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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
PARA OS MANOS DAQUI E OS DE LÁ:
Os Ecos do Discurso Poético da Negritude Angolana na Música Popular Brasileira
(Dissertação de Mestrado)
por
ANA LIDIA DA SILVA AFONSO
NITERÓI
2007
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ANA LIDIA DA SILVA AFONSO
PARA OS MANOS DAQUI E OS DE LÁ:
Os Ecos do Discurso Poético da Negritude Angolana na Música Popular Brasileira
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a
obtenção do Grau de Mestre. Área de
Concentração: Literatura Portuguesa e
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
Linha de Pesquisa: Literatura e Vida Cultural.
Orientador: Mário César Lugarinho
NITERÓI
2007
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
A257 AFONSO, ANA LIDIA DA SILVA.
Para os manos daqui e os de lá: os ecos do discurso poético da
negritude angolana na Música Popular Brasileira / Ana Lídia da
Silva Afonso. – 2007.
101 f.
Orientador: Mário César Lugarinho.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2007.
Bibliografia: f. 98-101.
1. Literatura angolana. 2. Cultura brasileira. 3. Negritude
(Movimento Literário). I. Lugarinho, Mário César. II.
Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.
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ANA LIDIA DA SILVA AFONSO
PARA OS MANOS DAQUI E OS DE LÁ:
Os Ecos do Discurso Poético da Negritude Angolana na Música Popular Brasileira
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a obtenção
do Grau de Mestre. Área de Concentração:
Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa.
Linha de Pesquisa: Literatura e Vida Cultural.
Aprovado em 07 de dezembro de 2007.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
Professor Doutor Mário César Lugarinho Orientador
Universidade Federal Fluminense - UFF
______________________________________________________________________
Professor Doutor Emerson da Cruz Inácio
Universidade de São Paulo - USP
______________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Teresa Salgado
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ
______________________________________________________________________
Professora Doutora Lívia Reis – Suplente
Universidade Federal Fluminense UFF
______________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Lucia Wiltshire de Oliveira – Suplente
Universidade Federal Fluminense UFF
NITERÓI
2007
5
À minha mãe, Elza,e às minhas filhas, Thamiris e Verônica; fontes de
minha inspiração
6
AGRADECIMENTOS
Ao Professor e amigo Mário César Lugarinho, pela oportunidade de-lo como
orientador, pela parceria, generosidade e confiança.
À Professora Maria Teresa Salgado, pelo carinho, amizade, sensibilidade e indispensáveis
contribuições bibliográficas fornecidas.
Á Professora Laura Cavalcante Padilha, Silvio Renato Jorge e Ida Maria Alves pelos
preciosos ensinamentos.
À Professora Carmem Lucia Tindó Ribeiro Secco, exemplo como educadora, sempre
acessível.
À minha mãe, meu modelo de luta e perseverança.
À meu pai, para sempre em minha memória, pela presença marcante em minha vida.
À meu companheiro Nelson, pela paciência e compreensão nas minhas ausências.
À meu mais que irmão Reginaldo, ombro amigo nos momentos mais difíceis nesta
jornada.
Aos primos João Carlos, Leila, Carlos Raphael e Luana e Leandro, pelas orações e os
momentos de descontração.
À minha cunhada Selma Regina pelo apoio e incentivo.
Às minhas colegas Cristina Cataldi e Sueli Alves pela solidariedade nos momentos de
angústia e dificuldade ao longo desta jornada.
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RESUMO
A pesquisa tem como escopo refletir sobre os processos de representação dos negros
nas poesias angolanas negritudinistas, numa perspectiva comparada com algumas letras de rap
brasileira, tentando procurar possíveis traços de semelhança, ou não, entre ambos os
discursos.
Para tanto, utilizamos como fio condutor das reflexões o romance O ano em que
Zumbi tomou o Rio, de José Eduardo Agualusa, por ser um texto que suscita uma série de
questões voltadas para a temática da negritude, tanto angolana como brasileira, evidenciando,
dentre outras coisas, a necessidade de se criar mecanismos que visem à inserção dos negros na
sociedade brasileira.
Ao longo desta dissertação buscou-se pensar na negritude como um termo que agrega
vários significados, nas diferenças e semelhanças na maneira de enfocar a temática da
negritude nos dois países, nas maneiras de representação do negro em ambas as poesias e, no
discurso da negritude como forma de resistência.
Palavras-Chave: Literatura Angolana Cultura Brasileira Negritude
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RESUMEN
La investigación tiene como finalidad reflejar sobre los procesos de representación de
los negros en la poesía de Angola negritudinistas, con probabilidad de comparación con unas
letras de rap de Brasil, tratando de buscar los posibles trazos de una similitud, o no, entre los
dos discursos.
Por tanto, utilizarse como hilo de las reflexiones el romance El año en que ocupa la
Zombie el Río, de José Eduardo Agualusa, como un texto que suscita una serie de preguntas
que contienen la tema de la Negritude, de Angola y Brasil, que muestra, entre otras cosas , la
necesidad de crear mecanismos encaminados a la integración de los negros en la sociedad
brasileña.
A lo largo de esta disertación solicitó es el pensamiento de Negritude como un término
que se extiende muchos sentidos, las diferencias y similitudes en la forma en que se enfoque
en el tema de la Negritude en los dos países, en la forma de representación del negro en lãs
produciones poéticas en los dos países y, en el discurso de la Negritude como forma de la
resistencia.
Palabras clave: Literatura Angolana – Cultura Brasileña Negritude
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................11
1. AS FRONTEIRAS PERDIDAS ENTRE ANGOLA E BRASIL.........................................16
2. DA NEGRITUDE EM FRANCÊS ÀS NEGRITUDES EM PORTUGUÊS .......................35
3. REPRESENTAÇÕES DO NEGRO .....................................................................................55
4. CONCIENTIZAÇÃO E VIOLÊNCIA CONTEMPORÂNEAS..........................................77
CONCLUSÃO ..........................................................................................................................96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................................99
REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS:.......................................................................................102
10
o rap é um gênero musical que articula a tradição
ancestral africana com a moderna tecnologia, produzindo
um discurso de denúncia das injustiças e da opressão a
partir do enraizamento dos guetos negros urbanos.
Juarez Dayrell. A música entra em cena: o rap e o funk na
socialização da juventude.
11
INTRODUÇÃO
Chegar a este projeto, que pretende realizar uma leitura comparada entre o discurso
poético da negritude angolana e os encontrados nas letras de rap foi fruto de pistas deixadas
por pesquisadores como Juarez Dayrell (2005), que afirma ser o rap portador de marcas da
tradição oral africana.
Outra fonte de fundamental importância para o estabelecimento do elo entre os dois
discursos é o livro O ano em que Zumbi tomou o Rio (2002), do romancista angolano José
Eduardo Agualusa. No início do século XXI surge uma narrativa que impõe ao leitor um olhar
reflexivo a respeito da temática da negritude. Neste romance, como ocorreu em Luanda no
período da pré-independência, ao dar destaque para a cisão da cidade do Rio de Janeiro,
Agualusa nos leva a pensar, através das vozes das personagens, nas formas de representação
do negro e nos mecanismos utilizados por este para pleitear sua ascensão à categoria de
sujeito histórico, tanto em Angola como no Brasil.
Falar de questões voltadas para a temática da negritude na virada do século XX, como
veremos nas letras de rap e, no já citado romance, no início do século XXI, pode causar certo
estranhamento em alguns leitores, uma vez que as idéia que nos vem à mente quando falamos
da Negritude remonta às opiniões defendidas por Cèsaire, Senghor e Damas, dando-nos a
sensação de que estas discussões já se esgotaram.
Maior surpresa pode produzir o título inusitado deste romance de Agualusa: O ano em que
Zumbi tomou o Rio. Fato é que, uma vez abertas as primeiras páginas do livro, somos levados
12
a perceber que o texto “assume muitos saberes”, conforme afirma Roland Barthes em Aula
(2000), e nos impõe uma série de reflexões que vão além da matéria exclusivamente literária.
O sabor da leitura da obra de Agualusa está na possibilidade de fazermos um exercício
constante de “circulação de saberes”, ou melhor, de não nos limitarmos à fixidez da paisagem,
ainda recorrendo a Barthes, uma vez que somos convidados a navegar nas águas não muito
tranqüilas do romance, ora imersos neste emaranhado texto, ora voltando à superfície do mar
revolto.
Para todos que conhecem o projeto literário de Agualusa que, segundo Maria Teresa
Salgado (2000), procura estabelecer diálogos entre Angola, Brasil, Portugal e o resto do
mundo, não é difícil compreender a proposta do autor nesta obra.
Agualusa tenta evidenciar o entrelaçamento entre África e Brasil. União que se
consolidou através da História de um período no qual Portugal exerceu o regime colonial. Os
dois países estão impregnados de evidências que comprovam seus laços históricos e culturais.
No caso de Angola, Manuel Ferreira (1989) mostra a importância da literatura
brasileira para a criação da moderna literatura angolana. Segundo Ferreira, na fase de apelo e
protesto, os poetas foram influenciados por autores brasileiros como Jorge Amado, Graciliano
Ramos e Guimarães Rosa. Não são poucos os momentos em que se pode estabelecer uma
leitura intertextual entre os autores brasileiros e os angolanos desta fase.
Quanto ao discurso negritudinista, tema que nos interessa para o trabalho comparativo
a ser realizado nesta dissertação, percebe-se na literatura brasileira que os poemas negristas de
autores como Castro Alves e Jorge de Lima, por exemplo, não deram conta de apresentar
textos similares com os produzidos em Angola, sobre o mesmo tema, que contemplassem o
negro como sujeito histórico.
Enquanto que nos anos 50 do século XX, poetas angolanos, como Viriato da Cruz,
uniam diversas vozes dos negros da diáspora, através do poema “Mamãe Negra”, num “canto
de esperança” revelador das diversas formas de manifestação da resistência à opressão pelo
mundo, apresentando, inclusive, a figura do herói brasileiro Zumbi como ícone negritudinista,
no caso das produções literárias brasileiras não é possível detectar, no mesmo momento, um
discurso solidário que unisse os negros do Brasil aos de “todo o mundo”.
É na música popular brasileira que parece surgir uma voz negra, ainda um pouco
tímida no lundu
1
, mais clara nas letras de samba
2
e contundente no caso do rap
3
, que assume o
assunto negritude.
1
Segundo José Ramos Tinhorão (1998: 99), o lundu surge ao lado do fado pela metade de Setecentos na Bahia e,
quase simultaneamente pela década de 1760 em Pernambuco e no Rio de Janeiro.
13
Em algumas letras de rap surge o discurso de um sujeito que, de posse da enunciação,
demonstra ter consciência de sua negritude e coloca-se, como nas poesias africanas, como
porta-voz da coletividade que vive, majoritariamente, nas regiões periféricas.
A proposta de Viriato da Cruz, em Mamãe Negra, fundindo no poema a palavra
escrita com a falada, poesia e música, parece ecoar no Brasil cinco décadas depois na voz de
alguns rappers, dentre os quais destacamos MV Bill e o grupo Racionais MC’s que, ao
tentarem despertar os manos negros para o estado de alienação em que se encontram, unem
rhythm and poetry a uma voz que, como num jogo de espelho, parece refletir
intertextualmente a negritude angolana.
Por esses motivos, recorreremos aos discursos da poesia da negritude angolana e os de
algumas letras de rap brasileira, na tentativa de estabelecermos possíveis relações de
semelhança que nos ajudem nas discussões a respeito do processo de representação do negro
nas literaturas angolana e brasileira.
Identificados como “quilombolas urbanos”, os jovens negros ligados aos movimentos
hip hop lutam contra as injustiças sociais. O herói Zumbi aparece, não só na obra de Agualusa
como em diversas letras de rap, como imagem capaz de atualizar e reacender os discursos
ideológicos de resistência defendidos nos diversos movimentos realizados pelos negros ao
longo da história.
Neste sentido, nossa proposta é tentar buscar possíveis respostas para algumas
inquietações: como aparece o discurso negritudinista nas literaturas angolana e brasileira?
Quais as formas de representação do homem negro em tais discursos? Na posição de sujeito
da enunciação, como o negro se posiciona com relação a sua negritude e sua condição
histórica? Sendo Angola e Brasil países que comungam de semelhanças históricas que
refletiram na convergência de traços culturais, em que medida é possível estabelecer uma
leitura intertextual do discurso da negritude em ambos os textos?
Para tanto, elegemos uma série de críticos e teóricos da literatura e de outros campos
do conhecimento, importantes para fundamentar nossas argumentações, dentre os quais os
estudos de Pires Laranjeira, com destaque para o livro A Negritude Africana de Língua
Portuguesa (1995b), por apresentar uma vasta pesquisa acerca do tema, facilitando a
compreensão de dados essenciais do percurso do movimento da negritude desde sua gênese.
2
No livro A canção no tempo (1997: 49), de Jairo Severino e Zuza H. de Mello, os autores apontam o período
entre 1917 e 1928 como sendo a fase importante para a música popular brasileira, porque marca o advento do
samba e da marchinha.
3
Conforme aponta Micael Herschmann (2005: 24), é ao longo dos anos 80 que são incorporados vários
elementos da cultura hip-hop norte-americana, dos novos ritmos funky, nos bailes brasileiros.
14
Outra autora que auxiliou-nos na compreensão do conceito de negritude num sentido
lato, foi Zilá Bernd (1987). Em seus estudos voltados para a Negritude e Literatura na
América Latina, Bernd trabalha com a idéia da negritude como uma palavra que agrega
significados, nunca deixando, contudo, de afirmar que as muitas variantes não perdem a
essência ideológica do movimento da negritude francesa - funcionar como discurso de
resistência e luta pela visibilidade do negro.
Por último, no rol dos muitos autores indispensáveis para esta pesquisa, vale
mencionar Bárbara Freitag (2002) e sua obra Cidade dos Homens, com discussões a respeito
do fenômeno da violência e cisão do espaço urbano. Dentre os muitos ensaios que compõem o
livro é o intitulado “Utopias Urbanas” que nos ajuda a compreender melhor o título da obra de
Agualusa. O desejo de posse do Rio de Janeiro idealizado, o lado da cidade cindida onde os
indivíduos são brindados com políticas públicas, do espaço interditado a uma parcela da
população carioca inserida nas regiões periféricas, concretiza-se no romance, explicitando que
as reclamações quanto à questão da negritude transcendem a vontade dos homens de serem
percebidos como negros.
Quanto à estrutura do texto, optamos por dividir em quatro capítulos. O primeiro
aponta os diálogos possíveis entre Angola e Brasil, tendo como ponto de partida à obra O ano
em que Zumbi tomou o Rio. No transcurso da análise, procuramos pontuar que a influência da
cultura africana foi responsável por configurar os traços culturais brasileiros com diversas
marcas herdadas da cultura África.
O segundo que funciona mais como um ordenador dos fatos que compõem o processo
histórico do movimento da negritude, serve para criar os alicerces que estruturarão a leitura
comparada em ambos os discursos. Nele, além do leitor tomar conhecimento de dados
importantes para a compreensão do surgimento da Negritude, ele pode refletir um pouco
sobre o aparecimento de suas variantes, em Angola e no Brasil.
No terceiro, traremos dados sobre os processos de representação do negro nas duas
poesias, ocasião em que serão feitas leituras dialógicas entre os dois discursos, tentando dar
relevo à emergência de uma fala poética na qual o homem negro assume a posição de sujeito
para reivindicar o direto de ser negro e o seu lugar na História. Neste capítulo, evidenciaremos
que a constatação por parte dos negros de estarem inseridos, em sua maioria, no espaço
periférico, vivendo o drama de serem negros numa sociedade para brancos, é um dos
principais motivos para se criar um discurso de revolta.
O quarto capítulo traz questões ligadas aos discursos de resistência, evidenciando uma
nova etapa no percurso reivindicatório dos negros. Nele, o discurso contudente do sujeito
15
poético, para além de revelar uma atitude de “declaração de guerra”, busca evidenciar os
anseios pela sua inclusão social, por uma cidadania completa.
Nestas últimas linhas gostaríamos de resumir nosso percurso. Sabemos que o
pesquisador é um sujeito itinerante. Caminha por estradas tortuosas e cheias de desvios. O
trajeto torna-se muito mais complicado quando ele se defronta com um texto como o de
Agualusa, que obriga o leitor a desviar o olhar para outros focos tão importantes quanto o
principal. Texto que requer um leitor ideal? Talvez. Mas o que podemos dizer, com certeza, é
que é um texto de prazer e que “gira saberes”, tornando a mencionar Barthes. Fato que explica
a nossa incursão pelos descaminhos da escrita e pelo prazeiroso encantamento de ter
produzido esta dissertação num formato de ensaio crítico.
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1. AS FRONTEIRAS PERDIDAS ENTRE ANGOLA E BRASIL
Mazelas de uma sociedade decadente
Preto samba e depois pega no batente
Viaja pra Angola ao terminar o expediente
[...]
Nem parece que de um povo lutador são descendentes
MV BILL
Para entender o mapeamento que pretendemos fazer na leitura do romance Um ano em
que Zumbi tomou o Rio (2002), de José Eduardo Agualusa, torna-se necessário falar um
pouco sobre o projeto literário do autor. Segundo Mário Lugarinho, ao lançar o livro
Fronteiras Perdidas (1999), “Agualusa impôs uma rediscussão a respeito do tema fulcral da
identidade nacional no interior da Literatura Angolana” (LUGARINHO: 2001, 115).
Conforme Lugarinho, a diluição das fronteiras territoriais é um tema recorrente nas obras do
autor deste que publicou seu primeiro livro, A Conjura (1989). No bojo das discussões que
emergem nos textos de Agualusa percebe-se sempre uma preocupação com a revisão do
projeto nacional angolano, tendo como base a idéia de cultura mestiça.
O caráter transnacional que o autor imprime ao texto literário funciona como estratégia
discursiva para estabelecer a quebra de fronteiras entre diversos países. No caso de O ano em
que Zumbi tomou o Rio, estabelece-se uma relação direta entre o Brasil e Angola.
17
Ângela Dias (2005) ao discorrer sobre esta obra de Agualusa, classifica a
argumentação apresentada no enredo como “espetacular” por tratar da oportuna fratura social
brasileira, da cisão do espaço urbano carioca.
Ao longo de seu artigo, Dias estabelece uma leitura comparada entre o autor angolano
e a obra Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, enfatizando as semelhanças existentes na
forma como os escritores constroem as personagens dos dois romances e destacando que
ambos os textos se aproximam por apresentarem um discurso de homenagem a “crioulidade
nacional”.
O esforço para evidenciar a mestiçagem nacional, apostando, dentre outras coisas, na
temática da miscigenação, leva-nos a perceber que as reivindicações negritudinistas,
postuladas no romance, assumem configurações próprias, diferentes das que surgiram no
discurso da Negritude Francesa, embora possamos estabelecer alguns traços de similitude.
As Histórias de Angola e Brasil fornecem dados suficientes para solidificar nossa
discussão. O tráfico de escravos para o Brasil foi o principal produtor da idéia de continuidade
territorial, pois, ao serem retirados de seu contexto social, os africanos trouxeram consigo um
cabedal cultural que influenciou, decisivamente, na constituição do que hoje pode ser
percebido como o imenso mosaico da cultura brasileira. Traços culturais e comportamentais
que podem ser verificados, inclusive, na maneira de ser de alguns indivíduos brasileiros.
No romance de José Eduardo Agualusa, são destacadas as marcas da ascendência
africana na personagem Jacaré - “Pela maneira como fala, movendo as mãos e o tronco num
gingado gostoso, adoçando as palavras, lembra um legítimo luandense. Francisco sente-se de
volta à terra e quase se comove caramba, ele foste daquele povo” (AGUALUSA: 2002,
123).
O exercício de entrelace dos espaços África/Brasil é um traço recorrente em outras
obras de Agualusa. Dentre elas, no romance publicado anteriormente pelo autor: o livro
Nação Crioula (2001). Narrativa epistolar, o autor traz, na voz de Fradique Mendes
4
, através
de correspondências enviadas as diversas personagens Ana Olímpia Vaz de Caminha,
Madame de Jouarre e Eça de Queirós, relatos que revelam as intrigas de importante momento
histórico dos luandenses, fazendo do romance um tecido híbrido entre ficção e História.
4
Protagonista do romance A Correspondência de Fradique Mendes (2001), de Eça de Queiroz, Fradique Mendes
é uma personagem viajada, sofisticada, atento aos acontecimentos da Europa. Apresentado pelo narrador como
“poeta da modernidade”, Fradique assume um comportamento transgressor em suas cartas, fugindo das
características de sujeito inserido nos padrões morais tradicionais. Através de Fradique Mendes, Eça consegue
provocar a moral burguesa e bem comportada.
18
Resultado de uma escrita hibrida, a obra apresenta referências e contribuições de
personagens brasileiros como José do Patrocínio, com quem Fradique entra em contato ao
chegar ao Brasil, o poeta Gregório de Matos, através da personagem Gabriela Santamarinha,
também conhecida como “Boca Maldita” - além de citar versos do poema “Navio Negreiro”,
de Castro Alves, todos com uma carga simbólica e reflexiva que aponta, dentre outras coisas,
para a mestiçagem cultural apresentada nos dois países.
A vinda do Nação Crioula, nome dado ao último navio negreiro que fazia transporte
de escravos para o Brasil, trazendo Fradique e Ana Olímpia em fuga de Angola, representa
simbolicamente o elo entre os três países Portugal, Angola e Brasil, selando uma união “que
o mar não pode apagar”. Ao cruzarem o Atlântico as personagens fazem à síntese dos espaços
geográficos, confirmando o nosso enlace, ainda que em diferenças:
Impressiou-me também nesta estranha viagem um episódio que não resisto a
contar-lhe: uma noite um dos marinheiros, moço de voz quente, começou a
cantar, acompanhado à viola, uma moda triste, na qual julguei reconhecer,
espantado, alguns versos de Castro Alves: ‘Senhor Deus dos desgraçados! /
Dizei-me vós, Senhor Deus / Se eu deliro ... ou se é verdade / Tanto horror
perante os céus ?! ... / Oh mar, por que não apagas / Com a esponja de tuas
vagas / Do teu manto este borrão? / Astro! Noites! Tempestades / rolai das
imensidades! / Varrei os mares, tufão!’. Era de fato o Navio Negreiro.
(AGUALUSA, 2001: 73)
Ampliando o debate a respeito das influências da cultura africana no Brasil, Roberto
Moura (1983) ilumina e traz algumas questões ao identificar o modo de vida de uma parcela
da diáspora baiana no Rio de Janeiro denominada por ele de pequena África. Relatando o
processo de migração dos negros da Bahia para o Rio, Moura traz dados relevantes que
auxiliam na leitura simbólica de uma possível Angola brasileira. Segundo o autor, “os negros
que chegaram ao porto de Salvador são da Guiné, o que significa apenas que eram de Angola,
Congo e Benguela” (MOURA: 1983, 13).
Moura afirma que, a partir da chegada dos migrantes negros baianos na cidade do Rio
de Janeiro, houve uma redefinição do gosto do público, agora insatisfeito com o divertimento
dos entrudos e das festas religiosas.
Dos batuques, nome comumente dado pelos portugueses às danças africanas,
“denominados na Bahia de ‘dança luta’ que ocorria aos domingos e dias festivos” (MOURA:
1983, 25), ao Samba, que encontra como principal reduto inicial de manifestação à casa da
Tia Ciata, a cultura africana começa a se impor na sociedade carioca:
19
De fato, a colônia baiana se imporia no mundo carioca em torno de seus
líderes vindos dos postos do candomblé e dos grupos festeiros, se
constituindo num único grupo popular no Rio de Janeiro com tradições
comuns e coesão, cuja influência se estenderia a toda a comunidade
heterogênea que se forma nos bairros em torno do cais do porto, e depois na
Cidade Nova, tocados pelas transformações urbanas. A modernização da
cidade e a situação de transição nacional faz com que indivíduos de diversas
experiências sociais, raças e culturas se encontrem nas filas da estiva ou nos
corredores das cabeças-de-porco, promovendo já no fim da república velha a
formação de uma verdadeira cultura popular carioca definida pela densa
experiência sócio-cultural que, embora subalternizada e quase omitida pelos
meios de informação da época, se mostraria, juntamente com os novos
hábitos civilizatórios das elites, fundamental para a redefinição do Rio de
Janeiro e na formação de sua personalidade moderna.
(MOURA: 1983, 57)
A longa citação acima se justifica pela necessidade de dar destaque ao fenômeno de
constituição da mestiçagem cultural na cidade do Rio, para melhor compreensão do leitor
acerca da diluição de fronteiras entre Brasil e Angola.
Cabe retornar a obra de Agualusa sem perder de vista o rumo de leitura que
estabelecemos no início da argumentação as relações entre Brasil e Angola. Neste sentido, o
livro de Moura é indispensável não só para a compreensão do Brasil como um mosaico
cultural, mas para a própria questão da inserção do negro da sociedade brasileira.
Os dados históricos da constituição da cidade do Rio de Janeiro devem ser resgatados
para auxiliar na melhor compreensão da forma de representação do espaço urbano no romance
O ano em que Zumbi tomou o Rio.
O processo migratório e a conseqüente expansão das grandes cidades, dentre elas o
Rio de Janeiro e São Paulo, teve como principal motivo o crescimento industrial, causador da
expectativa de dias melhores por parte das populações que se deslocavam para o espaço
urbano.
A constatação da existência de uma cisão no espaço urbano, clara na obra ficcional de
Agualusa, também pode ser percebida no livro Cidade Partida (1994), de Zuenir Ventura,
texto não-ficcional, no qual o autor realiza uma pesquisa de campo cujos objetos de sua
observação são dois pólos da cidade cindida do Rio de Janeiro.
Ventura mostra de um lado o contexto da favela de Vigário Geral, destacando os
meandros da criminalidade e, do outro, o contexto identificado como o da sociedade civil,
enfocando o projeto Viva Rio. Ambos os espaços servem para aquecer debates acerca do
processo de constituição da cidade e na compreensão dos significados assumidos por ela na
contemporaneidade.
20
O livro de Zuenir Ventura aponta, claramente, qual é o lado privilegiado da cidade
com políticas públicas e mostra como os “cidadãos”, assumindo uma atitude paternalista,
criam um projeto para atender os moradores da favela na busca da sua cidadania. Vale
ressaltar que esta mobilização só acontece depois da chacina ocorrida no ano 1993 em Vigário
Geral, na qual 21 pessoas foram assassinadas. Este episódio foi fundamental para a
compreensão da vulnerabilidade da cidade que adquire a configuração de um grandioso
castelo assentado na areia e em vias de ruir.
Ao pensar no processo de surgimento das favelas cariocas e no seu papel como parte
da cidade onde se produz a desigualdade, a geógrafa Maria Lais Pereira (2005) traz dados
relevantes a respeito de alguns significados que a mesma incorpora na atualidade.
Segundo Lais Pereira (2005: 45), diversos autores consideram o período que vai de
1920 até meados de 1930, como sendo a fase em que o Rio de Janeiro recebeu a configuração
de cidade maravilhosa. Como medida para que a cidade alcançasse tal conformação,
derrubaram favelas e seus moradores foram reinstalados em locais afastados para não
interferirem nos objetivos políticos e ideológicos do Estado, que tinha a intenção de criar,
através de grandes cirurgias urbanísticas, a famosa imagem de cartão-postal em que o Rio de
Janeiro viria a se tornar.
A construção de um ideário de cidade perfeita não impediu a visualização das sujeiras
jogadas embaixo do tapete. Neste sentido a formação da cidade apresenta, na concepção de
Lais Pereira, duas faces:
A evolução urbana parecia ocorrer sobre uma dupla face: a formação de uma
identidade de metrópole pujante e a construção de uma consciência da
presença da pobreza, especialmente intensa no discurso sobre as condições
reais da vida da população, entre elas as de habitação.
(LAIS: 2005, 46)
A dupla face que a autora apresenta como resultado do processo de formação da
cidade é a mesma que MV Bill dá destaque ao falar das “mazelas de uma sociedade
decadente”, na epígrafe deste capítulo. As muitas maquilagens urbanísticas feitas no Rio de
Janeiro e as inúmeras tentativas de inibir o surgimento e crescimento das favelas nos espaços
desabitados da cidade não foram suficientes para sustentar a imagem idílica.
A atual conjuntura, que em nada difere da estrutura de poder que vigorou no regime
colonial, está longe de alterar o mecanismo de reprodução em série dos esquemas de
dominação nos diversos espaços sociais. Segundo Marilena Chauí (2000: 89), no Brasil, tal
estrutura segue o plano da hierarquização em uma forma verticalizada. Neste sentido, a
21
sociedade brasileira conserva as marcas do regime colonial escravista, “cultura senhorial”, em
que as desigualdades reforçam as relações entre o superior, que dá as ordens, e um inferior,
submisso à vontade do mandante.
A reduplicação do regime colonial reproduz, numa versão atualizada, o processo de
exclusão étnica que se reflete na impossibilidade do alcance da cidadania por boa parcela da
população negra alijada do direito de viver dignamente. Conforme afirmação de Lourdes
Carril, “o negro agora inserido na periferia, tem estado fora do código social estabelecido por
convenções desde as fases iniciais da metropolização” (CARRIL: 2006, 16), uma vez que as
condições de vida produzidas naqueles lugares estão longe de atingir a mesma conformação
do lado da cidade que é brindado com a presença do Estado.
No entanto, no carnaval a situação se inverte. Na percepção de DaMatta (1990), o
carnaval pode ser lido, simbolicamente, como sendo o princípio da inversão social, momento
em que os atores sociais, inseridos no seu cotidiano nas regiões periféricas, tomam posse dos
centros as ruas dos centro comerciais.
Dentre outros aspectos, DaMatta apresenta o carnaval como sendo uma simulação da
ocupação do espaço interditado à maioria da população marginalizada, simulacro que se
expressa através do ritual da brincadeira e da dança “o foco do rito parece ser o conjunto de
sentimentos, ações, valores, grupos e categorias que, quotidianamente são inibidos, por serem
problemáticos. Aqui o foco é o que está nas margens, nos limites e nos interstícios da
sociedade” (DAMATTA: 1990, 56).
São estes pretos que depois do ritual retomam a sua vida diária nos interstícios da
sociedade, labutam pelo pão de cada dia, alimentam a engrenagem do sistema e fazem a
viajem de retorno “pra Angola ao terminar o expediente”, que compõem o espaço periférico
brasileiro que se constitui, na concepção de MV Bill, como o local de representação alegórica
de Angola.
Pensando a periferia na perspectiva da comparação com Angola, Bill não se furta à
oportunidade de fazer suas críticas sociais como forma de chamar a atenção, não só das
autoridades para a dura realidade das favelas, mas, também dos negros para a necessidade de
criarem uma consciência que os impulsione a sair do estado de alienação. Tal atitude nos
remete ao período em que os poetas angolanos engajados na luta pela libertação de seu país
produziram discursos similares para criar na população uma consciência nacional.
Evocar a memória de seus ancestrais, suas lutas ao longo da história pela liberdade de
seu povo, comparando a força de resistência de seus ascendentes com a postura estática de
alguns pretos na atualidade “nem parece que de um povo lutador são descendentes”
22
funciona como uma estratégia de mobilização em prol da inserção do negro na sociedade
brasileira.
O amálgama espacial realizado por MV Bill é semelhante ao traçado por Agualusa e
parece apontar para uma mesma finalidade: evidenciar a diluição das fronteiras entre Brasil e
Angola com o intuito de levar o leitor e ouvinte à percepção de similitudes entre os contextos
sociais. O primeiro mostra, através da alusão, que os negros da diáspora brasileira se
estabeleceram em espaços, perfeitamente, comparáveis ao espaço geopolítico angolano. O
segundo, através de um projeto de maior extensão, mescla no espaço ficcional, um enredo
onde os dois países se imbricam num irreversível desmoronar territorial que permite que
personagens nascidas em Angola, não só circulem livremente no Brasil, mas, sintam-se
perfeitamente integrados ao espaço e modo de vida brasileiro, que é entendido como a
extensão de África:
Basta um passo para sair do Rio e entrar em Luanda’, gosta de dizer
Francisco Palmares. ‘Cruza-se a porta do Aeroporto do Galeão, nas tardes de
domingo, e estamos no Roque Santeiro’.
Gente carregando caixas, malas, pacotes; trocando abraços aos gritos.
Mulheres gordas, de pele lisa e resplandecente, embrulhadas em belos panos
do Congo. Jovens de cabeça rapada, óculos espelhados, calças largas,
camisas de fantasia. Francisco fica com a sensação de que o domingo brota
dali, como um rio, para se espalhar depois pela cidade.
(AGUALUSA: 2002, 67)
Maria Teresa Salgado (2000) nos ajuda a compreender a estratégia de escrita do autor,
responsável por criar a dissolução dos limites entre os dois países e a conseqüente sensação de
proximidade espacial. Segundo Salgado, o projeto literário do escritor angolano tem como
objetivo buscar a interligação entre espaços geográficos, aparentemente dispares,
evidenciando a transnacionalidade entre ambos. Para ela, Agualusa faz de seu discurso um
contínuo tecido de traços históricos e culturais que se imbricam, impossibilitando a
delimitação de fronteiras nacionais.
Quebrar as fronteiras que fixam o espaço angolano como uma sociedade fechada em si
mesma é parte de um olhar que contempla a revisão de um imaginário que “mostra que o
mundo angolano e o mundo africano vão muito além do que tem sido mostrado e ao mesmo
tempo estão ligados às realidades européia e americana” (SALGADO: 2000, 189).
Voltando a questão do arruinamento da paisagem carioca, outrora, constituída como
um paraíso tropical
5
pode-se notar que tal destruição surge como reflexo da falta de políticas
5
Nome da novela em exibição em 2007, na Rede Globo.
23
públicas direcionada para o atendimento das necessidades das populações marginalizadas na
outra cidade dentro da Cidade
6
. A visão de um Rio de Janeiro que “não continua lindo”, pelo
menos no olhar dos que contemplam a imagem criticamente, é apresentada na letra “Contraste
Social” (2002), de MV Bill:
Eu quero denunciar o contraste social.
Enquanto o rico vive bem, o povo pobre vive mal.
Cidade maravilhosa é uma ilusão
Desemprego, pobreza, miséria, corpos no chão.
As crianças da favela não têm direito ao lazer.
Governantes só falam e nada querem fazer.
Pensando no esfacelamento da paisagem perfeita, o espaço urbano contemporâneo
pode ser percebido como arena de uma sociedade desigual, na qual indivíduos travam uma
luta sem tréguas pela legitimação de seus direitos. As atuais ocorrências de violência urbana,
derivadas dos incessantes embates entre traficantes de drogas e a polícia, apontam para a
necessidade de se pensar nos motivos do fracasso do projeto de cidade maravilhosa.
Bárbara Freitag (2000) reúne ensaios que tratam de questões reais de diversos núcleos
urbanos, contribuindo para a reflexão sobre a paisagem urbana atual. Neles somos levados a
pensar um pouco na formação do espaço cidade, nos muitos significados que ela assume pelo
mundo e no constante processo de transformação que sofre ao longo do tempo, enfatizando a
importância da dinâmica histórica como fonte propiciadora da (re)construção do imaginário
em representações artísticas, literárias e musicais.
Freitag se apropria da tese de Lewis Munford
7
, ao falar da formação e estrutura da
cidade, para afirmar que desde a Antiguidade Clássica surgiu a concepção de “cidade utópica”
(FREITAG: 2000, 175), sonhada, da utopia urbana. Nela era incorporada à idéia de sociedade
perfeita, harmoniosa, oposta à vivida por seus idealizadores. O projeto da cidade utópica
atenderia a algumas exigências para melhor funcionalidade: ser fundada em locais isolados,
de preferência em locais planos para facilitar sua expansão; os prédios e ruas deveriam
privilegiar o ângulo e a linha reta.
6
A partir deste momento todas as vezes que aparecer comentários em que tenhamos que fazer a oposição entre
os espaços cindidos da cidade, quando optarmos por usar o próprio vocábulo cidade, este aparecerá escrito com
letra minúscula em referência às regiões periféricas e, em maiúscula, entenda-se que se trata do lado da cidade
atendido pelo Estado.
7
Lewis Munford defende, em seu clássico A Cidade na História, algumas teses sobre a origem das cidades.
Dentre as quais a da estrutura da cidade na antiguidade clássica, lembrando que a idéia de lugar utópico sempre a
acompanhou, desde aqueles tempos até a atualidade (MUNFORD, 1992 apud FREITAG, Bárbara: 2002, 173).
24
A relação de poder que se impunha para o alcance da cidade idealizada deveria fixar-
se através de medidas pedagógicas. Neste sentido o modelo de cidadania apresentado aos
moradores era pautado no binômio trabalho e a paz.
Com o advento do cristianismo, na Idade Média, a utopia é deslocada da cidade
terrestre para a celeste. A Jerusalém celestial passa a ser o lugar de paz e de esperança de dias
melhores, contudo o Renascimento traria de volta a idéia de sociedade perfeita. A ensaísta
destaca que a visão da cidade ideal, da utopia urbana que sempre acompanhou a mentalidade
dos indivíduos desde a Antiguidade Clássica, só viria a desmoronar com a queda do Muro de
Berlim.
Vidas Secas, de Graciliano Ramos, permite que se identifiquem, em certa medida, as
marcas da utopia urbana. O desejo de encontrar uma cidade justa e organizada, com qualidade
de vida e possibilidades de emprego, foi a principal justificativa para o êxodo rural brasileiro.
Na narrativa a migração é motivada pelas condições de miséria criadas pela seca nordestina.
Os personagens de Graciliano são exemplos desta utopia. Agarrados na esperança de dias
melhores, Fabiano e sua família iniciam uma caminhada pelo sertão nordestino, num
movimento frenético de “Fuga
8
, atrás do tão sonhado paraíso terrestre:
Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava
contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde
era. Repetia docilmente as palavras de sinhá Vitória, as palavras que sinhá
Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul,
metidos naquele sonho. Uma cidade grande cheia de pessoas fortes. Os
meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias ... Chegariam a
uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão
continuaria a mandar gentes para lá. (RAMOS: 1983, 126)
O sonho destas personagens, diferente do caso dos utopistas da Antiguidade Clássica, não está
no desejo de construir a cidade utopia, mas de alcançar um suposto Eldorado, “uma terra
desconhecida e civilizada”.
Bárbara Freitag (2002: 110) ainda mostra que o crescimento urbano ocorrido no país,
sobretudo nas três últimas décadas do século XX, é fruto da imigração descontrolada e das
muitas migrações, gerando uma civilização multicultural. Neste sentido, algumas metrópoles
assumem o estatuto de megacidades, caracterizando-se pelo complexo tecido urbano
evidenciado pelo contraste social destacado pela posse das “áreas vazias”, ocupados com as
favelas, cortiços e as zonas periféricas, que surgem entre os prédios arquitetônicos e arranha-
céus de aço e vidro “fume”.
8
Título do último capítulo da obra em questão.
25
Freitag fala sobre o mito da megalópole na literatura brasileira contemporânea,
evidenciando que eles ganham feição de acordo com a estrutura do tempo. Segundo a autora,
a megacidade pode ser representada de duas formas: o mito na megalópole é o estudo da
personagem humana que se transforma em mito; no mito da megalópole é a megalópole que
assume o papel de personagem principal, criando uma aura capaz de influenciar os atores em
cena, sobretudo os que se constituem personagens humanas que atingem o estatuto de mito.
Neste caso, o mito da megalópole predomina sobre o mito na megalópole.
A megalópole como mito é capaz de alterar a conduta do personagem mito na
megalópole, produzindo efeitos catastróficos no seu destino. A relação entre estes dois mitos
pode ser verificada através da construção da personagem José Luis Reis, o Reizinho do livro
Inferno (2001), da escritora Patrícia Melo.
Reizinho é o modelo do mito na megalópole. Vítima da sociedade excludente e de
dramas familiares, morador do Morro do Birimbau, o menino começa a trabalhar para o
tráfico de drogas aos onze anos, alcançando com o tempo a liderança do morro. Como ocorre,
inevitavelmente, com a maioria dos indivíduos que se envolvem no crime organizado,
Reizinho é entregue a um, dentre os seus previsíveis destinos: é preso. Contudo, consegue
fugir da prisão e parte para o norte do Brasil com o objetivo de começar uma nova vida. O fim
da saga da personagem é um suspense, pois o livro termina com o seu retorno para o Morro
do Berimbau.
O mito da megalópole, neste romance, é o condutor da sorte de Reizinho, uma vez
que, pelas regras do jogo da sobrevivência na megalópole, o caminho escolhido por ele aponta
para sua derrota. A cidade nesta narrativa incorpora o mito de “monstro ciclópico que destrói
os seus habitantes” (MELO: 2001, 121).
Inferno é um dos muitos romances contemporâneos que imprimem um olhar sobre a
violência urbana tendo como tema o tráfico de drogas. Nele o centro urbano é apresentado
como campo de batalha no qual indivíduos digladiam-se para tentar sobreviver nesta arena-
cidade onde só os mais fortes conseguem vencer.
Nas comunidades carentes, lideres do tráfico são idolatrados por uma parcela dos
moradores por representarem esta força. Reizinho, quando criança, também idolatrou o antigo
líder do Morro do Berimbau, “admirava a maneira como Miltão comandava a vida no morro,
batendo e afagando, ameaçando e facilitando, amedrontando e socorrendo” (MELO: 2001,
104).
Assim, O ano em que Zumbi tomou o Rio, de José Eduardo Agualusa, dialoga com a
obra de Patrícia Melo: ambos apresentam a temática da violência urbana. No romance de
26
Agualusa o mito na megalópole também ganha corpo através da personagem Jararaca. Líder
do morro da Barriga, idolatrado pelos moradores “Uma mulher grávida coloca-se diante de
Jararaca, levanta a blusa e pede ao traficante para lhe beijar a barriga, por favor, pois assim a
criança nascerá forte e corajosa” (AGUALUSA: 2002, 87) Jararaca segue uma trajetória
semelhante a do personagem Reizinho, com direito, inclusive, ao final em suspenso.
No romance de Agualusa, a cidade também incorpora o mito, direcionando o destino
catastrófico da personagem.
O deslocamento da fantasia, que outrora partia das regiões rurais, ocorre agora no
próprio corpo da cidade cindida. A utopia é o sentimento alimentado pelas margens,
representadas pelas favelas, morros e periferias, que sonham em alcançar o centro, locais da
cidade beneficiados pela ação do Estado, lugar ideal, com infra-estrutura capaz de oferecer
qualidade de vida.
Neste sentido, o ritual de representação da posse do espaço interditado, apresentado
por DaMatta se materializa na efetiva tomada do Rio de Janeiro, nas páginas finais da
narrativa de Agualusa cansados do rotineiro retorno para Angola ao final do expediente, a
população marginalizada agora quer a cidade perfeita.
Os vestígios da presença de um ideário de utopia urbana também podem ser
observados no espaço angolano, real e imaginário. Nos versos de “Canção para Luanda”, de
Luandino Vieira, o sujeito poético expressa um sentimento saudosista pela perda da cidade
utópica. Neste texto, ao contrário de Vidas Secas, o sujeito poético sofre pela perda do lugar
harmonioso:
A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nós:
-Luanda onde está?
Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos
-
mana Rosa peixeira
responde?
-Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!
(MEA: 1975, 143)
27
A Luanda antiga que não pode ser encontrada era o espaço perfeito para viver. Nesta
outra cidade as pessoas não encontram tempo para interagir socialmente, pois precisam lutar
por um pedaço de pão “tem que vender / correr a cidade / se quer comer!”.
Conscientes do drama vivido pelo povo, os poetas angolanos misturam lirismo e
realismo em suas obras, enfocando, além de retratos de espaços rurais onde o colonizado sofre
com o regime de contrato, a cena urbana, lugar onde o negro também padece na condição de
dominado, encontrando-se alijado dos benefícios reservados ao branco colonizador e,
sobretudo, de um bem maior: a liberdade.
Alguns poemas, como “Quintandeira”, de Agostinho Neto, trazem a paisagem de uma
Luanda cindida, com habitações cômodas e luxuosas de um lado em contraposição dos
musseques:
[...]
como o esforço foi oferecido
à segurança das máquina
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade dos senhores ricos
à alegria dispersa pela cidade
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.
[...]
(MEA: 1975, 25)
Tais textos confirmavam as palavras históricas de Alfredo Margarido ao dizer que
“nos bairros de Luanda, capital de Angola, ao lado dos 70 000 brancos da cidade, mais de 200
000 seres humanos de origem étnica diversa viveram no que se chamavam bairros de lata”
(MARGARIDO: 1980, 62).
Foi no espaço urbano que, segundo Margarido, a poesia angolana assumiu a feição da
revolta, passando rapidamente do discurso individual para o coletivo, com o intuído de criar
uma consciência capaz de libertar o homem angolano do estado de alienação.
Cabe destacar que o fenômeno de cisão do espaço urbano, percebido pelos poetas
angolanos no período de lutas de libertação, é análogo ao que Agualusa apresenta em O ano
em que Zumbi tomou o Rio tanto os musseques angolanos, apresentados no período colonial,
como as nossas favelas são os lugares onde se produzem as desigualdades. Neste contexto, o
tema flagrante é o mesmo: a miséria. Foi à percepção da falta de condições básicas de
sobrevivência que impulsionou Fabiano, em Vidas Secas e o sujeito poético da poesia de
Luandino Vieira para a busca da utopia de cidade perfeita ou a um possível retorno à Luanda
28
ideal. Também foi a miséria que fez com que personagens do romance de Agualusa
buscassem o outro lado da cidade.
Neste sentido, o deslocamento do contexto angolano para os espaços periféricos
cariocas, tecido alegoricamente na letra de MV Bill, adquire um sentido maior que a simples
percepção da existência de uma “pequena África”. A representação poética e ficcional traz à
tona uma série de questionamentos que possibilitam o surgimento de novas leituras para além
da Histórica.
No romance de Agualusa, o episódio dos “anjos negros”, conforme aparece nas
citações abaixo, permite que se percebam brechas históricas por onde se podem reduplicar
eventos ocorridos em Angola e no Brasil, já que destacam o processo de invisibilidade e
segregação do negro, apesar de algumas aparentes diferenças, mas que indicam a mesma
conclusão. O primeiro surge na narrativa, através das recordações da infância de Euclides,
que, admirando um presépio fascinado com a imagem de Baltazar, o rei mago negro, observa
que não existem anjos negros. Então a personagem resolve questionar o padre Eusébio a
respeito de suas inquietações:
Um dia atrevera-se a perguntar a padre Eusébio, seu padrinho, os motivos
porque não havia no presépio anjos negros e mulatos. Eusébio de Queirós
Coutinho Matoso da Câmara levara a sério a observação da criança.
-Você tem razão, garoto, por que não havemos de ter anjos pretos? Afinal,
estamos em África.
No ano seguinte, orientados pelo sacerdote brasileiro, os rapazes ergueram
um presépio no qual a maioria dos personagens era de cor escura incluindo
Jesus Cristo. A ousadia trouxe problemas ao padre. Poucos meses depois,
pressionado pelas autoridades portuguesas, pelos colonos, e, sobretudo, pelos
seus superiores, regressou ao Brasil.
(AGUALUSA: 2002, 64-5)
O segundo fato ocorre no Brasil, numa procissão que estava sendo realizada no Morro
da Barriga. Neste caso, é Francisco Palmares que chama a atenção para os acontecimentos:
-Não parece que estamos no céu?! Nunca vi tanto anjo junto.
Anjos negros e mulatos, vestidos de branco, com pequenas asas de papelão
presas às costas. Quatro homens saem de uma pequena igreja carregando aos
ombros, num andor, uma imagem de São Sebastião. Anastácia tira
fotografias. Euclides circula por ali, com um gravador, entrevistando os
populares. Todas as pessoas estão vestidas de branco ... A procissão
desenrola-se lentamente. Foguetes estalam. Francisco Palmares vê Jararaca
passar a correr, adiantando-se ao andor, com o telefone colado ao ouvido.
Grita qualquer coisa ao padre. A procissão detem-se. A música pára. Voltam
a estalar foguetes. Tiros. Francisco Palmares distingue claramente o latido
seco de uma AK-47. Agora é o caos.
[...]
29
Um anjo passa por ele num vôo curto, tentando galgar um muro, e é atingido
pelas costas. Francisco Palmares vê as asas que se soltam, o pequeno corpo
que cai e rola, o sangue que espirra sobre a parede e cobre uma inscrição, “o
povo das favelas quer cidadania”.
(AGUALUSA: 2002, 124-25)
A descrição das duas paisagens gera múltiplas reflexões, das quais nos deteremos nas
questões fundamentais que parecem permear todo o romance: a falta de representatividade
dos negros e a impossibilidade de alcançarem o estatuto de cidadãos.
De fato, foram os sentimentos de exclusão e dominação que impulsionaram os
intelectuais angolanos a se engajarem na luta pela libertação do país. O discurso dominante
apresentava a fé cristã como valor positivo em contraposição das religiões africanas tidas
como primitivas, mas o negro tinha que se contentar em adorar a deus através dos bastidores,
nunca em pé de igualdade com o homem branco, na mesma posição social.
Padre Eusébio é convidado a se retirar de Angola pela ousadia em acreditar que o fato
de estar num espaço africano, pudesse alterar a paisagem européia construída no presépio. Seu
maior erro foi acreditar na falácia veiculada através da fé - a necessidade de se humanizar o
homem negro.
No caso do Brasil, a mudança de contexto altera o desfecho dos fatos. Aqui não haverá
a querela da representação negra, até porque a procissão ocorre num espaço periférico, mas,
novamente será reproduzido o discurso da exclusão. O castigo pela ousadia se expressa
através da morte do anjos negros.
Ainda surge uma questão mais cruel, os meios de comunicação veiculam a versão da
polícia que resolve intitular os embates com os traficantes de “Guerra dos Anjos”,
adicionando, mais uma vez, na cor negra o significado estigmatizante de negatividade
que, segundo a narrativa, um grupo de anjos negros só poderia semear o mal.
A percepção da presença do Brasil na cena literária dos paises africanos de língua
portuguesa, marcadamente visível em Agualusa, assumiu formas diferentes no tempo. Rita
Chaves (2005) dá destaque para a importância da literatura brasileira na formação daquelas
literaturas e revela a maneira como tais países percebiam o espaço brasileiro “o Brasil
emergia como um espaço onde se projetavam os sonhos de uma sociedade marcada pelas
limitações presentes no quadro da exclusão da realidade social” (CHAVES: 2005, 276).
Segundo Chaves, a distância do contexto brasileiro foi responsável por criar nos
autores múltiplas formas de percepção do nosso espaço. Dentre elas, o olhar do Brasil como
lugar ameno, quase paradisíaco.
30
Imagem perfeita que é, totalmente, demolida por José Eduardo Agualusa em O ano em
que Zumbi tomou o Rio. Nesta narrativa, o espaço brasileiro continua sendo visto como o dos
sonhos, mas não na perspectiva de projeção, uma vez que o Rio de Janeiro é o palco do
desenrolar da narrativa.
A busca das utopias permeia alguns dos romances de Agualusa, mas é Estação das
Chuvas (2000) que dá margem a um possível deslocamento de contexto. No final da narrativa
as personagens parecem perder as esperanças de continuar lutando pela concretização dos
sonhos. Então, o que se percebe é o retrato de uma Angola dilacerada e uma visão pessimista
de um narrador que descreve uma paisagem irreversível:
A cidade apodrecendo sem remédio. Os prédios com as entranhas devastadas. Os
cães a comer mortos. Os homens a comer os cães e os excrementos dos cães. Os
loucos com o corpo coberto de alcatrão. Os mutilados de olhar perdido. Os
soldados em pânico no meio dos escombros. E mais além as aldeias desertas, as
lavras calcinadas, as turvas multidões de forasteiros. E ainda mais além a natureza
transtornada, o fogo devorando os horizontes.
(AGUALUSA: 2000, 279)
A constatação de um sentimento de impotência, diante do caos pós-independência,
responsável por diluir quaisquer possibilidades de projeções utópicas no próprio contexto
angolano, parece ser um dos motivos que justificam a conduta de Francisco Palmares durante
a narrativa de O ano em que Zumbi tomou o Rio o autor cria a personagem com
características que apontam para a transferência do locus da busca da utopia.
A sutileza do discurso da personagem faz com que um leitor distraído deixe de atentar
para certas questões, uma vez que sua permanência no Brasil tem, num primeiro momento,
um motivo exclusivamente profissional.
Contudo, inserido no espaço brasileiro, será Palmares um dos responsáveis pelo
desfecho da trama. É ele quem questiona e reflete o tempo todo sobre o tema da inserção do
negro na sociedade brasileira, assumindo, de maneira hábil, um discurso de incitação:
-Este vosso país -, murmura, dirigindo-se aos biguás, - nunca foi descolonizado.
Revoltem-se! O Brasil precisa de uma revolução. A guerra envergonhada, sem
glória, que presentemente apenas atinge os pobres e os pretos ... palavras que aliás,
convenhamos, querem dizer a mesma coisa ... a guerra tem de descer das favelas e
alcançar o asfalto.
(AGUALUSA: 2002, 42)
Percebido como extensão de África, por Palmares, o Brasil passa a ser o locus propício
para a concretização do sonho de igualdade. A inserção imaginária num espaço utópico é,
31
engenhosamente, esboçada na ficção de Agualusa, levada aos leitores antes mesmo de
abrirem o livro, pelo próprio título O ano em que Zumbi tomou o Rio. O significado de
conquista, atribuído ao verbo tomar é revelador do lugar onde estão inseridos os sujeitos
alijados do espaço geopolítico representado nos cartões postais do Rio aqui, a cidade
utópica.
A posse da cidade do Rio de Janeiro é apresentada como um desejo mais complexo
que a simples sede de poder. O que se evidencia, através das palavras da personagem Jararaca
no momento que assume o controle do Rio, é uma vontade de constituir-se cidadão -
“Também nós queremos ordem e progresso” (AGUALUSA: 2002, 236).
O desejo de sentir-se entranhado à pátria, através do sentimento de brasilidade
expresso no lema nacional, mostra a medida do distanciamento dos indivíduos afastados do
sistema.
Marilena Chauí (2000) ao falar do mito fundador, responsável pela construção de uma
visão romântica a respeito do Brasil e pela constituição da sociedade autoritária que perpetua
seus mecanismos de dominação através, dentre outros discursos, do verdeamarelista
9
patriótico, traz dados importantes para a compreensão da postura de Jararaca, acima exposta.
Segundo Chauí, o mito fundador, criado pelo colonizador para justificar a posse e dominação
das terras brasileiras, assume várias configurações ao longo do tempo, mas está assentado nas
mesmas bases ideológicas: a manutenção da idéia positiva de que o Brasil é um país
harmonioso.
Neste sentido, o discurso que se reproduz o tempo todo é o de que somos “um dom de
Deus” (CHAUÌ: 2000, 08) quem não se lembra do ditado popular: Deus é Brasileiro? , um
povo pacífico por natureza, independente das intempéries da vida, que não conhece os
preconceitos e discriminações em um país acolhedor:
O mito fundador oferece um repertório inicial de representações da realidade e, em
cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do
ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o elemento principal que
comanda os outros) como da ampliação de seu sentido (isto é, novos elementos
vêm se acrescentar ao significado primitivo). Assim, as ideologias, que
necessariamente acompanham o movimento histórico da formação, alimentam-se
das representações produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-las à nova
quadra histórica. É exatamente por isso que sob novas roupagens, o mito pode
repetir-se indefinidamente.
(CHAUI: 2000, 10)
9
O verdeamarelismo foi elaborado no curso dos anos pela classe dominante brasileira como imagem celebrativa
do “país essencialmente agrário” e sua construção coincide com o período em que o “princípio da nacionalidade”
era definido pela extensão do território e pela densidade demográfica. De fato, essa imagem visava legitimar o
que estava do sistema colonial e a hegemonia dos proprietários de terra durante o Império e o início da
República, 1889 (CHAUI: 2000, 32).
32
Muitas são as formas de representação do mito fundador na atualidade. Não podemos
esquecer do grande sucesso de Zeca Pagodinho “Se não tenho tudo o eu preciso / com o que
tenho vivo / de mansinho lá vou eu” responsável pela sustentação da idéia de que somos um
povo ordeiro e pacífico, ou não percebe o excessivo empenho global, na novela Paraíso
Tropical, por mostrar um discurso saudosista com relação ao bairro de Copacabana,
intencionalmente construído na tentativa de criar o desejo popular de reverter o caos da
violência urbana?
Os ecos do discurso fundador, que não cessam de criar imagens do Brasil como um
todo em suas particularidades, diluindo questões que alterem a real configuração da
identidade nacional. Serve como estratégia de manutenção do poder autoritário, uma vez que,
segundo a própria Marilena Chauí (2000: 91-2) afirma, é impossível governar uma sociedade
dividida.
De fato, o discurso do mito fundador se reproduz várias vezes na obra de Agualusa,
sobretudo no que se refere à imagem do Brasil como um país acolhedor, lugar onde todas as
personagens angolanas têm a oportunidade de se estabelecer e viver, ainda que em condições
mínimas, como ocorre com o filho do personagem Pontaria, conhecido de Francisco
Palmares:
-És o filho do Pontaria, não és? O caçula? O que fazes aqui?
O rapaz olha-o amedrontado:
-Desertei chefe, não podia mais. Bazei. O paizinho vendeu a casa, pediu dinheiro
emprestado aos parentes, ofereceu-me o bilhete e assim me salvou.
Chegara ao Brasil há cinco meses. Trabalhara um tempo na construção civil, sem
grande estusiamo:
-Pratiquei muito tênis de parede, o mais-velho entende o que quero dizer? Passei
muito tempo a jogar cimento nos muros.
Concluiu que aquilo não era desporto para alguém como ele, com o liceu completo
e alguma ambição. Agora comprava sapatos baratos nas fábricas e despachava-os
para Luanda onde os vendia pelo triplo do preço. Pagavam-lhe em dólares. Não
ganhava muito, mas sobrevivia.
(AGUALUSA: 2002, 67/68)
Se pensarmos na obra O ano em que Zumbi tomou o Rio através da leitura que Chauí
faz a respeito do mito fundador, nossa visão a respeito da narrativa se amplia e, sobretudo, a
percepção da hábil releitura do mito de Zumbi dos Palmares.
A luta de Jararaca com o intuito de criar meios para levar a população do Morro da
Barriga ao alcance da cidadania pouco difere no contexto do romance, da luta de Zumbi na
busca da liberdade dos negros cativos, com a ressalva do papel de traficante, responsável por
causar certo incômodo nos leitores. Mas, neste caso, temos que atentar para o fato de que os
33
dados sobre Jararaca são ficcionais, não existe um comprometimento com as “verdades”
históricas.
Vale destacar que as afirmações de Marilena Chauí (2000), expostas no início deste
capítulo, a respeito da presença das marcas do regime colonial escravocrata na sociedade
brasileira encontram eco no romance de Agualusa:
Sabe qual a diferença entre Angola e Brasil? Ambos são países independentes, sim,
mas ao contrário de Angola o Brasil nunca foi descolonizado. Um príncipe
português proclamou a independência do Brasil e desde então os brancos nunca
mais abandonaram o poder. Onde estão os negros? Onde estão os índios? Veja
bem: em mais de quinhentos deputados apenas onze não são brancos.
(AGUALUSA: 2002, 83)
Passados mais de 100 anos da abolição da escravatura e a maioria da população negra,
ainda continua presa a um regime de trabalho escravo e a um critério de segregação que
permite fazem a leitura das favelas como senzalas.
Se no passado a luta de Zumbi se deteve em levar os negros para os quilombos,
territórios livres da dominação, hoje seu trabalho seria pela tentativa de inserir os afro-
descendentes no lado privilegiado da cidade.
O próprio espaço quilombola, outrora percebido como lugar perfeito, se compreendido
como transmutado em favela, deveria passar por uma releitura, porque, se de um lado era o
lugar onde o negro encontrava liberdade de expressão e de identificação em sua etnia, por
outro, na atualidade, assume a configuração de local de opressão. Vale relembrar o episódio
da “guerra dos anjos”, mencionado anteriormente.
Os muitos embates entre traficantes de drogas e a polícia não permitem que os
moradores destes locais se sintam livres para ir e vir. Nunca se sabe quando o tiroteio irá
começar ou se suas privacidades serão invadidas por homens “quase pretos”
10
que se divertem
em oprimir outros pretos.
A tomada do Rio que numa primeira leitura pode ser entendida como um ato de
vandalismo recebe uma outra conotação na postura de Jararaca que manifesta o desejo de
“ordem e progresso”. Seu comportamento é um reflexo da necessidade de buscar a cidade
perfeita que o tempo todo se reduplica através das idéias contidas no mito fundador e das
utopias urbanas, seguindo Chauí e Freitag.
É claro que o arruinamento da paisagem da cidade e a perda da utopia, fato quase
irreversível, como resultado da percepção da existência de brasis esquecidos dentro do Brasil
10
Remeto-me a música Haiti, de Gilberto Gil.
34
“Alguns de entre nós se descobriram negros porque não os deixaram ser brasileiros”
(AGUALUSA: 2002, 261) torna-se um fenômeno mais visível aos olhos dos moradores da
cidade, como fruto da dificuldade em manter o mito do Rio de Janeiro como cidade
maravilhosa.
A ausência de cidadania ainda alimenta a vontade das populações marginalizadas em
alcançar a tão sonhada cidade ideal. A consciência da negritude nasce no romance como a
ausência de uma nacionalidade, demonstrando a fragilidade do mito fundador e,
contraditoriamente, do desejo de se agarrar a ele para não perder a utopia de lutar pela real
liberdade dos negros e por um Brasil realmente brasileiro.
Neste sentido, a emergência do discurso da negritude surge na narrativa de Agualusa
como elemento desencadeador de várias reflexões que possibilitaram uma leitura comparada
entre a poesia angolana e o rap, capazes de suscitar questões fundamentais que podem alterar
a conformação da estrutura colonial denunciada por Marilena Chauí. Torna-se importante,
portanto, que abordemos um pouco a respeito deste tema no próximo capítulo, com o intuito
de tentar pontuar para os leitores, alguns dados importantes sobre a Negritude.
35
2. DA NEGRITUDE EM FRANCÊS ÀS NEGRITUDES EM PORTUGUÊS
Lincharam um homem
entre os arranha-céus
(li num jornal)
procurei o crime do homem
o crime não estava no homem
estava na cor de sua epiderme...
(Solano Trindade)
A cor da epiderme. Este parece ser um dos principais recursos utilizados como critério
de dominação exercida pela civilização européia para submeter povos não-europeus a um
discurso de superioridade, notadamente negros africanos e índios americanos.
No livro A África na sala de aula: visita à História contemporânea (2005), Leila
Hernadez fala a respeito de uma “África inventada” a partir do olhar imperial da civilização
ocidental. Invenção que, segundo a autora, tem seus alicerces fincados no século XVI. A
partir desta visão, o termo africano passa a ser interpretado numa relação sinonímica com o
vocábulo negro, agregando, por conseguinte, uma série de significados negativos.
No que tange particularmente aos indivíduos negros, tanto oriundos do continente
africano ou da diáspora, estes foram condicionados e submetidos ao paradigma da epiderme
branca idealizada em contraposição à preta estigmatizada. Conforme afirma Hernadez:
36
A partir do momento em que foram utilizadas as noções de “brancos” e “negros”
para nomear, de forma genérica, os europeus colonizadores e os africanos
colonizados, os segundo têm de enfrentar uma “dupla servidão”: como ser humano
e no mundo do trabalho. O negro marcado pela pigmentação da pele, transformado
em mercadoria e destinado a diversas formas compulsórias de trabalho, também é
símbolo de uma essência racial imaginária, ilusoriamente inferior.
(HERNANDEZ: 2005, 23)
É largamente sabido que o negro drama
11
, vivido pelas populações africanas e afro-
descendentes, é resultado, dentre outras coisas, da moderna dominação colonial exercida pelas
potências européias, desde a partilha de África no século XIX e que prevalece até os dias
atuais.
É evidente que a percepção do drama ocorre de maneiras diferentes nos diversos
contextos nacionais, regionais e locais, embora seja possível estabelecer algumas
aproximações; por exemplo, contemporaneamente, nos paises africanos a “dor de ser negro
12
já não é uma questão primordialmente epidérmica, o sofrimento está pautado na condição de
extrema pobreza em que vive a maioria da população africana. Como os negros da diáspora
(registre-se o caso flagrante da maioria dos brasileiros, em que a marca da cor de pele é uma
experiência dolorosa, que parte não só da miséria sócio-econômica, mas, principalmente, da
forma sutil com que as classes dominantes camuflam uma espécie de apartheid social,
ocultando as várias formas de racismo no “mito da democracia racial”).
De certa forma, as ações políticas mais evidentes, como a abolição da escravatura no
Brasil (1888) ou a independência dos países africanos de língua portuguesa (1975), não deram
conta de inverter a condição subalterna da população negra e, tampouco, as suas formas de
representação negativa. Através dos olhares lançados sobre os negros afro-brasileiros ou
africanos, a imagem que se constrói é quase sempre pautada pelo exotismo. Os negros
permanecem marcados como seres desumanizados e que, por isso, podem ser preteridos
socialmente e economicamente.
Vale citar, como exemplo da forma de percepção do continente africano como uma
máquina de sustentação dos interesses capitalistas, o filme O jardineiro fiel, de Fernando
Meireles (2006). Neste filme, Meireles apresenta a África como um grande laboratório
humano, onde as pessoas são utilizadas como cobaias para o teste de um medicamento a ser
aprimorado com vistas numa futura epidemia de tuberculose. Além da visão distorcida que o
11
Título de uma música dos Racionais MC’s, que faz parte do CD duplo “Nada como um dia ao o outro dia”
(2002a).
12
Utilizo palavras de Manuel Ferreira, extraídas do livro O discurso no percurso africano I (1989), ocasião em
que o autor trata dos processos de representação do negro nas literaturas africanas de língua portuguesa a partir
de fins do século XIX.
37
outro tem do espaço africano, a mídia, que conta com o suporte do fenômeno da globalização,
continua o trabalho assimilacionista imposto durante o período colonial, veiculando imagens
que reforçam o padrão da superioridade branca, européia.
As seqüelas do período colonial prevalecem até a atualidade, quando são observadas
ainda manifestações literárias que dão conta desta tensão. Muitos negros ainda tentam imitar o
modelo europeu ideal como forma de fugir do estigma da cor – do negro drama de não querer
ser negro. No conto Celular”, do angolano João Melo (2004: 19), o autor não perde a
oportunidade de tratar do tema da negritude, apresentando uma personagem como sendo “a
estudante de cabelos desfrisados e catinga nos sovacos”. Característica que ele reitera várias
vezes no texto como um marcador de alienação. A preocupação da estudante com o
alisamento do cabelo, na busca de uma proximidade com os moldes brancos, sobrepõe uma
questão básica de sua vida: a dificuldade de construir sua identidade a partir de um conceito
plural de beleza. É interessante perceber a engenhosa ironia de Melo ao fazer, através da
personagem, uma crítica sutil aos angolanos que insistem em imitar o paradigma europeu. O
cabelo está liso, mas ela fede.
A palavra catinga, termo popular usado para substituir o substantivo odor, vem
acompanhada do adjetivo agressiva, evidenciando a repulsa com relação ao comportamento
alienante da aluna que, como uma parcela de negros na atualidade, luta por um
embranquecimento. A postura da aluna, construída por Melo, pode ser entendida como
resultante da imposição de um modo de vida que alijou o negro da sua cultura e do orgulho da
sua etnia. Sem quaisquer direitos a réplicas, os negros passaram à condição de escravizados,
sendo obrigados a se submeterem à cultura do colonizador.
Na África, no período da pré-independência, muitos negros seguiram a trilha do
processo de assimilação, que envolvia uma série de exigências por parte do colonizador para
que fossem considerados cidadãos em suas próprias terras de origem. Dentre tais obrigações,
estava à necessidade de conhecer a língua de seus algozes, mas, contraditoriamente, foi
através do conhecimento da língua do colonizador que o colonizado criou a consciência do
seu estado de alienação, espoliação e da necessidade de criar meios de despertar seus irmãos
de cor para o interesse de lutar por um lugar ao sol.
Resistir foi preciso. E, para tanto, o recurso utilizado por uma parcela dos intelectuais
negros espalhados por “todo o mundo” em prol dos ideais de valorização e conscientização do
homem negro foi à competência lingüística como um exercício de “trapaça salutar”
(BARTHES: 2002, 16).
38
A letra passou a ser um dos principais instrumentos de luta pacifica na tentativa de
restaurar a posição do negro como sujeito histórico. O discurso da Negritude que tem como
ponto de partida o espaço Francês e que, posteriormente, desloca-se, em suas variantes, para
os países africanos e latino-americanos, bebe da fonte de outros movimentos importantes de
apreço pelo negro, que floresceram a partir do início do século XX.
Num estudo exaustivo sobre a negritude africana de língua portuguesa, Pires
Laranjeira (1995b) traz dados relevantes a respeito da trajetória de lutas dos negros por
alcançarem o estatuto de cidadãos em suas sociedades.
Segundo Pires, um dos marcos destes movimentos intelectuais foi o “Renascimento
negro norte-americano”, que surge entre os anos 20 e 30, tendo como objetivo o desejo de
valorizar o homem negro e estabelecer sua igualdade de direitos perante os brancos. Matriz
que, como veremos posteriormente, inspirou a Negritude de língua francesa e a africana de
língua portuguesa (LARANJEIRA: 1995b, 26).
Na pena dos escritores Claude Mckay, Countee Cullen, Langston Hughes e Sterling
Brown, todos negros e segregados, a literatura ganha textos que recorrem à raça e ao
continente africano num processo mítico e evasionista, mas de profunda consciência política.
Seus maiores impulsionadores foram Carl Van Vechten, com Nigger heaven (1926), Alain
Locke, organizador da antologia do New negro (1925) e James Weldon Johnson, precursor,
participante, inspirador e historiador do movimento.
O bairro novaiorquino do Harlem marca presença no teatro, enviando peças escritas,
interpretadas e dirigidas por negros para a Broadway. Na música, Josephine Baker torna-se
estrela com projeção internacional, atuando em Paris, e Paul Robeson e Marian Anderson
também ganham notoriedade e fama estrangeira. Ambos serviram de símbolo de sucesso e da
capacidade do negro para inspirar outros irmãos de cor. Lansgton Hughes foi quem se
destacou como o maior representante do Black Renaissance, por escrever poemas de formas
variadas, poesias narrativas com vocábulos dialetais propícios ao canto, ao estilo do blues de
ritmo do Jazz, com frases coloquiais, imagens vivas, humor e consciência racial.
O esforço de revalorização do negro ocorre em outros pontos do continente americano.
Na América Central o efeito da Black Renaissance deu-se nas Antilhas e encontra na pena do
porto-riquenho Luis Palés Matos um terreno fértil de criação, aberto ao sabor de palavras
sonoras e ritmadas. Palés Matos usa a via mestiça e negro-americana no mosaico lingüístico
caribenho para antecipar o Indigenismo Haitiano e o Negrismo Cubano. Seus recursos optam
pelos esteriótipos e tipicismos, marcados através da musicalidade e plasticidade negras. A
39
literatura caribenha segue o estilo provocador, semelhante aos textos literários negritudinistas
produzidos na África da fase nacionalista, que refletiu às relações coloniais.
No caso do Indigenismo Haitiano, nome retirado de La Revue Indigène, primeiro
número publicado em 1927, que aparece depois do “Renascimento Negro”, a proposta era
reconstruir a imagem da maioria da população negra haitiana, incutindo o sentimento de
orgulho pela raça e retorno aos valores africanos.
A Revue Indigène tinha a função de atuar como instrumento de conscientização do
povo do Haiti, veiculando os ideais indigenistas do que chamaram de “o nosso grito sincero”.
Com a finalidade de interpretar a realidade nacional, trazendo temas e problemas dos
haitianos, a publicação tinha o objetivo de dar prioridade ao enfoque do negro. O fundamento
do movimento era a linguagem popular, que se constituiu como expressão autêntica, com
maior acolhida nas narrativas.
No Negrismo Cubano, o poeta Nicolas Guillén foi o mais conhecido nos meios
intelectuais neo-realistas, africanos e modernistas brasileiros. Principal representante do
negrismo crioulo, ou cubania, trabalho poético que se baseava na linguagem e cultura crioulas
(música e folclórica), populares, mestiças e nacionais.
O processo de gestação dos movimentos norte-americano, das Caraíbas e da América
do sul foi responsável por lançar as bases que alicerçaram a Negritude Francesa. A França,
capital do mundo no século XIX, era vista pelos negros como lugar propício para lançar seus
movimentos por ser Paris a herdeira das Luzes e da Revolução.
Léopold Senghor, Léon Damas e Aimé Césaire chegam a Paris entre 1928 e 1934,
período no qual se conhecem. Os três fazem parte da Associação dos Estudantes
Martinicanos, entidade na qual atuaram como secretário de redação (Damas), redator-chefe
(Césaire) e colaborador com artigos (Senghor).
Estudantes de diversos paises africanos deslocavam-se para a Europa com a finalidade
de cursar o ensino superior e encontravam nos espaços europeus um contexto totalmente
oposto aos que viviam. Laranjeira afirma que:
Os estudantes africanos encontravam na Europa, principalmente em Paris, um
ambiente radicalmente diferente dos que estavam habituados a freqüentar. Paris era
como o centro do mundo, no plano não só cultural, cidade cosmopolita por
excelência, sofisticada, que atraía intelectuais e artistas de todo o mundo. Havia
uma mistura de Modernismo, Surrealismo, avant-garde, etc., com o espírito
revolucionário (anarquismo, socialismo, comunismo, republicanismo, etc.), em que
se cruzavam aristocratas falidos, revolucionários adiados, artistas desempregados,
feministas truculentas, escritores principiantes, num universo heterogêneo e
turbilhonante ...
(LARANJEIRA: 1995b, 55)
40
O clima de efervescência cultural e política, que mesclava sentimentos anarquistas,
comunistas, socialistas e republicanos, criando um ambiente considerado moderno e
permissivo”, não deu conta de alterar a visão estigmatizada a respeito do negro. Estes não
deixaram de ser vistos como um grupo estranho por onde passassem. Aceitos por alguns, com
falsa tolerância, tratados com má-vontade por outros ou com racismo explícito por
determinados indivíduos.
Mesmo os negros que conseguiam revelar sua capacidade intelectual, como Senghor
ou Césaire, sofreram violência contra a integridade moral e sentimental. A constatação do
preconceito e da imposição de uma condição inferior pelos brancos, mesmo quando os negros
davam prova de sua competência, levou-os a investigar os motivos da postura arrogante do
europeu e lutar por mudanças.
A década de 30 é decisiva para a afirmação do que viria a ser a Negritude. Neste
período surgiram várias publicações, dentre as quais, Legitime Défense (1932) que logo foi
proibida de circular por considerarem seu conteúdo subversivo, mudando de nome para La
Race Nègre.
No caderno Cahier d’um retour au pays natal (1939), publicado na revista Vontontes,
Césaire criou o termo Negritude. Seu texto, seguido dos ensaios de Senghor Ce que I homme
noir apport, dividem a Negritude em dois estilos: o Cesairiano, agressivo, de revolta contínua,
e; o Senghoriano, sereno, de contemporização.
Para Aimé Cesáire a Negritude significava um ato de subversão da linguagem. O
objetivo principal era arruinar o discurso colonial, criando meios de cessar a atitude submissa
dos negros com relação aos brancos. Sua defesa estava pautada na rejeição absoluta dos
moldes ocidentais.
No discurso de Léopold Senghor, a Negritude deveria ser alcançada através da
conciliação entre as culturas e do reconhecimento, por parte dos europeus, da dignidade
africana. Senghor enfoca mais a questão da emotividade, abrangendo praticamente todo o
mundo negro. Para ele havia duas negritudes: a de fontes anteriores à chegada do branco na
África, e a contemporânea.
Seus versos longos caracterizavam-se pelo prosaico tom sagrado e grandiloqüente, não
apresentando um discurso contestatório. Suas poesias inserem-se no rol dos padrões clássicos,
pois o poeta foi educado num rigoroso culto à gramática, marcas que o identificam como um
escritor a maneira ocidental.
41
Contudo, para além da categorização de sua escrita com a estética européia, o poeta
tentou incorporar o papel do “griot senegalês moderno”, se transformando em cantor do seu
povo.
É importante evidenciar que, para além das divergências de percepção ideológica, as
duas concepções da Negritude apontam para um motivo comum: buscar caminhos para dar
visibilidade ao negro, através das letras, de modo que ele possa ser percebido em sua
humanidade e tenha condições de constituir-se como sujeito.
Os ideais da Negritude ganham, então, repercussão em outros espaços por todo
mundo. No caso das colônias africanas de língua portuguesa, o aparecimento de textos de viés
negritudinista coincide com um período em que no movimento francês já estava sendo
contestado internacionalmente, motivo pelo qual alguns críticos discutem sua validade.
Assentado na ideologia da consciência da raça, da classe e do território, o movimento
negritudinista, inspira os poemas de temática diaspórica, de saudade da terra ou de louvação
exclusiva das belezas naturais.
Alguns estudiosos, dentre os quais, Manuel Ferreira (1989) e Pires Laranjeira (1995a),
revelam que os ideais da Negritude aparecem pela primeira vez no livro Ilha de Nome Santo,
1942, do poeta santomense Francisco José Tenreiro, considerado por alguns críticos como o
precursor do movimento nas colônias de língua portuguesa.
Em Tenreiro, o tema do negro ganha relevância, embora apresente textos escritos de
maneira comedida por terem suas bases assentadas, primordialmente, na temática do interesse
e saudade pela terra e no povo africano. Fato que não o impede de demonstrar o sentimento de
solidariedade com os “negros de todo mundo”, expressando, não só o retrato das dificuldades
vividas pelos negros na África e da diáspora, mas também sua capacidade de resistir ao
processo de assimilação, imprimindo, de maneira indissolúvel, suas marcas culturais nas
américas:
[...]
Negro!
Na cidade da Baia
os negros
estão sacudindo os músculos
Ui!
Na cidade da Baia
os negros
estão fazendo macumba.
Oraxilá!Oraxilá!
42
Cidade branca da Baía
Trezentas e tantas igrejas!
Baía ...
Negra. Bem negra!
Cidade de Pai de Santo.
Oraxilá! Oraxilá!
(TENREIRO: 1994, 44)
A prudência da escrita tenreiriana não fornece a leitura contundente de representação
do negro como sujeito da enunciação, mas aponta para um caminho de valorização da
negritude, expressa através da força e capacidade de resistência das populações negras
marginalizadas por sua negrura. No poema acima a indelével presença africana se faz sentir
na cidade da Bahia “Negra. Bem negra!” que, contraditoriamente, tenta, sem sucesso,
branquear-se através da religião “Cidade Branca da Baia / Trezentas e tantas igrejas”.
Para chegar ao processo de representação do negro a partir da matriz da Negritude
francesa, a literatura escrita nas colônias portuguesas passa por um percurso intitulado por
Manuel Ferreira
13
como o “Da dor de ser negro ao orgulho de ser preto.
Segundo Ferreira, os primeiros textos angolanos que enfocam a questão da cor são os
de José da Silva Maia Ferreira, no livro Espontaneidades da minha alma (1849). A partir
desta obra é possível perceber que houve um esforço por parte dos poetas africanos na
tentativa de diluir do discurso poético o menosprezo pelo negro, embora muitas vezes caíssem
no erro de reforçarem a representação de sua imagem negativa, sobretudo nos poemas que
tratavam da temática das mulheres negras, vista sob a perspectiva do padrão estético branco.
Joaquim Cordeiro da Mata, poeta angolano, um dos representantes desta tentativa de
imprimir um olhar positivo sobre o negro em fins do século XIX, não consegue afastar-se
totalmente de um discurso dicotômico entre as mulheres negras e as brancas, nos versos do
poema “As africanas :
Quando outro tempo
vi retratadas
gentis, mimosas
e delicadas
as formosuras
de brancas cores _
todas primores
filhas da Europa;
pensava então
que nestes climas
jamais havia
13
In: FERREIRA, Manuel. O discurso no percurso africano I. Lisboa: Plátano, 1989. p. 38-56.
43
belezas primas;
que as africanas
eram horrendas
e muito feias,
sem terem prendas
que maravilhem!...
Foi ilusão;
que este torrão
também possui
magas belezas,
[...]
(MATA: 2001, 157)
Na segunda estrofe, o poeta diz que “este torrão / também possui / magas belezas”,
demonstrando, se comparado com o discurso da estrofe anterior, a surpresa do sujeito poético
ao concluir que em África “também” existem mulheres belas.
A poesia de Cordeiro da Mata é construída a partir do olhar comparativo com a beleza
padrão. Neste sentido a percepção da beleza negra passa pela observação de uma matriz
branca, mesmo que se perceba um esforço, por parte do sujeito poético, com o intuito de criar
uma nova fala capaz de reconfigurar o modelo idealizado.
É somente a partir de Francisco Tenreiro que a poesia africana adquire outra feição,
abrindo a brecha para que outros poetas assentassem as bases de uma nova poesia. Em
Tenreiro, não há um esforço por tentar criar imagens positivas do negro que o tornem dignos
de serem retratados pelo sujeito poético, como ocorre nos versos acima, de Cordeiro da Mata.
Tenreiro investe em assuntos voltados para as questões sociais sem abrir mão de
inserir, ainda que discretamente, a temática da negritude. Apresentado versos que trazem,
agora, o negro como próprio sujeito poético, também incorpora matérias que falam do país e
do desejo do sujeito poético de regressar à África:
[...]
Aqui estou agora de coração em África
nesta noite fria e nu do capote das ilusões
ouvindo este sábio que sabe tudo sabe de África
De África e dos pretos claro está!...
Dos pretos que para arrelia das gentes à Terra vieram
pobrezinhas crianças crescidas em pretidão
mas que têm alma branca dizem uns
ou segundo outros alma danada.
Aqui estou eu agora vestido de África por dentro
[...]
(TENREIRO: 1994 , 61)
44
Para os poetas das colônias portuguesas, a ausência de seus locais de origem é o mais
forte condutor do desejo de proximidade com seu país. Neste sentido, os seus temas estão
voltados para o louvor da terra-mãe, forma física da pátria, num processo que aponta para
uma reivindicação nacionalista. Esta fase, denominada de nacionalista por Pires Laranjeira,
pode ser entendida como sendo a da negritude serena, pelo fato de apresentar “textos poéticos,
ainda sem atingirem a declaração de guerra negritudinista” (LARANJEIRA: 1995b, 97),
tendo como período de apogeu entre 1945 até 1951. Talvez o surgimento destes textos menos
contundentes se devesse ao fato, não só do distanciamento do enunciador, mas pela
necessidade de fincarem os alicerces do discurso, posteriormente, mais ofensivos, na idéia de
pertencimento do território africano.
Afinal não é possível construir e/ou afirmar uma identidade flutuante, sem um solo
para lhe servir de base. Daí surgir à necessidade de redescobrir a África. Neste sentido, a
questão da territorialidade pode ser explicada pelo sentimento de desenraizamento causado
pelo processo de assimilação.
Agostinho Neto, no texto “Introdução a um colóquio sobre a poesia angolana”
14
, em
palestra proferida na CEI fala do desarraigamento de parte da população africana, como sendo
o reflexo da política assimilacionista do regime colonial:
Sabemos que “assimilado” é um indivíduo que se encontra entre dois mundos.
Desenraizado, sem laços que o unam ao seu povo, sem a sua língua, sem os meios
de realizar a sua vida conforme a sente. Não se encontra também no mundo
europeu, cujos costumes adoptou, cuja língua fala, cujos hábitos pratica, sem que
todas essas características culturais sejam de fato sentidas, sem que façam parte do
seu eu. Pratica-as muitas vezes com repulsa.
(NETO, apud LARANJEIRA: 2000, 52)
Neto continua seu discurso dizendo que os indivíduos assimilados, nomeados como
“homens marginais” por muitos antropólogos, tendem a construir um agrupamento isolado
como resultado da repulsa aos padrões impostos.
No caso dos intelectuais oriundos das colônias portuguesas na África a opção foi lutar
pela reintegração ao seu território de origem. Entendido sob este ponto de vista é possível
estabelecer, em certa medida, a relação do nacionalismo expresso no discurso sereno da
negritude de língua portuguesa com o brasileiro.
14
Texto publicado no livro Negritude Africana de Língua Portuguesa: textos de Apoio (1947-1963), organizado
por Pires Laranjeira.
45
O discurso de exaltação a terra, em ambos os textos nacionalistas, angolano e
brasileiro, tem como objetivo valorizar os espaços de origem em detrimento do cenário
europeu e, mais que isso, tentar levar o colonizador a percepção da necessidade de
reconfiguração destes lugares numa perspectiva não colonial. A letra serve de instrumento
para que o homem africano tente reconquistar o espaço perdido. Foi através da língua do
colonizador que ele começou a reivindicar a sua inserção na sociedade como cidadão:
O negro-africano ocidentalizado, “consumidor de civilização branca”, exprime uma
atitude, num movimento formalmente cultural a “negritude”. Agora é o novo
negro que surge entre as duas guerras, consciente dos problemas de sua particular
alienação, a alienação colonial e reinvindica o seu lugar nos quadros da vida
econômica, social e política.
(LARANJEIRA: 2000, 14)
Era na Metrópole que os estudantes africanos se uniam em alojamentos para discutir,
dentre outras coisas, sobre os rumos de um movimento pró-independência. Em 1943 surge,
em Lisboa, a Casa os Estudantes de Angola. Em 1944 foi fundada a Casa dos Estudantes do
Império (CEI), com o objetivo de promover atividades culturais, recreativas e assistenciais. O
local funcionava como lugar de grande efervescência política. Dentre as diversas publicações
lançadas pela Casa estava Mensagem (1952), circular interna que veiculava informações.
Na CEI de Coimbra os estudantes, em sua maioria, angolanos e moçambicanos, uma
vez que os cabo-verdianos, os guineenses e são-tomenses ficavam na CEI de Lisboa,
desenvolveram convivência de colaboração, unidos pelos ideais revolucionários afins. As
atividades desenvolvidas neste núcleo se constituíam como vanguarda ideológica de uma
literatura que se propunha ao engajamento.
Em 1948, Agostinho Neto comunica o conteúdo da carta que Viriato da Cruz envia-
lhes, após leitura de poemas na Casa da África Portuguesa, na qual consta à formação do
Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA), que ostentava o slogan “Vamos
descobrir Angola”.
O objetivo do grupo do MNIA era estudar a História Africana e da Arte Popular, além
de escrever contos e poemas para serem editados e vendidos. A divisa que sintetiza o
movimento vai ao encontro do desejo de reencontrar o território para fincar os pés soltos
dentro do próprio solo.
No final da década de 40 os africanos assimilavam tudo que dissesse respeito aos
negros de todo mundo e transformavam seus aprendizados em versos que revelavam o
46
sentimento de solidariedade na busca dos mesmos ideais. Como aparece no poema “Voz do
Sangue”, de Agostinho Neto:
[...]
Ó negro esfarrapado do Harlem
ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South
Ó negro de África
Negros de todo o mundo
eu junto ao vosso canto
a minha pobre voz
os meus humildes ritmos.
Eu vos acompanho
pelas amaranhadas áfricas
do nosso Rumo
Eu vós sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a vossa Dor
meus irmãos.
(MEA: 1975, 30)
Passada a fase da negritude serena de viés nacionalista, o enfoque temático transfere-
se para o discurso de valorização do negro e criação da consciência nacional. Neste período,
os poemas escritos servem de veículo para mensagens que estimulam as forças libertadoras
dos países colonizados.
Agostinho Neto, destaque na Literatura Angolana, considerado por alguns críticos
literários o mais importante poeta da Negritude, traz em seus versos o tema da dor sofrida pela
mãe pátria, que geme e chora por seus filhos.
Neto foi o principal defensor das idéias do MNIA, criando poemas que auxiliaram no
projeto de construção da consciência nacional. Os textos produzidos por ele, na obra Sagrada
Esperança (1985), editada pela primeira vez em 1965, concomitantemente retratam as
condições sócio-econômicas degradantes de boa parcela dos angolanos, fazem um convite
para que estes saiam do estado de conformismo - “Não te voltes demasiado para ti mesma /
Não te feches no castelo das lucubrações infinitas / Das recordações e sonhos que podias ter
vivido” (NETO: 1985, 58) e da passividade:
[...]
inicie-se a ação máscula inteligente
47
que responda dente por dente olho por olho
homem por homem
venha a ação vigorosa
do exército popular pela libertação dos homens
venham os furacões romper esta passividade.
[...]
(NETO: 1985, 102)
Suzana Pavão, no ensaío intitulado O desenvolvimento da Consciência Nacional em
Sagrada Esperança” (2003), ajuda-nos na melhor compreensão da estratégia de escrita do
poeta Agostinho Neto. O texto traz um estudo de como se dá o surgimento da consciência
nacional na poesia de Neto, dividindo os poemas da obra em três estados: o do inconsciente,
com poemas que evidenciavam os mitos impostos pela ideologia dominante; o do despertar
da consciência, em que o mito dominante é abandonado e a voz poética regressa à realidade
presente, e; o da conscientização, em que o discurso da autoconsciência aparece como
negação da perspectiva da inocência.
De fato, é possível perceber nos poemas de Sagrada Esperança o enfoque de
momentos distintos do contexto histórico angolano. As primeiras produções do livro,
classificadas por Pires Laranjeira (1995a) como sendo de cunho neo-realista, destacam a
situação de opressão do negro e sua sujeição às imposições do colonizador. Tal como aparece
no poema “Velho Negro”:
Vendido
e transportando nas galeras
vergastado pelos homens
linchado nas grandes cidades
embrulhado até ao último tostão
humilhado até o pó
sempre sempre vencido
É forçado a obedecer
a Deus e aos homens
perdeu-se.
[...]
(NETO: 1985, 26)
Nestes versos, que podem ser caracterizados como sendo os do estado de
inconsciência”, as questões da negritude estão expressas através da representação da
personagem negro, sempre subjugado pelo branco “humilhado até ao pó/ sempre sempre
vencido.”
Nas estrofes do poema, a camuflagem de um discurso negritudinista mais contundente
foi uma estratégia muitas vezes utilizada pelos poetas pela impossibilidade de falar da
temática de maneira explicita, devido ao contexto colonial.
48
Em outro poema, intitulado de “Mãos Esculturais”, também é possível identificar os
ecos da negritude, através de uma outra forma de representar o negro. O sujeito poético
abandona o tema que trata do implacável peso do dominador para valorizar o povo angolano,
dando indícios da possibilidade de vislumbrar um futuro melhor:
[...]
Eu vejo
as mãos esculturais
dum povo eternizado nos mitos
inventados nas terras áridas da dominação
as mãos esculturais dum povo que constrói
sob o peso do que fabrica para se destruir.
Eu vejo além África
amor brotando virgem em cada boca
em lianas invencíveis da vida espontânea
e as mãos esculturais entre si ligadas.
[...]
(NETO: 1985, 70/71)
O sujeito poético demonstra ter “despertado sua consciência” para a situação de
alienação e espoliação vivida no período colonial. Seu discurso ainda apresenta o negro
inserido num contexto de dominação, contudo ele já não é o homem “sempre vencido” do
poema anterior. Agora, o homem negro tem a consciência da importância de seu papel como
sujeito histórico.
São suas “mãos esculturais” as responsáveis por construir “sob o peso do que fabrica
para se destruir” e estas mãos esculturais estão “entre si ligadas”, como forma de demonstrar a
força e a união dos povos negros em África e na diáspora. O olhar do sujeito poético
transcende o espaço africano, “Eu vejo além África”, criando um discurso que contempla os
“negros de todo o mundo”.
Nos poemas que podem ser classificados como os do estado da “conscientização”, os
que apresentam versos combativos, podem-se perceber a mudança de perspectiva do sujeito
poético quanto à visão de mundo e seu posicionamento diante do contexto político:
[...]
Povo negro
homens anônimos no espírito da triste vaidade branca
agora construindo a nossa pátria
a nossa África
e no traço luminoso dos dias magníficos de hoje
definem a África solidária e esforçada
contra os desvarios duma natureza incongruente
[...]
Chegados à hora
fervilha a impaciência nos corações que lutam
49
pelo fumegar das fábricas e chiar dos guindastes
homens e rodas, suor e ruído
conjugados na construção da pátria libertada
conscientemente na construção da pátria
sem que o germe da exploração lhe penetre
sem que a voz nauseabunda do capataz
anuncie o cair do chicote
e os homens felizes na inconformidade de hoje
nos campos de batalha, nas prisões, no exílio
contruindo o amanhã, para uma terra nossa uma pátria nossa
(NETO: 1985, 111-113)
Neste poema, que tem o título de “A voz igual”, o sujeito poético fala da conduta de
homens que assumem seu papel de engajamento pela luta de libertação de seus países
“conjugados na construção da pátria liberta / conscientemente na construção da pátria”. Nos
versos de Neto escritos nesta fase, não há lugar para a representação de um povo pacifico e
alienado, pois os homens estão “felizes na inconformidade de hoje”.
O incorformismo criado no discurso de conscientização se constitui como uma fala
transitória entre o fim do período da Negritude e o início de uma outra que se baseia na
preocupação com o movimento de libertação do país.
O ano de 1956 marca, segundo Pires Laranjeira (1995b), o início do declínio da
Negritude de Língua Portuguesa, conseqüência, dentre outros motivos, da criação do
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e do Partido Africano para a
Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), movimentos de libertação nacional.
Os movimentos anticoloniais dos estudantes e ativistas africanos avançam, em 1959,
com a seguinte palavra de ordem: “deixar Portugal, rumo ao exílio”. A partir deste momento o
movimento negritudinista acaba drasticamente, aparecendo num ou outro textos isoladamente,
dando lugar a três tipos de discurso gerados com base no contexto sócio-político e cultural: a
literatura de guerrilha, exortando à guerra de libertação nacional; textos em situação de
“guetto”, literatura escrita de forma alegórica e simbólica, em jornais, e; uma literatura de
estética abstracionista, escolhendo temas, práticas e referências universalistas.
Se por um lado, no percurso da literatura angolana é possível identificar o discurso
negritudinista como importante veículo de contribuição para “criar no homem criar na
massa”, em referência ao poema de Agostinho Neto (NETO, 1985: 100), um sentimento de
coragem e dignidade e, sobretudo referenciais que o façam ter a idéia de pertença, por outro, o
mesmo não ocorreu com a literatura brasileira.
No livro Raça e Cor na Literatura Brasileira (1983), David Brookshaw apresenta um
estudo aprofundado a respeito da representação do negro via literatura no país. O autor divide
50
seu texto, basicamente, em dois momentos: o que analisa a presença de personagens negros
em obras de escritores brancos, e; o exame das produções de autores negros.
Brookshaw afirma que a presença do negro na literatura anterior a 1850 é praticamente
inexistente e as que podem ser citadas, não contribuíram ou quase não auxiliaram na criação
da imagem positiva do negro. Na concepção do autor:
Na medida em que o negro apareceu afinal na literatura indianista, foi para
contrastar com o índio. Dessa forma o negro, representando a realidade da raça
colonizada, labutando nas plantações do colonizador, não era páreo para o mítico
índio em termos de atração literária. Se o índio por natureza era corajoso e
profundamente orgulhoso de sua independência, o negro era de índole escrava,
humilde e resignado.
(BROOKSHAW: 1983. 27)
A representação do negro humilde e resignado foi responsável por gerar, nas
produções que surgem a partir de 1850, a imagem do escravo suave, passivo e fiel, fruto,
dentre outras coisas, da influência do livro A Cabana do Pai Tomás, de Beecher Stowe,
traduzido, segundo Brookshaw, duas vezes para o português.
Nem os escritores aboliciolistas fugiram dos estereótipos. A prova desta afirmação é
destacada pelo autor ao trazer para seu estudo, romances como A Escrava Isaura, de Bernardo
Guimarães que, na concepção de Brookshaw, traz na figura do escravo branco um indício de
que nem estes autores fugiram dos preconceitos em torno da cor.
O modernismo, tido para muitos críticos como o período que possibilitou a
emergência de uma Literatura Negra, trouxe, na visão de Brookshaw, um novo tipo de
estereótipo: o do negro sensual. Deve-se evidenciar que o movimento modernista viveu a
contradição de ser influenciado pelo moldes europeus e nascer “em São Paulo, uma cidade
onde qualquer marca cultural afro-brasileira tinha sido apagada, tendo sucumbido sob o
influxo do grande número de imigrantes europeus” (BROOKSHAW: 1983, 81).
Por outro lado, o período do surgimento do modernismo sucede à fase em que o
discurso político republicano veiculava a idéia da escravidão como desgraça nacional,
apresentando o mulato como uma ameaça social. Neste sentido, a construção das
características de personagens negros só poderia estar pautada no modelo de servidão, ainda
que camuflado no comportamento de bondade e resignação, como mecanismo de manutenção
da dominação, tal como aparece no poema de Manuel Bandeira “Irene preta / Irene boa /
Irene sempre de bom humor”.
Para compreender o processo de construção do modelo de escravo fiel, é importante
analisar o contexto histórico do século XIX e suas implicações na produção da Literatura
51
Brasileira deste período e posterior. Neste sentido, Roberto Schwarz (2003) traz dois
pensamentos fundamentais para a compreensão do processo de troca de discurso de
representação do negro: o liberalismo e o favor.
Schwarz aponta para as contradições vividas pela sociedade burguesa brasileira diante
da defesa das idéias liberais em contraposição do regime escravista e da necessidade pós-
abolicionista de mascarar as marcas do período da escravatura. Uma das estratégias para
sustentar o falso discurso liberal era instituir o mecanismo do favor, uma forma de
“dependência da pessoa” que escamoteia as idéias escravistas em nada contribuindo para a
alteração do sistema social de dominação. A maquiagem histórica incluía, segundo Schwartz
(2003, 22) a substituição das construções feitas pelos escravos por “papeis decorativos
europeus ou aplicavam-se pinturas, de forma a criar a ilusão de um ambiente novo”. As idéias
européias que são “postas e repostas” ao longo de nossa história social influíram na produção
da literatura brasileira, incutindo, conscientemente ou não, seus discursos na escrita dos
autores. Os textos literários, escritos para atender à classe burguesa refletiam os ideais liberais
por eles sustentados. Tais idéias perpassam o século XIX , criando através de um “discurso
oco” a falsa ilusão de modernidade.
O favor que na pós-modernidade assume o significado político de paternalismo
acorrenta a maioria da população carente no discurso dominador e impede que as classes
menos favorecidas ganhem visibilidade.
De fato, apesar das dificuldades encontradas não só pelos escritores de Literatura
Negra em dar visibilidade para personagens negros como sujeitos da enunciação, Benedita
Gouveia Damasceno (1988) aponta o período modernista como a fase de melhor oportunidade
de utilização da temática africanista. Para a autora, “o Modernismo trouxe uma maior
liberdade para o autor de basear-se em seus próprios sentimentos e experiências como fontes
de inspiração em vez de usar moldes e temas estabelecidos a priori” (DAMASCENO: 1988,
55).
Benedita Damasceno defende a idéia de que o Modernismo promoveu a expansão da
delimitação do material estético para incluir temas outrora rejeitados pelo cânone, por serem
considerados de conteúdo anti-poéticos. É fato, contudo, que a maioria dos textos que podem
ser incluídos na Literatura Brasileira oficial - que pode ser estudada nos livros de crítica
literária no Brasil está longe de apresentar o negro como sujeito da enunciação.
No que se refere à presença do discurso negritudinista nos textos literários produzidos
no Brasil, objeto de pesquisa desta dissertação, ainda é difícil encontrar textos que apresentem
a temática de maneira contudente ao estilo Césaire, guardando as devidas proporções.
52
É claro que a influência da Negritude se faz notar, ainda que de maneira tímida nas
produções literárias e em outras áreas culturais. Nesta perspectiva deve-se destacar que houve
um intenso trabalho por parte de intelectuais negros na tentativa de dar visibilidade ao homem
de cor. Dentre estas personalidades merece menção o trabalho de Abdias do Nascimento,
responsável pela criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944. Nas palavras de
Abdias Nascimento, o TEN (2004: 03):
se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro-
africana, degradados e negados por uma sociedade dominante que, desde os tempos
da colônia, portava a bagagem mental de sua formação metropolitana européia,
imbuída de conceitos pseudo-científicos sobre a inferioridade da raça negra.
Propunha-se o TEN a trabalhar pela valorização social do negro no Brasil, através
da educação da cultura e da arte.
A importância do TEN, como qualquer outro movimento em prol das idéias
negritudinistas, explica-se na justificativa para o seu surgimento. Ele parte da necessidade de
colocar o negro na cena teatral, como forma de mostrar a sua competência intelectual num
país onde os brancos eram pintados de preto para representarem os personagens negros em
posição de destaque no texto dramático. Os negros só eram aproveitados em papeis
secundários, geralmente, ridículos e de conotações pejorativas.
No que concerne à poesia negra, vale destacar a figura de Solano Trindade,
considerado um dos precursores do discurso da negritude brasileira, contudo, embora seus
textos também elejam o negro como tema, estes não tratam exclusivamente daquela temática.
Em seu livro Cantares ao meu povo (1961), como o próprio título da obra explicita, o
poeta pretende cantar o povo negro. Não parece estar preocupado em criar um discurso
engajado que desperte o seu povo para o estado de alienação, do modo como ocorre nos
poemas da negritude angolana, nem tão pouco apresenta um eu enunciador.
No discurso poético de Trindade não é possível identificar uma fala de tom mais
enfático, para um poeta que intitulam como iniciador de uma temática voltada para a
negritude. Contudo não podemos deixar de evidenciar o seu mérito ao produzir textos como o
poema “Navio Negreiro”, por trabalhar com a idéia de desconstrução da visão desumanizada
criada para o negro no poema de mesmo nome escrito por Castro Alves:
Lá vem o navio negreiro
Lá vem ele sobre o mar
Lá vem o navio negreiro
Vamos minha gente olhar
Lá vem o navio negreiro
53
Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana...
Lá vem o navio negreiro
Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia...
Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência...
(TRINDADE: 1961, 44)
Dos raros momentos em que o eu aparece como sujeito da enunciação, na obra de
Solano Trindade, merece destaque o poema “Sou Negro”, texto no qual o poeta demonstra ter
orgulho de sua etnia, apresentando referências que identificam e valorizam o negro e sua
cultura:
Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonggês e agogôs
[...]
Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação ...
(TRINDADE: 1961, 42)
Este é o poema do livro no qual Trindade mais se aproxima dos pressupostos
negritudinistas por trazer um discurso em que o negro ganha voz e evidencia, com as letras
maiúsculas do primeiro verso “Sou Negro”, o orgulho de se apresentar como homem negro
e se querer como tal.
Dos textos críticos arrolados nesta pesquisa, é o de Zilá Bernd (1987) que parece
melhor amarrar os fios do longo debate sobre a poesia negra ao chamar a atenção para o erro
cometido por alguns teóricos na classificação do que viria a ser a Literatura Negra, uma vez
que muitos partem do critério da cor de pele. Segundo a autora poderia ser considerada
literatura negra aqueles textos em que houvesse um eu enunciador que se quer negro, que
reivindique a sua especificidade negra.
54
A particularidade deste tipo de texto estaria na apresentação de marcas da enunciação
que os particularizam, dentre as quais, a presença do sujeito da enunciação que se identifica
como negro.
A maior contribuição de Zilá a respeito do debate sobre a influência do discurso da
negritude nas produções literárias brasileira deve-se ao fato da autora ter incorporado em sua
tese a idéia da negritude como um conceito plural, fazendo a leitura do termo Negritude sob
dois pontos de vista: a representada pelo “N” maiúsculo e a do “n” minúsculo.
Para Zilá, a Negritude com “N” maiúsculo foi a que deu origem ao movimento criado
por Césaire, Senghor e Damas na França, que tinha como objetivo principal a afirmação dos
valores negros. Neste sentido, o termo seria usado num sentido stricto, especificamente para
o contexto francês.
No caso da negritude com “n” minúsculo, num sentido lato, refere-se à tomada de
consciência de uma situação de dominação e discriminação e a conseqüente reação pela
valorização de uma identidade negra. Esta tese abre a palavra negritude para múltiplas
possibilidades de leitura em diferentes contextos.
Nesta perspectiva, a autora aponta para a emergência da negritude desde os primeiros
escravos quilombolas, pela capacidade que os negros que fugiam para os quilombos tinham
de resistir e lutar pela manutenção de sua liberdade de ser negro. Na concepção de Zilá:
Tomado assim, de maneira abrangente, podemos dizer que sempre ou quase
sempre houve negritude e que sempre haverá [...] Isto é, enquanto houver negros
e as regras do jogo continuarem as mesmas, ou seja, feitas por brancos e para
brancos, este sentimento de legítima defesa contra o racismo, que pode ser
reconhecido como negritude, se manterá.
(BERND: 1987, 28)
A argumentação desenvolvida por Zilá Bernd, sobre a negritude num sentido plural,
servirá de base para a sustentação da leitura dos ecos do discurso da negritude angolana nos
textos da música popular brasileira.
Como foi acima exposto, Bernd entende que a negritude num sentido lato sempre
existirá em contextos onde houver segregação e discriminação racial. Esta é a idéia básica que
sustentará as discussões do próximo capítulo.
É evidente que a leitura que será dada a tema Negritude nos textos brasileiros não é
totalmente semelhante à produzida em Angola. Os dois países apresentam especificidades
históricas que os singularizam. Contudo, as vozes poéticas parecem atravessar a linha do
tempo e se cruzar em uníssono em prol da criação de uma nova representação do negro.
55
3. REPRESENTAÇÕES DO NEGRO
Negro drama
cabelo crespo
e a pele escura
a ferida a chaga
a procura da cura.
(Racionais MC’s)
Para pensar no processo de representação do negro na poesia angolana de resistência
numa perspectiva comparada com as letras de rap brasileiro, julgamos importante evidenciar
que ambos os discursos partem, em diversos momentos, de um ponto em comum: a busca do
resgate da identidade negra e sua transformação em referências positivas.
As poesias de revolta fazem parte de uma fase em que os escritores angolanos fizeram
de seus textos, conforme Laura Padilha (PADILHA, 1995: 188), “a festa da palavra
marginal”, sitio onde personagens e vozes outrora silenciadas ganham notoriedade.
A fala poética dedicada ao homem africano traz, em alguns poemas, o tema da
solidariedade com “os negros de todo o mundo”, convocando os filhos de África, no próprio
território africano e os da diáspora, a se unirem em torno de um mesmo ideal. Afinal não
importa onde estejam Angola, Cabo Verde, Brasil, etc. é o homem branco colonizador que
aparece em posição de superioridade perante o negro.
Neste prisma, um dos textos que nos ajudam a compreender a posição do homem
negro diante do branco e a necessidade daquele de recuperar seus traços identitários e a sua
56
auto-estima é o livro Pele Negra Máscaras Brancas (1983), de Frantz Fanon. Nele, o autor
defende a idéia de que o estabelecimento da dicotomia entre negros e brancos, evidenciada no
discurso de superioridade defendido pelo homem europeu, gerou a neurose responsável por
escravizar o “homem branco na sua brancura e o negro na sua negrura” (FANON: 1983, 11).
No caso do homem negro, o significado da negrura está agregado a uma série de
estereótipos negativos que auxiliam na construção da sua imagem inferiorizada. Neste
sentido, Fanon propõe a reflexão de alguns aspectos que, em seu ponto de vista, levaram o
homem negro a buscar de maneira irracional o “mundo branco”, seja através do status
lingüístico ou do casamento inter-racial.
No primeiro caso, há o desejo do homem negro em apreender a língua do dominador
por acreditar que a competência lingüística e intelectual são condições necessárias para alterar
seu estado subalterno. No segundo, a relação homem negro e mulher branca, ou vice-versa,
serve de passaporte para seu ingresso e aceitação na sociedade.
Um dos motivos que justificam a fuga do negro das marcas da sua negritude estaria
associado, na concepção de Fanon, ao fato do mesmo encontrar dificuldades de enxergar o
seu corpo em 1ª pessoa, lutando para identificar-se com as características positivas do outro
“No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema
corporal. O conhecimento do corpo é uma atividade unicamente negadora. É um
conhecimento em terceira pessoa” (FANON: 1983, 92).
Nesta perspectiva, o discurso da negritude é a via de saída deste estado de coisa que
relega o negro à condição subalternizada, de invisibilidade e de dificuldade de se perceber em
sua etnia. Foi através da explanação desta temática que os intelectuais angolanos acreditaram
estar recuperando o lugar do homem negro como protagonista e sujeito histórico.
Vale destacar que os estudos psicanalíticos de Frantz Fanon, resultantes de sua tese de
conclusão do curso de medicina (1951), se propõem a refletir o comportamento dos negros
martinicanos. Sua tese pode, em certa medida, ser utilizada como referência para outros
contextos africanos, por se tratar de questões que resultam do sistema colonial, regime
também presente, naquela altura, nos países africanos de língua portuguesa.
Se por um lado, no período de emergência do discurso da Negritude em Angola os
poetas encontram dificuldades de exprimirem-se livremente, devido à conjuntura colonial,
camuflando muitas vezes esta temática nas questões neo-realistas, por outro, pode-se entrever
o aparecimento de uma fala que revela o desnudamento das máscaras brancas, através do
surgimento de um eu-enunciador que se quer negro.
57
Este comportamento dos poetas africanos é muito significativo, se partirmos da idéia
de que a maioria dos textos produzidos neste período surgiu de uma “elite intelectual negra”
que já havia adquirido o estatuto de assimilado, muitos cursando nível superior na Metrópole.
Ao invés de aproveitarem a condição privilegiada que adquiriram, tais escritores
optaram por usar o acesso à informação para auxiliar na elevação da auto-estima de seus
irmãos de cor e em prol dos ideais nacionalistas de luta pela independência de seus países.
Russel Hamilton ilumina as questões que envolvem o comportamento destes
intelectuais, afirmando que foi o próprio dominador que estabeleceu o critério da competência
lingüística como forma de sobreposição cultural e a exigência do aprendizado da língua
portuguesa, por parte do dominado, como condição para que estes se tornassem “civilizados”,
alcançando o grau de assimilados. Mas, ainda na percepção de Hamilton, paradoxalmente, foi
à aquisição do conhecimento letrado que impulsionou “à conscientização social, cultural e
política de muitos dos súditos negros e mestiços do regime colonial” (HAMILTON: 2000,
14).
No discurso destes escritores surge uma nova maneira de se posicionar diante da
situação colonial. O poema “Opção”, de Eliseu Areia, traz na voz do sujeito poético a escolha
do negro por assumir a sua etnia e a confissão de um sentimento que evidencia a presença de
sua auto-estima:
Se ser negro é o mesmo
que ser escravo;
Se ser branco é o mesmo
que chicotear escravos ...
Então eu prefiro ser negro!
(MEA: 1975, 108)
O eu, manifesto no discurso poético, está se reconhecendo numa característica
primordial para o processo de valorização do próprio corpo sua cor. Além da questão étnica
citada pelo sujeito poético percebe-se o caráter reivindicatório de sua humanidade, numa fala
que, sutilmente, desconstrói a imagem positiva do homem branco, revelando-o em sua
desumanidade “Se ser branco é o mesmo / que chicotear escravos ... / Estão eu prefiro ser
negro”.
Ao preferir a condição de negro escravo em detrimento da posição, supostamente,
superior de ser branco, o sujeito poético assume sua postura negadora da aceitação da conduta
do outro, colocando em causa os valores europeus marcados, dentre outras coisas, pelo
critério epidérmico e pela violência.
58
É importante lembrar que houve em Angola um esforço por criar imagens positivas a
respeito do negro nos textos literários produzidos a partir de fins do século XIX, culminando
num discurso que possibilitou, na virada da década de 40 para a de 50 do século XX, o
aparecimento de um sujeito poético comprometido com uma fala que evidencia a temática da
Negritude.
Do trajeto percebido por Manuel Ferreira com sendo o “da dor se ser negro ao orgulho
se ser preto” o sujeito poético, aos poucos, começa a desvelar uma outra forma de apreensão
de sua subjetividade.
A marca da dor de ser negro, que aparece em algumas poesias angolanas, pode ser lida
na letra de rap Negro drama
15
, dos Racionais MC’s. Neste caso, contudo, o lamento surge
como um sentimento necessário para a criação da conscientização da tragédia vivida e como
condição para a saída do estágio de alienação diante do estado de dominação.
Se no caso da poesia angolana de revolta é possível perceber um processo de
conscientização marcado, como já foi destacado no capítulo anterior, por três maneiras de
perceber o homem negro em seu contexto histórico o estado do inconsciente, do despertar
da consciência e o da conscientização, nos textos do rap não é possível detectar a fase de
inconsciência da voz enunciadora.
A dor de ser negro é expressa, fundamentalmente, pelo despertar da consciência da
condição desprivilegiada em que se encontra imerso “eu recebi seu tic / quer dizer kit / de
esgoto a seu aberto / e parede madeirite” (RACIONAIS: 2002).
Do despertar da consciência à fase de conscientização, ambos os discursos, o da poesia
angolana de resistência e o do rap, apresentam algumas características que os singularizam e
os aproximam. Optamos por tentar apontar os traços que possibilitam uma percepção
dialógica entre os textos, evidenciando os ecos da temática negritudinista das poesias de
Angola nas letras de rap brasileiro.
Não é aleatória a escolha do rap como discurso poético a ser comparado com as
poesias angolanas. O ponto de partida para o confronto das ideais contidas nos dois textos é
justificado, numa primeira instância, pelo fato da música popular brasileira, desde as letras de
lundu
16
até a atualidade, ter se constituído como espaço propício para o negro criar um
15
Fragmento do poema utilizado como epígrafe.
16
Segundo Virginia Tereza de Almeida (2006), no discurso negro masculino, evidenciado nas letras de lundu
produzidas no século XVIII, era dado enfoque a um assunto interdito: às relações entre as senhoras, donzelas ou
casadas, com seus escravos. Neste sentido, o lundu pode ser interpretado como discurso silenciado pela cultura
colonial. As letras podem ser vistas como o canto que permite vir à tona a temática da violência da escravidão
escamoteada pela superfície do discurso amoroso.
59
discurso de representação simbólica capaz de revelar seus anseios, frustrações, utopias,
posições de revolta, etc.
Conforme afirma Miguel Wisnik (1999:114), a música enquanto discurso político,
assume várias funções: “expressão de resistência, de compulsão repetitiva e de fluxos
rebeldes, utópicos, revolucionários”. Neste sentido, convêm mencionar que alguns
pesquisadores têm demonstrado interesse por estudar a cultura hip-hop, ressaltando a
importância das letras de rap como instrumento de reivindicação dos jovens inseridos nos
guetos negros urbanos no Brasil.
No livro O Funk e o Hip-Hop invadem a cena (2005), de Micael Herschamann, o
autor fala da função do rap como discurso político capaz de expressar os anseios de grupos
que se sentem alijados dos direitos básicos que os fariam se sentir cidadãos, sobretudo, no que
se refere a um tratamento digno aos moldes dos fornecido pelo Estado aos moradores das
regiões não-periféricas.
Segundo Herschamann, para além do caráter reivindicatório, o rap serve de veículo de
socialização dos jovens, promovendo “o estabelecimento de novas formas de representação
social” (2005:40), responsáveis por inscrever territorialidades e reconfigurar o espaço
periférico com sendo o da não-violência.
Se outrora os espaços periféricos eram percebidos, unicamente, como os locais onde se
reproduziam às desigualdades, sítios da violência e terra de ninguém, na voz dos rappers eles
ganham uma nova conformação. A música “A noite” (2000), de MV Bill, contribui para a
criação de uma outra imagem destes lugares:
O sol se põe a noite vem
Tem muita gente na pista eu sei que tem
Céu estrelado o brilho da lua
Com a proteção de Oxalá eu vou pra rua
Pista, rua, pista estrada
[...]
Gente feliz, gente sofre
Na noite você conhece alguém
Na noite se arruma inimigo também
Sexta-feira destino Madureira
Ninguém fica em casa plantado de bobeira
Festeje a noite
Celebrando a cada momento
[...]
Vou encontrar com os amigos lá na praça
A noite é longa, ainda é cedo
A noite é negra, escura como o preto
[...]
60
Ao mesmo tempo em que a periferia é apresentada como o espaço favorável para as
relações sociais, o caráter de celebração da noite, “escura como o preto”, embute o discurso
positivo direcionado ao homem negro.
O rapper MV Bill traz para sua letra, ainda que sutilmente, a temática da
negritudinista. O texto convoca os ouvintes a festejar a noite. Mas, de qual noite o cantor está
falando, se a “noite é negra, escura como o preto”? É importante dizer que as idéias expostas
nesta letra de música em nada se aproximam com a de um discurso utópico, ao contrário de
algumas letras da MPB que desenharam a paisagem do Rio de Janeiro como cartão postal
cidade maravilhosa, a periferia é apresentada como lugar propício para socialização, mas não
como lugar idealizado.
O sujeito da enunciação tem consciência das contradições vividas nestes espaços
“Gente feliz, gente sofre / Na noite você conhece alguém / Na noite se arruma inimigo
também”. Nesta perspectiva, o que o sujeito poético, longe de querer camuflar os problemas
existentes nesses lugares, busca é ressaltar o outro lado da periferia, aquele que a mídia não
faz questão de mostrar.
A periferia, que é representada na poesia angolana através dos musseques, também
aparece no poema “Quando os meus irmãos voltarem”, de Aires de Almeida Santos, como
lugar de socialização entre os irmãos de cor, apesar de todas as dificuldades vividas naquele
lugar:
[...]
Havemos de construir com as nossas mãos
uma casita de adobe
bonita,
onde caberemos todos.
será vermelha,
toda coberta de capim
Vai ser fácil amassar
porque o barro já está tinto
de tanto, de tanto sangue
há tanto tempo a correr.
[...]
E jantaremos mufete ...
E beberemos quissângua
que vos virá do Biê.
E dormiremos na esteira
embalados pela brisa
que soprará no Musseque.
[...]
(MEA: 1975, 34-5)
61
Não podemos deixar de destacar que os contextos históricos são diferentes e os
discursos tratam de situações específicas. No caso do poema angolano, o sujeito poético fala
dos sonhos projetados para um futuro pós-independência, o retorno a Angola, veiculado na
divisa dos jovens intelectuais do MNIA. Contudo, o que pode ser notado é que o sujeito
poético acredita que o espaço periférico pode ser reconfigurado ou novamente representado
como lugar da não violência depois “de tanto sangue / tanto tempo a correr”, transformando-
se no local de convívio harmonioso.
Nos dois textos a periferia apresenta sua dupla face: a de tristeza e a de alegria. A
tristeza, evidenciada no rap pela afirmação de que “gente sofre” e na poesia pelo barro “tinto
de tanto, de tanto sangue”, é um sentimento manifesto pelo sujeito poético como sendo
produzido por acontecimentos sócio-políticos que estão além da sua vontade. A alegria, que
na letra é expressa através dos termos “gente feliz” e no poema pela felicidade do sujeito
poético em construir uma “casita de adobe bonita”, onde todos os seus irmãos possam viver
em paz, reflete o ânimo das populações periféricas e a capacidade de driblar o sistema,
resistindo e criando mecanismos de sobrevivência comunitária.
Os processos de socialização dos grupos de jovens inseridos nas regiões periféricas,
também são evidenciados na obra A música entra em cena; o rap e o funk na socialização da
juventude (2005), de Juarez Dayrell. Contudo, o autor inclui em suas discussões uma outra
questão relevante para nossa pesquisa: a importância do estilo de vida rap na abordagem da
temática negritudinista.
Segundo Dayrell, o rap é utilizado como veículo para enfatizar a denúncia e a
discriminação dos jovens negros. O discurso imerso, em parcela das letras, traz a vontade
destes jovens de se perceberem como “seres desejantes” e não como indivíduos submersos no
direito de não serem:
A produção poética é uma forma de refletirem sobre si mesmos e sua realidade.
Neste processo vão tomando consciência de si como pobres e como negros,
elementos integrantes da identidade de cada um. Não exaltam a pobreza, mas
reivindicam como pobres, sua condição de humanos, com valores, visão de mundo
própria. E desse lugar denunciam as privações que teimam em desumanizá-los.
(DAYRELL: 2005, 105)
A afirmação do direito de ser é expresso no discurso do enunciador, na maioria das
vezes em 1ª pessoa, como um processo de tomada de consciência de toda a trajetória histórica
do negro ao longo da História, responsáveis por “criar no espírito criar no músculo criar no
62
nervo” (NETO: 1985: 100) do homem negro o sentimento engajado de luta pela legitimação
de sua cidadania:
Não sou o movimento negro
Sou o preto em movimento
Todos os lamentos (me fazem refletir)
Sobre a nossa História
Marcada com glórias
Sentimento que eu levo no peito é de vitória
[...]
(MV Bill: 2006)
O principal sinal da atitude engajada do sujeito poético aparece logo no título da
música, “Preto em movimento”, da qual extraímos o fragmento acima. Ser o preto em
movimento e não o movimento negro, não expressa um olhar de desaprovação quanto a este e
sim a constatação de que, apesar de todas as vitórias alcançadas por todos os que lutaram até
aqui pelas causas negras, a batalha ainda esta longe de acabar, uma vez que o contexto de
desigualdade pouco ou quase nada se alterou.
Em trecho da letra “Só deus pode me julgar” (2002), de MV Bill, pode-se averiguar
um discurso de denúncia da real situação do negro, mais de cem anos após a assinatura da lei
áurea. Na fala do sujeito poético a defesa da idéia de que a abolição da escravatura não deu
conta de apagar os estigmas e promover a tão desejada igualdade social:
[...]
Soldado da guerra a favor da justiça
Igualdade por aqui é coisa fictícia
Você ri da minha roupa, ri do meu cabelo
Mas tenta me imitar se olhando no espelho
Preconceito sem conceito que apodrece a nação
Filhos do descaso mesmo pós abolição
Mas de 500 anos de angústia e sofrimento
Me acorrentaram, mas não meus pensamentos.
[...]
Neste contexto em que o regime colonial se reduplica, cabe relembrar as palavras de
Zilá Bernd (1987), no que se refere aos significados incorporados pela palavra negritude.
Segundo a pesquisadora, a negritude, num sentido lato, emerge da tomada de consciência de
uma situação de dominação e discriminação e a conseqüente reação pela busca de uma
identidade negra.
Partindo deste olhar dado a negritude, pode-se afirmar que o tema observado nas letras
de rap, embora siga em alguns momentos os paradigmas da Negritude Francesa e de outros
63
discursos similares nos diferentes contextos históricos em que os negros foram postos em
situação de dominação, assume configuração própria, por emergir em um outro contexto
histórico.
A tomada de consciência deste estado de opressão é expressa na letra de Bill, quando
ele diz: “Me acorrentaram, mas não meus pensamentos”. São estes seres pensantes e com
capacidade de construir uma visão crítica a respeito da situação de dominados, posição que
acorrenta à maioria da população afro-descendente brasileira, que têm lutado tanto pela via
discursiva, na divulgação de ideais libertários, como através de medidas sociais. Cite-se como
exemplo o próprio MV Bill, buscando mecanismos para a inclusão social destas populações
marginalizadas.
Cabe abrir parênteses, neste momento, para destacar as características que envolvem o
processo de enunciação do negro nos discursos poéticos em Angola e Brasil, escolhidos para
serem comparados nesta dissertação.
Para tanto, vale citar a opinião de Pires Laranjeira (1995b), a respeito deste assunto.
Para Laranjeira, nas poesias angolanas negritudinistas, as vozes discursivas são identificadas
no texto de acordo com as relações estabelecidas entre si, quais sejam: quando o predicador
incorpora o papel equivalente ao de um narrador, numa instância em que o discurso é
responsável pelo enunciado; o predicatário pode assumir a função de interlocutor com o
predicador, e: o predicador recorre à fórmula pluralizada, utilizando o “nós” que marca,
simultaneamente, um plural majestático e a posição de porta-voz da coletividade.
Neste caso, a missão de porta voz da coletividade teria a função de legitimar o
discurso, dignificando a fala do enunciador. Como ocorre nos versos de “Adeus à hora da
Largada” (1985: 9), do poeta Agostinho Neto:
[...]
Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
[...]
64
Ao optar pelo uso do pronome pessoal “nós”, o sujeito poético cria uma simulação do
seu posicionamento no lugar enunciado, dando a sensação ao leitor de que ele faz parte da
comunidade da qual ele se refere e ao mesmo tempo reivindicando sua posição de porta-voz.
No caso do rap, optamos por dar destaque ao posicionamento do rapper MV Bill, que
parece reivindicar o lugar de transmissor das palavras da comunidade através, dentre outras
coisas, da escolha de sua alcunha, cujo significado MV Mensageiro da Verdade.
O apelido neste caso assume uma dupla função: serve como legitimação do seu
discurso, e; também como estratégia de reivindicação do direito de expressar-se em nome da
coletividade. O uso do pronome “nós” será o indicativo da posição enunciadora de dono do
discurso coletivo, pleiteado pelo sujeito poético. Como pode ser lida na letra “Atitude errada”
(2000), de MV Bill:
Um dois três quatro cinco seis
M. V. Bill está de volta tentando conscientizar vocês
Parando pra pensar botando a cabeça no lugar
Pedindo a Deus para nos ajudar
Sem armas, unidos, sem violência entre nós
Vamos ter a certeza que na luta não estamos sós
[...]
Retomando as questões comparativas da temática da Negritude, um dado importante a
ser mencionado sobre as letras de rap brasileiro, em geral, mas, sobretudo a dos Racionais
MC’s, é o fato de recorrerem à cultura ancestral, trazendo, através da rememoração, a figura
de ícones dignos de menção pelos seus feitos ao longo da luta pelos direitos do negro.
Segundo Juarez Dayrell (2005), as letras de rap procuram resgatar a imagem de heróis
negros, sobretudo os afro-brasileiros, como uma forma de tentar reconstruir a História,
contada na maioria das vezes sob o olhar do branco - “Gosto de Nelson Mandela, admiro
Spike Lee / Zumbi, um grande herói, o maior daqui / São importantes pra mim”
(RACIONAIS: 1994).
Identificados como “quilombolas urbanos”
17
, os jovens negros ligados ao movimento
hip hop resgatam o herói Zumbi com personagem capaz de atualizar e reascender discussões
ideológicas de resistência e luta pela liberdade se ser, pleiteada nos diversos movimentos
negros que surgem ao longo da História.
17
No livro Hip Hop - a periferia grita, de Janaina Rocha, Mirella Domenich e Patrícia Casseano, as autoras
destacam a releitura dada aos quilombolas na atualizade. Segundo as autoras “em suas letras, MV Bill mostra
que é um exemplo de quilombola urbano” (2001: 121). As músicas evidenciam, em alguns momentos, as
infelicidades da guerra do tráfico, em outros prega a paz e convocam os negros a resistirem contra a opressão.
65
Ao tratar do processo de representação discursiva do negro nos textos da negritude de
língua portuguesa, Pires Laranjeira (1995b) fala do surgimento de códigos mítico-simbólicos,
na escrita de diversos poetas, como forma de valorizar personalidades negras e seus legados.
Segundo Laranjeira, a reprodução simbólica da imagem de tais personagens tem um
objetivo essencial: destacar suas histórias de sucesso. A preocupação de resgatar a imagem
destes heróis teria o fim de “integrar os seus nomes no discurso, em sinal de louvor,
admiração e reiterar o mito, mas também indicar que o negro africano pode alcançar o mesmo
patamar de sucesso” (LARANJEIRA: 1995b, 427) do homem branco.
No caso da poesia angolana, um bom exemplo do uso da iconicidade como forma de
exaltação e valorização do negro é o poema “Mamã Negra”, de Viriato da Cruz. Nele, o poeta
abre ao leitor a possibilidade de fazer uma recapitulação histórica dos momentos mais
importantes de lutas dos negros espalhados pela diáspora, através da citação de vários ícones
dos principais movimentos que surgiram nas Américas durante o século XX:
[...]
Vozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais
[dos seringais dos algodoais ...
Vozes das plantações da Virgínia
dos campos das Carolinas
Alabama
Cuba
Brasil
Vozes dos engenhos dos bangüês das tongas dos
[eitos das pampas das usinas
Vozes do Harlem District South
Vozes das sanzalas
Vozes gemendo blues, subindo do Missisipi, ecoando
[dos vagões.
Vozes chorando na voz de Carrothers:
Lord God, what [will] have we done
18
Vozes de toda a América. Vozes de toda a África.
Vozes de todas as vozes, na voz ativa de Langston
na bela voz de Guillén ...
Pelo teu dorso
Rebrilhantes dorsos aos sóis fortes do mundo
Rebrilhantes dorsos, fecundando com sangue, com
[suor amaciando as mais ricas terras do mundo
Rebilhantes dorsos (aí a cor desses dorsos ...)
Rebrilhantes dorsos torcidos no tronco, pendentes da
[da força caídos por Lynch.
Rebrilhantes dorsos (ah, como brilham esses dorsos),
ressuscitados com Zumbi, e, Toussaint alevantados.
Rebrilhantes dorsos ...
[...]
(MEA: 1975, 181/82)
18
Lord God, what [evil] have we done por sugestão de Russell Hamilton.
66
Fundindo a palavra escrita com a falada, por entre a poesia, música e voz, destacadas
por Viriato da Cruz nos versos que citam “a voz ativa de Langston” e “a bela voz de Guillén”,
ambos identificados como voz e letra, no caso de Guillén também musicalidade, o poeta aos
poucos revela a força destes discursos como elo capaz de criar a unificação harmoniosa dos
ecos num “canto de esperança”.
A palavra dorso, se compreendida em seu significado literal, ressalta a importância do
papel destes personagens na função de alicerces dos movimentos em prol dos negros. Neste
sentido, o destaque dado pelo sujeito poético ao vocábulo, que nos remete ao ditado popular
“carregar nas costas”, parece refletir o grande valor destes ícones como âncora.
Atenção especial deve ser dada ao resgate do herói Zumbi, colocado no texto através
da palavra “ressuscitados”, na posição de fundador de uma trajetória que culmina no
movimento negritudinista angolano “Rebrilhantes dorsos (ah, como brilham esses dorsos), /
ressuscitados com Zumbi”.
O herói Zumbi, recuperado por Viriato da Cruz como figura fundamental nos
movimentos de resistência, é o principal ícone apresentado nas letras de rap brasileiro
“Zumbi, um grande herói, o maior daqui”. Será este personagem o responsável por fazer a
ligação entre Angola e Brasil, não só no poema “Mamã negra”, mas no livro O ano em que
Zumbi tomou o Rio (2002), de José Eduardo Agualusa.
Voltando aos Racionais MC’s, o grupo merece destaque no enfoque do tema da
negritude, por ser o grupo que melhor explicita o discurso de exaltação do negro, fazendo dos
seus textos um lugar de reflexão, conscientização dos “manos de cor” e de denúncias das
desigualdades sociais.
É claro que os Racionais não são os únicos nesta função. Mas o seu mérito está no fato
de não se preocuparem com a construção de um discurso de contemporização. Seus textos são
combativos, chegando quase que às vias de uma declaração de guerra.
O sujeito poético se dirige aos seus algozes de maneira contundente, sem nenhuma
preocupação com meias palavras ou frases eloqüentes. O que querem é chamar a atenção para
os delitos cometidos pelos que estão no poder, que muitas vezes agem arbitrariamente,
justificando suas atitudes em velhos estereótipos. Como exemplo, a letra “Racistas otários”:
[...]
Os poderosos são covardes desleais
Espancam negros nas ruas por motivos banais
E nossos ancestrais
67
Por igualdade lutaram
Se rebelaram morreram
E hoje o que fazemos
Assistimos a tudo de braços cruzados
Até parece que nem somos nós os prejudicados
Enquanto você sossegado foge da questão
Eles circulam na rua com uma descrição
Que é parecida com a sua
Cabelo cor e feição
Será que eles vêem em nós um marginal padrão
[...]
(RACIONAIS: 1994).
Ao mesmo tempo em que denuncia os abusos de poder, o sujeito poético aproveita a
sua fala para fazer um discurso de conscientização aos seus irmãos para a condição de
alienação em que se encontram. Evidencia as lutas de seus ancestrais pela igualdade e adverte
para a necessidade de mobilização em favor de uma vida digna para os negros e da anulação
dos estigmas responsáveis por criar imagens capazes de construir protótipos como o de
“marginal padrão”.
Esta mobilização dos jovens oriundos das periferias brasileiras pode ser comparada
com a dos jovens que formaram o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA),
com a ressalva de que, pelo que pudemos encontrar nos textos de crítica literária lidos para
este trabalho, os componentes destes grupos, em sua maioria, não eram de origem periférica.
Este diferencial é um dado muito significativo, quando comparamos os modos como
os dois textos, o da poesia angolana e o rap, representam à periferia. As favelas brasileiras, em
confronto com os musseques angolanos, ganham uma maior visualização descritiva, não só no
que se refere às situações estruturais, mas na forma como se dão as relações humanas.
Quanto à questão espacial, fica bem evidente, tanto no poema “Caminho de
musseques”, de Ernesto Lara Filho, como na letra de rap “Periferia é periferia”, a diferença de
posicionamento dos sujeitos poéticos e o grau de distanciamento entre cada um dos narradores
e os espaços narrados:
Caminhos dos musseques
Lá onde a areia entra pelos sapatos
Daqueles que têm sapatos
Lá onde o sol se filtra pelas fendas
Pelos buracos dos pregos
Dos tetos de zinco
[...]
(MEA: 1975, 113)
[...]
Aqui a visão já não é tão bela
68
Não existe outro lugar.
Periferia é periferia
Um mano me disse que quando chegou aqui
Tudo era mato e só se lembra do tiro, aí
Outro maluco disse que ainda é embaçado
Quem não morreu, tá preso sossegado.
Quem se casou, quer criar o seu pivete ou não.
Cachimbar e ficar doido igual moleque, então.
A covardia dobra a esquina e mora ali
Lei do cão, lei da selva, hã
[...]
(RACIONAIS: 2002b)
Tanto revelando o afastamento do sujeito poético do espaço narrado, percebido no
verso “Lá onde a areia entra pelos sapatos”, de Lara Filho, ou a proximidade, em trecho da
letra “Aqui a visão já não é tão bela”, dos Racionais, a favela e o musseque são retratados
como lugares onde se reproduzem às desigualdades, nos quais as pessoas vivem em condições
degradantes.
Um dado interessante que deve ser recuperado é que, tanto os musseques angolanos
como algumas favelas brasileiras, costumam figurar como o espaço marginal no próprio corpo
da cidade, ou seja, a já mencionada cidade dentro da Cidade um dos lados da Cidade
cindida.
Em outro trecho do poema de Ernesto Lara Filho, que compõe o texto acima citado, o
surgimento dos musseques nasce como fruto de situações sociais que fazem com que o espaço
urbano contribua para a configuração do periférico:
[...]
A cidade empurrou os musseques
e o cacimbo caiu mais de mansinho
escondendo as figuras esguias
e os rostos de chumbo.
[...]
(MEA: 1975, 113)
Ao empurrar os musseques, a Cidade, representada pelas instituições públicas,
contribuiu com o intuito de dar uma nova conformação ao espaço urbano, tentando esconder
as figuras esguias / e os rostos de chumbo”, cria para si à mesma idéia de paisagem utópica
de cidade perfeito que foi construída para o Rio de Janeiro.
Um dos textos mais representativos da leitura do espaço periférico como lugar
marginal é a letra “Fim de semana no parque” (1994), dos Racionais MC’s. Escrito ao estilo
de prosa poética, o rap apresenta a história de um personagem que, assumindo o papel de
69
narrador, atua, numa primeira instância como observador do espaço privilegiado na cidade. A
importância do olhar atento do narrador está no fato dele trazer para o texto minúcias
descritivas que servem para evidenciar o contraste social existente nos dois lugares.
A história gira em torno do tema “fim de semana”, período, supostamente,
considerado de descanso para a maioria da população. É a hora em que as pessoas encontram
mais tempo para interagirem socialmente e o sujeito poético parece não querer se furtar a este
direito - “Chegou fim de semana todos querem diversão / Só alegria nós estamos no verão,
mês de Janeiro / São Paulo Zona Sul / Todo mundo a vontade calor céu azul / Eu quero
aproveitar o sol / encontrar os camaradas para um basquetebol”.
Ao poucos, o sujeito da enunciação vai colocando o leitor a par da rotina dos
moradores de um bairro abastado, situado à uma hora de sua residência “Estou à uma hora
da minha quebrada / Logo mais, quero ver todos em paz / Um dois três carros na calçada /
Feliz e agitada toda ‘playboyzada’ / As garagens abertas eles lavam os carros/ Desperdiçam a
água, eles fazem a festa”.
O discurso que, num primeiro momento mostra a euforia do narrador, logo se
transforma numa fala em tom melancólico, revelando sentimentos de um personagem que, ao
se sentir alijado dos benefícios que os moradores do lado privilegiado da cidade usufruem,
tenta extravasar suas frustrações pela via da agressividade verbal:
[...]
Olha só aquele clube que da hora
Olha aquela quadra, olha aquele campo
Olha, olha quanta gente
Tem sorveteria cinema piscina quente
Olha quanto boy, olha quanta mina
Afoga essa vaca dentro da piscina
Tem corrida de kart dá pra ver
É igualzinho o que eu vi na TV
Olha só aquele clube que da hora
Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora
Nem se lembra do dinheiro que tem que levar
Do seu pai bem louco gritando dentro do bar
Nem se lemb ra de ontem, de hoje e do futuro
Ele apenas sonha através do muro...
[...]
(RACIONAIS: 1994)
O uso da anáfora chama a atenção do leitor para os fatos narrados, quase que numa
atitude de súplica. Diferente da superficialidade do significado do verbo “ver”, o verbo
“olhar” exige do observador uma maior fixação nas cenas descritas, pede a percepção
contemplativa, mais demorada.
70
Se levarmos em consideração que o espaço narrado pelo sujeito poético é
aparentemente familiar de todos os que moram nas grandes Metrópoles, a insistência em
evidenciar as cenas descritas parece supérflua, mas tem o objetivo de sensibilizar as pessoas
para a vida dura das populações periféricas, com destaque para a condição dos negros, porque
é um pretinho que assiste a tudo do lado de fora.
O significado desta súplica é, perfeitamente, justificável se considerarmos o fato do
filme Cidade de Deus ter alcançado sucesso de bilheteria e a audiência dada à novela Vidas
Opostas, exibida durante ano de 2007, pela TV Record. Vale destacar que, tanto no filme
como na novela, a favela é representada como lugar da violência e marginalidade, camuflando
o retrato da periferia como local de socialização entre os indivíduos.
No caso da novela, ainda há um agravante: a heroína, defensora dos fracos e
oprimidos da favela é uma menina branca de olhos claros, cabelos muito bem tratados,
educadíssima. Não estamos dizendo que não seja possível encontrar pessoas assim na
periferia, mas criando uma indagação: será que o autor da novela teria coragem de criar uma
personagem negra, sem estereótipos, para o papel de heroína e para fazer par romântico com o
rapaz rico - o Miguel?
A personagem que admira as imagens através do muro, na letra de rap, evade para o
espaço utópico, comparado ao que costuma ver na TV, esquecendo-se, por alguns segundo, da
vida amarga “Nem se lembra de ontem, de hoje e o futuro / Ele apenas sonha através do
muro”.
Na fala do sujeito poético a mídia assume uma configuração negativa, uma vez que,
em alguns momentos, deixa de cumprir seu papel de veículo educador e de entretenimento
para funcionar como um forte marcador da desigualdade e estimulador do consumismo. Ela
ajuda a reforçar o discurso capitalista do ter em detrimento do ser “Tem corrida de Kart dá
para ver / É igualzinho o que eu vi na TV”.
Ao falar da importância do papel da mídia como principal instrumento de debate
contemporâneo sobre as práticas culturais e como espaço de visibilidade de grupos
minoritários, Micael Herschmann fala, também, do seu caráter contraditório e desconstrutor,
pelo fato de criar imagens desfavoráveis a respeito das culturas periféricas - “Por outro lado, é
também nos meios de comunicação de massa que se desenvolve grande parte dos processos
de estigmatização ou mesmo criminalização das culturas minoritárias” (HERSCHMANN:
2005, 90).
A sutileza da transposição do discurso da primeira para a terceira pessoa, perceptível
na letra dos Racionais, que transforma o narrador em onisciente, torna imprecisa a
71
identificação da personagem que tanto pode ser qualquer uma criança negra como o próprio
narrador, tentando camuflar sua história sofrida, uma vez que ele é quem se coloca desde o
início como narrador-personagem.
É na periferia que o sujeito poético se sente a vontade e acolhido, identificando-se com
a maioria dos moradores “É lá que mora meus irmão meus amigos / E a maioria por aqui se
parece comigo”. Neste caso, o espaço periférico é percebido como lugar propício para o
estabelecimento das relações sociais.
O fato dos Racionais descreverem a periferia como lugar possível para a interação
social não significa que não tenham consciência da necessidade de mudanças da realidade
vivida na comunidade. Aliás, esta é uma marca do discurso do grupo na tentativa de criar a
conscientização nos seus manos. Falar, sobretudo, pela garotada e para elas, com o intuito de
chamar a atenção para importância de lutar para reverter o quadro atual, afinal, criança é
sinônimo de futuro:
[...]
Tô cansado dessa porra de toda essa bobagem
Alcolismo, vingança, treta, malandragem
Mãe angustiada, filho problemático
Famílias destruídas fins de semana trágicos
O sistema quer isso a molecada tem que aprender
Fim de semana no Parque Ipê.
[...]
(RACIONAIS: 1994)
Um dos signos da violência no espaço favela é representado por uma das instituições
agenciadas pelo Estado “Polícia a morte, polícia socorro”. Nesta perspectiva, o texto assume
o caráter de denúncia, uma vez que começa a desvelar o sentimento de insegurança em que
vivem os indivíduos destas comunidades, que não encontram proteção nem por parte da
Instituição que deveria trabalhar para o bem estar da população como um todo.
As contradições e sentimento de insegurança esboçados na letra dos Racionais MC’s,
é semelhante ao apresentado na poesia “Sábado nos musseques”, da obra Sagrada Esperança
(1985), do poeta Agostinho Neto. O horror diante da ação policial, um dos traços de
similitude, é expresso pelo sujeito poético através de versos que mostram estes homens
desprovidos de quaisquer sentimentos humanitários:
[...]
Ansiedade
no homem fardado
alcançando outro homem
que domina e leva aos pontapés
72
e depois de ter feito escorrer sangue
enche o peito de satisfação
por ter maltratado um homem
[...]
(NETO: 1995, 12)
Os dois poemas, o de Agostinho Neto e o dos RacionaisMC, se imbricam,
possibilitando a leitura comparada entre ambos. Contudo, é necessário fazer algumas
ressalvas a respeito da poesia de Neto.
Em “Sábado nos musseques” também é possível estabelecer um critério de
classificação que aproxima o texto de uma prosa poética, contudo, no que se refere ao foco
narrativo, o narrador não oscila entre um discurso em primeira e terceira pessoa. Ele conduz
sua fala sempre em terceira pessoa, mas sabe tudo o que se passa no interior de cada
personagem, pois percebe em cada um deles o sentimento de “ansiedade”.
Quanto ao espaço, o sujeito poético não traz a cisão da cidade, como ocorre no rap,
embora ele faça questão de evidenciar que “os musseques são bairros humildes / de gente
humilde”. Neste sentido, seu olhar pode fixar-se, exclusivamente, em um único lugar de modo
a situar, com riqueza de detalhes, as várias cenas trágicas sobrepostas na narrativa.
Sempre recorrendo ao vocábulo “ansiedade”, no início de cada estrofe, imprimindo o
ritmo tenso do espaço narrado, o sujeito poético mostra como os sentimentos se confundem e
se misturam na dinâmica rotina dos musseques:
[...]
Ansiedade
No som da viola
Acompanhando uma voz
Que canta sambas indefinidos
Deliciosamente preguiçosos
Pejando o ar
Do desejo de romper em pranto
[...]
(NETO: 1985, 16)
As formas de se colocarem diante da realidade vivida demonstram, em alguns
momentos, uma atitude de resistência à condição opressora. No “desejo de romper em
pranto”, o canto se configura como forma de evasão das tensões.
Nos Racionais MC’s, alguns personagens também optam por utilizar o canto como
forma de exaltar a alegria em meio à tristeza. Para tanto, o ritmo escolhido também é o samba,
gênero influenciado pela cultura africana “O pessoal desde às 10 da manhã está no samba”.
73
A poesia é rica quanto à representação de personagens bêbados, amigos e casais
brigando, crianças sendo violadas, pessoas se refugiando na religião ou utilizando-a como
forma de adquirir bens, etc, e na descrição do espaço onde as condições de vida são precárias:
[...]
Ansiedade
no esqueleto de pau a pique
ameaçadoramente inclinado
a sustentar pesados teto de zinco
e nos quintais
semeados de dejetos e maus cheiros
nas mobílias sujas de gordura
nos lençóis esburacados
e nas camas sem colchão
[...]
(NETO: 1985, 18)
Neste lugar onde os mecanismos de subsistência são os mais variados, um relato, em
especial nos chamou a atenção: a figura do menino marginal. Em Neto, a construção desta
personagem não aparece de maneira explicita, uma vez que nos versos - “ansiedade / na
humilde criança / que foge amedrontada do polícia / de serviço”, não aparece nenhum
vocábulo capaz de expressar claramente o envolvimento desta criança em atitudes erradas.
A criança que foge da polícia amedrontada pode ser uma criança qualquer da
comunidade que já está acostumada com as arbitrariedades cometidas por parte dos
representantes desta Instituição, ao entrar nas periferias, daí a necessidade de fuga para não
sofrer represálias sem sentido. Contudo, justapondo o trecho do poema de Neto com o do rap
dos Racionais MC’s, pode-se criar uma outra leitura dos versos acima expostos:
[...]
No último natal papai Noel escondeu um brinquedo
Prateado, brilhava no meio do mato
Um menininho de 10 anos achou o presente
Era de ferro com 12 balas no pente
E fim de ano foi melhor para muita gente
[...]
(RACIONAIS: 1994)
Estes meninos-homens que são obrigados a amadurecer muito cedo, na tentativa de
sobreviver nos contextos onde estão inseridos, são os mesmo que endeusam os traficantes
como herói, como acontece com a personagem Jararaca em O ano em que Zumbi tomou o Rio,
na falta de outros referenciais positivos que os impulsionem para um outro caminho além da
marginalidade.
74
Outra contribuição para o fim trágico é a falta de políticas públicas que os possibilitem
almejarem um futuro melhor, acabando por arrastá-los para um caminho, na maioria das
vezes, sem volta, quando na verdade seus anseios são projetados, única e exclusivamente,
para o desejo de uma vida melhor “Eles também gostariam de ter bicicleta / De ver seu pai
fazendo cooper tipo atleta / Gostam de ir ao parque se divertir / E que alguém os ensinasse a
dirigir”.
Nas linhas finais dos dois textos, o mesmo desejo expresso de formas diferentes. Nos
Racionais a convocação da união de esforços para criar mecanismos para afastar os moradores
da periferia do álcool e das drogas, uma forma de levá-los ao exercício da cidadania. Na
poesia de Agostinho Neto, manifesto no desejo de alcance do estatuto de cidadão “Nos
homens / ferve o desejo de fazer o esforço supremo / para que o Homem/ renasça em cada
homem”.
Os dois discursos revelam a periferia como espaço de resistência e de luta pela
legitimação do direito, não só do homem negro, mas de todos os que estão imersos naqueles
espaços desumanos, a uma vida melhor.
Não é sem propósito o discurso convocatório presente na poesia angolana, que chama
a atenção dos irmãos de cor para a importância de seus papeis na luta pela busca da re-
inserção na sociedade como sujeitos históricos. Apresentada com um tom de declaração de
guerra, como aparece no poema “Depressa”, de Agostinho Neto, a fala do sujeito poético
apenas demonstra ter pressa por se libertar da ansiedade que o sufoca a margem da sociedade:
Impaciento-me nesta mornez histórica
das esperas e de lentidão
quando apressadamente são assassinados os justos
quando as cadeias abarrotam de jovens
espremidos até à morte contra o muro da violência
Acabemos com esta mornez de palavras e de gesto
e sorrisos escondidos atrás de capas de livros
e o resignado gesto bíblico
de oferecer a outra face
[..]
Venham os furações romper esta passividade
Soltem-se em catadupas as torrentes
vibrem em desgraças as florestas
venham temporais que arranquem as árvores pela raiz
e esmaguem tronco contra tronco
e vindimem folhagens e frutos
para derramar a seiva e os sucos sobre a terra úmida
e esborrache o inimigo sobre a terra pura
para que a maldade das suas vísceras
fique para sempre aí plantada
75
como monumento eterno dos monstros
a serem escarnecidos e amaldiçoados por gerações
pelo povo martirizado durante cinco séculos
[...]
(NETO: 1985, 102)
Os sentimentos não são complacentes, antes demonstram a revolta do sujeito poético,
que deseja que o inimigo se esborrache na terra pura “para que a maldade das suas vísceras /
fique sempre ali plantada”.
Discurso semelhante pode ser percebido na letra da música intitulada “Declaração de
Guerra” (2002), do rapper MV Bill:
[...]
Avisei que a guerra era inevitável
Pra quem vive em condição desfavorável
Subestimaram, pagaram para ver, tão vendo
Ignoraram a nossa gente, tão morrendo
A violência não fui eu que inventei
Somos culpados condenados
Chega de ouvir esse discurso social
Chega de ouvir o lenga lenga racial
Sou animal sou, sou canibal, eu sou letal
[...]
Vivemos num campo de concentração
Somos o lixo, a bucha do canhão
De um lado os Alvos, brancos tiranos
Do outro, o medo, os pretos, plebeus
Escravos, mulatos, ateus
De um lado o Luxo, o clássico, o bem
Doutores , Madames também
Do outro, pobreza. O rap a fome.
Maus-tratos
Perdão, meu crime foi nascer nesta terra
Orgulho escorre na viela da favela
Vesti minha armadura o destino foi traçado
Não recue escolha um lado
Em cada metro quadrado
Somos 10 refugiados
Se é este o lindo, belo, eterno céu de anil
Não tenho dúvida, vou botar fogo no Brasil
[...]
No caso das letras de rap o discurso da negritude surge de maneira agressiva,
evidenciando o caráter contundente da fala do enunciador que parece defender seus ideais
com “unhas e dentes”. Nestes casos, a atitude de declaração de guerra parece ser a única
opção para a ocupação do espaço interditado pelo dominador.
Tanto a vontade de que apareçam “furacões”, desejo do sujeito poético, no poema de
Neto, como a ânsia em pôr “fogo no Brasil”, expressa na letra de Bill, marcam a euforia de
76
uma irreversível tomada de consciência do quadro de miséria e do desejo de tentar reverter à
situação conjuntural.
Os dois textos nos permitem assistir ao amadurecimento da fala poética dos negros,
tanto em Angola como no Brasil. Neste estágio de luta, já não cabe mais a ênfase dada ao
discurso da negritude. Tais temas já não aparecem nos textos em primeiro plano, embora
ainda continue sendo utilizado de maneira menos contundente.
O que o sujeito poético pleiteia, agora, é a tomada da posse de todos os direitos até
aqui relegados às comunidades carentes. O que a voz enunciativa busca é a conquista
concreta do espaço proibido, daí a justificativa para a representação simbólica da apreensão
do lugar interdito, em O ano em que Zumbi tomou o Rio.
No romance de José Eduardo Agualusa, o espaço favela, pode ser percebido, a nosso
ver, por, pelo menos, três níveis de leitura: como lugar propício para o surgimento de uma
consciência negra; local de fluxos rebeldes e de utopias, e; lugar de resistência e tomada de
posição diante da dominação.
É da busca da cura para o negro drama que a obra de José Eduardo Agualusa fala. O
desejo de posse, sentimento revelado através das personagens no livro, é o mesmo expresso
no poema “Depressa”, de Neto, e no rap “declaração de guerra”, de MV Bill. Todos
reivindicam uma única condição para o homem negro: a de sujeito histórico.
77
4. CONCIENTIZAÇÃO E VIOLÊNCIA CONTEMPORÂNEAS
Pelo vosso desprezo e pelo vosso ódio
Nós esperamos
Pela vossa repressão e crimes
Nós resistimos
Mas escutem, o vosso poderio terminou
Soaram as trombetas da liberdade, da Fraternidade e da luta
(R. de Almeida)
A abordagem da temática da negritude suscita várias reflexões que passam, numa
primeira instância, pelos entraves que cerceiam os direitos dos negros, impondo-lhes
paradigmas que os afastam da percepção de suas características corporais e culturais. Tais
obstáculos aparecem, como já mencionamos, dentre outros fatores, a partir da fase em que se
instaura o regime colonial, responsável pelo discurso de superioridade do homem branco em
relação ao negro.
No caso de Angola, o surgimento das produções literárias de viés negritudisnista
coincide com a fase em que há uma tomada de consciência de um alto grau de violência, por
parte do colonizador, com vistas na manutenção do poder. Violência marcada, sobretudo, pelo
processo de desumanização do negro. Como destaque vale lembrar o trafico de escravos e,
posteriormente, a substituição da escravidão pelo regime do contrato (trabalho forçado).
78
O livro Colonialismo e Lutas de Libertação
19
(1978) contêm dados importantes sobre
o período colonial angolano que revelam a total ausência de humanidade por parte do
colonizador. Segundo consta na “Nota Prévia” da obra, tais relatos objetivavam conscientizar
o povo português sobre os efeitos cruéis causados pelo comportamento arbitrário de certos
portugueses nas colônias.
Muitas narrativas expõem situações que envolvem diferentes tipos de violência,
contudo, houve uma em especial que nos chamou a atenção durante a leitura, impondo-nos as
inquietações que o texto de prazer, como menciona Roland Barthes (1977), tem o poder de
causar: o ato de “erguer a cabeça”. A atitude reflexiva nos impôs o exercício de ir e vir no
texto, pensando nos dados que vão se agregando para dar significado às brechas da História.
Relatos que nos obrigam a tentar compreender o incompreensível:
No princípio de 1956, tive uma experiência decisiva: percorri mais de mil
quilômetros com cerca de 50 contratados (escravos). Durante toda a minha vida
tinha visto e ouvido à minha volta escravos, mas, desta vez, estas vítimas próximas
eram um testemunho do que eu procurava. Durante a viagem, os irmãos cantavam
uma canção triste em kimbundo (a nossa língua), exprimindo a dureza do trabalho
forçado, perguntando-se quando voltariam para casa e porque não teriam já
morrido. O refrão era que as condições mudariam e que elas teriam de mudar um
dia. Vi alguns chorar quando cantavam. Depois, paramos numa aldeia dum destes
homens que devia dizer adeus à sua infeliz mulher, a seu filho inocente, à sua pobre
mãe e aos amigos. O momento mais impressionante foi quando o seu filho de 5
anos lhe perguntou quando voltaria. O pai sorriu corajosamente, tomou o filho nos
braços e disse-lhe com simplicidade: “Não sei”. Esta cena emocionante mergulhou-
nos num silêncio profundo quebrado pelo grito dum motorista branco que ordenou:
“vamos embora, rapaz”. As últimas lágrimas e as últimas palavras foram trocadas e
o camião partiu, deixando atrás a aldeia e o seu povo escondidos numa nuvem de
poeira e de insegurança. (CLL: 1978, 109-110)
Estes e tantos outros relatos, constantes no livro, encontram eco nos discursos
produzidos pelos poetas angolanos no período de resistência ao regime colonial. Textos que
evidenciam o drama vivido por homens e mulheres que, arrancados de suas famílias, passam a
ser submetidos aos maus-tratos. Descrições da dor destes seres humanos, subjugados e
animalizados, expressos em poemas como “O chicote e o café”, de Elizeu Areia :
Numa roça,
Implacavelmente
O chicote traçou novo risco
Vermelho nas costas do contratado.
Já cansado
O capataz grita com desdém:
19
O livro, classificado como dossier na “Nota Prévia”, não apresenta um único autor. Os organizadores, que no
verso da folha de rosto se identificam como editores, são: António Melo, José Capela, Luis Moita e Nuno
Teotónio Pereira.
79
“É para que aprendas, minha besta!”
E limpou o suor da testa.
E todos foram na tonga
Silenciosamente,
Levando nos ouvidos
Os silvos do chicote
Rasgando a pele do camarada.
Em Luanda,
Um senhor distinto
Depois de bem almoçado
Pede um café.
(MEA: 1975, 107)
Nos versos de Eliseu Areia, a contraposição dos espaços rural e urbano revela dois
tipos de violência distintos e colados, simultaneamente, produzidos pelo regime colonial. No
primeiro, o ato violento atenta contra a integridade física do contratado que é coisificado. No
segundo, a violência é simbolizada pelos bens de consumo adquiridos pelos indivíduos
privilegiados que vivem na cidade. Benefícios que surgem como fruto da exploração da mão
de obra e sangue dos próprios contratados.
Este é o quadro que se esboça em Luanda: uns agraciados pelas vantagens reservadas
às elites pertencentes às classes altas e o outro, marginal, onde as populações carentes
agonizam para sobreviver, submetendo-se a variadas formas de constrangimento.
Neste contexto, o discurso de revolta assume papel fundamental como única opção
para tentar reverter esta péssima situação. Segundo Marcelo Bittencourt (1999: 20-23), a
necessidade de lançar mão do discurso da negritude impôs-se a partir do século XX, pelo fato
de ser possível perceber um sistemático aumento do comportamento racista por parte do
colonizador, num momento em que além do peso de não poder ser negro, estes indivíduos
ainda tiveram limitados os seus direitos de ir e vir.
Entre a escolha de se tornar assimilado, estatuto que não era muito fácil de ser
alcançado, uma vez que o homem angolano esbarrava em uma série de exigências que
demandavam dinheiro, e a de permanecer “indígena”
20
, condição que refletia em uma situação
de desprivilegio e submissão, a sociedade angolana foi se moldando, após o fim do tráfico de
escravos, num processo de estratificação social, responsável pela cisão do espaço urbano
luandense. Bittencourt (1999: 45) afirma que:
O fim do tráfico e, posteriormente, da escravidão, alterou também a disposição
habitacional da cidade de Luanda. Se antes os comerciantes e funcionários de
origem metropolitana, bem como os colonos em geral, se interessavam em ter
20
Termo utilizado pelo colonizador para designar os africanos que não alcançavam o estatuto de assimilados ou
civilizados.
80
próximos de si os escravos para comercializá-los e utilizar em serviços domésticos
e outros, a partir dessas alterações comerciais e legais, passaram a impor uma série
de artimanhas políticas a fim de expulsar o “gentio” para a parte alta da cidade e,
mais ainda, para a parte desabitada, coberta de areia. Tal projeto atingiria,
posteriormente, também os crioulos. Crescem assim os musseques, que traduzem,
portanto, uma prática de expropriação e abusos e comprovam uma nova forma de
encarar Luanda por parte dos colonos.
É interessante mencionar que as diferenças sociais atuaram na delimitação dos
territórios na cidade, de um lado uma elite rica, majoritariamente branca, e do outro as classes
populares, negros e mestiços, formando um circulo vicioso nas relações de classe que
impediam os indivíduos inseridos na categoria desprivilegiada de furar o bloqueio.
Segregados nos espaços marginais, os “indígenas” tinham deveres morais e legais a cumprir,
dentre os quais, o de estar empregados, em atividades reconhecidas e aprovadas pelas
autoridades, e pagar seus impostos. Nas afirmações de Bittencourt (1999: 81), os que não
cumpriam estas exigências eram “chamados a vender a sua força de trabalho para agricultores
ou empresa da colônia”.
Nesta nova conformação que a cidade de Luanda adquire não há espaço para as
minorias desprivilegiadas, que são literalmente empurradas para os musseques e as partes
mais altas, como descreve Ernesto Lara Filho, na poesia “Caminho de Musseques” “A
cidade empurrou os musseques / e o cacimbo caiu mais de mansinho / escondendo as figuras
esguias e os rostos de chumbo” (MEA: 1975, 113). A perda do ganho com o comércio de
escravos altera a postura do Estado em relação aos crioulos, que antes recebiam até vagas em
cargos públicos - estratégia de barganha dos metropolitanos com o intuito de manter o poder -
, tais cargos passaram a ser preenchidos pelos candidatos oriundos da Metrópole, que exigiam
os postos de maior prestígio, relegando à elite crioula as vagas em atividades inferiores. A
prioridade na ocupação dos empregos públicos passa a ser dos portugueses e,
consequentemente, a posse dos espaços urbanizados. Para a maioria dos negros e mestiços
restam os locais periféricos.
Os reflexos do contraste social passam a ser descritos pelos poetas em versos que
trazem, em alguns momentos, além da separação da cidade, as tensões que se estabelecem no
corpo de um espaço que se imbrica e se distancia, simultaneamente, numa teia complexa de
relações:
[...]
A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
81
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.
[...]
Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade de senhores ricos
a alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.
[...]
(NETO: 1985, 23-24)
No discurso do sujeito poético são perceptíveis as marcas dos sentimentos
contraditórios de um indivíduo que reconhece a dupla face do espaço em que está inserido e
tem a certeza de estar vivendo num contexto de incertezas.
O significado simbólico do “jogo da cabra-cega”, para além de mostrar o caráter
incerto da vida na cidade, releva um outro anseio: o de buscar o lado claro da cidade, que se
manifesta no próprio jogo “A luz brinca na cidade / o seu quente jogo / de claros e escuros”.
O sujeito poético deixa claro que os jogadores são os indivíduos imersos nas áreas
desprestigiadas, pois é nos corações aflitos que a vida brinca. O que está em jogo na
brincadeira da cabra-cega é a tentativa de sair da escuridão e, consequentemente, a ascensão
para a luz, lugar de aparente conforto e estabilidade, pois nele, acredita-se que há a
possibilidade de vida tranqüila. Para tanto, não importa se o outro será a bola da vez para
ocupar o lugar escuro.
Neste caso, o sentimento coletivo de desejo de liberdade ganha um cunho individual,
não com o intuito de fragmentar o discurso, mas para demonstrar que por trás da fala em
pessoa do plural, existe a presença de múltiplas vozes do eu que se sobrepõem, revelando suas
aflições por perceberem que, embora tenham sido responsáveis pela construção do espaço
urbano, são preteridos e estigmatizados “e eu / me fui confundindo / com os próprios
problemas da existência”.
As questões sociais que figuram em algumas poesias angolanas, muitas vezes
mescladas com textos de enfoque negritudinista, transcendem às discussões da cor de pele,
para alcançar o discurso do direito à cidadania. Daí a constante fusão de dois temas no
discurso: a reivindicação de ser negro com o desejo de ser angolano com todos os privilégios
instituídos pelo Estado aos moradores da cidade.
82
Na obra de José Eduardo Agualusa, O ano em que Zumbi tomou o Rio (2002), o
fenômeno da cisão da cidade também aparece como denúncia da estratégia segregacionista. O
Morro da Barriga é apresentado como o local onde se produz a desigualdade. Os limites que
separam os dois lados da mesma moeda são bem delimitados através da maneira de viver que
se estabelece em cada parte da cidade: de um lado com as ruas pavimentadas e bem
iluminadas, casas luxuosas contendo os bens de consumo que o mundo capitalista oferece, do
outro as ruas de terra, com valas negras, casas de alvenaria, quase sem conforto:
O mar entalado entre duas pedras enormes, tão longe dali quanto o céu ou a
esperança. O casario rolando num desconcerto ao longo das colinas batidas pelo
sol.
- Meu país.
Jararaca lança um largo gesto sobre o caos:
- O Morro da Barriga.
Euclides sente uma vertigem. Barracos de tijolo expostos. Placas de betão.
Depósitos de água. Antenas parabólicas. Bolsões de verde. Ruelas que caem
bruscas, quase a pique, ziguezagueando entre o casario. A umidade que se enrosca
ao corpo como um cachorro triste. O rumor duro, permanente, de milhares de
pessoas acossadas. E no entanto não há uma ponta de ironia na voz do traficante.
Leva-o a ver a casa. Dois pisos. Em baixo uma sala comum, em cima três
quartinhos. Terraço. O banheiro fica no pátio. O melhor, aliás, é o pátio: cinco
metros por três de terra vermelha à sombra fresca de uma mangueira. Duas
cadeiras, uma mesinha, um sofá de couro coberto por plástico.
(AGUALUSA: 2002, 82)
Não é difícil perceber a diferença social gritante entre os lugares. Diferenças
responsáveis por moldar, em alguns casos, a própria individualidade, que contribui para que
venham a assumir duas posturas: ou alienarem-se diante das condições vividas ou atingirem
uma consciência crítica. Na narrativa de Agualusa, a percepção da existência de um abismo
entre as classes é notada pela personagem Jararaca, desde a sua infância, quando
acompanhava sua mãe no trabalho:
A gente se toca desde pequeno, branquinho, quando vai à casa de uma pessoa rica e
a sua mãe é a dona Maria, a faxineira, a pessoa que sempre abaixa a cabeça. Você
vê os outros moleques, os filhos do doutor, com brinquedos caros. Eu brincava sabe
com o quê? Com latas de coca-cola. O meu tio catava as latas, botava rodinhas
nelas e assim viravam carrinho, tá ligado?
(AGUALUSA: 2002, 138).
Jararaca não tem a oportunidade de viver a fase da infância em sua plenitude. Nos
relatos da personagem percebe-se que naquela época já surgia um discreto sentimento de
revolta que ganha maiores proporções na sua vida adulta.
É interessante mencionar que o rumo tomado por Jararaca, tornar-se traficante,
encontra respaldo no mundo referencial dos espaços periféricos. Os reflexos da ausência do
83
Estado, sem as políticas públicas que atendam às necessidades destas comunidades com
projetos que atuem na inserção dos morados dos bairros carentes na sociedade, deixam seus
moradores à mercê da própria sorte.
Aqueles que usufruem a oportunidade de fazer parte de uma família, minimamente
estruturada, têm a chance de “sobreviver no inferno”
21
. Aos demais resta o mesmo esquema
de “jogo da cabra-cega”, descrito no poema de Agostinho Neto e o possível caminho já
apontado pelos Racionais MC’s (1994) em “Fim de semana no parque”:
Olha meu povo nas favelas e vai perceber
Daqui eu vejo uma caranga do ano
Toda equipada e o tiozinho guiando
Com seus filhos ao lado estão indo ao parque
Eufóricos brinquedos eletrônicos
Automaticamente eu imagino
A molecada lá da área como é que
Provavelmente correndo pra lá e pra cá
Jogando bola, descalços nas ruas de terra
É, brincam do jeito que dá
Gritando palavrão é o jeito deles
Eles não têm vídeo-game às vezes nem televisão
Mas todos eles têm um dom São Cosme e São Damião
A única proteção.
No último natal papai Noel escondeu um brinquedo
Prateado, brilhava no meio do mato
Um menininho de 10 anos achou o presente,
Era de ferro com 12 balas no pente
E fim de ano foi melhor pra muita gente.
Ao criar, ficcionalmente, uma história em que revela as intrigas de uma comunidade
carente na cidade do Rio de Janeiro, Agualusa reúne, em sua narrativa, vários subtemas que
permitem múltiplas reflexões a respeito de fatores que envolvem o assunto da negritude em
Angola e no Brasil. Sob seu enfoque as questões da afirmação do negro e da resistência contra
a violência instituída e naturalizada são trazidas ao debate como fundamentais. O autor
constrói personagens engajados politicamente com idéias de luta em prol da conscientização
dos negros. Sua estratégia leva-os a compreender a necessidade de buscar meios para sair do
estado de segregação. São personagens conscientes de seu papel como lideres de um
movimento de resistência contra o processo de dominação que se perpetua.
Dentre as personagens destaca-se Jararaca e, principalmente, Francisco Palmares, que
na sutileza de seus discursos assume uma postura bem clara de líder. Ao representar
alegoricamente o Brasil na atualidade, em uma de suas falas, ele diz: “um país de negros
21
Título do CD dos Racionais MC’s, gravado em 1997, responsável por afirmar o lugar do grupo com um dois
mais importantes grupos de rap brasileiro.
84
escravizados, remando, remando sempre e sempre, sempre, um colono branco à proa”
(AGUALUSA: 2002, 41-42).
A resistência aos maus-tratos e a discriminação passa pelo conhecimento do lugar do
negro na sociedade. Neste aspecto, a constatação da postura violenta do poder autoritário,
combustível da luta, não é uma exclusividade angolana. Segundo Jacaré, rapper que o
narrador faz questão de incluir no grupo dos jovens que representam um novo momento da
consciência negra, o processo de dominação brasileiro também passou pelo chicote:
Os negros brasileiros estão submetidos à violência racial faz quinhentos anos. Se a
sociedade fosse pagar a dívida que tem para conosco, para com os descendentes dos
quase dez milhões de negros que vieram para cá, nos porões dos navios, e que
trabalham debaixo do chicote, sem receber nada em troca, a não ser desprezo, e
assim construíam os alicerces do país, se a sociedade fosse pagar tal dívida, e acho
que você concorda comigo, quinhentos anos nos devolvendo o que nos foi tirado
não pagaria tal crime.
(AGUALUSA: 2002, 167)
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o discurso da negritude, utilizado pelos
personagens, surge, na obra de Agualusa, como estratégia de luta contra o regime
discriminatório que mantêm uma parcela da população negra presa a condições de vida
degradantes. Partindo deste olhar, as reivindicações dos negros ultrapassam o desejo de serem
percebidos e respeitados em sua etnia, como parece ocorrer também em Angola, para alcançar
um outro patamar: o da liberdade, ao conquistarem o estatuto de cidadãos, com deveres a
cumprir sim, mas principalmente com direitos. O motivo de reclamarem sua cidadania,
juntamente com o discurso da negritude, nasce da necessidade de afirmação de valores que
legitimem a posse do lugar destes indivíduos como brasileiros, que reclamam o direito à
identidade nacional “Alguns de entre nós se descobriram negros porque não os deixaram ser
brasileiro” (AGUALUSA: 2002, 261).
Recorrendo ao espaço periférico, de maneira estratégica, para o desenvolvimento de
sua trama, Agualusa atrela a narrativa às discussões sociais e raciais, com personagens ligados
à cultura hip hop. A narrativa, assim, conduz-se para uma possível interpretação simbólica do
ficcional Morro da Barriga que se torna o espaço quilombola, deslocado no tempo e
atualizado historicamente. Vale assinalar que a forma contemporânea de marcar tais espaços
periféricos das cidades brasileiras, notadamente no Rio de Janeiro, aproxima-os dos
quilombos históricos por sua constituição como lugar de resistência. O título do romance é o
primeiro indício desta tendência quanto à maneira de entender o lugar favela/quilombo. O
85
herói Zumbi, resgatado nas letras de rap, emerge na obra como ícone capaz de reacender a
chama dos discursos de resistência.
O apoio no discurso do rap brasileiro é introduzido através de MV Bill, que reforça em
suas letras não só a idéia de favela como quilombo, mas a existência da figura ancestral de
Zumbi como inspirador de suas lutas. No CD gravado por Bill, intitulado Declaração de
Guerra (2002), a voz enunciadora diz: “No meio de uma guerra / Foi onde eu nasci / O berço
da exclusão foi onde eu cresci / Não me intimidei / Foi preciso resistir / Faço parte do
quilombo comandado por Zumbi”.
A mesma posição defendida no texto de rap surge no discurso ficcional através da voz
de Jacaré “Agora sou Zumbi, sou Xangô, sou Lampião / Agora sei qual é o meu lugar / sim,
doutor, é no meio dessa briga / meu lugar é no Morro da Barriga” (AGUALUSA: 2002, 169).
A leitura que Agualusa apresenta sobre a territorialidade do espaço favela se
assemelha com a expressa por Andrelino Campos, no livro Do Quilombo à Favela A
Produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro (2005), uma vez que este autor traz
dados geográficos relevantes que apontam para a percepção da favela como a transmutação do
espaço quilombola.
Segundo Campos (2005: 24), os quilombos, efetivos espaços de resistência, sempre
representaram uma ameaça à ordem estabelecida tanto para o Estado quanto para as classes
dominantes. Como o Estado não conseguiu extingui-los do cenário metropolitano, durante os
períodos colonial e imperial, antes da abolição da escravatura, a cidade acaba por incorporá-
los ao espaço urbano.
Para além de pontuar vários locais onde pode ser registrada a existência de antigos
quilombos, como o caso das florestas dos morros do Andaraí e da Tijuca, Andrelino dá
destaque ao significado que a sociedade republicana dá a tais espaços na atualidade:
No nosso entender, uma das possibilidades é compreender a favela como uma
transmutação do espaço quilombola, pois, no século XX, a favela representa para a
sociedade republicana o mesmo que o quilombo representou para a sociedade
escravocrata. Um e outro, guardando as devidas proporções históricas, vem
integrando as “classes perigosas”: os quilombos por terem representado, no
passado, ameaça ao Império; e os favelados, por se constituírem em elemento
socialmente indesejáveis após a instalação da República.
(ANDRELINO: 1999, 63-64).
A representação da favela como “espaço marginalizado” e, consequentemente, do
negro como indivíduo perigoso é um dado importante por fazer parte do imaginário coletivo.
Agualusa não esquece de evidenciar em seu romance, através do diálogo entre Francisco
86
Palmares e um taxista que o leva até o Morro da Barriga, uma visão da periferia e dos negros
que parece ter se transformado em discurso comum:
Sai da piscina, veste-se com cuidado, todo de branco, e liga para Ernesto. O velho
atende-o com uma voz de fim de festa. Deve ter bebido a noite inteira. Francisco
diz-lhe que fique em casa, a dormir, e chama um táxi. O motorista acha estranho
que ele queira ficar no Morro da Barriga; avisa-o contra os perigos das favelas.
- Esses negros não respeitam ninguém.
-Talvez não tenha reparado, mas eu também sou negro ...
- Não, não, imagina! O senhor é um homem de bem ...
(AGUALUSA: 2002, 119).
É com base na visão desfigurada acerca da favela, construída no imaginário coletivo,
que são cometidos vários excessos com relação às populações residentes a margem da “cidade
legal”. Imagens reforçadas pela mídia e que justificam as ações arbitrarias cometidas pela
polícia.
Considerando a influência da mídia na constituição de novos sujeitos na
contemporaneidade, João Camillo Penna escreve o artigo “Marcinho VP (um estudo sobre a
construção do personagem)”, em 2004, no qual examina, tendo como base a biografia do
bandido
22
, publicada em 2003, algumas “interpretações midiádicas, políticas e estéticas
sofridas pelo traficante ao longo de sua vida” (PENNA: 2004, 71), que servem de apoio para a
reflexão a respeito da construção de personagens aparentemente reais.
Camillo Penna chama a atenção para dois perfis atribuídos à personagem VP pela
mídia. No primeiro esboço, criado pela elite dos “bem nascidos”, o traficante é
“glamourizado”, assumindo o papel de “Robin Hood”, o “bandido bonzinho” capaz de
praticar ações dignas de reconfigurar a favela, constituindo a “favelania”. Este modelo se
aproxima com o da personagem Jararaca, de Agualusa, que com grande consciência política,
no estilo “traficante-pensador”, assume vários papéis no Morro da Barriga: administrador,
político e, sobretudo, herói defensor dos fracos e oprimidos: “- Eu quero defender o meu
povo. / - O nosso povo. / - Não, o meu povo. O povo negro das favelas. O povo escravizado,
cuspido, humilhado ao longo de séculos, as vítimas do capitalismo colonial” (AGUALUSA:
2002, 146). O segundo, com o foco “criminalizante” criado pelo jornalismo de denúncia
solidária com o julgamento policial, desmistifica a configuração anterior desenhando VP
como um vilão, um monstro cruel, numa versão desestetizada.
Segundo Penna, as imagens tecnomidiáticas ora demonizam ora glamourizam VP,
revelando seu papel ambíguo exclusivamente mercadológico. Entre os dois perfis, o
22
O romance-reportagem Abusado: o dono do morro Dona Marta, do jornalista Caco Barcellos.
87
“demonizante e glamourizante”, uma dura confirmação: Marcinho VP é emudecido e não
consegue se constituir como personagem real e sujeito de sua própria história.
A impossibilidade de ouvir a voz do sujeito Marcio Amaro de Oliveira (identidade
civil de MarcinhoVP) marca a dificuldade de mobilidade do poder hegemônico que constrói
um perfil de cidadania distante do inserido nos “espaços vazios” guetizados. Modelo ideal do
indivíduo-cidadão que foge aos padrões identificáveis nas favelas.
O reflexo do erro midiático da representação de imagens e falas revela a impotência e
terror da sociedade que cada vez mais se fecha, preferindo aceitar, incondicionalmente, a idéia
de que “o inimigo mora ao lado”. Do outro lado, também impotentes e aterrorizados, alguns
indivíduos preferem acreditar que o único caminho para sobreviver é a vida do crime. Entre
os dois pólos fica o Estado que, representado pela instituição policial, tenta controlar a
violência, produzindo mais violência. A falta de critérios na seleção de imagens que realmente
se aproximem do real acaba por construir retratos que também são responsáveis por justificar
o estado de insegurança dos cidadãos legalmente instituídos.
Um outro dado interessante, no trecho acima descrito, sobre a obra de Agualusa, e que
o narrador faz questão de evidenciar, é o fato de o personagem Francisco Palmares ser
percebido pelo taxista como “um homem de bem”, um cidadão branco, por não fazer parte
daquele contexto e ostentar certa condição financeira - Talvez não tenha reparado, mas eu
também sou negro ... / - Não, não, imagina! O senhor é um homem de bem ...”.
Neste episódio o autor chama a atenção para as armadilhas do discurso capitalista,
responsável, muitas vezes, por camuflar as diferenças epidérmicas na falácia consumista do
ter como principal condição para o indivíduo ser. Deve-se evidenciar que, no caso do negro,
ainda assim, a aquisição do direito de ser envolve, na maioria das vezes, a negação de sua
negritude. No romance, a fala da personagem Euclides reforça nossos comentários: “Neste
país - , dissera, - preto com grana vira branco” (AGUALUSA, 2002: 135).
Neste contexto em que a violência urbana adquire múltiplas faces, Bárbara Freitag
(2002: 194) contribui para as discussões do assunto, evidenciando que o fenômeno é fruto de
relações sociais desiguais e injustas. Segundo a ensaísta, é o Estado que tem o monopólio da
violência institucionalizada através do exército e das forças armadas. A violência, legitimada
pelo Estado e infligida, geralmente, contra as populações carentes, é justificada pela
necessidade de manutenção da ordem e segurança dos cidadãos.
A violência, ocorrida nos espaços segregados que fazem parte do próprio corpo da
cidade, visa à garantida da cidadania. Freitag afirma que não é tarefa fácil estabelecer um
padrão hegemônico de cidadão nesta complexa teia urbana onde desfilam várias categorias de
88
indivíduos. Neste sentido cabe perguntar a qual cidadão o Estado pretende afiançar? Não
podemos deixar de lado o termo “ansiedade”, insistentemente repetido por Agostinho Neto no
poema “Sábado nos musseques”, como sentimento revelador do drama das populações
periféricas angolanas diante, dentre outras coisas, dos abusos policiais. Nem mesmo do verso
dos Racionais MC’s em “Fim de semana no parque” -“Polícia a morte, polícia socorro”.
No documentário Até quando
23
, gravado pela Giro Produções, projeto do Observatório
das Favelas
24
em parceria com a UNICEF, em 2005, ao abordar a temática da violência nas
periferias e bairros populares das cidades do Rio de Janeiro e do Recife, o professor e
pesquisador Jailson de Souza
25
denuncia que as práticas de extermínio têm sido utilizadas
como solução para as crises sociais:
A violência arraigada no Brasil das mais variadas formas, se manifesta de
diferentes formas. Agora ela está se expressando nos grandes centros urbanos de
uma forma pior nos últimos tempos. É cada vez mais a naturalização da forma de
enfrentar a questão da crise social, do conflito social, através do extermínio físico
dos adolescentes e jovens. E são adolescentes e jovens específicos. São
adolescentes pretos, pardos e moradores das periferias e favelas.
Nos relatos e imagens sobrepostas na película, fica a sensação de que estamos vivendo
num contexto de guerra. Contudo não é uma guerra espalhada pelo país. Ela parece estar
localizada em determinadas áreas da cidade e afeta indivíduos com idade específica e cor de
pele determinada. Como Souza afirma, “são adolescestes e jovens pretos, pardos e moradores
de periferia e favelas”.
A defesa do extermínio como solução para a instauração da paz não é uma idéia nova.
Não podemos esquecer a máxima veiculada pelo policial Sivuca “Bandido bom é bandido
morto”. Sivuca fez parte do grupo denominado “Homens de Ouro da Polícia Carioca”, que
surge no ano de 1964 com o intuito de contribuir com a já institucionalizada violência
policial. Segundo Zuenir Ventura (1997: 35), estes homens de ouro, também conhecidos
como “Esquadrão da Morte” ou “Turma da Pesada”, tinham uma meta: limpar a cidade. Para
23
O filme, que mescla imagens de ações policiais, depoimentos de moradores e de estudiosos sobre o fenômeno
da violência urbana, tem como objetivo mostrar como é a vida de pessoas que vivem nas periferias das capitais,
acima citadas. Assumindo um caráter de denúncia, revela as dificuldades na entrada para o mercado de trabalho.
O tráfico é apresentado como uma falta de alternativa para algumas pessoas. Boa parte do documentário é
dedicada a um aspecto que não aparece em dados estatísticos: a dor de parentes e amigos daqueles que foram
vítimas da violência urbana.
24
O projeto Observatório Social de Favelas , nome utilizado de janeiro de 2002 até janeiro de 2004, mudando
para Observatório de Favelas, a partir de 2004, tem como um dos objetivos articular o Fórum de Estudos dos
Espaços Populares, que organizará encontros, seminários e atividades educacionais/culturais que contribuam
para uma melhor compreensão do fenômeno da favelização.
25
Doutor em Sociologia pela PUC-Rio; professor da Universidade Federal Fluminense, Coordenador Geral do
Observatório das Favelas; Diretor de Projetor do Centro de Educação e Ações Solidárias da Maré Ceam.
89
tanto, não importava as estratégias utilizadas na ação. Os fins justificavam os meios. O grupo
subia nos morros, invadia barracos com o intuito de desentocar assaltantes, numa atitude de
“caça aos ratos”. O fato é que sentença moral de Sivuca continua atual. As ações policiais
constituem-se como caça, este é de fato o termo ideal, no sentido de apanhar o indivíduo vivo
ou morto. Sem entrar em polêmicas quanto à postura da agência policial brasileira, uma vez
que este não é o nosso foco, trouxemos tais questões para reflexão pelo fato delas agregarem
outras de nosso interesse: a falta de critérios nas investidas policiais que coloca todos os
moradores da periferia no mesmo patamar.
Outra questão importante, apontada no filme Até quando e, enfaticamente, denunciada
nas letras de rap, é o fato das ações violentas e de extermínio estar, estatisticamente,
relacionada com a cor da pele:
60% dos jovens de periferia
sem antecedentes criminais
já sofreram violência policial
a cada 4 pessoas mortas pela policia 3 são negras
nas universidades brasileiras
apenas 2% dos alunos são negros
a cada 4 horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo
aqui quem fala é primo preto mais um sobrevivente ...
(RACIONAIS: 2002b)
No romance de Agualusa, a personagem Bárbara, em conversa com Jorge Velho,
introduz o assunto do extermínio, questão que parece surgir como sutil substituição das idéias
defendidas pela teoria do branqueamento
26
- sonho de transformar o Brasil em uma sociedade
branca:
O General Weissmann, amor, gostaria que as balas chegassem aqui. Sabe o que ele
disse ontem ao Diário do Rio sobre os acontecimentos do Morro da Barriga? Ele
acha que o exército devia entrar no morro e fuzilar todos os crioulos, um por um,
estivessem ou não ligados ao tráfico. Ele acha que o problema do Brasil foi ter sido
colonizado pelos portugueses, em primeiro lugar, e pelos africanos logo depois.
Acha que os escravos deviam ter sido repatriados para África na seqüência da Lei
Áurea.
(AGUALUSA: 2002, 127)
Este é um outro ponto da História, trazido para a ficção, que renderia uma longa
discussão a perceptível má-vontade em inserir o negro na sociedade brasileira depois da
abolição. No bojo das questões que envolvem as situações de violência urbana está em jogo,
26
Segundo Giralda Seyferth (2002: 26), a Teoria do Branqueamento foi apresentada por João Batista de Lacerda,
no Congresso Universal das Raças realizado em Londres no ano de 1911. No bojo da tese, Lacerda defendeu a
idéia do branqueamento do povo brasileiro através da miscigenação seletiva e da imigração européia, num
processo que imaginava a população mestiça, progressivamente, adquirindo um fenótipo branco e a eliminação
das “raças inferiores”.
90
justamente, a falta de políticas públicas que dessem conta de atender aos grupos de ex-
escravos que, após a Lei Áurea, ficaram entregues a própria sorte.
No livro Quilombo, Favela e Periferia A longa busca da cidadania (2006), Lourdes
Carril apresenta um estudo a respeito da discussão territorial do espaço paulista, mostrando a
importância da interpretação da favela como quilombo, na atualidade, como lugar de
reconhecimento e liberdade do negro. Segundo a autora, nestes locais o indivíduo negro não
enfrenta o peso da competição que as demais camadas sociais lhe impõem. Além disso, este
indivíduo é capaz de reconhecer o valor de representação simbólica do local de resistência e
de inspirador dos ideais de legitimação de seus direitos como sujeito histórico.
O reaparecimento do quilombo como lugar de oposição ao poder constituído está
ligado ao secular processo de exclusão social manifesta na postura do Estado e que atinge a
um número maior de afro-descendentes. Carril afirma: “Penso assim que o quilombo
reaparecerá enquanto a democracia racial tiver também força de mito para encobrir as
desigualdades sociais e raciais” (2006:238).
É disso que trata o romance O ano em que Zumbi tomou o Rio, do sistemático
processo de rejeição da maioria da população negra como componente do corpo da sociedade
brasileira e da necessidade de uma tomada de posição por parte dos grupos separados pelo
sistema. Na verdade, o modo como Francisco Palmares compreende a estrutura do Brasil
ainda assume a configuração colonial. Nas palavras da personagem tal condição só teria
chances de ser revertida via revolução:
- Esse vosso país -, murmura, dirigindo-se aos biguás, - nunca foi descolonizado.
Revoltem-se! O Brasil precisa de uma revolução. A guerra envergonhada, sem
glória, que presentemente apenas atingem os pobres e os pretos ... palavras que
aliás, convenhamos, querem dizer a mesma coisa ... a guerra tem de descer das
favelas e alcançar o asfalto.
(AGUALUSA: 2002, 42)
A guerra a que Agualusa se refere é a mesma que aparece no documentário Até
quando, uma batalha localizada nos espaços periféricos, responsável por retirar do campo de
combate o maior número de negros possível.
Longe de querer fazer um discurso sensacionalista, vale lembrar do episódio do
dentista negro morto em São Paulo
27
, em 2004, por ser confundido com um assaltante.
Episódio que nos remete a queixa dos Racionais MC’s “Será que eles vêem em nós um
marginal padrão”.
27
O dentista Flávio Ferreira de Sant’anna, morto, no dia 03 de fevereiro de 2004 em São Paulo, com dois tiros
por policias, que o confundiram com um assaltante, é um nítido exemplo do racismo velado que existe no Brasil.
91
O sentimento de revolta expresso através de personagens como Jararaca e Jacaré, no
romance de Agualusa, é semelhante com o produzido em algumas letras de rap brasileiro
como eco do discurso de revolta angolano. Nas palavras do sujeito poético expressas na
epígrafe deste capítulo, contra todo o desprezo, ódio, repressão e crimes, o homem negro
angolano resistiu. Contudo chegou o momento de soar as “trombetas da liberdade, da
Fraternidade e da luta”. Batalha que deve ser ganha pela revolução, conforme aparece na
poesia “Triunfo dos Humilhados”, de Ngudia Wendel:
Revolução
não há nada mais sublime
e mais correto
Ela faz nascer em cada homem
titã.
Ela, recebe, meu povo
- antigo escravo
o batismo de fogo.
NÓS VENCEREMOS!
(MEA: 1975, 163)
Revolução. Este é o termo ideal a ser utilizado no enfoque das lutas de resistência por
abarcar muitos sentidos: ato ou efeito de revolver (se) ou revolucionar (se); revolvimento;
mudança violenta nas instituições políticas de uma nação; desvio no modo de considerar
assuntos relativos a um ramo qualquer do pensamento humano.
No caso do Brasil, para além de se pensar na constituição da guerra como sendo o de
uma luta armada, como ocorreu em Angola, embora o que esteja em jogo seja questão de
ocupação territorial, o que está implícito no discurso convocatório para a batalha, nas letras de
rap, pode ser entendido como um anseio por combater o modo de pensamento arraigado no
imaginário da sociedade brasileira, no que se refere à situação racial.
A denúncia pela via do rap, os ataques verbais, tem a função de chamar a atenção das
autoridades constituídas para os rumos injustos tomados pela História, construída por elas
mesmas. Os Racionais MC’s, em “Negro Drama” (2002a), mostram os efeitos causados por
tal desprezo e descaso - “eu era a carne / agora sou a própria navalha”. Nesta música dos
Racionais, em especial, da qual extraímos o fragmento acima, o que o sujeito da enunciação
propõe é uma releitura da História, de maneira que possa ser possível iluminar questões
silenciadas. O exercício proposto é o de contar a História novamente sob o ponto de vista do
vencido “Forest Gump é mato / eu prefiro contar uma História real / vou contar a minha”.
Este foi o desejo dos angolanos que lutaram pela libertação do país, recontar a
História, revelando os sentidos da revolução:
Medo no ar!
92
Em cada esquina
sentinelas vigilantes incendeiam olhares
em cada casa
se substituem apressadamente os fechos velhos
das portas
e em cada consciência
fervilha o temor de se ouvir a si mesma
A História está a ser contada
de novo
[...]
(NETO: 1985, 49)
Esta parece ser a vontade dos afro-descendentes no Brasil: ver figurar nos livros uma
outra versão dos fatos, que contemple a trajetória dos negros. Eles pleiteiam o direito de
serem percebidos como seres integrantes da História na qual desempenharam o papel de
personagens fundamentais.
Conscientes de seus pais na luta pelos ideais de libertação tão necessários, mesmo
após mais de 110 anos da abolição, no caso do Brasil, os discursos destes jovens negros que
fazem parte da cultura hip hop assumem uma postura bem firme na busca de seus direitos:
Vai ser preciso muito mais pra me fazer recuar
Minha auto estima não é fácil de abaixar
[...]
Eh! Mantenho minha cabeça em pé
Fale o que quiser, pode vir que já é!
Sem dar marcha ré! Junto com a ralé!
Só Deus pode me julgar, por isso vou na fé!
[...]
(BILL: 2002)
O tom da fala é afirmativo. Postura de quem já se posicionou nas frentes de batalha e
não abre mais mão do lugar que assumiu. Nos versos, o orgulho de ser negro é expresso
através da atitude de “manter a cabeça em pé”, tendência que reflete os ideais veiculados no
discurso da negritude.
A contundência no uso das palavras pelos rappers não pode ser confundida com o
radicalismo ou tribalismo, mas interpretados como os gritos desesperados de pedidos para que
se quebrem os grilhões. Estes parecem ser os anseios dos negros no Brasil: liberdade e
cidadania.
93
No documentário A Construção da Igualdade
28
(2006), que relata a trajetória política
dos negros e os movimentos de resistência no Brasil, misturando História com depoimentos
de personalidades e pesquisados sobre as questões da negritude no país, Giovana Xavier,
historiadora, fala da busca da concretização pelo sonho de igualdade - “A gente vive a dura
viagem do navio negreiro até a cidadania. E na verdade é essa toda a luta da população afro-
descendente. De uma cidadania plena e não de uma cidadania apenas no papel”.
Cabe lembrar neste momento a postura da personagem Jararaca quando toma posse do
espaço interditado no Rio de Janeiro:
Jararaca tem apelado as comerciantes, em discursos transmitidos todas as noites
pelo Canal Planeta, para que não encerrem os seus estabelecimentos. Prometeu
manter a ordem e punir qualquer desacato.
- Também nós queremos ordem e progresso. Agora é a lei do morro: quem roubar
fica sem mão. Quem matar morre também.
(AGUALUSA: 2002, 236)
O aparente discurso de revide que surge nos textos negritudinistas, tanto na poesia
angolana de revolta como nas letras de rap brasileira, logo, se transforma em uma fala que dá
destaque a sujeitos poéticos que querem assumir o lugar de indivíduos com direitos civis e
políticos no Estado. A dor do drama de ser negro não alterou a percepção de alguns destes
homens quanto ao sentido da palavra humanidade. Ao invés de manifestarem um rancor
profundo pelos seus algozes, afirmam que seus anseios estão, exclusivamente, ligados ao
direito à vida em sua plenitude. Esta é a única “Condição” que impõem, conforme Maria
Corça coloca:
o os odeio!
Julgo mesmo ser capaz
de esquecer o passado
e de lhes perdoar o filho
que me mataram...
Mas exijo que deixem viver
Este que trago no ventre!
(MEA: 1975, 147)
Ao encerrar estas reflexões torna-se pertinente a retomada das idéias defendidas por
Bárbara Freitag (2002) quanto ao sentido da violência urbana atual. Ela entende que a leitura
dos contextos violentos deve passar pela conscientização de que os conflitos existentes na
28
O documetário, dirigido por Jose Carlos Asbeg, é um filme realizado pela Palmares Produções em parceria
com o Centro de Articulação das Populações Marginalizadas, e lançado no Rio de janeiro em fev, e Março de
2006.
94
cidade são frutos dos fenômenos sócio-econômicos, condição para que toda a sociedade tenha
possibilidade de enxergar uma luz no fim do túnel.
No livro O ano em que Zumbi tomou o Rio, embora o autor não traga um desfecho em
que os problemas sociais de inserção do negro estejam totalmente resolvidos, pelo menos,
aponta para este fio de esperança “O Brasil mudou muito nos últimos dois anos. O fim
sangrento do Comando Negro chamou a atenção do mundo. O General Weissmann foi
afastado e passou à reforma. O Presidente José Inácio demitiu-se. Uma revolução!”
(AGUALUSA: 2002, 288).
Neste prisma, percebe-se que Agualusa também entende que e termo revolução num
sentido amplo, conforme foi mencionado anteriormente, é o caminho para a mudança de
comportamento social. Revolução que, no caso do romance, passa pela certeza de dias
melhores para as populações negras, uma vez que o maior símbolo do racismo expresso no
livro, o General Weissmann, já é carta fora do baralho.
E mais uma vez, no término da narrativa surge o herói Zumbi, em citação de trecho da
música cantada por Martinho da Vila “Zumbi, Zumbi / Zumbi dos Palmares, Zumbi / Não
morreu porque mais do que gente, ele era ideais / e os grandes ideais não morrem jamais”
(AGUALUSA: 2002, 293).
O resgate do herói Zumbi como ícone importante no discurso da negritude, aparece na
obra de Agualusa com a mesma finalidade das letras das letras de rap brasileira e da poesia
“Mamã Negra”, de Viriato da Cruz: iluminar o espírito dos que lutam pelos ideais dos negros,
transcendendo os limites da temporalidade e corporeidade para atingir o padrão de
circularidade, característico das culturas africanas. Seus muitos retornos são mais um sinal de
que, apesar da insistência do dominador em tentar extinguir as marcas de um povo, o poder de
resistir sempre será o principal combustível para manter viva e acesa a chama da luta e da
esperança pela igualdade.
Se a opção por “trapacear a língua” foi o principal caminho encontrado por Francisco
José Tenreiro, Agostinho Neto, dentre outros poetas das Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa, como via para fazer emergir a voz negro-africana do sujeito poética, capaz de
expressar seus desejos, anseios, costumes e, sobretudo, traços que os aproximassem de um
padrão identitário não-europeu, tal necessidade partiu da negação do convívio e respeito ao
outro aceitação das diferenças por parte do homem branco.
Em Tenreiro, em especial, o tema da mestiçagem aparece como um convite à revisão
dos rígidos paradigmas de identidade nacional “Mestiço! / Nasci do negro e do branco / e
que olhar para mim / é como se olhasse / para um tabuleiro de xadrez: / a vista passando
95
depressa / fica baralhando cor” (TENREIRO: 1994, 27). O orgulho de ser mestiço manifesto
pelo sujeito poético parece chamar atenção para a necessidade de se imprimir novos olhares
sobre a formação das sociedades africanas, pois a mistura das cores do tabuleiro de xadrez
não permite a eleição de uma em detrimento da outra.
Se a observação atenta da paisagem impõe a inclusão do preto e do branco no mesmo
tabuleiro, não faria sentido o discurso de que o “pretinho assiste tudo do lado de fora”.
Os versos recém citados do poema “Canção do Mestiço”, de Tenreiro, podem ser
considerados a síntese do projeto literário de Agualusa. O olhar dos que querem realmente
enxergar o emaranhado das cores que se justapõem, perceberá que é impossível separá-las em
blocos.
96
CONCLUSÃO
O objetivo de nosso trabalho foi tentar estabelecer possíveis traços de semelhanças
entre os textos poéticos da negritude angolana e os das letras de rap brasileira.
Enquanto que em Angola, a partir do fim da primeira metade do século XX, os poetas
fizeram da literatura um exercício de “trapaça salutar” com a língua, imposta pelo
colonizador, assumindo a cena literária, ao escrever textos em que o negro adquire a posição
de sujeito da enunciação, evidenciando ora o surgimento de um eu capaz de revelar a
subjetividade do homem negro, seus anseios por alcançar o direito da identidade negra, ora
aparecendo como porta-voz da coletividade, ora apresentando um discurso em 3ª pessoa,
estendendo a sua voz aos negros da diáspora, no Brasil, não é possível perceber, num primeiro
momento, nas literaturas canônicas, a presença do homem negro como protagonista.
Embora observemos que muitos poetas fizeram de seus textos um campo fértil para
trabalhar com temáticas direcionadas ao negro, mesclando-as com as questões sociais, e neste
caso vale mencionar Solano Trindade, percebe-se que tais produções, pelo menos as arroladas
nesta pesquisa, não apresentaram um discurso poético mais próximo do produzidos em
Angola, no qual o sujeito poético pudesse revelar, de maneira enfática, seu orgulho de ser
negro, seu desejo de sair do estado de submissão e, uma fala que rompessem os limites do
espaço geopolítico angolano para atingir os negros da diáspora. Neste caso, a força do
discurso de resistência assume a atitude de uma declaração de guerra.
Ao longo de nossa pesquisa, constatamos que a música popular brasileira é terreno
fecundo no que se refere ao surgimento de discursos que valorizem o negro e o coloquem na
97
posição de sujeito da enunciação. Neste prisma, buscamos evidenciar em algumas letras de
rap de MV Bill e do grupo Racionais MC’s a emergência da fala do homem negro, não
perdendo de vista a leitura comparada com as poesias angolanas.
Pensando no percurso do discurso da negritude em angola, apontado por Manuel
Ferreira, basicamente, por dois momentos o da dor de ser negro ao orgulho de ser preto -,
notamos também a existência desta característica nas letras de rap. Contudo, se em Angola a
fala do sujeito poético as poucos vai engrossando até alcançar o estágio da conscientização,
no caso das letras de rap a dor de ser negro surge logo como uma tomada de consciência do
drama vivido.
Em ambos os discursos, a maneira como o negro é representado, sobretudo, no que se
refere a sua posição desprivilegiada em oposição da confortável situação do homem branco,
impõe a formulação de falas que construam imagens que obriguem os governantes a refletir
sobre o comportamento desumano com relação aos moradores das regiões periféricas.
Regiões que aparecem tanto na narrativa de Agualusa como na letra dos Racionais como
locais que abrigam, em sua maioria, moradores negros.
Se num primeiro momento o discurso da negritude foi fundamental para “criar no
homem criar na massa” um sentimento de orgulho responsável por elevar a auto-estima do
homem de cor, logo tal fala vai sendo substituída gradativamente por outra de um indivíduo
que agora mantém “a cabeça em pé” e sabe que pode avançar na luta pelos direitos ao seu
lugar na sociedade.
A partir deste momento surge um discurso de revolta, pois não é apenas do direito de
ser negro que o sujeito poético fala. Agora, ele quer também reivindicar o direito de ir e vir,
de viver como os cidadãos da “cidade legal”, sendo assistido pelo Estado, e que o senso
comum não o enxergue mais como sendo “marginal padrão”.
Pleiteia também que o espaço periférico seja reconfigurado, para ganhar a
conformação de lugar da não violência, pois ali vivem homens que desejam ser percebidos em
sua humanidade.
O discurso revolucionário, recorrente em alguns textos selecionados neste trabalho,
tem como escopo trazer a cena poética questões que imponham aos leitores uma releitura de
uma série de discursos estigmatizantes arraigados na sociedade, com o intuito de levar os
homens a refletirem no presente com vistas num futuro em que as diferenças epidérmicas
percam totalmente o sentido.
98
A denuncia via rap, os ataques verbais, também encontrados em alguns textos de
Agostinho Neto, tem a função de chamar a atenção das autoridades para os rumos injustos
tomados pelo curso da História.
A contundência do discurso poético não deve ser confundida com um mero
radicalismo, mas entendida como gritos desesperados para que os grilhões se quebrem e para
que os pretinhos não precisem mais assistir a tudo do lado de fora.
A voz que convoca os manos daqui e os de lá para não desistirem de manter levantada
a bandeira da luta, atualizada nos corações dos “quilombolas urbanos”, ecoa tanto no texto
literário de Agualusa quanto nas letras de rap brasileiras, reaproximando os negros de Angola
e do Brasil, fazendo-os perceber que os laços que os unem, com todas as diferenças, estão
irremediavelmente atados.
99
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