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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
INSTITUTO DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Dissertação
Fabíola Mattos Pereira
Acessos, reciprocidades e inclusões: Estudo sobre as
relações entre redes de assistência e famílias de grupos populares
em Pelotas / RS
Pelotas, 2008.
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FABÍOLA MATTOS PEREIRA
Acessos, reciprocidades e inclusões: Estudo sobre as relações entre redes de
assistência e famílias de grupos populares em Pelotas / RS
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da
UNIVERSIDADE FEDERAL DE
PELOTAS, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre.
Profª. Orientadora: Drª. Flávia Maria Silva Rieth
Pelotas, 2008.
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Dados de catalogação na fonte:
Aydê Andrade de Oliveira CRB - 10/864
P436a Pereira, Fabíola Mattos.
Acessos, reciprocidades e inclusões : estudo sobre as
relações entre redes de assistência e famílias de grupos
populares em Pelotas/RS / Fabíola Mattos Pereira. –
Pelotas, 2008.
179f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) –
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.
Instituto de Sociologia e Política. Universidade Federal
de Pelotas.
1. Famílias de grupos populares. 2. Reciprocidade. 3.
Redes de assistência . 4. Desigualdade. I. Rieth, Flávia
Maria Silva, orient. II. Título.
CDD
302.3981657
4
BANCA EXAMINADORA:
Profª.Drª. Jurema Brites
Universidade Federal de Juiz de Fora
Profª. Drª. Miriam Vieira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Profª.Drª. Cláudia Turra
Universidade Federal de Pelotas
Profª.Drª. Flávia Maria Silva Rieth (Presidente)
Universidade Federal de Pelotas
5
AGRADECIMENTOS
Às interlocutoras e aos interlocutores, que tornaram possível a realização
deste estudo, que me acolheram em suas casas, em seus lugares de trabalho e
compartilharam comigo de suas experiências e de suas vivências.
À minha orientadora e amiga Profª. Drª. Flávia Rieth, obrigada por me
acompanhar durante tantos anos e respeitar meus limites.
Ao Mestrado em Ciências Sociais, especialmente aos docentes que tantas
vezes auxiliaram e refletiram minhas dúvidas e inquietações, especialmente
Profª.Drª. Beatriz Loner, Prof. Dr. Rogério Rosa, Prof. Dr. Alfredo Gugliano e Prof.
Dr. Álvaro Barreto.
Aos professores que contribuíram na banca de qualificação, Profª. Drª.
Cláudia Turra e Prof. Dr. Francisco Pereira Neto, agradeço as sugestões e críticas
fundamentais para a finalização deste estudo.
A CAPES por tornar possível a realização desta pesquisa, através da bolsa
de estudos.
Ao cleo de Antropologia e Cidadania (NACI-UFRGS), pelas valiosas
trocas e contribuições dos grupos de estudos, jornadas e seminários.
Aos meus pais, pelo incentivo, zelo, amor e amizade. Sem vocês teria sido
impossível.
Aos meus irmãos, meus sobrinhos, minha cunhada e minha tia, vocês me
completam, desculpem a distância e perdoem mais uma vez a falta de tempo.
Ao meu primo (em memória), meu iniciador e inspirador no mundo do
conhecimento.
Ao Angelo que mesmo a distância soube como se fazer presente.
Aos meus amigos Ariovaldo, Jéssica e Valdirene, fiéis e leais companheiros.
Aos companheiros de reflexão do Instituto de Humanização, somos
cúmplices nas tentativas de reinventar o mundo.
A Deus, pela vida, pelas inquietudes e pelos caminhos.
6
RESUMO
PEREIRA, Fabíola Mattos. Acessos, reciprocidades e inclusões: Estudo sobre
as relações entre famílias e redes de assistência em Pelotas / RS. 2008. 174f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Sociologia e Política,
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.
Este estudo se volta para preocupações ligadas às dinâmicas de vida dos grupos
populares, a partir das relações de reciprocidade estabelecidas entre as famílias e
as redes de assistência social organizadas em duas vilas da cidade de Pelotas / RS.
A preocupação que motivou a realização do estudo contribui no sentido de relativizar
os pontos de vista etnocêntricos, que no passado julgavam os grupos populares
como alienados e sem consciência de classe, e que hoje continuam a julgar, porém
em outros termos, uma nova roupagem para uma antiga visão degenerada quando
se trata de pensar as desigualdades na sociedade brasileira. Partindo-se da
perspectiva etnográfica, serão apresentadas as lógicas inscritas nestas relações de
reciprocidade, em que a tríplice obrigação de dar, receber e retribuir se apresenta
como estratégia para se analisar as inclusões nos programas sociais da assistência.
O método etnográfico foi adotado a fim de orientar as interpretações dos dados de
campo, e contribuiu no sentido de mapear as ações das redes de assistência
organizadas nos universos investigados, e apresentar o ponto de vista das famílias,
profissionais e voluntários. Este estudo utilizou-se de dois conjuntos de dados:
quantitativos, obtidos a partir de registros domiciliares de todos os beneficiários do
programa Bolsa Família, e qualitativos que se realizou em duas vilas da cidade de
Pelotas, o loteamento Dunas e a vila Pestano.
Palavras-chave: Famílias de grupos populares. Redes de assistência.
Reciprocidade. Desigualdade.
7
ABSTRACT
PEREIRA, Fabíola Mattos. Acessos, reciprocidades e inclusões: Estudo sobre
as relações entre famílias e redes de assistência em Pelotas / RS. 2008. 174f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Sociologia e Política,
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.
This study is aimed to concerns related with the dynamics of life of the working class
groups, from the relations of reciprocity established between the families and the
social assistance networks organized in two suburbs of the city of Pelotas / RS. The
concern which has motivated the execution of this study has contributed in the sense
of relating the ethnocentric points of view, that in the past used to judge the working
class groups as being alienated and without class awareness and nowadays
continue to judge, although in other terms, a new outfit for an old degenerated vision
when it comes to thinking in the inequalities in the Brazilian society. Having as a
starting point the ethnocentric perspective, it will be presented the logic included in
these relations of reciprocities where the triple obligation of giving, receiving and
returning is presented as a strategy in order to analyze the inclusions in the social
assistance programs. The ethnographic method was adopted with the objective of
orienteering the interpretation of the field of study, and has contributed in the sense
of mapping the assistance network actions organized in the scope investigated, and
present the point of view of the families, professionals and volunteers. This study has
used two sets of data: quantitative, obtained from domiciliary registers of all the
beneficiaries of the Bolsa Familia program, and qualitative which was conducted in
two suburbs of the city of Pelotas, Loteamento Dunas and Vila Pestano.
Key words: Families of working classes. Assistance Networks. Reciprocity.
Inequality.
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Quadro 1 – Critérios de elegibilidade programa Bolsa Família ................... 26
Gráfico 1 – Distribuição do benefício Bolsa Família por regiões
administrativas em Pelotas / RS ................................................................... 29
Gráfico 2 – Beneficiários das três maiores regiões em comparação
com as demais regiões da cidade ............................................................... 30
9
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AA Alcoólicos Anônimos
ASEF – Apoio Sócio-Educativo de Apoio às Famílias
ASEMA – Apoio Sócio-Educativo em Meio Aberto
CDD- Comitê de Desenvolvimento Dunas.
CEBS- Comunidades Eclesiais de Base
CRAS – Centro de Referência da Assistência Social
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
EJA – Educação de Jovens e Adultos
GAMP – Grupo Autônomo das Mulheres de Pelotas
IUP – Instituto Universidade da Periferia
LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social
ONG – Organização Não-Governamental
PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PLP’s – Promotoras Legais Populares
PSF – Programa de Saúde da Família
SIM – Serviço de Informação à Mulher
UBS – Unidade Básica de Saúde
10
SUMÁRIO
1 Introdução .................................................................................................... 10
1.1 O método etnográfico de pesquisa: teoria e história ................................ 14
1.2 Familiaridade e exotismo / proximidade e distanciamento ....................... 19
2 Regiões Administrativas, vilas, famílias e redes de assistência ................. 24
2.1 Dados quantitativos, programa Bolsa Família e Regiões
Administrativas .............................................................................................. 25
2.2 As vilas, as redes de assistência e as famílias ....................................... 31
2.2.1 A Vila Pestano – região administrativa Três Vendas ................ 32
2.2.2 O Loteamento Dunas – região administrativa Areal ................. 42
3 Alteridade, desigualdade e reciprocidade ............................................... 55
3.1 Da diversidade de nomeações às tentativas de encaixe teórico:
Classes populares, classes trabalhadoras, trabalhadores pobres e
grupos populares na produção acadêmica dos anos 1980 ....................... 56
3.2 Sobre o dar, o receber e o retribuir ....................................................... 71
4 As famílias nas redes de assistência ....................................................... 77
4.1 As famílias acessando as redes de assistência ................................... 78
4.2 As relações de proximidade, ou o que as famílias esperam das
redes de assistência .................................................................................... 90
4.3 “A criança recebe esse dinheiro pra que que é?”: O ponto de
vista das famílias que recebem o programa Bolsa Família e Fome
Zero ............................................................................................................... 97
4.4 A inserção nas redes de assistência por intermédio das crianças .......... 101
11
5 As redes de assistência selecionando as famílias .................................... 113
5.1 Assistência e famílias ............................................................................ 114
5.2 As famílias cadastradas .......................................................................... 124
5.3 As visitas nas famílias ............................................................................. 131
5.4 Os atendimentos e os registros dos atendimentos ................................. 137
5.5 Encaminhamentos, retornos e envolvimentos ........................................ 141
6 Considerações Finais .................................................................................. 150
Referências ..................................................................................................... 153
Apêndices ...................................................................................................... 157
Anexos ........................................................................................................... 174
12
1 INTRODUÇÃO
Este estudo se volta para preocupações ligadas às dinâmicas de vida dos
grupos populares, a partir das relações de reciprocidade estabelecidas entre as
famílias e as redes de assistência social organizadas em duas vilas da cidade de
Pelotas/RS.
A discussão realizada propõe relativizar, a partir da pesquisa antropológica,
noções preconceituosas que cercam a relação de sujeitos dos grupos populares
com as políticas sociais da assistência, as quais enunciam um conteúdo
etnocêntrico e preconceituoso na forma de compreender o ‘outro’. Além disso, busca
contribuir para o debate que cercam os estudos sobre as dinâmicas de vida dos
grupos populares, a partir da exposição de dados que apresentam as lógicas de
inserção das famílias na esfera política da intervenção estatal, as quais se dão
segundo orientações valorativas próprias daquele universo de classe.
Igualmente, propõe-se apresentar o ponto de vista dos profissionais e
voluntários que atuam nas redes de assistência, evidenciando seus critérios de
seleção, acompanhamento e encaminhamento das famílias com vistas a inserirem-
nas nas tramas dessas redes. Ou seja, o estudo problematizará as práticas do
Estado, das ONG’s e das igrejas, que para além do encaminhamento e
acompanhamento das famílias no acesso à justiça e aos direitos sociais (situações
de intervenções mais freqüentes), tais ações da assistência vêm acompanhadas de
um conjunto de expectativas, as quais devem ser observadas pelas famílias,
sobretudo pelas mulheres.
A fim de compreender a trajetória desta pesquisa, e o porquê da realização
de uma pesquisa sobre a temática, será necessário inicialmente retomar algumas
13
questões como o percurso acadêmico e a militância política da pesquisadora.
Inicialmente, a proposta da investigação buscava relativizar a idéia de
incomunicabilidade, procurando com isso dar continuidade ao estudo realizado para
a conclusão de curso em Ciências Sociais no ano de 2004, denominado “As
crianças são a alma da vila: Estudo sobre a gravidez na juventude de homens e
mulheres de classes populares Pelotas / RS”. O trabalho acadêmico apresentou-
se enquanto discussão antropológica para relativizar a vivência da gravidez na
juventude em classes populares. Naquele momento, a incomunicabilidade entre as
famílias de classes populares e profissionais das áreas de saúde se constituía na
razão explicativa para a ineficácia dos programas de saúde dirigidos à comunidade
investigada e foi suficiente para concluir a pesquisa.
Contudo, subjacente a esta experiência de pesquisa, situa-se uma
motivação primeira, a qual em grande medida se relaciona à ‘curiosidade
epistemológica’ relativa às classes trabalhadoras. Trata-se de um cruzamento das
identidades (DOS ANJOS, 2006): a de moradora de uma vila de grupos populares, a
de militante em pastorais sociais da igreja católica, e em movimentos sociais de
defesa dos direitos das crianças e adolescentes
1
e a de pesquisadora de grupos
populares.
De outra ordem, têm-se os questionamentos sobre o tema que surgiram
na apresentação do projeto de pesquisa para a seleção no Programa de Pós-
Graduação. Houve intervenções no sentido de apontar que uma das fragilidades
daquele anteprojeto havia sido a discussão de classe, ocasião em que se deu a
aconselhamento por parte da banca no sentido de investir no seu refinamento
teórico.
As sugestões e questionamentos decorrentes da apresentação dos
resultados da pesquisa realizada em 2004, no Núcleo de Antropologia e Cidadania
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NACI – UFRGS), contribuíram
fundamentalmente para problematizar a idéia de incomunicabilidade que pautara o
trabalho anterior, e apontaram assim para as possibilidades de diálogo e
comunicação entre as famílias e os profissionais, tendo em vista não ser o Estado
um ente abstrato.
1
A participação nesses movimentos ocorreu no Fórum Municipal dos Direitos da Criança e
Adolescentes, bem como no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente.
14
As discussões provenientes da participação no Grupo Temático “Entre
pesquisar e militar: Contribuições e limites dos trânsitos entre pesquisa e militância
feministas”,
no Seminário Internacional Fazendo Gênero 7
2
, apontaram novas
possibilidades de desenvolvimento da pesquisa para a dissertação de mestrado,
centrando-se, neste caso, em questões metodológicas que problematizavam o
trânsito entre as experiências de militância e a de pesquisa. Os questionamentos
tornaram-se também frutíferos pelas provocações a cerca da construção que havia
sido realizada sobre os agentes que na vila realizavam intervenção, chamando a
atenção para pensá-los ao mesmo tempo antropologicamente, e não somente as
moças e rapazes. Em outro sentido, percebeu-se ainda a necessidade de serem
aprofundadas questões como a proximidade e a familiaridade na investigação
etnográfica, situando inclusive a minha inserção como moradora e militante.
Em relação às contribuições vindas por parte dos profissionais investigados
em 2004, considerando as discussões geradas na devolução do trabalho anterior,
reafirmaram, sobretudo, o redirecionamento para as negociações entre as redes de
assistência e as famílias de grupos populares. Mesmo discutindo-se as
incomunicabilidades presentes nas relações entre as famílias de classes
trabalhadoras e os profissionais de saúde, a importância do trabalho foi sempre
afirmada, e colocada como referência para uma ação de intervenção mais
apropriada na vila.
As sugestões obtidas a partir das discussões centraram-se nas
possibilidades de ampliação das conclusões daquele trabalho, sobretudo em torno
da relativização das fronteiras de classe, que estavam sendo defendidas no conceito
de incomunicabilidade, que colocava em oposição profissionais de saúde e jovens
que haviam vivenciado a gravidez na juventude.
A proposta organizada a partir das reflexões tinha como objetivo perceber os
impactos das políticas de assistência sobre as famílias de classes trabalhadoras.
Assim, nas inserções primeiras em campo, buscava-se observar preliminarmente as
relações que se constituíam no envolvimento entre assistentes sociais e famílias
beneficiadas pelo Programa Bolsa Família. Em campo, novamente uma surpresa
__
as relações de ambos os atores extrapolava a concepção de “impactos” que até
2
Este Seminário foi realizado na Universidade Federal de Santa Catarina, na cidade de Florianópolis
em agosto de 2006.
15
então condicionavam o olhar, e o permitiam compreender as dinâmicas que as
relações apresentavam.
A visualização de uma densidade de instituições e profissionais envolvidos
em intervenções nas famílias, constituindo-se uma rede de assistência social,
permitiu refletir na direção das negociações existentes no jogo entre famílias,
profissionais e voluntários, e redimensionou a idéia de que as famílias seriam
impactadas pelas ações de intervenção. Tal abordagem não significou, contudo, que
inexistissem os impactos que estavam sendo pressupostos, mas conduziu a
incorporação ao projeto de pesquisa dos processos de inclusão / exclusão dos
sujeitos, que procuram pelas redes de assistência, o que contribuiria, antes, no
sentido de compreender as dinâmicas internamente e as interpenetrações,
fragilizando assim a idéia de incomunicabilidade, e apresentando as possibilidades
de aproximações, sugerindo-se inclusive a partir deste estudo, potencializá-las.
Assim, na intenção de direcionar a proposta a uma problemática relevante
ao contexto da investigação, mas que permanecesse com o objetivo de tematizar as
famílias de grupos populares e as práticas institucionalizadas da assistência social,
orientou-se a pesquisa para a abordagem dos programas e serviços, escolhendo-se
o Programa Bolsa Família como referencial das ações de intervenção do Estado
junto às famílias dos grupos populares, como uma ação importante das redes de
assistência.
Na continuidade, a participação no Grupo de Trabalho Práticas de Justiça,
Humanitarismo e Diversidade Cultural ocorrido na VII Reunião de Antropologia do
Mercosul, em julho de 2007, reafirmou a importância do estudo das relações de
aproximação entre famílias de grupos populares e profissionais e voluntários das
redes de assistência, mas questionou as possibilidades de realização efetiva de
mediações vinda dos grupos populares em direção às redes de assistência, tendo
em vista as relações de desigualdade existentes na sociedade brasileira.
No entanto, a trajetória da pesquisa, por considerar as indicações de leitura
realizadas durante a qualificação, incorporou novos elementos para refletir as
relações entre famílias e redes de assistência. A categoria de mediação, inicialmente
apontada para dar conta dos significados dessas relações, aos poucos foi perdendo
espaço a um novo conceito que focava a constituição das relações em si, e das
trocas (dar, receber e retribuir) entre famílias, profissionais e voluntários, o que levou
necessariamente o redimensionamento da utilização do conceito de mediação,
16
entendido neste estudo como a capacidade de dominar códigos culturais e realizar
deslocamentos entre universos. O paradigma do dom dava sentido a tais práticas,
tratando de interpretá-las para além dos seus aspectos utilitários, os quais ocorriam
somente no nível da troca de programas e serviços entre estes sujeitos, mas
baseava-se, sobretudo, na função desempenhada para o estabelecimento do
vínculo nas relações sociais.
1.1 O método etnográfico de pesquisa: teoria e história
A escolha de qualquer método de pesquisa não deve ser feita sem antes
tornar-se claro o tipo de conhecimento que se deseja produzir. Todas as ações de
uma pesquisa, bem como as etapas de coleta, registro e análise dos dados são
norteadas a partir da orientação teórico-metodológica assumida pelo pesquisador.
Em Bourdieu (2004) tem-se que: “Até mesmo as operações mais elementares e, na
aparência, as mais automáticas do tratamento da informação implicam escolhas
epistemológicas e mesmo uma teoria do objeto”.
Portanto, a adoção neste estudo do método etnográfico de pesquisa deseja
revelar a existência de uma afinidade com o problema a ser investigado, por ser este
de viés qualitativo: “[...] pelo fato de trabalhar em profundidade, possibilita que se
compreenda a forma de vida das pessoas, não sendo apenas um inventário sobre a
vida de um grupo” (VICTORA, 2000).
Neste trabalho, se tem como premissa que o conhecimento qualitativo
antropológico, capaz de apontar o ponto de vista das famílias de grupos populares
em suas relações cotidianas, é de significativa importância para o reconhecimento
da diversidade cultural dentro da sociedade na qual o pesquisador faz parte. E, para
além deste reconhecimento a possibilidade de respeito e diálogo das diferenças
(GEERTZ, 1997).
A configuração do método etnográfico como tal, se estabelece em fins do
século XIX, quando ocorrem mudanças nas perspectivas de abordagem e
tratamento dos dados de pesquisa, tentativas de antropólogos em campo como
17
reação às pesquisas de gabinete, que se valia de relatos de viajantes e
comerciantes, período este da expansão colonial européia.
Malinowski inaugura, então, a observação participante como uma forma de
captar a vida tribal como um todo, um sistema integrado e lógico. Sabe-se, no
entanto, que houve gerações posteriores de antropólogos que permitiram o avanço
do método, e que, desta maneira, muito se produziu em termos do conhecimento
dos nativos, estivessem próximos ou distantes. Contudo, muitas preocupações com
que se ocupou Malinowski permanecem latentes e dignas de referências à
realização do trabalho de campo, assegurando-se rigor na coleta, registro e análise
do material etnográfico (MALINOWSKI, 1984).
A grande vantagem de utilizar-se desta metodologia é que: “possibilita ao
investigador compreender as práticas culturais dentro de um contexto social mais
amplo, estabelecendo as relações entre fenômenos específicos e uma determinada
visão de mundo” (VICTORA, 2000). Isto traz conseqüências importantes na medida
em que se utiliza um amplo material de referência analítica, pois se serve de dados
orais – discursivos - registros das observações cotidianas – observacionais - e
documentos escritos. Permite-se verificar a coerência entre os relatos orais e as
observações, da mesma forma que as atitudes de infração e artifícios acionados
pelos sujeitos
3
.
A postura metodológica de Malinowski (1984) o coloca numa situação de
defesa de neutralidade e objetividade para a construção do conhecimento científico;
por esta razão, seu método prima pelo afastamento dos sujeitos investigados
quando na análise dos dados coletados em campo, sob o risco de serem os
resultados da pesquisa afetados pela proximidade do objeto.
O diário de campo assegura ao pesquisador a revisão dos momentos da
pesquisa em sua totalidade e abrangência, fornece o acesso aos relatos, às
observações cotidianas e aos detalhes de modos de vida em seu fazer rotineiro, e a
3
Em síntese, Malinowski (1984) sugere que uma boa pesquisa de campo requer três princípios
fundamentais: 1) Arcabouço da constituição da sociedade; 2) imponderáveis da vida real e 3) espírito
do nativo. A contribuição significativa de fato para a consolidação desta maneira antropológica de
fazer pesquisa de campo é inaugurada pela novidade do antropólogo estabelecer morada entre os
nativos, estar em contato, familiarizando-se até o momento de não mais sua presença suscitar
curiosidade entre a sociedade ou grupo investigado. Inclui-se, até mesmo, participar de certas
atividades entre os investigados de maneira descontraída, também porque este,
na condição de um
estrangeiro, precisa também estabelecer contato com outros sujeitos.
18
exposição gica de sistemas classificatórios que pareciam antes sem sentido e alvo
de desprezo por parte de culturas ditas civilizadas.
O objetivo último da pesquisa de campo, seu detalhamento e preocupação
com a descrição minuciosa, conferem à Antropologia a conquista de um método
próprio, ‘apreender o ponto de vista dos nativos’, o qual se atualiza na
contemporaneidade como busca de muitos pesquisadores.
Diante da crise moderna da disciplina, com o risco de desaparecimento do
seu objeto clássico de investigação, a Antropologia volta seu olhar, assim, para a
percepção da diversidade cultural dentro das fronteiras geográficas do seu
pesquisador. Preocupando-se com as sociedades complexas, o enfoque passa a ser
as dinâmicas das sociedades modernas, e o rumo de estranhar o familiar apresenta-
se como um novo desafio a ser superado pela disciplina que evitava seu
esfacelamento
4
.
A saída encontrada pela especialidade, diante da necessidade de rever seus
cânones metodológicos, consistiu em adotar uma nova concepção de investigação
social, tratando de relativizar uma ciência nos moldes cartesianos, a qual procurava
afastar-se de prenoções como condições de existência para a realização de uma
explicação sociológica. Nestes termos, apropriando-se justamente na concepção de
prenoção enquanto um conhecimento prévio da realidade social, e não enquanto
distorção, a busca da teoria hermenêutica veio a somar com o que desejava a
disciplina, a de compreender que a constituição de uma ciência do social se faz de
forma diferenciada das ciências denominadas por duras ou naturais, concebendo,
assim, tais elementos como constituintes do método qualitativo das ciências sociais.
Para Oliveira (1998), utilizando-se de Gadamer, a questão da intersubjetividade é a
solução para os problemas da subjetividade do pesquisador do campo social, ou
seja, a sua interlocução com os pares teria o efeito de construção de “acordos
tácitos ou explícitos”, os quais se constituem como o resultado da “tradição científica
na qual a experiência acumulada em termos de comunicação e de consenso entre
cientistas foi capaz de instituí-las” (OLIVEIRA, 1998).
4
O envolvimento de Malinowski com a produção de uma ciência neutra e objetiva aliou-se facilmente
ao seu objeto de pesquisa, que distante dele quando retornasse para sua sociedade, ali poderia
proceder à análise dos seus registros e
levantamentos de dados, que se encontraria
suficientemente distante, para sentir-se seguramente neutro e objetivo.
19
Com isso, afirma-se que o método não se constitui na única forma de
acessar o conhecimento da esfera social. Cardoso de Oliveira (1998) argumenta que
a concepção de método presente no cartesianismo (forma de acessar a verdade
através da certeza, da comprovação e da generalização) apresenta conseqüências
diferenciadas nas Ciências Naturais e nas Ciências Sociais. Assim, a idéia contida
no conceito de método deixa escapar o não metódico (aquilo que não se pode
percorrer novamente), o que de acordo com Oliveira (1998) é uma das tarefas
superadas pela Antropologia através da observação participante.
A contribuição central desta discussão para a Antropologia, e também para
as demais disciplinas das Ciências Sociais, é de atingir as particularidades que
envolvem o processo de conhecimento neste campo, por oposição ao das Ciências
Naturais. Assim, a relação das Ciências Sociais com a observação a autoriza a
realizar a compreensão dos fenômenos que estuda, ao passo que nas Ciências
Naturais, envolvidas com a experimentação, a idéia de explicação é mais adequada
diante da busca das regularidades metódicas.
Deste modo, nesta pesquisa, a compreensão antropológica das relações
entre redes de assistência e famílias de grupos populares será priorizada para
analisar os dados de campo. Tais dados de campo que constituem o universo da
pesquisa etnográfica foram obtidos através de duas etapas: a primeira, quantitativa,
que levou à inserção em campo, a partir da análise de seus resultados; e a etapa
qualitativa.
Na etapa quantitativa, a coleta de dados, realizada junto à Secretaria
Municipal de Cidadania da Prefeitura Municipal de Pelotas, consistiu na
classificação, por local de endereço, de todos os beneficiários do programa Bolsa
Família para o município de Pelotas.
A etapa qualitativa, iniciada a partir dos resultados quantitativos, teve início
com observações participantes das vilas escolhidas, procurando-se mapear todos os
programas e serviços existentes, acompanhando as dinâmicas em todos aqueles
que realizavam atendimento direto às famílias. Após a realização, por
aproximadamente seis meses, de um período de observações, as quais foram
registradas em diário de campo, iniciou-se o processo de obtenção de dados a partir
das entrevistas semi-estruturadas com famílias, profissionais e voluntários de todos
os programas e serviços das redes de assistências nos dois universos de pesquisa
investigados, a vila Pestano e o loteamento Dunas. Todas as entrevistas foram
20
gravadas e transcritas e seus conteúdos analisados para a organização do material
que se apresenta.
A pesquisa de campo teve início no Dunas no dia 08 de setembro de 2006,
logo após ter sido contatada a Secretaria Municipal de Cidadania, a fim de dar início
ao processo de mapeamento quantitativo das regiões da cidade que mais recebiam
recursos do programa Bolsa Família. Estes dados só foram obtidos meses depois de
muita insistência e ofícios emitidos, e precisamente no dia 04 de março de 2007 tive
acesso a 43152 cadastros de beneficiários do Programa Bolsa Família na cidade de
Pelotas. Após a organização destes, no mês de maio de 2007, iniciou-se o trabalho
de investigação na Vila Pestano, com a inserção na Unidade Básica de Saúde. A
partir do mês de outubro as entrevistas começaram a ser realizadas na vila Pestano
e no Loteamento Dunas paralelamente, e encerraram-se em 22 de dezembro do
mesmo ano.
As entrevistas compreendem um universo total de 40 informantes que se
dividem entre famílias e profissionais e voluntários das redes de assistência. No
loteamento Dunas foram entrevistados 13 profissionais e voluntários e 09 famílias.
Na vila Pestano foram 08 entrevistas com profissionais e voluntários e 09 entrevistas
com famílias. Além destas entrevistas, foi realizada uma entrevista com assistente
social da Cáritas Diocesana de Pelotas, tendo em vista as repetidas vezes em que
esta instituição fora citada por diferentes interlocutores da pesquisa, tanto no
loteamento Dunas quanto na vila Pestano. O número de entrevistas da pesquisa foi
delimitada a partir das redes de assistência em cada região estudada, priorizando-se
atingir diferentes profissionais e voluntários e suas respectivas áreas de atuação,
focando-se a diversidade de ações que integram a assistência social.
Cabe ressaltar que do total de 18 famílias entrevistadas neste estudo, 05
delas serão apresentadas na etnografia, o que se justifica pelas relações de
proximidade e pelos vínculos constituídos junto aos profissionais e voluntários,
situação que as coloca num local de igualdade temporária com as redes de
assistência, na medida em que são capazes de jogar com a inclusão de novas
famílias nos programas e serviços ofertados.
21
1.2 Familiaridade e Exotismo / Proximidade e Distanciamento:
A construção de uma etnografia é um processo gradual e lento, construído
numa estreita relação com os interlocutores do campo de pesquisa. A entrada em
campo requer, assim, empatia e paciência por parte do pesquisador, exigindo
contatos permanentes e regulares com instituições, pessoas de referência,
participações em reuniões, em que sentar e aguardar em salas de espera são
atitudes comuns. Esta aproximação não basta para que seja garantida a inclusão
nas dinâmicas sociais dos sujeitos investigados, mas se constitui como primordial à
entrada e permanência, para que, numa segunda etapa, se consiga aprimorar as
relações estabelecidas, bem como a confiança dos interlocutores.
A necessidade de discussão do processo de produção de uma etnografia
apresentou-se neste estudo como uma reflexão constante, na medida em que por
determinados momentos encontrava-me na condição de pesquisadora, militante e
moradora de um loteamento de grupos populares, o próprio loteamento onde a
pesquisa se realizou.
O trabalho proposto para a dissertação de mestrado se consolidou
lentamente, e em determinados momentos, especialmente quando observações e
entrevistas se passavam no loteamento Dunas, a presença e a aproximação
facilitavam o contato com as famílias, pelo prévio reconhecimento mútuo. A
preocupação, em especial percebida por parte dos profissionais, no que se referia à
situação de estarem sendo avaliados foi a primeira impressão a ser desconstruída,
desde o primeiro contato.
Neste sentido, a relação de proximidade com o campo de pesquisa
evidenciou que pesquisar num contexto de familiaridade, exigiria um exercício
dobrado de estranhamento, de atenção aos fatos recorrentes do dia-a-dia, onde
seria necessário observar e registrar também os detalhes do que parecia ser
demasiado rotineiro e cotidiano, e não somente extraordinário. Cabe ainda discutir,
a partir destas observações retiradas de análise do diário de campo, os conceitos de
proximidade e distanciamento por se constituir esta pesquisa de um esforço teórico
e prático de relativização sobre distâncias sociais que por isso são relativas.
A concepção de Malinowski (1984) na busca de consolidar o ponto de vista
do nativo, conforme descrito, prima pela proximidade com os nativos, o estar
22
próximo fisicamente, participando das atividades, das rotinas e, além disso, do
extraordinário da vida dos seus informantes. Foi este o modo encontrado pelo
antropólogo quando se encontrava distante geograficamente da sua sociedade.
Acreditava que a maneira adequada de compreender a lógica dos ‘outros’ seria a da
proximidade, percebendo-o de dentro: “entrar na alma de um selvagem e através de
seus olhos ver o mundo exterior e sentir como ele deve sentir-se ao sentir-se ele
mesmo” (MALINOWSKI, 1984).
Daquele momento até o presente, discussões a cerca da proximidade e
distanciamento se fizeram necessárias, em especial, quando se afirma que a
subjetividade do pesquisador está presente em todo o processo de pesquisa. Em
Gilberto Velho (1981), existe uma clara tentativa de desconstruir os
desentendimentos a cerca deste tema. Pela sua problemática de pesquisa se
vincular a sujeitos com os quais convive diariamente, ele afirma que:
[...] dispomos de um mapa que nos familiariza com os cenários e situações
sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição aos indivíduos.
Isso, no entanto, não significa que conhecemos o ponto de vista e a visão
de mundo dos diferentes atores em uma situação social nem as regras que
estão por detrás dessas interações, dando continuidade ao sistema
(VELHO, 1981).
O autor aceita que o lugar do pesquisador se torna problemático, em
especial pelas classificações que opera na hierarquização da sociedade da qual
participa. Está colocada, desta forma, que a familiaridade não significa
conhecimento científico, e, como saída para este dilema, sugere ao pesquisador o
exercício de ‘estranhar o familiar’:
O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos
capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente,
diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos, situações
(VELHO, 1981).
Neste confronto conta o pesquisador com a ajuda dos seus pares, na crítica
das suas conclusões, em razão de sua interpretação ser mais uma em meio às
demais, pela suposição de que outros estudos o também verídicos na
compreensão do próximo e/ou do familiar (já que ambos não pressupõem relação
intrínseca).
23
Assim, obter o ponto de vista dos nativos exige envolvimento, participação e
também consciência por parte do pesquisador que precisa traduzir as interpretações
nativas, embora, sua subjetividade se encontre implicada neste processo
metodológico. É preciso saber ver, ouvir e escrever (OLIVEIRA, 1998), mas deixar-
se orientar pela consideração de que tais faculdades pessoais devem ser
domesticadas pela leitura teórica, que informa e treina o quê e como olhar, ouvir e
escrever na redação do texto etnográfico.
A outra contribuição para esta discussão vem de Clifford Geertz (1997). Para
ele, o pesquisador necessita de certas habilidades pessoais para compreender o
ponto de vista dos nativos, mas não extraordinárias, como conseguir uma
‘comunhão de espíritos’, dependerá porém: “a compreensão (do outro) de uma
habilidade para analisar seus modos de expressão [...], e o sermos aceitos contribui
para o desenvolvimento desta habilidade” (GEERTZ, 1997).
A perspectiva defendida pelo antropólogo consiste na observação das
expressões culturais a partir da análise do “fluxo do comportamento” (GEERTZ,
1978) Ou seja, cabe ao pesquisador interpretar as lógicas das ações sociais
realizadas pelos sujeitos contextualizando os sentidos e significados atribuídos pelos
seus próprios membros num dado contexto social. Assim, a figura do antropólogo se
prestaria a descrever profundamente o que visualiza dos comportamentos nativos-
uma descrição densa capaz de interpretar as lógicas dos comportamentos
culturais, em outras palavras, ter a capacidade de dialogar nos termos do outro.
Finalmente as questões da proximidade e do distanciamento, bem como da
subjetividade implícita nos trabalhos de campo, devem ser tratadas como
integrantes do processo, e relativizadas metodologicamente. Assim, na pesquisa
etnográfica, os registros de campo por si mesmos nada informam se expressarem
uma simples descrição de impressões pessoais e sentimentais do pesquisador,
sobretudo quando o distanciamento geográfico constitui-se numa ação impossível
ao pesquisador. Cabe neste caso, refletir nos termos de Geertz (1978) o potencial
que investigações desta natureza apresentam para a construção do conhecimento
antropológico, a de produzir “interpretações e, na verdade, de segunda e terceira
mão” (GEERTZ, 1978). Ou seja, todo o conhecimento antropológico, seja realizado
dentro ou fora da sociedade na qual o pesquisador faça parte, é sempre uma
construção conduzida pelo mesmo, uma leitura do outro pelas lentes do antropólogo.
24
Clifford Geertz (1978), quando afirma ser pré-requisito do trabalho de campo
antropológico o situar-se entre os sujeitos investigados, como a garantia de
aproximação, e conseqüentemente de diálogo, deseja justamente discutir a relação
que se deve estabelecer entre pesquisador e grupo pesquisado, cujo objetivo último
deverá conduzir à compreensão da diversidade cultural humana. Nas palavras do
próprio Geertz (1978):
“Situar-nos, um negócio enervante que é bem-sucedido parcialmente, eis
no que consiste a pesquisa etnográfica como experiência pessoal. [...] Não
estamos procurando, pelo menos eu não estou, tornar-nos nativos (em
qualquer caso, eis uma palavra comprometida) ou copiá-los. [...] O que
procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito mais
do que simplesmente falar, é conversar com eles [...] Visto sob esse ângulo,
o objetivo da antropologia é o alargamento do universo do discurso
humano”
Deste modo, a relação que está implícita na realização dos trabalhos de
campo, diz respeito ao estabelecimento de uma “experiência próxima e distante”, em
que a primeira define o ponto de vista dos sujeitos, dos informantes, enquanto o
segundo, o ponto de vista do pesquisador, do cientista. Sendo assim, o desafio
maior de qualquer investigador em campo, encontra-se na sua capacidade de
mediar a interpretação de ambos, o que é referido por Geertz (1997) na idéia de
círculo hermenêutico, que prevê saltos contínuos, que relacionam a visão da
totalidade através das partes para visão das partes através da totalidade, ou seja, a
conversão do ponto de vista dos nativos em interpretação antropológica.
Em outras palavras, a experiência de proximidade vivenciada pelo
pesquisador em campo não pressupõe a adoção de atitudes de extrema
sensibilidade junto aos informantes a fim de perceber seus pontos de vista, do
desenvolvimento de “capacidades extraordinárias”, ou “ser um deles (nativo) para
conhecer um”; mas encontra-se em suas tentativas de interpretar, de compreender
os significados culturais, “de relatar as subjetividades alheias” e “entender os
sentimentos de outros seres humanos”.
Em suma, para se atingir o conhecimento antropológico, trata-se antes de
compreender o ponto de vista dos nativos, do que cultivar uma atitude certa psíquica
que intencione fundir-se à subjetividade do interlocutor. Assim:
25
“Para captar conceitos que, para outras pessoas, são de experiência -
próxima, e fazê-lo de uma forma tão eficaz que nos permita estabelecer
uma conexão esclarecedora com os conceitos de experiência distante
criados por teóricos para captar os elementos mais gerais da vida social, é,
sem dúvida, uma tarefa tão delicada, embora um pouco menos misteriosa,
que colocar-se “embaixo da pele do outro”
.
(GEERTZ, 1997)
Na apresentação que segue, será discutida no próximo capítulo a etapa
quantitativa da pesquisa e o tratamento dado aos registros dos beneficiários do
programa Bolsa Família. Além disso, será exposto o contexto da pesquisa,
utilizando-se do recurso de mapeamento das redes de assistência a partir do
referencial adotado pelo município por ‘regiões administrativas’. No capítulo dois,
serão apresentadas as delimitações teóricas da dissertação, focando-se no percurso
realizado pela mesma, a partir da preocupação com a trajetória histórica dos
conceitos que discutem as identidades e vivências de classe de sujeitos de grupos
populares, segundo o percurso realizado pelas pesquisas antropológicas no Brasil a
partir da década de 1980. A contribuição deste trabalho, ao concentrar-se nos
debates realizados por alguns autores, encontra-se na relativização de certas
categorias de análise, bem como nas concepções que estas se referem a cerca dos
modos de vida destes grupos. Também neste capítulo serão exploradas as
categorias de reciprocidade, redes e mediação, aqui redimensionada, como
elementos importantes para a compreensão do paradigma do dom, e
conseqüentemente essenciais para a interpretação das relações entre famílias,
profissionais e voluntários das redes de assistência.
Nos capítulos 3 e 4 serão apresentadas as etnografias das famílias e das
redes de assistência acentuando-se, no primeiro caso, o ponto de vista das famílias
quando acessam os programas e serviços das redes de assistência, enfatizando-se
os valores culturais que orientam tais práticas. O ponto de vista dos profissionais e
voluntários, e, portanto, das redes de assistência será debatido no capítulo 4, cuja
preocupação central será a de perceber, a partir dos processos de seleção, visitas,
atendimentos e encaminhamentos como se consolidam as relações de trocas
daqueles que fazem parte das redes de assistência.
26
2 REGIÕES ADMINISTRATIVAS, VILAS, FAMÍLIAS E REDES DE ASSISTÊNCIA
Neste capitulo objetiva-se apresentar o contexto da pesquisa, enfatizando-se
o processo de análise dos dados quantitativos que orientou a delimitação das
regiões administrativas, as impressões das primeiras idas em campo e o
mapeamento das redes de assistência observadas durante a pesquisa de campo,
bem como as relações iniciais estabelecidas com as famílias de grupos populares
que acessam seus programas e serviços. Esta exposição orientar-se-á a partir das
dinâmicas vivenciadas em campo, respeitando as escolhas metodológicas que
estabeleceram os contornos do que neste trabalho será apresentado.
Os dados quantitativos que nortearam este estudo devem ser observados,
levando-se em conta o contexto da pesquisa que, ainda em sua fase inicial de
definições metodológicas e, conseqüentemente, com dados qualitativos pouco
expressivos do universo investigativo, propunha uma avaliação dos impactos do
Programa Bolsa Família, exclusivamente.
Naquele contexto, portanto, os dados que se dispunha diziam respeito
estritamente a este programa da assistência, sendo estratégico, para a análise
quantitativa, os registros relativos ao Cadastro Único, instrumento de avaliação da
situação econômica das famílias e fundamental para a seleção das beneficiárias do
Programa Bolsa Família. Tais registros encontravam-se sob responsabilidade da
Secretaria Municipal de Cidadania / Prefeitura Municipal de Pelotas, e exigiram um
tratamento analítico que incluía sua organização a partir dos endereços destas
famílias, especialmente porque se desejava pesquisar naquelas regiões
administrativas de maior incidência de recebimento do
benefício.
27
Assim, seguindo o percurso inicial da pesquisa, será apresentado
detalhadamente o Programa Bolsa Família, observando-se sua origem, seus
objetivos e suas condicionalidades às famílias que dele se beneficiam. Em seguida,
serão discutidos os resultados do mapeamento quantitativo, e relatado o processo
de definição das Regiões Administrativas. A discussão sobre a utilização do critério
“Região Administrativa” será abordada na continuidade desta análise.
A delimitação das regiões administrativas apontou a direção qualitativa que
se seguiria neste estudo; assim, a escolha das regiões que apresentavam os
maiores índices quantitativos de famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família,
foi fundamental para a indicação de uma vila e de um loteamento onde seria
realizada a pesquisa de campo. No entanto, a aproximação junto a essas levou a um
redimensionamento do trabalho, ampliando-o frente àquilo que inicialmente estava
previsto no projeto para a dissertação. Deve-se esclarecer que se passou a utilizar
“redes de assistênciadiante da multiplicidade de programas e serviços em atuação
junto às famílias.
Em seqüência, na exposição do segundo tópico deste capítulo, serão
apresentadas estas redes de assistência, visualizando-se os programas e serviços
ali presentes, e a caracterização das vilas e das famílias. Neste item, será priorizada
uma narrativa das estratégias, através das quais as inserções nos diferentes
universos das famílias e das redes de assistência se tornaram viáveis, estratégias
estas percebidas como eficazes diante da situação peculiar, em que se leve em
consideração meu engajamento militante.
2.1 Dados quantitativos, Programa Bolsa Família e Regiões Administrativas
O Programa Bolsa Família foi criado pela Lei 10.836 de 09 de janeiro de
2004 e destina-se às ações de transferência de renda mínima com
condicionalidades, conforme aponta seu primeiro artigo. O Programa Bolsa Família
foi criado com o objetivo de reunir todos os programas de transferência de renda
anteriormente em vigor, como o Bolsa Escola e o Auxílio Gás.
28
O critério utilizado pelo Programa se dá pela renda per capita da família,
estabelecendo assim uma linha divisória entre as que estão em situação de pobreza
e situação de extrema pobreza. O quadro abaixo é ilustrativo dos critérios de
elegibilidade e apresenta os limites de renda estabelecidos para que as famílias
possam ter acesso aos benefícios do programa, e esclarece da mesma forma os
valores máximos e mínimos transferidos às atingidas.
Critério de Elegibilidade
Situação das
Famílias
Renda Mensal
per capita
Ocorrência de
crianças /
adolescentes 0-
15 anos,
gestantes e
nutrizes
Quantidade e
Tipo de
Benefícios
Valores do
Benefício
(R$)
1 Membro
(1) Variável
15,00
2 Membros
(2) Variável
30,00
Situação de
Pobreza
De R$ 60,01 a
R$ 120,00
3 ou + Membros
(3) Variável
45,00
Sem ocorrência
Básico
50,00
1 Membro
Básico + (1)
Variável
65,00
2 Membros
Básico + (2)
Variável
80,00
Situação de
Extrema
Pobreza
Até R$ 60,00
3 ou + Membros
Básico + (3)
Variável
95,00
Quadro 1 – Critérios de elegibilidade programa Bolsa Família
Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2007.
29
Na apresentação deste capítulo, situou-se que no Programa Bolsa Família, a
seleção das famílias é feita a partir do Cadastro único, um instrumento de pesquisa
unificado, que deve ser preenchido por profissional habilitado e necessita apresentar
um parecer do mesmo, após a realização de visitas domiciliares, a fim de constatar a
situação de fato das famílias candidatas ao benefício. Contudo, a seleção definitiva é
realizada pelo Ministério de Desenvolvimento Social, instância onde são
centralizados todos os cadastros do país. Em caso de seleção da família para
recebimento do benefício, esta recebeum cartão magnético fornecido pela Caixa
Econômica Federal no qual será registrado o NIS (Número de Identificação Social),
que podeser utilizado para acessar informações sobre os dados cadastrais das
famílias, seja para acrescentar e/ou modificar informações.
As condicionalidades, pré-requisitos para que a família continue recebendo o
benefício mensalmente, implicam em uma forma de retorno e obrigações por parte
delas, que passam a vigorar quando se dá o início do recebimento do benefício. Tais
condições determinam o acompanhamento de gestantes, nutrizes e crianças, nas
áreas de saúde e educação, e, para isso, contam com parcerias permanentes junto
às unidades de saúde e às escolas das redes pública municipal e estadual.
O acompanhamento das condicionalidades constitui-se numa etapa
fundamental quando se analisa o Programa Bolsa Família, sobretudo quando se
observa a trajetória percorrida pelas famílias até atingi-las. O cadastro único,
portanto, constitui-se num momento muito importante, se não o mais expressivo
dentro do processo de seleção, tendo em vista sua referência enquanto instrumento
classificador das famílias que se encontram em situação de pobreza ou extrema
pobreza.
Os dados quantitativos que foram recebidos através do gestor local do
Programa, a Secretaria Municipal de Cidadania / Prefeitura Municipal de Pelotas, no
entanto, não traziam informações específicas sobre as famílias (dados considerados
cruciais para a sua seleção e registrados no Cadastro Único). Ao contrário, esses se
limitavam aos endereços das famílias, não sendo disponibilizada qualquer outra
informação, sendo inclusive omitidos os nomes dos beneficiários do Programa.
Assim, tais dados constituíam-se de informações individuais, obtidas em planilha no
formato Excel, onde se dispunha aleatoriamente os registros sobre o endereço das
famílias que no momento da pesquisa eram as beneficiárias do Programa Bolsa
Família.
30
Ressalta-se, no entanto, que na pesquisa obtiveram-se dois conjuntos de
dados, um disponibilizado através do site da Caixa Econômica Federal, no qual
constavam os nomes de todos os beneficiários da cidade de Pelotas, e outro, obtido
por intermédio da Secretaria Municipal de Cidadania Prefeitura Municipal de
Pelotas, o qual continha somente os registros dos endereços dos sujeitos que eram
beneficiários do Programa.
A opção neste estudo a partir da variável “região administrativa” se deu,
sobretudo, diante das dificuldades encontradas durante a classificação do material
recebido pela Secretaria Municipal de Cidadania / Prefeitura Municipal de Pelotas,
onde em muitos casos as informações contidas em certos endereços não permitiam
a identificação específica e direta em bairros da cidade, como os casos, por
exemplo, de ruas que de acordo com o mapa geográfico da cidade encontravam-se
num determinado bairro, vila, loteamento, Cohab etc., mas que se apresentavam
nos registros fazendo parte de outros. Assim, a opção que se seguiu tratou de
acompanhar a classificação adotada pelo município que se utiliza da variável “região
administrativa”, eliminando-se, assim, o fracionamento em vilas, loteamentos,
Cohab’s, etc.
A cidade de Pelotas apresenta-se atualmente distribuída em sete grandes
regiões administrativas: Três Vendas, Areal, Laranjal, Porto–Várzea, Fragata,
Barragem e Centro. As Regiões Administrativas obedecem a uma lógica de
descentralização administrativa, cabendo a sujeitos nomeados pela Prefeitura
Municipal o atendimento de demandas da região e encaminhando-as ao Executivo
Municipal.
A classificação dos dados seguiu a lógica da própria administração
municipal, por duas razões: seja porque a administração municipal, na pessoa de
seus funcionários e técnicos são os responsáveis autorizados para a realização dos
cadastros do Programa Bolsa Família, seja pela lógica como concebe a organização
do território a partir destas regiões. Apenas gostaria de realizar duas ressalvas, as
quais foram necessárias como uma forma de solucionar os problemas que se
apresentaram no momento da tabulação. A primeira ressalva quanto à adoção da
categoria “Interior”, que fora utilizada para demarcar aqueles locais, pois embora
pertencessem a certa região administrativa, se localizavam na zona rural. E a
segunda ressalva referente à utilização da categoria “Indefinidos”, segregando os
31
endereços que não possuíam referenciais claros que os ligassem a uma Região
Administrativa.
Os dados dispostos no gráfico permitem visualizar a distribuição dos
recursos na cidade, situando as regiões administrativas de maior incidência de
famílias beneficiadas. Acrescenta-se, ainda, que tais dados não foram analisados
tendo em vista as dimensões geográficas das regiões administrativas, em que pese
a relação do número de famílias com a ocupação do território (densidade
populacional) não sendo, portanto, objeto de preocupações os fatores que
contribuíram para esta divisão dos benefícios na cidade de Pelotas. Observando-se
o gráfico e o quadro temos o seguinte:
Gráfico 1 – Distribuição dos benefícios do Bolsa Família por regiões
administrativas em Pelotas.
Fonte dos dados: Secretaria Municipal de Cidadania / Prefeitura Municipal de
Pelotas, 2007.
0
2000
4000
6000
8000
10000
12000
14000
Beneficiários
Três Vendas
12862
Fragata
9478
Areal
9191
Porto
4743
Centro
3306
Praias
1722
Interior
1683
Indefinidos
86
Regiões Administrativas
32
Os dados obtidos compõem um universo de 43152 cadastros individuais. O
quadro justifica, baseando-se na expressão percentual dos beneficiários, a escolha
de duas regiões administrativas, que somadas atingem aproximadamente 50% do
total dos benefícios no município. Considerando-se a população média do município
para o ano de 2005 de 320.850 habitantes, pode-se sugerir que a abrangência do
Programa Bolsa Família encontra-se em torno de 13,5% da população de Pelotas,
desconsiderando-se os demais programas governamentais e não governamentais
de assistência
5
.
As respectivas regiões administrativas Três Vendas, Fragata e Areal foram
aquelas que concentraram maior incidência dos cadastros beneficiados. No entanto,
se formos considerar os resultados percentuais para o Fragata e o Areal, a diferença
entre eles não se apresenta como significativa, ficando empatados na faixa dos 18%
de beneficiados totais do Programa para a cidade de Pelotas.
Na interpretação do gráfico abaixo, é possível compreender as proporções
que ocupam as três maiores regiões beneficiadas do Bolsa Família, através da cor
rosa, justificando-se assim as opções qualitativas segundo o efeito quantitativo
produzido em cada região.
Gráfico 2 – Beneficiários das três maiores regiões em comparação com as
demais regiões da cidade
Fonte dos dados: Secretaria Municipal de Cidadania / Prefeitura Municipal de
Pelotas, 2007.
5
As redes de assistência compreendem um universo de programas e serviços dirigidos em sua
maioria às famílias de grupos populares, e entre eles podemos citar: Programa Bolsa Família, Fome
Zero, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, Agente Jovem, Apoio Sócio Educativo em Meio
Aberto, Pastorais Sociais, Grupos de Mulheres, Grupo Autônomo das Mulheres de Pelotas, Apoio
Sócio Educativo às Famílias, Conselho Tutelar, entre outros.
0
5000
10000
15000
20000
25000
30000
35000
Nº de beneficiários
Regiões
33
A representatividade quantitativa destas regiões, definidora dos limites
territoriais da pesquisa de campo, não se mostrou eficaz a ponto de apontar as vilas
específicas que concentravam os maiores índices de famílias do Programa. No
entanto, a escolha da vila Dunas e do Loteamento Pestano não se definiram
aleatoriamente, mas foram influenciadas particularmente pelo conhecimento prévio
que se possuía daquelas vilas, pelas minhas experiências de trabalho vinculado a
grupos de crianças e adolescentes das pastorais sociais da igreja católica e a
pesquisa do trabalho de conclusão de curso de Ciências Sociais em 2004.
2.2 As vilas, as redes de assistência e as famílias
A discussão proposta neste tópico terá por objetivo apresentar os mapas das
redes de assistência das duas vilas investigadas neste estudo, levando-se em conta
as dinâmicas vivenciadas em campo. Assim, boa parte das descrições organizadas
levou em consideração as observações participantes experimentadas na pesquisa,
como as festas comunitárias, as pesagens do Bolsa Família, as distribuições das
sacolas do Fome Zero, as visitas domiciliares com assistentes sociais, a participação
nos grupos de mulheres, inserção em reuniões locais, entre outras atividades. As
atitudes na condição de pesquisadora em muito se orientaram no sentido de “olhar,
ouvir e escrever” (OLIVEIRA, 1998), procurando-se superar uma preocupação
fundamental; a de compreender um universo de relações que aparentava
familiaridade (VELHO, 1981).
A descrição da forma como estão organizadas as redes de assistência nas
regiões administrativas Três Vendas Vila Pestano e Areal Loteamento Dunas,
compreenderá a apresentação de um pequeno histórico de constituição do local,
situando o contexto em cada uma das vilas; um rápido esboço sobre o mapa da
assistência, expondo-se brevemente os programas e serviços realizados em ambas;
e, por fim, uma caracterização das famílias que acessam estas redes de assistência,
as quais integraram o processo de pesquisa e contribuíram com a participação nas
entrevistas semi-estruturadas, na construção dos dados qualitativos.
34
A inserção nas redes de assistência, deve-se dizer, não se constituiu em
problema para a realização deste estudo. A situação previamente exercida em
movimentos sociais da igreja católica, como discutido em capítulo anterior, tornou-
me, em larga medida, reconhecida por boa parte daqueles sujeitos que estavam
participando da entrevistas e observações etnográficas. Minha presença,
especialmente no Loteamento Dunas, não exigiu esforço significativo, seja pela
condição de moradora, de coordenadora de grupos de crianças e jovens, de
integrante de organizações sociais do local, como do Observatório de Segurança
Social e Proteção à Vida, projeto este viabilizado pelo governo federal, conhecido
popularmente como Casa Brasil.
A inclusão nas redes de assistência na Vila Pestano partiu da utilização da
mesma estratégia utilizada no Loteamento Dunas, a de acionar os conhecidos e os
amigos das redes dos movimentos da igreja católica e também dos movimentos
sociais de defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Em todas as instituições
a apresentação exigia a lembrança de uma indicação a partir de um amigo em
comum, ou até mesmo da realização de um encontro mediado por um conhecido,
cuja intenção era a de aproximar-me daqueles espaços ainda não adentrados.
2.2.1 A Vila Pestano – região administrativa Três Vendas
O Pestano caracteriza-se peculiarmente por apresentar, à primeira vista,
duas formas de disposição das residências; uma delas definida pelo conjunto de
apartamentos, denominada de Cohab Pestano, que se diferenciam pelas cores que
lhes servem de nome: “os verdes, os azuis, os vermelhos e os amarelos” e, outra,
pela ocupação de uma área situada logo após os apartamentos, na qual existiam
grandes lotes, que foi gradativamente sendo ocupada pela população, constituindo-
se a vila do Pestano.
A vinculação do Pestano a um local de freqüentes assaltos, preferido para a
residência de sujeitos desocupados; por muito tempo ocupou o imaginário da
cidade, o que em grande medida ainda permanece.
35
A vila Pestano é anterior à edificação dos prédios da Cohab. A construção
dos apartamentos da Cohab Pestano, ocorreu em meados da década de 1980,
sendo financiados pela Caixa Econômica Federal. No entanto, a inadimplência aos
pagamentos dos financiamentos foi seguida pela apropriação e ocupação do espaço
que havia disponível naqueles apartamentos desocupados. Esta situação
permaneceu assim por aproximadamente duas décadas, acrescentando-se a
irregularidade das ocupações ao descaso do poder público estatal quanto à garantia
dos serviços básicos.
A situação da Cohab Pestano começou a modificar-se por iniciativa dos
próprios moradores, que em mutirão realizaram reformas nestes prédios, investindo
nas pinturas externas e substituição de portas e janelas. Além disso, acrescentou-se
a revitalização dos espaços coletivos de sociabilidade, bem como de abrigos para
ônibus.
A vila Pestano apresenta uma topografia interessante, suas ruas se
apresentam distribuídas de forma dispersa, sendo, algumas, localizadas em frente à
faixa de acesso à Cohab Pestano. Outras, no entanto, se localizam após os
apartamentos, tomando-se considerável distância destes, e seu início tem como
referência o cruzamento de duas grandes avenidas: Av. Leopoldo Brod e Av.
Zeferino Costa. O ponto de referência deste cruzamento se localiza no espaço da
escola CAIC
6
e da unidade básica de saúde, ambas localizadas lado a lado,
compartilhando do mesmo espaço público.
A vila Pestano, está localizada em frente a este ponto de referência, dela se
separando pela continuidade da Avenida Leopoldo Brod. Deve-se levar em
consideração a proximidade que a vila Pestano apresenta do bairro Getúlio Vargas,
sendo difícil estabelecer os limites que os separam.
A separação da vila e da Cohab, no entanto, se reflete também na divisão da
assistência social e de saúde na região, ou seja, existem duas unidades de saúde,
uma para atendimentos da vila e outra para atendimentos dos moradores da Cohab.
Para a escolha da unidade de saúde a qual seria realizada a observação
participante, optou-se por conhecer a dinâmica de atendimento em ambas, o que foi
6
A sigla CAIC é o termo largamente utilizado pelos moradores da vila e da Cohab Pestano para
designar a Escola Municipal de Ensino Fundamental Francisco Caruccio.
36
feito a partir de diálogo com as assistentes sociais, e de uma aproximação das
dinâmicas das famílias a partir da escola CAIC e do posto de saúde
7
.
- Unidade básica de saúde / Cohab Pestano:
A inserção na unidade de saúde da Cohab Pestano, ocorreu a partir da
intermediação estabelecida com um funcionário público do local e que ali realiza
serviços administrativos. Este funcionário com o qual tenho vínculos de amizade
serviu-me de mediador com os profissionais da unidade de saúde que realizam o
acompanhamento do Programa Bolsa Família. Foi também pela indicação deste que
tive inserção facilitada na unidade de saúde da vila Pestano.
A reunião realizada com a assistente social permitiu apropriar-me de uma
visão panorâmica da região de abrangência do Posto, em grande parte a cerca dos
serviços de acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família. Na
Unidade, o atendimento é realizado através de agendamento prévio com a
assistente social. Marcado o retorno, a criança e o seu responsável comparecem a
fim em dia e horário combinados a fim de fornecer os registros de peso e estatura
daquelas que tenham até seis anos de idade.
De acordo com dados disponibilizados pela assistente social, na região que
compreende a área da Cohab Pestano, existem trinta famílias beneficiárias do
Programa Bolsa Família. Neste universo de famílias, nem todas são residentes na
região, outras vêm de vilas e bairros próximos. Assim, nessa unidade, a dinâmica de
atendimento se a partir da iniciativa das próprias famílias, que dentro do período
de trinta dias devem renovar as informações sob pena de perder o benefício.
A cumplicidade da assistente social com as famílias ficou latente em todo o
encontro, bem como a confiança expressa nas suas falas e atitudes com relação à
veracidade das informações disponibilizadas pelas famílias que são por ela
acompanhadas. Esta atitude se justifica pela própria assistente social, a qual
argumenta que pelo histórico de serviços dedicados à comunidade, isto lhe
possibilitou conhecer a realidade vivida por cada uma das famílias que a ela
recorrem. A sua proximidade no atendimento às famílias tem seu princípio com o
7
Os termos Unidade Básica de Saúde, Unidade de Saúde e Posto, serão empregados como
sinônimos nesta investigação.
37
início das atividades do próprio Posto, uma história que começou 20 anos atrás, no
ano de 1987.
- Unidade básica de saúde / vila Pestano:
A unidade básica de saúde / vila Pestano, possui uma estrutura singular
diante das demais unidades de saúde investigadas; sua administração vincula-se ao
Hospital Escola São Francisco de Paula da Universidade Católica de Pelotas. Por
esta razão seu quadro de funcionários e profissionais é composto, também, por
estagiários e professores, justificando-se, assim, a intensa movimentação de
pessoas no interior do posto. Outras razões, que serão apresentados a seguir,
também singularizam as ações realizadas nesta unidade de saúde, seja na estrutura
física, seja na forma de atendimento.
No posto da vila Pestano, a distribuição interna das salas é ampla, e todas
estas possuem identificação. Tanto interna como externamente o prédio mantém-se
em bom estado de conservação, e a sala de espera apresenta um número de
cadeiras tal, que em todas as vezes que estive não havia pessoas sem
acomodação.
Neste posto, chama também a atenção que os pacientes dispõem de
mecanismos facilitadores para a realização de exames laboratoriais, como de
sangue, urina e fezes, os quais são encaminhados diretamente na recepção, com os
funcionários, depois de realizada a consulta médica. No guichê de atendimento, há a
disposição dos funcionários situação não encontrada nas demais unidades de
saúde investigadas - um micro-computador com impressora, sendo todos os
procedimentos impressos e anexados ao prontuário das famílias.
entre os profissionais uma distinção que se expressa no uso de jalecos,
sendo os de cor verde para os assistentes sociais, e brancos para médicos e
enfermeiros. No posto existe permanentemente a presença de uma funcionária
responsável pelos serviços de limpeza. Entre assistentes sociais, enfermeiros e
funcionários se evidencia a constituição de uma relação mais estreita, o que não se
repete nas relações com médicos e psicólogos, tanto que em todas as observações
realizadas, não tive contato com nenhum destes profissionais. É na sala da
assistência social que ocorre o encontro destas pessoas, que em certos momentos
38
conversam todas juntas, numa situação de grande entrosamento e familiaridade.
Assim, também, se deu a inclusão da pesquisadora junto às dinâmicas institucionais
da unidade de saúde; a sala da assistência social foi a porta de acesso para
assegurar a realização da pesquisa.
Nas participações dos atendimentos realizados pelas assistentes sociais às
famílias que recebem o Programa Bolsa Família, notei que essas empregam um
método diferente do que se realizava tanto da unidade de saúde da Cohab Pestano,
quanto da que se descrita para o loteamento Dunas. O acompanhamento das
condicionalidades das crianças até seis anos é realizado em dois momentos:
primeiro, a criança é pesada e medida pela enfermeira, que repassa os valores
anotados em um pequeno pedaço de papel para quem estiver acompanhando a(s)
criança(s); feito isso, a(s) criança(s) e o seu responsável retornam até a sala de
espera, para serem novamente chamadas pela assistente social, onde são
entregues e registrados em uma planilha os valores de peso e altura das crianças
atendidas. Para finalizar o atendimento, é questionado se a criança esteve no posto
naquele s, ou se apresentou algum sinal de doença, o que não pode ser relatado
em alguns casos, porque muitas vezes os responsáveis que acompanham as
crianças desconhecem estas informações e se justificam em grande medida
respondendo com a afirmação de não serem elas as mães.
O preenchimento dos formulários a serem enviados ao Ministério de
Desenvolvimento Social encontra-se sob a responsabilidade da assistente social,
bem como das estagiárias do curso de Serviço Social da Universidade Católica de
Pelotas, nos dois turnos de funcionamento do posto de saúde.
O Programa Bolsa Família na Saúde, ou seja, a co-responsabilidade do
acompanhamento às famílias beneficiadas que competem aos serviços de saúde,
atende em média 220 famílias, com crianças com idade até seis anos. o
Programa Bolsa Família na Escola se consolida a partir do envio, sob
responsabilidade da escola, do controle de freqüências dos estudantes acima de
seis anos, que estão regularmente matriculados, sendo advertidos diretamente pelo
Ministério de Desenvolvimento Social, aqueles casos em que ocorre infreqüência ou
elevado número de faltas durante o mês.
Na unidade básica de saúde da vila Pestano são desenvolvidas outras
atividades com a população local, como Grupo de Mães, que se realiza todas as
quartas-feiras, o Grupo das Gestantes nas terças-feiras e das crianças e
39
adolescentes. Ainda existem projetos para a organização de grupos de Hipertensos
e Diabéticos, além da organização de um grupo para as mães do Programa Bolsa
Família
8
.
Na vila Pestano, a dificuldade de se perceber a movimentação complexa e
intensa de instituições e pessoas em torno de questões como a assistência social,
foi significativa desde o começo das observações realizadas. Muito embora se
perceba a circulação das famílias e da assistência dentro do posto, e fora dele, a
organização das redes de assistência se de maneira mais frouxa, cujas malhas
não se percebem tão densamente articuladas quanto o que se perceberá no
loteamento Dunas.
- Comunidade Católica Cristo Libertador:
Esta comunidade católica situa-se bem no centro da vila Pestano, tanto que
tive dificuldades para encontrá-la por não estar ainda familiarizada com o local. A
procura por outros serviços que havia na referida vila se fez quase que por exigência
de campo. Havia a expectativa de que as famílias, na medida em que se
aproximassem da unidade de saúde para o acompanhamento das
condicionalidades, levariam a indicações de outros programas e serviços acionados,
a exemplo do que acontecia nas pesagens realizadas no loteamento Dunas. Mas, na
vila Pestano, isto não se passava desta forma. O tempo de observações
etnográficas junto à unidade de saúde muito pouco acrescentavam ao mapeamento
deste universo da assistência, que era acionado pelas famílias. Somente quando
tive contato com algumas lideranças da comunidade católica do local é que de fato
foi possível a inserção na rede de assistência na vila Pestano.
Na comunidade católica, existem diferentes ações dirigidas à população
local, mas a distribuição das sacolas do Programa Fome Zero é o que se destaca,
seja pelo número de pessoas que a ele recorrem, seja pelo número de pessoas da
comunidade que com ele se envolvem. Nesta comunidade cerca de 150 famílias são
atendidas quinzenalmente, às terças-feiras; durante todo o dia os voluntários se
8
Este projeto, sob responsabilidade do Serviço Social do Posto, prea realização de oficinas de
artesanato com as mães assistidas. O fundo para desenvolver estas ações, se constituirá a partir da
arrecadação que está sendo prevista em um brechó de roupas usadas.
40
reúnem. O trabalho tem início pela manhã com o recebimento dos gêneros
alimentícios, onde imediatamente é iniciada a organização das sacolas a partir da
separação do que compete igualmente para cada família. Na parte da tarde, as
famílias são recepcionadas dentro da capela da comunidade, e logo após uma
reflexão, uma leitura rápida de mensagens de auto-ajuda, é feita a chamada por
ordem alfabética de todas as famílias cadastradas naquela comunidade.
- Escola Estadual de Ensino Fundamental Francisco Caruccio – CAIC
A escola CAIC compartilha seu pátio com a unidade de saúde; entre ambas
não se percebe um limite rígido, apenas uma pequena porta que acesso ao
interior da Unidade. A escola atende crianças, adolescentes e adultos, funcionando
nos três turnos. Sua estrutura interna é ampla e possui biblioteca, refeitório, auditório
e ginásio coberto para a prática de atividades esportivas.
Nesta instituição escolar o constantes as queixas de professores quanto
aos problemas de disciplina dos alunos, o que foi presenciado também durante a
entrevista realizada com as orientadoras educacionais. Este fato rendeu à escola a
participação em um projeto de parceria com uma outra instituição de
profissionalização local, cujo objetivo era justamente o de trabalhar questões como
drogadição, violência e família. Tal projeto envolveu também as famílias do local,
sobretudo as mães de alunos, o que consistiu na oferta de cursos e atividades em
grupos.
- Centro Comunitário Bom Pastor – IECLB
Este centro comunitário é a expressão da assistência social da Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Pestano. Neste local, construído
especialmente para se tornar uma referência de atendimento às famílias, são
desenvolvidas diversas atividades, que compreendem desde atividades de reforço
escolar para crianças, horta comunitária e ecológica para famílias do local, grupo de
reflexões para senhoras, e distribuição das sacolas do Programa Fome Zero.
41
O centro comunitário é amplo e possui em suas instalações a estrutura
necessária para o atendimento que se propõe, desde capela, cozinha, banheiros,
biblioteca e refeitório.
O Programa Fome Zero atende também cerca de 150 famílias, que recebem
os alimentos nas terças feiras, num intervalo de 15 dias entre elas. E há uma
diferença fundamental na forma de conduzir a divisão dos gêneros alimentícios entre
elas se comparado com o trabalho desenvolvido pela comunidade católica. No
centro comunitário uma espécie de voluntariado permanente, ou seja, as
mulheres escolhidas para ajudar a coordenação do projeto no centro comunitário
são sempre as mesmas, e, além disso, nos dias de distribuição das sacolas, todas
almoçam também no centro comunitário.
Do total das 18 famílias que participaram das entrevistas semi-estruturadas
deste estudo, 09 delas recebiam seus benefícios na vila Pestano - região
administrativa Três Vendas. A particularidade da situação que se verificou na vila
Pestano deve levar em consideração a relação que a vila estabelece com o bairro
vizinho, o Getúlio Vargas.
A vila Pestano compartilha de muitos aspectos com seu bairro vizinho, o
Getúlio Vargas, tanto que, quando se circula entre as ruas, não se tem certeza de
estar no “Getúlio” ou no “Pestano. Isto justifica em parte os acessos cruzados de
moradores do Pestano no Getúlio e do Getúlio no Pestano. Esta interpenetração
explica o caso da ONG Anjos e Querubins
9
, que sendo do bairro Getúlio Vargas,
utiliza-se do espaço da escola CAIC, localizada no Pestano e que abriga
indistintamente crianças e jovens das duas vilas. A partir desta evidência devem-se
relativizar as fronteiras de acessos e inclusões das famílias aos programas de
assistência, reconhecendo-se, assim, o limite da própria noção de região
administrativa para a pesquisa qualitativa.
Do mesmo modo também se justificam os fracassos das muitas tentativas de
delimitação geográfica, como foi o caso observado numa das distribuições das
sacolas do Fome Zero, em que a preocupação advinda de um dos coordenadores
da comunidade, em torno das condições para o recebimento das sacolas, dizia
respeito à atualização de endereços, frisando que somente poderiam continuar
9
A ONG Anjos e Querubins dedica-se às crianças e jovens, desenvolvendo atividades variadas. Sua
sede é uma pequena sala, localizada no pátio da casa do seu fundador. Diversos prêmios foram
conquistados desde sua fundação pelo reconhecimento desse trabalho.
42
recebendo as sacolas os moradores do Pestano. Os reflexos deste pronunciamento
ecoaram por um bom tempo, e geraram muitas dúvidas entre os beneficiários,
sobretudo se “o Pestano” deveria ser compreendido como uma referência à vila, à
Cohab, ao bairro Getúlio Vargas ou a todos.
Independentemente destas definições geográficas, o fato é que tais
questões tornaram-se mais expressivas e visíveis no trabalho de campo, quando na
marcação das entrevistas com as famílias, dentre as 09 famílias que recebiam seus
benefícios pelas redes de assistência da vila Pestano / região administrativa Três
Vendas, 04 delas moravam no bairro Getúlio Vargas, 03 na vila Pestano e 02 na
Cohab Pestano.
O perfil das mulheres que participaram das entrevistas é variável em termos
de faixa etária, que se situa num intervalo de 22 a 46 anos. Em sua maioria suas
ocupações circunscrevem-se ao âmbito doméstico, e, naqueles casos de trabalho
remunerado estas também realizam atividades domésticas, como o caso de uma
das informantes que se declarou diarista, e de outra que corta crua entre os
intervalos de seus afazeres da casa; as sete demais interlocutoras dedicam-se
exclusivamente aos cuidados da família e da casa.
O número de filhos em cada família é também oscilante, variando de uma a
quatro crianças. Deve-se considerar alguns casos de mulheres que além de cuidar
seus filhos, “pegaram pra criar” filhos de irmãos ou têm também seus filhos criados
por pessoas da rede de parentesco, situação esta verificada em duas famílias, de
uma mulher que assumiu três filhas de seu irmão e de outra em que seus três filhos
do primeiro casamento estão sendo criados por seu pai.
Procedendo-se à análise dos programas acessados pelas famílias, se
constatará que o líder em beneficiários é o Programa Bolsa Família, ficando em
segundo lugar o Programa Fome Zero. De incidência menos freqüente têm-se casos
como recebimento de pensão alimentícia, participação em grupo de mulheres e de
alcoólicos anônimos, em que foram verificados em três famílias diferentes.
As formas de inserção junto às redes de assistência, no entanto, ocorreram
de maneira mais homogênea, as quais envolviam em sua maioria indicações de
pessoas das redes de parentesco, e mais ocasionalmente de vizinhos. Contudo,
chama a atenção um caso em que não houve intermediação de outras pessoas a fim
de proceder a encaminhamentos ou indicações, sendo, portanto, a aproximação
junto aos programas e serviços de assistência realizadas voluntariamente.
43
- As crianças e as famílias na vila Pestano
Ainda distante do posto e do CAIC se percebe a grande movimentação
das crianças e das mães. Elas parecem integrar uma procissão, quase que
enfileirados a dirigirem-se até a escola. E assim é todo dia, mulheres e crianças
caminhando pela beira da faixa que separa a escola da vila Pestano; algumas ficam
ao longo do caminho, contentando-se em um vigiar distanciado, deixando as
crianças seguirem acompanhadas por outros companheiros do colégio.
A chegada até o posto é sempre observada pelas crianças, os caminhos são
os mesmos e seus acessos também.
O estacionamento do posto de saúde, em certos horários, é ocupado pelas
crianças, jovens e mães que saem e chegam, e esta área encontra-se a maior parte
do tempo sob a vigilância de um guarda municipal.
A ocupação do local pelas crianças na vila Pestano obedece a uma dinâmica
que a acolhe em diferentes espaços. A presença delas nas ruas, organizadas em
grupos para brincadeiras, ou sozinhas, muitas vezes guiando charretes, constitui-se
o cenário em que é socializada.
As crianças encontram-se também no posto, e nas vezes em que houve as
observações etnográficas, elas também estavam, sempre acompanhadas,
preenchendo o vazio entre os bancos, ocupando espaços por entre as pernas das
mulheres e encontrando formas de se entreterem com brincadeiras variadas, até o
momento de serem atendidas pelas enfermeiras e assistentes sociais.
O ocupar-se com as crianças é percebido em sua esmagadora maioria como
uma atribuição das mulheres. São elas que conduzem as crianças para a pesagem,
para as consultas médicas, para a escola.
As mulheres que se dirigem até a unidade de saúde para serem atendidas
pelas assistentes sociais, muitas vezes até se deslocam para conversar e tirar
dúvidas sobre problemas com o cartão do Bolsa Família, sobre o recebimento
duplicado do benefício no mesmo mês, ou sobre notícias escutadas em conversas
com outras mulheres, sobre um suposto recadastramento das famílias. Outras
situações também conduzem as mulheres à procura dos serviços da assistência,
como, por exemplo, o caso de uma senhora, que ao saber dos conhecimentos da
assistente social sobre serviços e programas realizados fora da vila, solicitava sua
inclusão, por indicação da própria assistente social.
44
2.2.2 O loteamento Dunas – região administrativa Areal
O Dunas, como é popularmente conhecido na cidade o Núcleo Habitacional
Dunas, trata-se de uma vila que apresenta desde sua organização em meados de
1990 uma considerável presença de instituições governamentais e não
governamentais de assistência.
O loteamento situa-se geograficamente na zona leste da cidade de Pelotas,
na região administrativa do Areal. De formação recente frente à história de
povoamento do Areal, o Dunas se constitui um loteamento sem condições de infra-
estrutura, como água, energia elétrica e esgoto. Anteriormente à ocupação pelos
moradores, no local havia somente uma grande extensão de matos de eucaliptos, os
quais foram derrubados a fim de servirem de terreno para a construção do
loteamento.
Atualmente, o Loteamento Dunas se distribui em vinte e nove ruas, dispondo
de uma infra-estrutura de água encanada, energia elétrica e transporte coletivo, bem
como serviços públicos na área de assistência, saúde e educação.
A inserção em campo no loteamento se configura de maneira
particularmente diferente da que ocorreu no Pestano. Minha condição de moradora
na localidade desde o ano de 1992, o trabalho voluntário realizado com crianças e
adolescentes na Comunidade Católica e a realização de um estudo anterior sobre
gravidez e juventude
10
, contribuíram de forma preponderante para a inserção nas
redes de assistência do loteamento.
Na vila, atuam diferentes instituições sobre variados segmentos: crianças e
adolescentes, mulheres, dependentes químicos, doentes, idosos, portadores de
deficiências, entre outros. Além disso, organizações que desempenham
atividades de promoção aos direitos sociais, como promotoras legais populares
atuando na esfera de formação para os direitos humanos, comitês de
desenvolvimento de ações para o desenvolvimento local sustentável
11
, Unidade de
Saúde, três escolas, Centro de Referência da Assistência Social
12
, comunidades
10
Trata-se da monografia de conclusão de curso, concluída no ano de 2004 intitulada: As crianças
são a alma da vila: Estudo sobre a gravidez na juventude de homens e mulheres de classes
populares – Pelotas / RS”.
11
CDD: Comitê de Desenvolvimento do Dunas
12
CRAS: Centro de Referência da Assistência Social
45
católicas etc. Enfim, os cruzamentos para a constituição de redes de assistência é
particularmente um destaque na localidade.
- Unidade Básica de Saúde – Dunas:
A inserção na rede de assistência no loteamento Dunas se fez a partir da
aproximação da unidade básica de saúde. Ela apresenta uma dinâmica de
funcionamento diferente da existente nas unidades de saúde no Pestano. No Dunas,
as formas de atendimento da população se dão a partir das orientações do
Programa de Saúde da Família (PSF), que se constituem como uma alternativa ao
modelo tradicional de assistência à saúde. O modelo assistencial tradicional na rede
básica ainda é predominantemente centrado nos cuidados médicos especializados,
dificultando ações integrais e multiprofissionais. Na perspectiva de superar este
problema, a partir de setembro de 2002, iniciou-se a implantação do Programa de
Saúde da Família, como modelo assistencial substitutivo.
A característica marcante deste modelo de atendimento concentra-se no
apoio das agentes comunitárias de saúde, cuja função é de visitação e
acompanhamento às famílias nas suas moradias, servindo de interlocução entre as
famílias e a unidade de saúde. Uma questão importante deste atendimento é que as
agentes de saúde são também moradoras do Loteamento. O reconhecimento das
demandas externas de saúde, ou seja, aquelas que não chegam ao conhecimento
dos profissionais são, de alguma forma, canalizadas pelas ações das agentes de
saúde, além do conhecimento das particularidades que envolvem tais demandas,
como, por exemplo, a contextualização da família aos profissionais de saúde.
As agentes comunitárias integram uma organização em Equipe, que neste
posto são em número de três. Cada equipe do PSF possui um número de agentes
comunitárias de saúde, uma enfermeira e um médico. E para cada equipe cabem os
cuidados de saúde com determinado número de ruas do loteamento.
Além destes, a unidade de saúde apresenta também funcionários para a
realização de trabalhos burocráticos, como atendimentos na recepção, e também
conta ainda com funcionário para serviços de limpeza.
46
O espaço interno da UBS foi significativamente ampliado após uma reforma
em sua estrutura, dispondo assim de sala de curativos, assistência social, reuniões,
puericultura, atendimentos médicos, arquivos, cozinha e banheiros.
A dinâmica do atendimento às condicionalidades do Programa Bolsa
Família, realizada no Loteamento, atendem às exigências colocadas pelo Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Os acompanhamentos das
informações de peso e altura das crianças até seis anos são realizados por três
diferentes equipes, sendo que uma dessas equipes é desdobrada em duas, em
razão do número de famílias que a constitui.
A média de atendimentos realizados mensalmente varia entre trezentos e
cinqüenta a quatrocentas famílias. A dinâmica de atendimento se através do
trabalho compartilhado entre a assistente social da unidade de saúde e a enfermeira
responsável pela equipe. As famílias ao chegarem à unidade de saúde são
atendidas por um funcionário que preenche uma ficha de atendimentos com os
dados das crianças, e são orientadas a aguardar numa fila a fim de serem atendidas
pela enfermeira, enquanto esta ficha segue para a assistente social. A enfermeira e
assistente social realizam o trabalho numa mesma sala, e enquanto a primeira
realiza pesagens e verifica estatura das crianças, a segunda estabelece conversas e
realiza orientações aos que acompanham as crianças.
- Centro de Referência da Assistência Social – CRAS / Dunas
O contato de aproximação com o CRAS se deu a partir da apresentação aos
profissionais dos resultados da pesquisa para o trabalho de conclusão de curso
anteriormente citado.
O CRAS se localiza no prédio do Comitê de Desenvolvimento Dunas, que
será apresentado a seguir, e nele ocupa o espaço de aproximadamente três salas.
O quadro de funcionários é composto por duas assistentes sociais, duas psicólogas
e uma funcionária para serviços burocráticos. A aceitação por parte destas
profissionais foi de fato muito importante para a inserção, através de algumas visitas,
nas redes familiares.
O Centro de Referência da Assistência Social integra a Política de
Assistência Social da cidade de Pelotas, a qual se vincula a Secretaria Municipal de
47
Cidadania da Prefeitura Municipal de Pelotas. Segundo panfleto de divulgação da
Prefeitura Municipal de Pelotas:
A Política de Assistência Social se concretiza através de ações de
prevenção, proteção, promoção e inserção de pessoas em situação de
vulnerabilidade e/ou risco social na busca pelo resgate do direito de
cidadania. Essas ações se efetivam por um conjunto de Serviços,
Programas, Projetos e Benefícios. O Programa de Atenção Integral à família
PAIF é o principal programa da Proteção Social Básica, do Sistema Único
da Assistência Social (SUAS), desenvolve ações e serviços básicos para
famílias em situação de vulnerabilidade social na unidade do CRAS (Centro
de Referência da Assistência Social).
De acordo com estas informações o CRAS é então responsável por atender
as famílias da localidade, e suas atividades se localizam em diferentes programas,
como o Agente Jovem, Programa Bolsa Família, ASEF (Apoio Sócio-Educativo às
Famílias), ASEMA (Apoio Sócio-Educativo em Meio Aberto) e Plantão Social.
Na cidade de Pelotas, somente duas regiões possuem Centro de Referência
da Assistência Social, o loteamento Dunas e o bairro Cruzeiro.
O Agente Jovem tem por objetivo desenvolver atividades semanais com
adolescentes entre 15 a 18 anos, que foram selecionados a partir do cadastro das
famílias realizado pelo CRAS. Estes jovens recebem um benefício mensal no valor
de sessenta e cinco reais, e sua contrapartida é a participação nas atividades
propostas pelos educadores sociais. Os objetivos desta ação de assistência social
se apresentam, sobretudo, em “preparar o jovem para atuar como agente de
transformação e desenvolvimento de sua comunidade”, além de contribuir com a
redução da violência, drogadição, DST e HIV, e também facilitar, através de suas
ações, a inserção deste jovem no mercado de trabalho. No Dunas, existem
atualmente quarenta e cinco jovens participando do Programa Agente Jovem.
O Programa Bolsa Família apresenta no domínio do CRAS uma
particularidade que o distingue do atendimento que é realizado pela unidade de
saúde, o de realizar visitas domiciliares para a inclusão de novas famílias ao
Programa. No CRAS, as famílias são avaliadas para definir sua inclusão ou não, e é
por intermédio de seus profissionais, principalmente das assistentes sociais, que é
realizada a emissão dos pareceres técnicos ao Ministério do Desenvolvimento
Social.
O ASEF (Apoio Sócio Educativo às Famílias) sob responsabilidade do
CRAS, tem por objetivo o atendimento às famílias, dirigido particularmente para as
48
mães, oferecendo atividades de profissionalização através de oficinas de artesanato,
e também de apoio e orientações com profissionais da psicologia. No futuro, têm-se
a perspectiva de disponibilizar a estas famílias sacolas de alimentos, a fim de
complementar a despesa familiar, em razão, deste programa não oferecer recursos
financeiros às famílias.
O ASEMA (Apoio Sócio Educativo em Meio Aberto) tem o apoio das
profissionais do CRAS, mas em relação a este apresenta uma estrutura à parte e
independente. O ASEMA desenvolve suas atividades no prédio da Associação dos
Moradores do Bairro Dunas (AMBAD); possuem também um quadro de funcionários
próprio, que é constituído por educadores, profissionais da cozinha e limpeza. O
ASEMA realiza atividades de reforço escolar e brincadeiras, e o também
oferecidas diariamente refeições como lanches e almoços.
Têm-se, também, o Plantão Social, que trata de auxiliar as famílias em suas
necessidades mais urgentes, as quais muitas vezes são denominadas pelas
próprias profissionais como assistencialistas. Tais ações consistem em garantir
auxílio material ou em espécie às famílias da localidade, além de orientações e
realização de encaminhamentos para outras instituições de assistência e direitos
sediadas na cidade de Pelotas.
O espaço do CRAS se constitui como um local de referência para acessar os
diferentes recursos disponíveis na rede de assistência. A família, ao se aproximar do
CRAS, sai, na maioria das vezes com algum encaminhamento realizado. No
entanto, os procedimentos necessários para a efetivação / inclusão em programas e
serviços exigem o preenchimento de formulários, a realização de pareceres técnicos
por parte de profissionais habilitados como as assistentes sociais. Assim, o tempo
médio para receber os recursos varia de acordo com o tempo médio utilizado pelas
famílias para corresponder às exigências recebidas dos profissionais da assistência.
- Comitê de Desenvolvimento Dunas: CDD
A inserção no Comitê de Desenvolvimento Dunas se fez em razão de minha
inserção como moradora e participante de uma das instituições do Dunas, ou
melhor, da igreja católica. Assim, o conhecimento das atividades desenvolvidas no
CDD ocorreu a partir de uma proximidade da própria coordenação do Comitê. Desta
49
forma, a partir da representação da comunidade católica no Observatório de
Segurança Social, fui inserida numa outra rede, a Rede Vidadania.
O CDD surgiu no Loteamento como uma organização aglutinadora de
propostas para o desenvolvimento local. Contou, para isto, desde sempre, com o
apoio de instituições como a Universidade Católica de Pelotas, Universidade Federal
de Pelotas, Associação de Moradores, igreja católica, escola, pessoas da
comunidade, entre outros. O longo trabalho desenvolvido no local teve seu início
junto à Associação de Moradores, e contou também com financiamentos
estrangeiros e nacionais, os quais possibilitaram a construção de um centro de lojas
para investidores e comércios locais, bem como de um campo de futebol. Anos mais
tarde, ao lado desta construção foi erguido um outro prédio, o qual recebeu o nome
de Incubadora do Dunas, que servia como local para a constituição e organização
de pequenos empreendimentos profissionalizantes, como a cooperativa de produtos
congelados e a cooperativa das costureiras. Recentemente, uma nova modificação
imprimiria ao local uma reorientação da identidade, a instalação de um programa de
inclusão digital financiado pelo Governo Federal e sob a administração da
comunidade local, chamado Casa Brasil; seria o programa singular de investimentos
educacionais e culturais, tornando-se o símbolo da ação do CDD.
As atividades desenvolvidas no CDD constituem-se numa rede que se
propõe agregar as diferentes instituições que no Loteamento realizam intervenções.
A proposta foi organizada com a assessoria da ONG Instituto Universidade da
Periferia (IUP), que aprovada em Reunião de Diretoria do CDD se estrutura a partir
de quatro grupos temáticos. São eles: Grupo Temático Ambiência Urbana; Grupo
Temático Integrado Saúde e Segurança Social; Grupo Temático Educação e Cultura
e Grupo Temático Integrado Tecnologias da Informação. Cada grupo encarrega-se
de uma série de atividades, de forma que todos se integrem na consolidação do
Círculo Cultural de Desenvolvimento Sustentável Dunas, que compõe as referências
para o Plano de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Dunas. Ressalta-se
que a organização deste plano se insere na busca de reconhecimento do
Loteamento como Comunidade Protetora da Vida
13
.
Destacam-se ainda no CDD, a organização, a partir do Grupo Temático
Integrado Saúde e Segurança Social, do Observatório de Segurança Social. O
13
Trata-se de um reconhecimento dado pela Organização Mundial da Saúde e Organização das
Nações Unidas, a locais que se destaquem na preservação, prevenção e cuidado com a vida.
50
objetivo deste Observatório é de analisar e diagnosticar as situações de violência
realizadas no Loteamento, onde a partir de um Banco de Dados, sejam apontadas
“suas causas, circunstâncias e conseqüências”, onde se encontra em fase de
implantação o “Registro de Notificação de Ocorrências”.
- Promotoras Legais Populares (PLP’s):
O conhecimento das Promotoras Legais Populares ocorreu a partir da minha
inserção no CDD, especialmente no Observatório de Segurança Social. As PLP’s
realizam plantão uma vez por semana no Loteamento, e ocupam uma das salas que
serviriam para a instalação das lojas, que estão atualmente desocupadas e servem
de sala às Promotoras Legais Populares.
No Dunas e na cidade de Pelotas, as PLP’s vinculam-se ao Grupo
Autônomo das Mulheres de Pelotas, conhecido por GAMP.
As atividades das PLP’s, se dirigem à orientação e esclarecimento das
mulheres a cerca dos seus direitos, e isto se realiza através de palestras, oficinas,
debates e cursos de capacitação. Através do SIM – Serviço de Informação à Mulher,
as PLP’s apresentam sua proposta a outras mulheres, e em toda a cidade são três o
número destes serviços: Dunas; Posto de Saúde / Areal Fundos e na Associação
Beneficiente ABELUPE / Santos Dumont.
- Comunidades Católicas Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora de
Guadalupe:
A particularidade que envolve a relação com os serviços realizados pelas
comunidades católicas, é explicada pela minha participação nessas atividades,
sendo esta anterior ao ingresso no campo acadêmico.
A comunidade católica Nossa Senhora Aparecida iniciou suas atividades
religiosas e de assistência, na década de 1990, praticamente junto ao ano de
ocupação do Loteamento. A comunidade foi fundada por moradores do Dunas com
o apoio de alguns religiosos da igreja católica, cuja identificação com a Teologia da
51
Libertação, e, portanto com o movimento das Comunidades Eclesiais de Base as
CEB’s, constituíam-se numa característica das ações organizadas.
Os serviços pastorais que ainda permanecem são os seguintes: Pastoral da
Criança, Pastoral do Menor e Grupo de Mulheres, além dos religiosos como
catequeses e celebrações.
A Pastoral da Criança prioriza em suas ações o acompanhamento de
crianças de até seis anos, dedicando-se aos cuidados de pesagens e nutricional,
todas as terças-feiras. A utilização do complemento alimentar realizado com cascas
de alimentos e certos cereais, bem como sementes, é o referencial desta pastoral na
superação dos casos de desnutrição.
A Pastoral do Menor se dirige às crianças a partir de sete anos e também
jovens. Realiza oficinas de dança, teatro, canto e instrumentos musicais, além de
atividades literárias a partir da biblioteca que fora organizada recentemente,
priorizando o protagonismo infanto-juvenil. Atua também na área da defesa dos
direitos da criança e do adolescente, no encaminhamento de situações de violência
ou desrespeito ao que prevê o ECA
14
.
O Grupo de Mulheres realiza oficinas de trabalhos manuais (bordado,
pintura, tricô, costura e crochê). As temáticas de interesse das mulheres são
também discutidas neste grupo, como direitos, por exemplo. Em muitos casos, são
estabelecidas parcerias com outras instituições como ONG’s, de defesa dos direitos
das mulheres, permitindo o intercâmbio de informações e acesso aos serviços de
assistência. O serviço de Feira de Roupas, coordenado por este grupo, realiza-se
uma vez ao mês e dispõe para os moradores do Loteamento roupas usadas a
valores simbólicos, como dez, vinte e cinqüenta centavos.
- Escolas Municipais:
O loteamento Dunas possui três escolas localizadas em seu espaço
geográfico: escola municipal Dunas, Deogar Soares e Paulo Freire.
A escola mais antiga do loteamento, Escola Municipal Dunas, oferece desde
o Pré-Escolar aa quarta rie do ensino fundamental, além do ensino para jovens
14
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90).
52
e adultos, o EJA. A escola funciona em três turnos, sendo manhã e tarde para as
séries regulares e a noite para os jovens e adultos. A escola dispõe de biblioteca e
um auditório, além de espaço para o cultivo de algumas hortaliças. Atualmente, esta
escola oferece também, em turno inverso ao que estuda o aluno, serviços de apoio
escolar, a fim de compensar paralelamente as dificuldades de aprendizagem
encontradas por aqueles estudantes. Destacam-se nesta escola os esforços
empreendidos pela direção, para a organização de uma banda musical para os
alunos, sendo inclusive noticiado na imprensa local a mobilização em torno da
iniciativa.
A escola Deogar Soares, de constituição recente, é também denominada de
escola modelo. Esta escola apresenta amplas instalações, e é reconhecida,
sobretudo pela comunidade que nela estuda, como uma escola que conseguiu
estabelecer aproximações positivas com seu corpo discente. Segundo relatos da
diretora, em reunião do Observatório de Segurança Social, a escola foi entregue à
direção com poucas expectativas de que aquela estrutura se manteria por muito
tempo, sobretudo pelo lugar – Dunas, e pelo público – alunos do Dunas.
Já a Escola de Educação Infantil Paulo Freire, localizada ao lado da Unidade
de Saúde, orienta suas atenções às crianças de zero a cinco anos. Nesta escola o
trabalho de adaptação que é realizado entre mães e filhos, o qual consiste em
proporcionar de forma não traumática o desligamento da mãe, merece destaque. Em
seu interior, paredes e portas são enfeitadas, e as refeições são feitas em ambiente
comum, com cadeiras e bancos em altura adequada aos seus ocupantes. A
orientação pedagógica da escola se nos moldes da proposta educativa de Paulo
Freire, que se faz sentir em toda sua organização, e nas frases de acolhida
distribuídas uniformemente nas salas e na porta de entrada.
A análise do perfil das famílias do loteamento Dunas / região administrativa
Areal indica uma aproximação em todos os itens investigados da vila Pestano /
região administrativa Três Vendas. No loteamento Dunas a faixa etária das mulheres
que participaram das entrevistas varia dos 23 aos 48 anos, apresentando-se assim
um intervalo de variação muito próximo ao que ocorrera na vila. Quanto às
ocupações, a tendência se mantém a mesma que a encontrada na vila Pestano, na
medida em que as mulheres vinculam-se estreitamente às atividades domésticas,
seja no cuidado com a casa e os filhos, seja nas atividades remuneradas.que se
53
destacar, no entanto, que das 09 mulheres que participaram do estudo no
loteamento Dunas, 05 ocupavam-se fora de casa, 03 consideravam-se donas de
casa e uma delas denominou-se por “sucateira”
15
. O tamanho das famílias varia de
01 a 05 filhos, e nesse caso a situação visualizada na vila Pestano serve mais uma
vez como parâmetro comparativo, a de que as famílias abrangem também os netos
e genros, para além dos filhos e sobrinhos, casos estes que estavam presentes nas
famílias de duas interlocutoras.
Na análise dos programas e serviços da assistência pode-se verificar que o
Bolsa Família é recebido por todas as famílias que integraram o universo de
pesquisa no loteamento, sendo, portanto, o mais expressivo. Em seguida, se poderia
citar diversos programas e serviços que são acessados, como Fome Zero, grupos de
mulheres, educação de jovens e adultos, escola de educação infantil, programa
agente jovem, programa de erradicação do trabalho infantil e apoio sócio educativo
em meio aberto. Esta diversidade indica, portanto, a particularidade das redes de
assistência no loteamento Dunas, a qual evidencia os cruzamentos de programas e
uma multiplicidade de acessos por uma mesma família.
A forma de acesso nestas redes de assistência se dá, no entanto, de forma
interessante, na medida em que se verificam um elevado número de mulheres que
se inseriram autonomamente, isto é, sem a indicação de um parente, amigo ou
conhecido. O número de mulheres que chegaram aos programas e serviços sem
qualquer indicação atinge 05 mulheres das 09 investigadas, o que permite supor
uma relação de proximidade e influências recíprocas entre as famílias e as redes de
assistência.
- As crianças e as famílias no loteamento Dunas:
Em 1992 iniciei na vila como moradora, em 1996 como militante e em 2003
como pesquisadora, e desde então as crianças fizeram parte desta trajetória; não se
precisa procurar muito para encontrá-las porque as crianças simplesmente povoam
as ruas, os lugares, as escolas, as famílias e a assistência.
15
O termo “sucateira” foi empregado por uma das mulheres do loteamento Dunas, o qual designava a
função por ela exercida como catadora de materiais recicláveis. Além disso, ela empregou o termo
“sucatear” como sinônimo para sua ocupação fora de casa que é a de recolher sucatas.
54
A constante presença das crianças, pelas ruas do Dunas, foi um fato ao qual
sempre dediquei atenção. As brincadeiras que duravam horas, os agrupamentos
que se formavam para a realização de certos divertimentos, as pessoas que com
elas se envolviam, a movimentação nas escolas, a freqüência no posto, a realização
de biscates, os caminhos que utilizavam dentro do próprio loteamento tudo podia ser
facilmente observado. Assim, parece configurar-se uma fronteira muito nítida do
universo das crianças e dos adultos.
As brincadeiras no loteamento são a melhor forma de se descrever este
universo. Havia um período em que a moda entre elas era brincar de “blai-blaid”
16
,
onde se organizavam inclusive campeonatos. Em outros períodos avistava-se,
especialmente no verão, brincadeiras como “esconde-esconde”, onde até mesmo
adultos algumas vezes avistei entre as crianças, e essas brincadeiras iam até o
anoitecer, chegando muitas vezes próximas à madrugada.
As relações de troca e empréstimo de brinquedos entre eles é também uma
característica, quando, por exemplo, a brincadeira é de “andar de bicicleta”; o que se
vê com freqüência é a cedência e mesmo a troca de bicicletas, daqueles que
gostariam de andar numa bicicleta mais nova.
Nas estações mais frias, a presença das crianças de forma mais intensa nas
ruas é percebida nos horários da manhã e tarde, não sendo tão avistadas durante a
noite. A situação se tornava ainda mais freqüente quando as escolas estavam com
as atividades paralisadas, professores em greve e crianças sem aula são sinônimos
de brincadeira.
A diversão que está entre praticamente todos os grupos de maneira geral, se
encontra nos “campeonatos de bolinhas de gude”. Ao longe se observa os
meninos em grupos de cinco ou seis, que traçam com o dedo na areia a linha
divisória do território do campeonato. As discussões entre eles são muitas vezes
acirradas, onde se percebe que alguns chegam a trocar empurrões. Nestas rodinhas
de meninos, eles jogam para brincar ou para ganhar. Quando se trata de um
campeonato para brincar, eles chamam de “as brinca”, quando é para ganhar,
intitulam-se de “as ganha”. O problema produzido é maior quando o que está em
jogo são “as ganha”.
16
Este brinquedo era produzido pelas próprias crianças, e era montado com uma tampinha de
detergente de louça e um cordão barbante. Este brinquedo era uma imitação de um outro que na
época fora muito consumido.
55
A situação das meninas é um pouco diferente. Elas em sua maioria brincam
dentro dos pátios das casas, é permitido brincar também no pátio dos vizinhos, mas
dificilmente se alguma menina participando de um “campeonato de bolinha de
gude”. Elas se encontram em certas casas para organizarem a brincadeira, e podem
de lá partirem para uma outra se for necessário. Esta situação das meninas é
especialmente forte em algumas situações em que a diferença de idade entre irmãos
não chega a ser de dois anos, e a menina fica do lado de dentro do pátio, afastada
pela grade, observando o irmão jogar “bolinha de gude” na frente da casa com
outros meninos, atividade que para ela é interditada.
A presença dos homens no loteamento é também objeto de observações.
Em certos horários, como todas as manhãs, entre sete e oito horas, não como
passar despercebida a intensa circulação de homens em bicicletas. A freqüência e a
proporção dos que se utilizam das bicicletas como meio de transporte para o
trabalho é surpreendente. Alguns homens carregam em seus bagageiros os
instrumentos de trabalho, e a alimentação do dia, o que os dispensa de retornarem
para casa ao meio-dia. as mulheres, em sua maioria, carregam bolsas e sacolas
nas mãos, e se servem do ônibus como meio de deslocamento, e em alguns casos
parte deste deslocamento se faz também a pé.
Quanto aos que não exercem atividades fora de casa, a rotina das casas
pode se transformar num indicador importante. Por exemplo, quando chove muitos
dias consecutivos, ao primeiro sinal de um ‘dia bom’ as portas e janelas das casas
são abertas logo pela manhã, e são cobertas de roupas e sapatos que ficam
expostos ao sol para secar. Os varais dispostos em toda a extensão do terreno,
geralmente voltados para o local de maior incidência solar, são em dias de sol
enchidos várias vezes para dar conta dos dias de atraso com a roupa por lavar.
As mulheres que ficam em casa são as que dedicam a maior parte de seu
tempo às crianças. Elas levam ao posto para as pesagens, levam na escola, nos
ensaios da banda da escola, nas igrejas. As mulheres são também as que procuram
a assistência, realizando visitas freqüentes ao CRAS na busca pela sua inclusão nos
programas e serviços.
Nas festas comunitárias, realizadas nos campos de futebol do loteamento,
em sua maioria organizada pela unidade básica de saúde, pelas igrejas ou também
pelos moradores, a presença das mulheres acompanhando as crianças, também é
expressiva. Esta atitude se nos cuidados, no incentivo às crianças para participar
56
das brincadeiras e atividades que estejam sendo apresentadas, na atenção às
orientações dos coordenadores da festa. São as mulheres que acompanham as
crianças de um lugar para outro, do lanche ao sorteio e que descendo as crianças
do colo, arrumam as roupas para que possam dançar como sugerido pelo animador
da festinha. São as mulheres e as crianças maiores que recolhem em sacolas as
garrafas de refrigerante vazias. Mas são as crianças menores, que se utilizam dos
copos plásticos que foram dispensados após terem sido tomados os refrigerantes, e
que brincam com a areia da quadra de futebol, e com estes constroem casas,
“brincam de comidinha” transformando, através da criatividade, o seu universo pela
brincadeira.
A análise das brincadeiras das crianças permite compreender as
apropriações que elas fazem dos espaços públicos. Não são raras as cenas em que
as ruas são interditadas pelas crianças, e menos raras ainda, aquelas em que os
adultos incentivam estas relações com o espaço da rua, desviando o percurso, e
oferecendo ainda mais espaço para ser apropriado pelas crianças. E nos casos em
que as crianças encontram-se institucionalizadas, como a situação daquelas que
participam das atividades diárias no ASEMA, o lugar onde ocorrem as brincadeiras,
pode ser descrito por um observador distanciado, como um campo baldio, com
irregularidades no solo, que muitas vezes é ocupado por cavalos e cachorros, mas
para as crianças que dele se utilizam é um campo de possibilidades, onde os
chinelos de dedos são transformados em traves da goleira, e de um buraco cavado
na terra se faz uma cozinha com fogão e panelas.
57
3 ALTERIDADE, DESIGUALDADE E RECIPROCIDADE
A curiosidade e o interesse que motivaram muitos pesquisadores no Brasil,
especialmente na década de 1980, a deslocarem-se para as periferias das cidades e
estudarem os modos de vida, o trabalho, o lazer, a organização familiar dos
pobres (ou das classes populares, das classes trabalhadoras, ou dos também assim
nomeados de grupos populares), remonta a um período de efervescência acadêmica
que focava tais grupos como objetos de estudo de grande interesse científico. No
entanto, observa-se o arrefecimento do interesse dos pesquisadores por esta
temática, embora se possa identificar certos representantes que se destacam pela
continuidade de suas pesquisas sobre os grupos populares. Em grande medida, as
atenções, hoje, se voltam para problemáticas na qual a categoria ‘classe’ muito
pouco aparece, e quando isto ocorre seu conteúdo não é explicitado, pressupondo,
portanto, encontrar-se suficientemente esclarecido e suas definições esgotadamente
discutidas.
As contribuições advindas dos universos da academia, que constatava em
primeiro lugar o abandono teórico da discussão, e da militância, onde se observava
a persistência de manifestações etnocêntricas e preconceituosas resultado do
contato entre classes, motivou a continuidade do debate daquele período, resultados
os quais esta pesquisa deseja expressar.
A preocupação, inicialmente, orientou-se por aprofundar a discussão em
torno da pertinência e atualidade da reflexão sobre a alteridade numa sociedade de
classes nos termos utilizados por Cláudia Fonseca (2000). O ponto de partida da
pesquisadora diz respeito à problematização em torno da análise das desigualdades
sociais na sociedade brasileira, justamente a partir das conseqüências das eventuais
58
aproximações que ocorrem entre as classes, geralmente conflitivas e etnocêntricas.
Nessas aproximações, observa Fonseca (2000) nossa capacidade de relativização e
de compreensão de outras lógicas culturais é testada permanentemente quando no
contato cotidiano com as diferenças que se confrontam num jogo que envolve
simultaneamente a mim e ao outro (FONSECA, 2000).
Neste capítulo, busca-se, assim, compreender teoricamente as
manifestações e os contextos de expressão destes contatos a partir do paradigma
do dom, elaborado por Alain Caillé (2002), cuja lógica do dar, receber e retribuir, se
constitui na expressão primeira de constituição de vínculos e laços sociais entre
sujeitos num dado contexto social. Para além do conceito de mediação, que informa
em muitos casos o potencial de domínio de determinados códigos e de trânsito entre
universos sociais (VELHO; KUSCHNIR, 2001) se percebe que o dar, o receber e o
retribuir assume uma importância que permite extrapolar com interpretações que
percebam os sujeitos orientando-se exclusivamente por seus interesses pessoais
imediatos, mas antes pretende situar a motivação que coloca estes sujeitos em
movimento, em relações de reciprocidade.
A seguir, será apresentado em linhas gerais o debate teórico ocorrido no
campo acadêmico-antropológico que situam as diferentes contribuições conceituais
de pesquisadores da década de 1980, cuja intenção é a de apreender a
multiplicidade de significados que as experiências dos grupos populares atingiram
neste contexto de maior atenção em torno da temática. Em seguida, se propõe
apresentar os desdobramentos deste debate, problematizando os limites
concernentes em adotar certos esquemas conceituais na atualidade, mas também
de afirmar a permanência de determinados elementos ainda persistentes e úteis
quando se estudam os grupos populares. Finalmente, seexposta a discussão das
adoções teóricas que foram empreendidas neste estudo.
3.1 Da diversidade de nomeações às tentativas de encaixe teórico: Classes
populares, classes trabalhadoras, trabalhadores pobres e grupos populares na
produção acadêmica dos anos 1980
Em larga medida, quando se advoga a manutenção do conceito de classe
para a interpretação de determinadas realidades, praticamente a constituição de
59
um senso comum acadêmico, no qual se associa o termo estritamente ao seu
aspecto econômico, de sujeitos que compartilham de um mesmo lugar nas relações
sociais de produção, e que vivem portanto nas mesmas condições sociais e por isso
compartilham de um mesmo universo de significados culturais. Nesta concepção
desconsideram-se outros níveis de interpretação, e aos sujeitos trabalhadores, ou
então proletários, operários, é reservado o papel de protagonista, de vanguarda
diante da necessidade de superação do modo de produção capitalista.
Esta forma de analisar os fenômenos sociais, visando transformações
sociais, é apontado por Boaventura Santos (2006) como uma característica das
ciências sociais, na qual está implícita a relação do pesquisador com seu objeto de
estudo:
[...] o campo gnoseológico da compreensão e da explicação da sociedades
do presente é distinto do gnoseológico da direcção da transformação desta.
As ciências sociais da modernidade sempre tenderam a confundir os dois
campos. Apesar de se guardarem de um tradução organizada das suas
idéias em processos de transformação social, Max Weber e Durkheim não
se coibiram de fazer previsões e de apontar direcções desejáveis ou
indesejáveis de transformação social (SANTOS, 2006).
A insatisfação com o modo de produção capitalista moveu esforços teóricos
em proporções nem sempre calculáveis, e uma dessas conseqüências não
mensuradas foi a idéia de que os sujeitos que mais sofreriam a ação de exploração
pelo capital seriam os que mais teriam condições para o superar. Na continuidade
histórica o que se verificou foi que com a desilusão advinda do fracasso socialista,
as utopias ao redor da classe operária foram se desfazendo e as atenções voltaram-
se então para novas temáticas e problemáticas teóricas, as quais se dispuseram a
organizar outras perspectivas interpretativas, como por exemplo, unidade e
fragmentação, manifestações do fim das grandes narrativas.
Como então se ancorar em um conceito diante de tal descrédito? Em
campo, as entrevistas mostravam que as famílias se utilizavam de estratégias para
inserirem-se em programas sociais de assistência, indicando assim que não mais
estavam vinculadas formalmente ao mercado de trabalho. Como explicar as
estratégias dos catadores de materiais recicláveis, ou sucateiros, como muitos se
auto denominam? Eles não batem ponto, não recebem seguro-desemprego, não
apresentam relação formal com o Ministério do Trabalho, mas possuem estratégias
que os incluem numa rede social de manutenção familiar, onde o trabalho, estendido
60
a todos os membros da família, é acionado como uma maneira de burlar a exclusão
do trabalho formal, e é visto como um valor buscado e valorizado por todos.
A importância dos vínculos familiares, do valor do trabalho e da importância
das crianças para a constituição das relações sociais, justifica nesta pesquisa a
pertinência da discussão sobre cultura de classe, mas focando-se de maneira
particular nas discussões do campo antropológico, cuja concepção de “grupos
populares”, incorpora, para além do aspecto econômico os significados culturais
implícitos na configuração deste sistema de valores.
Os estudos realizados no Brasil que se dedicavam a investigar as classes
trabalhadoras suscitavam, em geral, discussões teóricas que tinham como
referência sica a luta de classes. Por esta razão, apresentavam-se análises que
enfocavam mais os desvios da experiência brasileira frente ao cenário europeu
desenvolvido, do que propriamente a sua especificidade. Nestas investigações
sugeria-se que a experiência de classe trabalhadora brasileira se dava tutelada ao
Estado, e numa espécie de apatia dos trabalhadores em virtude da sua falta de
consciência de classe. Certas categorias como a de populismo e clientelismo,
exemplificam de forma típica como determinados pesquisadores percebiam a
crescente visibilidade destes grupos, bem como a forma própria de participação
política destas camadas populares no país.
Em outro campo de produção, como na história, verifica-se por outro lado,
tentativas de criatividade e de superação de análises deterministas e causais, entre
as quais se encontram abordagens como a de Ângela Gomes (2001), que se
constitui num exemplo de interpretação diferenciada sobre as relações entre
trabalhadores e Estado. A partir da categoria trabalhismo, a pesquisadora recoloca
em termos novos esta relação, que segundo ela se estabelece mediada e não
subjugada como propunham as análises até então.
O sociólogo Boaventura Santos (2006) analisa o potencial criador de certas
correntes que se desenvolveram fora dos países centrais. Defende que os impactos
da dissolução da utopia socialista não se fizeram tão pronunciadas em países
periféricos, o que em grande medida contribuiu para a ampliação e diversificação de
produções alternativas nestes países, situação contrariamente diferente daquela
encontrada na Europa, de arrefecimento de certas abordagens e de reavaliações
nas condições de possibilidade de uma verdadeira opção socialista.
61
No Brasil, o movimento de deslocamento que se apontou na representação
dos trabalhadores com a influência do pensamento de Ângela Gomes se faz de
maneira conjunta com outras disciplinas, seja na antropologia, na sociologia ou na
história. A perspectiva utópica, contudo, não foi abandonada, mas sim, pensada a
partir de um referencial teórico de produção nacional.
A preocupação destes estudos dava-se naquele período (1980 – 1990),
sobretudo pela possibilidade de ascensão de um novo sujeito político, o qual
servisse de contraponto ao Estado autoritário (DOIMO, 1995). A imagem produzida
nestes estudos refletia assim a preocupação dos intelectuais com uma pesquisa
academicamente engajada com a transformação social (SADER; PAOLI, 1986), e
que colaborava para ‘o’ acontecimento histórico da sociedade brasileira.
Este movimento de renovação da academia brasileira o ocorreu de modo
isolado, mas em sintonia com as novas perspectivas que partiram da Inglaterra a
partir da década de 1950. Neste sentido, o afastamento de uma postura teórica que
se propunha compreender as desigualdades sociais em torno de referenciais como a
luta de classes, encontrava apoio na influência dos Estudos Culturais, corrente
teórico-interpretativa que inicia suas reflexões na Inglaterra na década de 1950, mas
que aporta na América Latina, anos mais tarde, em 1970.
Os Estudos Culturais, sob a influência de três pesquisadores Hoggart,
Williams e Thompson, se propunham relativizar as concepções marxistas, sobretudo
partindo da referência do conceito de cultura como suporte teórico para
interpretações dos grupos sociais. A partir da orientação de um novo conceito de
cultura que se pretendia dinamizar as relações sociais, dando lugar a diferentes
manifestações culturais, o estudo do ‘popular’ atinge patamar de legitimidade e
visibilidade, complexificando consideravelmente as discussões teóricas a respeito do
estatuto destes grupos:
Em linhas gerais, os estudos culturais estão, sobretudo, preocupados com
as inter-relações entre domínios culturais supostamente separados,
interrogam-se sobre as mútuas determinações entre culturas populares e
outras formações discursivas e estão atentos para o terreno do cotidiano da
vida popular e suas mais diversas práticas culturais (ESCOSTEGUY, 2001).
As frentes de estudo inauguradas pelos estudos culturais apresentam seus
reflexos também no contexto brasileiro. No país, diversos pesquisadores se
62
deslocaram a fim de estudar de perto os modos de vida, as dinâmicas sociais e
compreender assim as origens do fracasso das explicações anteriores:
Surge então um período de impressionante produção sobre as camadas
populares. Os mais brilhantes estudantes se dirigem aos bairros da periferia
para estudar as dinâmicas culturais próprias desse meio: a música, os
circos, os clubes de futebol, a organização familiar, as formas de
organização política, etc. [...] Os termos marxistas (“forças de produção”,
“capitalismo”, “classe operária”) cedem o lugar a uma discussão sobre o
“popular” (a “cultura popular”, os “grupos populares”, os “bairros
populares”...) (FONSECA, 2000).
As reações a estas posturas teóricas tiveram como resposta a adoção de um
novo referencial teórico-metodológico que objetivava a compreensão dos modos de
vida destes sujeitos, sua relação com o poder político e suas formas de organização
próprias.
A perspectiva antropológica insere-se assim, neste movimento mais geral
dentro da academia, para pensar as especificidades dos modos de vida dos sujeitos
de classes trabalhadoras, tendo como enfoque as práticas cotidianas, as vivências
familiares, as opções de lazer e a constituição do trabalho como valor para estes
sujeitos. A seguir, serão expostas as categorias e temáticas das pesquisas
realizadas por certos pesquisadores que optaram por uma abordagem antropológica
em seus estudos naquele contexto.
A preocupação de alguns pesquisadores como Magnani (1984), que se
voltam às manifestações populares relativas ao lazer, procurando nelas uma forma
de compreender estes sujeitos em suas atividades cotidianas, é um dos muitos
exemplos de pesquisadores que estão comprometidos com a discussão de outras
relações dos trabalhadores com o universo social, afastando-se, assim, das
recorrentes análises que os vinculavam pressupostamente ao universo do trabalho e
das lutas políticas. Em sua obra “Festa no pedaço”, Magnani (1984) discute a
descoberta da periferia enquanto um espaço privilegiado para operar o
deslocamento da associação entre os sujeitos e a política. Nas palavras do autor:
Apesar do interesse despertado ultimamente pelas condições de vida das
populações dos bairros periféricos, suas associações e movimentos
reivindicatórios, existe, entretanto, toda uma realidade que faz parte do
cotidiano dessas populações, mas que normalmente escapa às atenções e
foge do interesse político imediato [...] (MAGNANI, 1984).
63
Neste caso, se exemplifica a tendência crescente na época de retirar o peso
relativamente grande de atribuição dos trabalhadores enquanto agentes de
transformação social, e de atribuir-lhes uma compreensão de mundo com lógica
específica, e, portanto dotados de capacidade crítica-reflexiva a cerca das condições
que os cercam. Em outras palavras, consistia em interpretá-los em sentido inverso
ao que até então estava instituído, de compreendê-los o enquanto reação às
determinações estruturais e econômicas. Esta perspectiva afirmava que limitados
não poderiam ser os trabalhadores, mas sim os conceitos com os quais se tentavam
explicar os seus modos de vida. A utilização da categoria classes populares pelo
autor, reforça sua adoção teórica, e põe em questão a associação destes grupos a
programas revolucionários de transformação social, sem, contudo perder de vista a
particularidade daquele universo social. Por fim, Magnani (1984) acompanhando a
perspectiva de Eunice Durham (CARDOSO, 1986) chama a atenção para o nível de
preocupações que deve estar presente quando se estudam estes grupos, sugerindo
que os “fatores culturais” não podem ser descartados para a devida compreensão
destes modos de vida, tem-se assim o trânsito entre ideologia e cultura.
A pesquisadora Eunice Durham serve também de exemplo ao que no
período era investigado em termos de universo dos grupos populares. Na publicação
de um artigo denominado “A pesquisa antropológica com populações urbanas”
encontram-se argumentos que figuram em favor de uma revisão na teoria e nos
métodos que serviam de referencial para as pesquisas antropológicas do período, as
quais eram responsáveis por certas relações contraditórias no fazer etnográfico o
que Durham (CARDOSO, 1986) denominou de “deslizes semânticos”. Para tornar
mais clara sua defesa a autora exemplifica, a partir da questão de classe, o quanto a
mesma tem estado ausente nas produções antropológicas, conseqüentemente
tornando-se problemática a “relevância dos resultados para a problemática das
classes” (DURHAM, In: CARDOSO, 1986).
De maneira singular, a autora indica a direção para onde tais problemas
apontam dentro do campo de pesquisa antropológica. Nas palavras da autora:
Os deslizes semânticos que foram apontados como uma característica da
produção antropológica recente parecem estar indicando a procura de
novos caminhos a partir de uma alteração no significado de conceitos
tradicionais. Entender esse processo e explicitar essas alterações
constituem o início da reflexão mais sistemática sobre os novos rumos que
a antropologia está buscando (DURHAM, In: CARDOSO, 1986).
64
Prosseguindo na lógica destes estudos, outro exemplo se encontra nas
contribuições da antropóloga Alba Zaluar (1985). Nos estudos desta autora, são
marcantes as preocupações com a dissolução da associação entre trabalhadores
pobres
17
e alienação. Sendo assim, sua atenção se volta para a discussão entre
ideologia e cultura, a qual defende a existência de uma ideologia própria aos
trabalhadores. Segundo a autora, o conceito de ideologia deve estar conjugado ao
de ação, ou seja, a idéia é constitutiva da prática (ZALUAR, 1985) e, portanto, cada
ação realizada pelo sujeito deve estar integrada com a compreensão que desta se
tem. Assim, para a pesquisadora, os trabalhadores pobres distanciam-se das
categorias alienação e reprodução dadas em especial pela massificação dos meios
de comunicação, na medida em que são dotadas de uma ideologia própria. Ao
provocar este deslocamento analítico, a autora se afasta das construções
reprodutivistas da sociologia da comunicação, e se aproxima do conceito de
hegemonia gramsciano, que possibilita redimensionar a análise, permitindo assim a
adoção da categoria analítica diversidade.
A consideração da diversidade cultural frente às concepções da realidade
social destes grupos, é por Alba Zaluar (1985) pensada, a partir das reações que
apresentavam estes sujeitos diante de um dado contexto. A autora compreende que
vivenciando um dado contexto social, estes sujeitos são capazes de realizar
reflexões e avaliações, respondendo a partir de seus referenciais, afastando-se
assim de perspectivas que os percebiam como passivos e alienados, os quais
respondiam conforme orientações ideológicas alheias. Nas palavras da autora:
São realidades dinâmicas que contam com um núcleo de bom senso
fundado na observação direta da realidade que torna possível o
desenvolvimento de uma consciência de si autônoma [...] Como não é um
todo uno, convive com a diversidade, o conflito, a contestação, a vida e o
riso dos que, mesmo sem serem reconhecidos como intelectuais, pensam
sobre o que lhes acontece e participam ativamente do processo de
produção dos significados sociais
(ZALUAR, 1985).
em outros trabalhos, como o de Carmem Cenira Macedo (1985) a
importância de família é interpretada como um elemento preponderante na
organização e expectativas dos projetos de vida de famílias operárias. O apoio do
grupo familiar torna-se o suporte indispensável para a ordenação das experiências
17
A autora se utiliza deste termo como forma de apropriação das categorias nativas, priorizando as
falas de seus informantes. Este termo, no entanto, carrega consigo uma oposição fundamental, que é
referida pelos informantes pela idéia de bandidos.
65
cotidianas. Assim, os membros destes grupos movimentam-se socialmente e criam
determinadas expectativas em detrimento de outras, pelos valores recebidos através
da família, o que se torna possível para a autora a partir da compreensão dessa
como “alicerce para a atuação na sociedade” (MACEDO, 1985).
As preocupações de uma outra antropóloga se dirigem especialmente para a
compreensão da constituição de uma identidade de trabalhador, sobretudo no
universo masculino. Simoni Guedes (1997) enfoca as estratégias utilizadas pelas
famílias na condução dos projetos profissionais entre jovens de classes
trabalhadoras, e apresenta as escolhas realizadas diante do campo de
possibilidades existente para tais sujeitos. A direção dada às carreiras profissionais
conjuga, por um lado, o valor do trabalho como ação física, que requer força e vigor
corporal e por outro, prioriza a qualificação educacional que corresponda àquele
valor, ou seja, a realização de estudos profissionalizantes.
Neste rol de pesquisas, encontra-se também a influência de Dias Duarte
(1986), que associa suas preocupações a um esforço de organização do estatuto
das classes trabalhadoras, em especial pelo contraponto que estabelece entre as
noções de hierarquia e igualdade.
A contribuição de Duarte (1986) ao estudo da sociedade brasileira se faz nos
termos da teoria da hierarquia proposta por Dumont (1985; 1992). A abrangência da
obra de Dumont (1985; 1992), muito embora sejam realizadas as ressalvas quanto
ao contexto de análise, em muito contribuiu para o conhecimento dos modos de
significação das classes trabalhadoras, e permitiu a Duarte (1986) a construção de
um modelo explicativo para a sociedade brasileira, o qual se propunha relativizar os
atributos qualificadores desta como uma sociedade moderna, que sob a regência de
um ideário individualista apresenta suas fraturas a partir da presença de grupos com
estatuto holista / hierárquico, como o das classes trabalhadoras.
Em Duarte (1986), a relativização do ideário moderno é feito em termos da
discussão desta cultura das classes trabalhadoras urbanas. Para este autor, sua
existência requer a relativização da construção social da pessoa moderna. Neste
sentido, o que deseja imprimir é que o discurso do individualismo não abrange
igualmente todas as sociedades, nem mesmo dentro de cada sociedade em
particular. As concepções de indivíduo moderno, (DUARTE, 1986), o insuficientes
para dar conta, por exemplo, da experiência de uma cultura de classe.
66
O interesse deste autor é demonstrar a perspectiva holista, convivendo
numa sociedade moderna / individualista, cuja expressão se verifica na orientação
de determinados grupos segundo valores específicos, que integram os sujeitos
numa relação ao todo, onde:
[...] a qualificação aqui reiterada da cultura das ‘classes trabalhadoras
urbanas como hierárquica, holista, não individualista, não é uma afirmação
universal, mas se prende intrinsecamente às propriedades de situação do
meu discurso e da minha comparação. Do meu discurso e da minha
comparação porque neste caso e não em outros essas situações se
superpõem na designação do individualismo, como critério e fronteira
(DUARTE, 1986)
.
A perspectiva moderna abandona, justificando-se na ciência, tudo o que não
pode ser medido e apreendido fisicamente, assim dissociados, os valores passam
agora a ser manipulados pelos homens, ocupando segundo esta concepção, um
lugar de subalternidade, na medida em que o indivíduo emerge enquanto categoria.
A compreensão de igualdade ordena idealmente a relação entre os homens.
Opondo-se às noções de prestígio e divindade, que orientavam as posições de
poder na Antigüidade, os filósofos modernos rompem totalmente com as posições
hierárquicas, adotando uma concepção de igualdade abstrata.
Em resumo, a ruptura que a modernidade operou na configuração de valores
das sociedades tradicionais dissociou o valor e o ser, que a partir de então, renegou
a hierarquia como ordenamento do social, passando a ser o sujeito individual a
grande descoberta de uma sociedade que se reorientou segundo a dimensão da
igualdade.
Assim, distinguem-se duas ideologias orientadoras das relações entre
sujeitos nas sociedades: a ideologia das sociedades tradicionais (holismo) e a
ideologia das sociedades modernas (individualismo). No primeiro caso: “[...] o valor
de uma entidade está, pois, numa estreita relação de dependência em face de uma
hierarquia de níveis de experiência onde essa entidade se situa” (DUMONT, 1985).
No segundo caso, a ideologia individualista acaba com a relação de totalidade entre
ser e dever ser, que dissociados elevam o sujeito, o ser, na sobreposição ao sistema
de valores que ordenam a relação entre as pessoas.
As argumentações apresentadas por Dumont (1985; 1992) permitem realizar
estas operações e compreender que a ideologia moderna é uma, entre as diferentes
formas de ‘ser’ das sociedades humanas. Assim, este autor recupera o sentido do
67
‘valor’ para as sociedades tradicionais, em contraponto com as sociedades
modernas que pelo viés científico acabaram por dissociar ser e valor. A ideologia
tradicional, na qual os valores e as idéias se unem para organizar as relações
sociais permitem assim compreender o lugar das relações hierárquicas,
relacionando a parte ao todo, numa oposição simétrica (DUMONT, 1985).
Para Dias Duarte (1986) seriam, então, as classes trabalhadoras urbanas as
portadoras, na sociedade brasileira (individualista) de um estatuto holista. Assim,
valendo-se da hierarquia como idéia-valor para estas classes, parte do princípio que
a ordenação simbólica dos universos culturais, se apresenta como limite para a
interpretação teórica, isto é: “sinal dos embaraços que tem cercado o desencontro
entre as valorações exógenas sobre as classes trabalhadoras e sua cultura e as
marcas e valores simbólicos sobre que efetivamente pautam sua visão de mundo”
(DUARTE, 1986). Tais desencontros se apresentam como elementos motivadores
para as reações de estranhamento, presentes em diferentes estudos sobre as
classes trabalhadoras, apresentando-se, desta forma, como limites e muitas vezes
tendo por conseqüência a incomunicabilidade.
As exemplificações realizadas do contexto da década de 1980 singularizam
um período fortemente marcado pela intensa produção acadêmica a cerca das
realidades dos sujeitos de grupos populares. Estas preocupações correspondiam de
forma generalizada à necessidade de expansão das análises que até o momento
eram realizadas, as quais abarcavam conceitos que continham de certa forma um
conteúdo eminentemente político, de construção de uma nova ordem social, a qual
viesse rechaçar as formas até então estabelecidas entre Estado e Sociedade. Neste
sentido, a abordagem antropológica ocupa uma posição importante neste
alargamento das interpretações, ao perceber as experiências das classes populares
/ classes trabalhadoras / trabalhadores pobres e grupos populares como uma
experiência social singular, contextualizada, a situam como parte da
heterogeneidade e da diversidade cultural, características de formações sociais.
Na continuidade, na década imediatamente posterior, a de 1990, a
produção bibliográfica começa a dar sinais de que os conceitos defendidos na
produção acadêmica de 1980 necessitavam ser revisados, sobretudo porque de
certa forma se apresentavam insuficientes para interpretar as transformações de
sentido que estavam sendo percebidas nas relações sociais entre classes.
68
Tem-se assim que certas análises não mais percebiam a necessidade de
manutenção de demarcação das fronteiras entre grupos sociais desiguais, como se
percebia nas décadas anteriores. Assim, é defendido por Dias Duarte (2001) a
adoção de termos mais abrangentes para abarcar a diversidade de manifestações
culturais dos grupos populares, bem como de suas relações com os demais grupos
sociais:
[...] tampouco se encontra critério unânime para delinear as zonas de
transição entre os dois grupos. Eu, próprio, em trabalhos antigos, procurei
descartar como impreciso o uso de ‘classes populares’ para designar o pólo
que mais se afasta de nossas representações – intelectuais de classe
média, considerando mais sustentável a categorização de ‘classes
trabalhadoras’. Posteriormente, [...] acabei por utilizar também o designativo
menos preciso de classes populares. Dadas as dificuldades de
determinação das fronteiras desses espaços culturais, hoje parece-me
melhor utilizar justamente a expressão menos precisa
(DUARTE, 2001).
A perspectiva antropológica defendida por Cláudia Fonseca torna-se
importante neste estudo pela particularidade com a qual interpreta os grupos
populares. A autora advoga em favor da manutenção das diferenças de classes a
partir da discussão da alteridade numa sociedade de classes (2000),
problematizando sobretudo os contatos entre classes, analisados pela pesquisadora
como preconceituosos e etnocêntricos na maioria das vezes, sobretudo porque
resultantes das desigualdades sociais da sociedade brasileira.
Defende como necessária para a compreensão dos grupos populares a
apreensão da lógica específica das “escalas inferiores da sociedade de classe”
(2006). Defende a autora que no estudo destes grupos não se perca o foco nas
“matrizes simbólicas que ressaltam a especificidade dos grupos subalternos”. Em
outra obra (FONSECA, 2000) apresenta o modo como a investigação qualitativa
antropológica com os grupos populares é operacionalizada a partir do referente
cultura popular, na qual a autora se utiliza de contribuições de Michel De Certeau:
Ele, como nós, escolhe como alvo de análise a criatividade nas práticas
comuns da vida cotidiana. [...] Postula que “deve haver uma lógica dessas
práticas”. [...] Em outras palavras, sem negar a influência da cultura
hegemônica, De Certeau nos lembra que existem dinâmicas culturais,
nascidas no sens pratique da vida cotidiana, dignas de estudo (FONSECA,
2000).
Os esforços teóricos e metodológicos operados pelos pesquisadores da
década de 1980, arrefecem, e são reconhecidos por Cláudia Fonseca (2000) como
69
parte de um processo em que se instaura um silêncio discursivo nas Ciências
Sociais quando se trata de analisar as relações de classe no Brasil, uma ruptura
acadêmica diante dos esforços de interpretação empenhados por muitos. As críticas
da pesquisadora reforçam a necessidade de se pensar sobre este distanciamento da
discussão da temática de classe, o que trouxe como conseqüência a existência de
lacunas nas tentativas de organização de um conhecimento mais sistematizado para
a discussão sobre as desigualdades na sociedade brasileira, rompendo assim com
qualquer possibilidade de consolidação de um campo de estudos sobre grupos
populares no Brasil. Na atualidade as atenções se voltam para outras questões, que
em grande medida trazem como conseqüência a invisibilidade desta temática e
destes sujeitos para o pensamento social.
A partir destas constatações é possível pensar que as desigualdades sociais
nestes termos tenham deixado de exercer influência na vida destes sujeitos e se
tenha constituído em algo de menor importância, e justificado assim o abandono
acadêmico do conceito.
Provocações dessa ordem vêm de Patrice Shuch em seu artigo sobre
diferença e desigualdade, publicado em 2003. Para a autora, as questões centrais
para a análise do florescimento da categoria etnia e apagamento da classe, se
devem em grande medida pelas opções teóricas operadas pelos pesquisadores,
porque ambos os conceitos são analíticos e políticos. É saliente a discussão de
cultura, que embora não explicitamente colocada é situada como norteadora das
opções de análise dos conceitos, ou seja, ou se orienta pela via da cultura enquanto
conceito homogêneo e com caráter de unicidade, ou se o percebe como
heterogêneo, primando pela discussão teórica e metodológica sobre a diversidade.
Levando em consideração este segundo, sugere Patrice que se estabeleça também
a inclusão da desigualdade e não somente da diferença, priorizando diferentes
recortes sobre os quais se analisa o social: “Pensar sobre tais questões pode ajudar
a refletir sobre o caráter dinâmico e complexo das culturas, recortadas não apenas
por uma série de diferenças, mas também por inúmeras desigualdades sociais”
(SHUCH, 2003).
De maneira particular, conforme a autora, a abordagem em termos de
classe, influenciada fortemente pela teoria proposta por Karl Marx, debruçava-se
sobre as diferenças de classe. Na oposição proletários e burgueses, a análise desta
relação sublinhava as diferenças que eram percebidas economicamente,
70
denominando-os respectivamente de proprietários dos meios de produção e
proprietários da mão de obra.
A interpretação das diferenças nestes termos ocorre estritamente em termos
das desigualdades, servindo a revolução socialista como uma forma de superação
de tais desigualdades. Para Schuch (2003) esta análise, ao priorizar as condições
materiais de existência, e, portanto enfatizar as desigualdades daí resultantes, tinha
por objetivo transcender a realidade, e não produzir um conhecimento científico a
cerca das particularidades entre ambos, daí as construções sobre os trabalhadores
se constituírem mais como denúncia das condições desiguais de acesso aos bens e
riquezas, do que uma compreensão das particularidades de um e outro. Nas
palavras da autora:
Mesmo destacando os conflitos, lutas e clivagens sociais, diferentemente da
perspectiva positivista com sua ênfase na ordem, a análise marxista
também um peso superior à realidade estrutural e objetiva as
estruturas econômicas externas aos sujeitos em detrimento das variáveis
subjetivas, ao mesmo tempo em que limita sua análise da sociedade com
um modelo e explicativo de superação da ordem capitalista que é
justamente baseado num de seus pressupostos ideológicos: a importância
da economia (SCHUCH, 2003).
Embora se perceba atualmente as limitações teóricas da perspectiva
marxista, deve-se pensar a influência que esta causou na produção acadêmica
brasileira.
Assim, grande parte das construções teóricas sem refletir sobre as
conseqüências políticas de certas opções conceituais, acabou por pensar as
diferenças sociais exclusivamente em termos de desigualdades econômicas,
interpretando estes sujeitos e suas vivências preferencialmente através deste viés.
As lacunas temporais verificadas na produção de estudos sobre as
dinâmicas de classe no Brasil, são percebidas por Fonseca (2000) como um
movimento global de preocupações que se deslocam ao politicamente correto,
voltado assim para questões de etnia e gênero, deixando a temática de classe,
quando evocada, tratada como um apêndice relativo às questões enfatizadas como
mais importantes. Na perspectiva da autora uma avaliação comparativa torna-se
fundamental para a compreensão e percepção deste argumento:
foi amplamente comentado como, na época, o excesso discursivo levava
os pesquisadores a “ver” a cultura popular mesmo onde ela não existia.
Podemos então perguntar se, no atual clima de euforia neoliberal, os
pesquisadores não fazem o extremo oposto, considerando o silêncio
71
discursivo como prova da ausência de qualquer realidade distintiva
(FONSECA, 2000).
A orientação atual dos estudos sobre classe no Brasil, discutido também por
Cláudia Fonseca (2006), é oriundo de análises realizadas em camadas médias. As
contribuições de Gilberto Velho e Karina Kuschnir (2001) devem ser inseridas a
partir deste esforço de continuidade da discussão na produção acadêmica brasileira.
A partir do conceito de mediação, estes autores estudam as possibilidades de
comunicação e aproximações entre vivências de sujeitos de classes sociais
diferentes, apresentando da mesma forma os limites e tensões estabelecidos no
contato interclasses.
Assim, neste trabalho, a mediação deve ser compreendida como: “a
possibilidade de lidar com vários códigos e viver diferentes papéis sociais, num
processo de metamorfose (VELHO; KUSCHNIR, 2001), o que permite investigar
outras lógicas culturais e regras sociais nem sempre conhecidas em relação aos
sujeitos, tanto famílias quanto profissionais da assistência, o que os habilitam a
realizarem deslocamentos e estabelecerem diálogos.
Neste sentido, de acordo com os autores acima citados, é necessário pensar
a categoria em si, como “processo de comunicação cultural no sentido mais amplo”.
Contudo, desigualdades e conflitos também se apresentam como elementos em
disputa, mas se devem considerar as mediações como “uma ação social
permanente, nem sempre óbvia, que está presente nos mais variados níveis e
processos interativos” (VELHO; KUSCHNIR, 2001), onde alianças e rupturas são
possibilidades a serem negociadas constantemente.
Complementar à perspectiva adotada por Gilberto Velho e Karina Kuschnir
(2001), o pesquisador Luiz Fernando Dias Duarte apresenta as possibilidades e os
limites das relações de mediações, e aposta na reprodução da configuração
hierárquica e desigual para a compreensão destas no contato entre grupos.
Referindo-se às mediações entre grupos e sobre como se “essa capilaridade,
essa mediação entre os dois pólos da grande divisão” (DUARTE, In: VELHO;
KUSCHNIR, 2001), o autor defende a permanência das desigualdades e
hierarquizações sociais nestes contatos:
72
Isso é, sobretudo, importante se nós pensarmos no fato de que a relação
entre as duas metades do ‘grande divisor’ é sempre hierárquica, uma
superior em relação à outra. Elas nunca têm uma relação de igualdade, em
nenhuma circunstância das situações históricas da nossa cultura (DUARTE,
In: VELHO; KUSCHNIR, 2001).
Em grande medida a compreensão destes contatos sociais se pauta em
torno dos limites da comunicabilidade, confirmando as conclusões apresentadas por
certos pesquisadores, as quais se referiam a diferentes experiências de subjugação
e submissão de uns grupos sobre outros, geralmente aqueles que apresentavam
condições econômicas consideradas superiores no conjunto da sociedade. Assim,
as possibilidades de comunicação e interlocução entre desiguais diante deste
quadro se tornam remotas, ou quando existem limitam-se a ocorrer de forma
unilateral, dando continuidade às relações de desigualdade entre classes, onde a
existência de “trânsitos entre mundos” se de maneira unilateral e parcial,
reproduzindo as assimetrias sociais, as quais inviabilizam em grande medida
atravessamentos ou pontos de contato. A posição defendida por Cláudia Fonseca e
Jurema Brites (2006) traduzem o que se deseja discutir:
Implícito no uso do termo mediação, é o axioma de que existem fronteiras
simbólicas a serem negociadas, inclusive de classe. No entanto, quando se
trata de sujeitos de origem modesta, a ênfase destes estudos tende a ser
em trajetórias individuais (de algum músico ou artista popular), com a
estrutura de classe servindo como pano de fundo. Quando o enfoque
desloca-se para categorias sociais empregadas domésticas e suas
patroas – a ótica de análise favorece o território das dominantes, i.e., a casa
das patroas. [...] a preocupação desses pesquisadores não é em geral com
uma análise da mediação vista de baixo para cima (FONSECA; BRITES,
2006).
As conseqüências de adoções teóricas dessa natureza, como se sabe,
influenciam de maneira frontal a interpretação do material de campo, e orientam os
resultados que se deseja discutir. A encruzilhada teórica vivenciada neste trabalho
remeteu ao seguinte paradoxo, ou se acomodava a tal orientação ou se permanecia
com as inquietações teóricas durante o processo de pesquisa. Optou-se pela
segunda via.
Orientando-se por esta crítica, se reconfigura a perspectiva teórica deste
estudo. A fim de contemplar a constituição dos vínculos e laços sociais (dar, receber
e retribuir) como fundamentais para a compreensão das relações entre famílias e
redes de assistência, percebe-se que as relações de mediações se realizam na
73
medida em que o ‘receber’ os benefícios sociais pelas famílias se estabeleceu,
existindo, portanto, a inclusão nas redes de assistência. A seguir se discutirá as
adoções teóricas que permitiram a compreensão dos universos investigados,
primando pela apresentação do paradigma do dom (dar, receber e retribuir), para
posteriormente apresentar como as mediações são estratégias de inclusão de outras
famílias neste universo de reciprocidades. Além de considerar a importância dessas
aproximações e negociações como condição necessária à eficácia das ações
desenvolvidas por profissionais e voluntários.
3.2 Sobre o dar, o receber e o retribuir
A trajetória dos conceitos situados segundo a perspectiva antropológica
possibilita discutir a particularidade cultural como uma questão fundamental para a
compreensão das dinâmicas dos grupos populares. Considerar os modos de vida
destes sujeitos como hermético à interlocução com outros sujeitos e com outras
experiências de um lado, ou totalmente aberto à reprodução das determinações
estruturais, se apresenta como igualmente limitante para o reconhecimento de
outros modos de ser, estar e compreender o outro.
Na história da produção acadêmica brasileira, emprestaram-se diferentes
nomeações para categorizar os sujeitos situados na posição mais baixa da
hierarquia social bem como suas experiências: classes populares, classes
trabalhadoras urbanas ou trabalhadores pobres; as quais buscavam romper com
interpretações restritas sobre as formas de ver’ e ‘interpretar’ este ‘outro’ cidadão
brasileiro.
Se nos remetermos ao início deste capítulo quando se discute a proximidade
entre o conceito de classe e as imagens que ele nos remete, sobretudo reificadas
como luta de classes e alienação, compreende-se que a idéia implícita é a de que os
homens pouco ou nada podem contra as estruturas sociais que lhes pesariam sobre
as individualidades como sujeitos, ficando numa situação de reprodutores de uma
ordem injusta, onde nada questionam, nada reagem e nada possuem. Tudo lhes é
ilusão, a família, a religo, os vínculos servem como reprodução de algo do qual
74
não têm consciência, e, sendo estes, os trabalhadores, os que mais viriam a sofrer
com esta ordem, restaria apenas a luta e o confronto como opções para superação
das injustiças e desigualdades.
A teoria social em muitos casos, também desconfiando destas hipóteses
procurou encontrar respostas mediadas entre a ação dos indivíduos e a estrutura
social, meios caminhos entre um extremo e outro, e em alguns casos apontou a
importância dos vínculos familiares entre as classes populares como sinal de
superação desta ordem, como apresentou Alba Zaluar (2004) em seu estudo sobre
família, consciência e ideologia, em que ao analisar a bibliografia sobre o assunto
conclui que a valorização da família é um fenômeno recorrente em outras
sociedades, sendo, inclusive, independente da situação de industrialização em que
esta se encontre. Deve-se considerar, no entanto, que ao apresentar o texto a
própria autora solicita aos leitores que considerem o período histórico em que o
mesmo fora produzido, num contexto intelectual de forte influência marxista na
academia brasileira.
Nesta observação se percebe, tal como ocorreu em Dias Duarte (1984) que
as teorias elaboradas apresentaram, pouco tempo depois, sinais de insuficiência
para dar conta da diversidade cultural brasileira.
Os questionamentos que foram reproduzidos neste estudo, se tornaram
inteligíveis na medida em que se passou a questionar a relevância de certas
categorias. Pode-se perceber, a partir do contato com estas produções mais
recentes, que a discussão que se estava pautando dizia respeito a relação indivíduo
- sociedade, e remontava em grande medida as críticas destas determinações
conceituais. Ou devotamos tudo aos indivíduos em suas escolhas racionais, ou tudo
às estruturas com suas determinações simplistas. Neste ponto da reflexão, começa
a ficar mais evidente a discussão realizada em Dias Duarte em que o dualismo
individualismo holismo, não se apresentava mais do que uma tradução e releitura
deste paradoxo.
A superação deste esquema dual é organizado e proposto por Alain Caillé
(2002). Sua obra remonta este debate teórico, e apresenta uma terceira alternativa a
este problema que vem acompanhando as Ciências Sociais. Em uma análise
aprofundada, Caillé propõe uma releitura da obra de Marcel Mauss, procurando nela
elementos para a construção de um novo paradigma para esta área do
conhecimento, o que ele denominou de paradigma do dom.
75
A distância deste paradigma aos demais, tanto o holista quanto o
individualista, se localizaria tendo por referência a sua base a práxis - nos sentidos
que os sujeitos colocam em suas ações quando as realizam, seria, portanto, o
paradigma do dom, nos termos do autor, “uma verdadeira sociologia e filosofia da
práxis” (CAILLÉ, 2002). Alain Caillé acusa tanto holismo quanto individualismo de
partirem de suposições hipotéticas, e que justamente por esta razão estariam
irremediavelmente sujeitos às deficiências de explicações sobre esta mesma ação
social que se propõem explicar.
Partindo da análise da práxis, o que questiona o autor é justamente a idéia
utilitarista de que as sociedades se moveriam a partir de motivações egoístas e
calculadas a partir dos ganhos obtidos por aceitar participar e se envolver em
relações sociais, ou seja, acredita que a idéia que motivam as ações sociais são,
antes de tudo, antiutilitaristas, o que os motivaria, em suma, seria antes a
constituição do vínculo, dos laços sociais. É por este viés que o dom - dar, receber,
retribuir - é entendido pelo autor nas sociedades modernas, ou seja, é necessário
que exista a precedência do antiutilitário sobre o utilitário, sendo este o dom original.
Atentando para as contribuições do próprio Marcel Mauss (1974) no estudo
das sociedades de “tipo atrasado ou arcaico tem-se na sua descrição que essas
possuem um “regime de troca diferente do nosso”, revelando um importante esforço
de relativização e comparação da moral e economia das sociedades modernas.
Para o autor nas sociedades daquele tipo:
[...] veremos o mercado antes da instituição de mercadores e de sua
principal invenção, a moeda propriamente dita; como funcionava antes que
tivessem sido encontradas as formas, que podemos chamar de modernas
[...], do contrato e da venda, por um lado, e da moeda de título determinado,
por outro. [...] acreditamos ter encontrado aqui uma das rochas humanas
sobre as quais estão erigidas nossas sociedades (MAUSS, 1974).
A pertinência desta análise nas sociedades modernas se encontra nesta
possibilidade mesma de dar um novo sentido às ações individuais e coletivas,
recolocando-as em lugar estratégico diante de questões atualmente em voga como
a fragmentação. Nas palavras de Alain Caillé (2002), apropriando-se das
contribuições de Mauss:
76
Ao lado da circulação dos bens e serviços no mercado, ao lado da
circulação garantida pelo Estado sob a forma de redistribuição, há com
efeito um imenso continente socioeconômico mal percebido, no qual bens e
serviços transitam em primeira instancia através dos mecanismos de dom e
do contradom. Como se vê, a sociedade primeira, por uma parte, está ainda
viva. E, por outra, sob a forma do dom aos estrangeiros e aos
desconhecidos, a sociedade moderna origem a novas formas de dom
que vêm compensar a frieza e o caráter impessoal da socialidade
secundária, do mercado, do Estado e da ciência (CAILLÉ, 2002).
Por esta razão a utilização do paradigma do dom nas sociedades modernas
contribui para compreender que não é o mercado e o Estado que garantem a
coesão social, mas sim, as trocas recíprocas (dar, receber e retribuir) que se passam
anteriormente e que revestem aquelas de sentido.
Ainda na obra de Marcel Mauss (1974) apreende-se os significados destas
trocas e permutas entre grupos sociais:
Em primeiro lugar, não são indivíduos, e sim coletividades que se obrigam
mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes no contrato são
pessoas morais [...] Ademais, o que trocam não são exclusivamente bens e
riquezas, móveis e imóveis, coisas economicamente úteis. Trata-se, antes
de tudo, de gentilezas, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres,
crianças, danças, festas, feiras em que o mercado é apenas um dos
momentos e onde a circulação de riquezas constitui apenas um termo de
um contrato mais geral e muito mais permanente. Enfim, essas prestações
e contra-prestações são feitas de uma forma sobretudo voluntária, por
presentes, regalos, embora sejam, no fundo, rigorosamente obrigatórias
(MAUSS, 1974).
A constituição dos vínculos em sociedades se daria assim através deste jogo
de símbolos que os dons representam, ou seja, “é rivalizando em dons que os seres
humanos se ligam e constituem sociedade, trocando bens que não possuem um
valor utilitário mas simbólico” (CAILLÉ, 2002). Por esta perspectiva se esvazia a
idéia de sociedade como um organismo social que englobaria as experiências
individuais, mas antes, se presta a explicá-la a partir da necessidade de se constituir
o laço que une diferentes sujeitos em torno de algo, seja a amizade, o
reconhecimento e a confiança. Sentidos compartilhados não entre sujeitos
quaisquer, mas com quem se deseja estabelecer relações e constituir vínculos.
A fim de explicar como afinal os sujeitos se vinculam entre si, Alain Caillé
(2002) propõe a idéia de redes sociais motivando-se a partir do seu significado
enquanto aglutinador, e também substituto mais adequado ao conceito de
sociedade. Para este autor, rede “é o conjunto das pessoas com quem o ato de
77
manter relações de pessoa a pessoa, de amizade ou de camaradagem permite
conservar e esperar confiança e fidelidade”.
De acordo com esta concepção se esvazia a idéia utilitarista utilizada para a
interpretação das relações sociais, especialmente porque os sujeitos antes mesmo
de calcular o que e o quanto poderão trocar, ganhar ou perder se envolvem, acima
de tudo, pelo significado da relação em si, sendo o bem negociado uma instância
posterior que decorre do estabelecimento do vínculo, do laço de confiança que os
interligam em redes sociais.
O dar, o receber e o retribuir constituem-se assim na tríplice obrigação que
deve ser analisada por aqueles que se dispõem participar de determinadas relações
sociais. É pela demonstração do interesse recíproco em realizar trocas que os
sujeitos se aproximam e aprofundam os laços que os vincula. Nas palavras de
Mauss (1974):
A obrigação de dar não é menos importante; seu estudo poderia fazer
compreender como os homens se tornaram permutadores. [...] Recusar-se
a dar, deixar de convidar ou recusar-se a receber equivale a declarar
guerra; é recusar a aliança e a comunhão.
Percebendo-se as relações sociais por este ângulo, o qual permite visualizar
que os sujeitos estabelecem vínculos não aleatoriamente, mas sim pelas intenções
de aproximações e vínculos que desejam trocar entre si, cabe pensar que o
paradigma do dom, se presta a interpretação deste estudo, na medida em que
sugere que os sujeitos se dispõem a participar de algo a partir do momento em que
compreendem sua lógica e nela desejam inserir-se. Contudo, cabe reiterar que se
percebe claramente nas relações sociais entre universos desiguais que estas trocas
se orientam a partir de uma obrigação fundamental, a de retribuir as expectativas
que o outro tem, antes mesmo de receber o bem que se espera, como é o caso
neste estudo, da inclusão em um programa ou serviço da assistência.
Adotando-se esta perspectiva o conceito de mediação deve ser
redimensionado a fim de ser compreendido enquanto conseqüência possível das
relações de reciprocidade. As mediações devem ser interpretadas como resultados
bem sucedidos destas relações de reciprocidade, onde foram colocados em
circulação visitas domiciliares, encaminhamentos de profissionais e voluntários, e
retornos das famílias. E é quando se encontra firmemente constituído o vínculo
78
que se está apto a fazer negociações e ampliar as relações de reciprocidade que
são estendidas a outras famílias.
A dominância do digo do outro e a conseqüente possibilidade de realizar
negociações: o que falar, com quem falar e quando falar, habilitam certos sujeitos a
realizarem trânsitos entre universos sociais diferenciados, jogando também com a
própria inserção nas redes sociais, embora continuem como desiguais.
Esta discussão será retomada na etnografia a ser apresentada nos próximos
capítulos, tratando de problematizar as relações entre famílias e redes de
assistência, enfatizando as negociações e as inclusões nas mesmas na cidade de
Pelotas/RS.
79
4 AS FAMÍLIAS NAS REDES DE ASSISTÊNCIA
Programa Bolsa-Família, PETI (Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil), Agente Jovem, ASEF (Apoio Sócio Educativo às famílias), Programa Fome
Zero, ASEMA (Apoio Sócio Educativo em meio aberto), GAMP (Grupo Autônomo
das Mulheres de Pelotas), Banco de Alimentos Madre Tereza de Calcutá, Banco de
Leite, ritas, Abrigos, Juizado (da Infância e Juventude), Promotoria (da Infância e
Juventude), Conselho Tutelar, Delegacia da Mulher, LOAS (Lei Orgânica da
Assistência Social), ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Este universo das siglas, instituições, programas e serviços de assistência,
fazem parte de uma linguagem comum compartilhada por famílias, profissionais e
voluntários das redes de assistência, situados em duas vilas de grupos populares da
cidade de Pelotas / RS, o loteamento Dunas e a vila Pestano.
A intenção é de compreender este universo de acessos e inclusões nos
programas e serviços de assistência, a partir do ponto de vista das famílias,
problematizando as formas de acesso instituídas com o caráter de universalidade, a
partir das relações de reciprocidade (dar, receber e retribuir) que foram percebidas
nas observações etnográficas e nas entrevistas realizadas com famílias, voluntários
e profissionais das redes de assistência que constituíram o universo de pesquisa
deste estudo antropológico.
A partir da discussão realizada no capítulo anterior se partirá da premissa de
que antes dos acessos aos benefícios disponíveis nas redes de assistência é
necessário observar as regras estabelecidas de dar, receber e retribuir, que dizem
respeito ao estabelecimento de uma proximidade primeira com as expectativas de
profissionais, voluntários e famílias, e aqui é fundamental a análise do significado
80
dado aos encaminhamentos, que são uma espécie de trajetória que deve ser
seguida pelas famílias que desejam acessar as redes de assistência. Estes
encaminhamentos são dados durante as reuniões de grupos e, sobretudo, nos
atendimentos pessoais quando é o momento em que a família se coloca numa
atitude de disponibilidade em aceitar a tríplice obrigação de dar, receber e retribuir
(CAILLÉ, 2002).
4.1 As famílias acessando as redes de assistência
“Ah não, quando eu sei de alguma coisa eu to sempre correndo, né. Se
eu souber que ali estão dando alguma coisa, eu vou ali e tento ver se eu
vou conseguir me inscrever. Que antes quando não tinha filho muita coisa
tu não consegue, mas depois quando tu tem é mais cil”. (Berenice /
38 anos / Loteamento Dunas / Grupo de mulheres, Fome Zero, Bolsa
Família e Pastoral da Criança)
18
.
O exemplo contido neste relato torna mais evidente o quanto as redes de
assistência estão presentes na vida das famílias que acessam os recursos
disponíveis nas mesmas. O amplo domínio que as famílias possuem do que está
sendo ofertado e a manipulação com as informações que circulam na vizinhança são
algumas das formas de comunicação e divulgação dos lugares que devem ser
procurados para a resolução dos problemas.
Percebe-se muito claramente em todas as entrevistas, e isto pela própria
recorrência nas falas das informantes, uma circulação das informações, que é
sempre sabida através da vizinha, de uma conhecida, da mãe, da irmã, enfim da
rede de parentesco e/ou de vizinhança na qual está inserida a família. Outra
característica diz respeito ao gênero; o sempre as mulheres que ficam sabendo
dos lugares onde se informar e são elas que acionam as outras mulheres, são elas
as responsáveis pelas trocas de saberes sobre a assistência.
18
A referência apresentada neste capítulo informará além do nome e idade dos interlocutores, os
programas e serviços da assistência que são por ela acionados, elucidando a diversidade de formas
de inserção que estas famílias possuem.
81
As mulheres, quando assumem a maternidade e quase que na totalidade
dos casos, abandonam as tarefas que eram realizadas anteriormente, dedicando-se
exclusivamente às atividades relativas aos cuidados da casa e dos filhos. A
experiência remete muitas vezes à assunção de um novo papel pelas mulheres, que
corresponde ao valor das crianças e o significado do que é ser mãe possui neste
contexto. Um caso exemplar é o da dona Dirlene, que embora com problemas sérios
de saúde foge do hospital para retomar suas funções junto aos filhos: “Vou te contar
agora uma coisa, é segredo, fugi do hospital! [...] Eu pensava ‘Eu tenho que fazer
comida pros meus filhos, eu tenho que recolher a roupa do arame’. [...] Cheguei em
casa, fiz a janta, vi meus filhos” (D. Dirlene / 37 anos / Loteamento Dunas /
Programa Bolsa Família, Fome Zero, ASEMA, Agente Jovem).
A estratégia como o abandono dos empregos regulares pelas faxinas
ocasionais, que permitam uma maior vigilância sobre os filhos e conseqüentemente
um tempo maior dedicados às crianças e às responsabilidades da casa, faz parte de
um universo familiar em grupos populares. Nesta situação encontra-se Berenice,
que relatou o seguinte: “Eu sempre trabalhei, né. Agora, que eu parei um pouco de
trabalhar [...] eu tive que parar, porque eu trabalhava de faxina, né. [...] Agora eu
faço uma vez por semana numa senhora [...] que foi a minha irmã que me
arrumou”. (Berenice / 38 anos / Programa Bolsa Família / Fome Zero / Grupo de
Mulheres / Pastoral da Criança / Escola de Educação Infantil).
Situando os estudos sobre as dinâmicas dos grupos populares a cerca dos
significados da maternidade, percebem-se certos elementos que servem de apoio à
discussão, sobretudo os argumentos desenvolvidos por Ceres Victora (1992),
Cláudia Fonseca (2000) e Heloisa Paim (1998). Nestes estudos, a dinâmica das
relações de gênero nas classes populares (VICTORA, 1992) é um elemento
norteador para a compreensão do significado do ser mãe, fundamentalmente pelas
vivências de papéis sociais distintos: a do marido enquanto provedor, e da mulher,
circunscrita ao âmbito doméstico, ocupando-se da casa e dos cuidados dos filhos.
Para a autora o cumprimento destas expectativas é que garante “a constituição e a
manutenção de uma relação conjugal (VICTORA, 1992).
Neste universo dos grupos populares, Claudia Fonseca (2000), em seu
estudo sobre relações de gênero e violência em grupos populares na cidade de
Porto Alegre / RS, advoga em favor da compreensão destas práticas partindo-se de
82
um esquema conceitual onde a representação da honra masculina é negociada
entre homens e mulheres. Para a pesquisadora:
A honra de um homem depende da virtude de sua mulher. Portanto,
enquanto os homens, jovens e velhos, casados ou não, vivem passeando
pelas ruas da vila, vão desacompanhados aos bailes e levam em geral uma
vida social intensa, as mulheres casadas ficam teoricamente em casa. Não
exatamente enclausuradas (FONSECA, 2000).
A honra masculina torna-se, portanto, negociável, porque manipulável pelas
mulheres, e na prática isto se dá quando, por exemplo, as mulheres decidem
trabalhar. Em situações desta natureza, a vergonha produzida publicamente para o
homem, informa que ele, enquanto provedor, não cumpriu com sua principal
obrigação. Além disso, o homem cuja companheira exerça permanentemente uma
atividade remunerada desobriga-se desta função, correndo-se o risco de viver à
custa do trabalho de sua companheira.
É neste contexto que o trabalho fora de casa para as mulheres não se
constitui como um horizonte desejável, contudo, se houver necessidade de o fazer
as condições são sempre a de ‘ajudar’, e não de constituir-se numa atividade
permanente ou integral.
Por outro lado, a maternidade neste universo social é “condição inerente e
necessária para a sua completa realização” (PAIM, 2008), sobretudo advindo da
passagem a um novo status dentro do seu grupo social, a de “mulher-mãe”
(VICTORA, 1992). As competências desejadas nas mulheres, são desde muito cedo
repassados às meninas mais jovens e apreendidas como um valor fundamental para
a realização da mulher neste universo social. As meninas são inseridas por suas
mães na realização das atividades da casa e envolvidas, geralmente, nos cuidados
com os irmãos menores. Na família de Ana Lúcia esta situação é explicitamente
colocada, na qual ela avalia como uma das melhores qualidades de sua filha mais
velha:
“E essa ai agora, eu coloquei ela a lavar a roupa dela. Esses dias ela
disse assim, mãe agora tu não mais bola. Ai eu disse, não que um
dia tu vai casar, tu vai ter a tua casa, ela sabe. Ela sabe fazer comida,
ela sabe fazer pão, ela sabe fazer tudo, que a minha sobrinha ensinou
ela. Tu pode chegar, dá uma criança pra ela e uma casa, pode dar a
chave pra ela e tu sair, quando chega, tá a criança com o banho tomado e
83
a casa limpa. [...] Ela faz tudo”. (Ana Lúcia / 31 anos / Programa Bolsa
Família / Fome Zero)
No mesmo sentido, o caso de Guilherme, filho de D. Dirlene, evoca a
construção das assimetrias nas relações de gênero. O menino de nove anos é
incluído, embora ocasionalmente, na execução das tarefas que são realizadas pelos
seus pais: “As vezes eles pegam, eles mesmos sucateam. Esse mesmo
(apontando para o menino) até capinar ele capina”. O que é motivo para ser
elogiado, sobretudo pelo pai, o S. Ari: “Ele faz o servicinho dele [...] Ele não se
encolhe”.
A percepção do valor da maternidade nos grupos populares, além de
conferir um novo status às mulheres, é a condição que as motivam e as permitem
buscar os programas e serviços das redes de assistência. É também por esta razão
que tem justificada sua inserção junto às redes de vizinhança, que se constituem
enquanto facilitadoras para o acesso aos benefícios dos quais necessitam.
A compreensão da lógica que motiva as mulheres a trilharem caminhos,
percorrendo instituições religiosas, estatais, ONG’s, entre outras tantas, torna-se
inteligível quando se observa mais profundamente o valor das crianças no universo
dos grupos populares, e conseqüentemente o papel que a mulher desempenha para
a conexão das famílias nas redes de assistência. A partir da apresentação de dois
relatos se tornará facilitada a compreensão do que se deseja defender.
O primeiro caso remete-se ao da família de Ana Lúcia; ela possui quatro
filhos, sendo três de sua primeira união, e o mais novo fruto de sua relação atual.
Em decorrência do rompimento com o primeiro marido, Ana cia, retornou à casa
dos pais, levando consigo seus três filhos. No entanto, quando ela conheceu o
marido atual e decidiu morar com este companheiro, seus três filhos seguiram na
casa de sua mãe, e ela então passou a residir separadamente das crianças, sem
contudo romper os laços familiares. Na sua história de vida Ana Lúcia credita à sua
mãe, e portanto a avó das crianças, o seguinte papel: “Ela foi mãe emprestada,
porque a minha mãe que criou eles desde pequenininho”.
Na continuidade dos seus relatos, Ana Lúcia apresenta na prática o
significado e o valor das crianças para as relações familiares, relação esta selada
pela cumplicidade das mulheres no cuidado com as crianças. Neste fato, sua mãe
no leito de morte a chama separadamente, para orientá-la exclusivamente no
84
cuidado e na garantia do bem-estar das crianças que passa agora a ser sua
responsabilidade:
“Aí ela falou comigo, pediu pra mim assumir eles, e nunca abandonar eles
e não dar pra ninguém. [...] Aí ela falou onde tava o cartão do dinheiro, ela
falou tudinho. [...] Ela disse que nunca era pra abandonar eles, fosse o
que passasse, que se eu tivesse que assumir eles pra ficar com eles [...]
não era pra deixar nem irmão, ninguém judiar deles”. (Ana Lúcia / 31 anos
/ Programa Bolsa Família / Fome Zero).
Na família de Elaine, que é mãe de três filhos a situação se passa de
maneira semelhante. A partir da morte de sua mãe, ela toma para si a
responsabilidade com as duas filhas do seu irmão, as quais eram criadas pela sua
mãe. No entendimento de Elaine a solidariedade com o irmão impõe-se a partir do
julgamento do comportamento de sua ex-cunhada, referido a partir de sua
incapacidade moral de cuidar das crianças “a mãe delas é do mundo”, e esta relação
é reforçada pelo valor e apreço pelas crianças que fora repassado pela mãe de
Elaine, ensinamentos que ela reconhece como sinais de uma boa educação: “Pra
falar a verdade, a finada minha mãe também me alertou muito. Ela sempre dizia,
filha, se tiver que pedir, tu pede, só tu nunca pega nada que é dos outros. Eu fui bem
educada, no caso.” Por seu lado, Elaine também expressa a vontade e a
voluntariedade com que assumiu criar as sobrinhas, reforçando os laços de
consangüinidade, também ela beneficia-se dos privilégios daí advindos: “Eu não
tenho filha mulher então eu adoto as dos outros” (Elaine / 22 anos / Vila Pestano /
Programa Bolsa Família / Fome Zero / Habitação Popular).
Nestes dois casos apresentados revela-se mais uma vez a necessidade de
discussão sobre as dinâmicas dos modos de vida dos grupos populares. Em
especial nestas situações são evidenciadas a importância das crianças nestes
arranjos familiares e a pertinência das relações de consangüinidade em detrimento
dos laços conjugais.
A discussão de ambos os aspectos são apresentados por Cláudia Fonseca
em suas obras “Caminhos da Adoção” (1995) e “Família, fofoca e honra” (2000). Em
ambos os estudos são discutidos os modos de vida dos grupos populares, a partir
de certos conceitos chaves os quais serão abordados a partir da análise dos casos
encontrados em campo.
85
Partindo-se dos relatos de Ana Lúcia e Elaine, se percebe que as
experiências envolvendo as crianças são muito próximas. Em ambas, tanto as
decisões de colocar as crianças para serem criadas pela própria mãe, quanto aceitar
criar as sobrinhas, filhas do irmão, informam o quanto estas crianças o queridas e
desejadas nos universos populares, reforçando a importância dos laços de sangue,
onde este se apresenta como um dos elementos da “estrutura básica da
organização do parentesco” nestes grupos (FONSECA, 1995).
A importância da família extensa constitui-se num outro elemento que
contribui para o compartilhamento dos cuidados dirigidos às crianças. O “apoio
moral” (FONSECA, 1995) que Elaine se dispôs a dar ao irmão, é compreendido
como uma forma de reciprocidade entre irmãos (FONSECA, 2000), em que os laços
de consangüinidade são reiterados em detrimento daqueles laços conjugais, e vistos
também como moedas de troca, quando Elaine recebe de presente do irmão o
terreno e o chalé onde mora atualmente, com os filhos, as sobrinhas e o marido.
Na literatura sobre grupos populares é acentuada a importância das
mulheres como apoiadoras dos irmãos e filhos em situações na qual a habilidade
dos homens não se estende, como por exemplo, ao cuidado dos filhos quando em
casos de rompimento das relações conjugais (FONSECA, 2000), porque as tarefas
desta natureza são assumidas por suas consangüíneas.
Em continuidade com esta argumentação do valor das crianças e das
responsabilidades das mulheres com o bem-estar das mesmas, encontram-se
justificativas para as mais variadas buscas de recursos para a família, atitudes que
incluem desde esperar longas horas para obter uma assinatura, um
encaminhamento, uma ordem, um carimbo, longas distâncias a pé, e até mesmo o
enfrentamento de médicos, como o caso de dona Dirlene conforme relatado, e
também o de Berenice, citado na abertura do item.
Assim, é que estas mulheres se apropriam de certos meios para a inclusão
em programas e serviços quando estes não se encontram ofertados de forma
imediata, ou quando o vivenciados por outras mulheres da família ou da
vizinhança. É como relata Dirlene, que ao saber de um programa pelo rádio, tomou
todos os documentos que possuía da família, e foi inscrever-se no Programa Bolsa
Escola, para ela o que importa é arriscar, se virá ou não, trata-se de um segundo
86
passo: “Esse negócio do Bolsa Escola
19
eu escutei no rádio, ah, porque tu vai e
não vai conseguir. Eu digo, não, eu vou e vou arriscar né, pra tudo tem que
arriscar”.
Os cuidados que dispensa para os filhos e para a casa, encontra meio eficaz
de se ampliar a partir da inserção nas redes de assistência, que ocorrem em boa
medida, através das conversas compartilhadas entre vizinhas e parentas. A garantia
de melhorias nas condições do que é oferecido aos filhos é viabilizado através da
inserção em redes nas quais as mulheres são percebidas como sujeitos centrais. E
não somente entre si são percebidas como artífices principais que movimentam as
redes de assistência, mas a são também pelo Estado, pela situação estratégica, a
qual é dada a partir das exigências dos programas e serviços dos quais participam,
porque são elas as protagonistas, as titulares responsáveis pelos cadastros e pelos
recebimentos dos benefícios. Tem-se como exemplo, o Programa Bolsa Família, em
que cumprem o papel de titulares dos benefícios, prioritariamente, são os seus
nomes que ficam registrados nos cartões emitidos pelo Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, alem, é claro, de terem nos cadastros
únicos seus nomes como as principais responsáveis pelos cuidados com os filhos.
Neste contexto de valorização da mulher-mãe, seja através do
pertencimento vivenciado em grupos populares, seja por este reconhecimento pelo
Estado, estas mulheres reforçam suas habilidades e suas funções dentro das
famílias, por dois modos: primeiro por não romperem com o caráter de contribuição e
‘ajuda’ que lhes cabe na relação conjugal a partir do recebimento dos benefícios, e o
segundo, pelo reforço atribuído pelo Estado à sua condição mais plena, a de ser
mãe e esposa.
A participação na rede de vizinhança é fundamental para se compreender as
formas como o acionados os programas e serviços da assistência. Em visitas
realizadas durante o trabalho de campo, foi possível perceber que a solidariedade
entre as mulheres é um indício de que o acesso será facilitado, porque vivenciando
a experiência construída por outras mulheres elas terão a possibilidade de uma
maneira mais rápida de obter os benefícios de que precisam. Assim, a inclusão
nestas redes se faz em muitos casos através de indicações, feitas, sobretudo, com
base na experiência prévia de uma conhecida, de uma vizinha ou de uma parenta.
19
Atualmente o Bolsa Escola é um programa do governo federal que foi incorporado ao Programa
Bolsa Família.
87
Este é o caso, registrado em diário de campo, logo no início do trabalho de campo,
no qual a mulher que receberia a visita da assistente social, prevendo a presença
de uma profissional autorizada para o preenchimento do cadastro do programa
Bolsa-Família, reúne a vizinha, a sogra e a cunhada. Naquela ocasião a sogra de
Solange realiza a função de mediadora, especialmente pelos arranjos e
proximidades que procura estabelecer entre a assistente social e as outras mulheres
que estavam. A sogra de Solange assume essa função por já integrar as redes de
assistência e por conhecer os códigos necessários para a inclusão nos programas e
serviços, além, é claro, de possuir uma proximidade com a assistente social,
característica que as demais mulheres ainda não possuem:
“Entramos na casa, Solange estava tomando chimarrão com sua sogra,
sua cunhada e uma vizinha. Solange e seu marido estão desempregados.
Ambos moram nesta casa com a filha de cinco anos. Solange e seu
companheiro são catadores de materiais recicláveis. Eles recebem,
confirmado pela própria sogra, ajuda dos pais do seu companheiro, onde
ela disse jantar e fazer algumas refeições. Disse-nos que aguardava a
visita já fazia uma semana e que em razão disso seu marido estava
fazendo o serviço sozinho. [...] Naquela ocasião a sogra de Solange
interpela a assistente social, para que orientações de como a filha
possa também receber os recursos do Bolsa Família. [...] A assistente
social agendou visita para a próxima quinta-feira para conhecer a casa e
recolher os dados de Marília (cunhada de Solange)”. (Registro Diário de
Campo / 11 de maio de 2007).
Percebe-se, também, que as indicações aos programas e serviços
disponíveis na rede se constituem numa prática comum entre as mulheres; elas
dialogam entre si apresentando pistas de certos locais e de pessoas a quem
recorrer. Vários foram os relatos de mulheres que se iniciaram nestes espaços por
indicações que tiveram princípio com a parentela ou com vizinhança. Logo depois de
constituído o vínculo, o sujeito que indicou não se faz mais necessário para
possibilitar a aproximação com psicólogas, assistentes sociais, agentes religiosos e
outros tantos.
As referências a estas redes de contatos, se davam de maneira vaga muitas
vezes, cujas expressões compartilhadas por Elaine (22 anos / Vila Pestano /
Programa Bolsa Família / Fome Zero / Habitação Popular) “ai também, começa de
fofoca, de vizinho conversando”, e amesmo a de S. Gregório, responsável pelo
Fome Zero numa comunidade da vila Pestano: “Isso se espalha que nem pólvora”,
88
permitem uma aproximação de sentido com as reflexões desenvolvidas por Cláudia
Fonseca (2000), onde apresenta o significado da fofoca em grupos populares. Para
a autora a discussão da fofoca, para o grupo em que foi realizada a pesquisa,
informa sua relevância para a consolidação das redes sociais, exclusivamente para
as mulheres. Na situação de sua pesquisa, a autora compreende a fofoca como um
“relato de fatos reais ou imaginários sobre o comportamento alheio”, cujos sujeitos
envolvidos encontram-se em situação de igualdade, ou seja, por envolver pessoas
de determinado universo social, a fofoca acaba por consolidar de certa maneira a
própria identidade comunitária. Embora a fofoca seja apresentada por Cláudia
Fonseca (2000) como um meio de “informar sobre a reputação dos moradores de
um local”, no contexto das relações de mediações entre as famílias e as redes de
assistência, se deve afastar desta conotação, sem contudo abandoná-la,
apropriando-se, assim, de outras características mais pertinentes a este estudo,
como a representação que possui para aqueles que dela participam, significando
assim a integração destes sujeitos em um grupo determinado; ou também sua
pertinência “em termos de comunicação, sobretudo entre analfabetos; é assim que
se descobre o novo endereço de um parente e o paradeiro de velhos amigos”
(FONSECA, 2000) e inclusive o que, como e com quem falar para ter garantido o
acesso a certos programas e serviços das redes de assistência.
Assim, a troca de informações deverá ser compreendida como a forma
socialmente aceita e compartilhada pelas mulheres quando assumem o seu novo
status de mulher-mãe, com a intenção de conhecer e de se fazerem conhecidas;
acessam as redes sociais (de parentela e vizinhança) as quais lhes proporcionam
ampliar contatos estratégicos já acionados por outras mulheres.
No universo investigado, a troca de informações é a forma recorrente de
entrada destes sujeitos nas redes de assistência, e o caso de Elaine serve como
exemplo do quanto estas informações que são trocadas têm poder de eficácia,
principalmente no caso dela que acionou duas redes, uma mais ampla, de âmbito
municipal, a qual está sediada no Mapel
20
, no centro da cidade, e uma outra, mais
restrita, mas não menos importante realizada por uma igreja local, que atua na
20
Atualmente a política de assistência social do município de Pelotas encontra-se organizada a partir
das diretrizes nacionais, mas causa espanto a permanência da nomeação dada até meados dos anos
1990, conhecida como MAPEL Movimento Assistencial de Pelotas. Neste período popularizou-se
uma política de assistência centrada fortemente nas figuras das crianças e idosos. Em todos os casos
os informantes referiam-se ao termo MAPEL e não Secretaria Municipal de Assistência Social.
89
distribuição das sacolas do Fome Zero. Como relatou Elaine: “A finada minha mãe
disse pra mim, assim que tiver uma vaga (sacolas) eu te aviso, a mãe me
avisou, eles tão botando gente lá” (Elaine / 22 anos / Vila Pestano / Programa Bolsa
Família / Fome Zero / Habitação Popular. Ao mesmo tempo ela acionou uma rede de
assistência mais rápida, menos exigente e para situações de emergência,
estruturada no município em que o atendimento das demandas é imediato, porém
não considerado eficaz pela distância do local de moradia, e também por se
caracterizar como uma ajuda ocasional: “Uma ir da minha cunhada, essas
pessoas que ganham coisa lá, explicam pra assistente social a situação deles. E aí
eu fui lá”.
As mulheres que circulam mais facilmente entre as redes de assistência
apresentam características que as distinguem das demais, são as que repassam as
informações àquelas que se encontram mais distantes institucionalmente dos locais
onde são feitos os encaminhamentos. Assim, elas se constituem no elo que
aproxima muitas mulheres dos programas e serviços disponíveis às famílias. As
famílias que se encontram nesta situação são, por exemplo, a de dona Dirlene e a
de Lucimar. Estas mulheres, embora apresentem trajetórias de vida e institucionais
diferentes, se aproximam neste estudo pela influência que tem perante as demais
mulheres e as redes de assistência.
O caso de dona Dirlene (37 anos / Loteamento Dunas / Programa Bolsa
Família, Fome Zero, ASEMA, Agente Jovem) pode ser descrito como de uma mulher
que diante de experiências diversas com os poderes instituídos sabe como resolver
uma situação quando seus interesses estão em jogo. Durante a entrevista ela
relatou para cada filho uma história de embates com médicos e assistentes sociais,
numa postura inquietante e desafiadora quando se trata de defender sua família.
Num dos seus relatos ela conta quando seu filho mais velho, com leptospirose e
hospitalizado, encontrava-se à beira da morte, e graças à sua atuação como mãe,
ela conseguiu trazer o filho de volta à vida. Ela relata:
“A doutora Natália me empurrou assim, e eu peguei uma faquinha de
serrinha, e disse ‘Não, eu vou te calçar aqui enquanto tu não me contar o
que acontecendo’. (No último horário de visita da noite ela retorna ao
hospital) ... nove e meia e eu bem paradinha, e eles tudo apavorado:
‘Ó a Dirlene ai’. To aqui, vim ver o meu filho, e como é que ela tá?
‘Ah, a senhora pode entrar’, me trouxeram até cafezinho. Eu digo, viu
como é bom encostar a faca em vocês?”
90
Dona Dirlene é um caso recorrente nas histórias comentadas pelas
assistentes sociais e psicólogas, ela exerce influência sobre estas profissionais, mas
por outro lado se deixa também influenciar por elas, e comenta inclusive sobre a
tranqüilidade que sente ao chegar ‘nervosa’ e receber os conselhos que a acalmam:
“Elas me conhecem, nem tempo de brigar, eu chego e elas me acalmam.
Aquilo ali é como que numa casa, porque tu chega assim numa angústia e sai dali
aliviado”.
o caso de Lucimar (46 anos / Vila Pestano / Programa Bolsa Família /
Fome Zero / Grupo de Mulheres / Grupo de Artesanato / Alcoólicos Anônimos) é
peculiar pelo seu histórico de alcoolismo. Ela se insere nas redes de assistência a
partir de sua freqüência junto ao Posto de Saúde para tratamentos frustrados contra
o álcool. Ela conta que fora visitada inúmeras vezes pelas assistentes sociais, que
conhece os médicos do posto, e que não gosta de consultar com os residentes
porque eles ficam pouco tempo e vão embora”. Lucimar inicia a participar mais
ativamente da vida institucional do posto a partir do momento em opta pelo
afastamento definitivo do álcool, cujo tratamento definido por um psicólogo, em parte
deveria ser feito através de envolvimento em atividades diversas. Ela relata que em
razão de não encontrar espaço nas instituições que deveriam ser as responsáveis
pelo atendimento, ela passa a acionar uma outra rede, a do circuito da escola e do
posto de saúde: “Foi aonde eu entrei pro grupo. eu entrei pro grupo (Alcoólicos
Anônimos que é realizado no espaço da escola municipal do local) e entrei pra
igreja, fiz toda uma redoma. Me curei da bebida, a partir de hoje não bebo mais”.
Lucimar começa a atentar para a vida institucional do Posto de Saúde, e, por
isso, passa a compreender melhor alguns aspectos que os demais usuários o
podem perceber pela distância que estes têm da vivência cotidiana:
“Até eu era uma que reclamava muito dele (do atendente) também, mas
tendo acesso ali como eu tenho, como eu já tenho acesso ali com eles, eu
sei não adianta. As vezes tem algum conhecido na fila, é sempre ai
dentro tem prioridade. Não tenho! É a mesma coisa, se tem que ficar na
fila eu fico, as vezes eles me dão uma colher de chá, mas eu digo não!”.
Neste caso, Lucimar começou a desempenhar um papel de mediadora entre
o posto de saúde e a comunidade. No posto o desenvolvidas diversas atividades
ligadas às mulheres e famílias, onde Lucimar, a partir de sua participação e
91
freqüência constante, divulgava cursos e grupos ali desenvolvidos para outras
mulheres de sua rede social. Assim, através da sua insistência e proximidade junto
às assistentes sociais, exerce influência suficiente para modificar certas propostas
de atividades na comunidade que eram exclusivamente direcionadas às mães de
crianças com idade entre zero e seis anos e beneficiárias do Programa Bolsa
Família. Ela mesma relata que:
“[...] agora que veio a Juliana (nova assistente social da UBS), e nós
falando ah, não tem curso, não ela botou de zero a seis anos o curso, eu
disse, não de zero a seis anos pra mim não dá, eu não tenho filho com
seis anos, mas me encaixa, eu tenho até o papel que a doutora Maura me
deu, pra fazer encaminhamento pro CAPS
21
. Ah, mas se eu te botar
Lucimar, junto com as outras..., deixa assim. Acabou que botou, botou,
botou, tinha uma listagem de mulher, chegou no fim não foi a metade,
ela teve que botar essa turma toda, e eu comecei a chamar as mulheres,
vem que dá. [...] agora tu pode entrar, então. Foi onde ela me
encaixou”.
A partir da análise destes dois casos pontuais de inserções nas redes de
assistência devem-se apresentar algumas considerações a cerca dos significados
presentes em ambas as situações.
Inicialmente, faz-se necessário considerar as diferentes estratégias de
inserção junto às redes de assistência que estas mulheres acionaram. O caso de
Dirlene, pelas narrativas de enfrentamentos com médicos e assistentes sociais,
demarcam as redes nas quais o é possível estabelecer relações de mediações.
As ameaças dirigidas a estes sujeitos informam os rompimentos destas relações de
proximidade que porventura poderiam existir, demarcando, assim, os limites no
estabelecimento destas aproximações. Mas o caso de D. Dirlene é, sobretudo,
curioso; sua aproximação de certos profissionais e voluntários e as alianças com
estes estabelecidas contrasta com os relatos anteriores. Embora vivenciando esta
situação paradoxal, D. Dirlene consegue beneficiar-se dos recursos que deseja, e é
muito respeitada e tolerada em suas exigências.
na situação relatada por Lucimar, a forma de acessar os programas e
serviços das redes de assistência existe, em princípio, a partir de suas próprias
necessidades. o possuindo mais filhos pequenos decide procurar os programas e
21
A sigla CAPS literalmente significa Centro de Atenção Psico Social, constitui-se num espaço de
atendimento e encaminhamento de pessoas com problemas psicológicos. São unidades de
atendimento descentralizadas localizadas em diferentes regiões administrativas da cidade de Pelotas.
92
serviços das redes de assistência para si mesma, e o atinge através da participação
lenta e gradual, da constituição de vínculos com assistentes sociais e a equipe de
profissionais da Unidade de Saúde e da escola onde suas filhas estudam. Lucimar
recorda as várias vezes, em que, ao levar a filha mais moça até a escola, reparava
em todos os cartazes e avisos que haviam espalhados pela escola, na intenção de
encontrar algo no qual pudesse participar para ajudá-la a afastar-se da bebida.
Lucimar inicia seu circuito nas instituições a partir das consultas ao posto de saúde,
através das quais lentamente vai inserindo-se nos atendimentos que procurava.
Atualmente, mais estabilizada em relação ao problema inicial, procura consolidar,
em parceria com profissionais e demais mulheres, os grupos nos quais participa,
sempre convidando outras mulheres, incentivando e sugerindo idéias que possam
ser realizadas pelos grupos.
Em suma, as estratégias utilizadas por estas mulheres para consolidarem as
relações de mediações, encontram-se primeiramente, em níveis diferentes, ou seja,
no caso de D. Dirlene supõe que ela mesma passa a influenciar profissionais e
voluntários, lançando o dos seus conhecimentos e reunindo-os com suas
características de mulher valente (FONSECA, 2000). E no caso de Lucimar, sua
atitude de escuta e atenção às orientações de profissionais e voluntários, a coloca
numa situação estratégica, supondo, assim, uma completa assimilação dos valores
culturais de outro grupo social. Na realidade, o que importa perceber é que as
relações nem sempre se dão de maneira tranqüila, nem tampouco de maneira
unilateral, ambas influenciam-se, e entram em disputas, o que não significa
submissão ou adoção de uma lógica estranha, que se apresente como conversão ou
uma forma de fundir-se à lógica do outro; as diferenças não desaparecem.
4.2 As relações de proximidade, ou o que as famílias esperam das redes de
assistência
As famílias que desejam acessar os recursos das redes de assistência
sabem que necessitam apresentar determinadas habilidades que as qualifiquem
como
aptas para tal ingresso. Uma das situações previstas é o cumprimento de
93
expectativas e exigências que são impostas para a inclusão das famílias. Estas
exigências, que serão apresentadas e discutidas no capítulo IV, se dão em torno do
preenchimento de formulários, da recepção em casa dos profissionais responsáveis
pela seleção, e até mesmo da participação de grupos religiosos e da submissão às
normas de funcionamento dos mesmos, que incluem algumas vezes a limpeza dos
ambientes onde ocorrem os atendimentos ou a participação em cultos e orações.
Observando-se preliminarmente e com certa distância se pode supor que as
famílias se situam num pólo passivo, de submissão a regras estranhas ao seu
universo social, e que pelas condições financeiras precárias, devem sujeitar-se para
terem facilitada sua inclusão em determinados programas e serviços. No entanto,
esta visão das famílias pode ser relativizada, e isto sefeito a partir do ponto de
vista das famílias sobre os profissionais e as redes de assistência. O que se
pretende problematizar é a concepção que advoga em favor da submissão destes
grupos populares às estruturas sociais, a partir dos sentidos que atribuem a este
universo de acessos e inclusões, mas antes perceber as relações de reciprocidade
que estabelecem entre si e com as redes de assistência explícitas no dar, receber e
retribuir.
Em diversos momentos dos atendimentos
22
às famílias, realizados em
diferentes espaços e em ambas as regiões administrativas da pesquisa de campo,
sempre havia aquelas famílias que ocupavam mais o tempo dos profissionais,
sobretudo dos assistentes sociais, e o faziam em grande parte pelo interesse
advindo dos questionamentos de um assistente social ou psicólogo. Nestes
encontros, algumas atitudes percebidas em campo causavam-me inclusive
estranhamento, pela intimidade demonstrada, o que percebi posteriormente como
sendo uma prática comum entre elas, pois se constituía numa expressão desta
proximidade, do vínculo estabelecido entre ambas.
As visitas das assistentes sociais e psicólogas às casas destas famílias
devem ser consideradas também um momento de intensa aproximação entre
ambas. Situações exemplares foram as duas visitas domiciliares acompanhadas
junto às assistentes sociais no Loteamento Dunas. Num destes casos, Maristela,
uma das assistentes sociais, domina detalhes do caso que acompanha, não
necessitando de fichas com endereço ou qualquer outra referência. Seu interesse
22
Este termo, que informa as formas de atendimento dirigidas às famílias por profissionais e
voluntários, será apresentado mais apropriadamente no capítulo seguinte.
94
em procurar a família se dá com o objetivo de encaminhá-la para uma segunda
instituição, sendo o desfecho do encontro mais uma evidência da importância da
constituição dos laços entre ambas:
“Já na saída, Maristela perguntou à Kátia: ‘E, sobre aquele nosso
assunto’. Ela respondeu que estava calmo e que não tinha ido mais. [...]
Conforme caminhávamos em direção ao CRAS, Daiane foi contando a
situação de Kátia, uma moça jovem, que é soro–positivo, é alcoólatra e
que muitas vezes deixava sua filha sozinha à noite e saía para beber, e
que tem um companheiro que é presidiário”. (Registro Diário de Campo /
08 de maio de 2007).
Num outro caso, também, de forma mais intensa, o reconhecimento e a
retribuição por parte das famílias do esforço que é verificado no trabalho dos
voluntários. Este é o caso de uma das muitas voluntárias da comunidade católica do
loteamento Dunas. Juliete é uma senhora reconhecida pelas mulheres que são por
ela atendidas semanalmente no grupo de mulheres, sobretudo pelo empenho e
dedicação verificados em sua atuação. Ela é referida em alguns relatos como uma
mulher que, embora abatida por problemas de saúde, cumpre fielmente aquilo que
se propõe, mas que também vai além das expectativas:
“Eu fico impressionada com ela, com o que ela faz. Ela faz pão, ela vende
desinfetante. Ela se acorda cedo, e cedo tu ela com a muletinha, e
vai pro centro de a e vem. Eu digo, mas eu não faço a metade do que
essa mulher faz. E se vira”. (Viviane / 23 anos / Loteamento Dunas /
Programa Bolsa Família / Fome Zero / Grupo de Mulheres / Pastoral da
Criança / Banco de Alimentos Me. Tereza de Calcutá).
E, uma outra informante afirmando sua profunda admiração e proximidade
com Juliete, revela em sua entrevista ter sofrido mudanças em sua maneira de ver e
sentir os problemas dos outros, transformações estas que Berenice percebeu a
partir da sua participação no grupo de mulheres. Além disso, ela também reconhece
a pessoa de Juliete como uma guerreira que se doa pelos propósitos dos ‘outros’:
“(A Juliete) é 100%. Ela não mede esforços para ajudar a gente. E ela vai em tudo
que é reunião, sempre procurando recurso para ajudar a própria comunidade, pra
beneficiar nós, também” (Berenice / 38 anos / Grupo de Mulheres / Bolsa Família /
Fome Zero / Pastoral da Criança).
95
Os trechos apresentados acima partem todos de uma consideração e
entendimento tácito sobre as famílias que participaram desta pesquisa, a da
necessidade de constituição de relações de aproximação e familiaridade (CAILLÉ,
2002), antes mesmo do acesso ou inclusão em determinado programa ou serviço.
Nestes relatos as diferentes e variadas formas de manifestar estas aproximações
reconstroem o sentido e a lógica investida pelas famílias quando desejam inserir-se
nas redes de assistência. Os diversos eventos que contribuem para aproximar as
famílias, profissionais e voluntários, como as visitas, os cadastros e os
acompanhamentos em geral, possibilitam preencher a distância dada no primeiro
contato, ou então selá-la por definitivo.
Este universo de significados que confere sentido a tais investimentos
familiares, desconstrói argumentos do tipo economicista e utilitarista, onde razões de
ordem financeira se constituiriam na motivação primeira para as aproximações das
famílias junto aos programas e serviços das redes de assistência. Argumenta-se,
neste estudo, que as famílias de grupos populares não podem ser compreendidas a
partir deste determinismo econômico, cujo viés da análise se pelo princípio de
privação econômica. No entanto, deve-se ressaltar que é igualmente incorreto
interpretar estes movimentos em torno das redes de assistência desconectados do
seu aspecto financeiro, mas também estes não podem ser interpretados como o
único e mais importante elemento para a compreensão destas práticas.
Dentro desta linha de interpretação, percebe-se que existem certas
características consideradas necessárias, e, portanto, apresentadas pelas famílias
como importantes para a consolidação das relações de reciprocidade junto aos
profissionais e voluntários. Deve-se atentar que existem pessoas com as quais o
se estabelecem vínculos ou relações de qualquer natureza, e, com estas, portanto,
não são negociadas as expectativas desejadas, como os retornos de
encaminhamentos, que se discutido no próximo capítulo, ou o reforço de
intimidades como a realização das visitas ou a oferta de um café a uma assistente
social. Assim, quando não se constitui o vínculo, o encaminhamento perde sua
eficácia.
Há, portanto, necessidade de se discutir aquelas atitudes que marcam o
afastamento das famílias de certas redes de assistência e a conseqüente procura
por outras redes. Este é o caso de D. Dirlene, que rompe com uma das instituições
da vila onde mora, onde é oferecido serviços de assistência social, e opta
96
imediatamente por uma outra, que na sua concepção é mais apropriada, por ser
mais rápida, por se preocupar mais com a situação pela qual sua família está
passando. Junto com seu marido D. Dirlene justifica suas escolhas:
“Eu acho que falta muita coisa pra ela ser uma assistente social, porque,
assim, no caso, eu tava com tudo na mão, os exames, tudo. O médico
disse, a senhora chegue em casa procure uma assistente social, porque
elas são obrigadas a encostar o S. Ari. Eu cheguei ali o que que ela me
disse, ah, não tu tem que ir no INPS. Era uma coisa que ela mesma
poderia resolver. [...] Ela não se interessou assim pelo caso. Ai não
procuro muito ela”. (Dirlene / 37 anos / Loteamento Dunas / Programa
Bolsa Família, Fome Zero, ASEMA, Agente Jovem).
Ao aderir a uma instituição de assistência social, Dirlene apresenta as
características do que para sua família se configura como um bom serviço prestado:
“Da Maristela e da Vivian e das gurias de eu não tenho queixa
nenhuma. Tudo o que eu chego lá... Esses tempos mesmo eu não tinha
nem o que dar pra eles dentro de casa. Eu cheguei e a Daiane, ligou
pro MAPEL: Isa, eu to te mandando uma mãe assim, assim, assim... Eu
cheguei não esperei, ainda deu tempo de a guria (sua filha) ir pro
colégio”.
A avaliação realizada também por Ana cia direciona-se ao que é
percebido como essencial para a aproximação e a identificação com os profissionais
e voluntários das redes de assistência, ou seja, o que constitui a troca primeira é a
relação de amizade e empatia (CAILLÉ, 2002):
“Eu não fui muito com ela. Não sei, ela é diferente. Não sei, eu não
conversei muito com ela, gostei da outra, [...] As outras (assistentes)
social, se elas tivessem que vim aqui na tua casa, ela conversava contigo,
ria contigo, e essa outra ela é, ela é, quieta, tu fala ela o ri, ela não
conversa. [...] Essa outra magrinha ela é mais assim, quieta. Se a gente
tem que resolver uma coisa resolve e tchau pra ti. [...] A outra vinha na
casa da gente, a gente combinava com ela, fazia um café de tarde e
ficava o dia inteiro conversando, ela ia quase perto de fechar o posto. [...]
Essa outra, como é que eu vou te dizer assim, ela é fechada, ela
conversa contigo, que ela não tem aquele sorriso como as outras têm.
Ela é de resolver o teu problema e não conversar contigo”.
Por outro lado, embora as famílias identifiquem as parcerias potencialmente
mais apropriadas para a consolidação das relações de proximidade, também a
97
referência quanto aos limites que são reconhecidos nestas mesmas relações,
sobretudo do seu lugar nas redes de assistência. Tais limites justificam a adoção de
certas atitudes entre as mulheres, como recuar ou calar-se a fim de permanecer com
algumas garantias, evitando com isso a exclusão das redes de assistência.
Este foi o caso de D. Dirlene e de Lucimar, ambas reconhecendo seus
direitos, insistem pela sua garantia, mas até certo limite, limite este compartilhado
entre aqueles que desejam manter suas alianças e contar com certos aliados em
situações posteriores.
No caso de Dirlene, ela narrou o conflito que certa vez resolveu não
enfrentar, quando seu marido teve atendimento médico negado na Unidade de
Saúde próxima de sua casa. A situação atingiu seu ápice quando as enfermeiras
negaram atendimento domiciliar ao seu marido, que estava sentindo-se mal em
razão de problemas de pressão. As justificativas apresentadas pelas enfermeiras era
a de que seu marido estava naquela situação porque não comparecia às reuniões
do Grupo de Hipertensos ao qual ele fora encaminhado pela médica do posto, razão
pela qual elas justificaram a negação do atendimento. Diante desta afirmação
Dirlene decidiu levá-lo ao Postinho de carrinho de mão.
Ela relata que argumentou com as enfermeiras dizendo que conhecia os
direitos dos idosos, e que “[...] isso eu sei porque elas o passam a perna em mim.
Olha, eu sei ler, eu sei o que pode e o que não pode”. Ela, porém, recuou quando
avaliou as conseqüências possíveis que uma atitude mais drástica poderia trazer em
decorrência, e nesta decisão é apoiada pelo marido que participava também da
entrevista e ratifica a ação tomada por Dirlene: “A gente podia denunciar é que a
gente não quer se incomodar”.
No segundo caso, o contexto que envolve a situação não é o mesmo
anterior, mas seu desfecho coloca em evidência o quanto a consciência dos limites
das redes de assistência é recorrente e compartilhado entre as famílias. No caso de
Lucimar, que opta por calar-se a sofrer posteriormente as conseqüências de
posicionar-se e enfrentar, a situação é paradigmática:
“Eu consultei uma vez com ele e ele me mandou ir pra igreja pra parar de
beber e fumar. Eu não dei resposta porque eu sou bem educada, porque
eu preciso dali, eu não vou estourar a minha ficha ali. Quanto mais eu
fizer pior vai ser pra mim”.
98
A obrigação de retribuir aquilo que é recebido, por intermédio de
profissionais e voluntários, justifica em grande medida as decisões tomadas por
estas famílias, quando optam por não revidar nestas situações. Nestes casos, é
importante perceber que uma vez rompido o vínculo, retorna-se ao ponto inicial,
obrigando a família mover-se, outra vez, investindo energias e tempo a fim de
inserir-se nas redes de assistência.
E é, sobretudo, na fala de Lucimar que se percebe o investimento na
manutenção destas redes consolidadas, sua expressão final de o “estourar a
ficha” conduz a pensar sobre as noções de assistência que estas famílias
manipulam com certo equilíbrio. Nesse caso, o discurso médico informa o caráter
moralizante e discriminatório de certas práticas dirigidas a estes grupos. No entanto,
as estratégias utilizadas por Lucimar para desdobrar-se diante de situações como
esta, remete-nos, sobretudo a Clifford Geertz (2001), em especial no seu artigo “Os
usos da diversidade”, cujo interesse maior era o de problematizar a forma geral
através da qual se manifestariam as conseqüências da diversidade cultural
“assumida hoje em dia pelos conflitos de valores”. Para Geertz (2001) não se trata
de apresentar ou discutir quem possui maior ou menor sensibilidade quando diante
de determinados contatos culturais, mas, sim, de apreender os significados
presentes nas ações do ‘outro’, de imaginar-se vivendo num certo sistema simbólico
que o permita, ao menos, relativizar suas idéias e concepções sobre os valores
culturais que distam dos seus. Assim, o que explica esses distanciamentos e
[...] o que responde por esse sentimento depressivo é a impossibilidade de
as pessoas sequer imaginarem, em meio ao mistério da diferença, como
seria possível contornar uma assimetria moral perfeitamente autêntica.
Tudo acontece no escuro (GEERTZ, 2001
).
99
4.3 “A criança recebe esse dinheiro pra que que é?”
23
: O Ponto de vista das
famílias que recebem o Programa Bolsa Família e Fome Zero
Em sua maioria, parece existir entre as famílias um consenso quanto à
obrigação de expor os gastos que são realizados com o benefício, e essa
compreensão motivou várias mulheres a responderem a uma pergunta não
formulada, ou seja, a pergunta que originava respostas objetivava analisar os gastos
das famílias e as estratégias utilizadas pelas mesmas para suprir tais necessidades.
Assim, o que se pode perceber é que para elas havia a necessidade de prestar
contas em quê e com quem o dinheiro do Programa Bolsa Família era aplicado, e
também os gêneros alimentícios do Fome Zero. É obrigação retribuir uma doação.
E para exemplificar, cabe trazer para análise os relatos de algumas
mulheres, uma delas, a que motivou a organização desta discussão. Uma das
passagens da entrevista de Ana cia diz respeito às diversas estratégias que são
por ela acionadas para ajudar o seu pai (que ficou com a guarda de seus filhos com
a morte da mãe de Ana Lúcia) no sustento de seus filhos menores. Uma das
estratégias diz respeito à divisão das sacolas que recebe do Fome Zero, parte fica
com ela seu marido e o filho mais novo, e parte com seu pai, e seus dois outros
filhos, uma menina de 12 anos e um menino de 10 anos. Ela diz o seguinte: “Eu
reparto com eles, sabe por quê? O meu pai o podia receber essa sacola, aí. A
finada minha mãe pegava. A minha mãe pegava, e eu pegava, era separado, sabe?
Como ela morreu cortaram ele”. (Ana Lúcia, Fome Zero e Bolsa Família). Além de
dividir a sacola que recebe do Fome Zero na Comunidade Católica, ela faz pão para
os filhos que moram com o seu pai. Ela não concorda em trazer as coisas (comidas,
por exemplo) da casa do seu pai. Então, quando os seus dois filhos vêm passar o
dia com ela, ela afirma convicta que oferece aquilo que tem em sua casa, e se nega
a buscar na casa do pai alguma ajuda para os filhos que ficam com Ana cia
durante o dia: “Eu não pego. Eu dou do meu”. Sua filha de 12 anos, que também
participava da entrevista, disse que a mãe pegava as coisas na casa do acom
23
A inspiração para o título deste item foi retirada de uma das entrevistas realizada com as famílias
que participaram do estudo. O questionamento, feito por uma das mulheres, (Ana Lúcia / 31 anos /
Programa Bolsa Família / Fome Zero) referiu-se ao destino implícito que deve ser dado aos recursos
recebidos mensalmente.
100
a finalidade de fazer o o para ela e os irmãos, o que vem a ser confirmado pela
mãe:
“Ah, é, que eu faço pão pra eles, pra poupar o gás do pai, como eu tenho
fogão a lenha, eu junto lenha, às vezes eu levo ela (a filha) pra juntar
lenha, ai junta lenha, e eu asso pão aqui pra poupar o gás dele (do pai).
[...] Quando eu faço, eu faço sete o de uma vez, vai quatro pra
eles e fica dois aqui pra mim, que (d)eles eu faço com as coisas que o
pai manda pra eles. [...] Ele manda farinha e óleo e eu faço pão pra eles”.
A percepção de Ana Lúcia quanto a forma como deve ser gasto o dinheiro
do Bolsa Família, e além disso a quem este dinheiro pertence, situam na família e
particularmente nas mulheres a função de administradoras destes recursos, e não
deste recurso, mas de todos aqueles que são dirigidos às famílias, justamente
porque suas atribuições se dão na esfera da casa, encontrando-se restritas ao
âmbito doméstico (VICTORA, 1992).
O relato de Ana Lúcia se constitui num exemplo típico da forma de
administração deste recurso pelas famílias em grupos populares: “A criança recebe
esse dinheiro pra que que é? Pra dar o estudo, pra dar estudo e colégio. Se a mãe e
o pai não trabalham, vai ter que comprar comida pra dar pra ele comer. Se sobrou,
compra uma roupa”.
A situação de desemprego dos pais é um elemento importante na avaliação
das famílias, quando nas situações extremas não como manter a alimentação
das crianças. Nestes momentos, o dinheiro recebido com o Bolsa Família é utilizado
para suprir aquilo que não vem nas sacolas do Fome Zero. Nessa condição vive a
família de Elaine, que utiliza os recursos do Bolsa Família para a complementação
dos gastos familiares, sendo-lhe essencial hierarquizar as prioridades, onde os filhos
são o critério de referência: “[...] porque eu digo primeiro eles, depois a gente”.
Assim, a partir do momento em que passa a receber os recursos do programa, ela
inicia o investimento de forma a suprir outras necessidades dos seus filhos:
“Geralmente eu comprava coisas de comida, agora como m as coisas
da igreja (Fome Zero), eu procuro comprar roupa pras crianças, calçado.
[...] Eu compro assim, coisas necessárias mesmo, a comida do dia a
dia, e depois roupa e calçado assim que sobra”
.
101
Em outras famílias, se percebe também a utilização de forma estratégica dos
recursos que recebem das redes de assistência para satisfazer as necessidades de
alimentação, vestuário e estudo dos filhos. Em alguns relatos, o consumo de carne e
derivados se tornam possíveis a partir da utilização combinada dos recursos do
Programa Bolsa Família e das sacolas do Fome Zero, permitindo à família de Seu
Ari, por exemplo, o consumo de carne nas refeições da família. A lógica empregada
por esta família leva em conta a vontade dos filhos “Tem que ser uma misturinha” (e
não somente feijão e arroz) que se expressa como justificativa suficiente para o
esforço dos pais em procurar pelos programas e serviços das redes de assistência.
Deve ser considerado, além das situações descritas acima, aqueles casos
em que a família, possuindo uma outra fonte de renda, seja fruto de algum biscate
ou aposentadoria, redimensiona o planejamento dos gastos com as crianças e
investe assim em outros artigos, que embora percebidos como importantes, ocupam
necessidades de segunda ordem. Para visualizar as condições nas quais isso se
realiza, a família de Bernadete, que apresenta situação diferenciada, servirá como
referência. Ela tem um filho de 4 anos, seu marido possui uma renda estável com os
serviços que presta junto à comunidade
24
servirá como referência, e para completar
ela realiza uma vez por semana faxina numa “casa de família” e seu filho freqüenta a
creche todos os dias. Assim, o dinheiro do Programa Bolsa Família pode ser
aplicado em outros itens, que avaliados como de segunda necessidade, são
consideradas artigos raros em outras famílias. Conforme comentou durante a
entrevista: “Eu compro alimentação pro Gabriel, frutas, iogurte, essas coisas. E as
roupinhas dele. As coisinha dele”.
Há, assim, entre as mulheres entrevistadas um consenso tácito, de utilizar o
dinheiro do Programa Bolsa Família com as despesas das crianças. No entanto,
quando isto não ocorre e certas mães gastam em benefício próprio os recursos que
deveriam ser utilizados com as crianças há, por parte das demais mulheres, uma
reprovação desta atitude. A existência de uma mulher na beca”
25
contrasta com a
de um filho que não recebe o apoio da mãe, e que por esta razão se destaca das
demais crianças pela forma como se veste, e do estado em que se encontra, cuja
aparência flagrante denuncia a irresponsabilidade desta mulher, que não cumpre
24
O marido de Bernadete é conhecido na localidade por ser o guarda noturno, uma espécie de
segurança informal de algumas casas do loteamento.
25
Entre os informantes, beca significa pessoa bem vestida.
102
adequadamente seu papel de mãe. O exemplo de indignação trazido por Ana Lúcia
constitui-se num dos elementos daquilo que compõe o universo social das mulheres
e das suas responsabilidades do cuidado com os filhos: “[...] tem muita mãe que
pega, pega esses dinheiros dessas crianças, [...] e não adianta dizer, que a gente
a verdade [...] da pra ver a criança que tu dentro do colégio, depois tu a
mãe, a mãe tá numa beca”.
As atitudes que competem ao universo de cuidados que os pais devem ter
para com seus filhos foram referidas diversas vezes durante as entrevistas. E na
família de Viviane assume formas nem sempre previstas dentro da configuração dos
papéis socialmente esperados para homens e mulheres, em especial dentro deste
universo tradicional das relações de gênero. Como ela relata, sua atitude como mãe
é curiosa, em especial diante do acidente sofrido pelo marido, que o impossibilitou
de sustentar a casa por vários meses consecutivos, e assim de cumprir com sua
principal obrigação. A realização desta tarefa foi então assumida por Viviane, mas
apresenta uma série de peculiaridades que a coloca, naquele período, no exercício
de uma função que era de responsabilidade exclusiva do seu marido. O relato de
realização destas tarefas, ela mesma faz questão de acentuar a particularidade e o
caráter eventual e invertido para o seu universo cultural. No relato dado por Viviane
estas características são enfatizadas em grande medida na apresentação do
contexto daquela situação, em que ela se viu obrigada a trabalhar pela primeira vez
em sua vida, numa função predominantemente de homens, a de servente de
pedreiro numa construção civil.
Em outros casos, como o da família de Elaine na coleta de materiais
recicláveis uma fonte de renda para complementar a renda do marido nos gastos
familiares. E também na de dona Dirlene, e na prática de sair pra sucatear”
26
toda
vez que os rendimentos obtidos do marido e dos programas sociais não dão conta
de suprir às necessidades da casa.
A motivação que orienta a maioria destas mulheres a buscar estratégias e
alternativas é a mesma, e esta identidade comum se em torno de um marco, o
qual corresponde com a vinda do primeiro filho. É a partir deste evento que suas
vidas se orientam diferentemente do que até então haviam feito; se trabalhavam
integralmente, algumas, quando não param de trabalhar, reduzem a jornada de
26
Para D. Dirlene sucatear é recolher sucatas, ou seja, materiais colocados no lixo e que poderão ser
reciclados.
103
trabalho para ficar mais próximas da família, e passam a contar para isso com outros
recursos. O que é notório é que o nascimento das crianças significa a inclusão em
um novo universo social em que as crianças se constituem na motivação primeira
pela procura dos programas e serviços das redes de assistência. Este argumento
será desenvolvido no próximo item.
O apoio à bibliografia sobre famílias em grupos populares é útil para
compreender o lugar das crianças dentro de suas famílias, e também entre
diferentes famílias. O questionamento realizado por Cláudia Fonseca (1995) ‘O que
significa ter um filho?’, faz-se frutífero para a compreensão de tamanhos
investimentos das mulheres em torno dos cuidados com as crianças.
Os envolvimentos destas mulheres com as crianças “dão um sentido à
existência diária” (FONSECA, 1995), e, de acordo com a mesma autora, são elas
que também fornecem um “senso de importância para os adultos que delas cuidam”.
Assim, o papel das mães se concretiza em grande medida se ela se dedicar ao
cuidado das crianças, e também no reconhecimento público de tratar bem os filhos,
porque nada mais humilhante, à mãe e ao filho, do que ser criticada pelas outras
mulheres. Assim, a relação mulheres crianças vizinhança deve ser
compreendida como de complementaridade. Assim que as mulheres passam a fazer
parte das redes de solidariedade das vizinhas e parentas pela relação que possuem
com as crianças, são, portanto, as crianças que fazem sentido neste universo dos
grupos populares, e que adensam, conseqüentemente, o pretexto para as redes de
trocas e de interação social (FONSECA, 1995) entre as famílias e as vizinhas.
4.4 A inserção nas redes de assistência por intermédio das crianças
A procura pelos serviços de assistência se faz necessário quando a família
não consegue mais prover os filhos com seus rendimentos, seja pela escassez do
mesmo, seja pela falta de trabalho remunerado. Em tais situações, quando está em
jogo a manutenção das crianças, é que as mães iniciam a participar das redes de
assistência. Estas razões foram percebidas em quase a totalidade das famílias
investigadas, que foi o caso da família de Elaine que relatou o seguinte:
104
“Comecei a me apertar, começou a vim as dificuldades, né, falta de
comida, falta de dinheiro, e eu saí a procurar. Procurava serviço
recebia um não, o, não. Meu marido a mesma coisa, tanto é que botou
currículo até agora nada. A única solução é sair a correr (d)esses
programas [...] Bom, deixar eles passar necessidade eu não vou, e eu
digo, roubar muito menos, porque a gente pode passando fome, mas a
honestidade em primeiro lugar. Eu digo, eu vou é correr atrás”.
A constante presença das crianças em diferentes universos sociais,
acompanhando sempre suas mães ou àquelas que se responsabilizam pelos
cuidados das mesmas, é revelador de um elemento fundamental para se
compreender as estratégias compartilhadas entre as famílias, qual seja a de
inserirem-se nas redes de assistência a partir da referência as crianças, aos filhos
menores.
Em todos os casos estudados, quando se perguntava as exigências para a
participação do benefício ou programa que fosse, a resposta era sempre a mesma,
ter filhos menores e ser de baixa renda. A situação relatada pela família de D.
Dirlene constitui-se em um bom exemplo da inclusão em determinados benefícios,
quando são avaliadas as situações dos filhos menores pelos responsáveis da
seleção em programas de proteção as crianças e jovens:
“Fui atrás porque disseram que tinha psicólogo [...] Era muita
complicação, a cabeça tava cheia, eles iam pra padaria, eles andavam
sucateando. E elas (as assistentes sociais) disseram que ‘Não dona
Dirlene a senhora recebendo o Bolsa Escola eles não podem andar na
rua. Se um carro pega, se acontece qualquer acidente? Aí o seu benefício
vai ser cortado’. Ai foi através disso ai que elas me arrumaram o projeto
pra eles”.
O projeto que está sendo referido por D. Dirlene é realizado em seu
loteamento, o qual atende crianças e adolescentes em horário inverso ao da escola,
e é nomeado de Apoio Sócio Educativo em Meio Aberto ASEMA. As atividades
desenvolvidas visam contribuir com o desenvolvimento escolar das crianças e
adolescentes, oferecendo atividades como o reforço escolar onde são estimulados à
realização dos temas. Além disso, são repassados exercícios de fixação dos
conteúdos vistos na escola. Paralelamente, são desenvolvidas atividades de
recreação, com a realização de brincadeiras e atividades em grupos. O atendimento
é diário e conta com funcionários públicos municipais; este projeto integra a política
105
de assistência social às crianças e adolescentes em situação de risco no município
de Pelotas.
Na continuidade da entrevista, D. Dirlene revelou que está em busca de
outros programas para seus filhos. No caso de seu filho mais velho, a utilização de
certas estratégias, em conjunto com as psicólogas e assistentes sociais, foram
realizadas com o objetivo de afastá-lo do uso das drogas, o que culminou em sua
inclusão em um programa para formação cidadã de adolescentes, o Agente Jovem.
A inclusão e participação do rapaz acabaram por abrir caminho para sua irmã, que
no ano seguinte será a próxima da família e ser encaminhada para participar do
mesmo programa.
Atualmente, D. Dirlene procura garantir também para seu filho menor um
benefício permanente, dirigido àqueles sujeitos cuja situação de saúde os incapacita
para o trabalho. Nestes casos, os enfermos podem encaminhar uma solicitação,
através de um profissional habilitado, para o recebimento de um benefício conhecido
por Benefício de Prestação Continuada, direito este que está previsto na LOAS, a
Lei Orgânica da Assistência Social, o que foi por Dirlene referido com precisão. O
Guilherme, seu filho mais novo, sofre de problemas gástricos pela ingestão de
produtos derivados do leite, sua alimentação deve ser controlada, além de uma dieta
equilibrada. A mãe de Guilherme, D. Dirlene, relatou que até pouco tempo recebia
certa quantidade de leite através de um órgão da Igreja Católica, o Banco de Leite,
mas esclareceu que havia perdido o mesmo benefício pela idade do menino.
Guilherme tem 09 anos, e pesa atualmente 19 quilogramas, é muito quieto, e,
segundo sua mãe, tem problemas sérios de gagueira.
De acordo com D. Dirlene os exames de encaminhamento do menino, para
a solicitação do referido benefício, estão sendo acompanhados e examinados
através de médica que o acompanha no Posto de Saúde.
Numa outra família, a referência à procura pelos serviços de atenção às
crianças é também apresentada, e este se como um suporte à rede de
assistência, tratando-se, neste caso, de se configurar uma outra rede, a do ensino
formal. Os relatos de Berenice, mãe de Gabriel, apontaram por diversas vezes as
preocupações com a socialização do menino, os quais se referiam ao espaço da
Escola de Educação Infantil como o de convívio com outras crianças da mesma
idade. Acrescenta-se ainda sua persistente preocupação em oferecer um ambiente
diferenciado daquele que o menino possui em casa. Para ela, o espaço da casa, por
106
ser pequeno, e do pátio, por ser aberto e sem calçamento, são considerados como
perigosos para a criança, que sem os limites de muro e de cerca, fronteiras do
espaço da casa e do meio da rua, trariam riscos à criança na medida em que a
deixaria exposta ao trânsito de carros e cavalos do local. Assim, a creche, da qual
ele participa desde aproximadamente um ano, seria um local que traria ao menino
aquilo que lhe falta, indicando as preocupações da mãe a cerca do ambiente mais
adequado no qual deve viver uma criança:
“Então eu levo ele pra escola, né. Ele o tem outro irmão, não tem
relacionamento assim, aqui tem a guriazinha que ele brinca, e tudo, mas
ele gosta de dá-lhe laço também [...] E ele se desenvolveu bastante
também, antes ele era uma criança muito fechada, não brincava muito,
tava sempre preso dentro de casa, porque no inverno isso aqui é muito
úmido, é um barreiro isso aqui. [...] Então eu não largo ele pra rua, então
ele fica muito preso. Por isso que eu levo ele pra escola. é fechado,
eles tem brincadeiras, um monte de coisas com os colegas”.
A insistência de Berenice para conseguir a vaga do filho na escola, a levou a
procurar o lugar repetidas vezes, como ela mesma relatou na entrevista. Contou que
quando procurou o local, pela primeira vez, acreditava que seria de fácil acesso, que
bastava fazer a inscrição, deixar a criança e seguir trabalhando. No entanto,
Berenice narrou que necessitou inscrevê-lo novamente no ano seguinte,
submetendo-se à realização de um sorteio a conseguir obter a vaga para o
menino. Em razão disso, Berenice optou por cuidar do filho enquanto aguardava
pelo chamamento do menino na escolinha, e que então depois poderia retomar
uma vez na semana suas atividades de faxineira.
Em ambas as famílias, a participação das crianças nestes espaços de
sociabilidade, como o do ASEMA e da escolinha de educação infantil, evidencia a
preocupação das mães/mulheres com a integração dos filhos menores nestas redes
de assistência.
Em diferentes outros locais as crianças também não passam despercebidas,
ao contrário, elas evidenciam o quanto os espaços são estrategicamente
organizados para atendê-las e dar-lhes atenção, como no espaço da Unidade de
Saúde para as pesagens do Programa Bolsa Família, a organização de espaços
como bibliotecas e brinquedotecas nas Comunidades Católicas (ambas organizadas
pela Pastoral do Menor e também da Criança), no Comitê de Desenvolvimento
107
Dunas, ou também no reforço escolar no Centro Comunitário Bom Pastor (Igreja
Evangélica de Confissão Luterana) na Vila Pestano.
Nos grupos da Pastoral da Criança, onde as crianças são atendidas
mensalmente para a realização das pesagens e orientações às mães a cerca dos
cuidados com os filhos, a presença massiva das crianças é reveladora da
importância que estas possuem para os serviços de assistência. Na celebração da
vida, como é chamado pelas líderes comunitárias, o encontro de mães, crianças e
voluntárias, são realizadas diferentes atividades dirigidas a este público, o que inclui
alimentação, brincadeiras e conselhos às mães para ensinar-lhes cuidados básicos
de saúde, como receitas caseiras e dicas sobre os cuidados que devem ser dirigidos
às crianças, sobretudo com a intenção de serem evitados acidentes e violências
domésticas. Diversos depoimentos referiram a importância deste trabalho para as
crianças e para as famílias; o que foi narrado por Berenice é esclarecedor:
“Que eu levo ele na pastoral também. [...] Ai eu tiro ele (da escola de
educação infantil) umas 3 horas de lá, eu tiro ele e levo, que ai eu explico
pras gurias, pras tias dele, ai eu explico, ó, vou levar ele na pastoral, pra
ele participar, tudo. E ele é pesado, né, a gente faz um lanche, tem a
recreação, tem alguém que brinca com eles, a gente fica conversando”.
O trabalho desenvolvido junto às crianças, de acompanhamento do peso e
medida das crianças, cujas mães são beneficiadas pelo Programa Bolsa Família,
tem finalidade semelhante àquela realizada pela Pastoral da Criança. A
peculiaridade do Programa Bolsa Família é a de observar os impactos do
recebimento do benefício sobre as questões de saúde e educação das crianças. A
lógica de que as mulheres devem ocupar-se das crianças, reforçada por parte do
Estado no pré-requisito de titulares dos benefícios sociais
27
, acaba as aproximando
ainda mais das redes de assistência, o que pode ser verificado em qualquer
pesagem de acompanhamento do Bolsa Família, ou nos horários de entrada e saída
das escolas destas duas regiões. Por seu lado, estas instituições também reafirmam
o laço entre as mães e as crianças, dirigindo-se àqueles que acompanham às
crianças nas pesagens mensais, na forma de questionamentos sobre a saúde e o
desenvolvimento do peso e altura destas crianças. E são curiosas, sobretudo, as
respostas que são dadas aos profissionais que acompanham as condicionalidades
27
Ver em anexo a lei federal que cria e institui o Programa Bolsa Família.
108
do programa, quando a criança o está acompanhada de sua mãe. Estas se dão,
geralmente, fazendo-se a referência de que para responder de forma precisa
questões dessa natureza só mesmo perguntando para a mãe da criança.
De maneira geral, pode-se perceber que as medidas de atenção e proteção
dirigidas às crianças se constituem num elemento fundamental para a aproximação
de suas famílias das redes de assistência. Em todos eles os discursos evocam
repetidamente os cuidados às crianças, e, sobretudo a comoção que ela provoca
entre os profissionais e voluntários. As crianças são o ponto de contato entre as
famílias e as redes de assistência; ambos estabelecem assim relações de
mediações a partir das responsabilidades que possuem com as crianças. Se por um
lado as famílias motivam-se a buscar os programas e serviços da assistência para
complementar o orçamento familiar e conseqüentemente aquilo que é oferecido às
crianças, por outro, são elas, as crianças, que mobilizam os recursos e as atenções
das redes de assistência.
Assim, como discutido por Claudia Fonseca (1995) muitas vezes “se
formam redes em função da sobrevivência da criança”, e isto pode ser amplamente
visualizado em todos os momentos do trabalho de campo, reafirmando e adensando
questões já discutidas em trabalho anterior:
A coletivização da responsabilidade no cuidado das crianças explicitada na
vila em questão Dunas, evoca a construção e ao mesmo tempo a
consolidação das redes de solidariedade entre amigos, vizinhos e parentes,
afirmadas por intermédio das crianças. (PEREIRA, 2005).
A freqüência junto destas instituições é indicativa do interesse das mulheres
pela inclusão nos recursos das redes de assistência, e sua visibilidade é
fundamental para que passem a fazer parte daqueles que ainda não estão
plenamente incluídos, mas interessados em fazer parte dos cadastrados. Muitos
foram os relatos que apontaram a necessidade da persistência, da freqüência
assídua a grupos como pré-requisito para serem chamadas a fazer parte como
beneficiárias de certos programas e serviços. Esta foi uma situação relatada por
Viviane, que fala sobre o caminho que precisou percorrer até conseguir receber sua
sacola do Fome Zero:
109
“Conheci a Juliete pela minha prima que participava do grupo. A Juliete
me inscreveu na Pastoral da Criança. fui indo, fui indo, fui indo pra
depois ganhar a sacola. A Juliete ainda me castigou, porque tem muitas
que vão com interesse na sacola, sabe? E eu ia sem ganhar a sacola
[...] por isso que a Juliete me botou na sacola também”. (Viviane / Bolsa
Família / Fome Zero / Grupo de mulheres / Pastoral da Criança).
Em uma outra situação tem-se a experiência de Elaine que, a partir do
nascimento do filho, vê-se também na expectativa de receber a sacola do Fome
Zero, mas cujo cadastro não é feito sem antes esperar ser chamada pelas
voluntárias da igreja:
“Era assim, (recebia) quando sobrava, mas se tu ficava na fila de espera
[...] no caso é assim, os que estão cadastrados pegaram, mas os que
sobravam pra gente que tava na espera era a mesma coisa que era pros
cadastrados. [...] Aí eu pegava na fila de espera, ai quando teve mais
oportunidade ai ela me botou no cadastro”.
Em geral, as condições que são colocadas às famílias que começam a
participar dos programas e serviços são encaradas pelas mulheres como
conseqüência dos benefícios que foram conquistados. Uma espécie de recompensa
para profissionais e voluntários, do cumprimento de obrigações sem as quais não
seria possível a permanência dos vínculos e dos benefícios.
A análise que Berenice faz sobre sua participação nas celebrações católicas
como uma forma de auto-ajuda, de reflexão e encontro consigo mesma, e que a
permite repensar suas próprias atitudes, se deu em grande parte pelos convites
insistentes da coordenadora do Grupo de Mulheres, convite ao qual ela se dispôs
retribuir, participando nas missas aos sábados com certa assiduidade. No entanto,
Berenice apresenta um dado importante a cerca da situação na qual a retribuição é
deixada de lado, quando as necessidades familiares sobrepujam às religiosas.
Para receber sua sacola do Programa Fome Zero, Berenice precisou
participar dos encontros do Grupo de Mulheres, que se realizam uma vez por
semana na comunidade católica do loteamento onde mora, sendo sua presença nas
missas uma atitude espontânea de sua parte, ou seja, não exigência de
freqüência nas celebrações, mas, mesmo assim, Berenice opta por aderir à doutrina
católica. As conseqüências desta opção estão presentes no seu relato abaixo, e
110
demonstram as negociações avaliadas enquanto eficazes para a consolidação dos
vínculos com profissionais e voluntários:
“Eu era de outra religião, eu era da umbanda. [...] Quando eu entrei pro
grupo pra fazer o cursinho, e receber a sacola a D. Eliete sempre
convidava, e eu, ai eu não vou, e é sábado, ficar com a família, não vou.
Agora eu comecei a ir e cada vez que eu ia o frei sempre falava alguma
coisa que aquilo parece que servia pra mim, sabe? Sempre tirava alguma
coisa daquilo ali, como se fosse uma lição pra mim [...] não vou todos, não
vou dizer que eu vou todos os sábados que eu não vou mesmo”
.
Numa outra situação, esta postura em relação ao caráter religioso de certos
programas e serviços da assistência, se combinam à compreensão e validação do
ponto de vista dos voluntários que colaboram na distribuição das sacolas do Fome
Zero. Neste caso a compreensão das expectativas pelas famílias é interpretada
como uma estratégia de compensação ao doador diante do recurso recebido, e
Elaine observa também que neste ato está implícita sua adesão em responder às
expectativas dos voluntários, no que implica sua participação em cultos que
antecedem a distribuição dos alimentos:
“[...]ela (a coordenadora do centro comunitário) gosta que assiste o culto,
e eu não tiro a razão dela. O que que custa aquilo ali é quarenta e cinco
minutos?. A gente ase alivia a cabeça ouvindo a palavra, cantando os
hinos. Ai eu vou, assisto o culto, pego a sacola e me venho embora pra
casa”.
Assim, a participação em um culto, missa ou grupo de mulheres se
apresenta como retribuição face às doações que foram ou que serão recebidas
(CAILLÉ, 2002). Trata-se antes de uma recompensa mútua, prova do
estabelecimento de um nculo, de um agradecimento pela consideração e
lembrança dadas primeiramente pelas preocupações daqueles que se ocupam com
as necessidades da família.
Num outro sentido, devem ser pensadas as situações em que as famílias
rompem com a continuidade no estabelecimento das prestações, quando estas se
negam a permanecer nos grupos e encontros que são colocados como
condicionalidades para a inclusão nos benefícios. Nestes casos, são apresentadas
diferentes situações em que se rompem as relações mútuas entre famílias e
111
voluntários / profissionais. Tem-se em certas entrevistas a revelação de humilhações
que apresentam até que ponto podem ser negociadas as condições para o
recebimento de determinado benefício, mesmo quando a situação que se vive no
momento seja de instabilidade e de dificuldade. Exemplos de situações dessa
natureza foram encontrados na família de D. Dirlene, que narrou a seguinte
situação:
“Numa igreja que tem pra cá, no fim do Areal, ai eu fui, e ainda fui com a
minha sobrinha, a Raquel. chegamos lá, houve uma palestra, ai foi
servido o chá, ai que eu ganhei. Fui duas vezes só, mas também não
fui mais, por causa que as mulheres, ah, porque a gente não manda
vocês fazerem um monte de filhos, vocês fazem muitos filhos, pra dar pra
uma tem que dar pra todas. Aquilo dali já, pra mim eu tenho filho, então
que eu tenho 5 filhos, eu não vou mais. [...] Que eu recebia 04 batata
doce, um repolho, um pedaço de abóbora, um quilo de arroz, um quilo de
feijão [...] Eu sou assim, se tu me mandar num lugar, eu chegar no
lugar, e dizer assim, a Dirlene vai chegar lá, vai ter a palestra, [...] mas
cheguei de cara e a mulher já, porque a senhora não precisa, porque a
senhora é gorda. Então eu já não venho mais”.
E seu marido complementa a fala de Dirlene justificando a desistência do
recebimento da sacola, porque além de sofrer estas humilhações ela “ainda tinha o
compromisso de limpar a igreja”.
em outra família, a vivência de situações igualmente humilhantes justifica
as opções familiares de se negarem a retornar novamente, deixando implícita a
desistência da ajuda até então considerada importante. Neste caso temos a família
de Viviane, que ao procurar pela sacola de alimentos distribuída por uma igreja,
independente do Programa Fome Zero, resolveu desistir quando o questionamento
sobre seus hábitos de fumar e de se utilizar de telefone celular são expostos
publicamente. Paralelamente a este registro, ela conta que outras famílias também
sofriam os mesmos tratamentos degradantes por parte dos coordenadores desta
igreja:
“Ela não podia ver assim ninguém fumando que ela assim, se tem
dinheiro pra comprar cigarro tem dinheiro pra comer. [...] Eu acho que
errado isso aí. O que que ela quer mandando nos outros? Agora não
pode ter celular? Tudo bem que a gente precisando, mas a gente não
tá morrendo de fome. [...] Chamou nós de vileira!”
112
A situação vivenciada por Berenice se afasta dos demais relatos na medida
em que ela própria não sofreu os rebaixamentos recebidos como as outras
mulheres, mas ela faz do seu relato uma forma de denúncia e indignação diante dos
freqüentes desrespeitos a que eram submetidos seus colegas de grupo. Na sua
avaliação a pessoa responsável pela distribuição das sacolas era “malvada”:
“Eu acho que ela é malvada porque deixava a gente um baita tempo no
sol, às vezes até com criança pequena, uma senhora com problema de
coração, fez ela capinar, um senhor também com problema de coluna,
coitado do velhinho tirou ele da sacola [...] Eu acho que pessoas que tem
assim problemas de saúde grave não tem como ficar horas e horas no
sol, e ainda com a enxada porque força a coluna [...] eu acho assim que
as pessoas tem que ter consideração com as pessoas de mais idade”.
As relações tradicionais vivenciadas pelos grupos estudados e evidenciadas
neste estudo questionam profundamente nossa capacidade de relativização. Neste
sentido, e aqui mais uma vez se utilizando de Cláudia Fonseca (2000), são postos
os limites de viver num país com expressivas desigualdades sociais. A aceitação de
outros modos de viver nem sempre é tão pacífica, e aqui se desejou apresentar uma
face etnocêntrica destas manifestações. O contato com tais universos sociais de
grupos populares, apresenta algumas características que persistem, muito embora
as orientações da assistência procurem reverter este cenário.
A transmissão de certos valores na educação das crianças é de suma
importância para a construção daqueles comportamentos que se deseja transmitir
aos filhos. Em muitos casos, o acompanhamento dos filhos junto dos seus pais, e a
sua permanência nas diferentes atividades realizadas por seus pais e irmãos
reproduz certo comportamento que muitas vezes é considerado inadequado,
colocando as famílias em situações conflituosas com o Estado, e de certa forma
inadequadas diante da moderna acepção de cidadania e direitos, conceitos e
práticas amplamente defendidas pelas redes de assistência.
Os investimentos das famílias junto às crianças se apresentam também
como uma forma de garantir um conjunto de condições objetivas que possam ser
acionadas na falta dos pais, e, em muitas famílias, algo de material, em certo
sentido, e que dê conta em suprir determinadas necessidades objetivas.
na grande maioria das famílias uma inquietação em torno das condições
materiais que deverão ser herdadas pelas crianças, em caso de ausência ou falta
113
dos pais. A responsabilidade dos pais prevê, assim, para além do sustento dos
filhos, e de sua manutenção na escola, o de deixar para estes uma casa, um lugar
que lhes garantirá certa tranqüilidade e estabilidade quando os pais não puderem
mais assisti-los.
A recorrência destes relatos se fez presente em boa parte dos casos.
Especialmente as mulheres mencionam as dificuldades que precisaram ser
enfrentadas para conseguir um terreno, e mais ainda para a construção da própria
casa. As correrias em torno disso, se tornam ainda maiores e mais difíceis de serem
solucionadas quando se envolvem relações com o poder público, e aqui se refere
especificamente às condições colocadas para a construção das mesmas.
Preocupações desta ordem se fizeram sentir, sobretudo, nos relatos de
Elaine e Bernadete, e se constituem como reflexo da mesma situação compartilhada
por outras tantas famílias. Na família de Bernadete as motivações que a levaram a
procurar pela sua casa própria são colocadas da seguinte forma:
“Por isso que eu quero ter a minha casa pra deixar alguma coisa pra ele
(o filho) porque eu não vou viver pra vida toda, né, nenhum de nós, isso aí
eu tenho consciência disso, que a gente nasce, passa por aqui, deixa os
frutos, algumas pessoas não deixam porque não querem, ou porque o
podem. E a gente tem que lutar pra adquirir alguma coisa pra deixar pros
filhos da gente”.
Na situação de Elaine são expostas as razões pelas quais ela abandona a
casa da sogra. As exigências colocadas pela Secretaria de Habitação a fazem morar
num terreno doado por seu irmão e a submeter-se a uma situação que é avaliada
por ela como prejudicial à saúde dos filhos. Inconformada com tal motivação ela
procura insistentemente os órgãos responsáveis pela construção das habitações
populares:
“Eu digo, mas o que que eu vou fazer com essa criança? Os mosquitos
tão comendo ele vivo. Ai me deram duas semanas, que iam vim aqui
olhar o meu chalé, que eles iam arrumar o cha até vim a casa. Não
vieram até agora. [...] O pedido foi feito no fim do ano retrasado, faz dois
anos. [...] Eu digo mas que tanto vocês me empurram? [...] eu fiz o pedido
muito antes de vim morar aqui. [...]Sabe que sogra a gente tem as
diferenças, mas eu também não tava morando na rua, né. Eu podia ter
esperado até vim a casa, mas eles me exigiram que eu tivesse morando
num chalé [...] que terreno vazio eles não botam”.
114
O ponto de vista das famílias colocou-se, neste capítulo, enquanto tentativa
de relativização das prenoções do senso comum, que em muitos casos
transformam-se em acusações as famílias que recebem os benefícios
governamentais como Fome Zero e Bolsa Família, alegando-se que tais programas
constituem-se em motivações para que as mesmas tenham mais filhos, justificando
o caráter utilitário e instrumental das crianças nestes grupos sociais que desejam
aumentar seus recursos financeiros mensais.
A partir do levantamento realizado para a construção deste capítulo, se pode
perceber o que as famílias levam em consideração para acessar os recursos da
assistência. A maior parte destas mulheres, as que se dispuseram participar da
pesquisa, recorrem de fato a diferentes programas e serviços, mas o fazem nas
circunstâncias apresentadas neste estudo, quando está em jogo o bem estar dos
seus filhos menores.
A seguir será apresentada a rede de assistência dos locais investigados,
percebendo-se os pontos de vistas e as dinâmicas institucionais organizadas nas
mesmas. Perceber-se-á as trocas, as mediações, as aproximações, coisas que são
construídas a partir dos atendimentos, das visitas, dos encaminhamentos e dos
retornos.
115
5 AS REDES DE ASSISTÊNCIA SELECIONANDO AS FAMÍLIAS
A discussão que motivou a organização deste capítulo remete ao olhar
prioritariamente focado nas dinâmicas dos programas e serviços das redes de
assistência nos dois universos, onde ocorreu a pesquisa de campo. Objetiva-se,
portanto, apresentar a etnografia realizada nas duas regiões administrativas
investigadas: o loteamento Dunas e a vila Pestano.
Inicialmente, e de modo a contextualizar o universo social no qual se deu
este estudo, será necessário problematizar a partir de alguns aspectos da
bibliografia consultada, a construção histórica da social-assistência e a trajetória que
seguiu até atingir sua moderna concepção. Nessa trajetória da social-assistência a
centralidade das discussões e preocupações em torno de temáticas como a família
justifica o papel que desempenhou e continua desempenhando, segundo uma lógica
intervencionista e de tutela, independente se esta atuação se dá sobre alguns
membros desviantes ou se sobre o conjunto dos membros que a compõem.
Em segundo lugar, será apresentada uma análise do ponto de vista dos
profissionais e voluntários em torno de suas ações de intervenção junto às famílias,
a qual permite visualizar como se organizam as relações de reciprocidade,
problematizando em seguida os critérios de universalidade de acesso às políticas de
assistência. As mediações, percebidas como conseqüências do paradigma do dom
e, portanto, resultantes da lógica do dar, receber e retribuir, entre famílias,
profissionais e voluntários, serão abordadas partindo-se das dinâmicas de
atendimento e acompanhamento adotadas pelas redes de assistência, as quais se
deram através dos cadastros, das visitas domiciliares, dos encaminhamentos e dos
retornos.
116
A forma de apresentação destes elementos se faa partir da exposição de
elementos comuns que foram percebidos e investigados nas duas regiões
administrativas, tanto no loteamento Dunas, quanto na vila Pestano, o havendo
assim apresentação distinta para ambas. No entanto, cabe ressaltar que certas
particularidades, que apresentam distinções importantes nas formas de atendimento
realizado pelas redes de assistência nestas regiões, se farão necessárias ao longo
do capítulo, mas serão, contudo, previamente enunciadas a fim de facilitar sua
compreensão e especificidade quando necessária.
5.1 Assistência e Famílias
[...] o desligamento deste apoio institucional das famílias atendidas deverá
considerar se estão aptas a acessar os bens e serviços públicos e privados
de que necessitam e aos quais têm direito, dando um salto social
necessário para superar sua condição de vulnerabilidade ou de exclusão. O
desfecho desse processo pressupõe, ainda, o fortalecimento do grupo
familiar em seu papel fundamental de responsável pela proteção de
crianças, adolescentes, jovens e idosos que o compõem (PREFEITURA
MUNICIPAL DE PELOTAS, 2004).
A moderna concepção da assistência, que pauta as atuações de
profissionais e voluntários, constitui-se paralelamente para as famílias num ideal a
ser incorporado e, portanto, atingido quando têm início as ações de intervenção
colocadas pela participação em programas e serviços da assistência. A intenção de
ações desta natureza consiste assim, na ascensão definitiva e efetiva das famílias a
condição de cidadãs, contexto possibilitado pelo acompanhamento das famílias, que
objetiva promover e incentivar a iniciativa pessoal das mesmas, sem mediadores, na
busca de programas e serviços de assistência de maneira autônoma e
independente.
Tal concepção distancia-se das práticas temidas, mas ainda persistentes,
segundo alegações de alguns profissionais de assistência, como as práticas
assistencialistas, as quais incentivam a permanência e a estabilidade dos vínculos
entre os assistidos e os promotores do assistencialismo, o que causa a acomodação
117
dos beneficiários. Contudo, tal processo será mais bem compreendido a partir da
análise histórica que será abordada na seqüência.
A percepção da família em grupos populares como fundamento para a
intervenção da social-assistência, somente há pouco tempo passou a ocupar a
agenda de preocupações desse segmento. Em boa medida, tal situação se
apresenta enquanto apropriação da visão de mundo destes sujeitos por parte do
Estado, sobretudo quando a referência é o cenário brasileiro.
A análise dos objetivos que almejam atingir a quase totalidade dos
programas e serviços de assistência investigadas, tem na família o alvo de suas
ações de intervenção. Pode-se citar, por exemplo, programas governamentais como
o Bolsa Família, que tem por objetivo “apoiar as famílias mais pobres e garantir o
direito à alimentação”, (BRASIL, MDS, 2006) ou também programas não-
governamentais como o da Pastoral da Criança, cuja “base de todo o trabalho são a
comunidade e a família [...] e a dinâmica consiste em capacitar líderes comunitários,
que residem na própria comunidade, para mobilização das famílias nos cuidados
com os filhos” (CNBB, Cartilhas de Pastoral Social, 2001).
Cabe ressaltar, contudo que tal aproximação percebida na atualidade se
constitui num fenômeno recente na bibliografia sobre a assistência social. A obra de
Robert Castel (1998), As metamorfoses da questão social’, trata justamente de
discutir este fenômeno a partir das transformações que a descoberta do “social”
operou na história da social-assistência, cuja ênfase se deu sobre a visibilidade e o
tratamento dos desvalidos, aqueles sujeitos que se encontravam desvinculados
socialmente.
A contribuição que a obra de Castel (1998) trouxe em termos de
compreensão da organização das relações sociais, encontra-se em grande medida,
no significado que o mesmo atribui aos laços sociais, e de suas funções para a
afirmação e constituição dos grupos, sobretudo no que diz respeito à manutenção da
coesão entre os sujeitos que deles fazem parte.
Anterior a consolidação da assistência, compreendida como a organização
racional das práticas de auxílio aos necessitados, percebia-se que a manutenção
dos vínculos sociais, e, portanto da coesão numa dada sociedade, era garantida
através do estabelecimento de uma proteção próxima, própria de uma sociabilidade
primária, que se organizava sob a responsabilidade de grupos familiares e
comunitários, os quais evitavam a desfiliação.
118
Tal contexto começa a sofrer modificações na Europa a partir dos anos
1830, resultado de uma “tomada de consciência das condições de existência das
populações que são, ao mesmo tempo, os agentes e as vítimas da revolução
industrial” (CASTEL, 1998). Naquele momento, sugere o autor que de maneira mais
incisiva assumem extrema importância as categorias que servem de classificadores,
aqueles que são autorizados ou não a acessarem os auxílios da social-assistência,
tratando de qualificar ou desqualificar os beneficiários.
Neste sentido, configura-se assim, o lugar do “social”: “desdobrar-se nesse
entre-dois, restaurar ou estabelecer laços que não obedecem nem a lógica
estritamente econômica nem a jurisdição estritamente política (CASTEL, 1998).
Assim, Robert Castel coloca a assistência a estes sujeitos como uma
maneira de integrá-los novamente aos seus espaços sociais de origem (CASTEL,
1998). Na verdade, em muitos casos, trata-se de uma tentativa de repressão
àqueles que potencialmente apresentariam condições de se contraporem à ordem
social dada, porque constituído por aqueles que nada têm, e que, por conseqüência,
nada possuem para defender ou manter.
O tema da vinculação social para as sociedades modernas, sobretudo a
partir da organização das cidades, com o “desenvolvimento e a diversificação do
espaço urbano” (CASTEL, 1998) é estudado por Castel (1998) a partir da relação
estabelecida pelo autor entre trabalho e coesão social. A perspectiva seguida pelo
mesmo consiste em elevar o valor do trabalho, de forma a considerá-lo, para as tais
sociedades em um aspecto que assegura aos indivíduos o situar-se nas malhas de
sociabilidade, o que, por conseguinte o qualifica como integrado socialmente.
Neste sentido, a centralidade do valor do trabalho vem acompanhada de sua
relação com as idéias de caridade e assistência que pautaram e estruturaram as
ações de intervenção ao longo dos últimos anos. Para Robert Castel (1998), o
trabalho é compreendido não
enquanto relação técnica de produção, mas como um suporte privilegiado
de inscrição na estrutura social [...] Inversamente, a ausência de
participação em qualquer atividade produtiva e o isolamento relacional
conjugam seus efeitos negativos para produzir a exclusão, ou melhor, como
vou tentar mostrar, a desfiliação. (CASTEL, 1998)
119
Em suma, tornam-se alvos de certas ações de assistência ou dignos de
caridade, aqueles sujeitos que se encontram incapazes para o exercício de atividade
produtiva, e, portanto, impossibilitados de proverem suas necessidades.
A contribuição específica do trabalho de Robert Castel (1998) para a
compreensão da lógica da assistência social na atualidade reside na recomposição
histórica, a qual possibilitou definir a caricatura do que foi considerado alvo
privilegiado de ações de intervenção. De maneira geral deve-se atentar para as
noções adotadas pelas instituições religiosas, as quais eram responsáveis por boa
parte dos serviços da caridade na Idade Média, respeitando-se devidamente as
particularidades do contexto histórico, político, cultural e econômico europeu.
A construção deste estado de coisas, no que diz respeito a construção de
uma ordem específica de construção do ‘social’ como entidade que passa a se
autonomizar das demais esferas sociais, foi fortemente influenciada pelas
representações produzidas pela ação crista, as quais consolidaram as formas
consideradas dignas de atenção e socorro.
A defesa e exaltação da pobreza, não como valor absoluto, mas
especificamente como significado de “despojamento dos fardos terrestres” (CASTEL,
1998), além de sua importância quando se trata de uma “economia da salvação” em
que ricos e pobres estabelecem relações de complementaridade, e portanto onde
não se permite questionar tais desigualdades, são alguns elementos que situam o
sofrimento carnal como atributo de salvação da alma do cristão, e que assim
justificam a mobilização dos recursos da caridade.
Nestes casos, quando se torna visível a impossibilidade de realização de
trabalho físico, por conseqüência a habilitação do sujeito a condição de assistido.
Para o autor: “O cristianismo medieval elaborou, dessa maneira, uma versão
fascinante, e única, da exaltação da pobreza baseada na consciência exacerbada da
miséria do mundo”. Trata-se na realidade de eleger determinadas características em
detrimento de outras: “Fazer a opção preferencial pela incapacidade física oculta
outras formas de indigência e as exclui da possibilidade de serem atendidas”
(CASTEL ,1998).
Robert Castel (1998) enuncia como relevante a importância instituída com a
utilização de determinadas categorias classificatórias, em que a moral é a questão
central, distintiva por excelência, segundo critérios como a situação em relação ao
trabalho. Os vagabundos o um exemplo do que fora vivenciado, sobretudo por se
120
referir aos sujeitos colocados numa situação limite, sem vínculo permanente junto às
estruturas formais das relações de trabalho, e, portanto, sem razões para serem
atendidos pela social-assistência, são jogados para fora das franjas do sistema,
porque considerados aptos à realização de atividades em favor de sua própria
manutenção. Em suma, são aqueles que receberão tratamento repressivo por parte
do Estado. Outras categorias como a dos “pobres envergonhados” e a dos
“mendigos inválidos” servem também de exemplos do quanto as categorizações
detinham o poder de decidir aqueles que seriam ou não assistidos.
Aliado a este critério, vem somar-se o de pertencimento comunitário, o de
ser domiciliado em endereço fixo, e ambos constituem-se então enquanto
delimitadores do campo da social-assistência.
Tais concepções consolidaram-se assim em princípios da estrutura moderna
da assistência em sua totalidade. Estes princípios são enunciados pelo autor:
[...] classificação e seleção dos beneficiários dos socorros, esforços para
organizá-los de um modo racional sobre uma base territorial, pluralismo de
instâncias responsáveis, eclesiásticas e laicas, “privadas e públicas”,
centrais e locais (CASTEL, 1998).
No entanto, apontou Castel (1998) que a sistematização de uma “nova
política social” se no início do século XVI, o que reflete uma ampla mobilização
social já em movimento desde o século XIV:
“Essa forma de assistência que corresponde nitidamente a uma
preocupação com a gestão racional da indigência não esperou, pois, o
século XVI para se manifestar. Tampouco esperou a laicização da
sociedade” (CASTEL, 1998)
O problema definido por Castel (1998) se encontra justamente quando o
trabalho passa a uma nova condição, a de instabilidade, o que coloca na situação de
supranumerários, e aqui utilizo os termos empregados pelo pesquisador, pessoas
que não terão possibilidades de tornarem-se vinculadas socialmente. Neste sentido,
boa parte de suas preocupações dizem respeito a interpretação histórica do lugar do
trabalho na estrutura das sociedades, procurando avaliar as conseqüências do
estado atual dado pelo desemprego crescente:
121
A caracterização sócio-histórica do lugar ocupado pela condição de
assalariado é necessária para mensurar a ameaça de fratura que assombra
as sociedades contemporâneas e empurra para o primeiro plano as
temáticas da precariedade, da vulnerabilidade, da exclusão, da segregação,
do desterro, da desfiliação... (CASTEL, 1998)
As fraturas visíveis atualmente acabam por denunciar flagrantemente a
impossibilidade de uma integração social, nos termos colocados por E. Durkheim, a
qual defendia a existência de uma complementaridade entre sujeitos (solidariedade
orgânica). Nestas circunstancias, Castel (1998) sugere que neste novo contexto se
compreenda o vínculo social a partir da união dos indivíduos pelas suas
semelhanças sociais, onde são produzidas comunidades de iguais, situação
diferente da anterior na qual se percebia a coesão social a partir da soma de
diferentes partes que completam.
A literatura sobre o tema é vasta, e retrata, sobretudo, na perspectiva
histórica, as relações entre os assistidos e as instituições, fundamentalmente como
relações de poder. Os jogos entre as categorias objetivavam enquadrar aqueles
sujeitos que não possuíam um lugar específico nas relações de trabalho, sendo alvo,
portanto, das ações de intervenção para o contexto europeu que se estendeu até
fins do século XIX, quando as relações salariais já se encontravam mais firmemente
estabelecidas.
É necessário contextualizar que essas categorias sofreram transformações
ao longo desses séculos, influenciadas, sobretudo, pelas transformações sociais e
políticas. Não cabe aqui, portanto, discorrer a cerca desta temática, entretanto, se
deve ressaltar que nesta análise das categorizações daqueles que não se
encontravam situados dentro da ordem social, ou seja, nas zonas de
vulnerabilidade, recebiam tratamento distinto dos demais (CASTEL, 1998).
O que mais chama a atenção para a reflexão desenvolvida no estudo sobre
famílias e redes de assistência, diz respeito à continuidade e permanência de certas
questões de fundo no que se refere ao tratamento das questões da ‘social-
assistência’. E nesta obra de Castel (1998) se torna evidente a perenidade das
mesmas. As questões que hoje pautam a prática da assistência social sugerem uma
proximidade muito grande com as práticas adotadas no período em questão. As
estratégias utilizadas para se definir atualmente quem são os privilegiados e aptos
para recebimento dos recursos da assistência, se situam muito próximo daquilo que
122
era percebido na Europa dos anos 1830; a saber, dois critérios, o da domiciliação e
o da incapacidade para trabalhar (CASTEL, 1998).
Na continuidade, a consolidação das preocupações com questões
envolvendo famílias e assistência, sobretudo referindo-se às medidas adotadas para
a conservação das crianças, é discutida na pesquisa organizada por Jacques
Donzelot (2001) na Europa dos séculos XVIII e XIX, e publicada na obra “A polícia
das famílias”. Nesse material, Donzelot preocupa-se em precisar a constituição de
um corpo especializado em assuntos da família que surge na Europa, decorrente de
preocupações com a normalização familiar, sobretudo popular. Naquele momento,
se pautava o afastamento das nutrizes das famílias burguesas, com o entendimento
de que estas se constituíam num prejuízo às crianças, sobretudo pela argumentação
dos maus cuidados a que essas crianças estariam submetidas. O apoio organizado
para realizar intervenção e normalizar as ações domésticas de famílias ricas em
torno desses cuidados das crianças no lar, contou amplamente com a participação
do “médico de família”.
Num outro extremo, nos grupos populares, organizou-se uma espécie de
cerceamento das liberdades, o fechamento da família se deu nos moldes burgueses,
causando mudanças profundas na forma de organização familiar. Um novo papel foi
dado à mulher; esta deveria cuidar do marido, e manter os filhos sob seu olhar
vigilante. A reordenação do espaço da casa foi também incluído nessas
transformações, separando-se os cômodos dos filhos e pais, e das crianças maiores
das menores; foi um aspecto importante de remodelação em torno de um novo
ambiente familiar que foi se impondo às famílias populares.
A justificativa para tais ações se pautava pela idéia de conservação das
crianças, influenciada enormemente pela visão de infância que se construía na
época (ARIÈS, 1981).
A adoção de certas atitudes, como a criação de um corpo institucionalizado
para cuidar, julgar e encaminhar assuntos específicos das famílias, como o tribunal
de menores, demandou por outro lado a constituição de um corpo de profissionais
também especializados em tratar de tais temáticas, o que demandou
conseqüentemente o surgimento de novas profissões. Num trecho Donzelot
apresenta que:
123
A partir do final do século XIX surgiu uma nova série de profissões: os
assistentes sociais, os educadores especializados, os orientadores. Todas
elas se reúnem em torno de uma bandeira comum: o trabalho social. [...]
Disseminados numa multiplicidade de lugares de inserção, guardam sua
unidade, não obstante, em função de seu domínio de intervenção, que
assume os contornos das classes menos favorecidas (DONZELOT, 2001).
É impressionante também neste período a força que o discurso instituído
exercia sobre as famílias dos grupos populares, sobretudo na detenção do direito
praticamente exclusivo de explicar e atribuir categorias a atitudes avaliadas como
disfuncionais em determinadas famílias. Essa é a situação expressa na categoria
“famílias inestruturadas” e o tratamento que recebiam por parte da assistência, que
procurava traçar-lhes inclusive um perfil estereotipado conforme será reproduzido do
autor: “São aquelas onde os traços dominantes são (segundo os serviçais do
tribunal, evidentemente): instabilidade profissional, imoralidade, falta de asseio”
(DONZELOT, 2001).
O deslocamento de uma prática moralizadora para com as famílias, a uma
normalizadora explica em grande medida a autonomização do “social”, enquanto um
campo de preocupações específicas. Ainda, alia-se neste deslocamento a
substituição de uma prática da caridade a uma prática de filantropia.
A prática de filantropia se deu em grande medida, pela adoção de uma nova
abordagem no tratamento da questão social, dando um novo método às ações
realizadas, e, sobretudo, a imposição de uma dimensão técnica ao que se realizava
como a utilização de manuais para a orientação das visitas familiares, bem como a
realização de relatórios sobre a situação das famílias.
No caso brasileiro, a relação entre assistência social e as famílias se
estabeleceu na preocupação com a questão das desigualdades sociais, e parte de
um esforço de setores não governamentais, sobretudo dirigido por instituições
religiosas, onde ocorreu, de certa forma, a adoção da assistência nos moldes de um
assistencialismo, realizado, como, por exemplo, a Roda dos Expostos. Em Silva
Neto (2001) temos que a relação do Estado com o social se nos termos de um
patrimonialismo e de uma personificação da política, situação a qual tomou novo
formato nos anos 30, com Vargas, o Pai dos Pobres. Para o autor:
124
Na verdade o envolvimento do Estado com questões de assistência não tem
uma história muito longa no Brasil. O poder público preocupa-se com uma
atuação mais efetiva na área social somente a partir da década de 30,
momento em que acentua-se o processo de modernização industrial e de
urbanização na sociedade brasileira (SILVA NETO, 2001).
Um exemplo significativo da ação do Estado sobre as famílias, no Brasil, se
percebe na preocupação com a infância, a partir da constituição da Fundação para o
Bem-Estar do Menor, conhecida popularmente por FEBEM e distribuídas em todo o
território nacional, a partir da década de 1960
28
.
A situação da assistência começou a apresentar novos contornos a partir da
abertura democrática com a promulgação da nova Constituição Federal, a qual
dispunha de uma série de dispositivos para o tratamento da questão social,
incluindo-se aqui crianças, jovens, mulheres, populações tradicionais, entre outros.
Assim, a medida, através da quais os sujeitos de classes trabalhadoras foram
inseridos ao modelo de nação que se desejava se deu de maneira formal, através da
universalização dos direitos sociais, sobretudo através da idéia de igualdade legal,
afirmado na expressão: “Todos são iguais perante a lei”.
Os desdobramentos desta afirmação são bem conhecidos de estudiosos que
se propõem estudar a diversidade cultural no Brasil. As categorias analíticas as
quais são utilizadas pelo Estado ou pelas organizações sociais para descrever esta
realidade, em grande parte, são determinadas e atravessadas pelas desigualdades
que permeiam as relações de classe no Brasil. Ou seja, as diferenças são
percebidas enquanto afastamentos de situações ideais, de famílias organizadas,
nucleadas.
Em seguida deste processo de abertura democrática e de universalização
dos direitos sociais, políticos e individuais, o país mergulharia em um retraimento
considerável na condução de suas políticas sociais de assistência, sentindo-se os
reflexos desta política neoliberal no aprofundamento das desigualdades sociais no
Brasil, e também de políticas de privatizações e redução de investimentos em
setores como assistência social e educação.
Contudo, na atualidade, especialmente a partir de 2002 o crescimento
expressivo de políticas de assistência social governamental, no país, tem distribuído
recursos sociais de renda mínima, denominado de Bolsa Família, a um contingente
28
São sabidas as modificações legais que foram instauradas com o Estatuto da Criança e do
Adolescente (lei 8.069/90), sobretudo no tratamento com a infração dirigida por crianças e
adolescentes, mas não se constitui objetivo deste estudo dedicar-se a tal sistematização.
125
cada vez maior de famílias. Esse contexto de ampliação gradual de beneficiários,
traz reflexos igualmente interessantes ao debate sobre as relações entre famílias e
redes de assistência, e leva a refletir, sobretudo, a particularidade do caso brasileiro
num contexto de retraimento mundial das políticas de assistência.
A fim de ampliar um pouco mais a compreensão em torno da lógica da
assistência no Brasil, se partirá de alguns dados de campo, obtidos a partir de
observações etnográficas nas duas regiões administrativas investigadas. Tais
dados, em alguns momentos, irão confirmar as expectativas percebidas no resgate
histórico da trajetória da ascensão do ‘social’ e da construção das categorias; mas,
em outros momentos, servirá de contraponto aos mesmos, apresentando-se como
peculiaridade deste processo, resultado de mudanças na condução das políticas
sociais de assistência no Brasil nos últimos anos.
A lógica dos programas e serviços da assistência percebida nas duas
regiões administrativas apresenta certas particularidades no que se refere à sua
forma de apresentação e divulgação. Boa parte dos programas e serviços das redes
de assistência não possui propagandas ou informações de grande visibilidade. As
instituições se localizam em certos ambientes onde não identificação alguma dos
serviços e programas que são oferecidos, o que, de certa forma, passa
despercebido ao olhar estrangeiro. Temos como exemplos os casos de programas
sociais como o Fome Zero, que são executados nas igrejas, ou também o Bolsa
Família em que as famílias beneficiárias o acompanhadas nas Unidades Básicas
de Saúde. Nestes espaços, as únicas identificações sugerem a exposição da
vocação primeira destes, como igrejas e unidades de saúde.
A visibilidade das relações de reciprocidade, expressas no dar, receber e
retribuir, que se constitui no objeto deste estudo, evidenciou, também, por outro
lado, na habilidade que as famílias desenvolvem para acessar estas redes. Para isto
as famílias necessitam circular entre os serviços e programas, fazer parte, tornar-se
visíveis, demonstrando o interesse a partir da participação e freqüência cotidianas.
Assim, é a partir deste reconhecimento estratégico que muitas famílias vêem
facilitada sua inclusão nas redes de assistência.
Aponta-se que, se por um lado as redes de assistência apropriam-se de
determinados significados culturais dos grupos populares, por outro, as famílias
também se apropriam de certos códigos específicos destas redes, como aquele de
percorrer os caminhos institucionais e cumprir as exigências burocráticas.
126
A experiência de campo mostrou que também a pesquisadora necessitaria
acompanhar e vivenciar os encontros que ocorriam entre as famílias e as redes de
assistência, sobretudo se objetivasse conhecer mais profundamente as relações
sociais daqueles universos. Nos diferentes contextos da pesquisa de campo, a
totalidade desta experiência, a de pesquisar em duas regiões e sugerir
generalizações, foi mostrando-se viável, na medida em que para ser aceita foi
preciso inserir-me também como um sujeito-parte das redes de assistência, o que foi
impondo-se naturalmente a partir da participação e presença nos atendimentos, na
organização e distribuição das sacolas do Fome Zero, e o mais curioso, em algumas
situações ser confundida com uma assistente social, prestando orientações e
informações às famílias que procuravam pelos recursos da assistência.
5.2 As famílias cadastradas
Na intenção de contribuir qualitativamente com a discussão sobre a lógica
de assistência no Brasil, propõe-se que sejam analisadas as manifestações
particulares das dinâmicas das redes de assistência. Assim, as contribuições deste
capítulo se dirigem a perceber as particularidades das redes de assistência em duas
regiões administrativas, situadas em contextos de universos sociais de grupos
populares na cidade de Pelotas/RS.
No loteamento Dunas, a expansão e a organização das ações de assistência
por parte do Estado tem-se tornado cada vez mais expressivas naquele contexto.
Instituições são criadas e programas sociais são inaugurados tendo em vista a
lógica da proteção integral às famílias, e, neste sentido, um considerável
investimento em constituição de equipes técnicas, ou seja, de um corpo técnico
especializado de profissionais que dêem conta da diversidade de áreas de
demandas que são percebidas pelas políticas de assistência como essenciais para a
garantia de bem-estar mínimo às famílias.
A lógica compartilhada entre profissionais e voluntários informa a direção na
qual a assistência é realizada, qual seja a do necessário e desejado desligamento
das famílias dos programas e serviços ao longo do tempo, ou seja, quando não mais
127
se fizer necessário o recebimento dos benefícios, indício de que a família atingiu
sua cidadania. Assim, a idéia de protagonismo entre em conflito com a de
assistencialismo, prática largamente condenada por profissionais e voluntários.
No entanto, os agentes de intervenção questionam também os limites deste
estado de coisas, na medida em que determinadas dinâmicas das redes de
assistência inviabilizam de maneira mais rápida o desligamento das famílias
atendidas nos programas e serviços. Na fala de uma assistente social, que atua
junto às famílias do loteamento Dunas, se percebe sua preocupação a partir da
avaliação que a mesma faz de sua prática de profissional da assistência:
“E é muito complicado, pelo papel né, [...] tu tem que atender, né, tu tem
que fazer um cronograma de atendimento até tu poder dar o desligamento
da família. que é assim, ó, é muito complicado, tu não tem como dar
um desligamento da família se a família não tem realmente um suporte
financeiro. [...] Pedem acompanhamento e num determinado momento o
desligamento da família, pelo tempo, que depende muito do tempo, até
agora eu não fiz nenhum desligamento. [...] Tu não consegue encaminhar,
[...] tu fala em rede que é muito complicado tu não consegue
encaminhar pela rede pra educação, tu não consegue que a pessoa tenha
realmente uma casa decente. Tu não consegue que ela tenha todo tipo de
atendimento na saúde. Por isso é que fica desfalcado, e por isso que
continua atendendo, a maioria, claro, a maioria das vezes tu continua
atendendo as mesmas famílias. [...] Eu tenho uma família que agora que
eu dois, ou três meses, eu to tentando que a pessoa tenha esse tipo de
atendimento, e não tem, não ta conseguindo ter. Então assim tu o tem
como deixar de atender essa família se a rede não funciona”. (Mariana,
Assistente social, Loteamento Dunas)
Cabe na análise desse caso observar seu caráter contraditório, que se
apresenta na inevitabilidade da constituição dos vínculos sociais entre famílias,
profissionais e voluntários. A gica utilizada nas redes de assistência denuncia que
justamente aquilo que se deseja evitar (os vínculos, o reconhecimento mútuo e a
continuidade expressa no dar, receber e retribuir) constitui-se na condição
necessária para que as famílias se coloquem em condições de realizarem
mediações, e atingirem por si mesmas a condição de protagonistas.
A política de assistência atual prioriza em sua atuação uma forma mais
integrada e, portanto, unificada de tratar dos assuntos a ela relacionados. A forma
encontrada e atualmente disseminada entre os programas governamentais se
orienta a partir da utilização de um instrumento de registro único para a descrição da
128
situação das famílias atendidas, chamado cadastro único, utilizado prioritariamente
pelo Programa Bolsa Família. Os dados coletados com o Cadastro Único são
enviados ao Ministério do Desenvolvimento Social, a fim de que o mesmo proceda à
seleção das famílias que serão contempladas com o recebimento do benefício
mensal. Além disso, com a unificação e interligação dos sistemas de informações, é
evitada a duplicação de recebimento de benefícios por uma mesma família,
reduzindo-se assim as possibilidades de fraude no acesso aos benefícios sociais.
O cadastro único passou de instrumento para a seleção de famílias para o
Programa Bolsa Família, para constituir-se num meio privilegiado de controle e
aproximações da realidade econômica das famílias. A realização do cadastro, no
entanto, não significa que a família irá receber algum recurso, ou ser incluída em
algum programa, mas sim que ela é reconhecida pelos órgãos do Estado como uma
família em situação potencial para acesso aos mesmos. Em grande medida, por ser
o Programa Bolsa Família um programa massivamente conhecido, muitas demandas
que chegam às redes de assistência se dão em torno do atendimento de questões
relativas ao mesmo, seja para a solicitação de cadastro novo, de alterações nas
informações das famílias, e até mesmo da cobrança de visitas domiciliares por parte
das famílias às técnicas que trabalham com o referido programa. Mais adiante se
voltará a tratar do Programa Bolsa Família e das formas de atendimento e
acompanhamento às famílias por parte das instituições como o CRAS e as Unidades
de Saúde, no entanto, para o momento fica registrada a importância do cadastro
único como um instrumento de avaliação da situação das famílias.
A disseminação do uso deste recurso de cadastramento das famílias, por
parte daqueles que trabalham com as redes de assistência, tornou-se comum, e, ao
mesmo tempo um instrumento de auxílio para a seleção das famílias, independente
do programa ou serviço. O uso do cadastramento das famílias não é feito de forma
exclusiva pelos órgãos governamentais, mas é largamente apropriado por todos os
programas e serviços das redes de assistência.
Durante o trabalho de campo, houve diferentes depoimentos que o traziam
como referência, servindo, na maioria das vezes, de apoio aos profissionais e
voluntários para justificar a seleção de certas famílias em detrimento de outras.
Assim, de maneira intrínseca, cadastro e seleção são aspectos que
compõem uma mesma etapa, interligando-se e complementando-se. O exemplo de
S. Gregório, responsável pelo Fome Zero de sua comunidade na vila Pestano,
129
apresenta a relação de maneira simples e evidente: Então as pessoas iam lá,
levavam seus dados, faziam o cadastro [...] e depois de todas essas queixas [...]
aí quando a gente assumiu, a gente fez a visita de todas, todas aquelas”.
Deste modo, o cadastro se constitui na etapa inicial de um processo que
deseja consolidar a aproximação e o acompanhamento das famílias que serão as
beneficiadas pelos programas e serviços. O cadastramento se constitui pois, na
etapa de se recolherem dados e a seleção de analisar e confirmar a veracidade dos
mesmos, através da aplicação de determinados critérios. Portanto, nas redes de
assistência, independente da região onde se esteja é comum a utilização do termo
famílias cadastradas, o qual remete à situação das famílias que ao solicitarem o
recebimento de um benefício, após submeterem-se à realização de inscrição prévia,
aceitam implicitamente responder certas expectativas, como a apresentação da
documentação de todos os membros que moram na casa, a comprovação de
despesas com a manutenção destes membros, apresentando-se também a renda
necessária para tal fim, além, é claro, de colocar-se à disposição para receber a
visita de pessoas autorizadas para a comprovação dos mesmos, os quais avaliam
também a condição da casa, e questões outras como a higiene, a existência de
banheiro, chuveiro, água encanada, etc.
A preocupação com questões desta natureza eram percebidas, no
entanto, nos primórdios da assistência. Logo no início deste capítulo, a
apresentação do que mais tarde viria a se configurar na forma da assistência
moderna, dava sinais do quanto a classificação e a seleção daqueles que seriam
os beneficiários dos socorros ocupavam aqueles que distribuíam os benefícios e
organizavam os assistidos (CASTEL, 1998). Muitas discussões que pautavam o
debate naquele período, sobre os critérios de classificação e das condições nas
quais estes sujeitos poderiam beneficiar-se, giravam em torno de duas polêmicas
centrais, a de ser incapaz para a realização do trabalho e a de estar fixado em
domicílio.
Atualmente, o cadastro das famílias está condicionado ao preenchimento de
certos requisitos, os quais dependem exclusivamente do preenchimento de
determinadas condições nas quais estas se encontram, seja a partir da renda, de
possuir família numerosa, de se encontrar em situação de vulnerabilidade (gravidez
na adolescência, portadores de HIV, usuários de drogas...) ou de possuir filhos
pequenos fora da escola, como também idosos entre os dependentes. Tais critérios
130
devem ser analisados por referência aos programas aos quais se deseja benefício,
contudo, de forma geral, permanece em sua maioria o critério de escolha a partir da
renda das famílias. Para exemplificar, poder-se-ia apresentar os requisitos aplicados
pelo programa Agente Jovem loteamento Dunas, a partir da experiência relatada
pela assistente social responsável pela seleção dos jovens do loteamento:
“[...] todos os critérios das famílias que a gente trabalha, tem que receber
Bolsa Família. Do Agente Jovem, o ano passado não era, mas acabou
sendo agora. O ano passado era meio salário per capita, e agora tem que
ter o Bolsa Família, [...] então o critério é trabalhar com famílias que
recebem o Bolsa Família”. (Mariana, assistente social, Loteamento
Dunas)
A responsabilidade pela seleção das famílias que serão cadastradas é
basicamente de assistentes sociais, desde que a mesmo seja governamental, ou
que integre alguma instituição que possua em seus quadros certa equipe técnica,
como é o caso do trabalho desenvolvido pela igreja católica, onde a organização
dos serviços da caridade através da Cáritas Diocesana. Nos outros casos, como o
do Programa Fome Zero, cuja execução é compartilhada por diferentes instituições,
na sua maioria igrejas, e Organizações o-Governamentais, tais atribuições são
realizadas por voluntários, pessoas que se dedicam gratuitamente ao atendimento
às famílias
29
. Nas duas regiões investigadas, embora não exista, na maioria das
vezes, a presença de um assistente social para o exercício desta função, os
cadastros o deixam de ser realizadas; pelo contrário, estes são responsabilidades
das lideranças comunitárias das instituições que fazem parte. No relato de uma
liderança comunitária da Vila Pestano, responsável pelo Centro Comunitário de
Assistência da Igreja Evangélica de Confissão Luterana e também pelo Fome Zero,
tem-se o seguinte registro:
“Pra gente distribuir essas sacolas, a gente levantava de manhã, e tinha
inscrições lá na igreja. As mulheres iam lá e faziam as inscrições e davam
o endereço delas, e nós vínhamos aqui dentro do Pestano, (...) e ia a pé,
pra ver a situação de cada família, de quem realmente precisava e de
29
Cabe, portanto, esclarecer que o Fome Zero na cidade de Pelotas é coordenado pelo Centro de
Apoio ao Pequeno Agricultor, o CAPA, o qual é responsável pela realização dos contratos com as
cooperativas de produtores ecológicos. Estas cooperativas devem de 15 em 15 dias repassar,
conforme os contratos previamente estabelecidos, os alimentos que constituirão as sacolas que serão
entregues às famílias cadastradas do Fome Zero.
131
quem não precisava”. (Geni, responsável Fome Zero e Centro
Comunitário Bom Pastor – IECLB / Vila Pestano).
Os critérios priorizados em boa parte dos programas e serviços referem-se
quase que exclusivamente à renda. A implicação da adoção desse critério origina
uma nova demanda para os profissionais e voluntários da assistência, a de constatar
a situação de pobreza das famílias que realizaram os cadastros, o que é
possibilitado através das visitas domiciliares. A vivência das visitas possibilita
àqueles que selecionarão as famílias munir-se de argumentos que justifiquem as
decisões tomadas, como exemplificou S. Gregório: “[...] fizemos uma visita in loco,
como se diz, fomos lá ver a realidade das pessoas”. Os significados do “ver a
realidade” se tornam materializados quando existem evidências suficientes que
permitem hierarquizar as necessidades como “famílias grandes, com criança
pequena, desempregados”.
No trabalho de campo verificou-se também que os processos de seleção das
famílias nem sempre ocorrem de maneira tranqüila, ou seja, em muitas situações
dificuldades se expressam quando os critérios são considerados vagos e pouco
precisos, de modo a justificar com segurança a escolha de uns e não outros. Na
avaliação de uma assistente social do loteamento Dunas, as classificações relativas
à pobreza o podem ser apontadas como definitivas, tendo em vista que a
pobreza, segundo ela, é um estado temporário onde acredita que:
“Na seleção, e isso é que é complicado, na seleção tu nunca vai abarcar
realmente sabe, [...] e depois vai ter pessoas que vão receber e que não
precisam, com certeza. E tem outras que precisam, é muito difícil. E até
momentos, , momentos que precisa mais, momentos que precisa
menos, e vai receber igual [...]” (Mariana, assistente social, Loteamento
Dunas)
As informações obtidas sobre a família cadastrada são sempre registradas,
seja no Cadastro Único (caso dos programas governamentais sobretudo do Bolsa
Família) seja num roteiro alternativo, previamente elaborado pelos voluntários e / ou
profissionais, onde se registram informações consideradas importantes, como
endereço, número de filhos, despesas familiares permanentes como luz, água, gás,
alimentos e medicações.
No primeiro caso, o do Cadastro Único, a complementaridade do que é
analisado pelas assistentes sociais é registrado num outro instrumento chamado de
132
parecer técnico, onde são colocadas informações a cerca da situação da família de
forma qualitativa, quanto aos vínculos, aos hábitos de higiene, entre outros. O
encaminhamento de ambos, tanto o cadastro único, quanto o parecer ocorre
diferenciadamente. Neste primeiro o envio para o Ministério do Desenvolvimento
Social, enquanto o parecer é encaminhado à Secretaria de Cidadania, para fins de
arquivamento, caso ocorram problemas, como denúncias de irregularidades, por
exemplo.
A particularidade do cadastramento das famílias atendidas no loteamento
Dunas, ocorre, sobretudo pela existência de uma instituição específica para o
acompanhamento e orientação às mesmas. O CRAS Centro de Referência da
Assistência Social “desenvolve ações e serviços básicos para famílias em situação
de vulnerabilidade social” (PREFEITURA MUNICIPAL DE PELOTAS, 2007).
Da mesma forma que são realizados cadastros das famílias que desejam
incluir-se nos Programas Bolsa Família ou Fome Zero, ocorre no CRAS, para cada
família atendida, a inclusão em um novo cadastro, o cadastro do CRAS. Para
receber orientações no CRAS as famílias que até se dirigirem receberão
atendimento e todas as informações que necessitarem. Contudo, quando os
objetivos de procura da família ultrapassam o da informação, estas têm que estarem
obrigatória e previamente amparadas pelo cadastro. Caso contrário, estas famílias
são encaminhados para que o façam; trata-se de uma exigência que deve ser
observada e seguida pelas famílias.
O cadastro do CRASo se trata daquele instrumento utilizado para a
inscrição e seleção dos beneficiários no programa Bolsa Família e Fome Zero. Trata-
se de um roteiro de questões a ser preenchido, estritamente pela equipe técnica, no
qual constam informações sobre aquelas que são atendidas, encaminhadas e
acompanhadas pelo Centro de Referência. A utilização dos programas e serviços
pelas famílias requer o preenchimento de dois pré-requisitos, o de receber o Bolsa
Família, e de estar cadastrado no CRAS.
O cumprimento destas exigências é observado pelas profissionais do CRAS
e repassado também àquelas que procuram pelos seus serviços. Assim, relatou uma
psicóloga sobre a especificidade do atendimento realizado no local:
“Então assim, todo mundo que a gente atende a gente pede pra fazer o
cadastro. Então traz o documento, isso as gurias fazem, as auxiliares
133
administrativas fazem sem problema nenhum [...] E aqui é uma outra folha
diferente, que não ta aqui, que é de relato assim, é uma que diz relato
de caso, cheia de linhas, assim. Então a gente coloca a data (e faz o
registro do atendimento)” (Marisa, psicóloga, Loteamento Dunas).
nas comunidades religiosas foi verificada, durante o trabalho de campo, a
referência às listagens. Trata-se de um caderno onde constam os nomes das
famílias cadastradas no programa Fome Zero ou em qualquer programa ou serviço,
sejam dos grupos de mulheres ou dos encontros da Pastoral da Criança na igreja
Católica; seja dos participantes do reforço escolar ou dos participantes na horta
ecológica da Igreja Evangélica de Confissão Luterana.
5.3 As visitas nas famílias
A percepção por parte dos voluntários e dos profissionais a cerca da
importância das visitações enquanto pré-requisito para a averiguação das inscrições,
e conseqüentemente da inclusão ou não das famílias como famílias cadastradas, é
compartilhada na quase totalidade por aqueles que atuam nas redes de assistência,
e um todo amplamente empregado em todas aquelas que atendem as famílias
nas redes de assistência.
No caso do Programa Fome Zero das duas comunidades do Pestano, têm-
se cerca de trezentas famílias beneficiárias, as quais foram também submetidas a
um processo de seleção que teve nas visitações o critério determinante daquelas
que receberiam definitivamente as sacolas. O que contou S. Gregório, responsável
juntamente com D. Leda por 150 famílias do Fome Zero na comunidade Católica da
Vila Pestano, nos permite compreender o valor atribuído às visitas por aqueles que a
realizam:
“Então as pessoas iam , levavam seus dados e faziam o cadastro. [...]
Quando a gente assumiu, fizemos visitas de toda aquela listagem, que
tinha ali de todas as pessoas cadastradas. Fomos de casa em casa, [...]
fomos ver a realidade da pessoa. [...] A gente foi de casa em casa,
sentou, seja barraco, conversou, pegou os dados da pessoa. Viu a
realidade da pessoa. E através daquilo ali a gente começou a fazer um
processo de reciclagem [...] Começamos a fazer uma reavaliação”.
134
As visitas que são realizadas às famílias remetem à idéia de que o melhor
critério de justiça está sendo utilizado, de que a visualização e, com isso, a
aproximação da situação em que vivem as famílias, significa a melhor forma de se
justificarem as escolhas, além de igualar os critérios de seleção, aqueles que mais
precisam”. As visitas constituem-se também numa espécie de resposta para as
diferentes acusações que são trocadas entre os que desejam acessar o beneficio,
conforme nos relatou S. Gregório: “[...] Teve todas essas queixas, ah, mas o fulano
queria entrar, mas não podia. Ah, mas como o Fulano que ta empregado, que ganha
isso, que ganha aquilo, ta recebendo?”
Desta maneira, segundo S. Gregório, que se viu diante da situação de dar
continuidade aos trabalhos do Programa Fome Zero em substituição a uma outra
pessoa, a solução para este impasse se resolveu somente a partir da realização das
visitas, as quais permitiram perceber e analisar caso a caso a situação de cada
família. Para ele e sua equipe apresenta-se como uma saída justa diante de um
universo onde muitos precisam, e poucos são os recursos, selecionando, assim,
famílias numerosas que tenham crianças e/ou desempregados.
Desse modo, a disseminação do recurso à visitação familiar constitui-se num
instrumento de controle por parte das diferentes organizações que se ocupam da
assistência. Tal recurso é percebido, além disso, como um meio eficaz de
acompanhamento das famílias, verificando-se assim os impactos e a eficácia de
determinados programas e serviços, o que acarreta, também, muitas vezes, na
reavaliação da situação das famílias não beneficiadas, bem como, do desligamento
definitivo da família que do recurso não mais necessitar.
Neste sentido, a institucionalização das visitas domiciliares como um recurso
do Estado vem ocorrendo paulatinamente, e se faz sentir, especialmente no
Programa Fome Zero, a partir da criação da figura do Agente de Segurança
Alimentar, uma espécie de visitador permanente que, escolhido dentre as famílias
contempladas com as sacolas, realiza acompanhamentos mensais a todas as
famílias beneficiadas.
A exigência de realização das visitas domiciliares pode ser avaliada
enquanto uma técnica iniciada pela assistência nos anos 1920, a fim de construir
uma investigação metódica” (DONZELOT, 2001) sobre as famílias. A verificação de
uma série de etapas que objetivavam uma aproximação que fosse o mais natural
135
possível se orientava a partir de observações a um conjunto de passos que deveria
ser realizado pelo trabalhador social quando se desejasse a obtenção de
informações de uma forma mais racional e menos moral. As regras adotados por um
“investigador social” eram as seguintes:
[...] aproximação circular da família [...]; interrogatório separado e
contraditório [...]; verificação prática do modo de vida familiar [...]. Em suma,
uma técnica que mobiliza o mínimo de coerção para obter o máximo de
informações verificadas (DONZELOT, 2001).
Por outro lado, percebe-se que o significado das visitas se estende para
além da busca por dados mais confiáveis e menos seguros, com a intenção de
realizar uma seleção mais justa possível. E foi especialmente na análise do diário de
campo que a compreensão dos significados das visitas foi adquirindo sentido,
contribuindo para a interpretação da lógica que subentendem tais práticas. De
maneira geral, o potencial das visitas está na aproximação e na constituição de
vínculos, que proporciona às famílias, profissionais e voluntários; a visita é, antes de
tudo, uma possibilidade a mais de encontro.
diferentes registros que situam a importância da mesma, seja para a
inclusão de novas famílias, seja para o encaminhamento daquelas que
constituíram vínculos. O caso de uma assistente social responsável por uma das
unidades de saúde do Pestano, em uma das vezes em que nos encontramos,
contava que não realizava visitas domiciliares, e, além disso, que nas pesagens
semanais não era exigida a rigorosa freqüência de pesar e medir as crianças, isso
tudo sob alegação legítima de que ela conhecia todas as famílias do lugar, e que
em razão dessa proximidade sabia da realidade vivenciada por cada uma delas. Ou
seja, ela se torna uma autoridade no assunto, porque seus vínculos com as famílias
se encontram suficientemente solidificados nas relações de amizade e
pessoalidade com as famílias, que se justifica, sobretudo pelo tempo de trabalho no
local, cerca de 20 anos de atividades como assistente social.
Em outro registro de campo, tem-se referência às tentativas de inclusão das
famílias junto ao Programa Bolsa Família, onde se faz necessária a apresentação
precisa dos gastos familiares. Naquela situação a presença da assistente social foi
essencial para a compreensão e enquadramento às condições do programa:
136
“Solange e seu marido estão desempregados. Ambos moram com a filha
de 5 anos. Solange e seu marido são catadores de materiais recicláveis.
Eles recebem, confirmado pela sogra, ajuda dos pais do seu
companheiro, onde ela disse jantar e fazer algumas refeições [...] A
assistente social pergunta qual a renda da família, como inexistindo a
possibilidade de ganhos permanentes e estáveis, a própria assistente
decide ajudar Solange, pedindo que ela diga então o quanto gastam por
mês entre luz, água, alimentação. Solange, fica pensativa e responde que
de luz paga entre 15 e 45 reais, água não paga e, alimentação disse ser
muito difícil prever, mas que por mês teria que contabilizar o óleo, alguns
litros de leite e ainda em dúvida, respondeu mesmo assim, que deveria
ser em torno de 15 reais por semana. [...] A assistente social pergunta se
Solange havia contatado a CEEE [...] e insistiu dizendo ser um absurdo
o valor de 45 reais pago pela família, onde orientou para que mais uma
vez ela (Solange) procurasse os serviços da Companhia” (DIÁRIO DE
CAMPO, 11 de maio de 2007, Visita Bolsa Família com assistente social –
loteamento Dunas).
Assim, mais do que perguntar, registrar e selecionar servem as visitas para
reafirmar as disponibilidades de famílias, profissionais e voluntários em consolidarem
suas relações de proximidade, dispondo-se a participar do jogo de reciprocidade
implícito quando se estabelece o vínculo. A partir das colaborações mútuas (dar,
receber e retribuir), como percebido nos casos anteriores, adentra-se num circuito
de benefícios sociais, que tem seu princípio nos cadastramentos e visitações.
As características apresentadas até o momento encontram-se muito
próximas ao que Robert Castel (1998) atribui como “etapas essenciais e distintas da
estruturação do social-assistencial”. Mas o que é mais curioso, é que esta
configuração está em concordância com dois vetores fundamentais, que acordo com
este autor podem ser identificados: “de um lado, (n)a relação de proximidade entre
os que assistem e os que o assistidos; de outro, (n)a incapacidade para trabalhar”
(CASTEL, 1998). Ou seja, se de um lado as famílias procuram a constituição de
vínculos com os profissionais e voluntários como demonstrado no capítulo anterior,
por outro, as redes de assistência retribuem o dom oferecido, dispondo-se a
selecionar dentre as famílias aquelas com as quais detém maior proximidade e
envolvimento
30
, recompondo neste caso relações de proximidade, características de
uma sociabilidade primária.
30
Neste ponto da discussão deve-se tomar cuidado para que não se confundam os períodos
históricos e os contextos em que os mesmos ocorreram. Assim, cabe salientar que o social-
assistencial configura-se por oposição aos modos de organização coletiva que fazem economia
desse tipo de recurso. [...] Para Castel (1989) o social-assistencial emerge quando existem falhas nas
assistências não especializadas, ou primárias.
137
As trocas existentes entre famílias, profissionais e voluntários ocorrem
também na realização das visitas. Nesses encontros, a avaliação dos profissionais e
voluntários não deixa de se fazer, sendo que os critérios a serem observados pelas
famílias após as visitas, serão avaliados a partir da continuidade da participação
delas junto aos programas e serviços. Assim, cabe registrar que há uma série de
aspectos a serem analisados numa visita, mas tais critérios são influenciados
grandemente pela pessoa que por ela é responsável. O caso de uma assistente
social do loteamento Dunas é interessante de ser analisado, na medida em que ela
não só utiliza certos critérios, mas também sugere mudanças de hábitos familiares:
“A primeira visita nós fizemos, eu, a Mariana e a Maria Laura que é da
casa dos meninos. Fomos fazer uma visita, e a casa tava um caos. Uma
casa boa até, com sala, quarto, cozinha, banheiro, banheiro com
chuveiro, tinha tudo, um caos, uma sujeira, sujo, sujo, sujo. [...] eu
disse pra ela: “Tu continuas recebendo o Bolsa Família, né”? Teria que
ser bloqueado, mas ta recebendo, não foi bloqueado, mas então tu vai
pegar esse dinheiro, e vais fazer o quê? Tu vais arrumar o chuveiro, tu
vais arrumar o vaso, tu vais arrumar o cano de água do vaso que ta
estragado, tu vais arrumar o tanque, tu vai arrumar tudo o que está
estragado na tua casa”. (Maristela, assistente social, Loteamento Dunas)
Em outro exemplo tem-se um caso de que os critérios de avaliação
utilizados nas visitas se dão em termos de limpeza e organização da casa:
“[...] pobreza não é sinal de sujeira, de desorganização, de relaxamento.
Eu entro em casas aqui, que são um bionguinho assim, uma peça, um
chalezinho sem piso, sem nada [...] uma mesinha bem arrumadinha, um
guardanapinho, o chão de terra, mas bem limpinho. Então quando ta
muito assim, a gente orienta, tem que limpar não pode deixar a louça
suja, que pode vir bicho. Um dia nós chegamos numa casa, uma casa
imensa, grande, tinha a tênis em cima da pia, junto com louça, né,
relaxamento puro assim. Então tu orienta, olha não pode ter, isso não
pode acontecer louça atrai rato, junta rato, junta barata, junta bicho, e não
pode, tem que manter limpo, tem que organizar, água todo mundo tem na
torneira”. (Maristela, assistente social, Loteamento Dunas)
Numa outra perspectiva, contrária as que foram apresentadas acima, é
avaliada a eficácia das visitas diante da seleção de programas como o Bolsa
Família. Em quase sua totalidade as assistentes sociais demonstram insatisfações
quando o assunto são as visitas domiciliares, e cobram reformas na seleção das
famílias que solicitam a inclusão diante o preenchimento do cadastro único.
138
Nos dois locais investigados as condicionalidades se dão basicamente
diante do acompanhamento de peso e altura das crianças até seis anos. No entanto,
é importante acrescentar que existem especificidades que são verificadas no
loteamento Dunas e que não são encontradas na Vila Pestano.
A organização para atendimento e acompanhamento do Programa Bolsa
Família no Dunas é compartilhado entre duas instituições, a Unidade de Saúde e o
CRAS. Na unidade de saúde do loteamento Dunas são acompanhadas as
condicionalidades para a permanência no Programa, e o mesmo ocorre também na
unidade de saúde da vila Pestano. Em ambas as unidades de saúde, este
atendimento é semanal, de maneira a atender de forma parcelada todas as crianças
do local. Até este ponto nada de diferenças consideráveis, a não ser a forma de
atendimento que é realizado, o que será apresentado na seqüência.
Mas, pela composição da rede de assistência no Loteamento Dunas se dar
de forma mais complexa, e possuir uma organização mais densa junto às famílias,
as instituições dividem a agenda de trabalhos entre si, sobretudo no que concerne
ao Programa Bolsa Família. No loteamento Dunas, a partir da inauguração do
CRAS, os trabalhos específicos quanto ao programa Bolsa Família encontram-se
junto à realização de novos cadastros, ou de atenção às solicitações de reavaliações
junto às famílias não contempladas. Neste caso, é obrigatória a realização de visitas
domiciliares para constatar-se in loco a situação vivenciada pela família a qual
deverá justificar a solicitação de requerimento de reavaliação do benefício.
A realização das visitas, embora se constitua num pré-requisito para o
recebimento do benefício, é questionado pelo poder de sua eficácia quanto aos
critérios que realmente influenciam a inclusão destas famílias nas redes de
assistência. O relato de Mariana, uma assistente social do loteamento Dunas, que
há algum tempo exerceu esta função poderá ser útil à compreensão:
“Porque assim, a gente conversa muito sobre isso aí, se a gente tivesse a
autonomia, a gente tem que fazer as visitas, tem que fazer parecer né, se
dentro das condicionalidades pra receber, mas o parecer é somente
mais uma folha pra ficar na Secretaria (de Cidadania), ele não influencia”.
As críticas levantadas pela assistente social evidenciam a pouca importância
de suas atribuições diante de critérios quantitativos como a renda, por exemplo. As
funções de um assistente social são apresentadas por ela mesma, evidenciando a
particularidade de sua área, que consiste em boa medida, nos conhecimentos que
139
possui sobre as famílias que atende no loteamento, fruto de contatos e vínculos
construídos diariamente.
Os critérios atualmente utilizados para a inclusão das famílias é justamente o
alvo das críticas destas mulheres que, pela sua formação, preocupam-se com outros
aspectos destas famílias, que deveriam ter maior peso em suas avaliações.
A exigência praticamente exclusiva da renda familiar coloca em xeque a
presença das assistentes sociais e psicólogas, quando percebem que se houvesse
consideração de um parecer técnico, determinadas famílias que, pela renda
atualmente são beneficiárias, imediatamente teriam seus benefícios cortados em
detrimento de uma outra família, que embora tenha renda maior, as dificuldades
pelas quais passa justificaria em si o redirecionamento do benefício.
Ao reconhecer a ineficácia do parecer do assistente social para a inclusão
das famílias no programa Bolsa Família, ela ao mesmo tempo questiona os critérios
de seleção utilizados pelo mesmo:
“Não influencia assim se a pessoa vai ou não receber o Bolsa Família.
Duas famílias, por exemplo, com a mesma renda, mas com necessidades
diferentes, se a gente pudesse influenciar, essa família realmente precisa
agora, e essa pode esperar mais um pouco, a gente não tem essa
influência. Porque vem publicado, né, porque senão a gente poderia dizer,
ó essa precisa. A gente atende várias pessoas que são sozinhas e que
precisam do Bolsa Família, e com certeza, essas pessoas vão deixar de
receber porque não têm crianças, e eles dão prioridade pra quem tem
filhos, e quanto mais filhos a prioridade aumenta, né. (...) Então a gente
poderia, que a gente faz esse parecer, poderia ter essa autonomia”.
(Mariana, assistente social, Loteamento Dunas).
5.4 Os atendimentos e os registros dos atendimentos
A etapa posterior que se segue as visitas e a seleção das famílias se faz na
realização dos atendimentos junto aos programas e serviços das redes de
assistência. Os atendimentos constituem-se, assim, no momento de execução da
proposta de determinado projeto ou medida cio-educativa. que se destacar
que a variabilidade de atendimentos realizados no loteamento Dunas extrapola em
140
número àquele da rede existente na vila Pestano. Na continuidade, será
apresentada a execução de dois programas sociais da assistência, procurando-se
evidenciar aspectos que traduzam a importância de tais encontros para a
consolidação dos vínculos que aproximam famílias, profissionais e voluntários. As
peculiaridades aqui apresentadas foram organizadas a partir de registros do diário
de campo e dizem respeito às formas de atendimento dispensadas às distribuições
das sacolas do programa Fome Zero, e, na seqüência, uma abordagem das
pesagens e atendimentos às famílias do programa Bolsa Família.
O atendimento realizado nas duas comunidades na vila Pestano: a
Comunidade Católica e o Centro Comunitário Bom Pastor da IECLB diferem entre si
e afastam-se quanto às maneiras de organizarem-se para a distribuição. Em uma
delas as famílias são acolhidas em uma capela, ali cantam hinos religiosos, fazem
orações e meditações bíblicas, e ao final recebem uma bênção. Logo após este
momento, é formada uma fila que se organiza priorizando-se os idosos que têm
preferência sobre os demais, sendo estes os primeiros a receberem os mantimentos.
Em seguida, aqueles que ocupam os bancos mais à frente, e mais próximos ao
púlpito, estendendo-se àqueles mais próximos à saída, indicando, assim, que
aqueles que chegarem mais cedo terão precedência sobre aqueles que muitas
vezes aguardam do lado de fora, e são os últimos a receberem os alimentos no dia.
Na outra comunidade o atendimento se também com a recepção das
famílias dentro da capela comunitária, mas, neste ambiente, as reflexões propostas
se dão em torno de mensagens de auto-ajuda, sem fixar-se em cantos religiosos, ou
bênçãos. A acolhida às famílias é realizada pelo coordenador do Fome Zero da
comunidade, o qual é responsável pela condução e organização daqueles que irão
operar a divisão dos alimentos nas sacolas que à tarde são distribuídas. A chamada
das famílias nesta comunidade é feita a partir do chamamento pelo nome do
responsável pelo recebimento do benefício. A lógica da distribuição das sacolas
ocorre de forma alternada, sendo numa semana por ordem alfabética de ‘A’ a ‘Z’ e
na outra semana do ‘Z’ ao ‘A’.
As diferenças nas lógicas de atendimento são percebidas também na
seleção dos voluntários que ajudam a coordenação do programa na organização
das sacolas. Numa das comunidades a coordenação considera importante que as
voluntárias (selecionadas dentre as que recebem as sacolas) sejam sempre as
mesmas, enquanto na outra, a preferência pela rotatividade dos que ajudam é sinal
141
de maior transparência na gestão do programa, evidenciando-se que todos têm
acesso a todos os alimentos que chegam e, mais ainda, de que todos o recebem na
proporcionalidade igualmente colocada para todas as famílias.
O Programa Bolsa Família apresenta também peculiaridades quanto às
formas de atendimento existentes nas duas regiões investigadas. Nos dois locais as
condicionalidades se dão basicamente diante do acompanhamento de peso e altura
das crianças até seis anos. No entanto, é importante acrescentar que existem
especificidades que são verificadas no Loteamento Dunas e que não são
encontradas na Vila Pestano.
A organização para atendimento e acompanhamento do programa Bolsa
Família no Dunas é compartilhado entre duas instituições, a Unidade de Saúde e o
CRAS. Na Unidade de Saúde do loteamento Dunas são acompanhadas as
condicionalidades para a permanência no programa, e o mesmo ocorre também na
unidade de saúde da vila Pestano. Em ambas as unidades de saúde, este
atendimento é semanal, de maneira a atender de forma parcelada todas as crianças
do local. Até este ponto nada de diferenças consideráveis, a não ser a forma de
atendimento que é realizado, o que será apresentado na seqüência.
O atendimento constitui-se, portanto, na porta de entrada de toda família ao
sistema de programas e serviços sociais. É neste encontro que se estabelecem as
primeiras conversas, e o levantamento das necessidades que as levam a procurar
pelas instituições. É também na continuidade destes atendimentos que novas
demandas surgem por parte das famílias, exigindo, assim, de profissionais e
voluntários, certa continuidade e acompanhamento das ações previstas de acordo
com a especificidade de cada caso.
Assim, faz sentido neste contexto a preocupação que demonstram
profissionais e voluntários com os registros de freqüências das famílias que
acompanham. Em cada programa ou serviço existe uma forma específica de fazer
estes registros, e também a forma de acompanhamento do que é exigido também
apresenta variações nas duas regiões administrativas.
Em grande medida, o trabalho desenvolvido pelas igrejas obedece uma
certa lógica que recorre à utilização de listagens, constando os nomes, as datas e as
freqüências. No mesmo caderno, ou também organizado em fichas à parte, são
colocadas algumas informações sobre dados de identificação e a questão financeira
familiar.
142
Os registros de atendimento servem, segundo as profissionais, para permitir
a organização do histórico de atendimento das famílias, dos encaminhamentos, das
dificuldades encontradas pelas famílias, bem como das suas superações. E o que é
o mais importante, mantendo-se o registro dos atendimentos, as famílias tornam-se
independentes em relação àqueles que lhes atenderem, o que possibilita a
continuidade do trabalho por outros profissionais, não comprometendo o
acompanhamento posterior, mesmo que seja efetuado o afastamento dos
profissionais, em alguns casos contratados, do quadro de técnicos, conforme relatou
a psicóloga Marisa do loteamento Dunas: “Mas isso aqui é bom. Saiu nós tudo daqui
e vem uma equipe nova, e pega aqui tem tudo o histórico da família, entendeu?”
O registro das atividades desenvolvidas pelas instituições é realizado de
diferentes maneiras, avaliando-se sempre de que lugar se está falando. No CRAS
loteamento Dunas, por exemplo, quando a família efetua seu cadastro, naquele
instante tem início seu registro de atendimento e acompanhamento, que é anexado
ao mesmo através de uma folha de relatos.
A situação das Unidades de Saúde em ambas as regiões é, portanto, similar
à daquela encontrada no CRAS. Existem certas nuances, e a adoção de outros
nomes para os mesmos processos institucionais, onde se tem, por exemplo, ao
invés de cadastro, a utilização do termo prontuário, como sinônimo da classificação
e do registro daqueles que acessam determinados recursos. Outra semelhança
pode ser encontrada também na nomeação, do que é chamado de folha de relatos
para o CRAS, o qual recebe o nome de Ficha de Atendimento nas Unidades de
Saúde. Nas fichas de atendimento, também popularmente conhecidas por FA, são
registrados o acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família.
O que pode causar de certa forma um problema quando se deseja verificar a
evolução do quadro nutricional de todos aqueles que recebem este benefício, tendo
em vista que tais prontuários não estão agrupados de acordo com o critério de
serem famílias atendidas pelo programa Bolsa Família, assim, fazem parte da
população geral atendida pelas unidades de saúde.
As dinâmicas institucionais até o momento apresentadas consolidam as
formas pelas quais as famílias acessam os programas e serviços de assistência de
uma forma compartilhada, embora não explícita. As famílias percebem, assim, que a
presença na continuidade dos atendimentos, e na realização das expectativas
geradas pelos encaminhamentos solicitados, garante em boa medida a eficácia e o
143
sucesso da assistência, quando se observa na seqüência a análise dos
encaminhamentos e retornos, em que o dar, receber e retribuir encontra-se
fortemente vinculado com as relações de pessoalidade e até mesmo de afetividade
com profissionais e voluntários.
5.5 Encaminhamentos, retornos e envolvimentos
O conhecimento e a obediência às exigências para a inscrição em um
programa social é um pré-requisito fundamental para a inclusão das famílias nas
instituições. E se tais exigências o estão claras para as famílias é tarefa do
profissional e/ou voluntário alertá-la a fim de que estas sejam observadas. O caso da
assistente social Mariana é exemplar, o registro abaixo é fruto de observações
etnográficas por ocasião do lançamento de um novo programa de atenção aos
jovens, o Agente Jovem, programa do qual ela é a responsável, quando, dirigindo-se
a uma jovem, ela questiona sobre a importância dos documentos para a inclusão no
programa: “Não foi tirar foto Juliana? Como tu não foi?”.
A realidade encontrada pelos profissionais e voluntários das redes de
assistência no atendimento diário apresenta certas características importantes para
a análise das trocas que foram percebidas em campo. Em muitas narrativas das
experiências vividas, dos casos acompanhados, e das lutas empenhadas junto às
famílias, as profissionais e as voluntárias dão exemplos do quanto é necessário e
primordial o estabelecimento de vínculos afetivos, de trocas e de reciprocidade. A
persistência de muitas famílias nos locais onde são realizados os atendimentos é
balizador para a percepção do quanto a mesma se encontra engajada para a
superação das dificuldades pelas quais buscam solução, o que é mensurado a partir
dos retornos dos encaminhamentos. O relato a seguir constitui-se num exemplo para
análise:
“Tu encaminha, sabe? E até tu obter o resultado daquilo demora. [...]
Depois de tu conversar, de fazer encaminhamento, de tu realmente fazer
as pessoas verem algumas coisas de outra maneira. [...] Porque é muito
difícil assim tu mudar, porque normalmente o pessoal encaminha, vai, até
144
tu ter o resultado de tudo isso, das pessoas realmente confiarem, [...]
terem confiança no que tu faz, no que tu encaminha, no que tu,
encaminha as pessoas assim, né, até adquirir essa confiança, leva um
tempo”. (Mariana, assistente social, Loteamento Dunas)
Num outro exemplo, retirado das narrativas de uma assistente social, que
atua algum tempo do loteamento Dunas, a experiência com grupos populares se
reafirma especialmente no local, onde disse ser o lugar onde aprendeu a amar o
ofício de assistente social e a reencantar-se pela profissão.
Maristela atua aproximadamente dois anos no loteamento, e em seus
depoimentos, durante todos os encontros, registrava-se a presença constante de
pequenos relatos sobre as situações em que procurava sempre resolver os
problemas de uma família ou outra, ou das sucessivas assertivas num caso de
envolvimento da família em denúncias de maus-tratos, situação que exigia diálogos
constantes com o Conselho Tutelar ou com a Promotoria da Infância e Juventude.
As demandas que chegam à sua instituição tornam-se cada vez maiores, o
que exige aproximações nem sempre esperadas com outras instituições. Para
Maristela o envolvimento com as famílias exige, inclusive, levar tarefas para serem
feitas em casa, como estudar processos judiciais de destituição da guarda de
crianças de famílias que são por ela acompanhadas. A ênfase na apresentação
desse caso pela assistente social se na medida em que se percebe o
reconhecimento de sua instituição diante do Poder Judiciário local, onde as
comunicações para acompanhamentos dos casos começaram a ocorrer
recentemente e diretamente com a instituição na qual trabalha, não necessitando
mais da interlocução com instâncias superiores. Maristela nos apresenta a seguinte
situação:
“E agora tem vindo muito [...] que eu to quase há dois anos aqui, o
pessoal, a rede ta começando a descobrir o CRAS. Então o que que ta
acontecendo, o pessoal, o Foro ta mandando muitos casos pra cá, de
medidas de proteção, de acompanhamento, e ta chegando muito agora. E
eu to com três casos, agora, que esse eu peguei [...] Mas um senhor me
procurou, o pai da menina me procurou, desesperado que é o
responsável [...] o pai veio desesperado, porque tiraram a menina dele, da
família, botaram num abrigo, sem muita explicação, um caso meio
complicado. [...] veio esse pai, eu tive quase uma hora conversando
com ele (e eu disse pra ele) Não, mas tem processo, então o senhor me
traz o processo que eu vou estudar o processo e eu vou ver o que eu
posso lhe ajudar. Tinham tirado a menina, posto na casa das meninas,
145
aparentemente uma família estruturada, e era uma acusação de abuso
por parte de um irmão, mais velho, filho dele, do homem, e onde o pai se
masturbava na frente da menina de 09 anos [...]”.
Este caso é exemplar do que se deseja demonstrar a cerca das relações de
reciprocidade estabelecidas entre as famílias e as redes de assistência. A
continuidade no acompanhamento de um caso está condicionada à realização de
certas respostas esperadas de parte das famílias. Percebe-se neste caso,
sobretudo, o envolvimento e a cumplicidade que se estabeleceu entre ambos, na
medida em que se expõem abertamente as razões de acusação da família. Este
ponto é crucial quando se institui a assistente social enquanto interlocutora
autorizada para o encaminhamento e orientações que serão dadas às famílias, e
neste caso se percebe sua importância tanto com as famílias quanto com o poder
Judiciário.
No acompanhamento destes casos junto ao poder Judiciário ocorrem
reuniões de avaliação de cada processo, em que o apresentados os pareceres
técnicos de cada área em particular, situando-se os pontos de vista que avaliam o
progresso da família e os resultados das medidas durante certo período. Neste caso,
o papel de Maristela, assistente social que resgatou a trajetória familiar e manteve
contatos periódicos com a mesma, resultaram na seguinte avaliação:
“E tu via assim, veio o pai, depois veio a mãe, falavam assim com um
carinho, com amor, a mãe chorava que era um horror. Mas, uma família
muito errante, eles não paravam em lugar nenhum, sempre aqui, ali, aqui,
ali. Não!!! Então tem uma coisa errada aí. Tiveram em Santa Catarina,
estavam trabalhando, ganhando dinheiro, resolveram voltar, mas se
estava bem porque que voltaram? Ah, saudade da família, daí voltaram.
vieram morar no Fragata, morreu um menino atropelado, filho deles,
no Fragata, a menina tava junto e assistiu. Dali foram pra Canguçu, foram
pro Capão do Leão, foram pro Chuí, no Chuí pegaram a menina e tiraram
deles. Bom, conclusão, resumindo a história, eu comecei a ir atrás, fui na
Casa das Meninas, conversei com a psicóloga da Casa das Meninas,
conversei com a coordenadora. Conclusão, a menina, terça-feira agora
voltou pra casa”.
Os impactos destas intervenções foram reconhecidos em sua eficácia devido
à disponibilidade evidenciada na família, que se deu na medida em que os pais da
menina ouviram e executaram os encaminhamentos recebidos pela assistente
social. Na continuidade dos atendimentos e, portanto, nas visitas regulares para a
146
assistente social é que se foi estabelecendo a aceitação por parte da família do
programa de intervenção proposto. Somente quando a família retribui o dom
primeiro da assistente social, que é o dar, é que o retribuir adquire a eficácia
necessária para a continuidade das relações e conseqüentemente o
estabelecimento dos vínculos: “Então a gente orientou a família: ‘Vocês tem é que
fixar um lugar, uma casa em algum lugar e ficar. Essa coisa de vocês estarem
andando é isso aí que ta prejudicando’ [...] Eles vinham quase todos os dias aqui e a
menina ta em casa”.
De maneira a contrastar com o caso relatado acima, será apresentado em
análise o trabalho voluntário desenvolvido por uma comunidade católica. O trabalho
desenvolvido se volta para a organização das mulheres em grupos para a produção
de pães caseiros no loteamento Dunas. A coordenação do grupo fica à cargo de
uma religiosa que mora na localidade e que ali mesmo desenvolve projetos
comunitários de geração de renda, alguns deles com financiamentos da
Congregação Religiosa e também da Cáritas Diocesana.
A Ir. Jurema possui uma trajetória fortemente centrada na organização de
grupos populares, sua inserção em grupos em comunidades rurais e urbanas é
relembrada nas narrativas de suas experiências no Brasil e em alguns países da
América Latina.
No entanto, a avaliação que a religiosa faz de sua atuação no momento
atual não é percebida por ela como animadora. O desânimo que percebe em muitas
mulheres, e a dificuldade de perseverança deste trabalho nas comunidades
católicas, a coloca numa atitude avaliativa:
“Olha, a Vera, ela vinha ganhar bolsa aqui no ano passado, encontrei na
rua e disse assim: ‘Vera, o que tu ta fazendo Vera? Vamos fazer pão?’
Mas primeiro ela me disse assim: ‘Eu não to ganhando sacola’. Eu digo:
‘Tu quer ganhar sacola pra quê? Então vem fazer pão comigo’. E me
desabafei: Essas mulheres não querem nada com nada, a gente tudo
na mão, e não querem nada com nada”.
As preocupações de Ir. Jurema, se dão na análise acerca da (in) viabilidade
da atual proposta em algumas comunidades que a faz repensar a própria ação junto
a estas comunidades. A sua fala saudosista, do tempo em que as pessoas
desejavam transformações sociais contrasta hoje com a desconfiança e o
distanciamento que observa nos grupos de mulheres:
147
“Desconfiadas. Olha tu pode olhar isso aí, elas querem e ao mesmo
tempo não querem, elas têm uma desconfiança muito grande. Eu vejo por
tudo que eu conversei pro pão, gente. O quê que eu vou fazer? Parece
que não acredita naquilo que a gente faz [...] Mas, sabe que olhando pras
pessoas eu me pergunto eu não sei o quê que eles pensam”.
As rupturas percebidas entre a intenção do trabalho realizado pela Ir.
Jurema e a falta de respostas, de retornos por parte das mulheres, colocam em
evidência a impossibilidade da criação dos laços, dos vínculos com as famílias.
Pode-se, assim, supor que as ações de assistência trocadas pela religiosa o
condizem com as práticas compartilhadas e que são postas em circulação pelas
famílias.
Neste sentido, as expectativas dos profissionais e voluntários, para dar
continuidade aos encaminhamentos de programas e serviços, são condicionadas
pela necessária constituição dos vínculos junto às famílias. Aqui assumem
relevância atitudes como a persistência e o envolvimento com o cotidiano da
instituição, o fazer parte, o tornar-se conhecido e reconhecido pelas psicólogas e
assistentes sociais, seja quando se cruzam pelas ruas, seja quando deixam recados
e informam sobre os resultados dos encaminhamentos. O exemplo das
aproximações com as famílias é relatado pela psicóloga Marisa - loteamento Dunas:
“E tem muito assim, a gente se envolve com as famílias, a gente se dá bem “Ah, e
como é que ta o seu Fulano?”.
também situações em que o envolvimento é inevitável, e onde se
percebe que as fronteiras entre o trabalho profissional e o envolvimento emocional
não se podem separar. O relato a seguir indica alguns elementos que compõem
certos cenários da expressão do dom nas relações entre as famílias e as redes de
assistência:
“[...] é importante, essa coisa de trabalhar junto, porque eu sou muito de
me envolver com as pessoas, eu tenho que aprender a distanciar. Eu me
envolvo, as pessoas me contam as coisas, não que eu sofra, que pra
casa, isso eu aprendi na faculdade, porque eu sofria muito, quando eu
ia pra casa eu sofria demais. Não, não . E a Marisa o, a Marisa
consegue enxergar por um outro lado, que não é bem assim. Chegou
uma menina aqui um dia, conversando comigo, ah, eu fiquei apavorada
com a guria porque a guria dizia que mãe dela maltratava porque não sei
o que. Chamei a Marisa, a Marisa conversou com a guria e disse:
148
“Maristela não é bem assim a coisa, a menina tava confundindo” [...] eu
também deixo me levar. Agora eu aprendi, se complica, ou vem a
Vivian ou vem a Marisa”. (Maristela, assistente social loteamento
Dunas).
As preocupações destas profissionais a cerca dos limites que envolvem suas
intervenções junto às famílias é também alvo de reflexões e mudanças de
comportamentos. O receio de que certas atitudes, como a de envolver-se
exageradamente na condução dos encaminhamentos, ou de até mesmo fazê-los no
lugar dos responsáveis pela família, as leva a tomar ações preventivas e de certa
vigilância que o colocadas mutuamente nas trocas realizadas durante as reuniões
da equipe técnica, conforme relatou a psicóloga:
“E às vezes a gente faz movimento demais, e eles de menos. eu digo:
Ai não gurias”, quando a gente faz muito movimento, assim que a
gente percebeu que em alguns casos a gente faz, amanhã ou depois a
gente não ta mais aqui, e essa família vai morrer? Então a gente tem que
ensinar eles e tem que ajudar eles a fazer. Então tem um mesmo (um
caso) que a gente, ó, liga pro saúde escolar pra pedir a receita, mas a
mãe vai e busca (e também) a mãe vai encomendar a medicação,
porque além de buscar a receita, a gente encomendava a medicação,
dava a medicação pronta” (Marisa, psicóloga loteamento Dunas)
Neste caso, o que está sendo discutido é a preocupação que as
profissionais possuem de que todo o esforço empregado em suas ações, o de que
estas famílias percebam-se cidadãs, seja absorvido pelas mesmas como mero
assistencialismo, prática que é rechaçada em todos os níveis das redes de
assistência. A assistente social exemplifica com pesar situações dessa natureza,
que vivenciou algumas vezes durante a realização de determinados
encaminhamentos, quando o objetivo de desligamento ou de autonomia não é
vislumbrado pelos sujeitos que buscam acessar os recursos da assistência:
“É muito estranha assim, é muito estranha a visão das pessoas, elas
precisam daquilo ali, de algum programa, e do Bolsa Família pra poder
sobreviver e elas acham que com aquilo ali elas vão poder sobreviver, e é
aquilo ali, elas não almejam, elas vêem aquilo ali, que é viver do
bolsa família. E não adianta, porque tu conversa, tu fala, e todas as
conversas que a gente tem, claro é um direito deles, que a gente fala que
é um direito, mas as pessoas tem muitas possibilidades, de sobreviver
com muitas outras coisas além do bolsa família. É muito triste assim, tu
ter que, até encaminhar uma pessoa assim [...]”. (Mariana, assistente
social, Loteamento Dunas)
149
As mudanças de atitudes por parte das profissionais do CRAS, em relação
ao trato com as famílias, e das formas como conduzem os atendimentos às
mesmas, sofreu influência considerável a partir de um arrombamento ao CRAS. O
fato em si levou-as a analisar os usos que as famílias faziam dos serviços prestados,
bem como de sua própria atuação, revelando-se assim, que tais práticas excederam
por diversas vezes os limites do que lhes cabe enquanto profissionais:
“[...] eu acho que a gente sempre pode dar um pouquinho, mas o caso
que a gente chegou assim, e a gente repensou: o, não vamos ajudar
mais. [...] A gente não vai mais ficar catando daqui e dali pra ta dando,
sabe? Se a gente puder fazer por aqui a gente vai fazer, se a (Secretaria
de) Cidadania tem, a gente encaminha. Agora a gente fazer (a partir do)
da gente, aí não”. (Marisa, psicóloga, Loteamento Dunas)
Para além das deficiências que os programas e serviços apresentam, em
especial, dos efeitos nocivos que foram apresentados acima, existe a avaliação por
parte de certos profissionais, de deficiências nas redes de assistências, as quais
contribuem de maneira decisiva para a manutenção da dependência das famílias de
determinadas práticas assistenciais. A intenção será mostrar a percepção dos
profissionais quanto à utilização dos outros serviços existentes nas redes de
assistência, os quais muitas vezes tornam-se entraves para o desligamento
permanente das famílias.
Na especificidade dos atendimentos desenvolvidos pelas psicólogas, existe
a constante referência às conversas e diálogos realizados nos encontros com as
famílias, e, sobretudo da disponibilidade que o profissional deve despender nestes
casos. A posição assumida pela psicóloga Marisa do Loteamento Dunas a levou
inclusive a repensar a sua área de atuação, dedicando-se a uma área dentro da
psicologia denominada de psicologia social, diferenciando-se da clínica, que
segundo ela foi a aprendizagem predominante em seus estudos da graduação. A
observação das necessidades das famílias, partindo das observações nos encontros
diários à leva a escutar mais, e a somente encaminhar para tratamentos clínicos
aqueles casos de extrema necessidade. Sua experiência é exemplar: “[...] eu
sempre deixo claro, aqui a gente não faz tratamento psicológico, assim, a gente faz
uma orientação, a gente conversa. E as pessoas estão muito carentes disso aqui,
elas precisam muito de uma boa conversa, assim, já ajuda”.
150
Na continuidade, o trabalho desenvolvido por assistentes sociais e
psicólogas evidencia o quanto se está distante do cumprimento das metas do CRAS,
que trata do desligamento das famílias quando ocorre entre o oitavo e o décimo
atendimento. A dificuldade relatada por estas profissionais reside nas deficiências
existentes nas redes de apoio que são acionadas pelo Centro de Referência:
“[...] tu tem que atender, tu tem que fazer um cronograma de atendimento
até tu poder dar o desligamento da família. que é assim, é muito
complicado, tu não tem como dar um desligamento da família se a família
não tem realmente um suporte financeiro. [...] Pedem acompanhamento e
num determinado momento o desligamento da família, pelo tempo, que
depende muito do tempo, aagora eu não fiz nenhum desligamento. [...]
Tu não consegue encaminhar pra rede, tu fala em rede que é muito
complicado tu não consegue encaminhar pela rede pra educação, tu não
consegue que a pessoa tenha realmente uma casa decente. Tu não
consegue que ela tenha todo tipo de atendimento na saúde. Por isso é
que fica desfalcado, e por isso que continua atendendo, a maioria, claro, a
maioria das vezes tu continua atendendo as mesmas famílias”. (Mariana,
assistente social, Loteamento Dunas)
De acordo com as técnicas que compõem a coordenação do CRAS o que
dificulta a agilidade no atendimento e conseqüentemente o desligamento das
famílias deste serviço de apoio, remete à ineficácia dos demais serviços e
programas que deveriam ser disponibilizados pelas outras instituições que compõem
a rede de assistência na cidade de Pelotas. A oferta insuficiente de serviços para
atender à demanda, é apontada como o fator preponderante para explicar a demora
de determinados atendimentos, como, por exemplo, aqueles dirigidos aos usuários
de drogas, que enfrentam longas filas e muito tempo de espera a fim de receberem
atendimento médico, psiquiátrico ou terapêutico.
também um outro elemento que contribui com a demora para a
efetivação dos encaminhamentos; é aquele que diz respeito aos entraves
burocráticos, onde muitas vezes é causa de desistência por parte daqueles que
acionam estes serviços, sobretudo, pelos gastos com passagens de ônibus a fim de
retornarem com a devida documentação e carimbos exigidos. Um caso típico é
comentado por uma profissional da assistência social de uma das unidades de
saúde investigadas. De acordo com suas experiências de trabalho, muitas situações
poderiam ser evitadas desde que houvesse uma espécie de boa vontade mínima em
escutar aqueles que vêm encaminhados por outros profissionais e o quanto essas
151
atitudes são fundamentais para o afastamento das famílias dos serviços dos quais
necessitam, e do quanto demonstram os equívocos na condução das políticas de
assistência:
“[...] a pessoa quando sai com a situação resolvida, sai faceira da vida [...]
dentro da saúde, o que as pessoas passam de trabalho pra ter acesso,
desde o horário assim, é lá, mas não é , é com a pessoa, mas não é
com a pessoa, é a linguagem. É cheio de empecilhos, assim. [...] As
vezes as pessoas voltam sem entender, é muito comum as pessoas
voltarem sem entender, foram porque tinham que fazer tal coisa..., tal
foram lá, mas ai me disseram isso, isso, isso, mas ai eu não entendi, mas
afinal o que eu tenho que fazer? E a questão da má vontade, assim, é
uma coisa impressionante”. (Jael, assistente social, Loteamento Dunas)
De maneira geral, se percebe que duas tensões permeiam o trabalho
realizado pelas redes de assistência, e que ficam latentes em boa parte dos relatos
apresentados no capítulo, o desligamento e a vinculação. Embora todas as ações da
assistência objetivem a autonomização das famílias e sua liberação dos recursos
que necessitam, ao mesmo tempo, é instigante que para que isso ocorra seja
necessária a aproximação, o vínculo e a proximidade, relações cuja base se no
estabelecimento de confiança, amizade e retribuições, onde as visitas, os
encaminhamentos e os retornos são o meio para atingir a inclusão na rede de
programas e serviços sociais conforme encerra a assistente social Jael do
loteamento Dunas: “quanto mais eu conheço as histórias, mais eu acho que tenho
que fazer isso mesmo”.
152
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vínculo, reciprocidade, dar, receber e retribuir, em uma palavra dom.
Dádivas trocadas numa rede de relações que se estabelecem entre famílias e redes
de assistência, cujo princípio, previsto a partir de uma visita, do preenchimento de
um cadastro, instaura as condições para a consolidação de laços de proximidade
que poderão levar à sua inclusão em programas e serviços da assistência.
As intenções de distanciamento/desligamento traçados nos objetivos e
planos de ações da assistência, seja governamental ou não-governamental, trazem
consigo a sua paradoxal posição, a de reforçar o que desejam negar, a necessidade
de constituição de laços de pessoalidade para que uma intervenção seja
considerada eficaz.
A seleção das regiões administrativas, e, posteriormente das vilas
investigadas, evidenciaram a viabilidade dos cruzamentos de dados quantitativos e
qualitativos, não prejudicando a condução de um estudo etnográfico, que abarcasse
entrevistas semi-estruturadas e observações participantes, e registros das dinâmicas
das relações dos programas e serviços das redes de assistência.
As percepções do senso comum, uma das razões que motivaram
inicialmente a proposta deste estudo, foram por si sendo desconstruídas à
medida que os dados etnográficos apresentavam os pontos de vista de profissionais,
voluntários e famílias das duas vilas investigadas.
Na etnografia visualizou-se a perspectiva teórica adotada, apresentando as
lógicas das ações pelas quais se orientavam os sujeitos envolvidos nas redes de
assistência, pautadas, sobretudo, nas expectativas de fidelidade e confiança no
outro, sendo o recebimento do benefício uma conseqüência resultante.
153
A preocupação com o resgate teórico das categorias utilizadas pela vertente
antropológica a cerca do universo cultural dos grupos populares, contribuiu também
no sentido de relativizar os pontos de vista etnocêntricos, que no passado julgavam
os grupos populares como alienados e sem consciência de classe, e que hoje
continuam a julgar, porém em outros termos; uma nova roupagem para uma antiga
visão degenerada quando se trata de pensar as desigualdades no Brasil: “essas
bolsas acomodam os pobres e os incentivam a terem mais filhos”.
Nesse contexto, pensar as mediações entre os ‘de cima’ (FONSECA;
BRITES, 2006) é uma situação já reconhecidamente possível de se realizar, e
alguns estudos confirmam e reforçam a hipótese. O que no estudo, portanto,
apresentava-se como desafio era pensar as mediações entre os ‘de baixo’. Contudo,
essa dúvida foi-se desfazendo aos poucos e na medida em que se desenvolveram
as reflexões teóricas, o que conduziu a um redimensionamento do próprio conceito
neste estudo.
As mediações, e, por conseguinte, a capacidade de lidar com diferentes
códigos culturais, num processo de metamorfose (VELHO; KUSCHNIR, 2001),
tornaram-se evidentes através da análise das trajetórias vivenciadas por diferentes
famílias, nas quais a mediação era visualizada como forma de retribuição aos
recursos sociais recebidos através das redes de assistência. A ocorrência das
mediações estava, deste modo, inscrita nas relações entre mulheres, e se tornava
possível a partir do deslocamento realizado por aquelas que acessavam os
programas e serviços da assistência, em direção às que desejavam inserir-se, sendo
assim, uma forma de chegada até profissionais e voluntários. Por outro lado, a
existência destes mediadores para os profissionais e voluntários das redes de
assistência, na medida em que possibilitam a aproximação de novas famílias,
indicavam a probabilidade de se obter eficácia garantida nas ações de intervenção
desenvolvidas pela assistência social.
Assim, utilizar a pesquisa etnográfica como um instrumento de análise em
contextos de desigualdade social, como no caso investigado, de grupos populares,
constitui-se numa forma importante de relativização e reflexão sobre a diversidade
cultural. As intervenções realizadas nessas famílias, movendo-se pela retórica dos
direitos, não se dão unilateralmente, ou sem conflitos, antes sim, o que se desejou
mostrar era justamente que as famílias, ao se disporem a
acessar os programas e
serviços das redes de assistência, o fazem conscientes de que negociações e
154
representações sociais deverão ser acionadas para que as trocas sejam efetivas e
surtam os efeitos desejados.
155
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ZALUAR, Alba. A quina e a revolta: as organizações populares e o significado
da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985.
159
APÊNDICES
160
APÊNDICE A – Roteiro de entrevistas famílias
161
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
INSTITUTO DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PESQUISA: “Acessos, inclusões e mediações: Estudo sobre as relações entre redes
de assistência e famílias de classes trabalhadoras urbanas em Pelotas / RS”
RESPONSÁVEL PELA PESQUISA: Fabíola Pereira (Mestranda em Ciências
Sociais – UFPel / Bolsista CAPES)
PROFESSOR ORIENTADOR: Flávia Rieth (Profª. Drª. Antropol Social – UFPel)
ROTEIRO DE ENTREVISTAS PARA AS FAMÍLIAS
I - DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DO ENTREVISTADO / A: Em anexo
II – TRAJETÓRIA FAMILIAR E DE CLASSE
a) Há quanto tempo mora nesta vila / loteamento? Conte como foi?
b) Antes de vir para esta vila / loteamento, em quais lugares morou? Conte como
foram estas experiências?
c) Relate como se deu a constituição de sua família?
d) Vínculos com a família de origem: Quais pessoas você considera mais próximas
no dia-a-dia? Qual o parentesco ou vínculo? Em que momentos você pode contar
com estas pessoas?
e) Que pessoas conhece neste local? Conte como foi sua aproximação.
f) Quanto a experiência em relação ao mercado de trabalho, qual sua experiência?
trabalhou? Qual período? Qual ocupação? Qual o valor da remuneração?
(contextualizar as experiências)
g) Diga quais são os gastos mensais realizados para a manutenção da família.
Despesas: Valor: Respons. Pagamento:
Água
Luz
Gás
Telefone
162
Saúde
Alimentação
Transporte
Moradia
Educação
Lazer
h) Quem se ocupa dos cuidados com as crianças: Pesagens Bolsa-Família,
Escolas...; os doentes; os idosos...?
III – MEDIAÇÕES / ACESSOS E DISTANCIAMENTOS NA RELAÇÃO COM A
ASSISTÊNCIA
i) Benefícios Recebidos:
Nome do Benefício Início e Término Valor ou Espécie
Bolsa Família
Bolsa Alimentação Sacolas
em geral
Banco de Alimentos
ASEF
Fome Zero
PETI
ASEMA
Agente Jovem
LOAS
Medicamentos-tratamentos e
prevenção
Passe Transporte Urbano
j) Participação em grupos:
Nome do grupo Início e término Local / Instituição
Grupo de Mães
Grupo de Hipertensos
Grupo de Mulheres
Pastoral da Criança
Pastoral do Menor
163
Banda Musical – Escola
Grupo de Jovens
Grupo de Orações
Economia Solidária
Grêmios Estudantis
Sindicatos
Associações
ONG’s
Igrejas
k) Quando começou a receber os recursos / benefícios? Conte como foi.
l) Como ficou sabendo da existência do benefício / grupo?
m) O que foi preciso para ter acesso ao recurso e/ou grupo? (Documentos,
participação em grupos, indicações...)
n) Quais as condições para continuar recebendo o benefício? (pesagens, freqüência
escolar, participação em grupos ...) Quais seus deveres?
o) Em que momentos a família procura os serviços? (benefícios e grupo)
p) Que pessoas conhece neste local? Conte como foi sua aproximação.
164
APÊNDICE B – Roteiro de entrevistas profissionais e voluntários
165
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
INSTITUTO DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PESQUISA: “Acessos, inclusões e mediações: Estudo sobre as relações entre redes
de assistência e famílias de classes trabalhadoras urbanas em Pelotas / RS”
RESPONSÁVEL PELA PESQUISA: Fabíola Pereira (Mestranda em Ciências
Sociais – UFPel / Bolsista CAPES)
PROFESSOR ORIENTADOR: Flávia Rieth (Profª. Drª. Antropol Social – UFPel)
ROTEIRO DE ENTREVISTAS PARA PROFISSIONAIS / VOLUNTÁRIOS
I - DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DO ENTREVISTADO / A
a) Nome: b) Sexo:
c) Endereço Residencial:
d) Telefone contato:
e) Idade:
f) Situação Conjugal:
g) Religião:
h) Profissão / Formação / Instituição:
i) Renda Mensal:
II – TRAJETÓRIA PROFISSIONAL E NA LOCALIDADE
a) O que motivou a escolha pela área de atuação profissional?
b) Há quanto tempo realiza atividades profissionais na localidade?
c) Como foi a inserção no universo de trabalho na vila / loteamento? Como chegou?
d) Descreva as atividades realizadas.
e) Contexto do local de atuação – descrição.
e) Como percebe / avalia a contribuição da área profissional para a vila /
loteamento? (dificuldades, possibilidades, necessidades ...)
III MEDIAÇÕES E DISTANCIAMENTOS NA RELAÇÃO COM AS FAMÍLIAS E
COM OUTRAS INSTITUIÇÕES
a) Descreva como percebe a situação de vida dos moradores da vila / loteamento.
Exemplos.
b) Como as famílias acessam o benefício?
d) Como é realizada a seleção e inclusão / exclusão dos beneficiários? Quais
critérios são utilizados? (Visitas, indicações, cadastro...)
c) Qual o número aproximado de famílias atendidas pelo profissional?
166
e) Como percebe os impactos / conseqüências das ações e serviços nas famílias
atingidas? Exemplos.
f) Descreva como percebe a relação com outras instituições (local, municipal...).
- Governo Municipal - Secretarias municipais (assistência social, saúde, educação,
cultura, ...); órgãos (escolas, unidades de saúde...) e programas (PSF, Redução
Danos...)
- Governo Estadual - Idem
- Governo Federal - Idem
- Instituições Religiosas
- ONG’s
- Serviços de Segurança
- Associações Comunitárias de Moradores
- Rádios Comunitárias
- Partidos Políticos
g) quanto tempo o trabalho com outras instituições vem sendo realizado?
Existem afinidades específicas ou permanentes com algumas instituições?
h) Quais problemas mais relevantes são percebidos nestas relações com as
instituições?
i) Quais são as contribuições mais significativas destas aproximações?
167
APÊNDICE C – Termo de consentimento livre e esclarecido
168
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
INSTITUTO DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PESQUISA: “Acessos, inclusões e mediações: Estudo sobre as relações entre redes de
assistência e famílias de classes trabalhadoras urbanas em Pelotas / RS
RESPONSÁVEL PELA PESQUISA: Fabíola Pereira (Mestranda em Ciências Sociais
UFPel / Bolsista CAPES)
PROFESSOR ORIENTADOR: Flávia Rieth (Profª. Drª. Antropologia Social – UFPel)
_________________________________________________________________________
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Tendo por objetivo a realização da Dissertação de Mestrado em Ciências
Sociais/UFPel, você está sendo convidado (a) para participar de uma pesquisa cujo propósito
é o de investigar as relações de mediações que se estabelecem entre famílias e profissionais de
assistência.
A coleta de informações será realizada a partir de entrevistas individuais, que serão
gravadas. O informante responde livremente às perguntas colocadas pelo entrevistador,
podendo deixar de responder algumas ou mesmo, interrompendo a participação da pesquisa a
qualquer momento.
As informações obtidas serão utilizadas sem a identificação dos (as) informantes,
permanecendo em sigilo a identidade de seus participantes.
Os resultados serão usados e divulgados para fins de trabalhos acadêmicos, e serão
omitidos os nomes dos (as) entrevistados (as) bem como quaisquer outros tipos de
identificação.
Após os esclarecimentos prestados acima, eu_______________________________
________________________________________________________________________,
aceito participar voluntariamente da pesquisa: “Acessos, inclusões e mediações: Estudo sobre
as relações entre redes de assistência e famílias de classes trabalhadoras urbanas em
Pelotas, RS.”
Pelotas, _____, de _____________________, de ___________.
__________________________ _________________________
Assinatura do Entrevistado Assinatura do pesquisador
169
APÊNDICE D – PERFIL DOS(AS) INTERLOCUTORES(AS)
170
Perfil dos profissionais e voluntários das redes de assistência - vila Pestano:
* Leda: 40 anos, casada, e de duas filhas. Trabalha prestando serviços
domésticos (faxinas em determinados dias da semana). Atualmente coordena
voluntariamente as atividades do Programa Fome Zero em sua comunidade.
* Romeu: 54 anos, casado, pai de um rapaz. Aposentado e voluntário na
distribuição das sacolas do Programa Fome Zero na comunidade católica.
* Gregório: 50 anos, casado, pai de um rapaz. É funcionário público municipal, e
coordena juntamente com Neci o Programa Fome Zero na comunidade católica. Sua
trajetória está vinculada a organização de movimentos populares junto à Associação
de Moradores e a Igreja Católica desde a fundação da vila.
* Carmem Maria: 65 anos, casada, e de dois filhos. Atua voluntariamente na
organização e distribuição dos mantimentos no Programa Fome Zero.
* Geni: 60 anos, casada, mãe de dois filhos. Integra a coordenação de projetos de
assistência da Igreja Evangélica de Confissão Luterana, onde desenvolve atividades
no Programa Fome Zero, grupo de mulheres e horta comunitária.
* Joana: 27 anos, casada. É assistente social da Unidade Básica de Saúde da vila
Pestano. Coordena atividades no grupo de mulheres, organiza o atendimento
semanal às famílias do Programa Bolsa Família.
* Luciara: 60 anos, divorciada, mãe de um rapaz. É orientadora educacional da
escola da vila Pestano, onde coordena um projeto de prevenção ao uso de drogas
junto aos estudantes e suas famílias.
* Gabriele: 30 anos, solteira. É pedagoga da escola da vila Pestano, onde trabalha
juntamente com Luciara na coordenação das atividades de orientação e prevenção
aos alunos.
171
Perfil dos profissionais e voluntários das redes de assistência - Loteamento
Dunas:
* Margarida: 41 anos, casada, mãe de seis filhos. Atua no CDD como coordenadora
e também no Observatório de Segurança Social e proteção da vida e é bolsista do
Projeto Casa Brasil.
* Vivian: 49 anos, viúva, mãe de um rapaz. Atua como psicóloga, tendo também
formação em serviço social (não concluída) e também em ciências sociais
(concluída, mas sem exercício). Apresenta trajetória de militância em ONG´s e
movimentos sociais, especialmente de defesa das mulheres.
* Elisabete: 46 anos, casada, mãe de um rapaz. É diretora de uma escola
municipal. Seu histórico é também de militância, iniciada na cada de 80 com a
organização de serviços de assistência ligados a Igreja Católica na área da família,
crianças e jovens.
* Orestina: 51 anos, casada, mãe de 03 filhos. É diretora de uma escola municipal
local, onde atua aproximadamente 6 anos. Iniciou sua vida acadêmica quando os
filhos atingiram a maioridade. Atualmente cursa mestrado e incentiva fortemente as
funcionárias da escola a retomarem ou iniciarem formação acadêmica.
* Murilo: 37 anos, casado, pai de 4 filhos. Atua como agente redutor de danos, onde
realiza trabalho de campo nos bairros da cidade através de abordagens a usuários
de drogas. Nas horas restantes Murilo trabalha como moto-táxi.
* Marisa: 27 anos, solteira. É psicóloga há cerca de um ano no loteamento. Acredita
das redes como estratégias para o reconhecimento e o tornar-se conhecido, o que
facilita o acesso a estágios e oportunidades de emprego.
* Suzana: 37 anos, casada, mãe de um rapaz. Atua como assistente social e
coordena um programa de assistência social a jovens no loteamento, o que se exige
contatos permanentes com as famílias, seja visitas, reuniões ou orientações.
* Jael: 52 anos, solteira, e de uma moça. Trabalha como assistente social, onde
acompanha as pesagens do programa Bolsa Família, e grupos de mulheres, além
das mobilizações que ocorrem no loteamento. Trabalhou em diferentes instituições,
iniciando pelo setor privado passando por cargos de confiança, chegando a
concurso público, fez estágio no Pestano nas comunidades de base na década de
80,
* Maristela: 43 anos, casada, e de 02 filhos. Desenvolve atividades na área
como assistente social, onde acompanha e coordena grupos de mulheres ligados ao
programa ASEF, e realiza orientações e encaminhamentos as famílias
encaminhadas também por outras instituições.
* Luisa: 48 anos, casada, mãe de 3 filhos. Decide participar de movimentos sociais
pelos direitos da mulher motivada por convites realizados na sua igreja e também
172
pelo histórico de doença. Atua no ASEF da rua 17 do loteamento – Guadalupe, e faz
plantão das PLP’s.
* Casal José e Rosa:o casados, possuem 2 filhos menores. Participam da
comunidade católica de onde iniciaram os trabalhos de assistência através do
Programa Fome Zero. Ele apresenta uma trajetória vinculada a serviços públicos, e
atualmente faz curso de formação para atuar nas celebrações católicas. Ela trabalha
como faxineira alguns dias da semana, e coordena o grupo de mulheres.
* Ir. Jurema: 62 anos, religiosa. Reside em Pelotas faz pouco tempo, atua em
diferentes comunidades faz visitas domiciliares onde convida as mulheres para seus
grupos. Coordena grupos de mulheres e também de projetos alternativos
comunitários em parceria com a Cáritas.
* Juliete: 51 anos, separada, mãe de 2 filhos. Liderança comunitária católica, onde
realiza diferentes trabalhos: Pastoral da Criança, fome zero, grupo de mulheres,
educação de jovens e adultos, agente de segurança alimentar, entre outros.
Cruzamento das redes de assistência cidade de Pelotas
* Mara: 41 anos, casada, mãe de um rapaz. Assistente social da Cáritas Diocesana
de Pelotas, instituição de assistência da Igreja Católica, onde é responsável por
diferentes ações de assistência na cidade de Pelotas.
173
Perfil das famílias – vila Pestano
* Mariane: 26 anos, solteira, mãe de 03 filhos. Participa do grupo de mulheres da
unidade de saúde e recebe sacola do Fome Zero na comunidade católica. Mora nos
apartamentos da Cohab Pestano, mas passa boa parte do dia na casa de sua mãe.
* Carla: 45 anos, amigada, mãe de 02 filhos. Recebe sacola do Fome Zero no
centro comunitário Bom Pastor e recursos do programa Bolsa Família. Mora na vila
Pestano, na casa do seu companheiro, dessa união não há filhos.
* Lucimar: 46 anos, separada, mãe de 03 filhas. Participa do grupo de mulheres do
posto de saúde e do grupo de Alcoólicos Anônimos. Além disso freqüenta também a
igreja universal. Conta com os recursos do Bolsa Família e com a sacola do Fome
Zero.
* Ana Lúcia: 31 anos, amigada, mãe de 3 filhos. Leva o filho mais novo às
pesagens do Bolsa Família. Eventualmente participa das reuniões do Conselho
Gestor do posto de saúde.
* Mirela: 37 anos, solteira, e de um filho. Participa do programa Fome Zero da
comunidade católica por incentivo de sua mãe. Mora na Cohab Pestano mas passa
a maior parte do dia na casa de sua mãe.
* Márcia Karina: 26 anos, amigada, mãe de 2 filhos. Possui uma história de
participação em programas sociais da assistência, que teve início no programa
Família Cidadã
31
. É beneficiária do programa Bolsa Família e Fome Zero.
* Carolina: 35 anos, amigada, mãe de 4 filhos. Participou por certo tempo do
Movimento dos Trabalhadores Desempregados, quando morava no loteamento
Dunas, local onde conheceu seu marido. Atualmente, ele ainda participa das
atividades do movimento, ela não mais. Recebe recursos do programa Bolsa
Família e Fome Zero.
* Elaine: 22 anos, amigada, é mãe de 3 filhos e cuida de 2 sobrinhos (filhos de seu
irmão). Participa das distribuições das sacolas do Fome Zero no centro comunitário
Bom Pastor, e também recebe os recursos do Bolsa Família. Seu irmão contribui
com a manutenção das sobrinhas, e estas também recebem Bolsa Família. Foi
inserida nas redes de assistência por incentivo dos pais.
* Maria de Fátima: 46 anos, amigada e mãe de dois filhos. Freqüenta o centro
comunitário Bom Pastor onde recebe o Fome Zero. Sua filha menor ainda é
beneficiária dos recursos do Bolsa Família. Encaminha para a Cáritas Diocesana
roupas e outros objetos que não lhe são mais úteis.
31
Família Cidadã programa estadual de assistência às famílias em situação de pobreza. Consistia na
transferência de renda às beneficiárias tendo como contrapartida a participação de atividades em
grupos e oficinas.
174
Perfil das famílias – loteamento Dunas
* Sandra: 47 anos, solteira, mãe de 03 filhas. Realiza atividades remuneradas como
doméstica em determinados dias da semana. Suas três filhas recebem os benefícios
do programa Bolsa Família. Apresenta uma trajetória de acessos a programas e
serviços da assistência.
* Viviane: 23 anos, amigada e mãe de 03 filhos. Participa ativamente do grupo de
mulheres de uma das comunidades católicas do loteamento, onde recebe também a
sacola do Fome Zero e participa da Pastoral da Criança.
* Marciane: 28 anos, amigada e mãe de 4 filhos. Também freqüenta as atividades
do grupo de mulheres da comunidade católica, onde recebe aulas de alfabetização
de adultos de um projeto executado pela Pastoral da Criança. Além disso é
beneficiária do programa Fome Zero, e realiza oficinas da pintura e cestaria.
* Maritânia: 43 anos, namora, mãe de 5 filhos. Participa ativamente dos grupos da
igreja católica, sem, contudo engajar-se. É diarista e recebe as sacolas do Fome
Zero, também os recursos do Bolsa Família.
* Berenice: 38 anos, casada e mãe de um filho. Realiza serviços domésticos em
dias pré-estabelecidos. É participante assídua do grupo de mulheres da comunidade
católica, onde recebe também o Fome Zero e a sacola do Banco de Alimentos
Madre Tereza de Calcutá. Seu filho é aluno da escola de educação infantil do
loteamento, e também atendido pela Pastoral da Criança.
* Juraci: 48 anos, amigada e mãe de duas filhas, sendo a mais nova aquela que
mora com Juraci. Cuida de 3 netos (filhos da mais velha), que atualmente participam
do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, do Apoio Sócio Educativo em Meio
Aberto e que contam também com os recursos do Bolsa Família. Participa das
atividades realizadas pelo CRAS-Dunas. Sua filha mais nova, integrou a primeira
turma de adolescentes do projeto Agente Jovem.
* Juliana: 35 anos, amigada, mãe de 7 filhos. Participa da distribuição do Fome Zero
na comunidade católica, e também do grupo de mulheres. Todos os filhos menores
são cadastrados e recebem os recursos do Bolsa Família. A casa em que mora foi
construída pelo governo municipal e faz parte do programa de habitação popular.
Seu filho mais velho participou da primeira turma do Agente Jovem do loteamento.
* Maria Francisca: 40 anos, separada e mãe de 5 filhos. Realiza serviços
domésticos alguns dias da semana. Participa do CRAS-Dunas, onde insere seus
filhos nos programas e serviços da assistência. Dentre os programas acionados pela
família estão o Agente Jovem, benefício de prestação continuada e o projeto do
Apoio Sócio Educativo em Meio Aberto.
* Dirlene: 37 anos, amigada e mãe de 5 filhos. Sua ocupação é sucateira, como ela
mesma se denomina. Participa dos programas e serviços do CRAS, onde
encaminha os filhos para a inclusão nos projetos de assistência ali existentes.
175
Atualmente a família está inserida no Agente Jovem, no Apoio Sócio Educativo em
Meio Aberto, no programa Bolsa Família e no Fome Zero.
176
ANEXOS
177
ANEXO 1 – Lei programa Bolsa Família
178
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
LEI N
o
10.836, DE 9 DE JANEIRO DE 2004.
Regulamento Cria o Programa Bolsa Família e dá outras
providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu
sanciono a seguinte Lei:
Art. 1
o
Fica criado, no âmbito da Presidência da República, o Programa Bolsa Família,
destinado às ações de transferência de renda com condicionalidades.
Parágrafo único. O Programa de que trata o caput tem por finalidade a unificação dos
procedimentos de gestão e execução das ações de transferência de renda do Governo Federal,
especialmente as do Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação - Bolsa Escola,
instituído pela Lei nº 10.219, de 11 de abril de 2001, do Programa Nacional de Acesso à
Alimentação - PNAA, criado pela Lei n o 10.689, de 13 de junho de 2003, do Programa Nacional de
Renda Mínima vinculada à Saúde - Bolsa Alimentação, instituído pela Medida Provisória n o 2.206-
1, de 6 de setembro de 2001, do Programa Auxílio-Gás, instituído pelo Decreto nº 4.102, de 24 de
janeiro de 2002, e do Cadastramento Único do Governo Federal, instituído pelo Decreto nº 3.877,
de 24 de julho de 2001.
Art. 2
o
Constituem benefícios financeiros do Programa, observado o disposto em regulamento:
I - o benefício básico, destinado a unidades familiares que se encontrem em situação de
extrema pobreza;
II - o benefício variável, destinado a unidades familiares que se encontrem em situação de
pobreza e extrema pobreza e que tenham em sua composição gestantes, nutrizes, crianças entre 0
(zero) e 12 (doze) anos ou adolescentes até 15 (quinze) anos.
§ 1
o
Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I - família, a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela
possuam laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o
mesmo teto e que se mantém pela contribuição de seus membros;
II - nutriz, a mãe que esteja amamentando seu filho com até 6 (seis) meses de idade para o
qual o leite materno seja o principal alimento;
III - renda familiar mensal, a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pela
totalidade dos membros da família, excluindo-se os rendimentos concedidos por programas oficiais
de transferência de renda, nos termos do regulamento.
§ 2
o
O valor do benefício mensal a que se refere o inciso I do caput será de R$ 50,00
(cinqüenta reais) e será concedido a famílias com renda per capita de até R$ 50,00 (cinqüenta
reais).
§ 3
o
O valor do benefício mensal a que se refere o inciso II do caput será de R$ 15,00 (quinze
reais) por beneficiário, até o limite de R$ 45,00 (quarenta e cinco reais) por família beneficiada e
será concedido a famílias com renda per capita de até R$ 100,00 (cem reais).
§ 4
o
A família beneficiária da transferência a que se refere o inciso I do caput poderá receber,
cumulativamente, o benefício a que se refere o inciso II do caput , observado o limite estabelecido
no § 3
o
.
179
§ 5
o
A família cuja renda per capita mensal seja superior a R$ 50,00 (cinqüenta reais), até o
limite de R$ 100,00 (cem reais), receberá exclusivamente o benefício a que se refere o inciso II do
caput , de acordo com sua composição, até o limite estabelecido no § 3
o
.
§ 6
o
Os valores dos benefícios e os valores referenciais para caracterização de situação de
pobreza ou extrema pobreza de que tratam os §§ 2
o
e 3
o
poderão ser majorados pelo Poder
Executivo, em razão da dinâmica socioeconômica do País e de estudos técnicos sobre o tema,
atendido o disposto no parágrafo único do art. 6º .
§ 7
o
Os atuais beneficiários dos programas a que se refere o parágrafo único do art. 1º , à
medida que passarem a receber os benefícios do Programa Bolsa Família, deixarão de receber os
benefícios daqueles programas.
§ 8
o
Considera-se benefício variável de caráter extraordinário a parcela do valor dos
benefícios em manutenção das famílias beneficiárias dos Programas Bolsa Escola, Bolsa
Alimentação, PNAA e Auxílio-Gás que, na data de ingresso dessas famílias no Programa Bolsa
Família, exceda o limite máximo fixado neste artigo.
§ 9
o
O benefício a que se refere o § 8
o
será mantido até a cessação das condições de
elegibilidade de cada um dos beneficiários que lhe deram origem.
§ 10. O Conselho Gestor Interministerial do Programa Bolsa Família poderá excepcionalizar o
cumprimento dos critérios de que trata o § 2
o
, nos casos de calamidade pública ou de situação de
emergência reconhecidos pelo Governo Federal, para fins de concessão do benefício básico em
caráter temporário, respeitados os limites orçamentários e financeiros.
§ 11. Os benefícios a que se referem os incisos I e II do caput serão pagos, mensalmente, por
meio de cartão magnético bancário, fornecido pela Caixa Econômica Federal, com a respectiva
identificação do responsável mediante o Número de Identificação Social - NIS, de uso do Governo
Federal.
§ 12. Os benefícios poderão, também, ser pagos por meio de contas especiais de depósito a
vista, nos termos de resoluções adotadas pelo Banco Central do Brasil.
§ 13. No caso de créditos de benefícios disponibilizados indevidamente ou com prescrição do
prazo de movimentação definido em regulamento, os créditos reverterão automaticamente ao
Programa Bolsa Família.
§ 14. O pagamento dos benefícios previstos nesta Lei será feito preferencialmente à mulher,
na forma do regulamento.
Art. 3
o
A concessão dos benefícios dependerá do cumprimento, no que couber, de
condicionalidades relativas ao exame pré-natal, ao acompanhamento nutricional, ao
acompanhamento de saúde, à freqüência escolar de 85% (oitenta e cinco por cento) em
estabelecimento de ensino regular, sem prejuízo de outras previstas em regulamento.
Art. 4
o
Fica criado, como órgão de assessoramento imediato do Presidente da República, o
Conselho Gestor Interministerial do Programa Bolsa Família, com a finalidade de formular e
integrar políticas públicas, definir diretrizes, normas e procedimentos sobre o desenvolvimento e
implementação do Programa Bolsa Família, bem como apoiar iniciativas para instituição de
políticas públicas sociais visando promover a emancipação das famílias beneficiadas pelo
Programa nas esferas federal, estadual, do Distrito Federal e municipal, tendo as competências,
composição e funcionamento estabelecidos em ato do Poder Executivo.
Art. 5
o
O Conselho Gestor Interministerial do Programa Bolsa Família contará com uma
Secretaria-Executiva, com a finalidade de coordenar, supervisionar, controlar e avaliar a
operacionalização do Programa, compreendendo o cadastramento único, a supervisão do
cumprimento das condicionalidades, o estabelecimento de sistema de monitoramento, avaliação,
gestão orçamentária e financeira, a definição das formas de participação e controle social e a
interlocução com as respectivas instâncias, bem como a articulação entre o Programa e as
políticas públicas sociais de iniciativa dos governos federal, estadual, do Distrito Federal e
municipal.
Art. 6
o
As despesas do Programa Bolsa Família correrão à conta das dotações alocadas nos
programas federais de transferência de renda e no Cadastramento Único a que se refere o
parágrafo único do art. 1º , bem como de outras dotações do Orçamento da Seguridade Social da
180
União que vierem a ser consignadas ao Programa.
Parágrafo único. O Poder Executivo deverá compatibilizar a quantidade de beneficiários do
Programa Bolsa Família com as dotações orçamentárias existentes.
Art. 7
o
Compete à Secretaria-Executiva do Programa Bolsa Família promover os atos
administrativos e de gestão necessários à execução orçamentária e financeira dos recursos
originalmente destinados aos programas federais de transferência de renda e ao Cadastramento
Único mencionados no parágrafo único do art. 1º .
§ 1
o
Excepcionalmente, no exercício de 2003, os atos administrativos e de gestão necessários
à execução orçamentária e financeira, em caráter obrigatório, para pagamento dos benefícios e
dos serviços prestados pelo agente operador e, em caráter facultativo, para o gerenciamento do
Programa Bolsa Família, serão realizados pelos Ministérios da Educação, da Saúde, de Minas e
Energia e pelo Gabinete do Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome,
observada orientação emanada da Secretaria-Executiva do Programa Bolsa Família quanto aos
beneficiários e respectivos benefícios.
§ 2
o
No exercício de 2003, as despesas relacionadas à execução dos Programas Bolsa
Escola, Bolsa Alimentação, PNAA e Auxílio-Gás continuarão a ser executadas orçamentária e
financeiramente pelos respectivos Ministérios e órgãos responsáveis.
§ 3
o
No exercício de 2004, as dotações relativas aos programas federais de transferência de
renda e ao Cadastramento Único, referidos no parágrafo único do art. 1º , serão descentralizadas
para o órgão responsável pela execução do Programa Bolsa Família.
Art. 8
o
A execução e a gestão do Programa Bolsa Família são públicas e governamentais e
dar-se-ão de forma descentralizada, por meio da conjugação de esforços entre os entes federados,
observada a intersetorialidade, a participação comunitária e o controle social.
Art. 9
o
O controle e a participação social do Programa Bolsa Família serão realizados, em
âmbito local, por um conselho ou por um comitê instalado pelo Poder Público municipal, na forma
do regulamento.
Parágrafo único. A função dos membros do comitê ou do conselho a que se refere o caput é
considerada serviço público relevante e não será de nenhuma forma remunerada.
Art. 10. O art. 5º da Lei nº 10.689, de 13 de junho de 2003, passa a vigorar com a seguinte
alteração:
"Art. 5º As despesas com o Programa Nacional de Acesso à
Alimentação correrão à conta das dotações orçamentárias
consignadas na Lei Orçamentária Anual, inclusive oriundas do
Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, instituído pelo art.
79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias." (NR)
Art. 11. Ficam vedadas as concessões de novos benefícios no âmbito de cada um dos
programas a que se refere o parágrafo único do art. 1º .
Art. 12. Fica atribuída à Caixa Econômica Federal a função de Agente Operador do Programa
Bolsa Família, mediante remuneração e condições a serem pactuadas com o Governo Federal,
obedecidas as formalidades legais.
Art. 13. Será de acesso público a relação dos beneficiários e dos respectivos benefícios do
Programa a que se refere o caput do art. 1º .
Parágrafo único. A relação a que se refere o caput terá divulgação em meios eletrônicos de
acesso público e em outros meios previstos em regulamento.
Art. 14. A autoridade responsável pela organização e manutenção do cadastro referido no art.
1º que inserir ou fizer inserir dados ou informações falsas ou diversas das que deveriam ser
inscritas, com o fim de alterar a verdade sobre o fato, ou contribuir para a entrega do benefício a
pessoa diversa do beneficiário final, será responsabilizada civil, penal e administrativamente.
§ 1
o
Sem prejuízo da sanção penal, o beneficiário que dolosamente utilizar o benefício será
obrigado a efetuar o cimento da importância recebida, em prazo a ser estabelecido pelo Poder
Executivo, acrescida de juros equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e
181
Custódia - SELIC, e de 1% (um por cento) ao mês, calculados a partir da data do recebimento.
§ 2
o
Ao servidor público ou agente de entidade conveniada ou contratada que concorra para a
conduta ilícita prevista neste artigo aplica-se, nas condições a serem estabelecidas em
regulamento e sem prejuízo das sanções penais e administrativas cabíveis, multa nunca inferior ao
dobro dos rendimentos ilegalmente pagos, atualizada, anualmente, até seu pagamento, pela
variação acumulada do Índice de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA, divulgado pela Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Art. 15. Fica criado no Conselho Gestor Interministerial do Programa Bolsa Família um cargo,
código DAS 101.6, de Secretário-Executivo do Programa Bolsa Família.
Art. 16. Na gestão do Programa Bolsa Família, aplicarse-á, no que couber, a legislação
mencionada no parágrafo único do art. 1º , observadas as diretrizes do Programa.
Art. 17. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2004; 183 o da Independência e 116º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
José Dirceu de Oliveira e Silva
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