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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
ELAINE AMÉLIA MARTINS
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
AS ESCRITAS DE VIAGEM DE MURILO MENDES E JORGE LUIS BORGES
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2008
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ELAINE AMÉLIA MARTINS
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
AS ESCRITAS DE VIAGEM DE MURILO MENDES E JORGE LUIS BORGES
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em
Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras:
Estudos Literários.
Área de concentração: Teoria da Literatura
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Myriam Corrêa de Araújo Ávila
Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2008
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Martins, Elaine Amélia.
B732.Ym-c Cartografias da memória [manuscrito] : as escritas de viagem
de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges. – 2008.
177 f., enc. : il. color, p&b, fots.
Orientadora: Myriam Corrêa de Araújo Ávila.
Área de Concentração: Teoria da Literatura.
Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 163-173.
Apêndices: f. 174-177.
1. Mendes, Murilo, 1901–1975. Carta geográfica – Crítica e
interpretação – Teses. 2. Mendes, Murilo, 1901–1975 – Viagens
– Teses. 3. Borges, Jorge Luis, 1899–1986. Atlas – Crítica e
interpretação – Teses. 4. Borges, Jorge Luis, 1899–1968 – Viagens
Teses. 5. Escritos de viajantes latino–americanos – Teses.
6. Viagem na literatura – Teses. 7. Autobiografia – Teses.
8. Memória na literatura – Teses. I. Ávila, Myriam Corrêa de Araújo.
II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras.
III. Título.
CDD: Ar863.3
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários
– da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, constituindo-se a
Banca Examinadora pelos seguintes professores:
_______________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Myriam Corrêa de Araújo Ávila
Orientadora
_______________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Eneida Maria de Souza – UFMG
_______________________________________________________
Prof. Dr. Júlio Cesar Castañon Guimarães – FCRB
________________________________________________________
Prof. Dr. Júlio Jeha – UFMG
Coordenador do Programa de Pós-Graduação e Letras: Estudos Literários
Pós-lit/UFMG
Belo Horizonte, 04 de setembro de 2008.
À memória de meu pai, Antônio da
Costa Martins – filho de imigrante
esclarecido de Trás-os-Montes e de
mineira de decadente família
patriarcal – que, sedentário,
aspirou a saberes de viajante.
AGRADECIMENTOS
À professora Myriam Ávila, pela generosidade, interesse e segurança com que orientou
este trabalho.
Aos professores do Curso de Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, em
especial ao professor Cláudio Leitão, a quem devo minha iniciação aos estudos literários.
Ao Museu de Arte Moderna Murilo Mendes da Universidade Federal de Juiz de Fora,
pela competência com que preserva o acervo de Murilo Mendes e pela acolhida, em
especial a Lucilha de Oliveira Magalhães.
À minha mãe, Marina Reis Martins, e aos meus irmãos, Neco, Érica e Élem, por tudo e
por me ensinarem a conviver com as diferenças.
Ao Chiquinho, por compartilhar sonhos e idéias.
À dileta amiga Claudia Maia, pela feliz companhia nas trilhas de nossa formação no
mundo da literatura.
Às novas amigas, Maria do Rosário Alves Pereira e Vívien Gonzaga, companheiras na
vida acadêmica.
À professora Lyslei Nascimento, pelas contribuições.
À Tia Nilza, pelo carinho com que me acolheu. A Jorge Munhoz, Luiz Antônio Pinto e
Rosalvo Pinto, também pelas contribuições.
RESUMO
A viagem e o encontro imaginário registrados por Murilo Mendes em seu texto intitulado
“Jorge Luís Borges” instigam a reflexão sobre o sentido da “viagem” e de seu registro
por escritores da América Latina. Esta dissertação é um estudo dos livros Carta
geográfica, de Murilo Mendes, e Atlas, de Jorge Luis Borges, com o objetivo de
examinar a escrita de viagem desses escritores, atentando-se para as entradas
autobiográficas, bem como para a experiência do deslocamento como recurso literário.
As trajetórias poético-biográficas de Murilo Mendes e de Jorge Luis Borges convergem
para um cosmopolitismo cultural e para a situação de trânsito do intelectual latino-
americano entre o moderno e a tradição.
Palavras-chave: viagem, autobiografia, literatura, Murilo Mendes, Jorge Luis Borges
RESUMEN
El viaje y el encuentro imaginario registrados por Murilo Mendes en su texto intitulado
“Jorge Luís Borges” instigan la reflexión sobre el sentido del “viaje” e su registro por
escritores de América Latina. Esta disertación es un estudio de los libros Carta
geográfica, de Murilo Mendes, y Atlas, de Jorge Luis Borges, con el objetivo de
examinar la escrita de viaje producida por eses escritores, considerandose las entradas
autobiográficas, así como la experiencia del desplazamiento como recurso literario. Las
trayectorias poético-biográficas de Murilo Mendes y de Jorge Luis Borges confluyen
para un cosmopolitismo cultural y para la situación de tránsito del intelectual latino-
americano entre lo moderno y la tradición.
Palabras-llave: viaje, autobiografia, literatura, Murilo Mendes, Jorge Luis Borges
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 - EM OURO PRETO ......................................................................................... 31
FIGURA 2 - MURILO MENDES EM ÁVILA ...................................................................... 36
FIGURA 3 - MURILO MENDES NAS ESCADAS DO PARTENON ......................................... 45
FIGURA 4 - EM MADRID ............................................................................................... 52
FIGURA 5 - JORGE LUIS BORGES E A DEUSA GÁLICA .................................................... 89
FIGURA 6 - JORGE LUIS BORGES EM PALMA DE MAIORCA ........................................... 99
FIGURA 7 - JORGE LUIS BORGES NO LABIRINTO .......................................................... 105
FIGURA 8 - JORGE LUIS BORGES EM GENEBRA ........................................................... 107
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS:
VIAGENS E ENCONTROS IMAGINÁRIOS ................................................................ 11
PARTE I: ROTAS ESCRITAS
CAPÍTULO 1 UMA TOPOGRAFIA DA VIAGEM EM MURILO MENDES ............................... 22
1.1 MURILO MENDES VIAJANTE .......................................................................... 22
1.2 ENSAIOS CARTOGRÁFICOS ............................................................................ 32
1.3 UMA TRAJETÓRIA DA CARTA GEOGRÁFICA ................................................... 42
CAPÍTULO 2 UMA TOPOGRAFIA DA VIAGEM EM JORGE LUIS BORGES ......................... 68
2.1 BORGES VIAJANTE ....................................................................................... 68
2.2 UM ROTEIRO, UM ALEPH .............................................................................. 80
2.3 UMA CARTOGRAFIA DO ATLAS ...................................................................... 86
PARTE II: ESCRITAS SOBRE AS ROTAS
CAPÍTULO 3 UMA TOPOGRAFIA DA VIAGEM NA LITERATURA LATINO-AMERICANA ... 115
3.1 “POR QUE E PARA QUE VIAJA O HABITANTE DO NOVO MUNDO?” ............... 115
3.2 CARTA GEOGRÁFICA E ATLAS: TRÂNSITOS GEOGRÁFICOS E LITERÁRIOS ....... 125
3.2 DESLOCAMENTO E DES-RE-TERRITORIALIZAÇÃO PELA
LITERATURA DE VIAGEM ............................................................................ 147
C
ONSIDERAÇÕES FINAIS
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA .......................................................................... 160
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 163
NOTAS DE FIM ............................................................................................................... 174
Quem viaja tem muito que contar.
Walter Benjamin
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
11
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
VIAGENS E ENCONTROS IMAGINÁRIOS
Há muitos séculos, viajando no interior da Babilônia,
entrei por engano na residência de verão do imperador.
Levado à sua presença, ele cortesmente me convidou a
visitar as principais salas do palácio em companhia de
um funcionário. Penetrando na imensa biblioteca que
reunia em centenas de volumes toda a sabedoria do
Oriente deparei com um homem alto de testa larga (onde
cabem todos esses volumes), olhos assimétricos, lentes
escuras, e que protegido por “estandarte de silêncio”
copiava atentamente certos pergaminhos. Não podia
deixar de ser Jorge Luís Borges. Ao seu lado notava-se
uma enorme chave de bronze: segundo meu cicerone, a
chave que abria as portas do “claro labirinto” do
palácio guarnecido de objetos recolhidos no universo
inteiro, que correspondiam a palavras. Borges pertencia
ao pequeno grupo de iniciados dispondo de acesso ao
labirinto onde se representa diariamente a “pantonímia
cósmica”.
1
Uma viagem imaginária proporciona o encontro também imaginário entre
Murilo Mendes e Jorge Luis Borges, conforme relata o poeta brasileiro no texto
homônimo dedicado ao autor de Ficções em Retratos-relâmpago.
2
O episódio se
engrandece pela incorporação do universo simbólico borgiano à trajetória espaço-
temporal do viajante. A encenação se produz pelo entrecruzamento de elementos de
textos de autoria de Borges e apreensões do possível não-vivido, ou seja, do não
acontecido encontro real entre os escritores, mas que fora instaurado pela letra impressa
de Murilo Mendes.
1
MENDES. Retratos-relâmpago, p. 1218-1219.
2
Retratos-relâmpago foi a última obra do escritor publicada em vida. O livro é composto de três setores,
sendo o primeiro, no qual situa “Jorge Luís Borges”, dedicado a retratos de poetas e homens de letras.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
12
Lê-se, então, um diálogo entre o ficcional e a memória de leitura do escritor
brasileiro. Diálogo que não é incomum à escrita muriliana em episódios suscitados por
viagens físicas apontados em Carta geográfica, como a passagem de “Os dias em
Londres”,
3
em que o tempo escasso não impede o encontro com personagens de sua
biblioteca e da biblioteca universal. O mesmo pode-se dizer das inúmeras peregrinações
literárias de Jorge Luis Borges ao longo de seus encontros imaginários com autores e
personagens de sua reverência nas páginas de Atlas.
4
A palavra “precursor”, segundo Borges, é indispensável no vocabulário
crítico, mas deveria ser purificada de toda conotação de polêmica ou de rivalidade. Para
ele, um escritor constrói seus precursores e, quando o leitor e crítico Murilo o inclui
entre o seu álbum de retratos de “poetas e homens das letras”, faz dele (Borges) um
precursor. A viagem e o encontro imaginário registrados por Murilo Mendes instigam a
reflexão sobre o sentido da viagem e de seu registro por escritores da América Latina.
Raúl Antelo, em “Borges e Murilo Mendes, dois casos de desleituras
criativas”, aproxima os dois escritores a partir dos ensinamentos borgianos sobre a
figura judaica do mestre Zaddik, “cuja doutrina da Lei é menos importante que o fato de
ele mesmo ser a Lei”,
5
identificada com Macedonio Fernández em vários textos, como
no prólogo intitulado “Macedonio Fernández”,
6
no qual o escritor “insiste no tópico do
travestimento ou escamoteamento do saber, uma sorte de ironia, ao modo socrático”. A
3
MENDES. Carta geográfica, p. 1101-1106.
4
BORGES. Atlas [1984]. Neste trabalho serão utilizadas três edições de Atlas: a original com as
fotografias [1984], a publicada na edição espanhola das Obras Completas [1989] e a edição brasileira
também das Obras Completas [1998-1999]. A distinção entre elas será indicada pelo ano de publicação
entre colchetes. Optou-se ainda por empregar, no corpo do texto principal, as citações de Jorge Luis
Borges em português e, em notas de rodapé, a versão na língua original, quando possível. Os créditos das
traduções estão registrados nas referências bibliográficas.
5
ANTELO. Anais do 1.º Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada, p. 57.
6
BORGES. Prólogo com um prólogo de prólogos, p. 58-67.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
13
leitura e os apontamentos feitos por Murilo Mendes sobre esse texto
7
servem de mote
para as considerações de Antelo. O crítico observa que Murilo Mendes não pôde senão
também identificar, ao ler algumas passagens sobre a aversão de Fernández à escrita e o
ocultamento de sua erudição, “traços comuns entre Macedonio e seu próprio Zaddik, o
amigo, poeta e pintor Ismael Nery”, cujas iniciais do nome são apontas por Murilo
Mendes à margem do texto borgiano.
Para Antelo, a relação entre o Zaddik e o discípulo acontece enquanto “um
acumula e esconde; o outro espia à espreita”
8
e, nesse sentido, tece considerações acerca
das duas declaradas filiações literárias. O caso Macedonio/Borges é analisado pelo viés
do cerne da poesia do primeiro que, segundo Borges, seria uma “transcrição fiel da
realidade”. Transcrição entendida como “a combinação complementária de estratégias
de expropriação e apropriação.” Antelo entende que uma tradição da modernidade se
decide entre essas duas soluções e rastreia a elaboração dessa passagem no pensamento
de Macedonio Fernández, através da leitura de Borges, que “propõe uma fantástica do
código ou um humor-anarquismo que toma e expande a partir de Macedonio”.
9
Já a desleitura criativa que Murilo Mendes faz da obra de Ismael Nery é
percebida através do entendimento da equação muriliana “modernidade e permanência”,
ancorada no pensamento de Nery que, no dizer de Murilo, era um portador e ampliador
da tradição. Antelo demonstra que o processamento da normalização moderna em
Murilo a partir de Ismael Nery acontece com a insubordinação do poeta mineiro contra
uma transmissão mecânica que obedeceria a um conceito determinista de causalidade.
7
Murilo Mendes leu a versão original do texto publicado como prólogo da antologia de Macedonio
Fernández presente no seu acervo sob a guarda do Museu de Arte Moderna (MAM) Murilo Mendes
UFJF. FERNÁNDES. Macedonio Fernández.
8
ANTELO. Anais do 1.º Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada, p. 57, 58.
9
ANTELO. Anais do 1.º Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada, p. 58.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
14
Nessas posições, contudo, Jorge Luis Borges e Murilo Mendes, “produzem, por
apropriação e recusa, uma tradição” e, ainda segundo Antelo, eles “corrigem, invertem,
ampliam a contribuição dos precursores e provocam, assim, uma modificação
correlativa em nossa concepção da herança dos mestres”.
10
Murilo Mendes (1901-1975) e Jorge Luis Borges (1899-1986) são escritores
de importância nas suas próprias literaturas e na literatura mundial. Há algumas
semelhanças entre eles: nasceram às margens do princípio do século XX, presenciaram
os principais acontecimentos que marcaram esse século; despontaram no cenário da
literatura às bordas dsa décadas de 1920 e 1930 e escolheram a Europa como espaço
eletivo e lugar para morrer. Ambos mudaram as ênfases de suas escritas ao longo de
suas carreiras. Murilo Mendes, consagrado por sua poesia, dedicou os últimos anos de
sua vida também à prosa. Jorge Luis Borges escreveu suas primeiras obras em versos,
passou pela escrita ensaística e, posteriormente, já consagrado como ficcionista, voltou-
se para os versos.
Os dois escritores são considerados por críticos como pertencentes à
linhagem de poetas que pensaram a poesia e a história no decorrer da Modernidade,
11
lendo suas próprias obras e as obras alheias. Os latino-americanos, à diferença de outros
poetas-críticos europeus e norte-americanos, de acordo com Maria Esther Maciel, falam
a partir de sua condição cultural periférica e problematizam as contradições de sua
própria história cultural em relação a outras tradições. Acrescenta Maciel:
10
ANTELO. Anais do 1.º Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada, p. 70.
11
Cf. PERRONE-MOISÉS. Altas literaturas. MACIEL. o transverso, p. 19-41.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
15
Ao mesmo tempo em que continuam o trabalho crítico e poético de
seus precursores estrangeiros, os nossos poetas-críticos o reavaliam
dentro de um outro contexto e de uma nova postura frente à história e
à tradição. Movidos por uma “razão antropofágica”, sustentam uma
postura dialógica frente ao embate da cultura latino-americana como o
legado europeu, sem sucumbirem à estreiteza da xenofobia ou à
humilhação do simulacro. Nesse sentido, se as literaturas periféricas
se nutriram da literatura européia, esta também passou a ser alterada
por aquelas, o que desencadeou um processo múltiplo de
transculturações na era contemporânea.
12
Sobre essa situação do escritor latino-americano na era contemporânea,
também discorreu Ricardo Piglia ao imaginar a sexta proposta para o próximo milênio
não elaborada por Italo Calvino e que deveria compor as Seis propostas para o próximo
milênio.
13
Piglia constrói sua proposta não a partir de um país central com uma grande
tradição cultural, mas pensa o problema do futuro da literatura a partir da margem, a
partir da borda das tradições centrais, e o associa à idéia de “distância e deslocamento,
uma troca de lugar. Sair do centro, deixar que a linguagem fale também na margem, no
que se olhe, no que chega de outro”
.
14
Nesse âmbito, compreender o sentido da viagem
para o escritor-viajante latino-americano em direção ou não à tradição européia faz das
escritas autobiográficas e de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges marcadores
e ponto de partida da reflexão que se pretende. Os livros Carta geográfica, de Murilo
Mendes, e Atlas, de Borges, são os principais referentes.
Esses livros de viagem estão entre as últimas obras escritas por seus autores.
Mais que um balanço da vida, à espera da morte, a escrita das experiências (memórias,
autobiografias, viagens etc.) encerra uma estratégia de sobrevivência ao próprio corpo.
12
MACIEL. Vôo transverso, p. 35.
13
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio.
14
PIGLIA. Margens/Márgenes, p. 3. “La propuesta que yo llamaría, entonces, la distancia, el
desplaziamento, el cambio de lugar. Salir del centro, dejar que el lenguage hable en el borde, en lo que se
oye, en lo que llega de outro.” (Tradução minha)
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
16
Contra a morte, a escrita se revigora e se recria. Ao engendrar o corpo escrito, a
memória vence o esquecimento, o fim da obra, a morte enfim. Pensar o estatuto da
escrita da experiência do deslocamento, contudo, é pensar a própria narrativa de viagem
que remete à figura do narrador.
Walter Benjamin, ao tecer considerações sobre a obra de Nikolai Leskov em
“O narrador”,
15
discorre sobre a arte de narrar, cuja “faculdade de intercambiar
experiências” considera estar em vias de extinção porque a sabedoria também o está. O
pensador apresenta três estágios assumidos pela figura do narrador: o narrador clássico,
o romancista e o narrador que informa. A verdadeira narrativa estaria ligada a seu poder
utilitário de conselho, que, na substância viva da existência, recebe o nome de
sabedoria. A experiência é a fonte de todos os narradores clássicos, os quais Benjamin
divide em dois tipos – o camponês sedentário e o marinheiro comerciante –, por meio da
qual no sistema corporativo medieval, de onde se originaram ambos os tipos,
“associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o
saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário”.
16
A importância da experiência daquele que viajou, contudo, só se transforma
em sabedoria quando cessada a viagem. “O narrador retira da experiência o que ele
conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros”,
17
complementa Benjamin.
Nesse sentido, pensa-se o registro das experiências de viagem de Murilo Mendes e
Jorge Luis Borges, que não retornaram às suas pátrias de origem para morrerem. Os
deslocamentos dos escritores latino-americanos em direção ao Velho Mundo, sejam
físicos ou imaginários, evidenciariam uma ruptura na relação entre o escritor da
15
BENJAMIN. Magia e técnica, arte e política, 197-221.
16
BENJAMIN. Magia e técnica, arte e política, p. 199.
17
BENJAMIN. Magia e técnica, arte e política, p. 201.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
17
periferia e a metrópole. Partem da cópia para o modelo, mas também para a hesitação de
um “entre-lugar”.
18
A viagem foi uma constante na trajetória artístico-biográfica de Murilo
Mendes que, em sua “viagem transoceânica”
19
, ultrapassou as fronteiras que o cercavam
cultural e geograficamente, desterritorializando-se, como ele mesmo sinalizou: “dentro
de mim discutem um mineiro, um grego, um hebreu, um indiano, um cristão
péssimo”.
20
O primeiro capítulo desta dissertação, “Uma topografia da viagem em
Murilo Mendes”, trata da configuração da viagem na obra do escritor brasileiro,
atentando-se para a relação entre poéticas de vida e de arte. Para tanto, alguns textos da
fortuna crítica do escritor servirão de âncora, a exemplo das contribuições de Davi
Arrigucci Júnior, José Guilherme Merquior, Júlio Castañon Guimarães, Laís Corrêa de
Araújo e Luciana Stegagno Picchio.
A escrita de viagem muriliana é cartografada desde suas primeiras
manifestações nos versos de “Mapa”,
21
Contemplação de Ouro Preto (1954), Siciliana e
Tempo espanhol (1959) e na prosa de Carta geográfica (1965-1957), Espaço espanhol
(1966-4969) e Janelas verdes (1970), livros editados postumamente. O primeiro livro
expressamente autobiográfico, A idade do serrote (1972), é também texto importante
para o entendimento da noção de viagem na literatura muriliana, que aparece mais
cristalizada no livro Carta geográfica, do qual são depreendidas as principais
considerações. O livro, escrito entre 1965 e 1967, constitui-se de nove partes que têm
como títulos as localidades visitadas: as oito primeiras centradas na Europa e a última,
18
Cf. SANTIAGO. Uma literatura nos trópicos, p. 11-28.
19
Em 1957, o poeta se transferiu para Europa onde morreu em 1975, e voltando ao Brasil algumas vezes
a passeio.
20
MENDES. Murilo Mendes por Murilo Mendes, p. 45.
21
MENDES. Poesias, p. 116-7.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
18
única americana, em Nova York. Embora possua caráter “misto de informação, poesia
em prosa e jornalismo”,
22
Carta geográfica não é simples diário de viagem, é uma obra
poética que retoma a imagem infantil do menino que queria ir do Brasil à China a
cavalo, e que a projetou quando adulto, nas travessias posteriores, geográficas ou não,
numa ultrapassagem do tempo e espaço através da escrita e das leituras. Documentos e
obras do acervo do poeta, aos cuidados do MAM Murilo Mendes - UFJF, também
iluminaram esse estudo.
O segundo capítulo, intitulado “Uma topografia da viagem em Jorge Luis
Borges”, à maneira do primeiro, respalda-se na leitura da trajetória poético-biográfica
do escritor argentino a partir do movimento de sua produção literária e de suas viagens.
O topográfico livro Fervor de Buenos Aires, que abarca o poema “As ruas”, o declarado
Ensaio autobiográfico e o conto “O Aleph” direcionam minha busca da percepção do
sentido da viagem na obra borgiana, que se concretiza em Atlas, e se delineia à luz de
uma memória individual e livresca. Alguns textos teóricos e críticos conduzem essa
busca, como os de Maurice Halbwachs, Angel Rama, Beatriz Sarlo, Sylvia Molloy,
Eneida Maria de Souza, Fausto Colombo, Edward Soja, Susan Sontag e outros.
Atlas, escrito com colaboração de María Kodama e publicado dois anos
antes da morte do autor, revela um escritor-viajante seletivo e, apesar da cegueira, leitor
constante, um descobridor de tempos e espaços heterotópicos
23
. A obra se compõe de 45
textos e inúmeras fotografias, cujas páginas pretendem ser monumentos e emanam a
transformação do mundo em palavras, traçando imagens de viagens, de sonhos
22
MENDES; PICCHIO. Notas e variantes, p. 1694.
23
FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, arte e cinema, p. 411-422.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
19
ocorridos durante as viagens, de lugares recuperados pelo deslocamento e pela viagem
que é, sempre, literatura.
Esses dois primeiros capítulos abarcam uma leitura sobre as “Rotas escritas”
pelos escritores e constituem a primeira parte deste trabalho. As reflexões empreendidas
a partir dessa leitura de Carta geográfica e Atlas cruzam-se no terceiro capítulo, “Uma
topografia da viagem na literatura latino-americana”, que corresponde à segunda parte,
“Escritas sobre as rotas”. Nesse momento, procura-se pensar como a viagem, no
contexto latino-americano dos escritores estudados, institui-se como elemento operador
de relações de identidades. Nessa operação, o texto literário oferece-se também como
corpus e como disseminador de conceitos bastante explorados pela crítica biográfica.
Pontos de convergência comportam o diálogo entre os escritores, como a proximidade
no tempo, a condição de “viajeiros” que carregam na mala identidades culturais
múltiplas e a escrita topográfica de livros de viagens no fim da vida.
“Por que e para que viaja o habitante do Novo Mundo?” Essa indagação
formulada por Silviano Santiago na sua tentativa de responder outra – “Por que e para
que viaja o europeu?”
24
– serve de mote para o desdobramento da reflexão proposta por
este trabalho que também se respalda nas colaborações teóricas acerca da temática da
viagem, como as de Octavio Ianni, Silvana Maria Pessôa de Oliveira, Flora Süssekind,
Thaïs Pimentel, Myriam Ávila e outros. A discussão sobre as idéias de deslocamento
desdobra-se em outras questões como as noções de espaço, território e identidade. Nesse
sentido, então, são retomadas as colaborações de Michel Foucault, David Harvey, Stuart
Hall e Deleuze e Guattari.
24
SANTIAGO. Nas malhas da letra, p. 189-205.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
20
As leituras de Carta geográfica e Atlas apontam para ocorrências de
trânsitos geográficos e literários e a encenação das viagens, reais e imaginárias, de
Murilo Mendes e de Jorge Luis Borges e permitem pensar o tratamento da questão da
identidade construída a partir de deslocamentos e da própria viagem.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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21
P
ARTE I
R
OTAS ESCRITAS
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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22
CAPÍTULO I
UMA TOPOGRAFIA DA VIAGEM EM MURILO MENDES
Peregrino europeu de Juiz de Fora,
telemissor de murilogramas e grafitos,
instaura na palavra o seu império.
(A palavra nasce-me
Fere-me
Mata-me
Coisa-me
Ressuscita-me.)
Carlos Drummond de Andrade
1.1 MURILO MENDES VIAJANTE
“Peregrino europeu de Juiz de Fora.”
25
O afetuoso verso com que Carlos
Drummond de Andrade homenageia poeticamente o amigo instiga o entendimento da
trajetória poético-biográfica de Murilo Mendes (1901–1975). Os caminhos e
descaminhos da poética muriliana podem ser iluminados pelo percurso de vida do poeta
nascido “às margens de um rio afluente de águas pardas, o Paraibuna, que fazia muita
força para atingir os pés do pai Paraíba”,
26
no momento em que o século XX
principiava.
O poeta juiz-forano encena várias atitudes de rompimento do cerco
geográfico e estético da província, em favor de um percurso oceânico ou universalista.
A maior abertura, depois das obras literárias, terá sido o cinema. Logo, o contato com a
música e com as artes plásticas. A idade do serrote (1968), primeiro livro
25
ANDRADE. Poesia completa e prosa, p. 63.
26
MENDES. A idade do serrote, p. 897.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
23
declaradamente autobiográfico do poeta, escrito em uma “prosa-poesia”
inextricavelmente ficcional,
27
fornece entradas para a percepção dessas atitudes já
expressas pelo poeta-menino, para o qual o jardim-pomar da casa paterna era limite
traçado ao seu “incipiente saber”, e que sentia “obscura, difícil Minas de pedra que me
fazia doer o peito por falta de mar.” A Juiz de Fora daquela época, “um trecho de terra
cercado de pianos por todos os lados”,
28
dava a idéia de uma prisão de luxo para o
menino que queria morar no Morro do Imperador “que nem o Himalaia”, lugar que
alteraria sua idéia de limite, limite ligado à falta de fronteiras, ao universal, e que mais
tarde relacionar-se-ia ao sentimento religioso de amplitude, e ao viajar “para tentar uma
identificação com o mundo”.
29
“O grande sonho: ir do Brasil à China a cavalo.”
30
O ato onírico, e porque
não surreal, sinaliza epicamente a origem prematura do espírito viajante do poeta que,
desde cedo, já sentia atração pelos mapas, colando pedaços da Europa e da Ásia em
grandes cadernos. A Europa lhe chegava através da descoberta da literatura na
“caverna”
31
da biblioteca de Belmiro Braga, das conversas com o Primo Nélson e do
casarão da Sinhá Leonor, onde existia um caleidoscópio, “acessório essencial” que
proporcionava “a Europa ao alcance de todos, em imagens coloridas”. As volúpias do
poeta-menino de A idade do serrote compreendem, ainda, prenúncios dos
deslocamentos geográficos e poéticos do adulto.
27
No artigo “Poesia e ficção na autobiografia”, Antonio Candido tece as primeiras considerações acerca
da prosa-poesia autobiográfica muriliana. Cf. CANDIDO. A educação pela noite e outros ensaios, p. 51-
69.
28
MENDES. A idade do serrote, p. 895, 897, 920.
29
MENDES. Carta geográfica, p. 1061.
30
MENDES. A idade do serrote, p. 896.
31
MENDES. A idade do serrote, p. 910.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
24
Passagens anedóticas da infância e juventude do poeta são largamente
referenciadas como marcadores de sua poesia. O episódio da “subversão da vista”
causado pela passagem do Cometa Halley que trouxera “a primeira idéia do cosmo”
32
; a
fuga do Colégio Santa Rosa, em Niterói, para assistir no Teatro Municipal ao Ballet
Diaghilev e ver o bailarino “Nijinsk dançando no arco-íris”; o gesto de reverência ao
cofre-forte do Banco Mercantil, onde trabalhara; a visão de Mozart de fraque azul; o
envio do telegrama a Hitler por ocasião da invasão de Salzburgo foram, entre outros,
acontecimentos recriados pelo escritor em versos ou prosa.
Outras ocorrências de cunho biográfico também valem ser destacadas. O
início da amizade de Murilo com o historiador português Jaime Cortesão, persona non
grata em Portugal de Salazar, que se estabelecera no Rio, na década de 1940, e o
casamento do poeta com a filha do amigo, a também poeta Maria da Saudade Cortesão.
Na década seguinte, entre 1952 e 1956, ocorre a primeira estada de Murilo Mendes na
Europa, quando viaja em missão cultural para a Bégica e a Holanda. Em 1956, volta ao
Brasil e, em 1957, vai para a Itália, como professor de cultura brasileira na Universidade
de Roma, criando o mesmo curso em Pisa. O apartamento na via del Consulato 6 torna-
se um ponto de referência para escritores e artistas.
Após uma juventude inquieta, Murilo Mendes, avesso a uma atividade
profissional fixa, surge no cenário da literatura no ano de 1930, com a publicação,
custeada pelo pai, de Poemas (1925-1929), que recebe o Prêmio Graça Aranha de
Poesia, seis anos após a primeira manifestação do Surrealismo (1924) e oito anos após a
eclosão do Movimento Modernista, representada pela “Semana da Arte Moderna”. O
32
MENDES. A idade do serrote, p. 897.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
25
distanciamento cronológico e geográfico de Murilo, conforme já apontado por alguns
críticos, não evidencia o desconhecimento do poeta dessas manifestações, pois o mesmo
participou com algumas colaborações da primeira fase do modernismo, na Revista de
Antropofagia e na Revista Verde, além de declarar o conhecimento prematuro do
movimento inconformista francês em textos posteriores.
33
Considerando o tratamento dado a Murilo Mendes como “voz solitária e
insólita” na tradição moderna brasileira e tentando entender o sentido da inusitada
parábola de sua obra que parece ter passado de tangente a eixo dessa tradição, José
Guilherme Merquior tece comentários acerca do modernismo brasileiro, considerando-o
um “estilo híbrido e heterogêneo”, feito da convivência e de atritos de dilemas
tipicamente da “arte moderna”, com vários traços de rigor pré-modernos e, no entanto,
dotados de grande poder adaptativo e funcionalidade estética. Segundo o crítico, “nesse
complexo heterogêneo do modernismo in fieri havia um núcleo puro e duro da
modernidade radical” – núcleo o qual nomeia anarcovanguardista –, e a ele “pertenceu,
de corpo e alma a poética de Murilo”.
34
Mesmo sem o envolvimento direto com o grupo modernista, Murilo
Mendes, no ano seguinte, conclui Bumba meu poeta, que é publicado na Revista Nova,
dirigida por Paulo Prado, e, em 1932, edita os poemas-piadas de História do Brasil.
33
“Abracei o surrealismo à moda brasileira, tomando dele o que mais me interessava: além de muitos
capítulos da cartilha inconformista, a criação de uma atmosfera poética baseada na acoplagem de
elementos díspares.” Ou: “Desde a primeira época da formação do surrealismo informei-me avidamente
sobre essa técnica de vanguarda, a qual, embora eu não adotasse como sistema, me fascinava,
compelindo-me à criação de uma atmosfera insólita, e ao abandono de esquemas fáceis ou previstos.
Tratava-se de um dever de cultura.” MENDES. Retratos relâmpago, p. 1238, 1270.
34
MERQUIOR. Poesia completa e prosa, p.11.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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26
Nesse período, “olhando de longe” o que se passava em terras paulistanas,
35
Murilo
Mendes estabelece contato com as artes de vanguarda, quando da convivência com o
pintor Ismael Nery, que estudou na Europa em 1921 e que fez uma segunda viagem em
1929, na qual conheceu essas artes de vanguarda e alguns surrealistas. Essa amizade
marcou profundamente a ordem da produção literária muriliana, através da influência do
“Essencialismo” – filosofia para iniciação ao catolicismo pelo princípio da abstração do
tempo e do espaço, criada por Ismael Nery. Em Recordações de Ismael Nery, livro que
contém, nas palavras de Davi Arrigucci Júnior, “o mapa de um percurso que levou à
fusão doutrinária, à descoberta espiritual e à profunda identificação pessoal,
predispondo para encontros inesperados”,
36
Murilo declara:
[...] uma parte de meu primeiro livro, a que chamei, salvo engano,
Poemas sem tempo (não tenho o volume à mão), bem como diversas
peças de O visionário, nasceram das contínuas conversas de Ismael
sobre sucessão, analogia e interpretação de formas, idéias a que ele
tentou dar vida plástica em vários desenhos e quadros, idéias que se
apoiavam em bases de observação nas ruas, nas reuniões, nos
hospitais que freqüentemente visitava, no manuseio dos livros de
anatomia, em histórias de família.
37
Murilo Mendes também leu algumas cenas e roteiros escritos por Ismael
Nery, que o convidara a fazer cinema, mas nada se concretizou. O primeiro livro,
Poemas, tem como capa um desenho do amigo e faz referências a todos esses tópicos
35
Em face do Modernismo, Murilo Mendes declarou em entrevista: “Em 1922 eu estava no Rio, olhando
de longe o movimento, mas sem aderir oficialmente, porque nunca tive instinto gregário, o que sempre
me impediu de fazer parte de qualquer grupo. [...] Acho, porém, que o movimento, que representou ação
paralela ao desenvolvimento das idéias de transformação que nos conduziram à Revolução de 30, mas
que deve ser visto, também, como conseqüência do surto de renovação por que passou todo o mundo
ocidental depois da guerra de 1914, foi muito útil à nossa literatura.” MENDES apud SENNA. República
das Letras, p. 255-256.
36
ARRIGUCCI JÚNIOR. Recordações de Ismael Nery, p. 17.
37
MENDES. Recordações de Ismael Nery, p. 30.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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27
assinalados pelo poeta e, principalmente, à memória. Alguns poemas parecem
incorporar a dita teoria. O livro inaugural é subdividido em oito partes: “O jogador de
diabolô”, “Ângulos”, “Máquina de sofrer”, “O mundo inimigo”, “A cabeça decotada”,
“Poemas sem tempo” e “Apêndice”. A quinta, homônima de uma pintura de Nery,
constitui-se de sete poemas, dentre eles “Mapa”
i
, que pode ser lido como introdução ao
movimento espacial da poética muriliana, ao descentramento e à desterritorialização do
“eu”. O poema é dedicado a Jorge Burlamaqui, um dos integrantes do grupo que girava
em torno de Ismael Nery, formado por Antônio Bento, Guignard, Mário Pedrosa e
Aníbal Machado.
Os 58 versos do poema, divididos em três estrofes, configuram o roteiro
poético-biográfico do qual se depreende um itinerário surrealista metaforizado por
deslocamentos em tempos, espaços e transcendências, carregado pelos discursos cristão
e memorialístico. O poema parece conter não apenas o anúncio de possibilidades da
escrita poética em face de territórios imaginários, mas também a tensão de espaços, ora
utópicos ora heterotópicos
38
, espaços mapeados por versos gerados por movimentos,
vôos e repousos, um trânsito entre o Ocidente e o Oriente. Trânsito que se relaciona
com lugares e momentos sob o signo de apropriações e inscrições culturais da
modernidade. A noção de limite surge nos primeiros versos:
Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à consciência da terra, ando com os outros,
me pregaram numa cruz, numa única vida.
39
38
Cf. FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 411-422.
39
MENDES. Poemas, p. 116.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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28
É dada ao corpo desconjuntado uma alma, e quatro cravos o prendem a uma
única vida. Esses cravos servem de bússola e o orientam com quatro pontos cardeais
limitantes. A limitação do norte é ditada pelos sentidos. O sul é circunscrito pelo
sentimento, mais precisamente pelo medo. A leste, o apóstolo São Paulo é o limite,
afirmação do laço cristão. Fechando as coordenadas, o limite ocidental é imposto pela
educação, que remete a “contato, memória e iniciação”,
40
fragmento que serve de
prefácio ao já mencionado A idade do serrote.
O percurso poético-biográfico de Murilo Mendes se aproxima daquele
prescrito nesse poema.
41
A oeste encontram-se a memória, a inquietação do colégio e a
Espanha dos antepassados – uma de suas pátrias eletivas. Os sentidos permanecem
confusos, o corpo está no ar, na terra, no passado e no futuro. Não há norte fixo. São
Francisco e outros mártires, a leste, são colocados junto de suicidas no sul. O limite, ao
mesmo tempo em que é prescrito, se dilui no espaço das fronteiras do imaginário. Dos
trajetos mirabolantes do “eu” depreendem-se vários outros pontos de ordem topológica:
terra (“Depois chego à consciência da terra”), ar (“Minha cabeça voou acima da baía,
estou suspenso, angustiado no éter”), território (“estou com os meus antepassados, me
balanço em arenas espanholas”), mar (“vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas
no mar/ me ensinuarei nos quatro cantos do mundo”), e, por fim, o espaço privado do
apartamento (“quarto modesto da praia de botafogo”). Este é um lugar de erudição, de
saber, de liberdade e de organização, o qual se opõe ao estado inaugurado pelo “eu”
40
MENDES. A idade do serrote, p. 895-897.
41
No estudo do qual resultou o texto “Murilo Mendes e a viagem”, procurou-se traçar o sentido da
viagem poética muriliana, partindo-se de alguns de seus poemas para se chegar às viagens biográficas. Cf.
MARTINS; LEITÃO. Imaginação de uma biografia literária, p. 33-49.
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29
(“Viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente”) que afirma:
“Não me inscrevo em nenhuma teoria.”
42
Para Murilo Mendes, a morte do amigo essencialista, em 1934, abriu-lhe
“uma vida de possibilidades”.
43
Data desse momento a conversão do poeta ao
catolicismo, um catolicismo “heterodoxo”
44
que é encenado surrealisticamente em sua
obra, através do jogo plástico entre o profano e o religioso. A Igreja e o Cristo aparecem
metamorfoseados e erotizados em versos do poeta, leitor da Bíblia e, principalmente, do
Apocalipse. Nas palavras de Mário de Andrade, esse catolicismo muriliano "guarda a
seiva de perigosas heresias".
45
É nesse cenário que, junto do companheiro Jorge de
Lima, Murilo publica Tempo e eternidade (1934). Nos anos seguintes saem: Os quatro
elementos (1935), O sinal de deus (1936), A poesia em pânico (1937), O visionário
(1941), As metamorfoses (1944), Mundo enigma e O discípulo de emaús (1945), Poesia
e liberdade (1947) e Janela do caos (1949).
A leitura dessa poesia, permeada de movimento, remete à afirmação do
escritor que serve como chave para os desdobramentos do ensaio crítico de Laís Corrêa
de Araújo: “Eu tenho sido na vida um franco atirador. Procuro obedecer a uma espécie
de lógica interna, de unidade apesar dos contrastes, dilacerações e mudanças; e sempre
evitei os programas e manifestos.”
46
No trabalho de 1972, Araújo evidenciou a trajetória
42
MENDES. Poemas, p. 117.
43
MENDES. Recordações de Ismael Nery, p. 152. Pedro Nava, no volume seis de suas Memórias, faz
alusão à conhecida cena da conversão de Murilo Mendes ao catolicismo durante o velório do amigo Nery,
narrando o momento da fulguração e comparando-a à conversão de São Paulo. NAVA. Círio Perfeito, p.
276-283, 313-319.
44
MERQUIOR. Poesia completa e prosa, p. 14.
45
ANDRADE. O empalhador de passarinho, p.45.
46
MENDES apud ARAÚJO. Murilo Mendes, p. 67.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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30
humana e poética do escritor desde os “caminhos e descaminhos” de suas primeiras
poesias até a escrita de Convergência (1972).
Antes de partir para a Europa, Murilo Mendes deixara preparada sua
antologia Poesias (1925-1959), publicada alguns anos depois, em 1959, da qual excluíra
História do Brasil, advertindo que esse livro “destoa” do conjunto de sua obra. Na
mesma década saíram Contemplação de Ouro Preto (1954), Siciliana e Tempo espanhol
(1959).
A migração de Murilo Mendes para a Europa, em uma espécie de auto-
exílio, provocou um distanciamento da atenção da crítica e do público em geral no
Brasil, durante muito tempo. Esse percurso migratório foi absorvido em todos os
ângulos pelo escritor que, durante toda sua estada na Europa, esteve em plena atividade
artística e convivera com vários protagonistas do moderno espírito europeu. Na
introdução à Antologia poética de Murilo Mendes, preparada por João Cabral de Melo
Neto com acompanhamento do autor, mas publicada postumamente, José Guilherme
Merquior discorre sobre a produção muriliana, cujo estilo acredita ter assumido, após a
Segunda Guerra, uma direção classicizante, em que a arte se torna referente e se nota
uma
[...] maior concentração temática do universo da alta cultura literária e
artística, de que o poeta se foi fazendo cada vez mais íntimo em sua
longa residência européia (Bruxelas e Roma, com freqüentes visitas à
Espanha, Portugal e França). [...] Grande renovador da chamada
poesia de viagem (Siciliana, Tempo espanhol), Murilo não peregrinou
menos, nem menos perspicazmente, pela geografia intelectual
contemporânea.
47
47
MERQUIOR. Antologia poética, p. 18.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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31
A origem dessa espécie de “poesia de viagem” foi sinalizada por Ruggero
Jacobbi como “viagem ao mundo antigo, às matizes emotivas da cultura e da história,
iniciada em Ouro Preto”.
48
De fato, a poesia de Contemplação de Ouro Preto, livro
escrito logo após a primeira viagem do escritor ao velho mundo, denota a busca da
cidade colonial mineira e sua contemplação no sentido do olhar fotográfico e plástico
sobre o barroco, sobre um lugar geográfica e culturalmente determinado, sem excluir a
história e a religiosidade:
Ouro Preto se inclina com elegância,
Ouro Preto se inclina, e um dia cairá.
Nova técnica transfigura a terra,
Mas os futuros engenheiros e arquitetos
Não mudarão o corpo de Ouro Preto
Que ainda se preserva da reforma
Por sua mesma pobreza e solidão.
49
FIGURA 1 – Em Ouro Preto, Murilo Mendes (esquerda) e Maria
da Saudade (direita) em companhia de Graciema e
Rodrigo de Melo Franco de Andrade, Igreja São
Francisco de Assis, [s.d.].
Fonte: GUIMARÃES. Murilo Mendes (1901-2001), p. 66.
48
JACOBBI apud ARAÚJO. Murilo Mendes, p. 111. “Il suo viaggio verso il mondo antico, verso le
matrici emotive della storia, è comicciato ad Ouro Preto.” (Tradução de Laís Correa de Araújo)
49
MENDES. Contemplação de Ouro Preto, p. 459.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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32
A poesia de Siciliana e Tempo espanhol, livros permeados de versos
topográficos, pode ser lida como marcadores da literatura de viagem do poeta que será
desdobrada na prosa dos livros seguintes: Carta geográfica (1965-1957), Espaço
espanhol (1966-1969) e Janelas verdes (1970), editados postumamente em Transístor
(1980). A presença da viagem torna-se um elemento constante, alimentado pelo
sentimento de curiosidade pelo “outro” e pela vontade de conhecimento, que vão dando
forma ao que Merquior havia denominado “cosmopolitismo cultural”
50
.
1.2 ENSAIOS CARTOGRÁFICOS
Entre 1954 e 1955, Murilo Mendes viaja para a ilha italiana Sicília e, nesse
período, escreve 13 poemas que são reunidos no livro Siciliana, publicado em 1959.
Essa é a primeira experiência do poeta com o espaço geográfico estrangeiro, com a
paisagem européia. Já dos versos do poema que abre a obra, “Atmosfera siciliana”,
desprende-se toda uma capacidade plástica da linguagem, marcada por uma espécie de
poética da paisagem daquela ilha, a “Trinácria, três pernas, triângulo:/ Soa a terra
siciliana/ Percutida pelo sol.”
51
As cidades antigas, os sítios arqueológicos, a pretérita
presença humana, os templos, enfim, os restos do classicismo são visitados e
trabalhados em palavras, a exemplo dos primeiros versos de “O templo de Segesta”:
Porque severo e nu, desdenhas o supérfluo,
Porque o vento e os pássaros intocados te escolhem,
Sustentas a solidão, manténs o espaço
Que o homem bárbaro constrange.
Em torno de suas colunas
O azul do céu livre gravita.
52
50
MARQUIOR. Poesia completa e prosa, p. 18-19.
51
MENDES. Siciliana, p. 565.
52
MENDES. Siciliana, p. 565-567.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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33
A leitura que Murilo Mendes apresenta desse tipo de paisagem remete a um
modo de olhar (arqueológico), de redescobrir o espaço, um olhar que tece a conjunção
entre “paisagem e memória”, para usar de empréstimo a expressão que denota a leitura
da paisagem ocidental feita por Simon Shama.
53
Para Giuseppe Ungaretti, no prefácio à
primeira edição de Siciliana, Murilo Mendes concentra em si mesmo o momento antigo
da história humana, no qual entendimento, emoção e sentidos encontram seu puro
equilíbrio objetivo, atravessando seu mundo barroco e a angústia que o dilacera e
dilacera seus contemporâneos. “Os versos que a Sicília inspirou (versos sem dúvida
como fotos instantâneas)”, continua o tradutor e amigo do poeta, “só poderiam surgir
depois de uma experiência profunda e de uma profunda emoção”.
54
O livro escrito a
partir dessa experiência profunda no espaço estrangeiro é, nas palavras de Júlio
Castañon Guimarães:
[...] uma primeira incursão por uma literatura de viagem, que em
Murilo Mendes tem características muito especiais, pois nesse setor
ele nunca se desviou para o relato ou a crônica. Na verdade os espaços
geográficos a partir dos quais ele escreveu eram, não espaços naturais,
mas espaços onde se erguem elementos culturais. Com isto, a
literatura de viagem também vem a ser dominada pela temática
cultural.
55
Em ensaio sobre o mesmo livro, Davi Arrigucci Júnior adverte sobre o
engano de se pensar a poesia nascida dessa busca do “outro” como mera “poesia
viagem”. Para o crítico, ela tem pouco de circunstancial e se prende à sensibilidade e à
53
“[...] concebi Paisagem e memória como uma escavação feita abaixo de nosso nível de visão
convencional com a finalidade de recuperar os veios de mito e memória existentes sob a superfície.”
SCHAMA. Paisagem e memória, p. 25.
54
UNGARETTI. Poesia completa e prosa, p. 38.
55
GUIMARÃES. Tempo espanhol, p. 11-12.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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34
necessidade de expressão, que se eleva à construção da forma e se relaciona com a
mente do poeta, com o seu desejo de conhecimento e com aquela “identificação com o
outro, que é precisamente o princípio de que nascem suas imagens, reveladoras do outro
e de si mesmo”.
56
Identificação que, segundo Arrigucci Júnior, acontece com lugares
eletivos para Murilo Mendes, como Minas, Sicília, Espanha:
[...] esses lugares do Brasil ou de fora se tornam, em suas mãos,
recortes lingüísticos de uma geografia do sensível, cujos traços
análogos, enquanto terras do imaginário, compõem também uma
espécie de mapa da alma muriliana. São todos espaços propícios ao
encontro poético. [...] O mapa poético de Murilo acaba condensado
em hieróglifos poéticos dos locais consagrados pelo desejo.
57
Esses locais consagrados pelo desejo, entretanto, são atingidos pelo
deslocamento físico do escritor. A Espanha franquista é visitada e registrada nos versos
de Tempo espanhol (1959), que, seguindo o mesmo tom de Siciliana, parece se demorar
nas cidades, na sua arquitetura e paisagem, na religião, nos artistas e escritores
espanhóis. Haroldo de Campos, em “Murilo e o mundo substantivo”, elege o aforismo
muriliano “Passaremos do mundo adjetivo para o mundo substantivo”
58
como válido
por toda uma programação estética. Para o crítico, o percurso do poeta, que culmina em
Tempo espanhol, havia sido um empenho pela transfusão anunciada no aforismo e uma
prática em que o dado mais significativo “é a introdução da dissonância do campo da
imagem”.
59
56
ARRIGUCCI JÚNIOR. O cacto e as ruínas, p. 116.
57
ARRIGUCCI JÚNIOR. O cacto e as ruínas, p. 115.
58
MENDES. O discípulo de Emaús, p. 851.
59
CAMPOS. Metalinguagem, p. 55-64.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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35
Essa noção de “campo da imagem” pode ser aproximada da “imagem
poética” de que trata Bachelard, aquela que não é de todo metáfora e, sim, construção
psíquica do poeta, sua imaginação poética. “A imagem isolada, a frase que a
desenvolve, o verso ou por vezes a instância em que a imagem poética irradia formam
espaços de linguagem”,
60
escreve o filósofo. Nesse sentido, cabe mencionar alguns
versos do poema “O dia do Escorial”, apontado por Júlio Castañon Guimarães como
emblemático dessa face poética muriliana:
Escorial de soberba,
No teu granito abstrado, cinza,
Considerei a transição do mundo:
Provisória figura armada de janelas
Simulando horizonte livre.
*
O espaço o espaço o espaço aberto.
O rei taciturno conhece
O espaço temporal do homem [...].
61
A construção do poema e suas imagens projetam a amplitude espacial de seu
referente: a espacialidade ampla. Outros textos também se demoram na espacialidade
focalizada, poliedricamente, por ângulos diversos, a exemplo da cidade Ávila, em
poema homônimo:
60
BACHELARD. A poética do espaço, p. 12.
61
MENDES. Tempo espanhol, p. 587.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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36
O aeronauta conduz a bordo a palavra silêncio.
Sobrevoamos Ávila, composição abstrata.
O avião abrindo curvas dá guinadas
Como os movimentos da alma na escrita de Santa Teresa.
Ávila absorvida, surge Madrid à frente:
Subimos agora as ladeiras da descida.
*
[...]
Severa e castigada, Ávila funda
O espaço criador do espaço,
A pedra macha de Espanha
Que cerra o segredo.
62
As cidades espanholas, como ocorreu com as da Sicília, são referenciadas
nos versos murilianos como que numa espécie de literatura de viagem, na qual a
arquitetura poética breve revela um poeta que não se deixa seduzir pela adjetivação
fácil, pela paisagem deslumbrante, mas que se porta como um viajante atento capaz de,
a partir do espaço que percorre, de um “espaço criador do espaço”, fazer conexões as
mais diversas e propor questões ligadas ao ser humano, às artes e à ciência.
FIGURA 2 - Murilo Mendes em Ávila, Espanha, 1960. Foto de
Maria da Saudade.
Fonte: ARAÚJO. Murilo Mendes, p. 48.
62
MENDES. Tempo espanhol, p. 584.
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37
A publicação de Tempo espanhol durante a ditadura franquista ocasionou a
proibição do trânsito de Murilo Mendes na Espanha. Mas isso não impediu as visitas
clandestinas: “o exilado suporta com paciência essa interminável prova. [...] Minha
aversão ao regime franquista é menor do que o meu amor à Espanha, por isso visito-a
sempre que posso”.
63
As artes das igrejas e das cidades européias já eram alvo da
atenção do poeta desde suas primeiras viagens à Europa, como se nota no relato grafado
da Península Ibérica à irmã:
A viagem a Andaluzia foi uma ótima idéia, pois vimos coisas
interessantíssimas, sobretudo Granada, que das 33 cidades que já vi na
Europa, é das mais belas. Eu não posso descrever o que é a atmosfera
dramática das igrejas de Sevilha – só vendo. Tinha muita vontade de
ficar pra semana santa – mas todos os hotéis estão tomados desde
setembro do ano passado!... e vimos também a mesquita de Córdova –
a maior que existe depois de Meca. Tem cerca de 850 colunas e 19
naves. No meio enxertaram uma catedral católica que a desfigura um
pouco. Mas é uma coisa extraordinária.
64
O olhar geográfico-cultural que Murilo Mendes lançou sobre os lugares do
além-mar por onde andou pelas primeiras vezes operou instantâneos poéticos, como se
observou anteriormente, carregados de emoção e curiosidade. Esses instantâneos,
fotografias reveladas pelos “espaços da linguagem”, fizeram parte das próprias viagens
empreendidas, ou melhor, de planos surgidos durante essas viagens, como o projeto
declarado de escrever sobre as viagens e os encontros por elas proporcionados:
63
MENDES. Retratos-relâmpago, p. 1223.
64
CARTA de Murilo Mendes para Sr.ª Virgínia E. Mendes Torres, Lisboa, 15 de março de 1953.
Manuscrita. MAM Murilo Mendes, pasta de cartas, UFJF.
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Até agora não tive vontade de escrever sobre o que vi, pois as
emoções não deixam. Mais tarde com a ajuda de algumas notas
tomadas, e do pouco de memória que me resta, pretendo escrever
artigos se bem que ache quase impossível escrever algo sobre que
existem toneladas de literatura.
65
Datada de 1953, a carta denuncia o desejo, num primeiro momento negado
sob a égide das emoções, de escrita sobre o (entre)visto, e também da realização de
anotações que possam servir de esboço para os textos que somar-se-ão às toneladas de
literatura existentes
66
. Os encontros propiciados pelas viagens transatlânticas de Murilo
Mendes estão registrados nas poesias de Siciliana e Tempo espanhol e se desdobram nas
prosas de Carta geográfica, Espaço espanhol e Janelas verdes. Estas três obras foram
escritas durante a permanência de Murilo na Europa e só tiveram alguns de seus textos
publicados, cinco anos após a morte do autor, em Transístor (1980), uma antologia de
prosa (1931-1974) selecionada pelo próprio Murilo e por Maria da Saudade Cortesão.
Além dos três títulos citados, constam na antologia fragmentos dos até então inéditos
Retratos-relâmpago (2.ª série), A invenção do finito e Conversa portátil.
Carta geográfica foi escrito entre 1965 e 1967; Espaço espanhol, entre
1966 e 1969; e Janelas verdes, em 1970. São livros, espécies de mapas em que o
escritor-cartógrafo vai literariamente demarcando cidades, paisagens, monumentos e
lugares a partir das coordenadas que guiam suas leituras e uma possível correspondência
com sua poesia anterior. Nessa correspondência, encontram-se “Cidades da Grécia, que
têm sua face poética nos textos da Siciliana, cidades e coisas de uma Espanha já visitada
65
CARTA de Murilo Mendes para Sr.ª Virgínia E. Mendes Torres, Lisboa, 15 de março de 1953.
Manuscrita. MAM Murilo Mendes, pasta de cartas, UFJF.
66
No acervo de Murilo Mendes são encontrados vários livros sobre viagens, a exemplo de Pequenos
Mundos e velhas civilizações, Ávila, My journey to Lhasa, Une republique patricienne Venice, La
Belgique, Voyage em Espagne, Voyage em Italie, e guias como os de Portugal e Ouro Preto.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
39
liricamente em Tempo espanhol e cidades, coisas e pessoas de um Portugal encarado
como ancestralidade, demanda das fontes”.
67
A prosa de Murilo Mendes impressa em tais obras, seguindo o traçado de A
idade do Serrote e Poliedro, é tão imaginativa e sintética como a sua poesia. Para
Luciana Stegagno Picchio, as prosas murilianas permitem isotopias de leitura, ou
melhor, pertencem a dois níveis: o poético sintético e o informativo analítico. O
primeiro é encontrado em textos que fornecem “com uma metáfora e um jogo
pirotécnico de associações verbais, o instantâneo do objeto retratado” e o segundo,
naqueles que proporcionam “o fio de Ariadne das andanças dum poeta mineiro pelas
sete partidas da Europa e do mundo”.
68
Esses níveis parecem pendulares e, por vezes, se
harmonizam nessa prosa-poética.
Carta geográfica fica como livro de recortes, de apontamentos, de sobras.
Nas páginas finais do exemplar datiloscrito da obra, Murilo Mendes deixou grafadas
notas, datadas de “Roma, 21 de novembro de 1970”, onde de lê:
Este livro foi escrito em 1965-67, inclusive as páginas referentes a
viagens anteriores. Faltam vários capítulos que deverei passar a limpo,
baseando-se em apontamentos. O plano geral prevê dois volumes. De
qualquer modo o texto atual constitui só por si um livro, cujo defeito
de falta de unidade reconheço, mas é voluntário: misto de informação,
poesia em prosa, jornalismo.
69
As declaradas deficiências do livro e o modo de sua escrita não impedem a
construção do texto heterogêneo, cujo plano seria desdobrar-se em um segundo volume.
67
PICCHIO. Transístor, p. 20.
68
PICCHIO. Transístor, p. 14.
69
PICCHIO; MENDES. Notas e variantes, p. 1694.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
40
Os temas dos capítulos existentes em rascunho não foram revelados, mas certamente
não abarcariam todos os lugares mapeados pelo escritor:
Não pretendo incluir todos os lugares que visitei. As páginas sobre
Espanha e Portugal constituem livros à parte: Espaço espanhol e
Janelas Verdes. Profundamente impressionado por Marrocos, resumi
os sinais deste encontro em algumas poesias de Convergência. O
mesmo se diga da Sicília, resumida nos textos de Siciliana.
70
Espaço espanhol e Janelas verdes permaneceram inéditos até a publicação
de alguns de seus textos em Transístor, e vieram integralmente a lume com a edição da
Poesia completa e prosa. Escrito entre 1966 e 1969, Espaço espanhol é um livro
dedicado à Espanha e pode ser lido como um natural complemento de Tempo espanhol:
os mesmos lugares e temas são revisitados. Valendo-se das considerações de Picchio:
Espaço espanhol é uma homenagem às pedras da Espanha, objetos e
cores, e é uma homenagem visual, assim como Tempo espanhol era
uma homenagem auditiva aos sons da Espanha, às palavras dos seus
poetas, temas de Calderón, temas de Góngora. Um diacrônico (Tempo
espanhol), outro sincrônico (Espaço espanhol).
71
Em Janelas verdes, escrito em 1970, Murilo Mendes revisita Portugal, “uma
segunda pátria, terra da ancestralidade e do amor,”
72
e registra o reencontro pela escrita
com a geografia, a história, as paisagens, a literatura, as artes e os portugueses. O livro
se divide em setores: Setor 1 (subdividido em A, B, C e D), dedicado a cidades e
lugares, e Setor 2 (subdividido em A e B), dedicado a retratos de grandes portugueses.
70
PICCHIO; MENDES. Notas e variantes, p. 1694.
71
PICCHIO; MENDES. Notas e variantes, p. 1698.
72
PICCHIO. Poesia completa e prosa, p. 30.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
41
Em notas deixadas, o escritor adverte que, embora o título da obra seja homônimo ao do
Museu de Arte Antiga, ele não se refere ao museu lisboeta das Janelas Verdes, mas “a
espaços abertos, à liberdade, ao campo e mar de Portugal, ao verde que ali nos envolve
sempre”.
73
Os encontros do poeta com Marrocos foram cristalizados em poemas da
seção dos grafitos de Convergência, publicado originalmente no Rio de Janeiro em
1970, a saber: “Grafito em Marrakech”, “Grafito em Menknés”, “Grafito nos jardins de
Chellah”, “Grafito em Fez”, “Grafito para a grande mesquita de Fez”, “Grafito em
Tanger” e “Grafito na praça Djemaa el Fna”.
Nesse panorama, a escrita de viagem de Murilo Mendes é descentrada nas
obras em poesia e prosa-póetica. O fato de Carta geográfica ter sido publicado sem o
último olhar do autor, que pretendia estendê-lo, não impede que se pense no seu
território textual como desejo e plano concretizados de uma escrita de viagem
organizada, ou, como queria o próprio Murilo, um livro “voluntário”. A geografia
literária do escritor é permeada de espaços polifônicos.
74
É esse livro de feição
geográfica que também instiga a busca do sentido da literatura de viagem no cenário da
literatura latino-americana.
A propósito disso e da relação de Murilo Mendes com a Europa, Silviano
Santiago, ao tecer considerações sobre a dialética da viagem em seu texto “Por que e
para que viaja o europeu?”, esboça a resposta da pergunta que fica em aberto “Por que e
para que viaja o habitante do Novo Mundo?”:
73
PICCHIO; MENDES. Notas e variantes, p. 1704.
74
SCHNAIDERMAN. Estudos avançados, p. 75-81.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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Os intelectuais do Novo Mundo (noblesse oblige!) sempre tiveram a
coragem de enxergar o que existe de europeu neles. Mencken dizia
que a cultura norte-americana era um ventozinho frio que soprava da
Europa. Oswald de Andrade não teve outra intenção ao manifestar a
sua teoria antropófaga. Henry James e T. S. Eliot (e mesmo o nosso
Murilo Mendes) resolveram assumir na totalidade a parte de europeu
que lhes tocava e se mandaram para a Europa. Não deve haver
espíritos mais universalistas e menos “provincianos” do que estes
três.
75
1.3 UMA TRAJETÓRIA DA CARTA GEOGRÁFICA
Numa espécie de cartografia pessoal, Murilo Mendes parece desenhar sua
noção de viagem na prosa de Carta geográfica, “misto de informação, poesia em prosa,
jornalismo”,
76
em que registra literariamente alguns dos lugares visitados em suas
andanças pelo mundo, após ter “se mandado para a Europa”. Integralmente inédito até a
edição de Poesia completa e prosa (1994), o livro teve 17 textos publicados pela
primeira vez na já citada antologia de prosa, Transístor. Ele é subdividido em nove
partes intituladas com nomes de nove localidades, sendo as oito primeiras centradas na
Europa – “Grécia e Atenas”, “A Suíça”, “Salzburgo”, “Waterloo”, “A Holanda”,
“Passeio em Pisa”, “Os dias em Londres” e “Fragmentos em Paris” – e a última, única
americana, em Nova Iorque – “New York” –, e desvela a percepção de um crítico
poliédrico.
Essa estrutura do livro declaradamente “voluntário” parece representar um
roteiro que assimila o desenvolvimento do pensamento ocidental. O viajante, reforçando
que a cultura grega fecunda toda a cultura do Ocidente, inicia sua coleção de mapas
textuais com a região da Grécia e Atenas; em seguida, adentra o continente via Suíça,
75
SANTIAGO. Nas malhas da letra, p. 203.
76
PICCHIO; MENDES. Notas e variantes, p. 1694.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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Salzburgo, Waterloo, Holanda, Pisa, Londres e Paris e, por fim, atravessa o Atlântico
Norte e pisa o solo americano em New York.
A primeira parte, que também poderíamos chamar de primeiro capítulo,
funciona como uma espécie de prefácio em que se percebe a marca da formação do
homem ocidental, assimilando a própria formação muriliana que se desdobrará nos
textos seguintes, através do caráter enciclopédico:
André Malraux escreve que no fundo de qualquer homem ocidental
repousa a Grécia. Quanto a mim, tive de refazer muitas vezes a
imagem da que desde adolescente fui-me construindo deste país.
Depois da fase inicial, a da Grécia antojada através de manuais de
história e dos poetas parnasianos, brasileiros ou franceses, veio a fase
polêmica na tentativa de destruir uma Grécia que me parecia
irreversível, imobilizada no academismo, fora da experiência deste
século [...]. Mais tarde a leitura de Platão e dos pré-socráticos ajudou-
me a desenhar a figura de uma Grécia do equilíbrio, da razão, da justa
medida, que ainda podia ligar-se à nossa época por meio de
numerosos fios de contato, sobressaindo-se aqui o texto de “Eupalinos
ou l’architecte”, de Valéry. Mas, talvez acima de tudo, a Grécia
possui uma força inesgotável: sua mitologia que constitui ao mesmo
tempo sistema cosmogônico, transposição figurada de fatos reais,
reservatório sempre renovado de arquétipos e símbolos. Haverá nesta
terra muitas coisas maiores que a mitologia grega, na sua capacidade
de contaminar poetas e pensadores? Dai-me uma fábula grega, um
“mitologema”, e eu recriarei o mundo.”
77
Ou:
Para chegar a uma percepção mais aguda da Grécia, foi-me preciso
visitá-la, perlustrar-lhe o solo, tocar algo do seu povo, absorver-lhe a
luz, controlar a presença do mito no contexto humano do país.
78
77
MENDES. Carta geográfica, p. 1053.
78
MENDES. Carta geográfica, p. 1054.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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44
Os lugares históricos e a paisagem surgem como disparadores que acionam
a memória do leitor-viajante e se cristalizam na releitura de uma reescrita
multidimensional e topográfica:
Sócrates diz que não se interessa pela natureza física, mas sim pelo
homem e seus problemas. (Observo que no Evangelho não existe
nenhuma descrição da natureza.) Subindo a colina da Acrópole,
recordo-me que era aqui o centro da Atenas antiga, com seus
protagonistas: o homem e a luz; o templo servia como testemunha dos
dois. O que resta da Acrópole é suficiente para nos restituir o esquema
de uma cultura artística fundada sobre o ritmo e a medida, a “divina
proporção”. Comparando a mozarteana K.
550
a uma figura destacada
do friso das Panatenéias, Shumann aludiu implicitamente ao caráter
musical dessa parte do Partenon: poderia fazê-lo ao todo. Aqui se vê,
se apalpa e se ouve o “cântico das colunas”. A propósito de colunas, a
idéia mais moderna que conheço é a de Stendhal quando escreve,
ligando-se de resto à posição socrática: “Rien ne conduit aussi vite au
bâillement et à l’épuisement moral que la vue d’un fort beau paysage;
c’est dans ce cas que la colonne antique la plus insignifiant est d’un
prix infini: elle jette l’âme dans un nouvel ordre de sentiments.” A
coluna tornou-se pois a árvore do homem moderno, que de resto agora
a suprime.
79
Ou:
Quem considera por exemplo a garganta de Pleitos, tendo a direita o
monte Kirfis e o golfo de Itéia na distância, será sem dúvida tomado
de um frêmito particular; não mais como acontecia ao homem arcaico,
um frêmito de medo diante do desconhecido, mas de admiração por
um conjunto natural, de resto fortemente trabalhado pelo tempo.
80
O culto de Apolo, “o espírito ordenador, o gênio da razão e da claridade”,
segundo o viajante Murilo, atinge o vértice nessa cidade. Ovídio, Hölderlin, Rilke,
79
MENDES. Carta geográfica, p. 1055. “Nada conduz tão rapidamente ao desajustamento e ao
esgotamento moral do que a vista de uma belíssima paisagem; é nesse caso que a mais insignificante
coluna antiga é de um preço infinito: ela joga a alma em numa nova ordem de sentimentos.” (Tradução
de Rosalvo Pinto)
80
MENDES. Carta geográfica, p. 1056.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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45
Strawinski, Baudelaire, Plutarco, Heródoto e Platão dão notícias sobre o mito e a
importância do oráculo délfico. “O ambiente de Delfos provocou portanto uma
passagem dialética fundamental da cultura grega: da dúvida abstrata à certeza pessoal
do pesquisador”,
81
completa o leitor-viajante que, diante das obras de arte ali existentes,
resume na estátua brônzea do Auriga e na esfinge alada de Naxos: “A figura da esfinge,
entre delicada e monstruosa, tornou-se muito tempo uma idéia fixa dos gregos. Deles
recebi também este signo poético que fertilizou minha vida a partir da adolescência.”
82
FIGURA 3 – Murilo Mendes nas escadas do Partenon, 1957. Foto
de Maria da Saudade.
Fonte: ARAÚJO. Murilo Mendes, p. 48.
A paisagem da capital de Creta impressiona Murilo por sua semelhança com
a de Castela. Essa semelhança é lançada como hipótese para a imigração de um artista
da terra: “Uma tal semelhança não teria impelido o candiota Domenikos Theotocópulos
81
MENDES. Carta geográfica, p. 1057.
82
MENDES. Carta geográfica, p. 1057.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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46
a instalar-se para sempre na castelhana Toledo, cidade de sua eleição?”
83
Diante da
riqueza e beleza da região de Creta e do mediterrâneo, o viajante elege seus alvos: os
museus e o Palácio de Cnossos.
Ao sair desses espaços de sacralização da arte, Murilo viajante se direciona
aos museus a céu aberto, às ruas e ao mercado de cerâmica, que asseguram uma
continuação, no tempo e no espaço, da arte e cultura gregas. As observações são
elaboradas numa escrita que se aproxima da montagem cinematográfica, mesclando-se
descrições de paisagens e de ruínas e leituras de filósofos, poetas e arte. Assoma à
janela da cidade outro cretense, o poeta Nikos Kazantzaki, o que provoca ao brasileiro
uma reflexão sobre a idéia de identidade e reterritorialização:
Domenikos Theotocópulos absorverá nos seus quadros e no seu
espírito o caráter enigmático de Castela, enquanto Nikos Kazantzaki
permanecerá grego até o osso, incorporando Buda, Cristo e Lenine à
sua amada Grécia, cujos múltiplos mitologemas ele carrega por toda
parte.
84
A consideração muriliana, entretanto, parece se voltar para o lugar dele
próprio enquanto escritor brasileiro migrado para terras européias, ou, para usar as
palavras de Drummond, enquanto “Peregrino europeu de Juiz de Fora”, cuja escrita de
viagem pode ajudar a compreender as noções de identidade e alteridade inerentes a sua
trajetória e postura diante do mundo. O ambiente grego começa a atiçar o viajante
Murilo para a auto-reflexão ou, por que não, para a autobiografia:
83
MENDES. Carta geográfica, p.1058.
84
MENDES. Carta geográfica, p. 1060.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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47
Diante de Rodes torno a ruminar o tema da evasão, tema que o homem
moderno, premido pela dura realidade político-social, procura abjurar;
e que subsiste. Viajamos, não só para eludir problemas constringentes
de vida pessoal, nacional ou universal, mas para tentar uma
identificação com o mundo, uma nova leitura de ambientes diversos.
Claro que esta magia da fabulosa Rodes é uma joy for ever; mas
atento transístor, não consigo desligar-me do drama da Grécia, pobre,
mutilada, saqueada através dos séculos, e nos últimos tempos a oscilar
sob a pressão dos militares ou do dólar; continua a linhagem dos
Atridas.
85
Atento “transístor”, Murilo Mendes continua a conduzir o leitor por sua
cartografia textual da Grécia. Em “Rodes”, que se acha linearmente ligada à civilização
católica pela permanência, durante séculos, dos Cavaleiros de São João, o viajante
descobre o branco das mesquitas, cumpre o ritual de descalçar os sapatos e sofre o golpe
definitivo da magia que vem do Mediterrâneo, cuja permanência em sua memória já era
garantida por Homero. Amplos espaços interativos ali o recebem, como aqueles que
instigam a sensibilidade e o erotismo: “Dum recanto do jardim próximo despontam
neoninfas movendo as ancas. Não leram certamente Homero, mas poderiam figurar no
seu Livro.”
86
O mesmo pode-se dizer de Kos, onde: “Aproxima-se de nós uma mulher
de vestido furioso; vale pelas suas pernas aliciantes, como as ‘teria’ talvez a perdida
estátua da Afrodite de Kos: duas pernas a procura duma cara. O sol oblíquo perturba-
se.”
87
A linha clássico-cubista da arquitetura da ilha de “Patmos” faz o viajante
recordar a passagem de São João Evangelista e o encontro entre o sagrado e o profano
ilustrado pelo hino de Patmos, de Hölderlin, e por outros alemães como Rudolf Kassner
e Nietzsche. As paisagens, os lugares históricos e os edifícios sacros da Grécia
85
MENDES. Carta geográfica, p. 1061.
86
MENDES. Carta geográfica, p. 1061.
87
MENDES. Carta geográfica, p. 1064.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
48
continuam a funcionar como disparadores da memória do escritor, a exemplo do trajeto
para se chegar a uma colina onde existia um altar dedicado a Ártemis e onde está
erigido o Mosteiro de São João Evangelista, cuja biblioteca conserva preciosos
documentos bizantinos:
Dois meios de transporte, animal ou automóvel, se deparam com o
visitante para atingi-lo. Saudade prefere o primeiro. Ei-la que,
instalada no dorso dum burro, sobe a colina, a cabeça oculta pelo
amplo chapéu de palha comprado em Herákleion, e que a protege do
sol grego; eu, covarde, lembrando das perigosas viagens a cavalo na
minha infância, sigo de carro.
88
O olhar poliédrico muriliano, por vezes, direciona-se plasticamente à
arquitetura e à natureza de “Míkonos e Delos”, dialogando com as noções de geometria
e metafísica. “Existirá uma arquitetura ‘metafísica’, assim como existe, já agora sem
aspas, uma pintura metafísica?”,
89
pergunta-se ao observar a correnteza das casas
brancas todas coladas umas às outras. Essa brancura, que “nenhuma agressão militar,
nenhum terremoto ou bomba jamais conseguiriam anular”,
90
permeada de mito, e a
pureza do mar fazem o leitor-viajante perceber, naquele país, a harmonia do mundo na
estrutura de silêncio: “O vento trazendo-nos mensagens da vizinha Míkonos procede,
segundo o poeta Simônedes, à tatuagem do mar. Passarolando passam pássaros de
segunda mão. O silêncio aqui é uma estrutura.”
91
A partir do segundo capítulo, a linguagem de Carta geográfica parece
migrar dos tempos de uma Grécia carregada de conhecimento e mitologia para o século
88
MENDES. Carta geográfica, p. 1062.
89
MENDES. Carta geográfica, p. 1064.
90
MENDES. Carta geográfica, p. 1064.
91
MENDES. Carta geográfica, p. 1066.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
49
XX da civilização técnico-industrial. A primeira imagem da Suíça data da infância, com
a notícia da viagem de um primo; e na experiência física ela lhe surge como um país
verde por igual, onde “Os nativos tingem os animais de verde para que não se altere o
tom geral dos prados e das montanhas”.
92
As leituras de Rousseau, Madame de Staël,
Nietzsche são rememoradas como que para uma melhor interpretação de Genebra. A
tentativa de reconstituição da imagem de Rousseau, em especial, é associada à idéia de
localização:
A ilha minúscula de Rousseau não consegue por si só reconstruir-me a
imagem do escritor nos seus passeios solitários. E não posso agora
transportar-me à ilha de Saint-Pierre, no meio do lago de Bienne,
segundo o seu próprio testemunho o lugar que o tornou feliz.
Volto então mais uma vez às Confissões, relendo por exemplo
estas frases: “Etre aimé de tout ce qui m’approochait était le plus vif
de mes désirs.”, ou “Avec un sang brûlant de sensualité presque dès
ma naissance...”, ou “Tourmenté longtemps sans savoir de quoi, je
dévorais d’un oeil ardent les belles personnes.”
93
Esse senso de localização é também elevado diante do grande chafariz, um
dos símbolos marcantes da cidade, um jato d'água na confluência do rio Ródamo com o
Lago de Genebra, e da curiosidade pelo comportamento humano e pelo mundo. A
influência grega do labirinto se une ao desorientamento do primeiro “Mapa”, quando o
viajante se encontra perdido:
92
MENDES. Carta geográfica, p. 1067.
93
MENDES. Carta geográfica, p. 1068. “Ser amado por tudo que se aproximava de mim era o mais vivo
dos meus desejos” ou, “Com um sangue ardente de sensualidade quase desde meu nascimento...”, ou
“Atormentado por muito tempo sem ter como fazer alguma coisa, eu devorava com um olho ardente as
pessoas bonitas”. (Tradução de Rosalvo Pinto)
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
50
O grande penacho do repuxo – um tanto pleonástico, água sobre água,
serve-me de orientação no centro. Insaciavelmente curioso da figura
humana, fico a examinar todas as pessoas que seguem a direção do
repuxo, e acabo trocando de rumo. Não sei mais onde ando, sutilizou-
se o repuxo, encontro-me num dédalo de ruas, desorientado, com um
mapa da cidade que só me desserve; falta-me talento para interpretar
mapas. Sinto neste momento um certo mal-estar ao definir um homem
a procura de um repuxo; mas ai de mim se não existisse por toda a
parte o dédalo, a desorientação, a imprecisão dos sentidos; ai também
da civilização técnico-industrial. Desorientando-me continuamente, o
mundo é cada dia para mim um espetáculo novo.
94
Parte desse espetáculo novo, a Suíça se revela ao viajante através de
passeios pelas ruas de Basiléia, na companhia da escultora Mary Vieira, “paulista de
Belo Horizonte, agora horizonte de arranha-céus”.
95
A escultora, que trocou os queijos de Minas pelos queijos da Suíça, os
verdes prados naturais de Minas pelos verdes prados construídos da
Suíça, conserva sempre sua fala mineira, meio rouca, de luvas de lã, e
o riso mineiro, riso que vê e observa; mesmo porque ninguém ignora
que os suíços nunca falam, a não ser ao telefone ou ao ditafone, e
nunca riem, a não ser no dia seguinte.
96
Ao ritmo suíço, Murilo viajante passa pelo rio Reno e não tem tempo de se
demorar nos museus da Basiléia: “Quanto ao museu, não digo nicles: falta-me no
momento a disposição para traçar a carta dum universo.”
97
Entretanto, na próxima
cidade há o reencontro com esse universo: “Ali pratico esportes, ali corro em liberdade,
ali reencontro a saúde, formas de vida moderna; ali máquinas são mulheres, ali danço
em vermelho, azul, verde e alaranjado; ali a cor violeta bate-me violetamente (sem ‘n’)
94
MENDES. Carta geográfica, p. 1068.
95
MENDES. Carta geográfica, p. 1069.
96
MENDES. Carta geográfica, p. 1069.
97
MENDES. Carta geográfica, p. 1069.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
51
à porta; ali esqueço as delícias e angústias do batiscafo, volto ao do bilboquê;
resgatando Zurique e seus milionários.”
98
Girando nos arredores de Zurique, “uma cidade onde vivem 500 milionários
matriculados”
99
, Murilo Mendes relata a passagem por um clube esportivo cujo diretor o
convida para aprender a jogar golfe ou, pelo menos, ser apresentado a um célebre
jogador, e acrescenta:
Agradeço e respondo que sou de Juiz de Fora, não podendo portanto
trair o bilboquê, jogo de minha tradição, e mais animado que o golfe.
Quanto às apresentações preferiria conhecer, por exemplo, o professor
Picard, suíço ilustre, para examinar com ele a possibilidade de um
week-end no fundo do mar em batiscafo.
100
Essa rememoração da infância não é incomum no produto cartográfico
muriliano. Extraditado, embora voluntariamente, o escritor é obrigado a recordar uma
tradição perdida, forçando-se a cruzar a fronteira da imaginação, recordar um lugar da
memória.
101
“Parece que certas cidades menores revelam, mais que as ‘tentaculares’, o
esquema grego ou moderno de um centro de comunhão humana e política.”
102
Diante da
pequena Berna, o viajante sublinha a passagem da natureza à cultura recorrendo a
Cecília Meireles, Lúcio Costa, Villiers de L’Isle-Adam, Baudelaire, Paul Klee e Mozart.
98
MENDES. Carta geográfica, p. 1069.
99
MENDES. Carta geográfica, p. 1070.
100
MENDES. Carta geográfica, p. 1070.
101
PIGLIA. Anais do 2.º Congresso ABRALIC, p. 60-66.
102
MENDES. Carta geográfica, p. 1071.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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52
Murilo realizou duas viagens a essa cidade: a primeira, “acolitado”
103
por Raul Bopp e
Lupe, e a segunda, por João Cabral de Melo Neto e Stella. O relato da segunda viagem
provoca, seguindo o tom daquelas considerações sobre os artistas gregos, uma reflexão
sobre a identidade daquele que está distante de seu país de origem e que poderia ser
válida à situação do próprio autor do livro de viagem em seu relacionamento com a
Europa e seu comportamento quase que diplomático (uma diplomacia não oficial,
claro).
FIGURA 4 – Em Madrid, Murilo Mendes, Maria da Saudade, a
bailarina sevilhana Trini España e João Cabral de
Melo Neto, Cabaré Torres Bermejas, 1960.
Fonte: ARAÚJO. Murilo Mendes, p.33.
Na passagem que trata da companhia dos amigos brasileiros, a literatura
muriliana incorpora imagens do rio:
103
MENDES. Carta geográfica, p. 1072.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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53
A segunda vez fui pilotado por João Cabral de Melo Neto e Stella. A
ampla casa cabralina, que viu nascer A educação pela pedra, situa-se
entre árvores cerradas, perto da toca dos ursos, ao alcance do rio.
Quando em Sevilha, o poeta, acompanhando a linha larga do
Guadalquivir, consolava-se da falta do Capibaribe. Em Madrid sofria
muito, pois o Manzanares, segundo os madrilenos, leva a vida a pedir
um copo d’água aos passantes, “por amor de Diós”. Rio-fantasma,
longe de parecer um cão sem plumas. Já defronte do Aar o poeta
recupera seu caminho, que partiu de um rio, e a respiração.
104
Murilo Mendes, que também partiu de um rio, o Paraibuna, vai seguindo seu
caminho cartografando em seu livro os países e as cidades por onde passara, como que
colecionando os lugares que o prendem por afinidade ou afeto, uma arte de
colecionar.
105
O vínculo com Salzburgo, uma de suas “pátrias de eleição”, é regido por
Mozart. Ao se referir ao ídolo, Murilo grafa os pronomes com maiúsculas, sacralizando-
o: “Entretanto em Salzburgo Ele recebeu Sua formação e o toque absoluto do ‘gênio’. É
verdade que desde os seis anos tornou-se um personagem circular, europeizando-se,
através das múltiplas viagens, pilotado pelo diligente pai Leopold.”
106
Ao considerar
que viajar é um dos meios de se europeizar, Murilo projeta a “viagem” à formação.
Nesse sentido, o capítulo quatro registra o primeiro destino do poeta em terras européias
– a Bélgica:
Quando residia em Bruxelas acabei por aportar à morne plaine, quase
vizinha. Conheci Waterloo em pessoa, evocando water-closet, campo
de grandes, ou melhor, baixas batalhas juiz-foranas; e o apito estrídulo
da fábrica de cerveja, clarim.
107
104
MENDES. Carta geográfica, p. 1072.
105
BENJAMIN. Rua de mão única, p. 227-225.
106
MENDES. Carta geográfica, p. 1073.
107
MENDES. Carta geográfica, p. 1075.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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54
As páginas escritas sobre esse país são carregadas de referências a lugares,
personagens e escritores que auxiliam o viajante na leitura das cidades, seja o labirinto
de ruas de Antuérpia seja a geometria das ruas e casas de Gand ou Bruges, que lhe
chegou através do romance Bruges-la-Morte, de Georges Rodenbach. “É fundamental e
aventura explorar os ângulos da cidade, que de cotidianos passam a ser
‘transcendentes’”,
108
declara o viajante que, nessas cidades medievais, também se
pergunta: “Qual a fronteira entre o passado e o presente?”
109
A cidade, para os modernos (Baudelaire é um dos grandes nomes), é uma
fonte de literatura. O escritor-viajante, portanto, busca ler o ilegível, e a cidade escrita é
“resultado da leitura, construção do sujeito que a lê, enquanto espaço físico e mito
cultural, pensando-a como condensação simbólica e material e cenário de mudanças, em
busca de significação”.
110
A modernização da Bruges medieval provoca dúvidas de
interpretação: “Não sei qual das duas preferir, se Bruges-a-morta, se Bruges-a-viva.”
111
A Holanda (capítulo cinco) é lida sob vários ângulos. O país, registra o poeta, “exerceu
sobre mim desde o primeiro momento uma fascinação que pareceria singular num
homem habitado, como eu, pela figura da Espanha”, ou, mais adiante: “A Holanda foi
para mim, no período de 1952 a 1955, um foco de disciplina, um lugar de aplacamento
das paixões, uma prova de contestação de nosso imediatismo latino.”
112
Ao perlustrar as cidades holandesas, “Amsterdam”, “Haia” e “Delft”, e seus
museus, Murilo Mendes abre sua bagagem de conhecimento sobre os habitantes ilustres
108
MENDES. Carta geográfica, p. 1077.
109
MENDES. Carta geográfica, p. 1076.
110
GOMES. Todas as cidades, a cidade, p. 24.
111
MENDES. Carta geográfica, p. 1078.
112
MENDES. Carta geográfica, p. 1081.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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55
daqueles espaços – Bosch, Rembrant, Van Gogh, Veermer e Mondrian –, que o ajudam
a interpretar “o gênio da planificação do homem holandês rompendo um isolamento
imposto pela natureza”
113
. Embora isoladas, essas cidades, aos olhos do Murilo viajante,
apresentam suas desmedidas e impessoalidades:
Certo a Amsterdam atual não comporta essa quíntupla dimensão: de
resto as palavras aludidas perdem agora seu conteúdo mágico, que
naquela época funcionava devido à sua íntima ligação entre si.
Estamos comprometidos na faixa de uma desordem local e cósmica
que exclui qualquer veleidade de harmonia. Assim considero
Amsterdam inquietante; hoje, mais do que na primeira visita, ela se
me apresenta geradora de enigmas, povoada de Esfinges e Quimeras,
empregando todo o seu charme para nos iniciar a um território onde
quem sabe perderemos nossa própria identidade; sem poder pedir a
Rembrandt a indicação do caminho de Emaús, a Spinoza o auxílio de
sua lente, a Descartes a certeza do seu método, e ao hoteleiro um
pouco de pão e leite holandeses, raros signos de autenticidade num
mundo corrompido.
114
A escrita de Carta geográfica vai reconstruindo as cidades através das
releituras do escritor-viajante. As ruas, as paisagens, as pessoas, os monumentos, as
praças são reconstruídas como um palimpsesto, através de sobreposições de descrições,
opiniões, referências literárias, filosóficas, históricas, religiosas, condensadas em forma
de prosa-poética. O contato com as cidades faz surgir observações que as aproximam ou
distanciam, formando uma rede entre as cidades visitadas e revisitadas literariamente.
Em Berna e Delft, por exemplo, o viajante encontra uma síntese poética ao tecer essas
relações:
113
MENDES. Carta geográfica, p. 1081.
114
MENDES. Carta geográfica, p. 1082-1083.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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56
Não peço a Berna o que a fisionomia da cidade, limítrofe a uma
dimensão modesta, não pode me dar. Eu não lhe peço o que encontro
em Ouro Preto, ou em Toledo, ou em Ferrara. Peço-lhe o mínimo da
ração de paz que se distribui na sua atmosfera física e espiritual
rarefeita, na justa medida de uma realização democrática, uma espécie
de contenção das formas retóricas.
115
Ou:
Prefiro que não exista o “enigma”, o “segredo” de Delft. Prefiro ver
Delft assim, decifrada, traduzida pela luz exemplar, que – impossível
– gostaria de receber no último instante cruzada com as de Córdoba e
Ouro Preto.
116
Ao longo do texto, percebe-se uma linguagem traçada pela recorrência de
vocábulos que se voltam para o espaço (geo)gráfico, como “luz”, “ângulo”,
“geometria”, “céu”, “atmosfera”. Essa recorrência fora observada em textos outros por
Haroldo de Campos,
117
para o qual o processo de substantivação na produção muriliana
implica vários níveis da elaboração da linguagem poética. Em Carta geográfica, nota-se
uma exploração das possibilidades fônicas, visuais e gráficas das palavras, através de
uma escrita marcadamente metalingüística. O significante, por vezes, reflete em sua
materialidade aspectos da forma, como se lê nos apontamentos sobre a grega Kos: “que
lhe conservo amorosamente a letra “K”, belíssima letra destruída pela nossa reforma
ortográfica. E tão grega: um ângulo reto, puro, toca uma linha reta”,
118
ou na grafia de
Gubbio: “Gubbio, a começar pelo seu nome, com este U que parece fechar-se,
sustentada pela vizinha muralha de B duplo, é a cidade mais secreta da Umbria e da
115
MENDES. Carta geográfica, p. 1071.
116
MENDES. Carta geográfica, p. 1086.
117
CAMPOS. Metalinguagem, p. 55-64.
118
MENDES. Carta geográfica, p. 1064.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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57
Itália”,
119
ou pelo emprego de silogismos: “sendo Bergamo clássica terra produtora de
máscaras, teatro e carnaval transmitem-se aqui desde séculos a mesma linguagem
bergamasca, bergamáscara.”
120
A prosa de Carta geográfica continua “um eterno processo antropofágico,
uma contínua tensão dirigida à captação do Outro”.
121
Antropófago – “No tempo em
que eu não era antropófago, isto é, no tempo em que não devorava livros – e os livros
não são homens, não contêm a substância, o próprio sangue do homem?”
122
–, Murilo
Mendes dirige sua curiosidades para o “outro”, para a paisagem, para o codidiano dos
lugares, para as artes, para os acontecimentos e realizações históricas. Na cartografia
das cidades italianas, iniciada por “Passeio em Pisa”, a prosa muriliana continua
partindo de uma observação ou abstração mínima, como sua passagem rápida por uma
livraria: “Entro no Palazzo della Gherardesca: hoje antiquário-livraria. Ugolino
(desocupado) come livros. Seus filhos agora moscas foram livros.”
123
Essa captação, por
vezes, também se configura como uma entrega, como se lê em “Ravenna”:
Quase revelando-se! o enigma, regresso um minuto ao enxarcado,
adiro àquele ciclo: minha ossadura insere-se nos frisos de San Vitale
ou Sant’Apolinaire Nuovo; a imperatriz Teodora (monofista), Galla
Placídia (vivia para o futuro mausoléu em que se transformou)
acenam-me no seu século, onde se poderia situar arbitrariamente o
grito desafinado de um amolador de facas. Lá vem ele girando sua
maquineta.
124
119
MENDES. Carta geográfica, p. 1088.
120
MENDES. Carta geográfica, p. 1090.
121
PICCHIO. Transístor, p. 14.
122
MENDES. A idade do serrote, p. 897.
123
MENDES. Carta geográfica, p. 1087.
124
MENDES. Carta geográfica, p. 1090.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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58
As páginas da Carta geográfica denotam um Murilo viajante contagiado
pela emoção. A emoção e a percepção desse “outro” (seja ser, paisagem, monumento,
arte ou banalidade do coditiano) funcionam como tônicos de sua poesia.Os encontros
físicos com os homens das letras são por vezes recriados pela escrita de viagem, a
exemplo daquele que se lê em “Spoleto”, onde:
Menotti reúne um pequeno grupo numa ceia presidida pelo tóteme
Ezra Pound, magríssimo, ceráceo, quase imóvel, monosilábico;
metido num rígido terno preto, gravata branca; autopensando; talvez
exausto, como dizia certo exilado espanhol, de viver tempos
históricos. Não direi que o grande scriptor corresponde a um faraó
com a letra O em destaque alude a uma forma aberta, mesmo alegre
circular; trata-se de neste caso dum faraó, sinistro, visitado pelo
paralém. Contrasta-o a atual senhora Ezra Pound comunicativa, álacre,
trilíngue, à vontade num “farfalhante” vestido de seda vermelha.
125
Nesse ambiente italiano, o olhar antropófago de Murilo Mendes ainda volta-
se para os espaços romanos e medievais, as cerimônias sacras e os espaços-museus.
Lucca, Gubbio, Orvieto, Ravenna, Bergamo, Volterra, Urbino, Spoleto, Ferrara, Veneza
e Nápoles são as cidades que entram no roteiro muriliano. O escritor refaz uma viagem
que sempre existiu. Na Idade Média, peregrinos medievais partiam rumo a Roma; na
Idade Moderna, o conhecimento e as artes impulsionavam os viajantes. Murilo assume,
por vezes, um cártografo medieval moderno, em busca de refazer o caminho do
cristianismo, cultura essa notada no significante traço medieval e no tratamento plástico
dado ao território físico como região simbólica, sacra.
Munido de uma bagagem de leituras, o poeta, enraizado em Roma,
transcreve seu itinerário italiano de Carta geográfica com citações e referências a
125
MENDES. Carta geográfica, p. 1094.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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59
inúmeros escritores, filósofos, músicos e pintores. Os nomes das cidades persistem
numa memória a posteriori: “A notícia Ferrara nasceu em Juiz de Fora pelas alturas de
1912, de um verso castroalvino das Vozes d’África, no contexto de uma estrofe de gosto
bem oitocentista, discutível, mas onde, toques inesperados, energicamente soam as
palavras Carrara e Ferrara.”
126
Em Nápoles, essa rememoração passa do plano do
significante para o do significado do espaço: “Um céu de soltar papagaio, sobrando da
Juiz de Fora de 1910. Alguns maromens e marmulheres examinam o Vesúvio, com
caleidoscópula ou sem.”
127
A imagem poética do céu napolitano figura uma extensão
daquele espaço da infância. Bachelard, em seu estudo sobre as imagens poéticas
realizado a partir de uma análise à qual dá o nome de “topoanálise”, discorre sobre os
lugares da vida e, conseqüentemente, sobre a relação entre tempo, espaço e memória:
Nesse teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os
personagens em seu papel dominante. Por vezes acreditamos
conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de
fixações nos espaços da estabilidade do ser, um ser que não quer
passar no tempo; que no próprio passado quando sai em busca do
tempo perdido, quer “suspender” o vôo do tempo. Em seus mil
alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do
espaço.
128
A supremacia da localização espacial é afirmada, pois o tempo já não anima
a memória e “as lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem
espacializadas”,
129
continua o filósofo. A nitidez de uma lembrança é proporcional ao
grau de espacialização que a contém ou no qual ela está inserida. A extensão do espaço
126
MENDES. Carta geográfica, p. 1095.
127
MENDES. Carta geográfica, p.1097
128
BACHELARD. A poética do espaço, p. 28.
129
BACHELARD. A poética do espaço, p. 29.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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60
juiz-forano da memória muriliana para o espaço europeu registrada em seus escritos de
viagem sinaliza uma extensão da idéia de pertencimento, de identidade. O poeta reedita
o narrador-viajante, arquétipo do contador de histórias e de experiências não só das
viagens, mas também de uma Minas da mémoria, da Juiz de Fora e seus personagens
migrados de A idade do serrote e Poliedro. A propósito das viagens e delocamentos, são
válidas as considerações de Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda: “estar
deliberadamente fora do lugar não representa um distanciamento do solo pátrio, indica,
ao contrário, a disposição de recriá-lo com a ousadia de quem está sempre
recomeçando.”
130
O roteiro escrito da viagem murilinana tende à recuperação de toda a
ancestralidade cultural de “O menino sem passado”.
131
Murilo Mendes fixa o sétimo ponto (capítulo) de sua Carta geográfica em
Londres. A Londres cartografada difere da Londres visitada pela primeira vez, como se
lê no registro datado de 1953:
Gostamos muito de Londres onde passamos 10 dias. Sendo a maior
cidade do mundo, oferece exemplos de impressionar sobretudo a
muitas cidades de muito nossas conhecidas da América do Sul... há
mais silêncio que em Belo Horizonte. Não há buzinas, não há
atropelos – tudo caminha dentro de um ótimo admirável. Há grandes
maravilhosos parques, no coração da cidade. E os museus são de
primeira ordem, especialmente o National Gallery, que só por si
justifica uma viagem. Os teatros são ótimos. Tivemos ocasião de
ouvir, em uma semana, a orquestra de Mozarteum de Salzburgo
(notável), e de assistir a uma codia de Shakespeare, e ao “Rapto no
Serralho”, de Mozart.
132
130
SOUZA; MIRANDA. Navegar é preciso, viver, p. 9.
131
MENDES. Poemas, p. 88.
132
CARTA de Murilo Mendes para Sr.ª Virgínia E. Mendes Torres, Bruxelas, oito de novembro de 1953.
Manuscrita. MAM Murilo Mendes, pasta de cartas, UFJF.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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61
A enormidade da cidade inglesa de Carta geográfica adverte os pulsos do
viajante que vê no Tâmisa monstros escapados do livro de Jó, ou de Melville, e milhões
de transeuntes inventados por Shakespeare. Não apenas no texto literário acontece o
encontro ficcional entre o viajante e os escritores, personagens e artistas do velho
mundo: “O tempo é escasso para os encontros, festas maiores, que, abrindo livros,
freqüentando teatros, visitando museus, alguém poderá realizar em Londres”.
133
Esses
encontros acontecem com dezessete homens das letras listados por Murilo Mendes. Os
concertos e as visitas aos museus são tembém registrados. Aqueles “universos”,
134
os
museus, são resumidos na “National Galery”.
A imagem do museu é desenhada pela segunda vez no texto muriliano.
Anteriormente referido como “universo”, agora sua imagem é enriquecida,
analogicamante, por aquela de “paraíso” a qual o escritor argentino Jorge Luis Borges
atribui à biblioteca. Os anseios desse paraíso são complementados pelo escritor-viajante
de Carta geográfica:
Claro que numa cidade interessam-me de perto a rua, a circulação e a
parolagem do povo, os costumes, mil aspectos da vida miúda
cotidiana. Mas o museu não é para mim coisa de menor interesse,
observação e prazer. Sou passeante moderno dos museus: percorro
quilômetros de quadros, estátuas, desenhos, documentos etnográficos,
folclóricos; proponho-me ora acavalar, ora distinguir os diversos
ciclos de cultura, consultar uma outra versão da história indicada pela
diversidade de ambientes, classes, tipos, indumentária, a variedade dos
estilos da obra de arte, instintiva, ritual, gratuita, inserida num
contexto religioso, econômico, político; totalizando uma informação
que nos ilumina os caminhos do tempo, desde as incertezas até a
plenitude do dia atual e o pressentimento do futuro.
135
133
MENDES. Carta geográfica, p. 1104.
134
MENDES. Carta geográfica, p. 1069.
135
MENDES. Carta geográfica, p. 1103.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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62
A aspiração desses espaços de coleção como éden, como universo, faz com
que o “passeante moderno dos museus” viaje pelo universo (mundo) e, ao escrever
sobre esse universo, catalogue e cartografe seu itinerário pessoal e intelectual, seu
universo, portanto, nas páginas de seu livro de viagem. Esse itinerário que se firma pela
viagem enquanto texto adquire o percurso de uma escrita viajante e suas várias leituras.
As citações e reflexões adicionadas ao corpo da escrita são uma confirmação do
descentramento da viagem. Ao refazer viagens a lugares e leituras, o poeta se envolve
numa escrita não somente espaço-temporal, mas também cultural e existencial. Essa
viagem da escrita na escrita dispersa no tempo, no espaço, na cultura e na religião, é
surreal. A escrita automática e o recurso de colagem, bem como a vigília, são retomados
em alguns fragmentos. São comuns na escrita de Murilo Mendes a utilização de
passagens bíblicas, a citação de outros escritores e filósofos no original francês, a
incorporação de leituras de arte e a sobreposição de espaços:
Subo na torre Eiffel: encontro-me na montanha. Desço aos bulevares:
arrastado pelas suas grandes vagas. Entro num cinema: moças de
biquíni no écran; estou na praia. Assim vai minha viligiatura.
136
“No ato de bombardear Paris destelhavam a casa do meu pai”.
137
Eis o
primeiro dos vários “Fragmentos de Paris” que reproduzem a idéia de extensão do
espaço de origem ao espaço europeu. A antropofagia muriliana é expressamente
declarada: “Serve-se Paris quente ou fria. Nunca morna.”
138
A capital francesa é
apresentada sob a forma de aforismos, de máximas, como convém a uma palavra de
136
MENDES. Carta geográfica, p. 1107.
137
MENDES. Carta geográfica, p. 1107.
138
MENDES. Carta geográfica, p. 1109.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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63
oráculo ou um provérbio: “Mostrem-me duas linhas de certo livro, certa corrente de ar,
certo decilitro de vinho, certo molho, certo fragmento de saia, eu lhes direi: De
Paris.”
139
Outros “paraísos que são as livrarias parisienses, grandes ou pequenas”
140
são
também visitados.
Vale para a prosa muriliana o desejo de capturar o real da forma mais
econômica, mais sintética possível. São raras as alusões ao ato mecânico de fotografar,
de materializar as imagens de paisagens e lugares vistos. Essas imagens, quando
ocorrem, são antes construídas pela memória e reconstruídas pela escrita, pela invenção.
As noções de identidade e as auto-reflexões sobre a própria condição de viajante são
expressas em poucas passagens:
Qual a relação entre a luz reveladora, sublinhando detalhes ao olho
kodak do turista, e a força trágica oculta na terra grega, sempre pronta
a explodir além do passado e do presente?
141
Ou:
Cineasta, eu faria um filme sobre os turistas, sua indumentária, seus
tiques, seus gostos, suas reações, seu carneirismo. De que raça, de que
planeta vêm os turistas? Ai de mim: de que raça, de que planeta venho
eu, turista, embora não carneiro? É verdade que em Paris estou Chez
moi.
142
139
MENDES. Carta geográfica, p. 1108.
140
MENDES. Carta geográfica, p. 1111.
141
MENDES. Carta geográfica, p. 1060.
142
MENDES. Carta geográfica, p. 1110.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
64
Ao contrário do turista carneiro, Murilo Mendes busca decifrar e entender os
lugares por onde anda. Para a percepção de Paris, tal qual a da Grécia, o viajante lança
suas chaves: “A graça, a fantasia, o sprit de Paris são feitos de uma infinidade de petits
riens. Quem não souber notar a todo o instante esses petits riens não terá entendido nada
de Paris”
143
e “Quem visita a Grécia deve, não só respirar o mito, mas elucidá-lo: do
contrário não a terá entendido bem. Gozarão totalmente a Grécia os poetas possuídos da
mania atual de destruir o mito, de dessacralizar a existência?”.
144
Ao visitar o museu do
Louvre, ao dialogar com vultos da arte universal como seus “amigos”, situando-os no
nível de suas relações pessoais e, neste sentido, somando-os a outros elementos, o
escritor-viajante vai construindo a imagem de um sujeito biográfico em trânsito por
espaços consagrados à conservação da memória cultural, o que favorece a percepção de
sua interação com a cultura européia.
No último ponto de Carta geográfica, New York (capítulo nono), Murilo
Mendes interage com a América. “New York recorda-me o Professor Aguiar do meu
tempo de estudante: ‘Eu sou antes baixo, minhas pernas é que são altas’”, eis a primeira
imagem da cidade, que é interligada ao lugar da memória, à origem. Os mitos
comparecem de forma expressiva nesse texto muriliano, em imagens atualizadas.
Prometeu, “cuja estátua admiravelmente feia consideramos no Rockefeller Center, ao
drogar-se anteviu em regime de sonho as retas de arranha-céus que subsistem por
preguiça do doador de sonhos em destruir-lhe as imagens”
145
, é inserido no contexto da
143
MENDES. Carta geográfica, p. 1113.
144
MENDES. Carta geográfica, p. 1059.
145
MENDES. Carta geográfica, p. 1115.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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65
civilização técnico-industrial. Os arranha-céus, personificados, revelam o humanismo
pacifista do poeta que vê sua viagem como missão:
Vim até aqui comissionado por uma sociedade clandestina que se
propõe defender os direitos primitivos dos arranha-céus a uma vida
mais pura, mais autêntica, menos sujeitas aos códigos eletrônicos;
lutar contra a mecanização, mais a conseqüente cretinização do
indivíduo. Declaro que nada posso conseguir. Os poetas não
conseguem coisíssima alguma, usam (perdão Mallarmé) linguagem
indecifrada pela tribo, falam sozinhos, à margem da margem. Quando
aparentemente são ouvidos, quer dizer: já se demitiram de poetas,
integrando-se num sistema estandartizado de valores, que aliás usa e
abusa da palavra “revolução”, zona predileta do burocrata, do
economista, do físico, do engenheiro, do estatístico e do operador do
carro armado.
146
Escrita nos anos 60, tendo como fundo a Guerra Fria entre a União
Soviética e os Estados Unidos, a prosa-poética de Carta geográfica visualiza, ou
melhor, cristaliza na escrita um sentimento humanista, contra a mecanização do homem
e contra qualquer tipo de devoção à bomba. A cidade americana provoca fascínio e
estranheza ao viajante que, por fim, se refugia no “palácio-depósito de objetos de arte”,
o Metropolitan, e no Museu de Arte Moderna:
Direi que o espaço consumido aqui é maior que os dos arranha-céus?
De qualquer forma, encontro espaços italianos inexistentes na Itália,
espaços flamengos insólitos nas Flandres, até mesmo espaços
espanhóis (inclusive a espantosa, pré-moderna vista de Toledo, de El
Greco) completando os da Espanha.
147
146
MENDES. Carta geográfica, p. 1116.
147
MENDES. Carta geográfica, p. 1217.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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66
O viajante Murilo, ao visitar esses espaços-universo, visualiza espaços-
literatura, espaços-pintura, espaços-arquitetura, lugares que lhe oferecem uma noção da
realidade. Vera Lúcia de Oliveira,
148
no primeiro texto sobre o então integralmente
inédito Carta geográfica, observa a existência, além da mera travessia de fronteiras
geográficas, de uma travessia outra, diferente do palpável e imediato. Pondera a
importância do mito para o poeta que “é sempre o escavador do real, o que reinventa o
passado, numa ânsia de conhecimento da realidade que não seja limitado pelo tempo” e
conclui que “o espaço ideal para o poeta seja a obra de arte, porque é eterna, fora o
tempo”.
149
Essas travessias, portanto, desdobram-se em um “eu” duplamente marcado
pela viagem: o leitor-viajante e o escritor-viajante.
A cartografia da viagem de Murilo Mendes percorre vários espaços
heterotópicos e constitui uma prosa que opera na “brecha entre literatura e realidade”,
150
artifício cujas origens o próprio poeta sinaliza como antecipação na literatura em suas
experiências poéticas através de acontecimentos. A escrita se constrói entre a memória
particular, pessoal, e a memória universal, impessoal, por se dizer ocidental. A Carta
geográfica do universo muriliano se estende pela obra do poeta prosador, em seus
grafitos sobre o oriente, murilogramas e versos do “peregrino europeu de Juiz de Fora”
que cruzara vários rios do mundo, como informa, poeticamente, João Cabral de Melo
Neto:
148
OLIVEIRA. Litterature D’America, p. 43-68.
149
OLIVEIRA. Litterature D’America, p. 65.
150
MENDES. A idade do serrote, p. 920-921.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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67
MURILO MENDES E OS RIOS
Murilo Mendes, cada vez
que de carro cruzava um rio,
com a mão longa, episcopal,
e com certo sorriso ambíguo,
reverente, tirava o chapéu
e entredizia na voz surda:
Guadalete (ou que rio fosse),
o Paraibuna te saluda.
Nunca perguntei onde a linha
entre o de sério e de ironia
do ritual: eu ria amarelo,
como se pode rir na missa.
Explicação daquele rito,
vinte anos depois, aqui tento:
nos rios, cortejava o Rio,
o que, sem lembrar, temos dentro.
151
151
MELO NETO. Poesia completa e prosa, p. 65.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
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CAPÍTULO II
UMA TOPOGRAFIA DA VIAGEM EM JORGE LUIS BORGES
Sempre cheguei às coisas depois de encontrá-las nos livros.
Jorge Luis Borges
2.1 BORGES VIAJANTE
A trajetória poético-biográfica de Jorge Luis Borges é marcada por uma
espécie de deslocamento, que pode ser percebido no movimento de sua produção
literária e nas viagens realizadas pelo escritor ao logo de sua vida. O aparecimento do
escritor em livro data de 1923, com a publicação de Fervor de Buenos Aires, dois anos
depois de o jovem Borges voltar de uma longa viagem à Europa com a família e se
instalar em Palermo, arrabalde de Buenos Aires. Esse retorno é rememorado em sua
autobiografia:
Retornamos a Buenos Aires no vapor Reina Victoria Eugenia, por
volta de fins de março de 1921. Para mim foi uma surpresa, depois de
ter vivido em tantas cidades européias – depois de tantas lembranças
de Genebra, Zurique, Córdoba e Lisboa –, descobrir que o lugar em
que nasci se havia transformado em uma cidade muito grande e
extensa, quase infinita, povoada de prédios baixos com terraços e que
se estendia a oeste na direção do que os geógrafos e literatos chamam
o pampa. Aquilo foi mais que uma volta ao lar; foi uma
redescoberta.
152
152
BORGES. Um ensaio autobiográfico, p. 61. “We returned to Buenos Aires on the Reina Victoria
Eugenia toward the end of March, 1921. It came to me as a surprise, after living in so many European
cities – after so many memories of Geneva, Zurich, Nîmes, Cordoba and Lisbon – to find that my native
town had grown, and that it was now a very large, sprawling, and almost endless city of low building with
flat roofs, stretching west toward what geographers and literary hands call the pampa. It was more than a
homecoming; it was a rediscovery.” BORGES. The Aleph and Others Stories, p. 153.
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A redescoberta da cidade de origem, após o distanciamento por sete anos,
está impressa na poesia auto-referencial do livro inaugural. As imagens dos poemas de
Fervor de Buenos Aires estão vinculadas a lugares “emocionalmente importantes”, a
leituras e à memória delineada pelo afastamento e pela experiência vivenciada nas
cidades do Velho Mundo. Os versos do primeiro poema, “As ruas”,
ii
são traçados como
um mapa, em que o “eu”, que se supõe estar a Leste, projeta seu flâneur no plano
horizontal das ruas, “Para o Oeste, o Norte e o Sul”. As vias públicas urbanas são
tomadas como centro de sensibilidade, afeto e ternura, sejam as “incômodas” do centro,
as “entediadas” do bairro ou as “longínquas” da periferia que se estendia a oeste, “a
perder-se na profunda visão/ de céu e de planura”, na direção dos pampas.“As ruas de
Buenos Aires/ já são minha entranha”, eis os primeiros versos que sugerem a noção de
identidade do poeta.
153
Essa idéia de identidade aparece atrelada a coordenadas espaciais, cujas
imagens perpassam outros textos da coletânea que se constroem em torno de um sujeito
errante que percebe a cidade e, nessa errância, também percebe si mesmo. “A
Recoleta”, “O Sul”, “A Praça San Martin”, “Um Pátio”, “Bairro reconquistado”,
“Arrabalde” são exemplos de recortes da paisagem migrados para a poesia. O poeta
solitário recria, à luz de uma memória individual, que parece ser também a de seus
antepassados, uma “Benares” despovoada e descentrada.
A memória aparentemente individual, segundo Maurice Halbwarchs, remete
sempre a uma memória coletiva, ou seja, ela é elaborada a partir de referências e
lembranças próprias de um grupo. A lembrança pode ser reconstruída ou simulada, pois,
em larga medida, ela é “uma reconstrução do passado com a ajuda do presente, e, além
153
Cf. LEITÃO. Cadernos pedagógicos e culturais, p. 247-259.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a
imagem de outrora manifestou-se já bem alterada”.
154
O pensador acrescenta, ainda, que
esse processo de construção da memória passa pelo referencial, que é o sujeito, pois não
existe memória que seja somente “imaginação pura” ou representação histórica de um
mundo exteriorizado. Dessa forma, entende-se que a memória individual não é solitária
e se apóia na memória coletiva e na memória histórica: “a vivência em vários grupos
desde a infância estaria na base da formação de uma memória autobiográfica e
pessoal”.
155
A linguagem, nesse contexto, poderia ser entendida como um dos suportes
da memória, pois, como afirma Halbwarchs: “Nada escapa à trama da sincrônica
existência social atual, e é da combinação destes diversos elementos que pode emergir
esta forma que chamamos lembrança, porque traduzimos em uma linguagem”.
156
Em
Borges, essa linguagem é representada pela literatura, ou, valendo-se das palavras do
escritor: “Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um
passado que os interlocutores compartem.”
157
Da primeira poesia de Borges – a de Fervor de Buenos Aires (1923), Lua
Defronte (1925) e Caderno San Martin (1929) – emergem lembranças de uma Buenos
Aires do século XIX e também a busca de uma ancestralidade por meio da tarefa
ritualística do escritor de (re)contar as histórias de seus antepassados, que são
vinculadas à constituição de sua “pátria”. Uma pátria que se relaciona com a noção de
cidade, como sugerem os últimos versos do primeiro poema: “se desfraldaram – e são
154
HALBWACHS. A memória coletiva, p. 75-76.
155
HALBWACHS. A memória coletiva, p. 56-60.
156
HALBWACHS. A memória coletiva, p. 14.
157
BORGES. O Aleph, p. 695. “Todo lenguage es un alfabeto de símbolos cujo ejercicio presupone en
pasado que los interlocutores comparten.” BORGES. Obras Completas v. 1 [1989], p. 624.
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também a pátria – as ruas;/ Oxalá nos versos que traço/ estejam essas bandeiras.” As
ruas figuram a própria pátria, como “bandeiras”, símbolo que remete à memória
histórica do país. O sentido de pátria – do latim patria: o país natal, o solo natal; pátria
adotiva
158
– adquire contornos épicos numa invenção mítica de “Buenos Aires”:
Aí está Buenos Aires. O tempo, presenteando
Com ouro ou amor os homens, a mim apenas deixa
Esta rosa apagada ou esta inútil madeixa
De ruas que ecoam nomes mortos, evocando
Em meu sangue: Laprida, Cabrera Soler, Suárez...
Nomes que retumbam (já secretas) as dianas,
Républicas, cavalos garbosos, as campanas
Das felizes vitórias, as mortes militares.
159
Buenos Aires é regida sob o signo da temporalidade e as atuações militares
dos antepassados são retomadas pelas ruas que ecoam outros signos, os nomes.
Biografia e literatura convergem, muitas vezes, ao espaço cartográfico e de
representação da cidade nas primeiras obras de Borges, que são centradas na
espacialidade. Desde o prólogo tardiamente escrito, em 1969, o próprio escritor adverte:
“Para mim, Fervor de Buenos Aires prefigura tudo o que faria depois. [...] Eu, por
exemplo, me propus demasiados fins: [...] cantar uma Buenos Aires de casas baixas e,
para o poente ou para o sul, de chácaras gradeadas.”
160
Os contornos da provinciana
158
HOUAISS. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa.
159
BORGES. O outro, o mesmo, p. 264-265. “Ahí está Buenos Aires. El tiempo que a los hombres/ trae el
amor o el oro, a mi apenas me deja/ esta rosa apagada, esta vana madeja/ de calles que repiten los
pretéritos nombres/ de mi sangre: Laprida, Cabrera, Soler, Suárez.../ Nombres en que retumban (ya
secretas) las dianas, las repúblicas, los caballos y las mañanas,/ las felices cictorias, las muertes
militares.” BORGES. Obras Completas v. 2 [1989], p. 241.
160
BORGES. Fervor de Buenos Aires, p. 11. “Para mi, Fervor de Buenos Aires prefigura todo lo que
haría después. [...] Yo, por ejemplo, me propuse demasiados fines: [...] cantar un Buenos Aires de casas
bajas y, hacia el poente o hacia el Sur, de quintas com verjas.” BORGES. Obras Completas v.1 [1989], p.
13.
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cidade haviam se transformado; desde a partida dos Borges para a Suíça em 1914, o
suburbano Palermo era o limite infinito da urbe:
Havia também um Palermo de compadritos, famosos pelas brigas a
faca, mas esse Palermo demoraria em despertar minha imaginação,
pois fazíamos todo o possível – e com êxito – para ignorá-lo. Ao
contrário de nosso vizinho Evaristo Carriego, o primeiro poeta
argentino a explorar as possibilidades literárias que estavam aos
alcances de suas mãos.
161
A partir de Fervor de Buenos Aires, o regressado Borges começa a descobrir
as possibilidades literárias dos confins e dos arredores. Para manter a noção dessa
grandeza horizontal, foi necessário que o poeta se distanciasse do centro, cifra do
babélico, da Buenos Aires barulhenta que se modernizava, e se refugiasse nos ocasos,
amanheceres, na noite, em jardins, pátios ou nas ruas desconhecidas:
Só depois refleti
que aquela rua da tarde era alheia,
que toda casa é um candelabro
onde as vidas dos homens ardem
como velas isoladas,
que todo imediato passo nosso
caminha sobre Gólgotas.
162
A impressão do “eu” tecido nessa poética de Borges é lida por alguns
críticos como auto-retrato. Enrique Pezzoni
163
observa a construção de um auto-retrato
161
BORGES. Um ensaio autobiográfico, p. 12. “There was also a Palermo of Hoodlums, called
compadritos, famed for their knife fights, but this Palermo was only later capture my imagination, sice we
did our best – our successful best – to ignore it. Unlike our neighbor Evaristo Carriego, however, who
was the first Argentine poet to explore the literary possibilities that lay there at hand.” BORGES. The
Aleph and Others Stories, p. 136.
162
BORGES. Fervor de Buenos Aires, p. 18. “Só después reflexione/ que aquella calle de la tarde era
ajena,/ que toda casa es un candelabro/ donde las vidas de los hombres arden/ como velas aisladas,/ que
todo inmediato paso nuestro/ camina sobre Gólgotas.” BORGES. Obras Completas v.1 [1989], p. 20.
163
PEZZONI. El texto y sus voces, p.67-69.
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efêmero contra uma cidade em transição que é pano de fundo e substância mesma do
“eu”. A poesia borgiana, ao referenciar a cidade, parece conjugar o perceber e o
percebido, o caminhante e o espaço de seu caminho, e momentos solitários,
atormentados e introspectivos: “Nomeei lugares/ onde se esparrama a ternura/ e estou só
e comigo.”
164
A nomenclatura das ruas, para Angel Rama, em seu ensaio sobre a tradição
intelectual latino-americana, A cidade das letras, é uma das formas de normalização do
mundo físico, na ordem prioritária dos signos que regem a cidade das letras. Rama
denominou “cidade letrada” aquela que é regida por um sistema de signos construído
por uma classe esclarecida, em contraposição à “cidade real”, que seria a cidade
material, dos significantes. Apesar de suas linguagens se desenvolverem em redes
diferentes, ambas são coexistentes: “Há um labirinto das ruas que só a aventura pessoal
pode penetrar e um labirinto dos signos que só a inteligência raciocinante pode decifrar,
encontrando sua ordem”.
165
A partir disso, pode-se entender que, nos versos de Borges,
as ruas anônimas se revelam a um sujeito habitante da cidade das letras em busca de
atribuir significações.
Beatriz Sarlo, em Borges, un escritor en las orillas, aborda a representação
da cidade, “centro da radiação simbólica”, focalizando a hegemonia do imaginário
urbano na cultura rio-platense do século XX, em detrimento das utopias rurais. Após
enumerar o desenvolvimento do tema em obras de escritores do início do século que
melhor se enquadram e se inscrevem no paradigma de Sarmiento que no de Jose
164
BORGES. Fervor de Buenos Aires, p. 43. “He lobrado los sítios/ donde se desparran la ternura/ y estoy
solo y comigo.” BORGES. Obras Completas v. 1 [1989], p. 45.
165
RAMA. A cidade das letras, p. 53.
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Hernández, Sarlo considera como únicas exceções Ricardo G. Miradles, “um ruralista
cosmopolita”, e Borges, que
[...] inventou as imagens de uma Buenos Aires que estava
desaparecendo definitivamente e voltou a ler o passado rural da
Argentina. A literatura de Borges, nos anos 20, surge nesse espaço da
imaginação de Xul Solar ou de Roberto Arlt, traça primeiro um
percurso pelo século XIX e pela cidade crioula: Borges Viaja.
166
A incursão de Borges pela memória platina jamais desapareceu de sua obra
completa, que “reinventa um passado cultural e arma uma tradição literária argentina
em operações que são contemporâneas a suas leituras das obras literárias”
167
. Essas
operações procedem de outras viagens pela leitura, pela literatura, pelos movimentos de
vanguarda vivenciados na Europa e as experimentações literárias compartilhadas com a
arte de companheiros, como a de Xul Solar e a de Roberto Arlt. Os interesses de Borges
se tornam cada vez mais cosmopolitas e seus prazeres literários e filosóficos continuam
alimentados pela biblioteca paterna: “Se tivesse de indicar o evento principal de minha
vida, diria que é a biblioteca de meu pai. Na realidade, creio nunca ter saído dessa
biblioteca.”
168
Dessa biblioteca, as enciclopédias, os mapas, as primeiras leituras – capitão
Marruat, Wells, Poe, Longfellow, Dickens, Dom Quixote, Tom Brown na Escola, os
166
SARLO. Borges, un escritor en las orillas. “[...] inventó las imágenes de un Buenos Aires que estava
desapariecendo definitivamente e volvió a ler el pasado rural de la Argentina. La literatura de Borges, en
los anõs 20, surge en este espacio de la imaginación de Xul Solar o de Roberto Arlt, traza primero un
recorrido por el siglo XIX y por la ciudad criolla: Borges viaja.” (Tradução minha)
167
SARLO. Borges, un escritor en las orillas. “[...] reinventa un pasado cultural y rearma una tradicíon
literaria argentina en operaciones que son contemporáneas a su lectura de las literaturas.” (Tradução
minha)
168
BORGES. Um ensaio autobiográfico, p. 23. “If I were asked to name the chief event in my life, I
schould say my fther’s library. In fact, I sometimes think I have never strayed outside that library.”
BORGES. The Aleph and Others Stories, p. 140.
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contos de fadas de Grimm, Lewis Carroll, a poesia que chegou em inglês através de
Shelley, Keats, Fitzgerald e Swinburne –, tudo confluía para o deslocamento em um
mundo conhecido e construído pela leitura:
Minha primeira experiência verdadeira com o pampa aconteceu por
volta de 1909, durante uma viagem à instância de uns parentes que
viviam perto de San Nicolas, a noroeste de Buenos Aires. Lembro que
a casa mais próxima era uma espécie de mancha no horizonte.
Descobri que essa distância desmesurada chamava-se “o pampa”; e,
quando me inteirei de que os peões eram gaúchos, como os
personagens de Eduardo Gutiérrez, eles passaram a ter certo encanto
para mim. Sempre cheguei às coisas depois de encontrá-las nos
livros.
169
A passagem, uma recriação das várias viagens que a família de Borges
empreendia pelas instâncias portenhas de San Nicolas ou Adrogué, sinaliza uma
mimetização da experiência vivida (vida) em relação à leitura literária (literatura). Foi
necessária a experiência do conhecimento dos gaúchos, através do livro de Gutiérrez,
para se perceber que os peões dos pampas eram também gaúchos. Há um
entrecruzamento dos episódios livrescos e dos acontecimentos da vida, uma
intertextualidade da ficção com o vivido. A possibilidade de compreensão da realidade
poderia estar enraizada em arquétipos – palavra cara ao escritor – construídos pela
169
BORGES. Um ensaio autobiográfico, p. 31. “My first real experience of the pampa came around
1909, on a trip we took to a place belonging to relatives near San Nicolás, to the northwest of Buenos
Aires. I remember that the nearest house was a kind of blur on the horizon. This endless distance, I found
out, was called the pampa, and when I learned that the farmhands were gauchos, like the caracters in
Eduardo Gutiérrez, that gave them a certain glamour. I have always come to the after coming to books.”
BORGES. The Aleph and Others Stories, p. 143.
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leitura. A memória da leitura seria um pré-requisito para o (re)conhecimento da
experiência vivida e impressa na escrita do “eu” – a autobiografia.
170
Essa mimetização exteriorizada por Borges em seu único livro
explicitamente autobiográfico não é indiferente à obra do escritor, cuja narrativa
ficcional desponta na década de quarenta com Ficções. A leitura de Dom Quixote na
edição Garnier, “o verdadeiro Quixote”,
171
cânone que celebra a metáfora da leitura
dissolvendo as fronteiras do real e da ficção, desdobra-se no célebre conto “Pierre
Menard, autor do Quixote”,
172
que seria um exemplo, dentre outros, dos vários recursos
de construção paradoxal de uma originalidade feita de apropriações, citações e
invenções do escritor, que, para usar as palavras de Beatriz Sarlo, “pensa, desde o
princípio, com a fundação da escrita a partir da leitura, e desconfia da possibilidade de
representação literária do real”.
173
Nesse contexto, Sylvia Molloy elege o conto “O evangelho segundo
Marcos”,
174
uma das últimas narrativas curtas de Borges, como aquele que melhor cifra
“o significado de toda sua obra: a mise en texte da cena da leitura na América hispânica
e, concomitantemente, de uma prática narrativa”.
175
Na breve narrativa, um jovem
estudante portenho de medicina, Baltasar Espinosa, depara-se isolado na planície, em
170
Quanto à relação entre leitura e autobiografia, Sylvia Molloy, em “O leitor com o livro na mão”, trata
da recorrência dos hispano-americanos ao arquivo europeu – “saque” – em busca de fragmentos textuais
com os quais, consciente ou inconscientemente, forjam suas imagens. Cf. MOLLOY. Vale o escrito, p.
29-61.
171
BORGES. Um ensaio autobiográfico, p. 25. “[...] the real Quixote.” BORGES. The Aleph and Others
Stories, p. 141.
172
BORGES. Ficções, p.490-498.
173
SARLO. Borges, un escritor en las orillas. “[...] piensa, desde un principio, en la fundación de la
escritura desde la lectura, y desconfia de la posibilidade de representación literaria de lo real.” (Tradução
minha)
174
BORGES. O Informe de Brodie, p. 477-482.
175
MOLLOY. Vale o escrito, p. 30.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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uma estância de Los Álamos, por causa de uma cheia. Ali, suas únicas companhias são
três Gutre (Guthrie era o nome verdadeiro): o pai, o filho e uma moça – “Altos, ossudos,
com cabelos tendendo para o avermelhado e com feições de índios”,
176
que já não
sabiam ler nem escrever. Para estabelecer diálogo com eles, Baltasar Espinosa decide
fazer a leitura da Bíblia numa edição inglesa que encontrara na casa, cujas páginas
finais revelavam manuscritos da história da família, originária da Escócia. O texto
escolhido foi o Evangelho segundo Marcos. Os Gutre, que “careciam de fé, mas em seu
sangue perduravam, como rastos obscuros, o duro fanatismo calvinista e as superstições
dos pampas”,
177
ouviam atentamente a leitura. No fim da narrativa, os Gutre interrogam
Espinosa sobre a Escritura. Este, depois da sesta, pensa em voz alta: “– As águas estão
baixas. Já falta pouco”, e surpreende-se com outra frase “– Já falta pouco – repetiu
Gutre, como um eco”.
178
Os três levam-no ao galpão, onde uma cruz o espera.
A eleição dos significativos nomes do protagonista indica a percepção do
entrecruzamento de leituras filosóficas e da tradição cristã – “Baltasar” alude a Baltazar,
último rei da Babilônia e um dos três reis magos que levaram oferendas ao Deus
Menino, e “Espinosa”, ao filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-167), cuja doutrina
sustenta que a realidade divina se identifica com a natureza e a totalidade infinita do
real. Borges, ao atribuir ao cenário do conto elementos argentinos, aos olhos de Molloy,
parece assinalar um aspecto fundamental da literatura hispano-americana: “sua
capacidade de distorção criadora (e, neste caso, mortal)”:
176
BORGES. O Informe de Brodie, p.478. “Eran altos, fuertes, huesudos, de pelo que tiraba a rojizo y de
caras aindiadas.” BORGES. Obras Completas v. 2 [1989], p. 446.
177
BORGES. O Informe de Brodie, p. 480. “Carecian de fe, pero en su sangue perduraban, como rastros
oscuros, el duro fanatismo del calvinista y las supersticiones del pampa.” BORGES. Obras Completas v.
2 [1989], p. 448.
178
BORGES. O Informe de Brodie, p. 481. “– Las águas están bajas. Ya falta poco.” “– Ya falta poco –
repetió Gutre, como un eco.” BORGES. Obras Completas v. 2 [1989], p. 450.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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Reler e reescrever o livro europeu, nos diz o conto, pode ser às vezes
uma experiência selvagem, sempre inquietante. A atitude do escritor
hispano-americano [...] é exatamente o contrário da máxima de
Mallarmé e, como tal, sua paródia. O Livro não é meta e, sim,
prefiguração: dissonante conjunto de textos muitas vezes
fragmentados, de partes soltas de escrita, é matéria para começos.
179
A metáfora do livro como artifício narrativo poderia se inscrever como
exemplar da imagem “biblioteca-universo” criada por Borges em “A Biblioteca de
Babel”.
180
A experiência selvagem da releitura e da escrita alude à hesitação do “entre-
lugar”.
181
Valendo-se de (des)leituras, textos, poemas, crônicas, ensaios, narrativas,
prólogos, citações, relatos, o livro borgiano seria também reafirmação de toda uma
memória coletiva, por mais individual que seja a memória daquele que o escreve.
Considerado pelo autor uma vasta metáfora da insônia, “Funes, o memorioso”,
182
é um
conto centrado na memória. O compadrito uruguaio, Irineo Funes, havia perdido o
conhecimento quando sofreu uma queda de um cavalo e, ao recuperá-lo, adquiriu uma
implacável memória, não se esquecia de nada: “o presente era quase intolerável e tão
rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais”. Funes era “quase
incapaz de idéias gerais, platônicas”, não pensava, pois “pensar é generalizar”, e sua
minimalista memória era como um “despejadouro de lixos”.
183
O tema da memória é caro ao escritor argentino, para quem a identidade
pessoal é a memória e escrever o passado é modificá-lo:
179
MOLLOY. Vale o escrito, p. 31.
180
BORGES. Ficções, p. 516-523.
181
SANTIAGO. Uma literatura nos trópicos, p. 11-28.
182
BORGES. Ficções, p. 539-546.
183
BORGES. Ficções, p. 543. “[...] el presente era casi intorelable e tan rico y tan nítido, también las
memorias más antiguas y más triviales.” “[...] vaciadero de basuras.” BORGES. Obras Completas v. 1
[1989], p. 488.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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Minhas lembranças mais vívidas não são de coisas que me
aconteceram, mas de textos que li. É uma memória singular, espécie
de antologia. [...] Bergson já dizia que a memória é seletiva, que a
memória escolhe. Em meu caso, prefere escolher as felicidades – ou
inventá-las, se não ocorreram – e esquecer as desditas A memória é
essencial, posto que a literatura está feita de sonho e os sonhos se
fazem combinando recordações.
184
A antologia da memória de Borges está impressa em seus textos. Nos
diversos gêneros literários que percorreu, quase nunca denunciou explicitamente
aspectos de sua vida íntima ao leitor. Entretanto, a revelação do seu “eu” acontece
através da memória, que é sua identidade pessoal, de suas leituras, de seu imaginário
criativo, de seus recursos literários, a exemplo do duplo (criação da personagem
“Borges”). O tema do duplo perpassa vários escritos e, talvez, o texto mais conhecido
seja “Borges e eu”,
185
em que ao “eu”, um homem particular, agradam os relógios de
areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa
de Stenvenson. Quanto ao “outro”, Borges, um homem público, que compartilha das
mesmas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um
ator.
Em uma de suas entrevistas pelo mundo, Borges disse que só poderia se
expressar através de fábulas e poemas e que “não poderia escrever uma autobiografia
com datas e com obras produzidas, pois me sentiria obrigado a mentir”.
186
O Ensaio
autobiográfico não foi incluído na edição de suas Obras Completas e é a única narrativa
longa em que o escritor imprime o “eu” explicitamente (auto)biográfico. A obra carrega,
184
BORGES apud CECHELERO; HOSIASSON. Borges no Brasil, p. 270.
185
BORGES. O fazedor, p. 206.
186
BORGES apud CECHELERO; HOSIASSON. Borges no Brasil, p. 270.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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80
ainda, a marca de ser escrita a quatro mãos, pois o escritor cego ditou o texto a seu
colaborador pessoal Thomas di Giovanni, para que este o escrevesse.
Essa autobiografia pode ser lida como uma inscrição da trajetória poético-
biográfica do escritor que elegeu o Velho Mundo, mais especificamente Genebra, como
lugar para morrer, fechando, simbolicamente, seu ciclo biológico. O ensaio, dividido em
cinco partes – “I. Família e infância”, “II. Europa”, “III. Buenos Aires”, “IV.
Maturidade” e “V. Anos de Plenitude” –, desenha, dentre outras coisas, a interferência
da cegueira nos movimentos da literatura borgiana (poesia – ensaio – prosa – poesia) e
os próprios movimentos do escritor enquanto viajante. Esse tema está presente em
muitos de seus escritos ficcionais e aparece próximo à noção de espacialidade, a
exemplo do conto “O Aleph”.
187
2.2 UM ROTEIRO, UM ALEPH
Desde que a cegueira acometeu Borges, era através do minucioso exercício
da memória que ele relia livros, quando um “outro” fazia a leitura em voz alta, e
elaborava seus textos, repetindo a um escriba várias vezes as palavras e/ou frases até
chegar à versão final, como um rapsodo.
188
Em “Um estilo, um aleph”, Eneida Maria de
Souza trata o tema da cegueira na obra borgiana e o vê transformado em “poética do
fragmento, do aleph, do suplemento e do crepúsculo, além de aspirar imaginariamente à
plenitude da visão totalizante do universo”
.
189
187
BORGES. O Aleph, p. 686-698.
188
SOUZA. O século de Borges, p. 64.
189
SOUZA. O século de Borges, p. 67.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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81
Essa visão totalizante foi, talvez, inaugurada no célebre conto “O Aleph”,
cuja figura faz alusão à primeira letra do alfabeto hebraico e a todo seu campo
semântico e sua infinitude. Resultado da leitura borgiana da Divina Comédia, o conto
foi escrito num momento em que a privação do sentido da visão acomete o escritor, que
vê, numa fração de segundo, o reflexo de seu passado: a frustração da relação amorosa
com Beatriz Viterbo. Sem alusão explícita à obra dantesca, o conto é interpretado por
Emir Rodríguez Monegal como uma redução parodística da Divina Comedia, em que
“‘Borges’ é Dante, Beatriz Viterbo é Beatrice Portinari [...] e Carlos Argentino Daneri é
por vezes Dante e Virgílio. Seu nome Daneri é uma abreviatura de Dante Aligheri;
como Virgílio, é um poeta didático e um guia para a visão do mundo”.
190
O poeta mantinha um Aleph no porão de sua casa, e, a partir dele, almeja
escrever o poema “Terra”, uma epopéia topográfica cujo objetivo era “versificar toda a
rendondez do planeta”. Entre as idéias de Daneri, estava a defesa do homem moderno,
para o qual “o ato de viajar era inútil”. Segundo ele, “nosso século XX só tinha
transformado a fábula de Maomé e da montanha; as montanhas, agora, convergiam para
o moderno Maomé”.
191
A viagem, para esse homem, seria desnecessária porque ele
estava provido de instrumentos – rádio, telefone, cinema, glossários, boletins,
fonógrafos – que o permitiam chegar às coisas, à “montanha”. A obra descritiva do
planeta seria também um desses instrumentos e a representação de todo o universo, mas
só se efetivaria se o “Aleph” fosse mantido em seu lugar original.
190
MONEGAL, Borges: una biografia literaria, p. 372-373. “‘Borges’ es Dante, Beatriz Viterbo es
Beatrice Portinari [...] y Carlos Argentino Daneri es a la vez Dante y Virgilio. Su nombre Danere es una
abreviatura de Dante Aligheri; como Virgilio es un poeta didático y un guia para la visión del mundo.”
(Tradução minha)
191
BORGES. O Aleph, p. 688.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
82
O “Aleph” foi apresentado a “Borges”, que o viu como uma pequena esfera
que continha todo o espaço cósmico, o infinito. A brilhante visão/localização motiva a
impossibilidade de descrição desse espaço:
Então vi o Aleph. [...] começa aqui o meu desespero de escritor. Toda
linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um
passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros
esse infinito Aleph, que minha tímida memória mal e mal abarca? [...]
Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer
parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões
de atos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o fato
de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem
transparência. O que meus olhos viram foi o simultâneo; o que
transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto,
registrarei.
192
A tentativa desse “registro” empreendido pelo narrador-escritor é
comparada por Edward Soja, em Geografias pós-modernas, ao “exercício ambicioso de
descrição geográfica crítica, de traduzir em palavras a espacialidade abrangente e
politizada da vida social”.
193
Para o geógrafo norte-americano, a obstinação da visão
geográfica é simultânea e a linguagem, dada ao fluxo linear de sua elocução, é sucessiva
e limitada pela restrição espacial que dois objetos (ou palavras) têm de ocuparem o
mesmo lugar (ou página). “Tudo que podemos fazer”, escreve o geógrafo, “é recompor
e justapor criativamente, num experimento, com afirmações e inserções do espacial no
192
BORGES. O Aleph, p. 695. “Entoces vi el Aleph. [...] empieza, aquí mi desesperación de escritor.
Todo lenguage es un alfabeto de símbolos cujo ejercicio presupone un pasado que los interlocutores
comparten; ¿como transmitir a los otros el infinito Aleph, que mi temerosa memoria apenas abarca? [...]
Por lo demás, el problema central es irresolubre: la enumeración, siquiera parcial, de un conjunto infinito.
En ese instante gigantesco, he visto millones de actos debitables o atroces; ninguno me assombro com el
hecho de que todos ocupan el mismo punto, sin superposición y sin transparencia. Lo que vieron mis
hojos fue simultâneo: lo que transcrebiré, sucesivo, porque el lenguage lo es. Algo, sin embargo,
recogeré.” BORGES. Obras Completas v. 1 [1989], p. 624-625.
193
SOJA. Geografias pós-modernas, p. 9.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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83
veio preponderante do tempo”.
194
Nesse sentido, a noção da espacialidade da esfera
abstrata e concreta, que é o Aleph e sua imagem literária, dialoga com a representação
geográfica. Sobre o conto, disse Borges:
“O Aleph” creio que é um lindo conto. “El Aleph” é um ponto do
espaço no qual está contido todo o espaço. E isso está tomado da idéia
de eternidadade, que é um instante no qual está contido todo o tempo.
Eu apliquei ao espaço o que os teólogos aplicaram ao tempo. Vem a
ser como uma eternidade do espaço. E logo entrevi outras coisas:
havia estado muito apaixonado por Beatriz Viterbo; ela havia
morrido... Enfim, pus elementos autobiográficos nesse conto. E como
hei de por sempre para que soem convincentes as coisas.
195
Ao declarar a existência de elementos autobiográficos entrevistos na narrativa,
Borges colabora para o entendimento da figuração do “eu” em seus textos, através das
estratégias de ocultamento e revelação.
196
A confidência borgiana revela, também, a
coexistência da literatura com a filosofia e, porque não, com a geografia.
O tema do infinito atrelado à circunferência remete a outros textos, como
aquele que trata a “metáfora geométrica da esfera” como uma das metáforas do
universo. Em “A esfera de Pascal”, de 1951, Borges constrói uma historiografia da
imagem da “esfera” como metáfora do universo, desde as teologias dos gregos,
passando pelos pré-socráticos, Platão, Dante, pelo “desanimado” século XVII, quando o
194
SOJA. Geografias pós-modernas, p. 9.
195
BORGES apud BERNUCCI. Borges no Brasil, p. 86. ‘“El Aleph” creo que es un lindo cuento. “El
Aleph” es el de un punto en el espacio, en el cual está contenido todo el espacio. Y eso está tomado de la
idea de la eternidad, que es un instante en el cual está contenido todo el tiempo. Yo apliqué al espacio lo
que los teólogos han aplicado al tiempo. Viene a ser como una eternidad del espacio. Y luego entreveré
otras cosas: había estado muy enamorado de Beatriz Viterbo; ella había muerto… En fin, puse elementos
autobiograficos en ese cuento. E como hay que poner siempre para que suenen convincentes las cosas.”
(Tradução minha)
196
Leopoldo M. Bernucci entende que a noção de autobiografia na obra de Borges está ligada à busca do
autoconhecimento, em que a figuração do “eu” vale-se de estratégias de ocultamento e revelação. Cf.
BERNUCCI. Borges no Brasil, p. 77-100.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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espaço absoluto inspirou os hexâmetros de Lucrécio e fora para Giordano Bruno uma
libertação, e também um labirinto e um abismo para Pascal. É com o constructo da
imagem deste, visitado muitas vezes por Borges, como no texto “A esfera de Pascal”,
que a história da esfera é finalizada: “uma esfera terrível, cujo centro está em toda a
parte e a circunferência em nenhuma”.
197
O registro literário dessa imagem de Pascal, ou melhor, a tentativa do
registro literário dessa imagem, apareceu sob a forma de uma “esfera furta-cor” no
porão de uma casa Argentina, em “O Aleph”. A idéia de eternidade – aquilo que
prescinde de qualquer determinação cronológica –, atrelada à noção de espaço sugerida
pela visão do esférico Aleph, poderia situar a literatura nas discussões atuais acerca da
relação entre espaço e tempo, o que alude ao “cronotopo” de Bakhtin
198
e aos “outros
espaços”
199
de Foucault.
Mikhail Bakhtin tratou o processo de assimilação do tempo e do espaço na
literatura nomeando a interligação dessas categorias como cronotopo, que significa
“tempo-espaço”. O termo, expressamente migrado das ciências físicas com base na
teoria da relatividade de Einstein, é entendido como uma categoria conteudístico-formal
da literatura. Bakhtin empreende uma demonstração da relativa estabilidade tipológica
dos cronotopos em diferentes variedades do gênero do romance europeu. Segundo o
crítico, o cronotopo tem um significado fundamental para os gêneros literários:
197
BORGES. Outras inquisições, p. 15. “[...] una esfera inteligible, cujo centro está en todas partes y la
circunferencia en ninguna.” BORGES. Obras Completas v. 2 [1989], p. 14.
198
BAKHTIN. Questões de literatura e estética, p. 211-362.
199
FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 411-422.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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85
Pode-se dizer francamente que o gênero e as variedades de gênero são
determinadas justamente pelo cronotopo, sendo que em literatura o
princípio condutor do cronotopo é o tempo. O cronotopo como
categoria conteudístico-formal determina (em medida significativa)
também a imagem do indivíduo na literatura; essa imagem sempre é
fundamentalmente cronotópica.
200
Na literatura, a fusão entre cronotopo real
201
e histórico flui complexamente.
Elementos da narrativa revelam motivos cronotópicos, e, dentre eles, os cronotopos do
encontro, da estrada, da aventura são relevantes para o estudo de textos cujos temas são
o deslocamento e a espacialidade.
Michel Foucault, em seu ensaio “Outros espaços”, observa a não novidade
da ocorrência do espaço nos horizontes das preocupações teóricas e projeta a
heterogeneidade como ordem de uma espacialidade móvel. Para a reflexão sobre essa
espacialidade, ciente da importância do “espaço de dentro”,
202
Foucault se interessa pelo
espaço “de fora”, espaço heterogêneo que é visto pelo pensador sob duas instâncias:
utopias, tratadas como espaços reais, e heterotopias, como utopias realizadas, “lugares
que estão fora de todos os outros lugares”. Dessa forma, pode-se dizer que lugares
heterotópicos dialogam com a circunferência, com o Aleph.
200
BAKHTIN. Questões de literatura e estética, p. 212.
201
Mikhail Bakhtin em “Biografia e autobiografia antigas”, terceiro ensaio de “Formas de tempo e de
cronotopo do romance”, aborda o desenvolvimento de uma série de formas biográficas e autobiográficas
notáveis, baseadas “em um novo tipo de tempo biográfico e em uma nova imagem especificamente
construída do homem que percorreu o seu caminho de vida”. Essas formas, na Antigüidade, não eram
obras de caráter livresco, mas cívico-políticos, relacionadas ao cronotopo real. Nas épocas posteriores, o
homem, privado e isolado, perdeu a unidade: “A consciência que ele tem de si mesmo, tendo perdido o
cronotopo popular da praça pública, não pôde encontrar outro cronotopo tão real, único e íntegro; assim
ele desintegrou-se e desuniu-se, tornou-se abstrato e ideal.” BAKHTIN. Questões de literatura e estética,
p. 254.
202
A referência de Foucault ao “espaço de dentro”, carregado de qualidades intrínsecas, é uma alusão ao
espaço do imaginário. Cf. BACHELARD. A poética do espaço.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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86
Jorge Luis Borges traçou um universo não em sua forma circular, no
formato do globo, mas em sua dimensão horizontal e lisa,
203
a da escrita. Contrariando a
máxima de Daneri, o moderno Borges foi atrás da montanha e, a partir de seus
deslocamentos espaciais, de suas viagens, construiu seu Atlas, um universo desenhado
por suas leituras, memória e palavras ditadas.
2.3 UMA CARTOGRAFIA DO ATLAS
Ao se recordar da década de 1960, Borges percebeu que fora muito errante.
A fama que, como a cegueira, chegou-lhe aos poucos propiciara ao já velho escritor
incontáveis viagens pelo mundo – palestras, premiações, reconhecimentos – que
sugeriram muitas fotografias e textos. Publicado dois anos antes da morte do autor,
Atlas é um livro constituído de viagens.
Descobrir o desconhecido não é uma especialidade de Simbad, de
Érico, o Vermelho, ou de Copérnico. Não há um único homem que
não seja um descobridor. Começa descobrindo o amargo, o salgado, o
côncavo, o liso, o áspero, as sete cores do arco e as vinte e tantas
letras do alfabeto; passa pelos rostos, pelos mapas, pelos animais e
pelos astros; conclui pela dúvida ou pela fé e pela certeza quase
absoluta de sua própria ignorância.
204
No prefácio do livro, Jorge Luis Borges remete às narrativas de viajantes e a
escritos de cientistas clássicos da literatura ocidental: Simbad, Érico, o Vermelho, e
Copérnico, que têm em comum o ato de “descobrir o desconhecido”. Paradoxalmente,
203
DELEUZE; GUATTARI. Mil Platôs, p. 179-214.
204
BORGES. Atlas [1999], p. 455. “Descubrir lo desconocido no es una especialidad de Simbad, de Erico
el Rojo o de Copérnico. No hay un solo hombre que no sea un descubridor. Empieza descubriendo lo
amargo, lo salado, lo cóncavo, lo liso, lo áspero, los siete colores del arco y las veintitantas letras del
alfabeto; pasa por los rostros, los mapas, los animales y los astros; concluye por la duda o por la fe y por
la certidumbre casi total de su propia ignorancia.” BORGES. Atlas [1984], p. 7.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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generaliza e particulariza esse atributo humano que se justifica pela ignorância.
Descobrir e conhecer são verbos recorrentes em narrativas de viagem. Um dos únicos
textos críticos dedicados ao livro é “Borges viajero: notas sobre Atlas”, de Sylvia
Molloy.
205
A reflexão de Molloy é introduzida por observações acerca da insólita
fotografia da capa do livro, que registra os momentos anteriores a uma viagem de balão
realizada por Borges e sua companheira na Califórnia. No balão, passeiam cinco
pessoas, mas a imagem retrata quatro: dois homens do lado de dentro da cesta, que
parecem fazer os últimos preparativos para o vôo, e María Kodama e Jorge Luis Borges
ao centro. Borges aparece com um largo sorriso e, com a cabeça virada, lança seu olhar
para Kodama.
Molloy menciona o caráter emblemático e paradoxal da fotografia, que
imprime ação ao curioso livro, produto de um turismo privado de visão, e observa que o
tema do “olhar mediado” não é novidade em Borges, pois ele já praticava o “olhar
oblíquo”/“olhar abstrato” ao assumir em seus textos o olhar do “outro”. A única maneira
pela qual Borges “via” Buenos Aires em sua primeira poesia era através do olhar de
seus antepassados, os que “viram” a cidade no oitocentos, antes da passagem do século.
Finalizando essas considerações iniciais, Sylvia Molloy lança duas perguntas dignas de
serem transcritas:
Mas este olhar mediado, que coincide em Atlas com uma realidade
biográfica não é por acaso condição necessária de toda viagem? Não
se conta sempre com o olhar do outro que já viu, que já descreveu, que
deu forma ao que vemos pela primeira vez?
206
205
MOLLOY. Las letras de Borges y otros ensaios, p. 243-246.
206
MOLLOY. Las letras de Borges y otros ensaios, p. 243. “Pero esta mirada mediada, que coincide en
Atlas con una realidad biográfica ¿no es acaso condición necesaria de todo viaje? ¿No se cuenta siempre
con la mirada del otro que ya ha visto, que ya ha descrito, que ha dado forma a lo que vemos por primera
vez?” (Tradução minha)
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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As noventa e quatro páginas de Atlas desenham uma cartografia com
quarenta e seis textos e diversas fotografias que traçam instantâneos de lugares visitados
pelo escritor argentino em suas viagens últimas pelo mundo na companhia de María
Kodama. A origem do livro, publicado pela primeira vez em 1984 numa edição de luxo,
partiu de observações das imagens dos percursos borgianos feitas pelos amigos Alberto
Girri e Enrique Pezzoni, como expõe o prólogo:
No grato decurso de nossa residência na terra, María Kodama e eu
percorremos e saboreamos muitas regiões, que sugeriram muitas
fotografias e muitos textos. Enrique Pezoni [...] viu-as; Girri observou
que poderiam entrelaçar-se em um livro, sabiamente caótico. Eis aqui
esse livro. Não consta de uma série de textos ilustrados por fotografias
nem de uma série de fotografias explicadas por uma epígrafe. Cada
título abrange uma unidade, feita de imagens e de palavras.
207
As unidades de imagens e palavras são instantâneos textuais de uma viagem
paradoxal, emanam da transformação do mundo em palavras, traçando a reconstituição
de sonhos ocorridos durante as viagens, de lugares recuperados pelo deslocamento e
pela viagem que é, sempre, literatura. São roteiros, páginas de uma aventura
compartilhada, como revela Borges:
María Kodama e eu compartilhamos com alegria e com assombro o
achado de sons, de idiomas, de crepúsculos, de cidades, de jardins e de
pessoas, sempre diferentes e únicas. Estas páginas desejariam ser
monumentos dessa longa aventura que prossegue.
208
207
BORGES. Atlas [1999], p. 455. “En el grato decurso de nuestra residencia en la tierra, María Kodama
e yo hemos recorrido y saboreado muchas regiones, que sugirieron muchas fotografías y muchos textos.
Enrique Pezzoni […] las vio; Girri observó que podrían entretejerse en un libro, sabiamente caótico. He
aquí ese libro. No consta de una serie de textos ilustrados por fotografías o de una serie de fotografías
explicadas por un epígrafe. Cada título abarca una unidad, hecha de imágenes y de palabras.” BORGES.
Atlas [1984], p. 7.
208
BORGES. Atlas [1999], p. 8. “María Kodama e yo hemos compartido con alegría e con assombro el
hallazgo de sonidos, de idiomas, de crepúsculos, de ciudades, de jardines y de personas, siempre distintas
y únicas. Estas páginas querrían ser monumentos de esa larga aventura que prosigue.” BORGES. Atlas
[1984], p. 7.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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Monumento é uma palavra implicitamente recorrente no livro. Sua raiz
latina, monumentum – o que traz à memória, lembrança –, e as equivalentes em inglês,
língua que Borges havia desejado ter sido sua por direito de nascimento, memorial e
monument, remontam à deusa grega da memória, Mnemosine, adotada pelos romanos
como Moneta (Juno), em cujo templo atiravam-se moedas.
209
FIGURA 5 – Jorge Luis Borges e a Deusa Gálica, [s.d.]. Foto de
María Kodama.
Fonte: BORGES. Atlas [1984], p. 9.
209
MANGUEL. Lendo imagens, p. 273.
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90
A viagem de Borges pelo Atlas se inicia na Galícia, com alusões ao Império
Romano e à mitologia. O primeiro texto, “A deusa gálica”, aparece junto da fotografia
de Borges, de olhos fechados, recostado na parede de um museu, ao lado da deusa de
madeira queimada (Diana ou Minerva). Segundo o viajante, ela já estava ali, antes de
César e Roma terem chegado, e surge sem mitologia, sem história e com o surdo clamor
de gerações passadas. “É uma coisa quebrada e sagrada que nossa ociosa imaginação
pode enriquecer irresponsavelmente”,
210
registra. O enriquecimento desse monumento
pela imaginação se aproxima da idéia de texto-monumento assegurada por Alberto
Manguel:
Uma construção é uma espécie: um monumento, o indivíduo. Tal
como a música, lida tanto pela partitura quanto pelo conteúdo,
monumentos compreendem um texto, mas um texto cujos vários
significados existem apenas em nossa interpretação.
211
A significação do monumento, então, é determinada pelo seu espectador. No
caso de Borges, ele se vê diante de um monumento sem sentido aos olhos do presente,
como as “serpentes e caveiras”
212
do território mexicano visitado pelo Palomar de Italo
Calvino. Em sua viagem, Palomar constata que os monumentos das ruínas de Tula,
antiga capital dos toltecas, chegam sem significado, vazios, para “os descendentes dos
construtores daqueles templos”, ao presenciar as explicações de um professor a um
grupo de estudantes que, diante dos monumentos, após informações factuais, acrescenta
210
BORGES. Atlas [1999], p. 457. “Es una cosa rota y sagrada que nuestra ociosa imaginación puede
enriquecer irresponsablemente.” BORGES. Atlas [1984], p. 10.
211
MANGUEL. Lendo imagens, p. 273.
212
CALVINO. Palomar, p. 88-90.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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invariavelmente: “Não se sabe o que querem dizer.”
213
Borges, entretanto, busca a
mitologia e a história dos monumentos por ele visitados, ou melhor, Borges dialoga com
a obra, pois, valendo-se novamente de Manguel: “Para tornar-se uma leitura
iluminadora, a obra de arte deve nos forçar a um compromisso, a um confronto, deve
oferecer uma epifania, ou ao menos um lugar para dialogar.”
214
Semelhante leitura
iluminadora é conquistada por Borges em “O totem”.
Diante da fotografia de um totem canadense, o viajante, que por hora
assume a cifra de espectador, remete ao protótipo platônico, via Plotino de Alexandria e
Pascal, que argumentaram contra a reprodução de imagens, e se refere à imagem como
uma “sombra da sombra de uma sombra”.
215
O alto símbolo sagrado, aparentemente
sem culto e deslocado, aguça a imaginação borgiana: “Sabemos essas coisas e, no
entanto, nossa imaginação deleita-se com a idéia de um totem no desterro, de um totem
que obscuramente exige mitologias, tribos, encantamentos e talvez sacrifícios.”
216
A
recorrência da memória na tradição platônica é freqüentemente associada à idéia da
lembrança como viagem e da memória como percurso preestabelecido.
Essas associações foram referidas por Fausto Colombo, que tratou da
relação entre imagem e memória em seu livro Os arquivos imperfeitos. A partir da lenda
de Simônedes, cujo segredo era colocar a lembrança em lugares exatos para dali tirá-las
em momentos de necessidade, o estudioso empreende considerações sobre a evolução
213
CALVINO. Palomar, p. 89.
214
MANGUEL. Lendo imagens, p. 286.
215
BORGES. Atlas [1999], p. 458. “[...] sombra de la sombra de una sombra.” BORGES. Atlas [1984], p.
11.
216
BORGES. Atlas [1999], p. 458. “Sabemos estas cosas y sin embargo nuestra imaginación se complace
con la idea de un totem en el destierro, de un totem que oscuramente exige mitologías, tribus,
incantaciones y acaso sacrificios.” BORGES. Atlas [1984], p. 12.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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92
dos sistemas mnemônicos. Segundo Colombo, Giordano Bruno revolucionou a
convencional relação entre localização e imagem defendida por Simônedes e pelos
mestres oradores, em que a natureza discursiva do processo mnemônico podia encontrar
apoio na metáfora da viagem, do deslocamento espacial. Giordano Bruno viu que o
mundo, como suporte das recordações, não é mais que a fachada, a aparência de uma
trama celeste e, dessa forma, intui a possível e definitiva identificação entre memória e
saber, ou, usando as palavras de Colombo, de um saber mnemônico que enforma o
mundo e “assume sempre com maior intensidade os contornos da lembrança, da
memória espacializada e traduzida, do saber como viagem e do conhecimento como
descoberta dirigida e desejada”.
217
Retomando os dois textos de Borges referidos acima, poder-se-ia dizer que
o viajante de Atlas detém um saber mnemônico que enforma seu mundo. É através da
lembrança, do desejo de leitura dos monumentos que se lhe atribuem significados, pois
a deusa gálica ou o totem canadense, em seus contextos – no museu e na praça pública,
respectivamente – aparecem deslocados, desprovidos de suas mitologias e significados.
Borges olha o invisível, vê pela memória e sentidos os espaços percorridos. Na
“Irlanda”, sombras impedem que o escritor perceba o país de modo histórico. As
sombras são enumeradas: a Erígena, “para quem toda a nossa história é um longo sonho
de Deus”; George Berkeley, “que julgou que Deus está minuciosamente sonhando-nos e
que se Ele despertasse do seu sonho desapareceriam o ceú e a terra”; Oscar Wilde, “que
de um destino não sem infortúnio e desonra deixou uma obra”; Wellington, “que, depois
da jornada de Waterloo, sentiu que uma vitória não é menos terrível que uma
217
COLOMBO. Os arquivos imperfeitos, p. 37.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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derrota”;
218
Yeats e Joyce, “que usaram a prosa ou o verso para um mesmo fim, a
beleza”; e George Moore, que, em “Ave Atque Vale”, criou um gênero literário.
Para Borges, esses vultos se interpõem entre o muito que recorda e o pouco
que pôde perceber durante os três dias de estada na Irlanda. De todas as recordações, a
mais vívida, diz o viajante: “é a Torre Redonda, que não vi, mas que minhas mãos
apalparam, onde monges que são nossos benfeitores salvaram para nós em duros tempos
o grego e o latim, ou seja, a cultura.”
219
A Torre Redonda é reconhecida pelos sentidos
e pela memória. Ela merece duas das três fotografias da unidade, e é vista como uma
edificação que persiste no tempo e no espaço, carregando em si o atributo de ter sido o
guardião da cultura ocidental, ou melhor, de ter sido abrigo das obras (livros) que os
monges salvaram, como o bibliotecário da biblioteca babélica.
Em meio a esse reconhecimento ativado pelas recordações, percebe-se
também uma Irlanda física e humana: “Para mim, a Irlanda é um país de gente
essencialmente boa, naturalmente cristã, arrebatados pela curiosa paixão de serem
incessantemente irlandeses.” Entretanto, a passagem que finda o texto é uma reverência
à literatura: “Caminhei pelas ruas que percorreram, e continuam a percorrer, todos os
218
BORGES. Atlas [1999], p. 460. “[...] para quien toda nuestra historia es un largo sueño de Dios [...]que
juzgó que Dios está minuciosamente soñándo y que se despertara de su sueño desapareceríam el cielo y la
tierra [...]que de un destino no sin infortunio y deshonra ha dejado una obra [...] que, después de la
jornada de Waterloo, sintió que una victoria nos es menos terrible que una derrota”[...] “que usaron la
prosa o el verso para un fin, la beleza [...].”BORGES. Atlas [1984], p. 14-16.
219
BORGES. Atlas [1999], p. 460. “[...] es la Torre Redonda que no vi pero que mis manos tantearon,
donde monjes que son nuestros bienhechores salvaron para nosotros en duros tiempos el griego y el latín,
es decir, la cultura.” BORGES. Atlas [1984], p. 15-16.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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habitantes do Ulisses.”
220
A Irlanda desenhada pelas letras de James Joyce é aquela
identificada pelo flâneur nas ruas, onde ainda caminham os personagens da ficção.
Os fantasmas borgianos continuam a habitar a lisura do Atlas. No oriente,
em “Estambul”, Borges retoma Cartago, cuja caluniada cultura é tida como exemplo
para apontar a impossibilidade de destruição da história e cultura do país identificado
com a crueldade assinalada pelas Cruzadas.
Por aqui andarão os fantasmas de muitas e diversas nações; prefiro
pensar que os escandinavos formavam a guarda do imperador de
Bizâncio, aos quais se uniram os saxões que fugiram da Inglaterra
depois da jornada de Hastings.
221
O viajante se pergunta o que é possível saber da Turquia após três dias e
aponta alguns monumentos e lugares: “Vi uma cidade esplêndida, o Bósforo, o Chifre
de Ouro e a entrada para o mar Negro, em cujas margens descobriram-se pedras
rúnicas.”
222
Observa, ainda, que ouvira um agradável idioma, um alemão mais suave. A
fotografia que ilustra a passagem por aquele território de combates entre cristãos e
mouros é a imagem de Borges na frente da Mesquita Azul, mas de costas para o templo,
e com a cabeça elevada e o olhar lançado para a imensidão na direção de um dos
220
BORGES. Atlas [1999], p. 460. “Para mí Irlanda es un país de gente esencialmente buena,
naturalmente cristiana, arrebatados por la curiosa pasión de ser incesantemente irlandeses. Caminé por las
calles que recorrieron, y siguen recorriendo, todos los habitantes de Ulysses.” BORGES. Atlas [1984], p.
15.
221
BORGES. Atlas [1999], p. 462. “Por aquí andarán los fantasmas de muchas y diversas naciones;
prefiero pensar que los escandinavos formaban la guardia del emperador de Bizancio, a los que unieron
los sanjones que se huyeron de Inglaterra después de la jornada de Hastings.” BORGES. Atlas [1984], p.
18.
222
BORGES. Atlas [1999], p. 462. “He visto una ciudad expléndida, el Bósforo, el Cuerno de Oro y la
entrada al Mar Negro, en cujas márgenes se decubrieron piedras rúnicas.” BORGES. Atlas [1984], p. 18.
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minaretes da mesquita: “Não resta dúvida de que devemos voltar à Turquia para
começar a descobri-la.”
223
O segundo texto-imagem adiante, no percurso traçado, mostra a direção do
Oriente: Veneza, “um dos pontos de encontro entre o Ocidente e o Oriente”.
224
O
fragmento se abre com uma descrição da natureza – “Os penhascos, os rios que têm seu
berço nos cumes, a fusão das águas desses rios com o mar Adriático”– e da história e
conquistas do lugar logo identificado com a busca dos papéis de Aspern, Dandalo,
Carpaccio, Petrarca, Shylock, Byron, Beppo, Ruskin e Marcel Proust, autores e
personagens num mesmo estatuto de reconhecimento. As cenas épicas da história da
independência da antiga república de Veneza são elevadas na topografia da escrita:
“Altos na memória estão os capitães de bronze que invisivelmente entreolharam-se há
séculos, nos dois extremos de uma longa planície.”
225
Alto na memória também está o “Templo de Poseidón”. As duas fotografias
que ilustram a unidade exalam duplamente o caráter de monumento. A segunda é uma
imagem das colunas do templo e, por entre elas, vêem-se as sombras de dois homens,
durante um crepúsculo. Poderia ser uma das sombras a do já velho corpo de Borges?
Essa fotografia de luz e sombra, um daguerreótipo, pretende registrar e fazer lembrar o
próprio templo e o próprio momento em que a fotografia foi feita. E se o escritor cego
223
BORGES. Atlas [1999], p. 462. “Es indudable que debemos volver a Turquía para empezar a
descubrirla.” BORGES. Atlas [1984], p. 18.
224
BORGES. Atlas [1999], p. 465. “[...] uno de los puntos en que se encuentran el Occidente y el
Oriente”. BORGES. Atlas [1984], p. 23.
225
BORGES. Atlas [1999], p. 465. “Los penhascos, los ríos que tienen su cuna em las cumbres, la fusíon
de las aguas de essos ríos con las del Mar Adriático[...].” “Altos en la memoria están los capitanes de
bronce que invisiblemente se miran desde hace siglos, en los dos términos de una larga llanura.”
BORGES. Atlas [1984], p. 23-24.
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opta pela inserção de simulacros (fotografias) é porque tem consciência de que a
imagem encerra, na ausência do objeto que a reproduz, um certificado de presença.
Para Roland Barthes, com o advento da fotografia, “o passado é a partir de
agora tão seguro como o presente, aquilo que se vê no papel é tão real como aquilo que
se toca”.
226
As fotografias, intimamente ligadas à prosa e a poesia do livro de viagem, só
podem ser vistas pelo leitor de Atlas, já que a relação entre imagem e texto é uma
relação “imaginada pelo escritor”, que se revela um escritor-viajante seletivo e, apesar
da cegueira, leitor constante, um descobridor de tempos e espaços heterotópicos. Borges
não vê o Templo de Poseidon, mas o imagina e o constrói literariamente, bem como
todos os lugares e objetos, cujas imagens são registradas pela câmera de María Kodama.
As unidades de fotografia e texto parecem conjugar o monumento e o trivial. A
escultura de um grande botão exposta em uma praça da Filadélfia tem sua imagem
impressa na extensão de quase toda uma página. “Para não ver não é imprescindível
estar cego ou fechar os olhos; vemos as coisas de memória, como pensamos de memória
repetindo idênticas formas ou idênticas idéias”,
227
registra o escritor sobre o
monumento. Segundo Borges, o escultor viu o instrumento cotidiano e compreendeu
que, para transmitir a revelação dessa coisa simples, havia de aumentar seu tamanho.
Outros objetos e seres triviais são dignos da catalogação borgiana, como o
totem canadense, uma sobremesa, os cemitérios (da Irlanda e de Genebra), rios, lagos e
fontes, um punhal ou um brioche. Diante das projeções dessas coisas impressas e não
vistas pelo escritor, observa-se que a cegueira, de certa forma, provoca o distanciamento
226
BARTHES. A câmara clara, p. 58.
227
BORGES. Atlas [1999], p. 476. “Para no ver no es imprescindible estar ciego o cerrar los ojos; vemos
las cosas de memória, como pensamos de memória repitiendo idénticas formas o idénticas ideas”.
BORGES. Atlas [1984], p. 43.
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do mundo das aparências e a incursão no mundo das idéias, à maneira de Platão, que
para Borges é um mundo construído pela memória e pela leitura. Em “Meu último
tigre”, Borges declara que a leitura está tão entrelaçada em seus hábitos que ele não sabe
se o seu primeiro tigre fora aquele da gravura de uma enciclopédia ou o morto que vira
em uma jaula. Recorda, ainda, dos tigres visuais de “Montaner e Simon” e dos feitos de
palavras por Blake e Anita Berry. “Gostaria de me lembrar, e não consigo, de um
sinuoso tigre traçado pelo pincel de um chinês, que nunca vira um tigre, mas que sem
dúvida vira o arquétipo do tigre”,
228
registra Borges ao se referir ao tigre platônico que
povoou sua mente até que um amigo, Cuttini, revelou-lhe um tigre “de carne e osso” em
um zoológico. A fotografia da unidade imprime Borges entre três homens, sentado
sobre um tronco e acariciando o seu último tigre. Os tigres de gravura e de palavras são
ditos como precursores desse tigre de carne e osso, agora impresso pela imagem
fotográfica no livro borgiano.
Outras imagens impressas desde as primeiras páginas são a grande metáfora
do rio que desponta no texto borgiano:
Pascal escreve que os rios são caminhos que andam; os canais de
Veneza são os caminhos por onde andam as enlutadas gôndolas, que
tem algo de enlutados violinos e que também lembram a música
porque são melodiosas.
229
228
BORGES. Atlas, p. 479. “Querría recordar, y no puedo, un sinuoso tigre trazado por el pincel de um
chino, que no había visto nunca un tigre, pero que sin duda había visto el arquetipo del tigre.” BORGES.
Atlas [1984], p. 48.
229
BORGES. Atlas [1999], p. 465. “Pascal escribe que los ríos son caminos que andan; los canales de
Venecia son los caminos por los que andan las enlutadas góndolas que tienen algo de enlutados violones y
que también recuerdan la música porque son melodiosas.” BORGES. Atlas [1984], p. 24-25.
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Os rios primeiros, simbolicamente, serviram como elementos provocadores
da curiosidade e condutores das idéias do menino Georgie: o de la Plata e o Ródamo. A
amizade entre o homem e a água é heracliteanamente tratada como essencial e
misteriosa; essencial “porque somos feitos não de carne e osso, mas de tempo, de
fugacidade, cuja metáfora imediata é a água”.
230
As fontes de várias cidades são
referendadas com palavras e pela impressão de suas imagens no Atlas borgiano.
Segundo o escritor, em todas as cidades há fontes, mas suas razões de existirem são
diferentes: nas nações agarenas, procedem de uma antiga nostalgia dos desertos; na
Itália, da necessidade da beleza; na Suíça, surgem do fato de as cidades quererem estar
mais próximas dos Alpes e ter suas cascatas. Já as fontes de Buenos Aires, que talvez
sejam as das fotografias, são tidas como mais visíveis e ornamentais que as de Genebra
ou da Basiléia. Sem referência textual alguma à água, o texto “Ars Magma” carrega a
ilustração de uma fotografia de Borges diante de uma fonte, com um caneco nas mãos e
com olhar fixo na imagem cristã de um Bom Pastor em azulejos. A cena foi captada em
Palma de Maiorca, próxima a uma esquina da rua Raymundo Lulio.
A junção do rio Ródamo com o Arve eleva à memória do viajante a
mitologia, pois “tudo o que tange a água é poético e nunca deixa de inquietar-nos”.
231
Estando às margens do Ródamo, o escritor se prende à memória pessoal, a de seus
antepassados e não deixa de mencionar que ali foram sepultados os restos mortais de
sua avó materna, Leonor Suárez de Acevedo. Outro rio rememorado e reverenciado é
230
BORGES. Atlas [1999], p. 490. “[...] porque estamos hechos, no de carne y hueso, sino de tiempo, de
fugacidad, cuya matáfora immediata es el agua.” BORGES. Atlas [1984], p. 63.
231
BORGES. Atlas [1999], p. 496. “[...] todo lo que atañe al agua es poético y nunca deja de
inquietarnos.” BORGES. Atlas [1984], p. 73.
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Satubbach de Lauterbrunnen, “o Ribeirão de Pó da Fonte Puro”,
232
que lhe fora revelado
por volta de 1916, quando ouvira o rumor da água vertical e pesada que desabava das
alturas em um poço de pedra. Este mesmo poço está na fotografia que, com aquela da
junção entre Ródamo e Arve e outras, vai compondo as paisagens da memória borgiana,
lugares cujas materialidades exalam afinidades e, conseqüentemente, identidades.
FIGURA 6 – Jorge Luis Borges em Palma de Maiorca, [s.d.].
Foto de María Kodama.
Fonte: BORGES, Atlas [1984], p. 71.
A ocorrência de outra metáfora, a da leitura, para o reconhecimento de seres
e lugares é válida também para a identificação borgiana do mito de Prometeu, quando o
232
BORGES. Atlas [1999], p. 502. “[...] el Arroyo de Polvo de la Fuente Pura” BORGES. Atlas [1984], p.
85.
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escritor, no teatro de Epidauro, precisa tentar recordar versões em castelhano da tragédia
que lera há décadas:
Como quem vê de longe uma batalha, como quem aspira o ar salobre e
ouve a lide das ondas e já o mar, como quem entra em um país ou em
um livro, assim foi-me dado assistir ontem à noite a uma
representação de Prometeu Acorrentado no alto teatro de Epidauro.
Minha ignorância do grego é tão grande como a de Shakespeare, salvo
no caso das muitas palavras helênicas que designam instrumentos ou
disciplinas que os gregos ignoraram.
233
A utilização da metáfora do livro como espaço a ser percorrido enriquece o
sentido cartográfico de Atlas. A tentativa de entender o texto em grego pronunciado
pelos atores no teatro original e a certeza de sua ignorância da língua, ou uma forma de
reconhecimento dela, fazem-no aproximar-se de Shakespeare. Logo também pensa em
Hugo e em Shelley e no “mito que já é parte da memória universal dos homens”.
234
A
essa memória universal compartilhada soma-se a memória pessoal do escritor que
imprime sua experiência de vida no texto de viagem, como um relato: “Para além dos
versos, que os atores, creio, não escandiam, e da ilustre fábula, esse profundo rio, na
profunda noite, foi meu.”
235
Esse compartilhar também ocorre em outros espaços, como no ar, por
ocasião do passeio de balão junto de Kodama, na Califórnia. “O passeio, que duraria
233
BORGES. Atlas, p. 477. “Como quien ve de lejos una batalla, como quien aspira el aire salobre y oye
la tarea de las olas y ya presiente el mar, como quien entra en un país o en un libro, así antenoche me fue
dado asistir a una representación del Prometeu Encadenado en el alto teatro de Epidauro. Mi ignorancia
del griego es tan perfecta como la de Shakespeare, salvo en el caso de las muchas palabras helénicas que
designan instrumentos o disciplinas que ignoraron los griegos.” BORGES. Atlas [1984], p. 44.
234
BORGES. Atlas [1999], p. 477. “Pense el mito que ya es parte de la memoria universal de los
hombres.” BORGES. Atlas [1984], p. 44.
235
BORGES. Atlas [1999], p. 477. “Mas allá de los versos, que los actores, creo, no escandían, y de la
ilustre fábula, esse profundo rio, en la profunda noche, fue mío.” BORGES. Atlas [1984], p. 45.
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101
uma hora e meia, era também uma viagem por aquele paraíso perdido que constitui o
século XIX. Viajar no balão imaginado por Montgolfier era também voltar às páginas
de Poe, de Júlio Verne e de Wells”,
236
registra Borges. Autores e obras de sua biblioteca
são cartografados em seu Atlas: Plotino de Alexandria, Yeats, Ulisses, Joyce,
Shakespeare, Homero, Platão e tantos outros são visitados em suas origens. No texto
“Nota ditada em um hotel do Quartier Latin”, Borges reconstrói a vida de Wilde no
lugar onde este escolheu para morrer e declara: “Pensar nele é pensar em um amigo
íntimo, que nunca vimos mas cuja voz conhecemos, e cuja falta sentimos todos os
dias.”
237
É desse olhar mediado, saqueando sempre o arquivo europeu, que parte a
estratégia da construção textual da experiência vivida pelo escritor, que não se coloca na
tarefa de explicar, de reproduzir, de retratar, no sentido realista da palavra, experiência
da viagem.
Toda palavra pressupõe uma experiência compartilhada. Se alguém
nunca viu o vermelho, é inútil que eu o compare com a sangrenta lua
de São João, o Teólogo, ou com a ira; se alguém ignora a peculiar
felicidade de um passeio de balão, é difícil que eu consiga explicá-
la.
238
Esse fragmento de “A viagem de balão” possibilita pensar a estratégia de
construção da experiência vivida por Borges viajante, que implica o processo de
236
BORGES. Atlas [1999], p. 470. “El paseo, que duraria uma hora e media, era también una viaje por
aquel paraíso perdido que constituye el siglo diecinueve. Viajar en el globo imaginado por Montgolfier
era también volver a las páginas de Poe, de Julio Verne y de Wells.” BORGES. Atlas [1984], p. 33-34.
237
BORGES. Atlas [1999], p. 494. “Pensar en él es pensar en un amigo íntimo, que no hemos visto nunca
pero cuya voz conocemos, y que extrañamos cada día.” BORGES. Atlas [1984], p. 69.
238
BORGES. Atlas [1999], p. 469. “Toda palabra presupone una experiencia compartida. Si alguien no ha
visto nunca el rojo, es inútil que yo compare con la sangrienta luna de San Juan el Teólogo o con la ira; si
alguien ignora la peculiar felicidad de un paseo en globo es difícil explicársela.” BORGES. Atlas [1984],
p. 30.
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revelação de sua subjetividade pessoal e literária. “Toda palavra pressupõe uma
experiência compartilhada”. Essa afirmação indicaria a possibilidade da exclusão de
métodos realistas pelo escritor-viajante, que não se coloca na tarefa de explicar a
viagem de balão, e, dessa forma, indicaria também uma das posições do escritor: fuga
do realismo e aversão à narrativa/ao romance, “uma espécie de rechaço da
representação realista do real”.
239
Em “Borges novelista”, Juan Jose Saer assinala a hostilidade de Jorge Luis
Borges para com a escrita de romances, assinalando a origem histórica dessa negativa
em seus precursores Paul Valéry e Macedonio Fernández. O crítico também aponta a
existência de outros tipos de literatura narrativa que não são romances e recorda o
clássico ensaio de Walter Benjamim, “O narrador”. Utilizando a distinção de
Benjamin,
240
Saer, metaforicamente, considera que narrador é aquele que viaja, que
explora, e romancista ou sedentário, “o que instalado em formas que estão vazias e que
não tem nenhum sentido, persiste, por assim dizer, em permanecer em um lugar
histórico que já não tem nenhum domínio sobre o real”.
241
Pressupõe-se que esse
narrador desponta nos textos em prosa e poesia de Atlas, que revelam uma peculiar
localização de características caras à narrativa: o tempo e o espaço, conjugados com o
saber narrativo do escritor-viajante.
239
SAER. El concepto de ficción, p. 284. “[...] una especie de rechazo da la representación realista de lo
real.” (Tradução minha)
240
Benjamin faz uma distinção entre “narrador” (aquele que viaja) e “romancista” (sedentário) e discorre
sobre a importância do relato daquele que viaja/viajou para terras distantes, sugerindo a fixação da
experiência do deslocamento que, quando findo, a transforma em sabedoria. BENJAMIN. Magia, técnica,
arte e política, p. 197-221.
241
SAER. El concepto de ficción, p. 283. “[...] el sedentario, es decir el que instalado en formas que están
vacías y que no tienen ningún sentido, persiste, por decir así, en permanecer em un lugar histórico que ya
no tiene ningún dominio sobre lo real.” (Tradução minha)
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Antes de uma viagem, fechados os olhos, juntas as mãos, abríamos o
Atlas ao acaso e deixávamos que as pontas de nossos dedos
adivinhassem o impossível, a aspereza das montanhas, a lisura do mar,
a mágica proteção das ilhas. A realidade era um palimpsesto da
literatura, da arte e das lembranças de nossa infância, tão semelhante
em sua solidão. [...] O tempo era Côncavo e protetor para nós,
entrávamos nele com Odín e Beppo, nossos gatos, nos cestos e nos
armários, com a mesma inocência e a mesma ávida curiosidade de
descobrir mistérios.
242
A curiosidade por descobrir e conhecer continua a dar sentido às viagens do
escritor no século XX e a seus registros, como revelou sua companheira Kodama no
epílogo de outra edição do livro, reforçando os anseios de Borges no prólogo original. O
deslocamento por lugares também se efetiva pelos sentidos, pelo contato com o áspero,
o liso, o côncavo. Deslocamentos simultâneos por lugares imaginários e físicos. Mas
não são lugares de todo imaginários, mas recriados pela memória de viagens anteriores
e por leituras. Espaços heterotópicos que emanam virtudes borgianas: a utilização do
paradoxo, do duplo, da história da literatura e de um tema universal. O Atlas, obra
menor, pode ser lido como um palimpsesto da arte e da vida de Borges, e da “realidade”
– para utilizar as palavras de sua companheira de viagem.
242
KODAMA in BORGES. Atlas [1999], p. 506 “Antes de un viaje, cerrados los ojos, juntas las manos,
abríamos al azar el atlas y dejábamos que las yemas de nuestros dedos adivinaran lo imposible, la
aspereza de las montañas, la tersura del mar, la mágica proteción de las islas. La realidad era un
palimpsesto de la literatura, del arte y de los recuerdos de nuestra infancia, tan semejante en su soledad.
[...] El tiempo era cóncavo y protector para nosotros, entrábamos en él como Odín e y Beppo nuestros
gatos en los canastos y en los armarios, con la misma inocencia y la misma ávida curiosidad para
descubrir misterios.” BORGES. Atlas [1989], p. 451.
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Borges parece desconstruir o modelo tradicional de literatura de viagem que
se apresenta na forma de apontamentos e narrativas científicas. A sua viagem projeta
uma literatura em que se delineia a subjetividade. Como muitas vezes aponta o escritor
argentino, cabe ao leitor terminar o texto. Assim, a literatura de viagem de/por Atlas se
construiria como a leitura de um “fazedor” de suas viagens labirínticas, sejam físicas ou
pela memória. Por falar em labirinto, o escritor-viajante esteve na ilha de Creta e essa
passagem deu origem a uma seqüência de três imagens do lugar e a outra bela fotografia
dele sentado em uma das milenares escadas. A construção textual sugere uma forma
labiríntica, firmando a circularidade borgiana:
Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o
Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que
Dante imaginou como touro com cabeça de homem e em cuja rede de
pedra perderam-se tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo
centro foi o Minotauro que Dante imaginou como touro com cabeça
de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, como
María Kodama e eu nos perdermos. Este é o labirinto de Creta cujo
centro foi o Minotauro que Dante imaginou como touro com cabeça
de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, como
María Kodama e eu nos perdermos naquela manhã e continuamos
perdidos no tempo, esse outro labirinto.
243
Nesse fragmento aparece a relação entre as categorias da espacialidade e
temporalidade, a qual remete às considerações de Gilles Deleuze,
244
que desloca a
questão da origem e do tempo para o acontecimento presente, instaurando outra
243
BORGES. Atlas [1999], 488. “Este es el laberinto de Creta. Este es el laberinto de Creta cuyo centro
fue el Minotauro. Este es el laberinto de Creta cuyo centro fue el Minotauro que Dante imaginó como un
toro con cabeza de hombre y en cuya red de piedra se perdieron tantas generaciones. Este es el laberinto
de Creta cuyo centro fue el Minotauro que Dante imaginó como un toro con cabeza de hombre y en cuya
red de piedra se perdieron tantas generaciones como Maria Kodama y yo nos perdimos. Este es el
laberinto de Creta cuyo centro fue el Minotauro que Dante imaginó como un toro con cabeza de hombre y
en cuya red de piedra se perdieron tantas generaciones como Maria Kodama y yo nos perdimos en aquella
mañana y seguimos perdidos en el tiempo, ese otro laberinto.” BORGES. Atlas [1984], p. 60.
244
DELEUZE apud SOUZA. O século de Borges, p.89.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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dimensão espacial, em que o desenho chapado e liso da superfície substitui a busca de
significação nas camadas espaço-temporais dos textos. Para Eneida Maria de Souza:
A temporalidade, entendida como contrapartida da espacialidade,
constitui uma das categorias capazes de motivar a reflexão sobre a
estreita vinculação entre literatura e cultura, entre a nebulosa
aproximação ou distância entre territórios geográficos.
245
FIGURA 7 – Jorge Luis Borges no Labirinto, Creta, [s.d.]. Foto
de María Kodama.
Fonte: BORGES, Atlas [1984], p. 60.
Essa noção espaço-temporal, contudo, aparece em outros pontos do Atlas de
Borges, como na necessidade de voltar à Turquia para começar a descobri-la, ou no
desterritorializante tratamento dirigido a Genebra, em especial:
245
SOUZA. O século de Borges, p. 89.
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De todas as cidades do planeta, das diversas e íntimas pátrias que um
homem vai procurando e merecendo, Genebra parece-me a mais
propícia para a felicidade. Devo-lhe, a partir de 1914, a revelação do
francês, do latim, do alemão, do expressionismo, de Schopenhauer, da
doutrina de Buda, do taoísmo, de Conrad, de Lafcadio Hearn e da
saudade de Buenos Aires. Também a do amor, a da amizade, a da
humilhação e a da tentação do suicídio. Na memória tudo é grato, até
a desventura. Essas razões são pessoais; direi uma de ordem geral é
enfática. Diferentemente de outras cidades, Genebra não é enfática.
Paris não ignora que é Paris, a decorosa Londres sabe que é Londres,
Genebra quase não sabe que é Genebra. As grandes sombras de
Calvino, de Rousseau, de Amiel e de Ferdinand Hodler estão aqui,
mas ninguém as lembra ao viajante. Genebra, um pouco à semelhança
do Japão, renovou sem perder seus outroras. Perduram as ruas
montanhosas da Vieille Ville, perduram os sinos, as fontes, mas há
também outra grande cidade de livrarias e comércios ocidentais e
orientais. Sei que voltarei sempre a Genebra, talvez depois da morte
do corpo.
246
Texto autobiográfico ou autoficção? Literatura de viagem ou prosa-poética?
Atlas é a penúltima obra publicada em vida por Borges, misto de prosa poética e poesia,
em que se volta, ironicamente, à origem oral da literatura e ao mito; refaz às avessas a
tradição ocidental, amparando-se na sombra de Homero e de outros precursores. A
literatura autobiográfica se faz como os textos de viagem, ambos apelam a
reconhecimentos diferentes. O autobiográfico necessita de leitores que o reconheçam
(discursivamente) e o autor de viagem necessita de leitores que reconheçam (não por
havê-lo visto antes) aquilo que descreve. De acordo com Molloy, os dois gêneros
246
BORGES. Atlas [1999], p.473. “De todas las ciudades del planeta, de las diversas e íntimas patrias que
un hombre va buscando y mereciendo en el decurso de los viajes, Ginebra parece la más propicia a la
felicidad. Le debo, a partir de 1914, la revelación del francés, del latín, del alemán, del expressionismo,
de Schopenhauer, de la doctrina del Buddha, del Taoísmo, de Conrad, de Lafcadio Hearn y de la nostalgia
de Buenos Aires. También la del amor, la de la amistad, la de la humillación, y la de la tentación del
suicidio. En la memoria todo es grato, hata la desventura. Esas razones son personales; diré una de orden
general. A diferencia de otras ciudades, Ginebra no es enfática. Paris no ignora que es Paris, la decorosa
Londres sabe que es Londres, Ginebra casi no sabe que es Ginebra. Las grandes sombras de Calvino, de
Rousseau, de Amiel Y de Ferdinand Hodler están aqui, pero nadie las recuerda al viajero. Ginebra, um
poco a semejanza del Japón, se há renovado sin perder sus ayeres. Perduran las callejas montañosas de la
Vieille Ville, perduram las campanas y las fuentes, pero también hay outra gran ciudad de librerías y
comercios occidentales y orientales. Sé que volveré siempre a Ginebra, quizá después de la muerte del
cuerpo.” BORGES. Atlas [1984], p. 38.
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apelam ao reconhecimento de uma convenção – as regras do jogo –; o primeiro, à
mimese de identidade, e o segundo, à mimese de experiência.
247
. Em Atlas a linha entre
os gêneros é muito tênue. O literário se dilui e se transforma através de seu caráter
intersticial, seja como texto-corpus ou como disseminador de conceitos da ficção e da
autobiografia. Nesse âmbito, partindo da discussão de conceitos sobre a representação
da viagem numa perspectiva teórica, é possível ler de forma também nova textos como
Atlas, considerado periférico na obra desse escritor consagrado, sobretudo, como
ficcionista.
FIGURA 8 – Jorge Luis Borges em Genebra, [s. d.]. Foto de María
Kodama.
Fonte: BORGES, Atlas [1984], p. 39.
Nesse sentido, a noção de “saber narrativo”, que desponta nas reflexões
acadêmicas, na crítica e na teoria da literatura contemporâneas, justifica-se pela perda
247
MOLLOY. Las letras de Borges y otros ensayos, p. 244.
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de características legitimadoras, que outrora possibilitavam um conhecimento exaustivo
e verossímil do real. Em “Do rigor à ciência”
248
, primeiro fragmento do texto “Museu”,
de O fazedor (1960), Jorge Luis Borges, ao fazer menção à busca da precisão do saber
científico, apresenta uma versão irônica de seu produto, através da imprecisão do
mundo reproduzido pela cartografia (mundo criado pela ciência), um mundo sem leitura
e sem crítica:
Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal Perfeição que
o Mapa duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do
império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas
Desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos
levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e
coincidia pontualmente com ele. Menos afeitas ao Estudo da
Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse extenso
Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do
Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas
Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o
País não resta outra relíquia das Disciplinas Geográficas.
249
Técnica de representação de realidades espaciais, a cartografia é assaltada
pela precisão científica. Nesse texto de Borges, entretanto, é transformada em simples
atividade de reprodução, o absurdo “ponto a ponto”. Cartografia e “disciplinas
geográficas” são tomadas como representantes de toda a ciência moderna que está
contaminada pelo rigor. O livro de viagem borgiano é um meio de cartografar, de
248
Embora Jorge Luis Borges indique a fonte/autoria de “Do rigor à ciência” – “(Suárez Miranda: Viajes
de Varones Prudentes, livro quarto, cap. XLV, Lérida, 1658.)” – esse fragmento apresenta-se como
intertexto de uma passagem de “O homem na lua”, de Lewis Carroll. CARROL. Sylvie e Bruno, p. 334-
339.
249
BORGES. O fazedor, p. 247. “En aquel Imperio, el Arte de la Cartografia logro tal Perfección que el
Mapa de una sola Provincia ocupaba toda uma Ciudad, y el Mapa del Imperio toda una Província. Con el
tiempo, esos Mapas Desmesurados no satisfacieron y los Colégios de Cartógrafos levantaron un Mapa del
Imperio que tenia el tamaño del Imperio y coincidia puntualmente con él. Adictos al Estudio de la
Cartografia, las Generaciones siguientes entendieron que ese dilatado Mapa era Inútil y no sin Impiedad
lo entregaron a las Inclemencias del Sol y de los Inviernos. En los desiertos del Oeste perduran
despedazadas Ruínas del Mapa, habitadas por Animales y por Mendigos; en todo el País no hay outra
relíquia de las Disciplinas Geográficas.” BORGES. Obras Completas v. 2 [1989], p. 225.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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109
miniaturizar o (seu) universo, metaforizado, antes, pela biblioteca de babel. A sugestiva
redução do orbe, para usar uma palavra do escritor, pode ser percebida pela disposição e
escolha das fotografias e textos-leitura. “Colecionar fotos é colecionar o mundo,”
escreveu Susan Sontag.
250
Atlas, como queria Borges, não é uma coletânea de textos
ilustrados por fotografias ou vice-versa: os “títulos” correspondem a unidades e, ao
serem organizados da forma em que são publicados, eles se apresentam como uma
coleção das viagens pessoais realizadas na penúltima década do século XX, em sua
maioria feitas e selecionadas por María Kodama. As junções das fotos aos textos
borgianos fazem do livro uma construção do escritor, uma performance. Várias fotos
parecem revelar poses do escritor, como aquelas editadas em “A deusa gálica”,
“Genebra”, “Meu último tigre”, “Hotel Esja, Reikiavik”, “Ars Magma”, “Madrid, julho
de 1982”, “Laprida, 1214”, “Colonia del Sacramento” e “De salvação pelas obras”.
Susan Sontag, em seus estudos Sobre fotografia, apresenta uma leitura
acerca da presença e influência das imagens no comportamento humano e o
entendimento da realidade. Para a pesquisadora, a realidade sempre foi interpretada por
imagens e os filósofos, desde Platão, tentaram amenizar essa dependência interpretativa,
mas o pensamento científico e humanístico do século XIX, uma era de descrença,
reforçou a lealdade às imagens. Segundo ela, “um sentido do real decididamente mais
complexo cria seus próprios fervores e simplificações compensatórios, entre os quais o
mais viciante é tirar fotos”.
251
Como as fotos dão às pessoas a posse imaginária de um
passado, também ajudam-nas a tomar posse de um espaço em que se acham inseguras.
Assim:
250
SONTAG. Sobre fotografia, p. 13.
251
SONTAG. Sobre fotografia, p. 178.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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110
A fotografia desenvolve-se na esteira de uma das atividades modernas
mais típicas: o turismo. Pela primeira vez na história, pessoas viajam
regularmente, em grande número, para fora de seu ambiente habitual,
durante breves períodos. Parece decididamente anormal viajar por
prazer sem levar uma câmera. As fotos oferecerão provas
incontestáveis de que a viagem se realizou, de que a programação foi
cumprida, de que houve diversão. As fotos documentam seqüências de
consenso realizadas longe dos olhos da família, dos amigos, dos
vizinhos.
252
Nos termos de Sontag, o registro da viagem em fotografia é uma obsessão
moderna. Se se pensar a publicação da coleção de fotografias das viagens borgianas em
Atlas e sua recente divulgação em exposição itinerante,
253
poder-se-ia dizer que Borges
fez turismo, contando com um modo de performance e de apelo, nos termos de Sontag.
Entretanto, os textos do livro possibilitam visualizar o olhar borgiano, cuja percepção
enxerga o mundo de dentro da caverna.
A escrita de viagem, aqui, não deve ser entendida apenas como matéria de
realização da arte, mas como topos do “espaço nômade do saber”
254
que é a literatura.
Literatura que não garante informação de um saber científico, mas um não-saber por
onde perpassam vários outros discursos num intercâmbio interdisciplinar. Assim, a
literatura topográfica de Atlas fornece categorias operacionais para a investigação da
ocorrência e significação da escrita de viagem em memórias autobiográficas de
252
SONTAG. Sobre fotografia, p. 19-20.
253
Em agosto de 2006, a Fundación Internacional Jorge Luis Borges organizou uma exposição itinerante
contendo cerca de 130 fotografias (muitas inéditas) do álbum pessoal herdado por María Kodama,
denominada “El Atlas de Borges”. A exposição, baseada no livro em estudo. foi vista pelo público de
vários países da América e da Europa.
254
SOUZA. Crítica cult, p. 39-46.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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111
escritores latino-americanos do século XX, dialogando com outras áreas do
conhecimento.
É justamente a literatura desterritorializada que garante ao texto outra
dicção, outra cartografia. A operação de um deslocamento na relação entre tradição,
relato e viagem desse escritor-viajante e leitor-viajante, Jorge Luis Borges, figura uma
ruptura.“Creio que nossa tradição é toda a cultura ocidental, e creio que temos direito a
essa tradição, maior que o que podem ter habitantes de qualquer outra nação
ocidental”,
255
escreveu Borges em Discussão.
Esse mesmo Borges se confirma na topografia de Atlas, em que se inscreve
como um viajante em busca do constante (re)conhecimento da cultura ocidental que, ao
mesmo tempo, possibilita uma direção ao Oriente, como se nota em “Veneza”. A
tradução de Richard Burton de As mil e uma noites foi a versão que permitiu a Borges
conhecer o mundo oriental, árabe. O último texto, nesse sentido, é marcante. As
imagens e palavras que findam a cartografia do Atlas referem-se ao Oriente, à cultura e
literatura japonesas. “Da salvação pelas obras” é o título da unidade. O texto apócrifo é
um típico palimpsesto borgiano de uma narrativa da mitologia das divindades de Shinto,
que se reuniram em Izumo. As divindades se reuniram e criaram o Japão e o mundo. O
homem imaginou instrumentos, como o arado, a chave, o caleidoscópio, e também a
espada, a arte da guerra e uma arma invisível que poderia ser o fim da história. As
divindades:
255
BORGES. Discussão, p.294. “Creo que nuestra tradición es toda la cultura occidental, y creo que
tenemos derecho a esta tradición, mayor el que pueden tener los habitantes de una u outra nación
occidental.” BORGES. Obras Completas v. 1 [1989], p. 294.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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112
Ficaram pensando. Outra divindade disse sem pressa:
‘É verdade. Eles imaginaram essa coisa atroz, mas também esta,
que cabe no espaço que suas dezessete sílabas abarcam’.
Entoou-as. Estavam em um idioma desconhecido e não pude
entendê-las.
A divindade maior sentenciou:
‘Que os homens perdurem’.
Assim, por obra de um haiku, a espécie humana se salvou.
256
Pode-se depreender que a literatura, a poesia, mais especificamente a poesia
oriental haiku, possui um “dom”
257
de salvar a humanidade. Valendo-se de Foucault: “A
fábula de uma narrativa se aloja no interior das possibilidades míticas da cultura; sua
escrita se aloja no interior das possibilidades da língua; sua ficção, no interior das
possibilidades do ato da palavra”,
258
ato de uma palavra que também pode ser registrada
em ideograma, registro que Borges tocou em sua origem, no extremo Oriente.
A imagem que finda o Atlas exibe a mão direita do viajante tocando uma
superfície de pedra vertical que é transformada em linguagem pelo contato dos dedos
com o baixo-relevo do ideograma. Descobrir o desconhecido, contudo, não é uma
especialidade apenas de Simbad, Erico el Rojo e Copérnico. O conhecimento é o desejo
que move a geografia fornecida por Atlas, exemplar de uma típica experiência moderna
da viagem e de seu registro na escrita, o texto como resultado da combinação entre letra
e imagem numa dimensão privilegiada. Já a busca da significação do sentido do Atlas
foi lançada ao infinito pela letra impressa:
256
BORGES. Atlas [1999], p. 505. “Se quedaron pensando. Otra divinidad dijo in apuro: Es verdad. Han
imaginado esa cosa atroz, pero también hay esta, que cabe en el espacio que abarcan sus diecisiete
sílabas. Las entonó. Estaban en un idioma desconocido y no pude entenderlas. La divinidad mayor
sentenció: Que los hombres perduren. Así, por obra de un haiku, la especie humana se salvó.” BORGES.
Atlas [1984], p. 91.
257
“Dom” é palavra cara ao universo de Borges, como se pode ver no poema “Los dones” do livro de
viagem.
258
FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e cinema, p.289.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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113
O que era um Atlas para nós, Borges?
Um pretexto para entretecer na urdidura do tempo nossos sonhos
feitos da alma do mundo.
259
A cartografia de Atlas, contudo, difere das visões de mundo pretendidas
pelos cartógrafos do Império, por Daneri ou por Funes. Poderia ser identificada com
aquela imagem traçada pela história do homem que se propôs a tarefa de desenhar o
mundo e
Ao longo dos anos, vai cobrindo um espaço com imagens de navios,
de cavalos, de exércitos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre
que traçara a imagem de seu próprio rosto. Talvez esse seja o caso de
todos os livros.
260
259
KODAMA in BORGES. Atlas, p. 506. “¿Qué era um atlas para nosotros, Borges? Un pretexto para
entretejer en la urdimbre del tiempo nuestros sueños hechos del alma del mundo.” BORGES. Atlas
[1984], p. 451.
260
BORGES. Ensaio autobiográfico, p. 139. “After many years, he has covered a blank wall with images
of ships, towers, horses, weapons, and men, only to find out at the moment of his death that the has drawn
a likeness of his own face. This may be case of all books […].” BORGES. The Aleph and Others Stories,
p. 153.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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114
P
ARTE II
E
SCRITA SOBRE AS ROTAS
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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115
CAPÍTULO III
UMA TOPOGRAFIA DA VIAGEM NA LITERATURA LATINO-AMERICANA
Viajamos, não só para eludir problemas
constringentes de vida pessoal, nacional ou
universal, mas para tentar uma identificação
com o mundo, uma nova leitura de ambientes
diversos.
Murilo Mendes
3.1 “POR QUE E PARA QUE VIAJA O HABITANTE DO NOVO MUNDO?”
Tema clássico na literatura, a viagem mobiliza o princípio da pluralidade
cultural. Aquelas empreendidas por escritores latino-americanos, como Murilo Mendes
e Jorge Luis Borges, ao Velho Mundo evidenciam uma ruptura na relação entre o
escritor da periferia e a metrópole. Partem da cópia para o modelo, mas também para a
hesitação de um “entre-lugar”, termo que Silviano Santiago atribui às manifestações do
discurso cultural latino-americano
261
na interação com a Europa.
Os relatos dos primeiros viajantes (do descobrimento) abriram caminho para
a construção e internalização do imaginário do “Novo Mundo”, que foi reforçado pelas
narrativas de viagem do século XVIII, de modelo iluminista, e por aquelas mais
descritivas do século XIX, inspiradas no exotismo. Uma internalização que significa “a
domesticação pela diferença”,
262
nas palavras de Luiz Costa Lima em seu texto “O
transtorno da viagem”. No âmbito da teoria literária, a escrita de viagem não se
enquadra em um gênero específico. Pode ser considerada uma construção textual em
261
SANTIAGO. Uma literatura nos trópicos, p. 11-28.
262
COSTA LIMA. Pensando nos trópicos.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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116
trânsito pela qual podem perpassar dicções como as de documento histórico, documento
etnográfico etc., além de uma feição estetizante, própria da linguagem literária.
Interdisciplinar, o estatuto da escrita da experiência do deslocamento propicia a
espacialidade de trocas culturais, como coloca Otavio Ianni em “A metáfora da
viagem”:
[...] toda viagem destina-se a ultrapassar fronteiras, tanto dissolvendo-
as como recriando-as. Ao mesmo tempo em que demarca diferenças,
singularidades ou alteridades, demarca semelhanças, continuidades,
ressonâncias. Tanto singulariza como universaliza... Sob vários
aspectos, a viagem desvenda alteridades, recria identidades e
descortina pluralidades.
263
Nesse sentido, percebe-se que as ocorrências da viagem são significativas
para a construção de identidades na América e seus escritos podem ser considerados
inventários culturais profícuos para se observar questões identitárias. Para Silvana
Maria Pessoa de Oliveira:
O homem que viaja geralmente opera segundo linhas geográficas,
dedicando-se a espacializar, a ampliar cada vez mais os horizontes.
Vistas como processo de desenraizamento, construção de uma nova
cartografia e circulação intermitente, as viagens constituem os
sujeitos. Duas figurações nelas se destacam: o viajante e o estrangeiro,
duas faces de uma só moeda: sujeitos que se deslocam, que mudam de
lugar, de paisagens.
264
A literatura, pois, ao enfatizar a viagem, compromete-se com determinada
cartografia do espaço territorial e cultural. Carta geográfica, de Murilo Mendes, e Atlas,
263
IANNI. Revista de Cultura Vozes, p. 3.
264
OLIVEIRA. De viagens e de viajantes, p. 127.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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117
de Jorge Luis Borges, são livros que, ao expressaram nos títulos verbetes das ciências
geográficas, denotam a construção de uma dimensão topográfica do “espaço nômade do
saber”
265
que é a literatura, especificamente a literatura de viagem produzida por
escritores nascidos em ex-colônias, em diálogo com outras ciências.
O termo “viagem” carrega inúmeros sentidos e, na literatura, abarca
referências ao ato real e/ou imaginário de viajar. Discorrendo sobre a viagem imaginária
e o texto literário, Silvana Maria Pessoa de Oliveira trata de narradores viajantes que
empreenderam viagens reais ou ficcionais e que têm um ponto de convergência: “a
ênfase na imaginação que, aliada à faculdade do ver e do ouvir, transforma-os em
contadores de histórias, em mercadores de signos.”
266
Segundo ela:
Dos viajantes do “maravilhoso”, que percorriam geografias lendárias
– como Marco Pólo, Fernão Mendes Pinto ou Antônio Pigafetta –, ao
viajante contemporâneo, algo se altera. A peregrinação medieval, com
seu sentido místico e tendo a busca dos valores transcendentes –
simbolizados principalmente pelo Santo Graal –, uma de suas
principais demandas, cede lugar, posteriormente, à expedição
individual, à tournée que, no Século das Luzes, exerce forte atração
sobre as elites européias.
267
Tendo em vista essas mudanças relativas à presença de viajantes e de
viagens na literatura, Oliveira estabelece e desenvolve uma tipologia dos viajantes: o
peregrino medieval, o viajante iluminista, o viajante romântico, o andarilho e o viajante
erudito. A passagem acima trata do peregrino medieval. O viajante iluminista seria
aquele que, portador de uma visão totalizante do mundo, se desloca por rotas insólitas
265
Cf. SOUZA. Crítica Cult, p. 39-46.
266
OLIVEIRA. De viagens e de viajantes, p. 203.
267
OLIVEIRA. De viagens e de viajantes, p. 43.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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118
“munido de um olhar adestrado e de um conhecimento técnico pronto para ser aplicado
‘corretamente’ ao seu objeto, o viajante ilustrado segue roteiros de mares e terras só
recentemente conhecidos”.
268
O elemento fugidio e evanescente, a confissão e o
privilégio conferido à emoção constituem a regra do viajante romântico que, “ao sair em
busca das Terrae Icognitae, não contaminadas pela civilização, deixa-se encantar pelas
viagens e lugares distantes, onde pode [...] dar livre curso à rêverie e operar uma
transformação narrativa na linguagem”
269
. O andarilho seria aquele
Globe-Trotter, perambulante e repórter, esse viajante enumera
predominantemente fatos, personagens, histórias, filtrando-as através
de um senso prático e inventariante, que se alia à concepção
enciclopedista e cientificista que ele delega ao ofício da escrita.
270
Por último, o viajante erudito viaja no intuito de comprovar in loco as
leituras acumuladas. Uma atitude que, conforme Oliveira, é uma estratégia para
comprovar a verossimilhança do relato:
Tal verossimilhança seria garantida pela longa descrição dos costumes
dos povos e terras visitados, bem como através da preocupação
minuciosa com o detalhe como se este fosse a chancela capaz de
torná-la confiável.
271
Em O Brasil não é longe daqui, Flora Süssekind se volta para os primeiros
passos da ficção brasileira e revela a importância que a viagem vai assumir na
268
OLIVEIRA. De viagens e de viajantes, p. 45.
269
OLIVEIRA. De viagens e de viajantes, p. 46.
270
OLIVEIRA. De viagens e de viajantes, p. 45.
271
OLIVEIRA. De viagens e de viajantes, p. 45.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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119
configuração do narrador de ficção do Brasil do século XIX. Süssekind também trata a
problematização da quase ausência da produção de textos considerados relatos de
viagem por escritores brasileiros da época e aponta o reconhecimento da presença das
viagens na escrita, mas não em textos que seriam necessariamente do gênero do relato
de viagens.
De fato, só se multiplicam significativamente os exemplos do gênero a
partir do momento em que são definidas fronteiras um pouco mais
rígidas entre a escrita literária e os escritos e narrativas ‘científicos’ ou
de simples registro de expedições e redefinidas essa figuração inicial
do narrador de ficção como viajante e o tipo de relações possíveis
entre prosa e ficção e relato de viagem já nos anos 50.
272
Se entre o oitocentos e o novecentos o ato de viajar não era recorrente entre
os brasileiros, na virada para o século XX seus registros e desdobramentos despontam
com certa freqüência, conforme demonstra o estudo de Thaïs Pimentel, De viajantes e
de narrativas: viajantes brasileiros no além-mar (1913-1957), que aborda as viagens
empreendidas por homens das letras para a Europa, cuja cultura era percebida como
modelar. Os registros dessas viagens são entendidos pela historiadora como peças
importantes na construção de um imaginário dos brasileiros sobre o que era o mundo
além das fronteiras do Brasil. Viagens que seriam um movimento inverso daquelas
primeiras direcionadas ao Novo Mundo, cuja intenção era impor os códigos da
civilização ocidental aos “bárbaros”, um movimento de busca e reconhecimento desses
mesmos códigos. Os viajantes brasileiros, segundo Pimentel, são portadores de uma
intencionalidade explícita: “desejam marcar sua presença no cenário de uma cultura
272
SÜSEKIND. O Brasil não é longe daqui, p. 54.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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120
onde poucos detêm esse privilégio”
273
e, por produzirem uma narrativa histórica não
ficcional, aproximam-se dos andarilhos e dos eruditos da tipologia elaborada por
Pessoa.
Experiência limitada a poucos até os dias de hoje, por mais que se
aceite a idéia da "democratização" proporcionada pela indústria do
turismo, viajar, nas primeiras décadas desse século, era algo restrito
apenas aos brasileiros bem-nascidos. Estes, no entanto, já tinham
tradição de visitar o velho continente, uma vez que as trocas, tanto
comerciais quanto culturais, aconteciam desde os primórdios da
civilização.
274
Bem-nascidos, esses viajantes se direcionam ao Velho Mundo a fim de
comprovar o que já conhece ou de buscar complemento à sua formação, perfazendo a
tradição do Grand Tour inglês do século XVIII, cuja viagem era entendida como
alargamento de experiências e meio de expansão do conhecimento do indivíduo.
275
Pode-se entender que a prática dessa viagem estaria condicionada e seria motivada por
uma espécie de naturalização do saber, pois o ambiente dos bem-nascidos propicia(ra)
um natural hábito de práticas culturais que legitimam o acesso ao conhecimento herdado
do velho continente.
Já a “democratização” da viagem, propiciada pela indústria do turismo, que
pode ser lida na obra Viagem pela irrealidade cotidiana, de Umberto Eco, instiga
Silviano Santiago a trilhar considerações acerca da dialética da viagem e suas
implicações na questão da dependência cultural que acompanha as relações entre
América e Europa, no já citado artigo “Por que e para que viaja o europeu?”. Na
273
PIMENTEL. De narrativas e de viajantes, p. 43.
274
PIMENTEL. De narrativas e de viajantes, p. 76.
275
SETA apud PIMENTEL. De narrativas e de viajantes, p. 59. Sobre essa configuração da viagem, vide
também texto de Philippe Berthier, “Viagem à Itália.” BERTHIER. O olhar de Orfeu, p. 191-215.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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121
tentativa de responder à indagação que move e dá título ao texto, Santiago se pauta na
resposta dada por Camões – a de que “o europeu viajava para propagar a fé e o
império”,
276
que não enfatiza o aspecto gratuito da viagem, mas a sua finalidade
expansionista e colonizadora.
A postura camoniana é válida enquanto o Novo Mundo permanece na
situação de colônia do Velho, época também marcada pelas expedições de viajantes que
mapearam as colônias.
277
A partir da emancipação colonial, o objetivo dessa viagem
toma novos rumos: “Passa a ser o requisito inadiável para que a jovem nação dê
continuidade ao processo de ocidentalização em que entrou sem ter pedido. A viagem
do europeu tem uma função docente e modernizadora”.
278
Aí surgiram as missões
culturais, as cooperações técnicas e os convênios que, no Brasil, têm como exemplos a
missão francesa de 1816, responsável pela criação de escolas de ciências, e a fundação
da Universidade de São Paulo, nas primeiras décadas do século XX. Neste momento,
período em que acontece a viagem de Claude Lévi-Strauss aos trópicos, despontam
ensaios de diálogo entre intelectuais americanos e europeus, como um transplante de
idéias progressistas para os trópicos,
279
isso sem mencionar outras formas de diálogo
que também aconteceram em outros momentos, como, por exemplo, aqueles do
movimento modernista brasileiro, do Ultraísmo argentino, entre outros.
276
SANTIAGO. Nas malhas da letra, p. 190.
277
Cumpre-se registrar a diferença entre os processos de colonização da América hispânica e América
portuguesa, como bem observa Sérgio Buarque de Holanda em “O semeador e o ladrilhador”, texto em
que discorre sobre a fundação das cidades e a vida intelectual na América espanhola e no Brasil.
HOLANDA. Raízes do Brasil, p. 93-138.
278
SANTIAGO. Nas malhas da letra, p. 197.
279
Em “A viagem de Lévi-Strauss aos trópicos”, Silviano Santiago discorre sobre esses diálogos. Cf.
SANTIAGO. Scripta, p. 85-97.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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122
Em meio a essa efervescência de idéias e artes, surgem no cenário das letras
latino-americanas, cada qual em seu recanto, Murilo Mendes e Jorge Luis Borges,
intelectuais cujas trajetórias poético-biográficas desenham respostas para outra pergunta
formulada por Silviano Santiago: “Por que e para que viaja o habitante do Novo
Mundo?”
280
À tríade de intelectuais do Novo Mundo que assumiram o que neles existe
de europeu (Henry James, T. S. Eliot e Murilo Mendes) listada por Santiago como
“espíritos mais universalistas e menos ‘provincianos’”,
281
pode-se somar Jorge Luis
Borges.
As cartografias das viagens muriliana e borgiana ocupam um lugar ímpar na
geografia da literatura mundial, quando se considera que seus escritos correspondem a
uma literatura oriunda de espaços cujas histórias são marcadas pela tensão de uma
herança colonial. As narrativas autobiográficas inscritas sob a forma de relatos,
apontamentos ou textos de viagem inscrevem seus autores na condição de sujeitos
históricos, conferindo-lhes identidade.
[...] na medida em que viaja, o viajante se desenraíza, solta, liberta.
Pode lançar-se pelos caminhos e pela imaginação, atravessar fronteiras
e dissolver barreiras, inventar diferenças e imaginar similaridades. A
sua imaginação voa longe, defronta-se com o desconhecido, que pode
ser exótico, surpreendente, maravilhoso, ou insólito, absurdo,
terrificante, tanto se perde como se encontra, ao mesmo tempo se
reafirma e modifica. No curso da viagem há sempre alguma
transfiguração, de tal modo que aquele que parte não é nunca o
mesmo que regressa.
282
280
SANTIAGO. Nas malhas da letra, p. 203.
281
SANTIAGO. Nas malhas da letra, p. 203.
282
IANNI. Revista de Cultura Vozes, p. 19.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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123
A partir da experiência de estar em lugares variados, conhecendo culturas
diferentes, o sujeito tende a se tornar cidadão do mundo. Para Eugen Weber, desde o
momento em que os indivíduos começam a viajar pelo prazer de viajar, eles também o
fazem pelo prazer de dizer que viajaram: “mesmo com o passar do século [XIX], viajar
continuou a ser um feito excepcional, e aqueles que provavam seus encantos tornavam-
se, eles também, excepcionais”.
283
A escrita da viagem cristaliza esse sentimento em
atitude materializada em livro. Os gestos de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges de
escreverem sobre suas viagens pelo mundo, entretanto, podem ser entendidos como uma
atitude de revisitação de uma narrativa antiga, que se confunde com a própria história
do Ocidente cantada por Homero.
Levando-se em conta que exílio e viagem estão presentes no projeto de
“políticas de identidade e de globalização”,
284
relacionando o uma espécie de “atração
do mundo”, constata-se que a viagem, traço de união, lugar entre, deve ser
compreendida de forma dialética e atentando-se para seus inúmeros significados.
Nesse
âmbito, a relação entre viagem e escrita, apreensível na produção de escritores-
viajantes, constitui-se um ponto de partida para se discutir a configuração da viagem no
panorama teórico da literatura e da produção cultural das ex-colônias do Novo
Continente. Essa reflexão encontra respaldo nas considerações de Myriam Ávila sobre o
motivo da viagem na literatura latino-americana e suas significações:
283
WEBER. França fin-de-siécle, p. 216.
284
SANTIAGO. Gragoatá, p. 31-54.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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124
Com a crise dos meta-relatos ou narrativas mestras na
contemporaneidade abalam-se os parâmetros fundadores do
pensamento ocidental e com eles os critérios pelos quais se pautava a
literatura. Essa passa a ser então uma literatura em trânsito, sem
barreiras fixas, marcada pela errância que faz da viagem sua metáfora
por excelência.
285
As literaturas de Carta geográfica e Atlas, livros considerados periféricos
nas obras desses escritores consagrados, sobretudo, como poeta e ficcionista,
respectivamente, despontam nesse lugar de trânsito, nesse lugar entre. A profusão de
textos e leituras que neles aflora conduz à percepção de que ambos os escritores, ao
imprimirem seus textos de viagem, criam um novo arranjo. Revisitam a antiga tradição
de narrar experiências e instauram um novo texto, operando um deslocamento na
relação entre tradição, relato e viagem.
Essas literaturas assumem uma posição diferente, cultural e politicamente,
daquelas descritas pelos primeiros viajantes europeus na época das descobertas.
Ultrapassa-se a mera narrativa de deambulação testemunhal e refaz-se às avessas a
viagem do etnólogo Claude Lévi-Strauss. Em Tristes trópicos, o pesquisador francês
assevera que a América não desconhecia a cultura européia de que é produto, o que
desconhecia eram os valores da idade madura por que passaram as cidades da Europa. O
ensaio antropológico e autobiográfico do estudioso francês trava uma discussão sobre o
transplante das idéias européias para os trópicos, material ainda renovável ante uma
nova reflexão sobre a temática da viagem e sua escrita enquanto elementos agregadores
de discursos e saberes. Seriam os trópicos, então, o topos do encontro da tradição com o
285
ÁVILA. O retrato na rua, p. 81.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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125
novo, de onde partiram Murilo Mendes e Jorge Luis Borges, escritores do século XX
que viajaram e escreveram sobre suas viagens.
3.2 CARTA GEOGRÁFICA E ATLAS: TRÂNSITOS GEOGRÁFICOS E CULTURAIS
Carta geográfica e Atlas permitem reflexões e articulações entre os
discursos autobiográficos e a construção de pontes teóricas entre o real e a ficção, a
ficção e a teoria. Conforme Eneida Maria de Souza,
286
os princípios básicos da crítica
biográfica resultam na produção de um saber narrativo criado pela conjunção da teoria e
da ficção e pelo teor documental e simbólico do objeto de estudo. Segundo ela, os atos
da experiência, quando interpretados como metáforas e componentes importantes para a
construção de biografias, integram-se ao texto ficcional sob a forma de uma
representação do vivido.
Em livros de viagem, a representação do vivido é exteriorizada pelo
escritor-viajante, autor e personagem de sua “narrativa”, que sugere a construção da
escrita de uma vida que existe como recorte por trânsitos geográficos e cronológicos, de
onde se eleva a identidade. Esses textos são inscritos pela memória, construída entre o
esquecer e o lembrar, e pela imaginação. Os registros memorialísticos e autobiográficos
são elaborações discursivas que se abrigam sob a garantia da sinceridade regida por um
“pacto” – afirmação da identidade autor-narrador-personagem – estabelecido entre autor
e leitor e que geram uma flexibilidade dos limites entre o documental e o ficcional:
286
SOUZA. Crítica cult, p. 111-120.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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126
A autobiografia, mesmo se limitada a uma pura narração, é sempre
uma auto-interpretação, sendo o estilo o índice não só da relação entre
aquele que escreve e seu próprio passado, mas também o do projeto de
uma maneira de dar-se a conhecer ao outro, o que não impede o risco
permanente do deslizamento da autobiografia para o campo ficcional,
o seu revestir-se da mais livre invenção. Apesar do aval da
sinceridade, o conteúdo da narração autobiográfica pode perder-se na
ficção, sem que nenhuma marca decisiva revele, de modo absoluto,
essa passagem, porquanto a qualidade original do estilo, ao privilegiar
o ato de escrever, parece favorecer mais o caráter arbitrário da
narração que a fidelidade estrita à reminiscência ou o caráter
documental narrado.
287
Se obras autobiográficas têm pretensões artísticas, ou seja, são um “ato de
discurso literariamente intencionado”,
288
pode-se incluir como autobiográficas as
escritas de viagem que também requerem essa pretensão. Cabe aqui retomar as idéias de
Sylvia Molloy, para quem a literatura autobiográfica se faz como os textos de viagem.
Ambos apelam a reconhecimentos: enquanto o autobiográfico forja uma mimese da
identidade, o texto de viagem forja uma mimese da experiência.
289
A concepção de Atlas aconteceu antes mesmo da realização da viagem e sua
intencionalidade é explícita no prólogo. As páginas desejariam ser monumentos e, nelas,
o escritor-viajante imprime os registros de passagens a partir de uma memória seletiva
que espelha a intenção de se monumentalizar em livro a experiência do deslocamento,
deslocamento cuja importância já se antevia conforme impresso em “22 de agosto de
1983”:
287
MIRANDA. Corpos escritos, p. 30.
288
MIRANDA. Corpos escritos, p. 25.
289
Cf. MOLLOY. Las letras de Borges y otros ensayos, p. 244.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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127
As vésperas de uma viagem são uma preciosa parte da viagem. A
nossa à Europa começou, de fato, anteontem, 22 de agosto, mas foi
prefigurada por aquele jantar do dia dezoito. Em um restaurante
japonês reunimo-nos María Kodama, Alberto Girri, Enrique Pezzoni e
eu. A comida era uma antologia de sabores fugazes que nos chegavam
do Oriente. A viagem, que nos parecia imediata, preexistia no diálogo
e no imprevisto champanhe que a dona do local nos ofereceu. Ao
singular, para mim, de um lugar japonês na rua Piedad somaram-se as
vozes e a música de um coro de pessoas procedentes de Nara ou de
Kamakura e que comemoravam um aniversário. Estávamos, portanto,
em Buenos Aires, nas próximas etapas da viagem e no evocado e
pressentido Japão. Não me esquecerei dessa noite.
290
A fronteira entre realidade e ficção é tênue. O Oriente pressentido era uma
“antologia” de seus sabores e aromas, advindos da antologia de livros europeus que
“formaram” as imagens do oriente borgiano, “o das Mil e uma noites lidas, como dizia
Rousseau, com ‘uma só mão’, na biblioteca paterna, o oriente de Kipling e do Capitão
Burton, de enciclopédias chinesas apócrifas, de não menos apócrifas histórias de viúvas
dedicadas à pirataria do imenso mar Amarelo”.
291
A leitura insurge como complemento
do olhar e dos sentidos do viajante cego que “vive uma realidade onde tudo são
sombras, ou reflexos de sombras, sobre as paredes de uma caverna de palavras”.
292
Como queria Borges para suas páginas, Atlas pode ser lido também como
monumento da literatura, e de uma cultura letrada como a daqueles escritores-viajantes
290
BORGES. Atlas [1999], p. 501. “Las víspiras de un viaje son una preciosa parte del viaje. El nuestro a
Europa comenzó, de hecho, anteayer, el 22 de agosto, pero lo prefiguró aquella cena del dieciocho. En un
restaurante japonés nos reunimos María Kodama, Alberto Girri, Enrique Pezzoni y yo. La comida era una
antología de sabores fugaces que nos llegaban del Oriente. El viaje que nos parecía inmediato, preexistía
en el diálogo y en el imprevisto champagne que nos ofereció la dueña del local. A lo singular, para mí, de
un sitio japonés em la calle Piedad se unieron las voces y la música de un coro de personas que procedían
de Nara o de Kamakura y que celebraban un cumpleaños. Estábamos así en Buenos Aires, en las
próximas etapas del viaje y en el recordado y presentido Japón. No olvidaré esa noche.” BORGES. Atlas
[1984], p. 84.
291
MONEGAL. Borges, p. 48.
292
MONEGAL. Borges, p. 50.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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128
tratados por Pimentel, os quais “desejam marcar sua presença no cenário de uma cultura
onde poucos detêm esse privilégio. Seu relato é, pois, documento que tem a qualidade
de um monumento intencional”.
293
Nesse sentido, o livro borgiano revela a marca de uma dupla pose do
escritor. A primeira corresponde àquele “ato de discurso literariamente intencionado”
do livro de viagem, no qual o escritor se põe em atitude conveniente para ser
(auto)representado. Imprime-se o cunho (auto)biográfico do indivíduo que expõe no
papel passagens de uma vida em trânsito por cidades, países e leituras e que assume,
como se observou com Molloy, um “olhar mediado” que coincide com uma realidade
biográfica.
294
A outra pose é literalmente revelada em Atlas nas fotografias. Nelas, além
da intenção de exposição e registro dos lugares e da própria imagem, nota-se o gesto do
escritor de se “posar” para ser retratado, demonstrando o caráter de simulação da
imagem (simulacro). A exibição ocorre, então, em dois momentos: o da pose para a foto
e o da impressão da foto e das palavras encenadas no livro. A fotografia em si é
representação, simulacro, uma arte crepuscular, elegíaca, que brinca com a escala do
mundo: “fotografias são pedaços do mundo, miniaturas da realidade que qualquer um
pode fazer ou adquirir,”
295
lembra Sontag. Borges, ao exibir suas fotografias e dos seus
lugares eletivos, poderia estar brincando com suas próprias sombras e com as sombras
de pedaços do mundo em miniatura, colecionando-os.
293
PIMENTEL. De narrativas e de viajantes, p. 43.
294
MOLLOY. Las letras de Borges y otros ensayos, p. 243.
295
SONTAG. Sobre fotografia, p. 25.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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129
O detalhe que passa despercebido em uma observação pouco atenta é
que todas as seqüências de fotos apresentam os mesmos números,
tanto dos fotogramas quanto dos filmes. Intencional ou não, esse
detalhe inviabiliza os efeitos mencionados acima: aparece, apenas
veladamente, o caráter de manipulação na exibição das fotos (é
preciso atenção para se descobrir que o que se vê não é o “verdadeiro”
filme, saído diretamente da máquina de Borges e de Kodama para as
páginas do livro, mas uma montagem que simula sê-lo).
296
A disposição das imagens no livro borgiano é lida por Luis Alberto Brandão
Santos como uma tradução do modo como o tempo e o espaço são tratados: “A exibição
de fotogramas seqüenciados – como se efetivamente tivessem produzidos um logo
depois do outro – reforça a preocupação em se registrar o fluxo do tempo, o desenrolar
dos vários momentos da viagem.”
297
A viagem de Borges, entretanto, não se constitui
como um percurso linear de rotas preestabelecidas com início, meio e fim, mas antes um
recorte de múltiplas viagens, um patchwork (a palavra é de Molloy), um contínuo
deambular, ou melhor, um flutuar, por analogia à ação da imagem da capa. Imagem essa
que Molloy considera emblemática do paradoxo que fecunda o livro, produto de um
turismo privado de visão, e que “inocentemente coincide com o gesto de todo autor ao
narrar uma viagem: se constrói diante aos olhos do leitor como pessoa viajeira, posa
para o público”
298
.
Enquanto em Atlas, o “eu” se faz Borges e há toda uma encenação, uma
performance do escritor que, literariamente, posa para as fotografias, Carta geográfica
não apresenta imagens, gravuras ou fotos. Suas imagens são produzidas somente pela
linguagem. Sua escrita de viagem desliza nos territórios da linguagem – descrição,
296
SANTOS. Borges em dez textos, p.35.
297
SANTOS. Borges em dez textos, p.35.
298
MOLLOY. Las letras de Borges y otros ensayos, p. 241. “[...] inocentemente coincide con el gesto de
todo autor al narrar un viaje: se construye ante los ojos del lector como persona viajera, posa para el
público.” (Tradução minha)
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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130
comentário, reflexão – sempre se atendo à linguagem trabalhada, elaborada. Das
travessias murilianas por lugares e países, nos anos de 1950 e 1960, brotam recortes e
guardados transformados em textos pelo poeta que, maduro e europeizado, reflete o já
mencionado menino “colecionador”:
Ainda menino eu já colava pedaços da Europa e da Ásia em grandes
cadernos. Eram fotografias de quadros e estátuas, cidades, lugares,
monumentos, homens e mulheres ilustres, meu primeiro contato com
um futuro universo de surpresas. Colava também fotografia de estrelas
e planetas, de um ou outro animal, e muitas plantas.
299
Esse ato de aglomerar coisas e guardados está vinculado a uma “estratégia
de coleção”, à qual Maria Luiza Scher Pereira se refere como a ultrapassagem de um
mero arquivamento de objetos, um “elemento que estrutura sua própria obra
literária”.
300
O “colecionar” muriliano parece ter o sentido de estabelecer laços e
conexões, formando uma espécie de rede feita de dados culturais, artísticos, mas
também pessoais e afetivos que contribuem para o entendimento de sua personalidade e
sua escrita. O movimento da escrita de Carta geográfica, nesse sentido, parece
acompanhar o percurso do viajante que é percebido pela leitura de um texto que margeia
o relato da experiência, da crônica, da descrição e que se esquiva da aspiração de guia,
podendo ser lido, por vezes, como ensaio. Ensaio entendido aqui como experimentação,
como lembra Theodor Adorno: “Escreve ensaisticamente aquele que compõe
experimentando; quem, portanto, vira e revira o seu objeto, quem o questiona, apalpa,
prova, reflete.”
301
299
MENDES. A idade do serrote, p. 973.
300
PEREIRA. Ipotesi, p. 13.
301
ADORNO. Theodor Adorno, p. 180.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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131
Além de se colocar como protagonista da narrativa, já que se trata de
escrever sobre a experiência de deslocamento e de trocas culturais vividas em seu
itinerário de viagem entre América e Europa, Murilo Mendes busca uma proximidade
com o leitor e reforça a idéia de diálogo. A auto-exigência confessada pelo poeta em
proceder a uma permanente atualização consigo mesmo deixa marcas em seus livros,
como se nota nos apontamentos às margens do exemplar datiloscrito de Carta
geográfica e de outros livros contidos nas extensas Notas e variantes, de sua Poesia
completa e prosa. Esse procedimento originou uma obra cuja dinâmica repousa num
movimento contínuo de transformação e, nesse sentido, vale lembrar a colocação de
Laís Correa de Araújo que afirma ser Murilo não só criador, mas o próprio protagonista
de sua poesia.
302
É esse protagonista que se lê impresso nas páginas de Carta
geográfica.
“Mas todas as verdadeiras criações do espírito, mesmo as aparentemente
impessoais, mesmo uma equação de Einstein, não se resolvem afinal em
autobiografia?”
303
questiona Murilo Mendes, no retrato-relâmpago de Jean Arp,
apontando uma resposta positiva. Sendo Carta geográfica uma criação do espírito,
como todas as outras obras, pode-se dizer, então, que ela é autobiográfica. Sobre obras
desse gênero, mais especificamente sobre o livro Itinerário de Pasárgada, autobiografia
poética de Manuel Bandeira, Murilo Mendes escreve ao amigo após ter sido
presenteado com o livro:
302
ARAÚJO. Murilo Mendes.
303
MENDES. Retratos-relâmpago, p. 1274.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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132
Nos livros desse gênero é difícil o autor escapar à “pose” e ao
pedantismo. Você escapou. [...] Junto a tantas informações preciosas,
que a posteridade guardará (não só no Itinerário como em tantas
páginas substanciais da plaquette), notamos sua elegância, sua
humildade e sua finura, que pertence a antiga linha de nosso
humanismo cristão, e que – felizmente – destoam de tanto
exibicionismo e cafajestismo que vai aí pelo mundo das letras (para
não falar no da política e em outros).
304
O alerta de Murilo Mendes aos riscos de se cair nas armadilhas da “pose” e
do “pedantismo” quando se escreve textos autobiográficos é notado em Carta
geográfica através de uma lucidez que não deixa de revelar o pedant de sua prosa.
305
O
pedant muriliano não é o daquele que expressa ou ostenta conhecimentos que realmente
não possui, e sim daquele que ostenta a erudição livresca e o saber da experiência. O
daquele Murilo enciclopédico que fala por citações e, por vezes, enxerta trechos
informativos humildes que causa a “surpresa de uma intrusão”, e conforme Picchio:
Estas aparentes intrusões de materiais espúrios, estas bruscas
mudanças de estilo, estas “quedas”, se quisermos, são porém as que
nos fornecem a chave última para uma leitura do Murilo mais secreto
e vulnerável, e talvez por isso mesmo mais humano e universal, mais
moderno.
306
Essas intrusões, por vezes, são figuradas por descrições, referências,
citações na língua original. Mais do que ver, o olhar muriliano inventa, recria o objeto
304
MENDES in GUIMARÃES. Murilo Mendes 1901-2001, p. 34-35. (Carta de Murilo Mendes para
Manuel Bandeira, Bruxelas, 23 de setembro de 1954. Manuscrita. Arquivo-Museu de Literatura Brasileira
da Fundação Casa de Rui Barbosa.) Nas correspondências o Murilo viajante informa seus itinerários e vai
deixando suas pegadas emotivas que serão cartografadas poeticamente; a exemplo, na mesma carta,
escreve ao amigo poeta: “Estivemos cerca de 3 meses na Itália, inclusive na Sicília, onde passamos 15
dias. É uma cousa maravilhosa. Imagina V. minha emoção ao ver pela 1.ª vez templos gregos autênticos –
com o mar azulíssimo ao fundo! Consolou-me de não poder rever a Espanha. Já escrevi 11 “poemas
sicilianos”. No mês próximo, isto é, entre 19 de outubro e 10 de novembro deverei dar conferência na
Universidade de Amsterdam.”
305
PICCHIO. Transístor, p.11.
306
PICCHIO. Transístor, p.13.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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133
de sua descrição. O exercício literário da descrição, da escrita que se nutre e se constrói
a partir de uma relação direta com aquilo que se vê, é recriado pelo Murilo viajante que
imprime o seu olhar sobre os lugares, as cidades, as pessoas e as obras de arte.
Recriação que também ultrapassa o plano do real e se desdobra, muitas vezes, na
complementação do vivenciado através do imaginário e da experimentação lingüística,
como se lê em uma das passagens de “Fragmento de Paris”:
O cançonetista do cabaré Les Trois Baudets tira da cartola de veludo
verde uma lista enorme de frases polêmicas sobre os acontecimentos
do tempo, soltando-as no ar à maneira de papagaios. Vai desenrolando
as aventuras de Mister Johnson que afirma ter chorado ao saber da
fuga dum pracinha americano num campo de prisioneiros do Vietnã.
Pauvre MisterJohnson! il est bien brave, il se sacrifie pour le bonheur
de l’humanité, il pleure, il risque la migraine ou l’ablation du foie,
pauvre Mister Johnson, il faut le consoler, il faut, il faut, il faut
absolument lui apporter des gâteau, même un ours en peluche, une
bouteille de champagne, un petit soldat de plomb, un télegramme de
Tchang-Kai-Chek, pauvre Mister Johnson! Pauvre Mister Jonhson, il
a subi l’attaque formidable de Saint-Domingue qui a failli écraser la
marine américaine en hi hi! Pauvre Mister Jonhson, il est bien à
plaindre, il est bien à plaindre, il a tout à craindre, il faut, il faut, il
faut absolument le consoler (texto inventado por mim, confesso; mas
plausível).
307
O “olho armado”
308
do viajante é refletido nas escritas e nas multifaces do
escritor, do leitor, do crítico de arte, do professor, do apreciador minucioso, crítico e
discípulo da música, do cristão, do europeu, do mineiro que é Murilo Mendes, e
proporciona a construção de identidades. O leitor-viajante que desenha Carta
307
MENDES. Carta geográfica, p. 1112. “Pobre Mister Johnson! Ele é bem corajoso, ele se sacrifica
pela felicidade da humanidade, ele chora, ele arrisca a dor de cabeça ou a extração do fígado, pobre
Mister Johnson, é preciso consolá-lo, é preciso, é preciso, é absolutamente preciso dar-lhe presentes,
ainda que seja um urso de pelúcia, uma garrafa de champanha, um soldadinho de chumbo, um telegrama
de Tchang-Kai-Chek, pobre Mister Johnson! Pobre Mister Johnson! Ele sofreu o forte ataque de São
Domingos que quase aniquilou a marinha americana em hi! hi! Pobre Mister Johnson ele é digno de
compaixão, ele é digno de compaixão, ele tem tudo a temer, é preciso, é preciso, é absolutamente preciso
consolá-lo [...]”. (Tradução de Rosalvo Pinto)
308
MENDES. A idade do serrote, p. 974.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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134
geográfica é munido de uma bagagem de leituras que lhe propicia um olhar diferente
sobre o que vê, transformando-se em escritor-viajante. A condição de viajante
privilegiado é conservada pelo turismo “não carneiro”
309
muriliano, e esse turismo, bem
como a própria escrita, foge dos moldes canônicos. Seu itinerário permite a construção
de um tecido em que se mesclam cenas como num artifício cinematográfico, de lugares
e línguas diferentes.
As recorrentes intrusões de fragmentos em francês no texto muriliano
denunciam, além de seu pedant, a preferência do escritor pela língua latina, na qual
também lera a “grande trindade Baudelaire-Rimbaud-Mallarmé”,
310
e seus escritores
eleitos, “Cervantes, Pascal, Stendhal”.
311
Sobre isso declarou o poeta em entrevista:
Fui conhecer muito mais tarde os poetas metafísicos ingleses. Aliás,
devo dizer, com toda a humildade, que não consegui nunca meter o
inglês na minha cabeça. Um amigo meu, escritor, me esclareceu sobre
isso, dizendo que o meu tipo mental só se adapta às línguas latinas.
[...] Dediquei-me então às línguas latinas. [...] O inglês, pela vida a
fora, eu li em traduções, muitas vezes com o texto original ao lado.
Mas não posso citar nada em inglês, por uma espécie de honestidade.
Li muito Donne, releio, mas isso é mais recente. Acho esquisitíssimo
não ter nenhuma afinidade com a língua inglesa, não tenho mesmo, o
que posso fazer? Assim, minha afinidade com os poetas metafísicos
ingleses só pode ser, só é, meramente ocasional.
312
A abertura de Murilo Mendes para línguas latinas se cristaliza literariamente
no exercício da escrita de poesia e prosas em outras línguas, a exemplo de L’occhio del
poeta e Ipotesi, este livro de poemas compostos diretamente em italiano, e Papiers,
309
MENDES. Carta geográfica, p. 1110.
310
MENDES apud TREVISAN. Revista de Cultura Vozes, p. 111.
311
MENDES. Murilo Mendes por Murilo Mendes, p. 52.
312
MENDES apud ARAÚJO. Murilo Mendes, p. 356-357.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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135
livro escrito em francês. Munido de uma bagagem de leitura, o poeta que se considera
filho adotivo do pai de Dom Quixote, Miguel de Cervantes, viaja pelas letras de línguas
outras. A preferência muriliana, entretanto, opõe-se ao repertório de leituras
cartografado no Atlas borgiano, que indica a predileção do escritor argentino pelo
mundo anglo-saxão, pela língua que acreditava ser sua por direito de nascimento,
313
a
inglesa.
O escritor argentino, que lera pela primeira vez Quixote em inglês, educou-
se na Europa, mais especificamente em Genebra, onde aprendera outras línguas como o
francês e o alemão, perfazendo os conhecimentos de uma cultura anglo-saxônica que
também lhe era transmitida pelo sangue, como lembra Emir Rodríguez Monegal ao
abordar a circunstância cultural da formação de Jorge Luis Borges:
A influência de uma avó inglesa, que lhe ensina a ler na língua de
Dickens antes que aprenda a fazê-lo na língua de Galdós; o modelo
tutelar de um pai, professor de psicologia num colégio inglês de
Buenos Aires, marcam desde o começo a formação de Borges (ou
Georgie, como é chamado em família) com o selo de uma cultura
anglo-saxônica que copia à distância os moldes de uma cultura
imperial.
314
Desde muito, Borges lançava mão literariamente da língua inglesa, a
exemplo da biografia Evaristo Carriego (1930), escrita inicialmente em inglês e
traduzida para o espanhol pelo próprio escritor, e o Ensaio autobiográfico, ditado e
publicado originalmente em inglês nas páginas de The New Yorker, em 1970, e
posteriormente como “An autobiographical ensay”, em The Aleph and Other Stories, de
1970.
313
Cf. BORGES. Ensaio autobiográfico, p. 155.
314
MONEGAL. Borges, p. 51.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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136
As páginas do Atlas borgiano, embora escritas integralmente na língua de
Quixote, fixam a expressa presença dessa cultura pelas coordenadas de leituras e
citações dos “heróis literários” eletivos e de seus universos ficcionais, seja através dos
encontros com George Berkeley, Wellington, Yeats, Joyce, Ulisses, no território sacro
irlandês; Shylock em Veneza; Shakespeare e Kepler em um sonho na Alemanha;
Coleridge em Atenas e Lugano; Shakespeare e Shelley na Grécia; Jonathan Swift,
Conrad, William Blake, Swedenborg, Poe etc. Em um mesmo mapa, esses personagens
são sombras que convivem com outras sombras migradas de enciclopédias ou da
Buenos Aires do tempo de Rosas, Artigas e Solano López, Isidoro Soárez, Macedonio
Fernández. Enfim, são pontos dos trânsitos geográficos e literários perfilados pelo
viajante que já havia registrado em suas páginas autobiográficas: “Fiz numerosas
peregrinações literárias: os lugares favoritos de Hawthorne em Salem, aos de Emerson
em Concord, aos de Melville em New Bedford, aos de Emily Dickinson em Amherst e
ao de Longfellow na esquina em que esse morava.”
315
Duas faces de leitura permeiam as escritas dos livros de viagens de Murilo
Mendes e de Jorge Luis Borges. Uma primeira, exterior, oriunda da percepção de uma
realidade objetiva, ou seja, das viagens concretamente realizadas pelos escritores que
assumem a posição de leitores de espaços e culturas; e uma segunda, interior,
proveniente da experiência do contato físico, que recebe uma elaboração para ser
assimilada e incorporada à escrita, à literatura, uma viagem mais transcendente
realizada pelo escritor-viajante. Um movimento entre essas duas faces é criado na
releitura – entender releitura também como viagem – de cada escritor de seus trânsitos
315
BORGES. Ensaio autobiográfico, p. 148. “I made numerous literary pilgrimages – to Hawthoene’s in
Salem, to Emerson’s in Concord, to Melville’s in New Bedford, to Emily Dickinson in Amherst, and
Lonfellow’s around the corner from where I lived.” BORGES. The Aleph and Others Stories, p. 181-182.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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137
geográficos e literários, os quais se desdobram em outros movimentos: o da passagem
de leitor-viajante a escritor-viajante e vice-versa. Há uma desagregação e
descentramento do corpo físico e do tempo, e o deslocamento também abarca a viagem-
invenção.
São comuns nas duas obras a ficcionalização de lugares visitados e o culto
de um espaço simbólico. Borges, por exemplo, dedica duas páginas de Atlas à
cartografia das pegadas de Oscar Wilde que, de modo quase anônimo, morrera em 1900,
no Hôtel d’Alsace, localizado no Bairro Latino. Borges monumentaliza o lugar
atribuindo-lhe o nome próprio de “L’Hotel”, onde, segundo ele, ninguém pode
encontrar dois quartos iguais. Imprime-se também uma fotografia das escadas do
“L’Hotel”, que é adorado pelo escritor argentino e visto como obra da imaginação do
próprio Wilde: “Dir-se-ia que é obra de um ebanista, não que o planejaram arquitetos ou
que foi erguido por pedreiros. Wilde odiava o realismo; os peregrinos que visitam este
santuário aprovam que ele tenha sido recriado como se fosse uma obra póstuma da
imaginação de Oscar Wilde.”
316
O percurso de Atlas como um todo não precisa os
lugares, ou melhor, não apresenta referentes geográficos estáveis ou cronologia
reconhecível e isso abre espaço para as construções imaginárias borgianas, de uma
escrita que é também leitura. O já citado texto “22 de agosto de 1983” trabalha com as
noções de tempo e espaços deslocados. A data do título não é a data da redação do texto
que se refere às vésperas de uma viagem realizada dois dias antes de vinte e quatro de
agosto, aniversário de Borges. Esse jogo relaciona-se a outros textos que retomam o
tema do duplo, como “O outro” e “25 de agosto de 1983”, este se refere à véspera do
316
BORGES. Atlas [1999], 493. “Diríase que lo labró un ebanista, no que lo deseñaron arquictetos o que
fue levantado por albañiles. Wilde odiaba el realismo; los peregrinos que visitan este santuario aprueban
que haya sido recreado como si fuera una obra póstuma de la imaginación de Oscar Wilde.” BORGES.
Atlas [1984], p. 68.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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suicídio do Borges de 84 anos. Outro espaço simbólico caro à catalogação borgiana é o
deserto. Ali:
A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide, inclinei-me,
apanhei um punhado de terra, deixei-o cair silenciosamente um pouco
mais longe e disse em voz baixa: “Estou modificando o Saara”. O fato
era mínimo, mas as não-engenhosas palavras eram exatas e pensei que
tinha sido necessária toda a minha vida para que eu pudesse dizê-las.
A memória daquele momento é uma das mais significativas de minha
estada no Egito.
317
O gesto do escritor, que deixa sua marca no imenso espaço liso, imprime à
experiência pessoal a cena da ficção, ou vice-versa. Para Eneida Maria de Souza, essa
performance borgiana constitui-se também na versão simbólica de sua poética: “O
verbete que modifica o Saara é o toque de Midas responsável pela inserção do sujeito no
ato criativo, transformando o deserto em ficção borgiana e incorporando-se no livro de
areia, sem começo nem fim.”
318
Em Carta geográfica há espaços e situações recriadas a partir da biografia
de outros homens das letras, de suas ficções ou da própria História. Ao entrar na casa do
pintor italiano Rafaello, em Urbino, Murilo Mendes vê o vazio: “A visita à casa
restaurada de grandes artistas é sempre melancólica: impossível retomar, como nas
obras literárias, o fio do tempo perdido. Também falta a essas casas o sopro da figura
317
BORGES. Atlas [1999], p. 500. “A unos trescientos o cuatrocientos metros de la Pirámide me incliné,
tomé un puñado de arena, lo dejé caer un poco más lejos y dije en voz baja: Estoy modificando el Sahara.
El hecho era mínimo, pero las no ingeniosas palabras eran exactas y pensé que había sido necesaria toda
mi vida para que yo pudiera decirlas. La memoria de aquel momento es una de las más significativas de
mi estadía en Egipto.” BORGES. Atlas [1984], p. 82.
318
SOUZA. O século de Borges, p. 76.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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139
que as animou; reduzem-se à tradução de uma tradução.”
319
Em “Ravena”, o viajante se
depara com autores de sua biblioteca:
Dante revennavê. Consome pedras de Ravenna; extrai das lições dos
mosaicos o esquema dos cantos do Paraíso. Anda a pé do centro a
Sant’Apollinare in Classe. Mas quem poderia refazer esse caminho?
Dante rumina amor e ódio; o florentino absorve o revannate.
320
Ou em “Volterra”:
[…] Volterra abriga um grande manicômio, regido de forma única.
Controlados à distância pelos médicos, muitos doentes integram-se,
livres, durante horas, na vida cotidiana da cidade, misturando-se às
pessoas “normais”. Assistido por Machado de Assis, Kafka e
Pirandello eu os observaria: serão quem sabe post-homens,
pertencentes a uma sociedade futura que se esboça no século; talvez
mais “normais” que os outros.
321
Em meio a esses deslocamentos geográficos e literários de Murilo Mendes,
acontece o encontro entre o escritor brasileiro e o escritor argentino. Em Carta
geográfica, são encontradas duas das quatro citações explícitas do autor de Ficções até
então por mim pontuadas na obra completa de Murilo Mendes. As referências aparecem
em passagens cujas construções exploram analogicamente imagens borgianas como o
labirinto, a biblioteca e o paraíso. A primeira referência muriliana ao escritor que lhe é
contemporâneo povoa as páginas da viagem pela memória em A idade do serrote, vinda
à tona na reconstrução dos espaços do menino, o já mencionado casarão da prima Sinhá
319
MENDES. Carta geográfica, p. 1093.
320
MENDES. Carta geográfica, p. 1090.
321
MENDES. Carta geográfica, p. 1092.
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140
Leonor, “onde se vivia numa atmosfera mista de real e irreal”.
322
A imagem do lugar se
ficcionaliza na recriação do Murilo-menino:
A casa de Sinhá Leonor situava-se no Alto dos Passos: um sobradão
com dois andares com porão habitável, dos mais antigos da cidade. Eu
me perdia, ou melhor, me reencontrava nessa casa como mais tarde
numa novela da antiga China ou num ensaio de Jorge Luís Borges.
Delicioso labirinto! Um vaticano de quartos, salas, alcovas,
mansardas, vãos, portas, janelas em plano irregular. Haviam armários
onde cabiam dois homens, manequins vermelhos, grandes imagens de
santos em madeira.
323
A imagem do labirinto, um dos arquétipos presentes na cultura moderna e
pós-moderna, deixou marcas na literatura latino-americana. Dentre vários escritores que
revisitaram o tema, Octavio Paz, por exemplo, demonstrou a sua recorrência
associando-o à metáfora do caos do mundo moderno.
324
Jorge Luis Borges releu essa
imagem clássica e a lançou como cronotopo central de muitos dos seus textos,
adotando-o, por vezes, como “metáfora de um universo que abarca uma pluralidade de
mundos”,
325
relacionada à noção do tempo, ancoradouro das formulações espaciais de
Borges.
Aludindo a essa leitura, Murilo Mendes se valeu da revitalização do mito
em seu espaço original para pensar a infinita arquitetura de Dédalo e seus
desdobramentos no pensamento ocidental:
322
MENDES. A idade do serrote, p. 949.
323
MENDES. A idade do serrote, p. 949.
324
PAZ. O labirinto da solidão.
325
D’ANGELO. Borges en el centro del infinito, p. 137. “Inicialmente, Borges adopta el laberinto, según
el critério gnóstico, como metáfora de un universo que abarca una pluralidad de mundos.” (Tradução
minha)
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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141
Mas prefiro deter-me no museu, fonte contínua de magia, e no Palácio
de Cnossos; explorar as pegadas de Dédalo, máximo inventor:
surpreendendo-o a construir o Labirinto, planejado com tão espantosa
precisão. Assim Dédalo abriu também uma vasta galeria de textos de
Homero a Joyce e a Jorge Luis Borges. Não nos esqueçamos que
Nietzsche propôs a arquitetura do Labirinto como o verdadeiro padrão
da complexidade da psique moderna.
326
Figurada na galeria tecida a partir de Dédalo, Jorge Luis Borges empregou a
imagem do labirinto fazendo referência à biblioteca, incutindo nela outra imagem com
seus vários labirintos: o “Universo (que os outros chamam biblioteca) [que] compõe-se
de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de
ventilação ao centro, cercados por balaustradas baixíssimas.”
327
A esse universo, Murilo
Mendes também aludiu, complementando-o como universo-museu:
Jorge Luís Borges figura o paraíso sob a forma de uma biblioteca,
imagem que eu subscreveria desde o início da minha adolescência.
Também posso antever qualquer paraíso sob as espécies de um museu;
hoje cito a National Gallery que forma com os outros museus e
coleções de arte e história londrinos um espaço de universalidade,
uma sucessão serial de paraísos.
328
A leitura muriliana contorna, nesses fragmentos, uma visão reduzida do
universo à maneira do Aleph borgiano, por meio de espaços que lhe são caros, como o
museu. Mas é no texto homônimo sobre Jorge Luis Borges,
iii
publicado no primeiro
326
MENDES. Carta geográfica, p. 1057.
327
BORGES. Ficcções, p. 516. “El universo (que otros llaman la Biblioteca) se compone de um número
indefinido, y tal vez infinito, de galerias hexagonales, com vastos pozos de ventilación en el medio
cercados por barandas bajísimas.” BORGES. Obras Completas v. 1 [1989], p. 465.
328
MENDES. Carta geográfica, p. 1103.
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142
setor de Retratos-relâmpago dedicado a retratos de poetas e homens de letras, que
Murilo Mendes registra uma viagem imaginária que proporciona o encontro também
imaginário entre ele e o autor de Ficciones. O episódio se engrandece pela incorporação
do universo simbólico borgiano à trajetória espaço-temporal do viajante. A encenação
se produz pelo entrecruzamento de elementos de “A loteria em Babilônia”, “A
biblioteca de Babel”, a temática do “duplo” tão cara a Borges – e apreensões do
possível não-vivido, ou seja, o contato que não se realizou entre os escritores, mas que
fora instaurado pela letra impressa.
Há, então, um diálogo entre o ficcional e a memória de leitura do escritor
brasileiro. Para Borges, um escritor constrói seus precursores, e o fato de ele pertencer
ao seleto grupo dos “poetas e homens das letras” do leitor e crítico Murilo faz dele
(Borges) precursor do escritor-viajante brasileiro. A presença de oito obras de Jorge
Luis Borges – Fictions, Historia de la eternidad, Historia Universal de la infamia,
Labyrinthes, L’artefice, Manual de zoologia fantástica, Outras inquisiciones e Poemas
1923-1958 –, editadas entre as décadas de 1950 e 1960, no Acervo de Murilo Mendes
atesta o interesse desse leitor pela obra borgiana, bem como a sua sintonia com a
produção da literatura que lhe era contemporânea, principalmente aquela em circulação
na Europa. As marcas e as escritas à margem das páginas de tais obras, editadas em
diferentes línguas, sinalizam que elas foram lidas, estudadas e “aproveitadas”.
329
329
BORGES. Fictions. BORGES. Historia de la eternidad. BORGES. Historia Universal de la infamia.
BORGES. Labyrinthes. BORGES. L’artefice. BORGES. Manual de zoologia fantástica. BORGES.
Outras inquisiciones. BORGES. Poemas 1923-1958. As anotações feitas por Murilo Mendes nos livros
de sua biblioteca constituem documentação significativa para o estudo de sua obra, mas neste trabalho
essa questão não será analisada, pois uma análise desse material poderia desviar o objetivo principal.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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143
Os trânsitos murilianos e borgianos, contudo, abrem espaço para a discussão
de questões referentes à tradição e filiação literária. Jorge Luis Borges acredita que o
movimento da história literária é guiado pela leitura individual, e a tradição não possui
vínculo com a noção de linearidade da história. Em seu clássico texto “Kafka e seus
precursores”, o escritor argentino anula a noção de filiação literária e conclui: “O fato é
que cada escritor cria os seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do
passado, como há de modificar o futuro. Nessa correlação, não importa a identidade ou
a pluralidade dos homens.”
330
A figura do precursor, dessa forma, parece não representar um vetor que
imprime sua força e influência, já que não se pensa em uma tradição literária cujos
escritores do passado determinariam a escrita daqueles do presente e do futuro. A leitura
e a escrita de escritores posteriores iluminariam a literatura dos anteriores. O novo seria,
então, precursor do antigo. Tanto Borges quanto Murilo Mendes releram o passado e
foram leitores/críticos do seu tempo. Os livros murilianos Retratos-relâmpago, A
invenção do finito e outros já tratados, cuja temática é a viagem, são uma amostra da
leitura crítica atenta que o escritor brasileiro fizera de seu tempo e de seus
“precursores”.
Nesse âmbito, é pertinente trazer à baila as considerações de T. S. Eliot, em
seu ensaio “A tradição e o talento individual”
331
, sobre a não-linearidade da tradição.
Para Eliot, a tradição implica um significado muito amplo e não pode ser herdada e,
330
BORGES. Outras inquisições, p. 98. “El hecho es que cada escritor crea sus precursores. Su labor
modifica nuestra concepción del pasado, como ha de modificar el futuro. E a esta correlación nada
importa la identidad o la pluralidad delos hombres.” BORGES. Obras Completas v. 2 [1989], p. 90.
331
Esse texto é encontrado no Acervo de Murilo Mendes e é citado em nota por Borges em seu “O
escritor argentino e a tradição”.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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144
sim, conquistada através de um grande esforço. Ela envolve um sentido histórico que,
conforme declara Eliot:
[...] implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas
de sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não
somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas
com um sentimento de que toda a literatura européia desde Homero e,
nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência
simultânea e constituem uma ordem simultânea.
332
Esse sentimento histórico, da convivência do atemporal com o temporal, faz
com que o escritor tome consciência de seu lugar no tempo, de sua própria
contemporaneidade em meio a uma ordem harmônica, estabelecida pelos monumentos
existentes e que só se modifica o aparecimento de uma nova obra entre eles. “Quem
quer que haja aceito essa idéia de ordem”, prossegue Eliot, “não julgará absurdo que o
passado deva ser modificado pelo presente tanto quanto o presente esteja orientado pelo
passado. E o poeta que disso está ciente terá consciência de grandes dificuldades e
responsabilidades.”
333
Não menos que a ordem da tradição, outras questões nela envolvidas, como
filiação e influência, são tratadas com dificuldade e responsabilidade pelos escritores.
Murilo Mendes, ao ser interpelado sobre uma possível influência de Jorge Luis Borges,
revela em entrevista:
332
ELIOT. Breviário de estética, p. 39.
333
ELIOT. Breviário de estética, p. 39-40.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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145
Eu li praticamente toda a obra de Borges, admiro-o profundamente.
Quanto ao problema de uma possível influência, de quaisquer
influências, problema que me preocupa muito – é uma coisa
extremamente complexa, que nós mesmos, escritores, não podemos
definir e deslindar. [...] Creio que tem havido encontros entre mim e
outros escritores. Admiro e conheço Borges demais. Outro dia, um
escritor português, aliás muito inteligente, me disse que “Borges
sumiu diante de Lezama Lima, o autor de Paradiso.” Não li, não sei,
talvez eu não creia por antecipação. Aliás, não posso mais ler
calhamaços, não posso mais ler romances de 500 páginas. Livros de
500 páginas só leio a Divina Comédia. Reconheço, como ia dizendo,
que há encontros, que posso ter sofrido influências, mas isso não é
consciente em mim. Um novo livro meu, que está sendo editado pelo
Conselho Editorial de Cultura de São Paulo – Retratos-Relâmpago – é
composto de pequenos perfis de escritores, poetas, músicos, pintores
etc. Há nele um perfil de Borges. E o escritor italiano Ruggero
Jacobbi, que tem se ocupado de minha obra na Itália, quando leu essa
página me disse: “é uma concentração do espírito de Borges”. De
maneira que é um dado que lhes forneço. É possível que haja uma
afinidade entre mim e este escritor extraordinário, mesmo porque os
temas principais de Borges, tema aliás de toda literatura
contemporânea, em vários escritores, inclusive em Machado de Assis,
especialmente no capítulo sete de Brás Cubas, o delírio, é o problema
do tempo... Não em vão escrevi Tempo e Eternidade, Tempo
Espanhol. Enfim, eu sou hanté pelo problema do tempo. Em Borges,
um dos pilares de sua obra é a questão do tempo e talvez nisso resida
um ponto de encontro.
334
A consciência ou não da influência de Jorge Luis Borges, bem como de
outros escritores, na literatura de Murilo Mendes é tratada por este como um
“encontro”, noção que remete ao sentido mesmo de “precursor”, uma vez que esses
“encontros” marcam a leitura dos textos literários. Se se ler o texto de Murilo Mendes,
“Jorge Luís Borges”, e depois a obra de Borges, esta não será lida da mesma forma
como se leria se não houvesse lido o texto muriliano. Entretanto, a afinidade que Murilo
Mendes aponta entre ele e o escritor argentino relaciona-se ao tema do “tempo”,
categoria universal problemática que perpassa todo o pensamento ocidental e que a
literatura não deixa nunca de abordar.
334
MENDES apud ARAÚJO. Murilo Mendes, p. 357.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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146
“Naquela passagem de Enéadas que pretende interrogar e definir a natureza
do tempo, afirma-se que é indispensável conhecer previamente a eternidade, que – como
todos sabem – é modelo e arquétipo dele”,
335
escreveu Borges em seu ensaio “História
da Eternidade”, publicado em livro homônimo que traz ainda “A doutrina dos ciclos” e
“O tempo circular”. O empenho em se tratar as possibilidades da figura do tempo
desponta ao longo da obra borgiana, seja na sua acepção linear, seja através da
exploração das idéias levantadas por pensadores e filósofos que defendem a teoria do
eterno retorno, seja por seu desdobramento em labirintos ou em construções labirínticas.
Mas é o ato de negar o tempo como sucessão e privilegiar uma espacialização temporal
ordenada pela coexistência que, na ficção borgiana, pode ser lido como eternidade.
A cartografia de Atlas tem outra temporalidade que não aquela do tempo dos
relógios, e sim a da imaginação, que segue o ritmo da sua experiência. Salta aos olhos o
descentramento do tempo em uma narrativa que se mistura ao poema e adquire uma
temporalidade outra. Devido à condição do próprio viajante cego, que não escreve logo
depois das viagens empreendidas, ele, no ir e vir dos percursos, constrói um Atlas
subjetivo, de recorte, de fragmentos de cidades e lugares, como de todo imaginário, em
que prevalece a memória. “O espaço pode ser parcelado em varas, em jardas ou em
quilômetros; o tempo da vida não se ajusta a medidas análogas”,
336
registra o cartógrafo
de Atlas.
335
BORGES. História da eternidade, p. 387. “El aquel pasaje de las Eneádas que quiere interrogar y
definir la natureza del tiempo, si afirma que es indispensable conocer previamente la eternidad, que –
según todos saben – es el modelo y arquetipo de aquél.” BORGES. Obras Completas v. 1 [1989], p. 351.
336
BORGES. Atlas [1999], p. 497. “El espacio puede ser parcelado en varas, en yardas o en kilómetros; el
tiempo de la vida no se ajusta a medidas análogas.” BORGES. Atlas [1984], p. 75.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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147
A eternidade também muito instigou o poeta brasileiro que escreveu Tempo
e eternidade e Tempo espanhol. A dimensão temporal no primeiro se volta, sobretudo,
para a concepção do espírito, como que através de uma revisão das preocupações
metafísicas e sociais em poesia. O segundo também elucida essa dimensão temporal,
mas com o diferencial do deslocamento, do espaço outro, de uma Espanha tão
importante para a humanidade quanto a Grécia antiga para o Ocidente. A presença da
dupla barroca, tempo e eternidade, não se restringe às duas obras citadas apenas; muitos
poemas e prosas posteriores requerem essa dimensão. A eternidade, para Murilo
Mendes, vincula-se à teoria do Essencialismo depreendida de Ismael Nery, que se
constrói em torno da abstração do tempo e do espaço.
O encontro crítico e poético entre Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
acontece por meio da leitura das obras do segundo pelo primeiro, leitura que se estende
a uma viagem imaginária e a “pequenos encontros” ao longo do seu livro de viagem.
Nese âmbito, seria também a encenação das viagens, reais e imaginárias, de Murilo
Mendes e de Jorge Luis Borges que permite pensar o tratamento da questão da
identidade construída a partir de deslocamentos e da própria viagem.
3.3 DESLOCAMENTO E DES-RE-TERRITORIALIZAÇÃO PELA LITERATURA DE VIAGEM
Através da mobilidade das fronteiras de Carta geográfica e Atlas, Murilo
Mendes e Jorge Luis Borges redesenham a geografia inventada pelo sonho do
conquistador europeu por meio de mapas, planos, diagramas, documentos de posse.
337
337
A esse respeito, Luiz Costa Lima, em O redemunho do horror, a partir da temática da viagem, discorre
sobre os procedimentos ficcionais construídos por escritores cujas obras são produzidas na condição de
representantes do modelo colonizador em terras colonizadas (João de Barros, Diogo do Couto e Fernão
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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148
Os escritores latino-americanos em estudo partem, em seus roteiros poético-biográficos,
de seus territórios de origem rumo àqueles dos conquistadores de outrora, e fazem
literatura das suas viagens. Vinculada a uma forma de “olhar”, a viagem esteve, quase
sempre, direcionada a uma cartografia tanto geográfica quanto cultural e, no curso de
sua abordagem, a percepção da espacialidade torna-se noção considerável por ser
característica constitutiva do deslocamento e elemento caro à viagem e sua
representação na escrita.
A partir de considerações sobre a predominância da história no século XIX,
Michel Foucault, em seu já citado ensaio “Outros espaços”, situa a reafirmação do
espaço: “Estamos na era do simultâneo, estamos na era da justaposição, do próximo e
do longínquo, do lado a lado, do disperso.”
338
Ao traçar as figurações do espaço no
panorama histórico, o pensador francês aborda o espaço medieval – “de localização”
(conjunto de hierarquia de lugares) –, o espaço constituído a partir do século XVII – “de
extensão” (espaço infinitamente aberto) –, até chegar ao espaço atual, “de
posicionamentos” (relações de vizinhança entre os pontos), e aponta a impossibilidade
de se desconsiderar o entrecruzamento tempo-espaço: “Estamos num momento em que
o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria
através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua
trama.”
339
Mendes Pinto) ou na perspectiva de um olhar do colonizado (Alejo Carpentier e Gabriel García
Márquez).
338
FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 411.
339
FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 411.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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149
Nesse espaço, em que o tempo persiste como “um dos jogos de distribuição
possíveis entre elementos que se repartem no espaço”, ainda persiste uma secreta
sacralização prática regida por instituições binárias: privado/público, familiar/social,
cultural/útil, lazer/trabalho. Um dos objetivos do pensador francês é descrever essas
heterotopias e, para isso, propõe uma forma de sistema teorizante denominado
“heterotopologia”. Essa categorização, espécie de representação das heterotopias a
partir dos condicionantes culturais e sociais nela inerentes, permite várias aberturas para
reflexões com relação ao lugar ocupado pela (teoria) literatura.
O interesse pelo estudo do espaço continuou a despontar na teoria do século
XX, como se observa nos estudos de David Harvey, que no artigo “O tempo e o espaço
no projeto do Iluminismo”, parece desdobrar as idéias de Foucault quanto à
historicização do espaço. O teórico aponta que, na Idade Média, os feudos
circunscreviam as relações sociais e o “espaço exterior era mal apreendido, concentrado
como uma cosmologia misteriosa”,
340
e, à medida que seguiam as expansões marítimo-
comerciais (geográficas), as concepções de espaço e tempo foram gradativamente
sofrendo mudanças. De uma visão circunscrita dos espaços restritos de cada feudo foi-
se ampliando a extensão do olhar para outras localidades do planeta. Deu-se, a partir
daí, uma busca mais precisa do conhecimento geográfico, o que resultou numa
representação mais objetiva do espaço pelos iluministas.
Esse fato torna-se muito bem nítido nas concepções do espaço cartográfico e
nas edições de mapas para a orientação de viagens de mercadores, no caso do interior do
340
HARVEY. A condição pós-moderna, p. 219.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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150
continente, e de navegadores, que concretizavam a expansão marítima colonial e tinham
o domínio do espaço (territórios) como um dos pilares dos objetivos políticos e
econômicos. Para os pensadores iluministas, cujo projeto em muitos aspectos teve seus
alicerces na revolução renascentista, “a visão totalizante do mapa permitiu a construção
de fortes sentidos de identidades nacionais, locais e pessoais em meio a diferenças
geográficas”. Pois, ainda de acordo com Harvey:
O problema do pensamento iluminista não estava na carência de um
conceito do “outro”, mas no fato de perceber o “outro” como tendo
necessariamente (e às vezes “restringindo-se a”) um lugar específico
numa ordem espacial concebida, do ponto de vista etnocêntrico, como
tendo qualidades homogêneas e absolutas
341
.
Na segunda metade do século XIX, as concepções absolutas do espaço e do
tempo foram aos poucos substituídas “pelas inseguranças de um espaço relativo em
mudança, em que os eventos de um lugar podiam ter efeitos imediatos e ramificados
sobre vários outros”,
342
e isso remete ao sistema de posicionamentos proposto por
Foucault. As inovações técnicas do início do século XX desencadearam ainda mais esse
deslocamento ao oferecerem possibilidades de contato entre diferentes lugares do globo.
Sendo assim, a concepção de “lugar”, com suas especificidades e propriedades
características, foi opondo-se à idéia de “espaço”, concebido agora no seu caráter
relacional, e não mais como um território isolado.
341
HARVEY. A condição pós-moderna, p. 228.
342
HARVEY. A condição pós-moderna, p. 228.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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151
A categoria espaço, ao lado da categoria tempo, apresentou-se, ao longo da
história, sob perspectivas diversas, e a tarefa de rastreamento das mudanças pelas quais
ela passou e suas representações em escritas de viagem são tarefas caras aos estudos da
literatura. Os sujeitos, escritores-viajantes, pois, ao se deslocarem acessam variadas
dimensões espaciais da vida social e, por conseguinte, desvendam identidades e
alteridades.
As viagens de Jorge Luis Borges propiciam a construção de novas pátrias,
diferentes daquela de origem. A cidade de Genebra torna-se uma delas através de um
ato de eleição afetiva. Esse comportamento, oriundo do ir e vir entre territórios,
desdobra questões identitárias como as de território e pertencimento, em meio à
geografia cultural. Eneida Maria de Souza considera que, para o escritor argentino, “a
pátria, se existe como identidade, ocupa um espaço imaginário cujas fronteiras não
coincidem com as da nação”.
343
Sobre o mesmo tema do pertencimento, e se referindo à
natureza do criador, Walter Benjamin pontua que “a sua terra natal não é o lugar onde
nasceu, mas, sim, ele vem ao mundo onde é sua terra natal”.
344
Em Atlas, as noções de
pertencimento e nacionalidade são percebidas não só apartir de dados biográficos, mas
também a partir de espaços (re)criados literariamente, por vezes, entre a vigília e o sono
e no ato de ditá-los, como se nota nos textos “Um sonho na Alemanha”, “Atenas”, “Um
pesadelo” ou “Os sonhos”. Neste, em especial, a noção de identidade é inscrita em meio
aos contornos de uma identidade que se confunde com as sombras da imagem sonhada,
à maneira crepuscular:
343
SOUZA. O século de Borges, p. 11.
344
BENJAMIN. Rua de mão única, p. 277.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
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Meu corpo físico pode estar em Lucerna, no Colorado ou no Cairo,
mas ao acordar cada manhã, ao retornar ao ato de ser Borges,
encontro-me invariavelmente emergindo de um sonho que ocorre em
Buenos Aires. As imagens podem ser cordilheiras, pântanos com
andaimes, escadas de caracol que mergulham em porões, dunas cuja
areia devo contar, mas qualquer uma dessas coisas é uma esquina
precisa do bairro de Palermo ou do Sul. Na vigília estou sempre em
meio a uma vaga neblina luminosa de tom acinzentado ou azul; nos
sonhos enxergo e converso com os mortos, sem que nada disso me
espante. Nunca sonho com o presente e sim com uma Buenos Aires
pretérita e com as galerias e clarabóias da Biblioteca Nacional, na rua
México. Quer tudo isso dizer que, para além da minha consciência,
sou irreparavelmente, incompreensivelmente portenho?
345
A identidade portenha aparece como as imagens vistas pelo escritor cego,
como algo opaco, deformado e cujos contornos são delineados pela incertezas da
memória e do senso de localização física de um corpo no desterro. A tentativa borgiana
de reconstituir sua identidade, portanto, pode ser vinculada às idéias de
desterritorialização e reterritorilização que integram a metáfora do exílio. A idéia de
território, como se viu no gerenciamento do espaço pelos renascentistas e em seu
desdobramento no iluminismo, esteve ligada às bases do Estado com fronteiras
geográficas definidas. Lembra Eric Hobsbawm que, desde o século XVIII, “a equação
nação = Estado = povo e, especialmente, povo soberano, vinculou indubitavelmente a
nação ao território, pois a estrutura e a definição dos estados eram agora essencialmente
345
BORGES. Atlas [1999], p. 484. “Mi cuerpo físico puede estar en Lucerna, en Colorado o en El Cairo,
pero al despertarme cada mañana, al retomar el hábito de ser Borges, emerjo invariablemente de un sueño
que ocurre em Buenos Aires. Las imágenes pueden ser cordilleras, ciénagas con andamios, escaleras de
caracol que se hunden en sótanos, médanos cuya arena debo contar, pero cualquiera de esas cosas es una
bocacalle precisa del barrio de Palermo o del Sur. En la vigília estoy siempre en el centro de una vaga
neblina luminosa de tinte gris o azul; veo en los sueños o converso com muertos, sin que niguna de esas
dos cosas me asombre. Nunca sueño con el presente sino com um Buenos Aires pretérito y com las
galerías y claraboyas de la Biblioteca Nacional en la calle México. ¿Que todo esto decir que, más allá de
mi voluntad y de mi conciencia, soy irreparablemente, incomprensiblemente porteño?” BORGES. Atlas
[1984], p. 54.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
153
territoriais.”
346
Na versão do Estado Moderno, pertencer a um território, entretanto, seria
pertencer a uma nação, ter uma nacionalidade, uma pátria.
Nesse limiar, as reflexões de Gilles Deleuze e Félix Guatarri acerca da
noção de território são importantes para se pensar as questões identitárias e os
movimentos de desterritorialização e reterritorialização. O conceito de terrritório é
entendido pelos pensadores num sentido amplo, que ultrapassa as noções entológicas
(territorialidade animal) e etnológicas (territorialidade social), a patir de uma rede de
agenciamentos de corpos maquínicos e de agenciamentos coletivos de enunciação, rede
essa que diz respeito ao pensamento e ao desejo:
O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um
sistema percebido no seio do qual o sujeito se sente “em casa.” [...]
Ele é um conjunto de projetos e representações nos quais vai
desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de
investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos,
cognitivos. [...] O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se
em linhas de fuga e até sair de seu curso.
347
Os processos de saída e criação de territórios são entendidos como
elementos indissociáveis que correspondem aos processos de desterritorialização e
reterritorialização, respectivamente. A desterritorialização pode ser percebida, então,
como um abandono do território “original” e a reterritorialização, como o movimento de
construção de um novo território a partir do espaço desterritorializado. O aparecimento
do Estado, para Félix e Gattarri, é responsável pelo primeiro grande movimento de
desterritorialização, pois, com sua criação, o território das comunidades originais
(primitivas) são alterados em prol da construção de um outro território que substitui a
346
HOBSBAWM. Nações e nacionalismo, p. 32.
347
GUATTARI; ROLNIK. Micropolítica, p. 323.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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154
sua unidade pela do Estado: “o corpo pleno já não é o da terra, mas o do Déspota [...],
que se ocupa tanto da fertilidade do solo como da chuva do céu e da apropriação geral
das forças produtivas.”
348
O exílio, dessa forma, está mesmo vinculado aos movimentos de
desterritorialização e reterritorilização. Jorge Luis Borges, em sua trajetória poético-
biográfica, cartografada inclusive em Atlas, desterritorializa-se quando se distancia da
Buenos Aires de nascimento e se auto-exila na Europa. Este auto-exílio, por
conseguinte, corresponde a um processo de reterritorialização, pois o escritor cria um
outro território que imprime também significados a lugares de pertencimento sem o
apagamanto do anterior. A identidade passa a ser construída em meio a esse movimento
de des-territorialização. O mesmo pode ser válido para o escritor brasileiro.
O livro de viagem de Murilo Mendes também suscita questões pertinentes
ao tema. Os espaços percorridos na Carta geográfica muriliana proporcionam a
aquisição de experiências múltiplas do mundo e instigam a busca dos sentidos de
identidade e pertencimento, como se observa nos escritos do Murilo viajante sobre o
território de Haia:
Não existindo o verbo haiar sinto-me desobrigado de permanecer em
Haia, esta “maior aldeia da Europa”. Não existem também os haienses
(ou haianos); os habitantes são pessoas que vivem transitoriamente
aqui, voltando amanhã para Rotterdam, Amsterdam, Nimègue,
Bruxelles, Djakarta, Paris. Montesquieu perguntava se alguém poderá
ser persa. Por minha vez pergunto se alguém poderá ser haiense. Mas
hoje alguém é apenas do lugar onde nasceu?
349
348
DELEUZE; GUATTARRI. O anti-Édipo, p. 150.
349
MENDES. Carta geográfica, p. 1084-1085.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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155
A noção de pertencimento para Murilo Mendes é estendida ainda à busca e à
tentativa de recriação da nacionalidade de Apolo na grega Delos: “Sei que Apolo nasceu
aqui, tão certo como Mallarmé nasceu em Paris. Poderia Apolo ter nascido em
Tegucigalpa ou Liverpool?”
350
As viagens, conforme já assinalado, favorecem a construção de identidades
e estas, nos livros de viagem, podem ser lidas com lupas da própria literatura, a partir
das (auto)representações dos escritores-viajantes e de seus deslocamentos por lugares e
cidades. De acordo com Stuart Hall, a definição de identidades é uma forma metafórica
de caracterização, pois as identidades não estão expressas no sangue, pensa-se nelas
como se fossem parte da natureza do ser.
351
Partindo da consideração de Hall, pode-se
dizer que as viagens proporcionam a Murilo Mendes e a Jorge Luis Borges uma
identificação com ambientes que os prendem afetiva e culturalmente, como a Genebra
borgiana e a Espanha, Salzburgo, Roma, Sicília e Portugal murilianos. As pátrias
eletivas junto a Juiz de Fora, Minas e à catolicidade são peças de identidade de um
Murilo viajante, bem como as pátrias eletivas junto a Buenos Aires para Borges
viajante. Essas pátrias e a Europa não são, para o poeta mineiro e para o escritor
argentino, espaço de passagem, mas um lugar
352
de eleição ao qual se prende por laços
de afetividades e afinidades.
350
MENDES. Carta geográfica, p. 1065.
351
HALL. A identidade cultural na pós-modernidade.
352
O conceito de lugar aqui é o representado por Marc Augé em contraponto ao que o autor chama de
“não-lugar”: “Se um lugar pode definir-se como identitário, relacional e histórico, um espaço que não
pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar”.
AUGÉ. Não lugares, p. 73.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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156
Murilo Mendes visita as cidades a partir de um olhar precedente, seja
relacionando-as ao espaço da Juiz de Fora pretérita estendida ao espaço do exílio.
Ricardo Foster, ao tratar a cidade escrita na obra borgiana, pondera que Genebra
configura “a possibilidade de olhar de outro modo seu lugar de origem, de percorrer
com a memória a cidade longínqua, essa Buenos Aires que ia adquirindo traços
míticos”.
353
Buenos Aires transfunde-se depois em outras cidades, ruínas, labirintos e
arquétipos múltiplos. Sob esses signos literários, percebe-se um jogo (auto)biográfico
em que a Buenos Aires do Atlas borgiano, tal qual a Juiz de Fora da Carta geográfica
muriliana, surgem como a Veneza nas margens da memória de Marco Polo, personagem
de Italo Calvino: “Pode ser que eu tenha medo de repentinamente perder Veneza, se
falar a respeito dela. Ou pode ser que, falando de outras cidades, já a tenha perdido
pouco a pouco”.
354
Esses movimentos de busca e de identificação levam às considerações de
Néstor Gárcia Canclini sobre a localização do latino-americano: “O lugar a partir do
qual vários milhares de latino-americanos escrevem, pintam ou compõem músicas já
não é a cidade na qual passaram sua infância, nem tampouco é essa na qual vivem há
alguns anos, mas um lugar híbrido, no qual se cruzam os lugares realmente vividos.”
355
E esse lugar híbrido pode ser relacionado com aquele “entre-lugar” ocupado por Murilo
Mendes e Jorge Luis Borges, agora des-reterritorializados, em busca de uma tradição
perdida em meio à modernidade.
353
FOSTER. Cuadernos Hispanoamericanos, p. 147. “[...] la posibilidad de mirar de otro modo su lugar
de procedencia, de recorrer con la memoria la ciudad lejana, esa Buenos Aires que iría adquiriendo rasgos
míticos.” (Tradução minha)
354
CALVINO. As cidades invisíveis, p. 82.
355
CANCLINI. Culturas híbridas, p. 327.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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157
As buscas mais radicais sobre o que significa estar entrando e saindo
da modernidade são as dos que assumem as tensões entre
desterritorialização e reterritorialização. Com isso refiro-me a dois
processos: a perda da relação 'natural' da cultura com os territórios
geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações
territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções
simbólicas.
356
Em Sociedade e discurso ficcional,
357
Luiz Costa Lima apresenta,
claramente, a distinção entre “fictício” e “ficcional” e ainda coloca que as experiências
narradas na literatura são, simultaneamente, marcas discursivas que englobam traços
discursivos ficcionais e traços discursivos histórico-culturais. Tais considerações
servem para pensar o lugar ocupado pelo narrador de viagem, personagem e autor da
literatura de viagem. Nas escritas de Carta geográfica e Atlas, percebe-se uma
associação da iniciativa de busca de uma linguagem próxima à modernidade, diferente
da espacialidade dos registros de viagem tradicionais. O esgotamento dos modelos
tradicionais de narrativa se efetiva pela opção de uma escrita fragmentária e não-linear,
permeada de poesia, o que afirma a negação de uma escrita de feição pedagógica e
totalizante. A literatura de viagem, pois, a cada atualização, seja inovando categorias
literárias seja questionando ou não os cânones culturais, mostra-se intensamente
significativa e ao mesmo tempo desconstrutora quando lida com contrapontos entre a
tradição cultural e literária.
Para um escritor, afirma Ricardo Piglia,
358
a memória é a tradição. Uma
memória impessoal, feita de citações em todas as línguas e em que fragmentos e tons de
356
CANCLINI. Culturas híbridas, p. 43.
357
COSTA LIMA. Sociedade e o discurso ficcional.
358
PIGLIA. Anais: 2. Congresso Abralic, p. 60-66.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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158
outras escrituras emergem como recordações pessoais. A tradição seria, portanto, o
resíduo de um passado cristalizado que se filtra no presente e, nesse presente, o escritor
trabalha com rastros dessa tradição perdida, uma ex-tradición. Essa figura da “ex-
tradição”, segundo Piglia, seria o lugar do escritor:
A consciência de não ter história, de trabalhar com uma tradição
esquecida e alheia; a consciência de estar em um lugar deslocado e
inatual. Poderíamos chamar essa situação de a mirada estrábica: há de
ter um olho posto na inteligência européia e o outro posto nas
entranhas da pátria.
359
Os deslocamentos realizados pelo escritor por espaços variados, como
geográficos, culturais, textuais, resultam em uma escrita construída por roubos, por
empréstimos, por apropriações, uma situação de trânsito e de trocas simbólicas, em
meio ao jogo entre memória e esquecimento, pois “escrever é uma tentativa inútil de
esquecer o que está escrito”.
360
“Quando reorganiza a ordem do arquivo legado pela
tradição cultural e literária e recorta dele o material de que necessita para engendrar um
outro texto, Borges desterritorializaria essa tradição tal como ela é concebida,
reinventando-a em outro tempo-espaço”,
361
lembra Lyslei Nascimento.
Sobre esses deslocamentos pelo território da tradição, discorreu Jorge Luis
Borges, em “O escritor argentino e a tradição”,
362
buscando sentido para essa relação:
359
PIGLIA. Anais: 2. Congresso Abralic, p. 61. “La conciencia de no tener historia, de trabajar con una
tradición olvidada e ajena; la conciencia de estar en un lugar desplazado e inactual. Podriamos llamar esa
situação la mirada estrabica: Hay de tener un ojo puesto en la inteligencia europea y el outro puesto en las
entrañas de la pátria.” (Tradução minha)
360
PIGLIA. Anais: 2. Congresso Abralic, p. 60. “[...]escribir es un intento inútil de olvidar lo que está
escrito.” (Tradução minha)
361
NASCIMENTO. Vestígios da tradição judaica, p. 21.
362
BORGES. Discussão, p. 288-296.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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159
Creio que nossa tradição é toda a cultura ocidental, e creio também
que temos direito a essa tradição, maior que podem ter os habitantes
de qualquer outra nação ocidental. [...] Creio que os argentinos, os sul-
americanos em geral, estamos numa situação análoga; podemos lançar
mão de todos os temas europeus, utilizá-los sem superstições, com
uma irreverência que pode ter, e já tem, conseqüências afortunadas.
363
Nesse sentido, Carta geográfica e Atlas podem ser lidos como
“conseqüências afortunadas”. Para suas construções, Murilo Mendes e Jorge Luis
Borges, cada qual ao seu modo, lançaram-se física e intelectualmente ao território
europeu através de viagens e leituras. Tais obras, no entanto, corresponderiam a um
processo de dessacralização do monumento histórico (tradicionais narrativas de viagem
do descobrimento), a que Deleuze e Guattari
364
denominam desterritorialização e
reterritorialização: trata-se de descrever, dentro de uma língua ou uma história maiores,
uma outra história (a dos latino-americanos, outrora cópia, se tornarem autores de
contemporâneos relatos de viagem sobre a redescoberta do modelo, da Europa). É
justamente a literatura des-reterritorializada que garante ao texto outra dicção, outra
cartografia. A experiência da viagem, pois, se concretiza também por meio da
experiência da (sua) escrita que arquiva o mundo moderno e o clássico num
procedimento repetitivo de recriação da memória e da imaginação.
363
BORGES. Discussão, p. 294-295. “Creo que nuestra tradición es toda la cultura occidental, y creo
también que tenemos derecho a esta tradición, mayor el que pueden tener los habitantes de uma u outra
nación occidental. [...] Creo que los agentinos, los sudamericanos em geral, estamos en una situación
análoga; podemos manejar todos los temas europeos, manejarlos sin superticiones con una irreverencia
que puede tener, y ya tiene, consecuencias afortunadas.” BORGES. Obras Completas v. 1 [1989], p. 272-
273.
364
Ao tratarem da obra de Kafka, Deleuze e Guattari sustentam que o escritor utiliza a língua alemã
(língua de “literatura maior”) para a produção de uma “literatura menor” – a de deslocado, uso
desterritorializado, então. O ato de Kafka escrever em alemão em Praga foi, contudo, um ato de
reterritorialização da língua. DELEUZE; GUATTARI. Kafka.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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160
CONSIDERAÇÕES FINAIS
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
Os livros Carta geográfica, de Murilo Mendes, e Atlas, de Jorge Luis
Borges, sinalizam as condições de seus autores como escritores em movimento. Suas
trajetórias poético-biográficas convergem para um cosmopolitismo cultural e para a
situação de trânsito do intelectual latino-americano entre o moderno e a tradição.
Ambos os escritores ultrapassaram os limites culturais e geográficos de seus territórios
de origem e deixaram suas marcas no cenário da literatura ocidental.
Apesar de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges serem escritores
“deslocados”
365
, eles não se posicionam como marginais, não margeiam a tradição
central, mas, muito pelo contrário, operam um deslocamento rumo ao centro, à tradição
européia e galgam seus espaços nesse lugar simbólico abarcado por toda a tradição
ocidental. Murilo Mendes, ao desenhar sua Carta geográfica, perfaz a rota da história
do pensamento do Ocidente e Borges, em seu Atlas, traça os percursos de suas leituras
do universo.
Convergentes também foram os propósitos de escreverem sobre suas
viagens e intitularem suas obras com palavras representativas de espacialidade, ou
melhor, com vocábulos caros às ciências geográficas. A concepção de espaço sugerida
pelos títulos, Carta geográfica e Atlas, projeta um sistema de determinações que
condicionam possibilidades de interpretações vinculadas a noções de cartografia e
365
Entender o sentido atribuído à palavra por Ricardo Piglia. Cf. PIGLIA. Margens/ Márgenes, p. 1-3.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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161
aguçam os sentidos do viajante-leitor. Mas essa noção de mapa, enquanto representação
de espaço físico, logo é desconstruída em prol de uma espacialidade de caráter
(auto)biográfico, delineada pela memória dos viajantes que escrevem sobre suas
experiências de viagens, como que um recorte das trilhas por onde andaram ou
imaginaram, construindo as imagens de sujeitos biográficos em trânsito e em interação
com a cultura européia. As escritas fazem transcender o espaço físico-geográfico para o
lírico-ficcional ou lírico-afetivo.
Ao se tratar da temática da viagem, é imprescindível a referência a cidades,
à forma como o viajante se relaciona com o espaço, com o tempo, com o “outro”. Nesse
contato, nesse ir e vir, emergem identidades. A idéia de pátria una se dilui e é
substituída pela idéia de pertencimento a lugares eletivos, a exemplo da Genebra
borgiana, da Roma, Espanha ou Portugal murilianos. O verso com que Carlos
Drummond de Andrade reverencia Murilo Mendes, “Peregrino europeu de Juiz de
Fora”, pode também aplicar-se a Borges, como uma pequena mudança: “Peregrino
europeu de Buenos Aires”.
Em suas viagens, Murilo Mendes e Borges mobilizam os mecanismos da
memória. Eles reeditam o narrador-viajante de Benjamin: tentam recuperar o valor da
experiência, mas de uma experiência agora mediada pelas leituras e pela literatura. Suas
escritas de viagem são construídas como um palimpseto de leituras de um mundo que se
quer escrito. Jorge Luis Borges lança seu olhar enciclopédico sobre o seu mundo,
reescrevendo-o à maneira de um memorial. Murilo Mendes faz circular nas páginas de
sua prosa-poética um universo cultural por ele percorrido e compartilhado no âmbito da
literatura, das artes, da música, da religião e da amizade.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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162
Tratar da escrita de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges,
portanto, é tratar da própria literatura produzida por escritores-críticos latino-
americanos. É tratar de uma literatura que é intertextualidade, diálogo e (re)leituras. É
tratar da própria tradição ocidental, uma vez que nossos escritores-viajantes não se
limitam à margem do Ocidente, aos “tristes trópicos”, eles se desterritorializam e
desterritorializam suas literaturas.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
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CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
174
NOTAS DE FIM
i
MAPA
A Jorge Burlamaqui
Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à consciência da terra, ando com os outros,
me pregaram numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado. Me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram um rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos no ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pela rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou do outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presentes a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,
Presságios brotando do ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.
Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários...
Tudo transparecerá:
Vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no mar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.
Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
Viva São Francisco de Assis e vários suicidas e amantes suicidas,
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
175
e os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
Viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do celebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.
MENDES. Poemas, p. 116-117.
ii
AS RUAS
As ruas de Buenos Aires
já são minhas entranhas.
Não as ávidas ruas,
incômodas de turba e de agitação,
mas as ruas entendiadas do bairro,
quase invisíveis de tão habituais,
enternecidas de penumbra e de ocaso
e aquelas mais longínquas
privadas de árvores piedosas
onde austeras casainhas apenas se aventuram,
abrumadas por imortais distâncias,
a perder-se na profunda visão
de céu e de planura.
São para o solitário uma promessa
porque milhares de almas singulares as povoam,
únicas ante Deus e no tempo
e sem dúvida preciosas.
Para o Oeste o Norte e o Sul
se desfraldaram – e são também a pátria – as ruas;
oxalá nos versos que traço
estejam essas bandeiras.
BORGES. Fervor de Buenos Aires, p. 15.
LAS CALLES
Las calles de Buenos Aires
ya son mi entraña.
No las ávidas calles,
incómodas de turba de de ajetreo,
sino las calles desganadas del barrio,
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
176
casi invisibles de habituales,
enternecidas de penumbra y de ocaso
y aquellas mas afuera
ajenas de árboles piedosos
donde austeras casitas apenas se eventuram
abrumadas por inmortales distancias,
a perderse em la honda visión
de ciclo y de llanura.
Son para el solitário una promesa
porque millares de almas singulares las pueblan
únicas ante Dios y el tiempo
sin duda preciosas.
Hacia el Oeste, el Norte y el Sur
Se han desplegado – y son también la pátria – las calles:
ojalá em los versos que trazo
estén esas banderas.
BORGES. Obras completas v. 1 [1989], p. 15.
iii
JORGE LUIS BORGES
Há muitos séculos, viajando no interior da Babilônia, entrei por engano na residência de verão
do imperador. Levado à sua presença, ele cortesmente me convidou a visitar as principais salas
do palácio em companhia de um funcionário. Penetrando na imensa biblioteca que reunia em
centenas de volumes toda a sabedoria do Oriente deparei com um homem alto de testa larga
(onde cabem todos estes volumes), olhos assimétricos, lentes escuras, e que protegido por
“estandarte de silêncio” copiava atentamente certos pergaminhos. Não podia deixar de ser Jorge
Luis Borges. Ao seu lado notava-se uma enorme chave de bronze: segundo meu cicerone, a
chave que abria as portas do “claro labirinto” do palácio guarnecido de objetos recolhidos no
universo inteiro, que correspondiam a palavras. Borges pertencia ao pequeno grupo de iniciados
dispondo de acesso ao labirinto onde se representa diariamente a “pantonímia cósmica”.
Dando com minha presença, Borges, aquele de El Aleph, El Hacedor, Historia Universal de la
Infamia, Antologia Personal, levantou-se, rígido, exclamando: ISTOMÊNU
CIRCUNSCISFLÁUTICO! Achei a bela fórmula de saudação, embora não a compreendesse.
Repliquei: BORGES! e ele: Eu não sou mais Borges; “represento” uma outra pessoa de alta
antigüidade e que retorna sempre, de acordo com o movimento cíclico dos astros; por agora não
quero me identificar.
Disse-lhe então meu nome, acrescentando que não dispunha de títulos para me caracterizar.
Respondeu-me: Não importa. Quem conhece ao certo sua identidade? Por exemplo, há uns 24
séculos Chuang Tzu sonhou que era mariposa, não sabendo ao despertar se era um homem que
sonhava ser mariposa ou uma mariposa que sonhara ser um homem.
Saímos a passear no Jardim. Ouvia-se o canto arredondado dos pássaros com humour, de muitas
fontes e o remexer da folhagem; mas Borges não prestava atenção a esses ruídos porque já os
“lera” em numerosos textos do Oriente e do Ocidente. Discorria sobre o Livro de Jô, sobre o
Visuddhimgga, tratado budista do século V, sobre Plutarco, Heráclito, Paracelso e Swedenborg.
CARTOGRAFIAS DA MEMÓRIA
as escritas de viagem de Murilo Mendes e Jorge Luis Borges
Elaine Amélia Martins
177
Também citou Newton que afirma: Cada partícula de espaço é eterna, cada indivisível momento
de duração está em todas as partes.
De repente fixei a cabeça de Borges: não era mais uma cabeça comum de carne e osso, antes
uma esfera coberta de letras, números, signos. Despedindo-se murmurou: Quem me dera ser
apenas Jorge Luís Borges.
Borges é seu próprio texto, seu teatro giratório, seus atores e sua representação; diretor da
“pantonímia cósmica”. Ele sofre por ser sujeito ao tempo circular, à criação recorrente; insiste
na similitude da vida e da morte; é obsedado pela idéia do labirinto de épocas fabulosas e de
hoje mesmo, pelos jogos de simetria e de espelhos, sabe que já “leu” muitas outras existências.
Alguns críticos consideram-no um simples transcritor inteligente de textos, um arquiteto de
artifícios, o mestre do collage literário: ignoram que esses textos incorporam-se ao domínio
pessoal de Borges apesar das armadilhas da sua erudição; e que os artifícios de Borges afinal
resultam mais naturais do que o natural para um homem comum.
Para Borges a realidade é um fenômeno resultante da memória; outra alternativa: a memória
seria estrutura da própria realidade. A memória dos textos lidos, assimilados e transformados
por Borges produz textos de Borges que morrerão com a morte do mundo, esvaziado de Borges.
As linhas de todas as figuras desenhadas no tempo e no espaço encontram-se transpostas na
fisionomia de Borges. As alusões e analogias indicadas nos textos de Borges resultam ao
mesmo tempo vagas e precisas. Operador da metáfora e do mito, Borges acha-se “libre de la
metáfora y del mito”.
Desde aquele encontro na biblioteca de Babilônia – a biblioteca é para ele a imagem concreta do
Paraíso – nunca mais revi Jorge Luís Borges. Com efeito, Jorge Luís Borges é um cérebro
eletrônico.
MENDES. Retratos-relâmpago, p. 1218-1220.
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