Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Física no Ensino Médio e Estudantes
Trabalhadores: buscando relações entre significado
e sentido para a aprendizagem
Frederico Augusto Toti
São Carlos
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Frederico Augusto Toti
Física no Ensino Médio e Estudantes
Trabalhadores: buscando relações entre significado
e sentido para a aprendizagem
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal de São Carlos como parte dos requisitos para
a obtenção do título de Mestre em Educação (área de conhecimento:
Metodologia de Ensino. Linha de pesquisa: Ensino de Ciências e
Matemática).
Orientadora: Prof
a
. Dr
a
. Alice Helena Campos Pierson
São Carlos - SP
2007
ads:
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar
T717fe
Toti, Frederico Augusto.
Física no ensino médio e estudantes trabalhadores :
buscando relações entre significado e sentido para a
aprendizagem / Frederico Augusto Toti. -- São Carlos :
UFSCar, 2007.
165 f.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São
Carlos, 2007.
1. Ensino de segundo grau – ensino de Física. 2.
Estudantes - trabalhadores. 3. Teoria histórico-cultural da
atividade. 4. Psicologia histórico-cultural. I. Título.
CDD: 373 (20
a
)
Frederico Augusto Toti
Título da dissertação de mestrado: “Física no Ensino Médio e Estudantes Trabalhadores:
buscando relações entre significado e sentido para a aprendizagem”.
Orientadora: Prof
a
. Dr
a
. Alice Helena Campos Pierson
São Carlos, 27 de fevereiro de 2007.
Agradecimentos
À Professora Alice pela orientão, confiança e compreensão em
todas as fases deste trabalho.
Ao Professor Rubens e à Professora Itacy pelas contribuições
dadas no exame de qualificação e no exame de defesa, para o
aprimoramento deste trabalho.
À Professora Denise pelo apoio nos momentos finais da redação
desta dissertação e pelas contribuições no exame de defesa.
Aos Estudantes Trabalhadores que participaram deste trabalho,
às escolas e professores com quem pude contar e sem os quais este
trabalho não seria possível.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de São Carlos (PPGE/UFSCar) pela oportunidade de
desenvolver este trabalho.
Aos meus Pais, à Michelle e ao João Otávio pela compreensão
carinho e amor.
Este trabalho contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES).
(Processo número: 05/56717-4)
Resumo
Conciliar trabalho e estudos é uma necessidade para a maior parte dos estudantes
brasileiros do Ensino Médio, segundo relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) de 2000 e dados do relatório do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2003.
Esta realidade pode significar um desafio aos estudantes quanto à freqüência e
aproveitamento escolares satisfatórios, mas por outro lado, pode viabilizar novos horizontes
conceituais e perspectivas favoráveis à fusão de conhecimentos oriundos da prática do
trabalho e conhecimentos sistematizados aprendidos na escola. Esta fusão pode significar
novas oportunidades de aprendizagem tanto na escola quanto nos espaços de trabalho, um
melhor aproveitamento escolar, além de suscitar possíveis caminhos para a superação da
dicotomia entre teoria e prática. Considerando estas potencialidades em face da necessidade
de desenvolvimento de conteúdos mais vinculados à realidade no Ensino de Física, esta
pesquisa buscou relacionar fragmentos de conhecimentos de Física presentes nas atividades
profissionais dos estudantes com os conhecimentos de Física tipicamente abordados no
Ensino Médio. Para isso foi aplicado um questionário que forneceu uma distribuição dos
estudantes do Ensino Médio noturno em Araraquara-SP em função de suas atividades de
trabalho. Posteriormente foram entrevistados estudantes trabalhadores e realizadas visitas aos
locais de trabalho com o objetivo de identificar fragmentos de conhecimentos de Física
presentes nas suas atividades de trabalho e os sentidos pessoais que os estudantes atribuem ao
saber escolar. Realizou-se ainda uma intervenção em sala de aula com o objetivo de avaliar a
receptividade dos estudantes, bem como a potencialidade da proposta de abordar a Física a
partir de elementos comuns às suas atividades de trabalho. A abordagem da psicologia
histórico-cultural, em particular a teoria histórico-cultural da atividade (LEONTIEV, 1978a),
possibilitou uma análise que leva em conta os elementos psicológicos envolvidos nas
atividades humanas, o que permitiu fundamentar a importância de se criar condições para que
os estudantes relacionem o sentido pessoal que atribuem ao conhecimento científico
aprendido na escola e sua significação objetiva. Os resultados sugerem que conexões entre
conhecimentos de Física presentes nas atividades de trabalho dos estudantes e aqueles
ensinados no Ensino Médio possuem potencial para a criação de novas necessidades de
aprendizagem, podendo contribuir para que os estudantes trabalhadores venham a atribuir
novos sentidos pessoais à aprendizagem de Física.
Palavras-chave: Ensino de Física, estudantes trabalhadores, Teoria Histórico-Cultural da
Atividade, Psicologia Histórico-Cultural.
Abstract
According to the report of the Inter-American Bank of Development (BID) of 2000
and data from the National Secondary Education Examination (ENEM) of 2003, it is a
necessity for the majority of Brazilian students who attend secondary school to conciliate
studies and work. This reality can be a challenge for these students regarding their attendance
and progress in school but on the other hand it can provide new conceptual horizons and
perspectives that are favourable for the fusion of knowledge that is originated from the work
practice and systematised knowledge learned in school. This fusion can mean new learning
opportunities both in school and in the workplace, better progress in school and it can also
show us possible ways of overcoming the dichotomy between theory and practice.
Considering these potentialities in the face of the necessity of development of contents which
are more linked to the reality of the Physics teaching, this research tried to relate fragments of
knowledge in Physics which are present in the professional activities of the students to the
knowledge in Physics which are typically addressed in secondary education. In order to do the
research, a questionnaire was devised and it offered us a distribution of the students who work
and study at secondary schools at night in Araraquara – SP. Later these worker students were
interviewed and their workplaces visited with the purpose of identifying fragments of
knowledge of Physics present in their work activities and the personal sense students attribute
to the school knowledge. A classroom research was also done in order to evaluate the
students’ receptivity to an approach of Physics that take into consideration common elements
from their work activities. The contribution of cultural-historical psychology, in particular the
Cultural-Historical Activity Theory (LEONTIEV, 1978a) made possible an analysis that take
into account the psychological elements that are involved in the human activities which gives
grounds for the importance of creating conditions for the students to relate the personal
purpose they attribute to the scientific knowledge learned at school and its social meaning.
The results suggest that connexions between the Physics knowledge present in the students
professional activities and that taught in school have the potential for the creation of new
learning needs and this way worker students may attribute new personal sense to the learning
of Physics.
Keywords: Learning of Physics, Worker Students, Cultural-Historical Activity Theory,
Cultural-Historical Psychology.
Lista de figuras
Figura 1- Evolução do esquema de análise da psicologia, desde o esquema criticado pela
escola russa (a), o modelo básico de mediação proposto por Vygotsky (b) e o modelo
generalizado por Leontiev (c)...........................................................................................49
Figura 2- Distribuição geral dos estudantes trabalhadores no conjunto dos dados obtidos com
o questionário, respectivos percentuais e situações de trabalho possíveis de serem
relacionadas com conhecimentos de Física a partir das descrições das atividades de
trabalho.............................................................................................................................95
Figura 3 – Esquema geral de trabalho na intervenção – “sistema hierárquico de
generalização”. ...............................................................................................................133
Figura 4– Esboço utilizado para a discussão da noção geométrica de derivadas no primeiro
momento da intervenção.................................................................................................137
Figura 5 - Figura utilizada para discussão do conceito de gradiente de temperatura em três
dimensões. Na parte superior localiza-se o elemento refrigerador e na face inferior a
abertura por onde flui o ar resfriado...............................................................................143
Lista de tabelas
Tabela 1– Quadro comparativo de alguns aspectos de abordagens teórico-metodológicas na
pesquisa educacional, esquematizado a partir de Sanches (1997). ..................................74
Tabela 2 – Informações sobre os entrevistados........................................................................82
Tabela 3 – Informações sobre os espaços de trabalho visitados e a respectiva atividade
observada..........................................................................................................................83
Tabela 4 - Delimitação do público e resultados do questionário..............................................86
Tabela 5 – Grupo 1: respectivos agrupamentos, número de respondentes e atividades de
trabalho.............................................................................................................................88
Tabela 6 - Grupo 2: respectivos agrupamentos, número de respondentes e atividades de
trabalho ............................................................................................................................89
Tabela 7 – Classificação das respostas ao item do questionário que solicitou uma descrição
detalhada da atividade de trabalho....................................................................................91
Tabela 8 – Relações entre fenômenos considerados por estudantes trabalhadores nas
entrevistas e visitas e conceitos ou leis da Física de referência......................................131
Tabela 9 – Relação de instrumentos e respectivas atividades profissionais e conceitos
considerados no primeiro momento da intervenção em sala de aula. ............................139
Sumário
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 9
CAPÍTULO 1 – CIÊNCIA, TRABALHO E EDUCAÇÃO: RELAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS NA
PRODUÇÃO DAS CONDIÇÕES DA EXISTÊNCIA HUMANA. ................................................................. 19
1.1 ALGUMAS IDÉIAS SOBRE IDEOLOGIA E ALIENAÇÃO DA DIALÉTICA MATERIALISTA HISTÓRICA DE KARL
MARX..................................................................................................................................................................30
1.2 TRABALHO E EDUCAÇÃO: ALGUMAS DISCUSSÕES DA LITERATURA..................................................... 36
1.3 FÍSICA NO ENSINO MÉDIO E TRABALHADORES: PROBLEMAS E INVESTIGAÇÕES.................................. 41
CAPÍTULO 2 – CONHECIMENTO, CONSCIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO: COMPREENSÕES A
PARTIR DA ABORDAGEM DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL............................................. 47
2.1 A TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL DA ATIVIDADE ................................................................................50
2.2 RELAÇÃO ENTRE SIGNIFICAÇÃO OBJETIVA E SENTIDO PESSOAL: A ESTRUTURA INTERNA DA CONSCIÊNCIA
HUMANA E A NATUREZA DAS SUAS TRANSFORMAÇÕES SEGUNDO A TEORIA HISTÓRICO
-CULTURAL DA
ATIVIDADE
......................................................................................................................................................... 52
2.3 OS CONCEITOS DE OBJETIVAÇÃO E APROPRIAÇÃO E O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR: APRENDIZAGEM E
DESENVOLVIMENTO INTELECTUAL
. ................................................................................................................... 56
2.4 CONSCIÊNCIA PRIMITIVA E CONSCIÊNCIA NO CAPITALISMO: TRANSFORMAÇÕES E CONTRADIÇÕES..... 66
CAPÍTULO 3 - PENSAMENTO E MOVIMENTO – ASPECTOS METODOLÓGICOS. .........................73
3.1 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS METODOLÓGICOS ........................................................................78
CAPÍTULO 4 – ESTUDANTES TRABALHADORES, SIGNIFICADO E SENTIDO PARA A
APRENDIZAGEM DE FÍSICA......................................................................................................................... 86
4.1 QUESTIONÁRIO: QUAIS AS OCUPAÇÕES DOS ESTUDANTES TRABALHADORES DO ENSINO MÉDIO?....... 86
4.1.1 Grupo 1 – atividades de trabalho classificadas como não diretamente relacionadas aos
conhecimentos de Física.............................................................................................................................. 87
4.1.2 Grupo 2 - atividades de trabalho classificadas como diretamente relacionadas aos conhecimentos
de Física....................................................................................................................................................... 89
4.1.3 Como os estudantes trabalhadores descreveram suas atividades de trabalho?............................ 90
4.2 ENTREVISTAS E VISITAS: ANÁLISES DOS MOTIVOS, SENTIDOS E SUAS RELAÇÕES COM AS SIGNIFICAÇÕES.
96
4.3 COTIDIANO DAS ATIVIDADES DE TRABALHO: PISTAS PARA UM ENSINO ORIENTADO PARA NÍVEIS
SUPERIORES DE GENERALIZAÇÃO
.................................................................................................................... 120
4.4 INTERVENÇÃO EM SALA DE AULA: TRABALHO E FÍSICA NA APROPRIAÇÃO DO CONHECIMENTO ........ 132
4.4.1 Primeiro momento....................................................................................................................... 133
4.4.2 Segundo momento........................................................................................................................ 141
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................ 150
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................................ 156
APÊNDICES...................................................................................................................................................... 162
9
Introdução
A Educação Científica na Educação Básica tem se consolidado como uma componente
indispensável na formação geral dos cidadãos e estratégica na constituição do
desenvolvimento científico, tecnológico e econômico dos países. A razão disto parece ser que
cada vez mais nossa civilização tem configurado um quadro de dependência para com o
desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia. Com isso as novas gerações precisam estar
minimamente preparadas para lidar com essa situação, seja enquanto indivíduos ativos e
participantes nas instâncias decisórias da sociedade sejam, também, como constituintes de
quadros de cientistas e outros especialistas. Em geral a Educação Científica é desenvolvida de
formas variadas, de maneira formal nas instituições de ensino e de maneira informal em
museus, exposições, feiras de Ciências, etc. Na escola, formalmente, a Educação Científica é
desenvolvida nas disciplinas Ciências, Biologia, Física , Química e Matemática
1
.
A pesquisa em Ensino de Ciências se consolidou no Brasil, tendo sido importante a
criação de uma área específica na CAPES/MEC em setembro de 2000. As pesquisas vêm
possibilitando avanços no desenvolvimento do Ensino de Ciências nos diversos níveis da
Educação, na Divulgação Científica, nas novas propostas e diagnósticos de ensino e
aprendizagem. Esses diagnósticos têm levado a sucessivos esforços das comunidades de
educadores e pesquisadores na busca da melhoria dos processos de ensino e de aprendizagem
de Ciências em geral, e de Física em particular, tendo sido a Sociedade Brasileira de Física
(SBF) uma das primeiras sociedades científicas a criar sua secretaria de Ensino. Na
contrapartida política, recentemente presenciamos a proposta dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) que tenta estabelecer uma base curricular comum, bem como orientações
educacionais que façam frente ao desafio de superar os problemas enfrentados. Na página 22
da Parte III (Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias) dos Parâmetros
Curriculares Nacionais do Ensino Médio, podemos ler, por exemplo, dificuldades que o
Ensino de Física vem enfrentando, também debatidos nas comunidades de pesquisas, o que
mostra, pelo menos no que se refere a diagnósticos, uma ressonância entre pesquisas e o
referido documento.
1
Embora o Ensino de Matemática e de Ciências, muitas vezes, sejam considerados conjuntamente, como por
exemplo, na organização dos PCN, a história do Ensino de Matemática não se confunde com a do Ensino de
Ciências em geral, constituindo um campo de investigação independente - a Educação Matemática.
(FIORENTINI; LORENZATO, 2006).
10
O ensino de Física tem-se realizado freqüentemente mediante a
apresentação de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do
mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de
significado. Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em
detrimento de um desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos, parta da
prática e de exemplos concretos. Enfatiza a utilização de fórmulas, em situações
artificiais, desvinculando a linguagem matemática que essas fórmulas representam
de seu significado físico efetivo. Insiste na solução de exercícios repetitivos,
pretendendo que o aprendizado ocorra pela automatização ou memorização e não
pela construção do conhecimento através das competências adquiridas. Apresenta o
conhecimento como um produto acabado, fruto da genialidade de mentes como a de
Galileu, Newton ou Einstein, contribuindo para que os alunos concluam que não
resta mais nenhum problema significativo a resolver. Além disso, envolve uma lista
de conteúdos demasiadamente extensa, que impede o aprofundamento necessário e a
instauração de um diálogo construtivo.
Esse quadro não decorre unicamente do despreparo dos professores, nem de
limitações impostas pelas condições escolares deficientes. Expressa, ao contrário,
uma deformação estrutural, que veio sendo gradualmente introjetada pelos
participantes do sistema escolar e que passou a ser tomada como coisa natural.
(BRASIL, 1999, p. 22).
Na escola pública, em particular, encontramos como agravante deste quadro um
número reduzido de aulas de Física (em alguns casos uma aula semanal de 50 minutos)
notadamente no turno noturno, levando freqüentemente à adoção de conteúdos em
formatações resumidas e simplificadas, aumentando as chances de se descaracterizar o
conhecimento científico, ou como afirma Robilotta (1988, p. 9) “Ao tratarmos de modo
simplificado um corpo de conhecimentos que é muito complicado e repleto de sutilezas [a
Física], podemos acabar por fazer com que ele se torne ininteligível aos estudantes”. Este fato,
realidade também para outros conteúdos do Ensino Médio, tende a encontrar justificativas,
sobretudo na escola noturna, sob a alegação do horário das aulas, as condições objetivas dos
estudantes que em sua maioria trabalham durante o dia, a quantidade de horas-aula
insuficientes, etc. Evidentemente, as particularidades das condições daqueles que cursam o
Ensino Médio à noite não podem ser desconsideradas, mas sim orientar a busca, no
tratamento diferenciado, de possibilidades de uma aprendizagem efetiva e significativa para
11
os estudantes deste turno. Nosso grupo de referência neste estudo será este, os estudantes
trabalhadores que cursam o Ensino Médio, em particular aqueles que freqüentam a escola à
noite.
Segundo o relatório do Exame Nacional de Ensino Médio, ano de referência 2003
(ENEM/2003), mais de 50% dos participantes do exame trabalha ou já trabalhou recebendo
algum salário ou rendimento (BRASIL, 2004, p. 19). O relatório do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), que levou em conta dados nacionais dos anos de 1996 a 1999,
afirma que do total de estudantes matriculados no Ensino Médio brasileiro, mais de 60%
freqüentam a escola noturna, sendo que a maioria trabalha em regime de tempo integral,
enquanto cerca de 23% dos estudantes trabalhadores do Ensino Médio encontram-se no turno
diurno (RODRÍGUEZ e HERRÁN, 2000)
2
. Este relatório conclui que a repetência e a evasão
são maiores entre os estudantes de cursos noturnos do que entre os estudantes que estudam
durante o dia. Os níveis gerais de aprendizado dos estudantes em cursos noturnos também são
inferiores aos dos estudantes do turno diurno. Outra conclusão central do relatório é que tais
diferenças se devem principalmente pelas diferentes condições socioeconômicas dos
estudantes, conforme podemos analisar a partir do excerto a seguir.
Por si só, o fato de freqüentar a escola diurna ou noturna não parece exercer efeito
significativo sobre o aproveitamento. As diferenças gerais de aproveitamento entre
estudantes em cursos diurnos e noturnos parecem dever-se em grande parte a
diferenças de condições socioeconômicas, padrões de freqüência e características
das escolas freqüentadas, mais do que qualquer desvantagem associada com o turno
da noite per se (ou seja, os estudantes têm menos capacidade de concentração por
estarem cansados). Se se mantivessem constantes todas as variáveis, com exceção do
turno diurno/noturno (p. ex.: condição socioeconômica, experiência do professor,
insumos educacionais etc.), o desempenho dos estudantes noturnos não seria
diferente do desempenho de suas contrapartes. Em outras palavras, investir na
melhoria, materiais e metodologias de ensino nas escolas noturnas pode ser tão
efetivo quanto investir nas escolas diurnas.(RODRÍGUEZ e HERRÁN, 2000, p. 63-
64).
2
Cerca de 60% dos estudantes matriculados no segundo ciclo (nona à décima primeira séries) freqüentam a
escola noturna porque, em sua maioria, devem trabalhar em tempo integral. Isto é confirmado por dados da
Pesquisa de Padrões de Vida (PPV) de 1996/1997, segundo a qual a proporção de estudantes no turno da noite
empregados ou em busca de trabalho é de 57%, contra apenas 23% de estudantes no turno do dia. Isto reforça a
hipótese de que eles estudam a noite a fim de poderem trabalhar durante o dia. (RODRÍGUEZ e HERRÁN,
2000, p. 15).
12
O relatório acrescenta que o menor tempo de instrução também não é o motivo das
diferenças de rendimento entre estudantes do noturno e do diurno, públicas ou privadas, mas
por outro lado, o absenteísmo acarreta sérios prejuízos ao aprendizado. (RODRÍGUEZ e
HERRÁN, 2000, p. 64). Por outro lado, o que mais é enfatizado pelos autores do relatório do
Banco Mundial são as dificuldades de conciliar trabalho e estudos, a falta de “relevância” e
“apreciação” da escolarização secundária e a inadequação de conteúdos, estes são os itens que
merecem maior atenção para que a escola noturna atenda melhor seus estudantes, que
correspondem a parcela mais pobre dos estudantes do secundário, sendo que, a maioria
trabalha e tem a idade acima do grupo etário de referência (55% dos estudantes matriculados
no ensino médio são mais velhos do que o seu grupo etário de referência e em mais de 1/3 a
diferença é superior a três anos).
Não obstante, as dificuldades de equilibrar o trabalho com a escola, aliadas à
falta de relevância de grande parte da escolarização secundária, resulta em altos
índices de evasão. Um em cada três estudantes que ingressam na nona série jamais
completará a décima primeira série, ano final do segundo ciclo secundário.
(RODRÍGUEZ e HERRÁN, 2000, p. 17). [...] O desafio é especialmente relevante
para escolas noturnas, em que o tempo de instrução é menor e o absenteísmo é mais
alto. Este ocorre por razões práticas (p. ex.: atraso dos ônibus, cansaço dos
estudantes) e porque a relevância, o conteúdo e a apreciação da escolarização muitas
vezes não são suficientes para competir com outras demandas. A qualidade e a
relevância da experiência escolar são essenciais para promover a freqüência.
(RODRÍGUEZ e HERRÁN, 2000, p. 67).
Evidentemente uma experiência educacional de baixa qualidade não deve ser atrativa
para os estudantes, mas o que queremos argumentar aqui é que o relatório não oferece
elementos concretos para fundamentar a afirmação sobre a não apreciação da escolaridade e
da irrelevância da escolarização e conteúdos como motivo da evasão dos estudantes do
noturno.
Tendo em vista o quantitativo que freqüenta a escola noturna, mesmo em condições
tais que muitas vezes sejam levados ao absenteísmo, não é fácil aceitar que a escola e seu
conteúdo sejam vistos como pouco relevantes, ou que a escolarização tem sido pouco
apreciada, principalmente se admitirmos que escola veicula conteúdos clássicos
correspondentes aos pré-requisitos mínimos para o desenvolvimento das potencialidades
humanas a partir do que vem sendo construído historicamente pela humanidade. Talvez faça
mais sentido dizer que a qualificação exigida pelo mercado de trabalho exija um longo
13
período de escolarização, período este que a maioria dos estudantes, particularmente os
trabalhadores, teriam dificuldade em disponibilizar. Neste sentido a qualificação desenvolvida
pela escola secundária é que, talvez, não traga maiores interesses, não agregue grandes
valores ao saber dos estudantes segundo demandas do mercado de trabalho, o que é diferente
de tratar essa escolarização ou conteúdos como irrelevantes ou desprovidos de sentido para
esses estudantes, que muitas vezes almejam acessar o Ensino Superior. Considerando este
ponto de vista, não há razões para se destacar, da forma como o relatório o faz, que “[...] a
educação secundária deve preparar a juventude para o emprego, tendo como meta a formação
de estudantes dotados de flexibilidade, capazes de se adaptar a mudanças no mercado de
trabalho [...]” (RODRÍGUEZ e HERRÁN, 2000, p. 1), mas sim incluir esta meta numa maior,
ou seja, uma formação de caráter amplo que priorize os conhecimentos clássicos que dão
suporte ao desenvolvimento científico, tecnológico e sócio-histórico que o conjunto dos
homens tem produzido, mas que é distribuída de forma excludente. O êxito parcial da escola
na promoção desta formação e sua extensão a todos não desvaloriza os conteúdos desta
formação, mas chama à revisão de procedimentos, metodologias e das condições objetivas e
subjetivas que interferem na cognição dos estudantes. Na agenda de pesquisas sugerida no
relatório, lê-se: “Entrevistas com empresários para determinar, entre os funcionários que
completaram o curso secundário, quais são os elementos que eles mais valorizam e os que
fazem mais falta na sua preparação” (RODRÍGUEZ e HERRÁN, 2000, p. 106), evidenciando
o interesse em submeter a educação às demandas de empresários, às demandas do
desenvolvimento do capital, que conforme será discutido, são limitados nos seus objetivos,
em vista das possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento pessoal e coletivo que a
Educação Escolar pode proporcionar.
O relatório sugere que o maior motivo pelo qual os estudantes não freqüentaram a
escola no tempo próprio é a carência socioeconômica, vindo a fazê-lo, com atraso, na escola
noturna como última alternativa antes de desistirem de estudar. O enfrentamento das razões
práticas que dificultam o acesso dos estudantes trabalhadores, mesmo com todos os problemas
que a escola noturna enfrenta, demonstra quanto os estudantes valorizam a Educação Escolar
formal e seus conteúdos, o que pode justificar o elevado índice de matriculas de estudantes
nesse turno. Evidentemente não podemos descartar que os estudantes possam manter
representações idealistas do que objetivamente a escola pode corresponder, mas isso é um
problema a ser enfrentado levando-os à consciência.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD), realizadas
anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que a razão
14
principal que leva os estudantes do Ensino Médio a pararem de estudar ou a cursar o Ensino
Médio no período noturno é a necessidade de trabalhar para manter-se e a seus familiares.
Essas pesquisas também revelam que quanto mais cedo os estudantes deixam de estudar para
trabalhar, menores serão seus salários ao longo de toda sua vida ativa. No relatório PNAD de
2003 ressalta-se que o Brasil não conseguirá reduzir significativamente as taxas de trabalho
infantil (não alcançará a meta prevista), considerado até 17 anos de idade, sem políticas
públicas adicionais às que estão sendo promovidas, o que, segundo o mesmo relatório,
comprometerá o tempo de escolaridade dessa população. O relatório do BID contempla essa
possibilidade ressaltando que “ [...] A predominância da escola noturna é uma característica
central da educação secundária no Brasil e é provável que, pelo menos em curto prazo, assim
continuará a ser” (RODRÍGUEZ e HERRÁN, 2000, p. 15-16).
As recomendações dos autores do relatório são: melhorar a aplicação dos recursos
financeiros, investimento em material, racionalização curricular (corte de disciplinas),
desenvolvimento de materiais apropriados à escola noturna, educação a distância, cursos de
fins de semana, aperfeiçoamento de professores, dentre considerações de ordem
administrativa, como incentivo a parcerias público-privadas, recomendações cujo atendimento
temos presenciado. Ressalta ainda que o BID apóia os esforços do governo brasileiro e faz da
Educação Secundária uma prioridade central nas suas estratégias de assistência ao
desenvolvimento do Brasil. Porém, conforme já destacamos, o relatório se posiciona nas
questões de cunho curricular e pedagógico de forma clara, defendendo posições contrárias a
uma perspectiva crítica frente ao modo de desenvolvimento vigente e a uma democratização
do conhecimento pautada no acesso de todos aos conhecimentos científicos, tecnológicos e
sócio-históricos responsáveis por este desenvolvimento.
O ataque a esse desafio pode envolver tanto uma revisão do atual conteúdo
curricular, com a atribuição de maior atenção à melhoria qualitativa das escolas
noturnas [...], como a exploração de meios mais diversos e flexíveis para o ensino
secundário. (RODRÍGUEZ e HERRÁN, 2000, p. 20). [...] para este grupo especial
de estudantes [do noturno], o conteúdo da instrução e seu ensino (currículo e
pedagogia) tornam-se elementos críticos para fazer com que a escolarização seja
relevante e atraente. (RODRÍGUEZ e HERRÁN, 2000, p. 68. grifos do original).
Portanto, há razões para se pensar (e se preocupar com) a situação dos estudantes
trabalhadores. Não parece ser procedente uma comparação do desempenho entre os
estudantes dos turnos diurno e noturno, mesmo porque os diagnósticos de aproveitamento não
15
são satisfatórios para nenhum dos turnos, mas sim a necessidade de se investigar os motivos,
as motivações dos estudantes e trazer-lhes à consciência a importância dos conhecimentos
clássicos, historicamente produzidos pela humanidade. Quanto aos conteúdos, a questão
parece ser levar os estudantes a conhecer a importância e mostrar-lhes o sentido e a utilidade
dos conhecimentos que a escola veicula, que são transpostos da história e do desenvolvimento
da sociedade, e não substituí-los ou adaptá-los às necessidades do modo capitalista de
produção. Metodologias de ensino não devem dar margem a estratégias que desfigurem este
conhecimento.
A leitura de alguns autores fundamentados na epistemologia do materialismo histórico
e dialético nos orientou numa melhor compreensão da realidade do trabalhador e sua relação
com o trabalho e o conhecimento científico, a fim de pensarmos estratégias de Ensino de
Física a partir de uma concepção de educação que contribua para que os trabalhadores possam
se apropriar do conhecimento científico e tecnológico, assim como as elites econômicas o
fazem, mas orientados para uma transformação social.
A leitura de Marx (1971a), Marx e Engels (1984) e Leontiev (1978a, 1978b) permite
compreender a alienação como um fenômeno histórico-social ligado ao modo de produção
econômico e com conseqüências para a educação em geral e a do trabalhador em particular,
das quais destacamos, conforme aprofundaremos mais tarde, a separação entre trabalho
intelectual e trabalho físico, levando a teoria ser considerada isoladamente das práticas sociais
que a produzem e a consomem e à não correspondência entre significação objetiva e sentido
pessoal nas atividades humanas. Leontiev (1978, 1998), Vygotsky
3
(2005) e Vigotskii (1988)
permitem uma melhor compreensão desses processos, enfatizando a escola como instituição
própria para a mediação no processo de apropriação do conhecimento científico, na
construção de significados pessoais e na tomada de consciência (processo inverso ao da
alienação) que resultam dos níveis crescentes de generalizações que o conhecimento científico
pode permitir.
Os objetivos centrais que orientaram este trabalho foram dois: i) detectar a conexão de
fragmentos do conhecimento de Física, presentes nas atividades de trabalho dos estudantes,
com os conteúdos de Física tipicamente propostos para desenvolvimento no Ensino Médio.
Especificamente, buscamos obter elementos que contribuam com o desenvolvimento
metodológico do Ensino de Física, orientando-o para níveis de desenvolvimento conceitual
3
Assumimos a grafia Vygotsky, porém, algumas traduções apresentam diferenciações quanto à grafia como
Vigotskii ou Vigotski. Quando forem feitas citações utilizaremos as grafias das referências bibliográficas em
cada caso.
16
ainda não alcançados por estes estudantes, níveis cujo desenvolvimento pode ser
potencializado pela sua relação com os conceitos provenientes das suas atividades de trabalho.
ii) Buscar elementos para uma melhor articulação das questões metodológicas do ensino de
Física com a necessidade de enfrentamento dos processos de alienação presentes em quase
todos os setores da nossa sociedade, em particular nos contextos escolar e de trabalho,
entendendo tais processos como obstáculos a uma aprendizagem crítica e direcionada para o
desenvolvimento pleno das capacidades individuais e coletivas. Este objetivo buscou
especificamente explicitar relações entre significado e sentido para a aprendizagem de Física
a partir dos motivos que relatam os estudantes trabalhadores para a busca pela escolaridade e
sobre a sua condição de estudante e trabalhador.
O alcance deste segundo objetivo, sob o enfoque da psicologia histórico-cultural, vem
exigir que se busque a realização de uma relação adequada entre sentido pessoal e
significação objetiva na aprendizagem, pois esta relação é a constituinte principal da
consciência humana. Mais precisamente, sem que o sentido pessoal se realize
psicologicamente nas significações objetivas, não há como ocorrer transformações na
consciência rumo a superação dos processos de alienação (LEONTIEV, 1978a). Convém
esclarecer que o sentido pessoal a que nos referimos é aquele concebido na teoria histórico-
cultural da atividade (LEONTIEV, 1978a, 1978b) e não equivale a um sentido pessoal
estritamente subjetivo, que pode ser modificado ou implantado por esforço interno dos
indivíduos, mas é produzido pelas condições objetivas as quais estamos sujeitos.
Para alcançarmos o primeiro objetivo buscamos apreender, da relação entre
conhecimentos presentes nas atividades de trabalho dos estudantes e aqueles típicos da Física
no Ensino Médio, condições e situações objetivas (vividas por eles) que orientem o
desenvolvimento de conteúdos de Física no Ensino Médio permitindo generalizações a partir
de situações de trabalho. Para alcançarmos o segundo objetivo buscamos saber dos estudantes
trabalhadores o que relatam sobre trabalhar e estudar. Mais precisamente, buscamos saber
quais os motivos e necessidades dessas atividades.
Ainda sobre nossos objetivos, explicitamos as seguintes questões interdependentes:
Quais os motivos (enquanto estímulo) que movem os estudantes trabalhadores à
aprendizagem dos aspectos lógico-formais da Física, no conjunto de conhecimentos do
Ensino Médio? Que sentidos pessoais correspondem a estes motivos? E como os fragmentos
dos conhecimentos de Física com que lidam na prática de suas atividades de trabalho podem
contribuir com a aprendizagem de Física no Ensino Médio, aproveitando as potencialidades
dos estudantes enquanto trabalhadores? Estas perguntas permitem notar uma relação entre os
17
dois objetivos da pesquisa: enquanto o primeiro busca elementos metodológicos para
potencializar o Ensino de Física a partir de situações de trabalho dos estudantes, o segundo
busca elementos, a partir das condições objetivas dos estudantes, para desobstruir e efetivar o
alcance do primeiro, uma vez que entendemos que à primeira vista, conectar trabalho e escola,
no contexto capitalista, sem uma reflexão crítica, pode implicar em resultados educacionais
não necessariamente comprometidos com o pleno desenvolvimento dos trabalhadores, mas ao
contrário pode significar conflito com essa necessidade.
Acreditamos que possíveis respostas para essas questões podem contribuir, em última
análise, para uma ampliação do significado social do Ensino de Física, mas não apenas dela,
uma vez que as reflexões produzidas sobre a articulação do mundo do trabalho com o
conhecimento científico e conteúdos escolares poderão trazer contributos para outras áreas de
ensino. Neste sentido, o trabalho que ora descrevemos pode, a princípio, ser realizado também
a partir de outras disciplinas constituintes do currículo escolar. A Física foi a disciplina
escolhida por duas razões: i) em função de nossa formação. A familiaridade com a Física nos
coloca em melhores condições de avaliar aspectos relativos a esta Ciência do que de qualquer
outro assunto do Ensino Médio, o que não nos limita a atividades profissionais mais ou menos
ligadas à Física, mas cria um olhar “preferencial”, ou seja, neste trabalho passamos a
interpretar as atividades profissionais dos estudantes sob o ponto de vista da Física e suas
relações com a sociedade. Neste sentido, consideramos importante que pesquisas busquem a
conexão de outras áreas do currículo escolar com as atividades profissionais de estudantes,
explorando tais conexões como alternativas de ensino. ii) A segunda razão é que a Física
compreende um conjunto de conhecimentos indispensáveis para a compreensão da realidade,
na intervenção do homem nos processos da natureza, potencializando, na medida em que é
desenvolvida historicamente, a capacidade coletiva de trabalho, oferecendo um horizonte
conceitual que amplia a capacidade humana de criação.
Sobre a organização do trabalho, no capítulo 1 desenvolvemos algumas considerações
críticas que visam salientar contradições entre o modo de desenvolvimento econômico
capitalista e a utilização da força de trabalho, considerações gerais sobre os conceitos de
alienação e ideologia em Karl Marx (1818-1883) e uma breve revisão da literatura sobre as
relações entre trabalho e educação. Esta discussão tem por objetivo permitir uma melhor
inserção dos sujeitos desta pesquisa no contexto mais amplo das relações entre trabalho e
educação e auxiliar o desenvolvimento crítico das análises do capítulo 4. Realizamos também
uma revisão da literatura mais específica, ou seja, que aborda diretamente trabalho e Ensino
de Física. Os conceitos da Psicologia histórico-cultural tais como atividade, motivos,
18
consciência, sentido pessoal, significação objetiva, apropriação, objetivação e
aprofundamentos do conceito de alienação, serão abordados no capítulo 2. No capítulo 3
apresentaremos os aspectos metodológicos e no último capítulo os dados, análises e as
considerações finais.
19
Capítulo 1 – Ciência, Trabalho e Educação: relações sócio-
históricas na produção das condições da existência humana.
Faz parte dos pressupostos do materialismo histórico-dialético que a produção do
conhecimento que a humanidade acumula ao longo da história, assim como os demais
elementos que compõem a progressiva possibilidade humana de intervenção na realidade,
repousam exatamente na atividade de trabalho e não em outra, uma vez que se entende o
trabalho como a relação dos seres humanos com a natureza e entre si, na produção das
condições da sua existência.
Para produzir os meios de satisfação das suas necessidades, das mais básicas às mais
supérfluas, o homem se depara com a prática e com a teoria (estas duas de forma
interdependente), com a natureza (e seus processos) e com o todo da sociedade. Ao produzir
algo, participando do processo o mais integralmente que a complexidade do produto ou
processo permitir, o homem realiza sucessivas e diversas operações que requerem variados
níveis de conhecimentos e destrezas. Por meio das propriedades do trabalho, ele se vê
desenvolvendo múltiplas capacidades e conhecimentos, além de, na interação social da
produção, ter a possibilidade de conhecer e interferir de forma criativa em processos que são,
ao mesmo tempo, orientados pelo conjunto de conhecimentos historicamente acumulados e
contributivos para a superação e a construção desse conjunto de conhecimentos.
Evidentemente os homens não nascem dominando os conhecimentos necessários à
produção intelectual ou material, eles se apropriam desses conhecimentos, bem como do que
eles representam e de sua materialização (na forma de objetos) na interação social. Esta
apropriação é, portanto, uma relação de Educação (LEONTIEV, 1978a). Por isso, as relações
entre educação e trabalho estreitam-se com a evolução dos meios de produção. Marx, ainda
no final do século XIX, ressaltava que:
[...] desde que esteja assegurada uma estrita regulamentação do tempo de trabalho
segundo as idades bem como outras medidas de proteção das crianças, o fato de se
combinar desde cedo o trabalho produtivo com a instrução é um dos meios mais
poderosos de transformação da sociedade atual.
(MARX, 1971b, p.35)
20
Porém, no capitalismo, à medida que historicamente esta relação se desenvolve, ocorre
uma degeneração da escola, diferenciando-se escolas que preparam trabalhadores e as que
preparam as elites. Embora não fosse acessível a todos e destinada a formar dirigentes, a
escola não era oligárquica no ensino, diferenciando conteúdos para governantes e para
trabalhadores (GRAMSCI, 1979). Gramsci foi um crítico ferrenho dessa distinção que
permite criar condições que favorecem a manutenção de classes sociais em funções
determinadas, nas palavras de Gramsci, função “diretiva ou instrumental”.
Hoje, a idéia de uma escola universal (com as mesmas qualidades, objetivos, etc. e
para todos) está na pauta dos governos, mas ainda degenerada. Embora hoje, estejamos mais
próximos de atender a toda a população, a qualidade é questionada. A razão deste “novo” tipo
de degenerescência é mais uma vez o fato de ser a escola um espaço de contradição entre
força de trabalho e capital.
É vital para o capitalismo que os meios de produção sejam privados e constantemente
revolucionados como forma de baratear produtos na concorrência, mas principalmente, para
aumentar a taxa de extração da mais-valia relativa, ampliando o capital (daí a defesa aberta,
quase unânime entre as nações, da propriedade privada, e da chamada economia de livre
mercado). Mas os meios de produção compreendem também o conhecimento para a produção
e uma constante revolução dos meios de produção, que são cada vez mais desenvolvidos por
meio do conhecimento científico e tecnológico. “A conversão do instrumental de trabalho em
maquinaria exige a substituição da força humana por forças naturais e da rotina empírica pela
aplicação consciente da ciência” (MARX, 1971a, p. 433). Assim, se por um lado, é vital para
o capitalismo que o trabalhador não detenha os conhecimentos e as condições de controle da
produção, por outro, como os trabalhadores podem desempenhar suas funções (seja na
produção, seja na prestação de serviços) sem o conhecimento necessário? Adam Smith já
defendia a tese de que a instrução do trabalhador, dentro de um limite estabelecido, é
necessária à flexibilidade do mesmo, mas, além do mínimo necessário ao tipo de produção,
converte-se em contradição à ordem social. Por outro lado, não podem ser desconsideradas as
potencialidades dos trabalhadores enquanto interessados numa transformação social. Nesse
caso temos contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de
produção, o que caracteriza, em casos extremos, as revoluções (rupturas) de um dado modo de
produção, alterando as relações sociais. O desenvolvimento das forças produtivas é a razão
principal das rupturas e os aspectos objetivos e subjetivos da vida em sociedade, culminando
em nova forma de reproduzir as condições de existência (modo de produção) de uma
sociedade.
21
Mas como se revoluciona os meios de produção? Não há outro modo, senão
desenvolvendo as forças produtivas (equipamentos, processos e força de trabalho
4
). Mas
sendo essencial, no capitalismo, que os meios de produção sejam privados, as elaborações
intelectuais incorporadas ao senso comum levam à idéia de que o desenvolvimento dos meios
de produção, necessários à concorrência, se dá pela objetivação do trabalho, ou seja, com o
largo emprego de Ciência e Tecnologia nos meios de produção de modo a transferir a
atividade laboral do trabalhador para a máquina. Esse processo constitui o conteúdo das
transformações tecnológicas produzidas pelo capitalismo. O que pode não ficar claro ao
trabalhador é que esse processo alimenta o capitalismo exatamente de mais-valia, uma vez
que o emprego da Ciência e Tecnologia vão potencializar a força de trabalho de alguns,
prescindindo de outros trabalhadores. Como a Ciência e a Tecnologia são desenvolvidas de
forma dinâmica, baseadas na superação do conhecimento ou produto antecedente (por
acumulação de conhecimento ou rupturas, suscitando novos quadros teóricos e aplicados) faz-
se necessário que as pessoas desenvolvam formas de se adaptarem rápida e sucessivamente a
esse desenvolvimento “exponencial”.
É evidente que o desenvolvimento Científico e Tecnológico é real, o que é objeto da
distorção ideológica é a idéia de que o desenvolvimento dos meios de produção ocorram pela
objetivação do trabalho, o que não pode ser verdade uma vez que a Ciência e a Tecnologia
por si só não constituem forças produtivas, isto só ocorre quando são incorporadas à força de
trabalho. O que se apresenta ideológico é a idéia, quase consensual, de que se adaptando a
essa objetivação (do trabalho) as pessoas estão se adequando a uma realidade natural, exigida
pelo desenvolvimento da sociedade e não às condições produzidas historicamente. Assim, é
defendida, na chamada reestruturação produtiva
5
, a necessidade de formação de um “novo
trabalhador” com determinadas capacidades, tais como: trabalhar em grupo, criatividade,
capacidade de se adaptar a situações diversas, resolver problemas, tomar decisões, lidar com
produtos tecnológicos, enfim, um trabalhador mais ativo (mais qualificado, no termo
4
A reprodução ampliada do capital só é possível pela extração de mais-valia, portanto encontra-se limitada no
desenvolvimento dos meios de produção, mas viável no desenvolvimento da força de trabalho. Quando um
trabalhador é contratado, recebe em geral, um salário para um dado número de horas de trabalho. O valor
equivalente ao seu trabalho é transferido para o que produz. O valor transferido, incorporado no que produz, que
excede ao que recebe como salário, corresponde a mais-valia absoluta. Quando se amplia essa fração de
equivalente não paga ao trabalhador, aumentando a produtividade deste por aplicação da ciência, ou reduzindo a
fração paga por meio da redução do custo de reprodução da força de trabalho, temos a mais-valia relativa.
5
Kuenzer (2001), Duarte (2000) e Bergamo (2006) dentre outros, apoiados na análise de autores marxistas,
entendem a reestruturação produtiva como a prova de uma grave crise enfrentada pelo capitalismo internacional
que tem a capacidade de extração de taxas de mais-valia cada vez mais limitadas, sendo necessária uma
reestruturação na tentativa de trazer essas taxas a níveis mais elevados. Uma análise empírica que comprova isso
é que o capitalismo, em muitos casos, tem se alimentado de trabalho precário.
22
amplamente utilizado) do que o concebido no “velho” modelo taylorista-fordista. A
necessidade desse “novo trabalhador” (diga-se de passagem, que não é pouco comum
encontrarmos difundida na mídia e também nos documentos oficiais a idéia desse “novo
trabalhador” incluído nas qualidades necessárias à cidadania contemporânea) vem resolver
dois problemas: atender às demandas da produção no capitalismo e atender a uma antiga
reivindicação dos trabalhadores da indústria e seus sindicatos por uma organização na
indústria que torne as atividades de trabalho mais enriquecidas, com mais autonomia, enfim,
mais humanizadas. Uma análise superficial da realidade do trabalho atualmente nos levaria a
concordar que a reestruturação produtiva em curso traz vantagens aos trabalhadores e força
uma elevação do nível de educação para o trabalhador.
No entanto, evidências empíricas e teóricas podem levar ao entendimento de que esse
discurso progressista é mais uma estratégia conservadora de manutenção do status quo, ou
ainda, uma intensificação dos “métodos” do capitalismo, do que uma verdadeira melhoria nas
condições educacionais do trabalhador.
Com o desenvolvimento dos meios de produção por meio da incorporação da Ciência
e da Tecnologia, a objetivação do trabalho no capitalismo se intensificou (para aumentar a
extração da mais-valia). Mas para produzir ainda são necessários dois tipos de trabalhadores,
no jargão do mercado, o trabalhador qualificado e o desqualificado, dado que o modo de
produção no capitalismo, embora se modernize, mantém sua base material (a saber: forças
produtivas e relações de produção) assentada na propriedade privada desses meios e na sua
contradição essencial entre o valor-de-uso e valor-de-troca. Nas palavras de Marx (1971a,
p.401-2), assim se dá a relação da manufatura com a formação do trabalhador:
Em todo ofício de que se apossa, a manufatura cria uma classe de trabalhadores sem
qualquer destreza especial, os quais o artesanato punha totalmente de lado. Depois
de desenvolver, até atingir a virtuosidade, uma única especialidade limitada,
sacrificando a capacidade total de trabalho do ser humano, põe-se a manufatura a
transformar numa especialidade a ausência de qualquer formação. Ao lado da
graduação hierárquica, surge a classificação dos trabalhadores em hábeis e inábeis.
Para os últimos não há custos de aprendizagem, e, para os primeiros, esses custos se
reduzem em relação às despesas para formar um artesão, pois a função deles foi
simplificada. Em ambos os casos, cai o valor da força de trabalho.
Quanto mais é objetivado o trabalho, menor é a fração de trabalhadores necessários,
uma vez que a produção vai prescindindo da interferência humana. Assim, o trabalho que
23
exige qualificação de fato, fica restrito a uma pequena fração dos trabalhadores que atuam na
produção de forma potencializada pela inovação científica e tecnológica. A maior fração dos
trabalhadores executam parcelas da produção nas quais desenvolvem ao máximo a capacidade
de realizar parte reduzida da produção. Justapondo-se os trabalhadores de cada parcela da
produção temos o que Marx (1971a) denominou de trabalhador coletivo. Este se desenvolve
ao máximo permitindo uma produção sem as imperfeições e perdas de tempo que ocorrem
numa produção artesanal. Em contrapartida, o trabalhador individual perde a noção do todo
separando-se do produto ou resultado, tendo deformadas suas capacidades físicas e
intelectuais, bem como chances de desenvolvimento delas. Marx (1971a, p. 413-14) sintetiza
essa idéia nas seguintes palavras:
O que perdem os trabalhadores parciais, concentra-se no capital que se confronta
com eles. A divisão manufatureira do trabalho opõe-lhes as forças intelectuais do
processo material de produção como propriedade de outrem e como poder que os
domina. Esse processo de dissociação começa com a cooperação simples em que o
capitalista representa diante do trabalhador isolado a unidade e a vontade do
trabalhador coletivo. Esse processo desenvolve-se na manufatura, que mutila o
trabalhador, reduzindo-o a uma fração de si mesmo, e completa-se na indústria
moderna, que faz da ciência uma força produtiva independente de trabalho,
recrutando-a para servir ao capital.
Na manufatura, o enriquecimento do trabalhador coletivo e, por isso, do
capital, em forças produtivas sociais, realiza-se às custas do empobrecimento do
trabalhador em forças produtivas individuais.
Evidentemente não é possível que apenas um trabalhador produza todos os tipos de
produtos necessários à sociedade, principalmente os produtos mais complexos. Por tanto, a
divisão social do trabalho é necessária e não seria destrutiva das potencialidades dos
trabalhadores se não se efetivasse juntamente a separação do trabalho intelectual e trabalho
físico. Mas a produção no capitalismo amplia essa divisão impondo-a de forma consciente,
metódica e sistemática ao indivíduo, na forma de uma divisão pormenorizada da produção.
Certa deformação física e espiritual é inseparável mesmo da divisão do
trabalho na sociedade. Mas, como o período manufatureiro leva muito mais longe a
divisão social do trabalho e também, com sua divisão peculiar, ataca o indivíduo em
suas raízes vitais, é ele que primeiro fornece o material e o impulso para a patologia
industrial. (MARX, 1971a, p. 416).
24
Sendo a educação uma prática social necessária à produção e à reprodução das
condições da existência humana, ela não ocorre livremente em uma dada sociedade, mas é
influenciada pela estrutura jurídica representada pelo governo, detentor do poder político-
burocrático e seus respectivos instrumentos que permitem, dentre outras decisões, aquelas da
esfera educacional encarregada de formar os cidadãos numa dada sociedade. Esta estrutura
atua de acordo com o interesse de uma elite econômica ou classe detentora dos meios de
produção.
Não é fortuitamente que há orientações oficiais de organismos financiadores
internacionais (Banco Mundial) para que os recursos públicos de países em desenvolvimento,
como o Brasil, comprometam-se a assegurar à população, não mais do que o acesso à
educação de Ensino Fundamental, apenas, e em longo prazo ao Ensino Médio. As
justificativas são basicamente duas: a primeira é que países em desenvolvimento, como o
Brasil, não podem arcar com despesas de Educação em níveis que uma pequena parcela da
população acessa, como o Ensino Superior, acessado preponderantemente pela classe
econômica mais favorecida. A segunda justificativa é a da superqualificação, ou seja, poderá
haver mais trabalhadores qualificados do que empregos, sem contar a extinção de postos de
trabalho causada pelas rápidas mudanças tecnológicas, desperdiçando-se assim recursos que
devem ser investidos prioritariamente num nível de educação compatível ao tipo de atividade
produtiva a que deverão integrar-se a maioria da população. Nesse caso, há por parte do
relatório do Banco Mundial sobre o Ensino Superior, (BANCO MUNDIAL, 1995), um
ancoramento entre desenvolvimento econômico e educação, ou seja, enquanto a economia do
país não comportar, não é racional expandir o ensino para níveis superiores de duração longa
e de custos elevados. Deste modo, evidentemente, os níveis mais elevados de formação
tendem a continuar prerrogativa de uma minoria mais favorecida economicamente, ou seja,
algo, na prática, privado.
De fato há documentos oficiais que comprovam a assimilação dessa lógica.
Em passado não muito distante, a quase totalidade dos que freqüentavam a
escola regular de ensino médio estava ali de passagem para o ensino superior. Na
atualidade, essa parcela corresponde a o mais de um quarto dos alunos – fração
fácil de calcular, quando se comparam os quase 10 milhões de estudantes de ensino
médio com os cerca de 2,5 milhões de matrículas no ensino superior no país.
Assim, mais freqüentemente, a perspectiva dos jovens brasileiros que hoje
estão nessa escola é obter qualificação mais ampla para a vida e para o trabalho, já
25
ao longo de sua escolarização básica e imediatamente depois. Isso exige revisão
numa escola que se caracterizava, sobretudo, como preparatória para a educação
superior.
Adequar a escola a seu público atual é torná-la capaz de promover a
realização pessoal, a qualificação para um trabalho digno, para a participação social
e política, enfim, para uma cidadania plena da totalidade de seus alunos e alunas.
Isso indica a necessidade de revisão do projeto pedagógico de muitas escolas que
não se renovam há décadas, criadas em outras circunstâncias, para um outro público
e para um mundo diferente deste dos nossos dias. (BRASIL, 2002, p.10)
No âmbito internacional não faltam exemplos da imposição dos interesses capitalistas
sobre a educação. Após a Conferência Mundial intitulada “Educação para Todos”, que
aconteceu em Jomtien, na Tailândia, em 1990 e ao longo de quatro anos um grupo de
pensadores da área de educação, constituído como a Comissão Internacional sobre a Educação
para o século XXI, coordenada pelo pedagogo francês Jacques Delors, elaborou o relatório
“Educação: um Tesouro a Descobrir” (DELORS, 1998) que visa traduzir os princípios
pedagógicos e especificar os problemas e as soluções apontadas naquela conferência.
Segundo o Relatório, a educação deveria passar por reformas para se adequar às mudanças
econômicas, políticas e sociais no cenário mundial. A educação, em âmbito global, apresenta
dois problemas centrais, segundo a comissão: valoriza em excesso aspectos cognitivos e
práticos do saber em detrimento de outras dimensões fundamentais do ser humano; está
baseada em um modelo de formação ultrapassado, baseado no aprendizado de conteúdos e
habilidades mais ou menos estáveis, vinculados a uma determinada qualificação. O relatório
tenta convencer que a educação, na segunda metade do século XX, limitou o desenvolvimento
social ao desenvolvimento econômico ao desenvolver-se pautada em demandas da economia,
o que o relatório considera como problemas globais da educação. “A educação não serve,
apenas, para fornecer pessoas qualificadas ao mundo da economia: não se limita ao ser
humano enquanto agente econômico, mas enquanto fim último do desenvolvimento”.
(DELORS, 1998, p. 85). A perspectiva ideológica presente no relatório parece levá-lo a
inverter as responsabilidades de tal forma que para a comissão não são as relações capitalistas
de produção que limitam os objetivos da educação, mas os objetivos da educação na última
metade de século que têm se fixado, e portanto, se limitado às questões do progresso
econômico ao visar “fornecer pessoas qualificadas ao mundo da economia”.
26
Com mais dois fragmentos dos parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e um do
relatório da Câmara de Educação Básica (CEB 15/98), queremos reforçar a idéia de que as
elites econômicas, por meios ideológicos, impõem com êxito à educação condições que
dificultam mudanças na base material (forças produtivas e relações de produção) de forma a
permitir o real desenvolvimento dos indivíduos de origem trabalhadora.
A nova sociedade, decorrente da revolução tecnológica e seus
desdobramentos na produção e na área da informação, apresenta características
possíveis de assegurar à educação uma autonomia ainda não alcançada. Isto ocorre
na medida em que o desenvolvimento das competências cognitivas e culturais
exigidas para o pleno desenvolvimento humano passa a coincidir com o que se
espera na esfera da produção.
O novo paradigma emana da compreensão de que, cada vez mais, as
competências desejáveis ao pleno desenvolvimento humano aproximam-se das
necessárias à inserção no processo produtivo. Segundo Tedesco, aceitar tal
perspectiva otimista seria admitir que vivemos “uma circunstância histórica inédita,
na qual as capacidades para o desenvolvimento produtivo seriam idênticas para o
papel do cidadão e para o desenvolvimento social”. Ou seja, admitindo tal
correspondência entre as competências exigidas para o exercício da cidadania e para
as atividades produtivas, recoloca-se o papel da educação como elemento de
desenvolvimento social. (BRASIL, 1999, p.12).
Nas condições contemporâneas de produção de bens, serviços e conhecimentos, a
preparação de recursos humanos para um desenvolvimento sustentável supõe
desenvolver a capacidade de assimilar mudanças tecnológicas e adaptar-se a novas
formas de organização do trabalho. Esse tipo de preparação faz necessário o
prolongamento da escolaridade e a ampliação das oportunidades de continuar
aprendendo. (BRASIL, 1998, paginação eletrônica).
Nota-se nesses trechos uma tentativa de fazer convergir interesses do capitalismo com
os de uma educação para “o desenvolvimento social”. Ao se considerar os impactos negativos
do modo de produção sobre a educação, como a separação teoria-prática e outras
conseqüências da objetivação do trabalho, como a alienação, a escassez, a precarização,
intensificação e sobrecarga de trabalho e a informalidade do postos de trabalho, (esta última,
gira em torno 50% da população economicamente ativa do Brasil), tornam-se problemáticas
algumas consideração dos documentos legais, tais como as reproduzidas acima. Cabe ressaltar
27
que são apontamentos em ressonância com o artigo 35 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional vigente desde 1996 - (LDB/96) (BRASIL/MEC, 1996).
A idéia de adaptação aparece em várias partes desses documentos, algumas vezes
mantendo certa identidade com “flexibilidade” reforçando a idéia de que nas novas condições
do modo de produção as pessoas precisam estar prontas a se adaptarem às novas demandas do
mercado. Os educadores são cada vez mais chamados a conhecer a realidade social para saber
melhor o que ela está exigindo dos indivíduos, conforme podemos inferir da leitura dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998, p.12). Evidentemente esta é uma
recomendação valiosa e constituinte das atribuições dos educadores, uma vez desempenhada
de maneira crítica em face dos prejuízos que uma formação vinculada aos interesses de um
mercado de trabalho comprometido estritamente com o desenvolvimento do capital pode
acarretar. O apelo à solidariedade, não só nesses documentos, mas difundido na mídia, é
também uma forma de chamar as maiores vítimas das desigualdades sociais, das “crises” do
capitalismo, a criarem algum alívio para os problemas que as afligem.
A cada estatística de emprego/desemprego, verifica-se cada vez mais o desemprego
estrutural em vários países, independente de serem considerados desenvolvidos ou em
desenvolvimento (aliás, termo que tem sido mais usado que subdesenvolvido ou terceiro
mundo, provavelmente como mais uma forma de ocultar as desigualdades). Nesse quadro
surge o termo “empregabilidade”, em geral, considerado como o quão pode ser empregável
uma pessoa, ou seja, uma espécie de medida do preparo de uma pessoa para o atual mercado,
que sofre de escassez generalizada de empregos. A idéia que acompanha esse conceito é que
quanto mais qualificado for um trabalhador, maior será a sua “empregabilidade”. Isso
transfere para os trabalhadores a responsabilidade de inserção no mercado de trabalho na
medida em que permite à lógica da ideologia capitalista justificar a escassez de empregos
alegando a necessidade crescente de “mão-de-obra” mais e mais qualificada para garantir a
competitividade. A noção de empregabilidade está, pois, clara ao trabalhador excluído, que
busca permanentemente se qualificar por meio de cursos e treinamentos oferecidos por
variadas instituições que vão de “parceiros sociais” a um verdadeiro mercado educacional, no
qual quem pode arcar com custos estuda mais. Mesmo assim, muitos continuam às margens
do mercado de trabalho. O que nem sempre fica claro é que a lógica do capitalismo possibilita
que se produza cada vez mais com menos mão-de-obra, isso não é claramente explicitado para
aqueles que a cada dia procuram novos cursos de qualificação para aumentar a sua
empregabilidade. A isso se soma o fato de que com a falta de postos de trabalho, acirrando a
28
concorrência por uma vaga, os salários tendem a ser reduzidos, ampliando a extração de mais-
valia.
É neste cenário de simplificação do trabalho, redução dos postos de trabalho e
intensificação dos processos contraditórios do capitalismo que se reitera que a educação
escolar pública precisa ser capaz de assegurar, sobretudo aos menos favorecidos
economicamente, o acesso ao conhecimento historicamente acumulado como forma de
possibilitar aos trabalhadores os conhecimentos científico-tecnológicos e sócio-históricos para
a crítica e a luta pelas mudanças na base material necessária ao desenvolvimento social.
Podemos chegar a essa conclusão a partir de um raciocínio direto: se forem os conhecimentos
científicos, tecnológicos e sócio-históricos, apropriados de forma privativa por uma elite
econômica, que permitem o desenvolvimento das bases materiais (forças produtivas e
relações de produção) da forma que lhes convém. Do mesmo modo, superando o fosso entre
os trabalhadores e o entendimento da realidade social, articulando esses conhecimentos à
sociedade de forma concreta, constitui-se um processo indispensáveis ao desenvolvimento (ou
revolução) das bases materiais de forma a permitir aos trabalhadores chegarem a sua
consciência alcançando um conhecimento verdadeiro (práxis social) e avançar na direção da
organização de uma sociedade sem divisão e antagonismo de classes (práxis política).
Evidentemente esta transformação não pode ocorrer fora do embate ideológico da
sociedade capitalista, o que pressupõe necessariamente a impossibilidade de separar e/ou opor
ideologia e Ciência. A Ciência não está alheia ao embate ideológico, pelo contrário, ela
implica um posicionamento frente a este embate. Esse caráter ideológico não é obstáculo à
objetividade da Ciência, a menos que seja também obstáculo ao conhecimento da realidade,
impossibilitada pela imposição da ideologia dominante. Neste sentido a crítica viabilizada
pela dialética materialista histórica representa chances de uma reflexão produtiva rumo a
transformações da sociedade e na construção do conhecimento científico.
Algumas referências ao pensamento de Gramsci (1979), embora não pretendamos
aprofundar uma análise da obra deste autor, ajuda a esclarecer as relações entre trabalho e
educação que se encontram no âmago de uma Educação comprometida com o
desenvolvimento pleno dos homens.
Alinhado à epistemologia dialética materialista, Gramsci (1979), destaca que a ordem
social e estatal, correspondente aos direitos e deveres, é introduzida e identificada na ordem
natural do trabalho.
29
[...] a lei civil e estatal organiza os homens do modo historicamente mais adequado à
dominação das leis da natureza, isto é, a tornar mais fácil o seu trabalho, que é a
forma própria através da qual o homem participa ativamente na vida da natureza,
visando transformá-la e socializá-la cada vez mais profunda e extensamente.
(GRAMSCI, 1979, p.130).
Gramsci lembra ainda que o trabalho (evidentemente não alienado) não pode ser
realizado sem o conhecimento exato e realista das leis naturais e sem uma ordem geral que
regule organicamente a vida recíproca dos homens, ordem que deve ser respeitada por
convenção espontânea a partir de necessidades reconhecidas pelos homens, com liberdade.
Trata-se de desenvolver nos indivíduos as capacidades para um equilíbrio entre a ordem social
(e estatal) e a ordem natural fundamentada no trabalho. É este equilíbrio, segundo Gramsci
que:
[...] fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção
histórico-dialética do mundo, para a compreensão do movimento e do devenir, para
a valorização da soma de esforços e de sacrifícios que o presente custou ao passado
e que o futuro custa ao presente, para concepção da atualidade como síntese do
passado, de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro. (GRAMSCI, 1979,
p. 130-131).
Assim, vemos que o trabalho como princípio educativo em Gramsci não se limita a
formação para o trabalho, mas extrapola para todas as atividades teórico-práticas do homem,
que implica também a esfera da organização da sociedade baseada na convenção espontânea
estabelecida pelos “[...] homens com liberdade e não por simples coação” (GRAMSCI, 1979,
p. 130).
Gramsci defendia uma escola única no sentido de dar a mesma formação para os que
governam e para o que são governados (estes cedem o governo espontaneamente aos
governantes na necessária organização social). Deste modo estaria garantida a cada governado
a aprendizagem gratuita de todas as capacidades e preparação para governar.
Uma última referência a Gramsci suscita particular reflexão sobre a questão dos
estudantes trabalhadores. Gramsci alerta para a tendência de se “afrouxar” ou provocar
“facilidades” nas disciplinas de estudos quanto há participação das massas, reconhecendo-se
apenas como trabalho e fadiga o trabalho manual e julgando artificiais as dificuldades
daqueles de origem trabalhadora. Porém, assim como aqueles de origem trabalhadora têm
mais dificuldade com a adaptação psicofísica necessária ao estudo, os de origem intelectual,
30
ou oligárquica, têm a mesma dificuldade de adaptação ao trabalho manual. Os estudantes
trabalhadores precisam admitir que trabalhar e estudar ao mesmo tempo significa trabalhar
duplamente.
Deve-se convencer à muita gente que o estudo é também um trabalho, e muito
fatigante, com um tirocínio próprio, não só muscular-nervoso mas intelectual: é um
processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e mesmo
sofrimento. [...] Se se quiser criar uma nova camada de intelectuais, chegando às
mais altas especializações, própria de um grupo social que tradicionalmente não
desenvolveu as aptidões adequadas, será preciso superar dificuldades inauditas.
(GRAMSCI, 1979, p. 138-139).
Portanto propostas que venham incidir sobre os processos de ensino e de
aprendizagem não devem trazer qualquer tipo de adaptação aos conteúdos tornando-lhes
versões simplificadas, desnaturadas do conhecimento, ou ainda produzindo uma tipologia de
currículos e escolas destinadas a diferentes públicos. No entanto considerar as diferenças
parece pré-requisito para a o desenvolvimento de metodologias capazes de contribuir com a
superação das diferenças no acesso ao conhecimento sistematizado.
1.1 Algumas idéias sobre ideologia e alienação da dialética
materialista histórica de Karl Marx
Introduziremos essa discussão com uma citação de Leontiev (1978a, p. 274):
Se um ser inteligente vindo de outro planeta visitasse a Terra e descrevesse
aptidões físicas, mentais e estéticas, as qualidades morais e os traços do
comportamento de homens pertencentes às classes e camadas sociais diferentes ou
habitando regiões e países diferentes, dificilmente se admitiria tratar-se de
representantes da mesma espécie.
Mas esta desigualdade entre os homens não provém das suas diferenças
biológicas naturais. Ela é produto da desigualdade econômica, da desigualdade de
classes e da diversidade consecutiva das suas relações com as aquisições que
encarnam todas as aptidões e faculdades da natureza humana, formadas no decurso
de um processo sócio-histórico.
31
Mas o que permite a permanência da estabilidade dessa diferença entre os homens ao
longo da história? A dialética materialista histórica conceitua ideologia como sendo o
mecanismo que a classe social detentora do poder econômico desenvolve para naturalizar a
divisão da sociedade em classes, dissimulando a existência dessa diferença. Para isso, a
ideologia oculta a origem real da sociedade (que se assenta sobre as relações de produção,
relações entre meios de produção e forças produtivas, baseadas na divisão social do trabalho)
criando uma imagem falsa de unidade e identidade social, na qual todos são iguais, perante a
lei, com os homens compartilhando os mesmos direitos e deveres. Cria-se essa imagem de
unificação por meio da língua, da religião, uma pátria, uma raça, uma humanidade, mesmos
costumes, ou mesmo uma democracia (CHAUÍ, 1995). Assim, também o vínculo entre poder
econômico e poder político não é percebido por toda a sociedade, pois a ideologia naturaliza
as diferenças econômicas e outras diferenças decorrentes. Os homens passam a conceber
como naturais e, portanto independente das condições históricas materiais, relações que foram
construídas historicamente e, portanto, podem ser historicamente transformadas.
A ideologia dificulta a identificação das contradições entre as condições concretas em
que a sociedade se dá e as idéias que dissemina. Marx e Engels (1984, p. 72) nos ajudam a
entender que a ideologia não pode ser a expressão de uma realidade natural, mas “apenas a
expressão ideal das relações materiais dominantes”:
As idéias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes;
isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de
produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que
faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias
daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As idéias dominantes
nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as
relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, a expressão das
relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as idéias de sua
dominação. (grifos dos autores).
Mas como atua a ideologia? Quais os seus métodos para ocultar a realidade sobre a
existência de uma sociedade dividida em classes? Chauí (1980, 1995) destaca três
procedimentos da ideologia: inversão entre causa e efeito, imaginário social e o silêncio. Com
a inversão, a ideologia coloca os efeitos como causas e, reciprocamente, causas como efeitos.
Assim, por exemplo, quando Marx infere a partir da abordagem materialista histórica que “O
32
modo de reprodução de vida material determina o desenvolvimento da vida social, política e
intelectual em geral”, por meio da inversão entre causa e efeito, a ideologia, faz com que essa
inferência seja transformada no senso comum, de maneira tal que o desenvolvimento social,
político e intelectual seja o que determina o modo de reprodução da vida material, ou seja, o
desenvolvimento social, político e intelectual de um povo é o que determina o modo de
reprodução da vida material. Deste modo, tudo se passa como se povos mais desenvolvidos
social, política e intelectualmente tivessem um modo de reprodução da vida material mais
desenvolvidos, e não o fato de terem o meio de reprodução da vida material mais
desenvolvido como determinante principal, ou pelo menos estruturador do seu
desenvolvimento social, político e intelectual. Ainda segundo Chauí (1995), ao inverter causa
e efeito (e reciprocamente efeito e causa), é possível também inverter-se princípio e
conseqüência, condição e condicionado, sendo possível criar imagens e idéias aceitas e
incorporadas ao senso comum que representem de maneira falsificada a realidade. Assim cria-
se um imaginário social, um conjunto de representações e relações explicativas ou teóricas e
um sistema de normas e valores que estabelecem representações sobre o que é o ser humano,
o bem, o mal, o justo, o injusto, os bons e os maus costumes etc., que é prescrito para toda a
sociedade. Por fim, para que um imaginário social não se mostre contraditório, mas sim
coerente, é preciso silenciar parte dele. Por exemplo, a ideologia prescreve que se a economia
não se desenvolver a taxas adequadas, não há geração de empregos. Além da inversão entre
causa e efeito, nem sempre acompanha esse tipo de afirmação a informação de que faz parte
da lógica de desenvolvimento da economia, na concepção capitalista, a introdução de
tecnologia como forma de baratear os custos com mão-de-obra e elevar o quantitativo e o
qualitativo do contingente de mão-de-obra de reserva, o que evidentemente está em
contradição com geração de empregos, uma vez que significa extinção de postos de trabalho.
Um outro exemplo corresponde à recente proclamação da tolerância entre as diferenças
culturais, étnicas, religiosas, sociais, sendo esta última colocada naturalmente entre as outras
como também passível de ser tolerada, embora se reconheça, no plano do discurso, que deva
ser reduzida. Oculta-se, silenciam-se as causas precisas das diferenças sociais colocando-a
entre as diferenças naturais ou entre as diferenças causadas pelas diferenças sociais. Assim, a
ideologia dominante, produzida por uma classe dominante, mitifica a realidade, induzindo os
indivíduos que sofrem as conseqüências dessa realidade a endossar de forma consensual as
práticas e condições que são de fato contrárias a seus interesses vitais.
À medida que a divisão social se estabiliza e se reproduz por gerações e entre massas
de seres humanos, nas mesmas condições ou com diferenças não tão significativas nas suas
33
condições materiais, na medida em que as pessoas se estabelecem em determinadas ocupações
em função da divisão social do trabalho, necessária ao modo de produção que se
complexifica, estas posições sociais se incorporam ao imaginário social e se cristalizam como
naturais e inquestionáveis. “Cada um, por causa da fixidez e da repetição de seu lugar e de sua
atividade, tende a considerá-los naturais [...]” (CHAUÍ, 1995, p. 417).
Esse mecanismo de naturalização é a maneira pela qual as idéias podem produzir
alienação social, o que significa conceber a sociedade como uma força natural, existente por
si só, independente do homem. Torna-se uma força como a de um terremoto, furação, como
qualquer força da natureza. Chauí (1995) define a alienação social como o desconhecimento
da origem e das causas da ação sociopolítica e histórica do homem, deixando se dominar por
sua própria atividade histórica. “A alienação social é o desconhecimento das condições
histórico-sociais concretas em que vivemos, produzidas pela ação humana também sob o peso
de outras condições históricas anteriores e determinadas” (CHAUÍ, 1995, p.171). A autora
destaca três grandes formas de alienação social: aquela em que os indivíduos não se
reconhecem produtores das instituições sociopolíticas, ora admitindo tudo como natural,
divino ou racional, ou se imaginando independentes da realidade que os condiciona. Outra
forma de alienação, a econômica, se manifesta duplamente: primeiro quando o trabalhador
não percebe que trabalhando para o proprietário do capital, recebendo um salário pelo que faz,
é reduzido à condição de mercadoria que produz mercadoria, é desumanizado e coisificado
(CHAUÍ, 1995, p.172). Segundo: ao produzir bens que não pode adquirir, não se
reconhecendo enquanto produtor de tais, enquanto classe social que produz os bens dos quais
são privados. A terceira forma de alienação social assinalada por Chauí, desenvolveremos
após algumas considerações sobre a divisão social do trabalho, necessárias a um melhor
entendimento desta terceira forma de alienação.
Com a crescente complexificação do modo de produção, consolida-se a divisão social
do trabalho, originada num cenário de produção e troca de produtos entre famílias nas
sociedades mais antigas, mas que depois se acentuou com a consolidação de diversos ofícios
especializados. Porém o que realmente desencadeou esse processo, conforme salientam Marx
e Engels (1984, p. 44-45):
A divisão do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que
surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual. A partir deste momento, a
consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da práxis
existente, representar realmente algo sem representar algo real; desde este instante, a
34
consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da
teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc., “puras”. (Grifos dos autores).
A intensificação do processo de divisão do trabalho, constrangida pelo modo de
produção capitalista, na medida em que é percebida uma maior produtividade quando o
trabalhador é limitado à operações mínimas, conduz ao trabalho objetivado, fenômeno no qual
o indivíduo, ao contrário do que acontecia no trabalho subjetivado que o antecedeu (no qual o
indivíduo se identificava com o produto, pois participava de todas as etapas do processo
produtivo, da concepção à finalização) não se identifica mais com o resultado, pois sua
participação no processo passa a ser limitada a uma parcela da produção. No excerto abaixo,
Marx (1971a, p. 440) compara estas formas de divisão do trabalho:
Na manufatura, a organização do processo de trabalho social é puramente subjetiva,
uma combinação de trabalhadores parciais. No sistema de máquinas, tem a indústria
moderna o organismo de produção inteiramente objetivo, que o trabalhador encontra
pronto e acabado como condição material de produção. Na cooperação simples, ou
mesmo na cooperação fundada na divisão do trabalho, a supressão do trabalhador
individualizado pelo trabalhador coletivizado parece ainda ser algo mais ou menos
contingente. (MARX, 1971a, p. 440).
Como efeito desta divisão, o indivíduo perde a noção da totalidade do processo. O
trabalho é dividido em intelectual e físico (ou manual). À medida que se distanciam um do
outro se intensificam os processos de alienação nas duas modalidades de trabalho
6
. Origina-
se, nos que realizam trabalho intelectual, uma consciência mutilada na medida em que passam
a admitir que o pensamento e a consciência são por si mesmos separados do mundo material e
estão ligados exclusivamente à produção de conhecimento. O mesmo ocorre com os que
passam a realizar apenas o trabalho físico ou manual. Passam a uma consciência que admite
que trabalho manual não exige conhecimentos, mas apenas determinadas habilidades físicas.
Estão dadas as condições para um terceiro tipo de alienação social, a alienação intelectual,
que segundo Chauí (1995, p.173) é tripla. Primeiro, porque impede que os indivíduos
reconheçam que suas idéias estão associadas às idéias e pontos de vista da classe a que
pertencem. Segundo, porque não permite que reconheçam as idéias como construções, mas
como a própria realidade gravada na natureza, cabendo a eles representá-la em fórmulas ou
6
A discussão sobre a separação do trabalho em físico ou manual e intelectual será aprofundada no capítulo 2 sob
o enfoque da Psicologia histórico-cultural.
35
idéias gerais. Terceiro, quando os intelectuais admitem que as idéias produzem-se umas as
outras, sendo causa e efeito umas das outras separando-se de seus autores (CHAUÍ, 1995, p.
173).
Mais uma vez, uma referência a Marx e Engels (1984, p.45-46) nos ajudam a entender
o que significa a divisão do trabalho:
[...] é inteiramente indiferente o que a consciência sozinha empreenda; de toda esta
porcaria conservamos apenas um resultado, a saber: que esses três momentos – a
força de produção, o estado social e a consciência – podem e devem entrar em
contradição entre si, porque, com a divisão do trabalho, fica dada a possibilidade,
mais ainda, a realidade, de que a atividade espiritual e a material – a fruição e o
trabalho, a produção e o consumo – caibam a indivíduos diferentes; e a possibilidade
de não entrarem esses elementos em contradição reside unicamente no fato de que a
divisão do trabalho seja novamente superada. (grifo dos autores).
Leontiev (1978a, p. 275) nos lembra da seguinte conseqüência da divisão entre a
atividade material e intelectual para o desenvolvimento humano: “Assim, enquanto
globalmente a atividade do homem se enriquece e se diversifica, a de cada indivíduo tomado à
parte estreita-se e empobrece”. Sujeita a esses processos, de maneira sistemática, as
consciências dos homens tendem a se constituírem cada vez mais frágeis. A superação desses
processos depende do processo inverso, a tomada de consciência, que por sua vez depende de
esforço intelectual orientado para produção de conhecimento verdadeiro sobre a condição
sócio-histórica dos homens, suas relações e seu modo de produção da existência. Isso requer a
explicitação das “leis” do processo sócio-histórico, mediante a análise de categorias que
relacionadas as determinam. “Leis” (entre aspas), pois não são forças da natureza, impostas
pelo mundo natural, mas são condicionadas à vontade dos homens e por eles podem ser
transformadas. Mas essa transformação não depende exclusivamente de esforço intelectual.
Conhecer o processo sócio-histórico e transformá-lo depende de uma direta relação das
atividades humanas com a prática real, com a realidade sócio-histórica.
36
1.2 Trabalho e Educação: algumas discussões da literatura
As relações entre trabalho e educação são investigadas em vários países e no Brasil há
aproximadamente 40 anos. As pesquisas nessa área utilizam, em geral, o trabalho como
categoria essencial de análise e a fábrica como lócus privilegiado de pesquisa. Tais pesquisas
têm possibilitado a compreensão de diversos aspectos das novas demandas por educação
oriundas de sucessivas reestruturações do modo de produção, como por exemplo, as
exigências por qualificação e as relações de produção, distribuição e apropriação de
conhecimento e Tecnologia. Nas considerações que realizaremos sobre as discussões em
andamento nesta área, nos fixaremos nas idéias mais gerais destacadas na literatura
especializada. O ponto de partida de nossa discussão será as três clássicas fases da história do
desenvolvimento produtivo, que são admitidas pela grande maioria dos autores, segundo
Paiva (1989):
1ª - Fase em que os trabalhadores dominavam os meios e as decisões sobre a
produção, geralmente o artesão ou pequenos proprietários, vivendo num sistema de
cooperação simples. Os conhecimentos do artesanato e agrícolas eram transmitidos, em geral,
no âmbito familiar.
2ª - Aparece com a expulsão dos homens dos campos e início das cidades e da
manufatura, na qual os trabalhadores detinham os conhecimentos para a produção, mas não os
meios de produção, tais como ferramentas e outros recursos materiais necessários, além do
controle sobre a produção, que compreende os fins de comercialização, nesta fase há uma
desqualificação do trabalhador para o trabalho, em relação à fase anterior.
3ª - Fase da maquinofatura na qual as habilidades e os conhecimentos dos
trabalhadores passam a ser incorporados nas máquinas construídas mediante o
desenvolvimento científico e tecnológico, ficando o trabalhador reduzido a um mero
“acompanhante” do processo para resolver eventuais problemas de funcionamento das
máquinas, ou acioná-las e desativá-las no momento adequado. No entanto, admite-se que este
processo, em face de sucessivas reestruturações da produção começa a exigir mobilidade
(versatilidade) dos trabalhadores, e isso, em tese, abriria as portas para a requalificação da
força de trabalho, alcançando um nível politécnico (admitido aqui como o domínio de
técnicas no plano intelectual, capazes de superar o conhecimento apenas empírico, requerendo
37
formas de pensamento mais abstratas e o conhecimento das conexões entre essas funções -
domínio de técnicas associadas a uma educação geral).
Paiva (1989), após uma revisão da literatura internacional sobre produção e
qualificação do trabalhador, organiza em quatro eixos as tendências encontradas nas
literaturas inglesa, francesa e alemã. Cada uma dessas quatro teses se articula com o sistema
trifásico acima, compondo uma 4ª fase. São as teses: i) requalificação; defensores do
capitalismo monopolista, para os quais o capitalismo contemporâneo tem elevado a
qualificação média dos trabalhadores. ii) polarização das qualificações; o capitalismo
contemporâneo exige um número reduzido de trabalhadores altamente qualificados e a massa
dos trabalhadores permanece num processo de contínua desqualificação. iii) desqualificação;
o capitalismo mantém-se reproduzindo a interface artesanato-manufatura, ou seja, há uma
crescente desqualificação do trabalhador em termos absolutos e relativos. iv) qualificação
absoluta e desqualificação relativa; o capitalismo necessita e leva à formação de trabalhadores
qualificados em termos absolutos (na média a qualificação aumenta), mas em termos de
trabalhador individual, esta qualificação, comparada com o nível de conhecimentos
acumulados pela humanidade, tem diminuído comparada com outras fases do capitalismo.
As discussões sobre as relações entre trabalho e educação, grosso modo, têm oscilado
entre essas teses articuladas com o sistema histórico trifásico.
A despeito dos otimistas que aclamam a qualificação e anos de escolaridade como a
porta para os empregos (se bem que existam posicionamentos mais moderados que
consideram a qualificação e os anos de escolaridade apenas como ampliadores de chances),
argumentos empíricos e teóricos indicam que o emprego de Tecnologia baseada em máquinas
leves (que empregam a microeletrônica) não exige mais conhecimentos dos trabalhadores,
vindo a imprimir um impacto positivo no desenvolvimento intelectual destes, mas podem
representar um obstáculo a mais quanto ao seu desenvolvimento. Isso, pois, reduz-se as
chances de criatividade, na medida em que os trabalhadores podem estar limitados a
interações pré-definidas pela Tecnologia, a qual controla toda produção. Nesse caso, quem em
última instância controlaria a produção? Fica evidente que não é o trabalhador. Hobsbawn
(1995, p. 510) nos auxilia a compreender esse fenômeno de recuo cognitivo frente à
Tecnologia, uma vez que os indivíduos não são chamados a compreender princípios de
funcionamento gerais, ou a modificá-los.
Pois, mesmo que nos suponhamos especialistas num ou noutro campo
determinado – ou seja, o tipo de pessoa que pode consertar o aparelho se der
38
problema, ou projetá-lo, ou constituí-lo -, diante da maioria dos outros produtos
diários da Ciência e Tecnologia somos leigos ignorantes sem compreender nada. E
mesmo que não fôssemos, nossa compreensão do que é que faz a coisa que usamos
funcionar, e dos princípios por traz dela, é em grande parte irrelevante, como é o
processo de fabricar cartas de um baralho para o (honesto) jogador de pôquer.
Podemos notar que muitas vezes pode parecer que utilizamos tecnologia de maneira
criativa, quando na verdade apenas estamos fazendo opções a partir de um “menu” pré-
definido pelo fabricante. Igualmente o trabalhador que lida com tecnologia diariamente,
poucas são as vezes em que de fato interage de maneira criativa com alguma interface
tecnológica. Em geral, somos criativos frente a tecnologia quando conseguimos alterá-la ou
manipulá-la por meio de conhecimentos científicos ou técnicos capazes de explicá-la. Klein
(2003, p.31) desenvolve esta idéia nos seguintes termos:
Na automatização do processo fabril, a comunicação, no interior do sistema
de máquinas, é trabalho morto, atividade humana já realizada, cristalizada em um
conjunto mecânico e fixo de informações articuladas, às quais o maquinário
“responde” mecanicamente. Tal é, também, o entendimento de MACHADO (1992),
na seguinte passagem: “O saber vivo do trabalho é encampado pela lógica
conceitual formalista, que o sintetiza, codifica e o congela ao transformá-lo em
´softwares´ a mais nova expressão do trabalho morto” (com grifos no original).
Sobre a inserção de tecnologia na produção capitalista, lemos em Marx (1971a, p.424)
Não é esse o objetivo do capital, [aliviar a labuta diária dos trabalhadores] quando
emprega maquinaria. Esse emprego, como qualquer outro desenvolvimento da força
produtiva do trabalho, tem por fim baratear as mercadorias, encurtar a parte do dia
de trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte
que ele dá gratuitamente ao capitalista. A maquinaria é meio para produzir mais
valia.
Seguindo em outra linha de argumentação, mas convergente com a crítica da tese
segundo a qual o trabalho capitalista na atual fase exigiria mais conhecimentos dos
trabalhadores, vejamos o que argumentam Araújo (2002) e Livingstone e Sawchuk (2003).
Araújo (2002), apoiado em entrevistas com funcionários de uma grande empresa do
ramo automobilístico, conclui que a exigência de níveis de escolaridade mais elevados (no
caso a que ele se refere, o Ensino Médio) não ocorre como resultado da demanda de um novo
39
perfil educacional, mas sim como resultado da excessiva mão-de-obra disponível, que permite
à empresa realizar um processo de contratação muito mais seletivo, marginalizando os
trabalhadores menos escolarizados. Trata-se, exclusivamente, de um critério de seleção e
recrutamento. Livingstone e Sawchuk (2003), apoiados em pesquisas sociológicas empíricas
realizadas no Canadá, têm defendido a idéia de que boa parte da população adulta do Canadá
domina mais conhecimento do que é necessário em suas atividades profissionais. Embora
sejam evidentes as diferenças das sociedades canadense e brasileira, essas pesquisas mostram
que há no mínimo um ponto de convergência – o modo de produção tem exigido menos
cognição dos trabalhadores, do que contam os discursos otimistas quanto às relações entre
educação e trabalho, em muito apoiadas na idéia de que a inserção da Tecnologia e processos
modernos na produção exigem mais criatividade e autonomia por parte dos trabalhadores.
Nesse caso vale lembrar uma previsão que Braverman (1974) realizou baseado em deduções
de “O Capital” de Karl Marx (MARX, 1971a) (especialmente a partir da quarta parte do
primeiro volume). Segundo Braverman, a busca por qualificação, associada à degenerescência
do trabalho no capitalismo, está consolidando uma tendência de convergência entre a
escolarização de empregados e desempregados. O autor busca “destruir o mito [...] da
crescente qualificação da força de trabalho” defendida por tantos, defendendo a tese de que a
elevação da qualificação, como fruto da extensão da educação às massas é uma idéia
equivocada e ilusória, porque a educação perdeu sua relação com as exigências ocupacionais.
Braverman (1974) ainda reconhece a informática e a automação nos processos de produção
como canais para uma possível superação da divisão técnica do trabalho, o que evidentemente
não acontece, pois segundo o autor, a lógica do capitalismo tem insistido na “velha divisão”
(entre trabalho manual e intelectual).
Salm (1980) argumenta que a escola pode não interessar ao capitalismo do ponto de
vista de elevação da qualificação dos trabalhadores, já que não se demanda trabalhadores
qualificados em proporções como as atendidas pela escola. Porém, segundo este autor, o
capitalismo mantém uma relação somente ideológica com a escola. Frigotto (1984),
contrapondo-se a Salm, reitera o vínculo entre escola e sistema produtivo, reconhecendo um
vínculo indireto baseado numa mediação que pode reafirmar ou negar as relações sociais de
produção, portanto há função social no espaço escolar que pode possibilitar o acirramento das
contradições entre forças produtivas e capital. Para isso é preciso buscar preservar a função
social da escola comprometida com o desenvolvimento integral dos indivíduos, não
subordinando-a as demandas do capital.
40
Na perspectiva das classes dominantes, historicamente, a educação dos diferentes
grupos sociais de trabalhadores, deve dar-se a fim de habilitá-los técnica, social e
ideologicamente para o trabalho. Trata-se de subordinar a função social da educação
de forma controlada para responder às demandas do capital. (FRIGOTTO, 1995, p.
26).
A investigação de Kuenzer que resultou no livro “A pedagogia da fábrica” (1985),
revela que a fábrica capitalista desempenha um papel pedagógico, ou seja, educa seus
trabalhadores. Por meio da categoria hegemonia, Kuenzer conclui que a hierarquia
organizacional da fábrica compõe uma estrutura pela qual o capitalista consegue o domínio do
trabalhor por meio de processos essencialmente pedagógicos.
Shiroma e Campos (1997), apoiadas em uma revisão da literatura nacional sobre as
relações entre trabalho e educação, defendem que grande parte dos pesquisadores têm
admitido que a inserção de Tecnologia na produção ocorre à revelia da oferta de trabalhadores
qualificados. Isto é comprovado pelo decréscimo de vagas de emprego existente na indústria,
em termos absolutos, tanto em países de economia central quanto periférica, ao mesmo tempo
em que o capitalismo se alimenta de trabalho precário.
Diferente dos tipos ideais de produção flexível difundidos pela literatura, a
flexibilização “à brasileira” tem sido construída num contexto de desregulação do
mercado de trabalho, de formas espúrias de terceirização, de exploração do serviço
temporário, de exploração do trabalho infantil, de crescimento vultuoso do mercado
informal, gerando um quadro de precarização do emprego e de crescente exclusão
social. (SHIROMA e CAMPOS, 1997, p. 29).
Embora, no plano do discurso, governos demonstrem interesse na superação desse
quadro, a análise empírica mostra que há um longo caminho até a reversão desse quadro.
Precisamos destacar que um aspecto marcante da literatura sobre as relações entre
educação e trabalho no Brasil, é a discussão em torno das questões relativas à educação
profissional, que tem levado os autores a um intenso debate com vistas à superação de um
modelo de educação profissional em que nada, ou muito pouco, tem a ver com um modelo de
educação que vise a formação completa do estudante, mas limitando-se a formar um
trabalhador adaptado a determinadas demandas, como chama a atenção Ribeiro (2005, p.129).
A formação teórico-prática, enquanto qualificação profissional que conferia
identidade aos trabalhadores, pode ser considerada um avanço conquistado pelos
41
movimentos sindicais na área da regulamentação das relações entre trabalho e
capital. Mesmo assim, ela permanece unilateral, colada a uma profissão e
determinada pelo mercado que a rejeita tão logo os sujeitos do capital imprimam
mudanças nos processos produtivos.
As críticas à desvinculação entre formação profissional e Ensino Médio emanam da
compreensão de que fica dificultada uma formação que não reponha a sujeição da educação às
imposições do mercado, isolando formação profissional e uma formação básica de natureza
geral. Shiroma e Campos (1997, p. 29) argumentam que: “Com surpresa, e não mais com o
otimismo pedagógico de outrora, assistimos às recentes propostas de reformas educacionais e
ficamos curiosos por saber os resultados de uma formação profissional desvinculada de uma
sólida educação básica”. Evidentemente, esta afirmação é valida para a educação profissional
formal, que ocorre nas instituições específicas, mas não para a formação profissional que
ocorre nas práticas de trabalho, nas vivências dos trabalhadores, no compartilhamento de
saberes entre trabalhadores. Esta particularidade da formação do trabalhador real também
deve ser levada em conta.
1.3 Física no Ensino Médio e Trabalhadores: problemas e
investigações
A já clássica descrição de Pacheco e Megid Neto (1996) resume bem a situação geral
percebida ainda hoje quando falamos de ensino de Física na educação básica brasileira,
embora essa também seja a realidade do ensino de Física em outros países e para outras
Ciências (FOUREZ, 2003).
Ao longo dos quase 160 anos, o processo escolar de ensino-aprendizagem dessa
Ciência [a Física] tem guardado mais ou menos as mesmas características. Um
ensino calcado na transmissão de informações através de aulas quase sempre
expositivas, na ausência de atividades experimentais, na aquisição de conhecimentos
desvinculados da realidade. Um ensino voltado primordialmente para a preparação
aos exames vestibulares, suportado pelo uso indiscriminado do livro didático ou
materiais assemelhados e pela ênfase excessiva na resolução de exercícios
puramente memorísticos e algébricos [...]. Um ensino que apresenta a Física como
uma Ciência compartimentada, segmentada, pronta, acabada, imutável. (PACHECO;
MEGID NETO, 1996, p. 6-7).
42
Tal situação até o momento não superada em nossas escolas, se agrava
substancialmente quando falamos de ensino de Física para estudantes trabalhadores que, em
geral, freqüentam a escola noturna, conforme já dissemos, acarretando, na maioria dos casos,
condições objetivas desfavoráveis à aprendizagem, tais como: cansaço proveniente do
trabalho, falta de tempo para estudos autônomos, conteúdo resumido, subestimação por parte
de professores e funcionários da escola, conteúdo de difícil relação com a realidade, dentre
outros. Gonçalves; Passos, S; Passos, A (2005, p. 346) resumem as condições do ensino
noturno, percebidas em pesquisa com estudantes, nos seguintes termos :
De um modo geral, o cotidiano do ensino noturno apresenta uma
característica singular, pois recebe um alunado esgotado, que na sua grande maioria,
chega à escola após uma jornada de trabalho. Um alunado que chega reprovado pelo
cansaço, que se evade e desiste da escola, porque o que aprende na sala de aula
pouco tem a ver com o mundo do trabalho.
Raboni (1993) constata que prevalece entre professores e estudantes uma mentalidade
de que o estudante do noturno tem menores possibilidades de aprendizagem do que outros
estudantes, devido à jornada de trabalho a que se dedica durante o dia. Essa visão deprecia as
capacidades e potencialidades que o estudante trabalhador possui, levando freqüentemente a
adoção, por parte dos professores, de programas e materiais excessivamente resumidos em
relação aos utilizados no diurno, o que desfavorece a atribuição de sentidos e a compreensão
dos estudantes. E ressalta que “A convivência com os trabalhadores no local de trabalho e as
sínteses elaboradas a partir das observações feitas mostraram o trabalhador como portador de
conhecimentos e habilidades, que nunca são considerados quando este trabalhador está na
escola na condição de aluno” (RABONI, 1998, p. 91).
Analisando o Ensino das Ciências Naturais em geral ou o Ensino de Física em
particular, desenvolvido com o estudante trabalhador, verifica-se que as relações entre
trabalho e educação não têm sido objeto de ampla discussão, mesmo se tratando de uma
relação incentivada, de modo geral, nos documentos oficiais, tais como a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB/96) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).
Em meio às pesquisas em Ensino de Física, com informações indexadas a bases de
dados, sistema de bibliotecas de diversas universidades, catálogos, periódicos de ensino de
Física, banco de teses e dissertações da CAPES, revistas digitais ligadas a grupos de pesquisas
43
ou universidades, atas dos Encontros de Pesquisa em Ensino de Física, Simpósio Nacional de
Ensino de Física e solicitação direta de referências específicas a pesquisadores da área, não
encontramos mais do que dois trabalhos de pesquisa abordando de forma central as relações
entre trabalho e Ensino de Física para o Ensino Médio: uma dissertação de mestrado, Raboni
(1993) (e em um posterior recorte deste trabalho (1998)) e uma tese de doutorado Garcia
(2000) e diversos recortes dessa pesquisa (1999, 2001 e 2002). Encontramos, ainda, outros
três trabalhos de pesquisa
7
relacionados ao ensino de Ciências para estudantes trabalhadores,
porém atentos à clientela e aspectos distintos dos que delimitamos neste trabalho. São eles:
Soares (1992) que investiga a função do ensino de Ciências e Matemática para crianças e
adolescentes de populações marginalizadas e Haracemiv (1994) que explora a questão do
ensino de Química na educação de adultos, buscando uma proposta pedagógica para o ensino
de Química em cursos supletivos, cuja clientela é constituída basicamente por estudantes
trabalhadores, que instrumentalize o ensino de forma a permitir ao estudante pensar o seu
cotidiano. Trevisan (2003) nota que prestadores de serviço (encanadores e eletricistas)
mantêm uma relação de sobrevivência com o saber tácito que lhes permite resolver problemas
sem, no entanto, que tais soluções passem por um plano de abstração tal como podem fazer
aqueles que já tiveram um contato formal com a matéria. Esses trabalhadores enfrentam um
obstáculo à abstração num formato científico – estão afastados da escola, diferentemente dos
estudantes trabalhadores, que se encontram na “interface” trabalho-estudos.
Raboni (1993) ao configurar a problemática de sua pesquisa (“O trabalho e suas
relações com o ensino de Física no 2° grau noturno da escola pública”) reconhece o estudante
trabalhador como inserido num “universo desafiador, que requer atenção, maturidade,
responsabilidade, habilidades, conhecimentos” que é o universo do trabalho. Todas essas
potencialidades, segundo Raboni, estão sendo negligenciadas pela escola. Ao buscar um
caminho de integração do “universo” do trabalho com o da escola, o autor alerta que o
caminho natural de transportar para a sala de aula conhecimentos de algumas atividades mais
relacionadas à Física, a título de exemplificação da teoria, sem alterar estruturalmente o curso,
já tem sido parcialmente realizado por meio de alguns livros didáticos, sem, no entanto,
resultar em melhorias significativas no ensino de Física. Um segundo caminho considerado
por esse pesquisador é mostrar a relevância da Física e suas múltiplas aplicações na prática do
7
Nossa busca se limitou a trabalhos de pesquisa, portanto, não foram buscadas propostas em livros didáticos e
outros materiais destinados diretamente à salas de aulas ou cursos específicos. Nesse caso, existem materiais
como, por exemplo: PITOMBO, L. R. M. Química - Programa Integrar - Formação e qualificação para o
trabalho. São Paulo: Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CUT)/ Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 1997.
44
trabalho, o que segundo ele, já representaria um avanço. Mas baseado nos resultados de sua
pesquisa e experiência como professor de estudantes trabalhadores, Raboni avança “Mas,
mais do que isso, parecia necessário valorizar e respeitar o aluno do jeito que ele é, com
dificuldades e limitações, porém com habilidades e conhecimentos, maturidade,
responsabilidade e profissionalismo dignos de apreciação”. (RABONI, 1993, p. 29).
Embora tenha como ponto de partida de sua investigação um questionário aplicado aos
estudantes do período noturno de uma escola pública de Campinas-SP, Raboni foca sua
pesquisa nos trabalhadores de duas indústrias do ramo de lentes e óculos, guiado pelo critério
que selecionou, a partir do resultado dos questionários, que o levou a selecionou um estudante
trabalhador de uma das indústrias pesquisadas. Seu critério foi “a proximidade com conteúdos
da física” (RABONI, 1993, p. 30).
Por outro lado, Garcia busca seus “sujeitos” diretamente na fábrica na qual realiza as
observações e entrevistas em vários níveis da hierarquia de produção. Em ambas as pesquisas
o foco está no trabalhador da fábrica e não necessariamente no estudante trabalhador do
Ensino Médio. Se levarmos em conta que o setor de serviços e comércio tem absorvido
grande parte dos estudantes do Ensino Médio e também de outros níveis de escolaridade,
torna-se importante averiguar novas relações entre trabalho e Ensino de Física que possam
subsidiar propostas de ensino com vistas a considerar as potencialidades de estudantes que
atuam em outros setores da economia diferentes da indústria. Haveria, neste sentido, uma
parcela bastante significativa numericamente que parece ainda não ter sido contemplada em
pesquisas de Ensino de Física, todo um conjunto de estudantes do Ensino Médio que não
trabalham em indústrias, mas o que não significa que não estejam sujeitos a condições
semelhantes aos trabalhadores de fábricas. Entretanto, para se afirmar isso, é preciso antes
encaminhar questões e buscar respondê-las.
Outro ponto a destacar é que Garcia (2000) investiga a utilização de forma consciente
pelos trabalhadores da fábrica de conceitos da Física, mesmo que essa “consciência” tivesse
que ser estimulada por uma lista de tópicos de Física apresentada aos trabalhadores para que
estes reconhecessem, ou lembrassem, uma vez que se tratava de trabalhadores que já haviam
concluído o Ensino Médio ou cursos técnicos. Já Raboni explora a utilização desses conceitos
sob a forma empregada nas atividades produtivas, que nem sempre são reconhecidas pelos
trabalhadores enquanto objeto de estudo da Física, mesmo porque muitos, talvez a maioria do
público investigado por ele, não tenha cursado o Ensino Médio, na época chamado 2º grau.
Destas investigações, embora ambos os autores abordem aspectos para uma
aproximação entre a cognição na escola com a cognição no trabalho, Raboni (1993) coloca
45
seu foco na superação dos problemas no ensino de Física no Ensino Médio noturno para
estudantes trabalhadores por meio do aproveitamento ou consideração de suas potencialidades
enquanto trabalhadores, enquanto que Garcia (2000) é mais sistemático no levantamento de
assuntos de Física escolares presentes numa linha de produção específica. Ambas as pesquisas
têm como foco o trabalho em linhas de produção industriais, porém, conforme indicaremos,
há uma grande diversidade de ocupações às quais têm se dedicado os estudantes trabalhadores
no Ensino Médio e que não podem deixar de ser contempladas para que o trabalho seja
reconhecido enquanto práxis humana, assim como a Ciência, possibilitando sínteses
necessárias ao estudante trabalhador no seu desenvolvimento não enquanto força produtiva
apenas, mas principalmente, enquanto atores centrais da transformação das bases materiais,
historicamente necessária aos trabalhadores.
Ao considerar questões relativas a aprendizagem, consideramos importante tratar de
forma destacada as contradições essenciais entre o trabalho e capital radicadas na contradição
entre valor-de-uso e valor-de-troca e que se expressam sob várias formas como a
desqualificação do trabalhador pela divisão do trabalho, ou qualificação regulada pela
necessidade racionalizada do modo de produção, processos de alienação, exigência de
qualificação como critério burocrático de seleção, dicotomia entre teoria e prática com
supervalorização da teoria, dentre outras. Ratner (1999) chama a atenção para a influência de
características sociais das ocupações na cognição dos trabalhadores, tais como; diferenças em
criatividade, autonomia, tempo livre, status, salário, hierarquia das ocupações, alienação dos
trabalhadores em relação ao controle da atividade, o processo de maximização dos lucros às
custas das necessidades humanas dos trabalhadores, etc, certamente tais características têm
efeitos sobre as condições psicológicas dos trabalhadores e a sua relação com o
conhecimento. Características como estas levam a necessidade de avançar nas questões
presentes na realidade do estudante trabalhador brasileiro.
Uma das necessidades é trazer à consciência do estudante trabalhador a realidade
contraditória em que vive e mostrar potencialidades do conhecimento científico em geral e de
Física, no nosso caso, para aprofundamentos sobre a realidade, bem como para ampliar as
possibilidades de seu enfrentamento efetivo, uma vez inserido num contexto de conhecimento
em que possa auxiliar na revelação dos mecanismos da dominação sobre os meios de
produção, por meio do que ela (a Ciência) potencializa enquanto uma signatária das
revoluções tecnológicas que propiciam às elites econômicas se perpetuarem enquanto classe
dominante cultural e econômica, ao revolucionar constantemente os meios de produção.
46
O capítulo seguinte apresenta um quadro teórico que nos permitirá aprofundar a
reflexão sobre as contradições entre forças produtivas e modo de produção, mediante uma
abordagem psicológica que nos permite identificar elementos importantes, sobretudo para a
educação escolar, para traçar caminhos com vistas ao enfrentamento dos processos
contraditórios do capitalismo, colocando os processos educativos como centrais.
47
Capítulo 2 – Conhecimento, consciência e desenvolvimento:
compreensões a partir da abordagem da Psicologia histórico-
cultural.
Fundamentados na epistemologia do materialismo histórico e dialético, pensadores
como Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934), Aleksei Nikolaevich Leontiev (1903-1978a) e
colaboradores tornam-se os principais articuladores da chamada Escola Russa em Psicologia,
ou Psicologia histórico-cultural. Tais pensadores são tidos como os pioneiros de uma
Psicologia marxista proposta em contraposição à psicologia que até então se desenvolvera,
segundo os autores soviéticos, desconsiderando as relações entre a materialidade histórica
sobre a qual se dá o desenvolvimento humano e a constituição da psicologia humana. Assim,
a Escola Russa considerou intrínseco ao psiquismo humano as atividades exteriores e não
somente as atividades interiores como o fazia a psicologia até então desenvolvida, a qual
chamavam tradicional. Não raramente também se referiam à Psicologia até então conhecida
como idealista, burguesa ou mesmo a consideravam não científica por desconsiderar, ou não
considerar na medida apropriada, a totalidade do ser humano que inclui a materialidade sócio-
histórica. Partindo do fato fundamental de que “a estrutura da consciência humana está
regularmente ligada à estrutura da atividade humana”, Leontiev (1978a, p. 99) descreve
assim, o método a ser empregado na investigação dessa ligação:
“O nosso método geral
consiste, portanto, em encontrar a estrutura da atividade humana engendrada por condições
históricas concretas, depois, a partir dessa estrutura, pôr em evidência as particularidades
psicológicas da estrutura da consciência dos homens”. (LEONTIEV, 1978a, p. 100).
Os psicólogos russos não ignoraram os resultados da psicologia tradicional, eles não se
isolaram, mas fundamentando seus trabalhos numa base epistemológica diferente, foram
levados a refutar muito do que parecia estar estabelecido, mas também confirmaram outros
resultados já alcançados pela psicologia tradicional por outras vias.
Para a escola russa, essa nova psicologia não poderia ser a mera justaposição do
sistema filosófico da dialética materialista histórica com elementos da psicologia até então
desenvolvida, mas deveria ser necessariamente uma psicologia desenvolvida a partir da matriz
48
epistemológica do materialismo histórico e dialético. Leontiev relata passagens desse
desenvolvimento nos seguintes termos:
O desenvolvimento da ciência psicológica soviética, por outro lado, assumiu
um caminho inteiramente diferente [daquele caminho teórico e metodológico
tomado pelas escolas em psicologia até então desenvolvidas].
Os cientistas soviéticos contrapuseram ao pluralismo metodológico uma
metodologia marxista-leninista que permitia a penetração na natureza real da psique,
na consciência do homem. Começou uma busca persistente de soluções para os
principais problemas teóricos da psicologia com base no Marxismo.
Simultaneamente, continuou-se o trabalho sobre a interpretação crítica baseada em
realizações positivas de psicólogos estrangeiros, e foram iniciadas investigações
específicas de uma ampla série de problemas. Foram elaboradas novas abordagens,
assim como um novo aparato conceitual que permitiu trazer a psicologia soviética
para um nível científico muito rapidamente [...]. Apareceram novos nomes na
psicologia: Blonsky e Kornilova, depois Vygotsky, Uznadze, Rubinstein, e
outros. (LEONTIEV, 1978b, paginação eletônica, tradução nossa).
O marxismo não foi, para Leontiev, um referencial assumido a priori, mas “Foram
suas investigações que o levaram a defender a natureza sócio-histórica do psiquismo humano
e, a partir daí, a teoria marxista do desenvolvimento social tornava-se-lhe indispensável”.
(LEONTIEV, 1978a, p.1).
O conceito de atividade humana, no contexto de uma psicologia histórico-cultural,
bem como os resultados dessa escola de psicologia que fundamentam a tese de que o
desenvolvimento da consciência é social, ou seja, se dá mediante a organização social dos
homens, será o “lastro” teórico da análise a que pretendemos.
Apoiado na idéia formulada por Karl Marx em sua obra “Teses sobre Feuerbach”
(1845) sobre o caráter de orientação ao objeto presente na atividade humana, o primeiro a
sugerir um esquema mediativo como esquema fundamental de análise na psicologia russa foi
Vygotsky (LEONTIEV, 1978a). Vygotsky formula o conceito de mediação, segundo o qual, o
homem não interage diretamente com o meio através de reflexos inatos, mas é mediado por
signos e significados. Nesta concepção, a atividade humana e seu desenvolvimento ao longo
da história, exigem a mediação de ferramentas psicológicas e meios de comunicação
interpessoal. Este novo esquema de análise necessitou de uma inovação no conceito de
atividade distinguindo atividade coletiva e ação individual, mas também estabelecendo entre
esses conceitos uma relação dialética. Este passo foi alcançado por Alexei Leontiev pela
49
reconstrução do aparecimento da divisão do trabalho como um processo sócio-histórico
fundamental por trás da evolução das funções mentais humanas, conforme veremos.
A figura a seguir ilustra a evolução do esquema de análise da psicologia, desde o
esquema criticado pela escola russa (a), o modelo básico de mediação proposto por Vygotsky
(b) e o modelo generalizado por Leontiev (c). “A”, na figura, corresponde à influência sobre
os sistemas receptores do indivíduo, “O” corresponde aos fenômenos objetivos e subjetivos
que surgem em resposta, e “X” corresponde à mediação.
(a) (b) (c)
Figura 1- Evolução do esquema de análise da psicologia, desde o esquema criticado pela escola russa (a), o
modelo básico de mediação proposto por Vygotsky (b) e o modelo generalizado por Leontiev (c).
Leontiev (1978a) ao esclarecer as bases sobre as quais o psiquismo humano se
desenvolveu, tomando por fundamento a necessária relação social do indivíduo com a sua
coletividade, amplia o modelo original de Vygotsky, esboçando um sistema coletivo de
atividade baseado em três níveis. Leontiev explica a diferença entre a ação individual em uma
atividade coletiva, tornando distinguíveis atividade, ação e operação. O nível superior da
atividade dirigido por um motivo é orientado a um objeto; o nível médio em que a ação do
indivíduo (ou grupo) é dirigida por uma meta consciente; e finalmente o nível inferior da
atividade correspondente à execução de operações automáticas que são dirigidas pelas
condições e ferramentas disponíveis na ação. Nossa análise não se desenvolverá a partir
dessas diferenciações, focando-se na idéia geral de atividade, segundo Leontiev (1978a),
mesmo porque a atividade deve ser compreendida como um todo, evitando-se a análise de
seus níveis isoladamente. Procederemos a uma análise, na próxima seção, a partir de um
exemplo fictício, em que se percebe que ações isoladas, sem coerência entre si, não
constituem uma atividade, uma vez que não permitem uma relação coerente do resultado
imediato da ação com o objeto da atividade como um todo, ou seja, com o seu motivo.
50
2.1 A Teoria histórico-cultural da atividade
A formulação de atividade humana da psicologia histórico-cultural não permite
reconhecer todos os processos como atividades, mas apenas os que estiverem
psicologicamente caracterizados como dirigidos, enquanto processo como um todo, para um
objeto que coincida com o objetivo que estimula o sujeito a executar a atividade, ou seja, o
motivo.
Descobrir se um processo é uma atividade ou não, nos termos da teoria histórico-
cultural da atividade, carece de uma análise psicológica que revele o que o processo
representa para o sujeito.Vamos imaginar uma situação hipotética, a qual vamos desenvolver
baseados em Leontiev (1998).
Imagine que um estudante está tentando compreender um conceito de Física para o
exame que deverá se submeter, quando fica sabendo que tal conceito não será necessário para
a realização daquele exame. O estudante pode continuar estudando o conceito, interromper,
passando para outro conceito, mas com relutância, pois estava interessado no primeiro
conceito, ou pode ainda abandonar o estudo do referido conceito passando para outro (que vai
constar no exame) sem nenhuma relutância. Nos dois primeiros casos temos uma atividade de
fato, pois o que dirigia o estudo do conceito era o seu conteúdo. O conteúdo do conceito
estimulou o processo por si só, foi o motivo do processo de estudo. Alguma necessidade
especial fazia o estudante obter satisfação no processo. Por outro lado, se ele abandona o
conceito e passa a outro que de fato necessitará no exame, o que dirigia seu processo de
estudo não era o conteúdo em si, mas a necessidade de ser aprovado no exame. Neste caso,
aquilo para o qual o processo se dirigia não coincidia com o que o induzia a estudar. Em
outras palavras, o motivo (ser aprovado) não coincide com o que dirigia o processo como um
todo (estudar um conceito de Física). Ou ainda, o que ele precisa é passar no exame, mas o
que ele está fazendo? Ora, está estudando um conceito de Física. Neste caso, estudar Física
não era uma atividade, mas sim a preparação para o exame
8
.
Um processo no qual seu motivo e seu objetivo não coincidem, residindo o motivo na
atividade da qual ele (o objetivo) faz parte, Leontiev denomina ação. Em outras palavras, no
exemplo dado, o estudo do conceito, para o estudante que quer apenas ser aprovado, é uma
8
Exames, provas, listas de exercícios etc., tem a função de auxiliar na aprendizagem e na avaliação dos
processos de ensino e de aprendizagem, mas não faz sentido assumi-los como finalidade última da
aprendizagem.
51
ação, pois aquilo para o qual ele se dirige não é o motivo (ser aprovado), mas sim o domínio
de um conceito de Física. Assim, se o motivo da atividade for substituído, pode passar para o
objeto da ação ocorrendo a transformação da ação em atividade. Esta é a maneira pela qual
surgem todas as atividades e novas relações com a realidade (LEONTIEV, 1998, p.69).
Ações, isoladamente, não são justificadas pelos motivos. É necessário que o conjunto das
ações que compõem a atividade se articulem entre si de forma coerente. Assim, os resultados
imediatos de uma ação se relacionam com o motivo de uma atividade. Sendo assim, é
importante analisarmos alguns processos psicológicos que originem novos motivos.
Embora o estudante possa compreender que precisa conhecer muitos conceitos de
Física para conseguir uma compreensão coerente da realidade a partir dela, seu “motivo
maior” é ser aprovado no exame, talvez porque signifique um cargo, ou uma oportunidade de
maior escolarização. Nesse caso, Leontiev (1998, p. 70) consideraria o primeiro (compreender
a realidade Física) como motivo compreensível e o segundo (ser aprovado) como motivo
eficaz. “Mantendo em nossas mentes esta distinção podemos agora apresentar a seguinte
proposição: ‘só motivos compreensíveis’ tornam-se motivos eficazes em certas condições, e é
assim que os novos motivos surgem e, por conseguinte, novos tipos de atividade”.
(LEONTIEV, 1998, p. 70). Mas como isso é possível? Segundo Leontiev (1998, p. 70) é um
processo relativamente simples: “É uma questão de o resultado da ação ser mais significativo,
em certas condições, que o motivo que realmente a induziu”. Em nosso exemplo, o estudante
pode perceber que se tratando a Física de um corpo de conhecimento que se fragmentado se
torna de compreensão mais dificultada, ou mesmo impossível, poderá descobrir que
estudando os conceitos interdependentes poderá obter mais do que a aprovação no exame,
uma compreensão melhor da realidade física. Ocorrerá uma nova objetivação de suas
necessidades, uma compreensão mais ampla de suas necessidades. Nesta lógica, a atuação da
educação escolar pode ser decisiva na criação de novos motivos e necessidades para o
processo de aprendizagem, ou mesmo para o processo de ensino. Leontiev (1998, p. 83) em
nota questiona:
A arte da criação e da educação não consiste, em geral, no estabelecimento
de uma combinação apropriada de motivos “compreensíveis” e “realmente eficazes”
e, ao mesmo tempo, em saber como, em boa hora, atribuir maior significado ao
resultado bem-sucedido da atividade, de forma a assegurar uma transição para um
tipo mais elevado dos motivos reais que governam a vida do indivíduo?
52
Segundo Leontiev esta análise corresponde ao aspecto “processual” da psique,
entretanto nos falta ainda uma análise mais importante que trata das interconexões internas
das mudanças de atividade. Para isso é necessário abordar o problema psicológico da
“unidade do desenvolvimento dos conteúdos sensíveis, da consciência e das categorias de
consciência que divergem uma da outra, as quais traduzimos pelos termos ‘sentido’ e
‘significado’” (LEONTIEV, 1998, p. 83).
2.2 Relação entre significação objetiva e sentido pessoal: a estrutura
interna da consciência humana e a natureza das suas
transformações segundo a teoria histórico-cultural da atividade.
Leontiev (1978a, p. 90-93) argumenta que a psicologia tradicional desconsiderava o
processo sócio-histórico, e isso inviabiliza o estudo do psiquismo humano, pois, segundo ele,
levava à conclusão de que “as propriedades do psiquismo humano são em toda parte e sempre
idênticas”, e que apenas o conteúdo da experiência, do conhecimento, dos costumes humanos
modifica-se (LEONTIEV, p. 89). Mas, há muito tempo, segundo Leontiev, tal concepção foi
superada, embora se limitando ao estudo das transformações destes processos psíquicos.
Assim, se concluía, por exemplo, que a memória de homens pertencentes a grupos
economicamente atrasados possuía uma exímia memória topográfica e um pensamento
original, constituindo um tipo de lógica própria. Porém, continua Leontiev, apenas isso não é
suficiente para compreendermos a história do desenvolvimento do psiquismo humano. É
evidente que homens vivendo em espaços, épocas e condições socioeconômicas diferentes
também se distinguem pelo que para eles é o pensamento, a memória e as percepções, mas tal
diferença dos processos não pode explicar a diferença dos seus psiquismos, da sua
consciência, esta última “[...] a forma histórica concreta do seu psiquismo [do homem]”.
(LEONTIEV, 1978a, p. 88).
A passagem do homem à humanidade ocorre com o aparecimento de um tipo superior
de psiquismo, a consciência. Tal fato se dá ao mesmo tempo em que aparecem relações de
produção entre os homens. Como é sabido, as relações de produção se transformam e
Leontiev exemplifica citando o modo de produção nas comunidades primitivas e na sociedade
capitalista. Esta é, por si, apenas uma importante razão para pensarmos que mudanças radicais
no modo de produção devem produzir mudanças não menos radicais na consciência humana
53
(LEONTIEV, 1978a, p. 91). Por isso, tratar a consciência humana como absoluta, sem
qualidades, própria, eterna, conforme o fazia a psicologia tradicional, seria considerar apenas
um espaço psíquico particular. Leontiev mostra que os reflexos psíquicos do homem estavam
condicionados à estrutura da atividade e que tal condicionamento se conservou posteriormente
nas diferentes etapas da consciência humana. A principal característica do desenvolvimento
do reflexo psíquico é que ele está apoiado na realidade que é mostrada ao homem pela
“estabilidade objetiva das suas propriedades” (LEONTIEV, 1978a, p. 92), isso revela ao
homem uma realidade independente das relações subjetivas que possam ser estabelecidas.
Outra característica a ser considerada é que todo reflexo psíquico ocorre em função da
interação concreta entre o sujeito material, organizado, e a realidade material que o circunda.
Tal característica ocorre tanto para o homem como para todos os animais, entretanto no
homem ocorre de modo bastante diferente em função do aparecimento da consciência que faz
com que ele seja refletido nas suas relações objetivas.
O batedor de caça primitivo que espanta um animal – este é o objetivo
imediato da sua ação – tem consciência do seu objetivo, quer isto dizer que este se
reflete nas suas relações objetivas (no caso, trata-se de relações de trabalho), na sua
significação.
A significação é aquilo que num objeto ou fenômeno se descobre
objetivamente num sistema de ligações, de interações e de relações objetivas.
(LEONTIEV, 1978a, p.93-94).
A significação é uma propriedade da consciência, responsável pela mediação do
homem com os seus reflexos do mundo, quando estes se apóiam na experiência da prática
social. Assim, a consciência não reflete apenas as propriedades físicas de um objeto ou de um
conceito, mas o reconhece a partir de suas significações correspondentes. Por exemplo, a
consciência de um digitador não reflete um teclado alfa-numérico como um conjunto de
sólidos de forma aproximadamente cúbica fixados num suporte ou bandeja retangular, mas
sim como um periférico para entrada de dados no computador, como um instrumento de
inserção digital de caracteres.
O Sentido pessoal, porém, é dependente do motivo que impele o sujeito a realizar uma
atividade. Assim, por exemplo, um fato histórico ligado a uma data pode assumir diferentes
sentidos (sentidos pessoais) para diferentes pessoas - para um soldado que participou de uma
batalha na referida data, o hipotético fato histórico terá um sentido diferente, por exemplo,
daquele dado por um estudante que leu um texto sobre o fato nos livros de história,
54
diferentemente da significação social de um objeto material, ou conceito teórico, por
exemplo, que possua, digamos, um sentido social, uma significação que socialmente lhe foi
atribuída e conservada, o sentido está ligado ao indivíduo nas suas relações concretas com o
mundo. O sentido constitui-se nas relações objetivas, refletidas na mente, determinando as
relações entre o que incita um agir e o resultado imediato para o qual a ação se orienta, ou
seja, a relação fundamental entre motivo e fim. Deste modo, podemos dizer então, que o
sentido pessoal encontra-se no motivo correspondente.
A significação é o reflexo da realidade independentemente da relação
individual ou pessoal do homem a esta. O homem encontra um sistema de
significações pronto, elaborado historicamente, e apropria-se dele tal como se
apropria de um instrumento, esse precursor material da significação. O fato
propriamente psicológico, o fato da minha vida, é que eu me aproprie ou não, que eu
assimile ou não uma dada significação, em que grau eu a assimilo e também o que
ela se torna para mim, para a minha personalidade; este último elemento depende do
sentido subjetivo e pessoal que esta significação tem para mim. (LEONTIEV,
1978a, p. 96).
Essa distinção entre sentido pessoal e significação objetiva é concernente apenas ao
objeto da atividade, ou seja, aquilo para qual a atividade do sujeito está voltada, e não a
totalidade do conteúdo refletido na consciência. Por isso, os fenômenos considerados nesta
análise são fenômenos da vida, caracterizados pela relação de um sujeito real com o mundo
real que o circunda. Assim, o sentido pessoal representa a relação do sujeito com fenômenos
objetivos conscientizados, “o sentido é antes de mais uma relação que se cria na vida, na
atividade do sujeito” (LEONTIEV, 1978a, p. 97).
Esta noção representa um ponto de especial interesse para a escola. Conforme já
mencionamos, sem uma relação apropriada entre sentido pessoal e significação objetiva não
pode haver transformações da consciência, portanto, processos de tomada de consciência não
são realizados. Leontiev (1978a), ressalta que o motivo que estimula uma atividade, não é o
sentimento de uma necessidade, mas é aquilo no que se concretiza a necessidade nas
condições objetivas, ou seja, o que o estimula.
A alienação tem como conseqüência a discordância entre o resultado objetivo de uma
atividade humana e o seu motivo, ou seja, a alienação provoca uma diferença entre o conteúdo
objetivo de uma atividade e o conteúdo subjetivo correspondente. Assim, em uma atividade
humana alienada, não coincide o que ela (a atividade) é objetivamente e o que ela é para o
55
sujeito. De modo geral as significações objetivas não se coadunam com o sentido pessoal, que
por sua vez, depende do motivo que leva o sujeito à atividade. Portanto, processos de tomada
de consciência passam pela criação de novos motivos para agir. Esses motivos estão ligados
às condições objetivas às quais o sujeito está submetido. Portanto não há como partir de outro
ponto, que não essa realidade objetiva. Os sentidos pessoais precisam aflorar nestas condições
e se dirigirem para a significação objetiva, ou seja, para os conhecimentos, o conteúdo da
consciência social assimilada pelo sujeito, conteúdos da consciência social que foram
historicamente produzidos e cristalizados na expressão da cultura, da arte, da Ciência, do
modo de vida.
É uma condição indispensável à evolução da consciência do homem novo: o
sentido novo deve com efeito realizar-se psicologicamente nas significações, pois
um sentido não objetivado e não concretizado nas significações, nos conhecimentos,
é um sentido ainda não consciente, que não existe ainda totalmente para o homem.
(LEONTIEV, 1978a, p.136).
Este processo de correspondência entre significação e sentido, segundo Leontiev, é o
problema psicológico essencial do homem na sociedade capitalista. Ele não se limita ao
processo de realização do homem pela materialidade do processo sócio-histórico, pelo
contrário, ele chega ao interior do homem transformando radicalmente sua consciência.
O fato de o sentido e as significações serem estranhas umas as outras é dissimulado
ao homem na sua consciência, não existe para a sua introspecção. Revela-se-lhe
todavia, mas sob forma de processo de luta interior, aquilo a que se chama
correntemente as contradições da consciência, ou melhor, os problemas de
consciência. São estes os processos de estabelecimento do sentido pessoal nas
significações.[...] Este estabelecimento do sentido nas significações passa do simples
processo de concretização do sentido nas significações a um processo bastante
complexo, que é de certo modo a solução de um problema psicológico particular.
(LEONTIEV, 1978a, p. 128-129).
56
2.3 Os conceitos de objetivação e apropriação e o papel da
Educação Escolar: aprendizagem e desenvolvimento intelectual.
Leontiev (1978a) apresenta um ensaio sobre o desenvolvimento do psiquismo, no qual
diferencia o desenvolvimento do psiquismo humano do psiquismo animal. Essencialmente a
diferenciação entre os rumos do desenvolvimento do psiquismo animal e do humano coincide
com a diferenciação das atividades que por sua vez representam para humanos a produção da
historicidade, e para os animais a satisfação de necessidades, que salvo drásticas alterações
nas condições naturais, não mudam, diferentemente das necessidades humanas, que para além
das condições naturais, são principalmente produzidas e transformadas à medida que a
historicidade é produzida. Em outras palavras, as necessidades humanas são de natureza
sócio-histórica. Nas palavras de Leontiev (1978a, p. 68): “No mundo animal, as leis gerais
que governam as leis do desenvolvimento psíquico são as da evolução biológica; quando se
chega ao homem, o psiquismo submete-se às leis do desenvolvimento sócio-histórico”.
Portanto, enquanto os animais agem para satisfação direta de sua necessidade, os homens
agem para produzir os meios a fim de satisfazerem suas necessidades. Há, portanto, uma
mediação entre a satisfação de necessidades e a ação humana. Dito de outro modo, isso
significa que o que diferencia o homem dos animais é que o homem produz e reproduz as
condições para sua existência. Isso faz o homem planejar os seus movimentos de forma a ter
em mente os resultados antes de realizá-los. Marx (1971a), exemplificando esta noção,
compara o trabalho das abelhas na construção de uma colméia com o do homem na
construção de casas e conclui que o que difere a melhor abelha do pior arquiteto é que antes
de realizar a obra o arquiteto já a tem planejada com detalhes na mente.
Leontiev (1978a) discute a estrutura fundamental da atividade humana utilizando-se de
um exemplo elaborado a partir de uma hipotética situação de trabalho coletivo, desenvolvida
numa sociedade primitiva, com o objetivo de abater um animal para suprir o grupo de carne
e/ou pele para confecção de vestimentas. Nessa atividade de caça faz-se necessário que um ou
mais indivíduos do grupo se desprendam deste e se posicionem, a fim de espantar o animal
para trilhas que o levem até o restante do grupo que aguarda estrategicamente posicionado,
para efetuar um ataque coletivo e abater o animal. É claro que o indivíduo encarregado de
espantar a caça, a que Leontiev chamou de batedor, assim como os que aguardam o animal,
têm como estímulo a satisfação de suas necessidades de alimentos e/ou vestimentas. Porém
sua atividade está orientada para espantar o animal para que este vá de encontro aos outros do
57
grupo que o aguardam preparados para abatê-lo. A atividade do batedor encerra-se ao
espantar o animal em direção aos demais caçadores, porém, o resultado de espantar a caça não
representa, por si só, a satisfação da necessidade de alimento que o batedor sente. Pelo
contrário, isoladamente pode parecer um ato contrário a essa necessidade. Assim, a
necessidade do batedor e o que orienta a sua ação não coincide, estando, pois, separados.
Leontiev pontua que a caçada é a atividade do batedor e o fato de espantar a caça é a sua ação.
Sendo assim, o que é que religa o resultado imediato da atividade coletiva ao seu resultado
final? Para Leontiev trata-se tão somente da relação do batedor com os outros membros da
coletividade, graças ao qual ele recebe sua parte da caça.
Isso significa que é precisamente a atividade de outros homens que constitui a base
material objetiva da estrutura específica da atividade do indivíduo humano;
historicamente, pelo seu modo de aparição, a ligação entre o motivo, e o objeto de
uma ação não reflecte relações e ligações naturais, mas ligações e relações
objectivas sociais. (LEONTIEV, 1978a, p. 78).
Novamente fica evidente que a atividade animal, por mais complexa que seja, se
estabelece como relações naturais entre coisas sendo bastante diferente da atividade humana
que está submetida a relações sociais. A essa atividade, diferenciada da atividade animal, é
que se deve a origem da “forma especificamente humana do reflexo de realidade, a
consciência humana” (LEONTIEV, 1978a, p. 79). Espantar a caça não tem nenhuma relação
biológica com a necessidade de alimento, tal ação só encontra sentido na atividade coletiva do
grupo que é refletida psiquicamente pelo sujeito que age (no exemplo anterior, o batedor), de
modo a estabelecer uma relação entre o motivo da ação e o seu objeto. A partir daí a
consciência humana passa a distinguir atividades e objetos, ou seja, distinguir um motivo do
seu fim. Isso quer dizer que torna possível ao homem, no exemplo dado, distinguir o alimento
obtido de sua atividade própria (no exemplo, o espantar da caça). O batedor recebe parte do
produto da caça como objeto de uma atividade particular, ao mesmo tempo em que satisfaz
necessidades humanas, podendo distinguir o alimento de outros objetos da atividade
(recebimento de sua parte, satisfação da necessidade). Tal distinção tem um caráter prático,
mas também teórico, portanto pode se estabelecer na consciência e tornar-se idéia.
(LEONTIEV, 1978a, p. 81).
Mas o que permitiu ao homem obter as condições especiais para o reflexo consciente
da realidade? Para Leontiev, novamente, a resposta está na atividade de trabalho. O trabalho
não modifica apenas a estrutura geral da atividade humana, mas o próprio conteúdo dessa
58
atividade, chamado de operações. Esta sofre, juntamente com a estrutura da atividade, uma
transformação qualitativa no processo de trabalho. Tais mudanças se evidenciam pelo
aparecimento e o desenvolvimento de instrumentos de trabalho. Por meio dos instrumentos de
trabalho o homem constrói novas condições de interação com o objeto do seu trabalho. Isso só
é possível graças à consciência da finalidade a que se destina uma ação. “A fabricação e uso
de instrumentos só é possível em ligação com a consciência do fim da ação de trabalho”.
(LEONTIEV, 1978a, p. 82). Leontiev ressalta ainda que o instrumento de trabalho é “[...]
portador da primeira verdadeira abstração consciente e racional, da primeira generalização
consciente e racional”. Mas um instrumento não é apenas um objeto de forma particular com
certas propriedades físicas, mas é um objeto social, pois tem um modo de emprego elaborado,
preservado e modificado socialmente.
[...] quando consideramos o machado enquanto instrumento e não enquanto simples
corpo físico, ele não é apenas a reunião de duas partes conjuntas, uma a que
chamamos cabo e a outra que é a parte verdadeiramente eficaz; é também este meio
de acção, elaborado socialmente, estas operações de trabalho realizadas
materialmente e como cristalizadas nele. Razão por que dispor de um instrumento
não significa simplesmente possuí-lo, mas dominar o meio de ação de que ele é o
objecto material de realização. (LEONTIEV, 1978a, p. 82).
A afiação de uma pedra como instrumento de caça, com o objetivo de satisfazer a
necessidade da fome e posteriormente a necessidade de descobrir outros tipos de pedras,
materiais e processos de construção de instrumentos cada vez mais eficientes para o propósito
da caça, é outro exemplo do papel da produção de novos instrumentos no desenvolvimento da
consciência humana e da produção sócio-histórica de necessidades. Tais mediações entre a
ação humana e a satisfação das necessidades vão se tornando cada vez mais complexas na
medida em que a necessidade de conhecer e interferir na natureza aumenta. Por exemplo, a
necessidade de se interferir na trajetória de um animal, na mata, que pode servir de alimento
para o grupo, ou a melhoria da produtividade de uma semente, até a necessidade de produção
de energia útil à sociedade a partir da energia de núcleos atômicos. À medida que esse
processo histórico e coletivo se dá, surgem modos de organização em torno dos objetivos
comuns. São produzidos, mais que instrumentos e processos, relações sociais direcionadas
para finalidades de interesse comuns. Igualmente são desenvolvidos meios de comunicação, a
fala (que parece ser a mais primitiva delas), signos e símbolos, todos produzidos no âmbito da
atividade coletiva do trabalho, da qual passa a depender o modo de vida historicamente
59
produzido. A existência objetiva dos elementos coletivamente desenvolvidos a partir da
atividade de trabalho, tanto para Marx quanto para Leontiev, são chamados de objetivação. O
trabalho, enquanto atividade vital dos homens, produz além dos meios de garantir a
sobrevivência, também e principalmente o gênero humano, ou seja, a humanização. Esse
processo corresponde à objetivação. Por meio da objetivação, a atividade física ou mental do
indivíduo ou do grupo assume função social específica, função na prática social, pois é
concretizada, seja na forma material ou simbólica. A especificidade da função é conseqüência
do modo como é utilizada. Pode-se dizer, então, que todo objeto de atividade, seja material ou
simbólico, carrega consigo um modo próprio de emprego e conseqüentemente produz a
cultura de uma sociedade. Acompanha o processo de objetivação, a apropriação da cultura
pelos indivíduos.
Há três aspectos da apropriação destacados por Leontiev (1978a) que são de particular
interesse para a educação escolar. O primeiro é que a apropriação é um processo ativo no qual
o indivíduo precisa reproduzir os traços essenciais da atividade cristalizada no objeto cultural,
seja material, seja intelectual. O segundo aspecto, e o principal segundo Leontiev (1978a, p.
270), é que a função da apropriação é criar nos indivíduos “funções psíquicas novas”, abrindo
caminho para o desenvolvimento intelectual do indivíduo. O terceiro aspecto é que a
apropriação ocorre necessariamente por meio da mediação de outros homens. Este aspecto
confere à apropriação status de processo educacional, dado que se trata de uma transmissão de
experiência social. Este caráter de mediação entre os homens na apropriação e objetivação da
cultura, na formação dos indivíduos, permite uma compreensão aprofundada do significado da
escola e da educação formal e aparece não só nas obras de Leontiev, mas também, por
exemplo, em Vygotsky (1991 e 2005). Leontiev (1978a, p.270) sintetiza estas idéias:
A principal característica do processo de apropriação ou “aquisição” que
descrevemos é, portanto, criar no homem aptidões novas, funções psíquicas novas. É
nisto que se diferencia do processo de aprendizagem dos animais. Enquanto este
último é o resultado de uma adaptação individual do comportamento genérico a
condições de existência complexas e mutantes, a assimilação no homem é um
processo de reprodução, nas propriedades do indivíduo, das propriedades e aptidões
historicamente formadas da espécie humana.
Estas “propriedades” do processo de apropriação coloca à educação escolar um desafio
constante, ao mesmo tempo em que torna ímpar a sua função social. Ela precisa garantir aos
indivíduos em educação, a capacidade de reprodução dos traços essenciais da produção sócio-
60
histórica, ou seja, do ponto de vista intelectual, garantir-lhes conteúdos escolares que
permitam a reprodução das condições materiais necessárias à vida humana, e mais; o
desenvolvimento do aparato psíquico para isso, o que não pode ocorrer de outro modo senão
pela interação com pares que intencionalmente atuam neste processo, essencialmente
educativo, para induzir e orientá-lo ao desenvolvimento.
É importante assinalar algumas diferenças entre apropriação e adaptação enfatizadas
por Leontiev (1978a), para se evitar confusões sobre o papel do processo educativo. Enquanto
a atividade humana objetivada consolida sua cultura, que por sua vez mantém uma
propriedade cumulativa por meio da apropriação, a atividade animal, segundo Leontiev,
mantém um caráter exclusivamente adaptativo. A atividade animal conta apenas com
adaptações ao meio, mas “nunca atos de apropriação das aquisições do desenvolvimento
filogenético” (LEONTIEV, 1978a, p.167), tais aquisições são recebidas pelo animal
geneticamente, ao passo que ao homem são “fenômenos objetivos” próximos a ele. Assim,
quando um símio utiliza-se de um pedaço de madeira para alcançar frutos, não significa que
este instrumento se torna utensílio desta operação. Logo que alcançado o fruto o pedaço de
madeira é esquecido, não é preservado como um instrumento, nem transmitido de geração em
geração, não há, portanto, nenhum caráter cumulativo na atividade animal.
Diferentemente com os homens, ocorre um fenômeno de apropriação das aquisições
do desenvolvimento histórico da sociedade que por sua vez é fruto da experiência sócio-
histórica da humanidade, acumulada “[...] sob a forma de fenômeno do mundo exterior
objetivo”. (LEONTIEV, 1978a, p. 162). É ainda Leontiev quem nos lembra: “Este mundo, da
indústria, das Ciências e da arte, é a expressão da história verdadeira da natureza humana; é o
saldo da sua transformação histórica” (LEONTIEV, 1978a, p. 167).
A importância da apropriação das aquisições do desenvolvimento histórico,
acumuladas pela humanidade, para o desenvolvimento sócio-histórico da humanidade e
individual é fundamental, uma vez que, “No decurso da sua história, a humanidade empregou
forças e faculdades enormes. A este respeito, milênios de história social contribuíram
infinitamente muito mais que milhões de anos de evolução biológica” (LEONTIEV, 1978a, p.
164). Aqui se coloca outro ponto importante de atuação da educação em geral, mas
especialmente a educação escolar. A escola, nesta abordagem, tem como papel primordial
possibilitar a apropriação cultural pelos indivíduos, “ensinando-lhes” a serem homens ao
propiciar o desenvolvimento de novas funções psíquicas a partir do aprendizado dos
conhecimentos socialmente acumulados no processo histórico.
61
As aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são
simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material e
espiritual que encarnam, mas são aí apenas postas. Para se apropriar destes
resultados [...] [o indivíduo] deve entrar em relação com os fenômenos do mundo
circundante através de outros homens, isto é, num processo de comunicação com
eles [...]. Pela sua função, este processo é portanto, um processo de educação.
(LEONTIEV, 1978a, p.272). [...] o pensamento lógico não se pode absolutamente
deduzir dos processos inatos do cérebro humano e das leis internas que os regem. A
aptidão para o pensamento lógico só pode ser resultado da apropriação da lógica,
produto objetivo da prática social da humanidade. No homem que sempre viveu
isolado, sem contato com as formas objetivas que encarnam a lógica humana, sem o
menor contacto humano, não puderam formar-se os processos do pensamento lógico
mesmo quando se encontrou um número incalculável de vezes em situações que
põem problemas que exigem, precisamente para a elas se adaptar, a formação desta
aptidão. (LEONTIEV, 1978a, p. 169).
Cabe ressaltar que esta concepção de socialização do conhecimento, que, além de ter a
sua importância enquanto conhecimento acumulado socialmente ao longo da história ainda
desenvolve novas funções psíquicas, levando assim ao desenvolvimento humano-genérico, foi
estudada por Vygotsky e colaboradores (VYGOTSKY, 2005) e fundamentada teórico e
empiricamente. Esta foi uma importante contribuição, não da teoria histórico-cultural da
atividade, que conforme comentado, constitui-se numa das bases teóricas da psicologia
histórico-cultural, mas da própria psicologia histórico-cultural como um todo. Vejamos com
mais detalhes o que esta contribuição significa e sua relação com nosso problema de pesquisa,
pois será de particular interesse para análises posteriores.
Vygotsky e colaboradores (VYGOTSKY, 2005; VIGOTSKII, 1988), introduziram
uma importante mudança metodológica na medida do nível de desenvolvimento mental de
crianças. Ao invés de aplicar testes padronizados para descobrir o nível de desenvolvimento
mental do indivíduo, o que significa conhecer apenas etapas de desenvolvimento já
concluídas, Vygotsky e colaboradores buscaram avaliar o processo de desenvolvimento como
um todo. Para isso, após descobrirem as idades mentais dos sujeitos, forneciam-lhes
problemas mais difíceis do que eram capazes de resolverem sozinhas, mas ofereciam uma
pequena assistência (informações adicionais, o primeiro passo para a solução ou uma pergunta
importante). Descobriram que mediante cooperação as crianças poderiam resolver problemas
com níveis de dificuldade acima do que era esperado para a sua idade. Com isso Vygotsky
postula a zona de desenvolvimento proximal ou zona de desenvolvimento potencial, como
62
sendo “ A discrepância entre a idade mental real [...] [do indivíduo] e o nível que ela atinge ao
resolver problemas com o auxílio de outra pessoa [...]” (VYGOTSKY, 2005, p.128-129).
Com isso Vygotsky cria uma importante ferramenta para se planejar o ensino. Trata-se de um
esquema que permite planejar o ensino de modo a direcioná-lo para níveis de
desenvolvimento ainda não alcançados. Este planejamento parte do conhecimento do estágio
atual do desenvolvimento dos estudantes que é orientado por meio da mediação pedagógica
do professor ou outro parceiro mais capaz no processo de aprendizagem. Este resultado é
importante, pois confirma a natureza social e cultural do desenvolvimento das funções
psíquicas superiores (VYGOTSKY, 2005, p.130), além de fundamentar um novo modelo a
respeito das relações entre aprendizagem e desenvolvimento, em relação aos até então
explorados na psicologia tradicional. Este novo modelo admite que “[...] o processo de
desenvolvimento não coincide com o da aprendizagem, o processo de desenvolvimento segue
o da aprendizagem, que cria a área de desenvolvimento potencial” (VIGOTSKII, 1988, p.
116).
O conceito de desenvolvimento mental humano que permeia o enfoque da psicologia
histórico-cultural está relacionado com a habilidade de adquirir ferramentas psíquicas, o que
significa a formação de funções psicológicas superiores. Conforme discutimos no início deste
capítulo, o esquema geral de análise da psicologia histórico-cultural mantém certa analogia
com o caráter de orientação ao objeto da atividade humana, conforme descrito por Marx nas
suas “Teses sobre Feuerbach”. Essa concepção admite que as ferramentas materiais mediam
as influências humanas sobre os objetos da atividade humana, de modo que uma ferramenta
implica num modo próprio de utilização que é desenvolvido e fixado socialmente. Isto
confere às ferramentas materiais um caráter de orientação externa. Analogamente as
ferramentas psíquicas são orientadas internamente, desenvolvendo estruturas psicológicas
humanas naturais para compor as funções psicológicas superiores.
Vygotsky (1981) distinguiu funções psicológicas superiores e inferiores, de forma que
as superiores são compostas das inferiores. As funções psicológicas inferiores ele considerou
as naturais, tais como a percepção elementar, memória, atenção, vontade. As superiores, ou
também culturais, são as funções psicológicas especificamente humanas e que se
desenvolvem gradualmente num processo que leva as funções psicológicas inferiores a uma
transformação radical. Deste modo as funções psicológicas inferiores constituem as funções
psicológicas superiores ao assumir uma estrutura segundo objetivos sociais e atributos
63
especificamente humanos
9
“[...] não-naturais, mas formadas historicamente” (VIGOTSKII,
1988, p. 115).
Vygotsky (2005) apresenta resultados de investigações que buscaram entender como
se dá o desenvolvimento dos conceitos científicos na idade escolar. Foram distinguidos dois
tipos de experiências que delimitam dois tipos de conceitos com que lidam indivíduos em fase
de aprendizado escolar. Num tipo de conceito, Vygotsky considerou aquele radicado na
reflexão do indivíduo sobre sua experiência diária, o que chamou “conceitos espontâneos” ou
“conceitos cotidianos”. Cabe esclarecer que quando fizermos referência ao cotidiano, não o
entendemos como algo relacionado como senso comum, pois o conteúdo do cotidiano difere
de indivíduo para indivíduo. O outro tipo abarca os conceitos radicados na atividade
educacional especializada, que apresenta aos indivíduos os conceitos científicos.
Vygotsky argumentou que o desenvolvimento depende do nível da capacidade de se
compreender conceitos e esta capacidade está associada ao desenvolvimento de conceitos
cotidianos. Isso quer dizer que é preciso que um conceito cotidiano alcance determinado nível
para que seja possível a compreensão de um conceito científico correlato (VYGOTSKY,
2005). Assim Vygotsky conclui que:
[...] um conceito cotidiano abre o caminho para um conceito científico e o seu
desenvolvimento descendente. Cria uma série de estruturas necessárias para a
evolução dos aspectos mais primitivos e elementares de um conceito, que lhe dão
corpo e vitalidade. Os conceitos científicos, por sua vez, fornecem estruturas para o
desenvolvimento ascendente dos conceitos espontâneos [...] (VYGOTSKY, 2005, p.
136).
Este movimento, “ascendente” e “descendente”, significa que “Os conceitos novos e
mais elevados, por sua vez, transformam o significado dos conceitos inferiores”
(VYGOTSKY, 2005, p. 143). Ocorre uma resiginificação e reorganização dos conceitos
cotidianos pela via dos conceitos científicos.
Os conceitos cotidianos, ou espontâneos, atendem ao indivíduo nas suas ações
cotidianas imediatas. Vygotsky assume que os indivíduos, no seu cotidiano, apropriam-se de
forma espontânea das objetivações humanas como a linguagem natural, instrumentos de uso
corriqueiro e suas formas de uso, costumes, etc. Porém, o conjunto das objetivações que o
9
Este processo de formação da estrutura psicológica superior, ocorre não apenas para a linguagem, embora o
estudo dessa função psicológica superior tenha sido extensamente explorado por Vygotsky em seus trabalhos.
64
indivíduo não acessa no seu cotidiano, como a Ciência, a Arte, a Filosofia, enfim, os produtos
do saldo histórico da humanidade, dependem de uma mediação determinada e intencional
para que o indivíduo se aproprie delas. Assim, o professor e o processo educacional formal de
modo geral, são vistos como mediadores entre a formação do estudante na esfera cotidiana e
na esfera não cotidiana.
As pesquisas da escola russa de psicologia, descritas no capítulo 6 do livro
Pensamento e Linguagem (VYGOTSKY, 2005), demonstram a necessidade da aquisição de
conceitos científicos por meio das disciplinas formais, como as Ciências e a Matemática, para
que a mente do indivíduo alcance sucessivos estágios superiores de desenvolvimento, capazes
de permitir a formação de conceitos novos.
O desenvolvimento dos conceitos, ou significados das palavras, pressupõe o
desenvolvimento de muitas funções intelectuais: atenção deliberada, memória
lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar. Esses processos
psicológicos complexos não podem ser dominados apenas através da aprendizagem
inicial. (VYGOTSKY, 2005, p. 104).
Das aprendizagens e apropriações nestas duas esferas (cotidiana e não cotidiana),
depende o desenvolvimento das funções intelectuais superiores do indivíduo, inclusive o
desenvolvimento de posturas críticas. Nesse desenvolvimento, a atuação da escola está bem
delimitada, é a instituição cujo significado, socialmente fixado, é o de mediadora entre os
indivíduos, seus conhecimentos cotidianos e os conhecimentos científicos que se mostram
relevantes no desenvolvimento sócio-histórico. É a escola a responsável pela apropriação das
objetivações humanas pelas gerações em formação, o que por si só não é desenvolvimento,
mas “ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia
produzir-se sem a aprendizagem” (VIGOTSKII, 1988, p. 115), além de resultar na
apropriação dos conceitos em si. A escola é também responsável por um processo não menos
importante que o descrito acima e interligado a ele. Trata-se dos processos de criação de
novas necessidades de aprendizagem que guiam o desenvolvimento dos indivíduos para níveis
qualitativamente superiores. Basso (1998, paginação eletrônica) apoiada em estudos da obra
de Vygotsky escreve:
Ao possibilitar acesso às objetivações das esferas não cotidianas, a prática
pedagógica estará contribuindo para a apropriação de sistemas de referência que
permitem ampliar as oportunidades de o aluno objetivar-se em níveis superiores, não
65
só satisfazendo necessidades já identificadas e postas pelo desenvolvimento efetivo
[...] como produzindo novas necessidades de outro tipo e considerando o
desenvolvimento potencial, ou seja, as ações pedagógicas que estimulam e dirigem o
processo de desenvolvimento [...].
Segundo Vygotsky (2005, p.104): “Em qualquer idade, um conceito [...] representa um
ato de generalização”. Este processo é dinâmico, de modo que, conceitos primitivos vão
sendo substituídos por generalizações mais avançadas, na medida em que o intelecto se
desenvolve, culminando na formação de generalizações mais amplas. Há, portanto, diferentes
níveis de generalização que podem ser alcançados na medida em que o intelecto se
desenvolve. Para Vygotsky (2005) a disciplina formal (que veicula conceitos científicos, com
sua estrutura de generalizações), transforma gradualmente a estrutura dos conceitos cotidianos
organizando-os num sistema mais amplo de referências. Isso promove a ascensão dos
sistemas de referência anteriores para níveis mais elevados de generalização, o que por sua
vez vem exigir o desenvolvimento das funções psíquicas em níveis que suportem as novas
inter-relações entre conceitos. O desenvolvimento de conceitos pressupõe o desenvolvimento
de muitas funções intelectuais, tais como, atenção deliberada, memória, lógica, capacidade de
abstração, capacidade de comparar e diferenciar, etc.
Vygotsky (2005) argumenta que o aprendizado escolar induz uma percepção
generalizante, desempenhando um papel preponderante para o indivíduo no processo de
tomada de consciência de seus próprios processos mentais. Este processo leva as esferas do
pensamento a estrutura de generalizações avançadas, próprias da Ciência. “Os conceitos
científicos, com seus sistemas hierárquicos de inter-relações, parecem construir o meio no
qual a consciência e o domínio se desenvolvem, sendo mais tarde transferidos a outros
conceitos e outras áreas do pensamento” (VYGOTSKY, 2005, p. 115).
Deste modo, níveis de generalidade variam segundo os diferentes níveis de
desenvolvimento, indo das formações sincréticas aos conceitos científicos propriamente ditos
(VYGOTSKY, 2005). Assim quando falamos em níveis conceituais, o parâmetro assumido
para uma orientação entre diferentes níveis será sempre o nível dos conceitos científicos e
seus respectivos níveis de generalização, que constituem a sistematização característica do
conhecimento científico, uma vez que entendemos que os conceitos científicos e cotidianos
são pontos dos dois extremos desta hierarquia, que permitem diferentes níveis de
generalização mantendo relações mútuas.
66
2.4 Consciência primitiva e consciência no capitalismo:
transformações e contradições
Na Psicologia Histórico-cultural, a consciência humana não é tida como imutável, mas
ela é dependente do modo de vida, que é determinado pelas relações sociais existentes e pela
posição que os indivíduos ocupam nestas relações. Leontiev (1978a) mostra que se trata de
um processo de “modificações qualitativas”, uma vez que as condições sociais da existência
humana se desenvolvem por modificações qualitativas. Mudanças radicais nas relações
produtivas resultam inevitavelmente em mudanças radicais da consciência humana que,
qualitativamente, se torna diferente.
Leontiev (1978a) explica que na sociedade primitiva a estrutura interna elementar da
consciência humana refletia a relação do homem com a natureza e com os outros homens,
pois ainda coincidiam totalmente os sentidos dos fenômenos concretos para o homem, com as
significações elaboradas socialmente e presentes na linguagem, forma que permitia os
fenômenos chegarem à consciência.
Em tal sociedade os homens mantinham relações idênticas em relação à produção, e
seus resultados que, portanto, eram refletidos de forma idêntica na consciência individual e na
consciência coletiva. Leontiev ressalta que:
O produto do trabalho colectivo tinha o sentido comum de “bem”, por
exemplo um sentido social objetivo na vida da comunidade e um sentido subjetivo
para cada um de seus membros. Por este facto, as significações lingüísticas
elaboradas socialmente que cristalizavam o sentido social objetivo dos fenômenos
podia igualmente constituir a forma imediata da consciência individual destes
mesmos fenômenos (LEONTIEV, 1978a, p.114).
Porém, a estrutura da consciência nesta “formação primitiva integrada” (conforme
denominada por Leontiev) é alterada e substituída por outra estrutura denominada de estrutura
“desintegrada”. Sobre a razão de tal substituição Leontiev afirma:
Mas só o aparecimento e o desenvolvimento da divisão social do trabalho e das
relações de propriedade privada poderiam actuar de modo a que a estrutura inicial da
consciência cedesse lugar a uma nova, respondendo às novas condições socio-
econômicas da vida humana (LEONTIEV, 1978a, p.114).
67
Portanto, a principal característica da consciência primitiva é que nessa etapa do
desenvolvimento do psiquismo humano passa a existir, no homem, a consciência dos sentidos
e das significações. Estas são separadas na consciência a partir do “alargamento do domínio
do consciente” (LEONTIEV, 1978a, p. 102) conduzindo o homem, necessariamente, ao
desenvolvimento do trabalho, suas relações, instrumentos e formas, ao mesmo tempo que
complexifica as operações de trabalho, exigindo do sujeito (trabalhador) a atuação num
sistema de ações interdependentes dentro de um processo único com fins conscientes.
A passagem da estrutura de consciência da formação primitiva integrada à estrutura
desintegrada da consciência humana, característica da sociedade de classes, se deu, segundo
Leontiev, por meio de duas transformações essenciais da estrutura da consciência.
Primeira transformação – separação entre processos internos e externos à
consciência. Trata-se de transformações das funções da consciência, bem como dos
fenômenos subjetivos que compõem o conteúdo da consciência, consistindo na formação de
processos internos à consciência. A constituição social da comunicação verbal, que ao mesmo
tempo em que leva à consciência humana o reflexo concreto da interação com os objetos,
cumpre função de comunicação de conteúdos que se destinam à execução de atividades
(refere-se a atividades). Há, portanto, na linguagem um aspecto teórico no sentido de
preparação para uma ação, uma vez que a comunicação por si só não pratica a ação no sentido
de uma realização prática, mas desempenha a ação verbal cujo conteúdo diz respeito à
planificação, à organização, à direção de uma atividade (LEONTIEV, 1978a). Planificação
que carrega o conteúdo das atividades que podem ser realizadas nas ações verbais. Nesse
sentido ocorre uma separação entre a função comunicativa da palavra e a função teórica. Com
a divisão do trabalho, e a individualização da atividade intelectual (que teve como precedente
histórico o isolamento da função de organização da produção e da troca) a ação verbal passa a
garantir também, finalidades teóricas, uma vez que a palavra pode ter uma motivação
independente, ou seja, ser atividade relativamente autônoma. Isso torna a sua forma externa
desnecessária, possibilitando que o processo de pensamento possa se apoiar em
representações exteriores, gráficas, pensamento em voz alta, escrito, sob várias formas. Esse
processo não consolida, por si só, nenhum resultado material, mesmo que sua expressão seja
concreta. “Sob o ângulo do desenvolvimento das formas de vida humana, o essencial é que
esses processos não transformam imediatamente o mundo material e o seu produto é teórico
qualquer que seja a sua forma concreta exterior”. (LEONTIEV, 1978a, p. 116).
68
Os indivíduos que realizam atividade que tenha como conteúdo principal os processos
interiores precisam garantir a sua existência, o que ocorre por meio da troca do produto de sua
atividade interior por uma parte da produção material da sociedade. Assim, os produtos ideais
convertem-se em materiais. O isolamento da atividade intelectual reflete-se na consciência
dos homens que passam a ver uma manifestação separada entre o mundo da consciência em
oposição ao da matéria. Ao trabalho físico cabe a transformação direta da natureza, na
produção dos meios de satisfação das necessidades humanas, que são produzidas num
contexto sócio-histórico. O trabalho intelectual assume dois níveis: o planejamento antecipado
para um fim e a sistematização dos meios para a execução das ações orientadas para a
finalidade planejada.
Como todo trabalho, o trabalho intelectual está sujeito às condições da atividade
produtiva humana. Inclusive, como já dissemos no capítulo 1, a alienação. Esse fenômeno de
separação entre a atividade intelectual e material leva, evidentemente, a um desenvolvimento
incompleto da personalidade humana (LEONTIEV, 1978a, p. 120), uma vez que não há uma
união equilibrada destas duas formas de atividade que foram historicamente isoladas.
Negligencia-se, assim, o fato de que os processos interiores teóricos são derivados,
inicialmente, da atividade exterior, só depois passando a constituir um tipo particular de
atividade. Separadas desta forma, essas atividades não religam o homem e a si mesmas à
práxis humana. Aqui, entendemos práxis como a construção da história pelo homem, ou o que
permite essa construção. “A práxis do homem não é atividade prática contraposta à teoria; é
determinação da existência humana como elaboração da realidade” (KOSIK, 1995, p. 222).
Leontiev (1978a) ressalta a importância do reconhecimento dessa estrutura comum da
atividade humana e de seu equilíbrio como forma de se obter um desenvolvimento completo
da consciência. Leontiev nos elucidam a importância de se chegar a uma união equilibrada
dessas duas formas de atividade, alcançando um desenvolvimento completo da personalidade
humana:
É precisamente a comunidade [origem comum] de estrutura da atividade interior
teórica e da atividade exterior prática que permite aos seus diferentes elementos
estruturais passar – e eles passam realmente – de uns para os outros; assim, a
atividade interior inclui sempre ações e operações exteriores, ao passo que a
atividade exterior inclui ações e operações interiores de pensamento. [...]
O que há de comum entre a atividade prática exterior e a atividade interior
teórica não se limita unicamente à sua comunidade de estrutura. É psicologicamente
essencial, igualmente: que elas religuem, as duas, se bem que de maneira diferente, o
69
homem ao seu meio circundante, o qual, por este fato, se reflete no cérebro humano;
que uma e a outra formas de atividade sejam mediatizadas pelo reflexo psíquico da
realidade; que sejam a título igual processos dotados de sentido e formadores de
sentido. Os seus pontos comuns testemunham a unidade da vida humana.
(LEONTIEV, 1978a, p. 119).
Segunda transformação – não correspondência entre significado e sentido. Leontiev
considera esta a mais importante das transformações que levaram à passagem da estrutura da
consciência humana da sua forma integrada à sua forma desintegrada na passagem para a
sociedade de classes. Tal transformação ocorre em função da alteração das relações entre
sentido e significações no processo de tomada da consciência. Esta transformação decorre da
criação das formas de propriedade e das relações de troca. Nos primórdios da humanidade o
trabalho do homem não estava separado das suas condições materiais. O homem estava em
direta relação com as condições objetivas necessárias à sua sobrevivência. Nas etapas do
desenvolvimento histórico, com o desenvolvimento das formas privadas de propriedade, a
maioria dos homens é expropriada das condições objetivas da produção do modo de vida da
coletividade. Para viver, esses homens não têm outro meio a não ser submeter sua força de
trabalho à vontade do capital, alienando o seu trabalho. Sendo o trabalho o fator estruturador
do modo de vida, alienam a sua própria vida. Além dos processos de formação de ideologias,
conforme discutimos anteriormente, a alienação resulta da ruptura entre sentido pessoal e
significação objetiva nas atividades de trabalho, a conseqüência é a ruptura das relações
essenciais do homem, uma vez que para ele não há mais correspondência entre o que ele
concretiza objetivamente e o sentido do objeto concretizado. De outra forma podemos
considerar a alienação como o resultado da diferença entre o resultado objetivo da atividade
humana e o seu motivo, uma vez que entendemos o sentido como dependente do motivo. Nas
palavras de Leontiev, o “conteúdo objetivo da atividade não concorda agora com seu
conteúdo subjetivo, ou seja, aquilo que é para o próprio homem. [...] isso confere traços
psicológicos particulares à consciência [em contraposição a uma noção de consciência de
coletividade]”. (LEONTIEV, 1978a, p. 122).
Recuperando o exemplo utilizado por Leontiev (a caçada coletiva) e comparando com
um trabalhador na sociedade capitalista temos que: i) A atividade do batedor (espantar a caça)
é subjetivamente motivada pela parte que receberá para sua necessidade. ii) A presa é o
resultado objetivo de sua atividade na atividade coletiva.
70
O trabalhador no capitalismo busca subjetivamente a satisfação das suas necessidades
de alimento, vestuário, habitação, etc., por meio da sua atividade de trabalho, mas seu produto
objetivo é o salário, que corresponde a uma parcela do que de fato produziu, e não o
equivalente. Ou seja, por ser o trabalhador explorado por meio da extração de mais-valia, o
salário é então menor do que ele de fato produziu em equivalente
10
. Podemos dizer também
que o produto objetivo obtido pelo trabalhador não deve corresponder exatamente ao que
subjetivamente busca, produzindo a alienação econômica.
Assim, o tecido que tece talvez se transforme para ele numa peça de roupa, o ouro que
extrai da terra se transforme em algum crédito, a casa que constrói pode se converter em
possibilidades de se abrigar em algum lugar por algum tempo. Logo, o sentido pessoal não
coincide com sua significação objetiva, como ocorria na sociedade primitiva.
Nas circunstâncias impostas pelo modo de produção capitalista, um trabalhador possui
os conhecimentos e significações correspondentes à produção, mesmo assim apenas num
formato limitado ao que for necessário para desempenhar as operações que correspondam ao
conteúdo do trabalho, não chegando a permitir-lhe o estabelecimento de um sentido subjetivo
em relação ao que produz, limitando-se a significação objetiva, quando ainda se compreende
o que está fazendo. Mas, segundo Leontiev, não é na significação objetiva que é caracterizada
a consciência humana, “mas pela relação que existe entre estas significações e o sentido
pessoal que tem para ele as suas ações de trabalho”. (LEONTIEV, 1978a, p. 123). Ora, mas o
sentido depende do motivo conforme já discutido, que pelas condições de existência dadas no
contexto do capitalismo se reduz à obtenção de um salário. A importância, para a sociedade,
do produto do seu trabalho é percebida, mas esta significação social não fornece para o
trabalhador o sentido do produto do seu trabalho para si próprio. Por outro lado, o oposto
ocorre com o capitalista, que só pode considerar o sentido subjetivo da produção, que para
ele, se manifesta na forma do lucro
11
, que é, assim como o salário do trabalhador, estranho ao
resultado da produção e a sua significação objetiva, ou seja, não há correspondência entre o
10
Comparando o processo de produzir valor com o de produzir mais-valia, veremos que o segundo só difere do
primeiro por se prolongar além de certo ponto. O processo de produzir valor simplesmente dura até o ponto em
que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um equivalente. Ultrapassando esse ponto, o
processo de produzir valor torna-se processo de produzir mais-valia (valor excedente) (MARX, 1971a, p.220).
11
Em “Salário, preço e lucro”, Marx (1953) conclui que o verdadeiro lucro é obtido pela mais valia, e que
incidindo um percentual sobre o valor de uma mercadoria, não é a forma como se obtém o enriquecimento, pelo
simples fato de que o que se ganha como vendedor, se perde como comprador. Marx assume que lucro e mais-
valia são, portanto a mesma coisa, nos seguintes termos: “A mais-valia, ou seja aquela parte do valor total da
mercadoria em que se incorpora o sobretrabalho, ou trabalho não remunerado, eu chamo lucro.[...] A renda
territorial, o juro e o lucro industrial nada mais são que nomes diferentes para exprimir as diferentes partes da
mais-valia de uma mercadoria ou do trabalho não remunerado, que nela se materializa, e todos provém por igual
desta fonte e só desta fonte”. (MARX, 1953, paginação eletrônica).
71
sentido pessoal e a significação objetiva em nenhum dos casos. É importante notar ainda, que
as formas de troca no capitalismo desnaturam os sentimentos mais elementares dos homens,
conforme observa Leontiev (1978a, p. 124) ao citar Fourier “o vidreiro alegra-se com o
granizo que parte todos os vidros”.
Mas o trabalho alienado não significa trabalho inexistente para o trabalhador, não
significa algo que apenas mina suas forças e desintegra sua consciência. Sob este aspecto
Leontiev analisa duas circunstâncias. A primeira destas circunstâncias decorre da natureza da
alienação da atividade humana e possui um impacto negativo e outro positivo sobre a vida do
trabalhador. Negativo na medida em que o trabalho predomina sobre o viver, pois vender sua
força de trabalho para sobreviver não é o mesmo que produzir os meios materiais necessários
à sobrevivência. Positivo em dois aspectos. Primeiro, o trabalho compreende aspectos
técnicos importantes para a vida do trabalhador na sua constituição enquanto tal. Segundo, as
condições de exploração do trabalho no contexto capitalista levam o trabalhador a enriquecer
sua vida com um conteúdo diferente do trabalho alienado, embora produzido por ele, trata-se
da sua relação com outros homens: capitalistas e outros trabalhadores. Desta relação surgem
indignações que são expressas pela mobilização de coletividades em torno de objetivos
comuns – a luta.
[...] Esta luta compromete os dois pólos da sociedade, tanto o da dominação como o
da exploração.
Do lado da dominação, a luta desenvolve o aspecto inumano do homem e
sabemos hoje até onde essa inumanidade pode ir ao horror.
No pólo oposto, a luta desenvolve o aspecto autenticamente humano do
homem. Assim, na sociedade capitalista, “uma vez mais o trabalhador só tem esta
alternativa: aceitar a sua sorte, tornar-se um“bom operário”, servir “fielmente” os
interesses da burguesia – e, neste caso, cai de certo ao nível animal – ou então
resistir, lutar quanto possa pela sua dignidade de homem, e isto só lhe é possível
lutando contra a burguesia”. (LEONTIEV, 1978a, p.126).
A segunda das circunstâncias analisadas por Leontiev, conduz à constatação de que o
trabalhador, no seu cotidiano, na sua atividade, não vê razões para que outros homens percam
o seu sentido e assumam “significação de uma coisa”. Ao passo que para o capitalista
empregador, os trabalhadores assumem sentido de mercadoria, pois é comprada para que
transfira valor (ou produza equivalente), é visto como um mediador entre um valor menor e
72
outro maior. Assim quanto maior a mais-valia extraída de um trabalhador (ou incorporada na
mercadoria), mais corresponderá ao que objetiva o empregador.
Resolver esse problema fundamental da consciência não se trata de buscar um retorno
ou resgate da consciência primitiva, isso seria impossível a partir das condições dadas pelo
desenvolvimento sócio-histórico do homem. Trata-se de a partir das leis do processo de
formação da consciência humana desveladas pela psicologia científica, encaminhar novas
relações entre sentidos e significações tendo em vista “o desenvolvimento mais completo
possível das aptidões de todos os homens” (LEONTIEV, 1978a, p. 200) e buscar as condições
para esta relação. É nisso que se apoiará nossa análise do ensino de Física, uma vez
reconhecida como um processo de conhecimento importante para a interação dos homens com
a natureza na produção da existência humana, no desenvolvimento histórico-social. O sentido
pessoal da aprendizagem de Física precisa se concretizar nas significações, nos conteúdos e
suas formas de expressão. Os sentidos devem estar nas significações do conhecimento,
coincidir com ele. Não pelo “pelo amor abstrato à verdade” (LEONTIEV, 1978a, p. 131), mas
porque a tomada de consciência é o que conduz a uma verdadeira vida.
Leontiev destaca como o processo de reintegração da consciência se processa trazendo
outra relação entre significações e sentidos, na qual a “riqueza da experiência prática humana”
materializada e refletida no mundo é assimilada com intensidade e isso ocorre em função dos
novos sentidos pessoais estabelecidos e propriamente relacionados com as significações
objetivas. O processo revela com vigor o que é autêntico e desaparece com o que é fictício.
(LEONTIEV, 1978a, p.135). “A transformação psicológica essencial é então a da relação
principal da consciência, a relação entre o sentido e a significação”. (LEONTIEV, 1978a, p.
135). “O novo sentido do trabalho realiza-se na assimilação daquilo a que se chama a cultura
do trabalho, que constitui nele o aspecto intelectual”. (LEONTIEV, 1978a, p.136).
73
Capítulo 3 - Pensamento e movimento – aspectos metodológicos.
Sanches (1997) distingue três abordagens na pesquisas em educação, a partir de um
estudo da produção discente de programas de pós-graduação no Estado de São Paulo:
empírico-analíticas (66%), fenomenológico-hermenêuticas (22,5%) e as crítico-dialéticas
(9,5%). limitaremos-nos, aqui, a localizar sucintamente algumas diferenças entre essas
abordagens com o objetivo de situar nossa opção metodológica em meio a outras empregadas
na pesquisa educacional e, em parte, justificá-la. Para isso será tomado como referência
principal o trabalho de Sanches (1997) no qual o autor e colaboradores analisaram 502 teses e
dissertações e Frigotto (1997), no qual o autor discorre sobre o método da dialética
materialista histórica na pesquisa em Educação.
Sanches destaca que quanto ao aspecto técnico, em geral, as abordagens empírico-
analíticas utilizam técnicas de coleta, tratamento e análise quantitativos, com uso de
instrumentos estatísticos, que controlam testes padronizados, questionários fechados e são
“codificados em categorias numéricas”, permitindo uma descrição cartesiana dos problemas.
As pesquisas fenomenológico-hermenêuticas integram técnicas não quantitativas como
entrevistas, depoimentos, vivências, narrações, histórias de vida, análise do discurso etc. Já as
crítico-dialéticas utilizam as técnicas também empregadas pelas abordagens mencionadas,
além da “pesquisa-ação” e a “pesquisa participante” (SANCHES, 1997, p.95).
Grande parte dos trabalhos empírico-analíticos exclui discussões, confrontos ou
questionamentos, chegando a sugerir a diferenciação entre Ciência e crítica. Para esse grupo o
cientista pretende a imparcialidade, atribuindo à pesquisa um caráter técnico, explicativo e
descritivo dos fenômenos. A crítica é entendida como vinculada ao plano “político e
ideológico”. Segundo Sanches (1997), as críticas que aparecem nesse grupo reportam-se a
inadequações e deficiências de instrumentos e técnicas utilizadas no campo educacional, falta
de recursos para implementação ou manutenção de programas e atividades, e desajustes entre
necessidades e ações, fins e meios. As propostas nesse grupo buscam a harmonia e o
equilíbrio das organizações educativas, construindo propostas restauradoras e
incrementalistas.
Os trabalhos que fazem uso da abordagem fenomenológico-hermenêutica explicitam
suas críticas às abordagens fundamentadas no “experimentalismo”, métodos quantitativos e
propostas tecnicistas. Nesta abordagem o foco dos interesses estão na denúncia, na
explicitação de elementos de discursos, textos e comunicações. Há abundância de “elementos
74
críticos”, e uma preocupação por conscientizar os indivíduos ligados à pesquisa, além de
manifestarem “interesse por práticas alternativas e inovadoras”. (SANCHES, 1997, p. 97).
As pesquisas crítico-dialéticas questionam as concepções estacionárias da realidade
impressas nas duas abordagens (empírico-analíticas e fenomenológico-hermeneutica). Para
esse grupo, ficam ocultos nessas abordagens os conflitos, a historicidade e a dinamicidade,
atributos importantes da realidade. “Sua postura marcadamente crítica expressa a pretensão de
desvendar mais que o “conflito das interpretações”, o conflito dos interesses”. (SANCHES,
1997, p. 97). Essa abordagem ressalta o caráter histórico do desenvolvimento humano e busca
encontrar as possibilidades de mudança. “Enquanto a concepção analítica tem a causalidade
como eixo de explicação científica e a fenomenológico-hermenêutica tem a interpretação
como fundamento da compreensão dos fenômenos, a dialética considera a ação como a
categoria epistemológica fundamental”. (SANCHES, 1997, p. 102, grifo do autor).
Tomando ainda como referência o trabalho de Sanches, elaboramos uma tabela que
tenta resumir os aspectos das concepções de objeto, sujeito, sua relação no processo de
conhecimento, característica marcante, concepção de homem, e uma comparação metafórica
de resultado da apreensão da realidade e a concepção de educação (de interesse particular para
a pesquisa educacional) das três abordagens discutidas acima.
Tabela 1Quadro comparativo de alguns aspectos de abordagens teórico-metodológicas na pesquisa
educacional, esquematizado a partir de Sanches (1997).
Abordagem
Processo
centrado em
Característica
marcante
Comparação
metafórica
dos
resultados
Concepção
de homem
Traço da
concepção de
educação
Empírico-
analítica
Objeto
(objetividade/
neutralidade)
Univocidade de
enunciados
Fotografia
Recurso
humano
Desenvolver aptidões
Fenomenológico-
hermenêutica
Sujeito
(subjetividade)
Compreensão
da essência
Radiografia
Visão
existencialista
Conscientização
Crítico-dialéticas
Concreto
(concreticidade)
Síntese
progressiva
Filme
Ser sócio-
histórico
Mudança sócio-
histórica
Há que se considerar que as abordagens fenomenológico-hermenêuticas e crítico-
dialéticas se propõem a superar as abordagens empírico-analíticas, mas admitem o tratamento
científico-analítico dos fenômenos humanos nos casos em que tal tratamento é possível. A
abordagem dialética não renuncia à origem empírica objetiva dos fatos, nem a interpretação e
abstrações da fenomenologia, por isso tais abordagens são “constantemente retomadas,
75
criticadas e reintegradas” (SANCHES, 1997), visando à superação e um genuíno avanço do
conhecimento.
Frigotto (1997) identifica na dialética materialista histórica um triplo movimento
associado a três dimensões de uma mesma unidade (a dialética): a dialética enquanto postura
ou concepção de mundo, constituindo um movimento de crítica; a dialética enquanto método
de análise, constituindo um movimento de apreensão radical da realidade e construção de
conhecimento; e a dialética enquanto práxis, constituindo um movimento de transformação da
realidade “no plano do conhecimento e da ação” (FRIGOTTO, 1997, p. 79).
A análise do pensamento humano ao longo da história revela duas grandes correntes
de construção filosófica que constituem duas concepções fundamentais sobre o mundo, uma
oposta a outra: uma metafísica e outra dialética materialista (FRIGOTTO, 1997). A
metafísica, de diferentes matizes, fixa-se na existência positiva das coisas, numa espécie de
sistematização que incorre freqüentemente em ideologias e posturas dogmáticas. O caráter a-
histórico dessa concepção reflete-se numa postura de inércia ou continuidade frente aos
processos sociais, muitas vezes se limitando a contemplar ou interpretar os fenômenos.
Embora, hoje, seus desdobramentos científicos busquem superar as críticas ao empiricismo e
ao positivismo, segundo Frigotto (1997), ainda prevalece em nosso contexto de criação
cultural uma concepção de que existem métodos e técnicas alheios a um objeto a ser
construído o que indica resquícios positivistas na concepção do processo de conhecimento.
Enquanto concepção e postura, a dialética materialista se propõe a superar tanto a visão de
mundo empírica, quanto a fenomenológica.
A dialética materialista histórica, enquanto método, destina-se a (e tem como
pretensão) chegar à sínteses da realidade do processo sócio-histórico, determinando as leis de
modificações, de transições de ordenamentos, bem como de seus sustentáculos. Para isso, a
dialética materialista tem pretendido aproveitar elementos gerados nas abordagens empíricas
(empiricismo inglês) e abordagens fenomenológicas radicadas no idealismo alemão. Trata-se
de um movimento de aproximação do real mediante o esforço incessante da razão, mas sem
negar o fato empírico. Esse movimento parte dos fatos empíricos colocados pelo plano
concreto no qual se desenvolve a história dos homens. Superando as primeiras impressões e
representações das manifestações em forma de fenômenos, chegam-se às leis fundamentais
que esclarecem as relações. O ponto de chegada é o concreto pensado, não mais o empírico
(FRIGOTTO, 1997, p.80). Esse movimento do pensamento exige esforço racional e trabalho
de apropriação, organização e exposição clara e coerente do “concreto pensado”, trata-se da
síntese. Por isso Frigotto (1997) chama a atenção para que não se confunda o movimento do
76
real com suas contradições, conflitos, antagonismos, com o movimento do pensamento no
esforço de apreender esse movimento da forma mais completa possível. No caso da pesquisa
que relatamos, as várias situações de coleta de dados empregadas, contribuíram para a
identificação de categorias que se mostraram, nas análises dos dados, portadoras de potencial
para revelar aspectos particulares das relações entre conhecimentos de Física e condições
subjetivas e objetivas dos estudantes trabalhadores que se mostraram, ora favoráveis, ora
desfavoráveis ao desenvolvimento de conteúdos escolares. Trata-se da relação dialética entre
as categorias “significação objetiva” e “sentido pessoal”.
As categorias básicas da dialética materialista histórica são trabalho, práxis, mediação,
totalidade, contradição, hegemonia etc., mas para não se furtar da historicidade, condição
necessária para que um processo de conhecimento seja dialético, tais categorias e outras
fornecidas segundo a base teórica do problema investigado, devem ser revistas e reconstruídas
em cada situação de pesquisa. Isso, pois, a relação sujeito/objeto, na dialética, é específica em
cada movimento do pensamento no esforço de apreender a realidade. Como afirma Kuenzer
(1985 p. 18).
[...] a dificuldade [de se alcançar uma postura epistemológica genuinamente
dialética] reside na natureza própria da relação sujeito/objeto na dialética, que se
reveste de especificidade em cada caso, uma vez que o método emerge daquela
relação. Ou seja, as alternativas concretas [de superação do empiricismo expresso
nas posturas epistemológicas na realização de entrevistas e observações na pesquisa
em educação] em seu sentido genérico não serão propostas pelo simples fato de que,
em se tratando de método dialético, não há receitas.
Entendemos por historicidade, na dialética materialista, o caráter diacrônico dos fatos,
a evolução do fenômeno social no plano concreto no qual se dá a vida dos homens. Assim, a
historicidade contribui para as sínteses que nos levam a reconhecer, por exemplo, que muitas
relações sociais, embora sofram mudanças, não têm suas estruturas fundamentais, baseadas na
exploração do trabalhador, alteradas. Trata-se de um inventário histórico, crítico das
categorias envolvidas no problema, buscando seus movimentos na história, não apenas suas
transformações. Isso inclui e depende de um embate entre abstrações e teorias que se
coloquem a analisar o problema, buscando superar as primeiras impressões e aparências,
explicitando forças, conflitos, relações implícitas e outras decorrências do “jogo” ideológico.
Enquanto práxis a dialética se propõe a transformar a realidade por meio do
conhecimento novo, que só pode se mostrar verdadeiro na práxis. A práxis expressa
77
justamente a indissociabilidade entre teoria e prática. “A reflexão teórica sobre a realidade
não é uma reflexão diletante, mas uma reflexão em função da ação para transformar”
(FRIGOTTO, 1997, p. 81). Na sua XI Tese sobre Feuerbach, Marx (1979, p.14) sintetiza esse
caráter de práxis a que se refere a dialética: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo
de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”. Trata-se do retorno ao concreto, mas
agora pensado, e que se mostrará verdadeiro, embora relativo, pois é histórico, o tanto quanto
tiver condições de viabilizar a transformação do concreto ponto de partida, e para isso inicia-
se um novo movimento (concreto realÎabstraçãoÎconcreto pensado). Uma última
referência a Frigotto (1997) organiza as idéias dos últimos parágrafos:
Na perspectiva materialista histórica, o método está vinculado a uma
concepção de realidade, de mundo e de vida no seu conjunto. A questão da postura,
neste sentido, antecede ao método. Este constitui-se numa espécie de mediação no
processo de apreender, revelar e expor a estruturação, o desenvolvimento e a
transformação dos fenômenos sociais. (FRIGOTTO, 1997, p.77).
Cabe ressaltar que as abordagens discutidas acima possuem ainda desdobramentos, o
que implica não podermos rotular as pesquisas somente sob tais nomes, além do mais, esses
rótulos não expressam que elas estão restritas a determinados níveis de compreensão das
questões que se colocam, apenas permite saber quanto sua filiação epistemológica. Frigotto
(1997, p.72) assim se refere às abordagens empiricistas, idealistas, materialistas (vulgar) e
estruturalistas: “É preciso frisar, porém, que os métodos que se fundam nesta perspectiva não
são epistemologicamente radicais. Não atingem as leis fundamentais da organização,
desenvolvimento, e transformação dos fatos e problemas histórico-sociais”. Por outro lado,
não se pode perder de vista que a dialética se ocupa, sobretudo, dos meios de produção e
reprodução da vida em sociedade, não se reduzindo somente aos aspectos econômicos.
Por fim, consideramos que a produção da existência humana é a própria história,
portanto a história é um processo, mas também um método de transformação da realidade,
que não está livre de nossos valores e ideologias. Isso faz da história (como processo e
método) o resultado de “opções conceituais e metodológicas imbuídas de uma determinada
visão de mundo” (FRANCO e TREIN, 2003, p. 143), e isso permite ao homem uma verdade
aproximada, e, portanto, no plano material, um conhecimento objetivo.
78
3.1 Procedimentos e instrumentos metodológicos
Kuenzer (1985, p.17) assinala que a relação com o empírico, numa pesquisa dialética
materialista, é bastante delicada, e que esta é uma das explicações de porque algumas
pesquisas não conseguem fazer avançar o conhecimento das relações educação e trabalho na
especificidade brasileira e, partindo da mesma teoria, das mesmas categorias, chegam a
resultados incompatíveis.
Na perspectiva de estabelecer uma relação apropriada com o empírico, buscando não
negar a importância dos fatos empíricos na apropriação da realidade, conforme determinam os
pressupostos da dialética materialista histórica, mas ressaltando que tal relação não se trata de
uma medida ou avaliação que possa ser estabelecida por uma relação sujeito/objeto típica das
abordagens empírico-analíticas, estabelecemos a estratégia que relataremos a seguir.
Na incorporação de elementos empíricos, o obstáculo que se levanta é que tal
instrumental implica uma postura epistemológica que dicotomiza sujeito e objeto
(KUENZER, 1985). Neste sentido, o cuidado que tomamos foi o mesmo de Kuenzer, também
recomendado em Frigotto (1997), admitir o fato empírico, o que é diferente de assumir uma
postura empiricista. O fato se manifesta no fenômeno, que impõe um conjunto de
“aparências” que precisam ser superadas pelo esforço racional na recuperação da totalidade a
partir de elementos particulares, limitados quando isolados, mas organicamente relacionados
como todo que elucida as relações em múltiplas determinações. Na relação com os fatos
empíricos, as categorias principais que contribuíram, significado e sentido, ou mais
precisamente nos termos da psicologia histórico-cultural, significação objetiva e sentido
pessoal, não aparecem explícitas nas respostas ou posturas dos sujeitos, essas categorias não
existem naturalmente nos contextos, mas são construídas pelo pesquisador na sua análise e
segundo a trajetória da pesquisa. “[...] quem conduz a investigação é o pesquisador e não os
dados [...]. É o pesquisador que estrutura as questões e sua significação para conduzir a
análise dos fatos, documentos, etc” (FRIGOTTO, 1997, p. 88). Isso implica em ir ao
problema, desde o início, com uma postura teórica situada criticamente frente ao objeto
investigado. Neste sentido, não há como separar do pesquisador seus posicionamentos,
valores, interesses, intenções, que o orientam, conforme destacado por Ludke e André (1986)
e Sanches (1997).
Os instrumentos de tomada de dados utilizados foram quatro: i) questionários
aplicados em 80% das escolas públicas de Ensino Médio Noturno em Araraquara-SP; ii)
79
entrevistas com estudantes trabalhadores sobre a elaboração do seu saber profissional; iii)
observações de espaços de trabalho com estudantes trabalhadores; iv) intervenção em sala de
aula. Inicialmente não estava prevista a intervenção, mas após as primeiras análises dos
demais dados, tornou-se necessário perceber melhor como seria possível desenvolver aulas de
Física a partir do que sinalizavam as análises.
Nossa opção foi não acumular informações dos mesmos estudantes trabalhadores em
mais de um momento de tomada de dados. Assim, cada “sujeito”, só contribuiu com um dos
momentos da coleta de dados, evitando uma metodologia “perseguidora”, embora sua
atividade profissional possa ter sido contemplada em outros momentos da pesquisa. Essa
estratégia conduz a uma ampliação dos aspectos quantitativos, com prejuízos a aspectos
qualitativos, o que pode ter contribuído com a comtemplação de um maior espectro de
atividades de trabalho. De um modo geral, o protocolo de observação foi:
Na entrevista:
1. O sentido que atribuem às suas atividades profissionais enquanto estão na escola;
2. O sentido que atribuem à escola ao considerar suas atividades profissionais;
3. No que a escola tem feito (ou no que esperam que faça) diferença em suas vidas;
4. Expectativas frente à educação escolar.
5. Conteúdos de interesse para o Ensino de Física que consideram em referência a sua
atividade de trabalho
Nos espaços de trabalho:
1. Autonomia no espaço de trabalho no que diz respeito a poder expressar/aplicar saberes;
2. O Sentido que atribui ao trabalho;
3. Situações que podem levá-lo a considerar o conhecimento de Física que aprendeu na
escola;
4. Conteúdos da atividade de trabalho de potencial interesse para o Ensino de Física.
80
Na intervenção em sala de aula:
1. A potencialidade de conexões entre conhecimentos de Física e atividades de trabalho na
criação de situações de ensino que incitem novas necessidades e motivos para a aprendizagem
de conteúdos de Física.
As entrevistas e as visitas aos espaços de trabalho foram analisadas em conjunto, uma
vez que as visitas se caracterizaram como entrevistas curtas associadas a uma monitoria na
observação dos espaços de trabalho.
A relação principal que queremos destacar entre nosso problema de pesquisa e a
abordagem teórica na qual nos apoiamos, está na hipótese de que conhecendo os motivos que
impelem os estudantes trabalhadores a buscarem a escola, podemos conhecer o sentido
pessoal da escola para eles. Esta é uma questão relevante não só para o Ensino de Física, mas
para a escola. A seqüência da descoberta deste sentido pessoal é que chamará a cada
disciplina uma forma de desenvolver seus conteúdos específicos, de modo a permitir aos
estudantes a criação de novos motivos e necessidades de conhecimento e de desenvolvimento
pessoal, visando que esses sentidos se concretizem nas significações objetivas
correspondentes aos conteúdos disciplinares ou ligados a eles. Passaremos a descrição dos
instrumentos metodológicos empregados.
Questionários
Nossos objetivos com a aplicação desse questionário foram dois: i) caracterizar as
atividades de trabalho dos estudantes do Ensino Médio, obtendo uma distribuição dos
estudantes em função das suas atividades de trabalho. ii) a partir dessa distribuição e da
descrição da atividade de trabalho, solicitada no quarto e último item do questionário, inferir
temas da Física que estes estudantes podem ter mais contato em suas atividades de trabalho.
Foram aplicados 500 questionários, retornando 434, distribuídos em 80% das escolas
de ensino médio noturno de Araraquara-SP
12
que contam com um total de aproximadamente
2500 estudantes nas diversas “modalidades” do Ensino Médio oferecidas no turno noturno. Os
questionários foram aplicados em escolas de todas as regiões urbanas da cidade, sendo as
12
Escolhemos esta cidade por três razões: i) Perfil socioeconômico comum entre cidades de médio porte do
interior paulista; ii) Influência de industrias de base tecnológica e aeronáutica na busca por escolaridade; iii)
melhor conhecimento das regiões e escolas da cidade, o que contribuiu com uma coleta de dados mais
homogênea.
81
turmas escolhidas aleatoriamente pelo funcionário que nos apresentava aos estudantes. Foram
explicados os objetivos e destino dos questionários e em apenas uma das escolas foram
encontrados obstáculos quanto à aplicação do questionário. Enquanto a única exigência da
maioria das diretorias das escolas foi o encaminhamento para a diretoria da escola uma cópia
do questionário e um ofício explicando a que se destinava, uma escola não permitiu a
aplicação em hipótese alguma sem autorização da diretoria de ensino. Porém, como já haviam
sido aplicados questionários em escolas vizinhas (na mesma região da cidade), a região já
estava representada em termos numéricos.
Foram assumidas algumas hipóteses simplificadoras em se tratando de amostragens
probabilísticas (sorteio dos sujeitos dando chance igual para todos), metodologia que
empregamos, buscando garantir a representatividade estatística. Esta metodologia é a mais
utilizada para amostragens (THIOLLENT, 1981). As amostras foram tomadas
distributivamente em todo o espaço amostral considerado (LEVIN, 1987) e as hipóteses
simplificadoras foram: i) As salas de aulas foram consideradas homogêneas quanto à
distribuição profissional dos estudantes, dado que a atribuição de estudantes numa turma do
Ensino Médio não segue regra específica sendo, portanto, aleatória; ii) a distribuição dos
estudantes quanto suas profissões é homogênea nas três séries do Ensino Médio; iii) a
distribuição dos estudantes do Ensino Médio, quanto a suas atividades profissionais, é
semelhante em cidades com características socioeconômicas semelhantes; iv) a distribuição
dos estudantes trabalhadores, quanto às funções desempenhadas no trabalho, se mantém
inalteradas durante intervalos de tempo que não apresentam grandes transformações dos
meios de produção.
O questionário foi composto por quatro perguntas simples que indagavam sobre as
duas últimas ocupações dos estudantes, tempo de permanência em cada uma, a função
desempenhada e ainda foi pedida uma descrição das atividades de trabalho desempenhadas
pelos estudantes. O questionário encontra-se no apêndice A.
Entrevistas
As entrevistas tiveram por objetivo obter informações sobre o que relatam estudantes
trabalhadores sobre a elaboração do seu saber profissional e sobre suas expectativas em
relação ao saber escolar, em especial as relações que idealizam entre saber escolar e
expectativas profissionais. Assim, buscamos a explicitação de motivos, e
82
correspondentemente, sentidos pessoais para a freqüência à escola e em especial para a
aprendizagem de conteúdos científicos como a Física. O protocolo das entrevistas encontra-se
no apêndice B. As entrevistas estão relacionadas na tabela abaixo que reúne algumas
informações sobre os entrevistados.
Tabela 2 – Informações sobre os entrevistados
Atividade profissional
Tempo na
atividade
Idade
(anos)
Técnico em ferramentas elétricas 7 anos 24
Trabalhadora doméstica 2 anos 18
Trabalhador rural (setor canavieiro) 4 anos 21
Operador de foto-copiadora e balconista
1 ano e 4
meses
17
Os entrevistados foram convidados para participar das entrevistas nas salas de aulas de
uma escola da região central da cidade, que atende estudantes de diversas regiões. Os
estudantes foram entrevistados em horários que não estavam em aula. As escolas centrais são
procuradas muitas vezes por se localizarem “no meio do caminho” entre o trabalho e as
residências, em outros casos por situarem-se próximas a centros comerciais facilitando o
acesso daqueles que trabalham nos centros comerciais. Essas informações foram obtidas com
funcionários.
Visitas a espaços de trabalho
O objetivo das vistas aos espaços de trabalho foi: estabelecer conexão entre a Física
escolar e o conhecimento produzido pelos estudantes trabalhadores no desenvolvimento de
suas atividades profissionais, por meio do levantamento de saberes teóricos e prático,
conceitos, que foram observados ou relatados, mesmo que não reconhecidos como tais nos
espaços de trabalho. Deste modo, buscamos entender o sentido que esse conhecimento tácito
tem para o estudante e quais as possíveis conexões com o conhecimento de Física.
As visitas foram pensadas numa perspectiva de, por um lado, o estudante trabalhador
pudesse falar a respeito das suas atividades profissionais, explicar o mais detalhadamente que
fosse possível naquele momento o que ele faz, como faz e por que faz daquela maneira e, de
outro lado, permitisse uma observação in loco da realização do seu trabalho com vistas a
encontrar fragmentos de conhecimentos de Física que pudessem servir ao ensino de Física,
83
enquanto elementos metodológicos, além de permitir aos estudantes manifestarem seus
motivos para o trabalho e para freqüentar a escola, buscamos assim, o sentido pessoal para a
aprendizagem de conhecimentos na escola, em geral, e conhecimentos de Física em particular.
Os espaços foram procurados em dois bairros da cidade, um central e outro periférico.
Em cada caso foi explicado aos responsáveis pelo espaço sobre a pesquisa e, mediante
autorização, iniciava-se a visita ao local, acompanhado por um estudante trabalhador.
As primeiras visitas não foram proveitosas o suficiente para atender ao protocolo de
observação, por isso, as descartamos. Mas, depois de algumas experiências, desenvolvemos a
percepção necessária para atendê-lo de forma a aproveitar melhor este contato com os
estudantes trabalhadores e suas atividades de trabalho. Evitamos fazer anotações no momento
das visitas, limitando-nos a observar detidamente as situações e movimentações dos
estudantes trabalhadores e a compreender as falas. As anotações no “caderno de campo”
foram realizadas a distância dos espaços visitados, o que pode ter acarretado perdas de
informações, mas permitiu uma melhor reflexão no momento, favorecendo inclusive, a
memorização do que nos foi mostrado, bem como dos comentários e situações que atendiam
ao protocolo de observação.
A tabela 3 organiza algumas informações sobre os espaços de trabalho e os estudantes
trabalhadores que nos conduziram na apresentação de suas atividades de trabalho, nos casos
efetivamente analisados.
Tabela 3 – Informações sobre os espaços de trabalho visitados e a respectiva atividade observada.
Espaço de trabalho
Atividade do estudante
trabalhador
Tempo de
serviço na
atividade em
anos
Idade
(anos)
Loja de equipamentos de
som para automóveis
Instalar aparelhos de som em
automóveis
2 20
Borracharia
Consertos (alinhamento e
balanceamento de rodas).
3 17
Depósito de
supermercado
Auxiliar a organização geral do
depósito
1 23
Loja de calçados Vender calçados 2 21
Oficina mecânica
Consertos de automóveis em
geral
12 28
Foi preciso uma convivência mais prolongada com os estudantes trabalhadores, tal
como o fizeram, por exemplo, Raboni (1993) e Kuenzer (1985) dentre outros autores em
investigações das relações entre trabalho e educação. Este procedimento nos foi inviável, em
função da dificuldade de escolha dos espaços em que poderiam se dar tal convivência.
Restringir a um desses espaços, nos pareceu razoável, mas em se tratando de instalações
84
comerciais, em sua predominância, e não industriais, seria difícil uma permanência
prolongada junto ao estudante, que em geral, atende aos clientes e interage com outros
trabalhadores com muita freqüência. Assim, o espaço no qual fôssemos menos
inconvenientes, seria o espaço escolhido para uma permanência mais prolongada, embora não
tanto quanto a realizada por Raboni e Kuenzer, cujas observações se estenderam por meses.
Foi acertado com o proprietário de uma pequena loja de equipamentos de som para
automóveis e com um de seus empregados que estava cursando a terceira série do Ensino
Médio, que poderíamos observar o trabalho do estudante, com o privilégio de suas
explicações, por dois dias consecutivos, em horário comercial. O mesmo foi conseguido junto
a uma oficina mecânica cujo proprietário havia concluído o Ensino Médio há um ano.
Intervenção em sala de aula
O objetivo da intervenção foi explorar a possibilidade de incorporar, de forma
significativa, no Ensino de Física, conhecimentos provenientes das atividades profissionais
desenvolvidas por estudantes trabalhadores do Ensino Médio, buscando, para além da
contextualização, encontrar elementos metodológicos para o Ensino de Física que permitam
aos estudantes trabalhadores desenvolver novas necessidades de conhecimento e novos
motivos para a aprendizagem dos conteúdos de Física. Mais precisamente, que encontrassem
motivos para a aprendizagem de Física a partir de necessidades criadas na oportunidade de
aprendizagem que teve como ponto de partida situações Físicas ou problemas de Física que os
estudantes trouxeram de situações de trabalho. Assim, por exemplo, eles podem estudar a
Física almejando novas oportunidades de escolaridade, pois quase todos os concursos
vestibulares exigem uma preparação em Física, mas também podem descobrir que a Física
oferece um conteúdo importante na compreensão das situações trabalho, ou na compreensão
de como se apropriar melhor dos conhecimentos relacionados à sua atividade profissional.
Mostrar essa ampliação de possíveis motivos para a aprendizagem de Física, por meio dos
conteúdos específicos, foi também um dos objetivos da intervenção, bem como avaliar os
elementos objetivos que os estudantes trabalhadores podem contar para essa aprendizagem, a
partir de suas atividades de trabalho. Em qualquer caso, reconhecer a importância dos
conteúdos da atividade de trabalho, não perdendo de vista a necessidade de apropriação das
objetivações da Física, foi enfatizado.
85
Apresentamos tal perspectiva para o Ensino de Física a uma professora de Física e
Matemática da rede pública que, gentilmente, cedeu-nos suas aulas por duas semanas em uma
das turmas de 3
o
ano do Ensino Médio do noturno. Foi um total de seis aulas distribuídas em
duas semanas, sendo a carga semanal distribuída da seguinte forma: uma aula “dupla” (100
minutos) e dois dias depois uma aula “simples” (50 minutos).
No desenvolvimento da atividade podemos distinguir dois momentos principais. O
primeiro momento compreendeu a primeira semana e a primeira parte da aula “dupla” da
semana seguinte, ou seja, quatro aulas (200 minutos). Neste momento apresentamos aos
estudantes a proposta de trabalho que consistia em desenvolver conceitos de Física a partir do
que eles relatassem como problemas relacionados à Física e que observassem em suas
atividades de trabalho ou em seus locais de trabalho. Esses problemas iriam compor uma lista
que forneceria os conteúdos a partir dos quais desenvolveríamos os conceitos de Física.
Procedemos a uma consulta sobre a aceitação da proposta. Nenhum estudante se opôs, mas
demonstraram curiosidade. Foi combinado que em função do número relativamente reduzido
de aulas destinadas à atividade, não seria possível contemplarmos todas as atividades
profissionais, mas buscaríamos assuntos comuns ao máximo das atividades profissionais
representadas na sala. Depois destes acertos iniciais, procedemos ao levantamento da
distribuição dos estudantes em função de suas atividades profissionais. Participaram da
atividade 22 estudantes. A média de idade era de 22,5 anos. A escola situa-se na região central
da cidade, porém, a maioria dos estudantes reside em bairros não centrais. Obtivemos a
seguinte distribuição de atividades profissionais: Mecânico de automóveis (2); motorista
(transporte de cargas) (1); “açougueiro” (2); “caixa de supermercado” (3); repositor de
supermercado (1); trabalhador rural (na produção de cana) (1); ajudante de cozinha (1);
manicure (1); balconista de loja de confecções e calçados (2); nunca trabalhou (1);
Domésticas (3); responsável por depósito de produtos secos (1); atendente em academia de
ginástica (2); promotor de vendas (cosméticos) (1). Destes, alguns poucos estão
desempregados, mas já trabalharam, neste caso, considerou-se a atividade profissional
anterior. Ainda no primeiro momento foram conhecidos alguns instrumentos de trabalho que
os estudantes relataram e discutidos os conceitos físicos relacionados.
O segundo momento compreendeu o restante das aulas a nós concedidas, ou seja, duas
aulas (100 minutos) nas quais desenvolvemos conteúdos de Física compartilhados pela maior
parte das atividades de trabalho relatadas na intervenção. O detalhamento dos dois momentos
da intervenção será feito no próximo capítulo.
86
Capítulo 4 – Estudantes trabalhadores, significado e sentido para
a aprendizagem de Física.
4.1 Questionário: quais as ocupações dos estudantes trabalhadores
do Ensino Médio?
Na tabela 4 apresentamos a delimitação dos estudantes que responderam aos
questionários e a organização das respostas. Nas colunas da tabela temos, da esquerda para a
direita: Escola Estadual (EE) (de um total de nove escolas de Ensino Médio Noturno tomamos
sete instituições abrangendo todas as regiões da cidade de Araraquara-SP). Na segunda coluna
é apresentado o número de turmas existentes nas escolas e na terceira coluna o número total
de estudantes matriculados. Na quarta coluna apresentamos o número mínimo de
questionários tomados, aleatoriamente, para que tenhamos representatividade estatística. Na
quinta coluna, o total de estudantes respondentes que nunca trabalharam e na sexta coluna o
número de estudantes respondentes, cuja ocupação será classificada como não diretamente
relacionada aos conhecimentos de Física, a qual será chamada Grupo 1. Na sétima coluna o
número de estudantes respondentes, cuja a ocupação classificamos como diretamente
relacionada aos conhecimentos de Física, a qual será chamada Grupo 2. E finalmente, na
oitava coluna o total de questionários respondidos.
Tabela 4 - Delimitação do público e resultados do questionário.
Dados preliminares Resultados
Escola Turmas Matriculados*
Mín. de
questionários
(12%)
Não
trabalham
Grupo 1 Grupo 2 Total
EE-1 15 500 60 06 61 15 82
EE-2 08 300 36 09 36 07 52
EE-3 12 450 54 30** 35 08 73
EE-4 06 220 27 09 38 10 57
EE-5 10 400 48 09 47 05 61
EE-6 03 90 11 02 36 06 44
EE-7 11 400 48 06 52 07 65
Total 65 2360 284 71 305 58 434
* Há cerca de 20% de evasão ao longo do ano letivo.
** Segundo o funcionário da escola os estudantes “boicotaram” o questionário assinalando que nunca
trabalharam para encerrar sem a necessidade de responder as demais perguntas, esta informação foi obtida
posteriormente pelo funcionário que nos atendeu no dia da aplicação do questionário.
87
Os dados indicam que 71 estudantes (16,4 % do total) nunca trabalharam; 305
estudantes (70,3 % do total) trabalham, ou já trabalharam, em atividades não relacionadas
diretamente com algum conhecimento de Física (Grupo 1) e 58 estudantes (13,3 % do total)
trabalham, ou já trabalharam, em atividades diretamente relacionadas à conhecimentos de
Física (Grupo 2).
Na distribuição, os questionários respondidos, demonstraram um equilíbrio em relação
a gênero, embora entre as mulheres tenham predominado as atividades profissionais ligadas
aos ambientes familiares (babás, domésticas, etc.).
4.1.1 Grupo 1 – atividades de trabalho classificadas como não diretamente
relacionadas aos conhecimentos de Física.
Nossos dados, para o Grupo 1, permitiram chegar a resultados semelhantes, quanto ao
perfil ocupacional dos estudantes (ou já trabalharam), aos encontrados por Gonçalves; Passos,
S; Passos, A (2005), em pesquisa realizada em 2003 com estudantes do Ensino Médio de
cursos noturnos oferecidos na Baixada Fluminense. Esta pesquisa revela que, quanto ao perfil
ocupacional, 43% dos estudantes desenvolvem trabalho assalariado, 44% estão
desempregados e 14% nunca trabalharam. Esses pesquisadores constataram, quanto ao perfil
ocupacional dos estudantes do Ensino Médio que investigaram, que:
As atividades profissionais desempenhadas relacionam-se ao setor terciário, são
balconistas, atendentes, secretárias, manicures, pedreiros, mecânicos, empregadas
domésticas, babás, motoristas, funcionários públicos no setor de limpeza. A maioria
dos empregos é mera ocupação, que não exige qualificação específica, quase sempre
em turno de oito horas (GONÇALVES; PASSOS,S; PASSOS, A., 2005, p.350)
Esse quadro de aparente “pauperização” das ocupações dos estudantes do Ensino
Médio quanto à exigência de atividade intelectual, embora seja um fator que impõe limitações
à utilização de situações de trabalho como elementos para o desenvolvimento de aulas de
Física, vem por outro lado, mostrar a necessidade da aprendizagem dos conceitos científicos,
que pela via dos conceitos cotidianos podem enriquecer e re-significar o cotidiano dos
estudantes, levando ao desenvolvimento intelectual, conforme discutimos no capítulo 2 a
88
partir de Vigotskii (1988), Vygotsky (2005) e Leontiev (1978a, 1988). Por outro lado, é
inegável que existem fragmentos de conhecimentos de Física envolvidos no desenvolvimento
das atividades de trabalho que podem ser relevantes para o alcance desses objetivos
educacionais. Conhecimentos que permitem constantes revoluções dos meios de produção,
ainda que em muitos casos se exclua o trabalhador dos benefícios desta evolução.
Conhecimentos passíveis de serem considerados enquanto experiências para a construção e
apropriação de conhecimentos científicos pelos estudantes trabalhadores, considerando a
mediação da escola.
A tabela abaixo apresenta as ocupações encontradas e o agrupamento realizado para o
grupo 1, cujo critério foram as áreas de atuação profissionais.
Tabela 5 – Grupo 1: respectivos agrupamentos, número de respondentes e atividades de trabalho
Agrupamento
Número de
respondentes
Atividades de trabalho consideradas no agrupamento
Comercial 95
Açougueiro; Balconista, Entregador; Frentista; Promotor de
vendas; Repositor de produtos; Telemarketing.
Serviços gerais
86
Ajudante geral; Encarregado de almoxarifado; Autônomo;
Empacotador; Lavador de carros; Limpeza; Motorista;
Office-boy; Porteiro; Segurança.
Serviços domésticos
39 Babá; Cozinheira; Doméstica.
Auxiliar de escritório
38
Auxiliar de escritório; Estagiário em banco; Estagiário em
escritório; Recepcionista; Secretária; Técnico de informática.
Linha produção
Industrial
26
Costureira; Montador de móveis; Operador de equipamento
de linha de produção industrial; Padeiro.
Saúde e beleza
13
Acompanhante de idoso; Agente sanitário; Auxiliar de
enfermagem; Cabeleireiro; Manicure.
Rural
04 Manejo de lavouras; Produção de cana-de-açúcar; Tratorista.
Esportistas
02 Jogador de Futebol.
Aposentados 02 Marceneiro; zelador.
Cabe lembrar que há um caráter subjetivo neste agrupamento (e também para o grupo
2, a seguir), uma vez que foi feita baseado em nossos conhecimentos sobre os setores
produtivos e de serviços. Para reduzir esta imprecisão, utilizamos como referência a
Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), disponível no site do Ministério do Trabalho e
Emprego.
89
4.1.2 Grupo 2 - atividades de trabalho classificadas como diretamente
relacionadas aos conhecimentos de Física.
Na organização destes dados, novamente tomamos como critério de agrupamento as
áreas de atuação profissional que apareceram nas respostas ao questionário.
A tabela abaixo mostra as ocupações encontradas e o agrupamento realizado para este
grupo.
Tabela 6 - Grupo 2: respectivos agrupamentos, número de respondentes e atividades de trabalho .
Agrupamento
Número de
respondentes
Atividades de trabalho consideradas no agrupamento
Construção civil 15 Pedreiro; Pintor/Gesseiro; vidraceiro.
Metalurgia 12
Soldador; Metalúrgico; Operador de corte e solda;
Ferramenteiro; Ourives; Operador de extrusão.
Eletricista de eletro-
eletrônicos
11
Eletricista residêncial e comercial; Técnico em eletrônica;
Eletricista de automóveis; Técnico em segurança eletrônica.
Mecânica (automóveis) 8 Mecânico de automóveis.
Serviços com torno 7
Torneiro mecânico; Chaveiro; Mecânico de manutenção
industrial (torneiro).
Medição/Agrimenssura 2
Técnico em agrimensura; Instrumentação de medição
(Áreas).
Outros 3
Auxiliar de tráfego; Iluminação e filmagem; Mecânico de
usinagem (cana-de-açúcar).
Neste grupo 2, encontramos a maioria dos estudantes inseridos em atividades de
trabalho ligadas a áreas técnicas e a cursos profissionalizantes. Ao considerar este grupo e
conceitos cotidianos ou científicos provenientes de suas atividades de trabalho, em aulas de
Física no Ensino Médio, é preciso não perder de vista os objetivos do Ensino Médio ligados a
uma formação geral que prepare o cidadão para participação ampla na sociedade. Isso não nos
permite uma abordagem técnica desses temas, no sentido de ligá-los estrita e exclusivamente
a determinadas profissões, mesmo porque isto, ao invés de trazer aos estudantes trabalhadores
melhores chances de aprendizagem, excluiria o grupo quantitativamente mais representativo
(grupo 1), além de limitar o estudo da Física a problemas técnicos, reduzindo o amplo campo
conceitual e de atuação da Física.
Uma das possíveis contribuições originais deste trabalho e também um de seus desafios,
é, ao considerar os sujeitos do “grupo 1”, realizar recortes convenientes que valorizem as
atividades profissionais não relacionadas diretamente com conhecimentos de Física, como
possíveis fornecedoras de situações férteis para análises na perspectiva da Física a ser
desenvolvida no Ensino Médio. Esse esforço é importante devido à pluralidade de ocupações
90
reveladas no estudo e as possibilidades de socialização de situações de trabalho entre os
estudantes. Assim, justifica-se o foco da pesquisa nos dois grupos, uma vez que temos razões
teóricas para acreditar que as relações entre conceitos cotidianos, ou mesmo científicos, como
se verifica em alguns casos, provenientes de situações de trabalho com os conceitos
científicos objetos das aulas de Física, podem contribuir efetivamente com o ensino desta
Ciência, ao se tornar uma abordagem ampla, não tanto no sentido de considerar uma
quantidade exaustiva de fenômenos físicos, mas principalmente no sentido de contemplar um
espectro maior de atividades profissionais. Isso se o trabalho for compreendido da forma em
que se mostra historicamente: como práxis humana e produtiva responsável pela produção do
conhecimento, associado à vida em sociedade.
4.1.3 Como os estudantes trabalhadores descreveram suas atividades de
trabalho?
Conforme já dissemos, o questionário que visou o levantamento das atividades de
trabalho dos estudantes, contou com a seguinte solicitação:
Descreva da forma mais completa que puder as atividades que desenvolve no seu
trabalho atual,
ou caso não esteja trabalhando atualmente, as atividades
desenvolvidas no seu emprego anterior
. (apêndice A).
Excetuando os 71 questionários respondidos por estudantes que declararam nunca
terem trabalhado e 1 invalidado, dos demais 363 questionários respondidos, 61 não deram
resposta à última solicitação do questionário (aproximadamente 17 % dos questionários
respondidos por estudantes que trabalham ou já trabalharam). Os demais 302 questionários
permitiram uma classificação das respostas à última solicitação, em linhas gerais, de três
tipos, a que chamamos: descrições breves, descrições detalhadas e descrições conjunturais. As
descrições breves foram muito sucintas não expressando um interesse em detalhar a sua rotina
de trabalho. As detalhadas forneceram pelo menos um detalhe que permitiu caracterizar
melhor a atividade de trabalho, já as conjunturais se reportaram às condições gerais de
trabalho que aparentemente afligem os estudantes.
91
Tabela 7 – Classificação das respostas ao item do questionário que solicitou uma descrição detalhada da
atividade de trabalho.
Descrições breves Descrições detalhadas Descrições conjunturais Abstenções Total
241 49 12 61 363
O elevado número de descrições breves e de abstenção à solicitação da descrição da
atividade de trabalho não pode ser justificado pela falta de tempo para redigir, ou falta de
explicação dos objetivos da pesquisa ou detalhamento da solicitação. Aplicamos pessoalmente
os questionários, explicando os objetivos da pesquisa, garantindo o sigilo das informações e
fornecendo explicações adicionais. Tentamos justificar estes resultados com duas hipóteses: i)
o nível de envolvimento com as atividades de trabalho e o sentido pessoal atribuído a elas
obviamente varia de indivíduo para indivíduo. Assim, aqueles estudantes trabalhadores que
têm um maior envolvimento com suas atividades de trabalho e atribuem a elas um sentido
pessoal mais significativo e coerente com o significado social da atividade de trabalho que
desempenham, tendem a fornecer uma descrição mais detalhada do que fazem nesta atividade.
ii) os estudantes que não reconheceram a importância da pesquisa certamente não se
empenharam em contribuir com ela, atendendo a solicitação e respondendo as perguntas sem
o envolvimento necessário, ou seja, como um gesto apenas formal. A seguir reproduzimos
alguns excertos mediante a classificação realizada.
Descrição breve: grupo 1
Trabalho normalmente fazendo móveis para avião como armários, divisórias,
móveis do banheiro e outros (Marceneiro – 3ª série)
Descrição breve: grupo 2
Atendo telefone e desmonto os aparelhos eletrônicos (técnico em eletrônica –
2ª série).
Descrição detalhada: grupo 1
Lixo a parede com lixas de vários números, dependendo do serviço, aplico
massa, daí lixo de novo, mais fino, preparo a tinta, faço a mistura se precisar e
aplico, uma, duas, três mãos dependendo do caso. (pintor/construção civil – 1ª série).
Meu trabalho é basicamente circular pela loja o tempo todo com o rádio
ligado e verificar os produtos que estão acabando nas gôndolas, daí eu informo pelo
rádio meu parceiro que trabalha dentro do depósito, daí ele solicita a reposição dos
produtos. Quando precisam de ajuda para a reposição me chamam pelo rádio. Às
vezes tenho que ajudar a transportar gôndolas, mudar de lugar, fazer um pouco de
força também. (repositor de produtos – 3ª série).
92
Descrição detalhada: grupo 2
Faço peças sob encomenda, sou torneiro mecânico. Opero torno CNC,
retífica cilíndrica e torno revolver. Tenho que fazer meu trabalho com precisão.
Tenho que fazer eixos, acoplamentos mecânicos, engrenagens, etc. Tem que ser
preciso, pois as peças formam um conjunto mecânico que precisa funcionar bem
(operador de torno – 3ª série).
Meu serviço é muito cheio de detalhes, primeiro preparo o material. Limpo as
partes que vão ser soldadas, lixo, retiro tudo que possa comprometer a qualidade da
soldagem. Daí preparo o maçarico, o material que vai fundir, o eletrodo e controlo o
tempo de soldagem para ficar o mais uniforme que der. Tenho que cuidar do
material de segurança, pois a claridade é muita e pode dar problema na vista. E o
material esquenta muito. O arco tem temperaturas muito altas. (Soldador – 2ª série).
Descrição conjuntural: grupo 1
Nas áreas de trabalho de hoje não existe mais trabalho e sim exploradores.
Trabalho porque gosto de trabalhar, mas não gosto nada da maneira que somos
tratados (Babá/doméstica – 2ª série).
Descrição conjuntural: grupo 2
Faço serviços que qualquer um pode fazer, meu salário é equivalente ao meu
trabalho, não possuo carteira porque sou menor de idade, mas se pudesse faria tudo
para poder fazer outra coisa, por enquanto estou contente só por trabalhar, já é o
bastante. (mecânico (aprendiz) – 2ª série).
É possível notar o quanto as descrições detalhadas, independentes de serem do grupo 1
ou 2, podem ser úteis para o planejamento e desenvolvimento de atividades de Ensino de
Física que levem em conta as atividades de trabalho dos estudantes. A partir das 49 descrições
detalhadas que obtivemos nos dois grupos (1 e 2), extrapolamos informações para as mesmas
atividades de trabalho e para as descritas brevemente para construir o gráfico a seguir. O
gráfico representa os resultados gerais do questionário, apresentando a distribuição dos
agrupamentos das tabelas 5 e 6 em função de temas ou conceitos da Física que podemos
considerar preponderante nas atividades de trabalho, a partir de situações ou elementos
relacionados à atividade de trabalho que foram mencionados ou descritos no questionário. Em
alguns casos, inferimos elementos a partir de referências indiretas, por exemplo, um
trabalhador rural descreveu como corta a cana e como ela é encaminhada para a indústria de
93
álcool e açúcar. Com isso inferimos que um tema de Física que pode ser considerado presente
no seu contexto de trabalho é a produção de energia proveniente de fontes renováveis, em
particular, o álcool de cana-de-açúcar.
Nesta análise, como contamos com no mínimo um detalhe da atividade dos
estudantes, foi possível incluir alguns temas mais específicos da Física de forma mais
fidedigna às conexões com as atividades de trabalho descritas. Cada atividade descrita
contribuiu apenas com uma área do gráfico, ou seja, foi considerada apenas uma vez.
Foram consideradas três condições para construção do gráfico abaixo (figura 2, a
seguir): i) há comunhão de temas entre as atividades de trabalho, embora haja preponderância
de temas em umas. Isso significa que consideramos os temas relacionados à Física, mais
evidentes em cada atividade de trabalho, evidenciados a partir da análise das descrições. Estes
temas podem ser comuns a outras atividades ou situações de trabalho uma vez que há
comunhão de temas entre as atividades de trabalho consideradas, embora as relações variem
qualitativamente. ii) na maioria dos casos há mais de um estudante desempenhando a mesma
atividade de trabalho e iii) há diferentes níveis de desempenho da atividade de trabalho,
dependendo da formação/experiência específica do estudante bem como dos instrumentos
utilizados no trabalho, ou seja, as relações entre as atividades ou situações de trabalho com
temas da Física depende das condições objetivas em que os trabalho é desempenhado. Isso faz
aumentar ou diminuir a proximidade entre conceitos cotidianos do trabalho e os conceitos
científicos e precisa ser considerado no planejamento de situações de aprendizagem escolar
que levem em conta elementos de situações de trabalho para o desenvolvimento de conteúdos
científicos.
Não pretendemos uma lista exaustiva, mas apenas de assuntos inferidos das descrições
dos estudantes, buscando apresentá-las no formato mais próximo do contexto profissional,
mas de modo a permitir que se suscitem relações com outros conteúdos de Física.
94
95
Figura 2- Distribuição geral dos estudantes trabalhadores no conjunto dos dados obtidos com o
questionário, respectivos percentuais e situações de trabalho possíveis de serem relacionadas com
conhecimentos de Física a partir das descrições das atividades de trabalho.
É preciso considerar que sempre são possíveis agrupamentos que levem em conta
critérios peculiares das concepções metodológicas e orientação epistemológica, se for o caso,
daqueles que vão organizar atividades de Ensino de Física a partir do contexto de trabalho dos
estudantes. Por exemplo, o agrupamento “Eletricidade/Eletrônica” ao ser considerado em sala
de aula, pode incluir conceitos de Física Moderna (Mecânica Quântica). Idem para o
agrupamento “Propriedades dos materiais”. Também a “Termodinâmica” pode ser incluída
em “Mecânica” e assim por diante, modificando o agrupamento que procedemos,
representado no gráfico acima.
Um aspecto que merece ser comentado é quanto a comunidade de conceitos e
instrumentos entre várias atividades de trabalho. Há um vasto campo conceitual da Física que
perpassa (é comum) a várias atividades de trabalho. As atividades de ensino podem ser
organizadas a partir, ou pelo menos levando em conta, esse campo conceitual cotidiano
comum, que o estudante, enquanto trabalhador, em geral já dispõe e que precisa considerar
com seriedade todos os dias na sua atividade de trabalho, mas sem o nível de conceituação
científico. Do ponto de vista do conjunto de conhecimentos da Física compatíveis com o nível
de Ensino Médio, as atividades de trabalho, tomadas no seu conjunto, parecem se
complementar. Isso sugere que a socialização de conceitos provenientes das atividades de
trabalho entre estudantes pode ser proveitosa e ampliar possibilidades de desenvolvimento de
conteúdos em aulas de Física. Essa socialização, evidentemente, vem exigir discussões e
outras atividades em grupo.
Os resultados obtidos com o questionário já sugerem temas da Física que podem ser
um ponto de partida proveitoso no desenvolvimento dos conteúdos de Física do Ensino Médio
para os estudantes trabalhadores. As descrições detalhadas das atividades de trabalho
permitem perceber que os estudantes conseguem fazer descrições que sugerem temas da
Física que eles mantém contato nas suas ocupações. Evidentemente, é preciso relacionar o que
são capazes de descrever com os temas da Física, assim, por exemplo, lixar a parede com
lixas de diferentes números, abre uma discussão sobre força e coeficiente de atrito,
propriedade de materiais e superfícies. O trabalho “preciso” de construção de engrenagens e
“conjuntos mecânicos” abre discussões sobre a idéia de erro em medidas, ordens de grandeza,
movimentos harmônicos, atrito, dissipação de potência mecânica, máquinas simples e
complexas, e assim por diante.
96
4.2 Entrevistas e visitas: análises dos motivos, sentidos e suas
relações com as significações.
Das cinco visitas e quatro entrevistas, três (dois visitados e um entrevistado) disseram
estar satisfeitos com suas atividades profissionais, mantendo planos de concretizar avanços
pessoais nas atuais atividades profissionais. É o caso do “mecânico de automóveis”, do
“técnico de ferramentas elétricas” e o “instalador de som em automóveis”. Eles procuram na
escola conhecimentos “extras” para seu desenvolvimento pessoal e conseqüentemente em
suas atividades profissionais, mas a relação destas com a escolaridade não é seu objetivo
principal. Os demais entrevistados e visitados buscam na escola conhecimentos que os
permitam prosseguir nos estudos e, estudando, logram melhores condições de vida por meio
de melhores oportunidades de trabalho e da obtenção de uma profissão que permita isso. O
primeiro grupo demonstra uma relação com o saber mais desinteressado do ponto de vista de
um retorno econômico ou profissional, mas com interesses voltados à satisfação pessoal. O
segundo grupo busca nos conhecimentos escolares o meio de romper com suas atividades
profissionais, migrando para outras áreas de atuação. Querem realizar cursos que “forneçam”
uma profissão, de preferência de nível superior. Portanto, não faremos distinção dos
estudantes pelo modo como os consultamos (entrevistas e visitas monitoradas nos espaços de
trabalho), mas sim de acordo com o motivo que relataram para buscar a educação escolar.
Todos os estudantes consultados começaram a trabalhar antes de iniciarem o Ensino
Médio, e a maioria interrompeu os estudos por vários anos.
O primeiro grupo, os que relataram pretender permanecer em suas atividades,
chamaremos grupo 1. O grupo 2 será o dos que almejam outras profissões alcançadas via
escolaridade. Os estudantes do grupo 2 fazem relação direta entre a escola e uma profissão
melhor. Embora todos os entrevistados e visitados reconheçam a atividade de trabalho como
limitadora de um desempenho melhor na escola, esta consciência é mais enfatizada pelo
grupo 2. A importância do Ensino Médio foi explicitada, por este grupo, como ligada à
continuidade dos estudos com vistas a obtenção de uma profissão.
Eu quero fazer um curso profissionalizante, um curso no SENAI, uma mecânica,
alguma coisa assim. Quero um emprego melhor....o meu serviço é pesado e a gente
ganha muito pouco. Cortando cana ninguém tem futuro. Com o Ensino Médio eu
97
acho que tenho chance de conseguir algo melhor na vida. [...] É difícil, quando a
gente tem que trabalhar cansado, porque não dormiu direito, ou alguma coisa...é
ruim, mas dá para trabalhar. Agora estudar cansado não dá, né, não aprende muita
coisa né? Não entra na cabeça. (trabalhador rural – corte de cana)
[...] terminando o Ensino Médio eu vou procurar outro emprego, pois acho que
ganho muito mal. Vou tentar fazer faculdade...aqui na cidade tem um monte de
cursos, eu quero fazer um. O problema é o vestibular, estudando à noite eu não sei se
vai dar, mas vou tentar. Minha irmã fez isso e deu certo. Ela passou no vestibular.
(trabalhador - foto-copiador).
[...] Eu quero aprender o máximo de coisas na escola porque não posso pagar um
cursinho. Eu quero prestar um vestibular e fazer uma faculdade.[...] Vou continuar
trabalhando em casa de família até arrumar alguma coisa melhor. É o que vai dar
para fazer. (trabalhadora doméstica).
Para este segundo grupo, a escola parece ter sentido de emprego, ou de
empregabilidade, no sentido que discutimos no capítulo 1. Mesmo que o conhecimento seja
posto como o principal objetivo de estarem na escola, conforme disse a trabalhadora
doméstica, “eu quero aprender o máximo de coisas na escola porque não posso pagar um
cursinho”, vemos que em último caso o que está em jogo é conquistar uma outra profissão. Se
fosse de outro modo, talvez ela não se reportasse ao cursinho como uma possível necessidade,
a qual não pode pagar, uma vez que, se por um lado o Ensino Médio deve oferecer uma
formação básica de cunho geral, o cursinho é sem dúvida preparatório os concursos de acesso
ao Ensino Superior. Também nos disse que o que a motiva estudar é conseguir um emprego
melhor.
O que mais te ajuda a estudar e o que mais atrapalha? (pesquisador).
O que mais me ajuda é a vontade de fazer uma faculdade... conseguir um emprego
melhor. Acho que nada atrapalha muito quando a gente quer uma coisa. Eu queria
estudar de manhã, mas como preciso trabalhar, estudo a noite. É difícil, mas eu
preciso. Se não for assim a gente não estuda. (trabalhadora doméstica).
98
Na sua opinião, para que serve a escola? (Pesquisador)
Para dar um futuro melhor para a gente. Uma chance na vida, né? Tem que estudar
para tentar outras portas. (trabalhador rural-corte de cana)
O sentido pessoal é determinado pelo que incita a estudar (o motivo). No caso do
grupo 2, o motivo parece ser a busca por um emprego que proporcione melhores condições de
vida. O conhecimento, ou seja, as significações objetivas, são um meio para isso, mas não
coincidem com o objetivo de ter uma profissão melhor que proporcione um salário melhor e
assim uma vida melhor. Temos, no caso do grupo 2, uma relação inadequada entre sentido
pessoal e as significações nas quais esse sentido deveria se realizar psicologicamente. Do
ponto de vista do processo de estudo, não podemos considerá-lo, nesse caso, uma atividade,
uma vez que estudar é um processo que conduz, idealmente, ao conhecimento e não a uma
profissão. Para esse grupo, o conteúdo objetivo do processo de estudar não corresponde com o
conteúdo subjetivo, ou seja, o resultado objetivo não concorda com o motivo. Trata-se de uma
conseqüência e ao mesmo tempo causa de processos de alienação (LEONTIEV, 1978a, p.
122). A necessidade de aprender, ou seja, o motivo de aprender, de proceder à apropriação do
conhecimento, no caso do grupo 2, não está orientado (enquanto atividade) para satisfazer as
necessidades sociais de distribuição de conhecimento, de aplicação, e produção de
conhecimentos, contribuindo com o aumento do “saldo” de conhecimentos da sociedade. Não
está em questão a necessidade da sociedade de produzir algo, ou desenvolver a produção por
meio do que pode potencializar a Ciência. Não há qualquer motivação em contribuir com as
necessidades objetivas da sociedade. O motivo do processo de estudo está associado a uma
profissão que lhes proporcione uma vida melhor. O significado social não está ausente ao
estudante, mas é estranho ao sentido que este resultado tem para o indivíduo, ou seja, seu
motivo para estudar é estranho ao produto objetivo do estudo que é o conhecimento
apropriado. Assim o significado social do conhecimento corresponde apenas a “motivos
compreensíveis”, mas não “eficazes” na aprendizagem. De outro modo, podemos ver que para
os estudantes que concebem a escola mediante um sentido de profissão ou emprego, o
conhecimento veiculado pela escola não parece possuir valor-de-uso, mas tão somente valor-
de-troca. Se fosse de outro modo o sentido pessoal da aprendizagem se realizaria
psicologicamente nas significações objetivas, ou seja, no entender, no saber-fazer, no
99
conhecimento e nas generalizações que este saber proporciona e não apenas no (e para o)
emprego melhor ou na mediação para uma profissão de mais status.
Distinguir os sentidos e os motivos é sempre também distinguir uma vontade,
sentimentos. O ato de coragem que tem por motivo a sujeição de outro homem, a
usurpação do bem de outrem ou a ascensão na hierarquia social tem qualidades
psicológicas bastante diferentes das do ato corajoso cujo motivo é contribuir com a
sua ajuda para a causa comum. (LEONTIEV, 1978a, p. 137).
Por isso não se trata de estudar por “amor abstrato à verdade”, mas trata-se de uma
questão de reintegração da consciência de modo que se descubra que a consciência individual
não pode existir sem uma consciência coletiva, como escreveu Leontiev (1978a), mas não
apenas isso. Trata-se também, e principalmente, de tomar um caminho seguro para o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, cujo conhecimento científico é a porta
de acesso, conforme demonstram as várias investigações desenvolvidas por Vygotsky e
colaboradores (VYGOTSKY, 2005). Neste sentido os motivos “compreensíveis” dos
estudantes podem ser transformados pela mediação da escola.
O grupo 1, dos estudantes que relatam uma relação de satisfação pessoal no
conhecimento (em si) que a escola veicula, não descartam o reflexo desse conhecimento em
suas atividades profissionais, vindo a se traduzirem em resultados econômicos e de produção,
em geral. Esses estudantes tiveram como motivo inicial para freqüentar a escola o retorno
financeiro que cursar o Ensino Médio pode significar, mas esse motivo foi transformado. O
mecânico, proprietário de uma pequena oficina, nos disse que é “interessante lembrar de
Física e Química na oficina” e fica “mais confiante” quando vai redigir alguma coisa no
escritório da oficina. Mas quando os clientes e as “seguradoras” vêem na parede do escritório
não só os certificados de cursos, mas o certificado do Ensino Médio, “o valor é outro” nos
disse ele, se referindo à valorização de si próprio e de seus conhecimentos profissionais
proporcionadas pelo Ensino Médio. Nos disse que parou de estudar por mais de oito anos
porque não via retorno financeiro no Ensino Médio, por isso investiu mais na sua, então
recentemente iniciada atividade profissional.
O “instalador de equipamento de som em automóveis” considera que cursar o Ensino
Médio o deixará mais apto para abrir seu próprio negócio, mais “ativo” para usar uma palavra
dele. Quando perguntamos que relação ele “vê” entre o Ensino Médio e sua atividade
profissional propriamente, nos disse que pouca relação, mas que não é isso o que lhe atrai e
100
sim ser uma pessoa mais “inteligente” para tomar o seu “rumo”. Já para o “técnico em
ferramentas elétricas”, também parou de estudar porque trabalhar lhe pareceu uma opção mais
atraente financeiramente, além do fato de que não gostava de estudar. Ele voltou a estudar
também, aparentemente por motivação financeira, mas não está nesse fato o sentido pessoal
que atribui ao conhecimento veiculado pela escola.
Por que você parou [por que interrompeu os estudos]? (pesquisador)
Comecei a trabalhar, meu pai arrumou o serviço, e como nunca gostei de estudar,
aproveitei que recebia salário, ajudava em casa, e parei de estudar. Fiquei só
trabalhando. (técnico em ferramentas elétricas).
E porque você voltou? (Pesquisador)
A empresa que eu trabalho é pequena, tem poucos empregados, meu patrão precisa
ficar fazendo todos os cursos nos fornecedores, então ele quer que o pessoal estude
para entender melhor os manuais, os cursos que as empresas dão, e disse que quem
fosse estudar ele aumentaria o salário, mas eu já estou estudando há 3 anos e nada de
aumento. Ele disse que tem que terminar o segundo grau para receber o aumento.
[...] Para mim, no meu serviço, a escola não ajuda em nada. Eu já sei tudo que
preciso. Eu estou estudando por que o patrão pediu, né, e porque quero um pouco
mais de cultura, saber conversar, diplomacia com as pessoas, né, a convivência na
escola, ajuda muito nisso. (técnico em ferramentas elétricas)
O técnico em ferramentas elétricas afirma que já detém os conhecimentos necessários
à sua atividade profissional, mas admite que há outros elementos a se aprender na escola.
Quando perguntamos o que ele precisa saber no seu trabalho e que nos desse uma visão geral
do que ele faz, nos relatou:
O mínimo é entender de eletricidade. Tensão, corrente elétrica, saber fazer uma
medida no lugar certo, saber o que está entrando no equipamento e o que está
saindo, se está fazendo algum ruído diferente do normal. Transmissão do movimento
do motor para outras partes, vibração e ruído, saber ver se as correias estão em bom
estado, se escovas e outras partes estão gastas, se tem algum rolamento travado,
cabo rompido, ou outra coisa que cause bloqueio elétrico etc. Mas isso é feito em
duas partes, uma visualização geral do equipamento, se não há nada que possa
causar um estouro, a gente liga a máquina. Daí observa o ruído. A maior parte das
máquinas o principal defeito é: curto induzido, visualmente você não vê nada na
101
máquina. Então quando você energiza a máquina, quando você a alimenta, ela ronca.
Porque ela ronca? Porque ela tem várias bobinas conduzindo e uma em curto
provocando uma sobre-carga elétrica nas outras partes elétricas do equipamento.
Esse é o ronco que ela apresenta, que é na maior parte das vezes. Pode ter também
engrenagem estourada que você ouve quando liga, mas que não dá para ver. Isso em
equipamentos elétricos. Agora tem os equipamentos eletrônicos, que é outro
conceito, e equipamentos transformadores, como uma máquina de solda, arco
submerso, pantógrafo, esses equipamentos são verificados em teste, não tem como
verificar energizando, nesses, a gente verifica isolando componente por componente
e verificando a passagem de corrente. Se não passa corrente tem que trocar o
componente, é mais fácil arrumar, mas mais difícil achar a parte defeituosa.[...] A
maior parte [dos diagnósticos] são resolvidos com o multímetro, que dá para medir
tanto a corrente como a tensão e a freqüência. (Técnico em ferramentas elétricas).
A análise de sua atividade profissional do ponto de vista da Física pode permiti ao
estudante, desenvolver novas necessidades de aprendizagem da Física ao perceber as
situações de trabalho que nos relatou, por exemplo, no excerto acima, como casos particulares
de conceitos mais gerais, como, por exemplo, a indução eletromagnética e o conceito de
semicondutores que permitiu o desenvolvimento da micro-eletrônica e da opto-eletrônica, a
que o estudante considera como “outro conceito” não nos detalhando da mesma forma como o
fez quando falou da “eletro-mecânica”. As situações de trabalho deste estudante permitem a
ele um nível conceitual que do ponto de vista do ensino de Física significa um horizonte
prospectivo de aprendizagem em potencial.
Pelo enfoque teórico que assumimos, as atividades de trabalho e de estudo são
alienados quando o sentido pessoal não corresponde ao significado que é dado pelo conteúdo
dessas atividades, fixados socialmente. Isso, de modo algum, significa sugerir que os
estudantes trabalhadores abandonem suas expectativas de crescimento financeiro e de
conquista de uma vida melhor via escolarização, isso nos colocaria em risco de recair no
idealismo criticado na filosofia Marxista. Por outro lado, como lhes assegurar o
desenvolvimento de suas potencialidades de forma plena, de modo a permitir-lhes o
enfrentamento dos processos de alienação, sem que a mente dos indivíduos atinjam estágios
necessários à construção do conhecimento, o que pelo nosso referencial é fruto da
aprendizagem escolar, dos conceitos científicos? Parece não haver como buscar esse processo
sem que os estudantes tomem consciência de sua participação na produção das objetivações
humanas, na perspectiva de gênero humano. Isso passa pela necessidade de compreensão dos
objetivos das ações dos estudantes, no processo de formação e para além dela.
102
A ampliação das necessidades por conhecimentos a partir de experiências profissionais
dos estudantes pode mostrar o resultado do processo de apropriação dos conhecimentos
científicos como sendo mais significativos do que um emprego. Isso converteria a ação de
estudar numa atividade de estudo, numa “cultura do estudo”, consciente (não alienada), na
qual resultados objetivos e seus motivos tendam a coincidir-se. O conhecimento decorrente
desse processo seria, na interpretação da psicologia histórico-cultural, um conhecimento
autêntico que contribuiria para a formação de uma consciência também autêntica nos
estudantes. Isso significa também enfrentar conflitos interiores.
[...] a reintegração da consciência não constitui [...] à simples fusão, na consciência,
do sistema dos sentidos pessoais e do sistema das significações. O trabalho interior
de conscientização e de objetivação das relações subjetivas pessoais com a
realidade, que subsiste no sistema das significações elaboradas socialmente, não se
torna menos complexo ou menos tenso. Verifica-se sim como que um deslocamento
deste trabalho interior para uma esfera de relações mais variadas, mais profundas e
mais sutis de que o homem deve tomar consciência para si, para ‘se encontrar’ em
certa maneira nelas. (LEONTIEV, 1978a, p. 139).
Quando a trabalhadora doméstica nos detalha sobre o que seria “alguma coisa
melhor?” dizendo “Um emprego melhor...com salário melhor. Que eu possa crescer. Ser
empregada não dá resultado nenhum”. Não compreendemos esta escolha como deliberada,
depois de analisar outras opções e optar pelo caminho da escolaridade para conquistar uma
vida melhor. Não é isso que queremos dizer quando explicamos que a escolaridade tem para
ela sentido de emprego e uma vida melhor, colocando em segundo plano a necessidade social
de difusão do conhecimento com vistas à contribuição para a sociedade e a busca de
realização na construção do conhecimento, por meio da coincidência entre sentido pessoal e
significação objetiva, mas sim que desta forma o estudante coloca-se dependente de
condições alheias ao conteúdo do que aprende, ao conteúdo de sua ação de estudar (atividade
em potencial que a escola pode efetivar). Isso, conforme já dissemos, é uma condição
engendrada nas relações de produção material e intelectual desenvolvidas na sociedade
capitalista. Os estudantes precisam trazer à consciência que devem se apropriar dos
conhecimentos científicos e sócio-históricos para eles e para a sociedade, não apenas para o
mercado de trabalho. Os estudantes precisam de salários para atender suas necessidades, mas
isso não significa que os conhecimentos dos quais podem se apropriar deva ter apenas essa
finalidade. Assim, não há como realizar psicologicamente os sentidos pessoais nas
103
significações enquanto conhecimentos, conteúdos da consciência social assimilada pelo
indivíduo.
O conhecimento, como fim consciente de uma ação, pode ser estimulado por um
motivo que responde à necessidade natural de qualquer coisa. Mas a transformação
deste fim em motivo é também a criação de uma necessidade nova, neste caso de
uma necessidade de conhecimento. (LEONTIEV, 1978a, p. 108).
A maioria dos estudantes trabalhadores consultados, independentemente dos motivos
que os levam à escola, já manifesta a necessidade de conhecimentos, se referindo aos
resultados da escolarização como sendo sempre benéficos. O borracheiro que visitamos, está
no segundo ano do Ensino Médio, nos disse que não sabe muito bem porque vai à escola, mas
afirma que se “um dia precisar para alguma coisa”, não quer se arrepender de não ter cursado.
Já o trabalhador – foto-copiador nos relatou:
Tipo...acho que a escola só faz bem. Ninguém perde com a escola. É como diz o
meu pai: “estudando já está ruim, imagina se parar”. Então acho que todos deviam
esforçar-se mais e aproveitar mais. É difícil? É! Mas só tem a ganhar. [...] A escola é
para ver alguma coisa que a gente não está ligado...sabe. Aquilo que a gente não se
tocou ainda. (trabalhador-fotocopiador)
O grupo 1 composto pelo técnico em ferramentas elétricas, o instalador de som em
automóveis e o mecânico, os dois últimos consultados em visitas prolongadas à oficina e à
loja de equipamentos de sons para automóveis, relataram que o que buscam na escola não está
diretamente relacionado às suas atividades profissionais. Declararam-se satisfeitos com suas
atividades profissionais e estão cursando o Ensino Médio para ampliar seu acesso à cultura,
para desenvolver a capacidade de comunicação, relacionamento humano e não conhecimento
com vistas a um retorno econômico ou mudança de profissão. Isso não impede esses
estudantes de considerarem que, embora seus objetivos não sejam estes, o plano de suas
profissões acaba recebendo um impacto positivo com a aprendizagem escolar. No caso do
instalador de som, nos foi dito que o Ensino Médio vai ajudá-lo a entender melhor os assuntos
burocráticos, o que poderá ajudá-lo a cuidar do seu futuro negócio, mas Física, Química,
Matemática, etc, isoladamente não são do seu interesse, nem acredita que “sirvam” para
alguma coisa no seu trabalho, mesmo reconhecendo algumas identidades desse conhecimento
na atividade profissional. Já para o mecânico, a preocupação de ter o diploma de Ensino
104
Médio está também relacionada com a “publicidade”. O mecânico considera o Ensino Médio
como uma forma de demonstrar sua competência também nos estudos, para conquistar ou,
eventualmente, impressionar os clientes. Disse que de Física ele lembra-se daquilo que
encontrou “semelhante” na oficina, como as explicações dos seus professores de Física sobre
relações entre potência, velocidade e força, e do funcionamento químico das baterias. Chegou
a nos recordar os fenômenos de oxi-redução e oxidação. Disse ainda que nenhum professor
reportou-se a esses fenômenos, ou a qualquer outro que ele se lembre, buscando exemplos ou
contextualizações em situações de trabalho. Essa foi a resposta que recebemos de todos aos
quais perguntamos de uma forma ou de outra: Você se lembra de algum exemplo ou situação
utilizado por algum de seus professores em que apareceu um espaço de trabalho conhecido?
(lojas, oficinas, fábricas, etc.). Alguns dos entrevistados também lembraram de idéias da
Ciência que aprenderam no Ensino Médio:
No final do segundo ano estudamos dilatação térmica. Gostei muito de fazer aquelas
contas de área e volume de dilatação, nunca mais esqueci aquilo. Sempre que há
algum curto em equipamento e depois que consertamos volta a ter curto, fico
pensando se com a temperatura alguma parte não dilatou e entrou em contado com
partes metálicas, mas acho que dilata muito pouco, né? É menos de milímetro. Mas
sempre penso nisso. (técnico de manutenção de ferramentas elétricas).
Você se lembra de ter tomado alguma decisão, fora da escola, em que tenha
considerado para isso alguma coisa que aprendeu na escola? Alguma coisa que você
lembra...fora das aulas... (pesquisador)
Sim, coisas sobre bactérias. (doméstica)
O quê? (pesquisador).
Ah... Contaminação de alimentos, pela mão, contaminação por
bactérias...reprodução de bactérias. (doméstica)
Já a maior parte dos estudantes consultados, que explicita interesses em prosseguir os
estudos, mudar de profissão, ou ascender na hierarquia do espaço de trabalho, reivindica por
conhecimentos que sirvam diretamente a esses propósitos. Nesse grupo predominam os
interessados em acessar o Ensino Superior, o que de certa forma já esperávamos, uma vez que
Abramovay e Castro (2003) indicam esse fato em pesquisa com estudantes das principais
capitais do país. Isso contraria a idéia expressa nos PCN (BRASIL, 2002) que discutimos no
105
início do capítulo 1, segundo o qual a maioria dos estudantes do Ensino Médio não procura a
escola com objetivo de preparação para cursar o Ensino Superior.
Nossas considerações teóricas indicam que uma identidade entre escolaridade e
oportunidades melhores de emprego mostra-se ideológica, pois não supera o plano discursivo.
A cultura letrada (e aqui se distingue letramento de alfabetização, pois esta última não implica
em ter condições de compreensão de processos científicos), ou mais genericamente dizendo, a
cultura simbólica, não mais garante a eqüidade de oportunidades na economia de livre
mercado, conforme discutimos no capítulo 1. Embora pareça simplória e comum, a resposta
não pode ser outra: não há mecanismos que garantam a eqüidade de oportunidades, pois não
há oportunidades para todos, uma vez que uma das estratégias de competitividade e acúmulo
de capital é contar com uma massa de trabalhadores de reserva e a propriedade privada dos
meios de produção, que incluem os conhecimentos necessários à produção. Não se trata
somente de deficiência estrutural do modelo econômico e de desenvolvimento vigentes, mas,
essencialmente, de uma necessidade para a manutenção de taxas de acumulação apoiadas na
oferta abundante de mão-de-obra. Esta é uma situação de alienação que precisa ser enfrentada
nos espaços escolares, sobretudo porque lhe acarreta desvalorização, conforme percebe-se,
por exemplo, no relatório do Banco Mundial que analisamos no capítulo 1 (RODRÍGUEZ e
HERRÁN, 2000). Conforme argumentamos, trata-se de uma desvalorização da escola e dos
conhecimentos que ela veicula em face das exigências do mercado capitalista. Neste sentido a
escola deve avançar reafirmando a importância dos conhecimentos formais que ensina,
buscando estratégias que viabilizem qualidades mais elevadas para a aprendizagem, mesmo
que isto signifique o acirramento das contradições entre capital e trabalho, pois a escola deve
garantir aos estudantes a aquisição dos conhecimentos mais significativos acumulados no
processo de desenvolvimento sócio-histórico. Isso a escola pode alcançar, segundo a análise
que estamos desenvolvendo, revelando novos sentidos para a educação escolar, o que já
poderia contribuir para o enfraquecimento de ideologias dominantes, colocando seu foco no
desenvolvimento de estratégias para a criação de novos motivos e necessidades para a
apropriação cultural, orientados para a tomada de consciência a partir da realidade objetiva
com a qual os estudantes se confrontam diariamente.
Em alguns casos, podemos perceber os motivos “compreensíveis” dos estudantes
trabalhadores para freqüentar a escola o que certamente pode se converter em motivos
“eficazes” mediante a mediação intencional de outros indivíduos num processo de educação.
106
Para quê serve o Ensino Médio, na sua opinião? (pesquisador).
Para ensinar o básico que alguém precisa saber para poder escolher o que vai fazer
da sua vida... se vai trabalhar, se vai continuar estudando, se vai dar um tempo e
depois fazer uma faculdade... para isso. (Estudante Trabalhador – fotocópia)
Em uma das entrevistas e em duas das visitas realizadas, os estudantes trabalhadores
fizeram considerações ambivalentes acerca da tecnologia em seus espaços de trabalho.
Considerando-na como a razão do desemprego, não deles, mas de conhecidos, parentes ou
amigos, mas também consideram as facilidades trazidas por ela. Entre processos manuais e
processos mediados por tecnologia, relatam preferência pelos mediados pela tecnologia. É
importante notar um aspecto que já consideramos no primeiro capítulo, por meio de uma
citação de Hobsbawn (1995), a tecnologia, embora traga inúmeras facilidades aos
trabalhadores e desemprego na medida em que reduz ou elimina a necessidade de mão-de-
obra, ainda contribui para um recuo da atividade intelectual nas atividades. Isso faz reforçar a
necessidade de outras formas de construção de concepções e compreensões sobre a Ciência
impregnada na tecnologia, uma vez que o simples uso desta não pode ser confundido com
uma interação ativa (e criativa) do estudante trabalhador com a tecnologia e com a Ciência,
conforme tem-se defendido. Os relatos dos estudantes visitados, que não fizeram
considerações ambivalentes sobre tecnologia, nos lembram uma concepção ingênua na qual a
tecnologia aparece como uma forma de automatizar a produção anteriormente realizada pelo
homem, fazendo com que seja poupado tempo e esforços humanos, sem, no entanto,
demonstrarem percepção de que este tempo que sobra não é revertido em favor de um
enriquecimento das atividades dos trabalhadores como lazer, atividades de cunho intelectual
ou mesmo descanso.
Dominar tecnologia e princípios científicos de funcionamento foi confundido com
dominar operações, que variam num grau de complexidade, mas que raramente se aproximam
de uma compreensão dos conceitos, leis ou teorias que permitam a modificação, ou pelo
menos o entendimento de tais artefatos. Quando muito, os estudantes demonstram entender
princípios de funcionamento e conceitos isolados, quase decorados, a partir de explicações
mal compreendidas. Nos deparamos com tais explicações na visita à borracharia e ao depósito
de supermercado, onde nos apresentaram, respectivamente, aparelhos de alinhamento de
rodas e aparelhos de medição de umidade em cereais com explicações insatisfatórias do ponto
e vista científico.
107
Essa compreensão equivocada sobre o que é a tecnologia, de certa forma, confundida
com o conceito científico nos quais se baseia, é resultado da expropriação do saber do
trabalhador pelo capital. Por exemplo, o borracheiro não aprende como fazer o alinhamento
de rodas de forma manual, mesmo que com menor precisão, pois há tecnologia que facilita o
alinhamento por meio de processos automatizados. Por outro lado o princípio de
funcionamento, bem como, ainda mais importante, os conceitos científicos que sustentam a
tecnologia incorporada nas máquinas não são apreendidos, pois a separação entre teoria e
prática impede que conhecimentos organizados academicamente penetrem nas atividades
práticas e vice-versa. Mais uma vez a escola pode atuar decisivamente ao considerar a
atividade profissional como uma mediadora em processos de ensino e aprendizagem, como
ponto de partida para a criação de novos sentidos para a aprendizagem. Analogamente o
estudante trabalhador do depósito de supermercado não aprende como avaliar a umidade de
cereais como faziam trabalhadores no mesmo posto, digamos, uma geração antes dele, pois
lhes foi fornecido um aparelho para isto que prescinde de parte dos conhecimentos que eram
pré-requisitos para a ocupação do mesmo posto de trabalho. Estaria, parcialmente resolvido,
se o aparelho fosse fornecido e de alguma forma, em alguma instituição formadora (escola, ou
mesmo o trabalho
13
), o estudante trabalhador, se apropriasse do conhecimento cientifico, e
não só a habilidade de manuseio da tecnologia que permitiu a construção e a concepção de
funcionamento adequado daquele aparelho para um determinado fim.
No caso do depósito de supermercados, obtivemos informações que, antes dos
aparelhos específicos, a avaliação da umidade em cereais era realizada de forma aproximativa
pela agitação, na mão fechada, de uma amostra dos grãos, “sentindo” a vibração mecânica
destes. Quando os grãos se movimentam, vibram, mais livremente, significa que estão mais
secos, com taxas pequenas de umidade. O estudante que disse que não conheceu esse
procedimento. “Nunca ouvi falar isso”, nos disse.
Além dessa possível análise de uma das atividades de trabalho do estudante, esse
procedimento de agitação de partículas granulares pode suscitar uma discussão Física
relevante para a consideração da qualidade e tamanho dos grãos. Trata-se de um efeito que
ficou conhecido como Efeito Noz-Brazil (Brazilian-nut) ou Castanha-do-Pará que envolve
conceitos como, excitação externa, relação de densidade de massa, direção de acumulação,
filtração, reorganização, gravidade, além de conceitos mais gerais de Mecânica Estatística.
13
Em “a pedagogia da Fábrica”, Kuenzer (1985) mostra que as fábricas capitalistas têm um projeto pedagógico
implícito para a educação dos trabalhadores nos moldes que interessam ao capital.
108
Trata-se de um modelo qualitativo para predição da segregação de misturas binárias com
alcance de aplicação clássico (HONG; QUINN; LUDING, 2001). Este foi tema de artigos de
periódicos internacionais renomados como Europhysics Letters (2002), Physical Review E
(2001) e Physical Review letters (2002), dentre outros números destes mesmos periódicos. A
abordagem de algumas idéias referentes a este efeito (“Brazilian-nut effect)”, embora tenha
seu aspecto matemático complexo para os casos mais gerais, tem a aprendizagem de seus
aspectos qualitativos mais relevantes facilitada quando se pode contar em sala de aula com
um estudante que já considerou, sob algum aspecto, este efeito, em sua atividade de trabalho e
que não teve ainda a oportunidade de pensá-lo a partir de elementos científicos na escola.
Poderá causar ao estudante uma surpresa agradável e encorajadora frente a aprendizagem o
fato deste problema, que ele se depara corriqueiramente no seu espaço de trabalho, ser
atualmente objeto de intensa discussão na comunidade científica internacional. Essa conexão
parece ser um caminho para novos sentidos pessoais para a aprendizagem e sua relação com a
significação objetiva do conhecimento científico, expressa pela relevância atribuída ao
problema tanto no seu aspecto teórico como prático.
Conforme discutimos na introdução e no primeiro capítulo, não parece sustentável a
idéia de que a flexibilização do modo de produção capitalista tem exigido a democratização
do saber e uma constante exigência por mais qualificação em um sentido irrestrito, e com
reflexos positivos para a educação como um todo, pois como sustentar essa idéia diante da
persistência da descontinuidade entre a teoria e a prática, uma descontinuidade entre a
aprendizagem escolar e os aspectos cognitivos nos espaços de trabalho e as minguadas
oportunidades dos trabalhadores em elevar seus conhecimentos frente ao mundo do trabalho,
que por outro lado se complexifica? Sem dúvida vivemos circunstâncias históricas
diferenciadas, mas os princípios de negação ao trabalhador de um conhecimento pleno
permanecem inalterados com relação a outros estágios do desenvolvimento do capitalismo. O
conhecimento científico está embutido nas máquinas e nos processos e raramente é percebido
pelo trabalhador. Usar, saber sobre, ou entender a Tecnologia, (ou pior, fragmentos
tecnológicos) não significa saber ou dominar conhecimento científico, mas pode, pelo
contrário significar recuo e mitificação da Ciência.
A escola é relatada pela maioria desses estudantes como lugar de adquirir
conhecimentos que são superiores aos que precisam para trabalhar, mesmo que não saibam
exatamente como vão se beneficiar desses conhecimentos. O saber escolar, mesmo somente
“teórico”, sem aplicação conforme relatado por eles, é superior ao que eles elaboram na sua
prática profissional, porém, essa suposta superioridade do saber teórico escolar, não é
109
explicada pelos estudantes, ou seja, quando indagados sobre o porquê do conhecimento
escolar, mesmo somente teórico, ser superior aos conhecimentos que a prática profissional
lhes proporciona, fornecem respostas vagas (por exemplo, “porque com estudo aprendemos
mais coisas do que trabalhando”, etc, conforme citado anteriormente). Houve relatos mais
precisos, enfatizando os aspectos profissionais que associam à escola:
A escola ensina o que é preciso para progredir. No trabalho é só aquilo mesmo. É
lógico que tem profissões que é preciso aprender sempre, as coisas mudam rápido é
preciso acompanhar...mas são algumas. A maioria é só aquilo mesmo a vida toda.
Eu pretendo chegar lá ainda (trabalhador – fotocópiador).
Quais profissões você acha que exigem esse aprendizado contínuo que você está
falando? (pesquisador).
As profissões mais importantes, médico, advogado, um professor, um engenheiro,
um executivo... (trabalhador – fotocópia)
Manifestaram uma ansiedade pelo conhecimento teórico, por tecnologia, por compreensão
dos fenômenos que presenciam nos espaços de trabalho. Acreditam que a escola é a via mais
importante rumo a esse conhecimento teórico, mas manifestam decepção frente ao trabalho
dos professores, e ao comportamento de professores e colegas. Este é um ponto que parece
merecer atenção das diretorias das escolas, uma vez que é motivo de descontentamento de
estudantes que nos pareceram mobilizados a aprender no pouco tempo que lhes resta para
freqüentar a escola. A indisciplina é citada como um importante obstáculo ao aprendizado e
um trabalho mais produtivo em sala de aula. Alguns atribuem parte desse problema aos
responsáveis (professores diretoria, etc) que não tomam medidas mais “duras” no sentido de
coibir os comportamentos que prejudicam, por exemplo, o aprendizado e a concentração,
como relatam alguns:
Já fui na secretaria, outros também já foram, já falamos com os professores que mais
dão mole, mas não tem jeito ninguém faz nada. Às vezes um ou outro é suspenso por
três dias, mas voltam e tudo fica na mesma. A sala fica outra coisa quando eles não
estão. (trabalhador – fotocopiador).
110
Tem uns meninos na minha sala que não deixam o professor dar aula. Se o professor
não se impuser não consegue fazer nada nem a gente. Só que tem uns que não fazem
isso. (trabalhadora doméstica).
Por outro lado, os entrevistados nos relataram uma interação de aprendizagem com
outros colegas, o que não deixa de reforçar a importância da mediação de outros indivíduos
no processo de aprendizagem e o trabalho em grupo como uma estratégia de ensino e de
aprendizagem, mas também nos remete à idéia de possíveis rudimentos favoráveis à
consciência coletiva, pelo menos quanto a aprendizagem escolar.
Como você acha que aprende, entende melhor um assunto? Com o professor
ensinando, com colegas, outro curso fora da escola, no trabalho, praticando?
(pesquisador)
Às vezes com colega explicando entra mais na cabeça do que com a explicação do
professor. Tem professor aí que não gosta de ensinar. Não são todos, mas tem uns
que não gostam. [...] os colegas explicam com mais calma, os que já entenderam tem
prazer de ensinar...a minha sala, tem bastante gente que está junto desde o ano
passado, o pessoal é legal. (trabalhador rural – corte de cana).
Acho que [aprendo] o melhor é com o professor explicando, mas quando dá para
estudar com outros colegas sérios é bastante...rende bastante. (trabalhador-
fotocópiador)
E isso acontece como? Vocês estudam em grupo? Na escola? Como é o esquema?
(pesquisador)
É assim: alguns professores...português, matemática...e...dias antes da prova ficam
tirando dúvida uma aula antes. Daí quem quiser pode estudar junto com alguém. Eu
e duas colegas estudamos em grupo...elas sabem bastante e explicam bem. Eu ajudo
pouco, mas elas gostam de explicar para entender melhor. [...] em grupo é
melhor...eu sou tímido para perguntar algumas dúvidas. (trabalhador-fotocópiador).
Nos espaços visitados, alguns estudantes trabalhadores tendem a considerar na escola
a teoria estudada como sem utilidade, e no trabalho, a prática realizada como algo
desvalorizado. Alegam que na escola faltam elementos concretos a partir dos quais pensar a
Física, a Química, a Matemática, etc., e no trabalho não há tempo para abstrações. Vários
momentos, nos espaços de trabalho, percebemos a pressa característica do ritmo de produção
111
constituir-se em um obstáculo a abstração de aspectos da atividade, levando a que seja
preferida a estratégia da “tentativa e erro”.
As análises das visitas permitiram também um delineamento sobre como os estudantes
trabalhadores buscam a autonomia na realização das operações nas atividades de trabalho. É
notável a segurança dos estudantes quando lidam e falam sobre os problemas enfrentados no
trabalho, quando lidam com aspectos nos quais suas decisões podem ser acatadas e
respeitadas. Diferentemente dos conhecimentos veiculados pela escola, frente aos quais eles
se mostraram tímidos em fazer considerações, quando solicitados.
Em alguns casos, como na oficina mecânica e na loja de equipamentos de som para
automóveis, os estudantes salientaram que muitas coisas são aprendidas com o erro, que,
desde que não cause prejuízos, é tolerado. Afirmam que a autonomia é uma postura
importante para aprender, pois perguntar a todo o momento para um colega ou responsável
pelo serviço, ajuda a resolver um problema e depois outro, mas aprender sozinho ajuda a
resolver qualquer problema. Nesse caso a idéia de níveis de generalização (VYGOTSKY,
2005) mostra-se como importante aporte teórico para uma intervenção da escola, pois
aprender a fazer algo sozinho pode ajudar a resolver “qualquer problema” dependendo do
nível de generalização que esta solução particular favorecer. O conhecimento científico que a
escola deve veicular permite “níveis de generalização” pelos quais a tomada de consciência
ganha intensidade (VYGOTSKY, 2005). Por outro lado, a postura de se fazer uso da tentativa
e erro para a realização de ações no trabalho não parece ser transferida para os processos de
aprendizagem escolar, situação onde, na maioria das vezes, o perguntar ao colega ou ao
professor parece trazer com a resposta a aprendizagem, conforme pode ser inferido das
referências dos entrevistados quando falam sobre estudar com seus colegas.
Em várias situações nas visitas e também nas entrevistas tivemos a confirmação
empírica da dissociação entre teoria e prática, entre pensamento e ação. Tomamos o cuidado
de não nos reportarmos primeiro a qualquer consideração dicotômica entre teoria e prática, só
a fazendo depois que os estudantes trabalhadores, quer nas entrevistas, quer nas visitas,
colocassem teoria e prática como coisas distintas com suas próprias palavras. Os excertos
abaixo ilustram essa situação:
Quando você diz que a Física para você deveria ajudar, no que você está imaginando
exatamente? (pesquisador)
112
No começo do ano o professor mostrou as matérias de Física que está no currículo
para o terceiro ano, e falou de eletricidade, magnetismo e circuitos. Acho que um
pouco de teoria poderia ajudar entender mais sobre o que eu faço na prática. (técnico
em manutenção de ferramentas elétricas)
Então a escola pode ajudar no seu trabalho? (pesquisador)
Não digo ajudar resolver os problemas, mas na teoria a escola ajuda. Entender ajuda.
(técnico em manutenção de ferramentas elétricas)
Mas a teoria e prática não estão juntas quando você está trabalhando? Não pensa
“teoricamente” quando está consertando algum equipamento? (pesquisador)
Sim, claro, mas não penso na Física como na escola, não vou aplicar fórmulas, isso
seria impossível. No trabalho penso a teoria que aprendi com os colegas, e nos
cursos dos fornecedores. Na escola os cálculos, a teoria passada para a gente aqui é
outra coisa. (técnico em manutenção de ferramentas elétricas)
As abstrações sobre problemas nas atividades profissionais, nos espaços observados
ou mencionados nas entrevistas, se mostraram baseadas nos resultados imediatos e estratégias
de generalização do “fazer”, passando por idéias equivocadas do ponto de vista científico.
Também tomam como uma espécie de teoria de segunda categoria respostas fechadas de
trabalhadores mais experientes ou dos patrões.
Você sabe como ela [fotocopiadora] funciona por dentro? Como ela faz as cópias?
(pesquisador)
Dizem que é a eletrostática né. A carga estica do toner gruda na folha da cópia no
mesmo lugar da original. [...] o patrão já falou, o cara que esteve lá fazendo a revisão
da máquina falou também. [...] É assim? (trabalhador – fotocopiador).
Buscamos entender o funcionamento típico de uma máquina fotocopiadora por meio
de manuais dessas máquinas disponíveis em sites de vários fabricantes. Em suma
encontramos que o cilindro, a que o estudante se refere, é constituído de material foto-sensível
que recebe a imagem refletida do documento original. O cilindro, então, recebe quantidades
de toner (pigmento) por meio da atração eletrostática, formando assim a cópia no cilindro. O
113
pigmento é então transferido para o papel, mais uma vez por atração eletrostática, e é fixado
por um processo de fusão.
Evidentemente que aulas sobre fenômenos eletrostáticos podem não bastar para se
entender precisamente como é possível a foto-cópia, mas juntamente com outros conteúdos de
Física, necessários, esse conhecimento pode se efetivar.
A cobrança por resultados rápidos reduz as chances de se pensar, em se tratando de
operações, inviabilizando sínteses mais amplas de processos. Alguns dominam
completamente os conhecimentos de suas atividades de trabalho, aproximando-se mais dos
“artesãos” dos primórdios do capitalismo do que do trabalho dividido no modo de produção
capitalista.
Parece-nos urgente que se considere, nas aulas de Física, idéias como as que lemos em
Marx e Engels (1984), que expressam a articulação entre conhecimento e conhecimento
confrontado com a prática, como forma de validação do conhecimento. A prática é que vai
dizer se o conhecimento é verdadeiro ou não, propunha Marx. É pela sua capacidade de
transformar (seja o plano físico, seja o social) que o conhecimento se certifica. Teoria e
prática são processos indissociáveis e se relacionam dialeticamente. Isto pode explicar porque
os estudantes manifestam uma ansiedade pela teoria em algumas situações de trabalho, e a
prática em algumas situações na escola, cujo desencontro promove uma fragmentação do
conhecimento. Isso não pode ser confundido com pragmatismo, uma vez que não estamos
pensando em uma finalidade imediata para o conhecimento o que grosso modo caracteriza o
pragmatismo.
Em todas as entrevistas foi mencionado que um grande obstáculo à aprendizagem no
período noturno é o pouco tempo para os estudos. Relatam ainda, que ora o mercado exclui
pela falta de experiência (passando de meses para um ano ou mais as exigências de
experiência) ora pela falta de escolaridade.
Conforme esperávamos, de certo modo, já nas primeiras observações dos espaços de
trabalho percebemos que algumas atividades envolvem a necessidade de manipulação, por
parte dos estudantes trabalhadores, de conceitos de Física, que, embora o façam de forma
diferente da que é feita formalmente quando se estuda Física, seus resultados mostram-se
qualitativamente corretos. Isso nos ficou ainda mais claro na visita mais prolongada, em que o
estudante trabalhador explica que na instalação de alto-falantes em automóveis, não se pode
“colocar um som mais potente, se não tiver uma bateria de pelo menos 100 AH (Amperè
114
hora)
14
”. Segundo ele, “arria a bateria rapidinho”. Quando indagamos porque isso ocorre,
respondeu que a bateria tem que ter carga suficiente para alimentar o amplificador. O
estudante nos mostrou também que nas embalagens dos aparelhos constam as especificações,
mas em muitos casos, ele troca componentes porque percebe que ficou “pesado” para a
fiação. Quando questionado sobre o que significa “pesado para a fiação” nos respondeu
mostrando um exemplo, “olha como isto aqui esquenta rápido”, se referindo à sua percepção
da dissipação de potência num dado ponto do circuito que ligava o equipamento de som à
bateria. Tais idéias estão, do ponto de vista de teorias Física, corretas, havendo aí uma
explicação passível de generalização e melhor conceituação. Esse tipo de “utilização” pouco
percebida da Física, enquanto conhecimento academicamente organizado, foi observado por
Raboni (1993). O que não podemos deixar de destacar é que o estudante não busca por si só
uma generalização conscientemente, ou uma melhor conceituação das idéias com que lida no
trabalho, porque não precisa, no trabalho, de níveis mais elevados de generalização, mas esta
necessidade pode ser criada no âmbito escolar da disciplina de Física. Aqui há uma área de
conhecimentos em potencial da qual a escola pode se aproveitar para desempenhar um
importante papel: generalizar a partir de situações particulares, elucidando o ganho na
interpretação do fenômeno particular, criando novos motivos e necessidades para a
aprendizagem. Isso pode significar a explicitação dos aspectos estéticos da Ciência e sua
riqueza proporcionando-lhe novos sentidos pessoais.
O estudante trabalhador da loja de som para automóveis se declara “muito
empolgado” com o que faz, e pretende, depois de “pegar” um pouco mais de experiência, não
com a instalação, mas na parte “burocrática” do negócio, começar um negócio sozinho. Isso
mostra que trabalhar nesta loja tem um sentido pessoal diferente de apenas receber um salário,
mas significa a chance de aprender coisas que lhe ajudarão no projeto que tem de começar um
negócio próprio no mesmo ramo de atividade. Esse tipo de sentido pessoal da atividade está
relacionado com as condições objetivas em que o estudante considera suas possibilidades de
desenvolvimento, no caso econômico. A escola precisa também ajudá-lo a reconhecer a Física
que ele, em termos informais, conhece e ajudá-lo a conceituar os fenômenos que permeiam e
permearão sua atividade profissional, a qual o tem permitido traçar metas e buscar estratégias
de alcançá-las, criando motivos e necessidades revelando-lhe à consciência as significações.
As oficinas mecânicas, de modo geral, são espaços em que, metaforicamente, se
respira fragmentos do conhecimento de Física, mais especificamente Termodinâmica, um
14
1AH é igual a carga que 1A fornece durante 1 hora, trata-se de uma medida de carga alternativa ao Coulomb,
mais utilizadas para baterias.
115
tópico que quando questionados, os participantes da pesquisa, afirmaram não conhecer. Isso
foi confirmado perguntando a professores do turno noturno, o que fizemos em duas escolas, e
os relatos foram negativos quanto ao tratamento do conteúdo em sala de aula. É fato que as
discussões da Termodinâmica estão um tanto afastadas das salas de aula do turno noturno,
quando muito, se chega a introduções da termologia. Este foi um dos tópicos da Física que
mais apareceram nos espaços de trabalho e também no discurso dos estudantes. Eles sabem
que temperatura é um conceito da Ciência, da Física, que vivenciam e por isso sempre o
consideram ao serem incitados a relacionar Física na escola e no trabalho, também nos foi
relatado na visita à borracharia e no depósito de supermercado. Sob este aspecto é preciso
ressaltar a importância de se unificar temas, visando viabilizar objetivamente a abordagem de
conceitos centrais na Física, como propõe Angotti (1993), e que por isso são os que mais
podem ter conexões com atividades de trabalho.
Na oficina em que realizamos observações por um tempo mais prolongado (dois dias),
encontramos uma diversidade de instrumentos mecânicos, mas muitos baseados na
microeletrônica e na opto-eletrônica. Aspectos técnicos considerados pelo estudante
trabalhador e sócio-proprietário da oficina nos revelaram um potencial para consideração de
situações que vivencia no trabalho, e que por se tratar de elementos comuns para o ramo de
manutenção de automóveis, pode interessar também a outros estudantes.
Nesta visita o estudante nos relatou e exemplificou o uso de um pequeno aparelho que
mede a temperatura no interior de automóveis por meio da emissão de LASER. Tal
instrumento é utilizado para aferição da temperatura em diferentes pontos no interior de
veículos equipados com ar condicionado. A aquisição do aparelho foi importante para que
tenha condições de fornecer aos clientes um atendimento mais completo, incluindo a aferição
do funcionamento do ar condicionado, que segundo ele, vem aumentando em número de
veículos equipados com tal. Segundo o mecânico (antes estudante trabalhador) o
funcionamento do ar condicionado depende do motor do automóvel, o que nos dá margem
para abordagem das leis da Termodinâmica.
Mostrou-nos ainda diferentes formas para a medição de temperatura de motores em
funcionamento, segundo diversos fabricantes de veículos. Pensávamos que tal medida fosse a
da água na mangueira do radiador, nesse caso, com o vazamento da água, a temperatura
medida não seria a real, mas muito abaixo dela. O estudante nos corrigiu dizendo que há um
sensor na mangueira e outro na injeção eletrônica. Lá são feitas correções eletrônicas nos
valores que vão para o mostrador. Já outros fabricantes revelam ao motorista uma média de
116
temperaturas de vários componentes do motor, e assim forneceu explicações para três
maneiras de fazer tais medidas.
Segundo ele, carros e computadores mudaram muito nos últimos 10 anos. Com um
computador ligado à central eletrônica do veículo pode ser feito o diagnóstico e em seguida é
que o mecânico conserta. Essa tecnologia o fez ter que se demitir de uma concessionária de
veículos e abrir uma oficina por conta própria. Ele relata que começou como ajudante na
oficina e chegou a responsável de oficina. Ganhava x / mês, fora comissões. Nessa fase seu
trabalho consistia em, conhecendo os serviços e o tempo aproximado para execução de cada
um deles, controlar o fluxo da oficina de forma a garantir uma otimização. Ele diz que seu
trabalho era fazer a oficina produzir, fazer os outros mecânicos produzirem. Com o emprego
de computadores de diagnóstico sua função passou a exigir menor qualificação e com isso
sofreu sucessivas reduções de salário e comissões, o que o levou a pedir demissão. Abriu sua
própria oficina e hoje se diz satisfeito, e se esforça para “imitar” as oficinas mais modernas
das concessionárias da cidade. “Essa é minha estratégia”, nos disse.
Para esse recém egresso do Ensino Médio, cursá-lo foi fundamental para ter
credibilidade consigo mesmo e com os clientes. Ele nos disse, mais ou menos nessas palavras:
“Quem vai trazer um carro para arrumar com um cara que não tem nem Ensino Médio?”
Como as conexões entre elementos da atividade profissional e elementos de um
currículo de Física não são, para maioria das atividades profissionais dos estudantes, algo que
se possa estabelecer diretamente, sem uma reflexão cuidadosa, perguntas do tipo “você acha
que tem alguma coisa de Física no seu trabalho?” parecem não ajudar muito. Além disso, essa
é o tipo de pergunta cujo esforço por respondê-la demanda pesquisa, como a que ora
relatamos, uma vez que as deficiências do ensino têm dificultado que os estudantes
estabeleçam estas relações. Uma primeira tentativa de aplicação dos questionários nos levou a
suspender a pergunta sobre em que eles faziam a conexão entre Ciência e sua atividade
profissional. Pareceu-nos que esta pergunta não fazia sentido, pois as primeiras respostas
mostraram que a maioria não foi capaz de responder sem alguma ajuda, uma vez que não é
usual esse tipo de consideração em aulas no Ensino Médio. Porém, quando esta pergunta é
feita, fornecendo-lhes algum tipo de auxílio, os estudantes podem desenvolver sínteses que
contribuem na aprendizagem e na generalização de conceitos físicos e ao mesmo tempo para
reflexão sobre suas atividades de trabalho. Novamente temos condições que podem fazer
surgir novos sentidos pessoais e novas objetivações ligadas a generalizações que podem
surgir da re-significação dos conceitos cotidianos por meio da aprendizagem de conceitos
117
científicos, abrindo-se uma “zona potencial de desenvolvimento”, como detectamos junto à
empregada doméstica.
Você disse que a máquina centrifuga, o que é isso? Como ela faz isso?
(pesquisador).
É! A máquina gira a roupa bem rápido e a água sai toda, é como torcer a roupa, fica
quase seca. Torce melhor do que na mão e estraga menos a roupa. Você nunca viu?
(Doméstica)
Mais um passo nessa discussão, em uma aula de Física, a trabalhadora doméstica (e
eventualmente colegas) teriam a oportunidade de discutir diversos fenômenos físicos
associados a movimentos circulares. Níveis crescentes de generalização se sucederiam,
ampliando a compreensão dos conceitos da Física e ainda sua percepção da realidade
imediata. Saber que a centrífuga de roupa é a aplicação racional de leis naturais, de forças
naturais, para agilizar o processo de secagem de roupas, e que esse mesmo princípio da Física,
por exemplo, permite ao homem construir aceleradores que podem simular a gravidade de
outros planetas ou traçar órbitas de satélites com certa aproximação, pode ser um caminho
profícuo para se buscar novos motivos para a aprendizagem de Física, na medida em que estas
significações alteram o modo de produzir a existência do homem, este passa a manter uma
relação objetiva com elas, o que as fazem significações. Este sentido é diferente de apenas
exemplos do potencial da Ciência no desenvolvimento das relações do homem com a
natureza, pois significa uma relação de existência e de produção dos meios de existência.
A análise dos relatos dos grupos 1 e 2 nos mostra um pouco do sentido pessoal que o
Ensino Médio pode assumir em dois casos. Conforme já dissemos, esta é uma questão de
interesse não apenas para o Ensino de Física, mas para Ensino Médio como um todo. Parece-
nos que a explicitação desses motivos e dos sentidos pessoais é que desencadeia uma tarefa
didática para cada conteúdo específico. Essa tarefa corresponde a uma forma didática própria,
de ação, que crie novas necessidades a partir das condições objetivas dos estudantes,
mostrando-lhes a relevância social dos conhecimentos científicos na produção das condições
objetivas da vida em sociedade. Essas novas necessidades trazem novos motivos, novos
sentidos, estabelecendo uma nova relação entre o sentido e as significações, portanto, novos
sentidos para aprender e para buscar a aprendizagem. Mas não se trata de qualquer sentido
pessoal, mas daquele que se realiza nas significações objetivas. Nos parece que o grupo 1 está
mais próximo dessa metamorfose de sentidos, em relação ao grupo 2. Mas esta metamorfose
118
dos sentidos pode ser possibilitada pela educação, transformando os motivos
“compreensíveis” em “eficazes”, transformando a ação de estudar numa atividade nova, e
conseqüentemente numa nova relação com a realidade (LEONTIEV, 1998). Uma nova
relação que tende a um equilíbrio entre o conteúdo objetivo da atividade e seu conteúdo
subjetivo. Criar novas necessidades a partir das condições objetivas dos estudantes, no nosso
caso de estudo, para os estudantes trabalhadores, corresponde à busca de conexões entre as
idéias da Física e o conhecimento dos seus círculos de atividade principal, ou seja, o trabalho.
Esta relação não deve limitar a aprendizagem de Física aos fenômenos do círculo da atividade
de trabalho, mas, ao contrário, ampliar a interpretação dos fenômenos no circulo de trabalho
pela interação com o círculo da atividade de estudo, permitindo generalizações
qualitativamente superiores aos níveis anteriores de generalização e assim trazer à consciência
(revelar) o novo sentido realizado nas significações. Trata-se de buscar uma síntese superior
do conhecimento, revelando-o numa esfera mais importante da que se situava antes para o
indivíduo. Para isso os estudantes precisam obter como resultado da sua ação algo que se
perceba mais significativo, em determinadas condições, do que o motivo que lhes impeliu a
agir (LEONTIEV, 1998). Ocorre nesse caso, conforme já discutimos no capítulo 2, uma nova
objetivação das suas necessidade, uma ampliação da consciência das suas necessidade reais.
Assim, por exemplo, o sentido de emprego e/ou status associado à escola e ao conhecimento
poderá ser secundarizado quando a necessidade de entender a realidade material contraditória
que o cerca e a necessidade social de superá-las mostrar-se mais significativa, e que o sentido
de emprego e “vida melhor” torna-se circunscrito nessa necessidade maior. Assim, o que se
torna mais importante é o sentido que a interpretação de um fenômeno assume para o
indivíduo e não o sentido do conhecimento do fenômeno. Leontiev (1998) observa que o
conhecimento, enquanto interpretação dos fenômenos da realidade, ocorre em conexão com as
atividades dos sujeitos. Isso faz o conhecimento relacionado às atividades se encontrarem
limitado pelo círculo que compreende as propriedades das atividades em questão.
A análise desenvolvida nesta seção foi realizada a partir da análise da relação entre
significação objetiva e sentido pessoal, revelando dois tipos de relações com o conhecimento
escolar que os estudantes entrevistados expressaram. Um tipo encontra o sentido pessoal do
conhecimento escolar e da escolarização principalmente no desenvolvimento profissional, por
meio da ampliação de suas chances de conquistar um emprego melhor e elevar a sua
“empregabilidade”, e outro grupo que atribui ao conhecimento escolar sentido de crescimento
pessoal, desenvolvimento pessoal, não carecendo de retorno profissional, necessariamente,
para motivar a freqüência à escola. Porém, consideramos em situação mais propicia à
119
alienação os estudantes que identificam como resultado principal da freqüência a escola e do
sentido do conhecimento que ela veicula, as condições de sobrevivência como emprego e
salários melhores. Esta conclusão é derivada da análise fundamentada na relação entre sentido
pessoal e significação objetiva como constituintes internos da consciência humana, segundo a
teoria histórico cultural da atividade (LENTIEV, 1978a).
A alienação é um processo presente em vários contextos na sociedade capitalista, mas
sempre é possível superá-lo, em vários níveis, por meio de práticas sociais conscientes. Estas
práticas ao se desenvolverem buscando a consciência, encontram situações conflituosas, uma
vez que colocam em embate a realidade e a condição alienante. Entendido assim, o processo
de tomada da consciência depende não apenas das condições subjetivas compreendidas pelo
sentido pessoal que o indivíduo atribui às suas atividades, incluindo a compreensão da
importância da aquisição do conhecimento que a escola veicula para a sociedade, mas
também das circunstâncias objetivas em que se desenvolve sua condição de estudante
trabalhador, que precisam ser favoráveis às mediações da busca por relações mais
conscientes.
Os motivos apresentados pelos estudantes para a busca pelo conhecimento, em nossa
análise, não são completamente subjetivos, mas relacionam-se à necessidade de adquirir
conhecimentos, mesmo que distantes de seu contexto imediato de trabalho, que se relacionam
com as suas condições objetivas (atuais) por meio de projeções para melhores condições de
vida, novos horizontes profissionais que contribuam com suas necessidades individuais
traduzidas como melhores empregos e conseqüentemente salários. Nestas condições, parece
que o sentido unicamente de sobrevivência atribuído ao trabalho, pelos indivíduos no contexto
capitalista, é transportado para a escola e o conhecimento que ela veicula. Assim, o próprio
conhecimento e a escola também assumem sentido estritamente ligado a sobrevivência, não
permitindo acesso a um plano mais amplo e também mais complexo de realizações e de
desenvolvimento enquanto gênero humano, portanto, não coincidindo com seu significado
social.
A análise que desenvolvemos nesta seção visou atender ao objetivo desta pesquisa de
buscar elementos para uma melhor articulação das questões metodológicas do ensino de
Física com a necessidade de enfrentamento dos processos de alienação. O resultado que
queremos destacar é a explicitação da necessidade de se buscar a coincidência entre sentido
pessoal e significação objetiva para as atividades de ensino de Física, reconhecer como são
possíveis novos sentidos e necessidades para a aprendizagem de Física no Ensino Médio a
partir das condições objetivas dos estudantes. Um ponto de partida pode ser a consideração da
120
experiência dos que mantém uma relação com o conhecimento mais direcionada para o seu
significado fixado socialmente, conforme se pode inferir da análise desta seção. Na próxima
seção buscaremos explicitar mais fragmentos de conhecimentos de Física nas atividades de
trabalho de três das cinco vistas, que ainda não aprofundamos discussões, buscando explicitar
conexões com os conteúdos de Física do Ensino Médio.
4.3 Cotidiano das atividades de trabalho: pistas para um ensino
orientado para níveis superiores de generalização
Algumas situações em que os estudantes trabalhadores utilizaram conhecimentos que
nos suscitam conhecimentos mais sistematizados de Física, foram observados ou relatados
pelos estudantes. Estes conhecimentos precisam ser analisados, tendo como referência,
conforme temos tentado proceder neste trabalho, o corpo de conhecimentos da Física.
Analisar estes conhecimentos presentes no cotidiano de trabalho dos estudantes revela, não só
conexões com conhecimentos sistematizados de Física, fornecendo elementos metodológicos
para o desenvolvimento de aulas de Física levando em conta as atividades de trabalho dos
estudantes, mas também revela informações sobre o nível de abstração que os estudantes
possuem dos conceitos no seu cotidiano de trabalho, contexto este que lhes exige
responsabilidades e lhes impõem situações em que o conhecimento pode ser posto a prova,
mas também pode ser restringido mediante as mazelas da contradição entre trabalho e capital.
Assim, não basta considerar os fragmentos de conhecimentos de Física provenientes das
atividades de trabalho em aulas de Física, mas o fazer de forma dirigida para a construção de
novos sistemas de referência e organização de uma hierarquia de conceitos de diferentes
níveis de generalidade, indo do cotidiano ao científico, re-significando o cotidiano pela via
dos conceitos científicos, conforme a concepção de aprendizagem e desenvolvimento que
adotamos a partir de Vygotsky (2005), Vigotskii (1988). Nesta perspectiva é que
consideramos úteis as análises a seguir.
Na borracharia visitada o estudante trabalhador nos forneceu informações detalhadas,
sobre sua atividade de trabalho, carregadas de conceitos e problemas físicos, mas quando
perguntamos sobre o reconhecimento destes no contexto das aulas de Física ou o
reconhecimento de conteúdos das aulas de Física na sua atividade diária de trabalho, que nos
explicava detalhadamente, disse que nunca lhe “veio em mente” esta possibilidade, nem se
121
lembrava de qualquer referência à situações de trabalho em suas aulas de Física, ou outra
disciplina. O estudante estava iniciando a terceira série do Ensino Médio.
O estudante nos relatou, incluindo rápidas demonstrações nas instalações da
borracharia, com a autorização do proprietário, os quatro principais serviços prestados por ele:
o alinhamento de rodas, o balanceamento de rodas, a calibragem da pressão e o remendo de
pneus danificados (perfurados). Algumas vezes o estudante comparou como fazia este
trabalho há dois anos, quando trabalhou numa borracharia sem tantos equipamentos de
interface eletrônica como os que agora fazia parte de seu cotidiano de trabalho. A seguir
descrevemos o que o estudante trabalhador nos explicou nas, aproximadamente, duas horas de
duração da nossa visita à borracharia.
Começamos pelo alinhamento de rodas, que como sabemos, faz parte da manutenção
periódica dos veículos para se evitar o desgaste prematuro dos pneus, evitar o cansaço
desnecessário do motorista, facilitando o controle e aumentando a segurança na condução do
veículo. O estudante nos disse, sinalizando com as mãos, que alinhar as rodas consiste
basicamente em ajustar os ângulos das rodas em relação ao eixo central imaginário que
atravessa a extensão do veículo. Para isso, nos disse, que é preciso analisar dois aspectos das
rodas: inclinação do eixo da roda (que pode convergir ou divergir em relação ao eixo de
alinhamento) e “folga” (ajustamento) da roda. Estes itens são dados do fabricante do veículo e
cada roda possui suas especificações. O estudante nos disse que “antigamente” não se
alinhava as quatro rodas, mas somente as duas dianteiras. Com o tempo a idéia de compensar,
ou mesmo ajustar quando o modelo do veículo permite, os desajustes das rodas traseiras com
ajustes nas dianteiras, predominou e praticamente todos os clientes pedem para que se faça o
alinhamento de todas as quatro rodas, o que veio exigir que se avaliem também as rodas
traseiras. O estudante observa que o LASER que é preso nas rodas no momento do
alinhamento é apenas para guiar o alinhamento com mais precisão e facilidade. “Funciona
como um barbante” para indicar no painel fixado na frente do veículo o ângulo em que se
encontra e quantos graus precisam ser modificados no processo. A direção do veículo é
mantida imóvel (fixada) enquanto as rodas são desparafusadas do eixo da direção e giradas
dos ângulos necessários ao alinhamento.
O estudante salientou que veículos sem alinhamento adequado têm a “dirigibilidade”
comprometida. Perguntei o que isto significa e ele disse que todas as condições de direção
ficam comprometidas. “Fica mais difícil controlar a direção do carro” disse ele, além de
consumir irregularmente os pneus e outras peças da suspensão do veículo. Nos disse que
existe também o alinhamento da cambagem, que é o ajuste do ângulo formado entre plano da
122
superfície de contato dos pneus e a vertical. Este tipo de ajuste é mais raro de ser necessário,
segundo o estudante, mas é importante, pois está relacionado com a estabilidade do veículo ao
fazer curva.
A segunda explicação fornecida foi sobre o balanceamento de rodas. Segundo o
estudante, a segunda causa de desgaste irregular de pneus e de peças da suspensão. A
necessidade desse serviço é percebida quando o veículo vibra em velocidades acima de 60,
80, 100 Km/h. Segundo o estudante, quando se monta a roda, se junta a roda (estrutura
metálica), o pneu propriamente e acessórios (câmara de ar se houver), e este conjunto não se
ajusta perfeitamente, distribuindo sua massa igualmente nos centros radiais e laterais da roda.
É preciso realizar este ajuste depois de montada a roda. Para isso girá-se a roda num aparelho
que indica quanto de massa deve ser acrescentada em cada lado da roda (interno e externo),
re-equilibrando a distribuição de massa. O estudante nos disse que há dois tipos de
desequilíbrios nas rodas: o desequilíbrio “com ela [roda] parada” e em movimento, ou seja,
estático e dinâmico. O desequilíbrio estático, segundo o estudante, é responsável por
oscilações “tipo sobre e desce” quando o veículo está em movimento, pois neste tipo de
desequilíbrio existe uma parte pesada ou leve localizada exclusivamente no pneu. Já o
desequilíbrio dinâmico, ocorre quando há diferenças de massa entre os dois lados da roda
(externo e interno), o que causa oscilações laterais, nos explicou.
O terceiro serviço explicado foi a calibragem da pressão dos pneus, que consiste em
verificar a pressão interna dos pneus, por meio de nanômetro. Dependendo da carga e do
terreno os pneus podem exigir maior ou menor pressão. Maior peso exige maior pressão para
que os pneus não fiquem deformados ao rodarem. Analogamente menor peso exige menor
pressão para se evitar trepidações desnecessárias devido a eventuais choques “menos
elásticos” entre os pneus muito rígidos pelo excesso de pressão interna e crateras e obstáculos
pelo caminho. Nesta explicação incluímos um pouco de nossa análise, mas os elementos para
que a fizéssemos vieram das explicações do estudante. Ele ainda acrescentou que alguns
clientes calibram a pressão dos pneus com nitrogênio, pois é um gás que “enferruja menos” as
rodas e sofre menos a ação do calor.
Sem explicações detalhadas, o estudante ainda disse que pneus mal calibrados (com a
pressão de ar inadequada) se desgastam mais rapidamente e acarreta maior consumo de
combustível. A explicação para o desgaste foi dada, mas para a relação entre consumo de
combustível e pressão dos pneus não. Nos disse, “eu só sei que é assim”.
123
Outro ponto a ser considerado, conforme o estudante recomendou, é conferir esta
pressão com os pneus frios, pois com o calor o ar “dilata” [o ar expande] elevando a pressão,
acarretando numa medida “errada”.
Por último o estudante explicou como faz remendos em pneus danificados. Utiliza
técnicas de remendo “quente” e “frio” dependendo do caso. Nos pneus que necessitam de
câmara de ar, o remendo é feito nela. Observou que, dependendo da área do furo nos pneus, a
segurança do mesmo para velocidades mais altas fica comprometida. Analisou que quando há
um abaulamento de parte da lateral de um pneu, significa que ele está fragilizado naquele
ponto, pois a pressão do ar é suficiente para deformá-lo. Este caso é mais “grave” do que um
furo ou corte que provoca o esvaziamento do pneu, pois significa que toda uma área do pneu
está frágil e não algo menor como um furo ou um corte.
Faltaram ao estudante algumas explicações, que, provavelmente, não faltariam se o
trabalho na borracharia tivesse sido abordado numa aula de Física. Quanto ao consumo maior
quando os pneus estão com a pressão abaixo do ideal, isto ocorre porque os pneus com
pressão interna insuficiente encontram maior resistência ao rolamento, uma vez que o contato
com o solo ocorre numa área maior do que a ideal, ocorrendo um abaulamento pelas partes
laterais da superfície de rolagem. Isso acarreta também um maior tempo na dinâmica de
frenagem do veículo. Os pneus com excesso de pressão também reduzem a área de contato
com o solo, pois somente a parte central da superfície de rolagem mantém contato com o solo.
Assim, o tempo de frenagem também aumenta. Outra relação interessante é a da profundidade
dos sulcos dos pneus e o desempenho em superfícies molhadas. Com sulcos poucos profundos
a água não encontra vazão e forma uma película escorregadia entre o pneu e o solo
aumentando as chances de escorregamento.
É interessante observar que o estudante tem a percepção “dinâmica” dos ajustes que
ele realiza num veículo estacionado. Este, ao nosso ver, é uma percepção física que pode ser
aproveitada em outras situações numa aula de Física, além dos conceitos em si, que estão
presentes na atividade sob uma forma não teorizada e que ao percebê-la também no formato
de teorias ensinadas na escola (seja quantitativa ou em análises qualitativas), o estudante se
verá em condições de melhor entender seu trabalho e principalmente em condições melhores
para a aprendizagem escolar. A partir desta análise é possível perceber condições para que,
como Vygotsky (2005) analisou, os conceitos cotidianos se desenvolvam rumo a se
estruturarem dentro de um sistema de referências mais amplo, o da Ciência.
Apenas para recapitular alguns temas de interesse para o ensino de Física no Ensino
Médio que podem ser suscitados: par ação-reação, força de atrito e fenômenos associados,
124
dinâmicas de frenagem, cálculos com vetores (análise vetorial), oscilações mecânica, fatores
de amortecimento, momento de inércia e distribuição de massa em sistemas dinâmicos,
momento angular, relação entre força, pressão e área, elasticidade e deformação em materiais,
gases ideais, entre outros.
Na visita à loja de calçados, a estudante que nos atendeu descreveu sua atividade de
trabalho também com detalhes, na medida em que encaminhávamos perguntas mais
específicas e solicitávamos detalhamentos de respostas. A estudante disse que tem um
objetivo profissional específico na rede de lojas que trabalha e faz questão que seus colegas e
chefes saibam. Ela quer um cargo de gerência, quer cuidar da qualidade geral do atendimento
ao cliente e controle do estoque, reposição e compra de novos produtos. “Por isso estou
procurando estudar mais, fazer cursos e entender mais de administração e de calçados”, nos
disse. Nossas questões se reportaram à organização dos setores da loja, dos tipos de calçados,
das perguntas feitas pelos clientes, suas respostas e das “propriedades” dos calçados.
Segundo a estudante, a loja está organizada em quatro setores de calçados de acordo
os vários públicos atendidos: infanto-juvenil, calçados para esportes, masculino e feminino.
Cada público tem suas exigências próprias. Segundo a estudante, todos querem saber sobre a
durabilidade e conforto dos calçados, mas há exigências mais específicas.
Uma preocupação geral é com o solado do calçado. A estudante nos disse que muitas
vezes os clientes demandam informações que eles não têm, seria “interessante”, segundo ela,
que os fabricantes fornecessem mais informações para que os vendedores possam oferecer
mais informações quanto a isso aos clientes. Ela deu exemplos: “quantos milímetros o calçado
pode ceder?” “Quais materiais cedem mais?” A estudante acha que faltam informações sobre
a deformação dos calçados com o uso em função do material de confecção, isso para todos os
calçados dos setores da loja, além de informações sobre o quão “liso” pode ficar o solado e
em que condições. “Muitos senhores querem saber se o calçado não vai ficar liso depressa”,
nos disse. A estudante disse que tenta ajudar aos clientes baseada nos aspectos do solado
como formato dos sulcos e rigidez do material, “geralmente se o solado for muito duro ele
fica muito liso no chão molhado, eu acho”. A estudante disse que os vendedores e os gerentes
precisam saber mais “dessas coisas” para proporcionarem uma ajuda mais “confiável” aos
clientes e, assim, “conquistá-los”, indo além das informações dadas pelos fabricantes, que,
segundo ela, são “poucas”.
Outra questão levantada por clientes e vendedores é sobre os calçados para esportes.
Deles, segundo a estudante, os clientes querem saber sobre o “amortecimento” no caso de
tênis e “travamento” no caso de chuteiras. Há diferentes tipos de sistemas amortecimento de
125
impactos em palmilhas para diferentes práticas esportivas. Nesse caso, há mais informações
por parte dos fabricantes, segundo a estudante, mas ela sugeriu que há muita “propaganda
enganosa sobre os amortecedores de calçados”.
Com estas questões, a estudante nos fornece situações de trabalho em que ela pode ter
condições de uma discussão fértil sobre temas como: determinação de coeficientes de
amortecimento e restituição de sistemas mecânicos, atrito, relação entre formatos de sulcos e
atrito, elasticidade/deformidade de materiais, dissipação de energia mecânica em impactos em
caminhadas, corridas, salto, por exemplo.
A visita à loja de calçados revelou necessidades de novos conhecimentos manifestados
pela estudante que nos atendeu, em função de sua atividade de trabalho. Segundo nossa
abordagem, esta necessidade pode motivar a aprendizagem escolar, que deve ser dirigida de
modo que as necessidades de aprendizagem se orientem, num processo contínuo de
desenvolvimento conceitual, reorientado continuamente para níveis de generalização mais
elevados permitidos pelos conceitos científicos. Assim, o sistema de referências do cotidiano
pode ser reorganizado em função das referências científicas e vice-versa, uma vez que o
conhecimento científico é passível de ser verificado empiricamente.
Na visita à loja de equipamentos de som para automóveis, que durou um total de quase
3 horas, sendo uma hora no primeiro dia de visita, o estudante que nos apresentou sua
atividade na loja demonstrou competência para projetar e implementar projetos de
sonorização de automóveis. Nos mostrou que é preciso escolher a fonte de alimentação
(bateria) em função da potência total dos alto-falantes instaladas no automóvel. Neste
momento da explicação, perguntei-lhe se já havia estudado o conceito de potência nas aulas
de Física. Sua resposta nos deixou perplexo: ele disse que sim, mas que se tratava de outra
coisa “nada a ver” com a potência que ele estava explicando. “Aquilo [o conceito estudado] é
potência de chuveiro, aqui é outra coisa”. Apesar disso, o estudante foi capaz de perceber o
efeito Joule em um aparelho que estava sendo montado, conforme comentamos na seção
anterior. Neste caso, parece que o estudante não generalizou o conceito de potência ensinado
nas aulas de Física, além dos fenômenos de transformação e conservação de energia que
aparecem no efeito Joule. O estudante demonstrou habilidade em considerar qualitativamente
os conceitos de corrente, tensão e resistência, numa relação linear como a conhecemos na lei
de Ohm, bem como com a potência do sistema composto pela bateria, o aparelho de som e os
alto-falantes.
Conforme discutimos na seção anterior, este estudante trabalhador, pretende ter sua
própria empresa e prestar serviços independentemente. Por isso, segundo ele, está procurando
126
aprender ao máximo no atual emprego. Em pouco tempo, nos disse, quer estar seguro de que
pode planejar e montar sistemas de sons em automóveis. O estudante nos mostrou vários tipos
de alto-falantes e amplificadores e afirmou que o cliente quer escolher o aparelho que vai
reproduzir as músicas e a qualidade que deve ter o som, mas como isso vai ser viabilizado no
seu automóvel, “é problema nosso”, disse o estudante. Por isso o estudante considera
importante entender de amplificadores, alto-falantes e as baterias adequadas, em alguns casos,
sendo necessário uma bateria exclusiva para o som.
O estudante explicou que a função dos amplificadores é ampliar a potência do
aparelho do “toca-fitas”, o que é necessário quando se quer um som mais potente, pois a
potência nominal dos “toca-fitas”. Ele disse que projetar é um trabalho difícil, pois não pode
sobrecarregar o sistema do automóvel. Disse que quando os engenheiros projetam os
automóveis dimensionam a “bitolagem” [seção transversal dos fios condutores] e o tipo de
alternador da bateria para uma dada corrente, então, acrescenta-se muitos acessórios,
excedendo ao que o sistema original suporta, corre-se os riscos da sobrecarga de todo o
sistema e não apenas o do som, como muitos pensam, concluiu o estudante: “Daí aparece
fiação esquentando demais e bateria descarregando”. Segundo o estudante, a regra básica para
“projetar um som para carros” é que a potência dos alto-falantes devem ser menor ou no
máximo igual à do amplificador que os alimenta, caso contrário o alto-falante é danificado, “a
bobina do alto-falante queima e não compensa trocar”, nos disse.
No segundo dia de nossa visita recebemos uma quantidade grande de informações do
estudante, e nesse caso, foi preciso realizar anotações no local. A seguir organizamos estas
informações, todas passadas pelo estudante que acompanhamos nos dois dias da visita.
O estudante disse que o principal para ele é ser honesto com os clientes, então ele
esclarece várias coisas no atendimento. Primeiro, ele orienta aos clientes a escolherem os alto-
falantes e amplificadores pela potência chamada “RMS
15
” e nunca pela chamada “PMPO
16
”.
15
RMS (root mean square – raiz quadrática média) utilizada para indicar a medida de potência aplicada a um
alto-falante sem que este apresente distorção harmônica do som, é na verdade, um valor que se extrai de medidas
de corrente e tensão alternadas e não da potência. Imaginemos uma tensão senoidal. Ela varia de um valor
negativo a um positivo iguais em módulo. A média simples seria, portanto zero. Assim, elevando-se ao quadrado
a média de vários pontos da tensão senoidal considerada e extraindo sua raiz, obtemos a tensão RMS
(
)
RMS
V
que multiplicada pela corrente RMS nos fornecerá a potencia RMS, em Watt, no Sistema Internacional (SI). Isso
equivale a aproximadamente 70% do valor de pico da onda senoidal correspondente. Em geral esta potência
(RMS), para alto-falantes e amplificadores, corresponde àquela em que se podem ouvir sons sem distorções
significativas, perceptíveis pelo ouvido humano.
16
Em busca posterior encontramos que PMPO (Peak Maximum Power) corresponde ao pico de potência máxima
suportada pelo alto-falante, o que significa que pode durar intervalos de tempos muito pequenos da ordem de
décimos de segundos ou menos, ou seja, tempo insuficiente para a finalidade de ouvir músicas.
127
Segundo ele, a potência “PMPO” varia de fabricante para fabricante, chegando a diferenças
muito grandes. Ele disse que a medida “PMPO” engana o consumidor, pois indica um número
muito elevado de potência medida pelos métodos do fabricante. Assim os valores reais de
potência são dados pela potência “RMS”.
Outro ponto que o estudante nos esclareceu, dizendo que “isso poucos sabem”, foi
sobre a relação entre potência do alto-falante e “altura do som”. Segundo o estudante, muitas
pessoas confundem a potência dos alto-falantes que compram com a “altura do som” que vão
obter. “Compram alto-falantes potentes, mas querendo sons altos, pancadas dentro do carro”.
Segundo ele, o que determina a “altura do som” não é a potência do alto-falante, do
amplificador ou do “toca-fitas”, mas sim o valor do “SPL”, que segundo ele é a pressão
sonora
17
emitida. O estudante nos deu um exemplo: dois alto-falantes, um de 100 watts RMS
e outro de 50 watts RMS estão ligados num amplificador de 30 watts, se estes alto-falantes
tiverem o mesmo SPL a “altura do som” será a mesma para os dois. Perguntei qual, então,
seria a diferença entre os alto-falantes e ele disse que apenas o de 100 watts RMS pode ser
ligado num amplificador de até 100 watts sem problema, já o de 50 watts só pode ser ligado
num amplificador de no máximo 50 watts. O alto-falante de 100 watts tem mais energia para
vibrar o ar, mas isso não significa som mais “alto”, nos disse o estudante.
O estudante acrescentou que existem diversos tipos de alto-falantes, cada um cobrindo
uma faixa de freqüência. Para ele o som é a própria freqüência. “Todo som é uma freqüência,
na verdade, várias misturadas”, assim, ele justifica a necessidade de se fazer uma combinação
adequada entre vários tipos de alto-falantes para se cobrir o máximo da faixa de freqüência
sonora. O estudante nos mostrou uma tabela relacionando alto-falantes em função da
freqüência. Anotamos alguns nomes e valores para exemplificar: Woofers (sons graves,
freqüência entre 50 Hz e 5000 Hz). Mid-ranger (sons médios como a voz humana, freqüência
entre 200 Hz e 3.500 Hz). Tweeter (sons agudos, freqüências acima de 5000 Hz). A faixa de
áudio, considerada no manual, foi de 20 Hz até 15000 Hz.
Por fim, o estudante esclareceu o que ele chama de “o problema da qualidade do som”.
Segundo sua explicação, há um conflito entre “altura do som” e qualidade do som. Um som
de qualidade, para automóveis, só pode ser possível dentro do automóvel, pois é preciso,
segundo o estudante, simular o som de um palco, efeito que segundo o estudante, não pode ser
simulado com o sistema do interior do automóvel, fora dele. Para isso ele diz ser necessário
que se tenha um alto-falante do tipo Mid-ranger e Tweeters à frente dos ocupantes do veículo,
17
Sound pressure level (SPL) de acordo com um manual de instruções que o estudante nos mostrou.
128
ou pelo menos do lado, logo no exterior do veículo só é possível um “som alto”, mas não de
qualidade.
Perguntamos também, sobre o funcionamento do alto-falante e do amplificador,
recebendo as seguintes explicações: sobre o funcionamento do alto-falante, o estudante disse
que se trata de uma membrana vibrando o ar e assim “faz o som”. Sobre o amplificador disse
apenas que ele tem a função de elevar os níveis de tensão dos sinais sonoros originais que
vêm do “toca-fitas”.
O estudante nos disse que todo o serviço que realiza ele aprendeu no atual emprego,
com seu patrão e outros colegas mais experientes, mas aprende mais a cada dia, “a cada dia
tem um desafio aqui me esperando”, nos disse. Na escola sabe que isso tudo que faz no
trabalho tem a ver com Física, mas nos disse que não tem os assuntos de sua atividade de
trabalho considerado nas aulas de Física, ”não que eu me lembre”, nos disse, mas considera
que seria um atrativo a mais para estudar se também pudesse aprender mais a Física presente
no seu contexto de trabalho.
Mais uma vez podemos perceber situações para se desenvolver os conceitos cotidianos
dos estudantes rumo aos conceitos científicos desenvolvidos na escola e associados a
necessidades de aprendizagens capazes de motivarem outros processos e situações de
aprendizagem. O sistema de conceitos deste estudante possui uma base de conhecimentos
provenientes da realidade na qual interfere e também uma estrutura motivacional, conforme
nossa análise na seção anterior, profícua para que a aprendizagem de conceitos científicos se
desenvolva a tal ponto de alterar significativamente, se não radicalmente, sua relação com
realidade da atividade profissional que o desafia constantemente.
Alguns conceitos de Física podem ser percebidos latentes nas ações e falas do
estudante. Por exemplo, a sua idéia de potência no sistema de som. Se ele tivesse acesso a
uma explicação sobre o conceito de potência num formato mais próximo de sua atividade de
trabalho antes de ter uma explicação mais geral e abstrata para ele tal como a definição usual
(a grandeza que expressa a quantidade de energia fornecida por uma fonte por unidade de
tempo) certamente teria melhores condições de chegar a uma idéia mais geral que unificasse o
conceito de potência dissipada por um chuveiro, como nos disse no primeiro dia da visita, e a
idéia de potência máxima de um alto-falante como sendo a quantidade de energia elétrica,
proveniente do sinal elétrico do “toca-fitas” que um alto-falante pode transformar em som
sem gerar, no mesmo processo, calor suficiente para fundir seus componentes eletrônicos
danificando-o. Essa idéia por sua vez pode suscitar a necessidade de se pensar de que
materiais são feitos esses componentes que podem fundir, buscando materiais com maior
129
ponto de fusão, e assim por diante, numa discussão da Física que o cerca no trabalho, nas suas
aflições imediatas, sem fugir das leis mais elementares da Física.
Isso sem contar os elementos que o funcionamento do alto-falante pode fornecer para
discussão de fenômenos eletromagnéticos e sonoros, os quais podemos reconhecer ao detalhar
o funcionamento do alto-falante, conforme faremos a seguir para exemplificar.
O alto-falante recebe uma corrente alternada (o sinal de audiofreqüência) que oscila
numa freqüência (captada pelo ouvido humano) entre 20 Hz e 15000 Hz. Esta corrente
alternada circula na bobina móvel que cria um campo magnético induzido. Este campo
magnético interage com o imã fixo na base do alto-falante e assim a bobina movimenta uma
membrana cônica para baixo e para cima num movimento vibratório, produzindo a onda
acústica correspondente ao sinal emitido pelo “toca-fitas”. Há um vasto conjunto de conceitos
e princípios da Física nesta explicação, ainda que limitada, do princípio físico de
funcionamento de um alto-falante, que poderiam trazer novos sentidos para a aprendizagem
de Física para o estudante que acompanhamos na visita à loja de som para automóveis. E este
corresponde ao princípio de funcionamento do tipo de alto-falantes mais utilizado. Devemos
considerar ainda que existem diferentes tipos de transdutores eletro-acústicos, havendo
inclusive três tipos de alto-falantes diferenciados segundo princípio físico de funcionamento.
São eles os chamados alto-falantes dinâmicos, que já discutimos, os alto-falantes
eletrostáticos em que a membrana é movimentada por forças eletrostáticas e ainda os alto-
falantes baseados em materiais piezoelétricos que convertem sinal elétrico em mecânico e
vice-versa. Para finalizar, mas não, evidentemente, esgotar as conexões entre as situações de
trabalho do estudante e os conhecimentos de Física de interesse para aulas no Ensino Médio,
nos parece que o conceito apresentado pelo estudante sobre o SPL dos alto-falante
corresponde ao nível de intensidade sonora
α
dado em decibéis
()
db , que mantém uma
relação matemática logarítmica com a intensidade dos sons que, por sua vez, está relacionada
com a potência do alto-falante.
=
0
10
log10
I
I
α
Onde
0
I é o nível zero de intensidade, ou limiar de auditibilidade dado por
212
0
/10 mWI
.
Alguns temas que podem ser suscitados nestas situações de trabalho do estudante
trabalhador na loja de sons para automóveis e ainda não mencionados podem ser: Efeito
Doppler, transdutores de eletro acústicos (inclusive ultra-sônicos), oscilações mecânicas,
130
associação de componentes elétrico, em especial alto-falantes, corrente alternada e contínua,
impedância, ressonância acústica, ultra-sons, linhas nodais, diferenças entre intensidade,
altura e timbre, relação entre freqüência e período.
Organizamos a tabela a seguir, que relaciona fenômenos considerados pelos
entrevistados e visitados com alguns conceitos ou idéias da Física tipicamente proposta para
desenvolvimento no Ensino Médio. Não temos a pretensão de esgotar, ou mesmo realizar uma
apresentação exaustiva dos assuntos de Física presentes nos espaços de trabalho visitados,
nem quanto às suas possibilidades de articulações com conteúdos escolares em qualquer nível
do ensino. Estas são as conexões que julgamos mais evidentes para iniciados em Ciências,
que é o nosso caso e o de licenciados em Física e outras Ciências. Há casos em que se pode
perceber aspectos fenomenológicos da Física interessantes para discussão em sala de aula,
como as diversas aplicações de LASERS, mostrando o que já sabemos há muito: o que os
estudantes vivenciam remete à princípios físicos desenvolvidos recentemente e que não tem
chegado às salas de aula. Trata-se de princípios da Física desenvolvidos no século XX e
elementos de Física que em geral são considerados avançados ou muito específicos para
serem tratados no Ensino Médio, como por exemplo, indução eletromagnética e conceitos de
Física Moderna (Mecânica Quântica).
131
Tabela 8 – Relações entre fenômenos considerados por estudantes trabalhadores nas entrevistas e visitas e
conceitos ou leis da Física de referência.
Atividade
profissional
Situação de trabalho ou conceito
mencionado pelos estudantes
Conceito ou lei da Física de
referência
Trabalhador -
Fotocopiadora e
papelaria
Processo básico da fotocópia (eletrostática e
pigmentação).
Eletrostática, espelhos
eletrostáticos, fotosensibilidade,
calor e pressão.
Doméstica
Funcionamento de uma máquina de lavar
roupas e secagem por centrifugação.
Aceleração centrífuga, atrito,
referenciais, forças fictícias,
inércia.
Técnico em
ferramentas elétricas
Curto induzido, tensão, corrente, circuitos,
vibração, transmissão de movimento,
medidas elétricas, rolamentos, ruído
acústico, bobinas elétricas, transformadores
de tensão, diferenças entre aparelhos eletro-
mecânicos e eletrônicos.
Indução eletromagnética, corrente
alternada e contínua, vibrações
mecânicas e amortecimento,
conservação de energia e momento,
lei de ohm, instrumentos e métodos
de medidas elétricas, impedância,
componentes eletrônicos, gradiente
de tensão.
ENTREVISTAS
Trabalhador rural
(setor canavieiro)
Uso de objetos cortantes nas máquinas e
manualmente.
Relação entre força e área de
aplicação (pressão), cisalhamento.
Loja de
equipamentos de som
para automóveis
Funcionamento de alto-falantes e
amplificadores, dissipação de potência,
corrente elétrica, faixas de freqüências
audíveis, baterias, compatibilidade de
componentes elétricos, pressão sonora,
“qualidade sonora” etc.
Dissipação de potência, efeito
joule, lei de ohm, potência,
oscilações mecânicas, impedância,
intensidade sonora, transformação
da energia, propriedade
piezoelétrica, áudio-freqüências,
eletromagnetismo e aplicações, etc.
Borracharia
Alinhamento, balanceamento e calibragem
de rodas e consertos de pneus e rodas em
geral, uso de LASER como guia, vibração,
estabilidade de veículos e situações de
rolamento, aderência de pneus, elasticidade
da borracha, medidas de pressão,
dilatamento de pneus, etc.
Pressão, expansão de gases, análise
vetorial, atrito (estático e
dinâmico), momento angular,
dinâmica, elasticidade de materiais,
etc.
Depósito de
supermercado
Empilhamento de sólidos, uso de elevadores
manuais e eletromecânicos, medidas de
distâncias e áreas, controle de umidade
local.
Centro de massa, decomposição de
forças (plano inclinados e polias),
relações entre pressão e área em
componentes hidráulicos,
densidade.
Loja de calçados
Sola lisa/rugosa, resistência de materiais
dos calçados, amortecimento de impactos
por calçados, etc.
Permeabilidade, atrito e
tecnologias para medida de
permeabilidade em materiais.
VISITAS
Oficina mecânica
Variação da temperatura em pontos de um
ambiente, torque, uso de ferramentas e
funcionamento de motores e componentes
de automóveis, sistema de arrefecimento de
motores.
Gradiente de temperatura, torque,
forças e atrito, oscilações e
amortecimento, arrasto
aerodinâmico, diversos aspectos de
mecânica das máquinas simples e
complexas, ciclo termodinâmico
dos motores, capacidade térmica,
ebulição.
132
Se entendermos a escola como instituição que ensina os conhecimentos socialmente
significativos e acumulados ao longo do desenvolvimento sócio-histórico da humanidade para
as novas gerações, poderemos admitir a necessidade de repensar o ensino examinando as
relações entre cognição e contexto e entre aprendizagem e produção de conhecimentos. Neste
sentido, os contextos de trabalho que examinamos parece nos sugerir um avanço, isto se
nossas estratégias não tiverem como objetivo as situações de trabalho em si, mas a
aprendizagem dos conteúdos tradicionais, que permitiram nosso estágio de desenvolvimento.
Neste caso, para os estudantes trabalhadores, a relação com seu contexto de trabalho é tão
somente uma componente inicial para a construção de um conhecimento sólido em Física,
capaz de permitir uma interação com a realidade e as condições para a compreensão de como
é possível o desenvolvimento das forças produtivas ao mesmo tempo em que o trabalhador
tem perdido em termos de apropriação cultural e expropriado significativamente da produção
material.
4.4 Intervenção em sala de aula: trabalho e Física na apropriação do
conhecimento
A metodologia da intervenção visou permitir um processo de ensino por meio do
desenvolvimento de conteúdos, associados às atividades de trabalho dos estudantes, que ao
mesmo tempo esclareçam a realidade imediata, permitindo uma maior autonomia para a
reflexão sobre sua atividade de trabalho, mas rumo ao desenvolvimento de níveis conceituais
capazes de permitirem um deslocamento em meio a um sistema hierárquico de generalizações
que vá dos conceitos cotidianos aos científicos, mudando radicalmente a estrutura psicológica,
desenvolvendo o pensamento crítico pela via do conhecimento científico. As atividades que
relataremos foram desenvolvidas tendo em vista essa concepção de hierarquia de conceitos e
generalização. A seguir apresentamos o esquema geral que orientou a dinâmica da
intervenção.
133
Figura 3 – Esquema geral de trabalho na intervenção – “sistema hierárquico de generalização”.
Para o desenvolvimento da intervenção, baseada neste esquema, foi útil a elaboração
de uma espécie de ficha individual dos estudantes, a qual denominamos de inventários das
atividades de trabalho. Solicitamos aos estudantes que periodicamente acrescentassem nesta
ficha detalhes de suas atividades de trabalho e das relações percebidas ou aprendidas entre
elas e conceitos aprendidos nas aulas de Física. Eventualmente, também acrescentávamos
observações, questões, etc nestas fichas, que ficavam com os estudantes. Nossa intenção foi
compor um banco de inventários quando solicitássemos essas fichas aos estudantes, mas
optamos por devolvê-las a eles depois de extrair informações, para o segundo momento da
intervenção. O banco de inventários orientou o desenvolvimento de parte dos dois momentos
da intervenção, fornecendo assuntos comuns às atividades de trabalho e de interesse, como
ponto de partida, para desenvolvimentos de conteúdos de Física típicos no Ensino Médio.
4.4.1 Primeiro momento
Após a apresentação da proposta e do levantamento da distribuição dos estudantes em
função de suas atividades profissionais, solicitamos que fossem formados grupos com 3 ou 4
integrantes e que mencionassem situações de trabalho para começarmos a delinear alguns
temas buscando encontrar conexões entre idéias da Física presentes nas atividades
profissionais dos estudantes e conteúdos de Física organizados academicamente.
A pergunta básica neste momento foi: “o que vocês fazem em suas atividades de
trabalho?” Mas foi a pergunta complementar (quais instrumentos vocês utilizam e como os
utilizam em suas atividades profissionais?) a questão que mais foi respondida e comentada
pelos estudantes. O que nos levou a fazer a pergunta principal daquele momento da atividade
foi a tentativa de que os próprios estudantes percebessem, mediante este estímulo, as
conexões entre o que fazem no trabalho e conteúdos de Física que já tivessem tido acesso nas
aulas de Física, uma vez que estavam cursando o terceiro ano do Ensino Médio, e portanto,
por hipótese, já teriam visto uma quantidade suficiente de conceitos de Física para realizarem
tais conexões. Já a pergunta complementar, a consideramos tendo em vista que o uso das
ferramentas/instrumentos (materiais ou intelectuais) é um meio de acumulação e transmissão
134
do conhecimento social, o que influencia a natureza do comportamento humano, não somente
os externos, mas também o funcionamento mental dos indivíduos (LEONTIEV, 1978a e
1983). A partir da pergunta complementar, que passou a ser a principal, os estudantes
relataram alguns instrumentos que utilizam em suas atividades profissionais, bem como as
forma corretas, segundo eles, de utilização destas ferramentas. Portanto, sugerimos que
deveriam explicar a “teoria” dos instrumentos. Ressaltamos que se trata de uma teoria
inseparável da prática, argumentando que ninguém poderia fazer tal relato sem ter utilizado o
instrumento antes, ou seja, “na prática”.
Neste momento, os estudantes tiveram a oportunidade de elaborar mentalmente junto
com outros colegas trabalhadores e redigir sobre seus instrumentos de trabalho na escola,
numa aula de Física. Os excertos abaixo mostram algumas manifestações dos estudantes
18
.
Uma simples chave de roda pode render muito mais se quem for usar tiver
“cabeça” para fazer força no ponto certo...usar uma extensão. (mecânico).
Quando começou a trabalhar calculava o espaço para colocar mercadorias
medindo com o metro, ou no “olhômetro” mesmo, agora está utilizando um
aparelhinho daqueles que a prefeitura usa para medir terrenos, é um laser, é
apontar e segurar um botãozinho e ele dá a medida.(responsável por depósito).
Disse que aprendeu a cuidar dos seus instrumentos no curso[...] todo
material é cirúrgico e precisa ser esterilizado, como nos hospitais. Faz questão que
os clientes saibam disso. (manicure).
Foi mencionada uma grande variedade de instrumentos. As explicações que os
estudantes fazem dos instrumentos, embora dêem margem para um aprofundamento do ponto
de vista da Física e das relações sociais do seu uso, tal como um processo profissional de
esterilização, como lembrado pela manicure, não ultrapassou o senso comum, nem pareciam
suscitar aspectos científicos intencionalmente. O mecânico, por exemplo, apresenta uma
noção tácita de torque, que, embora não chegue a ser uma formulação científica, o ajuda em
sua atividade profissional ao potencializar sua força. Provavelmente, sua vivência prática
18
As citações correspondem a excertos de anotações realizadas durante ou logo após este momento da
intervenção, portanto não são transcrições literais das falas dos estudantes, mas tentam ser fiéis às idéias que
entendemos que queriam expressar.
135
favoreça o desenvolvimento de posturas de pragmatismo frente ao saber escolar, conforme
nos foi delineado em vários momentos na coleta de dados com outros estudantes
trabalhadores. Entretanto, os instrumentos relatados pelos estudantes trabalhadores, não se
limitaram a materiais:
Disse que Sua principal ferramenta é o seu cérebro, precisa pensar,
pensar...como falar bonito para convencer o cliente que está comprando um bom
produto, lê os rótulos para saber mais e também informar melhor o cliente.
(promotora de vendas [cosméticos]).
Percebemos nesta descrição da estudante uma situação em que os conhecimentos
científicos podem ser discutidos junto às questões ética, que hoje, são bastante referenciadas
no contexto da Educação científica.
O estudante utiliza carrinhos-de-mão, fitas adesivas, caixas...[etc].
Teoricamente compara sua atividade a montar um quebra-cabeça, segundo ele tem
que empilhar, alinhar, encaixar as embalagens dos produtos umas nas outras e deixá-
las bem firmes para que não caiam sozinhas das gôndolas. (repositor de
supermercado).
Para um professor de Física, não é difícil perceber elementos para se desenvolver toda
a mecânica newtoniana a partir desse relato do repositor de mercadorias. Porém, uma conduta
dessa poderia tornar a aula desinteressante, principalmente se os estudantes buscam na escola
“coisa novas”, conhecimentos considerados superiores aos que podem aprender nas atividades
de trabalho, como alguns entrevistados demonstraram. Esse tipo de conduta, também pode
retirar o potencial da mecânica newtoniana enquanto teoria que permite generalizações, ao
limitá-la apenas a vivências dos estudantes. Entretanto, tal abordagem não pode ser totalmente
rejeitada, pois constitui um canal para que o estudante trabalhador estabeleça novos sentidos
pessoais com o conhecimento, que em formato acadêmico se mostra alheio a sua realidade,
portanto, à realidade. Esses novos sentidos podem ser estabelecidos na medida em que o
estudante perceber que o que ele faz, no exemplo do repositor de supermercados, é com que a
resultante das forças externas atuantes sobre um corpo seja zero, no formalismo matemático:
0
=
ext
F
136
e que esta situação, vivenciada por ele, é uma caso muito particular, da situação, cuja teoria
permite a descrição dinâmica de um veículo, de um ônibus espacial, ou do movimento dos
planetas, cuja forma matemática pode ser generalizada em função da variação de momento no
tempo, cuja equação, é tipicamente desenvolvida da seguinte forma:
dt
dm
vam
dt
dm
v
dt
vd
m
dt
vmd
dt
pd
+=+==
)(
e que no caso das gôndolas de supermercado significa, em termos de uma solução trivial:
0)0()0( ===+=
dt
pd
dt
dm
vam
Além dessa teoria resultar a compreensão Física geral, formal, do que relata o
mecânico sobre o uso de uma extensão na “chave de roda”, ou seja, o torque. Trata-se do
produto vetorial da força pelo vetor posição relativa ao centro da aplicação de forças, no caso
do mecânico é a medida total do “braço de força”, ou seja, distância do ponto de aplicação da
força. Em termos matemáticos gerais, temos que o torque
(
)
τ
é dado por:
()
p
dt
d
rr
dt
d
ppr
dt
d
rrrrrrr
+=×=
τ
com F
dt
pd
r
r
=
se a distância ao ponto de aplicação da força não variar (se o braço da alavanca não estiver
mudando de tamanho com o tempo), ou seja, se
0=
dt
rd
r
, temos que
θτ
senFrFr =×=
r
r
r
onde
θ
é o ângulo entre a alavanca e a força de aplicação. As unidades consideradas em todos
os casos foram as do Sistema Internacional (SI). Assim aparecem na Física as considerações
do estudante trabalhador na oficina. Desde o “ponto certo”, mencionado por ele, para
aplicação da força até a também mencionada, utilização da alavanca. Assim a formalidade e a
hierarquia dos sistemas de conceitos da Física re-significam os conceitos cotidianos do
estudante, partindo das situações de trabalho.
Precisamos esclarecer que no primeiro momento da intervenção, juntamente com essas
discussões, foi tratada a idéia de derivada de modo convencional. Partimos de um caso
particular do conceito geométrico de derivada (devidas de uma parábola). Utilizamos a idéia
de limite para apresentar o que é a derivada de uma função, no caso, com
2
)( xxf = temos:
137
x
x
xxx
x
xxx
x
xfxxf
dx
xdf
xxx
2
)2(
lim
)(
lim
)()(
lim
)(
0
22
00
=
+
=
+
=
+
=
Figura 4– Esboço utilizado para a discussão da noção geométrica de derivadas no primeiro momento da
intervenção.
Exemplificamos a noção de derivada a partir do movimento uniformemente acelerado
(aceleração constante, independente do tempo, ou seja,
cteta
=
)(
r
), já estudado pelos
estudantes em séries anteriores, esboçando o gráfico da posição e da derivada da posição, a
velocidade que cresce linearmente (reta inclinada) na ausência de forças dissipativas, trocando
os símbolos da figura acima e discutindo a correspondência física com um veículo em
aceleração constante sem ação de atrito com o ar e dos pneus com o solo. Tomando a derivada
da velocidade em relação ao tempo, mostramos que a aceleração é constante, para o caso
considerado. Finalmente substituindo um valor para o tempo t na função posição,
encontrando a posição e velocidade instantânea do veículo em movimento. Comentamos
ainda, que para movimentos em que a aceleração não é constante, ou seja,
a
r
é uma )(tf , a
derivada da aceleração em relação ao tempo fornece o Impulso, que no exemplo considerado
foi zero (derivada de constante). Os estudantes demonstraram euforia quando mostramos que
as equações do movimento uniformemente acelerado (velocidade e aceleração) como
derivadas primeira e segunda respectivamente da equação de posição, bem como com nosso
comentário de que muitas idéias da Física podem ser matematicamente associadas a
derivadas, além dos casos considerados, da segunda lei de Newton, do torque e do movimento
uniformemente acelerado.
Depois desta explicação passamos a considerar a derivada como um
“operador” )/( dxd na aplicação da “regra do produto” e outras manipulações algébricas nas
equações gerais desenvolvidas na primeira aula dupla do primeiro momento da intervenção.
138
Esta abordagem foi feita uma vez que entendemos como imprescindível um
ferramental matemático básico, para o entendimento da Física sob um aspecto mais formal, o
que se pretende com a educação escolar no referencial teórico que discutimos.
Falta ainda, a compreensão do que estas idéias e equações significam socialmente.
Falta a compreensão enquanto objetivação, para que o estudante reconheça pela consciência a
necessidade da apropriação. Isso implica em resgatar historicamente a formulação destas
idéias o que nos remete a compreensões das relações sócio-históricas envolvidas. Isaac
Newton admitiu que formulou a sua lei da gravitação universal
19
(a mais antiga lei de forças
da Física) por que se apoiou no ombro de gigantes, se referindo aos trabalhos de Copérnico,
Kepler e Galileu. Isso mostra uma ligação histórica entre os homens na construção do
conhecimento que implica em processos de apropriação e objetivação, conforme abordado no
capítulo 2. Neste sentido, nos parece que a teoria histórico-cultural da atividade também pode
contribuir com os aspectos histórico-filosóficos da Ciência ao serem considerados nas aulas.
Uma pergunta a ser feita é se o estudante percebe, mesmo que imprecisamente, esse
tipo de ligação. Se lhe fosse perguntado coisas relacionadas com sua atividade de trabalho
numa aula de português, ou de filosofia, responderia da mesma forma? Se respondermos que
sim, então devemos considerar que sua atividade profissional se aproxima mais, pelo menos
em seu relato, de conceitos da Física do que de outros assuntos do Ensino Médio. Se
respondermos que não, ou seja, que seu relato for diferente dependendo do estímulo fornecido
no contexto da disciplina, então significa que ele estabelece outras relações com a sua
atividade profissional, o que favorece objetivos como o que preconizamos – entender a
atividade de trabalho num contexto mais amplo, na estrutura social e integrada com o
conhecimento de modo geral e com o conhecimento escolar em particular.
Foi interessante observar, na relação de instrumentos e conceitos cotidianos, uma
quantidade significativa de instrumentos e formas de uso comuns a várias atividades, mas
com perspectivas distintas de uso, evidentemente em função das atividades profissionais.
Nesse caso foi importante chamar a atenção de todos para a semelhança das “utilidades” e
depois dos conceitos físicos que determinam grandezas que podem ser manipuladas, por
exemplo, para otimizar o uso desses instrumentos. Nesse caso a Física assume status de
instrumento. Instrumento que potencializa a ação do homem, que amplia suas possibilidades,
e que é construída no âmbito das relações sociais cercadas de intencionalidades e dirigidas
19
Esta lei pode ser derivada também da equação dtpd /
r
combinada com as três leis de Kepler. Isto foi
mencionado brevemente no primeiro momento da intervenção com a intenção de fornecer aos estudantes noções
de como tais teorias se relacionam na construção das sistematizações do conhecimento científico.
139
para uma finalidade consciente. A tabela abaixo resume os principais instrumentos
relacionados durante a atividade, suas aplicações e conceito físico predominante.
Tabela 9 – Relação de instrumentos e respectivas atividades profissionais e conceitos considerados no
primeiro momento da intervenção em sala de aula.
Instrumento Profissão
Conceito
cotidiano/situação de
trabalho
Conceito da Física
Alicate
Mecânico, manicure,
motorista.
Fixar objetos, facilitar o
corte e alterar formas de
sólidos, etc.
Torque (princípio da
alavanca), atrito estático
e dinâmico.
Laser
Caixa de supermercado,
responsável por depósito.
Indefinido – só se “vê” o
resultado, não o processo,
leitura ótica.
Ressonância óptica em
cavidade – emissão
estimulada.
Instrumentos de
corte
Açougueiro, ajudante de
cozinha, trabalhador rural,
manicure.
Corte em geral, afiação.
Relação entre força e
área de contato - pressão
Materiais de
aderência
Vendedora de calçados,
motorista.
Superfícies Lisas e
rugosas, sulcos no material
para se melhorar a
aderência, etc.
Atrito estático e
dinâmico
Na construção da tabela, reunimos as atividades de trabalho dos estudantes que
mencionaram o instrumento com as de alguns colegas cujas atividades profissionais
compartilham tais instrumentos, mas não haviam mencionado nenhum instrumento. A tabela
acima foi composta com a ajuda dos estudantes. Quanto aos conceitos de Física, esses foram
desenvolvidos de forma que os estudantes confirmassem ou refutassem a correspondência
teórico-prática, na medida das possibilidades de tempo para que refletissem e recuperassem
suas percepções dos fenômenos no seu cotidiano de trabalho. Abaixo resumimos a abordagem
dada aos conceitos de relação entre força e pressão e atrito estático e dinâmico
20
.
Primeiramente, foi introduzido sob aspecto qualitativo o conceito de pressão, ou seja, a
pressão é igual a força normal (aplicada perpendicular à área) por unidade da área, ou seja
pela área de contato. Neste caso exemplificamos aplicando uma força em lápis, perpendicular
ao plano horizontal (força normal
(
)
N
F , sobre a mão de um voluntário até que ele dissesse
“ai” e depois aplicamos uma força visivelmente maior utilizando o apagador de giz, o que não
provocou nenhuma dor em nosso voluntário. A partir daí discutimos outro exemplo: o
açougueiro presente nos ajudou e confirmou que quando afia seus instrumentos de corte pensa
20
O conceito de torque considerado foi aquele já desenvolvido e em função do tempo da aula ter se esgotado e
da complexidade do assunto, deixamos para tratar do LASER nas aulas seguintes (2º momento da intervenção).
140
em diminuir a “parte da faca que vai entrar em contato com a carne”. Em termos matemáticos
podemos escrever:
A
F
p
N
=
Ressaltamos ainda que esta relação matemática continua válida quando o meio de
propagação da força for líquido (princípio de Pascal). Este é o princípio básico dos
equipamentos hidráulicos muito utilizados em veículos (direção hidráulica) e elevadores de
carga. Tratamos ainda da diferença de pressão entre dois pontos separados a uma distância
qualquer
h em um fluido, utilizando a pressão atmosférica como exemplo, e realizando
alguns exemplos numéricos com o uso da expressão:
(
)
2121
hhgpp
=
µ
Sempre lembrando que partimos das idéias fornecidas pelos estudantes trabalhadores a
partir do que consideraram assunto para a Física em suas atividades de trabalho naquele
momento, e que de fato eram.
O último conceito que consideramos nesse momento da intervenção foi a relação entre
atrito estático e dinâmico, ou seja, o atrito entre corpos que estão em movimento um em
relação ao outro (atrito dinâmico) e o atrito entre corpos na iminência de um movimento
relativo. Para isso começamos por considerar estas formas de atrito de um dos sapatos cedidos
para a experiência pela “vendedora de calçados”. Após mostrarmos qualitativamente as
diferenças entre atrito estático e dinâmico por meio da simples experiência de deslizar o
calçado sobre a mesa em regime de movimento e a partir do repouso, tentamos dar uma noção
microscópica do atrito. Isso permitiu algumas noções para melhor entender o que significa o
coeficiente de atrito. Esboçamos ainda, um gráfico que permitiu uma melhor percepção da
diferença entre o atrito estático e dinâmico. Discutimos que se trata de uma função da força
de atrito que cresce linearmente até um dos corpos em contato sair do repouso, depois a força
decresce até se estabilizar em torno do valor da força de atrito dinâmico. Um ponto destacado
nessa discussão é que o coeficiente de atrito dinâmico é sempre menor que o coeficiente de
atrito estático, sendo em geral, ambos menores que 1. Foi discutido ainda, o caráter
dissipativo das forças de atrito e algumas formas de minimizá-lo, além de exemplos sobre a
importância do conceito de atrito para a indústria de calçados e de pneus e a velocidade
“terminal” do movimento acelerado em fluidos. Em todos os casos tratados ressaltamos que
consideramos situações ideais, devendo estas serem entendidas como aproximações da
realidade física, passíveis de melhorias quantitativas e qualitativas ao se levar em conta
condições de contorno e outras variáveis, o que acarreta maior nível de dificuldade de estudo
141
das situações Físicas, sendo muitas vezes necessária a intersecção com outras áreas do
conhecimento como a Química e a Biologia para se chegar a uma compreensão mais completa
de um problema.
Os mecânicos e o motorista presentes na atividade ainda mencionaram, como
problemas de Física relacionados a suas atividades de trabalho, a colisão entre veículos. No
entanto, mencionaram já nos minutos finais da última aula do primeiro momento da
intervenção. Isso parece sugerir que com o desenvolvimento dos conceitos relacionados às
atividades de trabalho dos estudantes, aos poucos eles passam a buscar situações que lhes
suscitem problemas relacionados à Física. Nesse ponto parece que a abordagem cria
condições favoráveis ao surgimento de necessidades que os levam a procurar novas situações
para relacionar suas atividades de trabalho ou situações de trabalho conhecidas com a Física,
ampliando os níveis de aprendizagem potencial.
As conexões podem aumentar quantitativa e qualitativamente com a diversidade de
atividades profissionais, criatividade e habilidade dos estudantes e professores em estabelecê-
las. É importante destacar que mais do que a correspondência entre conceitos e objetos, o
objetivo principal foi a apreensão do conceito de Física no seu sentido mais amplo, e o quanto
são “compartilháveis”, utilizando a atividade profissional como mediadora nesse processo de
conhecimento e reconhecimento, no que, coletivamente é possível conhecer mais e
desenvolver condições favoráveis à continuidade do processo de conhecer. O “começar” por
considerações sobre instrumentos de trabalho e seu uso, passando por conceitos físicos
relacionados aos instrumentos, parece ter permitido aos estudantes lançar um outro “olhar”
sobre a Física e suas atividades de trabalho.
4.4.2 Segundo momento
Este “momento” foi desenvolvido em duas aulas (100 minutos), embora originalmente
tivesse sido planejado para pelo menos três aulas, fato que nos impediu de desenvolver parte
do conteúdo preparado a partir do que organizamos com a ajuda dos estudantes no primeiro
momento. Este atraso se deu devido à nossa opção de considerar de forma mais cuidadosa e
detalhada as primeiras contribuições dos estudantes de forma a não correr o risco de dificultar
o diálogo, dificultando novas contribuições ao não desenvolver de forma coerente ao que
havíamos proposto, as idéias apresentadas pelos estudantes. Mesmo que isso tivesse ocorrido,
não estaria inviabilizada a proposta, uma vez que podemos fazer um levantamento das
142
conexões entre fragmentos do conhecimento de Física encontradas nas atividades
profissionais e aquele proposto para o Ensino Médio a partir de outras fontes e observações,
mas isso poderia acarretar menor envolvimento dos estudantes, pelo menos inicialmente.
Neste segundo momento introduzimos uma mudança na dinâmica da proposta. A
partir das informações levantadas no primeiro momento, propomos aos estudantes a
simulação de uma estrutura social do trabalho. Para isso selecionamos algumas atividades de
trabalho que pudessem compartilhar um mesmo objeto. Assim contamos como objeto um
alimento, digamos, “a carne”. Ela é preparada para o consumo pelo açougueiro, passa pelo
controle do “caixa de supermercado”, passa por mais um processo de preparação para o
consumo que é realizado “pelo ajudante de cozinha” e após ser consumida, fornece energia
para a prática de atividades físicas na academia de ginástica - “queima de calorias”.
Evidentemente essa estrutura se tornará mais complexa na medida em que introduzirmos mais
atividades de trabalho. Esta simulação teve como objetivo ressaltar o sentido social do
trabalho como forma coletiva de intervenção do homem na natureza, transformando-a de
forma a atender necessidades humanas em um dado contexto de produção. Dizemos “contexto
de produção” pois, por exemplo, em sociedades primitivas essa estrutura social do trabalho
seria diferente. A seguir, apresentamos as atividades de trabalho diretamente envolvidas neste
segundo momento, as contribuições dos estudantes por meio do inventário e/ou verbalmente e
o conteúdo principal desenvolvido.
Açougueiro: Forneceu, tanto no inventário quanto na discussão, diversas informações
sobre o uso de instrumentos cortantes tais como facas e serras. Explicou o que significa afiar
uma faca, como se corta carnes com mais eficiência, mencionou algumas características de
facas construídas com materiais diferentes, tais como aço inox e metais mais baratos.
Explicou ainda algumas condições de conservação de carnes e outros alimentos (posição que
devem ser colocadas nas grandes geladeiras), mostrando uma noção tácita de convecção.
Completamos o raciocínio do estudante com o exemplo das geladeiras convencionais, as
“frost-free” e os aparelhos de ar condicionado e com a idéia de condensação de líquidos
(criação de gelo nos congeladores convencionais). Na consideração das contribuições trazidas
pelo Açougueiro foi possível desenvolver a idéia de gradiente de temperatura, comparando
um sistema de refrigeração artificial e a variação da temperatura num espaço geográfico. Por
exemplo, quando nos deslocamos de uma parte mais alta para as proximidades de um rio, lago
ou várzea num dia frio ou muito quente, no qual há um gradiente de temperatura, que pode ser
percebido. Discutimos que se trata da variação da temperatura em intervalos infinitesimais do
143
espaço. O gradiente de temperatura significa a direção e sentido em que a função
T
tem a
taxa máxima de variação.
Figura 5 - Figura utilizada para discussão do conceito de gradiente de temperatura em três dimensões. Na
parte superior localiza-se o elemento refrigerador e na face inferior a abertura por onde flui o ar
resfriado.
Trocamos informações com os estudantes, em particular o Açougueiro, que
permitiram organizar idéias como, por exemplo, sobre as grandes geladeiras de frigoríficos e
laticínios nas quais se busca minimizar os gradientes de temperaturas, visando manter a
temperatura uniforme no interior dos instrumentos de congelar e conservar alimentos, ou pelo
menos nas regiões onde ficam armazenados os alimentos. A noção de gradiente de
temperatura iniciou uma discussão, com participação notável dos estudantes, comparadas com
aulas observadas em outras situações, em estágio e atuação docente anterior. Os estudantes se
envolveram na questão da medida da temperatura de um sistema, já que pelo conceito de
gradiente de temperatura, havendo um gradiente, há variação da temperatura de ponto a ponto
do sistema. Estando o instrumento de medida da temperatura (termômetro, termopar, etc.)
localizado em um ponto, poderá registrar um valor pontual da temperatura do sistema, caso
este apresente um gradiente de temperatura.
Outro problema que consideramos, é aquele em que o instrumento de medida não está
em equilíbrio térmico com o sistema (situação que pode ser transiente), mas quando
introduzido no sistema apresentará um gradiente de temperatura, fornecendo uma medida
diferente da temperatura real do sistema. Ou seja, a medida da temperatura vai variar, neste
caso, não apenas em função da variação da temperatura do sistema, mas também devido às
propriedades de transferência de calor do sistema. Um exemplo disto foi dado, e provocando
144
mais discussões e questões dos estudantes, foi a chamada sensação térmica. A sensação
térmica ocorre devido à presença de movimento das massas de ar (ventos) interferindo na
sensação que temos da temperatura, sem que haja mudança nas condições de temperatura do
sistema. Ocorre que o movimento do ar aumenta a taxa de transferência de calor do nosso
corpo (e também dos objetos que podemos sentir tocando, como metais etc), ou seja, eles
perdem calor mais rapidamente do que sem o vento, fornecendo a sensação de que a
temperatura é inferior a temperatura real do sistema, sem que a temperatura deste,
necessariamente diminua.
As contribuições do inventário do estudante ainda poderiam suscitar discussões das
leis da termodinâmica, o que evidentemente, exigiria mais aulas para desenvolvimento.
Caixa de supermercado: Seu inventário e seus comentários contribuíram com
questões sobre o funcionamento do leitor ótico que utiliza para a leitura de códigos de barras.
Primeiro apresentou questões sobre seu funcionamento geral (como funciona?), fornecendo
uma explicação que ela mesma reconhece como insuficiente, fornecida por um técnico da
rede de supermercados em que trabalha, responsável pela manutenção dos aparelhos.
Forneceu ainda questões sobre a diferença de funcionamento dos leitores com espelho e sem
espelho, em que no primeiro caso, a leitura é facilitada, reduzindo-se a dificuldade para
realizar a leitura ótica. Outra questão interessante levantada por essa participante foi quanto à
multiplicidade de aplicações dos lasers, o que segundo ela, dificulta entender o que é LASER,
dado que assume diferentes funções em diferentes situações. Argumentamos que é possível
pensar diferente, imaginando que a multiplicidade de aplicações do LASER pode facilitar a
compreensão dos princípios de funcionamento de diversos aparelhos, uma vez que há o
LASER de comum entre eles, realizando “tarefas” diferentes, mas baseadas no mesmo
princípio físico. Exemplos deste fato permitiu considerar que decifrar um código de barras
manualmente é uma tarefa bastante demorada, enquanto que os dispositivos que utilizam a
leitura opto-eletrônica podem ler 41.000 números por segundo. O princípio básico do LASER
(Light Amplification by Stimulated Emission of Radiaton, ou seja, ampliação de luz por meio
da emissão estimulada de radiações), foi discutido à partir de uma rápida referência a
ressonância em cavidade óptica. O LASER pode ser de vários materiais: rubi, CO
2
, argônio,
criptônio, vapor de metais, dentre outros. Ele é possível quando um átomo é excitado
suficientemente com energia:
fhE
=
145
onde
h é a constante de Planck e f a freqüência. Neste caso Elétrons no seu estado
fundamental são lançados para a sua última camada de valência (seu estado excitado)
deixando uma lacuna. Ao retornar a essa lacuna (não necessariamente o mesmo elétron) é
emitido um fóton. Quando se obtém um número maior de átomos em estado excitado do que
em estado fundamental (inversão de população), ocorre a amplificação da emissão espontânea
de fótons (que ocorre naturalmente o tempo todo em função da incidência de energia sobre os
átomos). Assim os átomos “vizinhos” passam a receber energia e a emitir fótons estimulados
pelos primeiros, numa espécie de efeito cascata. Este efeito é possível quando se tem fótons
emitidos por estímulo interagindo com os átomos, constantemente. Por isso esse efeito tem de
ser reproduzido no interior de cavidades refletoras e alinhadas para que confine luz durante
certo tempo para alimentar a emissão estimulada.
Ajudante de cozinha: Seu inventário contribuiu com noções tácitas sobre relações
entre pressão, temperatura e tempo de cozimento numa panela de pressão. Participou da
discussão, inclusive interagindo com outros participantes. Além disso, suscitou a problemática
de hormônios utilizados na pecuária. Referente à sua contribuição pôde ser discutido alguns
aspectos físicos da panela de pressão. Nas panelas comuns a água ferve (ao nível do mar onde
a pressão atmosférica é maior, conforme já havíamos discutido no primeiro momento) a
100
o
C. Quando colocamos água numa panela de pressão, fechamos a sua tampa e a
colocamos no fogo, ela recebe energia que é transferida para a água que está em contato com
as paredes da panela. Se considerarmos o ar confinado dentro da panela como um gás ideal,
podemos escrever uma equação da lei dos gases ideais:
nTpV
=
onde
p
é a pressão, V é o volume, n é uma constante dependente da massa de ar e
T
a
temperatura. O sistema de unidades considerado foi sempre o SI. Assim temos que
V é
constante, caso contrário significa que a panela explodiu.
n é constante, pois não há massa
saindo ou entrando na panela até que ela atinja seu limite de pressão e comece a expelir vapor
pela válvula. Porém,
T
está aumentando, como temos uma igualdade,
p
tem que aumentar,
com isso a água passa a ferver a temperaturas acima de 100
o
C. Geralmente esse valor é
aumentado cerca de 20% numa panela de pressão que atinja 2 atm de pressão em seu interior,
ou seja, consegue-se um cozimento mais rápido pois obtém-se temperaturas maiores do que é
possível com panelas convencionais sujeitas apenas a pressão atmosférica (cerca de 1 atm,
variando com a altitude). Os estudantes ainda fizeram considerações a respeito de situações
146
em que tomaram conhecimento da explosão de panelas que estavam com suas válvulas
obstruídas.
Para exemplificar a possibilidade de generalização, buscando níveis mais elevados no
sistema de generalizações que caracteriza o conhecimento científico, mencionamos o modelo
de Van Der Waals como um modelo que explica melhor o comportamento dos gases reais.
Argumentamos que a equação dos gases ideais é válida dentro de determinadas condições e
mesmo assim de forma aproximativa. Mas precisamente, a equação dos gases ideais não leva
em conta a interação entre as moléculas constituintes dos gases. A equação de Van Der Waals
leva em conta, pelo menos em primeira aproximação, o efeito da componente repulsiva na
interação entre as moléculas, que é devida ao tamanho finito das moléculas, e a componente
atrativa, devido a forças intermoleculares (provavelmente os estudantes estudaram essas
forças na disciplina de Química).
Na pratica isso significa que para
T
muito pequeno ou
p
muito grande a equação que
melhor descreve os fenômenos é a equação de Van Der Waals que também não é exata, mas
inclui parâmetros que permitem um nível mais elevado de generalização que a equação dos
gases ideais não pode considerar.
()
RTbv
v
a
P =
+
2
onde
P é a pressão, a e b são constantes de Van Der Walls da substância considerada, v é o
volume de um mol do gás,
R
é a constante análoga a n na equação dos gases ideais e
T
a
temperatura.
No inventário deste estudante, a vaporização de líquidos e tensão superficial em
processos de cozimento também foram temas recorrentes, apresentados, sob o formato de
situações de trabalho.
Recepcionista de academia de ginástica: Contribuiu com questões sobre a caloria
dos alimentos e a queima de calorias nas atividades físicas da academia de ginástica. Queria
saber como calcular a queima de calorias em função dos tipos de exercícios físicos. Com
relação a esse problema levantado pela estudante, foram discutidas formas de medida da
quantidade de caloria dos alimentos (princípio do calorímetro). Isso a levou a pensar em como
se medem as calorias perdidas nas diversas modalidades de exercícios físicos. Esta questão
não foi respondida porque a interpretamos como um indício de necessidades de novos
conhecimentos e motivadora de aprendizagem. Porém acompanhamos o raciocínio da
estudante, que buscava imaginar o “princípio” do calorímetro para aplicação nas práticas de
147
exercícios físicos como método de medida de calorias consumidas. Isso seria, aparentemente
simples, uma vez que, idealmente, podemos medir a energia necessária para movimentar
determinados instrumentos de ginástica. A questão colocada, e que se tornou o ponto crítico
dessa discussão, foi sobre a dificuldade em se medir, nesse processo, o consumo de energia
(glicose e a queima de ATP – adenosina tri-fosfato) nos processos internos como a respiração
e o funcionamento cerebral. Essa questão, embora completamente resolvida em textos
específicos de biofísica, não foi desenvolvida, uma vez que optamos por mantê-la suspensa
sugerindo à estudante que retomasse tal problema posteriormente nas aulas de Física e
Biologia com forma de suscitar novas oportunidades de discussão e aprendizagem a partir
desse problema.
No segundo momento, estas e outras contribuições (de teor semelhante) de outros
participantes, muitas vezes em forma de questões, mas também trazendo conceitos cotidianos,
nos possibilitou considerar com maior segurança e correspondência por parte dos estudantes,
idéias da Física que, embora enfatizada nas propostas oficias (Parâmetros Curriculares
Nacionais), parecem estar distantes dos estudantes trabalhadores, principalmente no Ensino
Médio noturno. São conceitos amplos e outros mais específicos como: Entropia, rendimento
do organismo (quanto se converte em trabalho [movimento interno e metabolismo]),
conservação, refrigeração, qualidade e dureza de materiais (faca), pressão, temperatura e
tecnologias baseadas em princípios da Física.
Ainda que quando as atividades profissionais são olhadas isoladamente possam
parecer pobres em termos de conceitos de Física envolvidos, se comparadas co os conteúdos
propriamente, a diversidade das atividades, se consideradas na sala de aula, como parte de um
todo (a estrutura social do trabalho), potencializa e valoriza cada uma das contribuições de
cada atividade de trabalho, se reconhecidas no coletivo, fornecendo conteúdos para a
abstração em sala de aula saídas das práticas dos estudantes e por isso induzindo ciclos de
questionamentos, novas necessidades de compreensão e conhecimentos, um motivo para a
aprendizagem baseado no interesse pelo conteúdo. Esta foi, de modo geral, uma percepção
que tivemos.
Passado seis meses do desenvolvimento da atividade, buscamos ter uma conversa com
a professora que acolheu nossa proposta cedendo-nos as aulas. Sem que especificássemos do
que se tratava, ela nos respondeu as perguntas que lhes seriam dirigidas: os estudantes se
manifestaram a respeito da atividade, posteriormente? Quais foram as manifestações? E, por
fim, se ela percebeu algo que pudesse indicar que considerar as atividades de trabalho dos
estudantes pode trazer elementos relevantes para o desenvolvimento de aulas de Física.
148
Quanto à primeira questão, a professora relatou-nos que, sem que ela se pronunciasse a
respeito, tendo decorrido duas aulas depois do término da intervenção, os estudantes
sugeriram que ela continuasse as aulas daquele “tipo” (se referindo a intervenção). Segundo
ela, não foram poucos aqueles que aprovaram a forma de interação com a Física a partir de
elementos também vivenciados em atividades de trabalho. A professora nos relatou ainda, que
tem buscado observar tais potencialidades dos estudantes, pelo menos no noturno. Disse que
está buscando gradualmente se inteirar do que fazem os estudantes em suas atividades de
trabalho, pensando em como articular essas informações com conteúdos programáticos de
Física, inclusive nos solicitando informações da intervenção.
Este tipo de atividade em sala de aula não pode dar margem para que se confunda
conhecimentos de Física ligados à situações de trabalho, com conhecimentos tácitos. Isso
levaria a desqualificação do único local onde os indivíduos de origem trabalhadora têm tido
acesso a algum tipo de conhecimento sistematizado, a escola pública. Por isso os conteúdos
não podem ser secundarizados. Nossa ênfase na discussão da intervenção esteve sobre as
conexões com as atividades profissionais e como a partir dessas conexões os estudantes
podem criar novos motivos e, portanto, novos
sentidos pessoais para a aprendizagem de
Física, no sentido de buscar a relação entre
sentido e significação e na ampliação de seus
sistemas de referência, incorporando na sua estrutura os conceitos científicos.
Enfatizamos que o ensino de conteúdos deve ser priorizado por duas razões, uma
teórica e outra empírica: a teórica, conforme discutimos, vem do fato de que a apropriação das
significações objetivas, segundo a abordagem da Psicologia histórico-cultural, por meio da
mediação intencional de outros indivíduos, conduz ao desenvolvimento de funções psíquicas
superiores. (VIGOTSKII, 1988, VYGOTSKY, 2005). A razão empírica é que o acesso ao
conhecimento historicamente produzido tem permitido às elites econômicas revolucionarem
os meios de produção e, contraditoriamente, gerar uma massa de trabalhadores sem domínio,
ou com pouco domínio, do conhecimento empregado na produção das condições de vida do
homem, que se complexificam rapidamente, portanto, os indivíduos de origem trabalhadora
não podem abrir mão da apropriação desse conhecimento, mas sim lutar por ele. A escola
parece ser reconhecida como a única chance desse acesso. Assim, as relações com o saber e
com a produção tendem a serem outras, a demanda de conhecimento a aumentar, pois o
sentido do conhecimento poderá assumir-se nas significações, desfazendo a discordância entre
conteúdo objetivo e conteúdo subjetivo. Não se trata de retroceder a práticas pedagógicas
teoricistas, conteudistas há muito criticadas, mas de superar o pragmatismo e o utilitarismo,
priorizando o conhecimento clássico como produto da práxis humana.
149
Na intervenção, o caminho que realizamos e que nos pareceu produtivo foi a
realização do inventário das atividades de trabalho a de informações coletadas dos estudantes.
As conexões entre conhecimentos de Física presentes em atividades de trabalho e conteúdos
do Ensino Médio podem ser inventariadas inicialmente pelos estudantes, orientados pelos
professores, ao propor esta abordagem a eles, mas deve ser encorajada a autonomia na
realização dessas conexões tão logo o conteúdo comece a ser desenvolvido. Isso não significa
que a partir daí o professor deva abandonar a consideração das conexões, mas poderá ser,
como em nosso caso o foi, um indicativo da necessidade de aprofundá-las em direção a
conteúdos de Física mais avançados.
150
Considerações finais
Os estudantes, enquanto trabalhadores, possuem potencialidades relevantes para a
aprendizagem de Ciências em geral e de Física em particular, que não têm sido levadas em
conta na escola na sua especificidade. Considerar essas potencialidades na sua especificidade
depende de trazermos ao conhecimento da escola elementos concretos do cotidiano dos
estudantes para ajudá-los a ampliar seus saberes e elaborá-los segundo as sistematizações da
Ciência. Isso, a nosso ver, demanda pesquisas e trabalho de campo e foi neste sentido que
buscamos aproximações das situações de trabalho dos estudantes com os conhecimentos de
Física.
Contraditoriamente, em muitos setores de trabalho, no atual contexto de
desenvolvimento econômico, o trabalhador individual se depara com condições nem sempre
favoráveis à reflexão teórica e ao questionamento do saber, ao mesmo tempo em que o
desenvolvimento da Ciência enriquece cada vez mais as possibilidades humanas de interação
entre os homens e entre estes e a natureza.
Segundo nossa análise, nas atividades de trabalho e de estudo, a relação entre
sentido e
significado apresentam-se dissociadas para alguns estudantes, dado que nela diferem seus
motivos de seus objetivos. Neste sentido, para esta relação (
significados e sentido), um Ensino
de Física que mostre aos estudantes uma nova dimensão de sua atividade profissional, se
mostrará potente o bastante também para revelar-lhe outras realidades, “coisas diferentes”
conforme solicitou a empregada doméstica, ou “coisas que ainda não estamos ligados” como
nos disse o trabalhador - fotocopiador. Mas se este Ensino de Física fechar-se nos seus
conteúdos, mantendo uma teoria que preferencialmente é tratada independente das práticas
particulares, poderá parecer aos estudantes como impotente para a realização de sínteses mais
amplas sobre a realidade que os rodeia. As práticas sociais existem antes que se estabeleça o
conhecimento no seu formato social. Portanto, o conhecimento não equivale à essência dos
fenômenos e realidade a que se reporta, existindo independentemente da prática social
humana, mas as habilidades socialmente desenvolvidas, no processo sócio-histórico, são a
151
base para o conhecimento socialmente desenvolvido. Neste sentido, o conteúdo das atividades
profissionais desenvolvidas pelos estudantes pode interessar à escola em geral, e em particular
ao Ensino de Física, como ponto de partida para o desenvolvimento das práticas pedagógicas
que mostrem a relevância do conhecimento escolar para que os estudantes compreendam a
necessidade dele. Fourez (2003) afirma que os jovens exigem uma explicação da importância
social para o que aprendem e argumenta que talvez nós, seus professores, não estejamos
preparados para dar essa resposta.
A consideração de fragmentos do conhecimento de Física presentes nas atividades de
trabalho dos estudantes trabalhadores em aulas de Física, parece ser uma alternativa para um
Ensino mais significativo a essa parcela dos estudantes do Ensino Médio, não apenas porque
pode potencializar ou valorizar sua capacidade de trabalho, mas principalmente porque pode
permitir-lhe atribuir novos
sentidos ao conhecimento de Física, novos motivos para sua
aprendizagem e conduzir à efetividade da aprendizagem.
Neste sentido a abordagem das atividades de trabalho, sob a perspectiva das conexões
com conhecimentos de Física do Ensino Médio, resgata um aspecto da relevância social da
Ciência, que antes da intensificação dos métodos do capitalismo, era uma atividade
compartilhada nos processos de trabalho, mas depois de um intenso processo de
especialização e de compartimentalização, deixou de ser. Trata-se de uma espécie de retorno
às origens da relação trabalho-conhecimento, fundada nos conhecimentos clássicos, nas
significações objetivas que permitiram nosso estágio de desenvolvimento e ampliam o
horizonte prospectivo desse desenvolvimento.
Como vimos, os temas presentes nas atividades de trabalho dos estudantes dão
margem para o desenvolvimento de temas avançados de Física no Ensino Médio, o que parece
ser necessário, inclusive para que possa haver paralelo com o seu cotidiano de trabalho e de
modo geral com a cognição fora da escola.
A possibilidade de se chegar aos conceitos de Física mais gerais, a partir de situações
particulares que os estudantes já vivenciaram no trabalho tem potencial enquanto criadora de
novas necessidades de aprendizagem, o que já representa um avanço, mas ainda deixa
pendente uma importante contrapartida - o papel preponderante do professor tanto na coleta
de informações junto aos estudantes, como na consideração coerente dessas informações em
face dos conteúdos a serem desenvolvidos no Ensino Médio. A intervenção que realizamos,
pareceu mostrar a possibilidade de tal abordagem. No entanto, considerar situações de
trabalho em aulas de Física na perspectiva crítica e como ponto de partida, vinculado à
realidade dos estudantes, para generalizações e não apenas como exemplos ou
152
contextualizações, traz consigo, inevitavelmente, implicações para o trabalho docente. Neste
sentido, cabe ressaltar que na teoria de desenvolvimento e aprendizagem da psicologia
histórico-cultural, a tarefa básica do professor, parceiro mais capaz na interação escolar,
consiste em atuar na zona de desenvolvimento potencial dos estudantes, por meio de
atividades escolares preparadas para guiar os processos de aprendizagem rumo a níveis mais
elevados de desenvolvimento conceitual de forma acessível aos estudantes, por meio da
mediação do professor, abrindo caminho para o alcance de níveis de desenvolvimento
intelectual qualitativamente superiores. Isso é feito por meio do ensino formal dos conceitos
científicos. As atividades precisam ajudar os estudantes a adquirirem novos motivos e
necessidades para aprenderem e dominar efetivamente o conhecimento clássico, socialmente
fixado e significativo.
Neste sentido, nossas análises trouxeram elementos metodológicos que conectam
fragmentos de conhecimentos de Física presentes nas atividades de trabalho dos estudantes
aos conteúdos de Física correspondentes, organizados academicamente. Esses elementos
foram desenvolvidos de forma articulada com elementos para o enfrentamento dos processos
de alienação através da análise da relação entre
significado e sentido de acordo com nosso
segundo objetivo.
Do ponto de vista dos conteúdos em sala de aula, os estudantes trabalhadores contam
com a experiência da práxis do trabalho para vencer o desafio de superar a separação entre
atividade intelectual e manual, ou entre a teoria e a prática. Porém as condições objetivas dos
estudantes trabalhadores os fazem ser mais “imediatistas”, mais preocupados com os
resultados práticos das suas ações. Esta postura precisa ser compreendida, mas também
superada com respostas concretas e não justificativas vagas tais como “serve para a vida” ou
“um dia você vai precisar”. Construir essas respostas concretas dependerá de posturas
epistemológicas e pedagógicas adequadas. Os estudantes precisarão compreender que o tempo
da Ciência não se coaduna com o de soluções de problemas práticos imediatos. O
conhecimento científico depende de um tempo de amadurecimento para servir a isso, o que
não significa que ela (a Ciência) não se destine a solucionar problemas práticos, pelo
contrário, vivemos numa civilização que tem optado por depender da Ciência e a emprega
para a resolução de problemas imediatos na medida em que os conhecimentos são
disponibilizados.
Não se pode negar que a maior parte dos estudantes busca a escola como instituição
mediadora na sua busca por melhores condições de vida e de melhores oportunidades
profissionais. Portanto, para muitos, as atividades profissionais que desempenham são
153
assumidas em caráter provisório. Neste sentido, considerar fragmentos do conhecimento de
Física em tais atividades no Ensino de Física, pode levar com que o estudante encare as aulas
como uma espécie de extensão da jornada de trabalho a qual rejeita de certa forma enquanto
freqüenta a escola. Nesse caso é preciso enfatizar, mais uma vez, que a lógica de organização
dos conceitos pode partir das situações de trabalho, mas devem convergir para níveis mais
elevados de generalização, ou seja, dirigir-se para a lógica de organização de conhecimento da
Física. Além disso, essa contradição, que toma de certa forma, a freqüência à escola como
extensão de uma jornada de trabalho que muitas vezes é rejeitada precisa ser repensada dado
que dela depende a re-significação da escola, para os estudantes, bem como do conhecimento
que a escola veicula, além da própria atividade de trabalho, ambas articuladas à crítica
necessária ao avanço social. Mas para repensarmos esta contradição é preciso um
conhecimento profundo sobre as condições objetivas e subjetivas em que os estudantes
trabalhadores buscam o conhecimento por intermédio da escola e sua relação concreta com
esse conhecimento, o que demanda constante esforço de pesquisa.
Precisamos ressaltar que, no caso da intervenção que realizamos, acabamos
desenvolvendo uma miscelânea de conteúdos de Física suscitados a partir dos inventários e
das discussões com os estudantes. Evidentemente, em termos práticos, isso não ajuda a
organizar o desenvolvimento dos conteúdos de forma “programática”, mas o inventário das
atividades profissionais dos estudantes de uma turma pode ser consultado ao longo do ano
letivo bem como reconstruído, permitindo uma melhor organização do estabelecimento das
conexões em função do planejamento dos professores.
Um ponto que percebemos na intervenção, e que merece ser destacado como uma
limitação a ser superada nesse tipo de abordagem, é que ao se empolgarem com a abordagem,
os estudantes passam a fornecer sucessivos problemas que reconhecem em suas atividades de
trabalho para que o professor resolva e eles passivamente passam a fazer considerações tais
como “interessante”, “que legal” etc. Evidentemente não é isso que pretendemos e
reconhecemos que esta foi uma falha no planejamento da intervenção. Em função do tempo
relativamente reduzido que tivemos para o desenvolvimento da intervenção, optamos por
priorizar a demonstração das conexões, para atender ao protocolo de observação. Por isso
ressaltamos a importância de se buscar dinâmicas em que os estudantes, depois de terem
desenvolvido os conceitos, estabeleçam as conexões e resolvam os problemas sugeridos nas
conexões com o máximo de autonomia possível.
Se, por um lado, as conexões entre o conhecimento de Física do Ensino Médio e
atividades de trabalho parecem ser possíveis e criadoras de oportunidades de aprendizagem,
154
por outro lado, esta abordagem só terá sentido enquanto canal de trânsito entre as condições
objetivas dos estudantes trabalhadores e as idéias da Física.
Criar novas necessidades de aprendizagem implica também dar condições para que
essas necessidades sejam atendidas, e nesse caso, o que está em jogo novamente passa pelo
vasto campo conceitual da Física, capaz de promover o desenvolvimento intelectual dos
estudantes além de potencializar sua relação com a realidade, em particular, a forma de
ensiná-la e seu significado fixado socialmente, além das outras disciplinas do Ensino Médio e
o acesso à Educação Superior.
Em nossa análise, um estudante bem sucedido será aquele que for capaz de fazer
coincidir
sentido pessoal da atividade de estudo com o significado socialmente fixado para a
atividade de estudo, sendo que esta coincidência depende, além das condições objetivas a que
os estudantes estão sujeitos, da conversão de motivos compreensíveis em motivos eficazes,
pois este terá melhores condições de incrementar seus sistemas de referência e a sua
aprendizagem dos conhecimentos sistematizados da Ciência.
Este processo depende de elementos metodológicos, que nesta pesquisa puderam ser
derivados de procedimentos como a análise da construção dos inventários e da análise direta
da atividade de trabalho dos estudantes, que tenham como objetivo principal permitir re-
orientações de ensino, no caso, ensino de Física, para níveis de aprendizagem potencial
adequados. Isso significa evitar orientar o ensino para uma etapa de desenvolvimento já
realizada, o que é ineficaz do ponto de vista do desenvolvimento geral dos estudantes. “O
único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento” (VIGOTSKII, 1988, p.114). Isso
implica em não repetir procedimentos visando à níveis de desenvolvimentos já elaborados e
completos, o que contribui muito pouco para o desenvolvimento geral (VIGOTSKII, 1988),
mas dirigir esse desenvolvimento para níveis qualitativamente superiores por meio das
relações conceituais e generalizações que o conhecimento de Física permite.
Quanto a nosso segundo objetivo (buscar elementos para uma melhor articulação das
questões metodológicas do ensino de Física com a necessidade de enfrentamento dos
processos de alienação...), a análise das entrevistas e visitas a partir das categorias
sentido
pessoal
e significação objetiva, desenvolvida principalmente na seção 4.2 atende a ele quando
delineia dois grupos de estudantes que mantém diferentes relações com o saber que a escola
veicula e com a escolarização e liga esta análise a situações concretas de trabalho relacionadas
a conhecimentos de Física, ressaltando a necessidade de se induzir novos
sentidos e
necessidades para a aprendizagem a partir de novas relações com o conhecimento de Física.
Além disso, as conexões entre conceitos cotidianos ou situações de trabalho com
155
conhecimentos de Física sistematizados, contribui para a fragilização dos processos de
objetivação do trabalho, uma vez que os conhecimentos provenientes das situações de
trabalho ganharam um novo sistema de referência, o científico, com maior poder de
penetração na sua realidade de trabalho, ampliando assim suas possibilidades de posturas
autônomas. Neste ponto recuperamos o sentido da crítica, baseada na dialética materialista
histórica, que desenvolvemos principalmente na introdução e nas primeiras seções do capítulo
1, bem como da raiz epistemológica do referencial teórico deste trabalho: relacionar
elementos da formação dos indivíduos com o contexto de trabalho é importante para o
desenvolvimento sócio-histórico, mas no capitalismo, isto requer vigilância crítica e ações
concretas transformadoras.
156
Referências bibliográficas
ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. G. Ensino Médio: múltiplas vozes. Brasília: UNESCO,
2003.
ANGOTTI, J. A. P. Conceitos Unificadores e Ensino de Física.
Revista Brasileira de Ensino
de Física, São Paulo, v. 15, n. 4, p. 191-198, 1994.
ARAÚJO, M. J.
Trajetória familiar e escolar dos trabalhadores diretos e terceirizados de
uma fábrica de grande automação. 2002. 267 f. Dissertação (Mestrado em Educação) -
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2002.
BANCO MUNDIAL.
La Enseñanza Superior: las lecciones derivadas de la experiencia.
Washington, D.C.: Banco Mundial, 1995.
BASSO, I. S. Significado e Sentido do Trabalho Docente.
Cadernos Cedes, Campinas, n. 44,
p. 19-32, 1998.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
32621998000100003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 jan. 2007.
BERGAMO, G. A.
Fundamentos teóricos do método de resolução de problemas
ampliados. 2006. 192f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência) – Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus Bauru, 2006.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação - Câmara do Ensino Básico. Parecer
CEB n° 15/98
às Diretrizes Curriculares Para o Ensino Médio. Brasília: Conselho de Educação Nacional,
1998. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=content&task=view&id=78&Itemid=221>.
Acesso em: 30 jan. 2007.
BRASIL. Ministério da Educação.
Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio.
Parte III – Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias. Brasília: 1999. Disponível
em:<http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=558&Itemid=55
3 >. Acesso em: 20 jan. 2007.
BRASIL. Ministério da Educação.
PCN+ Ensino Médio: orientações educacionais
complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais; Ciências da natureza, matemática e
suas tecnologias. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002.
BRASIL. Ministério da Educação. Diretoria de Avaliação para Certificação de Competências
(DACC).
Relatório final do ENEM 2003. Brasília: 2004. Disponível em:
<www.inep.gov.br/download/
enem/2004/relatorio_final_ENEM2003.pdf>. Acesso em: 12
dez. 2006.
157
BRASIL. Ministério da Educação.
Lei n
o
9394, de 20/12/1996. Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Brasília, 1996. Disponível em: <www.mec.gov.br>. Acesso em: 19 jan.
2007.
BRAVERMAN, H.
Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
CHAUÍ, M.
Convite à filosofia. 4. ed. São Paulo: Ática, 1995.
CHAUÍ, M.
O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.
DELORS, J. (Org).
Educação um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez, Brasília:
MEC/UNESCO, 1998.
DUARTE, N. Educação e moral na sociedade capitalista em crise. In: Candau V. M. (Org.).
Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 175-189.
FIORENTINI, D.; LORENZATO, S. Investigação em Educação Matemática: percursos
teóricos e metodológicos. Campinas, SP: Autores Associados, 2006.
FOUREZ, G. Crise no ensino de Ciências?
Investigações em Ensino de Ciências, Porto
Alegre: v.8, n.2, ago. 2003. Disponível em: <http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/>. Acesso
em: 15 mar. 2006.
FRANCO, M. C; TREIN, E. O percurso teórico e empírico do GT trabalho e educação: uma
análise para debate.
Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 24, p. 140-1264,
2003.
FRIGOTTO, G.
A produtividade da escola improdutiva. São Paulo: Cortez, 1984.
FRIGOTTO, G.
Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1995.
FRIGOTTO, G. O Enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In:
FAZENDA, I. (Org.).
Metodologia da pesquisa educacional. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1997.
p. 69-90
GARCIA, N. M. D. A Física escolar presente nas atividades de trabalhadores industriais. In:
XIV Simpósio Nacional de Ensino de Física, 2001, Natal. Caderno de Resumos. Sociedade
Brasileira de Física, 2001. p. 5.
GARCIA, N. M. D. Afinal, que assuntos da Física escolar são lembrados por trabalhadores ao
exercerem suas atividades em um processo produtivo industrial? In:
VIII Encontro de
Pesquisa em Ensino de Física, 2002, Águas de Lindóia. Atas. São Paulo: Sociedade
Brasileira de Física, 2002. p. 1-20.
158
GARCIA, N. M. D. Física escolar e processo produtivo: investigando as possíveis conexões.
In:
XIII Simpósio Nacional de Ensino de Física, 1999, Brasília. Caderno de Resumos.
Sociedade Brasileira de Física, 1999. p. 96.
GARCIA, N. M. D.
Física escolar, Ciência e novas tecnologias de produção: o desafio da
aproximação. 2000. 276 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da USP
– FEUSP, São Paulo, 2000.
GONÇALVES, L.R; PASSOS, S.R.M.M.S; PASSOS, A. M. Novos rumos para o ensino
médio noturno: como e por que fazer?
Ensaio: Avaliação das Políticas Públicas da Educação,
Rio de Janeiro, v.13, n.48, p.345-360, 2005.
GRAMSCI, A.
Os intelectuais e a organização da cultura. 3. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1989.
HARACEMIV, S. M. C.
Química na educação de adultos: uma proposta de articulação do
conteúdo escolar do Centro Supletivo com o conteúdo de cotidiano. 1994. 248 f. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 1994.
HOBSBAWN, E.
Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
HONG, P.C; QUINN, P. V. ; LUDING, S. Reverse Brazil nut problem: competition between
percolation and condensation.
Physical Review Letters. Estados Unidos: Sociedade
Americana de Física, 2001, v. 86.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE).
Pesquisa nacional
por amostra de domicílios 2003.
Brasília, 2004. Comunicação Social em 29 de setembro de
2004. Disponível
em:<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=226
&id_pagina=1> . Acesso em: 10 nov. 2006.
KLEIN, L. R. Trabalho, educação e linguagem.
Educar. Curitiba: Editora UFPR, 2003. p. 15-
42.
KOSIK, K.
Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
KUENZER, A. Z.
Pedagogia da fábrica: as relações de produção e a educação do
Trabalhador. São Paulo: Cortez: Autores associados, 1985.
KUENZER, A.Z. Educação, linguagens e tecnologias: as mudanças no mundo do trabalho e
as relações entre conhecimento e método. In: KUENZER, A. Z.
Cultura, linguagem e
subjetividade no ensinar e aprender
. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 135-160.
LEONTIEV, A. N.
O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978a.
159
LEONTEV, A. N.
Activity, consciousness, and personality, 1978b. Disponível em:
<http://lchc.ucsd.edu/MCA/Paper/leontev/index.html> Acesso em: 20 abr. 2006.
LEONTIEV, A. N. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In:
VIGOTSKII, L. S. et al.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo:
Icone/EDUSP, 1998. p. 59-83.
LEVIN, J.
Estatística aplicada a Ciências humanas. 2. ed. São Paulo: Harba, 1987.
LIVINGSTONE, D. W.; SAWCHUK, P. H.
Hidden knowledge: organized labour in the
information age. Toronto: Garamond, 2003.
LUDKE, M.; ANDRÉ, M.
Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo, EPU,
1986.
MACHADO, L. R. de S. Mudanças tecnológicas e a educação da classe trabalhadora. In:
MACHADO, L. R. et al.
Trabalho e educação. Campinas: Papirus; Cedes; São Paulo: Ande,
Anped, 1992.
MARX, K.
O capital: critica da economia política. Tradução: Reginaldo Sant'Anna 2. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971a. Livro 1, v.1.
MARX, K.
Crítica do programa de Gotha. Porto: Portucalense Editora, 1971b.
MARX, K.
Salário, preço e lucro. Obras escolhidas de Marx e Engels publicada em 1953,
transcrito da edição em português das pela Ediciones en Lenguas Extranjeras, Moscou.
Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/marx/1865/06/salario/sal3.htm#k12>.
Acesso em: 05 jan. 2007
MARX, K.; ENGELS, F.
A ideologia alemã (I – Feuerbach). São Paulo: Editora Hucitec,
1984.
MEGID NETO, J. Pesquisa sobre ensino de física do 2º grau no Brasil - concepções e
tratamento de problemas em teses e dissertações. In: NARDI, R. (Org.).
Pesquisas em ensino
de física. São Paulo: Escrituras, 1998. p. 5-20.
PACHECO, D.; MEGID NETO, J.
Catálogo de teses e dissertações sobre ensino de
Ciências no Brasil: referências bibliográficas. Campinas, Faculdade de Educação –
UNICAMP, 1996.
PAIVA, V.
Produção e qualificação para o trabalho: uma revisão da bibliografia
internacional. Rio de Janeiro: UFRJ/IEI, 1989.
RABONI, P. C. A. A Fabricação de um óculos: resgate das relações sociais, do uso e da
produção de conhecimento no trabalho. In: NARDI, R. (Org.).
Pesquisas em ensino de
Física.
São Paulo: Escrituras, 1998. p. 87-93.
160
RABONI, P. C. A.
A fabricação de um óculos: resgate das relações sociais, do uso e da
produção de conhecimento no trabalho. 1993. 160 f. Dissertação (Mestrado em Educação) -
Faculdade de Educação, UNICAMP, Campinas, 1993.
RATNER, C. Three approaches to cultural psychology: a critique.
Cultural Dynamics. n 11,
p. 7-31, 1999. Disponível em: <http://www.humboldt1.com/~cr2/three.htm>. Acesso em: 1
abr. 2007.
RIBEIRO, M. Trabalho-educação numa perspectiva de classe: apontamentos à educação dos
trabalhadores brasileiros.
Trabalho & educação, Belo Horizonte, n 2, p. 102-126, jul / dez.
2005.
ROBILOTTA, R. M. O cinza, o branco e o preto: da relevância da história da ciência no
ensino da Física.
Cadernos Catarinenses de Ensino de Física. Florianópolis: Departamento
de Física da Universidade Federal de Santa Catarina, n. 5 (especial), 1988, p.7-22.
RODRÍGUEZ, A.; HERRÁN, C.A.
Educação secundária no Brasil: chegou a hora.
Washington: Banco Interamericano de Desenvolvimento/Grupo Banco Mundial. 2000.
SALM, C.
Escola e trabalho. São Paulo: Brasiliense,1980.
SÁNCHEZ GAMBOA, S. A dialética na pesquisa em Educação: elementos de contexto. In:
FAZENDA, I. (Org.).
Metodologia da pesquisa educacional. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1997.
p. 91-115.
SHIROMA, E. O.; CAMPOS R. F. Qualificação e reestruturação produtiva: um balanço das
pesquisas em educação.
Educação & Sociedade, Campinas, n 61, 1997, p. 13-35.
SOARES, E. S.
Ensino de Ciências e de Matemática para pequenos trabalhadores. 1992.
203 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, UFMG, Belo
Horizonte, 1992.
THIOLLENT, M. J. M.
Crítica metodológica, investigação social e enquête operária. São
Paulo: Polis, 1981.
TREVISAN, N. F.
A teoria e a prática no trabalho dos eletricistas e encanadores: um
estudo sobre a apropriação do conhecimento. 2003. 191 f. Dissertação (Mestrado em
tecnologia) - Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná, CEFET – PR, 2003.
VYGOTSKY, L. S.
A formação social da mente. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
VIGOTSKII, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na Idade Escolar. In:
VIGOTSKII, L.S. et al.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 2. ed. São Paulo:
Ícone/Edusp, 1988. p. 103-117
VYGOTSKY, L. S.
Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
161
VYGOTSKY, L. S. The gênesis of higher mental functions. In: WERTSCH, J. (org.),
The
concept of activity in soviet psychology. New york: Sharpe, 1981.
162
Apêndices
163
Apêndice A - Questionário
Por favor, preencha os campos abaixo e responda as questões
solicitadas, fique a vontade para responder. Essas informações se
destinam à pesquisa acadêmica e não serão utilizadas para outra
finalidade. O seu nome e o de sua Escola serão mantidos em sigilo.
Havendo necessidade, por favor, utilize o verso da folha. Qualquer
dúvida pergunte ao pesquisador.
Nome: _______________________________________Série: ______
Você está trabalhando atualmente ou já trabalhou?
Sim, trabalho ou já trabalhei Não, nunca trabalhei.
Sobre seu trabalho atual
, por favor, preencha:
Local: ___________________________________________________
Função: _________________________________________________
Tempo de serviço: _________________________________________
Sobre seu trabalho anterior
, por favor, preencha:
Local: ___________________________________________________
Função: _________________________________________________
Tempo de serviço: _________________________________________
Descreva da forma mais completa que puder as atividades que
desenvolve no seu trabalho atual
, ou caso não esteja trabalhando
atualmente, as atividades desenvolvidas no seu emprego anterior
.
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
164
Apêndice B - Protocolo de entrevista “semi-aberta”
Obs: Foi assegurado aos entrevistados:
As informações prestadas somente serão utilizadas para a pesquisa.
Serão utilizadas em publicações apenas as transcrições, suprimindo trechos onde
apareçam nomes e outras informações que permitam a identificação dos
entrevistados e outras pessoas citadas.
Autorização da escola para o convite e para a utilização de espaço.
Participação facultativa.
1)
Onde você trabalha?
a.
Fazendo exatamente o quê?
b.
Há quanto tempo nessa função?
2)
Trajetória escolar e profissional: influências mútuas.
a.
Sempre estudou à noite?
3)
Pensando nas suas atividades no trabalho: o que você precisa saber para exercer sua
função?
4)
Fale um pouco sobre como você aprende / aprendeu essa função. Colegas / familiares/
Cursos? No próprio trabalho, sozinho?....
5)
Aprender na escola e no trabalho é diferente? Igual? Como você vê isto?
6)
O que mais dificulta estudar e o que mais favorece estudar, na escola e no trabalho?
7)
O conhecimento da escola e do seu trabalho são diferentes? Comente.
8)
Como você acha que aprende / compreende melhor um assunto? Com o professor
ensinando, com colegas, outro curso fora da escola, no trabalho, praticando?
9)
Você acha que falta tempo para estudar, ou não?
10)
Na sua opinião, para que serve a escola?
11)
Qual a importância do Ensino Médio para você? Porque está cursando? O que busca
na escola?
165
12)
O que gostaria mais na escola?
a.
Que os assuntos ensinados na escola de forma mais próximos do que você lida
no seu dia-a-adia, inclusive do trabalho;
b.
Que os assuntos fossem diferentes do seu dia-a-dia: outras, outros tipos de
problemas, questões, etc.
c.
Um pouco de cada? Comente.
13)
Será que o seu trabalho / função pode ajudar você ou outros colegas a aprender coisas
na escola?
14)
O que pretende depois do Ensino Médio? Você gosta de sua profissão atual (do que
faz)?
15)
Você já ficou sem emprego? (desempregado) a que você atribui isso?
16)
Sua atividade profissional vem exigindo maior qualificação? Quais? A que você
atribui isto?
17)
Você acha essa qualificação necessária? Por que?
18)
O que você mudaria no seu trabalho?
19)
O que você mudaria na sua escola / turma / professores?
20)
Você se lembra de ter tomado alguma decisão importante, ou mesmo que considera
banal, e que tenha levado em consideração algum conhecimento científico para isso?
Pode me contar como foi? Lembra de onde adquiriu esse conhecimento?
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo