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FACULDADES DE VITÓRIA – FDV
MESTRADO EM DIREITOS E GARANTIAS
CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS
ALINE MEDEIROS VASCONCELOS VALENTIM
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
NO BRASIL
VITÓRIA
2007
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1
ALINE MEDEIROS VASCONCELOS VALENTIM
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO
BRASIL
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado em Direitos e Garantias Fundamentais
das Faculdades de Vitória, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Mestre em Direitos e
Garantias Constitucionais Fundamentais, na área
de concentração em direitos constitucionais
fundamentais.
Orientador: Professor Doutor Daury César Fabriz
VITÓRIA
2007
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2
ALINE MEDEIROS VASCONCELOS VALENTIM
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO
BRASIL
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________
Prof. Doutor Daury César Fabriz
Orientador
____________________________________
Prof. Doutor Carlos Henrique Bezerra Leite
____________________________________
Prof. Doutor Bruno Wanderley Júnior
Vitória, 08 de março de 2007.
3
Às pessoas que mais amo: José
Márcio e Rafael, marido e filho,
respectivamente, meus pais, Celso e
Maria Inês, e meu irmão Rodrigo.
4
AGRADECIMENTOS
Chegou o momento de agradecer com sinceridade a todas aquelas pessoas que, de
alguma forma, seja com palavras de carinho e incentivo, seja com um gesto amigo,
contribuíram para o resultado final deste trabalho. Mas não poderia deixar de
agradecer especialmente a algumas pessoas:
Aos melhores pais do mundo, Celso e Maria Inês, que me apoiaram e me
incentivaram em todos os momentos e nunca deixaram de acreditar em mim. e,
obrigada por todos os dias que cuidou do meu filho com tanto carinho, nas horas em
que mais precisei. Sem a sua dedicação e atenção incondicionais, não seria possível
concluir esta pesquisa.
A JoMárcio, meu grande amor, pelo incentivo em tudo o que faço, por estar ao
meu lado nas horas mais importantes de nossas vidas. Obrigada, principalmente,
pela sua compreensão, pelas palavras de apoio, pela paciência, mesmo nos
momentos de minha ausência.
Ao pequeno Rafael, minha grande riqueza, que apesar do seu um ano de vida,
soube compreender a minha ausência em vários momentos, mas com o seu olhar
iluminado, me deu forças para não desistir.
À amiga Bianca, que com sua permanente disponibilidade para troca de idéias e
debates, em muito contribuiu para o resultado do presente trabalho. Obrigada pela
sua generosidade, pelos livros emprestados e pela amizade tão sincera.
Aos professores do Mestrado, em especial, ao Professor Doutor Daury César Fabriz,
pela atenção dispensada e pelo conhecimento transmitido durante a confecção
deste trabalho.
Aos funcionários da biblioteca da FDV, sempre dispostos a ajudar.
Aos colegas da Vara Cível da Justiça Federal, especialmente ao colega
Leonardo, pelos debates e trocas de idéias.
Às colegas professoras, Heloísa Helena e Andréia, pelo aulio na escolha do tema,
objeto da pesquisa. Jamais irei esquecer do apoio de vocês.
Agradeço, por fim, aos colegas de Mestrado, com carinho especial, Elsa e Sofia,
pelos conselhos, pelas grandes reflexões em classe, pelo aprendizado
compartilhado e pela amizade que levo para toda a vida.
Obrigada a todos vocês!
5
“Só quem não pensa está imune à contradição e ao erro.
Eventuais descaminhos, equívocos, de suposição na
análise científica, foram muito mais férteis para o
progresso da ciência do que certas verdades, irrelevantes
pela sua superficialidade. Não passa de preconceito
estabelecer uma separação absoluta entre verdade e erro
das teorias, inclusive das teorias jurídicas. É até preferível
um erro que decorra de uma tentativa ousada e
comprometida com uma construção teórica grandiosa a
uma verdade elementar e superficial”.
José Souto Maior Borges
6
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar o tratamento dispensado pelo atual
sistema constitucional brasileiro à tutela dos direitos humanos, com enfoque na
problemática da inserção, em nosso ordenamento vigente, das normas e garantias
veiculadas em tratados e convenções internacionais que versam sobre os mesmos.
A partir do estudo das modificações implementadas pela Emenda Constitucional
45/2004, buscou-se demonstrar que a mudança introduzida no texto constitucional,
no que se refere à incorporação do direito internacional ao pátrio, embora decorrente
da constante e crescente preocupação com a atribuição de maior eficácia aos
mecanismos de proteção dos direitos humanos, pouco ou nada contribuiu para a
solução do problema da efetividade de tais direitos. Longe de representar obstáculo
enfrentado exclusivamente pelo sistema nacional, a questão da efetividade da tutela
destes direitos é deficiência verificada em âmbito mundial, que, apesar de contar
com moderno e avançado aparato normativo, ainda se depara com uma tímida
aplicação pelas cortes responsáveis por assegurar sua observância.
Palavras-chave: direitos humanos, eficácia, efetividade, emenda constitucional,
tratados internacionais.
7
ABSTRACT
This work intends to analyze how the Brazilian constitutional system handles the
protection of human rights, focusing on the inclusion in our current legislation of the
rules and guarantees issued by international treaties and conventions that deal with
this matter. Based on the study of the modifications implemented by 45/2004
Amendment, we seek to demonstrate that the changes concerning the incorporation
of international rights into the national law, which were inserted in the constitutional
text in order to fulfill a growing preoccupation with the efficiency of the mechanisms
for the protection of human rights, contributed little or nothing to the solution of the
problem of the effectiveness of those rights. Far from representing an obstacle only
to our system, the low effectiveness of the protection of human rights is a deficiency
noticed worldwide. Despite the modern and advanced legal apparatuses, the courts
responsible for ensuring the observance of those rights are still applying them very
timidly.
Keywords: human rights, efficiency, effectiveness, Amendment, International
treaties.
8
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Art.(s) artigo(s)
CF Constituição Federal
CF/88 Constituição Federal de 1988
EC Emenda Constitucional
j. julgado em
Min. Ministro
RE Recurso Extraordinário
Rel. Relator
STF Supremo Tribunal Federal
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
1 O CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS ........................................................ 16
1.1 A DELIMITAÇÃO TERMINOLÓGICA .......................................................... 16
1.2 DOS DIREITOS NATURAIS À CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS
DIREITOS HUMANOS ................................................................................. 26
2 O SURGIMENTO DOS ESTADOS CONSTITUCIONAIS E A TUTELA DOS
DIREITOS HUMANOS ...................................................................................... 39
2.1 AS ORIGENS DA TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS: UMA
ABORDAGEM HISTÓRICO-COMPARATIVA DO SURGIMENTO DO
ESTADO DE DIREITO E SUA EVOLUÇÃO PARA O ESTADO
CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICO ......................................................... 39
2.2 AS DEMOCRACIAS MODERNAS E A TUTELA DOS DIREITOS
HUMANOS. .................................................................................................. 54
3 OS SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS E A RELATIVIZAÇÃO DAS SOBERANIAS NACIONAIS ............ 66
3.1 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DA RUPTURA À
RECONSTRUÇÃO ...................................................................................... 66
3.2 O SISTEMA DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS: A COMPLEMENTARIDADE DOS SISTEMAS GLOBAL E
REGIONAIS ................................................................................................. 73
3.2.1 O sistema global e os instrumentos internacionais de proteção .......... 75
3.2.2 O sistema regional interamericano de direitos humanos ...................... 81
3.3 O CONCEITO DE TRATADOS INTERNACIONAIS .................................... 85
3.4 AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO INTERNACIONAL E DIREITO
INTERNO.. ................................................................................................... 89
3.5 A REDEFINIÇÃO DA NOÇÃO TRADICIONAL DE SOBERANIA
ABSOLUTA. ................................................................................................. 94
4 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA
JURÍDICO BRASILEIRO .................................................................................. 97
4.1 A SUPER-RIGIDEZ DA ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988 COMO
INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS .................. 98
4.2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O SISTEMA BRASILEIRO DE
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ................................................. 106
4.3 A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA SOBRE O CONFLITO ENTRE
TRATADOS INTERNACIONAIS E NORMAS INTERNAS: UMA CRÍTICA À
TRADIÇÃO CONSERVADORA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ... 115
5 A EFETIVIDADE DO MODELO CONSTITUCIONAL APÓS A EMENDA
45/2004 ........................................................................................................... 122
10
5.1 A EFICÁCIA DAS NORMAS DE DIREITOS HUMANOS ........................... 123
5.2 A EFETIVIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL 45/2004 NA
PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS ................................................. 126
5.3 OS DESDOBRAMENTOS DO PARÁGRAFO 3º ACRESCENTADO PELA
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004 ................................................ 131
5.3.1 Poder de emenda dos tratados internacionais de direitos humanos e o
direito intertemporal ............................................................................................. 131
5.3.2 Os tratados internacionais de direitos humanos e as cláusulas pétreas
....................................................................................................................138
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 141
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 143
11
INTRODUÇÃO
A evolução da tutela dos direitos humanos é fenômeno contemporâneo ao processo
de construção e sedimentação dos Estados de Direito. Tal proteção surge, inclusive,
como justificativa legitimadora da criação dos Estados Constitucionais e da
manutenção das democracias modernas.
No Brasil não foi diferente. Acompanhando a tendência mundial, o Estado brasileiro
foi incorporando e aperfeiçoando em seus textos constitucionais mecanismos de
defesa na observância dos direitos básicos do homem, sempre voltados a conferir
maior eficácia às normas veiculadoras destas garantias, ampliando as esferas
tuteladas.
Com intuito de atribuir maior eficácia ao plano normativo, a EC 45/2004, surge
como resposta à suposta deficiência constatada no texto constitucional de 1988, no
que se refere à inserção dos tratados internacionais que versem sobre direitos
humanos no ordenamento pátrio.
Isso porque, em sua redação original, a Constituição Federal de 1988 não foi
explícita quanto ao meio de ingresso e hierarquia das normas internacionais
protetivas, o que levou a uma interpretação equivocada, por parte de nossos
tribunais, do verdadeiro espírito que norteou a carta política redemocratizadora.
No afã de ampliar a esfera de proteção originariamente estabelecida, a alteração
constitucional proposta, longe de solucionar a questão, deslocou as atenções para
foco diverso da verdadeira problemática brasileira, isto é, a tímida e restritiva
interpretação conferida ao texto constitucional, o qual contava com instrumentos
suficientes para realizabilidade plena dos direitos humanos incorporados do plano
internacional.
Nesse contexto, a problemática do presente trabalho consiste em saber se a falta de
concretização das normas protetivas dos direitos humanos no Brasil, reside no
campo da eficácia insuficiência do plano normativo -, e, por isso, reclama
providência complementar de nosso Parlamento, ou reside no campo da efetividade,
12
que compete aos Poderes Judiciário e Executivo, este responsável pelo respeito e
implementação de tais direitos, aquele pela garantia de seu cumprimento.
Para se alcançar tais conclusões, no capítulo inaugural, fez-se uma delimitação
semântica e conceitual do que vem a ser direitos humanos, expressão que comporta
inúmeras nomenclaturas e divergências terminológicas, tanto na doutrina, como na
jurisprudência e na própria sociedade, nacional e internacional.
Considerou-se no presente trabalho, que direitos humanos e direitos fundamentais
não são expressões sinônimas, “[...] pois a denominação diferenciada não decorre
de mero preciosismo acadêmico, mas de implicações diferenciadas no âmbito de
aplicação de cada um deles”.
1
Assim nos ensinou Fernando Gonzaga Jayme:
[...] direitos fundamentais são direitos humanos constitucionalizados,
gozando de proteção jurídica no âmbito estatal, reservando-se o emprego
da expressão direitos humanos para as convenções e declarações
internacionais, que desfrutam de proteção supra-estatal.
2
Em seguida, passou-se a analisar a concepção contemporânea dos direitos
humanos, partindo-se da premissa de que a extensão de seu significado varia
segundo fatores históricos, culturais e geográficos, e, ainda, que o entendimento
atual dos direitos humanos, o qual deita as suas raízes no direito natural, nasceu da
construção racional de diversos campos da ciência.
No segundo capítulo, verificou-se que a tutela dos direitos humanos coincide com o
aparecimento dos Estados de Direito, que surgem como proposta de garantia e
efetivação da convivência harmônica em sociedade, que por sua vez reclama a
proteção de alguns direitos básicos do homem.
Verificou-se, ainda, que o papel de tutor foi atribuído, inicialmente, e com
exclusividade, ao âmbito interno de cada Estado, que elegia aqueles direitos cuja
proteção se propunha a resguardar, “fundamentalizando-os” em seus textos
1
JAYME, Fernando Gonzaga. Direitos humanos e sua efetivação pela Corte Interamericana de
direitos humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 11.
2
JAYME, 2005. p. 12.
13
constitucionais, conforme sua própria realidade histórica e cultural, exercendo sua
defesa de forma soberana.
Entretanto, após a Segunda Grande Guerra Mundial, iniciou-se um processo
irreversível de conscientização mundial acerca da necessidade de uma tutela mais
efetiva dos direitos humanos, cuja responsabilidade extravazaria as fronteiras
internas de cada Estado, exigindo a interação e interferência de organismos de
caráter supranacionais, o que levou a uma tendência de internacionalização destes
direitos, com a criação de uma sistemática normativa de proteção, composta pelos
sistemas global e regionais. Para Antônio Augusto Cançado Trindade:
O desenvolvimento histórico da proteção internacional dos direitos humanos
gradualmente superou barreiras do passado: compreendeu-se, pouco a
pouco, que a proteção dos direitos básicos da pessoa humana não se
esgota, como não poderia esgotar-se, na atuação do Estado, na pretensa e
indemonstrável “competência nacional exclusiva”.
3
Com isso, além dos direitos fundamentais reconhecidos internamente por suas
cartas políticas, os ordenamentos constitucionais de cada Estado moderno
passaram a conviver com o ingresso de normas externas complementares, que
visam a reforçar e ampliar o âmbito de sua tutela interna.
Como resultado de todo esse processo de ampliação dos sistemas protetivos,
decorrente da necessidade de relacionamento entre os direitos interno e
internacional, passou-se a verificar o fenômeno da relativização da noção tradicional
dos conceitos de soberania estatal. É o que se viu no terceiro capítulo.
No quarto capítulo, tratou-se de analisar a ordem constitucional brasileira, mormente
ao que se refere aos mecanismos de proteção dos direitos humanos, contrapondo-
se o atual modelo adotado por nosso ordenamento vigente à tendência mundial.
Partiu-se da análise da super-rigidez das normas que versam sobre direitos
fundamentais, ditas cláusulas pétreas, como um dos instrumentos de que se valeu o
legislador constituinte para conferir maior eficácia à normatização protetiva dos
direitos básicos do homem.
3
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos. o
Paulo: Saraiva, 1991, pp. 3-4.
14
Cuidou-se, ao final, de examinar a evolução da jurisprudência tria sobre o
assunto, analisando criticamente os recentes passos em direção à mudança de
paradigma da arraigada e obsoleta hermenêutica adotada por nossa Corte Suprema,
muitas vezes tímida em assumir sua real responsabilidade pertinente à conferência
de efetividade ao texto constitucional.
Por fim, no último capítulo, traçou-se uma distinção conceitual entre os atributos de
eficácia e efetividade das normas, com intuito de demonstrar que as alterações
trazidas pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, embora editada com vistas a
assegurar maior eficácia às normas de proteção dos direitos humanos, esconde, na
realidade, a principal dificuldade brasileira, qual seja, a falta de concretização
(efetividade) de tais normas.
Quanto à metodologia, foram utilizados os todos de abordagem dedutivo
4
,
histórico
5
e comparativo
6
, numa perspectiva multidisciplinar, buscando-se assim
contribuições da Filosofia e da Ciência Política.
Nas lições de Marina de Andrade Marconi e Eva Lakatos “não existe um método
na ciência capaz de orientar todas as operações que exige o conhecimento. Por
isso, o pesquisador deve valer-se de vários métodos na pesquisa”.
7
Tais métodos
exteriorizam as formas de proceder ao longo de um caminho, visando a atingir um
determinado fim:
4
É dedutivo o raciocínio que parte do geral para chegar ao particular, ou seja, do universal ao
singular, isto é, para tirar uma verdade particular de uma geral. Mas o método dedutivo, tanto sob o
aspecto lógico quanto técnico, envolve procedimentos indutivos. Ambos exigem diversas modalidades
de instrumentos e de operações adequadas. Assim, a dedução e a indução podem completar-se
mutuamente. Os dois processos são importantes no trabalho científico, pois um pode ajudar o outro
na resolução de problemas. (MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Metodologia
científica. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2004. p. 256)
5
O método histórico consiste em investigar acontecimentos, processos, e instituições do passado
para verificar sua influência na sociedade de hoje, pois as instituições alcançaram sua forma atual por
meio de alterações de suas partes componentes, ao longo do tempo, influenciadas pelo contexto
cultural particular de cada época. Seu estudo, para uma melhor compreensão do papel que
atualmente desempenham na sociedade, deve remontar aos períodos de sua formação e de suas
modificações. (MARCONI; LAKATOS, 2004. p. 91)
6
O método comparativo permite analisar o dado concreto, deduzindo do mesmo os elementos
constantes, abstratos e gerais. Constitui uma verdadeira “experimentação indireta”. (MARCONI;
LAKATOS, 2004. p. 92)
7
MARCONI; LAKATOS, 2004. p. 257.
15
O método é o conjunto das atividades sistemáticas e racionais que, com
maior segurança e economia, permite alcançar o objetivo - conhecimentos
válidos e verdadeiros -, traçando o caminho a ser seguido, detectando erros
e auxiliando as decisões do cientista.
8
Quanto à técnica de pesquisa, realizou-se a pesquisa bibliográfica, mediante
pesquisa teórica, utilizando-se tanto a doutrina estrangeira, bem como a doutrina e a
jurisprudência nacionais acerca do tema.
8
MARCONI; LAKATOS, 2004. p. 46.
16
1 O CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS
Toda pesquisa acerca de um instituto jurídico não prescinde do exame da
terminologia adequada e das perspectivas conceituais que se apresentam na
doutrina ou no direito positivo, a fim de se buscar uma semântica comum ou, caso
não seja possível, evitar-se a utilização de diversas nomenclaturas e confusões
terminológicas.
O fenômeno direitos humanos, como tantos outros da nossa linguagem jurídica, tem
sido alvo de uma espécie de dispersão semântica, tendo recebido diversas
significações. Como será visto, as expressões direitos humanos, direitos
fundamentais, direitos do homem, dentre outras, são empregadas como se
contivessem a mesma noção.
Por esta razão, inicialmente tem-se a necessidade teórica de se delimitar o objeto de
estudo, o que torna recomendável distinguir a acepção conferida ao vocábulo
direitos humanos, adotado no título do presente trabalho, de outras expressões
utilizadas para designar os direitos básicos do homem, demonstrando a utilidade da
delimitação conceitual de cada uma delas, inclusive no que se refere às
conseqüências práticas dela decorrentes.
Relativamente ao objetivo deste capítulo, passar-se-á, a seguir, a analisar a
concepção contemporânea dos direitos humanos, partindo-se do estudo do
aparecimento dos direitos naturais.
1.1 A DELIMITAÇÃO TERMINOLÓGICA
O termo direitos humanos vem sendo largamente utilizado para designar os direitos
básicos do homem tanto nas esferas jurídica e política atual, como pelos cientistas e
17
filósofos que estudam o homem, o Estado e o Direito, e amesmo pela própria
sociedade.
9
É também uma das questões mais enfrentadas pela doutrina a falta de clareza na
utilização dessa terminologia, pois, a ninguém é possibilitado desconsiderar que
várias são as expressões que convergem para o conceito de direitos humanos, tais
como, direitos naturais, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos
subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do
homem, destacando-se apenas as mais importantes.
Uma análise retrospectiva dessa diversidade semântica permite verificar que ela é
fruto da nossa história, de interesses, de ideologias e de posições científicas e
filosóficas distintas. Em outros termos, a utilização diferenciada das terminologias
em cada sociedade ou país está diretamente relacionada com os subsídios
filosóficos, históricos e sociais de cada um deles, culminando na heterogeneidade
terminológica hoje tão em voga.
A priori, tal pesquisa retrospectiva deve partir da análise da doutrina contratualista
10
,
que em razão da sua importância, exige que se lhe faça referência em particular. Os
seus maiores expoentes, dentre os quais destacam-se Grocio, Pufendorf, Hobbes,
Locke e Kant, referiam-se a direitos naturais e a direitos inatos ou direitos originários,
para demonstrar a precedência desses direitos ao pacto social e para denotar a sua
originalidade humana.
11
De outra sorte, os positivistas passaram a utilizar, na França, as expressões
liberdades públicas, embora estivessem se referindo a direitos individuais ou a
liberdades individuais e, na Alemanha, direitos fundamentais, significando certas
posições ou situações jurídicas básicas dos indivíduos perante o Estado ou como
9
MARTINEZ, Gregório Peces-Barba. Lecciones de Derechos Fundamentales. Madrid: Dykinson,
2004, p. 19.
10
A doutrina contratualista será melhor analisada ao se investigar a evolução do Estado e o
surgimento do Estado de Direito, razão pela qual se faz no momento mera referência.
11
SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 7.
18
autolimitação do poder soberano estatal em benefício de determinadas esferas de
interesse privado.
12
Em 1789, a Declaração de Direitos
13
já fazia distinção entre os direitos do homem e
os direitos do cidadão. Segundo leciona José Adércio Leite Sampaio, os primeiros
eram entendidos como direitos individuais ou direitos naturais, expressão usada no
título I da Constituição Francesa de 1791, pertencentes ao homem enquanto homem
e anteriores ao Estado. Os direitos dos cidadãos, também identificados como direitos
de participação ativa nos processos políticos eram as liberdades conhecidas pela
Antiguidade, especialmente, pela democracia grega.
14
Nos Estados Unidos, usou-se originariamente a expressão direitos naturais ou
direitos inalienáveis, como se na Declaração da Virgínia
15
, de 1776, sendo
também correntes à época os termos direitos civis e liberdades civis ou individuais
para expressarem um sentido mais ou menos equivalente a direitos individuais.
Mas a confusão terminológica não pára por aí. A título ilustrativo, na Europa do
século XX, foram criadas a Convenção de Salvaguarda dos Direitos do Homem e
das Liberdades Fundamentais de 1950 e a Carta de Direitos Fundamentais da União
Européia de 2000. No âmbito das Nações Unidas há, por exemplo, a Declaração
12
SAMPAIO, 2004. p. 7.
13
Confira-se o texto preambular da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de
agosto de 1789: “Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional,
considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas
causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolvem expor em declaração solene
os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que esta declaração,
constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar os seus
direitos e os seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo
ser em cada momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais
respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e
incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral. Por
conseqüência, a Assembléia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser
Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão (...)”.
14
SAMPAIO, 2004. p. 11.
15
Confira-se a Secção I da Declaração de Direitos de Virgínia, de 16 de julho de 1776: “Todos os
homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm certos direitos inatos que, quando
entram no estado de sociedade não podem, por nenhuma forma, privar ou despojar a sua
posteridade, nomeadamente o gozo da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a
propriedade e procurar e obter felicidade e segurança”.
19
Universal dos Direitos Humanos
16
de 1948, o Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de
1966.
Também, no Brasil, a história colaborou decisivamente para a diversidade
semântica. A Constituição imperial de 1824 positivou originariamente alguns dos
direitos humanos sob o título de garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos
brasileiros, ao passo que a Constituição de 1891 continha simplesmente a
expressão declaração de direitos. Na Constituição de 1934, utilizou-se, pela primeira
vez, a expressão direitos e garantias individuais, nomenclatura retomada pelas
Constituições de 1937 e 1946, bem como nas Constituições de 1967 e 1969.
17
Ingo Wolfgang Sarlet, ao analisar a problemática conceitual e terminológica dos
direitos fundamentais, ressalta que a própria Constituição Federal brasileira de 1988
continua a se caracterizar por uma diversidade semântica, vez que menciona as
seguintes denominações: direitos humanos (art. , inciso II); direitos e garantias
fundamentais (Título II e art. 5º, § 1º); direitos e liberdades constitucionais (art. 5º,
inciso LXXI) e direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, inciso IV).
18
16
“A Declaração dos Direitos do Homem de 1948 retomou as bases originais, abrindo, então, para a
Dogmática Constitucional, sobretudo a partir da Alemanha, um jogo de definição que restringe
‘direitos humanos’ ora ao plano filosófico, ora à sua dimensão internacional, expressando os direitos
de uma comunidade estatal concreta mais como direitos fundamentais. Assim,“direitos humanos”
seriam os direitos válidos para todos os povos ou para o homem, independentemente do contexto
social em que se ache imerso, direitos, portanto, que não conhecem fronteiras nacionais, nem
comunidades éticas específicas, porque foram afirmados – declarados ou constituídos a depender da
visão dos autores – em diversas cartas e documentos internacionais como preceitos de jus congens a
todas as nações obrigar, tendo por começo exatamente a Declaração Universal de 1948 (dimensão
internacionalista dos direitos humanos). Também “humano” ou do “homem” seriam aqueles direitos
definidos não tanto por uma norma positiva de um tal ordenamento jurídico, interno ou mesmo
internacional, mas sim pela concepção de “homem” que se adote como fonte ou como valor, pelo seu
referencial axiológico que se impõe a toda e qualquer ordem jurídica, imaginada pelos Modernos
como direitos naturais, absolutos e intemporais”, ou como, mais recentemente, “direitos morais” e
“sedimentações da consciência e da experiência históricas, axiológicas e jurídicas do homemque
hão de fundamentar os sistemas jurídicos concretos (dimensão filosófica dos direitos humanos). Já os
“direitos fundamentais” são aqueles que são juridicamente válidos em um determinado ordenamento
jurídico ou que se proclamam invioláveis no âmbito interno ou constitucional (dimensão nacional dos
direitos humanos)”. (SAMPAIO, 2004. p. 8).
17
CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. ed. comentada. Campinas:
Bookseller, 2001. p. 41, 70, 130, 189 e 245.
18
SARLET, Ingo Wolfagang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004. p. 34.
20
Destarte, por tudo o que se acaba de expor, não é difícil entender a razão pela qual
a doutrina nacional e estrangeira tem alertado para a heterogeneidade, ambigüidade
e ausência de um consenso na esfera conceitual e terminológica, inclusive no que
se refere ao significado e conteúdo de cada termo utilizado.
19
Nesse cenário, Fernando Gonzaga Jayme defende que os diversos termos
utilizados, em que pese entendimento doutrinário diverso
20
, o podem ser
compreendidos como sinônimos, pois a denominação diferenciada “[...] não decorre
de mero preciosismo acadêmico, mas de implicações diferenciadas no âmbito de
aplicação de cada um deles”.
21
Desta feita, a análise da distinção entre os termos referidos acima se faz relevante,
tendo em vista a diversidade de conseqüências de ordem prática advinda da
aplicação de um ou de outro, o que torna recomendável distingui-los, identificando o
conteúdo semântico das mais diversas terminologias empregadas.
Na tentativa de encontrar a expressão que melhor justifique os direitos do homem,
Gregório Peces-Barba Martinez faz uma substanciosa análise das diversas
expressões que convergem para tais direitos, iniciando sua pesquisa pelos
chamados direitos naturais
22
, termo que, segundo ele, manifesta uma posição
jusnaturalista, porque utilizada em momentos históricos anteriores, caracterizando-
se por uma terminologia antiquada e em relativo desuso. Para o autor, a expressão
direitos naturais supõe referir-se a direitos que precedem o poder e o Direito
Positivo, que são reconhecidos pela própria razão humana e que se impõem a todas
as normas de Direito criado pelo soberano, sendo um limite a sua ação. Assim, o
termo direitos naturais tem importância na história, mas seu uso tem perdido sentido
na atualidade pelos motivos aduzidos.
23
O grande óbice em considerar os direitos do
19
SARLET, 2004. p. 33.
20
José Luiz Quadros de Magalhães afirma expressamente que utiliza a expressão direitos humanos
como sinônima de direitos fundamentais (ROBERT, Cinthia; MAGALHÃES, JoLuiz Quadros de.
Teoria do Estado, democracia e poder local. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. p. 165).
21
JAYME, 2005. p. 11.
22
MARTINEZ, 2004. p. 22.
23
MARTINEZ, 2004. p. 22.
21
homem como direitos naturais reside basicamente na forma de sua proteção, assim
como leciona Norberto Bobbio:
[...] quando os direitos do homem eram considerados unicamente como
direitos naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado
era um direito igualmente natural, o chamado direito de resistência. Mais
tarde, nas Constituições que reconheceram a proteção jurídica de alguns
desses direitos, o direito natural de resistência transformou-se no direito
positivo de promover uma ação judicial contra os próprios órgãos do Estado.
Mas o que podem fazer os cidadãos de um Estado que não tenha
reconhecido os direitos do homem como direitos dignos de proteção? Mais
uma vez, lhes resta aberto o caminho do chamado direito de
resistência.
24
A expressão direitos públicos subjetivos, por sua vez, nas lições de Peces-Barba,
traduz uma concepção mais moderna, mais cnica, com pouca incidência na
linguagem comum, sendo essa uma boa razão para não assumi-lo como a
formulação mais adequada aos direitos humanos. É reconhecida como uma criação
do Direito público alemão do século XIX, como especificação do conceito mais
genérico de direito subjetivo. Nas lições do autor espanhol, os direitos públicos
subjetivoso a versão positivista dos direitos naturais, ambos amparados pelo
mesmo marco cultural antropocêntrico.
25
Assim como a acepção direitos públicos subjetivos, a expressão liberdades públicas
tem uma dimensão positivista, provavelmente como reação frente à ambigüidade do
termo direitos do homem, presente na Declaração de 1789, e com uma clara
natureza jusnaturalista. Poder-se-ia dizer que o termo em exame está para a cultura
jurídica francesa assim como direitos públicos subjetivos está para a cultura alemã.
26
Por fim, o termo direitos morais vem sendo bastante difundido ultimamente, sendo
originário da cultura anglo-saxônica. Parte da premissa de que os direitos são
precedentes ao Estado e ao próprio Direito. Gregório Peces-Barba Martinez adverte,
portanto, que ainda não se está diante da expressão ideal que integre toda a
24
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. De Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992. p. 31.
25
MARTINEZ, 2004. p. 23.
26
MARTINEZ, 2004. p. 24.
22
complexa estrutura dos direitos e que nos conduza a sua compreensão integral,
pelas mesmas razões aduzidas aos direitos naturais.
27
Consoante se verifica, todas as expressões analisadas acima convergem para uma
problemática comum relativa à incapacidade de seus conceitos traduzirem a carga
semântica que se propõem a delimitar, revelando-se, muitas das vezes, como
conceitos reducionistas, não condizentes com a riqueza dos significados que
comportam os direitos humanos. E quando se reduz a concepção dos direitos
humanos a uma dessas expressões, não se consegue garanti-los.
Assim direciona-se a moderna doutrina nacional, na medida em que vem
rechaçando progressivamente a utilização de termos como liberdades públicas,
liberdades fundamentais, direitos individuais e direitos públicos subjetivos, direitos
naturais e direitos civis, assim como as suas variações, ao argumento de que tais
expressões não se mostram adequadas ao estágio atual da evolução dos direitos no
âmbito de um Estado de Direito.
28
De outra sorte, observa-se uma crescente preocupação ao que se refere à
distinção
29
entre os termos direitos humanos, direitos fundamentais e direitos do
homem, tendo em vista o uso generalizado de tais denominações na literatura
jurídica, ocorrendo, porém, o emprego mais freqüente de direitos humanos e direitos
do homem entre autores anglo-americanos e latinos, em respeito à própria tradição e
à história, enquanto a expressão direitos fundamentais fica adstrita à preferência dos
publicistas alemães.
30
Consoante tendência doutrinária, tanto nacional quanto estrangeira, o termo direitos
fundamentais é utilizado para designar os direitos positivados em nível interno, ao
27
MARTINEZ, 2004. p. 25.
28
SARLET, 2004. pp. 34-35.
29
Como nos ensina Fábio Konder Comparato, essa distinção foi elaborada pela doutrina jurídica
germânica, de tal sorte que os direitos fundamentais são os direitos humanos reconhecidos como tais
pelas autoridades às quais se atribuiu o poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados
quanto no plano internacional. São os direitos humanos positivados na Constituição, nas leis, nos
tratados internacionais (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.
III ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 57).
30
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 514.
23
passo que a expressão direitos humanos seria mais utilizada para denominar os
direitos naturais positivados nas declarações e convenções internacionais, assim
como aquelas exigências básicas relacionadas com a vida, dignidade, liberdade e
igualdade da pessoa que não estejam satisfatoriamente tutelados por um estatuto
jurídico positivo.
31
No mesmo sentido é o apontamento do professor Daury César Fabriz, segundo o
qual direitos humanos e direitos fundamentais o orientações diversas, agrupando
essas denominações em uma única expressão, qual seja, o “bloco dos direitos
superiores”:
Os direitos fundamentais apresentam-se como gênero, do qual os direitos
humanos são espécie. Direitos fundamentais, referindo-se àqueles direitos
básicos do cidadão diante do Estado, são aqueles direitos inscritos em
determinado texto constitucional. A expressão direitos humanos demonstra
ser mais adequada quando nos referimos a certos direitos, inerentes ao
próprio homem, compreendido esse em sentido universal.
32
Para Martin Kriele, esta distinção desempenha um papel relevante na discussão
teórica: os direitos humanos são eternos, do ponto de vista temporal, valendo em
todo o mundo, sob o ponto de vista espacial e provêm da natureza ou da criação
divina, porque são sagrados e invioláveis. Os direitos fundamentais, ao contrário,
são direitos cuja validade encontra-se temporal e espacialmente delimitada. São os
direitos do homem garantidos pelas instituições jurídicas. São direitos objetivamente
válidos. Também são direitos subjetivamente válidos, porque podem ser invocados
perante os Tribunais. Limitam o poder dos órgãos do Estado, porém, não são
incompatíveis com a soberania ilimitada do aparato estatal, conquanto sejam
expressão da negação da soberania e da garantia da liberdade por meio de um
sistema constitucional, com divisão de poderes.
33
31
Essa é a lição de Antonio E. Perez Luño, para quem parece mais oportuno tomar como critério
distintivo o diferente grau de “concreção positiva” destas duas categorias. Assinala que nos usos
lingüísticos jurídicos e políticos, o termo direitos humanos aparece como um conceito de contornos
mais amplos e imprecisos que a noção de direitos fundamentais, que revelou um conceito de
contornos mais restritos e precisos. (LUNO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales.
Madrid: Tecnos, 2004. p. 46).
32
FABRIZ, Daury Cezar. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p.
231.
33
KRIELE, Martin. Introducction a la teoria del estado. Buenos Aires: Depalma, 1980, p. 207.
24
No âmbito das controvérsias e polêmicas doutrinárias, merece destaque também a
suposta divergência apontada entre o pensamento de Gregório Peces-Barba
Martinez
34
e de Antonio Fernandez Galiano sobre os direitos fundamentais.
Gregório Peces-Barba Martinez sustenta que os direitos fundamentais alcançam
a sua plenitude quando: a) uma norma jurídica positiva - constitucional ou
infraconstitucional os reconhece; b) de tal norma se deriva um conjunto de
faculdades ou direitos subjetivos e; c) os titulares podem contar para a proteção de
tais direitos com o aparato coativo do Estado. Como visto acima, concebe os direitos
fundamentais desde uma perspectiva dualista, como a síntese da filosofia de tais
direitos, isto é, dos valores postos à disposição da pessoa humana, e como o Direito
dos direitos fundamentais, que se refere à inserção desses valores em normas
jurídico-positivas. Essa tese é criticada por Antonio Fernandez Galiano, ao negar
qualquer virtualidade jurídica àqueles direitos humanos não reconhecidos por uma
legislação positiva. Daí entende preferível repousar os direitos humanos em uma
ordem superior, objetiva, que possa oferecer um fundamento de caráter universal.
35
Antonio Perez Luño esclarece que a suposta polêmica entre as duas teses não pode
prosperar. Para o autor, esse equívoco reside no fato de que ambos os
pensamentos não se situam no mesmo plano, isto é, os argumentos aduzidos por
ambos os adversários não se convergem, já que, na realidade, não estão falando da
mesma coisa. Ademais, o autor espanhol pondera que as teses dos professores
Gregório Peces-Barba Martinez e Antonio Fernandez Galiano não se acham tão
distantes como a análise superficial da literalidade de suas respectivas
argumentações poderia sugerir. Ao contrário, ambos concordam ao entender os
direitos humanos como uma categoria pré-existente, legitimadora e informadora dos
direitos fundamentais, assim como no reconhecimento de que os direitos
34
Consoante leciona Gregório Peces-Barba Martinez, a expressão direitos humanos traduz-se em
um uso ambíguo, que tem se materializado em um enfrentamento permanente entre positivismo e
jusnaturalismo, uma vez que encampa dois sentidos, podendo referir-se a uma pretensão moral ou a
um direito subjetivo protegido por uma norma jurídica. Para o autor espanhol, o termo direitos
fundamentais se apresenta como a expressão mais adequada para se referir ao fenômeno dos
direitos humanos, haja vista que os direitos fundamentais representam uma fusão entre a moralidade
básica e a juridicidade básica, sem incorrer nos reducionismos jusnaturalista ou positivista ora
apontados. (MARTINEZ, 2004. p. 28).
35
LUNO, 2004. p. 48.
25
fundamentais são uma categoria descritiva dos direitos humanos positivados no
ordenamento jurídico interno.
36
Na perspectiva do nosso trabalho, partir-se-á da idéia de que os direitos humanos,
que deitam suas raízes nos direitos naturais, compõem a gama infinita e ilimitada de
condições abstratas inerentes ao homem, cujo exercício revela-se indispensável a
sua existência não-animal e a sua convivência digna e harmônica enquanto ser
social. São condições de vivência e sobrevivência pré-existentes aos ordenamentos
normativos e aos direitos juridicamente reconhecidos, tuteladas em sede de
convenções e declarações internacionais. Essa é a concepção que se reputa mais
adequada, diga-se mais abrangente, para abarcar os direitos básicos dos homens.
A seu turno, os direitos fundamentais são aqueles eleitos como essenciais pelos
ordenamentos jurídicos, originados a partir da reflexão de um determinado fato
político ou momento histórico, ou mesmo de uma necessidade social, que reclamam
uma tutela mais efetiva do Estado e, por isso mesmo, reconhecidos e postos sob
sua proteção pelo ordenamento constitucional instaurado. Os direitos fundamentais
estão para o Direito Constitucional assim como os direitos humanos estão para o
Direito Internacional.
Pode-se concluir, destarte, que as nomenclaturas atribuídas aos direitos básicos do
homem modificam-se de acordo com a concepção filosófica: jusnaturalista,
jusfilosófica, juspositivista ou jusrealista.
Delimitado, portanto, o objeto de estudo, analisar-se-á a evolução conceitual dos
direitos humanos, em um “trabalho verdadeiramente construtivista”
37
, haja vista que
a concepção contemporânea desses direitos “resultou de uma evolução do
36
LUNO, 2004. p. 49.
37
Expressão usada por Willis Santiago Guerra Filho. (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo
constitucional e direitos fundamentais. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2001. p.
37)
26
pensamento filosófico, jurídico e político da Humanidade”
38
, ou seja, nasceu da
construção racional dos diversos campos da ciência.
1.2 DOS DIREITOS NATURAIS À CONCEPÇÃO
CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS
No presente tópico, propõe-se uma contextualização dos direitos humanos,
afirmando, de plano, que eles sempre existiram, mesmo porque, como dito acima,
devem ser considerados como algo intrínseco ao indivíduo. O reconhecimento,
porém, de tais direitos, assim com o seu conceito, passaram e continuam passando
por um processo evolutivo.
Em termos históricos, parece ser consenso entre os doutrinadores que as primeiras
indagações em torno de certos direitos inerentes à pessoa humana se encontram na
Antiguidade clássica. Estava presente no pensamento grego, principalmente em
Aristóteles, a idéia de certas leis universais que regiam a vida de todos os homens,
através de princípios superiores às leis específicas de cada povo. Nesse sentido, é a
orientação de Celso Lafer:
Aristóteles, numa conhecida passagem da Retórica, estabelece uma
distinção dicotômica entre lei particular e lei comum. Lei particular é aquela
que cada povo a si mesmo, podendo as normas dessa lei particular ser
escrita ou não-escrita. Lei comum é aquela conforme à natureza, pois existe
algo que todos, de certo modo, adivinhamos sobre o que por natureza é
justo ou injusto em comum, ainda que não haja nenhuma comunidade ou
acordo.
39
Na Idade Média, o pensamento cristão, em defesa da igualdade essencial de todos
os seres humanos perante Deus, também desenvolveu uma noção de direito natural,
registrada na obra dos dois grandes doutores do pensamento católico, Santo
Agostinho e Santo Tomás de Aquino.
38
HERKENHOFF, João Batista. Curso de direitos humanos. São Paulo: Acadêmica, 1994. p. 31. v.
1.
39
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 35.
27
Paralelamente a esse processo de justificação filosófica dos direitos humanos, vários
textos ou documentos normativos, denominados Cartas ou Declarações de direitos,
foram produzidos e recepcionaram o conjunto de deveres, direitos e liberdades da
pessoa humana. Na Antiguidade não se tem notícia de nenhuma dessas Cartas ou
Declarações, já que nesse período não se admite a existência de nenhum direito
que o derive das situações jurídicas objetivas estabelecidas pelo ordenamento
jurídico da comunidade. Nessa senda, João Batista Herkenhoff esclarece que “[...]
não obstante tenha sido Atenas o berço de relevante pensamento político, não se
imaginava então a possibilidade de um estatuto de direitos oponíveis ao próprio
Estado”.
40
Por outro lado, no período medieval, não faltam documentos em que o monarca,
cujo poder é teoricamente ilimitado, por que fundado na vontade divina, reconhece
alguns limites em seu exercício em favor da Igreja, dos senhores feudais ou das
comunidades locais.
De todos os documentos medievais, não se pode olvidar que a Magna Carta,
contrato subscrito entre o Rei João Sem Terra e os bispos e barões da Inglaterra em
1215, alcançou maior relevância. Era o primeiro freio que se opunha ao poder do rei.
A Magna Carta foi o ponto de partida para a Petition of Rights de 1628, e também do
Hábeas Corpus de 1679, que tutela a liberdade pessoal do súdito inglês. Em 1689, o
Bill of Rights, promulgado pelo Parlamento inglês e sancionado por Guilherme de
Orange, encerra este ciclo de documentos ingleses de positivação.
41
Sobre o
assunto, adequada é a fala de João Batista Herkenhoff:
Sabe-se, contudo, da origem feudal dos grandes documentos ingleses: não
eram cartas de liberdade do homem comum. Pelo contrário, eram contratos
feudais escritos nos quais o rei, como suserano, comprometia-se a respeitar
os direitos de seus vassalos. Não afirmavam direitos “humanos”, mas
direitos de “estamentos”. Em consonância com a estrutura social feudal, o
patrimônio jurídico de cada um era determinado pelo estamento, ordem ou
estado a que pertencesse. Contudo, algumas das regalias alcançadas
beneficiaram, desde o início, não apenas os grupos dominantes, mas outras
categorias de ditos. Em tais declarações de direitos não se cogitava de
40
HERKENHOFF, 1994. p. 51.
41
Confira-se o art. 39 da Magna Carta: “Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou
privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós
não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular
pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país”. (LUNO, 2004. p. 34).
28
seu eventual sentido universal: os destinatários das franquias, mesmo
aquelas mais gerais, eram homens livres, comerciantes e vilões ingleses.
42
Após a Idade Média, surge no século XIV, como força contrária ao período de trevas
introduzido na Europa pelos excessos do Cristianismo e da Igreja Católica, o
Renascimento. A idéia humanista inspirada pelo Renascimento constituiu um ponto
de transição nas preocupações com as falsas imoralidades, enfatizando a
importância de se viver a vida com prazer. Foi também um período em que as artes
e o conhecimento floresceram e que a Europa progrediu em termos civilizatórios,
recuperando-se do seu atraso relativamente a outras partes do mundo.
43
Há, assim, o fim da hegemonia cristã, com a ruptura dos paradigmas impostos pelo
pensamento dogmático. E com isto, a idéia de direitos da pessoa humana,
decorrentes de Deus, perde a sua sustentação. Impulsionadas principalmente pelo
Humanismo
44
e pela Reforma Protestante, nascem uma nova mentalidade e uma
nova cultura, que desembocam na Ilustração.
Nesse contexto, Gregório Peces-Barba Martinez pontua as quatro fases
45
que
marcam a dissolução da unidade católica e que reverberam na construção da
filosofia dos direitos humanos: a secularização, o naturalismo, o racionalismo e o
individualismo.
46
A secularização supõe a ruptura da unidade religiosa e abarca todas as esferas da
vida, desde a arte, a pintura, a literatura, a ciência e a política. Por exemplo, basta se
ter em mente as obras de Michelangelo e Maquiavel.
47
Ambos demonstraram a
42
HERKENHOFF, 1994. p. 56.
43
LEAL, Rogério Gesta. Direitos humanos e humanismo: uma necessária integração. In:
MEZZAROBA, Orides (Org.). Humanismo Latino e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2003. p. 319.
44
Humanismo denota o “movimento literário e filosófico que nasceu na Itália na segunda metade do
século XIV, difundindo-se para os demais países da Europa e constituindo a origem da cultura
moderna”. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Basi e Ivone Castilho
Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 528).
45
Celso Lafer destaca como processos que marcam a dissolução da unidade espiritual medieval a
secularização, a sistematização, positivação e historicização do Direito. (LAFER, 1999. p. 38).
46
MARTINEZ, 2004. p. 81.
47
Se compararmos a arte pré-renascentista com as pinturas e esculturas produzidas por
Michelangelo, podemos perceber que seus personagens são homens e mulheres que não são feitos
à imagem e semelhança de um deus idealizado, mas são o resultado da sobreposição de tecidos,
29
capacidade não apenas de se libertar dos paradigmas dominantes no âmbito de
suas atuações arte e política mas de reencontrar o ser humano, separando-o do
divino.
Nessa sociedade cada vez mais secularizada, mostram-se relevantes as
necessidades da burguesia na busca de uma nova ordem baseada na razão e na
natureza humana. É a ordem do individualismo e dos direitos naturais. Conforme se
infere da literalidade do pensamento de Celso Lafer:
[...] a secularização está ligada à afirmação dos conceitos de soberania e
razão-de-Estado e à reforma protestante, que levaram à separação entre
Direito e Teologia e à busca de um fundamento para o Direito, que fosse
válido independentemente da discussão sobre a existência de Deus.
48
Como conseqüência da secularização, tem-se o naturalismo que, como o próprio
nome indica, supõe a volta à natureza, contrapondo-se à explicação transcendente
do mundo que provém da mentalidade religiosa. O interesse pela natureza aflora
com as descobertas de outras terras e de outros seres humanos. E dessa atração
pela natureza passa-se ao conhecimento real da natureza, através da observação
direta. O naturalismo supõe a idéia de igualdade jurídica, em sua perspectiva formal,
necessária à própria idéia de Direito moderno e de sua função de conceder
segurança e justiça formal. Com ela, a burguesia generalizou seus próprios
interesses, dando a eles status de interesses de toda a humanidade.
49
A fase do
racionalismo, por sua vez, possui as características a seguir descritas:
O racionalismo supõe a confiança plena no valor da razão como instrumento
de conhecimento, e servirá para dominar a natureza, para descobrir suas
regularidades e suas leis, tanto no campo da natureza física como no da
vida social humana. Esse racionalismo estenderá sua influencia à arte e á
literatura. Favorecerá as teses do subjetivismo individualista, ao promover a
livre ação e a busca autônoma do ser humano, e de seu pensamento, e
representará assim, no campo social e político, a ideologia da burguesia
ascendente, antropocêntrica, centrada no protagonismo do indivíduo na
história. [...] O racionalismo, por um lado, fortalecerá o poder da burguesia
músculos e veias que têm movimentos que resultam de uma vontade estritamente humana. Era o
homem de carne e osso que o interessava (...) Da mesma forma, Maquiavel, no Príncipe, nada mais
fez que desvendar o poder. Assim como Michelangelo em sua arte, ao descrever o modo como o
príncipe conquista e se mantém no poder, Maquiavel desmistificou a natureza humana. (VIEIRA,
Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros,
2006. p. 29).
48
LAFER, 1999. p. 38.
49
MARTINEZ, 2004. p. 82.
30
através do domínio da natureza e, por outro, garantiesse domínio com
umas regras jurídicas, dos direitos naturais derivados do exame racional da
natureza humana, que se convertem no Direito justo.
50
Por fim, o individualismo mostra-se como conseqüência dos demais institutos e, nas
palavras de Gregório Peces-Barba Martinez, “[...] é a característica definidora do
tempo moderno [...]”.
51
Representa a forma própria de atuação do homem burguês
que quer protagonizar a história, frente à dissolução do indivíduo nas realidades
comunitárias ou corporativas medievais.
Nesse cenário de mudanças que ocorreram a partir do século XVI, implementa-se na
Europa o processo de laicização do direito natural com a Escola Clássica do Direito
Natural, Hobbes, Spinoza, Puffendorf, Locke, Jefferson, Rousseau, Kant e outros
filósofos do Iluminismo.
É a era do jusnaturalismo
52
moderno, uma escola jusfilosófica elaborada durante os
séculos XVII e XVIII que buscou responder ao deslocamento do objeto de
pensamento, da natureza para o homem, que caracteriza a modernidade.
53
Celso
Lafer, refletindo sobre a existência de um paradigma do Direito Natural
54
, esclarece
que:
50
No original: El racionalismo supone la confianza plena em el valor de la razón como instrumentode
conocimiento y servirá para dominar la natureza, para descubrir sus regularidades y sus leyes, tanto
em el campo de la natureza física como en el de la vida social humana. Ese racionalismo extenderá
su influencia al arte y a la literatura. Favorecerá las tesis del subjetivismo individualista, al promover la
libre acción y la búsqueda autônoma del ser humano, y de su pensamiento, y representará así, em el
campo social y político, la ideologia de la burguesia ascendente, antropocêntrica, centrada em el
protagonismo del individuo em la historia. [...] El racionalismo, por um lado, potenciará el poder de la
burguesia a través del domínio de la natureza y, po outro, garantizará ese domínio com unas reglas
jurídicas, los derechos naturales derivados del examen racional de la naturaleza humana, que se
conviertem em el Deerecho justo” (MARTINEZ, 2004. p. 83).
51
No original: “[...] es la característica más definidora del tiempo moderno [...]” (MARTINEZ, 2004. pp.
83-84).
52
A chamada doutrina jusnaturalista traduz uma corrente que se alicerça no conceito de direito
natural para fundamentar o direito posto, encontrando justificativa ora na vontade divina, ora na
própria natureza, ora na razão humana. Desta forma, o direito natural apresenta-se como um conjunto
de princípios ou valores de caráter universal, eterno e imutável, anteriores às instituições e existentes
independentemente da razão humana. Para o jusnaturalismo o mais relevante seriam os valores
morais do direito, servindo de base para o direito positivo.
53
LAFER, 1999. pp. 35-36.
54
Celso Lafer aponta algumas características que permitem identificar, no termo Direito Natural, um
paradigma de pensamento, quais sejam, a imutabilidade, a universalidade, a função de qualificar
31
O termo Direito Natural abrange uma elaboração doutrinária sobre o Direito
que, no decorrer de sua vigência multissecular, apresentou e apresenta
vertentes de reflexões muito variadas e diferenciadas, que não permitem
atribuir-lhe univocidade.
55
Na mesma trilha, adverte Alf Ross que o direito natural existe desde a Antiguidade,
passando por diversas etapas até os dias atuais, muito embora tenha mantido a sua
essência: “Sua característica principal é um modo de pensamento, que em todas as
suas fases mágica, religiosa e filosófico-metafísica difere radicalmente do ponto
de vista científico”.
56
O direito natural laicizado difundiu largamente, nos séculos XVII e XVIII, a tese do
contrato social como explicação da origem do Estado, da sociedade e do Direito. A
explicação contratualista ajusta-se à passagem de um Direito baseado no status
para o Direito baseado no indivíduo, numa sociedade na qual começa a surgir o
mercado e a competição. Com efeito, no contratualismo a relação autoridade-
liberdade fundamenta-se na auto-obrigação dos governados, resolvendo-se desta
maneira um dos problemas sicos da Filosofia Jurídica individualista, que é o de
explicar como é que o Direito, que deve servir aos indivíduos, pode também vinculá-
los e obrigá-los. Esta vinculação provém de uma auto-obrigação no momento da
celebração do contrato social, na passagem do estado de natureza para a vida
organizada em sociedade. Afirma-se, desta maneira, que o Estado e o Direito não
são prolongamento de uma construção convencional dos indivíduos ao saírem do
estado de natureza. Por outro lado, o contratualismo oferece uma justificação do
Estado e do Direito que não encontra o seu fundamento no poder irresistível do
soberano ou no poder ainda mais incontrastável de Deus, mas sim na base da
sociedade, através da vontade dos indivíduos.
57
Portanto, direito natural, estado de natureza e contrato social, embora entendidos de
maneiras diversas pelos filósofos da Idade Moderna, são categorias próprias do
jusnaturalismo, encontrando-se tais institutos em grande parte da doutrina do direito
como boa e justa ou má e injusta uma conduta. O conhecimento desses direitos se por meio da
razão, da intuição ou da revelação (LAFER, 1999. p. 35).
55
LAFER, 1999. p. 36.
56
ROSS, Alf. Direito e justiça. 1. ed. São Paulo: Edipro, 2000. p. 309.
57
LAFER, 1999. pp.121-122.
32
natural nos séculos XVII e XVIII. O que possuem de comum tais concepções é o
pressuposto da existência de um sistema de normas logicamente anterior ao Estado
e a idéia de um direito universal, que transcende a lei particular de um determinado
Estado.
A grande diferença entre Hobbes e Locke, por exemplo, é o modo como cada um
destes autores descreve o ser humano. Para Hobbes o homem que vive no
hipotético estado de natureza de guerra de todos contra todos situação anterior ao
Estado é um ser egoísta, cruel, movido pelas emoções, que para ser pacificado
exigiria um Estado forte, com poderes absolutos. os indivíduos descritos por
Locke vivem num estado de natureza caracterizado pela harmonia plena, pela paz,
que optariam pelo seu aperfeiçoamento, através da criação de uma entidade
imparcial, que garantisse os direitos naturais e que auxiliasse na boa convivência
entre os indivíduos.
Da mesma forma, Kant focaliza a razão como ponto central na sua reflexão sobre os
direitos. Eleva a autonomia da vontade (liberdade) como base inabalável da
moralidade. A vontade livre e autolegislativa confere a si mesma a norma do agir
moral. Assim leciona Olinto Pegoraro:
Em Aristóteles e Tomás de Aquino, a vontade é parte da irracionalidade,
portanto, subordinada à razão que a ilumina e dirige. Kant, pelo contrário,
começa seu tratado com uma exaltação da boa vontade, como razão pura
prática responsável de todo agir moral. Pela vontade: a) o homem se
diferencia dos seres meramente naturais, subordinados às leis da natureza
sensível e, b) elevando-se acima de tudo isso, age conforme a lei moral.
Portanto, pela razão pura prática o homem torna-se senhor de si,
autolegislador e independente das determinações empíricas.
58
O que importa para Kant é o estabelecimento de uma lei necessária para todos os
seres racionais. Daí as suas três célebres máximas morais: “age de tal modo que a
tua ação possa servir de regra universal”; “age sempre de forma a tratar a
humanidade, na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre como fim e nunca
unicamente como meio” e, por fim, “age de tal maneira que se possa considerar que
tua vontade estabelece, por suas máximas, leis universais”. Tomando “os homens
como fim em si mesmos” e obedecendo às máximas concluídas livremente e que
58
PEGORARO, Olinto A. Ética é justiça. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. p. 55.
33
possam ser universalizáveis, estaremos construindo racionalmente a esfera ética, na
qual se insere o Direito.
59
A partir dessa reflexão kantiana, Oscar Vieira Vilhena
conclui que:
[...] no sentido kantiano, os direitos são fruto dessa razão ética; daí não
deverem ser confundidos com direitos transcendentes no sentido religioso,
mas como construção humana, como uma decorrência do processo de
emancipação da Humanidade, em que os homens se utilizam do Direito
como instrumento de realização da liberdade ao mesmo tempo em que
serve de auto-limitação dos interesses.
60
No século XVIII, Rousseau concebeu a ”formulação mais célebre da teoria do
contrato social”
61
, para justificar toda a forma de poder no livre consentimento dos
membros da sociedade. Este consentimento tem sua expressão na vontade geral, a
cuja formação concorre cada cidadão em condições de igualdade e que constitui o
fundamento da lei entendida como instrumento para garantir e limitar a liberdade.
Importante esclarecer que “em nenhum momento esses autores abrem mão da idéia
de dignidade humana. Pois a igualdade e o valor moral atribuído a todos é que
justificam a idéia de contrato social ou o estabelecimento de leis universais”.
62
Aos poucos, entretanto, a visão jusnaturalista de um direito natural foi perdendo
espaço para a idéia de um Direito codificado e sistematizado que passou a se
afirmar como a vontade do legislador, independente da conformidade desta vontade
com a razão, o que contribuiu, via de conseqüência, para a corrosão de seu
paradigma de pensamento.
A experiência jurídica dos séculos XIX e XX determinou a supremacia do direito
positivo em detrimento ao direito de inspiração natural, identificando-se tão somente
como Direito o Direito Positivo. Segundo o positivismo jurídico, ao direito não importa
a valoração subjetiva individual, mas apenas a norma positivada. Sua base de
59
VIEIRA, 2006. pp. 30-31.
60
VIEIRA, 2006. p. 31.
61
LUNO, 2004. pp. 31-32.
62
VEIRA,2004. p. 31.
34
validade não é outra senão o próprio ordenamento, dentro do conceito da Norma
Hipotética Fundamental.
63
Hart salienta que para os juspositivistas o “[...] sistema jurídico é um sistema lógico
fechado em que as decisões correctas podem deduzir-se das regras jurídicas
predeterminadas através de meios lógicos”.
64
Tal explanação leva ao enfrentamento de se saber se os direitos humanos são
apenas reconhecidos e, portanto, declarados pelo ordenamento normativo, ou, ao
contrário, são por ele constituídos.
A corrente jusnaturalista pressupõe que existem direitos antes de seu
reconhecimento, e, portanto, seu fundamento encontra-se fora da positividade e do
próprio Estado. Então, no dizer de Rogério Gesta Leal, “[...] poderia encontrar-se no
âmbito da ética, da natureza humana, do direito natural ou dos valores”
65
.
A corrente juspositivista, por sua vez, parte do princípio de que os direitos humanos
surgem e nascem quando acolhidos pelo direito positivo.
66
No presente trabalho,
perfilha-se o entendimento de Gérman Bidart Campos, para quem:
63
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 1.
64
HART, Herbert L.A. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p.
288.
65
LEAL, 2003. p. 319.
66
É preciso fazer uma distinção entre os termos direito e direitos. Genaro Carrió esclarece que para
compreender essa distinção, basta observarmos os seguintes enunciados: 1) O direito italiano proíbe
o homicídio; 2) Todos os cidadãos têm direito a reunir-se pacificamente e sem armas. No primeiro
enunciado, o vocábulo “direito” se refere a um conjunto de regras ou normas; o que se denomina
“direito objetivo” (em inglês “the law). E no segundo, o mesmo vocábulo se refere, ao contrário, a um
atributo de alguns sujeitos, o que se denomina “direito subjetivo” (em inglês “right”). Os direitos, são
então, atributos que correspondem a sujeitos, e em particular, a sujeitos humanos. Os direitos não
são atributos “naturais”, como a estatura: são atributos “artificiais”. Em outras palavras, os direitos são
as qualidades que os humanos m se, e quando, são-lhes atribuídas. Atribuídas por quem e por
quê? Pois bem, os direitos não são atribuídos aos homens senão por normas jurídicas, ou seja, pelo
direito objetivo. Mas adverte que a linguagem comum admite a existência de direitos conferidos por
normas não jurídicas (e que, portanto, não dependem do direito objetivo). No original: Para
comprender la distinción, es suficiente con observar los dos enunciados siguientes: 1) “El derecho
italiano prohibe el homicio”; 2) Todos los ciudadanos tienen derecho a reunir-se pacíficamente y sin
armas”. Em el primer enunciado, el vocablo derechose refiere a un conjunto de reglas o normas: lo
que suele llamar “el derecho objetivo” en inglês “the law”). En el segundo, el mismo vocablo se refiere,
em cambio, a um atributo próprio de algunos sujetos: lo que se suele llamar “el derecho subjetivo
(em inglês: “a right”). Los derechos son, entonces, atributos que corresponden a sujetos, y en
35
Não dúvida de que a instância prévia (ou o fundamento) dos direitos que
se incorporam à positividade é uma exigência (ética ou jurídica) cujo dever-
ser ideal necessita dos homens (em seu conhecimento e em sua
realização), quando os homens imprimem positividade aos direitos estão
fazendo simultaneamente duas operações: reconhecendo aquela instância
prévia de dever-ser, e em seguimento dela, constituindo em positivos os
direitos que, até esse momento, realmente não eram positivos (por mais que
sejam naturais ou morais).
67
Destarte, a criação de um sistema positivado não implica o abandono da raiz
jusnaturalista dos direitos humanos. Ao contrário, é plenamente reconhecido que
estes são inerentes ao ser humano, decorrendo daí que eles não surgem da vontade
dos Estados, mas são por estes positivados, a fim de lhes conferir uma qualidade
jurídico-normativa, possibilitando que sejam reconhecidos como fontes formais de
direitos subjetivos e, se for o caso, que sejam deduzidos em juízo ou perante órgãos
internacionais.
68
Contudo, a conclusão a que se chega é a de que o jusnaturalismo e o positivismo
jurídico entendem o Direito a partir de uma posição unidimensional. Apesar das
inúmeras contribuições de cada uma dessas correntes, percebe-se que nenhum
entendimento isolacionista pode prevalecer ao se estudar o Direito, enquanto
fenômeno social, tendo em vista que são vários os fatores que o condicionam.
69
particular, a sujetos humanos. Bien entendido, los derechos son atributos naturales”, como la
estatura o el bigote: son atributos “artificiales”. Em otras palabras, los derechos son cualidades que
los humanos tienen si, y cuando, lês son atribuídas. Atribuídas por quién e por qué? Pues bien, los
derechos non son atribuídos a los hombres sino por normas: típicamente (pero non necessariamente)
por normas jurídicas, es decir, por el derecho objetivo (CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y
Lenguage. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994, pp. 179-180).
67
No original: No hay duda de que la instancia previa (o el fundamento) de los derechos que se
incorporan a la positividade es uma exigência (ética o jurídica) cuyo deber ser ideal precisa de los
hombres (em su conocimiento y em su realización), cuando los hombres imprimen positividad a los
derechos están haciendo simultáneamente dos operaciones: reconociendo aquella instancia previa
de deber ser, y em seguimiento de ella constituyendo em positivos a los derechos que, hasta ese
momento, realmente no eran positivos (por más que sean naturales o Morales”. (CAMPOS, Gérman
J. Bidart. Teoria general de los direitos humanos. Buenos Aires: Astrea, 1991. p. 103).
68
WEIS, Carlos. Os direitos humanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 23.
69
Essas são as constatações do professor Daury César Fabriz, segundo o qual “do quadro
paradigmático do direito natural e da dicotomia direito natural e direito positivo nasce toda a
problemática em torno dos direitos humanos”. Para o referido autor, “a dicotomia entre jusnaturalismo
e jusracionalismo deve ser superada por um novo paradigma que possa compreender os direitos
humanos como uma categoria de direitos que se devem estabelecer como fundamento ao direito
supremo da vida e da dignidade do ser humano, como valores a serem perseguidos por toda
humanidade” (FABRIZ, 2003. p. 237).
36
Nesse sentido, a Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale configurou um
relevante avanço comparando-se com as acepções mencionadas. Para Miguel
Reale, “[...] Direito é a realização ordenada e garantida do bem comum numa
estrutura tridimensional [...]”.
70
Toda experiência jurídica compreenderia três elementos: fato, valor e norma. No
entendimento do mesmo autor, o Direito teria sempre uma relação dialética contendo
“[...] um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência);
um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um
aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça)”.
71
Apesar da dialética Teoria Tridimensional ter contribuído, sobremaneira, no
entendimento do Direito enquanto fenômeno dotado de tríplice dimensão, cabe
ressaltar que o próprio Miguel Reale admite que “[...] como fato social e histórico, o
Direito se apresenta sob múltiplas formas, em função de múltiplos campos de
interesse, o que se reflete em distintas e renovadas estruturas normativas”
72
.
Nesse passo, Eduardo Angel Russo afirma que os sistemas abertos não se definem
pelos elementos que os compõem, mas pela sua finalidade, na medida em que esta
podem sofrer modificação por influência do meio ao qual deve se adaptar.
73
De igual
modo, Karl Larenz a respeito dispõe que:
O sistema interno [jurídico] não é, como se depreende do que foi dito, um
sistema fechado em si, mas um sistema aberto, no sentido de que são
possíveis tanto mutações na espécie de jogo concertado dos princípios, do
seu alcance e limitação recíproca, como também a descoberta de novos
princípios; seja em virtude de alteração da legislação, seja em virtude de
novos conhecimentos da ciência do Direito ou modificações da
jurisprudência dos tribunais.
74
70
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva. 1994. p. 67.
71
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 26. ed. São Paulo: Saraiva. 2005. p. 64-65.
72
REALE, 2005. p. 3.
73
RUSSO, Eduardo Angel. Teoría general del derecho: en la modernidad e en la posmodernidad.
Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995. pp. 273-279.
74
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1997. p. 693.
37
Assim, é correto afirmar, corroborando o entendimento dos vários autores, que o
Direito é um fenômeno social, mas que depende de fatores históricos e culturais.
Para Miguel Reale, o direito é fato histórico-cultural ou produto de vida humana
objetivada, somente enquanto os fatos humanos se integram normativamente no
sentido de certos valores.
75
Assier-Andrieu segue mais além, ao afirmar que o Direito pode ser vislumbrado o
apenas sob o aspecto cultural, mas numa perspectiva “transcultural”, vez que o
Direito é ao mesmo tempo universal e relativo a cada cultura, condicionado a suas
especificidades estruturais. O referido autor indaga qual seria a parte em comum da
humanidade e a parte exclusiva de cada povo no campo jurídico.
76
Essa é a temática que gira em torno dos direitos humanos, na medida em que -
como salientado no início do trabalho -, a extensão do seu significado variará
segundo fatores históricos, sociais e culturais, não obstante o cleo central do
conceito de “direitos humanos” seja direcionado a todos os povos. Isto é, embora o
cerne dos direitos humanos tenha caráter universal direito à vida, direito à
liberdade, direito à dignidade, direito à saúde, direito à educação, direito à moradia
devem-se admitir nuanças em cada país dentro de uma esfera razoável do
proporcional. Nas lições de Daury César Fabriz os direitos humanos:
[...] devem atuar concomitantemente com os direitos fundamentais de cada
ordem jurídico-constitucional em particular. Na aplicação de determinado
preceito positivado por dado ordenamento particular, deve-se colocar em
mira os valores que norteiam os direitos humanos.
77
Considerando sua precedência à norma e seu caráter universal, que inerente a
todos os homens, compartilha-se o posicionamento de que a conceituação
contemporânea dos direitos humanos ultrapassa as fronteiras culturais, sociais,
históricas e políticas de cada nação, vindo a integrar as diversas normas globais
atualmente veiculadas por meio de tratados e declarações internacionais.
75
REALE, 1994. p. 80.
76
ASSIER-ANDRIEU, M. O direito nas sociedades humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.
55.
77
FABRIZ, 2003. pp. 237-238.
38
Consoante leciona Flávia Piovesan, na esfera positiva, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948 “[...] demarca a concepção contemporânea dos direitos
humanos, que remete à unidade conceitual e indivisível destes direitos, em que o
valor da liberdade deve ser conjugado ao valor da igualdade”.
78
A Declaração de 1948, além de inovar, ao introduzir os elementos que passariam a
caracterizar a concepção atual dos direitos humanos, como a universalidade, a
indivisibilidade e a interdependência, foi também o primeiro documento a tratar dos
direitos humanos, tanto civis e políticos quanto econômicos, sociais e culturais, de
maneira indivisível, ainda que reconhecendo sua distinta natureza jurídica.
79
Entrementes, não se pode esquecer da clássica lição de Norberto Bobbio, para
quem o grave problema de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, “não é
mais o de conceituá-los ou de fundamentá-los, mas sim, o de protegê-los”.
80
Não se
trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e
fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim,
qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declarações, eles sejam continuamente violados.
Por isso, hoje um dos principais papéis que se espera das democracias modernas é
a efetiva tutela destes direitos. Entretanto, esse papel foi fruto da evolução histórica
da figura dos Estados e de seus diversos paradigmas constitucionais, o que
justificará e demonstrará a necessidade de uma prévia abordagem histórica da
evolução do próprio Estado.
78
PIOVESAN, Flávia. A proteção internacional dos direitos humanos e o direito brasileiro. In:
Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo, ano 3, n. 9, out/dez 1994. p. 27.
79
WEIS, 1999. p. 23.
80
BOBBIO, 1992. p. 25.
39
2 O SURGIMENTO DOS ESTADOS CONSTITUCIONAIS E
A TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS
Na perspectiva do nosso trabalho, como delineado acima, os direitos humanos
são todos aqueles direitos inerentes aos homens e, portanto, existentes antes
mesmo da criação da figura do Estado.
Todavia, a conscientização da necessidade da tutela de tais direitos foi
contemporânea ao processo de formação e sedimentação do próprio Estado de
Direito. Nesse sentido, o presente capítulo tem por escopo traçar um paralelo entre o
surgimento deste modelo de Estado e a evolução da tutela dos direitos humanos,
que a defesa dos direitos do homem foi entregue aos Estados como justificativa
legitimadora da manifestação do exercício de seu poder.
Analisar-se-á, assim, o perfil da evolução histórica do Estado para demonstrar que
todas as mudanças de paradigmas surgiram a partir das necessidades constatadas
em cada época até se chegar ao Estado Democrático de Direito.
Cabe, por conseguinte, analisar a inter-relação entre o Estado Democrático de
Direito e a salvaguarda dos direitos humanos.
2.1 AS ORIGENS DA TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS:
UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-COMPARATIVA DO
SURGIMENTO DO ESTADO DE DIREITO E SUA
EVOLUÇÃO PARA O ESTADO CONSTITUCIONAL
DEMOCRÁTICO
Examinado o processo de efetivação dos direitos humanos, Fernando Gonzaga
Jayme pondera que “[...] ao estágio civilizatório atual não se chegou
instantaneamente. Aaqui vivenciou-se um longo percurso histórico, que permeia
toda a existência humana. É através dessa trajetória que se dão a conhecer os
direitos humanos”. De tal sorte que “[...] o reconhecimento dos direitos humanos é
40
resultado de um processo histórico que coincide com a própria formação da
sociedade moderna”.
81
Depreende-se, do fragmento acima transcrito, que o processo de reconhecimento
dos direitos humanos está intimamente relacionado com o surgimento do próprio
Estado e da sociedade, razão pela qual impõe-se relevante investigar o perfil da
evolução histórica do Estado, no intuito de se demonstrar que todas as mudanças de
paradigmas surgiram a partir das necessidades constatadas em cada época. É dizer,
o conteúdo dos direitos humanos e, por conseguinte, a necessidade de proteção de
tais direitos, são determinados historicamente, sendo produto do desenvolvimento
da humanidade.
“Quase todos os povos do mundo vivem na ambiência do ‘Estado’”.
82
Daí a
necessidade de, inicialmente, precisar o que se entende por tal instituto. Cumpre
esclarecer que não cabe aqui um estudo de teoria do Estado, o que justificaria a
realização de outra dissertação. Embora reconheça a existência de sociedades
historicamente antecedentes à formação do Estado, tais como, a família patriarcal, o
clã e a tribo, a gens romana, a fratria grega, a gentilidade ibérica, o senhorio feudal,
entre outras, o foco deste capítulo restringe-se, o somente, à análise do
surgimento do Estado de Direito de matriz européia e norte-americana, e sua
evolução ao Estado Constitucional Democrático, passando pelo Estado Social.
Seguindo o entendimento de Jorge Miranda, o Estado é um fenômeno
historicamente situado. Não equivale ao político, é tão-só uma manifestação do
político que ocorre em certas circunstâncias e se reveste de certas características.
Encontra-se ligado a eventos bem conhecidos e assume diversas configurações
consoante os condicionamentos a que se encontra sujeito, podendo emergir em
qualquer época, lugar ou civilização, reportando-se, sobretudo, ao Estado de matriz
teórica européia dos últimos quinhentos anos.
83
Acrescenta o autor português que:
81
JAYME, 2005. p. 14.
82
MIRANDA. Pontes. Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos. 1. ed. Campinas:
Bookseller, 2002. p. 28.
83
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 159.
41
[...] o Estado deve ser encarado como processo histórico a par de outros.
Quer como idéia ou concepção jurídica ou política quer como sistema
institucional, o Estado não se cristaliza nunca numa fórmula acabada; está
em contínua mutação, através de várias fases de desenvolvimento
progressivo (às vezes regressivo); os fins que se propõe impelem-no para
novos modos de estruturação e eles próprios vão-se modificando e, o mais
das vezes, ampliando.
84
A transformação na terminologia utilizada para designar a sociedade política,
materializa a evolução dos seus tipos e dos respectivos conceitos. Assim, a partir da
polis grega e da civitas ou res publica, segue-se, na Idade Média, a adoção de
regnum, como entidade política juridicamente diferenciada da pessoa do rei. Mas é
com o aparecimento do moderno Estado europeu que se impõe uma nova
denominação.
Dalmo de Abreu Dallari, brindando-nos com sua obra Elementos de Teoria Geral do
Estado
85
, em capítulo destinado ao estudo da origem e formação do Estado,
ressalta que a denominação Estado (do latim status = estar firme), significando
situação permanente de convivência e ligada à sociedade política, aparece pela
primeira vez em O Príncipede Maquiavel, escrito em 1513, na Itália renascentista:
Todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens
são Estados e são repúblicas ou principados
86
.
Todavia, o Estado
87
que se conhece hoje, comumente definido através de três
elementos ou condições de existência povo, território e poder político é apenas
um dos tipos possíveis de Estado, qual seja, o Estado nacional soberano, que
nascido na Europa, se espalhou recentemente por todo o mundo, edificado a partir
84
MIRANDA, 2002. p. 23.
85
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. São Paulo: Saraiva, 2002. p.
51.
86
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Roberto Grassi. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2005. p. 25.
87
O Estado Moderno de tipo europeu, para lá das características globais de qualquer Estado,
apresenta, porém, ainda características muito próprias: - Estado nacional: o Estado tende a
corresponder a uma nação ou comunidade histórica de cultura; o factor de unificação política deixa,
assim, de ser a religião, a ocupação bélica ou a vizinhança para passar a ser uma afinidade de índole
nova; - Secularização ou laicização: porque por influxo do Cristianismo e ao contrário do que
sucede com o Estado islâmico o temporal e o espiritual se afirmam esferas distintas e a
comunidade já não tem por base a religião, o poder político não prossegue fins religiosos e os
sacerdotes deixam de ser agentes do seu exercício; - Soberania: ou poder supremo aparentemente
ilimitado, dando ao Estado não só capacidade para vencer as resistências internas à sua acção como
para afirmar a sua independência em relação aos outros Estados (pois trata-se agora de Estado que,
ao invés dos anteriores, tem de coexistir com outros Estados)”. (MIRANDA, Jorge. 2002. p. 33).
42
de uma profunda transformação do poder político, conseqüência de influências
econômicas, sociais e culturais.
Em termos históricos, a partir da ineficácia das estruturas políticas medievais, faz-se
necessária a unificação do poder político frente ao poder feudal local, a fim de
garantir a ordem e a segurança, imprescindíveis para que a classe social em
ascensão – a burguesia – pudesse desenvolver sua atividade mercantil.
Discorrendo sobre a origem histórica dos direitos fundamentais, em sua obra
Lecciones de Derechos Fundamentales”, Gregório Peces-Barba Martinez se refere
à nova segurança como sendo a segurança jurídica, através do Direito, a qual
necessitaria de um referente unificador das normas, qual seja, o Estado, com sua
pretensão de monopólio no uso da força legítima. Daí se inicia a consolidação no
mundo moderno da idéia de que a primeira função do poder político e de todo o
sistema jurídico é a organização pacífica da convivência humana.
88
Com o mercantilismo da época, baseado na idéia de que a riqueza das nações se
produz pela acumulação de metais preciosos e de dinheiro, reforça-se o poder do
Estado Absoluto. Não obstante, esta política econômica beneficia os interesses da
burguesia, vez que fornece a segurança de que necessitava inicialmente.
Gregório Peces-Barba Martinez enumera uma série de características que nos
permitem identificar esse Estado moderno, das quais destacamos as principais.
Senão vejamos: a) o monopólio no uso da força legítima a nova forma de
organização política afirma seu poder contra a supremacia da Igreja Católica, contra
os senhores feudais e contra o Império. Trata-se de um poder que não reconhece
outro superior, sedimentado sobre o conceito de soberania como “poder absoluto e
perpétuo de uma república”, na definição de Jean Bodin; b) o monopólio da
produção normativa - a primeira função do soberano seria a criação do Direito,
abrindo-se, assim, uma dialética entre o Direito Natural e o Direito Positivo, termo
que com o Estado Moderno passa a ser Direito estatal. As características desse
novo Direito estatal favoreceram a passagem dos privilégios medievais aos direitos
naturais do homem e dos cidadãos; c) a consideração do indivíduo como súdito -
88
MARTINEZ, 2004. pp. 76-77.
43
supõe o indivíduo como o único sujeito na relação com o monarca absoluto, com a
destruição do poder dos estamentos, e como complemento do monopólio do uso da
força legítima; d) a utilização da força do fator religioso para favorecer a unidade e o
poder do monarca absoluto – através da idéia de Igreja Nacional (a Igreja da
Inglaterra a partir de Enrique VIII), e do princípio “cuius regio eius religio”, em virtude
da qual os súditos devem seguir a religião de seu monarca, o fator religioso se
exterioriza a favor do Estado.
89
Nestes termos, leciona Thomas Fleiner:
Os reis da Idade Média se consideravam soberanos pela graça divina e
encarregados de guiar o destino do povo a serviço de Deus. Toda atividade
estatal se exercia em nome de Deus. E aquele que governa em nome de
Deus, ou seja, o soberano pela graça de Deus, não observa os direitos
humanos. O rei é soberano e não se submete a nenhum poder judicial.
90
Numa fase subseqüente, vai procurar-se atribuir ao poder uma fundamentação
racionalista dentro do ambiente do iluminismo dominante. Como nos explica Jorge
Miranda:
[...] é o ‘despotismo esclarecido’ ou, noutra perspectiva, em alguns países, o
‘Estado de polícia(tomando-se então o Estado como uma associação para
a consecução do interesse público e devendo o príncipe, seu órgão ou seu
primeiro funcionário, ter plena liberdade nos meios para o alcançar).
91
Nesse contexto, donde o uso político da religião enseja situações de violência e de
perseguição que resultam em guerras, as quais dificultam o comércio e afetam
gravemente a consciência dos indivíduos, donde o Estado Absoluto deixa de ser um
elemento de apoio e obsta o desenvolvimento da burguesia proprietária e
comerciante, iniciam-se as primeiras formulações da filosofia dos direitos humanos,
em defesa da tolerância e da limitação do poder absoluto.
Impulsionada por uma nova mentalidade liberal, a burguesia desencadeia um
processo de reivindicações que se inicia com a busca de uma esfera de autonomia
para o progresso do comércio, da economia de mercado livre e para o
desenvolvimento da profissão, e desemboca na luta pelos direitos políticos e das
liberdades civis.
89
MARTINEZ, 2004. pp. 78-79.
90
FLEINER, Thomas. O que são direitos humanos? Trad. Andressa Cunha Curry. São Paulo: Max
Limonad, 2003. p. 27.
91
MIRANDA, Jorge, 2002. p. 43.
44
Nas sociedades mais avançadas, esse indivíduo burguês reclama a direção dos
assuntos públicos, busca um sistema político e uma nova ideologia que se
cristalizam na Inglaterra desde o século XVII (com a Revolução Industrial) e, em
suas colônias norte-americanas (na Revolução Americana, com as primeiras
constituições escritas em sentido moderno) e na França (Revolução Francesa), no
século XVIII. Gregório Peces-Barba Martinez faz uma reflexão acerca desse novo
modelo de sociedade, e o considera um ponto de partida na construção do consenso
sobre os direitos humanos. Assim direciona-se o seu pensamento:
[...] o consenso que constrói a idéia dos direitos fundamentais, parte de um
dissenso anterior sobre a situação da Monarquia absoluta. O ponto de
partida será esse desacordo, e essa impossibilidade de desenvolver os
pensamentos individualistas da burguesia em um ambiente político fechado.
Primeiro, a burguesia e a monarquia foram aliadas para acabar com as
estruturas medievais, visto que o novo poder centralizado proporcionaria a
segurança que a burguesia necessitava inicialmente. Quando esta
consolidou sua força social, necessitou abrir os horizontes políticos e
impulsionou o dissenso, junto com os humanistas, com os cientistas e os
pertencentes a seitas ou Igrejas distintas da religião dos monarcas. Num
segundo momento, burguesia e monarquia foram adversárias. Tratava-se
de um dissenso, ponto de partida da construção de um consenso. Se se
desconfiava e se rechaçava o poder absoluto, arbitrário e acima da Lei,
dever-se-ia construir uma filosofia que limitasse, regulasse, e racionalizasse
esse poder. Nesse consenso, que é o incipiente constitucionalismo do
Estado Liberal, surgirá a filosofia e o Direito positivo dos direitos
fundamentais.
92
Destarte, quando a mentalidade do mundo moderno e a reflexão sobre a
organização do poder - que produziram o primeiro constitucionalismo frente ao
Estado Absoluto - alcançam êxito social, está-se diante do Estado de Direito
Liberal
93
e dos primeiros modelos históricos dos direitos humanos. O Estado de
92
No original: “[...] el consenso que construye la Idea de los derechos fundamentales, parte de um
disenso anterior sobre la situacion de la Monarquia absoluta. El punto de partida será esse
dasacuerdo, y esa imposibilidad de desarrollar los planteamientos individualistas de la burguesia en
um marco político cerrado. Primero, burguesia y monarquia fueron aliadas para acabar com el
universo medieval, porque el nuevo poder centralizado proporcionaba la seguridad que la burguesia
reclamaba inicialmente. Cuando ésta consolidó su fuerza social, necesitó abrir los horizontes políticos
e impusó el disenso, junto com los humanistas, los funcionários (la “noblesse de robe”), con los
cientificos y los pertencientes a sectas o Iglesias no coincidentes com la religion del monarca. En ese
segundo momento, burguesia y monarquia fueron adversárias. Se trataba de un disenso, punto de
partida de la construccion de un consenso. Si se desconfiaba y se rechazaba um Poder absoluto,
arbitrário y por encima de la Ley, se debia construir una filosofia que limitase, regulase y racionalizase
ese Poder. En esse consenso, que es el Del incipiente constitucionalismo del Estado liberal, surgirá a
filosofia y el Derecho positivo de los derechos fundamentales”. (MARTINEZ, 2004. p. 90).
93
Os partidários da corrente liberal contribuíram para desenhar as categorias institucionais nas quais
pouco depois se fixaria a doutrina democrática. Têm em comum a rejeição do absolutismo real e a
defesa dos direitos do povo. A axiomática democrática começava a se definir; no entanto, estava
45
Direito Liberal é uma forma de Estado limitado por excelência, no dizer de Jorge
Miranda:
O Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado
liberal, assente na idéia de liberdade e, em nome dela, empenhado em
limitar o poder político tanto internamente (pela sua divisão) como
externamente (pela redução ao mínimo das suas funções perante a
sociedade). [...] Mas, apesar de concebido em termos racionais e até
desejavelmente universais, na sua realização histórica não pode
desprender-se de certa situação socioeconômica e sociopolítica. Exibe-se
também como Estado burguês, imbricado ou identificado com os valores e
interesses da burguesia, que então conquista, no todo ou em grande parte,
o poder político e econômico.
94
Acrescenta o jurista português que Estado de Direito é o Estado em que, para
garantia dos direitos dos cidadãos, se estabelece juridicamente a divisão do poder e
em que o respeito pela legalidade (seja a mera legalidade formal, seja – mais tarde –
a conformidade com valores materiais) se eleva a critério de acção de governos.
95
Nessa esteira, adequada a lição de Carlos Ary Sundfeld, segundo o qual no Estado
de Direito os governantes também estão submetidos às normas, ou seja, é o Estado
que “[...] realiza suas atividades debaixo da ordem jurídica, contrapondo-se ao
superado Estado-Polícia, onde o poder político era exercido sem limitações jurídicas,
apenas se valendo de normas jurídicas para se impor aos cidadãos”.
96
Enfim, o Estado de Direito surge essencialmente com a finalidade de salvaguardar
as liberdades individuais contra a opressão do poder. Porém, a vinculação do
Estado à lei, para ser efetiva, exige que, dentro dele, uma mesma autoridade não
seja incumbida de fazer a lei e, ao mesmo tempo, aplicá-la, ao que se denomina
separação de poderes. De outra sorte, essa separação não pode ser alterada pelo
legislador, por meio de lei, pois bastaria legislar para anular o poder do administrador
e do juiz, além de suprimir os direitos dos indivíduos através de lei. Em suma, deve
haver uma norma superior à lei e ao Estado, definindo a estrutura deste e garantindo
direitos aos indivíduos. Essa norma denomina-se Constituição.
aureolada, no despontar do séc. XVIII, de uma idealidade que a realidade ainda estava longe de
refletir.
94
MIRANDA, Jorge. 2002. p. 47.
95
MIRANDA, Jorge. 2002. p. 46.
96
SUNDFELD, Carlos Ary. Fundamentos de direito público. 4.ed. rev., aum. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 36.
46
Daí que para J. J. Gomes Canotilho, “o estado de direito é um estado
constitucional. Pressupõe a existência de uma constituição que sirva valendo e
vigorando de ordem jurídico-normativa fundamental vinculativa de todos os
poderes”.
97
Referindo-se a passagem do Estado Absoluto ao Estado de Direito,
Norberto Bobbio assevera que:
Com o nascimento do Estado de Direito que ocorre a passagem final do
ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado
despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No
Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos
privados. No Estado de Direito, o individuo tem, em face do Estado, o
direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de Direito é o
Estado dos cidadãos.
98
Destarte, afirma-se que as origens da tutela dos direitos humanos coincidem com as
origens da limitação do poder do Estado, de tal sorte que o conceito de direitos
humanos vincula-se à imposição de limites ao poder do governante. Thomas Fleiner,
nesse sentido, nos ensina que “a idéia fundamental da concepção moderna dos
direitos humanos consiste no fato de que incumbe precisamente ao governo
respeitar os direitos humanos”.
99
Como finalidade do Estado de Direito aparece, pois, a tutela de tais direitos.
Mas é
preciso deixar claro que no Estado burguês de Direito somente são direitos humanos
aqueles anteriores e superiores ao Estado, aqueles que o Estado reconhece e
protege como existentes antes dele.
Aí, se um estreito “nexo de causalidade” entre o Estado de Direito e os direitos
fundamentais
100
, como aponta Antonio E. Perez Luño, que a idéia de Estado de
Direito está baseada na garantia daqueles direitos, bem como estes exigem para
sua realização o Estado de Direito.
101
Nessa ordem de raciocínio, Fernando
Gonzaga Jayme leciona:
97
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:
Livraria Almedina, 1998. p. 241.
98
BOBBIO, 1992. p. 61.
99
FLEINER, 2003. p. 27.
100
No sentido de direitos humanos constitucionalizados.
101
LUÑO, 2004. p. 19.
47
O Estado de Direito se tornou a garantia essencial destes direitos, na
medida em que limitava a positivação e manutenção do ordenamento
jurídico, para garantir a cada indivíduo a liberdade para desenvolver suas
habilidades. O Estado atuava em conformidade com as leis previamente
estabelecidas, gerais, claras e precisas, o que evitaria lesões de direito. O
poder emanava do Direito, e não de outras ordens transcendentais.
102
Os direitos humanos passaram, dessa forma, a ser inseridos na ordem jurídica e
política de cada país, manifestando-se em gerações
103
ou dimensões
104
, que se
traduzem em um processo cumulativo e quantitativo que coincide com a seqüência
histórica de sua institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade.
Inicialmente, na primeira fase do constitucionalismo moderno ocidental, têm lugar os
direitos humanos de primeira dimensão. São os direitos de liberdade, quais sejam,
os direitos civis e políticos, que têm por titular o indivíduo, e, por isso, são oponíveis
ao Estado, traduzindo-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentando uma
subjetividade que é o seu traço mais característico.
105
Nesse passo, é a orientação
de Celso Lafer:
Com efeito, num primeiro momento, na interação entre governantes e
governados que antecede a Revolução Americana e a Revolução Francesa,
os direitos do homem surgem e se afirmam como direitos do indivíduo face
ao poder do soberano no Estado absolutista. Representavam, na doutrina
liberal, através do reconhecimento da liberdade religiosa e de opinião dos
indivíduos, a emancipação do poder político das tradicionais peias do poder
religioso e através da liberdade de iniciativa econômica a emancipação do
poder econômico dos indivíduos do jugo e do arbítrio do poder político.
106
Os direitos humanos reconhecidos por esse modelo de Estado, vieram revestidos de
alto teor individualista e da desconfiança dos governantes, haja vista que a liberdade
individual prevalece como valor supremo.
102
JAYME, 2005. p. 20.
103
Essa expressão sofre muitas críticas na doutrina. Paulo Bonavides, por exemplo, entende que a
referência a “gerações” induz à idéia de sucessão cronológica e à caducidade das gerações
antecedentes, razão pela qual sugere como termo mais adequado “dimensões” que idéia de
integração. Tese com a qual se corrobora no presente trabalho. (BONAVIDES, 2000. p. 518).
104
Ingo Wolfgang Sarlet prefere o termo dimensões” ao termo gerações” dos direitos fundamentais,
ambos tão utilizados na doutrina nacional e estrangeira. Esclarece que não se pode olvidar que o
reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo
cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão
“gerações” pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra.
(SARLET, 2004. p. 53).
105
BONAVIDES, 2000. p. 517.
106
LAFER, 1999. p. 126.
48
Nesse contexto, os direitos humanos da Declaração de Virgínia e da Declaração
Francesa de 1789, o direitos humanos de primeira dimensão, que segundo Lafer,
baseiam-se numa clara demarcação entre Estado e não-Estado, fundamentada no
contratualismo de inspiração individualista:
São vistos como direitos inerentes ao indivíduo e tidos como direitos
naturais, uma vez que precedem o contrato social. Por isso, são direitos
individuais: (I) quanto ao modo de exercício é individualmente que se
afirma, por exemplo, a liberdade de opinião; (II) quanto ao sujeito passivo do
direito pois o titular do direito individual pode afirmá-lo em relação a todos
os demais indivíduos, que estes direitos têm como limite o
reconhecimento do direito do outro (...); e (III) quanto ao titular do direito,
que é o homem na sua individualidade.
107
Ingo Wolfgang Sarlet destaca que os direitos fundamentais de primeira dimensão
são “apresentados como direitos de cunho ‘negativo’, uma vez que dirigidos a uma
abstenção, e não a uma conduta positiva por parte dos poderes públicos, sendo,
neste sentido, ‘direitos de resistência ou de oposição perante o Estado’”.
108
Essa
afirmação fundamenta-se na concepção do Estado Mínimo.
Para Carl Schimitt, os mais importantes direitos humanos reconhecidos nas
declarações do século XVIII são: liberdade, propriedade privada, segurança, direito
de resistência e liberdade de consciência e de religião.
109
Tais direitos - na visão de
Gregório Peces-Barba Martinez - não são somente elaboração racional, mas sim,
conseqüência de uma realidade, de uma situação fática.
110
Todavia, na medida em que o Estado Liberal de Direito evolui para o Estado Social
de Direito, os direitos humanos deixam de ser meros limites negativos ao exercício
do poder publico para definir um conjunto de valores ou fins diretivos da ação
positiva dos poderes públicos.
111
Abordando os liames entre Estado de Direito e
Estado Social, Carlos Ary Sundfeld indaga que:
107
LAFER, 1999. p. 126.
108
SARLET, 2004. p. 54.
109
SCHIMITT, Carl. Teoria de la Constituición. Madrid: Alianza, 1982. p. 165.
110
MARTINEZ, 2004. p. 93.
111
LUÑO, 2004. p. 21.
49
O liberalismo, gerador do Estado de Direito, tinha seu modelo econômico
calcado no absenteísmo estatal: era preciso que o Estado o interferisse
nos negócios dos indivíduos, restringindo sua ação à garantia da ordem, da
paz, da segurança. Em suma, queria-se um Estado mínimo, com reduzidas
funções, sem interferência na vida econômica. [...] Será possível, porém,
que o Estado amplie suas funções, passando a interferir intensamente na
vida econômica, inclusive para nivelar as desigualdades sociais, sem deixar
de ser Estado de Direito? A questão foi posta neste século quando a crise
econômica do primeiro pós-guerra levou o Estado a assumir – forçado, diga-
se, pelas exigências da própria sociedade – um papel ativo, seja como
agente econômico (instalando indústrias, ampliando serviços, gerando
empregos, financiando atividades), seja como intermediário na disputa entre
poder econômico e miséria (defendendo trabalhadores em face de patrões,
consumidores em face de empresários).
112
Em decorrência da deplorável situação da população pobre das cidades
industrializadas da Europa Ocidental, constituída, sobretudo, por trabalhadores
expulsos do campo ou atraídos por ofertas de trabalho nos grandes centros e a
constatação de que os mecanismos do Estado Liberal já não eram suficientes diante
de um capitalismo desumano e escravizador, começaram a florescer a partir de
meados do século XIX diversas doutrinas de cunho social defendendo a intervenção
estatal como forma de reparar as alterações sociais ocorridas.
113
A liberdade cede
espaço à igualdade.
Fez-se necessária uma “reconfiguração paradigmática”, ou seja, uma reordenação
do direito, a fim de se propiciar respostas às novas demandas que surgem do
próprio contexto social, parafraseando o jurista Daury César Fabriz.
114
O Estado torna-se um Estado Social, positivamente atuante para ensejar o
desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do nível cultural e a
mudança social) e a realização de justiça social dizer, a extinção das injustiças na
divisão do produto econômico). O Estado Social, por sua vez, não se contrapõe aos
direitos conquistados no âmbito do paradigma liberal, mas tão-somente busca a
realização daqueles valores, em um momento posterior, com base em um novo
ideário.
115
112
SUNDFELD, 2000. p. 54.
113
WEIS, 1995. p. 39.
114
FABRIZ, 2003. p. 259.
115
FABRIZ, 2003. p. 259.
50
Nesse contexto, os direitos civis e políticos de primeira dimensão foram adquirindo
uma conotação econômica e social sendo acrescidos dos direitos humanos de
segunda dimensão, assim denominados porque pressupõem um alargamento da
competência estatal, requerendo a intervenção do poder público para reparar as
condições miseráveis de sobrevivência da população. O indivíduo adquire o direito
de exigir certas prestações positivas do Estado, tais como, o direito à educação, à
previdência social, à saúde, ao seguro-desemprego e outros mais. Consoante
leciona Paulo Bonavides:
São os direitos sociais, culturais, econômicos bem como os direitos
coletivos ou de coletividade, introduzidos no constitucionalismo das distintas
formas do Estado Social, depois que germinaram por obra da ideologia e da
reflexão antiliberal deste século. Nasceram abraçados ao princípio da
igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a
desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula.
116
Celso Lafer esclarece que tais direitos surgem das reivindicações dos
desprivilegiados a um direito de participar do “bem-estar social”, entendido como os
bens que os homens, através de um processo coletivo, vão acumulando no
tempo.
117
Em que pese entendimento doutrinário diverso
118
no que concerne à titularidade dos
direitos sociais e econômicos, segue-se o pensamento de Celso Lafer, para quem os
direitos humanos de segunda geração têm como sujeito passivo o Estado porque,
na interação entre governantes e governados, foi a coletividade que assumiu a
116
Discorrendo sobre as revoluções ocorridas nos séculos XVIII e XIX, que culminaram na passagem
do Estado Liberal ao Estado Social, Paulo Bonavides nos ensina que cada revolução daquelas
intentou ou intenta tornar efetiva uma forma de Estado. Primeiro, o Estado liberal, a seguir, o Estado
socialista, depois o Estado Social das Constituições programáticas, assim batizadas ou
caracterizadas pelo teor abstrato e bem intencionado de suas declarações de direitos, e, por último, o
Estado Social dos direitos fundamentais, este sim, por inteiro capacitado da juridicidade e da
concreção dos preceitos e regras que garantem estes direitos (BONAVIDES, 2000. p. 518).
117
LAFER, 1999. p. 127.
118
Com entendimento diverso, Fabio Konder Comparato assinala que o titular desses direitos não é o
ser humano abstrato, mas o conjunto dos grupos sociais oprimidos pela miséria, a doença, a fome e a
marginalização.
De fato, não se pode dizer que tais direitos como o direito ao trabalho, à saúde, à
educação - são inerentes à própria natureza humana, mas sim produto da necessidade humana, da
contextualização social.
(COMPARATO, 2004. p. 53).
51
responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito, no entanto, continua sendo,
como nos direitos de primeira dimensão, o homem na sua individualidade.
119
A partir daí, na sociedade de massa que a democracia se tornou, os indivíduos e os
grupos não tardaram em multiplicar suas reivindicações em relação ao Estado. O
direito se pluralizou em direitos. Assim nasceu a idéia do “Estado-Providência”,
segundo a terminologia utilizada por Simone Goyard-Fabre.
120
A citada autora acrescenta que a proliferação dos direitos, numa democracia que se
tornou “providencial” foi vertiginosa, o que coloca em risco a própria subsistência da
democracia. Isso porque, a inflação quantitativa dos direitos provoca sua
desvalorização qualitativa de modo tal que, numa democracia “providencial”, se tudo
é direito, mais nada é direito. O Estado-Providência transforma-se numa sociedade
que provê seguridade e é regida pelo “direito da necessidade”.
121
E quando o Estado é elevado à condição de “segurador universal”, a conta é de toda
a sociedade. Embora caiba ao Estado-Providência responder à maioria das
reivindicações individuais e coletivas, sendo inclusive este o papel legitimador de
sua própria instituição e manutenção, a atuação estatal positiva deverá estar adstrita
à realização, dentro de uma esfera de razoabilidade, da vontade geral da sociedade
que ele conforma, que não se confunde com a vontade de todos, correspondente à
somatória dos interesses individuais de cada membro da coletividade, sob pena de
falência da própria capacidade estatal de promoção do bem comum.
No campo do Direito Positivo, surge o que se convencionou chamar de
Constitucionalismo Social, inspirado na tese de que os direitos humanos devem
cumprir sua função social. Os primeiros documentos com caráter social foram as
Constituições francesa de 1848, mexicana de 1917, alemã de 1919, e a russa de
1918.
122
119
LAFER, 1999. p. 127.
120
GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 289.
121
GOYARD-FABRE, 2003. pp. 289-290.
122
WEIS, 1995. p. 39.
52
No final do século XX, o aumento das reivindicações pela sociedade, geradas,
dentre outros fatores, pelo impacto tecnológico, pelo estado de beligerância, bem
como pelo processo de descolonização do segundo pós-guerra, passaram a refletir
profundamente na esfera dos direitos humanos, contribuindo para o reconhecimento
daqueles direitos humanos denominados de terceira dimensão, correspondentes aos
direitos concernentes a toda humanidade, tais como o direito à paz, à
autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à qualidade
de vida, bem como o direito à conservação e à utilização do patrimônio histórico e
cultural e o direito de comunicação. São os chamados direitos de fraternidade ou
solidariedade, em que a universalidade é característica marcante.
São os direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Agora, a exigência de solidariedade passa a ser levada em consideração pelos
Estados membros da comunidade internacional. As instituições internacionais que
atualizam o texto declarativo de 1948 como por exemplo, a Convenção Européia
dos Direitos do Homem, a Corte Européia dos Direitos do Homem, a Organização
Internacional do Trabalho, a Organização Mundial da Saúde -, irão impor uma
legislação supranacional em terrenos tão delicados como a bioética, a eutanásia, a
inseminação artificial etc.
123
Segundo Antonio E. Perez Luño, os direitos de terceira dimensão podem ser
considerados uma resposta ao fenômeno denominado de “poluição das liberdades”,
que caracteriza o processo de erosão e degradação sofrido pelos direitos e
liberdades fundamentais, principalmente em decorrência do uso de novas
tecnologias.
124
A transformação das relações sociais advindas do fenômeno da
massificação acarretou, ainda, o advento de conflitos de natureza difusa, envolvendo
um número indeterminado de pessoas. Daí o surgimento dos direitos
metaindividuais.
O cerne da distinção destes direitos de terceira dimensão, como assinala Ingo
Wolfgang Sarlet, reside basicamente na sua titularidade coletiva, isto é, nos grupos
123
GOYARD-FABRE, 2003. p. 291.
124
LUÑO, 2004. p. 206.
53
humanos como a família, o povo, a nação, coletividades regionais ou étnicas e a
própria humanidade.
125
Como último estágio da evolução dos direitos humanos em suas diversas
dimensões, surge um novo modelo estatal voltado a assegurar a participação da
sociedade na formação da vontade política, até mesmo como forma legitimadora e
mantenedora da função precípua do Estado. Nesse cenário, surgem os chamados
direitos humanos de quarta dimensão, que segundo leciona Paulo Bonavides, são
os decorrentes da “globalização política”: direito à democracia, direito à informação
etc.
126
Não bastava, portanto, que o Estado de Direito fosse um Estado Constitucional,
sendo necessário, então, fosse também ele um Estado Democrático. Conforme se
infere das lições de J. J. Gomes Canotilho, o Estado constitucional moderno deve ter
um lastro democrático para conferir-lhe legitimidade: “O Estado constitucional não é
nem deve ser apenas um Estado de direito. [...] Ele tem de estruturar-se como
Estado de direito democrático, isto é, como uma ordem de domínio legitimada pelo
povo”.
127
Adequada, nesse contexto, é a fala de Carlos Ary Sundfeld, segundo o qual um
Estado Democrático de Direito é aquele onde o povo, sendo o destinatário do poder
político, participa, de modo regular e baseado em sua livre convicção, do exercício
desse poder. O mero Estado de Direito decerto controla o poder, e com isso protege
os direitos individuais, mas não garante a participação dos destinatários no seu
exercício.
128
Resta demonstrado, então, que a transformação do Estado de Direito em Estado
Democrático é uma das conseqüências da mudança no conceber a missão do
Estado, que se consagrou em meados do séc. XX. Nessa senda, Norberto Bobbio
pondera que:
125
SARLET, 2004. p. 57.
126
BONAVIDES, 2000. p. 518.
127
CANOTILHO, 1998. pp. 91-92.
128
SUNDFELD, 2000. p. 49.
54
[...] o estado liberal é o pressuposto não só histórico, mas jurídico do estado
democrático. Estado liberal e estado democrático são interdependentes em dois
modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são
necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e
na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é
necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das
liberdades fundamentais.
129
Assim, os direitos garantidos pela Constituição Democrática aos indivíduos que no
mero Estado de Direito se limitavam à proteção das manifestações individuais em
face do poder, tais como, direito de exercer uma profissão, direito de não ser preso
indevidamente, direito de possuir bens se ampliam em outros, em especial, no
asseguramento jurídico da participação popular nas decisões do Estado. Surgem
não apenas o direito de votar, de ser votado, de fundar e participar de direitos
políticos correspondentes à garantia imediata da participação no poder -, como
seus necessários sustentáculos: os direitos à liberdade de expressão do
pensamento e de imprensa, de reunião, de informação, e outros mais.
130
Partindo-se dessa premissa, passar-se-á a investigar como as democracias
modernas orientam-se em direção à realização dos direitos humanos,
demonstrando, em linhas gerais, que a herança histórica de cada país influenciou
diretamente no modelo constitucional de proteção adotado, ainda que a tendência
atual seja a uniformização e globalização da tutela destes direitos, até mesmo como
forma de aumentar a sua efetividade.
2.2 AS DEMOCRACIAS MODERNAS E A TUTELA DOS
DIREITOS HUMANOS
Da ruptura com os dois modelos de Estados anteriores Liberal e Social surge o
Estado Democrático de Direito. Como bem esclarece Américo Bedê Freire Junior,
em razão das promessas não cumpridas, “[...] foi construído um novo paradigma: o
129
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 6. ed. Paz e
Terra: São Paulo, 1997. p. 24.
130
SUNDFELD, 2000. p. 51.
55
Estado Democrático de Direito, que buscava oferecer soluções qualitativamente
superiores aos demais estágios do constitucionalismo”.
131
O Estado Democrático de Direito é o cenário propício para a obtenção do bem
comum, para a busca da concretização dos direitos humanos. É nesse cenário
democrático que se assenta o sistema de proteção dos direitos humanos, consoante
se pode inferir das lições de Fernando Gonzaga Jayme:
É a partir da forma democrática que se constrói o sistema de proteção dos
direitos humanos, porque somente em estados democráticos encontram-se
instrumentos hábeis a garanti-los e concretizá-los [...]. A limitação do poder
estatal e um sistema de garantias contra eventuais abusos de direitos,
oponíveis inclusive ao próprio Estado, constituem fenômeno privativo das
democracias. A realização dos direitos essenciais da pessoa humana
tem sentido e importância em um ambiente onde reinem igualdade e
liberdade, sendo a forma democrática de governo a única concebida para
assegurar e desenvolver tais valores.
132
Cançado Trindade enfrentou a questão, afirmando que “um dos temas da maior
atualidade, neste final de culo
133
, é o das interrelações da democracia com os
direitos humanos [...]”.
134
O citado autor se refere à “indissociabilidade” entre direitos
humanos e democracia:
[...] O tema da democracia de per se tem sido, porém, objeto de debates
continuados ao longo dos séculos, desde o pensamento clássico até o
contemporâneo. O que há de novo a respeito é a transposição desses
debates também ao nível internacional, abarcando os planos tanto
conceitual como operacional, e com o enfoque deslocado às relações na
verdade, à indissociabilidade entre a democracia e os direitos humanos.
Esta nova visão é, além de alentadora, compreensível, dado que a
formulação e sistematização destes direitos são historicamente recentes, -
certamente bem mais recentes que as construções teóricas em torno da
democracia.
135
131
FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Revista
dos Tribunais. 2005. p. 26.
132
JAYME, 2005. pp. 25-26.
133
Cançado Trindade se refere ao final do século XX.
134
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos.
São Paulo: Saraiva, 1991. p. 201. v. II.
135
TRINDADE, 1991. p. 202.
56
Partindo-se da premissa de que a democracia antecede cronologicamente os
direitos humanos, sendo inclusive um dos pilares da proteção e do reconhecimento
desses direitos, cumpre investigar o significado do que seja democracia
136
.
Do ponto de vista etimológico, o vocábulo e o conceito de democracia têm origem
grega. Segundo suas raízes, a palavra democracia designa o poder do povo
(demos, kratos). Corresponde a uma noção surgida precisamente na Grécia antiga,
a partir do século VI antes da nossa era, em Mileto, Megara, Samos e Atenas. Daí
que “ninguém teria a pretensão de afirmar que ‘a invenção democrática’ é obra
específica e gloriosa dos séculos modernos. A política e a filosofia despontaram
juntas no berço da Grécia antiga [...]”.
137
Do ponto de vista meramente formal, distinguem-se, na evolução das instituições
políticas, três modalidades básicas de democracia: a direta, a indireta e a semidireta,
ou simplesmente, a democracia não representativa ou direta e a democracia
representativa - indireta ou semidireta -, que é a democracia dos tempos modernos.
A democracia direta poderia ser definida como a forma de governo em que se
verifica uma coincidência imediata entre a titularidade e o exercício do poder por
parte da população. Em outros termos, o direito de tomar as decisões políticas e de
criar as normas jurídicas seria exercido diretamente pelos cidadãos, de acordo com
o princípio da maioria.
138
Trata-se de um exercício direto da soberania popular, que
prescinde completamente de mecanismos de representação. Nesse mesmo sentido,
Pontes de Miranda nos ensina que:
Democracia direta é aquela em que os membros que compõem o grupo
social resolvem sobre o que há de ser a lei ou o ato de execução, inclusive
julgamento judicial, relativo a interesse público. Elemento essencial desse
136
Na tentativa de encontrar o conceito de democracia, Simone Goyard-Fabre desenvolveu a obra “O
que é democracia”, a partir da qual demonstra que não existe um ponto de ruptura entre a
democracia antiga e a democracia moderna, de tal sorte que não é possível compreender o que a
democracia é hoje, com suas qualidades e seus defeitos, suas esperanças e seus malefícios, sem
revisar a genealogia dos conceitos e das categorias que sustentam seu edifício e balizam sua história
(GOYARD-FABRE, 2003. p. 1).
137
GOYARD-FABRE, 2003. p. 9.
138
ROYO, Javier Perez. Curso de derecho constitucional. Marcial Pons: Madrid, 2003. p. 631.
57
conceito é não haver vontade interposta entre os que votam e a
deliberação.
139
É do conhecimento geral que Atenas foi o berço da democracia direta, onde o povo,
reunido no Ágora
140
, para o exercício direto e imediato do poder político,
transformava a praça pública “no grande recinto da nação”.
141
Mas a democracia de que Atenas forneceu o primeiro modelo ao Ocidente não
significava que “todos” governam, mas que “todos os cidadãos” participam do
governo. O “povo” da democracia ateniense não eram todos os indivíduos que
viviam de modo permanente sob o governo de Atenas, e sim, uma pequena parte
deles, fato que demonstra a amplitude limitada dessa democracia. O povo (demos)
saudado como soberano, não se confundia com toda população (plèthos) da
Cidade-Estado. Somente eram levados em consideração os “cidadãos”
142
, o que
excluía não só os escravos, que excediam em número os homens livres, mas
também as mulheres, consideradas inferiores, e os metecos, que eram estrangeiros
residentes em Atenas.
143
Ainda que de forma limitada, esse sistema foi possível, a partir de alguns fatores que
contribuíram e permitiram a forma direta de governo do povo nos Estados gregos,
especialmente, a pequena extensão desses Estados e o número pequeno de
“cidadãos”. Por essa razão, a eclésia ou assembléia do povo podia facilmente reunir-
se na Ágora, deliberar publicamente e até votar por meio de mãos erguidas.
144
Já no séc. XVIII, a democracia direta estaria implícita na teoria do contrato social (ou
pacto social) de Rousseau, isto é, o ato fundador ou constituinte do Estado.
Pertinente, a esse respeito, a fala de Javier Perez Royo:
139
MIRANDA, Pontes. 2002. p. 215.
140
O Ágora, na cidade grega, fazia o papel do Parlamento nos tempos modernos (BONAVIDES,
Paulo. Ciência Política. 10. ed. Malheiros: São Paulo, 2003. p. 268).
141
BONAVIDES, 2003. p. 268.
142
Só eram “cidadãos” chamados a participar do exercício do poder os homens que já tinham atingido
a idade legal de dezoito anos, regra geral que foi sendo restringida, com o correr da história de
Atenas, pela adição de critérios de nascimento e de censo. Tais restrições viram-se sujeitas a revisão
no transcurso dos séculos (GOYARD-FABRE, 2003. p. 20).
143
GOYARD-FABRE, 2003. p. 20.
144
GOYARD-FABRE, 2003. p. 21.
58
A vontade popular resultante do pacto social, cuja máxima expressão é a lei,
pode ser entendida, segundo Rousseau, como uma forma de
autodeterminação individual. Ao obedecer à lei o indivíduo não es
obedecendo mais que a si mesmo.
145
Daí a necessidade de que cada indivíduo participe de maneira imediata e direta na
formação da vontade geral, na formulação da lei. Qualquer corpo representativo que
pretendesse formulá-la exigiria a presença de intermediários entre os cidadãos, que
impediriam a correta formação da vontade geral a partir das vontades
exclusivamente individuais.
146
A democracia representativa, por sua vez, constituiu-se a partir das revoluções
Americana e Francesa, vindo a expandir-se para a Europa Ocidental, ex-colônias
africanas e latino-americanas e até para o Oriente.
147
Dessa forma, pode-se afirmar que da concepção de democracia direta da Grécia, na
qual o cidadão livre da sociedade criava a lei, com a intervenção de sua vontade,
passa-se à concepção de democracia indireta, a dos tempos modernos,
caracterizada pela presença do sistema representativo.
148
A esse respeito,
pertinentes as palavras de Norberto Bobbio:
A democracia moderna, nascida como democracia representativa em
contraposição à democracia dos antigos, deveria ser caracterizada pela
representação política, isto é, por uma forma de representação na qual o
representante, sendo chamado a perseguir os interesses da nação, não
pode estar sujeito a um mandato vinculado. O princípio sobre o qual se
funda a representação política é a antítese exata sobre o qual se funda a
representação dos interesses, no qual o representante devendo perseguir
os interesses particulares do representado, está sujeito a um mandato
vinculado (típico do contrato de direito privado que prevê a revogação por
excesso de mandato).
149
145
ROYO, 2003. p. 633.
146
De fato, após admitir que o governo democrático pudesse convir aos pequenos Estados, mas
apenas a estes, diz que “um povo que governar sempre bem não necessitará de ser governado”
(DALLARI, 2002. p. 147).
147
JAYME, 2005. p. 30.
148
Mas, em vez de privilegiar, como se tende a fazer hoje, a idéia de uma ruptura radical entre a
tradição e a modernidade, gostaríamos de mostrar que, desde seu princípio, o pensamento grego
moldou a matriz de um regime de governo cujos axiomas básicos e princípios diretores o direito
político conservou no transcurso dos séculos e até hoje, não obstante suas diversas evoluções
(GOYARD-FABRE, 2003. p. 13).
149
BOBBIO, 1997. p. 24.
59
Mas a representação, como técnica de organização do Estado Democrático, não se
justifica apenas pela valoração negativa que Montesquieu atribui ao povo, devido a
essa incapacidade do povo de governar-se por si mesmo. Salienta Paulo Bonavides,
pois, que “razões de ordem prática fazem do sistema representativo condição
essencial para o funcionamento do Estado moderno”.
150
Deveras, o Estado moderno o é o Estado-Cidade de outrora, mas o Estado-
Nação, de grande superfície territorial. Assim sendo, não se mostra possível ao
Estado moderno adotar técnica de conhecimento e captação da vontade dos
cidadãos semelhante àquela que se consolidava nas cidades gregas. É difícil
imaginar nos tempos atuais o tumulto que seria reunir em praça pública toda a
massa do eleitorado, todo o corpo de cidadãos, para fazer as leis, para administrar.
Assevera o professor Bonavides que:
O homem da democracia direta, que foi a democracia grega, era
integralmente político. O homem do Estado moderno é homem apenas
acessoriamente político, ainda nas democracias mais aprimoradas, onde
todo um sistema de garantias jurídicas e sociais faz efetiva e válida a sua
condição de ‘sujeito’ e não apenas ‘objeto’ da organização política.
151
Ressalte-se, contudo, que os eleitores, quando escolhem alguém em eleição,
exercem sem intermediário a sua vontade. No entanto, a democracia, aí, não é
direta, ainda que o seja a eleição. O que faz ser direta, ou indireta a democracia, é o
fato de haver ou não haver, interposição de outra vontade, por mínima que seja. “A
escolha de alguém que faça a regra jurídica ou que delibere sobre a adoção dela, ou
que seja autônomo no executar, já é estranho e incompatível com todo o conceito de
democracia direta”.
152
Tecnicamente, diz-se que na democracia representativa o povo concede um
mandato a alguns cidadãos, para, na condição de representantes, externarem a
vontade popular e tomarem decisões em seu nome, como se o próprio povo
estivesse governando.
150
BONAVIDES, 2003. p. 272.
151
BONAVIDES, 2003. p. 273.
152
MIRANDA, Pontes. 2002. p. 215.
60
Há, porém, alguns institutos
153
, que embora considerados por alguns autores como
característicos da democracia direta, não dão ao povo a possibilidade de ampla
discussão antes da deliberação, sendo por isso classificados pela maioria como
representativos da democracia semidireta.
154
Tais institutos são o referendum, o
plebiscito, a iniciativa popular, o veto popular, o recall.
155
Nessa esteira, salienta Darcy Azambuja que a democracia semidireta
156
se trata de
uma aproximação da democracia direta. É um sistema misto, pois guarda as linhas
gerais do regime representativo, mas tem o poder de intervir, às vezes, diretamente
na elaboração das leis e em outros momentos decisivos do funcionamento dos
órgãos estatais.
157
Pontes de Miranda, ao contrário, não admite a classificação de
democracia semidireta, sendo categórico ao afirmar que:
A principal classificação das democracias é em democracia direta e
democracia indireta. Os dois conceitos são precisos e distintos. Não
democracia direta-indireta. O que se pode dar é a mistura das duas, sem se
fundirem. Combinam-se, sem qualquer produção de terceira classe de
democracia.
158
Compreendido o significado de democracia nas suas diversas extensões, é possível
concluir que não que se falar em efetiva proteção dos direitos humanos em
sistemas antidemocráticos, uma vez que a função legitimadora de tais governos
consiste, na verdade, na realização plena destes direitos.
153
A Constituição pátria prevê os institutos da democracia semidireta no art. 14, in verbis: A
soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II referendo; III iniciativa popular”
(BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado, 1988).
154
DALLARI, 2002. p. 153.
155
O referendum consiste na consulta a posteriori à opinião pública para a introdução de uma
emenda constitucional ou mesmo de uma lei ordinária, quando esta afeta um interesse público
relevante. O plebiscito consiste numa consulta prévia à opinião popular. A iniciativa confere a um
certo número de eleitores o direito de propor uma emenda constitucional ou um projeto de lei. Pelo
veto popular dá-se aos eleitores, após a aprovação de um projeto pelo Legislativo, um prazo,
geralmente de sessenta dias, para que requeiram a aprovação popular. O recall é uma instituição
norte-americana, que tem aplicação em duas hipóteses diferentes: ou para revogar a eleição de um
legislador ou funcionário eletivo, ou para reformar decisão judicial sobre constitucionalidade de lei
(DALLARI, 2002. pp. 153-155).
156
No Brasil e em vários outros Estados (Portugal, França, Itália, Áustria, Alemanha, Suécia), adotou-
se a democracia semidireta como forma de harmonizar a soberania popular com a democracia
representativa (JAYME, 2005. p. 30).
157
AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado. 37. ed. Globo: São Paulo, 1997pp. 223-224.
158
MIRANDA, Pontes, 2002. pp. 214-215.
61
No plano jurídico, a relação entre direitos humanos e democracia está demonstrada
nos preâmbulos da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e da
Convenção Americana dos Direitos Humanos. A Declaração Universal dos Direitos
do Homem afirma que “todos os seres humanos nascem livres em dignidade e
direitos”. A Convenção Americana de Direitos Humanos ressalta que a implantação
de “um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos
direitos humanos essenciais”, ocorrerá dentro do quadro das instituições
democráticas.
159
Também a União Européia passa a incluir na agenda de suas preocupações a
questão da consolidação da democracia e do respeito aos direitos humanos na
região. Em face das cláusulas democráticas e de direitos humanos, como condição
imperativa para que um Estado pertença à União Européia, destaca-se o respeito
aos direitos humanos, à democracia e à qualidade de Estado de Direito.
160
Nesse passo, a proteção dos direitos humanos, no âmbito do Mercosul do qual o
Brasil é integrante - Bolívia e Chile, compreende a proteção em caráter primário, no
âmbito das jurisdições internas, e as obrigações internacionais decorrentes da
adesão à Convenção Americana de Direitos Humanos, inclusive com a aceitação da
competência contenciosa da Corte Interamericana por parte de todos os Estados-
membros do Mercosul e membros associados. A participação plena no sistema
interamericano é sinal claro da disposição desses Estados em garantir padrões
internacionais de respeito aos direitos humanos.
161
Cançado Trindade ressalta que o diálogo em escala universal gerado pela
convocação e realização da II Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena,
em junho de 1993, tem realçado a importância da interrelação entre democracia,
desenvolvimento e direitos humanos. o mais se tratava de continuar
159
JAYME, 2005. pp. 26-27.
160
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional:
desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 50.
161
SABÓIA, Gilberto Vergne. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, Globalização Econômica e
Integração Regional: desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad,
2002, p. 168.
62
considerando estes elementos individualmente, mas sim, de aprofundar o exame de
sua interrelação e suas conseqüências práticas.
162
Não se pode perder de vista, porém, que a democracia relaciona-se com a totalidade
dos direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. No dizer de
José Luiz Quadros de Magalhães, é impossível “o tratamento estanque dos vários
grupos de direitos que compõem os direitos humanos”
163
. No mesmo sentido,
adequada a lição de Cançado Trindade:
Tendo presente a importância permanente dos direitos civis e políticos, cabe
ir mais além, porquanto a consideração das relações entre a democracia e
os direitos humanos não de confinar-se à vigência tão-só daquela
“categoria” de direitos. É o que nos recomenda a concepção, hoje
universalmente aceita, da interrelação ou indivisibilidade de todos os direitos
humanos. Assim, o tema em questão de ser considerado igualmente à
luz dos direitos econômicos, sociais e culturais. Tomando-o, de início, à luz
dos direitos políticos, que se convir que a democracia não se reduz à
realização de eleições. A legitimidade destas resultantes de contar com
as práticas democráticas subseqüentes. As eleições são um componente da
democracia, que nelas naturalmente não se esgota, porque esta requer
ademais o Estado de Direito, o governar para o bem comum, com a
participação de toda a sociedade civil e com leis justas.
164
No Brasil e em muitos países latino-americanos as eleições não têm sido encaradas
como um meio para a prestação de serviço à comunidade, mas, ao contrário, como
simples meio para a tomada de poder. O poder passou a abrigar práticas escusas e
antidemocráticas, abusos de corrupção desenfreada e alimentada pela impunidade,
escândalos, ameaçando a própria governabilidade, formação e concentração de
162
No tocante ao primeiro componente da tríade, no transcurso do processo preparatório da
Conferência de Viena se identificaram os seguintes elementos. Considerados essenciais da
democracia: existência de instituições que garantam a observância dos direitos humanos e o Estado
de Direito; Poder Executivo periodicamente eleito, em eleições independentes com rotação no poder,
e respeito pela vontade popular como base da legitimidade do governo; Poder Legislativo
periodicamente eleito, e pluralista; Poder Judiciário independente, capaz de controlar a legalidade dos
atos legislativos e administrativos (inclusive para assegurar a vigência dos direitos básicos); a
separação dos Poderes, com o Executivo apto a prestar contas ao Legislativo e sujeito ao controle
jurisdicional; existência de instituições adicionais de controle; o pluralismo ideológico; a liberdade de
associação (especialmente dos trabalhadores); a satisfação das necessidades humanas básicas
(alimentação, moradia, vestuário, educação, trabalho) na implementação dos direitos econômicos,
sociais e culturais; a fiscalização e exigência de responsabilidade das autoridades; a assistência
judiciária para assegurar o acesso de todos à justiça (prevalência das garantias do devido processo, e
proteção judicial); a liberdade de imprensa; o respeito pelos direitos das minorias (inclusive diferentes
religiões, e povos indígenas), com mecanismos que garantam sua participação política, e medidas
especiais de assistência. (TRINDADE, 1991. pp. 204-205I).
163
ROBERT; MAGALHÃES, 2002. p. 205.
164
TRINDADE, 1991. p. 235.
63
grande riqueza nas mãos de poucos, em contraposição a um empobrecimento
crescente da grande maioria da população.
165
A isto se soma o descrédito generalizado da população na política, o que aumenta
ainda mais o número de partidos de aluguéis e, em conseqüência, a falta de
fiscalização dos eleitos e de participação da sociedade civil na supervisão do
exercício de poder.
Todavia, aponta-se hoje o fenômeno da globalização como a causa principal dos
desafios atuais à democracia, tanto na dimensão ético-procedimental quanto na
dimensão substantiva da participação, solidariedade coletiva e cidadania ativa.
166
No
mesmo sentido, alerta José Luiz Quadros de Magalhães que outro aspecto
importante referente a problemas atuais “[...] diz respeito à internacionalização da
economia e à mudança dos centros de poder decisional sobre questões políticas e
econômicas”.
167
A ninguém é possibilitado desconsiderar que o cenário internacional tem-se
transformado com uma velocidade impressionante nos últimos anos, impulsionado,
sobretudo, a partir do final da guerra fria com a simbólica queda do Muro de Berlim,
surgindo então um modelo liberal da economia de mercado internacional, assentado
sobre um sistema internacionalizado de produção em larga escala e mercado de
consumo.
Cumpre ressaltar, seguindo as idéias de Wagner Menezes, que esta nova realidade
internacional não decorre de um único fato isolado, mas de vários fatores
conjugados, como os propiciados pelos avanços tecnológicos nas áreas de
comunicação e tecnologia de informação, como a telefonia, a informática e pela
internet, vindo a dinamizar sobremaneira as relações humanas entre indivíduos dos
mais distantes lugares do mundo, o surgimento de novos atores internacionais como
organizações internacionais (ONU, OMC), blocos econômicos (MERCOSUL, UNIÃO
EUROPEIA, NAFTA) e ONG´S, e na transferência do poder soberano estatal até
165
TRINDADE, 1991. pp. 204-205.
166
VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. Record. Rio de Janeiro, 2001. p. 255.
167
ROBERT; MAGALHÃES, 2002. p. 213.
64
então absoluto para corporações econômicas, que atuando em conjunto influem
diretamente na pauta de discussão da sociedade internacional.
168
O primeiro fenômeno da globalização refere-se a formação dos blocos regionais,
com objetivos econômicos e políticos. O segundo movimento verificado no processo
de globalização está associado aos direitos humanos. As violações de direitos
humanos, em uma parte do mundo têm sido sentidas, cada dia mais, como algo
inadmissível. O estabelecimento de parâmetros jurídico-morais comuns e a
embrionária formação de uma sociedade civil internacional, por sua vez, são
responsáveis pelo estabelecimento de uma solidariedade internacional cada vez
maior.
Por fim, a expansão do mercado internacional, a hegemonia do pensamento
econômico-liberal e a proximidade provocada pelos meios de comunicação, têm sido
responsáveis pela redução do papel do Estado e o realinhamento de suas
instituições, em conformidade com o figurino ditado pelas instituições financeiras
internacionais, pelos detentores do capital transnacional, assim como pela política
expansionista das economias centrais.
“É preciso, portanto, existir um vetor em direção contrária à hegemonia econômica e
à lógica perversa da acumulação de capital. Esse vetor é a efetivação dos direitos
humanos [...]”.
169
Veja-se, a respeito, a lição de José Luiz Quadros de Magalhães:
É necessário levar, para o plano internacional, a idéia de condicionamento
das políticas econômicas e da ordem econômica internacional aos valores
refletidos pelos textos internacionais de direitos humanos, assim como
ocorre no plano interno. As respostas para estas questões muitas vezes têm
que ser retiradas da vivência, do debate e da reflexão, para que possamos
construir mecanismos eficazes de implementação de direitos humanos, que
correspondam às constantes modificações socieconômicas de nosso tempo.
Devemos discutir sobre a necessidade de construção de um modelo
constitucional que crie mecanismos de comunicação e, portanto, de
discussão, que permita à população, aos cidadãos de uma comunidade,
encontrar as suas próprias respostas para os seus problemas diários e suas
expectativas, estando o Poder e a estrutura administrativa estatal a serviço
168
MENEZES, Wagner. In: PIMENTEL, Luiz Otávio. Direito Internacional e da Integração.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003, p. 92.
169
FREIRE JUNIOR, 2005. p. 33.
65
destas transformações permanentes legitimadas pelo processo democrático
constitucionalmente assegurado.
170
Todas essas necessidades políticas e sociais, surgidas ao longo da evolução
histórica das nações, passaram a reclamar uma resposta mais efetiva do Estado na
tutela dos direitos humanos, o qual foi se revelando incapaz de oferecer os
mecanismos necessários à proteção a tais direitos no âmbito interno, levando a uma
crescente tendência mundial de normatização dos direitos humanos para além das
fronteiras nacionais.
170
ROBERT; MAGALHÃES, 2002. p. 215.
66
3 OS SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS E A RELATIVIZAÇÃO DAS
SOBERANIAS NACIONAIS
Após a Segunda Grande Guerra Mundial, os direitos humanos são revestidos de um
aspecto internacionalizante. O espaço de reivindicação dos direitos pelos cidadãos
evoluiu da esfera geográfica restrita de um Estado, para a esfera global, a chamada
Comunidade Internacional.
A internacionalização dos direitos humanos consistiu, assim, em uma retomada dos
valores éticos e dos princípios destruídos pela guerra, permitindo, por conseguinte, a
formação de um sistema normativo internacional de proteção desses direitos, que
passou a produzir instrumentos de âmbito global e regional que efetivassem sua
tutela e aplicação.
Nesse novo cenário mundial, de internacionalização dos direitos humanos, faz-se
necessária a discussão sobre as relações entre o Direito Internacional e o direito
interno – já que se vive em tempo de globalização marcado por crescente integração
entre as nações, o que exige harmonização dos diversos sistemas jurídicos que
desta forma passaram a se relacionar mais proximamente -, ainda, conceituar os
tratados internacionais, considerados com a principal fonte do Direito Internacional e,
por fim, enfrentar a questão da corrosão do conceito tradicional de soberania
absoluta do Estado, temas que serão analisados a seguir.
3.1 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS:
DA RUPTURA À RECONSTRUÇÃO
O processo de internacionalização dos direitos humanos perpassa pelo exame da
idéia de “crise dos direitos humanos”
171
. É o que se depreende da substanciosa
171
LAFER, 1999. p. 118.
67
análise que fez Celso Lafer acerca do processo de ruptura e de reconstrução dos
direitos humanos, a partir de uma leitura arendtiana:
O valor da pessoa humana enquanto conquista histórico-axiológica encontra
a sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem. É por essa
razão que a análise da ruptura – o hiato entre o passado e o futuro,
produzido pelo esfacelamento dos padrões da tradição ocidental passa
por uma análise da crise dos direitos humanos, que permitiu o “estado
totalitário de natureza”. Este “estado de natureza” não é um fenômeno
externo, mas interno à nossa civilização, geradora de selvageria, que tornou
homens sem lugar no mundo.
172
A “crise dos direitos humanos” remonta à grande crise econômica de 1928-1929,
especialmente nos Estados Unidos da América, conseqüência direta da relação
entre a produção e a repartição, fato que demonstrou a fragilidade do mundo liberal
e suscitou a questão da introdução do direito econômico como outro elemento
essencial dos Direitos Humanos.
173
Esta crise fez aumentar a influencia da idéia
fascista do Estado Totalitário introduzido na Itália da década de 20 e emergente
na Alemanha e em outros Estados na década de 30.
Pouco tempo depois, o mundo viu estarrecido o maior conflito armado que se havia
imaginado, levando à morte milhares de pessoas. Não como esquecer os fatos
que marcaram a Segunda Guerra Mundial, caracterizados pela destruição e pela
descartabilidade da pessoa humana, isto é, da própria vida: o sacrifício da
população soviética, a perseguição violenta e genocida dos judeus em toda a
Europa, e o episódio das bombas nucleares norte-americanas sobre Hiroshima e
Nagasaki, no Japão, que se caracterizou por uma catástrofe de grandes proporções.
Todas essas atrocidades e horrores foram produções humanas. O mesmo homem
que durante séculos lutou pelo reconhecimento jurídico do valor da pessoa humana,
mostrava o seu poder de destruição, levando os direitos humanos a um estado
deplorável em vastas extensões territoriais.
Segundo leciona Celso Lafer, a barbárie do totalitarismo representou a ruptura do
paradigma dos direitos humanos. Nesse cenário, emerge a necessidade de
172
LAFER, 1999. p. 118.
173
ROBERT; MAGALHÃES, 2002. p. 178.
68
reconstrução desses direitos, como referencial e paradigma ético que aproxime o
direito da moral.
174
Sem dúvida, após a Segunda Guerra Mundial o mundo não era o mesmo. Os
direitos humanos sofreram violações nos quatro cantos do planeta. Tornava-se
urgente a reconstrução de tais direitos. Assim, a Segunda Guerra Mundial
caracterizou a ruptura dos direitos humanos e o pós-guerra a tentativa de sua
reconstrução.
Da dicotomia ruptura x reconstrução dos direitos humanos, nasce a idéia de que a
proteção destes direitos não deve se reduzir ao âmbito interno de um Estado, uma
vez que revela tema de legítimo interesse internacional. Nesse cenário, a
necessidade de uma ação internacional mais eficaz na proteção dos direitos
humanos impulsionou o processo de internacionalização
175
dos mesmos, que
culminou na criação da sistemática de proteção internacional, em que se faz
possível a responsabilização do Estado no domínio internacional.
Parte-se da premissa de que, sendo o principal papel do Estado a tutela dos direitos
básicos de seus cidadãos, a ocorrência de violações em proporções acima de uma
média razoável e tolerável, reclama a imposição de seu imediato dever de
reparação, sob pena de se esvaziar a própria razão legitimadora de sua existência,
quando, então, estar-se-ia diante da falência estatal.
Para Flávia Piovesan, a concepção de que a proteção dos direitos humanos não
deve se restringir a competência nacional ou à jurisdição doméstica exclusiva, fez
surgir duas importantes conseqüências:
1ª) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que
passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que o
admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos
humanos; isto é, permitem-se formas de monitoramento e responsabilização
internacional, quando os direitos humanos forem violados; 2ª) a cristalização
174
LAFER, 1999. pp. 153-154.
175
Esses são os ensinamentos de Flávia Piovesan. (PIOVESAN, 1994. p. 27).
69
da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera
internacional, na condição de sujeito de direito.
176
Na mesma linha, Antônio Augusto Cançado Trindade esclarece que não se
tratava de proteger indivíduos sob certas condições ou em situações circunscritas
como no passado (por exemplo, a proteção de minorias, de habitantes de territórios
sob mandato, de trabalhadores sob as primeiras convenções da OIT), mas de
proteger o ser humano como tal.
177
Ao longo dos anos passariam a coexistir inúmeros instrumentos internacionais de
proteção, de origens, natureza e efeitos jurídicos distintos ou variáveis (baseados em
tratados e resoluções), de diferentes âmbitos de aplicação (nos planos global e
regional), distintos também quanto aos seus destinatários ou beneficiários (tratados
ou instrumentos gerais e setoriais), e quanto a seu exercício de funções e a seus
mecanismos de controle e supervisão. E quando as vias internas ou nacionais se
mostram incapazes de assegurar a salvaguarda dos direitos humanos, devem ser
acionados os instrumentos internacionais de proteção.
178
No âmbito positivo, o marco deste processo de internacionalização dos direitos
humanos é a Declaração Universal de 1948, que após a Segunda Guerra Mundial,
vem a consagrar um consenso sobre valores de cunho universal, que afirma no seu
art. 1º que “[...] todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com
espírito de fraternidade”.
179
Nas exatas lições de Flávia Piovesan, “A Declaração Universal de 1948 combina o
discurso liberal da cidadania com o discurso social, elencando tanto direitos civis e
políticos, como direitos sociais, econômicos e culturais”. Tal instrumento, como
demonstramos no primeiro capítulo, introduz a concepção contemporânea dos
direitos humanos, caracterizada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos.
176
PIOVESAN, Flávia; GOMES, Luiz Flávio (Coord.). O sistema interamericano de proteção dos
direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 19.
177
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos e o
Brasil (1948-1997): as primeiras cinco décadas. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 23.
178
TRINDADE, 2000. p. 24.
179
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948.
70
Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a
crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e
titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos
é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-
versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos
compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada.
180
A
respeito da “universalização” dos direitos humanos, pertinentes as palavras de José
Augusto Lindgren Alves:
As afirmações de que a Declaração Universal é documento de interesse
apenas ocidental, irrelevante e inaplicável em sociedades com valores
histórico-culturais distintos, são, porém, falsas e perniciosas. Falsas porque
todas as Constituições nacionais redigidas após a adoção da Declaração
pela Assembléia Geral da ONU nela se inspiram ao tratar dos direitos e
liberdades fundamentais, pondo em evidencia, assim, o caráter hoje
universal de seus valores. Perniciosas porque abrem possibilidades à
invocação do relativismo cultural como justificativa para violações concretas
de direitos já internacionalmente reconhecidos. Se, na consideração dos
direitos humanos, os ocidentais privilegiam o enfoque individualista, e os
orientais e socialistas o enfoque coletivista, se os ocidentais dão mais
atenção às liberdades fundamentais e os socialistas aos direitos
econômicos e sociais, os objetivos teleológicos de todos são
essencialmente os mesmos. O único grupo de nações que ainda tem
dificuldades para a aceitação jurídica de alguns dos direitos estabelecidos
na Declaração Universal e sua adaptação às respectivas legislações e
práticas nacionais é o dos países islâmicos, para quem os preceitos da lei
corânica extravasam o foro intimo, religioso, dos indivíduos, com incidência
no ordenamento secular da comunidade. Embora diferentes escolas
muçulmanas defendam diferentes soluções para esse problema, o que tem
funcionado na prática, em nível geral de compatibilização jurídico-religiosa,
é a concepção dos direitos humanos como um núcleo essencial de direitos,
que permite diferenças na forma de sua aplicação.
181
Muitos preceitos da Declaração Universal foram, aos poucos, incorporados a
Tratados Internacionais, que possuem, por sua própria natureza, força jurídica
vinculante, o que seobjeto de análise ainda nesse capítulo.
Nesse sentido, merecem destaque os Pactos Internacionais de Direitos Civis e
Políticos e Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Em 1950 se firmou na
Europa o Convênio para a proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais, equivalente no âmbito europeu ao Pacto de Direitos Civis e Políticos
180
PIOVESAN, Flávia. A proteção internacional dos direitos humanos e o direito brasileiro. Cadernos
de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo, ano 3, n.º 09, out/dez 1994. p. 27.
181
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo:
Perspectiva, 2003. pp. 4-5.
71
da ONU, posteriormente completado com a Carta Social Européia, subscrita em
Turim no ano de 1961, que corresponde ao Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais das Nações Unidas.
182
Formou-se, assim, gradualmente, um complexo corpus iuris, em que, no entanto, a
unidade conceitual dos direitos humanos veio a transcender tais diferenças, inclusive
quanto às distintas formulações de direitos nos diversos instrumentos. Esse corpus
iuris em expansão veio a configurar-se como uma nova disciplina da ciência jurídica
contemporânea, dotada de autonomia, o Direito Internacional dos Direitos
Humanos.
183
Mas não se pode perder de vista a importância da Conferência Mundial de Direitos
Humanos, realizada em Viena, de 14 a 25 de junho de 1993. Consoante se infere
dos ensinamentos de José Augusto Lindgren Alves:
Observadas as especificidades das respectivas matérias, a Conferência de Viena
foi para os direitos humanos o que a Rio-92 foi para o meio ambiente. A
mobilização terá contribuído substantivamente para consolidar e difundir a
importância desses “temas globais”, de interesse para toda a humanidade. Os
marcos referenciais para o trabalho nacional e internacional sobre ambos, contudo,
são os documentos de caráter governamental delas emanados: a Agenda 21, da
Conferência do Rio de Janeiro, para o meio ambiente, e o desenvolvimento, e a
Declaração e o Programa de Ação de Viena, para os direitos humanos.
184
Com um preâmbulo de 17 parágrafos, uma parte operativa conceitual de 39 artigos e
um programa de ação com 100 parágrafos recomendatórios, a Declaração de Viena
é o documento mais abrangente adotado consensualmente pela comunidade
internacional sobre o tema. Não seria demasiado afirmar, corroborando o
entendimento de do citado autor, que foi a Declaração de Viena que conferiu caráter
efetivamente universal aos direitos definidos na Declaração Universal dos Direitos
182
LUNO, 2004. p. 42.
183
TRINDADE, 2000. p. 27.
184
Ao longo de todo o período preparatório da Conferência, a situação internacional deteriorou-se
significativamente. A vitória aliada na Guerra do Golfo não trouxe estabilidade à região; a Iugoslávia
esfacelou-se em conflitos armados; o fim da União Soviética aumentou a instabilidade internacional; o
fundamento religioso ganhou novos adeptos; a crise econômica internacional agravou-se; o
desemprego cresceu e o racismo xonofóbico europeu tornou-se mais ameaçador. (ALVES, 2003. p.
24).
72
Humanos, ao que o mencionado autor denomina de “reafirmação da universalidade
dos direitos humanos, acima de quaisquer particularismos”.
185
Além desse relevante significado, outro intento da Declaração de Viena foi o de
conseguir superar o relativismo cultural ou religioso existente entre os países
ocidentais e orientais, ao afirmar, no art. 1º: “A natureza universal de tais direitos e
liberdades não admite vidas”. Quanto às peculiaridades de cada cultura, o elas
tratadas no art. 5º, onde se registra que as peculiaridades históricas, culturais e
religiosas devem ser levadas em consideração, mas os Estados têm o dever de
promover e proteger todos os direitos humanos, independentemente dos respectivos
sistemas.
186
O reconhecimento da legitimidade da preocupação internacional com a promoção e
a proteção dos direitos humanos foi estabelecida no art. da Declaração,
confirmando, de toda sorte, o entendimento de que os direitos humanos extrapolam
às fronteiras reservadas dos Estados, desconsiderando o conceito absoluto de
soberania para encobrir eventuais violações.
Em função do que foi exposto, pode-se concluir que a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948 e Declaração de Viena, de 1993, representam um
avanço substancial para a causa dos direitos humanos. E o processo de
internacionalização dos direitos humanos permitiu, por sua vez, a formação de um
sistema normativo internacional de proteção destes direitos, marcado pela
coexistência do sistema global com o sistema regional.
A lição de Norberto Bobbio sintetiza muito bem o processo de evolução dos direitos
humanos positivação, constitucionalização e internacionalização quando conclui
que:
185
ALVES, 2003. p. 27.
186
ALVES, 2003. p. 27.
73
[...] os direitos humanos nascem como direitos naturais universais,
desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada
Constituição incorpora Declarações de Direito), para finalmente encontrarem
sua plena realização como direitos positivos universais.
187
Pensando na proteção dos direitos humanos como um corolário de medidas
suficientes para garantir o pleno desenvolvimento do homem em seus múltiplos
aspectos, quais sejam, o econômico, o cultural e o social, foi construída uma
verdadeira doutrina internacional que pode ser dividida em duas etapas
cronologicamente delimitadas como se constatou: a primeira nos primeiros anos do
pós-guerra e uma segunda nas décadas seguintes.
Faz-se necessária, assim, a implementação e efetivação desses direitos mediante a
criação de uma sistemática normativa internacional de proteção dos direitos
humanos, como se verá a seguir.
3.2 O SISTEMA DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS
DIREITOS HUMANOS: A COMPLEMENTARIDADE DOS
SISTEMAS GLOBAL E REGIONAIS
A proteção dos direitos humanos no plano internacional adquire, sem dúvida, uma
nova proporção após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em
1948. Com esse documento
188
, somado aos dois pactos de direito – Pacto de
Direitos Civis e Políticos e Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
ambos aprovados em 1966, os direitos humanos consagrados no sistema da
Organização das Nações Unidas (ONU) passam a repercutir em todos os
continentes.
187
BOBBIO, 1992. p. 30.
188
O Significado da Declaração decorre dos próprios objetivos da criação das Nações Unidas,
relacionados com a reconstrução da ordem mundial fundada em novos conceitos de direito
internacional, que se contrapusessem à doutrina da soberania nacional absoluta e à exacerbação do
Positivismo Jurídico, que possibilitaram o desenvolvimento de regimes políticos baseados na
hipertrofia estatal e conseqüente repúdio do fundamento jusnaturalista dos direitos humanos (WEIS,
1995. p. 68).
74
Forma-se o sistema normativo global de proteção internacional dos direitos
humanos, no âmbito das Nações Unidas. Paralelamente à iniciativa da Organização
das Nações Unidas, foram constituídos, no ocidente, sistemas regionais de proteção
destes direitos, sendo o europeu e o americano os que mais evoluíram desde então,
estando ainda incipiente a implantação dos sistemas regionais da África e do mundo
árabe, cada um, entretanto, com seu aparato jurídico próprio.
189
O sistema americano tem como principal instrumento a Convenção Americana de
Direitos Humanos (também chamada Pacto de San José da Costa Rica, de 1969),
que estabelece a Comissão Americana de Direitos Humanos e a Corte
Interamericana. o sistema europeu conta com a Convenção Européia de Direitos
Humanos (1950), que estabelece a Comissão e o Tribunal Europeu de Direitos
Humanos. Por fim, o sistema africano apresenta como principal instrumento a Carta
Africana de Direitos Humanos (1981).
O sistema global, por meio das suas normas e mecanismos de proteção, possui uma
esfera de atuação mais ampla, ao passo que os sistemas regionais têm por
premissas o âmbito geográfico mais restrito, embora haja uma tendência de
complementação e uniformização de tais sistemas. Conforme leciona Flávia
Piovesan:
[...] os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas, ao revés,
complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração
Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos
humanos, no plano internacional.
190
Este fenômeno veio a revelar a complementaridade dos instrumentos globais e
regionais de proteção, reforçando-se mutuamente, e acarretando a extensão ou
ampliação da proteção devida às supostas vítimas, pois, como ressalta Cançado
Trindade:
Descartou-se, desse modo, no plano horizontal, qualquer pretenso
antagonismo entre soluções nos planos global e regional, fazendo-se uso
do Direito Internacional, no presente domínio, para ampliar, aprimorar e
fortalecer a proteção dos direitos reconhecidos. Descartou-se, igualmente,
189
JAYME2005. p. 63.
190
PIOVESAN, Flávia. Proteção internacional dos direitos humanos: desafios e perspectivas. e o
direito brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional. n.º 2, jan/fev/mar 2003. p. 90.
75
no plano vertical, o velho debate acerca da primazia das normas do Direito
Internacional ou do direito interno, por se mostrarem estes em constante
interação no presente domínio de interação.
191
A esse respeito, José A. Lindgren Alves pondera que - contrariando a tese de que a
consideração de um caso ou situação por um mecanismo excluiria a possibilidade de
ação por outro hoje é aceita a idéia de cumulatividade de ambos os sistemas, de
maneira que podem e devem atuar simultaneamente para reforçar o controle
internacional sobre violações dos direitos humanos. E isto é válido precisamente em
função das distintas naturezas de cada um.
192
Tudo com vista a assegurar a máxima
efetividade dos diversos instrumentos de tutela dos direitos humanos.
Enfim, o Direito Internacional dos Direitos humanos, com seus inúmeros
instrumentos, não pretende substituir o sistema jurídico de cada país. Ao contrário,
situa-se como direito paralelo e suplementar ao direito nacional, visando superar e
corrigir suas omissões e deficiências. Em vista de sua própria função legitimadora,
cabe ao Estado a responsabilidade primária pela proteção desses direitos, ao passo
que a comunidade internacional tem a responsabilidade subsidiária. Os
procedimentos internacionais têm, assim, natureza subsidiária, constituindo garantia
adicional de proteção dos direitos humanos, quando falham as instituições
nacionais.
Passemos, pois, à análise de cada um deles.
3.2.1 O sistema global e os instrumentos internacionais de
proteção
No tópico anterior viu-se que os sistemas global e regional são complementares, não
obstante cada um deles possua instrumentos e mecanismos distintos. O sistema
global é composto pela Declaração Universal de 1948, pelo Pacto Internacional
191
TRINDADE, 2000. p. 26.
192
ALVES, 2003. p. 75.
76
sobre Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais. Na lição de José Augusto L. Alves:
[...] Pedra fundamental do sistema, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos foi o primeiro documento a estabelecer internacionalmente os
direitos inerentes a todos os homens e mulheres, independentemente das
situações particulares de cada um, que devem ser observados em todo o
mundo. Os dois Pactos, por sua vez, complementam a Declaração de 1948,
conferindo aos direitos nela estabelecidos a força de obrigação jurídica que
os respectivos Estados-partes se comprometem, voluntária e solenemente,
a implementar. O conjunto dos três instrumentos configura o que, nas
línguas latinas, por analogia com a Carta das Nações Unidas, é
denominado Carta Internacional dos Direitos Humanos e, na língua inglesa,
por analogia com documentos nacionais equivalentes, britânicos e norte-
americanos, é chamado International Bill of Human Rights.
193
Proclamada pela Assembléia Geral
194
em 10 de dezembro de 1948, em Paris, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos representou, no plano global, a primeira
iniciativa no sentido de proteção universal dos direitos humanos e definiu, pela
primeira vez em nível internacional, os direitos humanos e liberdades fundamentais –
noções até então difusas, tratadas apenas de maneira não-uniforme, em
declarações e legislações nacionais.
195
Não se pode negar, pois, o caráter de universalidade
196
que pretendeu conferir a
Declaração de 1948 aos direitos humanos. Dispunha-se a constituir um padrão
193
ALVES, José Augusto Lindgren. A arquitetura internacional dos direitos humanos. São Paulo:
FTD, 1997. p. 24.
194
[...] Adquire, à primeira vista, a aparência de exemplo edificante de conciliação e espírito
construtivo por parte das nações que, unidas, saíram vitoriosas da II Guerra Mundial. Na realidade as
divergências foram amplas dentro do próprio comitê de redação, composto por representantes dos
Estados Unidos, China (Nacionalista), Líbano, Austrália, Chile, França, Reino Unido e União
Soviética, perduraram durante a consideração do projeto em instâncias superiores. A flexibilização de
posições não se deu por razões altruísticas, mas por interesses próprios. A URSS, insatisfeita com a
preponderância das liberdades civis “ocidentais”, evitava apoiar com maior ênfase os direitos
econômicos e sociais para não ameaçar sua postura intransigente a propósito da intangibilidade da
soberania nacional. Os representantes dos países ocidentais, por sua vez, não viam maiores
inconvenientes nos direitos “socializantes” à instrução gratuita, alimentação, moradia, assistência
médica e serviços sociais, por se adequarem aos ideais do Welfare State, que então despontava.
Quanto à adoção de tão importante documento pela Assmbleía Geral rapidamente e sem votos
contrários, com apenas oito abstenções, ela se deveu, sobretudo, a seu formato de manifesto, não-
obrigatório pelo ângulo jurídico habitual (...) A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi
aprovada pela Resolução 217 A (III), da Assembléia Geral, em 10/12/48, por 48 votos a zero, com as
abstenções da África do Sul, Arábia Saudita, Bielorrússia, Iugoslávia, Polônia, Tchecoslováquia,
Ucrânia e União Soviética. (ALVES, 2003. p. 47).
195
ALVES, 2003, p. 46.
196
Com destinação universal, necessariamente acomodatícia dos diferentes valores de comunidades
díspares, a redação da Declaração de 1948 é enxuta e secular, desprovida de referências
metafísicas. Ela é resultado de um trabalho admirável de negociações diplomáticas, de que
77
comum a todas as culturas. Entretanto, adverte José Augusto L. Alves que
“contrariamente ao que se costuma afirmar, a Declaração não apresenta um ‘mínimo
denominador comum’ de distintos sistemas e culturas. Ela se proclama o ‘ideal
comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações’”
197
. Significa dizer que,
apesar do caráter universal vão se admitir nuanças em cada país dentro de uma
esfera razoável do proporcional.
Os direitos definidos na Declaração Universal costumam ser relacionados, inclusive
pelas Nações Unidas, em duas categorias: os civis e os políticos, correspondentes
aos Artigos e seguintes até o 21 e, os econômicos, sociais e culturais, do Artigo
22 ao 28.
198
Enquanto a Declaração Universal foi redigida e adotada em menos de três anos, o
termo a quo de vigência no plano internacional dos dois Pactos que a sucederam e
que compõem o sistema global, conferindo-lhe a força obrigatória de ato jurídico
conforme o Direito Internacional, exigiu trinta anos. A justificativa repousa nas
naturezas
199
distintas dos documentos integrantes da Carta, segundo leciona José
Augusto L. Alves:
participaram nomes como os do francês RENÉ CASSIN, do canadense JOHN HUMPHKEY, do
libanês CHARLES MALIK e do chinês (nacionalista) P. C. CHANG, sob a presidência de ELEANOR
ROOSEVELT o qual, com seu New Deal e seus discursos, foi o primeiro líder dos aliados a
ressaltar a importância dos direitos humanos para a reconstrução de uma ordem internacional no
mundo pós-Segunda Guerra. O resultado é tanto mais admirável porquanto nos trabalhos
preparatórios da Declaração colidiam as visões jusnaturalistas e positivistas, religiosas e laicas,
liberais e marxistas dos direitos humanos, tendo por pano de fundo a emergência da Guerra Fria. E
essas visões distintas se faziam presentes na discussão de praticamente cada Artigo do projeto.
Quanto à influência de FRANKLIN ROOSEVELT sobre o conteúdo final da Declaração, inclusive no
que diz respeito à incorporação dos direitos econômicos e sociais no rol dos direitos humanos
fundamentais até hoje não reconhecidos oficialmente pelos Estados Unidos -, ela é claramente
visível no segundo parágrafo do preâmbulo, que aponta as célebres “quatro liberdades” por ele
anunciadas na Mensagem ao Congresso de 6 de janeiro de 1941 como “a mais alta aspiração do
homem comum”: as liberdades de expressão e de fé, assim como as de “viver a salvo do medo e da
necessidade” (ALVES, 1997. p. 27).
197
A aceitação efetiva da Declaração de Direitos Humanos pelos países muçulmanos em geral ainda
não é ponto pacífico sequer pela ótica doutrinária. E vem-se apresentando agora cada dia mais
problemática em face da crescente onda de fundamentalismos religiosos e seculares que assola o
mundo contemporâneo. (ALVES, 1997. p. 27).
198
ALVES, 2003. p. 46.
199
A questão da obrigatoriedade da Declaração Universal dos Direitos Humanos é até hoje debatida
entre os doutrinadores. E isso porque, conforme a prática internacional, as declarações, em
contraposição aos tratados, convenções, pactos e acordos, não têm força jurídica compulsória.
Entretanto, para Flávia Piovesan, a Declaração Universal de 1948, ainda que não assuma a forma de
78
[...] A razão essencial para essa enorme diferença temporal reside
precisamente nas naturezas distintas dos documentos integrantes da Carta:
meramente orientadora e referencial no caso da Declaração Universal
como no de qualquer declaração e juridicamente obrigatória no caso dos
Pactos como no de todos os tratados e convenções, cujos efeitos
legislativos internacionais e domésticos exigem assinatura e ratificação dos
Estados participantes.
200
A idéia inicial era incluir em um único Pacto os direitos civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais. Tanto é que no início de suas atividades (de 1949 a 1951) a
Comissão de Direitos Humanos da ONU
201
trabalhou em um único projeto de Pacto,
que conjugava as duas categorias de direitos. Contudo, em 1951, a Assembléia
Geral, sob a influência dos países ocidentais, determinou que fossem elaborados
dois Pactos em separado, que deveriam ser aprovados e abertos para a assinatura
simultaneamente, no sentido de enfatizar a unidade dos direitos neles previstos.
202
Somente em 1976, porém, os dois Pactos lograram obter o número de ratificações
necessárias para sua entrada em vigor na esfera internacional.
Conquanto sejam distintos em função dos diferentes direitos de que tratam, ambos
contêm algumas provisões semelhantes ou idênticas. A título exemplificativo, ambos
os preâmbulos, praticamente com a mesma redação, estabelecem a “dignidade
inerente a todos os membros da família humana”, reconhecendo que o ideal do ser
humano livre pode realizar-se somente se forem criadas condições que permitam a
cada um gozar de seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. São
idênticos, nos dois Pactos, o Art. 1º - sobre o direito dos povos à autodeterminação -,
tratado internacional, apresenta força obrigatória e vinculante, na medida em que constitui a
interpretação autorizada da expressão “direitos humanosconstante dos arts. e 55 da Carta das
Nações Unidas. Ressalta que, à luz da Carta, os Estados assumem o compromisso de assegurar o
respeito universal e efetivo aos direitos humanos. Ademais, a natureza jurídica vinculante da
Declaração Universal é reforçada pelo fato de – na qualidade de um dos mais influentes instrumentos
jurídicos e políticos do século XX ter se transformado, ao longo dos quase cinqüenta anos de sua
adoção, em Direito costumeiro internacional e princípio geral do Direito Internacional (PIOVESAN,
Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 3. ed. atual. São Paulo: Max
Limonad, 2004. p. 165).
200
ALVES, 1997. p. 25.
201
O principal órgão do sistema global é a Comissão dos Direitos Humanos (CDH), criada pela
Resolução 5(I) do Conselho Econômico e Social (ECOSOC) em 1946. De caráter governamental e
subordinada ao ECOSOC, a CDH teve, originalmente, dezoito Estados-membros. A composição foi
aumentada em 1961 para 21; em 1966, para 43; em 1990, para 53. Esse alargamento reflete o
aumento progressivo do número dos Estados-membros das Nações Unidas desde o final da Segunda
Guerra Mundial, tanto em virtude do processo de descolonização, quanto em conseqüência da
desintegração de Estados pré-existentes fenômeno que caracteriza sobretudo estes tempos pós-
Guerra Fria (ALVES , 2003. p. 73).
202
PIOVESAN, 2004. p. 178.
79
o Art. - pelo qual os Estados se comprometem a garantir aos homens e mulheres
igualdade no gozo dos direitos de que trata o respectivo documento e o Art. -
oriundo do último Artigo da Declaração, que visa a salvaguardar os direitos de cada
Pacto contra ato danoso resultante de interpretação distorcida, e outros direitos
fundamentais decorrentes de leis, regulamentos, convenções ou costumes, sob
pretexto de que o respectivo Pacto não os consagre.
203
O Pacto sobre Direitos Civis e Políticos é “o tratado que confere o caráter de
obrigação legal internacional, para os Estados-partes, aos direitos humanos
chamados de ‘primeira geração’ [...]”
204
, aqueles que historicamente foram
reconhecidos inicialmente como direitos humanos pelos filósofos do Iluminismo e
nas declarações norte-americanas de 1776 e francesa de 1779. Conforme se infere
da literalidade das palavras de José Augusto L. Alves:
Configurando mais do que uma reiteração declaratória de tais direitos, os
Estados que o ratificam assumem o compromisso formal de respeitá-los e
garanti-los “a todos os indivíduos que se achem em seu território e que
estejam sujeitos a sua jurisdição”, sem qualquer tipo de discriminação, por
meio de medidas legislativas ou de outra natureza, assegurando recursos
compensatórios efetivos às pessoas que tenham tido seus direitos violados,
ainda que as violações decorram de atos praticados por pessoas investidas
de funções oficiais.
205
O mecanismo de implementação e efetivação do Pacto de Direitos Civis e Políticos é
o Comitê dos Direitos Humanos, composto por 18 membros eleitos a título pessoal.
Os Estados-partes dos Pactos se obrigam a “apresentar relatórios sobre as medidas
adotadas para dar efeito aos direitos reconhecidos” no documento e “sobre os
progressos realizados no gozo desses direitos” (Artigo 40, parágrafo 1º). Os
relatórios são encaminhados ao Secretário-Geral das Nações Unidas, que os
transmite ao Comitê (Artigo 40, parágrafo 2º). O Comitê é incumbido de estudar os
relatórios, transmiti-los aos Estados-partes com os comentários gerais que
considerar apropriados, e de reportar, por sua vez, ao ECOSOC (Artigo 40,
parágrafo 4º).
206
203
ALVES, 1997. p. 35.
204
ALVES, 1997. p. 35.
205
ALVES, 1997. p. 35.
206
ALVES, 2003. p. 53.
80
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos é acompanhado de um Protocolo
Facultativo, pelo qual os Estados que o ratifiquem reconhecem a competência do
Comitê dos Direitos Humanos para receber e considerar queixas e comunicações
pessoais.
o Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais é “o primeiro e único
instrumento jurídico de abrangência genérica e escopo mundial a conferir
obrigatoriedade à promoção e proteção dos direitos humanos de ‘segunda geração’”,
aqueles reconhecidos como fundamentais pelo Iluminismo e consagrados como
direitos pela primeira vez na Declaração Universal de 1948.
207
Diferem-se, portanto
do primeiro Pacto porque:
[...] os Estados que o ratificam assumem o compromisso de assegurar
progressivamente, “até o máximo de seus recursos disponíveis”, com
esforços próprios ou com cooperação internacional, o pleno exercício, sem
discriminações, dos direitos nele reconhecidos, podendo os países em
desenvolvimento “determinar em que medida garantirão os direitos
econômicos” [...] àqueles que não sejam seus nacionais” (Artigo e
parágrafos).
208
O Brasil aderiu, sem reservas, ao Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais juntamente com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos em 24 de janeiro de 1992, portanto, após a promulgação da Constituição
Federal em vigor.
Além do sistema global de proteção dos direitos humanos, representado pela
Declaração Universal de 1948, os sistemas regionais, em âmbito geográfico mais
restrito, como o próprio nome indica, buscam assegurar e complementar a proteção
de tais direitos, com vistas a conferir a máxima efetividade através de seus
instrumentos.
207
ALVES, 1997. p. 44.
208
ALVES, 1997. p. 44.
81
3.2.2 O sistema regional interamericano de direitos
humanos
Ao lado do sistema global de proteção dos direitos humanos, surge o sistema
regional que busca internacionalizar os direitos humanos no plano regional,
especialmente América, Europa e África.
Para Flávia Piovesan, “[...] o propósito da coexistência de distintos instrumentos
jurídicos - garantindo os mesmos direitos – é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer
a proteção dos direitos humanos [...]”. Acrescenta a citada autora que “[...] o que
importa é o grau de eficácia da proteção e, por isso, deve ser aplicada a norma que
no caso concreto melhor proteja a vítima”.
209
Para José Augusto L. Alves “a rationale dos sistemas regionais se encontra na maior
homogeneidade cultural e institucional de seus membros, que, em princípio, deveria
propiciar maior efetividade a suas disposições e a seus mecanismos”.
210
Nesse
passo, a existência dos sistemas regionais paralelamente ao sistema global visa
fortalecer sua observância com dois níveis complementares de garantias, um deles
mais próximo à comunidade na qual se aplica.
O sistema regional de proteção dos direitos humanos mais desenvolvido é o sistema
europeu seguindo-se, logo após, o sistema americano e os incipientes sistemas
árabe e asiático. Na perspectiva do nosso trabalho interessa o estudo do sistema
interamericano de proteção dos direitos humanos, uma vez que este é aplicado
diretamente no caso brasileiro.
Por um prisma histórico, o sistema interamericano nasce no momento em que os
estados americanos, no livre exercício de suas soberanias, estruturam um sistema
209
PIOVESAN, 2004. p. 222.
210
ALVES, 1997. p. 270.
82
regional de promoção e proteção dos direitos humanos, mediante um processo
211
evolutivo consubstanciado na adoção de diferentes instrumentos internacionais.
Teve seu início formal em 1948, com a Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem
212
, aprovada pela IX Conferência
213
Internacional Americana,
em Bogotá. Mas o instrumento de maior importância no sistema interamericano é a
Convenção Americana de Direitos Humanos
214
também denominada de Pacto de
São José da Costa Rica, celebrada em 22 de novembro de 1969 e entrando em
vigor em 1978. Conforme nos ensina Fernando Gonzaga Jayme:
[...] Esse sistema concretiza-se a partir do reconhecimento e da definição
precisa dos direitos humanos, com a aprovação de normas de conduta
obrigatórias, destinadas a promovê-los e protegê-los e com a instituição de
211
A Comissão Americana de Direitos Humanos (CIDH), criada por decisão da V Reunião de
Consulta dos Ministros das Relações Exteriores da Organização dos Estados Americanos, em
Santiago, em 1959, teve, inicialmente, tarefas apenas de promoção em sentido estrito e não de
proteção dos direitos humanos, funcionando como órgão autônomo do sistema da OEA. Suas
atribuições e status institucional foram, porém, sucessivamente fortalecidos. Desde 1965 a II
Conferência Interamericana Extraordinária, realizada no Rio de Janeiro, ampliou o mandato da CIDH,
transformando-a em instrumento de controle, com autorização para receber e examinar petições e
comunicações a ela submetidas, e competência para dirigir-se a qualquer dos Estados americanos a
fim de obter informações e formular recomendações. Pelo Protocolo de Buenos Aires de 1967, que
emendou a Carta da OEA, a CIDH foi elevada à categoria de órgão principal da OEA (Artigo 51), com
a incumbência de “promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão
consultivo da Organização em tal matéria” (Art. 150). Passou, ainda, a partir de 1978, com a entrada
em vigor da Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada em São José da Costa Rica em
22 de novembro de 1969 daí Pacto de São José da Costa Rica” -, a funcionar cumulativamente
como órgão de supervisão do cumprimento da Convenção, sem prejuízo de sua competência anterior
sobre os países que não são partes desse instrumento. Graças a essa duplicidade de funções, com
atribuições decorrentes tanto de documento convencional sobre direitos humanos de caráter
obrigatório, quanto de Protocolo reformador da Carta constitutiva da OEA, a CIDH tem interpretado
seu mandato com grande liberalidade, logrando ampliar significativamente suas formas de atuação
(ALVES, 2003. p. 78).
212
A Declaração tem por premissa o reconhecimento do princípio da universalidade: os direitos
essenciais do homem não derivam do fato de ser ele cidadão de determinado Estado, mas sim do
fato dos direitos terem como base os atributos da pessoa humana”. (Cf. JAYME, 2005. p. 65).
213
Nesta Conferência também foi criada a Organização dos Estados Americanos (OEA), cuja Carta
proclama os “direitos fundamentais da pessoa humana” como um dos princípios fundamentais da
Organização.
214
A Convenção Americana reconhece e assegura um catálogo de direitos civis e políticos similar ao
previsto pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Dentre eles, destacam-se: o direito à
personalidade jurídica, o direito à vida, o direito a não ser submetido à escravidão, o direito à
liberdade, o direito a um julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário, o
direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de
pensamento e expressão, o direito à resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome,
o direito à nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e residência, o direito de participar do
governo, o direito à igualdade perante a lei e o direito à proteção judicial (PIOVESAN, 2004. pp. 223-
224).
83
órgãos internacionais destinados a velar pela fiel observância desses
mesmos direitos.
215
O sistema interamericano conta com uma Corte Interamericana de Direitos
Humanos, criada e definida pelo Pacto de São José da Costa Rica (Convenção
Americana de Direitos Humanos). Composta por sete juízes, nacionais de Estados-
membros da OEA, eleitos a título pessoal pelos Estados-partes da Convenção
(Artigo 52), a Corte tem competências consultiva (Artigo 64) e contenciosa (Artigo
62). A competência consultiva é ampla, permitindo a todos os membros da OEA
partes ou o do “Pacto de São José” e a todos os “órgãos enumerados no Cap.
10 da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de
Buenos Aires” (a Assembléia Geral, o Conselho Permanente, A CIDH etc) consultá-
la sobre a interpretação da Convenção Americana ou de outros tratados sobre a
proteção dos direitos humanos nos Estados americanos, bem como sobre a
compatibilidade entre as leis nacionais e esses instrumentos jurídicos regionais. A
competência contenciosa, para o julgamento de casos a ela submetidos, é, por sua
vez, limitada aos Estados-partes da Convenção que a reconheçam expressamente.
Nessas condições, a maior atividade da Corte tem-se concentrado na jurisdição
consultiva, sendo poucas as sentenças judiciais já proferidas.
216
Observa-se, desta forma, que a criação da Corte Interamericana de Direitos
Humanos pretendeu conferir a efetiva concretização dos direitos humanos na esfera
regional, com vistas a ampliar ainda mais o sistema protetivo até então existente,
composto apenas pela Comissão Interamericana. Como salienta Fernando Gonzaga
Jayme, “[...] a missão precípua da Corte é a de garantir a proteção internacional
estabelecida na Convenção, preservando a integridade do sistema pactuado pelos
Estados”. Merecem destaque os ensinamentos do citado autor:
A proteção jurisdicional exercida pela Corte Interamericana atribui à
Convenção Americana de Direitos Humanos uma posição concreta de
supranormatividade em relação ao ordenamento jurídico interno,
sobrepondo-se, inclusive, à Constituição dos estados, pois característica
essencial à jurisdição é a capacidade de proferir decisões com definitividade
pela aptidão que seus provimentos possuem de formar coisa julgada e,
portanto, tornarem-se incontestáveis para as partes, intocáveis para o juiz,
e, por esta razão, irretratáveis, tanto o provimento quanto seus efeitos. [...] A
215
JAYME, 2005. p. 63.
216
ALVES, 2003. p. 53.
84
submissão à jurisdição da Corte é de grande importância para a efetivação
dos direitos humanos no continente americano, por não restarem dúvidas da
função criadora do direito desempenhada pela sua jurisprudência. Além
disso, de se ressaltar que ela promove a interação entre o direito interno
e o direito internacional, potencializando o fim visado, que é assegurar a
dignidade do ser humano.
217
O sistema de direitos humanos só se aperfeiçoa, portanto, com a presença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, com função jurisdicional, por não ser suficiente
para garantia dos direitos humanos apenas o reconhecimento, por parte do Estado,
da existência de direitos e liberdades fundamentais do indivíduo. A garantia
jurisdicional destes direitos é que assegura o efetivo cumprimento desses direitos,
no caso de violação por parte do Estado. Nessa linha de raciocínio, o país que
apenas ratifica a Convenção Americana de Direitos Humanos dotada de eficácia
normativa -, e não reconhece a competência jurisdicional da Corte, cuida de proteger
parcialmente os direitos humanos, retirando deles a efetividade, isto é, a realização
social dos direitos humanos.
218
A Corte Interamericana dos Direitos Humanos
complementa a proteção existente no direito interno em relação à garantia dos
direitos humanos, buscando conferir a máxima efetividade desses direitos nos
países integrantes do sistema regional.
Destarte, o desenvolvimento dos sistemas global e regionais contou com a adoção
de diferentes instrumentos internacionais, tais como tratados, convenções,
declarações, pactos, acordos etc. Contudo, a ascensão das relações internacionais
e a interdependência cada vez maior entre os Estados têm feito com que os tratados
se multipliquem significativamente na sociedade internacional.
Nesse particular, passar-se-á a analisar os tratados internacionais, importantes
instrumentos de inclusão dos direitos humanos nos ordenamentos constitucionais
nacionais.
217
JAYME, 2005. p. 66.
218
JAYME, 2005. p. 66.
85
3.3 O CONCEITO DE TRATADOS INTERNACIONAIS
Nas exatas palavras de Roberto Luiz Silva, os tratados internacionais
“[...] constituem o principal instrumento de cooperação em relações internacionais.
219
Para a grande maioria dos internacionalistas, os tratados são a principal fonte do
Direito Internacional.
Nessa sentido, adequada é a fala de Celso de Albuquerque Mello:
Os tratados internacionais são considerados atualmente a fonte mais
importante do Direito Internacional, o devido à sua multiplicidade mas
também porque geralmente as matérias mais importantes são
regulamentadas por eles. Por outro lado, o tratado é considerado a fonte do
Direito Internacional mais democrática, porque participação direta dos
Estados na sua elaboração.
220
Para Flávia Piovesan “[...] os tratados internacionais, enquanto acordos
internacionais juridicamente obrigatórios e vinculantes (pacta sunt servanda),
constituem a principal fonte de obrigação do Direito Internacional”.
221
Em termos históricos, o tratado, tácito ou expresso, é tão antigo quanto a existência
das sociedades primitivamente organizadas. É ao analisar a evolução histórica dos
tratados que se pode afirmar que foi a partir de uma necessidade prática, sob uma
visão utilitarista do Direito, que os tratados expressos ou escritos, foram, cada vez
mais, estabelecendo uma interdependência externa entre as sociedades e tendo sua
codificação consolidada.
222
E justamente essa necessidade de disciplinar e regular o processo de formação dos
tratados internacionais culminou na elaboração da Convenção sobre direito dos
tratados, concluída em Viena, em 1969, também conhecida como Lei dos Tratados,
que define tratado da seguinte maneira:
219
SILVA, Roberto Luiz. Direito internacional público. 2. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del
Rey, 2002. p. 37.
220
MELLO, Celso de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15. ed. rev. e ampl. Vol.
I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 212.
221
PIOVESAN, 2004. p. 73.
222
ARIOSI, Mariângela. Conflitos entre tratados internacionais e leis internas: o judiciário
brasileiro e a nova ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 21.
86
Tratado significa um acordo internacional celebrado entre Estados em forma
escrita e regido pelo direito internacional, que conste ou de um instrumento
único ou de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua
denominação.
223
Daí que, como bem conclui Flávia Piovesan, “[...] esta análise ficará restrita tão
somente aos tratados celebrados pelos Estados, que são estes os tratados que
importam para o estudo do sistema internacional de proteção dos direitos
humanos”.
224
Por outro lado, Celso de Albuquerque Mello esclarece que essa definição é de
tratado em sentido lato, significando isto que diversas outras denominações são
utilizadas para se referir aos acordos internacionais. Na lição do autor:
A terminologia dos tratados é bastante imprecisa na prática internacional.
Todavia podemos tirar as seguintes observações: tratado é utilizado para
os acordos solenes, por exemplo, tratado de paz; convenção é o tratado
que cria normas gerais, por exemplo, convenção sobre mar territorial;
declaração é usada para os acordos que criam princípios jurídicos ou
“afirmam uma atitude política comum [...]”.
225
Ainda quanto à definição de tratado, Francisco Rezek assinala que é “todo acordo
formal concluído entre sujeitos de direito internacional público, e destinado a
produzir efeitos jurídicos”.
226
O internacionalista Hildebrando Accioly ressalta o caráter impreciso do conceito
afirmando que “ordinariamente, dá-se-lhes a denominação genérica de tratados,
mas conforme sua forma, o seu conteúdo, o seu objeto, ou o seu fim, pode ter essa
denominação ou várias outras”.
227
Em suma, os tratados internacionais tradicionais são celebrados através da regra da
reciprocidade das vantagens para as partes. A redução ou a cessação das
223
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23.05.1969, art. 2º, 1, a.
224
PIOVESAN, 2004. p. 75.
225
MELLO, 2004. pp. 212-213.
226
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, p. 14.
227
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. São Paulo: Saraiva, 2002. p.
120.
87
vantagens de uma das partes levam-na à denúncia do tratado sob invocação da
cláusula rebus sic stantibus.
228
os tratados internacionais de direitos humanos, diferentemente dos tratados de
direito internacional que versam sobre outras matérias, destinam-se a regular o
modo de agir do Estado em relação a todos os indivíduos sob sua jurisdição,
representando o caminho a ser trilhado por todos na busca da própria felicidade.
229
Nessa linha, adequada é a lição de Flávia Piovesan:
Diversamente dos tratados internacionais tradicionais, os tratados
internacionais de direitos humanos, menos que estabelecer o equilíbrio de
interesses entre os Estados, buscam garantir o exercício de direitos e
liberdades fundamentais aos indivíduos.
230
No que concerne ao processo de formação dos tratados internacionais, a
Convenção de Viena estatui, em linhas gerais, que “o consentimento do Estado em
obrigar-se por um tratado pode ser expresso mediante a assinatura, troca de
instrumentos constituintes do tratado, ratificação, aceitação, aprovação ou adesão,
ou através de qualquer outro meio acordado”.
231
Nestes termos, sintetiza Celso de Albuquerque Mello que “o tratado internacional, no
seu processo de conclusão, atravessa diversas fases: negociação, assinatura,
ratificação, promulgação, publicação e registro [...]”. Acrescenta o autor que “[...]
cada uma dessas fases possui normas próprias e características específicas”.
232
Ressalta-se, por fim, que os tratados internacionais devem se submeter não às
normas das Constituições dos Estados contratantes, mas também, a certos
princípios, como nos ensina Fernando Gonzaga Jayme:
Os tratados internacionais regem-se pelos princípios de Direito Internacional
Geral, consolidados na Carta das Nações Unidas. São eles: o princípio da
igualdade de direitos, o princípio da livre determinação dos povos, o
princípio da igualdade soberana e da independência de todos os estados, o
228
JAYME, 2005. p. 59.
229
JAYME, 2005. p. 59.
230
PIOVESAN, 2004. p. 177.
231
Convenção de Viena sobre Tratados, de 23.05.1969, arts. 11 a 17.
232
MELLO, 2004. p. 225.
88
princípio da não ingerência em assuntos internos dos estados, o princípio
da proibição de ameaça ou do uso da força, o princípio do respeito universal
aos direitos humanos e às liberdades fundamentais de todos e o princípio
da efetividade destes direitos e liberdades. Esses tratados visam à
manutenção da paz e da segurança internacionais, ao fomento das relações
de amizade entre as nações e à realização da cooperação internacional.
233
Entre nós, a Constituição Federal de 1988, a exemplo da Carta das Nações Unidas,
consagra esses valores comuns, superiores, ao estabelecer que a República
Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios: I - independência nacional; II prevalência dos direitos humanos; III
autodeterminação dos povos; IV não-intervenção; V igualdade entre os Estados;
VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e
ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; e X
concessão de asilo político”.
234
Sob o aspecto processual, evidencia-se também o tratamento diferenciado dos
tratados internacionais protetivos de direitos humanos no processo de inclusão no
sistema jurídico interno, o que será analisado em tópico específico.
Ao dispor sobre as especificidades dos tratados internacionais de direitos humanos,
adverte Fernando Gonzaga Jayme que:
A compatibilização entre direito internacional e direito interno é um fator
preponderante na caracterização da especificidade dos tratados
internacionais de direitos humanos, por romper, definitivamente, com o
princípio da soberania absoluta”.
235
Nesse sentido, impõe-se aos Estados a necessidade de uma harmonização no
relacionamento entre os seus sistemas jurídicos internos e as normas internacionais,
mormente ao que se refere à integração dos tratados internacionais de direitos
humanos nos diversos ordenamentos nacionais, tema que será objeto de análise do
próximo tópico.
233
JAYME, 2005. p. 54.
234
Conforme art. 4º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL. Constituição
(1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF, Senado, 1988).
235
JAYME, 2005. p. 61.
89
3.4 AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO INTERNACIONAL E
DIREITO INTERNO
Estando o Direito Internacional e o Direito interno em perfeita harmonia, não que
se falar em prevalência de um sobre o outro. Esse questionamento surge quando
normas do Direito Internacional entram em colisão direta com normas do Direito
interno.
Nessa perspectiva de relacionamento entre ordens jurídicas diversas, surge a
problemática das relações entre um e outro, que, de acordo com os objetivos dessa
pesquisa, remonta à seguinte questão: a eficácia das normas internacionais
depende de como o direito de cada Estado regulamenta a sua recepção como
norma interna.
O problema proposto decorre de um confronto de perspectivas. a perspectiva do
Direito internacional, correspondente ao atual modelo de sociedade mundial, que
nos Estados os destinatários das normas internacionais, as quais lhes são dirigidas
para efetivo cumprimento. Por outro lado, dentro da perspectiva do direito interno,
ressalta-se a necessidade de inclusão da norma ao sistema interno (necessidade
orientada pela idéia de soberania estatal), que é regido por regras lógicas de
hierarquia.
Na tentativa de resolver esse impasse, duas escolas disputam a explicação racional
sobre a relação que existe entre os dois ordenamentos jurídicos internacional e
interno. Como adverte Manuel Becerra Ramirez “[...] é impossível deixar de referir-se
a elas quando se trata do tema da relação entre direito internacional e direito interno,
pois são o ponto de partida doutrinal para esclarecer o problema”.
236
Nas exatas
palavras do autor:
Por uma parte a teoria dualista desenvolvida especialmente na Itália e
Alemanha por Henrich Triepel e Dionísio Anziloti, Gaetano Morelli, Ângelo
Piero Sereni e Walter Rudolf, postula que o direito internacional e o direito
interno são dois ordenamentos jurídicos essencialmente iguais enquanto
236
No original: Sin embargo, es imposible dejar de referirse a ellas cuando se trata el tema de la
relación entre derecho internacional y derecho interno, pues es el punto de partida doctrinal para
determinar la sutaución del problema. (BECERRA, Manuel Ramirez. La recepcion del derecho
internacional em el derecho interno. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 2006. p.
12).
90
sistemas jurídicos independentes e ao mesmo tempo são diferentes um do
outros em três aspectos: a) no que se refere a suas fontes: o direito
internacional (o costume e os tratados internacionais) se baseiam na
vontade coletiva dos Estados; o direito interno (o costume interno de cada
Estado, as leis, os decretos, os regramentos e ordenamentos) se baseiam
na Constituição de cada um dos Estados; b) respeito das relações que os
dois sistemas regulam; por um lado o direito internacional contém regras
que regulam as relações entre dois ou mais Estados; o direito interno, ao
contrário, regula as relações entre os indivíduos e entre estes e os órgãos
do Estado ou entre vários órgãos do Estado em seus diferentes níveis; c)
por último, o direito internacional e o direito interno diferem em sua
substância: o direito internacional é um direito entre Estados iguais e
soberanos e tem, em conseqüência, uma força maior que o direito interno;
neste esquema, os Estados decidem que normas do direito internacional e
por quais condições passam a fazer parte do direito interno. A teoria dualista
postula que o direito internacional não pode ser aplicado automaticamente e
diretamente no direito interno; é necessário que exista um ato jurídico de
incorporação mediante uma transformação tácita ou expressa, prevista no
direito interno; ou por meio de uma lei ou disposição jurídica interna. Depois
desta transformação, os conflitos entre os direitos internacional e interno
não são possíveis.
237
Para a corrente dualista, portanto, os sistemas jurídicos interno e internacional
apresentam conteúdos e fontes diferentes, fato que os diferenciam dos muitos
Direitos existentes. Desse modo, existindo duas ordens independentes, estas não
poderiam se chocar, pois segundo a corrente dualista, a recepção do Direito
Internacional é realizada, se for o caso, pela transformação do Direito Internacional
em direito interno.
238
Essa concepção reverbera na teoria da incorporação, que aponta para a
necessidade de um processo de recepção da norma internacional para que tenha
237
No original: Por uma parte la teoria dualista desarrollada esencialmente em Itália y Alemania por
Henrich Triepel y Dionísio Anzilotti, Gaetano Morelli, Ângelo Piero Sereni y Walter Rudolf, postula que
el derecho internacional y el derecho interno son dos ordenes jurídicos esencilamente iguales em
cuanto a sistemas jurídicos independentes y al mismo tempo son diferentes uno del outro em tres
aspectos: a) em lo que se refiere a sus fuentes: el derecho internacional (la costumbre y los tratados
internacionais) se basa em la voluntad colectiva de los Estados; el derecho interno (la costumbre
interna de cada Estado, las leyes, los decretos, las reglamentos y órdenes) se basa en la Constitución
de cada uno de los Estados; b) respecto de las relaciones que los diferentes sistemas regulan; por um
lado el derecho internacional contiene reglas que regulan las relaciones entre dos o más Estados; el
derecho interno, em cambio, regula las relaciones entre los individuos y entre éstos y los órganos del
Estado o entre vários órganos del Estado em sus diferentes niveles; c) por último, el derecho
internacional y el derecho interno, diferen de su sustância; el derecho internacional es um derecho
entre Estados iguales y soberanos y tiene, en consecuencia, uma fuerza más débil que el derecho
interno. Em este esquema, los Estados deciden qué normas del derecho internacional y bajo qué
condiciones pueden pasar a formar parte del derecho interno. La teoria dualista postula que el
derecho internacional no puede ser aplicado automaticamente y diretamente em el derecho interno;
es necesario que exista um acto de incorporaci[on mediante um transformacion tácita o expressa,
prevista em el derecho interno; o por una ley o disposicion jurídica interna. Después de esta
transformacion, los conflictos entre los derechos internacional e interno non son posible. (BECERRA,
2006. p. 13).
238
ARIOSI, 2000. p. 65.
91
aplicação na ordem jurídica interna dos Estados, ou seja, a norma internacional deve
ser transformada em norma nacional mediante um ato do legislativo.
As críticas ao dualismo de Triepel partem, principalmente, dos monistas, que
rejeitam a existência de duas ordens jurídicas distintas, entendendo haver uma única
ordem que engloba o Direito Internacional e o Direito interno. O precursor desta
vertente é Hans Kelsen que, inicialmente, sustentou a inexistência de conflitos entre
as ordens interna e internacional, uma vez que a norma inferior jamais poderia ir de
encontro à norma superior, que era a sua fonte e fundamento. Finalmente, o grande
expoente do positivismo passou a admitir a possibilidade de conflitos entre as duas
ordens jurídicas, como de fato existem.
239
Em síntese, a teoria monista não aceita a existência de duas ordens jurídicas
autônomas e independentes. O monismo sustenta a tese da existência de uma única
ordem jurídica. Esta concepção apresenta duas variáveis: a que defende a primazia
do Direito Interno e, a outra, primazia do Direito Internacional.
240
Ao analisar as
relações existentes entre o Direito Internacional e o direito interno, Mariângela Ariosi
conclui que:
[...] o monismo surge, portanto, como um contraponto da teoria dualista, e
por essa rao os que apologizam o monismo também se ocupam de
criticar o dualismo, já que a existência de uma teoria depende da não
existência da outra.
241
Adepto da corrente monista, Celso de Albuquerque Mello nos ensina que, sendo o
Estado sujeito de Direito interno e de Direito internacional, uma mesma pessoa, não
se pode conceber que esteja ele submetido a duas ordens jurídicas que se chocam.
O autor supracitado continua, afirmando que o Direito na sua essência é um só. A
ordem internacional acarreta a responsabilidade do Estado quando ele viola um de
seus preceitos e o Estado aceita esta responsabilidade, como não poderia deixar de
ser. Da constatação desse simples fato pode-se observar que o Estado sujeito de
direito das duas ordens jurídicas primazia ao Direito Internacional. É o
239
KELSEN, 1998. p. 154.
240
ARIOSI, 2000. p. 76.
241
ARIOSI, 2000. p. 71.
92
denominado monismo moderado que veio substituir o monismo radical da primeira
fase de Kelsen.
Perfilhando o mesmo entendimento, Carlos Roberto Husek afirma que o Direito é um
somente, sendo simpático à teoria monista com prevalência do Direito
Internacional.
242
A tese monista com primazia do Direito Internacional sobre o direito interno adquire
uma grande aceitação dentre os teóricos de todo mundo, especialmente após a
Segunda Grande Guerra Mundial, em virtude dos horrores vividos no Holocausto da
Alemanha nazista, o que contribuiu para o fortalecimento da ordem jurídica
internacional. Nesse contexto, adequada é a fala de Mariângela Ariosi:
Nesta Ordem Internacional, malgrado a macroestrutura bipolar, as relações
internacionais passam a ser empreendidas num contexto mais integrado, no
qual a responsabilidade internacional aumenta e o tratado internacional
passa a se consolidar como um elemento preponderante para a tendência
globalizante das relações internacionais. Os processos hodiernos das
relações internacionais, na passagem do século e do milênio, demonstram
que o monismo com primazia do DI é uma das vias para se garantir a
unidade e o equilíbrio do sistema internacional, visto que pode evitar
contradições e conflitos jurídicos internacionais.
243
Destarte, a tomada de posição quanto aos tratados que afetam direitos e garantias
fundamentais poderá interferir no resultado dos questionamentos propostos,
sobretudo no que tange às possibilidades de alteração do Texto Constitucional com
a inclusão da norma do tratado no sistema nacional.
É imprescindível, portanto, que o ordenamento jurídico de cada Estado defina regras
claras para a recepção da norma internacional, o que trará reflexos decisivos para a
hipótese de conflito entre tratado e norma interna. A esse respeito, esclarece
Fernando Gonzaga Jayme:
[...] a necessidade de integração da norma de Direito Internacional ao
Direito nacional somente ocorre em situações onde a Constituição o exigir.
Na omissão da Constituição, os tribunais do Estado são competentes para
aplicar o Direito Internacional diretamente, sobretudo tratados concluídos
242
HUSEK, Carlos Roberto. Curso de direito internacional público. 2. ed. São Paulo: LTR, 1998. p.
25.
243
ARIOSI, 2000. p. 71.
93
pelo seu próprio governo com os governos de outros Estados de acordo
com a Constituição.
244
Em sendo assim, verifica-se que cada Estado tem se posicionado através de sua
Carta Magna. A Constituição Federal norte-americana, por exemplo, prevê em seu
art. 6º, inciso II:
Esta constituição, as leis dos Estados ditadas em virtude dela e todos os
tratados celebrados ou que se celebrarem sob a autoridade dos Estados
Unidos constituirão a lei suprema do País; e os juízes em cada Estado
serão sujeitos a ela, ficando sem efeito qualquer disposição em contrário na
constituição e nas leis de qualquer dos Estados.
245
A Constituição francesa se posiciona a favor da primazia do Direito Internacional
sobre o Direito interno e estatui, em seu art. 55:
Os tratados ou acordos regularmente ratificados e aprovados terão, desde
sua publicação, uma autoridade superior à das leis sob reserva, para cada
acordo ou tratado, de sua aplicação pela outra parte.Tratados validamente
concluídos pelo Estado e as regras geralmente reconhecidas de Direito
Internacional Público formam parte da lei interna do Estado e não podem
ser unilateralmente revogadas puramente por ação nacional.
246
O art. 75, § 22 da Constituição Argentina, com a redação dada pela reforma de
1994, também prevê que os tratados internacionais têm hierarquia superior à das
leis internas.
Assim também o é a Constituição italiana, que em seu art. 10, manifesta
expressamente a vontade do Estado em garantir o primado do Direito Internacional,
conforme se infere de sua literalidade: “O ordenamento jurídico italiano está em
conformidade com a norma do direito internacional reconhecido
”.
247
A Constituição da Alemanha, em seu art. 25, igualmente se posiciona, afirmando que
“[...] as regras gerais do Direito Internacional fazem parte integrante do direito
244
JAYME, 2005. p. 58.
245
Constituição dos Estados Unidos da América. Disponível em: <www.embaixada-
americana.org.br.> Acesso em: 28 jan. 2007.
246
Constituição francesa de 04/10/1958. Disponível em: <www.artnet.com.br.> Acesso em: 28 jan.
2007.
247
Constituição italiana. Disponível em: <www.ecco.com.br/cidadania/const_italiana.asp.> Acesso
em: 28 jan. 2007.
94
federal. Elas criam as leis e fazem nascer diretamente os direitos e deveres aos
habitantes do território federal”.
248
Esses dados revelam uma tendência contemporânea do constitucionalismo mundial
de prestigiar as normas internacionais destinadas à proteção do ser humano. Por
conseguinte, a partir desse universo jurídico voltado aos direitos humanos, as
Constituições não apenas apresentam maiores possibilidades de concretização de
sua eficácia normativa, como também somente podem ser concebidas em uma
abordagem que aproxime o Direito Internacional do Direito Constitucional.
Nesse contexto, o constitucionalismo contemporâneo rompe com o dogma da
soberania absoluta e perpétua e impõe uma nova discussão, a saber, a questão da
corrosão (relativização) do conceito de soberania nacional, que ora passa a ser
enfrentada.
3.5 A REDEFINIÇÃO DA NOÇÃO TRADICIONAL DE
SOBERANIA ABSOLUTA
O modelo do Estado soberano evoluiu de maneira que o poder dessa instituição,
após um período inicial de concentração, foi tornando-se cada vez menos absoluto e
cada vez mais relativo. No início, soberano foi o adjetivo atribuído à monarquia e ao
seu titular – nesse contexto, a soberania
249
seria compreendida como “[...] a posição
de máxima autoridade legítima de uma determinada sociedade”
250
- e, com o
surgimento das idéias liberais, correspondia à Nação, ao povo. A evolução da noção
248
Lei Fundamental para a República Federal da Alemanha de 23/06/1949. Disponível em:
<www.alemanha.org.br.> Acesso em: 28 jan. 2007.
249
Tradicionalmente, atribui-se à soberania duas acepções principais. Conforme nos ensina Eduardo
Felipe P. Matias, a soberania seria o próprio conjunto de poderes ou de competências que um Estado
possui, tanto interna, quanto externamente. A segunda acepção tem dois significados: a soberania
pode ser vista como “supremacia”, que equivale ao poder supremo que o Estado possui dentro de
suas fronteiras e pode ser entendida como “independência”, que decorre da igualdade jurídica entre
os Estados no plano internacional e implica na possibilidade de o Estado criar as suas próprias regras
sem influência externa (soberania externa). (MATIAS, Eduardo Felipe P. A humanidade e suas
fronteiras: do estado soberano à sociedade global. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 71).
250
MATIAS, 2005.Ibid, p. 32.
95
de soberania acompanhou a evolução do próprio Estado. Nessa ordem de idéias,
adequada a lição de Eduardo Felipe P. Matias:
A noção de soberania sempre esteve atrelada à luta pelo poder. Fosse ela
de origem divina ou popular, a soberania servia de justificativa tanto para a
dominação quanto para o questionamento dessa dominação, o que fez o
seu significado sempre estar no centro do debate político. Logo, não é
surpreendente que a doutrina da soberania tenha sempre estado em crise
nos períodos de mudança, no momento em que as instituições se
modificavam e quando os grupos ou as concepções ideológicas dominantes
perdiam a sua influência.
251
As transformações pelas quais o mundo passa hoje fazem com que a visão atual de
soberania se distancie cada vez mais da noção clássica que predominou até a
primeira metade do século XX (1914 1945), momento em que, paradoxalmente, o
antigo modelo de Estado soberano atinge seu apogeu e, simultaneamente, seu
declínio. Como bem conclui Luigi Ferrajoli:
[...] seu fim é sancionado, no plano do direito internacional, pela Carta da
ONU, lançada em São Francisco em 26 de junho de 1945, e
sucessivamente pela Declaração Universal dos Direitos do Homem,
aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembléia Geral das Nações
Unidas. Esses dois documentos transformam, ao menos no plano
normativo, a ordem jurídica do mundo, levando-o do estado de natureza ao
estado civil. A soberania, inclusive externa, do Estado – ao menos em
princípio deixa de ser, com eles, uma liberdade absoluta e selvagem e se
subordina, juridicamente, a duas normas fundamentais: o imperativo da paz
e a tutela dos direitos humanos.
252
[grifamos]
O Direito Internacional fundava-se no princípio da territorialidade pelo qual cada
Estado tem competência exclusiva pelos acontecimentos ocorridos em seu território
e o respeito a esse princípio era regra suficiente para assegurar um
relacionamento satisfatório das relações internacionais. Porém, cada vez mais, o
território deixa de ser um elemento decisivo para demarcar a soberania interna. Hoje
um espaço de convivência supranacional, na medida em que cresce a influência
do Direito Internacional em várias esferas da competência estatal. É especialmente
na área dos direitos humanos, “[...] que a evolução do direito internacional trouxe
conseqüências mais marcantes para o modelo do Estado soberano [...]”.
253
251
MATIAS, 2005. p. 31.
252
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39.
253
MATIAS, 2005. p. 346.
96
Sendo a tutela dos direitos básicos do homem a razão fundadora e legitimadora da
soberania estatal nos Estados Modernos, por certo sua preservação e observância
no cenário internacional não prescinde da busca da máxima efetivação dos direitos
humanos. Diante desta nova perspectiva há que se “[...] inventar uma nova ordem,
mais democrática e igualitária, que tenha a sua centralidade no valor da absoluta
prevalência da dignidade humana
254
, em busca da xima efetivação dos direitos
humanos. Acerca do tema, são precisas as lições de Eduardo Felipe P. Matias:
A evolução da proteção dos direitos humanos é revolucionária, porque vai
de encontro à visão tradicional sobre a soberania pela qual um Estado não
pode interferir nas políticas domésticas de outro Estado inclusive as que
este último adota com relação a seus cidadãos. Ao permitir que os direitos
de cada indivíduo possam ser defendidos contra seu próprio Estado no
plano internacional, tal evolução desafia a lógica do modelo do Estado
soberano, que é a de que essa instituição possui um poder supremo sobre
seu povo que, por sua vez, a ela deve obediência. Mais do que isso, ao
estabelecer regras que se aplicam a todos os Estados, essa mudança
aumenta a unidade mundial e abre espaço para a subversão da sociedade
de Estados soberanos em favor do que Hedley Bull como o princípio
organizacional alternativo de uma comunidade cosmopolita.
255
Nesse cenário, a noção de soberania, em sua acepção absoluta e perpétua, mostra-
se inadequada ao plano das relações internacionais, devendo ceder terreno à noção
de solidariedade.
256
Não há que se falar, pois, em proteção ao princípio da soberania
em detrimento da tutela dos direitos básicos do ser humano, como a vida, por
exemplo. Impõe-se necessária, acima de tudo, a idéia de que os direitos
transcendem a soberania nacional.
No Brasil não foi diferente. Ao “abrir a guarda” pelo menos em tese - para os
direitos humanos, especialmente com o advento da Emenda Constitucional
45/2004, a soberania brasileira também sofreu limitações, na medida em que as
normas veiculadoras de tais direitos são internalizadas no ordenamento jurídico
brasileiro, passando a fazer parte integrante deste. É o que se verá no próximo
capítulo.
254
PIOVESAN, 2003. p. 115.
255
MATIAS, 2005. pp. 346-347.
256
TRINDADE, 2000.. p. 34.
97
4 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO
Após uma digressão da evolução da tutela dos direitos humanos em âmbito
internacional, chegou o momento de se analisar como o Brasil tem se comportado
diante de tema tão relevante e tão atual principalmente porque parece que
voltamos a viver no “estado de natureza de guerra de todos contra todos”, como
dizia Hobbes – como a proteção dos direitos básicos do ser humano.
É do conhecimento geral que recentemente, acompanhando uma tendência
mundial, o Brasil passou a incorporar e aperfeiçoar em seus textos constitucionais
instrumentos de defesa dos direitos humanos. Como a própria história nos revela,
desde os primórdios da colonização, marcadamente exploradora, o Estado brasileiro
foi palco de guerras, de massacres, de desrespeito aos direitos individuais e
coletivos, dos direitos das minorias - índios, negros e imigrantes e dos próprios
nacionais.
Na era Republicana, a exemplo de tantos outros países latino-americanos, a
violação e a supressão dos direitos humanos, em nossa Nação, decorreu de atos
legalizados, os chamados atos institucionais, os decretos-leis, utilizados
indiscriminadamente pelos Chefes de Governo, especialmente no período
compreendido entre os anos de 1964 a 1985.
Com o restabelecimento da democracia, a nova Constituição, promulgada em 05 de
outubro de 1988, representou a reconstrução do Estado Democrático e a renovação
da esperança de concretização e de internalização de direitos aentão violados e
menosprezados pelas Constituições anteriores. A chamada Constituição “Cidadã”,
alargou significativamente o feixe de direitos e garantias fundamentais, promovendo
a abertura do nosso sistema jurídico ao Direito Internacional de Direitos Humanos,
ou seja, às normas internacionais protetivas desses direitos.
98
Esse traço cultural de ausência de consciência do coletivo, com marcante
característica patriarcal, nos primeiros anos de nossa história e, posteriormente, a
existência de governos antidemocráticos, influenciou diretamente no modelo
constitucional brasileiro analítico (extenso) e super-rígido instituído com a
Constituição Federal de 1988.
Nesse passo, analisar-se-á, primeiramente, a super-rigidez do sistema constitucional
brasileiro, como um dos instrumentos de que se valeu o legislador constituinte para
conferir maior eficácia à normatização protetiva dos direitos básicos do homem.
Após, será examinada a relação entre o Direito Internacional e o direito interno na
Constituição vigente, e, por fim, será analisada a evolução da jurisprudência pátria
sobre o assunto, que, pouco a pouco, vem demonstrando a possibilidade de
mudança de paradigma da arraigada e obsoleta hermenêutica adotada por nossa
Corte Suprema.
4.1 A SUPER-RIGIDEZ DA ORDEM CONSTITUCIONAL DE
1988 COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS
Tradicionalmente classificam-se as Constituições, no que se refere ao seu processo
de alteração, em gidas e flexíveis. Flexíveis o as Constituições que não exigem
qualquer procedimento mais sofisticado para a sua alteração, o havendo,
portanto, uma hierarquia formal entre normas propriamente constitucionais e aquelas
de caráter ordinário. Constituições rígidas, por sua vez, são aquelas que exigem
procedimentos mais dificultosos para inserção de novas normas constitucionais do
que para as deliberações ordinárias.
257
Para muitos autores, esta classificação carece de utilidade, servindo apenas como
instrumento didático para facilitar a compreensão dos processos de reforma
constitucional. Mas, ao revés, que se concordar com a adequada ponderação de
Oscar Vilhena, quando afirma que essa classificação esconde, na realidade, a
257
ZIMMERMANN, Augusto. Curso de direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2004. pp. 134-135.
99
decisão fundamental em torno da opção entre um Estado mais constitucional, no
sentido de assegurador de direitos e princípios de organização do poder, ou de um
Estado em que a regra da maioria consiste no procedimento por excelência de
tomada de decisão política.
258
Assim, nos países que privilegiam a vontade democrática em detrimento da vontade
constitucional, diz-se que a Constituição será flexível – é o caso do sistema britânico,
principal representante deste modelo não havendo qualquer obstáculo ou
dificuldade para a mutação posterior do texto constitucional pelas decisões da
maioria ordinária. São as lições de Oscar Vilhena:
[...] no grupo das constituições flexíveis estão os sistemas mais majoritários
que constitucionais, onde a vontade ordinária da maioria, expressa pelos
representantes do povo, democraticamente escolhidos, não deve ser
limitada, visto que qualquer restrição a essa manifestação da vontade
majoritária seria considerada antidemocrática, uma vez que daria maior
importância aos participantes que compõem a minoria do que aqueles que
integram a maioria.
259
De outro lado, nos países que privilegiam a instituição de uma Lei Fundamental,
contendo estruturas e garantias tidas como supremas no ordenamento jurídico e que
por esse motivo não poderão ser modificados ao sabor do legislador ordinário, cria-
se um processo legislativo de alteração da Constituição mais rigoroso que o
ordinário, a fim de se garantir a estabilidade constitucional. Tal modelo denomina-se
rígido. Em defesa da rigidez constitucional, assevera J. J. Gomes Canotilho:
A opção por um “texto rígido” no sentido assinalado é hoje justificada pela
necessidade de se garantir a identidade da constituição sem impedir o
desenvolvimento constitucional. Rigidez é sinônimo de garantia contra
mudanças constantes, freqüentes e imprevistas ao sabor das maiorias
legislativas transitórias. A rigidez não é um entrave ao desenvolvimento
constitucional, pois a constituição deve poder ser revista sempre que sua
capacidade reflexiva para captar a realidade constitucional se mostre
insuficiente.
260
Oscar Vilhena acrescenta que dentro do grupo que adota constituições rígidas,
uma variação de fórmulas que dificultam a alteração do texto constitucional. O
primeiro grupo seria representado por aquelas constituições que exigem mais do que
258
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo tribunal federal: jurisprudência política. 2. ed. São Paulo:
Malheiros. 2002. p. 28.
259
VIEIRA, 2002. p. 28.
260
CANOTILHO, 1998. p. 209.
100
dois terços do parlamento para aprovação de uma emenda, o que pode significar
dois terços e mais um outro mecanismo, como o referendo ou aprovação pelas
assembléias regionais – Austrália, Japão, Suíça, e Estados Unidos. O segundo
grupo é caracterizado por aqueles sistemas que exigem dois terços, ou o
equivalente, para que suas constituições possam ser alteradas. Áustria, Bélgica,
Costa Rica, Noruega, Portugal e Espanha. Por fim, o terceiro grupo é composto por
sistemas que, para autorizarem a mudança de seus textos constitucionais,
demandam maiorias que variam entre dois terços e maiorias ordinárias – Dinamarca,
Grécia, Irlanda, Itália. É o caso do Brasil, que exige um quorum de três quintos para
que se possa emendar a Constituição.
261
Em posição intermediária, países que adotam um modelo de Constituição mista,
denominada semi-rígida ou semi-flexível
262
. Em tais sistemas, a Constituição contém
dispositivos cujo processo de alteração é mais rígido que o ordinário e outros em
que a legislação ordinária é suficiente à alteração constitucional.
Além desses três modelos constitucionais acima referidos, Oscar Vilhena chama a
atenção para o surgimento de um novo modelo, notadamente a partir da segunda
metade do século XX:
[...] um quarto modelo de Constituição surgiu a partir da II Grande Guerra,
mais especificamente na Alemanha Ocidental. A ausência de uma tradição
de respeito a direitos e a trágica experiência do nazismo alertaram para a
necessidade de se estabelecer mecanismos mais sólidos de salvaguarda a
certos direitos, do que o simples reconhecimento de direitos pelas
constituições rígidas tradicionais, na mesma posição hierárquica que as
demais normas constitucionais. Com esse intuito criou-se uma super-rigidez
constitucional em torno de algumas cláusulas.
263
Essas mudanças ocorreram em primeiro lugar na Alemanha por motivos óbvios. Os
horrores e atrocidades cometidos pelo nazismo no período do Holocausto e a
transformação do Direito em mero mecanismo de organização e imposição da força,
alertaram para a necessidade de se reconstruir o sistema jurídico a partir de um
261
VIEIRA, 2002.. p. 30.
262
Confira-se o art. 178 da nossa Constituição Imperial, de 1824: “É Constitucional o que diz
respeito aos limites e atribuições respectivas aos Poderes Políticos e aos Direitos Políticos e
individuais dos cidadãos. Tudo o que não é Constitucional pode ser alterado sem as formalidades
referidas pelas Legislaturas ordinárias”.
263
VIEIRA, 2002. p. 31.
101
conteúdo ético mais sólido. Assim, as dificuldades teóricas de se conceber uma
doutrina que substituísse o velho direito natural, estabelecendo um conjunto de
princípios e direitos supraconstitucionais, que não mais deixasse o direito
constitucional perigosamente “pairando sobre si próprio”, levaram os legisladores da
Carta Magna alemã, de 1949, a delinear uma ordem super e também
supraconstitucional na própria Constituição. Nas exatas palavras de Oscar Vilhena
“o que se deu na esfera positiva pela proteção oferecida às chamadas cláusulas
intangíveis pelo art. 79 e pela abertura constitucional às idéias de inalienabilidade
dos direitos humanos”.
264
A Lei Fundamental alemã consagrou, no art. 79, III, cláusula pétrea que considera
inadmissível qualquer reforma constitucional que pretenda introduzir alteração na
ordem federativa, modificar a participação dos Estados no processo legislativo, ou
suprimir os postulados estabelecidos nos arts. (inviolabilidade da dignidade
humana) e 20 (estado republicano, federal, democrático e social, divisão de poderes,
regime representativo, princípio da legalidade). Segundo a jurisprudência da Corte
Constitucional alemã (Bundesverfassungsgericht), essa disposição tem por escopo
impedir que “a ordem constitucional vigente seja destruída na sua substância ou nos
seus fundamentos, mediante a utilização de mecanismos formais, permitindo a
posterior legalização do regime totalitário”.
265
A Alemanha demonstrou, sem dúvida, um avanço na tutela dos direitos humanos
fundamentalizados, restando claro que o aumento da rigidez constitucional decorreu
do contínuo desrespeito, pelos poderes constituídos, aos direitos consagrados na
própria Lei Fundamental.
Partindo-se da mesma premissa, este foi o modelo constitucional adotado pela
Assembléia Nacional Constituinte ao elaborar a Carta Magna de 1988, inserindo no
264
A história constitucional alemã deixa bastante claras as razões que levaram os arquitetos da Lei
Fundamental de Bonn, de 1949, a estabelecer barreiras constitucionais intransponíveis voltadas à
proteção de princípios e instituições básicas do Estado de Direito. A experiência de Weimar, na qual a
frágil Constituição de 1919 sofreu um processo de erosão, abrindo espaço ao surgimento do regime
nazista, impôs à geração do pós-guerra a criação de barreiras substantivas aos processos de
mutação constitucional. (VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um
ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 24).
265
Notas do Tradutor Gimar Ferreira Mendes (HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição.
Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. p. 33).
102
§ do art. 60 as matérias que não poderão ser objeto de reforma constitucional, as
chamadas cláusulas pétreas. De acordo com esse dispositivo não será objeto de
deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a forma federativa de Estado; o
voto direto, secreto, universal e periódico; a separação de Poderes; os direitos e
garantias individuais”.
266
[grifo nosso]
Na doutrina pátria, a tese da superconstitucionalidade das cláusulas pétreas é
levantada por Oscar Vilhena, para quem a primeira função desse dispositivo,
obviamente, é servir como proteção não apenas ao cerne constitucional
tradicionalmente protegido por cláusulas pétreas, afastada a proteção especial à
República, mas ampliar a defesa dos direitos, da separação dos Poderes e do voto,
como elemento estruturante da democracia, em relação ao poder constituinte
reformador.
267
Portanto, mais do que o estabelecimento de cláusulas pétreas ou, mesmo, de um
pequeno núcleo constitucional irreformável, o constituinte concedeu caráter de
superconstitucionalidade a diversos setores da Constituição, ou seja, um conjunto de
princípios e normas constitucionais hierarquicamente superiores aos demais
dispositivos da Constituição. Superconstitucionalidade, e não
supraconstitucionalidade, pois, embora superiores, esses dispositivos ainda se
encontram dentro da órbita da Constituição: direito positivo, e não transcendente.
268
Com efeito, o legislador Constituinte de 1988 - atento à história constitucional
brasileira marcada por vários períodos antidemocráticos
269
e pela supressão
266
BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado,
1988.
267
VIEIRA, 1999. p. 135
268
VIEIRA, 1999. p. 135.
269
Oscar Vilhena nos faz lembrar que as ondas e os regimes autoritários brasileiros não tiveram
pudor em romper com as ordens constitucionais precedentes. Exceto algumas reformas voltadas a
enrijecer o regime e concentrar mais poderes nas mãos do Executivo como as promovidas entre
1840 e 1841, no Segundo Reinado, em 1926, no Governo Arthur Bernardes, e em 1935, no primeiro
regime Vargas –, as demais situações de fechamento do regime deram-se à margem do processo
constitucional, sendo “legalizadas” por decretos, leis e atos normativos. Assim, ao invés de erosão por
emendas à Constituição tivemos rupturas constitucionais. Do momento militar que proclamou a
República ao golpe, também militar, imposto a partir de 1964, as Constituições foram suprimidas e
não reformadas. Porém, mesmo o regime militar buscou alguma forma de legitimação por intermédio
da organização constitucional. Nesse aspecto, é interessante notar as alterações reduzindo o quorum
103
sistemática e institucional aos direitos e garantias fundamentais não se contentou
com a inclusão de regras mais rígidas à alteração de suas cláusulas, de sorte que
limitou a competência do legislador constituinte reformador naquelas cláusulas
reconhecidas como fundamentais à preservação do ordenamento instaurado.
Reconheceu o legislador pátrio, assim, como assevera Oscar Vilhena, a “[...]
existência de alguns direitos que não antecedem lógica (e não historicamente) a
existência do Estado, mas que têm na sua proteção a única justificativa do Estado”.
Esses direitos, denominados direitos morais ou naturais, devem estar acima dos
processos de decisão coletiva, pois são de natureza diversa dos direitos positivos.
São Direitos anteriores e superiores ao Estado, e não decorrentes das deliberações
tomadas pela sociedade política.
270
Nesse pormenor, o sistema constitucional brasileiro assume o rótulo de super-rígido
porque um núcleo imodificável - determinadas normas que não podem ser objeto
de emenda, porque formam o cerne da Constituição -, furtando-se tal leque de
matérias à disponibilidade do poder reformador.
Nessa senda, ao analisar de forma substanciosa as chamadas cláusulas pétreas em
sua obra “A Constituição Viva”, Adriano Pedra nos ensina que:
[...] As cláusulas pétreas constituem um núcleo intangível que se presta a garantir a
estabilidade da Constituição e conservá-la contra alterações que aniquilem o seu
núcleo essencial, ou causem ruptura ou eliminação do próprio ordenamento
constitucional, sendo a garantia da permanência da identidade da Constituição e
dos seus princípios fundamentais. Com isso, assegura-se que as conquistas
jurídico-políticas essenciais não serão sacrificadas em épocas vindouras.
271
Sob o mesmo enfoque, J. J. Gomes Canotilho salienta que a Constituição manterá a
sua identidade se forem respeitados os severos limites estabelecidos ao legislador e
ao administrador, pois, se de um lado, o texto constitucional não deve permanecer
alheio à mudança, também, de outro, elementos do direito constitucional
(princípios estruturantes) que devem permanecer estáveis, sob pena de a
necessário para a reforma da Constituição que foram inseridas nos textos constitucionais. (VIEIRA,
1999. pp. 115-116)
270
VIEIRA, 2002. p. 33.
271
PEDRA, Adriano Sant’ana. A Constituição viva: poder constituinte permanente e cláusulas
pétreas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005. p. 94.
104
Constituição deixar de ser uma ordem jurídica fundamental do Estado para se
dissolver na dinâmica das forças políticas. Neste sentido se fala da identidade da
constituição caracterizada por certos princípios de conteúdo inalterável.
272
Ainda sobre a matéria, é oportuno colacionar o magistério de Carlos Ayres Brito para
quem a Constituição de 1988 é diferente de todas as outras Constituições brasileiras
e de todas as demais Constituições do mundo, porque ela tem uma identidade,
presente nos seus princípios estruturantes ou cláusulas pétreas formais e materiais,
explícitas e implícitas, lógicas e tácitas, cuja função é justamente a de impor
intransponíveis limites aos atos oficiais de reforma constitucional.
273
O citado autor ressalta que é a própria Constituição de 1988 que prevê sua reforma,
porém, no plano dos retoques. Ela não pode ser modificada naquilo que tem de
verdadeiramente fundamental, estruturante, pétreo, ou seja, a menina dos olhos ou
a quintessência da Constituição tem que permanecer a mesma. O nervo da
Constituição, a sua alma, suas impressões digitais, enfim, tudo que axiologicamente
a personaliza em face das demais Constituições (seja materialmente, seja do ponto
de vista formal ou processual) tem que permanecer a salvo de
dessubstancialização.
274
Por outro lado, existe uma parte da doutrina para quem as “cláusulas pétreas” não
implicam absoluta imutabilidade dos conteúdos por elas assegurados. Nessa
direção, adequada a fala de Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
Mas essas proibições – as “cláusulas pétreas”, como se usa dizer – não têm
o peso e o sentido que a elas querem dar certos juristas. Elas não
“petrificamo Direito Constitucional Positivo e por meio dele o ordenamento
jurídico do País.
275
Considerando o texto prolixo e detalhista de nossa Constituição, não há como
pretender a sua sobrevivência através dos tempos, sem a ocorrência de reformas,
272
CANOTILHO, 1998. p. 210.
273
BRITTO, Carlos Ayres. A Constituição e os limites de sua reforma. In Revista Latino-Americana
de Estudos Constitucionais. n. 1. jan/jun. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 238.
274
BRITO, 2003. p. 238.
275
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Saraiva, 1999. p. 175.
105
em face das demandas de cada geração. Como frisa Oscar Vilhena, “a
adaptabilidade de um texto não deve ser vista como valor absoluto ou, mesmo,
supremo”. Merece destaque o pensamento do autor:
O grande desafio de uma teoria das limitações materiais ao poder de
reforma, dentro do quadro constitucional brasileiro, é alcançar uma
interpretação das cláusulas superconstitucionais capaz de assegurar a
proteção dos procedimentos democráticos de tomada de decisão, das
instituições que assegurem o Estado de Direito e, fundamentalmente, de
todos aqueles direitos essenciais à realização da dignidade humana, sem
desautorizar o direito de cada geração de realizar sua autonomia.
276
Ao dispor sobre as cláusulas pétreas, o verdadeiro espírito que norteou o legislador
constituinte de 1988 foi o de reforçar a proteção dos direitos básicos do homem e
dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, sem o qual aqueles
direitos não sobrevivem. Vale dizer, os direitos humanos “fundamentalizados” não
podem ser suscetíveis de violação por nenhum dos poderes constituídos (legislativo,
executivo e judiciário). O que se permite, observando-se atentamente os ditames da
proporcionalidade e da razoabilidade e os ideários sociais de cada época, é a
ampliação do rol desses direitos.
Conclui-se, portanto, que a super-rigidez da ordem constitucional brasileira,
implementada pela Carta de 1988, mostra-se um instrumento valioso a conferir a
máxima eficácia às normas protetivas de direitos humanos, revelando, via de
conseqüência, que a mais importante função do Estado através de sua Lei
Fundamental é a proteção e a promoção da dignidade humana.
Importa discorrer, agora, sobre o modo pelo qual a Constituição Federal de 1988 se
relaciona com a sistemática normativa internacional de proteção dos direitos
humanos.
276
VIEIRA, 1999. p. 134.
106
4.2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O SISTEMA
BRASILEIRO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS
Como apontado acima, após um longo período de vinte e um anos de autoritarismo
militar, que perdurou de 1964 a 1985 - caracterizado pela supressão dos direitos
constitucionais, pelo menosprezo total às liberdades individuais e pela tradição de
abuso de poder do Executivo em relação aos demais Poderes - deflagra-se no Brasil
o processo de redemocratização. Naquele tempo, as mobilizações sociais
reclamavam o fim dos Governos de Exceção e a implementação das Diretas Já, ou
seja, das eleições com a participação popular para a Presidência da República.
Sobre esse momento histórico brasileiro, é adequada a lição de José Afonso da
Silva:
Apesar da opressão, o povo começou a reivindicar mudanças. O movimento
chamado Diretas Já, pleiteando eleições diretas para a Presidência da
República, levou milhões de pessoas às praças públicas. As multidões, que
acorreram ordeira mas entusiasticamente aos comícios, no primeiro
semestre de 1984, interpretaram os sentimentos da Nação, em busca do
reequilíbrio da vida nacional.
277
Inicialmente, somente parte das reivindicações populares foi atendida, que as
eleições indiretas, de natureza antidemocrática, permaneceram por mais um
período. Entretanto, tais eleições foram revestidas de um elemento essencialmente
democrático, que contrariava todas as expectativas do Governo, com a eleição de
um civil à Presidência da República.
Em 15 de novembro de 1985, Tancredo Neves foi eleito pelo Colégio Eleitoral,
iniciando-se, assim, uma lenta e progressiva luta por mudanças sociais e
institucionais no país. Sua morte, antes mesmo que assumisse a Presidência, foi
chorada por milhares de pessoas, que nele depositaram toda a esperança de um
novo período na história das instituições políticas brasileiras e que ele próprio
denominara de a Nova República, que haveria de ser democrática e social, a
277
SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e poder popular: estudos sobre a constituição. São
Paulo: Malheiros, 2000. p. 108.
107
concretizar-se pela Constituição que seria elaborada pela Assembléia Nacional
Constituinte.
278
Assumiu o Vice-Presidente, JoSarney, que embora estivesse sempre ligado às
forças autoritárias e retrógradas de poder, deu continuidade às promessas de
Tancredo Neves, convocando os membros da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal para se reunirem, em Assembléia Constituinte.
279
No âmbito jurídico, esse processo culminou com a promulgação da Constituição
brasileira de 1988 e com a instauração de um novo modelo constitucional no país.
Como se infere das lições de Flávia Piovesan, a Carta de 1988 é o divisor de águas
na transição ao regime democrático e na instauração da sistemática normativa
nacional de proteção dos direitos humanos, o que demonstra a relação existente
entre a redemocratização do país e a incorporação de relevantes instrumentos
internacionais de proteção destes direitos:
Pode ser concebida como o marco jurídico da transição democrática e da
institucionalização dos direitos humanos no Brasil. Introduz indiscutível
avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e
na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os
direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a Carta de
1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os
direitos humanos jamais adotado no Brasil.
280
A Constituição Federal de 1988 foi edificada com caráter nitidamente humanitário,
inserindo um espírito libertador na sociedade historicamente negligenciada na tutela
dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, em face da apatia dos regimes
absolutistas instalados.
Além da característica de marco jurídico no processo de abertura do nosso sistema
à normativa internacional de proteção dos direitos humanos, o legislador constituinte
pretendeu fosse a Carta de 1988 um texto moderno, com inovações de relevante
importância para o constitucionalismo brasileiro e até mundial. No que se refere à
278
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2002. p. 88.
279
Na verdade, ao convocar os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal o que fez,
foi convocar, não uma Assembléia Constituinte, mas um Congresso Constituinte. (Ibid, p. 89).
280
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos humanos no sistema constitucional brasileiro.
Revista de Direito Constitucional e Internacional. v. 45. p. 218.
108
fundamentalização dos direitos humanos, está “dentre as Constituições mais
avançadas do mundo no que diz respeito à matéria”.
281
Pela primeira vez, atento às transformações globais e influenciado por uma
tendência cada vez mais humanizante e protetiva do s Segunda Guerra Mundial,
o legislador constituinte priorizou várias normas, as quais reverberam, sem dúvida
alguma, no tema dos direitos humanos. A Constituição é um sistema e, como tal,
não deve ser interpretada de forma compatibilizada, especialmente em se tratando
de direitos humanos.
A própria redação preambular, ao consagrar a instituição de um Estado Democrático
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos [...]”
282
,
demonstra a preocupação do legislador constituinte em fundar a proteção dos
direitos humanos como meta a ser trilhada pelo poderes públicos.
A cidadania e a dignidade da pessoa humana foram elevadas ao status de
fundamentos da República Federativa do Brasil, consoante o art. da Carta de
1988
283
, isto é, são os pilares sobre os quais o Estado brasileiro deve consolidar as
suas bases.
Ainda no Título I, mais uma vez está demonstrada a preocupação do legislador
constituinte com a dignidade e o bem-estar da pessoa humana, ao instituir no art. 3º,
que as metas e os objetivos a serem perseguidos pela República Federativa do
Brasil constituem em construir uma sociedade livre, justa e solidária; em erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de
281
PIOVESAN, 1994. p. 31.
282
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF,
Senado, 1988.
283
Idem.
109
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação”.
284
Dentre as inovações, Flávia Piovesan chama a atenção para o fato de que “a Carta
de 1988 é a primeira Constituição brasileira a elencar o princípio da prevalência dos
direitos humanos (art. 4º, II), como princípio a reger o Estado brasileiro nas relações
internacionais”.
285
Esse princípio contribuiu sobremaneira para a presença crescente do Estado
Brasileiro no cenário internacional e a conseqüente intensificação dos contatos, que
geraram, nos últimos anos, um aumento significativo dos atos
286
internacionais
negociados e concluídos pelo Brasil, especialmente no que se refere à proteção dos
direitos humanos.
É de elevada importância, ainda, para os fins deste trabalho, a regra contida no §
do art. da CF/88, o qual dispõe expressamente que as normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”
287
, que se objeto de
análise mais aprofundada no próximo capítulo.
Como corolário maior do sistema constitucional de proteção dos direitos humanos
“fundamentalizados”, o constituinte pátrio instituiu, como analisado no tópico anterior,
284
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF,
Senado, 1988.
285
PIOVESAN, 1994. p. 32.
286
A tulo exemplificativo, a partir da promulgação da Constituição de 1988 foram ratificados pelo
Brasil a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20/07/1989; a Convenção
contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28/09/1989; a
Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24/091990; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, em 24/02/1992; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em
24/01/1992; a Convenção Americana dos Direitos Humanos, em 25/09/1992; a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27/11/1995; o
Protocolo à Convenção Americana referente á Abolição da Pena de Morte, em 13/08/1996; o
Protocolo à Convenção Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em
21/08/1996; o Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, em 20/06/2002; o Protocolo
Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher,
em 28/06/2002; os dois Protocolos Facultativos à Convenção sobre os Direitos da Criança, referentes
ao envolvimento de crianças em conflitos armados e à venda de crianças e prostituição e
pornografias infantis, em 24/01/2004.
287
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF,
Senado, 1988.
110
no inciso IV, § do art. 60 que o será objeto de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”.
288
Ao lecionar acerca
do tema, Ives Gandra da Silva Martins pondera que:
Os direitos e garantias individuais conformam uma norma pétrea. Não são
eles apenas os que estão no art. 5º, mas, como determina o § 2º do mesmo
artigo, incluem outros que se espalham pelo texto constitucional e outros
que decorrem da implicitude inequívoca.
289
O § 2º, do art. 5º, a que faz alusão o autor, ao consagrar que os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”
290
, alargou o campo dos direitos previstos pelo
constituinte originário, permitindo a fundamentalização de novos direitos, a partir do
acolhimento de normas internacionais pelo direito nacional.
Acontece que tal dispositivo foi o pivô de uma instigante discussão doutrinária e
jurisprudencial acerca do status normativo dos tratados e convenções internacionais
de direitos humanos internalizados pelo Brasil, o que remonta à seguinte
problemática: de que modo a Carta de 1988 tem se relacionado com as normas
internacionais de proteção dos direitos humanos?
Este tema, conquanto não seja novo, também não é pacífico na doutrina, que se
mostra dividida em quatro correntes distintas: a) a vertente que reconhece a
hierarquia supraconstitucional dos tratados e convenções pertinentes a direitos
humanos; b) o posicionamento que atribui a hierarquia constitucional a essas
normas internacionais; c) a tendência que reconhece o status de lei ordinária a
esses documentos; e d) a interpretação que atribui caráter infraconstitucional, mas
supralegal aos tratados e convenções dos direitos humanos.
288
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF,
Senado, 1988.
289
MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de
1988. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 4. p. 371.
290
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF,
Senado, 1988.
111
Segundo a primeira vertente, os tratados internacionais de direitos humanos
possuiriam status supraconstitucional, vale dizer, as normas constitucionais não
teriam poderes revogatórios em relação às normas internacionais. Em outros termos,
“[...] nem mesmo emenda constitucional teria o condão de suprimir normativa
internacional subscrita pelo Estado em tema de direitos humanos”.
291
Celso de Albuquerque Mello é o grande expoente dessa vertente no Brasil, o qual se
diz “ainda mais radical no sentido de que a norma internacional prevalece sobre a
norma constitucional, mesmo naquele caso em que uma norma constitucional
posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada”.
292
Os constitucionalistas mais modernos, por sua vez, defendem a máxima proteção
dos direitos humanos, atribuindo aos tratados internacionais protetivos de tais
direitos o caráter de norma constitucional, por força da redação do próprio § do
art. 5º da Constituição Federal, entendimento perfilhado no presente trabalho.
Entre os que defendem essa tese, encontram-se como maiores expoentes Antônio
Augusto Cançado Trindade
293
e Flávia Piovesan
294
, para os quais os §§1º e do
art. da Constituição caracterizar-se-iam, respectivamente, como garantidores da
aplicabilidade direta e do caráter constitucional dos tratados de direitos humanos dos
quais o Brasil é parte.
Na mesma senda, Valério De Oliveira Mazzuoli defende que os tratados
internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm índole e nível
constitucionais, além de aplicação imediata, o podendo ser revogados por lei
ordinária posterior. Merecem destaque as suas lições:
291
O Ministro Gilmar Mendes alerta, no entanto, para a dificuldade de adequação dessa tese à
realidade de Estados que, como o Brasil, estão fundados em sistemas regidos pelo princípio da
supremacia formal e material da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico. Entendimento
diverso anularia a própria possibilidade do controle de constitucionalidade desses diplomas
internacionais. (Voto-Vogal do Ministro Gilmar Mendes no RE 466.343-1, Ministro Relator Cezar
Peluzo).
292
MELLO, Celso de Albuquerque. O § do art. da Constituição Federal. In: TORRES, Ricardo
Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.p. 25.
293
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos
Humanos. 1. ed. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1999. v. II. p. 30.
294
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3. ed. atual.
São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 54.
112
Se a Constituição estabelece que os direitos e garantias nela elencados
“não excluem outros provenientes dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte, é porque ela própria está a
autorizar que esses direitos e garantias internacionais constantes dos
tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil “se
incluem no nosso ordenamento jurídico interno, passando a ser
considerados como se escritos na Constituição estivessem. É dizer, se os
direitos e garantias expressos no texto constitucional “não excluemoutros
provenientes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, é
porque, pela lógica, na medida em que tais instrumentos passam a
assegurar outros direitos e garantias, a Constituição “os inclui” no seu
catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu “bloco de
constitucionalidade”.
295
Sobre a matéria, conclui Antônio Augusto Cançado Trindade, em defesa da
hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos:
O propósito do disposto nos parágrafos e do art. da Constituição
não é outro que o de assegurar a aplicabilidade direta pelo Poder Judiciário
nacional da normativa internacional de proteção, alçada a nível
constitucional (...). Desde a promulgação da atual Constituição, a normativa
dos tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte tem efetivamente
nível constitucional e entendimento contrário requer demonstração. A tese
da equiparação dos tratados de direitos humanos à legislação
infraconstitucional tal como ainda seguida por alguns setores em nossa
prática judiciária o apresenta um apego sem reflexão a uma tese
anacrônica, já abandonada em alguns países, mas também contraria o
disposto no artigo 5º, § 2º da Constituição Federal Brasileira.
296
Os adeptos dessa vertente têm apelidado o § do art. 5º da Constituição Federal
de cláusula aberta de recepção de outros direitos elencados em tratados
internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil. Ao permitir a incorporação
de novos direitos por meio de tratados, a Constituição estaria atribuindo a essas
normas internacionais o status de norma constitucional, e o § do mesmo
dispositivo garantiria a tais normas a aplicabilidade imediata, a partir do ato de
ratificação.
Como explica Cançado Trindade, na hipótese de conflito entre a norma internacional
e o direito interno, o primado é o da norma de origem nacional ou internacional
que melhor proteja os direitos humanos. Dessa forma, o direito interno e o direito
295
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O novo § 3 º do art. 5º da Constituição e sua eficácia. FREIRE
E SILVA, Bruno. MAZZEI, Rodrigo (Coord.). Reforma do Judiciário: análise interdisciplinar e
estrutural do primeiro ano de vigência. Curitiba: Juruá, 2006. p. 38.
296
TRINDADE, 2003. v. II. p. 31.
113
internacional passam efetivamente a interagir na realização do propósito comum de
proteção dos direitos e interesses do ser humano.
297
Uma terceira posição, a que até o momento predomina no Supremo Tribunal
Federal, confere o status de lei ordinária aos tratados internacionais sobre quaisquer
matérias, inclusive os tratados afetos a direitos humanos, sob o argumento de que
tais tratados apresentam a mesma hierarquia daquela. Em obediência à regra
traçada pela jurisprudência brasileira no Recurso Extraordinário n 80.004
298
, de
1977 que versou acerca da contradição entre a Lei Uniforme de Genebra sobre
Letras de Câmbio e Notas Promissórias e o Decreto n427 de 1969 lex posteriori
derogat priori, ou seja, lei posterior revoga lei anterior, ainda que esta seja mais
favorável a dignidade humana.
Este entendimento esfundamentado na interpretação sistemática da Constituição
Federal, uma vez que o art. 102, III, “b” confere à Corte Suprema competência para
julgar recurso extraordinário decorrente de decisão que tenha julgado tratado
internacional infraconstitucional.
299
Uma quarta e última corrente professa a tese da supralegalidade dos tratados
internacionais pertinentes a direitos humanos quando ratificados pelo Brasil, ou seja,
serão tratados como normas infraconstitucionais, porém, estarão em uma posição
especial em relação às demais normas e hierarquicamente inferiores à Constituição
Federal.
Endossando essa tese, Oscar Vilhena propõe que estes direitos decorrentes dos
tratados dos quais o Brasil seja parte têm, tal como no sistema francês, hierarquia
supralegal, porém, infraconstitucional. Colocando-se acima da insegurança e
297
TRINDADE, 2000. p. 26.
298
RE n.º 80.004, Ministro Relator Xavier de Albuquerque, julgado em 01.06.1977, publicado no DJ
em 29.12.1977. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 10/02/2006.
299
WEIS, 1999. P. 26.
114
volatilidade do direito ordinário, mas devendo submeter-se à vontade
constitucional.
300
A voz dos Direitos Humanos começou a ser ouvida com o texto introduzido pela
Reforma do Judiciário levada a efeito com a Emenda Constitucional 45, de 08 de
dezembro de 2004, a qual, dentre outras modificações que promoveu no texto
constitucional de 1988, acrescentou o § 3º ao art. 5º, com o seguinte teor:
§ 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais.
301
Ouvindo os reclames dos internacionalistas e dos humanistas brasileiros em relação
à primazia dos tratados de direitos humanos, claramente, o legislador derivado
conferiu status de emenda constitucional às normas internacionais de direitos
humanos, exigindo-se, agora, um trâmite legislativo especial de recepção.
Logo, vê-se que a emenda constitucional ora em exame tentou solucionar o
problema da eficácia normativa das normas protetivas de direitos humanos, ou seja,
tentou corrigir uma “lacuna” no texto constitucional quanto ao meio de ingresso e
hierarquia daquelas normas.
Contudo, na realidade, a resposta legislativa de correção ou aperfeiçoamento da
carta originária esconde um grande problema do direito brasileiro, qual seja, a tímida
interpretação e aplicação das normas constitucionais conferida por nossos tribunais,
especialmente pela Corte Suprema do país, responsável pela efetivação dos direitos
e garantias reconhecidos e assegurados pela Constituição Federal.
300
VIEIRA, 2002. p. 186.
301
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF,
Senado, 1988.
115
Sob esse aspecto, a alteração do texto constitucional brasileiro mostrou-se o
caminho mais rápido para encerrar a controvérsia travada sobre a matéria, que os
nossos tribunais, especialmente a nossa Corte Suprema, ainda não conseguiu
chegar a uma solução uniforme e satisfatória em relação à hierarquia dos tratados
de direitos humanos, como será analisado a seguir.
4.3 A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA SOBRE O CONFLITO
ENTRE TRATADOS INTERNACIONAIS E NORMAS
INTERNAS: UMA CRÍTICA À TRADIÇÃO
CONSERVADORA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Inobstante a tendência mundial do constitucionalismo contemporâneo em prestigiar
as normas internacionais destinadas à proteção do ser humano, e os reclames dos
internacionalistas e humanistas em favor da hierarquia constitucional das normas
protetivas de direitos humanos ratificadas pelo Brasil, a jurisprudência do STF – que,
varia, por motivos óbvios, com a sua composição -, oscilou do monismo radical ao
monismo moderado, sendo, esta última, a posição que se mantém até hoje.
Nos seus primórdios, a jurisprudência do STF adotou a tese do primado do direito
internacional sobre o direito interno infraconstitucional, manifestando a sua opção
pelo monismo radical
302
, segundo o qual lei posterior contrária não revoga tratado
internacional.
303
302
Nesse sentido, pode-se citar o julgamento da apelação cível n.º 7.872, de 1943, do Relator
Ministro Philadelpho Azevedo: “[...] Tarefa interessante é, porém, a de situar esses atos (tratados
internacionais) em face do direito interno, especialmente do nosso, ainda que sem o deslinde do
problema filosófico da primazia do direito internacional sobre o interno, pretendido pela chamada
escola de Viena e por outros repelido (Nuovo Digesto Italiano Trattati e convenzioni internazionali
vol. 12 pgs. 382 – Gustavo Santiso Galvez El caso de Belice – Guatemala 1941 fls. 182 e segs.) ou
o exame das teorias, p. ex. de ANZILOTTI e TRIEPEL dualistas, fazendo girar o direito interno e o
internacional em órbitas excêntricas, e monistas, desdobradas por sua vez em nacionalistas e
internacionalistas, segundo Verdross e Kelsen, eis que sempre teria de prevalecer o pacta sund
servanda a título de axioma ou categoria. (...) Chegamos, assim, ao ponto nevrálgico da questão a
atuação do tratado, como lei interna, no sistema de aplicação do direito no tempo, segundo o
equilíbrio de normas, em regra afetadas as mais antigas pelas mais recentes. O Ministro Carlos
Maximiliano chegou a considerar o ato internacional de aplicação genérica no espaço, alcançando até
súditos de países a ele estranhos, quando tiver a categoria do Código, com o conhecido pelo nome
Bustamante (voto in Direito, vol. 8, pgs. 329). Haveria talvez um exagero, interessando, antes,
examinar, em suas devidas proporções, o problema do tratado no tempo, sendo claro que ele, em
116
princípio, altera as leis anteriores, afastando sua incidência, nos casos especialmente regulados. A
dificuldade está, porém, no efeito inverso, último aspecto a que desejávamos atingir o tratado é
revogado por lei ordinárias posteriores, ao menos nas hipóteses em que o seria uma outra lei? A
equiparação absoluta entre a lei e o tratado conduziria à resposta afirmativa, mas evidente o
desacerto de solução tão simplista, ante o caráter convencional do tratado, qualquer que seja a
categoria atribuída às regras de direito internacional. Em país em que ao Judiciário se veda apreciar a
legitimidade de atos do legislativo ou do executivo se poderia preferir tal solução, deixando ao
Governo a responsabilidade de ser haver com as potências contratantes que reclamarem contra a
indevida e unilateral revogação de um pacto por lei posterior; nunca, porém, na grande maioria das
nações em que o sistema constitucional reserva aquele poder, com ou sem limitações. Na América,
em geral, tem assim força vinculatória a regra de que um país não pode modificar o tratado, sem o
acordo dos demais contratantes; proclama-o até o art. 10 da Convenção sobre Tratados, assinada na
6ªConferência Americana de Havana, e entre nós promulgada pelo Decreto 18.956, de 22 de outubro
de 1929, embora não o havendo feito, até 1938, o Uruguai, também seu signatário. Esse era, aliás, o
princípio já codificado por Epitácio Pessoa que estendia ainda a vinculação ao que, perante a
equidade, os costumes e os princípios de direito internacional, pudesse ser considerado como tendo
estado na intenção dos pactuantes (Código, art. 208); nenhuma das partes se exoneraria e assim
isoladamente (art. 210) podendo apenas fazer denúncia, segundo o combinado ou de acordo com a
cláusula rebus sic stantibus subentendia, aliás, na ausência de prazo determinado. Clóvis Beviláqua
também não se afastou desses princípios universais e eternos, acentuando quão fielmente devem ser
executados os tratados, o alteráveis unilateralmente e interpretados segundo a equidade, a boa fé
e o próprio sistema dos mesmos (D.T. Público, vol. 2, pgs. 31 e 32). Igualmente Hildebrando Acioli,
em seu precioso Tratado de Direito Internacional, acentua os mesmos postulados, ainda quando o
tratado se incorpora à lei interna e enseja a formação de direitos subjetivos (vol. 2, § 1.309). É certo
que, em caso de dúvida, qualquer limitação de soberania deva ser interpretada restritamente (Acioli,
p. cit. § 1.341 13), o que levou BasDevant, Gastón Jeze e Nicolas Politis a subscreverem parecer
favorável à Tchecoslováquia, quanto à desapropriação de latifúndios, ainda que pertencentes a
alemães, que invocavam o Tratado de Versalhes (lestraités de paix, ont-ils limité la competence
lègislative de certains ètats? Paris, 1.927); em contrário, a Alemanha teve de revogar, em
homenagem àquele pacto, o art. 61 da Constituição de Weimar que conferia à Áustria o direito de se
representar no Reichstag. Sem embargo, a Convenção de Havana já aludida, assentou que os
tratados continuarão a produzir seus efeitos, ainda quando se modifique a constituição interna do
Estado, salvo caso de impossibilidade, em que serão eles adaptados às novas condições (art. 11).
Mas não precisaríamos chegar ao exame desse grave problema da possibilidade, para o Estado, de
modificar certa orientação internacional, por exigências da ordem pública, a despeito de prévia
limitação contratual. Urge apreciar apenas o caso de modificações indiretas, isto é, trazidas
normalmente na órbita interna, sem o propósito específico de alterar a convenção, ou estender a
mudança para efeitos externos. Seria exatamente o caso que ora tentamos focalizar de lei ordinária
posterior em certo conflito com o Tratado. Diz, por exemplo, Oscar Tenório: ‘uma lei posterior não
revoga o tratado por ser este especial’ (op. cit. pgs. 45). Corrobora-o Acioli:‘os tratados revogam as
leis anteriores mas posteriores não prevalecem sobre eles, porque teriam de o respeitar’ (op. cit. vol 1
§ 30)’. Um caso desses de subsistência de tratado até sua denúncia, a despeito da promulgação, no
interregno, de certa lei sobre o mesmo assunto encontra-se no acórdão unânime do Supremo
Tribunal Federal de 7 de janeiro de 1.914 (Coelho Rodrigues Extradição, vol. 3, 78); no parecer
sobre a carta rogatória 89, o atual Procurador-Geral da República também acentuou que contra o
acordo internacional não podiam prevalecer nem o regimento desta Corte, nem quaisquer normas de
direito interno, salvo as consagradas na Constituição (Rev. de Jurisprudência Brasileira, vol. 52, pgs.
17). Por isso a técnica exata e sincera foi a que adotou a lei de extradição de 1.911, mandando no
art. 12 que fossem denunciados todos os tratados vigentes para que ela pudesse vigorar genérica e
irrestritivamente, mas antes dessa denúncia, os Tratados o seriam alcançados pela lei, como
reconheceu, acabamos de ver, o Supremo Tribunal em 1.914. Essa é a solução geralmente seguida,
como se pode ver, do artigo de Ramon Soloziano, publicado na Revista de Derecho Internacional de
Habana e transcrito na Rev. de Direito, vol. 128, pg. 3; afora a opinião de Hyde e de alguns julgados
contrários, o escritor aponta o sentido da mais expressa corrente, não prestigiada por decisões
americanas, como de tribunais alemães e franceses, e, sobretudo, de vários países do novo
continente; também Natálio Chediak, de Cuba, escreveu longo trabalho sobre ‘Aplicación de las
convenciones internacionales por el derecho nacional Habana 1.937 em que chega às mesmas
conclusões, e o apresentou ao 2º Congresso de Direito Comparado, recordando a propósito o art. 65
da Constituição espanhola de 1.931, in verbis: ‘No podrá dictarse Ley alguna en contradicción com
117
Alguns anos depois, o Ministro Orosimbo Nonato, fazendo alusão expressa ao voto
proferido nos embargos da apelação cível nº 9.583, de 22/06/1950, comentou que os
tratados constituem leis especiais e por isso não ficam sujeitos às leis gerais de cada
país, porque, em regra, visam justamente à exclusão dessas mesmas leis.
304
Essa orientação, dominante na sociedade internacional, prevaleceu na
jurisprudência tria a o julgamento do Recurso Extraordinário 80.004/SE
(leading case), que versou sobre o conflito entre a Lei Uniforme de Genebra sobre
Letras de Câmbio e Notas Promissórias e o Decreto n.º 427, de 1969, que lhe era
posterior. O Supremo Tribunal Federal, desta vez, esposou sua tendência ao
monismo moderado, prevalecendo o entendimento exposto no voto do Ministro
Leitão de Abreu:
[...] Como autorização dessa natureza, segundo entendo, não figura em
nosso direito positivo, pois que a Constituição não atribui ao judiciário
bcompetência, seja para negar aplicação a leis que contradigam tratado
internacional, seja para anular, no mesmo caso, tais leis, a conseqüência,
que me parece inevitável, é que os tribunais estão obrigados, na falta de
título jurídico para proceder de outro modo, a aplicar as leis incriminadas de
incompatibilidade com tratado. Não se diga que isso equivale a admitir que
a lei posterior ao tratado e com ele incompatível reveste eficácia revogatória
deste, aplicando-se, assim, para dirimir o conflito, o princípio ‘lex posterior
revogat priori’. A orientação, que defendo, não chega a esse resultado, pois,
fiel à regra de que o tratado possui forma de revogação própria, nega que
este seja, em sentido próprio, revogado pela lei. Conquanto o revogado
pela lei que o contradiga, a incidência das normas jurídicas constantes do
tratado é obstada pela aplicação, que os tribunais são obrigados a fazer,
das normas legais com aqueles conflitantes. Logo, a lei posterior, em tal
caso, não revoga, em sentido técnico, o tratado, senão que lhe afasta a
aplicação. A diferença está em que, se a lei revogasse o tratado, este não
voltaria a aplicar-se, na parte revogada, pela revogação pura e simples da
lei dita revogatória. Mas como, a meu juízo, a lei não o revoga, mas
simplesmente afasta, enquanto em vigor, as normas do tratado com ela
incompatíveis, voltará ele a aplicar-se, se revogada a lei que impediu a
aplicação das prescrições nele consubstanciadas.
305
Convenios internacionales, si no hubieran sido previamente denunciados conforme al procedimiento
em ellos establecidos’. O mesmo se nota nos países europeus, onde também prevalece a regra de
imodificabilidade unilateral dos tratados (Paul Fauchille Droit Internacional Public ed. Paris
1.926 – t. 1º, III, § 858)”. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 10/02/2006.
303
Ver capítulo terceiro. (ARIOSI, 2000. p. 165)
304
AC nº 9.587/DF, de 21/08/1951. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 10/02/2006.
305
RE n.º 80.004, Ministro Relator Xavier de Albuquerque, julgado em 01.06.1977, publicado no DJ
em 29.12.1977. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 10/02/2006
118
O RE n.º 80.004 representou, sem dúvida, um divisor de águas na transição do
monismo radical ao monismo moderado em sede da jurisprudência brasileira.
306
Para Celso de Albuquerque Mello, essa opção soou como um verdadeiro
“retrocesso”, uma vez que lançou por terra o entendimento anterior, contrariando
tendência geral de integração do Direito Internacional com o direito interno:
A tendência mais recente no Brasil é a de um verdadeiro retrocesso nesta
matéria. No recurso extraordinário 80.004, decidido em 1977, o Supremo
Tribunal Federal estabeleceu que uma lei revoga o tratado anterior. Esta
decisão viola também a Convenção
307
de Viena sobre Direito dos Tratados,
(1969) que não admite o término de tratado por mudança de direito
superveniente.
308
Mesmo com posicionamentos contrários em sua própria composição, a tese da
legalidade das normas internacionais sobre quaisquer matérias manteve-se firme na
jurisprudência do STF, sendo reiteradas vezes confirmada, como por exemplo, no
julgamento da medida cautelar na ADIn n.º 1.480-3/DF, do Relator Ministro Celso de
Mello, de 04/09/1997, onde o Tribunal reafirmou que entre os tratados internacionais
e as leis internas brasileiras existe mera relação de paridade normativa.
Na mesma direção, o monismo moderado foi reafirmado no ano de 2002, quando do
julgamento pelo STF, em grau de hábeas corpus:
Constata-se a prevalência da Constituição, no Direito brasileiro, sobre
quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos
humanos, que impede, no caso, a pretendida aplicação da norma do Pacto
de São José: motivação. A Constituição do Brasil e as convenções
internacionais de proteção aos direitos humanos: prevalência da
Constituição que afasta a aplicabilidade das cláusulas convencionais
antinômicas. [...] Assim como não o afirma em relação às leis, a
Constituição não precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia
está ínsita em preceitos inequívocos seus, como os que submetem a
aprovação e a promulgação das convenções ao processo legislativo ditado
pela Constituição e menos exigente que o das emendas a ela e aquele que,
em conseqüência, explicitamente admite o controle da constitucionalidade
dos tratados (CF, art. 102, III, b). Alinhar-se ao consenso em torno da
estatura infraconstitucional, na ordem positiva brasileira, dos tratados a ela
incorporados, não implica assumir compromisso de logo com o
entendimento - majoritário em recente decisão do STF (ADInMC 1.480) -
que, mesmo em relação às convenções internacionais de proteção de
306
ARIOSI, 2000. p. 183.
307
A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969, em seu art. 27, determina que
nenhum Estado pactuante “pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o
inadimplemento de um tratado”.
308
MELLO, 2004. p. 133.
119
direitos fundamentais, preserva a jurisprudência que a todos equipara
hierarquicamente às leis ordinárias. Em relação ao ordenamento pátrio, de
qualquer sorte, para dar a eficácia pretendida à cláusula do Pacto de São
José, de garantia do duplo grau de jurisdição, não bastaria sequer lhe
conceder o poder de aditar a Constituição, acrescentando-lhe limitação
oponível à lei como é a tendência do relator: mais que isso, seria necessário
emprestar à norma convencional força ab-rogante da Constituição mesma,
quando não dinamitadoras do seu sistema, o que não é de admitir.
309
Em meio a tantas vozes em favor da máxima efetividade dos direitos humanos, o
Supremo Tribunal Federal intérprete da Constituição, a quem compete dar-lhe a
vida -, sempre se mostrou “surdo”, totalmente alheio ao contexto internacional e ao
próprio texto constitucional, conquanto o disposto no artigo, , inciso II, no artigo ,
§ e §2°, todos da Carta Magna, autorizasse uma c onclusão pela possibilidade de
inclusão da norma do tratado em nível constitucional quando a mesma versasse
sobre direitos humanos. O legislador constituinte sempre foi maior que a
interpretação dada pelos tribunais, a seus preceitos.
É notória, nesse contexto, a incompatibilidade da jurisprudência nacional com a da
Corte Interamericana dos Direitos Humanos, o que representa, “[...] além de ilícito
internacional, uma flagrante inconstitucionalidade, por violar a Constituição brasileira,
que tem a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental”. Relevante,
ainda, transcrever as lições de Fernando Gonzaga Jayme:
Esse posicionamento obsoleto de nossos tribunais revela um contraste
acentuado com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, o que deveria nos vexar, pois, nesta, o lema maior é o da
máxima proteção da pessoa vítima de violações de direitos humanos. a
Corte, em sua breve existência, se consolidou como um expoente na
proteção do ser humano, através de uma jurisprudência arrojada, que
atribui, às normas de direitos humanos dinamismo e efetividade, dando
segurança a todos quanto à garantia dos direitos humanos, fim último de
todas as normas.
310
A jurista Mariângela Ariosi, criticando a posição monista radical da jurisprudência
brasileira expressa no RE n.º 80.004, vai além, assevera que se o Judiciário é quem
deve decidir segundo seu entendimento, que pode variar de acordo com a
composição dos Ministros no STF, então, é o STF quem define a jurisprudência e,
dessa forma, acaba influenciando, mesmo que de forma indireta, na inserção
309
RHC 79.785, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 22/11/02.
310
JAYME, 2005. p. 04.
120
brasileira no contexto internacional. Por esta razão, tem-se aludido a necessidade de
dispositivos constitucionais mais precisos e objetivos que regulassem a decisão do
Judiciário nesta questão, sobretudo, na inclusão de regras no texto constitucional
brasileiro que garantissem o que se denomina por democratização das relações
externas brasileiras.
311
Recentemente, porém, aconteceu o que os internacionalistas, constitucionalistas e
humanistas, muito esperavam: os ministros do STF deram os primeiros passos
em direção à mudança de antigos paradigmas de interpretação e aplicação
constitucional em torno da posição jurídica que devem ostentar os tratados
internacionais de direitos humanos incorporados pelo ordenamento jurídico
brasileiro.
Encontra-se tramitando na Corte Suprema o RE 466.343-1/SP interposto pelo Banco
Bradesco S.A, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que,
negando provimento ao recurso de apelação n.º 791031/0/7, consignou
entendimento no sentido da inconstitucionalidade da prisão civil do devedor
fiduciante em contrato de alienação fiduciária em garantia, em face do que dispõe o
art. 5º, inciso LXVII, da Constituição.
312
Conquanto a matéria enfrentada seja a possibilidade de prisão civil por dívida, a
discussão perpassa pela análise de eventual conflito existente entre o Tratado de
São José da Costa Rica
313
, de 1969, ratificado pelo Brasil em 1992, e o
ordenamento constitucional brasileiro, que ora interessa ao objeto do nosso estudo.
Nesse contexto, merecem destaque as palavras proferidas pelo Ministro Gilmar
Mendes em voto-vista do recurso em discussão, as quais esvaziam, de certa forma,
a jurisprudência avençada até o momento:
311
ARIOSI, 2000. p. 188.
312
RE 466.341/SP, Relator Min. Cezar Peluso. Disponível em:
www.stf.gov.br/notcias/imprensa/ultimas. Acesso em: 05/12/2006. A a conclusão deste trabalho,
encontra-se pendente de julgamento.
313
O art. da Convenção Americana sobre Direitos Humanos Pacto de San José da Costa Rica,
de 1969, dispõe: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de
autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.
121
[...] parece que a discussão em torno do status constitucional dos
tratados de direitos humanos foi, de certa forma, esvaziada pela
promulgação da Emenda Constitucional no 45/2004, a Reforma do
Judiciário (oriunda do Projeto de Emenda Constitucional no 29/2000), a
qual trouxe como um de seus estandartes a incorporação do § ao art. 5o,
com a seguinte disciplina: Os tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros,serão equivalentes às emendas constitucionais.” Em termos
práticos, trata-se de uma declaração eloqüente de que os tratados já
ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e não
submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no
Congresso Nacional, não podem ser comparados às normas
constitucionais. Não se pode negar, por outro lado, que a reforma
também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de
direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade
entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no
ordenamento jurídico. Em outros termos, solucionando a questão para o
futuro – em que os tratados de direitos humanos, para ingressarem no
ordenamento jurídico na qualidade de emendas constitucionais, terão que
ser aprovados em quorum especial nas duas Casas do Congresso Nacional
–, a mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da
tese da legalidade ordinária dos tratados e convenções internacionais
ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto
julgamento do RE 80.004/SE , de relatoria do Ministro Xavier de
Albuquerque (julgado em 1.6.1977; DJ 29.12.1977) e encontra respaldo em
um largo repertório de casos julgados após o advento da Constituição de
1988.
314
Durante décadas o Supremo Tribunal Federal recusou-se a aceitar a aplicação de
normas estranhas ao nosso ordenamento jurídico. Agora, um grande primeiro
passo em direção à vitória da efetivação dos direitos humanos derivados de normas
internacionais. Ora, a essência do Direito Internacional é aceitar o que é diferente,
especialmente em se tratando de normas de direitos humanos. Sempre que a norma
internacional for mais favorável relativamente ao direito interno, não deve haver
empecilhos à sua internalização. Essa é a reflexão que deve conduzir o STF ao
desfecho do recurso transcrito acima.
Espera-se, assim, que o RE 466.343-1/SP signifique um marco histórico a favor da
proteção dos direitos humanos no Brasil, deixando para trás um lastro de
julgamentos ultrapassados e discrepantes da tendência humanista mundial.
314
Ainda o houve julgamento definitivo deste recurso. RE 466.341/SP, Relator Min. Cezar Peluso.
Disponível em : www.stf.gov.br/notcias/imprensa/ultimas. Acesso em: 05/12/2006.
122
Mas é certo que, se de um lado a Emenda Constitucional n.º 45/2004 introduziu um
dado juridicamente relevante, a partir da inserção do § 3º, do art. 5º, capaz de
permitir à Corte Suprema rever a sua posição relativamente à hierarquia com que os
tratados internacionais afetos à proteção dos direitos ingressam no Brasil, resta
saber se ela trouxe elementos capazes de conferir a xima efetividade a essas
normas, de acordo com o espírito que norteou o legislador constituinte pátrio. Esse é
o questionamento proposto no próximo tópico.
5 A EFETIVIDADE DO MODELO CONSTITUCIONAL
APÓS A EMENDA45/2004
A Reforma do Judiciário levada a efeito pela Emenda Constitucional 45, de 08 de
dezembro de 2004, dentre outras modificações que promoveu na Constituição de
1988, acrescentou o § 3º ao art. 5º, como salientado acima.
Com o intuito de atribuir maior eficácia ao plano normativo, e via de conseqüência,
encerrar as polêmicas doutrinárias e jurisprudenciais no que se refere à inserção das
normas internacionais que versem sobre direitos humanos, a emenda ora em
comento definitivamente não solucionou a questão, ao contrário, fomentou ainda
mais a controvérsia anteriormente estabelecida e tem sido alvo de muitas críticas por
parte dos internacionalistas e constitucionalistas brasileiros.
Com efeito, a razão deste capítulo é analisar o reflexo e o impacto das novas
disposições trazidas pela EC 45/2004, mormente ao que se refere aos direitos
humanos, e sua pretensão em assegurar maior efetividade além de eficácia - à
proteção de tais direitos.
Objetiva, também, analisar o sentido e o alcance do § do art. da Constituição,
acrescentado pela citada Emenda Constitucional, por meio do qual pretendeu o
legislador pátrio dotar de força equivalente à emenda constitucional o ato legislativo
que se presta a recepcionar formalmente, no ordenamento jurídico nacional, os
tratados e convenções internacionais de direitos humanos de que o Brasil é parte.
123
A discussão dessas questões, a toda evidência, pressupõe algumas pré-
compreensões, a saber: primeiro, o conceito de efetividade, e mais especificamente,
efetividade do modelo constitucional brasileiro no âmbito da proteção dos direitos
humanos; a distinção entre efetividade e eficácia - tal distinção revela-se importante
tanto na interpretação como na aplicação das normas constitucionais, de modo a ser
assegurada a máxima harmonia do ordenamento jurídico vigente.
A importância desse enfrentamento tem razão de ser na própria evolução
constitucional brasileira, muito mais preocupada em reconhecer e declarar os mais
diversos e modernos desdobramentos dos direitos fundamentais, do que
propriamente em assegurar o seu cumprimento no plano fático e social, fiscalizando
a sua efetividade.
Pois, ainda que sempre tivéssemos nos preocupado em importar e incorporar o que
de mais avançado nas normas de direito comparado, pouco se fez para que
saíssemos do plano ideal, avançando para o plano real, o que nos leva a concluir
que o grande problema do ordenamento constitucional brasileiro encontra-se no
campo da efetivação.
5.1 A EFICÁCIA DAS NORMAS DE DIREITOS HUMANOS
Por eficácia jurídica compreenderemos a aptidão formal da norma para incidir e
reger as situações da vida, operando os efeitos que lhes são próprios, isto é, as
conseqüências que lhe são próprias. Eficaz é o ato idôneo para atingir a finalidade
para a qual foi gerado. Tratando-se de uma norma, a eficácia jurídica designa a
qualidade de produzir, em maior ou menor grau, os seus efeitos típicos. Assim, a
eficácia refere-se à aptidão, à idoneidade do ato para a produção de seus efeitos.
315
Entre os constitucionalistas, José Afonso da Silva foi o primeiro no Brasil a realizar
um estudo sistemático acerca da eficácia das normas constitucionais, que culminou
315
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 5. ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Saraiva, 2003. p. 247.
124
em uma classificação tricotômica: normas constitucionais de eficácia plena e
aplicabilidade imediata; normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade
imediata e normas constitucionais de eficácia reduzida.
Segundo ele, normas de eficácia plena são as que receberam do constituinte
normatividade suficiente a sua incidência imediata e independem de providência
normativa ulterior para sua aplicação. Normas de eficácia contida são as que
receberam, igualmente, normatividade suficiente para reger os interesses de que
cogitam, mas prevêem meios normativos que lhes podem reduzir a eficácia e
aplicabilidade. Por último, normas de eficácia limitada são as que não receberam do
constituinte normatividade suficiente para sua aplicação, o qual deixou ao legislador
ordinário a tarefa de completar a regulamentação das matérias nelas traçadas em
princípio ou esquema.
316
Conclui o autor, entretanto, que todas as normas constitucionais possuem eficácia
jurídica e são aplicáveis nos limites objetivos de seu teor normativo, não havendo em
uma Constituição cláusula a que se deva atribuir meramente o valor moral de
conselhos, avisos ou lições.
Ao presente estudo interessa examinar a extensão da carga eficacial de que foi
dotado o §1º do art. da Constituição Federal, o qual dispõe expressamente que
as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata”.
Por aplicabilidade imediata devemos entender a qualidade atribuída à norma para
dotá-la de eficácia plena, isto é, potencialidade imediata de incidência no mundo
fenomênico, tão logo se verifique a ocorrência da situação tica a ensejar a
irradiação de seus efeitos jurídicos.
Do que se depreende que a pretensão do legislador constituinte de 1988 foi a de
conferir às normas que versam sobre direitos e garantias fundamentais,
316
SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982. pp.
3-68-253.
125
independente da sua origem ou hierarquia, a máxima potencialidade em produzir
efeitos no campo fático, assegurando-lhe a plena efetivação.
Como se vê, não se estabeleceu qualquer condição ou pré-requisito para que as
normas que veiculem e introduzam em nosso ordenamento esses direitos,
fundamentalizando-os, tivessem aptidão para atingir toda a sua carga eficacial,
que foram concebidas como normas auto-aplicáveis, isto é, plena e imediatamente
eficazes.
Sergio Fernando Moro chama a atenção para o fato de que poucos dispositivos de
tamanha importância têm sido tão maltratados como este pela doutrina e
jurisprudência trias. Em geral, ou ele é sistematicamente ignorado, reduzida ou
condicionada a sua abrangência, ou ainda, lhe é negada qualquer eficácia
normativa.
317
Entretanto, o maior desafio dos juristas reside muito mais no plano hermenêutico do
que, propriamente, no plano normativo, uma vez que o texto constitucional originário
previu instrumentos suficientes para viabilizar a ampla tutela dos direitos básicos do
homem e a incorporação de novas normas protetivas.
A conseqüência inevitável desse descaso, promovido principalmente pelos
interprétes do referido dispositivo constitucional, que lhe negaram a importância e o
alcance adequados, consistiu na falta de efetividade da tutela dos direitos humanos
no Brasil.
O que demonstra, na verdade, que, embora a preocupação do legislador reformador
tenha sido dirimir a controvérsia quanto ao status dos tratados de direitos humanos
em nosso ordenamento, encerrando a polêmica estabelecida a partir do
posicionamento até então adotado em nossos tribunais, o problema nunca residiu no
plano da eficácia, mas sim, no da efetividade (interpretação do aludido dispositivo
constitucional).
317
MORO, Sergio Fernando. Desenvolvimento e efetivação judicial das normas constitucionais.
São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 66.
126
5.2 A EFETIVIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL
45/2004 NA PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
As ciências sociais, nas quais se inclui o Direito, ocupam-se do estudo e da
elaboração de sistemas ideais, ou seja, da prescrição de um dever-ser. Assim, nas
precisas palavras de Luis Roberto Barroso, “não se limita a ciência jurídica à
explicação dos fenômenos sociais, mas, antes, investe-se de um caráter normativo,
ordenando princípios concebidos abstratamente na suposição de que, uma vez
impostos à realidade, produzirão efeito benéfico e aperfeiçoador”.
318
A definição de qual seja esse sistema ideal, isto é, os valores a serem protegidos e
os fins a serem buscados, não é uma questão jurídica, e sim política. Todavia,
consumada a decisão pelo órgão próprio, ela se exterioriza, se formaliza pela via do
Direito, que irá então conformar a realidade social. Por este mecanismo, o poder
transforma-se de político em jurídico. A organização desse poder e o delineamento
dos esquemas de conduta a serem seguidos são levados a efeito por meio de
normas jurídicas, que no seu conjunto, compõem o que se denomina direito
objetivo.
319
Segundo leciona Miguel Reale, a norma jurídica é a síntese resultante de fatos
ordenados segundo valores distintos. Com efeito, onde quer que haja um fenômeno
jurídico, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico,
geográfico, demográfico, etc); um valor, que confere determinada significação a esse
fato; e finalmente, uma regra ou norma que representa a relação ou medida que
integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor.
320
Portanto, como bem conclui Luis Roberto Barroso, “as normas judicas consistem
na atribuição de efeitos jurídicos aos fatos da vida, dando-lhes um peculiar modo de
ser”. Significa dizer que:
318
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. São Paulo:
Renovar, 2002. p. 75.
319
BARROSO, 2002. p. 75.
320
REALE, 2005. p. 64-65.
127
O Direito elege determinadas categorias de fatos humanos ou naturais e
qualifica-os juridicamente, fazendo-os ingressar numa estrutura normativa.
A incidência de uma norma legal sobre determinado suporte fático converte-
o em um fato jurídico. Identificam-se, por conseguinte, como realidades
próprias e diversas o mundo dos fatos e o mundo jurídico.
321
Pois bem. Os fatos jurídicos resultantes de uma manifestação de vontade
denominam-se atos jurídicos. Segundo a distinção clássica, os atos jurídicos
comportam a análise de três planos distintos e inconfundíveis: o da existência, o da
validade e o da eficácia.
322
De maior interesse para os fins visados é a efetividade ou eficácia social da norma,
que seria, no dizer de Luis Roberto Barroso, um quarto plano situado fora da teoria
convencional. Para o jurista, “a efetividade significa, portanto, a realização do Direito,
o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no
mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto
possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”.
323
A esse respeito, adequada é a fala de Miguel Reale, para quem a eficácia social
“tem um caráter experimental, porquanto se refere ao cumprimento efetivo do Direito
por parte de uma sociedade, ao ‘reconhecimento’ (Anekennung) do Direito pela
comunidade, no plano social, ou, mais particularizadamente, aos efeitos sociais que
uma regra suscita através de seu cumprimento”.
324
Em tal acepção, eficácia social é
a concretização do comando normativo, sua força operativa no mundo dos fatos.
Hans Kelsen entende a efetividade como a realizabilidade do Direito, voltando a sua
definição para uma conceituação mais sociológica do fenômeno.
325
Seguindo esta
ordem de idéias, Konrad Hesse formulou uma resposta ao problema da distância
entre a realidade e a norma constitucional. Contrapondo as suas idéias às contidas
321
BARROSO, 2002. p. 81.
322
Existência do ato jurídico está ligada à presença de seus elementos constitutivos (normalmente
agente, objeto e forma) e a validade decorre do preenchimento de determinados requisitos, de
atributos ditados pela lei. (BARROSO, 2003. p. 246).
323
BARROSO, 2003, p. 247.
324
REALE, 2005. p. 64-65.
325
KELSEN, 1998. p. 12.
128
na obra A Essência da Constituição”
326
de Ferdinand Lassale, após destacar que a
pretensão de eficácia
327
da norma constitucional não pode ser separada das
condições históricas de sua realização, argumenta:
Mas esse aspecto afigura-se decisivo a pretensão de eficácia de uma
norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização;
a pretensão de eficácia associa-se a essas condições como elemento
autônomo. A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um
ser, mas também de um dever-ser; ela significa mais do que o simples
reflexos das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças
sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura
imprimir ordem e conformação à realidade social e, ao mesmo tempo,
determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem
a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas
e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da
Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser
definitivamente separadas ou confundidas.
328
De acordo com o mesmo autor, a efetividade da Constituição dependeria
principalmente da “vontade de Constituição”, consistente na vontade da comunidade
de que a Carta Constitucional seja, na prática, a Lei Fundamental do País e, por
conseguinte, de que os poderes públicos e, com algumas peculiaridades, os
particulares pautem suas condutas segundo o nela estabelecido.
329
Do que se vem a dizer, o Direito existe para realizar-se, e deve corresponder ao
querer da coletividade. Ao jurista cabe formular estruturas lógicas e prover
mecanismos técnicos aptos a dar efetividade às normas jurídicas.
326
Segundo Lassale, “os fatores reais do poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força
ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinado que não possam
ser, em substância, a não ser tal como elas são”. Para ele, a Constituição não significa mais do que
uma folha de papel, e no embate entre os fatores reais de poder e a Constituição, o resultado é
sempre desfavorável á Constituição. (LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 6. ed. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 2001).
327
Entende-se aqui eficácia social e não jurídica, adotando-se a terminologia de Luis Roberto
Barroso.
328
HESSE, 1991. p. 15.
329
“Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão
da necessidade e do valor de uma ordem jurídica inquebrantável, que proteja o Estado contra o
arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é
mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante
processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com
uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa
ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade [...]” (HESSE, 1991, pp. 19-20).
129
O Direito Constitucional não foge a essa regra. Tanto é assim que as Constituições
contemporâneas, seguindo o modelo da Constituição da República de Weimar de
1919, não se limitam, como as liberais do século XIX, a garantir aos particulares
posições jurídicas contra agressões dos poderes públicos. Ao contrário, pretendem
conformar amplos aspectos da vida social, seja através da formulação de fins e
programas para os poderes públicos, seja através da constitucionalização de direitos
a prestações estatais, que, para sua efetivação, exigem postura ativa por parte do
Estado.
330
Contudo, como adverte Luis Roberto Barroso, no Brasil, o constitucionalismo vem
associado à falta de efetividade da Constituição, de sua incapacidade de moldar e
submeter a realidade social. Naturalmente, a Constituição jurídica de um Estado é
condicionada historicamente pelas circunstâncias concretas de cada época. Mas não
se reduz ela à mera expressão das situações de fato existentes. A Constituição tem
existência própria, autônoma, embora relativa, que advém de sua força normativa,
pela qual ordena e conforma o contexto social e político. Existe, assim, entre a
norma e a realidade, uma tensão permanente. É nesse espaço que se definem as
possibilidades e os limites do direito constitucional.
331
O sucesso do novo modelo constitucional brasileiro após a EC n.º 45/2004
encontrou, como ainda encontra, dificuldades, aliás, parafraseando Sergio Fernando
Moro, “sempre existentes quando o homem decide, através do Direito, interferir na
conformação da vida social”.
332
Por essa razão, faz-se necessário investigar em que medida a EC n.º 45/2004,
atendendo as aspirações doutrinárias, representa relevante papel para o
desenvolvimento e efetivação da Constituição, mormente ao que se refere à
proteção dos direitos humanos no Brasil, uma vez que toda norma constitucional,
independentemente de seu conteúdo, contém, por sua própria força normativa, a
pretensão de efetivar-se.
330
MORO, 2001. p. 19.
331
BARROSO, 2003. p. 249.
332
MORO, 2001. p. 20.
130
Como foi visto, desde o texto constitucional promulgado em 1988, o novo
ordenamento instaurado era dotado de mecanismos jurídicos que permitiam
interpretações que privilegiassem a xima efetividade das normas que se ocupam
da tutela dos direitos básicos do homem, em especial, o art. 5º, §§ 1º e 2º e o art. 4º,
todos da Constituição.
Por certo, se existia dispositivo constitucional originário reconhecendo e
assegurando a aplicabilidade imediata ou potencialidade máxima de incidência das
normas que versassem sobre direitos e garantias constitucionais, não havia óbice no
plano normativo ou da eficácia jurídica.
Somente a partir das interpretações conferidas, principalmente, por nossos tribunais
pátrios, o problema da efetividade foi indevidamente deslocado para o plano da
eficácia, dando a entender que a solução da questão reclamaria providência por
parte de nosso Parlamento (Congresso Nacional).
Nesse contexto, a inserção do § 3º, ao art. 5º, pela EC 45/2005, aparece como
alternativa apresentada à finalização da controvérsia instaurada quanto à natureza
dos tratados de que o Brasil seja signatário, quando versem sobre normas afetas
aos direitos básicos dos homens e às garantias necessárias a sua implementação.
Entretanto, de pouco ou nada adiantará o expresso reconhecimento do status de
emenda constitucional aos tratados internacionais que veiculem normas protetivas
dos direitos humanos, se a interpretação de tais normas não se ocupar não apenas
em dotá-las de máxima eficácia jurídica, como também, e principalmente, de
efetividade ou eficácia social, que nada mais é do que o resultado da implementação
de atos executivos e provimentos judiciais que privilegiem e assegurem a
concretização de tais direitos.
Do que se pode concluir que a solução para o problema da efetividade das normas
fundamentais não depende de nosso Parlamento, que se ocupa, juntamente com o
Judiciário, como intérprete das leis, da conferência de eficácia jurídica às normas,
mas está ao encargo dos Poderes Executivo e Judiciário, a quem compete o
131
respeito e implementação de tais direitos (executivo), e a garantia de seu
cumprimento (judiciário).
5.3 OS DESDOBRAMENTOS DO PARÁGRAFO
ACRESCENTADO PELA EMENDA CONSTITUCIONAL
45/2004
5.3.1 Poder de emenda dos tratados internacionais de
direitos humanos e o direito intertemporal
Sob a perspectiva dos direitos humanos, a Emenda Constitucional n.º 45, em vigor a
partir de 08 de dezembro de 2004, introduziu no texto da Constituição Federal
disposições que tratam explicitamente da matéria relacionada à integração do Direito
Internacional Público ao direito interno, conforme se infere da literalidade do § do
art. 5º:
Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados
em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos
votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas à
Constituição.
333
[grifo nosso]
A redação do novel dispositivo é bastante semelhante à do art. 60, § da
Constituição Federal, que versa sobre o procedimento de alteração do texto
constitucional, ao dispor que a proposta de emenda será discutida e votada em
cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se
obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”.
334
O dispositivo ora em análise, combinado com o § 2º do art. 60, cria uma nova regra
de inteligência para o processo de inserção dos direitos humanos no sistema jurídico
pátrio, ao ordenar que desde que passem por um trâmite legislativo especial de
recepção depois de ratificados pelo Presidente da República, nos termos do art.
333
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF,
Senado, 1988.
334
Idem.
132
84, inciso VIII e art. 49, inciso I, todos da CF/88 - os tratados e convenções de
direitos humanos serão equivalentes às emendas constitucionais e terão, via de
conseqüência, caráter de cláusulas pétreas.
Em termos práticos, significa dizer que além de materialmente constitucionais (de
natureza constitucional), os tratados internacionais protetivos desses direitos, serão
também formalmente constitucionais (isto é, passarão a integrar o texto
constitucional), por uma exigência expressa do legislador reformador. Nesse sentido,
merecem destaque as lições de Flávia Piovesan:
Vale dizer, com o advento do § do art. surgem duas categorias de
tratados de direitos humanos: a) os materialmente constitucionais; e b) os
material e formalmente constitucionais. Frise-se: todos os tratados
internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por
força do § do art. 5º. Para além de serem materialmente constitucionais,
poderão, a partir do § do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade de
formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no
âmbito formal.
335
Valério de Oliveira Mazzuoli também já enfrentou essa questão, concluindo que:
Falar que um tratado tem status de norma constitucional” é o mesmo que
dizer que ele integra o bloco de constitucionalidade material (e não formal)
da nossa Carta Magna, o que é menos amplo que dizer que ele é
equivalente a uma emenda constitucional”, o que significa que esse mesmo
tratado integra formalmente (além de materialmente) o texto
constitucional. Perceba-se que, neste último caso, o tratado assim aprovado
será, além de materialmente constitucional, também formalmente
constitucional. Assim, fazendo-se uma interpretação sistemática do texto
constitucional em vigor, à luz dos princípios constitucionais e internacionais
de garantismo jurídico e de proteção à dignidade humana, chega-se à
seguinte conclusão: o que o texto constitucional reformado quis dizer é que
esses tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, que já têm status
de norma constitucional, nos termos do § do art. 5º, poderão ainda ser
formalmente constitucionais (ou seja, ser equivalentes ás emendas
constitucionais), desde que, a qualquer momento, depois de sua entrada em
vigor, sejam aprovados pelo quorum do § do mesmo art. da
Constituição.
336
Mazzuoli chama a atenção, destarte, para um questionamento que surge com o
advento da Emenda Constitucional n.º 45/2004: diferença em afirmar que os
tratados internacionais de direitos humanos têm status de norma constitucional e
335
PIOVESAN, Flávia. In Reforma do Judiciário: analisada e comentada. o Paulo: Método, 2005.
p. 72.
336
MAZZUOLI, 2006. p. 55.
133
dizer que eles são equivalentes às emendas constitucionais?
337
Esse é o
questionamento proposto na epígrafe desse tópico.
Ora, a resposta é afirmativa. O fato desses tratados e convenções internacionais
serem equivalentes à emenda constitucional gera efeitos não observados quando
revestidos de status de normas constitucionais: a) eles passarão a emendar a
Constituição, o que não é possível tendo apenas o status de norma constitucional; e
b) eles não poderão ser denunciados, nem mesmo com Projeto de Denúncia
elaborado pelo Congresso Nacional, podendo ser o Presidente da República
responsabilizado em caso de descumprimento desta regra (o que não é possível
fazer tendo os tratados apenas status de norma constitucional).
338
De acordo com a primeira conseqüência apontada, pode-se afirmar categoricamente
que os tratados internacionais afetos aos direitos humanos aprovados pelo quorum
de três quintos dos membros respectivos das duas Casas Legislativas terão o poder
de emendar a Constituição Federal. Nas exatas palavras de José Afonso da Silva:
A emenda é a modificação de certos pontos, cuja estabilidade o legislador
constituinte não considerou tão grande como outros mais valiosos, se bem
que submetidas a obstáculos e formalidades mais difíceis que os exigidos
para a alteração das leis ordinárias.
339
É clarividente, quanto a esse nesse pormenor, que os nossos parlamentares
dificultaram o processo legislativo de “fundamentalização” dos direitos humanos
versados em tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário ainda que
tenham pretendido ampliar a esfera de proteção desses direitos - haja vista que
previram o ingresso de tais documentos no ordenamento jurídico pátrio somente
após a aprovação por quorum qualificado dos membros respectivos das Casas do
Congresso Nacional. Se de um lado, a Emenda Constitucional 45/2004, pretendeu
abrir a guarda dos direitos humanos no Brasil, de outro, restringiu o meio de ingresso
das normas internacionais veiculadoras de tais direitos, em nome da proteção da
soberania nacional.
337
MAZZUOLI, 2006. p. 55.
338
MAZZUOLI, 2006, p. 55.
339
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2002. p. 62.
134
À luz da máxima efetividade desses direitos, portanto, entende-se que o legislador
reformador deixou a desejar em seu intento. E isso porque, em uma interpretação
bastante elástica e sistemática dos dispositivos constitucionais, pode-se concluir que
o §do art. viola o próprio inciso IV, do § 4º, do art. 60 da CF/88, o qual dispõe
que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os
direitos e garantias individuais”
340
, na medida em que a emenda constitucional ora
em comento, ainda que não tenha abolido nenhum direito ou garantia
constitucionais, dificultou o ingresso de normas protetivas de direitos humanos, e
conseqüentemente, limitou a realizabilidade e a concretização desses direitos.
A segunda conseqüência em se atribuir status de emenda constitucional aos
tratados de direitos humanos, por sua vez, reside no fato de que tais tratados não
poderão ser objeto de denúncia, como apontado acima. Essa é a lição de Flávia
Piovesan:
[...] os tratados material e formalmente constitucionais não podem ser objeto
de denúncia. Isto porque os direitos neles enunciados receberam assento
no texto constitucional, o apenas pela matéria que veiculam, mas pelo
grau de legitimidade popular contemplado pelo especial e dificultoso
processo de sua aprovação, concernente à maioria de três quintos dos
votos dos membros, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos
de votação. Ora, se tais direitos internacionais passaram a compor quadro
constitucional, não no campo material, não como admitir que um ato
isolado e solitário do Poder Executivo subtraia tais direitos do patrimônio
popular – ainda que a possibilidade de denúncia esteja prevista nos próprios
tratados de direitos humanos ratificados, como já apontado. É como se o
Estado houvesse renunciado a esta prerrogativa de denúncia, em virtude da
“constitucionalização” formal do tratado no âmbito jurídico interno.
341
É dizer, se os tratados internacionais protetivos de direitos humanos, pela redação
do § 3º, do art. 5º, ingressam com status de emenda constitucional no nosso
ordenamento jurídico, constituem-se cláusulas pétreas e, portanto, não são
suscetíveis de denúncia pelo Presidente da República, existindo a possibilidade de
sua responsabilização caso pretenda operá-la.
342
340
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF,
Senado, 1988. p.55.
341
PIOVESAN, 2005. p. 74.
342
MAZZUOLI, 2006, p. 58.
135
Surge, ainda, uma outra dificuldade hermenêutica com a nova sistemática
constitucional brasileira: ao estabelecer a necessidade de um quorum qualificado
para a aprovação dos tratados ou convenções internacionais, criou-se um sério
problema de direito intertemporal com relação àqueles incorporados ao
ordenamento jurídico brasileiro. Vale dizer, os tratados ratificados anteriormente à
alteração constitucional necessitam ser votados como “emenda” para permanecerem
válidos formalmente, já que a sua época não havia aquela exigência?
Este problema gira em torno da aplicação do princípio da irretroatividade da norma
em relação às emendas constitucionais, princípio este básico do direito
intertemporal, que, nas precisas lições de Luiz Pinto Ferreira, “é um conjunto de
normas que regem o impacto, no tempo, de normas de visam regular preceitos sobre
o mesmo fato. As normas jurídicas existem no espaço e no tempo, têm uma validade
espacial e temporal. Quando uma norma jurídica se torna obrigatória, é ela aplicável
em determinado território e incide no tempo”.
343
A fonte de inspiração desse novo preceito parece residir no texto constitucional
argentino, em seu art. 75, § 22 (com a alteração dada pela Emenda Constitucional
de 1994), o qual estabelece que uma série de declarações e tratados de direitos
humanos, que expressamente enuncia, tem hierarquia constitucional e que os
demais tratados dessa matéria que vierem a ser aprovados por dois terços dos
membros de cada uma das câmaras do parlamento nacional, quorum adotado para
as emendas constitucionais, também farão jus à mesma hierarquia constitucional”.
344
Entretanto, a previsão Argentina, além de estabelecer mecanismos para a
constitucionalização dos tratados que viessem a ser eventualmente apreciados pelo
parlamento nacional posteriormente à nova regra de 1994, procurou solucionar a
situação dos tratados e declarações que lhe fossem anteriores. Tal preocupação não
se manifestou na nova regra brasileira, que é omissa quanto à hierarquia dos
tratados internacionais sobre direitos humanos existentes anteriormente à
343
FERREIRA, Luiz Pinto. As emendas à Constituição, as cláusulas pétreas e o direito
adquirido. In Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. n. 1. jan/jun. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003, p. 209.
344
DALLARI, Pedro Bohomoletz de Abreu. In Reforma do Judiciário: analisada e comentada. São
Paulo: Método, 2005. p. 90.
136
promulgação da Emenda Constitucional 45. Ao lecionar sobre o tema, Luiz
Alexandre Cruz Ferreira assevera que:
Assim, não podemos sustentar que aqueles tratados, que tinham antes
status de normas constitucionais, deixariam de tê-lo, entendimento que
corresponderia a uma violência contra o constituinte de 1988, que
manifestou explicitamente sua opção pela preservação e defesa dos direitos
humanos, independentemente de sua fonte.
345
Não se pode conceber, portanto, uma interpretação restritiva e discriminatória da
nova regra prevista no § do art. 5º. O novo texto constitucional tem força
obrigatória a partir de sua entrada em vigor, podendo ser aplicado somente aos
tratados internacionais de direitos humanos ratificados após a sua publicação.
Portanto, se todos os tratados de direitos humanos ingressavam no ordenamento
jurídico com o caráter de norma constitucional, pelo que se extrai da inteligência dos
§§ 1º e 2º do art. 5º e art. 4º da CF, independentemente do seu processo de
recepção, então, não necessitariam ser votados como emenda para permanecerem
válidos formalmente, uma vez que, a sua época, não havia tal exigência.
Entendimento contrário esvaziaria o espírito da Carta Federal de 1988, conferindo
ao Congresso Nacional uma discricionariedade sem que houvesse pretendido o
legislador constituinte.
Assim, o Congresso Nacional não pode estar pautado pela conveniência ou
oportunidade. Sua discricionariedade deve limitar-se à observância da própria
natureza superior da norma que se deseja incorporar, isto é, uma norma que versa
sobre a dignidade humana, princípio este que o legislador constituinte elevou ao
status de fundamento da República Federativa do Brasil. A prevalência dos direitos
humanos é premissa que está acima de qualquer norma.
Na perspectiva da presente pesquisa, defende-se, pois, a desnecessidade da
“constitucionalização formal”
346
dos direitos humanos no Brasil na forma prevista no
§ 3º, do art. 5º da CF/88, isto é, a desnecessidade da exigência expressa de quorum
qualificado na “fundamentalização” dos direitos humanos, relativamente aos tratados
345
FERREIRA, 2005. p. 456.
346
Expressão utilizada por Flávia Piovesan. (PIOVESAN, Flávia. In Reforma do Judiciário:
analisada e comentada. o Paulo: Método, 2005. p. 75).
137
internacionais anteriores bem como aos posteriores à própria emenda. Defende-se,
por conseguinte, a inocuidade do § do art. 5º, uma vez que sempre foi
plenamente possível interpretação que privilegiasse a máxima efetividade das
normas que se ocupam da tutela dos direitos básicos do homem.
A despeito de todas as críticas ao dispositivo acrescentado pela EC 45/2004, não
se pretende aqui argüir a sua inconstitucionalidade, o que significaria dar um passo
atrás. Deve-se interpretar o § 3º, do art. 5º da CF/88 sob o enfoque do princípio da
máxima efetividade ou eficácia social dos preceitos constitucionais, haja vista que o
operador do Direito deve primar por dar a maior aplicação concreta aos comandos
da Constituição, especialmente tratando-se de direitos humanos.
347
É o que se espera na nossa Corte Suprema: que tome para si a responsabilidade de
concretização do texto constitucional e de interpretação do referido dispositivo da
forma mais sensível e favorável à máxima efetivação dos direitos tão almejados pela
sociedade, pois do contrário, de nada adiantará o constante reparo da Carta Maior.
A Corte Suprema e os demais tribunais brasileiros não podem perder de vista que a
Constituição pátria tem como principio fundamental a dignidade da pessoa humana.
Por fim, cabe analisar uma das dimensões atualmente mais debatidas, ante o
advento da Emenda Constitucional 45/2004, em sede de direitos humanos: os
tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico
brasileiro terão caráter de cláusula pétrea?
Será o próximo questionamento a ser examinado no último tópico do presente
trabalho.
347
FRANCISCO, José Carlos. In Reforma do Judiciário: analisada e comentada. São Paulo:
Método, 2005. p. 103.
138
5.3.2 Os tratados internacionais de direitos humanos e as
cláusulas pétreas
Em função do que foi exposto no tópico anterior, pode-se chegar a algumas
conclusões, ainda que parciais, acerca do questionamento proposto: a) inicialmente,
a teor do que dispõe expressamente o § 3º, do art. da CF/88, acrescido pela
Emenda Constitucional 45/2004, os tratados internacionais que veiculam normas
de direitos humanos ingressam no ordenamento pátrio com status de emenda
constitucional, ou seja, uma vez aprovados pelo Congresso Nacional, passam a
integrar o corpo da Constituição Federal; b) os tratados internacionais formalmente
constitucionais não são suscetíveis de denúncia, ainda que haja previsão expressa
no texto do tratado; c) os tratados ratificados antes da Emenda Constitucional nº
45/2004, serão recepcionados como norma constitucional, uma vez que à época da
ratificação não havia tal exigência e os efeitos da emenda sob análise são ex nunc;
e, por fim, d) todos os direitos e garantias individuais previstos nos tratados
internacionais de direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro
constituem cláusula pétrea e não podem ser abolidos ou modificados – salvo se para
ampliar o feixe inicial de direitos assegurados - por ato do legislador reformador.
Visando superar a divergência doutrinária e jurisprudencial, o Poder Reformador
acrescentou o § 3º ao citado art. 5º da Constituição Federal, estabelecendo de forma
inequívoca, conforme preceituado de forma literal, a possibilidade de que tratados
em matérias de direitos humanos tenham equivalência com emenda constitucional,
podendo acarretar, portanto, a agregação de novas normas ao sistema da
Constituição.
Acolheu-se, assim, a tese de que tratados sobre direitos humanos, dada a relevância
da matéria, devem merecer acolhida diferenciada no direito brasileiro, mas procurou-
se igualmente contemplar, por meio do quorum previsto para essa excepcionalidade,
a lógica do processo legislativo, que exige maior endosso político à aprovação de
normas jurídicas de maior posição hierárquica.
139
Assim, uma vez incorporados ao Texto Constitucional, os direitos humanos
reconhecidos pelo tratado internacional ratificado pelo Brasil passam a ser direitos
fundamentais e, por conseguinte, irreformáveis pelo poder reformador, nos termos
do art. 60, parágrafo 4º, IV da Constituição.
Antes mesmo da Emenda Constitucional nº 45/2004, o STF, no julgamento da ADIN
939/93
348
- ajuizada em face da Emenda Constitucional 3 -, havia adotado
posicionamento sólido no sentido de que não apenas os direitos e garantias
individuais do art. 5º, da CF/88 teriam o caráter de cláusula pétrea, como também
quaisquer outros direitos garantidos na Carta Maior, por força do § do citado
dispositivo constitucional:
Entendeu o Supremo Tribunal Federal que a referida Emenda, além de violar o
princípio federativo, ao excepcionar o princípio da imunidade recíproca, também
violava os direitos e garantias individuais, pois sendo o princípio da anterioridade
uma garantia constitucional do contribuinte, deveria receber a proteção especial do
art. 60, § 4º, IV.
Confira-se o debate consolidado entre os Ministros, que se concentrou
principalmente em saber se o princípio da anterioridade constitui ou não um direito
individual:
O Ministro Marco Aurélio iniciou o seu voto afirmando que os direitos e
garantias constitucionais não são apenas aqueles inseridos no art. da
Constituição, do qual constam setenta e sete incisos. Princípios e garantias
do cidadão, no seu “embate diário que trava com o Estado”, podem ser
encontrados em outros artigos da Constituição. Para afirmar esta
interpretação como a única possível, cita o § 2º, do art. 5º, da
Constituição, que dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte”. E como fica expresso pelo
art. 150, caput, da Constituição, o princípio da anterioridade é uma garantia
assegurada ao contribuinte, não restando duvida, portanto, de que, por
força do § do art. 5º, somado ao inciso IV do § do art. 60, inclui-se no
rol dos direitos individuais protegidos pelas cláusulas pétreas. Esta posição
foi confirmada pela maioria dos Ministros. O Ministro Carlos Velloso foi, no
348
Para os advogados da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio, a Emenda
Constitucional n.º 3, ao autorizar que o IMPF fosse cobrado no mesmo ano de sua instituição, violava
o princípio da anterioridade, pelo qual não se podem cobrar tributos “no mesmo exercício financeiro
em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”. Sendo esta uma garantia individual do
contribuinte, não poderia ser suprimida, ainda que por emenda constitucional (VIEIRA, 2002. p. 178).
140
entanto, além: para ele, os direitos irrevogáveis protegidos pelo art. 60,
§ 4º, IV, não são apenas os individuais, mas todos os direitos
fundamentais de primeira, segunda, terceira e até quarta geração,
protegidos pela Lei Maior.
349
. (Grifamos).
Relevante frisar que esse posicionamento foi esposado muito antes do advento da
EC n45/2004, numa época em que o entendimento dos Ministros do STF era bem
mais restritivo no que concerne à natureza dos tratados internacionais de direitos
humanos.
Desse modo, inegável se torna a conclusão no sentido de que aos tratados sobre
direitos humanos introduzidos em nossa ordem constitucional, deverá ser dada uma
concepção ampliativa no tocante aos elementos integrantes da matéria em sede
constitucional originária ou reformada, como cláusulas pétreas.
Nada, absolutamente nada permite interpretações reversas, eis que por tudo o que
se afirmou no tocante aos direitos humanos, não pode haver dicotomização, ou
hierarquização destes, dentro do contexto constitucional, apenas pelo fato de alguns
direitos serem “genuinamente nacionais”, e de outros serem “importados”.
Como dito, os em destaque são HUMANOS, e por isso, dignos de reconhecimento
em sua concepção mais elementar atemporal e apátrida.
No mesmo sentido, mas num ensejo diferente de enfoque, deve se reforçar aqui o
que foi dito linhas atrás no sentido de que o que será tido como tal, direitos humanos
com forma material e formalmente constitucional, será aquilo que o legislativo disser,
pelo método do artigo 5º, § 3º, nada mais.
349
VIEIRA, 2002. pp. 180-181.
141
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pretensão do presente estudo concentrou seus esforços em demonstrar que o
modo como se da resposta oferecida pela EC 45/2004 não se encontra à altura
da problemática brasileira quanto à falta de realizabilidade dos direitos fundamentais
e fundametalizados de proteção dos direitos básicos do homem.
Embora decorrente de um sincero comprometimento de nossos parlamentares em
ampliar a tutela dos direitos humanos, solucionando o problema da eficácia
normativa das normas protetivas internacionais que ingressam em nosso
ordenamento e encerrando, definitivamente, a controvérsia travada em nossas
cortes judiciais quanto à hierarquia que adquirem após sua inserção, a emenda ora
em análise nada mais fez, na verdade, do que dificultar o procedimento de
fundametalização dos direitos humanos versados em tratados internacionais dos
quais o Brasil seja signatário.
Mais uma vez, a resposta legislativa de correção ou aperfeiçoamento da carta
originária esconde, na realidade, o calcanhar de aquiles do direito brasileiro, qual
seja, a tímida interpretação e aplicação das normas constitucionais conferida pelos
poderes responsáveis pela efetividade dos direitos e garantias reconhecidos e
assegurados na Lei Suprema.
Assim como ocorre na comunidade mundial, as deficiências brasileiras não se
encontram propriamente, no plano das normas (eficácia), já que contamos com
moderno aparato normativo de proteção da pessoa humana. Ao contrário, nossas
dificuldades de concretização no plano social do que está posto e assegurado nas
normas vigentes decorrem, muito mais, da omissão judicial e executiva em assumir
o seu verdadeiro papel.
Por certo, de nada adiantará o constante reparo e reformulação da Carta Magna,
enquanto Judiciário e Executivo não chamarem para si a responsabilidade pela
concretização da vontade constitucional. Se por um lado compete ao executivo a
adoção de políticas públicas que assegurem a realização do programa social
142
estabelecido em nossa CF/88, ao Judiciário cabe a importante missão de interpretar
as normas de forma que melhor atendam aos anseios constitucionais e sociais.
Donde se pode concluir que o caminho para ampliação da efetivação da tutela dos
direitos humanos está muito mais a reclamar uma atitude de nossos julgadores e
administradores públicos, do que de nosso Parlamento.
Nessa perspectiva, o futuro da proteção dos direitos humanos no Brasil depende da
melhor interpretação dada à Constituição Federal pelos Tribunais Superiores e,
especialmente, pelo Supremo Tribunal Federal. Em que pese o fato de ainda
existirem antigos paradigmas de interpretação e aplicação constitucional, o
tratamento diferenciado no processo de inclusão dos tratados internacionais de
direitos humanos no sistema interno deve ser reconhecido na prática de nossos
tribunais, em observância a uma tendência mundial.
143
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