Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
LUCIANA APARECIDA DE MESQUITA
AUTOBIOFRAFIAS DE UBATUBANOS E DE
UBATUBENSES E O SILENCIAMENTO DA CULTURA
CAIÇARA: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DOS TEXTOS
DE ALUNOS DA EJA
TAUBATÉ-SP
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
LUCIANA APARECIDA DE MESQUITA
AUTOBIOFRAFIAS DE UBATUBANOS E DE
UBATUBENSES E O SILENCIAMENTO DA CULTURA
CAIÇARA: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DOS TEXTOS
DE ALUNOS DA EJA
Dissertação apresentada para a obtenção do
Título de Mestre pelo Curso de Lingüística
Aplicada do Departamento de Ciências
Sociais e Letras da Universidade de Taubaté.
Área de concentração: Ensino e
Aprendizagem de Língua Materna
Orientadora: Profª. Drª. Elzira Yoko Uyeno
TAUBATÉ-SP
2008
ads:
3
AUTORA: Luciana Aparecida de Mesquita
TÍTULO: Autobiografia de ubatubanos e de ubatubenses e o silenciamento da cultura
caiçara: uma análise discursiva dos textos de alunos da EJA
UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
DATA: ______________________________
RESULTADO: ________________________
COMISSÃO JULGADORA
Profª. Drª. Elzira Yoko Uyeno
Assinatura:_______________________ UNITAU
Profºª. Drª. Beatriz Maria Eckert-Hoff UNIANCHIETA
Assinatura: _______________________
Profª. Drª. Eliana Vianna Brito UNITAU
Assinatura: _______________________
4
Se te vendermos a nossa Terra, ama-a
como nós a amávamos. Protege-a como nós
a protegíamos. Nunca esqueças como era a
terra, quando dela tomaste posse. E com
toda a tua força, o teu poder e todo o teu
coração, conserva-a para teus filhos, e
ama-a ...
(Lita Jacques Chastan)
5
Ó, Cândido
Da família Mesquita
Do armazém da praia
Da praia da Fortaleza
Do tresmalho de sororoca
Recolheu a rede
E foi visitar São Pedro
Como tem que fazer
Todos os bons pescadores
Foi encontrar
Os antigos parceiros
De pesca e de prosa
E passear entre as estrelas de todas as grandezas
Incontáveis como os grãos de areia
Na praia da Fortaleza.
(Domingos dos Santos)
Cândido Rogério Mesquita, pescador de Ubatuba, colaborador desta pesquisa, morreu
aos 81 anos, em 12/07/06, deixando muita saudade no coração dos familiares e amigos.
6
Aos meus saudosos avós, Sr. Cândido e D.
Maria, Sr. Olívio e D. Sinhá, povo caiçara e
simples que me ensinou os princípios de
valores e respeitos.
Sobretudo, a Seu Cândido e D. Maria que
serviram de inspiração para esta pesquisa,
apoiando-me desde o início, não me
deixando esmorecer, mas que, infelizmente,
não puderam ver os resultados finais.
7
AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus.
A minha amada família, sobretudo a minha mãe, a minha irmã e aos meus filhos, pela
paciência e pelo apoio prestado no decorrer de minha vida, por compreenderem minha
ausência durante esses anos e respeitarem meus sonhos.
À Profª. Drª. Elzira Yoko Uyeno pela orientação, pela paciência e, acima de tudo, pelo
respeito que definitivamente contribuíram para meu amadurecimento acadêmico e
pessoal.
Às amigas Daniela e Iracema pela amizade e pelo apoio nos momentos mais
turbulentos.
Às amigas do grupo de pesquisa Lílian, Juliana, Maria Luísa e rcia pelo carinho e
força.
Ao Senhor Diretor da E.E. Maria Alice Alves Pereira, Euclides Luis Vigneron, pela
contribuição prestada durante toda a etapa desta pesquisa.
À Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo pela oportunidade desta
conquista por meio da concessão da Bolsa Mestrado.
À Supervisora Margarete pelas orientações prestadas.
Aos queridos alunos da EJA que colaboraram com dedicação com a pesquisa.
À Universidade de Taubaté, de modo especial, aos mestres e funcionários pela acolhida
e pelo respeito.
A todo o povo caiçara, que me deu a oportunidade de conhecer a diversidade de nossa
cultura.
Ao meu pai, João Mesquita, por ter-me ensinado a ser responsável, persistente e,
principalmente, por plantar em meu coração a semente do amor e do respeito por nossas
raízes.
8
RESUMO
MESQUITA, Luciana Aparecida de. Autobiografia de ubatubanos e de ubatubenses e o
silenciamento da cultura caiçara: uma análise discursiva dos textos de alunos da EJA
Dissertação de mestrado Programa de pós-graduação em Lingüística Aplicada.
Universidade de Taubaté, Taubaté, 2008.
A presente pesquisa pretendeu entender as causas para o apagamento,
assistematicamente observado, da cultura caiçara, na cidade de Ubatuba, se os
moradores se mantiveram na cidade e apenas receberam a migração de pessoas atraídas
pelas oportunidades de sobrevivência econômica oferecida pela cidade em virtude da
construção da Rodovia translitorânea, comumente conhecida como BR-101. A pesquisa
foi norteada pela hipótese de que esse apagamento ocorreu em razão de essa rodovia ter
transformado a cidade de uma aldeia de pescadores em uma estância litorânea, em cuja
nova ordem do discurso capitalista não havia lugar para a cultura caiçara. Conciliando o
ensino da escrita de autobiografias com as orientações dos temas transversais dos PCN
sobre a abordagem da cultura, elegeram-se alunos da Escola de Jovens e Adultos - EJA,
por constituírem, via de regra, alunos que voltam a estudar, como sujeitos de pesquisa,
este estudo analisou suas produções textuais, a existência ou não desse apagamento
produzido pela nova ordem do discurso. O percurso analítico pautou-se na perspectiva
da Análise do Discurso de linha francesa, partindo do pressuposto da inextrincabilidade
entre sujeito e seu discurso (Pêcheux) e postulados foucaultianos da confissão e da
escrita de si, e do conceito de heterogeneidade constitutiva (Aulthier-Revuz). As
análises do corpus permitiram perceber a existência de dois grupos de alunos que se
autodenominavam ubatubanos e ubatubenses: aqueles, de origem caiçara, ou seja,
nascidos em Ubatuba e, desse modo, aqueles que viveram o processo do antes e depois
do crescimento local, e esses, de outras localidades, que vieram para Ubatuba, depois da
abertura da Rodovia.
Palavras-chave: Análise do discurso; ubatubanos, cultura; caiçara; Escola de Jovens e
Adultos; autobiografia; subjetividade.
9
ABSTRACT
The present research intends to understand the causes of the obliteration,
assystematically observed, of the “caiçara”* culture in Ubatuba city, if the inhabitants
have just stayed in the city and received the migration of people attracted by the
economic opportunities offered by the city due to the construction of transcoast road
commonly known as BR 101. Guided by the hypothesis that this obliteration has
happened in reason of the road having transformed the city from a fishermen village to a
tourist resort, and within this new order of capitalist speech there was no place for
“caiçara” culture. Associating the teaching of writing autobiographies to orientations of
transversal themes from NCP (national curriculum parameters) about cultural approach,
students from EJA (School for Youths and Adults) were selected as subjects of this
research for being , as a rule, students that have gone back to school. This study has
analyzed through their textual creations the existence or not of this obliteration
produced by the new order of speech. The analytical course was guided by the
perspective of French Analyses of Speech, starting from the presupposition of
inextricability between the being and his speech (Pêcheux) an foucaultian postulates of
confession and self writing and the concept of constitutive heterogeneity (Aulthier-
Revuz). The analyses of corpus allowed revealing the existence of two groups of
students that are self nominated “ubatubanos”** and “ubatubenses”: The first, from
“caiçara” origin, i. e., that where born in Ubatuba and have, therefore, lived the process
of before and after local growth; and the second who have come to Ubatuba from other
places, after the opening of the road. Results from the texts analyses allowed to observe
that instead of alienating themselves from the culture in which they where born, the
“ubatubanos” have shown, in their speech, that haven´t lost or forgotten the “caiçara”
culture due to these city changes, which from a fishermen village became a tourist
resort, revealing the silence of their culture promoted by the capitalism, this silencing
being unveiled for it has pronounced a dicotomic speech that refers to a divided being,
for remembering the past and missing another Ubatuba and another being that
constitutes him, whereas he doesn´t recognize the importance of city changes, in spite of
city destruction. In the analysis of “ubatubenses” texts this silencing was not revealed
since they don´t have references of that Ubatuba that was lived, effectively, by the
“ubatubanos”. Even though they have mentioned the destruction of nature, they have
repeated a speech spread by the media which, therefore, doesn´t belong to them. The
analyses of texts from EJA students allowed us to observe that both students pronounce
an interspeech that their return to studies will make them better people but above all, the
need to insert themselves in work market, imposed by the order of capitalist speech.
This new order of capitalist speech reveals not only to have and effect in the acts and
words of these citizens, determining their return to school, it is possible to state that
under this new order, this new necessity of insertion, the custom, the culture and the
values, specially of the “ubatubanos”, are silenced for not having, in this socio-historic
moment of Ubatuba, a place for this inheritance.
* Caiçara:
the term Caiçara has been strictly employed to describe coastal communities
of São Paulo State and Lower Vale do Ribeira region (Brito and Vianna 1992; Diegues 1983)
** Ubatubano: person that is originally from the city of Ubatuba
10
Key-words: speech analysis, ubatubanos, culture, caiçara, EJA (School for Youths and
Adults), autobiography, subjectivity
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13
PARTE I
CAPÍTULO 1 CULTURA ............................................................................. ...15
1.1 CULTURA, GLOBALIZAÇÃO E PÓS-MODERNIDADE.......21
1.2 CULTURA CAIÇARA .............................................................. 25
1.3 GLOBALIZAÇÃO, DIVERSIDADE, IDENTIDADE E ENSINO
PÚBLICO. .................................................................................. 35
1.3.1 PLURALIDADE CULTURAL EM SALA DE AULA ............. 40
CAPÍTULO 2 ANÁLISE DO DISCURSO DE LINHA FRANCESA .......... 42
2.1 SUJEITO IDEOLOGIA E DISCURSO ......................................49
2.2 A HETEROGENEIDADE DA LINGUAGEM ......................... 57
2.2.1 HETEROGENEIDADE MOSTRADA ...................................... 58
2.2.2 HETEROGENEIDADE CONSTITUTIVA ............................... 59
PARTE II
CAPÍTULO 1 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO ............... 61
1.1 O DISCURSO DA INCLUSÃO POR MEIO DA EDUCAÇÃO
AO LONGO DA HISTÓRIA DO BRASIL ............................... 64
1.2 EDUCAÇÃO PARA JOVENS E ADULTOS: A
VALORIZAÇÃO DE SI ............................................................ 68
1.3 ENSINO DA ESCRITA SOB A PERSPECTIVA DISCURSIVA:
AUTOBIOGRAFIA E SUJEITO ................................................70
1.4 O OLHAR SOBRE OS ALUNOS E O OLHAR DOS
ALUNOS......................................................................................73
12
CAPÍTULO 2 ANÁLISE DO CORPUS ...........................................................76
2.1 CONSTITUIÇÃO DE CORPUS ................................................77
2.2 UBATUBANOS: SUJEITOS DIVIDIDOS ENTRE A
UBATUBA DE ONTEM E UBATUBA DE HOJE ...................77
2.3 O “SER” UBATUBENSE ..........................................................79
2.4 UBATUBANOS E UBATUBENSES: DE EXCLUÍDOS A
GLOBALIZADOS ................................................................................ 97
CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................111
REFERÊNCIAS .........................................................................................................113
13
INTRODUÇÃO
É possível perceber, na modernidade, alguns embates decorrentes da
globalização, principalmente, quanto a sua contribuição para apagamento e para
silenciamento no que diz respeito à cultura, aos costumes e aos valores de alguns povos.
Profundamente sensibilizada, não apenas como cidadã engajada em questões
sociais e como professora preocupada com a formação efetiva de meus alunos, como
sujeitos críticos e conscientes de seus papéis na sociedade, mas, sobretudo, como cidadã
nascida em Ubatuba e filha de habitantes dessa cidade, percebia entre meus alunos certa
alienação no que dizia respeito à cultura, aos costumes e aos valores caiçaras.
Esta pesquisa, assim, teve como motivação entender as causas para esse
apagamento, assistematicamente observado, da cultura caiçara, na cidade de Ubatuba, se
os moradores se mantiveram na cidade e apenas receberam a migração de pessoas
atraídas pelas oportunidades de sobrevivência econômica oferecida pela cidade em
virtude da construção da Rodovia Translitorânea BR-101.
Com abertura das estradas, SP-55, em 1954, e BR-101, nos anos setenta, com as
vendas das terras e a exploração econômica, impulsionadas pelo turismo e pelo valor
imobiliário das terras, os caiçaras foram mudando-se para bairros que substituíram as
praias; a comunicação não mais se fez pelo mar, mas pelo asfalto, as conversas, as
contações de casos, por sua vez, foram substituídas pelo rádio e pela TV, embora alguns
grupos
tivessem se mantido isolados, vivendo em pequenas colônias à beira-mar
,
resistindo às mudanças impostas pela modernidade
.
A hipótese para esse apagamento é que, com a construção dessa rodovia que
transformou a cidade de Ubatuba de uma aldeia de pescadores em uma estância
litorânea, instaurou-se uma nova ordem do discurso capitalista que não mais permitia
espaço para a cultura, os costumes e os valores originários.
Assim, o trabalho em sala de aula, conciliando o ensino da escrita de
autobiografias e elegendo-se alunos da Escola de Jovens e Adultos - EJA, por
constituírem, via de regra, alunos que voltam a estudar, como sujeitos de pesquisa, este
estudo analisa suas produções textuais, objetivando entender se esse apagamento é ou
não produzido pela nova ordem do discurso. Esses sujeitos de pesquisa são alunos
regularmente matriculados no Primeiro Termo do Ensino Médio, termo equivalente ao
Primeiro Ano do Ensino Médio regular, da Educação para Jovens e Adultos, da Escola
14
Estadual Maria Alice Alves Pereira, unidade localizada na cidade de Ubatuba, no litoral
norte paulista.
Para atingir esse objetivo, formularam-se as seguintes perguntas de pesquisa que
nortearam o trabalho: 1. Qual é a representação ou imagem que os alunos do EJA fazem
de Ubatuba? 2. O que motivou os alunos a se inscreveram na EJA?
A teoria que norteia esta pesquisa é a Análise do Discurso de linha francesa,
partindo do pressuposto de que não se separa o sujeito de seu discurso. Para a Análise
do Discurso, o sujeito não é fonte única de seu dizer, não é o agente construtor de sua
realidade, pois ele se constitui por dizeres de outros sujeitos, embora ele o faça,
acreditando, sob a ilusão ou esquecimento número 1, postulado por Pêcheux, ser fonte
única de seu dizer. O sujeito é atravessado tanto pela ideologia quanto pelo
inconsciente, é, portanto, o resultado da interação de várias vozes, e, desse modo, tem
caráter ideológico.
Consideram-se, da perspectiva da Análise do Discurso, os conceitos de
heterogeneidade, postulado por Althier-Revuz (1994), e de interdiscurso ou
esquecimento número 1, postulado por Pêcheux (1997a).
Os objetos de análise desta pesquisa são textos autobiográficos produzidos por
estudantes da Escola para Jovens e Adultos, curso cuja preocupação se centra em alunos
que não têm idade apropriada para cursar o ensino regular e, especialmente, em pessoas
que interromperam seus estudos em determinado momento da vida e retornaram à
escola.
A dissertação está dividida em duas partes. A primeira parte constitui a
fundamentação teórica e está dividida em dois capítulos. O primeiro capítulo apresenta
aspectos teóricos que dizem respeito à cultura, um breve histórico sobre cultura,
costumes e valores caiçaras e os fatores da globalização, identidade e pluralidade
cultural no ensino público. O segundo capítulo trata de conceitos da Análise do
Discurso de linha francesa que constitui a perspectiva de análise do corpus coletado.
A segunda parte constitui a análise do corpus dividida em três capítulos. O
primeiro capítulo refere-se às condições de produção do discurso dos alunos da EJA
(Escola de Jovens e Adultos) e ao gênero autobiográfico, balizando-se por pressupostos
foucaultianos. O segundo capítulo discorre a respeito de como surgiram os corpora. O
terceiro capítulo é constituído de análises de dados oferecidos pelo corpus.
15
PARTE 1
CAPÍTULO 1 – CULTURA
No presente capítulo, apresentam-se informações a respeito da história da
formação da cultura caiçara e de que maneira ela foi afetada pelo processo da
globalização.
Existe um alerta para a grande mudança de valores que pode ser percebida no
dia-a-dia; essa preocupação é comentada em Rizzo e Barreto (2003, p. 8), segundo os
quais,
a natural perda de uso das palavras imposta pelo avanço dos meios de
comunicação é uma realidade que devemos reconhecer e aceitar. A
falta de um estudo mais profundo e isento sobre os valores agregados
que elas carregam e que ficaram sem expressão em cada palavra
abolida, é uma perda que infelizmente constatamos, e que, tão cedo
não serão resgatadas.
Refletir a respeito dessa questão é de suma importância, pois, assim, poder-
se-á compreender a lamentação, não dos caiçaras, mas também de diversos grupos
que sofrem ao verem seus valores perdendo-se no decorrer da história,
De acordo com Rizzo e Barreto (2003, p. 8), esses valores são “da mais pura
brasilidade que as novas gerações, que, hoje, estão mergulhando na globalização, não
tiveram a oportunidade de conhecer e muito menos vivenciar”, tornando-se, então, de
grande importância a elaboração de propostas que venham a contribuir para a
divulgação da diversidade popular brasileira.
O Brasil é um país imenso, e sua extensão propiciou a formação de várias
culturas, das quais, surgiram e surgem indivíduos com princípios diferentes. Dessa
variação cultural, surgem várias formas constitutivas de identidade. Como bem afirma o
Parecer CNE/CEB nº15/98,
uma das formas pelas quais a identidade se constitui é a convivência e,
nesta, pela mediação de todas as linguagens que os seres humanos
usam para compartilhar significados. Destes, os mais importantes são
os que carregam informações e valores sobre as próprias pessoas.
16
Nota-se que a ética da identidade se expressa por um permanente
reconhecimento da identidade própria e do outro. O reconhecimento se por meio das
trocas discursivas, em que o indivíduo constrói a imagem de si mesmo, do outro e do
espaço onde vive.
De acordo com Oliveira (2003, p.177),
a identidade individual é caracterizada pelo indivíduo ao encontro de
si mesmo, com seus caracteres próprios, sua aparência física, seus
hábitos, costumes e línguas, assim como, os acontecimentos de sua
vida que propiciarão a formação de uma imagem própria de si mesmo,
seu estatus e seu papel na sociedade que formarão a identidade social
a relação entre indivíduos e sua posição no mundo, relacionada ao
reconhecimento da sociedade.
Entende-se, então, a identidade social como a construída na relação entre o
eu/outro e o mundo. De acordo com a autora (2003, p.178), “é com base na diferença
que o eu forma sua identidade”.
Pode-se notar que, atualmente, ocorre grande tendência para a homogeneização,
para que o indivíduo seja padronizado, mas essa homogeneização não se realiza de
forma passiva, produz-se um conflito, visto que a sociedade é feita de diversas
sociedades menores, com valores diversos que, por meio de trocas, constroem novos
valores. Não se pode analisar a diferença como negativa. Oliveira (2003, p. 182) afirma
que “aceitar o diferente impede a transformação da diferença em uma hierarquia e a
viabiliza como complementação do outro”.
A imagem de uma sociedade homogênea está em declínio, pois, de acordo com
Hall (2005, p. 7), as velhas identidades que por tanto tempo estabilizaram o mundo
social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo
moderno, visto até aqui como sujeito unificado”.
Essa crise de identidade é vista, segundo Hall (2005, p. 7), “como parte de um
processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas centrais das
sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos
uma ancoragem no mundo social”, tornando-os, desse modo, indivíduos à deriva no
mundo globalizado em sujeitos a perder seus referenciais identitários e culturais
.
A identidade é formada na interação entre o indivíduo e a sociedade. Ela é
formada e modificada de acordo com as relações que ele vai construindo ao longo de
17
sua vida, nas quais, ocorre um diálogo contínuo com os diversos mundos diferentes do
seu e com as identidades que esse mundo oferece.
As diversas culturas existentes no Brasil, nas quais se inclui o caiçara, também
fazem parte desse processo. A mistura de informação, cultura e, acima de tudo, o
domínio, contribuiu para que os integrantes desses povos, de alguma forma, por meio da
massificação explícita, fossem tornando-se indivíduos conformados.
Com o processo de reavaliação de identidade, surgiu a oportunidade para que
diversos povos retornassem às suas raízes, que nunca foram esquecidas, mas estavam
apenas adormecidas, porque o domínio não permitia que o diferente fosse aceito. A
redescoberta do passado, entretanto, é parte do processo da “construção da identidade”,
e, dessa forma, dá-se o encontro do passado com o presente, pois não como negar o
presente. De acordo com Woodward (2002, p.19),
a identidade marca o encontro de nosso passado com as relações
sociais, culturais e econômicas nas quais vivemos agora. A identidade
é a intersecção das nossas vidas cotidianas com as relações
econômicas e políticas de subordinação e dominação.
O que importa é reconhecer que a resistência e a contestação estão concentradas
na construção cultural da identidade e que a cultura popular oferece elementos para
construí-la.
É no convívio social que a identidade do indivíduo se constrói, convívio esse
baseado no diálogo e na aceitação de cada sujeito como único e complementar do
conjunto humano.
Atualmente, pode-se notar grande preocupação com a valorização da identidade
sócio-histórico-cultural de alguns povos. Essa preocupação se deve ao fato de, com o
crescimento das cidades e com a globalização, muitos costumes estarem se perdendo ou
se misturando com outros, promovendo, assim, a descaracterização, o apagamento ou,
até mesmo, a perda de determinadas culturas.
No presente capítulo, buscou-se apresentar informações a respeito da história da
formação da cultura caiçara e de que maneira ela foi afetada pelo processo da
globalização.
A cultura é, hoje, um tema, objeto de discussão calorosa que, não apenas retrata
uma orientação teórica no campo das ciências sociais/humanas, mas também reagrupa
as preocupações classicamente associadas a culturas (artes plásticas, arquitetura,
18
literatura, manifestações lúdicas e outras), uma fonte de preocupações mais recente em
torno do tema identidade.
Essa orientação, conforme salienta Burity (2002, p.7), diz respeito à
compreensão de que a vivência social é sempre simbolicamente mediada (seja pelo
discurso, seja pelas manifestações artísticas em sentido amplo),
de modo que tanto se pode dizer que tal vivência é culturalmente
construída, como dizer que a cultura é uma construção social, que
interage de forma complexa com os diferentes lugares e práticas onde
se situam ou por onde circulam os agentes sociais, dando sentido e
direção – ou questionando-os – a seus pertencimentos e ações.
Para a UNESCO, como apontam documentos publicados, a cultura, ao se
constituir em conjunto distintivo de atributos espirituais e materiais, intelectuais e
afetivos que caracterizam uma sociedade ou grupo social, engloba não somente as artes
e a literatura, mas também os modos de vida e os direitos fundamentais do ser humano.
Num mundo globalizado, a diversidade entre os povos, instituições e indivíduos
passa, a todo o instante, mais fortemente pela cultura, de forma que essa se torna uma
perspectiva praticamente obrigatória de discussão sobre o que são e para onde vão as
sociedades contemporâneas.
O termo cultura é um conceito bastante polêmico e foi gradativamente
transformado, ao longo dos tempos, por antropólogos, historiadores e intelectuais em
geral. A noção de cultura continua a ser alvo de embates e reelaborações, gerando
dificuldades e imprecisões.
A maioria dos estudiosos chama atenção para o perigo da utilização do termo
cultura no singular, uma vez que é praticamente impossível unir de forma harmoniosa e
generalizada todas as manifestações culturais existentes na sociedade.
Desse modo, o ideal seria pluralizar o termo cultura, uma vez que esse termo não
se constitui num complexo unificado e coerente, mas sim,
num conjunto de ‘significados, atitudes e valores partilhados e as
formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que eles são
expressos ou encarnados’, que são construídos socialmente, variando,
portanto, de grupo para grupo e de uma época a outra (COUCEIRO,
apud BURITY, 2002, p.15)
19
Um termo ainda mais controverso do que o termo cultura é o conceito cultura
popular.
A cultura erudita reflete o grau de auto-estima da população, pois, à medida que
as manifestações culturais eruditas recuperam elementos da cultura popular local em
detrimento de elementos advindos de outras culturas, percebe-se que o lugar passa a
tecer laços afetivos também com as classes dominantes, aquelas classes que são as
detentoras dos bens e dos meios de produção. A cultura erudita serve como elemento
veiculador de informações sobre esse mesmo lugar, podendo reforçar a auto-estima da
população local e fortalecer o intercâmbio necessário ao satisfatório desenvolvimento
do lugar.
Alguns estudiosos não vêem com a mesma simpatia a cultura erudita, como é o
caso de Bosi (1992, p.330), para quem, ela
ou ignora pura e simplesmente as manifestações simbólicas do povo,
de que está, em geral, distante, ou debruça-se, simpática,
interrogativa, e até mesmo encantada pelo que lhe parece forte,
espontâneo, inteiriço, enérgico, vital, em suma, diverso e oposto a
frieza, secura e inibição peculiares ao intelectualismo ou à rotina
universitária. A cultura erudita quer sentir um arrepio diante do
selvagem.
O estudioso ainda vai alem quando afirma que “a cultura para massa surrupia
quanto pode de sensibilidade e da imaginação popular para compensá-las com um lazer
mínimo, entrecortado de imagens e slogans de propaganda” (BOSI, 1992, p. 330).
A cultura popular se define pela sua oposição à cultura letrada ou oficial das
classes dominantes, idéia que demonstra claramente sua “preocupação em recuperar o
conflito de classes numa dimensão sociocultural globalizante” (GINZBURG apud
Burity, 2000, p.15).
Esse termo está longe de ser um conceito bem definido pelas ciências humanas.
São muitos os seus significados, e bastante heterogêneos e variáveis os eventos que essa
expressão recobre.
A cultura popular, por advir das relações profundas entre a comunidade local e o
seu meio, simboliza o homem e o que está em sua volta, o que resulta em um tipo de
consciência que evidencia o grau de relação afetiva ao lugar; esse fator de apego
permite a configuração da identidade do local e de sua população. Portanto, a
valorização da cultura popular contribui para que a sociedade fortaleça a individuação e
20
a auto-estima diante do outro, numa busca de desenvolvimento que se origina de seu
próprio querer, de sua vontade conforme seus valores, pois é por intermédio da cultura
que o homem e a sociedade interagem com o mundo a sua volta.
Podem ser consideradas manifestações da cultura popular local a culinária, o
artesanato, o folclore, a literatura oral, o vestuário, a música popular, os instrumentos
musicais, os ritos de passagem, as manifestações religiosas, as festas populares, a
farmacopéia extrativista, a meteorologia popular, as relações locais aos elementos da
natureza, entre outras.
Enfim, muitas discussões são travadas a respeito dessa dicotomia com que se
trata a cultura popular e a cultura erudita; todavia é oportuno lembrar que Mário de
Andrade, conceituado representante e defensor da cultura brasileira, alertou que a
discussão sobre cultura popular e cultura erudita é estéril e inoportuna: a preocupação
deve se centrar na ampliação do acesso da população a todas as formas de manifestação
cultural.
Desse modo, é de relevante importância que a comunidade reconheça a auto-
identificação cultural e assuma esse eficaz instrumento com o objetivo de se tornar
protagonista do seu próprio desenvolvimento local.
Segundo Claxton (1994), “uma sociedade que confia em sua cultura estará mais
aberta e receptiva, fato que transforma o (auto) conhecimento em um instrumento de
integridade de um povo”.
Portanto, a educação deve valorizar a memória e os costumes da comunidade,
em favor do renascimento da identidade e do fortalecimento da auto-estima. Em lugar
da homogeneização do indivíduo e da fragmentação do conhecimento, devem-se
ampliar as possibilidades de questionamentos e interpretação, assim como o respeito à
diversidade cultural, tradições e diferenças.
21
1.1. CULTURA, GLOBALIZAÇÃO E PÓS-MODERNIDADE
Com o fenômeno da globalização, muitas influências externas têm interferido no
dia-a-dia das pessoas, contribuindo para que muitos costumes, valores de comunidades
locais sejam deslocados, provocando, dessa forma, uma crise de identidade. Por outro
lado, esse fenômeno tem mostrado várias faces da variedade cultural nunca antes
observadas.
muitas controvérsias quanto à positividade ou negatividade do fenômeno da
globalização.
Segundo Bauman (1999, p. 7),
para alguns, “globalização” é o que devemos fazer se quisermos ser
felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos,
porém, “globalização” é o destino irremediável do mundo, um
processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na
mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo
“globalizados” e isso significa basicamente o mesmo para todos.
Todas as tendências ditadas por uma nova ordem do discurso massificante, como
“moda” e “valores”, podem tornar as experiências anteriores opacas. “Quanto mais
numerosas as verdades ortodoxas que desalojam e superam, mais rápido se tornam
cânones inquestionáveis” (BAUMAN, 1999, p.7).
Da mesma maneira que o advento da globalização pode trazer, à tona, a
variedade cultural, ela, também, pelas influências externas, pode contribuir para que
muitos valores e costumes sejam negligenciados, silenciados ou, até mesmo, apagados.
Essas influências colaboram para que os sujeitos se tornem confusos,
fragmentados, estilhaçados, sem saber qual direção ideológica tomar;
se seguem
determinada corrente, podem parecer obsoletos, ultrapassados; se seguem direção
contrária, podem parecer desengajados, despreocupados com os valores culturais,
desprovidos do senso de cidadania e de sentimentos identitários, porém um indivíduo
moderno. Essa é a grande questão da pós-modernidade. Desse modo, é possível
perceber que a globalização tanto divide quanto une.
Como bem afirma Bauman (1999, p.8), “o que para alguns parece globalização,
para outros, significa localização; o que para alguns é sinalização de liberdade, para
muitos outros, é um destino indesejado e cruel”.
A globalização, segundo definição de Mc Grew (apud Hall, 2005, p.67),
22
se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que
atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando
comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo,
tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais
interconectado. A globalização implica em movimento de
distanciamento da idéia sociológica clássica da “sociedade” como um
sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se
concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo do
tempo e do espaço.
Essas novas tendências temporais e espaciais, que resultam na compressibilidade
de distâncias e de tempos, estão entre os aspectos mais essenciais da globalização a ter
efeitos sobre as identidades culturais.
A globalização colabora para o deslocamento de identidades culturais nacionais,
e ela não é um fenômeno recente, pois a intervenção do domínio de outros povos, outros
valores, considerados mais fortes e poderosos sobre os mais fracos, pode ser notado
desde a época das grandes descobertas.
Hall (2005, p.69) descreve três possíveis conseqüências dessas novas tendências:
as identidades nacionais estão se desintegrando como resultado do crescimento da
homogeneização cultural e do “pós-moderno global”; as identidades nacionais e outras
identidades “locais” ou “particularistas” estão sendo reforçadas pela resistência à
globalização; as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades
híbridas – estão tomando seu lugar.
É possível notar que a tendência à adesão da interdependência global pode levar
a um possível apagamento das identidades culturais e está produzindo fragmentações de
vários códigos culturais:
à medida que as culturas nacionais tornam-se mais expostas às
influências externas, é difícil conservar as identidades culturais
intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do
bombardeamento e da infiltração cultural (HALL, 2005, p.74).
Com a forte tendência à fragmentação e decorrentes possíveis apagamentos
culturais, é de extrema importância levar ao conhecimento dos alunos das escolas a
existência da diversidade cultual e desenvolver, neles, o valor do respeito à identidade
de cada cultura, e, sobretudo, para que aprendam a se questionar e se posicionar, de
maneira crítica, diante desses novos paradigmas.
23
A esses questionamentos e incredulidade perante o mundo moderno, dá-se o
nome de pós-modernidade.
A idéia de que pós-modernidade é uma perspectiva difícil de ser definida é
compartilhada por vários autores. Na verdade, virtualmente, toda definição de pós-
modernidade acabará por ser modernista pelo seu caráter de fechamento. No entanto,
elementos em comum que podem saciar a ânsia cartesiana de fechamento, de definição,
ainda que provisória e para fins de compreensão do argumento desta pesquisa. Expor-
se-á esses elementos sinteticamente a seguir.
Lyotard (2002) foi um autor que ajudou muito a dar visibilidade ao que se
entende por pós-modernidade. Ele argumenta que o período da modernidade (desde o
séc. XVIII até hoje) tem sido regido pelo poder de certas “metanarrativas” (ou grandes
narrativas”). Para ele, pós-modernidade representa uma crise na ciência em relação a
essas metanarrativas.
Esse autor afirma, ainda, que o poder exercido por essas narrativas é totalitário,
pois exclui outras identidades, outras histórias e outras temporalidades.
A condição pós-moderna, para ele, é a condição de “incredulidade” em relação
às metanarrativas, às tentativas de explicar todo esforço humano, à luz de uma única
teoria ou um único princípio. Ele argumenta sobre a emergência da valorização das
“pequenas narrativas”. A expressão “incredulidade” como posta por Lyotard merece
algumas aproximações.
Em uma argumentação pós-moderna, dir-se-ia que o que alguns chamam de pós-
modernidade constitui-se, tanto pelo que é, pela multiplicidade difusa que lhe
caracteriza, quanto pelo que ela não é, mas claramente visualizável. Parece didático,
para complementar-se essa breve introdução, recuperar os cortes epistemológicos que
deram visibilidade à perspectiva pós-moderna.
No que diz respeito à aplicabilidade dos conceitos estudados no aprendizado, no
contexto escolar, Mascia (2002, p.58) afirma,
a pós-modernidade irá suscitar grandes questionamentos. Se
concebemos a Educação como filha da modernidade, nos ideários do
progresso, como considerá-la perante os pressupostos pós-modernos?
A ênfase da pós-modernidade no sujeito inscrito sócio-historicamente,
descentrado, construído pela linguagem, por desejos e pelo
inconsciente, parece contradizer a finalidade da educação, fundada nos
pressupostos racionalistas que regem a modernidade.
24
Os questionamentos quanto à problemática referente aos aspectos teóricos e
metodológicos da pós-modernidade não se encontra aprisionado em um modelo
finalizado e fechado, mas, na verdade, “trata-se de um deslocamento com relação à
racionalidade moderna. Ser pós-moderno não é uma filiação partidária, mas uma
disposição, uma atitude, uma sensibilidade de encarar e questionar o mundo à sua
volta”. (MASCIA, 2002, p.58).
Como os textos a serem analisados trazem traços constitutivos da cultura
caiçara, fez-se um breve levantamento de sua origem. Far-se-á um breve passeio por sua
história, de modo a permitir a familiarização com a identidade de seu povo e com a sua
formação.
25
1.2. CULTURA CAIÇARA
Ubatuba é uma cidade do litoral norte paulista que fica no meio da BR-101,
estrada que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. Houve um tempo em que essa extensa
cidade era habitada, em sua maior parte, por caiçaras, agricultores e exímios pescadores
que moravam à beira-mar e tiravam seu sustento do mar e da terra, a qual eles mesmos
cultivavam.
Antes da década de cinqüenta do século passado, quando começou a abertura da
estrada Caraguatatuba-Ubatuba, a antiga SP-55, conhecida hoje, como Rodovia dos
Tamoios, e ainda mais em meados da década de setenta, com a abertura BR-101,
rodovia translitorânea que liga o extremo norte ao extremo sul do país e passa pela
cidade de Ubatuba, esse povo tinha a cultura baseada em crenças religiosas, respeito à
natureza e ao próximo e solidariedade. Esses costumes eram expressos por meio da
linguagem, da música, das rezas e também pelo artesanato voltado para a pesca, pela
preparação da farinha de mandioca e pela confecção de alguns utensílios domésticos.
Seus costumes eram transmitidos oralmente, de pai para filhos, e a narração era muito
rica.
Com o crescimento e com a especulação imobiliária local, a cidade que antes era
uma vila de pescadores tornou-se uma estância turística, e seu povo de origem foi
praticamente deslocado de seu espaço, em virtude de a praia ter se tornado
comercialmente valorizada. Com isso, a conversa à beira-mar, durante a feitura das
redes de pesca ou ao chegar das pescarias, durante as rezas ou ao anoitecer, quando era
costume dos mais velhos contarem histórias de pescaria, de valores morais, ou cantarem
para filhos e netos, foi paulatinamente se extinguindo. Essa cultura oral foi se perdendo
à medida que outras pessoas foram chegando com outras culturas que foram se
incorporando à língua e à cultura local, assim como o recente advento tecnológico.
Hoje, Ubatuba conta, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), em 2007, com 77.008 milhões de habitantes. Considerável parcela desses é
oriunda de diferentes cidades e traz consigo diversas culturas e linguagens próprias de
várias regiões ou até mesmo de outros países.
A cultura caiçara popular traz consigo valores como o respeito, a amizade, a
tolerância, a religiosidade e a harmonia, que fazem parte da memória cultural desse
povo. Cada palavra mostra muitos valores agregados, e é importante descobrir, dentro
de cada pessoa, os valores que podem se tornar esquecidos por conseqüência do desuso
26
imposto pelo novo tempo e somá-los àqueles que o comuns nos tempos atuais. Para
Diegues (2004, p. 22), a cultura caiçara é definida como
um conjunto de valores, visões de mundo, práticas cognitivas e
símbolos compartidos, que orientam os indivíduos em suas relações
com a natureza e com os outros membros da sociedade e que se
expressam também em produtos materiais (tipo moradia, embarcação,
instrumentos de trabalho) e não materiais (linguagem, música, dança,
rituais religiosos).
Indo além do saudosismo, e, somando-se os fatos de não fazerem o uso da
escrita e de gerarem o conhecimento por meio da oralidade, de um linguajar próprio;
terem conhecimento dos ciclos naturais e dependerem deles para sua sobrevivência,
assim como viverem em comunidades familiares e utilizarem técnicas de baixo impacto
sobre a natureza, os caiçaras podem ser definidos como “tradicionais”.
A tradição caiçara é entendida como
um conjunto de valores, de visões de mundo e simbologias, de
tecnologias patrimoniais, de relações sociais marcadas pela
reciprocidade, de saberes associados ao tempo da natureza, músicas,
de saberes associados ao tempo da natureza, músicas e danças
associadas à periodicidade das atividades de terra e de mar, de
ligações afetivas fortes com o sítio e a praia. Essa tradição, herdada
dos antepassados, é constantemente reatualizada e transmitida às
novas gerações pela oralidade. É por meio da tradição que são usadas
as categorias de tempo e espaço e é por meio dessas últimas que são
interpretados os fenômenos naturais (DIEGUES, 2004, p. 22-23).
É possível observar exemplos dessa tradição e dos valores culturais caiçaras em
depoimentos de ubatubanos, colhidos por Rassam (2007, p.32), como o de seu Bimbim,
de 85 anos, pescador da praia do Ubatumirim, segundo o qual,
se com uma pessoa assim, podia ser seu irmão, a gente se tava com
chapéu na cabeça ... tirava, dava a mão para “bença”, hoje tem isso?
Hoje o mundo mudou muito[...] de primeiro não, “nóis” aqui
trabalhava. Não tinha esse negócio de brigalhada. Quando tinha festa,
roda de chiba um cateretê era de “ocê” “mostra” o que sabia
“fazê” (RASSAM, p. 32)
De Dona Luzia, de 75 anos, benzedeira da praia da Almada, Rassam (2007,
p.40) obteve o seguinte depoimento:
27
eu benzo em nome do Pai, do filho e do Espírito Santo. Se for de osso
quebrado, benzo de machucadura. Se for de inveja, ambição ou ódio,
benzo de olheiro. Se for hemorragia ou esipa” também benzo. E
ofereço minhas preces, meus sacrifícios à morte e paixão de Nosso
Senhor Jesus Cristo.[...] Esses benzimentos eu aprendi sozinha,
observando, vendo os outros “benze”, guardando tudo na memória,
depois quando eu larguei de trabalhar na roça eu fiquei mais aliviada
da luta do serviço, daí tinha mais tempo, e agora eu benzo, mas daqui
a pouco eu me mudo, eu vou embora. Eu peço a eles, crianças...
aprendam, e eles nem se incomodam.
Ainda, foi obtido, pelo autor (2007, p.51), o depoimento de Dona Dedéia, de 90
anos, também moradora da praia da Almada:
o pessoal de antigamente – há quem rejeite, usavam a cabeça da tainha
para fazer azeite. Pra acender a candeia, que era uma lamparina, na
época não existia luz. [...] Levavam a gordura da tainha no fogo até
derreter, e a cabeça colocavam pra ferver. A gordura guardavam pra
caminhar pelas matas.
Dona Dolores dos Santos, de 68 anos, também moradora da praia da Almada,
também ofereceu um depoimento:
antigamente, nascia uma criança o pessoa falava assim: - você não tem
um pedaço de rede velha pra mim?. A mãe fazia uma esteira de
taboa, o nenê ficava todo na boa, tinha dois pedaço de pau um aqui
e outro lá, abrir a rede, pra melhor “conforta”. (RASSAM, 2007, p.54)
No seu depoimento, Dona Cida, da praia da Almada, afirma que
muita coisa se perdeu e não pra resgatar, na casa do enfermo
tocava a gente a ficar... Não tinha hospital antigamente, as pessoas
ajudavam a cuidar. Hoje em dia isso acabou... Esquece do doente a
dor... Se alguém tinha ferida, se deixava a lida... Ficava tudo
conversando, dando risada, orando. Hoje em dia tem tudo pavor, fato
é – que tudo acabou (RASSAM, 2007, p.54)
Valores caiçaras também podem ser observados nos discursos, respectivamente,
de Seu Antonio Clemente, de 96 anos, e de sua esposa, Dona Eulália, de 83 anos, ambos
moradores da praia do Ubatumirim:
28
tão bom aquele tempo meu Deus, a gente tinha liberdade ... tempo
“forgado”, a gente tinha sossego, o bom a liberdade... a gente tem
saudade das coisas boas (RASSAM, 2007, p. 31)
as crianças cresciam em casa, brincavam na roça panhando” café,
minha filha pequenininha assim, com seu samburazinhos, cantando e
enchendo... brincando (RASSAM, 2007, p. 30)
Nos dizeres de Dona Lumiata, de 68 anos, moradora da praia do Ubatumirim,
observam-se:
ia para a roça trabalhar e levava na cabeça a rede, com a filha
pequenina deitada na relva verde. Debaixo de um de café ficava
acomodada, cobria com um pano por cima e mais nada. No meio dia
fazia comida e dava... E ela dormia de novo abençoada (...) de pau-
a-pique a casa querida. E de chão duro de barro terra batida. O
forro coberto com palha, o teto sem telha ou calha. Dormiam em cima
de tábua á toa, com uma esteira por cima a taboa (RASSAM, 2007,
p.29)
Sr. Jorge Inocêncio, de 27, anos e D. Ana Rosa, de 37, também moradores da
praia do Ubatumirim, falam da relação de interação entre o homem e a natureza, nas
transcrições que lhes são respectivas:
algumas pessoas do Sertão não precisam nem de televisão, são boas de
previsão, descartando a informação. É no olhar o tempo, ficar atento.
[...] O pessoal tem costume de manhã e de tardezinha, olhar o tempo
... ver para que lado o vento ... se úmido ... e a serra meio
azulada, se ta “arvejada” (RASSAM, 2007,, p. 22)
quando não chove em março, vou dar uma espiada do terraço. Mesmo
com o céu azul anil... certamente choverá em abril. Se a lua nova em
março roncar, ou de setembro, trovejar, seis meses de chuva vai vingar
(RASSAM, 2007, p.22)
Também é possível observar manifestações da cultura caiçara e exemplos de
tradição e valores agregados a ela, nos contos produzidos por ubatubanos, citados nas
pesquisas de Mesquita, (2005, p.77-78), como no excerto:
acho que também tenho o direito de, nesse simples escrito, fazer a
minha homenagem a um Ubatubano que não era político, nem médico,
nem professor, não sabia ler e muito menos escrever. Para mim que o
conheci, tinha por ele o maior respeito e via nele o maior exemplo de
vida e vontade de viver, que jamais vi em outra pessoa. Trabalhador
29
como poucos, tanto na roça capinando, roçando, plantando, como na
pesca e na arte de entalhar rede.Morava no Ubatumirim e quando
vinha pra cidade, vinha a pé, sempre trazendo alguns de seus produtos
(farinha, banana, balaios etc.), coisa que ele fazia muito mais rápido
do que muitos jovens. Quando vinha de canoa, remava como qualquer
outro; puxava rede de arrastão, tirava marisco na costeira, guaiamu no
mangue e até nos sítios de banana, em Santos e na Fazenda dos
Ingleses em Caraguatatuba ele trabalhou.Depois de um certo tempo, já
com mais idade, mudou-se para a cidade. Continuou trabalhando do
mesmo jeito, era um grande profissional, fazia tudo quanto era tipo de
rede de pesca, como puçás, tarrafas, picaré, cabo, tresmalhos etc. A
rede, nas mãos dele, saía pronta pra pescar, nada de ficar fazendo
acertos depois. Seria comum todas essas referências se o nosso
homenageado não fosse um deficiente sico, um homem que fazia
tudo com apenas uma das pernas. Estou falando, com muito respeito e
que Deus o tenha, daquele que foi meu amigo, o homem de uma perna
só, Tomaz João do Santos, conhecido também como Tomaz Sarapuca,
o Tomaizinho do Ubatumirim. E como ele mesmo dizia: “Eu do
Batomeriiiiiiim”. “Sô marenhero”. Com dois paus de araçarana fazia
sua própria muleta, onde sabia, o peso e a altura de encaixar o sovaco
e o apoio das mãos.
Em 1554, Hans Staden definia os caiçaras, primeiros habitantes do litoral
paulista, como “gente bonita de corpo e estatura, homens e mulheres, igualmente [...]
apenas, são queimados de sol, pois andam todos nus, moços e velhos...” (MARCÍLIO,
1986, p. 27).
Os primeiros moradores de Ubatuba, antes uma aldeia, eram os índios
Tupinambás que, de acordo com Marcílio (1986, p.21), “eram de forte complexão física
e saúde, e tinham suas formas de organização, de produção e de sociedade, antes do
contato com os brancos”. Ainda, segundo Marcílio (1986, p.21), “esses moradores, à
época da abordagem do europeu, formavam uma ‘pequena aldeia de choças’, no local
aproximado do atual município, em outras espalhadas pelo seu território”. Sua
sociedade era voltada para o campo e era uma coletividade calcada na família.
Os primeiros caiçaras, assim como nos dias atuais, embora em uma quantidade
menor, eram exímios pescadores, não apenas usavam flechas, mas também
desenvolveram técnicas melhores de grande pescaria. Como se pode observar em
Marcílio (1986, p.21), “...utilizavam pequenas redes feitas de cipó tucum e, em mutirão,
recolhiam grande porção de peixes”.
A vida dos primeiros caiçaras de Ubatuba era baseada na organização,
coletividade e harmonia, tanto entre seus componentes como na natureza, à qual,
respeitavam muito. Essa harmonia se desestruturou quando apareceram os primeiros
30
colonizadores e, com eles, as missões. Para Ubatuba, vieram os padres jesuítas Manoel
da Nóbrega e José de Anchieta cuja missão era dominar os índios para transformá-los
em cristãos e colonos de Portugal.
Entre a “paz” estabelecida por Nóbrega e Anchieta (1563) e a fundação da Vila
da Exaltação de Santa Cruz, (1637), novas situações surgiram,
novos habitantes se fixaram: por isso mesmo, os testemunhos
desses períodos são raros. O jesuíta não volta mais às terras onde os
índios não o acolheram mansamente. De resto, nenhuma outra ordem
religiosa aventura-se a fundar qualquer instituição em Ubatuba. Com o
extermínio e o terrorismo usado largamente, conseguiu o colonizador
acabar com o índio, mas como conseguiu a mão-de-obra necessária
para a agricultura que queria implantar? Pouco a pouco se monta uma
operação muito mais delicada que consiste em retirar o índio como
dono da terra, como plantador de roçado para si e sua tribo, e
reintroduzi-lo de volta à mesma terra, já agora como plantador de
cana, não mais como livre, mas como escravo (MARCÍLIO, 1986,
p.22-23).
Alguns sobreviventes dos primeiros Tupinambás conseguiram refugiar-se na
densa Mata Atlântica, na Serra do Mar, onde sobreviveram livres, porém pobres e
amedrontados, pois a perseguição a eles continuou por muito tempo.
A segunda parte da organização do espaço, da posse, uso e transmissão da terra,
da vida e da morte do novo morador que se estruturava, começou quando foi fundada
a vila, em meados do século XVII.
O morador daquela época, segundo Marcílio (1986, p.29), “apesar de seus
grandes esforços, não conseguiu sair do estado da roça rústica de subsistência em quase
toda a sua história”.
Ubatuba viveu, por um período extenso, fora do círculo de economia-mundo’.
O caiçara de Ubatuba, roceiro prioritariamente, mas eventualmente pescador, é o povo
novo do município. Em entrevista, Sr. Nestor, de 81 anos, morador da praia da
Picinguaba, ex-lavrador, ex-posseiro de terras do sertão e da praia, terras essas todas
griladas e expropriadas, relata que
na roça havia muita fartura. O que a gente plantava era gasto da
família. Mas o que sobrava a gente trazia no ombro, do sertão, por
picada. Havia muita, muita fartura (MARCÍLIO,1986, p.30).
31
A comunicação com o mundo exterior, com a economia global, era feita ‘por
fora’, pelo mar, pelas pequenas canoas de pesca ‘miorzinhas’, as ‘canoas de voga’; e os
caiçaras faziam uso de uma tradição composta na tradição do índio e dos primeiros
povos europeus, cujo exemplo é o calendário agrícola, mas, de tempo em tempo, como
ainda acontece, o equilíbrio local era interrompido, pois o sistema dominante interferia
na produção do caiçara.
De acordo com Marcílio (1986, p.49),
as terras cultiváveis de Ubatuba, descontínuas e limitadas, em
períodos muito curtos de sua história ofereciam efetiva atração aos
colonizadores. Isso aconteceu quando parcelas de seu espaço foram
usadas para lavouras comerciais, integrando-as temporariamente a
“economia-mundo”. Mas o período foi curto, restringindo-se grosso
modo, das últimas décadas do século XVIII até cerca de 1850. Na
quase totalidade de sua existência, porém, a vila tirou seus recursos
fundamentais das pequenas roças de subsistência encravados nas
clareiras abertos na mata, mas bem próximas às praias e completando-
os, intermitentemente com a pesca e coleta de frutos, ou caça nas
florestas.
Naquelas condições, Ubatuba foi sobrevivendo. A calma e a paz pareciam
conviver na pacata comunidade, nos alvores do século XIX. Naquela calma aparente,
contudo, latejaram zonas de conflitos, pontos de violência, pois um grupo de franceses
que lá se instalara, a partir do ano de 1819, começou a disputar as terras com os antigos
moradores, querendo expulsá-los. Assim, “se repete o processo de invasão de terras e de
expulsão, pela violência, dos antigos moradores da comunidade” (MARCÍLIO, 1986
p.85).
Os velhos moradores de Ubatuba, sempre que suas terras tiveram algum tipo de
atração para grupos poderosos de fora, sofreram prejuízos irrecorríveis e definitivos.
Segundo Marcílio (1986, p.89),
em fevereiro de 1980, a especulação imobiliária de terras da bela
Ubatuba já conseguira praticamente terminar com os últimos
remanescentes caiçaras. os mais velhos teimavam em ficar
em suas casas, quando podiam. Intelectuais de vanguarda,
empresários e políticos ditos de oposição, passam sutilmente a
despojá-los. A lei existe, mas é do mais forte, ontem, como hoje.
32
Esse fato é tão somente um exemplo do que ocorre em todo país e no mundo,
uma vez que é um dos principais fatores da perda da identidade que teve seu início na
época da colonização.
Evoca, também, a carta escrita pelo cacique Seattle, da tribo Duwamish, do
Estado de Washington, ao presidente Franklin Pierce, dos Estados Unidos, em 1855,
depois de o governo norte-americano ter dado a entender que desejava adquirir o
território da tribo. Existem várias de suas versões, das quais, se transcreve uma:
o Grande Chefe de Washington mandou dizer que deseja comprar a
nossa terra. O Grande Chefe assegurou-nos também de sua amizade e
benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não
precisa da nossa amizade. Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois
sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e
tomará nossa terra. O Grande Chefe de Washington pode confiar no
que o Chefe Seattle diz, com a mesma certeza com que nossos irmãos
brancos podem confiar na alteração das estações do ano. Minha
palavra é como as estrelas - elas nunca empalidecem. Como podes
comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é estranha. Se
não somos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então
podes comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo.
Cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada clareira e
inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu
povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações
do homem vermelho. O homem branco esquece a sua terra natal,
quando, depois de morto vai vagar por entre as estrelas. Os nossos
mortos nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do
homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores
perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia - são
nossos irmãos. As cristas rochosas, os sumos das campinas, o calor
que emana do corpo de um mustang, o homem - todos pertencem à
mesma família. Portanto quando o Grande Chefe de Washington
manda dizer que deseja comprar nossa terra, ele exige muito de nós. O
Grande Chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar em que
possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos
seus filhos. Portanto vamos considerar a tua oferta de comprar nossa
terra. Mas não vai ser fácil, não. Porque esta terra é para nós sagrada.
Essa relação com a natureza que sempre marcou a cultura caiçara, conforme
citado por Diegues, Marcílio e Setti, trata-se de uma relação cósmica, uma relação de
respeito que sempre esteve presente na vida dos caiçaras, relação essa herdada dos
povos indígenas, seus antepassados, os quais conferiam, à Terra, a importância de uma
grande e de quem poderiam retirar tudo aquilo de que necessitavam para sua
sobrevivência e, por se sentirem filhos dela, vivenciavam-na e respeitavam-na como
uma mãe generosa.
33
Essa relação de respeito homem-Terra, homem-natureza é descrita por Boff
(1999, p. 76-77) da seguinte forma:
sentir a Terra é sentir seus nichos ecológicos, captar o espírito e cada
lugar, inserir-se num determinado local, onde se habita. Habitando,
nos fazemos de certa maneira prisioneiros de um lugar, de uma
geografia, de um tipo de clima, de regime de chuvas e ventos, de uma
maneira de morar e de trabalhar e de fazer história. Ser Terra é ser
concreto, concretíssimo. Configura nosso limite. [...] Por fim, sentir-se
terra é perceber-se dentro de uma complexa comunidade com seus
filhos e filhas. [...] Sentir-se Terra é mergulhar na comunidade
terrenal, no mundo dos irmãos e das irmãs, todos filhos e filhas da
grande e generosa Mãe, a Terra.
Entretanto, a modernidade e o poder venceram os mais fracos, pois, com a
corrida imobiliária e com a abertura da BR 101, a vinda de pessoas interessadas nas
terras, nas praias, e pessoas das mais diversas culturas e religiões, interessadas em
trabalhar, contribuiu para que houvesse uma miscigenação de culturas.
Nos estudos de Diegues (2004, p.37), é possível observar algumas considerações
a respeito de vários fatores que contribuíram para a fragmentação da cultura caiçara,
entre eles, a migração dos jovens, o crescimento econômico externo e a vinda das
igrejas evangélicas para Ubatuba:
a migração dos jovens, o avanço das igrejas evangélicas, algumas das
quais se instalaram na região já na década de 1940, a maior vinculação
à economia de mercado que destruiu uma cerca de auto-suficiência
nas praias, além de quebrar o mundo de valores religiosos, serviu para
aumentar o nível dos conflitos. Estes se refletem, por exemplo, no
aumento constante do consumo da cachaça. “A festa dos Reis, Divino,
estão fracassando; crente não vai na festa. O povo está esquecendo as
antiguidades. Agora é baile e briga” (entrevista com um
pescador do Ubatumirim, católico). “Festas?” às vezes São João e São
Pedro, mas não se usa fazer mais reis. Antes o festeiro oferecia
comida, peixe seco, agora tudo acabou. Entrou o Evangelho e o povo
desacreditou da festa das Imagens” (entrevista com pescador de
Picinguaba, adventista).
A professora e estudiosa Kilza Setti (1985, p.8) tece algumas considerações com
relação ao crescimento local. Para ela, com abertura das estradas, SP-55, em 1954, e a
BR-101, nos anos setenta e, com as vendas das terras, os caiçaras foram mudando-se
para bairros.
34
Os novos bairros substituíram as praias; a comunicação não se faz
pelo mar, mas pelo asfalto; o rádio e a TV substituíram em muitos
casos, as longas horas de bate-papo; a circulação se faz pelas novas
estradas abertas e pelas linhas de ônibus até o Estado do Rio de
Janeiro, instaladas após 1977; as distâncias são obstáculos, mais fáceis
de serem vencidos.
O caiçara foi se deixando seduzir por todas essas facilidades, sem se
conscientizar do problema que estava sendo gerado, embora nem todos tenham se
deixado seduzir. Alguns grupos que continuaram isolados, em pequenas colônias à
beira-mar, notaram esse problema tardiamente. Isso se explica porque “é difícil aceitar a
situação de dependência; geralmente, prefere viver sua vida de limitações, mas
dificilmente renuncia à sua liberdade de trabalhador livre, sem patrão e sem submeter-se
a horários rígidos de trabalho” (SETTI,1985, p.18).
A riqueza dos mbolos está presente no dia-a-dia do caiçara, em virtude de ele
ter seus próprios parâmetros para a avaliação do mundo,
geralmente, usa como referências de espaço sinais próprios da
natureza, tais como rios, pontes, pedreiras e, sobretudo, vegetais:
junqueiras, mangueiras e taquarais servem para localizar endereços.
Utiliza-se também de elementos muitas vezes retirados do mundo
oficial civilizado e reinterpretados segundo significados mais ou
menos expressivos para ele. (SETTI, 1985, p.18).
O que se verifica hoje entre os caiçaras e que já foi verificado em 1986, por Setti
(1986, p.17), “é uma consciência do fato consumado; sabem que, a cada dia, terão
menores possibilidades de permanecer em suas terras de origem e de preservar seus
modelos de vida, e a resposta a essa imposição é um viver sabendo conviver com o mais
forte”.
Despojados, assim, de seus valores, seja por adoção dos novos hábitos que
foram impostos ou sugeridos, seja por se apresentarem como os únicos possíveis, os
caiçaras foram recompondo suas vidas, mesclando o antigo e o novo, o conhecido e o
estranho, “verdadeiro universo de fragmentos, como se num painel o artista juntasse
materiais opacos e brilhantes, compactos e diluídos, de texturas opostas e contraditórias
de si mesmas, mas que no conjunto resultam em algum sentido” (SETTI, 1985, p.18).
Ainda, segundo Setti (1986), dá-se, pois, a fusão do elemento cultural conhecido
e retomado em novas medidas de avaliação com o desconhecido este reinterpretado
sob padrões antigos.
35
1.3. GLOBALIZAÇÃO, DIVERSIDADE, IDENTIDADE E ENSINO PÚBLICO
A diversidade marca a vida social brasileira. Diversas características regionais e
manifestações culturais comandam, de maneiras diferentes, a compreensão do mundo, a
organização social nos grupos e regiões, a convivência com a natureza, com o sagrado e
com o profano. O campo e a cidade propiciam aos seus moradores vivências e respostas
culturais diversas que implicam ritmos de vida, ensinamentos de valores e formas de
solidariedade distintas. Os processos migratórios colocam em contato grupos sociais
com diferenças de fala, de costumes, de valores, de projetos de vida.
Esse processo, porém, é freqüentemente ignorado ou descaracterizado. Na
sociedade, principalmente na Escola, onde a diversidade está presente em todos os
momentos, essa presença tem sido ignorada, silenciada. São inúmeras as origens da
omissão em relação à Pluralidade Cultual.
Discorrer-se-á, neste item, a respeito da origem dessas omissões, fazendo um
rápido percurso histórico do nacionalismo autoritário no Brasil. Segundo os Parâmetros
Curriculares Nacional (1998), doravante PCN , o nacionalismo exacerbado dos períodos
autoritários, em diferentes momentos da história, valeu-se da ação homogeneizadora
veiculada na escola. Na década de 30, quando a política oficial buscou assimilar a
população imigrada de diferentes origens, documentos de autoridades educacionais
explicitavam grande preocupação com a nacionalização do filho do imigrante,
implicando a marginalização do negro e a aculturação do índio.
As ações oficiais buscavam interpretar o Brasil, na perspectiva da
homogeneidade cultural e do “mito da democracia racial brasileira”. Essas
interpretações conduziram a atitudes de dissimulação do quadro de fato existente: um
racismo difuso, porém efetivo, com repercussões diretas na vida cotidiana do povo
discriminado.
A concepção de um Brasil sem diferenças, divulgada nas escolas, originalmente
formado pelas três raças o índio, o branco e o negro que se dissolveram, dando
origem aos brasileiros, também tem sido difundida nos livros didáticos, neutralizando as
diferenças culturais e, às vezes, subordinando uma cultura à outra. Divulgou-se, então,
uma concepção de cultura uniforme, depreciando-se as diversas contribuições que
compuseram e compõem a identidade nacional.
Por outro lado, a perspectiva de um Brasil “de braços abertos” compôs-se no
“mito da democracia racial”. Assim, na sociedade em geral, discriminações praticadas
36
com base em diferenças ficam ocultas sob o manto de uma igualdade que não se efetiva,
empurrando para uma zona de sombra a vivência do sofrimento e da exclusão.
Depara-se, então, com a necessidade de se perceber que as articulações
comunitárias são múltiplas e que não se deve reduzir à exclusão do outro que não tenha
a mesma identidade. Deve-se entender que
cada criatura é dotada de uma série de identidades, ou provida de
referências mais ou menos estáveis, que ela ativa sucessivamente ou
simultaneamente, dependendo dos contextos. “Um homem é um
homem misturado”, dizia Montaigne. A identidade é uma história
pessoa, ela mesma ligada a capacidades varáveis de interiorização ou
de recusa das normas inculcadas. Socialmente, o indivíduo não pára
de enfrentar uma plêiade de interlocutores, eles mesmo dotados de
identidades plurais. Configuração de geometria variável ou de eclipse,
a identidade define-se sempre, pois, a partir de relações e interações
múltiplas. Foi o contexto da conquista e da colonização da América
que incitou os invasores europeus a identificarem seus adversários
como índios e, assim, a englobá-los nessa apelação unificadora e
redutora (GRUZINSKI, 2001, P.53).
A evidência de que a sociedade está cruzada por oposições de classes, de etnias,
de gênero e de outras características, com interesses, muitas vezes, contrapostos, indica
a necessidade de se desenvolverem pesquisas que mostrem como a escola deve atuar na
realidade, frente ao desafio da diversidade de culturas. Isso tem uma importância crucial
no presente momento histórico, porque a escola não é apenas um lugar a mais em que se
repetem os prejuízos e as tensões étnicas. Nesse sentido, ela é o lugar-chave porque é
essencial na produção e reprodução da cultura.
Na educação, uma crescente abertura para o tema da identidade o que se
num contexto de ampliação do horizonte de diálogo com outras áreas da ciência. Arroyo
(1996, p.7) afirma que esse olhar implica ter mais atenção para as relações entre
educação, cultura e sociedade. Certamente,
a percepção da herança múltipla, polifônica, das tradições culturais,
redescobrindo-as, é o primeiro passo para uma postura frente ao
desafio de entender como essas diferenciações foram sendo
engendradas historicamente e que significações produziram na
articulação de processos educacionais. Eleger a cultura popular como
uma das categorias em Educação significa entender que o
pertencimento da diversidade, enquanto uma concreção ou
singularização do cultura,l numa especificidade própria, tem uma
dimensão engendradora das potencialidades específicas de grupos no
conjunto do processo histórico.
37
A imensidão do Brasil é um todo que abriga uma infinidade de riquezas étnicas,
culturais, herdadas da união das culturas negra, indígena e branca constituindo a nação
brasileira.
Assim, apesar das diferenças individuais, deve prevalecer um respeito mútuo
entre todos os cidadãos, entre todos os indivíduos que idealizam uma sociedade mais
justa e harmoniosa e por ela trabalham.
Conhecer um pouco da cultura, do folclore, do regionalismo, das lendas,
tradições e histórias é buscar caminhos para as pessoas entenderem a si mesmas e a suas
próprias realidades, contribuindo, assim, para a formação de novas mentalidades que
possam caminhar para superação de muitos problemas atuais, como a discriminação e a
exclusão social.
O Ministério da Educação promove essa reflexão com a publicação dos PCN
(1998), em seus Temas Transversais, ao propor uma educação comprometida com a
cidadania, e elegeu, baseado na Constituição brasileira, princípios, segundo os quais
orientar a educação escolar.
Esses princípios seriam: a) Dignidade da pessoa humana: implica em respeito
aos direitos humanos, repúdio à discriminação de qualquer tipo, acesso a condições de
vida digna, respeito mútuo nas relações interpessoais, públicas e privadas; b) igualdade
de direitos: refere-se à necessidade de garantir a todos a mesma dignidade e
possibilidade de exercício de cidadania havendo para tanto que se considerar o princípio
da eqüidade, isto é, que existem diferenças (étnicas, culturais, regionais, de gêneros,
etárias, religiosas, etc.) e desigualdades (socioeconômicas) que necessitam ser levada
em conta para que a igualdade seja efetivamente alcançada; c) participação: como
princípio democrático, traz a noção de cidadania ativa, isto é, da complementaridade
entre a representação política tradicional e a participação popular no espaço público,
compreendendo que não se trata de uma sociedade homogênea e sim marcada por
diferenças de classe, étnicas, religiosas etc. É, nesse sentido, responsabilidade de todos a
construção e a ampliação da democracia no Brasil; d) co-responsabilidade pela vida
social: implica em partilhar com os poderes públicos e diferentes grupos sociais
organizados ou não, a responsabilidade pelos destinos da vida coletiva (PCN, 1998,
p.21)
Os PCN, no que diz respeito aos temas transversais, foram criados pelo
Ministério da Educação (MEC), em 1998, com o objetivo de se tornar referência para o
professor, trazendo orientações de trabalho que possam servir de diretrizes para prática
38
de aula. O objetivo desses parâmetros é preparar o aluno para a vida, aproximando o
que se ensina em sala de aula do mundo de hoje e considerar tanto as mudanças
tecnológicas, quanto a assuntos debatidos pela sociedade atual, como ecologia, direitos
dos cidadãos, educação sexual, ética, racismo.
Os objetivos e conteúdos dos Temas Transversais devem ser
incorporados nas áreas já existentes e no trabalho educativo da escola.
É essa forma de organizar o trabalho didático que recebeu o nome de
transversalidade. (PCN, p.17, 1998)
Pelo fato de não haver PCN Temas transversais - voltados para o Ensino
Médio, e sim, somente para o Ensino Fundamental de primeira à quarta série, e, de
quinta a oitava, a presente pesquisa embasou-se nos temas transversais, ética / cidadania
e pluralidade cultural de quinta à oitava série, visto que os temas transversais abrangem
todos os níveis escolares, uma vez que aborda valores, tema que envolve a todos, em
todas as idades.
Uma das temáticas dos Temas Transversais aborda a Pluralidade Cultural, e essa
temática diz respeito ao conhecimento e à valorização de características étnicas e
culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no território nacional, às
desigualdades socioeconômicas e a críticas às relações sociais discriminatórias e
excludentes que permeiam a sociedade brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade
de conhecer o Brasil como um país complexo, multifacetado e, algumas vezes,
paradoxal.
Esse tema propõe uma concepção que busca explicitar a diversidade étnica e
cultural que compõe a sociedade brasileira; compreender suas relações, marcadas por
desigualdades socioeconômicas, e apontar transformações necessárias, oferecendo
elementos para a compreensão de que valorizar as diferenças étnicas e culturais não
significa aderir aos valores do outro, mas respeitá-los como expressão da diversidade,
respeito que é, em si, devido a todo ser humano, por sua dignidade intrínseca, sem
qualquer discriminação (PCN, 1998, p.121).
Reconhecer a complexidade que envolve a problemática social, cultural e étnica
é fundamental e, segundo os PCN (1998, p.123),
a escola tem um papel fundamental a desempenhar nesse processo.
Em primeiro lugar, porque é um espaço em que pode se dar a
39
convivência entre estudantes de diferentes origens, com costumes e
dogmas religiosos diferentes daqueles que cada um conhece, com
visões de mundo diversas daquela que compartilha em família. Nesse
contexto, ao analisar os fatos e as relações entre eles, a presença do
passado no presente, no que se refere às diversas fontes de que se
alimenta a identidade – ou as identidades, seria melhor dizer – é
imprescindível esse recurso do Outro, a valorização da alteridade
como elemento constitutivo do EU, com a qual experimentamos
melhor quem somos e quem podemos ser. Em segundo, por que é um
dos lugares onde são ensinadas as regras do espaço público para o
convívio democrático com a diferença. Em terceiro lugar, porque a
escola apresenta à criança conhecimentos sistematizados sobre o país
e o mundo, e a realidade plural de um país como o Brasil fornece
subsídios para debates e discussões em torno de questões Sociais.
Ainda, segundo os PCN (1998, p. 124), a Organização das Nações Unidas
(ONU) têm se esforçado para contribuir com o desenvolvimento do tema “Cultura da
Paz” no âmbito escolar, pautada em trabalhos a respeito da tolerância, do respeito
mútuo, da solidariedade.
Pode-se observar, portanto, que a preocupação a respeito da diversidade cultural
não é apenas local nem nacional, mas de âmbito mundial.
40
1.3.1. PLURALIDADE CULTURAL EM SALA DE AULA
Na atuação docente, certos conceitos se incorporaram às práticas de
professores de Língua Portuguesa, no Estado de São Paulo, a exemplo do relativo à
pluralidade cultural.
Segundo os PCN, a pluralidade cultural indica, antes de tudo, um acúmulo de
experiências humanas que é patrimônio de todos, pois enriquece a vida e ensina
diferentes maneiras de existir socialmente e de criar o futuro. A vida pode acontecer
verdadeiramente, se todos participarem de um mundo cultural, se partilharem um
conjunto de referências sociais.
As culturas humanas criaram modos de viver coletivamente, de organizar sua
vida política e de se relacionar com o meio ambiente, de estudar, de trabalhar, distribuir
e trocar as riquezas que produzem. Todos os povos desenvolveram linguagens,
manifestações artísticas e religiosas, mitologia, valores morais.
Assim, cabe à escola selecionar todas essas informações para redirecioná-las ao
aluno de forma construtiva e reflexiva, formando-o como um cidadão crítico.
Os PCN afirmam que, pela educação, pode-se combater, no plano das atitudes, a
discriminação manifestada em gestos, comportamentos e palavras, que afasta e
estigmatiza grupos sociais. É nesse sentido que a escola tem o dever de criar desafios e
formas de relação social e interpessoal, por meio da interação entre o trabalho educativo
escolar e as questões sociais, suscitando, nos alunos, reflexões críticas.
O cotidiano oferece muitas manifestações que permitem o trabalho sobre
pluralidade, como os fatos das comunidades do entorno escolar, as questões típicas de
adolescência, as notícias de jornal e TV, os programas destinados a essa faixa etária
específica, as peças locais. A prática de intercâmbio entre escolas de diferentes regiões
do Brasil e de diferentes municípios de um mesmo estado e a consulta a órgãos
comunitários e de imprensa, inclusive na própria comunidade, são instrumentos
pedagógicos privilegiados a serviço da formação da criança e do adolescente.
De acordo com os PCN, aprender a posicionar opiniões, preferências, gostos ou
escolhas, é aprender a respeitar o outro. Ensinar suas próprias práticas, histórias, gestos,
tradições é fazer-se respeitar, ao dar-se a conhecer. Esse respeito exige flexibilidade em
sua aplicação. A Escola deve oferecer ao aluno e construir, junto com ele, um ambiente
de respeito, de interesse, de valorização, além de garantir espaço para situações
41
específicas vividas pelo aluno em seu cotidiano fora da escola, como a situação do
aluno-trabalhador, seja no campo, seja na cidade.
Apropriando-se dos PCN (1999, p.141), conclui-se que "sem dúvida, pluralidade
vive-se, ensina-se, aprende-se. É trabalho de construção, no qual, o envolvimento de
todos se pelo respeito e pela própria constatação de que, sem o outro, nada se sabe
sobre ele, a não ser o que a própria imaginação fornece".
Ainda, segundo os PCN, o tema Pluralidade Cultural oferece, aos alunos,
oportunidades de conhecimento de suas origens como brasileiros e como participantes
de grupos culturais específicos. Ao valorizar as diversas culturas no Brasil, propicia-se
ao aluno a compreensão de próprio valor, promovendo sua auto-estima como ser
humanos plenos de dignidade, cooperando com a formação de autodefesas contra
expectativas indevidas que lhe poderiam ser prejudiciais. Por meio de convívio escolar,
possibilitam-se conhecimentos e vivências que cooperam, para que se apurem suas
percepções sobre injustiças e manifestações de preconceitos e discriminação que
recaiam sobre eles mesmos ou que venham a testemunhar e para que desenvolvam
atitudes de repúdio a essas práticas.
Ao mostrar as diversas formas de organização, como parentesco, grupos de
idade, formas de governo, desenvolvidas por diferentes comunidades étnicas e
diferentes grupos sociais, explica-se que a pluralidade é fator de fortalecimento da
democracia pelo adensamento do tecido social que se pelo fortalecimento das
culturas e pelo entrelaçamento das diversas formas de organização social de diferentes
grupos.
Esse tema necessita, portanto, que a escola, como instituição voltada para a
constituição de sujeitos sociais, ao afirmar um compromisso com a cidadania, coloque
em análise suas práticas, as informações e os valores que veicula.
42
CAPÍTULO 2
ANÁLISE DO DISCURSO DE LINHA FRANCESA
Este capítulo visa a discorrer a respeito da Análise do Discurso de perspectiva
francesa, partindo de sua gênese, abordando alguns conceitos-chave como sujeito,
discurso e ideologia.
A Análise do Discurso a ser abordada, neste capítulo, constitui uma disciplina de
orientação francesa, formulada por Michel Pêcheux e outros, na década de
60, cuja base
marxista apresenta, além de uma análise formal, isto é, uma análise do texto enquanto
materialidade do discurso, considerando o relacionamento dessa materialidade
discursiva com a História, avaliando as condições de produção em que o discurso ocorre
e articulando pressupostos teóricos da Lingüística, do Materialismo Histórico e da
Psicanálise.
Para a Análise do Discurso, a linguagem é entendida como ação, transformação,
como um trabalho simbólico em “que tomar a palavra é um ato social com todas as suas
implicações, conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidade,
etc” (ORLANDI, 1998, p.17).
Nessa perspectiva teórica, o sujeito é atravessado tanto pela ideologia quanto
pelo inconsciente, o que produz não mais um sujeito uno, mas um sujeito cindido,
atravessado, descentrado, não se constituindo na fonte e origem dos processos
discursivos que enuncia, uma vez que esses são determinados pela formação discursiva
na qual o sujeito está inscrito. Quando enuncia, esse sujeito o faz sob a ilusão de ser
fonte, origem do seu discurso. Segundo Orlandi (2005, p.15), a Análise do Discurso
não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas
lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra do discurso,
etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr
por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática
de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando.
(...) O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da
existência humana.
A Análise do Discurso de perspectiva francesa é uma vertente da Lingüística
que, como pensada por Pêcheux, seu fundador, relaciona a linguagem com a ideologia.
(ORLANDI, 2005), a partir de Bakhtin, (1997, p.10) para quem
43
a palavra é o signo ideológico por excelência, pois, produto da
interação social, ela se caracteriza pela plurivalência. Por isso é o
lugar privilegiado para a manifestação da ideologia; retrata as
diferentes formas de significar a realidade, segundo vozes, pontos de
vistas daqueles que a empregam. Dialógica por natureza, a palavra se
transforma em arena de luta de vozes que, situadas em diferentes
posições, querem ser ouvidas por outras vozes.
Portanto, partindo do princípio de que a ngua é matéria viva e de que é por
meio de sua materialidade que o sujeito mostra seus valores, suas idéias e sua história,
pressupõe-se que ela seja um instrumento ideológico em que várias vozes se
manifestam.
A Análise do Discurso da chamada Escola Francesa surgiu no cenário da
intelectualidade francesa, na década de 60, como reação a duas fortes tendências em
destaque no campo da linguagem: o estruturalismo e a gramática transformacional.
Para entender a gênese dessa disciplina, faz-se necessário compreender as
condições que propiciaram a sua emergência. Maldidier (1994) atribui a fundação da
Análise do Discurso aos estudiosos Jean Dubois e Michel Pêcheux; aquele, um
lingüista, lexicólogo envolvido com os empreendimentos da Lingüística da época, e
este, um filósofo envolvido com os debates em torno do marxismo, da psicanálise e da
epistemologia. O que de comum nos trabalhos desses pesquisadores é que ambos se
interessaram pelos estudos lingüísticos e vislumbraram meios de utilização dessa
ciência da linguagem para abordar a política, partilhando convicções sobre a luta de
classes, a história e o movimento social.
Foi, pois, sob esse momento histórico do marxismo e do crescimento da
Lingüística, que nasceu o projeto da Análise do Discurso.
A Análise do Discurso, da perspectiva política, surgiu dentro do contexto de um
assentado estruturalismo que enfrentava o problema de ter deixado sem respostas o
estudo do sujeito, e surgiu também sob a ótica de uma intervenção, de uma ação
transformadora, que almejou a combater o excessivo formalismo lingüístico então
vigente.
Segundo Orlandi (2005, p.16),
em uma proposta em que o político e o simbólico se confrontam, essa
nova forma de conhecimento coloca questões para a Lingüística,
44
interpelando-a pela historicidade que ela apaga, do mesmo modo que
coloca questões para as Ciências Social, interrogando a transparência
da linguagem sobre a qual elas se assentam. Dessa maneira, os estudos
discursivos visam pensar o sentido dimensionado no tempo e no
espaço das práticas do homem, descentrando a noção de sujeito e
relativando a autonomia do objeto da Lingüística.
A AD, em sua constituição epistemológica, apresenta-se como uma
disciplina heteróclita, que desempenha uma função de absoluta singularidade no campo
das ciências humanas. Isso ocorre porque ela se inscreve na confluência de três regiões
do conhecimento científico: o materialismo histórico, como teoria das formações
sociais, incluindo a ideologia; a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e
dos processos de enunciação e a teoria do discurso, como teoria da determinação
histórica dos processos semânticos (ORLANDI, 2005, p.25). Percebe-se, então, como
bem o afirma Ferreira (2007), que a AD não se vê como uma disciplina autônoma
tampouco como disciplina auxiliar. Ela visa tematizar o objeto discursivo como sendo
objeto-fronteira, que trabalha nos limites das grandes divisões disciplinares, sendo um
constituído de uma materialidade lingüística e de uma materialidade histórica,
simultaneamente. A AD recorta, portanto, seu objeto teórico (o discurso), distinguindo-
se da lingüística imanente, que se centra na língua como instrumento para a explicação
de textos.
Ainda, segundo Ferreira (2007), ao romper com o corte saussuriano de
língua/fala, a AD faz intervir o conceito de discurso, o que determina uma profunda
mudança na relação de oposição estabelecida pela lingüística. O novo par
língua/discurso não assinala mais uma relação de oposição entre os conceitos
envolvidos, mas, sim, de contradição. Conforme afirmam os teóricos do discurso, a
língua, que tem, na AD, autonomia relativa, vai funcionar como base, como lugar
material em que vão se realizar os processos discursivos. A língua redefine-se, pois,
como pressuposto, como modo de acesso, para analisar a materialidade do discurso. A
principal característica da AD é ser uma teoria crítica da linguagem.
À AD, atribui-se a condição de disciplina de entremeio, uma vez que sua
constituição se dá às margens das ciências humanas, em que ocorre um deslocamento de
terreno: “a AD produz um outro lugar de conhecimento com sua especificidade. Não é
mera aplicação da lingüística sobre as ciências sociais e vice-versa” (ORLANDI, 1996,
p.24).
45
Nesse sentido, ressalta-se que os conceitos que a AD traz de outras áreas de
conhecimento, como a psicanálise, o marxismo, a lingüística e o materialismo histórico;
ao se integrarem ao corpo teórico do discurso, essas áreas deixam de ser aquelas noções
com os sentidos estritos originais e se ajustam à superficialidade e à ordem da própria
rede discursiva. É o que acontece, por exemplo, com os conceitos de inconsciente,
ideologia, língua e história.
Michel Pêcheux, apoiado numa formação filosófica, desenvolve um
questionamento crítico a respeito da Linguagem e, diferentemente de Dubois, não pensa
a instituição da AD como um progresso natural permitido pela Lingüística, ou seja, não
concebe que o estudo do discurso seja uma passagem natural da Lexicologia para a
Análise do Discurso.
O filósofo, diante dessas questões, cria uma máquina de análise automática do
discurso AAD 69, a que denominara “maquinaria discursiva”, na busca de dar conta
da exterioridade do texto. (SARGENTINI, 1999).
Segundo Sargentini (1999), a proposta da Análise do Discurso francesa,
derivada de Pêcheux, no desenvolvimento teórico de seus estudos, percorre três etapas.
A primeira, conhecida como AAD 69 ou AD-1, elaborada em 69, caracteriza-se
pela exploração metodológica da noção de maquinaria discursiva estrutural, concebendo
o processo de produção discursiva como uma máquina autodeterminada e fechada sobre
si mesma, de modo que um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores de
seus discursos, ou seja, a estrutura condições de produção estáveis e homogêneas é
responsável pela geração de um processo discursivo. O sujeito é interpelado
ideologicamente (Althusser, 1992), e seu discurso é determinado por uma máquina
estrutural fechada, e a ngua é o lugar em que se a ação do discurso. Nessa fase, a
partir desse conceito althusseriano, Pêcheux considera que o sujeito se acredita produtor
de seu discurso, quando na verdade, é apenas assujeitado, suporte para a produção desse
discurso;
um processo de produção discursiva é concebido como uma máquina
autodeterminada e fechada em si mesma, de tal modo que um sujeito-
estrutura determina os sujeitos como produtores de seus discursos: os
sujeitos acreditam que “utilizam” seus discursos quando na verdade
são seus “servos” assujeitados, seus suportes (PÊCHEUX, 1990,
p.311).
46
Para essa concepção de sujeito, a definição de discurso fica restrita a um
conjunto de enunciados fechados e, desse modo, possível de ser analisado por uma
máquina lógico-semântica.
Alguns questionamentos a respeito desse estatuto do sujeito do e no discurso
leva a AD a um segundo momento, em que são importantes as contribuições de
Benveniste referentes à subjetividade na linguagem, cuja base se assenta na proposição
de que o sujeito se apropria da linguagem para construir o seu discurso. Pêcheux,
porém, afasta-se de Benveniste quando faz erigir a polêmica entre o uso social ou
individual da linguagem (SARGENTINI, 1999).
Nesse segundo momento da AD, conhecido como AD 75, incorporam-se os
conceitos de formação discursiva e de interdiscurso; um deslocamento teórico em
relação ao primeiro momento, passando a ser foco de estudo as relações entre as
máquinas discursivas estruturais (GADET &HAK, 1990, p.165).
Segundo Orlandi (2005, p.43-44), Pêcheux busca apoio em Foucault e define
formação discursiva (doravante FD) como
aquilo que numa formação ideológica dada - ou seja, a partir de uma
posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada determina o
que pode e deve ser dito. Daí a compreensão de dois pontos (...): A. O
discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz
se inscreve em uma formação e não outra para ter sentido e não outro.
Por podemos perceber que as palavras não têm sentido nelas
mesmas, elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que
se inscrevem. As formações discursivas, por sua vez, representam no
discurso as formações ideológicas. Desse modo, os sentidos sempre
são determinados ideologicamente (...). B. É pela referência à
formulação discursiva que podemos compreender no funcionamento
discursivo, os diferentes sentidos. Palavras iguais podem significar
diferentemente porque se inscrevem em formações discursivas
diferentes (...).
As FD estão posicionadas em complexos de FD relacionadas, referidas como
‘interdiscurso’ e os significados específicos de uma FD são determinados pelo exterior
em sua relação com o interdiscurso. No entanto, os sujeitos não estão conscientes dessa
determinação externa, percebendo-se como fonte dos significados de uma FD, quando
eles são, na verdade, seus efeitos.
A introdução do conceito de formação discursiva coloca em cheque a noção de
máquina estrutural fechada;
47
a noção de formação discursiva tomada de empréstimo a Michel
Foucault, começa a fazer explodir a noção de máquina estrutural
fechada na medida em que o dispositivo da FD está em relação
paradoxal com seu “exterior”: uma FD não é um espaço estrutural
fechado, pois é constitutivamente “invadida” por elementos que vêm
de outro lugar (isto é de outras FD) que se repetem nela, fornecendo-
lhe suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo, sob a
forma de “preconstruídos” e de “discursos transversos”) (PÊCHEUX,
1990, p.314).
Nesse momento, o sujeito deixa de ser visto como locutor de uma voz unitária,
para ser heterogêneo, disperso (AUTHIER-REVUZ, 2004), e é, nesse cenário, que as
reflexões de Bakhtin a respeito do dialogismo são reavaliadas e dão novos impulsos aos
estudos da enunciação e do discurso na AD, isto é,
o dialogismo, proposto por Bakhtin, passa a ser fundamento de toda a
discursividade e estabelece a constituição do sujeito da enunciação a
partir da circunstância dialógica (SARGENTINI, 1999, p.43).
No terceiro momento, conhecido como AD 83 ou AD-3, a idéia de
homogeneidade enunciativa é abandonada como resultado da interação cumulativa de
momentos de análise lingüística e discursiva. Essa postura permitiu o deslocamento da
noção de constituição do discurso que passa a ser concebido como constituído no
entrecruzamento entre a estrutura e o acontecimento, como conseqüência da mudança
de enfoque da estrutura para o acontecimento.
Nesse momento, o sujeito sofre um deslocamento que inaugura uma nova
vertente, bastante atual, da AD. Nessa terceira fase, a concepção do sujeito é definida de
forma um pouco menos estruturalista. Acordada com uma noção de discurso marcado
radicalmente pela heterogeneidade afirma-se, nesta fase, a primazia do interdiscurso -
tem-se um sujeito essencialmente heterogêneo, clivado, dividido.
Segundo Orlandi (2005, p.31-33), o interdiscurso
é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar,
independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva:
o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a
forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível,
sustentando cada tomada da palavra. [...] O interdiscurso é todo
conjunto de formulações feitas e já esquecidas eu determina o que
dizemos.
48
A AD recusa, desde o primeiro momento, de acordo com postulados de Pêcheux
(1997), qualquer metalíngua universal supostamente inscrita no inatismo do espírito
humano, e de toda suposição de um sujeito intencional como origem enunciadora de seu
dizer. Entretanto, foi a partir do refinamento e, conseqüentemente, da postulação do
primado da alteridade, que o sujeito do discurso passa a ser compreendido como um
sujeito atravessado pelo inconsciente.
Somos afetados pela ideologia e determinados por nossa relação com a língua e
a história por meio de nossas relações ao longo da vida, e a AD se propõe a construir
escutas que possibilitam levar em conta esse efeito, considerando o que é dito num
discurso e em outros, bem como procurando o não-dito naquilo que foi dito, pois
uma parte do dizível é accessível ao sujeito (PINTO, 2007, p.90).
49
2.1 SUJEITO, IDEOLOGIA E DISCURSO
Com o propósito de entender melhor a orientação da AD, nesse momento, se
marcando como Análise do Discurso de perspectiva francesa (doravante ADF), é
necessário que se façam algumas considerações a respeito dos conceitos-chave que
constituem sua base teórica.
O sujeito, tal como concebido pela ADF, não é a fonte única do significado, do
sentido; não é a origem, não é o agente construtor de sua realidade, pois ele se constitui,
com base em Bakhtin, por falas de outros sujeitos. Desse modo, o sujeito é resultante da
interação de várias vozes, da relação com os aspectos social e histórico e, por
conseguinte, ideológico, portanto, tem caráter heterogêneo. De acordo com pressupostos
althusserianos (GADET & HAK, 1990, p.30),
é tendo como referência a ideologia que Pêcheux introduz sujeito
enquanto efeito ideológico elementar. É enquanto sujeito que qualquer
pessoa é ‘interpelada’ a ocupar um lugar determinado no sistema de
produção.
Dessa forma, infere-se que a voz desse sujeito revela o seu lugar social, logo,
expressa um conjunto de outras vozes integrantes de dada realidade social: de sua voz
ecoam as vozes constitutivas e/ou integrantes desse lugar social,
Faz-se oportuno lembrar que, contrapondo-se a uma filosofia idealista da
linguagem (que concebe sujeito como fonte de origem de tudo o que diz e o sentido
como algo existente), Pêcheux & Fuchs (1997) consideram que o sujeito é tomado
por dois tipos de esquecimento.
Segundo Pêcheux (Orlandi, 2005, p.34), o esquecimento número 1, também
chamado de esquecimento ideológico ou interdiscurso, é aquele em que o sujeito se
coloca como origem de todo o seu dizer. Esse esquecimento é de natureza inconsciente
e ideológica: o sujeito procura rejeitar, apagar, de maneira inconsciente, tudo aquilo que
não está inserido na sua formação discursiva, o que lhe dá a ilusão de ser o criador
absoluto e seu discurso.
Com o esquecimento número 2, também chamado de esquecimento enunciativo
ou intradiscurso, que é da ordem da enunciação e de caráter pré-consciente ou
semiconsciente, o sujeito privilegia algumas formas e “apaga” outras; esse
esquecimento produz, no falante, impressão da realidade do pensamento. Esse
50
esquecimento leva o sujeito a acreditar que todo interlocutor captará suas intenções e
suas mensagens da mesma forma e como ele as proferiu.
Há a ilusão de que sabe e controla tudo o que diz.
De acordo com Orlandi (2005, p.36), essas
ilusões não são “defeitos”, são uma necessidade para que a linguagem
funcione nos sujeitos e na produção de sentidos. S sujeito “esquecem
que foi dito e este não é um esquecimento voluntário para, o se
identificarem com o que dizem se constituírem em sujeitos. É assim
que suas palavras adquirem sentido, é assim que eles se significam
retomando palavras existentes como se elas e originassem neles é
assim que sentidos e sujeitos estão sempre e movimento, significando
sempre muitas e variadas maneiras. Sempre as mesmas, mas, ao
mesmo tempo, sempre outras.
A concepção de um sujeito marcado pela idéia de centro, da unidade, da fonte ou
origem do sentido constitui uma ilusão necessária, em sua formação a fim de que o
sujeito continue a produzir discurso. O sujeito como centro e origem de sentido passa a
ser questionado, que ele situa o seu discurso em relação aos discursos do outro. A
constituição do sujeito discursivo é, assim, marcada por uma heterogeneidade
decorrente de sua interação social em diferentes segmentos da sociedade (BRANDÃO,
1997).
Para a ADF, o sujeito é essencialmente ideológico e histórico, pois está inserido
num determinado lugar e tempo. Com isso, ela vai posicionar o seu discurso em relação
aos outros discursos, inserindo-se num tempo e espaço socialmente situados. No
imbricamento entre o lingüístico e o social, a enunciação passa a ser um fator relevante
para a interpretação, para a constituição do significado.
Para Orlandi (1996, p.15), o espaço de interpretação, no qual o autor se insere
com seu gesto, e o constitui como autor deriva de sua relação com a memória; gesto é,
com o saber discursivo, o interdiscurso. O autor é conduzido pela força da materialidade
do texto, cujo gesto de interpretação é historicamente determinado pelo interdiscurso.
Seguindo nessa mesma direção, o sentido não está já fixado como essência das palavras
tampouco pode ser qualquer um. Há a determinação histórica, um entremeio.
O lingüístico e o histórico são considerados como indissociáveis no processo de
produção do sujeito do discurso e dos sentidos e o significam, o que possibilita afirmar,
51
segundo pressupostos da ADF, que o sujeito é um lugar de significação historicamente
constituído.
Pelo entendimento de interpretação e pela consideração de que o sujeito e
sentido são constituídos pela ordem significante na história ficam claras as relações
entre sujeito, sentido, língua, história, inconsciente e ideologia (ORLANDI, 1996).
A ideologia, segundo a concepção marxista, é um instrumento de dominação de
classe, porque a classe dominante faz com que suas idéias passem a ser idéias de todos,
eliminando-se as contradições entre força de produção, relações sociais e consciência. A
ideologia é, portanto,
instrumento e dominação de classe porque a classe dominante faz com
que suas idéias passem ser idéias de todos. Para isso eliminam-se as
contradições entre a força de produção, relações sociais e consciência,
resultantes da divisão social do trabalho material e intelectual.
Necessária à dominação de classe, a ideologia é ilusão, isto é,
abstração e inversa da realidade (BRANDÃO, 1997, p. 221)
Dessa forma, o termo ideologia parece estar reduzido a uma simples categoria
filosófica de ilusão ou mascaramento da realidade social, pois Marx toma como ponto
de partida, para a elaboração de sua teoria, a crítica ao sistema capitalista e o respectivo
desnudamento da ideologia burguesa, que para ele conta a ideologia da classe
dominante. Marx e Engels, 1965 (BRANDÃO, 1997, p. 20-21), afirmam que,
as idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias
dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da
sociedade e, ao mesmo tempo, sua força espiritual. A classe que tem à
sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo
tempo, dos meios de produção espiritual. (...) Na medida em que
dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época
histórica, é evidente que o façam em toda a sua extensão e,
conseqüentemente, entre outras coisas, dominem também com
pensadores, como produtores de idéias; que regulem a produção e
distribuição de idéias de seu tempo e que suas idéias sejam, por isso
mesmo, as idéias dominantes da época.
Na concepção do filósofo Althusser (1992, p.8), assumida pela ADF, a ideologia
tem existência material, e é nessa materialidade que ela deve ser estudada, e não como
meras idéias. De acordo com o teórico,
52
trata-se de estudar as ideologias como um conjunto de práticas
materiais necessárias à reprodução das relações de produção. O
mecanismo pelo qual a ideologia leva o agente social a reconhecer o
seu lugar é o mecanismo de assujeitação
.
Esse conceito de sujeição surge como um mecanismo de duplo efeito: é agente
que se reconhece como sujeito e se assujeita a um sujeito absoluto. De acordo com ele, a
sujeição não está presente apenas nas idéias, porém existe num conjunto de práticas que
se encontram em um conjunto de instituições concretas. Ainda segundo o autor, a
ideologia não é produto do pensamento das pessoas: é a própria existência material
definindo o que as pessoas pensam e incorporando-se na nossa sociedade, naquilo que
denomina de Aparelhos Ideológicos do Estado.
Percebe-se, dessa maneira, o paralelismo entre os princípios althusserianos e da
AAD-69 de Pêcheux.
É perceptível que o fenômeno ideológico tem sido fortemente marcado pelas
idéias marxistas. Com relação a isso, Ricouer (1977) adverte para a existência da
tendência a se construir uma interpretação redutora do fenômeno ideológico, a partir da
análise de classes sociais. Ele atribui à ideologia a função geral de mediadora na coesão
do grupo; a função de dominação em que o conceito de ideologia está ligado aos
aspectos hierárquicos da organização social, cujo sistema de autoridade interpreta e
justifica e, a função de deformação que nos faz tomar a imagem pelo real, o reflexo pelo
original (BRANDÃO, 1997).
Foucault (1980, p.131), em seus estudos, concebe que a construção do
ideológico pode ser sintetizada a partir da seguinte forma “a verdade está circularmente
ligada a sistemas de poder, que a produzem”. Portanto, se existe uma relação entre
verdade e poder, todos os discursos podem ser vistos funcionado como regimes de
verdade. O autor afirma que
cada sociedade tem seu regime de verdade, isto é, os tipos de discurso
que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e
instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e
falsas, os meios pelos quais cada um deles é sancionado; as técnicas e
procedimentos valorizados na aquisição da verdade; o status daqueles
que estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro.
Foucault entende que a verdade é estreitamente ligada à formação de sujeitos,
bem como à sua linguagem. O saber é constituído de um conjunto de práticas
53
discursivas, que pressupõe relações que dizem respeito às instituições, acontecimentos
políticos, práticas e processos econômicos, como determinantes das práticas discursivas.
De acordo com o autor, o poder não é um objeto natural, mas sim, uma prática
social e, como tal, constituído historicamente. Ele expande-se pela sociedade, assume as
formas mais regionais e concretas, investe em instituições, toma corpo em técnicas de
dominação. O poder intervém materialmente, atinge ou constitui os indivíduos
ideologicamente e penetra em suas atitudes cotidianas.
Gregolim (1988, p. 118), com base em Pêcheux, afirma que, “como as idéias não
existem desvinculadas das palavras, a linguagem é um dos lugares onde se materializa a
ideologia”. Nessa perspectiva, o poder mostra a alternância entre uma positividade e
uma negatividade que lhe é atribuída, mantendo a idéia de propriedade e exercícios de
um único soberano, ou de uma minoria sobre uma maioria. As relações de poder
inserem-se em todos os lugares, em todos os micropoderes existentes na sociedade,
a partir do momento em que uma relação de poder, uma
possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder:
podemos sempre modificar sua dominação em condições
determinadas e segundo uma estratégia precisa (FOUCAULT, 1985,
p.241).
Nessa ótica foucaultiana, encontra-se, também, a idéia de que o aparecimento
dos saberes e das ciências modernas é permeado pelas relações de poder, porque o
sujeito é efeito-objeto de relações de poder. Saber e poder implicam-se mutuamente.
Não relação de poder sem constituição do saber. Todo saber constitui novas relações
de poder. Todo exercício do poder é também um lugar de formação de saber.
Para Orlandi (2005, p. 45),
não sentido sem interpretação e, além disso, diante de qualquer
objeto simbólico o homem é levado a interpretar, colocando-se diante
da questão: O que isso quer dizer? Nesse movimento da interpretação
o sentido aparece-nos como evidência, como se ela estivesse
sempre lá. Interpreta-nos e ao mesmo tempo nega-se a interpretação
colocando-a no grau zero. Naturaliza-se o que é produzido na relação
do histórico e do simbólico.
Ainda nas palavras da autora, por esse mecanismo ideológico - de apagamento
da interpretação, há transposição de formas materiais em outras, construindo-se
transparências como se a linguagem e a história não tivessem sua espessura, sua
54
opacidade para serem interpretadas por determinações históricas que se apresentam
como imutáveis, naturalizadas. E a ideologia visa a isso: produzir evidências, colocando
o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência:
a ideologia faz parte, ou melhor, é a condição para a constituição do
sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia e o inconsciente são estruturas-funcionamento (ORLANDI,
2005, p.46).
Pode-se perceber, portanto, que a ideologia constitui um conceito fundamental
neste estudo, uma vez que alia o lingüístico ao sócio-histórico. A linguagem passa a ser
um fenômeno que deve ser estudado não apenas no seu sistema interno, mas também
como formação ideológica que se manifesta nesse contexto sócio-histórico. Desse
modo, incide profundamente, na formação dos sujeitos e, mais do que isso, constitui tais
sujeitos. Entendida como o elemento necessário para a comunicação entre o homem e a
sua realidade (assujeitado ou não), a linguagem é o instrumento essencial do sujeito, e é
nela que se manifestam as representações e os implícitos ideológicos, sempre
dependentes das condições de produção dos discursos, incidindo na sua formação, nas
suas experiências e em suas escolhas de vida.
Discurso é o objeto de que a Análise do Discurso se ocupa. Nessa perspectiva
teórica, o discurso é um conjunto de enunciados que derivam da mesma formação
discursiva. Ou seja, ele é constituído por um certo número de enunciados para os quais
se pode definir um conjunto de condições de existência. Esse conjunto de condições
corresponde a um sistema de coerções de boa formação semântica. “O discurso tem a
regularidade de uma prática eu deve ser apreendida em um ‘sistema de formação’”
(FOUCAULT, 1973, p.97).
Logo, o discurso, segundo postulados foucaultianos,
é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas
no tempo e no espaço que definiram em uma época dada, e para uma
área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições
da função enunciativa
.
No dizer de Orlandi, quando uma palavra significa é porque a sua interpretação
deriva de um discurso que a sustenta, que a provê de realidade significativa. É na
compreensão do que é o texto que podemos entender a relação com o interdiscurso, a
55
relação com os sentidos. Em outros termos, o texto é um objeto lingüístico-histórico,
como foi visto, e, a partir disso, visto sob a perspectiva do discurso; ele não é uma
unidade fechada, embora, como unidade de análise, ele possa ser considerado uma
unidade inteira, pois ele tem relação com outros textos (existentes, possíveis ou
imaginários), com suas condições de produção (os sujeitos e a situação de enunciação) e
com o que chamamos sua exterioridade constitutiva.
Na perspectiva discursiva, o que importa não é a organização do texto, mas o
que o texto organiza em sua discursividade, em relação à ordem da língua e das coisas:
a sua materialidade. Assim,
os dados não têm memória, são os fatos que nos conduzem à memória
lingüística. Nos fatos temos a historicidade. Observar os fatos de
linguagem vem a ser considerá-los em sua historicidade, enquanto eles
representam um lugar de entrada na memória da linguagem, sua
sistematicidade, seu modo de funcionamento. Em suma, olhamos o
texto como fato, e não como um dado, é observarmos como ele,
enquanto objeto simbólico, funciona (ORLANDI, 1996, p.58).
Para Foucault 1969 (BRANDÃO, 1997, p.28-29), é na dispersão de textos (e não
na unidade) que se constitui um discurso; a relação com as Formações Discursivas em
suas diferenças é elemento fundamental que constitui o que estamos chamando de
historicidade do texto. O sentido sempre pode ser outro, e o sujeito (com suas intenções
e seus objetivos) não tem o controle daquilo que está dizendo.
Essas premissas levam a duas ordens de conclusões, a primeira, de um sujeito
não produz só um discurso; a segunda de que um discurso não é igual a um texto.
Partindo dessas conclusões, a ADF propõe a seguinte relação: remeter o texto ao
discurso e esclarecer as relações desse com as Formações Discursivas, refletindo a
respeito das relações destas com a ideologia.
Para a ADF, interessa o texto, não como objeto final de sua explicação, mas
como algo que permita ter acesso ao discurso. O discurso não pode ser concebido fora
do sujeito e nem este fora da ideologia, uma vez que esta o constitui. “Não existe
discurso sem sujeito, e não existe sujeito sem ideologia” PÊCHEUX, 1975 (apud
ORLANDI, 1996).
É com a linguagem que o sujeito se constitui e é também nela que ele deixa
marcas desse processo ideológico. A linguagem como interação é um modo de
produção social, que não é neutra nem natural, sendo local privilegiado da manifestação
56
da ideologia, isto é, das formações ideológicas que estão diretamente ligadas aos
sujeitos.
Pode-se afirmar que não se parte da ideologia para o sentido, mas procura-se
compreender os efeitos de sentido a partir do fato de que é no discurso que se configura
a relação da língua com a ideologia.
57
2.2 A HETEROGENEIDADE DA LINGUAGEM
Para a reflexão das teorias da ADF, proposta neste trabalho, recorreu-se à
relação entre sujeito, ideologia e discurso, para se entender heterogeneidade constitutiva
do sujeito, e, portanto, de seu discurso. Para abordá-la, é fundamental conhecer esses
três elementos que existem interligados, no sentido de que um é dependente do outro.
De acordo com Coracini ( 2001, p.139),
do caráter heterogêneo da linguagem e do discurso infere-se que não é
possível concebê-lo apenas ou prioritariamente como lugar de
interação e comunicação, mas também, ou sobretudo como lugar de
não-comunicação e equívocos, sempre atrelado a um dado momento
histórico-social, responsável pelos diferentes sentidos produzidos.
Auhtier-Revuz (2004), em seus postulados, com base em Bakhtin e na
concepção de sujeito psicanalítico de inspiração lacaniana, desponta, nos estudos da
linguagem, com a teoria da heterogeneidade como vozes constitutivas do sujeito e,
conseqüentemente, de todo o dizer produzido por ele. A autora aponta para dois tipos
de manifestação de heterogeneidade enunciativa no processo de constituição do
discurso, a heterogeneidade mostrada e a constitutiva.
58
2.2.1 HETEROGENEIDADE MOSTRADA
A heterogeneidade mostrada é a manifestação explícita de diferentes vozes, ou
seja, indica a presença do outro no discurso do locutor; o sujeito, no momento em que
fala, escreve, traz, para o seu dizer, alguns outros sujeitos que o constituem, marcando,
dessa forma, distância entre ele e outros que ele seleciona de acordo com seus
interesses. Authier-Revuz (1990) aponta três tipos de heterogeneidade mostrada:
primeiro, aquela em que o locutor ou usa de suas próprias palavras para traduzir o
discurso de um Outro (discurso relatado) ou, então, recorta as palavras do Outro e as
cita (discurso direto); segundo, aquela em que o locutor assinala as palavras do Outro
em seu discurso, por meio, por exemplo, de aspas, de itálico, de uma remissão a outros
discursos, sem que o fio discursivo seja interrompido, e, terceiro, aquela em que a
presença do Outro não é explicitamente mostrada na frase, mas é mostrada no espaço do
implícito, do sugerido, como nos casos do discurso indireto livre, da antífrase, da ironia,
da imitação, da alusão.
De acordo com Althier-Revuz (2004, p.14), “o processo de escuta ou de
leitura que, simultaneamente à fala ou à escrita, se reflete em sua progressão linear,
direcionando-os, essas fórmulas constituem uma espécie de metadiscurso ingênuo,
comum, que especifica e explica o estatuto outro do elemento referido”.
Ainda, na esteira da autora, com efeito, essas fórmulas
se inserem o fio do discurso como marcas de uma atividade de
controle-regulagem do processo de comunicação e especificam, sob a
forma negativa do sinal de falta ou da operação de ajuste, as diferentes
condições requeridas aos olhos do locutor para a troca verbal
“normal”, e que por isso, o dadas implicitamente (ALTHIER-
REVUZ, 2004, p.14).
É por meio da heterogeneidade mostrada que o sujeito enunciador retoma o
discurso do outro e, ao fazê-lo, inscreve conscientemente o Outro, em seu espaço
discursivo sob diferentes formas. A heterogeneidade mostrada tem como efeito de
sentido a separação nítida entre o dizer que pertence ao outro e o próprio dizer.
59
2.2.2. HETEROGENEIDADE CONSTITUTIVA
A heterogeneidade constitutiva é aquela em que o outro constitui o um, o sujeito,
e que este sujeito nem sabe quem é. São todos os que passaram por sua vida, é tudo
aquilo que leu, estudou. Em seu enunciado, cruzam-se os dizeres de outros.
Segundo a perspectiva bakhtiniana de linguagem, pode-se dizer que todo
discurso é dialógico por natureza, o que corresponde na visão de Authier-Revuz (2004),
à heterogeneidade constitutiva, já que esta equivale ao funcionamento real do discurso
sem, entretanto, explicar a alteridade na subjetividade. na heterogeneidade mostrada,
a projeção do outro se deixa revelar no discurso, modificando a homogeneidade do
sujeito.
Segundo a concepção da heterogeneidade constitutiva, o sujeito apresenta a
ilusão necessária de ser fonte única do sentido. Segundo reflexões bakthinianas,
apontadas pela autora acerca de dialogismo, esse sujeito se esquece de que suas palavras
não são somente suas, mas de outros que o atravessam.
O outro do dialogismo de Bakhtin não é nem o objeto exterior do discurso, nem
o duplo do locutor, ele é a condição do discurso. Não se concebe o outro fora, mas como
fronteira interior, no qual, o sujeito luta pela sobrevivência, almejando sua identidade.
Seguindo os estudos em torno do Círculo de Bakhtin, Authier-Revuz detalha formas de
se referir à heterogeneidade constitutiva, embora reconheça que essa ordem está fora do
alcance da descrição lingüística.
O Plurilingüismo é analisado como pontos de vista específicos sobre o mundo. A
aposta ideológica a serviço da monologização corresponde aos interesses das camadas
dominantes. Ao negar-se o funcionamento dialógico do discurso, nega-se também o
jogo instável e conflitante das relações sociais, refletido nos falares sociais. É nesse
sentido que Authier-Revuz (2004, p. 32) pontua:
o que manifesta e reforça esse trabalho sobre a língua é uma ruptura
radical com o monologismo, a ingenuidade verbal, a dialogização
interior da prosa literária testemunha aquilo que Bakhtin chama
opondo-se à linguagem ptolomeana, diretamente intencional,
peremptória, única e singular – uma consciência galileana, relativizada
da linguagem.
A heterogeneidade constitutiva trata do duplo dialogismo existente no discurso,
considerando que, todo discurso se faz no meio do já dito dos outros discursos e,
portanto, é conhecido pelo seu interdiscurso; o discurso não existe independentemente
60
daquele a quem ele é endereçado. A visão do destinatário é incorporada e determina o
processo de produção do discurso.
PARTE II
61
CAPÍTULO I – CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO
As condições de produção compreendem essencialmente os sujeitos e a situação,
e no sentido proposto por Pêcheux (1969), junto com o contexto sócio-histórico-
ideológico, os interlocutores e as imagens pressupostas, bem como o lugar onde eles
ocupam na sociedade como espaço de representação social (ORLANDI, 2005).
Os objetos de análise desta pesquisa são textos autobiográficos produzidos por
alunos da Escola para Jovens e Adultos (doravante EJA), um curso destinado a alunos
que não têm idade apropriada para cursar o ensino regular e especialmente para pessoas
que interromperam seus estudos em determinado momento da vida e retornaram por
diversos motivos.
O enfoque da análise objetivou entender às razões, assistematicamente
observadas, que levavam os alunos a apagarem a cultura popular caiçara de Ubatuba,
uma cidade litorânea que passou, cerca de 40 anos, da condição de uma aldeia de
pescadores para uma estância turística de muita procura, dada à construção de grandes
rodovias e também, a proximidade de um estado que não é banhado pelo mar, Minas
Gerais, e perto da maior capital brasileira, São Paulo; e se esse apagamento era ou não
produzido pela nova ordem do discurso capitalista.
Esses alunos trabalham, estudam e pertencem a uma classe social de baixa
renda. A maioria deles tem idade muito superior ao dos alunos desse nível de
escolarização.
Na pesquisa, analisa-se o discurso produzido por alunos que, em algum
momento de suas vidas, precisaram interromper seus estudos e, agora, regressaram à
sala de aula. Para que possam freqüentar o EJA, é necessário que tenham mais de
quinze anos, embora a maioria tenha idade bem superior. Eles são trabalhadores, donas
de casa, pais de família que sentiram, efetivamente, a necessidade de voltar a estudar.
Os discursos a serem analisados foram coletados por meio da análise de textos
do gênero autobiográfico produzidos em sala, durante as aulas de produção de texto,
cujo objetivo foi investigar, na materialidade lingüística de seus textos, a representação
ou imagem que eles fazem da cidade de Ubatuba. Em um segundo momento,
investigou-se o motivo que levou esses alunos a se inscreverem na EJA.
Neste capítulo, portanto, tecem-se algumas considerações a respeito da história
da Educação para Jovens e Adultos no Brasil, para que uma caracterize melhor o
62
universo dos sujeitos desta pesquisa que fazem parte desse tipo específico de educação
inclusiva.
É possível perceber que a sociedade contemporânea vive um momento de novas
realidades sociais, políticas, econômicas, culturais e geográficas, promovidas pela
globalização, pela informação decorrente de novas tecnologias de comunicação, pela
mudança de concepções do Estado e pela mudança dos paradigmas da ciência e do
conhecimento. Essas mudanças põem em cheque as antigas exigências quanto ao
mercado de trabalho que, atualmente, frente às essas novas dimensões, determina um
novo perfil do trabalhador. Almeja-se a pessoas mais qualificadas, com novas
habilidades e atitudes, competências profissionais, maior conhecimento, mais cultura,
maior preparo técnico, novas habilidades cognitivas e competências sociais que lhe são
determinantes para a inclusão social.
Em uma sociedade como a brasileira, cujo discurso enuncia o ideal democrático
o qual busca a igualdade e a equidade, faz-se imperativo oferecer condições para que as
pessoas tenham acesso ao conhecimento, possibilitando, desse modo, sua inserção
social e sua participação ativa no mercado de trabalho, ora tão exigente.
Frente a essas mudanças, à nova ordem do discurso capitalista, torna-se
necessário que os aparelhos ideológicos educacionais revejam seus instrumentos de
formação discente. De acordo com Silva (1996, p. 32-33),
caberia ao sistema educacional formar este novo tipo de trabalhador,
dotado de um acervo de conhecimentos técnicos e científicos
apropriado às novas exigências. Não mais o trabalhador limitado e
parcial da linha de produção fordista e taylorsta,mas o trabalhador
flexível, polivalente e politécnico, munido de uma compreensão geral
dos princípios técnicos e científicos, associado às características da
produção capitalista pós - fordista. A escola deveria, em conseqüência,
modificar-se para produzir este tipo de trabalhador manual,
naturalmente)
Seguindo postulados de Silva, (1996, p.32-33), dever-se-ia, então, estabelecer
uma estreita correspondência entre as novas tecnologias e a educação, entre as
demandas impostas por aquela e os resultados oferecidos por esta. Essa correspondência
refere-se tanto aos aspectos quantitativos quantos aos qualitativos de mão de obra
exigida, de um lado, e aos produtos fornecidos pelo sistema educacional, de outro.
Compreende-se, dessa forma, nas palavras de Silva (1996), “a necessidade de um
sistema educacional que esteja apto a fornecer o novo perfil de trabalhador”.
63
Possivelmente preocupados com esse paradigma social que também afeta a
educação, foram publicadas nos Programas e Documentos Legais como os PCN, LDB n
5692/71, CFB/88, art.205, art.206 e art. 214, LDB n 9394/96, Parecer CNE/CEB n
15/98, algumas considerações a respeito de culturalidades, gênero e possibilidades,
valorizando-se, desse modo, uma nação de perfil nacional que seja capaz de criar e
recriar suas realidades e substantivem suas contingencialidades.
1.1. O DISCURSO DA INCLUSÃO POR MEIO DA EDUCAÇÃO AO LONGO
DA HISTÓRIA DO BRASIL
64
Ao longo da história, a Educação brasileira tem buscado mecanismos que
possibilitem a inserção escolar das minorias desfavorecidas e excluídas disponibilizando
novas propostas de alfabetização como MOBRAL, Telecursos, Supletivos, MOVA,
SEJA. Contudo, muitas dessas propostas como, por exemplo, o MOBRAL, não
obtiveram êxitos, por terem sido objetos de interesses políticos, não cumpriram as metas
a que se propuseram.
Com relação aos pressupostos gerais, o MOBRAL defendia que as atividades
desenvolvidas deveriam levar a mudanças sociais. No entanto, de acordo com Casério
(2003, p.46) “pretendia-se a mudança dentro dos limites previamente estabelecidos pela
ordem vigente: sedimentação das estruturas com modernização”.
O material didático oferecido aos alunos pelo MOBRAL trazia como
característica marcante a presença do conceito de educação como sinônimo de
investimento, combinada com ideais políticos, morais e cívicos.
Segundo Casério (2003, p.46), esta é
uma das demonstrações de que o MOBRAL, nasceu comprometido
com os interesses da ditadura militar e colaborava com ela, dando uma
educação para adultos e adolescentes desligados da realidade do povo.
Ao mesmo tempo, não admitia, de maneira alguma, que fosse feito um
trabalho que levasse a população a enxergar e discutir questões que
poderiam colocar e risco a ditadura.
A filosofia da educação subjacente ao MOBRAL, seria
“dar” (aspas do autor) o significado do mundo ao analfabeto, criando
nele a falsa consciência de que é um “incapaz” um “enfermo”,
reforçando o silêncio no qual ele se encontra. Desta forma, é veiculada
a ideologia do colonizador, isto é, a ideologia da acomodação, da
submissão aos valores que não são outros senão aqueles de uma elite
dominante em decadência. (CASÉRIO, 2003, p.47)
O MOBRAL funcionou por quinze anos e foi sustentado com 2% do Imposto de
Renda de pessoas jurídicas; instalou-se em vários municípios brasileiros e contou com a
adesão de muitos técnicos e voluntários que, em sua maioria, não tinham habilitação
para ensinar. Infelizmente, no dia 25de novembro de 1985, encerra as atividades, sem
ter cumprido o objetivo para o qual foi criado: erradicar o analfabetismo no Brasil.
“Pelo menos milhões de brasileiros não conseguiram ler a notícia do fim do MOBRAL,
65
nos jornais do dia seguinte” (CASÉRIO, 2003, p.48). Ele dominou a educação de
adultos, desde o golpe militar até a década de 80, quando foi transformado em Fundação
Educar, órgão criado, nas palavras da autora, “com intenções explícitas de continuar a
educação de jovens e adultos em novos modelos e paradigmas”.
De acordo com os pressupostos de Lovisolo (in Casério, 2003, p. 49), o
documento “Diretrizes Político-Pedagógicas”, elaborado por uma comissão formada por
técnicos e educadores, enfoca, fortemente, em seu conteúdo as responsabilidades da
fundação, as quais seriam
a promoção e alocação de recursos para a execução dos programas de
alfabetização educação básica; a formulação de propostas especificas
e estabelecimento das normas operacionais;o incentivo à criação e
aperfeiçoamento das metodologias de ensino; o estímulo à valorização
e capacitação dos profissionais responsáveis.
Com o estabelecimento da Lei 5692, de 1971 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional), encontra-se uma primeira tentativa de articulação entre as
experiências de Jovens e Adultos e o atual ensino fundamental e médio, conforme
consta do Capítulo IV dessa lei, que é particularmente dedicado ao Ensino Supletivo
(Casério, 2003).
Entretanto, uma das medidas tomadas, em março de 1990, pelo então presidente
eleito Fernando Collor de Mello foi a extinção da Fundação Educar. Esse ato, de acordo
com Haddad e Di Pierro (2000, p. 121),
fez parte de um extenso rol de iniciativas de “enxugamento” (grifo dos
autores) da máquina administrativa à retirada de subsídios estatais,
simultâneos à implementação de um plano heterodoxo de ajuste das
contas públicas e controle de inflação
A extinção daquele projeto surpreendeu a todos os órgãos públicos, entidades
civis e outras entidades conveniadas que, a partir daquele momento tiveram que assumir
todas as responsabilidades sem o apoio do governo federal.
O discurso da inclusão que vinha crescendo ao longo da história do Brasil,
principalmente, com as discussões promovidas pela UNESCO, desde 1949, e, com a
Conferência de Educação de Adultos, passou, de acordo com Haddad (2002, p. 114), “a
ser substituído pelo discurso da exclusão, do estabelecimento de prioridades com
66
restrição de direitos”, e desconsiderando os dados oferecidos por aquela entidade, em
1990, em que denunciou que
havia no mundo cerca de 1 bilhão de pessoas que não tinham o
domínio da leitura e da escrita. Esse contingente, na sua maioria,
estava nos países do Sul. Na América Latina , o Brasil é o país com o
maior número de analfabetos: 18 milhões, em 1995, entre a população
acima de dez anos de idade (grifo meu). Isto sem contar que quase
50% da população com mais de catorze anos não concluiu as quatro
primeiras séries do ensino regular e, portanto, podem ser consideradas
com analfabetas funcionais. (HADDAD, 2002, p. 113)
Contudo, com eleição de 1994, o presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso,
e com sua reeleição de 1998, foi priorizada a implementação de uma reforma política
institucional da educação pública que compreendeu diversas medidas dentre as quais a
aprovação de uma emenda constitucional, praticamente ao mesmo tempo, à
promulgação a nova Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional (LDB), (Hadad e
Di Pierro, 2000).
A LDB 9394/96, complementa o texto constitucional, enfatizando a
necessidade de oferecer oportunidades educacionais para os jovens e para os adultos e
que elas devem ser apropriadas, levando em conta características, interesses, condições
de vida e de trabalho, mediante ações integradas e complementares que devem ocorrer,
por meio de cursos exames a realizar no nível de conclusão do Ensino Médio para
maiores de 18 anos (art.37-8).
Atualmente, com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva é possível perceber
algum interesse no que concerne à Educação de Jovens e adultos. De acordo com o
Programa de governo dessa administração, (2003-2006, p. 20) lê-se:
nosso governo, em conjunto com todas as forças políticas e
sociais empenhar-se-á para implantar um plano que possibilite o
atendimento da demanda para o ensino fundamental e médio
para os trabalhadores e trabalhadoras que ainda não os
contemplaram.
Nota-se, portanto, que, de maneira singular, o Brasil tem, ao longo de sua
história, buscado ferramentas para construir condições de alfabetização social para o
exercício da cidadania. É percebível, porém, que muitas práticas educacionais têm se
67
mostrado bastante distantes dos ideais teóricos proclamados por elas o exercício da
cidadania, da consciência crítica, da democratização popular e crítica.
1.2. EDUCAÇÃO PARA JOVENS E ADULTOS: A VALORIZAÇÃO DE SI
68
A Educação para Jovens e Adultos - EJA - é uma das políticas nacionais
desenvolvidas com a intenção de contribuir para a inclusão social, para diminuir a
distância entre incluídos e excluídos nos novos meios de produção e tecnologia, além de
contribuir para o desenvolvimento humano, como cidadão partícipe da sociedade em
que vive, sobretudo, visando à melhor qualidade vida.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 proclama em seu texto legal que a
educação é um “direito de todos e dever do Estado e da família” e deve ser “promovida
e incentivada com a colaboração da sociedade visando a atingir pleno desenvolvimento
à pessoa, seu preparo para exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”
(art.205) e que o ensino deve ter por base, entre outros, o princípio de “igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola” (art.206, I).
Entretanto, essas conquistas apontadas na lei parecem ter caráter apenas formal,
uma vez que determinam igualdade perante a lei, igualdade de oportunidade, de
condições, de resultados, que se chocam com a atual realidade, da desigualdade social,
em que se encontra o Brasil.
A Educação para Jovens e Adultos é direcionada para as pessoas que não
obtiveram seus estudos em idade regular ou os abandonaram, por algum motivo, em
determinado momento de suas vidas.
A respeito desse assunto, a Carta Magna prescreve que
o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia
de “ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive,
sua oferta gratuita ara todos os que a ele ao tiveram acesso na idade
própria” (art.208,I) (aspas dos autores). Assim, essa gratuidade deverá
ser garantida para todos, independentemente da idade – criança, jovem
ou adulta com diferenças quanto às metodologias e aos currículos
que devem ser adequados às suas características (PICAWY e
WANSECHEER, 2006, p. 66).
Ainda, nas palavras das autoras, a inclusão da EJA como direito público e
subjetivo, na modalidade do Ensino Fundamental e Médio, “pode ser considerada um
avanço e uma conquista do ponto de vista das políticas públicas educacionais,
evidenciando colaboração, integração e articulação, evolvendo governo, sociedade civil,
União, Estados, Municípios e empresas”.
É possível perceber que o Plano Nacional de Educação, atendendo o disposto na
Constituição Federal (art.214),
69
busca desenvolver ações integradas em todos os níveis e modalidades
de ensino que conduzam à erradicação do analfabetismo, à
universalização do atendimento escolar, à melhoria da qualidade de
ensino e à formação para o trabalho (PICAWY e WANSECHEER,
2006, p. 67).
Desse modo, para que possa ocorrer, efetivamente, a inclusão dos alunos
excluídos, para que eles possam exercer seus direitos de cidadãos e aumentar suas
possibilidades de acesso ao mercado de trabalho, torna-se imperativo que sejam
dirigidos novos olhares ara esse tipo de ensino.
Para atender à demanda heterogênea desse novo (velho) alunado, que se
caracteriza pela diversidade de interesses, de conhecimento, de competências adquiridas
nas práticas sociais, é necessário um programa de ensino que ao encontro dessa nova
realidade e que torne verdadeira a inclusão social.
Segundo Picawy e Wansecheer, (2006, p.68), a Educação para Jovens e Adultos
deve resgatar e valorizar conhecimentos, habilidades e competências
adquiridos prevendo uma seqüência natural de desenvolvimento,
espaços diferenciados e adequados; utilizando a pesquisa , a
resolução de problemas e procedimentos de avaliação apropriados,
que possibilitem aos alunos demonstrarem suas aptidões e avançarem
progressivamente, compreendendo seus contexto sociais, culturais,
econômicos e políticos; construindo seus conhecimentos de forma
participativa e criando condições de uma cidadania crítica, partícipe
da sociedade e do mundo em seus aspectos amplos de trabalho.
É lançado um novo desafio. A proposta da EJA contribui para a igualdade
social, uma vez que, por meio dela, o aluno começa a dominar o código escrito que
ocupa lugar de destaque na sociedade em que a escrita e a leitura são bens relevantes.
A falta do acesso a eles pode impedir que aluno atinja a cidadania plena.
Portanto, é necessário que haja projetos de pesquisas que possam contribuir
para a efetivação dessa modalidade de ensino, pois o acesso, de todos, à educação,
torna possível a construção de um projeto democrático de igualdade social, com
menos exclusão, discriminação, tornando-se um lugar da auto-reflexão, da auto-
estima, do reconhecimento de si e do outro como igual, como participantes de um
mesmo ideal democrático. E o que se busca alcançar com a presente pesquisa.
1.3 ENSINO DA ESCRITA SOB A PERSPECTIVA DISCURSIVA:
AUTOBIOGRAFIA E SUJEITO
70
Pode-se perceber que, frente à mobilidade e à complexidade de sujeitos inseridos
em contextos multiculturais, torna-se difícil para os estudos teóricos contemporâneos,
interessados em analisar o discurso, distanciar-se da análise da relação entre os sujeitos
que o enuncia e as situações as quais determinam o seu dizer. Isso porque, conforme
Pêcheux (1990), não discurso sem sujeito e não sujeito sem ideologia de maneira
que o discurso é a materialização do dizer de um indivíduo interpelado em sujeito pela
ideologia, o que faz cair por terra o modelo de análise sustentada pela crença da plena
representação de subjetividades que cristalizava discursivamente o sujeito unívoco e
estável.
A busca por estratégias alternativas de construção do “eu” torna-se imperativa,
na medida em que se expande o interesse teórico-crítico em atribuir ao discurso um
valor político na visibilidade de subjetividades associadas a grupos minoritários. Nesse
sentido, ao tentar resgatar, nos discursos que se materializam em textos de cunho
autobiográficos, a construção de subjetividades daqueles grupos, evitar-se-iam as
antigas estratégias de análise que construíram a noção de sujeito unívoco, cartesiano e
estável e tornar-se-ia possível a concepção do sujeito heterogêneo, dialógico, marcado
pelas relações sociais, históricas e ideológicas que o determinam.
A autobiografia, segundo Uyeno (2006, p.207), foi inaugurada por Rousseau em
sua obra As Confissões, difundiu-se como gênero literário explorado por Goethe,
Wordsworth, Stendhal. A proposta de rousseauiana de comunicar verdades sobre o ser
humano, por meio de dispositivos como o relato autobiográfico, tem no filósofo e
teólogo cristão Santo Agostinho de Hipona seu mais ilustre seguidor.
Desse modo, pode-se conceber autobiografia como o relato de uma vida pelo
próprio autor, sendo ele, ao mesmo tempo, o destinatário e o personagem - objeto da
narração. A prática autobiográfica situa o tempo que procura exumar e reconstruir.
Segundo Mathias (1997, p.41), autobiografia é
a retrospectiva ordenada quase sempre em função de critérios
cronológicos, apresenta-se como um todo e com um todo pretende ser
considerada. Esta busca unidade constitui o mais específico da
exigência autobiográfica
Ainda, para Mathias (1997), o autobiógrafo propõe-se a tentar decifrar, por
detrás de um caminho que foi seu, a identidade que lhe subjaz, que o anima e determina
71
sua unidade, sem que ele disso se conta. É, portanto, um elemento de reinterpretarão
que falseia a própria essência no que pretende mostrar.
O gênero propriamente autobiográfico seria, de acordo com Lejeune (apud
Marques, 2004, p.3), “narrativa (récit) retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz
de sua própria existência enfatizando sua vida individual, em particular, a história de
sua personalidade.”.
Essa definição, segundo o autor, e em jogo elementos de quatro categorias: 1)
quanto à forma de linguagem: a) uma narrativa e b) prosa; 2) quanto a seu assunto: uma
ida individual, a história de uma personalidade; 3) quanto à situação do autor:
identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador; 4) quanto a
posição o narrador: a) a identidade do narrador e do personagem principal; b)
perspectiva retrospectiva da narrativa.
Conforme Larrosa (1994, apud UYENO, 2006, p.272),
considerando-se que a pessoa é constituída de um conjunto de relações
consigo mesma, e que a autobiografia é constituída pelo relato sobre
si, é constitutiva desse gênero a “experiência sobre si”, uma vez que
permite ao indivíduo aprender a se ver, a se dizer ou a se julgar que
nada mais significam do que “aprender a fabricar o próprio duplo”.
Não se trata, entretanto, de um duplo constituído da projeção
espontânea ou de uma espécie de reflexividade natural, mas
“constituído” ela colocarão em funcionamento e uma série de
mecanismos e de relação: os mecanismos óticos que determinam o
que se pode ver de si mesmo e como se pode se ver, os mecanismos
discursivos que estabelecem o que se pode dizer de si mesmo e como
se pode dizê-lo e os mecanismos jurídicos que dizem respeito ao como
se pode julgar-se e as ações que constroem o que de si pode ser
afetado por si mesmo e a forma dessa ação de afetar.
Falar ou escrever de si, conforme falou Foucault (1976), é um dispositivo crucial
da modernidade, uma necessidade cultural, que a verdade é sempre prioritariamente
esperada do sujeito – subordinada a sua sinceridade.
No seu texto A escrita de Si (2004a, p.145-147), Foucault aborda o ato de falar
de si, traçando o caminho de textos escritos que se originaram, na cultura greco-romana,
e que revelaram, naquela época, a escrita concebida como exercício de olhar para si,
de deparar-se com o eu, tomando como exemplo A Vita Antonii de Atanásio, que se
tratava de anotações monásticas das ações e pensamentos considerados elementos
indispensáveis à vida ascética, os hupomnemata e as correspondências.
72
Os hupomnemata e as correspondências já indicam um observar sobre si próprio,
mesmo sem a marca da reflexão, a partir do uso da memória e das situações cotidianas.
É um olhar sobre si que já começa a se delinear, não com o objetivo de uma "descrição
de si", mas com o de reunir o já dito, de agrupar o que foi ouvido e lido, e tudo isto com
o objetivo que nada mais é do que a construção do eu.
Foucault (2004a, p.147-152) ressalta que os hupomnemata não constituem uma
narrativa de si mesmo, não tendo, assim, caráter confessional. Ele os define como livros
de apontamentos, registros públicos, cadernos de anotações pessoais que serviam como
memória. Ele constituía uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas -
um tesouro acumulado para ser relido e para meditação posterior. Também formava
uma matéria-prima sobre a qual tratados mais sistemáticos podiam ser escritos, onde
eram apresentados os argumentos e as formas de lutar contra algum defeito (tal como a
raiva, a inveja, a maledicência, a bajulação) ou de ultrapassar alguma situação difícil
(um luto, um exílio, uma depressão, uma desgraça).
Segundo Foucault (2004, p.149), o movimento que os hupomnemata procuram
realizar, não se trata
de buscar o indizível, não de revelar o oculto, não de dizer o não-dito,
mas de captar, pelo contrário, o dito; reunir o que se pôde ouvir ou
ler, e isso com uma finalidade que nada mais é que a constituição de si
Desse modo, os hupomnemata constituem a escrita de si uma vez que pode levar
o autor a questionar-se, a refletir a respeito de si, pois essa escrita pode ter uma função
etho poiética, isto é, uma função estética e política de criação de si. Um compromisso
com a vida, com a potência criadora que habita em todos.
Por meio da mistura escrita/leitura, podem-se compor processos combinatórios
com a diversidade dos materiais de expressão trazidos pelas leituras. Foucault menciona
o se dobrar, o redobrar (-se) e o se desdobrar em múltiplas afirmações.
1.4 O OLHAR SOBRE OS ALUNOS E O OLHAR DOS ALUNOS
73
O olhar sobre si faz-se necessário no ambiente social e escolar para que os
indivíduos possam refletir a respeito de seus atos e também a respeito daquilo que já foi
dito, que fez parte da formação da identidade sócio-cultural de muitos povos.
[
a] A experiência de si pode ser analisada como resultado do
entrecruzamento, em um dispositivo pedagógico, de tecnologias óticas
de auto-reflexão, formas discursivas (basicamente narrativas) de auto
expressão [...] e ações práticas de autocontrole e autotransformação.
[...] No discurso atual, por exemplo, muito influenciado pela
Psicologia Social do Desenvolvimento, é quase obrigatório falar de
como se “desenvolve” a auto-identidade, o autoconceito ou, em geral,
a consciência de si, em um sentido cada vez mais maduro” ou mais
“realista, sempre que se dêem as condições adequadas” (LARROSA,
1994, p. 39)
É possível perceber, nas escolas, um constante embate entre sujeitos no que se
refere a discursos sobre costumes, valores, modo de falar, de vestir, de agir entre outros.
É difícil o convívio pacífico em meio a tantos sujeitos com formação ideológica e
historicamente diferentes.
A desconsideração cultural deu-se, de alguma forma, em Ubatuba, espaço de
estudo desta dissertação e mencionado no capítulo relativo à cultura, pelo motivo de
ser o local, uma cidade turística que oferecia, algum tempo, promessas
empregatícias, posto que houve, desde a década de 70, muita procura por terrenos,
imóveis, por causa da especulação imobiliária, ocorrendo assim, constante migração de
pessoas de várias regiões do Brasil à procura de empregos na área da construção civil.
Atualmente, esse tipo de emprego não é tão freqüente, e muitos daqueles que
para essa cidade se moveram não mais voltaram, por motivos diversos, para seus locais
de origem, constituindo moradas de famílias no local, ocorrendo, desse modo, uma
fragmentação cultural, tanto daquela trazida pelos migrantes quanto da cultura local.
É preocupante a intolerância no que diz respeito à pluralidade cultual, e é dever
da escola, como sugerem os Temas Transversais dos PCN, fazer com que seus alunos
percebam a importância em respeitar as diferentes culturas que constituem uma
sociedade e que possam agir de forma efetiva contra a discriminação e o preconceito
que, muitas vezes, marcam a convivência entre pessoas diferenciadas nos planos sociais
e culturais.
Para que seja possível construir uma sociedade justa, livre e fraterna, o processo
educacional terá de tratar do campo ético, de como se desenvolvem no cotidiano,
74
atitudes e valores para a formação de novos comportamentos, novos nculos em
relação àqueles que historicamente foram alvos de injustiça.
Faz-se necessário que os indivíduos percebam os discursos existentes a respeito
da construção social e façam parte dele por vontade própria, como cidadão social e
historicamente constituído de argumentos que os façam ser ouvidos.
Pelo fato de os alunos morarem em Ubatuba, faz-se necessário que eles
conheçam a cultura caiçara local e possam respeitá-la assim como as outras culturas que
lá chegaram e perpassam, não só essa cidade como em muitos outros lugares do mundo.
A cultura caiçara traz em seu seio costumes e valores que eram passados de pais
para filhos, de avós para netos, e que, atualmente, se perderam em meio à globalização,
ao capitalismo que consomem a sociedade, juntamente com os costumes e a linguagem
própria desse grupo e, com essas perda, é evidente que possa ocorrer, assim como
vem acontecendo ao longo da história do mundo, a extinção de mais um grupo formado
por uma minoria assujeitada, sujeitados à ordem do discurso dominante.
Com o desaparecimento de algumas línguas, com a morte de seus últimos
falantes, com a destruição ambiental e outros fatores, ocorre a morte da cultura e de
valores inerentes a ela.
Sabendo o risco que se corre com essa perda, é perceptível o dever de
sensibilizar os indivíduos que buscam uma formação escolar efetiva, quanto à
necessidade de conhecer e valorizar as diferentes culturas que formam uma sociedade e,
com isso, possam construir suas identidades por meio de exemplos, reflexões sobre si e
sobre os outros; reconhecer em culturas diferentes a existência da moral, de valores que
constituem em ser completo, ético, um indivíduo que seja e veja em si uma obra de arte
da criação.
É necessário que o sujeito reflita a respeito de sua própria existência e
perceba em si a obra divina que é, que se reconheça como um ser livre, ético, e que
possa ser reconhecido e reconhecer-se em outros.
é a própria experiência de si que se constitui historicamente como
aquilo que pode e deve ser pensado. A experiência de si,
historicamente constituída, é aquilo a respeito do qual o sujeito
oferece seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta, se
descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas
coisas consigo mesmo, etc. (LARROSA, 1994, p.43).
Foucault mostra no capítulo Estética da existência (2004b, p. 290), que essa
prática já existia: “na antiguidade, a vontade de ser um sujeito moral, a busca de uma
75
ética da existência eram principalmente um esforço para afirmar a sua liberdade e para
dar à sua própria vida uma certa forma na qual a própria posterioridade podia encontrar
um exemplo.”
Mesmo tendo a consciência de que faz parte de um conjunto de regras ao qual é
sujeitado e que, na maioria das vezes, essas regras não correspondem àquilo que é
proposto, é necessário que se perceba e encontre em si a estética de sua existência.
CAPÍTULO 2
76
ANÁLISE DO CORPUS
Este capítulo é destinado à análise propriamente dita do discurso dos alunos da
EJA da cidade de Ubatuba com o objetivo de entender quais seriam as razões que
determinaram o apagamento da cultura caiçara, o qual se indiciara assitematicamente, se
os habitantes da cidade se mantiveram e apenas passaram a receber os turistas e
migrantes que para se dirigiram. Mais especificamente, este capítulo apresenta a
análise de um corpus de pesquisa que se constituiu a partir de excertos de textos de
cunho autobiográfico redigidos por alunos da EJA de Ubatuba.
As perguntas de pesquisa que nortearam o estudo foram:
1. Qual é a representação ou imagem que os estudantes do EJA, moradores de
Ubatuba, fazem de Ubatuba?
2. O que motivou os alunos a se inscreveram na EJA?
As regularidades discursivas ou discursos semelhantes que se apresentaram à
análise do corpus constituído para efeito da pesquisa determinaram a constituição de
três sub capítulos que são descritos a seguir.
2.1 CONSTITUIÇÃO DE CORPUS
77
Ao perceber o interesse dos alunos no que concerne à cultura caiçara, após
atividades de leituras de textos produzidos por autores locais, foram propostas
atividades de produção textual do gênero autobiográfico com o intuito de analisar o
funcionamento discursivo dos dizeres produzidos pelos sujeitos da pesquisa. Desse
modo, o corpus desta pesquisa é composto de autobiografias de alunos da EJA sob a
expectativa de ter acesso a algumas reflexões a respeito da: cultura caiçara; origem do
aluno e de sua família; faixa etária; cidade de Ubatuba de hoje e de antes; efeitos da
globalização nessa cidade; motivos que os levaram a voltar a estudar.
Os textos produzidos por eles foram coletados em duas salas distintas.
Havia aproximadamente 64 alunos participando das atividades, entretanto, o corpus
quando submetido a uma análise preliminar apresentou duas regularidades discursivas,
isto é, respostas cujos conteúdos se aproximavam entre si, formando dois blocos
distintos, o que determinou a divisão da análise em dois subitens de análise. Assim, para
o primeiro subitem de análise do discurso dos alunos ubatubanos, foram selecionados,
entre os textos dos alunos que freqüentavam o EJA, os que eram de caiçaras ou
descendentes de caiçaras e, para o segundo subitem relativo à análise do discurso, dos
alunos ubatubenses, doravante AUE. Finalmente, para a análise final, foram
selecionados quatro textos, dois de alunos caiçaras, estes definidos, e dois de alunos
não-caiçaras, isto é, aqueles que vieram morar em Ubatuba ou que vivem ali há bastante
tempo, mas não são de famílias originárias de Ubatuba.
Os sujeitos de pesquisa são alunos com mais de quinze anos, matriculados
no Termo do Ensino Médio, série correspondente ao primeiro ano do Ensino Médio
regular, do período noturno da Educação de Jovens e Adultos e são, em sua maioria,
pessoas que trabalham durante o dia ou donas de casa que, em determinado momento de
suas vidas, por motivos diversos, precisaram parar de estudar e voltaram para concluir
seus estudos, uma vez que o mercado de trabalho e o mundo atual exigem um nível
mínimo de escolaridade para incluir as pessoas em seu meio, na sociedade.
Nas salas da EJA, estudam tanto jovens como pessoas mais velhas, o que
torna as salas de aula heterogêneas. É possível notar alguns conflitos comportamentais,
devido à diferença de idade e também devido à diversidade cultural.
Foi possível perceber grande número de migrantes nas salas, em sua maioria,
oriunda de Minas Gerais e Bahia. Somente quatro alunos, conforme mencionado,
fazem parte de famílias da terra, ubatubanos, ou seja, caiçaras que precisam se inserir no
movimento global para não ficarem segregados, e nem desempregados.
78
Os alunos participaram da pesquisa com boa vontade e mostraram-se muito
orgulhosos por fazerem parte de um projeto científico.
3.2 UBATUBANOS: SUJEITOS DIVIDIDOS ENTRE A UBATUBA DE ONTEM
E A UBATUBA DE HOJE
79
Neste sub-capítulo, são apresentadas as análises de excertos de textos de cunho
autobiográfico redigidos por alunos da EJA que apresentaram uma regularidade no que
diz respeito à representação que fazem da cidade de Ubatuba.
Neste sub-capítulo de análise analisam-se os discursos dos alunos que
nasceram na cidade, são de famílias caiçaras, e que, como se teve conhecimento a partir
desta pesquisa, se autodenominam ubatubanos.
Como se mencionou, nesta dissertação, a questão proposta para reflexão
foi: Qual é a representação ou a imagem que os estudantes da EJA têm de Ubatuba?
Analise-se o excerto (doravante E) 1 do aluno ubatubano (doravante AUO)1,
transcrito a seguir:
(E1)
AUO1- [...] quando eu começo a lembrar da minha infância,
aqui onde eu cresci e fui criada, eu tenho muita saudades. Eu
me lembro do Rio Grande, Ah, como eu me lembro, daquelas
águas tão limpinhas que dava até gosto.[...] Eu me lembro que
tinha macaquinhos daqueles pequenininhos, tucanos, lagartos e
muitas espécies de passarinhos, mas agora tudo se acabou. Esse
tempo bom foi antes de construir as casas populares e o lixão.
Cometeram o crime de colocar o lixão naquele lugar, o
churume desce todo no rio, através de cinco nascentes, que tem
em cima no lixão, porque eu estive e vi. [...] De vez em
quando nós escutamos lá de casa o barulhão das dinamites
estourando as grandes pedras em cima no lixão, para abrir
mais espaço para ampliar o lixão. É um, verdadeiro crime! Eu
moro pertinho do rio e as minhas filhas vem o rio e pede pra
entrar, mas não tem condições.[...] A tecnologia é necessária,
mas se nós conseguíssemos viver sem ela, nós seríamos mais
felizes. A urbanização é importante, porque nossa cidade é
turística e dependemos do turismo, mas tem que ser muito
organizada. Porque pode ter certeza, não vai demorar muito e
vão acabar com as matas e montanhas. Porque nossa cidade é
pequena e vão querer ampliar ela por causa dos turistas, pra
chamar eles. [...] É uma pena porque eu tenho certeza que os
nossos filhos e netos já não vão desfrutar nada das nossas
riquezas. Essa rica herança nós não vamos conseguir deixar
pros nossos netos, porque somos a minoria.
Observe-se, no E1, como AUO1 enuncia uma cisão entre a Ubatuba de sua
infância e a Ubatuba atual, quando evoca a infância, escrevendo: quando eu começo a
lembrar da minha infância, aqui onde eu cresci e fui criada, eu tenho muita saudades,
(como era antes). Esse tempo bom foi antes de construir as casas populares e o lixão,
(como é hoje).
80
Essa cisão, entretanto, não se faz enunciada de forma apenas descritiva, neutra,
tampouco de forma saudosista, como ocorre com toda rememoração, no seu sentido
lexicológico de forma “que inspira saudades; que se evoca como lembrança terna,
comovedora, triste ou alegre” (Dicionário Houaiss), derivado do substantivo saudade
que significa
sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela
memória a situações de privação da presença de alguém ou de algo, de
afastamento de um lugar ou de uma coisa, ou à ausência de certas
experiências e determinados prazeres vividos e considerados pela
pessoa em causa como um bem desejável (Dicionário Houaiss).
Essa saudade tem uma especificidade no discurso dos ubatubanos, os que
nasceram em Ubatuba, e tendo sido filho de caiçaras, por ser permeada por uma
concepção ética de ordem cósmica, como a postulada por Boff (1999) e da qual falou o
Cacique Seattle (1855), segundo a qual homem e natureza devem conviver, como se
pode observar em sua menção à Ubatuba de antes: Eu me lembro do Rio Grande, Ah,
como eu me lembro, daquelas águas tão limpinhas que dava até gosto. Eu me lembro
que tinha macaquinhos daqueles pequenininhos, tucanos, lagartos e muitas espécies de
passarinhos, mas agora tudo se acabou.
Ao afirmar Cometeram o crime de colocar o lixão naquele lugar, o churume
desce todo no rio, através de cinco nascentes, que tem em cima no lixão, porque eu
estive e vi. De vez em quando nós escutamos de casa o barulhão das dinamites
estourando as grandes pedras lá em cima no lixão, para abrir mais espaço para
ampliar o lixão. É um, verdadeiro crime!, deixa completamente o teor memorialista e
enuncia a indignação pela quebra do equilíbrio ecológico, valor que lhe é constitutivo
como caiçara.
Justifica, em seguida, essa crítica, ao reconhecer que A tecnologia é necessária.
Essa admissão, entretanto, é refutada pelo uso da conjunção coordenativa adversativa,
por meio da qual enuncia o desejo de que essa tecnologia não seja necessária na
passagem mas se nós conseguíssemos viver sem ela, nós seríamos mais felizes.
Essa admissão da validade das inovações decorrentes da passagem da cidade de
uma aldeia de pescadores para a de uma estância turística, seguida pela refutação, é
reiterada no que diz respeito, desta vez, ao aspecto relativo à urbanização: A
urbanização é importante, porque nossa cidade é turística e dependemos do turismo,
81
mas tem que ser muito organizada. Argumenta, em seguida, as razões pelas quais refuta
a validade da mudança: Porque pode ter certeza, não vai demorar muito e vão acabar
com as matas e montanhas. Porque nossa cidade é pequena e vão querer ampliar ela
por causa dos turistas, pra chamar eles.
Essas duas seqüências mediadas pelo elemento coesivo mas revelam duas vozes
produzidas pelo funcionamento da conjunção coordenativa adversativa: uma voz que
admite a positividade da mudança para uma cidade turística e outra que a refuta.
Desse modo, é possível perceber, mediante as análises, o dizer de um sujeito
dividido, cindido entra a noção da necessidade da tecnologia, do incentivo ao turismo e
das conseqüências que esses elementos podem trazer para a cidade.
AUO1 apresenta um dizer heterogêneo com traços ideológicos que se
materializam, no seu dizer, no que diz respeito aos discursos ligados ao capitalismo e à
globalização, ao afirmar como necessário o crescimento da cidade, mas apresenta,
também, um discurso de um sujeito interpelado, aflito com as conseqüências que o
crescimento poderá trazer, ao afirmar que A tecnologia é necessária, mas se nós
conseguíssemos viver sem ela, nós seríamos mais felizes. A urbanização é importante,
porque nossa cidade é turística e dependemos do turismo, mas tem que ser muito
organizada. Porque pode ter certeza, não vai demorar muito e vão acabar com as
matas e montanhas. Porque nossa cidade é pequena e vão querer ampliar ela por causa
dos turistas, pra chamar eles. Observe-se que o uso reiterado da conjunção adversativa
mas é prova cabal da preocupação do sujeito com o crescimento. Em seu discurso
,
percebe-se que ele vive com a certeza de que os efeitos da globalização afetarão a
cidade, quando diz pode ter certeza, não vai demorar muito e vão acabar com as matas
e montanhas. Porque nossa cidade é pequena e vão querer ampliar ela por causa dos
turistas, pra chamar eles. Ao lançar mão da conjunção explicativa porque AUO1
materializa, em seu dizer, um dizer interdiscursivo, histórico de caiçaras que sentem
no corpo a perda de sua cultura e dos elementos que a compõem e tem uma explicação
para isso.
É possível perceber, no início do excerto, que a lembrança dos tempos anteriores
ao crescimento despertam a saudade em AUO1 que escreve, quando eu começo a
lembrar da minha infância, aqui onde eu cresci e fui criada, eu tenho muita saudades.
Note-se que, em seu dizer, é possível observar a lembrança de alguns elementos que
fizeram parte da paisagem local e a certeza de que tudo acabou com o crescimento: Eu
82
me lembro que tinha macaquinhos daqueles pequenininhos, tucanos, lagartos e muitas
espécies de passarinhos, mas agora tudo se acabou.
AUO1, ao afirmar que A urbanização é importante, porque nossa cidade é
turística e dependemos do turismo, mas tem que ser muito organizada. Porque pode ter
certeza, não vai demorar muito e vão acabar com as matas e montanhas. Porque nossa
cidade é pequena e vão querer ampliar ela por causa dos turistas, pra chamar eles. É
uma pena porque eu tenho certeza que os nossos filhos e netos não vão desfrutar
nada das nossas riquezas. Essa rica herança nós não vamos conseguir deixar pros
nossos netos, porque somos a minoria, seu dizer remete a um sujeito cindido, dividido
entre a necessidade do crescimento (presente) e a da preservação daquilo que ainda resta
(hoje/futuro).
Os sentidos construídos por ele são dicotômicos e se materializam em
expressões que denotam tempo e espaço, ontem, lugar bom, saudável, infância,
limpinho, animais; hoje, lugar ruim, sujo, lixão, tecnologia, estouros, turismo,
urbanização; ontem, felicidade; hoje/ futuro, infelicidade.
O enunciador revela-se dividido entre a saudade de um ambiente saudável e a
necessidade de novas tecnologias, embora saiba de suas conseqüências.
Essa regularidade pode ser observada em dizeres de outros sujeitos, como
AUO2, de família farinheira, cujos excertos serão subdivididos em AUO2a e AUO2b, o
E2 de AUO2a é transcrito a seguir:
(E2)
AUO2a- [...] venho de uma família caiçara não de pescador,
mas de roceiros, aqueles que faziam farinha de mandioca. Nós
fomos criados com a produção de farinha que vendíamos nas
cidades e nos vizinhos agente trocava com peixes ou caças do
mato e venda de banana. Quando chegou a construção da
estrada Rio-Santos muitas famílias perderão suas roças seus
bananais que era seu meio de vida, assim como meu pai que
para criar seus 17 filhos teve que ir trabalhar na prefeitura.
Depois disso vieram muitas mudanças como desmatamento para
a construção de várias casas que para mim são manções para
grandes empresários. Eu acho que por causa desses impresários
muitos roceiros ficaram sem suas casas, foram iludidos e
venderão suas terras para vir para a cidade, hoje estão sem
dinheiros e sem casa vivendo de favor ou no azilo. [...] ainda me
lembro quando ia ao mercado de peixe e falava: - Senhor
Agustinho o papai falou para mandar um quilo de peixe e
marcar na conta dele. E passava no posto para comprar
querosene para acender a lamparina e o fogão de lenha e
83
íamos embora e antes tomávamos água na famosa torneira onde
todos os ubatubanos matavam sua sede, na chegada na cidade
ou na saída. Ah, que saudade. Quandia íamos embora passava
no Perequê-Açu onde tinha goiabeira, chegava me casa a
noitinha. [...] hoje só posso dizer que tenho muitas saudades das
puxadas de rede, onde as crianças ajudavam e podiam levar um
peixinho pra casa, pegávamos mariscos sapinhoá e das taiovas
que não existem mais e meus filhos não conheceram por isso
tenho muitas saudades.
Observa-se que, no E2, tal como AUO1, no E1, AUO2a enuncia uma divisão
entre a Ubatuba de antes, de seu tempo de infância e a Ubatuba atual, quando relembra
seu passado, escrevendo: passava no posto para comprar querosene para acender a
lamparina e o fogão de lenha e íamos embora e antes tomávamos água na famosa
torneira onde todos os ubatubanos matavam sua sede, na chegada na cidade ou na
saída. Ah, que saudade. Quandia íamos embora passava no Perequê-Açu onde tinha
goiabeira, chegava me casa a noitinha [...] tenho muitas saudades das puxadas de rede,
onde as crianças ajudavam e podiam levar um peixinho pra casa, pegávamos mariscos
sapinhoá e das taiovas antes. Que não existem mais e meus filhos não conheceram
por isso tenho muitas saudades, hoje.
Observe-se como AUO2a se remete ao passado para se referir à alegria, aos
símbolos que fizeram parte da cultura caiçara e não fazem mais, como querosene para
acender a lamparina e o fogão de lenha, [...] famosa torneira onde todos os
ubatubanos matavam sua sede, aos elementos da natureza, como as árvores [...]
passava no Perequê-Açu onde tinha goiabeira , e frutos do mar [...] podiam levar um
peixinho pra casa, pegávamos mariscos sapinhoá e das taiovas. Quando AUO2a
enuncia tenho muitas saudades das puxadas de rede, onde as crianças ajudavam e
podiam levar um peixinho pra casa, ele se refere a uma atividade que era constitutiva do
povo caiçara, a uma atividade que tinha o caráter do trabalho não alienado, isto é, que
não visava ao lucro, mas à subsistência e, no máximo, se destinava ao escambo, à troca
por outro produto que aquele que pescava não produzia como a banana e a farinha de
mandioca; é dado esse caráter de uma cultura em que a mais valia não se fazia presente
e que aqueles que ajudavam na puxada que se caracterizava por acamaradas de rede,
aqueles que eram designados para puxar a rede e, desse modo, tinham direito a uma
pequena parte da pescaria, e por aqueles que por não terem condições financeiras e
viverem somente da produção agrícola, ajudavam e, em troca, recebiam dos camaradas
84
e pescadores, um peixe, ainda que esses que se solidarizavam com o pescador fossem
crianças: ajudavam e podiam levar um peixinho pra casa. Eis, aqui, o caráter solidário
de que fala Marcílio (1986) e de que AUO2a se lembra.
Quando menciona lamparina, AUO2a se refere ao nome que se atribui a uma
“pequena lâmpada que fornece luz de pouca intensidade, composta de um reservatório
para líquido combustível (azeite, querosene etc.) no qual se mergulha um pavio que
traspassa uma pequena rodela de madeira e se acende na outra extremidade; griseta,
luminária” (Dicionário Houasiss).
O fogão a lenha na região de Ubatuba, lembrado por AUO2a, usado
antigamente, era chamado entre os ubatubanos de tacuruba, era feito com três pedras
(Rizzo e Barreto, 2003, p. 68), e nele se cozia os alimentos colocando fogo na lenha.
A torneira a qual AUO2a fala, refere-se a uma antiga torneira em que todas as
pessoas que chegavam a cidade podiam beber água à vontade e gratuitamente.
Atualmente essa torneira ainda existe, mas está inutilizada, serve, apenas, como
lembrança de épocas passadas.
Quando AUO2a menciona marisco-sapinhoá, ele se refere ao que, em zoologia,
constitui um termo para se referir a “qualquer invertebrado marinho comestível,
especificamente a moluscos e crustáceos(Dicionário Houaiss). Na região de Ubatuba
refere-se um tipo específico de molusco que é retirado com a fricção dos calcanhares na
areia, depois colhido, cozido, debulhado e depois preparado e saboreado pelo povo
ubatubano.
Ao lembrar-se da taiova, AUO2a se refere a uma planta mais conhecida como
taioba; erva (Xanthosoma violaceum) da família das aráceas, nativa de regiões tropicais
das Américas, de folhas sagitadas, grandes, com pecíolo longo, comestíveis, tubérculos
também usado como alimento e inflorescência envolta por espata verde-acinzentada
com as margens arroxeadas; também denominada de arão, aro, bezerro, jarro,
mangarito-grande, mangarito-roxo, pé-de-bezerro, taiá, taiá-açu, taiaúva, taiova, tajá,
tajá-açu, tajabuçu, talo, taro, tarro (Dicionário Houaiss).
Ao fazer uso dos marcadores temporais hoje e , enuncia as conseqüências do
presente/futuro, ao dizer hojeposso dizer que tenho muitas saudades das puxadas de
rede, onde as crianças ajudavam e podiam levar um peixinho pra casa, pegávamos
mariscos sapinhoá e das taiovas que não existem mais.
AUO2a, do mesmo modo que AUO1, não discorre a respeito da cisão entre
passado e futuro de uma forma neutra, meramente descritiva. Se AUO1 faz menção à
85
saudade, AUO2 menciona essa palavra por três vezes: Ah, que saudade. Quandia íamos
embora passava no Perequê-Açu onde tinha goiabeira, chegava me casa a noitinha [...]
tenho muitas saudades das puxadas de rede, onde as crianças ajudavam e podiam levar
um peixinho pra casa, pegávamos mariscos sapinhoá e das taiovas antes. Que não
existem mais e meus filhos não conheceram por isso tenho muitas saudades, hoje.
O sentido da palavra “saudade”, no discurso de AUO2a, também não é o de
meramente estar saudoso. Essa divisão que estabelece entre a Ubatuba de antes e a de
hoje, associada à palavra saudade, é permeada por uma concepção de valores de ordem
ética, segundo a qual o homem e natureza devem viver em harmonia, respeitando-se
concepção advinda de ensinamentos indígenas, fonte primeira dos caiçaras, cuja
sociedade era voltada para o campo e AUO2a retrata ainda, uma coletividade calcada na
família de que fala Marcílio, (1986), nas maneiras de manter sua subsistência, como se
pode observar em sua menção à Ubatuba de antes: Nós fomos criados com a produção
de farinha que vendíamos nas cidades e nos vizinhos agente trocava com peixes ou
caças do mato e venda de banana, na maneira de se educarem as crianças que
aprendiam, desde cedo, essas concepções familiares e culturais, como é possível
observar em tenho muitas saudades das puxadas de rede, onde as crianças ajudavam.
Ao afirmar quando chegou a construção da estrada Rio-Santos muitas famílias
perderão suas roças seus bananais que era seu meio de vida, assim como meu pai. [...]
Depois disso vieram muitas mudanças como desmatamento para a construção de várias
casas que para mim são manções para grandes empresários, AUO2a deixa
completamente o teor saudosista
,
memorialista e enuncia a dor e a indignidade de quem
sentiu junto com a sua família, a quebra do equilíbrio homem-natureza, valor que o
constitui como caiçara e enuncia, também, um dos fatores do crescimento local que foi a
abertura da SP-55, a BR 101 de que fala Setti (1985). Ao usar o marcador temporal
quando, ele enuncia o momento da quebra do equilíbrio, momento em que o homem da
cidade instituiu valores globais e capitalistas aos valores culturais do caiçara. Eis que a
nova ordem do discurso capitalista silencia os discursos da cultura caiçara: o se pode
mais viver segundo um modus vivendi de uma relação com o trabalho constitutiva da
vida do caiçara, no sentido de trabalho enquanto atividade pela qual homem e natureza
se constituem organicamente, segundo o qual o homem tira da natureza o suficiente
para sobreviver, não para obter lucro.
Note-se, em seguida, que, por meio do tempo presente do modo indicativo,
seguido do pretérito do modo subjuntivo do verbo, ele enuncia a causa da quebra
86
daquele equilíbrio e também o início do declínio da cultura caiçara: eu acho que por
causa desses impresários muitos roceiros ficaram sem suas casas, foram iludidos e
venderão suas terras para vir para a cidade, e, em seguida, remete-se novamente ao
tempo presente para denunciar a atual situação de muitos caiçaras que tiveram suas
terras, seus costumes espoliados, quando diz hoje estão sem dinheiros e sem casa
vivendo de favor ou no azilo. O termo ‘espoliado’ cabe nesse contexto, pois o próprio
AUO2a denuncia, por meio da escolha lexical foram iludidos, a situação por que
aqueles homens e mulheres passaram, ao verem suas terras sendo tomadas por
especuladores, principalmente com a abertura da SP-55, hoje a BR-101, conforme
elucidado por Setti (1985) e por Marcílio (1986).
É possível perceber que o discurso de AUO2a é marcado pela remissão ao tempo
passado, ontem, como sinônimo de alegria, saudade e fartura, quando enuncia tenho
muitas saudades das puxadas de rede, onde as crianças ajudavam e podiam levar um
peixinho pra casa, pegávamos mariscos sapinhoá e das taiovas, como sinônimo de
confiança - Senhor Agustinho o papai falou para mandar um quilo de peixe e marcar
na conta dele, e a admissão do tempo presente, hoje, como sinônimo de tristeza, de
exclusão ao enunciar hoje estão sem dinheiros e sem casa vivendo de favor ou no
azilo, da certeza de que muitos símbolos, costumes e elementos de seu povo se
extinguiram e os quais seus filhos não conheceram e não conhecerão, como se pode
observar pelo uso do marcador temporal , indicador do tempo presente, pegávamos
mariscos sapinhoá e das taiovas que não existem mais e meus filhos não
conheceram, seguido pelo uso da conjunção coordenativa conclusiva por isso, para
apontar o motivo de sua saudade por isso tenho muitas saudades.
Em síntese, AUO2a, ao remeter ao passado, não se diz apenas saudoso de muitos
aspectos de ordem concreta e material que não podem mais ser resgatados, mas se diz
saudoso de um outro determinado por valores éticos de ordem cósmica que o constitui.
Assim como AUO1, AUO2a revela ter saudade de um outro de que é constituído
e que a nova vida o impede de se manifestar.
Analise-se, em seguida, o E3 de AUO2b:
(E3)
AUO2b- A globalização é bom para o crescimento do nosso
município mas junto com esse desenvolvimento tem muitas coisas
boas mais também vem coisas ruins. O crescimento trouxe
pessoas de várias regiões do Brasil , pessoas de boas índoles mas
87
também veio pessoas más, como bandidos e traficantes que
destruíram muitas famílias boas e inocentes que aqui viviam em
armonia. E também chegaram famílias boas que colaboram com
esse crescimento montando lojas e supermercados dando
trabalho a muitos desempregados. Através desse crescimento
abriram-se as portas para novos professores com a abertura de
novas escolas, creches, dando a oportunidade as donas de casa
trabalhar e ajudar no salário da família. Com a globalização e o
crescimento tecnologias aumentou a poluição e com isso
apareceram várias doenças diferentes essa é uma das partes
ruins e também aumentou o desemprego e o povo só que saber de
evolução e da modernização e se esquecem das coisas boa como
a nossa cultura. Os jovens falam que isso é coisa antiga que é
passado careta. Os jovens de hoje não sabe o que é cultura e
muito menos conhecem a cultura de sua cidade. Acabou o
respeito com os idosos, e um com seu próximo. A evolução é boa
mais muitas coisas não deveria acabar.
Observe-se que, assim como AUO1 e AUO2a, AUO2b repete um dizer
heterogêneo com traços ideológicos que são materializados, em seu discurso, quando
enuncia fatos relacionados ao capitalismo e à globalização como, na passagem: a
globalização é bom para o crescimento do nosso município, [...] o crescimento trouxe
pessoas de várias regiões do Brasil, [...] também chegaram famílias boas que
colaboram com esse crescimento montando lojas e supermercados dando trabalho a
muitos desempregados, através desse crescimento abriram-se as portas para novos
professores com a abertura de novas escolas, creches, dando a oportunidade as donas
de casa trabalhar e ajudar no salário da família. Observe-se, entretanto, que AUO2b,
ao enunciar os aspectos positivos quanto ao crescimento da cidade, denuncia, em seu
discurso, as conseqüências que os efeitos globalizantes trazem para a cidade, para seus
moradores e, sobretudo, para a cultura local. Ao utilizar-se da conjunção coordenativa
adversativa mas, AUO2b enuncia, em seu discurso os efeitos que a globalização e o
capitalismo trazem, como é observado em a globalização é bom para o crescimento do
nosso município mas junto com esse desenvolvimento tem muitas coisas boas mais
também vem coisas ruins; faz uso também das conjunções coordenadas aditivas mas
também, e também, para acrescer ao seu discurso mais fatores negativos, quanto ao
crescimento local, os quais contribuíram para a desestabilização da harmonia e dos
costumes local quando enuncia que o crescimento trouxe pessoas de várias regiões do
Brasil , pessoas de boas índoles mas também veio pessoas más, como bandidos e
traficantes que destruíram muitas famílias boas e inocentes que aqui viviam em
88
armonia, fator que colabora para o deslocamento de identidades culturais nacionais,
alertado por Hall (2005). Esses atributos negativos também podem ser observados em
outra passagem: com a globalização e o crescimento tecnologias aumentou a poluição e
com isso apareceram várias doenças diferentes essa é uma das partes ruins e também
aumentou o desemprego e o povo que saber de evolução e da modernização e se
esquecem das coisas boa como a nossa cultura. Os jovens falam que isso é coisa
antiga que é passado careta. Os jovens de hoje não sabe o que é cultura e muito menos
conhecem a cultura de sua cidade. Acabou o respeito com os idosos, e um com seu
próximo.
Note-se que AUO2b não nega os aspectos positivos da globalização, admitindo
que ela o inclui aos modernos parâmetros sociais, à ordem do discurso vigente, ao dizer
através desse crescimento abriram-se as portas para novos professores com a abertura
de novas escolas, creches, dando a oportunidade as donas de casa trabalhar e ajudar
no salário da família, mas não nega, que ao mesmo tempo em que o sistema o inclui
como sujeito social, o exclui como representante da cultura caiçara, lamentando que,
nos ideais globais, não espaço para os ideais locais e as novas tendências ditadas por
valores massificantes colaboram para tornar as experiências anteriores opacas de que
fala Bauman, (1999), quando afirma: o povo que saber de evolução e da
modernização e se esquecem das coisas boa como a nossa cultura. Os jovens falam que
isso é coisa antiga que é passado careta. Os jovens de hoje não sabe o que é cultura e
muito menos conhecem a cultura de sua cidade. Acabou o respeito com os idosos, e um
com seu próximo.
O discurso de AUO2b, revela-se um dizer de um sujeito divido entre a falta do
passado, dos costumes e valores de seu povo e a necessidade do crescimento local, para
o desenvolvimento social e local. É o discurso de um sujeito dividido, cindido, clivado
que não sabe ao certo que direção seguir. Caso se apegue ao passado, torna-se
segregado; voltar-se para o futuro, torna-se desculturalizado, distanciado-se de suas
origens. Essa cisão é observável em a evolução é boa mais muitas coisas não deveria
acabar . Eis, em AUO2b, o outro de antes de que é constituído.
Deite-se um olhar analítico sobre o discurso de AUO3, ubatubano de família de
roceiros, cujos excertos serão subdivididos em AUO3a , AUO3b e AUE3c, analise-se os
E4:
(E4)
89
AUO3a (...)Ubatuba, um paraíso que a cada ano perde um
pedaço de sua raiz. (...) lembro-me da barra dos pescadores que
ainda conseguia-se ver o fundo do rio que se misturava com o
mar. Onde pescávamos tainhas, bagres, robalos... Tudo isso era
verdade mas agora infelizmente, não posso dizer que
continua uma paraíso. Porque está ameaçado, com construções
inadequadas, destruindo até mesmo patrimônios que Ubatuba
tinha.
Observe-se, no E4 que AUO3a, assim como AUO1 e AUO2, enuncia uma cisão
entre Ubatuba de antigamente e a Ubatuba de agora, quando evoca as lembranças de sua
infância afirmando: lembro-me da barra dos pescadores que ainda conseguia-se ver o
fundo do rio que se misturava com o mar. Onde pescávamos tainhas, bagres, robalos.
(como era antes), [...] Tudo isso era verdade mas agora infelizmente, já não posso dizer
que continua uma paraíso.(como é hoje).
Percebe-se, em seu discurso, uma remissão à infância, ao passado, que se faz
pelo uso de marcadores temporais, mais especificamente de tempos verbais que
remetem ao passado e de advérbios temporais, quando enuncia: lembro-me da barra
dos pescadores que ainda conseguia-se ver o fundo do rio que se misturava com o mar.
Onde pescávamos tainhas, bagres, robalos. (...) Tudo isso era verdade.
Analise-se, em seguida, o E5 de AUO3b:
(E5)
AUO3b Nasci em Ubatuba [...] minha mãe é totalmente
ubatubana, Meu avô era decendente de portugueses, minha avó
filha de índios, os dois trabalhavam na roça cuidando dos
porcos, galinhas, bois, vacas e outras coisas que a roça tem,
moravam no sertão do Promirim, mas quando os conheci
moravam no bairro da Figueira, no pé-da-serra, quando o
asfalto nem pensava em chegar, [...] mas o tempo passa e a vida
continua, gostaria que meu avô estivesse vivo para ver como
tudo mudou daquela época até hoje. não tem mais aqueles
pássaros, como bem-te-vi, tié, curruíra, tangará, sabiá, tucano,
aqueles animais que costumávamos ver de manhã a ao
entardecer. Assim é o efeito de uma cidade que cresce sem as
pessoas notarem, alguns dizem que é ótimo, eu, não acho tão
bom assim, porque já não vejo mais ubatubanos como antes.
Hoje em dia não se fala mais dos rios, das praias e das
brincadeiras saudáveis. O progresso é bom para aqueles que
vem de outro estado para trabalhar porque Ubatuba está se
formando numa selva de pedra. E assim vai em frente, quando
abrirem os olhos vai ser tarde.
90
Ao remeter-se a suas lembranças, AUO3b no E5 traz, ainda, ao seu discurso,
elementos da paisagem local, que constituíam riquezas dos símbolos presentes no dia-a-
dia caiçara de que fala Setti (1985), como pássaros, [...] aqueles pássaros, como bem-te-
vi, tié, curruíra, tangará, assim como AUO3b no E4, quando enuncia (terá, também
que uniformizar: tem hora que você negrita, tem horas em que você grifa; há
necessidade de uniformização tipográfica) sabiá, tucano, como peixes [...] onde
pescávamos tainhas, bagres, robalos; resgata elementos da cultura caiçara, cuja base de
formação é de origem indígena, afirmado por Marcílio (1986), baseada no cultivo,
criação de animais para a subsistência familiar. Ao afirmar Meu avô era descendentes
de portugueses, minha avó filha de índios, os dois trabalhavam na roça cuidando dos
porcos, galinhas, bois, vacas e outras coisas que a roça tem, demonstra total
integração entre o homem e natureza, o homem que era a Terra de que fala Boff (1999).
Note-se, ainda, que a mudança de Ubatuba de antes e de agora não ocorre de
forma neutra nem saudosista no seu sentido corrente; tal como ocorre nos enunciado de
AUO1 e AUO2a, o sentir-se saudoso apresenta um efeito de sentido peculiar no
discurso de ubatubanos. Por meio do uso dos marcadores de pressuposição, mas, agora,
infelizmente, mais especificamente, por meio da conjunção coordenativa de valor
adversativo mas, do advérbio temporal agora, e pelo advérbio de modo infelizmente,
AUO3b deixa, em seu discurso no E4, marcas de questionamento e negatividade quanto
ao crescimento da cidade, ao afirmar: tudo isso era verdade mas agora infelizmente,
não posso dizer que continua uma paraíso, do mesmo modo que enuncia no E5, quando
diz [...] mas o tempo passa e a vida continua, gostaria que meu avô estivesse vivo para
ver como tudo mudou daquela época até hoje. não tem mais aqueles pássaros, como
bem-te-vi, tié, curruíra, aqueles animais que costumávamos ver de manhã a ao
entardecer. Em seguida, por meio da conjunção coordenativa explicativa porque,
apresenta justificativas para as perdas locais, [...] porque está ameaçado, com
construções inadequadas, destruindo até mesmo patrimônios que Ubatuba tinha, tal
como analisado em E1, para em seguida afirmar, com veemência, o destino atroz que o
espera e aos seus: é uma pena porque eu tenho certeza que os nossos filhos e netos
não vão desfrutar nada das nossas riquezas.
Perceba-se como AUO3b valoriza a cultura, os costumes de seu povo o qual
sentiu e sente, efetivamente, os efeitos do crescimento local, mas percebe-se, também,
que, embora a valorize, não deixa de enunciar o futuro fatal da cidade; por meio da
conjunção causal porque, apresenta o motivo de não poderem deixar a herança cultural
91
para os filhos: essa rica herança nós não vamos conseguir deixar pros nossos netos,
porque somos a minoria. Seu discurso denuncia um sujeito que percebe o
deslocamento de sua identidade frente ao fenômeno da globalização, postulado por Hall
(2005).
Assuma-se, agora, o E6 de AUO3c:
(E6)
AUO3c Quando era menino, andava pela praia do cruzeiro,
pegava siri com gancho no bambu, costumava pescar peixe
galo, amborê, garoupa. Mais, isto, foi a alguns anos atrás,
porque o progresso foi chegando, tomando conta até mesmo de
algumas praias desse nosso paraíso.O progresso é bom para
alguns comércios, quiosque, restaurantes, hotéis, que
necessitam para sobreviver, para mim, o progresso não é tão
bom, porque acaba com os nossos costumes.
AUO3c justifica, em seguida, essa admissão no E5 e E6, ao reconhecer que, O
progresso é bom para aqueles que vem de outro estado para trabalhar, (...) O
progresso é bom para alguns comércios, quiosque, restaurantes, hotéis, que necessitam
para sobreviver, (...) Assim é o efeito de uma cidade que cresce sem as pessoas
notarem, alguns dizem que é ótimo. Essa admissão, entretanto, é refutada pelo uso do
marcador argumentativo já, por meio do qual enuncia a admissão de que o progresso é
bom para aqueles que lucram com o crescimento local, mas não para ele, ao afirmar:
para mim, o progresso não é tão bom, (...) alguns dizem que é ótimo, eu, não acho
tão bom assim, para em seguida apresentar, por meio da conjunção coordenativa
explicativa porque, uma justificativa do seu posicionamento: porque acaba com os
nossos costumes, (...) porque não vejo mais ubatubanos como antes. Hoje em dia não
se fala mais dos rios, das praias e das brincadeiras saudáveis.
Observe-se como o dizer de AUO3c materializa-se como um dizer heterogêneo,
teorizado por Althier-Revuz, (1990), revelando advir de um sujeito afetado pela
ideologia a qual se materializa, quando ele enuncia, em dizeres que remetem ao discurso
da globalização, do capitalismo, ao admitir que o progresso é bom para alguns, porém
enuncia, também, um discurso de um sujeito resignado, embora inconformado com os
efeitos do crescimento local, ao afirmar que (...) O progresso é bom para alguns
comércios, quiosque, restaurantes, hotéis, que necessitam para sobreviver, para
mim, o progresso não é tão bom, porque acaba com os nossos costumes.
92
Note-se que, em seu dizer, assim como, nos outros analisados, também se pode
perceber o discurso de um sujeito dividido entre a admissão da necessidade do
crescimento, nos dias atuais (hoje), embora não para ele, mas para aqueles que vivem
das atividades econômicas locais, e a necessidade de que a cidade não perca suas
características culturais e sua paisagem natural.
Analisem-se fragmentos do discurso de AUO4, de família de origem de roceiros
e pescadores, cujos excertos serão subdivididos em AUOA4a, AUO4b e AUO4c.
Analise-se, a seguir, o E7:
(E7)
AUO4a- A origem da minha família é de Ubatuba, das
bandas da praia do Puruba. Meu pai era pescador, tinha canoa
e pescava de rede, pescava corvina, marimbá, tainha, robalo,
peixe-galo e outro tanto de peixe que hoje em dia é difícil de se
ver. Ele pescava para dar de comer pra família. Ele tinha
também uma roça de plantação de banana e mandioca que as
vezes vendia quando sobrava. Ele tirava o sustento da terra e do
mar.
Observe-se, no E7, como AUE4a, ao falar de suas origens, remete-se ao modo
de vida do caiçara, ressaltando os símbolos, de que falam Setti (1985) e Diegues (2004),
que o representam, como a praia do Puruba, a canoa, a pesca de rede, ao dizer: A origem
da minha família é de Ubatuba, lá das bandas da praia do Puruba. Meu pai era
pescador, tinha canoa e pescava de rede. Ainda se referindo aos símbolos, A4 cita
algumas espécies de peixe que seu pai pescava e que lhes serviam de sustento como
corvina, marimbá, tainha, robalo, peixe-galo, e deixa transparecer, em seu discurso,
que, nos dias atuais, aquela quantidade de peixe não é tão comum quanto era no
passado. Esse dizer se dá por meio do marcador adverbial temporal hoje em dia,
quando enuncia: e outro tanto de peixe que hoje em dia é difícil de se . A4 fala, ainda,
da interação homem-natureza, citado por Boff (1999), e do respeito que se tinha por
seus elementos, tal como dito pelo cacique Seattle, da tribo Duwamish, do Estado de
Washington, ao presidente Franklin Pierce, dos Estados Unidos (1855), retirando dela
somente o suficiente para o sustento de sua família, quando enuncia: Ele pescava para
dar de comer pra família, (...) Ele tirava o sustento da terra e do mar. Em seguida,
AUO4a, assim como o fizeram AUO2 no E2, e AUE3b no E5, fala da roça onde seu pai
plantava bananas e mandioca, costumes aprendidos com os primeiros caiçaras cuja
origem é indígena, ou seja, seus costumes eram voltados para a coletividade, a roça
93
rústica era um dos modos de sua subsistência, de que falam Marcílio (1986), Setti
(1985) e Diegues (2004): Ele tinha também plantação de banana e mandioca que as
vezes vendia quando sobrava.
Analise-se, a seguir, no E8, proferido por AUE4b, as mudanças ocorridas logo
após a construção da estrada:
(E8)
AUO4b- Quando a estrada da rodovia chego nas banda do
Puruba meu pai resouvel tentar serviço na cidade e deixou a
pesca um pouco de lado e a minha família foi morar no Instituto
Agronômico Experimental, hoje o bairro do Horto, porque meu
pai trabalhava lá, era uma infância linda, brincávamos o dia
inteiro, por que não tinha televisão e muito menos computador e
os brinquedos que tem hoje. (...) Na época do corte de cana de
açúcar, eu e meus irmãos íamos na fazenda para ver fazer
garapa (hoje caldo de cana), melado, puxa-puxa, tudo isso era
muita diversão, tudo de graça. O leite era puro porque tinha
criação de búfalo, tínhamos uma vida muito feliz, não comprava
nada porque tinha tudo, desde fruta como laranja, banana,
morango, jabuticaba, cambucá, carambola, coco, abil etc....
Minha mãe tinha criação de galinha, horta que tinha de tudo.
Note-se que, no E8, AUE4b, do mesmo modo como AUO2a, no E2, anuncia o
começo da cisão do modus vivendi do caiçara com a contemporaneidade e enuncia,
ainda, como um dos fatores que colaboraram para o desequilíbrio da cultura local, a
abertura da SP-55, a BR 101, confirmando o que afirmara Setti (1985), ao fazer o uso
do marcador adverbial temporal quando, na passagem: Quando a estrada da rodovia
chego nas banda do Puruba meu pai resouvel tentar serviço na cidade e deixou a
pesca um pouco de lado, em que menciona que seu pai abandona a pesca para fazer
parte da nova ordem do discurso (Foucault) e, desse modo, se a sua inserção, em um
mundo novo, com a demanda do discurso capitalista. Seu discurso denuncia o início da
perda da identidade local, frente ao fenômeno da globalização, postulado por Hall
(2005).
O início da transformação dos valores cultuados pela nova ordem ditada pela
globalização se evidencia na menção memorialista de AUO4b, quando menciona que,
ainda que tivesse ido morar no Instituto Agronômico Experimental, rendendo-se ao
novo discurso que exigiu de seu pai o abandono da pesca e submissão ao trabalho
94
alienado, a mãe ainda manteve a tradição herdada de seus antepassados: Minha mãe
tinha criação de galinha, horta que tinha de tudo.
Quando enumera as atividades da infância que o marcaram, AUO4b faz, na
verdade, uma ficção de si, uma vez que constitui uma avaliação que faz, hoje, desse
tempo e, ao fazê-lo, denuncia, em seu discurso, assim como o fizeram AUO1, AUO2 e
AUO3, um tom saudosista que transparece com o uso de marcadores verbais no
pretérito era, íamos, tinha, tínhamos, comprava quando enuncia: era uma infância
linda, brincávamos o dia inteiro, (...) Na época do corte de cana de açúcar, eu e meus
irmãos íamos na fazenda para ver fazer garapa (hoje caldo de cana), melado, puxa-
puxa, tudo isso era muita diversão, tudo de graça. O leite era puro porque tinha
criação de búfalo, tínhamos uma vida muito feliz. Em seguida, justifica
,
por meio de
conjunções subordinativas causais porque, o motivo de sua alegria, deixando implícito
que a felicidade estava ligada a não se ter televisão, computador, brinquedos atuais,
símbolos do capitalismo e da globalização ao dizer, por que não tinha televisão e muito
menos computador e os brinquedos que tem hoje. Remete, ao mesmo tempo, a um valor
isento de mais valia (...), não comprava nada porque tinha tudo, desde fruta como
laranja, banana, morango, jabuticaba, cambucá, carambola, coco, abil, AUO4b revela,
assim, sentir saudade de um outro eu, de uma outra Ubatuba, de que é constituído,
isento das tendências tecnológicas ditadas por uma nova ordem do discurso
massificante, que podem tornar as experiências anteriores opacas, conforme advertido
por Bauman (1999). AUO4b parece dar-se conta da artificialidade das demandas da
pós-modernidade que certamente o oprimem, ao ser instigado a escrever sobre si.
Analise-se, ainda, outro excerto do discurso de AUO4c, filho de pescador que
mudou de atividade indo trabalhar no Instituto Agronômico:
(E9)
AUO4c- No mês de maio meu pai fazia novena (rezava o terço,
cantava) nas residências do bairro. Era uma festa e sempre
tinha o que comer, tempo bom que não volta mais.(...) As festas
religiosas eram esperada principalmente a do Divino Espírito
Santo pois não havia padre na cidade. Agora a festa deixou de
ser religiosa para ser comércio. O peixe (tainha) que tinha um
gosto todo especial e sua ova que sabor. Hoje a tainha vem de
fora com gosto de óleo. Antes havia respeito com os outros, o
povo sabia conversar tinha dialogo. Hoje nem bom dia se da.
Hoje o tempo é muito curto.
95
Observe-se que AUO4-c no E9, da mesma maneira como AUO1 no E1, AUO2
no E2 e AUO3 no E4, enuncia uma cisão entre Ubatuba do passado (antes) e Ubatuba
do presente (hoje). Ao remeter-se ao passado, ele o faz com alegria, saudosismo,
fazendo uso de marcadores adverbiais temporais como sempre, antes, ao enunciar: No
mês de maio meu pai fazia novena (rezava o terço, cantava) nas residências do bairro.
Era uma festa só e sempre tinha o que comer, tempo bom que não volta mais. (...) Antes
havia respeito com os outros, o povo sabia conversar tinha dialogo, até mesmo o sabor
do peixe era diferente, pois não havia poluição: O peixe (tainha) que tinha um gosto
todo especial e sua ova que sabor. Ao enunciar, tempo bom que não volta mais,
AUO4c enuncia também a admissão que aqueles costumes acabaram.
AUO4c, em seu dizer faz alusão à religiosidade, fator marcante na vida dos
ubatubanos, conforme fala Rassam, (2007), No mês de maio meu pai fazia novena
(rezava o terço, cantava) nas residências do bairro.(...) As festas religiosas eram
esperada principalmente a do Divino Espírito Santo pois não havia padre na cidade,
esse olhar de A4 de em determinado momento, quando se remete ao passado, de
forma positiva, por que enuncia Era uma festa ; contudo, ao enunciar no tempo
presente, denunciado pelo marcador adverbial agora, não o faz de da mesma maneira,
uma vez que afirma que a religiosidade já não é mais fator importante, e, sim, os valores
econômicos impostos pela nova ordem do discurso capitalista, tão precisamente alertada
por Bauman (1999) e também por Hall (2005). Agora a festa deixou de ser religiosa
para ser comércio.
Ao remeter-se ao presente, AUO4c, demonstra sua indignação com a direção
que tomou as festas religiosas, a pesca local, o respeito mútuo, valores que se tornaram
esquecidos pelo desuso imposto pelo novo tempo que dificilmente poderão ser
resgatados, como denunciaram Rizzo e Barreto (2003). Aquilo que antes era sinônimo
de respeito, devoção e religiosidade, tornou-se comércio, símbolo do capitalismo, o
peixe que era saudável, saboroso, hoje tem gosto de óleo, vem de fora, ou seja, vem de
outro local, não existe com fartura como na época em que seu pai pescava. Esse
discurso se pelo uso dos marcadores adverbiais temporais hoje e agora, quando
enuncia: Agora a festa deixou de ser religiosa para ser comércio.(...) Hoje a tainha vem
de fora com gosto de óleo.(...) Hoje nem bom dia se da. Hoje o tempo é muito curto.
Essa conclusão a que AUO4c chega, ao falar de sua vida passada parece
comprovar a economia da atividade de escrever sobre si, no sentido de que tem acesso a
96
uma compreensão sobre os fatos de sua vida como detectara Pinto (2007), nos textos
autobiográficos de alunas de Curso Norma Superior e Uyeno (2006) em resenhas
acadêmicas redigidas por alunos de especialização em Língua Materna que se
desvelam dos caracteres globalizantes que se naturalizam.
É possível perceber em seu discurso, assim como nos outros discursos
analisados, o dizer de um sujeito dividido entre o passado e o hoje.
A análise dos textos da tipologia autobiografia dos alunos do EJA que nasceram
e se criaram em Ubatuba e se autodenominam ubatubanos, seres da terra de fato,
revelou que não perderam ou esqueceram a cultura caiçara. Ao contrário de terem se
alienado da cultura na qual nasceram, os ubatubanos lamentam o seu apagamento,
manifestando-se pelo estabelecimento da dicotomia entre a Ubatuba de antes e a de
hoje.
O discurso dos ubatubanos se revelou heterogêneo, dividido entre a admissão
dos ganhos que a cidade recebeu com a sua transformação em estância turística
estrategicamente localizada no litoral paulista e a perda da paisagem, da vida, dos
valores e da cultura da pequena aldeia de pescadores. Revelou, assim, ser constituído do
outro, daquele que no movimento memorialista de remissão ao passado se constitui
como ficção de si. Essa remissão não se faz por um saudosismo no seu sentido comum,
mas de um saudosismo eivado de valores caiçaras.
Os enunciados, em alguns momentos, indignados com os novos rumos marcados
por valores capitalistas, em seu estágio globalizante, que sua aldeia tomou; em outros,
resignados com a irrefutabilidade do progresso a que ela se submeteu e, em outros,
saudosos da paisagem e dos costumes que a constituíram, revelaram-se tão regulares
que permitem imputar-lhe uma formação discursiva. Esses enunciados remetem a
sujeitos cindidos, fragmentados e, como tais, pós-moderno, encantado, mas submisso a
esse novo discurso, cuja ordem é o consumo, postulado por Bauman (1999) e Lyotard
(apud Mascia, 2002).
3.3 O “SER” UBATUBENSE
O objetivo deste item de análise É investigar, na materialidade lingüística dos
textos produzidos por alunos da EJA, a representação que eles fazem sobre a cidade de
Ubatuba.
97
Para este item de análise, foram selecionados somente textos produzidos por
alunos que se autodenominam ubatubenses, ou seja, aqueles alunos que não são
descendentes de famílias caiçaras.
Resgate-se as razões que determinaram a divisão do corpus para efeito de
análise. A proposta de produção de texto solicitada foi única para todos os alunos que
assim se enunciava: Produza um texto falando a respeito de Ubatuba
Nos textos produzidos pelos alunos ubatubenses, observou-se uma regularidade
discursiva no que concerne às razões porque foram morar em Ubatuba.
No que diz respeito à natureza, embora ubatubanos e ubatubenses enunciem a
mesma preocupação, percebe-se entre os dois grupos uma diferença que será objeto de
apresentação a seguir.
Analise-se o E de AUE transcrito a seguir:
(E 10)
AUE1 - Quando os meus pais vei morar em Ubatuba, era
menina mais melembro muito bem. Vomos morar na fazenda a
ressaca. E conhecemos alguns caissaras que no receberam
com muito amor e carinho. Sempre que a minha mãe precisava
estava sempre prontos a ajuda-la. Conhecemo o azul-marim que
é um prato muito saboroso. Na fazenda da ressaca tinha poucas
casas. Mais tinha uma linda floresta quando amanhecia o dia
via os cantos dos pássaros que hoje não sivemos mais. Por
causa do desmatamento.
Observe-se como AUE1, ao relembrar de sua chegada à cidade, relembra
também de sua infância e
,
para relatar essa lembrança
,
faz uso de marcadores temporais
como advérbios quando,sempre e verbos no pretérito como vei (veio), era, fomos,
conhecemos, receberam, precisava, tinha, amanhecia. AUE1 recorda de como era
humana a hospitalidade e a convivência com os moradores locais
,
argumentando essa
avaliação ao afirmar: conhecemos alguns caissaras que no receberam com muito
amor e carinho. Sempre que a minha mãe precisava estava sempre prontos a ajuda-la
.
Sua avaliação reafirma os princípios de respeito, de amizade e de hospitalidade a que os
entrevistados por Rassam (2007); esses princípios lembram os hábitos indígenas de
quem certamente os caiçaras herdaram.
Como se pode observar, AUE1 faz remissão ao passado como o fazem os AUO,
cujos discursos foram analisados no item anterior; nessa remissão, entretanto, nem o
98
tom, nem palavras em seu discurso denunciam a saudade contida no discurso dos
ubatubanos, como o enunciado por AUO1 que se traz, aqui, para facilitar a análise:
quando eu começo a lembrar da minha infância, aqui onde eu cresci e fui criada, eu
tenho muita saudades, ou por AUO2, quando enuncia hoje posso dizer que tenho
muitas saudades.
A ausência da menção à saudade nos discursos de AUE parece se explicar, à
primeira vista, pelo fato de não ter tido as mesmas experiências as quais os ubatubanos
vivenciaram antes do crescimento urbano. Considerando-se, entretanto, que AUO e
AUE têm idades aproximadas, é possível se afirmar que a saudade mencionada por
aqueles constitui parte de um discurso de ordem da memória, no sentido de um discurso
corrente em sua família, de um discurso proferido pelos pais, por sua vez, proferidos
pelos avós, proferido, enfim, por seus antepassados que os foram transmitindo aos
descendentes. AUE1, assim, não se revela constituída pelo outro constitutivo de AUO.
Ao enunciar: Mais tinha uma linda floresta quando amanhecia o dia via os
cantos dos pássaros que hoje não sivemos mais, AUE1, assim como outros
ubatubenses, menciona a lembrança de alguns símbolos muito comuns à cultura local,
como mencionado por Setti (1985), como os pássaros e a preocupação com o
desmatamento.
Embora seu discurso apresente essas lembranças, como apresenta AUO, ele não
se da mesma forma como o discurso dos ubatubanos que
,
além de conhecer as
espécies de pássaros que faziam parte de eu dia a dia, ainda lhes relembrava com
saudade e pesar, como se apresentou no E5 d AUO3 que se transcreve novamente em
seguida: gostaria que meu avô estivesse vivo para ver como tudo mudou daquela época
até hoje. não tem mais aqueles pássaros, como bem-te-vi, tié, curruíra, tangará,
sabiá, tucano, aqueles animais que costumávamos ver de manhã a ao entardecer.
Assim é o efeito de uma cidade que cresce sem as pessoas notarem. Note-se a remissão
ao avô, o que reafirma a saudade como discurso dos antepassados e de que os AUO são
constituídos: eis o outro de que são constituídos os AUO e do qual AUE1 não é
constituído.
O discurso de AUE1, em síntese, revela-se um discurso neutro
.
Difere do
discurso dos ubatubanos, que se caracteriza como um discurso de pesar, de indignação e
de resistência, AUE revela repetir um discurso de senso comum, repetir um dizer que
99
acredita ser seu, porém constitui um dizer heterogêneo, discutido em escolas, mídias e
outros meios de comunicação, um discurso globalizado, como postula Authier-Revuz.
Analise-se, em seguida, um excerto do discurso de AUE2, abaixo transcrito:
(E 11)
AUE2
Cheguei em Ubatuba em 1992, senti muita saudades da minha
terra natal, mas como fui muito bem recebido em Ubatuba a
saudade foi passando. Agora adotei Ubatuba como a minha
legítima cidade. Não lembro de muitas coisas mais lembro dos
rios que era limpos. mergulhei muito no rio da Bela Vista,
mas agora quando olho, dá vontade de chorar, pois naquele rio,
que mergulhei um dia, hoje se transformou em uma rede de
esgoto, onde toda a população ligaram seu esgoto direto no rio
poluindo a água os peixes, enfim muitas coisas mudaram não
para melhor,e sim para bem pior.
Como se pode observar, AUE2, da mesma forma que AUE1, enuncia que não é
cidadão nascido em Ubatuba e também usa marcadores temporais como verbos no
pretérito, cheguei, senti, fui, adotei, mergulhei, transformou, ligaram, para relembrar
da época em que chegou à cidade e também para denunciar como ela ficou hoje em dia.
Note-se que
,
em seu enunciado
,
observa-se, do mesmo modo como ocorre no
excerto de discurso de AUE1, a boa hospitalidade recebida, um dos costumes caiçara,
[em]
,
transcrito novamente para efeito de análise: como fui muito bem recebido em
Ubatuba. Essa hospitalidade caiçara que se revela da ordem da memória é tal que foi
responsável por amenizar a saudade que ele sentia de sua terra natal, como se pode
observar na expansão da transcrição da passagem: senti muita saudades da minha terra
natal, mas como fui muito bem recebido em Ubatuba a saudade foi passando. Observe-
se como a saudade mencionada por AUE2 não lhe é constitutiva, na representação que
faz de Ubatuba; a sua saudade era de sua terra natal.
Ao afirmar que Não lembro de muitas coisas, é possível pressupor diante da
negativa não lembro que, diferentemente dos discursos dos ubatubanos, não pode
lembrar-se daquilo que não viveu efetivamente, como relembrar dos momentos de
infância, dos costumes caiçaras, da paisagem e fauna local, como foi possível observar
no E1 de AUO1 e que se transcreve novamente: quando eu começo a lembrar da minha
infância, aqui onde eu cresci e fui criada, eu tenho muita saudades. Eu me lembro do
Rio Grande, Ah, como eu me lembro, daquelas águas tão limpinhas que dava até
100
gosto.[...] Eu me lembro que tinha macaquinhos daqueles pequenininhos, tucanos,
lagartos e muitas espécies de passarinhos, mas agora tudo se acabou
.
Essa saudade de
uma Ubatuba de antes também se apresentava no discurso de AUO2: tenho muitas
saudades das puxadas de rede, onde as crianças ajudavam e podiam levar um peixinho
pra casa, pegávamos mariscos sapinhoá e das taiovas que não existem mais
.
Ela se
mostrava, ainda, no E6 de AUO3 quando diz : Quando era menino, andava pela praia
do cruzeiro, pegava siri com gancho no bambu, costumava pescar peixe galo, amborê,
garoupa. Essa ausência da remissão dos aspectos que dizem respeito à relação com
terra, e o local tem outro significado daquele, da ordem de uma ética cósmica,
mencionado por Boff (1999) e constitutivo de ubatubanos, [embora] ainda afirme o
quanto goste da cidade que o recebeu de braços abertos a ponto de legitimá-la com sua,
ao escolher o vocábulo adotei, e o pronome possessivo meu ao dizer: Agora adotei
Ubatuba como a minha legítima cidade.
Ao enunciar como se sente com relação os efeitos negativos do crescimento
demográfico sobre a natureza
,
como se pode observar na passagem mas agora quando
olho, vontade de chorar, pois naquele rio, que mergulhei um dia, hoje se
transformou em uma rede de esgoto, onde toda a população ligaram seu esgoto direto
no rio poluindo a água os peixes, enfim muitas coisas mudaram não para melhor,e sim
para bem pior, o discurso de AUE2 aproxima-se do discurso dos ubatubanos, quando
oferece mostras de que a poluição do rio o faz lembrar de como era limpo quando
chegou
.
Entretanto, essa menção
,
como ocorre no discurso de AUE1, o é
acompanhada da referência saudosa, de pesar pela perda, mas ele repete um dizer que é
comum a todos, um dizer próprio de discurso ideológico ecológico. O discurso de
AUE2 não se revela como o daquele que sente efetivamente a dor da natureza, por ter
com ela uma relação cósmica,, no sentido de um dizer que remete a um sujeito que faz
parte constitutiva da natureza, como argumentou o cacique Seattle (1855).
(E12)
AUE3
Realmente Ubatuba era uma cidade maravilhosa. Não conheci
como era antes, mas acho uma cidade maravilhosa, pois é dela
que consegui meu serviço, a qual antes não tinha. Sei que muita
coisa mudou. A mata não é a mesma. O rios deixa a desejar com
tanta sujeira, a mata está devastada. O homem pensa em si e
101
acaba destruindo tudo aquilo que Deus deixou que é a
Natureza.
Analise-se no discurso de AUE3 a afirmação categórica, dada por meio do
marcador adverbial realmente e o uso do marcador adjetivo maravilhosa, de que
Ubatuba era, de fato, maravilhosa, usando, ao fazer essa afirmação, o verbo era, verbo
ser no pretérito imperfeito, deixando transparecer em seu discurso, que hoje a cidade
não é tão bonita como julgava ter sido no passado. Percebe-se, desse modo, que o
excerto de AUE3, assim como os outros AUE analisados, recorre ao passado para
atribuir qualidades à Ubatuba, porém não traz em seu discurso marcas que evidenciem a
falta efetiva que a Ubatuba da memória histórica que marca os discursos dos ubatubanos
com relação ao antes, e pode-se perceber, por meio de seu dizer, que mesmo sem ter
conhecido como era antes, hoje, dado ao uso do tempo verbal no presente do indicativo
acho uma cidade maravilhosa, AUE3 ainda considera Ubatuba maravilhosa, embora
saiba que muita coisa tenha mudado, porque afirma por meio do verbo saber no
presente do indicativo que conhece a mudança, pois ao dizer: Sei que muita coisa
mudou, apresenta, em seguida, argumentos para a dada mudança, tais como, A mata
não é a mesma. O rios deixa a desejar com tanta sujeira, a mata está devastada. Não é
possível afirmar se AUE3 sabe de fato ou se ouviu dizer, ou se, ainda, presenciou essas
mudanças.
Percebe-se que AUE3 qualifica Ubatuba como maravilhosa, mesmo sem
conhecer como era antes, não pelo fato de ter vivido a cultura local, nem mesmo por
compartilhar de seus costumes, mas sim, pelo fato de que foi, nessa cidade, que
conseguiu seu emprego, do qual era alijado anteriormente. Essa afirmação se pelo
uso do marcador explicativo pois, com o qual aponta o motivo para que detivesse tal
ponto de vista, como se pode observar na transcrição da passagem: acho uma cidade
maravilhosa, pois é dela que consegui meu serviço, o qual antes não tinha.
Analise-se pormenorizadamente essa passagem. Percebe-se que, ao enunciar que
não conheceu como era antes, ao dizer Não conheci como era antes, AEU3 atribui o
sentido de maravilhosa não pelo patrimônio histórico-cultural da cidade, mas, sim, pelo
fato de ter conseguido o emprego: mas acho uma cidade maravilhosa, pois é dela que
consegui meu serviço. Ao fazer uso da conjunção coordenativa adversativa mas, é
possível pressupor que mesmo sem ter conhecido como era Ubatuba antes, fato
102
enunciado repetidamente pelos ubatubanos, AUE3 considera a cidade maravilhosa
mesmo assim.
Por meio desse excerto, é possível perceber que AUE3 coloca-se como aquelas
pessoas que se mudaram para Ubatuba à procura de novas oportunidades, visto que,
com a abertura da Rodovia SP-55, e, posteriormente, da BR-101 (SETTI, 1985),
Ubatuba deixou de ser apenas uma vila de pescadores para ser um pólo turístico onde
surgiram novos empregos e oportunidades.
Seu discurso vem marcado pelo discurso global a respeito da preocupação com o
meio ambiente, fato discutido e abordado por vários meios de comunicação e também
pela escola, e vem, ainda, marcado pelo discurso capitalista da nova ordem do discurso
massificante, discutido por Bauman (1999) e Halll (2005), no que concerne ao
deslocamento de identidades culturais nacionais e à intervenção do domínio de outros
povos, outros valores, considerados mais fortes e poderosos sobre os mais fracos. Seu
discurso, portanto, revela-se um interdiscurso, isto é, um discurso que ele supõe ser seu,
quando na verdade, repete um dizer disseminado na Ubatuba que ele conhece.
Deite-se o olhar, a seguir, sobre o seguinte excerto,
(E13)
AUE4
Eu vim para por motivo de trabalho. Fui bem acolhida pelos
caiçaras, eles tem uma cultura diferente que minha, aqui tem
dança muito diferentes. Na minha cidade tem uma cultura que é
a dança e axé, forró, comida picas como o acarajé, etc. Aqui
as comidas e a danças são: chiba, a dança da fita e o peixe com
banana. Graças a Deus, desde o dia que eu vim para nunca
fiquei sem emprego.
AUE4 apresenta, em seu discurso, logo de início, o motivo que a trouxe para
Ubatuba, ao dizer Eu vim para cá por motivo de trabalho.
Nota-se, também, que seus costumes e cultura, que foram adquiridos na “sua”
cidade, são diferentes daqueles comuns na cidade onde mora atualmente, na sua
afirmação Na minha cidade tem uma cultura que é a dança e axé, forró, comida típicas
como o acarajé, etc. Aqui as comidas e a danças são: chiba, a dança da fita e o peixe
com banana. Percebe-se que, ao usar o pronome possessivo minha, AUE4 denuncia,
no não dito, que não considera Ubatuba como sua, pois se refere a esta cidade como
aqui. Pressupõe-se que, nesse sentido, minha seria , a sua cidade e, Ubatuba seria
103
aqui, não minha. Esse mesmo tratamento diferenciado que dedica à cidade de origem e
a Ubatuba também é observado em eles tem uma cultura diferente que a minha, aqui
tem dança muito diferentes, embora afirme que foi bem recebida por “eles”, os caiçaras.
Nota-se, desse modo, uma mistura de costumes e valores que se dão pelo advento da
globalização, apresentado no capítulo 1, afirmado por Bauman (1999). Não há, assim,
como não poderia deixar de ser a menção à saudade dos costumes e cultura
tipicamente ubatubana.
Nesse excerto, assim como, nos excertos de AUE1, AUE2, AUE3, percebe-se a
importância atribuída ao serviço conseguido. AUE4 evoca a Deus para agradecer o fato
de ter um emprego ao enunciar: Graças a Deus, desde o dia que eu vim para nunca
fiquei sem emprego. É possível observar que ela repete um dizer de cunho religioso
judaico-cristão, e isso ocorre pelo fato de AUE4, sob o esquecimento número 1,
postulado por Pêcheux, acreditar que emite um dizer que lhe é próprio, único.
Ao enunciar, desde o dia que eu vim para nunca fiquei sem emprego,
percebe-se que AUE4 atribui o fato de não ficar sem emprego à sua vinda para ,
Ubatuba, dizer evidenciado pelo uso dos marcadores adverbiais, temporal desde o dia,
de lugar e de negação nunca.
Note-se que AUE4 repete o dizer dos outros ubatubenses, ao afirma que foi para
Ubatuba à procura de um emprego; esse dizer, conforme já foi afirmado, reproduz um
dizer capitalista, globalizado, portanto, sócio-histórico e, como tal, ideológico.
A análise do discurso dos ubatubenses, isto é, daqueles cidadãos que moram em
Ubatuba, mas que não nasceram na cidade ou, se nasceram, não são filhos de caiçaras, a
qual se encerra neste ponto da parte relativa à análise do corpus, apresenta respeito,
cuidado com a cidade de Ubatuba, porém seus dizer não se da mesma forma como o
dizer dos ubatubanos. O discurso dos ubatubenses revela que, há diferença dos
nascidos – que conheceram a Ubatuba de antes, onde ainda existiam os costumes
conservados pelas famílias caiçaras e revelaram, em seu discurso, que sentiram,
efetivamente, os efeitos trazidos pelo crescimento, pela globalização e pelo capitalismo
à sua cidade de origem –, não mencionam a saudade da Ubatuba de antes.
Embora afirmem gostar de Ubatuba, julguem-na maravilhosa, as avaliações
proferidas por ubatubenses dizem respeito ao aspecto pragmático: são os benefícios
oferecidos pela Ubatuba atual que determinam seus julgamentos. Embora lamentem
pelas alterações ambientais por Ubatuba sofrida, seu discurso é de ordem do
interdiscurso, no sentido de não constituir, propriamente, um dizer de uma cultura não
104
vivenciada e, como tal, de um discurso heterogêneo, no sentido de veiculado por
diferentes órgãos ou meios de comunicação.
3.4 UBATUBANOS E UBATUBENSES: DE EXCLUÍDOS A GLOBALIZADOS
Este seguimento de análise busca investigar, no discurso dos alunos do EJA, o
valor que eles atribuem aos estudos. A parcela do corpus de pesquisa objeto de análise,
neste capítulo, é constituída do discurso de alunos ubatubanos e de alunos ubatubenses.
105
Aqueles apresentam uma regularidade discursiva que os caracteriza como uma
formação discursiva, diferindo destes, embora cidadãos de Ubatuba, nascidos ou não na
cidade, mas não filhos de caiçaras.
Ressalta à análise dos textos de cunho autobiográfico redigidos uma
regularidade discursiva, isto é, um dizer que se repete, no que diz respeito às razões que
determinaram sua volta à educação formal, de forma tão proeminente que indicia
remeter a uma formação discursiva, como se pode observar nos excertos que se
elegeram e se apresentam a seguir:
(E14)
AUE1- Voltei a estudar, pois acho que o estudo é fundamental
na vida de uma pessoa, sem o estudo a gente não é nada. Hoje
eu estudo não pensando numa faculdade, mas sim em uma
chance de conseguir um trabalho melhor, pois tudo que vo
faça, precisa ter o ensino médio completo.
Como se pode perceber, AUE1 menciona a volta ao banco escolar e, em seguida,
explica - iniciando sua justificativa por meio da conjunção coordenativa pois - que sua
volta se deve ao fato de ele considerar que o estudo é fundamental, isto é, “básico,
essencial, necessário” (Dicionário Aurélio), na vida de uma pessoa, ao enunciar: pois
acho que o estudo é fundamental na vida de uma pessoa. O enunciado sem o estudo a
gente não é nada, que se lhe segue, não reforça o enunciado anterior como também
se realiza como argumentação para a atribuição da importância ao estudo,
correspondendo a uma oração subordinada adverbial causal. O sentido desse enunciado,
assim, corresponde a: a falta de estudo é a causa para a gente não [é] ser nada.
Note-se como essa passagem parece não se configurar rigorosamente como
autobiografia, um tipo de texto que se caracteriza pela predominância de tempos verbais
próprios do mundo narrado, mais especificamente, dos tempos pretérito perfeito e
pretérito imperfeito: AUE1 usa, também, do tempo presente do modo indicativo, por
meio do qual faz asserções, que são próprias do mundo comentado, produzindo um
efeito de julgamento de valor.
O que se observa é que AUE1 fala do lugar de aluno e repete um dizer histórico
ao afirmar: o estudo é fundamental na vida de uma pessoa, sem o estudo a gente não é
nada. Observe-se que seu dizer denuncia um sujeito ideologicamente interpelado, uma
vez que ele acredita ser o autor desse dizer, fonte única de produção, quando, na
verdade, sob o esquecimento 1, formulado por cheux, reproduz um discurso da
106
memória histórica, isto é, existente na história, repetido por todos, de que a pessoa não é
nada sem os estudos, de que o estudo é fundamental na vida de uma pessoa.
Entretanto, ainda que repita esse dizer e tente não se remeter a si mesmo, não
como negar que se denuncia por meio da palavra gente, uma vez que, logo em seguida,
explicita-se por meio do pronome pessoal do singular, Hoje eu estudo. Essa passagem,
assim, equivaleria a sem estudo eu não sou nada ou, ainda, descobri que sem estudo eu
não fui nada.
A condição de não ser nada atribuída a si parece se revelar na atividade de
redação do texto autobiográfico, pelo qual se remete a si mesmo, quando atenua seus
objetivos: Hoje eu estudo não pensando numa faculdade, mas sim em uma chance de
conseguir um trabalho melhor. O reconhecimento da distância entre o seu nível de
escolarização formal e o nível superior é que afirma pretender que a sua volta ao EJA
lhe permita uma chance de conseguir um trabalho melhor, afirmação sob a qual o
pressuposto de que vislumbra, na freqüência ao EJA, a possibilidade de um trabalho
melhor.
Ao enunciar pois tudo o que você faça, precisa ter o ensino médio completo,
AUE1 traz um dizer próprio do mundo globalizado que impõe a escolarização formal
como ordem, cujo não atendimento determina exclusão do mercado de trabalho. Além
disso, ao utilizar-se da conjunção causal pois, revela julgar que a causa determinante
para sua volta à escola é a falta dessa escolaridade que lhe determinou a exclusão. Ele
fala, na verdade, do lugar daquele que é excluído.
O discurso desse aluno aponta para a crença na possibilidade da inclusão ser-
lhe propiciado pelos estudos, porque ele enuncia do lugar da exclusão: Hoje eu estudo
não pensando em uma faculdade, mas sim em uma chance de conseguir um trabalho
melhor. É possível perceber, ainda, a representação do aluno com relação aos apelos
impostos por suas necessidades imediatas pelo mercado de trabalho no qual atua, nos
dias atuais, quando utiliza o advérbio de valor temporal hoje. Resgatando-se as
condições de produção de seu discurso, pode-se perceber que ele se refere ao fato de
que, antes, numa aldeia de pescadores, a escolarização formal não fazia falta; na sua
referência a hoje, percebe-se o sentido de “agora que se tornou uma estância turística” e,
como tal, invadida por valores capitalistas globalizantes postulados por Hall (2005) e
Bauman (1999), atividades econômicas valorizadas, se o indivíduo for escolarizado.
Se AUE1 voltou a estudar para ter uma chance de conseguir um trabalho melhor, ele
fala do lugar daquele, que embora saiba que o trabalho melhor é alcançado pela
107
titulação de nível de ensino superior, a freqüência no EJA pode tirá-lo do lugar de
exclusão. Seu discurso, assim, revela-se interdiscursivo (conceito formulado por
Pêcheux) e heterogêneo (conceito postulado por Authier-Revuz) e, como tal, um
discurso composto de dizeres cio-histórico-ideológicos que atribuem à educação
formal o papel de promoção do indivíduo e de dizeres capitalistas e globalizantes que
atribuem à educação formal o papel de inclusão do indivíduo no mundo do trabalho.
Ele traz, em seu discurso, o dizer sócio-histórico de que a realidade em que vive
lhe impõe esse modo de pensar. Ele enuncia ser-lhe imperativo que estude para
conseguir um emprego melhor. É possível se perceber, em seu discurso, que julga a
chance de emprego ao qual almeja não lhe impõe a necessidade de graduação. Ainda
que esteja promovendo um movimento em direção à inclusão, coloca-se, ainda, como
excluído do 3º grau.
Analise-se, em seguida, o E13 de AUE2 transcrito na seqüência:
(E15)
AUE2- Voltei a estudar para ser uma pessoa melhor e
trabalhar num lugar bom. [...] Eu não nasci para ser escrava
das pessoas.
Perceba-se que AUEJA2 reproduz um dizer sócio-histórico de que o estudo
irá torná-la uma pessoa melhor e de que conseguirá trabalhar em um lugar bom. É
possível observar, no excerto, o dizer interdiscursivo, histórico, da pedagogia da
transformação, de que quem trabalha se torna uma pessoa melhor. Observam-se, no
enunciado, traços de interpelação ideológica, que se dão pelo esquecimento nº 1. Diante
da sua utilização do adjetivo bom para qualificar o trabalho ao qual almeja alcançar por
meio dos estudos, percebe-se a representação que faz do ensino. Sob essa ótica,
trabalhar em um lugar bom é determinado pela formação escolar, e é possível inferir, de
seu dizer, que terá um trabalho melhor a pessoa que tem formação escolar. O estudo,
para esse sujeito, é a garantia de inclusão social.
O E13 leva à pressuposição de que o trabalho atual de AUE2 não seja bom.
Ao se analisar o discurso de AUE2, doméstica, afro-descendente, sem concluir
seus estudos, é possível observar, em seu dizer, que ela é interpelada pelo interdiscurso
histórico-ideológico da escravidão, seja pelo fato de suas origens ou pelo fato de sentir-
se escrava em seu trabalho atual. Ela acredita ser dela esse dizer, quando, na verdade,
reproduz um discurso de resistência, proferido por gerações que antecederam a sua.
108
Quando enuncia não nasci para ser escrava das pessoas, seu dizer produz o sentido de
que é escrava das pessoas. Daí, falar do lugar da exclusão: , na avaliação de AUE2
pessoas que escravizam e as que são escravizadas, e ela se inclui entre as do segundo
grupo.
Dirija-se o olhar analítico sobre o E14 de AUO3, transcrito a seguir:
(E16)
AUO3- (...) vi que precisava trabalhar, mas sem estudo tudo é
difícil porque em todos os lugares onde ia ver um emprego a
primeira coisa que pedia era o diploma de grau. E fui
acordando para a vida abrindo meus olhos e comecei a notar a
evolução a minha volta. Hoje as maquinas e computadores é
que comanda o mundo e vi que eu também precisava mudar
evoluir sair daquele mundo fechado. (...) estou correndo atrás
do tempo perdido, e desse mundo de máquinas e computadores,
acho que ainda chego lá.
Note que, assim como AUE1, AUO3 repete o interdiscurso da necessidade do
estudo para se conseguir um trabalho, ao enunciar sem estudo tudo é difícil, e justifica,
por meio da conjunção coordenativa explicativa porque o motivo de seus dizer: porque
em todos os lugares onde ia ver um emprego a primeira coisa que pedia era o diploma
de 2º grau.
É possível perceber que AUO3, ao enunciar fui acordando para a vida, abrindo
meu olhos, denuncia o discurso do caiçara que vive no passado, ligados à outra
ideologia que não a do capitalismo globalizante; ela é despertada para um novo
momento sócio-histórico e tecnológico. Ao afirmar hoje as máquinas e computadores é
que comanda o mundo, utilizando o marcador temporal hoje, para enunciar o presente,
enuncia também o discurso contemporâneo, heterogêneo, diferente daquele no qual
vivia. Isso se comprova quando diz vi que eu também precisava mudar evoluir sair
daquele mundo fechado. AUO3, assim como o fez AUE1, repete um dizer que acredita
ser seu, mas que, na verdade, não é; ela profere o discurso do momento atual, isto é, ela
é interpelada pelos dizeres que são produzidos por este momento. Perceba-se que
AUO3, ao usar também, inclui-se no discurso dos excluídos; revela acreditar que, por
meio dos estudos, será incluída; revela sentir a necessidade de evoluir, caso contrário,
tornar-se-ia obsoleta. AUO3 também reproduz o dizer histórico de que a educação é
importante.
Analise-se, a seguir, o E15, proferido por AUO 4:
109
(E17)
AUO4- Hoje estou estudando para que eu possa dar melhores
condições para minha família, mas sem perder as
características da minha terra. Pretendo fazer biologia porque
gosto. E que também vou poder ajudar a minha cidade.
Perceba-se que AUO4 reproduz um dizer sócio-histórico de que o estudo lhe
propiciará melhores condições para sua família. É possível observar, em seu enunciado,
o dizer interdiscursivo, histórico, de que quem tem estudo tem condições para oferecer
uma vida melhor para sua família. AUO4 reproduz um dizer e acredita ser seu, quando,
na verdade, é interpelado por outros dizeres existentes, denominado por Pêcheux como
esquecimento nº 1 ou interdiscurso.
É possível observar no E15 de AUO4 um dizer do ser da terra de que fala Boff
(1999) e é reafirmado por Setti (1985), Diegues (2004) e Rassam (2007) que torna seu
dizer peculiar, um discurso da identidade ubatubana, daquele que é da terra. Mesmo
almejando a estudar para oferecer melhores condições para sua família, AUO 4, ao usar
a conjunção adversativa mas e o pronome possessivo minha, em mas sem perder as
características da minha terra, enuncia a importância e o respeito que tem por aquele
lugar que considera seu.
A análise do discurso de ubatubanos e ubatubenses, no que se refere à educação,
mais especificamente, à razão pela qual retornaram aos bancos escolares, leva à
conclusão de que, indistintamente, se devem ao fato de se renderem à inevitabilidade de
terem de se submeter aos imperativos do capitalismo.
Quando AUE1, AUE2 e AUO3 se referem à inserção no mercado de trabalho
por meio do estudo, seus discursos revelam-se interdiscursivos, no sentido de que
reproduzem um dizer sócio-histórico-ideológico que atribui à educação formal a
promoção do indivíduo e reproduzem dizeres advindos de discursos capitalistas e
globalizantes.
Seus dizeres revelam, ainda, que falam do lugar do excluído que almeja pela
educação a inclusão. Pode-se dizer que revelam assumir o lugar do excluído
determinado pela nova ordem do discurso capitalista que a mudança da cidade onde
moram passou a receber e a exercer sobre seus cidadãos seja ubatubano, ou seja,
ubatubense.
110
Essa nova ordem do discurso capitalista revelou não exercer efeitos sobre os
atos e discursos desses cidadãos, determinado-lhes a volta à escola; é possível afirmar
que, submetidos a essa nova ordem, a essa nova necessidade de inserção, os costumes, a
cultura e os valores, sobretudo dos ubatubanos, são silenciados, por não haver, neste
momento sócio-histórico de Ubatuba, lugar para essas heranças.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resgate-se o ponto de onde partiu esta dissertação que ora se encerra. A
percepção assistemática de que ocorria entre alunos da Educação para Jovens e Adultos
um apagamento da cultura constituiu a motivação para a realização desta dissertação.
111
A análise do discurso produzido por alunos da EJA confirmou parcialmente a
hipótese da qual se partiu, qual seja, a estância turística na qual se transformou a cidade,
outrora aldeia de pescadores, em virtude da construção da Rodovia Translitorânea BR-
101, submeteu-se a uma nova ordem do discurso capitalista, em que não havia mais
espaço para a cultura caiçara. Mais precisamente, os alunos descendentes de caiçaras ou
ubatubanos, como se autodenominam revelaram, em seus discursos, não terem perdido
ou esquecido a cultura caiçara, em razão de a cidade ter se transformado de uma aldeia
de pescadores a uma estância litorânea; esses ubatubanos uma filha de artesãos, uma
farinheira, um roceiro e um pescador revelaram não terem se alienado da cultura na
qual nasceram; revelaram o silenciamento de sua cultura promovido pelo capitalismo,
silenciamento esse que se desvelou pelo estabelecimento da dicotomia entre a Ubatuba
de antes e a de hoje. Nessa rememoração, revelaram-se cindidos, isto é, revelaram, por
um lado, não todo apreço que têm pela cultura herdada, como revelaram ter saudade
de um outro constituído por uma ética cósmica da ordem da memória, isto é, de uma
ética cósmica vivida ou passada de geração para geração da qual se perdeu a origem,
relação essa que, por sobrevir das relações entre a comunidade local e seu meio,
simboliza o homem e o que está em sua volta, o que resulta em um tipo de consciência
que evidencia o grau de relação afetiva ao lugar, esse fator de apego permite a
configuração da identidade local e de sua população. Por outro lado, revelaram ceder às
evidências da importância do progresso e da globalização. O discurso do aluno-
ubatubano se manifestou por meio de regularidades discursivas que permitiram o acesso
ao estabelecimento da dicotomia entre o passado e o presente, ou seja, permitiu a
observação, em seus dizeres, da remissão ao passado com teor saudosista com relação a
valores, cultura, e à necessidade de se inserir no sistema capitalista no qual a cidade de
Ubatuba se encontra.
os ubatubenses, cidadãos embora nascidos em Ubatuba, mas não filhos de
caiçaras, o revelaram esse apreço pela cultura, certamente porque, embora alguns até
tenham referência da Ubatuba anterior à sua transformação, não viveram, efetivamente,
as experiências enunciadas pelos ubatubanos, como a relação cósmica com a terra, a
lida com a pesca e com elementos ligados a ela, e, sobretudo, com a vivência em uma
Ubatuba que não sofria interferências capitalistas, diferença essa que torna os
ubatubanos diferentes de ubatubense; sua referência à devastação da natureza constitui
um dizer interdiscursivo, um dizer que circula pelos meios de comunicação. Sua
112
referência positiva à Ubatuba se mostra derivar da possibilidade de emprego que ela
lhes ofereceu.
No dizer proferido pelos ubatubanos, observou-se que eles não “apagam” a
cultura porque assim o desejam, mas, sim, porque devem se submeter à nova ordem do
discurso do capitalismo no seu estágio atual da globalização e, nessa submissão,
silenciam a cultura, os costumes e os valores caiçaras de que são constituídos.
Portanto, a valorização da cultura popular contribui para que a sociedade
fortaleça a individuação e a auto-estima diante do outro, numa busca de
desenvolvimento que se origina de seu próprio querer, de sua vontade conforme seus
valores, pois é por intermédio da cultura que o homem e a sociedade interagem com o
mundo a sua volta.
Observou-se, também que, tanto os alunos ubatubanos, quanto os ubatubenses,
proferem um interdiscurso de que voltam a estudar repetindo o dizer sócio-histórico e,
portanto, ideológico, de que a volta aos bancos escolares os transformarão em uma
pessoa melhor, mas, sobretudo, porque almejam a um emprego melhor, revelando sua
submissão à mencionada nova ordem do discurso capitalista.
A análise do discurso dos alunos do EJA revelou, ainda que, indistintamente,
tanto os ubatubanos quanto os ubatubenses, julgam não poderem refutar o discurso da
globalização, sob a evidência de que a sua não incorporação ao dizer desse discurso os
colocam na condição de excluídos, fator que determinara a sua volta à escola.
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1970/1992.
ANDRADE, Mário de. Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Ediouro. [s.d]
113
ARANTES. Antonio A. O que é cultura popular?. São Paulo: Brasiliense, 2006.
ARROYO, Miguel G. Prefácio. In DAYRELL, Juarez (org.). Múltiplos olhares sobre
educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996.
AUTHIER-REVUZ,J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). In Cadernos de Estudos
Lingüísticos, Unicamp/IEL. Campinas, SP, n.19,1990.
____________
. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do
sentido. Trad. Leci Borges Barbisan; Valdir do Nascimento Flores. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem.São Paulo, Hucitec, 1979.
BAUMAN, Zigmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1999.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano compaixão pela terra. Petrópolis,
RJ: Vozes 1999.
BOSI, Alfredo.Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BRANDÃO, Helena H. Magamine, Introdução à análise do discurso, 6 ed.
Campinas, São Paul.: Editora UNICAMP, 1997.
.
BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental Parâmetros curriculares: terceiro e
quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Secretaria da Educação
Fundamental. Brasília: MEC/ SEF, 1998.
BURITY, Joanildo. Cultura e identidade: perspectivas interdisciplinares. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002.
CASÉRIO, Vera Mariza Regino. Educação de jovens e adultos: pontos e contrapontos.
Bauru - SP: EDUSC, 2003.
CLAXTON, Mervyn. Cultura y Desarrollo. Estúdio. Paris: UNESCO, 1994. Disponível
em: www.unesdoc.unesco.org/ulis/cgi-bin/- acesso em 18/12/2006
.
CORACINI, M. J. F. Heterogeneidade e leitura na aula de língua materna. In:
CORACINI, M. J. R.R. & PEREIRA, A.E. (orgs.). Discurso e sociedade: práticas em
análise do discurso. Pelotas: ALAB/EDUCAT, 2001.
CORCEIRO, Sylvia. In BURITY, Joanildo (org.). Cultura e identidade: perspectivas
interdisciplinares. Rio de janeiro: DP&A, 2002.
DIEGUES, Antonio Carlos Santa’Anna. Ensiclopédia Caiçara. São Paulo: HUCITEC:
NUBAUB: CEC/USP, 2004. Ecologia e cultura; v.5.
FERREIRA, Maria Cristina Leandro. As interfaces da análise de discurso no quadro
das ciências humanas. Disponível em
www.discurs.ufrgs.br/articles.php3id _article 3 -
27K acesso em 18/01/2007.
114
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. (1971) Tradução de Sírio Possenti . Ijuí
Fidene, 1973.
_________: Microfísica do poder.. Oranização eradução de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1976
_______: As palavras e as coisas. São Paulo : Martins Fontes, 1980.
_________: A escrita de si. In: Manoel Barros da Motta. (Org.). Ética, sexualidade,
política Michel Foucault. São Paulo: Forense Universitária, 2004a. Ditos e escritos,
v.V.
_________: Uma estética da existência. In: Manoel de Barros Motta. (Org.). Ética,
sexualidade, política – Michel Foucault. São Paulo: Forense Universitária, 2004b. Ditos
e escritos, v. V.
________: A Arqueologia do Saber. Trad. de Luiz Felipe Beata Neves. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2005.
GADET, F. & HAK, T.(orgs.). Por uma análise automática do discurso; uma introdução
à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise, Análise do Discurso: Os sentidos e suas
movências. Departamento de Lingüística de Pós Graduação em Lingüística
Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Araraquara – São Paulo – Brasil.1988
.
GRIGOLETTO, M. A Resistência das Palavras: Um Estudo do Discurso político sobre
a Índia (1942-1947). Tese de doutoramento, Campinas, UNICAMP, 1998
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço.São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
HADDAD, Sérgio e DI PIERRO, Maria Clara. Escolarização de jovens adultos. In:
Revista brasileira de Educação, mai-ago, 2000, nº 04. Associação Nacional e Pós-
Graduação e Pesquisas em Educação: São Paulo, p.p 108-130.
HADDAD, rgio. A educação de pessoas jovens e adultas e a nova LDB. In
Brzezinski, (org.) LDB INTERPRETADA: diversos olhares se entrecruzam. 7 ed. São
Paulo: Cortez: 2002
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora,
2005.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICAS . Disponível em:
www.ibge.gov.br/23/trai/htm. Acesso em 22/02/2008.
MAINGUENEAU, D. Termos-chave da Análise do Discurso.Tradução de Macio V.
Barbosa & M.E.T. Lima. Belo Horizonte: UFMG. 1998.
115
LARROSA, Jorge.Tecnologias do eu e Educação. In SILVA, Tomaz Tadeu da. O
sujeito da Educação.Rio de Janeiro, R. Editora Vozes, 1994.
LYOTARD, Jean-François. A condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 2002.
MALDIDIER, D. Elementos para uma história da Análise do Discurso na França. In:
ORLANDI, E.P. (org.) Gestos de leitura: da história no discruso. Trad. B.S.Z. Mariani
et al. Campinas, Editora da UNICAMP, 1994.
MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara Terra e população: estudo de demografia histórica e
da história social de Ubatuba.São Paulo,SP: Ed. Paulinas: CEDHAL Coleção Raízes,
1986.
MASCIA, Márcia Aparecida Amador. Investigações na pós-moderniade: (uma análise
de poder-saber do discurso político educacional de íngua estrangeira). Campinas, SP:
Mercado das Letras: Fapesp, 2002.
MATHIAS, Marcello Duarte. Autobiografias e diários. In: Revista Colóquio/Letras.
Ensaio, nº 143/144, jan. 1997, p 41-62.
MARQUES, José Oscar de Almeida. Rousseau a forma moderna de autobiografia. IX
Congresso Internacional da Associação Brasileira Comparada (ABRALIC). Instituto de
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 18 a 21 de julho de
2004. Disponível em www.unicamp.br/~jmarques/pesq./forma_moderna_da
autobiografia.pdf – acesso em 17/09/2007.
MESQUITA, Luciana Ap. de e GUIMARÃES, Mota Ana C.O. O conto como elemento
formador de identidade e de valorização da cultura popular na escola. Trabalho de
Conclusão de Pós-Graduação. Taubaté: UNITAU/PRPPG, 2005.
OLIVEIRA, Silvia de. A construção da Identidade: Uma análise semiótica. In:
Fernandes Santos (org.) Teorias Lingüísticas. Uberlândia, M.G.: EDUFU, 2003.
ORLANDI, Eni P. Interpretação; autoria. Leitura e efeitos do trabalho
simbólico.Ptrópolis: Vozes, 1996.
____________:
A leitura e os leitores possíveis. In : ORLANDI (org.) A Leitura e os
Leitores. Campina, SP: Pontes. 1998.
________. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes,
edição, 2005.
PÊCHEUX, M. O Discurso - estrutura ou acontecimento. Trad. de Eni P. Orlandi.
Campinas: Pontes, 1990.
________ M. Análise do Discurso: três épocas (1983). In: GADET F.; HAK, T. (Orgs.)
Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux.
Trad. de Eni P. Orlandi. Campinas: Unicamp, 1997a, pp 61-151.
116
_________, M. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET F.; HAK, T.
(Orgs.) Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. Trad. de Eni P. Orlandi. Campinas: Unicamp, 1997b, pp 61-151.
_________, M.; FUCHS, C. A Propósito da Análise Automática do Discurso:
atualização e perspectivas (1975). In: GADET F.; HAK, T. (Orgs.) Por uma Análise
Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. de Péricles
Cunha. Campinas: Unicamp, 1997c, pp 163-235.
PICAWY, Maria Maira, WANDESCHEER, Maria Sirlei X. In:Scheibel, Maria Fani;
Lehenbauer, Silvana (Org.). Reflexões sobre a educação de jovens e adultos EJA.
Porto Alegre: PALLOTTI, 2006.
PINTO, Maria Cristina dos Santos. Autobiografia e Subjetividade: análise do discurso
de alunos de Curso Normal Superior. Dissertação de Mestrado. Taubaté:
UNITAU/PRPPG, 2007.
RASSAN, SAMANTHA [et.al]. Caiçara: a faartura de um povo na salmoura. São
Paulo: Páginas & Letras Editora Gráfica, 2207.
RICOEUR, P. Interpretação e ideologias. Tradução de H. Japiassu. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1977.
RIZZO Carlos, BARRETO João. O falar caiçara: as palavras, usos e costumes dos
caiçaras de Ubatuba antes da televisão chegar. Ubauba-SP : Ed.Confraria dos escritores
de Ubatuba, 2003
ROZITCHNER Leon. Freud e o problema do poder. Trad. de Marta Maria Okamoto e
Luiz Gonzaga Brga Filho. São Paulo: Escuta, 1989.
SARGENTINI, Vanice M. O. A construção da análise do discurso: percurso histórico.
Revista Brasileira de Letras v.1.nº , 39-40, 1999.
SETTI, Kilza. Ubatuba nos cantos das praias: estudo do caiçara paulista e de sua
produção musical. São Paulo: Editora Ática, 1985.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidades Terminais: As transformações na política da
pedagogia e na pedagogia da política.
UYENO, Elzira Yoko. Da autonarração à escrita acadêmica: a construção da
subjetividade dos alunos de cursos de especialização. In: CASTRO, Solange T. Ricardo
de e SILVA, Elizbeth Ramos da. Formação do profissional docente: contribuições de
pesquisas em Lingüística Aplicada. Taubaté SP: Cabral Editora e Livraria
Universitária, 2006.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica conceitual.In:
SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.) Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis, R.J.: Editora Vozes, 2000.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo