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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
Silmara Filardi
A LINGUAGEM NA CONSTRUÇÃO DAS
REPRESENTAÇÕES DE CULTURA BRASILEIRA E
DO BRASILEIRO EM AULAS PARTICULARES E
INDIVIDUAIS DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA
ESTRANGEIRA
Taubaté – SP
2008
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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
Silmara Filardi
A LINGUAGEM NA CONSTRUÇÃO DAS
REPRESENTAÇÕES DE CULTURA BRASILEIRA E
DO BRASILEIRO EM AULAS PARTICULARES E
INDIVIDUAIS DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA
ESTRANGEIRA
Taubaté - SP
2008
Dissertação apresentada para obtenção
do Título de Mestre pelo Curso
Lingüística Aplicada do Programa de
Pós-Graduação em Lingüística Aplicada
da Universidade de Taubaté.
Área de Concentração: Língua Materna
Orientadora: Profa. Dra. Tania Regina de
Souza Romero
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SILMARA FILARDI
A LINGUAGEM NA CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES DE CULTURA
BRASILEIRA E DO BRASILEIRO EM AULAS PARTICULARES E INDIVIDUAIS
DE PORTUGUÊS COM LÍNGUA ESTRANGEIRA
Data: ___________________________________________
Resultado: ________________________________________
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Assinatura __________________________________________________________________
Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Assinatura __________________________________________________________________
Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Assinatura __________________________________________________________________
Dissertação apresentada para obtenção do
Título de Mestre pelo Curso Lingüística
Aplicada do Programa de Pós-Graduação em
Lingüística Aplicada da Universidade de
Taubaté.
Área de Concentração: Língua Materna
Agradecimentos
A Deus, a Jesus e aos amigos espirituais, pela sustentação, pelo envolvimento amoroso,
durante todo esse processo.
Aos meus pais, Hilda e Vicente, pela força nos momentos mais críticos, pelo amor e pela
compreensão por tantas ausências.
À minha irmã, Silvana, pelo apoio e pela paciência de ouvir-me em diversos momentos de
desabafo e de deslumbramento diante do conhecimento.
Ao meu cunhado-irmão, André, pelo apoio logístico dado desde o início deste processo.
Aos meus amados sobrinhos, Renato e Lívia, pelo carinho, por participarem comigo deste
processo, questionando sobre teorias, reclamando minhas ausências.
Aos meus alunos, sujeitos desta pesquisa, e a todos os outros, por permitirem ela fosse
possível.
Às professoras da Unitau, pela dedicação e pelos ensinamentos.
À Profa. Dra. Vera Lucia Batalha de Siqueira Renda, pelos momentos literários, nas noites de
sexta-feira, que despertaram em mim o amor por literatura.
Aos professores Orlando Vian Jr. e Vera Lucia Batalha de Siqueira Renda, pelas
contribuições valiosas feitas no Exame de Qualificação.
A toda equipe da secretaria, pela atenção, carinho e presteza.
A meus amigos e familiares que souberam compreender minha reclusão nesses dois anos.
A Rosaninha, pelo abstract e pela amizade de tantos anos.
Às minhas novas amigas Márcia, Paula e Mara, pela amizade, cumplicidade e pelas conversas
jogadas fora no jantar, no café da manhã e no Pássaro Marrom.
A toda turma de 2006, pela cumplicidade e respeito que nos uniram.
Agradecimento especial
A minha querida orientadora, Tania, por compartilhar
comigo sua paixão pelo conhecimento, e por me mostrar
os caminhos para me tornar um ser reflexivo, consciente
de minhas ações e também por tornar essa jornada mais
serena e extremamente apaixonante.
Tania, esta frase de Paulo Freire mostra como te vejo:
“Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que
me insere na busca, não aprendo e nem ensino.”
“... que o outro seja como eu não sou, deixar que ele seja esse
outro que não pode ser eu [...] deixar que o outro seja diferente,
deixar ser uma diferença que não seja, em absoluto, diferença
entre duas identidades, mas diferença da identidade [...]”
José Luis Pardo
RESUMO
Inserido na linha de pesquisa Formação de Professores de Línguas e do Projeto de Auto-
Avaliação do Educador de Línguas, o objetivo geral deste estudo é analisar e avaliar, segundo
a perspectiva crítico-reflexiva (SMYTH apud MAGALHÃES, 1998, LIBERALI,
MAGALHÃES e ROMERO, 2003), como eu, professora-pesquisadora, trato a questão
cultura e linguagem em aula individual e particular de Português para Estrangeiros (PLE).
Este trabalho se diferencia dos demais sobre ensino-aprendizagem de PLE, porque investiga o
contexto de aulas particulares individuais. O estudo tem como base a visão sociointeracional
de linguagem (RICHARDS e ROGERS, 2001), segundo a qual a linguagem é considerada
prática social, e a Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) (HALLIDAY, 1994, CHRISTIE,
2005, EGGINS, 1994), que se fundamenta no modo como as pessoas usam a linguagem e
como ela se estrutura na construção de significados. Uma vez que a GSF objetiva apontar
como a linguagem funciona e como os significados são construídos, ela serviu como suporte
de análise lingüística deste trabalho. Além disso, esta pesquisa se pauta nos conceitos
antropológico (LARAIA, 2006) e semiótico (GEERTZ, 1989) de cultura, porquanto ambos
entendem a linguagem como mediadora cultural na interação social; e na relação intrínseca
entre cultura e linguagem na formação de identidade nacional (KRAMSCH, 1998, SILVA,
2000, HALL, 2005). De cunho etnográfico crítico, esta investigação foca aulas individuais de
PLE, ministradas por mim, em 2006 e 2007, a cinco alunos estrangeiros que vivem na cidade
de São Paulo. Dois deles são executivos que trabalham em multinacionais e três, esposas que
precisam aprender português e compreender a cultura brasileira para com ela interagirem. O
corpus é constituído por quatro diários e por recortes de gravações de três aulas. A análise dos
dados mostrou que a linguagem, na interação entre mim e o aluno, funciona como
instrumento de mediação cultural, e que as visões de cultura brasileira e do brasileiro
construídas na interação apontam aspectos positivos e negativos da identidade nacional. Nas
considerações finais, é possível avaliar o desenvolvimento da reflexão-crítica, no sentido de
rever e avaliar as visões de cultura brasileira e do brasileiro que ajudo a construir, e ainda me
conscientizar de meu papel de professora como ser social e político.
Palavras-chave: reflexão crítica, linguagem, cultura, ensino de português língua estrangeira
ABSTRACT
In the context of the Language Teacher Training research field and the Language Teacher’s
Self-Assessment Project, the overall purpose of this study is to analyze and evaluate, based on
the critical-reflexive perspective (SMYTH apud MAGALHÃES, 1998, LIBERALI,
MAGALHÃES and ROMERO, 2003), how I, a teacher researcher, deal with culture and
language issues in one-to-one and private classes of Portuguese Language Courses for
Foreigners (PLE). This study differs from others related to PLE teaching-learning because it
conducts the investigation within the context of one-to-one, private classes.
The study is based on the socio-interactional views of language (RICHARDS and ROGERS,
2001), according to which language is seen as a social practice; and the Systemic-Functional
Grammar (GSF) (HALLIDAY, 1994, CHRISTIE, 2005, EGGINS, 1994), based on how
people use language and how language is structured in the construction of meaning.
Considering that GSF aims at explaining how language works and how meanings are
constructed, it served the purpose of supporting the language analysis of this study. In
addition, this study is also based on anthropological (LARAIA, 2006) and semiotics
(GEERTZ, 1989) concepts of culture, provided that both see language as a cultural mediator
in social interaction; and on the intrinsic relationship between culture and language in the
establishment of the national identity (KRAMSCH, 1998, SILVA, 2000, HALL, 2005).
Of a critical ethnographic nature, this study focuses on PLE one-to-one classes which I taught
in 2006 and 2007 to five foreign students who live in the city of São Paulo. Two are
executives who work in multinationals and three are wives who need to learn Portuguese and
understand the Brazilian culture for interactive purposes. The corpus comprises four journals
and excerpts from recordings of three classes.
The data analysis showed that language used in the interaction between the student and me
works as a cultural mediation tool, and that the views of the Brazilian culture and the
Brazilian people formed as a result of such interaction indicate both positive and negative
aspects of our national identity. In the final remarks, it is possible to evaluate the development
of the critical reflection in terms of reviewing and analyzing the views of the Brazilian culture
and the Brazilian people which I help form, raising my awareness of the role I perform as a
teacher as well as a social and political being.
Keywords: language, culture, Portuguese teaching, foreign language
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Participantes da pesquisa ................................................................................ 68
Quadro 2 – Procedimentos de análise ............................................................................... 73
Quadro 3 – Objetivos: processos materiais, participantes e circunstâncias....................... 78
Quadro 4 – Síntese dos temas e materiais utilizados nas aulas analisadas........................ 88
Quadro 5 – Respostas às perguntas de pesquisa............................................................... 111
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1 FUNDAMENTAÇAO TEÓRICA 14
1.1 A teoria sociointeracional da linguagem 15
1.2Gramática Sistêmico-Funcional 17
1.2.1 Três tipos de conhecimento ativados 23
1.3 Cultura 26
1.3.1 Abordagem antropológica de cultura 29
1.3.2 Abordagem semiótica de cultura 33
1.3.3 As duas abordagens: antropológica e semiótica 35
1.3.4 Cultura brasileira: popular e erudita 36
1.3.5 Cultura e linguagem 38
1.3.6 Cultura, linguagem e identidade 41
1.4 Aulas individuais de língua estrangeira 45
1.5 Reflexão 47
1.5.1 Tipos de reflexão 48
1.5.2 Caminhos para a reflexão crítica 50
1.5.2.1 O diário como instrumento para a reflexão 52
1.5.3 Reflexão e linguagem: o professor reflexivo 54
2 METODOLOGIA 60
2.1 Referencial metodológico 60
2.2 Contexto de pesquisa 64
2.3 Participantes 67
2.4 Coleta e preparação do corpus 71
2.5 Procedimento de análise de dados 72
3 APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSSÃO DOS DADOS 76
3.1 As visões de linguagem que subjazem à prática da professora 77
3.1.1 Análise dos objetivos 77
3.1.2 Análise de minhas ações 81
3.2 Visões da cultura brasileira e do brasileiro construídas na interação 87
professora-aluno durante as aulas
3.2.1 Análise da aula 1 89
3.2.1 Análise da aula 2 94
3.2.3 Análise da aula 3 100
3.3 Respostas às perguntas de pesquisa 111
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 112
REFERÊNCIAS 116
ANEXO 121
INTRODUÇÃO
Pode-se dizer que, com o início do Mercosul, em 1991, e com as mudanças da
política econômica brasileira, o número de estrangeiros que chegam ao Estado de São Paulo
cresce a cada ano. Segundo o Ministério de Relações Exteriores, em 2007, foram concedidas
12.055 autorizações de trabalho a estrangeiros, 24 % a mais que em 2006
1
. Esse aumento tem
gerado, cada vez mais, uma maior demanda por cursos de português para estrangeiros e,
conseqüentemente, a entrada de novos profissionais nesse mercado de trabalho.
Atendendo a essa demanda, desde 1996, atuo como professora de português para
estrangeiros, no contexto de aulas particulares e individuais, a executivos e seus familiares.
Nesses anos de atuação, venho observando a falta de embasamento teórico nos cursos
propostos por algumas instituições de ensino de língua portuguesa como língua estrangeira, e,
ainda, a defasagem na formação de professores que atuam nessa área, resultando em que,
em diversos momentos, a escolha e o uso do material didático sejam feitos de forma aleatória
e sem propostas definidas.
Preocupada em oferecer um trabalho personalizado, passei a realizar entrevista inicial
com cada aluno, antes do início das aulas, com o objetivo de levantar as necessidades,
expectativas e interesses dos alunos com relação à aprendizagem da língua portuguesa. Por
não estar vinculada a nenhuma instituição, as aulas assumem um caráter de ampla liberdade
e flexibilidade, permitindo que tanto a programação quanto a seleção do material a ser
utilizado em aula seja feito por mim, atendendo às prioridades de cada aluno.
________________________
1 BRASIL. Ministério do Trabalho e do Emprego. Trabalho Estrangeiro. Autorizações Concedidas a
Estrangeiros por Unidade Federativa. 2007. Disponível em:
<http://www.mte.gov.br/trab_estrang/est_concedida_SP.pdf> Acesso em: 02 de fevereiro de 2008.
Sempre acreditei que o ensino de língua não pode estar dissociado de cultura e, por me
interessar pelo estudo da cultura brasileira e de outros países, grande parte do material
selecionado por mim, tanto textos quanto áudios e vídeos, contém aspectos da cultura
brasileira.
Apesar de nos últimos anos pesquisas na área de ensino-aprendizagem de língua
portuguesa para estrangeiros virem sendo desenvolvidas em vários programas de pós-
graduação em Lingüística Aplicada no Brasil (ALMEIDA FILHO, 2002), e de discussões
sobre cultura, interculturalidade e processos identitários estarem mais presentes em encontros,
congressos, simpósios, existem poucas pesquisas que abordam a forma como essas questões
aparecem em sala de aula e como devem ser trabalhadas pelo professor (MENDES, 2002).
Além disso, dentro desse já pequeno grupo de pesquisas na área de ensino-
aprendizagem de língua portuguesa para estrangeiros, trabalhos e pesquisas que focam a
atuação do professor particular de Português Língua Estrangeira (doravante PLE) em aulas
individuais não foram encontrados - conforme pesquisa realizada por mim em bibliotecas das
seguintes universidades: Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e no banco de teses da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
Há trabalhos sobre o ensino de Português Língua Estrangeira voltados ao estudo da
relação língua e cultura, como Pedroso (1999), Santos, J. C. (2003), Berwig (2004), mas
todos desenvolvidos em aulas para grupos de alunos e em institutos de idiomas particulares ou
vinculados a universidades públicas.
Assim, a relevância deste estudo é focar aulas particulares e individuais de PLE a
executivos e suas esposas, que residem na cidade de São Paulo, e aplicar-se à auto-reflexão
crítica sobre as concepções de cultura/linguagem que norteiam minhas ações verbais,
realizadas por meio da linguagem.
Inserida no Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade de
Taubaté-UNITAU, desenvolvi meus estudos dentro da linha de pesquisa Formação de
Professores de Línguas, e do Projeto de Auto-Avaliação do Educador de Línguas. Nesse
sentido, o objetivo deste trabalho é analisar e avaliar, segundo a perspectiva crítico-reflexiva
(LIBERALI, MAGALHÃES e ROMERO, 2003; SMYTH apud MAGALHÃES, 1998),
como eu, professora-pesquisadora, trato a questão cultura e linguagem em aula de PLE, com
a finalidade de que meus alunos aprendam o novo idioma, de modo a poderem interagir em
diversos contextos sociais da cultura brasileira.
Para tanto, serão analisados quatro diários de aulas, dadas a cinco alunos, e recortes de
três aulas ministradas a três desses alunos, totalizando duas horas de gravação. Todos os
alunos residem em São Paulo e o corpus foi coletado no período de agosto de 2006 a janeiro
de 2007.
Colocar-me-ei, então, no papel de professora-pesquisadora e procurarei responder às
seguintes perguntas:
1) Que teorias de linguagem subjazem a prática da professora?
2) Que representações da cultura brasileira e do brasileiro são construídas na
interação professora-aluno durante as aulas?
O resultado dessa análise poderá contribuir muito para meu processo reflexivo e de
alguns outros professores de PLE sobre sua prática, sobre os significados construídos em aula,
sobre linguagem atuando na construção da identidade cultural e sobre o papel do professor
como mediador cultural.
Este trabalho deverá servir como mais um instrumento para a reconstrução de minha
identidade profissional, visto que toda reflexão remete a transformações. Divide-se em três
capítulos, a saber:
O primeiro capítulo refere-se à fundamentação teórica na qual este estudo se baseia e
discorre, primeiramente, acerca das teorias de linguagem estruturalista, funcional, com foco
na sociointeracional e na Gramática Sistêmico-Funcional, e sobre os três tipos de
conhecimentos ativados no ensino-aprendizagem de línguas. A seguir, trata o conceito de
cultura nas visões antropológica e semiótica, discute a relação entre cultura e linguagem, para,
posteriormente, tratar da questão de identidade cultural. Na seqüência, aborda algumas
considerações sobre cultura e ensino de língua estrangeira. A concepção de reflexão crítica e
os caminhos e instrumentos utilizados para se chegar a ela encerram a discussão teórica.
O segundo capítulo reúne a metodologia de trabalho, o contexto de pesquisa e os
participantes envolvidos, a coleta de dados e a preparação do corpus, bem como o
procedimento de análise dos mesmos.
No terceiro capítulo, exponho a análise e a discussão dos dados com base no
arcabouço teórico e encerro com as considerações finais.
Seguem-se as referências e os anexos.
1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Este capítulo visa discorrer sobre os pressupostos teóricos que embasam esta pesquisa.
Primeiramente, discuto o tema Linguagem, pois, conforme já mencionado, o objetivo deste
trabalho é analisar e avaliar, segundo a perspectiva crítico-reflexiva, como eu, professora-
pesquisadora, trato a questão cultura e linguagem em aula de Português Língua Estrangeira , a
fim de que meus alunos possam inserir-se culturalmente no Brasil e, assim, poder agir nele.
Além disso, a forma como eu concebo a linguagem direciona também minhas ações. Portanto,
nesse item, elucido os conceitos estruturalista, funcional e sociointeracional de linguagem,
detendo-me mais neste último por acreditar que a linguagem é social e se dá em interações.
Posteriormente, exponho os fundamentos da Gramática Sistêmico-Funcional (doravante
GSF), que servirá como suporte de análise lingüística deste trabalho, e, a seguir, abordo os
três tipos de conhecimento que podem ser ativados quando o indivíduo entra em contato com
a nova língua-alvo.
No segundo item, discuto o tema Cultura. Nele, analiso as visões antropológica e
semiótica, escolhidas como base de análise para este trabalho por considerarem a linguagem
elemento constitutivo da cultura; a seguir, a relação intrínseca entre cultura e linguagem. E,
com base em Silva (2000) e Hall (2005), trato identidade como resultado de criação
lingüística e suas implicações, finalizando com a relação cultura e ensino de língua
estrangeira.
Tendo em vista que a perspectiva desta pesquisa é de base crítico-reflexiva, o último
item procura, primeiramente, explicitar em qual concepção de reflexão se pauta esta pesquisa,
uma vez que há várias formas de se entender reflexão na literatura. Assim, exponho os
conceitos de reflexão técnica, prática e crítica, bem como os caminhos a serem percorridos
para se chegar a esta última – foco deste trabalho. Em seguida, examino a relação entre
reflexão e linguagem, porquanto este estudo é, em si, minha auto-reflexão, realizada por meio
da linguagem para, finalmente, chegar ao professor reflexivo.
1.1 A TEORIA SOCIOINTERACIONAL DE LINGUAGEM
Entende-se que a forma como a linguagem é concebida não só influencia como
determina nossas ações educacionais. Segundo Richards e Rogers (2001), há pelo menos três
diferentes teorias de linguagem que orientam, implícita ou explicitamente, abordagens e
métodos de ensino de língua. Considerando que o objetivo deste trabalho é analisar e avaliar
a questão cultura e linguagem em aula de PLE, segundo a perspectiva crítico-reflexiva
(LIBERALI, MAGALHÃES e ROMERO, 2003; SMYTH apud MAGALHÃES, 1998),
focarei a teoria sociointeracional da linguagem em detrimento das outras principais, como a
estruturalista e a funcional.
Para Richards e Rogers (2001), na teoria estruturalista, a linguagem apresenta-se
como um sistema de elementos estruturais que se relacionam na construção do significado. O
sentido, assim, está nas palavras e frases. Esse sistema é formado por unidades fonológicas,
gramaticais e lexicais, e o aprendizado baseia-se no seu conhecimento. Sob esse enfoque, as
ações do professor voltam-se para o ensino do léxico e das estruturas gramaticais. Leffa
(2003) acrescenta que o ensino ancorado nessa teoria se preocupa mais com a forma do que
com o conteúdo. Por exemplo, ainda hoje, é muito freqüente o ensino de vocabulário
fundamentado em listas de palavras de um mesmo campo semântico, sem estarem
contextualizadas à situação de uso, e em exercícios de preenchimento de lacunas para
fixação de conjugações verbais.
O foco da concepção funcional está nas funções utilizadas na comunicação. Segundo
Leffa (2003), o ponto relevante é o objetivo do uso da língua, isto é, sua função. Richards e
Rogers (2001) já explicavam que essa teoria enfatiza a dimensão comunicativa e semântica
em vez dos elementos gramaticais. Desta forma, o ensino fundamentado nessa teoria parte de
uma classificação das funções da linguagem, como, discordar, concordar, descrever,
desculpar-se, pedir ajuda, pedir informações, fazer compras, agendar compromissos, etc.,
como geralmente encontramos nos índices da maioria dos livros didáticos de ensino de língua
estrangeira.
Pela perspectiva sociointeracional, diferentemente das teorias estruturalista e
funcional, a linguagem é vista como instrumento para criar e manter as relações interpessoais
(RICHARD; ROGERS, 2001), como meio de relacionamento entre as pessoas e se dá no
mundo em eventos sociais.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais - Língua Estrangeira (doravante PCNs-LE)
(BRASIL, 1998) destacam sua natureza, qual seja, as pessoas dela se utilizam para agir e
interagir socialmente, sempre situadas em um contexto sócio-histórico cultural e a partir de
determinadas posições presentes na interação. É na interação social que os significados se
constroem. Portanto, é importante que se considerem os integrantes presentes na interação,
tendo em vista que as identidades sociais definem intrinsecamente a forma de interação e a
linguagem em uso.
No processo de aprendizagem de língua estrangeira, os PCNs-LE ressaltam que o
entendimento da linguagem como prática social pode ser observado por meio de sete
perguntas que devem ser feitas a todo texto, seja ele oral ou escrito, a saber: (a) Quem falou
ou escreveu?, (b) Sobre o quê?, (c) Para quem?, (d) Para quê?, (e) Quando?, (f) De que
forma?, (g) Onde?.
Essas perguntas levam à compreensão de que os significados são construídos na
interação social, e de que o indivíduo, ao fazer uso da linguagem, o faz a partir de um lugar
sócio-histórico cultural. Dessa forma, a linguagem reflete nossos valores, nossa cultura, e o
aprendizado de línguas passa a ser considerado um espaço para trocas e entendimento de
outras formas de ver e viver o mundo (BRASIL, 1998).
A GSF parece alinhar-se a essa perspectiva de linguagem, motivo pelo qual, a seguir,
discorro sobre ela.
1.2 GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL
Tendo como ponto fundamental o uso da língua, ou seja, sua funcionalidade, e
entendendo por funcionalidade o modo como as pessoas utilizam a linguagem e como esta se
estrutura na construção de significados, a Gramática Sistêmico-Funcional, doravante GSF,
tem como fundamentos os estudos desenvolvidos por Halliday (1994) e expandidos por
autores como Christie (2005), Eggins (1994), entre outros. Segundo Christie (2005), por meio
da linguagem nos relacionamos com outras pessoas, construímos um sentido do mundo,
moldamos significados e valores. Halliday (1994), citado por Gouveia (2006, p.4), relata que
todo texto, que é dito ou escrito, acontece em algum contexto de uso; foram os usos
lingüísticos que, ao longo de milhares de gerações, deram forma ao sistema. A
linguagem desenvolveu-se para satisfazer necessidades humanas e o modo como
está organizada é funcional relativamente a essas necessidades.
A GSF objetiva responder às seguintes perguntas: “Como as pessoas usam a
linguagem?” e “Como ela se estrutura para o uso?”, qual a função da linguagem e como os
significados são construídos (EGGINS, 1994, p.2). A resposta a essas questões deve levar em
consideração os diferentes contextos nos quais a linguagem é negociada. Portanto, seu foco de
análise é a linguagem em uso, realizada em eventos sociais reais. Tal perspectiva vai ao
encontro deste trabalho, uma vez que visa observar que representações da cultura brasileira e
do brasileiro são construídas na interação professor-aluno, bem como que teorias de
linguagem subjazem minha prática.
O processo de construção de significados, segundo Eggins (1994), dá-se por meio de
escolhas realizadas pelo falante. Essas escolhas não são aleatórias, mas sim carregadas de
significados, uma vez que a linguagem está sempre influenciada por nossa ideologia, nossos
valores, preconceitos, representações
2
. A linguagem constrói e construirá sempre a nossa
visão de mundo e, por meio dela, nós nos mostramos. Assim,
a linguagem opera para servir a importantes funções sociais. É um sistema que
produz significados. Aprendemos a selecionar a partir das possíveis variedades de
escolhas de produção de sentido na língua, para que possamos criar textos em
contextos de uso. As escolhas feitas estão parcialmente relacionadas ao registro e ao
cenário imediato, e parcialmente à cultura mais ampla na qual operamos.
(CHRISTIE, 2005, p.9). (tradução minha)
O termo contexto de cultura foi apresentado primeiramente na Antropologia por
Malinowski, em 1923 e 1935. Halliday e Hasan (1989) retomam esse termo, trazido da
Antropologia para a Lingüística por Firth, e o relacionam ao ambiente sociocultural mais
amplo no qual a interação acontece. O contexto de cultura, segundo Romero (1998), orienta a
atividade social de cada cultura, o propósito social do texto – este “entendido como um
‘tecido’ que serve a algum propósito social” (CHRISTIE, 2005, p. 9). Dessa forma, é possível
considerar que os aspectos culturais, que orientam as formas de falar, estão relacionados a
esse contexto.
Se o contexto de cultura está num nível mais amplo, o contexto de situação refere-se
ao contexto mais imediato, no qual o texto é construído (EGGINS, 1994), e atua na
construção dos significados imediatos. Desse contexto deriva o conceito de registro que,
segundo Romero (2004), aponta o contexto mais imediato no qual o texto foi produzido.
________________________
2
Entende-se representações como (...) uma cadeia de significações, construídas nas constantes negociações
entre os participantes da interação e as significações, as expectativas, as intenções, os valores e as crenças
referentes a: (a) teorias do mundo físico; (b) normas, valores e símbolos do mundo social; (c) expectativas do
agente sobre si mesmo como ator em um contexto particular. (CELANI e MAGALHÃES, 2002, p. 321).
Disso, podemos então inferir que o contexto de situação está inserido no contexto de
cultura. Este, regendo os propósitos sociais da linguagem, e o de situação, atuando na
construção dos significados imediatos.
Figura 1: Contexto de cultura, Contexto de situação e Texto
Quando a linguagem é usada em qualquer contexto de situação, surgem três variáveis,
associadas ao registro e que operam na construção de significados. São elas: (a) modo, (b)
relações e (c) campo. Modo refere-se ao papel da linguagem na interação, à organização
simbólica do texto, a como a linguagem é usada e ao canal de transmissão da mensagem. A
variável relações diz respeito às relações – formal ou informal, permanente ou temporária –
entre as pessoas envolvidas no contexto. E, por último, o campo que se relaciona ao
propósito da fala, à intenção, ao que está sendo dito sobre algo.
A essas variáveis, Halliday atribuiu significados que são construídos a partir de cada
uma delas. Os significados textuais estão relacionados ao modo, e encontram-se envolvidos
na organização do texto. Os interpessoais, ligados às relações, representam e estabelecem as
CONTEXTO DE CULTURA
CONTEXTO DE
SITUAÇÃO
TEXTO
relações sociais; e os experienciais ou ideacionais relacionam-se à atividade social e
caracterizam o propósito da atividade, o que é dito.
Com base nesses significados, Halliday identificou três metafunções, por meio das
quais podemos verificar como a linguagem constrói seus significados nas interações: (a)
metafunção textual, relacionada à organização e à mensagem interna do texto; (b)
interpessoal, à interação entre os participantes; e (c) experiencial ou ideacional, à
representação lingüística da realidade.
Conforme exposto, o objetivo deste trabalho é responder às seguintes perguntas de
pesquisa: Que teorias de linguagem subjazem a prática da professora?, e Que representações
da cultura brasileira e do brasileiro são construídas na interação professora-aluno durante as
aulas? Portanto, é importante que o foco de análise esteja direcionado à metafunção
experiencial ou ideacional, pois a metafunção experiencial refere-se à construção dos
significados experienciais, isto é, como o mundo é sentido, percebido, experienciado,
representado. Ademais, procura analisar o propósito e o conteúdo da mensagem,
representações que podem ser verificadas e analisadas pela Gramática da Transitividade.
Segundo o enfoque da Transitividade, a sentença organiza-se de forma a representar
como a realidade é vista e sentida pelo falante. Este demonstra sua visão de mundo na escolha
dos “processos (grupo verbal) que envolvem participantes (coisas e pessoas) e que acontecem
em determinadas circunstâncias, dadas como detalhes da ação (lugar, maneira, tempo, etc.)”
(ROMERO, 2004, p.19).
Assim, os significados experienciais, que revelam os valores, as percepções, as
representações construídas pelo falante, podem ser analisados por meio destes três elementos
da sentença ou figura: processos, formados por grupos verbais; participantes, por grupos
nominais; e circunstâncias, por grupos adverbiais, estas últimas não obrigatórias.
Halliday apresenta seis tipos de processos relacionados a significados que veiculam:
Processos materiais: são os processos de FAZER e representam as ações do mundo físico,
exterior, concretas, que podem ser visualizadas. Os participantes envolvidos neles são: Ator e
Meta. O primeiro é o que realiza a ação. Sua presença é obrigatória, mesmo que de forma
elíptica (THOMPSON, 1996, p. 78, apud SANTOS-LOPES, 2006). A Meta é o participante a
quem o processo se dirige, o que é modificado por ele. Numa correspondência à gramática
tradicional seria o objeto direto (EGGINS, 1994, p. 231, apud SANTOS-LOPES, 2006) ou
indireto.
(eu) vou anotando em meu caderno
os erros.
3
Participante: ator Processo: material circunstância de lugar Participante: meta
Processos mentais: são os de SENTIR e relacionam-se ao mundo interior do ser humano, por
isso, seu participante obrigatoriamente será sempre humano. Expressam o que as pessoas
sentem, pensam. São divididos em três tipos: de cognição (achar, acreditar, pensar, entender,
saber, decidir...), de afeição (gostar, amar, adorar...) e de percepção (perceber, ver,
observar...). O participante que realiza o processo mental é chamado de Experienciador, e o
que é sentido ou percebido por este recebe o nome de Fenômeno.
Ele percebe que as relações de trabalho (...)
Participante: experienciador Processo: mental Participante: fenômeno
Processos relacionais: são os de SER ou de TER que estabelecem entre dois elementos
distintos uma relação atributiva (atribui ao participante uma qualidade, uma classificação) ou
de identificação, cuja “função é identificar uma entidade em respeito à outra” (ROMERO,
2004, p. 21). Os exemplos seguintes procuram apresentar melhor essas relações.
________________________
3
Todos os exemplos a seguir foram retirados do corpus deste trabalho.
Os brasileiros são criativos?
Participante: portador Processo: relacional (atributivo) Participante: atributo
Eu tenho trinta anos.
Participante: identificado Processo relacional
(de identificação)
Participante: identificador
Processos comportamentais: relacionados aos comportamentos físicos e psicológicos. Os
participantes desses processos são humanos. Segundo Romero (2004), tal categoria possibilita
“distinguir entre processos claramente mentais e sinais físicos externos desses processos”,
como rir, chorar, respirar, etc. (p. 20). O participante que realiza a ação é chamado de
Comportante, e denomina-se Extensão o que define o objetivo do processo.
Ele riu.
Participante: Comportante Processo: comportamental
Processos verbais: são os de DIZER (dizer, perguntar, questionar, interrogar). Nesse
processo, os participantes são: Dizente, aquele que diz, que indica algo, e não precisa ser
necessariamente humano; o Receptor, a quem o processo verbal se dirige; e a Verbiagem, que
expressa o que é dito. (vide exemplos).
(Ele) falou da impontualidade.
Participante: dizente Processo: verbal Participante: Verbiagem
O texto fala sobre aspectos culturais.
Participante: dizente Processo: verbal Participante: Verbiagem
Processos existenciais: são os relacionados ao EXISTIR. Na língua portuguesa, podemos
expandir para HAVER e TER (usado no sentido de existir e haver na linguagem oral ou
informal). Não há participante envolvido em ações, porém há o Existente, como no exemplo:
No Brasil tem desigualdades.
circunstância de lugar Processo: existencial Participante: existente
Circunstâncias: Sua função é adicionar informações aos processos. São realizadas por
locuções adverbiais e advérbios e podem indicar: tempo, localização, causa, instrumento, etc.
eles enfrentam os problemas como?
Participante:
experienciador
Processo: mental Participante:
fenômeno
circunstância de modo
É importante ressaltar que não só os processos revelam aspectos da cultura brasileira
ou do brasileiro, como também os participantes e as circunstâncias. Os participantes
atributivos, dos processos relacionais, podem indicar características do otimismo do
brasileiro. Por exemplo: “A calcinha é bem metida no bumbum”, “As roupas são apertadas”.
As circunstâncias de lugar podem relacionar-se a generalizações que podem não ser reais:
Aqui (no Brasil), hotel no centro é hotel de programa”.
Posto que a Gramática da Transitividade possibilite verificarmos de que forma a
realidade é vista, sentida, pelo falante, considero-a elemento fundamental na análise dos
significados construídos da cultura brasileira e do brasileiro na interação professora-aluno,
nos recortes de aulas que constituem o corpus deste trabalho. Isso porque, vale ressaltar, é por
meio da linguagem que interagimos com outras pessoas, com o mundo ao nosso redor, e
construímos significados, valores, nos desenvolvemos, ativando, nessa interação três tipos de
conhecimentos.
1.2.1 Três tipos de conhecimento ativados
O contato do indivíduo com a nova língua, aqui nos referindo à aprendizagem de
língua estrangeira, possibilita o aumento de sua autopercepção como ser humano e cidadão, e
a sua interação no mundo social (BRASIL, 1998).
No processo sociointeracional de construção de significados, três tipos de
conhecimento, que atuam conjuntamente na formação da competência comunicativa do
indivíduo e na sua inserção em eventos discursivos, são ativados (BRASIL, 1998). São eles:
Conhecimento sistêmico: refere-se aos conhecimentos léxico-semânticos, morfológicos,
sintáticos e fonético-fonológicos que os indivíduos têm sobre sua língua, permitindo-lhes
realizar escolhas adequadas dentro do sistema lingüístico que propiciem a construção de
significados, tanto na construção de enunciados quanto na compreensão deles.
Conhecimento da organização textual: reporta-se ao conhecimento das “convenções” de
como as informações devem ser organizadas em textos orais e escritos nas interações. Os
Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Estrangeira (BRASIL, 1998, p. 31) classificam
os textos orais e escritos em três categorias: narrativos, descritivos e argumentativos. A partir
deles, outros tipos de textos podem ser elaborados, conforme sua “função na prática social”.
A função social do texto também é abordada pela GSF através do conceito de gênero,
que é usado para
descrever o impacto do contexto de cultura sobre a linguagem, explorando a
estrutura encenada e organizada passo a passo que as culturas institucionalizam
como formas de se conseguir certos objetivos. (EGGINS, 1998, p.9).
Todo gênero, portanto, possui um propósito social, uma moldura previsível, embora
não fixa e imutável, que pode ser reconhecida pelos membros da cultura na qual é criado; e
uma variedade proporcional ao número de atividades sociais reconhecidas em nossa cultura,
como contos, romances, fábulas, ou missa, jogo de futebol, etc. (EGGINS, 1994).
Conhecimento de mundo: relaciona-se ao conhecimento que as pessoas adquirem em sua
vivência. Esses conhecimentos são construídos ao longo das experiências vividas pelo
indivíduo e passam a fazer parte de seu repertório referencial. É esse tipo de conhecimento
que possibilita que uma pessoa que vive no nordeste do país reconheça a diferença entre forró
pé-de-serra e forró universitário ou eletrônico, enquanto uma pessoa do sul, sem esse tipo de
conhecimento, não pode fazê-lo. Segundo os PCNs-LE (BRASIL, 1998), a aprendizagem de
uma nova língua contribui para o desenvolvimento da visão do mundo do aprendiz.
Vygostsky (1998) ajuda-nos a compreender essa contribuição, quando assegura que a
linguagem é um instrumento de mediação simbólica entre os indivíduos e “permite o
estabelecimento de significados compartilhados por determinados grupos culturais, a
percepção e interpretação dos objetos, eventos e situações do mundo circundante” (REGO,
1995, p. 55). No processo de interação com uma nova cultura, em um novo contexto sócio-
histórico, a linguagem funciona como mediadora, assim, nela podemos encontrar aspectos
culturais que marcam determinados contextos, grupos, sociedades.
Tendo como premissa o caráter sociointeracional da linguagem, entende-se que o
ensino de línguas esteja ancorado na interação social como elemento primordial na construção
do conhecimento. Para Vygotsky (1998), o desenvolvimento dos processos psicológicos
superiores se processa na interação entre os indivíduos e o meio social, mediado pela
linguagem. Segundo o autor, toda função aparece primeiro nas relações pessoais e depois se
interioriza no indivíduo. Dessa forma, pode-se depreender que o processo de aprendizagem
vem de fora para dentro, isto é, de processo interpessoal transforma-se em intrapessoal, e
assim sucessivamente. Apoiado em Vygotsky, Fino (2001) afirma que “a aprendizagem é um
processo social e o conhecimento é algo socialmente construído”.
Nesse enfoque, o sujeito é visto como um ser ativo, social, participante de sua
aprendizagem na medida em que interage com o meio e com outros indivíduos. É na
interação, por meio de trocas entre o indivíduo e o meio e entre si que o sujeito se desenvolve.
O professor, no processo de ensino-aprendizagem, atua como agente metacognitivo,
favorecendo possibilidades de diálogos, questionamentos, troca de informações, de visões de
mundo, para que o aprendiz possa construir seu conhecimento. Dessa forma, sendo o
professor o par mais apto, mais competente, possivelmente, na maioria das vezes em aula,
auxilia na construção do conhecimento.
1.3 CULTURA
Considerando-se que objetivo deste estudo é analisar e avaliar como a professora-
pesquisadora trata a questão cultura e linguagem, segundo a perspectiva crítico-reflexiva
(LIBERALI, MAGALHÃES e ROMERO, 2003; SMYTH, 1989 apud MAGALHÃES,
1998), faz-se necessário que me apóie em alguns conceitos de cultura que ofereçam suporte
teórico necessário a essa análise. Além disso, a busca pela compreensão de alguns conceitos
de cultura é de extrema relevância e poderá contribuir tanto para esta pesquisa, quanto para a
montagem de um currículo e, conseqüentemente, para minha prática em aula. Segundo
Robinson,
muitos educadores enfatizam a importância de se ‘praticar cultura’ na sala de aula ao
invés de se tentar defini-la. Embora essa ênfase seja bem aceita na prática,
estabelecer um conceito geral sobre o que é cultura e como ela é adquirida irá
determinar o que deve ser praticado na sala de aula visando a comunicação
intercultural e como esse entendimento deve ser praticado. (1988, apud BRITO, I. A.
1999, p. 23).
Quando buscamos uma definição para cultura, encontramos alguns conceitos: (a)
cultura como um conjunto de idéias, representações, manifestações artísticas de uma
sociedade e (b) cultura como comportamento e costumes de um povo.
Os dois caracteres são abordados por Santos, J. L. (2006), que cita duas concepções
básicas: (a) todos os aspectos da vida social, isto é, a forma como os grupos concebem e
organizam a vida – aspecto mais relacionado ao comportamento; e (b) o conhecimento, idéias,
valores e representaçoes desse povo – relacionado à língua, filosofia, artes, etc. O autor
ressalta que cultura está presente em todos os contextos, não como um produto – com início
e fim, mas como um processo. Com essa afirmação, reafirma o caráter dinâmico e criador da
cultura.
Outra contribuição para o entendimento do conceito de cultura é exposta por Laraia
(2006), quando comenta o esquema desenvolvido pelo antropólogo Roger Keesing (1974) em
seu artigo “Theories of Culture”. Segundo Laraia, Keesing refere-se em primeiro lugar às
teorias que consideram cultura como um sistema adaptativo. Os estudiosos ligados a essas
teorias concordam que:
(a) “Culturas são sistemas de padrões de comportamento socialmente transmitidos.”
Neles estão contidos as tecnologias, modos de organização política e econômica, crenças
religiosas, etc.
(b) “Mudança cultural é primariamente um processo de adaptação equivalente à
seleção natural.” Isto é, o homem deve adaptar-se ao meio.
(c) “A tecnologia, a economia de subsistência e os elementos da organização social
diretamente ligada à produção constituem o domínio mais adaptativo da cultura”.
(d) A ideologia presente nos sistemas culturais pode levar a adaptações no controle da
população, da subsistência, etc.
Em segundo lugar, o autor menciona as teorias idealistas de cultura, subdividida em
três abordagens:
(a) cultura como sistema cognitivo, isto é, conhecimentos que devem ser aprendidos
por aqueles que desejam inserir-se em uma comunidade ou sociedade.
(b) cultura como sistemas estruturais, desenvolvida por Claude Lévi-Strauss. Neste
grupo, cultura é definida como “um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da
mente humana”.
(c) cultura como sistemas simbólicos, desenvolvida por Clifford Geertz e David
Schneider. Para Geertz, cultura deve ser entendida como uma rede de significações formada
pelo comportamento. Essa rede funciona como mecanismos de controle necessários para que
o homem possa organizar seu comportamento.
Pode-se observar, em linhas gerais, que essas concepções de cultura apontam para os
padrões de comportamento de determinados povos, seus valores, suas manifestações artísticas
– literatura, artes, etc., e a forma como a língua se articula nesses contextos.
Apesar de essas abordagens estarem mais ligadas ao conceito antropológico de cultura,
mais focado em sistemas cognitivos e em padrões de comportamento social, concordo com
Pedroso (1999), para quem a acepção semiótica de cultura, apresentada por Geertz (1989),
também deve ser trazida para o campo de estudo da Lingüística Aplicada (doravante LA). Isso
porque o foco no conceito de cultura apenas como padrões de comportamento e sistemas
cognitivos pode levar a um ensino de língua estrangeira voltado exclusivamente ao
conhecimento e imitação desses padrões, à aprendizagem de manifestações culturais, por
exemplo, festas populares. Já o conceito semiótico proposto por Geertz (1989), citado
anteriormente, considera que a cultura deve ser entendida como uma rede de significações
formada pelo comportamento. Em decorrência disso, o ensino de língua estrangeira pode
também se pautar na interpretação dos significados construídos por esses comportamentos, a
fim de que o aluno, pela compreensão desses mecanismos de controle, passe a viver e a
interagir com a nova cultura e não somente a imitá-la.
Assim, tratarei a seguir do conceito antropológico discutido por Laraia (2006) e os
principais conceitos da abordagem semiótica proposta por Geertz (1989), por acreditar que
ambos podem fornecer elementos para a minha reflexão, enquanto professora-pesquisadora,
sobre como tratar a questão cultura e linguagem, em aula de PLE. Tanto a abordagem
antropológica quanto a semiótica podem oferecer elementos para analisar que representações
de cultura brasileira e do brasileiro são construídas em aula, com base em dados obtidos
mediante gravações de aulas e posterior seleção de tópicos que possam caracterizar aspectos
culturais.
1.3.1 Abordagem antropológica de cultura
Embora muitas das definições dentro do conceito antropológico de cultura apresentem
pontos em comum, ou seja, conjunto de idéias, representações, valores, caráter de poder ser
aprendida, caráter dinâmico, o conceito abordado por Laraia (2006), exposto a seguir, parece-
me mais abrangente e mais direcionado ao objetivo deste trabalho por pensar a comunicação
como um processo cultural, por atrelar cultura à linguagem, além de oferecer parâmetros para
a reflexão sobre que representações de cultura brasileira e do brasileiro são construídas na
interação professora-aluno.
Baseado, inicialmente, na definição de Taylor, para quem cultura é um “todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”, Laraia
(2006, p.25) incorpora o comportamento do indivíduo ao conceito de cultura. Assim, tudo o
que o sujeito faz, suas representações, seus valores, aprendeu com os outros membros de sua
comunidade, e não por imposições de fora de seu meio. Sob essa perspectiva, Laraia busca
evidenciar o “caráter de aprendizado” da cultura.
O conhecimento cultural surge, então, como resultado da aprendizagem que ocorre na
interação, isto é, socialmente, por meio da linguagem. Tendo em vista que por meio dela o
indivíduo recebe, transmite, posiciona-se ante e modifica todo o conhecimento acumulado da
cultura em que vive, a comunicação passa a ser entendida como um processo cultural que traz
em si os valores e representações de um grupo.
É a cultura também que condiciona nossa visão de mundo (LARAIA, 2006). Segundo
Laraia, ela pode atuar de algumas formas, uma das quais diz respeito a como nós, membros de
um grupo, vemos o mundo. O que pode parecer natural para nós, por exemplo, fazer uma
visita a um amigo sem avisá-lo antecipadamente, pode demonstrar falta de educação a um
australiano que prefere agendá-la. Nosso olhar é filtrado pela cultura na qual estamos
inseridos; e esse fato pode levar a uma tendência de julgarmos nossa cultura a melhor, a mais
correta e a mais natural em comparação a outras, considerando-nos, assim, não só diferentes,
como também melhores. Esse fenômeno, chamado de etnocentrismo, pode gerar diversos
conflitos sociais. Segundo Laraia (2006, p. 73), a dicotomia “nós e os outros”, quando
projetada para o plano extragrupal, pode resultar em manifestações nacionalistas ou
xenófobas.
No ensino de língua estrangeira, podemos perceber, às vezes, o etnocentrismo na
supervalorização ou imposição de nossa cultura, por parte de nós, professores, em detrimento
da do aluno, quando, referindo-nos a nossas características do brasileiro, dizemos: “Somos o
povo mais amável, amigável e tranqüilo do mundo, por isso o Brasil é o melhor país para se
viver”.
Como reação oposta ao etnocentrismo, Laraia (2006) destaca a apatia, que vem a ser o
abandono dos valores culturais de um povo, geralmente manifestada em momentos de crise.
A apatia gera a falta de motivação que pode levar a alterações biológicas, e até à morte.
Podemos pensar também na apatia como responsável pela visão negativa, negação e até
sentimento de afastamento da própria cultura. Da mesma forma que o etnocentrismo, a apatia
também pode estar presente no discurso do professor, mas de forma inversa: visão negativa da
sua própria cultura e valorização da do aluno ou de outras.
Outro ponto relevante com relação às formas de atuação da cultura é o de que nenhum
indivíduo participa de todos os elementos de sua cultura. Levy Jr. (1952), citado por
Laraia (2006), admite que
nenhum sistema de socialização é idealmente perfeito, em nenhuma sociedade são
todos os indivíduos igualmente bem socializados, e ninguém é perfeitamente
socializado. Um indivíduo não pode ser igualmente familiarizado com todos os
aspectos de sua sociedade; pelo contrário, ele pode permanecer completamente
ignorante a respeito de alguns aspectos. ( p. 82).
Desse modo, a participação do indivíduo é sempre limitada e pode depender da idade,
do sexo, da classe social, etc., embora ele possua um número, mesmo que mínimo, de padrões
suficientes que são regulares e que permitem sua circulação pela sociedade.
Como exemplos, Laraia (2006) cita o uso do “por favor” no início de qualquer
solicitação. Também, a necessidade de agradecer o atendimento com “muito obrigado/a” ou
“obrigado/a”, a fim de manter uma relação de cortesia com o interlocutor. Essas palavras
fazem parte do padrão de comportamento do brasileiro pertencente a uma determinada faixa
sociocultural e seu uso influencia o comportamento do interlocutor. Por exemplo, ao efetuar
uma solicitação no qual o “por favor” se faz presente, a reação do interlocutor a ela tenderá a
ser de abertura, de atitude favorável à realização do pedido. Um exemplo de quebra dessa
expectativa seria o uso de estrutura imperativa na solicitação, que poderia gerar uma reação
negativa do interlocutor, como fingir não ouvir o pedido, negar a solicitação, atender
retrucando, etc.
A lógica de uma cultura também é discutida por Laraia. Para ele, todo sistema
cultural tem sua lógica própria. Os hábitos, as explicações sobre os fatos da natureza são
lógicos e coerentes dentro do próprio sistema cultural, nos quais os indivíduos se encontram
inseridos. O autor propõe que se trate o sistema cultural como uma forma de classificação, a
fim de que se possa compreender melhor sua lógica e coerência.
Essa ordenação é “fruto de um procedimento cultural, mas que nada tem a ver com
uma ordem objetiva” (LARAIA, 2006, p. 91). Isto é, o sistema de classificação refere-se à
forma subjetiva como cada cultura ordena o mundo ao seu redor, e dá sentido cultural às
coisas. Assim, cada sociedade possui um sistema que pode divergir entre si.
O entendimento da lógica de um sistema cultural, segundo Laraia (2006, p.93),
depende da compreensão das categorias que o formam, e explica:
Como categorias entendemos, como Mauss (1969, p. 28-29), “esses princípios de
juízes e raciocínios... constantemente presentes na linguagem, sem que estejam
necessariamente explícitas, elas existem ordinariamente, sobretudo sob a forma de
hábitos diretrizes da consciência, elas próprias inconscientes”.
A última forma de atuação da cultura, expressa por Laraia (2006), é o caráter
dinâmico da cultura, que rompe com a idéia de valores imutáveis e universais (MOTTA-
ROTH, 2003), pois todo sistema cultural vive em constante processo de modificação.
De acordo com o autor, há dois tipos de mudança cultural, (a) interna: resulta da
dinâmica do próprio sistema cultural; e (b) externa: resulta do contato com outro sistema. A
mudança interna ocorre de forma mais lenta, quase imperceptível, enquanto a externa pode
ser mais rápida, a exemplo dos índios brasileiros, mas também pode ser calma e sem traumas,
como vemos acontecer na maior parte das sociedades, principalmente no mundo globalizado.
Concluindo, o autor afirma que o entendimento desse caráter é fundamental para
atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da
mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças
entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que
ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o
homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo do
porvir. (LARAIA, 2006, p. 101)
Assim, o entendimento de que nosso comportamento, nossos valores e representações
são expressões de nossa cultura, de que a linguagem traz em si esses valores, e de que o
conhecimento cultural é resultado da aprendizagem que ocorre na interação, possibilita que
eu, professora, desenvolva uma reflexão crítica sobre meu comportamento e minha linguagem
na interação professora-aluno.
Essa compreensão tende também a deslocar o entendimento de que cultura é apenas o
que é definido, classificado, como cultura pela ciência, letras e filosofia, para uma visão
muito mais abrangente, na qual o próprio indivíduo passa a ser visto como um ser cultural,
isto é, como um ser que expressa a cultura na qual está inserido.
A forma como agimos, interagimos, pode revelar em relação a outras culturas uma
postura etnocêntrica ou apática. E tanto uma quanto outra tende a manter preconceitos,
discriminações que impedem a compreensão e aceitação das diferenças. Além disso, é
importante lembrar que nenhum indivíduo participa de todos os elementos de sua cultura, pois
falamos e vivemos em determinados lugares sociais.
Portanto, a reflexão crítica tomando por base tais conceitos faculta que eu possa rever
e avaliar que visão de cultura brasileira e do brasileiro é construída na interação com meu
aluno, e conseqüentemente, reconstruir não só minha prática em aula, como também meu
olhar sobre minha cultura e minha ação como ser social e cultural.
1.3.2 Abordagem semiótica de cultura
Diante de tantos conceitos discutidos por antropólogos, Geertz (1989) defende o
conceito semiótico e apresenta dois pontos: (1) cultura é um conjunto de mecanismos de
controle; (2) a cultura é essencial à vida humana, uma vez que são esses mecanismos que
organizam seu comportamento. Para ele,
cultura é melhor vista não como complexos de padrões de comportamento –
costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, como tem sido o caso até agora, mas
como um conjunto de mecanismos de controle - planos, receitas, regras, instruções
(que os engenheiros chamam programa) – para governar o comportamento. A
segunda idéia é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente
dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais
programas culturais, para ordenar seu comportamento. (GEERTZ, 1989, p.56).
Nesse enfoque, a cultura é formada por redes de significação, e o comportamento
humano deve ser visto como “ação simbólica”, que deve ser interpretada: “O que está sendo
construído nessa ação? Que importância ela tem?”. A análise das “ações simbólicas” não deve
ser feita de forma isolada, mas sendo ligada aos fatos, aos acontecimentos e ao contexto no
qual essas ações ocorrem.
Outro ponto importante discutido por Geertz é o caráter público e constitutivo da
cultura. Para ele, os significados são públicos, construídos na interação e partilhados entre
todos os membros de um grupo. Segundo Bruner (2002), ao mesmo tempo em que o homem
participa na cultura, ele se manifesta, concretiza seus pensamentos por meio dela. Além
disso, os significados são transmitidos historicamente e herdados pelos membros do grupo,
simbolicamente.
Pereiro (2004-2005) refere-se à visão geertziana de cultura como um sistema de
significados e símbolos previamente estabelecidos que orienta o homem ao longo de sua vida.
Ela é aprendida pela observação, pela escuta, mas também de forma inconsciente, como as
noções culturais de como manter distância ou não, durante uma conversação, os valores
aceitos por seu grupo, etc.
Pedroso (1999) defende a visão semiótica como a mais voltada aos interesses da
Lingüística Aplicada no ensino de Língua Estrangeira pelos seguintes motivos:
a. considera a cultura como o centro gerador de significados;
b. leva em consideração a dimensão histórica, conjuntural, do processo de
simbolização;
c. visualiza a interação entre língua e comportamento atribuindo assim uma feição
extralingüística ao processo de simbolização;
d. permite ‘desestrangeirizar’ (Almeida Filho, 1993) a cultura-alvo, o que Geertz
(1989) corrobora quando expressa que ‘compreender a cultura de um povo expõe a
sua normalidade sem reduzir a sua particularidade’;
e. valoriza a cultura não como acessório que complementa o homem na sua
formação depois de biologicamente pronto, mas como elemento indispensável para a
terminação do processo biológico que faz o homem e o incorpora à vida em
sociedade que é a sua vocação,
f. considera a cultura imposta ao indivíduo e ao mesmo tempo gerada por ele num
processo infinito de interação sociedade-indivíduo-sociedade. (p.40-41).
As considerações mencionadas neste item permitem que eu acrescente interpretação,
quando me refiro à cultura. A meu ver, então, o ensino de língua portuguesa para estrangeiros
pode levar o aluno a interpretar que significados são construídos por meio do comportamento,
dos valores, das tradições, etc., a fim de que possa compreender, inserir-se e refletir sobre a
nova cultura no qual está inserido.
Essa reflexão ultrapassa o aqui e agora e traz a dimensão histórica como elemento
constitutivo do processo de construção de significados culturais. Daí a necessidade de o
professor levar o aluno a essa dimensão, dando-lhe meios para interpretar e compreender os
mecanismos que controlam nosso comportamento.
1.3.3 As duas abordagens: antropológica e semiótica
Com relação a essas duas abordagens, semiótica e antropológica, acredito ser possível
estabelecer um diálogo entre elas, uma vez que ambas as acepções admitem a linguagem
como mediadora cultural, pois permite que, na interação, os significados compartilhados por
uma determinada cultura sejam interpretados e aprendidos, levando em consideração sua
dimensão histórica e mutável.
Além disso, como o objetivo deste trabalho é analisar quais conceitos de cultura
subjazem a prática da professora-pesquisadora, julgo que ambas as abordagens devem ser
adotadas como aporte teórico na análise de minhas ações em aula.
A semiótica pode auxiliar na compreensão de como, ou se, eu trabalho língua e
comportamento em interação na construção de significados culturais, a exemplo de “apareça
lá em casa”, “eu te ligo”. Para o estrangeiro, no início, essas expressões podem significar
verdadeiramente um convite ou uma promessa de um novo contato. Entretanto, para nós,
brasileiros, não significam nada além de uma maneira informal e simpática de despedida.
Além disso, não podemos deixar de lado a linguagem não-verbal: um mesmo gesto pode ter
significados diferentes, dependendo do país no qual é utilizado. Por exemplo: o sinal de “OK”
utilizado nos Estados Unidos para indicar que tudo está certo, aqui significa um gesto
obsceno, um palavrão, uma grave ofensa que poderá levar a reações agressivas.
A visão antropológica permitirá que eu possa analisar em minha prática se meu
entendimento de cultura está ancorado somente em costumes, comportamentos, tradições
populares, festas, etc. E ainda, este estudo possibilitará que eu reflita sobre a existência de
uma visão etnocêntrica de minha própria cultura: “o Brasil é o melhor país do mundo”; sobre
a manutenção de estereótipos: “o brasileiro é cordial”; a respeito do entendimento de que
nenhum indivíduo participa de todos os elementos da cultura, isto é, entender que eu falo de
um lugar - mulher, solteira, professora, pertencente à classe média, filha de imigrantes,
paulistana, etc., presentes em meu discurso na interação professora-aluno; e verificar se tem
sido uma preocupação minha possibilitar que o aprendiz estabeleça um diálogo entre a sua
cultura e a cultura-alvo.
A análise de recortes de três aulas transcritas, fundamentada nesses dois conceitos,
viria contribuir e enriquecer muito minha reflexão, propiciando possíveis transformações em
minha prática Faz-se necessário, também, elucidar cultura brasileira, uma vez que este
trabalho procura responder a que representações de cultura brasileira e do brasileiro são
privilegiadas e construídas em aula, na interação professora/aluno.
1.3.4 Cultura brasileira: popular e erudita
A busca por uma definição de cultura brasileira começou no início do século XIX. O
Modernismo foi fundamental nesse processo de formação de uma cultura brasileira, pois
focava sua atenção na procura e definição de uma identidade nacional (CÂNDIDO, 1995).
Essa identidade devia se formar tomando por base a conscientização das diferenças culturais
existentes no Brasil. Assim, o conceito de cultura brasileira precisava contemplar o povo
brasileiro, a mestiçagem, a herança indígena e os temas nacionais.
Fundamentado nessas diferenças, Bosi (2006) afirma não ser possível determinar uma
cultura brasileira homogênea. Para o autor, ela deve ser pensada como “plural” e como plural
deve ser compreendida “como um ‘efeito de sentido’, resultado de um processo de múltiplas
interações e oposições no tempo e no espaço” (p.7).
Inter-relacionam-se, em algumas situações, segundo Bosi (2006), as culturas de
classes populares com a erudita; associam-se a essas as culturas ibéricas, indígenas e africanas
e também as dos migrantes e imigrantes. Todas elas estão presentes em nossa vida, em nosso
dia-a-dia. Um olhar mais atento permite avaliar que, no meio dessa mistura, podem-se
perceber “linhas de força” mais definidas que nos direcionam a “estruturas sociais
diferenciadas” (BOSI, 2006, p. 8).
Esse olhar permite vislumbrar algumas culturas, entre elas: (a) cultura erudita e (b)
cultura popular. Para Bosi (1992 e 2006), a cultura erudita cresce nas classes alta e média da
população, por meio da escolarização do indivíduo, aqui entendida como ensino superior.
Está associada à pesquisa, ao saber produzido nas universidades, nas áreas de ciências, letras e
filosofia. Por estar em meios acadêmicos, pode ser analisada, pensada, programada.
Já a cultura popular é a cultura iletrada (BOSI, 1992), a do homem do interior, do
sertanejo, do interiorano e do pobre das periferias das cidades. Refere-se ao cotidiano, ao
modo de viver dos grupos sociais que se encontram fora do domínio ideológico das
universidades. É a memória dos grupos sociais que a mantém viva. Pode-se inferir, assim,
que o dia-a-dia expressa essa cultura por meio dos hábitos alimentares, dos hábitos de
limpeza, das práticas de cura, das representações, cantos, danças, jogos, provérbios, modos de
cumprimentar, eufemismos, modo de olhar, de sentar, de fazer uma visita e ser visitado, etc.
Enquanto a cultura erudita é analisada, estudada, a popular é vivida. Segundo Bosi
(2006), há em suas manifestações um envolvimento atuante dos que delas participam e uma
identificação entre evento e participantes.
Apesar de as culturas erudita e popular parecerem tão distintas, há entre elas uma
relação, já que a cultura erudita pode trazer para seu universo o popular e a partir daí criar
suas obras. Isso pode ser visto na literatura, com Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, na
pintura, com Portinari, entre outras. Além disso, é a cultura erudita que muitas vezes classifica
o que é cultura popular a partir do que se conhece , como religião, literatura, medicina, etc.
(SANTOS, J. L. dos, 2006).
Assim, entendendo que cultura brasileira é plural e que cultura abrange todas as
representações, valores, comportamentos, presentes em uma sociedade, e também, um
conjunto de mecanismos que orientam nosso comportamento, o professor de língua
portuguesa para estrangeiros deve procurar romper com as relações de poder, expressas por
Santos, J. L.dos (2006), que polarizam erudito e popular, como superior e inferior, boa ou
ruim. É importante, assim, que apresente em aula diversas manifestações culturais brasileiras
para que, a partir delas, o aluno possa interpretá-las, construindo, na interação, uma identidade
do Brasil e do brasileiro sem tantos preconceitos.
1.3.5 Cultura e linguagem
Gostaria de retomar um ponto comentado anteriormente por Laraia (2006) para iniciar
esta discussão: o conhecimento cultural é resultado do processo de aprendizagem que ocorre
na interação social. É por meio da linguagem que o indivíduo recebe, transmite e reconstrói
todo conhecimento acumulado da cultura em que vive; a comunicação, então, passa a ser
entendida como um processo cultural que traz em si os valores e representações de um grupo.
Nas manifestações da linguagem, podem-se encontrar aspectos culturais que marcam
determinados contextos, grupos, sociedades. E, no processo de interação com uma nova
cultura, em um novo contexto sócio-histórico cultural, a linguagem funciona como
mediadora.
Posto que o conhecimento cultural dá-se na interação social e que a linguagem
funciona como instrumento de medição cultural, é possível estabelecer a relação intrínseca
entre linguagem e cultura que é apontada também em outros trabalhos e por outros estudiosos.
Essa relação intrínseca cultura/linguagem, é discutida por Almeida Filho (2002), para quem
cultura não deve ser considerada como outro aspecto a ser ensinado, mas deve estar junto à
linguagem, tanto a verbalizada quanto a não-verbalizada. Esse entendimento enseja tanto ao
professor quanto ao aluno interpretarem significados culturais construídos a partir da
interação ocorrida em aula.
Essa discussão sobre dicotomia entre língua e cultura é reafirmada por Kramsch
(1993), ao referir-se à linguagem como “componente essencial da cultura”. A autora (1998),
citada por Berwig (2004, p. 25) declara que
a linguagem é a principal forma através da qual conduzimos nossa vida social.
Quando ela é usada em contexto de comunicação, ela está embebida da cultura de
múltiplas e complexas maneiras.
Para ela, a língua deve ser entendida como prática social e como tal não pode estar dissociada
da cultura.
A conexão entre língua e cultura pode ser observada de várias maneiras, conforme
aponta Guerreiro (2005), baseada em Kramsch: (a) A língua expressa uma realidade cultural.
Isto é, por meio dela os indivíduos expressam suas idéias, valores, acontecimentos. É o
conhecimento de mundo compartilhado por todos os membros de um mesmo grupo social. (b)
Ela incorpora uma realidade cultural. Os indivíduos pertencentes a uma mesma comunidade,
por meio da linguagem verbal e não-verbal, criam significados que são compreensíveis por
todos seus membros. (c) A linguagem simboliza uma realidade cultural. Ela possibilita que
indivíduos de uma mesma comunidade se identifiquem pela linguagem. Neste aspecto, “a
linguagem seria um símbolo de identidade social” (GUERREIRO, 2005, p.32). Esta questão
será retomada no próximo item.
Segundo Kramsch (1993), a dicotomia entre linguagem e cultura encontra-se também
na Gramática Sistêmico-Funcional de Halliday (1994). “Ao chamar a gramática de ‘teoria
das experiências humanas’ e texto de ‘a forma lingüística da interação social’, Halliday escora
cultura na gramática que usamos, no vocabulário que escolhemos, nas metáforas que
vivenciamos” (KRAMSCH, 1993, p.8, tradução minha). Assim, entendemos que nossa
linguagem está impregnada da cultura na qual vivemos, cujos significados são construídos na
interação social.
As escolhas feitas pelo falante estão relacionadas parcialmente ao registro, contexto
imediato, e em parte, à cultura mais ampla na qual operamos (CHRISTIE, 2005). Contudo,
essas escolhas não são aleatórias. O processo de construção de significados se dá por meio de
escolhas, que podem ser inconscientes, realizadas pelo falante carregadas de significados,
uma vez que a linguagem é sempre influenciada por nossa ideologia, nossos valores e
preconceitos (EGGINS, 1994).
Da mesma maneira, Berwig (2004), com base em Kramsch (1998), afirma que, assim
como os grupos sociais expressam suas experiências pela linguagem, também lhe dão
significado pelas várias formas de uso: falada, escrita, visual.
Diante dessas considerações sobre a relação intrínseca entre cultura e linguagem,
posso sugerir que o ensino de português para estrangeiros não deveria estar somente voltado
para a apresentação e a compreensão de estruturas gramaticais e de vocabulário, mas também
para a interpretação dos significados que são construídos pela e na linguagem, não somente
em contextos externos à aula, mas também na relação professor-aluno em aula.
1.3.6 Cultura, linguagem e identidade
Para Pais (2006), “a língua e seus discursos, juntamente com as semióticas não-
verbais, conferem a uma comunidade humana: a sua história social; a sua consciência
histórica; a consciência de sua identidade cultural”. Kramsch (1998), citada por Berwig (2004,
p. 26) e Silva (2000) destacam a linguagem como símbolo dessa identidade. Por meio da
linguagem, o indivíduo identifica a si mesmo e aos outros como membros de determinado
grupo. Os padrões de comportamento, as normas de conduta, o que pode ser dito, de que
forma, a quem, quando e como operam de modo invisível e são previsíveis aos falantes, mas
não àqueles que vêm de outro grupo cultural. Desse modo, a construção da identidade faz-se
por meio da oposição, da diferença.
Tanto identidade quanto diferença, segundo Silva (2000) e Hall (2005), são
mutuamente determinadas e também resultados de processos de criação lingüística, isto é,
não existem por si sós como elementos prontos da natureza. São criadas nas e pelas relações
socioculturais, “por meio de atos de linguagem” e estão sempre em transformação. Sua
existência depende de sua nomeação:
É apenas por atos de fala que instituímos a identidade e a diferença como tais. A
definição da identidade brasileira, por exemplo, é o resultado da criação de variados
e complexos atos lingüísticos que a definem como sendo diferente de outras
identidades nacionais. (SILVA, 2000, p.77).
Como produtos de relações sociais, Silva (2000) ressalta que não podemos deixar de
inserir na discussão sobre cultura e identidade as relações de poder que se encontram
presentes. Para ele, “dividir o mundo social entre ‘nós’ e ‘eles’ significa classificar” em
classes, grupos, etc. Diferentemente da classificação tratada por Laraia (2006), anteriormente,
essa maneira de ordenar o mundo baseia-se na classificação binária, isto é, duas classes
polarizadas. Silva (2000), com base em estudos de Derrida, acrescenta que essa polarização,
que atribui cargas positivas a um termo e negativas a outro, expressa relação de poder, no
qual o “nós” se apresenta com carga positiva, enquanto o “eles”, com negativa. Ou seja, não
há neutralidade de forças. A construção de uma identidade se dá sempre na relação com sua
diferença, em processos de inclusão e exclusão: “Eu sou” – inclusão, “você não é” – exclusão.
O poder, portanto, passa a se manifestar a partir da normalização da identidade
(SILVA, 2000). Normalizar, segundo o autor, é atribuir uma identidade específica como
padrão, por meio da qual as outras são comparadas. Desse modo, quando atribuímos a uma
identidade características “positivas”, ela deixa de ser “uma” e passa a ser “a” identidade,
diferenciando-se das demais.
No processo de fixação das identidades nacionais, os essencialismos culturais se fazem
mais presentes (SILVA, 2000). Baseados em estudos de Platão, sobre o mundo das idéias,
Andrade e Pinto (2001) discutem a existência de “essências” no mundo. Para Platão há dois
mundos: um ideal, metafísico, no qual se encontram as formas ideais, os modelos, e o mundo
material, no qual o ideal, os modelos tentam ser reproduzidos. Então, as essências determinam
os modelos ideais que devem ser seguidos como parâmetros, uma vez que são eles que
determinam o comportamento, o modo de agir humano e os aproximam da plenitude: “a
essência precede a existência” (ANDRADE e PINTO, p.1).
Todos os essencialismos, para Silva (2000), são culturais, pois “nascem da
necessidade de fixação que caracteriza o processo de produção da identidade e da diferença”
(p.86). Ao me referir ao brasileiro como “sendo”, por exemplo, “O brasileiro é trabalhador”,
construo um único significado de modelo ideal, fechado. Derrida, citado por Hall (2005, p.
41) afirma: “o falante individual não pode, nunca, fixar o significado de uma forma final”. E
como professores de línguas, podemos tender a estabelecer como essência alguns aspectos
culturais que mantêm o distanciamento entre “nós” e “eles”. Quando digo: “Os brasileiros são
amigáveis, simpáticos, comunicativos, abertos, etc.”, posso estar fixando a identidade do
brasileiro, a partir da qual as outras identidades culturais serão comparadas.
Essa visão pode me levar à manutenção de uma postura etnocêntrica, pela qual
acredito que meus valores são os únicos, corretos e ideais. Relacionado ao essencialismo, o
etnocentrismo não vê o outro somente como diferente, mas como inferior, como fora dos
padrões considerados apropriados e morais. Segundo Pereiro (2004-2005), o etnocentrismo
pode levar à intolerância cultural, além de fechar as portas para a troca, para o conhecimento.
Com relação ao ensino de LE, essa postura pode gerar um distanciamento do aluno com
relação à cultura-alvo e, conseqüentemente, da língua-alvo.
No caminho inverso, opondo-me ao etnocentrismo e ao essencialismo, devo
desenvolver uma visão interpretativa da produção dos significados culturais, já proposta por
Geertz (1989), e também reflexiva. Segundo Bruner (2002), a interpretação leva à produção
de significados que constituem a cultura, enquanto a “explicação” não produz significados
plausíveis e possibilita a manutenção das relações de poder e dicotomia “nós” e “eles”.
Portanto, a relação intrínseca entre língua, identidade e cultura aponta-me um novo
olhar e um caminho ao ensino de língua estrangeira. Nós, professores, portanto, precisamos
pensar em um ensino que rompa os estereótipos, o etnocentrismo, o essencialismo e
possibilite que os significados sejam construídos e interpretados, que
o outro seja como eu não sou, deixar que ele seja esse outro que não pode ser eu
[...] deixar que o outro seja diferente, deixar ser uma diferença que não seja, em
absoluto, diferença entre duas identidades, mas diferença da identidade [...].
(PARDO, 1996 apud SILVA, 2000, p. 101).
No contexto ao qual este trabalho se refere, não posso deixar de levar em consideração
que os alunos estão vivendo no Brasil e, portanto, necessitam entender os mecanismos que
orientam o comportamento do brasileiro para que possam interagir tanto com brasileiros
quanto com a cultura brasileira.
Por isso, o ensino deve possibilitar que a linguagem funcione como mediadora de
traços culturais que nos identificam na nossa forma de ser, pensar, agir, interagir, nos
comunicar, buscando, assim, o entendimento e o respeito entre as diversas culturas, fugindo
da falsidade ideológica dos estereótipos, não só irreais quanto imbuídos de interesses, quer de
dominação ou assujeitamento.
Aprender uma língua estrangeira significa, então, inserir-se em uma nova cultura,
aprender e entender as normas que regem a interação social, os valores e representações de
um povo. Segundo Berwig (2004, p. 30), interpretar e aprender novos significados e novas
práticas é que possibilitam aos aprendizes “negociarem e criarem uma nova realidade com
seus interlocutores, que se baseia na interação e na experiência compartilhada”, tornando-os
falantes na língua-alvo.
A inserção em uma nova cultura impulsiona o aprendiz à reflexão sobre a sua própria a
partir do novo. Essa reflexão pode direcioná-lo ao entendimento de outras formas de ver o
mundo, de comportamento, de valores diferentes dos seus, que, conseqüentemente, o levará
ao respeito pela diversidade cultural.
Meireles (2002) considera que essa aproximação não deve somente buscar o contraste,
as diferenças, mas sim a discussão e a compreensão de que existem outras possibilidades de
ver o mundo, que se expressam na cultura de um povo e em sua linguagem. De acordo com a
mesma autora, essa aproximação deve partir “de fatos da língua e cultura do aluno para
interpretar seus correspondentes em outras línguas e culturas” (p. 10).
A concepção interculturalista de ensino, segundo Brito (1999, p.41),
objetiva desenvolver no aluno uma competência para funcionar como mediador
entre duas culturas, que tenta levá-lo a refletir sobre e alcançar um entendimento não
apenas da cultura-alvo, mas também da sua própria cultura e da cultura em geral.
Nessa concepção, o aluno não precisa abrir mão de sua própria cultura e assimilar
“novas regras de conduta e pensamento. Nela, o aprendiz vê sua cultura e sua língua como
uma dentre várias possibilidades igualmente desejáveis e válidas” (MEIRELES, 2002, p. 11).
O aluno fica, assim, livre para poder escolher o quanto da cultura-alvo vai adotar.
Ao respeitar as diferenças, as singularidades de cada um, essa concepção de ensino
propicia o desenvolvimento de aprendizes críticos e pensantes, mais tolerantes e “menos
suscetíveis a estereótipos e a manipulações” (MEIRELES, 2002, p.15).
A relação entre língua materna (LM) e língua estrangeira já fora considerada por
Vygotsky (2005) fundamental no processo de ensino-aprendizagem. Para ele, ao entrar em
contato com uma nova língua, o aprendiz tende a transferir para a LE o conhecimento já
adquirido na LM, resultando em um aprendizado mais satisfatório. E esse processo de
aprendizagem é consciente e deliberado desde o início.
Esse movimento de olhar para a própria cultura a partir de outras, também embasa a
fundamentação teórica dos PCNs-LE, para os quais
a aprendizagem de Língua Estrangeira contribui para o processo educacional como
um todo, indo muito além da aquisição de um conjunto de habilidades lingüísticas.
Leva a uma nova percepção da natureza da linguagem, aumenta a compreensão de
como a linguagem funciona e desenvolve maior consciência do funcionamento da
própria língua materna. Ao mesmo tempo, ao promover a apreciação dos costumes e
valores de outras culturas, contribui para desenvolver a percepção da própria cultura
por meio da compreensão da(s) cultura(s) estrangeira(s). (PCNs-LE, 1998, p. 37).
Apesar de meu trabalho não estar vinculado aos PCNs-LE, uma vez que sou
professora particular, dou aulas individuais de português para estrangeiros e escolho eu
mesma o conteúdo a ser trabalhado, creio que é importante ressaltar que os referidos
parâmetros curriculares são documentos que me direcionam à reflexão acerca dos princípios
teóricos que norteiam o ensino de línguas estrangeiras, além de serem coerentes com as
teorias que servem de base ao desenvolvimento desta pesquisa e ao meu trabalho.
1.4 AULAS INDIVIDUAIS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
O ensino voltado para aulas particulares individuais oferece ao professor flexibilidade
tanto na condução das aulas, quanto na preparação do material a ser utilizado (MURPHEY,
1991). Nesse tipo de ensino, o ponto de partida é o aluno que expõe ao professor suas
necessidades, seus interesses, com relação ao aprendizado da nova língua. A partir deles, e
com base na personalidade, no nível intelectual e estilo do aluno, o professor organiza a
programação e os materiais a serem utilizados em sala de aula (WILBERG, 1987).
Além disso, o professor deve manter-se atento em todas as aulas para perceber
mudanças de interesse e novas demandas expressas pelos alunos, nem sempre de forma
explícita, a fim de reorganizar suas aulas.
Considerando que as demandas e interesses pelo aprendizado da língua estrangeira
podem ser os mais diversos, o professor necessita ter uma formação mais global. É importante
que busque em outras áreas, como História, Geografia, Sociologia, Antropologia, novos
conhecimentos e que se mantenha atualizado sobre seu país e sobre o mundo.
No meu contexto de aulas individuais de português para estrangeiros, todos meus
alunos são adultos, de um nível sócio-econômico-cultural alto, e expressam necessidades e
interesses voltados à cultura brasileira, às movimentações políticas e econômicas do Brasil,
além das necessidades básicas de sobrevivência, como fazer compras, pegar um táxi, ir a um
restaurante, etc. Portanto, sinto a necessidade de estar constantemente atualizada, de revisitar
a história do Brasil e a de outros povos, e estar a par da formação do povo brasileiro, para
compreender quem somos e como a linguagem expressa nossa identidade.
Desta forma, acredito que lançar um olhar sobre os aspectos culturais trabalhados por
mim em aula, recorrendo às teorias apresentadas sobre linguagem, cultura e identidade,
poderá levar-me a uma reflexão crítica dos significados culturais que ajudo a construir em
aula na minha interação com meu aluno. Refletir sobre isso é partir para uma transformação,
um novo fazer, agora, de maneira mais consciente.
Os caminhos a serem seguidos para que a reflexão ocorra serão apresentados no item a
seguir.
1.4 REFLEXÃO
Acredito que a investigação aqui desenvolvida é auto-reflexiva e crítica, uma vez que
com base na escrita de quatro diários e na gravação de 23 aulas e transcrição de recortes de
três aulas, nas quais aparecem abordagens culturais, estabeleço um diálogo com várias teorias
que me levam à análise do porquê de minhas ações, das intenções, dos interesses que
subjazem a elas, possibilitando, desta forma, reconstrução em avanço, que pode levar ao meu
desenvolvimento e crescimento tanto como professor quanto pessoa.
No campo da Filosofia, o estudo sobre reflexão surge com Dewey (1933 apud
LIBERALI, 1999 p. 13), que define reflexão como um processo ativo, consciente e deliberado
da análise das representações e conhecimentos que fundamentam nossas ações. Transpondo
esse conceito para o contexto da formação do professor, Magalhães (1992a:3), citada por
Liberali (1996,p. 24), aborda a reflexão como
um processo de auto-questionamento em que o professor sistematicamente pensa e
analisa exemplos concretos e particulares de sua aula, para entender como propósito
e prática estão relacionados e introduzir as mudanças que julgar necessárias.
Isso significa que o processo de reflexão do professor está relacionado à análise de
suas ações, entendimento dos pressupostos teóricos que as fundamentam e das relações
presentes nelas, além de propiciar ao professor a redefinição de sua prática.
Sob esse enfoque, BRITO (2006) considera a reflexão como ponto de partida para a
transformação do professor, uma vez que acontece após a análise e o questionamento da sua
prática. Tal análise leva o professor à constatação de que são seres humanos históricos e
inacabados e que, por isso, estão sempre e em constante construção e reconstrução (FREIRE,
1996).
Faz-se necessário, pois, conhecermos qual reflexão, dentre tantos tipos, pode levar o
professor à sua transformação e como ela se desenvolve.
1.4.1 Tipos de reflexão
A reflexão crítica visa à reconstrução da prática do professor, após estar consciente
dela. Conforme Kemmis (1987 apud LIBERALI e ZYNGIER, S. 2000), para que a reflexão
ocorra, um caminho deve ser seguido pelo professor: a auto-avaliação. Em seu processo, ele
se insere na ação, participa dela, posiciona-se e reconstrói sua prática. Essa reconstrução
assegura ao professor o entendimento de si mesmo e de suas ações, à compreensão de teorias
que possam embasar sua prática, e a se transformar permanentemente como profissional e
cidadão.
Van Manen (1977 apud SÓL, 2005; LIBERALI e ZYNGIER, 2000), ao sugerir
também a reflexão como caminho para a conscientização do educador acerca de suas ações,
classifica-a em três tipos: (a) reflexão técnica, (b) reflexão prática e (c) reflexão crítica.
(a) Reflexão técnica – Focada na teoria, preocupa-se com a busca por
conhecimentos científicos que direcionem à obtenção de determinados resultados e ao
desenvolvimento e utilização de manuais e roteiros para a condução da prática. Não leva em
consideração o contexto ou seus participantes. O foco centrado somente neste tipo de
reflexão pode impedir que o professor desenvolva sua criatividade, seu desejo de descobrir
novas possibilidades, bem como a curiosidade de seus alunos, além de possibilitar o
estabelecimento de um abismo entre as necessidades destes e sua prática.
(b) Reflexão prática – Preocupa-se com a procura de soluções para a prática na
prática. Essa reflexão baseia-se no senso comum do professor, no conhecimento de mundo
que possui e na troca de experiências com outros professores. Não há uma busca por teorias,
estudos, pesquisas que possam levar à reflexão do porquê do problema. Nessa reflexão revela-
se a criatividade, mas não aparece a “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 1996) que
remete a questionamentos, a teorias e pesquisas que possam auxiliar a compreender a prática e
a transformá-la.
(c) Reflexão crítica – Engloba elementos da reflexão técnica e da reflexão prática,
contextualizando as ações pessoais do professor histórica e socialmente. A auto-reflexão leva
à conscientização dos valores éticos e morais que norteiam sua prática e à percepção de suas
conseqüências dentro de um contexto muito mais amplo: social, político e cultural.
Um dos conceitos de reflexão que vem ao encontro do objetivo deste trabalho é o de
Donald Schön (1998). Apesar de ter focado seus estudos mais na ação, colocando, assim, em
segundo plano a teoria (ROMERO, 1998, p.51), os tipos de reflexão desenvolvidos por ele
são relevantes para a discussão do conceito de reflexão crítica a ser tratado.
Schön apresenta três tipos de reflexão: (a) reflexão-na-ação, (b) reflexão-sobre-a-ação
e (c) reflexão sobre a reflexão-na-ação, e introduz o conceito de conhecimento-na-ação, que
são os conhecimentos revelados no momento da ação - é o “saber fazer” (ROMERO, 1998).
(a) Reflexão-na-ação: ocorre, segundo Schön (1998), quando “elementos
surpresas”, que ultrapassam o que é familiar, surgem e nos remetem a redirecionamentos da
prática para solucioná-los no transcorrer da ação, tendo em mente um objetivo maior.
Segundo Romero (1998), a ação apresenta-se como um local ao mesmo tempo de conflitos e
de soluções. Desta forma, a reflexão ocorre no momento presente da ação, sem interrompê-la,
em um “período de tempo variável durante o qual ainda se pode interferir na situação em
desenvolvimento” (SCHÖN, 1998, p. 32).
(b) Reflexão-sobre-a-ação: acontece quando avaliamos retrospectivamente o que
foi feito. Por meio dela, podemos verificar como o conhecimento-na-ação levou aos
resultados obtidos.
(c) Reflexão sobre a reflexão-na-ação: ao mesmo tempo em que lança o olhar
retrospectivo para a ação, remete também ao momento da reflexão na ação, ao conhecimento-
na-ação. Assim, possibilita uma análise reflexiva sobre o que aconteceu, como os problemas
foram resolvidos, que significados foram atribuídos ao que aconteceu, e baseado em que
conhecimentos já adquiridos, a ação foi redirecionada. Conforme Schön (1998, p. 36), “minha
reflexão presente sobre minha reflexão-na-ação anterior dá início a um diálogo de pensar e
fazer através do qual posso tornar-me um carpinteiro habilidoso”. Nesse sentido, esse tipo de
reflexão encaminha à reconstrução do papel do professor e de suas ações futuras, objetivo
deste trabalho.
A reflexão sobre a reflexão-na-ação, referida por Schön, direciona a uma explicação
do que aconteceu para posterior transformação. Quando essa reflexão é enriquecida com o
diálogo com a teoria e desperta a consciência de alcances sociais, políticos e morais das ações
do profissional, pode ser entendida como um processo de reflexão crítica. Freire (1996)
reafirma a importância da teoria para que se estabeleça a relação entre teoria e prática
necessária para que ocorra a reflexão crítica. Magalhães (1998, p. 172), discutindo a obra de
Bourdieu (1989), reitera a importância da reflexão crítica para a transformação do professor,
coordenador e alunos, porquanto possibilita que se tornem
sujeitos em lugar de objeto do processo sócio-histórico, isto é, conscientizam-se do
próprio discurso, entendem as contradições do processo social e, nesse contexto,
transformam suas ações. (Bourdieu, 1989 apud Magalhães, 1998, p. 172).
A reflexão crítica busca interpretar que significados foram ou estão sendo construídos
na interação. Neste trabalho, é por meio dela que eu poderei me conscientizar de meu discurso
e dos significados construídos na minha interação com meus alunos e que implicações esses
significados podem gerar na interpretação da cultura brasileira e do brasileiro.
1.4.2 Caminhos para a reflexão crítica
Araújo (2006), discutindo a obra de Schön (1992b:83) comenta que este, ao afirmar
que “reflectir sobre a reflexão-na-acção é uma acção, uma observação e uma descrição, que
exige o uso de palavras”, embasa a discussão de Liberali (1996), quando a autora explica que
a linguagem é que dá forma à ação para que esta possa ser entendida e transformada. Além
disso, a descrição torna possível o distanciamento do sujeito para que possa ver suas ações
sob outro foco e, assim, construir novos. (Magalhães, 1998).
Para que esse distanciamento e a reflexão ocorram, Smyth (1992 apud MAGALHÃES
1998; LIBERALI, MAGALHÃES e ROMERO, 2003; LIBERALI, 2004) propõe ao professor
o desenvolvimento de quatro ações que possam responder a quatro questões:
(a) Descrever – “O que eu faço?”. O professor descreve, textualmente, as próprias
ações. O escrever sobre suas ações provoca um distanciamento do sujeito que o possibilita
enxergar o que está por trás delas. Esse distanciamento é uma preparação à análise que se
segue. Neste trabalho, a descrição se constitui dos dados coletados em aulas e transcritos,
orientados pelas perguntas de pesquisa.
(b) Informar – “Qual o significado de minhas ações?”. Liberali e Zyngier (2000, p.11)
constatam que o informar “envolve uma busca pelos princípios que sustentam
(conscientemente ou não) as ações”. Esses princípios podem estar baseados em teorias
formais ou conhecimento de mundo do professor. O informar é a relação que estabeleço com
as teorias de cultura, de linguagem, de construção de conhecimento, discutidas anteriormente,
a fim de melhor entender que princípios perpassam minhas ações.
(c) Confrontar – “Como me tornei assim?”, “Que interesses embasam minhas ações?”.
Nessa etapa, o professor volta-se ao questionamento das teorias formais que fundamentam
suas ações e as inserem em um contexto mais amplo: sócio-histórico. Ele passa, então, a
tentar entender as conseqüências sociais, morais, éticas e políticas de suas ações. Liberali
(2004) acrescenta que este é o momento da emancipação do professor, uma vez que, mediante
o confronto entre sua ação e suas representações, pode reconstruir sua prática de maneira
consciente. O confrontar permite que eu observe que conseqüências minhas ações acarretam,
tanto para mim quanto para o aluno.
(d) Reconstruir – “Como posso agir de forma diferente?”. Emancipado, o professor
busca alternativas para suas ações e passa a controlar de forma consciente sua prática. É a
possibilidade de reconstruir minhas ações com base no confronto.
Essas quatro ações me darão a oportunidade de tornar-me uma professora reflexiva,
tendo melhor percepção de meu papel como profissional e ser social.
1.4.2.1 O diário como instrumento para a reflexão
Em uma pesquisa que visa à reflexão crítica, para Magalhães (1998, p. 177), os
instrumentos de coleta e de análise de dados devem favorecer o distanciamento do professor
de suas “práticas discursivas” e fazer com que ele se envolva “no questionamento desses
discursos e na construção de novas teorias e práticas”.
Entre alguns instrumentos, como a autobiografia (LIBERALI, MAGALHÃES E
ROMERO, 2003), as sessões reflexivas (MAGALHÃES, 2004), escolhi para esta pesquisa os
diários, porque proporcionam a reflexão crítica, ao permitir ao professor verbalizar suas ações
para si mesmo, expressar suas perspectivas, os pressupostos formais e informais que embasam
sua prática, suas ansiedades e dúvidas. Enfim, caracteriza-se como um instrumento para
veicular o pensamento do professor. A conscientização de sua experiência o leva a
questionamentos mais amplos sobre seu papel e o direciona a novas construções de sua
prática (ZABALZA, 1994).
Segundo Zabalza (1994), o ensino deve ser entendido como um fenômeno social
instável, no qual conflitos ocorrem. Seguindo esse raciocínio, a aula deve também ser pensada
como uma realidade social com diferenças e características próprias, como um lugar onde os
conflitos aparecem e precisam ser trabalhados pelo professor. Assim, o diário surge como um
instrumento no qual o professor pode registrar e perceber sua ação, verificar como lida com
problemas e dúvidas que surgem nas aulas.
Como instrumento de investigação do pensamento do professor, o diário visa mostrar
também quais são as teorias formais ou informais, representações, perspectivas pessoais que
sustentam sua prática. Nele, o professor “expõe-explica-interpreta a sua acção quotidiana na
aula ou fora dela” (ZABALZA, 1994, p. 91). Conseqüentemente, esse trabalho reflexivo o
direciona à conscientização e transformação da sua prática.
Para o mesmo autor, apesar de o diário ser
um recurso custoso pelo que implica de continuidade no esforço narrativo, pelo
próprio esforço lingüístico de reconstituir verbalmente episódios densos de vida,
pelo que pressupõe de constância e ascese o facto de ter de escrever depois de um
dia de trabalho esgotante nas aulas. (p. 92),
por outro lado, é um recurso de enorme expressividade, uma vez que implica escrever,
refletir, integrar o expressivo (por que faço) e o referencial (o que faço), além de ter caráter
histórico e longitudinal da narração.
Outras vantagens podem ser atribuídas ao uso do diário como instrumento de análise e
de reflexão crítica. Liberali (1999), discutindo as obras de Deen (1987) e de Zeichner (1981),
comenta que esse instrumento pode tamm delinear quais os conceitos de ensino e de aula o
professor detém e de seu próprio papel como professor, além de tornar “os educadores
metacognitivos sobre suas ações ao se definirem sobre o que sabem, o que sentem, o que
fazem e por que o fazem” (p.27).
Por não estar dirigido a nenhum destinatário, somente ao próprio autor, o diário
oferece mais liberdade de escrita, já que “o autor não assume, na sua produção, as
responsabilidades inerentes à produção de um texto” (MACHADO, 1998, p. 26). Assim, na
escrita dos diários para esta pesquisa, não me preocupei em manter uma linguagem formal ou
voltada às normas cultas da língua, mas sim, em expressar minhas percepções e descrever
minhas ações em aula.
A escrita, para Zabalza (1994), também pressupõe a construção do pensamento.
Escrever nos leva a aprender e também a expressar conhecimentos e recordações que, às
vezes, ficam esquecidos por nós, produzindo a “descoberta de nossos próprios pensamentos”
(MACHADO, 1998, p 30). É na escrita do diário que nós, professores, temos a possibilidade
de nos despirmos de rótulos e nos mostrarmos, com todas nossas representações, e também
com nossas angústias e incertezas.
Aliando isso ao já apontado por Liberali (1996) – “a linguagem é que dá forma à ação
para que esta possa ser entendida e transformada” - posso dizer que a reflexão é constitutiva
dos diários. Assim, este instrumento me oferece o caminho necessário à reflexão crítica ao
permitir que nele possa expressar meu conhecimento intuitivo, com relação aos conceitos de
cultura e da identidade do brasileiro.
1.4.3 Reflexão e linguagem: o professor reflexivo
Baseada no conceito sociointeracionista (VYGOTSKY, 1998), Magalhães (2004)
discute a linguagem na sua função social, como um meio de interação. O homem por meio
dela e nela se constitui, interage com os outros, se apropria de outros discursos, desenvolve
seu pensamento e o torna acessível. Para Vygotsky (REGO, 1995), é na interação com o meio
sociocultural que o indivíduo, num processo dialético, rompe com conceitos, se apropria de
novos, se desestrutura e se reorganiza, desenvolvendo-se. Castro e Romero (2006) expandem
mais esse conceito atribuindo à linguagem a formação das identidades.
Segundo Vygotsky (2005), é por meio da palavra que o pensamento se concretiza,
trazendo em si significados que são construídos ao longo da história, em contextos sócio-
históricos. Esses significados ensejam analisar a relação existente entre pensamento e
linguagem, porque é nesta que o sujeito se mostra, é através dela que se criam significações.
A identidade não existe por si só, deve ser produzida por meio da criação lingüística e
pelas relações socioculturais (SILVA, 2000). A análise das escolhas lingüísticas feitas pelo
sujeito pode revelar valores, conflitos, enfim, sua ideologia, presente na constituição de sua
identidade. O entendimento de que a linguagem atua na construção e reconstrução
permanente de identidades a situa como tendo papel fundamental no processo de formação do
professor reflexivo (CASTRO; ROMERO, 2006).
Magalhães (2004), ao descrever suas ações por meio da linguagem, afirma que o
professor dá forma à sua ação e, assim, passa a avaliar o motivo que o levou a elas. Essa
análise permite que o profissional questione sobre quais interesses estão envolvidos em sua
prática e em que teorias se apóia. Depois desse confronto, abre-se para um contexto maior –
sócio-histórico cultural - e direciona-se à reconstrução de sua prática e de sua identidade.
Castro e Romero (2006), baseadas em Kincheloe (1997), consideram que questionamento,
interpretação e flexibilidade intelectual são “os atos cognitivos essenciais” para o
desenvolvimento de professores críticos.
E a linguagem possibilita que essas ações se efetivem, podendo tornar o professor um
ser crítico e reflexivo, em constante processo de autoquestionamento e autocompreensão de
sua ação (CASTRO; ROMERO, 2006).
Portanto, o que se espera neste trabalho é que a análise dos quatro diários e das
transcrições dos recortes de aspectos culturais de três aulas possibilite que a reflexão crítica
se faça cada vez mais presente em meu agir como professora de português para estrangeiros e
como ser humano.
Lembrando Freire (1996, p. 38), “a prática docente crítica, implicante do fazer certo,
envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar e o pensar sobre o fazer”.
Por conseguinte, na formação do professor crítico, a descrição de seu fazer o leva a assumir-
se como é, perceber o que faz e as razões que o tornaram desse jeito. Esse processo permite
que ele seja capaz de mudar, de “passar da curiosidade ingênua (associada ao conhecimento
de mundo) para a epistemológica (novas teorias)”, sem que isso seja entendido como uma
ruptura do primeiro.
Segundo o mesmo autor (1996), quando o professor assume o que faz, sentimentos de
raiva, de frustração podem surgir. Mas ao mesmo tempo em que estes aparecem, outro surge –
o sentimento positivo, gerado pela felicidade de ter percebido que é possível mudar quem ele
é, conseqüentemente, sua prática. Por isso, a constatação de meu papel, como professora, deve
me impulsionar para mudanças, para intervenções na realidade, para geração de novos
conhecimentos, por meio de descobertas.
O professor crítico reflexivo deve ter o comprometimento de vivenciar o que fala, de
instruir-se sempre, de assumir o que não sabe, e buscar saber. Ele deve entender que o
“espaço pedagógico é um texto para ser constantemente ‘lido’, ‘interpretado’, ‘escrito’ e
‘reescrito” (FREIRE, 1996 p. 97), pois é nesse espaço que o seu aprendizado se dá. E este só
poderá acontecer na medida em que o professor se predisponha com humildade a repensar
seus conhecimentos, suas posições, assumir suas incertezas e se abrir para a curiosidade dos
alunos, as quais o fazem descobrir novos caminhos (FREIRE, 1996).
Corroborando Freire (1996), Clemente (2001, p.60), discutindo a obra de Garcia
(1992:62), ressalta que o professor deve ter “(...) uma ausência de preconceitos, de
parcialidades, e de qualquer hábito que limite a mente e a impeça de considerar novos
problemas e de assumir novas idéias”.
O ensino deve ser entendido como prática social, e as ações do professor como ações
políticas (PIMENTA, 2006). Benassuly (2002, p.190), salienta que
falar dos professores como educadores reflexivos é proporcionar-lhes elementos por
meio dos quais possam romper com ideologias tecnocráticas e instrumentais que, na
maioria das vezes, perpassam sua prática cotidiana. É colocá-los no patamar de
sujeitos políticos, capazes de refletir as mediações que estão postas no espaço de
seus mundos vividos e no espaço social (...).
Como professora reflexiva, meu objetivo é analisar e refletir sobre qual ou quais
representações de cultura brasileira e do brasileiro são construídas na interação professora-
aluno em aula de PLE, e se essas representações mantêm ou rompem com estereótipos de
identidade cultural. Isto é, como professora, analisar se mantenho padrões fechados e
egocêntricos de identidade: “nós somos assim”, em contraposição a “vocês não são”, ou
permito e favoreço, por meio da linguagem, que o aprendiz, “interprete” nossa cultura, essa
rede de significações na qual atuamos (GERRTZ, 1989), e construa seu entendimento, em
relação dialética com sua própria cultura.
Finalizando as discussões sobre o embasamento teórico que me orienta, gostaria de
retomar o objetivo deste trabalho e suas perguntas de pesquisa. O objetivo é analisar e avaliar,
segundo a perspectiva crítico-reflexiva, como eu, professora-pesquisadora, trato a questão
cultura e linguagem em aula de PLE, com a finalidade de que meus alunos aprendam o novo
idioma, inserindo-se na cultura brasileira, e possam, assim, interagir em diversos contextos
sociais. Para tanto, as seguintes perguntas de pesquisa foram elaboradas:
1) Que teorias de linguagem subjazem a prática da professora?,
2) Que representações da cultura brasileira e do brasileiro são construídas na
interação professora-aluno durante as aulas?
Para responder à primeira pergunta de pesquisa, considerei importante discorrer sobre
as teorias estruturalista e funcional da linguagem, porém me detive mais na teoria
sociointeracional (BRASIL, 1998; RICHARDS; ROGERS, 2001; LEFFA, 2003) por esta
considerar que a linguagem se dá em eventos sociais, e que é na interação social que os
significados são construídos; e na Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994;
CHRISTIE, 2005; EGGINS, 1994), cujos fundamentos consideram que a linguagem se
estrutura de forma a expressar a visão de mundo do falante, seus valores, suas representações,
suas ideologias, e por meio dela, interagir com outras pessoas. A GSF será utilizada, neste
trabalho, como suporte de análise lingüística. Abordei também três tipos de conhecimentos
(BRASIL, 1998) que são ativados quando o indivíduo entra em contato com novos discursos e
que atuam conjuntamente no processo de construção de significados.
Os conceitos antropológico (LARAIA, 2006) e semiótico de cultura (GEERTZ, 1989),
que a concebe como parte do comportamento do indivíduo e como um mecanismo que
organiza sua vida, e entendem a comunicação como um processo cultural, oferecerão,
juntamente com a discussão sobre a relação cultura, linguagem e identidade (KRAMSCH,
1993; VYGOTSKY, 1998; SILVA, 2000; BRUNER, 2002; HALL, 2005), os fundamentos
para que eu possa responder à segunda questão de pesquisa.
A relação cultura e ensino de língua estrangeira (BRASIL, 1998; BERWIG, 2004)
reafirma o caráter intrínseco entre cultura e linguagem. O interculturalismo (BRITO, 1999;
MEIRELES, 2002) é abordado nesta fundamentação como uma possibilidade de concepção
de ensino, uma vez que não exclui a cultura do aluno, mas procura aproximá-la à cultura da
língua-alvo, no intuito de despertar no aprendiz outras formas de ver e pensar o outro.
Tendo em vista o objetivo deste trabalho, é fundamental que o conceito de reflexão-
crítica, os caminhos para me transformar em uma professora reflexiva e a relação reflexão e
linguagem, esta última a base para todo o processo de reflexão, façam parte também dessa
fundamentação.
Resumindo, todas as contribuições expostas têm o intuito de mostrar: (a) quais
significados culturais do Brasil e do brasileiro são construídos na interação professora-aluno
em aula de PLE, e o que esses significados podem expressar, isto é, preconceitos, ideologias,
valores, etc.; e (b) que a reflexão-crítica pode levar a um permanente questionamento, à
compreensão e à reconstrução de minhas ações.
No próximo capítulo, faço uma exposição da metodologia de pesquisa utilizada nesta
dissertação.
2 METODOLOGIA
Este capítulo tem por objetivo comentar, primeiramente, o caráter transdisciplinar dos
estudos em Lingüística Aplicada, que permite que questões como identidade, cultura,
essencialismos sejam trazidas para seu campo de investigação. Nesse mesmo item, aponto a
necessidade de olharmos para a aula, não mais como um espaço desvinculado da realidade,
mas como um espaço no qual o mundo de fora nela se manifesta com todos seus conflitos,
jogos de interesse, de poder, a fim de que o professor possa conscientizar-se de seu papel
político. E para que esse novo olhar aconteça, discorro sobre a pesquisa etnográfica crítica
como o caminho que pode levar o professor a uma visão crítico-reflexiva de seu trabalho.
A seguir, descrevo o contexto de pesquisa e os participantes, para, posteriormente,
elucidar como foi elaborada a coleta e a preparação do corpus deste trabalho. Por fim, explico
o procedimento de análise dos dados, tendo como base as perguntas de pesquisa citadas na
introdução.
2. 1 REFERENCIAL METODOLÓGICO
A linguagem passou a ser considerada, de uns anos para cá, como “um fenômeno
sócio-cultural, fundamentalmente heterogêneo e em constante processo de mudança”
(LOPES-ROSSI, 2005, p. 3). De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs de
ensino de língua estrangeira, a linguagem deve ser entendida
[...] como ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo
de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos da
sociedade, nos distintos momentos de sua história. [...] Nessa perspectiva, língua é
um sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita a homens e
mulheres significar o mundo e a sociedade. Aprendê-la é aprender não somente
palavras e saber combiná-las em expressões complexas, mas apreender
pragmaticamente seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as
pessoas entendem e interpretam a realidade e a si mesmas. Interagir pela linguagem
significa realizar uma atividade discursiva: dizer alguma coisa a alguém, de uma
determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas
circunstâncias de interlocução. (BRASIL, 1998, p.20).
Devo acrescentar a isso a necessidade de se entender a linguagem como um fenômeno
social no qual e pelo qual nos constituímos. “As pessoas são quem são por causa (entre outras
coisas) do modo como falam”, isto é, a linguagem constrói nossa identidade (CAMERON,
1997, apud PENNYCOOK, 2006, p. 81). É esse seu caráter constitutivo que permite refletir
sobre questões como cultura, identidade, etc. Essa visão constitutiva “possibilita que todo um
novo conjunto de questões e interesses, tópicos tais como identidade, sexualidade, acesso,
ética, desigualdade e reprodução de alteridade” seja trazido para o campo de estudos da
Lingüística Aplicada (doravante LA) (PENNYCOOK 2006, p.68).
Dessa forma, os estudos desenvolvidos hoje na LA estendem-se para outras áreas do
saber como Antropologia, Sociologia, Geografia, etc.; para um campo de “investigação
transdisciplinar” que passa por várias disciplinas para desenvolver uma nova “agenda de
pesquisa”, sem se subordinar a nenhuma (RAJAGOPALAN, 2004, apud PENNYCOOK,
2006). No caso deste estudo, cujo objetivo está pautado na relação língua/cultura, passo pela
Antropologia e retorno à Lingüística Aplicada, pois meu foco mantém-se na linguagem como
mediadora cultural.
Outro aspecto que vem sendo discutido na LA é a necessidade de voltar seu olhar para
o uso da linguagem em situações de interação, principalmente nas que ocorrem em aula,
entendendo esta como um contexto social no qual vários determinantes culturais, sociais,
históricos, políticos, pessoais interagem.
A sala de aula deve ser pensada não mais como um espaço distante e desvinculado da
realidade, mas de contradições e conflitos que ocorrem fora da escola e que são trazidos e
vividos dentro dela. Essa mudança de visão leva à necessidade da formação de professores
críticos, que se conscientizem de que suas ações repercutem fora da sala de aula e vice-versa
(RAJAGOPALAN, 2003).
E para que a LA se alinhe a essa visão de uma pedagogia crítica, Rajagopalan (2003)
afirma que algumas representações devem ser mudadas: (a) deve-se pensar a pesquisa
científica e o trabalho pedagógico como vinculados a questões culturais, políticas e sociais; e
(b) a realidade deve ser trazida e discutida no espaço escolar, relacionando-a aos
conhecimentos adquiridos no contexto escolar.
Com relação às pesquisas desenvolvidas em Lingüística Aplicada, dois tipos podem
ser encontrados, segundo Moita Lopes (1996), a saber:
(a) pesquisa diagnóstico: tem seu foco voltado para o processo de ensinar/aprender em
sala de aula. Preocupa-se em analisar como a prática desse processo está sendo
realizada. Para tanto, algumas questões já vêm sendo respondidas por vários
pesquisadores no Brasil: Qual o papel do professor na interação que acontece em
sala de aula?; Que pressupostos teóricos embasam sua prática?; Como se dá a
interação entre professor e aluno?; Entre outras.
(b) pesquisa de intervenção: o foco está na busca de soluções para a modificação de
uma situação já existente em sala de aula. Pesquisas voltadas ao uso de novas
técnicas para ensino de redação, ensino baseado em outras disciplinas do currículo,
desenvolvimento de programas de ensino de leitura também estão sendo
realizadas.
Tanto para um quanto para o outro tipo, a abordagem qualitativa de pesquisa de
natureza etnográfica é hoje uma tendência (MOITA LOPES, 1996). Segundo Cançado (1994,
p. 56), para a pesquisa de ensino de segunda língua, a etnografia é um instrumento, uma vez
que, “consiste basicamente em observação não-estruturada da sala de aula”, examinando-a
“como um todo: todos os aspectos têm relevância para análise da interação”. A pesquisa
etnográfica, sob o ponto de vista de Erickson (1986), citado por Moita Lopes (1996, p. 88),
caracteriza-se pela participação do pesquisador em sala de aula, uma vez que por meio de
descrição narrativa do dia-a-dia dos professores e alunos pode-se tentar descobrir:
(a) o que está acontecendo neste contexto; (b) como esses acontecimentos estão
organizados; (c) o que significam para alunos e professores; e (d) como essas
organizações se comparam com organizações em outros contextos de aprendizagem.
Esse tipo de pesquisa tem levado cada vez mais professores a se tornarem também
pesquisadores de sua própria prática. E isso tem se configurado como um avanço educacional,
visto que, ao descrever sua ação, procurar significados para ela, analisá-la mediante novos
pressupostos teóricos, o professor passa a desenvolver uma visão crítico-reflexiva de seu
trabalho, o que, inevitavelmente, o levará a uma transformação do seu fazer (MOITA LOPES,
1996; MAGALHÃES, 2004).
Preocupada com a formação do professor crítico, Magalhães (2004, p. 71) declara que
o pesquisador interessado em conduzir pesquisa que trabalhe para a auto-reflexão do
professor necessita escolher um método que lhe permita desenvolver uma
investigação que não separe a elaboração da teoria e a condução da prática .
Desse modo, com base na teoria crítica do conhecimento, cujo foco é o conhecimento
que se estabelece pela visão crítica do conhecimento da teoria e pelo conhecimento da
prática, Magalhães (2004) aponta a pesquisa etnográfica crítica, na qual todos os
participantes, num processo de interação e de negociação, são responsáveis pela construção
do conhecimento.
Com relação ao ensino de línguas estrangeiras, Rajagopalan (2003), baseado em
Canagarajah, afirma que o professor crítico deve possibilitar que o aprendiz, ao contato com a
língua e cultura estrangeiras, estabeleça um diálogo saudável entre as duas culturas, a sua e a
do outro, a fim de que possa, não negar a sua e nem assimilar a do outro, mas construir uma
nova identidade.
Diante do exposto, e tendo em vista que o foco desta pesquisa é a reflexão crítica do
professor no processo de interação em aula com seus alunos, entende-se que a escolha por
desenvolver uma pesquisa com base etnográfica crítica, seja o caminho para reflexão crítica
de seu trabalho e sua transformação.
2.2 CONTEXTO DE PESQUISA
Esta pesquisa foca aulas individuais de Português Língua Estrangeira (PLE),
ministradas em 2006 e 2007, na cidade de São Paulo, a estrangeiros de diversas
nacionalidades e oriundos de vários países, que vieram ao Brasil para trabalhar e aqui devem
permanecer por um período de um a cinco anos. Todos eles têm nível universitário, alguns,
pós-graduação, e estão compreendidos na faixa etária que vai de 29 a 40 anos.
Antes de iniciar as aulas, que são todas dadas em português, faço uma entrevista para
saber das necessidades, interesses, expectativas do aluno com relação ao aprendizado da
língua portuguesa, para, posteriormente, organizar a programação e o material a ser utilizado.
Ao longo de minha experiência como professora, o resultado dessas entrevistas me levou a
dividir os executivos em dois grupos: os que não utilizam a língua portuguesa no ambiente de
trabalho e os que dela necessitam para tal.
Os alunos pertencentes ao primeiro grupo expressam o interesse por aprender a língua
para poder inserir-se na sociedade, fazer amizades, falar com amigos sobre futebol, economia,
atualidades, etc. Muitos deles demonstram também interesse por aprender mais sobre a
cultura brasileira: costumes, comportamentos, música, etc. Os do segundo, além das
necessidades anteriores, precisam também se comunicar com clientes, com colegas, fazer
apresentações, participar de reuniões e de seminários, fazer e receber telefonemas, conversar
com colegas em um happy hour, etc.
As esposas, como não trabalham, necessitam aprender português para orientar a
empregada com relação à limpeza da casa, à comida, aos cuidados com as crianças, fazer
compras em supermercados, lojas, falar com encanadores, eletricistas, jardineiros, conversar
com a professora, diretora e mães brasileiras de amiguinhos de seus filhos - quando estes
estudam em escolas brasileiras -, ir ao médico, ao dentista, à manicure. Basicamente, para
situações de sobrevivência. Há um interesse também por parte delas de conhecer mais sobre a
cultura brasileira, sua História, seus costumes, suas festas populares, sua literatura, etc.
É importante ressaltar que, além de não estar vinculada a nenhum instituto de
idiomas, o que significa não responder hierarquicamente a ninguém, a característica da aula
particular e individual nesse contexto é oferecer à professora e ao aluno alto grau de liberdade
quanto à programação, à escolha de material e ao ritmo da aula.
Essa autonomia favorece a que os interesses dos alunos sejam acolhidos por mim,
principalmente no tocante aos aspectos culturais, e que a aula seja suscetível a acontecimentos
da realidade, a interesses por parte do aluno que possam surgir ao longo do curso. Um
exemplo ocorreu no caso da tragédia com o avião da TAM, em julho de 2007. Um aluno
demonstrou interesse e vontade de discutir sobre o assunto e me pediu que falasse acerca
daquele acontecimento em aula. Diante da solicitação, reorganizei a programação e passamos
a ler alguns artigos de jornais e de revistas sobre o ocorrido e a discutir sobre seu conteúdo.
Isso significa que o professor precisa ter habilidade e flexibilidade para mudar o tema
de uma aula, dependendo da necessidade imediata do aluno, e, não raro, de fatores externos -
atendimento telefônico prolongado, discussão de um determinado assunto com outra pessoa,
entre outros.
Por não utilizar livros didáticos, procuro sempre levar para as aulas artigos retirados de
revistas, de jornais, crônicas, etc. Como sempre acreditei que língua e cultura estão
intrinsecamente ligadas, ao preparar uma aula, sempre me preocupo em selecionar materiais
nos quais, por meio da linguagem, os alunos possam entrar em contato com aspectos culturais
brasileiros.
Essa seleção pode variar dependendo dos objetivos propostos em cada aula. Se, por
exemplo, o objetivo é fazer com que o aluno possa solicitar informações sobre a direção de
um lugar ou até fornecê-las, não me limito somente à apresentação de elementos lingüístico-
gramaticais que podem ser utilizados nessas situações, mas também procuro lhe mostrar
como nos comportamos, agimos no trânsito, estabelecendo um paralelo com sua própria
cultura. Além disso, sempre que possível, insiro na programação textos (artigos, crônicas) que
apresentam alguns aspectos culturais, a fim de que possamos dialogar depois de uma
percepção já formada do Brasil e do brasileiro.
Também acredito ser importante levar para as aulas informações sobre festas
populares (Carnaval, Festas Juninas), folclore, expressões idiomáticas, artes, etc. Sempre que
possível, organizo visitas a museus – Masp, Museu da Língua Portuguesa, Pinacoteca do
Estado de São Paulo, Museu do Ipiranga, etc; à região central da cidade – Rua 25 de Março,
Mercado Central, Largo São Paulo, Pátio do Colégio, Praça da Sé, Torre do Banespa, etc.
Nessas visitas, conversamos sobre a história da cidade de São Paulo, sobre a influência dos
imigrantes na alimentação, nas festas, na língua, no nosso sotaque.
Todo o material utilizado em aula é impresso e entregue ao aluno em folhas soltas.
Além disso, posso usar também fitas de áudio com programas gravados de rádio ou músicas,
filmes, telejornais, documentários, figuras, jogos, capas de revistas, propaganda impressa, etc.
Com relação ao local da realização das aulas, pode ser tanto a residência dos alunos
como a empresa na qual trabalham. Geralmente, as aulas dadas às esposas de executivos
acontecem em suas residências e podem ser na sala de estar, sala de jantar, sala de almoço,
varanda, sala de televisão e até mesmo no quarto do casal (quando a TV e o aparelho de vídeo
ou DVD aí se encontram).
Por estar no ambiente doméstico, é normal que a empregada, às vezes, esteja também
no mesmo local da aula, bem como pessoas que porventura estejam prestando algum tipo de
serviço. Quando isso acontece, não é raro que interrompam a aula para fazer algum tipo de
comentário ou para reforçar a explicação da professora. Além disso, os alunos costumam
interromper a aula para atender ao celular, à solicitação da empregada ou dos filhos, que vez
ou outra “participam” da aula.
As aulas ministradas nas empresas são geralmente dadas em salas de reuniões. Quando
não há nenhuma disponível, podem acontecer no restaurante da empresa e até na recepção.
Um aspecto negativo em dar aulas em empresas é que nem sempre tenho à disposição para as
aulas aparelho de DVD, videocassete e televisor. Quando preciso utilizar esse tipo de
material, é necessário fazer solicitação à secretária e verificar se há disponibilidade de utilizar
outra sala (o que raramente acontece) . No ambiente de trabalho, a interrupção é bem menor.
É interessante realçar que os executivos raramente atendem ao celular em aula; muitos até o
desligam.
Todas as aulas têm duração de uma hora e meia e acontecem duas vezes por semana.
As esposas geralmente têm aulas no período da manhã, quando as crianças estão na escola. Os
executivos, no primeiro horário da manhã, na hora do almoço ou no final da tarde.
Normalmente, no período das férias escolares, que pode variar de quinze dias a dois meses, as
esposas interrompem as aulas. Os executivos cancelam em média duas a quatro aulas por mês,
por causa de reuniões e viagens a negócio.
2.3 PARTICIPANTES
Durante o ano em que desenvolvi esta dissertação, eu tinha onze alunos. Desse total,
selecionei quatro alunos por estarem no início de um estágio intermediário do curso, cuja
programação das aulas favorecia mais a fluência e discussão sobre aspectos culturais do país
de origem e do Brasil. A quinta aluna selecionada estava se preparando para o exame, por
meio do qual obteria o Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa, aplicado pelo
Ministério de Educação e Cultura. Buscando também enriquecer os olhares sobre nossa
cultura, preocupei-me em selecionar alunos oriundos de culturas diversas - holandesa,
salvadorenha e argentina. Além disso, todos tinham previsão de permanecer no Brasil até o
final da pesquisa.
Aluno Nacionalidade Idade Línguas que fala
Peter holandesa 34 holandês, inglês, alemão e espanhol
Anita argentina 29 espanhol e inglês
María salvadorenha 40 espanhol e inglês
Juan e Evita argentinos 31 e 29 espanhol e inglês
Quadro 1 – Participantes da pesquisa
Os cinco participantes que concordaram em participar desta pesquisa, serão
apresentados a seguir com nomes fictícios, a fim de preservar-lhes a identidade. Coloquei-me
também como participante, tendo em vista que este trabalho procura analisar como eu,
professora-pesquisadora, trato a questão cultura e linguagem em aula de PLE.
. Peter - Holandês, 34 anos, solteiro, executivo de uma instituição financeira, tem nível
universitário e MBA e mora em São Paulo. Domina as línguas espanhola (morou na Costa
Rica por um ano e meio), inglesa e alemã, além da holandesa. Está no Brasil desde dezembro
de 2005. Iniciou o curso em janeiro de 2006 com duas aulas por semana, com duração de uma
hora e meia cada. As aulas são dadas na empresa.
Como coordena uma equipe de 25 brasileiros (muitos falam inglês), quer aprender o
idioma para relacionar-se com eles em português, participar de reuniões, de eventos e fazer
apresentações. Além disso, quer aprender “bem” português para sair à noite, ir a bares,
discotecas, conhecer pessoas, paquerar. Por exemplo: um dia me disse que sabia como as
holandesas indicavam “se estavam a fim ou não” de conhecer e conversar com um homem em
uma discoteca ou em um bar, mas não tinha a mínima idéia do comportamento das
brasileiras, porque, às vezes, elas não deixavam claro se queriam continuar a conversa ou não.
Então, pediu-me que lhe explicasse como nós, brasileiras, indicamos isso.
. Anita - Argentina, 29 anos, esposa de um executivo de uma empresa suíça. Possui curso
superior em Administração, mas não trabalha. Tem dois filhos, um menino de três anos e uma
menina de um ano. Está no Brasil desde janeiro de 2006, vinda de Londres, onde residiu por
um ano e meio. Iniciou o curso em março de 2006. Tem duas aulas por semana, uma com
duração de uma hora e meia e outra de uma hora. As aulas são dadas na residência da aluna.
Além de necessitar da língua portuguesa para situações de sobrevivência (a empregada
é brasileira), quer também trabalhar aqui. Ainda não está muito adaptada. Sente muita falta de
sua família e de seu país.
. María - Salvadorenha, 40 anos, esposa de um executivo de uma indústria farmacêutica. É
formada em Farmácia, mas não exerce a profissão no Brasil. Tem três filhos, duas meninas de
12 e 14 anos, respectivamente, e um menino de seis anos que estudam em uma escola
americana, em São Paulo. Já morou na Costa Rica, no Peru e nos Estados Unidos. Fala
espanhol e inglês. Mora em São Paulo e não trabalha. Desde que chegou ao Brasil, janeiro de
2005, tem aulas de português, duas vezes por semana, com duração de uma hora e meia cada.
Agora seu objetivo é prestar exame para obtenção do Certificado de Proficiência em Língua
Portuguesa, oferecido pelo Ministério de Educação e Cultura.
. Juan e Evita - Casal de argentinos. Ela tem 29 anos e ele, 31. Ambos têm nível
universitário. Ele veio ao Brasil para trabalhar em uma empresa de telefonia. Têm duas filhas,
uma de três anos e outra de cinco meses. A mais velha freqüenta uma escola brasileira. Já
moraram na Espanha. Falam inglês, além do espanhol. Chegaram ao Brasil em março de
2006 e iniciaram as aulas em abril do mesmo ano. As aulas são dadas duas vezes por semana,
com duração de uma hora e meia cada, na residência do casal.
O marido necessita aprender português para utilizá-lo no trabalho. Disse-me que o
perfil da empresa é bem informal e que, portanto, gostaria de aprender mais a linguagem
informal, expressões idiomáticas, gírias, etc. A esposa não trabalha e necessita, num primeiro
momento, aprender português para situações de sobrevivência (compras, idas ao médico,
trato com a empregada, etc.) e, depois, aprimorar seu conhecimento para poder trabalhar.
Gostaria de atuar em ONGs com trabalhos voltados à Educação.
. Professora-pesquisadora - Sou formada em Letras - Português e Italiano, mas tenho
licenciatura plena somente em Língua Portuguesa. Fiquei muitos anos atuando em outras
áreas e, somente em 1996, passei a dar aulas individuais de PLE em uma escola de idiomas,
em São Paulo. Em 1998, comecei a dar aulas particulares a estrangeiros e a desenvolver
minha própria programação e material, baseada em questionamentos que intuía como
necessários para um crescimento em meu trabalho. Não acreditava que os materiais
comercializados pudessem dar conta das necessidades e dos interesses dos alunos.
Em 2001, eu e uma professora também de PLE, passamos a atuar sozinhas no mercado
e desenvolvemos em conjunto um programa (chamamos de espinha dorsal) de curso,
utilizando nossa experiência na área. Mas, apesar de esse programa ter sido feito em conjunto,
cada uma desenvolve sua própria programação de aula, tendo em vista a necessidade de seus
alunos. Assim, desde 2001, venho atuando como professora particular de português para
estrangeiros, em diversas empresas, na cidade de São Paulo.
Tendo sempre acreditado que cultura e linguagem não podem caminhar separadamente
e com liberdade para selecionar meu próprio material, passei a introduzir nas aulas textos
sobre cultura brasileira e sobre a identidade do brasileiro. Minha preocupação sempre foi
vincular a quase todos os temas das aulas aspectos culturais, sejam em comentários ou
inseridos em textos complementares. Por exemplo: em uma aula cujo objetivo é apresentar
vocabulário relacionado a alimentos, procuro sempre estabelecer uma comparação entre os
costumes do país de origem do aluno e os do Brasil e, às vezes, selecionar e apresentar um
texto sobre a influência do índio, do negro ou dos imigrantes em nossa alimentação.
Para mim, dar aulas de português para estrangeiros é extremamente enriquecedor em
virtude da troca cultural. Ao longo desses anos, pude perceber que aprendo também muito
com eles, no sentido de lançar novos olhares sobre minha própria língua, sobre aspectos do
povo brasileiro que até então me passavam despercebidos.
2.4 COLETA E PREPARAÇÃO DO CORPUS
Para responder à primeira pergunta de pesquisa, selecionei quatro diários dos seguintes
participantes: Peter, Anita, María e Juan e Evita, que fazem aula juntos, cujos temas e
objetivos se diferenciam um pouco, como: apresentação de vocabulário de roupas e alimentos,
apresentação de conjugações verbais e discussão sobre costumes. Os diários foram escritos ao
mesmo tempo em que as aulas eram dadas. Optei por utilizá-los como corpus de análise da
primeira pergunta, pois eles expressam minhas ações, questionamentos, redirecionamentos no
desenrolar da aula.
No intuito de responder à segunda pergunta de pesquisa, gravei em áudio, com
permissão prévia dos alunos anteriormente citados, 23 aulas. Após ouvir essas gravações,
selecionei alguns recortes de três aulas, de três participantes, Peter, Anita e Evita, que
totalizaram duas horas e quarenta e três minutos. O critério adotado, nesse momento, foi o de
selecionar os trechos de aulas nos quais os aspectos culturais, tanto os apresentados por mim
quanto os trazidos pelos alunos, estivessem presentes. Faz-se necessário ressaltar que os
recortes sobre aspectos culturais foram feitos tendo como referência o conhecimento prévio
adquirido em leituras sobre cultura brasileira: costumes, comportamento.
Os recortes das aulas foram transcritos por uma terceira pessoa, sem a preocupação de
seguir normas de transcrição pré-definidas. Depois de pronta a transcrição, efetuei uma nova
revisão para corrigir eventuais falhas, e a partir do conceito de cultura discutido por Laraia
(2006) e Santos (2006), na fundamentação teórica, fiz uma nova leitura das transcrições e
selecionei os recortes de três aulas. Desses recortes, separei as orações para analisar as
representações de cultura e do brasileiro, construídas por mim e pelos alunos.
Em síntese, os quatro diários e a transcrição dos recortes de três aulas, que totalizam
duas horas e quarenta e três minutos de gravação, constituem o corpus desta pesquisa.
2.5 PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DOS DADOS
Segundo Erickson (1986, apud MELÃO, 2001), os instrumentos, a forma de coleta dos
dados e sua organização devem ser orientados pelas perguntas de pesquisa.
Na busca da resposta à primeira pergunta de pesquisa: Que teorias de linguagem
subjazem a prática da professora?, analisei minhas ações verbalizadas nos quatro diários e
as confrontei com as teorias de linguagem discutidas no capítulo 2. O olhar dessa análise foi
verificar no meu discurso que teorias de linguagem prevalecem em minha prática –
estruturalista, funcional ou sociointeracional.
Para responder à segunda pergunta de pesquisa: Que representações da cultura
brasileira e do brasileiro são construídas na interação professora-aluno durante as
aulas?, de posse das transcrições dos recortes das três aulas, em um primeiro momento,
separei os recortes e classifiquei-os em três categorias: (a) comportamento e costumes, por
exemplo: não somos muito formais com relação a cumprimentos; os brasileiros usam sunga,
etc.; (b) folclore e festas (pagãs e religiosas), como Carnaval, Festas Juninas; e (c) produção
cultural: literatura, artes, música, televisão, teatro, baseando-me no conceito de cultura
discutido por Laraia (2006) e Santos (2006), na fundamentação teórica.
Optei por não considerar identidade uma categoria por julgar que identidade perpassa
todas as outras categorias, visto que ela seja resultado de processos de criação lingüística
(SILVA, 2000 e HALL, 2005). Na análise de dados, detalharei mais a esse respeito.
Para analisar como as representações de cultura brasileira e do brasileiro foram tecidas
na interação, separei a minha fala e a do aluno e utilizei a Gramática da Transitividade, da
Gramática Sistêmico-Funcional como suporte de análise lingüística.
A Gramática da Transitividade, como apontada por Romero (2004), permite que
possamos analisar os significados construídos pelas escolhas realizadas pelo falante, os quais
possibilitam perceber como o mundo é sentido, percebido e experienciado por ele. A
sentença, assim, organiza-se de modo a mostrar como essa realidade é encarada pelo falante.
Portanto, a análise dos participantes, dos processos e das circunstâncias, permitiu formar as
representações da cultura brasileira e do brasileiro construídas na interação.
O quadro a seguir resume os procedimentos de análise adotados para responder às
perguntas de pesquisa:
Pergunta de pesquisa Procedimentos de análise Embasamento teórico
1.Que teorias de linguagem
subjazem a prática da
professora?
Análise dos conceitos de
linguagem presentes nos
recortes culturais das aulas.
Teorias de Linguagem
2. Que representações da
cultura brasileira e do
brasileiro são construídas na
interação professora-aluno
durante as aulas?
1. Leitura do corpus e
classificação dos aspectos
culturais por categorias
elaboradas com base no
conceito de cultura discutido
na fundamentação teórica.
2. Análise dos participantes,
dos processos e das
circunstâncias nas falas da
professora e do aluno.
Linguagem
Cultura
Cultura e Linguagem
Identidade
Ensino de Língua Estrangeira
Quadro 2 - Procedimentos de análise
Tendo em vista que o objetivo deste trabalho é analisar e avaliar, segundo a
perspectiva crítico-reflexiva, como trato a questão cultura e linguagem em aula de PLE, a
reflexão faz-se presente em todo o seu desenvolvimento. Assim, toda esta investigação é
considerada auto-reflexiva e crítica.
Conforme exposto na fundamentação teórica, Smyth (1992 apud MAGALHÃES
1998; LIBERALI, MAGALHÃES e ROMERO, 2003; LIBERALI, 2004) propõe o
desenvolvimento de quatro ações para que o processo de reflexão ocorra:
(a) Descrever: é ver o que faço. A coleta de dados e a respectiva preparação foram
orientadas pelas perguntas de pesquisa de cunho descritivo.
(b) Informar: é ver o significado de minhas ações. Nesta ação, recorri às teorias que
serviram de base de análise para este trabalho: cultura, linguagem, ensino-aprendizagem, para
verificar que princípios perpassam minha ação (seleção de material e interação professora-
aluno).
(c) Confrontar: é ver que interesses embasam minhas ações. Fundamentando-me nas
teorias, iniciei um questionamento mais amplo, no sentido de refletir sobre as conseqüências
que minhas ações trazem para mim e para o aluno. (Que visão de cultura brasileira e do
brasileiro ajudo a construir? Que conseqüências sociais e políticas minhas ações acarretam?
Que outras vozes se fazem ouvir?).
(d) Reconstruir: é ver que posso agir de forma diferente, constituindo-me por uma
linguagem crítica e reflexiva.
Todo esse processo – descrever, informar, confrontar – possibilitará a reflexão crítica a
respeito de como as representações de cultura brasileira e do brasileiro são construídas e de
que forma minhas ações contribuem ou não para um olhar mais tolerante e respeitoso entre
culturas; e como a linguagem atua nessa construção.
Acredito que esses questionamentos poderão me levar à reconstrução de minha própria
prática, de meus valores, reflexões que farei nas Considerações Finais.
Terminada a exposição da parte metodológica deste trabalho, passarei, a seguir, à
apresentação, análise e discussão dos dados.
3 APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
Neste capítulo, apresento e discuto os resultados da análise do corpus que constitui
esta pesquisa, no intuito de responder às seguintes perguntas:
1. Que teorias de linguagem subjazem à prática da professora?
2. Que representações da cultura brasileira e do brasileiro são construídas na
interação professora-aluno durante as aulas?
Inicio, no item 3.1, com a análise e discussão dos resultados das teorias de linguagem
que subjazem minha prática nos quatro diários anexos, visando responder à primeira pergunta
de pesquisa. Num segundo momento, item 3.2, analiso as representações da cultura brasileira
e do brasileiro construídas na interação entre mim e o aluno em sala de aula, com base nos
recortes culturais feitos das três aulas dadas, no intuito de responder à segunda pergunta de
pesquisa
A Gramática Sistêmico-Funcional será utilizada como suporte da análise lingüística.
Procedo à análise dos processos, dos participantes e das circunstâncias do corpus deste
trabalho, visto que a Transitividade permite identificar representações, valores, que são
construídos por meio da linguagem.
Acredito também ser importante, antes de iniciar a análise, discorrer sobre os
processos verbais presentes no corpus analisado. Apesar de os processos dizer, falar,
perguntar, ditar, etc. poderem ser classificados como processos verbais, considero que essas
ações verbais descrevem, primordialmente, ações no contexto específico de aula de língua
estrangeira, pois relacionam-se a uma ação material, isto é, a própria ação realizada em sala
de aula que é “vista” pelo aluno, como nos exemplos: Comecei perguntando que roupas ela
coloca na mala [...]; Depois falamos sobre biquíni [...]; Então falei que temos outros nomes
[...]; (eu) disse que aqui em São Paulo nós comemos [...]; Eu disse que arroz e feijão são a
base de norte a sul ... , podendo, portanto, se classificarem como processos materiais.
3.1 AS TEORIAS DE LINGUAGEM QUE SUBJAZEM À PRÁTICA DA
PROFESSORA
Entende-se que a forma como a linguagem é concebida determina nossas ações
educacionais (LEFFA, 2003). Como o objetivo deste trabalho é verificar como trato a questão
cultura e linguagem em sala de aula de PLE, faz-se necessário analisar que teorias de
linguagem prevalecem em minhas ações.
Assim, apoio-me na GSF para analisar os objetivos e minhas ações relatados nos
quatro diários anexos, visando verificar que tipos de linguagem são privilegiados em sala
aula, e poder responder à primeira pergunta de pesquisa: Que teorias de linguagem
subjazem à prática da professora?
No item a seguir, 3.1.1 analiso os objetivos, e no item 3.1.2, a descrição de minhas
ações em sala de aula nos quatro diários que constituem o corpus deste trabalho.
3.1.1 Análise dos objetivos
Os objetivos relatados nos quatro diários são: (a) levantar vocabulário sobre vestuário
e discutir sobre os costumes brasileiros com relação à forma de se vestirem ; (b) discutir sobre
a função da escola e dos pais; (c) apresentar e praticar o pretérito perfeito do indicativo; e (d)
apresentar vocabulário sobre alimentos e discutir sobre diferenças culturais com relação a
hábitos alimentares.
Observa-se, neles, a presença de processos materiais, como praticar, levantar, e
mental, discutir, e de seus participantes, por exemplo, vocabulário, pretérito perfeito, além de
circunstâncias de assunto, como sobre diferenças culturais, sobre a função da escola e dos
pais.
Como descrito na fundamentação teórica, os processos materiais são os processos do
FAZER. Os participantes envolvidos neles são: ator, o que realiza a ação, e meta, o
participante a quem o processo se dirige, o que é modificado por ele. Já os processos mentais
são os de SENTIR e expressam o que as pessoas sentem, pensam. São divididos em três tipos:
de cognição (achar, acreditar, pensar), de afeição (gostar, amar, adorar...) e de percepção
(perceber, ver, observar...). O participante que realiza o processo mental é chamado de
Experienciador, e o que é sentido ou percebido por ele recebe o nome de Fenômeno. Ambos
os processos podem vir acompanhados de circunstâncias, cuja função é adicionar informações
a eles e podem indicar tempo, localização, causa, instrumento, etc.
Vejamos os processos materiais, no quadro a seguir. Mediante sua análise, é possível
observar a ação unilateral presente nos objetivos indicados nos diários analisados. Pode-se
argumentar que é unilateral, porque os objetivos relatados nos diários servem de roteiro para
as ações didáticas a serem desenvolvidas em aula.
Participante:ator Processo material Participante: meta Circunstâncias
(eu) Apresentar vocabulário sobre alimentos.
(eu) Apresentar
o pretérito perfeito do
indicativo.
(eu) Praticar
o pretérito perfeito do
indicativo
(eu) Levantar
vocabulário sobre vestuário.
Quadro 3 - Objetivos: processos materiais, participantes e circunstâncias
Os processos apresentar, praticar e levantar, apesar de poderem ser categorizados
como processos verbais, representam as ações realizadas por mim. Apresentar revela a minha
intenção de exercer um papel ativo, diante de um público passivo, o aluno. Na análise dos
participantes: meta, é possível verificar que o foco de ação dos referidos processos materiais
está no léxico e na conjugação verbal, a saber, vocabulário e pretérito perfeito do indicativo.
Isso pode denotar que minha visão de linguagem está ancorada no léxico e em estruturas
gramaticais. Em outras palavras, com base nesses dados, pode-se inferir que, para mim, o
aprendizado de uma língua baseia-se no conhecimento desses conteúdos, uma vez que,
retomando o discutido na Fundamentação Teórica, o foco na teoria estruturalista de
linguagem encontra-se nas unidades fonológicas, gramaticais e lexicais (RICHARDS;
ROGERS, 2001), e que o ensino o ensino ancorado nessa teoria se preocupa mais com a
forma do que com o conteúdo (LEFFA, 2003).
É interessante observar, no entanto, que levantar vocabulário pode indicar a interação
entre professora-aluno, pois este contribui com seu conhecimento prévio para a organização
de uma lista de palavras. Essa interação pode ser verificada no diário: [eu-professora]
comecei perguntando que roupas ela coloca na mala quando vai à praia. O processo
perguntar
subtende uma interação entre duas ou mais pessoas, nesse exemplo, professora e
aluna. A oração que roupas ela coloca na mala quando vai à praia possibilita que a aluna
pense sobre a língua, busque referências em sua língua materna sobre o vocabulário adequado
ao contexto, indicado pela circunstância quando vai à praia, para responder à questão feita
por mim. Assim, levantar
vocabulário permite que o conhecimento seja construído na
interação, o que pode indicar uma teoria sociointeracional da linguagem (RICHARDS;
ROGERS, 2001).
Já na análise dos processos mentais, que, segundo Halliday, se relacionam ao mundo
interior do ser humano e expressam o que as pessoas sentem e pensam, pode-se perceber
também um direcionamento dos objetivos à teoria sociointeracional de linguagem.
Os exemplos abaixo permitem observar os processos mentais e as circunstâncias
presentes em três dos quatro objetivos dos diários analisados.
(1) Apresentar vocabulário e discutir sobre diferenças culturais com relação a
hábitos alimentares.
(2) Discutir
sobre a função da escola e dos pais.
(3) Levantar vocabulário sobre vestuário e discutir
sobre os costumes brasileiros com
relação à forma de vestir.
O processo discutir , exemplos (1), (2) e (3), dá margem a observar que a linguagem é
vista como instrumento de interação social e de construção de conhecimento, uma vez que
esse processo expressa a ação de defender pontos de vista, isto é, o que é pensado e sentido
sobre algo: sobre diferenças culturais com relação a hábitos alimentares, sobre a função da
escola e dos pais, sobre os costumes brasileiros com relação à forma de vestir, com alguém,
professora e aluno. Tal interpretação mostra-se coerente à observação de Christie (2005) que
afirma que, por meio da linguagem, relacionamo-nos com outras pessoas, construímos um
sentido do mundo e moldamos significados e valores. Além disso, as circunstâncias
relacionadas ao processo mental discutir
, que são: diferenças culturais com relação a hábitos
alimentares; os costumes brasileiros com relação à forma de vestir, podem revelar uma
intenção, por minha parte, de expor a aluna a novas formas de ver o mundo presentes na
linguagem. Rego (1995, p.55), com base em Vygotsky, elucida que a linguagem “permite o
estabelecimento de significados compartilhados por determinados grupos culturais, a
percepção e interpretação dos objetos, eventos e situações do mundo circundante”, e que o
indivíduo, na interação com o meio social e cultural, rompe conceitos, se apropria de novos,
se desestrutura e se reorganiza, desenvolvendo-se. Assim, o contato com outra língua e,
conseqüentemente, com outra cultura, pode levar o aluno a rever sua própria cultura. Ou seja,
não se está aprendendo apenas um novo código para comunicação, mas a aprendizagem,
reforçada pela discussão das visões de cultura, também leva consigo – e de modo
indissociável – a transformação de visões e sentidos.
No próximo item, analiso minhas ações descritas nos diários.
3.1.2 Análise de minhas ações
Tendo como objetivo verificar as concepções de linguagem que subjazem às minhas
ações, analiso, nesta seção, a descrição de minhas ações presentes nos diários.
Nos diários, a análise lingüística das orações que indicam minhas ações em sala de
aula, permite observar a presença de processos materiais, verbais e relacionais, e
circunstâncias que revelam as teorias de linguagem presentes em minha prática.
É importante, antes de iniciar, retomar a discussão feita no início deste capítulo, com
relação aos processos verbais dizer, falar e perguntar. Repito que, apesar de poderem ser
classificados como processos verbais, considero que essas ações verbais, quando descrevem
ações realizadas por mim em aula de ensino de língua estrangeira, relacionam-se ao meu
fazer, isto é, à própria ação realizada em sala de aula e percebida pelo aluno, e como tal
devem ser analisados como processos materiais.
Conforme descrito na fundamentação teórica, os processos materiais são os processos
do FAZER. Os participantes envolvidos neles são: ator, o que realiza a ação, e meta, o
participante a quem o processo se dirige, o que é modificado por ele. Mediante a análise dos
processos e dos participantes:meta, dos exemplos abaixo, é possível observar o foco de
minhas ações em sala de aula.
(4) Depois do levantamento do vocabulário, (eu) passei à correção.
(5) (eu) passei à correção, corrigindo pronúncia, vocabulário, estruturas de frase.
(6) Depois da leitura, (eu) fiz correções de pronúncia, levantamento de vocabulário
novo.
(7) Depois dessa conversa, (eu) fiz as correções: pronúncia, vocabulário e
conjugação verbal.
(8) (eu) Inicio dando modelos de conjugações verbais.
(9) Depois de (eu) dar os modelos em todas as pessoas pronominais, nas três
conjugações, (eu) comecei a fazer algumas perguntas um pouco mais dirigidas
[...] A que horas você acordou?...
(10) E antes de retornar às questões para fixação dos verbos, (eu) aproveitei para fazer
correções de pronúncia, de vocabulário, de gênero.
(11) No final da aula, (eu) fiz a sistematização das conjugações.
(12) (eu) Ditei algumas palavras.
(13) Depois do ditado, pedi a ele para ler a relação de palavras, (eu) corrigi
pronúncia, ortografia.
(14) Pedi, também, que ele me explicasse o significado das palavras conhecidas por
ele.
(15) Depois (eu) comecei a explicar o que era namorado, pintado, dourado
...
(16) Continuei explicando o que as pessoas comiam nessas refeições, para trazer
vocabulário.
(17) Conforme ia falando sobre os pratos, eu ia corrigindo vocabulário e pronúncia.
(18) Para completar o vocabulário, falamos sobre as frutas de que ele mais gosta.
Com a análise dos participantes:meta, exemplos (5), (6), (8), (9), (10), (11), (12), (13),
(14), (16), (17) e (18), e focando esses dados, pode-se verificar que, para mim, o aprendizado
de língua baseia-se na assimilação de vocabulário, conjugações verbais e pronúncia adequada.
Além disso, pode-se observar que os alunos não devem só aprender palavras, verbos,
fonemas, como também devem fazê-lo corretamente, como se percebe no participante:meta
correção, exemplos (4), (5), (6), (7) e (8) e no processo material corrigir, exemplos (5), (13) e
(17). O foco em palavras, pronúncia e conjugações verbais, observado nos exemplos acima, é
apontado por Richards e Rogers (2001) como resultado de ações que se baseiam em uma
teoria estruturalista de linguagem. Segundo esses autores, essa teoria concebe a linguagem
como um sistema de elementos estruturais que se relacionam na construção do significado. O
conhecimento, assim, baseia-se no seu aprendizado. É possível refletir tamm que, quando
minhas ações estão sustentadas por essa teoria, não se percebe a interação entre mim e o
aluno. Isso pode ser observado nos exemplos (4) a (13), (15) e (17), em que o uso do
participante:ator eu, indicado pela desinência número-pessoal dos processos materiais,
expressa ação unilateral.
Segundo Leffa (2003), o ensino ancorado nessa teoria de linguagem preocupa-se mais
com a forma do que com o conteúdo, o que pode ser observado no processo material dar e em
seu participante:meta modelo, exemplos (5) e (6): Inicio dando modelos de conjugações
verbais e Depois de dar os modelos em todas as pessoas pronominais, das três conjugações,
comecei a...
É importante ressaltar, contudo, que minhas ações indicam também interação entre
mim e aluno, exemplos abaixo.
(19) Comecei perguntando que roupas ela coloca na mala quando vai à praia. Ela
falou sobre as roupas das crianças, dela e do marido [...] e fez o comentário de
que o marido nunca usaria sunga, porque no seu país as pessoas iriam gozar.
(20) Comecei a fazer algumas perguntas sobre o texto e outras relacionadas ao tema:
“Que critérios foram adotados por você ao escolher a escola de seus filhos?” [...]
Ela respondeu [...]
(21) Também perguntei sobre a relação dos pais com a escola graduada, e ela
respondeu: É muito aberta.
(22) Depois de dar os modelos em todas as pessoas pronominais, nas três conjugações,
comecei a fazer perguntas mais dirigidas.
(23) Comecei a perguntar à aluna: A que horas você acordou?...
(24) Depois perguntei a ele sobre como tinha sido seu dia no trabalho.[...] Ele
respondeu: “Eu almorcei com meu chefe e alguns colegas” [...]
(25) Com relação ao almoço, perguntei se ele sabia qual era a base da comida
brasileira. Ele disse que arroz e feijão.
(26) ... e perguntei: “Quais são as principais refeições na Holanda?”. Ele me disse que
também eram três.
(27) Perguntei o que as pessoas comem em cada uma delas?Ele respondeu que no café
da manhã, os holandeses normalmente comem uma fatia de pão..
(28) Então, perguntei sobre os costumes na Holanda com relação a dias da semana e
as festas, como Natal, Páscoa, Reveillon.
(29) Perguntei novamente sobre a Holanda...
Nesses exemplos, o processo material perguntar
4
expressa a interação, visto que
pressupõe sempre uma resposta. Segundo Richards e Rogers (2001), pela perspectiva
sociointeracional, a linguagem funciona como instrumento para criar e manter relações
interpessoais, como meio de relacionamento entre pessoas.
________________________
4
A categorização do processo verbal perguntar com processo material foi discutida no item 3.
É interessante observar, nos exemplos abaixo, como o foco no léxico e aspectos
culturais se mesclam no ensino de PLE.
(30) Depois falamos sobre os biquínis...
(31) Depois que o almoço terminou, voltei ao tema da aula (roupas)...
(32) ...fazendo um paralelo entre a forma de se vestir aqui e lá (Argentina).
(33) Ao explicar o significado das palavras,...
(34) ... aproveitei para inserir alguns costumes: usar carambola para enfeitar pratos,
por causa de seu formato...
(35) Depois do vocabulário (sobre alimentos)...
(36) ... passei para os aspectos culturais do Brasil e da Holanda com relação à
alimentação. Disse que no Brasil, basicamente, temos três refeições diárias [...]
Continuei explicando o que as pessoas comiam nessas refeições para trazer
vocabulário. [...]
Nos exemplos (30), (31) e (33), o uso dos participantes:meta biquínis
, modelos, tema
da aula (roupas), significado das palavras, expressam foco no léxico. A referência aos
aspectos culturais é observada nos participantes:meta nos exemplos (32), (34) e (36) como:
paralelo entre a forma de vestir
, costumes e os aspectos culturais do Brasil e da Holanda com
relação à alimentação.
Além disso, é possível constatar, nos exemplos (32) e (36), que procuro fazer uma
aproximação cultural entre as culturas de origem e alvo, tendo como ponto de aproximação o
léxico trabalhado em aula. A relação intercultural pode ser observada também no uso das
circunstâncias de lugar aqui e lá, no exemplo (36), e Brasil e Holanda, no exemplo (36).
Esses exemplos demonstram que a teoria estruturalista de linguagem funciona como
um ativador da interação social. Pode-se observar também uma preocupação de minha parte
de estabelecer um paralelo entre a cultura-alvo, neste trabalho a brasileira, e a cultura de
origem do aluno, mesmo que falar sobre aspectos culturais funcione como meio para o
aprendizado do léxico.
Por isso, é possível considerar que a interação entre mim e o aluno ocorre e que nela
significados culturais são construídos. Dessa forma, pode-se dizer que atuo como agente
metacognitivo, orientando o processo de aprendizagem do aluno. Vygotsky (1998) refere-se a
isso, quando fala que o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores se processa na
interação entre os indivíduos e o meio social, mediado pela linguagem. E que, no processo de
construção do conhecimento, o professor age como o par mais apto que guia e orienta a
atividade do aluno.
Concluindo, pode-se constatar na análise dos objetivos e nos episódios de sala de aula
que duas teorias de linguagem subjazem à minha prática: (a) teoria estruturalista, percebida
por meio de minha ação unilateral no ensino de palavras, elementos gramaticais e fonológicos
descontextualizados; e (b) teoria sociointeracional, ao usar a linguagem como instrumento de
interação entre mim e o aluno, e possibilitar, nesta, a construção de significados.
Convém notar que, no processo sociointeracional de construção de significados, três
tipos de conhecimentos são ativados conjuntamente, entre eles o conhecimento sistêmico, que
se refere aos conhecimentos léxicos-semânticos, morfológicos, sintáticos e fonético-
fonológicos. Os outros dois são: o de organização textual, que alude ao conhecimento das
“convenções” de como as informações devem ser organizadas em textos orais e escritos nas
interações; e o de mundo, que faz menção ao conhecimento que as pessoas já possuem do
mundo. Esses conhecimentos, com os quais concordo, são julgados relevantes pelos PCNs-
LE, que orientam o ensino de línguas no Brasil.
Na análise de minhas ações descritas nos diários, ressaltaram-se os conhecimentos
sistêmico e de mundo, no paralelo entre as duas culturas, intercalando-se. E embora o
conhecimento da organização textual não tenha sido trabalhado sistematicamente, ele foi
ativado, a fim de que o aluno pudesse organizar seu pensamento em textos orais.
No item a seguir, analiso os recortes culturais das três aulas que constituem,
juntamente com os diários, o corpus deste trabalho.
3.2. REPRESENTAÇOES DA CULTURA BRASILERA E DO BRASILEIRO
CONSTRUÍDAS NA INTERAÇÃO PROFESSORA-ALUNO DURANTE AS AULAS
Neste item, analiso recortes de três aulas de PLE, dadas a três participantes
5
, a fim de
responder à segunda pergunta de pesquisa: Que representações da cultura brasileira e do
brasileiro são construídas na interação professora-aluno durante as aulas?
Considero relevante apresentar os temas desenvolvidos nas três aulas, cujos recortes
compõem o corpus deste trabalho, e o material utilizado, pois eles orientam meu discurso em
sala de aula. O quadro abaixo apresenta as aulas, os temas e os materiais utilizados.
Aulas Temas das aulas Material utilizado Participante
Aula 1 Roupas Lista com vocabulário de
roupas, acessórios e
calçados utilizados no
verão e no inverno, para ir
ao clube, à praia, ao
trabalho, a festas (entregue
no final da aula).
Anita
Aula 2 Dificuldades que um
estrangeiro pode
encontrar para viver no
Brasil
Evita
________________________
5
Os participantes desta pesquisa foram apresentados no capítulo 2, Metodologia.
Aula 3 Discussão sobre
identidade
Texto: Duas décadas de
Brasil
Peter
Quadro 4 - Síntese de temas e materiais utilizados nas aulas analisadas.
No processo de análise das três aulas, pude observar, como se verá adiante, que para
desenvolver o tema da aula, faço perguntas ao aluno que aproximam a cultura de origem dele
à cultura-alvo, a brasileira. Essas perguntas versam sobre alguns aspectos culturais, como
comportamento e costumes. Outros aspectos aparecem no desenvolvimento da aula, na
interação entre mim e aluno, a partir de comentários do aluno ou de explicação sobre
vocabulário. As representações de cultura brasileira e do brasileiro são, assim, construídas na
interação ao longo da aula.
Para responder à pergunta de pesquisa acima, analiso em cada aula, as perguntas feitas
por mim, com o intuito de verificar sob que aspectos culturais as representações de cultura
brasileira e do brasileiro são construídas, as respostas do aluno, além de comentários meus e
dos alunos no decorrer das aulas para, finalmente, chegar às representações da cultura
brasileira e do brasileiro construídas na interação entre mim e o aluno.
Com relação à classificação dos aspectos culturais, baseei-me no conceito de cultura
apontado por Laraia (2006), na fundamentação teórica, para quem “cultura é um todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.”, conforme
já exposto nos procedimentos de análise.
Optei por não classificar identidade como categoria, por acreditar que esta perpassa
todas as manifestações culturais, mantendo com elas uma relação intrínseca, uma vez que
Silva (2000) e Hall (2005) consideram que a linguagem atua na construção da identidade.
Para eles, esta é criada nas e pelas relações socioculturais, “por meio de atos de linguagem”.
A linguagem, para Vygotsky (1998), é um instrumento de mediação simbólica entre os
indivíduos e é ela que “permite o estabelecimento de significados compartilhados por
determinados grupos culturais, a percepção e interpretação dos objetos, eventos e situações do
mundo circundante” (REGO, 1995, p. 55). Portanto, não creio que identidade deva entrar
como mais um aspecto cultural, tendo em vista que ela é construída na e pela linguagem.
Assim, os padrões de comportamento, as normas de conduta, o que pode ser dito, de que
forma, a quem e quando constroem a identidade de um povo.
No item a seguir, analiso as representações de cultura brasileira e do brasileiro
construídas na interação entre mim e aluna, nos recortes feitos da Aula 1.
3.2.1 Análise da aula 1
Nesta seção, os dados que serão analisados foram recortados de aula dada à aluna Anita,
argentina. O tema programado por mim, para a aula, versa sobre “roupas”. A lista com
vocabulário de roupas, acessórios e calçados utilizados foi entregue no final da aula.
Foram analisadas um total de 41 orações, sendo 17 minhas e 24 da aluna. No processo
de análise dessas orações, pude observar o uso de processos materiais e relacionais.
Vejamos os processos utilizados em meu discurso, professora. Inicio com a análise das
perguntas feitas por mim à aluna, no começo da aula. Na análise dessas perguntas, verifica-se
o uso de dois processos: material e relacional.
Os processos materiais indicam que as questões feitas por mim discorrem sobre
costumes, conforme exemplos abaixo.
(37) Professora: Seu marido usa sunga?
Aluna: Não. Usa calção de banho.
(38) Professora: O que os argentinos e as argentinas usam para ir à praia? É muito
diferente daqui o tamanho dos biquínis, as cores, os modelos?
Aluna: Não o tamanho. Mas eu vejo que aqui usam a calcinha bem metida no
bumbum.
(39) Professora: Você acha que a forma de vestir aqui é muito semelhante à forma que
vocês se vestem lá?
Aluna: Eu acho que as mulheres que trabalham numa empresa vestem igual...
(40) Professora: E (como se vestem) informalmente?
Aluna: Informalmente, eu acho que aqui usam mais apertada a roupa, mais
decote. A regata é mais apertada.
(41) Professora: Mas as alças, vocês amarram frente única ou sutiã?
Aluna: Como você quiser...
Nesses exemplos, é possível observar que utilizei os processos materiais, chamados
processos do FAZER: usar, exemplos (37) e (38), vestir , (39) e (40), e amarrar (41) para
expressar ações que indicam hábitos, costumes utilizados pela brasileira em contexto
informal. A combinação de verbos no presente do indicativo com processos de ação reforça a
ação repetida e regular através do tempo (LOCK, 1996, p. 152).
A análise dos participantes:meta: sunga e alças, dos processos usar e amarrar,
exemplos (37) e (39), revelam que os aspectos culturais se referem a formas de vestir roupas.
Além disso, o próprio processo material vestir
, exemplos (40) e (41), remete a esse costume.
As circunstâncias à praia
, exemplo (38) e informalmente, exemplo (40), indicam que os
costumes com relação à forma de vestir são vistos a partir de um contexto informal.
Os participantes:ator os argentinos e as argentinas, exemplos (38), vocês (as
argentinas), (39) e (41) revelam que o foco das questões está nos usos e costumes das
argentinas, - nacionalidade da aluna, e que a partir deles estabeleço a interação inicial em sala
de aula. Vale ressaltar que analiso os participantes vocês e as mulheres como argentinas,
porque o contexto assim o permite. Pode-se, então, considerar que a discussão sobre os
costumes com relação a se vestir, parte da cultura de origem da aluna, para que, por meio do
que é conhecido, ela possa entrar em contato com outras formas de ver o mundo. Meireles
(2002) explica que na concepção de ensino intercultural, o ensino deve se basear em fatos da
língua e cultura do aluno para interpretar seus correspondentes em outras línguas e culturas.
Com relação ao processo relacional, analisado em minhas perguntas, pude observar
que os atributos estabelecem uma relação de comparação, que pode ser vista nos exemplos
abaixo.
(42) Professora: O que os argentinos e as argentinas usam para ir à praia? É muito
diferente daqui o tamanho dos biquínis, as cores, os modelos?
Aluna: Não o tamanho. Não o tamanho. Mas aqui eu vejo muito que usam a
calcinha bem metida no bumbum.
(43) Professora: A forma de se vestir aqui é muito semelhante à forma que vocês se
vestem lá
? Ou é diferente?
Aluna: Eu acho que as mulheres que trabalham numa empresa vestem igual.
(44) Professora: E as partes de cima dos biquínis, elas são muito cavadas, tomara-que-
cai?
Aluna: Tomara-que-caia?
Segundo a GSF, os processos relacionais estabelecem uma relação entre dois
elementos. Essa relação é considerada atributiva quando a um elemento, chamado de
portador, atribui-se uma qualidade ou classificação, chamada de atributo. Os exemplos acima
mostram o uso dos atributos: diferente
, exemplo (42), semelhante e diferente, exemplo (43), e
muito cavadas
, tomara-que-caia, exemplo (44), apontam uma relação atributiva comparativa,
na qual busco mais pontos de divergências do que de semelhanças entre as duas culturas. Os
lugares que indicam os pontos de comparação são expressos pelo uso das circunstâncias de
lugar: daqui (que indica Brasil), exemplo (42) aqui (Brasil) e lá (Argentina), exemplo (43).
Conforme o exposto, é possível avaliar que as perguntas feitas por mim, na aula 1,
apontam o tema desenvolvido: aspectos culturais - costumes da forma de vestir, aproximando
comparativamente os costumes entre o país de origem da aluna, Argentina, e o país-alvo,
Brasil. A concepção de ensino intercultural considera que a aproximação entre duas ou mais
culturas permite ao aluno buscar um entendimento da cultura-alvo, mas também de sua
própria cultura (BRITO, 1999).
Na análise dos atributos de minhas perguntas, pude perceber que na aproximação,
procuro marcar mais a diferença cultural, estabelecendo um distanciamento. Segundo
Meireles (2002), a aproximação não deve levar em consideração somente o contraste, as
diferenças, mas a discussão e a compreensão de que existem outras possibilidades de ver o
mundo, que se expressam na cultura de um povo.
No discurso da aluna, na análise de suas respostas, pude observar que as circunstâncias
de modo constroem a visão de sensualidade e desinibição com relação à exposição do corpo,
atribuídas às brasileiras. As circunstâncias, segundo a GSF, desenvolvem a função de
adicionar informações aos processos, como tempo, modo, lugar, etc. Os exemplos a seguir
fundamentam essa afirmação.
Professora: O que os argentinos e as argentinas usam para ir à praia? É muito
diferente daqui o tamanho dos biquínis, cores, os modelos?
(45) Aluna: Não o tamanho. Mas aqui eu vejo muito que usam a calcinha bem metida
no bumbum.
Professora: E (como se vestem) informalmente?
(46) Aluna: Informalmente, eu acho que aqui usam mais apertada a roupa, mais
decotes. A regata é mais apertada. [...] Umas usam roupas bem ajustadas.
O uso das circunstâncias de modo bem metida, exemplo (45), mais apertada, mais
decotes, mais apertada, bem ajustadas, exemplo (46), permite considerar que, para a aluna, os
costumes dos brasileiros de se vestirem, em situações informais indicadas pelas
circunstâncias: à praia e informalmente, revelam sensualidade, desinibição, uma vez que
expõem mais o corpo. A circunstância de lugar aqui (Brasil) indica o lugar onde se percebe o
comportamento da brasileira.
É possível verificar também a atribuição de carga positiva à forma de os brasileiros se
vestirem na praia, feitos por mim e pela aluna,Veja-se os exemplos abaixo:
Professora: Brasileiros usam sunga tranqüilamente.
Aluna: Aqui é normal?
(47) Professora: (é) Normalíssimo.
Aluna: Se você usa sunga na Argentina, todo mundo pode rir.
(48) Aluna: Você vai à praia... Aqui se usa (é) muito mais relaxado, normal, uma
pessoa bem gorda também tá com biquíni. Não tem nenhuma... inibição. Aqui são
mais relaxados, melhor.
O atributo normalíssimo, exemplo (47), pode atribuir uma carga positiva ao
comportamento do brasileiro, além de reforçar-lhe o caráter de relaxado. O interessante é
notar que os atributos mais relaxado
, normal e nenhuma inibição usados pela aluna, exemplo
(48), também conferem ao jeito de se vestir do brasileiro, na praia, carga positiva, reforçada
pela circunstância melhor
. As circunstâncias de lugar: aqui e na praia indicam esse contexto.
Pode-se perceber que, na interação entre mim e a aluna, construo em meu discurso uma visão
da cultura brasileira e do brasileiro. Nos exemplos acima, minha visão reforça a da aluna, qual
seja, a de que os brasileiros são mais relaxados.
Diante da análise apresentada, é possível considerar que os usos dos atributos
utilizados pela aluna e por mim atuam na construção da visão de sensualidade, de exposição
do corpo, em situações informais, pois não nos sentimos inibidos em mostrá-lo.
A discussão sobre os resultados apresentados será feita no final da apresentação dos
resultados das três aulas..
A seguir, passo à análise da Aula 2.
3.2.2 Análise da aula 2
O tema da aula 2, programado por mim anteriormente, é “Dificuldades que um
estrangeiro pode encontrar para viver no Brasil”. A aula foi dada à aluna Evita, argentina, e
nem um material didático foi utilizado.
Nesta aula, analiso, no discurso do aluno e no meu, as representações construídas em
sala de aula. Foram analisadas no total 73 orações, sendo 13 minhas e 60 da aluna. No
processo de análise dessas orações, pude observar o uso mais freqüente de processos materiais
e relacionais.
Inicio com a análise da primeira pergunta feita por mim, no começo da aula.
(49) Professora: Que informações são importantes que outros argentinos saibam para
que possam viver bem aqui?
No exemplo (49), é necessário que se divida a oração em: (a) que informações são
importantes, (b) que outros estrangeiros saibam (as informações), e (c) para que possam
viver bem em São Paulo?. A oração para que possam viver bem aqui? indica a finalidade das
informações que serão dadas pela aluna: viver e o lugar: aqui. A circunstância de modo: bem
mostra que as informações devem possibilitar o bem-estar do estrangeiro que aqui vem morar.
O uso do atributivo importante, oração (a), expressa que as respostas da aluna trarão o que ela
atribui ser importante. Assim, é possível considerar que suas respostas podem estar ancoradas
em sua experiência de estar vivendo em São Paulo, porque a circunstância de lugar: aqui não
expressa um local definido. O processo mental saber, relacionado ao mundo interior, indica
que suas informações devem levar os estrangeiros ao entendimento do que ela julga ser
importante.
Nas respostas e comentários da aluna, é possível verificar que o uso dos processos
materiais e participantes:ator referem-se ao aspecto cultural comportamento dos brasileiros.
Exemplos abaixo.
(50) Aluna: É melhor morar perto dos colégios, do trabalho.
(51) Aluna: É melhor tomar água mineral.
(52) Aluna: Os brasileiros são muito informais. Eles (os brasileiros) convidam para
muitos programas...
(53) Aluna: Os brasileiros adoram as crianças e (eles) vão parar você sempre na rua
pra falar alguma coisa.
(54) Aluna: As vendedoras ficam no redor das crianças, mais do que em você.
(55) Aluna: Se ele diz “eu te ligo” nunca...tem que ficar tranqüilo que eles (os
brasileiros) não vão ligar.
(56) Aluna: Eu acho que aqui presenteiam mais.
Conforme já mencionado, os processos materiais representam ações do mundo físico
que podem ser vistas. Nos exemplos (50) a (56), é possível observar que a aluna usou os
processos materiais morar, tomar, convidar, parar, ficar, ligar, presentear para expressar ações
que representam comportamento de um indivíduo, seu fazer. Nos exemplos (52), (53) e (55),
os participantes:ator eles (brasileiros), brasileiros (oculto na oração), e eles (brasileiros),
indicam quem realiza a ação.
Fundamentada em J. L. dos Santos (2006), para quem uma das concepções básicas do
conceito de cultura se refere a todos os aspectos da vida social, isto é, à forma como os
grupos concebem e organizam a vida – aspecto mais relacionado ao comportamento -,
considero comportamento um aspecto cultural e passo a analisar as representações de cultura
brasileira e do brasileiro que são construídas a partir dele.
É interessante observar que os atributos dados aos brasileiros foram construídos por
meio de interpretação da interação língua e comportamento.
(57) Aluna: Os brasileiros são alto astral. Você fala “tudo bem?”, ele fala “tudo
bem
”. Ninguém está esperando que você fale: “Ah, você não sabe o que
aconteceu.”
(58) Aluna: Os brasileiros são muito informais... Quando o brasileiro fala: “Ah! eu
vou te convidar
pra...”, eles não concretizam.
(59) Aluna: Os brasileiros são muito informais... Se ele diz “eu te ligo”, nunca... tem
que ficar tranqüila que eles não vão ligar.
Professora: E com relação à prestação de serviços?
(60) Aluna: Se ele diz “Vou às dez”, você tem que deixar toda a manhã, pelo menos
livre esperando. Às dez não é às dez.
No exemplo (57), pode-se perceber que o atributo bem, usado na ação verbal do
brasileiro que indica cumprimento: “Tudo bem”, expressa à aluna a característica de
otimismo, de positividade dos brasileiros, o que a leva a considerá-los alto astral, atributivo
utilizado.
É possível verificar, nos exemplos (58) e (59), que o atributo muito informais, foi
construído a partir da interpretação de ações verbais que não correspondem ao que expressam
literalmente. Isso pode ser visto nos exemplos (58), (59) e (60). Nos exemplos (58) e (59),
ações materiais se contrapõem. Os processos materiais vou convidar
, exemplo (58), e ligar,
exemplo (59), revelam um comprometimento de ação futura que se contrapõe a sua não-
realização, expressa pela circunstância de negação não
dos processos materiais concretizar e
ligar, e contextualizam a situação de interpretação: convites. Esse não-cumprimento do
prometido pode ser interpretado como falta de comprometimento, de seriedade. Diante disso,
é possível considerar que a informalidade, atribuída por ela, se expressa na falta de
cumprimento, de realização no que o brasileiro se propõe a fazer, tanto nas relações sociais
quanto profissionais.
A relação de identificação expressa no uso do processo relacional ser: “Às dez não é
às dez”, exemplo (35), também reflete a informalidade nesse contexto. Pode-se dizer, assim,
que essa relação de “x” não ser
“x” é responsável pela construção, por parte da aluna, da visão
de informalidade, no sentido de não-cumprimento de algo a que se comprometeu. Essa
informalidade expressa um sentido negativo à forma de ser do brasileiro, com relação à
prestação de serviços, o que pode inferir a falta de profissionalismo. Essa visão negativa não é
discutida por mim com a aluna, no sentido de interpretar esse comportamento a partir de um
contexto sócio-histórico cultural. A falta de discussão por minha parte pode levar à fixação
dessa imagem negativa.
Na análise dos portadores dos processos relacionais: os brasileiros, exemplos (57) a
(59) e dos participantes:ator: os brasileiros, exemplo (59) e ele, exemplos (57), (59) e (60) e
eles, exemplo (58) pode-se observar uma generalização. A discussão sobre isso será feita no
final da análise.
Outra visão do brasileiro foi construída pela aluna a partir da interpretação do
comportamento do brasileiro no trato com as crianças.
(61) Professora: E no trato com as crianças? Como são os brasileiros?
(62) Aluna: Os brasileiros adoram as crianças e vão parar você sempre na rua pra
falar alguma coisa das crianças.
(63) Aluna: As crianças são bem-vindas, até nas lojas... em qualquer lugar são bem-
vindas.
(64) Aluna: Muitas lojas até têm um lugar pra crianças. Mas mesmo as que não têm,
as vendedoras ficam ao redor das crianças mais do que em você.
Mais uma vez, a circunstância de assunto: no trato com as crianças, exemplo (61) é
dada por mim, para contextualizar a interpretação da aluna. No exemplo (62), o uso do
processo mental de afeição: adorar
revela a interpretação da aluna com relação ao trato do
brasileiro com as crianças, pois os processos mentais, segundo a GSF, revelam o mundo
interior, o que se sente, percebe e pensa. A interpretação que a aluna faz das ações dos
brasileiros pode ser observada no uso dos processos materiais parar
, falar
6
e do
participante:existente um lugar pra crianças.
________________________
6
A categorização do processo verbal falar como processo material foi discutido no item 3.
As circunstâncias de assunto alguma coisa das crianças, que complementa o processo
material falar, exemplo (62), expressa que o tema crianças faz parte de nossas conversas; e a
de lugar: ao redor das crianças, processo ficar, (64), denota afetuosidade, pois nos acercamos
delas. Já, as circunstâncias de lugar: na rua, exemplo (62), em qualquer lugar e nas lojas, (63)
indicam o contexto no qual o comportamento é interpretado. O atributo bem-vindas, exemplo
(63) do processo relacional ser, também reflete o carinho, a receptividade com que as crianças
são recebidas.
É interessante constatar que outro aspecto cultural aparece em sala de aula: cultura
erudita. Ele aparece como um parêntese depois de um comentário feito pela aluna. Transcrevo
o trecho no qual ele aparece.
Aluna: Os brasileiros são muito informais... Quando o brasileiro fala: “Ah! eu
vou te convidar pra...”, eles não concretizam. [...]
(65) Professora: Ah! Quando você fala de identidade brasileira, você pensa nesses
estudiosos: Darcy Ribeiro e Sergio Buarque de Hollanda.
(66) Professora: [...]Ele é pai do Chico Buarque de Hollanda.
Aluna: Eu não conheço
Professora: É meu ídolo. Grande compositor... É um marco da música popular
brasileira.
(67) Professora: [...] tem também o Roberto DaMatta. É também um grande estudioso
do Carnaval. O que o Carnaval significa no Brasil. Não é só festa à fantasia e
muita música. Tem um significado muito maior nessa festa.
(68) Professora: [...] e tem o Gilberto Freire, que nós vamos trabalhar mais pra
frente...
Os participantes:fenômeno, estudiosos: Darcy Ribeiro, Sergio Buarque de Hollanda,
exemplo (65) Roberto DaMatta, exemplo (67), e Gilberto Freire, exemplo (68), expressam o
que desperta em mim o comentário da aluna – a lembrança de estudiosos da identidade
brasileira. O comentário sobre esses estudiosos insere na aula referências à cultura erudita,
associada, segundo Bosi (1992 e 2006), à pesquisa, ao saber produzido nas universidades, nas
áreas de ciências, letras e filosofia. É interessante observar no uso do identificador do
processo relacional ser: grande estudioso do Carnaval, exemplo (67), a menção a um
elemento da cultura popular: Carnaval, que é analisado, estudado pela cultura erudita,
confirmando a relação que pode ocorrer entre a cultura popular e a erudita (BOSI, 2006).
Apesar de esses elementos culturais serem abordados em aula, eles não são discutidos,
trabalhados por mim. Sua inserção dá-se mais como um apêndice, como algo que não faz
parte da discussão em andamento.
Portanto, a partir da análise desta aula, é possível inferir que as representações do
brasileiro, de não-comprometimento, de informalidade, de afetuosidade e carinho com as
crianças, são construídas pela aluna, baseadas na interpretação do comportamento do
brasileiro em contextos de convites, prestação de serviços e trato das crianças, alguns
mencionados por mim e outros, pela aluna.
3.2.3 Análise da aula 3
Neste item, os recortes analisados constituem aula dada a um holandês, Peter,
executivo de um banco estrangeiro.
Antes de iniciar a análise, faz-se necessário assinalar que o discurso do aluno e o meu
estão baseados na leitura do texto “Duas décadas de Brasil”, de Michael Kepp
(michaelkepp.com.br/crônicas.htm), feita no início da aula. No referido texto, Michael Kepp,
jornalista americano radicado no Brasil há duas décadas, fala sobre suas experiências nesses
vinte anos de Brasil.
No processo de análise de 15 orações realizadas por mim e 41 pelo aluno, verificou-se
o uso de processos mentais, materiais e relacionais. Na análise das perguntas feitas por mim,
pude perceber que o uso dos processos mentais e seus participantes:fenômeno buscam levar o
aluno a uma reflexão sobre as diferenças culturais que caracterizam sentir-se estrangeiro e
sentir-se brasileiro. Vejam-se os exemplos abaixo.
(69) Professora: Você ainda se sente um estrangeiro aqui?
(70) Professora: Você se considera uma espécie híbrida (brasileiro/holandês)?
(71) Professora: O que você já assimilou da cultura, nesses seis meses?
De acordo com a GSF, os processos mentais são os processos do SENTIR e
representam o mundo interior. Nos exemplos acima, os processos sentir, exemplo (69),
considerar, exemplo (70), assimilar, exemplo (71), nas orações interrogativas, expressam a
reflexão sobre o percebido e o sentido pelo aluno. Os participantes:fenômeno, que apontam o
que é percebido: estrangeiro, exemplo (61), e espécie híbrida, exemplo (70), remetem à
reflexão sobre as diferenças culturais que marcam sua identidade cultural e a identidade
cultural brasileira.
É interessante notar, no discurso do aluno, que o aspecto cultural por intermédio do
qual as representações são construídas é comportamento, como se pode observar no uso dos
processos materiais nos exemplos abaixo; e também mediante a interpretação da interação
língua e comportamento, como veremos adiante.
(72) Aluno: Quando eu falava de sair e paquerar...
(73) Aluno: Cruzar o farol fechado...
(74) Aluno: Dirigir com algumas cervejinhas...
Conforme já relatado na análise das aulas 1 e 2, os processos materiais expressam as
ações do mundo físico, que podem ser vistas, e, portanto, interpretadas. Nos exemplos (72),
(73) e (74) verifica-se que os processos materiais sair, paquerar, cruzar, dirigir, expressam
ações que remetem ao comportamento de um indivíduo.
Nos exemplos abaixo, é possível verificar que as respostas do aluno revelam sua visão
de linguagem, no uso da circunstância de modo; e que se considerar brasileiro não parte de
uma reflexão própria, mas sim, da avaliação de seu comportamento por outras pessoas que o
identificam como tal . É como se o aluno fosse um espelho no qual as pessoas pudessem
reconhecer a si mesmas. Esse reconhecimento é que os leva a identificar o aluno como
membro pertencente à mesma identidade cultural: a brasileira.
Professora: Você ainda se sente um estrangeiro aqui?
(75) Aluno: Eu ainda me sinto estrangeiro, porque não falo a língua na maneira certa
.
Professora: Você se considera uma espécie híbrida (brasileiro/holandês)?
(76) Aluno: Olha, muitas pessoas
dizem: Ah! Você já é brasileiro, quando...
No exemplo (75), o uso da circunstância de modo: na maneira certa pode marcar que a
visão de linguagem do aluno está ancorada no uso correto das estruturas fonológicas,
gramaticais e lexicais e que a identidade se manifesta no uso correto dessas estruturas, o que
remete à teoria estruturalista, para a qual linguagem é considerada como um sistema de
elementos estruturais que se relacionam na construção do significado (RICHARDS e
ROGERS, 2001). No exemplo (76), o participante:ator: muitas pessoas, do processo dizer,
indica que a ação foi realizada por terceiros. Isso permite apreender que não é ele quem se
considera híbrido, mas outras pessoas, como pode ser analisado no uso do processo relacional
ser, exemplo (76), que expressa uma relação de identificação entre o aluno e o brasileiro.
O comportamento do aluno que o leva a ser identificado como brasileiro revela-se nos
processos materiais, participantes:meta e circunstâncias, utilizados no discurso do aluno,
conforme os exemplos a seguir.
Aluno: Olha, muitas pessoas dizem: Ah! Você já é brasileiro, quando...
(77) Aluno: quando eu falava de sair e paquerar.
(78) Aluno: ... de falar com a mulherada tendo uma namorada
(79) Aluno: ...numa festa, pedia caipirinha...
O uso dos processos materiais sair, paquerar, exemplo (77) e falar (entendido como
paquerar), (78), revela o comportamento que visa à diversão, à sedução de maneira
descompromissada, à interação interpessoal. O participante:meta mulherada , exemplo (78),
indica a relação informal com muitas mulheres, e o identificador: namorada,
do processo
relacional ter, pode denotar ações que se contrapõem. No exemplo (79), a identificação se faz
no uso do participante:meta caipirinha
, que se refere a uma bebida típica brasileira.
Mediante o exposto, é possível deduzir que essas representações de informalidade dos
relacionamentos entre homens e mulheres, de infidelidade, construídas acima, expressam não
a visão do aluno, mas a visão que alguns brasileiros têm de si mesmos. Esse entendimento
remete à colocação feita por Pais (2006), na fundamentação teórica, para quem “a língua e
seus discursos, juntamente com as semióticas não-verbais, conferem a uma comunidade
humana: a sua história social; a sua consciência histórica; a consciência de sua identidade
cultural”, o que permite que os indivíduos se reconheçam como membros de um determinado
grupo social, de uma determinada cultura.
No discurso do aluno, exemplos abaixo, pude verificar outras representações do
brasileiro construídas no uso das circunstâncias. O uso dos processos materiais contextualiza
o comportamento mediante o qual as representações do brasileiro se dão. É relevante
mencionar que foram respostas dadas à minha pergunta.
Professora: O que você já assimilou da cultura, nesses seis meses?.
(80) Aluno: Cruzar o farol fechado...(o farol está fechado).
(81) Aluno: ...dirigir com algumas cervejinhas. (um pouco alcoolizado)
Nos exemplos (80) e (81), os processos materiais, cruzar e dirigir, indicam ações
relacionadas à condução de veículos e contextualizam o discurso. As circunstâncias de modo
fechado e com algumas cervezinhas, respectivamente, apontam infrações das leis de trânsito.
Nessa combinação: condução de veículos e infração das leis, é que a visão de desrespeito às
normas por parte dos brasileiros é tecida. Essa visão atribui um caráter negativo à identidade
do brasileiro, que reforçarei adiante.
Se, por um lado, é atribuído um sentido negativo à forma de dirigir do brasileiro, por
outro lado, é possível observar uma visão positiva, no uso dos atributos: tempo
, tranqüilo e da
circunstância de tempo amanhã
, no exemplo (82) citado abaixo, que confere a ele a
característica de tranqüilidade, de calma, diante da vida, em contraposição ao holandês que
tem tudo, menos tempo.
(82) O brasileiro tem tempo...tranqüilo... amanhã.... E o holandês tem tudo, menos
tempo. Mas quem é mais feliz? Eu acho que aqui.
No mesmo exemplo, é possível perceber a polarização “nós” e “eles” e a normalização
da identidade brasileira, conceitos discutidos por Silva (2000) na fundamentação teórica, uma
vez que a ela são atribuídas características positivas. Os identificados do processo relacional
ter revelam os dois pólos: brasileiro, “eles”, e holandês, “nós”. A atribuição da carga positiva
ao brasileiro é expressa no uso da circunstância aqui, país no qual ele está vivendo. Silva
(2000), com base em estudos de Derrida, afirma que a polarização, que atribui cargas
positivas a um termo e negativas a outro, expressa relação de poder. Quando conferimos a
uma identidade características “positivas”, o poder passa a se manifestar e ela deixa de ser
“uma” e passa a ser “a” identidade, diferenciando-se das demais.
Outras representações do brasileiro foram construídas, no discurso do aluno, por meio
da interpretação da interação língua e comportamento.
(83) Aluno: Brasileiro é muito assim... “Vamos marcar.” Sim, vamos marcar... Ok.
Qual dia?
(84) Aluno: O brasileiro é muito assim...nas reuniões ele... “Sim, sim, tem que fazer.”
E quem vai fazer? E quando?
É interessante observar, nos exemplos acima, que as representações do brasileiro de
indefinição com relação ao agendamento de compromissos e de falta de comprometimento na
área profissional, são construídas na indefinição de circunstâncias de tempo e de
participante:ator, e na circunstância de lugar. No exemplo (83), a omissão da circunstância de
tempo está indicada em qual dia
?. Já no exemplo (84), a indeterminação do participante:ator
expressa no uso de quem
e de indefinição de tempo: quando, permitem a construção dessa
imagem. O contexto a partir do qual essa imagem foi construída está indicado na
circunstância de lugar nas reuniões.
Em meu discurso, pude perceber que o uso de atributivos contribui também para a
construção da visão do brasileiro. Para tanto, reproduzo uma parte do trecho na qual minha
fala se insere.
Professora: O que você já assimilou da cultura brasileira nesses seis meses?
Aluno: Cruzar farol fechado...
(85) Professora: Por que só assimila as coisas ruins, negativas, hein?
Aluno: ...dirigir com algumas cervezinhas...
(86) Professora: Tudo negativo, né? Você assimilou o jeito malandro.
Os atributos ruins, negativas, negativo, exemplos (85) e (86), expressam um valor, um
julgamento negativo ao comportamento dos brasileiros com relação ao desrespeito às leis de
trânsito, visto na análise acima. No exemplo (86), o atributo malandro remete à contravenção,
àquele que dribla as leis, pensando somente em si. Ao atribuir valores negativos a esse tipo de
comportamento, faço o caminho inverso da normalização da identidade, discutida por Silva
(2000), o que pode significar apatia com relação a esse tipo de comportamento do brasileiro.
Nesse sentido, pode-se considerar que no uso dos atributivos analisados, a identidade
brasileira deixa de ser modelo, de ser ideal.
É interessante constatar, também, o que representa para o aluno o contato com uma
nova cultura. Isso pode ser observado no uso de atributo na resposta do aluno a uma pergunta
feita por mim, no exemplo abaixo.
(87) Professora: O contato com uma nova cultura está sendo bom para você?
Aluno. Está, para saber que tem outra maneira de fazer as coisas também.
O uso do atributo outra maneira, nesse exemplo, remete ao entendimento de que
existem outras formas de fazer as coisas.
Mediante análise dos recortes da aula três, é possível considerar que é a partir do
aspecto cultural comportamento que as representações do brasileiro são construídas. Também
é digno de menção que as representações de relacionamentos informais, de sedução
descompromissada e gosto pela diversão são construídas na linguagem pelos próprios
brasileiros que se vêem refletidos no comportamento do aluno. As outras representações
partem de sua própria análise e são de desrespeito às leis de trânsito, visão julgada por mim
como negativa, o que reforça essa imagem e de tranqüilidade e de indefinição com relação ao
agendamento de compromissos. Nas relações profissionais, a visão atribuída é de falta de
comprometimento nas tarefas.
A seguir, passo a discutir os resultados da análise dos recortes culturais de três aulas.
O tema desenvolvido na interação entre mim e os alunos, nas três aulas, versa sobre os
aspectos culturais: costumes e comportamento. Com relação a considerar costumes e
comportamento como aspecto cultural, fundamento-me nas discussões feitas por J. L. dos
Santos (2006) e Laraia (2006), no capítulo 1, para quem cultura está presente no
comportamento do indivíduo, no que ele faz, em seus costumes, seus valores, portanto, se
refere a todos os aspectos da vida social, isto é, à forma como os grupos concebem e
organizam a vida.
Na interação em sala de aula, eu ofereço aos alunos oportunidades para pensarem a
cultura brasileira tomando a deles como referência, fazendo perguntas que orientem o tema
desenvolvido em aula e criem a aproximação cultural. Isso para que, a partir do conhecido,
eles possam estabelecer uma relação de semelhança ou de diferença com o Brasil. No que diz
respeito a essa aproximação, Brito (1999) esclarece que a concepção intercultural de ensino
objetiva que o aluno se torne mediador entre as duas culturas (alvo e de origem), a fim de que
possa refletir e desenvolver uma compreensão não só da cultura-alvo, como também da sua
própria. Meireles (2002, p.10) considera que o ensino voltado para a concepção intercultural
deve se fundamentar em “fatos da língua e cultura do aluno para interpretar seus
correspondentes em outras línguas”.
A aproximação cultural, analisada nas perguntas que faço, baseia-se mais na
marcação das diferenças entre as culturas, nas aulas dadas às alunas argentinas. O
estabelecimento da diferença pode denotar que, como a latinidade nos identifica em alguns
aspectos, é necessário pontuar as diferenças, pois estas marcam nossa identidade cultural.
Com relação à diferença, no discurso dos alunos, ela foi responsável por formar a visão da
cultura brasileira e do brasileiro. Silva (2000) e Hall (2005) asseveram que tanto identidade
quanto diferença são mutuamente determinadas e são também resultados de processos de
criação lingüística que se dá pelas relações socioculturais.
Na aula dada ao aluno holandês, pude observar que minhas perguntas o levam a
refletir acerca da assimilação cultural. Nesse sentido, percebo que atuo no sentindo inverso
da concepção de ensino intercultural. Nessa concepção, o aluno não precisa abrir mão de sua
própria cultura e assimilar “novas regras de conduta e pensamento. Nela, o aprendiz vê sua
cultura e sua língua como uma dentre várias possibilidades igualmente desejáveis e válidas”
(MEIRELES, 2002, p. 11). O aluno fica, assim, livre para poder escolher o quanto da cultura-
alvo vai adotar.
No que diz respeito às representações de cultura brasileira e do brasileiro construídas
em sala de aula, na aula 1, foram de sensualidade, de despreocupação no tocante à exposição
ao corpo na praia e em situações informais. A essa descontração do brasileiro na praia, a aluna
atribuiu carga positiva.
Na aula 2, pude observar que as representações de cultura brasileira e do brasileiro
construídas foram expressas de algumas formas. As representações de não-concretização de
convites e de informalidade na prestação de serviços foram reveladas na interação língua e
comportamento pelo desconhecimento de que expressões têm outros significados culturais.
Cito como exemplos: “Eu te ligo” e não liga, “Ah! Eu vou te convidar pra...” e não
concretizam, “Eu vou às dez”, e não vão às dez (em contexto de prestação de serviços). A
visão de afetuosidade com as crianças foi expressa pelo comportamento de brasileiros, nas
ruas, nas lojas.
As representações, na aula três, se referem ao desrespeito às leis de trânsito, de
indefinição no agendamento de compromissos, de falta de comprometimento na realização
das tarefas profissionais, também expressas na interação língua e comportamento, conforme
mencionado acima. À visão de tranqüilidade diante da vida o aluno atribui carga positiva.
É fundamental levar em conta que os três alunos estão em situação de imersão, e que,
portanto, as representações de cultura brasileira são feitas a partir do conhecimento cultural
construído na interação social entre eles e brasileiros, contextos limitados, na cidade de São
Paulo. Segundo Laraia, (2006), o conhecimento cultural surge como resultado da
aprendizagem que ocorre socialmente. Só que esse conhecimento é limitado, pois nenhum
indivíduo participa de todos os elementos de sua cultura. Além disso, a atribuição do
comportamento observado a todos os brasileiros pode levar a uma generalização e à formação
de uma visão errônea do Brasil e do brasileiro. Essa generalização não é discutida por mim
com os alunos, atitude que pode levar à manutenção de conceitos essencialistas.
Inserindo-se em contextos limitados e parciais, os alunos atribuem à cultura brasileira
e aos brasileiros qualidades positivas e negativas, estabelecendo uma polarização entre a
cultura brasileira e a cultura de origem. Silva (2000), com base em estudos de Derrida, define
que essa polarização, que atribui cargas positivas a um termo e negativas a outro, expressa
relação de poder, no qual o “nós” se apresenta com carga positiva, enquanto o “eles”, com
negativa; e que a construção da identidade se dá sempre na relação com sua diferença.
A visão construída pelos alunos de despreocupação no que diz respeito à exposição do
corpo na praia, afetuosidade com as crianças nas ruas e lojas, a tranqüilidade diante da vida,
atribui cargas positivas à identidade cultural brasileira. Essa atribuição pode levar à
normalização da identidade brasileira, o que a torna distinta das demais. Tal observação se
mostra coerente à observação de Silva (2000), de que normalizar é atribuir uma identidade
específica como padrão, por meio da qual as outras são comparadas. Assim, a identidade
brasileira deixa de ser “uma” e passa a ser “a” identidade, diferenciando-se das demais. É
importante dizer que os alunos expressam em aula suas percepções, suas representações do
brasileiro, sejam elas positivas ou negativas.
Nas pouquíssimas menções que fiz sobre seus comentários, reforcei a visão de
desobediência do brasileiro às leis de trânsito. Isso pode denotar apatia, responsável pela visão
negativa da própria cultura (LARAIA, 2006), e também pela baixa auto-estima, a qual,
segundo Bresser-Pereira (2000), está relacionada ao “complexo de inferioridade colonial”,
cujas causas se situam no subdesenvolvimento brasileiro.
Em síntese, pude constatar, na análise das três aulas, que a linguagem, na interação
entre mim e o aluno, funciona como instrumento de na construção de significados culturais.
Na análise de suas manifestações, pode-se verificar que o aspecto de cultura brasileira mais
discutido foi comportamento; que as perguntas feitas por mim aos alunos procuram
estabelecer uma aproximação entre a cultura de origem deles e a cultura-alvo, brasileira,
focando na maioria das vezes a diferença, o contraste; que há generalização da cultura, pelos
participantes, que pode levar à normalização da identidade; que a construção da visão da
cultura brasileira se dá com base na polarização “nós”, brasileiros, “eles”, estrangeiros; e que
essa normalização pode levar à manutenção de conceitos essencialistas que constroem um
significado único de identidade, e ao etnocentrismo, que vê o outro não somente como
diferente, mas como inferior. O etnocentrismo, de acordo com Pereiro (2004-2005), pode
gerar a intolerância cultural, fechando as portas para a troca e o conhecimento. No caso de
ensino-aprendizagem de PLE, um afastamento da língua-alvo. Além disso, pude observar
também que não favoreço a interpretação dos significados que são construídos na interação; e
que abordo na aula outros aspectos culturais como um apêndice, e não como mais um ponto
para interpretação da cultura brasileira.
4.3 RESPOSTAS ÀS PERGUNTAS DE PESQUISA
Após a análise, apresentação e discussão dos resultados, retomo minhas perguntas de
pesquisa, para respondê-las, resumidamente, no quadro abaixo:
Perguntas de pesquisa Respostas
1) Que teorias de linguagem
subjazem à prática da professora?,
Duas teorias de linguagem subjazem à minha prática:
(a) teoria estruturalista e (b) teoria sociointeracional.
2) Que representações da
cultura brasileira e do brasileiro são
construídas na interação
professora-aluno durante as aulas?
As representações construídas em sala de aula foram:
sensualidade em situações informais;
despreocupação no tocante à exposição ao corpo, na
praia; não-concretização de convites; informalidade
na prestação de serviços; indefinição no agendamento
de compromissos e falta de comprometimento na
realização de tarefas profissionais.
Quadro 5 – Respostas às perguntas de pesquisa
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizo este trabalho com reflexões acerca dos dois anos de desenvolvimento desta
pesquisa e respectivos resultados. Reflito também sobre as dificuldades e limitações
encontradas durante o processo de investigação e aponto possibilidades de pesquisas futuras.
O objetivo deste estudo foi analisar e avaliar, segundo a perspectiva crítico-reflexiva,
como eu, professora-pesquisadora, trato a questão cultura e linguagem em aula individual e
particular de Português para Estrangeiros.
Devo acrescentar que a auto-avaliação sempre fez parte de minha trajetória como
professora de Português Língua Estrangeira (PLE), pois desde que comecei a trabalhar, senti a
necessidade de encontrar teorias que pudessem embasar minha prática e ajudar a responder
questionamentos que vinha fazendo sobre minhas ações. Por isso, na procura por uma
fundamentação teórica, decidi fazer mestrado e iniciei o curso no Programa de Língua
Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2000, mas não o concluí. A
decisão de não permanecer no programa deu-se pelo fato de minha pesquisa não estar
orientada para reflexão sobre minha prática em aula de PLE
Nos anos seguintes, participei de alguns encontros e seminários sobre o ensino de
PLE, até que decidi retomar o mestrado, porém, desta feita, em Lingüística Aplicada. Fazendo
pesquisas no site da Capes, encontrei o Programa de Lingüística Aplicada da Unitau e decidi
fazer a viagem São Paulo – Taubaté toda sexta-feira.
Em um dos retornos a São Paulo, no início do curso, em 2006, durante uma conversa
com minha orientadora sobre meus alunos e os questionamentos que eles faziam a respeito do
comportamento do brasileiro, ela me perguntou por que eu não desenvolvia minha pesquisa
sobre cultura, já que gostava tanto desse tema. Empolgada, aceitei a orientação e, na semana
seguinte, comecei a organizar o projeto de pesquisa, embrião deste trabalho.
Tendo selecionado cinco participantes de pesquisa, comecei a gravar, no início, todas
as aulas e a escrever os diários no mesmo dia em que eram dadas. Mas, por falta de tempo, e
por falta de capacidade do gravador para armazenar tantas horas de aula por dia, resolvi
selecionar as que seriam gravadas e serviriam para o diário. O critério foi gravar as aulas
cujos objetivos contemplassem aspectos culturais, como comportamento e costumes,
referências a folclore, festas populares, etc.
O caminho percorrido para a reflexão crítica se iniciou no período de seleção para
transcrever os recortes das aulas gravadas e da escrita dos diários. Ouvir e escrever sobre
minhas ações me colocaram diante de um espelho no qual pude observar aspectos que não
conseguia ver no dia-a-dia, nas aulas.
Além disso, a leitura das teorias de linguagem e de cultura que embasam este trabalho
me levou a vários questionamentos e incertezas com relação às minhas ações. Ao mesmo
tempo em que a frustração me envolvia, um desejo de transformação, de esperança, brotava.
Freire (1996) refere-se a esse processo ao dizer que, quando o professor assume o que faz,
sentimentos de raiva e de frustração podem surgir. Mas, simultaneamente, outro aparece – o
sentimento positivo, gerado pela felicidade de que é possível mudar a sua maneira de ser e,
conseqüentemente, sua prática.
No processo de análise dos dados, a GSF foi fundamental, pois, utilizando-a como
suporte, pude desvendar na materialidade lingüística os significados que foram construídos
na interação entre mim e o aluno. Observar, por exemplo, como a visão de despreocupação do
brasileiro com relação à exposição do corpo, de sensualidade, é formada no uso de atributos,
despertou em mim a conscientização sobre os significados que são construídos em aula por
meio da linguagem na interação entre mim e o aluno. A análise pela GSF reafirmou-me a
relação intrínseca entre linguagem, cultura e identidade.
Dessa relação intrínseca foi possível avaliar que as representações da cultura brasileira
e do brasileiro construídas foram de sensualidade em situações informais, de despreocupação
no tocante à exposição ao corpo na praia, de não-concretização de convites, de informalidade
na prestação de serviços, de indefinição no agendamento de compromissos e de falta de
comprometimento na realização de tarefas profissionais.
O entendimento de que os significados são construídos na interação por meio da
linguagem, e de que os indivíduos estão inseridos em um contexto sócio-histórico cultural, fez
com que eu reavaliasse minhas ações, não só em aula como também em meu cotidiano.
A análise dos dados revelou que esse contexto não foi levado em consideração, pois
não se observam ações em aula que possam levar ao entendimento da linguagem como prática
social, como questionar sobre (a) Quem falou ou escreveu?, (b) Sobre o quê?, (c) Para
quem?, (d) Para quê?, (e) Quando?, (f) De que forma?, (g) Onde? , conforme apontado nos
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira (PCNs-LE). Dessa forma, pude
constatar que contribuo para a construção de generalizações da cultura brasileira, de
manutenção de conceitos essencialistas e etnocêntricos que podem direcionar o aluno ao
afastamento da língua e da cultura-alvo, dificultando sua inserção na cultura brasileira.
Concluindo, posso declarar que todo esse processo “mexeu” comigo, pois despertou
em mim uma consciência maior de minha prática e de meu papel como ser social e cultural.
Hoje, procuro fazer com que minhas ações levem o aluno a interpretar e aprender novos
significados culturais, considerando o contexto sócio-histórico cultural no qual são
construídos. Acredito que, assim, estarei contribuindo para que as diferenças e as
singularidades de cada um sejam respeitadas.
Com relação às limitações percebidas no desenvolvimento deste estudo, sinto que o
tempo restrito para concluí-lo foi o maior empecilho que encontrei, pois pude estudar com
afinco somente um número reduzido de aulas, o que impediu que se verificassem outras
representações de cultura brasileira e do brasileiro construídas com base em um maior leque
de aspectos culturais.
Ao direcionar meu olhar para estudos futuros, uma proposta seria verificar se alunos
de nacionalidades distintas constroem as mesmas representações de cultura brasileira e do
brasileiro ou não; e de que maneira sua cultura de origem interfere nessa construção.
Considero também que esse trabalho poderá colaborar com novas pesquisas no ensino de PLE
em aulas particulares e individuais.
Gostaria de encerrar, citando Castro e Romero (2006), que sintetizam o que significou
esse processo para mim: “a linguagem é um instrumento que provoca, desperta, constitui e
transforma pensamentos, ações, enfim, identidades”.
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ANEXOS
ANEXO 1
Diário – Anita - aula de 01 de outubro de 2006.
Alunos: Anita (argentina)
Objetivo da aula: Levantar vocabulário sobre vestuário. Discutir sobre os costumes
brasileiros com relação à forma de se vestir.
Material utilizado: Quadro com vocabulário de roupas, acessórios e calçados utilizados no
verão e no inverno, para ir ao clube, à praia, ao trabalho, a festas.
A aula hoje foi um pouco tumultuada. Como eu havia solicitado que o horário fosse alterado,
dei aula na hora do almoço. No início da aula, ela me disse que iria almoçar durante a aula e
me convidou para almoçar com ela. Eu agradeci e não aceitei. Como o objetivo era apresentar
vocabulário sobre roupas e falar sobre os costumes na forma de se vestir do brasileiro e
comparar com o país de origem da aluna, comecei perguntando que roupas ela coloca na
mala quando vai à praia, seguindo a seqüência do quadro que posteriormente seria dado a ela.
Ela falou sobre as roupas das crianças, dela e do marido. Ao falar do traje de banho do
marido, ela fez o comentário de que o marido nunca usaria sunga, porque no seu país, as
pessoas iriam gozar. Depois falamos sobre os biquínis. Como são os modelos usados pelas
brasileiras e pelas argentinas. Sei que minha intenção, às vezes, é mais apresentar vocabulário
do que discutir mais sobre os costumes. Sempre aproveito para fazer algum comentário a mais
do que fazer a explicação de forma mais objetiva. Depois do levantamento do vocabulário
passei a correção, corrigindo pronúncia,vocabulário, estruturas de frase etc. Nesse momento, a
empregada começou a arrumar a mesa para o almoço e a Anita me intimou a almoçar com ela.
Não tive como recusar de novo e aceitei. É extremamente difícil comer e dar aula. Mas tentei
manter o assunto durante o almoço e continuei fazendo as correções. No início ela fez
comentários sobre como se divertem fazendo comentários sobre a língua portuguesa. Ela me
disse que o marido, que não estuda português, não se preocupa muito em falar corretamente e
argumenta que como é chefe os outros devem entendê-lo. Ela me disse que não concordava
com essa postura e que por estar em um outro país, a pessoa deve esforçar-se para falar a
língua do país em que está. Nessa parte do “bate-papo” não fiz nenhuma anotação para
correção posterior e, quando tinha que fazê-la, interrompia e fazia na hora. Conversamos
sobre outras coisas e depois que o almoço terminou, voltei ao tema da aula, fazendo um
paralelo entre a forma de se vestir aqui e lá. Quando numa correção falei sobre apertada e
justa para roupas, ela fez o comentário de que aqui as brasileiras usam roupas muito justas e
que na Argentina não. E se estendeu para comentar que aqui a brasileira não se importa se
está gordinha ou não. E isso pode ser visto na praia. Ao contrário, na Argentina isso não
acontece. Se valoriza demais a magreza e não se “aceita” que uma pessoa com celulite ou fora
do padrão use biquíni ou exponha tanto o corpo. Para ela, nosso jeito de ser é bem melhor.
Outro comentário feito por ela foi o de que aqui, os homens olham mais para o bumbum e que
lá, mais para os seios. Como sempre estou fazendo alguma relação com TV, literatura etc.
aproveitei para falar de uma propaganda que tinha visto na TV do absorvente Intimus, na qual
fazem exatamente referência sobre a parte do corpo preferida pelos homens. Sempre percebo
que de um ponto vamos ampliando para outros e que minha intenção é sempre mostrar ao
máximo a forma de ser do brasileiro.
Bem, depois disso e do almoço, entreguei a ela o quadro com o vocabulário relacionado a
roupas e pedi que lesse. Sei que aqui fecho para uma aula bem mais estruturada. Depois da
leitura, a aula terminou.
ANEXO 2
Diário – María - aula de 14 de agosto de 2006.
Alunos: María (salvadorenha) – preparação para o exame CELPE-Bras.
Objetivo da aula: A partir do texto, discutir sobre a função da escola e dos pais.
Material utilizado: Texto: “A melhor escola para seus filhos” Fonte: Revista Veja
A intenção era desenvolver a fluência e a redação, por isso levei o texto do Claudio de Moura
Castro. O texto de Claudio de Moura Castro traz um decálogo a ser seguido na busca de uma
boa escola. Então, comecei a aula pedindo para ela ler o texto. Depois da leitura, fiz correção
de pronúncia, levantamento de vocabulário novo e comecei a fazer algumas perguntas sobre o
texto e outras relacionadas ao tema: escolha da escola. P.ex. “Que critérios foram adotados
por você ao escolher a escola de seus filhos?”, “Por que você escolheu a escola Graduada e
não a Chapel que fica bem mais perto de sua casa?” Ela respondeu que “não sempre é bom
muita liberdade para as crianças. [...] alguns deles precisam mais ter um horário bem marcado
[...] checar o currículo da escola . Para mim disciplina é importante em todos os aspectos: no
cumprimento dos horários de aula. Se a criança não chegou na hora que tinha que chegar,
marcar e fazer alguma coisa. Também da forma como vão vestidos à escola, a coisa que eles
fazem na escola. [...] estou vendo [...] os casais se beijando e ninguém fala nada. Eu acho um
pouco...”. Também perguntei sobre a relação dos pais com escola graduada com os pais, e ela
respondeu: “É muito aberta. Você tem acesso de falar com os professores, tanto pessoalmente
quanto no e-mail. [...] Então, você conversa com eles. Você pode expor suas dúvidas.”
Continuamos com a discussão e em um momento ela me disse que a relação entre os alunos e
os professores mudaram muito. Que quando estudou (ela tem 40 anos), não se podia namorar
na escola, beijar e que quando o professor falava, todos ficavam quietos. Eu também comentei
que apesar de ter estudado numa escola mais liberal, tamm respeitávamos mais os
professores.
Depois dessa “conversa”, fiz as correções: pronúncia e vocabulário ou conjugação verbal.
Fazendo uma análise agora, posso ver que perdi muitas oportunidades de explorar mais os
aspectos lingüísticos. Acho que fiquei muito presa a estruturas gramaticais corretas e à
pronúncia e deixei de lado o que começo a entender (li somente a introdução do livro da
Serrani) sobre cultura. Quando a aluna falou em disciplina e respeito, poderia ter levantado
formas de tratamento. Como nos dirigimos hoje às professoras? E antes? O que mudou?
Acho que o problema é que às vezes acho algumas coisas óbvias demais, principalmente para
falantes de espanhol. Como não têm problemas de compreensão, todos somos latinos, alguns
costumes são muito parecidos, penso que alguns aspectos nem precisam ser mencionados. E
fico mais preocupada com vocabulário, pronúncia, escrita etc.
Bem, mais uma vez já foi. E agora preciso pensar nas próximas.
Descrever o que fez é fácil, o difícil é refletir e perceber que poderia ter feito de outra forma.
Isso vai gerando angústia, principalmente por saber que preciso reorganizar o material e não
tenho tempo para isso.
ANEXO 3
Diário – Juan e Evita - aula de 24 de outubro de 2006.
Alunos: Juan e Evita (argentinos)
Objetivo da aula: Apresentar e praticar pretérito perfeito do indicativo.
Material utilizado: Prática oral.
A prática oral é utilizada para apresentação de estruturas gramaticais (verbos, pronomes). A
partir de um assunto, inicio dando modelos de conjugações verbais. Por exemplo: Nesta aula
o objetivo era apresentar o pretérito perfeito regulares. Então, comecei a aula dizendo:
“Ontem, eu acordei às 6h30. Tomei café da manhã e fiquei em casa até as 9h30. Aproveitei o
tempo e escrevi um e-mail para uma amiga...” A idéia é indicar as terminações do pretérito
perfeito. Como os alunos são hispano-falantes, não há muito problemas de compreensão.
Depois de dar os modelos em todas as pessoas pronominais , nas três conjugações, comecei a
fazer algumas perguntas um pouco mais dirigidas para que os alunos pudessem responder,
utilizando o modelo apresentado. Comecei a perguntar à aluna (ela não trabalha, então suas
atividades estão mais relacionadas às coisas da casa): “A que horas você acordou? Você
tomou café da manhã com seu marido? Você levou sua filha e escola? ...” Depois perguntei a
ele sobre como tinha sido seu dia no trabalho: “Você participou de alguma reunião?” “Você
almoçou em casa ou no escritório?”. Nesse momento, ele respondeu: “Eu /almorcei/ com meu
chefe e alguns colegas.” Perguntei então como tinha sido o almoço. Ele me disse que os
brasileiros falavam muito rápido e que ele não conseguia entender tudo. Mas que o assunto foi
a Fórmula 1. Então eu perguntei: “O que seu chefe falou sobre a F-1?” Aí, ele me perguntou
se “falô” podia também ser usado como cumprimento e se era muito informal. Eu disse que
podia sim e que era mais informal. Então ele ficou preocupado, pois tinha se despedido de
uma mulher no escritório dizendo “Falô!”. Aí, eu tentei explicar que é informal, e que
dependendo do contexto e das relações entre as pessoas não tem problema. Por exemplo, se a
empresa mantém uma política mais informal, não há nenhum problema em dizer “falô” para
referir-se a “OK” ou “Tchau” . Mesmo com seu chefe, se essa relação informal se mantém,
não tem problema. Agora, se a empresa fosse mais formal, se a hierarquia fosse mais
marcada, não ficaria bem ele, diante de uma solicitação de seu chefe ou de uma despedida,
usar “falô”. Como ele trabalha em uma empresa com uma política muito informal de
relacionamento pessoal, não tem problema. Mas eu senti que ainda não consegui esclarecer a
diferença entre formalidade e informalidade. Percebo que ele confunde informalidade com
inadequação. Ele tem muito receio de utilizar estruturas muito informais em situações mais
formais e não se fazer entender, ou se passar por uma pessoa mal educada. É interessante que
estas questões sempre são trazidas por ele, pois está em contato direto com brasileiros. Já sua
esposa, não. Quando eu ia voltar para as perguntas sobre o que tinham feito no fim de semana,
ele interrompeu e perguntou: “Seu eu falo em uma reunião “a gente vai mudar o /projecto/”
está errado?” Ele queria saber se “a gente” em vez de “nós” é muito informal. Eu também
expliquei que “a gente” marca uma informalidade e coloquialismo, e que dependendo do
contexto, das pessoas envolvidas, não tem problema. Todos nós usamos. Mas se o contexto e
os participantes são mais formais, se as relações não são tão informais, é melhor usar “nós”,
principalmente quando falamos em nome de uma empresa. Ele disse que tinha entendido e eu
antes de retornar às questões para fixação dos verbos, aproveitei para fazer correções de
pronúncia /falaba/ /cabalo/, de vocabulário “rededor, sud-américa, simple, tudos”, de alteração
de gênero “muitos cores”. Quando voltei para as questões para uso do pretérito, sua esposa
falou um pouco mais sobre o que tinha feito no fim de semana. O problema do falante de
espanhol com o pretérito perfeito é que na primeira e 3
a
. pessoas do singular da 1
a
.
conjugação e, eles tendem a manter o espanhol “eu fale, ele compro”, e a mudar a vogal
temática na 1
a
. pessoa do plural da 2
a
. conjugação “nós escrivimos, nós bebimos etc.”
mantendo o espanhol. Como as perguntas eram mais dirigidas, quando eles erravam a
conjugação eu interrompia e perguntava: “Como?”. Acho que já estão acostumados ou
condicionados a esse toque porque rapidamente corrigem. Sei que é uma forma um pouco
estruturalista, mas dá resultado. No final da aula fiz a sistematização das conjugações.
Escrevemos como o pretérito perfeito regular é formado nas 3 conjugações e pedi que
escrevessem uma pequena narrativa: “O que vocês fizeram no fim de semana”
ANEXO 4
Diário – Peter - aula de 17 de agosto de 2006.
Alunos: Peter (holandês)
Objetivo da aula: Apresentar vocabulário sobre alimentos. Discutir diferenças culturais com
relação a hábitos alimentares.
Material utilizado:
Como o objetivo era apresentar vocabulário, resolvi verificar que palavras já eram conhecidas
por ele. Então, comecei a aula dizendo que iria fazer um ditado. Não disse nada a ele sobre o
assunto da aula, nem que as palavras estavam relacionadas a alimentos. Ditei algumas
palavras que possuíam também outro significado, além de ser um alimento: braço, broto,
língua, namorado, piranha, pintado, dourado, porquinho, carambola, lombo, salsa, merengue,
lula, picanha. Depois do ditado, pedi a ele para ler a relação de palavras e corrigi pronúncia e
ortografia. Pedi, também, que ele me explicasse o significado das palavras conhecidas por
ele. Ele me disse que conhecia o significado de todas. Pedi que me explicasse o significado de
braço. Ele respondeu que era uma parte do corpo. Namorado, me disse que era uma pessoa
masculina que tem uma namorada. Língua me disse que podia ser a que falamos e também a
que temos dentro da boca. Minha intenção era ampliar os significados das palavras. Ele
relacionou somente as palavras piranha, dourado, porquinho, costela, lombo, lula e picanha a
alimentos. As outras, relacionou a outros contextos, como salsa e merengue a dança. Então, eu
disse que ele podia comer todas as coisas que tinha ditado. Ele respondeu que língua era um
peixe. Disse que eu não conhecia nenhum peixe com o nome de língua, mas sim linguado. Ele
disse que era linguado e não língua. Eu falei que as pessoas comem língua de porco, de vaca,
que colocamos na feijoada. Ele disse que não comia. Depois comecei a explicar o que era
namorado, pintado, dourado...Conforme ia explicando, ele ia escrevendo em seu caderno.Ao
explicar o significado da palavra, aproveitei para inserir alguns costumes: usar carambola para
enfeitar pratos, por causa de seu formato; broto, que também usamos para nos referir a
pessoas jovens, etc. Quando falei sobre merengue, disse que era um doce feito com a clara do
ovo. Ele me perguntou o que era clara, então expliquei que era a parte branca que fica ao
redor da gema. Ele perguntou o que era gema. Eu disse que era a parte amarela. Então ele
disse que em holandês a gema é amarela de ovo e a clara é a branca de ovo. Eu disse que é
mais fácil. Então disse que merengue era a clara batida com açúcar. Apesar de ficar no
vocabulário, as explicações sempre trazem comentários sobre costumes. Depois disso, corrigi
alguns erros que ele havia cometido: “ele disse uma corte de carne, a carne da piranha é
vermelho”. “Você disse uma corte de carne. Corte é masculino, então é um corte de carne”,
“A carne da piranha é vermelha, porque a cor concorda com carne”.
Depois do vocabulário, passei para os aspectos culturais do Brasil e da Holanda com relação à
alimentação. Disse que: “No Brasil, basicamente, nós temos 3 refeições diárias: café da
manhã é uma refeição, almoço é outra refeição e jantar é outra refeição. Essas são as três
principais refeições do país. Algumas crianças fazem o lanche da tarde.” Continue explicando
o que as pessoas comiam nessas refeições para trazer vocabulário. “No café da manhã, as
pessoas tomam, geralmente, um copo de café com leite, comem um pãozinho com
manteiga...” . Com relação ao almoço, perguntei se ele sabia qual era a base da comida
brasileira e ele disse arroz e feijão. Eu disse que arroz e feijão são a base de norte a sul, no
almoço e às vezes no jantar. Ele me disse que aqui tem duas refeições quentes e que na
Holanda há somente uma.
Aproveite então para fazer um paralelo entre as duas culturas e perguntei: “Quais são as
principais refeições na Holanda?” Ele me disse que também eram 3: café da manhã, almoço e
jantar. Perguntei o que as pessoas comem em cada uma delas. Ele respondeu que no café da
manhã, os holandeses normalmente comem uma fatia de pão, não pãozinho, com queijo, doce
e chá ou leite. No almoço, a mesma coisa: uma ou duas fatias de pão ou um sanduíche, ou
torrada, ou um pão francês com frios: queijo, presunto, salada de atum, e leite” Eu achei
estranho leite no almoço e perguntei: “Leite no almoço?” Ele me disse que seu chefe sempre
diz que não pode acreditar que de todos os seres no mundo, só o ser humano holandês
continua a beber água e leite. Depois me disse que o jantar é a única refeição quente: batatas
cozidas, verduras cozidas e um corte de carne. Para continuar nesse paralelo cultural, disse
que aqui em São Paulo, nós comemos alguns tipos de pratos em determinados dias da semana.
Ele me disse que 4ª. é dia de feijoada. Eu completei dizendo que na 5ª. é massa, 6ª. peixe. E
ele completou: “domingo pizza no jantar”. Eno perguntei sobre os costumes na Holanda
com relação a dias da semana e a festas, como Natal, Páscoa, Reveillon. Ele disse que sabia
que aqui tem que comer 12 uvas no Ano Novo. Falei sobre o significado dos grãos no Ano
Novo, sobre algumas crendices com relação a alimentos no Reveillon. Perguntei novamente
sobre a Holanda e ele me disse que não era expert nessas coisas, e que na Holanda não tem
diferenças regionais, mas que a comida muda dependendo da estação do ano. No inverno, a
comida é como a comida mineira: bem pesada, bem forte.” Ele foi falando os ingredientes
utilizados e eu ia corrigindo. Os que ele não sabia, falava em inglês ou espanhol e eu traduzia
e corrigia a pronúncia. Ele me disse que a Holanda tem muita influência da Indonésia. Me
disse também que apesar de na Holanda comerem muitas coisas diferentes, o padrão é batata e
verduras. E que nos domingos, a comida é mais formal. A louça e os talheres também são
mais formais nos domingos. Ele me disse que peru, no Natal, é mais da América. Conforme ia
falando sobre os pratos, eu ia corrigindo vocabulário e pronúncia. Depois pedia pra ele repetir.
Com relação aos doces, ele me disse que achava nossos doces muito doces, com muito leite
condensado.
Depois para completar o vocabulário, falamos sobre as frutas de que ele mais gosta e
perguntei: “De manhã, você come mamão? melão?”, “Na praia, você toma suco de laranja?
de limão?”, “Você gosta de morango?”As correções, as fazia na hora.
Fiquei apresentando vocabulário até o final da aula. Sei que a aula focada em vocabulário
tende a ser muito cansativa, mas procuro inserir o vocabulário em contextos para que possa
fazer mais sentido ao aluno.
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