139
Durante o regime nazista alemão, fazia parte dos argumentos do extermínio
eugênico dos alienados, a figura retórica do absurdo de construir palácios a “seres piores
que bestas” (Arquitetura da Destruição, Peter Cohen, 1992), os quais não teriam capacidade
para apreciar as linhas neoclássicas e harmônicas das edificações manicomiais. Ainda que
isso não seja falado em nossa época, algumas práticas apontam este discurso. De quando o
HPSP ainda tinha moradores em seu prédio histórico, este já era considerado objeto de
desperdício, mal uso, abandono, já que poderia estar servindo com sua beleza e espaços,
hoje, privilegiados à população em geral, ou seja, aquela que consome e vota.
Assim, aqui não se propõe a matança dos alienados, sendo inclusive esta custosa e
bruta demais, gerando reações adversas aos mandantes, incluindo possíveis revoltas, ou
pior, perda de financiamentos. Ao invés de matá-los, consideremo-los mortos de antemão, e
assim agiremos no sentido de dar vida, revitalizar, ao prédio cheio de vidas nuas, e aos
loucos, realocando-os a um local mais bonito: pois deste modo já se pode embelezar ao
antigo, extirpado que estará da mácula do seu antigo uso. Mais uma vez vemos a
revitalização, procedimento sem dúvida importante ao desenvolvimento da cultura nas
urbes, agindo de modo sorrateiro e belo, no despejo desejado pelo despejado
59
.
Evidentemente, existe algo da promoção de memória da cidade
60
e suas
transformações que pode ser visto como algo interessante, principalmente se comparado à
truculência reformadora do ápice da modernidade e sua reformulação destruidora da cidade,
a qual exigia o esquecimento total da antiga malha imprecisa para a criação de uma nova
cidade racionalizada. Mas, mesmo assim, há de se questionar os arranjos que tais ações
vêem formando, já que de modo belo e justificado, vêem sendo uma importante estratégia a
dar corpo às novas segmentações do homogêneo. Estas que, sutilmente, afirmam pequenas
59
Ainda que nem sempre, pois, da mudança forçada do HPSP, restou uma peça queimada. Cela, dormitório,
casa, de uma senhora a qual, de lá tanto não queria sair, que concretizou sua revolta ao queimar seu colchão.
Até quando, por belos projetos humanistas, a violência institucional será justificada? Como crer que se é
capaz de libertar alguém? Questões algo bregas em sua entonação, mas por demais dignas de consideração
nestes movimentos de desenstitucionalização. A questão que se coloca é, por que não pensar outro uso
revitalizante para o prédio, sem extirpar ou domesticar as marcas “mortas” que lá habitam?
60
No entanto, temos que problematizar que memória aí está sendo aí criada, e qual sua função no jogo das
forças do contemporâneo. Tais políticas da memória estão na maioria das vezes a serviço de uma memória
fugaz e esquecida dos seus detalhes. Onde está a embrança das prostitutas da praça da Alfândega, que lá
envelheciam trabalhando calmamente? E a memória concreta da presença dos loucos no prédio, não os
objetos calmos e plácidos a aterrorizar a imaginação do consumidor desta memória, mas a marca intensiva
deles mesmos e sua loucura? São como as celas do prédio do DOPS em SP, tornadas vazias de intensidade
por uma fria tinta cinza iluminada por spots quentes, que mais a fazem parecer uma sala de exposição em
busca de um quadro.