presente do indicativo, que descreve o agora e o
sempre agora e que é interrompido apenas pela “conversa que cessou” (“The talk has stopped”,
verso 19) e pela “colher”, no momento, “calma” na “borda da jarra de limonada” (“The spoon
which just now/jingled at the rim of the lemonade jug is still.”, versos 20, 21). O congelamento da
fotografia, imagem descrita no poema, é metonímico do prolongamento do instante, característico
do poema ekphrástico. A ekphrase, em seu jogo de entrelaçamento de imagens e sons, permite
fazer a travessia entre o público e o privado simultânea à do privado ao público. Isso acontece
porque se as imagens dizem respeito ao que é tangível publicamente, aquilo que pode ser visto por
57
formas, cores e tamanhos, elas assim só o são por conta e causa de percepções subjetivas de quem
as descreve enquanto objetos a serem nova e infinitamente vistos. Desta maneira, se o eu-lírico no
poema designa que “The sun is warm on”/ “O sol aquece”, verso 3, é porque se quer literalmente
indicar uma sensação de temperatura elevada ou a percepção da intensidade acentuada da luz do
sol, ou, ambos e, metaforicamente, tal percepção passa a designar um infinito de interpretações
relativas à subjetividade do poeta e do leitor/ouvinte sobre o ambiente descrito. Assim, há uma
relação entre o que se vê (materialidade pública, “recolhida na tranquilidade”, acessível ao olhar
coletivo sobre o ambiente), e o conjunto de percepções e sensações interiores (subjetividade
transposta à realidade objetiva da vida social) a partir do qual a subjetividade pode se publicar.
Podemos notar, então, o entrelaçamento quase inseparável entre os espaços público e privado,
entre a intimidade do eu-lírico e o ambiente que o acolhe. A fronteira entre ambos é a linguagem.
Outro poema imagético que aparece em Outside History, livro de 1990, e que nos chama
a atenção pela travessia entre os espaços público e privado é “The Black Lace Fan My Mother
Gave Me” (“O Leque de Renda Preta Que Minha Mãe Me Deu”), pois parte de uma experiência
particular, contada publicamente, por meio do que Eavan Boland denomina “retórica da imagem”:
as palavras transpõem o universo imagético que compõe o imaginário da persona-lírica.
The Black Lace Fan My Mother Gave Me
It was the first gift he ever gave her,
buying it for five francs in the Galeries
in prewar Paris. It was stifling.
A starless drought made the nights stormy.
5- They stayed in the city for the summer.
They met in cafés. She was always early.
He was late. That evening he was later.
They wrapped the fan. He looked at his watch.
She looked down the Boulevard des Capucines.
10- She ordered more coffee. She stood up.
The streets were emptying. The heat was killing.
She thought the distance smelled of rain and lightning.
These are wild roses, appliqued on silk by hand,
darkly picked, stitched boldly, quickly.
15- The rest is tortoiseshell and has the reticent,
clear patience of its element. It is
a worn-out underwater bullion and it keeps,
even now, an inference of its violation.
The lace is overcast as if the weather
20- it opened for and offset had entered it.
The past is an empty café terrace.
An airless dusk before thunder. A man running.
And no way now to know what happened then –
none at all – unless, of course, you improvise:
25- the blackbird on this first sultry morning,
in summer, finding buds, worms, fruit,
feels the heat. Suddenly she puts out her wing –
the whole, full, flirtatious span of it.
(BOLAND, 1991, p.19)
O Leque De Renda Preta Que Minha Mãe Me Deu
Foi o primeiro presente que ele a dera,
comprado por cinco francos nas Galeries
da Paris do pré-guerra. Estava abafado.
Uma seca sem estrelas tornava as noites tempestuosas.
5- Eles ficaram na cidade para o verão.
Encontravam-se em cafés. Ela, sempre adiantada.
Ele, atrasado. Aquela noite ele estava mais atrasado.
Embrulharam o leque. Ele olhou o relógio.
Ela espiou o Boulevard des Capucines.
10- Pediu mais café. Levantou-se.
As ruas esvaziavam-se. O calor estava sufocante.
Ela pensou que a distância cheirava a chuva e relâmpago.
Estas são rosas selvagens, aplicadas em seda a mão,
Apanhadas subrepticeamente, costuradas abrupta, rapidamente.
15- O resto é casca de tartaruga e tem a paciência evidente
e reticente de seu elemento. É
um ouro desgastado e até agora
mantém uma evidência de sua violação.
A renda está obscurecido como se o tempo
20- Ali estampado a habitasse.
O passado é uma esplanada de café vazia.
Um crepúsculo sufocante, anterior à trovoada. Um homem a correr.
E sem poder saber agora o que acontecera então –
nada – a menos, claro, que você improvise:
25- o melro nesta primeira manhã sufocante,
no verão, a encontrar botões de flores, vermes, fruta,
a sentir o calor. Repentinamente, a ave estende sua asa –
em toda a sua envergadura enfeitada, única.
A narração descritiva da cena em movimento do encontro-desencontro entre os dois
enamorados (pais da persona-lírica) é possível na esfera do público, como a visualidade
58
comunitária da experiência particular, que se inicia no poema, pelo recurso do título “O leque de
renda preta que minha mãe me deu”. O uso dos pronomes “my” e “me”, o primeiro, possessivo,
“minha” (“my mother”, “minha mãe”) e o segundo, “me” (“gave me”, “me deu”) objeto indireto
do verbo “gave”/“deu”, neste caso, aponta à particularidade da experiência narrada: a privacidade
a ser revelada publicamente. O objeto descrito, o leque, é símbolo da herança cúmplice da
feminilidade entre mulheres: o presente que a mãe ganhara do pai e que agora, na lembrança
revivida pela imagem representada em palavras, em tom narrativo, torna-se conhecimento próprio
da persona-lírica, reconhecimento de si mesma como mulher:
Menina e mãe são cúmplices nos jogos de esconde-esconde da feminilidade, cuja
estranha função é esconder justamente o que não está lá. Os meninos mentem sim, mas
mentem sobre um atributo que possuem; já as meninas mentem sobre o que não
possuem: a base dessa cumplicidade é bem mais frágil. Elas podem trair uma à outra em
causa própria. (KEHL, 1988, p. 419).
A traição da poetisa Boland com o universo feminino é o discurso verbal em forma
poética, tradução das imagens imaginadas no pensamento. Podemos dizer que é no discurso
poético que se estabelece uma reflexão sobre o passado de origem, a tradição irlandesa: “O
passado é uma esplanada de café vazia.” (“The past is an empty café terrace”, verso 21), local em
que “as ruas esvaziavam-se” (“The streets were emptying”, verso 11), “a distância cheirava a
chuva e relâmpago” (“...the distance smelled of rain and lighning”, verso 12) e a partir de onde o
eu-lírico revela-nos que “o tempo” fez obscurecer “a renda”.
Segundo a psicanalista Kehl (1988), o caminho do encontro com o próprio eu no caso da
mulher é bem mais árduo que no caso masculino, pois “ele passa por: falo
materno/castração/renúncia ao desejo da mãe/identificação com o pai (que pode ser fálico ou
saudavelmente potente)”, diferentemente do caminho percorrido pela mulher que
é um pouco mais exigente em suas provas. Ela começa igual: falo
materno/castração/renúncia ao desejo da mãe/identificação com o pai (desejado pela
mãe) – mas nesse ponto ela escorrega e tem que refazer a prova (...) a garota, ressentida
com a mãe traidora que a concebeu companheira de sua castração, reinicia a prova,
agora competindo pelo amor do pai. (...) a pequena competidora para se sair bem precisa
(...) renunciar ao desejo paterno, identificar-se com a mãe – rival mais odiada do que o
pai para o menino, já que a traiu duas vezes! – e apostar na chance de conquistar o amor
de outros homens ( o pênis, o amor sexual – já que o amor sublimado do pai ela pode
receber) a partir de sua condição de castrada.
(op. cit, p. 417).
Portanto, se por um lado, a psicanálise explica o enfrentamento da mulher em busca de
sua identidade de gênero na sociedade, a literatura, como a de Eavan Boland, abre a perspectiva
da compreensão do discurso feminino. Em “O Leque De Renda Preta Que Minha Mãe Me Deu”, a
persona-lírica qualifica “ela”, “adiantada” (“she”-“early”, verso 6), “ele”, “atrasado” (“he”- “late”,
verso 7) nos versos da segunda estrofe, quando se o início da série de ações narrativas que irão
59
compor a cena imagética presente neste poema. O desencontro dos tempos (adiantamento e
atraso) pode ser metonímico das diferenças de gênero (feminino e masculino) quanto a formas de
pensar e agir ou maneiras de abordar etapas do pensamento e da ação.
Podemos dizer que, sob a ótica das diferenças entre o feminino e o masculino, a escrita
pelas mulheres e a escrita sobre mulheres merecem destaque a medida em que representam
visualidades e visões advindas de processos subjetivos ímpares de traição entre discursos (de
gerações e enunciações diferentes) e tradução (reprodução e reapropriação de discursos e
crenças). No entanto, podemos perceber a travessia entre os espaços público e privado como um
movimento que ignora as peculiaridades de gênero, quando partem do público, pois pressupõem
um mundo de vozes e olhares mistos em gênero e, por isso mesmo, indiferentes à questão
específica do feminino, embora grande parte da escrita e da crítica irlandesa pelas mulheres a
partir dos anos 1960 reclame o contrário, ou seja, a voz pública que alcança a esfera particular da
existência manifestada na poesia irlandesa sempre recebeu a tônica falocêntrica. Aqui cabe
ressaltar o que Eavan Boland declara ter sido o seu parâmetro enquanto jovem, mulher e poetisa
ao tentar se posicionar na tradição irlandesa predominantemente masculina:
Eu teria que estar preparada, a cada encontro, abrir o meu coração e fechar minha
mente. (...) E que figura feminina haveria com quem me identificar? Não havia
mulheres nessas ruas do fundo. (...) Ela era a Irlanda ou Hibernia. (...) uma mãe ou uma
virgem. (...) Sua pele era de madeira ou tinta ou mármore. E ela não tinha falas. (...) Sua
identidade era como uma imagem. Ou era uma ficção?
77
(1995, p. 66).
E, como resultado dessa reflexão, a autora propõe a atitude da expressão, da escrita, como
reescritura do nacional, pelo olhar do feminino – “Presa nessas duas realidades, eu me tornei cada
vez mais intranqüila” (1944, p. 66). Para Boland, o retrato do nacional e do feminino e deste como
símbolo daquele é uma atitude simplista e reducionista, a menos que o feminino ocupe o lugar de
sujeito e passe a existir enquanto autoria de uma “retórica de imagens”, eixo dos poemas
ekphrásticos a que temos acesso.
Vale remetermo-nos aqui à idéia de Villar-Argáiz (2007) sobre o quê de mais significativo
Eavan Boland evidencia em seus poemas: o pertencimento à nação e à feminilidade enquanto
silêncios e ausências e disso decorrer “a inabilidade da artista (mulher) em representar a realidade
por meio da linguagem poética.”
78
Toma-se como pressuposto neste trabalho o fato de ser a
77
No original mais completo, “I had to be prepared, with each encounter, to open my heart and close my mind. (…) What female
figure was there to identify with? There were no women in those back streets. (…) She was Ireland or Hibernia. She was stamped,
as a rubbed-away mark, on silver or gold; a compromised regal figure on a throne. Or she was a nineteenth-century image of a
girlhood, on a frontispiece or in a book of engravings. She was invoked, addressed, remembered, loved, regretted. And, most
important, died for. She was a mother or a virgin. Her hair was swept or tied back, like the prow of a ship. Her flesh was wood or
ink or marble. And she had no speaking part. If her harvests were spoiled, her mother tongue wiped out, her children killed, then it
was for someone else to mark the reality. Her identity was as a n image. Or was it a fiction? “ (1994, p. 66).
78
Segundo Villar-Argáiz, “Boland´s poems focus on a female subjectivity and an Irish past which cannot be articulated in language.
The very title of the poems (…) indicate the inability of the female artist to represent reality by means of poetic language.” (2007,
p. 477-478).
60
comunicação incompleta, ou seja, de haver uma eterna incomunicabilidade em nossos atos
elocucionais, o que nos faz verificar aqui, então, que a dificuldade comunicativa é atenuada pelo
diálogo entre as artes, construído a partir da subjetividade das personas-líricas de Eavan Boland.
Em outras palavras, os movimentos do público ao privado e vice-versa, típicos dos momentos
ekphrásticos encontrados nos poemas em questão revelam que o transitar entre as representações
das esferas de percepção de mundo são discursos dialógicos que, por sua vez, permitem uma
menor incomunicabilidade, ou, para sermos mais otimistas, uma maior comunicabilidade.
Assim, ao retomarmos o poema “O Leque de Renda Preta Que Minha Mãe Me Deu”,
notamos que o leque, presente do pai à mãe e desta, à filha, é objeto metonímico da atribuição
ganha pela filha persona-lírica do poema em questão - em sua disputa com a mãe, metáfora da
língua. A persona-lírica elocuciona a cadeia de transferências da prenda e, a cada passagem, de
maneira gradativa, ascende o valor de sua troca: a linguagem, a transposição imagética ao poema
ekphrástico, construção intercambiável de identidades: o masculino o feminino o feminino
o mundo: do privado ao público e deste, de volta à esfera particular do espectador/leitor. Deve-se
notar que nunca visualizamos o encontro dos enamorados na cena narrada descritivamente, apenas
o supomos “no calor sufocante” e no pensar da “distância que cheirava chuva e relâmpago” (“O
calor estava sufocante. Ela pensou que a distância cheirava chuva e relâmpago”/“The heat was
killing./ She thought the distance smelled of rain and lightning”, verso 12). Por isso, citamos há
pouco o encontro-desencontro dos amados, que também metonimiza o encontro do falante com a
língua, do enunciador com a linguagem, do nosso mundo com a comunicação, relações
fragmentárias e incompletas, que acontecem nas travessias entre público e privado (e vice-versa) e
que
An airless dusk before thunder. A man running
And no way now to know what happened then
(versos 22, 23)
na abafada aurora antes da trovoada. Um homem corre.
Sem podermos saber o que acontecerá, então
Boland, em seu artigo “In Search of a Language” (1995) fala do espaço da escrita feminina na
esfera da criação, ambiente particular e íntimo da poetisa, a partir do contacto com o que é
público, no caso, a história literária irlandesa: “Aqui nesta língua morta, nunca ouvida nesta ilha
antes, nunca escrita para mulheres, atingi um constructo que permitia me infiltrar pelo meu
próprio sentido de poder e desejo de concretude.” (1995, p. 84)
79
.
Em ensaio reunido na mesma coletânea (“Turning Away”, em Object Lessons, de 1995) a
poetisa confessa que a sua relação com a tradição mostra-se sempre conturbada no sentido de falta
de encontro identitário e como este mesmo deslocamento acabou por se tornar o motivador de seu
trabalho de escrita: “Isso era um convite constante a me fazer alterar o mundo interior, fazê-lo
79
No original, “Here in this dead language, which had never been heard on this island, which had never been written for women, I
came upon a construct which admitted me through its own sense of power and my longing for it.” (1995, p. 84).
61
aceitável as convenções da poetisa que em mim se desenvolveram e que se tinham desenvolvido e
tornado consensuais no mundo a minha volta.”
80
Assim, falar de si pelo outro proporcionaria uma travessia mútua do público ao privado (e
vice-versa) que se estabeleceria perfeitamente a partir da forma ekphrástica. E a lógica presente
nessas composições, então, seria: os outros compõem-me e me reconfiguram como sujeito, a
medida que eu mesma os reorganize pela óptica não mais silenciada de minha subjetividade.
Neste sentido, a escrita é um exilar-se e, como tal, um olhar mergulhado na alteridade,
foragida de si:
o olhar do poeta deforma o mundo para o desvendar, perde-o para recuperá-lo mais
nítido. A perda do objeto pelo olhar, e pela palavra em que se tenta fixá-lo, é cisão
irreparável no pensamento e no discurso, mas é apenas o preço provisório da
reconquista poética. (PERRONE-MOISÉS, 1988, p. 345).
Bosi (1988, p. 82) declara haver
um parentesco entre o olhar do outro e o meu corpo vivo, que remete a ´um único
mundo´. Essa afinidade, ou essa ´intercorporalidade´, consagra-se de modo eminente no
ato amoroso e no fazer artístico, pois em ambos se eclipsa, ao longo do processo de
união – criação, a dualidade de eu e outro.
Ainda assim, faz-se necessária a lembrança de que os efeitos do olhar, ou seja, a identidade neste
inserida no processo de negociação entre uma imagem e o que se vê residem em uma esfera
ampla, pois o posicionamento identitário de quem olha responde ao pertencimento a discursos e
instituições já existentes.
81
No que tange a tradição irlandesa, Heaney (1984) assume que:
Independente de nosso credo ou posicionamento político, independente de como a
cultura ou subcultura delineou nossa sensibilidade individual, nossa imaginação
consente ao estímulo dos nomes, nosso sentido de lugar é suspenso, nosso sentido de
nós mesmos como habitantes não apenas de uma geografia, mas também de um país da
mente consolida-se. É tal casamento igualitário de sentimento, consentimento entre o
país geográfico e o país da mente (…) é tal casamento que se constitue em um sentido
de país em sua mais rica manifestação possível.
82
Assim, para Heaney, o local se faz a partir tanto da experiência vivida, do inconsciente
desordenado, quanto da experiência consciente e aprendida, da razão e da emoção, da lógica do
80
“It was the constant invitation to alter my inner world to make it acceptable to the conventions of the poet which had developed
and were sustained all around me.” (1995, p. 117).
81
Essa idéia é assim expressa originalmente em Mitchell “But the question of ´effects´ and ´identity´does not merely reside in the
encounter between an image and an eye: it also engages the status of the metapicture in a wider cultural field, its positioning with
respect to disciplines, discourses and institutions.” (op. cit, p. 57).
82
No original, “Irrespective of our creed or politics, irrespective of what culture or subculture may have coloured our individual
sensibility, our imagination assent to the stimulus of the names, our sense of the place is enhanced., our sense of ourselves as
inhabitants not just of a geographical but of a country of the mind is cemented. It is this feeling, assenting, equable marriage
between the geographical country and the country of the mind (…) it is this marriage that constitutes the sense of place in its
richest possible manifestation.” (HEANEY, 1984, p. 132).
62
mundo que nos cerca e nos constitui e da esfera imaginária dos mundos que habitamos e que nos
moldam. O pertencimento a uma localidade particular compromete o poeta em sua dimensão
política, pois tal pertencimento requer inevitavelmente o revelar de atitudes condizentes ou
contrárias aos acontecimentos que o cercam. Sobre tal questão, ao apontar o caráter “dúplice” da
identidade do poeta Heaney, Homem (1994) declara que
(…) a escrita pode comportar, para além da emancipação e da legitimidade através da
traição praticada sobre a tutela imperial, os sentidos contrários do aprisionamento em
complexas responsabilidades, da (também) traição por ---- passividade face às
expectativas geradas pela sua formação privilegiada (e rara entre os seus até à sua
geração) e pela autoridade pública de que pode gozar no uso da palavra. (op. cit, p. 544).
Tal afirmação vem ao encontro da compreensão do uso poético da palavra na Irlanda,
posterior aos anos sessenta, sobretudo, entre as mulheres, pois estas desestabilizaram o sentido
tradicional do local de enunciação poética. Em Boland, como em outras poetisas contemporâneas
da Irlanda hoje, o local de onde se fala é o espaço entre fronteiras, a nebulosa área do
desconhecimento acerca de nós mesmos, nossas identidades, sobretudo as aquelas relativas ao
universo feminino.
É nesse sentido que a escrita é veículo ao encontro do conhecimento, que é
“necessariamente incompleto, apesar de ser a única maneira de alcançar o cerne de qualquer
questão e encontrar o lar novamente” (STEINER, 1991, p. 7)
83
. Devemos, também, lembrar que o
conhecimento está além da razão e que “Para conhecer basta abrir bem os olhos em um espaço
iluminado e acolher os levíssimos e agilíssimos ícones do mundo.” (BOSI, 1988, p. 67).
E é no mundo do acolhimento que a poesia de Boland, em toda a sua dimensão intimista e,
ao mesmo tempo, reflexiva do pertencimento, desloca-se entre os complexos temas do
nacionalismo irlandês e do feminino e se concretiza imageticamente:
We walk home. What we know is this
(and this is all we know): We are now
and we will always be from now on –
for all I know we have always been –
exiles in our own country.”
(BOLAND, 2007, p. 20.)
Caminhamos para casa. O que sabemos é isso
(e isso é tudo que sabemos): Somos agora
e sempre seremos, a partir de então –
pelo tudo que sei do que sempre fomos –
exilados em nosso próprio país.
A consciência do exílio só é possível no distanciamento proporcionado pela linguagem poética,
onde o eu-lírico pode expressar o seu desejo:
I have always wanted a world that is cured of the
outdoors.
A household without gods.
Walls arriving, entrances taking shape, verticals meeting
Sempre quis um mundo que fosse livre do exterior
Um lar sem deuses
Muros sucedendo-se, entradas ganhando forma, vértices
encontrando
83
No original, “(…) knowledge is necessarily incomplete; yet (…) is the only way to reach the point at the centre and to find one´s
way home again.” (1991, p. 7).
63
horizontals: a where fetching a now:
(BOLAND, 2007, p.37)
horizontais: um onde alcançando um agora.
Neste caso, a escrita propõe-se a acolher o local (o onde, “where”) e o tempo (o agora, “now”), de
maneira a fazer revelar o conhecimento do fio tênue que conecta uma geração a outra, a memória
daquilo que é fugaz, o próprio local, aquilo a que atribuímos posse e que nos escapa desde o
sempre:
The ground I stood on was never really mine. It might
not ever be theirs.
(BOLAND, 2007, p.28)
O solo em que me sustentei nunca fora realmente meu.
Pode nem ser delas.
Este mesmo poema, “Inheritance” (“Herança”), faz alusão a um tipo de conhecimento
essencialista, relativo à existência feminina, do saber antes do tempo e ao longo dele:
When dawn came I had my hand over the absence of fever,
over skin which had stopped burning, as if I knew the secrets
of health and air, as if I understood them
and listened to the silence
and thought, I must have learned that somewhere.”
(ibid idem)
“Quando a madrugada chegou, pousei minha mão sobre a ausência de
febre
sobre a pele que parara de queimar, como se eu conhecesse os segredos
da saúde e do ambiente, como se eu os compreendesse
e ouvi o silêncio
e pensei: “devo ter aprendido isso em algum lugar.
A domesticidade neste trecho apresentada refere-se a imagens imprecisas – madrugada, mão,
pele, ar (“dawn”, “hand”, “skin”, “air”) – na aparentemente obscura associação entre elas, a
qual atinge contraditoriamente a ambígua precisão do algum lugar (“somewhere”), local de exílio,
local desconhecido, conscientemente desconhecido, local de herança e de discurso, fonte de
enunciação e espaço de reflexão do hoje, de onde se fala. A cadeia imagética madrugada, mão,
pele, ar, algum lugar no contexto de zelo da mãe pela filha mostra-se simbólica do conhecimento
essencialmente feminino, e que por isso, denota obscuridade aparente, desemboca no som do
silêncio, sentido do poema
and listened to the silence
and thought, I must have learnt that somewhere.
(BOLAND, 2007, p.28)
e ouvi o silêncio
e pensei: “devo ter aprendido isso em algum lugar.
O escritor, filósofo e crítico literário Maurice Blanchot (1955) sugere dois tipos de silêncio para
que uma obra artística aconteça: um relativo à voz da autoria artística, portanto, o silêncio
violento e doloroso que acompanha o momento da criação artística e o outro, o silêncio do leitor
e, portanto, da recriação. Neste caso, o eu-lírico evoca metalinguisticamente o silêncio da poetisa
que, permite à ekphrase ressignificar a importância autoral da imagem. O entrecruzamento do
silenciamento feminino e da autoria imagética refere-se ao mito de Philomela, irmã de Procne, e
violentada e tornada muda pelo próprio cunhado, Tereus, a fim de não revelar o que lhe
64
acometera. A representação ekphrástica de Ovídio é provavelmente uma das mais aclamadas na
história da literatura ocidental e Boland a reconta e a reapropria para exemplificar o caso da
escritora irlandesa contemporânea no poema “Silenced” (“Silenciada”).
Silenced
In the ancient, gruesome story, Philomel
was little more than an ordinary girl.
She went away with her sister, Procne. Then
her sister´s husband, Tereus, given to violence,
5- raped her once
and said he required her silence.
forever. When she whispered but
he finished it all and had her tongue cut out.
Afterwards, she determined to tell her story
10- another way. She began a tapestry.
She gathered skeins, colours.
She started weaving.
She was weaving alone, in fact, and so intently
she never saw me enter.
15- an Irish sky was unfolding its wintry colours
slowly over my shoulder. An old radio
was there in the room as well, telling its won
unregarded story of violation.
Now she is rinsing the distances
20- with greenish silks. Now, for the terrible foreground,
she is pulling out crimson thread.
(BOLAND, 2007, p. 17)
Silenciada
Na antiga, repulsiva história, Philomel
era pouco mais do que uma garota comum.
Partiu com sua irmã, Procne. Então,
o marido de sua irmã, Tereu, dado à violência,
5- certa vez a violentou
e lhe disse que exigia silêncio.
para sempre. Quando ela sussurou mas
ele terminou tudo e cortou sua língua.
Em seguida, ela decidiu contar sua história
10- de outra maneira. Iniciou uma tapeçaria.
Juntou meadas, cores.
Começou a tecer.
Na verdade, ela tecia sozinha e tão aplicadamente
que nunca notou-me entrar.
15- um céu irlandês estava a desdobrar suas cores de inverno
vagarosamente sobre meu ombro. Um rádio antigo
estava lá na sala, também, a contar a sua própria história
neglicenciada de violação.
Agora ela está a apagar as distâncias
20- com sedas verdejantes. Agora ela arranca o fio carmesim
para o terrível primeiro plano.
A poetisa ao retomar a figura de Philomela, símbolo da supremacia poderosa da imagem
sobre a fala, ou seja, da imagem que fala, por meio de seu eu-lírico, justapõe dois tempos: o
mítico, que é mesmo um tempo fora do tempo, e o presente, de onde se fala, a partir da quinta
para a sexta estrofes, quando o eu-lírico intervém na cena narrada, por meio de sua própria
inserção e, também, quando aparece o ambiente do “céu irlandês” (“an Irish sky”, verso 15),
introduzido pela alteração dos tempos verbais (passado e presente): “ela tecia sozinha” x “agora
ela está a apagar as distâncias” (“she was weaving alone” x “now she is rinsing the distances”),
versos 13 e 19, a nos fazer crer que Philomela, então, metaforiza a escritora irlandesa
contemporânea, autora de sua própria história, sujeito agente de sua própria narrativa. Note-se que
o título do poema “Silenced” (“Silenciada”) retoma a primazia da imagem como recurso ao
silenciamento imposto pela autoridade masculina, justificativa plausível à escolha da ekphrase
como recurso ao alcance da voz feminina na tradição predominantemente masculina, pois tal
recurso, ao confirmar a prevalência da força imagética, apagaria a distância entre a história
legitimamente contada (e aceita) e a recontada (e, até então, silenciada), como Philomela. Eis o
que a autora denominará “retórica do imaginário” (“rhetoric of imagery”), uma maneira de unir o
nacional e o feminino, a fim de ultrapassar os limites de seu não-pertencimento, sem o quê ela
65
“muito provavelmente permaneceria uma outsider” (BOLAND, 1995,
p. 128) em sua própria literatura nacional. É desta forma que a atitude de “repossuir”
(“repossession”) incita uma sequência de imagens que possam nomear o país, a terra, o corpo e a
voz. Nomear o silêncio é rompê-lo, seja através da estridente voz da imagem pública da nação,
recontada por meio da intimidade subjetiva da persona-lírica, que é neste ato tornada pública, em
um processo de privatização do público, simultâneo à publicação do privado, seja por meio da
silenciosa precisão descritiva do recontar subjetivo de impressões vividas, como em “O Leque de
Renda Preta Que Minha Mãe Me Deu”. Em ambos os casos, temos transições simultâneas entre as
esferas pública e privada: o relato de uma imagem existente publicamente só acontece por
intermédio da percepção visual sentida na subjetividade do eu-lírico, que rompe o silêncio
público, ao revelar o seu discurso íntimo e tornar publicamente acessível o relato de uma imagem
subjetiva, também em forma ekphrástica. Isso acontece através do discurso verbal, que é comum,
e que ao materializar a subjetividade íntima da persona-lírica, permite o acesso ao mundo público
a que tal subjetividade pertence e sem o qual jamais qualquer discurso subjetivo seria possível.
Deve-se atentar ao fato de que a escrita, enquanto grafia representativa de sons, é
primeiramente imagem:“A escrita em sua forma gráfica é uma sutura inseparável entre o visual e
o verbal, a incarnação do ´textoimagem´.”
84
Além disso, a ekphrase reitera a primazia temporária
do ícone, da imagem no domínio da razão, logos – conforme proposta por Panofsky – muito
embora, a aliança entre imagem e linguagem, neste caso da ekphrasis, é a que se deve atentar
(MITCHELL, 1995, p. 24). Afinal, “ekphrasis, pictorialismo e identidade não são mutuamente
excludentes”, embora a ekphrasis “explicitamente represente uma representação mesma.”
(HEFFERNAN, 2004, p. 4).
Assim, quando pensamos nos termos de Heffernan (2004), a imagem representa fixidez,
associa-se à descrição, diferentemente da palavra, que se atém ao movimento e, por conseguinte, à
narração. “A Fotografia na Escrivaninha de Meu Pai”, “O Carrossel No Parque” e “O Leque de
Renda Preta Que Minha Mãe Me Deu” são descrições instantâneas de objetos que repercutem
metonimicamente a memória e nos remetem ao pertencimento, presente em narrativas de exílio
(cá metonimizadas por Boland no poema “Exílio”). Em tais narrativas de exílio, no espaço da
distância, vê-se privilegiadamente e se denuncia o silêncio, tornando-o ruidoso.
Para Hollander (1995) o poema que, ao transpor imagens em palavras, representa uma
obra de arte imaginária, ou se utiliza de imagens visíveis à imaginação é uma ekphrase conceitual
(“notional ekphrasis”). Tal noção opor-se-ia a de ekphrase real (“actual ekphrasis”), a qual
84
“Writing, in its physical graphic form, is aan inseparable suturing of the visual and the verbal, the
´imagetext´incarnate.” (MITCHELL, 1995, p. 95).
66
representaria um objeto real, seria uma representação de outra representação existente na
realidade.
Podemos dizer que as palavras suspendem ainda que temporariamente o deslocamento da
existência, ao assumi-lo como ponto de partida, em sua capacidade representativa e ekphrástica:
É como se o poeta tivesse descoberto a inevitável futilidade de nossa tentativa comum
em representar verbalmente. Tal futilidade apresenta-se no prefixo re de representar. As
palavras são indícios vazios e atrasados porque buscam referir-se aquilo que está em
outro lugar e já aconteceu antes. Qualquer intenção das palavras em apresentar a
realidade é frustrada pelo prefixo re, que demanda aquilo que elas representam – o que
já se apresentou pessoalmente – teve sua presença, sua presentificação em outro canto e
anteriormente.
85
Dessa maneira, o poema ocupa o lugar da ausência, uma espécie de presença sempre ausente, ou
de ausência que sempre se presentifica no verbo que pretende ser imagem – no caso do poema
ekphrástico, sobretudo, pois é aí que a representação refere-se ao já representado, aquilo que se
representara de outra maneira e, no poema, se “re-representa” ou apresenta o já representado.
Portanto, apesar de seu caráter descritivo, a ekphrase ao remeter o objeto representado à fonte de
sua representação, a própria representação, permite um estreitamento à ideia de plausibilidade
comunicativa, pois faz vir à tona a questão da representação e, portanto, da sempre ausência,
como central à comunicação e, portanto, também ao discurso artístico.
Paz (1986, p. 14) define o poema não como “uma forma literária mas o lugar de encontro
entre a poesia e o homem”. Então, pensar poemas como figurações de sentimentos e
representações do humano significa estabelecer diálogos entre as diferentes formas poéticas - a
linguagem dos versos, as imagens nela contidas, a sua música – que na intersecção de diferentes
linguagens, compõem o grande poema que é a história das diferentes subjetividades de
leitor(es)/autor(es) e poetas.
Os poemas escolhidos nesta parte da tese propiciam-nos exemplos ekphrásticos na obra de
Boland e como esses momentos compõem travessias entre esferas presentes em todo o processo
comunicativo (do público ao privado e vice-versa).
Na próxima parte, verificaremos como a ekphrase constitue-se em uma mola propulsora
do encontro dos “eus”: o “eu-mulher” e o “eu-poetisa”, capazes de refazer a tradição irlandesa,
atribuir-lhe uma voz diferenciada, a partir do ir-além (metafórico) presente na transposição
pictural ao verbo. Nessa verificação, observaremos os efeitos dos tipos diferentes de ekphrase
(conceitual e real, “notional” e “actual”) enquanto recursos, momentos de alcance ao ápice do
85
“It is as if the poet has discovered the built-in futility of our usual attempt at verbal representation.That futility is carried in the
prefix, the re of represent. Words are empty and belated counters because it is their nature to seek to refer to what is elsewere and
has occurred earlier. Any pretension by them to present reality is frustrated by the re, which requires that what they would
represent – what has already presented itself in person – has had its presence, its presentness, elsewhere and earlier.” (MURRAY
KRIEGER, 1988, p. 214).
67
encontro desses “eus”: o auto-retrato e a sua ocorrência na obra de Boland, por sua vez,
metonímicos da metalinguagem do fazer poético e, acima de tudo, do alcance da multiplicidade
dos olhares-outros, olhares-meus, que são do próprio leitor, em constante diálogo, no processo
interminável de tecitura de sentidos e ressignificações.
68
Parte II
Da Palavra à Imagem
Ao rememorar experiências particulares e tão íntimas como as elocucionadas nos poemas
“A Fotografia Na Escrivaninha de Meu Pai”, “O Carrossel No Parque”, “O Leque de Renda Preta
Que Minha Mãe Me Deu”, Boland retoma o tema do deslocamento feminino na sociedade
irlandesa, sobretudo, na esfera literária, o que se torna contundente no poema “Exílio, Exílio!”,
permitindo-nos o contacto com a subjetividade feminina e o ambiente doméstico da mulher por
esta retratado, em uma clara demonstração da inabilidade linguística em expressar toda essa
problemática histórica a que faz menção, conforme atesta Pillar Villar-Argáiz (2007, p.477). No
entanto, verificaremos que a autora consegue superar as limitações da linguagem, ao integrar as
linguagens artísticas (pictórica e poética), transformá-las em um recurso metonímico maior, o da
reflexão sobre a própria arte do verso e do fazer poético. Observaremos, então, como a ekphrase
estreita-se com a idéia da plausibilidade comunicativa e, para melhor compreendê-los,
subdividiremos os seus momentos de ocorrência.
Para Borges (2000, pp.18, 119), o ofício da escrita, o trabalho do escritor tem a ver com o
fato de ser fiel a própria imaginação:
O que significa ser um escritor para mim? Significa simplesmente ser fiel a minha
imaginação. Quando escrevo algo, não o tomo como factualmente verdadeiro (o simples
fato é uma trama de circunstâncias e acidentes), mas como fiel a outro algo mais
profundo. Quando escrevo uma história, escrevo-a porque de alguma forma acredito
nela – não como se acredita na simples história, mas antes como se acredita num sonho
ou numa idéia.
Mais adiante, Borges aponta serem as palavras “símbolos para memórias partilhadas.” (op.cit., p.
122). É exatamente isso que transparece no trabalho de Boland (1995, p.18):
Senti crescentemente a distância entre a minha própria vida e a minha experiência
vivida e as interpretações convencionais tanto da poesia, quanto da vida do poeta. Não
era exatamente ou remotamente que as recorrências de meu mundo – o rosto de uma
criança, o botão de uma máquina de lavarestivessem ausentes da tradição, apesar de
estarem. Não era nem o fato de eu ser mulher. Mas, o fato de como mulher, eu ter
ingressado em uma vida para a qual a poesia não tinha nome.
86
Neste trecho, Eavan Boland explicita a desconexão entre o seu cotidiano doméstico e o
perfil social, convencional de poeta, como se a esfera da vida privada jamais se conformasse com
86
“I felt increasingly the distance between my own life, my lived experience and conventional interpretations of both
poetry and the poet´s life. It was not exactly or even chiefly that the recurrences of my world – a child´s face, the
dial of a washing machine – were absent from the tradition, although they were. It was not even so much that I was a
woman. It was that being a woman, I had entered into a life for which poetry has no name.” (BOLAND, 1995, p.
18).
69
a vida pública e social da poetisa. É desta maneira que a sua escrita ensaística e poética vê-se
justificada em tópicos que remontam tanto o feminino e o doméstico, quanto a nação e a vida
artístico-social, por meio da representação da linguagem. Ao tratar da relação entre linguagem e
pensamento, sobretudo aos estudiosos voltados à educação, L.S.Vygotsky (1994, p.132) afirma
que:
O pensamento e a linguagem, que refletem a realidade de uma forma diferente daquela
da percepção, são a chave para a compreensão da natureza da consciência humana. As
palavras desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento,
mas também a evolução histórica da consciência como um todo. Uma palavra é um
microcosmo da consciência humana.
Para o autor, “o problema geral da consciência” (ibidem) é o cerne da questão da linguagem, o
que faz com que esta tenha como característica principal o uso das palavras como “uma reflexão
generalizada da realidade” (idem, p. 131-132). No entanto, o discurso poético é imbuído de
metáfora, o que lhe permite tornar a linguagem apenas um veículo para aquilo que se pretende
representar. Ou seja, com a poesia, temos a dimensão de que os sentidos estão além da linguagem,
encontram-se além daquilo que a linguagem representa. Por isso, a linguagem poética torna-se
ainda mais relevante, já que a poesia surge como uma fonte que apresenta a vida interior da
poetisa, em busca da vida subjetiva da mulher, ainda que a partir da perspectiva da voz feminina e
pública: a da mulher social, imaginada e retratada em referências imagéticas e alusões à pintura, o
espaço público da existência, tanto em sua visualidade, quanto em sua visibilidade na poesia. É
provável que possamos aproximar a consideração que Diane Wood Middlebrook fez da poesia de
Anne Sexton daquela realizada por Eavan Boland: “a poesia mais pessoal tem sua fonte no poder
das palavras para irradiar significados que estão além da intenção consciente do poeta.” (1994, p.
89). Para Middlebrook, “um poema deve ser capaz de (…) levar as pessoas a agir.” (op. cit., p. 84)
pois a ação inicial de tornar público o sentimento privado iniciara-se já na ação poética.
Além disso, ver é uma ação e a isso se propõe o autor-leitor do poema ekphrástico. Se para
Hollander, os poemas ekphrásticos “compartilham o obstáculo comum e retórico de representar na
linguagem aquilo que está em si sendo representado visualmente ainda que para além disso.”
87
(1995, p. 4), Heffernan considera que “toda ekphrase revela implicitamente a inseparabilidade da
representação e da falta de representação.” (2004, p. 114)
88
. Ambas as afirmações conduzem-nos
à idéia de que o poema acontece na intersecção dos tipos diversos de linguagem: a voz pública da
mulher na sociedade e na história, a subjetividade dessa mulher enquanto poeta e sujeito e os
meios diferentes de expressão (linguagens visual e verbal, neste caso). Essa reflexão nos leva a
ponderar algumas questões fundamentais à compreensão das dinâmicas presentes na diferença
87
Os poemas ekphrásticos “share the common rhetorical predicament of representing in language what is itself
representing visually yet something else.” (1995, p. 4).
88
“(…) all ekphrasis implicitly reveals: the inseparability of representation and misrepresentation.” (2004, p. 114).
70
entre imagem e palavra. Primeiro, o tipo de poema ekphrástico, conforme pensado por Heffernan
(2004) e Hollander (1995): dada a simultânea intersecção entre as artes, a pintura como objeto de
inspiração do discurso poético ou o texto literário como motivador da criação pictórica –
“ekphrase real” ou “ekphrase conceitual”, respectivamente. Márcia Arbex (2006) defende o
emprego dos termos transação, transposição, tradução, enfim, diálogo entre pintura e poesia, ao
se referir à ekphrase. Segundo, como as imagens inserem-se na poesia, isto é, qual a relação entre
imagem e palavra? Tal relação é intratextual ou extratextual? O movimento do texto à imagem e
vice-versa é bem controlado ou a referência ao quadro é apenas alusiva e/ou referencial? Em
seguida, essa reflexão sobre o tipo de relação entre imagem e palavra nos conduz a que efeitos
significativos? Por fim, ser-nos-ia possível sustentar a diferença entre o que se lê e o que se vê, o
texto e a imagem e ainda manter uma constante união entre os meios artísticos comunicativos e
incomunicáveis: pintura e poesia?
Estudos recentes, dedicados ao diálogo entre poesia e pintura, como os de Carvalho
Homem (2006) sobre as representações visuais na poesia ekphrástica de Ciaran Carson e Medbh
McGuckian, mostram a necessidade da leitura integrada das artes que se cruzam. Carvalho
Homem esclarece: “uma das falácias mais persistentes que rondam a representação visual diz
respeito a suposta literalidade de sua apropriação do real, especificamente, quando tal
representação aparenta ser figurativa ou ilusionista (…)”
89
Além disso, ao comentar o trabalho desses poetas, Carvalho Homem diz que há uma
espécie de fronteira indistinta entre ver e ler e que as pinturas e a escrita nesses autores estão em
intersecção (2006, p. 188).
Ao nos reportarmos à poesia ekphrástica de Eavan Boland, leremos como há aí um
movimento que parte da voz pública e alcança a instância do privado, parte do social e atinge o
individual, como se o diálogo entre pintura e poesia tivesse como ponto de partida a esfera pública
da imagem e rumasse à estrada da interioridade subjetiva da linguagem verbal, que pode também
ser a fonte da “ekphrase conceitual”. Também, pressupomos que é no alcance da geografia mais
distante, a interior, a do self, que a base da comunicação, a incomunicabilidade, pode ser
temporariamente suspensa e, assim, criar espaço à comunicação efetiva. Tal percurso é possível
porque a transposição de um lugar a outro (do público ao privado, da imagem à palavra) implica
no uso de uma linguagem discursiva múltipla, mais completa, quando integrada, cujos meios de
expressão são igualmente comunicáveis, apesar das dificuldades de tradução.
Portanto, a fim de seguirmos as reflexões estabelecidades anteriormente, contornaremos a
partir de agora o caminho das palavras à imagem, ou seja, verificaremos como as imagens saltam
89
No original, “one of the most persistent fallacies surrounding visual representation concerns the supposed literalness
of its appropriation of the real, in particular, when it purports to be figurative or illusionistic (…)” (Homem, 2006,
p. 190).
71
da página à imaginação do leitor/ouvinte dos poemas aqui escolhidos de Eavan Boland, de
maneira a examinarmos um exemplo de ekphrase conceitual. Começaremos por “O Rio” (“The
River”), prosseguiremos em “Distâncias” (“Distances”), “Lar” (“Home”) e, finalmente, “Exílio!
Exílio” (“Exile! Exile!”) e, desta maneira, averiguaremos inicialmente os efeitos de sentido da
“ekphrase conceitual” e da relação entre a a palavra e a imagem nestes casos em que estas saltam
das palavras, pois são primeiro retoricamente imaginas, conforme estabelece Boland (1995a) .
Segundo Dhomhnaill (2005, p. 1290-1297), o poema acontece na intersecção do eterno e
místico com o doméstico, ou seja, quando algo simples se transforma em um “símbolo genuíno de
significação metafísica”. Pode-se dizer que os poemas de Eavan Boland, em sua maioria, trazem o
momento prosaico, o doméstico, a memória, tanto subjetiva, quanto coletiva, e a questão da
existência como tópicos recorrentes.
The River
You brought me
to the mouth of a river
in mid-October
when the swamp maples
5- were saw-toothed and blemished.
I remember
how strange it felt –
not having any
names for the red oak
10- and the rail
and the slantways plunge
of the osprey.
What we said was less
than what we saw.
15- What we saw was
a duck boat, slowly
passing us, a hunter and
his spaniel and
his gun poised,
20- and, in the distance,
the tips of the wild
rice drowning in
that blue which raids and
excludes light.
(BOLAND, 1991, p.27)
O Rio
Você me trouxe
à foz do rio
no meio de outubro
quando os bordos úmidos
5- estavam enroscados e carcomidos
Eu me recordo
o quão estranho foi
não ter nenhum
nome ao carvalho vermelho
10-e ao estercorário
ao salto inclinado
da águia-pesqueira
O que dissemos foi menos
do que vimos
15- O que vimos foi
um barco de pesca vagarosamente
passando por nós, um caçador e
seu spaniel e
sua arma em riste
20- e, na distância,
as pontinhas do arrozal
selvagem se afogando
o azul que invade
e exclui a luz.
“O Rio”, do livro Object Lessons (Lições Objetivas), retrata uma cena prosaica, do eu-
lírico com um interlocutor. Ambos observam a imagem que se passa no rio a sua frente: um barco
de pesca, um caçador e seu cão e a sua arma a tiracolo e, à distância, a plantação de arroz,
mergulhada nas águas densas. O que mais chama a atenção do leitor, a princípio, é a afirmação do
eu-lírico sobre o que é visto, muito mais repleto de informação do que o que é dito:
72
What we said was less
than what we saw.
(versos 13, 14)
o que dissemos foi menos
do que vimos…
O pressuposto de que a linguagem nunca nos alcança de fato, ou seja, de que a
comunicação sempre nos escapa pela incomplitude de sua competência é o eixo que move o
desejo de escrita em Eavan Boland, porque é a insuficiência da comunicação linguística que gera
o desejo de eterno elocucionar, valorando a linguagem, portanto, com um poder crescente. Neste
sentido, as imagens e a sua retórica colaboram na formação de um discurso que seja mais
completo na evidência do sentido. A sucessão de poemas intensamente imagéticos mostra-se
como uma tentativa de traduzir o sentido visual ao universo das palavras e, também,
particularmente, o contrário, ou seja, fazer do discurso verbal o veículo ao encontro do mundo das
imagens, como se a utopia
90
deste ressignificasse o onírico, ao transpô-lo em uma linguagem
também incompleta. Assim, as palavras apresentam uma transparência comunicativa
hierarquicamente mais verossímil que a imagem (ARBEX, p. 35), no sentido de que devem ser
capazes de comunicar aquilo que passa silenciosamente pela comunicação visual imediata. Em
um outro poema, do livro Outside History (Fora da História), “Hanging Curtains With An
Abstract Pattern In A Child´s Room” (“Suspendendo Cortinas Decoradas Com Desenhos Num
Quarto Infantil”), a persona-lírica elocuciona:
all the signs we know
are only ways
of coming to our senses.
(BOLAND, 1991, p.64)
todos os signos que conhecemos
são apenas maneiras
de nos fazer voltar aos sentidos.
91
Tais versos esclarecem a série de imagens antevisionárias, impostas pela linguagem verbal, que
aqui se revela igualmente utópica: o eu-lírico antevê/antecipa o que se poderá ver ou,
subjetivamente, o que se poderia ver a partir da suspensão das cortinas do quarto infantil, como
quando se suspende uma linguagem, um meio de se comunicar e se nos apresenta todo um outro
universo, capaz de interagir também com nossas subjetividades, como é o caso de
“my skirt the color of
all the disappointments of a day when...”
(BOLAND, 1991, loc.cit.)
“minha saia com a cor
de todas as frustrações de um dia (…)”
90
A utopia de que aqui se fala, referente ao mundo das imagens, diz respeito, sobretudo, à capacidade metonímica destas, pois
enquanto representativas, as imagens são também instantâneas e alusivas a múltiplos contextos plurais. Assim, o que rege a
utopia do discurso imagético é a simultaneidade da particularidade que representa – poder ser uma representação fiel e perfeita
daquilo a que se alude - e dos universos alusivos a que faz menção.
91
Esses versos apresentam uma ambivalência, pois coloquialmente significam “cair em si”, regressar a uma atitude de sensatez.
Literal e comumente esta expressão salienta o sensorial, fazer voltar aos sentidos, que pode também sugerir metaforicamente o
retorno à razão (ver poema em Anexo I).
73
Isso nos remete à idéia já postulada por Paz (1986) de que o poema não revela a verdade, mas o
que poderia ser verdadeiro, apesar de toda a obstinada tentativa do poeta em revelar a verdade,
pois esta é um conhecimento subjetivo e intransponível pelo caráter deficitário das palavras. Neste
sentido, a importância do universo poético mostra-se ainda mais forte, uma vez que é o poema o
espaço de conjugação dos opostos e das múltiplas referências que coexistem e convivem. Para
Boland (1995a) a busca da verdade é uma espécie de obrigação sua enquanto poetisa que se utiliza
da “retórica do imaginário”.
A referência histórica (a partir da qual o poema se situa a favor ou contra, nas tradições
literárias) é apenas exterior e o poema supera qualquer temporalidade, localizando-se na provável
conjugação dos tempos, momentos e sentidos. Se o poema está na mística suspensão do tempo,
estar fora da História é suspendê-la, transformar a arte do verso na possibilidade do sublime. O
poema de Boland que dá título ao livro de mesmo nome, “Outside History”, declara o rito de
passagem do tempo histórico ao mítico. Este é o movimento de escolha do eu-lírico, seja ele
metonímico ou, no mínimo, metalinguístico do processo de inserção da escrita da poetisa, que
declara: “And we are too late. We are always too late.”, cuja tradução é “(…) estamos muito
atrasados. Estamos sempre muito atrasados.” Esse verso deixa-nos a dúvida do atraso: será o
atraso na comunicação linguística ou imagética? Na verdade, em nenhuma das duas, mas na
separação de ambas, assim, como a proximidade com os tempos (mítico e histórico) relacionar-se-
ia à junção complementar de uma modalidade comunicativa e outra. A percepção de que as
comunicações diferentes se complementam revela também a transformação das comunicações em
recursos mais completos, mais transparentes e, portanto, mais dispostos à verossimilhança do que
na ocorrência da mediação isolada das artes. Para além disso, a poetisa aí novamente se posiciona
perante à tradição de origem, nomeadamente, a tradição poética irlandesa: continuar a falar de
uma Irlanda mítica, simbolizada pela mulher ou reconfigurar tal postura historicamente, retomá-la
a partir de uma postura agente, do eu-lírico enquanto sujeito de sua narrativa.
Canclini (1998) ao falar do papel dos artistas e intelectuais, particularmente de Jorge Luis
Borges e sua postura frente à sociedade de massa, afirma que resta ao artista o refúgio à
antiguidade idealizada, já que os sacerdotes não mais dão conta disso. Então, é possível pensar a
poesia como o espaço da utopia, da Pasárgada dos sonhos, da terra própria ao exílio, o que Boland
assume como fato real, como mulher, poetisa, a reescrever o local das mulheres no discurso lírico
irlandês.
Procuremos compreender, assim, qual o caminho percorrido ao alcance do metafísico,
tendo como ponto de partida o prosaico no poema “O Rio”. Podemos constatar que alguns dos
elementos estilísticos mais recorrentes na totalidade dos poemas de Boland aí se apresentam: o
tom dialógico do eu-lírico, tanto em relação a um outro interlocutor específico, quanto a nós,
74
leitores e uma visualidade inerente à distribuição dos versos, a qual neste caso se faz em quatro
estrofes de seis versos cada no original. O verso “eu me recordo”, que no original é o verso seis
(“I remember”), incita o leitor naquilo que será o constante objeto de discussão temática dos livros
de poemas de Boland: a memória. Neste caso, a constatação da falta de nomenclatura a termos
que o campo visual nota
how strange it felt –
not having any
names for the red oak
and the rail
and the slantways plunge
of the osprey.
(BOLAND, 1991, p.27)
o quão estranho foi
não ter nenhum
nome ao carvalho vermelho
e ao estercorário
ao salto inclinado
da águia-pesqueira.
declara a insuficiência da comunicação verbal, suprida, então, com a visualidade em movimento.
A lentidão do ritmo com que passa o barco de pesca é o tempo da distância entre o
conjunto de objetos vistos e a expressão dos mesmos. A imagem seguinte, da plantação de arroz
que se esvai no horizonte profundo das águas azuis, obscuras, é provavelmente a tentativa da
transposição da densidade do que se tenta comunicar: o sentimento da lembrança, da lembrança
do sentimento primeiro, sensação visual e, finalmente, incomunicabilidade ou quase
incomunicabilidade ainda que na aproximação do momento vivido no narrado descritivamente.
Segundo Arbex (2006, p.28), a pintura é um gesto de inscrição:
Pintar remete a escrever pelo gesto da scription (in-scription, no sentido etimológico de
traçar no interior da matéria mineral ou vegetal) e do instrumento que o requer. Escrever
através de punção (com lâmina, caniço ou pluma) significa forçar, entalhar, marcar: é a
escrita do contrato e da memória (…) Escrever com o pincel (caneta esferográfica ou
hidrográfica) significa, em oposição, acariciar como a escrita ideográfica, uma escrita da
de-scription.
Isso nos faz refletir sobre o papel da escrita e da imagem como meios à reconstituição da memória
e desta como elemento fundador e norteador dos meios de comunicação artística (escrita e tela).
De fato, a questão da memória perfaz tanto a construção do imaginário nacional, quanto a
reconstituição do eu, sujeito, da subjetividade feminina na poesia escrita por mulheres na Irlanda
pós anos 1960.
A transposição visual, no poema, meio predominantemente lingüístico, é tão intensa e
completa que, ao final da leitura, temos a impressão do encontro com uma representação do
quadro e não o quadro em si – que era o efeito de sentido provavelmente buscado – uma
verdadeira descrição interpretativa do eu-lírico. O fato é que
a descrição é um ato de demonstração – através do qual indicamos um aspecto que atrai
nosso interesse – e funciona de modo ostensivo: o sentido se forma por um jogo de
referência recíproca, um permanente vai-e-vem entre a própria descrição e o objeto
particular a que ela se reporta. (BAXANDALL, 2006, p. 44).
75
Assim, a relação intratextual entre palavra e imagem alcança o extratextual: as imagens
descritivamente narradas ao longo do poema remetem ao texto exterior que o leitor é capaz de
construir subjetiva e internamente e que é o próprio intratexto individual que vem à tona quando
da leitura poética.
O eu-lírico, em sua vã tentativa de descrever o visto no evento, insere-se na paisagem que
lemos/vemos. O efeito é de uma completa mescla do vivido pela experiência visual e da
participação da composição narrada, da inserção do eu-lírico narrador nas descrições que se
passam em um tempo aparentemente determinado: a distância entre o que se viu e o que se
vê/ouve descrito, para nós, é quase imperceptível, não fosse o tom dialógico dos versos, atribuído
à interlocução, presente no uso do “você” (“you”), na passagem do tempo narrado (“meio de
outubro”, “eu me recordo”, “foi”, “dissemos”). Assim, o diálogo travado entre o eu-lírico e o
“você” (nós, leitores, e um outro “você”), a marca temporal “meio de outubro” e os verbos que
remetem a tal tempo compõem a sinfonia da distância do tempo ido. Muito embora, a constatação
da incapacidade de tradução das sensações e dos sentimentos a tais sensações associados é
indicada pelos versos 13 e 14
What we said was less
than what we saw
O que dissemos foi menos
do que vimos
que, por isso mesmo, marcam o questionamento da fixidez do tempo, suspendendo as certezas
entre passado e presente, entre subjetivo e coletivo e específico e universal o fato é que tal
experiência é comum à particularidade do eu-lírico, bem como a qualquer sujeito que almeje o
sucesso sempre “mal-sucedido” (por sua incomplitude) da comunicação. A experiência da
tradução sensorial é típica do lirismo. Cabe à poesia transpor a sensorialidade e os sentimentos em
discurso verbal. A conjugação do discurso verbal entremeado pela visualidade e pela imaginação
em quadros é a expansão da transposição poética a escalas mais densas da ressignificação
artística, que é o papel da ekphrase conceitual. O avistar de um caçador e seu cão pode ser uma
brincadeira da imagem que o leitor/observador tem do poeta em sua luta com as palavras, em um
tempo de outono, em que as paisagens estão distantes e quase se afogam, ainda que o poeta (o
caçador) tenha “sua arma em riste”. Assim, temos uma imagem dentro da outra: se somos o objeto
de interlocução do eu-lírico, também nos inserimos no quadro em que duas pessoas avistam um
barco com um caçador e seu cão e, ao fundo, o arrozal, mas não todo um campo de arrozal, “as
pontinhas...”. Essas “pontinhas do arrozal”, as palavras, os instrumentos de escrita, a própria
imagem como retórica, são selvagens, instintivas, “inspiração”, luz que invade o universo da
razão, excluindo-o, tornando-o azul, representando, assim, a solidão da escrita. Podemos concluir
76
essa nossa interpretação de maneira a pensar que a promessa da eficácia comunicativa é a
salvação para o ato solitário da escrita, da mesma maneira que o horizonte, ao cão e seu dono,
com a arma em riste, na cena descrita no poema.
O poeta e crítico Ferreira Gullar afirma que “a arte cumpre a mesma função fundamental
de estender, por cima do mundo prosaico do cotidiano, o seu discurso fascinante e mágico.”
(2006, p. 108). Neste sentido, a imagem dentro da imagem, dentro do poema, discurso simbólico
da palavra, recupera a função de fascínio e magia, pois é no prosaísmo de uma imagem cotidiana
como a de um caçador, seu cão e um arrozal, que a consciência do desconhecimento de nós
mesmos e da necessidade de mergulho na interioridade, por meio da observação do conjunto de
imagens pelo poema narrado, vêm à tona. Vale notar que Gullar faz-nos compreender o porque da
natureza, ao falar de Impressionismo: “A natureza amanhece para o artista como fenômeno
puramente sensorial – sem passado.” (ibid, p.114) o que, no caso do poema em questão, confirma
a atemporalidade típica da cena prosaica e do discurso poético a que faz menção Boland.
Pela teoria da recepção e pela desconstrução, sabemos que o leitor é soberano. Nós, leitores, ao
sermos e não sermos o “você” interlocutor do poema, somos os poetas de “O Rio” e não somos –
não somos, porque o “you”, “você”, empregado pelo eu-lírico, pode ser um interlocutor outro que
não nós, leitores, que podemos estar “intrometidos” no diálogo entre duas pessoas.
Inevitavelmente, também, tornamo-nos esse outro, o “você”. Estamos na estrada onde o arrozal se
afoga na tristeza solitária da criação e estamos apenas de passagem, enquanto
leitores/observadores do quadro que se dá a nossa frente, a tela de luz e de escuridão. Assim, se as
palavras são presenças ausentes, as imagens seriam ausências presentes no discurso verbal, um
prolongamento da natureza. Moisés diz que “A palavra não presentifica as coisas, ela as torna
irremediavelmente ausentes. Mas, nessa ausência, pode-se ler o desejo de uma outra realidade,
desejo suficientemente forte para repercutir num real insatisfatório e, indiferentemente, colaborar
para sua transformação.” (1990, p. 90).
Os jogos de claro/escuro aí colocados de maneira branda reaparecerão em vários poemas
,
provavelmente, como uma retomada da discussão clássica das cores na pintura, bem como da
preocupação de um dos vários pintores que influenciam a sua obra: Jean Baptiste Simeón
Chardin. Para este pintor, os jogos de claro/escuro compuseram a retomada do encontro com os
mundos da consciência. Voltaremos a isso ao comentarmos “De Volta do Mercado de Chardin”.
Por ora, no entanto, vale lembrarmos que a imagem transposta na forma ekphrástica
conceitual da triangulação eu-outro-mundo de vozes atinge a barreira da linguagem, a
incomunicabilidade, para desfazê-la. Octávio Paz declara: “Por ti sou uma imagem, por ti sou
77
outro, por ti sou. Todos os homens são este homem que é outro e eu mesmo. Eu sou tu e também
ele e nós e vós e este e aquele.”
92
A pluralidade da citação de Paz faz-nos avançar na série de análises poéticas, de maneira
agora a nos fazer debruçar sob o poema “Distâncias”. A primeira parte do livro Fora da História
(Outside History de 1991) é subdividida em três: “Lições Objetivas” (“Object Lessons”), “Fora da
História” (“Outside History”) e “Distâncias” (“Distances”). O último poema desta sessão, que
trata do passado, da infância do eu-lírico, de isolamento e da luta para dele escapar, atribui-lhe o
título, “Distâncias”.
Distances
The radio is playing downstairs in the kitchen.
The clock says eight and the light says
Winter. You are pulling up your hood against a bad morning.
Don´t leave, I say. Don´t go without telling me
5- the name of that song. You call it back to me from the stairs:
‘I Wish I Was In Carrickfergus’
and the words open out with emigrant grief the way the streets
of a small town open out in
memory: salt-loving fuchsias to one side and
10- a market in full swing on the other with
linen for sale and tacky apples and a glass and wire hill
of spectacles on a metal tray. The front door bangs
and you´re gone. I will think of it all morning while a fine
drizzle closes in, making the distances
15- fiction: not of that place but this and of how
restless we would be, you and I, inside the perfect
music of that basalt and sandstone
coastal town. We would walk the streets in
the scentless afternoon of a ballad measure,
20- longing to be able
to tell each other that the starched lace and linen of
adult handkerchiefs scraped your face and left your tears
falling: how the apples were mush inside the crisp sugar
shell and the spectacles out of focus.
(BOLAND, 1991, p.69)
Distâncias
O rádio está tocando lá embaixo na cozinha.
O relógio diz oito e a luz, inverno.
Você está puxando o seu capuz contra a manhã ruim.
Não vá, eu digo. Não vá sem me dizer
5- o nome daquela canção.Você me responde da escada:
Queria estar em Carrickfergus
e as palavras se abrem num lamento emigrante da mesma maneira que
as ruas
de uma cidadezinha se abrem
à memória: fuchsias marinhas de um lado e
10- um mercado em pleno movimento, do outro
linho à venda e maçãs de amor e um vidro e um monte
de óculos de arame numa bandeja de metal. A porta da frente bate
e você desaparece. Pensarei nisso a manhã toda enquanto
uma leve garoa se aproxima, tornando as distâncias
15- ficção: não deste lugar, mas disso e de quão
irriquietos ficaríamos, você e eu, na música perfeita
da cidade costeira de arenito e basalto.
Andaríamos pelas ruas
na tarde sem aroma de uma medida de balada,
20- querendo poder dizer um ao outro que a renda e o linho
dos lenços adultos marcaram o seu rosto e deixaram suas lágrimas
caírem; como as maçãs estavam suculentas debaixo daquela crosta
caramelo
e crocante e os óculos, fora de foco
.
Interessa-nos neste momento o último poema “Distâncias”, que nomeia a terceira parte do livro
Outside History, a qual mescla o mergulho na interioridade subjetiva da persona lírica e a
memória coletiva do passado, transformando, assim, a poesia em veículo de busca do
pertencimento tanto intimista e pessoal, quanto coletivo, social, nacional.
A série de imagens em sucessão dá a idéia de movimento: a cena da despedida no âmbito
de uma domesticidade irlandesa, a esfera social da cidadezinha, o mercado, as flores, a projeção
utópica-distópica do futuro na consciência da música impossível, do ir-e-vir dos objetos do dia-a-
dia, tanto pessoais (como os óculos) quanto coletivos (como as maçãs) e dos pensamentos. As
92
“Por ti soy una imagem, por ti soy outro, por ti soy. Todos los hombres son este hombre que es otro y yo mismo. Yo
es tú. Y también él y nosotros y vosotros y esto y aquello.” (PAZ, 1986, p. 181).
78
cenas em movimento sugerem distância nenhuma entre o desejo e a consciência, não fosse o
próprio ato de recontar isso poeticamente, ou seja, na tranquilidade do recolhimento das emoções
– para nos aludirmos a William Wordsworth. Assim, o poema traz o equilíbrio entre o vivido, o
não-vivido e o porvir. As distâncias entre os três são a memória que o poema disseca em forma de
imagens. A verossimilhança do recontar da memória está novamente no tom dialógico aí presente:
podemos crer nas imagens enquanto lembranças do vivido e do subjuntivo criado na consciência
do passado a partir do diálogo estabelecido entre o eu-lírico e o “você”, o interlocutor que, apesar
de ser sujeito da partida, do desaparecimento, da cena subjuntiva (“de quão/irriquietos ficaríamos,
você e eu, na música perfeita”), reifica-se na transitividade do olhar do leitor que se distancia. A
cumplicidade do leitor com “você”, interlocutor do eu-lírico neste poema, é menos provável pela
contextualização do ambiente irlandês e, assim, pela distância necessariamente metonímica entre
o que se ouve/vê e o que se elocuciona enquanto vivência. À exposição da intimidade, a saudade
que é a própria memória, sobrepõe-se o verso da canção folclórica “I wish I was in
Carrickfergus”, símbolo mítico do desconhecimento do próprio eu, sobretudo se retomarmos o
conceito da mulher como metáfora da Irlanda, aqui reconstruído na percepção das distâncias entre
nós todos, entre os fatos vividos e reconstruídos, entre a possibilidade da poesia e o poema lido. O
poeta está entre duas dicotomias que se completam: a volatilidade da natureza (as flores,
fuchsias), e a materialidade dos objetos comesinhos, à venda no mercado. Entre o viver a arte na
inspiração e o transformá-la em objeto rentável. Entre a balada pop que se tornou mítica e a
suavidade nostálgica da memória que se recupera a cada verso: as maçãs do amor, as maçãs
suculentas – para alguns críticos do século XX, um perigo da arte.
“Distâncias” trata da distância do tempo que cede espaço à memória, bem como da
distância entre realidade e ficção. O poema se inicia com um tom narrativo do movimento de uma
cena acontecida e se segue na transposição do diálogo entre o eu-lírico e o “você”, o outro
personagem do poema. As falas entre os personagens (eu-lírico e “você”), transcritas ao longo do
poema fazem de “Distâncias” uma revelação da intimidade do eu-lírico, um convite ao mergulho
interior, próprio do discurso lírico, com a fronteira entre as distâncias sentimentais esmurecidas.
No entanto, ainda que estejamos diante de uma série de imagens subjetivas e dispostas como em
um filme, reveladas em suas nudezes, deparamo-nos novamente com a discussão sobre o fazer
artístico, sobre o discurso poético: a terceira estrofe revela-nos que as palavras estão para o
discurso verbal, da mesma maneira em que as imagens, para a memória visual, e que ambas as
experiências são “voláteis”, a medida em que compõem o refazer da memória, que deixa de ser
volátil e passa a se constituir como história. Também, os tempos (desta vez, futuro, passado e
presente) se mesclam nesta ordem. O uso do futuro em “pensarei nisso” (futuro do presente) e
“irriquietos ficaríamos”, “andaríamos” (futuro do pretérito) é um indício da experiência já vivida
79
do relembrar sempre presente, uma possibilidade no distanciamento do tempo íntimo, fonte da
reflexão que origina o poema e nos traz a percepção de que a escrita é uma busca pelo “lar”, este
apenas aparentemente volátil, pois mesmo ao transferirmos a representatividade de nossos afetos a
geografias móveis e diversas, estes (os afetos) a maneira dos elementos essenciais da existência
permanecem, como diz o verso do poema a ser examinado a seguir: “ Atmosphere. Ocean.
Oxygen and dust.”, na tradução, “Atmosfera. Oceano. Oxigênio e poeira”.
O eu-lírico só é capaz de ter certeza sobre o seu futuro, a medida em que já o viu à distância, ou
seja, já o viveu como um presente constante ou a partir de uma vivência semelhante, capaz de
gerar uma inferência sobre como seria a situação a se viver . O tempo presente aí é o do discurso
elocucional da poesia, estabelecido a partir do lirismo e nele envolto, ainda que o eu-lírico o veja,
ao final, em ruptura pela qualidade adulta dos lenços (‘de adultos’), capazes de trazerem a
sobriedade do sentimento de tristeza, ao que se seguem objetos que compõem a cena descrita (as
maçãs, a crosta caramelo-crocante, os óculos). Há uma ruptura tanto do paradigma do sentimento
da perda, da distância, quanto do sentimento descrito, que dá espaço ao narrar privilegiado da
distância, exatamente o que torna possível a identificação da falta de foco dos óculos, metáfora da
compreensão da passagem do tempo e da presentificação da discussão sobre a arte. O risco da
escrita está na proximidade das tantas distâncias: geográfica-temporal, pessoal e coletiva,
influente e interferente
93
. Neste sentido, a escrita seria a procura do lar, das águas do rio distante,
em alguma fresta de soneto – para fazermos alusão a outro poema de Boland, “Spring at the Edge
of the Sonnet” (“Primavera na Fresta do Soneto”) do livro Outside History, o qual dialoga com o
poema “Home” do livro The Lost Land, a seguir
93
A distância influente diz respeito a toda imitação que pressupõe o contexto a que pertence a obra de Eavan Boland.
Já, a interferente, é a influência capaz de marcar o estilo da autora.
80
Home
Off a side road in southern California
is a grove of eucalyptus.
It looks as if
someone once came here with a handful
5- of shadows not seeds and planted them.
And they turned into trees.
But the leaves
have a tell-tale blueness and deepness.
Up a slope to the left is a creek.
10- Across it lies a cut-down tree trunk.
Further back again is the faraway,
Filtered-out glitter of the Pacific.
I went there one morning with a friend
in mid-October
15- when the monarch butterflies
arrive from their westward migration:
thousands of them. Hundreds of thousands
collecting in a single location.
I climbed to the creek and looked up.
20- Every leaf was covered and ended in
a fluttering struggle.
Atmosphere. Ocean. Oxygen and dust
were altered by their purposes:
They had changed the trees to iron.
25-They were rust.
I looked at my watch. It was early.
But my mind was ready
for the evening
they were darkening into overhead:
30-Every inch and atom of daylight
was filled with their beating and flitting,
their rising and flying at the hour
when dusk falls on a coastal city
where I had my hands full of shadows.
35-Once. And planted them.
And they became
a suburb and a house and a doorway
entered by and open to an evening
every room was lighted to offset.
40- I once thought that a single word
had the power to change.
To transform.
But these had not been changed.
And I would not be changed by it again.
45- If I could not say the word home
If I could not breathe the Irish night
air and inference of rain coming from the east,
I could at least be sure
Far below them and unmoved by movement –
50- of one house with its window, making
An oblong of wheat out of light.
(BOLAND, 1998, pp.37-39)
Lar
Afastadas de uma via no sudeste californiano
Ficam árvores de eucaliptos.
Dão a impressão de que
Certa vez alguém veio aqui com um punhado
5- de sombras, não sementes, e as plantou.
E elas se tornaram árvores.
Mas as folhas
Têm uma explícita tristeza e gravidade.
Colina acima à esquerda existe uma nascente.
10-Atravessando-a, um tronco de árvore partido.
Novamente lá atrás, distante,
Está o brilho do Pacífico, esquecido.
Estive lá com um amigo, certa manhã
no meio de outubro
15-quando as borboletas monarcas
chegam da migração ao oeste:
milhões delas. Centenas de milhões
juntas num mesmo lugar.
Subi a nascente e espiei.
20- Cada folha estava coberta e
Se agitava no vasto horizonte.
Atmosfera. Oceano. Oxigênio e poeira
eram alterados pelas suas entranhas:
haviam transformado as árvores em vermelho.
25- agora eram ferrugem.
Olhei o relógio. Era cedo.
Mas minha mente estava pronta
para a noite
elas estavam escurecendo sobre minha cabeça:
30- cada centímetro e átomo da luz do dia
estava preenchido com os seus batimentos e movimentos
suas idas-e-vindas, seus vôos na hora
em que o escurecer cai sobre uma cidade costeira
onde eu tive as minhas mãos repletas de sombras.
35- Certa vez. E as plantei.
E elas se tornaram
um subúrbio e uma casa e uma entrada
conhecida e aberta à noite
em que cada cômodo era iluminado para mostrar equilíbrio.
40- Certa vez pensei que uma única palavra
tivesse o poder de mudança.
De transformação.
Mas essas não haviam se alterado.
E eu não me alteraria por elas novamente.
45- Se eu não pudesse dizer a palavra lar.
Se eu não pudesse respirar a noite irlandesa
o ar e a inferência da chuva vindos do leste,
Eu poderia ao menos ter a certeza –
lá abaixo, distante, intocável pelo movimento –
50- de que uma casa e sua janela fariam
da luz um campo de trigo.
81
Vejamos, então, como está construído o poema “Lar”, eterna busca das partidas constantes
de nossos eus, ou seja, geografia abundante na distância do universo utópico das palavras. Em
1998, surge A Terra Perdida (The Lost Land), livro que traça uma cartografia que parte do
público para atingir o privado, inicia-se na discussão da nação e da terra natal a partir dos efeitos
da representação destas no encontro-desencontro pessoal. Um dos poemas mais significativos do
livro é “Lar” (“Home”), o desenho do cosmopolitismo, da imagem do cosmos conforme visto pelo
eu-lírico na geografia ocidental da Califórnia, com as suas sombras e alterações de cores e de
horas do dia, metonímia do processo de encontro pessoal do eu-lírico na sua intimidade.
A terra perdida é a memória, que se recupera através da palavra. Se as palavras não
alteram o mundo, como havia suposto o eu-lírico de “Lar”, ao menos, dão-nos retratos
imaginários de nossas capacidades afetivas. Exilar-se significa habitar um espaço imaginário,
utópico, transgredir a geografia negativa do fracasso, ir além dela, regressar à imagem perfeita do
universo onde tudo teria sido possível e continua a sê-lo, desde que imóvel na imaginação da
utopia. Ironicamente, “Lar” é um poema que se constitui do movimento das imagens em cena,
como em uma tela de cinema. A idéia do “lar” é construída pela sobreposição temporal do
presente e do passado, no intercalar dos momentos de narração e descrição poéticas: o eu-lírico se
insere nas imagens descritas ao longo do tempo passado que se refaz no presente, de maneira a
ressignificar o objeto narrado, ainda que a partir de uma distância, a da pausa do observar o
relógio (verso 26).
I looked at my watch. It was early. Olhei o relógio. Era cedo.
é uma passagem que dimensiona a figuração do eu-lírico nos tempos mesclados: presente e
passado, passado e presente, propiciando ao leitor um distanciamento, por meio da pausa da
narração descritiva anterior, relativa a sucessão de alterações da natureza observada, além de
situar a memória como fundadora do conhecimento do lar. A transformação do meio descrito e
narrado acompanha o tempo interior do eu-lírico que se desloca do passado ao presente, na busca
pela readequação da utopia, da imagem utópica do lar. A sabedoria sobre o pertencimento a um
lar, exposta neste poema, por sua vez, é complementar à idéia de estarmos sempre em atraso com
a cognição: “Estamos sempre muito atrasados” (“We are Always Too Late”, título do poema 10
do livro Outside History e último verso do poema que dá título a este livro).
Devemos notar, também, a transposição geográfica do lar (a noite irlandesa, a casa do
subúrbio com sua janela, fonte da paisagem campestre) para o espaço aberto, “corrompido”, da
serra e do mar da costa oeste norte-americana. Tal transposição se dá inicialmente pelo retrato dos
eucaliptos, que parecem ter sido plantados de sombras e não de sementes – daí, o uso das aspas no
emprego do termo “corrompido”. A sensação apresentada novamente traz a intercalação entre o
narrado e o descrito, a matéria e os sentidos, a imobilidade e o movimento, série de opostos que
82
culminam na personificação das folhas que “têm uma explícita tristeza e gravidade”(verso 8). A
estrofe seguinte sugere o movimento da cena descrita, sobreposta ao tempo (“novamente lá atrás,
distante,/está o brilho do Pacífico, esquecido”, verso 15). Eis uma metáfora da desilusão: o brilho
do pacífico, vivo na utopia do imigrante, dissolve-se na memória esquecida pelo tempo, após o
tanto de exílio vivido. A imagem seguinte, das borboletas aglomeradas e da transformação natural
que causam, reflete as mudanças sociais porque passam as geografias habitadas pelos migrantes
(já que também este termo, tão próprio das condições de exílio, é empregado na substantivação da
origem das abelhas) e, também, as alterações sentimentais porque passam os próprios migrantes,
em seus desejos de ir e de voltar, de partidas e nunca-chegadas e de partidas interiores e retornos
apenas possíveis na realidade imaginativa. As borboletas são instantâneas como o pensamento,
cabem, portanto, no ir-e-vir da imaginação e comportam, da mesma maneira, a rapidez do fluxo
cambial de culturas e tempos.
Ao longo das reflexões metalingüísticas no exílio, o eu-lírico nos surpreende também com
o pensamento sobre a linguagem: a desilusão com o poder lingüístico de transformação pode ser
uma estratégia retórica do discurso estilístico da imaginação e suas capacidades, como a ekphrase.
Segundo Lucbert (1995, p. 253):
O poder e as palavras estão intimamente relacionados, porque o triunfo
do racionalismo deve passar inevitavelmente pela mediação da
linguagem, que é compreendida como um espaço exclusivo, onde o
pensamento sistemático e dedutivo pode se expressar.
94
No entanto, a poesia ultrapassa o domínio do mundo racional e se configura em um exílio pessoal,
subjetivo, distância que permite o encontro desencontrado com as palavras.
Ao comentar a fundação/recuperação criativa da literatura hispano-americana, Paz declara
que “para voltar à nossa casa é necessário primeiro arriscar-nos a abandoná-la.” (1971, p.129). Tal
afirmação é uma metáfora de todo o processo criativo, em geral, e encontra eco naquilo que Paz
estabelece a respeito da inspiração: “A inspiração é lançar-se a ser o próprio eu, mas também e
sobretudo, é recordar e voltar a ser. Voltar ao próprio ser.”
95
.
A revelação da natureza primeira só acontece a partir do auto-exílio, da consciência do
desassossego do desabrigo lexical, do não-pertencimento, da inadequação discursiva. Habitar o
discurso poético mais propriamente é fazê-lo interferir em vivências particulares, que se tornam,
então, desestabilizadoras de todo um conhecimento anterior acumulado, o lar de onde partimos e
ao qual aspiramos voltar, sempre sem sucesso. Daí, a falta de percepção possível em um novo
altera (versos 40-44)r:
I once thought that a single word Certa vez pensei que uma única palavra
94
“Power and words are closely related because the triumph of rationality must inevitably go through the mediation of language,
which is understood as the unique space where systematical and deductive thought can express itself.” (1995, p. 253).
95
“La inspiración es lanzarse a ser sí, pero también y sobre todo es recordar y volver a ser. Volver al Ser.” (1986: 181).
83
had the power to change
To transform
But these had not been changed
And I would not be changed by it again.
Tivesse o poder de mudança
De transformação
Mas essas não haviam se alterado
E eu não me alteraria por elas novamente.
A necessidade de imobilização do que é fluido, como a linguagem, a paisagem da
natureza e a realidade da imagem do lar, é a fonte da enunciação poética e, na esfera do próprio
poema, em uma extrema metalinguagem, faz-se impossível, exceto na caracterização aparente da
imagem – nas descrições abundantes das imagens que formam o todo da realidade imagética ao
longo do poema ekphrástico. A passagem do tempo narrativo que acompanha a ekphrase
conceitual neste poema aponta à mobilidade da linguagem. O retorno, tanto ao passado, quanto ao
objeto imaginado pela “retórica do imagético” (realidade imaginada) faz-se apenas na lembrança
(e, portanto, fragmentariamente) e na tentativa de transposição dessa lembrança, pela linguagem
poética. A ekphrase, o jogo dialógico entre imagem e palavra, torna a comunicação do
pensamento sentido e do sentimento pensado mais completa. Portanto, a percepção do sentimento
e conhecimento que escorregam pelo discurso verbal, bem como da memória que nos escapa, por
causa de suas múltiplas ressignificações é a revelação de que (versos 48-51)
I could at least be sure
Far below them andunmoved by movement -
of one house with its window, making
an oblong of wheat out of light.
Eu poderia ao menos ter a certeza
Lá abaixo, distante, intocável pelo movimento -
de que uma casa e sua janela fariam
da luz um campo de trigo.
se o eu-lírico fugisse de qualquer lar, definido no espaço e no tempo, em uma espécie de
definição dicionarizada do termo, fora e longe de qualquer contexto – seria uma realidade
improvável, pois qualquer significação só é possível a partir do limite de seu significado.
O ponto de partida do poema é a sua realidade imaginativa, trazida à tona, neste caso, pelo
conjunto de formas sonoras e imagéticas – é a conjugação destas com a retórica do imaginário, de
que fala Boland, que nos revela as possibilidades da imaginação na forma poética. Paz diz que:
a imaginação poética não é uma invenção, mas uma descoberta da presença. Descobrir a
imagem do mundo no que emerge como fragmento e dispersão, perceber o outro no um
será devolver à linguagem a sua virtude metafórica: atribuir presença aos outros. A
poesia: busca dos outros, descoberta da outridade.
96
Verificamos que a formação das imagens transpostas em palavras neste poema compete à
aliteração de sons como o /s/ sobretudo a segunda estrofe (em “shadows not seeds and planted
them./And they turned into trees./But the leaves/ have a tell-tale blueness and deepness.”) e o /f/
na terceira estrofe (“Further back again is the farway,/Filtered-out glitter of the Pacific.”) que é
acompanhada pela gradação vocálica apresentada no segundo verso desta mesma estrofe em
96
“La imaginación poética no es invención sino descubrimiento de la presencia. Descubrir la imagen del mundo en lo que emerge
como fragmento y dispersión, percibir en lo uno lo otro, será devolverle al lenguaje su virtud metaforica: darle presencia a los
otros. La poesía: búsqueda de los otros, descubrimiento de la otredad.” (1986, p. 261).
84
“Across it lies a cut-down tree trunk”: /o/ /ai/ /Ə/ /au/ / i / /Ə/. Tal gradação alude
metonimicamente à multiplicidade do “I” (“eu”), que se aproxima por paralelismo ao “They”
(eles, os elementos da natureza, atmosfera, oceano, oxigênio e poeira, que aparecem no verso 1 da
sétima estrofe).
Vale lembrar a importância da imagem na pertinência da poesia de E.Boland. Em seu livro
de ensaios, Object Lessos: The Life Of The Woman And The Poet In Our Time, a poetisa
afirma que “toda boa poesia depende da relação ética entre imaginação e imagem. Imagens não
são ornamentos, mas verdades.” (1995, p. 152)
97
. Assim, a criação de estereótipos ou a
continuação de convenções antigas, como ícones representativos de determinadas imagens, como
a da figura feminina e a nação, é uma prática que diminuiria a verdade da poesia, distorcê-la-ia.
Neste sentido, então, as imagens devem ser produto de uma relação ética no jogo das
representações conjugado pelas palavras no poema. Posicionar-se como sujeito da história, do
poema e da própria voz, deixar de habitar o espaço de objeto narrado, para Boland, torna-se o alvo
do papel da poetisa na poesia contemporânea irlandesa. Neste sentido, o habitar de um espaço
não-fixo, não-único, flexível deveria ser o objetivo dos escritores, em geral: “Os escritores, se
forem inteligentes, não fazem seus lares em qualquer espaço comfortável em uma tradição
nacional.” (ibid, p. 153)
98
. Tal assertiva refere-se à reflexão necessária ao devido pertencimento a
uma tradição, bem como a maior das tradições, a poética, que se estabelece para além das
fronteiras geográficas e culturais. Notamos em “Lar” que o diálogo poético de Boland dá-se,
inclusive, com a poesia de T.S.Eliot nos versos 34 e 35: “...I had my hands full of shadows./ Once.
And planted them.”, cuja tradução aqui apresentada revela “...eu tive as minhas mãos repletas de
sombras./Certa vez. E as plantei.”. Neste caso, a fragmentação dos versos no tom dialógico do
poema remete aos versos de Eliot: “‘That corpse you planted last year in your garden,/ Has it
begun to sprout? Will it bloom this year?/ Or has the sudden frost disturbed its bed?’”(versos 71 e
72) em The Waste Land.
Cabe dizer que Boland (1995, p. 193) em seus apontamentos críticos sobre a poesia cita
também Muriel Rukeyser, para quem a imagem poética “não é algo estático, mas algo que vive no
tempo, tanto quanto o poema.”. Desta maneira, “Lar” é a memória fluida que acompanha o eu-
lírico na transposição geográfica, sem qualquer segurança, exceto a da própria lembrança que se
faz, para se desfazer e refazer a cada leitura poética, a cada olhada no relógio e pela janela da casa
de onde se fala e a partir de onde se pensa o exílio. Lembremo-nos aqui do poema que dá título ao
livro The Lost Land (A Terra Perdida), no qual o eu-lírico, ao se referir à memória, que se
tornou emigrante, faz simultaneamente menção à pátria, paisagem do amor dissimulado,
97
No original, “All good poetry depends on an ethical relation between imagination and image. Images are not ornaments; they are
truths.” (1995, p. 152).
98
“Writers, if they are wise, do not make their home in any comfort within a national tradition.” (1995, p. 153).
85
escondido, a natureza, bem como ao pertencimento feminino da mulher-mãe e a presença ausente
das filhas, já crescidas.
memory itself
has become an emigrant,
wandering in a place
where love dissembles itself as landscape…
(BOLAND, 1998, p.40. versos 10-13)
a memória mesma
tornou-se emigrante
vagando num lugar
onde o amor se disfarça de paisagem.
Mais do que um exílio físico, coletivo, de borboletas, “Lar” é o exílio mais íntimo: o do
pensamento, revelador de nossas incertezas e inseguranças. O mergulho na interioridade e na
conjugação desta com o mundo exterior faz de todos nós exilados, sem necessariamente termos
jamais saído da esfera de nossas casas, de nossos valores cotidianos e de vida. Teremos, assim,
saído e voltado diversas vezes, a procura do Lar, no resgate de nossa imaginação tão única e
vasta, como dizem os versos de Drummond “Mundo, mundo, vasto mundo. Mais vasto o meu
coração”. É a consciência do exílio e do estrangeirismo de nós mesmos de que fala Júlia Kristeva,
que nos possibilita o encontro de nosso lar e isso não se trata apenas de uma questão irlandesa,
mas de um pertencimento comum à humanidade. Neste sentido, torna-se bastante sugestiva a
idéia formulada por Mulhall (2007), ao comentar alguns poetas publicados pelo periódico
Cyphers como Paul Durcan e Leland Bardwell, de que a família pode se tornar um local de
“solidão e isolamento, como um lugar que pode nos tornar o exílio de nós mesmos” e este, “como
uma espécie de morte” (2007, p. 222)
99
.
Podemos pensar que o cosmopolitismo de Eavan Boland se traduz no retrato da
especificidade irlandesa e na transposição das geografias (Irlanda e Estados Unidos da América) à
realidade imaginativa das cenas descritas, narradas, percebidas e sentidas na devida distância dos
tempos que se mesclam de maneira a reinventar geografias, na busca da mais preocupante
cartografia para a autora: a interior.
Exile! Exile!
All night the room breathes out its grief.
Exhales through surfaces. The sideboard.
The curtains: the stale air stalled there.
The kiln-fired claws of the china bird.
5-This is the hour when every ornament
unloads its atoms of pretence. Stone.
Brass. Bronze. What they represent is
set aside in the dark: they become again
a spacious morning in the Comeraghs.
10- An iron gate; a sudden downpour; a well in
the corner of a farmyard; a pool of rain
into which an Irish world has fallen.
Out there the Americas stretch to the horizons.
Exílio! Exílio!
A noite toda a sala exala a sua mágoa.
Exala pela superfície. O armarinho.
As cortinas: o ar sufocante instalado ali.
As garras queimadas do pássaro de enfeite.
5-Eis a hora em que cada ornamento
Desfaz os seus átomos fantásticos. Pedra.
Latão. Bronze. O que eles representam é
Suspenso no escuro: eles se tornam novamente
uma manhã espaçosa nos Comeraghs.
10- Um portão de ferro; uma súbita tempestade; um poço
à beira de um jardim de fazenda: uma poça de chuva
sobre a qual um mundo irlandês cai.
Lá adiante as Américas se estendem nos horizontes.
Queimam-se nas cidades e escurecem sobre o trigo.
99
“Family, as a site of loneliness and isolation, as a place that can make exiles of us (…) exile is a kind of death.” (2007, p. 222).
86
They burn in the cities and darken over wheat.
15-They go to the edge, to the rock, to the coast,
to where the moon abrades a shabby path eastward.
O land of opportunity, you are
not the suppers with meat, nor
the curtains with lace nor the unheard of
20- fire in the grate on summer afternoons, you are
this room, this dish of fruit which
has never seen its own earth. Or had rain
fall on it all one night and the next. And has grown,
in consequence, a fine, crazed skin of porcelain.
(BOLAND, 2001, p.32)
15- Alcançando beira, costa, pedra,
até onde a lua desgasta um caminhozinho à leste.
Oh, terra de oportunidades, você é tudo menos
os jantares com carne,
as cortinas com laços, ou
20-o fogo silencioso na grelha das tardes de verão, você é
a sala, esse prato de frutas
que nunca viu a sua própria terra
ou alguma vez teve chuva por toda uma noite e mais outra
e, inevitavelmente, se tornou uma pele suave, ensandecida de
porcelana.
“Exílio! Exílio!” aparece inicialmente publicado no livro Code (Código, de 2001) que traz
poemas que já haviam aparecido em periódicos como The New Yorker, The Paris Review, The
Sunday Tribune e New Hibernia Review, dentre outros. Os mesmos poemas reapareceriam sob o
título de nova publicação, Against Love Poetry (Contra Poemas de Amor), desta vez, pela
W.W. Norton, no mesmo ano, com sutis alterações. É o caso de “Exílio! Exílio” (“Exile! Exile”),
que na edição americana aparecerá como “The Rooms of Exile!” (“Os Quartos do Exílio”).
Além disso, esse poema exibe novamente um contínuo de imagens da natureza e de
objetos dela advindos, que são personificados e transformados, inclusive, em interlocução do eu-
lírico, dado o tom dialógico aí estabelecido (nos versos 7-10):
O land of opportunity, you are
not the suppers with meat, nor
the curtains with lace nor the unheard of
fire in the grate on summer afternoons...
Oh, terra de oportunidades, você é tudo menos
os jantares com carne,
as cortinas com laços, ou
o fogo silencioso na grelha das tardes de verão...
A interlocução se faz pelo uso do vocativo “terra de oportunidades”, que traz a distopia da fartura,
da abundância e do comforto. O silêncio inerente à voz interlocutória (aí atribuída à “terra de
oportunidades”) desvenda a imagem da utopia distópica, ou seja, a terra que só se revela pelo
silêncio, metonímico do esvaziamento da materialidade sonhada. Aqui vale remetermo-nos a
seguinte consideração de Octávio Paz “A poesia nasce no silêncio e no balbucio, no não poder
dizer, que no entanto aspira irresistivelmente recuperar a linguagem como uma realidade total.”
100
Arrigucci Jr. (1990), ao comentar sobre a poética de Manuel Bandeira, particularmente o
“Poema só para Jaime Ovalle”, pondera a origem da força criativa advinda do silêncio: “como
pode a poesia brotar da ausência do que falta, do que já se foi? Que linguagem é essa que tateia
sobre as marcas do silêncio?” (1990, p. 86). No poema em questão a força criativa se dá
justamente a partir da ausência, daquilo que está presente apenas pela ausência, pela distância
física, geográfica e temporal, mas que se aproxima da memória, das marcas da subjetividade
100
“La poesia nace en el silencio y el balbucio, en el no poder decir, pero aspira irresistiblemente a recuperar el lenguaje como una
realidad total.” (1986, p. 282).
87
interior do eu-lírico, e das emoções da lembrança. Assim, “os jantares com carne,/as cortinas com
laços, ou/ o fogo silencioso na grelha das tardes de verão...” (versos 18, 19, 20) remetem ao
passado permeado de utopia dos que partem ao exílio e dos que partiram e observam as
lembranças vivas na memória das emoções. “O fogo silencioso na grelha das tardes de verão...”
pode ser uma metonímia pleonástica da ausência presente do que já se foi e se instaurou na
memória que se torna viva de novo por meio dos versos que, assim, configuram a condição do
exílio, da geografia imaginada. O exílio físico, geográfico e social conjuga-se na esfera do exílio
íntimo da poetisa, como mulher e escritora, que assim consegue relocar a condição múltipla de
deslocamento à elocução poética, a mulher “Silenciada” (título de poema anteriormente
mencionado aqui) passa a ter voz.
A propriedade do silêncio da interlocução mostra-se muito adequada neste poema, pois
assistimos à revelação do eu-lírico intimista, na exposição de seus sentimentos dissecados na
lembrança, como chagas descobertas pela impossibilidade do retorno discursivo. Portanto, o
silêncio. A “terra de oportunidades” é o sonho recuperado na crua realidade de sua
impossibilidade. Para a lingüista Orlandi (1977, p.72-73), “O silêncio do sentido torna presente
não só a iminência do não-dito que se pode dizer, mas o indizível da presença: do sujeito e do
sentido (...) O silêncio é contínuo e há sempre ainda sentidos a dizer.”
Desta maneira, o poema oferece a polissemia lírica advinda do mergulho na interioridade
sentimental e sensorial do eu-lírico e desperta em nós, leitores/ouvintes/espectadores, a
consciência da lembrança na imagem: os objetos descritos na sala à noite personificam-se
enquanto pensamentos sobre sentimentos itinerantes, que ora estão cá, ora, lá, e que por isso
mesmo, desvelam o exílio, o exílio de nós mesmos, através do reencontro intermediático: som,
sentido, visão e ekphrase.
Para Arrigucci (1990, p.52)
A tendência para a representação ficcional, evidente nessa operação de
recuperação do passado pela memória, faculdade mestra do narrador, encontra
afinidade aqui com um tipo preciso de formação lírica que é o poema pictórico ou
imagético.
As lembranças imaginadas na reificação dialógica do exílio por meio da menção aos
objetos personificados retornam enquanto contemplação daquilo que se foi e que se perdeu na
realidade extrema da consciência. Desta maneira, os objetos narrados sobrepõem-se à utopia do
passado, transpondo-a, e estabelecem uma relação de reavaliação da consciência interior no
presente, dada a distância temporal. A personificação da sala e seus objetos – o armarinho, as
cortinas, o pássaro de ornamento, os metais deles feitos – apresenta-se como metáfora da própria
voz que enuncia as imagens lembradas, em um processo de dar voz à interioridade lírica e fazê-la
88
prevalecer frente à realidade desnuda. Notável semelhança percebemos com os apontamentos
críticos de Davi Arrigucci Jr. e a nossa leitura presente de Eavan Boland:
O alumbramento aqui representa (...) uma espécie de atualização repentina de um
sublime entranhado no passado, na forma de uma imagem, desenvolvida
pictoricamente como um quadro que fosse um retrato da intimidade. (ibidem, p.
82)
Vimos que Lar é a marca do exílio mais íntimo, da viagem de nunca retorno e que Exílio!Exílio!
trata da permissão pessoal de reavaliação da utopia, fatos possíveis na distância do discurso
poético, que narra e recria a memória. Além disso, se o rio e suas águas simbolizam o retorno à
origem, a recuperação do inconsciente, uma vez que o conhecimento verdadeiro de si está
distante, as distâncias a serem percorridas compõem uma jornada, a qual pressupõe o retorno,
ainda que imaginário, ao lar, a fim de descobrir que o exílio é a condição definidora da
personalidade subjetiva da voz lírica dos poemas. Para Boland, “o exílio, como a memória, pode
ser um local de esperança e desilusão” e o “expatriado está em busca de um país/ o exilado, em
busca de um self”
101
Para Alfredo Bosi (1990, p. 61), “a distância que medeia entre a palavra e a coisa é, de
fato, constitutiva do signo, está inscrita desde sempre na língua, que é filha da falta e do desejo, e
não da plenitude e da unidade, amantes do êxtase e do silêncio.” Assim, é a incapacidade de
tradução precisa do pensamento pela linguagem que torna o seu dialogismo um caminho
fundamental à comunicação. Podemos pensar, portanto, que o poema conjuga o discurso da
pintura a medida que busca se completar, transpor os limiares do discurso verbal. Afinal, “a
linguagem traz em si o estigma da separação” (op.cit.), para, em seguida, unir os sentidos de perda
e comunhão, instaurá-los como possibilidades, apontar o vínculo entre palavra e imagem, mundo
e poesia. E assim acompanhamos o percurso que a poesia ekphrástica faz no encontro da
comunicabilidade.
Vejamos, a seguir, como o movimento inverso se articula em Eavan Boland, ou seja,
como acontece a “ekphrase real” – nos termos de Heffernan e Hollander – como a pintura
constitui-se em uma fonte a partir da qual temos acesso ao mundo reunido da poetisa.
101
“Exile, like memory, may be a place of hope and delusion” e “the expatriate is in search of a country/ the exile in
search of a self”. (1995: 46).
89
Do Quadro à Palavra
Vale notar que para Langer (1980), cada arte tem a sua especificidade que não
necessariamente resulta das técnicas e meios materiais usados, mas de algo que ela denomina
‘ilusão’ ou ‘aparição primária’, isto é, uma dimensão especial da experiência, uma maneira de ver
a realidade muito particularmente. Assim, a integração das diferentes “aparições primárias”
constituem um todo mais completo na revelação dos sentimentos e sentidos que nos acometem. A
palavra na imagem e esta, naquela, uma conjugação mais detalhada das possibilidades da
comunicação artística.
“Do Quadro De Volta do Mercado de Chardin” aparece no livro New Territory (Novo
Território), de 1967, que tem como preocupações o papel do poeta, as fontes de inspiração
poética e a imaginação – seus poderes e privilégios. O poema em questão trata de uma
transposição de uma tela do pintor Jean-Simeón Chardin, nascido em 1699 e morto em 1779, em
Paris, à palavra poética, como se a discussão em torno dos gêneros (desenho e pintura) e dos
gêneros temáticos (do retrato, natureza-morta e paisagem) fosse transferida para o da concorrência
artística da pintura e da poesia e a importância desta intermedialidade.
A obra de Chardin versa em geral sobre três assuntos principais: pinturas de mulheres
simples e ao trabalho, e retratos de crianças burguesas (e não, aristocráticas) ou a combinação de
mulheres e crianças. Captar a absorção de suas modelos e o silêncio ruidoso que as envolve
reconhece-se como uma de suas maiores habilidades, o que se torna evidente a medida em que ele
abandona a natureza-morta, em prol da pintura de gênero nos anos 1730. Deve-se notar que na
hierarquia de gêneros na pintura dos séculos XVII e XVIII, os assuntos como a história, a bíblia e
a literatura eram grandiosos, diferentemente de pinturas como retratos, paisagens e naturezas-
mortas, tidos como gêneros menores. Assim, Chardin, ao se especializar em natureza-morta, crê
ser a pintura da natureza, dos objetos reais e das pessoas comuns em suas realidades de trabalho a
única maneira de retratar simples e verdadeiramente a vida cotidiana. Segundo Gabriel Naughton,
as mulheres da obra de Chardin “(...) parecem-nos de outro mundo e distantes da realidade, apesar
de elas executarem as tarefas domésticas mais mundanas.” (2003, p.15). Aliás, um dos pontos de
contacto entre a obra de Boland e a de Chardin: ambos apresentam a simplicidade do universo
feminino como complexo o suficiente para ser retratado na dimensão das formas e cores (imagem)
e sons, as palavras, e o entrelaçamento de ambos.
90
From the Painting Back from Market by Chardin
Dressed in the colors of a country day –
Gray-blue, blue-gray, the white of seagull´s bodies –
Chardin´s peasant woman
Is to be found at all times in her short delay
5- Of dreams, her eyes mixed
Between love and market, empty flagons of wine
At her feet, bread under her arm. He has fixed
Her limbs in color and her heart´in line.
In her right hand the hindlegs of a hare
10- Peep from a cloth sack. Through the door
Another woman moves
In painted daylight. Nothing in this bare
Closet has been lost
Or changed. I think of what great art removes:
15- Hazard and death. The future and the past.
A woman´s secret history and her loves –
And even the dawn market from whose bargaining
She has just come back, where men and women
Congregate and go
20- Among the produce, learning to live from morning
To next day, linked
By a common impulse to survive although
In surging light they are single and distinct
Like birds in the accumulating snow.
(BOLAND, 1996a, p.18)
“Do Quadro De Volta do Mercado de Chardin”
Vestida em cores de um dia campestre
Azul-acinzentado, cinza azulado, o branco dos corpos das
gaivotas
A campesina de Chardin
Pode ser o tempo todo vista em sua escassez temporária de
sonhos
5- Seus olhos entre o amor e o mercado
A seus pés, engradados vazios de vinho. O pão, embaixo do
braço
Chardin a fez assim:
Seu corpo, apaixonado e seu coração, em razão.
Em sua mão direita, os pés de uma lebre
10- Escapam de uma trouxa. Pela porta
Outra mulher se move
Na luz pintada do dia. Nada neste aposento nu
se perdeu
Ou se modificou. Penso no que a grande arte elimina:
15-O perigo e a morte. O futuro e o passado.
A história secreta de uma mulher e seus amores –
E mesmo o mercado alvorecente
De cuja pechincha ela acabara de retornar
Onde homens e mulheres vão, juntam-se
20- Entre os artigos, aprendendo a viver de um dia a outro
Em elo
Por um impulso comum de sobrevivência
Apesar de serem únicos e distintos
Como pássaros na neve crescente.
91
The Return From Market (Jean Siméon Chardin, 1739)
Óleo sobre tela, 47 x 38 cm.
Museu do Louvre, Paris
92
O quadro “O Retorno do Mercado” foi apresentado em duas versões (de 1738 e 1739) e
traz um recurso de composição comum a outros de seus quadros, que é o da porta de um ambiente
interior que se abre à luz. Tal recurso encontra eco na poesia de Boland, que pode ser pensada do
exterior ao interior, da sociedade à intimidade. A sobriedade das cores aparece em contraste com a
sugestão do jogo do claro-escuro, do interior, claro, a se alcançar na intimidade, a partir da
distância de onde a figura feminina se vê, no presente, a obscuridade momentânea do que se vive.
O momento presente, destacado em relevo, tem um fundo escuro, apesar de uma cor mais viva na
mulher em destaque, a mulher comum, que retorna do mercado e se divide na tarefa mundana da
contemplação exterior, imagem do reflexo de sua própria alma na figura do outro, e nas atividades
comesinhas e prosaicas. A contemplação interior, distante, no passado ou no futuro (em relação à
cena do diálogo entre o homem e a mulher, no passado) dá-se a partir da luz almejada no cômodo
‘próximo’. O exílio é o do pensamento, da jornada interior, sem volta. A dispersão dos objetos no
chão revela a fluidez do que é aparentemente fixo, como os objetos sendo contemplados na
pintura: desde os elementos vivos e mais próximos da matéria, como o pão e o animal, nas mãos
da campesina, até as garrafas de bebidas e o pote de cobre, caídos, quase que dispersos no chão,
onde se dá a fluidez do andar e do olhar.
A descrição da mulher se inicia de forma objetiva, com a transposição das cores, de
maneira metafórica com “o branco dos corpos das gaivotas” (verso 2), símbolo da pureza, para,
em seguida, tornar-se mais subjetiva, com a metáfora da “escassez temporária dos sonhos”. Trata-
se, portanto, de uma mulher de tez muito branca, com roupas claras e um temperamento prático, já
que é tomada por uma “escassez temporária de sonhos”, ou seja, uma mulher voltada à realidade
do cotidiano. Essa segunda descrição é mais subjetiva do que a primeira, relativa as cores, dado o
efeito de sentido da metáfora: a realidade exposta na “escassez temporária dos sonhos” é a
metalinguagem da condição imprópria da linguagem, o ato da enunciação, que neste caso
específico se revela na tentativa de traduzir a imagem pictórica em descrição poética. Não se pode
identificar uma “escassez temporária de sonhos” a não ser na visualização imaginativa, criada a
partir da descrição dos versos. A tentativa de objetividade da transposição do quadro que se
apresenta como poema se faz a partir da inevitável revelação de tal “escassez temporária de
sonhos”, ao mesmo tempo em que o sonho faz alusão à utopia da completude, a partir de seu
fragmento, o que garantiria a certeza da articulação linguística como sempre fragmentária
enquanto elemento descritivo do discurso poético, diferentemente da pintura. Então, se por um
lado, a subjetividade das sensações e sentimentos é um traço fundamental à lírica, a objetividade
das formas e cores é atributo dignamente pictórico. Os versos seguintes recuperam a objetividade
da descrição, ainda que com ênfase no conhecimento da linguagem como fragmento. Da reflexão
sobre a linguagem e os processos tradutológicos nela contidos, o poema oferece um pensamento
93
sobre o valor estético da arte. Ao falar do quadro de Chardin, o eu-lírico lança uma idéia sobre a
arte em geral e os seus efeitos: a imobilidade, a solidez e a atemporalidade nos versos 12-15.
Nothing in this bare
Closet has been lost
Or changed. I think of what great art removes
Hazard and death. The future and the past.
Nada neste aposento revelado se perdeu
Ou se modificou
Penso no que a grande arte elimina:
O perigo e a morte. O futuro e o passado.
Assim, a arte passa a representar o espaço onde a salvação, a segurança, a intimidade e a paz são
possíveis no eterno presente da utopia de que as linguagens comuniquem suficiente ou fielmente o
pensar e o sentir do(s) artista(s). Ferreira Gullar (2006, p.44) nos lembra que
Uma das maiores angústias do ser humano é precisamente a consciência
de sua efemeridade e, por essa razão, procura de todos os modos fundar
alguma coisa que permaneça. A arte (...) revelou-se o instrumento ideal
desta batalha contra a morte e a precariedade.
Eavan Boland mostra-nos que o quadro de Chardin eternizou a beleza do prosaico, a partir da
presença aparentemente sempre estanque, imóvel e segura do passado, representado pela ekphrase
“Through the door/Another woman moves/ In painted daylight.” (“Pela porta/ outra mulher se
move/ Na luz pintada do dia...”), nos versos 10, 11 e 12 e do futuro, previsto no espaço comum
das atividades diárias e no tempo permitido à reflexão, o quadro, a partir da languidez do corpo da
rapariga apoiado na cômoda, a rever no tempo presente o seu passado. A primeira estrofe do
poema traz a ekphrase da mulher no presente, que permite a previsão de ações futuras. Ambos os
tempos (passado e futuro) são salvos pela intimidade conferida em “a woman´s secret history and
her loves” (“a história secreta de uma mulher e seus amores”), verso 16, resguardada pela imagem
reestabelecida do quadro De Volta do Mercado pelo eu-lírico do poema “Do Quadro De Volta do
Mercado de Chardin”. Os mundos interior e exterior, ekphrasticamente revelados no poema,
aparecem no quadro de Chardin como os tempos da vida que definem a identidade da mulher: o
passado, que não se modifica, exceto no recontar, e o futuro, que reproduz as ações contínuas das
tarefas domésticas, com a diferença da observação do presente, o qual em uma breve pausa,
permite as observações do passado, já à distância. O tempo presente é metalingüístico do fazer
artístico, metonímia da elaboração subjetiva do mundo sob a óptica do artista. Em outras palavras,
podemos dizer que o tempo presente ressignifica metonimicamente a eternidade e o infinito olhar
sobre a pintura secular, sendo um desses olhares sobre o passado da protagonista do quadro,
trazido em ekphrase ao presente poema. Os atos prosaicos descritos narrativamente nos versos
posteriores à “mulher e seus amores” dizem respeito ao que é resguardado no alcance da utopia
artística: o congelamento dos tempos, a fotografia finita e bem acabada da pintura e de isso
também ser uma possibilidade (utópica) na esfera da linguagem. Se a fidelidade imagética da
pintura de Chardin busca imprimir no olhar do espectador a tela unicamente paralisada e imóvel, o
poema de Boland sempre escapa essa tentativa, pela própria natureza do discurso verbal. É como
94
se houvesse o movimento inconstante e ainda mais grave a cada descrição das cenas da mulher de
Chardin no poema de Boland, apesar do alcance utópico da presentificação imóvel do discurso
verbal. Por mais amplitude que apresente a palavra, em suas múltiplas ressignificações, há sempre
uma tentativa de transformar o momento de elocução (produção do discurso, recepção do mesmo
pela leitura e/ou audição) em imobilidade “tátil”, como se aquilo que se lê fosse a única
compreensão possível a ser tecida, até a próxima possibilidade móvel. Isto quer dizer que a
existência de significados faz-se possível a partir de seus temporários congelamentos (até os
próximos significados tomarem corpo).
As imagens da tela também são móveis, embora em menor intensidade, pois o tonel à
direita do cômodo mais iluminado na tela pode armazenar tanto água, quanto vinho, o que em si
dá vazão a interpretações diferentes. Além disso, o homem que conversa com a menina, no quarto
mais iluminado, interior no quadro “Back From The Market” de Chardin, aparece furtivamente,
como a deixar fluida e reticente a sua presença. O eu-lírico reflete sobre a ambigüidade imagética
e, desta forma, concentra-se na retórica do que é arte (nos versos 14 e 15):
I think of what great art removes:
Hazard and death. The future and the past.
Penso no que a grande arte elimina:
O perigo e a morte. O futuro e o passado.
A suspensão dos tempos, dos perigos e do perigo maior, a morte, é possível a partir da construção
do significado, do desvendar dos mistérios da ambigüidade artística, pelo
observador/leitor/interlocutor máximo da obra e de sua autoria. Ao esclarecer a importância do
olhar do leitor no contexto da prática do ensino literário, Izarra (1996, p. 25) revela que este (o
leitor) “ao fazer o caminho inverso do escritor, será agente de seu próprio processo de
transformação e do contexto onde está inserido, delineando novas fronteiras e formando novas
identidades no seu transitar pelas mesmas.” De fato, podemos pensar que este é o próprio papel do
leitor: não apenas o que se dedica a narrativas, mas também à poesia.
Assim, a representação mediada pela descrição interpretativa, que é o poema ekphrástico
de Boland, “ekphrase real” neste caso, põe em relevo a simultaneidade metalingüística do objeto
de que se fala (o quadro de Chardin) e a referência recíproca (o poema), de tal maneira que a
presentificação do poema, com todos os seus valores interpretativos, conjuga com a presença do
quadro enquanto elementos constituintes comuns à discussão estética da arte: o presente oferece a
salvação pela sua capacidade de suspensão do passado e do futuro, bem como da exposição aos
atos de tarefas do dia-a-dia, os quais se diluem na transposição de sua força imaginativa ao longo
do poema.
Ferreira Gullar afirma que “a arte é muitas coisas. Uma das coisas que a arte é (...) é uma
tranformação simbólica do mundo. (...) o artista cria um mundo outro.” (ibid idem, p. 105). E a
95
poesia é um dos caminhos de novos encontros pessoais, movidos a desencontros, desassossegos e
reticências. A tradução do quadro em poema é o encontro mais genuíno do eu-lírico com o
ambiente que o cerca: arte na arte. Metalinguagem. É também exposição viva dos sentimentos
traduzidos. Encontro das artes. Poesia e pintura. Pintura e poesia. Augustine Martin (1996) ao
comentar esse poema de Boland, sugere que:
A mulher que escreve o poema liberou temporariamente a mulher no quadro (…) Somos
impelidos a questionar como uma mulher, tanto tempo o objeto da atenção do artista, pôde
tornar-se um sujeito agente em prol de sua própria condição, enquanto artista no mundo
(…).
102
A seguir, dois poemas de Eavan Boland, “A Mulher na Cozinha” e “As Lavadeiras de
Degas” são ekphrásticos de dois quadros de Chardin, “Woman at the Urn”, “The Laundress” e a
série das lavadeiras de Edgar Degas (“Mulher Passando Roupa”, “Cena Em Uma Lavanderia” e
“As Lavadeiras”) produzida entre 1860 e 1890. Veremos como essas manifestações ekphrásticas
que são os poemas de Boland referem-se ao olhar, ao tempo e à interioridade subjetiva do artista
e, também, estabelecem um diálogo com a tradição, mostrando-nos a necessidade da poetisa em
lutar por autonomia, espaço e identidade. Notar-se-á, por fim, como essa busca por espaço e voz
traduz em outra dimensão a experiência do fazer artístico intermediático: tornar a comunicação
tangível, menos incompleta.
102
“The woman writing the poem has momentarily liberated the woman in painting (…) We are forced to wonder how
a woman, so long the object of the artist´s attention, can become herself a subject acting in her own right, as an artist,
upon the world. (…)” (1996: 232).
96
Woman In Kitchen
Breakfast over, islanded by noise,
she watches the machines go fast and slow.
She stands amond them as they shake the house.
They move. Their destination is specific.
5- She has nowhere definite to go.
She might be a pedestrian in traffic.
White surfaces retract. White
Sideboards light the white of walls.
Cups wink white in their saucers.
10- The light of day bleaches as it falls
on cups and sideboards. She could use
the room to tap with if she lost her sight.
Machines jigsaw everything she knows.
And she is everywhere among their furor:
15- the tropic of the dryer tumbling clothes.
The round lunar window of the washer.
The kettle in the toaster is a kingfisher
Swooping for trout above the river’s mirror.
The wash done, the kettle boiled, the sheets
20- spun and clean, the dryer stops dead.
The silence is a death. It starts to bury
the room in white spaces. She turns to spread
a cloth on the board and iron sheets
in a room white and quite as a mortuary.
(BOLAND, 1991, p.121)
A Mulher Na Cozinha
Fim do café-da-manhã, circundada pelo barulho,
ela observa o tremular das máquinas, , rápido e lento.
Ela fica por entre as máquinas, conforme elas rebolem a
casa.
Movimentam-se: seu destino é específico.
5- Ela não tem lugar definido para ir.
Poderia ser uma pedestre no trânsito.
As superfícies brancas escondem-se.
Os armários brancos iluminam o branco das paredes.
As xícaras piscam inocentemente nos pires.
10- A luz do dia alveja conforme cai
nas xícaras e armários. Ela poderia
apoiar-se na sala se perdesse a visão.
As máquinas confundem tudo que ela conhece.
E ela está em toda a parte com o furor das máquinas:
15- o trópico da secadora sacudindo as roupas.
A janelinha lunar da lavadora.
A chaleira no fogão é um martim-pescador
Em busca de truta acima do espelho do rio.
A lavanderia feita, a chaleira cozida, os lençóis
20- sacudidos e limpos, a secadora pára.
O silêncio é uma morte. E começa a enterrar
a sala em espaços brancos. Ela se volta
para espalhar um pano na tábua e passar os lençóis
numa sala tão branca quanto uma mortuária.
97
Woman At The Urn (Jean Siméon Chardin, 1733)
Óleo sobre tela, 38 x 43 cm.
Museu Nacional de Estocolmo
98
The Laundress (Jean Siméon Chardin, 1733)
Óleo sobre tela, 37,5 x 42,5 cm.
Museu Nacional de Estocolmo
99
O poema “A Mulher na Cozinha” (“Woman in Kitchen”) traduz a experiência das telas
“Woman at the Urn” e “The Laundress”, estes dois feitos por Jean Baptiste Siméon Chardin em
1733. Deve-se ressaltar aqui que a vinculação entre as obras de Chardin e de Boland faz parte de
um desígnio crítico, específico desta tese e não autoral, em ordem inversa a de que falamos no
poema anterior. Isto significa que diferentemente do poema “From The Painting Back From The
Market by Chardin” (“Do Quadro De Volta Ao Mercado de Chardin”) em que a autora aponta a
intermedialidade ao fazer explícita menção à obra do pintor, no poema “Woman In Kitchen” (“A
Mulher Na Cozinha”) a intermedialidade é a nossa inferência crítica.
A idéia de Chardin era deixar ambas as telas suspensas lado a lado. Para Gabriel
Naughton, a obra de Chardin é marcada pelo silêncio e mistério, tão característicos da estética
impressionista, presente em ambas as telas, e que viria a acontecer posteriormente na história da
pintura europeia ocidental. Há uma percepção mútua das figuras nos desenhos, embora cada uma
delas esteja ensimesmada. O procedimento de claro-escuro, conforme já visto em “O Retorno do
Mercado”, é novamente aí adotado, embora de maneira diferente, pois as mulheres em relevo nos
dois quadros estão com roupas mais notadamente claras, embora os ambientes em que estejam
sejam escurecidos. O tempo está de passagem nas tarefas mundanas - na tela “A Lavadeira”, por
exemplo, isso se nota na bolha de sabão que a criança faz. O tempo está de passagem e, também,
regrado, pela figura adulta mediante a criança, o pulsar das emoções guiado pelas tarefas exatas,
precisas do dia e que são a música ruidosa da existência. Se o barulho é vital, no verso 21
The silence is a death. O silêncio é uma morte.
Inicia-se o terceiro verso da última estrofe de “A Mulher Na Cozinha”. Na tela “Woman at the
Urn” é como se ouvíssemos o barulho da água caindo do tonel, diante do qual a mulher se debruça
para recolher água. No poema, os barulhos da cozinha crescem como necessidades inevitáveis da
tecnologia. Há o espaço do tempo entre a tela e o poema, aquele do século XVIII, este,
contemporâneo. Ambos, no entanto, resgatam o universo das tarefas domésticas e o silêncio
abafado que habita o ruidoso ir-e-vir do tempo esquecido nas ações da(s) mulher(es). O tempo
esquecido corresponde à trivialidade da associação da mulher ao ambiente doméstico, tão comum
a todas as épocas.
Mais uma vez, assistimos ao alvo referir-se à pureza, `a puerilidade, aquilo que de tão
inerente à natureza primeira do homem torna-se inevitavelmente “mortuário” (último termo
empregado no poema “A Mulher Na Cozinha”) pela passagem do tempo. No poema “Do Quadro
De Volta Ao Mercado de Chardin”, “o branco do corpo das gaivotas” ilumina a obscura alma que
vaga entre o sonho e a brancura da realidade dos corpos e elementos materiais. No poema “A
100
Mulher na Cozinha”, o eu-lírico fala da mulher como a música-musa, inspiração do dia, que flutua
feito uma das dançarinas de Degas no tempo:
(...) She turns to spread
a cloth on the board and iron sheets
in a room white and quite as a mortuary.
(versos 22-24)
(...) Ela se volta
para espalhar um pano na tábua e passar os lençóis
numa sala tão branca quanto uma mortuária.
apesar de seu destino ser incerto, indeterminado, obscuro, distante do branco dos espaços que
ocupa:
She has nowhere definite to go.
She might be a pedestrian in traffic.
(versos 5, 6)
Ela não tem lugar definido para ir
Ela deve ser uma pedestre no trânsito.
A qualidade de pedestre desta mulher denota a transitoriedade de seu espírito, a
volatilidade de seus pensamentos, diferentemente de suas ações, tão pontuadas nas telas de
Chardin: a execução precisa das tarefas referem-se aos momentos interiores, da subjetividade da
mulher, em uma espécie de compensação à incomunicabilidade, neste caso, tornada pública na
revelação pictórica da imagem na tela de Chardin e retornada à interioridade na representação
ekphrástica das imagens em palavras. O mergulho na busca por respostas faz-nos concluir que a
única certeza é a das dúvidas. O impressionismo de Edgar Degas na tela “Mulher Passando
Roupa”, como nas outras duas telas da série das lavadeiras, apresenta-se transposto na incerteza
do destino da figura feminina, no caráter volátil do prosaísmo que envolve a rapidez de suas
ações.
Se por um lado o poema versa sobre a subjetividade da mulher, transformando-a no foco
de preocupação temática, por outro, essa mesma mulher aparece reificada na condição de sujeito-
objeto que divide o mesmo espaço com os utensílios domésticos que ocupam a cozinha e,
também, transformam-se em semi-humanos, dada a personificação a eles atribuída pelo eu-lírico
nos usos verbais de “esconder”, “piscar”, “alvejar”, “confundir”. O próprio título do poema,
“Woman In Kitchen” (“A Mulher na Cozinha”), recupera a imagem convencional da associação
entre mulheres e lares, mulheres e domesticidade e se reporta as telas de Chardin “Woman at the
Urn” e “The Laundress”. Além disso, os versos 13 e 14 enfatizam tal retórica:
Machinery jigsaw everything she knows.
And sshe is everywhere among their furor.
As máquinas confundem tudo que ela conhece
E ela está em toda a parte com o furor das máquinas:
Esses versos indicam o teor de impermanência do pensamento e do sentimento em relação
aos pensamentos, idéia que aparece no ensaio de Eavan Boland “The Woman. The Place. The
Poet” (BOLAND, 1995), no qual a autora define as imagens cotidianas como indícios referenciais
certos da eterna renovação. Ao comentar o seu próprio processo de criação, a poetisa pondera:
101
Há algo sobre a ação repetida – de levantar uma criança, limpar um prato, observar as
estações retornarem a uma árvore e partirem de uma paisagem – que revela um sentido
mais profundo à existência e cura alguns dos piores desgastes do tempo? (1995, p.
169).
103
para concluir que
Aqui agora finalmente estava a permanência: uma permanência ilusória, mas uma
estabilidade suficiente para me fazer perceber que os sustentáculos mais profundos não
estão no novo ou no surpreendente. (...) Ao invés disso, muitas das coisas que eu agora
fazia – do gesto casual de olhar pela janela à escrita de poemas – tornaram-se um ato de
possuir as coisas já conhecidas de uma maneira ainda desconhecida.
104
Cabe notar que isso se vincula à idéia mesma da ekphrase real: a representação do que já
existe.
Desta maneira, a repetição das imagens aponta ao sentido de pertencimento, a partir do
encontro com o que sustenta a vida, seqüências de pequenos atos grandiosos. Para Boland, “os
sentidos mais profundos” emergiriam dessas seqüências, a partir das quais o poema nasce. Assim,
“A Mulher na Cozinha” e “Do Quadro De Volta do Mercado de Chardin” são poemas que
retratam essas repetições, revelam a realidade imaginativa e imagética da mulher. Tal idéia
reforça a presença da poesia como caminho de encontro à subjetividade.
Tanto os quadros de Degas, quanto os de Chardin e estes poemas de Boland são
apologéticos da figura feminina. No entanto, há diferenças no olhar da mulher sobre si mesma e
na representação das sensações que se apresenta disposta em forma de imagens.
O impressionismo de Degas, nascido em 1834 e morto em 1917, pintou o olhar feminino
nas telas sempre impreciso, indefinido, borrado, impessoal, diferentemente de seu colega Auguste
Renoir (nascido em 1841 e morto em 1919), que permitiu o convidativo ao olhar feminino.
Mesmo nas telas que tratam do tema do nudismo nas mulheres, a impessoalidade foi a marca de
Degas, que, além das bailarinas, consagrou-se por pintar corridas de cavalos, naturezas-mortas e
mulheres na forma de banhistas, prostitutas e lavadeiras. A impessoalidade pintada por cores
diluídas e misturadas e, assim, pela imprecisão das formas, que em muito remete à caricatura,
encontra eco na universalidade comum do ambiente doméstico, remissão constante nos poemas de
Boland, e que é associado predominantemente ao universo feminino. Isso nos mostra que para
superar o estereótipo da associação da mulher com a domesticidade, a poetisa retoma-o,
reapropria-se dele, a fim de estabelecer novas diretrizes. Por isso, dizemos que o fato de Boland
103
No original, “Is there something about the repeated action – about lifting a child, clearing a dish, watching the seasons return to a
tree and depart from a vista – which reveals a deeper meaning to existence and heals some of the worst abrasions of time?”
(1995, p. 169).
104
Now Here at last was permanence: An illusionary permanence, but enough stability to make me realize that the deepest
sustenances are not in the new or surprising. (…) Instead many of the things I now did – from the casual gesture of looking out a
window to the writing of poems – became an act of possessing the old things in a new way.” (op.cit.).
102
ter se concentrado na idéia da domesticidade relaciona-se à necessidade de reafirmar o papel da
mulher na literatura contemporânea, sobretudo, de tradição irlandesa, da qual a mulher fora
afastada. Para (BOLAND, 1996, p.xii) a figura do poeta na Irlanda relacionar-se-ia com a
“nutrição coletiva” ao passo que a mulher associar-se-ia ao individualismo, sendo ambos,
portanto, aparentemente vivências opostas. Neste sentido, a mulher seria sempre apresentada
como o objeto do poema e não o sujeito locutor, o eu-lírico que fala de si mesmo. “A poesia era
algo (...) colocado a parte (...). Conforme a escuridão caía, uma vida conversacional se
intensificava.” (op.cit., p. x).
A proposta pessoal de Boland é ultrapassar a experiência comum, da distância entre poeta
e mulher. O início da revelação da vida da mulher (sua sexualidade, sua história, seus rituais de
busca) dá-se com a retomada mimética da pintura que influencia a sua vida: sua mãe fora pintora
e as artes visuais compuseram a sua educação.
Vale notar a mudança no olhar da mulher (sobre si mesma e sobre sua alteridade) e sobre
a mulher (a partir do pintor). Em Chardin, há a percepção da presença da alteridade rodeante, dos
outros que estão em volta do ambiente, mas inexiste o contacto perturbador explícito entre as
presenças no olhar das mulheres. Em Degas, as mulheres mostram seus olhos ainda que de
maneira impessoal, reticente, caricatural. Em Renoir, as mulheres avançaram na condução das
cenas de trocas de percepções e, assim, conseguem encarar-nos como seus interlocutores, e a si
mesmas, mostrando maior participação e diálogo. Essa crescente interação do olhar da mulher,
retratada pelos artistas e presente nas pinturas, acompanha as transformações porque passaram os
papéis sociais femininos ao longo dos tempos nas sociedades ocidentais. Então, temos tanto o
olhar quanto o tempo (passado, presente e futuro, conforme discutido na ekhrase real do poema
“From The Painting Back From The Market By Chardin” (“Do Quadro De Volta Do Mercado De
Chardin”) como fatores indissociáveis nestes trabalhos aqui comentados. Além disso, a tradução
das formas pictóricas para a poesia e vice-versa, ou seja, a ekphrase real e conceitual, mostra o
exercício de reler o que já foi formulado, em uma constante reapropriação da compreensão do
artista. Boland, em seu livro de ensaios, comenta que “cada revisitar ofereceu-me uma outra
chance de clarear o mistério de ser uma poetisa no quebra-cabeça do tempo, da sexualidade e da
nação.” (1995, p. xiii)
105
e, também, que as suas duas vidas – de mulher e poetisa – ofereceram-
lhe a oportunidade de articular a relação entre “o silêncio e a expressão”, “democratização e
oligarquia”, “uma vida que a sociedade tolera e a outra que nomeia a ser levada adiante, no futuro,
ambas em glória e sobrevivência.” (op. cit, p.xii)
106
. Também notamos que é no intercâmbio
105
“(…) each revisiting hás offered me another chance to clarify the mystery of being a poet in the puzzle of time and sexuality and
nationhood.”
106
“(…) these lives, with their relation and division, make a sign which is ominous and revealing: about silence and expression,
about democratization and oligarchy, about the life a society tolerates and the one it nominates to take it into the future, to both
glory and survival.” (1995, p.xii).
103
simultâneo das artes que a sua poesia mostra a capacidade comunicativa mais ampla da
linguagem.
Ao retomarmos a relação entre os quadros e os poemas aqui estudados e refletirmos sobre
a questão da ekphrase, vale ressaltar que enquanto o poema “Woman In Kitchen” (“A Mulher Na
Cozinha”) apenas alude ao quadro “Woman at the Urn” de Chardin, através de sua similaridade
temática com a domesticidade, o poema “Degas´s Laundresses” (“As Lavadeiras de Degas”), no
entanto, remete à série de lavadeiras retratadas pelo pintor (“Woman Ironing”, “Scene in a
Laundry” e “Two Laundresses”, respectivamente de 1880, 1884 e 1884-1886), da mesma maneira
que os poemas “From the Painting Back from Market by Chardin” “On Renoir´s The Grape-
Pickers” e “Fruit on a Straight-Sided Tray”, do livro Night Feed, poemas que se referem e, não
apenas aludem, a quadros de Chardin e Renoir (Back from Market e The Grape-Pickers at Lunch
ou Les Repas des Vendangeuses) respectivamente.
Portanto, nestes casos em que os poemas explicitamente remontam a quadros e os
representam por meio da ekphrase, esta aponta uma reflexão mais completa sobre o tema da
mulher e da linguagem, sobre a comunicação artística. O intertexto de Degas torna o leitor de
Boland familiar com a questão da representação. Desta maneira, o entendimento temático
estabelece-se na intermedialidade.
Degas´s Laundresses
You rise, you dawn
roll-sleeved Aphrodites,
out of a camisole brine,
a linen pit of stitches,
5-silking the fitted sheets
away from you like waves.
You seam dreams in folds
of wash from which freshes
the whiff and reach of fields
10- where it bleached and stiffened.
Your chat´s sabbatical:
brides, wedding outfits,
a pleasure of leisured women
are sweated into the folds,
15- the neat heaps of linen.
Now the drag of the clasp.
Your wrists basket your waist.
You round to the square weight.
Wait. There behind you.
20- A man. There behind you.
Whatever you do don´t turn.
Why is he watching you?
Whatever you do don´t turn.
Whatever you do don´t turn.
25- See he takes his ease
staking his easel so,
As Lavadeiras de Degas
Você amanhece, se levanta
Afrodite, de mangas arregaçadas,
De uma salmoura de corpetes,
Uma tulha branca de pontos,
5- desnudando-lhe os lençóis amoldados.
como ondas.
Você cose sonhos em vincos
de lavanderias
das quais a brisa e o ar do campo
10- refrescam o que foi alvejado e entesado
A sua conversa é de descanso:
noivas, vestidos de casamentos,
um prazer de mulheres em contentamento
é despejado nos vincos,
15- nas pilhas arrumadas de linho.
Agora, a máquina de passar.
Os seus punhos encestam a sua cintura.
Você se curva ao peso da cesta.
Espere. Lá atrás de você.
20- Um homem. Lá atrás de você.
O que você fizer, não se vire.
Por que ele a observa?
O que você fizer, não se vire.
O que você fizer, não se vire.
25- Veja, ele monta o seu cavalete
fixando-o
104
slowly sharpening charcoal,
closing his eyes just so,
slowly smiling as if
30- so slowly he is
unbandaging his mind.
Surely a good laundress
would understand its twists,
its white turns,
35- its blind designs-
it´s your winding sheet.
(BOLAND, 1991, p. 119)
lentamente apontando o lápis,
fechando os seus olhos dessa mesma maneira,
sorrindo suavemente como se
30- ele fosse vagarosamente
atando a sua mente.
Certamente uma boa lavadeira
entenderia os seus movimentos,
as suas voltas brancas,
35- os seus rascunhos obscuros –
- são o seu lençol enrolado.
105
Woman Ironing (Edgar Degas, 1880)
Tela, 81 x 66 cm
Walker Art Gallery, Liverpool
106
Two Laundresses (Edgar Degas, 1884-6)
Tela, 73 x 79 cm
Museu d´Orsay, Paris
107
Scene in a Laundry (Edgar Degas, 1884)
Pintura a pastel, 63 x 45 cm
The Burrell collection, Glasgow Museums & Art Galleries
108
O poema “Degas´s Laundresses” (“As Lavadeiras de Degas”) estabelece dois diálogos:
um travado entre o eu-lírico e a mulher lavadeira, objeto de contemplação do artista, que
ambiguamente é também o leitor; pelo uso do pronome “you”, o outro diálogo, relativo à tradição
pictórica e a metalinguagem da arte. O cruzamento de ambos os diálogos reitera a discussão sobre
a distância dos tempos entre o acontecido e o narrado, entre o eu-lírico observador e o objeto
retardado pela observação, o próprio eu-lírico em inversão analítica, ou mesmo, o leitor (e, ainda
mais propriamente, a leitora) o objeto que na tela descrita era sujeito:
You seam dreams in folds.
(verso 7)
Você cose sonhos em vincos.
Tal verso refere-se ao artista - o pintor e a poetisa – além do leitor que em seu papel de decifrar
significados do texto, torna-se autor daquilo que lê.
Além disso, em “As Lavadeiras de Degas”, Boland faz do eu-lírico um transeunte entre o
imaginário real e o mítico poético, entre Afrodite e a doméstica, mostrando-nos a importância das
experiências voláteis que se integram nos versos 19 e 20.
...There behind you
A man. There behind you.
...Lá atrás de você
Um homem. Lá atrás de você.
O imaginário real, fonte da ekphrasis real, remete e alude à imagem da doméstica em seus
afazeres, a lavadeira em atividade, os seus atos, o ambiente que a circunda, ou seja, o universo das
lavadeiras do pintor Degas.
a pleasure of leisured women
are sweated into the folds
the neat heaps of linen.
Now the drag of the clasp.
Your wrists basket your waist
You round to the square weight.
(versos 13-18)
Um prazer de mulheres em contentamento
É despejado nos vincos,
nas pilhas arrumadas de linho.
Agora, a máquina de passar.
Os seus punhos encestam a sua cintura.
Você se curva ao peso da cesta.
A descrição imagética disso corresponde ao percorrer desse imaginário que nos habita
socialmente, sob a forma da ekphrasis real. Já o mítico poético se revela na alusão à Afrodite,
deusa grega do amor, que com a marca do semi-humano metaforiza o ideal de mulher e a ruptura
desse ideal, a partir da aproximação paralela de “você”, “mulher” e da deusa Afrodite. A
personificação dos objetos como “uma tulha branca de pontos” (“a linen pit of stiches”, verso 4)
que desnuda “os lençóis amoldados” (“silking the filted sheets”, verso 5) esses, comparáveis a
“ondas” (“como ondas”/ “like waves”, verso 6) é o processo contrário à reificação da mulher,
109
“você”, “Afrodite” que, se antes era sujeito, na tradução da imagem real (da tela) à poesia reitera o
teor mítico da figura feminina, sobretudo, no penúltimo verso da terceira estrofe, verso 17.
Your wrist basket your waist. Os seus punhos encestam a sua cintura.
A atribuição da capacidade de encestar os punhos metonimiza a qualidade reificadora das partes
do corpo feminino, transformando a “Afrodite” novamente em uma mulher comum, longe da
mítica grega, pondo em questionamento o valor comunicativo da palavra em comparação à
imagem e, acima de tudo, do valor do discurso feminista. Então, eis que a ekphrase desempenha a
conciliação das dúvidas: ao aproximar as linguagens poética e pictórica, torna o discurso mais
completo, menos frágil em sua eficiência comunicativa.
Por isso, podemos dizer que os movimentos de aproximação da imagem a nós,
leitores/observadores, sob a forma de diálogo e distanciamento, sob a forma de descrição narrativa
da imagem primeira do quadro a que o poema alude anunciam o tema da metalinguagem do fazer
artístico, recorrente nos poemas de Boland.
Devemos notar que a poetisa desmitifica o sublime da representação pictórica das
mulheres nos quadros em diálogo, ao transformá-las todas em Afrodite e, assim, apontar-nos a
relevância do casual, dos atos casuais do dia-a-dia, bem como do diálogo intertextual das artes, o
que nos proporcionaria uma mais ampla compreensão do mundo e da vida. Para Marilena Chauí
(1999, pp.162, 163),
O mito reúne, junta, relaciona e faz elementos diferentes e heterogêneos
agirem uns sobre os outros. (...) O mundo é um tecido de laços e vínculos
secretos que precisam ser decifrados e sobre os quais os homens podem
adquirir algum poder por meio da imitação. (...) O mito decifra o secreto
(...) o pensamento mítico é um pensamento sensível e concreto, um
pensamento onde imagens são coisas e onde coisas são idéias, onde as
palavras dão existência ou morte às coisas.
Já Campbell concebe a mitologia em termos associados à religiosidade e, desta maneira,
relaciona-a ao poder poético e, por conseguinte, ao da metáfora: “As metáforas apenas aparentam
descrever o mundo exterior do tempo e do espaço. Seu universo real é o domínio espiritual da
vida interior. O Reino de Deus está no próprio interior.” (2002, p. 37). Para Campbell, o mistério
maior é a própria existência (“o ser de nós mesmos e de nosso mundo”, ibidem, p. 40), que jamais
se revela de maneira absoluta, mas que na projeção da mente do poeta dá-se completamente, pois
ultrapassa os limites dos significados previsíveis, sobretudo, no entrelaçamento do mundo no
qual se articula a comunicação, ambiente público e o espaço da origem das sensações e idéias, o
mundo privado.
Assim, vale notar que as diferentes relações entre os quadros e os poemas exprimem os
movimentos de encontro do eu, sejam pelas referências extratextuais, que partem da esfera
110
pública para alcançarem o domínio privado das representações existenciais das mulheres
irlandesas hoje, sob o olhar público da domesticidade e do posicionamento social das mulheres na
Irlanda tradicional e no universo feminino, sejam pelos diálogos intratextuais, que revelam uma
perspectiva interior de ler o mundo, interpretá-lo.
111
O Auto-Retrato: o hiato indefinido e certo
O Auto-Retrato
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Terminado por um louco!
(Mário Quintana)
Tendo realizado uma leitura que procurou didaticamente diferenciar a ocorrência
ekphrástica na poesia de Eavan Boland nos movimentos entre os espaços público e privado, cabe
agora apontar a conclusão a que tal perspectiva leva-nos. Então, repensaremos os movimentos
ekphrásticos – reais e conceituais – em suas capacidades de intersecção máxima, no sentido de
que formam uma cinemática que fundamentalmente se encerra na interioridade, e que diz respeito,
no caso da poetisa à reflexão metalinguística do fazer artístico. O artista em “As Lavadeiras de
Degas”, supostamente Degas ele mesmo, confunde-se com “você”, Afrodite, objeto-sujeito do
poema. O desenrolar das ações de um e de outro descritas ao longo do poema é metonímico do
processo de criação artística: a voz do eu-lírico é também a do autor e o entrelaçamento das
passagens-paisagens, presentes no poema, momentos ekphrásticos exemplares, evidencia a
discussão metalinguística: ser-realizar. Já no poema “A Mulher Na Cozinha”, os versos 21 e 22 da
última estrofe justificam metalinguisticamente a elocução poética:
The silence is a death. It starts to bury
the room in white spaces…
O silêncio é uma morte. E começa a enterrar
a sala em espaços brancos.
Além disso, vale dizer que no poema “Self Portrait on a Summer Evening” (“Auto-Retrato
Numa Noite de Verão”), Boland final e fundamentalmente alcança a posição de sujeito da história
feminina (da poetisa e da mulher) irlandesa, ao aludir aos auto-retratos de Chardin, ao se referir à
metonímia metalinguística do pintar (desenhar, escrever e criar) a mulher enquanto reflexo da
subjetividade do criador e, também, ao estabelecer um diálogo entre criadores – poetisa e pintor,
poetisa e leitor, poetisa, pintor e observador.
Self-Portrait on a Summer Evening
Jean-Baptiste Chardin
is painting a woman
in the last summer light.
Auto-Retrato Numa Noite de Verão
Jean-Baptiste Chardin
está pintando uma mulher
na última luz do verão
112
All summer long
5- he has been slighting her
in botched blues, tints,
half-tones, rinsed neutrals.
What you are watching
is light unlearning itself,
10- an infinite unfrocking of the prism.
Before your eyes
the ordinary life
is being glazed over:
pigments of the bibelot,
15- the cabochon, the water-opal
pearl to the intimate
simple colors of
her ankle-length summer skirt.
Truth makes shift:
20- The triptych shrinks
to the cabinet picture.
Can´t you feel it?
Aren´t you chilled by it?
The way the late afternoon
25- Is reduced to detail –
the sky that odd shape of apron -
opaque, scumbled –
the lazulis of the horizon, becoming
optical grays
30- before your eyes
before your eyes
in my ankle-length
summer skirt
crossing between
35- the garden and the house,
under the whitebeam trees,
keeping an eye on
the length of the grass,
the height of the hedge,
40- the distance of the children
I am Chardin´s woman
edged in reflected light,
hardened by
the need to be ordinary.
(BOLAND, 1991, pp.80, 81)
verão todo
5- ele a rabiscou
com tons azuis, remendos
meio-tons, neutros apagados
O que tu vês
é a luz se desbotando
10- um desvendar infinito do prisma.
Diante de teus olhos
a vida prosaica
sendo esboçada:
os pigmentos do bibelô,
15- o cabochão, a pérola opala-marinha
para o íntimo
as cores simples¸ íntimas
de sua longa saia de verão.
A verdade se altera
20-O tríptico diminui,
e se encolhe no armário do escritório
Não consegues sentir?
Não estás comovido
Pela maneira como a tardinha
25- é reduzida ao detalhe –
o céu, aquela estranha sombra de avental –
opaca, atenuada -
o lápis-lazuli do horizonte se tornando
cinzas óticos
30- diante de teus olhos
diante de teus olhos
em minha longa
saia de verão
atravessando
35- o jardim e a casa
debaixo dos lodões brancos
de olho
na altura da grama
na altura da cerca
40- na distância das crianças
Eu sou a mulher de Chardin
emoldurada na luz refletida
endurecida
pela necessidade de ser comum.
113
Self-portrait with an Eye-shade (Jean Siméon Chardin, 1775)
Pintura a pastel, 46 x 38 cm.
Museu do Louvre, Paris
114
Self-portrait at an Easel (Jean Siméon Chardin, 1779)
Pintura a pastel, 40,5 x 32,5 cm
Museu do Louvre, Paris.
115
Assistimos claramente aí à alusão que a autora faz ao ato de pintar e escrever, enquanto
pertencentes ao universo da criação. “Auto-Retrato Numa Noite de Verão” descreve o pintor,
Chardin, no ato de desenhar – o que é, em algumas épocas da pintura, considerada uma atitude
menor em relação à pintura – uma mulher, que aos poucos se revela ser a própria poetisa, o que
histórica e literalmente se mostra incongruente, mas no nível metafórico, resume o desejo de
discussão sobre o papel da mulher como objeto do fazer artístico e, ao mesmo tempo, sujeito de
sua própria história, ao ocupar os espaços cotidianos da vida: a preocupação com o ambiente
doméstico, as crianças e, inclusive, o vestuário que lhe é típico, a saia. Assim, podemos dizer que,
por meio dos objetos rodeantes, tanto da mulher, objeto da pintura, quanto do artista, em cores
particularmente definidas como “sombrias”, ainda que em uma tarde de verão, revelam-se as
ações ímpares da domesticidade com que se envolve a mulher pintada. Deve-se notar que a
subjetivação – a qualidade de se tornar sujeito – é atribuída pelo artista (homem) em seu ato
criador e aqui, no poema ekphrástico (conceitual e real), trazido à tona. Lembremo-nos de que a
ekphrase conceitual parte das palavras para construir realisticamente um conjunto de imagens
inicialmente imaginadas como nos poemas “The River” (“O Rio”), “Distances” (“Distâncias”),
“Home” (“Lar”), “Exile! Exile!” (Exílio! Exílio!”). Contrariamente, a ekphrase real parte de
imagens que já são representações a serem novamente representadas em poesia.
O poema “Self-Portrait On A Summer Evening” (“Auto-Retrato Numa Noite De Verão”)
pode se referir aos vários quadros de Chardin, em que as mulheres são pintadas e retratadas em
suas tarefas domésticas. Se assim o for, tal poema é uma ekphrase real como “From The Painting
Back From Market By Chardin”(“Do Quadro De Volta Do Mercado de Chardin”). No entanto,
como inexiste qualquer especificidade referencial à obra do pintor, neste caso, mas ao todo de sua
criação e, no máximo, à fase final, a dos auto-retratos, o poema configura-se como uma ekphrase
conceitual, na medida em que parte de imagens imaginadas e aí relatadas sob a forma poética.
Como no auto-retrato, essa ekphrase conceitual revela o quê há de mais íntimo, secreto e privado
no corpo: o rosto (portador dos olhos, “espelhos da alma”) e, ao mesmo tempo, o que há de mais
público, aquilo que pode ser publicamente visto. A menção aos auto-retratos de Chardin consagra-
se como uma metalinguagem do fazer artístico e metonímico do processo poético da autora, ao se
referir à arte pictórica de maneira a tornar paralelas as criações, apesar das diferenças de gênero
(tanto artístico, quanto sexual), tempo (século XVIII, época em que Chardin pintou e o século
XX, quando da escrita destes poemas) e espaço (França e Irlanda). É nesta aproximação entre
espaços, tempos e artes que a autora nos mostra como é possível a composição comunicativa mais
completa (nos versos 8-10):
What you are watching
is light unlearning itself,
an infinite unfrocking of the prism.
O que tu vês
é a luz se desbotando
um desvendar infinito do prisma.
116
Notemos que é na penúltima estrofe deste poema (versos 34-40)
crossing between
the garden and the house,
under the whitebeam trees,
keeping an eyeon
the length of the grass,
the height of the hedge,
the distance of the children.
atravessando
o jardim e a casa
debaixo dos lodões brancos
de olho
na altura da grama
na altura da cerca
na distância das crianças.
nas gradativas preocupações domésticas que tomam conta da mulher descritivamente aí narrada, a
qual culmina na elocução identitária “I am Chardin´s woman”, que podemos finalmente perceber
a justificativa com a qual a persona-lírica e o objeto da pintura passam a ser um único, mesclam-
se de maneira a aproximá-los paralelisticamente e o “auto-retrato”, uma metonímia da biografia
da poetisa Boland.
Para a poetisa, falar do cosmopolitismo da condição feminina, ainda que demandasse um
aprofundamento crítico do termo, de qualquer maneira, significa desvelar um olhar cosmopolita
sobre as representações do cotidiano da mulher, de forma atemporal. Além disso, o
“cosmopolitismo” assiste à inserção da preocupação com o doméstico como um dos elementos
fundamentais a partir dos quais se possa pensar nos termos de que trata a poesia de Boland. Além
disso, deve-se aqui mencionar o diálogo travado entre a persona-lírica e o “tu” que, a partir do
verso 30, ganha contornos mais visíveis, pois temos aí a indicação de que esse “tu”, além da
possibilidade de nós mesmos, leitores, configura-se como o próprio pintor, o artista que retrata a
poetisa e com quem se estabelece o diálogo metalinguístico. Apesar de retratar a particularidade
do mundo feminino irlandês nesse poema e no conjunto de sua obra, Boland, por meio do jogo
ekphrástico, evoca um espectro amplo da existência humana, ao se referir e aludir as
intertextualidades com poetas como Thomas Stern Eliot, William Butler Yeats e pintores
europeus de diversas épocas e geografias, como Edgar Degas, Auguste Renoir e Jean-Baptiste
Simeón Chardin.
O caráter relativo à universalidade presente leva-nos paradoxalmente à qualidade do que é
efêmero, pela menção ao verão e, particularmente, à noite de verão. O verão é metáfora da
qualidade ideal dos fatos e da vida, que se esvai rapidamente – “summertime hath all too short a
date.” diz um dos versos do célebre soneto XVIII de William Shakespeare. Assim, podemos ser
aparentemente levados a crer que a domesticidade de que se reveste a mulher pintada no quadro
da ekphrase conceitual é temporária, mas Chardin está há quatro séculos de distância, o que nos
faz ter dúvida sobre esse “verão” e essa “noite de verão”. Assim, a hipótese da temporalidade da
condição predominantemente doméstica da mulher recebe o status de “cosmopolita” e, por isso
mesmo, a fonte de auto-conhecimento para a poetisa. Em outras palavras, a condição doméstica
na vida das mulheres associa-se a múltiplas geografias e tempos e não apenas à especificidade
117
irlandesa. No entanto, ao perceber que essa condição fundamenta a vida das mulheres, Boland
oferece autenticamente espaço à criação, o que antes não teria acontecido na história da poesia
irlandesa, escrita por mulheres. Ao invés de negar essa base fundamental, a poetisa a reconfirma e
a mostra como um traço diferencial no desempenho das funções sociais, humanas e, também,
como fonte mesma de sua criação. Boland (1995, p. 170) compara aquilo que para Coleridge teria
sido básico à escrita poética, a repetição de formas nas unidades métricas, conjugado ao estilo de
vida doméstico:
Eu sabia o que as repetições significavam em poesia. Compreendi tais valores na poesia
e na restrição (…) Agora aqui, bem a minha frente, todos os dias, estavam as repetições
que tinham exatamente quase o mesmo efeito (…) O que eram esses, senão como a
música e a língua em poesia uma sequência e repetição que permitiam vir à tona
significados mais profundos, um sentido de pertencimento, de sustentação de uma vida
revelada e não restrita pelo ritual rotineiro?
107
É desta maneira que a autora sustenta a capacidade comunicativa mais ampla e completa da
mulher poeta, que exerce tantos papéis nas dinâmicas de sua vida diária para, finalmente, ver
espelhada na arte a sua polifonia: sujeito, objeto, voz lírica, espectadora, leitora.
Sabe-se que a produção sobre a fisionomia ganha relevância, sobretudo, a partir do século
XVI, quando os humanistas do Renascimento debruçaram-se sobre os autores antigos, a partir dos
quais as questões sobre fisionomia foram repensadas, embora o estudo da fisionomia tenha se
iniciado “no Ocidente no século XII com as primeiras traduções.” (COURTINE; HAROCHE,
1988, p. 41). O fato é que se as palavras enganam, o rosto revela a expressão do pensamento e da
linguagem natural da alma, a partir de sua imagem retratada, metonímia e metáfora da alma, o
local a partir do qual temos acesso ao corpo, à visibilidade do que antes era invisível. Assim,
Courtine e Haroche advertem-nos que:
(…) não se deve procurar na fisiognomia apenas a verdade dos rostos,
mas mais do que isso, a linguagem das figuras: a expressão de uma
relação entre interioridade do homem e a sua aparência e suas
transformações (…)” (1988, p. 39)
pois
(…) o rosto é em primeiro lugar para o corpo o que o corpo é para o mundo: qualquer
parte do rosto está ligada a uma parte do corpo. O rosto resume o corpo e, portanto,
condensa o mundo. Mas, a analogia joga ainda entre superfície e profundidade,
invólucro visível e alma invisível. (1988, p. 44).
Desta maneira, novamente, a pintura, a partir do retrato e, mais especificamente, do auto-retrato,
revela o seu desejo de transparência do corpo, pois denota um discurso sobre o homem por meio
107
“I knew what repetitions meant in poetry. I understood those values in language and restraint. (…) Now here, in front of me every
day, were repetitions which had almost exactly the same effect. (…) What were all these if not – as language and music in poetry
were – a sequence and repetition which allowed the deeper meanings to emerge: a sense of belonging, of sustenance, of a life
revealed, and not restrained, by ritual and patterning?”
118
de sua imagem metonímica (e metafórica, o rosto). O auto-retrato é a expressão do espaço íntimo,
o rosto e sua expressividade, para o que debruça um olhar reflexivo de introspecção, uma vez que
ele é também, para além do limite maior da privacidade, a fronteira com o que há de mais público
em nosso corpo. Neste caso, ao termos contacto com o auto-retrato, assistimos à negociação
estreita entre espaços: o público, aquilo que é aparentemente visível e tangível e o privado, o
invisível e secreto e, por isso mesmo, aquilo que se busca resolver no contacto com o próprio eu.
Ao aludir a auto-retratos de pintores como Chardin, Boland, por meio de seu eu-lírico, faz vir à
tona de maneira ainda mais intensa e evidente a necessária inevitabilidade da metalinguagem, que
em seu caso se incorpora na reflexão sobre o papel desempenhado pela mulher no fazer poético
irlandês de onde surge a sua própria produção, a tentativa de modificar aspectos fundadores da
voz feminina na tradição de onde elocuciona e, mais importante de tudo, através da reflexão sobre
o próprio fazer poético (e artístico, se pensarmos na intermedialidade), tornar o ato expressivo
mais eficiente.
119
Considerações Finais
O estudo da obra poética de Eavan Boland a partir do Brasil beneficiou-se do ponto de
vista crítico, pois teve o respaldo de pensadores como Alfredo Bosi, Davi Arriggucci Jr., Décio
Pignatari, Eni Puccinelli Orlandi, Ferreira Gular, José Miguel Wisnik, Leyla Perrone-Moysés,
Marilena Chauí, dentre outros. Também, a leitura poética formadora implicada aqui responde
por autores locais como Adélia Prado, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Mário
Quintana e Manuel Bandeira, bem como por trazer metonimicamente (através de Carlos
Drummond de Andrade e Elizabeth Bishop) os diálogos interculturais das línguas portuguesa e
inglesa. Isso significa que as relações de intertextualidade e de contacto cultural têm sido há muito
pensadas e que a perspectiva brasileira aos estudos irlandeses acrescenta olhares críticos plurais,
verdadeiramente cosmopolitas.
Ainda na esteira de acréscimos, a maior das contribuições do local de enunciação deste
trabalho diz respeito ao exercício interpretativo da tradução, a partir do qual pudemos notar como
a intermedialidade, por meio da ekphrase, promove uma comunicação mais eficaz, dado o seu
caráter plural em se tratando de gêneros artísticos a se entrecruzarem simultaneamente e a
suscitarem no leitor uma capacidade de percepção ampla na tarefa da leitura interpretativa.
Podemos dizer, então, que a ekphrase real, por meio da aproximação de imagens
representadas, previamente existentes, permite ao leitor transitar entre esferas de representação
que, associadas, tornam-na (a representação) mais completa, mais eficaz. Os poemas “Woman In
Kitchen” (“A Mulher Na Cozinha”), “Degas´s Laundresses” (“As Lavadeiras de Degas”), “The
Photograph On My Father´s Desk” (“A Fotografia Na Escrivaninha De Meu Pai”) e “The
Carousel In The Park” (“O Carrossel No Parque”) redesenham imagens anteriormente
representadas e, ao fazê-lo, indicam ao leitor (ouvinte, no caso de recitação poética) recortes do
imaginário subjetivo do eu-lírico (também, autora) como um diretor de filmes a mostrar as suas
escolhas cinematográficas, interpretações de alguma obra literária. Trata-se do momento de
elucidação do privado ao público, daquilo que é inerente à subjetividade da poetisa e da mulher
(que também compõe a autora) ao domínio do que é público, o espaço coletivo do conhecimento,
em um movimento de busca do auto-conhecimento. Ao revelar como a linguagem é articulada
pela persona-lírica, autora do recorte visual do objeto (ou conjunto de imagens) em jogo, a
ekphrase real publica uma maneira ou um conjunto de maneiras, a partir da qual ou do qual a
autora interpreta o mundo. Esse olhar, no entanto, é conjugado pelo leitor, de posse de, no
mínimo, duas realidades: aquela primeiramente representada pelo objeto imagético (quadro,
fotografia ou gravura) e a outra, recontada pela subjetividade lírica da poetisa, entremeadas pelo
(e somente possíveis a partir do) universo do leitor. O tom dialógico que aparece em grande parte
120
dos poemas de Boland aponta à consciência do processo de autodescoberta, propiciado pela
ekphrase, como nos usos imperativos dos verbos que antecedem e sucedem a penúltima estrofe do
poema “The Carousel In The Park” -“find the sun”/”encontre o sol”; “find the child”/ “encontre a
criança”:
And winter coming:
The manhandled indigo necks flexing and
the flared noses
and the heads with their quiffed carving.
And the walks leafless and
the squirrels gone
the sycamores bare and the lake frozen.
(versos 17-23)
E o inverno a chegar:
Os bonequinhos azuis a se dobrarem e
os narizes ostensivos
e as cabeças com suas mechas buriladas
e as alamedas sem folhas e
os esquilos sumidos
e os plátanos despidos e o lago congelado.
A ekphrase conceitual também desvenda a óptica privada sobre o público. No entanto,
possibilita tanto à poetisa, quanto ao leitor dominar a sua articulação linguística de transposição
do imaginário (ao invés de imagens já previamente representadas) em palavras. Assim, a
consciência da tradução das realidades parte do interior ao exterior e de volta à interioridade,
diferentemente do que acontece na ekphrase real, que parte do exterior, atinge o interior do eu-
lírico/poeta e retorna ao exterior (domínio público das linguagens). Além do usual tom dialógico,
também verificado nos poemas que apresentam ekphrase real, poemas como “In Exile” (“No
Exílio”), “The Black Lace Fan My Mother Gave Me” (“O Leque de Renda Preta Que Minha Mãe
Me Deu”), “The River” (“O Rio”), “Distances” (“Distâncias”), “In Exile” (“No Exílio”) e
“Home” (“Lar”) ao nos mostrarem ekphrases conceituais, mesclam a narração das ações da
persona-lírica com descrições de imagens pertinentes ao universo imaginado que se traduz (por
aquilo que Boland denomina “retorica do imaginário”). Então, a metalinguagem apresentada nas
segunda e terceira estrofes do poema “The River” (“O Rio”)
how strange it felt –
not having any
names for the red oak
and the rail
and the slantways plunge
of the osprey
What we said was less
than what we saw.
What we saw was
a duck boat, slowly
passing us, a hunter and
his spaniel and…
(versos 7-18)
o quão estranho foi -
não ter nenhum
nome ao carvalho vermelho
e ao estercorário
ao salto inclinado
da águia-pesqueira.
O que dissemos foi menos
do que vimos
O que vimos foi
um barco de pesca vagarosamente
passando por nós, um caçador e
seu spaniel e…
121
procede ao aceno da memória, esculpido pelo último verso da primeira estrofe: “I remember”/
“Eu me lembro”, que encontrará eco na memória que se faz possível pela imagem, no poema
“Distances” (“Distâncias”)
memory: salt-loving fuchsias to one side…
(verso 9)
…memória: fuchsias marinhas de um lado…
Novamente, no poema “Home” (“Lar”), a memória é responsável pela construção da identidade
por meio da intermedialidade das imagens imaginadas e traduzidas poeticamente, que se faz
possível pelo conhecimento do passado histórico da origem do eu-lírico, que na lembrança
reimagina a geografia do lar, com uma única certeza:
of one house with its window, making
An oblong of wheat out of light.
(versos 50, 51)
de que uma casa e sua janela fariam
da luz um campo de trigo
.
Ao falarmos de origem e tradição poética relativas à autora em questão no início deste
trabalho, levantamos a dificuldade do mapeamento de uma tradição poética irlandesa, já
estabelecida pela vasta crítica literária estrangeira aqui empregada. No entanto, também
apontamos ao pertencimento inevitável de Eavan Boland a um contexto e de sua atitude de
resposta a este universo de origem, enquanto escritora. Em nosso estudo, verificamos que o
movimento de intermedialidade, propiciado pela ekphrase (real e conceitual) ao fazer uso de, no
mínimo, duas instâncias representativas, conforme acima apontado, alcança uma capacidade
comunicativa mais eficiente e atinge o encontro máximo das tecituras representativas: o auto-
retrato, metonímia do encontro do eu. Assim, podemos pensar que o poema
“Silenced”/”Silenciada” ao
rinsing the distances
with greenish silks. Now, for the terrible foreground,
she is pulling out crimson thread.
(versos 19-21)
…apagar as distâncias
com sedas verdejantes. Agora, ela arranca o fio carmesim
para o terrível primeiro plano.
e torna a mulher o alvo da enunciação, o sujeito a contar a sua própria história, possível apenas a
partir de seu autoconhecimento, bem como de seu pertencimento, que implica em diálogos com
tradições:
I am Chardin´s woman
edged in reflected light,
hardened by
the need to be ordinary.
(versos 40-44)
Eu sou a mulher de Chardin
emoldurada na luz refletida
endurecida
pela necessidade de ser comum
.
122
Por fim, concluímos que à ekphrase coube o desempenho estilístico do tom plural do
discurso da artista, a nós leitores, a apreciação conjunta da necessidade de reavaliação incessante
de nossos processos de leitura e refazimento de nós mesmos, a partir do olhar sobre o outro, que
são os estudos irlandeses, sobretudo, realizados em língua portuguesa e que encontram respaldo
no exercício da tradução, bem como da crítica voltada à intermedialidade, a qual abre perspectivas
interrelacionais de cultura.
123
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136
ANEXOS
ANEXO I : Outros Poemas de Eavan Boland
“Hanging Curtains With An Abstract Pattern In A Child´s Room
“Outside History”
“Spring At The Edge of the Sonnet”
“We Are Always Too Late”
“Mise Eire”
“The Lost Land”
“Inheritance”
“A Woman Painted On A Leaf”
“In Our Own Country”
“Indoors”
137
“Hanging Curtains With An Abstract Pattern In A Child´s Room
I chose these for you –
not the precinct of the unicorn, nor
the half-torn
singlet of a nursery rhyme prince, but
the signals of enigma:
Ellipse. Triangle. A music of ratio.
Draw these lines
against a winter dusk. Let them stand in for
frost on the spider´s web and on
bicycle sheds.
Observe
how the season enters pure line
like a soul: all the signs we know
are only ways
of coming to our senses.
I can see
the distances off-loading color now
into angles as
I hang their weather in
your room, all the time wondering
just how I look from the road –
my blouse off-white and
my skirt the color of
all the disappointments of a day when
the curtains are pulled back on
a dull morning.
138
“Outside History”
There are outsiders, always. These stars –
these iron inklings of an Irish January,
whose light happened
thousands of years before
our pain did: they are, they have always been
outside history.
They keep their distance. Under them remains
a place where you found
you were human, and
a landscape in which you kno you are mortal.
And a time to choose between them.
I have chosen:
Out of myth into history I move to be
part of that ordeal
whose darkness is
only now reaching me from those fields,
those rivers, those roads clotted as
firmaments with the dead.
How slowly they die
as we kneel beside them, whisper in their ear.
And we are too late. We are always too late.
139
“Spring At The Edge Of The Sonnet”
Late March and I´m still lighting fires –
last night´s frost which killed the new
shoots of ivy in the terra-cotta churn,
has turned the fields of wheat and winter barley
to icy slates on the hills rising
outside the windows of our living room.
Still, there are signs of change. Soon,
the roofs of cars, which last month were
oracles of ice and unthawed dawns,
will pass by, veiled in blooms from
the wild plum they parked under overnight.
Last night, as I drove from town,
the dark was in the lovers were
out in doorways, using them as windbreaks,
making shadows seem nothing more than
Sweet exchequers for a homeless kiss.
140
“We Are Always Too Late”
Memory
is in two parts.
First, the revisiting:
the way even now I can see
those lovers at the café table. She is weeping.
It is New England, breakfast time, winter. Behind her,
outside the picture window, is
a stand of white pines.
New snow falls and the old,
losing its balance in the branches,
showers down,
adding fractions to it. Then
the re-enactment. Always that.
I am getting up, pushing away
coffee. Always, I am going towards her.
The flush and scald is
to her forehead now, and back down to her neck.
I raise one hand. I am pointing to
those trees, I am showing her our need for these
beautiful upstagings of
what we suffer by
what survives. And she never even sees me.
141
Mise Eire”
I won´t go back to it –
my nation displaced
into old dactyls,
oaths made
by the animal tallows
of the candle –
land of the Gulf Stream,
the small farm,
the scalded memory,
the songs
that bandage up the history,
the words
that make a rhythm of the crime
where time is time past.
A palsy of regrets.
No. I won´t go back.
My roots are brutal:
I am the woman
a sloven´s mix
of silk at the wrists,
a sort of dove-strut
in the precincts of the garrison-
who practices
the quick frictions,
the rictus of delight
and gets cambric for it,
rice-colored silks.
I am the woman
in the gansy-coat
on board the Mary Belle,
in the huddling cold,
holding her half-dead baby to her
as the wind shifts East
and North over the dirty
water of the wharf
mingling the immigrant
guttural with the vowels
of homesickness who neither
knows nor cares that
a new language
is a kind of scar
and heals after a while
into a passable imitation
of what went before.
142
“The Lost Land”
I have two daughters.
They are all I ever wanted from the earth.
Or almost all.
I also wanted one piece of ground:
One city trapped by hills. One urban river.
An island in its element.
So I could say mine. My own.
And mean it.
Now they are grown up and far away
and memory itself
has become an emigrant,
wandering in a place
where love dissembles itself as landscape:
Where the hills
are the colours of a child´s eyes,
where my children are distances, horizons:
At night,
on the edge of sleep,
I can see the shore of Dublin Bay.
Its rocky sweep and its granite pier.
Is this, I say
how they must have seen it,
backing out on the mailboat at twilight,
shadows falling
on everything they had to leave?
And would love forever?
And then
I imagine myself
at the landward rail of that boat
searching for the last sight of a hand.
I see myself
on the underworld side of that water,
the darkness coming in fast, saying
all the names I know for a lost land:
Ireland. Absence. Daughter.
143
“Inheritance”
I have been wondering
what I have to leave behind, to give my daughters.
No good offering the view
between here and Three Rock Mountain,
the blueness in the hours before rain, the long haze afterwards.
the ground I stood on was never really mine. It might not ever be theirs.
And gifts that were passed through generations-
silver and the fluid light left after silk – were never given here.
This is an island of waters, inland distances,
with a history of want and women who struggled
to make the nothing which was all they had
into something they could leave behind.
I learned so little from them: the lace bobbin with its braided mesh,
its oat-straw pillow and the wheat-colored shawl
knitted in one season
to imitate another
are all crafts I never had
and can never hand on. But then again there was a night
I stayed awake, alert and afraid, with my first child
who turned and turned; sick, fretful.
When dawn came I held my hand over the absence of fever,
over skin which had stopped burning, as if I knew the secrets
of health and air, as if I understood them
and listened to the silence
and thought, I must have learned that somewhere.
144
“A Woman Painted On A Leaf”
I found it among curios and silver.
in the pureness of wintry light.
A woman painted on a leaf.
Fine lines drawn on a veined surface
in a handmade frame.
This is not my face. Neither did I draw it.
A leaf falls in a garden.
The moon cools its aftermath of sap.
The pith of summer dries out in starlight.
A woman is inscribed there.
This is not death. It is the terrible
suspension of life.
I want a poem
I can grow old in. I want a poem I can die in.
I want to take
this dried-out face,
as you take a starling from behind iron,
and return it to its element of air, of ending –
so that autumn
which was once
the hard look of stars,
the frown on a gardener´s face,
a gradual bronzing of the distance,
will be,
from now on,
a crisp tinder underfoot. Cheekbones. Eyes. Will be
a mouth crying out. Let me.
Let me die.
145
“In Our Own Country”
They are making a new Ireland
at the end of our road,
under our very eyes
under the arc lamps they aim and beam
into distances where we once lived
into vistas we will never recognize.
We are here to watch.
We are looking for new knowledge.
They have been working here in all weathers
tearing away the road to our village –
bridge, path, river, all
lost under an onslaught of steel.
An old Europe
has come to us as a stranger in our city,
has forgotten its own music, wars and treaties,
is now a machine from the Netherlands or Belgium
dragging, tossing, breaking apart the clay
in which our timid spring used to arrive
with our daffodils in a single, crooked row.
Remember the emigrant boat?
Remember the lost faces burned in the last glances?
The air clearing away to nothing, nothing, nothing.
We pull our collars tightly round our necks
but the wind finds our throats,
predatory and wintry.
We walk home. What we know is this
(and this is all wek now): We are now
and we will always be from now on –
for all I know we have always been –
exiles in our own country.
146
“Indoors”
I have always wanted a world that is cured of the outdoors.
A household without gods.
Walls arriving, entrances taking shape, verticals meeting
Horizontals: a where fetching a now.
Find me a word for love. Make it damp. Sinous companion,
knowing how to enter, settle in wood, salt the sheets
with cold, saying by this that we could never be
anything but an island people.
There is always a place where a fable starts – where a god
proves he is a god by adding
not simply wings and sinews to his shoulders
but the horizons swinging up – rivers, mountains, headlights
only slowly
righting themselves as he rises to find
the first signs of day becoming night.
So it was above our neighbourhood, the world straightening
under wings, the noise of discord
clearly audible, the hinterland reaching to the sea,
its skin a map of wounds, its history a treatise of infections.
But I was an indoor nature poet,
safe in my countryside
of handles and entrances, my pastoral of inland elements,
holding against my face the lured-in aftermath
of ocean, atmosphere: the intimate biography of damp
in the not-dry feel of a child´s cardigan.
147
ANEXO II – OUTROS POEMAS
“Poema das Sete Faces”
“Seven Sided Poem”
“In Memory Of W.B.Yeats”
“Em Memória De W.B.Yeats”
148
“Poema de sete faces”
Carlos Drummond de Andrade
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
149
“Seven-Sided Poem”
(tradução de Elizabeth Bishop)
When I was born, one of the crooked
angels who live in shadow, said:
Carlos, go on! Be gauche in life.
The houses watch the men,
men who run after women.
If the afternoon had been blue,
there might have been less desire.
The trolley goes by full of legs:
white legs, black legs, yellow legs.
My God, why all the legs?
my heart asks. But my eyes
ask nothing at all.
The man behind the moustache
is serious, simple, and strong.
He hardly ever speaks.
He has a few, choice friends,
the man behind the spectacles and the moustache.
My God, why has Thou forsaken me
if Thou knew´st I was not God
if Thou knew´st that I was weak?
Universe, vast universe,
if I had been named Eugene
that would not be what I mean
but it would go into verse
faster.
Universe, vast universe
my heart is vaster.
I oughtn´t to tell you,
but this moon
and this brandy
play the devil with one´s emotions.
150
“In Memory Of W.B.Yeats”
I
He disappeared in the dead of winter:
The brooks were frozen, the airports almost deserted,
And snow disfigured the public statues;
The mercury sank in the mouth of the dying day.
What instruments we have agree
The day of his dead was a dark cold day.
Far from his illness
The wolves ran on through the evergreen forests,
The peasant river was untempted by the fashionable quays;
By mourning tongues
The death of the poet was kept from his poems.
But for him it was his last afternoon as himself,
An afternoon of nurses and rumours;
The provinces of his body revolted,
The squares of his mind were empty.
Silence invaded the suburbs,
The current of his feeling failed; he became his admirers.
Now he is scattered among a hundred cities
And wholly given over to unfamiliar affections,
To find his happiness in another kind of wood
And be punished under a foreign code of conscience.
The words of a dead man
Are modified in the guts of the living.
But in the importance and noise of to-morrow
When the brothers are roaring like beasts on the floor of the Bourse,
And the poor have the sufferings to which they are fairly accustomed,
And each in the cell of himself is almost convinced of his freedom,
A few thousand will think of this day
As one thinks of a day when one did something slightly unusual.
What instruments we have agree
The day of his death was a dark cold day.
II
You were silly like us; your gift survived it all:
The parish of rich women, physical decay,
Yourself. Mad Ireland hurt you into poetry.
Now Ireland has her madness and her weather still,
For poetry makes nothing happen: it survives
In the valley of its making where executives
Would never want to tamper, flows on south
From ranches of isolation and the busy griefs,
Raw towns that we believe and die in; it survives,
A way of happening, a mouth.
151
III
Earth, receive an honoured guest:
William Yeats is laid to rest.
Let the Irish vessel lie
Emptied of its poetry.
In the nightmare of the dark
All the dogs of Europe bark,
And the living nations wait,
Each sequestered in its hate;
Intellectual disgrace
Stares from every human face,
And the seas of pity lie
Locked and frozen in each eye.
Follow, poet, follow right
To the bottom of the night,
With your unconstraining voice
Still persuade us to rejoice;
With the farming of a verse
Make a vineyard of the curse,
Sing of human unsuccess
In a rapture of distress;
In the deserts of the heart
Let the healing fountain start,
In the prison of his days
Teach the free man how to praise.
152
“Em Memória De W.B.Yeats”
(tradução de José Paulo Paes)
I
Ele se foi bem no rigor do inverno:
Os riachos estavam congelados, os aeroportos quase desertos,
E a neve desfigurava as estátuas públicas;
O mercúrio baixava na boca do dia agonizante.
Os instrumentos que temos concordam, eles todos.
Em que o dia da sua morte era um dia frio e torvo.
Longe de sua doença.
Os lobos corriam o sempre-verde das florestas,
O rio campônio não se deixava tentar pelos portos elegantes;
Línguas carpideiras mantiveram
A morte do poeta afastada dos seus poemas.
Para ele, porém, foi a última tarde como ele mesmo,
Uma tarde de enfermeiras e boatos;
As províncias do seu corpo revoltaram-se,
Vazias ficaram as praças da sua mente,
Os subúrbios foram invadidos por silêncio.
A corrente do seu sentir cessou: ele tornou-se em admiradores seus.
Agora jaz espalhado por uma centena de cidades
E de todo entregue a afetos não-familiares
Para achar sua ventura numa outra espécie de bosque
E ser punido conforme a um código estrangeiro de consciência.
As palavras de um homem que morreu
Modificam-se nas entranhas dos vivos.
Mas a importância e o barulho do amanhã
Quando os corretores berram como feras no recinto da Bolsa
E os pobres têm os sofrimentos a que já estão razoavelmente acostumados,
E cada qual, no cárcere de si mesmo, está quase convencido de ser livre,
Alguns milhares pensarão no dia de hoje
Como se pensa num dia em que se faz algo um tanto fora do comum.
Os instrumentos que temos, concordam, eles todos,
Em que o dia da sua morte foi um dia frio e torvo.
II
Eras tolo como nós; teu dom sobreviveu a tudo:
À paróquia de mulheres ricas, à decadência física,
A ti mesmo. A louca Irlanda feriu-te em poesia.
Agora a Irlanda tem a loucura e o clima quietos,
Pois a poesia nada faz acontecer: sobrevive
No vale da sua criação onde jamais executivos
Quereriam brincar, e corre para o sul
153
De ranchos de isolamento e atarefadas mágoas,
Rudes cidades nas quais acreditamos e morremos; sobrevive,
um jeito de acontecer, um estuário.
III
Terra, acolhe um hóspede famoso:
William Yeats, e dá-lhe repouso.
Fique a taça da Irlanda vazia
Do que continha de poesia.
Num pesadelo cor de breu,
Latem todos os cães europeus,
E as nações vivas estão à espera,
Cada qual no ódio que a encarcera.
A desgraça intelectual se vê
nos rostos humanos e
A piedade retida, mar
Que se congelou em cada olhar.
Vai, poeta, vai e que te acoite
O próprio âmago da noite;
Com a tua indômita voz
Persuade ao júbilo todos nós;
Lavra com o teu verso, e que do
Chão da praga nasça um vinhedo.
Celebra o malogro do humano intento
Num arroubo de sofrimento.
Abre, nos ermos do coração,
As fontes da consolação;
No cárcere dos dias que vive,
Ensina o louvor ao homem livre.
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