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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS
PÚBLICAS E FORMAÇÃO HUMANA
QUEITI BATISTA MOREIRA OLIVEIRA
MOVIMENTO MOLEQUE:
re-existências na luta pelos Direitos Humanos no DEGASE/RJ
Rio de Janeiro
Setembro de 2008
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS
PÚBLICAS E FORMAÇÃO HUMANA
QUEITI BATISTA MOREIRA OLIVEIRA
MOVIMENTO MOLEQUE:
re-existências na luta pelos Direitos Humanos no DEGASE/RJ
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Políticas Públicas e Formação
Humana da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro como requisito parcial para obtenção
do Título de Mestre em Políticas Públicas e
Formação Humana.
Orientador: Profa. Dra. Esther Maria de
Magalhães Arantes
Rio de Janeiro
Setembro de 2008
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS
PÚBLICAS E FORMAÇÃO HUMANA
QUEITI BATISTA MOREIRA OLIVEIRA
MOVIMENTO MOLEQUE:
re-existências na luta pelos Direitos Humanos no DEGASE/RJ
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________
Esther Maria de Magalhães Arantes
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Orientador)
_____________________________________
Profa. Dra. Irene Bulcão
Universidade Cândido Mendes
_____________________________________
Profa. Dra. Cecília Maria Bouças Coimbra
Universidade Federal Fluminense
4
Ao Kevin, o meu moleque; ao Rafael (in memorian),
moleque da Mônica; e ao Maurício, moleque da Rute.
5
AGRADECIMENTOS
À Esther Arantes, por sempre me perguntar, de forma acolhedora, cuidadosa e nada
impositiva “afinal, qual é a sua questão”? Demorei a entender a importância da liberdade
para responder a tal pergunta.
À Irene Bulcão, pelo acolhimento, “remendo” e pelo band-aid... Enfim, por TUDO.
À Cecília Coimbra, por ser presença marcante em toda minha trajetória acadêmica, e que
desde o início me possibilitou encontros tão potentes – com autores, com pessoas, com
pessoas-autores... (Até mesmo nos momentos em que eu achei que não teria trajetória
acadêmica alguma...).
À Mônica Cunha e Rute Sales pela generosidade com a qual me contaram suas
experiências, dividiram dores, alegrias, mesmo que por um curto espaço de tempo.
À minha mãe, Lucileny Batista, por ser a primeira mulher que inventa existências – re-
existindo bravamente – que encontrei na minha vida. Às vezes inventando mais, às vezes
menos... ‘Coisas de mãe’. E quer coisa mais humana?
Ao meu pai, Renato César, pela parceria, pelas comidinhas e “cervejinhas” tão
importantes para lembrar que somos humanos.
Ao Rodrigo, “parceiro no crime”, companheiro de “cama, mesa e banho” e dessa lida
doida que é a aventura de dividir a vida com um alguém. A vida tem sido bem melhor e mais
interessante com você por perto.
Ao Kevin, que há 14 anos e 6 meses me apresentou à aventura que é ser mãe. A vida sem
você? Nem sei mais...
Aos meus amigos queridos e dupla dinâmica Fernanda M. L. Ribeiro e Marcelo
Princeswal pelas mensagens de texto via celular e pelo projeto “a quatro mãos”,
respectivamente. E pelos papos “cabeça” nas cercanias da UERJ ou em outros “pés-sujos” da
vida.
6
Ao amigo também querido, Mauro Carvalho, que se “despencou” um dia à Pendotiba
para socorrer esta amiga que tinha decidido fazer mestrado. Serve para me redimir da
“desnaturação”? (Aliás, Marcelo, Mauro e Carlota: não é que a “Terceira Década” rendeu
frutos!?)
À Fabiana pela leitura cuidadosa de um texto que ainda era um Frankenstein e que em
uma tarde de sábado em Copacabana teve seus pedaços discutidos. Você não imagina o quão
importante foi ouvir que eles faziam sentido!
À FAPERJ pelos 12 meses de bolsa.
Aos bons encontros do PPFH, sobretudo Júlia, Isabel, Daniela e “Joãozim”: intensas
discussões, sérias ou não, etílicas ou não. Ou não...
7
RESUMO
O presente estudo analisa qualitativamente a atuação de um grupo de mães, denominado
“Movimento MOLEQUE”, frente às violações dos direitos humanos que atingem seus filhos,
jovens que estão ou estiveram cumprindo medida sócio-educativa nas unidades do
Departamento Estadual Geral de Ações Sócio-Educativas (DEGASE) do Rio de Janeiro. A
partir de entrevistas realizadas com as duas coordenadoras e criadoras do MOLEQUE este
trabalho fala sobre gente que fez da dor luta pela vida, que transformou a dor em indignação
produtiva, em força para lutar pela garantia de direitos já salvaguardados pelas legislações. É
nesta transformação de dor em luta que se inscrevem as resistências por elas construídas
frente a esse intolerável. O trabalho se desenvolve em três capítulos: o primeiro, apresenta
uma descrição do cotidiano violento das unidades sócio-educativas brasileiras, situação que
pouco mudou, mesmo após do advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990; o
segundo, traz as falas de Mônica e Rute. A partir de suas experiências e do que passaram com
seus filhos, essas mulheres apresentam um quadro em que o assédio do consumo aliado à falta
de condições para consumir facilitam o ingresso do adolescente pobre em formas ilegais de
aquisição de renda; o terceiro e último aborda a construção do MOLEQUE a partir do
encontro de Rute e Mônica. Nessa trajetória de quase cinco anos, a luta do Movimento vêm
possibilitando a construção também de outras formas de existência para essas mães,
sobretudo, pela experiência da coletivização. Concluindo, aponto para algumas questões que
se colocam para o MOLEQUE, inclusive sua possível transformação em ONG, sobretudo em
função de questões de autonomia financeira, de proposição e execução de projetos.
Palavras-chave: Resistências, Direitos Humanos, Infância e Juventude, Mães, DEGASE.
8
ABSTRACT
This study examines the quality of performance of a group of mothers, called "Movement
MOLEQUE", front to human rights violations that affect their children, young people who are
or were fulfilling socio-educational measure on the units of the Department of State General
Partner-Stocks Education (DEGASE) of Rio de Janeiro. From interviews with the two
coordinators and creators of this work came MOLEQUE on people who made the pain
struggle for life, which turned the pain into anger productive in force to fight for the guarantee
of rights already protected by laws. This is the processing of pain in that fight fall they built
the resistance against this unacceptable. This work is developed in three chapters: the first
presents a description of the daily violent socio-educational units of the Brazilian, that
situation has hardly changed, even after the advent of the Statute of the Child and Adolescent,
in 1990 and the second, brings the discourse Monica, and Ruth and from their experiences and
now with their children, these women have a framework in which the harassment of
consumption combined with the lack of conditions to consume facilitate the entry of low-
adolescent forms of illegal acquisition of income, the third and final touches on the
construction of MOLEQUE from the meeting of Ruth and Monica. In this history of almost
five years, the struggle of the Movement are also allowing the construction of other forms of
existence for these mothers, especially, the experience of collectivisation. In conclusion,
aponto to some issues that arise for the MOLEQUE, including its possible transformation into
NGOs, especially in light of questions of financial autonomy, proposing and implementing
projects.
Key words: Resistance, Human Rights, Children and Youth, Mothers, DEGASE.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................10
A GESTAÇÃO DO TEMA.............................................................................................12
OS CAMINHOS DA PESQUISA...................................................................................17
ALGUMAS FERRAMENTAS OU PRINCIPAIS ALIADOS.......................................18
CAPÍTULO 1
O SISTEMA SÓCIO EDUCATIVO BRASILEIRO E A BRUTALIDADE DA LÓGICA
CARCERÁRIA.......................................................................................................................24
1.1 PANORAMA DO SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO BRASILEIRO.....................25
1.2 “ESPANCATIVO” E... SELETIVO. .......................................................................32
CAPÍTULO 2
NINGUÉM NASCE BANDIDO, NINGUÉM NASCE “MÃE DE BANDIDO”...............41
2.1 A EXPERIÊNCIA DE “PERDER” O FILHO..........................................................41
2.1.1 Eu não percebi..................................................................................................44
2.1.2. A droga do consumo.......................................................................................49
2.1.3. “Aquelas” outras drogas.................................................................................52
2.2 SER “MÃE DO DEGASE” É... – O ENCONTRO COM O SISTEMA “SÓCIO-
DESTRUTIVO” ..............................................................................................................56
2.3 OS MOVIMENTOS ANTES DO ‘MOVIMENTO’.................................................59
2.3.1. O movimento Rute .........................................................................................60
2.3.2. O movimento Mônica.....................................................................................63
CAPÍTULO 3
E OS MOVIMENTOS DE RUTE E MÔNICA SE ENCONTRAM: O MOVIMENTO
QUE SURGE DOS MOVIMENTOS....................................................................................77
3.1 AS LUTAS DO MOLEQUE.....................................................................................79
3.1.1 Poder e resistência............................................................................................83
3.1.2 A experiência de coletivizar.............................................................................88
3.1.3 Outras mães, outros movimentos, outras coletivizações..................................94
3.2 MAS... POR QUE MULHER? POR QUE MÃE?..................................................98
CONCLUSÃO.......................................................................................................................102
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................109
10
INTRODUÇÃO
O presente estudo analisa a atuação de um grupo de mães, denominado “Movimento
MOLEQUE”, frente às violações dos direitos humanos que atingem seus filhos, jovens que
estão ou estiveram cumprindo medida sócio-educativa
1
nas unidades do Departamento
Estadual Geral de Ações Sócio-Educativas (DEGASE)
2
, no Estado do Rio de Janeiro.
Problematiza e discute as tensões, embates, e alguns atravessamentos que permeiam a
trajetória do Movimento MOLEQUE, que em sua luta pela garantia de direitos de jovens e
suas famílias, tem buscado atuar tanto no ingresso e permanência desses jovens no DEGASE
quanto em sua saída.
O MOLEQUE – Movimento de Mães pela garantia dos direitos dos adolescentes do
Sistema Sócio-Educativo – surgiu em 2003 a partir do encontro de duas mães – Rute Sales e
Mônica Cunha – cujos filhos cumpriam medida sócio-educativa em diferentes unidades do
DEGASE. Indignadas com as violações de direitos que lá ocorriam – sobretudo a violência
física - com seus filhos e com os outros adolescentes, Rute e Mônica criaram o MOLEQUE
que vem desde então, lutando para garantir os direitos desses jovens exigindo o cumprimento
do que é disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A luta de Mônica e Rute iniciou-se com a dor, comum a muitas outras mães, frente à
passagem de um filho pelo sistema para jovens em conflito com a lei. Semelhante aos
cárceres para adultos, o sistema sócio-educativo brasileiro é palco de toda sorte de violações
1
As medidas sócio-educativas, segundo o art. 103 do ECA (Lei 8.069 de 13 de julho de 1990), são aplicadas
pelo juiz quando um adolescente comete um ato infracional. Tal ato define-se como “a conduta descrita como
crime ou contravenção penal” (Brasil, 2007a). Tais medidas são: advertência, liberdade assistida, internação e
devem respeitar os princípios da brevidade, excepcionalidade e a condição do adolescente ser uma pessoa em
desenvolvimento (Brasil, 2007a).
2
O Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas do Estado do Rio de Janeiro é responsável pela execução
das medidas sócio-educativas impostas aos adolescentes.
11
de direitos, principalmente, no que tange à prática da tortura, de maus-tratos e de outros
tratamentos cruéis e degradantes. Tais práticas, que levaram Rute Sales a chamar o sistema
sócio-educativo brasileiro de “sistema sócio-espancativo”, encontram-se em total afronta à
legislação brasileira, tanto em relação aos dispositivos constitucionais
3
quanto aos
dispositivos da legislação específica para a Infância e Juventude (ECA), que é uma lei de
garantia de direitos dirigida a todas as crianças e adolescentes e se estrutura a partir da
Doutrina da Proteção Integral
4
.
Acredito que estas mulheres vêm construindo um novo lugar, bem como novas
possibilidades de existência e de vida que não aquela destinada historicamente às famílias
pobres. A própria existência de um grupo como esse, de antemão, já pode ser tomado como
uma forma de resistência aos rótulos de desqualificadas, incapazes e culpadas.
Em função disso, parto da aposta de que a militância do MOLEQUE vem se constituindo
como importante resistência a certos discursos e práticas que, historicamente rotulam e
desqualificam essas famílias e classificam seus filhos como “perigosos”, justificando assim,
os maus-tratos, a tortura e muitas vezes o extermínio desses jovens.
Importante pontuar que tais rótulos, muitas vezes, contaram com os discursos científicos
em sua construção, dando-lhes a forma de diagnósticos ou outras tantas formas
“cientificamente comprovadas” que, reproduzidas e atualizadas, ganharam – e ganham ainda
– contornos de estatuto de verdade, perene, universal e pretensamente, inquestionável
(Arantes, 1995; Coimbra, 2002; Rizzini, 2000). Por isso e, sobretudo por isso, a academia
deve esse espaço a essas vozes, tantas vezes desqualificadas ou até mesmo caladas, buscando
desconstruir essas instituições
5
.
3
Os artigos 227 a 229 da CF tratam da Doutrina de Proteção Integral (Brasil, 2007b), mas, de acordo com o
artigo 3º do ECA, todas as crianças e adolescentes “gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sem o prejuízo da proteção integral ” (Brasil, 2007a), estando portanto, amparados pelos dispositivos
constitucionais que tratam de tais direitos, dentre os quais, o 3º e o 5º da CF (Brasil, 2007b).
4
A Doutrina de Proteção Integral é “inspirada na normativa internacional, materializada em Tratados e
Convenções, especialmente os seguintes documentos: a) Convenção das nações Unidas sobre os Direitos das
crianças; b) Regras mínimas das nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e Juventude
(Regras de Beijing); c) Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade;
e d) Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil. (Diretrizes de Riad)” (Cury et al,
2000, p. 21). Tal Doutrina emerge dos Artigos 227 a 229 da Constituição Federal brasileira de 1988, e
fundamenta-se na concepção de que crianças e adolescentes são sujeitos de direito, frente à família, e ao Estado.
Rompe com a idéia de que sejam objetos de intervenção do mundo adulto, tratando-os como titulares dos direitos
comuns a toda e qualquer pessoa e inclusive, de direitos especiais decorrentes de sua condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento (Cury et al, 2000, p. 21).
5
O termo instituição será utilizado neste estudo seguindo o referencial teórico da Análise Institucional (Lourau,
1993) que o diferencia de local geográfico, entendendo-o como práticas cristalizadas, recrudescidas no campo
social que muitas vezes são percebidas como a-históricas ou naturais. O conceito será melhor apresentado
adiante.
12
A GESTAÇÃO DO TEMA
Pertinente adjetivar meu encontro com o tema deste estudo como uma gestação. É um
estudo empreendido por uma mãe, falando de outras mães, e que nasce da indignação frente à
situação degradante de muitos adolescentes que passam ou passaram pelo sistema sócio-
educativo brasileiro.
Mas o cruzamento da minha história com a história de mães que têm ou tiveram filhos em
unidades do DEGASE aconteceu muito antes de eu conhecer Rute e Mônica. A gestação
desse tema começou há alguns anos, ainda em minha formação como psicóloga, a partir de
uma situação ocorrida durante um estágio realizado em um Juizado da Infância e Juventude.
Portanto, antes de tudo, este trabalho é fruto da indignação. Indignação datada e
atualizada a cada vez que reconto uma história: a do encontro da minha história, com a
história de um jovem que chamarei de David. Tal encontro me fez escrever uma monografia
de final de curso sobre a institucionalização da tortura no Brasil e sua ocorrência no sistema
sócio-educativo brasileiro.
Ouvi àquela época, enquanto construía minha monografia, que era preciso dar movimento
à indignação, fazê-la produzir outras práticas. Era preciso fazê-la dispositivo de
transformação, e voltar o olhar para as práticas de resistências que empreendem um
enfrentamento à tentativa de controle, serialização da subjetividade, bem como produzem e
afirmam outros modos de existir (Guattari, 1999).
Ouvi o mesmo quando me aventurei na escrita deste trabalho, reafirmando a importância
de buscar o que possibilita a atualização de práticas tão brutais contra jovens a quem a própria
legislação brasileira ordena proteger. Que contexto e que sociedade são esses, permissivos
com tal prática, principalmente quando dirigida a certa parcela da população considerada
“perigosa”. Entendo que é justamente desse mesmo contexto que emergem as formas de
resistência – e de re-existência – frente às tantas opressões e violências. Trata-se de uma
questão histórica, de um país que tem seu solo fértil em muito devido ao sangue e à dor de
índios, escravos, opositores políticos, população marginalizada em geral, e de todos aqueles
que sofreram com a violência de Estado, principalmente nos cárceres – para adultos e jovens.
E foi de um desses estabelecimentos “carcerários” juvenis que David chegou, “naquele
dia”, para sua audiência de apresentação ao juiz.
13
Antes mesmo de sua entrada, David já estava com seu futuro determinado. Ao mandar
chamar o rapaz, o magistrado disse ao seu funcionário: “Chama lá a bichinha!”, afirmando
que a sentença seria a “tranca”
6
mesmo, pois o jovem participara de um assalto à mão armada
e com planejamento prévio. O rapaz era acusado de ter assaltado, à mão armada, junto com
outro rapaz maior de idade, dois homens com quem teriam marcado um “programa”, um
encontro para fins sexuais.
De cabeça baixa e mãos para trás, postura exigida desses adolescentes diante de
autoridades, David adentrou a sala de audiências com cara de choro, e visivelmente com dores
e dificuldades para se acomodar. Junto com ele, entrou sua mãe.
Após respostas monossilábicas, alguns “sins” e “nãos”, e de chorar envergonhado pelo
relato de sua história diante de todos os presentes, inclusive de sua mãe, David ouve,
estarrecido, que voltaria ao Instituto Padre Severino (IPS), até que houvesse vaga na Escola
João Luiz Alves (EJLA)
7
, onde ele cumpriria sua medida sócio-educativa de internação.
Desesperado, David caiu em prantos e pediu a palavra ao juiz para dizer que estava sendo
massacrado dentro do IPS. Massacrado, essa palavra foi dita de forma hesitante por David
para descrever o que estava sofrendo lá dentro.
São de conhecimento público os tratamentos cruéis muitas vezes dispensados a
homossexuais nesse país, principalmente aos encarcerados. David, tendo ou não uma
orientação homoafetiva, foi preso fazendo programa sexual com homens. Imediatamente, ao
ouvir a palavra “massacrado”, concluí que ele estava – em um “linguajar carcerário” sobre
práticas sexuais – servindo de “mulherzinha” no Instituto Padre Severino.
A mãe, visivelmente nervosa com a situação do filho estava muito mobilizada em ajudá-
lo. Tentava a todo tempo intervir a favor do filho junto ao juiz, dizendo que o mesmo era um
“bom rapaz” que errara, e que por isso deveria ser responsabilizado, mas não sujeitado à
“barbárie” que vinha sofrendo.
Pelas intervenções “fora de sua hora de falar”, a mãe foi advertida pelo juiz, de forma
grosseira, de que seria colocada para fora da sala, caso ela continuasse “alterada daquela
6
Referindo-se à medida sócio-educativa de internação, cumprida em regime de privação de liberdade segundo os
artigos 121 a 125 do ECA (Lei 8.069/90, de 13/07/1990).
7
Instituto Padre Severino (IPS) e a Escola João Luiz Alves (EJLA) são estabelecimentos do DEGASE. Estão
instaladas no chamado “complexo do DEGASE”, que reúne alguns estabelecimentos desse departamento no
bairro da Ilha do Governador, na cidade do Rio de Janeiro. O IPS é o lugar onde os adolescentes acusados de ato
infracional aguardam sua apresentação ao juiz por, no máximo, 45 dias. No entanto, muitos adolescentes lá
permanecem por tempo excedente. A EJLA é um local, dentre outros, em que os adolescentes cumprem a
medida sócio-educativa de internação (privação de liberdade). Todos esses lugares encontram-se em estado
lastimável e com problemas sérios de superlotação.
14
forma”, podendo ser considerada a sua postura um desacato à autoridade. Fica a pergunta que
me fiz, naquele momento: “Seriam a calma e a temperança atitudes esperadas de uma mãe
que vê um filho em situação de desespero e sofrimento?”
David repetia que estava sendo “massacrado” e pedia que “pelo amor de Deus” o juiz não
o mandasse de volta para o IPS.
Estava posta a denúncia de maus-tratos. Não seria o caso de dar seguimento formal a ela,
com os meios legais necessários e disponíveis à pessoa que conduzia a audiência?
Só que não foi bem assim.
Logo após o pedido implorado de David, o juiz proferiu um comentário que ficou famoso
entre o grupo de estagiárias ao ponto de nomear aquele acontecimento: “Isso é coisa de
novato. Daqui a pouco eles te esquecem!” E pediu que o agente “arrumasse um cantinho”
para o adolescente no IPS, até as coisas se acalmarem.
Nesse momento, a mãe, incrédula vendo que seu filho seria mandado de volta para o
lugar que ele dizia estar sendo massacrado, pergunta ao juiz, sem pedir a vez para falar e de
forma direta, se ele tinha um filho. Ele respondeu que sim. Ela então perguntou,
incisivamente, se ele teria coragem de mandar seu filho para aquele lugar depois de tudo o
que ouviu. Ele responde que sim. E manda a mãe se retirar.
Mãe e filho, aos prantos. Um sendo levado de volta ao “inferno” – como será visto
melhor adiante – e outra esbravejando que “aquilo não iria ficar assim”. Que ela, mãe, iria
encontrar uma forma de ajudar o filho.
Este foi o início da indignação que me levou em um primeiro momento, a pensar a
questão da naturalização de práticas cruéis como a tortura e os maus-tratos quando dirigidas a
pessoas consideradas perigosas. Para esses jovens, a violência de Estado, institucionalizada
através de julgamentos e execuções de medidas de forma extremamente violenta,
confirmando para eles que não há justiça e afirmando que o único lugar possível é o de objeto
de violência. Tal prática é possível a partir da construção de uma “monstruosidade inumana”
imposta a esses jovens e que justifica toda uma gama de ações violentas e de extermínio. A
violência de Estado quando não mata, brutaliza, de forma que muitos desses jovens assumem
o papel de “monstro” que lhes foi imputado.
Retomando os encontros ocorridos no percurso da gestação do tema, volto uma vez mais
no tempo para trazer o meu encontro com as mães do MOLEQUE.
15
No ano de 2005, soube que haveria na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro o lançamento de um relatório chamado “O Sistema Sócio-Educativo na visão das
mães – Documento Diagnóstico e Propostas para 2005”. Imediatamente me interessei em
conhecer tais mães que tinham resolvido tornar sua dor pública, e mais ainda, diagnosticando
e propondo ações de melhoria a partir da experiência de quem vive o cotidiano das unidades
do DEGASE.
Esse relatório fora produzido a partir da escuta dos familiares dos adolescentes
envolvidos em atos ilícitos e que por isso ingressaram no sistema sócio-educativo, iniciando
assim, a vivência da rotina das unidades do DEGASE. E lá estavam elas – Rute e Mônica –
contando que estavam “cansadas de chorar na porta do estabelecimento em dias de visita”, e
por isso deram início em 2003 ao MOLEQUE – Movimento de Mães pela garantia dos
direitos dos adolescentes do Sistema Sócio-Educativo, que hoje é objeto do presente estudo.
O diagnóstico do relatório produzido pelas mães fez coro a diversos relatórios nacionais e
internacionais que apontavam para as péssimas condições em que se encontram as unidades
do DEGASE, denunciando tanto a precariedade física desses estabelecimentos quanto as
práticas perversas que lá aconteciam – e ainda hoje acontecem. Tal documento tinha o
objetivo, como o próprio título expressa, de fazer
um diagnóstico e propostas de solução para [a realidade do sistema
Sócio-Educativo do Rio de Janeiro] construído a partir de quem
vivencia de perto a falência do sistema de atendimento ao adolescente
em conflito com a lei: a sua família, alijada do seu papel de
protagonista, situação garantida na legislação específica (Sales e
Cunha, 2004, p.02).
Percebendo e sentindo na pele a distorção entre o que diz a lei e o que acontece no
cotidiano do sistema sócio-educativo do Rio de Janeiro, o MOLEQUE objetiva acolher,
apoiar e desenvolver ações de promoção de direitos junto aos jovens que ingressam o sistema
sócio-educativo.
Pode-se perceber que as propostas desse movimento não dizem respeito tão somente ao
momento em que seus filhos encontram-se sob custódia do Estado nos estabelecimentos do
DEGASE, mas dirigem-se também ao apoio às famílias e aos jovens quando esses saem de lá.
Portanto, a luta dessas mães, como veremos no desenvolver desse estudo, além de dirigir-se
ao que acontece dentro dos estabelecimentos pertencentes ao DEGASE, busca criar
mecanismos de enfrentamento aos efeitos que a ‘estadia’ nestes locais têm nas vidas dos
jovens e de suas famílias, tais como o embrutecimento dos jovens e o estranhamento que isso
16
causa nas mães, que não raro não reconhecem naquele que saiu do sistema o filho que
colocaram no mundo.
As duas últimas propostas do relatório refletem bem uma preocupação do MOLEQUE
em tornar públicas as questões que atravessam a sócio-educação, no sentido de discuti-las
com os próprios familiares, com o poder público e com a sociedade.
O encontro com Rute e Mônica me fez querer pensar sobre as práticas de resistência
frente ao cotidiano repressor e violento do sistema sócio-educativo. Se eu já havia escrito
sobre a violência que lá ocorria motivada pelo triste encontro com David e sua mãe, naquele
momento eu estava diante, mais uma vez, de mães, que coletivamente buscavam formas de
enfrentamento a essa realidade brutal.
Trazer a história desses encontros é necessário para que eu possa por em análise minhas
implicações com o tema desta dissertação. Tal proposta de análise de implicações parte da
recusa da ‘neutralidade científica’ e encontra seus fundamentos nas ferramentas conceituais
da Análise Institucional
8
. Tal referencial teórico se propõe, através do conceito de ‘análise de
implicações’ romper com concepções de neutralidade e objetividade científica que
historicamente vêm atestando a validade da produção de conhecimento. Essas concepções
que remontam o discurso científico-positivista do séc. XIX até hoje marcam a produção de
conhecimento em sua tentativa de apreender “a verdade” das coisas para então controlá-las.
Parte-se, pois, da recusa a essas concepções que dicotomizam sujeito e objeto, ou pesquisador
e objeto, entendendo que ambos se constroem mutuamente no próprio ato de pesquisar,
acentuando o vínculo entre gênese teórica e social do que se propõe estudar, analisar (Rocha e
Aguiar, 2003).
Nessa concepção – análise de implicações –, conforme nos aponta Barros (1994), mais do
que uma questão de vontade, torna-se imprescindível uma “análise do lugar que se ocupa, do
lugar que se busca ocupar e do que lhe é designado a ocupar, com os riscos que isso implica”
(Barros, 1994, p.308-309). Para além dos vínculos afetivos, profissionais e políticos, tal
análise se realiza com as instituições que atravessam o campo de pesquisa (Rocha e Aguiar,
2003). É o cerne do trabalho sócio-analítico, diz Lourau (1993) e consiste em analisar a si
mesmo, a todo o momento, inclusive no momento da própria intervenção. E aqui se entende a
pesquisa como uma intervenção
8
Que neste estudo será representada por um de seus vários autores: René Lourau (1993) e nas discussões sobre
suas elaborações feitas por Barros (1994) e Rocha e Aguiar (2003).
17
... posto que pesquisa é sim ação, construção, transformação coletiva,
análise das forças sócio-históricas e políticas que atuam nas situações
e das próprias implicações, inclusive dos próprios referenciais de
análise. É um modo de intervenção na medida em que recorta o
cotidiano em suas tarefas, em sua funcionalidade, em sua pragmática...
(Rocha e Aguiar, 2003, p.73)
A Análise Institucional Francesa espraiou-se pela América Latina na década de 80 e
possibilitou a criação de novas práticas de pesquisa sob o título de pesquisa-intervenção, que
afirmam a pesquisa como prática interrogativa dos múltiplos sentidos cristalizados nas
instituições. Contudo, em que pese o sentido mais comum dado ao termo “intervenção”, não
objetiva uma modificação imediata de uma prática instituída. Ela se coloca como dispositivo
de transformação na medida em que questiona e propõe modificar a própria relação entre
teoria e prática, bem como entre sujeito e objeto (Rocha e Aguiar, 2003). É na assunção da
não neutralidade e na afirmação de uma prática de construção de conhecimento orientada por
tais princípios que este estudo coloca-se como uma pesquisa intervenção.
Portanto, é desse lugar de pesquisadora não-neutra, que afeta e é afetada pelo campo de
pesquisa, que esta dissertação foi construída.
OS CAMINHOS DA PESQUISA
Para tecer um breve histórico do processo de construção e trajetória do MOLEQUE, da
experiência de transformação da dor em luta, recorri às falas de Mônica e Rute,
coordenadoras e criadoras do MOLEQUE, obtidas através de entrevistas individuais com
ambas (Cunha, 2008; Sales, 2008). Além disso, uso uma entrevista com Mônica concedida ao
Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro/5ª Região (CRP/RJ), publicada no jornal
desse órgão (Cunha, 2006). Para o mesmo fim, uso um artigo produzido por Mônica e Rute
que descreve a trajetória do MOLEQUE (Cunha et al, 2007)
9
.
Para situar a criação do movimento Moleque em relação ao DEGASE, ou seja, para expor
o contexto de intenso sofrimento imposto a muitos jovens e as suas famílias quando se
encontram em suas unidades, foi realizada uma breve revisão de literatura cujo conteúdo
9
Este artigo é fruto da participação do MOLEQUE no 1º Seminário de Psicologia e Direitos Humanos, realizado
em 2005, organizado pela Comissão de Direitos Humanos do CRP/RJ. As falas dos participantes deste 1º e do
2º Seminário foram publicadas em livro (Cunha et al, 2007).
18
discute a situação do sistema sócio-educativo brasileiro. Foram analisadas produções
compreendidas no período de 1990 a 2006.
Destas, dez foram relatórios que denunciaram e descreveram a situação das unidades,
inclusive a ocorrência de tortura e maus-tratos, e a partir daí, propuseram recomendações às
autoridades brasileiras. Cinco destes relatórios são oriundos de organizações Internacionais
(Anistia Internacional, 2000 e 2001; Human Rights Watch, 2004 e 2005; ONU, 2001) e cinco
de organizações nacionais (Centro de Justiça Global, 2000 e 2004;
CLAVES/ENSP/FIOCRUZ, 1999; Conselho Federal de Psicologia & Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil, 2006; Rocha, 2002).
As demais produções incluem artigos e livros que abordam especificamente a questão da
violência institucional, ou seja, quando o Estado pratica a violência através de seus agentes.
Para abordar alguns outros movimentos compostos por mães, utilizei uma entrevista
concedida por Conceição Paganele
10
à revista Caros Amigos (Paganele, 2002) e um artigo
sobre as Mães de Acari (Freitas, 2002).
Trazer as falas das mães do MOLEQUE está para além de uma coleta de dados, trata-se,
sobretudo, da necessidade de que elas falem por si mesmas, buscando assim, questionar
relações saber-poder
11
que muitas vezes desqualificam saberes não-científicos (Foucault,
1999, p. 70). Assim, a teoria é usada como uma aliada na construção do trajeto dessa
pesquisa.
ALGUMAS FERRAMENTAS OU PRINCIPAIS
ALIADOS...
Em um diálogo com Foucault, Deleuze afirma que “... uma teoria é como uma caixa de
ferramentas (...) é preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma”(Foucault,
1999, p. 69). Pode, portanto, ser usada em certas configurações e não servir a outras.
Concordar com esse entendimento acerca do uso conceitual e referenciar-se nele, diz respeito
a uma maneira pouco convencional de estar na atividade acadêmica. Para esses autores uma
10
Coordenadora da AMAR – Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco, que iniciou
sua atuação em São Paulo frente às violações de direitos ocorridas nas unidades da Fundação Estadual do Bem-
Estar do Menor (FEBEM). A AMAR hoje atua também em outros estados.
11
Para Foucault todo poder implica uma forma de saber e vice-versa (Foucault, 1999, p. 70). Essa relação será
trabalhada a seguir.
19
teoria não expressa uma prática, e nem mesmo se aplica a uma prática, ela é uma prática.
Prática que pode tanto reproduzir modelos de subjetividade hegemônica, quanto pode ser
instrumento, ferramenta de desconstrução, de transformação.
Nesse sentido, para buscar compreender e analisar as experiências dessas mães, considero
importante ferramenta o referencial histórico-genealógico proposto por Foucault, posto que
ele rompe com a linearidade constitutiva do discurso histórico oficial, para dar voz e
movimentos a outras histórias: as dos embates cotidianos (Foucault, 1996, 1999). Não se
pretende aqui evocar, muito menos construir uma teoria que se pretenda explicativa da
realidade em um nível de generalidade que cala vozes em plena efervescência. Ao contrário,
pretende-se possibilitar mais um espaço para a voz dessas mulheres. Fazer ecoar suas falas,
seus gritos, potencializando de alguma forma, a sua luta. Digo “de alguma forma”, pois não
há uma maneira única ou ideal de se fazer isso. Não há uma forma ideal de se fazer uma
parceria ou de se afirmar a potência de um movimento. O faço, nesse momento do lugar da
academia, apostando assim na importância dessa aliança para a ressonância das vozes e da
luta dessas mulheres.
Ao encerrar sua obra Vigiar e Punir, Foucault alerta-nos sobre essa necessidade: a de se
“... ouvir o ronco surdo da batalha” (Foucault, 2002p. 254), indicando-nos a importância de
se estar atento às práticas não-hegemônicas, ao cotidiano, ao que está em construção “nas
entrelinhas” quando se pretende desnaturalizar o que se evidência como impotente,
incompetente, incapaz.
Essa é a perspectiva que norteia a proposta do meu encontro com as mães do
MOLEQUE. Se para Foucault, toda prática de saber implica em um exercício de poder
12
,
romper com esses saberes cristalizados e instituídos é o principal objetivo do método
histórico-genealógico
13
proposto por ele. Assim, ele rompe com a idéia de uma natureza das
coisas e uma origem pré-determinada dos acontecimentos, e trabalha com a gênese social dos
acontecimentos, entendendo esse ‘social’ como um campo de forças em constante tensão e
embate. E é em tais processos, afirma o autor, que certas práticas e discursos tornam-se
12
Embora de “naturezas” diferentes, poder e saber estabelecem relações de pressuposição mútua. Sobre o tema
trabalhado por Foucault, Deleuze afirma que “as ciências do homem não são separáveis das relações de poder
que as tornam possíveis, e que suscitam saberes capazes de atravessar o limiar epistemológico ou de formar um
conhecimento” (Deleuze, 2006, p. 82).
13
Tal referencial criado por Foucault, toma de empréstimo o conceito de “Genealogia”, proposto pelo também
filósofo F. Nietzsche (Foucault, 1999) e busca na história não a evolução dos fatos dominantes, mas os saberes
menores, as forças que atuaram na sua gênese. Desse modo “...o fato social se cria no enfrentamento de
múltiplas forças presentes, e a configuração que se estabelece é resultante da dominância de determinadas forças
sobre outras.” (Rocha e Aguiar, 2003).
20
hegemônicos em detrimento de outros que passam a ser negados e desqualificados pelo
discurso oficial (Foucault, 1996, 1999).
Dito de outra forma, a potência dessa perspectiva está no uso que ela faz da história, ao
trazer a construção de categorias ou idéias consideradas verdades essenciais, como por
exemplo, a periculosidade que seria intrínseca à pobreza, ou mesmo a culpa das famílias pelo
“destino criminoso” dos jovens que estão no DEGASE. Constitui-se como importante
ferramenta quando se pretende tecer uma discussão sobre a associação histórica entre pobreza
e criminalidade que vem justificando a violência e a tortura contra essa parcela da população.
A própria história da assistência à infância no Brasil nos mostra como a infância e as famílias
pobres foram objeto de políticas de controle, tutela e normatização por serem consideradas
inadequadas em seu modo de vida. Em nome da prevenção e do controle, do afastamento
dessas crianças do “vício, da vadiagem e do crime”, condutas consideradas “típicas” dos
ambientes pobres, julgou-se urgente que o Estado interviesse educando, ou corrigindo – se
necessário com o uso de força e encarceramento – os “menores” para que se transformassem
em cidadãos úteis e produtivos para o país, assegurando a organização moral da sociedade
(Arantes, 1995; Rizzini, 2000).
Outros conceitos-ferramentas da Análise Institucional norteiam as análises desta
dissertação. Quando me refiro à Análise Institucional, de que ‘instituição’ estou falando?
Pois bem, “instituição”, para este arcabouço teórico diferencia-se de local geográfico,
chamado de estabelecimento. O termo ‘instituição’ diz respeito aos processos de produção de
práticas sociais datadas, localizadas, que não apresentam uma natureza em si, uma fixidez, ou
um caráter de universalidade. No entanto, tais práticas, quando instituídas, tornam-se
cristalizadas, ou seja, apresentam-se como a-históricas, naturais, universais e eternas.
Nessa perspectiva, categorias tais como “menor infrator”, “família desestruturada”,
“classes perigosas” e o próprio tratamento brutal que viola diversos direitos de tantos jovens,
podem ser tomadas como instituições. E não obstante assumirem um caráter eterno, natural e
a-histórico, as instituições, quando tomadas como construções históricas que são reproduzidas
e atualizadas, possibilitam pensar as formas de resistência que se forjam a partir de forças
instituintes de novos modos de ser e estar no mundo (Lourau, 1993).
Essas forças chamadas de “instituintes” apresentam-se como saberes que entram em
contradição com as forças instituídas, produzindo novos campos de coerência e diluindo
modelos hegemônicos. Para Lourau, “instituído” refere-se aos saberes cristalizados, em que
se verificam tensões para manter a ordem vigente (Lourau, 1993). No entanto, há sempre a
21
circulação de outros saberes que se contrapõem aos que se tornaram hegemônicos e
instituídos. Esse jogo entre instituído e instituinte produz um processo de institucionalização
de práticas que estão em constante mobilidade e se constrói na história.
Nessa tensão entre as forças instituídas e as forças instituintes é que podemos discutir as
práticas do Movimento Moleque em sua trajetória. Que tensões, embates e atravessamentos
permeiam as atividades desse Movimento em sua luta pela garantia de direitos de jovens e
suas famílias? Em que contexto histórico esse grupo de mães surgiu pretendendo colocar-se
como agente de resistência coletiva e de pressão política em favor da implementação do ECA
e da luta pelos direitos humanos? De que maneira esse grupo pode, em sua luta, contribuir
para a desconstrução de algumas imagens e desnaturalizar certas práticas/discursos que
desqualificam e culpabilizam famílias empobrecidas, que chegam a ser classificadas como
perigosas?
Neste campo de forças instituintes e instituídas estamos todos imersos. Obviamente não
é possível instituir novas práticas incessantemente. A vida também acontece nas formas
instituídas. A questão é estarmos atentos às capturas cotidianas que nos impelem a
reprodução de modelos instituídos hegemonicamente para que não o façamos de forma ‘cega’
ou acrítica. E que possamos não nos sujeitar a elas quando elas nos fazem sofrer.
Com as mães do MOLEQUE não é diferente. Se algumas de suas falas expressam
subjetividades instituídas, isto não pode, de modo algum, pormenorizar a sua luta. Que
pretensão seria analisar em que ponto acontece ‘capturas’ de forma a apontar-lhes “onde” ou
“no que” têm que mudar... Não foi para isso que fiz de suas falas um objeto de estudo.
Instituímos e reproduzimos práticas/discursos o tempo todo. As falas de Rute e Mônica só
deixam mais evidente a humanidade que habita um movimento social, que lhe dá carne,
sangue, cheiros, sons, dores e amores.
Não serão elas, neste trabalho, representantes ou recortes representativos de movimentos
sociais de mulheres ou de mães. Não há nada de abstrato quando olho para o MOLEQUE.
Há sim, mulheres que relatam suas experiências de transformação da dor em luta. E este é um
trabalho que se implica na construção dessas experiências de transformação de dor em luta, de
impotência em potência, de estagnação em movimento.
A partir das concepções apresentadas entende-se que é possível problematizar relações de
poder instituídas, interrogando suas gêneses histórico-sociais. Dessa maneira, atos e falas que
escapam do registro da história oficial – por exemplo, daqueles considerados incompetentes
22
ou marginais- emergem no cotidiano, produzindo e possibilitando análises. Busca-se assim,
produzir rupturas no que estava até então instituído e decompondo o que se apresentava como
totalidade, natureza e verdade. Este estudo, portanto, é um trabalho de afirmação. Afirmação
da vida, da potência, de novas possibilidades e novos lugares construídos, conquistados ou
perseguidos, pela luta das mães do Movimento MOLEQUE.
Luta esta que busca afirmar outro lugar para esses jovens, para quem a violência de
Estado, institucionalizada através de julgamentos e execuções violentas de medidas sócio-
educativas, vem confirmando que para eles que não há justiça, afirmando que o único lugar
possível é o de objeto de violência. Tal lógica é possível a partir da construção de um lugar
de “monstruosidade inumana”, que marca esses jovens e que justifica toda uma gama de ações
violentas e de extermínio a eles dirigidas. A violência de Estado quando não mata, brutaliza,
de forma que muitos desses jovens assumem o papel de “monstro” que lhes foi imputado.
É contra essa lógica brutal que presente no cotidiano das unidades de sócio-educação em
todo o Brasil, que lutam as mães do MOLEQUE. E é sobre alguns aspectos dessa trajetória
que se trata esta dissertação.
O presente estudo organiza-se em três capítulos.
O primeiro capítulo apresenta uma descrição do cotidiano violento das unidades sócio-
educativas brasileiras, situação que pouco mudou, mesmo após do advento do Estatuto da
Criança e do Adolescente, em 1990. Veremos que são dezoito anos de uma legislação que
busca, sobretudo, a garantia de direitos de jovens e crianças, mas que não vem sendo aplicada
adequadamente quando o assunto é adolescentes em conflito com a lei. De acordo com o
material consultado – que responde por um período de 16 anos – permanecem as mais
diversas formas de violência física e psicológica contra esses adolescentes e que se estendem
a suas famílias sob a forma de humilhações e preconceitos.
No segundo capítulo já nos deparamos com as falas de Mônica e Rute, que em seus
relatos, apontam para aquilo que entendem como o processo que leva a muitos adolescentes a
cometerem atos ilícitos. A partir de suas experiências e do que passaram com seus filhos,
essas mulheres apresentam um quadro em que o assédio do consumo aliado à falta de
condições para consumir facilitam o ingresso do adolescente pobre em formas ilegais de
aquisição de renda. Desta forma, afirmam a construção social de uma trajetória que não foi só
delas, mas que é de quase todas as mães que têm seus filhos no sistema sócio-educativo
brasileiro. Tal trajetória é marcada pela ineficácia ou mesmo a falta de políticas públicas que
23
possibilitem uma vida digna a milhares de brasileiros, e que se concretiza na vida dessas mães
através do desemprego ou subempregos, das várias jornadas de trabalho, da falta de tempo
para estar com os filhos. E ao expor esse processo, Rute e Mônica questionam que “ninguém
nasce bandido”, e nem mesmo, “mãe de bandido”. Assim, este é um capítulo que trata da
trajetória dessas mulheres antes de se conhecerem e fundarem o MOLEQUE, fazendo ecoar
as falas sobre suas dores e também sobre seus movimentos, já que, como veremos, o
“Movimento” surge, de um encontro de movimentos que já aconteciam nas vidas de Rute e
Mônica.
O terceiro e último capítulo aborda a construção do MOLEQUE a partir do encontro de
Rute e Mônica. Nessa trajetória de quase cinco anos a luta do Movimento vêm possibilitando
a construção também de outras formas de existência para essas mães, sobretudo, pela
experiência da coletivização. É nesta vertente que entendemos as práticas de resistência como
práticas de re-existências.
Concluindo a dissertação, aponto para algumas questões que se colocam para o
MOLEQUE enquanto movimento social, sobretudo em função dos planos para seu futuro.
24
CAPÍTULO 1
O SISTEMA SÓCIO EDUCATIVO BRASILEIRO E A
BRUTALIDADE DA LÓGICA CARCERÁRIA
É notório no Brasil que a situação dos estabelecimentos prisionais é historicamente
desumana e degradante. A mídia veicula imagens de prisões superlotadas, com aqueles
corpos amontoados, ora aparecendo rostos em meio à escuridão, ora surgindo apenas mãos
fazendo gestos, sinais, segurando objetos... Enfim, quem nunca viu uma cena destas na TV
ou numa foto de jornal? O “horror” é uma instituição nas prisões brasileiras, e este capítulo
tenta mostrar como o sistema sócio-educativo brasileiro, à revelia das transformações e nas
legislações que versam sobre o tema, permanece historicamente, funcionando sob uma lógica
carcerária. Tal qualificação – “horror”, bem como “inferno”, “depósito humano”, e outras
tantas, – acompanham as caracterizações de tais estabelecimentos nos diferentes regimes
legais pelos quais nosso país passou.
Da criação da Justiça de Menores em 1923 e do primeiro Código de Menores em 1927, à
sua reformulação em 79, trazendo então,norteados pela “Doutrina da Situação Irregular”, ao
Estatuto da Criança e do Adolescente e sua “Doutrina da Proteção Integral”, a situação dos
estabelecimentos “correcionais’ para jovens pouco, ou nada mudou, e até mesmo, como
arriscamo-nos a afirmar, agravou-se.
Sendo este um trabalho sobre gente que fez da dor, luta pela vida, aqui trataremos da dor
que no caso de Rute e Mônica, transformou-se em indignação produtiva, em força para lutar
pela garantia de direitos já salvaguardados pelas legislações. Assim, poderemos, mais à
frente, pensar sobre as resistências por elas construídas frente a esse intolerável. Portanto,
25
este capítulo descreve o contexto que produziu, e ainda produz dor e horror naqueles que se
deparam com o sistema sócio-educativo brasileiro.
1.1 PANORAMA DO SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
BRASILEIRO
Diversos relatórios nacionais e internacionais atestam por escrito a situação das unidades
do Sistema sócio-educativo brasileiro. A pesquisa bibliográfica realizada para este trabalho
foi de 1990 até o ano de 2006, contudo, diversos organismos, nacionais e internacionais,
comprometidos com a defesa de direitos humanos não cessam de tentar dar visibilidade à
questão, redigindo seus relatórios divulgando-os ao mundo.
Tais relatórios colheram dados através de visitas aos estabelecimentos do sistema sócio-
educativo brasileiro, e constataram toda a sorte de violação de direitos a que são submetidos
os jovens que se encontram nas diversas unidades de sócio-educação no Brasil. Todas as
conclusões apontaram para a falência desse sistema em sua missão de sócio-educar os jovens
sob sua custódia, denunciando a ocorrência de maus-tratos, espancamentos, e até mesmo de
torturas, além das péssimas condições de higiene, superlotação, construções baseadas no
modelo carcerário, assistência jurídica falha e precária, falta de projetos profissionalizantes e
de escolarização eficazes, chegando, estes últimos, a serem inexistentes. (Anistia
Internacional, 2000, 2001; Centro de Justiça Global, 2000, 2004; Human Rights Watch, 2004,
2005; Organização das Nações Unidas, 2001; CRP/OAB, 2006).
A tortura e os maus-tratos são difundidos de modo generalizado e
sistemático (...) e pode ser encontrada em todas as fases de detenção
(...) bem como em penitenciárias e instituições destinadas a menores
infratores (...). Ela não acontece com todos e em todos os lugares;
acontece principalmente com os criminosos comuns, pobres e negros
que se envolvem em crime de menor gravidade, ou na distribuição de
drogas em pequena escala (ONU, 2001, §166).
Um dos tipos de violência que mais se destaca no cotidiano das unidades de sócio-
educação é a violência física, sobretudo na forma de espancamentos e tortura. Todos os
textos analisados apontam que essas formas tratamento são utilizadas como forma de punição
e contenção de insurreições dentro das unidades. Contudo, espanca-se e tortura-se também
26
para subjugar o adolescente, pois os espancamentos são muitas vezes, parte de rituais de
recepção do jovem à unidade, como atesta a seguinte fala:
Quer ganhar aonde? Nos peitos ou na lata? (Cunha, 2005)
Sobre a violência física que vitima os jovens infratores nos estados de São Paulo e Rio de
Janeiro, o relatório da ONU (2001) relata graves sessões de espancamento com cabos de
madeira em jovens semi-nús; a prática de manter os jovens semi-nús em chão de concreto em
absoluto silêncio, sob pena de espancamentos por monitores quando o silêncio era quebrado;
espancamento com cabos de ferro e fios, por monitores algumas vezes encapuzados, e por
unidades especiais chamadas para intervir em rebeliões e fugas. Sobre a violência física como
forma de retaliação e punição, temos principalmente os espancamentos noturnos, por
ocorrerem em período de ausência de técnicos e visitas externas. Também há relatos da
prática do “corredor polonês” para recém-chegados nas unidades e de monitores noturnos que
chegavam embriagados e espancavam aleatoriamente os meninos. Os espancamentos, que
muitas vezes se iniciam nas delegacias, durante as detenções e interrogatórios, foram a causa
de muitas rebeliões, segundo alegaram alguns internos. Rebeliões estas que, como no caso de
da Unidade de Franco da Rocha, em São Paulo, muitas vezes foram previstas pelos monitores,
que advertiram às autoridades sobre a ‘situação explosiva’ do lugar
14
, que nada fizeram.
Segundo Paganele (2002), o período de 1999 e 2000 foi repleto de rebeliões nas Unidades da
Febem, em São Paulo, pois o jovens “queriam mostrar para o mundo as torturas, que
estavam insuportáveis”(p. 34).
Após descobrir inúmeros pedaços de ferro e de madeira que se encontravam escondidos,
o relator questiona o diretor da unidade de internação de Franco da Rocha, em São Paulo,
afirmando que aqueles não poderiam ser “restos da rebelião passada” como o mesmo alegava,
pois os locais onde foram encontrados tais objetos eram de acesso exclusivo de monitores.
Posto isso, o diretor ainda tentou responsabilizar funcionários que, supostamente, queriam
prejudicar a imagem da instituição e de seu programa de reabilitação, mas...
... diante dos testemunhos consistentes dos internos, de diferentes
alas, que, todos eles, indicaram os mesmos lugares onde poderiam ser
encontrados os canos e cabos com os quais teriam sido espancados e
diante das marcas – consistentes com suas alegações - ainda visíveis
na maioria dos internos, o Relator Especial deixou claro que
14
Essa Unidade não foi projetada para o propósito de reeducação e sim de prisão, e como outras unidades, estava
superlotada e com o número de funcionários proporcionalmente menor ao de internos (desproporção essa,
também relatada nas unidades do Rio de Janeiro).
27
considerava implausível essa explicação. O diretor por fim
reconheceu que ‘não podia justificar o injustificável’. (ONU, 2001,
§48).
A Anistia Internacional (2001), organização de defesa dos direitos humanos que faz
visitas periódicas ao Brasil, produziu relatório intitulado “Tortura e Maus-tratos no Brasil:
desumanização e impunidade no sistema de justiça criminal”, após três anos de visitas a 40
centros de detenção em 10 estados brasileiros. Em sua capa consta uma citação de um
detento: “Eles nos tratam como animais”. Esse texto faz uma exposição do contexto
histórico da tortura no Brasil, situando-a no legado deixado pelo regime militar em nas
décadas de 60 e 70 e na sociedade atual, dita democrática. Discute também a questão da
eficácia e do uso da Lei de Tortura
15
, questionando a impunidade de agentes do Estado quanto
à prática da tortura posto que há falta de definição quanto à autoria e à caracterização do
crime. Aponta também para a relutância na aplicação dessa lei, chegando a expor a
preocupação pela “omissão generalizada da justiça criminal ante a implementação” (Anistia
Internacional, 2001, p. 42).
Os relatórios são unânimes em afirmar que as autoridades falham em sua obrigação de
assegurar a proteção de direitos desses jovens, como garante o ECA, mantendo em seus
quadros profissionais mal-preparados, mal-pagos e mal-assistidos. Denunciam também que
as unidades de internação funcionam como presídios e que entidades de proteção e garantia
dos direitos muitas vezes são obrigadas a pedir autorização aos diretores das unidades com
antecedência, o que impossibilita o acesso dessas entidades a casos de emergência, além
favorecer certa “maquiagem” do local.
Os relatórios apontam que, em geral, o sistema sócio-educativo é limitado ao uso de um
modelo repressivo e violento, que é defendido por autoridades e endoçado por grande parte da
sociedade, por localizarem nesses jovens sua suposta periculosidade e agressividade.
Articulado a isso está o fato do clamor da sociedade por mais segurança que é respondido
com políticas públicas repressivas e mais endurecidas principalmente a esses jovens, que são
freqüentemente apontados como culpados pela crescente “onda de violência”. Postura essa,
que segundo a Anistia Internacional, “mascara uma tolerância generalizada à tortura e aos
maus-tratos de adolescentes infratores” (Anistia Internacional, 2000) que é incrementada e
mantida pelo medo e pelo silêncio:
15
Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997 (Brasil, 2008)
28
Os adolescentes estavam discutindo de boca. Aí uma agente
[feminina] deu dois tapas, tapas mesmo com mão aberta e forte, nas
costas de um.(...) Na hora eu ia me levantar pra reclamar, mas meu
filho pediu ‘mãe, não faça isso que eu vou apanhar também’. (Human
Rights Watch, 2005, p.19)
Ficava com aquelas machas roxas. Mas não dava na hora da visita pra
levantar a roupa deles pra ver. Senão eles apanhariam mais lá dentro.
(Human Rights Watch, 2005, p.19)
Eu vi um agente bater o queixo de um menino na mesa. (Human
Rights Watch, 2005, p.20)
No Padre tinha a famosa Kelly Key. Um pedaço de madeira grande
ruim de quebrar. Quando tirava ela, aí todo mundo ficava quieto.
Também tinha a Thundercat, uma perna de três assim, enorme. A
espada do Thundercat. Aqueles cabos de enxada maiorzinho assim.
Elas batiam com isso também. Dão tapa no peito, e na cara. Batem na
cara mesmo. (Human Rights Watch, 2005, p.20)
Um exemplo do endurecimento das ações como forma de controle dos jovens refere-se às
rebeliões em unidades da Febem que ocorreram em São Paulo entre 1999 e 2000. As
autoridades estavam informadas sobre a situação de “panela de pressão prestes a explodir
que culminaria nas rebeliões em várias unidades da Febem. No entanto, ao invés de
implementar mudanças na situação caótica das unidades a fim de que o quadro de intenso
sofrimento que causou as rebeliões fosse reordenado, o Estado escolheu o caminho da
manutenção de uma política exclusivamente repressiva.
Não só manteve essa perspectiva, como acirrou ainda mais a opressão, a repressão e a
violência no trato com os aqueles jovens. Paganele (2002), que sentiu na pele os efeitos desse
endurecimento, declarou que a partir de 2000 a Febem passou a adotar rotinas mais severas de
controle impondo aos jovens e suas famílias regras rígidas de visitação, esquemas de
contenção e separação dos jovens. Nesse ano de 2000, segundo essa mãe, “todo mundo ficou
proibido de entrar” (p. 35). Apenas o Ministério Público tinha livre acesso às unidades, os
pais ficaram restritos aos dias de visita, e mais do que nunca, aqueles jovens estavam “mais
contidos e menos tratados”(Paganele, 2002, p. 34).
Outro dado importante e alarmante apontado nos relatórios diz respeito a grupos
organizados de torturadores. Considerados uma “lenda” pelas autoridades, esses torturadores
agem encapuzados, durante a noite, promovendo espancamentos generalizados.
29
Um desses grupos, conhecido em São Paulo como “Os Ninjas”, teve sua atuação flagrada
por uma equipe de TV, e após a exibição das cenas, rompeu-se uma grande fuga de internos,
dentre os quais, provavelmente estariam vitimas e testemunhas da atuação dos Ninjas.
(Centro de Justiça Global, 2000, p.2). Paganele (2002) também cita a ação desse grupo,
contudo aponta para o fato de que, á época de sua entrevista, os Ninjas estariam “um pouco
inibidos (...) por que começaram a ser denunciados.” (p.35). Indicando mais uma vez a
importância de denúncias constantes, do rompimento do silêncio e da visibilidade de tais
questões.
Criado para assumir as atribuições em âmbito estadual da antiga Fundação do Bem-Estar
do Menor (FUNABEM), o DEGASE ficou diretamente ligado à Secretaria de Estado e Justiça
e Interior do Estado do Rio de Janeiro, quando a recomendação nacional era vincular os
sistemas sócio-educativos às pastas governamentais sociais ou educacionais (Arantes, 2000).
Previa-se todo um re-ordenamento institucional, visando à implementação de programas
sócio-educativos consoantes à Doutrina de Proteção Integral preconizada no Estatuto da
Criança e do Adolescente desde 1990 (CLAVES/ENSP/FIOCRUZ, 1999). Contudo,
A transição do nível federal para o estadual foi radicalizada. As
unidades existentes passaram para a responsabilidade do Estado em
setembro de 1994. Em outubro do mesmo ano, as três unidades de
internamento à época foram incendiadas, um incêndio a cada dia, em
dias subseqüentes. Não houve mortes em nenhum desses sinistros,
mas nos escombros foram encontrados instrumentos de tortura. Em
24 horas os funcionários federais foram demitidos e os novos
servidores do DEGASE começaram a trabalhar nessas condições: em
prédios recém incendiados e sem nenhum treinamento.
(CLAVES/ENSP/FIOCRUZ, 1999, p. 02)
Assim começaram as atividades do DEGASE, que segue até os dias de hoje como palco
de inúmeras atrocidades, como assinalado anos depois, em 2004, pela Human Rigths Watch
em seu décimo sétimo relatório sobre justiça juvenil e condições de confinamento de crianças
e adolescentes. Ao explanar um panorama da situação da detenção juvenil no Estado do Rio
de Janeiro, aponta para a precariedade e até mesmo para a inexistência de condições mínimas
de uma habitação saudável desses estabelecimentos.
Os dados dos relatórios deixam claro o ciclo de violência alimentado pelo medo: os
jovens temem denunciarem as barbáries que sofrem por medo de retaliações, e os que por
ventura apresentam queixa, muitas vezes desistem. Esse mesmo medo atravessa a prática
profissional de quem assiste juridicamente esses jovens: segundo relato de uma defensora
30
pública do Estado contido no relatório, os “assistentes sociais e os advogados de defesa
enfrentam uma decisão difícil: denunciarem os abusos físicos ou permanecerem quietos para
manter protegidas as crianças e acelerar sua liberação.” (Human Rights Watch, 2004, p.24).
Outro impedimento exposto neste relatório por uma promotora de justiça para que se leve
adiante uma denúncia, em que pesem boas investigações realizadas pelo Ministério Público, é
o corporativismo entre os funcionários, que encobrem as práticas violentas de colegas,
negando-se a depor, dificultando a produção de provas, perpetuando a impunidade. No
máximo, diante de uma denúncia de abuso, maus-tratos ou tortura, o que acontece é a
transferência do funcionário para outra unidade, promovendo uma grande circulação de
abusadores.
Outra característica de práticas carcerárias que se percebe nas unidades do sistema sócio-
educativo brasileiro é o abuso sexual. O estudo realizado por Assis (1999) afirma que o abuso
sexual é prática reiterada nestes estabelecimentos, contudo, não é imputada funcionários, mas
sim aos próprios internos. Acontece cotidianamente, é relatada em prontuários, se configura
como uma espécie de ‘lei’ entre os internos, dirigindo-se, principalmente, aos recém
chegados, mais novos e mais fracos, às unidades. O agravante para o sistema sócio-educativo
em relação ao sistema penitenciário reside no fato de o mesmo negar a sexualidade dos jovens
sob sua custódia, proibindo visitas íntimas, diferentemente do que acontece nos cárceres. Há
que se considerar essa problemática, já que muitos jovens se encontram com vida sexual
plenamente ativa ao adentrarem o sistema, e inclusive já são pais e/ou tem relacionamentos
fixos. Essa problemática da sexualidade no sistema sócio-educativo também é apontada no
Relatório “Inspeção Nacional ás Unidades de Internação de adolescentes em conflito com a
lei”, que além de atestar a falta de visitas íntimas, afirma ainda a falta de preparo existente no
sistema para lidar com questões como a homossexualidade. (Conselho Federal de Psicologia
& Conselho Federal da Ordem os Advogados do Brasil, 2006)
O déficit educacional é outro problema sério que se encontra em todo o sistema sócio-
educativo. A falta de projeto político pedagógico concretiza-se na oferta pífia de
escolarização e até mesmo na inexistência de qualquer prática educacional. O relatório do
CFP junto com a OAB atesta que 17% das unidades visitadas estavam sem nenhum tipo de
escolarização, e relata que em uma sala de aula fora encontrado “um formigueiro de 3 metros
quadrados” e que em outra unidade, “(...) os professores não ministram aulas por medo dos
adolescentes.” (Conselho Federal de Psicologia e Ordem dos Advogados do Brasil, 2006,
p.108).
31
Tampouco, segundo o mesmo relatório, são ofertados a contento e em respeito à lei,
programas de profissionalização. Metade das unidades visitadas encontravam-se sem
qualquer programa de profissionalização. Os mesmos quando existem, são executados de
forma precária, usados como prêmio por bom comportamento e acabam por ser destinados a
poucos adolescentes, e às vezes, são ministrados por pouco tempo, constituindo-se em um
passatempo, quando conseguem desfrutar dele, pois nem todos conseguem. Eles vão mais
para sair dos muros fechados, para andar ali fora um pouquinho” (Paganele, 2002, p. 34).
A estrutura física das unidades assemelha-se a de presídios, mais uma vez contrariando as
disposições legais. E essa característica carcerária constitui-se muitas vezes como uma
“herança”, posto que muitos prédios de unidades sócio-educativas foram unidades prisionais.
As péssimas condições dos alojamentos estão presentes em 80% das unidades brasileiras,
segundo o relatório do Conselho Federal de Psicologia e Ordem dos Advogados do Brasil
(2006, p.108) Os jovens internos ficam em celas insalubres e superlotadas, dormindo
amontoados, ou mesmo se revezando no sono. De uma forma geral, não há colchões, e
quando há, são sujos e mal conservados. Há fios elétricos expostos, e banheiros sujos e
entupidos, muitas vezes, dentro das celas onde ficam os jovens confinados.
A prática do isolamento é comum como forma de punição aos jovens que apresentam
condutas consideradas como mau comportamento. Para esses adolescentes são reservados
espaços conhecidos como “tranca” – pequenos cômodos -geralmente sujos, escuros, fétidos e
sem ventilação.
Assistência jurídica também é apontada nos relatórios como falha no âmbito do sistema
sócio-educativo brasileiro. Muitos jovens ficam sem saber do andamento de seus processos e
relatam que falam raramente com seus advogados. Sem a devida defesa, os prazos são
perdidos, o que atrasa o andamento do processo, prolongando desnecessariamente a
permanência do adolescente na internação. Muitos adolescentes continuam internos,
ultrapassando o tempo de internação provisória, que deveria durar no máximo 45 dias.
Quanto à saúde dos adolescentes, os relatórios apontam que as condições de higiene das
unidades são precárias. Comidas ruins, falta de medicamentos, de roupas, toalhas e roupas de
cama. Em muitas não existem nem mesmo camas. “Os quartos são uns salões de cimento e
os colchões ficam jogados no chão, para que eles durmam” (Paganele, 2002, p. 32). Há
infestações de piolho, sarna e outros problemas dermatológicos e também ginecológicos, no
caso das meninas.
32
Há relatos de suicídios e assassinatos, tentados e consumados; de brigas entre os
adolescentes e relatos de sofrimento mental, de transtornos psíquicos, e dependência química,
para os quais não há oferta dos devidos tratamentos.
1.2 “ESPANCATIVO” E... SELETIVO.
Não raramente as unidades do sistema sócio-educativo são qualificadas como “inferno”.
Mas o que permite que um sistema que deveria ser regido por uma doutrina de proteção seja
comparada ao “inferno”, tornando-o correlato ao sistema penitenciário?
Em Arantes (2004) vemos o Instituto Padre Severino ser equiparado ao inferno. Neste
artigo, a autora analisa uma reportagem de um jornal impresso cuja manchete anunciava que
pais de classe média estariam levando seus filhos para conhecer tal unidade para que, diante
da visão “do inferno” pudessem “ensiná-los a evitar o envolvimento com o crime”.
Questionando a naturalidade com que se aborda a situação “infernal” em que vivem os muitos
jovens internos nesta unidade, a autora aponta para o fato de que “99% da ‘clientela’ do
‘inferno’ é de adolescentes pobres” (Arantes, 2004, p.03). Essa porcentagem decorre do fato
de que os filhos da classe média, na maioria dos casos, têm seus problemas resolvidos pelos
pais na própria delegacia, geralmente através do pagamento do prejuízo causado pelos jovens.
A realidade nos mostra, portanto, que o sistema sócio-educativo tem sido para os pobres,
como atesta Paganele (2002): “(...) por que quem está hoje na Febem é a classe popular. Se
fosse filho da classe média, com certeza já teria mudado essa questão toda” (p.33).
O cotidiano “infernal” vivido por inúmeros jovens sob a guarda do sistema sócio
educativo brasileiro está inscrito e é efeito de um processo histórico que associa
“periculosidade, criminalidade e condição de não-humanidade à situação de
pobreza”(Coimbra e Nascimento, 2004, s/p). Tal afirmação nos leva a pensar em alguns
caminhos sobre o porquê, apesar dos discursos oficiais protetores e garantistas de direitos,
ainda persistem e acirram-se as práticas de maus-tratos tortura e até extermínio da juventude
pobre brasileira.
Batista (2003a) afirma que “na periferia do neoliberalismo a destruição das precárias
estruturas previdenciárias têm dado lugar a um incremento gigantesco de um Estado Penal”.
(p.11). Tal afirmação parte das análises de Loic Waquant (2003) sobre o processo de
33
substituição do Estado Previdenciário norte-americano pelo Estado Penal, no qual a prisão
tornar-se-ia substituta dos guetos, concretizando assim, mais uma forma de segregação. De
acordo com Batista (2003b) “A prisão, como o gueto, seria uma instituição especial capaz de
confinar os membros mais visíveis das multidões ‘perigosas’” (p.7), o que torna, para autora,
inevitável comparar os guetos negros americanos com as favelas cariocas, ambos
considerados lócus do mal e grandes ‘fornecedores de corpos’ às prisões e ao extermínio.
Apontados como grandes responsáveis pela “onda de violência” crescente que assola o
Brasil, esses jovens são retratados pela mídia como portadores de um mal natural, essencial,
que os compara a animais, desumanos (Njaine et al, 2002). Articulado a essa visão de que
esses jovens são “monstros”, “animais”, cresce o número de pessoas favoráveis ao
endurecimento da legislação, alegando que leis como o ECA protegem esses bandidos,
deixando-os impunes e com isso, gerando o aumento da violência.
Em pesquisa sobre os discursos do medo na imprensa carioca Batista (2003c) aponta que
a favela aparece nos discursos midiáticos “como locus do mal e dissolutora de fronteiras,
como viveiro de monstros.” Para a autora, tais discursos recorrem às figuras do extermínio ou
da limpeza e desta forma, as operações policiais se transformariam em caçadas pela limpeza
das cidades, pela higienização da sociedade, “tirando do caminho” através da prisão, e muitas
vezes do extermínio, aqueles considerados causadores da “sujeira e da desordem” social.
Esses discursos vêm produzindo e difundindo um “medo da desordem e têm servido,
historicamente, para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento do povo
brasileiro” (Batista, 2003b, p. 1). Segundo a autora, “só no Rio de Janeiro foram
assassinadas mais de 5.000 pessoas no primeiro semestre de 2003, em sua grande maioria
provenientes da mesma extração social, da mesma faixa etária e da mesma etnia
[demonstrando então que] o sistema se impõe pelo terror.”(Batista, 2003b, p.1)
Segundo Coimbra (2001), a mídia é um importante equipamento social na construção da
associação entre pobreza e criminalidade, seja pela sua associação direta e simplista,
localizando os territórios da pobreza como “territórios perigosos”, seja pelo destaque dado à
criminalidade que desvia a atenção do público dos inúmeros problemas que geram essa
própria criminalidade. Isso gera um processo contínuo de retroalimentação do medo que
aumenta ainda mais a paranóia nos grandes centros urbanos.
Tal divulgação cria “na população uma indiferença face ao trágico destino de milhares
de jovens pobres, tanto dos que são executados sumariamente, quanto dos que se encontram
privados de liberdade”. (Arantes, 2006, p.13). Por sua vez essa paranóia articulada a
34
indiferença, aumenta a demanda social por soluções imediatistas cada vez mais endurecidas,
violentas e repressoras contra essa camada da população, que por ser “perigosa”, é
merecedora de uma política de segurança de “tolerância zero” que inclui tortura e maus-tratos.
Coimbra (2001) argumenta que a exigência urbana moderna de cidades assépticas, limpas já
não pode ser cumprida dada à impossibilidade de administrar, controlar ou esconder a miséria
- que, portanto, deve ser exterminada através do aniquilamento daqueles que nos expõem,
incomodamente, a desigualdade social brasileira. Alerta Arantes que:
Confrontada com altos índices de criminalidade, a sociedade brasileira
tem demandado providências cada vez mais repressivas, como por
exemplo, o rebaixamento da maioridade penal. Aponta-se
insistentemente como causa do aumento da criminalidade entre os
jovens uma suposta impunidade proporcionada pelo [ECA]. Há
mesmo aqueles que desejam a pena de morte ou a mera execução
levando-nos a indagar se a sociedade brasileira não tem nada melhor a
oferecer à suas crianças e adolescentes pobres do que a exploração, o
encarceramento e o extermínio. (Arantes, 2005, p. 76).
Uma importante ferramenta para se pensar essa questão sobre a situação dos adolescentes
em conflito com a lei no Brasil, é o conceito de “classes perigosas” trabalhado por Coimbra
(2002), diz respeito à associação entre pobreza e criminalidade, construída historicamente por
todo um arcabouço teórico racista e eugenista que embasou cientificamente ações higienistas
dirigidas à pobreza, visto que nela estaria localizada a origem dos perigos sociais. Assim,
uma série de medidas, ações e políticas públicas foram criadas a partir da influência
higienista, no intuito de modificar, controlar e moldar o cotidiano das famílias pobres, ditando
regras de conduta e de cuidados, sobretudo visando ao controle de futuros atos criminosos.
Tal preocupação com o controle da periculosidade, que seria intrínseca a pobreza, nos
leva ao que Foucault (2002) chamou de controle das virtualidades.
Foucault (1996) aponta que o advento do capitalismo industrial possibilitou uma
reorganização que gerou a reforma do sistema judiciário na Europa e no mundo, na qual o
poder legislativo articulado ao judiciário procurou adequar e reformar o comportamento dos
indivíduos a padrões estabelecidos como corretos. Nessa configuração, as punições passaram
ser “menos diretamente físicas” emergindo então “(...) uma certa discrição na arte de fazer
sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e mais despojados de ostentação
(...) A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena. E tudo o que pudesse implicar em
espetáculo desde então teria um cunho negativo” (Foucault, 2002, p.12).
35
Segundo o autor, penetrávamos na era da “sobriedade punitiva” (Foucault, 2002, p.16) na
qual o sofrimento do corpo não seria mais o elemento constitutivo da pena, mas sim a
privação do indivíduo de sua liberdade, considerado então, seu bem maior e um direito. Esse
entendimento jurídico incidiu no controle sobre as virtualidades dos indivíduos, ou seja, na
prevenção visando o impedimento de algo que poderia vir a acontecer. Para tanto, surgiram
aparatos (escolas, fábricas, polícias, hospitais, reformatórios...) que serviriam ao propósito da
vigilância e do adestramento do físico, mas principalmente da “alma”, que viriam a produzir
os corpos dóceis e úteis ao trabalho: demanda do capitalismo industrial que se desenvolvia.
Entrava-se no que o autor chamou de “sociedade disciplinar” na qual erguiam-se fundações
do sistema penal moderno, que baseado no exemplo, espelha o que não deve ser feito em
razão da possibilidade de punição. Inaugurava-se então a era da periculosidade, em que
aqueles determinados segmentos da sociedade, por sua “natureza” ou “essência” deveriam ser
alvo de vigilância, normatização e disciplinarização constantes dada à sua ameaça à ordem
social.
Coimbra (2001) aponta que o dispositivo da periculosidade perpassou o séc. XX e
adentrou o séc. XXI em vários países do mundo, inclusive no Brasil, forte e atualizado,
direcionado aos criminosos, “marginais”, pobres em geral ou seja, àqueles considerados
desclassificados e potencialmente perigosos por não se adequarem a padrões estabelecidos
como corretos.
Em relação aos jovens, a história das políticas públicas voltadas para a infância e para a
juventude no Brasil mostra-se profundamente fundamentada na preocupação com o controle
da população pobre, percebida como foco de doenças e causadora da desestruturação social.
Ela nos mostra como foi sendo construída a associação entre pobreza e criminalidade,
constituindo assim as “classes perigosas”. (Coimbra, 2002) Essa parcela da população, na
qual se encontram os jovens que aportam o sistema sócio-educativo brasileiro, por ser
considerada perigosa, é alvo de políticas públicas de controle e até mesmo, práticas de
extermínio. Estamos diante da hegemonia da ótica e da crença de que para alguns só resta o
caminho da tortura, do extermínio, do isolamento e do esquecimento, de que “por ser negro,
suspeito, e culpado, é razoável que suma” (Coimbra, 2002, p. 238). E é a partir dessa lógica
que devemos analisar a questão da perpetuação da situação vivida por inúmeros adolescentes
nas unidades sócio-educativas do país.
Dentro da lógica do controle das virtualidades, segundo Batista (2003a), o advento das
“medidas de segurança” na virada do século XIX apontava para o controle e contenção de
36
uma “periculosidade difusa”. Neste contexto, produziu-se o artifício da “atitude suspeita”,
que por sua vez, “aponta para uma seletividade nas práticas da implementação dessas
medidas” (p. 102). A partir de sua pesquisa em processos judiciais a autora afirma que a falas
de policiais contidas em tais processos revelam que a categoria ‘atitude suspeita”, não se
relaciona a nenhum ato suspeito, não é atributo do ‘fazer algo suspeito’, mas sim, de ser,
pertencer, a um a um determinado grupo social” (Batista, 2003a, p.103).
Chegam à mesma conclusão, Ramos & Musumeci, em pesquisa sobre a abordagem
policial e a descriminação no Rio de Janeiro (Ramos et al, 2004, p. 5). Apontam para o fato
de que as abordagens a veículos nas blitze e a transeuntes expressam um caráter seletivo na
escolha dos elementos “suspeitos” e o tratamento dado a eles pela polícia. Essa seletividade é
norteada por critérios preconceituosos, não regulados formalmente, indicando uma abordagem
discriminatória, mais violenta e coercitiva, dirigida principalmente a jovens negros e pobres.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (Rocha, 2002) mostram que
90% dos jovens cumprindo medida de internação eram meninos; 63% não eram brancos,
sendo que destes, 97% eram negros. Essa mesma pesquisa afirma que existiam 190 unidades
de internação no país, em contraposição às 76 de semiliberdade. Configurando assim mais do
que o dobro de unidades de internação, e evidenciando o tipo de política que o país está
adotando para lidar com os jovens em conflito com a lei.
È neste contexto também em que se articulam o desemprego, a desesperança e a violência
formando um quadro no qual os jovens pobres do sexo masculino estão morrendo, vítimas
principalmente de causas externas, ou seja, os acidentes e homicídios.
Dados de mortalidade por causas externas no país mostram a expressão do fenômeno dos
acidentes e violência impactando sobre a vida dos adolescentes. Em termos de
m
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t
t
a
a
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d
d
a
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e de
adolescentes, as principais causas externas, no ano de 2003, demonstram a predominância
masculina em agressões bem como nos altos índices de homicídios por sexo, chegando a
136,76/100.000 habitantes nos adolescentes masculinos brasileiros de 15 a 19 anos.
(Ministério da Saúde, DATASUS/SIM, 2003)
A cidade do Rio de Janeiro apresenta 200,46 óbitos por cada 100 mil adolescentes
possuindo uma das mais elevadas taxas de óbitos entre adolescentes de ambos os sexo no país
que é de 104,95 por cem mil habitantes para os jovens de sexo masculino e 10,79 por cem
mil para as adolescentes. (Ministério da Saúde, DATASUS/SIM, 2003)
37
Em suma, os adolescentes brasileiros estão morrendo, principalmente os meninos. Contudo,
esses jovens ao mesmo tempo em que são vítimas, são vistos como os algozes dessa violência
mesma que os vitima. Para eles, considerados um perigo para a sociedade, são reservados os
discursos e práticas mais endurecidos e violentos. Vista como grandes responsáveis pelo
aumento da violência no país, o olhar sobre a juventude pobre brasileira é hoje profundamente
marcado pela lógica do “inimigo interno” que um dia pautou as ações repressoras militares
durante nosso último período ditatorial, apontando para aquele que colocaria em risco a
segurança do país. A questão das políticas públicas voltadas para a Infância e juventude
afasta-se cada vez mais das leis que a as regem, passando da busca pela implementação de
políticas que afirmem a vida para aquelas que a subjugam, controlam, adestram, reprimem,
oprimem ou mesmo extinguem-na.
Diante do que foi exposto até então, a existência da violência de Estado na forma da
violência física propriamente dita, psicológica e nas variadas formas de degradação das
unidades do sistema sócio-educativo brasileiro se mostra incontestável. Cárceres para jovens,
é o que temos no Brasil, em total descompasso ao que preconiza a lei brasileira, tanto em sua
Constituição quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Este último, em seu artigo 5º é
categórico ao afirmar que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma
da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.” E em seu
artigo 124 o ECA (Brasil, 2007b) afirma que o adolescente privado de liberdade tem direito
de ser tratado com respeito e dignidade.
A quem interessa um sistema sócio-educativo inoperante? A quem se destina um sistema
que se vale da violência para guiar suas ações? A historicidade de políticas de controle e
repressão e a concomitante falta de políticas sociais efetivas para a população nos leva a
concluir que falta de política é a política. Política essa concretizada pela inoperância frente a
situações que poderiam ser resolvidas com a intervenção adequada, como no caso da situação
caótica que culminou em uma série de rebeliões em São Paulo, nos anos de 1999 e 2000.
Acompanhando os dados já citados, Paganele (2002) afirma que “hoje quem está na
Febem [e em todo o sistema sócio-educativo brasileiro] é a classe popular”(p. 34) e não há o
interesse de investimento em políticas sociais, principalmente direcionadas a jovens de
periferias e favelas. Essa fala mostra bem o viés classista e racista que faz com que o sistema
sócio educativo assim como o carcerário seja direcionado para os pobres e negros ou
mestiços.
38
Classista, racista e brutal, visto que brutaliza os jovens, chegando a torná-los insensíveis a
dor, que os faz acostumarem-se ao sofrimento e que os faz em muitos casos, assumir o papel
de monstros que atualmente é tão enfatizado na mídia. Segundo Mônica Cunha (2005), “o
DEGASE é escola do crime. A vida dos meninos se divide antes e depois do DEGASE. Eles
saem pior do que entraram”. Corroborando essa fala, o relato de um jovem ouvido por
Conceição Paganele (2002), deixa óbvio o processo de desensibilização imposto a muitos dos
que adentram o sistema sócio-educativo:
Ele disse que dava dois trancos na perna para trás na hora que vinham
bater para não sentir dor. Que ele não sentia mais dor, por que já tinha
acostumado.... quando o jovem, o ser humano perde a sensibilidade
da dor, do medo, ele não tem mais nada a perder. Isso é muito sério,
O Estado está fazendo com que esse menino perca a sensibilidade.
Quando não se tem mais medo da dor, de nada, de sofrer, que importa
o próximo? (p. 35)
Monstros, animais, ou qualquer outra qualificação não-humana, vêm justificando todo
esse tratamento violento e assassino contra milhares de jovens brasileiros. Assassinatos não
só de vidas orgânicas através da morte do corpo: mata-se sonhos, vidas que poderiam ser
vividas em uma outra intensidade que não essa que faz matar e morrer. Matam-se filhos que
foram paridos e criados de um jeito e são reencontrados transformados pelo embrutecimento
que ocorre nas unidades “sócio-educativas” brasileiras.
Assistimos ao acirramento das ações repressoras contra a juventude pobre brasileira que,
considerada um perigo para a sociedade, é alvo da política opressora, repressora que resulta
em mais violência e no extermínio de muitos desses jovens. Como sinaliza Arantes:
A possibilidade de ser morto ou reincidir, após a saída da unidade, é
quase certa, pois o mundo lá fora reserva aos egressos muitos
obstáculos e dificuldades. A morte ou o retorno dele às atividades
ilícitas independe se teve ou não um desenvolvimento considerado
satisfatório na unidade sócio-educativa. (Arantes, 2005)
Até julho de 2008, aguardava votação do Senado Federal Brasileiro projeto, já aprovado
pelo Congresso Nacional, de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Mas uma vez
esse debate retornou a público no ano de 2007 devido à morte do menino João Hélio, que aos
6 anos foi arrastado por quilômetros, preso a uma carro em alta velocidade, após um assalto.
Sua mãe e sua irmã conseguiram sair do carro, mas sua mãe não conseguiu retirar João do
carro, ficando o menino preso do lado de fora do automóvel, pelo cinto de segurança. Um dos
integrantes do grupo de assaltantes era um adolescente, que já havia passado por unidades
39
sócio-educativas. Imediatamente surgiram clamores por vingança, linchamentos e morte, pois
a “justiça” tinha que ser feita. Estava posta de forma ‘evidente’ que aqueles que cometeram
tal crime não pertenciam à raça humana: eram monstros!
Não questiono, de forma alguma, a gravidade do crime. Ao contrário, sou solidária à dor
da mãe de João, que perdera o filhinho de forma tão brutal e diante de seus olhos. Mas em
nenhum momento, o fato daquele adolescente já ter passado por unidades sócio-educativas foi
colocado em análise. Ao contrário, tal fato só era lembrado para afirmar a monstruosidade do
adolescente. Em nenhum momento se questionou que efeitos essas passagens pelo sistema
tiveram nesse jovem.
Após a morte de João, vários eventos contra a violência no Rio de Janeiro aconteceram.
Em um deles estava Rute Sales, já representando o MOLEQUE. Rute conta que não faltaram
falas inflamadas que concluíam pela necessidade de a sociedade exigir medidas mais duras
contra os tais monstros assassinos e que não era aceitável que o “monstro menor de idade”
pudesse ficar trancafiado apenas por três anos ou até os 21 anos apenas. Quando então, Rute,
cidadã carioca, mãe, levanta e questiona que ela é mãe de um desses chamados de
“monstros”, e que respeita a dor dos pais de João, concordando inclusive com a barbaridade
do crime. Contudo, aponta que a produção daquilo que chamavam de monstruosidade
passava, e muito pelo encontro dos adolescentes com o sistema sócio-educativo, que se
mostra a eles e a suas famílias de forma perversa e violenta.
Apesar da gravidade de alguns crimes praticados por adolescentes
16
– e que demandam
atenção especial -, os argumentos que justificam mais repressão e até mesmo extermínio, não
se sustentam, pois, segundo o artigo 4º do ECA, a família, a comunidade, a sociedade, e o
poder público são responsáveis pela garantia dos direitos humanos daqueles que por lei são
considerados “prioridade absoluta”.
Veremos mais à diante, que nesta tríade – família, sociedade, e Estado – somente a
família vêm sendo responsabilizada e culpada pelo fracasso de seus filhos, sobretudo as
famílias pobres, das quais é oriunda a maioria esmagadora dos adolescentes que circulam pelo
sistema sócio-educativo brasileiro. A sociedade vem se colocando como vítima, demandando
ações repressoras e violentas do Estado contra aqueles que considera seus algozes – os
“adolescentes monstros”. O Estado, por sua vez, vem respondendo tal demanda sem
questioná-la. E ambos se colocam à parte do contexto de construção dos caminhos - poucos –
16
Cabe salientar, que a maior parte dos crimes cometidos por jovens são contra o patrimônio, e não contra a
vida, como quer fazer crer a mídia.
40
que se oferecem a esses jovens, e que se apresentam muitas vezes como “destino”, como um
roteiro que é cumprido rumo a tal monstruosidade...
Fica aqui a pergunta, feita por Arantes:
(...) que vida é esta que estamos vivendo, em que o jovem é
considerado ‘problema’ e não ‘solução’? Que se constitua, ao mesmo
tempo, em ‘alvo’e ‘atirador de facas’? Que faz viver apenas o ‘aqui e
o agora’, sem nenhuma esperança de futuro, sem nenhum sonho de
Brasil. (Arantes, 2005, p. 77)
41
CAPÍTULO 2
NINGUÉM NASCE BANDIDO, NINGUÉM NASCE “MÃE DE
BANDIDO”...
Ninguém nasce bandido, nem acorda bandido. Isso
não existe, isso não existe, entendeu? (Cunha,
2008)
O objetivo deste capítulo é pensar o processo de construção desta experiência de tornar-se
“mãe do Degase”, ou mesmo, segundo uma das formas usadas para qualificá-las: “mãe de
bandido”. Que atravessamentos constituem essa história? Como elas experimentaram esse
processo, como e o que relatam sobre ele?
Em suas falas surgem vários acontecimentos, encontros e desencontros que nos põem
diante de inúmeros temas, tais como, a associação entre pobreza e criminalidade, a falta de
políticas públicas efetivas que garantam condições dignas de vida a muitos brasileiros, a falta
de perspectiva de melhoria de vida dos jovens e suas famílias. Certamente não seria possível
aprofundar muito em cada um desses temas, o que afastar-nos-ia do objetivo do capítulo e do
trabalho. Tais temas são categorias surgidas das falas de Rute e Mônica, analisados sempre
em função da experiência das mulheres entrevistadas, do que elas apontam como relevante
em suas próprias histórias.
2.1 A EXPERIÊNCIA DE “PERDER” O FILHO
“Ele estava com 13 anos. Foi um momento que eu comecei a perder o
meu filho. Porque quando o filho começa a te pedir: ‘– Mãe, me
42
coloca na escolinha de futebol?’Aí você vai na escolinha de futebol e
é muito caro, você não tem como pagar. Você está doida até que ele
entre naquela escolinha de futebol que é para ele sair daquele cenário.
Porque o adolescente, quando ele está saindo aí da sua idadezinha de
10, 12 anos, ele está entrando em um novo mundo, que é um mundo
que ele quer conquistar e aí ele não vê caminhos para ele conquistar
nada diferente a não ser o tráfico que está ali na porta dele. Ele não
consegue passar dali. Há uma barreira. (...) Então, por mais que... de
vez em quando eu levava o meu filho no cinema, mas era muito de
vez em quando, porque eu não tinha dinheiro. Não tenho até hoje.
Então de vez em quando eu levava ele para comer uma pizza, mas era
muito de vez em quando.” (Sales, 2008)
Esta fala mostra bem como essa experiência de ‘perda’constrói-se em um contexto de
absoluta ineficácia de políticas públicas que garantam condições mínimas de vida digna à
grande parte da população. É clara a dificuldade de acesso a bens e serviços, dentre eles, as
possibilidades de esporte e lazer, como expressa a fala acima, em função da falta de condições
financeiras articulada à pouca ou nenhuma oferta do poder público. Segundo o artigo 4º do
ECA:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 2007b)
Note-se bem que junto com a família, o poder público tem o dever de garantir direitos de
crianças e adolescentes brasileiros através de políticas públicas que efetivamente viabilizem o
acesso a tais direitos. Contudo, a realidade não se mostra desta forma, para aqueles que
realmente necessitam do Estado para ter acesso à educação, à saúde, ao lazer, enfim, a tudo
que é garantido por lei. Hoje, quem pode não depender do poder público, o faz em muitas
instâncias: paga-se por educação, por saúde, por lazer. Enquanto que aqueles que dependem
do Estado para acessar seus direitos se vêem na mesma situação que aquela mãe:
impossibilitadas de proporcionarem aos filhos, algo que seria um direito.
Neste cenário, vemos uma cruel situação se configurar, que é a vivência da culpa
individual pela impossibilidade ou dificuldade em possibilitar algo que seria também
responsabilidade do poder público. Dito de outra forma, o fracasso do poder público é vivido
como fracasso individual, denunciando um mecanismo de manutenção da ordem social que
coage através da culpabilização individual (Guareshi, 2007), aqueles que são constantemente
incluídos através da exclusão. (Sawaia, 2007)
43
Tal processo faz parte da implantação e do atual desenvolvimento de políticas neoliberais
que têm como um dos seus principais efeitos, o desemprego programado, que segundo
Forrester (1997), coloca milhões de pessoas em estado de espera, muitas vezes indefinida,
cujo limite não raro é mesmo a morte. Trata-se da marginalização dos excluídos do mundo do
trabalho, que os coloca frente à miséria ou à sua ameaça, que se configura na perda do acesso
a bens mínimos à dignidade humana, a perda da consideração social e mesmo a própria auto-
consideração. Tal marginalização responsabiliza os próprios desempregados pela perda e/ou
dificuldade de inserir-se no mercado de trabalho, ou mesmo, responsabiliza os que se
encontram em trabalhos precários que propiciam renda insuficiente, como no caso das mães
entrevistadas, pela suas dificuldades de acesso a tais bens. Sobre as proposições desta autora,
Coimbra (1999) diz que:
esses marginalizados têm sido os primeiros a se considerar
incompatíveis com a sociedade da qual eles são os seus produtos. São
levados a se considerar indignos dela e, sobretudo, responsáveis pela
sua própria situação. Julgam-se com o olhar daqueles que o julgam,
olhar esse que adotam, que os vê culpados, e que os faz, em seguida,
perguntar que incapacidade, que aptidão para o fracasso, que erros
cometidos puderam levá-los a essa situação. (s/p)
Tal culpa, segundo Guattari (1999) é mecanismo de subjetivação capitalística
17
, que
assenta suas tecnologias de culpabilização na construção de modelos de referência e na sua
incessante busca. Ou seja, produz-se subjetividades modelares que, quando não alcançadas,
colocam o sujeito frente à experiência da culpa, que reforça a busca por aquele modo de ser e
estar no mundo. Segundo esse autor, “ tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística
– tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam –
não é apenas uma questão de idéia (...) trata-se de sistemas de conexão direta entre as
grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias
psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo” (Guattari, 1999, p. 27). Portanto,
quando nos referimos à produção de subjetividades estamos falando de processos que estão
para além do registro da ideologia, e que funcionam “nos corações dos indivíduos”,
construindo maneiras de perceber o mundo e de ser e estar nele. Neste cenário é que são
produzidas subjetividades que se impõem como modelos a serem seguidos, tais como as que
17
O termo “capitalístico” foi criado por Guattari para designar não só as sociedades capitalistas, mas também
aquelas do capitalismo periférico, ou mesmo as que se qualificavam como economias socialistas, afirmando
assim um modo de produção que se assentava em uma dependência e contra-dependência do capitalismo.
(Guattari et al, 1999, p. 15)
44
definem papéis para ‘a mãe’, para ‘a família’, bem como a culpa de quem não consegue se
adequar a tais modelos.
Pensando esta experiência como efeito de certo modo de subjetivação, somos levados a
indagar que atravessamentos constituem tal produção de modelos. Dos relatos das mães
surgiram algumas experiências que serão tomadas como categorias de análise do processo de
construção desta experiência de se ‘tornar mãe de bandido’ e que tem como início essa
‘perda’ do filho. Algumas categorias se mostraram marcantes e foram apontadas pelas
próprias mães como experiências muito presentes na vida daquelas que tem seus filhos no
sistema sócio educativo brasileiro, e são elas: a experiência do pouco tempo dedicado aos
filhos, a experiência do assédio do consumismo e o fácil acesso mercado de drogas ilícitas
que se mostram articuladas à escassez e/ou ineficácia das políticas públicas que impõem uma
experiência de impossibilidade de acesso à direitos diversos tais como esporte, cultura e lazer.
Estas são algumas experiências que marcam a vida dessas mulheres e suas famílias, e que elas
associam à trajetória de seus filhos até o DEGASE.
2.1.1 Eu não percebi...
Porque eu também vivi isso. Eu não percebi como o meu filho
começou a mudar. E não foi só quando ele entrou... Por que eu não
percebi? (Cunha, 2008)
Algo que ‘saltou aos ouvidos’nas falas das mães entrevistadas foi a referência ao pouco
tempo que dispuseram para estar com os filhos, o que segundo elas, as levava a dar menos
atenção e apoio aos garotos. Tais falas, em vários momentos, expressaram um ‘tom culpado’,
como se mais uma vez estivessem diante de algo difícil ou impossível de propiciar aos
meninos, como a fala a seguir nos mostra:
Então assim, eu vivi muito distante do meu filho, às vezes eu fico
falando assim puxa eu podia ter vivido mais perto dele, porque muitas
vezes eu deixava de estar com ele para ir a seminário, para ir não sei o
quê, tudo em busca do conhecimento, mas eu também era adolescente,
né? E eu podia ter buscado isso, mas eu não busquei, tive filho, ai eu
queria fazer as duas coisas, criar o filho e buscar o conhecimento.
(Sales, 2008)
45
Aqui, Ruth conta a experiência de ter sido mãe aos 17 anos, em um período da vida em
que além de precisar trabalhar, também tinha outros anseios, como o de “buscar
conhecimento”. Essa “busca de conhecimento” de que fala Ruth tinha a ver com sua própria
história de militante política, que começou muito cedo em função da educação que recebera
da mãe, também militante, ligada a movimentos sociais e associação de moradores
18
.
Podemos perceber que “buscar conhecimento” – ir a seminários, cursos, atos da atividade
militante, foi relatado como algo que diminuiu, ou ao menos, limitou a presença de Ruth junto
ao filho.
E então podemos nos perguntar: tais experiências – “maternidade” e “busca de
conhecimento” – são necessariamente excludentes? É certo que, no caso de Ruth, falamos de
uma situação que envolveu a maternidade na adolescência, que é um assunto complexo,
delicado, que hoje se coloca, sobretudo, como um grave problema de saúde pública
19
e que
não poderá ser discutido neste trabalho. Contudo, durante a coleta de dados, puder ver - e
viver – a continuidade de ambas as experiências na vida desta mulher, que hoje, é mãe
novamente e ainda milita em mais de um espaço político. Ela continua a trabalhar, a militar, a
“buscar conhecimento”, e a ser mãe. E continua, mesmo já em idade madura, a ter que lidar
com a falta de tempo para estar com os filhos.
Seria simplório reduzir tal falta de tempo à jovem maternidade, seria mesmo uma
alienação total da realidade de muitas mulheres, posto que tal experiência é vivida por
diversas mães, de diferentes idades, e também de diferentes classes sociais:
... não é só a mulher da favela que deixou não, a empresária também -
ela bota na mão da babá. Ela também não tem tempo, igual a mulher
da favela. A única diferença é que se o filho dela for preso, da
18
Lídia Sales dos Santos, mãe de Rute, ganhou a ‘Medalha Chico Mendes de Resistência’ em 1998 como
homenagem do Grupo Tortura Nunca Mais, que descreve sua história da seguinte forma: “...morava na Favela
Indiana, aos pés do Borel. Mãe de dezessete filhos, conseguiu criar treze, dos quais a polícia matou Josué e
Ismael. Desde a década de 70, atuava nos movimentos populares: primeiro, contra a ditadura militar, logo pela
Constituinte, Diretas Já, emancipação feminina, pelos pobres e indefesos. Dona Lídia trabalhou na Pastoral de
Favelas e na Secretaria de Serviço Social, assistindo meninos de rua. Em 1984, representou as mulheres do Rio
de Janeiro no histórico comício da Candelária, frente a um milhão de pessoas. Embora só tivesse o curso
primário, escrevia poesias e peças de teatro; em 1986, fez a peça “O Povo e a Constituinte”, encenada em várias
comunidades, através da Associação Liberdade Mulher. Alguns anos depois, no Teatro Carlos Gomes, foi levada
ao palco “A Mãe de Pedra”, ópera funk de sua autoria que denunciava a morte dos meninos da Candelária.
Funcionária da Secretaria de Educação do Município do Rio de Janeiro, ali viu desperdiçada sua vocação de
educadora e artista. Recebia pouco mais de um salário mínimo, pelas oito horas diárias de trabalho, para
sustentar onze filhos. Aos cinqüenta anos, Lídia adoece gravemente, sem que o Estado lhe concedesse férias ou
licença para tratamento. Internada em urgência, morre e os filhos não têm acesso ao laudo médico, apesar do
IML indicar envenenamento.” (Grupo Tortura Nunca Mais, 2008)
19
Sobre o assunto ver: “A juventude como sintoma da cultura” in Juventude e sociedade: trabalho, Educação,
Cultura e Participação. (Kehl, 2004)
46
empresária ou da favela, o da favela vai ficar na cadeia, o da
empresária não vai, porque ela vai pagar advogado, vai acionar o
marido ‘do não sei quem’. Então lá ele não vai ficar.(...) Mas essas
atribuições, muitas coisas, todas duas têm, sabe? E isso está muito
ruim. Veja as mulheres que tem dinheiro para pagar a babá : a babá é
que vai na escola, a babá é que leva para passear. A da favela não tem
como pagar a babá. (Cunha, 2008)
Nesta fala nota-se esta experiência da ‘falta de tempo’ não limitada às classes
empobrecidas, embora seja óbvio que a pobreza tenha especificidades que tornam tal
experiência mais difícil, em função da falta ou precariedade de estrutura de apoio, tais como
creches e escolas. A fala também aponta para a diferença que a falta de dinheiro impõe às
famílias pobres quando se deparam com a detenção de seus filhos. Mas isso será abordado no
próximo capítulo. Por enquanto, pensemos no que constrói essa experiência da falta de
tempo, tão presente nas falas de tantas mães do Brasil, e por que não, mundo afora...
Um importante aspecto dessa experiência é a condição do trabalho na
contemporaneidade, e mais especificamente, da condição da mulher que é mãe e trabalha,
tanto para viver, quanto para sobreviver. Tal experiência nos coloca frente ao paradoxo do
processo de produção de certas subjetividades, que apontam para um determinado modelo de
família e atenção aos filhos que se mostra extremamente difícil, e às vezes, quase impossível
de se alcançar no contexto capitalístico em que vivemos.
Diogo e Coutinho (2006) discutem as categorias trabalho e gênero, pensando-as no
contexto do mundo do trabalho atual. Diante das atuais mudanças neste mundo,
desenvolvem-se aspectos tais como o desemprego, subemprego e precarização, em que
inúmeros/as trabalhadores/as são excluídos/as do círculo produtivo. Apontam ainda que a
nova ordem econômica além de não ter propiciado igualdade de condições entre os gêneros,
reforçou hierarquias, desigualdades e assimetrias. As autoras apontam para algumas
especificidades relativas às mulheres que limitariam, desvalorizariam e desqualificariam sua
inserção no mercado de trabalho:
Para início de conversa, estudos sobre mulheres trabalhadoras devem
sempre levar em consideração que estas realizam grande quantidade
de trabalho não pago, isto é, o trabalho doméstico e o cuidar da
família, principalmente dos filhos. (Diogo et al, 2006, p. 131)
Essa situação gera um acúmulo de funções que limita muito o tempo das mulheres que a
vivem, e que muitas vezes são levadas a se sentirem culpadas por não conseguirem “dar
conta” de tantas responsabilidades ao mesmo tempo:
47
... nós temos que ter o tempo. E nós, na maioria das vezes não temos.
Nós mulheres já conseguimos várias coisas, desde que nós nos
libertamos, vamos colocar assim, mas perdemos em uma, que foi o
lado de mãe. Deixamos de nos dedicar mais a nossa cria. Porque nós
temos que pagar conta, nós temos que sustentar família, nós temos que
nos preocupar com patrão, nós temos que pagar a escola. Quem não
paga tem a pública, mas tem que ver material, tem que pagar um
aluguel (...) Tem que chegar em casa, fazer comida.Então é muita
coisa. Nós chegamos a um auge em que temos várias funções. O
homem não saiu da dele. Ele é o que é em 1950 e em 2008. Nós não.
Nós mudamos totalmente. E a nossa função maior que tínhamos era
ser mãe, porque pra isso que nós fomos educadas. Tem que parir,
criar bonitinho e dar beijinho. Assim. Isso, nós deixamos capenga.
Não é que nós deixamos de ser, não é isso, nós deixamos capenga.
(Cunha, 2008)
Esta fala é emblemática para pensar a experiência de inúmeras mulheres, mães e
trabalhadoras, que vivem os efeitos da entrada da mulher no mundo do trabalho, dentre eles, o
acúmulo de funções “novas” e “antigas”, o que faz com que o desempenho de algumas
funções seja experimentado como “capenga”. Essa entrada da mulher no mundo do trabalho
impôs à sociedade a necessidade de rever papéis e estruturas de apoio nos cuidados com os
filhos. Hoje podemos falar que há um movimento em direção à assunção cada vez maior
pelos homens dos cuidados com os filhos, vide a recente aprovação do Projeto de Lei
6.350/02, sancionado em 13 de junho de 2008, que prevê a possibilidade da guarda
compartilhada dos filhos entre ambos os pais.
20
Contudo, a percepção de que cabe às mulheres
os cuidados com os filhos ainda é hegemônica em nossa sociedade, o que promove a vivência
do acúmulo de funções quando a mãe precisa ou quer trabalhar. Ainda é fato que:
Na imensa maioria das vezes, as mulheres são as principais
responsáveis pelo cuidado com a casa e com os filhos. Principalmente
nas camadas populares este fato torna-se um complicador na busca por
emprego, pois não há a quem delegar estas tarefas. Geralmente o
número de creches da rede pública é insuficiente para atender toda a
demanda e, nestes casos, os filhos pequenos ficam sob o cuidado dos
mais velhos, de vizinhas, avós ou outros parentes para que a mulher
possa exercer uma ocupação remunerada fora de casa. (Diogo, 2005
apud Diogo et al, 2006, p. 132)
Então quando eu comecei a me inteirar de outras responsabilidades –
porque eu tive um homem que não foi tão correto [seu segundo
marido] – eu comecei a ver esse outro lado da vida e abandonei o lado
de mãe. Não abandonei o lado de mãe assim, largando filho. Não.
20
Tal projeto veio a atender os anseios de muitos pais que passaram a pleitear a responsabilidade ativa pelos
filhos, buscando romper com a idéia secular de que cabe às mães os cuidados com sua a prole. Brito, L. (2004).
48
Eu deixei de fazer umas mínimas coisas que foram: – Deixa eu ver
esse caderno. – Senta aqui, vamos conversar. Sabe? – Ih! O meu
filho hoje não acordou bem. (Cunha, 2008)
Se pensarmos a maternidade e o trabalho da mulher-mãe como construções sociais, e não
como categorias essenciais, poderemos avançar um pouco, na medida em que analisarmos a
questão a partir dos atravessamentos que as produziram. Portanto não se trata de propor um
retorno a identidades femininas que confinavam mulheres exclusivamente ao exercício da
maternidade e ao restrito espaço do lar. Tais lugares nem sempre expressavam uma escolha
da mulher, mas sim se impunham como destino: casamento, lar e filhos, tão somente.
Trata-se de interrogar que práticas são essas que formam o que chamamos de “mundo do
trabalho”? Que trabalho é esse que é visto como empecilho ao convívio familiar, como
impossibilidade de atenção aos entes queridos, principalmente aos filhos? Que lugar é esse
que faz com que as mulheres ainda sejam as principais ou únicas responsáveis pelos cuidados
dos filhos, mesmo diante da necessidade ou vontade de trabalhar? Ruth e Mônica
representam a fala de muitas mulheres que se vêem nesta difícil “missão solitária”,
principalmente daquelas que nem ao menos conseguem adentrar tal “mundo do trabalho”, e
cujas condições de mãe dificultam tal acesso por não contarem com uma efetiva estrutura de
apoio ao cuidado com os filhos.
Assim, diante da “moral do trabalho” que atua na contemporaneidade, produzindo o
trabalhador vencedor, de perfil flexível e moldável às necessidades capitalísticas, podemos,
por analogia, falar da emergência de uma certa “maternidade capítalística”. Tal exercício da
maternidade refere-se à experiência de “ser tudo ao mesmo tempo agora” que muitas mães
são impelidas a viver por toda a situação descrita acima, e que tem sido produzida como
modelo de maternidade. Assim como o “trabalhador flexível”, com suas “mil e uma
competências”, capacidade para “superar obstáculos”, “lidar com situações inesperadas” para
“vencer na vida”. Sobreposta à subjetividade “mãe zelosa”, entra em cena a “mãe
trabalhadora” formando o híbrido “mãe zeloza-trabalhadora”. A “mãe zeloza-trabalhadora”,
ou “a mãe flexível’ ou ainda, a “mãe capitalística” cuida dos seus filhos ao mesmo tempo em
que é – ou deve ser - “realizada no trabalho”. À ela são destinados produtos de consumo que
‘facilitem’ sua vida atribulada, para ela são criados comerciais que retratam sua rotina de
cuidados com os filhos e atuação no trabalho. Produz um modelo de virtude que se coloca
muito distante do cotidiano de milhares de mulheres-mães brasileiras, sobretudo para as
pobres. Haja culpa. Ou melhor, haja re-existência ...
49
2.1.2. A droga do consumo...
Porque eles não têm a maturidade e eu vou te dizer com toda
sinceridade: O pior que eu vejo (...) é a droga. A droga para mim é a
pior coisa. É a dependência desses meninos – que começam a usar e
já viram dependentes. E droga que eu digo para você, é a droga no
geral. As duas drogas que eu acho muito piores, que fazem esses
meninos, criados em facção – que são as drogas da dependência:
maconha, pó, crack, lóló, lsd, essas coisas todas aí – e a droga do
consumo. (Cunha, 2008)
A colocação de Mônica refere-se a uma categoria central na contemporaneidade, que é o
‘consumo’ ou ‘consumismo’, marca registrada de uma sociedade regida pela lógica de
mercado – a nossa sociedade. O consumismo define nossa inscrição como sujeitos dispostos
a adquirir sempre mais produtos em função da necessidade desse mercado funcionar, ou seja,
gerar lucro.
Analisando as “Perspectivas dos jovens na sociedade de mercado” Jurandir Freire Costa
(2004) aponta que a palavra ‘consumismo’ não é adequada para designar isso que o mercado
coloca como exigência, pois assim seríamos levados a acreditar que consumimos tudo aquilo
que compramos e que seríamos todos iguais frente à possibilidade de comprar o que o
mercado nos oferece. Para o autor, poderíamos pensar em algo próximo de uma igualdade
quando falamos em satisfação de necessidades biológicas, pois estas sim seriam
“razoavelmente idênticas” (Costa, 2004, p.77). Contudo “se olharmos para o consumo como
equivalente a poder de compra, não é isso que acontece. Comprar não é uma ação regida
por necessidades biológicas, mas um ato econômico com implicações sociais. Diante de atos
desse tipo somos todos diferentes e desiguais” (Costa, 2004, p. 77)
Dessa forma, o consumo qualificado como “droga” por Mônica inscreve-se em uma
lógica em que a produção de mercadorias, ou como Costa (2004) coloca, de objetos de
consumo, “é seletivamente organizada de maneira a ser seletivamente distribuída pelos que
têm muito dinheiro, pouco dinheiro, ou nenhum dinheiro.” (Costa, 2004, p. 77) Ou seja,
comprar já define ‘quem é quem’no universo social. E é justamente nessa construção do
sujeito enquanto ‘consumidor’ que muitos jovens pobres passam a cometer atos ilícitos,
buscando assim, possuir o que são levados a desejar e consequentemente a ser:
50
Porque você tem que ter. Tem que ter um tênis bonito, tem que ter
uma roupa bonita, você tem que ser bonita, tem que ter um cabelo
bonito, você tem que estar entrosado, porque senão você não pode
pertencer, você não pode ir. O adolescente não pode ir a qualquer
lugar. Ele não pode pertencer a qualquer lugar. (...) É tanta coisa, (...)
uma bermuda que não custe R$500,00, uma blusa por R$500,00, (...)
mesmo dentro de favela, se você não estiver vestido adequadamente,
dessa forma aí – porque isso para ele é inadequado – você não se
mistura lá. Então quando você está vestido assim você pertence ao
bairro... (Cunha, 2008)
É nessa produção de ‘necessidades’, do ser pelo ter que muitos são, segundo Costa
(2004), “diretamente estimulados a possuir o que não podem comprar e indiretamente
incitados a se apropriar de forma criminosa do que são levados a desejar” (Costa, 2004, p.
77) como a fala a seguir deixa claro:
Dentro da favela ainda tem aquele grupo que tem aquela roupa toda
linda, aquela moto, e tem aqueles que não têm muito, que vivem na
dependência da família. E então a família não tem toda essa situação
para dar. E aqui fora, o dito aqui fora, fora da favela – você pega
Copacabana o Leblon, que é muito bonito. Não tem essa hipocrisia,
não, porque o Leblon é lindo, Copacabana é lindo, a Barra é linda. É
mesmo. O que é bom é bonito. Só que custa caro. E não é todo
mundo que pode comprar, não é a maioria, é a minoria. A verdade é
essa, entendeu? Então, eles [os adolescentes] também querem ir no
shopping da Barra, eles também querem sentar lá no restaurante ‘não
sei das quantas’. Eles também querem porque são seres humanos.
(...). O ser humano da Barra, ele pensa igual ao ser humano do
Jacarezinho. Porque eles têm a mesma idade. Eles têm diferenças
sociais,(...) Mas tem muitas coisas que eles têm em comum. Porque a
idade deles é a mesma, sabe? Então, namoradinha: o[adolescente] da
Barra e do Jacaré são a mesma coisa. Estão no mesmo tempo, o
tempo é deles. Só que o da Barra pode pegar a namoradinha levar
para o cinema no Shopping da Gávea e do Jacaré não pode. Mas ele
também quer. Aí, como eu não pode, como ele não, ele também não
tem uma preparação... a família não tem preparação. O pai não tem
um emprego que ganhe um salário que dê para ele fazer isso. A mãe
também não. Muitas vezes, nem pai tem. Porque a maioria só tem
mãe, não é? Ou não tem ninguém. Porque a mãe também não tem
aquelas informações todas – por que nem eu tenho tempo de ter todas
essas informações e sabe para poder explicar para aquele adolescente
o que está acontecendo com ele. Essa mudança dele, entendeu? (...)
as coisas vão se (...) confundindo(...) E a mídia, tudo é a televisão:
compra, compra, compra... Ele vai fazer. Eu não estou dizendo que é
o certo, não estou justificando que pode, eu não estou falando que
pode. Jamais você irá ouvir da minha boca justificar um roubo,
justificar um tráfico. Mas às vezes eu tenho que entender. Esse é o
problema. (Cunha, 2008 – grifos meus)
51
Essa fala é rica em possibilidades de análises, mas nos detendo à questão do consumo,
vemos que tal produção de ‘necessidades’ atinge a todos: aqueles que podem comprar e os
que não podem comprar, que figuram nas palavras dessa mãe como os que estão
respectivamente fora da favela e dentro dela. A construção de tais desejos artificiais
“apresenta mercadorias como objetos de necessidades universais e pré-culturais, e
ocultando, por esse meio, as desigualdades econômico-sociais entre os potenciais
compradores.” (Costa, 2004, p. 77) Todos querem, mas nem todos, em função de uma
situação econômica precária, podem ter. Tal produção de subjetividade atinge a todos,
sobretudo por estar atrelada à produção midiática que espraia desejos por toda a sociedade,
principalmente pela mídia de massa.
Embora a mídia seja o principal equipamento de produção de subjetividade na
contemporaneidade impondo certas questões sobre as quais achamos que devemos pensar,
construindo modelos de unidade que definem modos de agir, pensar, de ser e viver (Coimbra,
2001, p. 30), Costa (2004) nos alerta para o fato de que não somos meras “marionetes”
“manipulados pelo ‘eixo do mal’ da publicidade e da moda” (Costa, 2004, p. 77). Estaria
em curso, segundo este autor, a produção de uma nova moral do trabalho e de uma nova
moral do prazer que facilitaria a persuasão pela propaganda posto que a posse de objetos
ofertados pelo mercado seria vista como meio de realização pessoal (p.79). Tal idéia não só é
reproduzida, como também é produzida pela mídia, mas não somente por ela.
A nova moral do trabalho, segundo Costa (2004) refere-se aos objetos de consumo
como “as únicas coisas que o sujeito carrega consigo [estabilidade] onde estiver e para onde
for, de mais mutável por serem mais facilmente trocáveis se a nova condição social de
trabalho assim exigir [maleabilidade] (p. 80) Essa nova condição de trabalho diz respeito ao
novo “perfil’ do trabalhador na atualidade, o “desenraizado” (Sennet, 1999) ou “turista”
(Bauman, 1998) que vem atender aos requisitos da mobilidade, flexibilidade e maleabilidade
exigidos hoje no mundo do trabalho. O objeto de consumo seria então o que de mais estável e
mutável esse turista ou desenraizado poderia ter. Somado a isto, temos a lógica da
competição, crescente nos últimos trinta anos, que transformou o trabalhador em “vencedor”,
(Sennet, 1999) uma vez quem ‘vence’ é aquele que consegue adentrar e permanecer no
mundo do trabalho, e por conseguinte, é também aquele que consegue consumir mais, o que
os distingue dos demais. Daí a associação do ter ao ser, que define a posse de objetos de
consumo como
52
identidade pessoal dos mais abastados e, por extensão, da imensa
maioria da sociedade. É entendível assim que a compra incessante de
novos produtos se torne uma ‘demanda imaginária’ tão coercitiva
quanto qualquer necessidade biológica’. Afinal, ninguém se contenta
em sobreviver fisicamente pelo consumo de nutrientes. (Costa, 2004,
p. 80)
E então, o mundo diz: “consuma”, “seja”, “tenha”, “vença”, mas tais imperativos que
atingem a todos de forma tão “democrática”, paradoxalmente, não são possíveis de serem
cumpridos por uma imensa massa de pessoas. A essas pessoas se impõe a experiência da
impossibilidade:
Naquele momento que ele [o adolescente] quer conquistar algo, que
ele possa ter acesso e ele não tem. Existe uma barreira: ele só pode
ficar dentro do barraco, que já não é um barraco bom. É um barraco
com todas as dificuldades. Eu me lembro que eu morava num
quartinho, imagina. Eu morava num kitinete. (...) Eu morava num
kitinete, com banheiro, cozinha e quarto. Um quartinho... micro
quartinho. Num barraco com uma estrutura nada boa. Morava eu e
mais um bocado de irmãos. Então, você imagina um adolescente, ... é
como se você tivesse um pássaro... um pássaro, quando ele cresce as
asinhas ele quer voar. Aí a mãe... já pensou se a mãe fechasse ele
dentro de um barraquinho? É muito difícil para aquele pássaro. E aí
no momento que ele tem que dar o vôo dele, ele se vê impedido de dar
esse vôo. E aí o único caminho... onde ele cai é ali, onde está o
tráfico, aonde está a molecada que já diz pra ele assim: – Ih! Não vai
longe não. Vamos ali logo ter uma coisa por que a gente não vai
conseguir nada... Enfim, esse é o processo.” (Sales, 2008)
2.1.3. “Aquelas” outras drogas...
A experiência da impossibilidade surge da associação da importância do consumo em
nossa sociedade associada à falta de condições para que tal consumo se concretize na vida de
milhares de brasileiros. A falta de perspectivas de vida, de futuro, são relatadas pelas mães
como a principal causa do envolvimento dos adolescentes pobres em atos ilícitos,
principalmente no tráfico de drogas. Tal realidade não é somente experimentada aqui no Rio
de Janeiro, onde atuam as mães do MOLEQUE. Falas de Conceição Paganele, do movimento
paulista AMAR – citado na Introdução - apontam para a mesma direção:
...com 14 anos,[meu filho] pegou a carteira profissional dele e foi
procurar serviço, (...) o sonho dele era ser office-boy, ganhar os três
primeiros salários e comprar tudo de roupa no shopping.(...) ninguém
53
lhe deu oportunidade, e ai veio a decepção das drogas... (Paganele,
2002, p. 31.)
Essa questão do salário, e dos sonhos de ter um carro, os jovens de ter
uma moto, um tênis de marca, de ter uma roupa legal para chamar a
atenção das meninas, essa questão é muito complicada por que
estamos cada vez mais pobres. (Paganele, 2002, p. 36).
Essa fala reflete a experiência da pauperização crescente a que está exposta grande parte
da população brasileira. Nosso modelo econômico, norteado por uma política neoliberal de
mercado, contém os gastos públicos em detrimento do bem-estar social, que nunca foi efetivo
no Brasil, aumentando ainda mais o contingente de miseráveis. Esse aumento da miséria gera
uma massa “inimpregável” (Centro de Justiça Global, 2003) de gente ‘subcidadã’ que passa a
sobrar. Esses ‘sobrantes’, segundo Bauman (1999), seriam “a pobreza que não é mais um
exército de reserva de mão-de-obra, tornou-se uma pobreza sem destino, precisando ser
isolada, neutralizada e destituída de poder”.
Pobreza essa que, no atual processo de globalização, é segregada em larga escala, pois
nunca conseguirá, devido a própria lógica do processo, ter acesso às suas benesses. O
processo de globalização é entendido por Bauman (1999) como contraditório em si mesmo
visto que ao mesmo tempo em que une toda a Terra por meio da compressão do tempo/espaço
operacionalizada pela velocidade da tecnologia informacional, segrega grande parte da
população mundial, aumentando ainda mais o fosso que separa as classes possuidoras das
despossuídas.
Não têm perspectiva de futuro. É melhor morrer, mas morrer, pelo
menos usou o tênis da Nike, comprou um telefone... porque eles [os
adolescentes] sabem que não vão conseguir nunca ter. E aí depois
eles levam como referência os próprios pais. Os pais são uns ferrados.
(...) ‘Meu pai trabalha, minha mãe não teve tempo nem de cuidar de
mim, e só conseguia o dinheiro para comer arroz com feijão.’ Quero
dizer, essa é a referência que eles têm dos pais deles. Então, é muito
complicado. (Sales, 2008)
Essa desigualdade é sentida da pele pela população pauperizada brasileira na oferta
precária ou inexistente de políticas públicas de educação e saúde em função de um equilíbrio
fiscal e do cumprimento de metas pactuadas com organismos internacionais, que vêm fazendo
com que haja cada vez menos investimentos em políticas sociais básicas. É nesse contexto
que muitos jovens cometem atos infracionais relacionados direta ou indiretamente com o
tráfico de drogas ilícitas e por causa disso, acabam adentrando o sistema sócio-educativo:
54
“... a gente sabe que é aonde começa a situação ruim dos nossos
filhos. Quando a gente não tem nada para oferecer, o tráfico está lá
colocado para oferecer (...) Eu imaginava até que isso não iria
acontecer comigo, por conta de eu ser uma militante [a militância da
Rute, antes do MOLEQUE, será abordada à frente]. Mas eu esqueci
que eu só estava ali lutando para conseguir. Mas que na realidade a
gente pouco tinha e que meu filho era mais um desses.” (Sales, 2008)
É neste contexto, em que se articulam o desemprego, a desesperança e a violência, que se
forma um quadro no qual os jovens pobres do sexo masculino cumprem seus ‘destinos’ ou
‘roteiros’ que praticamente os empurra para a prática do crime, para o encarceramento e
muitas vezes, para a morte, já que ao egressarem do sistema, muitas vezes são assassinados,
como o foi o caso de Rafael da Silva Cunha, filho de Mônica, executado em praça pública por
um policial.
É. Foi o mesmo roteiro. Sair com um ‘daqueles’, roubar, enfim,
voltar para a comunidade. O mesmo processo que se inicia para
muitos garotos da comunidade. E o meu filho também iniciou dessa
mesma forma. Pra mim foi muito triste... Mas enfim... (Sales, 2008)
O que acontece que para esses jovens, na maioria das vezes, só encontrem possibilidade
de vida no tráfico ou em outras instâncias da criminalidade? Que forças operam na sociedade
que fazem com que o tráfico de drogas ilícitas seja quase que o único mercado de trabalho
aberto para esses jovens? Uma coisa é certa: trata-se de um mercado que não exige
experiência anterior, escolaridade, enfim, qualificações que a maioria desses jovens não
possuem, pois simplesmente não tiveram sequer a possibilidade de acesso. E quando o acesso
é garantido, muitas vezes falta a qualidade:
Você tem que entender o que levou aquele adolescente a cometer
aquilo. Porque tem. Sempre tem. Nunca ele começou (...) do nada.
Nunca ele acordou e falou: – ‘Hoje eu vou roubar’ ou ‘durmo hoje e
amanhã eu vou roubar’. Não, isso não acontece. Isso vem num
processo. Isso vem de uma criação, de uma relação. Isso aconteceu
com o meu filho. (Cunha)
A entrada da juventude pobre do Rio de Janeiro no mercado de drogas ilícitas foi
estudada por Vera Malaguti Batista em “Difíceis Ganhos Fáceis” (2003). E segundo esta
autora, analisar esse tema, tão complexo, invariavelmente nos coloca frente a necessidade se
pensar as relações de poder no sistema mundial. “O processo de globalização repercute
também no circuito ilegal das mercadorias; a condição de ilegalidade de algumas drogas tem
implicações econômicas, políticas, sociais e morais.” (Batista, 2003, p. 11)
55
O crescimento do consumo de cocaína, na década de 70, na cidade do Rio de Janeiro
trouxe como contrapartida “a especialização da mão-de-obra das comunidades periféricas na
venda ilegal da mercadoria (...) [aumentando] nas delegacias, no juizado de menores, nas
unidades de atendimento a jovens, as infrações, a posse, consumo ou venda de cocaína”
(Batista, 2003, p. 84), ocorrendo o que a autora chamou de “o recrutamento da juventude
pobre” (Batista, 2003, p.85). Nesse cenário, observa-se então dois diferentes caminhos para a
juventude que se envolve com drogas – seja lá de que maneira for: a vertente medicalizante
para a juventude das classes média e alta e a vertente criminalizante para a juventude pobre.
É na década de 60 que surgem as primeiras campanhas de “lei e ordem”, que segundo Batista,
tratavam a droga como o inimigo interno a ser combatido, constituindo assim, através de
ações governamentais e midiáticas, o processo de associação da droga a ameaça à ordem
nacional. Anunciava-se por exemplo, a introdução da drogadição na população como
estratégia de tomada de poder pelo comunismo.(Batista, 2003, p. 85)
A década de 80, segundo a autora, revela os efeitos de uma economia recessiva, pós-
ditatorial, que assola a população com o desemprego e uma inflação crescentes que fornece os
meios para a consolidação do mercado de drogas ilícitas. O aumento da demanda,
principalmente pela entrada maciça da classe média no consumo de drogas ilícitas teve como
efeito o aumento da oferta, recrutando mais e mais jovens de morros cariocas que viam no
tráfico “possibilidades de ganhos fáceis e rápidos” (Batista, 2003, p. 97). Desta forma, ‘a
alta rentabilidade do negócio’ foi atestada em diversos depoimentos colhidos pela autora, e
“parece constituir-se em principal fator de indestrutibilidade do varejo de drogas no Rio de
Janeiro, num mundo paulatinamente globalizado a partir da supremacia do mercado, que em
breve estará regulamentando a maior parte da vida pública e privada, combater um negócio
tão lucrativo torna-se tarefa impossível” (Batista, 2003, p. 97).
E desta forma vemos a perversa associação entre as “necessidades” produzidas pelo
consumo, a falta de condições para suprir tais necessidades e os “braços abertos” do mercado
de drogas ilícitas construindo um destino difícil de não ser cumprido por uma imensa parcela
da juventude pobre brasileira, que lota o sistema sócio-educativo de nosso país:
É o básico hoje em dia. É tipo assim, ‘eu sou pobre mesmo, estou
ferrado mesmo, não vou conseguir nada, a única forma que eu
conseguir é por aqui... eu vou ficar aqui... vou... Eles têm até um
palavreado agora que eles dizem assim: – Vou morrer cedo, mas pelo
menos eu vou ter tudo que meu pai não teve.‘O que é que adianta, eu
viver tanto tempo igual ao meu pai, sofrendo?’ Então quer dizer, eles
ainda têm esse palavreado. O que acho triste né, não ter perspectiva
56
de futuro mas... enfim. E a partir de então eu encontrei meu filho a
primeira vez, já na delegacia, aquele processo todo, foi para o JLA,
depois lá na vara da infância e adolescência, na segunda vara, aonde a
gente só encontra gente cruel não é? Gente que te acusa... (Sales)
2.2 SER “MÃE DO DEGASE” É... – O ENCONTRO COM
O SISTEMA “SÓCIO-DESTRUTIVO”
Os relatos sobre a “primeira vez”, sobre a primeira apreensão, sobre a primeira
internação, são repletos de emoções e sentimentos que durante as entrevistas expressaram
raiva, desespero, impotência e principalmente, indignação frente às humilhações e tratamentos
degradantes aos quais foram expostos mães e filhos. O ‘roteiro cruel’ que se impõe aos
jovens se impõe também às suas famílias, que passam a viver o cotidiano ‘infernal’ do
sistema sócio-educativo.
E lá dentro é aquela coisa, né, tortura, apanha, cospe no prato. Aquilo
tudo (...) [Falam para os meninos] – vocês são uns vermes! Enfim, é
um processo, não sócio educativo... É sócio destrutivo... do ser
humano. (Sales, 2008)
A prática da violência, sobretudo da violência física, nas apreensões dos jovens é algo já
naturalizado por parte dos agentes de segurança, como na fala a seguir, em que Mônica conta
o que um policial lhe disse sobre o fato de seu filho apresentar marcas pelo corpo:“... e que
não foram eles que bateram, que eu estava vendo que ele já tinha chegado daquela forma.
Mas, que essas práticas aconteciam.” (Cunha, 2008)
Eu fiquei desesperada. Eu quando vi o meu filho que tinha saído
arrumadinho, limpinho, cheirosinho, seis e meia da manhã comigo de
casa e vi ele horas depois naquele estado deplorável, lastimável, eu
enlouqueci. Eu chorava, eu agarrava ele, eu pegava, eu falava tanta
coisa: – O que aconteceu, quem te bateu, o que fizeram com você?
Vocês são loucos, vocês bateram no meu filho. Por quê vocês fizeram
isso?(Cunha,2008)
Tornar-se então “mãe de bandido”, para essas mães é implicá-las em um processo que as
faz deparar com a truculência, com a violência, com o preconceito e com o desrespeito que
57
começam ainda nas delegacias e continuam durante a passagem dos jovens pelo sistema
sócio-educativo:
E aí, o policial que estava com ele, falou para mim: – Dá licença mãe.
Vocês são muito engraçadas. Na hora que vocês parem bandido,
vocês não fazem essa cena, mas na hora que nós pegamos eles... na
hora que nós tiramos eles da rua vocês vêm cheias de proteção.
(Cunha)
Triste era quando meu filho estava preso dentro de uma delegacia
algemado. Foi muito difícil para nós, principalmente quando a polícia
chegou na minha porta com o carro da Rota, foi engatilhando aquelas
armas pesadas no meu portão e falou assim: ‘A senhora tem mais
filhos? Eles trabalham ou são todos bandidos?’ (Paganele, 2002, p.
31.)
Esse cruel “roteiro” não se qualifica dessa forma apenas por impor um caminho difícil de
não ser trilhado, mas, sobretudo, por reservar a esses jovens pobres um destino atravessado
por preconceitos, discriminações, violências, e não raro, pela morte. Se as cenas iniciais desse
“roteiro” nos apresentaram o jogo de forças que impelem os jovens ao cometimento de atos
infracionais, aqui traremos a experiência dessas mães de depararem-se com o sistema sócio-
educativo brasileiro. Um encontro que não repousa nas melhores lembranças dessas mulheres:
... a pior cena, das que me marcaram muito nessa trajetória de vida
com o meu filho, foi a primeira vez que ele foi preso. Eu estava
completamente inocente, estava trabalhando. Eu estava esperando ele
chegar meio-dia da escola com o outro mais novo – que aí eu já tinha
tido um outro caçula. Eu sou mãe de três filhos homens: um de vinte
e seis, um de vinte e um – se estivesse vivo – e um de quatorze, que
está vivo. (Cunha, 2008)
Os primeiros encontros das mães com a realidade do sistema sócio-educativo brasileiro é
marcado muitas vezes pela surpresa. Surpresa no sentido negativo da palavra, posto que
refere-se à ignorância completa, ou quase, sobre o que acontece nas unidades, como mostra o
“estar completamente inocente na fala anterior”.
Mesmo com a ausência ou ineficácia de políticas sociais que permitam condições dignas
de existência, algo que se apresenta nas falas das mães entrevistadas e nas falas de outras
mães – obtidas em entrevistas publicadas – é que muitas vezes, o sistema sócio-educativo é
pensado como uma espécie de “porto seguro” para essas famílias, em cujas unidades seus
filhos estariam protegidos e cuidados, passando a ter acesso a serviços, que muitas vezes não
haviam sido encontrados fora dele até então. Não é estranho tal pensamento, ou tal crença,
58
porquanto os próprios nomes desses estabelecimentos sugerem uma implicação com uma
prática que valorize, eduque, proporcione bem estar aos jovens, como por exemplo,
“Educandário”, “Escola”, “Bem-Estar”, “Centro de Atendimento”, “Espaço Recomeço”, etc.
Sentindo-se impotentes e sozinhas diante do “destino” de seus filhos, muitas mães acreditam
estar, finalmente, encontrando uma parceria, uma ajuda, um apoio, tão ausentes em seus
percursos de vida:
Quando procurei saber o que era FEBEM – a Fundação do Bem Estar
do Menor, pensei: ‘ Graças a Deus. Ele vai para um lugar onde será
tratado. Vai ter apoio, vai ter tudo aquilo que eu não tive condições de
e não encontrei nem na comunidade, nem no município, nem no
Estado.’ Achava que lá dentro ele iam ter assistência, ia estar contido,
ia ter psicólogos, trabalhos profissionalizantes, tudo. E fiquei feliz
quando aconteceu. (Paganele,2002, p. 31)
O encontro com a realidade, no entanto, é duro, e a distância longínqua que a separa da
sócio-educação se mostra no corpo, no cheiro, nos sons...Ainda nas delegacias o tratamento
que lhes espera dali em diante já se apresenta de forma contundente:
Cheguei acho que por volta de uma hora na delegacia. E o meu filho
foi aparecer lá, já era uma e meia, quase duas horas. Olha a cena: –
Ele chegou num carro (...) preto e branco, civil, com um policial civil
segurando ele por um braço, uma assistente social pelo outro braço.
Foi a primeira vez (...). E ele estava de bermuda jeans por que ele
tinha ido para a escola. Toda imunda a bermuda jeans dele. Ele
branco(...), imundo, estava sem camisa, descalço, todo sujo, como se
tivessem arrastado ele pelo chão. As costas do meu filho era a bota do
policial todo. Não estou dizendo que era esse policial que estava com
ele não. Que até porque ele nem estava de bota. Então no mínimo, foi
policial militar, PM. Estava com a bota desse policial marcada nas
costas, olho roxo, entendeu? E, chorando muito porque assim, eu não
estou dizendo que ele não entendia o que ele fez. Não. Ele entendia
sim. Demorei muito pra te falar isso que eu estou te falando agora.
Hoje eu te falo isso conscientemente. Ele entendia sim aquele ato que
ele cometeu. Sabia que era errado. Ele só não entendia o que estava
acontecendo com ele. Ele só não sabia que poderia passar por aquilo.
(Cunha, 2008)
Assim, esse encontro com o que “destrói” – algo sobre o que falaremos melhor mais
adiante – é algo marcante nessa experiência de tornar-se ‘mãe de bandido’ ou como no caso
das mães do Rio de Janeiro, “mãe de DEGASE”. Assim como o “cotidiano infernal” é
comum nas unidades sócio-educativas por todo o país, o encontro com esse “horror” que
também se estende por todos os estados brasileiros, marcando a vida de milhares de mães que
59
passam pela experiência de ser “mãe de DEGASE”, “mãe de FEBEM”... Muitas ‘Mônicas’,
‘Rutes’ e ‘Conceições’ estão por todo o Brasil, engrossando as filas nas portas de unidades
sócio-educativas em dias de visitas. Muitas delas passaram por histórias muito semelhantes
às de Rute e Mônica, e experimentam a falta de perspectiva, de acesso a direitos, a culpa e a
humilhação pelo caminho trilhado por seus filhos. Também experimentam o impacto frente ao
sistema que muitas julgavam protetor, mas que se mostra “destrutivo” e embrutecedor. Deste
encontro do qual surgem dor, mais humilhação, sentimentos de impotência frente ao sistema,
surge também a indignação. E foi essa indignação frente ao que se mostrava intolerável que
produziu movimentos em Rute e Mônica na tentativa de buscar outras possibilidades para esse
cotidiano.
2.3 OS MOVIMENTOS ANTES DO ‘MOVIMENTO’
O Moleque surgiu do encontro de duas mães – Rute Sales e Mônica Cunha - indignadas
frente ao “horror” com o qual se depararam ao passarem a vivenciar a rotina de unidades do
DEGASE nas quais seus filhos estiveram. Cada uma com sua história de vida e diferentes
experiências passaram a dividir uma mesma experiência, comum a muitas mães que têm seus
filhos no sistema sócio-educativo brasileiro. Segundo artigo sobre o histórico do MOLEQUE
(Cunha et al, 2007) tal experiência concretiza-se no encontro com as diferentes violações a
direitos cometidas pelo próprio Estado que não se resume apenas à violência física, mas aos
efeitos dos “múltiplos mecanismos de coerção, que modificavam esses jovens como pessoas
durante e depois da internação. O resultado era sempre traumático e só os mudava para
pior” (p. 26)
Todavia, até o MOLEQUE surgir, Rute e Mônica passaram por diferentes movimentos
em seus encontros com o sistema sócio-educativo no Rio de Janeiro. Veremos que muito
movimento aconteceu antes do Movimento, ou seja, o MOLEQUE realmente surgiu de uma
intensa movimentação dessas mães para fazer frente ao que se apresentava como intolerável,
como insuportável.
Rute já havia vivenciado a rotina de diversas unidades do DEGASE acompanhando o
cumprimento das diferentes medidas pelas quais seu filho passara. Já Mônica, após duas
60
passagens de seu filho por CRIAMs
21
deparava-se pela primeira vez com um estabelecimento
de internação. Enquanto Rute, por todo um histórico de vida ligado à militância, chegou a
organizar um grupo de mães antes de formar o MOLEQUE. Mônica, até ver a situação em
que viviam todos os garotos da unidade de internação pela primeira vez, movimentava-se para
garantir a integridade de seu filho, somente.
Assim, olhemos para essas experiências anteriores para entendermos o contexto de
formação do Movimento MOLEQUE.
2.3.1. O movimento Rute
(...) eu já vinha de um histórico comunitário, né, já tinha uma
militância comunitária, na comunidade, na associação de moradores,
na busca de políticas afirmativas para a comunidade (...) eu Rute já,
existia um pouquinho antes do Moleque, no cenário das mães. Eu tive
um primeiro momento que foi diferente da Mônica, que foi um
primeiro momento que meu filho passou pelas unidades do DEGASE,
aonde eu pude encontrar as mães. E no tempo eu fazia um trabalho no
Centro de Articulação e População Marginalizada. A partir de então,
eu comecei a encontrar as mães porque eu também estava na mesma
situação que elas, né, com meu filho lá no JLA
22
, e ali eu encontrei as
mães assim, bastante desinformadas, né, numa situação de nenhuma
assistência, de nenhum acesso. A partir de então comecei a organizar
essas mães de forma que elas cobrassem ali o direito de visitar os seus
filhos, dos seus filhos não serem maltratados lá dentro, enfim, dizer
pra elas que nós temos dever e direitos. (Sales, 2008)
A experiência de militância comunitária fez com que Rute tomasse a iniciativa de
mobilizar familiares com quem passara a conviver desde a primeira vez que seu filho entrou
no sistema sócio-educativo para cumprimento da medida de semiliberdade, em 1997. A partir
de então, Rute passou a acompanhar o cotidiano de várias unidades do DEGASE, reunindo-se
com outros familiares, buscando então informar-se sobre o sistema e procurando parcerias que
pudessem propiciar alguma mudança na realidade do mesmo. Em 2002 organizou-se com
outros familiares – em sua maioria mães – em uma associação que chamaram “AMÃES”
(Associação de Mães com Filhos em Situação de Risco).
21 Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor, onde os adolescentes cumprem medida de
semiliberdade. Segundo o art. 120 do ECA, o regime de semiliberdade implica na possibilidade de atividades
em meio aberto, independente de autorização judicial, e deve obrigatoriamente oferecer escolarização e
profissionalização.(BRASIL, 2007b)
22
Escola João Luiz Alves, unidade de internação (medida sócio-educativa de privação de liberdade)
61
Nesse ano, houve um período de nove meses de um novo governo, quando Benedita de
Silva assumiu o governo do Estado do Rio de Janeiro, o que segundo Rute, possibilitou
diversas ações nas unidades do DEGASE. Neste período, Rute, que trabalhava em uma ONG,
foi chamada para encarregar-se exclusivamente dos familiares dos meninos do DEGASE na
recém criada Secretaria de Estado de Direitos Humanos. Ela passara a ser uma espécie de “elo
de ligação” entre as famílias e a Secretaria. O DEGASE então passaria da responsabilidade da
área da Segurança Pública para esta Secretaria, como orientam diversos organismos e
documentos internacionais sobre a questão do adolescente em conflito com a lei:
Então (...) organizamos a associação de mães de adolescentes em
conflito com a lei e dali (...). eu consegui ser chamada para uma
Secretaria que estava sendo formada, Secretaria Estadual de Direitos
Humanos, que era com a secretária, Vânia Santana. E na primeira vez
em que eu marquei com a Vânia Santana, que eu sentei, conversei
com ela e falei. Como do DEGASE foi para essa Secretaria, eu
aproveitei o caminho para poder ir conversar com ela, o que era o
DEGASE, como os meninos eram tratados, como as famílias eram
tratadas e o que é que nós poderíamos fazer para modificar isso. E aí
a Vânia me chamou para assessoria dela dentro da Secretaria, mas que
eu ficasse na assessoria só trabalhando com famílias dos adolescentes
do DEGASE. E... que o meu trabalho lá ia ser atender as famílias. E
eu fui. (Sales, 2008)
Mais do que uma mera passagem de responsabilidades entre Secretarias, colocar o
sistema-sócio educativo sob a responsabilidade da área de Direitos Humanos indica, no
mínimo, o tipo de compromisso que um governo assume diante da questão. Assim como,
colocá-lo sob a responsabilidade da Secretaria de Segurança também reflete um tipo de
compromisso que até então o Estado do Rio de Janeiro vinha assumindo desde a criação do
DEGASE: o de tratar a questão da sócio-educação como questão de segurança pública. Não
que a mudança por si só representasse um presente e um futuro melhor para aqueles que
habitam as unidades de sócio-educação, até porque as práticas lá instituídas poderiam
continuar a se reproduzir em qualquer estabelecimento, a despeito da mudança para uma
secretaria cujo nome remetia à defesa de direitos humanos. Contudo, segundo Rute, o
DEGASE estar alocado naquela secretaria naquele momento, facilitou que alguns espaços
fossem ocupados por quem desejava uma transformação desse sistema para melhor, sobretudo
de quem vivia o cotidiano de violações das unidades sócio-educativas.
62
Cabe ressaltar que tal passagem deveu-se ao movimento desses familiares, ainda
agrupadas na AMÃES, que pressionaram o governo através de um abaixo-assinado
reivindicando a mudança. Foi um período rico em ações e mobilizações no qual pôde se
acompanhar algum processo de mudança no DEGASE a partir da movimentação das famílias
em parceria com o poder público, que nesse momento procurava integrar as Secretarias
Estaduais. Assim, nesse contexto, a AMÃES:
(...) organizou e encaminhou muitas denúncias de familiares;
conseguiu mover processos para afastar agentes de disciplina que
praticavam tortura; lutou pela aprovação de fundos destinados a
reformas na unidade provisória de internação; buscou a doação de
viaturas para as unidades, com a finalidade de transportar os
adolescentes para as atividades e atendimentos fora das instituições;
(...) estabeleceu parcerias com a área cultural, com a qual se tornou
possível promover ações culturais e de educação (...) (Cunha et al,
2007, p. 30)
Algumas outras ações fizeram parte do currículo desta associação no ano de 2002, dentre
elas um ato de “Abraço ao Padre Severino”, que visava simbolizar:
... um recomeço da instituição, em razão das muitas melhorias em seu
funcionamento estarem se desenvolvendo, inclusive a aprovação de
orçamento para obras, que tiveram início no ano seguinte em outra
gestão estadual (Cunha et al, 2007, p. 30)
A AMÃES permaneceu em atividade até o ano de 2004, segundo Rute, mas ela mesma
deixou o movimento em 2003, após um mal-entendido entre ela e o único pai integrante
grupo. Rute foi destituída da presidência da associação em reunião para a qual não fora
convocada.
E aí nesse tempo, um pai encarou como se eu estivesse mudando de
lado, não é? Ele não quis entender que era uma conquista do
movimento, eu estar na secretaria e que eu seria um canal para
modificar muita coisa dentro do DEGASE. E eu não sei... eu acredito
que por interesse próprio dele, ele não imaginou que naquele
momento aquela associação podia dar alguma coisa financeira,
alguma coisa assim e ele... enfim os interesses dele, eu não sei nem
quais foram. Mas se foi, ele não conseguiu nada porque no fim, essa
associação parou. Ele desarticulou as mães, se articulou em outro
lugar com as mães... tirou as mães... enfim... aí eu fiquei muito
desgostosa com isso... (Sales, 2008)
63
2.3.2. O movimento Mônica
Eu nunca morei numa comunidade. (...) Eu lembro que há anos atrás,
eu lembro que o meu filho mais velho, que hoje tem vinte e seis anos.
Na época eu acho que ele tinha seis anos e esse que eu perdi... que é a
tal pessoa que me fez ingressar em toda essa engrenagem no
movimento, que é o Rafael da Silva Cunha – eu perdi ele quando ele
tinha vinte anos –, ele devia ter uns dois anos na época, ou três – que a
diferença deles era de cinco anos. Eu estava dando almoço para os
dois e passou uma reportagem na televisão dizendo que (...) uns
meninos tinham assaltado uns adolescentes (...). Sei que era na Tijuca
(...). Tinham assaltado e os caras, os mais velhos do tráfico – pois
antigamente, tinham homens no tráfico, não é? Homens de idade, tipo
trinta e poucos ou quase trinta, por aí. Não tinha molecada como tem
hoje. Então, eles deram um corretivo nesses meninos, entendeu?
Deram um tiro na mão de cada um, na época. Então isso saiu no
jornal(...). Sabe, foi essa a reportagem que me marcou sobre
adolescente infrator, com esse corretivo. Eu mesma olhei quando
estava vendo televisão, eu estava dando comida para os meus filhos e
fiquei olhando e falei: – Eles não estão errados. Porque eu acho que se
a mãe não está dando educação, onde já se viu o menino roubar e a
mãe não saber e a mãe não ver? Então, alguém tem que dar um
corretivo. Já que a mãe não dá, alguém tem que dar. (...) Esse foi o
meu pensamento na hora. Aí quer dizer, anos depois, anos e anos e
anos, eu fui ver que não é nada disso. Que a coisa não funciona dessa
forma. Que não é a mãe que não dá um corretivo. Que não é a mãe
que não ensina. Porque a mãe ensina sim. Porque eu sempre ensinei ao
meu filho. (Cunha, 2008)
A história de Mônica difere um pouco da história da maioria das famílias dos
adolescentes que lotam as unidades do sistema sócio-educativo. Como dito no início do
capítulo, há no cotidiano destas famílias algo que se apresenta como uma ameaça muito
concreta e próxima: a possibilidade de seus filhos cometerem atos infracionais e acabarem no
sistema. Retomemos uma fala de Mônica sobre o que ela ouve das mães que atende pelo
MOLEQUE, e que apresenta tal cotidiano de forma contundente: “Ah! Eu estou morando
num lugar que o filho da Maria foi, que o filho da Josefa foi, o filho da Severina. Então eu
tenho que dar um jeito no meu que o meu também pode ir.” Tal “ameaça” não fazia parte do
cotidiano de Mônica. Como ela mesma disse, não morava em comunidade! Mônica não se
identificava com as milhares de famílias que hoje aportam as diversas unidades de sócio-
educação pelo país: pertencia a uma outra classe, a uma outra realidade. Para ela sua vida, sua
família “(...) era aquela família dita como normal, maravilhosa. Não tinha problema nenhum.
64
Tínhamos um carro, situação financeira razoável (...). Achei que isso não tinha nada a ver
comigo. Isso era coisa para quem morava em comunidade.” (Cunha, 2008)
Tal percepção de mundo, de si mesma e de sua realidade contribuiu muito para a forma
como ela vivenciou sua primeira experiência com o sistema. Sua idéia de que tinha todos os
recursos, nem trabalhava fora para cuidar somente da casa e dos filhos a levava a crer que o
fato de seu filho ter infracionado só poderia ser... “Culpa das más companhias!”:
Claro que o meu filho não era daquele. Como que meu filho ia ser?
Se foi o dela, o filho era da outra, só podia ser, que só podia ser
ladrão. E claro que levou o meu. Porque o meu não dava pra isso,
tadinho, tão bonzinho... (...) Sempre o filho dos outros tem culpa. As
más companhias... as mães se esquecem que essas más companhias
são filhos de outras mulheres, de outras mães que são iguais a nós.
(Cunha, 2008)
Em função de uma mudança nessa percepção, que ocorrera na terceira vez que seu filho
ingressara em uma unidade do sistema, Mônica localiza dois momentos em sua trajetória de
“mãe de menino preso”: um primeiro, em que ela não se sentia parte daquele grupo de
mulheres, de familiares que visitavam seus filhos cumprindo medida – pobres, negros,
favelados... – e um segundo momento em que ela diz que “caiu a ficha”, ou seja, ela era sim
como aquelas pessoas que ali estavam pelo mesmo motivo que ela – visitar um filho.
A primeira ‘entrada no sistema’ de Mônica foi no ano de 2001. Nessa época, segundo
ela:
Eu não sabia nem o que é que era o Estatuto da Criança e do
Adolescente. Não sabia que isso existia. Isso para mim não me dizia
nada. Degase? Para mim, ir preso, para mim roubou, matou, traficou
e fica todo mundo junto. Eu não sabia nem essa diferença de
adolescente para adulto. Para mim, roubou, então ficava tudo num
balaio só. (Cunha, 2008)
Pela primeira vez ela se deparava com a realidade do sistema sócio-educativo brasileiro:
encontrou, ainda na delegacia (DPCA), seu filho sujo, com marcas de maus-tratos físicos.
Cumprindo os trâmites legais, Rafael foi para o Centro de Triagem (CTR), depois para o
Instituto Padre Severino aguardar os 45 dias para sua audiência. Rafael tentou roubar um
carro junto com outros dois jovens. Um deles, que não o Rafael, estava armado. E o carro...
O carro era de um delegado federal...
65
Enquanto Rafael passava pelos estabelecimentos cumprindo a trajetória legalmente
definida, Mônica foi ao encontro do delegado. Queria de qualquer maneira provar que seu
filho não havia sido “criado para aquilo”:
Eu fui lá dar uma explicação para esse homem. Porque eu queria que
ele visse que meu filho não era qualquer um. Na realidade, meu filho
não era um favelado. Era isso que eu queria falar para ele. Eu queria
dizer à ele, que meu filho não era negro, não era favelado, então não
tinha como cometer isso. (Cunha, 2008)
Vimos que há hoje uma subjetividade dominante na sociedade que associa pobreza e
criminalidade. Forjada historicamente, tal forma de perceber, de ser e de estar no mundo vem
sendo reproduzida nas práticas sociais, construindo discursos como esse, de Mônica.
Segundo ela mesma:
Tinha esses preconceitos. Essas coisas mesquinhas, porque eu fui
criada assim como a maioria da sociedade. As pessoas só não gostam
de falar. Ficam tapando o sol com a peneira, entendeu? Eu sempre
fui social, sempre achei muito... Mentira. Eu tinha conceitos que eu
adquiri na vida, da minha madrinha, da minha mãe que me criou... Do
meu pai, do meu padrinho... já vieram também disso, de outras datas.
Que a maioria da sociedade é assim. As pessoas só são hipócritas.
(Cunha, 2008)
O delegado não a recebeu. Mandou um auxiliar conversar com ela. Esse auxiliar lhe
disse que entendia sua situação, que estava vendo que ela era uma mulher “trabalhadeira”,
íntegra, que não havia criado seu filho para aquele “tipo de coisa”, mas que ela “tomasse
cuidado daqui para frente, porque ele [o delegado] não matou, mas que se meu filho não
mudasse, outro iria matar.” (Cunha, 2008) E Mônica foi embora.
Anos depois, em novembro de 2006, quase como uma ‘profecia’ do tal auxiliar, Rafael
foi executado à luz do dia, em praça pública, por um policial.
Voltando aos encontros de Mônica com o sistema, na primeira audiência de julgamento,
Rafael recebeu a medida sócio-educativa de semiliberdade. Mônica credita tal concessão de
medida pelo juiz à sua postura diante do que estava acontecendo:
Por toda a minha inocência, por eu ser muito pura naquele momento.
Lá na audiência na 2ª Vara, eu grudei nesse delegado federal que era
uma coisa. Todo momento eu queria explicar, todo momento eu
queria falar. Eu levei não sei quantos diplomas de Rafael de jiu-jitsu,
de escola, de curso de informática, não sei o quê, não sei o que lá que
ele fez e mostrando para esse delegado, empurrando, sabe? Que o
meu filho não era... esses meninos, que o meu filho, tinha uma
66
família. Sabe? Levei o pai, levei o irmão, levei, na primeira
audiência levei quase a minha família inteira, tomou conta da 2ª Vara.
(Cunha, 2008)
Aqui cabe uma pausa na narrativa da história para olharmos um pouco para essa questão
do modo pelo qual o ECA vem sendo acolhido e aplicado no judiciário carioca. Certo tipo de
interpretação do ECA – de cunho penalista – é muito comum no Estado do Rio de Janeiro.
Nela encontramos o ECA olhado sob o prisma do Código Penal (CP) que olha para a parte do
ECA que fala sobre as infrações focando sobretudo na definição de infração juvenil que vem a
ser o ato cometido pelo jovem análogo a um crime descrito no CP. Desta forma o foco da
ação judicial aparenta ser o ato cometido pelo adolescente que resulta diretamente nessa ou
naquela penalidade, concordando com a analogia.
Contudo, justamente pelo caráter seletivo e classista do sistema sócio-educativo brasileiro
vemos que essa relação não se dá de forma tão direta assim. Vejamos.
Segundo Foucault (2002) ocorreu na sociedade disciplinar a introdução das técnicas de
exame nos processos jurídicos através da investigação de categorias tais como história de
vida, personalidade, caráter, predisposição para o crime. Tais categorias conformavam o
constructo teórico que embasava as práticas dos técnicos que passaram a ocupar espaços no
âmbito jurídico. Iniciada com a Medicina – sobretudo com a psiquiatria, a articulação do
Direito com outras áreas de saber veio a estender-se para outros campos, tais como a
Psicologia e a Assistência social. (Jacó-Vilela, 1999; Nascimento, 2002).
As técnicas de exame remontavam tanto as causas como o contexto de vida do suspeito
do crime. Portanto, a “introdução do ‘biográfico’ é importante na história das penalidades.
Por que ela faz existir o ‘criminoso’ antes do crime...”(p.224), contribuindo de forma
contundente para a construção da idéia das ‘classes perigosas”. Desta forma, segundo o autor
forjam-se duas categorias, quais sejam, o delinqüente e o infrator, diferenciando-se o primeiro
do segundo “pelo fato de não ser tanto o seu ato quanto sua vida que o explica” (p.223)
Então podemos perceber que a aplicação do ECA no que diz respeito aos “infratores” não
está tão unicamente ligada ao ato cometido, mas sobretudo à classe, à área de pertença desses
jovens. A vida deles, construída em um contexto de escassez de recursos é retomada para
justificar as penalidades e os tratamentos a eles impostos.
A entrada da análise biográfica, profundamente atravessada por ideais eugenistas e
racistas aqui no Brasil (Rizzini 2000; Arantes, 1995; Lobo, 1997; Coimbra, 2002), colabora
67
então para a construção do indivíduo perigoso, aqueles pertencentes à classe perigosas e que
por isso devem ser punidos e/ou controlados. Então, em função da origem dos jovens que
aportam o judiciário é que são avaliadas as medidas aplicadas. A origem pobre tende a
resultar em medidas mais severas, remontando às práticas higienista
23
do século XIX de
controle e disciplina da pobreza; enquanto a rica tende a ter medidas mais brandas nas raras
vezes em que chegam ao judiciário, posto que sua origem é considerada de boa família, não
necessitando da intervenção do estado.
Voltando à Mônica e Rafael, seguindo o raciocínio da analogia direta, temos que a
infração cometida pelo filho de Mônica foi análoga ao artigo 157 do Código Penal
24
. A grave
ameaça é um agravante da penalização, o que geralmente leva o juízo tender a aplicar
diretamente uma medida sócio-educativa mais severa: a internação. Mas no caso do Rafael,
por mais que Mônica tentasse provar o contrário, provavelmente, sua biografia tornara-se
mais um agravante na decisão judicial.
Para ela foi muito marcante esta primeira vez, este primeiro encontro com o sistema, em
2001. Não só por ser a primeira, mas por marcar toda uma diferença de postura dela mesma
em relação “a vez de 2003” – que veremos adiante.
Há ainda, sobre 2001, um fato interessante, que foi a entrada de um jovem de classe
média alta no Padre Severino na mesma época em que o filho de Mônica lá estava. E as
23
Com a crescente urbanização que ocorria ao longo da segunda metade do século XIX, intensificou-se a
necessidade de controlar as crianças pobres que “vagavam” pelas ruas, principalmente após a abolição da
escravidão (Rizzini, 2000). Nesse cenário os conhecimentos médicos ganharam grande importância e influência,
provocando toda uma reorganização das políticas públicas, fortemente influenciada pelo ideário higienista
(Lobo, 1997). Tal ideário por sua vez, era profundamente influenciado pelas teorias racistas e eugênicas que
surgiram no século XIX na Europa. Segundo Coimbra (2002), tais teorias, articuladas, embasariam
cientificamente as ações dirigidas à pobreza, visto que nela estaria localizada a origem dos perigos sociais.
Assim, uma série de medidas, ações e políticas públicas foram criadas a partir da influência higienista, como o
intuito de modificar, controlar e moldar o cotidiano das famílias pobres, ditando regras de conduta e de cuidados.
Instaurava-se a preocupação do poder público em higienizar os espaços públicos para melhor controlá-los, e foi
principalmente através da educação sanitária das famílias que o higienismo concretizou seus ideais. Desta
forma, o controle e a tutela exercida pelas ações higienistas operava segundo categorias que segmentavam os
pobres em “dignos’” e “viciosos”, construindo estratégias de intervenção diferenciada para os mesmos. Aos
dignos - que observassem os costumes morais e religiosos, que mantivessem a família unida - a prevenção, já
que seriam mais vulneráveis aos vícios e doenças. A rua era considerada um ambiente vicioso, e delas deveriam
ser afastadas as crianças para que não fossem expostas às más influências. Aos viciosos, por representarem um
perigo social – os ociosos e vagabundos que não inseriam-se no mundo do trabalho, considerado dignificante e
uma nobre virtude – a coerção, a correção. (Coimbra, 2002). Atentos ao grande número de crianças que
perambulavam pelas ruas, o judiciário passou também a preocupar-se com o destino das mesmas em função do
aumento do número de crimes praticados por crianças. Emerge daí o termo “menor”, apontando para a
judicialização da infância, abarcando sem problematização nenhuma, as várias classificações das crianças alvo
de políticas públicas: abandonado, delinqüente, desviado, vicioso...todos eram “menores”. (Rizzini, 1995)
24
O artigo 157 em seu caput diz que: subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça
ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência
(BRASIL, 2008)
68
audiências de julgamento de ambos foram no mesmo dia. Segundo Mônica, “o garoto foi
para o Padre, porque o roubo foi pra mídia.” E chagando lá, segundo o que Rafael contara à
mãe, “Ele não ficava no alojamento com os outros meninos. Ele ficava na sala de televisão
porque o pai dele tinha dinheiro. O pai dele era empresário. Ninguém nem fez um nada no
garoto. Não deu uma tapa, nada.” (Cunha, 2008)
Tal fato é interessante por dois motivos: um é de podermos ilustrar uma análise feita
anteriormente confirmando o que já foi dito – que o sistema sócio-educativo brasileiro é
seletivo e classista. Este jovem por ter cometido um ato infracional que ganhou visibilidade
passou pelos trâmites legais que comumente outros jovens de classe empobrecida passam, o
que é raro, pois nestas situações que envolvem infrações de jovens de classes mais abastadas,
geralmente a questão é resolvida antes mesmo de chegar ao judiciário, conforme atestam
diversos relatórios usados para este trabalho.
O outro motivo foi Mônica ter se aproximado desta família no dia da audiência. Se até
então ela não se reconhecia nas famílias da porta do Padre Severino nos dias de visita, agora
ela julgava ter encontrado alguém “igual a ela”:
E aí, quando esses pais iam visitar esse menino, no Padre Severino, eu
lembro que a mãe chegava lá e tirava todos os ouros, pulseiras. O pai
chegava num carrão com a mãe. A mãe toda pra baixo. E eu, já me
juntei com esse povo. Porque eu me achava igual a eles. Eu não ia
me juntar com aquele povinho, com aquelas mães que ficavam
chorando lá, mal vestidas, mal arrumadas. Mas não ia nunca. Estava
com a dor, mas a pose não acabava nunca. Então eu me juntei com
esse povo. Ainda mais que eu vi como os agentes, como as pessoas
tratavam eles, diferente de nós. E eu já fiz logo amizade com esses
dois, com esse casal. E aí, no dia da audiência, calhou de ser o mesmo
dia de audiência do filho deles. No dia do meu foi do deles. Então eu
colei nesse homem, na 2ª Vara. (Cunha, 2008)
Como resultado destas audiências, ao filho do empresário foi imposta uma medida sócio-
educativa de Liberdade Assistida, enquanto o filho de Mônica foi para um CRIAM cumprir
medida de Semiliberdade. Não entraremos no mérito das penalidades aplicadas pois não
sabemos as circunstâncias em que ocorreu o roubo praticado pelo rapaz abastado, só sabemos
que foram suficientes para que este fosse veiculado pela mídia. Não sabemos se pela
gravidade, violência ou simplesmente por ter sido praticado por aquele de quem a sociedade
menos espera que cometa um ato infracional. Ou os dois.
De qualquer forma, Rafael não ficou internado em sua primeira infração. E durante suas
passagens pelo sistema não chegou a sofrer espancamentos como os outros meninos, pois sua
69
mãe sempre buscava uma maneira de protegê-lo. “Apanhar como no Padre Severino - na
época [2001] se batia horrorosamente - ele nunca apanhou (...)’ (Cunha, 2008).
Nessa primeira vez Mônica encontrou um antigo conhecido da família trabalhando na
unidade, o que evitou que Rafael sofresse maus-tratos. E nas outras vezes, ela já
desenvolvera uma postura frente ao sistema que viria, posteriormente, se transformar em
militância com o Movimento Moleque. Essa postura que Mônica chama de “minha força”
surgiu em dois momentos da entrevista e que ela relaciona aos dois momentos dos quais
venho falando: de 2001 e de 2003. Se no primeiro momento essa “força” era usada para
proteger seu filho – e só ele, no segundo momento veremos essa força transformar-se em algo
voltado para uma coletividade. E foi com o “susto” da terceira vez em que Rafael foi parar
em uma unidade do DEGASE – desta vez, internado – que essa transformação aconteceu.
Senti muito, muito, muito [sobre 2001]. Mas, eu não senti da forma
que eu senti em 2003. O sentimento que estou... que eu tive em 2003
foi muito diferente de 2001. Porque 2001 foi a surpresa (...) foi o
susto,(...)foi a novidade, sabe? Foi o renascer de uma situação nova
na minha vida.(...)2003 não. Porque aí ele já tinha ido outras vezes
[duas vezes para o CRIAM]. 2003 ele me cai dentro do ESE
(Educandário Santo Expedito, unidade de internação ou seja, regime
fechado). Então, em 2003 a diferença não foi para ele, foi para mim.
Não foi ele que mudou. Fui eu. Porque eu que vi aqueles muros, que
eram diferentes do Padre Severino, sendo que parece igual, mas não é.
Aquilo é um presídio, tá bom? (...) o Educandário Santo Expedito era
aquilo que eu via na televisão. Quando tinha rebelião nos presídios,
que mostra aquele povo com a camisa no alto. Então, aquela cena eu
vi na televisão. Então, eu fui parar naquele lugar. (Cunha, 2008)
O estranhamento de Mônica já começou durante o percurso de Kombi até o local – o
“Educandário”:
Quem chega na estação, tem as Kombis. (...) as pessoas pegam mais
as Kombis, porque deixam na porta do ESE. Como o ESE é o
primeiro numa rua aonde lá mais para frente é o Complexo do Bangu,
onde ficam os adultos, então as Kombis vão deixando as pessoas em
cada um. Então, eu fui com um papelzinho que derem lá na 2ª Vara
procurando um Educandário Santo Expedito. E o pessoal da Kombi –
o motorista e (...) o cobrador – olhavam um para a cara do outro e
davam um sorrisinho, como quem diz assim: – Essa mulher só pode
estar maluca. Que Educandário que ela acha que tem aqui? Eu: –
Não, porque o meu filho está internado no Educandário. Claro que aí,
também que em 2003 já não tinha a surpresa como teve em 2001. Em
2003 já tinha a vergonha de ter um filho preso, sabe? As pessoas que
eu freqüentava. O mundo do qual eu vinha. Então como é que eu vou
falar que eu estou com um filho preso? Então, eu me escondi de todo
70
mundo, para ninguém me apontar que eu era mãe de filho, de um
menino que tinha roubado, sabe? Era muita vergonha. Então eu não
ia falar isso na rua. (...) eu sempre chique. Está pensando que eu ia
para a porta de um desses lugares de chinelinho, bolsinha vagabunda?
Não, era em cima do salto. (...) Eu não queria que as pessoas me
confundissem de maneira nenhuma que eu estava indo para um lugar
desse. (...) Mãe de bandido? Está maluca, sabe? Porque em 2003 eu
estava assim. Aí cheguei lá e estou vendo um olhar para o outro, meio
que rindo. Eu falei: – Não, porque o meu filho está internado nesta
instituição aqui, eles me falaram que fica nessa rua aqui. Vocês não
conhecem? Aí eu lembro que um deles me falou assim: – Olha,
minha senhora, eu conheço um presídio de menor. Eu vou deixar a
senhora lá na porta e a senhora bate lá e pergunta. Porque o único
presídio de menor que tem nesse endereço que a senhora está
querendo é esse.” (Cunha, 2008 – grifos meus)
Até então nada se comparava ao que Mônica presenciaria no final do trajeto até o tal
“presídio de menor”, oficialmente chamado Educandário...
Quando ele parou lá, que eu saltei e olhei... cara, as lágrimas
desceram. Em momento algum eu achei que não era aquele. Assim,
dentro de mim eu sabia que era aquele, mas, é... a pose, o orgulho era
muito grande. Eu não queria aceitar que era aquele. Não sei se você
está me entendendo. Dentro de mim eu sabia que era aquilo ali
mesmo, mas, assim, o orgulho, a pose, eu não queria aceitar que era
aquilo ali. (Cunha, 2008)
A partir de então, Mônica começaria a tomar contato com uma realidade muito cruel, já
descrita anteriormente, pois a violência é muito mais acirrada nos estabelecimentos de
internação. Lá, os jovens e suas famílias vivem uma rotina carcerária, e Mônica logo veio a
experimentar na pele o que a esperava:
Aí, vem o agente e me pergunta, já fala assim: – O que a senhora
quer? Eu falei: – Não, é que o meu filho – eu não sei nem se ele está
aí –, eu só queria que o senhor pudesse me dar uma informação, por
favor. Muito educada, muito por favor, sabe? Aí: – Qual o número
do seu filho? Eu falei: – Não, o nome dele é Rafael da Silva Cunha.
O senhor poderia dar uma olhadinha para ver se ele está aí? Eu acho
que não (...)– ele não queria nem saber – e eu falando para o vento: –
Não, porque o homem da Kombi me deixou aqui mas, eu acho que
não é aqui não. Eu queria até que o senhor me dissesse aonde fica
esse Educandário Santo Expedito. Ele: – Não, mas é aqui mesmo, é o
ESE. É aqui, antigo Moniz Sodré. Eu lá sabia o que era Moniz Sodré
ou Muniz não sei das quantas! Estava lá o nome da criança. – Mas a
visita não é agora não. A senhora pode ficar aí na porta. Olha só, vai
tirando esses “belequetetes” que a senhora está aí tá? Já vai se
adiantando.(...) Eu não sei... assim, é diferente ter ficado na fila do
71
Padre e ter ficado na fila do ESE. Na fila do Padre(...) você passa por
umas grades do portão e entra para dentro da instituição, sabe? Na fila
do ESE você fica do lado de fora, ali no sol, na chuva, sabe? Eu não
sei se você vai entender esse meu raciocínio, sabe? Mas essa diferença
que não sei se são as instituições que são diferentes ou eu que estava
diferente. Ou a minha visão que estava diferente naquele momento. Eu
olhava para os outros assim, sabe? É engraçado, nem querendo me
encostar em nada, nem em ninguém. Não perguntava nada, mas
querendo saber, mas com medo de perguntar, com medo de falar.
(Cunha, 2008 – grifos meus)
Paremos um pouco nessa fala. Nela podemos perceber, no “pedido pelo número”, o que
Goffman (1999) chamou de “mortificação do Eu”, processo que ocorre nas instituições
totais
25
que pretendem curar o ‘desviante’ através da disciplina, impondo a perda do nome, a
perda dos bens materiais, das práticas culturais.
Ocorre uma serialização dos humanos, típica das práticas disciplinares (Foucault, 2002)
que em instituições totais, tais como os presídios, podemos observar, através da numeração
das pessoas, podendo ser também através da divisão de pertença a facções criminosas. Nas
unidades sócio-educativas também presenciamos essa serialização através dos uniformes, das
divisões por facções, e das posturas corporais – mãos para trás e cabeça baixa – exigidas na
presença de autoridades ou pessoas estranhas à unidade.
Outra prática, imposta às famílias, e que pode ser qualificada como serializadora e
disciplinadora é a revista íntima, já mencionada anteriormente. Quem chega, forma uma fila,
entra, e tem que tirar a roupa e dar os tais “três pulinhos” ou agachando-se três vezes. Não
duas, não quatro. Três. Quem não está previamente informado sobre tal prática, já na
primeira vez é inserido no processo de serialização, sem o qual, não será permitida a
visitação. Vejamos então a primeira experiência de Mônica no ESE, como foi sua entrada na
“série”:
... chegou a hora de visita, aquela fila foi aumentando, aquelas mães
foram chegando, aquelas bolsas todas nas mãos, um falatório, aquele
tititi. Chegou a hora de entrar – eu também fui a primeira. Na hora da
revista, a mulher: – Como é que é minha filha. Tira logo essa
roupa. A senhora ainda está com esse negócio aí no cabelo? Eu
25
“Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de
indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo,
levam uma vida fechada e formalmente administrada” (Goffman,1999, p.11). Ou seja, uma instituição total
estrutura-se a partir do “controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática de grupos
completos de pessoas” (Goffman,1999, p. 18). Sendo assim, essas instituições totais coibem qualquer contato
entre quem está sob sua responsabilidade e o mundo exterior,pois seu objetivo é excluí-lo completamente do
mundo do qual veio a fim de que ele absorva totalmente as regras internas à instituição.
72
sempre gostei muito de buginganga, muito daquelas traquinalhas, eu
sempre gostei muito. – Vamos embora minha filha. Vamos embora,
vamos embora que a gente tem hora. Não é só a senhora não. E eu,
apavorada, parecia um bichinho, sabe? Aí a mulher falou: – Você é
de primeira vez, não é? Está se vendo. Olha só, tira a roupa toda,
abre as pernas e dá três pulinhos, tá bom? De um lado e de outro
para eu ver se você não tem nada lá. Eu: – Não, não tenho.E ela: –
Não, eu não sei se você tem. Eu tenho que ver, tá bom? Bota aí e tira
tudo e guarda tudo. Só pode entrar assim...” (Cunha, 2008 – grifos
meus).
Já dentro do local onde se realizaria a visita – o pátio do ESE – Mônica continua sua
caminhada rumo a mais surpresas. Desagradáveis surpresas que mudariam sua vida e muitas
outras vidas dali para frente. Este é o tal momento do “cair a ficha”:
Quando eu cheguei lá no pátio – que é onde ocorre a visita – aí ele
[Rafael] vem. Ele foi o primeiro a sair, porque eu fui a primeira mãe a
estar no pátio. Vem aquele menino careca, porque eles tinham
raspado a cabeça dele de um sábado que eu tinha ido no Padre para lá.
Aquele menino careca, aquele menino forte, porque de tanto fermento
com arroz fica desse tamanho e o feijão também. Então, eles ficam
todos fortes. Aquele menino forte. Aquele homem. Eu falei: –
Rafael, você sabe onde você está? – Sei mãe. Estou em Bangu, no
ESE. – Meu filho, você está dentro de um presídio. Você agora é
bandido. Você é bandido Rafael! Você está num presídio meu filho!
Você não está vendo onde é que você chegou e você fez eu chegar?
Cara, você é igual os outros. É bandido! (...)Eu tenho um filho
bandido. Falei: – Você rouba os outros. Cara, porque é que você
rouba os outros? Você precisa do quê? Você tem tênis caro, você tem
roupa cara. Você estuda num colégio bom, você tem uma casa legal.
Eu faço tudo por você e você rouba os outros. E ele não respondia.
(...) Aí a visita se passou e tal, eu fui embora arrasada. (Cunha, 2008)
Neste dia, Mônica experimentou não ser tão diferente assim daquelas pessoas com quem
compartilhara a espera na fila momentos antes e em medidas anteriores pelas quais Rafael
passara.
Passado o primeiro impacto, Mônica retornou no fim-de-semana seguinte para outra
visita. E foi neste dia que a tal “força” começou a se direcionar para além de seu filho Rafael:
(...) No outro domingo que eu fui visitá-lo. (...) Quando eu entrei – eu
sempre era uma das primeiras (...). Estou vendo os meninos, um de
olho roxo, o outro, com a mãe cuidando do ouvido – do ouvido saía
assim, água. Aquele comentário... Então ficava aquele tititi, todo
mundo falando, sabe? Eu falei: – O que aconteceu, Rafael? Por que
está todo mundo assim? Ele falou: – Mãe, ontem eles entraram nas
celas – ele falava cela – bateram em todo mundo mãe. Bateram
73
muito, muito, muito, muito, muito. Eu falei: – E em você? – Olha só
mãe. Ele só me deu um tapão aqui no pé do meu ouvido, mas eu não
apanhei tanto não. Porque teve logo um agente que falou: – Olha,
esse aí, olha – porque esse negócio aí vai correndo de boca em boca,
que os agentes ficam circulando por todas as unidades, não resta a
menor dúvida. Esse aí é lutador de jiu-jitsu [referência ao tal
conhecido da família que trabalhava no IPS]. Então eu ganhei só uma
porrada no pé do ouvido, mãe. Mas os outros meninos mãe,
apanharam muito... (Cunha, 2008 – grifos meus)
E surge a força:
Olha, naquele momento... Cara, aí eu saí olhando o filho de todo
mundo. Até então, nunca tinha me dirigindo para ninguém. Naquele
momento, eu larguei ele com as minhas coisas – eu forrava lá um
paninho, parecia um piquenique. Num paninho, botava lá meu
biscoitinho para ele, um suquinho, um pãozinho, um sanduiche,
comidinha na travessa – Fui olhar os filhos dos outros. Eu fiquei
apavorada. Eu falei: – O que é isso? Bateram no seu filho? Bateram
no seu filho? Bateram? E aí fui para o meio, assim do nada, cara. Eu
voltei para o meu filho e falei: – Gente, tem que fazer alguma coisa,
porque senão eles vão matar. E assim, eu não quero que bata no meu
filho. Porque uma coisa eu sei: que a gente não pode bater. Porque
um dia eu fui bater no meu filho e eles me criticaram. Então eles não
podem bater, porque eles não pariram. Quem pariu eles foi a gente.
Eu falei: – Eu vou falar agora com diretor, agora. E saí. (...)Os
agentes depois ficavam ali vigiando até a visita acabar. Aí saí
empurrando eles, fui caçando o diretor, aquela falação, aquela
autoridade toda e nisso, os pais vieram atrás, pegaram a minha força.”
(Cunha, 2008 – grifos meus)
Nesse momento, a indignação de Mônica afetou outros familiares, contagiando-os de
coragem para irem até a autoridade responsável pelo ESE cobrar uma atitude frente à sessão
de espancamento ocorrida. O diretor autorizou a entrada somente de Mônica em sua sala, que
imediatamente começou a reclamar, qualificando o ocorrido como absurdo, culpando o diretor
por ter permitido os espancamentos. Esquivando-se da responsabilidade, o diretor alega que a
sessão de espancamento coletivo ocorrera à noite, quando ele já havia saído do ESE. Mônica
não satisfeita, e profundamente revoltada e indignada com o acontecido e com a resposta,
continua:
– Eu vou no jornal, eu vou na polícia! Até parece que eu conhecia
alguém. Eu não conhecia absolutamente ninguém. – Eu vou no
jornal, eu vou na polícia, eu vou denunciar, eu vou falar que vocês
estão batendo, e eu vou ficar aqui na porta e não vou sair nunca mais
daqui porque vocês vão matar o meu filho. Vocês não vão matar não,
porque eu vou ficar aqui vigiando! (Cunha, 2008)
74
O contágio ultrapassou paredes e – os familiares que ficaram do lado de fora falavam
cada vez mais alto, reclamando, igualmente indignados com o que estava acontecendo. Então
o diretor, frente a esse grupo que demonstrava não querer ceder às suas desculpas, convidou
três pais para conhecer as instalações do ESE justificando, ele mesmo, que “aquilo não era
digno para uma mulher ver.” Tal grupo voltara estarrecido com o que vira. Mônica, que
posteriormente teria a oportunidade de visitar as instalações do ESE, já como trabalhadora de
um projeto social - de uma ONG -, descreve o cenário:
... aquilo pingava água. As celas, assim, os bequinhos, onde aqueles
meninos dormiam, cimento. Aquilo sujo, rabiscado. Um buraco para
fazer cocô, xixi, assim uma coisa que os pais ali naquele momento
voltaram: – Mônica! Tu não tem idéia! (Cunha, 2008)
Diante do horror estampado nos rostos daqueles que viram a situação em que os filhos se
encontravam, o Diretor responsabilizou o Estado pelas condições encontradas no ESE. Disse
aos familiares que eles deveriam reclamar com a Governadora – Rosinha Matheus, cujo
mandato começara naquele mesmo ano – tentando eximir-se da responsabilidade que lhe
cabia que era dirigir aquela unidade justamente representando o Estado.
Contudo, naquele momento, Mônica desconhecia tal mecanismo e retornou no dia
seguinte ao ESE para falar novamente com esse diretor e concordou com a proposta de que as
famílias cooperassem com a direção do presídio:
... voltei no dia seguinte. Aí ele me deixou entrar. Aí ele me chamou
para uma conversa. Ele falou que se eu o ajudasse, tinha como aquilo
não se repetir mais com a minha ajuda. Eu falei: – Então, o que eu
posso fazer para te ajudar, para isso não acontecer? Ele ‘– Olha só,
você faz com que essas mães entendam que esses filhos têm que ficar
quietos, que eles estão errados, que eles não podem estar reclamando.
E eu faço com que esses agentes não façam mais isso com eles.’ Só
que naquele momento, eu até achava que isso era certo, eu não tinha
informação na verdade, do que estava acontecendo... (Cunha, 2008)
E assim Mônica começou a se aproximar das outras famílias de forma a convencê-las a
falarem com seus filhos para que eles respeitassem os agentes para que os mesmos pudessem
respeitá-los:
Aí, começamos assim. Eu, antes de entrar eu me reunia com as mães
lá fora, sabe? Ficava falando para elas, mas assim, vinham coisas na
minha cabeça (...) então, eu falava isso para essas mulheres: ‘– Gente,
a gente tem que falar com nossos filhos que eles estão errados
também, que eles não estão aqui de brincadeira, entendeu? A gente
75
tem que falar com eles para eles poderem respeitar os agentes para a
gente poder respeitar eles.’ (Cunha, 2008)
Até que ela veio a conhecer um agente que dispensava um tratamento digno aos jovens,
pois esses profissionais existem e muitas vezes encontram sérias dificuldades para trabalhar.
Não raro, sofrem retaliações por parte colegas e superiores. E esse agente apresentou o ECA
para Mônica:
Eu lembro que ele falou para mim assim: ‘– Mônica, você é muito
boa. Você vai longe. Eu posso até não estar aqui mais para ver. Mas
você precisa ser lapidada, você é muito intempestiva, tudo você quer
bater, você quer xingar. Você precisa entender melhor as coisas para
você poder... e isso aí, esse entendimento vem com a informação. Eu
vou te dar esse livrinho aqui que se chama Estatuto da Criança e do
Adolescente e você vai lendo ele. Toda vez que você vier para cá e
for para lá.’ E assim eu fiz. Toda vez que eu pegava o ônibus para ir e
para voltar, era só o momento também que eu lia, que eu nunca fui
chegada lá à leitura como a maioria dos brasileiros não são. Eu li
aquele livrinho e comecei a entender as coisas. E aí, o que é que eu
fazia? Eu lia e chegava lá e falava para elas assim: ‘– Olha só, deixa
eu mostrar para vocês aqui, o que estou lendo nesse livrinho.’ Não
tinha livro para dar para todo mundo, o homem só deu para mim.
Tem lá até hoje uma pedra antes de entrar na unidade do ESE. Eu
ficava em pé naquela pedra e as mães em volta e eu lendo o Estatuto
para elas. Todo domingo, eu lia um trecho. Elas: ‘– Mônica, tem
disso?’ Eu falei: ‘– É... está vendo, os nossos filhos roubam, mas eles
também têm direito. Eles têm direito a isso, àquilo, àquilo outro. As
pessoas não podem bater. Eles têm direito a comer, eles têm direito a
tomar banho, sabe? (...) de estudar.’ Aí comecei a ler aquilo e entrar
mais dentro da unidade. (Cunha, 2008)
Tal aproximação com a direção, que inicialmente destinava-se a uma certa ‘cooperação’,
possibilitou que Mônica (já ocupando um lugar de liderança) e outras famílias ocupassem
novos espaços no ESSE, para além das visitas dominicais. Um primeiro espaço foi o ganho de
um dia a mais para as famílias verem seus filhos:
Falei: ‘– Diretor, olha só. Toda terça-feira, as mães têm que vir falar
com os técnicos. Vamos fazer um negócio? Vai ser bom para a gente
e vai ser bom para você também.’ Eu sempre falava assim com ele. ‘–
Se você deixar as mães que vierem falar com os técnicos verem o
filho, aí vai ser mais um dia que a gente vai ver os nossos filhos. Aí,
você vai ver só. Eu vou poder falar melhor com elas porque vai ser
mais um dia. Porque às vezes, elas saem daqui correndo, que tem que
ir para casa fazer comida, não sei o que. Às vezes, muitas delas
moram muito longe e aí terça-feira é mais um dia para poderem falar.’
76
Aí ele concordou. Toda mãe que ia falar com a técnica na terça, tinha
direito de ver o filho. (Cunha, 2008)
E após essas reuniões com o corpo técnico, às terças, foi se seguindo uma outra reunião
só entre as famílias para discutir o Estatuto. Nesse movimento, ‘aquele’ técnico já estava em
parceria com a Mônica, e sugeriu trazer algumas pessoas para ela conhecer. Essas pessoas
eram estagiários e profissionais que atuavam em diferentes áreas da defesa dos Direitos
Humanos, que começaram a freqüentar o ESE, conhecer Mônica e sua atuação com as
famílias dos meninos de lá e também a trocar experiências e conhecimentos sobre as questões
do sistema sócio-educativo.
Mônica virara então, uma mãe representante. Segundo ela mesma, “ainda não era mãe
do DEGASE, era mãe do ESE”:
E aí começamos. (...) nessas visitas. Com isso, as datas
comemorativas como Dia da Mãe, Dia da Criança, Dia do Avô, Dia
dos Pais, tudo tinha festa porque o Diretor me dava a liberdade de
fazer, de organizar tudo. Porque aí eu virei, tipo na escola comum,
uma mãe representante. Entendeu? Como se fosse uma escola. Só
que era um presídio. Era não, é. Então, eu virei mãe representante de
presídio. E o que é que eu fazia! (Cunha, 2008)
Enquanto Mônica virava “mãe do ESE”, a Fundação Bento Rubião
26
possuía desde o mês
de novembro de 2002, um projeto em parceria com o Ministério da Justiça que se propunha a
prestar assistência jurídica e social aos jovens que estivessem no sistema e a suas famílias,
encaminhando-os “para cursos profissionalizantes, de acordo com suas demandas” (Cunha
et al, 2007, p. 28) e pagando passagens e refeições para os familiares nos dias em que se
realizassem reuniões do projeto. Tal projeto chamava-se “Quebrantar”, e segundo Mônica:
Mas, tinha o dinheiro, e não tinha a mãe e o menino. (...) O dinheiro
já estava depositado no banco. A população do trabalho estava ali...
Aí elas foram e me fizeram a proposta para trabalhar no Bento nesse
projeto. Aí, entrei com essa pequena sabedoria que eu estava
adquirindo no momento, não entrei tão crua. (Cunha, 2008)
Com esse convite, Mônica e outras mães começaram no mês de junho de 2003, a
participar deste projeto. E foi em agosto de 2003, buscando ajuda na Fundação Bento Rubião
para seu filho, novamente internado, que os movimentos de Rute e Mônica se encontraram.
26
Centro de defesa de direitos de crianças e adolescentes, organização não-governamental sediada na cidade do
Rio de Janeiro.
77
CAPÍTULO 3
E OS MOVIMENTOS DE RUTE E MÔNICA SE
ENCONTRAM: O MOVIMENTO QUE SURGE DOS
MOVIMENTOS
Quando eu conheci a Rute, foi muito engraçado,
pois eu olhei pra ela e falei: – É ela. (...) Aí eu
fiquei por trás da Rute andando: ‘– Aí ela... Aí ela!’
[fazendo o gesto de apontar para a Rute] (...) a Rute
era conhecida na Instituição. [por sua militância]
(...) Daí nos apresentaram. (...) Eu falei pra ela do
movimento, falei do meu trabalho e ela...
completamente desmotivada. Não queria mais saber
disso. Até porque apesar da luta dela toda o filho
estava voltando novamente para a unidade. Então
ela falou: – Não! Você está maluca, você não sabe o
que é isso aí, a dor de cabeça que isso dá. (...)
Amanhã acontece de novo. Vamos largar isso de
mão, isso não dá nada não. Além da gente não
ganhar dinheiro nenhum a gente só se estressa’. E
eu consegui colocar na cabeça dela que a gente
poderia mudar. Que eu não estava entrando de
primeira vez, não era marinheira de primeira
viagem, com as idéias todas frescas achando que
podia mudar o mundo, aquela coisa toda, aquela
utopia maravilhosa. Convenci ela de começar de
novo. Para ela era um recomeço, (...) Para mim era
um começo, uma história que eu nunca vivi, mas,
para ela (...) era uma outra esperança, não sei se
bem essa palavra, mas uma outra chance, entendeu?
E aí fomos. (Cunha, 2008)
... me falaram do projeto Quebrantar. Encontrei a
Mônica lá, e a Monica me olhou assim... Na mesma
78
hora a gente ‘bateu’ uma com a outra e sentimos já
alguma coisa, algo ali. Tinha algum plano ali.
(Sales, 2008)
A partir de então, o filho de Rute começou a fazer parte do projeto Quebrantar e ela
começou a parceria com Mônica, na Fundação Bento Rubião, realizando as reuniões com as
mães dos adolescentes ingressos no sistema sócio-educativo.
(...) construímos uma parceria com o Bento. O Bento nos dava uma
sala com computador, com telefone, o advogado, a assistente social.
Então a gente trabalhava com aquilo ali. (Sales, 2008)
O Quebrantar foi finalizado em dezembro de 2003, por falta de renovação do contrato de
parceria com o Ministério da Justiça (Cunha et al, 2007). O fim do projeto, entretanto, não
finalizou os encontros e reuniões entre as participantes do grupo – todas mães.
Também no mês de dezembro de 2003, no dia 10 especificamente
27
– foi realizado um
ato público que contou com a participação das mães que continuavam reunindo-se mesmo
após o fim do projeto Quebrantar.
Tal ato visava marcar o repúdio às práticas violentas que aconteciam nas unidades do
DEGASE e buscava publicizar o desrespeito às demandas e denúncias realizadas um ano
antes, a partir do “Ato de Abraço ao Instituto Padre Severino” (com familiares da AMÃES).
O governo que acabara de assumir não dera seguimento às melhorias iniciadas anteriormente
e:
... parou com aquilo tudo (...) As coisas não foram para frente. E
voltou tudo à estaca zero, até as ações que a gente tinha colocado
dentro das unidades – naquele tempo eu acompanhava de perto,
representando a família. E nesse tempo, como o Padre Severino ficou
abandonado! Aí... eu fiz a proposta de que a gente poderia organizar
então um ‘desabraço’ (...): ‘Então vamos desabraçar?’ E fizemos um
ato de repúdio ‘desabraçando’ o Padre Severino. (risos) (Sales, 2008)
O Ato teve grande repercussão na mídia. Segundo Rute:
... saiu nos jornais, veio o Juiz Siro Darlan
28
, apoiando o movimento
de mães. Logo depois disso eu dei uma entrevista na CNT. Nesse dia
eu dei entrevista em tudo quanto é canal por que a gente já acionou a
imprensa. E depois eu fui convidada para o programa ‘Direito em
27
Data em que comemora-se a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia
Geral da Organização das Nações Unidas, em 1948.
28
Juiz da Infância e Juventude na época e hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro.
79
Debate’ na TVE, onde eu coloquei toda a situação do DEGASE e a
situação das medidas, que elas eram dadas para os nossos jovens
negros, pobres e tal... E aí foi assim ... foi dez. (Sales, 2008)
E neste “Ato de Desabraço ao Instituto Padre Severino” nasceu o MOLEQUE. O
Movimento que daria contorno ao movimento que há muito já acontecia nas trajetórias de
vida de Rute e Mônica.
Com o fim do projeto Quebrantar, através do qual as duas se conheceram e no qual ambas
estavam trabalhando, surgiu então, a necessidade de uma outra forma de organização visto
que o grupo de mães continuava a se encontrar. Diante disso, uma das advogadas da
Fundação Bento Rubião sugeriu a criação de um movimento social coordenado por Rute e
Mônica – visto que ambas já haviam iniciado uma atuação em parceria.
A continuidade das reuniões entre as mães do extinto Quebrantar e toda a organização
envolvida para o “Ato de Desabraço” corporificou o movimento de mães do DEGASE, mas
ainda era um movimento sem nome.
E então, diante da necessidade que Rute e Mônica sentiram de organizar uma fala comum
do grupo frente à repercussão do Ato de Desabraço, surgiu o nome MOLEQUE:
(...) a gente queria fazer uma carta para a imprensa porque a imprensa
toda estava procurando a gente. A gente tinha que se organizar para a
gente não ficar falando, cada uma, uma coisa. Então era melhor
organizar uma fala numa carta. Só que a gente ficou falando assim: ‘–
E aí, o que a gente vai botar? Só um movimento de mães?’ E
conversa vai, conversa vem: ‘Esses moleques, né? Esses moleques
acabam fazendo a gente se movimentar. (...)Antigamente os moleques
jogavam bola de gude, jogavam pedras no telhado da vizinha, mas
agora a molecada é mais braba!’ (...)Era uma molecagem.(...) Essas
mães fazem isso tudo pelos moleques. Então é... um movimento
Moleque!’ (risos) (...)Aí foi carta para a impressa e para tudo quanto é
lugar. Mandamos essa carta para Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Fomos até convidadas para uma audiência pública na
Corte Interamericana! (Sales, 2008)
3.1 AS LUTAS DO MOLEQUE
Desde seu início, as lutas do MOLEQUE foram construídas a partir de diversas parcerias.
A primeira delas foi a própria Fundação Bento Rubião, que forneceu espaço físico e ajuda
de custo temporária à Mônica e à Rute. Hoje, esta Organização Não-Governamental ainda é
80
parceira em algumas atividades realizadas pelo Movimento, apesar de o mesmo não mais
sediar-se em suas instalações.
Uma segunda parceria aconteceu no ano de 2004, com o Projeto Legal, também uma
ONG, que presta serviços jurídicos. Nesta parceria foram realizadas oficinas sobre
metodologias participativas com as mães do MOLEQUE e oficinas com os próprios
adolescentes egressos das unidades do DEGASE. Destas discussões foi produzido um
documento contendo um diagnóstico do sistema sócio-educativo do Rio de Janeiro, bem
como propostas de mudanças do quadro que se apresentava.
Em 05 de julho de 2005, aconteceu o lançamento deste relatório, intitulado: “O Sistema
Sócio-Educativo na visão das mães – Documento Diagnóstico e Propostas para 2005” em
audiência pública na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Além da
elaboração, este documento contou com o apoio de várias instâncias em sua produção e
divulgação
29
.
O evento de lançamento contou com a presença de vários convidados considerados
importantes atores na área da Infância e Juventude. Estiveram presentes “representantes da
II Vara da Infância e Juventude, da Defensoria Pública, de ONGs de Direitos Humanos, da
AMAR de São Paulo, da Secretaria Estadual de Direitos Humanos” (Cunha et al, 2007,
p.35). De todos os convidados, surpreendentemente – ou será sintomaticamente – apenas o
DEGASE não enviou nenhum representante. Aliás, enviou, mas os que foram receberam
ordens de se retirar, e, portanto o DEGASE não esteve presente no lançamento do relatório.
O diagnóstico que nos foi apresentado naquele documento coadunava com os diversos
relatórios nacionais e internacionais (Anistia Internacional, 2000, 2001; Centro de Justiça
Global, 2000, 2004; Human Rights Watch, 2004, 2005; Organização das Nações Unidas,
2001; CRP/OAB, 2006) que apontavam para as péssimas condições em que ainda se
encontram as unidades do DEGASE, denunciando tanto a precariedade física desses
estabelecimentos quanto às práticas perversas que lá aconteciam.
Este relatório foi produzido por aquelas que vivenciam a rotina desses estabelecimentos,
e que estavam “cansadas de chorar na porta do estabelecimento em dias de visita”.
Percebendo e sentindo na pele a distorção entre o que diz a lei e o que acontece no cotidiano
29
“... das ONGs Projeto Legal, Fundação Bento Rubião e Human Rights Watch, do Serviço de Psicologia
Aplicada da PUC-Rio e com o apoio da Princeton University, da United Children’s Fund (UNICEF) ...” (Cunha
et al, 2007, p.35)
81
do Sistema Sócio-Educativo do Rio de Janeiro, o MOLEQUE sistematiza em palavras os seus
objetivos:
(...) dar apoio aos responsáveis pelos adolescentes e jovens; ajudá-los
a recuperar seus filhos; garantir que os direitos deles não sejam
violados; prestar atendimento jurídico às famílias e adolescentes;
auxiliar no encaminhamento de adolescentes e familiares para
atendimento psicológico e médico quando o jovem sai da unidade de
internação fazendo um exame clínico, incluindo exame de doenças
sexualmente transmissíveis e contagiosas; apoio, quando possível,
para a compra de medicamentos ou vacinação; promover o
intercâmbio entre a família e o poder público: promover espaços para
debates, desenvolvimento e informação do Sistema Sócio-Educativo.
(Sales et al, 2004, p.02)
Pode-se perceber que as propostas desse movimento não dizem respeito tão somente ao
momento em que os adolescentes encontram-se sob custódia do Estado nos estabelecimentos
do DEGASE. Elas também se dirigem ao apoio às famílias e aos jovens quando estes saem
de lá. As duas últimas propostas refletem bem uma preocupação do movimento em tornar
pública a situação e as questões do sistema sócio-educativo, no sentido de discuti-las com os
próprios familiares, com o poder público e com a sociedade.
Como já foi dito anteriormente, estamos em um momento histórico de acirramento das
ações repressoras contra a juventude pobre brasileira, que é considerada um perigo para a
sociedade, e por isso é alvo da política opressora e repressora que resulta em um círculo
vicioso de violência e no extermínio de muitos desses jovens. Como sinaliza Arantes:
A possibilidade de ser morto ou reincidir, após a saída da unidade, é
quase certa, pois o mundo lá fora reserva aos egressos muitos
obstáculos e dificuldades. A morte ou o retorno dele às atividades
ilícitas independe se teve ou não um desenvolvimento considerado
satisfatório na unidade sócio-educativa. (Arantes, 2005)
Nesses quase cinco anos de atuação, o MOLEQUE vem, sobretudo, e antes de tudo,
oferecendo uma parceria solidária às mães e familiares que têm filhos no sistema sócio-
educativo do estado.
A idéia que orienta as ações do MOLEQUE é que “todo atendimento a essa mãe, a esse
adolescente, teria que ser (...) da própria mãe que passou por isso. Porque você não vai
entender o que aquela pessoa está passando se você não tiver passado. É muito difícil”
(Sales, 2008).
82
Todo o percurso de Rute e Mônica, que culminou na organização de um movimento
social, iniciou-se com uma mesma experiência comum a todas aquelas que chegam até elas: a
dor.
A dor de ver um filho cometer um ato criminoso, a dor de vê-lo com sua liberdade restrita
ou privada:
E... a forma que eles tratavam, quando eles botavam a mão do meu
filho para trás e mandava o meu filho abaixar a cabeça – ‘Vamos
embora, embora, entra, entra!’ Eles fazem isso na frente da mãe. (...)
E eu pensava assim: – ‘Meu Deus, meu filho está sendo humilhado.’
Então, dói muito, dói muito mesmo. (...) a dor maior é quando a gente
vê nosso filho com as duas mãos para trás algemadas, com a cabeça
baixa, com aquela roupinha, aquela camisetinha branca, aquele
shortinho azul [uniforme do IPS]. Nossa, aquilo é como se você
pegasse uma faca e enfiasse no teu... no coração dessa mãe. É. Você
pode olhar. Se você for na Segunda Vara da Infância e Adolescência,
às vezes a mãe está lá, forte, mas quando chega o carro com aqueles
adolescentes, que sai um agarrado no outro, com a cabeça baixa – por
que eles não podem olhar nem para a mãe deles, porque eles não
deixam eles levantarem a cabeça. A orientação é que eles têm que
ficar com a cabeça baixa. Então eles saem tudo agarradinho assim.
É... como se você desse um tiro naquelas mães porque elas choram
todas ao mesmo tempo, juntinhas. – ‘O meu filho! O meu filho!’ A
dor é toda igual. Elas falam assim: – ‘Não, eu não vou chorar.’ Que
nada. Mesma dor, a mesma coisa. (Sales, 2008).
A dor de deparar-se com a humilhação e a violência do sistema – contra os jovens e
contra elas mesmas:
Porque é uma dor... o filho da gente parece que ele sai da gente, mas
ele não sai, parece que ele continua na gente, não é? Então parece que
a dor dele continua com a gente. Então só de imaginar que o meu
filho estava apanhando dentro de algum lugar, eu estava sentindo as
pancadas como se fosse em mim, não é? (Sales, 2008)
Violência essa que silencia e que se reproduz no silêncio:
O que eu não entendo, é porque que o adolescente entra essa semana e
essa mãe não tem direito nessa semana à visita. Só tem direito daqui a
quinze dias! (...) O que acontece nesse meio tempo? É claro que são
as pancadas porque o meu filho já me falou. Que apanham muito e aí
ficam com as marcas ... e eles não podem levantar a camisa pra mãe.
Porque eles só apanham aqui assim [mostrando a região toráxica].
(...) é um processo mesmo de tortura e a mãe, ela fica destruída.
(Sales, 2008)
83
A dor de deparar-se com o preconceito, com a discriminação e com a culpabilização por
seus destinos e de seus filhos:
Ela é marginalizada, ela é discriminada, por ser mulher, por ser negra,
por ser pobre, enfim, ela está sendo culpada por um monte de coisa. E
aí mais o filho dela comete um crime, aí ela também está fragilizada
pelo crime ...A própria comunidade condena. E depois... Aí, depois
elas vêm para... sociedade que a condena mais ainda. Aí ela enfrenta
uma delegacia, (...) enfrenta um juiz da segunda vara e adolescência,
que não olha nem para a cara dessa mãe, humilha mesmo. Aí ela vai
para a unidade tentar ver esse filho, também é humilhada (...) a gente
tem mãe que vem de muito longe às vezes, chega lá na porta do
negócio (...) eles falam assim: Ah! Agora... hoje não dá não, a
senhora vem daqui a não sei quantos dias. Elas às vezes já estão sem
ver o filho há dois, três dias, desesperadas. (Sales, 2008)
Podemos afirmar que essa dor foi transformada em luta. Transformação esta que
acontece nos encontros, nos laços de solidariedade que surgem nos caminhos das lutas desse
Movimento. Deste Movimento que surgiu do encontro de movimentos:
Às vezes compartilhar isso. É ela entender que o processo não é só
dela e que o... ela não é culpada por esse processo. Que a sociedade
culpa ela mas ela não é. (Sales, 2008)
Não que a dor deixe de existir, não que a luta tome seu lugar, mas as experiências que
surgiram das falas das mulheres entrevistadas nos mostram que as práticas de resistências vêm
possibilitando a construção de novas formas de existência para elas. A resistência então, toma
a forma de re-existência.
3.1.1 Poder e resistência
Para pensarmos a questão das práticas de resistência construídas pelo Movimento
MOLEQUE voltaremos à nossa “caixa de ferramentas”. Dela tomaremos alguns conceitos
elaborados por Foucault e Deleuze - que também tomaram conceitos do pensamento de
Nietzsche, principalmente a noção de força construída pelo filósofo.
A opção de tomar como ferramenta teórica a noção de força em Nietzsche, bem como a
elaboração sobre ela feita por Deleuze, expressa a aposta em conceitos que acentuem o
84
privilégio da ação, da afirmação, e não da adaptação que incessantemente busca a
conservação de formas instituídas.
Foucault e Deleuze em suas elaborações teóricas sobre diferentes temas – o primeiro
pensando sobre as relações de poder e o segundo construindo alianças teóricas para
empreender a filosofia de diferença -, convergiram com proposições marxistas. Ambos se
propuseram a analisar a construção de práticas sociais a partir da análise das condições nas
quais foram produzidas, a partir de que relações de poder e saber e através de que modos de
subjetivação elas emergiram no campo das relações sociais.
Para Foucault, o poder configura-se como relações de forças, não estando contido em
uma forma, e nem mesmo emanando de tal forma, como por exemplo, a forma “Estado”. Não
emanando de forma específica alguma, o poder, para Foucault, não é possuído a priori, ele é
sempre exercido, e passa por todas as forças em relação no campo social, incluindo
dominantes e dominados, nunca está no singular dirigindo-se sempre a outra força: é uma
ação sobre outra ação.
Nessa vertente, o poder, segundo Deleuze analisando as proposições de Foucault, não é
essencialmente ou necessariamente repressivo posto que “incita, suscita, produz” (Deleuze,
2006, p.79).
Um exercício de poder aparece como um afeto, já que a própria força
se define por seu poder de afetar outras forças (com as quais ela já está
em relação) e de ser afetada por outras forças. (...) a força afetada não
deixa de ter uma capacidade de resistência. Ao mesmo tempo, é cada
força que tem o poder de afetar (outras) e de ser afetadas (por outras,
novamente). (Deleuze, 2006, p. 79)
Sobre os afetos, Deleuze fala, partindo da concepção nietzchiana que “incitar, suscitar,
produzir (...) constituem afetos ativos, e ser incitado, suscitado, determinado a produzir e ter
um efeito ‘útil’, afetos reativos (...)” sendo que as forças afetadas não deixam de ter uma
capacidade de resistência. (Deleuze, 2006, p, 79) Isto quer dizer que a resistência sempre está
presente nas relações de poder, pois:
Ao mesmo tempo locais instáveis e difusas, as relações de poder não
emanam de um ponto central ou de um único foco de soberania, mas
vão a cada instante, ‘de um ponto ao outro’ no interior de um campo
de forças, marcando inflexões, retrocessos, retornos, giros, mudanças
de direção, resistências (Deleuze, 2006, p. 81)
85
Dessa forma, o poder se constrói diagramaticamente, ou seja, ponto a ponto,
“mobilizando matérias e funções não estratificadas e procede através de uma segmentaridade
bastante flexível” (Deleuze, 2006, p. 81).
Retomando o que já apontamos sobre o método histórico-genealógico de Foucault no
sentido de pensar sobre formas de resistência, vemos que tal perspectiva teórica busca romper
com saberes cristalizados e instituídos. Esse método empreende a análise da proveniência e
da emergência de saberes e práticas bem como de seus confrontos e produção
30
. Mas tal
análise da proveniência, longe de se pretender fundadora de um saber, quer, sobretudo, agitar
“o que se percebia imóvel, [fragmentar] o que se percebia unido....” (Foucault, 1999, p.21).
Ela rompe com a idéia de uma natureza das coisas e uma origem pré-determinada dos
acontecimentos. Lobo aponta que “a crítica genealógica é sempre fragmentária e inacabada”.
(Lobo, 2002, p.14)
Paul Veyne em “Como se escreve a história” (1998) baseia-se nas proposições
foucaultianas para abordar a questão da dicotomia entre sujeito e objeto na construção do
conhecimento, e assim, apontar que não se trata de explicar o fazer a partir da análise do que
foi feito. Ao contrário, o próprio fazer explica o feito. Para isso é importante estar atento às
raridades, às formas inusitadas que se constroem no tecido histórico para então perceber que
outras formas são possíveis, a partir do momento em que se assuma a coexistência de uma
multiplicidade de práticas. É nesse sentido que Deleuze (s.d) afirma que toda forma é
precária. Precária, pois não é fixa, eterna, natural, e depende das relações de força e das
mutações destas para serem construídas. Daí afirmarmos que práticas cristalizadas como a
naturalização da violência contra a pobreza, e a da afirmação da violência como sendo
inerente aos territórios da pobreza, são instituições, ou seja, são práticas que se tornaram
hegemônicas, e que são datadas historicamente. Foram construídas socialmente, em
condições materiais específicas que possibilitaram que se tornassem hegemônicas em
detrimento de outras.
A idéia de que a construção das práticas sociais se dá a partir de relações de força,
tornando-as assim, históricas e contingenciais, vêm das proposições de Marx (Heckert, 2004,
Passos et al, 2004) que afirma que cada momento histórico, cada situação implica na
30
Para o autor, proveniência vem a ser a “descoberta das marcas sutis, singulares” que constroem as redes de
diferenciação, atenta para “o que passou na dispersão que lhe é própria”, demarcando os acidentes, os ínfimos
desvios.” (Foucault, 1999, p. 20 – 21). Emergência, seria para Foucault, o surgimento e proliferação “das
forças em seus jogos e lutas” de como entram em cena saindo dos “bastidores para o teatro” (Foucault, 1999,
p.24).
86
necessidade de se construir análises que abarquem essas práticas e suas variadas formas,
localizando-as no tempo e no espaço em que ganharam contorno. Tomando o trabalho como
categoria central de suas análises, Marx afirmou que “o que distingue as diferentes épocas
econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz” (Marx, 1971,
p.203, apud Heckert, 2004, p.29) sendo essa criação de meios de trabalho algo tipicamente
humano e complexo. Portanto, não se trata apenas de uma tarefa descritiva do que essas
práticas instituíram, mas, em como elas são construídas, importando principalmente as suas
condições de produção em um campo de forças em luta, mutável, sempre em ação.
Todavia afirmamos que Deleuze e Foucault apontam que tal ação não se dá sobre um
objeto preexistente, inerte, mas, sobre outra força, sendo os objetos efeitos desse embate de
forças.
Tais forças, estando sempre em tensão, em embate, segundo Deleuze (2006), são
classificadas por Nietzsche como ativas e reativas, importando essa classificação na qualidade
das mesmas e não em seu comportamento. As forças ativas são aquelas que forçam os limites
de sua própria potência, fazendo dela objeto de afirmação, impulsionando assim a criação.
São processos inerentes à própria vida. As reativas seriam aquelas forças que atuam nos
processos de adaptação, separando, desagregando as forças ativas de sua potência de
afirmação, impondo-lhes um limite de ação e negando sua expansão criadora. São processos
de mortificação. ‘Afirmar’, pois, tem a ver com tornar ativo, positivar, fazer viver, e ‘negar’,
diz respeito à inatividade, à despotência, ao mortificar.
No embate entre tais forças, quando ocorre a cisão das forças ativas de sua potência de
criação, ou seja, quando o produto se afasta do seu processo de produção, quando a vida é
capturada, cooptada, irrompe a hegemonia das forças reativas, que, ao despotencializar a
vontade de ação a leva a “vontade de nada”. Essa vontade de nada, para Nietzsche, é a própria
negação da vida e da criação, posto que julga a vida a partir de valores morais pré-
estabelecidos, cristalizados, que se colocam como totalidade, como sistematização, ou mesmo
organização “em todo o acontecer e debaixo de todo acontecer” (Nietzsche, 2000, p.430). A
vontade de nada, que para Nietzsche é o oposto da vida, emerge nos processos de adaptação,
de conformação, ou, retomando o já dito, nos processos de institucionalização. Algo que nos
remeta ao sistema sócio-educativo brasileiro? Ou mais especificamente, ao DEGASE?
Pensar sobre a construção de práticas sociais, e dentre elas, as práticas de resistência,
como interessa aos objetivos deste trabalho, implica em dirigir a atenção ao modo pelo qual
tais práticas são engendradas e dentro de que condições são elas produzidas, já que parte-se da
87
idéia de que as análises que se debruçam exclusivamente sobre formas constituídas não
permitem a expressão da complexidade de produção das mesmas. Não permitem conectá-las
ao seu processo de produção. Por isso foi importante trazer as experiências de vida relatadas
pelas entrevistadas apontando o contexto em que suas trajetórias foram construídas. O que
acontecia – na visão delas é claro – em suas vidas antes do encontro com o DEGASE? Como
foi esse encontro e ainda, o que foi produzido deste encontro? Tudo isso, coadunando com os
referenciais teóricos aqui apresentados, é importante para pensarmos a construção desse
percurso de lutas travadas pelo MOLEQUE.
Falar em condições ou processos de produção nos leva exatamente a questionar o que
permitiu que determinada forma se construísse e não outra; o que possibilita que algumas
formas se tornem hegemônicas em detrimento de outras, ou seja, que condições delimitam
certas formas como modelos enquanto outras passam a habitar as margens e são muitas vezes,
silenciadas? Que resistências às formas de controle e opressão instituídas são forjadas nesse
campo de forças?
Para isso, há que se desestabilizar “uma realidade que se apresenta como um campo de
forças em aparente estabilidade” (Passos et al, 2004) e o que vemos emergir são processos de
produção, ou seja, a própria vida, em constante e permanente imanência, criação. E é esta
vida, em seu infinito processo produtivo, que teria o primado sobre as formas de cooptação,
de captura. Daí podermos afirmar, seguindo Deleuze e Foucault (Deleuze, 2006), que a
resistência é primeira.
Fazendo a pergunta partindo de um ponto anterior – como é possível construir práticas de
resistências na contemporaneidade? Passos e Benevides (2004), também tomando as
proposições foucaultinas e deleuzianas afirmam que o plano de produção é o plano da
experiência coletiva e que a construção de formas ou estratégias de resistência implica
necessariamente em uma “devolução do sujeito ao plano da subjetivação, ao plano da
produção que é plano do coletivo” (Passos et al, 2004, p.7).
Contudo, para os autores, esse coletivo não é reduzido a uma “soma de indivíduos”:
Coletivo diz respeito a este plano de produção, composto de
elementos heteróclitos e que experimenta, todo o tempo, a
diferenciação. Coletivo é multidão, composição potencialmente
ilimitada de seres tomados na proliferação das forças. (...) lidamos
com o que é de ninguém, ou, poderíamos dizer, com o que é da ordem
do impessoal. No coletivo não há, portanto, propriedade particular,
pessoalidades, nada que seja privado, já que todas as forças estão
disponíveis para serem experimentadas. (Passos et al, 2004, p. 7-8)
88
3.1.2 A experiência de coletivizar
Tanto Mônica quanto Rute construíram suas histórias de militância em função de seus
filhos. Entretanto, acontecimentos nas vidas deles mais uma vez atravessaram os caminhos
dessas mulheres: o filho de Rute completou a maioridade e voltando a cometer um crime, foi
para o sistema penitenciário; o filho de Mônica, como já dito, foi executado. Ambos, por
razões óbvias, não podiam mais estar no sistema sócio-educativo, ou seja, a motivação inicial
que as lançou nesta empreitada não se apresenta mais. Pelo menos não da mesma forma.
Então, o que as fez continuar lutando pela vida de filhos que não são seus, ao lado de
famílias que não são as suas?
A fala de Mônica, que talvez tenha tido a experiência mais radical – a de perder um filho
para a morte –, pode nos dar um caminho para pensarmos esta questão da permanência na
militância:
... até o ano de 2006 eu entendia que eu tinha que lutar em prol de
tudo e de todos, tudo quanto é mãe, tudo quanto é menino. Mas
lógico que eu sou ser humano igual a qualquer um outro, tenho as
minhas falhas, e grandes. Eu ainda tinha aquele objetivo que era
Rafael (...) falava com um, falava com outro, mas eu tinha que tirar
era ele. Ele que era meu maior troféu. Ele que ia me fazer... a ‘super
Mônica’. Se eu conseguir salvar o meu, todo mundo vai confiar em
mim, sabe?” (Cunha, 2008 – grifos meus).
Salvar, Mônica? Essa fala chamou-me a atenção, pois nos coloca diante do que Lourau
chamou de “sobreimplicação” Na Introdução deste trabalho abordamos este autor para falar
sobre suas contribuições teóricas acerca dos conceitos da Análise Institucional, dentre eles a
ferramenta “análise de implicações”. Segundo Coimbra e Nascimento (2004) sobre as
proposições de Lourau, temos que:
... a implicação é um nó de relações sempre presente no campo de
qualquer pesquisa-intervenção. O que interessa à Análise
Institucional é a análise de implicações, as pertenças, as referências, as
motivações, os investimentos libidinais sempre produzidos nos
encontros, nas relações, na história. O que define a sobreimplicação é,
ao contrário, uma dificuldade de análise e que, mesmo quando
realizada, pode considerar como referência apenas um único nível, um
só objeto, impossibilitando que outras dimensões sejam pensadas, que
as multiplicidades se façam presentes, que as diferentes instituições
sejam consideradas.(p. 4)
89
A sobreimplicação concretiza-se de muitas formas no mundo e nas experiências dos
sujeitos. Na Universidade, como nos mostra Coimbra e Nascimento (2004), ela se apresenta
nas urgentes e grandes quantidades de demandas a serem respondidas pelos profissionais que
têm seu tempo na universidade quase todo
dedicado ininterruptamente a fazer relatórios, levantar estatísticas,
solicitar verbas, mostrar suas produções, procurando dar visibilidade a
si e à sua equipe de trabalho. Como uma empresa capitalista, a
universidade hoje aumenta abusivamente as obrigações burocráticas
dos professores e se rege pela lógica do mercado, onde a flexibilização
se impõe, a produtividade é tudo e o tempo é dinheiro. (p.9)
A sobreimplicação está muito presente também nas práticas de militância, que não raro
são atravessadas por práticas de onipotência produzindo, paradoxalmente, desqualificação e
frustração. Assim, o militante-ativista
31
:
... em muitos momentos, a partir de seu território iluminado, estaria
trabalhando no sentido de beneficiar outras pessoas, assumindo a
responsabilidade por tudo. Dessa forma, passa a carregar sobre seus
próprios ombros todas as soluções, sentindo-se dominado pela culpa,
pela obrigação, pelo sacrifício. (Coimbra et al, 2004, p.7)
Tal prática sobreimplicada, marcante na fala de Mônica, produz a exigência por soluções
individuais ao mesmo tempo em que impossibilita - justamente por seu caráter
individualizante - questionar a falência dos projetos e das políticas públicas em vigor.
Acentuando este “modo-de-ser-indivíduo” as práticas sobreimplicadas alimentam e
fortalecem
subjetividades onipotentes, faltosas e culpabilizadas e naturaliza-se a
‘síndrome da carência-captura’, que nos fala de uma ‘angústia sempre
pairando no ar’, ‘do medo de fracassar’, ‘de um estado de fragilidade
permanente’. Ao mesmo tempo, fortalecem-se a onipotência e
arrogância do ativista que, por se julgar iluminado, culpa-se,
entendendo que tem obrigação de chegar à resolução do problema.
(Coimbra e Nascimento, 2004, p.8)
E aí só restaria à “super-Mônica” o sentimento de derrota, de perda, por não ter logrado
êxito em sua missão salvadora:
Perdi no final de 2006. Cara foi surpreendente mesmo. Tão
engraçado os momentos na minha vida... Eu me surpreendi a primeira
31
O termo “ativista” foi usado por Lourau (1993) e é interpretado por Coimbra e Nascimento (2004) como “um
fazer contínuo que beira uma atividade compulsiva, sem nenhuma produtividade”(p.7)
90
vez que meu filho foi preso, como eu já contei. Me surpreendi, tive
uma mudança quando eu vi meu filho internado, e acreditei piamente,
depois que eu entrei nisso, que eu não iria perder meu filho. Que eu ia
aprender lidar com ele e ia conseguir tirar. E mais uma vez eu não
consegui, sabe? (Cunha, 2008).
Trazer o conceito-ferramenta da sobreimplicação não visa um julgamento, uma
qualificação negativa ou positiva das práticas sobreimplicadas, pois a própria sobreimplicação
não é tomada como portadora de uma essência. Seguindo Coimbra e Nascimento (2004), a
idéia é colocá-la em análise e entendê-la para além do individual, apontando para sua
construção nas práticas cotidianas bem como para sua dimensão histórica. Isso nos permite
entender os processos que nos levam a naturalizar e a ocupar determinados espaços e
inclusive, nos permite apontar para o caráter paradoxal da sobreimplicação. Sobre isto, as
autoras tomam as proposições de Sada (2003 apud Coimbra e Nascimento, 2004) para afirmar
que o sobretrabalho inerente à sobreimplicação pode também produzir prazer a quem o
executa. E um exemplo de tal processo é justamente a prática militante, que “em muitos
momentos, reveste-se de um caráter sobreimplicado, mas também traz o prazer, a alegria, a
afecção, a transformação”. (Coimbra e Nascimento, 2004, p. 8)
E então vemos a experiência do coletivo – possibilitada na militância – afetar Mônica,
fazendo-a permanecer “mãe do MOLEQUE”, ainda que o seu moleque não mais estivesse
entre nós:
Então assim, eu tive motivos de sobra para terminar com esse
movimento, ou pelo menos sair dele e deixar que ele seguisse seu
rumo (...) 2007 foi o ano, o ano do ‘primeiro tudo’. Primeiro dia de
aniversário que ele não estava, primeiro dia das mães que ele não
estava, primeiro Natal e Ano Novo que ele não estava, entendeu?
Primeiro tudo na minha vida sem o meu filho. E aí foi aquela coisa
louca. Aquela coisa desesperadora. Cada data era um... E quem
estava perto de mim para me levantar? Os meninos e as mães deles.
Foram os meninos que falaram pra mim, quando eu digo meninos, é...
meninos e meninas, então, os adolescentes falaram pra mim que o
meu filho não tinha morrido: ele resistia em cada um deles. Que
eles todos se chamavam Rafael e Rafaela, entendeu? (Cunha, 2008
– grifos meus).
Ao colocar “a questão de militância” em seu livro “Os Guardiães da Ordem” (1995)
Cecília Coimbra aposta em uma militância “enquanto produção de territórios singulares,
novos, onde se consegue apontar para as armadilhas do instituído, para a ocultação,
mitificação, e a naturalização das práticas e modelo oficiais dominantes...” (p. xv) para assim
91
apontar caminhos que surjam da relação entre as práticas sociais e as nossas práticas
cotidianas. A militância aqui é encarada como uma produção, como um objeto construído
historicamente, e que pode ser mera reprodução de modelos cristalizados nas práticas sociais.
Todavia, também pode ser apropriado de outras diversas maneiras, concretizando no mundo
processos de singularização que afirmem outras formas de viver mais próximas – redundando
propositalmente – da vida.
Entender a resistência como a afirmação da vida, de formas de existência não sujeitadas,
ou seja, de re-existência se coloca como uma questão fundamental para aqueles que desejam
de alguma forma, empreender práticas militantes. Guattari (1999) já colocava que formas
tradicionais de militância tenderiam a se tornar incapazes de fazer frente ao desenvolvimento
crescente da subjetivação capitalística. Para o autor, “as formas de resistência à subjetividade
capitalística estão cada vez mais ameaçadas pelo desenvolvimento desse maquinismo, e isto
está no próprio coração da crise mundial” (Guattari, 1999, p. 142). Para ele, “o que faz a
força da subjetividade capitalística é que ela se produz tanto ao nível do opressor, quanto dos
oprimidos” (Guattari, 1999, p. 44). E ele “insiste” nessa idéia justamente por considerar que
o desenvolvimento da subjetividade capitalística comporta em si inúmeras possibilidades de
desvio, e de reapropriação. E para isso afirma o reconhecimento de que as lutas não devem se
restringir ao campo econômico-político apenas, posto que ela também se constrói no campo
da economia subjetiva. Assim, “os afrontamentos sociais não são mais apenas de ordem
econômica. Eles se dão também nas diferentes maneiras pelas quais os indivíduos e grupos
entendem viver sua existência” (Guattari, 1999, p. 43).
Entendemos que essas mulheres ao mesmo tempo em que trilhavam os caminhos de sua
luta, iam também construindo uma nova existência. Uma construção, coletiva, que tem seus
efeitos de singularização em cada uma delas e em cada uma daquelas com quem se
encontram, mas que foi forjada nos encontros, em uma experiência de coletivização daquela
dor que lhes é comum.
A mãe chega pra gente... chega como se o rosto dela estivesse
enterrado no chão. Aí eu falo pra ela assim: – ‘O que é que foi mãe?’
Ela: – ‘Meu filho... eu estou com um problema, eu queria ver se a
senhora me ajuda’. A mãe está destruída. Sabe? Destruída. (...) aí a
gente tem que falar pra ela: – ‘Ó, eu também sou mãe, eu também
passei e sei o que a senhora está sentindo.’ Parece que ela se [Rute
alonga a coluna, alinha os ombros e estufa o peito]. (Sales, 2008)
92
Poderíamos empreender uma análise do percurso dessas mães a partir de uma forma mais
instituída no campo acadêmico sobre o tema “resistência”, focando em um ‘processo de
conscientização’ e ‘de aquisição e transmissão de conhecimento’. Não que tais ações não
tenham acontecido e que não tenham sua importância posto que o conhecimento também não
é um objeto ‘em si’, com uma essência que ao ser ‘descoberta’ leva a uma ‘evolução’.
Retomemos a idéia da ‘caixa de ferramentas’ deleuziana justamente para afirmar a
utilidade de um conceito, de um conjunto de conhecimentos na vida destas mulheres:
informar-se, conhecer sobre seus direitos, ler o ECA só fez sentido na medida em que este
conhecimento se fez força de transformação. Experimentar formas de associar-se, formar
parcerias têm possibilitado uma expansão da coletivização - que foi e tem sido a força motriz
desse movimento.
(...) eu acho que o que é importante... é as pessoas entenderem,
quando lerem o seu relatório [sobre esta dissertação]... é a
necessidade dessas mães se juntarem, é a necessidade dessa família se
juntar. Porque muitas das vezes não só se juntar ao movimento, é se
juntar dentro da sua própria casa. Você está me entendendo? É juntar
também o pai com irmão, com a prima, com o sobrinho, pra... fazer
com que aquele garoto levante, e que ele consiga. (Cunha, 2008).
Por exemplo: olhar para esta fala focando em uma idéia instituída moralmente sobre a
‘família’ é retirar dela toda sua potência de transformação. Para além de estarmos falando de
família – e Mônica já nos dá a deixa de que não se trata da família nuclear burguesa ‘pai –
mãe – filho’ – estamos, sobretudo, afirmando a solidariedade entre pessoas.
Trata-se de algo mais potente em termos de transformação de uma realidade. Não
apontemos culpados ou falhas de educação ou de retificar erros. Embora a culpa se faça
presente, como Mônica mesmo declara:
Que essa culpa é eterna. Eu vou te dizer, mesmo sendo militante. Até
pra mim às vezes, ainda dou uma recaída na culpa, entendeu? Eu
tenho isso de uma forma consciente na minha vida. Mas de vez em
quando eu dou umas paradas assim... De achar que em algum
momento eu errei... em algum momento... sabe? E não é culpa.
Como eu te falei no início da conversa. É... é a quantidade de
atribuições que nós tivemos que ter entendeu? Aí gera várias
conseqüências. (Cunha, 2008)
Pensar, exercer resistências, re-existir, demanda um questionamento desse registro de
culpa, na medida em que ele paralisa. Se tal registro de culpa está aí, como nos apontou
93
Guatarri (1999), e se é uma produção que circula no mundo, re-existir a ele já é um
movimento.
Trata-se de coletivizar de forma a tornar possível construir estratégias de enfrentamento a
todas essas produções capitalísticas – muito competentes, diga-se de passagem – que
mortificam, que aprisionam em preconceitos, em papéis pré-estabelecidos, que calam, que
violentam.
Resistir a tudo isso só é possível na medida em que se afirmem outras possibilidades de
existência. Denunciar, lutar por direitos, lutar por melhorias nas condições de vida está para
além de compreender pares opostos imersos em contradições de um funcionamento de um
sistema econômico.
Não esqueçamos de que estamos falando de um sistema de produção de subjetividades,
de produção de modos de sentir, agir, estar. Somos produzidos nesse contexto e é dele de que
podemos falar, construir resistências e pensar em transformações. Para resistir aos instituídos
é preciso que nos conectemos com o processo de produção do qual tais instituídos emergiram.
... não é só se juntar para seguir o movimento, mas se juntar também
dentro da sua casa, da sua família para tentar fazer com que se escute
num coletivo, com outras pessoas que você não tem um laço afetivo,
mas acaba sendo sua família, por você estar na mesma situação
naquele momento. Levar pra sua casa para ver se essas outras pessoas
com quem você tem um laço afetivo comecem a entender. (Cunha,
2008)
É coletivizar, pois:
A fala, a denúncia, o tornar público, nos retiram do território do
segredo, do silêncio, da clandestinidade. Com isso, podemos sair do
lugar de vítima fragilizada, despotencializada e ocuparmos o da
resistência, da luta, daquele que passa a perceber que seu caso não é
um acontecimento isolado; ele se contextualiza, faz parte de outros e
sua denúncia, esclarecimento e punição dos responsáveis abre espaço
e fortalece novas denúncias, novas investigações. A dimensão
coletiva desse caminho se afirma e, com isso, temos a possibilidade de
começar a tocar na impunidade; de mostrar que tal quadro (...) pode
ser mudado, pode ser revertido.(Coimbra, 2004, p. 12)
94
3.1.3 Outras mães, outros movimentos, outras
coletivizações...
Contra a tortura, os maus-tratos, as péssimas condições de vida nos cárceres, os abusos e
os descasos do poder público, contra as mortes, os extermínios, os desaparecimentos, seja
quais forem as violações de direitos, vários movimentos liderados e/ou compostos por mães
estão por aí, pelo mundo, a gritar, a lutar, a insistir, a resistir e muitas vezes a re-existir. Cada
um com sua história singular, cabe afirmar, pois não nos referimos a esses outros movimentos
em busca de um ‘universal’ de coletivos de mulheres, de mães, no caso. Embora possamos
perceber que há muitos pontos de continuidade nas experiências dessas mulheres.
Os movimentos coletivos que reúnem mães têm tido um importante papel na luta por
garantia dos direitos humanos em muitos países. Um deles é o movimento “Las Madres de la
Plaza de Mayo”, atuante na Argentina, e internacionalmente conhecido. Essas mulheres
mantêm “vivos” seus filhos mortos e “desaparecidos” durante o período da ditadura militar
em seu país através da continuidade das lutas políticas deles por educação, saúde e melhores
condições de vida para a população. Expandiram suas ações a ponto de organizarem uma
Universidade Popular e Congressos de Saúde Mental, além de biblioteca, videoteca e
editoriais. (Caros Amigos, 2002; Las Madres de la Plaza de Mayo, 2005)
No Brasil, há muitos movimentos que reúnem mulheres na defesa de direitos humanos,
diariamente violados em várias searas neste país: AMAR, em São Paulo, Mães de Acari e
Movimento “Posso Me Identificar?” no Rio de Janeiro, dentre outros.
Em São Paulo, no ano de 1998, surgiu a Associação de Mães e Amigos da Criança e
Adolescente (AMAR) tendo como principal objetivo “(...) a ampliação e a garantia da
participação dos familiares e da comunidade no processo sócio-educativo e na
ressocialização de internos e egressos das unidades da FEBEM
32
e já tem a experiência
repetida no Rio de Janeiro, Piauí, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal. (ILANUD, 2005,
p.130) Esse grupo tem se constituído como importante ator na luta pelos direitos de seus
filhos e de outros jovens internos e tem um importante papel no controle social da FEBEM, já
que esses anos de trabalho e luta garantiram o livre acesso de integrantes desse movimento às
unidades daquela instituição.
32
Fundação Estadual do Bem Estar do Menor.
95
O Movimento “Posso me Identificar” vem reivindicando o direito de identificação em
abordagens policiais nas ruas, sobretudo de favelas – do Rio de Janeiro Tais abordagens,
como apontou Ramos e Musumeci (2005) muitas vezes contrariam as regras e orientações
definidas e divulgadas pelo poder público a fim de regulamentar as abordagens policiais. Em
tais abordagens prevalecem condutas ofensivas, brutais, humilhantes, agressivas, e violentas,
muitas vezes resultando em chacinas, desaparecimentos e execuções sumárias realizados por
estes agentes do estado.
As “Mães de Acari” iniciaram sua luta em 1990, organizando-se para denunciar o
desaparecimento de 11 jovens moradores do Complexo de Acari, cujo caso foi arquivado por
falta de provas após uma breve investigação. Os suspeitos indiciados pelo crime eram cinco
policiais com histórico de participação em grupos de extermínio e nem chegaram a
julgamento. Os corpos dos 11 jovens nunca foram encontrados apesar das muitas buscas
empreendidas. O drama de ter um filho desaparecido criou laços de solidariedade entre essas
mães, que se organizaram em busca de justiça. O caso continua até hoje sem solução, e essas
mães continuam sua luta, não deixando suas histórias caírem no esquecimento. Não só
continuam na luta em função da tragédia que marcou suas vidas, como ampliaram suas ações,
sobretudo após uma chacina ocorrida em 1995 no bairro que tirou a vida de oito crianças. Em
1996 elas criaram o Centro Cultural Areal Livre,
com a intenção de transformar essa realidade e melhorar a qualidade
de vida dos moradores de Acari. O projeto aos poucos ampliou o
atendimento para incluir as mães dos jovens e as crianças da
comunidade. À medida que o centro comunitário ia conquistando
patrocínio, as opções de iniciação profissional foram aumentando.
(Brazil Foudation, 2008)
Uma marca do surgimento desses grupos, assim como do Moleque, foi o ‘cansaço’,
presente nas falas de todas as mães analisadas até o momento. O cansaço de chorar, o cansaço
de procurar por meios legais, o cansaço de ver o filho sofrer e nada ser feito pelas autoridades
competentes para resolver a situação, o cansaço de procurar em vão por seus filhos
desaparecidos. São mulheres que cansaram de viver a realidade em que estavam vivendo e
resolveram partir para a luta por condições mais dignas de vida. Não só para seus filhos, pois
esses em alguns casos até nem mais viviam, mas para os filhos de outros, chegando mesmo a
articularem-se com diversas outras lutas. A dor fora transformada em luta.
Em entrevista publicada no jornal do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro,
Mônica conta que o MOLEQUE surgiu em 2003 “pois foi nesse ano que [seu] filho entrou no
96
sistema (sócio-educativo). Até então não conhecia esta realidade, e foi aí que vi que [seu]
filho não teria chance alguma e, provavelmente, acabaria entrando no sistema prisional
depois”.(Conselho Regional de Psicologia, 2002).
Como já apontado anteriormente, o primeiro encontro das mães com o sistema sócio-
educativo é marcante, pois além de desconhecerem seu cotidiano, muitas depositavam nesse
mesmo sistema a esperança de obterem apoio em momentos tão difíceis, em geral, produzidos
pela falta de políticas públicas básicas eficientes. Nesse sentido, Conceição Paganele afirma
“... fiquei aliviada pois estava indo para a Fundação do Bem Estar do Menor, ia encontrar
tudo aquilo que eu não podia dar.”(Paganele, 2002, p.32).
Também nessa mesma situação, encontrava-se Hebe Bonafini, das Madres de la Plaza de
Mayo que afirma o seguinte sobre a vida militante de seu filho: “Eu sabia que era um
revolucionário, mas eu não era nada politizada. Se dei uma mão aos meus filhos foi como
mãe protetora, não por conhecimento da política.” (Bonafini, 2002b, p. 33).
Ao se verem frente a uma realidade que se impunha violentamente sobre seus corpos,
sobre suas vidas e das vidas de seus filhos, elas partiram para o embate, para luta.
É nesse momento que as ‘Madres’ afirmam que os filhos geram as mães. Os filhos
pariram suas mães, posto que a dor transformada em luta levou à construção de ‘outras
mulheres’, possibilitando inclusive, construir para a maternidade, novas dimensões. (Freitas,
2002).
Apostando nessa criação, ou como ela mesma define, nessa redefinição de papéis, de
lugares no mundo, foi que Freitas (2002) construiu seu estudo, partindo de reflexões sobre o
Movimento “Mães de Acari”. Suas análises voltaram-se “para o protagonismo político da
mulher das classes trabalhadoras a partir do lugar que tradicionalmente ocupam na família e
que, em princípio, seria destituído de uma dimensão política” (Freitas, 2002, s/p.) Ela afirma
que assim como não existe uma figura única de mulher, tampouco existe uma figura única de
mãe. Seu estudo aponta para a construção paulatina de uma memória comum, que constrói
uma comunidade de interesses comuns que se articula para além do grupo, com outros grupos
do mundo inteiro, acaba formando uma rede de interesses comuns. Essa autora afirma então,
que a ocupação do espaço público por essas mulheres através do movimento social tem como
mais importante contribuição o seguinte:
(...) o estabelecimento interclasses de uma rede de interesses e valores
comuns que questionam a violência e a brutalidade desse mundo.
Dessa forma elas podem ser vistas como participantes das lutas contra
97
as diversas formas de desproteção social em que se apóiam os
princípios neoliberais que vêm predominando em nossa sociedade e
naturaliza tanto a miséria quanto o genocídio social com o qual temos
convivido. Se podemos dizer que atualmente convivemos com a
fragilização das práticas coletivas, esses tipos de movimentos
assentados em valores éticos podem apontar para formas diferenciadas
de inserção social que se contraponham a esta naturalização e
sinalizam para a reinvenção do coletivo. (Freitas, 2002, s/p.)
Um exemplo de reinvenção da vida, de afirmação de outros modos de ser e estar no
mundo, é o que as “Madres” chamam de ‘socialização da maternidade’, que indica a
desindividualização da maternagem. É a idéia de que ‘não é o meu filho, não é o seu, todos
são de todos’. Para as ‘Madres’ a socialização da maternidade desenvolveu-se
processualmente, de forma contínua, e veio a se consolidar, em 1981. Segundo Hebe Bonafini
(2002), ocorreu que
no início, cada mãe segurava um cartaz com a foto do seu filho.
Depois decidimos que cada uma seguraria um cartaz com a foto do
filho de outra. Com isso todas se interessavam em verificar se o cartaz
estava sendo exibido por alguém. No começo, era tudo ‘meu’: ‘minha
casa’, ‘meu filho. Com a ida à praça, se descobriu que nada é ‘meu’.
Por que outros podem destruir o que é meu, pisotear. E aí chegamos a
conclusão de que não poderíamos fazer uma coisa e dizer outra.
Quando cada uma passou a carregar a foto do filho de outra, foi uma
coisa impressionante. Todas queriam cuidar de todas. (p.33)
Tal acontecimento tem seu lugar em terras brasileiras. Essa vivência comum da
maternidade frente à dor gerando uma solidariedade e uma união muito forte entre as mães foi
algo comum a todos os discursos analisados por Freitas (2002). E justamente essa
solidariedade segundo a autora, é um combustível fundamental para a luta, que por sua vez, se
alimenta dessa mesma solidariedade.
Eu era uma dona de casa e mal fui à escola (...) Minha vida mudou,
mudaram meus valores. Essa luta me deu um senso de solidariedade
impressionante (...) aconteceu um milagre, os filhos mortos pariram as
mães. (Hebe Bonafini em o “Jornal do Brasil”, 06/05/1992 apud
Freitas, 2002, s/p)
Naquela noite nos unimos, fomos pra minha casa, levei vários pais do
interior pra dar banho, dar comida, dar um pouco de repouso para
aquelas famílias, porque aquele dia meu filho não estava na Febem,
mas estavam os filhos de muitas mães, de muitas parceiras de minha
luta. Então nós fortalecemos muito a AMAR com essa dor...
(Paganele, 2002, p. 34).
98
Quando perguntada em que medida sua luta poderia se separar da dor de uma mãe que
perdera dois filhos, e em que medida essa luta não era pessoal, individual, Hebe Bonafini
respondeu que a medida é a lida com os problemas dos outros. (Bonafini, 2002, p. 35).
Preocupação esta que se reflete em sua fala no I Seminário de Psicologia e Direitos Humanos
ocorrido em 2005, sobre a capacidade de rechaçar a luta individual: “El otro soy yo”. Falava
então da socialização da maternidade, que faz das mães, mães do todos, e não só dos filhos
das parceiras de luta, mas dos trabalhadores, das mulheres, das crianças, dos gays, dos loucos,
dos jovens, etc. Demonstrando o caráter híbrido que adquiriu o movimento, que hoje está
articulado a várias outras lutas, como a luta antimanicomial, agrária, e, sobretudo, luta pela
socialização da educação, que segundo Hebe, é a principal mobilização do grupo. (Bonafini,
2002).
3.2 MAS... POR QUE MULHER? POR QUE MÃE?
Mônica explica que todo mundo que está nessa luta pariu:
Então, quando fala que ‘polícia pegou meu filho!’ Quer dizer, ela que
vai na linha de frente, vai brigar com a polícia, ela só não faz isso, se
ela não estiver naquele momento que aconteceu. Porque se ela
estiver, ela vai para cima da polícia, ela vai para cima dos outros caras
que querem pegar o filho dela, ela vai para cima de todo mundo. Ela
vai para cima do pai, se o pai bate!
Freitas (2002) buscou analisar como a luta das Mães de Acari legitimou-se a partir da
transformação da maternidade dessas mulheres. Entendendo a maternidade como uma
categoria construída historicamente, complexa e contraditória, a autora aponta para a incursão
dessas mulheres no mundo público, a partir de um lugar que seria tradicionalmente atribuído à
esfera privada. “Nesse processo, as mulheres puderam reinventar a si mesmas e o mundo à
sua volta, transformando também os significados históricos da maternidade”. (Freitas, 2002,
s/p.)
Segundo esta autora, a imagem
33
– que aqui chamaremos de subjetividade – da mãe
sofredora
34
ainda é profundamente presente e idealizada nas percepções e sentimentos da
33
A partir de Higonnet, (1991) Freitas (2002) aponta para três imagens maternas construídas socialmente, quais
99
sociedade em relação à maternidade. Mãe é aquela que cuida e ama por ter parido, é a musa-
sofredora que surgiu nas falas da mãe de Acari (Freitas, 2002) e que surge na fala de Mônica:
Por quê a mãe na linha de frente? Por quê a mãe bota a cara? Porque
é a mãe que gera, é a mãe que espera, é a mãe que pari. É a mãe a
primeira pessoa a ver aquela carinha daquele ser. (...) Quem vê a
criança somos nós, mãe, mulheres. Então esse é o amor. Ele está
dentro da gente. Ele fica nove meses dentro da gente (...) É de dentro
da gente que ele nasce. Então, esse é um sentimento muito forte,
entendeu? (Cunha, 2008)
E na fala de Rute:
(...) elas começaram a se movimentar porque é uma dor muito grande.
(Sales, 2008)
E na de Conceição:
(...) montei ali uma vigília. E chorava muito, então fui uma mãe que
chamou a atenção lá dentro. ‘Por que é que essa mãe vem quase todos
os dias na porta e chora?’ (Paganele, 2002)
Podemos ver que foi justamente desta subjetividade ‘mãe sofredora’ que as Mães de
Acari e também as mães da AMAR, das “Madres” e as mães do MOLEQUE, partiram para
suas lutas. Foi da dor insuportável quase incomunicável, que impulsionou os movimentos
dessas lutas das quais foi emergindo a subjetividade “mãe lutadora”, que não exclui a
primeira, mas convive com esta (Freitas, 2002).
É essa “outra” subjetividade que enfrenta a polícia e a sociedade para saber onde estão e
o que aconteceu com seus filhos, porque estão sendo violentados pelo poder público. Essa
“mãe lutadora” e quem vai buscar formas, criar estratégias de questionamento e de
enfrentamento a tais violências.
Estamos diante de um instituído, de uma subjetividade hegemônica que criou modelos do
que é ser mãe? Sabemos que a experiência da maternidade, definitivamente, não é a mesma
para todas as mulheres. E aqui afirmo uma diferença que está para além da sentir a “alegria
de parir” de formas diversas. Para muitas mulheres a experiência de gestar e parir nem
sejam, a madona, a puta e a musa. Já que a puta, raramente vem à tona, seu artigo coloca o foco nas outras duas
imagens. A ‘madona’, tomada neste trabalho para pensar a construção de movimentos de lutas constituídos por
mães, pode ser compreendida, segundo a autora, sob duas vertentes: a mater dolorosa e a mãe lutadora.
34
A mater dolorosa é aquela que ama o filho acima de tudo, que sofre por ele. E “justapondo-se a essa imagem
surge a figura da musa dos tempos modernos, uma imagem bastante enfatizada nos jornais. Uma imagem
idealizada da mãe (e da mulher) como a responsável pela justiça e pela construção de uma sociedade mais
igualitária, pois referenciada ao que seriam os "valores maternos".” (Freitas,2002)
100
sempre é o que instituidamente se espera de uma mulher: que ela tenha naturalmente desejado
a maternidade e que instintivamente tenha encontrado a felicidade nela. Há que se respeitar e
acolher tais experiências, pois, elas nos mostram o quanto estamos presos a modelos de
existência.
Todavia, estamos falando durante todo este trabalho de experiências. E a fala de Mônica
reflete a experiência não só dela, mas de muitas outras mães que também partiram da dor para
movimentarem-se rumo a uma coletividade, como as outras mães citadas até aqui.
A dor transformada em luta transforma também a vida dessas mulheres, e talvez a luta
seja aquilo que possibilita seguir em frente em situações terríveis, tais como a perda de um
filho. Perda esta que pode ser para a mortificação e embrutecimento presentes nas unidades
do sistema sócio-educativo brasileiro, que por sua vez produzem um grande estranhamento
nas mães em relação aos seus filhos. Perda também para o desaparecimento, que impõe o
vazio, interditando inclusive a possibilidade do luto devido à ausência de corpo ou certeza de
morte. E é claro, perda para a morte.
Se o desaparecimento foi o mote inicial da luta das ‘Madres’ e das “Mães de Acari”,
diferentemente, as mães de jovens ingressos no sistema sócio educativo brasileiro lutam por
uma vida mais digna para seus filhos ainda vivos. A princípio pelo menos, pois como já foi
dito, muitos desses adolescentes não sobrevivem à saída das unidades.
Tristemente – tristeza essa minha, que conheci pessoalmente o rapaz e sua mãe –, esse é o
caso do filho de Mônica Cunha, morto em novembro de 2006, por um policial civil, à luz do
dia e literalmente em praça pública, em circunstâncias muito semelhantes à execução.
Mônica, ainda em luto recente, foi à Brasília representando o Conselho Regional de
Psicologia do Rio de Janeiro, para discutir diversas questões referentes ao sistema Sócio
Educativo brasileiro
35
. Tal experiência foi segundo Mônica, muito importante. Lá, ela
publicizou a sua dor, negando silenciar o que vivia e se deparou com um coletivo de
desconhecidos que foi muito acolhedor e solidário à sua dor.
Vemos então mais uma dimensão da luta dessas mães: a publicização da dor, fazendo
com que ela não caia no esquecimento, que a memória se reproduza e com isso, consiga
mobilizar as pessoas em relação às situações que geram essas dores.
35
Esse evento visava discutir nacionalmente as implicações e as possíveis contribuições da prática da psicologia
no sistema sócio-educativo brasileiro. No entanto, o Conselho Regional de Psicologia julgou pertinente que,
além dos psicólogos, alguém que vivesse de perto essa realidade fosse enviado. Mônica, já parceira em outras
datas e eventos, foi escolhida. A morte de seu filho tornou-se conhecida no ato do convite, quando ela ainda o
velava, e ela aceitou.
101
E nesse movimento, mesmo sem um filho no sistema sócio educativo, Mônica continua à
frente do MOLEQUE. Aliás, cabe ressaltar que ainda continuava junto ao MOLEQUE mesmo
quando seu filho, ainda vivo, estava dentro do Sistema Penitenciário. Mônica conta que
continuava lutando contra o que ela mesma qualifica de ‘passaporte para a cadeia’, referindo-
se à freqüente passagem dos jovens do DEGASE para o DESIPE
36
devido à permanência em
atividades criminosas.
O Moleque, assim como muitos desses movimentos, não fazem parte de uma hegemonia.
Ele, assim como a AMAR, as Madres, as Mães de Acari, lutam por pessoas consideradas
“perigosas”, classificados como ‘bandidos’ ou ‘subversivos’, e para quem uma parte
considerável da sociedade justifica o extermínio, o confinamento e o sofrimento. São vozes
cujos gritos muitas vezes são abafados pela história oficial, que insiste em querer nos fazer
crer que o Brasil é um país de pessoas passivamente dominadas.
A resistência sempre esteve presente nos processos de dominação, tanto nos grandes
movimentos que conseguiram entrar para a história, como nos pequenos, cujas histórias foram
silenciadas pela História.
A luta aqui se mistura à vida do lutador, passando a fazer parte dessa vida e do próprio
sujeito que luta, constituindo-o, tornando-se parte indissociável dele. Não há mais, por
exemplo, como pensar Hebe Bonafini sem as Madres de la Plaza de Mayo, Conceição
Paganele sem a AMAR, e Mônica Cunha e Rute Sales sem o MOLEQUE.
Mesmo com pouco tempo de existência, a intensidade da luta faz com que o MOLEQUE
seja parte de Mônica e de Rute, faz com que seja parte constitutiva desse sujeito mulher, mãe,
trabalhadora, dentre outros atributos possíveis que atravessam a vida e fazem-na ‘vida’.
Seja lá com que nome for – Rutes, Mônicas, Hebes, Marias ou Cecílias – todas em algum
momento em suas vidas, tiveram encontros com forças mortificantes que poderiam sobrepujá-
las, torná-las ressentidas, amarguradas, ou mesmo adaptadas. Contudo, esses encontros
dolorosos fizeram emergir, ação, criação, movimentos, tudo isso que podemos chamar,
segundo Nietzsche, de vida. Nesses dolorosos encontros com a morte: que mata filhos, que
mata companheiros, que mata presenças, e que pode matar sonhos, planos, esperança, venceu
a vida, ainda que profundamente marcada com o sofrimento desse encontro. Na medida em
que transformaram a dor em afirmação da vida.
36
Departamento do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro.
102
CONCLUSÃO
O MOLEQUE iniciou sua luta buscando construir estratégias de enfrentamento às
violações de direitos no sistema sócio-educativo no Rio de Janeiro. Diante da trajetória
percorrida até o momento, hoje o MOLEQUE busca ampliar sua atuação. Há nas falas de
Rute e Mônica uma grande preocupação e vontade de fazer frente ao quadro trazido no
capítulo 2 e que, segundo elas, conjuga uma série de fatores que impulsionam muitos
adolescentes pobres a infracionar.
A proposta do MOLEQUE hoje é um rumo diferente (...) é buscar as
políticas que não chegam, as políticas afirmativas, para que eles
tenham acesso. (Sales, 2008).
E a busca por acesso diz também respeito àqueles adolescentes que egressam do sistema,
visto que os mesmos geralmente retornam ao cotidiano de onde saíram e, não raro, às
atividades criminosas. Na maior parte das vezes, segundo a experiência do MOLEQUE, estes
adolescentes egressos do sistema sócio-educativo, quando não encontram a morte fora de seus
muros, entram em um processo de reincidências que os levam, ainda no início da vida adulta,
a ingressar no sistema penitenciário.
Segundo Rute, hoje “a proposta do MOLEQUE, é trabalhar na prevenção” (Sales,
2008). Tal proposta baseia-se nas experiências de perda e solidão, vividas pelas integrantes
do movimento e por quase todas as mães que passam a viver a rotina do sistema sócio-
educativo. Sentir que estão “perdendo o filho” inscreve-se em um momento de muita solidão
para essas mães, segundo Rute e Mônica, e tal solidão é experimentada de forma muito
concreta, não só pelas muitas situações em que essas mães realmente cuidam sozinhas de seus
filhos, mas também por todo quadro de ineficácia e/ou ausência de políticas públicas que
garantam uma vida digna a elas e a seus filhos.
103
A idéia do MOLEQUE é fazer-se conhecido já nessas situações, quando a tal “sensação
de perda” começa a tomar corpo na vida destas mulheres:
A gente um tempo desses ia fazer uns cartazes, para distribuir na
comunidade (...). Porque eu e Mônica, a gente tem experiências que
são iguais. Quando nós começamos a sentir a perda das mãos dos
nossos filhos da nossa, a gente está muito sozinha. Quando a gente
começa a perceber que nossos filhos estão escorregando, a gente está
sozinha e não sabe como agir, e é muito difícil. (Sales, 2008)
Coletivizar experiências tão semelhantes, trocar, solidarizar, surge mais uma vez como
“norte” na atuação do movimento:
Hoje eu já sei ajudar outra mãe quando ela começar a perder o filho
aqui da mão (...) Eu me lembro que quando eu comecei perder o meu
filho aqui das mãos – eu que sempre tive muito conhecimento – a
todos que eu batia a porta, ninguém me deu refúgio, ninguém me
ajudou, ninguém me disse assim: – Trás o teu filho aqui, que eu vou
botar ele para fazer isso. Ou então: – Vamos lá, vamos trazer o teu
filho para fazer um tratamento, vamos bater um papo, enfim, ninguém
me apontou nenhuma saída para nada, nenhum programa que eu
pudesse botar meu filho. E eu perdi ele. E eu me senti muito sozinha.
E eu fiquei pensando assim: – Que tanta gente que diz, que está
lutando pelo adolescente, que tanta gente que diz que tem programa de
adolescente, tem programa de jovem e aonde está isso? Eu que tinha
conhecimento não consegui chegar. Imagina aquela que não tem
formação, que não abre a boca para falar, não sabe seus direitos. Eu
tinha e eu não alcancei. Então hoje a nossa proposta seria a gente
conseguir trabalhar aqui nessa prevenção – que a gente ainda não
conseguiu. (Sales, 2008)
Os planos de atuação na prevenção, além da continuidade dos trabalhos que já existem,
apontam para um projeto de transformar o movimento MOLEQUE em ONG. Articulado a
isso, as integrantes do MOLEQUE estão hoje dando continuidade aos seus estudos para
ingressarem no curso superior com o intuito de conseguirem maior autonomia nas
proposições e execução de projetos.
O MOLEQUE vem, desde sua criação, atuando em parceria com várias instituições, e
uma questão levantada por suas coordenadoras é a falta de autonomia na proposição e na
execução dos projetos bem como no gerenciamento dos recursos financeiros dos mesmos.
Rute aponta para as relações de saber-poder que atravessam o campo dos “projetos sociais”
que as coloca em uma posição de pouca autonomia frente aos técnicos:
A gente busca parceiros, mas até as parcerias são muitas complicadas,
porque hoje, existe um terceiro setor que paga mais funcionários, do
104
que faz as políticas. Então (...) é um tal de contratar muito técnico e
não fazer o que veio fazer, sabe? (Sales, 2008)
Ocupar então tal posição para elas é importante na medida em que consideram que assim
conquistariam maior autonomia para escolher, propor, executar e gerenciar os projetos
julgados por elas mais eficazes, mais de acordo com o cotidiano de suas experiências. Um
exemplo disso é a idéia de concretizar um projeto como o Quebrantar – aquele descrito no
capítulo 3 e através do qual as duas se conheceram:
Um projeto como o Quebrantar. Eu já falei para a Mônica para a
gente copiar esse projeto e conseguir ele de volta. Um projeto, que foi
o único que deu certo. Não deu para todos, mas deu para a maioria.
Que é você ter um dinheiro, dinheiro gente! Não é conversa fiada, é
dinheiro...Você não pode montar o projeto aqui para dar para os
meninos esses projetos de bosta, que não vai levar... desculpa, até
palavrão. (Sales, 2008)
Escatologias à parte – ou não – a experiência de luta do MOLEQUE coloca claramente a
questão dos projetos ditos ‘sociais’ – governamentais ou não - que em muitos casos são
meramente assistencialistas, caritativos e/ou eleitoreiros. Partem de propostas que muito
pouco têm a contribuir para a transformação da realidade dos adolescentes:
Dar um projeto de porcaria que você sabe que aquele menino não vai
conseguir nada, que aquele menino vai trabalhar num lugar aonde ele
vai ganhar R$ 200, R$ 300 e ele não vai ficar, entendeu? (...) Cada
menino no sistema sócio-educativo custa dois mil e tantos reais. Pega
esse dinheiro, dá para uma mãe, para ver se ela não vai fazer do filho
dela alguém. Dá para uma mãe, para ver. E para cada menino desses
no sistema, para apanhar, ser torturado, o Estado está gastando dois
mil e poucos reais! Aonde. (Sales, 2008)
A questão da verba – e da autonomia pra gerenciar o seu uso – coloca-se como questão
fundamental hoje para as coordenadoras do MOLEQUE, e tornar-se uma ONG é o caminho
que elas estão apostando no momento:
Na realidade a gente ainda não conseguiu se constituir como uma
ONG. Nós ainda somos movimento, e ainda estamos buscando
parceria para conseguir enviar os projetos. Agora nós até enviamos
um projeto para o próprio Estado, para dar assistência às mães, nas
unidades e aos jovens, nas unidades e acompanhar eles quando saírem.
(Sales, 2008)
105
Essa busca de parceria com o Estado visa que esse projeto de acompanhamento de
meninos ingressos e egressos e de suas famílias seja incluído no Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC)
37
:
Porque se a gente vai pelo PAC, a gente vai ter uma estrutura legal
para poder fazer as oficinas. Mas hoje a gente precisa de mais, a gente
precisa de um Quebrantar da vida, é dinheiro, dizer assim: – Ó, vocês
atendem, tantos meninos, e para cada menino desses você vai poder
gastar ‘tanto’ com ele. Aí você vai pegar esse menino, vai por ele
num curso técnico profissionalizante. É isso que eles precisam. Você
vai colocar ele numa escola, não precisa colocar numa escola paga,
mas numa escola boa, que a gente faça uma parceria com uma escola
boa. Coloca esse menino para estudar, coloca ele para fazer o curso
técnico, e busca parceria com o mercado de trabalho. Você vai inserir
esse jovem no mercado de trabalho, preparado profissionalmente.
(Sales, 2008)
A aposta em transformar-se em ONG nasce da necessidade que elas sentem em ampliar
suas ações para além das oficinas de acolhimento e discussão que realizam com as mães dos
meninos ingressos no sistema. Nestas mesmas reuniões, o que vem à tona nas discussões é
exatamente a falta de condições, de perspectivas de mudança da realidade, algo que gera em
Rute e Mônica uma necessidade de intervir neste quadro:
A gente vai continuar com as oficinas. Mas como é que você vai
continuar fazendo oficina com o menino dando só lanche para ele? E
quando ele voltar para casa ele não tem que almoçar? Ele não tem que
andar, ele não tem que sair, entendeu? A oficina, é importante? Ela é
importante. A oficina com as mães, a oficina com os jovens, são muito
importantes. Só que o que essas mães discutem dentro das oficinas?
No momento delas, elas discutem o que? A falta das coisas. O que é
que esse jovem coloca nas oficinas? Que ele não consegue isso, que
ele não consegue aquilo, que ele não conseguiu aquilo, por isso ele foi
parar ali. Então não adianta a gente ficar falando aquilo, tudo bem, nós
vamos ajudar eles e mostrar os caminhos diferentes, mas nós temos
que ter o mínimo para dar para esse jovem iniciar. Iniciar quer dizer,
um curso técnico e uma formação, uma educação ai você pode dizer
assim: – Eu ajudei esse jovem. (Sales, 2008)
Nessa aposta de transformar o Movimento em ONG, muitos outros fios se desnovelam,
muitas questões que não poderão ser analisadas neste trabalho se colocam, como por exemplo,
a inserção destes adolescentes no mercado de trabalho através da formação técnica. Tal
37
Programa federal que visa, nacionalmente, através de investimentos em infra-estrutura “aliados a medidas
econômicas, estimular os setores produtivos e, ao mesmo tempo, levar benefícios sociais para todas as regiões do
país.” (Brasil, 2008)
106
questão por sua vez se inscreve necessariamente nas análises sobre o que é educação e
mercado de trabalho no mundo de hoje, especificamente no Brasil.
Mas a principal questão que acho importante apontar é a aposta do MOLEQUE em se
transformar em ONG. Importante por ser este o novo rumo que está nos planos de construção
de uma nova trajetória do Movimento, e pelas implicações pertinentes em tal questão.
Em uma de suas falas, Rute afirma que o MOLEQUE ainda não é ONG, e sim
Movimento. Para além de descrever um ‘formato grupal’ – Movimento Social ou ONG –
mais importante seria entender o MOLEQUE como um Movimento que surgiu de
movimentos. Movimentos estes que na construção de resistências frente ao intolerável vivido
no cotidiano do sistema sócio-educativo possibilitou que re-existências emergissem dessa
luta. Daí vem a questão: que movimentos emergirão desta história de tornar-se ONG?
Por um lado, sabe-se que a emergência de ONGs inscreve-se em um processo de
crescente isenção do Estado do campo das políticas sociais, o que tem relegado aos indivíduos
a tarefa de garantirem condições dignas de vida. Em muitos casos, as ONGs têm assumido
espaços deixados pelo vácuo da ausência estatal, incrementando o crescimento de um
‘terceiro setor’ que como a fala da Rute nos mostrou, nem sempre ocupa esse ‘vazio’ de uma
forma potente, transformadora. Ao contrário, hoje é notório que este ‘setor’ vem, em muitos
casos, reproduzindo formas de gestão e de execução pífias, quando não corruptas, dignas de
muitos governos.
Por outro lado, como parte deste mesmo processo de individualização das políticas
sociais, vemos a produção de uma urgência que se concretiza nas mais diversas formas de
“falta”, como pode ser observado na fala de Rute quando aponta ser este um tema premente
nas discussões do MOLEQUE com os adolescentes e suas mães. Essas faltas são expressões
da falta de condições – sobretudo financeiras – que permitam o acesso à educação, à cultura,
ao lazer, à saúde. Tais espaços, quando públicos (estatais), vêm sofrendo um processo
histórico de sucateamento, que muitas vezes inviabiliza uma boa prestação de serviços que
quando existe, conta com o trabalho hercúleo e individual de alguns profissionais, expostos
diariamente a processos de sobreimplicação. Ver um filho “escorregar pelas mãos” sentindo-
se impotente e só, coloca essas mães em uma situação de urgência para fazer frente a esse
“perder”. Ver o filho sair do sistema sócio-educativo e retornar para uma mesma realidade na
qual o risco de reincidência e de morte é concretamente presente, também as coloca em uma
situação de urgência. São essas urgências que geralmente abrem espaços para políticas
paliativas, “tapa-buracos”, caritativas, assistencialistas. Nessas urgências – concretas e
107
violentas urgências – surgem ações sobreimplicadas que demandam “salvação”, ou mesmo
‘abraçar o mundo com as pernas’, implicando pessoas em um sobretrabalho que muitas vezes
‘descolam’ tais urgências de seu processo de produção. Mas... o que é experimentar essa
urgência?
Parece que é justamente experimentar essa urgência, experimentar a falta de acesso a
políticas que efetivamente garantam “a vida” – com tudo o que “a vida” implica e demanda –
que movimenta as coordenadoras do MOLEQUE para sua nova aposta.
E aposta... é aposta. Implica em riscos. No jogo de forças instituintes e instituídas a
trajetória do MOLEQUE ganhará novos contornos. E em que medida isso representará um
aprisionamento, uma captura em modos de existência hegemonicamente instituídos – de luta,
de militância, de reivindicação, de maternidade, de apoio, de solidariedade – ou se é possível
continuar produzindo singularidades, re-existências seja lá em que formato de luta for – ONG
ou Movimento Social – só a história poderá contar. Afinal...aposta é aposta...
A aposta deste trabalho foi que a luta destas mães ao construir práticas de resistências à
violações de direitos possibilitou também a construção de novos modos de ser e estar no
mundo para essas mulheres. Nestes quase cinco anos de MOLEQUE, movimentos pessoais
levaram a encontros, construíram outros movimentos e outras existências.
Não houve a pretensão de julgar ou avaliar a efetividade de ações, tanto que não há um
elenco delas em nenhum momento do texto. O encontro com Rute e Mônica, a escuta de suas
experiências foi de uma riqueza sem tamanho mensurável ou dizível. E trazer essas
experiências foi a forma mais solidária que encontrei de fazer deste trabalho um parceiro na
luta dessas mulheres-mães da mesma forma como as análises empreendidas.
Capturas, rompimentos e criações, já vimos, fazem parte do jogo. E fazemos todos parte
desse jogo. Forças instituintes e instituídas se fazem presentes o tempo todo nos processos de
produção de subjetividade capitalística, que por sua vez está sempre no movimento de captura
dos processos de singularização. Estar atento a essas armadilhas deve fazer parte da
construção de práticas de resistência.
Para alguns ouvidos e corações pode parecer, por exemplo, que a aposta em virar ONG é
por si, uma cooptação do movimento. Indicaria diretamente uma despotência, ou até mesmo
uma “mudança de lado”. Eu mesma fui surpreendida por tal forma de analisar a questão em
um primeiro momento. E mais uma vez, voltar-me às experiências de Rute e Mônica me fez
pensar se isso não seria uma pretensão muito grande... Afinal, é possível estar lutando de
108
fora? É possível afirmar uma luta somente na medida em que esta se coloque no mundo de
forma ‘absolutamente singular’? Os autores utilizados neste trabalho – Deleuze, Guattari, e
Foucault – nunca apostaram na existência de algo absoluto. Seria uma contradição, inclusive.
Como pensar uma singularização absoluta? Algo dotado de uma radicalidade presente a todo
o momento? Lembremos que estamos imersos em um campo de forças em constante luta,
tensão. É este jogo de forças, instituintes e instituídas, que estão a todo o momento se
fazendo presentes, que nos leva a apostar em uma constante análise de implicações,
permitindo então nos fazer pensar sobre nossos movimentos. Muitas vezes reproduzimos
valores instituídos nos mesmos movimentos de afirmação de novas possibilidades, de novas
existências.
Virará o MOLEQUE um ‘adulto chato’? Ou tornar-se-á ‘um adulto bacana’, como no
final de “O Menino Maluquinho” do Ziraldo? Qual será a trajetória que o MOLEQUE está
começando a construir com suas novas apostas? Mas essa é uma outra história.
109
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