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MICHELE CUKIERT CSILLAG
A PSICANÁLISE E O TRATAMENTO POSSÍVEL DE PACIENTES COM EPILEPSIA
E CRISES PSEUDO-EPILÉTICAS
Tese apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo, como
parte dos requisitos para obtenção do título de
Doutor em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia Clínica
Orientadora: Profa. Dra. Léia Priszkulnik
São Paulo
2006
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS
DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Csillag, Michele Cukiert.
A psicanálise e o tratamento possível de pacientes com epilepsia e
crises pseudo-
epiléticas / Michele Cukiert Csillag; orientadora Léia
Priszkulnik. --São Paulo, 2006.
127 p.
Tese (Doutorado Programa de Pós-
Graduação em Psicologia. Área
de Concentração: Psicologia Clínica)
Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo.
1. Epilepsia 2. Psicanálise 3. Freud, Sigmund, 1856-
1939
4. Lacan, Jacques, 1901-1981 I. Título.
RC372.A4
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A PSICANÁLISE E O TRATAMENTO POSSÍVEL DE PACIENTES COM EPILEPSIA
E CRISES PSEUDO-EPILÉTICAS
MICHELE CUKIERT CSILLAG
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
___________________________________
___________________________________
___________________________________
___________________________________
Tese defendida e aprovada em ___/___/___
Ao Léo, que me acompanha
e ao Dani, que ilumina meu caminho...
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Léia Priszkulnik pela ajuda, apoio e incentivo desde o início de meu percurso
na pós-graduação no IP-USP.
À Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa e Prof. Dr. Gilberto Gobbato pela leitura atenta e pelas
sugestões por ocasião do exame de qualificação.
À CAPES, pelo apoio na realização desta pesquisa.
Ao meu irmão, Dr. Arthur Cukiert, Neurocirurgião, Chefe do Serviço de Cirurgia de
Epilepsia do Hospital Brigadeiro (SP) e diretor da Clínica de Diagnóstico e Terapêutica das
Epilepsias (SP), por me apresentar ao problema discutido nesta tese e me introduzir nessa
difícil e fascinante clínica.
Ao Oscar Cesarotto, pela escuta há tantos anos e sobretudo pela ajuda nas horas difíceis.
Aos meus pais (José e Rachela) e ao João Mário, Sofia, Paula, Diana e Marcelo pelo apoio e
por ajudarem a cuidar do Dani para que eu pudesse finalizar esta tese.
SUMÁRIO
Resumo....................................................................................................................
Abstract....................................................................................................................
1. Introdução..............................................................................................................1
2. Epilepsia: Informações Médicas ............................................................................7
3. Revisão da literatura / Panorama da discussão atual..............................................13
4. Revisão da literatura / Tratamento das crises pseudo-epiléticas.............................22
4.1. Discussão: o viés da Psicanálise...........................................................................36
5. Da Medicina à Psicanálise....................................................................................42
5.1. Histeria e epilepsia...............................................................................................44
5.2. Psicanálise e Medicina: encontros e desencontros.................................................47
6. Abordagem psicanalítica da questão.....................................................................53
6.1. Para além da hipótese traumática..........................................................................53
6.2. Freud: a noção de trauma......................................................................................57
6.3. Etiologia traumática: uma discussão.....................................................................61
7. Freud: a formação dos sintomas............................................................................63
7.1. Sintoma e ganhos secundários..............................................................................65
7.2. O sintoma tem um sentido....................................................................................69
7.3. Para além do princípio de prazer...........................................................................70
7.4. Dualismo pulsional e pulsão de morte..................................................................73
7.5. O sintoma a partir da segunda tópica....................................................................76
8. Aspectos sobre o sintoma na teoria lacaniana........................................................78
8.1. Primeiras formulações lacanianas: o sintoma estruturado como linguagem...........78
8.2. Sintoma como gozo................................................................. .............................82
8.3. Sintoma como interseção entre significante e gozo...............................................86
8.4. Identificação ao sintoma.......................................................................................88
8.5. Lacan e o fenômeno psicossomático.....................................................................90
9. Apresentação do caso ..........................................................................................96
9.1. Diagnóstico médico..............................................................................................96
9.2. Relato...................................................................................................................96
9.3. Análise e intervenção..........................................................................................100
9.4. As condições de análise......................................................................................107
10. Momento de concluir..........................................................................................110
10.1. Uma questão de paradigmas................................................................................113
10.2. O tratamento possível.........................................................................................115
11. Observação sobre aspectos éticos........................................................................118
12. Referências Bibliográficas..................................................................................119
12.1. Bibliografia consultada.......................................................................................127
RESUMO
CSILLAG, M. C. A Psicanálise e o tratamento possível de pacientes com epilepsia e crises
pseudo-epiléticas. São Paulo, 127 p. Tese. Instituto de Psicologia, Universidade de São
Paulo.
A presente tese investiga a contribuição da Psicanálise no tratamento de pacientes
portadores de epilepsia com crises pseudo-epiléticas associadas.
Apresenta-se o ponto de vista médico sobre a epilepsia, esclarecendo como é feito
atualmente o diagnóstico diferencial entre crises epiléticas e pseudo-epiléticas. A seguir,
por meio da revisão da literatura, elabora-se um panorama das alternativas atuais de
tratamento desses fenômenos.
Como contraponto, organiza-se um panorama do ponto de vista psicanalítico acerca
dessa problemática. Retomando noções fundamentais em Freud e Lacan tais como sintoma,
trauma, gozo e cura, define-se a especificidade da clínica psicanalítica e sua diversidade da
intervenção médica.
Por meio da discussão do caso de um paciente encaminhado para análise com
diagnóstico médico de epilepsia com crises pseudo-epiléticas associadas, discutem-se as
possibilidades e os impasses desse trabalho.
ABSTRACT
CSILLAG, M. C. Psychoanalysis and the treatment of pacients with coexisting epilepsy and
pseudo-epileptic seizures: difficulties and possibilities. São Paulo, 127 p. Thesis. Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo.
This thesis examines the contribution of Psychoanalysis in the treatment of pacients
with coexisting epilepsy and pseudo-epileptic seizures.
It presents the medical point of view about epilepsy and the current modern practice in
dignosis of pseudo-epileptic seizures, showing the recent treatment strategies in pseudo-
seizures, as discussed in the medical literature.
The psychoanalytical point of view about this problem is then discussed, analysing
fundamental concepts in Freud and Lacan as symptom, trauma, jouissance, and cure.
Establishes the specific nature of the psychoanalytical clinic and focuses its difference
versus the medical approach.
A case of a pacient treated by Psychoanalysis is presented and a discussion of the
difficulties and the possibilities of this work is made.
1. INTRODUÇÃO
A questão do corpo em Psicanálise sempre me interessou. Por ocasião de minha
Dissertação de Mestrado, investiguei a problemática do corpo em Psicanálise, tendo como
referência as obras de Freud, Reich e Lacan - procurando depreender qual a posição de cada
um desses autores à esse respeito.
O problema do corpo se destaca no cenário psicanalítico desde os primórdios da
Psicanálise, constituindo uma interrogação fundadora e crucial em nosso campo. De fato,
foram os sintomas histéricos inscritos no corpo, na vertente de paralisias, cegueira, acessos
de tosse, etc., além do caráter traumático da sexualidade, os fatos clínicos que levam Freud
à descoberta do inconsciente e da Psicanálise.
Nesse percurso, o tratamento da histeria tem um papel fundamental já que a teoria
freudiana está referida à nova forma como foi possível pensar as relações entre corpo e
psiquismo a partir dele. Freud desvincula a histeria do campo da doença orgânica, afastando-
se da maneira como a Medicina pensava a questão e consolida a Psicanálise como método
de tratamento das doenças nervosas e como uma nova disciplina.
Nessa nova clínica, instaura-se a interpretação como recurso insuperável para detectar o
desejo oculto e a busca do sentido do sintoma adquire um papel preponderante na cura. Ao
mesmo tempo, a livre-associação, estabelecida como regra fundamental, possibilita definir
que o campo sobre o qual o analista incide é o inconsciente e a linguagem.
Com a idéia de espaço psíquico, Freud funda uma prática que integra em seu campo o
dom
ínio do relato, da fantasia e da linguagem. No lugar de explicações anatômicas, surgem
em primeiro plano variáveis ocultas e enigmáticas: o deslocamento, as identificações, o
sentido das palavras e dos sintomas. Estes, por sua vez, passam a ser pensados com base em
uma nova lógica: aquela dos processos inconscientes.
Conforme pude apontar, circunscrever exatamente o que é o corpo em Psicanálise não é
uma tarefa simples, já que é preciso pensar a questão subentendendo concepções que se
modificam e, muitas vezes, parecem se contrapor.
Por meio das reformulações operadas em sua teoria, Freud se afasta do campo da
Medicina e da noção de corpo biológico, articulando uma noção de corpo específica ao
campo psicanalítico a partir de conceitos tais como inconsciente, sexualidade e pulsão
(Trieb). Surgem, assim, novos parâmetros para se pensar a corporeidade. Não se
identificando com o corpo da Biologia, ele é, diversamente, o corpo erógeno, marcado
pelas vicissitudes do desejo.
Nas considerações finais de minha Dissertação de Mestrado, assinalei que Freud
inaugura um saber acerca do corpo que não é da ordem da Biologia e sim, mais
precisamente, uma leitura psicanalítica da corporeidade.
De fato, há algo de revolucionário no olhar psicanalítico sobre o corpo, que é
absolutamente distinto do olhar da Medicina. Esse entendimento psicanalítico fundamenta a
abordagem do corpo na cena analítica. Ao mesmo tempo, a partir dessa leitura, abre-se todo
um campo de investigação para o poblema das relações entre corpo e psiquismo.
Trabalhando no Serviço de Psicologia da Clínica de Diagnóstico e Terapêutica das
Epilepsias, instituição multiprofissional dedicada ao atendimento de pacientes portadores de
epilepsias de difícil controle, tive a oportunidade de atender pacientes encaminhados para
atendimento psicológico em diversas situações.
Nessa instituição, o profisional psi oferece apoio psicológico pré e ou pós-cirúrgico.
Em casos em que há necessidade de um tempo maior de internação, o paciente também pode
ser acompanhado no hospital.
Em outra situação, o atendimento psicológico é oferecido quando após investigação
médica, diagnosticam-se crises pseudo-epiléticas associadas ao quadro neurológico. Nesses
casos, não havendo recursos médicos que possam auxiliar esses pacientes, a indicação é
psicoterápica.
Por meio da discussão de um estudo de caso, esta tese investiga especificamente as
possibilidades e os impasses da escuta desses pacientes com crises pseudo-epiléticas.
O real dessa demanda desafia e interroga os recursos teórico-clínicos da Psicanálise.
Nessa situação clínica somos confrontados com a complexidade das manifestações do
corpo na cena analítica e com o difícil manejo de uma problemática à qual estão associados
quadros orgânicos graves. Como interpretar essas manifestações? Quais as possibilidades e
os impasses nesse trabalho? Como favorecer nesses pacientes mudanças subjetivas
significativas?
As crises pseudo-epiléticas são um problema diagnóstico, psicopatológico e
psicoterápico relevante em termos da população portadora de epilepsia. O estudo dessas
manifestações exige a retomada do histórico desses pacientes e a compreensão das relações
estabelecidas entre o sujeito e sua doença.
Como se sabe, para além do sofrimento físico, a gravidade dos sintomas da epilepsia
pode gerar uma série de dificuldades psíquicas e de relacionamento nesses pacientes.
Evidente que o manejo desses conflitos também está ligado às características e recursos do
sujeito e de seu grupo familiar.
Esses pacientes podem passar a vida sentindo-se ansiosos e temerosos dos sintomas de
sua doença, excessivamente protegidos do mundo externo pelos pais (e outros vínculos
significativos), com a tendência a olhar a epilepsia como o centro de sua vida e a sentir-se
dependentes e fragilizados, tanto na infância como na vida adulta.
Mesmo assim, conforme apontei em artigo sobre o atendimento de um casal no qual um
dos cônjuges foi submetido à cirurgia de epilepsia (Cukiert, M., 1999), o fato do médico, os
pais ou familiares identificarem a necessidade de se intervir sobre essas dificuldades não
garante que o sujeito venha a beneficiar-se de um trabalho psicanalítico. Além disso a falta
de um mínimo reconhecimento de algum tipo de sofrimento psíquico pode tornar esses
indivíduos pouco acessíveis à análise.
Tendo em vista essa problemática, à luz do caso focalizado, discutirei a importância da
implicação desses pacientes em sua melhora.
Conforme indicarei na revisão da literatura a seguir, a presença da problemática das
crises pseudo-epiléticas na clínica médica das epilepsias é bastante relevante. Segundo
Marchetti, R.L. & Damasceno, B.P., ela representa 5% da população atendida em
ambulatórios de epilepsia e 20% da população atendida em centros de epilepsia de difícil
controle. Isso faz com que as questões desses pacientes não possam ser ignoradas pelas
equipes multiprofisisonais.
O trabalho analítico nesses casos não é simples. Esses pacientes muitas vezes chegam
para o atendimento com um longo histórico de convivência com a epilepsia e suas seqüelas
físicas e psíquicas. A aderência ao tratamento nem sempre é fácil e quando ocorre, sua
melhora pode não atender às expectativas médicas ou familiares, ainda que possa ser
significativa do ponto de vista do analista ou do paciente.
Ao longo de minha experiência na Clínica das Epilepsias, tive contato com vários
pacientes com crises pseudo-epiléticas. Nesta pesquisa, optei por explorar um caso que
mostra o percurso de um paciente que persistiu em seu processo. Minha proposta foi
mostrar, neste caso específico, de que maneira foi possível pensar e manejar esse trabalho.
Na atualidade, podemos considerar que a inclusão da Psicanálise nos Serviços
Hospitalares e em equipes multiprofissionais indica que há entre os profissionais da saúde e
instituições competentes algum reconhecimento da importância de nossa disciplina no
contexto da saúde. No exemplo clínico que discuto neste trabalho, o psicanalista é
convocado no exato ponto em que a Neurologia se depara com seus limites.
Mesmo assim, não se pode dizer que o lugar da Psicanálise no campo da saúde mental
esteja garantido, nem que seja dos mais confortáveis. Como observa Roudinesco (2000,
p.9), após cem anos de existência e de resultados clínicos incontestáveis, a Psicanálise,
atualmente, é atacada violentamente pelos que pretendem substituí-la por tratamentos
químicos, julgados mais eficazes porque atingem as chamadas "causas cerebrais das
dilacerações da alma". A esses a autora responde, que, sem contestar a utilidade dessas
substâncias e de desprezar o conforto que elas trazem, constata-se que
elas não podem curar o homem de seus sofrimentos psíquicos, sejam estes normais ou
patológicos. A morte, as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com
o outro moldam a subjetividade de cada um, e nenhuma ciência digna desse nome jamais
poderá pôr termo a isso (...). (p.9).
Esses embates não são uma novidade. Os impasses entre as explicações baseadas na
anatomia do cérebro e a perspectiva psicanalítica do inconsciente estão presentes desde os
primórdios da teoria freudiana. Como se sabe, em 1895, procurando formular uma teoria do
funcionamneto psíquico, o próprio Freud aposta inicialmente em hipóteses neurológicas e
constrói seu Projeto para uma psicologia científica. Anos mais tarde, a superação destas em
nome de uma Metapsicologia, testemunhou o abandono de sua tentativa de descrever os
processos psíquicos com base na neuroanatomia e seu comprometimento com a pesquisa do
inconsciente.
Os embaraços entre o ponto de vista médico e o psicanalítico, entre as explicações
neurais e o modelo freudiano, em certo sentido, retornam, apresentando-se hoje na ordem
do dia. Eles ficam ilustrados nas acirradas querelas entre o paradigma da Neurociência e o
da Psicanálise acerca do sujeito e seu funcionamento psíquico.
Articulando-se em defesa da abordagem psicanalítica, Birman (1999, p.182) considera
que as Neurociências pretendem construir uma leitura do psiquismo de base inteiramente
biológica, afirmando que "o funcionamento psíquico seria redutível ao funcionamento
cerebral, sendo este representado em uma linguagem bioquímica". Ou seja, para elas, "a
economia bioquímica dos neurotransmissores poderia explicar as particularidades do
psiquismo e da subjetividade". Daí a valorização da Psicofarmacologia, transformada em
"referencial fundamental da terapêutica psiquiátrica", em detrimento da Psicoterapia, que, no
dispositivo psiquiátrico, foi transformada em um "instrumento totalmente secundário face à
intervenção psicofarmacológica".
Como psicanalistas, não podemos ser surdos à essa discussão.
Este trabalho investiga qual pode ser a contribuição da Psicanálise no tratamento
desses pacientes, discutindo também os encontros mas também as dissonâncias entre o
approach médico e a leitura psicanalítica do sintoma.
A experiência clínica que apresentarei a seguir indica a possibilidade de se inserir a
prática psicanalítica em um contexto multiprofissional, apontando questões específicas à
esse enquadre. Ela ilustra também o fato de que mesmo com todo o avanço (e por que não
dizer os modismos das Neurociências), a escuta psicanalítica dá conta de aspectos essencias
para a compreensão da forma como o psiquismo pode interferir no determinismo de certas
doenças e ou sintomas.
Mais que isso, a investigação das questões relativas à essa situação clínica específica
nos possibilita retomar e avançar sobre problemas fundamentais apresentados desde as
origens e recolocados na atualidade ao campo psicanalítico: as relações entre corpo-
psiquismo, a complexidade das relações estabelecidas entre o sujeito e sua doença (gozo) e
a abordagem do sintoma como formação do inconsciente e como fenômeno subjetivo.
2. EPILEPSIA: INFORMAÇÕES MÉDICAS
A epilepsia não é uma doença nova. A Liga Brasileira de Epilepsia aponta momentos
significativos na história da epilepsia e das concepções relacionadas às suas causas,
tratamento e cura, assinalando o caráter mágico e sagrado que desde a antiguidade atribuiu-
se à essa doença. Ao mesmo tempo, lembrando Hipócrates, mostra que o esforço no sentido
de questionar a idéa da epilepsia como uma doença sagrada também não é recente. Mais ou
menos em 400 ª.C., o pai da Medicina afirmava que "a causa da epilepsia não estava em
espíritos malignos, mas no cérebro" (Texto disponível na Internet: http://
www.epilepsia.org.br).
Na idade média, a epilepsia foi relacionada à doença mental, considerada contagiante
e associada à uma série de idéias equivocadas que persistem até hoje entre pessoas
desinformadas. Com freqüência se tentava curar esse mal por meios religiosos. Já no século
XVIII, o neurologista Jackson definiu que a epilepsia era causada por uma descarga anormal
das células nervosas.
Séculos se passaram, conceitos e tratamentos se modificaram, mas, de certa forma, a
desinformação que cerca essa doença persiste. Curiosamente, apesar do intenso
preconceito que até hoje muitos pacientes enfrentam, pessoas brilhantes como Machado de
Assis e Dostoiévsky sofriam desse distúrbio neurológico.
Atualmente, a epilepsia é entendida como um conjunto de sintomas tais como
ausências e convulsões, que quando acontecem repetidamente caracterizam uma síndrome.
Isso significa que uma crise isolada precisa ser avaliada, mas não define necessariamente a
doença.
As crises epiléticas são causadas por uma descarga repentina de energia elétrica no
cérebro. Existem bilhões de células no cérebro que descarregam energia elétrica.
Movimento, memória, pensamento, sensação, emoção e a própria vida não seriam possíveis
se não houvessem esses pequenos impulsos de energia que carregam sinais de uma célula à
outra. Às vezes estes impulsos se alteram e o resultado visível são as crises epiléticas.
Segundo a Liga Brasileira de Epilepsia, a epilepsia é definida como:
uma alteração temporária e reversível do funcionamento do cérebro, que não tenha sido
causada por febre, drogas ou distúrbios metabólicos. Durante alguns segundos ou minutos,
uma parte do cérebro emite sinais incorretos, que podem ficar restritos a esse local ou
espalhar-se. Se ficarem restritos, a crise será chamada parcial; se envolverem os dois
hemisférios cerebrais, generalizada. Por isso, algumas pessoas podem ter sintomas mais ou
menos evidentes de epilepsia, não significando que o problema tenha menos importância se
a crise for menos aparente. (www.epilepsia.org.br).
As crises epiléticas não envolvem sempre convulsões. Além disso, uma pessoa com
epilepsia pode experimentar mais de um tipo de crise, ainda que o padrão delas tenda a
manter-se constante em um indivíduo. A National Society for Epilepsy (NSE-UK), instituição
mais importante no Reino Unido voltada ao atendimento e pesquisa na área da epilepsia,
esclarece que às duas categorias de crises (parciais e generalizadas), acrescentam-se as
crises que começam em uma parte do cérebro e depois se generalizam. Estas são chamadas
de crises secundariamente generalizadas. Segundo o site informativo da NSE, nas crises
generalizadas, a totalidade do cérebro está envolvida e a consciência é perdida. A crise,
então, pode assumir uma das seguintes formas:
-A forma mais dramática é a crise convulsiva tônico-clônica, também chamada de crise de
grande mal, na qual a musculatura se contrai e a pessoa pode cair se estiver de pé. Na
seqüência, os músculos relaxam e contraem ritmicamente, levando a pessoa a convulsionar.
A respiração fica dificultada e a pessoa pode tornar-se incontinente. Outros tipos de crises
generalizadas são:
-Tônicas: há um enrijecimento dos músculos sem movimentos espasmódicos. A pessoa
pode cair no chão se estiver de pé, com conseqüentes riscos de ferimento e lesão.
-Atônicas: nas quais há uma repentina perda de tônus muscular, também causando a queda
da pessoa se estiver de pé.
-Mioclônicas: nas quais há movimentos espasmódicos breves dos membros. (...) Elas
podem ocorrer isoladamente ou acompanhadas de outras formas de crises generalizadas.
-Ausências: Nas quais há uma breve interrupção da consciência sem outros sinais, exceto
palpitação das pálpebras. Elas ocorrem comumente em crianças e são também conhecidas
como petit mal
1
. (www.epilepsynse.org.uk).
Nas crises parciais, o comprometimento na atividade cerebral se inicia ou envolve uma
área específica do cérebro. A natureza dessas crises é geralmente determinada pela função
envolvida nessa região. Crises parciais são às vezes conhecidas como focais. Há
basicamente três tipos de crises parciais:
Na crise parcial simples, a consciência não é prejudicada e a crise limita-se aos
movimentos rítmicos de um membro, parte de um membro ou a gostos e sensações
incomuns tais como alfinetes ou agulhas em uma parte distinta do corpo. Crises parciais
simples algumas vezes se desenvolvem em outros tipos de crises e são freqüentemente
referidas como um “aviso” ou “aura”. As Crises parciais complexas diferem das crises
parciais no fato de que a consciência é afetada. As crises podem ser caracterizadas por
uma alteração na consciência, tais como movimentos “semi-intencionados” tais como
remexer com roupas ou objetos próximos, devanear, perambular e confusão generalizada.
As crises parciais complexas geralmente envolvem os lobos temporais do cérebro, todavia,
elas podem também afetar os lobos frontal e parietal.
Em algumas pessoas, qualquer uma dessas crises pode difundir-se e envolver a totalidade
do cérebro. (www.epilepsynse.org.uk).
1
informações do site traduzidas pela autora.
Os informes médicos esclarecem que as crises são perigosas quando duram mais de
trinta minutos sem que a pessoa recupere a consciência, podendo causar prejuízo às funções
cerebrais.
A etiologia da epilepsia nem sempre é plenamente identificada. Todavia, algumas
causas dessa síndrome já foram especificadas. A primeira delas são as lesões cerebrais, que
podem ocorrer durante o parto ou ao longo do desenvolvimento posterior, por exemplo em
vista de um acidente de automóvel. Tumores, comprometimento neurológico e doenças
como a encefalite, meningite ou sarampo, assim como fatores genéticos também justificam
o aparecimento da epilepsia.
Além das crises, a epilepsia pode estar acompanhada de déficits de aprendizagem.
Estes podem ocorrer quando a epilepsia está associada à uma disfunção cerebral, quando
crises freqüentes e prolongadas acabam por causar prejuízo cerebral ou em função do uso
de medicamentos que podem causar fadiga, sonolência e diminuição da atenção.
A epilepsia não deve ser considerada como uma causa direta de retardo mental,
podendo eventualmente estar associada a ele. Do ponto de vista intelectual, pessoas com
epilepsia podem apresentar níveis de inteligência bastante diversos.
O diagnóstico da epilepsia é feito com base no histórico clínico do paciente e das
crises, além de uma série de exames e investigações que fornecem informações adicionais.
Estes incluem exames de sangue, tomografia, ressonância magnética e o
eletroencefalograma (EEG). Um EEG com resultado negativo não exclui a possibilidade de
um diagnóstico de epilepsia. Algumas vezes um EEG monitorado com gravação das crises
em vídeo (vídeo-EEG) é solicitado.
Segundo a Liga Brasileira de Epilepsia, a incidência dessa síndrome em países
desenvolvidos é de 1%, subindo para 2% em nações menos desenvolvidas.
Segundo Sander JWAS & Shorvon SD
2
, citados por Marchetti R.L. & Damasceno
B.P. (2000), a epilepsia é uma condição médica comum, com prevalência entre 0,4% e 1%.
2
Sander JWAS, Shorvon SD. Epidemiology of the epilepsies. J Neurol Neurosurg Psychiatry 1996; 61: 433-43.
Segundo Hauser WA & Annegers JF
3
, também citados por Marchetti R.L. & Damasceno
B.P. (2000) essa síndrome apresenta cronicidade e refratariedade ao tratamento em
aproximadamente um quarto dos casos. Marchetti R. L. e Damasceno B. P. consideram que
em muitos casos, o paciente e seus familiares sofrem um impacto das restrições e estigmas
sociais associados à epilepsia bem maior que as conseqüências diretas das crises
epilépticas. Além disso, segundo eles, "a epilepsia freqüentemente restringe as
oportunidades sociais, com redução da socialização, da educação, da profissionalização e da
possibilidade de ascensão social" (p.231).
Segundo a National Society for Epilepsy (NSE-UK), com relação ao tratamento
médico, a maior parte das epilepsias são controladas através do uso de medicamentos em
doses bem toleradas (80% dos casos). Em alguns casos, a tendência a crises decresce com
o tempo. Em outros casos, será necessário manter a medicação anti-epilética por anos,
mesmo se as crises tiverem cessado, já que a causa das crises persiste. Os casos restantes
são classificados como de difícil controle. Mesmo nesses pacientes, a melhor compreensão
da doença proporcionada por exames tais como o eletroencefalograma com eletrodos
especiais, a ressonância magnética e outros, permite muitas vezes um controle completo da
doença. Pacientes resistentes à medicação têm ainda a opção do tratamento cirúrgico, que
pode ser realizado em crianças, adolescentes e adultos.
O diagnóstico médico diferencial de crises epiléticas e pseudo-epiléticas (que são
tema deste estudo) é complexo. Ele é feito por meio da observação, do levantamento do
histórico médico-psicológico e social do paciente e do resultado dos exames. O
Eletroencefalograma mede a atividade elétrica da superfície do cérebro. Durante uma crise
epilética, padrões característicos do EEG são observados. Estas características não estão
presentes em uma crise pseudo-epilética. Buscando esclarecer o diagnóstico, o médico
pode utilizar a gravação em vídeo das crises, que é feita simultâneamente ao EEG (vídeo-
EEG).
3
Hauser WA, Annegers JF. Epidemiology of epilepsy. In: Laidlaw J. ed. A textbook of epilepsy. Edinburgh, Churchill
Livingstone, 1993, p-23-45.
Mesmo com esses recursos, o diagnóstico diferencial é problemático, em especial
porque muitas vezes as crises pseudo-epiléticas estão associadas às crises epiléticas
propriamente ditas. Nas crises pseudo-epiléticas a medicação anti-convulsiva não tem
efeitos. Nesses casos, em geral, a indicação médica é de tratamento psicoterápico.
3. REVISÃO DA LITERATURA
PANORAMA DA DISCUSSÃO ATUAL
As crises pseudo-epiléticas, também chamadas crises não-epiléticas (CNEP),
constituem um quadro clínico que apresenta problemas diagnósticos e terapêuticos
importantes. Autores de diferentes centros especializados investigam a etiologia e
alternativas de tratamento para esse sintoma fronteiriço entre o campo médico e o
psicológico.
Consideradas eventos comuns e nada recentes na literatura, ainda hoje as dificuldades
de diagnóstico e tratamento fazem com que muitos casos sejam mal interpretados e
submetidos a uma sobrecarga considerável de passagens hospitalares e procedimentos
iatrogênicos. Nesse sentido, a devida compreensão e tratamento dos eventos pseudo-
epiléticos ainda é considerado carencial.
Grupos de pesquisadores de centros médicos referendados procuram classificar e
sistematizar o diagnóstico das crises, especificando sinais clínicos, dados da história que
aumentam a suspeita de CNEP e a etiologia desses eventos (causas fisiogênicas, quadros
psiquiáticos, abuso, traumas, fatores psicológicos e dificuldades emocionais, transtornos de
personalidade, etc.).
As pesquisas destacam o impacto psicossocial dessa condição (também presente em
parte dos pacientes portadores de epilepsias graves) e as dificuldades profissionais e
ocupacionais desses pacientes. Assinalam-se também as dificuldades com relação à
realização, comunicação e aceitação do diagnóstico pelo paciente e familiares e a
importância nesses casos de um diagnóstico e tratamento precoces, capazes de evitar
maiores prejuizos médicos e psíquicos.
Segue o levantamento do ponto de vista de alguns autores contemporâneos sobre a
questão.
Segundo De Paola (2002), diretor científico e chefe do serviço de
eletroencefalografia do Hospital das Clínicas da Universidade do Paraná, as descrições de
crises não-epiléticas são quase tão antigas quanto as descrições da epilepsia propriamente
dita. Hipócrates (400aC) teria distinguido a epilepsia de outros episódios ditos "crises
semelhantes à epilepsia". No século XIX, Gowers e Charcot descreveram de forma
sistematizada aspectos semiológicos úteis no diagnóstico diferencial entre crises epiléticas
e crises chamadas "histéricas ou histeróides".
Para De Paola (2002, p.201), o que motivou o interesse desses pesquisadores (que
trabalhavam apenas com base em suas observações clínicas) foi a grande prevalência desse
tipo de crise. Mesmo assim, o autor considera que
a despeito de séculos de história e vastas populações acometidas, o reconhecimento das
CNEP é carencial. O subdiagnóstico conduz à falsa impressão de epilepsia e, por
extensão, ao uso inapropriado de fármacos antiepilépticos, além dos estigmas tipicamente
associados aos portadores de epilepsia. Ocasionalmente crises não-epiléticas recorrentes
podem ser erroneamente interpretadas como epilepsia clinicamente refratária, engrossando
as fileiras de incapacitação profissional e a conseqüente busca judicial de benefícios, além
de instigar algum grau de isolamento social.
De Paola faz um apanhado da literatura recente sobre o tema, discutindo problemas
conceituais, tentativas atuais de classificação, aspectos relacionados ao diagnóstico
diferencial e métodos utilizados, coexistência de crises epiléticas e não-epiléticas, cirurgia
de epilepsia, presença de abuso sexual, tratamento e prognóstico.
Definindo as crises não-epiléticas como "eventos paroxísticos que se assemelham a
crises epiléticas, porém sem a concorrência de alterações eletroencefalográficas de caráter
epileptiforme" (p.201), esse autor também discute qual seria a denominação mais adequada
para esses eventos. Considera os termos histeria e histeroepilepsia utilizados nas escolas de
Gowers e Charcot "claramente inapropriados". Termos mais atuais tais como pseudo-crises e
eventos pseudo-epiléticos "tendem a ser abandonados em função da conotação de falsidade do
primeiro (...) e pela exagerada abrangência do último" (p.201). Decide que a terminologia
crises não-epiléticas é a mais apropriada.
De Paola destaca o trabalho de Gates JR e Erdahl P. (1993) formulado no início da
década de 1990 e formalizado em publicação em 1993. O referido trabalho desenvolve um
sistema classificatório, dividindo as crises não-epiléticas em fisiológicas e psicogênicas,
conforme uma causa orgânica definida esteja ou não associada à sua ocorrência. Nele
formula-se uma das primeiras tentativas de classificação dessas manifestações, tentando
adaptá-la à terminologia do DSM-III (posteriormente também ao DSM-IV). Os diagnósticos
principais considerados em função de sua prevalência são: transtornos com sintomas
psicóticos, transtornos de ansiedade, transtornos dissociativos, transtornos somatoformes,
simulação e transtornos factícios.
De Paola discute alguns desses diagnósticos das CNEP. Considera que as desordens
somatoformes (inclui-se nesse grupo as desordens conversivas) constituem o grupo mais
abrangente de etiologias das CNEP. O tempo de latência entre o fator desencadeante e o
surgimento das CNEP pode ser de vários anos. Entre as causas mais comuns estão história
de abuso sexual e perdas afetivas significativas. Observam-se ainda desordens de
somatização, desordens somatoformes indiferenciadas e distúrbio somatoforme não
especificado.
Mesmo com todos os avanços, segundo De Paola (2002, p.204) o diagnóstico
adequado "pode ser desafiador e frustrante". Além disso "tanto o diagnóstico de crises
epiléticas quanto o de crises não-epiléticas é potencialmente gerador de estigmas. Segundo
ele, "ainda mais comprometedor é o diagnóstico falso-positivo, em qualquer dos cenários".
Apesar de apresentar limitações, a monitorização contínua com
videoeletroencefalograma é apontada como "padrão-ouro no diagnóstico de CNEP",
permitindo uma oportunidade única de observação de crises em ambiente protegido e sob
supervisão e cuidado de pessoal especializado. Segundo De Paola (2002, p.206), "o vídeo-
EEG constitui o mais indicado método de avaliação de crises, epiléticas ou não,
assegurando um diagnóstico relativamente simples e seguro na maioria dos casos".
Segundo Gates JR e Erdahl P (1993), citados por De Paola, a associação de crises
epiléticas e não-epiléticas pode ocorrer em 10% a 58% dos pacientes encaminhados aos
centros de atendimento à epilepsia. As estatísticas possibilitam a De Paola avaliar que as
CNEP "fazem parte de um cenário psiquiátrico abrangente, tendo como substrato desordens
dissociativas e somatoformes, quadros psicóticos, simulações e desordens factícias, entre
outras possíveis etiologias". Afirma entretanto que a classificação do quadro psiquiátrico de
fundo não define em boa parte dos casos a natureza dos verdadeiros agentes psicológicos
causadores do problema. Segundo ele, "traumas de variadas etiologias podem conduzir a
CNEP, devendo ser aqui incluídos o abuso físico e o sexual".
O autor cita estudos recentes que apresentam números impressionantes, afirmando
que entre 30 e 50% dos pacientes portadores de CNEP tem uma história sugestiva ou
consistente de abuso sexual.
Frente ao grande número de pesquisas afirmativas de que pacientes portadores de
CNEP têm essa etiologia, De Paola considera que nem sempre pode-se afirmar essa relação
causal. Considera também que a necessidade de um pesquisador experiente e de vários
números de sessões torna essa pesquisa complexa. Mesmo assim, acredita que a
identificação desses casos é fundamental no estabelecimento de seu prognóstico, uma vez
que historicamente esse grupo não evolui bem e a intervenção psiquiátrica dirigida ao
problema pode ser decisiva.
De Paola discute ainda a questão das CNEP e a cirurgia de epilepsia. Com base em
pesquisas recentes, assinala as contra-indicações cirúrgicas de pacientes com CNEP,
quadros psiquiátricos e "dinâmica familiar disfuncional". Aponta também os riscos do
surgimento de quadro de CNEP após tratamento cirúrgico. De Paola sugere cautela com as
expectativas de pacientes que se submetem à cirurgia de epilepsia (entre elas o desejo de
trabalhar, conduzir veículos, independência, socialiação e cessação do uso de drogas
antiepiléticas), alertando para o fato de que o insucesso nessas metas pode levar ao
aparecimento ou recrudescimento das CNEP.
Marchetti R L e Damasceno B P (2000) discutem aspectos psicopatológicos e
questões comportamentais em pacientes com epilepsia. Os autores consideram que as
crises pseudo-epiléticas psicogênicas são relevantes no contexto da população portadora de
epilepsia. Segundo estudos citados, as crises pseudo-epilépticas psicogênicas tem uma
prevalência estimada em 5% na população atendida em ambulatórios de epilepsia e uma
prevalência de 20% nos centros de epilepsia de difícil controle.
Segundo Marchetti e Damasceno, crises pseudo-epiléticas podem ser confundidas
com epilepsias devido à sua semelhança fenomenológica, mas de fato não decorrem de
descargas cerebrais anormais, como se pode comprovar por meio do diagnóstico diferencial
do vídeo- EEG (o paciente tem suas crises gravadas em vídeo, mas o EEG concomitante não
registra descargas). Os autores consideram ainda que o fato de uma parcela significativa dos
pacientes portadores de crises epiléticas psicogênicas apresentar também crises epiléticas,
torna o diagnóstico mais difícil. Segundo eles, a prevalência da epilepsia em pacientes com
crises pseudo-epiléticas psicogênicas varia de 32,8% a 50%.
Marchetti e Damasceno também citam o trabalho de Gates JR e Erdahl P. (1993),
sustentando que vários transtornos psiquiátricos podem apresentar-se sob a forma de crises
pseudo-epiléticas. Consideram que os "transtornos dissociativos / conversivos e
somatoformes ocorrem em até 87,5% dos casos. Afirmam também que a prevalência de
transtornos depressivos em pacientes portadores de crises pseudo-epiléticas psicogênicas
também é alta e consideram que o diagnóstico diferencial precoce das crises pseudo-
epiléticas psicogênicas diminui o seu impacto psicossocial e melhora o prognóstico.
Marchetti e Damasceno propõem a identificação dos transtornos mentais subjacentes
às crises pseudo-epiléticas e a administração dos psicofármacos correspondentes
(retomarei essas indicações no próximo capítulo dedicado à revisão da literatura acerca do
tratamento das CNEP).
Marchetti e Damasceno (2000,p.234) sistematizam "dados de história [dos pacientes]
que aumentam o índice de suspeita de crises pseudo-epiléticas psicogênicas". Incluem nesse
levantamento dados biográficos, história de crises (alta freqüência das crises, ausência de
resposta às drogas anti-epilépticas, ausência de incontinência ou mordedura de língua,
atendimentos de emergência ou internações repetidas sem achados definidos, etc.),
antecedentes familiares (presença de transtorno psiquiátrico, presença de família
disfuncional, etc.), antecedentes pessoais (presença de abuso sexual na infância, presença de
transtornos psiquiátricos, presença de tentativas de suicídio, etc.), presença de exame
neurológico e subsidiários normais e exame psiquiátrico com "gatilho emocional específico
e próximo", presença de transtornos psiquiátricos em especial transtornos do humor ou
ansiosos, etc.
Os autores sistematizam ainda "sinais clínicos sugestivos de crises pseudo-
epilépticas psicogências" tais como atividade motora descoordenada, posturas distônicas,
não envolvimento da face em crise generalizada, ausência de sinais neurológicos anormais
durante a crise, gatilho emocional óbvio, etc.
Apontando a alta prevalência de transtornos mentais em crianças e adultos portadores
de epilepsia, os autores identificam os quadros depressivos como um dos mais freqüentes.
Além dos transtornos depressivos, mencionam o risco de suicídio, presença de
agressividade, transtornos de personalidade e ocorrência de psicose.
Com base em seu trabalho na Universidade de Michigan (University of Michigan
Medical Center) Kalogjera-Sackellares (1995) relaciona as manifestações pseudo-
epiléticas a diferentes distúrbios psicológicos (psychological disturbances), classificando
duas categorias etiológicas para essa sintomatologia: Pseudocrises de etiologia traumática
(Post-Traumatic Pseudoseizure Syndrome) e Pseudocrises relacionadas ao comprometimento
do desenvolvimento (Developmental Pseudoseizures Syndrome).
Na categoria chamada de pós-traumática, a autora considera que as pseudocrises
surgem em resposta à experiências traumáticas recentes (acidente de carro por exemplo) ou
passadas (abuso sexual na infância).
A autora faz uma analogia entre pacientes com pseudocrises e pacientes pós-
traumáticos em geral, formulando os dados de suas observações clínicas à luz de trabalhos
apresentados na Associação Psicanalítica em São Francisco (1970) sobre a chamada PTSD
(Post-Traumatic Stress Disorder) observada em estudos de pacientes veteranos da Guerra
do Vietnã e com vítimas do Holocausto. Ambas as populações foram tratadas com
psicoterapia individual de base psicanalítica.
Focalizando a questão das síndromes pós-traumáticas em pacientes com pseudo-
crises, Kalogjera-Sackellares acredita que existe, especialmente em pacientes do sexo
feminino, um histórico significativo de abuso sexual (vítimas de incesto). A autora também
se refere a diversas pesquisas que relacionam os sintomas pseudo-epiléticos ao abuso
sexual, identificando nessas pacientes dificuldades típicas tais como depressão, ansiedade,
pesadelos, inibição da expressão sexual e medo da aproximação afetiva. Observa também
uma evitação do contato social, que pode levar a manifestações de confusão e de episódios
de pseudo-crises frente a situações de maior intimidade. Identifica ainda agressividade e
irritabilidade, afastamento de atividades que sejam produtivas ou prazeirosas, flashbacks do
trauma e as mesmas desordens dissociativas da personalidade (dissociative personality
disorder) presentes na PTSD.
Como complicador desse difícil diagnóstico e tratamento, afirma que nesses
pacientes não se observa necessariamente uma relação direta entre as crises e o trauma. O
paciente pode não se recordar do trauma, não estabelecer nenhuma relação com sua
importância nem relacionar o trauma e seus sintomas, podendo ainda recordar-se do trauma,
mas não do afeto associado a ele.
Kalogjera-Sackellares (1995) chama a atenção nesses casos para o que chama de
estado de inconsistência cognitiva ou dissonância (state of cognitive inconsistency or
dissonance). Ela se refere aos sentimentos contraditórios presentes em pacientes vítimas de
incesto com relação à pessoa causadora do trauma quando ele é uma pessoa com quem o
paciente teve um relacionamento significativo e, em especial, se a pessoa fez com que o
paciente se sentisse importante ou especial. Situação similar estaria presente, segundo a
autora, em pacientes que sobreviveram a acidentes de carro, especialmente se o acidente
ocorreu sem nenhuma culpa deles. A situação emocional que envolve o paciente é geradora
de intensa agressividade. Nessas circunstâncias a agressividade pode ser deslocada sobre os
profissionais. O desenvolvimento de crises psicogênicas, assim como a presença de
pesadelos e de terror noturno pode também ser uma defesa contra a própria agressividade
(defesa dissociativa).
Além dos estados de inconsistência cognitiva, Kalogjera-Sackellares identifica
aspectos da patologia do modelo parental que predispõem ao desenvolvimento de crises
psicogênicas: pais que não foram capazes de validar a percepção da realidade e os
sentimentos da criança e ou pais inadequados (incapazes de lidar com os próprios
sentimentos ou com os sentimentos da criança).
Identifica ainda que freqüentemente pacientes com pseudo-crises são filhos de pais
alcóolatras e violentos. Nesse caso, segundo a autora, a criança experimenta grande medo de
aproximar-se da própria experiência emocional, que é sentida como um retorno ao caos da
história familiar.
Segundo Kalogjera-Sackellares, esses pacientes apresentam dificuldades em
reconhecer e expressar os próprios sentimentos, tornando-se suscetíveis à somatização ou
às desordens dissociativas.
A autora discute ainda casos de pacientes com o que chama de "trajetória de vida
cronicamente traumática". São pacientes com histórias de vida marcadas pela pobreza,
dificuldades e circunstâncias financeiras precárias, que demandam constante luta pela
sobrevivência. As histórias freqüentemente incluem vários casamentos, muitas vezes com
parceiros também comprometidos. Muitas vezes esses pacientes não receberam apoio
adequado em sua família de origem, podendo também ser pais ou mães solteiros.
O diagnóstico das crises desses pacientes pode demorar, pois eles apresentam
diversos tipos de ataques e estados de ansiedade. Seriam em geral mulheres que nunca
aprenderam a lidar com os próprios sentimentos nem elaboraram o impacto dos eventos
adversos em suas vidas.
Segundo a autora, outro grupo de pacientes desenvolve pseudocrises em função do
que ela qualifica como "déficits no desenvolvimento psicossocial e funcionamento
interpessoal". O caso típico seria do paciente com epilepsia crônica, muitas vezes desde a
infância, cujas crises acabam sendo controladas. Após uma prolongada dependência dos
pais, eles apresentam dificuldades de relacionamento e de estabelecer-se
profissionalmente.
4. REVISÃO DA LITERATURA:
TRATAMENTO DAS CRISES NÃO-EPILÉTICAS
A revisão da literatura acerca do tratamento de pacientes com CNEP mostra que com
os avanços alcançados no diagnóstico diferencial das crises a partir do advento do video-
EEG, o tratamento das CNEP deixou de ser um tema negligenciado. Mesmo assim, ele
permanece controverso e problemático.
Diversos tipos de tratamento são propostos delimitando um panorama eclético:
psicoterapia de base psicanalítica, psicoterapia cognitiva, terapia medicamentosa,
aconselhamento, relaxamento, atendimento familiar, além de métodos considerados pouco
consistentes no campo da psicologia tais como a hipnose, sugestão, etc. De fato, a
diversidade de tratamentos parece variar conforme variam os profissionais inseridos nas
equipes de saúde dedicados ao problema.
Mesmo sendo uma indicação-padrão nos centros especializados, a eficácia da
intervenção psicoterápica é controversa. As dificuldades e o comprometimento de muitos
desses pacientes faz com que sua aderência ao tratamento seja difícil e o prognóstico
muitas vezes reservado.
Mesmo diante dessa controvérsia e de resultados modestos para as expectativas das
equipes médicas, discute-se qual seria a abordagem psicoterápica mais indicada nesses
casos. Nessa discussão também não há consenso e pesquisas procuram estabelecer a
eficácia das diversas intervenções e sua padronização.
Conforme citado, depressão, perdas, transtornos de personalidade e diversas
desordens são considerados fatores relevantes na etiologia das CNEP. Traumas e abusos
também são considerados fatores etiológicos freqüentes. Muitos autores consideram que
sendo as CNEP uma condição heterogênea, com diversas etiologias, o tratamento deve ser
individualizado e dirigido para a patologia específica identificada. Nesse sentido, não há um
tratamento único que predomine e cada caso deve ser analisado isoladamente. Curiosamente
alguns autores propõem a combinação de diferentes abordagens para um mesmo paciente
(medicamentos, terapias cognitivas, comportamentais, psicodinâmicas e terapias familiares
além da hipnose).
Discute-se também como avaliar e definir a eficácia da psicoterapia ao longo do
tempo. Quais seriam esses critérios? A diminuição das queixas principais? A diminuição das
crises? Como complicador dessa discussão os autores apontam o fato de que nas pesquisas,
muitas vezes a administração de determinada abordagem psicoterápica ou alguma forma de
tratamento não está diretamente relacionada à melhora dos pacientes. Freqüentemente as
características e os recursos do próprio paciente e da constelação familiar, além do tempo
de comprometimento são elementos mais significativos na determinação de sua melhora.
Para a grande maioria dos autores, as CNEP são uma condição tratável, exigindo para
isso uma abordagem e uma equipe multidisciplinar. O feed-back fornecido pela equipe
multiprofissional ou neurologista responsável, com a apresentação da gravação em vídeo ao
paciente e seus familiares é uma estratégia adotada e considerada padrão em vários centros.
Há certo consenso sobre a necessidade e a utilidade desse esclarecimento, havendo autores
que questionam a utilidade de investimentos psicoterápicos considerados longos e caros.
Segue uma resenha da discussão recente formulada por alguns autores referendados
por meio da qual se ilustra a diversidade de abordagens propostas.
Segundo De Paola (2002, p.209), autor já apresentado no capítulo anterior, o
tratamento das CNEP é complexo já que "portadores de CNEP apresentam elevados índices
de desordens psiquiátricas, em geral associadas a traumas de diferentes etiologias, podendo
as crises constituírem simplesmente uma forma de expressão de abusos de ordens variadas".
Em vista do comprometimento desses pacientes, De Paola sugere cuidado na
apresentação do diagnóstico das CNEP ao paciente e aos familiares. Prefere que o
diagnóstico seja dado em ambiente ambulatorial ou hospitalar no sentido de facilitar o
controle da reação do paciente. Alerta ainda para o fato de que muitos desses pacientes
serão resistentes ao diagnóstico de CNEP.
Para o acompanhamento desses casos, sugere a importância de uma equipe que inclui
diversos profissionais (epileptologista, psicólogo, assistente social, enfermagem
especializada e psiquiatra). Nos pacientes com história de CNEP, com duração superior a
um ano e com apresentação de múltiplos tipos de crises, sugere-se a participação de
psicólogos até mesmo antes da apresentação do diagnóstico ao paciente e aos familiares.
Em casos mais comprometidos, recomenda postergar a alta hospitalar, fazendo uma
observação pós-diagnóstica (especialmente em pacientes com ideação suicida ou que
aceitam o diagnóstico de forma muito "fácil") e manutenção de acompanhamento
ambulatorial com retornos precoces.
Com relação às possibillidades de melhora, De Paola cita a experiência do Minnesota
Epilepsy Group (grupo de referência na área dirigido por John R. Gates, autor responsável
por publicações na área e pelos avanços nos esforços de classificação dos eventos não-
epiléticos). Nela estima-se que entre 25 e 87% dos pacientes com CNEP apresentaram
cessação ou melhora significativa das CNEP. Avalia-se que quanto menor o tempo de
evolução das CNEP, melhor o prognóstico. Contudo, pacientes mais comprometidos do
ponto de vista psicopatológico, bem como portadores de dependências químicas tendem a
apresentar prognósticos mais reservados. Entre os pacientes que apresentam melhora,
destacam-se os que aceitaram de forma salutar e consciente o diagnóstico de CNEP. O
suporte de amigos aparece como fator facilitador da melhora, assim como pacientes com
questões legais pendentes sustentam pouca chance de melhora.
Independente dos prognósticos, De Paola propõe que esses pacientes devem receber
um atendimento multiprofissional sistematizado, associado ou em contato direto com o
centro de epilepsia responsável pelo diagnóstico. Além disso considera que o avanço no
conhecimento da psicopatologia envolvida na origem e na sustentação de uma significativa
parcela das CNEP possibilitará o desenvolvimento de novas estratégias de tratamento e a
melhora no cuidado e na expectativa de remisão de crises desses pacientes.
Segundo Marchetti e Damasceno (2000, p.233), "o tratamento [psiquiátrico] deve ser
dirigido para o transtorno mental específico que se apresenta como crises pseudo-
epilépticas psicogênicas". Sugerem que o tratamento deve ser acompanhado do
fornecimento cuidadoso da informação sobre o diagnóstico e o estabelecimento de uma
"relação terapêutica baseada na confiança". Segundo eles, o uso de psicofármacos pode ser
proposto de acordo com o transtorno psiquiátrico de base e o tratamento farmacológico de
transtornos depressivos que se apresentam em comorbidade pode ser eficaz na redução das
crises pseudo-epiléticas psicogênicas.
Os autores discutem os princípios básicos do tratamento psicofarmacológico
afirmando que eles devem ser semelhantes aos que se aplicam aos pacientes com epilepsia.
Discutem a utilização do lítio, antipsicóticos e antidepressivos, apontando três problemas
que se acrescentam na terapêutica desses casos: "adesão, interferência no limiar
epileptogênico (LE) e interações farmacológicas" (p.237-238).
Com relação à prevenção dos transtornos mentais asssociados à epilepsia, os autores
sugerem programas educativos públicos, considerando-os agentes importantes na "redução
do impacto psicossocial associado à epilepsia". Do ponto de vista individual, apontam três
eixos básicos da prevenção psicológica: "aporte de informação, intervenções psicoterápicas
básicas (auxílio na elaboração e aceitação da doença, combate ao estigma, combate ao medo
e restrição e combate à baixa auto-estima, à desesperança) e indicação de atendimento
psicológico especializado nos casos mais complexos" (p.237).
Kalogjera-Sackellares (1995) recomenda nesses casos a psicoterapia psicodinâmica.
A autora acredita que o tratamento desses pacientes deve ser regido pelos mesmos
princípios de outras intervenções psicoterápicas: a escolha do método e da técnica deve ser
determinada em função da estrutura de ego do paciente e o nível de desenvolvimento de suas
relações objetais. Isso significa determinar se o paciente está organizado em um nível
neurótico ou em nível mais primitivo de desenvolvimento (borderline, narcisista). Com base
nessa avaliação, a opção seria por intervenções que enfatizam a interpretação ou
intervenções suportivas e educativas.
Segundo a autora, o processo terapêutico deve abordar vários pontos fundamentais.
Em primeiro lugar, a "reconceitualização da natureza das pseudocrises". Isso significa buscar
esclarecer o fato de que o paciente não é apenas a vítima de uma condição bizarra, as
pseudocrises são reveladoras de dificuldades emocionais e de enfrentamento da realidade.
Ainda que seja esperado e possível obter-se alívio dos sintomas, a autora considera
que não se pode garanti-lo por meio do tratamento psicológico (que depende da aceitação
pelo paciente de suas questões emocionais e resistências). Recomenda ainda que não se
deve negligenciar no trabalho terapêutico a complexidade dos aspectos pós-traumáticos.
Segundo Kalogjera-Sackellares, pacientes com mecanismos dissociativos e de
recusa tendem a evitar a experiência emocional pela qual temem ser inundados. Sentem que
assim como não podem controlar suas crises, não tem controle sobre seus sentimentos e
sanidade. Nessa situação o terapeuta deve ter uma função apaziguadora, esclarecendo aos
pacientes o fato de que a retomada de sentimentos é um processo gradual e que eles devem
faze-lo de uma forma que lhes seja tolerável.
A autora recomenda que o terapeuta deve também lidar com os episódios ab-reativos
que surgem nas sessões dos quais as pseudocrises podem fazer parte. Após o episódio, o
terapeuta deve abordar os sentimentos do paciente, mas evitar dramatizar esses eventos, pois
isso reforçaria o foco do trabalho nas crises e não no paciente.
A validação da percepção da realidade e da possibilidade de expressão e
reconhecimento emocional é, segundo a autora, o objetivo fundamental da experiência
psicoterápica com pacientes com síndromes pós-traumáticas. A autora propõe tabalhar no
sentido de que o paciente possa fortalecer a confiança na própria percepção, especialmente
nos pacientes que tem crises desde a infancia e vivenciam além das alterações da
consciência próprias da epilepsia, o impacto do comprometimento familiar.
No tratamento de vítimas de abuso sexual, a autora propõe que o trabalho deve
abordar os conflitos relacionados à situação traumática e ao passado. Trata-se de lidar com a
ambivalência entre perdoar o agressor ou manter-se persistentemente ligado à vivência
traumática.
Segundo a autora, nos casos de abuso sexual na infância, o trabalho deve focalizar as
questões que cercam as relações com a figura agressora, além das questões ligadas à
privação e à inadequação materna.
Em casos de pacientes que desenvolvem pseudocrises em função de lesão causada
por acidente de carro, Kalogjera assinala a importância de se trabalhar com a ansiedade, os
medos de desintegração e a perda do senso de integridade do self do paciente. Segundo ela,
deve-se lidar com o receio de que a terapia venha a despertar sentimentos que coloquem em
questão o senso de si mesmo. Na sessão, é recomendável lidar com a desorganização
interna do paciente, além do movimento de repetição, pois ela pode ter uma finalidade de
elaboração e adaptação, mas também de resistencia.
Segundo a autora, o conflito central em pacientes com uma "história de vida
cronicamente traumática" é a crença de que a vida só vale a pena se houver stress. Nesse
sentido, a identidade fica baseada na habilidade em lidar com os problemas de outras
pessoas. Se não há sofrimento com o qual lidar é como sentir-se inútil ou não merecedor de
afeto e respeito.
No caso de pacientes com disfunções sexuais (libido reduzida, hipo-sexualidade e
disfunções eréteis são freqüentes nessa população), a autora sugere trabalhar no sentido de
que o paciente sinta-se livre para discutir temas nessa área. Deve -se buscar saber se o
paciente sente prazer e dá sentido ao exercício de sua sexualidade. Em pacientes com lesão
pós-traumática (vítimas de abuso ou acidente), recomenda-se especialmente a abordagem
desses temas, pois os problemas sexuais podem causar baixa auto-estima, depressão e stress
conjugal.
Ho, Ransby, Farrell, Connolly e Thornton (2000), pesquisadores do British Columbia
Children's Hospital discutem a avaliação e o tratamento psicológico de crianças e
adolescentes com CNEP.
Considerando a diversidade de tratamentos oferecidos a esses pacientes nos diversos
centros, os autores mostram-se preocupados com a necessidade de se estabelecer maior
objetividade nesse campo. Nesse sentido, sugerem a importância de uma melhor avaliação
da eficácia dos programas de tratamento (baseada em sistemas objetivos de avaliação, por
exemplo por meio de testes projetivos) e de se estabelecer intervenções com protocolos
padronizados que permitam a replicação desses programas.
Admitem que a objetividade nessa área é problemática, já que a medição desses
resultados por meio de critérios comportamentais quantificáveis, tais como o alívio do
sintoma, pode não ser o melhor indicativo de saúde psicológica ao longo do tempo.
Sugerem ainda a necessidade de se pesquisar mais precisamente o papel de variáveis tais
como a situação familiar no desenvolvimento e no prognóstico das crises.
Os autores descrevem o programa de tratamento e avaliação desenvolvido em sua
instituição. Com base no estudo de 50 adolescentes e crianças com CNEP e / ou outras
desordens conversivas, atendidos entre 1993 e 1995, os autores formulam um modelo de
avaliação dos "ganhos obtidos nas áreas afetivas, comportamentais e cognitivas".
Consideram que sua abordagem é "holística e eclética", utilizando-se tanto da teoria
sistêmica no trabalho com famílias (Bertalanffy) quanto de formulações psicanalíticas na
compreensão das questões psicológicas envolvidas nas CNEP. Com base na leitura
psicanalítica do sintoma procuram ajudar a criança a ampliar sua compreensão acerca das
dimensões psicológicas de seus sintomas. Utilizam-se também da abordagem cognitiva
comportamental por meio da qual procuram ensinar às crianças um "vocabulário para
expressão emocional", entre outras coisas.
Dos 46 pacientes analisados (4 foram excluídos da pesquisa), 23 apresentavam
apenas CNEP, 19 apresentavam CNEP e comprometimento orgânico e 4 tinham uma base
orgânica para seu sintoma, mas apresentavam comprometimento psicológico. Todos esses
pacientes utilizaram diferentes modalidades de tratamento oferecidos que incluíram:
"educação familiar e da criança acerca das conexões entre mente e corpo", relaxamento,
"treino para mudanças emocionais", "treino para manejo de desordens de stress pós-
traumático", "treino para mudanças cognitivas", etc. O tempo de intervenção variou de 7 dias
até 1 ano.
Avaliando as mudanças após o tratamento, os autores consideram que em todos os
casos a gravidade dos sintomas foi reduzida. Todos os pacientes ficaram livres de suas
queixas mais importantes e houve uma melhora nos aspectos afetivos e cognitivos.
Com base nesses resultados, os autores acreditam que uma intervenção de abordagem
psicodinâmica associada à um tratamento psicológico (psychological treatment)
"multimodal" podem ser benéficos para pacientes com crises não-epiléticas e pacientes com
outros tipos de sintomas psicogênicos.
Partindo de sua experiência no British Columbia Children's Hospital, os autores
concluem que as CNEP são uma síndrome complexa e o diagnóstico diferencial é um
desafio para os clínicos. Por essa razão, a investigação médica e psicológica deve acontecer
simultaneamente. Consideram que a intervenção psicológica pode ser percebida como
invasiva e ameaçadora, especialmente em pacientes e famílias que tem pouca compreensão
de questões emocionais. Nesse sentido, segundo eles, técnicas projetivas podem ser úteis
na avaliação do funcionamento psicológico ao mesmo tempo que minimizam os
sentimentos de ansiedade e as resistências. Afirmam que as abordagens comportamentais e
cognitivas são essenciais no sentido de oferecer modelos para a mudança em qualquer etapa
do processo. Elas podem ajudar a reduzir a ansiedade dos pacientes e das famílias acerca
dos serviços psicológicos, demonstrando que a terapia pode envolver o ensino de
habilidades, tais como o relaxamento, que pode também melhorar o controle da criança
sobre seus sintomas e sobre as experiências estressantes. Sugerem que deve-se oferecer
apoio psicológico às famílias e investigar, além da experiência emocional interna da
criança, seu funcionamento escolar e com seus pares. Finalmente propõem que o grupo de
profissionais deve funcionar como um modelo, tanto para a criança como para a família, de
um sistema onde existe comunicação, apoio e respeito com relação aos outros.
Ramani (1993), Professor de Neurologia do Albany Medical College de New York,
faz uma revisão das estratégias psiquiátricas de tratamento das crises não-epiléticas. O autor
considera que à despeito do aperfeiçoamento das estratégias diagnósticas dos últimos 10
anos, especialmente com o advento da monitoragem, a compreensão psicopatológica e o
manejo dessa desordem permanecem nebulosos.
Segundo o autor, a história das estratégias de tratamento das CNEP começa com Jean
Martin Charcot e William Gowers, "os dois gigantes da neurologia contemporânea". Charcot
se destaca com a descoberta da sugestão e a utilização da hipnose. O autor assinala nesse
percurso as formulações freudianas posteriores do inconsciente e a abordagem do sintoma
histérico como conversivo, lembrando a forma como as concepções freudianas
modificaram as técnicas clássicas de tratamento da histeria, colocando em cena as terapias
psicanalíticas.
Apesar da falta de informação acerca do tratamento das CNEP na literatura médica,
segundo Ramani (1993), inicialmente os neurologistas as tratavam com recursos tais como
a persuasão, sugestão e a empatia. Segundo ele, a descrença na Psicanálise gradativamente
se foi e surgiram várias escolas psicoterápicas.
Com relação ao diagnóstico psiquiátrico das CNEP, segundo Ramani (1993), elas
foram classificadas como reações conversivas histéricas no DSM-I e como neuroses
histéricas de conversão no DSM-II. Com base na experiência do Programa de compreensão
da epilepsia do Minnesota Epilepsy Group, acredita-se que as CNEP podem ocorrer em todos
os tipos de personalidade. No DSM-III, o termo histeria foi eliminado e o termo desordem
somatoforme e desordem de somatização foram introduzidos. Ao invés da terminologia
conversiva, o autor sugere pensar as CNEP como uma resposta comportamental única para
uma grande variedade de estresses emocionais. Elas constituem um "comportamento mal-
adaptado crônico", sintomático de diversas desordens psiquiátricas. Nesse sentido, para ele,
a tarefa da psicoterapia envolve a identificação das condições de vida responsáveis pelo
desenvolvimento e manutenção do comportamento mal adaptado e a implementação de um
"programa de ação corretiva".
O autor observa a necessidade de uma maior padronização do sistema de
classificação psiquiátrica das CNEP, da qual depende em sua opinião o diagnóstico e o
tratamento das CNEP.
Em artigo posterior, Ramani (2000) retoma a história das estratégias de tratamento
das CNEP, lembrando que os neuropsiquiatras do início do secúlo XIX já conheciam bem o
problema clínico das falsas crises. Segundo ele, a histeroepilepsia (terminologia cunhada por
Charcot) foi objeto de muito interesse para neurologistas ao longo da segunda metade de
1800. O termo pseudocrise (pseudoseizure) foi introduzido por Forster e Liske em 1964.
Charcot utilizou compressões ovarianas no tratamento da histeria e Gowers prescreveu
formulações com ferro (iron tonic) para tratar de uma suposta anemia subliminar.
Segundo o autor, a era moderna no estudo das crises não-epiléticas começou na
metade dos anos 70, com o advento das técnicas de monitoragem eletrofisiológica nos
centros de tratamento da epilepsia. O video-EEG é considerado o "padrão de ouro" no
diagnóstico das crises não-epiléticas, especialmente nos casos em que as crises não-
epiléticas coexistem com a epilepsia genuína. Em vista das ambiguidades diagnósticas e do
pessimismo entre os profissionais de saúde mental acerca dos resultados terapêuticos com
desordens somatoformes, o autor afirma que a psiquiatria até hoje ignora um tratamento
sistemático para esses pacientes.
Mesmo diante desse quadro, Ramani (2000) se mostra otimista com relação às
possibilidades de tratamento das CNEP. Baseado em duas décadas de experiência, considera
que há hoje um consenso entre os epileptologistas de que as crises não-epiléticas são uma
condição tratável, exigindo para isso uma abordagem e uma equipe multidisciplinar. Mesmo
assim, o autor lembra que várias questões persistem: os critérios para o sucesso do
tratamento não foram estabelecidos e as diferentes técnicas de tratamento não foram
padronizadas.
O autor mostra-se pouco entusiasmado com as perspectivas psicoterápicas de
tratamento desses casos. Considera que um estudo que acompanha esses casos ao longo do
tempo mostra que as crises não-epiléticas podem melhorar após o esclarecimento
diagnóstico, mesmo sem a psicoterapia formal. Esse fato levantaria, segundo ele, dúvidas
sobre a utilidade de um tratamento psicoterápico longo.
Ramani (2000) considera animadoras as avaliações atuais dos déficits
psicopatológicos e neuropsicológicos em pacientes com crises não-epiléticas, acreditando
que os avanços nessas áreas venham a fornecer uma base racional para a identificação de
sub-grupos clínicos entre os pacientes com CNEP, com base nas quais estratégias
específicas de tratamento podem ser desenvolvidas.
Ramani (2000) aponta a necessidade da confirmação diagnóstica com video-EEG
antes do tratamento. Acredita que depressões, síndrome do pânico e desordens de
personalidade estão envolvidas na etiologia das CNEP. Histórico de traumas emocionais e
sexuais também é freqüente e torna os pacientes vulneráveis às desordens conversivas e
dissociativas. Contraditoriamente, o autor considera que esses pontos devem ser tratados
por meio de psicoterapia. Afirma entretanto que sendo as CNEP uma condição heterogênea,
com diversas etiologias, o tratamento deve ser individualizado combinando medicamentos,
terapias cognitivas e comportamentais, psicodinâmica e terapias familiares, além da
hipnose.
Em pesquisa realizada no Departamento de Neurologia do Barrow Neurologic
Institute (St. Joseph's Hospital and Medical Center), Prigatano, George, P.; Stonnington,
Cynthia M.; Fisher, Robert, S. (2002) discutem o papel de fatores psicológicos na origem
das CNEP e procuram identificar se a intervenção psicoterápica reduz a freqüência de
crises.
O grupo ofereceu um programa de psicoterapia de grupo por 6 meses (24 encontros)
para 15 pacientes diagnosticados com CNEP. Os encontros eram de uma hora e meia por
semana. O grupo trabalhou temas acerca da epilepsia e das CNEP, estimulando também a
discussão de sentimentos relativos ao passado ou presente considerados relevantes na
emergência das crises. Nove pacientes (60%) completaram 58% das sessões oferecidas.
Desses, 6 pacientes (66%) relataram declínio na feqüência das crises. Dois relataram
ausência de mudanças e 1 deles (11%) relatou um aumento. O número de crises relatado
durante as 12 primeiras sessões foi comparado com o número de crises relatado nas últimas
12 sessões.
Segundo os autores, fenômenos dissociativos e comprometimento psiquiátrico
significativo são freqüentes e podem ser a causa ou complicadores das CNEP. Consideram
também que no grupo de pacientes estudado, as raízes psicológicas das CNEP estão em
experiências de abuso. Esse fato contribui para as dificuldades que esses pacientes
apresentam quando da comunicação do diagnóstico de crises não-epiléticas pela equipe
médica, já que o diagnóstico de falsas crises causa a sensação de não serem acreditados.
Alguns desses indivíduos parecem beneficiar-se da psicoterapia de grupo proposta,
enquanto outros não. Segundo os autores, considerando-se o isolamento típico desses
pacientes, para alguns deles, a experiência psicoterápica em grupo pode se útil no sentido de
mostrar-lhes que não estão sozinhos com seus problemas.
Afirmam finalmente que pacientes com CNEP devem ser encaminhados para
atendimento psiquiátrico que deve incluir o trabalho psicoterápico na investigação dos
fatores psicológicos envolvidos nas CNEP. Recomendam entretanto que, muitas vezes em
vista de seu comprometimento, esses indivíduos só podem tolerar o encontro do grupo se
receberem simultaneamente uma psicoterapia individual.
Assim, à despeito dos custos do tratamento psiquiátrico e das dificuldades desse
grupo de pacientes, os autores acreditam que eles necessitam do atendimento para que
possam ser tratados adequadamente e para que a freqüência de suas crises possa diminuir.
Recomendam ainda que sejam feitos estudos para comparar os custos de se fornecer esse
tratamento e os custos de não fornecê-lo.
Goldstein, Laura H; Deale, Alicia, C; Mitchell-O'Malley, S. J.; Toone, B K; Mphil;
Mellers, J D C (2004), do Departamento de Psicologia do Instituto de Psiquiatria do King's
College Hospital-London, realizaram estudo piloto com o objetivo de verificar a eficácia da
terapia comportamental cognitiva no tratamento de adultos com crises dissociativas
(pseudoseizures). Os autores afirmam não haver estudos anteriores que avaliem os efeitos
da abordagem cognitiva no tratamento desses pacientes.
Foram oferecidas 12 sessões de terapia cognitiva comportamental para 20 pacientes
diagnosticados com crises dissociativas. Os principais indicadores da melhora foram a
diminuição da freqüência de crises e a melhora do funcionamento psico-social, status
ocupacional e humor. As avaliações foram feitas antes e depois do tratamento. Realizou-se
também acompanhamento após 6 meses.
Os resultados obtidos com 16 dos 20 pacientes (4 abandonaram o tratamento) por
meio de questionários, indicaram uma significativa redução na freqüência de crises e uma
melhora na avaliação pessoal do funcionamento psico-social. Os autores afirmam que a
melhora manteve-se nos 6 meses posteriores e concluem que a terapia cognitiva
comportamental é eficaz na redução das crises e na melhora de pacientes com crises
dissociativas.
Rusch, Mark, D.; Morris, George L.; Allen, Linda, R N; BSN; Lathrop, LeeAnn
(2001), do Epilepsy Monitoring Program - Medical College of Wisconsin, Milwaukee
também relacionam as CNEP à uma psicopatologia significativa. Os autores estudaram 33
adultos (25 mulheres) diagnosticados com CNEP após diagnóstico com video-EEG. Após
discussão com o paciente e seus familiares sobre o diagnóstico, a equipe sugeriu o
tratamento psicológico.
Apenas 26 desses pacientes completaram o tratamento. Entre os pacientes não-
aderentes, alguns deles não aceitaram o diagnóstico e buscaram tratamento em outro
hospital. Em outra situação, o paciente interrompeu o tratamento após deparar-se com a
relação entre suas crises e sua história de abuso sexual na infância. Outro deles acabou
sendo diagnosticado com transtornos factícios, sendo internado em outro hospital com um
edema auto-infligido.
Dos 26 pacientes que concluiram o tratamento, 21 ficaram livres de crises e 5
demonstraram uma redução significativa das crises. No acompanhamento após 6 meses, 3
dos 21 pacientes que haviam ficado livres de crises relataram crises recorrentes. Mesmo
estes responderam bem a um re-envolvimento na terapia por duas ou três sessões. No
follow-up dos pacientes que diminuiram a freqüência mas continuaram a ter crises, todos
relataram contínua redução das crises.
Assim como outros pesquisadores, os autores também concluem que a intervenção
psicológica com pacientes com CNEP tem de dar conta de uma população heterogênea.
Segundo eles, os múltiplos fatores envolvidos nas CNEP implicam na necessidade de uma
abordagem flexível e, muitas vezes, inicialmente do tipo tentativa e erro. Para eles, as
características de uma intervenção eficaz deve incluir: uma abordagem suportiva, apoio à
família e re-interpretação dos sintomas somáticos.
Aboukasm, Amer; Mahr, Gregory; Gahry, Barbara Rader; Thomas, Andrea; Barkley,
Gregory L. (1998), do Departament of Neurology and Psychiatry, Henry Ford Hospital,
Detroit e Epilepsy Center of Michigan, USA, avaliaram os resultados do aconselhamento de
100 pacientes com CNEP, diagnosticados entre 1992-1996 por meio de video-EEG.
Segundo os autores, a prevalência das CNEP na população dos ambulatórios de
epilepsia é de 20%. Consideram que a abordagem de tratamento mais eficaz para esses
casos não está estabelecida. Segundo eles, a psicoterapia é uma recomendação padrão, mas
sua eficácia é incerta e protocolos e estratégias psicoterápicas para esses pacientes também
ainda não foram estabelecidas. Apoiando a discussão, citam estudo (Walczak et al) que
afirma que a psicoterapia não trouxe benefícios a esses pacientes.
Os autores utilizaram em sua pesquisa um procedimento padrão para informar ao
paciente o diagnóstico das CNEP. Nele o paciente revê o videotape de suas crises com o
clínico e, em seguida, apresenta-se a ele o diagnóstico das CNEP de uma forma suportiva e
não pejorativa.
Dos 100 pacientes, 61 deles completaram o estudo, sendo que 90% deles eram
mulheres. Segundo os autores, 68% dos pacientes que receberam cinco ou mais sessões de
aconselhamento (counseling), que incluíam a apresentaçào do vídeo-EEG por um dos
terapeutas do grupo tiveram redução ou eliminação de suas crises e 73% dos pacientes que
receberam o feedback do neurologista responsável tiveram uma melhora favorável similar.
Pacientes que receberam aconselhamento dado por um profissional que não era ligado ao
hospital (portanto sem a apresentação do vídeo-EEG) tiveram redução ou eliminação dos
episódios mais modesta (48%). Pacientes que não receberam o aconselhamento e o
feedback não tiveram melhora.
Os autores concluem que o feedback suportivo fornecido pelos profissionais com
experiência em epilepsia contribui para a melhora desses pacientes (sendo mais eficaz que a
ausência de atendimento ou que o aconselhamento feito por outros profissionais).
4.1. DISCUSSÃO: O VIÉS DA PSICANÁLISE
Na revisão da literatura, destacam-se os esforços da pesquisa psiquiátrica no sentido
de refinar e especificar um sistema classificatório das crises, procurando adaptar essa
terminologia aos DSMs (III, IV, etc.). Mesmo assim, para alguns autores, o diagnóstico
desses fenômenos permanece "desafiador e frustrante".
Mesmo os esforços da Psiquiatria para classificar as crises revela que as crises não-
epiléticas compõem um panorama marcado por uma grande diversidade de etiologias,
manifestações e pacientes.
Procurando maior entendimento da terminologia psiquiátrica atual, vale lembrar,
conforme indica Matos, E. G. et al (2005), Professor-assistente-doutor do Departamento de
Psicologia Médica e Psiquiatria da UNICAMP, que a partir dos anos 80, com a publicação
do DSM-III e com os avanços da indústria farmacêutica, a classificação psiquiátrica foi
amplamente modificada. O termo neurose foi substitído por transtorno e a palavra histeria
desapareceu dos manuais. O autor destaca três grandes modificações que aparecem no
DSM-IV, quais sejam:
a) as características da personalidade histérica são separadas e descritas no capítulo dos
transtornos de personalidade; b) a antiga neurose histérica é subdividida em
transtornos dissociativos e transtornos somatoformes; c) a histeria traumática (neurose
traumática) passa a ser denominada de transtorno do estresse pós-traumático (...). (p.4)
No trabalho dos autores de orientação psicanalítica levantados, chama a atenção a
mistura de terapias propostas: diversas abordagens (psicanalítica, comportamental,
farmacológica) e modalidades (grupo, individual, aconselhamento, psicoterapia, etc.) às
vezes em um mesmo caso. Nota-se ao mesmo tempo uma certa mistura de conceitos
psicanalíticos com noções advindas de outras abordagens, além da ênfase em uma
abordagem terapêutica e medicalizante da Psicanálise.
Apesar de haver uma ênfase na indicação psicoterápica desses casos e o debate sobre
qual seria a abordagem mais indicada, identifica-se nesse panorama o questionamento de sua
eficácia e sobretudo a expectativa de métodos mais “racionais” para intervir sobre essa
problemática.
Diante do panorama corrente nesse campo, o pensamento de autores comprometidos
com o questionamento dos paradigmas da Psiquiatria atual e com o resgate dos princípios
fundamentais da Psicanálise possibilita organizar um contraponto nessa discussão.
Discutindo as relações entre a Psicanálise e a Psiquiatria desde Freud (controvérsias
e convergências), Quinet (2001) questiona os métodos diagnósticos (em geral) da
Psiquiatria atual.
O autor constata que apesar do referencial psicanalítico ter sido utilizado na
elaboração da nosologia psiquiátrica ao longo de trinta anos, "com a crescente biologização
da psiquiatria", a Psicanálise vem sendo rejeitada nesse campo em prol do uso dos
psicotrópicos e dos modelos explicativos do DSM-IV.
Afirma que caso a Psiquiatria adote completamente as Neurociências, fazendo o
diagnóstico conforme seus manuais e adotando o raciocínio no qual para cada transtorno
corresponde um remédio, o psiquiatra corre o risco de sair de cena e dar lugar ao
"neurobiologista, ao neurocientista e ao neuropsicólogo comportamental, com sua
psicometria pseudocientificista" (p.8).
O autor sugere que a psiquiatria atual deveria conservar em sua prática a orientação
psicanalítica de acolhimento da fala do sujeito, considerando noções tais como a de
causalidade psíquica, sujeito do inconsciente e o critério da transferêncïa, além de outros
fundamentos da clínica psicanalítica (a responsabilização do sujeito promovida pela
Psicanálise, a união do sujeito de direito ao sujeito do desejo e ao sujeito da história, etc.).
Acredita também que ao invés de excluir os ensinamentos da Psicanálise, a
Psiquiatria deveria incorporá-los uma vez que enquanto ela descreve os fenômenos, a
Psicanálise "dá a razão de sua estrutura" e "explica as manifestações transferenciais que
ocorrem no contato com o psiquiatra".
Além disso, assinala que a prática psiquiátrica não deveria deixar de estar atenta às
manifestações do inconsciente, ao desejo e aos sintomas em geral como manifestações
subjetivas, "que não se reduzem a um efeito orgânico, e muito menos a um déficit" (p.10).
Birman (2001) também questiona os paradigmas da Psiquiatria atual, lembrando que
até os anos 1950/60, a Psicanálise foi o ponto de referência fundamental da Psiquiatria
(p.21).
Identifica entretanto que a descoberta da clorpromazina (em torno de 1950) fez com
que a psicofarmacologia (como discurso teórico e experimental) oferecesse à psiquiatria
"tanto um fundamento biológico quanto um instrumento terapêutico dotado de alguma
eficácia operatória. Se ela não era capaz de realizar a cura efetiva das ditas perturbações do
espírito, poderia ao menos controlar as produções sintomáticas dessas perturbações" (p.22).
Segundo Birman, iniciada no campo das psicoses, a ofensiva teórica e clínica da
psicofarmacologia com o surgimento dos ansiolíticos e dos antidepressivos estenderam sua
ação para outros campos. Com isso, "a psicofarmacologia se tornou o suporte da prática
psiquiátrica, conferindo-lhe uma identidade teórica e epistemológica bastante afastada da
Psicanálise". Assim, nos anos 1980/90, "a psiquiatria biológica, fundada nas neurociências,
se constituiria de maneira triunfante" (p.22).
O autor argumenta no sentido de mostrar as conseqüências não apenas científicas,
mas também éticas e políticas dos novos paradigmas da psiquiatria, na medida em que ela se
transformou em um "canteiro de obras da indústria farmacêutica", passando a ser monitorada
pelos "interesses dos laboratórios internacionais" que "doravante definem as regras do jogo
através do financiamento direto de suas pesquisas" (p.22).
O autor (2001, p.23) afirma que "na atual cartografia psiquiátrica, a idéia de uma
etiologia das perturbações do espírito é deixada em segundo plano", pois a psiquiatria "segue
as pegadas da medicina somática", estabelecendo um modo de pensar a enfermidde psíquica
com base em uma psicopatologia centrada em seus medicamentos: ou seja, "a ação dos
medicamentos configura as formas de ser das perturbações mentais". Nesse sentido, a
enfermidade psíquica deixa de ser o "produto de uma história".
A argumentação de Birman aponta que, nesse contexto, encaradas como
procedimento secundário no dispositivo de cuidados, "as psicoterapias tendem a
desaparecer na prática psiquiátrica" (p.23). Daí o risco do que ele chama de um processo de
"despossessão"(p.24): tendo a moderna psiquiatria biológica eliminado completamente a
presença da experiência subjetiva do doente no acontecimento da enfermidade, para ela, o
sujeito é "mero suporte"(p.24) de algo "que dele se apossa" (p.24), advindo de uma disfunção
produzida em seu organismo.
O autor considera como não casual o fato de que haja uma presença significativa das
medicinas alternativas, dos discursos orientalistas e da homeopatia na assistência médica na
atualidade. Segundo ele, ela seria uma "resposta às demandas dos enfermos de serem
escutados e reconhecidos em seu sofrimento" (p.25).
Considerando a tendência observada de que o saber sobre a enfermidade se faça
presente apenas no discurso da medicina, Birman propõe o resgate dos princípios
fundamentais da psicanálise, ou seja, o reconhecimento, tal como feito com as primeiras
histéricas freudianas, de que há um saber no sujeito sobre o sintoma e sobre o que lhe
acontece.
Tratarse-ia de resgatar nesse campo o que há na experiência psicanalítica de
essencial: o oferecimento de um espaço de escuta no qual o saber de um sujeito singular
sobre si mesmo e sobre seu sofrimento é restaurado e elaborado.
Roudinesco & Plon (1998) analisam as peculiariedades da "implantação do
freudismo" (p.195) nos Estados Unidos - país que teria salvado a Psicanálise do nazismo,
dada a quantidade de analistas europeus que para lá emigraram ao longo do período entre as
duas guerras, criticando seu excessivo cientificismo.
Em solo americano desenvolveram-se fortes correntes inspiradas em Freud (a Ego
Psychology, psicoterapias inspiradas a partir da doutrina freudiana tais como a Gestalt-
terapia, a Análise Transacional, além da corrente da Escola de Chicago e a Medicina
Psicossomática) e encontraram-se grandes dissidentes europeus do movimento
psicanalítico tais como Reich, Erich Fromm, etc.
Os autores discutem a especificidade da versão americana do freudismo. Segundo
eles
Sempre muito práticos, os americanos procuraram "medir" a energia sexual, provar com
estatísticas a eficácia dos tratamentos freudianos e fazer pesquisas sociológicas para saber
se os conceitos freudianos eram aplicáveis empiricamente aos problemas psíquicos dos
indivíduos. Nessas condições, a psicanálise tendia a tornar-se, no continente americano, o
instrumento de uma formidável adaptação do homem à sociedade. (p.197)
Em oposição à maneira como se implantou a Psicanálise na França, os autores observam
certo prejuízo, em solo americano, do aspecto subversivo da Psicanálise e o predomínio de
uma visão terapêutica. Segundo eles
Nos Estados Unidos, foi antes uma visão terapêutica da Psicanálise que invadiu o campo
da cultura e da medicina, atribuindo menos importancia a seu sistema de pensamento do
que a seu poder de cura. A Psicanálise se impôs, assim, como um novo ideal de felicidade,
capaz de dar solução à moral sexual da sociedade democrática e liberal: o homem não
estava condenado ao inferno de suas neuroses e de suas paixões. Pelo contrário, podia
curar-se delas. (p.197)
Roudinesco & Plon (1998, p.198) criticam o "processo de medicalização do pensamento
freudiano" nos EUA, especialmente representado pela Ego Psychology, "corrente que melhor
representou o ideal de adaptação próprio ao pragmatismo americano".
Consideram (1998, p.200) que há no freudismo americano uma "extrema fragilidade" em
virtude de sua "dependência em relação a um saber psiquiátrico de natureza empírica" e em
razão de seu "ideal adaptativo". Segundo eles, ao contrário do que se passou na França e na
Grã-Bretanha, com o kleinismo e o lacanismo, os Estados Unidos "nunca produziram, no
domínio da psicanálise, um sistema de pensamento capaz de opor suas regras, seus critérios
e seus métodos aos argumentos cientificistas das correntes organicistas da psicologia e da
psiquiatria biológica".
Por tudo isso, Roudinesco & Plon (1998, p.201) consideram que há um
"desaparecimento silencioso da Psicanálise" nos EUA, país que acolheu os freudianos
europeus, mas onde o freudismo esta marcado por um "excesso de jurisdicismo e da
psiquiatrização dos fenômenos mentais". Além disso, consideram que esse modelo caminha
ao lado do "desenvolvimento de um novo organicismo", que "tende a derivar todos os
comportamentos mentais de um substrato genético ou biológico" aliado a um "cientificismo
farmacológico".
Retornando a reflexão acerca das situações clínicas em foco neste trabalho, seria um
grande equívoco que o profissional psi inserido nesse contexto se deixasse contaminar pelo
espírito positivista e pela racionalidade médica, esquecendo seu papel de ser o profissional
que deve sobretudo humanizar esse campo e promover a escuta da subjetividade desses
pacientes.
5. DA MEDICINA À PSICANÁLISE
A Psicanálise surgiu no ambiente positivi sta que dominava o mundo científico do
final do século XIX. Conforme dito, a gradativa ruptura e o esforço de Freud no sentido de
iniciar uma nova investigação, afastando-se do campo da Medicina e das explicações
anátomopatológicas marca de maneira profunda a gestação da Psicanálise e sua
singularidade como campo de conhecimento.
Em minha Dissertação de Mestrado, assinalei momentos cruciais da obra freudiana
que sinalizam o afastamento de Freud do discurso da Medicina, em direção ao campo
propriamente psicanalítico. Por meio de momentos de rupturas teóricas não lineares, Freud
fundamenta o inconsciente como objeto de estudo, estabelecendo as leis que regulam esse
lugar psíquico.
Segundo Monzani (1989) a grande contribuição científica de Freud foi a publicação
da Interpretação dos sonhos. Com a publicação desse texto, opera-se uma "verdadeira ruptura
epistemológica" (p.60) na obra freudiana. A partir dela, a Psicanálise se articula como teoria
e prática originais, possibilitando a Freud finalmente romper com o campo da Neurologia.
Nas palavras de Monzani, com a articulação da Interpretação do sonhos, Freud finalmente se
desembaraça do "demônio fisicalista" (p.60), rompendo com o campo da Neurologia e
articulando, então, a Psicanálise como teoria e prática originais.
A partir da Interpretação dos sonhos, o trabalho da decodificação do sentido coloca-se
no âmago da teoria psicanalítica. Freud romperá finalmente com a racionalidade médica que
busca localizar lesões e elementos hereditários na etiologia da histeria, fazendo uma
interpretação radical dos sintomas histéricos e subvertendo o espaço epistemológico em
que ela se situava.
Antes desse momento princeps, textos anteriores (do início da obra freudiana) já
indicavam a ruptura de Freud com a racionalidade médica. Nesse sentido, é clássico citar a
progressiva superação das hipótese do Projeto para uma psicologia científica (1895) e a
mudança teórica introduzida na carta 52 (incluída na correspondência com Fliess e publicada
no v.I das Obras Completas).
Conforme indiquei, vários textos iniciais demonstram o esforço de Freud em fazer
uma interpretação propriamente psicanalítica e radical dos sintomas da histeria,
diferenciando-a dos sintomas orgânicos por exemplo o texto sobre a afasia de 1891 (nos
primórdios da teoria freudiana), assim como no posterior Algumas considerações sobre um
estudo comparativo entre as paralisias motoras orgânicas e histéricas (1893).
Gabbi Jr. (1991) identifica certa fragilidade científica (neurológica) da argumentação
freudiana, sugerindo entretanto que a relevância desses trabalhos está na maneira como
ilustram a nova compreensão lançada por Freud sobre os referidos sintomas agora com base
na Psicologia e não mais na Anatomia.
Freud mostra, por exemplo, que as paralisias motoras orgânicas podem ser
explicadas com base nos fatos da anatomia, enquanto que a sintomatologia histérica não
encontra correspondência nas explicações anatômicas. Para Freud (1893 [1888-1893]), "a
histeria ignora a distribuição dos nervos" (CD-ROM). Por isso, a solução apresentada para o
problema de uma suposta lesão na causação da histeria está nas associações inconscientes,
nas cargas de afeto das idéias e na teoria do trauma.
Roudinesco e Plon (1998) sintetizam que em Freud a histeria é uma neurose
caracterizada por quadros clínicos variados. Sua originalidade, entretanto, reside no fato de
que "conflitos psíquicos inconscientes se exprimem de maneira teatral e sob a forma de
simbolizações, através de sintomas corporais paroxísticos (ataques ou convulsões de
aparência epiléptica) ou duradouros (paralisias, contraturas, cegueira), (p.337).
Os autores lembram que a análise freudiana dos casos de Anna O. e Dora, com a
correspondente elucidação dos mecanismos histéricos, fizeram com que a própria noção de
histeria desaparecesse do campo da clínica, sendo que, a partir de 1914, ninguém mais
ousou falar de histeria, "a tal ponto a palava foi identificada com a própria psicanálise"
(p.341).
Segundo eles, depois da Segunda Guerra Mundial, o termo histeria de conversão
recuperou um vigor particular, com o desenvolvimento dos trabalhos da medicina
psicossomática de inspiração psicanalítica.
Cem anos depois da fundação da Psicanálise, considera-se que a histeria com o
aspecto teatral dos tempos freudianos desapareceu. Mas ela parece resurgir em suas novas
formas, marcando presença nas clínicas psi com nomes tipo síndrome de pânico, transtornos
somatoformes, conversivos e outros rótulos psiquiátricos modernos.
5.1. HISTERIA E EPILEPSIA
Podemos considerar que a demanda de tratamento de pacientes com CNEP, dão
testemunho da necessidade, ainda hoje, de se fazer um diagnóstico diferencial cuidadoso
entre os sintomas da epilepsia e as manifestações histéricas, apresentando às equipes de
saúde desafios de diagnóstico e tratamento.
O tema não é novo. Como vimos, Hipócrates já havia indicado a necessidade de
distinguir-se as crises epiléticas de crises semelhantes à epilepsia. Bem mais tarde, Charcot
também descreveu aspectos semiológicos úteis do diagnóstico diferencial de crises
epiléticas e das chamadas crises histéricas.
Como se pode ler na obra de Freud, ele não ignorou o problema da histeria e do que
chamou de "histeroepilepsia".
No artigo Algumas observações gerais sobre ataques histéricos, Freud (1908) retoma a
questão dos ataques histéricos, já discutida na Comunicação Preliminar dos Estudos sobre a
histeria escrito com Breuer em 1893. Encomendado para um periódico, o artigo é bastante
esquemático. Entretanto, conforme indica a nota do editor, Freud retomará o tema vinte
anos mais tarde ao examinar os ataques epilépticos de Dostoievski.
Neste artigo curioso e pouco discutido da obra freudiana, Freud (1928 [1927] )
discorre sobre a personalidade de Dostoievski. Segundo o editor inglês, o ensaio divide-se
em duas partes. A primeira trata do caráter de Dostoievski em geral, de seu masoquismo,
seu sentimento de culpa, seus ataques epileptóides e sua dúplice atitude no complexo de
Édipo. A segunda parte discutirá a paixão de Dostoievski pelo jogo, relacionando-a a um
conto de Stefan Zweig.
Apesar de parecer um escrito "ocasional", segundo Strachey (1969, CD-ROM), o
referido ensaio apresenta vários pontos de interesse, sendo "o primeiro exame realizado por
Freud das crises histéricas desde seu primeiro artigo sobre o assunto, escrito vinte anos
antes" e um "reenunciado de suas últimas opiniões sobre o complexo de Édipo e o
sentimento de culpa", além de consolidar a oportunidade que ele teve de "expressar seus
pontos de vista sobre um escritor que considerava como um dos primeiros entre todos".
Nos termos deste trabalho, a curiosidade do referido artigo está na maneira como
Freud aborda a questão da epilepsia de Dostoievski. Bem à maneira freudiana, ele enfatiza os
aspectos psicológicos envolvidos nos sintomas do escritor, defendendo a idéia de que a
epilepsia de Dostoievski era um sintoma neurótico (ainda que grave) e classificando-a como
histeroepilepsia. Segundo Freud (1928 [1927])
Dostoievski considerava-se epiléptico e era considerado como tal por outras pessoas, por
causa de suas graves crises, acompanhadas por perda de consciência, convulsões
musculares e depressão subseqüente. Ora, é altamente provável que essa chamada
epilepsia constituisse apenas um sintoma de sua neurose e devesse, por conseguinte, ser
classificada como histeroepilepsia, ou seja, como histeria grave. (CD-ROM)
Freud procura relacionar os graves sintomas de Dostoievski ao seu inconsciente e à
sua vida mental:
As crises, tão selvagens em seu início, acompanhadas por mordidas de língua, incontinência
de urina, e evoluindo para o perigoso status epilepticus, com seu risco de graves
autodanos, podem, não obstante, ser reduzidas a rápidos períodos de absence, crises de
vertigem que passam logo, ou ser substituídas por curtos espaços de tempo durante os
quais o paciente faz algo que está fora de seu caráter, como se se achasse sob o controle
do inconsciente. Essas crises, embora via de regra determinadas de uma maneira que não
compreendemos, por causas puramente físicas, podem, entretanto, dever seu primeiro
aparecimento a alguma causa puramente mental (um susto, por exemplo), ou reagir sob
outros aspectos a excitações mentais. (CD-ROM)
Mais que isso, adotando a mesma abordagem proposta muitos anos antes nos textos
sobre a afasia e, posteriormente, as paralisias motoras, Freud, partindo da análise de
Dostoieski, procura fazer a distinção entre o que seria uma epilepsia de etiologia orgânica e
crises epiléticas como sintomas histéricos. Segundo ele:
É, portanto, inteiramente correto distinguir entre epilepsia orgânica e epilepsia afetiva. A
significação prática disso é a de que uma pessoa que sofre do primeiro tipo tem uma
moléstia do cérebro, ao passo que a que padece do segundo é neurótica. No primeiro
caso, sua vida mental está sujeita a uma perturbação estranha, oriunda de fora; no segundo,
o distúrbio é expressão de sua própria vida mental.
É curioso ler Freud diagnosticando as crises de Dostoieski como histéricas, já que na
literatura médica, esse escritor consta na galeria dos personagens famosos e ilustres (que
inclui ainda personalidades tais como Machado de Assis, Maomé e Joana D' Arc) portadores
de epilepsia, conforme se pode ler no trabalho de Yacubian (2000).
Poderíamos questionar a “fragilidade neurológica” dos argumentos de Freud ou a
competência médica de suas afirmações. De fato não foi seu conhecimento de
Neuroanatomia que lhe permitiu criar a Psicanálise. Sua grande contribuição se deu em
outra dimensão. Freud insistiu e construiu um novo raciocínio clínico para pensar as
manifestações do corpo na clínica: ele tratou de sistematizar e relacionar sintomas
corporais complexos ao inconsciente e à vida mental dos pacientes, construindo uma
ciência do inconsciente.
5.2. PSICANÁLISE E MEDICINA: ENCONTROS E DESENCONTROS
Na atualidade, as relações entre a Medicina e a Psicanálise, assim como entre seus
praticantes são repletas de nuances. O raciocínio cientificista da Medicina critica o grande
número de sessões e o tempo necessário além da ineficácia das "curas" psicanalíticas.
Por outro lado, observa-se hoje algum reconhecimento nas esferas médicas da
necessidade da presença do psicanalista nos serviços hospitalares e equipes de saúde. À ele
é delegada a ação sobre os aspectos emocionais ou sobre o campo do psíquico,
indiscutivelmente presente em várias situações de doença.
No vice-versa, alguns psicanalistas criticam os modelos, a ética e o cientificismo da
Medicina, atacando o imperialismo médico com discursos anti-médicos mais ou menos
rancorosos (chegando a considerar que o discurso e a prática da Psicanálise é incompatível
com o discurso e a prática médica). Outros conseguem inserir-se e dialogar nesse contexto,
muitas vezes fazendo parte de equipes hospitalares e ou recebendo em sua clínica
encaminhamentos médicos regulares.
Esses encontros (e desencontros) podem ser frutíferos e (ou) conflituosos, dependendo
do caráter dos profissionais, das instituições e das patologias envolvidas.
Lembremos a esse respeito a diversidade da lógica e das noções de cura, diagnóstico e
tratamento que fundamentam essas disciplinas.
Em oposição à idéia positiva que busca a obtenção de uma cura e um saber completo
acerca da realidade, a admissão da existência do inconsciente e o trabalho psicanalítico que
parte desse pressuposto apontam os limites do conhecimento racional humano. Como bem
coloca Chauí (1997),
A Psicanálise descobre (...) uma poderosa limitação às pretensões da consciência para
dominar e controlar a realidade e o conhecimento. Paradoxalmente, porém nos revelou a
capacidade fantástica da razão e do pensamento para ousar atravessar proibições e
repressões e buscar a verdade, mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela
imagem que os seres humanos têm de si mesmos. (p.169).
De fato, a descoberta da importância do inconsciente na vida mental alerta para a
impossibilidade de um conhecimento objetivo e completo da realidade. Ao invés de
oferecer a cura, a teoria freudiana questiona as certezas clássicas do sujeito do
conhecimento. Ela nos mostra que somos determinados pelo inconsciente, pelo que nos
escapa: seres errantes e faltantes.
A clínica psicanalítica tem uma abordagem absolutamente diversa daquela da clínica
médica. Ainda que consideremos que essas cisões radicais são indesejáveis, podemos dizer
de forma geral que enquanto a Medicina propõe uma abordagem objetiva da realidade, a
Psicanálise é a disciplina que focaliza o campo do subjetivo.
Discutindo as relações entre essas duas disciplinas, Priszkulnik, L. (2000) lembra que os
pressupostos que delimitam o domínio da clínica médica (positivista) e a psicanalítica
determinam duas configurações diferentes de atuação, com referenciais próprios e uma
maneira específica de se posicionar frente ao sintoma do paciente, o processo de
diagnóstico e o tratamento.
A autora lembra que a partir do século XIX, o discurso médico assumiu um tom
positivista, buscando ser uma clínica objetiva. Assim, a Medicina passou a associar o
sintoma à uma etiologia definida (substrato orgânico) e o processo diagnóstico passou a ser
feito por meio de exames cada vez mais sofisticados, não deixando lugar para a escuta da
subjetividade do paciente.
Priszkulnik, L. (2000) especifica a diferença entre a postura do médico e do psicanalista
frente aos sintomas do paciente: enquanto o médico faz uma escuta seletiva, realiza o exame
físico, solicita exames complementares, indica uma terapêutica, etc, o psicanalista pede ao
paciente que fale por meio da associação-livre e procura transformar o sintoma em uma
questão: sintoma que tem um sentido subjetivo.
Assinalando que as fortes marcas da configuração da clínica médica faz com que ela seja
freqüentemente considerada o paradigma da experiência clínica como forma de
conhecimento, a autora constata que o paradigma da clínica médica impera no campo da
saúde, sendo adotado por outros profissionais tais como psicólogos, fonoaudiólogos,
psicopedagogos, etc. Nota-se nesse sentido que a origem médica das expressões
diagnóstico, tratamento, etc. dificulta pensar uma proposta de clínica diferente daquela
estabelecida pela Medicina, como é o caso da Psicanálise. Segundo a autora,
esses profisisonais aceitam a nomenclatura das doenças (...), realizam os diagnósticos
utilizando provas organizadas a partir de pesquisas científicas (testes de inteligência, testes
de personalidade, testes de aptidões, etc.), buscam curar, ou eliminar, ou aliviar os
sintomas, recorrem a técnicas padronizadas de tratamento, ou trabalham no nível da
consciência. São médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos, que valorizam os
pressupostos que a ciência determina, ou seja, a objetividade, a quantificação, a
homogeneidade (...) e valorizam um trabalho baseado na consciência e na razão.(p.26)
Segundo ela, a análise dos pressupostos que configuram a clínica médica e a clínica
psicanalítica tem o objetivo de delimitar o domínio de cada uma (alcance e limitações) e o
trabalho que cada profissional pode desenvolver com seus pacientes. Ao mesmo tempo a
autora considera que "colocar uma [ciência] contra a outra não contribui para um possível
diálogo entre os profissionais e nem para um possível trabalho em equipe" (p.26) e conclui
citando as palavras de Freud (1926) à esse respeito:
em si toda ciência é unilateral. Tem de ser assim, visto que ela se restringe a assuntos,
pontos de vista e métodos específicos. É uma insensatez, na qual eu não tomaria parte,
lançar uma ciência contra a outra. Afinal de contas, a Física não diminui o valor da
Química; ela não pode ocupar seu lugar mas, por outro lado, não pode ser substiuída por
ela. A Psicanálise é, por certo, bem particularmente unilateral, por ser a ciência do
inconsciente mental. Não devemos, portanto, contestar às ciências médicas seu direito de
serem unilaterais. (CD-ROM)
Clavreul (1983) critica o discurso e o imperialismo médicos que exigem a "submissão
do doente" ao seu poder. Segundo ele, ao mesmo tempo que a medicina despossui o doente
de sua doença, de seu sofrimento, de sua posição subjetiva, "ela despossui, do mesmo modo,
o médico, chamado a calar seus sentimentos porque o discurso médico exige" (p.49).
Sem descartar a necessidade do conhecimento médico, Clavreul considera que a
Psicanálise não deve ser considerada como (...) um ramo da medicina. Segundo ele, "ela
seria, antes, seu avesso. Balizar esse passe, de um discurso a outro, é ao que se deve
empenhar aquele que quer seguir o louco no processo que ele abre contra a normalidade"
(p.28).
Clavreul (p.33) acredita que o ceticismo dos médicos em relação à Psicanálise cedeu,
"desde que se observa que a prática das curas psicanalíticas tem efeitos incontestáveis e
apreciáveis em termos médicos". Ele deve a esse fato a "arregimentação" de psicanalistas em
certos serviços hospitalares, considerando que esses profissionais são convidados a colocar
sua técnica "a serviço do projeto médico".
O autor problematiza esses convites da Medicina, assim como sua aceitação pelos
psicanalistas. Segundo ele trata-se de uma opção política, pois sua aceitação consiste apenas
em "colocar alguns fragmentos do saber psicanalítico a serviço da Ordem médica" (p.34).
Criticando a preocupação com a eficácia importada da Medicina, o autor considera que
nessa situação:
Pode-se pensar que a Psicanálise não tem nada melhor a fazer senão deslizar-se no
discurso dominante, esperando dobrá-lo ou pretendendo subvertê-lo. A medicina se torna,
então, o suporte ou o alvo da psicanálise. É, em suma, uma posição reformista, mais
preocupada com a eficácia, pelo menos imediata, que com o rigor. Mas podemos nos
perguntar quem, nesse jogo, será conquistado pelo outro, a medicina ou a psicanálise.
Parece que a evolução da psicanálise americana já forneceu a resposta. (p.34).
O autor se apoia na idéia freudo-lacaniana da impossibilidade de um saber total sobre a
realidade, lembrando que sempre haverão os limites do saber e do poder médico (assim
como do discurso psicanalítico). Propõe então que a Psicanálise não deve
pretender preencher com seu saber as ignorâncias da medicina, como se elas fossem
fortuitas. Pois não são ignorâncias, mas desconhecimentos, isto é, elas são sistemáticas e
estruturantes para a construção do discurso médico. São portanto, obstáculos
epistemológicos que marcam os limites do saber e do poder do médico, como marcam
alhures os limites do discurso psicanalítico. (p.34)
Clavreul distingue a postura médica que evita o erro daquela do psicanalista que, desde
os primeiros estudos de Freud (a histeria , os sonhos, os atos falhos, os lapsos, os chistes),
fazem do erro seu "fio condutor" (p.35). Segundo ele, "estamos bem longe da majestade do
discurso científico, que distingue o erro e a verdade, a imaginação e a realidade, a aparência
e a essência, o contingente e o necessário" (p.36). Nesse sentido, a posição e as referências
do psicanalista são distintas daquelas do médico que com seu discurso normativo busca
"recolocar em linha reta (...) o que a patologia constitui como aberração" (p.36).
Mesmo assim, segundo Clavreul (p.36), persistem confusões, mesmo no espírito dos
próprios psicanalistas, quando eles se colocam a serviço da “ordem médica”. O autor
destaca nesse sentido que a posição do analista é diversa daquela do médico que tem sua
prática atravessada por um “ discurso normativo” e pela “ sanção terapêutica”.
Problematizando os riscos do psicanalista que trabalha à convite da Medicina, Clavreul
(p.37) especifica que nesse contexto, o psicanalista deve ser o profissional que sabe que "o
corpo não deixa esquecer que ele é antes de mais nada o lugar do gozo" e que "o saber que o
corpo tem sobre os caminhos do gozo não é um saber menos imperativo que o do discurso
médico".
6. ABORDAGEM PSICANALÍTICA DA QUESTÃO
6.1. PARA ALÉM DA HIPÓTESE TRAUMÁTICA
Na revisão da literatura realizada, apesar de observar-se certo consenso acerca da
importância dos aspectos psíquicos envolvidos na causação das CNEP, chama a atenção a
recorrente menção à presença de histórico de abuso e à etiologia traumática dessas
manifestações. Podemos mesmo dizer que essa leitura (causalista e médica) ainda
predomina no campo.
A seguir, retomarei a obra freudiana com o intuito de elaborar mais um contraponto e
circunscrever qual seria o ponto de vista freudiano acerca de temas relevantes nesta
discussão tais como o trauma, a etiologia da neurose e a formação dos sintomas.
Influenciado por sua origem médica e positivista, Freud manifestou em muitos
momentos o desejo de encontrar a causa objetiva da neurose. As marcas de sua herança
positivista são observáveis ao longo de sua obra. Entretanto, como se sabe, a Psicanálise se
solidifica como campo de conhecimento singular na medida em que Freud se afasta dessas
marcas e constrói uma ciência do sentido.
Da mesma forma que para encontrar a significação dos sonhos Freud começa pelo sonho
infantil, podemos dizer que para o estudo da neurose e dos sintomas ele parte da neurose
traumática.
Entretanto, em Freud, a etiologia traumática das neuroses é uma hipótese inicial que vai
sendo transformada e superada ao longo de sua obra.
Com base na escuta da histeria, entre 1895 e 1897, Freud formula a teoria da sedução.
Ele apresenta essa primeira hipótese para a causa da neurose acreditando que suas pacientes
padeciam pois haviam de fato sido seduzidas. Naquele momento, Freud considerou que a
neurose teria como origem um abuso sexual real.
Apesar de seu entusiasmo inicial, Freud renunciará "progressivamente" à teoria da
sedução. Como assinalam Roudinesco & Plon (1998), Freud esbarrou numa realidade
irredutível:
Nem todos os pais eram violadores e, no entanto, as histéricas não estavam mentindo
quando se diziam vítimas de uma sedução. Era forçoso, portanto, formular uma hipótese
que pudesse dar conta dessas duas verdades contraditórias. Freud percebeu duas coisas:
ora as mulheres inventavam, sem mentir nem simular, cenas de sedução que não haviam
acontecido, ora, quando essas cenas haviam tido lugar, elas não explicavam a eclosão de
uma neurose. (p.697)
Na história da Psicanálise, a renúncia à teoria da sedução é classicamente assinalada na
carta escrita a Fliess em 21 de setembro de 1897. Nela Freud anuncia não acreditar mais em
sua "neurótica" (teoria das neuroses). Como sabemos, a superação dessas hipóteses iniciais
tem uma importância epistemológica na medida em que possibilita a Freud a apresentação
da realidade psíquica, da fantasia e do inconsciente como conceitos fundamentais. Freud
passou a considerar que as pacientes não sofriam de fatos realmente vividos, mas de
fantasias. Nesse sentido, a idéia da etiologia traumática pode ser considerada como pré-
psicanalítica.
Segundo Laplanche & Pontalis (1983):
É clássico caracterizar assim o início da Psicanálise (entre 1890 e 1897): no plano teórico,
a etiologia da neurose é referida a experiências traumáticas passadas, sendo a data destas
experiências recuada, num ritmo cada vez mais regressivo, à medida que as investigações
analíticas se aprofundam, da idade adulta para a infância; no plano técnico, a eficácia do
tratamento é procurada numa ab-reação e numa elaboração psíquica das experiências
traumáticas. É também clássico indicar que esta concepção passou progressivamente para
segundo plano. (p.680).
A idéia da origem traumática da neurose (enfatizada por diversas abordagens até hoje)
não surgiu com Freud, nem com Charcot. Segundo Roundinesco & Plon (1998), a neurose
traumática já teria sido definida em 1889 por Hermann Oppenheim que a descreveu como
"uma afecção orgânica consecutiva a um trauma real, provocando uma alteração física dos
centros nervosos, por sua vez acompanhada por sintomas psíquicos: depressão, hipocondria,
angústia, delírio, etc." (p.537).
Garcia-Roza (1988, p.34) observa que a teoria do trauma da neurose já estava bastante
presente no trabalho de Charcot. Segundo ele, o sistema nervoso seria dotado de certa
predisposição hereditária e em decorrência de um trauma psíquico, tornar-se suscetível à
sugestão. O trauma formaria um estado hipnótico permanente que poderia ser objetivado
corporalmente por uma paralisia, cegueira ou outro sintoma.
O impacto dessas formulações para a futura Psicanálise é significativo. Garcia-Roza
(1988, p.34) considera que "na medida em que o trauma em questão não é de ordem física,
ressurge a necessidade de o paciente narrar sua história pessoal para que o médico possa
localizar o momento traumático responsável pela histeria". Entretanto, Charcot não admitiu
que essas narrativas tivessem um componente sexual. Segundo Garcia-Roza "estava selado o
pacto entre a histeria e a sexualidade; pacto esse que foi recusado por Charcot e que se
transformou em ponto de partida e núcleo central da investigação freudiana".
Charcot teve um papel fundamental no estudo da histeria, retirando-a do campo da
simulação e avançando sobre as questões da etiologia das doenças chamadas nervosas - mas
manteve sua descoberta no campo da Medicina, não concebendo que ela tivesse uma origem
que não fosse orgânica.
Garcia-Roza (1988) retoma a pré-história da Psicanálise e lembra que a Psiquiatria do
século XIX queria se tornar uma ciência exata. Nessa medida ela valorizava a anatomia
patológica que possibilitava relacionar as lesões anatômicas a determinados sintomas. As
neuroses entretanto eram perturbações sem lesão nas quais a sintomatologia não
apresentava a regularidade desejada.
O autor lembra que a crença na eficácia da anatomia patológica foi compartilhada por
Charcot, que, além de neurologista, se tornou professor de anatomia e patologia da
Faculdade de Medicina de Paris.
Mesmo sem encontrar um correlato orgânico que explicasse as manifestações
histéricas, Charcot formula um "modelo fisiológico" de compreensão da histeria,
estabelecendo que ela não era fruto da simulação e incluindo-a no campo das "perturbações
fisiológicas do sistema nervoso" (p.32) ou como doença funcional.
Lembrando a influência de Breuer e do método catártico nas formulações de Freud,
Garcia-Roza considera que a teoria do trauma psíquico tem uma grande importância nos
escritos iniciais de Freud. Paradoxalmente ela impede a elaboração da teoria psicanalítica.
Segundo Mannoni (cit. por Garcia-Roza, p.34), enquanto persistir a teoria do trauma, a
sexualidade infantil e o Édipo não poderão fazer sua entrada em cena, posto que nela os
sintomas permanecem dependentes de um acontecimento traumático real que os produziu e
não das fantasias edipianas na criança.
O passo seguinte seria em Freud o abandono da hipnose, a descoberta da defesa, ou
mais especificamente, a teoria do recalque como "pedra angular" sobre a qual se sustenta
toda a estrutura da psicanálise.
Abandonando a hipnose, quando Freud solicita aos seus pacientes que procurem
lembrar-se do fato traumático que poderia estar relacionado aos sintomas, esbarrava com as
resistências dos pacientes. Essas idéias eram capazes de despertar emoções de vergonha, de
autocensura e de dor psíquica. Identificando as resistências e a censura por parte do ego do
paciente, Freud formulará conceitos tais como recalque e conversão (como mecanismo de
defesa da histeria). Finalmente, o objetivo da terapia se modifica. Ele não consiste mais em
produzir a ab-reação do afeto mas em "tornar conscientes as idéias patogênicas
possibilitando sua elaboração" (Garcia-Roza, p.38). Assim faz-se a passagem do método
catártico para o método psicanalítico.
Tendo inicialmente apostado, juntamente com Breuer (na Comunicação preliminar de
1893) que os histéricos sofriam "de reminiscências" e abandonado a posterior teoria da
sedução, Freud reconhecerá finalmente que o conflito inconsciente era a causa principal da
histeria e indicará o papel preponderante da fantasia na vida psíquica e na determinação do
sintoma.
Nos Estudos sobre a histeria de 1895, texto consagrado tanto por sua contribuição
teórica como pelos relatos de casos, já se identificam os grandes conceitos de uma nova
apreensão do inconsciente: recalcamento, defesa, resistência e conversão: conceito que
descreve como uma energia libidinal podia se expressar por meio de manifestações
somáticas, dotadas portanto de significação simbólica.
Como bem colocam Roudinesco & Plon (1998), Freud inspirou-se na doutrina
funcionalista de Jean Martin Charcot para formular sua versão da etiologia da histeria.
Segundo eles, com Freud,
A idéia de trauma foi então transposta do domínio físico e orgânico para o plano psíquico,
a fim de se abrir para uma nova concepção da neurose, inicialmente fundamentada na teoria
da sedução e, mais tarde, na do conflito defensivo. Assim, a neurose tornou-se uma
afecção puramente psíquica, fazendo caducar a idéia de simulação, tanto para os adeptos
do organicismo quanto para os partidários do funcionalismo ou da causalidade psíquica.
(p.537).
6.2. FREUD: A NOÇÃO DE TRAUMA
Laplanche & Pontalis (1983, p.680) discutem o significado da noção de trauma para
Freud. Segundo eles, quando a Psicanálise se constituiu, o traumatismo qualificava em
primeiro lugar "um acontecimento pessoal da história do indivíduo, datável e subjetivamente
importante pelos afetos penosos que pode desencadear". Os autores consideram que em
termos psicanalíticos, não se pode falar de acontecimentos traumáticos sem levar em conta
a suscetibilidade de cada indivíduo. Para que haja traumatismo em sentido restrito, isto é,
"não ab-reação da experiência que permanece no psiquismo como um corpo estranho",
devem estar presentes condições objetivas (condições psicológicas especiais em que se
encontra o indivíduo no momento do acontecimento, circunstâncias sociais que impedem
uma reação adequada, etc.). Segundo eles, em termos freudianos, o que confere a um
acontecimento um valor traumático seria a presença de um "conflito psíquico que impede o
indivíduo de integrar na sua personalidade consciente a experiência que lhe advém (defesa)".
Os autores lembram ainda que desde Breuer e Freud, o fator traumático pode ser devido à
uma série de acontecimentos, cada um dos quais por si só não agiria como traumatismo.
Para além de exemplos óbvios tais como acidentes, morte de pessoas queridas, etc.
atribuir um valor traumático a determinada cena ou situação pode ser algo duvidoso na
medida em que algumas vivências podem ser inócuas em dado momento e mais adiante
adquirir a dimensão de um traumatismo para determinados sujeitos. Ao mesmo tempo,
determinado estímulo ou vivência pode ser traumática pra uns e não para outros.
Laplanche & Pontalis (1983) destacam, desde os Estudos sobre a histeria de 1895, a
relevância do aspecto econômico na noção de traumatismo freudiana. Para Freud trata-se de
uma situação na qual
o afluxo de excitações é excessivo relativamente à tolerância do aparelho psíquico, quer se
trate de um só acontecimento muito violento (emoção forte) ou de uma acumulação de
excitações cada uma das quais, tomada isoladamente, seria tolerável; o princípio de
constância começa por ser posto em xeque, pois o aparelho não é capaz de descarregar a
excitação. (p.679)
Por isso "as consequências do traumatismo são a incapacidade do aparelho psíquico
para liquidar as excitações segundo o princípio de constância" (p.680).
Os autores assinalam em Freud a importância do caráter sexual do trauma. Essa tese
se afirma no decorrer dos anos de 1895-97, quando o traumatismo original é suposto na
vida pré-pubertária.
A idéia do trauma na etiologia das psiconeuroses se articula também em Freud à
noção de recalque: a defesa desencadeada pelo acontecimento traumático.
Segundo Laplanche & Pontalis (1983), nos anos que se seguem, o significado
etiológico do traumatismo se enfraquece em benefício da vida fastasmática e das fixações
nas diversas fases libidinais. "O ponto de vista traumático, embora não seja abandonado,
como o próprio Freud sublinha, integra-se numa concepção que apela para outros fatores,
como a constituição e a história infantil" (p.682).
Há portanto nas articulações freudianas algo da ordem do acontecimento e algo da
ordem da predisposição.
Se em certo sentido Freud caminha para uma relativização da teoria traumática da
neurose, por outro lado, segundo Laplanche & Pontalis, "a existência das neuroses de
acidente e, mais especialmente, das neuroses de guerra volta a colocar em primeiro plano
das preocupações de Freud o problema do traumatismo sob a forma clínica das neuroses
traumáticas" (p.683).
Os autores mencionam ainda a importância das formulações freudianas em Para além
do Princípio de Prazer (1920) na elaboração da questão do trauma. Nesse texto, "a repetição
dos sonhos em que o indivíduo revive intensamente o acidente e se recoloca na situação
traumática como que para a dominar é referida a uma compulsão à repetição" (p.683).
A noção de traumatismo se renova na teoria da angústia e em Inibição, Sintoma e
Angústia (1926 [1925] ), livre de qualquer referência à neurose traumática. Frente à
angústia, o ego procura evitar "ser submergido" por ela e pelo desamparo. Haveria então para
o ego um perigo externo assim como um perigo interno: as "excitações pulsionais". Freud
acaba localizando a questão no perigo de um "aumento, para além do limite tolerável, da
tensão resultante de um afluxo de excitações internas que exigem ser liquidadas".
Roudinesco & Plon (1998, p.537) assinalam a importância que o tema da neurose de
guerra (incluída na categoria da neurose traumática) teve nas elaborações freudianas.
Conforme vimos anteriormente, os autores mostram que Freud transpôs a idéia de trauma
do domínio físico e orgânico para o plano psíquico, formulando uma nova concepção de
neurose fundamentada no conflito defensivo.
Os autores lembram que o debate sobre a origem traumática da neurose foi
reiniciado com a Primeira Guerra Mundial e a solicitação dos serviços dos psiquiatras pelas
hierarquias militares que procuravam desmascarar os simuladores "como outrora acontecera
com os histéricos" (p.537). Segundo eles, em Viena, em 1920, realizou-se um polêmico
primeiro debate sobre o estatuto da neurose de guerra.
Nessa ocasião, Freud teria defendido que o dever do médico é colocar-se a serviço
do doente e não de qualquer poder estatal ou bélico, apontando a inadequação da idéia de
simulação e enfatizando a importância do inconsciente: para ele, todos os neuróticos são
simuladores, mas o fazem de forma inconsciente.
Segundo os autores, a idéia de que as tragédias da história possam induzir em sujeitos
"normais" modificações da alma ou de comportamento, ou seja, "a questão da neurose de
guerra é tão antiga quanto a guerra em si" (p.537). Nesse contexto, eles ressaltam qual seria,
a esse respeito, a posição freudiana, afirmando que
todos os trabalhos do século XX sobre os traumas ligados à guerra, à tortura, à prisão ou
às situações extremas confirmam a formulação freudiana: esses traumas são, a um só
tempo, específicos de uma dada situação e reveladores, em cada indivíduo, de uma história
que lhe é peculiar. ( p.538)
Como sabemos, a partir dos Três ensaios (1905), Freud enfatizará a questão da
sexualidade infantil, definindo as diversas fases do desenvolvimento da libido (oral, anal,
fálico e genital). A Teoria dos estádios descreve como a libido se organiza de maneira
diferenciada com respeito às diferentes zonas erógenas e sua evolução conforme as
diferentes etapas da vida, considerando que a cada estádio corresponde uma modalidade da
relação de objeto. Assim o desenvolvimento da libido conduz o sujeito ao longo de sua
constituição narcísica, de uma situação auto-erótica inicial até as escolhas objetais.
6.3. ETIOLOGIA TRAUMÁTICA: UMA DISCUSSÃO
Destaca-se na revisão da literatura a hipótese traumática e a menção recorrente à
presença de história de abuso sexual na etiologia das CNEP.
Aparentemente, a gravidade dos sintomas pseudo-epiléticos faz com que muitos
autores (inclusive do campo psi), na ânsia de encontrar uma causa objetiva para esses
fenômenos, procurem relacioná-los a fatos igualmente trágicos e reais.
Roudinesco & Plon (1998) denunciam certa tendência presente no pensamento
psicanalítico americano à investigação do trauma real (em acordo ainda com a teoria da
sedução de Freud) contra a da fantasia, "excessivamente inapreensível, excessivamente
impalpável, excessivamente diluída no universal" (p.201).
Adeptos de certo biologismo e mantendo-se ainda dentro do raciocínio causa-efeito,
essa abordagem da questão ignora a importância da fantasia e do inconsciente, remetendo
qualquer forma de neurose, psicose ou sintoma à uma causalidade traumática, à um abuso
supostamente vivido na infância. Nessa abordagem, o tratamento equivaleria a uma certa
confissão e atingimento do relato catártico de violações e abusos diversos sofridos na
infância: misturam-se então nessa perspectiva traumas reais e maus-tratos imaginários.
Em termos clínicos, em geral, o analista não focaliza o trabalho na comprovação da
realidade ou da ficção do relato, já que a fantasia e o conflito é que são o núcleo da
interpretação do sintoma.
Conforme pude indicar, Freud também considerou inicialmente que a neurose teria
como origem um abuso sexual real. Com base na escuta da histeria, ele formulou a teoria da
sedução. Nesse primeiro momento ele acreditou que suas pacientes padeciam, pois haviam
de fato sido seduzidas. Entretanto, a etiologia traumática das neuroses é uma hipótese inicial
a qual ele renunciará progressivamente.
Conforme indicado, a teoria psicanalítica se articula finalmente quando, renunciando
à teoria traumática, os sintomas não permanecem dependentes de um acontecimento real
que os produziu, mas sim das fantasias edipianas na criança.
A seguir, Freud coloca em primeiro plano a realidade psíquica, a fantasia e o
inconsciente como conceitos fundamentais. Nesse movimento entrarão em cena também a a
questão da sexualidade infantil e o Édipo (as fantasias edipianas da criança).
Ao mesmo tempo, identificando as resistências e a censura por parte do ego do
paciente, Freud enfatiza o conflito psíquico na causação da neurose e estabelece a teoria do
recalque como "pedra angular" sobre a qual se sustenta toda a estrutura da psicanálise.
A seguir, sua investigação caminhará no sentido de abordar, para além desses temas,
o problema dos investimentos libidinais, das intensidades e dos ganhos secundários
envolvidos na constituição dos sintomas (conforme desenvolverei a seguir).
7. FREUD: A FORMAÇÃO DOS SINTOMAS
Conforme visto, na teoria freudiana, com o declínio da teoria do trauma, o sintoma
deixa de estar dependente de um acontecimento traumático real e inicia-se o percurso que
possibilitará a Freud articulá-lo como formação do inconsciente.
Qual seria a especificidade da leitura psicanalítica do sintoma?
Diferentemente da noção médica de sintoma, o ponto de vista psicanalítico entende o
sintoma como um fenômeno subjetivo que constitui não o sinal de uma doença, mas a
expressão de um conflito inconsciente. Segundo Chemama (1995), a novidade dessa
concepção está relacionada ao fato de que com Freud,
a palavra sintoma adquire um sentido radicalmente novo, a partir do momento em que ele
sugeriu que o sintoma de conversão histérica, em geral considerado como uma simulação,
é, de fato, pantomima do desejo inconsciente, expressão do recalcado. O sintoma, a
princípio concebido como a comemoração de um trauma, será, a seguir, definido mais
exatamente como a expressão de uma realização de desejo e a realização de um fantasma
inconsciente, que serve para realizar tal desejo. Assim, é o retorno de uma satisfação sexual
há muito tempo recalcada, mas também é uma formação de compromisso, à medida que
nele igualmente se exprime o recalcamento. (p.203).
Discutindo princípios fundamentais da teoria psicanalítica (em uma abordagem freud-
lacaniana), Nasio (1993) formula e responde à pergunta que é um sintoma da seguinte
maneira:
Sabemos, comumente, que o sintoma é um distúrbio que causa sofrimento e remete a um
estado doentio do qual constitui a expressão. Mas, em psicanálise, o sintoma nos surge de
maneira diferente de um distúrbio que causa sofrimento: ele é, acima de tudo, um mal-estar
que se impõe a nós, além de nós, e nos interpela. Um mal-estar que descrevemos com
palavras singulares e metáforas inesperadas. Mas, quer seja um sofrimento, quer uma
palavra singular para dizer o sofrimento, o sintoma é, antes de mais nada, um ato
involuntário, produzido além de qualquer intencionalidade e de qualquer saber consciente.
É um ato que menos remete a um estado doentio do que a um processo chamado
inconsciente. O sintoma é, para nós, uma manifestação do inconsciente. (p.13).
Nas palavras de Freud (1917[1916-17] b), os sintomas (de doença psíquica) são
atos prejudiciais, ou, pelo menos, inúteis à vida da pessoa, que por vez, deles se queixa
como sendo indesejados e causadores de desprazer ou sofrimento. O principal dano que
causam reside no dispêndio mental que acarretam, e no dispêndio adicional que se torna
necessário para se lutar contra eles. Onde existe extensa formação de sintomas, esses dois
tipos de dispêndio podem resultar em extraordinário empobrecimento da pessoa no que se
refere à energia mental que lhe permanece disponível e, com isso, na paralisação da pessoa
para todas as tarefas importantes da vida.
Laplanche & Pontalis (1983) definem a formação de compromisso como
a forma que o recalcado vai buscar para ser admitido no consciente, retornando no
sintoma, no sonho, e, mais geralmente, em qualquer produção do inconsciente: as
representações recalcadas são então deformadas pela defesa ao ponto de serem
irreconhecíveis. Na mesma formação podem assim satisfazerem-se num mesmo
compromisso simultâneamente o desejo inconsciente e as exigências defensivas. (p.257).
Os autores sintetizam também que em seu sentido psicanalítico, os sintomas visam
uma satisfação sexual ou uma defesa contra ela. A realização de desejo positiva predomina
na histeria enquanto seu caráter negativo aparece na neurose obsessiva. Em seu sentido mais
amplo, segundo os autores, "a formação de sintomas engloba, não apenas o retorno do
recalcado sob a forma de formações substitutivas ou de formações de compromisso, mas ainda
as formações reativas" (1983, p.262).
7.1. SINTOMA E GANHOS SECUNDÁRIOS
Freud (1917 [1916-17] c) estabelece uma inter-relação entre os sintomas, o ego e a
libido. Em sua Conferência XXIV, ele define que os sintomas estão diretamente associados à
uma disfunção da economia da libido. Segundo ele, "seja qual for o modo como a doença se
pôs em marcha, os sintomas da neurose são mantidos pela libido, e, por conseguinte, são
prova de que ela está sendo utilizada anormalmente" (CD-ROM).
O ego, por sua vez, tem um papel importante no desenvolvimento e na manutenção da
neurose e dos sintomas. Segundo Freud (1917 [1916-17] c ),
os sintomas também são apoiados pelo ego, porque possuem um aspecto com o qual
oferecem satisfação ao propósito repressor do ego. Ademais, apaziguar um conflito
construindo um sintoma é a solução mais conveniente e mais agradável para o princípio de
prazer: inquestionavelmente, poupa ao ego uma grande quantidade de trabalho interno que
é sentido como penoso. (CD-ROM).
Para ele, refugiando-se no sintoma, “o ego obtém um certo ganho proveniente da
doença. Em algumas circunstâncias da vida, isto se acompanha, ademais, de uma apreciável
vantagem externa que assume um valor real maior ou menor”. O exemplo sugerido por Freud
(1917 [1916-17] c ) é o da mulher que é tratada de forma desumana pelo marido. Se essa
mulher
é excessivamente covarde ou excessivamente honrada para procurar um consolo secreto
com outro homem, se (...) não é suficientemente forte para separar-se de seu marido, se
não tem perspectivas de se sustentar a si própria ou de conseguir um marido melhor, e se,
além do mais, ainda está, através de seus sentimentos sexuais vinculada a seu cruel marido.
Então a sua doença se converte em arma na batalha contra o marido dominador (...). É
permissível ela queixar-se de sua doença, embora provavelmente não fosse permissível
lamentar o casamento. (CD-ROM).
Formula-se, assim, o ganho proveniente da doença ou o ganho secundário. Nesses
casos, o que Freud constata é que torna-se permissível para o sujeito queixar-se de sua
doença, embora provavelmente não fosse possível lamentar-se de situações dolorosas ou de
conflitos psíquicos.
Freud identifica que os pacientes que "exibem as maiores lamentações e queixas
acerca de sua doença" são os pacientes que demonstram maiores resistências e não
cooperam com o tratamento.
Nessa mesma Conferência, cita ainda o exemplo do operário que sofre um acidente no
trabalho e obtém uma pensão por invalidez, passando a pedir esmolas e explorar sua
mutilação.
Freud observa que nessas situações, quando a doença adquire uma "função secundária",
tornando-se "útil" na vida diária, a intervenção analítica fica dificultada, pois "tudo aquilo que
contribui para o ganho proveniente da doença haverá de intensificar a resistência devido a
repressão e aumentará as dificuldades do tratamento". Nas suas palavras,
quando semelhante ganho externo ou secundário proveniente da doença atinge essas
proporções e não há nenhum substituto real disponível, os senhores não devem contar com
possibilidades muito grandes de influenciar a neurose por meio do tratamento que
empreenderem. (CD-ROM)
Referindo-se às situações extrema citadas, Freud (1917 [1916-17]c) chega a
aconselhar que
há casos em que até mesmo o médico deve admitir que um conflito terminar em neurose
constitui a solução mais inócua e socialmente mais tolerável. Os senhores não devem
surpreender-se ao ouvir dizer que o próprio médico, às vezes, pode tomar o partido da
doença que está combatendo. Não é sua função limitar-se, em todas as situações da vida,
a ser um fanático defensor da saúde. Ele sabe que não há apenas miséria neurótica no
mundo, mas também sofrimento real, irremovível, que a necessidade pode mesmo exigir
que uma pessoa sacrifique sua saúde; e aprende que um sacrifício dessa espécie, feito por
uma única pessoa, pode evitar incomensurável infelicidade para muitas outras. Portanto, se
podemos dizer que sempre que um neurótico enfrenta um conflito ele empreende uma fuga
para a doença, assim mesmo devemos admitir que, em determinados casos, tal fuga se
justifica plenamente, e um médico que tenha reconhecido a maneira como se configura a
situação, haverá de se retirar, silencioso e apreensivo (CD-ROM).
Alertando para as dificuldades de tratamento nessas situações, Freud (1917 [1916-17]
c) obviamente não defende o caminho da neurose. Segundo ele, via de regra,
logo se verifica que o ego fez mau negócio ao optar pela neurose. Ele pagou caro demais
por um alívio do conflito, e os sofrimentos ligados aos sintomas são, talvez, um substituto
equivalente dos tormentos do conflito, mas provavelmente importam em aumento de
desprazer (CD-ROM).
Mesmo identificando obstáculos e limitações, Freud não deixa de confiar nas
perspectivas de um processo analítico, afirmando que a Psicanálise considera que, apesar
desses casos excepcionais e das dificuldades que podemos encontrar na dissolução de
sintomas, dado seu aspecto defensivo e de formação de compromisso, a solução neurótica
não é a melhor para o paciente. Isso por que “lidar com um conflito produzindo sintomas é
um processo (...) no qual a pessoa abandonou o uso das suas melhores e mais elevadas
capacidades. Se houvesse uma escolha, seria preferível descer à liça para uma honrosa luta
com o destino” (CD-ROM).
Mais adiante, no texto Inibição, sintoma e angústia, Freud (1926 [1925] ) retoma o
problema do ganho secundário do sintoma sob a vertente das satisfações narcísicas de que
goza o ego ao criar um sintoma. Segundo ele:
Nas neuroses obsessivas e na paranóia, as formas que os sintomas assumem tornam-se
muito valiosas para o ego porque obtêm para este, não certas vantagens, mas uma
satisfação narcísica sem a qual, de outra forma poderia passar. Os sistemas que o neurótico
obsessivo constrói lisonjeiam seu amor próprio, fazendo-o sentir que ele é melhor que
outras pessoas, porque é especialmente limpo ou especialmente consciencioso. As
construções delirantes do paranóico oferecem aos seus autopoderes perceptivos e
imaginativos um campo de atividade que ele não poderia encontrar facilmente em outra
parte. Tudo isto resulta no que nos é familiar como o ganho (secundário) proveniente da
doença que se segue a uma neurose (CD-ROM).
No mesmo texto, Freud (1926 [1925] ) volta a indicar que o analista que tenta "ajudar
o ego em sua luta contra o sintoma" se depara com resistências "que não são fáceis de
afrouxar" ligadas aos "laços conciliatórios entre o ego e o sintoma".
Ainda distante da corajosa investigação que será proposta em Análise terminável e
interminável (1937) acerca das limitações e obstáculos que se impõem ao tratamento, esse
aparente pessimismo de Freud pode ser pensado (como faz, por exemplo Indart, J. C., 1998)
como considerações éticas ao psicanalista no sentido de que haja prudência com respeito ao
próprio furor curandis.
7.2. O SINTOMA TEM UM SENTIDO
A leitura dos textos freudianos iniciais possibilita perceber que na primeira tópica
predomina em Freud um ponto de vista conflituoso e dinâmico do sintoma. Nessa primeira
abordagem do sintoma, Freud fala do conflito da pulsão com o eu
4
. O sintoma, tal como os
sonhos e os lapsos são pensados como formações do inconsciente.
Como se pode ler nos Estudos sobre a histeria, impulsos de conotação sexual
(desagradáveis e repugnantes) são recalcados e retornam à realidade disfarçados na forma de
sintomas. Trata-se de uma luta entre o desejo (que aparece travestido no sintoma) e a
censura. Assim são as dores nas pernas de Elisabeth von R. associadas à paixão pelo
cunhado, a complicação transferencial e sintomática da gravidez nervosa de Anna O., etc.
Como sabemos, essa decifração freudiana do final do século XIX foi fundamental na
construção do saber psicanalítico, entretanto, Freud adiante perceberá que o tratamento da
neurose não podia se reduzir ao deciframento dessas formas da histeria.
Nas primeiras formulações freudianas, podemos dizer que o sintoma tem um sentido.
Nas Conferências Introdutórias proferidas por Freud na Universidade de Viena,
identificam-se de forma sintética as opiniões dele à respeito dos sintomas. Nelas há três
capítulos onde essa problemática se destaca: Conferência XVII (O sentido do sintoma),
Conferência XXIII (Os caminhos da formação dos sintomas) e também a Conferência XXIV (O
estado neurótico comum), na qual, como vimos, Freud discute a questão dos ganhos
secundários.
Na Conferência XVII (O sentido dos sintomas), Freud (1917 [1916-17] a) mostra por
meio do relato de duas experiências clínicas com a neurose obsessiva que, para a
Psicanálise, "os sintomas neuróticos, como as parapraxias e os sonhos, possuem um sentido
e têm uma íntima conexão com as experiências do paciente" (CD-ROM).
Freud interpreta as manifestações obsessivas de duas pacientes que desenvolveram
complexos rituais de dormir, procurando mostrar que sintomas obsessivos aparentemente
ininteligíveis têm um sentido e estão relacionados com o vivenciar (absolutamente
particular) de cada sujeito.
4
Nesta tese utilizei o termo eu como sinônimo de ego.
Ele observa que o ritual de dormir em questão não foi o resultado de uma única
fantasia, mas de diversas e indica, fundamentalmente, que os sintomas reproduziam os
desejos sexuais da paciente e em parte serviam de defesa contra os mesmos.
Essa interpretação das manifestaçõe obsessivas se apresenta como paradigma da
leitura psicanalítica dos sintomas àquela altura.
Entretanto, conforme discutirei adiante, com a grande virada dos textos dos anos
vinte e a formulação da segunda tópica, o ponto de vista econômico prevalecerá sobre o
ponto de vista conflituoso ou dinâmico.
7.3. PARA ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER
O texto Mais além do princípio de prazer (1920) anuncia a grande virada operada na
teoria freudiana a partir dos anos vinte. Em síntese, podemos dizer que esse texto afirmará a
existência da pulsão de morte e o dualismo pulsional como fundamento da vida psíquica.
A noção de sintoma em Freud pode ser revista à luz dessa transformação teórica.
Como se pode ler na nota de apresentação de Strachey (editor inglês das Obras
Completas) do Mais além (Freud, 1920):
Na série dos trabalhos metapsicológicos de Freud, Além do Princípio de Prazer pode ser
considerado como uma introdução da fase final de suas concepções. Já havia chamado a
atenção para a ‘compulsão à repetição’ como fenômeno clínico, mas lhe atribui aqui as
características de um instinto; também aqui, pela primeira vez, apresenta a nova dicotomia
entre Eros e os instintos de morte, que iria encontrar sua plena elaboração em O Ego e o
Id (1923b). Em Além do Princípio de Prazer, também, podemos ver sinais do novo
quadro da estrutura anatômica da mente que deveria dominar todos os últimos trabalhos de
Freud. Finalmente, o problema da destrutividade, que desempenhou papel cada vez mais
importante em suas obras teóricas, faz seu primeiro aparecimento explícito. A derivação de
diversos elementos do presente estudo a partir de suas obras metapsicológicas anteriores
tais como ‘Formulações sobre os dois princípios do funcionamental mental’ (1911),
‘Narcisismo’ (1914) e ‘Os Instintos e Suas Vicissitudes’ (1915) será óbvia. (CD-
ROM)
Roudinesco & Plon (1998, p.485) esclarecem que inspirado na leitura da obra de
Schopenhauer e "insatisfeito (...) com as reformulações introduzidas em sua teoria das
pulsões em 1914", com o Mais além, Freud
inaugurou o que se denominou de grande reformulação ou grande virada dos anos vinte,
uma reorganização teórica fundamental à qual outros dois livros, Psicologia das massas e
análise do eu, por um lado, e O eu e o isso, por outro, confeririam suas dimensões
definitivas (p.484).
Freud (1920) nota que apesar de que há uma tendência no sentido do prazer na mente,
não se pode afirmar que exista uma "dominância do princípio de prazer sobre o curso dos
processos mentais" (CD-ROM), já que os processos mentais nem sempre são
acompanhados de prazer ou conduzem a ele.
Em Mais além, Freud discute o fenômeno da repetição observado em algumas
situações específicas, entre elas, nos sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas que
fazem com que os pacientes revivam as circunstâncias de seus acidentes.
Como sintetizam Roudinesco & Plon (1998), "esses sonhos constituem uma exceção
à lei do sonho como realização de desejo: obedecem à compulsão à repetição, que, por sua
vez, está a serviço do desejo inconsciente de permitir que o recalcado retorne" (p.487).
Freud nota também o aspecto repetitivo da brincadeira de fort-da observada em seu
neto, na qual ele "prazeirosamente" repete um jogo, no qual tenta elaborar os sentimentos
hostis e o desprazer ligado à separação da mãe.
Verifica ainda que o tratamento nem sempre avança facilmente e que tornar o
inconsciente consciente não é uma tarefa simples, questionando sua explicação anterior
para os impasses no tratamento com base na resistência inconsciente.
Vale lembrar, como assinalam Roudinesco & Plon (1998, p.487) que essa reflexão
freudiana é concomitante às reformulações tópicas que ele definirá em O eu e o isso. Os
autores consideram que "trata-se de abandonar a oposição consciente / inconsciente e
substituí-la pelo confronto entre o eu, cuja maior parte é inconsciente, e o recalque". Isso
implica em que "as resistências do analisando são de fato inconscientes", e "devem ser
situadas nesse eu que já não é possível de ser assimilado ao consciente".
Mais adiante, ele toma o exemplo de pessoas que repetem fracassos, para finalmente
afirmar a existência na vida psíquica de uma compulsão à repetição que se coloca acima do
princípio de prazer. Segundo Freud (1920):
Se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no comportamento, na
transferência e nas histórias da vida de homens e mulheres, não só encontraremos coragem
para supor que existe realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o
princípio de prazer, como também ficaremos agora inclinados a relacionar com essa
compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso que leva as
crianças a brincar (CD-ROM).
Como explicar que se repitam nos sonhos as cenas traumáticas dos acidentes ou na
brincadeira das crianças, por exemplo, o desprazer ligado à separação da mãe? Como
explicar as repetições desagradáveis nas análises e a maneira como os pacientes não
melhoram?
Freud afirma a existência de uma compulsão à repetição, colocada para além do
princípio de prazer. Dessa forma, paradoxalmente ele interpreta esses fatos como
"satisfações" vinculadas à essa obscura tendência inconsciente.
7.4. DUALISMO PULSIONAL E PULSÃO DE MORTE
O passo seguinte seria a afirmação freudiana da existência de um dualismo pulsional.
Freud (1920) assume no Mais além o dualismo de sua construção teórica:
Nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais definidamente
dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se dando, não entre
instintos do ego e instintos sexuais, mas entre instintos de vida e instintos de morte. (CD-
ROM)
Roudinesco & Plon (1998) sintetizam que
a originalidade da contribuição freudiana reside na construção de um novo dualismo
pulsional, que opõe as pulsões de vida, ainda designadas pelo termo Eros, que reúnem as
pulsões sexuais e as pulsões do eu, às pulsões de morte, às vezes denominadas de pulsões
de destruição, ou, quando se trata de especificar a orientação delas para o exterior, pulsões
de agressão. (p.488).
Segundo os autores, o que se tem aí é "uma concepção global da vida psíquica cujo
funcionamento seria ritmado por um movimento pendular que faz alternar certas pulsões,
premidas a atingirem a meta final da vida, com outras mais voltadas para fazer o percurso
dessa vida durar" (p.488).
Vale notar que a idéia de um funcionamento psíquico marcado pelo dualismo
pulsional, ou seja pelo conflito entre pulsões de vida e pulsões de morte significa admitir
que o conflito é estrutural na vida mental.
Conforme dito, em Análise terminável e interminável, Freud (1937) avalia a eficácia
terapêutica da Psicanálise, discutindo as limitações e os obstáculos que se impõem ao
tratamento.
Nesse artigo, Freud se refere às causas das dificuldades encontradas nos tratamentos,
apontando fatores de natureza constitucional, a relativa fraqueza do ego, assim como o que
ele considera como o fator impeditivo maior que seria a existência da pulsão de morte.
Indignado com as resistências ao tratamento e o apego ao sofrimento de alguns
pacientes, Freud explica esses paradoxais fenômenos humanos com base na existência da
pulsão de morte (e de um dualismo pulsional na base da vida psíquica) como causa suprema
de conflito na mente.
Segundo Freud (1937):
Impressão alguma mais forte surge das resistências durante o trabalho de análise do que a
de existir uma força que se está defendendo por todos os meios possíveis contra o
restabelecimento e que está absolutamente decidida a apegar-se à doença e ao sofrimento.
Uma parte dessa força já foi por nós identificada, indubitavelmente com justiça, como
sentimento de culpa e necessidade de punição, e foi por nós localizada na relação do ego
com o superego. Mas essa é apenas a parte dela que, por assim dizer, está psiquicamente
presa pelo superego e assim se torna reconhecível; outras cotas da mesma força, quer
presas, quer livres, podem estar em ação em outros lugares não especificados. Se
tomarmos em consideração o quadro total formado pelos fenômenos de masoquismo
imanentes em tantas pessoas, a reação terapêutica negativa e o sentimento de culpa
encontrados em tantos neuróticos, não mais poderemos aderir à crença de que os eventos
mentais são governados exclusivamente pelo desejo de prazer. Esses fenômenos
constituem indicações inequívocas da presença de um poder na vida mental que chamamos
de instinto de agressividade ou de destruição, segundo seus objetivos, e que remontamos
ao instinto de morte original da matéria viva. Não se trata de uma antítese entre uma teoria
pessimista da vida e outra otimista. Somente pela ação concorrente ou mutuamente oposta
dos dois instintos primevos Eros e o instinto de morte , e nunca por um ou outro
sozinho, podemos explicar a rica multiplicidade dos fenômenos da vida.
Afirmando a existência da pulsão de morte, Freud foi conduzido a desenvolver o que
ele mesmo reconheceu ser uma especulação, porém uma "especulação a que jamais
renunciaria" (Roudinesco & Plon, p.657). Ele foi levado a "postular a existência de uma
tendência para um retorno à origem, ao estado de repouso absoluto, ao estado de não vida,
àquele estado anterior à vida que pressupõe a passagem pela morte" (p.657).
O próprio Freud (1920) inicia seu texto considerando que seus argumentos são uma
"especulação, amiúde especulação forçada, que o leitor tomará em consideração ou porá de
lado, de acordo com sua predileção individual" (CD-ROM).
Como sabemos, a aceitação ou não das idéias de Freud a partir da virada dos anos
vinte, em especial acerca da existência ou não de uma pulsão de morte, é polêmica entre as
diferentes escolas psicanalíticas. Discuti as leituras específicas de Reich e Lacan à esse
repeito em minha Dissertação de Mestrado. Enquanto Reich negou a existência da pulsão de
morte, considerando que a neurose e sua cura estariam ancoradas no restabelecimento da
saúde genital, Lacan teria levado às últimas consequências a questão da repetição em Freud.
Representativo do esforço de Freud no sentido de identificar a existência de uma
pulsão destrutiva, tanática, originária e constitutiva, o Mais além, é considerado por algumas
escolas como obra pouco rigorosa e criticado por seu tom especulativo.
Entretanto, para Roudinesco & Plon (1998), o caráter fascinante e provocativo da
discussão freudiana conferiu a esse livro o "toque final de modernidade a que grande parte
do pensamento do seculo XX não deixaria de render homenagens"(p.489).
7.5. O SINTOMA A PARTIR DA SEGUNDA TÓPICA
Segundo Cottet (1998), os principais artigos freudianos da segunda tópica, quais
sejam, o Mais além do princípio do prazer (1920), O eu e o isso (1923), O problema econômico
do masoquismo (1924), Inibição sintoma e angústia (1926) e o Mal-estar na cultura (1930),
são "a resposta da doutrina às dificuldades técnicas geradas pela inércia do sintoma" (p.47).
Para ele,
com a segunda tópica, o ponto de vista econômico prevalece sobre o ponto de vista
conflituoso ou dinâmico. Enquanto [antes] o sintoma resultava de um conflito da pulsão
com o eu, agora trata-se de dar conta de um conflito interno ao eu ou dos efeitos
sintomáticos de um eu dividido entre várias instâncias, ou ainda das satisfações narcísicas
que o sujeito encontra no seu sintoma
5
(p.48).
Cottet (p.47) considera que nas construções anteriores, o sintoma era definido pela
noção de "compromisso entre o recalcado e a instância recalcadora". Na primeira tópica, "é
o recalque da libido que produz um sintoma enquanto retorno do recalcado, mais ou menos
travestido e disfarçado, filtrado pelo inconsciente".
Conforme notado anteriormente, a partir da segunda tópica e a nova topologia, o
aparelho psíquico é repensado e sua complexidade revista. O ego não é mais uma parte
separada do id, o ego é idêntico ao id, sendo apenas uma parte diferenciada do mesmo.
Dessa forma, a segunda tópica procura essencialmente articular o sintoma à parte
inconsciente do eu.
Indicando articulações que serão feitas por Lacan a partir do pensamento freudiano,
Cottet assinala que nesse momento não se trata mais do "triunfo do princípio de prazer que,
até então, estava na origem do recalque. Há um para-além do princípio de prazer onde as
alianças obscuras se elaboram e novas formas de gozo tiram proveito" (p.48).
Segundo ele, com a segunda tópica, a natureza do sintoma gira em torno de uma
"teoria da angústia como sinal de perigo" (p.50).
Diversamente do que acontecia nos casos clássicos de repugnância histérica, o foco
não está mais no recalque. A base do sintoma está agora na falta e na angústia: na relação ao
Outro primordial que é fundamentalmente perdida, no vazio, na incompletude, na pulsão que
é insatisfeita por natureza.
Em suma, na primeira tópica, o sintoma em Freud representa o retorno do recalcado
e tem a mesma estrutura de outras formações do inconsciente: nesse primeiro momento da
5
Freud (1925). Inibição, sintoma e angústia
teoria freudiana, o sintoma tem um sentido. Nessa acepção, o sintoma é pensado como
conseqüência do conflito neurótico e a cura equivale à uma decifração. Nesse primeiro
sentido o sintoma tem o valor de uma metáfora.
A partir da segunda tópica, articulado à pulsão de morte, ele está no lugar da angústia
e da falta.
Na clínica, não se trata mais de eliminar o conflito tornando consciente o recalcado,
mas de conceber um psiquismo dividido em instâncias, no qual o conflito é estrutural.
Com relação ao tratamento, uma coisa são as dificuldades de dissolução de um
sintoma ligadas ao recalque. Impasse mais complexo é a problemática colocada em cena
com o para além do princípio de prazer, no qual a persistência do sintoma está ligada aos
ganhos secundários e sobretudo ao conflito e a angústia constituintes do sujeito.
Nessa perspectiva, não se pode visar "a cura" como efeito esperado da análise pois o
sujeito, marcado pelo próprio inconsciente é de certa forma incurável. Ninguém se cura do
próprio inconsciente, que não deixará de se manifestar nos lapsos, sonhos, chistes e na
realidade mental (inclusive dos sujeitos já analisados).
8. ASPECTOS SOBRE O SINTOMA NA TEORIA LACANIANA
8.1. PRIMEIRAS FORMULAÇÕES LACANIANAS:
O SINTOMA ESTRUTURADO COMO LINGUAGEM
As primeiras formulações lacanianas acerca do sintoma estão ancoradas na idéia
freudiana de que o sintoma é conseqüência de um conflito recalcado e a cura equivale à uma
decifração.
Ao mesmo tempo, as reflexões iniciais de Lacan sobre o sintoma estão relacionadas
ao conceito original de inconsciente que ele elabora nos primeiros momentos de seu
ensino, qual seja a idéia do inconsciente estruturado como linguagem.
Segundo Kruger (1998),
Na primeira época, ele [Lacan] pensa o inconsciente como discurso e o sintoma como
mensagem a decifrar; neste sentido o sintoma é um modo inconsciente de dizer. O sintoma
mesmo é linguagem e a interpretação, desta perspectiva, aponta liberar a fala que aparece
congelada e que demanda ser escutada. Com respeito ao tratamento: está orientado para
liberar a verdade que se esconde no sintoma (p.103).
Kruger (1998, p.103) sintetiza que se trata nesse momento de uma teoria do sintoma
“muito elementar” que consiste em alcançar o sintoma evocando as ressonâncias semânticas
e em dizer que o sintoma “é um significante cujo significado está recalcado”. Nesse
momento o que está no horizonte da operação analítica é “a possibilidade de liberar o
significado recalcado, que é o que constitui a verdade do sintoma”.
Gorostiza (1998) também discute as articulações iniciais de Lacan sobre o sintoma.
Segundo ele, nesse primeiro momento, o inconsciente lacaniano está associado em
primeiro lugar à famosa tese de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem. Em
segundo lugar, a tese de que o Inconsciente está estruturado como uma fala dirigida ao
Outro.
Segundo Gorostiza (1998), uma aplicação do algoritmo saussuriano permite a Lacan
formular em Função e campo da fala e da linguagem que "o sintoma é o significante de um
significado recalcado da consciência do sujeito" (p.96). Portanto, concebido como algo de
obscuro e escondido no discurso consciente, “o significante do sintoma será em torno do
qual o sujeito poderá delimitar a pergunta acerca de que é queisso quer dizer” (p.96).
A idéia principal seria de que um sentido aprisionado, que a interpretação analítica
poderá libertar se for possível mobilizar a fala até então expulsa do discurso manifesto do
analisante.
Na esteira de Freud, Lacan considera o inconsciente como interpretável e como
revelador da história do sujeito. Segundo Gorostiza (1998), para Lacan "o sintoma é (...)
uma sorte de opacidade na historização do sujeito, que a interpretação analítica, através da
liberação da fala plena ali encerrada, tentará restabelecer" (p.96). Para Lacan (cit.por
Gorostiza), “o sintoma se resolve inteiramente em uma análise da linguagem, porque ele
próprio é estruturado como uma linguagem, ele é linguagem cuja fala deve ser libertada"
(p.97).
Nesse primeiro momento, o sintoma tem valor de linguagem e é revelador da verdade
do sujeito.
Em Função e campo da fala e da linguagem, pode-se ler na obra lacaniana a maneira
como ele afirma à essa altura de seu ensino que o sintoma está estruturado como linguagem
e que é por meio da fala (do texto das associações livres) que ele deve ser abordado.
Segundo Lacan (1953, 1998):
Para admitir um sintoma na psicopatologia psicanalítica, seja ele neurótico ou não, Freud
exige o mínimo de sobredeterminação constituído por um duplo sentido, símbolo de um
conflito defunto, para além de sua função, num conflito presente não menos simbólico, e
se ele nos ensinou a acompanhar, no texto das associações livres, a ramificação ascendente
dessa linhagem simbólica, para nela detectar, nos pontos em que as formas verbais se
cruzam novamente, os nós de sua estrutura, já está perfeitamente claro que o sintoma se
resolve por inteiro numa análise linguajeira, por ser ele mesmo estruturado como uma
linguagem, por ser a linguagem cuja fala deve ser libertada. (p.270).
Em sua releitura das formulações freudianas, Lacan (1953, 1998) especifica que no
campo da linguagem, "o sintoma (...) é o significante recalcado da consciência do sujeito.
Símbolo escrito na areia da carne e no véu de Maia, ele participa da linguagem pela
ambigüidade semântica que já sublinhamos em sua constituição" (p.282).
Lacan enumera as inscrições que a tarefa hermenêutica herdada de Freud possibilita
revelar:
Hieróglifos da histeria, brasões da fobia, labirintos da Zwangs-neurose; encantos da
impotência, enigmas da inibição, oráculos da angústia; armas eloqüentes do caráter,
chancelas da auto-punição, disfarces da perversão - tais são os hermetismos que nossa
exegese resolve, os equívocos que nossa invocação dissolve, os artifícios que nosso
discurso absolve, numa libertação do sentido aprisionado que vai da revelação do
palimpsesto à palavra dada do mistério e ao perdão da fala. (p.282).
Lacan (1953, 1998) especifica no mesmo texto que a linguagem de que se trata na
análise é a "linguagem que capta o desejo" (p.295), descoberta por Freud. Segundo ele, "para
liberar a fala do sujeito, nós o introduzimos na linguagem de seu desejo, isto é, na
linguagem primeira em que, para além do que ele nos diz de si, ele já nos fala à sua revelia, e
(...) o introduzimos nos símbolos do sintoma" (p.294).
Nesse texto, observa-se claramente a aposta lacaniana nos poderes da "técnica
renovada da interpretação" (p.295) e no trabalho com o Simbólico. Segundo ele:
Basta (...) para que surta efeitos no sujeito, que ele [o símbolo] se faça ouvir, pois esses
efeitos se dão sem o conhecimento dele, como o admitimos em nossa experiência cotidiana
ao explicar muitas reações, tanto dos sujeitos normais quanto dos neuróticos, por sua
resposta ao sentido simbólico de um ato, uma relação ou um objeto. (p.295).
Tendo efeitos sobre o sujeito, tudo se passa como se o trabalho de interpretação
conferisse à prática analítica algo de milagroso. Entretanto, Lacan (1953, 307) ironiza ao
final do texto a ambigüidade do papel do analista: meio doutor, meio mágico. Segundo ele, o
fato de que o psicanalista "interpreta o símbolo e eis que o sintoma, que o inscreve como
letras de sofrimento na carne do sujeito se apaga, seria como um milagre operado pela fala,
uma "taumaturgia (...) chocante para nossos costumes”.
Mas Lacan (1953, p.307) recomenda que o analista não se iluda com os poderes de sua
interpretação. Retomando sua leitura dos descaminhos de Freud na interpretação dos
“fingimentos” de Dora (sua ignorância acerca da posição homossexual do objeto visado pelo
desejo da histérica, etc.), ele lembra que na arte da interpretação, até o mestre equivocou-se.
Por isso, no manejo do "milagre operado por sua fala [do analista]", Lacan recomenda
prudência: é bom restabelecer o papel do psicanalista como pensador e manter “as justas
distâncias que é preciso guardar dos doentes” (p.307).
8.2. SINTOMA COMO GOZO
Em um momento teórico posterior, Lacan retoma a orientação formulada por Freud a
partir dos anos vinte e estabelece uma perspectiva diversa para a questão do sintoma.
Como destaca Gorostiza (1998), a partir de certo momento, "já não é suficiente para
Lacan, sob o pretexto de que o sintoma é uma mensagem, reduzi-lo a um efeito semântico, a
uma significação do Outro" (p.98). A nova perspectiva lacaniana destaca para além do efeito
semântico da construção do sintoma, a importância da relação do sujeito com o gozo.
Segundo esse autor,
existe uma necessidade, dada pelo caráter específico do sintoma, que o diferencia das
demais formações do inconsciente: sua fixidez, sua inércia. E é isto que obriga Lacan a
incluir sua determinação significante em um circuito mais vasto onde o gozo e a castração
se encontrem implicados (p.98).
Segundo Gorostiza, essa inversão de perspectiva, na qual Lacan reformula sua
definição de sintoma articulando-o ao conceito de gozo, já estava esboçada no texto A
instância da letra (1957). Nele, Lacan já teria mencionado "uma função do significante que
ultrapassa sua capacidade de engendrar significação" (p.98).
Bem mais adiante, no Seminário X, L‘Angoisse, proferido em 1962 / 1963, segundo
Gorostiza, Lacan afirma explicitamente que o sintoma em sua natureza é gozo.
De certa forma, as duas perspectivas para o sintoma formuladas por Lacan acabam por
se acrescentar. O sintoma é agora abordado em sua vertente significante, que mantém aberta
as possibilidades para a produção do sentido. Mas para além do efeito semântico, “o sintoma
faz do gozo sua referência e coloca a questão de uma cifra que não inclui o Outro em seu
segredo” (Gorostiza, p.100).
Nessa nova perspectiva, o trabalho analítico tem um novo foco. "Será necessário o
milagre da transferência para que esse gozo autístico, auto-erótico que o sintoma encerra,
se abra aos intercâmbios da fala" (Gorostiza, p.99).
Para discutir a perspectiva lacaniana do sintoma como gozo, Kruger (1998) retoma o
aspecto paradoxal da noção freudiana de sintoma: “por um lado, é a sede dos padecimentos
humanos, e pelo outro, aloja uma satisfação que atenta contra seu portador” (p.102).
Segundo a autora, Freud deu-se conta de que "se bem que o sintoma, em aparência,
amiúde seja um hóspede mal recebido na vida psíquica do sujeito, não é menos habitual que
as pessoas se sirvam de seus sintomas obtendo um ganho extraído de seus padecimentos,
razão de sua tenacidade" (p.102).
A autora destaca nas reflexões clínicas de Freud a constatação de que "no sofrimento
sintomático há algo que transborda o princípio de prazer" (p.102). Assinala-se assim em
Freud a disjunção entre o inconsciente e a pulsão, ou seja, entre "o descobrimento do
sentido que desfaz o sintoma e a permanência do gozo que o mantém" (p. 102).
A autora retoma as observações de Freud de que “o sujeito não quer se curar porque a
cura mesma é considerada pelo eu como um novo perigo" e os conceitos que surgem com a
queda do otimismo inicial freudiano: o masoquismo primordial, a pulsão de morte, o
sentimento de culpa inconsciente (que acha na enfermidade sua satisfação), a resistência à
cura e a inércia do sintoma: formulações que destacam a vertente da satisfação presente no
sintoma.
Segundo ela, Lacan batiza a idéia da satisfação freudiana com o conceito de gozo e
afirma o sintoma mesmo como “um modo de gozo" (p.103).
Kruger (p.104) também discute o momento em que Lacan observa que o
“franqueamento do recalque” é “estruturalmente impossível” e que “o significado ficará
sempre discordante, sem poder retornar jamais á consciência”.
Segundo a autora, Freud teria dado conta da questão da satisfação implicada no
sintoma com a idéia de pulsão. De certa maneira, enquanto Lacan prioriza o debate em torno
do significante e do sintoma como linguagem, ele deixa de lado a referência à ela.
A autora cita observações de Miller nas quais ele indica que no começo de seu
ensino, Lacan se orienta para a emergência da verdade no trabalho com o sintoma e critica
as intervenções do analista que apontam o surgimento da pulsão. Nesse momento a pulsão
estaria localizada fora do campo da interpretação analítica.
Conforme discutirei no próximo tópico, essas afirmações tocam em um ponto
problemático da teoria lacaniana que desenvolvi em minha Dissertação de Mestrado, qual
seja, a discussão da articulação do campo do significante e do pulsional na clínica.
Kruger (1998, p.104) identifica outra redefinição fundamental na idéia de sintoma na
teoria lacaniana. Segundo ela, em um segundo momento "já não se trata de um significado
recalcado que deverá encontrar seu significante na fala, porém que o sintoma é o nome mais
autêntico da relação do sujeito com o significante". Nesse sentido, a autora cita a afirmação
de Lacan de que o sentido do sintoma é o sentido da relação do sujeito com o significante.
Essa proposição tem como conseqüência outra mudança conceitual: "da idéia de que
a verdade pode se converter totalmente na fala (fala plena), passa-se à impossibilidade de
dizer a verdade toda. É a esta verdade não toda que [Lacan] chamará de desejo" (Kruger,
p.104).
Mais adiante, como a significação não é suficiente para dar conta do sintoma, Lacan
coloca em jogo outro elemento: a fantasia. Segundo Kruger, "o sintoma - tal como Lacan o
apresenta em Subversão do sujeito - é feito de dois elementos: significação e fantasia. Em
outras palavras, é uma articulação entre um efeito significante e a relação do sujeito com o
gozo" (p.105).
Vinte anos mais tarde, no Seminário XX, a autora menciona que "fica consumada a
associação da fala com o gozo quando Lacan afirma que o ser, ao falar, goza" (p.105).
Finalmente, Kruger identifica nos desenvolvimentos finais de Lacan uma última
articulação na definição de sintoma. Segundo ela, "do sintoma como metáfora, em que a
letra no inconsciente localiza o significante, ao sinthome, como quarto termo que na
topologia suporta o nó que pode ou não ser borromeano" (p.105).
Segundo Kruger: "isto se evidencia no Seminário RSI, no qual ele define o sintoma
"como signo do que não anda bem no realou ainda, "defino o sintoma pela maneira como
cada um goza do inconsciente enquanto o inconsciente o determina" (p105). Nesse
momento, o sintoma ficaria localizado na interseção entre o simbólico e o real, “mostrando
seu duplo laço com o gozo e com o inconsciente” (p.105).
A autora menciona ainda que “no Seminário de Joyce, o sintoma aparece como quarta
rodinha, como suplência à função do Pai, como um dos nomes do pai necessário para o
enlaçamento dos outros três” (p.105).
À respeito dessas formulações finais lacanianas, Chemama (1995, p.203) esclarece
que correlativa das reflexões sobre Joyce (e a maneira como sua atividade de escritor opera
como uma prótese de sua psicose), Lacan formula a hipótese de um nó que compreenderia
um quarto círculo, definido como sintoma. Segundo esse comentador, essas formulações
discutidas no Seminário XXIII, 1975-76, Le Sinthome, relacionam também o quarto círculo
do nó borromeu ao complexo de Édipo e ao Nome-do-Pai.
Leite (1995) destaca que com a ênfase sobre o Real surge uma mudança da noção de
sintoma na teoria lacaniana, que culmina em 1974 com a formulação feita no Seminário
XXII, RSI de que "o sintoma é efeito do Simbólico no Real" (p.39).
Esse autor identifica nas formulações clínicas do que chama de último Lacan uma
"última tendência" do ensino de Lacan, na qual "a interpretação não aponta mais ao
significado, mas ela está fora do sentido, ela é algo que se busca na própria natureza do
Real" (p.42).
Como sabemos, essas complexas formulações sustentam no campo lacaniano a
discussão da psicose, da clínica das suplências e da necessidade de se construir uma clínica
diferencial (questões que não aprofundaremos no contexto deste trabalho).
8.3. SINTOMA COMO INTERSEÇÃO ENTRE SIGNIFICANTE E GOZO
Em minha Dissertação de Mestrado (capítulo 4), discuti a problemática do corpo na
teoria lacaniana, procurando responder às críticas de que com a ênfase sobre o Simbólico,
Lacan teria recortado o registro corpóreo e a pulsão da clínica.
A pergunta formulada foi a seguinte: enfatizando o registro da linguagem, Lacan teria
de fato excluído de seu ensino o corpo ou o registro pulsional?
Com base no texto lacaniano e de comentadores, pude mostrar que, com a ênfase
sobre a linguagem, não podemos simplesmente dizer que Lacan excluiu de seu esquema
mental o corpo vivo.
Entretanto, conforme apontei, há realmente um primeiro momento na elaboração
lacaniana no qual, com a ênfase sobre o Simbólico, Lacan deixou o corpo para fora da cadeia
significante. Segundo Miller (1998, p.167), “Lacan ou o primeiro Lacan, acreditou, num
certo sentido, poder dispensar a referência ao corpo”.
Miller (1998, p.8) discute o "problema de Lacan" (p.8) relacionado à questão da
articulação entre a vertente significante e a do gozo". Ele considera que o corpo é
progressivamente introduzido no ensino de Lacan por conta da “necessidade que a libido
exige da referência ao corpo” (p.95). Segundo Miller (p.97), com a introdução do registro
do Real, a teoria lacaniana sofre reformulações e afirma-se nela a referência ao corpo.
Há nessa discussão um ponto final que nos interessa nos termos desta tese. Trata-se
da maneira como Miller responde ao problema lacaniano de como articular a vertente
significante e o gozo (campo do corpo e da libido) com uma nova articulação para o
sintoma.
Miller (1998, p.8) destaca a necessidade em Lacan da referência ao corpo dizendo
que "o gozo não é possível sem referência ao corpo. Somente o corpo pode gozar". Em
seguida, ele sustenta que "existem dois efeitos do significante no corpo - a mortificação do
corpo e a produção do mais de gozar”, afirmando ainda que ao final, “o essencial é que o
significante é a causa de gozo".
Em seguida, ele indica uma conversão de perspectiva final na obra de Lacan,
anunciando que "a incidência de gozo do significante sobre o corpo é o que Lacan chama o
sintoma. O sintoma, assim, passa a ser o ponto de partida e o ponto de detenção final da cura
analítica" (p.8-9). Segundo Miller (1998),
Lacan nos demonstrou que o significante se refere ao corpo sob a modalidade do sintoma.
Isso quer dizer algo muito simples (...); é que o lugar teórico do sintoma, em Lacan, é
exatamente o lugar em que Freud esceve a pulsão, ou seja, é o conceito que permite
pensar a relação da articulação significante com o corpo. Quer dizer que a pulsão, em
Freud, é a interface entre o psíquico e o somático, enquanto em Lacan, o sintoma é a
conexão entre o significante e corpo; a diferença essencial é que, em Freud, a pulsão é um
mito, enquanto Lacan nos mostra em que sentido o sintoma é real (p.82).
Portanto, com a introdução do registro do Real, o sintoma é formulado como a
interseção entre significante e gozo” (Miller, 1998, p.9) e como o elo que comporta as
articulações do RSI.
Do meu ponto de vista, a leitura do sintoma como articulador do campo do
significante e do gozo contribui de maneira significativa na clínica. Conforme indiquei em
minha Dissertação (p.169), ela sustenta uma prática que mesmo trabalhando com a
linguagem e por meio da palavra, não pode colocar o significante em primeiro plano,
excluindo o corpo e a pulsão, como se fosse possível operar sobre um campo
desintensificado, de pura representação.
Do meu ponto de vista, a teoria lacaniana reafirma o que Freud indicou por meio da
idéia nada convencional da pulsão. Na transferência (e nesse discurso também pouco
convencional) que é o psicanalítico, o analista tem de transitar em diferentes domínios,
levando em conta o campo do sentido e das quantidades (aquilo que se chama mais
cotidianamente de psíquico e somático).
8.4. IDENTIFICAÇÃO AO SINTOMA
Enumerando as diversas perspectivas que orientam a condução da cura ao longo do
ensino lacaniano, Miller (1998) procura formular de que maneira se definirá o final da
análise a partir das novas conceituações do sintoma. Ele questiona:
Se o osso de uma cura é o imaginário, o fim da análise consiste em ultrapassar o plano
imaginário; se o osso de uma cura é a identificação fálica, o fim da análise é deixar cair as
identificações; se o osso de uma cura é a fantasia, o fim da análise é a travessia da fantasia;
mas, se o osso de uma cura é o sintoma, o que é o fim da análise? (p.105)
Segundo Miller, não há uma resposta unívoca de Lacan sobre isso, entretanto ele falou
em certo momento de uma identificação ao sintoma. Para Miller, isso quer dizer que
o sintoma não se ultrapassa, à diferença do plano imaginário; quer dizer que, o sintoma, não
o fazemos cair, diferentemente das identificações; que o sintoma não se atravessa,
diferentemente da fantasia; quer dizer que, o sintoma, temos que viver com ele, que
devemos, como se diz em francês, faire avec, quer dizer, que devemos haver-nos com ele.
Dizer que se chega a se identificar com o sintoma significa que eu sou tal como gozo
(p.105).
Prosseguindo, Miller (1998, p105) destaca que houve um tempo em que havia no
campo freudiano uma ênfase na idéia de “ir contra o gozo”. Concebia-se o trabalho analítico
como a “progressão do desinvestimento libidinal”. Nessa medida, “o avanço da análise se
mediria pela mortificação”. A travessia da fantasia equivaleria a um desinvestimento da
fantasia.
Mas, se levarmos em conta as últimas formulações lacanianas, segundo Miller, o
fundamental é que
isso não resolve nada, precisamente porque a libido, no sentido de Freud, é uma
quantidade constante. Portanto se ela se retira da fantasia, onde ela vai investir? (...)
Supondo que a libido seja mal investida, supondo que ela pode se desinvestir desse mau
lugar, onde ela vai investir? Nenhum desinvestimento pode impedir que reste o modo de
gozar, que reste o sintoma como modo de gozar (p.106).
Nesse sentido, o final da análise não implica apenas em conseguir uma modificação
da relação do sujeito com o real da fantasia. Busca-se também problematizar a maneira
como o sujeito goza.
Na apresentação da coletânea de textos que discute a questão do sintoma de Freud a
Lacan (O sintoma-charlatão, 1998), Miller sintetiza o aspecto gozoso do sintoma afirmando
que "o sintoma é, porém, o que há de mais real no tratamento analítico: é resistente, batemo-
nos com ele, não o aguentamos, mas, uma repetição inexorável o sustenta, o sujeito sofre
sem descanso com ele, goza com ele" (contra-capa).
Destacamos aqui a dimensão de inércia, resistência e sofrimento engendrados pelo
gozo. A idéia de gozo entretanto não implica apenas em um obstáculo ao tratamento. Kruger
(1998) destaca que
o trabalho analítico operando com o sujeito suposto saber e a interpretação obtém uma
elaboração de saber que produz uma transformação dos sintomas e, como efeito sobre o
real, uma modificação do gozo. Modificação que não é supressão, senão que dá lugar a um
resto de gozo que é particular de cada um. Antes de precipitar na análise o sintoma é um
modo de gozar do inconsciente. Quando se lhe acrescenta o chamado à interpretação
(sintoma como mensagem) o sintoma trabalha na invenção do saber, (...) obtendo - através
de uma elaboração significante - efeitos sobre o real do gozo (p.106).
Segundo Chemama (1995, p.203), “Lacan observa que o sintoma nada mais é do que
o sinal de uma disfunção orgânica, funcionando da mesma forma como normalmente o faz
para o saber médico: ele vem do Real, ele é o Real”. Seguindo nessa linha, Lacan avançou
afirmando que o sintoma é o efeito do simbólico no real e em 1975 acrescentou que o sintoma
é aquilo que as pessoas têm de mais real.
Para Lacan, à essa altura, o sintoma não é uma verdade que dependa da significação,
ele é a própria natureza da realidade humana. Nesse sentido, como sintetiza Chemama, “o
tratamento não consiste na erradicação do sintoma, enquanto efeito estrutural do sujeito”
(p.203).
Citando as articulações do nó borromeano e do sintoma de Joyce, Matet J.-D. (1989)
considera que essas idéias lacanianas servem para “salientar que a análise não consiste na
liberação do sintoma, mas no fato de saber por que se está embaraçado nele” (p.77). Por
isso, “o fim do tratamento, e seu corolário de modificação do registro do gozo do sujeito,
reduz o sintoma na sua determinação pelo fantasma que o causa. A cura como acréscimo,
produzida pela psicanálise, encontra assim sua orientação” (p.77).
Entendo que a expressão paradoxal de que o final da análise (como direção da cura)
consiste em uma identificação ao sintoma rompe com qualquer visão normativa do
tratamento. O sintoma não cai mas pode modificar-se, assim como a relação problemática
do sujeito consigo mesmo e com seus investimentos libidinais.
8.5. LACAN E O FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO
Além das articulações já feitas, a questão do corpo e do sintoma em Psicanálise nos
leva a pensar na Psicossomática como campo de estudo da forma como o psiquismo pode
interferir no determinismo de certas doenças.
Conforme indiquei em minha Dissertação de Mestrado (capítulo 5), o panorama da
Psicossomática na atualidade é amplo, habitado por diferentes correntes teóricas e autores
que propõem teorizações e manejos específicos para o fenômeno psicossomático na
clínica. Em meio à essa diversidade, identifica-se que o pensamento nesse campo está
fortemente ancorado em alicerces psicanalíticos.
Dentre os conceitos freudianos que embasam o pensamento dessa disciplina está, por
exemplo, a idéia da pulsão, articulação teórica entre o plano biológico e o campo da
representação proposta por Freud em 1905.
A Psicossomática também faz uso da concepção freudiana das determinações
inconscientes. Por meio dela, busca-se explicar de que maneira conflitos rejeitados pelo
campo da consciência podem explicar por meio da revelação do sentido inconsciente o
misterioso salto da psique sobre o corpo.
Conforme apontei, alguns autores (Ferraz, 1996 e Abreu, 1988) acrescentam como
contribuição freudiana ao campo da Psicossomática a teoria das neuroses atuais, na qual
Freud antecipara a percepção de que o sintoma não se constituia apenas como retorno do
recalcado nos moldes da psiconeurose e que a causa precipitante do sintoma estaria na
insatisfação da libido.
Segundo Abreu (1988), o verdadeiro resultado da teoria das pulsões de Freud está na
Medicina Psicossomática, entendida como o "estudo das formações pelas quais os impulsos
instintivos privados de suas fontes naturais de satisfação, afetam o funcionamento do corpo"
(p.18).
Delimitando campos, vale lembrar que quando falamos em fenômenos
psicossomáticos, o corpo afetado é o corpo biológico, daí a existência muitas vezes de uma
lesão orgânica grave. Na conversão histérica, entretanto, o corpo afetado é o corpo erógeno.
Destaca-se no pensamento atual da Psicossomática, conforme sintetizei em minha
Dissertação (2000), o trabalho da Escola de Chicago, que relaciona perfis psicológicos
específicos aos diferentes grupos de afecções psicossomáticaas e o da Escola de Paris que
aponta o estado psicossomático como decorrente de uma falta de simbolização e uma
carência de representação. Inclui-se ainda nessa corrente de pensamento as idéias de Joyce
Mc Dougall (impossibilidade de elaboração psíquica) e o pensamento de Marty e M'Uzan.
Sem pretender me extender nos termos deste trabalho ao pensamento desses autores,
indicarei a seguir a perspectiva lacaniana à esse respeito.
Em minha Dissertação de Mestrado (2000) discuti a maneira como Lacan critica e
descarta a psicologização e a personalização das doenças, propondo pensar a questão a partir
da relação da linguagem e certas funções biológicas do corpo.
Pensar o corpo a partir da linguagem implica em admitir que o psiquismo está
vinculado ao significante (inconsciente).
Destaquei também a ênfase de Lacan na distinção entre o sintoma (especialmente o
histérico) e o fenômeno psicossomático. Nesse sentido, ele considera que o
fenômeno psicossomático não tem a mesma condição de formação do sintoma, propondo
pensá-lo dentro do campo da linguagem e como efeito do inconsciente sobre o somático.
Conforme citei, segundo Miller (1990), para Lacan, os efeitos psicossomáticos se colocam
como efeitos de linguagem, mas estão fora da subjetivação.
Lacan distingue ainda os FPS (fenômenos psicossomáticos) das construções
neuróticas, que estariam no nível do Simbólico, colocando-os no nível do Real (como
rochedo do biológico).
Em oposição às noções de órgão e lesão da Medicina, o pensamento de Lacan,
conforme já especificamos neste trabalho, pensa o corpo a partir de sua organização
libidinal, incluindo-se aí a dimensão do desejo e do gozo.
Lacan articula os FPS à pulsão, sendo que curiosamente, neles, o investimento da
libido se faz sobre o próprio órgão e não sobre o objeto.
Segundo Leite (2000), "o conjunto das doenças dita psicossomáticas foi abordado
com vários nomes diferentes, pelos diversos autores, o que contribui para uma confusão do
campo investigado"(p.175). Ele especifica que Freud falava em complacência somática
referindo-se às razões de escolha de determinado órgão pelo sintoma enquanto outros
utilizaram nomes diversos para essas complexas e desconcertantes manifestações.
Apesar de interessar-se pelo tema da Psicossomática, Lacan fez poucas referências
específicas a esse tema ao longo de sua obra. Mesmo assim, segundo Leite (2000), é
inegável seu interesse pelo tema, visto ter publicado (...) ainda em 1953, um estudo com o
título Considerações psicossomáticas sobre a hipertensão arterial" (p.177).
Referindo-se à distinção entre a conversão (como mecanismo do sintoma neurótico)
e a manifestação psicossomática, Leite (2000, p.177) considera que em termos lacanianos
isso quer dizer que a manifestação psicossomática não está comprometida com a produção
de sentido".
É assim que Leite entende a sugestão feita por Miller (1990) no sentido de unificar a
terminologia e chamar de fenômeno psicossomático (FPS) à essa construção fora do
sentido, para diferenciá-la do sintoma e da sua estrutura de linguagem.
Mesmo assim, Leite (p.177) identifica que para Lacan, os FPS estariam "fora do
sentido, mas não fora da causação significante". Segundo o autor, "o FPS entendido como
uma marca do significante no corpo, ou como uma tatuagem, como sugeriu Lacan, foi
pensado por ele como passível de ser decifrado, já que estaria cifrado como um hieróglifo".
Leite (p.177) considera que a explicação teórica para esses fenômenos corporais só
se tornou viável quando o ensino lacaniano “passou a dispor de recursos para formalizar
aspectos da prática analítica que fogem ao sentido”. Segundo ele, isso ocorreu quando
Lacan, “ao introduzir a proposta da lógica da produção do Sujeito no seu texto Posição do
inconsciente, submeteu a noção de inconsciente à causação do Sujeito, relativizando-o e
produzindo uma noção de inconsciente diferente da noção freudiana, em que o inconsciente
seria unicamente o resultado das representações recalcadas".
Reconhecendo a dificuldade que a formalização teórica do FPS apresenta no ensino
de Lacan, Leite indica o caminho de que “por se tratar de um efeito do significante fora do
sentido, ele só se torna abordável pelo viés dos matemas” (p.177). Segundo o autor,
Ao se utilizar a álgebra lacaniana, o FPS seria pensado em decorrência de que na
operação de alienação (uma das duas operações da causação do sujeito), não ocorre a
afânise e, por isso, a segunda operação, a separação, não vai ocorrer. Isso produz, no
dizer de Lacan, uma gelificação da cadeia significante, fato que recebeu no Seminário XI
o nome de holófrase (p.177).
Dessa forma, Leite (p.178) conclui que “não há um Sujeito no FPS”. Mesmo assim
“eles ainda são efeitos da linguagem, embora estejam fora da subjetivação”. Com relação à
essas afirmações, o autor acredita que elas precipitam a questão clínica de "como agir com a
palavra em um fenômeno fora da subjetivação".
A teorização e a forma como Lacan propõe abordar o FPS é bastante enigmática e
suscita uma série de questões.
Miller (1990, p.97) tenta clarear o campo, respondendo que se o FPS é permeável à
palavra, é, conforme indica Lacan na Conferência de Genebra, “pelo viés do gozo específico
que ele tem em sua fixação, que é sempre preciso visar a abordagem do psicossomático”.
Esclarece ainda que o trabalho com o inconsciente, nessa situação, “não pode servir senão
para transformar o fenômeno psicossomático em sintoma, fazendo que o Outro em questão
não mais seja aí somente o corpo próprio”.
Mais especificamente, esse comentador conclui que “o problema é mostrar em que a
resposta psicossomática merece converter-se em questão sobre o desejo” (p.97).
Em termos estritos, não podemos considerar as crises pseudo-epiléticas como
fenômenos psicossomáticos, já que durante o exame de vídeo-EEG utilizado no diagnóstico
diferencial das crises, não se observam alterações da atividade cerebral. Isso quer dizer
que diferentemente do que se observa nas crises epiléticas propriamente ditas, as crises
pseudo-epiléticas não são causadas pela lesão (quadro neurológico). Nesse sentido, seria
mais correto considerá-las como fenômenos conversivos (como faz também a terminologia
psiquiátrica).
De qualquer forma, nesses pacientes, temos a dificuldade adicional de estarmos
lidando com uma manifestação na qual a distinção entre o que é devido à lesão e o que é
conversivo é imprecisa (já que falamos de pacientes que apresentam epilepsia e crises
pseudo-epléticas associadas).
Para além das precisões diagnósticas, as crises pseudo-epiléticas, assim como os
FPS são resultado de certo investimento de libido sobre o órgão e se oferecem à
decifração. A questão que fica é saber como agir com a palavra sobre elas.
9. APRESENTAÇÃO DO CASO
9.1. DIAGNÓSTICO MÉDICO
Paulo
6
tem 53 anos e é portador de epilepsia desde a infância. Desde o início de sua
doença buscou diversos tipos de tratamento, não tendo entretanto ficado livre de suas crises.
O paciente é portador de epilepsia temporal, com crises parciais simples epigástricas
e crises parciais complexas com automatismos. O exame de Ressonância Magnética
Nuclear identificou a presença de lesão em região temporo-occipital esquerda. O EEG
mostrou atividade temporal esquerda anterior, que sugere alterações elétricas nessa região.
Tendo morado durante a infância em região rural, segundo a equipe médica, sua epilepsia é
devida à uma cisticercose. Paralelamente, quando submetido à exame de EEG-monitorado,
foram diagnosticadas crises pseudo-epiléticas associadas ao quadro de comprometimento
neurológico, sendo o paciente encaminhado para um profissional psi.
9.2. RELATO
O paciente é solteiro e nunca se casou. O pai faleceu há muitos anos e a mãe faleceu
pouco tempo antes do paciente iniciar o atendimento. Paulo sempre morou com a mãe que
foi uma presença constante em sua vida. Refere-se à ela como assustada e ignorante. Afirma
6
O nome foi alterado.
nunca ter tido condições de se afastar dela, considerando que sua epilepsia e a constante
preocupação materna o impediram de ter uma vida normal.
Descreve o pai como honesto e trabalhador. Nunca desejou que os filhos tivessem
um destino pobre e limitado como o dele (trabalhava como operário de fábrica). Segundo
relato, o pai sofria de alcoolismo.
Paulo é o filho do meio de uma família de 5 filhos (3 homens e 2 mulheres).
Segundo relata, é "o filho do meio, entre dois casais de irmãos". Após a morte da mãe, a
irmã mais velha (casada e vizinha) passou a cozinhar e ajudá-lo nos afazeres domésticos. A
irmã tem um marido "adoentado", que não trabalha nem tem ambições na vida.
Apesar de ter crises desde a infância, o paciente completou curso técnico e formou-
se mecânico. Trabalhou como funcionário em uma fábrica, mas acredita que "por conta da
epilepsia" teve de afastar-se do emprego. Montou uma oficina de carros na garagem da casa
herdada da mãe, na qual vive sozinho. É aposentado pelo INPS, por invalidez. Tem um carro
e orgulha-se por considerar-se capaz de dirigir, mesmo sendo epilético. Afirma pressentir
quando vai sentir-se mal e após as crises, reclama de dores no corpo e sente-se deprimido.
Reclama de suas limitações financeiras e das dificuldades que encontra para arranjar
um emprego em vista da epilepsia. Considera-se incapacitado, sem recursos e infeliz.
Lamenta não ter se casado e acredita "não ter condições de satisfazer uma mulher". Tem
medo de se desesperar e enveredar pelo "mau caminho" (roubando, matando) ou tentar o
suicídio, mas logo reconsidera e afirma que não gostaria de morrer. Sente que não tem
coragem para envolver-se em qualquer tipo de violência.
Queixa-se repetida e recorrentemente de suas crises, algumas mais violentas e
longas, que o fazem perder os sentidos, e outras que acontecem várias vezes no dia,
descritas como "ameaços".
Nesse primeiro momento da análise, Paulo sempre inicia as sessões referindo-se às
suas crises e à sua esperança de encontrar uma cura. Nas entrevistas, como se estivesse em
uma consulta médica, relata a quantidade de crises que teve na semana, analisando sua
intensidade. Afirma acreditar que a Medicina encontrará a solução para seu caso.
Com uma comunicação inicialmente bastante restrita, Paulo faz poucas associações.
Recusa e desconfia do diagnóstico dado pelo médico. Não entende o que significa o aspecto
psíquico das crises, sempre repetindo que iniciou a análise por orientação médica. Não
compreende quais seriam seus problemas emocionais.
Lamenta que a indicação médica não foi cirúrgica. Acredita que existe uma cirurgia
que possa curá-lo completamente e transformá-lo em um novo homem. Deseja da analista
respostas e prescrições. Tendo se considerado doente e incapaz ao longo de tantos anos,
deseja que os profissionais e os médicos, "que são competentes", resolvam seu problema.
Revolta-se frequentemente com a lentidão, o preço e a falta de resultados do tratamento
psicanalítico.
Em seu discurso, a doença é o foco principal. Sua vida pessoal, social e seus
interesses são limitados e centralizados na obstinação em encontrar a cura para sua
epilepsia. Tem esperanças. Já passou por outras intervenções cirúrgicas e considera que uma
operação anterior no estômago salvou sua vida.
Paulo conhece diversos centros especializados no tratamento da epilepsia no Brasil e
relata diversos procedimentos médicos aos quais se submeteu. Orgulha-se por obter
financiamentos e apoio de familiares ou outras pessoas em sua busca de tratamento para a
epilepsia. Já conseguiu que funcionários de uma loja de peças fizessem uma rifa em seu
benefício e que a prefeitura de sua cidade pagasse seus exames neurológicos. Conta com
orgulho que a prefeitura providenciou-lhe transporte em uma ambulância para que viesse a
São Paulo realizar exames. Acha toda essa ajuda pouca. Considera-se pobre e injustiçado. Se
fosse rico, talvez encontrasse a cura para sua doença.
Apesar das resistências iniciais e sem entender muito bem no que consiste o
trabalho, Paulo comparece rigorosamente à análise. Acha que um dia encontrará um
caminho. Ele vém para as primeiras entrevistas com um misto de desconfiança e
entusiasmo. É a primeira vez que lhe dizem que seu problema é também psicológico”.
Conforme o trabalho avança, Paulo demonstra maior interesse pelo tratamento.
Apesar de suas dificuldades práticas (viaja semanalmente de uma cidade próxima a São
Paulo para a sessão e tem limitações financeiras), físicas e emocionais, o paciente não falta
às sessões. Atento ao que se passa na clínica, muitas vezes chega cerca de uma hora antes do
horário marcado e aguarda por sua vez na sala de espera.
Conta que gostaria de ter pessoas com quem passear e conversar. Acha que o mundo
tornou-se muito perigoso e isso faz com que as pessoas "não saiam à rua como
antigamente". Acha muito difícil fazer amigos e quando vai a um bar só consegue conversar
com o garçon.
Já gostou de uma mulher estrangeira com a qual se correspondia por cartas.
Desencantou-se com a moça. Após meses de correspondência, quando convidou-a para vir
ao Brasil para que pudessem se conhecer, ela lhe revelou que era casada. Sentiu muita raiva
e considerou-se traído. Acha que relacionamentos nunca dão certo. Como saber quando o
outro diz a verdade? Apesar de seu pessimismo, manifesta o desejo de corresponder-se com
outra mulher.
Quando criança certa vez sentou-se no cinema ao lado de uma menina. Lembra-se de
"pegar na mão" da menina e extremamente tímido, recorda do susto "e da quentura" em suas
faces.
O trabalho avança e Paulo timidamente se abre para novas possibilidades. Revela o
desejo de viajar e ampliar seu mundo. Gostaria de ter um emprego, aumentar seus
rendimentos e ter uma vida mais "rica". Relembra que já teve a experiência de trabalhar em
uma fábrica de lingerie na qual tinha responsabilidades e era capaz de cumpri-las. Culpa a
epilepsia por ter parado de trabalhar. Naquela época convivia com muitas mulheres e sente
que perdeu a oportunidade de ter uma namorada. Desde a juventude sentia-se desajeitado na
aproximação com o sexo oposto.
Depois de algum tempo em análise, Paulo começa a buscar novas alternativas de
trabalho. Ressente-se das dificuldades para modernizar sua oficina. Diz não ter condições de
consertar carros modernos e computadorizados para os quais seria necessário possuir
ferramentas caras que não pode adquirir. Pensa em maneiras de aumentar sua clientela, por
exemplo, imprimindo cartões para divulgar sua oficina.
Prossegue comunicando-se melhor com outras pessoas e encontra um emprego
como mecânico de uma oficina. O dono do local tem um filho com problemas e se
solidariza com as dificuldades de Paulo.
Paulo fica entusiasmado com a nova proposta de trabalho, entretanto, com ela surgem
novas procupações. Ele teme não ser capaz de enfrentar o trabalho. Como fase sentir-se
mal e tiver crises? Como virá para o atendimento em São Paulo quando tiver que cumprir um
horário?
O início no novo emprego é sentido como uma grande mudança em seu cotidiano.
Representa a oportunidade de ter um rendimento mensal (sem as oscilações do trabalho
autônomo) e a ampliação de seus relacionamentos. Para ele será um verdadeiro desafio
sustentar essas mudanças.
9.3. ANÁLISE E INTERVENÇÃO
Estamos diante de alguém já bastante comprometido do ponto de vista físico e
psíquico por conta de anos de convivência com a epilepsia e seu impacto social, familiar e
profissional. O olhar do senso comum tenderia a tomar-se de pena frente à essa situação,
com a impresssão de que uma pessoa com essas dificuldades não tem condições de efetuar
mudanças significativas em sua vida. Meu olhar analítico inicial consiste em tentar quebrar
essas primeiras impressões, apostando em uma escuta que possibilite novas posições diante
de si e do outro.
De origem humilde” (sic), Paulo refere o desejo de ser alguém melhor e mais
rico”. Na imagem ideal que faz de si mesmo gostaria de ter se casado e constituido uma
família. Sonha ter sido capaz de trabalhar. Paulo gostaria de ser “bem sucedido” e diferente
do pai e do cunhado que descreve como desmotivados e deprimidos.
Descontente com sua vida, Paulo entretanto não consegue responsabilizar-se por
suas realizações, deixando suas ambições no plano das frustrações inevitáveis. Sente que
não consegue uma vida melhor” por conta de sua epilepsia. É como se nada dependesse de
seu empenho. Sente que seus esforços são inúteis e não frutificam, pois ele tem crises que
o impedem de alcançar seus objetivos.
Nesse sentido, a doença em questão não é a epilepsia (orgânica), mas toda uma
dinâmica na qual sua passividade e negativismo imperam, não lhe permitindo implicar-se em
seus esforços. As intervenções analíticas tem como foco o deslizamento desse discurso
para a possibilidade de uma postura mais ativa frente ao próprio destino e ao próprio
sofrimento.
Se por um lado Paulo se coloca como incapacitado, por outro reluta em reconhecer
(para melhor administrar) as próprias limitações. Dirige o carro, atividade pouco
aconselhável para um paciente portador de uma epilepsia não totalmente controlada.
A identidade desse paciente gira inicialmente em torno do papel de doente. Paulo
sofre de sintomas de uma doença complexa, surpreendente, que mobiliza as atenções ao seu
redor em vista de sua gravidade. A análise tem como objetivo explicitar o mecanismo
inconsciente por meio do qual ele não desenvolveu nenhuma outra maneira de se relacionar
com o mundo que não seja receber a atenção de outros (médicos, psicólogos, família e o
mundo em geral) por meio de seu sintoma. Essa seria sua maior "riqueza".
Um dos focos do trabalho analítico consiste em mostrar ao paciente os ganhos (ainda
que contraditórios) que o papel de doente lhe aufere. Trata-se de explicitar a maneira muitas
vezes inconsciente pela qual obtém atenção, ajuda, compreensão e é poupado pelos outros
em vista da maneira como suas crises mobilizam as pessoas à sua volta.
Paulo manifesta o desejo de ter se casado e constituido uma família: imagem ideal e
normalizadora de si mesmo. Entretanto, em termos de sua sexualidade, conforme se observa
no relato da experiência em que toca a mão da menina no cinema, Paulo manteve-se tal qual
um menino assustado frente à própria excitação.
Sua "pseudo-relação" com as mulheres (imaginárias, estabelecidas por meio de
correspondência) demonstra sua dificuldade em estabelecer vínculos reais. Há um desejo de
aproximação, mas também uma grande desconfiança com relação ao outro que pode enganá-
lo e manipulá-lo. Além da relação muito próxima vivida com a mãe, Paulo não teve muitas
experiências afetivas.
Bastante solitário, Paulo chega cedo para as sessões e faz do consultório um local,
não apenas de tratamento, mas onde busca se alimentar do contato humano que lhe é tão
dificil e necessário. Apesar do desajeitamento no contato, há um desejo de proximidade e
vínculo. Ao mesmo tempo, Paulo teme aproximar-se e confiar nas pessoas (por exemplo,
nos profissionais da clínica e na analista). O tempo que passa esperando na sala de espera é
um tempo de aproximação, mas também de tentativa de controle dos movimentos da clínica,
do médico e da secretária. Ele oscila entre o desejo de proximidade e a desconfiança com
relação às pessoas as quais tenta se ligar.
Paulo mostra-se insatisfeito. Queixa-se constantemente do que considera a demora e
a falta de resultados do tratamento. Ele está em plena transferência e a análise já faz parte de
seu mundo interno. Sua insatisfação emerge também na revolta com que se queixa do INPS
e do atendimento médico público. Acusa todos de serem culpados por sua infelicidade
(inclusive o médico e a analista) e exime-se da responsabilidade por sua própria melhora.
Frente à uma situação terrível de vida, Paulo teme que o desespero faça com que ele
recorra a um caminho mais curto e violento para diminuir seu sofrimento (roubar, matar ou
beber). Comenta repetidamente a violência e as desgraças do noticiário. Despeja essa
violência na sessão mas assusta-se com os próprios pensamentos destrutivos, não chegando
a atuá-los na realidade.
Para Paulo o mundo externo é um lugar perigoso. Acredita "que as pessoas não saem
às ruas" em vista da violência. Seriam esses medos reveladores da própria sensação interna
de desintegração? Afinal, ele vive acometido de crises que podem ser interpretadas como
pequenas "catástrofes", sempre sentindo-se à beira de um colapso.
No início do tratamento, Paulo não discrimina o tratamento médico da análise.
Comparece às sessões relatando suas crises e espera que eu lhe forneça (tal qual um médico
oferece remédios) soluções para suas crises. Não vendo perspectivas para si mesmo, Paulo
deseja para si um tratamento cirúrgico milagroso, capaz de transformá-lo em um novo
homem.
Convocado a responsabilizar-se por sua melhora, muitas vezes volta a sentir-se
limitado, dependente e incapaz, relutando em aceitar que seu caso não possa beneficiar-se
do tão sonhado tratamento cirúrgico, que em sua fantasia eliminaria seu sofrimento sem
exigir comprometimento e esforço mental.
Por essa razão, foi necessário lidar com sua resistência inicial com relação ao novo
enquadre e proposta do tratamento psicanalítico e o não reconhecimento de qualquer tipo de
sofrimento psíquico em seus sintomas.
Meus assinalamentos iniciais procuram fazê-lo discriminar os dois tratamentos e
favorecer uma nova possibilidade de diálogo na sessão. ("Não sou médica e estou aqui para
conversarmos sobre sua vida e não apenas sobre sua doença.").
Paulo percebe a análise e a relação terapêutica (que lhe oferecem um caminho mais
modesto de melhora), ora como uma nova possibilidade, ora como algo ineficaz e custoso.
A análise propõe um caminho humanizador: por meio do diálogo olhar para si, para o outro e
para a realidade à sua volta.
Frente às frustrações, em muitos momentos sua busca por uma vida "mais rica" (não
só em termos financeiros mas simbólicos) não se sustenta e ele retorna ao papel conhecido
de doente, necessitado e incapaz.
Sentindo-se fragilizado, Paulo projeta nos médicos e na Medicina a potência que lhe
falta, colocando-se como incapaz e necessitado. Não acredita nos próprios recursos e se
exime de fazer esforços, esperando que os outros tragam soluções para sua vida.
A implicação desse paciente em seu próprio bem-estar e na formulação do próprio
desejo é certamente um dos pontos fundamentais desse atendimento.
Os fracassos em suas tentativas de ampliar seus relacionamentos e melhorar
profissionalmente fazem com que Paulo muitas vezes sinta-se frustrado e desesperançado,
voltando a investir libido em sua doença e pessimismo.
Essas oscilações tornam o processo analítico cheio de altos e baixos. Paulo ora
mostra-se entusiasmado com suas mudanças afetivas e com as novas possibilidades de
diálogo e de aproximação do outro, ora desilude-se novamento com suas dificuldades.
Entre os impulsos de melhora e o pessimismo, em algumas sessões seu negativismo
sai vencedor e Paulo retorna às reclamações. Acha que nada poderá dar certo, que nunca
conseguirá curar-se e que seria melhor desistir de tudo. Ele mostra que abdicar de um gozo
não é fácil nem rápido.
Faz parte do trabalho o esclarecimento dessas oscilações para que ele possa lidar com
elas. Busca-se ampliar seus recursos para que ele possa reconhecer e administrar sua
tendência a deixar-se invadir pela depressão e negativismo.
Nas sessões Paulo mostra também seu lado esperançoso. Timidamente confessa ter
vontade mas não saber como começar a sessão sem falar de sua doença. Procuro abrir novas
possibilidades em seu discurso e pergunto-lhe quais são seus sonhos, vontades. Quais
seriam seus interesses? Para onde redirecionar sua libido? Paulo responde que gostaria de
ter amigos, sair, viajar. Se pudesse seria piloto de aviação: profissão representativa de tudo
que Paulo sente que não é, livre e capaz de voar pelo mundo.
Como resultado da análise, a fala de Paulo flui melhor na sessão. Seus recursos
internos ficam fortalecidos. Ele busca para si companhia e programas no final de semana,
passando a investir energia no mundo externo. Obtém como retorno disso uma proposta de
trabalho e a possibilidade de ampliar seu laço social.
Inicialmente a doença e a busca de tratamento são o foco principal do discurso desse
paciente e a única motivação desse sujeito. De fato, Paulo não construiu para si ao longo da
vida possibilidades profissionais, uma família, relações sociais, interesses, etc.
Sem dúvida, o sofrimento com seus sintomas e a doença ocupam em seu discurso um
lugar de gozo, com tudo que nele implica de libido investida no sintoma. Em meio às
limitações de sua vida, os sintomas são os "atributos" que o tornam alguém merecedor de
atenção e interesse dos outros. Os cuidados e a preocupação que a epilepsia gera, sendo um
ganho secundário da doença (conforme discuti no capítulo 7 e 8), indicam a resistência e as
dificuldades que o paciente encontrará na desmontagem dessa dinâmica já tão consolidada.
Em termos analíticos, o foco do trabalho será procurar desamarrá-lo das marcas
significantes da epilepsia (e seus sintomas) para que ele possa, na medida do possível,
substituir esses ganhos neuróticos por outras formas de satisfação.
Lembremos à esse respeito as idéias de Miller (1998, p.106) citadas no capítulo 8,
ressaltando que em termos lacanianos, o sintoma tem uma vertente significante mas também
resulta do investimento da libido. Se essa libido está mal investida e conseguimos retirá-la
desse mau lugar, fica a questão de saber onde essa quantidade de energia irá se investir. Ou
há um deslocamento em novos investimentos, ou pode restar apenas o sintoma como modo
de gozar.
Considerando que a queixa de Paulo gira apenas em torno da doença, o trabalho
analítico caminha no sentido de assinalar que faltam palavras para queixar-se da solidão, das
frustrações, medos, desejos, sonhos, etc. Sentimentos parecem não fazer parte da vida
psíquica desse sujeito que reage às situações sobretudo por meio de crises.
Nas sessões, em vários momentos significativos, Paulo reage com (pseudo?) crises.
Estas fazem com que o diálogo analítico seja interrompido. Como analista, apesar do apelo
(real) da manifestação somática e de sentir-me tentada a ampará-lo e poupá-lo de qualquer
exigência, mantenho o foco interpretativo, assinalando quando do retorno das crises em que
momentos significativos elas surgem na sessão, rompendo o diálogo. É como se fosse
necessário descrever por meio de palavras seus estados afetivos. Para essas percepções,
Paulo não encontra registros.
Esses momentos são por exemplo quando o paciente é convocado a relacionar-se
com conteúdos que lhe parecem desconhecidos e ameaçadores. Às intensidades emocionais
e relacionais Paulo reage com seu sintoma conhecido. Se procuro mostrar-lhe sua
ambivalência e desconfiança com relação ao tratamento ("voce vém às sessões e parece
empenhado no tratamento, mas não acredita realmente que possa melhorar sua vida"), Paulo
não suporta minha aproximação, com a convocação à uma postura mais ativa ou mesmo a
exposição de seu mundo interno desconhecido e desliga-se do contato transferencial.
Quando o outro se aproxima, Paulo parece não saber nomear nem administrar suas
vivências subjetivas. Nesses momentos, ele se desliga da relação, numa ausência (pseudo-
crise) reveladora de sua fragilidade. No lugar de palavras surgem as crises (manifestações
somáticas). Esta é também sua forma de reagir frente aos conflitos e afetos sentidos como
intensos. Tudo se passa como se houvesse uma deficiência na capacidade de elaborar
internamente essas percepções.
Tendo sido cuidado por uma mãe descrita como "assustada e ignorante", levanta-se a
hipótese de que esse sujeito funciona como alguém que não construiu internamente um
"vocabulário emocional".
Nesse sentido, o trabalho de nomeação tenta preencher com significantes registros
ausentes nesse psiquismo. Não havendo palavras para essas percepções, resta apenas o Real
do corpo.
Com essas intervenções pude ampliar os recursos simbólicos desse paciente,
melhorando sua capacidade para elaborar as vivências subjetivas e para o enfrentamento de
situações que lhe parecem desconhecidas ou adversas.
Esse trabalho de nomeação não é o mesmo que seria realizado com outros pacientes
no qual a interpretação do sentido tem mais efeitos. Em muitos momentos, esta intervenção
clínica não busca liberar o recalque mas, em uma operação anterior, preencher com
significantes (palavras) nomeações ausentes nesse psiquismo.
9.4. AS CONDIÇÕES DE UMA ANÁLISE
Levando em conta as características específicas deste caso (e seus impasses)
gostaria de discutir ainda a indicação (ou não) dessa intervenção clínica.
Referenciado na teoria lacaniana e no texto de Freud O início do tratamento (1913),
Quinet (2002) discute as normas que definem o setting analítico e as condições necessárias
para uma análise.
O autor considera que não devemos pensar nas entrevistas preliminares, no uso do
divã, na questão do tempo e do dinheiro como normas pois, segundo ele, a única regra
imposta por Freud para a Psicanálise foi a associação livre. Nesse sentido, Quinet critica as
tentativas de padronização dessas condições propondo atentar para a "particularidade de cada
análise, e até mesmo de cada sessão" (p.10).
Quinet (2002) destaca os passos que do ponto de vista freudiano organizam o início
do tratamento: em primeiro lugar a ligação do paciente à análise e ao analista. Em seguida, o
estabelecimento do diagnóstico. Em termos lacanianos, esses momentos referem-se às
entrevistas preliminares e o esboço de um diagnóstico diferencial que sustenta a decisão do
analista de acatar ou não àquela demanda de análise.
Segundo Quinet, sob um ponto de vista lacaniano, "só há uma demanda verdadeira para
se dar início a uma análise - a de se desvencilhar de um sintoma" (p.16). Ele especifica que:
A demanda de análise é correlata à elaboração do sintoma enquanto "sintoma analítico". O
que está em questão nessas entrevistas preliminares não é se o sujeito é analísável, se tem
um eu forte ou fraco para suportar as agruras do processo analítico. A analisibilidade é
função do sintoma e não do sujeito. A analisibilidade do sintoma não é um atributo ou
qualificativo deste, como algo que lhe seria próprio: ela deve ser buscada para que a análise
se inicie, tansformando o sintoma do qual o sujeito se queixa em sintoma analítico (p.16).
O autor destaca que a constituição do sintoma analítico é correlata ao estabelecimento
da transferência que faz emergir o sujeito suposto saber, pivô da transferência. Esse seria o
momento em que [idealmente] o sintoma é transformado em uma questão sobre o próprio
desejo: o sujeito se dirige ao analista e se pergunta o que será que isto [o sintoma] quer
dizer.
Apoiado no pensamento lacaniano, Quinet considera que não se deve ter em vista a
cura como efeito esperado da análise pois "um sujeito, enquanto tal, é incurável: ele não
pode ser curado de seu inconsciente" (p.21). Mesmo se falarmos em sujeitos neuróticos,
"por mais análise que se faça, mesmo que se atravesse a fantasia e se chegue ao final, o
inconsciente não vai deixar de se manifestar - o sujeito é barrado, como testemunha a
persistência dos lapsos, sonhos e chistes nos sujeitos já analisados" (p.21).
Ainda discutindo as condições necessárias para uma análise, Quinet discute a
indicação ou não da Psicanálise para psicóticos. Segundo ele, pode-se com base no texto de
Freud considerar que há uma contra-indicação da psicanálise para psicóticos. Em Lacan,
identifica-se que "há algumas indicações que apontam no mínimo para uma prudência,
embora ele deixe a cargo de cada analista a resolução de aceitar ou não o psicótico em
análise" (p.22), já que a análise, "como lugar de tomada da palavra, pode desencadear uma
psicose até então não declarada".
Mesmo havendo riscos, Lacan também afirmou que o analista não deve recuar diante
da psicose.
Segundo Quinet (p.22), Lacan teria dito que frente à uma psicose já desencadeada,
não haveria por que o analista não acolher à essa demanda de análise. A análise do psicótico
não seria contra-indicada. Contudo, o analista não deve prometer a cura em um caso de
psicose: "o analista não pode prometer inserir o psicótico na norma fálica; não pode fazê-lo
normal". Com base na experiência analítica, não se pode tornar neurótico um psicótico. "Se
o sujeito é psicótico, é importante que o analista o saiba, pois a condução da análise não
poderá ter como referência o Nome-do-Pai e a castração. Daí a importância de se detectar a
estrutura clínica do sujeito nas entrevistas preliminares".
No exemplo clínico aqui focalizado, não estamos diante de um caso de psicose, mas
as afirmações acima permitem fazer uma última reflexão.
Pode-se perguntar se o paciente em questão neste estudo entra em análise ou se ele é
de fato analisável. Pode-se também argumentar que o paciente não chega exatamente a
transformar seu sintoma queixa em sintoma analítico.
Ao longo do trabalho, observamos que o paciente se liga ao tratamento de maneira
sistemática e persistente. Ele comparece e retorna semanalmente às sessões, mostrando que
vê nessa experiência algo que lhe parece significativo e útil.
Pudemos também notar que esse sujeito pode fortalecer o vínculo transferencial. Ao
longo do trabalho ele tolera melhor as aproximações e parece usufruir da possibilidade
outrora desconhecida de compartilhar de sua experiência interna.
Do meu ponto de vista, houve uma mudança subjetiva importante nesse paciente. O
trabalho realizado pode ampliar seus recursos simbólicos para o enfrentamento de situações
adversas e para que ele possa ir atrás de seus anseios.
Não é fácil promover mudanças em um paciente com essa marca erógena, um sujeito
atravessado dessa forma (há tanto tempo) por seus sintomas corpóreos.
Assim como não se pode esperar normalizar um psicótico por meio da análise, não
se pode querer transformar um sujeito amarrado em sua epilepsia há tanto tempo em alguém
que encontra novas possibilidades para sua libido.
De fato, não podemos dizer que esse paciente chega a formular uma pergunta sobre o
que o sintoma quer dizer, transformando a queixa em sintoma analítico. Mas isso não quer
dizer que devemos recuar diante deste caso (ou de outros similares).
Sendo a Psicanálise a ciência do particular, podemos dizer que o paciente caminhou
(á sua maneira) até onde pode (ou quis) ir no processo. Mesmo considerando o sofrimento
e a história desse paciente, o tratamento possível consistiu em acolher esse desejo de tratar-
se. Não importa qual seja a melhora possível nesse caso, esse paciente necessita ser
escutado.
10. MOMENTO DE CONCLUIR
Conforme visto na revisão da literatura, as descrições de crises não-epiléticas são
quase tão antigas quanto as descrições da epilepsia propriamente dita. Hipócrates (400aC)
teria distinguido a epilepsia de outros episódios semelhantes e no século XIX, Gowers e
Charcot descreveram de forma sistematizada aspectos semiológicos úteis no diagnóstico
diferencial entre crises epiléticas e crises histéricas.
Consideradas eventos comuns e nada recentes na literatura, ainda hoje as
dificuldades de diagnóstico e tratamento fazem com que muitos desses casos sejam mal
interpretados e submetidos a uma sobrecarga considerável de passagens hospitalares e
procedimentos iatrogênicos.
Diagnósticos equivocados fazem com que esses pacientes sejam tratados apenas
como epiléticos, fazendo uso inapropriado de medicamentos que não eliminam as crises e
podem apresentar efeitos colaterais.
Conforme visto no caso discutido nesta tese, quando há o diagnóstico de crises
pseudo-epiléticas (por meio do vídeo-EEG), mesmo que haja também uma lesão que
justifique o comprometimento neurológico associado, esse paciente pode não ser candidato
à cirurgia de epilepsia (pois mesmo ficando livre das crises neurológicas ele pode continuar
apresentando pseudo-crises).
Ao mesmo tempo, nesses casos, o tratamento psicofarmacológico apresenta
problemas que se acrescentam na terapêutica, quais sejam: "adesão, interferência no limiar
epileptogênico e interações farmacológicas" (Marchetti & Damasceno, 2000).
Não sendo possível oferecer a esses pacientes o tratamento cirúrgico e considerando
que as drogas anti-epilépticas não controlam as pseudo-crises, além do tratamento médico,
a indicação nesses casos, sem dúvida, é psicoterápica.
No estudo de caso discutido nesta tese apontei especificamente a abordagem
psicanalítica desses fenômenos e de que maneira foi possível intervir por meio da palavra
analítica nessa situação clínica.
Comentando os desafios que o entendimento desses fenômenos apresenta às equipes
multiprofissionais na atualidade, reportagem de capa da revista Pesquisa Fapesp (2005)
constata que “distúrbio psíquico que ajudou a gênese da psicanálise [a histeria] é confundido
no presente com epilepsia”.
O texto divulga os resultados de pesquisa realizada em centros especializados no
tratamento de epilepsia do Brasil (Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo), publicada
no Journal of Epilepsy and Clinical Neurophysiology em 2004.
No referido levantamento, “estima-se que uma em cada quatro pessoas previamente
diagnosticadas com epilepsia em centros médicos especializados no Brasil tenha na verdade
crises não-epiléticas de origem emocional e uma em cada três, os dois problemas”
(Pesquisa Fapesp, p.45).
De acordo com o estudo, nos centros brasileiros que contam com a video-
eletroencefalografia, são diagnosticadas por ano cerca de cem casos das chamadas crises
não-epiléticas psicogênicas (Pesquisa Fapesp, p.44) e pelo menos “60 mil pessoas devem
apresentar crises não-epiléticas de origem emocional no Brasil, ainda que sejam tratadas
geralmente como epiléticas” (p.45).
Tal como fizeram os sintomas histéricos nos primórdios da Psicanálise, esses
fenômenos recolocam em cena o sofrimento psíquico nos reconvocando a buscar uma
melhor compreensão da maneira como o psiquismo e o inconsciente podem afetar o
funcionamento do corpo.
Cem anos após a fundação da Psicanálise e mesmo com todo o avanço das
Neurociências, a presença das crises não-epiléticas na população atendida nos centros de
tratamento da epilepsia colocam “as máscaras da histeria” (Pesquisa Fapesp, p.42) em plena
cena.
A necessidade de se fazer o diagnóstico, encaminhamento e tratamento adequados
desses pacientes continua na ordem do dia.
Conforme visto neste trabalho, as crises pseudo-epiléticas representam, ainda hoje,
um problema diagnóstico e psicoterápico em termos da população portadora de epilepsia.
Mesmo com os avanços alcançados no diagnóstico diferencial das crises a partir do
advento do video-EEG, o tratamento das CNEP permanece controverso e problemático. Os
tratamentos propostos compõem um panorama eclético no qual as várias abordagens variam
conforme a diversidade dos profissionais inseridos nas equipes multiprossionais.
A psicoterapia é uma indicação-padrão no tratamento desses casos, ainda que muitos
autores questionem sua eficácia, as dificuldades de aderência ao tratamento e o que chamam
de prognóstico reservado.
Conforme citado, a depressão, perdas, transtornos de personalidade e diversas
desordens são fatores indicados na etiologia das CNEP. Considera-se também que sendo as
CNEP uma condição heterogênea, com diversas etiologias, o tratamento deve ser
individualizado e dirigido para a patologia específica identificada.
Destaca-se ainda na revisão da literatura a hipótese traumática e a menção recorrente
à presença de história de abuso sexual na etiologia das CNEP.
Conforme dito, identifica-se ainda hoje uma certa tendência observável, mesmo no
pensamento psicanalítico (americano), à associação dos sintomas à investigação de um
trauma real, em uma maneira de pensar similar àquela feita por Freud nos tempos da teoria
da sedução.
Adeptos de certo biologismo e mantendo-se ainda dentro do raciocínio causa-efeito,
essa abordagem da questão ignora a importância da fantasia e do inconsciente, remetendo
qualquer forma de neurose, psicose ou sintoma à uma causalidade traumática e a um abuso.
Conforme visto, Freud renunciou à teoria da sedução, colocando em primeiro plano a
realidade psíquica, o inconsciente e a fantasia. A teoria psicanalítica se articula finalmente
quando, abandonando a teoria traumática da neurose, os sintomas deixam de estar
dependentes de um acontecimento real que os produziu, colocando em questão as fantasias
edipianas na criança.
No caso discutido, não aparecem relatos de abusos ocorridos. Entretanto, fazendo
um giro de perspectiva, na história desse paciente apresenta-se como traumático todo o
sofrimento que a convivência ao longo dos anos com a epilepsia determina em sua vida.
Seja como for, um dos focos desse atendimento foi questionar as posições (de
doente, incapaz, infeliz, etc.) assumidas por esse sujeito. Ainda que houvessem abusos
relatados, de nada adiantaria vitimizar o paciente, considerando que esses fatos expliquem o
sintoma. Trata-se justamente de questionar a forma como o sujeito se vitimiza, seja por
cenas traumáticas relatadas ou pela própria epilepsia.
10.1. UMA QUESTÃO DE PARADIGMAS
Conforme dito, observa-se hoje o reconhecimento nas esferas médicas da
necessidade da presença do psicanalista nos serviços hospitalares e equipes de saúde. À ele
é delegada a ação sobre o campo do psíquico, indiscutivelmente presente em várias
situações de doença.
A experiência clínica aqui discutida mostra a possibilidade de se inserir a prática
psicanalítica em um contexto multiprofissional. Entretanto, considerando que os
pressupostos que sustentam a clínica médica e a Psicanálise delimitam maneiras diversas de
se posicionar frente ao sujeito, o diagnóstico e o tratamento, inserido nesse projeto,
convém ao psicanalista saber de que lugar fala e não se deixar contaminar pelas demandas
médicas, familiares ou do próprio paciente de cura.
Conforme apontado, Clavreul (1983) define que a posição do analista é diversa
daquela do médico que tem sua prática atravessada por um “discurso normativo” e pela
“sanção terapêutica” (p.33). Criticando as confusões que persistem no espírito dos próprios
psicanalistas, ele especifica que o psicanalista deve ser o profissional que sabe que "o corpo
não deixa esquecer que ele é antes de mais nada o lugar do gozo" e que "o saber que o corpo
tem sobre os caminhos do gozo não é um saber menos imperativo que o do discurso
médico" (p.37).
A partir dos anos 80, com a publicação do DSM-III e com os avanços da indústria
farmacêutica, a classificação psiquiátrica foi amplamente modificada. O termo neurose foi
substitído por transtorno e a palavra histeria desapareceu dos manuais (Matos, E. G. et al,
2005).
Autores do campo psicanalítico como Roudinesco e Plon (1998, p.341) indicam a
originalidade da abordagem freudiana da histeria e a forma como a elucidação dos
mecanismos histéricos feita por Freud fez com que a própria noção de histeria fosse
identificada com a Psicanálise.
Pode-se considerar que a histeria com o aspecto teatral dos tempos freudianos
desapareceu. Mas ela parece resurgir em novas formas, marcando presença nas clínicas psi
com nomes do tipo transtornos dissociativos, somatoformes, de personalidade, síndromes
de pânico e outras classificações psiquiátricas modernas.
Na clínica neurológica ela reaparece também na forma desses fenômenos nada novos
que são as crises pseudo-epiléticas.
Conforme apontado, autores como Quinet (2001) e Birman (2001), criticam os
paradigmas da Psiquiatria atual e propõem o resgate dos princípios fundamentais da
Psicanálise.
Eles criticam a crescente biologização da psiquiatria" e a maneira como a
Psicanálise vem sendo rejeitada nesse campo em prol do uso dos psicotrópicos e dos
modelos explicativos do DSM-IV, nos quais para cada transtorno corresponde um remédio.
Birman (2001, p.22) indica conseqüências não apenas científicas, mas também éticas
e políticas dos novos paradigmas da psiquiatria, na medida em que ela se transformou em um
"canteiro de obras da indústria farmacêutica", que "doravante definem as regras do jogo
através do financiamento direto de suas pesquisas". Ele critica também a “ofensiva teórica e
clínica da psicofarmacologia com o surgimento dos ansiolíticos e dos antidepressivos” que
fez com que essa disciplina fosse tomada como "fundamento biológico” e como
instrumento terapêutico” capaz de controlar as produções sintomáticas das diversas
perturbações.
Nesse sentido, o autor aponta o risco de que, nesse contexto, "as psicoterapias
tendem a desaparecer na prática psiquiátrica" (p.23), eliminando completamente a presença
da experiência subjetiva do doente no acontecimento da enfermidade.
Em contraposição à essa tendência, os autores preconizam o resgate de princípios
fundamentais da psicanálise.
Entre esses princípios destaca-se a importância das noções de causalidade psíquica,
sujeito do inconsciente e o critério da transferêncïa, além de outros fundamentos tais como
a responsabilização do sujeito promovida pela Psicanálise, o entendimento da “enfermidade
psíquica como produto de uma história” (Birman, 2001, p.23), etc.
As noções fundamentais retomadas em Freud e Lacan nesta tese, indicam a
importância de se abordar o sintoma como uma formação do inconsciente e como um
fenômeno subjetivo que não se reduz a um déficit.
Ao mesmo tempo, a experiência clinica discutida nesta tese demonstra que, mesmo
com todo o avanço da Psicofarmacologia, há que se resgatar nesses casos os princípios
fundamentais da Psicanálise e a palavra como dispositivo de cura.
10.2. O TRATAMENTO POSSÍVEL
Conformei dito, acredito que foi possível observar no percurso desse paciente
mudanças subjetivas significativas.
Lidando com as expectativas manifestas de encontrar um tratamento cirúrgico
milagroso, capaz de eliminar seu sofrimento sem exigir comprometimento e esforço
mental, foi possível auxiliar esse paciente no estabelecimento da transferência.
Ao longo do trabalho, ele pode perceber a possibilidade de transitar de uma posição
passiva e negativista para uma postura mais ativa frente ao seu sofrimento e à sua vida.
Dessa forma, ele deu-se conta da necessidade de responsabilizar-se por sua melhora
e pela realização de seus anseios.
Por meio do esclarecimento das satisfações deletérias obtidas com a doença, o
trabalho favoreceu o entendimento dos ganhos neuróticos envolvidos em seus sintomas.
Conforme discutido, em muitos momentos, o trabalho com a palavra não teve como
foco a liberação do recalque mas, em uma operação anterior, preencher com significantes
(palavras) nomeações ausentes nesse psiquismo.
Dessa forma, foi possível ampliar seus recursos simbólicos para que ele possa
melhorar a capacidade de elaboração das vivências subjetivas e para lidar com situações
sentidas como desconhecidas e adversas.
Não é fácil promover mudanças em um paciente com essa marca erógena, um sujeito
atravessado dessa forma (há tanto tempo) por seus sintomas corpóreos. Mesmo assim,
buscou-se liberar esse corpo criando novos caminhos para o investimento da libido.
Conforme dito, não podemos dizer que esse paciente chega a fazer a passagem de um
sintoma-queixa a um sintoma analítico. Mas isso não quer dizer que devemos recuar diante
desse(s) caso(s).
O paciente caminhou (á sua maneira) até onde pode (ou quis) ir ao processo. O
tratamento possível consistiu em acolher esse desejo de tratar-se e, mesmo considerando
seu sofrimento e sua história, resgatar esse sujeito e seu corpo para a relação com os
outros.
Ainda que não seja um tratamento-padrão ou uma Psicanálise de ouro, seja qual for a
melhora possível nesse caso (ou em outro que coloca esse tipo de problema), esses
pacientes não podem ser abandonados. Além do tratamento médico, esses pacientes
necessitam ser escutados em sua história e em seu sofrimento psíquico.
As crises de Paulo
7
manifestam um sofrimento que tenta ser enunciado. Eles são
como gestos desesperados que carecem de palavras para dizer-se.
A análise dá voz ao sofrimento desse paciente e lhe permite falar das marcas de uma
vida inteira marcada pela convivência com a epilepsia.
Falar de si, além de criar novas possiblidades no enfrentamento da realidade, humaniza
essa fala. Paulo não é “um epilético”, ele é um ser-humano que tem epilepsia.
Percebendo-se humano, demasiado humano, é suficiente que ele veja o mundo como
um lugar mais bonito e que se sinta um pouco mais feliz por viver.
7
O nome foi alterado.
11. OBSERVAÇõES SOBRE ASPECTOS ÉTICOS
Em conformidade com o artigo seis
8
, ítem II, da Resolução do CFP de 20 de
dezembro de 2000 (que dispõe sobre a realização de pesquisa em Psicologia com seres
humanos), buscando evitar a identificação das pessoas envolvidas na pesquisa, optamos por
vinhetas clínicas ao invés da descrição minuciosa do caso, alterando os nomes e dados
específicos.
8
Art. 6 / II - O Psicólogo pesquisador poderá estar desobrigado do consentimento informado nas situações em que:
as pesquisas sejam feitas a partir de arquivos e bancos de dados sem identificação dos participantes.
12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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