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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS
RENATA DA SILVA DE BARCELLOS
GAFE: UMA ANÁLISE
NITERÓI
2008
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RENATA DA SILVA DE BARCELLOS
GAFE: UMA ANÁLISE
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutora. Área de
concentração: Estudos de Linguagem,
Subárea: Estudos Lingüísticos, Linha de
pesquisa: Discurso e interação.
Orientador: Fernando Afonso de Almeida
Niterói
2008
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
B242 Barcellos, Renata da Silva de.
Gafe: uma análise / Renata da Silva de Barcellos. – 2008.
121 f.
Orientador: Fernando Afonso de Almeida.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2008.
Bibliografia: f. 105-110.
1. Interação social. 2. Linguagem. 3. Sociolingüística. I.
Almeida, Fernando Afonso de. II. Universidade Federal
Fluminense. III. Título.
CDD 401
RENATA DA SILVA DE BARCELLOS
GAFE: UMA ANÁLISE
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutora. Área de
concentração: Estudos de Linguagem,
Subárea: Estudos Lingüísticos, Linha de
pesquisa: Discurso e interação.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Fernando Afonso de Almeida (orientador)
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Gonçalves
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Profª Drª Cláudia N. Roncarati de Souza
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Profª Drª Victória Wilson
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Profª Drª Angela Maria da Silva Corrêa
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Profª Drª Katia Ferreira Fraga (suplente)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Profª Drª Solange Coelho Vereza (suplente)
Universidade Federal Fluminense
Niterói
2008
Communiquer c’ est toujours négocier avec
l’autre pour parvenir a un accord sur les
significations qui permettront qu’ on
‘s’ entende.”
Daniel Coste
Gafe é como um soluço: todo mundo está
sujeito, seja rico, seja pobre, nobre ou plebeu.
Ruy Castro (apud. MATARAZZO, 1996)
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos a todos os que de alguma forma contribuíram para a
realização deste trabalho.
Sou grata, principalmente à minha família, pois sem seu apoio não teria
terminado esta pesquisa.
Meu muito obrigada ao meu orientador, Fernando Afonso de Almeida, pela
imensa paciência com as minhas dificuldades devido à complexidade do objeto de
estudo, pelo material fornecido e pela orientação dada.
RESUMO
Esta tese pretende, através do estudo de exemplos de gafe, examinar, no
âmbito da interação desenvolvida entre os participantes de uma situação
comunicativa, como este fenômeno discursivo surge e quais são os seus
desdobramentos. Para tal, foram selecionados 385 exemplos sob quatro
aspectos: causa, efeito, tratamento e relação com outros fenômenos discursivos.
Uma vez feita a análise de 65 gafes, verificamos que elas podem ser cometidas
em qualquer tipo de interação e que, dependendo da gafe, da relação
(assimétrica ou simétrica) estabelecida, do contexto, do enquadre e da identidade
(do status e do papel social) de quem a comete, ela pode ser irreparável.
Palavras-chave: interação gafe - face
SUMÉ
A partir de l`observation des exemples de gaffes, cette thèse a pour but d’
examiner, dans le domaine de l’interaction développée entre les participants d’une
situation communicative, de quelle façon ce phenomène discursif apparaît et quels
sont ses conséquences. Pour cela, nous avons sélectionné 385 exemples en
tenant compte de quatre aspects: la cause, l’ effet, le traitement et la relation avec
d’ autres phénomènes discursifs. Après l’ analyse de 65 gaffes, nous avons vérifié
qu’ elles peuvent arriver dans toutes les situations d’ interaction et que selon la
gravité de la gaffe, la relation établie, le contexte, le status et le rôle (identité) de
celui qui la commet, elle peut être irréparable.
Palavras-chave: interaction gaffe - face
SUMÁRIO
1- INTRODUÇÃO ..................................................................................................11
2- PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: INTERAÇÃO E GAFE ...................................15
2.1- ASPECTOS DA GAFE.........................................................................25
2.2- DESENCADEADORES DA GAFE E SEUS EFEITOS .......................30
2.2.1- PROBLEMAS RELATIVOS À IDENDIDADE....................................31
2.2.2- QUEBRA DE EXPECTATIVA..........................................................37
2.2.2.1- Enquadre interativo........................................................................38
2.2.2.2- Esquema de conhecimento............................................................40
2.2.2.2.1-Mal-entendido...............................................................................41
2.2.2.2.2- Ofensa eventual ou insulto..........................................................44
2.2.2.2.3- Mentira........................................................................................47
2.2.2.2.4- Ato falho......................................................................................49
2.2.2.2.5- Lapso...........................................................................................51
2.2.2.2.6- Ironia...........................................................................................52
2.2.2.2.7- Emoção.......................................................................................54
2.2.2.2.8- Riso e seus fenômenos...............................................................56
2.2.3- ROMPIMENTO DE REGRAS DE POLIDEZ.....................................64
2.2.3.1- Ritual..............................................................................................65
2.3- DESVIO............................................................................. ..................66
2.4 TRATAMENTO .....................................................................................73
2.4.1-POSIÇÃO ASSUMIDA POR L1.........................................................74
2.4.2- POSIÇÂO ASSUMIDA POR L2.........................................................78
2.4.3- POSIÇÃO ASSUMIDA POR L3.........................................................81
2.4.4- POSIÇÃO ASSUMIDA POR LX.........................................................83
3- TIPOLOGIA E ANÁLISE DE GAFES ................................................................88
3.1- 105GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS E SEM
INTERVENÇÕES...................................................................................................88
3.2- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS ECOM
INTERVENÇÕES REPARADORAS......................................................................89
3.3- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS COM
INTERVENÇÕES NÃO-REPARADORAS.............................................................90
3.4- GAFESO-VERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS E SEM
INTERVENÇÕES...................................................................................................91
3.5- GAFES NÃO-VERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS COM
INTERVENÇÕES REPARADORAS......................................................................92
3.6- GAFES VERBAIS E PARAVERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS
E SEM INTERVENÇÕES.......................................................................................93
3.7- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, ABERTAS E SEM
INTERVENÇÕES...................................................................................................94
3.8- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, ABERTAS, COM
INTERVENÇÕES REPARADORAS......................................................................95
3.9- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, ABERTAS E COM
INTERVENÇÕES NÃO-REPARADORAS.............................................................96
3.10- GAFES VERBAIS, CONSCIENTES, ABERTAS E SEM
INTERVENÇÕES...................................................................................................98
3.11- GAFES VERBAIS, CONSCIENTES, ABERTAS E COM
INTERVENÇÕES NÃO-REPARADORAS.............................................................99
4- CONCLUSÃO .................................................................................................101
5- REFERÊNCIAS BIIBLIOGRÁFICAS........................ ......................................105
6- ANEXO ...........................................................................................................111
6.1- ANEXO 1......................................................................................................111
6.2- ANEXO 2......................................................................................................112
6.3- ANEXO 3......................................................................................................113
6.4- ANEXO 4......................................................................................................114
6.5- ANEXO 5......................................................................................................115
6.6- ANEXO 6......................................................................................................115
6.7- ANEXO 7......................................................................................................116
6.8- ANEXO 8......................................................................................................117
6.9- ANEXO 9......................................................................................................118
6.10- ANEXO 10..................................................................................................119
6.11- ANEXO 11..................................................................................................120
11
1- INTRODUÇÃO
A presente pesquisa sobre gafe está sendo desenvolvida na área de
Estudos Lingüísticos à luz da Sociolingüística Interacional. Essa teoria tem sido
amplamente desenvolvida, principalmente, através dos estudos antropológicos e
sociológicos de Gumperz e Goffman, que visam focalizar outros aspectos além
daqueles estritamente lingüísticos que influenciam e determinam o desenrolar
da interação.
Nosso interesse por esse objeto de estudo surgiu há muitos anos. Sempre
que cometíamos, presenciávamos ou nos era contada uma gafe, pensávamos em
como alguém era capaz de se comprometer e de gerar constrangimento, cuja
conseqüência, em certos casos, era devastadora (prejudicar-se pessoalmente
e/ou profissionalmente). Era um verdadeiro mistério que começou a ser
desvendado, de modo rudimentar, ao longo das aulas de Análise do Discurso e
Interação, que abordavam questões ligadas à linguagem, ao discurso e ao humor,
no Mestrado em Lingüística Aplicada, de 2000 a 2001, na Universidade Federal
Fluminense. Mas foi ao cursar uma disciplina isolada da Análise da Interação
Padrão e desvio da interação , no primeiro semestre de 2004, na Universidade
Federal Fluminense, antes de ingressar no Doutorado, em Estudos Lingüísticos,
que se fixou de fato o desejo de aprofundar nosso conhecimento sobre o tema,
culminando na elaboração da monografia “Gafe: uma análise“, desenvolvida a
partir do arcabouço teórico da literatura disponibilizada e lida ao longo do curso e
do corpus selecionado desde 2000, durante a pesquisa de Mestrado.
Depois da realização deste trabalho de final de curso, em 2004, continuamos
a coletar material sobre o tema e a pesquisá-lo. E para nossa surpresa, até o
presente momento, não encontramos nenhuma obra teórica na perspectiva da
Sociolingüística Interacional que tratasse especificamente desse assunto. Por
essa razão, decidimos aprofundar a pesquisa à luz dessa teoria, explicitando os
12
diversos aspectos da gafe, como seus elementos constituintes, suas
características e seu tratamento, a fim de contribuirmos com a sistematização das
questões relacionadas ao assunto pesquisado.
A coleta das gafes que compõem o corpus
1
de análise, iniciada em março
de 2000, foi feita a partir de programas de televisão;
2
de diversas seções do jornal
O Globo; e de relatos orais e escritos (protagonizados ou apenas observados) de
familiares, de colegas de trabalho e de amigos, de forma espontânea. Assim
sendo, as gafes presentes no corpus são provenientes de diversos tipos de
interação real (familiar, profissional, etc.) constituída não só da linguagem verbal
(atos de linguagem verbais), como também da não-verbal (dados proxêmicos,
posturas, gestos, mímicas) e da paraverbal (sotaque, entonação), que muitas
vezes determinam o sentido de um enunciado.
A partir da seleção do corpus, respondemos as seguintes questões:
1 quais são os efeitos da gafe sobre a interação verbal?;
2 como os interagentes gerenciam uma gafe?;
3 a gafe está relacionada com os outros fenômenos discursivos (por
exemplo, mal-entendido e lapso)?;
4 a gafe também pode ser voluntária?
5 há maior probabilidade de a gafe acontecer num contexto em que os
participantes sejam de culturas diferentes?;
6 existe possibilidade/tentativa de reparo da gafe?
Após essas indagações, a hipótese formulada é de que a gafe é cometida
quando um dos participantes realiza um ato de linguagem verbal e\ou não-verbal
inadequado à situação interlocutiva por causa da violação a uma norma
determinada socialmente, cuja conseqüência é a desestabilização do curso da
interação e o comprometimento da face
3
de, pelo menos, um dos participantes (do
alvo, que pode ser o gaffeur doravante gafista, aquele que comete a gafe; do
1
O total do corpus selecionado é de 385, dos quais 65 serão analisados no desenvolvimento desta pesquisa.
2
Programas de televisão de canais abertos: Rede Globo, SBT, Rede TV, Bandeirantes, Record e Cultura e do
canal fechado GNT.
3
Nossa noção de face é derivada de Goffman, que a define como “valor social positivo que uma pessoa
realmente reivindica para si a partir da linha de conduta que os outros pressupõem que ela tenha adotado,
durante um contexto particular”. (1975, p. 77).
13
interlocutor ou de um terceiro). O nível de comprometimento da face (arranhá-la
ou destruí-la) depende da gravidade da gafe, que por sua vez é determinado pela
identidade, pelo tipo de interação e de relação, pelo contexto e/ou pelo enquadre.
Estes fatores não só são responsáveis pela gradiência da gafe, como também
pelo seu engendramento. Em alguns casos, ela é proveniente de outros
fenômenos discursivos, por exemplo: o lapso e o mal-entendido. Há inclusive
episódios oriundos do consciente por causa do caráter voluntário
4
(além dos
predominantemente inconscientes/involuntários). E também devido às diferenças
entre as premissas que orientam os comportamentos, há maior probabilidade de a
gafe ocorrer entre pessoas de culturas diferentes.
Neste sentido, então, almejamos contribuir com uma possibilidade de
análise interacionista das gafes, a partir destes seguintes conceitos provenientes
da pragmática e dos estudos das interações: cultura (TYLOR, 1871), enquadre
(GOFFMAN, 1974), interação (GOFFMAN, 1975; VION, 1992), preservação da
face e ritual (GOFFMAN, 1975), identidade (GOFFMAN, 1975; KERBRAT-
ORECCHIONI, 2000a, MOITA LOPES, 2006); polidez (BROWN; LEVINSON,
1978; GOFFMAN, 1980), implicatura (GRICE, 1979), desvio (GOFFMAN, 1982);
valor ilocutório (AUSTIN, 1990), enunciação e enunciado (BAKHTIN, 1992), status
e papel social (VION, 1992), negociação (KERBRAT-ORECCHIONI, 2000a), ato
de linguagem (KERBRAT-ORECCHIONI, 2001), footing (GOFFMAN, 2002).
A partir dessas considerações, os objetivos traçados foram:
1- investigar os diferentes aspectos da gafe (característica, efeito, causa);
2- detectar a diversidade de tipos de gafes presentes em enunciados
oriundos de diferentes interações: conversa informal, discurso político, entrevista
etc;
3- propor uma tipologia das gafes;
4- analisar se há uma relação estabelecida entre o lapso, o ato falho, e o
mal-entendido com a gafe;
5- observar o modo como os interlocutores se posicionam diante de uma
4
Apesar do conceito vigente de que a gafe ocorre involuntariamente, ao analisar o corpus da pesquisa,
chegamos à conclusão de que ela também pode ser intencional como nos seguintes exemplos: Roberto Justus
(ver página 28), cursista de Danuza Leão (ver página 98), dentre outros.
14
gafe;
6- verificar se há somente dois grupos distintos de gerenciamento da gafe
(como foi pensado a partir de uma análise preliminar): a gafe interventiva (que se
subdivide em dois tipos: reparadora e não-reparadora) e a não-interventiva;
7- examinar em que medida a face do gafista ou do alvo da gafe pode ser
reconstruída e até que ponto a gafe pode desestabilizar o curso da interação.
Sendo assim, entendendo que o próprio fenômeno a ser observado, suas
características e a hipótese a ser comprovada muito influenciam a seleção do
instrumento teórico a ser utilizado, decidimos eleger como ponto de apoio a
perspectiva sociointeracional, pois acreditamos que esta forneça os instrumentos
mais adequados para o seu tratamento e, conseqüentemente, para que nosso
estudo seja uma contribuição para o aprofundamento dos estudos da interação e
da linguagem.
Para a elaboração da presente pesquisa, investigaremos o objeto de
estudo a partir da análise qualitativa e quantitativa. Assim, à medida que o
trabalho for sendo desenvolvido, examinaremos o corpus concomitantemente com
a reflexão teórica da gafe e apresentaremos, na parte da sua tipologia e de seu
tratamento, o número de ocorrências de acordo com os grupos encontrados.
E, posteriormente, na conclusão, a partir do total de gafes coletadas,
a porcentagem de cada tipo desse fenômeno e o seu gerenciamento, para
averiguarmos não só como a gafe é engendrada, como também a reação dos
participantes envolvidos numa situação embaraçosa. Optamos então por
desenvolver a pesquisa dessa forma, a fim de tornar compreensível este
fenômeno interlocutivo complexo, mas infinitamente interessante.
15
2- PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: INTERAÇÃO E GAFE
Neste capítulo, apresentaremos o arcabouço teórico proveniente da
Sociolingüística Interacional, perspectiva essa que estuda a interação dos
participantes (através de recursos lingüísticos e/ou não-lingüísticos) de uma dada
situação interlocutiva, que visa, primeiramente, à delimitação da gafe e, em
seguida, de seus aspectos constituintes.
Dentro dessa vertente, a linguagem é entendida como um elemento que se
constrói nas relações sociais, ao mesmo tempo que as constrói. E, como tal, no
momento em que os participantes a colocam em uso, podem ocorrer falhas, por
exemplo, gafes, porque “se um ator põe em risco a imagem de sua personalidade
projetada pela outra equipe,
5
falamos de ‘mancada’ ou dizemos que o ator ‘meteu
os pés pelas mãos (GOFFMAN, 1975, p. 192); e também atos falhos, lapsos e
mal-entendidos. Sendo assim, qualquer que seja a natureza da interação (privada
ou institucional), os indivíduos “agem sabendo que há probabilidade de haver
como resultado esta espécie de dissonância. (ibid., p. 193). Isso porque
a influência recíproca que os participantes exercem sobre a ação praticada pode
ser positiva (no caso da interação cooperativa ou harmoniosa em que a atividade
desenvolvida obedece a regras determinadas socialmente) ou negativa (quando
ocorre alguma ruptura, que em termos habituais é chamada de desvio
6
(ibid.
- assunto a ser tratado posteriormente). Afinal, além de existirem situações
potencialmente conflituosas, como debates entre políticos ou julgamentos, há a
questão da imprevisibilidade inerente a qualquer situação comunicativa, em que
os participantes não podem calcular ou avaliam mal qual ação será praticada
(verbalmente e/ou não) e que sentido será atribuído a ela no decorrer de uma
5
Goffman utiliza o termo equipe para se referir “a qualquer grupo de indivíduo que cooperem na encenação
de uma rotina particular” (ibid., p. 78).
6
Goffman nomeia de desvio a ação praticada que infringe uma das normas determinadas socialmente (1982,
p. 151).
16
interação, que é definida como a influência recíproca dos indivíduos sobre as
ações uns dos outros, quando em presença física imediata”. (ibid., p. 23).
Outra definição adotada por nós para a noção de interação é de Vion para
quem esse tipo de influência é “toda a ação conjunta, conflituosa ou cooperativa,
que coloca em presença dois ou mais atores”. (1992, p. 17).
7
Cabe ressaltar que,
para esta pesquisa, consideraremos ação conflituosa aquela em que ocorre
algum tipo de desacordo (por exemplo, a gafe), cuja conseqüência é a
desarmonia interacional e a ameaça à face de, pelo menos, um dos envolvidos na
interação.
Neste sentido, antes de examinarmos e de ampliarmos a discussão acerca
desse assunto (as definições de gafe encontradas e nossa tentativa de delimitá-
la, causa, tratamento, dentre outros), é importante destacar que, a partir da
pesquisa desenvolvida em livros e sites, só encontramos as seguintes
referências: Goffman, que em A representação do eu na vida cotidiana (1975), ao
abordar a temática da arte de manipular a impressão, faz alusão aos gestos
voluntários e/ou involuntários, explicando o fato e sinalizando o constrangimento;
Cláudia Matarazzo, no livro Gafe não é pecado (1996), propõe uma classificação
para aquele que comete gafe e relata situações em que ocorre este fenômeno
discursivo. Embora seja apenas uma coletânea de episódios de gafe e não um
estudo científico, consideramos a breve reflexão que a autora faz no início do
livro, tão pertinente que ratificamos a classificação de gafista proposta por ela.
Roberto Damatta, na obra Carnavais, malandros e heróis (1997), no capítulo
quatro intitulado “Sabe com quem está falando?”, menciona a gafe ao tratar da
questão da posição social assumida pelos indivíduos nas diferentes interações;
Kerbrat-Orecchioni, na obra Les actes de langage dans le discours, no quinto
capítulo, ao tratar da desculpa e classificar a ofensa em voluntária e involuntária,
menciona que “convém desculpar-se por uma gafe” (2001, p. 151); Gumperz, no
artigo “Convenções de contextualização” (2002), faz referência à gafe, ao
mencionar as falhas de comunicação; Maria Claudia Coelho, no artigo “Um
presente que é a sua cara: trocas materiais e construção de identidade” (2002),
analisa formas de construção da identidade por meio de algumas trocas de
7
Daqui por diante, faremos tradução das citações de obras em língua estrangeira e as mencionaremos da
seguinte forma: nossa tradução.
17
presentes em que ocorrem gafes; e Vincent, Deshaies e Martel, no artigo
intitulado “Gérer la gaffe et le malentendu: des noeuds discursifs dans les discours
monologique” (2003), que discorrem sobre o gerenciamento da gafe e do mal-
entendido, apresentando assim, estratégias de reparação e distinções.
Antes de refletirmos sobre a definição, as características, as causas, etc;
investigamos a origem do termo gafe. Ele é oriundo do francês gaffe (1872),
inicialmente, apenas com este sentido: nome de um instrumento formado de uma
vara em cuja ponta há um ou vários croques, usado para manobrar uma
embarcação ou para alcançar algo, é considerado galicismo pelos puristas, que
sugeriram em seu lugar: ecorregadela, deslize, descuido, rata (HOUAISS, 2001).
Mas muitos falantes não aderiram à proposta e continuaram a utilizar o galicismo
na norma culta. Já na norma coloquial, utilizamos o termo “mico” e a expressão
“pagar mico”. Recentemente, surgiu um outro termo “batatadas”, inclusive, num
título de matéria no jornal Extra: “Gyselle, a rainha das batatadas” (09/02/2008).
A matéria é sobre uma das participantes do programa “Big Brother 8” (exibido na
Rede Globo, diariamente de 22:05 às 22h55min.), Gyselle, devido aos inúmeros
deslizes cometidos oralmente: “Eu brincava sempre de salada mística” e “Ela está
sempre nos alofotes”; e por escrito, em seu blog: “...minha discurcao com dr
marcelo, mas eu não vou tocar mas nesse assustu...” (em março de 2008). Por
outro lado, até então ninguém propôs um termo em português para quem comete
a gafe, no caso, em francês, o gaffeur. Por isso, criamos o neologismo gafista
para nomeá-lo.
Quanto à definição da gafe, objeto de estudo desta pesquisa, Goffman, um
dos poucos autores a tratar essa questão, a considera como “fontes de
embaraços e dissonâncias que não estavam nos planos da pessoa responsável
por eles e que seriam evitados se o indivíduo conhecesse de antemão as
conseqüências de sua atividade”. (1975, p. 193). Ao defini-la assim, além de não
mencionar as conseqüências e nem o motivo pelo qual a situação seria
considerada embaraçosa, o autor não delimita claramente este fenômeno
discursivo.
Claudia Matarazzo diz que se trata de “uma situação fora de contexto”
(1996, p. 13), mas não explica o porquê de considerar uma determinada situação
inadequada ao contexto em que ocorreu. Que contexto é esse? O que entende
18
por isso?
Maria Claudia Coelho, que cita as noções “ameaça à face” e “linha” de
Goffman (1975), define a gafe como “um tipo de ameaça à face’, na qual a
responsabilidade da pessoa cuja ‘linha’
8
adotada provoca a ameaça é nenhuma”
(2002, p. 79), porém, não explica o que entende por ameaça.
Outros autores que discorreram sobre o assunto foram: Vincent, Deshaies
e Martel, que definem a gafe como “emissão de palavras que não poderiam ser
ditas, mas que, infelizmente, o foram”. (2003, p. 156).
9
Essa definição é também
muito ampla, pois outras falhas como o ato falho e o lapso podem ser explicados
assim. Faltou especificar o seguinte: por que não poderiam ser ditas? O que
distingue a gafe dos outros fenômenos discursivos?
E, finalmente, numa tentativa nossa de percepção, a partir da análise do
corpus, da leitura de textos da linha interacionista e dessas definições,
consideramos a gafe como uma ação (constituída pela realização de atos de
linguagem
10
verbais e/ou de não-verbais) involuntária ou voluntária, praticada por
um dos interagentes, mas inadequada à situação comunicativa (devido à
inobservância às regras determinadas socialmente), cuja conseqüência é a
desestabilização do curso da interação e a ameaça à face do participante
atingido.
Em nossa definição de gafe, consideramos a noção de atos de linguagem
importante para o entendimento desse fenômeno interlocutivo. Isso porque a
realização de atos de linguagem verbais e/ou de atos não-verbais é “orientada
sempre pelas normas interacionais” (BOYER, 1996, p. 217),
11
que são instituídas
por acordos sociais, por sua vez, determinados pela cultura, que é definida como
“conjunto complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e
8
A noção de linha é definida como “um padrão de atos verbais e não-verbais através dos quais expressa sua
visão da situação e, através disso, sua avaliação dos participantes, especialmente de si mesma”. (GOFFMAN,
1980:76).
9
Nossa tradução.
8 Primeiramente, cabe dizer que adotamos o termo “linguagem” no lugar de “fala” porque, nesta pesquisa,
analisaremos os diversos tipos de linguagem (verbal, não-verbal e paraverbal), ou seja, não nos
restringiremos à linguagem verbal “fala”. A teoria dos atos de linguagem surgiu no interior da Filosofia da
Linguagem, no início dos anos 1960, com os membros da Escola Analítica de Oxford Austin, Searle,
Strawson e outros. A partir da nova concepção de linguagem enquanto forma de ação, o pioneiro Austin
desenvolveu a Teoria dos Atos de Fala, publicada em 1962, no livro How to do things with words. Mais
tarde, Searle desenvolveu e aperfeiçoou o estudo e o funcionamento dos atos de linguagem na obra Speech
acts, em 1972.
11
Nossa tradução.
19
várias outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade” (TYLOR, 1871, p.1).
12
Significa que cada sociedade estabelece suas
regras lingüísticas, conversacionais etc; e tem uma visão de mundo, como no
Cairo, no Egito, em que os moradores de cobertura são aqueles indivíduos cujo
poder aquisitivo é baixo, ao contrário, do Brasil.
Numa interação, quando os indivíduos são de contextos culturais
diferentes, há maior probabilidade de conflito (isso porque há casos em que surge
um problema na comunicação que foge ao nosso controle, como gafe, lapso,
mal-entendido, etc; causadores da transmissão de uma impressão incompatível
com a que se pretendia). Para diminuir a sua ocorrência é preciso que os
indivíduos compartilhem os mesmos acordos sociais. Por exemplo, num estágio
de verão de professores de francês, por não conhecer a cultura marroquina, a
brasileira não foi capaz de captar a intenção do professor (que, ao realizar tal ato,
almejava elogiá-la):
- Você vale muitos camelos.
- Mal-educado, retruca a gaúcha.
(fato relatado em agosto de 2001)
Ao longo das trocas, os participantes criam e mantêm uma relação
interpessoal de solidariedade e de poder
13
(BROWN; LEVINSON, 1978, p. 252-
259). Quanto à dimensão do poder ou da dominação, esses autores estabelecem
que um indivíduo “pode ter poder sobre o outro na medida em que é capaz de
controlar o comportamento do outro” (ibid., 254), como é o caso das relações
assimétricas (relacionamentos entre pai e filho, patrão e empregado, professor e
aluno). Dessa forma, uma ordem ou uma ameaça numa relação de poder não
configura uma gafe, porque quem ameaça ou ordena, numa determinada situação
interlocutiva, desempenha um papel (assunto a ser tratado posteriormente) que
lhe confere o poder de fazê-lo. Por exemplo, o papel desempenhado pela mãe
autoriza-a a dirigir-se ao filho utilizando este ato de linguagem: “nunca mais diga
12
A noção de cultura é de origem inglesa, posto que se deve a Tylor tê-la definido pela primeira vez.
Posteriormente, outros autores trataram do assunto no campo da Antropologia. É uma palavra chave para a
interpretação da vida social. Levis-Strauss, na obra Antropologia estrutural (1975), adota a definição de
Tylor; e Damatta, na obra Carnavais, malandros e heróis, a define como "os valores, relações, grupos sociais
e ideologias que pretendem estar ao lado e acima do tempo” (1997).
13
Numa análise sobre a mudança dos pronomes com foco no interlocutor, “T” (tu) e “V” (vós) em línguas
européias, os autores vinculam o uso de pronomes recíprocos à solidariedade, em relacionamentos simétricos,
com igualdade social e associam o poder ao uso de pronomes não recíprocos em relacionamentos
20
isso!”, porque há uma relação de autoridade entre eles. Já se o mesmo ato fosse
proferido por um operário ao seu chefe, seria caracterizada uma gafe, pois, como
o operário se encontra numa posição hierarquicamente inferior, seu
comportamento verbal seria considerado inadequado e, conseqüentemente, a
face de ambos estaria ameaçada.
Já na dimensão da solidariedade, os autores dizem que sua ocorrência
está vinculada a relações simétricas entre os indivíduos (na troca, os participantes
dispõem de direitos e deveres similares). Sendo assim, numa situação
comunicativa, ao depreciar, ao ofender/insultar
14
o outro ou ordenar algo, um dos
envolvidos poderá cometer uma gafe e de menor ou maior gravidade, de acordo
com o nível de comprometimento da sua face e/ou da do seu interlocutor. Por
exemplo, se pedirmos a opinião de alguém a respeito de uma roupa e o outro
responder que a considera cafona, e depois este indivíduo descobrir que era um
presente para ele. Ou se alguém oferecer uma caixa de bombons a uma
aniversariante e ela diz que detesta chocolate.
Constatamos então que dependendo do grau de intimidade existente entre
os interagentes, eles devem proferir atos de linguagem verbais e/ou não-verbais
para atingir sua intenção e adequá-los ao tipo de relação estabelecida (simétrica
ou assimétrica). Caso os participantes não os adotem adequadamente, poderá
ocorrer uma gafe. Para compreendermos melhor esta questão, definiremos os
atos de linguagem.
Enquanto unidade superior, a interação (em situação face a face ou não) é
constituída de atos de linguagem verbais e não-verbais, estes definidos por
Kerbrat-Orecchioni como “uma seqüência lingüística dotada de um certo valor
ilocutório
15
que pretende operar sobre o destinatário um certo tipo de
transformação”. (2001, p. 146).
16
Esses atos podem ser de dois tipos: direto e
indireto. O que determina sua forma de realização é o tipo de interação e de
relação que se pretende estabelecer, a partir das regras determinadas
socialmente.
assimétricos.
14
Goffman distingue níveis de responsabilidade pela ameaça à face: o insulto “em que o ofensor pode
parecer ter agido maliciosa e malevolamente” e as ofensas eventuais, que surgem “como uma conseqüência
não planejada”. (1980, p. 84).
15
O valor ilocutório (sinônimo de força ilocutória) estão relacionadas “com as circunstâncias especiais da
ocasião em que o proferimento é emitido” e trata-se de efeitos produzidos. (AUSTIN, 1990, p. 99).
21
Os atos de linguagem verbais e os atos de linguagem não-verbais
carregam em si uma intencionalidade, estão inseridos numa determinada
situação, são portadores de um propósito e funcionam como atos valorizadores
ou ameaçadores da face, desempenhando assim um papel decisivo na gestão da
relação interpessoal. E uma gafe é caracterizada quando há algum desequilíbrio
interacional (um dos participantes tem a sua face comprometida devido à
divergência atitudinal de um ato realizado proveniente da inadequação ao tipo de
interação e ao de relação).
O ato de linguagem é direto quando “nas formas lingüísticas está explícita
a intenção do falante” (ibid., 27),
17
ou seja, quando a intenção do falante está clara
no seu enunciado.
18
Vejamos o seguinte exemplo:
No carnaval de 2006, ao chegar ao camarote da Grande Rio, um repórter
fez a seguinte pergunta à atriz Suzana Vieira, rainha da bateria:
- Suzana, vamos fazer uma ao vivo rapidinho? Conta pra gente,
você vai desfilar ou ver aqui do camarote?
(Jornal O Globo, 28/ 02 / 2006)
Na seqüência acima, um repórter interpela a atriz (através da realização de
dois atos de linguagem diretos “vamos fazer uma ao vivo rapidinho?” e “você vai
desfilar ou ver aqui do camarote?”) sobre o que fará na escola Grande Rio.
Verificamos que o repórter comete uma gafe ao realizar o segundo ato de
linguagem, porque demonstra a falta de conhecimento sobre a função da atriz na
escola de samba Grande Rio: a de rainha da bateria.
Já o ato de linguagem é indireto quando “dizer é fazer uma coisa sob
aparência de outra” (ibid. 2001, p. 33),
19
ou seja, é realizado por meio de formas
lingüísticas típicas de outro tipo de ato, por algum motivo (como regras de
conduta e preservação da face). Neste sentido, no enunciado interrogativo “Você
quer abrir a porta?”, o propósito do falante não é requerer uma informação do
ouvinte (como sim ou não), mas sim criar um efeito que o leve a executar a ação
16
Nossa tradução.
17
Nossa tradução.
18
Para Bakhtin, toda enunciação é “um elemento do diálogo, englobando as produções escritas (1992, p. 15).
É uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo de cadeia do ato de fala” (ibid.,
p. 98). E o enunciado por sua vez é o seu produto.
19
Nossa tradução.
22
em questão. Quando é proferido um enunciado com valor indireto, devemos levar
em consideração o conhecimento de mundo e a prática social do falante, pois são
esses dois fatores que permitirão reconhecer o seu real valor ilocutório, como
podemos observar no seguinte episódio:
Duas amigas (uma brasileira, L1, e outra inglesa, L2), que não se viam há
muito tempo, se reencontram na casa de um amigo em comum, em dezembro de
2003. A inglesa, apesar de ter morado no Brasil durante algum tempo, ainda não
faz a concordância adequada.
L1: Oi, tudo bem? Quanto tempo!
L2: Oi, tudo bem. É sua neto?
L1: Neta? Não, é minha filha.
L2: I’m sorry.
(Fato relatado pela brasileira em janeiro de 2004, no Rio de
Janeiro)
Nesta situação interlocutiva, observamos que no 3º turno o primeiro ato de
linguagem realizado por L1 (“Neta?”) apresenta uma superposição de valores
ilocutórios. Isto porque o enunciado proferido em forma de pergunta-exclamação
tem não só o sentido de uma correção do tipo: “para mulher se usa neta“, mas
também de “surpresa“, “indignação” ou “recusa” por parte da brasileira que, no
seu entender, teria sido chamada de “velha“. Nesse caso, L1, alvo da gafe,
negocia ao mesmo tempo duas questões com L2, a gafista: primeiro, a correção
relativa à concordância nominal do termo “neta” que está se referindo “a ela” e,
segundo, a demonstração de sua irritação em relação ao fato de a amiga ter
sugerido que ela estivesse “velha” para ter uma filha daquela idade. Ao ouvir L1 e
perceber a gafe cometida, L2, imediatamente, faz um pedido de desculpa
20
através da realização de uma “formulação indireta” (“I’ m sorry”), que é a
“descrição de um estado de espírito” (ibid. , p. 129), a fim de proteger sua face e a
da amiga.
Ao longo de uma interação, os participantes podem se comunicar através
de atos verbais, de o-verbais, que funcionam exatamente como “um ato de
20
O pedido de desculpa é definido como “um ato pelo qual o locutor tenta obter de seu interlocutor o perdão
por uma ‘ofensa’ pela qual é responsável” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2001, p. 124), cujo objetivo é
“transformar o que poderia ser considerado como ofensivo naquilo que pode ser aceitável”. (GOFFMAN,
1975, p 113). Segundo a autora, há dois tipos: realizações diretas (expressão performativa, enunciado no
imperativo e agradecimento); e realizações indiretas (descrição do estado de espírito, justificativa e
23
linguagem verbal” (ibid., p. 154), e de ambos. Neste caso, os enunciados são
acompanhados de comportamentos não-verbais (gestos, mímicas e outras
produções corporais) ou paraverbais (entonação, pausa e intensidade
articulatória) com o significado atrelado ao contexto em que foram realizados.
Eles se dividem em dois grupos: os atos comunicativos (ou gestos, por exemplo:
acenar com a mão pode significar saudar ou se despedir, etc) e os atos não
comunicativos (de finalidade essencialmente prática, são chamados também de
gestos práxicos ou instrumentais, como se pentear). Segundo Kerbrat-Orecchioni,
a grande maioria dos especialistas da comunicação verbal “se interessou
exclusivamente pela gesticulação comunicativa, em detrimento da gesticulação
instrumental”. (ibid, 151).
21
Para ilustrar esse fato, mencionaremos o caso do ator
Richard Gere, que durante um evento de combate à aids, em Nova Délhi, abraçou
e beijou o pescoço da atriz Shilpa Shetty.
(Jornal O Globo, 27/04/ 2007)
Ao realizar um ato de linguagem não-verbal
22
“abraçar e beijar”, cujo valor
ilocutório seria de insulto dirigida à atriz Shilpa Shetty (devido ao fator cultural,
porque na Índia é proibido agir dessa forma), o comportamento não-verbal do ator
Richard Gere foi considerado obsceno por um tribunal indiano, e a conseqüência
foi que o ator teve sua prisão decretada.
Há casos que devido à sobreposição das linguagens verbal, não-verbal
e/ou paraverbal, a gafe pode surgir não apenas de um desses tipos, mas de
reconhecimento do erro). Nossa tradução.
21
Nossa tradução.
22
Segundo Kerbrat-Orecchioni, os atos de linguagem não-verbais têm três funções: primeiro, desempenham
um papel subalterno em relação ao verbal. Por exemplo, o enunciado “você pode me passar o sal?”,
geralmente, vem acompanhado de um gesto de apontar. Segundo, desempenham um papel complementar;
como nas saudações, é comum os gestos acrescentarem sentido às palavras. E terceiro, assumem um papel
integral quando, sozinhos, garantem a realização de uma intervenção (op. cit., p. 153 e 154).
24
todos. Apresentaremos a seguir um exemplo de sobreposição da verbal e
paraverbal: o jornalista Jorge Bastos Moreno, na coluna “Nhenhenhém”, do jornal
O Globo, declara já ter advertido o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral,
sobre a possibilidade de um dia vir a imitar Luiz Inácio Lula da Silva, presidente
do Brasil, na presença do próprio Lula:
Cuidado, governador, uma hora o senhor se distrai e acaba
imitando Lula para o próprio Lula.
Apesar da advertência, ao imitar o presidente, o governador comete uma
gafe proveniente da linguagem paraverbal:
E, num excesso de descontração, Cabral chamou Lula de
“companheiro” (com o sotaque do presidente).
(Jornal O Globo, 06/10/2007)
A partir do tipo de interação e de relação, identificamos nos exemplos
anteriores a intervenção,
23
definida como “a contribuição de um locutor a uma
troca (KERBRAT-ORECCHIONI, 1996, p.37),
24
que apresenta a gafe. Numa
interação harmoniosa ou conflituosa, os participantes implicados criam
expectativas sobre o que será dito pelo seu interlocutor, e é em resposta ao que
ele diz que a intervenção é criada por outro locutor. Cabe dizer que alguns
autores denominam as intervenções produzidas por locutores diferentes de par
adjacente,
25
que é composto por uma seqüência discursiva mínima de dois
enunciados. Como exemplos, temos: pergunta-resposta (como no exemplo da
página 20), ordem-execução, convite-aceitação/recusa, dentre outros. Há casos
em que a segunda parte de um par pode não ocorrer; por exemplo, não responder
a uma saudação pode parecer descaso e, dependendo do tipo de interação e de
relação, caracterizar gafe.
Com o desenvolvimento da pesquisa e a análise do corpus, a partir da
23
Numa intervenção, L1 cria expectativas e restrições relativas ao encadeamento a ser dado por L2. Ela pode
ser constituída de um ou mais atos de linguagem.
24
Nossa tradução.
25
A coerência interna das trocas foi tratada de forma diferente: os americanos criaram a noção par adjacente
(SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974), e a maioria dos interacionistas franceses adotaram o modelo
das unidades monologais e dialogais, no caso intervenção, como Kerbrat.-Orecchioni, na obra Les actes de
langage dans le discours, em 2001.
25
reflexão acerca dos atos de linguagem verbais e/ou não-verbais, comprovamos
que a gafe pode ser proveniente de um tipo ou do conjunto de linguagem, que
pode ser verbal, não-verbal e/ou paraverbal. Às vezes, a gafe é cometida por
causa de uma falha no ato de linguagem realizado verbalmente, seja pelo teor da
informação (insulto ou falta de conhecimento), como no exemplo da página 21;
seja pela infração do código lingüístico, como no caso do presidente Lula, ao falar
sobre as obras do PAC (Programa de aceleração do crescimento) a serem
realizadas em favelas cariocas, como a do Complexo do Alemão. Nessa ocasião,
ele declarou que: “se porrada educasse, bandido saía da cadeia santo” (jornal
O Globo 27/02/2008). Nesta enunciação, verificamos a inadequação à norma: o
uso da linguagem coloquial em vez de linguagem culta e a sua implicatura,
26
que
sugere que, no Brasil, os detentos são espancados. A gafe pode igualmente ser
não-verbal, quando cometida pela realização indevida de um ato de linguagem
não-verbal, como no exemplo do ator Richard Gere, na página 23, ou da
paraverbal, como no exemplo do governador Sérgio Cabral, na página 24.
2.1- ASPECTOS DA GAFE
Nesta seção, apresentaremos as características da gafe e as noções
teóricas relacionadas a elas, provenientes da corrente interacionista.
Ao definir a gafe e verificar seu tipo (verbal, não-verbal e/ou paraverbal),
detectamos que ela apresenta seis características: a primeira é a divergência
atitudinal, em que um dos participantes desenvolve uma atividade inadequada às
regras determinadas socialmente. A segunda é a acidental, porque em toda ação
realizada pode ocorrer algum tipo dedesvio (GOFFMAN, 1975, p. 192) em
relação aos saberes sociais convencionalizados que instituem o controle social no
indivíduo. A terceira é a involuntária, quando é praticada inconscientemente, sem
26
A noção de implicatura foi desenvolvida por Grice (1979), que a define como um conjunto de regras que
ordena a passagem do sentido literal ao não-literal. Ele a divide em dois grupos: o das conversacionais, que
resultam na aplicação das “máximas conversacionais”, e o das convencionais, que são provenientes das
normas sociais (como a regra de polidez). A implicatura é o que se intencionou dizer com o que foi dito,
revelando um maior ou menor grau de polidez.
26
a intenção do gafista. Quando percebe o que praticou, o seu sentimento é de
perplexidade, a ponto de poder se perguntar, por exemplo: como fui capaz de
dizer ou fazer isso? A quarta é a voluntária; por alguma razão, o indivíduo viola
deliberadamente as regras de convívio social. A quinta é a embaraçosa, porque
há desequilíbrio interacional. Ao ser cometida, a gafe gera constrangimento entre
os participantes, isto é, no momento em que ocorre um “incidente, a realidade
patrocinada pelos atores é ameaçada. É provável que as pessoas presentes
reajam tornando-se aturdidas, constrangidas, embaraçadas, nervosas, etc.” (ibid.,
p. 194). Por outro lado, por não saber lidar com aquela situação, o gafista pode
acabar deixando os outros participantes saírem da troca com a impressão
equivocada. A sexta característica é a comprometedora, por causa da ameaça à
face de, pelo menos, um dos participantes, proveniente da depreciação, da
ofensa ou do insulto.
27
Por isso, no desencadeamento das trocas, os participantes
devem trabalhar a sua imagem de modo que a realização de atos de linguagem
verbais e/ou não-verbais não comprometa a face de, pelo menos, um dos
envolvidos, pois ela é alvo de ameaça constante e objeto de desejo de
preservação (AMOSSY; KOREN, 2002, p. 176). E a sétima característica é a
gradual, porque o seu grau de percepção, de gravidade e de efeito depende de
um ou do conjunto destes fatores: identidade (status e papel social), tipo de
interação (privada ou institucional) e de relação (simétrica ou assimétrica),
contexto e enquadre, que, por sua vez, são determinados pela cultura e
estabelecidos através de acordos sociais.
A partir dessas características encontradas na observação do corpus,
podemos dizer que além das gafes serem verbais, não-verbais e/ou paraverbais,
elas são também conscientes e inconscientes. Dessa forma, dos episódios de
gafe selecionados, verificamos que há aqueles cujas ocorrências são
relacionadas ao inconsciente, porque o indivíduo domina o assunto ou as regras
de conduta convencionalizadas, conhece alguém, mas por algum motivo, ocorre
uma falha comunicacional, como no exemplo a seguir, que ocorreu num
congresso de Letras, na UERJ, em agosto de 2001. Ela foi relatada por uma
colega de trabalho que ainda estava atordoada, porque não reconheceu a ex-
27
Goffman distingue níveis de responsabilidade pela ameaça à face: o insulto “em que o ofensor pode
parecer ter agido maliciosamente” e as ofensas eventuais, que surgem “como uma conseqüência não
27
orientadora, na semana anterior.
Num congresso, na UERJ, na hora do almoço, uma
senhora, já de cabelos brancos, ex-orientadora de P. se dirige a
ela e lhe pergunta:
Como vai? E o trabalho, continua pesquisando?
Percebendo a fisionomia da ex-orientanda, que não
responde, pergunta:
Você não se lembra de mim?
Imediatamente, P. responde:
- Sinceramente não. A senhora não está me confundindo?
Tenho certeza de que não. Você é a P. e eu a M. R.
28
(UERJ, congresso de Letras realizado em agosto de 2001)
No episódio acima, verificamos que, por algum motivo proveniente do
inconsciente, a ex-orientanda não reconhece a ex-orientadora quando esta se
dirige a ela (através da realização de dois atos de linguagem verbais: “Como
vai?”; e “E o trabalho...?”), nem mesmo quando a ex-orientadora insiste “Você não
se lembra de mim?”. Depois dessas perguntas, ao perceber o silêncio de P., ela
retoma a palavra efetuando outro ato de linguagem verbal, cujo valor ilocutório
seria de perplexidade “Você não se lembra de mim?”. Após estas intervenções, P.
realiza atos de linguagem (“Sinceramente não” e “A senhora não está me
confundindo?”) equivalentes a “não conheço a senhora“.
Sendo assim, as gafes podem ser provenientes do inconsciente por causa
da falta de adequação do código lingüístico (ver exemplo do presidente Lula na
gina 25), do desconhecimento de um assunto (ver exemplo de um repórter com
a atriz Suzana Vieira na página 21) e de um código lingüístico (ver exemplo de
Gyselle na página 17), do não reconhecimento de alguém (ver exemplo nesta
página), etc. Numa situação comunicativa, em que um dos participantes não
domina determinada área do conhecimento, pode ocorrer gafe por dizer e/ou
fazer algo inadequadamente (como nos exemplos anteriores devido ao tipo de
interação ou de relação estabelecida).
Cabe ressaltar que, até o presente momento, na literatura consultada, os
autores só relacionam a gafe com o inconsciente, por exemplo, Goffman:
planejada”. (1980, p. 84).
28
Utilizaremos as iniciais do nome, em alguns exemplos, a fim de preservar a identidade das pessoas
28
os gestos involuntários ou as intromissões inoportunas [...].
Declarações verbais intencionais ou atos não-verbais cujo
completo significado não é avaliado pelo indivíduo que contribui
com eles para a interação. De acordo com o uso, essas rupturas
das projeções podem ser chamadas de “faux pas“. Quando um
ator irrefletidamente faz uma contribuição intencional que destrói
a imagem de sua própria equipe, podemos falar de “gafes” ou
“ratas“. (1975, p. 192).
Entretanto, a partir da observação do corpus, concluímos que a gafe não
se restringe ao campo do inconsciente, pois encontramos cinco episódios de gafe
consciente (que serão apresentados no decorrer desta pesquisa). Cabe dizer
então que as gafes relacionadas ao consciente ocorrem quando o indivíduo (em
um determinado tipo de interação e de relação) tem consciência de que a ação a
ser realizada será considerada um desvio por conhecer as normas interacionais
vigentes da situação comunicativa na qual está inserido. Por exemplo, o
empresário e apresentador Roberto Justus dá uma entrevista para o Jornal O
Globo sobre o seu novo programa Aprendiz 4: o sócio,
29
em que discorre sobre a
aparência dos candidatos:
...não quero ser preconceituoso, mas existe uma coisa chamada
adequação... E uma pessoa pesando 200 quilos, que vai entrar suando
numa reunião? Também não quero. Se ele não se preocupa com a sua
imagem, não vai se preocupar com a sociedade, com o próprio negócio.
(Jornal O Globo, 13/05/2007)
Na situação comunicativa de uma entrevista para um jornal de grande
circulação, Roberto Justus, enquanto apresentador, inicia seu enunciado com
uma asserção (“não quero parecer preconceituoso”) à qual se atribui o valor de
“medida defensiva,
30
a fim de prevenir-se de um contra-ataque e de preservar
sua face. Apesar do uso desta estratégia, cometeu uma gafe ao declarar que não
contrataria uma pessoa obesa e suada, o que constitui uma afirmação
envolvidas.
29
O programa “Aprendiz 4: o sócio” era exibido no canal aberto 13, Record, terça-feira e quinta-feira,
a partir das 23 horas.
30
Segundo Goffman, ao longo de uma interação, há três tipos de medidas a serem tomadas para preservar a
face dos participantes. São elas: as medidas defensivas, que são “usadas pelos atores para salvar seu próprio
espetáculo”; as medidas protetoras, que são “usadas pela platéia e pelos estranhos para ajudar os atores a
salvarem seu espetáculo”; e as medidas que “os atores devem tornar possível o emprego pela platéia e pelos
29
preconceituosa (“... uma pessoa pesando 200 quilos, ... suando numa reunião?“).
Alguns leitores, na semana seguinte, escreveram para a seção de cartas,
questionando a sua declaração. Uma leitora disse “... sendo a obesidade uma
doença, a assertiva, além de preconceituosa, é pouco inteligente”. E outra leitora
declarou “... para ele gordura é sinônimo de desleixo. Fiquei perplexa por uma
pessoa pública dar tal declaração!” (Jornal O Globo, 20/05/2007). Pela reação das
leitoras, podemos constatar que a manobra adotada pelo apresentador foi um
fracasso, pois suscitou uma reação negativa, principalmente, dos indivíduos
obesos, que se sentiram discriminados. Isso ocorreu devido à divergência
atitudinal da opinião expressa de Roberto Justus em relação aos padrões
estabelecidos socialmente, pois “uma condição necessária para a vida social é
que todos os participantes compartilhem um único conjunto de expectativas
normativas, sendo as normas sustentadas, em parte, porque foram incorporadas”.
(GOFFMAN, op. cit., p. 138).
Enquanto consideramos esse relato de Roberto Justus como uma gafe
verbal e consciente, haja vista que ele adotou uma “medida defensiva” através de
um dos procedimentos amenizadores da impolidez chamado de “desativador”,
31
os outros indivíduos (dentre estes, teóricos como Goffman (1975), cuja opinião
vigente é de que a gafe é inconsciente), o classificam como um insulto (assunto a
ser tratado posteriormente). Nesta situação comunicativa, o apresentador teve
sua face completamente destruída, por causa do teor insultuoso da sua
declaração, que, por sua vez, foi a responsável pelo desencadeamento da gafe.
Essa nossa percepção de que a gafe também é um ato voluntário pode ser
ratificada não só por este exemplo de Roberto Justus, como também pela
seguinte nota intitulada “Gafe é marketing”, publicada no jornal O Globo:
Foi uma estratégia de marketing de uma marca de shampoos
o par de jarros de Taís Araújo e Adriane Galisteu que foram
com o mesmíssimo vestido pink ao Cirque de Soleil na quinta-
estranhos, de medidas protetoras em favor dos atores”. (ibid., p. 195).
31
Nossa tradução do termo “désarmeurs” consiste numa antecipação a uma possível “reação negativa da
parte do destinatário do ato”. Esta noção é uma das “diferentes estratégias que podem ser colocadas a serviço
da polidez”. As outras são: as formulações indiretas, os reparadores (a desculpa e a justificativa) e os
procedimentos amenizadores: as preliminares e os minimizadores (KERBRAT-ORECCHIONI, 1996, p. 57
e 58).
30
feira. As duas são garotas-propaganda da marca, que
encomendou à estilista Cris Barros os dois vestidos. A idéia era
que as duas aparecessem “o máximo possível” na mídia por
causa da “gafe”. Deu certo.
(Jornal O Globo, 24/02/2008)
Neste episódio, verificamos que o publicitário responsável pela campanha
de xampu da marca Seda, mesmo consciente de que o público pensaria que ele
cometeu uma gafe, encomendou dois vestidos idênticos à estilista Cris Barros
para as garotas-propaganda utilizarem numa das apresentações do Cirque du
Soleil (ver vestidos pink no anexo 1 - segundo as regras de etiqueta, não se deve
usar uma roupa igual a de outro participante num mesmo evento. Por isso, tal
prática causa constrangimento nos envolvidos). Como o objetivo do publicitário
era tornar o público presente em consumidor dessa marca de xampu, ele utilizou
a gafe como estratégia publicitária (ou seja, atrair a atenção do público através do
estranhamento causado pelos vestidos idênticos). A estilista, por sua vez, além de
ter aceitado e feito a encomenda da agência publicitária UNILEVER, pretendia
vender os vestidos a mil duzentos e noventa e oito reais.
Após refletirmos sobre a definição de gafe, suas características e
verificarmos mais dois tipos (consciente e inconsciente), observaremos suas
causas e seus efeitos, a seguir.
2.2- DESENCADEADORES DA GAFE E SEUS EFEITOS
Nesta parte, apresentaremos as causas da ocorrência da gafe e seus
efeitos sobre os participantes envolvidos na situação comunicativa. A partir da
seleção do corpus, percebemos que a fonte desse fenômeno pode estar
relacionada também a outros, como: o mal-entendido, o ato falho, o lapso, etc.
Com base nisso, classificaremos os elementos desencadeadores, observaremos
o efeito provocado nos participantes e examinaremos a fronteira entre a gafe e os
demais fenômenos discursivos.
31
2.2.1- PROBLEMAS RELATIVOS À IDENTIDADE
A partir da metáfora de ação teatral (1975), Goffman define identidade
como “representação do eu” (“eis quem eu sou e como eu me vejo”) e a interação
seria o lugar de confronto entre o “eu” reivindicado e o “eu” atribuído. O autor a
designa também sob o nome de fachada pessoal, que envolve aspectos como
“vestuário, sexo, idade, características raciais, altura, e aparência(ibid. p. 31).
A identidade é considerada como toda a atividade de um indivíduo e é,
para os interaconistas, uma construção interativa, uma vez que cada um se
constitui, constituindo o outro e com ele. Dentre os autores da Sociolingüística
Interacional que trataram deste tema, está Kerbrat-Orecchioni para quem a
identidade de um indivíduo pode ser definida como
um conjunto de atributos que o caracterizam; atributos estáveis
ou passageiros, que são em número infinito e de natureza
extremamente diversa (estado civil, características físicas,
psicológicas e socioculturais, gostos e crenças, status e papel
social na interação, etc.). (2000a, p. 119).
32
A identidade é construída no convívio social, porque, ao interargirmos,
formamos opiniões e julgamos uns aos outros, com base nas ações verbais, não-
verbais e/ou paraverbais. Estas são praticadas durante as trocas que ocorrem
num determinado tipo de interação (familiar, profissional etc.) e de relação
(assimétrica ou simétrica). Portanto, somos como os camaleões por mudarmos o
comportamento, a atitude ou a opinião com facilidade e rapidez, intencionalmente
ou não, em função desses e de outros fatores, como contexto e enquadre,
assuntos a serem tratados posteriormente. Isto significa que as identidades “não
são fixas, são múltiplas e fragmentadas” (MOITA LOPES, 2006, p. 198), posto
que “ao considerarmos as identidades dos nossos interlocutores, estamos
simultaneamente (re) construindo as nossas” (ibid. 62) e é por essa razão que
elas são responsáveis pelo grau da gafe cometida, da sua percepção e do seu
efeito.
32
Nossa tradução.
32
Ao selecionarmos o corpus, começamos a nos fazer as seguintes
indagações: qual é a relação da identidade com a gafe? Será a identidade, de
fato, em alguns casos, responsável pelo surgimento, amenização e/ou
agravamento deste fenômeno discursivo? Procuraremos analisar alguns
exemplos, a fim de perceber como a questão da identidade é relevante para o
surgimento, a percepção e o efeito da gafe, por exemplo, no âmbito da troca de
identidade. Como na nossa sociedade um dos valores compartilhados é o
reconhecimento do outro (a sua identidade), dependendo do contexto, não saber
identificar alguém
33
(a pessoa a quem você se dirige ou que se dirige a você) é
considerada uma gafe gravíssima. Por exemplo, quando, numa relação pessoal,
chama-se a companhia por outro nome. Tal fato pode tornar-se mais grave ainda
se já houver um histórico de desafeto para com a pessoa cujo nome foi
mencionado, como quando a noiva se dirige ao noivo pelo nome do ex-namorado.
Por outro lado, na interação pedagógica não é considerada gafe a troca de
nomes, pois além do fato de lidar com vários alunos, o professor se encontra
numa relação assimétrica marcada por um contrato específico (a transmissão de
conhecimento), que requer mais competência em determinado campo de estudos
do que traquejo social. Contudo, na interação pessoal, a troca de nomes pode
provocar desde um simples embaraço até um grande desacordo (discussão e até
mesmo agressão física), dependendo da identidade do indivíduo e da história
entre os envolvidos. Inferimos, então, a partir desses exemplos, que a gafe pode
estar relacionada à identidade dos participantes.
Depois da troca de nomes, observamos também ocorrências de gafe
provocadas pelo desconhecimento da identidade. Por exemplo, o relato de uma
professora acerca da procura de estágio numa escola:
Ao chegar lá, no meio da interação, disse que a diretora da escola ao
lado era insuportável e que ninguém gostava dela por ser grossa e
não aceitar estagiárias. Ao término da declaração, a pessoa que me
atendeu, revelou: “ela é minha mãe”.
(Relatado em abril de 2000)
Na situação acima, a professoranda comete uma gafe verbal ao
caracterizar a diretora como “insuportável, grossa…”. Esta falha ocorre porque a
33
A não-identificação pode ocorrer por causa do desconhecimento (falta de conhecimento) ou do lapso (falha
33
professoranda desconhece a identidade do indivíduo a quem se refere, mãe da
interlocutora; e a de quem ela se dirige, filha da diretora. Assim, neste relato,
constatamos que o efeito da gafe foi devastador, haja vista que a professoranda
não só ameaça a própria face, como também a de L2 (por ser filha da vítima) e a
de X,
34
(a diretora, alvo da gafe cometida por L1, a professoranda).
Às vezes, a gafe é engendrada, agravada ou amenizada por causa de
outro aspecto da identidade de quem a cometeu: o status social, que é definido
como “um conjunto de posições sociais assumidas por um sujeito (sexo, idade,
profissão…) e que constituem atributos sociais. (VION, 1992, p. 78).
35
Nas
relações sociais, quanto maior visibilidade o indivíduo tiver, mais exposto estará,
pois os que ocupam posição de maior poder nas relações assimétricas são,
conseqüentemente, os mais propensos a ter sua imagem mais ameaçada por
causa de um deslize. Vejamos um exemplo:
A inspetora Marina Maggessi, chefe de investigações da Delegacia de
Repressão a Entorpecentes, dá uma entrevista, num documentário, revelando o
perfil de homem de sua preferência:
O que eu quero é chegar e encontrar um homem parecido
com o Marcio Garcia [...] Se for pra ter um marido chato que não
presta pra nada, que nem as minhas amigas têm. Eu também não
quero.
(“Poderosa Chefona”, GNT, 18/10/2006)
No documentário “Poderosa chefona”,
36
Marina foi entrevistada devido ao
seu status de chefe de investigações. Ao ser indagada sobre homens, ela
responde comparando as características do homem que ela não quer com os das
amigas “... um marido chato... que nem minhas amigas têm…” Neste momento,
ela não só ameaça a própria face (ao declarar as características de que não gosta
num homem), como também a face das amigas e a de seus maridos. Neste caso,
configura uma gafe grave por causa do teor da sua declaração (ofensiva) e da
de memória), assunto a ser tratado posteriormente.
34
Os participantes de uma situação interlocutiva serão identificados doravante como L1, aquele que inicia a
troca; L2, aquele que intervém em seguida; L3, aquele que assume a palavra depois de L1 e L2, ou
participante não oficial; e X, a pessoa a quem se referem L1, L2 ou L3.
35
Nossa tradução.
36
O Programa “Poderosa Chefona” exibido no canal fechado GNT, em outubro de 2006.
34
identidade (status social de Marina: inspetora e da sua visibilidade social,
decorrente de seu bom desempenho profissional; e das pessoas citadas: amigas
dela). Caso a mesma declaração fosse feita por ela em outra situação
comunicativa, a gravidade da gafe seria maior ou menor de acordo com o tipo de
interação, de relação estabelecida entre os participantes, do status e da
visibilidade de cada um deles. Por exemplo, numa conversa entre familiares não
seria caracterizada uma gafe, apenas um comentário.
Enfim, a partir desse episódio, verificamos que, dependendo do status
social (como de político e de artista), o indivíduo deve ser mais cauteloso na sua
conduta (ou seja, no comportamento verbal, como no exemplo anterior; no
comportamento não-verbal, como no exemplo citado do ator Richard Gere, na
página 23; ou no comportamento paraverbal, como no exemplo do governador do
Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, na página 24). Assim, aquele indivíduo de maior
visibilidade social está mais exposto à exigência do cumprimento / domínio das
regras sociais. Cabe ressaltar também um outro aspecto: o papel social, que é
definido como
o conjunto de modelos culturais associados a um determinado
status. Abrange, conseqüentemente, as atitudes, os valores e os
comportamentos que a sociedade designa a uma pessoa e a
todas as pessoas que ocupam esse status.
(VION, 1992, p. 81)
37
Dependendo do status social do indivíduo (por exemplo: político e artista),
ele torna-se constantemente “vítima” de paparazzi. Como há um setor da mídia
(programas de televisão, jornais, revistas etc) que é responsável pela divulgação
da vida profissional e pessoal de artistas e políticos, os repórteres seguem-nos
para descobrir seus hábitos e também algum desvio de conduta. Quanto a esta
questão, podemos citar o caso do ator Marcos Pasquim: numa festa, ele foi
flagrado beijando uma moça, que não era sua esposa. Na época, a foto foi
divulgada pela imprensa e sua esposa pediu separação. Hoje o casal está
separado e, em entrevista ao apresentador Leão Lobo, o ator revelou seu
descontentamento com a atitude da imprensa, declarando ter sido “uma grande
37
Nossa tradução.
35
sacanagem” (Programa “De olho nas estrelas”,
38
exibido em 18/06/2006).
Há casos em que devido ao papel social desempenhado pelo indivíduo,
a sua ação não só se torna uma gafe, como a sua conseqüência é gravíssima, a
ponto de o gafista passar a ser nomeado pela falha que cometeu ou ganhar um
apelido que remeta à ação inadequada praticada. Vejamos um exemplo para
ilustrar a primeira questão: a apresentadora Sonia Francine, conhecida como
Soninha, teve seu contrato rescindido no dia 19/11/2001 pela TV Cultura, onde
apresentava o programa “RG
39
direcionado ao público adolescente, por causa
de uma declaração feita à revista Época daquela semana. Ao conceder uma
entrevista para esta revista, a apresentadora admitiu ser usuária de maconha.
Segundo ela, o resultado foi:
Me botaram na capa sorrindo e dizendo “eu fumo maconha”.
Naquela época, além de ser demitida, ficou conhecida como usuária de
drogas, popularmente chamada de maconheira. Verificamos assim, a partir
desse relato, que os valores sociais transitam pelos enunciados e, muitas vezes,
a ação praticada pode levar a julgamentos negativos e punições, porque não
poderia ter ocorrido por constituir infração de algum acordo social.
Atualmente, Sonia Francine é uma das apresentadoras do programa Saia
Justa.
40
Numa entrevista ao jornal O Globo, ela esclarece:
Falei que fumava maconha num contexto de uma reportagem que discutia
a discriminação, não sabia que iam me botar na capa…
(Jornal O Globo, 21/01/2007)
Quanto ao fato de ganhar um apelido, a atriz Letícia Spiller, no programa
“Mais Você”,
41
apresentado por Ana Maria Braga, declarou ter ganhado o apelido
de pastel quando era paquita, por causa das gafes que cometia. Letícia declara
isso no momento em que a apresentadora mostra que o chefe de cozinha do
programa preparou a receita de um bolo da avó da atriz, a qual tinha mencionado
38
“De olho nas estrelas” é exibido no canal aberto, Bandeirantes, de segunda-feira à sexta-feira, às 17 horas.
39
O programa “RG” era exibido no canal aberto, TV Cultura, de segunda à sexta-feira, das 17:00 às 18 h.
40
O programa “Saia justa” é exibido no canal fechado, GNT, às quartas-feiras, às 22h30min.
41
O programa “Mais você” é exibido no canal aberto, Rede Globo, de segunda a sexta-feira, das 8:00 às
9h30min.
36
os ingredientes durante a conversa com Ana Maria Braga. Ao ver o bolo, a atriz
percebe que esqueceu de citar um dos ingredientes:
Foi mal. Esqueci de dizer uma xícara de nozes moídas.
(Programa “Mais Você”, exibido em 05/10/2007)
Como estamos discorrendo sobre a identidade, outra noção importante a
ser tratada é a de quadro participativo, que é constituído pelos “participantes, sua
quantidade, sua qualidade e as relações que os unem no momento da troca
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 414). Assim, os indivíduos, que
protagonizam uma situação comunicativa harmoniosa ou conflituosa (no caso
desta pesquisa, aquela situação em que ocorre a gafe), podem ser oficiais e não
oficiais (GOFFMAN, 1974, p. 65). Os oficiais ou ratificados são aqueles que estão
oficialmente engajados na conversa. Caso contrário, são não oficiais ou
circunstantes, ou seja, estão presentes no contexto físico da interação, mas não
oficialmente. Eles podem se aproveitar (propositalmente ou não) de uma situação
para ouvir a conversa dos participantes oficiais. Para ilustrar esta questão,
vejamos o exemplo a seguir:
Um policial civil carioca, PhD na área de inteligência, diz, ao ser interpelado
por um amigo na rua e ouvido por um jornalista, o destino das armas roubadas
num quartel do Exército, que já tinham sido encontradas pela Polícia Civil:
Deixa o Exército se ferrar um pouquinho, procurando. Depois a gente
acha.
(Jornal O Globo, 09 / 03 / 2006)
Neste exemplo, observamos que a declaração de um policial torna-se
pública (foi divulgada na coluna de Ancelmo Góis) porque um jornalista (enquanto
participante não oficial) ouve a conversa desse policial com um amigo
(participantes oficiais). Ao divulgar a conversa, o jornalista coloca a Polícia Civil
numa situação embaraçosa com relação ao Exército, devido à gravidade do
conteúdo revelado (sobretudo, pelo uso da expressão “se ferrar“). Podemos dizer
que a presença de L3 o jornalista e a sua iniciativa de revelar o que ouviu é
o que transformou o enunciado do policial em uma gafe, pois enquanto estava
restrito entre amigos, tratava-se de uma confissão. Cabe ressaltar que se o status
de L3 fosse outro (pedreiro, professor, vendedor, por exemplo) e se ele não o
37
divulgasse na imprensa, a declaração não seria caracterizada como sendo uma
gafe.
Dessa forma, verificamos que a gafe pode ser cometida não só por um dos
participantes oficiais (endereçados ou não endereçados),
42
e/ou por um dos
participantes não-oficiais, como também estes podem ter presenciado algo
comprometedor daqueles e revelá-lo, causando assim nos envolvidos
constrangimento e ameaça à face.
Enfim, como podemos constatar, um ato de linguagem verbal e/ou não
verbal pode ser considerado gafe por causa de uma inadequação relativa à
identidade, que envolvem vários aspectos: a qualidade dos participantes, o seu
status e o seu papel social que são determinantes para a sua percepção e
o efeito que pode provocar nos envolvidos. E quanto a isso, verificamos que
cinco tipos de efeito: ameaça à face de L2, ameaça à própria face de L1, ameaça
à face de L1 e a de L2, ameaça à face de X e ameaça à face de L3 (como no
exemplo das páginas 70 e 71).
2.2.2- QUEBRA DE EXPECTATIVA
Primeiramente, cabe dizer que apresentaremos este segundo elemento
desencadeador de gafes dividido por tipo de quebra de expectativa, por causa
dos diversos aspectos e de outros fenômenos discursivos que o envolvem.
Como os indivíduos vivem imersos em situações sociais as mais diversas e
precisam manter a sua face e a do outro em convívio social, quando estão
“na presença uns dos outros, todos os seus comportamentos verbais e não-
verbais são fontes potenciais de comunicação” (TANNEN; WALLAT, 2002, p. 186)
e devem estar de acordo com o que é estabelecido socialmente. Caso contrário, a
inobservância (por algum motivo, por exemplo: desconhecimento da identidade)
levará à quebra de expectativa, o que poderá provocar o surgimento de uma gafe,
como ocorre nos episódios a seguir. Vejamos:
42
Participante oficial ou ratificado é aquele autorizado a participar da interação. Há dois tipos: o endereçado,
a quem se está dirigindo diretamente a palavra; e o não endereçado, aquele a quem, num dado momento, não
38
2.2.2.1- Enquadre interativo
Ao observar o corpus, constatamos também que quanto maior for a
visibilidade social, mais o indivíduo deve verificar se a sua conduta está adequada
ao enquadre. Esta noção é estabelecida de acordo com a abordagem
desenvolvida primeiramente por Bateson (1972), depois por Goffman (1974),
segundo o qual com base na definição de Bateson, enquadre interativo consiste
em: “qual é o tipo de interação?”, “o que está acontecendo aqui?” e “qual é o
significado do que está acontecendo aqui?” (1974, p. 10). Posteriormente, Tannen
e Wallat retomam este conceito e propõem a noção de “estrutura de expectativa”,
distinguindo dois tipos: enquadre interativo de esquema de conhecimento (1987,
p. 189).
Segundo estas autoras, o enquadre interativo refere-se à atividade
encenada e a qual sentido os participantes atribuem a ela (ou seja, como
interpretam a atividade das quais estão participando). Dessa forma, para
compreendermos uma ação, devemos saber dentro de qual enquadre é praticada.
Por isso, o fato de um ato ter sido realizado dentro de um enquadre, mas
interpretado em outro, pode gerar problemas de comunicação (por exemplo, a
gafe) entre os participantes da interação em curso.
Após essas considerações, cabe elucidar que utilizaremos os termos
“contexto” e “situação” como ambiente espaço-temporal em que as pessoas estão
praticando uma determinada ação e o conceito de “enquadre” como a
especificação do que está acontecendo num determinado lugar. Ao analisarmos o
corpus, pretendemos especificar alguns tipos de gafe provenientes de
inadequações relativas ao enquadre interativo. Vejamos alguns exemplos:
A- O responsável pelo espaço sócio-físico torna-se um gafista: o ambiente,
que é de responsabilidade de um dos participantes, apresenta algum elemento
inadequado ao enquadre encenado. O exemplo a seguir ilustra este caso:
Ao embarcar no aeroporto do Galeão, no Rio, para a Europa, um
brasileiro foi escolhido para uma revista mais detalhada.
Na sala privada para onde foi levado, uma TV passava um filme
se está dirigindo a palavra.
39
pornô. Ao chegar na sala, o fiscal da Receita Federal levou um
susto:
Ih, este negócio está ligado ainda? Finge que não viu nada!
(Jornal O Globo, 04/07/2006)
No enquadre fiscalização no aeroporto, verificamos que a inadequação
entre a atividade, o contexto (está sendo exibido um filme pornográfico na sala
para onde são encaminhados os passageiros suspeitos) e o status social do
indivíduo responsável (fiscal da Receita Federal) configuram uma gafe. Ao chegar
nesse ambiente acompanhado por um dos passageiros e se deparar com um
filme pornô, o fiscal realiza dois atos de linguagem verbais: o primeiro ato é “ Ih,
este negócio está ligado ainda?” cujo valor é de surpresa, cabendo também
destacar a implicatura do seu enunciado, em que declara saber da existência do
filme; e o do segundo ato realizado é “Finge que não viu nada!”, a fim de salvar a
sua face. Provavelmente, o fiscal proferiu este enunciado por causa do seu papel
social e do efeito constrangedor dessa ação. Caso o mesmo acontecesse em
outro contexto (por exemplo, na casa de um amigo), em outro enquadre (conversa
informal) e os participantes estivessem numa relação simétrica e compartilhassem
os mesmos interesses, não seria caracterizada uma gafe.
B- Num determinado enquadre interativo, um dos participantes torna-se um
gafista: o contexto a que um dos participantes se refere de forma depreciativa é o
elemento responsável para o surgimento da gafe. Por exemplo:
Numa visita à Paraíba, o presidente Lula foi caminhar e se banhar
na praia de Coqueiros. E depois, em seu discurso no anúncio de
implantação do Programa de Interiorização da Universidade
Federal do Piauí, faz a seguinte declaração:
Eu estou chateado porque venho ao Piauí desde 80. É a
primeira vez que visito Paraíba. Vou levar essa mágoa dos
companheiros do meu partido, porque só me levam para Picos,
para Oeiras, para Floriano e aqui tem praia, nunca me trouxeram,
mas hoje eu me vinguei deles.
(Jornal O Globo, 23/02/2006)
Na situação interlocutiva acima, a gafe é cometida quando o presidente do
Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, declara “Eu estou chateado... vou levar esta
mágoa... me vinguei…” O valor ilocutório desses atos de linguagem verbais foi
mais ofensivo por causa de sua identidade (seu status social, naquele momento,
40
não era nem de amigo, nem de pai, mas de presidente da República; e seu papel,
não lhe permitia depreciar o lugar), da sua imagem (uma pessoa cuja origem é
humilde) e do enquadre discurso (discurso político). E a partir desses elementos e
do conteúdo deste segmento “Vou levar essa mágoa... mas hoje me vinguei
deles”, o presidente Lula contribui para o agravamento da gafe por utilizar os
termos “mágoa e “só“, e a estrutura “me vinguei“, por se referir a lugares “Picos,
Oeiras e Floriano” de modo depreciativo e por se referir às pessoas do seu
partido, no caso o PT, de forma repreensiva. Assim, a imagem que ele constrói no
seu discurso é o de preconceituoso (daquele que parece ter esquecido sua
procedência, do seu status e papel social) e a conseqüência da realização desses
atos de linguagem é o comprometimento da sua face e a dos habitantes dos
lugares mencionados e das pessoas ligadas ao partido.
2.2.2.2- Esquema de conhecimento
Após abordarmos o enquadre interativo, explanaremos sobre o outro tipo
de estrutura de expectativa, proposto por Tannen e Wallat: o esquema de
conhecimento, que é definido como “as expectativas dos participantes acerca de
pessoas, objetos, eventos e cenários no mundo. (ibid., p. 189). Vejamos o
seguinte exemplo: na festa de lançamento da novela “Paraíso Tropical”, no
Copacabana Palace, uma repórter portuguesa se dirige à atriz Beth Goulart e lhe
pergunta:
Você é uma mãe galinha?
Com os olhos arregalados, Beth Goulart ouve a explicação da
repórter
Aquela que coloca os filhos embaixo das asas.
Ah, tá. Aqui galinha é outra coisa (risos).
(Jornal O Globo, 05/03/2007)
No enquadre entrevista, verificamos que, inicialmente, a repórter não
alcança seu propósito por causa da forma como se expressa. Ao fazer a pergunta
“Você é uma mãe galinha?”, a repórter produz o efeito de sentido de insulto. O
termo “galinha” utilizado neste contexto, no Brasil, significa mulher que “se dá a
contatos voluptuosos, age publicamente sem freio moral, varia facilmente de
parceiro ou se prostitui”. (HOUAISS, 2001). Assim, nesta situação interlocutiva,
constatamos que a atriz tem outro esquema de conhecimento quanto ao que seja
41
“galinha” (por causa da variante regional) e isso é responsável pela desarmonia
interacional. Ao perceber o comportamento não-verbal da atriz (“olhos
arregalados”), imediatamente, a repórter explicou o significado do termo “galinha”.
Isso porque quando um dos participantes “não reage a uma das pistas, ou não
conhece sua função, pode haver divergência de interpretação e mal-entendidos”
(GUMPERZ, 2002, p. 153), como ocorreu nesta situação comunicativa.
Concluímos então que um desacordo no esquema de conhecimento
(proveniente, por exemplo, dos diversos tipos de variantes e de registros de uma
língua) aumenta a probabilidade de ocorrência de algum tipo de falha na
comunicação intercultural e intracultural, pois a interação é “regida por regras de
natureza diversa e variáveis culturalmente. (KERBRAT-ORECCHIONI, 1996, p.
91). Nesse caso, só podemos considerar uma ação praticada como um desvio
com base nas normas sociais, nas regras do código lingüístico em uso, de
conduta e de etiqueta adequadas a cada situação comunicativa. Isto quer dizer
que as ações praticadas são reguladas pela cultura e que dado a isso elas variam
de uma sociedade para a outra (como no exemplo anterior) ou dentro da própria
sociedade (de uma região para outra ou entre grupos, de acordo com
nível econômico, cultural, etc. - dos indivíduos).
Como o esquema de conhecimento diz respeito às expectativas dos
participantes numa dada situação comunicativa, a sua quebra pode estar
relacionada a diversos fatores, ao desconhecimento da identidade, de normas de
etiqueta, de código lingüístico e de fenômenos discursivos, tais como mal-
entendido, ato falho, etc., que serão apresentados a seguir, a fim de verificarmos
a relação de cada um deles (semelhança e distinção) com a gafe.
2.2.2.2.1- Mal-entendido
Nesta parte, verificaremos se há relação entre a gafe e o mal-entendido,
que é definido como “uma defasagem entre o sentido codificado pelo locutor
(sentido intencional, que o emissor deseja transmitir ao destinatário) e o sentido
decodificado pelo receptor”. (ibid., 2001, p. 49).
43
E caso haja algum vínculo, qual
é a fronteira de cada um desses fenômenos discursivos? Qual é a sua relação
43
Nossa tradução.
42
com a gafe?
As interpretações dos significados sociais são conjuntamente negociadas
pelos interlocutores, confirmadas ou modificadas pelas reações desencadeadas.
No caso da gafe, verificamos que sua ocorrência se dá por causa dos
participantes que, ao não compartilharem convenções interpretativas e,
conseqüentemente, não terem sucesso na realização de seus propósitos, geram
uma situação embaraçosa. Vejamos o seguinte exemplo em que o mal-entendido
é a causa da gafe:
Minha irmã foi para o Canadá estudar e conheceu muitos
japoneses que também eram estudantes. Uma noite todos saíram
para um barzinho e depois de pedirem bebidas resolveram
brindar. Minha irmã levantou seu copo e disse: “tim-tim”. Os
japoneses ficaram horrorizados, levaram o maior susto. Ela e os
outros brasileiros que estavam lá não entenderam no momento o
porquê do espanto. Só depois é que a situação foi esclarecida:
tim-tim é como os japoneses chamam o órgão genital masculino.
(Episódio relatado em 06/07/2006)
Nesta situação interlocutiva em que os indivíduos participam de um tipo de
ritual,
44
o ato de brindar, observamos que o enunciado proferido “tim-tim” é o
responsável pelo surgimento da gafe, pois trata-se de um mal-entendido devido a
um duplo sentido (no Brasil, é uma expressão utilizada no ato de brindar, mas, no
Japão, é o nome de uma parte do corpo humano: o órgão sexual masculino),
o que provocou o efeito constrangedor entre os presentes.
Outro episódio de mal-entendido que se desdobra em uma gafe devido ao
desconhecimento do código lingüístico. Neste caso, é provocada pela
semelhança fonética, a pronúncia da expressão em língua estrangeira é
associada a outros termos da língua materna:
Outro dia, no STJ, o ministro Carlos Alberto Direito ouvia um
advogado se exceder em gentilezas. Quando o doutor acabou,
Direito atacou em francês:
- Assim vossa excelência está me dando o coup de Grace
(que, no caso, seria o golpe de misericórdia).
44
A teoria dos rituais das interações é retomada e aprofundada por Brown e Levinson (1987). A partir da
teoria da face de Goffman (1975), eles se interessam por duas questões: por que determinada forma de
linguagem é eficaz na realização de um ato social? E por que certos atos rituais são essenciais à natureza da
comunicação humana?
43
- Também isso não! indignou-se o advogado.
(Jornal O Globo, 04/03/2008)
Dessa forma, verificamos o quanto é importante o domínio não só do código
lingüístico (no caso da língua materna ver exemplo das páginas 17 e 40 e no
da língua estrangeira ver os dois exemplos anteriores , em que pode ocorrer
mal-entendido e este produzir o efeito de sentido de insulto), como também do
aspecto cultural (conhecer os hábitos e as regras de conduta, como no exemplo
da página 19; e respeitá-las como no exemplo de Richard Gere da página 23)
para se evitar “as falhas de comunicação desse tipo, em outras palavras, são
consideradas gafes sociais e levam a julgamento errôneo acerca da intenção do
falante”. (GUMPERZ, 2002, p. 153). A respeito disso, o escritor João Paulo
Cuenca, numa entrevista ao jornal O Globo, cujo assunto era sua viagem ao
Japão, declara:
Eles (os japoneses) jamais deixam você esquecer que não é um
deles, até porque você, ao não conhecer a etiqueta social
japonesa, se transforma rapidamente numa máquina de gafes.
(Jornal O Globo, 21/07/2007)
A partir do exemplo da gafe cometida no Canadá, observamos que o mal-
entendido é caracterizado pela divergência interpretativa, cuja responsabilidade é
freqüentemente atribuída ao receptor que não capta a intenção comunicativa do
locutor, pois produz um outro sentido a uma ação praticada por ele (GRUNIG,
1985) pelo fato de não ter percebido o valor ilocutório. Já a gafe é caracterizada
por alguma divergência atitudinal presente na ação praticada pelo locutor. Assim,
se, num determinado enquadre, a inadequação entre a intenção que o locutor
confere a sua ação e a interpretação feita pelo interlocutor causa constrangimento
e compromete a face de, pelo menos, um dos participantes, a gafe é configurada.
Portanto, constatamos a partir destes exemplos que o desencadeador da
gafe foi o mal-entendido, porque houve, primeiramente, divergência interpretativa
e, por conseqüência, ameaça à face dos envolvidos.
44
2.2.2.2.2- Ofensa eventual ou insulto
A ofensa
45
é definida como uma infração, cometida por uma pessoa a
custa de uma outra, a uma norma social qualquer” (KERBRAT-ORECCHIONI,
1994 p. 152). Segundo a autora, ela pode ser de natureza verbal, não-verbal ou
paraverbal, que, por sua vez, são classificadas como voluntárias, involuntárias,
diretas e indiretas.
A partir do que Goffman (1980) e Kerbrat-Orecchioni (1994) propõem a
respeito deste assunto, podemos dizer que, no exemplo da página 28,
a declaração de Roberto Justus soou como um insulto voluntário e direto aos
indivíduos obesos. E por causa do seu status social (apresentador do programa
“O Aprendiz),
46
do seu papel social (espera-se que devido até a sua visibilidade,
ele obedeça aos acordos sociais), do contexto (jornal O Globo) e do enquadre
(entrevista), caracterizou uma gafe, uma vez que comprometeu a sua face e a dos
obesos, por mais que tenha utilizado uma medida defensiva ao dizer “não quero
parecer preconceituoso”. Isso significa dizer que, em qualquer interação, o
indivíduo deve procurar agir de acordo com um padrão de comportamento verbal,
não-verbal e/ou paraverbal, a fim de preservar a sua face e a dos outros
interlocutores.
Nesse sentido, a noção de polidez,
47
que é definida como “um conjunto de
procedimentos de proteção da face” (BRONW ; LEVINSON, 1978), é de suma
importância para tratarmos a gafe, a ofensa eventual e o insulto, pois é a própria
condição social humana. Afinal, as regras de polidez servem parapreservar o
caráter harmonioso da relão interpessoal” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU,
2004, p. 381), consistindo assim numa estratégia de prevenção da gafe e a sua
falta pode ser determinante para a ocorrência desse fenômeno interacional. Como
nas trocas os participantes se preocupam em manter um certo controle da
45
Na obra Les interactions verbales, a autora Kerbrat-Orecchioni trata da ofensa, mas não a distingue de
insulto como Goffman (1980). Cabe ressaltar então que, nesta pesquisa, adotamos a classificação e a
definição de Kerbrat-Orecchioni porque Goffman não as considera. Também adotamos a distinção que oautor
faz entre ofensa eventual e insulto, pelo fato de termos considerado relevante para o estudo da gafe.
46
O programa “O Aprendiz” é exibido no canal aberto 13, Record, terça-feira e quinta-feira, a partir das 23
horas.
47
A noção de polidez surgiu no final da década de 70 com os autores Lakoff (1973), Lleech (1983) e,
principalmente, foi desenvolvida por Bronw & Levinson (1978). Eles se inspiraram diretamente em
Goffman, nas noções de face e de território.
45
situação, eles se esforçam para evitar possíveis acidentes de comunicação ou
para atenuá-los. As regras de polidez tornam-se, então, uma estratégia
necessária nas interações, pois elas configuram “uma forma de otimizar a
comunicação. O indivíduo se mantém polido, também, para evitar situações que o
deixem embaraçado. (VILLAÇA, 2004, p. 55). Apesar de haver casos em que a
impolidez é característica da situação comunicativa, como enquadre debate
político e reclamação do consumidor, em outros é determinante para que seja
considerada uma gafe devido à ofensa eventual ou ao insulto. E a gravidade do
deslize é maior ou menor de acordo com a identidade do indivíduo que faz a
grosseria (o seu status e papel social), o enquadre interativo, o contexto e o tipo
de relação e de interação. Vejamos o seguinte exemplo: numa recepção, o
senador Antônio Carlos Valadares, de Sergipe, se dirigiu a uma colega desta
forma:
A senhora é mais gorda pessoalmente do que na TV.
A elegante vítima mal recobrava a respiração e foi abatida
por outra “gentileza” do senador:
Eu vou te mandar uns chás de pata-de-vaca. Mas a
senhora precisará do apoio de uma esteira.
(Jornal O Globo, 16/12/2006)
Nesta situação interlocutiva, observamos uma seqüência de insultos
verbais, voluntários e diretos cometidos pelo senador contra uma colega numa
recepção. Inicialmente, ao se dirigir à colega, o senador diz diretamente: “A
senhora é mais gorda pessoalmente do que na TV”, cujo valor ilocutório seria
depreciativo e insultuoso, em que não só declara considerar o indivíduo a quem
se dirige fora de forma, como também intensifica esta caracterização “gorda” ao
utilizar o advérbio de intensidade “mais”. Em seguida, ao invés de se retratar, ele
insulta mais a colega: “Eu vou te mandar uns chás de pata-de-vaca. Mas a
senhora precisará do apoio de uma esteira”. Nessa enunciação, fica implícito que,
para o senador, além da colega precisar fazer um regime (através da sugestão do
chá de pata-de-vaca), necessita também do auxílio de uma esteira para obter
algum resultado (idéia expressa por meio da utilização da conjunção adversativa
“mas”).
Neste caso, no enquadre recepção, cuja relação é simétrica (entre colegas
políticos), o senador constrói uma imagem de grosseiro e, por conseqüência,
46
torna-se um gafista. A gafe é desencadeada por seus insultos que
comprometeram não só a sua face, devido à impolidez presente no conteúdo das
suas declarações (chamar a colega de obesa), como também a da colega (pelo
fato de sua obesidade ser alvo de comentários depreciativos).
Por outro lado, se esses enunciados fossem proferidos por um médico,
durante uma consulta, não seriam considerados insulto e nem gafe (não teria o
efeito constrangedor), porque a sua identidade (status social de médico e de seu
papel social de atender a um paciente), o contexto (hospital / consultório),
enquadre (consulta), o tipo de interação (médico / paciente) e de relação
(assimétrica) lhe permitiriam fazê-los de acordo com as normas
convencionalizadas.
Sendo assim, verificamos a importância da identidade dos participantes, do
tipo de interação e de relação, do contexto e do enquadre para a determinação de
que uma gafe é ou não uma ofensa eventual ou um insulto em potencial. Vejamos
o caso de um “discurso polêmico” (CHARAUDEAU, 1998),
48
por exemplo:
a interação entre candidatos a um cargo político, cujo enquadre é um debate e a
sua natureza é de disputa e de acirramento, em que se exige de alguma maneira
que em dados momentos haja uma atitude defensiva (valorizadora) e, em outros,
ameaçadora (até mesmo destrutiva) da face do adversário. Neste caso, o insulto
não é considerado inadequado, faz parte do contrato dos participantes deste tipo
de interação (a disputa por um cargo, em que o papel de cada candidato é o de
tentar destruir a face do outro para persuadir o ouvinte a se tornar seu eleitor).
Isto quer dizer que, no enquadre debate, em que o status social dos participantes
é o de candidato a algum cargo político, as injúrias não configuram gafe. Vejamos
um exemplo entre os candidatos a governador do Rio de Janeiro, Frossard e
Cabral, no último debate na Rede Globo, sobre a Alerj querer tornar Leonel
Brizola inelegível, em que Cabral reage dizendo:
É de uma completa leviandade, essa votação foi secreta. E
o ex-governador me ligou para agradecer. Será que para ganhar a
eleição o desespero chega a esse nível, de inventar uma situação
dessas? Pelo amor de Deus!
Em outro momento do debate sobre o investimento do governo
48
Charaudeau utiliza o termo “polêmico” para nomear casos em que o locutor se refere ao interlocutor
utilizando argumentos que o colocam em questão, como no debate político (1998). O discurso polêmico é um
discurso “desqualificador”, em que um dos procedimentos característicos é o insulto.
47
federal de 2 bilhões para a construção de uma nova usina nuclear
em Angra dos Reis, Cabral comenta a resposta de Frossard:
Ela foge ao tema porque não conhece. A deputada não tem
programa de governo.
(Debate exibido na Rede Globo, 26/10/2006)
No debate entre dois candidatos a governador do estado do Rio de Janeiro,
pelos valores sociais vigentes, sabemos que as grosserias são comuns e
permitidas desde que sejam referentes à conduta do adversário. Por isso, os
candidatos utilizam tudo o que vêem, ouvem e lêem a respeito do outro para
criticá-lo e denegri-lo, pretendendo assim não só ganhar a adesão de eleitores,
como também proteger a sua face. Na primeira intervenção, Cabral deixa implícito
que Frossard estaria mentindo “... de inventar uma situação assim”. Depois
continua intervindo através da linguagem verbal e da paraverbal (entonação
ríspida) para criticá-la. Neste enquadre debate entre candidatos a um cargo
político, o insulto faz parte do contrato estabelecido entre os participantes, não
configurando assim uma gafe.
Estamos observando assim que a ofensa eventual e o insulto serão
responsáveis pelo surgimento e/ou agravamento da gafe quando em determinado
contexto, enquadre e tipo de interação e de relação for inadmissível que o
participante (a partir da sua identidade) seja grosseiro. Caso contrário,
detectaremos apenas a ofensa eventual ou o insulto, como no episódio do rei da
Espanha, Juan Carlos: na cerimônia de encerramento da XVII Reunião da Cúpula
Ibero-Americana, em Santiago (10/11/2007), Hugo Chávez, presidente da
Venezuela, provoca o rei Juan Carlos ao criticar o ex-presidente do governo
espanhol José Maria Aznar, cuja reação foi de mandar o venezuelano se calar
“Por qué não te callas? (ver anexo 2). Neste enquadre, verificamos que devido
ao seu status de rei da Espanha e, conseqüentemente, ao seu papel
desempenhado (que lhe conferiu o poder de repreensão), a conduta incisiva e
repreensiva de Juan Carlos, não caracterizou uma gafe.
2.2.2.2.3- Mentira
É definida como “um discurso contrário à verdade, efetuado com o objetivo
de enganar”. (DURANDIN, 1997). Ou seja, o elaborador da mentira conhece a
48
verdade e faz um juízo falso para atingir seu objetivo. A mentira se distingue da
gafe por causa do seu propósito (de enganar devido a um objetivo específico ou
não) e do seu efeito (representar um ganho para o mentiroso).
Já no momento em que a mentira é descoberta e de acordo com o teor e o
nível do que foi negado, pode provocar constrangimento entre os indivíduos,
e, conseqüentemente, uma gafe pode ser configurada. Assim, por exemplo,
quando uma mentira é descoberta e, pelo menos, o mentiroso, que é
desmascarado, tem a sua face ameaçada, a situação torna-se constrangedora.
Afinal, a ação de mentir faz parte das atitudes reprovadas pelas normas de
convívio social. Quem diz uma mentira, sabe a verdade e por algum motivo não a
declara, como neste episódio: o pastor Ted Haggard, líder evangélico americano,
presidente da Associação Nacional de Evangélicos, que foi envolvido num
escândalo por ter sido acusado de ser homossexual e de usar drogas, negou,
inicialmente. Mas com o desdobramento do caso, confessou através de uma carta
dirigida a fiéis. Vejamos:
Lamento as circunstâncias que provocaram tanta vergonha.
Sou culpado de imoralidade sexual. E aceito a responsabilidade
por todo o problema. Sou um mentiroso. Há uma parte de minha
vida que é tão obscura e repulsiva que venho lutando contra isso
durante toda a minha vida (...) neste momento minha
confiabilidade é questionável.
(Jornal O Globo, 09/01/2006).
Diante da prática de tais ações (relações homossexuais com um garoto de
programa e uso de drogas), ao negá-las inicialmente, Ted Haggard teve sua face
destruída, por causa de sua identidade (status social de pastor líder evangélico).
Esta contribuiu para o agravamento não só da mentira, como também da gafe
devido à infração das regras que orientam seu papel social. Neste caso,
percebemos então que a mentira cometida por Ted é “descarada”, utilizando o
termo empregado por Goffman (1975, p. 62). Ao discorrer sobre a representação
falsa, este autor classifica a mentira em dois tipos: primeiro, como mentira
deslavada, descarada ou rematada definida como “aquela para a qual é possível
encontrar uma prova irrefutável de que a pessoa que a disse sabe que está
mentindo e o faz deliberadamente”. (ibid.). E o segundo tipo de mentira é a
inocente, aquela dita “com a intenção de proteger outrem, mais que defender a si
49
próprio” (ibid., p. 63)
Dessa forma, devido ao fato de ter negado a acusação de ter pago ao
garoto de programa Mike Jones, para manter relações homossexuais com ele,
como também de ter consumido metanfetamina, Haggard tornou-se um mentiroso
e, conseqüentemente, um gafista, porque, neste caso, “os indivíduos
surpreendidos em flagrante no ato de dizer mentiras descaradas não apenas
ficam desacreditados durante uma interação, mas também podem ter sua
dignidade destruída”. (ibid.). E, ao ser descoberta a verdade, ele assume a culpa
(por meio de uma carta em que confirma o fato) por meio de formulação direta
“Sou culpado” e de formulações indiretas através da descrição de um estado de
espírito “lamento as circunstâncias...” e do reconhecimento do erro “E aceito a
responsabilidade...”. Portanto, observamos que, ao ser desmascarado, o pastor
torna-se um gafista e o efeito de seu comportamento é a destruição da sua face.
2.2.2.2.4- Ato falho
Primeiramente, cabe ressaltar que o ato falho e o lapso (assunto a ser
tratado posteriormente) são denominados de parapraxia por Freud na obra
intitulada A psicopatologia da vida cotidiana (1974), que é definida como
o produto de mútua interferência entre duas intenções diferentes, das quais uma
pode ser chamada de intenção perturbada e a outra, intenção peturbadora” (1976,
p. 79). Na leitura desse texto, observamos que estes fenômenos são analisados
para demonstrar a existência de processos mentais inconscientes nas pessoas
sadias, atribuindo-se o surgimento deles à interferência de algum desejo, conflito
ou seqüência de pensamentos inconscientes. Dessas falhas presentes na
comunicação e analisadas por Freud do ponto de vista da descrição e das suas
características, interessa-nos, para a elaboração desta pesquisa, a relação
desses fenômenos com a gafe e a reação dos participantes no momento em que
ocorrem.
O conceito de ato falho (fehlleistung em alemão) não constava nos
manuais de Psicologia e foi inventado por Freud. Ele o utilizou primeiramente na
obra A interpretação dos sonhos (1987), mostrando que é preciso relacioná-lo aos
mecanismos do inconsciente de quem o cometeu. O ato falho pode ser definido
50
como uma ação imprevista ou algo que surge na prática desta, de modo
inesperado e cujo resultado é um fracasso em que o indivíduo atribui a sua
ocorrência “tanto à fadiga como à distração” (FREUD, 1976, p.41). A respeito das
causas desse fenômeno, vejamos o que declarou o senador John McCain, dos
Estados Unidos, a respeito dos candidatos em campanha (por exemplo: o
canditado Mitt Ronney afirmou: “não vou me lembrar dos cidadãos de Iowa” “me
lembrar” no lugar de “me esquecer” - e “uma pessoa fatigada cometerá erros”
(Jornal O Globo, 04/01/2008). E quando desestabiliza a interação, desencadeia
uma gafe, como no exemplo a seguir: num discurso, o senador e presidente do
Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), na presença da mulher Verônica, tenta
provar que utilizou recursos próprios para pagar a pensão alimentícia da filha que
teve com a jornalista Mônica Veloso, e não como foi divulgado na revista Veja,
que ele teria recebido ajuda financeira de uma empreiteira para pagar as
despesas da filha fora do casamento. No meio do plenário, o senador diz):
Outros políticos também tiveram as despesas dos seus filhos fora
do casamento custeadas por terceiros.
(Jornal O Globo, 07/07/2007)
Neste discurso, o senador Renan Calheiros comete um ato falho ao utilizar
o termo “também”. O seu emprego faz com que ele não só destrua a sua própria
face - uma vez que confessa ter tido uma filha fora do casamento, ter recebido
dinheiro para pagar as suas despesas e deixar subentendido que considera um
absurdo ser punido por tal prática - como também compromete a dos outros
políticos, na medida em que revela haver outros casos de políticos iguais ao seu.
Assim, esta enunciação é contrária a sua intenção, pois, quando foi acusado pela
revista Veja, o que pretendia era se defender no plenário. Mas, devido a um ato
falho, compromete-se completamente, tornando-se assim um gafista.
Dada a gravidade da situação (filha fora do casamento e uso de empresa
prestadora de serviço) e do seu status social (presidente do Senado), a gafe
cometida é irreparável, a ponto de uma parte dos políticos (deputados e
senadores) e da população exigirem que ele renunciasse. Diante de todas as
acusações e de sua confissão, Renan Calheiros pediu afastamento do cargo, no
dia 04/12/2007, à tarde, num plenário no Senado, em Brasília: “renuncio
ao mandato de Presidente do Senado Federal, sem mágoas ou ressentimentos,
51
de cabeça erguida, demonstrando, mais uma vez, que não usei das prerrogativas
do cargo para me defender”.
Verificamos assim que apesar de o ato falho ser um “ato bastante normal”
(ibid. p. 48), há casos em que a sua ocorrência engendra uma gafe e de acordo
com a implicatura dele (como neste exemplo), a face de quem o cometeu pode
ser completamente comprometida, o que demonstra um alto nível de gravidade.
2.2.2.2.5-- Lapso
O lapso consiste em colocar outra palavra no lugar do que se pretendia
dizer (FREUD, 1969). É um distúrbio da fala, que pode ser cometido por duas
razões: pela influência de outro componente, como a antecipação de um som
dentro de uma sentença no contexto; ou por questões exteriores à fala no
contexto. Segundo Freud, há três tipos de lapso: de língua, que ocorre quando um
indivíduo “tenciona dizer algo venha a usar, em vez de uma palavra, outra
palavra, ou possa fazer a mesma coisa escrevendo, podendo ou não, perceber o
que fez”. (ibid., p. 37); de leitura, acontece quando ”uma pessoa pode ler algo,
seja impresso ou manuscrito, diferente do que na realidade está diante de seus
olhos” (ibid.); e de audição, se dá “ao ouvir algo errado que lhe foi dito” (ibid.).
A partir do corpus selecionado, verificamos que a ocorrência do lapso de língua é
mais comum no nosso quotidiano (total de 385 gafes das quais 20 são lapsos de
língua). Vejamos um exemplo:
No “Segundo Caderno” de O Globo, na coluna do jornalista Artur Xexéo,
este relata o constrangimento que sofreu na entrega dos prêmios “Comunique-
se”. Quando foi chamado para receber seu prêmio, das mãos do cantor Jorge
Vercilo, fez um discurso para homenagear algumas pessoas. Dentre elas,
pretendia homenagear a editora de cultura da revista Carta Capital, Ana Paula
Souza. Mas nesse momento,
E por alguma razão inexplicável, referi-me a Ana Paula como Ana
Cláudia. Ana Cláudia para cá, uma vez, Ana Cláudia para lá, duas
vezes, falei três vezes o nome Ana Cláudia Souza, que por sinal, é
outra coleguinha, tão talentosa e simpática quanto Ana Paula que eu
queria homenagear, mas que não concorria a nada (...) Estou há uma
semana ajoelhado no milho e repetindo como um mantra Ana Paula
Souza.
(Jornal O Globo, 20/09/2006).
52
Na premiação, o jornalista Artur Xexéo, em vez de proferir Ana Paula
Souza, disse Ana Cláudia Souza. Em sua intervenção, cometeu um lapso de
língua que engendrou uma gafe, porque comprometeu a própria face (como foi
capaz de trocar os nomes naquela situação?) e a do seu alvo (no caso, a face de
quem pretendia homenagear). A situação tornou-se mais constrangedora pelo
fato de, ao trocar os nomes, acabar se referindo a uma outra colega de trabalho,
não concorrente a nenhum prêmio. A causa do surgimento desse tipo de lapso,
Freud afirma que ocorre com especial freqüência quando se está cansado,
quando se tem dor de cabeça ou quando se está ameaçado de enxaqueca”
(1976, p. 40).
A partir desse exemplo, averiguamos que, primeiro, dependendo da
identidade dos participantes (a de jornalista de Xexéo e a de Ana Paula Souza de
editora cultural, ambos com visibilidade social), do tipo de relação estabelecida
entre os participantes (assimétrica), do contexto (casa de show Tom Brasil, São
Paulo) e de enquadre (discurso de agradecimento ao prêmio recebido e de
homenagem à Ana Paula) pode ser configurada uma gafe pelo fato de
comprometer a face de alguém (no caso, de Artur Xexéo e de Ana Paula Souza).
O grande valor das parapraxias consiste em “serem fenômenos muito
comuns que, além de tudo, podem ser observados com facilidade em cada um, e
ocorrer sem absolutamente implicar em doença” (ibid., 98). Assim, constatamos
que, ao se cometer um ato falho ou um lapso e a face de um dos participantes for
ameaçada, a gafe é configurada.
2.2.2.2.6- Ironia
Historicamente, a noção de ironia consiste em dizer o contrário daquilo que
se pensa, com intenção sarcástica ou depreciativa. Alguns estudiosos vêm
pesquisando esse tema, dentre eles, Hutcheon (1978), Brait (1996) e Perelman e
Olbrechts (1996).
O enunciado irônico é na sua essência ambíguo, pois uma “dupla leitura é
mobilizada pelo enunciado irônico” (BRAIT, 1996, p. 105). E para que este
fenômeno seja apreendido, é necessário que o interlocutor seja perspicaz, que
reconheça as sinalizações inscritas no enunciado (por exemplo, a entonação, o
53
contexto e o conhecimento partilhado) de quem o realizou. Sendo assim, para
Perelman e Olbrechts, este fenômeno discursivo “sempre supõe conhecimentos
complementares acerca de fatos e normas” (op. cit., p.236).
Para ilustrar isto, vejamos o seguinte exemplo: depois do desvio cometido
pela assistente de bandeirinha Ana Paula contra o time Botafogo, o Flamengo
passou a temer que o juiz Heber Roberto Lopes (por causa das reclamações
contra a colega) entrasse em campo pressionado ou com pena do adversário. Por
isso, o vice de futebol do Clube de Regatas do Flamengo, Kleber Leite, declarou:
Com tanta reclamação, parece que o mundo caiu e o Botafogo é
um pobre coitado. O juiz indo para o jogo coagido. Além de linda,
Ana Paula é muito competente e os lances que eles reclamam são
complicados.
(Jornal O Globo, 25/05/07)
Nesta situação interlocutiva, observamos que os comentários feitos não só
contra o Botafogo “parece que o mundo caiu e o Botafogo é um pobre
coitado” , por causa da eliminação do time na Copa do Brasil, como também em
relação à atuação de Ana Paula é muito competente caracterizam uma
ironia, pois o que aconteceu com o Botafogo foi conseqüência do erro cometido
por ela. Constatamos assim, neste caso, que o contexto oferece pistas para a
interpretação do enunciado como ironia (fator determinante para sua percepção e,
por conseqüência, seu sucesso) e que, portanto, o enunciador “qualifica o
enunciatário como capaz de participar da construção da ironia” (BRAIT, 1996, p.
50).
Contudo, não desencadeia a gafe, porque a identidade (o status social de
vice de futebol e o seu papel) de Kleber Leite lhe confere este poder de crítica. Já
se o enunciado fosse proferido por Ana Paula referindo-se à atuação dele (e ele
fosse do mesmo time), seria considerado uma gafe, porque ela, numa posição
social hierarquicamente inferior a dele, pelos acordos sociais, o poderia
expressar publicamente uma opinião depreciativa com relação ao desempenho de
um superior. Tal atitude provocaria não só o comprometimento da face de ambos,
como também, pela prática social, poderia ocorrer punição ou até mesmo perda
do emprego. A respeito disso, vejamos o exemplo a seguir relatado por uma
amiga, secretária em uma importante empresa de pneus:
54
No final do ano passado, num dia em que meu chefe tinha várias
reuniões importantes, a primeira agendada às 8:00, com todos os
empresários presentes no horário (e tinham avisado que não
poderiam atrasar e se prolongarem muito devido ao horário do vôo),
meu chefe só chegou às 8:55. Todos já estavam impacientes e eu
enlouquecida tentando contornar a situação, quando meu chefe
chega como sempre na maior tranqüilidade. E eu, sem exitar,
disparei:
- Bom-dia!!! O senhor como sempre de uma
pontualidade....
Imediatamente, meu chefe retrucou:
- Bom-dia a todos!!! Por favor, coloque um anúncio
no jornal para secretária e com uma observação: diga sempre o que
pensa. Depois passe no RH.
Depois dessa, prometi a mim mesma me policiar mais ainda...afinal,
me custou o emprego.
(fato relatado em 28/02/2008)
Neste relato, observamos a sobreposição de fenômenos discursivos: um
ato falho, cuja enunciação é irônica, culminou numa gafe devido ao
comprometimento da face de todos os envolvidos na situação: a dela, porque o
seu status de secretária não lhe dá o direito de revelar uma característica
negativa do chefe: a impontualidade; a dele, pois, em função da situação,
a implicatura da enunciação foi de revelação da sua conduta
e, conseqüentemente, de descaso com os participantes da reunião; e a dos
empresários que o aguardavam, que foram desrespeitados, na medida em que foi
o chefe quem determinou o horário da reunião.
Enfim, dependendo da identidade do irônico, do tipo de interação e de
relação, do enquadre e do contexto em que foi dita, a ironia será considerada o
elemento desencadeador de uma gafe, se causar constrangimento e, por
conseqüência, comprometer a face de, pelo menos, um dos participantes.
2.2.2.2.7- Emoção
49
Apesar da emoção ser tradicionalmente considerada um assunto das
ciências psicológicas, como objeto de investigação científica também tem
despertado o interesse de pesquisadores de outras áreas, tais como: a lingüística
(Bally, 1935; Cosnier, 1994; Kerbrat-Orecchioni, 2000b) e a antropologia
(Durkheim, 1971; Mauss, 1980) Primeiramente, cabe ressaltar que foi Charles
49
A emoção é uma “reação afetiva sob o efeito de uma situação inesperada”. (LAROUSSE, 1979).
55
Bally quem atribuiu importância à emoção para o estudo da linguagem, por
considerá-la não só instrumento de ação, como também expressão de
sentimento. No estudo da estilística, este autor distingue dois registros de
expressão: o registro intelectual e o afetivo, porque “nosso pensamento oscila
entre a percepção e a emoção; por meio dele nós compreendemos e sentimos”.
(1909:151).
Na abordagem interacionista, a emoção é tratada na dimensão
comunicativa como “uma experiência a se compartilhar, que se localiza não só no
indivíduo, como entre indivíduos como uma experiência intersubjetiva integrada
nos processos relacionais” (COSNIER, 1994, p. 93).
50
A partir dessas considerações, verificamos que a interação veicula não
somente informações, como também emoções, que são expressas nas
intervenções iniciativas ou reativas a partir de comportamentos verbais, não-
verbais e/ou paraverbais. E tanto a informação quanto a emoção serão
responsáveis pela ocorrência de gafe quando inadequadas à identidade dos
envolvidos, o tipo de interação e de relação estabelecida, o contexto e o enquadre
em que estão inseridos. Com isso, verificamos que, no exemplo anterior, o
comportamento verbal da secretária configura uma gafe não só pela implicatura
da informação transmitida, como também pela emoção expressa, no caso de
nervosismo (proveniente da reclamação e da impaciência dos indivíduos
presentes) e de alívio (com a chegada do chefe).
Outro fator importante a ser salientado é a da relevância do aspecto
cultural no tratamento da emoção e do seu desdobramento em gafe. Segundo
Mauss, no texto intitulado “A expressão obrigatória dos sentimentos” (1980), ao
analisar um conjunto de ritos funerários austríacos, apresenta a expressão de um
sentimento como uma forma de linguagem, porque “todo o grupo o compreende”
(ibid.,p. 62); este autor também destaca o caráter coletivo da expressão das
emoções e verifica que trata-se de “fenômenos sociais” (ibid., p. 56), ou seja, são
determinados culturalmente. E é por isso que o comportamento não-verbal do ator
Richard Gere (ver exemplo na página 23), em que expressa felicidade
(contentamento com o recebimento do troféu de melhor ator), foi considerado uma
gafe em função do contexto cultural no qual estava inserido. Constatamos que a
50
Nossa tradução.
56
sua manifestação emocional é considerada um insulto (no caso, desencadeou
uma gafe), pois tal conduta é proibida naquele contexto. Isto ocorre pelo fato de
as diferentes sociedades
não utilizarem os mesmos repertórios de signos (verbais, mas
também paraverbais e não-verbais) para expressar suas
emoções, mas que elas também têm “estilos comunicativos”
diferentes qualitativamente e quantitativamente.
(KERBRAT-ORECCHIONI, 2000b, p. 55)
Às vezes, o indivíduo a quem nos dirigimos provoca em nós um sentimento
negativo de intimidação e isto será propício para o surgimento de uma gafe, como
o exemplo do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, em que, ao longo
do primeiro encontro com o Papa Bento XVI, no Vaticano, se dirigiu a ele por
“senhor” no lugar de “sua santidade” (ver anexo 3). Vejamos o que o presidente
disse:
- Estava conversando com um homem inteligente e afetuoso.
Fiquei intimidado. Foi emocionante.
(Jornal O Globo, 10/06/2007)
Ao observar esses exemplos, constatamos que um fator importante a ser
considerado na ocorrência da gafe é o da emoção expressa. Cabe ressaltar que
esta pode se manifestar não só através da linguagem verbal (como neste
exemplo do presidente Bush), como também da não-verbal (ver exemplo da
atitude de Richard Gere da página 23) e da paraverbal (por exemplo, o sotaque,
como fez o governador Sérgio Cabral ver página 24, ou, até mesmo, o riso,
assunto a ser tratado a seguir).
Portanto, as manifestações emocionais são permitidas ou proibidas (neste
caso, será a responsável pelo surgimento e/ou agravamento da gafe) aos
membros de uma sociedade nas diferentes situações comunicativas nas quais
estão engajados segundo o contexto, o enquadre, o tipo de interação e de relação
e a identidade dos participantes (status e papel social).
2.2.2.2.8- Riso e seus fenômenos
Alguns estudiosos investigaram o riso e o definiram de diferentes formas:
57
“um tipo de gesto social” (BERGSON, 1958), “um sinal sonoro do deslocamento
da atenção”. (PROPP, 1992) e “o produto de um processo automático tornado
possível apenas pelo descarte de nossa atenção consciente”. (FREUD, 1969).
Para esta pesquisa, investigaremos, o riso, enquanto uma das
manifestações de emoção e de “distribuição de energia” (ibid., p. 178) para
responder as seguintes questões: por que em alguns casos de gafe os
participantes riem?; o riso seria uma das causas da gafe?
Após verificarmos como cada um desses autores trata o assunto e
analisarmos o corpus, constatamos que tanto quando emitido um riso como
provocado em alguém, dependendo do contexto e do enquadre interativo, pode
ser desencadeadores da gafe. Para ilustrar esta questão, vejamos o exemplo da
funkeira Tati Quebra-Barraco:
No momento em que ela foi detida por dirigir há nove meses sem a carteira
de habilitação, a primeira reação da cantora foi de rir
(Jornal O Globo, 14/11/2006)
E a segunda reação foi de dizer:
Reclamar de quê? Minha conta bancária está linda, ganho por
hora, não ganho por mês, não, meu bem. Para quem nunca teve
uma bicicleta, dois carros zero quilômetros é muita coisa, né?
(Jornal O Globo, 14/11/2006)
51
Nesta situação interlocutiva, o comportamento paraverbal riso da
funkeira e o comportamento verbal declaração foram os responsáveis por
torná-la uma gafista. Podemos dizer ainda que neste caso há a sobreposição de
duas gafes. A primeira é o riso e a segunda, a declaração (o teor insultuoso do
51
Dois dias depois do episódio (15/11/2006), o jornal O Globo publicou a seguinte nota com o título:
“O Brasil é o país do ilegal e daí?” e uma reportagem em que a funkeira “pede desculpas à Polícia Militar”.
58
conteúdo), que, juntas, comprometeram completamente a sua face. O riso indica
que ela não se importa com a sua ação indevida, um delito cometido (dirigir sem
carteira), e, conseqüentemente, considera a atuação da polícia, sem importância.
Podemos dizer, então, que neste caso o riso é um “ato cruel de destruição”
(PROPP, op. cit, p. 46), porque a funkeira compromete a sua face com tal atitude
e a dos policiais.
A gravidade da gafe e de comprometimento da face ainda pode ser maior
quando a/o gafista, além de ter visibilidade social, encontra-se em um contexto
delicado devido a algum problema, sendo assim inadmissível um determinado
comportamento verbal, não-verbal e/ou paraverbal. Para ilustrar este fato,
vejamos então o discurso e o riso do presidente Lula (que, pela primeira vez,
apareceu em público após a tragédia em Congonhas) e o riso dos ministros (ver
anexo 4), na cerimônia de posse de Nelson Jobim no Ministério da Defesa, no dia
25/07/2007, diante do problema do atraso dos vôos e da tragédia com o vôo 3054
da TAM, em Congonhas, que tinha ocorrido há nove dias (assunto a ser tratado
posteriormente). Segundo o jornal O Globo, o presidente Lula
fez o ex-ministro Waldir Pires sorrir, ao dizer que ele
havia errado em 1989 ao disputar a vice-presidência
com Ulysses Guimarães (PMDB). Em outro momento,
afirmou que foi buscar Jobim, que “estava atrapalhando
a esposa (Adriana Senna), que pedia para ele sair de
casa um pouco” para substituir Pires. Lula brincou mais
duas vezes, tendo as verbas do Orçamento como mote:
- Guido, para voce ficar feliz, ele é um ministro que
não dá despesa porque já ganha o teto. Fique tranqüilo
que não vai aumentar o orçamento.
(26/07/2007)
Depois da reflexão acerca deste tema e da análise do corpus, verificamos
que não só o riso pode ser a causa da gafe, como nos exemplos citados; mais
também seu efeito, como nos casos em que presenciamos, vivenciamos ou nos é
relatada uma gafe. Nestes casos, rimos de nós mesmos e/ou do outro, da
situação embaraçosa vivenciada por alguém. A seguir, examinaremos os
fenômenos relacionados ao riso (humor, chiste e cômico), a fim de ratificarmos a
hipótese de que a gafe pode ser oriunda deles também. A distinção entre esses
fenômenos ficará evidente a seguir, porque as gafes serão analisadas conforme a
relação que estabelecem com cada um deles.
59
A- Fenômenos relacionados ao riso: humor, chiste e cômico
A partir da explanação feita sobre o riso, constatamos que o homem ri no
momento em que percebe algum tipo de desvio (e como a gafe é uma dessas
falhas, é comum o surgimento do riso). É o caso do riso desconexo (BOUCHARD,
1996),
52
que ocorre quando exprime uma emoção individual, solitária, que não é
compartilhada.
No que se refere aos fenômenos relacionados ao riso o humor, o chiste e
o cômico , o que há em comum entre eles é o próprio riso. E a diferença é que
cada um desses elementos é desencadeado por um processo diferente (o que
será analisado a seguir).
Observaremos, então, como cada um desses fenômenos relacionados ao
riso, dependendo da forma como surgiu, pode configurar uma gafe. Vejamos:
A.1- Humor:
Segundo Freud, o humor é “um meio de obter prazer, apesar dos afetos
dolorosos que interferem com ele; atua como um substitutivo para a geração
destes afetos, coloca-se no lugar deles”. (1996, p. 212).
Com relação às espécies de humor, Freud diz que elas são
“extraordinariamente variadas de acordo com a natureza da emoção
economizada em favor do humor: compaixão, raiva, dor, ternura, etc. (ibid.,
p. 215). Dessa forma, o homem faz humor a partir de qualquer tipo de problema
pessoal ou social que o aflija. Assim, segundo o autor, o humor pode ser “contra
si mesmo ou contra o outro”. (ibid.). Portanto, através dele, o homem manifesta o
seu descontentamento, reage para atenuar a sua dor ou uma situação
constrangedora e proteger a sua face e/ou a do outro (ou seja, dá a “volta por
cima”). Entretanto, há casos em que a tentativa de utilização deste recurso é um
fracasso e a sua conseqüência é a gafe, por causa do embaraço provocado.
Diante dessas explanações e da observação do corpus, vejamos o seguinte
exemplo em que o humor é a causa da gafe:
Durante um discurso, num evento de estudantes na Califórnia, o senador
52
Nossa tradução.
60
John Kerry decidiu improvisar um determinado trecho:
É ótimo estar aqui com universitários. Vocês sabem que, se
aproveitarem bem a educação, se estudarem muito, se fizerem o
seu dever de casa e se esforçarem para ser brilhantes, poderão se
dar bem. Se não fizerem isso, acabarão atolados no Iraque.
(Jornal O Globo, 02/11/07)
Neste exemplo, verificamos que a tentativa de utilização do humor pelo
senador foi um fracasso, por causa da alusão aos soldados americanos que estão
na guerra do Iraque. Tal referência sugere que estes militares estão lá por terem
sido maus estudantes. O conteúdo deste discurso gerou constrangimento entre os
americanos, porque foi um insulto aos soldados dos Estados Unidos - ao insinuar
que aqueles que foram ao Iraque não se esforçaram para mudar de nível na
carreira militar - e, conseqüentemente, desencadeou uma gafe. O status de Jonh
Kerry (de senador), o contexto (Califórnia Estados Unidos), o enquadre
(discurso) e o tipo de relação (assimétrica) tornam este deslize imperdoável e seu
efeito é grave, como o cancelamento de comícios de democratas e a
transformação destes em alvo de ataques republicanos. Isto significa que o
senador teve a sua face destruída e comprometeu a dos militares na guerra, o
que o levou a pedir desculpas pela gafe cometida, no dia seguinte. Mas dada a
sua gravidade, não conseguiu repará-la.
Cabe ressaltar que se esta mesma enunciação de John Kerry fosse
proferida por outro indivíduo, cujo status social fosse diferente, em outro tipo de
relação e de interação, de contexto e de enquadre, provavelmente não fosse
considerada uma gafe, como em um encontro informal de universitários. Se por
acaso fosse o pai de um dos alunos presentes que a proferisse num discurso, no
sentido de incentivá-los a estudar, não seria considerada uma gafe e sim uma
gozação.
Por outro lado, de um modo geral, a população faz piada de problemas
sociais ou de algo inusitado ou constrangedor dito por alguém, mas, ao fazê-lo,
não caracteriza uma gafe. Para ilustrar isso, mencionaremos, a seguir, um
episódio que se refere ao caso relatado na página 47, do rei da Espanha Juan
Carlos:
61
No hipermercado Extra da Asa Norte, em Brasília, um funcionário
anunciava pelo microfone, sem parar, aos berros, as ofertas da
casa. No que um cliente, já irritado, gritou, para gargalhada geral:
“Por qué no te callas?!”
(Jornal O Globo, 18/02/2008)
Podemos considerar este episódio como humorístico na medida em que
surge “de uma economia de gasto em relação ao sentimento”, ou seja, a sua
essência é de “poupar os afetos a que a situação naturalmente daria origem”
(FREUD, p. 189 190). Nesta situação, o cliente poderia ter, por exemplo,
xingado o anunciante para extravagar o sentimento de raiva, no entanto, optou
por fazer alusão à frase do rei da Espanha, Juan Carlos.
O humor é um recurso utilizado principalmente pelos humoristas e
chargistas para tratar de problemas sociais, porque, afinal, é seu
papel.proporcionar “prazer...o processo se dá no ouvinte perante quem um outro
produz o humor” (ibid.). Muitas vezes, também criam humor a partir de gafes
cometidas pelos indivíduos com maior visibilidade social e que estão na mídia.
Vejamos o exemplo do que ocorreu com o técnico da seleção brasileira, Dunga.
No dia 07/02/2007, no jogo Brasil contra Portugal, em Londres, em que o time
brasileiro foi derrotado, o técnico causou espanto por causa da estampa da sua
blusa (em preto e branco ver anexo 5). Ao ser indagado sobre a escolha das
roupas, ele responde:
Gabriela dá alguns sugerimentos, uma cor ou outra,
e a gente vai usando.
(Jornal O Globo, 08/02/2007)
O técnico Dunga comete um lapso ao enunciar “sugerimento” em vez de
“sugestões”. Provavelmente, ele tenha confundido a formação do substantivo que
designa o ato de sugerir com uma terminação em mento com a palavra em
italiano que é “suggerimento”, caracterizando assim uma gafe por não existir esta
palavra no sistema lingüístico da língua portuguesa. E tal fato se transformou em
material para a criação de charges (ver anexo 6) e de programas humorísticos,
como o “Casseta e Planeta”,
53
que no dia 13/03/2007, fez alusão ao episódio.
Dessa forma, constatamos que a gafe representa uma grande fonte de
material para o humor.
53
O programa “Casseta e Planeta” é exibido no canal aberto, Rede Globo, às terças-feiras, às 22 horas.
62
A.2- Chiste
Segundo Freud, o chiste é um efeito e a sua relação com o inconsciente é
seu traço característico (1969). A partir dos exemplos encontrados no corpus,
podemos dizer que ele é breve, trata-se de tirada rápida.
Outro aspecto relevante é o fato de que o chiste requer o terceiro. Assim, é
necessário que seja comunicado a um terceiro para que este o depreenda, e,
conseqüentemente, proporcione-lhe prazer. De acordo com isso, o prazer do
chiste “decorre do fato de se ter feito rir o outro” (ALMEIDA, 1999, p. 45), ou seja,
um enunciado é classificado como chistoso quando aquele que o escuta percebe
o chiste. Entretanto, se o enunciado proferido causa constrangimento entre os
participantes, ele engendra uma gafe. Vejamos, a seguir, o que ocorreu numa
entrevista sobre a tragédia no metrô de São Paulo (a cratera que engoliu vários
veículos e transeuntes devido a uma explosão para a expansão do percurso), em
janeiro de 2007.
Ontem, numa coletiva sobre a tragédia no metrô de SP, os
coleguinhas perguntaram o nome do encarregado da obra.
Engenheiro Aragão disse um acessor do consórcio. Mas Aragão
de quê?, quiseram saber. E um gaiato: “Renato Aragão”. A
gargalhada foi geral.
(Jornal O Globo 19/01/2007)
No enquadre entrevista sobre o acidente no metrô em São Paulo, o
ambiente estava tenso em virtude da gravidade da situação, em que houve sete
vítimas fatais e outras perderam seus bens (imóveis, automóveis, etc). Como até
aquele momento a causa ainda não havia sido descoberta, fizeram uma coletiva a
fim de esclarecer a população acerca da tragédia. No seu decorrer, ao dizer
“Renato Aragão”, um participante provoca um comportamento paraverbal
(gargalhadas) dos outros indivíduos presentes. Apesar de ter sido responsável
pelo abrandamento da tensão, pois todos liberaram a energia “negativa” com a
alusão feita ao humorista, seu chiste se transforme numa gafe, por causa da sua
inadequação ao enquadre. Isso porque este enunciado proferido, numa
entrevista, cujo tema é uma tragédia que comoveu toda a sociedade, é ordenado
e é dominado pelo “planejamento e pelo respeito (expresso na continência verbal
e gestual)” (DAMATTA, 1997, p. 49). Portanto, depois da “distribuição de energia”
63
(FREUD, 1969, p. 178), constatamos que todos os participantes presentes neste
enquadre cometem gafe: primeiro, quem proferiu o enunciado “Renato Aragão”; e
segundo, os indivíduos através do comportamento não-verbal: “a gargalhada”,
que devido à gravidade do assunto tratado, pelas normas sociais, não era
permitida “brincadeira” naquela situação.
A partir desse exemplo, verificamos que o chiste e a gafe (no caso, a
involuntária) têm em comum o fato de serem provenientes do inconsciente.
Entretanto, às vezes, no desenrolar de uma interação, quando surge um chiste,
dependendo do contexto, do enquadre, do tipo de interação e de relação, e da
identidade, ele pode ser responsável pelo surgimento, agravamento ou
amenização de uma gafe devido ao maior ou menor grau de constrangimento
causado entre os participantes.
A.3- Cômico:
Na obra Le rire, essai sur la signification du comique (1958), Bergson
emprega a palavra cômico para designar “aquilo de que se ri”.
54
Para o autor,
alguém se torna ridículo ao ser observado quando o observador percebe algum
desvio na conduta desse indivíduo a quem ele observa. E se a ação inadequada
praticada comprometer a face de alguém, o cômico se tornará um gafista.
Quanto às modalidades de cômico, conforme o autor, há cinco: de formas,
de gestos, de ação, de palavras e de caráter. Vejamos, então, no exemplo a
seguir, como, numa interação (em que são realizadas ações consideradas
cômicas), acontece uma gafe.
Partindo-se do princípio de que o indivíduo tem conhecimento dos padrões
de comportamento que a sociedade lhe impõe e de que esta espera que ele os
adote, o cômico e seu efeito, de acordo com o grau de inconsciência, surgirão
quando o indivíduo não os adotar. E conforme a natureza do desvio de
comportamento (no caso negativo, quando ocorre embaraço nos participantes), o
riso desconexo (BOUCHARD, 1996) pode ser suscitado e a face do cômico
comprometida, configurando uma gafe. Vejamos o seguinte exemplo: no meio da
divulgação da peça Vestido de noiva, no posto 9 da praia de Ipanema, no dia
54
Nossa tradução.
64
16/11/2006, um homem, de mais ou menos 40 anos, indignado por não encontrar
uma mulher virgem para se relacionar, diante de jornalistas, artistas, modelos e
público de faixa etária variada, gritava para as modelos:
Eu quero uma noiva virgem! Existe alguma ainda?
(Jornal O Globo, 17/11/2006)
Ao proferir tal enunciado, o homem causa constrangimento devido ao seu
comportamento inadequado (refere-se às mulheres presentes de forma
depreciativa no evento promovido no posto 9, sugerindo que não há mais virgens)
tornando-se, então, um gafista. Ao utilizar o advérbio “ainda”, ele agrava mais a
gafe cometida.
Logo, podemos dizer que quando ações realizadas são extremamente
incompatíveis com as normas de conduta social, a ponto de comprometer a face,
pelo menos, do indivíduo considerado cômico, engendra-se uma gafe, deixando
de ser assim um indivíduo cômico e passando a ser um gafista.
2.2.3- ROMPIMENTO DE REGRAS DE POLIDEZ
Esta terceira causa está relacionada à inobservância das normas de
conduta vigentes numa sociedade. Afinal, as ações dos indivíduos são regidas
por acordos sociais que se submetem às regras de língua, da interação social e
dos rituais institucionalizados. E, para transgredi-los, é necessário que elas
existam para orientar o modo como cada indivíduo deve-se portar / expressar
numa dada situação interlocutiva. Isso significa dizer que, de acordo com
o contexto, o enquadre, o tipo de relação e de interação e identidade (status e
papel social), devemos adotar uma determinada conduta, pois nosso
comportamento “deve ser coerente e consistente. Ele deve refletir o grau de
intensidade e de relação entre os participantes”. (BOYER, 1996, p. 229).
55
Vejamos, a seguir, alguns casos:
55
Nossa tradução.
65
2.2.3.1- Ritual
Quanto às regras de polidez, Brown e Levinson (1978) concebem-na como
“um conjunto de procedimentos de proteção da face”. E no domínio da análise
das interações cotidianas, ritual é denominado deum ato formal e
convencionalizado pelo qual um indivíduo manifesta seu respeito e sua
consideração em relação a um objeto de valor absoluto ou a seu representante”.
(GOFFMAN, 1975, p. 73).
56
A partir dessa definição, podemos entender esse ato
ritualizado como o conjunto de regras estabelecidas socialmente que prescrevem
como devemos nos comportar numa troca, isto é, como devemos interagir com o
outro em diferentes situações: comportamento à mesa, maneiras de se portar
(agradecimento e saudação), de se vestir etc. Por exemplo, no Brasil é permitido
a um homem beijar uma mulher, mas na Índia não, devido às regras
determinadas socialmente. Por isso, o comportamento não-verbal do ator Richard
Gere, em Nova Délhi, (exemplo da página 23) engendrou uma gafe.
Outra situação embaraçosa provocada pela inadequação de cumprimento
é o caso do presidente do Irã, Mahmmoud Ahmadinejad, durante uma
comemoração do Dia do Professor, em Teerã.
(Jornal O Globo, 03/05/2007)
O contexto Teerã em que o presidente realiza o ato de beijar uma
antiga professora para expressar respeito, a identidade de Mahmmoud,
66
presidente do país, e a da pessoa beijada, uma senhora, configuraram uma gafe.
O presidente torna-se um gafista, porque naquela cultura da qual faz parte,
segundo a sharia (lei islâmica), homem e mulher não podem ter contato físico, a
não ser que sejam casados. Lá, mesmo que a senhora use luvas, também é
proibida tal atitude. Como neste caso ocorreu uma transgressão do ritual de
cumprimento, as ações não-verbais (o beijo seguido de um abraço) “rasgaram o
tecido social (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 440), cuja
conseqüência foi de serem duramente criticadas por iranianos radicais e pela
imprensa que as classificou de “indecência”.
Dessa forma, constatamos que para nos comportarmos através da
linguagem verbal, não-verbal e/ou paraverbal, devemos considerar o aspecto
cultural. Se a ação do presidente do Irã fosse praticada, por exemplo, no Brasil,
não seria considerada um insulto, e, conseqüentemente, ele não teria se tornado
um gafista, pois aqui tais ações são permitidas.
Concluímos que há ações que são universais, como cumprimentar alguém
ao encontrá-la pela primeira vez no dia, e outras são culturalmente variáveis na
organização da interação face a face, por exemplo, o episódio anterior do
presidente Mahoummoud.
Ao refletirmos sobre as características e os aspectos da gafe e a sua
relação com esses diferentes elementos, averiguamos que “num mundo que tem
que se mover obedecendo às engrenagens de uma hierarquia que deve ser vista
como algo natural” (DAMATTA, 1997, p.184) não só a gafe, como também os
outros elementos (lapso, ironia etc.) constituem desvios, assunto a ser tratado a
seguir.
2.3- DESVIO
Primeiramente, cabe ressaltar que as teorias interacionistas se inspiraram
nas análises psico-sociais de Mead (1934), desenvolvidas a partir da década de
20, na Universidade de Chicago. A teoria do desvio é desenvolvida
56
Nossa tradução.
67
posteriormente por autores, dentre eles, Becker (1985) e Goffman (1982), cuja
base é a necessidade de abordar os comportamentos incompatíveis com os
acordos sociais. A concepção de Becker sobre o fenômeno do desvio privilegia o
papel da ação coletiva, cujas regras são impostas por um processo social que
define coletivamente certas formas de comportamento como tipos de problema.
Sendo assim, ele o considera como "o produto de uma transação efetuada entre
um grupo social e um indivíduo que, aos olhos do grupo, transgrediu uma norma".
(1985, p. 33).
Como outras orientações compatíveis com a interacionista foram
desenvolvidas, escolhemos a de Goffman, que, no último capítulo, intitulado
Desvios e Comportamento Desviante, da obra Estigma sugere que se considere
o desvio a partir de um conjunto de normas construídas e aceitas socialmente.
O desvio seria o não cumprimento de tais normas. E o comportamento de quem o
comete é considerado “desviante, que significa
um grupo de indivíduos que compartilham alguns
valores e aderem a um conjunto de normas sociais
referentes à conduta e a atributos pessoais, pode-se
chamar “destoante” a qualquer membro individual
que não adere às normas, e denominar “ desvio”
a sua peculiaridade.(GOFFMAN, 1982, p. 151).
Percebemos que para caracterizar um ato realizado verbalmente ou não
como desviante é fundamental considerarmos estes fatores: identidade do
indivíduo e o contexto sócio-econômico-cultural no qual está inserido. Afinal, um
comportamento é considerado como desvio a partir do que é estabelecido
socialmente. Com o desenvolvimento da pesquisa, a ratificação da hipótese de
que a gafe estaria relacionada com outros fenômenos e a análise do corpus,,
a investigação do desvio faz-se necessária para comprovarmos que, quando uma
atividade realizada (podendo ou não ser constitutiva de outro fenômeno)
transgride as normas impostas socialmente, trata-se de um desvio (considerado
como sinônimo de erro, falha e equívoco) e este engendra uma gafe quando
compromete a face dos envolvidos e desestabiliza a interação. Para elucidar essa
68
questão, apresentaremos a seguir alguns episódios de gafe para observarmos as
diversas conseqüências do desvio e seus tipos.
A- Comprometimento da face de L1 e de X
Numa aula magna sobre segurança e recuperação econômica do Rio de
Janeiro, na UniverCidade, em Ipanema, no dia 22/08/2007, o governador do
estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, segundo o jornal O Globo, ao abandonar
o tema e “fazer uma veemente defesa da democracia, ele cometeu pelo menos
sete erros ao falar do Brasil, desde a Colônia até os tempos atuais” (23/08/2007).
Vejamos alguns dos erros citados pelo jornal:
Em 1954, o presidente da República meteu uma bala na cabeça,
gerando um caos e a crise no Brasil…. Jânio Quadros se trancou
muito em Brasília, bebendo uma atrás da outra. Com nove meses,
num porre mais alongado, renuncia, achando que haveria uma
reação popular para retorná-lo ao poder, mas, quando a carta de
demissão chega ao Congresso, o presidente a lê e está fora do
poder.
(Jornal O Globo, 22/08/07)
Numa aula, Sérgio Cabral, enquanto governador, não poderia ter cometido
um equívoco quanto ao tiro do presidente Getúlio Vargas (o tiro foi no peito e não
na cabeça) e de ter-se referido ao outro presidente, Jânio Quadros, de forma
depreciativa/insultuosa (sugere que era um alcoólatra). Como estes desvios, o
governador compromete a sua face e a dos indivíduos a que se refere, torna-se
um gafista. A gravidade da gafe cometida é maior e, conseqüentemente, o seu
efeito, por causa da identidade de Sérgio Cabral (seu status, no caso, de
governador do estado do Rio de Janeiro que deveria conhecer a história do Brasil,
principalmente, um fato histórico como o suicídio do presidente Getúlio Vargas),
do contexto (universidade) e do enquadre (palestra), que lhe exigiam não só
domínio do tema a ser tratado, como também obediência às normas de polidez.
B- Comprometimento da face de L1 e de L2
Há falhas que podem comprometer não só a face, como também a carreira
profissional, como foi o caso citado na página 49 de Ana Paula Oliveira, que
69
responde judicialmente pelos erros cometidos contra o time Botafogo, cuja
conseqüência foi tê-lo prejudicado na conquista do título da Copa Brasil: “dois
gols mal anulados por Ana Paula Oliveira e um frango incrível de Júlio Cesar no
fim do jogo, ontem à noite, no Maracanã, acabaram com o sonho do Botafogo de
chegar novamente à final da Copa Brasil.” (Jornal O Globo, 24/05/2007). Devido à
gravidade das ações praticadas indevidamente, a diretoria do time decidiu entrar
na justiça comum, numa ação de perdas e danos no valor de 2,5 milhões de reais.
Segundo o dirigente Carlos Augusto Montenegro, ela:
errou ao apontar irregularidades no gol de Zé Roberto, em lance
que, segundo Edson Rezende, estava mal colocada.
(Jornal O Globo 25/05/07)
Neste caso, a gafe é desencadeada por um desvio que foi cometido por
Ana Paula contra os jogadores e na presença deles, pois ocorreu durante o jogo.
C- L2 e/ou X ficam caracterizados por um erro cometido por L1
Por exemplo, o Sindicato dos Advogados do Estado do Rio de Janeiro tem
registrado o nome de uma advogada no seu cadastro como “Ladra” Machado
Pereira, em vez de Laura. Segundo o Jornal O Globo, “na última eleição da OAB,
por exemplo, candidatos ligavam para a sua casa atrás de voto e perguntavam:
A doutora Ladra está?” (03/06/07). Verificamos assim que a troca de letras no
registro de seu nome “d” no lugar de “u” provocou a ameaça da face do
responsável pelo cadastro (no caso, não só a do funcionário que a cometeu,
como também a do SAERJ, órgão responsável a que pertence o gafista) e do
indivíduo a quem se referia (a advogada Laura). O mais ameaçador foi o fato de a
troca de letras ter remetido a uma palavra de teor negativo no nosso contexto
sócio-político-econômico-cultural, comprometendo assim a advogada (por estar
sugerindo que seria uma corrupta). A conseqüência deste equívoco foi o 7º
Juizado Especial Cível do TJ-RJ ter condenado o Sindicato a indenizá-la em 800
reais.
Outro exemplo para ilustrar este caso foi o que ocorreu com a atriz Cristina
Prochaska. Vejamos:
70
Na época em que era repórter e fazia a cobertura de carnaval da
emissora Bandeirantes, em 1984, por volta de quatro da manhã,
numa transmissão ao vivo do baile do Monte Líbano, o diretor
Eduardo Lafond, mandou, pelo fone, o cameraman “fechar na
Prochaska”. O cara, que já estava pra lá de Bagdá, começou a
filmar em close a “prochaska” de uma dançarina que rebolava
numa mesa… O Lafond gritava fecha na Prochaska e o cara ia
botando zoom na calcinha da mulher.
(Jornal O Globo, 05/02/2007)
Nessa entrevista para o jornal O Globo, a atriz declara que devido ao erro
cometido pelo câmera (oriundo de um mal-entendido), ela “está,
involuntariamente, em outra. Abriu uma empresa de catering para cinemas e
comerciais”. Segundo ela, o efeito de tal ação (cabe salientar que neste caso, não
foi a autora e sim a vítima, o que é mais grave) foi o fato de não conseguir mais
trabalhar como atriz, em conseqüência de ser vítima de uma gafe, porque sua
imagem ficou comprometida ao ser associada ao “fecha na Prochaska” e,
conforme declarou: “esqueceram que eu apresentei o ‘Fantástico’ e o ‘Vídeo
Show’, que cobri os festivais internacionais de música com o Pedro Bial” (Jornal O
Globo, 05/02/2007).
D- Comprometimento da face de L1, de L2 e de L3
No programa “O melhor do Brasil”, cujo apresentador é Marcio Garcia, no
quadro “Vai dar namoro”, uma das participantes, Ingrid, ao ser indagada pelo
apresentador se gostou de Bruno, um dos pretendentes, responde:
Ele é muito velho.
O apresentador Marcio Garcia, que tem 36 anos e sabe que a faixa etária
dos candidatos varia de 18 a 30 anos, se sente ofendido e diz:
Ele é muito velho com 26 anos? Então, você me acha
acabado por ter 36. Você me chamou de velho, matusalém.... Se
eu te chamasse pra sair, não ia rolar?
Não, não... Ele tem a idade do meu irmão. E você é
casado.
Mas se eu não fosse?
71
É diferente. (nesse momento a platéia grita “interesseira”)
(Programa “O melhor do Brasil”,
57
exibido em 03/11/2006)
No enquadre apresentação, Ingrid, L2, comete uma gafe quando declara
considerar seu pretendente “velho”, pois a força ilocutória de seu ato seria
depreciativa. Ao ouvir a enunciação da candidata, o apresentador Marcio Garcia,
L1 interfere para demonstrar sua insatisfação com o fato de ela considerar uma
pessoa de 26 anos, velha. Assim, L1, ao perguntar a L2 sobre o que acha dele
com 36 anos, esta retoma a palavra a fim de não ameaçar a sua face e nem a
dele e lhe responde “não, não.…”. Inicialmente, ela declara não considerá-lo velho
e, em seguida, alega o fato de o rapaz ter a idade do irmão e de o apresentador
ser casado. A seguir, provavelmente, para instigá-la, L1 diz: “Mas se eu não
fosse?”. E esta, mais uma vez, na tentativa de proteger a sua face e a deles (a do
apresentador e a do pretendente), produz uma réplica “é diferente”, cujo sentido
seria novamente de depreciação, porque, ao declarar que ela o namoraria,
demonstra preconceito com o candidato. Neste momento, a platéia percebe a
força ilocutória do seu ato e a chama de interesseira. Possivelmente, por achar
que ela não se importaria em se envolver com uma pessoa mais velha, desde que
tivesse visibilidade social.
Dessa forma, podemos dizer ainda que L2 cometeu duas gafes: a primeira,
quando infringiu uma das normas de polidez, deixando implícito que achava L1,
o apresentador, velho; e a segunda, no momento em que ela percebe a gafe e
tenta repará-la, declarando “é diferente”, em que ficam implícitos seus valores
sociais e, por conseqüência, a discriminação com relação a L3, candidato sem
visibilidade social.
De acordo com nossa análise do corpus até o momento, detectamos que,
numa situação comunicativa, quando ocorre um desvio, pelo menos, um dos
envolvidos tem a sua face comprometida. E verificamos também que há dois
grupos de causas de desvio: o primeiro é o desconhecimento, que se subdivide
em: de código lingüístico (ver páginas 42 e 43), de conduta (ver página 23) e de
informação (ver páginas 21 e 68) ou de identidade de alguém (ver exemplo da
página 32). O segundo é a violação. Este ocorre quando o indivíduo domina as
regras sociais (ver páginas 65), um assunto ou conhece a identidade de alguém,
57
O programa “O melhor do Brasil” é exibido no canal aberto, Record, aos sábados, de 15h 30min. às 18h
72
mas por algum motivo intencional ou não comete uma falha, como no caso da
tragédia no metrô de São Paulo
58
em que a falta de fiscalização das obras por
parte do governo e da exatidão dos cálculos pelos engenheiros comprometeram a
vida e os bens de várias pessoas.
Com base na análise de cada um dos fenômenos investigados, concluímos
que todos (gafe, ato falho, lapso etc.) são desvios. O que os diferencia entre si
são as características peculiares de cada um, por exemplo: a divergência
atitudinal da gafe e a divergência interpretativa do mal-entendido. Podemos assim
dizer que o desvio é o hiperônimo
59
e os demais fenômenos, o hipônimo. E o que
os transforma em desencadeadores da gafe é o comprometimento da face de,
pelo menos, um dos envolvidos na situação comunicativa.
Percebemos também que apesar de a gafe ser um desvio, nem todo desvio
é uma gafe devido à identidade, ao tipo de interação e da relação estabelecida
entre os participantes, do contexto e do enquadre. Por exemplo, na interação
pedagógica cuja relação é assimétrica (professor e aluno), falhas cometidas em
relação ao conteúdo ministrado não caracterizam uma gafe, pois fazem parte do
processo de ensino/aprendizagem e estão previstas no contrato pedagógico
A partir desses dois tipos de causas detectadas por nós, verificamos
também que o efeito da gafe recai em, pelo menos, um dos participantes e pode
ser devastador de acordo com a sua gravidade. Do corpus selecionado,
encontramos quatro tipos: ameaça à face de L1, ameaça à face de L2, ameaça à
face de L3 e ameaça à face de X.
Após analisarmos as causas da gafe e seus efeitos, ratificamos nossa
hipótese de que há uma relação de outros fenômenos discursivos com a gafe: há
casos em que ela é uma conseqüência de alguns deles. Isso nos faz pensar que,
além dos grupos de gafes verbais, não-verbais e paraverbais, conscientes e
inconscientes, há também o grupo das abertas (quando é um desdobramento de
30min.
58
A tragédia ocorreu na tare de sexta-feira (12/01/2007), na limha 4, do metrô de São Paulo. Uma cratera
com 100 metros de diâmetro e 35 metros de profundidade abriu-se, engolindo alguns veículos e pessoas. O
total de vítimas fatais foram sete.
59
Hiperônimo é vocábulo de sentido mais genérico em relação a outro (p.ex., assento é hiperônimo de
cadeira, de poltrona etc.; animal é hiperônimo de leão; flor é hiperônimo de malmequer, de rosa etc.). E o
hipônimo é o vocábulo ou sintagma de sentido mais específico em relação ao de um outro mais geral, em
cuja classe está contido (p.ex., poltrona é hipônimo de assento; leão é hipônimo de animal) (HOUAISS,
2001).
73
algum outro fenômeno, como os mencionados nesta seção) ou das fechadas
(só ela é identificada, ver exemplos das páginas 21 e 32).
A seguir, investigaremos um outro aspecto da gafe: o modo de
gerenciamento.
2.4- TRATAMENTO
Nesta seção, focalizaremos o tratamento que os participantes procuram dar
à gafe. Para isso, averiguaremos como eles procedem, em cada contexto e
enquadre, intervindo ou não, independentemente da gravidade da gafe. Ou seja,
de que forma ocorre a negociação - noção central na análise das interações,
definida como “todo processo interacional susceptível de aparecer uma diferença
entre os interagentes e tendo por finalidade resolvê-la” (KERBRAT-ORECCHIONI,
2000a, p. 71) - entre os participantes diante da divergência atitudinal de um deles.
Essa questão de como agem diante de uma gafe, nos remete à noção de footing,
que representa o alinhamento, a posição, a projeção do eu de um participante na
sua relação com o outro, consigo próprio e com o discurso em construção.
(GOFFMAN, 2002, p. 107). Os footings dos participantes são introduzidos,
negociados, ratificados e modificados ao longo de uma interação. Eles não só
sinalizam valores, crenças, falhas na comunicação, etc; como também gerenciam
a produção, a recuperação ou a recepção de um ato realizado. Portanto, de
acordo com a forma como conduzem as suas ações, os interagentes alinham-se
mediante suas intenções comunicativas e modificam seu footing à medida que
escolhem outras estratégias ou mudam de enquadres interacionais para
manifestá-las.
Dessa forma, a interação comporta diferentes tipos de negociações, por
exemplo, a gafe que apresenta o seguinte esquema participativo: ao menos dois
locutores, um que, ao cometer a gafe, intervém (ver exemplo na página 36) ou
não (ver exemplo na página 32) e outro que, ao perceber a gafe cometida por seu
interlocutor, coopera (ver exemplo na página 22), sendo bem sucedido ou
fracassando, ou não coopera (ver exemplo na página 19). Assim, quando há
74
intervenção em que um dos participantes interfere visando salvar a sua face e/ou
a do seu interlocutor, ele deveajustar suas concepções e comportamentos
mútuos, isto é, negociar o desacordo a fim de neutralizá-lo”. (KERBRAT-
ORECCHIONI, 1996, p. 158).
Então, nesta seção, analisaremos não só os três tipos de gafista, propostos
por Matarazzo “os que disfarçam, os que assumem e os que tentam remediar”
(1996, p. 15) , a fim de ratificá-los; como também a posição assumida pelos
outros participantes envolvidos na situação comunicativa.
A partir da observação da enunciação proferida pelo primeiro locutor e
analisando o corpus selecionado, podemos verificar que L1, diante do interlocutor,
pode assumir uma destas posições. Vejamos:
2.4.1- POSIÇÃO ASSUMIDA POR L1:
A- L1 disfarça: ao cometer uma gafe, seu responsável não tenta remediá-la
porque não sabe se sair daquela situação embaraçosa, ou porque não há
justificativa para a ação indevida praticada. Por exemplo: ao participar de uma
cerimônia na Casa de Visitas do governo da África do Sul, o presidente do Brasil,
Luiz Inácio Lula da Silva, enquanto esperava o fim das assinaturas pelos chefes
de Estado, começou a conversar com alguns deles sobre seu avião, o Airbus 319,
longe dos microfones.
Vocês (Singh e Thabo) sabiam que um avião deu pane
com vários jornalistas brasileiros dentro?
Não.
Você tem avião do governo, Singh?
Depois, o presidente repetiu a pergunta para Thabo.
E você?
O sul-africano também respondeu afirmativamente. Lula,
então, aproveitou para contar o episódio da campanha com
Alckmin.
Vocês acreditam que meu principal concorrente, na
eleição do ano passado, queria vender o avião? e com o dinheiro
construir cinco hospitais!?
(Jornal O Globo, 18/10/2007)
Numa reunião, o presidente Lula torna-se um gafista por causa da quebra
de expectativa em relação ao conteúdo do seu enunciado “com o dinheiro
construir cinco hospitais”. Neste, ainda observamos o uso da linguagem
75
paraverbal: a entonação (a utilização de frases interrogativas) e a escolha lexical
que a agrava: o emprego do verbo “acreditam”. Assim, a sua divergência
atitudinal é gravíssima, visto que um dos maiores problemas da sociedade
brasileira é a saúde. Percebemos também, no discurso de Lula, que ele sugere
considerar mais importante o avião (para seu conforto) do que a construção de
hospitais (uma das principais necessidades do povo brasileiro). A conseqüência
da sua ação é a destruição da sua face, uma vez que fica implícito o interesse só
pelo seu bem-estar, e o comprometimento da face dos brasileiros, na medida em
que demonstra seu descaso para com eles. E esta ação torna-se ainda mais
grave porque um jornalista, enquanto L3, divulga esta conversa, que era para ser
percebida e restrita aos chefes de Estado, tornando-a de domínio público,
inclusive do alvo do desvio, no caso, o povo brasileiro.
B- L1 assume: ao perceber o desvio, seu responsável o admite. Vejamos o
exemplo a seguir:
Na festa de lançamento do filme “Eu sou a lenda”, ao ver
um homem careca, a apresentadora Renata Boldrini E agora
temos aqui o querido produtor do filme, Akiva Goldsman. O
homem careca falou em seu ouvido que não era Akiva.
Imediatamente, a apresentadora diz:
Gente, que mico.
(Jornal O Globo, 16/01/08)
Nesta situação interlocutiva, Renata Boldrini comete uma gafe involuntária
proveniente do desconhecimento da identidade de Akiva Goldsman, um dos
homenageados: “E agora temos aqui o querido produtor do filme...” Como através
desse enunciado, a apresentadora demonstra não saber quem era Akiva, aquele
a quem se refere dirige-se a ela discretamente “o homem careca fala em seu
ouvido”. Pela sua intervenção imediata “Gente, que mico”, inferimos que ele tenha
dito não ser a pessoa anunciada. Nesse momento, ao perceber a gafe cometida,
a apresentadora muda de footing, assumindo assim a falta de conhecimento da
identidade do produtor do filme, a fim de proteger a sua face e a dos envolvidos.
A partir da análise do corpus, constatamos que na mídia, tanto impressa
como no caso desta pesquisa, o Jornal O Globo quanto oral, programas de
televisão e rádio, quando a gafe é cometida por alguém cujo status é de jornalista
76
e/ou apresentador é comum assumirem o deslize, devido ao seu papel de
transmitir informação (ver anexo 7).
Cabe ressaltar também que encontramos um exemplo em que não só L1
reconhece ter sido extremamente insultuoso, como também declara não haver
uma forma de reconstruir a sua face e nem a de quem teve a sua ameaçada (no
caso, os judeus) dada à gravidade da infração de uma das normas de polidez: o
respeito aos indivíduos independente de raça, de crença, etc. Vejamos o exemplo
a seguir em que, ao ser flagrado dirigindo bêbado, no momento da prisão, o ator
Mel Gibson diz:
Malditos judeus (...) os judeus são responsáveis por todas as
guerras do mundo.
(Jornal O Globo, 24/07/2006)
Como todos ficaram indignados com o que o ator disse aos policiais, no
momento da prisão, depois da situação embaraçosa, ele declara:
Não há desculpas nem deve haver qualquer tolerância para
alguém que expressa algum comentário anti-semita.
(Jornal O Globo, 30/07/2006)
Neste exemplo, podemos constatar que consciente de que sua tentativa de
se desculpar seria um fracasso, por não haver perdão para o que disse devido a
sua gravidade (a questão da discriminação e da sua identidade de ator), Mel
Gibson decide assumir a culpa, através de uma formulação indireta em que não
reconhece o erro, como também declara dever ser punido pelo delito cometido.
C- L1 tenta remediar: ao perceber a gafe cometida, o gafista procura reconstruir
a sua face e/ou a da sua vítima. Vejamos um relato em que a gafista, na tentativa
de reparar o dano causado, compromete-se mais, como no caso em que o
enunciado apresenta alguma alusão preconceituosa com relação à opção sexual
de alguém.
Num colégio, na hora do intervalo, uma professora vê um ex-aluno
homossexual conversando com um belo rapaz, também homossexual . Admirada,
diz para a inspetora:
77
O T. arrumou um companheiro muito bonito. Que pena! Tão
bonito e homossexual.
A inspetora sem jeito diz:
É meu filho!
Ai, perdão G., mas eu não sabia que tinha um filho gay.
(O episódio ocorreu no 23/11/2005, num colégio público do RJ)
Ao proferir estes enunciados “Que pena! Tão bonito e homossexual”, cujo
valor seria de lamento e de descontentamento, L1, a professora, comete uma
gafe devido à inobservância com relação à opção sexual de um rapaz, filho da
inspetora. Mas ela só a percebe, quando a sua interlocutora lhe revela a
identidade do rapaz “É meu filho” e, por conseqüência, a sua, de mãe do rapaz.
Percebendo o quanto foi insultuosa, a professora tenta mudar de footing, a fim de
negociar a sua gafe (através do pedido de desculpa) para salvar a sua face. Para
isso, no primeiro segmento da sua intervenção, ela realiza uma formulação direta
de pedido de desculpa através de uma expressão performativa “Ai, perdão G”.
Entretanto, a troca não é reparadora, porque, ao tentar se retratar, ela torna a
situação mais embaraçosa no segmento seguinte: “mas eu não sabia que tinha
um filho gay”, cuja força ilocutória seria de perplexidade com o fato de a inspetora
ter um filho homossexual, deixando subentendido o seu preconceito com relação
à opção sexual do rapaz. Assim, constatamos que a manobra adotada pela
professora foi um fracasso, pois ela deixou explícito o seu preconceito ao declarar
não saber a opção sexual do filho da inspetora.
Nesse exemplo, a expressão da opinião a respeito de um tema polêmico
na sociedade (opção sexual), na presença de indivíduos, cuja identidade está
relacionada de alguma forma ao que é dito ou a quem se refere, pode caracterizar
uma gafe. E, dependendo do teor do conteúdo e da relação estabelecida entre os
participantes, a gafe pode ser irreversível e pode ter como conseqüência perda do
emprego (como no caso da atriz Cristina Prochaska, ver página 70, ou do
governador de Nova Iorque, Eliot Spitzer
60
) ou até prisão (por exemplo, o caso de
discriminação racial).
A partir desses exemplos, ratificamos a classificação de gafista proposta
60
É divulgado pela imprensa, no dia 13/02/2008, que o governador de Nona Iorque, Eliot Spitzer, tem
envolvimento com uma rede de prostituição. No dia 10/03/2008, ele confessa que era o cliente número 9 e
pede desculpas: “violei qualquer senso de certo e errado”. Depois, no dia 17/03/2008, anuncia a renúncia em
uma coletiva de imprensa “Eu não posso deixar que erros privados interfiram no trabalho público” E, ao
pedir desculpas, revela ser um “comportamento inaceitável”.
78
por Cláudia Matarazzo (1996): o que disfarça, o que assume e o que tenta
remediar. Como a autora (e nem outro estudioso) ainda não propôs uma para a
posição assumida pelos outros participantes, cabe ressaltar que apresentaremos
a reação dos participantes oficiais e não-oficiais a seguir, a partir do uso de
estratégias, como: recurso lingüístico e/ou não-lingüístico.
2.4.2- POSIÇÃO ASSUMIDA POR L2
A- L2 não intervém: diante da gafe cometida por L1, através da qual torna L2
sua vítima, este não intervém, disfarça, por algum motivo (não sabe o que dizer
ou não a percebe). Para ilustrar este caso, escolhemos o seguinte exemplo:
No primeiro dia da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao
Reino Unido… O tapa gentil dado por Lula no peito do primeiro
ministro Tony Blair, na chegada à sede do Regimento Real de
Cavalaria.
(Jornal O Globo, 08/03/2006).
Neste exemplo, observamos que há uma divergência atitudinal por parte do
presidente Lula, pois ele infringe uma das normas de etiqueta inglesa, ao dar um
tapa no primeiro ministro em forma de cumprimento. Mas, apesar da inadequação
do ato realizado pelo seu interlocutor, e também da formalidade exigida pela
interação em curso, Tony Blair não intervém.
B- L2 intervém através de recurso lingüístico: ao perceber a gafe cometida por
L1, L2 intervém, a fim de demonstrar-lhe que a observou. Vejamos o exemplo a
seguir em que, no começo de uma peça, Andréa Beltrão é entrevistada por uma
repórter:
Você veio prestigiar a atriz?
Ai, não me pergunta isso! Eu dirijo o espetáculo.
(Jornal O Globo, 13/07/2007).
Nesta situação comunicativa, observamos que Andréa Beltrão, atriz e
diretora do espetáculo, intervém, não só para demonstrar o seu
descontentamento com a falta de conhecimento da repórter, como também para
repreendê-la, pois devido a sua identidade (seu status de repórter , o seu papel
79
social lhe exige conhecimento do assunto a ser tratado.
Ao selecionarmos o corpus, encontramos exemplos em que, na tentativa
de auxiliar o gafista a amenizar a situação embaraçosa, L2 comete uma gafe
também, tornando-a mais conflituosa. Para ilustrar esta questão, vejamos o que
ocorreu com o presidente francês Nicolas Sarkozy.
As pernas cambaleavam e a expressão, nitidamente mais leve,
era a de quem se segurava para não soltar uma gargalhada. Foi
dessa forma que o presidente da França, Nicolas Sarkozy, se
apresentou, atrasado, para dar uma entrevista coletiva, semana
passada, durante o encontro do G 8. O jeito extrovertido do
presidente surpreendeu os jornalistas e fez o apresentador belga
Eric Boever, do canal RTBF, dizer ao vivo que aparentemente,
ele bebeu mais do que água.
O mal-estar foi tão grande que o apresentador belga pediu
desculpas pelo comentário.
Obviamente, não queria ofender os franceses, até porque
também sou francês por parte de mãe. Não imaginava que o
assunto fosse tomar proporções tão gigantescas.
(Jornal O Globo, 14/07/2007)
No exemplo acima, percebemos que o comportamento não-verbal (chegar
atrasado, que nas regras de conduta dos franceses é considerado uma grande
falta de respeito para com quem o espera; e a sua fisionomia) do presidente é
considerado uma gafe. E essa atitude foi a responsável pelo comentário do
apresentador: “aparentemente, ele bebeu mais do que água”, em que sugere que
Sarkozy estivesse bêbado. Essa inferência provocou um grande embaraço
naquele momento, comprometendo a face de ambos (do presidente e do
apresentador, que no seu status não deveria emitir tal opinião a respeito de
alguém, ainda mais daquela hierarquia: chefe de Estado). Assim, observamos
que, ao perceber a gafe de L1, o presidente, L2, o apresentador, comete uma
gafe também. Como o seu efeito foi devastador, tentou mudar de footing,
retratando-se, ao realizar indiretamente um pedido de desculpas através de uma
justificativa.
Cabe ressaltar que se o mesmo enunciado de L2 fosse proferido em outra
situação comunicativa (interação privada e relação simétrica, por exemplo, um
churrasco entre amigos), não seria considerado uma gafe, mas sim uma gozação,
pois trata-se de “situações em que o comportamento é dominado pela liberdade
decorrente da suspensão temporária das regras de uma hierarquização
80
repressora”. (DAMATTA, 1997, p. 49).
No corpus, encontramos também casos em que L2 intervém através de
recurso lingüístico para proteger a face de L1, mas sem que este perceba que
está cometendo uma gafe. Vejamos o exemplo a seguir relatado por um amigo
comissário de bordo:
outro dia, num vôo da Tam (Nova Iorque-Rio, um cheiro ruim começou a
incomodar a classe turística. Nós fomos chamados para descobrir o que
era e percebemos que era o chulé de um dos passageiros. Para não
constrangê-lo, decidimos pedir pelo sistema de som para todos calçarem
os sapatos. (fato relatado em março de 2008)
C- L2 intervém através de recurso não-lingüístico: ao notar o deslize cometido
por L1, L2 sinaliza sua insatisfação a partir do comportamento não-verbal, como
foi a atitude da rainha da Inglaterra, Elizabeth II, diante da divergência atitudinal
do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, numa recepção em
comemoração à visita da rainha à Casa Branca (ver anexo 8).
Ao dar as boas-vindas à rainha Elizabeth II, o presidente
Bush tropeçou mais uma vez nas palavras:
A senhora conhece bem esta nação. Já jantou com dez
presidentes. Ajudou nossa nação a celebrar o bicentenário em mil
setecentos e… em 1976.
Bush olhou-a embaraçado, enquanto a rainha devolvia o
olhar.
Ela me deu aquele olhar que só uma mãe lança ao filho,
comentou Bush.
(Jornal O Globo, 08/05/2007)
Nesta situação interlocutiva, percebemos que o presidente Bush comete
uma gafe quando sugere que a rainha tivesse mais de 200 anos “ajudou nossa
nação a celebrar o bicentenário em mil setecentos e…”, e ao percebê-la,
imediatamente, a repara: “1976”. E, ao dirigir-se à rainha, nota que esta, através
de um recurso não-lingüístico (o olhar), sinaliza o seu descontentamento. Diante
da sua reação, Bush intervém: “Ela me deu aquele olhar que só uma mãe lança
ao filho”. Mas a sua enunciação não é reparadora. Ele retoma a palavra para
comentar o olhar da rainha (ele o compara com o de uma mãe no momento em
que censura o filho), mas não tenta se retratar.
81
D- L2 intervém através de recurso lingüístico e de recurso não-lingüístico:
ao ser interpelada por L1, L2 comete uma gafe ao reagir a partir da realização de
um comportamento paraverbal (riso) e em seguida de um verbal, como ocorreu no
exemplo da funkeira Tati Quebra Barraco (ver exemplo na página 57).
2.4.3- POSIÇÃO ASSUMIDA POR L3:
A- L3 intervém através de recurso lingüístico: ao perceber que L1 se
transformou num gafista, L3 intervém a fim de auxiliá-lo ou de repreendê-lo.
Vejamos primeiro, um caso em que, ao perceber a gafe cometida por L1 ou por
L2, L3 intervém a fim de que o gafista se retrate. Um exemplo que ilustra este
caso foi a declaração do Papa Bento XVI sobre a evangelização da América
Latina, durante sua viagem ao Brasil:
Não representou uma alienação das culturas pré-
colombianas, nem a imposição de uma cultura estranha.
(Jornal O Globo, 14/05/2007)
Ao saber da declaração do Papa, o presidente da Venezuela, Hugo
Chávez, indignado, “toma uma posição e entra no barulho” (GOFFMAN, 1975,
p. 194), exigindo que ele se retratasse perante o povo da América Latina:
Sua Santidade, peça desculpas, porque houve um verdadeiro
genocídio aqui, holocausto pior do que o da Segunda Guerra
Mundial.
(Jornal O Globo, 18/05/2007)
Dez dias depois de provocar esta polêmica e irritação entre líderes e
indígenas latino-americanos, o Papa Bento XVI realiza um pedido de desculpa
através de uma formulação indireta de justificativa:
o é possível esquecer o sofrimento e as injustiças infligidas
pelos colonizadores à população indígena, cujos direitos humanos
fundamentais foram constantemente atropelados.
(Jornal O Globo, 24/05/2007)
Nesta situação interlocutiva, constatamos que L3, Hugo Chávez, ao
perceber a gafe cometida por L1, Papa Bento XVI, intervém para que ele se
82
retrate devido à gravidade da sua declaração a respeito da evangelização da
América Latina.
No corpus selecionado, encontramos quatro casos em que ao ouvir, ao ler
ou ao presenciar a ação inapropriada praticada por um dos participantes de uma
situação interlocutiva, L3 a publica ou a divulga, levando o responsável pelo
deslize a tornar-se um gafista.
61
Vejamos o exemplo a seguir em que, ao saber da
notícia de que a tragédia do AIRBUS da TAM,
62
em Congonhas, ocorreu por falha
mecânica, o petista Marco Aurélio, assessor especial do presidente da República
faz gestos obscenos, no seu gabinete, acompanhado por seu assessor Bruno
Garcia.
(Jornal O Globo, 19/07/2007)
O flagrante foi feito pela Rede Globo e veiculado pelo “Jornal Nacional”, no
dia 19/07/2007. O gesto provocou indignação em toda a sociedade,
principalmente, em parentes de vítimas do AIRBUS da TAM. Um dia depois do
flagrante, Marcos Aurélio muda de footing, assume o deslize cometido ao pedir
desculpa pelo seu comportamento não-verbal através da realização de uma
formulação indireta de descrição de estado de espírito (a comemoração, a
61
Os exe mplos citados anteriormente foram: o do policial (ver página 36) e do presidente Lula (ver página
74). Há também dois relatos posteriores: um de Nana Caymmi, na página 84; e outro, de Renan Calheiros, na
página 94.
62
Um avião da TAM, com 187 tripulantes, a bordo derrapou na pista do aeroporto de Congonhas, na Zona
Sul de São Paulo, atravessou a avenida Washington Luís e bateu em um prédio de carga e descarga da
companhia aérea. A aeronave, um AIRBUS A 320-233, vôo JJ 3054, partiu de Porto Alegre, às 17h16min de
terça-feira, 17/07/2007, e chegou a São Paulo às 18h45min. O acidente é considerado o maior da aviação
83
felicidade expressa com o fato de a informação, supostamente, aliviar a culpa do
governo na queda do AIRBUS A-320 da TAM):
É um sentimento de indignação.
(Jornal O Globo, 21/07/2007)
Quanto à estratégia de uso de recurso não-lingüístico, não encontramos
nenhuma ocorrência no corpus selecionado.
2.4.4- POSIÇÃO ASSUMIDA POR X
A- X não intervém: diante da gafe cometida, este não intervém por alguma razão
(não a percebeu ou não sabe como proceder).
Ao explicar, numa entrevista, por que aderiu à dieta de South
Beach Miguel Falabela diz:
Me olhava no espelho e parecia que estava vendo o Fabio
Sabag.
Um horror!
(Jornal O Globo, 23/10/2005)
Nesta situação comunicativa de entrevista, Miguel Falabela engendra uma
gafe ao se comparar com um colega de trabalho, Fabio Sabag, no caso X, com
uma expressão “me olhava no espelho e parecia que... um horror!”, cujo valor
ilocutório é insultuoso pelo fato de estar implícito tê-lo chamado de gordo. Neste
exemplo, podemos observar que a grosseria, a impolidez de Falabela de se
comparar ao colega e demonstrar seu descontentamento “um horror”. Ela foi tão
depreciativa (devido à identidade dos indivíduos envolvidos, ao contexto, ao
enquadre e ao tipo de interação e de relação) que caracterizou-se numa gafe, em
que houve o comprometimento da face de quem falou e a de com quem se
comparou. Mas, nesse caso, X não interveio.
B- X intervém através de recurso lingüístico: quando o gafista declara algo
depreciativo a respeito de alguém, no caso X, este intervém a fim de demonstrar o
seu descontentamento. Por exemplo:
Por exemplo: o jornalista Osias Wurman escreveu um artigo intitulado “No
brasileira.
84
telhado”,
63
no jornal O Globo (14/01/2008), em que cita uma declaração da
cantora brasileira Nana Caymmi à revista Quem Acontece sobre como seu filho
consegue dinheiro para comprar drogas, por causa de uma “distorção histórica”
contra a conduta dos judeus.
É um inferno. Você não faz idéia de como é o meu drama.
Fico me perguntando por que preciso sofrer tanto com isso. Não
sou judia, não crucifiquei Jesus.
Ao citar esse fragmento da entrevista da cantora Nana Caymmi,
o jornalista, enquanto L3, demonstra não só a sua perplexidade com a gafe
cometida por ela (“outra distorção histórica relevante foi produzida por Nana
Caymmi, numa afirmação grave e preconceituosa”), como também a esclarece:
Dois sentimentos nos atingem: solidariedade e repúdio.
Solidariedade por uma mãe que sofre ao ver o filho dependente de
drogas; repúdio por debitar aos judeus o genocídio e justificar
sofrimento para inocentes. Sugiro que Nana procure um religioso
católico que possa informá-la sobre a decisão do Concílio de 1965
e a Nostra Aetate, em que a igreja corrige uma injustiça contra os
judeus […] Talvez a verdade lhe faça bem, neste momento de
sofrimento […] Nós judeus, vivemos há dois mil anos equilibrando-
nos contra as pedras que nos atiram injusta e indignamente, como
um telhado!
(Jornal O Globo, 14/01/2008)
Ao ler esse artigo, X, a cantora, muda de footing (assume a gafe através do
reconhecimento do seu erro) ao escrever um e-mail para o jornal O Globo, no
mesmo dia em que o artigo foi publicado, para se retratar através de um pedido
de desculpa indireto, em que reconhece o erro e o justifica:
… foi um episódio infeliz, que não corresponde aos meus
profundos sentimentos. Eu não tive a menor intenção de ofender a
comunidade judaica…
(Jornal O Globo, 15/01/20008)
Por fim, cabe ressaltar que, no corpus selecionado, não encontramos
nenhum exemplo de gafes não-verbais e/ou paraverbais, consciente, aberta e
com intervenção reparadora.
Ao observar o corpus selecionado, encontramos um episódio de gafe em
63
No artigo “No telhado”, o jornalista Osias Wurman discorre sobre duas distorções históricas cometidas por
85
que, ao intervir através de um recurso lingüístico, X torna-se um gafista. Por
exemplo: numa videoconferência com os jogadores da seleção brasileira de
futebol, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acabou provocando um
embaraço quando perguntou ao técnico de futebol Carlos Alberto Parreira qual
era o peso do jogador Ronaldo. Este, que não estava presente na
videoconferência, ao saber da pergunta, se sentiu ofendido e, num desabafo,
respondeu:
Todo mundo diz que ele bebe pra caramba. Assim como é
mentira que estou gordo, deve ser mentira que ele bebe pra
caramba.
(Jornal O Globo, 10/06/2006)
Na conversa com a seleção brasileira, ao dialogar com o técnico da seleção,
o presidente Lula faz alusão ao peso de Ronaldo (por causa do seguinte
pressuposto: na época o jogador estava fora de forma), suscitando assim no
jogador uma reação negativa (agressiva). Este, em resposta ao presidente, faz
uma declaração, na qual deixa implícito que o presidente seria um bêbado,
tornando-se um gafista. Verificamos que ambos têm a sua face ameaçada por
caracterizar um ao outro de forma depreciativa e por causa de seu status social
(um, presidente da República e o outro, um jogador conhecido mundialmente).
Quanto ao fator identidade, podemos dizer que a gafe cometida pelo presidente é
de menor intensidade se comparada à do jogador. Se, por um lado, o presidente
Lula infringiu uma das regras de polidez quando demonstrou falta de tato ao se
referir a um problema de conhecimento público enfrentado pelo jogador (tanto que
foi eleito o jogador mais gordo da história do futebol, numa eleição realizada pelo
jornal The Sun, em 2008), por outro lado, o jogador menciona uma característica
do presidente (no caso, ingerir muita bebida alcoólica), que não é de domínio
público. E, através dessa enunciação, além do fato de torná-la pública, Ronaldo
viola também uma das regras de polidez: tecer comentários de natureza
comprometedora, ainda mais publicamente e em relação a alguém
hierarquicamente superior e de grande visibilidade social.
No que se refere ao modo como os participantes gerenciam a gafe,
constatamos que há dois grupos de gerenciamento de gafe: o com intervenção
(quando o gafista tenta restabelecer a harmonia interacional) e o sem intervenção
duas personalidades brasileiras: Frei Betto e a cantora Nana Caymmi.
86
(em que não sabendo como sair da situação embaraçosa ou temendo ameaçar
mais a face dos envolvidos, não interfere). O grupo das gafes com intervenção se
subdivide em dois: o da reparadora, no qual, ao mudar de footing, o gafista salva
a sua face; e o da não-reparadora, na qual o gafista, apesar da tentativa de mudar
de posição, às vezes, ainda a agrava mais, comprometendo completamente a sua
face.
Também verificamos, à luz dos elementos interacionais, as seguintes fases
constituintes da gafe:
1- um desequilíbrio interacional: uma inobservância na ação causada pelo
conjunto ou por um desses fatores: e tipo de relação e de interação; identidade
(status e papel social), contexto e enquadre;
2- percepção e reparação, que se dividem nestes seis grupos: o locutor não
percebe, o locutor percebe e repara, o locutor percebe e não-repara (no caso
deste último pode haver sobreposição de gafes, se não percebe que cometeu
a primeira gafe), o interlocutor não percebe, o interlocutor percebe e coopera e
o interlocutor percebe e não coopera.
3- as formas de reparação que, por sua vez, possuem quatro funções:
3.1- proteger a face do (a) gafista;
3.2- proteger a face do interlocutor;
3.3- proteger a face de ambos;
3.4- proteger a face de um terceiro (o gafista ou o alvo da gafe) que não se
encontra presente na interação.
Dessa forma, a relação intersubjetiva característica da estrutura
conversacional é a de que, quer haja reparação ou não, uma vez
o constrangimento instaurado na interação, por mais que se tente desfazê-lo,
o outro poderá ficar com uma impressão negativa da ação praticada. Há casos
em que o valor ilocutório é tão depreciativo que acarreta conflito, a ponto de
o interlocutor, por se sentir ofendido, intervir a fim de se defender, agredindo
verbal ou fisicamente o gafista.
87
Buscamos assim demonstrar como os participantes se comportam diante
de uma gafe engendrada por algum deles. Com isso, ratificamos a classificação
dos gafistas proposta por Matarazzo (1996): os que disfarçam, os que assumem e
os que tentam remediar e propomos uma para os demais envolvidos na situação
comunicativa.
88
3- TIPOLOGIA E TRATAMENTO DE GAFES
Neste capítulo, pretendemos examinar algumas das 385 gafes do corpus
selecionado, a partir do arcabouço teórico adotado acerca dos diversos aspectos
tratados (causa, efeito, tratamento e relação com outros fenômenos discursivos) e
ilustrados para apresentar de modo sistemático a tipologia de gafe, e de seu
tratamento, proposta no decorrer desta pesquisa e a sua ocorrência. Para isso, os
episódios de gafe serão apresentados da seguinte forma: grupos das gafes
verbais, inconscientes, fechadas e cujo gerenciamento é sem intervenção, e
acompanhados do número de episódios que encontramos de acordo com cada
classificação. Assim, refletiremos sobre as ações responsáveis pelo surgimento
das gafes e verificaremos em que proporção ocorrem.
3.1- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS E SEM INTERVENÇÃO
Do corpus selecionado, encontramos 146 episódios de gafes que se
inserem neste grupo.
Vejamos o seguinte episódio de gafe:
Na África, ao externar sua surpresa com a limpeza da capital da Namíbia
(Windhoek), Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil, num pronunciamento,
diz:
Quem chega a Windhoek não parece estar num país africano.
(Jornal O Globo, 27/09/2003)
No enquadre pronunciamento, cuja relação é assimétrica (entre chefes de
Estado e o povo africano), o presidente Lula, após perceber a limpeza da cidade,
surpreende-se e faz um comentário constrangedor (devido à divergência
atitudinal) em relação à imagem do continente. No seu enunciado estaria implícito
um pensamento vigente no imaginário social “de que pobre é sujo”. Podemos
89
dizer que é a violação de uma das normas de polidez contida nesta declaração a
responsável pelo surgimento da gafe. E o seu efeito foi devastador por causa de
um fator identitário: o seu status social (ser líder de um país subdesenvolvido e
sua imagem no mundo ser a de presidente de um país em que a maioria da
população tem baixo poder aquisitivo), do contexto em que estava inserido
(Windhoek, capital da Namíbia, na África) e do enquadre (pronunciamento). A
imagem de preconceituoso que o enunciador Lula constrói na sua prática
discursiva molda assim a sua identidade social (MOITA LOPES, 2006), daquele
que parece ter esquecido sua origem, e a conseqüência de tal ação é a
destruição da sua face e a do povo africano. De acordo com as regras de convívio
social, se o enunciado fosse produzido por outro cidadão, que não tivesse as suas
características, seu status e papel social e ocorresse em outro contexto,
enquadre, interação e relação, o efeito provavelmente não seria tão ofensivo.
3.2- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS E COM INTERVENÇÃO
REPARADORA
Dos episódios de gafe selecionados, encontramos 23 ocorrências
constituintes deste grupo.
Por exemplo:
Num domingo, no programa do Faustão, ao conversar sobre
relacionamento, o cantor Fabio Junior diz a Lucimara Parise, diretora do programa
“Domingão do Faustão”:
Tenho um amigo.
O apresentador Faustão o interrompe:
Ela está noiva. Quer arrumar outro noivo?
O cantor, sem jeito, responde:
Está? Caramba!!! Desculpe-me!!!
Ao ouvi-lo, Lucimara ri.
(Programa “Domingão do Faustão”,
64
exibido em 26/11/2005)
No enquadre entrevista, quando L2, o cantor Fábio Junior, dirige a palavra
a uma participante oficial, Lucimara Parise, comete uma gafe devido à falta de
conhecimento do fato de ela ser noiva. Ao perceber o deslize de L2, L1, o
64
O programa “Domingão do Faustão” é exibido no canal aberto Rede Globo, aos domingos, das 15 h às 21
horas.
90
apresentador Fausto Silva, intervém através destes atos de linguagem diretos
“Ela está noiva. Quer arrumar outro noivo?”, a fim de informá-lo. No momento em
que o cantor, enquanto gafista, se dá conta da impropriedade do seu comentário,
interpela o apresentador através de atos de linguagem verbais: o primeiro,
“Está?”, em que demonstra surpresa com o fato de saber o estado civil de
Lucimara; o segundo, ao utilizar a interjeição Caramba!!!” equivalente a “como fui
capaz de fazer tal insinuação? Que vergonha!”; e “desculpe-me!!!”, o cantor muda
de footing, na tentativa de remediar a situação embaraçosa, assumindo a gafe. E
o terceiro, o cantor utiliza uma estratégia de polidez com L3, Lucimara, a partir da
formulação direta de perdão “Desculpe-me”. Esta, por sua vez, utiliza a linguagem
paraverbal (riso, cujo valor ilocutório seria “tudo bem, está desculpado”) para
sinalizar a aceitação do pedido de desculpa do cantor. A partir desse
comportamento paraverbal de L3, observamos que a gafe cometida é reparada e,
por conseqüência, é restabelecida a harmonia interacional. E também
verificamos nesse par adjacente que um dos participantes, no caso L1, o
apresentador Fausto Silva, presente na situação interlocutiva, pôde empregar
“práticas corretivas” (GOFFMAN, 1975, p. 22), através do comportamento verbal,
para que o gafista percebesse a gafe cometida e tentasse remediá-la (como fez o
cantor), por causa do desconhecimento de uma informação sobre L3.
3.3- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS COM INTERVENÇÃO
NÃO-REPARADORA
Ao analisar o corpus, encontramos 36 de gafes constituintes deste grupo.
Vejamos o episódio de gafe a seguir:
Ao chegar a Salvador para uma série de shows, o cantor e compositor
Chico Buarque foi comer o famoso acarajé de Cira, considerado um dos melhores
da cidade. A vendedora olhou, olhou e mandou:
O senhor é Caetano, né?
No que Chico respondeu:
Não. Sou Gil.
Deixa disso. É Caetano.
(Jornal O Globo , 16/03/2007)
91
Na interação entre vendedora e cliente, cuja relação estabelecida é de
poder, verificamos que há um problema relativo à identidade do cantor. No par
adjacente, a vendedora Cira chama Chico Buarque de Caetano. Ao realizar um
ato de linguagem verbal, cujo valor ilocutório seria sobreposto de questionamento
e de afirmação “O senhor é Caetano, né?”, Cira comete uma gafe de
identificação, por desconhecer quem são estes cantores e, por conseqüência, não
saber distingui-los. Ao ouvir o enunciado, o cantor retruca “não. Sou Gil”, negando
ser Caetano e afirmando ser outro cantor, no caso, Gilberto Gil, não revelando
assim a sua identidade (provavelmente para testar a reação de sua interlocutora).
Ao retomar a palavra, Cira não muda de footing, continuando, então, a considerá-
lo Caetano “Deixa disso. É Caetano”. Com essa enunciação, percebemos que a
vendedora persiste na gafe.
A partir desse episódio, constatamos que, às vezes, como o/a gafista não
percebe o desvio cometido, pode agravá-lo mais ainda.
No que se refere ao seu agravamento, há casos em que na tentativa de
reparar o deslize cometido, o indivíduo torna a situação ainda mais embaraçosa
devido a um fator cultural (viola as regras de polidez), como no exemplo do
programa “O melhor do Brasil” (já mencionado nas páginas 70 e 71).
3.4- GAFES NÃO-VERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS, SEM
INTERVENÇÃO
Do corpus selecionado, encontramos 62 episódios de gafes que se inserem
neste grupo.
Vejamos o exemplo abaixo:
Um casamento de bacanas, fora do Rio, dias atrás, acabou em
briga. Já no fim da festa, o pai da noiva foi tomar satisfação com
um convidado que havia cantado sua mulher. O rapaz , sem saber
de quem se tratava, deu um soco no anfitrião.
(Jornal O Globo, 25/08/2007)
No enquadre festa de casamento, observamos que o comportamento não-
verbal do convidado (dar um soco no anfitrião) caracteriza uma gafe, por causa do
seu desconhecimento da identidade de L1 e da sua inobservância a uma regra de
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polidez (agredir alguém durante uma festa de casamento). Afinal, o ritual
casamento exige cooperação dos indivíduos, que devem contribuir para
a harmonia interacional, e o anfitrião, por sua vez, está numa relação de poder
diante dos convidados, o que requer destes, respeito.
A ação não-verbal praticada dá pista à vítima, no caso o anfitrião, de que,
provavelmente, o gafista se tratasse de um intruso. Essa inferência compromete
ainda mais a face do gafista. Verificamos assim, a partir desse exemplo, que
devemos respeitar as regras de convívio social (como, os rituais próprios de cada
enquadre), a fim de evitar o surgimento de gafes.
3.5- GAFES NÃO-VERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS COM
INTERVENÇÃO REPARADORA
Dos episódios de gafe selecionados, encontramos 15 ocorrências
constituintes deste grupo.
Por exemplo:
O jornal O Globo noticiou que o cantor Supla apareceu no dia 18/05/2007,
num programa da MTV, usando uma camiseta com uma suástica no peito.
Segundo o jornal,
a imagem que chocou, não combina com o perfil democrático de
seus pais, Eduardo e Marta Suplicy e nem mesmo com ele.
(Jornal O Globo, 19/05/2007).
Depois da indignação do público e da repercussão na mídia, o roqueiro
concedeu uma entrevista ao jornal a fim de se retratar:
Repudio qualquer ideologia nazista. Inadvertidamente, usei uma
camiseta com desenho do ícone punk Sid Vicious, e dele consta a
suástica. Tenho vários amigos judeus. Peço desculpas.
(Jornal O Globo, 21/05/2007)
No enquadre entrevista, cuja relação é de poder (assimétrica: entrevistador
e entrevistado), Supla comete uma gafe não-verbal ao se apresentar usando uma
blusa com o símbolo do nazismo. Devido a essa peça de roupa, ao contexto
(programa da MTV), ao enquadre (entrevista) e a sua identidade (roqueiro, filho
de dois políticos: Marta Suplicy e de Eduardo Suplicy), ele destrói não só a sua
93
imagem, como também compromete a de seus pais, dado o seu status social
(a posição política). Ao perceber a impropriedade do desenho da sua vestimenta,
a partir da repercussão na mídia, Supla faz uma declaração a fim de se desculpar
(inicialmente, realiza uma formulação indireta através de justificativa
“repudio...vários amigos judeus” e, em seguida, uma direta, com a expressão
performativa “peço desculpas”), pois os atos “potencialmente ofensivos podem ser
reparados por seu autor por meio de explicações e de desculpas”. (GOFFMAN,
1981b, p. 27).
65
3.6- GAFES VERBAIS E PARAVERBAIS, INCONSCIENTES, FECHADAS E
SEM INTERVENÇÃO
Ao analisar o corpus, encontramos 42 de gafes constituintes deste grupo.
Vejamos este relato de gafe:
Numa recepção na casa de uma artista plástica, uma mulher com sotaque
caipira, que não era convidada, L1, diante de uma pintura se dirige à anfitriã, L2,
sem saber que ela é a dona da casa e a autora da obra em exposição. A mulher
faz a seguinte declaração:
L1: Não estou vendo bem.
L2: Se afasta um pouco, daqui dá para ver bem, pois o quadro
se trata de uma pintura modernista.
L1: Puxa, dá pra ver melhor. Mas esse pessoal que faz isso
deve ser louco. Pois não se entende nada.
(Fato narrado por uma amiga em setembro de 2001)
No contexto casa de uma artista plástica, cujo enquadre é uma recepção
na qual a relação é assimétrica (entre a pintora-anfitriã e uma mulher não
convidada), acontece uma gafe provocada pelo desconhecimento da identidade
da anfitriã. Ao proferir este enunciado “Puxa, dá pra ver melhor. Mas esse pessoal
que faz isso deve ser louco. Pois não se entende nada”, cujo valor seria
depreciativo, porque ao não identificar a pintora e ainda caracterizá-la de modo
negativo “Mas esse pessoal... louco… Pois não se entende nada”, a mulher
destrói a sua face e compromete a da pintora. Ao interagir com a pintora, esta
65
Nossa tradução.
94
percebe que se trata de uma “penetra”. Observamos então que, muitas vezes,
não é só o conteúdo do verbal e do não-verbal que é responsável pelo surgimento
da gafe, mas também o paraverbal, que dependendo da situação interlocutiva
pode denunciar um participante não-oficial, no caso, um intruso, penetra.
3.7- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, ABERTAS E SEM INTERVENÇÃO
Do corpus selecionado, encontramos 102 episódios de gafes que se
inserem neste grupo.
Por exemplo, este episódio de gafe:
Ao anunciar a aprovação de um dos três nomes ao cargo de embaixador,
o então presidente do Senado, Renan Calheiros, em vez de dizer Sette-Câmara
para o Paquistão, disse Sette-Costas.
Um jornalista do jornal O Globo, ao relatar o episódio, diz:
Quem tem sete costas é ele, Renan. Outro, no seu lugar, já teria
caído da presidência do Senado.
(Jornal O Globo, 30/06/2007)
No enquadre discurso político, L1, Renan Calheiros, comete um ato falho
que desencadeia uma gafe, pois, ao trocar o vocábulo “Câmara” por “costas”,
Renan desestabiliza a interação. A gafe, ao ser percebida por L3, um jornalista do
jornal O Globo, não só é publicada, como também ele, enquanto participante
oficial não-endereçado, emite a sua opinião a respeito do caso: “Quem tem sete
costas é ele, Renan. Outro, no seu lugar, já teria caído da presidência do
Senado”. Nesta tomada de palavra, L3 demonstra descontentamento com o
presidente do Senado, referindo-se ao escândalo em que o mesmo estava
envolvido: receber dinheiro de empreiteiras para custear as despesas com a filha
que teve fora do casamento.
A partir desse exemplo percebemos que, à vezes, a troca de palavras ou o
uso inadequado pode provocar não só constrangimento nos envolvidos, como
também pode denegrir a imagem do indivíduo a quem o enunciado se refere. No
caso citado, a troca por Costas e o seu nome anterior “Sette” nos remete à idéia
de proteção por causa da alusão à expressão da língua portuguesa “costas
95
quentes”, cujo significado é de alguém que comete um deslize, mas recebe a
proteção de um terceiro, que não lhe deixa acontecer nada, por mais grave que
seja a ação praticada. Devido a isso, o senador tem a sua face comprometida por
causa do efeito negativo sugerido: ser protegido de algum dos senadores. E,
Renan Calheiros, por sua vez, no seu status social, teve a sua face ainda mais
destruída, por conta da natureza do seu ato falho.
3.8- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, ABERTAS E COM INTERVENÇÃO
REPARADORA
Dos episódios de gafe selecionados, encontramos 19 ocorrências
constituintes deste grupo.
Ao longo do preparo de uma torta salgada, Julio, o cozinheiro convidado,
relata o seu interesse pela culinária. Para isso, conta que seu pai era proprietário
de uma padaria e que levava os filhos para passar o dia no estabelecimento.
Neste período, ele acompanhava o preparo dos alimentos. No meio de seu relato,
Daniel Bork, o apresentador, o interpela:
Então, você se descobriu na profissão. E no sexo? Ainda está
com dúvidas?
Júlio, imediatamente, responde:
Que isso! Não fala isso! A patroa está em casa . Pega mal.
Ao perceber o descontentamento do cozinheiro, o apresentador
diz:
Pessoal, falo isso porque tenho intimidade, trabalhamos juntos
há muito tempo. Em seguida, Julio diz:
Tudo bem…
(Programa Bem família,
66
exibido em 16/01/2007).
No enquadre receita culinária, L2, Julio, relata seu interesse pela culinária.
Neste momento, L1, o apresentador do programa lhe faz duas perguntas: “E no
sexo? Ainda está com dúvidas?” que se transformam em gafe devido ao mal-
entendido provocado. Podemos dizer que estas perguntas seriam tentativas de
fazer uma “brincadeira” com o convidado, mas geraram um conflito interacional
(dado o efeito negativo em L2), porque ao ouvi-las, L2 repreende L1 através de
atos de linguagem, cujo valor ilocutório seria de surpresa e de descontentamento
66
O programa “Bem família” é apresentado por Daniel Bork no canal aberto, Bandeirantes, de segunda a
96
“Que isso! Não fala isso! A patroa está em casa. Pega mal”. Diante da reação de
L2, L1 muda de footing, na tentativa de restaurar a sua face, através do reparador
de justificativa “Pessoal, falo isso porque tenho intimidade, trabalhamos juntos há
muito tempo”. Neste momento, como as identidades estão “sujeitas a mudanças”
(MOITA LOPES, 2006), ao retomar a palavra para negociar o reparo da harmonia
interacional, L1 as reposiciona sugerindo que fez aquelas perguntas porque se
conhecem há muitos anos. L2, por sua vez, declara estar “tudo bem”. Sendo
assim, constatamos que L1 repara a gafe cometida e restabelece a harmonia
interacional.
Verificamos assim que, às vezes, o efeito de uma enunciação é diverso
da intenção de quem a proferiu. E quando é negativo, causa constrangimento nos
envolvidos e desestabiliza a interação, gerando a gafe que, dependendo da
negociação, pode ser reparadora ou não.
3.9- GAFES VERBAIS, INCONSCIENTES, ABERTAS E COM INTERVENÇÃO
O-REPARADORA
Ao analisar o corpus, encontramos 8 gafes constituintes deste grupo.
Por exemplo, no lançamento do Plano Nacional de Turismo, programa para
estimular o turismo com crédito consignado, no Palácio do Planalto, ao
perguntarem sobre o que recomenda a quem viaja e enfrenta atrasos e caos nos
aeroportos, a ministra do Turismo, Marta Suplicy, responde:
Relaxa e goza. Depois a gente esquece os transtornos.
(Jornal O Globo, 14/06/07)
O efeito deste ato falho cometido pela ministra contra os usuários de
aeroportos foi de desafeto porque eles, naquela época, passavam horas para
embarcar devido aos atrasos de vôos. Este fenômeno discursivo caracterizou
uma gafe por causa do comprometimento da sua face (no status de ministra do
turismo, o papel a ser exercido deveria demonstrar insatisfação com o
sexta-feira, de 09 horas às 11h 30 min.
97
atendimento nos aeroportos e não tolerância) e a dos usuários (que pagam a
passagem e, por isso, devem ser respeitados através do bom funcionamento do
serviço). Esta gafe teve uma enorme repercussão na mídia, em debates de
programas de televisão, matérias em jornais e opinião de artistas, dentre eles, o
cantor Wando que afirmou “as mulheres bem-amadas gostam de chegar cedo em
casa” (Jornal O Globo, 18/06/07 ver anexo 9). A reação indignada da população
levou a ministra a tentar mudar de footing, justificando-se horas depois da sua
declaração:
Minha intenção foi dizer aos jornalistas e à população que viajar
vale a pena, mesmo que os problemas nos aeroportos demorem
um pouco mais, apesar de todo o empenho do governo federal
para agilizar as soluções.
(Jornal O Globo, 18/06/07)
Mas devido a sua gravidade (provocada pela sua identidade: seu status
atual de ministra do turismo, seu papel social exige a tomada de uma medida para
solucionar o problema e não sugerir que a população aprenda a conviver com
atraso nos vôos, e a sua visibilidade social de ex-esposa do político Eduardo
Suplicy, de sexóloga
67
e de ex-prefeita de São Paulo), a sua tentativa de
retratação foi mal-sucedida, pois não convenceu a população, que continuou
criticando-a. Por isso, em entrevista ao programa de rádio “Bom-dia ministro”, da
Radiobrás, a ministra afirmou estar “arrasada” e voltou a pedir desculpas pela
frase “infeliz” (ver anexo 10):
Fiquei muito triste com a frase, arrasada, porque a frase não
condiz com o pensamento que eu tinha no momento, que era
exatamente de dizer para as pessoas não desistirem de viajar por
causa do que estava acontecendo nos aeroportos. Foi uma frase
infeliz, que me deixou tristíssima.
(Jornal O Globo, 17/06/2007)
Mesmo a ministra intervindo pela segunda vez, através de um pedido de
desculpa indireto de descrição de estado de espírito ”Fiquei muito triste com a
frase” e de justificativa “.. a frase não condiz com o pensamento que eu tinha no
momento...”, a gafe não foi retificada e nem amenizada. Os participantes oficiais
políticos, jornalistas e o povo brasileiro continuaram a considerar a frase
67
Marta Suplicy começou a carreira apresentando um quadro chamado “Comportamento sexual”, ,no
programa “TV Mulher”, da Rede Globo, de segunda à sexta-feira, de 1980 a 1986. E depois, de 1987 a 1988,
98
insultuosa. A conseqüência da sua divergência atitudinal foi o fato de ter ficado
caracterizada por esta enunciação e os indivíduos, por sua vez, continuarem a
fazer menção ao fato (ver anexo 11).
3.10- GAFES VERBAIS, CONSCIENTES, ABERTAS E SEM INTERVENÇÃO
Do corpus selecionado, encontramos 4 episódios de gafes que se inserem
neste grupo.
Vejamos este episódio de gafe:
No meio de um curso de etiqueta ministrado por Danuza Leão, na Casa do
Saber, um cursista pediu licença para lhe fazer uma pergunta:
Meio incômoda, meio desagradável: como é para você
envelhecer?
Danuza lhe respondeu:
Não sei.
(Jornal O Globo, 11/09/2007)
No contexto Casa do Saber e enquadre curso, cuja relação é assimétrica
(uma vez que Danuza Leão assume o status, naquele momento, de palestrante,
estabelecendo assim com os cursistas), um participante oficial endereçado
dirige-se à Danuza Leão para lhe fazer uma pergunta. Mas por causa das regras
de polidez instituídas socialmente (não se deve perguntar a idade de uma
mulher), que eram inclusive tema do encontro, o cursista usa uma medida
defensiva “meio incômoda” e “meio desagradável” antes da pergunta, a fim de
amenizar o sentido negativo (por ser considerada um insulto). Ao ouvir o
enunciado proferido por L2, L1, Danuza, restringe-se a dizer “não sei”, o que
demonstra descontentamento, supostamente porque L2 deixou implícito no seu
enunciado o fato de ela ser idosa. Neste momento, verificamos que L2 cometeu
uma gafe consciente (como sabia que o efeito poderia ser negativo, utilizou
desativadores). Como L2 supunha, o efeito do ato de linguagem direto “como é
para você envelhecer?” foi desfavorável. L1, para não constrangê-lo diante dos
outros alunos, de forma polida, diz apenas “não sei”, cujo significado seria “isso
não é pergunta que se faça, principalmente, a uma senhora” ou “não sou idosa,
na Manchete. Em 1999, na Bandeirante, o programa “Jogo aberto”.
99
como saberei?”.
Verificamos assim, a partir deste exemplo, que muitas vezes cometemos
gafe porque infringimos as regras de polidez, neste caso de etiqueta.
3.11- GAFES NÃO-VERBAIS, CONSCIENTES, ABERTAS E COM
INTERVENÇÃO NÃO- REPARADORA
Ao analisar o corpus, encontramos 1 de gafes constituintes deste grupo.
Vejamos o exemplo do roqueiro Marcelo Cardoso da banda Estradeiros que
se sentou na primeira fila para assistir a uma peça de teatro
com as pernas esticadas e colocou os pés no palco, exibindo o tênis,
bem ao lado de Marricone. “Você é um mal-educado, um bobo”,
gritou uma senhora, na saída. “Bobo, mas contente”, rebateu, nem
um pouco arrependido da atitude desrespeitosa. “Fiz porque achei
confortável, não estava atrapalhando ninguém”.
(Jornal O Globo, 07/05/2007)
Nesta situação interlocutiva, cuja relação é simétrica (interação entre dois
indivíduos da platéia: uma senhora e um roqueiro), verificamos que L1, a senhora,
ao proferir o enunciado “Você é um mal-educado, um bobo”, sua intenção era de
repreender o comportamento não-verbal de Marcelo. Este, por sua vez, ao ouvi-
la, toma a palavra e diz “Bobo, mas contente”, cujo significado seria de desprezo
pela opinião expressa da senhora a respeito de sua conduta e de confissão (em
que utiliza a ironia) equivalente a “sei que estava errado, mas estava com
vontade”; ou fiz, porque quis e ninguém tem nada a ver com isso”. Este
significado será evidenciado, logo em seguida, quando complementa: “Fiz porque
achei confortável, não estava atrapalhando ninguém”. Nestas duas intervenções
de L2, constatamos que o roqueiro Marcelo agrava ainda mais a gafe cometida,
pois esse comportamento verbal só ratificou o comportamento não-verbal
inadequado (esticar pernas e colocar os pés no palco). Com essas ações, ele
desrespeitou uma das regras de polidez de como comportar-se num teatro. Afinal,
a etiqueta vigente na nossa sociedade repudia tal conduta. Outra questão que
colaborou para a gravidade da gafe foi a sua identidade (status de roqueiro
indivíduo de visibilidade social , cujo papel não lhe permite praticar tais atos).
100
Constatamos assim que, ao intervir, L2 não repara a gafe não-verbal
cometida e ainda a agrava.
Por fim, cabe ressaltar que, no corpus selecionado, quanto ao tratamento,
não encontramos nenhum exemplo de gafe verbal, não-verbal e/ou paraverbal,
consciente, aberta e com intervenção reparadora. E dos tipos de gafe e de
tratamento descobertos, podemos representá-las graficamente assim:
GAFE VERBAL - NÃO-VERBAL PARAVERBAL
INCONSCIENTE FECHADA
CONSCIENTE ABERTA
COM INTERVENÇÃO REPARADORA
NÃOREPARADORA
SEM INTERVENÇÃO
101
4- CONCLUSÃO
No desenvolvimento desta pesquisa cujo objeto de estudo é a gafe,
investigamos os seus diferentes aspectos, como características, efeitos e a sua
relação com outros fenômenos discursivos, a partir do arcabouço teórico da
Sociolingüística Interacional.
Ao discorrer sobre a gafe à luz dessa teoria, ratificamos a hipótese de que
ela, uma ação voluntária ou involuntária e inadequada à situação comunicativa
(devido à inobservância de regras lingüísticas ou interativas determinadas
socialmente), desestabiliza o curso da interação e compromete a face de, pelo
menos, um dos envolvidos na situação interlocutiva, podendo até levá-lo
a perdê-la. O grau de comprometimento da face (ameaça ou destruição) está
intrinsecamente relacionado ao da gafe, ou seja, se este fenômeno for devastador
e, conseqüentemente, irreparável, a face da/o gafista e/ou a do seu alvo será
destruída, como no exemplo do enunciado proferido por Marta Suplicy: “relaxa e
goza”, da página 96.
Ao analisar o corpus, averiguamos que um comportamento verbal, não-
verbal e/ou paraverbal é considerado adequado ou não a uma situação
comunicativa, a partir de convenções de normas sociais e/ou conversacionais,
que, por sua vez, são determinados pela cultura de cada sociedade. Isto significa
que a gafe é culturalmente parametrizada. A sua configuração e o seu grau de
gravidade dependem destes fatores: identidade (status, papel e visibilidade social)
dos participantes envolvidos, tipo de interação (privada ou institucional,
pedagógica ou não pedagógica) e de relação (simétrica ou assimétrica)
estabelecida pelos participantes, contexto e enquadre em que estão inseridos.
A partir da análise do corpus, ratificamos também a hipótese de que
embora este fenômeno interacional ocorra em qualquer tipo de interação ou de
relação, contexto e enquadre, há maior probabilidade de surgir em uma situação
102
comunicativa em que os participantes são provenientes de cultura diferente.
Nesse sentido, ao interagir, devemos considerar o aspecto cultural,
contextual e identitário, a fim de diminuir a probabilidade de seu surgimento e/ou
agravamento e, por conseqüência, situações embaraçosas, haja vista que
existem casos em que um desvio como a gafe e/ou outros fenômenos discursivos
ocorrem involuntariamente.
Através da análise do corpus, conforme o gráfico abaixo, no total de 385
situações comunicativas, das quais 65 foram utilizadas nesta pesquisa,
observamos que a maioria são gafes fechadas, inconscientes e cujo
gerenciamento é não-interventivo (total de 250 equivalente a 65%). Só
encontramos cinco gafes conscientes das quais foram apresentadas no trabalho
(correspondente a 1,4% - ver os episódios nas páginas 28 29/30 - 45 - 98 e 99).
O grupo do tratamento interventivo, por sua vez, exige negociação (sobretudo as
que desestabilizam completamente a interação) e ocorre menos (das 385 gafes
selecionadas, apenas 27% são interventivos e deste total, 15% são reparadoras e
12% não reparadoras).
65
1,4
15
12
35
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
PERCENTUAL
FECHADAS,
INCONSCIENTES, SEM
INTERVENÇÃO
CONSCIENTES
COM INTERVENÇÃO
REPARADORA
COM INTERVENÇÃO NÃO-
REPARADORA
ABERTAS
Sendo assim, para que a/o gafista repare o dano causado, é preciso que
perceba o deslize cometido e o negocie por meio da utilização de diversas
estratégias de reparo, a fim de proteger a face dos envolvidos e amenizar a
desarmonia interacional. E quanto às abertas, a suposição de que havia uma
relação da gafe com outros fenômenos discursivos (tais como: mal-entendido e
lapso) quando há ameaça à face dos envolvidos, não só foi ratificada, como
também, para nossa surpresa, a sua ocorrência em 35% dos casos nos
surpreendeu. Podemos dizer que, nestes casos, a gafe é um desdobramento
103
desses fenômenos e poderíamos representá-los graficamente assim:
GAFE
LAPSO
MAL-ENTENDIDO
ATO FALHO
IRONIA
MENTIRA
Com o desenvolvimento desta pesquisa, constatamos que todos os
fenômenos aqui investigados (gafe, mal-entendido, mentira, etc) são desvios,
porque transgridem os acordos determinados socialmente, o que pode ser
visualizado de seguinte forma:
DESVIO
GAFE
ATO FALHO
LAPSO
MAL-ENTENDIDO
IRONIA
RISO
EMOÇÃO
MENTIRA
A partir dessa análise qualitativa e quantitativa, averiguamos que há uma
tendência dos indivíduos preferirem não intervir quando ocorre este fenômeno
interacional, seja por não saber como proceder, seja por não percebê-la. E a
percepção de uma gafe também envolve a questão do seu nível de gravidade
(maior ou menor). Isto significa que se o/a gafista comete um deslize devastador,
e o seu alvo não percebe a sua gravidade, a gafe é mitigada. Podemos associar
então este fenômeno gafe a duas figuras: primeiro, a do camaleão, porque um
mesmo comportamento verbal, não-verbal e/ou paraverbal pode ser considerado
transgressor numa interação e não em outra na qual os participantes pertençam a
mesma cultura. E segundo a figura do caleidoscópio, devido a cada indivíduo (da
104
mesma cultura) poder percebê-la ou não e em diferentes graus.
Observamos também que, apesar de Matarazzo intitular e afirmar em seu
livro que gafe não é pecado, em alguns casos, dado a sua gravidade e o
comprometimento da face de, pelo menos, um dos envolvidos numa determinada
situação comunicativa, ela pode ser considerada gravíssima mortal , por
causa da sua conseqüência, por exemplo, perda do emprego, prisão e até a
morte.
Dessa forma, a interação só volta a ser harmoniosa e a face dos envolvidos
reconstruída dependendo do grau de divergência atitudinal em relação às regras
socialmente determinadas e aos seguintes fatores: identidade, tipo de interação e
de relação, contexto e enquadre. Quanto mais a ação verbal, não-verbal e/ou
paraverbal praticada desobedecer aos acordos sociais, mais difícil será reparar a
gafe cometida (ou até mesmo impossível).
Constatamos assim que todos nós estamos sujeitos a cometer gafes, por
mais que tenhamos cuidado ao interagir através da realização de atos de
linguagem verbais e/ou não-verbais.
105
5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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111
6- ANEXO
ANEXO 1
(Jornal Extra, 24/02/2008)
68
68
Excepcionalmente, utilizamos esta imagem do jornal Extra para ilustrar a nota intitulada Gafe é
marketing”, publicada no jornal O Globo (24/02/2008).
112
ANEXO 2
(Jornal O Globo, 11/11/2007)
113
ANEXO 3
(Jornal O Globo, 10/06/2007)
114
ANEXO 4
(Jornal O Globo, 26/07/2007)
115
ANEXO 5
(Jornal O Globo, 07/02/2007)
ANEXO 6
(Jornal O Globo, 08/02/2007)
116
(Jornal O Globo, 09/02/2007)
ANEXO 7
(Jornal O Globo, 15/01/2008) (Jornal O Globo, 16/01/2008)
117
ANEXO 8
(Jornal O Globo, 08/05/2007)
118
ANEXO 9
(Jornal O Globo, 15/06/2007)
119
ANEXO 10
(Jornal O Globo, 18/06/2007)
120
ANEXO 11
(Jornal O Globo, 21/08/2007)
Relaxa e Compra.
(Campanha PEUGEOT 206 SW 307 julho de 2007)
121
Chargistas relaxam e gozam
(O jornalista Ancelmo Goes publicou estas charges em sua coluna no
jornal O Globo Online, em 15/06/2007)
122
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