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BRUNO MEDICI SILVEIRA
Agressividade na ludoterapia: impacto na contratransferência
Dissertação apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo
para a obtenção do título de mestre em
Psicologia
Área de concentração: Psicologia Clínica
Orientadora: Profa. Dra. Maria Abigail
de Souza
São Paulo
2008
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2
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU
PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO
CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E
PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Silveira, Bruno Medici.
Agressividade na ludoterapia: impacto na contratransferência /
Bruno Medici Silveira; orientadora Maria Abigail de Souza. --São
Paulo, 2008.
150 p.
Dissertação (Mestrado Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Clínica) Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo.
1. Agressividade 2. Transferência psicoterapêutica 3.
Contratransferência 4. Ludoterapia I. Título.
BF575.A3
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Bruno Medici Silveira
Agressividade na ludoterapia: impacto na contratransferência
Dissertação apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo
para a obtenção do título de mestre em
Psicologia
Área de concentração: Psicologia Clínica
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituição:_____________________________Assinatura:_______________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituição:_____________________________Assinatura:_______________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituição:_____________________________Assinatura:_______________________
4
Para meu avô Miguel e Renata, minha esposa.
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AGRADECIMENTOS
À professora Maria Abigail, pelos ensinamentos, pelas oportunidades que me deu - tão
importantes em minha formação -, pela exigência e pelo rigor, pela paciência. Sou
muito grato a você e espero que este seja um momento de reencontro.
Ao professor Nelson da Silva Júnior, pela atenção e disponibilidade ao me receber em
ocasião importante da confecção desta dissertação. Suas observações foram valiosas.
A Suzana Alves Viana e à professora Norma Lottenberg, pelas contribuições e
observações no exame de qualificação.
A Ligia Furusawa, pela leitura atenta do trabalho e pelas observações que ajudaram a
finalizar a dissertação.
À Universidade de São Paulo, pelos anos de formação, pelos espaços silenciosos e
profundos que me proporcionou, pelo carinho que tenho por esta instituição. Sou outro
depois de ter estado aqui.
À Renata, minha esposa. Este trabalho não seria possível sem você. Agradeço pelo
amor, carinho, compreensão e pela paciência. A vida é plena e espontânea ao seu lado.
Obrigado por seu jeito alegre e bem humorado. Sou imensamente grato por ter me
encontrado. Amo você.
À minha querida mãe, importantíssima em minha trajetória, de forma que não
palavras para descrever. Você está presente em todos os momentos deste texto e meu
caminho está profundamente ligado à sua vida.
A meu pai, fundamental para quem sou hoje. Este trabalho também é seu e nossa
história está, de alguma forma, aqui. Obrigado pelo apoio, reconhecimento e pelo amor
que tem me dado nesses últimos anos.
A Rita e Luciano, que vieram na companhia de meus pais, pelo apoio, interesse e
carinho.
A Bia, minha querida irmã, sempre bela. Obrigado pelo respeito, pela proximidade e
pela forma atenciosa e cuidadosa com que me tratou durante nossas vidas.
Às minhas avós Terezinha e Sabina, por tudo que me deram e pela influência que têm
em minha formação. Não sabem como sou grato a vocês.
A Luís, grande amigo, parceiro de várias cervejas e de tantas histórias. Grande
inspiração. Obrigado pela presença constante, pelas conversas e pelas indicações de
leituras. Continuaremos a virar todas!
A Danilo, pela forma leve e aventurada com que leva a vida. Admiro suas incursões
nada convencionais pelo mundo da arte e da cultura. Um brinde à sua singularidade
nipo-germânica!
6
A Érico e Mirella, pelo fundamental apoio e pelo acolhimento com que me receberam.
Sempre muito carinhosos e inteligentes. Érico, te devo uma!
A Emir Tomazelli, pela exigência e aposta no duro caminho da verdade e pelo
aprendizado de uma Psicanálise autêntica e consistente. Sou profundamente grato a
você: o pimpolho máximo!
Aos queridos amigos Gui, Kate, Jana, Naty, Cláudia, Fabiano, Lela, Ju, Sofia, Aécio e
Dudu pelas histórias, lembranças, risadas e viagens. Um pouco mais distantes com o
tempo, mas sempre presentes em minha vida.
À família Battistoni, muito acolhedores e bem humorados. Obrigado pela companhia,
pelas conversas e pelas cervejas.
À equipe de funcionários da biblioteca, da secretaria de pós-graduação e da secretaria
do departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, pelas
orientações que me deram.
Aos outros orientandos da professora Abigail: Rebeca, Renata, Aline e Daniela, pela
ajuda e acolhimento em diversos momentos de meu trabalho.
Aos amigos da MBA Empresarial, pelas risadas e pela consideração que sempre tiveram
por mim.
A Samuel e a todos meus pacientes, que insistem em me levar a travessias nem sempre
confortáveis, mas fundamentais.
A Jorge Ben, pelas belas imagens.
7
.
[...]
Momentos deslocam a cena da caça:
Um leito de rio, desolado e branco,
Não o monte Amagi no início dos frios de inverno.
E a reluzente espingarda de caça,
Impondo seu peso à solitude do corpo,
À solitude da mente do homem de meia- idade,
Irradiava estranha, austera beleza,
Jamais aparente ao alvejar da vida
(extraído de A espingarda de caça, Yasushi Inoue)
8
RESUMO
SILVEIRA, B.M. Agressividade na ludoterapia: impactos na contratransferência.
Dissertação (Mestrado), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2008.
A agressividade na infância tem sido apontada em pesquisas longitudinais como
precursora da delinqüência na adolescência e da drogadependência na idade adulta.
Sendo a infância um período mais propício a mudanças, procurou-se realizar
intervenções em crianças apontadas por professores como muito agressivas no ambiente
escolar. Neste trabalho, buscou-se estudar o processo ludoterapêutico a que foi
submetida uma criança agressiva do sexo masculino, enfocando-se os fenômenos
contratransferenciais. Foram realizados atendimentos semanais em uma sala com
material lúdico específico para esta intervenção, ao longo de aproximadamente dois
anos. Observou-se mudanças internas importantes na criança, sendo capaz de lidar
melhor com perdas e de aceitar limites na relação com o outro. O que ampliou sua
capacidade de relacionamento humano no âmbito social e escolar. No entanto, em
muitos momentos, o contato com este menino foi angustiante e confuso para o
terapeuta, em especial nas ocasiões em que a criança se mostrava muito agressiva. Ao
término do processo psicoterápico, buscou-se compreender estas vivências angustiantes
e confusas experimentadas durante os atendimentos. O que poderiam ser tais eventos e
que sentidos teriam? Para abordar estas questões, utilizou-se, em especial, os
referenciais teóricos de Melanie Klein, Donald Winnicott e Pierre Fédida, para abordar
a agressividade e o processo transferencial/contratransferencial. Estes estudos puderam
esclarecer o fato de que a intensidade e a violência do processo transferencial podem
interromper a capacidade receptiva da contratransferência, ou seja, a possibilidade de
ressonância, a abertura ao novo e ao inesperado e a possibilidade de linguagem do
terapeuta nas sessões. E que a força desta transferência pode encontrar eco nos próprios
9
conflitos inconscientes do terapeuta. Deixa-se como questão para futuros estudos, a
hipótese de que o ataque à capacidade receptiva da contratransferência seja algo
freqüente no trabalho clínico com uma criança agressiva e que este ataque possa se dar
pela dificuldade de elaboração de lutos e de angústias depressivas.
Palavras-chave: agressividade, transferência psicoterapêutica, contratransferência,
ludoterapia.
10
ABSTRACT
SILVEIRA, B.M. Agressiveness in play therapy: consequences on
countertransference. Master Thesis, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2008.
Aggressiveness in childhood has been pointed in longitudinal researches as precursor of
delinquency during adolescence and drug addiction in adult age. Based on the fact that
childhood is the fase of human development most likely to the occurence of changes,
children who were considered aggressive by their teachers were submitted to
interventions in the school environment. In the present study, the research was focused
in the play therapy process to which an aggressive male child was submitted and its
countertransference phenomena. Weekly sessions were held in a room equipped with
specific playing material to this kind of intervention. The psychotherapy process lasted
aproximatedly two years. Important internal changes were observed in the child, who
was able to deal better with losses and accept limits on the relation with others. These
changes improved his potential of establishing human relations in social environment,
specially in school. Nevertheless, in many occasions, the therapist felt some kind of
anxiety and confusion during his contact with the boy, more specifically in the moments
when the child showed aggressive behavior. At the end of the psychotherapy process, an
effort of understanding these anxious and confusing experience, which occurred during
the sessions, was made. What sort of events those could be? What are their meanings,
what sense could they make? In order to approach these questions, it was used
theoretical references of some authors, such as Melanie Klein, Donald Winnicott and
Pierre Fédida, focusing the aggressiveness and the transference/countertransference
process. These studies were able to show clearly the fact that the intensity and the
violence of the transferential process can interrupt the receptive capacity of
11
countertranference, which can be exposed as the possibility of resonance, the opening to
the new and unexpected and the possibility of the therapist’s language during the
sessions. Also, the power of this transference can find echoes on the therapist’s own
unconscious conflicts. The questions left for future studies are based on the hypothesis
that the attack to the receptive capacity of countertransference happens frequently in an
aggressive child’s clinical treatment, and this attack can arise from the difficulty of
working over mourning and depressive anxiety.
Key-words: aggressiveness, psychotherapeutic transference, countertransference, play
therapy.
12
SUMÁRIO
I - Introdução...........................................................................................................................................14
1. Considerações preliminares..................................................................................................................14
2. Fundamentação teórica.........................................................................................................................18
2.1. A criança considerada agressiva.........................................................................................18
2.1.1. A contribuição de Melanie Klein......................................................................................18
2.1.2. A contribuição de Donald Winnicott...............................................................................33
2.2. A transferência e a contratransferência.............................................................................41
2.2.1. Pierre Fédida e a contratransferência.............................................................................51
2.2.2. Possíveis articulações conceituais.....................................................................................62
2.3. Algumas contribuições sobre psicoterapia de crianças agressivas...................................66
II - Objetivo e Justificativa...................................................................................................................69
III – Método..............................................................................................................................................70
1. Participantes..........................................................................................................................71
2. Instrumentos.........................................................................................................................72
3. Procedimentos.......................................................................................................................72
4. Análise dos dados..................................................................................................................73
IV – Resultados e Discussão.................................................................................................................74
1. Relatos da escola sobre Samuel..............................................................................................74
2. Relatos da mãe sobre Samuel.................................................................................................77
3. Sobre o processo psicoterapêutico..........................................................................................79
3.1. Visão geral das sessões..........................................................................................................79
3.1.1. O início................................................................................................................................79
3.1.2. A quebra da caixa lúdica...................................................................................................94
3.1.3. A fotografia.......................................................................................................................101
3.1.4. O término..........................................................................................................................117
3.2. Discussão sobre a transferência e a contratransferência................................................131
V – Considerações finais.....................................................................................................................141
13
VI – Conclusão.......................................................................................................................................146
VII – Referências Bibliográficas.......................................................................................................148
Anexo..........................................................................................................................................151
14
I - Introdução
1. Considerações preliminares.
O presente trabalho é o relato e a tentativa de reflexão teórica que busca
significar a experiência do encontro de um jovem terapeuta com um de seus pequenos
pacientes, cujo encaminhamento ocorreu com base em uma queixa de agressividade.
Este atendimento teve início em meados de 2002 e fazia parte de um projeto de
pesquisa mais amplo (SOUZA, 2006). Na época, eu cursava meu último ano de
graduação no Instituto de Psicologia da USP e fui aceito para trabalhar como bolsista
em um projeto com meninos agressivos. A professora Maria Abigail de Souza, hoje
minha orientadora, coordenava o trabalho, que tinha como base sua longa experiência
no tratamento de dependentes químicos. Em sua trajetória, ela constatou as dificuldades
em se obter bons resultados na terapia com esses pacientes e percebeu, pelos históricos
com que teve contato, que a drogadicção na vida adulta poderia estar relacionada à
agressividade na infância. Estudos longitudinais (FARRINGTON,1991) confirmam essa
hipótese e sustentam que uma criança agressiva pode não se tornar um dependente
químico como também apresentar uma série de comportamentos considerados anti-
sociais. A partir disso e com a convicção de que o trabalho com crianças poderia render
mais frutos do que com o adulto - que os ganhos secundários com a “doença” não
estariam ainda tão consolidados - ela decidiu fazer intervenções que levaram ao projeto
em que fui aceito para atuar.
Antes de minha chegada, o trabalho ocorria certo tempo e estava
plenamente estruturado. Os atendimentos eram feitos dentro de uma escola municipal
na zona oeste de São Paulo, região relativamente carente da cidade em que a presença
da marginalidade não podia deixar de ser notada. Havia uma sala específica para esses
15
encontros e utilizada com esse intuito. Nela encontrávamos brinquedos, jogos e
diversas caixas lúdicas, uma para cada criança atendida. Os meninos eram
encaminhados pela coordenadora pedagógica ou pela diretora da escola, as quais
respondiam às demandas dos professores. O critério utilizado para o encaminhamento
era o de apresentarem agressividade no ambiente escolar, no sentido de agredirem
fisicamente os colegas, não obedecerem e desafiarem os professores, o fazerem o
dever de casa, perturbarem o ambiente em sala de aula e instigarem os pares a fazer o
mesmo. Em suma, causavam grandes dificuldades para os funcionários da escola,
especialmente por sua destrutividade e por seu comportamento impulsivo e
inconseqüente.
Nesse contexto, um menino foi encaminhado para mim, tinha oito anos de idade
na época em que nos conhecemos. Nos encontros com esta criança, com muita
freqüência eu passava por experiências em que perdia completamente a capacidade de
raciocínio e me sentia muito confuso e enfastiado, por vezes preso em uma sensação
angustiante e de pouca capacidade simbólica. Penso que nesses momentos eu vivia uma
certa anulação de minha capacidade analítica, bem como da produção conjunta de
sentido para as experiências vividas. Não raro, eu também era acometido por sensações
de raiva cuja tendência era a de uma descarga de agressividade por meio da atuação.
Novamente, uma forma de interação em que a palavra perdia seu poder simbólico.
Os atendimentos duraram aproximadamente dois anos e posso dizer que esse
período me proporcionou uma vinculação bastante significativa e profunda com este
garoto. Acredito que apesar de todas as dificuldades encontradas durante o processo,
pudemos fazer bom uso das experiências pelas quais passamos.
Porém, intrigavam-me, e ainda me intrigam, essas vivências mais angustiantes e
paralisantes pelas quais fui constantemente atravessado. O que seria isso e quais os seus
16
sentidos? Poderiam tais experiências levar a uma compreensão mais profunda do
dinamismo psíquico desta criança? Foram exatamente estas questões que me motivaram
a transformar a experiência de atendimento com ele em um trabalho acadêmico.
Basicamente, meu intuito era, e ainda é, o de tentar compreender esse estado, esse outro
em quem eu me transformava em alguns momentos dos atendimentos. Seria esse um
lado meu desconhecido/estranho e que entrava em ação a partir de algum elemento
desencadeador? Ou seria o reflexo de uma invasão violenta de minha mente dada a
impossibilidade de uma elaboração mais madura de conteúdos muito primitivos por
parte desta criança?
Acredito que a aceitação de uma hipótese não elimina a outra e isso implica, em
outras palavras, aceitar que tanto analista quanto analisando estão presentes com suas
subjetividades quando se encontram e quando se afastam. Dessa forma, será necessário
compreender quais as possíveis configurações inconscientes atuantes no funcionamento
psíquico do menino. Para isso levarei em consideração contribuições teóricas de
orientação kleiniana, as quais enfocam o mundo psíquico infantil, além das incursões no
universo da relação analítica com a criança. Incluirei também algumas idéias de
Winnicott, que a tendência anti-social foi um tema que atraiu a atenção desse autor
em sua experiência de trabalho com crianças evacuadas nos tempos de guerra. Esses
clínicos proporcionaram contribuições notáveis para a teoria e para a técnica
psicanalítica infantil, além de tratarem do tema agressividade presente nas fantasias
inconscientes e na relação com o terapeuta. Contudo, não chegaram a se deter muito na
posição do analista quando este experimenta angústias da ordem daquelas descritas
acima. Por isso, busquei a contribuição de outro autor, que descreveu esse processo de
forma mais aprofundada e abrangente.
17
Assim, a temática contratransferencial com esse tipo de criança é a essência
deste trabalho e para pensá-la procurarei, em grande parte, utilizar o pensamento de
Pierre Fédida. Utilizarei também um texto de Paula Heimann (1949/1950) e um artigo
de Winnicott sobre “O ódio na contratransferência” (1947a). Tais textos podem
favorecer algumas articulações com as concepções de Fédida.
Creio que ao tratar dessa temática seja difícil não se deparar com vivências
muito pessoais do próprio analista, o que talvez torne inevitável certa exposição de
conteúdos pessoais. Contudo isto poderá propiciar melhor compreensão dos fatos a
serem discutidos.
Como se trata de um trabalho que envolve o estabelecimento de uma relação
terapêutica, não poderia deixar de constar uma certa exposição pessoal do analista, o
que não ocorrerá com o analisando, cuja identidade ficará protegida pelo sigilo. As
dificuldades enfrentadas em uma experiência de atendimento a um menino considerado
agressivo pode interessar a psicoterapeutas iniciantes e mesmo aos profissionais que
trabalham com o tema da agressividade, o que justifica e motiva a realização deste
estudo como uma possível contribuição acadêmica. A porque, na pesquisa
bibliográfica, encontrei poucos estudos sobre psicoterapia de crianças agressivas,
especialmente no que tange à vertente contratransferencial.
18
2. Fundamentação teórica
2.1. A criança considerada agressiva
2.1.1. A contribuição de Melanie Klein
Inicialmente, faz-se necessário uma breve revisão sobre a agressividade antes de
entrarmos no tema específico deste trabalho, ou seja, as emoções suscitadas no terapeuta
a partir do contato com uma criança considerada agressiva. Creio ser importante refletir
sobre a dinâmica psíquica de uma criança agressiva para entender seus efeitos no
contato com o terapeuta. O enfoque a ser privilegiado nesta compreensão está
diretamente relacionado com a obra de Melanie Klein, psicanalista de origem austríaca,
cujos desenvolvimentos conceituais mais importantes ocorreram na Inglaterra, onde se
estabeleceu a partir de 1926.
Melanie Klein pode ser considerada pioneira na adaptação da técnica analítica
para crianças. Suas propostas iniciais apontavam para a possibilidade do
estabelecimento de uma relação transferencial entre a criança e o analista, bem como
para uma situação edípica precoce, fatores que viabilizariam a psicanálise com esses
pequenos pacientes. O conhecimento na área clínica beneficiou-se muito de suas
propostas, assim como suas formulações teóricas permitiram maior compreensão da
vida psíquica do infante e lançaram bases sólidas para o estudo das psicoses e outras
enfermidades consideradas graves. Apesar das controvérsias em torno de suas idéias,
sua importância dentro da Psicanálise é inegável e sua herança se faz presente nas
práticas atuais.
Acompanhando as considerações de Cintra e Figueiredo (2004) é possível
compreender de forma clara e precisa a evolução conceitual da obra da autora. O
interesse inicial de Melanie Klein ao se propor atender crianças dentro de um contexto
analítico estava voltado para o tema da inibição intelectual. Em geral, seus primeiros
19
casos clínicos com pequenos infantes relacionavam-se com esse tipo de queixa. A partir
deles, teve insights inovadores e ao mesmo tempo impactantes sobre o turbilhão
emocional vivido pelo bebê em seu primeiro ano de vida. Esse impacto se dá, em
geral, no contato com suas descrições a respeito da vida de fantasia do bebê, cujo
caráter agressivo e destrutivo parece surpreender o leitor iniciante.
Baseando-se na leitura de alguns de seus textos iniciais, tais como Tendências
criminais em crianças normais” (1927), “Primeiras fases do complexo de Édipo”
(1928), “O desenvolvimento inicial da consciência na criança” (1933), em que seu
sistema de pensamento ainda não estava tão bem estruturado nem consolidado,
podemos apreender idéias importantes que se repetem nesses artigos e que darão
sustentação para suas futuras elaborações teóricas. Dentre elas, a crença na presença de
uma instância psíquica egóica, o ego primitivo, no início da vida do bebê. Primitivo
porque ainda não há, nesse momento do desenvolvimento, uma unidade egóica
estabelecida e consolidada. Esta unidade será conquistada aos poucos e, mesmo
assim, se certas condições se cumprirem. Para chegar a esse estado de integração, a
criança terá que atravessar um árduo caminho, cheio de percalços e dificuldades, que
constantemente afetarão a coesão deste ego em formação.
As dificuldades decorrem em grande parte dos intensos movimentos pulsionais
que o ego tem que dar conta para sobreviver. Segundo a autora, no primeiro ano de
vida do bebê, diversas fixações pré-genitais permeiam a vida mental da criança. São
elas as grandes responsáveis pela intensa vida de fantasia
1
que povoa a mente do
infante. As fixações são predominantemente sádicas, destacando-se o sadismo oral,
uretral e anal, seguindo-se a seqüência de desenvolvimento. É a partir das fantasias,
caracteristicamente marcadas por essas fixações, que os ataques ao objeto terão
1
É importante aqui entender a que se refere o termo fantasia neste contexto, diferenciando-o da fantasia
que ocorre durante a vigília - uma espécie de devaneio - para compreendê-lo como a expressão
inconsciente da pulsão. A esse respeito, para maiores esclarecimentos, consultar o artigo de Isaacs (1982).
20
expressão no imaginário inconsciente. aqui, destaca-se a importância do conceito de
pulsão de morte dentro do sistema de pensamento kleiniano, sendo o sadismo a
expressão dessa pulsão fundida com a pulsão de vida - em uma tentativa de contenção,
por parte do aparelho psíquico em formação, desses impulsos destrutivos.
Encontraremos em seu texto expressões impactantes na descrição das fantasias que
povoam o inconsciente do bebê, muitas vezes chocantes ao leitor desavisado. É possível
notar desde aí, que o desenvolvimento da vida psíquica do sujeito vai depender em
grande medida da maneira inconsciente como ele lidou com essas fantasias destrutivas e
violentas no início da vida. Nesse sentido, a agressividade manifesta apresentada por
uma criança, seja em casa, seja no ambiente escolar, provavelmente está relacionada
com essa vida pulsional intensa e às fixações pré-genitais. Nesses casos, o aparelho
psíquico não conseguiu conter, nem transformar esses conteúdos em algo permitido
socialmente.
Marcadamente a ênfase recai na violência e destrutividade dos processos
mentais iniciais. A criança não deseja o seio da mãe, como quer devorá-lo, destruí-lo
e incorporá-lo dentro de si por meio da voracidade oral. Tal concepção se apóia na tese
de um Complexo de Édipo inicial e precoce, momento em que os impulsos sádicos são
dirigidos às figuras parentais, ainda não “percebidas” como objetos inteiros. Isso faz
Melanie Klein afirmar que “a própria criança deseja destruir seu objeto libidinoso,
mordendo-o, cortando-o e devorando-o [...]”(1928, p.254). Além disso, segundo ela o
erotismo sádico-anal é utilizado para designar o prazer extraído da
zona erógena anal e da função excretória, junto com o prazer na
crueldade, no domínio e na posse etc., que tem sido considerado
estreitamente ligado com os prazeres anais (KLEIN, 1927, p.234).
Dessa forma, não seria estranho nos depararmos com fantasias inconscientes
coloridas por esse tom, em que o objeto é consumido, incorporado e descartado sem
nenhuma preocupação aparente, o que posteriormente será chamado de relação de
21
objeto parcial (CINTRA e FIGUEIREDO, 2004). A criança não tem a exata medida da
separação entre ela e o objeto, não o considerando com uma existência independente. A
violência desse processo reside nessa falta de consideração pelo objeto, por esse
desprezo e consumo voraz. Nesses textos iniciais ainda o a distinção entre a
posição esquizo-paranóide e depressiva que estará presente no desenvolvimento da obra
da autora. Porém, já é possível reconhecer as dinâmicas subjacentes a elas nesses
primeiros escritos.
Klein (1927) afirma que o complexo edípico está presente desde o primeiro ano
de vida e, como vimos, é fortemente caracterizado pelas tendências pré-genitais. Assim,
o menino dirige em fantasia ataques a seu rival, o pai, e não é raro que deseje sua morte.
“Fantasias de penetrar no dormitório e de matar o pai, não faltam na análise de qualquer
menino, inclusive no caso de um menino normal” (KLEIN, 1927, p.235). Os ataques
também são dirigidos à mãe e aos irmãos e fantasias como cortar em pedaços o pai e a
mãe, sujá-los com suas fezes, mutilá-los, castrar o pai, apropriar-se do corpo da mãe etc.
não são pouco freqüentes nas descrições clínicas da autora. “[...] na medida em que os
seus sentimentos são negativos, a criança reage com todo o poder e intensidade do ódio
característico dos primeiros estágios sádicos do desenvolvimento” (KLEIN, 1927, p.
237). É essa intensidade do ódio que fica muito clara na presença de uma criança
agressiva. Apoiando-se em Freud, Klein ressalta também o conhecimento inconsciente
que as crianças têm sobre as relações sexuais e as fantasias a esse respeito também
recebem as marcas de seus impulsos pré-genitais.
Esse tipo de relação com o objeto, deduzida a partir da análise dos jogos das
crianças em atendimento analítico, fez a autora afirmar (KLEIN, 1927) que os atos
criminosos observados em adultos
2
estão presentes na vida de fantasia inconsciente
2
No texto de 1927, a autora chega a relatar casos, famosos na época, de assassinatos seguidos de
esquartejamento das vítimas.
22
de crianças em tenra idade. Seria tarefa da estruturação psíquica decorrente do
desenvolvimento e das boas experiências reais, transformar tais conteúdos em processos
socialmente produtivos, o que será melhor elaborado a partir da formulação conceitual
da posição depressiva.
“[...] A ansiedade causada pelo início do complexo edípico, toma a forma de um
temor de ser devorada e destruída” (KLEIN, 1928, p. 254). Neste texto, se começa a
perceber a orientação que Klein à relação entre o complexo de Édipo primitivo e a
formação do superego. Também nesse momento, começamos a observar um
distanciamento entre as idéias de Klein e Freud, que para este último a resolução da
situação edípica se daria por volta dos cinco anos e como resultado teríamos a formação
de um superego ou instância moral. Porém, as observações kleinianas a respeito do
superego precoce diferem das colocações freudianas, especialmente quanto ao tipo de
moralidade a que nos referimos e quanto ao momento em que inicia suas atividades
(KLEIN, 1933). O superego, em sua descrição por Klein, é uma instância em que reside
uma moral de Talião. É também caracterizado pelo sadismo e pela crueldade, mas,
dessa vez, não voltados para o objeto, mas sim para o próprio ego. Mas como isso
ocorre?
Desde seu nascimento a criança é obrigada a dar conta de uma carga excessiva
de destrutividade, tarefa árdua para seu ego em formação. O que fazer então com seu
lado destruidor, com essa carga pulsional desmesurada? Jogá-la para fora. De que
maneira? Atacando o objeto e projetando
3
sobre ele seus impulsos agressivos, de forma
a se livrar da hostilidade que sente residir dentro de si. O ataque ao objeto, no entanto,
provoca o medo da retaliação e tais objetos passam a ser introjetados - porém não
assimilados ao ego - com a característica sádica que lhe foi anteriormente projetada.
3
É freqüente, nesse momento de sua produção teórica, a utilização por Klein do termo expulsão ao invés
de projeção.
23
Tem-se, a partir disso, um objeto interno com um tom persecutório e ameaçador. Não
obstante, a realidade externa também se torna assustadora, que o medo da
retaliação, bem como a percepção de um meio hostil, caracterizado pela projeção de sua
destrutividade pulsional. A conseqüência natural desse movimento é a vivência de uma
ansiedade que ameaça desestruturar o frágil ego em formação. Para se defender, o que
faz ele? Volta a atacar o objeto e a projetar sua destrutividade no meio externo, tornando
a introjetar e a fortalecer seus perseguidores internos e externos, o que leva a um ciclo
vicioso aparentemente sem fim.
As imagos parentais - que é aos pais, ou a aspectos deles, que são desferidos
os primeiros ataques e projeções - que passam a povoar a mente infantil formam o que
Melanie Klein (1933) descreve como o superego primitivo. Os objetos introjetados
passam, um a um, a exercer, de forma sádica, a função de tentativa de combate à própria
destrutividade pulsional da criança. “Esse superego pulsional é uma concepção que
envolve a noção de que as primeiras formas de contrapor-se a certas moções pulsionais
são de natureza também pulsional” (CINTRA E FIGUEIREDO, 2004, p. 60). Seriam as
próprias forças do id que criariam essa primeira forma de interdição. A esse respeito,
retomo um trecho da autora, referindo-se às idéias de Freud em “Além do princípio do
prazer” de 1920, sobre a “expulsão” da pulsão de morte para fora do organismo, em que
nos diz:
[...] paralelamente a esse desvio para fora do instinto
4
de morte,
contra os objetos, produz-se uma reação intrapsíquica de defesa
contra a parte do instinto que não pôde ser exteriorizada de tal modo.
Pois o perigo de ser destruído por esse instinto de agressão, provoca,
creio eu, uma excessiva tensão no ego que é sentida por este como
ansiedade, de modo que enfrenta, no próprio início de seu
desenvolvimento, a tarefa de mobilizar a libido contra seu instinto de
morte. Todavia, pode levar a cabo essa missão de modo
imperfeito, pois, devido à fusão dos dois instintos, não pode, como
sabemos, efetuar uma separação entre os mesmos (KLEIN, 1933,
337).
4
Venho utilizando, ao longo do texto, o termo pulsão ao invés de instinto. Manterei a utilização deste
último nas citações da autora, como aparece nas traduções do original.
24
Elisa Maria Ulhoa Cintra e Luís Cláudio Figueiredo fazem uma sucinta e clara
explanação sobre a formação do superego em um trecho de seu livro:
No momento, ela [Melanie Klein] afirma que, desde a “posição oral”,
a criança estabelece dentro de si a imago devoradora, decorrente de
seu próprio desejo de incorporação, voltado contra si mesma. Para
Klein, era esse o método de construção do superego: ou seja, a partir
de cada uma das “posições” [oral, anal, genital], era o próprio
movimento pulsional que, retornando contra si, provocava o depósito
de uma primeira “camada” de superego. Ela chamava isso de
“primeira camada identificatória” do superego, que seria formado por
uma série de camadas, a primeira delas derivada da experiência de
“devorar-ser devorado”. Essa primeira dimensão do superego
acenava com a ameaça de ser devorado, ao passo que as outras
camadas acenavam com o risco de ser paralisado, controlado,
queimado, invadido ou penetrado, revelando os demais traços sádico-
anais, uretrais e fálicos (CINTRA e FIGUEIREDO, 2004, p. 70, grifo
dos autores).
Ou seja, o superego seria formado a partir das diversas vivências de ataques aos
objetos e as introjeções decorrentes desses ataques teriam a conotação da fixação pré-
genital do momento em que essas inúmeras fantasias foram experimentadas em relação
a esses objetos. Entendo que essa dinâmica confere ao superego um caráter disperso e
múltiplo, diferindo da imagem de uma instância unificada e coesa. Dependendo da
ocasião, o superego teria uma atuação distinta e relacionada ao objeto interno atuante no
momento, mantendo em comum com as outras imagos sua característica cruel e
opressora.
Nesses textos iniciais de sua obra, Melanie Klein acredita que quando o sadismo
diminui e lugar às tendências genitais, o círculo vicioso perde sua força e a
severidade do superego se abranda, assemelhando-se cada vez mais com o superego
freudiano. É de se notar, então, que apesar do distanciamento que a obra de Klein ia
tomando em relação à de Freud quanto à questão do superego, havia uma busca por
parte dela em se manter fiel às idéias do pai da Psicanálise. Posteriormente ela
desvincularia a noção de superego do complexo de Édipo primitivo (CINTRA e
25
FIGUEIREDO, 2004) e daria cada vez mais ênfase à noção de mundo interno
(HINSHELWOOD, 1992, verbete superego).
O que a autora chama nesses artigos de tendências pré-genitais e tendências
genitais será posteriormente englobado nas formulações sobre a posição esquizo-
paronóide e sobre a posição depressiva, respectivamente (CINTRA e FIGUEIREDO,
2004). Nesse sentido, é possível compreender que a severidade do superego diminui
com a integração das características boas e más em um mesmo objeto, indício da
elaboração da posição depressiva. Os objetos internos, ao se tornarem mais completos e
totais, perderiam sua conotação plenamente agressiva e sádica, passando a conter
também elementos positivos e integradores (HINSHELWOOD, 1992, verbete
superego).
Tanto no texto de 1927 quanto no de 1933, a autora afirma que a intensidade do
círculo vicioso e a ansiedade decorrente dele estariam na base das tendências criminais
e associais dos indivíduos. Este ciclo estaria presente em uma criança agressiva. O
menino projetaria e atacaria o objeto em fantasia e na realidade externa, temendo a
retaliação proveniente de tais ataques. Para se defender atacaria novamente e não seria
estranho nos depararmos com uma criança que projeta sobre o objeto externo as
características de seu superego cruel, tornando o mundo externo sombrio e ameaçador.
Tal afirmação leva a uma nova forma de perceber a agressividade, dado que é a
severidade e a crueldade do superego - não a sua fraqueza - que levariam a esse tipo de
conduta e explicariam o comportamento agressivo das crianças, posição diferente do
que se poderia supor. A inibição intelectual também seria um sintoma decorrente da
ação sádica presente na vida de fantasia da criança, levando a um temor de retaliação
que inibiria essas próprias fantasias e impediria seu direcionamento para outros objetos,
o que está na base da formação dos símbolos (KLEIN, 1930) e do próprio brincar.
26
Dessa forma, é importante que a criança seja capaz de tolerar pelo menos certo nível de
ansiedade para que não venha a apresentar problemas mais sérios.
As considerações a respeito da vida mental inicial do bebê recebem maior
elaboração teórica a partir do texto “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides”
(KLEIN,1946), quando nomeia o conjunto de angústias e defesas característicos desse
momento como posição esquizo-paronóide. Em 1934 a autora já iniciara sua teorização
sobre a posição depressiva, mas para que nossa seqüência de pensamento nos mantenha
em contato com os processos descritos, vale a pena determo-nos em algumas
considerações a respeito da posição esquizo-paronóide.
Nesse momento de sua obra, as angústias vividas nessa posição, bem como as
defesas em torno delas, nos são trazidas de forma mais sistematizada. Fica mais claro
que a presença da pulsão de morte desde o início da vida é a grande responsável pela
ameaça de desintegração sofrida pelo ego. Seria
[...] uma ameaça de aniquilação em abstrato, embora logo se
objetalize, isto é, passe a manifestar-se em conexão com os objetos
primários, vindo a tornar-se então angústia persecutória: a
aniquilação deixa de ser um perigo e uma ameaça abstrata e
transforma-se no medo de ser aniquilado por perseguidores concretos
que provocam terror (CINTRA e FIGUEIREDO, 2004, p. 110, grifo
dos autores).
A partir daí, os mecanismos de defesa utilizados pelo ego serão: “[...] os
mecanismos de divisão do objeto e os impulsos, idealização, negação da realidade
interna e externa, e a repressão de emoções” (KLEIN, 1946, p.315). À cisão ou divisão
dos objetos, entre bom e mau e dos impulsos, entre amor e ódio, segue-se,
invariavelmente, uma cisão do próprio ego da criança. Nesse sentido, a angústia
suscitada pela presença da pulsão de morte levará a momentos de maior fragmentação
egóica, o que até certo ponto é uma medida necessária ao desenvolvimento, que é
mais difícil se destruir uma estrutura fragmentada e dispersa que uma coesa e facilmente
identificável. O problema se quando esses momentos de fragmentação se tornam
27
muito freqüentes, lançando as bases para uma psicose. É importante esclarecer que esse
ego arcaico, em sua própria constituição, carece de coesão e o caminho a uma
integração cada vez mais consolidada se da a partir da progressiva introjeção do
objeto bom.
A idealização de um objeto como extremamente bom seria uma forma de
protegê-lo e de cuidar de sua integridade, mantendo-o distante de seu corolário mau e
ameaçador. Porém, ao se distanciar o objeto persecutório, corre-se o risco de negar sua
existência na realidade interna, desconsiderando aspectos importantes da vida psíquica e
provocando um distanciamento das emoções, tema diretamente relacionado com a
problemática da inibição intelectual e com o empobrecimento simbólico. Além disso,
negar a dor e a frustração é querer ‘formatar’ de modo onipotente a
realidade.[...] negar os maus sentimentos e a dor é, para ela [Melanie
Klein], negar a realidade psíquica, o que se torna possível pela
alucinação, típica do modo de pensar arcaico. (CINTRA e
FIGUEIREDO, 2004, p.113).
Com isso, suprime-se também a parte do ego correspondente aos sentimentos de
ódio.
Outra contribuição importante desse texto (KLEIN, 1946), especialmente para
esta dissertação, é o surgimento do conceito de identificação projetiva. Este mecanismo
de defesa corresponde a uma cisão profunda dos impulsos e de partes do ego com a
imediata projeção destes aspectos para dentro do objeto. É uma forma de lidar com o
intolerável da pulsão e do próprio ego que odeia, jogando-os para fora de si, mas de
maneira abusiva e violenta com o objeto. O uso desse mecanismo cria uma identificação
inconsciente com o objeto-depositário, que ele passa a ser portador de partes do self -
aqui compreendido como uma combinação de elementos do ego e do id - da criança.
Melanie Klein (1946) afirma que esse é o protótipo de uma relação agressiva e
pontua que uma característica típica das relações de objeto na posição esquizo-
paranóide é sua natureza narcísica. Isso porque o objeto não é dotado de alteridade,
28
tornando-se, assim, uma extensão do mundo interno do bebê. A busca por controle
dessas partes excindidas
5
da personalidade acaba por levar a tentativas de controle do
outro, que ele se torna a personificação daquilo que precisa ser monitorado. O
objetivo da identificação projetiva seria
[...] danificar, destruir, mas também controlar e tomar posse da mãe,
isto é, transformá-la em um boneco vazio habitado pelos próprios
impulsos. Além disso, esta evacuação para dentro do outro é a
maneira mais eficaz de colocar as forças e partes más do self longe
das partes boas que precisam ser resguardadas (CINTRA e
FIGUEIREDO, 2004, p. 115, grifo dos autores).
Se considerarmos que muitas das experiências de uma criança agressiva podem
se situar dentro da perspectiva da posição esquizo-paranóide, poderíamos conjecturar
também, que os mecanismos de defesa acima descritos seriam utilizados por tais
crianças em alguma medida.
Voltemo-nos para a situação em que os traços hostis são o conteúdo da excisão.
Duas conseqüências imediatas se fazem presentes: o intenso medo do perseguidor,
que ele contém aquilo que eu considero mais destrutivo e por isso não suporto; e o
empobrecimento do ego - caso seja feito um uso intenso do mecanismo de defesa em
questão. Ao colocar no outro partes do meu próprio ego, desfaço-me de aspectos
importantes em minha personalidade. A destrutividade é um elemento fundamental nos
sentimentos de potência e na apreensão do conhecimento. Se ela não for assimilada ao
ego é bem provável que se tenha como resultado a sensação de artificialidade e de
pouca espontaneidade.
A introjeção é outro mecanismo importante utilizado desde o início da vida. Não
é introjetado o mau objeto como também aquele que é considerado bom e que se
forma a partir das experiências prazerosas do bebê. A introjeção desse bom objeto, aos
poucos, vai ser a responsável pela maior coesão do ego, atuando como elemento
fundamental para a integração da personalidade. Entramos então, no terreno da posição
5
O termo excisão é aqui utilizado como um sinônimo de identificação projetiva.
29
depressiva (KLEIN, 1934, 1940), momento em que a postura do ego frente ao objeto
começa a mudar e relações mais completas e totais entram em questão, assim como as
angústias e defesas suscitadas por essa alteração. A elaboração da posição depressiva é
um elemento fundamental para a constituição do sujeito psíquico e sua predominância
em relação à posição esquizo-paronóde está diretamente relacionada com a consistente
introjeção do objeto bom. Utilizo aqui o termo predominância por que as duas posições
irão se alternar ao longo de toda a vida da pessoa.
A importância desse “acontecimento psíquico” pode ser compreendida nesta
passagem de Cintra e Figueiredo:
A introjeção do objeto bom é a colocação, para dentro do aparelho
psíquico, de todas as experiências de prazer formando um registro
dinâmico bem estabelecido, isto é, uma “reserva” interna de
experiências de prazer que pode funcionar como uma garantia de
acesso ao prazer e à segurança, aumentando a capacidade de se
tolerar estados transitórios de privação ou frustração.[...] Esse objeto
bom introjetado será a fonte das pulsões de vida e do amor. (2004, p.
84, grifos dos autores)
Na posição esquizo-paranóide, o bom objeto ocupa um estatuto ideal e, como tal,
distante da realidade na qual deveria se basear. Com o advento da posição depressiva, o
objeto passa a ter características mais totais, o que pressupõe a integração entre partes
“boas” e “más” em um mesmo conjunto (KLEIN, 1934, 1940). Essa é uma
característica crucial para que a posição depressiva seja elaborada. Ao integrar essas
características opostas, o bebê se conta da destruição que causou em fantasia ao seu
objeto de amor. Sente que aquilo que ama foi atacado e danificado, dada a cisão
anteriormente descrita. Surge então, a tristeza e o desespero pelo mau trato causado e
tem início a vivência de um sentimento de medo da perda desse objeto, que vem a
marcar a angústia depressiva: “somente depois que o objeto tenha sido amado como um
todo, poderá a sua perda ser sentida como um todo (KLEIN, 1934, p. 358, grifo do
autor). Se na posição esquizo-paranóide a angústia básica era a da aniquilação do
30
próprio ego, na posição depressiva a ela vem se juntar o temor pela perda do objeto. A
situação fica, dessa forma, muito mais complexa, que uma angústia não sucede a
outra, embora a ameaça de desintegração perca sua intensidade na posição depressiva e
elas passam a coexistir (KLEIN, 1934, 1940).
Na época do desmame, por volta dos quatro, cinco meses de idade, “a criança
tem um primeiro vislumbre da mãe como objeto total” (CINTRA e FIGUEIREDO,
2004, p. 79) e, nesse momento, passa a se preocupar com a integridade desta mãe e a
temer sua desaparição. Inicia-se a capacidade de reconhecimento do outro como
alteridade, postura bem diferente de uma relação narcisista com o objeto. A sensação de
ter causado dano àquele que se ama, leva ao sentimento de culpa e de preocupação por
ele. Isso motivará na criança suas tendências construtivas e de reparação amorosa ao
objeto inconscientemente danificado.
Mas a reparação pode não ocorrer na medida necessária, especialmente quando
se apresentam as defesas maníacas em torno da nova forma de angústia experimentada.
Nesses momentos, para restituir a integridade do objeto, ocorre uma anulação dos danos
causados em fantasia pelos ataques sádicos, negando-se, novamente, a própria realidade
interna, que os perseguidores são também anulados (KLEIN, 1934, 1940). Nesse
sentido, as defesas maníacas procuram proteger o sujeito tanto de seus perseguidores
internos - intensos na posição esquizo-paranóide -, quanto da dor e do desespero frente à
constatação de dano ao objeto amoroso - próprios da posição depressiva. As formas de
reparação utilizadas por essas defesas possuem caráter mágico e não real, característicos
da onipotência vivida na mania, impedindo um movimento reparatório mais consistente,
em que a capacidade de sublimação se encontraria mais desenvolvida. O sujeito não
assume, com isso, as responsabilidades inerentes às suas tendências destrutivas, ficando
impossibilitada uma real restituição ao objeto espoliado.
31
O início de uma relação de objeto total abre para a criança um mundo antes
desconhecido, um mundo que não faz parte dela, dando início a uma noção de não-eu e
de uma realidade externa independente de seus próprios desejos. Compreende-se, assim,
que a posição depressiva pressupõe a elaboração de um, ou melhor, de vários lutos
(KLEIN, 1940). O luto pela própria onipotência, pela separação lenta e gradual dos pais,
pela própria perfeição etc. Enfim, a elaboração da posição depressiva permite que o
sujeito aceite sua própria finitude e a transitoriedade que a vida lhe impõe, capacitando-
o a atravessar as diversas dores e perdas que enfrentará no duro caminho do viver. É por
meio da resolução dessa posição “[...] que, de certa forma, os bebês entram no rio do
tempo e começam a aprender a lidar com esse terrível veredicto da realidade que é a
transitoriedade de tudo. Em todo processo de luto, aceitação de uma morte e algum
tipo de renascimento”. (CINTRA e FIGUEIREDO, 2004, p. 93).
Na posição depressiva,
o objeto do luto é o seio da mãe e tudo o que o seio e o leite
chegaram a ser na mente da criança, ou seja: amor, bondade e
segurança. A criança sente que perdeu isto tudo e que esta perda é o
resultado de sua incontrolável voracidade e de suas próprias fantasias
e impulsos destrutivos contra o seio da mãe (KLEIN, 1940, p. 392).
Dessa forma, o processo de luto implicado pela posição depressiva, assim como
todos os lutos posteriores da vida do sujeito, levarão ao sentimento inicial da perda do
bom objeto internalizado e o medo pelo colapso do mundo interno. Esse estado pode,
com o tempo, ser sobrepujado caso a internalização do objeto bom tenha ocorrido de
forma intensa e consistente. E isso se , em grande medida, a partir das experiências
amorosas e satisfatórias que a criança experimentou na realidade (KLEIN, 1940), com
sua mãe, pai ou qualquer substituto deles. A prova de que esses objetos não estão
realmente destruídos e ainda estão disponíveis, aumenta a confiança na própria
capacidade amorosa e o luto pode ser, assim elaborado, dando força ao objeto interno
amado. Em todas as perdas que vierem a ocorrer na vida posterior da pessoa, a forma
32
como esse primeiro luto foi elaborado será retomada e dará uma espécie de molde às
experiências subseqüentes. É digno de nota que nos casos de melancolia esse processo
não pôde ser atravessado, sentindo a pessoa que seu mundo interno foi devastado e que
nada mais vale à pena. No luto normal, o objeto amado é reinstalado na vida mental do
sujeito, assim como o objeto perdido, ganhando força e se revitalizando (KLEIN, 1940)
- o renascer que sobrevém à morte.
Além disso, quando a criança pequena não consegue confiar o suficiente em seus
sentimentos construtivos, recorre à onipotência maníaca e isso poderá ser melhor
observado no momento em que nos referirmos aos atendimentos que serviram de base
para a presente pesquisa. As defesas maníacas levam a uma desconsideração e a um
desprezo crescente em relação ao objeto, como se ele fosse algo sem importância e que
não merecesse consideração. Na realidade, esse estado de coisas refere-se, em última
instância, à negação do dano causado à mãe e ao sentimento de perda que isso implica.
O processo de luto fica interrompido, bem como não o alívio da culpa, pois não
houve uma reparação efetiva. Não é raro se encontrar nesses momentos a sensação de
triunfo sobre o objeto, como se a criança sentisse que se sobrepujasse ao poder dos pais
e triunfasse sobre eles (KLEIN, 1940).
A criança imagina que chegará o momento em que será forte, grande,
poderosa, rica e potente e em que o pai e mãe se transformarão em
crianças indefesas ou, em outras fantasias, em pessoas muito velhas,
fracas, pobres e desprezadas” (KLEIN, 1940, p. 401).
As dificuldades advindas do processo de elaboração da posição depressiva
podem levar também a um retorno em direção às defesas características da posição
esquizo-paranóide. Ou seja, o uso excessivo da cisão, da negação, da idealização e da
identificação projetiva, dando novamente força ao sadismo e às angústias de
fragmentação.
33
A angústia pela perda do objeto, decorrente dos ataques sádicos, pode ser
insuportável nesses casos. Existe a impossibilidade de se viver uma tristeza e de se
elaborar um luto. Muito provavelmente porque o bom objeto não foi consistentemente
internalizado. Daí decorre os diversos tipos de defesas, especialmente as de cunho
maníaco, e o possível retorno à posição esquizo-paranóide, com a intensa vivência do
sadismo em relação ao objeto. Para que o bom objeto possa ser internalizado, os
momentos de gratificação com a mãe são de fundamental importância e é provável que
em muitos casos em que a agressividade é a queixa principal, isso não tenha ocorrido de
maneira satisfatória.
2.1.2. A contribuição de Donald Winnicott
Outra referência importante para pensarmos a agressividade a partir de uma
perspectiva psicanalítica é a obra de Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês
cuja atenção se voltou para os processos de maturação e para a importância do ambiente
no desenvolvimento psíquico da criança. Para isso, muito se valeu de suas observações
clínicas de bebês e de suas mães como médico, além de seu trabalho analítico com
infantes.
É importante ressaltar que a obra de Winnicott nos traz uma visão por vezes
inovadora dos processos subjacentes à integração da personalidade e nos remete a um
diálogo freqüente com as considerações teóricas de Melanie Klein. Não se pode deixar
de notar a influência desta autora no pensamento de Winnicott, por mais que tenha
ocorrido uma crescente separação e discordância por parte deste em relação ao
pensamento kleiniano.
34
A ênfase na importância de um ambiente suficientemente bom, representado em
um primeiro momento na relação mãe-bebê, como algo fundamental e facilitador dos
processos de crescimento põem em relevo a importância de o se considerar apenas o
mundo interno ao se pensar os momentos iniciais do desenvolvimento emocional.
Winnicott (1963a) acreditava nesses processos naturais de crescimento, sendo que as
pessoas - o ambiente - deveriam apenas se ajustar a eles, favorecendo-os e respeitando-
os. No momento inicial da vida da criança, para que essa tendência natural tenha curso,
é necessária uma profunda identificação da mãe com as necessidades e com os
movimentos de seu bebê. A mãe sustenta, assim, as experiências vividas pelo bebê, mas
que ainda não podem ser significadas por ele, dada sua prematuridade.
Nesse sentido, quando o lactante deseja o seio e a mãe imediatamente o
apresenta, na perspectiva do bebê, o seio é criado por ele e não simplesmente
apresentado. É o fruto de seu desejo e de sua onipotência (WINNICOTT, 1966). A mãe
possibilita, assim, um espaço de ilusão em que o desejo é vivido com toda sua
capacidade criativa. O bebê cria e destrói o mundo conforme seus impulsos têm curso e
a mãe é um elemento essencial para que isso ocorra (WINNICOTT, 1964). Com o
decorrer do desenvolvimento, esse estado de ilusão é gradualmente rompido, deixando
as bases para um viver construtivo e autêntico. Mas é importante que tal estado tenha
sido consistentemente experimentado para que a realidade possa ser apresentada. Dessa
forma, para Winnicott (1963b, 1964, 1966), a livre expressão dos impulsos está em
íntima relação com o brincar, com o construir e com o criar e dependem, por sua vez, do
relacionamento naturalmente recíproco entre o bebê e sua mãe.
Outro ponto de destaque na separação entre os dois autores, e também entre
Winnicott e Freud, diz respeito à noção de pulsão de morte, conceito elaborado por
Freud e, como vimos, amplamente utilizado por Klein para descrever o mundo mental
35
infantil. Winnicott não trabalha com essa noção e a descarta para pensar as questões
emocionais do ser humano. Em suas próprias palavras (1962, p.61): “Por exemplo,
simplesmente não acho válida sua idéia [de Freud] de instinto de morte”.
Inevitavelmente, este posicionamento levará a uma concepção distinta de Klein quanto
às origens da agressividade e da tendência anti-social.
Procurando fundamentar suas idéias não apenas a partir do tratamento analítico
de crianças, mas também pela observação direta de bebês com suas mães, ele nos diz:
Se tentarmos observar o início da agressividade num indivíduo, o que
encontraremos é o fato de um movimento do bebê.[...] Por
conseguinte, existe em toda criança essa tendência para movimentar-
se e obter alguma espécie de prazer muscular no movimento,
lucrando com a experiência de mover-se e dar de encontro com
alguma coisa.(WINNICOTT, 1964, p.103)
Nesse sentido, a origem da agressividade se encontraria nessa motilidade
apresentada desde o início da vida, especialmente quando o infante está excitado. A
motilidade seria então, a precursora da agressão. Segundo Phillips (1989), em suas
considerações sobre as propostas winnicottianas, a vida pulsional
6
seria composta por
componentes agressivos e eróticos, entendendo-se aqui os componentes agressivos
fundados nessa energia motora. Seria a partir dessa fusão, que a agressividade
começaria, aos poucos, a ganhar sentido na relação com o objeto. Na doença, esses
componentes permaneceriam em grande parte separados e esse potencial agressivo seria
vivido como uma força estranha à personalidade, o que poderia levar à destrutividade
ou até mesmo a atividades completamente sem significação, como no caso de uma
convulsão. Apesar de não se falar aqui em uma pulsão de morte e em uma pulsão de
amor, a força pulsional seria insuficiente e incompleta sem esse componente agressivo.
Ou seja, uma vivência pulsional plena e satisfatória deve conter essa energia agressiva
para que venha a servir de sustentação ao espaço de ilusão e, futuramente, à
6
Também ao abordar o pensamento de Winnicott, preferi utilizar o termo pulsão ao invés de instinto,
embora este último seja usado no original em inglês.
36
criatividade. O potencial agressivo ganha, assim, um valor positivo dentro da obra de
Winnicott.
Poderíamos pensar, então, que se o inevitável período de desilusão, inerente à
relação da mãe com seu bebê, não acompanhar as capacidades da criança - se a criança
não tiver experimentado de forma satisfatória a ilusão antes de sentir o peso da realidade
- esse evento pode se tornar traumático e as capacidades construtivas do infante correm
o risco de não se desenvolver. Para que esse espaço de ilusão entre a mãe e a criança
seja criado, a carga agressiva da vida pulsional deve ter plena expressão.
Phillips (1989) prossegue sua discussão sobre a obra de Winnicott e coloca que,
para este autor, anteriormente à integração da personalidade, encontra-se esse estado de
agressividade original e primária, semelhante ou equivalente à atividade motora. Apesar
do uso confuso dos termos e com a repetição da palavra agressão em diversos contextos
distintos, a agressividade com o intuito de um ataque faria sentido, no pensamento
winnicottiano, após algumas conquistas provenientes do desenvolvimento. Dessa forma,
no início, nesse estado ainda não integrado, uma vivência de amor primitivo, em que
o objeto pode mesmo ser danificado - em fantasia ou até mesmo na realidade externa -,
mas não existe ainda o propósito de que isso seja feito. Seria uma espécie de amor rude
e despreocupado em que o componente agressivo teria livre expressão junto ao ímpeto
amoroso.
Então, se nesse estágio o bebê mama no seio da mãe com toda excitação que
esse evento lhe proporciona, isso não quer dizer que pretenda destruir ou machucar o
seio, por mais que isso possa ocorrer durante as mamadas. Seria um estágio de falta de
preocupação ou de crueldade sem o propósito ou intenção de dano. Não podemos dizer
que nesse contexto o bebê esteja odiando a mãe, ele apenas a está amando de forma
37
rude e excitada. Além disso, como vimos, é fundamental que essas experiências sejam
vividas, já que são elas que darão sustentação a um viver criativo.
Conforme o desenvolvimento do bebê segue seu curso, a integração de sua
personalidade começa a aumentar e isso permite uma série de mudanças. Ele passa, aos
poucos, a distinguir uma realidade interna e uma externa, assim como a mãe passa a ser
alguém diferente dele, de modo a tornar-se uma figura total. Winnicott (1963b) postula,
ainda antes da integração, a existência de duas mães para o bebê, as quais denotam
diferentes aspectos dos cuidados com a criança. É à mãe objeto que o bebê dirige seus
impulsos pulsionais e faz com que ela tenha que dar conta de seu amor excitado e
rudimentar. Nesse caso, ela é usada de forma implacável e o bebê não leva em conta as
conseqüências desse uso. Concomitantemente, um relacionamento mais tranqüilo
com a mãe quando a experiência excitada teve fim e a afeição e a ternura podem
surgir. É a mãe-ambiente que afasta o imprevisto e permite esse contato prazeroso e
calmo com seu filho. A integração da personalidade leva também à integração dessas
duas experiências.
É importante, nesse processo, que a mãe-objeto permaneça viva e disponível
após os episódios de plena intensidade pulsional. Com a fusão das duas imagens, o bebê
sente que precisa fazer algo que aplaque os resultados de sua destruição. Para isso é
importante que ele possa oferecer à mãe-ambiente um gesto reparador e construtivo,
pois é isso que lhe dará confiança para dominar a ansiedade decorrente de seus próprios
impulsos. A presença constante da mãe para receber esse gesto permite que a confiança
se instale e a criança tenha a chance de experimentar cada vez mais plenamente seus
impulsos, que “sabe” que o ambiente lhe dará a oportunidade para compensar a
brutalidade de sua excitação. Quando este ciclo benigno se estabelece de forma
consistente, a criança se torna responsável por sua própria destrutividade e por seu ódio,
38
sendo que os sentimentos de culpa decorrentes se transformam em confiança na
oportunidade para contribuir. Essa é uma outra forma de se compreender a elaboração
da posição depressiva e Winnicott (1963b, 1966) vai nomear esse estágio como a
aquisição da capacidade de envolvimento.
Esta é uma aquisição importante do desenvolvimento e leva à instauração de
uma postura ética em relação ao outro e ao mundo que o rodeia. O indivíduo agora se
preocupa com a conseqüência de seus atos e se responsabiliza por eles, cuidando do que
ama. Se pensarmos a questão da agressividade a partir dessas considerações,
chegaremos à conclusão de que provavelmente essa aquisição maturacional não foi
alcançada por um menino agressivo e destrutivo. Além do mais, na perspectiva
winnicottiana, isso provavelmente ocorreu por uma falha ambiental. Então, para esses
meninos, ao chegarem a um estágio de integração da personalidade, podemos
conjecturar que a oportunidade para oferecer o gesto construtivo não foi suficientemente
oferecida, deixando-os sós para lidar com a ansiedade decorrente de suas fantasias
agressivas, o que torna a criança agressiva bastante ansiosa.
Se o ambiente não oferece a oportunidade para a restauração, o bebê fica privado
da possibilidade de viver plenamente seus impulsos, pois alguma proteção deve ser dada
ao objeto e uma inibição na livre expressão pulsional pode se fazer presente. Isso
prejudicará imensamente o potencial criativo do sujeito e poderá levar a uma existência
pouco autêntica e falseada.
Continuando a pensar as implicações dessa privação na coesão da personalidade,
Phillips (1989) observa que, para Winnicott, é a vivência do componente agressivo na
satisfação pulsional que leva a uma crescente diferenciação entre um eu e um não-eu,
entre um mundo interno e um externo, entre o corpo e o ambiente que o rodeia. É o
potencial agressivo que permite o estabelecimento de um mundo externo, um mundo
39
que resiste ao movimento agressivo (WINNICOTT, 1964) e possibilita a definição dos
próprios limites corporais da criança. A satisfação da parte agressiva da vida pulsional
só ocorre quando encontra uma oposição do ambiente e aqui se destaca a importância de
um adulto que ponha um limite à agressividade infantil sem deixar a criança sozinha
com sua carga destrutiva. Mas se o componente agressivo procura uma oposição que o
contenha e que estabeleça um limite entre o outro e o eu, o que ocorre se isso fica
impossibilitado? Um caminho pode ser o de uma não diferenciação tão clara entre o
que é externo e o que não é. Arrisco a dizer que essa configuração nos remete a uma
forma de relação narcisista com o objeto. Não custa afirmar que o encontro com uma
criança cujo funcionamento mental não leve em conta a alteridade poderia ser algo da
ordem do violento, dado o controle a que nos veríamos submetidos quando
ocupássemos a posição do objeto.
Porém, esse não é o caminho escolhido por Winnicott em suas elaborações
teóricas e a temática da privação ambiental está, para ele, diretamente relacionada com a
tendência anti-social. Trata-se, em sua visão - sobre a tendência anti-social-, de um sinal
de esperança por parte da criança (WINNICOTT, 1956). Em certa medida, ela,
inconscientemente “reconhece” que o ambiente falhou e, por isso, clama por uma
restituição. É como se até um determinado período as coisas andassem bem - o que
permitira uma certa coesão à personalidade -, mas, de repente o ambiente falhou e a
experiência boa foi perdida e estendeu-se por um período maior ao que a criança
poderia mantê-la viva em sua lembrança. Porém, inconscientemente a falha é sentida e a
manifestação anti-social corresponderia a uma exigência que a criança faz ao ambiente.
De forma geral, a tendência anti-social se apresenta com duas manifestações
básicas: o roubo e a destrutividade. No primeiro caso, a criança estaria procurando algo
que se perdeu e precisa ser reencontrado e a hipótese winnicottiana para isso é a de que
40
ela procura a mãe. Winnicott (1956) parece sugerir que ela procura a mãe-ambiente e
aquele montante de expressão amorosa que se manifestava na relação com ela. Na
destrutividade, a procura seria por uma estabilidade ambiental que resista à tensão
pulsional. É a busca pela segurança na livre expressão pulsional. Seria então à mãe-
objeto que a busca seria dirigida nesse caso. Lembremo-nos, que uma função essencial
ao desenvolvimento é que essa mãe sobreviva a essa descarga e faça oposição a ela.
A partir da exposição teórica feita até o momento, podemos perceber que tanto
as concepções kleinianas quanto winnicottianas apontam para processos psíquicos
iniciais intensos na vida do bebê. Conforme foi observado pelas posições desses
autores, tais processos mantêm relações importantes com o desenvolvimento da
agressividade tanto no indivíduo sadio, quanto naquele que vem a adoecer. O encontro
com um menino agressivo, cuja destrutividade está constantemente presente, não é algo
simples e demanda uma capacidade muito grande de recepção e de elaboração dos
conteúdos vivenciados nas sessões. Especialmente se lembrarmos das considerações de
Melanie Klein a respeito das defesas de cunho psicótico e das dificuldades em se
elaborar a posição depressiva.
Freqüentemente, nas sessões com o menino considerado agressivo cujo caso será
relatado posteriormente, eu experimentava estados de muita confusão interna e por
vezes me via sendo também agressivo com ele. E aí, entramos na questão do lugar do
analista e da contratransferência nestes atendimentos, indagação que mais me chama a
atenção em minha curta trajetória clínica. Talvez minha questão fundamental nesse
estudo possa ser descrita com a seguinte pergunta: Quem era eu ou quem eu me
tornava - quando me encontrava com aquele garoto? A proposta é a de tentar
41
compreender, pelo menos em parte, o que acontecia comigo naqueles momentos mais
angustiados dos contatos com a criança e também relatar as diversas vivências e
dificuldades que passei junto dele. Dessa forma, considero necessário fazer uma
exposição teórica sobre o tema da transferência e da contratransferência, dando maior
enfoque aos autores que serão utilizados na discussão do caso clínico que apresentarei
posteriormente.
2.2. A transferência e a contratransferência
Apresentarei agora uma breve introdução sobre os conceitos de transferência e
de contratransferência. Em relação à transferência, utilizarei alguns artigos de Freud
sobre o tema e em seguida um texto de Melanie Klein sobre o mesmo assunto. Na
seqüência, abordarei a temática da contratransferência a partir do artigo de Paula
Heimann de 1950 e alguns desdobramentos deste sobre as articulações entre
contratransferência e identificação projetiva no pensamento dos neokleinianos de forma
geral. Abordarei também o artigo de Winnicott (1949) “O ódio na contratransferência”.
Em seguida, dedicarei uma seção sobre o assunto a partir das considerações do
psicanalista Pierre Fédida.
Para abordar a transferência, considero ser ilustrativo iniciarmos com a definição
dada por Freud (1905 [1901]) no pós-escrito do artigo em que nos apresenta o caso
Dora. Diz Freud a respeito do tema:
Que são transferências? São as novas edições, ou fac símiles, dos
impulsos e fantasias que são criados e se tornam conscientes durante
o andamento da análise; possuem, entretanto, esta particularidade,
que é característica de sua espécie: substituem uma figura anterior
pela figura do médico. Em outras palavras: é renovada toda uma série
de experiências psicológicas, não como pertencentes ao passado, mas
aplicadas à pessoa do médico no momento presente. (FREUD, 1905
[1901], p. 113).
42
Naquela época, Freud considerava a transferência como um entrave ao processo
analítico. Mais tarde, passou a considerá-la como um decisivo fator terapêutico. Em
“Cinco lições de Psicanálise” (1910 [1909]) ele destacou o valor da transferência para o
sucesso do tratamento. Segundo ele, o paciente viveria, na relação com o terapeuta,
aquilo que não podia se lembrar de sua vida sentimental. E seria pela transferência que o
paciente poderia se dar conta “da existência e do poder desses sentimentos sexuais
inconscientes” (FREUD, 1910 [1909], p. 47). Apenas pelo manejo da transferência os
sentimentos inconscientes poderiam se transformar em outros produtos psíquicos.
Em 1912, ao discorrer sobre o tema, ele afirmou que cada indivíduo possui uma
forma peculiar de amar e de se conduzir na vida erótica, o que decorre da interação
entre aspectos constitucionais e ambientais em seu desenvolvimento. Em suas
tendências libidinais, o indivíduo procuraria a satisfação com a descarga de seus
impulsos eróticos. Porém, nem todo esse quantum de sua libido seria satisfeito no
contato com a realidade. Uma parte de seus impulsos libidinais ficaria frustrada em seus
objetivos e teria expressão nas fantasias conscientes e na imaginação da pessoa ou seria
recalcada, permanecendo no inconsciente. Assim, qualquer encontro com um novo
objeto levaria essa tendência libidinal a procurar satisfação e tanto os aspectos
conscientes quanto inconscientes desta libido insatisfeita teriam curso neste momento,
especialmente na situação analítica com a figura do terapeuta.
Neste mesmo texto, Freud (1912) procura relacionar a transferência com a
resistência. Quando o analista toca em pontos profundos do material inconsciente,
avançando a análise em direção aos complexos patogênicos inconscientes, a
transferência entraria em cena como um produto da ação da resistência sobre os
conteúdos inconscientes, sobre o componente inconsciente da libido. O paciente
43
interromperia seu processo associativo, transferindo para o analista os impulsos que
teriam sido dirigidos para seus objetos originais. Seria a natureza erótica dos conteúdos
mantidos inconscientes pela ação do recalque que tornaria a transferência uma fonte de
resistência na análise. Ao mesmo tempo em que a resistência impediria o conhecimento
do material recalcado, ela possibilitaria uma formação de compromisso para que esse
material se expressasse de forma distorcida na relação. A análise da transferência
permitiria a compreensão dos afetos e conteúdos recalcados e os organizaria em uma
perspectiva temporal de acordo com a realidade, já que favoreceria sua passagem à
consciência. Em outras palavras, a análise da transferência permitiria ao analista
identificar e interpretar a que se refeririam tais sentimentos e afetos vividos na relação.
Em 1914, Freud assinalou que o paciente repete - reproduz como ação aquilo
que não consegue se lembrar - o que está inacessível à sua consciência. E o faz sob as
condições da resistência. A repetição teria sua expressão na transferência, sendo esta
última, na verdade, um fragmento da própria repetição. E se perguntou o que de fato o
paciente repete ou atua.
A resposta é que repete tudo o que avançou a partir das fontes do
reprimido para sua personalidade manifesta suas inibições, suas
atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter. Repete também,
todos os seus sintomas, no decurso do tratamento. (FREUD, 1914, p.
198)
A conclusão que advém daí é a de que o início da análise o faz cessar a
enfermidade do paciente, mas sim que esta surge como uma força atual na relação com
o analista. Aos poucos o paciente substitui sua neurose por outra, vivida com o próprio
analista, a chamada neurose de transferência (FREUD, 1914). E seria na análise desta
que o terapeuta poderia ajudar o analisando.
Melanie Klein (1952), ao abordar a temática transferencial, retoma a definição
de Freud (1905) e coloca que quanto mais o analista abre caminho em direção ao
inconsciente do paciente, mais este último transferirá para a figura do terapeuta “suas
44
primitivas experiências, relações de objeto e emoções” (KLEIN, 1952, p. 71). Sendo
assim, o paciente utilizará os mesmos mecanismos e defesas que utilizou em situações
anteriores para lidar com os conflitos e ansiedades reativados pela análise. A
decorrência desta afirmação é que os processos mentais descritos por Melanie Klein, a
partir da análise de crianças pequenas, irão se manifestar na relação com o analista.
Assim, a conceituação elaborada por ela a respeito das ansiedades arcaicas, sobre os
mecanismos de defesas, sobre as fantasias e sobre as relações de objeto tanto na posição
esquizo-paranóide quanto na posição depressiva terá seus reflexos na transferência.
Klein (1952) também destaca a importância da análise da transferência negativa, a qual
seria uma condição para se analisar as camadas mais profundas do psiquismo. A
compreensão das primeiras relações de objeto nos leva a compreender que, na
transferência, o analista pode representar não o pai, a mãe ou outras pessoas da vida
do paciente, mas também aspectos de seu superego, de seu id e de seu ego, ou seja,
“qualquer uma ampla gama de figuras internalizadas” (KLEIN, 1952, p. 77).
Ainda neste artigo, ela afirma que, em seu ponto de vista, os elementos
inconscientes da transferência seriam deduzidos não do material que contivesse
algum tipo de referência à figura do analista, mas sim da totalidade do material
apresentado pelo paciente.
Por exemplo, relatos de pacientes sobre sua vida cotidiana, relações e
atividades não nos oferecem um insight quanto ao funcionamento
do ego, como também revelam, se explorarmos seu conteúdo
inconsciente, as defesas contra a ansiedade suscitadas na situação de
transferência. (KLEIN, 1952, p. 78)
Feitas estas apresentações sobre o conceito de transferência a partir de alguns
textos de Freud e Klein, volto minha atenção ao conceito de contratransferência:
Freud, sempre que tratou desta temática, considerou a contratransferência como
sendo resultado da influência do paciente sobre sentimentos e conflitos inconscientes do
45
analista. Nesse sentido, o termo é compreendido como uma resistência ao processo
terapêutico na medida em que impede ao analista o pleno exercício de seu principal
instrumento, sua mente. Caberia a ele - analista - identificar este processo e tentar
superá-lo, eliminando suas conseqüências adversas por meio da auto-análise e da análise
pessoal.
Melanie Klein manteve-se fiel à concepção freudiana de que a
contratransferência seria um obstáculo à análise, devendo ser superada pelo analista por
meio da auto-análise ou de sua análise pessoal. No entanto, uma de suas mais próximas
colaboradoras, Paula Heimann (1949/1950), apresentou um trabalho que abordava de
forma diferente a temática contratransferencial. Trabalho este que, em grande medida,
foi um dos motivos do rompimento entre elas.
Em seu artigo intitulado “On counter-transference”(1949/1950) Heimann declara
que, em sua experiência de supervisão com candidatos do Instituto de Psicanálise da
Sociedade Britânica, notava que muitos deles acreditavam que a contratransferência
nada mais era que uma fonte de problemas e mostravam-se culpados quando se
tornavam conscientes de seus sentimentos em relação aos pacientes, como se não
pudessem, de fato, senti-los. Procuravam, assim, evitar suas respostas emocionais,
tentando se mostrar sem sentimentos e desligados emocionalmente.
Acreditando que esta era uma questão problemática, dado que o analista teria
que deixar de reconhecer que também é um ser humano - e que poderia ser afetado pelo
contato com o outro - para se colocar em tal posição, ela desenvolve sua tese central a
respeito da contratransferência: a de que a resposta emocional do analista a seu paciente
representa uma das mais úteis ferramentas para o trabalho de análise. Assim entendida,
a contratransferência para Heimann (1949/1950), seria um instrumento de pesquisa ao
46
inconsciente do paciente. Vale destacar que a autora utiliza o termo contratransferência
para designar todos os sentimentos do analista em relação a seu paciente.
Tal posicionamento a respeito da temática leva o analista não a aceitar e a
acolher seus sentimentos durante as sessões - por mais estranhos e incômodos que lhe
possam parecer -, mas também a utilizá-los para acompanhar os movimentos
emocionais do paciente. Mas como isto ocorreria? Segundo Heimann (1949/1950), o
analista, além de manter uma atenção flutuante ao conteúdo do que o paciente lhe diz,
deveria se manter também sensível às suas próprias vivências internas. Seus
sentimentos seriam uma resposta a uma compreensão profunda que seu inconsciente
teve do inconsciente do analisando. Assim, a partir da gradual compreensão do que
sente, o analista poderia compreender o que ocorre com o paciente - dado que haveria
uma compreensão profunda entre inconscientes.
Com isto, Heimann (1949/1950) nos leva a um novo ponto: a contratransferência
seria não parte do processo analítico, mas uma criação do paciente, seria uma parte
da personalidade dele. A análise pessoal do analista o ajudaria a conter estes
sentimentos sem atuá-los, permitindo a ele trabalhar com o que sente sob esta
perspectiva, de que seus afetos se referem a e refletem uma parte da personalidade do
paciente. Haveria assim, uma compreensão do inconsciente do paciente pelo
inconsciente do analista e isto se transformaria em uma resposta emocional que
emergiria no terapeuta. Acolhendo esta resposta e comparando-a com o processo
associativo do analisando, aos poucos se chegaria a uma compreensão do que ocorre
com ele e, assim, se formaria a interpretação.
Este texto de Heimann, embora passível de críticas, abriu caminho para uma
série de explorações a respeito da contratransferência. Ressaltar o processo
contratransferencial como uma ferramenta útil à análise talvez seja sua grande
47
contribuição, o que implicou, por sua vez, em novas formas de se pensar a cnica
analítica. Heimann, em outro artigo escrito dez anos mais tarde (1959/1960), não deixou
de notar o mau uso que alguns analistas fizeram de seu artigo inicial sobre a
contratransferência, utilizando eles suas respostas emocionais como forma de culpar os
pacientes pelo que ocorria nas sessões, sem considerar a influência de seus aspectos
neuróticos neste movimento. É um risco que se corre ao utilizar os sentimentos durante
as sessões desta maneira.
É importante notar que, embora Heimann sofresse grande influência do
pensamento kleiniano em sua produção, ela não mencionou a identificação projetiva em
suas reflexões sobre a temática contratransferencial. Nem mesmo quando coloca que a
contratransferência corresponderia a uma criação do paciente no analista, ponto de
possível diálogo com o conceito kleiniano. É provável que isto tenha ocorrido pela
discordância de Klein em relação ao artigo de Heimann (1949/1950), acentuando a
separação entre elas.
Muito embora Klein discordasse do artigo, as contribuições que ele trouxe
estimulou a produção sobre a conceituação da contratransferência, tanto teórica quanto
tecnicamente, dentro do campo kleiniano. Muitos autores aproveitaram-se da noção de
que os sentimentos contratransferenciais são úteis ao processo analítico e se constituem
em grande medida como uma criação do paciente. Neste sentido, o conceito de
identificação projetiva foi bastante utilizado por eles para abordar esta perspectiva a
respeito da contratransferência. Não pretendo aqui, enumerar e relatar os diversos
trabalhos que surgiram desde então. Utilizarei um texto de Rocha (1994) a respeito da
contribuição dos neokleinianos sobre a contratransferência para abordar, em linhas
gerais, como muitos deles articularam os conceitos de identificação projetiva e
contratransferência.
48
Como foi visto anteriormente, a respeito da contribuição teórica de Melanie
Klein (item 2.1.1 da Introdução), na identificação projetiva partes do self são projetadas
para dentro do outro com o intuito de controlá-lo, como forma de lidar com a angústia
decorrente da pressão exercida pela pulsão de morte. Na teorização de muitos autores
neokleinianos, o analista se situa nesta ponta receptora da identificação, sendo
projetadas para dentro dele as partes do self expelidas do paciente. O que pode ocorrer
como conseqüência é o analista experimentar afetos como em uma espécie de reação ou
de resposta ao que dentro de si foi colocado, dada a intensidade do processo. O analista
pode não conseguir distinguir o que é seu e o que é do paciente, tendendo a se
identificar com o que foi projetado. Uma crítica possível que pode ser feita a este tipo
de teorização é a de que os próprios conflitos inconscientes do analista não seriam
levados em conta neste processo. Mas as construções teóricas que foram surgindo
colocam que a projeção não é feita no vazio, mas sim nos pontos em que tenham algo a
ver com o analista, muitas vezes em seus pontos nodais, em conteúdos conflituosos e
sem resolução no psiquismo dele. A pressão exercida pelo uso do mecanismo de
identificação projetiva levaria o analista a inevitáveis atuações durante momentos da
análise. Seria sua tarefa conter esta pressão exercida dentro de si para que, a partir daí,
possa surgir algo mais elaborado e que será devolvido ao paciente. Muitos destes
desenvolvimentos teóricos surgiram a partir do contato com pacientes psicóticos e
borderlines, cuja utilização de primitivos mecanismos de defesa era intensa. O que
levou também a conceituar a identificação projetiva como uma forma primitiva de
comunicação.
Creio ser importante também, nesta seção, abordar um texto de Winnicott que se
refere à temática em discussão. Trata-se de “O ódio da contratransferência” de 1947.
Embora cronologicamente anterior ao texto de Heimann (1949/1950), preferi deixar esta
49
discussão para o final do capítulo com o intuito de não interromper a linha de
pensamento que vinha se desenvolvendo, dada a singularidade do texto winnicottiano
em relação à discussão anterior.
Neste artigo, Winnicott (1947a) discorre sobre os sentimentos de ódio surgidos
no analista no trabalho com pacientes psicóticos - também há referências ao
atendimento de pacientes que apresentam tendência anti-social. no início do artigo, o
autor faz uma classificação dos fenômenos contratransferenciais em três tipos:
Os sentimentos anormais que prejudicam o processo analítico;
Sentimentos relacionados a identificações e tendências ligadas à própria
experiência de vida do analista, que poderão ser usadas de forma clínica para
compreender o manejo do paciente;
Sentimentos contratransferenciais - de amor e de ódio - objetivos, que
surgem como resposta ao comportamento do paciente.
Trabalhando com este terceiro tipo de fenômeno contratransferencial, o que o
autor vai colocar como fundamental é que o analista seja capaz de identificar e de
examinar suas reações objetivas ao paciente, especialmente o ódio. Este ódio, legítimo
de ser sentido - principalmente no contato com o paciente psicótico e com o anti-social -
deve ser percebido, acolhido e, de certa forma, guardado para ser utilizado em uma
futura interpretação. Esta não é tarefa fácil e a análise pessoal do analista o ajudaria
neste difícil processo com seu paciente. “O ponto importante aqui, obviamente, é que
através de sua própria análise o analista tenha se livrado de amplos estoques de ódio
inconsciente pertencente ao passado e aos seus conflitos internos” (WINNICOTT,
1947a, p. 280). Com o paciente psicótico a tensão para manter o ódio latente é muito
intensa e isso em grande medida se deve ao fato de o terapeuta ter que lidar com
angústias psicóticas despertadas em si no contato com este tipo de paciente.
50
Nos casos de tendência anti-social, a criança - em um sinal de esperança -
freqüentemente testa o ambiente como forma de se assegurar de que os que cuidam dela
são capazes de odiá-la objetivamente. “Ao que parece, a criança poderá acreditar que é
amada somente depois que conseguir sentir-se odiada” (WINNICOTT, 1947a, p. 283).
É claro que a dificuldade reside em não atuar este ódio na relação, mas sim ser capaz de
senti-lo livremente. A idéia importante que está como pano de fundo aqui é a de que a
criança poderá odiar se for odiada. E assim, odiando, aos poucos poderá se
responsabilizar por este ódio, integrando-o ao seu processo de desenvolvimento
espontâneo e criativo. Esta é a interação que também deve se dar entre analista e
analisando. No contato com pacientes psicóticos e com tendência anti-social, é
importante que o terapeuta reconheça o ódio que surge dentro de si - como reação
objetiva ao paciente - contendo-o para uma futura interpretação.
Na próxima seção a temática contratransferencial será abordada a partir do
pensamento do psicanalista Pierre Fédida. As reflexões deste autor em relação à
contratransferência serão úteis para trabalhar o caso clínico que apresentarei mais
adiante nesta dissertação e por isso uma apresentação mais extensa se faz necessária.
Como se trata de um psicanalista de orientação e de produção distintas dos autores
apresentados até aqui, procurarei ressaltar os pontos de possíveis diálogos entre eles e
que ajudem na discussão e na análise do referido caso clínico.
51
2.2.1. Pierre Fédida e a contratransferência
Voltemos agora nossa atenção para alguns textos de Pierre Fédida, psicanalista
francês, de orientação freudiana, que também tratou da temática da contratransferência.
A princípio, utilizarei como referência para a exposição do pensamento deste autor - no
que tange à contratransferência - dois textos específicos traduzidos para o português:
“Introdução a uma metapsicologia da contratransferência” (1986) e “A angústia na
contratransferência ou o sinistro (a inquietante estranheza) da transferência” (1988). À
observação destes dois artigos serão complementadas algumas passagens de outros
textos do mesmo autor e de alguns psicanalistas que podem nos ajudar a ter uma melhor
compreensão de sua complexa articulação teórica. A escolha por utilizar as reflexões de
Fédida em relação à tal temática se deu pelas possibilidades que seu pensamento nos
abre para tratar as questões da clínica e da situação analítica, como também para pensar
sobre a angústia experimentada pelo analista quando está trabalhando.
Fédida (1986) retoma o texto de Ferenczi “Elasticidade da técnica psicanalítica”
(1928) para tratar daquilo que este chamou de “restos o resolvidos” do analista. A
partir da leitura do texto de Ferenczi, depreende-se que por mais que a análise pessoal
do analista tenha avançado, reduzindo sua “equação pessoal” (FERENCZI, 1928),
sempre existirá um resto não analisado. E o analista, ao trabalhar clinicamente com seu
paciente, levará consigo para a sessão isto que lhe é mais íntimo, estes “restos não
resolvidos”. Assim, a análise pessoal nunca normalizará o analista de forma a torná-lo
um analista padrão; sempre haverá sua singularidade e seus conteúdos inconscientes,
que, por sua vez, caracterizarão seu estilo e sua maneira de trabalhar. “(...) Talvez seja
necessário avançar aqui a hipótese de que ser analista é sê-lo com este ‘resto não
52
resolvido’, ou seja, aquilo que decidirá que nos tornemos analista (...) (FÉDIDA, 1986,
p. 617, grifo do autor)”.
Acompanhando o referido texto de Ferenczi, teremos a introdução, por parte
deste autor, da noção detato”, que seria a faculdade desentir com”
7
. O “tato” daria a
receptividade de atenção à fala - múltipla de sentidos - do paciente, caracterizando a
elasticidade da técnica analítica e permitindo ao analista acompanhar os movimentos do
analisando. Mas para que a técnica seja elástica, ou seja, para que se possa “sentir com”
o paciente, é necessária esta reserva pessoal inconsciente e não redutível do analista. É
por meio de sua análise pessoal e também pela inevitável ação dos “restos não
resolvidos”, que o terapeuta poderá ter a necessária mobilidade psíquica para entrar em
contato com os desdobramentos do que é dito durante a sessão. A elasticidade
qualifica então a técnica por sua função subjetiva que, por sua vez, constitui a
interpretação. Neste momento, vale citar Fédida, em suas observações sobre o texto
ferencziano, para que tenhamos mais clareza quanto à natureza desta receptividade de
atenção à fala do paciente:
O resto não resolvido torna-se assim a condição psicopatológica da
empatia: o sensível pessoal que permite à técnica receber sua
subjetividade por assim dizer transcendental, isto é, toda a
receptividade requisitada pela vida psíquica para que ela seja
pensável elasticamente quer dizer graças à mobilidade da atividade
pré-consciente do analista que o informa simultaneamente das finas
variações do curso da vida psíquica do paciente e das suas próprias
umas em relação às outras em inter-reações (FÉDIDA, 1986, p. 619,
grifos do autor).
Assim, a contratransferência, para Fédida, será pensada a partir desta influência do texto
de Ferenczi (1928). Ele coloca (FÉDIDA, 1988) que a contratransferência pode ser
compreendida como uma pára-excitações, a qual seria responsável por manter estável a
regulação entre sua atenção eqüiflutuante e as associações livres do paciente.
7
À expressão “sentir com” Fédida (1986) dará preferência à utilização do termo ressentir e é neste
sentido que utilizarei ao longo desta exposição teórica - acompanhando Fédida - a expressão
“ressonância”.
53
Estaríamos falando de um instrumento de percepção pré-consciente - de fina mobilidade
adaptativa - “capaz de recepção e de transformação das ‘informações’ provenientes do
paciente - de sua vida psíquica - constantemente confrontadas com as ‘informações’
provenientes do próprio analista” (FÉDIDA, 1988, p. 71, grifos do autor) e de seus
“restos não resolvidos”. E seria esta característica da contratransferência - como um
dispositivo econômico - que permitiria ao analista não sentir exatamente o que o
paciente sente e, ainda assim, acompanhar os movimentos emocionais deste último por
meio de seus próprios. Este lugar de ressonância e de tradução em palavras evita que o
analista seja diretamente confrontado com a violenta irrupção de seus afetos e com a de
seus pacientes. Seria sim, pela apropriação subjetiva - a partir dos “restos não
analisados” - do efeito do afeto que o analista teria possibilidade de pensar em uma
implicação inconsciente do analisando. A partir disto, aos poucos, vai ser possível que
se forme uma compreensão do paciente e também que se forme a própria interpretação.
Para Fédida (1988), esta concepção da contratransferência nos remete a um
modelo fictício da relação mãe-filho, em que a mãe se torna receptora do que acontece
com seu filho e restitui a ele, em palavras e com gestos, a significação do que foi
experimentado. Vale citar:
Dito de outra forma, a angústia contratransferencial do analista
poderia ser, idealmente, a de uma mãe capaz de ressonância com o
estado da criança, de continência das energias desta angústia, de
metabolização e de metaforização dos afetos confundidos que
tendem a transbordar na criança. [...] a angústia contratransferencial
não aparece apenas como uma “resposta”, mas sim como um
momento crítico da atenção e, assim sendo, como instante analítico
de constituição da interpretação. (FÉDIDA, 1988, p. 75, grifos do
autor)
O analista escuta, assim, com angústia - que ressoa nele - e com ela constitui a
interpretação. É importante, porém, compreender melhor de que angústia se trata neste
momento. Penso que tal angústia - angústia análise (FÉDIDA, 1988) - seja utilizada
pelo analista como um sinal que indica o momento da interpretação. Ela surgiria a partir
54
de modificações na relação entre atenção eqüiflutuante e as associações livres,
sinalizando variações do discurso e das ressonâncias que surgem a partir dele. Esta
ressalva é importante para que façamos uma distinção ao que será tratado por Fédida,
mais à frente, como uma experiência de angústia siderante ou mortífera, a experiência
de sinistro. Neste último caso, a angústia - experimentada como uma sideração
mortífera - interrompe a capacidade analítica de ressonância, pondo em xeque a
contratransferência como dispositivo de fina mobilidade adaptativa.
A contratransferência assim compreendida, como este dispositivo econômico
que possibilita ressonância à fala do paciente, está em íntima relação com a instauração
da situação analítica. Esta independe do enquadre - por mais que seja favorecida por ele
- e se constitui a partir das condições de fala e de escuta e, assim, da relação entre
atenção flutuante e associações livres (FÉDIDA,1988). Atenção tanto à fala do paciente,
quanto às associações e fenômenos associativos que esta fala desperta no analista. E
também o analisando participa desse movimento, que, ao associar, permanece imerso
em sua atenção à própria fala
8
. Desta forma, a situação analítica está relacionada à
possibilidade de uma fala e de uma escuta que possam se desdobrar em si mesmas e se
escutar dizendo, ou seja, que se instaure a possibilidade de linguagem - mais tarde
voltarei a esta questão para tentar torná-la mais clara. O enquadre não é condição para
que haja psicanálise, por mais que favoreça a instauração desta. O que garante estarmos
no campo da psicanálise quando nos vemos com nossos pacientes é esta possibilidade
de linguagem e de abertura ao desconhecido pela fala e escuta do inesperado e do
ambíguo.
Assim, “a fala da interpretação surge em dado momento - geralmente de
surpresa - formada pela fala plural do paciente, no momento em que esta fala dispõe de
8
Vale dizer que a situação analítica, assim compreendida, corresponderia a um ideal, por vezes perdido e
freqüentemente a ser (re)instaurado.
55
sua ressonância possível (FÉDIDA, 1986, P. 620)”. Para que a interpretação se forme, é
necessário que a escuta do analista, em seu silêncio, seja atividade de linguagem. Isso
fará com que o paciente consiga encontrar o silêncio em sua própria fala, associando e
abrindo-se para escutar o que diz, de modo a se surpreender com o que possa encontrar
neste caminho.
É necessário, neste momento, que aprofundemos um pouco mais o que estamos
discutindo. Para isso, devemos compreender melhor o que funda e possibilita a situação
analítica e a capacidade contratransferencial relacionada a ela, ou seja, a atividade de
linguagem. Para que a análise ocorra, é necessário estar no campo da linguagem,
ocupando um lugar em que esta é possível. Mas o que seria isto? Do que está falando
Fédida - em seus diversos textos - quando utiliza o termo linguagem para tratar da
situação analítica?
A linguagem, ou melhor, a fala que provém dela, neste contexto em que estamos
discutindo, não é algo da ordem da comunicação. A fala da situação analítica, para
guardar toda sua potência, deve renunciar às tentativas de apreensão representacional do
significado. Neste sentido, esta fala é colocada em movimento quando se rompe seu uso
comunicacional e de cotidiano, abrindo-a para novas possibilidades de escuta e de
desdobramentos.
Abordar a fala e a linguagem desta maneira nos remete à influência do
pensamento de Heidegger na formação de Fédida. Figueiredo, em sua obra “Escutar,
recordar, dizer: encontros heideggerianos com a clínica psicanalítica” (1994), apresenta
algumas reflexões heideggerianas em torno da fala e as utilizarei para que possamos
acompanhar o uso do termo linguagem na obra de Fédida. Serei breve nisso e utilizarei
algumas citações. A primeira delas: “Nas obras subseqüentes [de Heidegger], contudo a
questão não é mais da linguagem como sistemas de signos, mas a da fala como
56
propiciadora do desvelamento dos entes através da nomeação [...]” (FIGUEIREDO,
1994, p. 62, grifo do autor). E mais adiante: “Ao batizar [relativo ao ato de nomear], a
fala abre para o ente, que até então aparecia apenas como imprecisa fonte de suspeita e
inquietação, um lugar, instalando-o na clareira do seu ser, dizendo o que o ente é”
(FIGUEIREDO, 1994, p.117). Neste sentido, uma possível forma de compreender o que
foi colocado, sem nos aprofundarmos tanto, seria pensar a linguagem como uma
abertura. Uma abertura ao desconhecido, ao novo e também como uma forma de dar
lugar ao ente, sem, no entanto, aprisioná-lo em uma compreensão cognitiva. Isto seria
impossível e nos colocaria novamente no campo das representações de uso costumeiro
na comunicação. A fala como abertura colocaria, assim, em movimento um contato
íntimo consigo mesmo, porém sempre fugidio e não assimilável racionalmente.
Pois bem, fazer uma experiência com a fala é, da mesma forma,
deixar-se atravessar por ela, acolhê-la no seu poder mais próprio, ou
seja, na sua alteridade. Para fazer uma experiência com a fala é
preciso, por conseguinte, libertar a palavra para seu outro dizer,
para seu dizer outro. (FIGUEIREDO, 1994, p. 122, grifos do autor)
Assim, pode-se entender a que se refere Fédida quando utiliza em seus textos os
termos linguagem e fala, já que é forte a influência de Heidegger em seu pensamento. O
que Fédida coloca (1986, 1988) como condição da situação analítica é esta abertura -
tanto do analista quanto do analisando - para ser atravessado pela fala em seus
desdobramentos e nas possibilidades de experiência que se engendram a partir de então.
O ato de nomear suscita figuras e essa figurabilidade própria à fala não comunicacional
origem a formas e a imagens. Estar neste estado de linguagem é deixar-se perder por
estas ressonâncias, por estes desdobramentos, enfim, pelas formas e imagens que nos
ocorrem a partir da escuta do que é dito. A própria construção teórica em psicanálise
deveria provir desta atividade de linguagem, em silêncio, a partir do contato com o
paciente. Seriam os desdobramentos internos da escuta e da prática clínica que
57
possibilitariam a atividade de pensamento metapsicológico do psicanalista (FÉDIDA,
1991).
Ao romper com a forma de comunicação usual, ao não responder às demandas
que lhe dirigem seus pacientes, o analista favorece as condições de constituição da
linguagem (FÉDIDA, 1988). A neutralidade que advém daí é o que cria as
possibilidades de se instaurar a situação analítica, abrindo tanto para o paciente quanto
para o analista a escuta da própria fala. Estando então no campo da linguagem,
poderíamos dizer que o neutro - a não-resposta do analista - engendra uma situação cuja
característica primordial é mobilidade receptiva ativa (FÉDIDA, 1991, p. 116), ou seja,
esta capacidade do analista de brincar, de ressoar e de se abrir para o desconhecido da
fala. E tal abertura se propõe a acolher o caráter ambíguo da fala, pondo-se assim, a
escutar o infantil, o recalcado, os traços do inconsciente. Para que eles possam ter eco e
sejam colocados em movimento, fazendo parte da experiência do sujeito, sendo
assimilados à sua experiência. O trabalho psicanalítico, desta forma, poderia ser
pensado como colocando algo em movimento e em circulação, para que o paciente
possa integrar suas emoções e desejos às suas vivências, apropriando-se do que é seu.
Desta perspectiva, a prática de análise estaria menos relacionada com descobrir algo
sobre si mesmo - o que de fato também ocorre - e mais com dar formas, por em
movimento e integrar este algo à experiência própria.
É importante dizer também, que a neutralidade, ao interromper com uma forma
de comunicação de uso cotidiano, abre o campo de recepção para o ambíguo da fala.
Abre assim, a possibilidade de expressão da transferência na fala e no contato analítico.
O neutro permite que a fala traga em si as marcas do recalcado, possibilitando também a
transferência no contato com o terapeuta.
58
A atividade de linguagem favorece ressonâncias e, assim, a colocação em figuras
da memória do infantil (FÉDIDA, 1991). E para que isto ocorra é necessário que se
ocupe um lugar, o lugar da linguagem, designado por Fédida (1991) como sítio do
estrangeiro. É a partir deste sítio que a linguagem se torna possível, que as formas se
engendram e que as imagens se formam. Mas por que chamá-lo estrangeiro? Manter-se
estrangeiro é se colocar em uma cena distinta daquilo que é contado, sem a intenção de
familiarizar o que é dito, como se se soubesse o sentido do que se diz. É manter-se
estrangeiro à própria língua, para que se possa escutá-la como uma novidade, por mais
que se conheçam as palavras das quais ela é feita. Isto possibilita a abertura ao novo,
ao inesperado, ao desconhecido e ao infantil. Possibilita também, que tanto analista e
paciente possam ter esta capacidade de recepção à fala, das formas que provém desta
recepção, engendrando movimentos e experiências que vão dar continuidade ao viver.
Colocando-se em uma cena distinta da do paciente, o analista evita a confusão de afetos
- o que é dele e o que é do analisando - deixando-se tocar pelos efeitos dos afetos
despertados durante a sessão. Voltamos aqui à compreensão da contratransferência
como instrumento de fina mobilidade adaptativa, um dispositivo econômico que protege
o analista de sentir exatamente o que sente o paciente. Assim, o aparelho
contratransferencial possibilita a instauração do campo da linguagem e de seu sítio,
favorecendo a mobilidade psíquica e a capacidade de recepção às tonalidades dos afetos
suscitados pela fala. Ou seja, “a situação analítica nos permite, com efeito, receber -
como também a fala associativa - as tonalidades às quais o paciente pode ficar
insensível” (FÉDIDA, 1986, p. 624).
A partir da recepção a estas tonalidades, estando a situação analítica instaurada,
a fala da interpretação irá se formar na escuta do que é dito. Inúmeras frases nos
ocorrem e se perdem no pensamento quando estamos com nossos pacientes. Precisamos
59
ficar abertos a elas, por mais que elas nos tragam o desconhecido, até que se forme o
impronunciável do infantil, o dito da interpretação (FÉDIDA, 1986). Além disso,
a interpretação é uma fala cuja ambigüidade recolhe o sentido
consciente da fala do paciente como se este sentido devesse ser
compreendido pelo analista em pessoa: o analista, de fato, o
compreende mas em o compreendendo ele entende que não pode ser
o objeto ausente ao qual alucinatoriamente a fala do paciente o
destina. (FÉDIDA, 1986, p. 622, grifo do autor)
Quando o analista se toma como o próprio objeto da fala do paciente não
permite a elaboração da ausência. Coloca-se então em uma posição familiar ao paciente,
saindo do campo da linguagem, deixando de receber a fala em sua ambigüidade. A fala
como propiciadora da experiência deixa de ser possível, desinstaurando a situação
analítica. Neste sentido, favorece-se um modo de relação interpessoal que o permite
que se escute o impronunciável do infantil, deixando os desejos, as emoções e os
traumas inassimiláveis à experiência do sujeito.
A familiarização do íntimo leva o analista a se afastar deste sítio do estrangeiro
em favor de uma resposta ao paciente, privilegiando a comunicação interpessoal. Perde-
se de vista a linguagem e reforçam-se as representações conscientes do pensamento. As
experiências de sinistro caminham ao lado desta desinstauração da situação analítica.
Nelas, o analista é tomado por uma angústia paralisante e mortífera que impede
qualquer possibilidade de figuração e de ressonância. Vale ressaltar que esta angústia
mortífera, siderante, é diferente daquela que abordamos mais acima quando houve
referência à angústia análise, que possibilita a interpretação. No caso das experiências
de sinistro é justamente o afastamento do campo da linguagem que faz com que a
capacidade receptiva da contratransferência se interrompa. A este respeito, cito
novamente Fédida:
A perda da linguagem é certamente o que é vivido como a mais
terrível ameaça. Se o analista chega a se ver vendo-se incapaz de
dispor das capacidades de mobilidade cinestésicas e imaginárias que
lhe são habituais (para avaliar as transformações de sua própria
60
imagem no outro), a angústia contratransferencial é vivida
inicialmente, como uma sideração mortífera [...]. (1988, p. 76)
Ao responder, o analista se afasta do sítio do estrangeiro, familiarizando a fala e
a escuta. Como se aquilo que é da ordem do desconhecido fosse tomado como algo
familiar e conhecido, não havendo mais a possibilidade de escutar os ecos do recalcado
e do infantil. Porém, e daí vem a experiência de sinistro, este recalcado retorna e se faz
presente não na linguagem, mas na própria situação, visualmente. Entendo esta
passagem como se a violência da transferência se tornasse atual na relação com o
terapeuta. Este, ao responder - tornando-se, em pessoa, o objeto ausente da fala - se
veria aprisionado na imagem transferencial que deveria ter seu traço na linguagem - em
uma situação ideal. O analista se identificaria assim com o objeto da transferência,
perdendo sua capacidade de ressonância por estar aprisionado a tal imagem. Ele seria
engolido por ela.
Neste momento da discussão, Fédida (1988) retoma o texto “O Estranho” de
Freud (1919). Em tal artigo, Freud coloca que a experiência angustiante de sinistro e de
estranheza se quando algo da ordem do recalcado retorna. Assim, se o responsável
pela sensação angustiante neste tipo de experiência é algum conteúdo inconsciente que
retorna, ela se caracteriza em ser, ao mesmo tempo, uma experiência de familiaridade e
de alteridade. Algo que se apresenta como familiar e estranho simultaneamente. Nestes
casos, esta manifestação do inconsciente leva a um conflito de juízos entre o que é real e
o que é ficção e a angústia viria da recolocação em questão dos próprios critérios de
realidade. Assim, retomando a discussão de Fédida (1988), o sinistro vivenciado
durante uma sessão de análise estaria relacionado com este retorno do recalcado - do
analista e do paciente - que os aprisionaria em uma imagem fantástica e aterrorizante,
levando a uma confusão entre o que é real e o que não é.
61
A questão se complica quando abordamos os chamados “casos difíceis” ou
limítrofes. Estes pacientes demandam uma resposta ativa do analista, pois
compreendem seu silêncio como uma rigidez fria e vazia (FÉDIDA, 1991). Rigidez esta
que foi conhecida em suas vidas. Nestas ocasiões, a não-resposta poderia reproduzir o
traumático que foi experimentado por eles diversas outras vezes e não favoreceria o
alívio do sofrimento e nem a experiência de si. E a reflexão de Fédida (1991) nos
mostra que alguma atividade de resposta por parte do analista é mesmo necessária com
eles. Porém, e aí surge a dificuldade técnica com tais pacientes, como responder e ainda
assim manter uma reserva de linguagem, condição de ressonâncias e de formação da
interpretação? É necessário, com estes analisandos, manter esta reserva de linguagem ao
responder, pois é isto que poderá colocar em movimento sua vida psíquica e suas
possibilidades de acolher e transformar as experiências traumáticas inerentes ao viver.
Tais “casos difíceis” atacariam - e Fédida (1991) utiliza justamente este termo - a
própria condição de linguagem do analista, colocando-o “diante do desafio de criar
linguagem para ele [paciente], de produzir em palavras inéditas uma situação de
entendimento a partir da qual ele poderia ser sustentado e cuidado” (FÉDIDA, 1991, p.
28).
O risco de ver a possibilidade de linguagem se perder nos coloca de frente com a
problemática das vivências de sinistro, bastante freqüentes no contato com pacientes
considerados difíceis. Neste sentido, a exposição sobre as considerações de Fédida a
respeito da contratransferência e das angústias de sinistro - quando se interrompe a
capacidade contratransferencial - pode nos ajudar a abordar melhor o caso clínico que
será trabalhado mais à frente. O que me intrigava e ainda hoje me intriga, eram as
vivências muito intensas e paralisantes sentidas por mim no contato com o menino em
questão. Por isso, os textos mencionados de Fédida me atraíram a atenção. Eles me
62
abriram novas possibilidades de pensar a contratransferência como também tais
vivências intensas e angustiantes, provavelmente de sinistro, como se verá na discussão
do caso.
Considero importante agora, fazer algumas considerações que justifiquem um
pouco melhor a escolha de Fédida - para pensar a contratransferência - em relação e em
continuidade aos outros autores previamente discutidos nesta dissertação. Iniciarei com
uma citação, a respeito do trabalho com casos considerados difíceis, que poderá nos
abrir para um diálogo.
2.2.2. Possíveis articulações conceituais
Nas psicoterapias difíceis, esse tempo de engendramento da
interpretação é atacado, assim como é atacada a linguagem à qual ele
pertence. Daí a propensão do psicoterapeuta a reagir na precipitação
da pressão exercida pela fala do paciente. As supervisões de
psicoterapias mostram claramente como por vezes o clínico
experimenta estados de confusão e assim por falta de outra opção
familiariza sua relação com o paciente. Se o psicoterapeuta reage, ele
se encontra em seus próprios scripts, presentes em sua compulsão a
repetir. (FÉDIDA, 1991, p. 29)
A violência da transferência na análise dos casos difíceis - instigando uma
reação, uma resposta por parte do terapeuta - estaria em íntima relação com a vivência
de sinistro. Apesar das diferenças entre a teoria kleiniana e o pensamento de Fédida,
acredito que exista possibilidade de diálogo entre estes autores.
Embora Fédida não mencione o conceito de identificação projetiva nos textos
aqui citados, suas idéias sobre a violência do fenômeno transferencial (1988) e sobre a
possibilidade de linguagem do analista ser atacada (1991) no atendimento de casos
considerados graves, tendem a me remeter à força e à intensidade do mecanismo de
identificação projetiva. Se a conceituação de Melanie Klein caminhou, em longa parte
de sua obra, para dar alguma figurabilidade aos processos psíquicos mais primitivos dos
63
indivíduos, não seria de se estranhar que tais processos se manifestassem na
transferência. E que assim sendo, colocariam em risco a possibilidade de linguagem em
diversos momentos de nossos encontros clínicos com os pacientes. Uma citação de
Fédida a respeito da experiência de sinistro revela alguma semelhança com isto que
estou abordando:
Os estados regressivos profundos levam o analista a uma
imobilização especular muitas vezes tornada necessária durante
uma fase da terapia mas que ameaça o analista de uma dissociação
de sua identidade por captação da sensação de sua própria imagem.
Tudo ocorre então como se a percepção fragmentada (shattered) ou
desmembrada (dismembered) que o paciente propõe a seu analista de
sua própria pessoa ameaçasse o pensamento de ser engolido e
aniquilado pelo visual. (1988, p. 76, grifos do autor)
Não entrarei no mérito da questão de se tratarem de percepções fragmentadas -
para Fédida - ou da expulsão de objetos parciais para dentro do analista - como poderia
ser pensado em Melanie Klein (1946). O que me interessa aqui é a ênfase na força e na
intensidade do processo transferencial e os riscos que isso acarreta para a situação
analítica. Como manter uma reserva de linguagem nestes momentos, por vezes
necessários, em que o analista responde - reage - ao seu paciente? A necessidade - e a
dificuldade - é a de que continue havendo mobilidade psíquica mesmo com esta
resposta. Em uma outra passagem, tratando dos momentos críticos do funcionamento
psíquico do analista - os quais o informam das distorções sofridas pela fala do paciente -
Fédida (1991) diz o seguinte:
Mas o que me parece mais interessante ainda é a qualidade requerida
do psicoterapeuta para perceber as condições e o momento de
aparecimento desses fenômenos críticos. Desde Ferenczi, e passando
por Balint, Winnicott, Masud Khan, Searles e outros, a ênfase é
colocada na capacidade que o analista tem de brincar. [...] Quanto a
mim, falaria mais da capacidade de mobilidade psíquica do analista.
Ainda aqui coloco-me no terreno da linguagem (p. 30)
Nesta passagem, Fédida prefere utilizar o termo mobilidade psíquica. Mas não
deixa de ser interessante a aproximação que pode ser feita entre o brincar e tal
64
mobilidade. Desde que, é claro, este brincar seja compreendido como uma abertura ao
novo, ao impronunciável do infantil, enfim à liberdade da linguagem em sua capacidade
de dar formas e ressonâncias ao que é dito na sessão. Acredito também, que neste
mesmo ponto poder haver algum diálogo entre Fédida e Bion se também pensarmos no
conceito de revêrie como este fantasiar que abre espaço para a linguagem e para o não
metaforizado
9
. Detenhamo-nos um pouco mais nisso.
Suzana Viana (1993), em seu livro sobre a contratransferência, faz uma
articulação entre as idéias de Bion e de Fédida. Embora Bion tenha suas reservas quanto
ao uso indiscriminado do conceito de contratransferência, sua teoria do pensamento
permite compreender a relação entre a identificação projetiva e os movimentos
emocionais do analista.
Bion (1966)
10
citado por Viana (1993), chama de elementos beta os “dados do
sentido” que não sofrem transformação e permanecem como “coisa em si”, não
podendo ser aproveitados por um aparelho psíquico. Tais elementos não são então,
utilizados pelo pensamento onírico e nem pelo pensamento de vigília: a única via
possível para eles é a da descarga e a da evacuação. Quando os “dados do sentido”
sofrem a ação da função alfa e são transformados em elementos alfa, passam a ser
utilizados por um aparelho psíquico e dão origem a palavras ou a idéias.
O aparelho psíquico do bebê, em sua precariedade, não dispõe de uma função
alfa que transforme os “dados do sentido” em algo passível de ser pensado. Para isto,
vai necessitar do auxílio da função alfa de sua mãe e da capacidade dela para o devaneio
9
Ao tentar estabelecer um diálogo entre a abordagem de Bion, a respeito da revêrie, com a instauração do
sítio da linguagem em Fédida, não desconsidero as críticas que este último faz à noção de espacialidade
em contraposição à idéia de lugar. Não pretendo adentrar nestas críticas e o leitor interessado poderá, para
isto, consultar os textos “Teoria dos Lugares I” e “Teoria dos Lugares II” presentes no livro de Fédida
Nome, figura e memória (1991). O interesse nesta articulação é o de propiciar formas e figuras possíveis
que nos ajudem a dar um contorno às experiências relacionadas ao caso clínico que será discutido mais à
frente na presente dissertação.
10
BION, W.R. O aprender com a experiência. In: Os elementos da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar,
1966.
65
(rêverie). O bebê expele, pelo mecanismo de identificação projetiva, aquilo que
experimenta como insuportável, colocando estes sentimentos e objetos dentro da mente
da mãe e provocando reações nela. Se a mãe é capaz de acolher e de fantasiar estes
conteúdos, poderá devolvê-los à criança dotando-os de um sentido e tornando-os
suportáveis. É assim que a função alfa começa a se desenvolver no infante.
Caso a capacidade de rêverie da mãe falhe ou caso a criançao consiga tolerar
o tempo necessário para receber os elementos transformados, pode-se produzir um
desenvolvimento hipertrófico do aparelho de identificação projetiva” (VIANA, 1993, p.
31).
Esta situação inicial da relação entre a mãe e seu bebê pode nos ajudar a
compreender alguns aspectos do que acontece entre o paciente e o analista. Neste
sentido, o analista seria aquele que favoreceria a possibilidade do devaneio na análise e,
assim, uma transformação viria a ocorrer. A capacidade de rêverie poderia, desta forma,
ser remetida à ressonância do analista em sessão da qual nos fala Fédida (1986, 1988).
Quando no paciente um predomínio do exercício do elemento beta sobre a função
alfa, é a possibilidade de fantasiar que está em risco. E caso ela não ocorra,
provavelmente o paciente provocará emoções no terapeuta. Voltando a Fédida (1991),
como seria possível manter uma reserva de linguagem com este tipo de presença
solicitada pelo paciente?
A articulação de Viana (1993) caminha nesse sentido e suas idéias indicam que
mesmo quando identificação projetiva, esta ocorre porque os restos transferenciais
do analista servirão como pontos de captação para o que foi projetado. Nesse momento
a vivência de uma angústia siderante e a impossibilidade de linguagem. A hipótese
defendida por ela é a de que se estes estados forem suportados pelo analista, se ele
conseguir sofrê-los, transformá-los e transcendê-los, novamente ele terá acesso ao
66
estrangeiro e à palavra analítica. É como se do turbilhão emocional, caso seja suportado,
pudesse emergir novamente a linguagem e a possibilidade para o fantasiar.
Entendo assim, que se pensarmos o conceito de revêrie também como uma
abertura às ressonâncias, ao novo e ao ambíguo da fala, estaríamos colocando-no no
campo da linguagem e, por conseguinte, na produção de imagens e de formas a partir do
contato com o paciente.
2.3. Algumas contribuições sobre psicoterapia de crianças agressivas
Pesquisas mais recentes vêm tratando da temática do atendimento
ludoterapêutico a crianças agressivas, ressaltando os ganhos que o paciente pode obter
neste processo. Muitas destas pesquisas filiam-se a uma abordagem cognitivo-
comportamental, as quais não apresentarei aqui, tendo em vista que não coincidem com
a orientação teórica adotada neste estudo. Não porque as mesmas diferem em seus
embasamentos teóricos para compreender e refletir sobre o fenômeno da agressividade,
mas também, e principalmente, porque o fenômeno clínico da contratransferência - um
conceito psicanalítico - não é considerado na abordagem cognitivo-comportamental.
Dentre os poucos trabalhos que utilizam a Psicanálise para pensar o tratamento
de crianças com este tipo de queixa, destaco as contribuições de Kernberg e Chazan
(1992), Katz (1992) e de Souza (2001). Ainda que estes estudos não cheguem a se deter
especificamente no tema da contratransferência, encontra-se neles observações sobre
algumas dificuldades que o terapeuta costuma atravessar no contato com estas crianças.
Kernberg e Chazan (1992) dedicam uma longa obra que se refere ao tratamento
de crianças com transtornos de comportamento, cujos sintomas, em geral, se
manifestam sob a forma de agressividade. Indicam três tipos de abordagens para estes
67
casos: o que elas chamam de psicoterapia lúdica expressiva de apoio - em linhas gerais,
uma ludoterapia voltada para o atendimento individual -, o treinamento parental e a
psicoterapia lúdica de grupo. A fundamentação teórica utilizada por elas tem como
sustentação principal um modelo psicanalítico baseado na psicologia do ego e na teoria
das relações objetais. Fazem uso, além disso, da teoria do apego, da teoria do
temperamento e também da teoria da aprendizagem. Colocam como ponto relevante ao
atendimento ludoterápico a estas crianças, que o terapeuta favoreça o uso da linguagem
na expressão dos sentimentos, para que elas possam manifestar seus impulsos e
emoções de forma mais elaborada e não apenas pela descarga motora e destrutiva. Em
suas discussões a respeito do tema agressividade, assinalam que tais crianças possuem
um sentimento básico de serem pouco amadas e desprotegidas, sendo seu mundo
interno construído em torno da premissa de rejeição e de abandono. Para darem fim à
tensão decorrente da crença de que serão rejeitadas, fazem com que os outros se sintam
furiosos com elas, reproduzindo o abandono. Esta tendência também permeia a relação
com o terapeuta quando a agressividade se expressa durante o trabalho clínico, tentando
a criança provocar a rejeição pelo outro, o que, por sua vez, indica os possíveis
problemas enfrentados pelo clínico neste tipo de atendimento.
Katz (1992) propõe alguns manejos técnicos nos atendimentos a crianças
agressivas e, dentre eles, fica explícito o uso de contenção sica por parte do
psicoterapeuta, dada a intensa destrutividade da criança, o que também denota o tipo de
demanda e de dificuldades vivenciadas pelo terapeuta que se dispõe a um atendimento
desta natureza.
O trabalho de Souza (2001), do qual a presente dissertação é um desdobramento,
aponta para os ganhos que um menino agressivo pode ter caso passe pela experiência de
ser atendido em ludoterapia. Tal pesquisa apóia-se nos referenciais psicanalíticos
68
kleinianos e winnicottianos para compreender a agressividade. Na discussão de seus
resultados - a partir do atendimento de 13 meninos de 8 a 12 anos com queixa de
agressividade no ambiente escolar - a autora destaca a intensa necessidade de apego, a
dificuldade de separação e o temor de abandono como aspectos bastante presentes
nessas crianças. Para lidar com isso, elas buscariam o afastamento de relações
potencialmente significativas na medida em que vislumbram a perspectiva de
sofrimento decorrente de uma expectativa constante de perda e abandono. Assim é que
se pode compreender as expressões de destrutividade e ataque ao vínculo com o
terapeuta, constituindo vivências de difícil manejo clínico.
69
II – Objetivo e Justificativa
A dissertação tem como objetivo investigar o sentido de vivências
contratransferenciais na experiência de atendimento ludoterapêutico a um menino
considerado agressivo. Especialmente no que diz respeito a momentos de paralisação,
confusão e agressividade em resposta a movimentos transferenciais da criança. Neste
estudo clínico será considerado o material das sessões realizadas por aproximadamente
dois anos, o qual será analisado sob uma perspectiva teórica psicanalítica.
Embora seja o estudo de apenas um caso, o relato de tais experiências enfocando
as reações contratransferenciais pode favorecer a reflexão e a discussão sobre as
estratégias terapêuticas no atendimento a uma criança considerada agressiva. O que se
configuraria como uma contribuição aos profissionais que desenvolvem trabalho clínico
nesta área.
70
III– Método
Importante ressaltar agora, que o presente trabalho insere-se em um tipo de
pesquisa que Turato (2003) denominou clínico-qualitativa. Tal denominação reflete a
particularização que este autor faz dos métodos qualitativos em geral para a pesquisa no
contexto clínico da saúde.
Neste sentido, diferentemente de uma pesquisa que faça uso de métodos
quantitativos, o que se pretende aqui não é uma generalização dos resultados
encontrados e nem a reprodutibilidade das situações estudadas. O interesse deste
trabalho - e por isso a presente dissertação pode ser descrita como qualitativa - es em
compreender e interpretar - ou seja, trabalhar com sentidos e significações - a partir de
alguns aspectos, os elementos contratransferenciais em um caso clínico específico. A
escolha de um único caso clínico estaria de acordo com esta característica dos métodos
clínico-qualitativos, dado que a busca se pelos significados que o estudo pode trazer
à compreensão do fenômeno.
Além do interesse pela interpretação - e não pela explicação e predição - do
fenômeno, Turato (2003) discorre sobre outras características dos métodos clínico-
qualitativos de pesquisa, características estas que se acham presentes nesta dissertação.
Abordarei rapidamente algumas delas.
Na pesquisa clínico-qualitativa (TURATO, 2003), o espaço físico-estrutural,
cotidiano, da configuração dos serviços clínicos, é o ideal para a coleta de dados e, no
nosso caso, o espaço em que ocorreram as sessões corresponderia a isso. Outra
característica deste método é a valorização e o acolhimento das angústias e ansiedades
que surgem no contato com a pessoa entrevistada, tanto dela quanto do pesquisador, o
que será bastante abordado nesta dissertação, dado que pensar a contratransferência
71
implica em reconhecer os conflitos, impulsos e desejos do analista na situação de
análise. Nas pesquisas cujo método é clínico-qualitativo, o próprio pesquisador é o
principal instrumento de trabalho e sua personalidade se acha diretamente implicada
neste movimento. Neste sentido, a introspecção e a reflexão pessoal são bastante
utilizadas. Em relação a isso, outro ponto importante a ser destacado é que neste tipo de
metodologia o interesse principal está no processo e não no produto, ou seja, quer se
conhecer a dinâmica interna dos fenômenos, como se transformam e quais as interações
entre eles, mais do que os resultados da intervenção do pesquisador. Além disso, na
pesquisa qualitativa, os resultados são apresentados como dados descritivos e
concomitante a esta apresentação é feita interpretação sobre seus sentidos e
significações. Por fim, destaco mais uma característica da pesquisa que utiliza este tipo
de metodologia e para isso cito o próprio autor:
Ao contrário dos métodos quantitativos, que são tidos com finalidade
de generalização de seus achados para outros momentos e situações,
os métodos qualitativos permitiriam generalizar os pressupostos
finais (confirmados ou revistos em relação aos iniciais do projeto de
pesquisa), levantados como conclusões do respectivo trabalho.
(TURATO, 2003, p. 266)
1. Participantes
O participante desta pesquisa foi uma criança do sexo masculino, cuja idade era
de 8 anos na época em que se iniciou o processo psicoterapêutico. A indicação de
atendimento a ele partiu da coordenadora de uma escola municipal, localizada em um
bairro na periferia da cidade de São Paulo, pelo fato de que esta criança se apresentava
bastante agressiva no ambiente escolar. Este trabalho foi desenvolvido dentro de um
projeto de pesquisa mais amplo, no qual os critérios de inclusão para o atendimento
eram: manifestação de comportamentos considerados agressivos no ambiente escolar,
faixa etária compreendida entre 8 e 12 anos de idade, sexo masculino e eventual
72
dificuldade no desempenho escolar, mas sem limitação intelectual. Em relação aos
comportamentos considerados agressivos pelos professores que encaminhavam as
crianças para atendimento ludoterápico, apresentam-se os seguintes (SOUZA e
CASTRO, 2008): rebeldia com o professor, agressão física e/ou verbal entre os alunos,
não cumprimento dos deveres escolares, desatenção e inquietação.
Como esta dissertação tem como propósito estudar os aspectos
constratransferenciais neste atendimento, coloco-me também como participante, dado
que minhas emoções e reações, a partir do contato com o menino, serão objeto de
reflexões.
2. Instrumentos
O processo psicoterapêutico com ele foi realizado em uma sala da referida
escola, especialmente destinada para este fim. A sala - também utilizada por outros
terapeutas - era espaçosa e continha brinquedos de uso comum das crianças, um armário
para guardar caixas lúdicas e materiais gráficos, uma pia e uma mesa com quatro
cadeiras. Cada criança tinha sua própria caixa lúdica de uso exclusivo, com brinquedos
diversos, dentre eles uma pasta com material gráfico, espada de brinquedo, jogo de
dominó, jogo de damas, bonecos, etc.
3. Procedimentos
Em um período aproximado de dois anos foram realizadas sessões
ludoterapêuticas semanais com a criança e a freqüência inicial era de uma vez por
semana, tendo cada sessão a duração de cinqüenta minutos. Após aproximadamente
73
dois meses de trabalho, as sessões passaram a ocorrer duas vezes por semana, dada a
intensa ansiedade apresentada por ela. Além das sessões ludoterapêuticas, foram
realizadas entrevistas com os professores no início e no fim de cada semestre para uma
avaliação da criança e para obter informações sobre a evolução da mesma em sala de
aula. Os pais - no caso dele, apenas a mãe - também foram entrevistados para serem
informados sobre o tipo de trabalho que estaria sendo realizado com o filho, para
fornecerem dados sobre o desenvolvimento da criança e para uma eventual orientação.
Ocorreram quatro entrevistas com a mãe do menino - seu pai era falecido - e no total
foram realizadas 106 sessões com a criança. O atendimento era suspenso durante o
período de férias escolares.
Além da autorização fornecida pela escola para o projeto mais amplo, solicitou-
se da mãe autorização por escrito para o atendimento a seu filho (ver Anexo).
4. Análise dos dados
Todo o material das sessões foi relido e selecionado para análise de acordo com
alguns critérios. Optou-se por fornecer relatos sintetizados do processo como um todo:
como o menino foi apresentado pela escola e pela mãe; apresenta-se um panorama geral
das sessões, pontuando determinados momentos marcantes da evolução do processo e
escolheu-se uma sessão em que ocorreu manifestação agressiva contundente para
destacar os efeitos contratransferenciais produzidos. Toda esta seleção do material
proporcionará elementos para a discussão dos aspectos transferenciais e
contratransferenciais embasada em autores previamente apresentados na Introdução.
74
IV – Resultados e Discussão
Apresentarei agora o caso clínico que me trouxe a este trabalho acadêmico:
trata-se de Samuel
11
, um menino que contava oito anos de idade no início do
atendimento e cuja queixa era de agressividade no ambiente escolar. Inicialmente farei
uma síntese da história de vida dele a partir do que me foi contado pelos profissionais
da escola e também por sua mãe. Em seguida, farei uma exposição geral de como foram
as sessões com ele, respeitando a ordem cronológica em que os eventos ocorreram.
Farei algumas discussões neste momento e, para isso, deixar-me-ei aberto às
ressonâncias que os relatos me trouxerem. Em seguida, darei enfoque mais específico
aos aspectos transferenciais e contratransferenciais na relação que foi estabelecida entre
nós.
1. Relatos da escola sobre Samuel
O primeiro contato que tive com o caso de Samuel ocorreu quando fui visitar a
escola. A professora Maria Abigail, minha orientadora, apresentou-me à diretora e às
coordenadoras pedagógicas da instituição com o intuito de me familiarizar com o
ambiente, para que eu pudesse iniciar os atendimentos.
As coordenadoras falaram um pouco como funcionava a escola e logo em
seguida comentaram que havia um aluno necessitando de “ajuda psicológica”.
Descreveram Samuel como um menino de oito anos, de estatura pequena e bastante
agitado. Causava problemas para seu professor, já que não permanecia sentado durante
as aulas, corria pela classe e provocava os colegas. As coordenadoras comentaram que
11
O nome da criança, assim como os dos professores e orientadores da escola foram alterados para
preservar o anonimato dos participantes envolvidos no trabalho.
75
fora do horário de aulas ele as procurava para oferecer qualquer tipo de ajuda,
demandando carinho, constantemente abraçando-as e beijando-as.
Nesta primeira visita, ficou combinado que eu voltaria em alguns dias para
entrevistar o professor dele. Esta entrevista com o professor costumava ocorrer antes do
primeiro encontro com a criança e era um procedimento padrão no projeto de
atendimento ludoterápico que fazíamos naquele local. Tinha como intuito obter
informações sobre o menino, sua conduta em sala de aula e também explorar a visão do
professor a respeito de seu exercício profissional e suas concepções sobre a
agressividade no ambiente escolar.
O encontro com Francisco, assim ele se chamava, não foi muito agradável.
Aparentava ter por volta de sessenta anos de idade e tinha uma postura impaciente e
pouco receptiva. Mostrou expressão de desagrado quando soube que teria que conversar
comigo e suas respostas às minhas perguntas eram sempre muito breves, sem se deter
em qualquer um dos assuntos abordados. Parecia cansado da profissão, esperando
apenas se aposentar. Não tinha paciência com Samuel e achava que não havia muito a
ser feito com ele. Seus comentários sobre a criança destacavam as atitudes desafiadoras
e desrespeitosas para com o professor durantes as aulas: ... o Samuel, ele é um aluno
que não faz nada. Ele não faz as lições, finge que não ouve quando a gente fala com ele,
não senta na cadeira, essas coisas. (...) não escuta a gente, não faz a tarefa. Hoje ele
entrou com uma maçã na sala. Eu falei para ele comer na hora do recreio, mas foi
começar a aula e ele começou a comer a maçã. Eu tava de licença e quando voltei ele
tinha mais de vinte anotações com a outra professora”.
Este encontro foi rápido e um pouco constrangedor para mim. Parecia que eu o
incomodava muito e isto fez com que eu não insistisse para ele falar mais sobre o
76
menino. Assim, esta conversa o ajudou a obter informações sobre a criança, apenas
despertando em mim sentimentos de frustração frente à atitude do professor.
Resolvi então, marcar uma conversa com outra professora, que dava aulas de
reforço e coordenava atividades pedagógicas à tarde, às quais o menino comparecia
regularmente. Esta professora acrescentou outros dados à descrição fornecida por
Francisco, que viriam a se confirmar muito freqüentemente em nossas sessões. Disse-
me que ele também era uma criança carinhosa e que pedia, a mesmo exigia, atenção.
Freqüentemente, quando ela elogiava o desenho de alguém, ele imediatamente mostrava
o seu para que também fosse elogiado. Para ela, os problemas de Samuel estavam
relacionados ao ambiente familiar desestruturado. O pai da criança morrera e, segundo
seu relato, a mãe parecia não cuidar bem dele. Além disso, ele havia sido convidado a se
retirar da escola em que estudara no ano anterior.
Após seis meses de trabalho em ludoterapia com o menino, encontrei-me com a
professora que substituiu Francisco, pois ele se aposentara. Era uma pessoa mais
atenciosa e preocupada com os alunos. Mostrou-se solícita na entrevista, disse que
Samuel vinha melhorando, conseguia ficar mais quieto durante as aulas e as brigas
com os colegas diminuíram, mas ainda ocorriam. Contou-me que ele gostava de chamar
a atenção e se colocava em uma posição de ajudante durante as aulas, o que causava um
pouco de ciúmes nos outros alunos. Em sua opinião, ele queria ser o aluno preferido
dela e se isto não ocorria, mostrava-se desapontado. Outro aspecto que ela ressaltou foi
o fato de ele apenas colocar seu nome nas provas, deixando-as em branco, sem sequer
tentar fazê-las.
Nem sempre as conversas estabelecidas com os profissionais da escola ocorriam
de maneira formal ou em horário pré-agendado. Era comum que me procurassem para
contar o que Samuel havia feito naquela semana quando eu chegava para atendê-lo.
77
Diversos profissionais davam-me informações sobre ele nestas ocasiões, desde a
diretora da escola, professores e até a inspetora de classe. Ao longo do tempo, eles
foram relatando as melhoras de Samuel no ambiente escolar. Diziam que ele
conseguia ficar mais comportado na sala, que mostrava maior autocontrole e não exibia
mais tanta agitação. Ainda assim, apresentava alguns momentos de maior agressividade.
Como exemplo disto, a diretora da escola relatou-me que certo dia, um mês antes do
encerramento da terapia, ele ficou bravo com sua professora, gritou com ela e deu um
soco em seu estômago. Os profissionais me procuravam também, em certos momentos,
para solicitar atendimento a outras crianças que julgavam agressivas. Algumas serventes
chegaram a demandar orientações de como manejar e se relacionar com meninos de
comportamento agressivo. Além dos profissionais, houve procura direta por parte de um
menino que tinha interesse em ser atendido.
2. Relatos da mãe sobre Samuel
No primeiro contato que tive com Samuel, sua mãe o acompanhava e me
perguntou se eu queria falar com ela também. Respondi que sim, porém em outro dia e
horário, o que ocorreu algum tempo depois de iniciado o atendimento.
Essa conversa com a mãe foi o primeiro momento em que tive uma noção mais
precisa sobre determinados fatos da vida dele que a escola adiantara. Era uma mulher
sem energia, com aparência de cansaço e com uma expressão deprimida - tanto
corporalmente, quanto em seu tom de voz. Disse-me que em casa ele era uma criança
agitada, estava sempre em movimento e brincando no quintal. Desde bebê fora assim,
sendo o único filho que se comportava desta maneira. Segundo ela, a gravidez foi
difícil, sentia muitas dores de cabeça, dada sua pressão alta. Não se lembrava de muita
78
coisa sobre o desenvolvimento da criança e comentou que ele era surdo de um dos
ouvidos. Isso foi descoberto quando ainda era bebê e teve que fazer tratamento durante
certo tempo. O pai morreu quando ele era muito novo. O pai bebia bastante e faleceu ao
cair de uma escada batendo a cabeça no chão. Samuel era o caçula de quatro irmãos e
desde a morte de seu pai - talvez até mesmo antes disso - sua mãe se tornou essa mulher
cansada e provavelmente deprimida. Isso ficou mais claro quando me encontrei com ela
um ano depois, pois se queixava de sentir muito sono e de querer dormir o dia inteiro.
Era carinhosa com o filho e parecia se preocupar com ele. Porém, sempre tive a
impressão de que ela não tinha condições emocionais de cuidar desta criança e mesmo
de sua própria vida, necessitando também de cuidados. Além dos dois, moravam na
casa seus outros irmãos: um menino de onze anos, uma moça de dezessete anos e um
rapaz de vinte e quatro anos, o qual sustentava a casa na época do início dos
atendimentos. Os dois mais velhos eram filhos do primeiro casamento da mãe. Ela dizia
não poder trabalhar em decorrência de sua pressão alta.
Ao longo de todo o período de atendimento desta criança, encontrei-me com a
mãe apenas algumas vezes. Em geral, nessas conversas, ela falava muito sobre suas
próprias dificuldades, de seu desânimo e de suas doenças. Em função disso, foi
oferecido um atendimento psicológico por outro profissional que poderia realizar este
trabalho na própria escola. Ela respondeu evasivamente frente a tal proposta e acabou
não se interessando pela oferta.
79
3. Sobre o processo psicoterapêutico
3.1. Visão geral das sessões
Visando oferecer um panorama geral das sessões com Samuel, utilizarei a fonte
Times New Roman para os relatos dos atendimentos; em Itálico estarão os comentários
que se seguirem a estes relatos e a fonte Monotype Corsiva será utilizada para os
diálogos transcritos de minhas anotações.
Como se trata de uma seção extensa - dado que abarca aproximadamente dois
anos de psicoterapia -, escolhi dividi-la em quatro tópicos, para melhor distribuir a
grande quantidade de informação. Os tópicos terão os seguintes títulos: o início; a
quebra da caixa lúdica; a fotografia e o término.
3.1.1. O início
Como foi mencionado anteriormente, quando conheci Samuel ele estava
acompanhado de sua mãe. A escola os avisara sobre o início dos atendimentos e ela
resolveu acompanhar o filho. Perguntou-me se eu iria conversar com ela e respondi que
isto seria feito dentro de algumas semanas. Esta breve conversa se deu em um espaço na
entrada da escola, dentro do prédio. Subi então, com Samuel para a sala de
atendimento, que ficava no segundo andar. Era um menino pequeno, franzino, mas que
transmitia uma imagem de força e de agitação. Estava excitado com a novidade da
situação e no caminho viu a chave da sala na minha mão. Pediu para abrir a porta e
quase tomou a chave de mim. Acabei deixando que o fizesse.
Essa conduta dele - de pegar a chave - foi algo constante durante muitos de
nossos encontros. Sempre que fazia isso, parecia mais estar dando uma ordem que me
80
fazendo um pedido. E eu ficava sem reação, acabando por obedecê-lo. Sentia-me um
pouco constrangido, com mal estar e sem saber direito o que fazer. Esta sensação se
repetiu em muitos encontros e é interessante notar como esta primeira sessão já era
semelhante ao que se apresentaria em nossos encontros posteriores. “Que moleque
folgado!” Eu tinha este pensamento de forma recorrente. na primeira sessão,
parecia um menino invasivo, que precisava ocupar, sem pedir licença, um espaço
grande dentro de mim. Uma criança que parecia não caber dentro de si, pulsando
constantemente e fazendo pressão. Uma pequena “bomba-relógio”. É plausível pensar
que estivesse em ação o mecanismo de identificação projetiva (KLEIN, 1946), com os
conteúdos dele cindidos, pulsantes, sendo “jogados” para dentro de mim. Este
primeiro contato com ele foi cansativo, sendo que, em momentos como o descrito
acima, eu me sentia um tanto paralisado.
Voltando ao relato do primeiro atendimento, depois que ele abriu a porta,
entramos na sala, guardei um material que trazia comigo e sentei-me à mesa para
conversar com ele. Perguntei se sabia o que estava fazendo ali e ele respondeu que
estava lá para ser atendido. Falei:
B: Eu sou um psicólogo, você sabe o que um psicólogo faz?
S: Sei, ele atende.
B: Por que você acha que a escola te encaminhou para mim?
S: … Acho que é por que eu não faço lição.
B: Sua professora me disse que você é muito agitado, não pára quieto e que costuma atrapalhar os
colegas. O que acha disso?
S: É verdade.
B: E como eu poderia te ajudar?
S: Me atendendo e aí eu ia fazer lição.
B: Então, eu vou tentar entender o que está acontecendo com você e, assim, tentar te ajudar. Vou
usar para isso essa caixa (abri a caixa lúdica para ele).
Neste trecho, ele expressou suas fantasias a respeito da terapia. Algo que iria
ajudá-lo a se controlar e a fazer lição. De uma maneira mágica, é verdade. Ele parecia
reconhecer sua agitação interna e sua própria não adaptação ao ambiente. Porém,
81
uma força que viria de fora estaria para controlá-lo e para dar conta de seu caos
interior, provavelmente proporcionando redução da ansiedade e do sofrimento. Não
seria essa, uma demanda direcionada ao ambiente de forma geral? Como se ele
estivesse à procura de um ambiente que pudesse oferecer alívio e sustentação a suas
vivências avassaladoras. Talvez pudéssemos pensar que a terapia, em sua fantasia, iria
funcionar como um aparelho psíquico que daria conta de tais vivências.
Também é plausível pensar que sua própria não adaptação seria, para ele, uma
evidência do fracasso nos relacionamentos ou da maldade que sentia residir dentro de
si. “Aí eu ia fazer lição”, o que o tornaria um bom aluno, alguém a ser admirado e
respeitado - não uma “bomba ambulante” da qual todos queriam se afastar.
Na primeira sessão ele apresentou outra atitude que se repetiria muitas vezes
posteriormente: a de tentar levar coisas para sua casa. Reparou que em sua caixa lúdica
existiam dois jogos do mico e imediatamente pediu para levar um. Respondi que não,
mas que poderia jogar sempre que nos encontrássemos. Ele insistiu e falou que em sua
casa todos gostavam deste jogo. Voltei a lhe dizer que ele não poderia levar, mas
poderia brincar às sextas-feiras quando nos encontrássemos.
Podemos nos aproveitar das idéias kleinianas para dar sentido a este episódio.
O pedido de levar o jogo era mais um de seus movimentos invasivos. Mais uma vez, um
constrangimento me atravessava e eu ficava sem reação, utilizando uma norma técnica
para tentar me livrar dessa sensação incômoda. Tenho a impressão de que quando ele
queria algo, engolia. Uma espécie de incorporação voraz (de mim?). E essa é a
imagem que me ocorre agora: uma grande boca devorando o jogo do mico e me
devorando também. Havia, além disso, um movimento sedutor, pois ele dizia que todos
em sua casa iriam gostar do jogo. Seduzir para manipular, jogando fora depois.
82
Relação com o objeto característica da posição esquizo-paranóide, como também de
uma posição maníaca.
Devo fazer uma ressalva aqui para que não fique a impressão de que não acho
importante a manutenção do enquadre. Não deixá-lo levar o jogo poderia ter o sentido
de impor um limite para sua voracidade. Se a recusa em deixá-lo ir embora com o jogo
estivesse fundamentada por esta escuta, considero que estaríamos no campo da
linguagem e mesmo na presença de um gesto que organizaria a criança. Mas a
sensação junto dele naquele momento era de um mal estar tão grande, seu pedido foi
tão invasivo, que minha atitude me pareceu estar mais relacionada com uma
necessidade de separação deste estado colado a ele do que com uma tentativa de impor
limites à sua voracidade.
Em seguida, passamos a jogar mico. Mas ele jogava como se fosse um jogo da
memória, tentando encontrar o par de cada animal. Não estava dando muito certo e
expliquei a ele como se brincava
12
. Ele montou todos os pares e percebeu, com a minha
ajuda, que se tratava de um macho e de uma fêmea de cada animal. Logo que expliquei
as regras ele comentou que era muito bom e que iria me “detonar”. Ganhou e continuou
falando que era muito bom. Quis jogar mais uma vez e disse, novamente, que ia me
“detonar” e que eu estava perdido. O mico saiu inicialmente com ele e quando as cartas
estavam acabando eu tirei o mico. Ele deu muita risada e falou que ia ganhar. Mas na
jogada seguinte, foi ele quem tirou o mico - para meu deleite interno. Ficou muito sem
graça e tentou me enganar e burlar as regras. Eu não deixei e acabei vencendo. Ele não
quis mais jogar.
12
O jogo do mico consiste em um baralho de cartas. Cada uma delas representa um animal e para cada
espécie uma carta com o desenho do macho e uma carta com o desenho da fêmea, formando o par.
Apenas o mico não tem par. Distribuem-se as cartas igualmente entre os participantes e o jogador, em sua
vez, retira uma carta do monte do outro. Forma então, o par correspondente com uma carta de seu próprio
monte e, assim, gradualmente diminui a quantidade de cartas em sua mão. Aquele que terminar com o
mico na mão perde o jogo.
83
O triunfo característico da mania (KLEIN, 1940) estava presente em sua fala ao
dizer que ia me detonar. A risada sarcástica quando eu tirei o mico me deixou com
muita raiva. Senti-me anulado enquanto pessoa - o que pode ajudar a entender a
irritação que ele despertava em seu professor durante as aulas. Ele queria provar que
era melhor que eu e o fazia sem a menor cerimônia ou consideração por mim. Mas ele
perdeu e não quis mais jogar. Será que assim, tentava anular o episódio que
denunciava sua própria impotência? Provavelmente. Lembremos que a negação da
realidade externa e interna é outra defesa característica da posição esquizo-paranóide,
o que evidencia a predominância de um funcionamento primitivo no contato com ele.
Ao fim da sessão ele resolveu pintar a bandeira do Brasil em uma folha de papel
branco. Porém, errou os contornos e ficou decepcionado. Disse a ele que poderia fazer
daquele jeito ou poderia pegar outra folha e começar um novo desenho. Ele pegou outra
folha e errou novamente, ficando claro seu desapontamento consigo mesmo. Eu disse
para ele fazer do seu jeito e que estava ficando bonito. Falou que era ele que tinha
errado e que seria ele quem deveria arrumar. Continuou pintando e falei que nosso
encontro já estava acabando. Pintou rapidamente e fomos embora.
Este foi o único momento da sessão em que consegui empatizar com ele. A
dificuldade em lidar com o próprio fracasso, por mais simples que fosse - errar um
desenho - revelava sua insegurança em relação às próprias capacidades. Aqui, a
imagem do todo poderoso onipotente - e maníaco - desapareceu por instantes. Senti-me
mais próximo dele e, até mesmo, com pena. Parecia-me um momento doloroso, mas
belo, em que ele se dava conta de suas próprias dificuldades e isso lhe causava tristeza.
Era como se ele encontrasse, por instantes, o caminho que a vida o convidava a
atravessar, encarando-o de frente, mesmo que momentaneamente, não se negando a
sentir o medo e a dor que isso lhe causava.
84
Os atendimentos com Samuel seguiram o padrão do primeiro encontro e, na
segunda sessão, uma outra sensação que se faria presente em grande parte dos
atendimentos posteriores tomou sua forma. Um cansaço muito profundo se abateu sobre
mim e eu, constantemente, passei a sentir preguiça em atendê-lo.
No início de nosso segundo atendimento, uma semana após a sessão anterior,
Samuel me esperava na rua quando cheguei. Foi até a porta do carro e tentou abri-la.
Perguntou pela caixa de madeira e eu disse que estava na sala. Entramos na escola,
subimos, ele pegou a chave de minha mão e abriu a porta. Disse que brincaria de mico,
de desenho e, se desse tempo, de boliche.
de lembrar desta passagem fico cansado. Isso era ele! Neste segundo
encontro ele parecia ainda mais espontâneo do que no primeiro e com esses
movimentos ininterruptos, que não me davam tempo para pensar ou para descansar.
Um estado ansioso e agitado. Ele nem me esperava chegar à escola, já estava na rua, e
mal eu abria a porta do carro ele estava lá. Em certa ocasião, chegou a ver um boné
que eu colocava no guarda-objetos da porta do automóvel e pediu para levar pra casa.
Era como se ele estivesse presente em todos os lugares, em todos os meus espaços
internos. Neste dia, nem pediu a chave da sala para mim, foi tomando-a de minha
mão em um movimento muito semelhante ao da sessão anterior, porém mais intenso.
Neste segundo encontro ele parecia ainda mais solto para mostrar o que era: “liberou
geral!” Penso na voracidade, esta incorporação agressiva e despreocupada do outro.
A referência a Winnicott talvez seja pertinente aqui. Quando ele fala sobre um estágio
ainda não integrado da vida pulsional, em que o bebê experimenta a excitação vivida
com uma crueldade não intencional e despreocupada. Seria esta uma exigência de
Samuel em relação ao ambiente? Uma demanda de que o ambiente pudesse suportar
essa forma desintegrada de experiência para que, gradualmente, a integração pudesse
85
ocorrer de maneira mais satisfatória em sua personalidade? Talvez fosse mesmo
necessário que ele vivesse tal amor rude e primitivo, provavelmente insatisfatoriamente
experimentado, para dar continuidade ao desenvolvimento de seu self - no sentido
winnicottiano do termo.
Outro desdobramento que esse trecho pode nos trazer diz respeito à
impossibilidade de ressonância e de reverberação em mim quando Samuel se
relacionava comigo desta maneira. Esse constrangimento, ou essa dificuldade em
pensar ou saber o que fazer, provavelmente estavam relacionados com isso. Como se a
pressão que ele fazia sobre minha mente não deixasse espaço livre para
desdobramentos que nos pudessem levar a outro lugar. Com suas exigências e
demandas, o silêncio interno em estado de linguagem - retomando a apresentação das
idéias de Fédida - não tinha vez aqui.
Embora desde o início de nossos encontros ele apresentasse esse jeito
invasivo, também foi possível perceber nos primeiros contatos o quanto ele tinha uma
imagem negativa de si mesmo, freqüentemente negada por meio de defesas de cunho
maníaco. Tal aspecto ficara mais evidente no episódio em que tentou pintar a
bandeira do Brasil. Na terceira sessão, eu disse a ele que gostaria de conversar com sua
mãe para explicar como era o trabalho que vínhamos fazendo e também para saber um
pouco mais sobre ele. Transcrevo uma parte de minha anotações deste atendimento:
B: Samuel, eu estou pensando em conversar com sua mãe. O que você acha?
S: Por que? (muito agitado)
B: Para explicar a ela o que a gente está fazendo e para saber um pouco mais sobre você e sua família.
S: Você disse que não ia falar pra ninguém o que a gente faz aqui.
B: Eu não vou dizer a ela o que a gente faz ou o que a gente conversa. Vou explicar como é o
trabalho que estamos fazendo, como fiz com você na primeira vez que nos encontramos.
S: Ela vai falar que eu sou atentado.
B: O que é isso?
S: Ela vai falar que eu sou bagunceiro.
B: Você tem medo que as pessoas te achem bagunceiro né?
S: …
86
A intervenção que revelava meu intuito em conversar com sua mãe,
evidentemente lhe causou muito desconforto. A princípio, a possibilidade de que ela
descobrisse o que conversávamos durante as sessões o incomodava. Mas hoje penso
que o incômodo maior não estava bem aí. Pareceu-me que ficou preocupado que, a
partir da conversa com sua mãe, eu descobrisse algo a respeito dele. Algo pouco
lisonjeiro. Que era “atentado”, que existia uma certa loucura e descontrole dentro
dele.
A partir daí o jogo dele passou a sofrer os reflexos desta conversa. Brincadeiras
em que algo estava pegando fogo ou em que havia sujeira e, até mesmo, tiros ocuparam
a sessão após o assunto do encontro com a mãe. Angústias persecutórias foram
despertadas e ele chegou a perguntar se havia alguma câmera de vídeo na sala. Depois,
iniciou um jogo em que me matava e em seguida me salvava, ressuscitando-me.
Talvez ele estivesse representando, pela brincadeira, o caos interno que sentia
residir dentro de si. De forma ansiosa e desorganizada, mostrou a sujeira, o fogo e a
loucura que provavelmente ocupavam sua mente em muitos momentos. E nesses jogos,
recorria a mecanismos onipotentes e mágicos para lidar com a perda resultante de seu
estado mais agressivo e descontrolado, como ao me ressuscitar após minha morte
-provavelmente também, reflexo de sua ambivalência em relação a mim.
próximo ao fim dessa terceira sessão comentei sobre as férias escolares que
ocorreriam dali a duas semanas. Informei que a sessão seguinte seria a última antes de
nossas férias - que coincidiriam com as férias escolares - e ele me respondeu dizendo
para atendê-lo também nas férias. Falei que isso não seria possível e ele insistiu. Por
fim, eu disse para ele ficar tranqüilo, pois voltaríamos a nos encontrar quando as aulas
recomeçassem.
87
Como se não bastasse que ele ficasse ansioso por causa de meu possível
encontro com sua mãe, eu ainda falei sobre as férias, destacando a proximidade de
uma separação entre nós. Será que era sadismo de minha parte? Quis deixá-lo
assustado? É muito provável - e hoje isso me parece mais claro - que existisse em mim
um movimento de retaliação naquela ocasião, disfarçado pela necessidade em ser
honesto com as informações sobre o processo terapêutico. A informação sobre as férias
deveria ser dada, mas por que não conversei sobre isso com ele anteriormente?
Parecia que naquele momento eu me vingava de todo o cansaço e mal estar que ele me
causava.
Penso também que eu deixava claro para ele minha necessidade de férias e de
um tempo para mim, o que, por sua vez, ressaltava aspectos de minha vida dos quais
ele não fazia parte. Retomando Winnicott (1963b), era como se eu, após um estado de
grande identificação e (por que não?) fusão com ele, falhasse por não estar presente às
sessões em um determinado período. O ambiente seguro e continente que, de certa
forma, eu propiciava para ele expressar seus impulsos, estaria temporariamente
indisponível. Esta falha dava razões para que ele sentisse raiva de mim. Porém, este é
um movimento importante para que gradualmente o amor e o ódio possam se fundir em
uma experiência mais completa com o outro. O que aos poucos foi acontecendo ao
longo de sua psicoterapia.
Devido à ansiedade demonstrada durante as sessões e também às queixas da
escola, que continuava a relatar a dificuldade em se lidar com ele durante as aulas,
minha supervisora e eu pensamos que talvez fosse interessante que ele passasse a ser
atendido duas vezes por semana. Com freqüência, antes desta proposta ser feita, ele
pedia para ficar mais tempo comigo querendo alongar os nossos encontros. Assim, na
volta das férias escolares, conversei com ele a este respeito. Ele se mostrou interessado
88
na proposta e pareceu concordar que se beneficiaria de mais uma sessão semanal. O que
então, passou a ocorrer.
Nos atendimentos, as brincadeiras que ele escolhia eram cansativas e
desgastantes. Tínhamos que encenar histórias longas que, em geral, continham brigas,
mortes, explosões, caçadas a assassinos e fugas. Estes jogos eram intensos e exigiam
grande dose de energia. Com freqüência ele pulava em cima de mim, jogava-se no chão
e pedia que eu fizesse o mesmo. Nessas brincadeiras eu era apenas um objeto que
obedecia às suas ordens. Dificilmente eu contribuía com algum aspecto da história que
encenávamos. Eram constantes os momentos em que ele me matava e depois criava um
recurso mágico para me ressuscitar. Ocorriam mudanças repentinas nas histórias, nos
cenários e eu parecia estar dentro de um sonho, em que os elementos iam mudando
repentinamente e sem muita coerência aparente. Mas tudo isso era permeado por um
estado ansioso e agitado por parte dele - o que me fazia pensar na pequena bomba-
relógio”, prestes a explodir. Eu tinha dificuldades em pensar e em compreender o que
estas encenações queriam dizer.
Em um desses jogos, brincamos com revolveres de plástico. Trocamos tiros e ele
fingiu que morreu. Pediu em seguida que eu verificasse se ele estava morto. Na verdade
- contou-me em “off”, fora da narrativa da história essa era uma armadilha para me
atacar de surpresa, quando eu fosse olhar seu corpo estendido no chão. Ao chegar perto
dele, falei que não acreditava que ele estava morto e atirei nele novamente. Ele ficou
sem graça, falou que não era para eu ter feito aquilo e pediu para repetirmos a cena,
ressaltando que eu deveria acreditar que ele estava morto para que eu fosse pego de
surpresa. Repetimos a cena, mas eu continuei mostrando autonomia na brincadeira, sem
obedecê-lo. Ele pegou o revólver e atirou em mim, mas falei que isso não era possível,
pois ele estava morto. E mesmo que não estivesse realmente morto, não tinha acertado
89
nenhum dos tiros que acabara de dar, pois eu não havia sentido nada. Notei que ele
ficou muito sem graça com a situação e a partir daí deixei que ele controlasse a
brincadeira.
Neste trecho eu fiz uma espécie de oposição às demandas dele, ressaltando
minha própria autonomia. De fato, o controle que ele exercia sobre mim durante as
sessões costumava me deixar exausto e irritado. Reconheço que existia um pouco de
cinismo e ironia de minha parte ao não entrar no jogo que ele estava me propondo ou
ao utilizar o jogo da maneira que mais me convinha. Mas anterior a este “sarcasmo”,
acredito que estava em cena uma busca por individuação de minha parte. Como se eu
tivesse que me opor a ele para me tornar alguém diferente, com subjetividade própria;
enfim, uma alteridade.
Aqui, considero importante retomar as considerações a respeito do pensamento
winnicottiano expostas anteriormente
13
nesta dissertação. Por meio das observações de
Phillips (1989), comentador do autor, vimos que Winnicott (1964) considera
fundamental uma oposição do ambiente ao componente agressivo da vida pulsional da
criança para que se inicie uma diferenciação entre eu e não-eu. É importante que o
ambiente resista para que haja um mundo externo e um mundo interno com limites
cada vez mais claros. É provável que minha intervenção tenha provocado esse impacto
da diferenciação em Samuel. O controle presente em seus jogos me colocava como um
objeto de seu próprio mundo interno, sem consideração alguma por mim enquanto
alguém diferente dele. Não seria incorreto afirmar então, seguindo este raciocínio, de
que se tratava de uma tentativa de minha parte de sair da relação objetal narcísica
estabelecida por ele. Uma busca por diferenciação e a tentativa de me mostrar a ele
como alguém diferente, com sentimentos e vontades próprias.
13
Ver Introdução.
90
Mas, interessante pensar que romper repentinamente com esta forma de relação
objetal também poderia deixá-lo em um estado de muita desorganização, o que se
observou com seu constrangimento quando me neguei a seguir suas ordens no jogo.
Após esta constatação, de que ele ficou sem saber o que fazer, senti pena dele e tive a
impressão de ter recobrado as energias para me colocar a seu dispor na continuidade
do jogo. Assim, naquele momento, pareceu haver em mim a percepção de que era
necessário que ele vivesse essas experiências de fusão comigo para que, gradualmente,
pudesse experimentar outras formas de se relacionar. Parecia ser importante que
vivesse isso comigo e que eu sobrevivesse a essas vivências, para que ele pudesse
introjetar a experiência de relação com um bom objeto - o qual daria força, maior
consistência e integração a seu ego -, que sobrevive aos ataques desferidos e se
apresenta para receber o gesto reparador. Essa percepção intuitiva me colocava
novamente no campo da linguagem, já que era reflexo de possibilidades de ressonância
e de reverberação a partir do contato com o paciente. Havia, naquele momento, um
silêncio interno em mim que pôde me orientar a novamente deixá-lo conduzir o jogo,
que esta era uma necessidade dele. Dessa vez, eu parecia ter mais clareza do que
estava acontecendo e me disponibilizei a ele, que sentia que era isso que precisava
ser feito naquele momento.
Na continuidade da brincadeira, atiramos em alguns inimigos e depois nos
escondemos. Passamos a sussurrar para que ninguém nos ouvisse e ele comentou que a
caixa lúdica era uma bomba e que deveríamos guardá-la.
Acredito ser interessante pensar na caixa lúdica como uma bomba, dado o
simbolismo que ela pode representar em uma psicoterapia de orientação psicanalítica.
Se for considerada um símbolo da relação com o terapeuta ou, até mesmo, como algo
que possibilita, em certo sentido, o desvelamento da subjetividade do outro, que
91
perigos isso traria a ele? Que verdade o uso da caixa traria à tona? De que existe algo
realmente explosivo dentro dele? Isso nos põe em contato com a angústia que o próprio
atendimento suscitava nele. O medo das descobertas que poderia fazer a respeito de si,
o que em sua fantasia, provavelmente, não seria nada muito agradável.
Na sessão seguinte, logo ao chegar, iniciou mais uma dessas brincadeiras do tipo
“faz de conta”. Subiu na cadeira, mexeu no armário e falou que ligaria o alarme. Não
poderíamos nos mexer e teríamos que falar baixo. Perguntei o que aconteceria se o
alarme disparasse. Ele respondeu que tudo explodiria. A seguir passou a correr pela sala
e ficou em em cima da mesa. Fiquei extremamente desanimado nesse momento e
achei muito difícil estar ali com ele. Tive a sensação de que a sessão seria muito
cansativa. Fiquei quieto, observando o que ele fazia e tive a impressão de que uma hora
ele pararia de correr e começaria a chorar, como se fosse impossível, a partir de um
determinado momento, sua agitação continuar a encobrir tristeza e dor. Senti então, que
precisava interagir com ele para que isso não acontecesse.
De fato, essa agitação desordenada, essa necessidade de correr, pular, subir,
correr novamente, tudo isso me deixava cansado e revelava uma tensão muito grande
dentro dele. Parecia mesmo que ele ia explodir. E tudo isso em jogos cujo ambiente
estava rodeado de elementos e personagens hostis. Estaria aqui em ação o ciclo vicioso
decorrente da presença de um superego sádico e primitivo como pensado por Melanie
Klein (1927, 1933)? Para lidar com a hostilidade que sentia residir dentro de si, é
provável que Samuel a projetasse no ambiente e nos objetos do mundo externo. A
conseqüência decorrente desta ação mental se fazia presente no medo da retaliação, na
angústia persecutória expressa em seus jogos. O jogo poderia ser compreendido aqui
como uma representação do caos interno vivido por ele. Objetos ameaçadores e um
constante estado de alerta, caso esses objetos resolvessem atacar em surdina. Seria
92
essa descrição uma representação da ameaça sentida pelo ego a partir da pressão
exercida pelo superego hostil?
Minha sensação de que toda essa agitação encobriria uma tristeza pode ter
relação com a dor pela morte de seu pai o que, por sua vez, teve efeitos sobre sua mãe,
a qual, aparentemente, não conseguiu elaborar este luto. Daí se poder pensar que esta
relação com a mãe, aparentemente não muito boa, levou a efeitos não tão bons no
desenvolvimento do filho.
Ou talvez, a tristeza e o choro encoberto fossem meus. Talvez reflexos do meu
desânimo e de minha sensação de desamparo frente ao garoto. Isso porque ele parecia
estar sempre do mesmo jeito, sem que nada mudasse, sem evolução alguma. O encontro
com ele era uma espécie de provação. Parecia que o que poderia ser feito não era
interpretar ou compreender o que se passava. Mas sim sobreviver ao contato com ele.
Mas se o choro tinha relação com o luto do pai, por que não pensar que o meu
provável choro tivesse algo a ver com o luto de meu próprio pai? Não seria absurdo
pensarmos que meus “restos não resolvidos” também estivessem presentes e pulsando
nesses contatos.
Entrei na brincadeira e logo começamos seu jogo mais recorrente: a brincadeira
com armas. Ele perguntou quem havia sido na sessão passada, pois queria assumir o
mesmo papel. Disse a ele que tinha sido o detetive Alves e em seguida ele me disse que
eu era seu filho. Brincamos a sessão inteira disso, fugindo dos inimigos e atirando neles.
Mais uma vez Samuel não me deu qualquer autonomia dentro do jogo e mesmo eu
sendo seu filho a maneira como ele me tratava era muito agressiva. Ele me mandava
“calar a boca” e “ficar quieto” constantemente.
A temática da relação pai e filho se expressou aqui de maneira clara. Mas dessa
vez, ele era o pai. Agressivo, mandão (primevo?). O pai que controla e ordena. A
93
expressão da onipotência. Seria este movimento - ocupar o lugar do pai - uma forma de
encobrir ou de lidar com o ódio que sentia deste mesmo pai? Por tê-lo abandonado
com sua morte, sem que pudesse ter sobrevivido a seus ataques imaginários? Por tê-lo
deixado com essa mãe deprimida, também morta de alguma forma?
Ao longo de toda a sessão ele arrastou sua caixa lúdica pela sala, apresentando
atitude pouco cuidadosa em relação a ela. Por vezes, ao arrastá-la, fazia com que batesse
na parede e que virasse no chão. Quando tentamos fechá-la, no fim do atendimento, a
tampa estava quebrada e alguns parafusos haviam caído. Ele não me ajudou a consertar
e tive que fazer isso sozinho. Mesmo assim, ainda ficou um pouco danificada.
A atitude displicente em relação à caixa se repetiu no encontro seguinte e
apontei isso a ele, relacionando tal conduta com a forma ambivalente com que se
relacionava com as pessoas, maltratando aquilo de que gostava. Ainda fiz referência que
aquela era a forma como se mostrava aos outros, cuidando pouco dos aspectos bons que
residiam dentro de si. Como se ele também se maltratasse e mostrasse às pessoas apenas
sua destrutividade. A intervenção suscitou angústia nele, pois me pediu para ficar quieto
e para começarmos a brincar. Porém, tive a impressão de que ele, de fato, escutou o que
eu disse e que essa conversa ecoou dentro dele. Essa era uma característica interessante
no contato com ele. Muito embora as sessões fossem cansativas e com muita
destrutividade, Samuel costumava fazer bom uso das interpretações, por mais que se
mostrasse angustiado ao recebê-las. Era possível perceber que ele ouvia e processava o
que eu dizia. No decorrer dessa mesma sessão, apontei em seu jogo a necessidade de
fusão que ele tinha em relação a mim. Como se ele sentisse que o existisse sem a
minha presença. Após esta intervenção, retornamos à brincadeira e dentro do jogo, na
encenação que se seguiu, ele falou, na voz do personagem que interpretava: “Eu não
94
existo!”, o que mostra a interiorização e o reconhecimento de aspectos de si mesmo a
partir do jogo e do contato comigo.
3.1.2. A quebra da caixa lúdica
As sessões seguintes foram marcadas por sua angústia frente ao estrago
provocado na caixa lúdica. A maneira com que ele a havia utilizado nos encontros
anteriores fez com que realmente se quebrasse. Alguns parafusos caíram e a tampa ficou
solta, o que fazia os brinquedos saírem quando a guardávamos no armário ao fim das
sessões. Em um de nossos encontros ele levou uma chave de fenda para tentar fixar os
parafusos soltos. Porém, não conseguiu, dado que a chave era muito grande. Ficou
irritado e disse: “Bosta!”. Não quis mais usar a caixa e me pediu para guardá-la.
A quebra da caixa era resultado de seu próprio movimento destrutivo e do
descaso com que a tratou em diversos momentos. A caixa poderia ser compreendida
como algo importante para ele, que em muitos momentos sentia que os brinquedos
eram presentes que recebera de mim e também um símbolo de nossa relação. Enfim,
algo de que gostava bastante. Era difícil então, enfrentar a dor de reconhecer que ele
mesmo causara dano ao que estimava. Entrava assim, em contato com angústias de
cunho depressivo, o que exigia certa estabilidade egóica para ser suportada. Deve ser
ressaltado seu movimento genuíno de tentativa de reparação ao objeto danificado. Mas
dada a inadequação do material de que dispúnhamos para consertar a caixa, isso não
foi possível. Nem sei bem se não foi possível, mas hoje penso que era provável que ele
não se sentisse capaz desse reparo, pois se tratava de uma tarefa difícil e sofrida. Ficou
com raiva por não conseguir reparar o dano e parecia querer se livrar rapidamente da
angústia que sentia. Recorreu então, nos diversos momentos em que se incomodou com
95
a caixa quebrada, à negação, uma defesa freqüente na posição esquizo-paranóide
(KLEIN, 1946), eliminando a caixa de nossas brincadeiras como se ela não mais
existisse. Em outra sessão, ao novamente ver frustradas suas tentativas de reparação,
chamou a caixa de “viado”, mostrando-se raivoso e ressentido com ela. Projetava
assim, sua destrutividade no objeto, que passava a ser o responsável por sua angústia:
a caixa estaria quebrada por culpa dela mesma, porque teria sido má com ele.
Em um desses atendimentos, após nova tentativa frustrada de conserto da caixa,
passamos a brincar com alguns jogos que estavam na sala. Usamos por um tempo o
jogo do mico e depois o baralho
14
. Em todos eles Samuel tentou trapacear, mesmo nos
momentos em que estava ganhando. Apontei isso a ele em algumas ocasiões,
relacionando a trapaça com sua dificuldade em perder. Chegou a encerrar uma partida
antes do fim e eu disse: “Samuel, você encerrou o jogo antes de terminar. Você fez isso
porque achou que ia perder. Essas coisas que você faz, como encerrar a partida ou
roubar, te ajudam a controlar as coisas. É parecido com a nossa brincadeira em que você
comanda tudo, até as minhas ações”. Ele abaixou a cabeça e disse para continuarmos a
jogar. Jogamos outra partida que também não chegou ao fim.
É provável que essa interpretação da trapaça como uma tentativa de controle
estivesse de acordo com o momento e fosse plausível. Porém agora, ao reler esta
passagem, sinto que poderia ter relacionado este movimento de controle com a
angústia por ter quebrado a caixa. O controle surgindo como um movimento defensivo
para lidar com a dor de ter atacado e destruído - em fantasia - o objeto amado. Toda a
sessão que transcorreu após a constatação do dano feito à caixa envolveu esses jogos
em que ele trapaceava e me controla. Isso provavelmente estava relacionado a
14
Nesta sessão ele usou o baralho para jogar o que chamava de “um, dois, três”. Um jogo mais conhecido
como tapão. Cada jogador fica com um monte de cartas e as descarta ao mesmo tempo em que verbaliza a
seqüência do baralho. Quando for descartada a carta cujo nome é pronunciado naquele momento, deve-se
dar um tapa no monte descartado. O último a dar o tapa fica com todas as cartas. Ganha o jogo o primeiro
a eliminar todas as cartas de sua mão.
96
dificuldades em atravessar uma elaboração do luto, o que mobilizava constante
necessidade de evitar perdas.
A sensação que me ocorre agora é a de que a interpretação foi feita de forma
um tanto estereotipada. Como se eu me prendesse a ela para dar uma explicação ao
que ocorria. Não sei se as intervenções estavam em contato com os desdobramentos
internos que o encontro com ele produzia em mim. Talvez se explique porque eu não
relacionei essas falas com o dano à caixa lúdica. Penso que naquele momento existia
em mim, o que ainda ocorre em diversas ocasiões, uma dificuldade em experimentar a
angústia causada pelo desconhecido e, conseqüentemente, pelo devaneio e pelo
fantasiar. Esse não saber onde o pensamento vai dar, o que ele descobrirá no caminho
do pensar e do associar, quais surpresas irão surgir, isso me assusta. Porque é possível
que não se encontre resposta alguma. E eu ansiava por respostas com este menino,
especialmente por tudo ser tão difícil e confuso na relação com ele. Pensando hoje,
talvez as respostas e as certezas nem fossem realmente necessárias. Mas isso pressupõe
correr um risco, ir em direção ao que não se conhece. Era como se eu, muitas vezes,
tentasse impor uma compreensão ao que ele fazia ao invés de brincar de forma mais
livre e espontânea. Hoje penso que é provável que o brincar colocasse algo em
movimento. Ou que, a partir do brincar, algo surgisse - talvez até mesmo uma fala mais
estruturada - e pudesse ser trabalhado de maneira lúdica.
Não acredito, porém, que todas as minhas intervenções ao longo da terapia com
este menino tenham sido motivadas apenas por essa busca por controle e sentido quase
obsessivos de minha parte. Mas não posso negar que isso ocorria com alguma
freqüência. Como não posso negar também, que algumas dessas interpretações tenham
tido um caráter de retaliação dado a raiva que ele me suscitava, tanto pela projeção de
partes cindidas de sua personalidade para dentro de mim (KLEIN, 1946), quanto pelo
97
estado de desamparo em que eu me encontrava frente ao desconhecido que
representava uma sessão com este paciente.
A releitura destas sessões me trouxe também uma sensação de que, além da
negação e dos jogos em que ele tentava controlar o que estava ao seu redor, havia
tristeza presente e em movimento dentro dele. Certa vez iniciou uma de nossas sessões
dizendo que eu não precisava pegar a caixa, mas disse isso em um tom triste, que na
ocasião não consegui notar. Parecia desamparado e ao fim de um desses encontros me
abraçou e me agradeceu por ter levado uma nova espada de brinquedo
15
para ele.
Parecia precisar receber algo de presente - amor?- para conseguir lidar com a perda.
Não sei o quanto esta demanda por carinho e atenção me causavam
desorganização, reativando meus próprios movimentos defensivos. Em geral, quando
ele expressava uma demanda mais clara dessa ordem, minha reação interna era de
rejeição. Para mim, nem sempre é fácil ser amoroso com alguém. É verdade também,
que muitos destes movimentos dele tinham um caráter invasivo e paralisante, o que
poderia levar a pensar na utilização de mecanismos de defesa arcaicos por parte dele.
Porém, neste episódio específico, não parecia ser esta a natureza de sua reação. Hoje
me parece mais claro que estava em marcha a elaboração de um luto e, mesmo, um
início de reconhecimento da perda. Assim, o abraço que me deu como gratidão pelo
suposto presente e carinho de minha parte trazia consigo uma diferenciação entre
nós e não mais um movimento de fusão. Em muitos momentos, foi mais fácil pensar esta
minha dificuldade com demandas de carinho como uma reação a algo que se afigurava
como uma invasão da parte dele, tornando minha rejeição plausível e aceitável.
Acredito que em relação a este episódio, tal hipótese mais se aproxima de um
movimento defensivo de minha parte. Parece que hoje tenho necessidade de reconhecer
15
Na verdade, essa espada nova era de uso coletivo de todos os pacientes atendidos no local. Foi levada à
sala de atendimento como reposição de um brinquedo que havia sido quebrado por outro menino. Samuel
compreendeu como um presente dado a ele.
98
minha dificuldade nestes momentos, como uma questão de honestidade em relação a
ele e a mim mesmo.
As sessões que se seguiram pareciam dar continuidade a esse processo de
elaboração do luto. Algumas vezes chegou atrasado, relatando ter esquecido do nosso
horário.
Tendo a compreender tais esquecimentos como expressão da dificuldade em se
deparar com a dor por ver a caixa quebrada e por falarmos sobre tal assunto. Porém,
passou a apresentar também movimentos em que tinha maior consideração por mim em
seus jogos. Aceitava melhor algumas regras e mesmo quando criava algum novo
procedimento que o favorecesse, permitia que eu também o utilizasse da mesma forma.
Foi assim, que em um jogo de baralho - o jogo do “tapão” explicado acima -, ao
se ver em desvantagem, institui uma regra em que quem perdesse a rodada levava ainda
mais cartas além do que estava no monte. Apontei que eu também poderia me favorecer
de tal procedimento e ele aceitou isso na continuidade do jogo. Chegou até a me
lembrar disto em um momento em que eu havia esquecido.
Em outros jogos, como nas encenações de lutas, pareceu se divertir mais que em
ocasiões anteriores, dando a impressão de sentir prazer em poder expressar sua
agressividade de forma lúdica e mais controlada. Parecia confiar em minha capacidade
para suportar sua agressividade, expressando-a, aos poucos, de forma mais integrada e
sem o tom evacuativo e ansioso de outros momentos.
Tenho a impressão de que ele me usava como mãe-objeto (WINNICOTT,
1963b), sentindo prazer na expressão de seus impulsos, permitindo-se vivenciar o
componente agressivo de sua vida pulsional. Essa experiência livre da vida pulsional
seria um primeiro passo para a integração de sua personalidade, momento em que
conseguiria lidar com a destrutividade de maneira mais madura. Poderíamos aqui,
99
continuar pensando em termos winnicottianos, especialmente se levarmos em
consideração a hipótese de uma depressão em sua mãe a partir da morte de seu pai.
Nesse sentido, considero plausível conjecturar que a vivência de Samuel em relação a
este estado da mãe seria da ordem de uma privação. Uma privação de carinho,
cuidado e amor. Algo que antes se dava com maior freqüência e passou a não ser tão
intenso, dado que sua mãe já não se sentia em condições de cuidar tão bem dele.
Lembremo-nos do constante cansaço relatado por ela e de seu sono, que a fazia dormir
por longas horas durante as tardes. A tendência anti-social (WINNICOTT, 1956)
compreendida como uma reação a este estado de privação e como uma reivindicação
ao ambiente faz sentido aqui. Não seria absurdo pensar que em nossa relação, em
muitos momentos ocupei o papel desta mãe objeto - e também da mãe ambiente -
necessária e perdida, para que ele pudesse, em termos winnicottianos, dar seguimento
ao seu processo de maturação.
Mas como o processo psicoterapêutico é dinâmico, as oscilações ainda ocorriam
durante as sessões. O controle continuava a ser uma forma de lidar com as angústias e
em uma de nossas brincadeiras de luta Samuel pegou um pedaço pequeno de uma
espada que estava quebrada. Pediu para eu encaixar este pedaço em minha espada e a
partir deste momento falou que me controlava. Fez com que eu me ferisse com minha
própria espada, ordenando que eu me machucasse. As sessões continuavam a ser
desgastantes e ainda eram freqüentes as tentativas de me humilhar nas brincadeiras,
dizendo que ia vencer as partidas e que era muito bom. Esta conduta de desafio e
menosprezo era mais clara em jogos estruturados, como no baralho, no dominó, nas
damas e no jogo do mico. Isso me deixava com muita raiva, querendo vencê-lo também,
marcando para ele a minha presença.
100
Em geral, eu me sentia impelido a um embate com ele. Parecia que não ele
provocava esta reação de ódio em mim pela projeção de sua agressividade, como
também estimulava meus próprios conteúdos agressivos e meu desejo de competição.
Assim, nestas ocasiões, confesso que me sentia muito tentado a brigar com ele. Isso me
exigia autocontrole e paciência, que parecia que em algum momento um embate
explícito iria ocorrer. Era desagradável, cansativo e ao mesmo tempo estimulante e
excitante estar naquela situação.
Em uma outra sessão, eu o esperava dentro da sala de atendimento. Ele bateu na
porta e eu disse que abriria. Continuou batendo e forçando a maçaneta, ignorando
minha fala. Esta atitude despertou irritação e raiva em mim. Eu o cumprimentei e ele
entrou na sala me dando ordens. Em seguida, passamos a brincar de luta de espadas. Na
encenação, ele me feriu e eu o feri - simbolicamente - na perna. Algumas vezes se
esquivou de meus golpes rolando no chão e outras vezes eu mesmo fiz isso. Passou
então a controlar mais a brincadeira dando ordens e criando soluções mágicas para as
situações de impasse. Percebi também que ele sentia prazer em me enganar no jogo.
Várias vezes me acertava com a espada e eu dizia que estava ferido, fazendo uma
encenação. Aí ele dizia que a espada era de mentira e que eu não estava ferido.
S: Você não está ferido porque a espada é de brinquedo. (Em tom irônico que conotava o total
controle do jogo)
Outras vezes ele fazia o contrário: eu dizia que a espada era de plástico e não me
machucaria e ele respondia ordenando-me a fingir que estava machucado, controlando a
brincadeira da forma que melhor lhe parecesse.
Em certo momento ele me acertou e eu fingi estar machucado.
S: Mas a espada é de brinquedo! (Nesse momento ele abaixou sua bermuda ficando apenas de cueca e
camiseta em uma atitude de escárnio, como se quisesse se mostrar muito poderoso).
B: E essa outra espada? É de brinquedo também? (Apontando para seu pênis)
S: Não, essa não. (Disse ele constrangido, levantando a bermuda).
101
A cena, de certa forma, representava a fragilidade na qual se sustentava seu
movimento onipotente. Desde o início desta sessão, suas atitudes eram de desprezo e
desconsideração comigo. Parecia querer me submeter às suas vontades a todo instante,
marcando uma posição de força e de superioridade. Transmitia a impressão de sentir
prazer com isso, o que me deixava com mais raiva. Despertava, com tal conduta, meus
próprios sentimentos de rivalidade e minha própria hostilidade. Como se eu ficasse
apenas aguardando o momento em que mediria forças com ele e o submeteria ao meu
controle. Esta, como mencionei, era uma dificuldade constante com ele. A ironia
com que marquei a fragilidade presente nas ações dele - um pênis de brinquedo - deve
estar relacionada com este estado hostil que se formara dentro de mim. Porém,
acredito que a agressividade expressa em meu comentário tenha se dado na medida
adequada, pois resultou num reconhecimento - constrangido - de sua própria
fragilidade, que o fez recuar. Ao comentário não se seguiu um embate ou uma reação
agressiva da parte dele.
3.1.3. A fotografia
Em algumas de nossas sessões, Samuel passou a me pedir que tirássemos uma
fotografia juntos. Em aproximadamente três sessões mencionou este assunto e chegou a
me pedir que comprasse o filme, pois ele levaria a máquina. Perguntei porque ele queria
uma foto nossa e ele respondeu que provavelmente iria mudar de escola e a foto o
ajudaria a se lembrar de continuar comparecendo às nossas sessões.
Tive a impressão de que ele estava mentindo, pois a escola não me informara
que ele não estudaria mais lá. Senti que na verdade ele queria levar consigo um pouco
102
dos nossos encontros e uma lembrança concreta de mim. Uma fotografia que
expressasse o carinho que existiria entre nós dois.
Apontei que ele poderia levar as lembranças de nossos encontros em sua
memória, sendo desnecessária a foto. Nas sessões seguintes, quando ele mencionava
este assunto eu dizia para conversarmos sobre isto no encontro seguinte, pois em geral
já estávamos no fim da sessão. E isso fez com que, de fato, não falássemos sobre o tema
durante algum tempo.
Senti dificuldades com tal demanda. Não sabia direito o que fazer com aquilo.
Não me parecia correto ou adequado do ponto de vista psicanalítico tirar uma foto com
um paciente. O que fazer então? Hoje, penso que uma foto comigo poderia ter o sentido
de uma relação carinhosa entre um pai e um filho. Se transferencialmente este era o
papel que me era destinado, isso me desconfortava. Reconheço que não soube lidar
com o pedido dele. Acredito que bater a foto poderia me fazer preencher concretamente
uma demanda que não era realmente destinada a mim como pessoa. Mas não falar
sobre o tema também não o ajudava a lidar com estas questões de outra forma. Fiquei
preso em meu temor de me tornar o pai dele. Não cheguei a aproveitar este material no
trabalho e neguei o pedido da foto. Acredito que vivenciei uma angústia siderante
(FÉDIDA, 1988), com paralisação de minhas possibilidades de reverberação junto dele
- que foram possíveis, para esta sessão, agora ao relê-la. Permaneci preso ao papel
que me foi destinado, fiquei angustiado com isto e não consegui sair desta posição
naquele momento. Não sei o quanto me assustou a idéia de me tornar um pai para ele,
bem como a responsabilidade nisto implicada. Acho que pensei: “Não, não sou pai de
ninguém não. Me deixe fora disto!”. Como se fosse possível se privar de tais
experiências em um processo psicoterápico.
103
A partir deste momento, suas faltas às sessões se intensificaram e ele não
compareceu às quatro sessões seguintes, inclusive à última antes das férias. As faltas
vinham ocorrendo antes disso, mas desta a vez a seqüência em que se deram foi bastante
significativa.
Parecia haver um movimento ambivalente dele em relação à terapia e em
relação a mim. Depois que quebrou a caixa, passou a se esquecer do horário de nossas
sessões e a atrasar. Porém, quando chegava, pedia para permanecer mais tempo e
também demandava sessões extras. É provável que pedir uma foto comigo fizesse parte
deste movimento. É provável também, que tenha sentido raiva de mim pela forma
incisiva com que me neguei a ser fotografado com ele, provavelmente reforçando seus
sentimentos de solidão, abandono e rejeição.
Na volta das férias, no entanto, ele me esperou na frente da escola, antes de
nosso horário, recebendo-me quando cheguei. Acho importante acrescentar que, ao
longo da terapia, também me pediu outras coisas: balas, refrigerantes e salgadinhos para
uma festa entre a gente.
Penso que tais pedidos também se inscreviam nesta demanda por carinho e por
demonstrações de apreço de minha parte. Nestas ocasiões, também me senti
desconfortável. A primeira idéia que me ocorria em relação a isso era a de que eu
sairia de meu papel de terapeuta se correspondesse a tais demandas. Eu me sentia
enrijecido e, em geral, não era muito acolhedor com ele ao negar seus pedidos. Sinto,
hoje, que também nestes momentos tinha dificuldades com demandas de carinho. Uma
dificuldade minha, que me impedia de lidar com o material de outra forma, mesmo que
não preenchendo concretamente suas necessidades. Meus “restos não resolvidos”
nadando contra a maré, ao invés de favorecer um movimento de reflexão e insight.
104
Em outro atendimento ele me pediu para comprar balas para ele. Novamente
senti dificuldades em lidar com isso e acabei arrumando uma forma de dizer que não
compraria a bala. Ele faltou na sessão seguinte, mas durante a semana a coordenadora
da escola me ligou. Disse que Samuel imitara um bêbado
16
na sala de aula e ela foi
conversar com ele. Na conversa, Samuel contou que sentia saudades de seu pai e que
costumava sonhar com ele. Pediu a ela que me ligasse e nos falamos pelo telefone. Ele
apenas perguntou sobre o horário de nossa sessão e ficou em silêncio. Quando nos
encontramos depois disso, comentei sobre a saudade que sentia do pai, mas ele não quis
falar sobre o assunto.
Na época eu não quis pensar muito sobre a possibilidade de me enxergar como
um pai para ele. Não era uma situação com a qual eu me sentia à vontade. Não sei
direito porquê. Talvez isso me remetesse à minha relação com meu próprio pai e
também é provável que eu me assustasse com a intensidade dos sentimentos envolvidos
em uma relação desse tipo. Não sei se entrar em contato com esses aspectos me
despertava um profundo sentimento de solidão, do qual eu procurava me distanciar ou
se também despertava intensos sentimentos de rivalidade com a figura paterna. Não
consegui utilizar meus “restos inconscientes” como reserva de ressonância com meu
pequeno paciente. A ressonância se abre agora, distante cronologicamente daquele
encontro, e são mais evidentes sentimentos como tristeza, saudade e solidão por parte
do menino e também em mim, pelas imagens que o relato propicia. Parece-me mais
suportável experimentá-los agora. Sinto pena e também tenho mais empatia com ele
agora, até pela constatação, a posteriori, daquilo que provavelmente poderia ter sido
propiciado a partir da compreensão da dinâmica envolvida em nossa relação.
16
Vale lembrar o relato da mãe da criança quando disse que o pai do menino era alguém que bebia muito.
É provável que a queda que levou ao seu óbito tenha ocorrido sob o efeito do álcool.
105
Em uma outra sessão, após novo pedido de que eu levasse balas, consegui dizer
que esta demanda parecia uma procura por carinho e por alguém que cuidasse dele e o
alimentasse. Ele não chegou a comentar minha fala e continuou pedindo a bala. Porém,
de uma maneira que eu não me sentia obrigado a satisfazê-lo. Isso ocorreu após uma
supervisão sobre o que vinha acontecendo, o que também me permitiu falar que esse
pedido por carinho, por vezes se dava como uma ordem, deixando-me paralisado
internamente, sem conseguir ajudá-lo com suas angústias.
No encontro que se seguiu a este, Samuel imitou um bêbado, deitando-se no
chão com as pernas para cima e segurando um pino do jogo de boliche, que imitava uma
garrafa. Parecia um bebê com sua mamadeira. Perguntei se era leite ou cerveja o que
havia na garrafa, respondendo-me que era cerveja. Porém, falava como um bebê, de
forma infantilizada e cheia de dengo. Deu um pouco da cerveja para mim e depois
passou a dizer que era leite. Intensificou seu comportamento infantil e pareceu estar
num estado bastante regredido, dizendo-se um bebê, engatinhando e pedindo colo. Eu
estava sentado no chão e ele veio deitar-se no meu colo. Chamava-me de papai e pedia-
me para embalá-lo. Como eu não sabia exatamente o que fazer, deixei que ele
continuasse com essa atitude. Em certo momento, ele fingiu que mamava em meu peito
e usou o pino de boliche para simular isso. Não cheguei a comentar nada a respeito do
que estava ocorrendo. Este foi um momento intenso para mim, especialmente quando
ele passou a “mamar em meu seio”. Não soube o que fazer, senti-me constrangido e
com a sensação de que algo importante estaria ocorrendo ali.
Estaria a privação (WINNICOTT, 1956) relacionada a essa época de sua vida?
Estaria eu sendo usado como a mãe objeto (WINNICOTT, 1963b) que contém a
experiência excitada na relação amorosa com a criança? Parecia importante que ele
revivesse essas experiências iniciais de sua vida de forma a elaborar conteúdos e
106
emoções intensas deste período. Não sei se havia algo a ser dito a ele sobre isso. É
provável que sim, mas confesso que a situação me causou incômodo e o que consegui
fazer foi apenas ficar ali com ele em meu colo. Como diz Winnicott (1963b), a mãe
objeto deve sobreviver à experiência excitada - pulsional - do bebê para que seja
possível à mãe ambiente, em momento posterior, receber o gesto reparador, o que
levará aos poucos à integração destes dois aspectos do cuidado materno.
Vale mencionar que em diversos momentos da terapia havia uma demanda de
contato corporal por parte dele. Não eram incomuns as ocasiões em que subia em cima
de mim e pedia para andar de cavalinho sobre meus ombros. Constantemente também
ele me abraçava e escalava meu corpo.
Não sei o quanto esta era uma demanda por um contato que impusesse limites
corporais em si mesmo, como se estivesse buscando algum contorno que definisse mais
claramente um mundo interno separado do externo. Novamente retomo a idéia de mãe
ambiente (WINNICOTT, 1963b), especialmente nas ocasiões em que ele estava mais
calmo e procurava por esse tipo de contato em uma espécie de satisfação relaxada. É
provável que tais ocasiões o levassem, aos poucos, a integrar estas duas mães -
ambiente e objeto - favorecendo a integração de sua personalidade. A maneira
winnicottiana de tratar o conceito de posição depressiva, que Melanie Klein começou a
elaborar de forma mais sistematizada a partir de 1934. Nesse sentido, retomo algumas
considerações que fiz na introdução teórica dessa dissertação a respeito da obra de
Melanie Klein, quando, na posição depressiva, a criança começa a estabelecer uma
relação de objeto total, passando a ter contato com um novo mundo que não faz parte
dela, o que, por conseqüência, engendra noções de não-eu e de uma realidade
independente de sua própria onipotência. Muito embora a conduta de Samuel ainda
fosse bastante ansiosa e controladora, ele vinha lidando comigo de maneira a me
107
aceitar cada vez mais como alguém com desejos e sentimentos próprios, independentes
dos dele. Estar com ele parecia exigir de mim um certo equilíbrio entre deixá-lo
aproximar-se - e até mesmo fundir-se a mim - e marcar minha própria individualidade.
Muitos dos momentos em que fui ríspido com ele pareciam estar relacionados com uma
necessidade minha de tirá-lo de dentro de mim. Porém, sentia que em certas ocasiões
era necessário que eu o deixasse colar-se e unir-se a mim.
Penso também que quando ele deitou em meu colo e “mamou em meu peito” a
angústia contratransferencial foi vivida como uma sideração mortífera (FÉDIDA,
1988). A situação causou-me mal estar - calafrios, devo dizer - deixando-me sem
reação e sem mobilidade interna naquele momento. Parece que a força da
transferência me levou a ficar preso no papel que me foi destinado: a mãe-seio
provedora ilimitada de satisfação para seu bebê. consegui ficar ali com ele, sem
fazer muita coisa. Aos poucos pude retomar uma certa reserva de linguagem que me
fazia pensar na necessidade daquela experiência para ele, como se ele realmente
precisasse daquilo. Não havia uma compreensão imediata a ser fornecida sobre aquela
situação. Acredito que gradativamente ele vinha elaborando suas experiências de
perda e de luto e que estes momentos regressivos profundos se faziam importantes para
dar conta de tal travessia. E era necessário pelo menos esta resposta corporal de
minha parte para que a atividade de linguagem também pudesse ser utilizada por ele.
Em uma sessão posterior, Samuel chegou trazendo uma bexiga. Foi até a pia da
sala e a encheu com água da torneira. Conversávamos sobre sua falta no encontro
anterior e de repente ele começou a chupar a bexiga que, naquele momento tinha o
aspecto de um seio. Parecia estar mamando de forma intensa e tirou outra bexiga de seu
bolso, enchendo-a também com água. Chupava uma de cada vez, de forma intensa e
rápida e depois de um tempo passou a chupar as duas de uma vez, como se as fosse
108
engolir. Demonstrava grande voracidade ao fazer isso. Pegou mais outra bexiga e
repetiu o mesmo procedimento que com as anteriores. Tinha agora três “seios” para
mamar. Deu o terceiro a mim, mas quando eu falei que não ia chupar ele o pegou de
volta. Perguntei se era um seio e ele respondeu que sim. “É teta. Teta de nega”.
Questionei quem era a nega. “É teta de nega, um doce”. Dizia que era gostoso, mas não
tinha interesse em conversar, apenas repetindo rapidamente os movimentos de chupar as
bexigas. Passei a narrar a brincadeira de forma que ele pudesse ouvir o que estava
fazendo. Em seguida, ele furou o bico de uma bexiga e passou a beber a água que saía.
Bebia um pouco, descansava e deixava espirrar uma pequena quantidade de água na
sala. Mamou bastante e disse que a mamãe não queria mais dar de mamar para ele.
Apertou a bexiga e depois a chupou com força, até esvaziá-la. Ficou com ela na boca.
B: Você chupou até secar né?
S: É.
Fez a mesma coisa com a outra bexiga. Quando disse que a mamãe não queria
mais dar de mamar, amassou-a e jogou em um pote com água, até que a bexiga estourou
assustando-o. Ele ainda ficou com a terceira bexiga, mas não furou seu bico. Falei que
aquela não era a primeira vez em que ele brincava de mamar:
B: Você brincou de mamar no meu peito, de mamar na mamadeira, de brincar de bebê Parece
que você sente muita falta de mamar. Eu lembro daquela brincadeira em que você era um bebê que
crescia e matava todo mundo. Acho parecido. Acho que você tem medo de crescer porque sente que
pode ficar violento. Você falou que a “teta” era um doce e eu lembrei da bala que você me pediu.
Você queria uma bala para chupar e queria carinho também.
Enquanto eu falava, ele ficou muito agitado, andando pela sala. Perguntou-me
quanto tempo faltava e queria ir embora, mesmo havendo vinte minutos para o fim da
sessão. Em seguida mencionou que fazia quase um ano que se encontrava comigo e que
achava que a terapia iria terminar. Falei que eu ainda poderia ficar mais um ano e
perguntei se ele gostaria de continuar com a terapia, respondendo que sim. De repente,
109
deixou cair a última bexiga no chão. Ela estourou e molhou o tapete. Ficou muito
preocupado com isso, tentando secar a sala. Falei que pegaria um pano ao final da
sessão e que ele não precisava se preocupar. Parecia bastante ansioso e pediu para ir ao
banheiro fazer xixi. Quando voltou, falei que entendia a dificuldade dele em me ouvir,
pois o assunto era doloroso. Mas expliquei que poderia ser bom para ele se
conversássemos. Ele pareceu ter ficado calmo com isso e me abraçou. estávamos
praticamente no fim da sessão.
Este episódio me parece ser um desdobramento do que vinha ocorrendo
durante as últimas sessões. Parecia estar em busca de um seio que se perdeu, o bom
objeto a ser introjetado (KLEIN, 1940), o amor e o carinho da relação com a mãe. É
provável, assim, que vários lutos estivessem em processo de elaboração. O luto pela
perda do bom objeto, do pai que faleceu e da mãe que, após esta morte, provavelmente
deprimiu. Penso que ao se encontrar comigo, pôde expressar de forma mais evidente
essas dores que o acometiam e muitas vezes se expressavam por meio da agressividade.
Não deixa de chamar a atenção que estivesse em jogo também a fantasia do fim da
terapia, espaço que permitia uma nova forma de se encontrar com o objeto e que ele
sentia que perderia.
A voracidade com que mamou nas bexigas me impressionou. Dava a impressão
de querer engolir e incorporá-las a si. Mamou até secar, jogando-as no balde de água
depois. Não consigo deixar de lembrar dos movimentos da posição esquizo-paranóide
(KLEIN, 1946), em que o objeto é utilizado de forma implacável e posteriormente
descartado. Retomo uma citação de Melanie Klein apresentada em outro momento
desta dissertação e que me parece adequada para pensarmos este episódio da terapia
de Samuel: “a própria criança deseja destruir seu objeto libidinoso, mordendo-o,
cortando-o e devorando-o [...]”(1928, p. 254). A ênfase aqui recai sobre o sadismo
110
oral marcadamente presente nas fantasias inconscientes do bebê. Vale lembrar, para
que não haja confusão, que neste texto de 1928 Klein ainda não utilizava o termo
relação de objeto parcial e ainda não havia formulado o conceito de posição esquizo-
paranóide.
Quando a água caiu no chão, Samuel pareceu se dar conta do dano que causou,
ficando assustado e ansioso. A água no chão e minha intervenção a respeito das
angústias e sentimentos subjacentes à sua conduta deixaram-no num estado bastante
agitado, tanto que teve de sair da sala e ir ao banheiro. Lembro-me da ação do
superego primitivo (KLEIN, 1933) e retaliador que se forma a partir da destrutividade
da criança e da ansiedade decorrente da ação deste superego. Porém, creio ser
interessante o fato de ele se acalmar ao perceber que podia contar comigo para
elaborar essas vivências dolorosas e que o colocavam em contato com angústias
depressivas. Como se o ambiente, neste caso, oferecesse certa sustentação para que
ele, aos poucos, atravessasse esse caminho mais difícil. Minha presença e a
possibilidade de ajudá-lo a conter a angústia lhe davam algum alívio e força interna,
despertando sua gratidão por mim, o que se refletiu no abraço que me deu.
Nos atendimentos seguintes ele conseguiu expressar mais claramente a raiva que
sentia de mim em alguns momentos. Passou também, a faltar mais, especialmente após
sessões em que eu apontava os sentimentos que estariam por trás de sua conduta. Nessas
ocasiões, ficava ansioso e pedia para ir embora. Faltava então, nas sessões seguintes ou
chegava bastante atrasado. O processo terapêutico parecia estar sendo intenso para ele,
mas continuava a vir, por mais que chegasse muito atrasado e faltasse a duas sessões
seguidas freqüentemente. Chegou a faltar a sete sessões consecutivas. Ele parecia ficar
chateado quando eu era mais incisivo com ele.
111
Chama a atenção também o fato de ele passar a expressar seu ódio e raiva
contra mim de forma explícita, verbalizando isso em alguns encontros. Provavelmente
sentia raiva por eu não ter sido tão carinhoso com ele ou por achar que eu tinha mais
recursos internos e facilidade para lidar com as dificuldades da vida do que ele. Talvez
as faltas também expressassem seu ódio como resposta por minha hostilidade durante
algumas sessões. Winnicott, em seu texto “O ódio na contratransferência” (1947a),
ressalta a importância do terapeuta assumir o ódio que sente a partir do contato com
seu paciente, pois assim este poderá odiá-lo. “Quando o paciente está a procura de
um ódio legítimo, objetivo, ele deve ter a possibilidade de encontrá-lo, caso contrário
não se sentirá capaz de alcançar o amor objetivo” (WINNICOTT, 1947a, p. 283).
Porém, as formulações de Winnicott ressaltam que assumindo este ódio, o terapeuta
terá mais condições de lidar com ele, diminuindo o risco de também ser agressivo. Não
era sempre que eu conseguia ter esta postura e acredito que uma dificuldade
importante com este menino pode ser traduzida da seguinte forma: como lidar com o
ódio suscitado por ele sem se descontrolar? As conversas com seus professores
mostravam que eles também enfrentavam este impasse no contato com Samuel e
geralmente “perdiam a cabeça com ele”.
Na volta das férias ele se mostrou muito carinhoso comigo. Pediu-me até que eu
escolhesse o jogo que utilizaríamos. Durante a sessão, enquanto jogávamos bolinha de
gude, ele mencionou que sua sobrinha havia nascido. Disse que ficara feliz com isso,
mas sua fala expressava uma preocupação, que me parecia estar relacionada ao seu
medo em perder o cuidado do irmão mais velho. Continuamos conversando sobre o
assunto:
B: Você tem saudade dele [do irmão]?
S: Não, ele mora perto da minha casa.
B: E você acha que ele vai te dar menos atenção agora? Porque eu lembro que você ficou preocupado
quando soube que ele ia ter uma filha.
112
S: Acho que sim, ele tem que cuidar dela.
B: E você fica chateado com isso?
S: Não, porque eu tenho você.
B: Ah é?
S: É. Vamos jogar gol a gol?
B: Vamos.
Ele tentou fazer algumas embaixadas com a bola e de repente veio até mim.
S: A gente não vai se ver no dia dos pais né?
B: Não.
S: Não dá pra você vir hoje de novo? Mais tarde?
B: Não. Você queria comemorar o dia dos pais comigo?
S: É.
B: Agora você tá me colocando no lugar de um pai pra você. Quando você falou do seu irmão também
fez isso. Eu tenho a impressão de que seu irmão é um pouco um pai pra você. E quando disse que não
ia sentir tanta falta dele, porque tinha a mim me colocou nessa posição. Eu acho que você sente a
falta do seu pai. E agora sentindo a falta do seu irmão também. Por isso vive isso aqui comigo.
Talvez, se eu for um pai pra você, você não vai sentir tanta falta deles como está sentindo agora.
S: Vamo jogar baralho?
B: Vamos.
S: Mas pode continuar falando essas coisas que você tá me dizendo.
Acho interessante o movimento deste encontro. Desde o início da sessão, senti-
me dispondo de mobilidade interna suficiente para ressoar junto dele, a partir do que
fazia e falava durante as brincadeiras. Foi assim que vi se formar em mim a
possibilidade de ele estar angustiado com o nascimento de sua sobrinha. A conversa
que se seguiu após a intervenção que fiz com base nisso, indicava que, de fato, ele
pensava na possibilidade de seu irmão não lhe dar mais atenção. Porém, para lidar
com isso e não se angustiar, transferia as expectativas de receber cuidado e carinho a
mim. Confesso que a resposta dele “Não, porque eu tenho você” me deixou impactado.
Fiquei angustiado novamente com a possibilidade de ter que me tornar um pai para
este menino. Num primeiro momento isso me provocou um estado momentâneo de
paralisação interna, provavelmente o sinistro decorrente de um aprisionamento à
imagem transferencial (FÈDIDA, 1988). Acredito que ele tenha tocado em pontos
meus, relativos à paternidade, à necessidade de carinho e de cuidado, ainda não muito
bem “resolvidos”, se é que um dia o serão, e que retornaram - o retorno do recalcado -
naquele momento. Precisei de um certo tempo para me libertar da idéia de me tornar o
113
pai dele e do medo que isso me causava. Quando ele mencionou o dia dos pais, a
situação transferencial se tornou ainda mais explicita. Não sei se a intervenção que fiz
foi a mais adequada, dado que tinha um tom explicativo, de algo a ser ensinado. Foi o
que eu consegui. Hoje penso que tal intervenção tenha se dado tanto pela necessidade
de diminuir a angústia que me causava a situação de transferência - como uma
tentativa de restabelecer uma tranqüilidade entre nós - como também por estar
fundamentada em uma possibilidade de linguagem, ainda que esta possibilidade
estivesse sendo ameaçada pela angústia suscitada no encontro. E por mais que a
interpretação tivesse esse tom explicativo, ela foi importante para produzir uma
mudança interna nele e em mim. O pedido que Samuel fez para que eu continuasse
falando confirmou isso. E minha disponibilidade e mobilidade interna após a fala dele
se ampliaram consideravelmente. Ele parecia indicar que estávamos no caminho certo
e se abria para as descobertas que poderiam ser feitas nesta cruzada. No jogo que se
seguiu, eu não me preocupei - como em outras ocasiões - se estava ganhando ou
perdendo. Mesmo ele, ao se ver perdendo na brincadeira, não ficou tão agressivo ou
desorganizado como costumava ficar. E eu me senti mais à vontade com esta
desorganização dele, como se ela não me incomodasse tanto. A partir deste dia,
suas faltas - que vinham sendo bastante freqüentes - passaram a diminuir.
Os encontros seguintes, agora sem tanta interrupções e faltas, foram semelhantes
aos que ocorriam anteriormente. Em geral, ele chegava na sala de forma invasiva,
batendo forte na porta ou não me cumprimentando ao entrar. Escolhia algum jogo mais
estruturado e quando tinha dificuldades mudava de brincadeira, passando para
atividades em que tinha o total controle de tudo - em geral, encenações de lutas -,
contando histórias, direcionando a narrativa e me dizendo o que fazer. Eu tentava
apontar estas mudanças nas brincadeiras e as relacionava com as dificuldades de
114
desempenho nas tarefas anteriores. Por vezes, falei que ele parecia não se sentir capaz, o
que o deixava triste e sem se sentir com algo bom dentro de si. Por isso, fazia uso, em
seguida, de brincadeiras em que pudesse controlar tudo. Ele continuava a se ocupar com
o que já vinha fazendo, mas parecia me ouvir, prestando atenção no que era dito.
Nos jogos, sua agressividade aumentava sem que ele percebesse. Sua ansiedade
também se intensificava e a agitação era grande. Em alguns momentos, quando,
mesmos nestes jogos, eu conseguia ficar mais sereno frente à destrutividade dele, sem
me sentir impelido a brigar, a imagem que me ocorria era a de uma necessidade de
contorno e de delimitação física. Eu tinha a impressão de que precisava abraçá-lo, não
para lhe dar carinho, mas para dar limites a seu próprio corpo. Novamente lembro-me
de Melanie Klein (1946) quando ela trata da posição esquizo-paranóide. Se pensarmos
que a agressividade de Samuel poderia estar relacionada à cisão de seus objetos
internos - sentidos como ameaçadores - e com a conseqüente expulsão dos mesmos -
expulsando também partes cindidas do próprio ego - o que poderia estar ocorrendo era
uma fragmentação egóica. A impressão que eu tinha na presença dele era a de que ele
ia explodir e que eu precisava fazer algo para conter este movimento. Como se eu
precisasse envolver seu corpo para que ele não se despedaçasse.
Conforme eu ia suportando esses estados dele, sem entrar em um combate
direto, essas imagens começaram a ser possíveis. Não cheguei a comentar com ele esta
minha impressão de seu corpo se despedaçando. Porém, em um de nossos encontros ele
chegou a verbalizar isso à sua maneira. Neste dia, começamos uma luta de socos e ele
estava muito violento, pulando em cima de mim. Eu tinha que dar uma contenção física
a ele e por isso eu o segurava enquanto ele se debatia. Pedia para eu controlá-lo, pois
não conseguia. Perguntei porque ele não conseguia e ele respondeu que era louco.
115
Dizia que ele controlava uma parte dele e eu uma outra parte. Fingia se debater como
se estivesse em transe. Tudo fazia parte da encenação da brincadeira.
Esta passagem me remete à apresentação que foi feita
17
sobre o texto de Viana
(1993). Para ela, se o analista consegue suportar e metabolizar os conteúdos primitivos
colocados dentro dele - pelo paciente - por meio do mecanismo de identificação
projetiva, se um tempo para que ele consiga fazer alguma elaboração deste
material, novamente a linguagem pode surgir. Seria como se o paciente atacasse a
linguagem, quase levando o encontro a um embate corporal. Mas se o analista
conseguir lidar com isto, pode novamente favorecer a linguagem na sessão.
Samuel pôde ressoar na cena acima descrita, falando sobre a angústia frente ao
próprio descontrole e dando algum contorno ao que sentia ocorrer dentro de si. Assim,
mais do que um saber sobre si mesmo, algo se colocava em movimento na sessão e suas
vivências angustiantes - e as minhas também - aos poucos iam ganhando contorno,
sendo assimiladas às suas experiências, fazendo parte delas e gradualmente deixando
de serem sentidas como um corpo estranho e irrepresentável.
Porém, não era sempre que ele conseguia falar sobre o que ocorria com esta
clareza. Parecia sim, haver algo em movimento - em relação a estas questões - dentro
dele, como se aos poucos pudesse se apropriar do que era seu, transformando, ou
metaforizando, suas vivências. Mas a agressividade continuava intensa em seus jogos.
As encenações de luta se repetiam com freqüência e não eram raros os momentos de
um embate corporal em que ele simulava socos e chutes em mim. Talvez fosse
importante que pudesse viver seus impulsos destrutivos e sádicos na nossa relação.
Não sei o quanto era angustiante para ele viver suas fantasias mais primitivas em
relação à sua mãe, que se apresentava tão fragilizada e constantemente doente.
17
Ver o item 2.2.2 da Introdução.
116
Comigo havia esta possibilidade, e com certa segurança, por mais que eu ficasse
enfastiado com nossos encontros.
Em um outro dia, ele chegou agitado para a sessão. Antes de entrar na nossa sala
discutiu com um menino que passava pelo corredor e o xingou. Também xingou, pela
janela, o professor de educação física que estava na quadra esportiva da escola. Isso foi
me deixando tenso e aflito, eu tinha vontade de forçá-lo a ser de outro jeito. Pontuei que
ele costumava ser hostil com as pessoas e que isso prejudicava sua vinculação com elas.
Pareceu ficar mais calmo após esta intervenção e resolveu brincar de luta de espadas.
Lutamos um pouco e de repente ele mencionou que eu tinha alguns capangas e estes o
atacavam por todos os lados. Naquele momento, fui tomado por intensa emoção e falei
calmamente que talvez ele se sentisse atacado por todos os lados. Ele parou de brincar e
deitou-se no chão, dando-me a impressão de que choraria. Ficou assim um tempo e
lembrei que no início da sessão conversamos um pouco sobre a escola e ele me contou
uma história muito confusa sobre a recuperação escolar. Perguntei então se ele tinha
repetido de ano, ao que respondeu afirmativamente, parecendo estar profundamente
triste. Ficamos em silêncio por alguns minutos e percebi que aquele foi um dos poucos
momentos, durante sua psicoterapia, em que pôde ficar triste por mais tempo. Falei que
ele não estava sozinho e que eu o acompanhava, mas sabia que isso não diminuía seu
sofrimento. Ficou em silêncio por mais algum tempo e enfim, mostrou-se agitado e um
pouco agressivo, parecendo-me não conseguir mais suportar a dor, reagindo a ela.
Como o início desta sessão foi tenso, eu fiquei aflito com seu jeito hostil e
briguento, como se ele não conseguisse manter nenhuma relação mais duradoura com
alguém. Porém, à medida que consegui escutar os ecos que os jogos dele formavam em
mim, pude me dar conta de que havia tristeza por trás de toda aquela agitação. Mas
isso também não era claro. Foi forte para mim uma imagem dele acuado o tempo todo
117
e tive a impressão de certo desespero e muito medo. A partir da intervenção que fiz
com base nesta escuta, a tristeza pôde surgir no lugar da persecutoriedade e ele pôde
ficar em silêncio. Um silêncio necessário para acolher sua própria dor. Fiquei
comovido com a cena, porém, nada havia a ser feito - e nem deveria - para aliviar a
dor que emergiu. Considero ter sido este um momento importante em que conseguiu
reconhecer a tristeza que havia em si, sentindo-a, o que tornaria possível, aos poucos,
atravessá-la. No fim da sessão recorreu à agressividade e a seu jeito ansioso para lidar
com tais questões, indicando que agüentava suportar apenas uma parte - se é que
posso falar assim - desta tristeza.
Também chegou bastante atrasado ao encontro seguinte; porém mais tranqüilo e
não tão agitado nas sessões que ocorreram na seqüência. Seu comportamento hostil e
controlador ainda me incomodavam, mas não eram mais tão intensos. As brigas na
escola vinham se tornando mais esporádicas, mas em certas ocasiões ele ainda sentia
muita raiva e não conseguia se controlar. Brigou com sua professora um dia e conseguiu
me falar sobre isto, contando sua versão, fato que nunca ocorrera anteriormente.
3.1.4. O Término
Quando iniciei os atendimentos de Samuel, ainda cursava a graduação no
Instituto de Psicologia da USP. Estes atendimentos, apesar de ocorrerem na escola dele,
faziam parte de um projeto mais amplo de pesquisa coordenado pela professora Maria
Abigail de Souza (2006), vinculado à Universidade. Mesmo depois de ter concluído a
graduação, ainda dei continuidade a este atendimento por um ano, visto que era possível
prorrogar a bolsa relativa a este trabalho. Ao final da prorrogação, o atendimento teve
118
que ser encerrado. Tentei prepará-lo para a finalização do processo com antecedência de
dois meses:
B: Samuel a gente precisa conversar sobre um assunto ...
S: O quê?
B: É que em junho eu vou ter que parar de te atender. Esse atendimento que eu faço com você é
ligado à USP. Eu era aluno da USP, mas agora eu não sou mais, pois eu me formei. E não é
possível renovar o contrato com eles. Eu ainda estou tentando ver se tem outra possibilidade de
continuar aqui, mas é provável que eu pare em junho. Como fica isso pra você?
Silêncio
B: Mesmo se eu sair existe a possibilidade de você ser atendido por outra pessoa. Você gostaria?
S: Por quem?
B: Ainda não sei. Provavelmente a pessoa que entrará em meu lugar.
S: Eu gostaria.
Silêncio
S: É que agora que eu tinha acostumado com você, vai ter que parar.
B: É, chato né? Acredito que esses encontros são importantes pra você e isso é triste. Mas a gente
ainda tem tempo. Podemos discutir aos poucos.
Passamos a brincar e ao longo do jogo ele começou a ficar agressivo e violento
comigo. Perguntei então, se ele estava com raiva de mim pelo término do nosso
atendimento. Ele parou, ficou quieto e abraçou-me chorando baixo. Falei que aquele
realmente era um momento triste, pois ele gostava dos nossos encontros e eu era uma
pessoa importante para ele. Disse que aquilo não era um abandono, mas sim o fim de
um trabalho que poderia ter continuidade com outra pessoa. Ressaltei que o fato de eu ir
embora não tinha a ver com gostar ou não dele, mas sim com a minha relação com a
universidade. Ele ficou mais calmo e passamos a brincar de lutinha. Fizemos isso até o
fim da sessão.
No atendimento seguinte, brincamos de lutinha novamente e ele me bateu
durante toda a sessão. Quando o horário chegou ao fim e eu o avisei, ele disse que se me
matasse - no jogo - morreria também e se eu o matasse eu morreria. E a luta acabou
assim: quando me matou, ambos morremos. Antes de ir, falou que gostaria de fazer uma
festa de despedida para a minha partida.
Fiquei emocionado com a reação dele diante da notícia de minha partida.
Novamente pôde expressar a tristeza, dessa vez pelo fim de nossos encontros, de uma
119
forma livre e viva. O abraço e o choro baixo me deixaram emocionado. Era verdadeiro
e profundo o que ele sentia. Havia também gratidão e reconhecimento pelo trabalho
que fizemos juntos, o que novamente me emocionou, que isso contrastava com sua
conduta recorrente de manipulação e de desprezo pelo objeto. Pôde reconhecer
livremente o valor que tinham nossos encontros, bem como a dor decorrente do fim dos
mesmos. Também conseguiu expressar a raiva que sentia por esta partida de forma
lúdica em seus jogos, sem negá-la. Não comentei nada na sessão seguinte, quando ele
brincou que me batia durante todo o atendimento. Achei que ele precisava fazer aquilo
e que eu precisava receber este gesto dele. Talvez isto denotasse confiança por parte
dele de que eu pudesse acolher tal gesto, sendo que ele teria oportunidades para
oferecer algum tipo de reparação - o que novamente nos remete à temática da
integração da mãe objeto e da mãe ambiente (WINNICOTT, 1963b) e da elaboração da
posição depressiva (KLEIN, 1934). Mas não me foi penoso este contato e não me
pareceu que a brincadeira era apenas uma evacuação de seu ódio. Tive mesmo a
impressão de ser uma forma simbolizada de lidar com a raiva e com a tristeza
decorrente da perda.
A gratidão ainda se expressou no desejo de fazer uma festa de despedida.
Também me parece que queria uma festa para ele, como um sinal de carinho e de
apreço de minha parte. Chamou-me a atenção o fato de minhas intervenções
ressaltarem que eu era importante para ele e por isso sofria com minha partida. Em
nenhum momento coloquei os meus sentimentos a respeito do fim do trabalho. Não
acho que devesse mesmo fazer isso, pois correríamos o risco de transformar a relação
em um contato interpessoal, pondo em xeque a possibilidade de instauração da
situação analítica. Porém, hoje percebo que eu nunca tinha parado para pensar sobre
o que o fim desta terapia significava para mim ou que emoções este final me suscitava.
120
Acredito que minhas intervenções ressaltando o quanto eu era importante para ele, o
quanto ele sentiria a minha falta, também veiculavam uma mensagem de
distanciamento emocional de minha parte em relação a ele, uma certa frieza.
Novamente, ressalto que não acredito que eu devesse manifestar claramente um pesar
em relação ao término dos atendimentos. O que quero dizer é de outra ordem. Percebo
hoje que as intervenções ressaltando a importância de minha pessoa, de certa forma,
deixavam-me com uma postura de indiferença em relação a ele. E não à toa. Suas
demandas por amor e por carinho, as quais constantemente manifestou na relação
comigo, sempre me incomodaram e me foram invasivas. E, de fato, eram, o que
reforçava em mim a vontade de não dar a ele isto que tanto queria. Como se dessa
forma eu assegurasse, de alguma maneira, uma separação entre nós, dado que as
demandas por fusão e união comigo eram constantes e freqüentes. Era uma maneira de
eu me manter preservado em minha individualidade e como alteridade. Porém,
confesso que também havia um pouco de minha “neurose” neste movimento. Lendo as
sessões atualmente, esta minha conduta se assemelha muito a uma postura que tenho
em relação a outras figuras importantes em minha vida, um traço muito característico
meu. Talvez decorrente da angústia suscitada pelo amor e pelo risco de perda deste
amor - em uma simplificação que nos permite dar seguimento à discussão. Assim,
parece-me que tal postura distanciada em relação a ele reflete tanto aspectos
relacionados à dinâmica transferencial decorrente de nossos contatos, quanto aos
meus próprios scripts inconscientes diante da demanda por respostas que este menino
exigia. O que novamente colocaria em risco a possibilidade de linguagem, algo
freqüente no contato com pacientes considerados graves (FÉDIDA, 1991).
No encontro seguinte ele chorou novamente e disse que também estava com
raiva pelo fim da terapia. Falou que havia perdido outras pessoas em sua vida e que
121
isto era ruim. Comentou sobre a orientadora educacional da escola, de quem gostava
bastante e que havia sido transferida. Na conversa que se seguiu, chegou a mencionar a
morte de seu pai, porém não se deteve muito nisso. Nas sessões posteriores ele se
mostrou manhoso e quis usar os brinquedos de outras crianças o que eu o permiti.
Suas brincadeiras também expressavam um contato intenso comigo, nas encenações
éramos irmãos, trabalhávamos no mesmo lugar, comíamos juntos etc. Pontuei a
necessidade dele ter uma relação bastante próxima, quase unido a mim. A partir daí o
jogo foi mudando e, aos poucos, nas encenações, não morávamos mais juntos e
passamos a ser vizinhos.
Com o tempo, em meio à elaboração do final do atendimento, voltou a expressar
sua agressividade característica em nossos jogos. Considero interessante apresentar com
maior detalhes uma sessão que ocorreu neste período, pois ilustra a dificuldade que eu
sentia em lidar com seus movimentos agressivos e algumas reações intensas que tive na
presença dele. Trata-se da centésima sessão:
Quando entrou, Samuel olhou para seu relógio e disse que estava cinco minutos
atrasado. Mencionei que novamente Célia - sua professora, com a qual combinamos
que tentaríamos marcar uma conversa - não aparecera e ele disse que isso o era
problema dele. Olhou ao seu redor, perguntou-me do que havíamos brincado na semana
anterior e respondi que havíamos jogado futebol. Afastou então a mesa para o canto
oposto da sala e, ao lado dela, contou os passos para marcar o espaço em que seria um
dos gols. Fez isso também no canto oposto e demorou um pouco, pois queria que os
dois gols ficassem exatamente do mesmo tamanho. Disse-me que eu ficaria com o
segundo gol, mas em cima da área que o delimitava estava a pia, o que dificultaria
minhas defesas pelo pouco espaço que havia para se movimentar ali. Deu uma desculpa
122
qualquer para isso, mas após um sorriso, tive a impressão de que queria mesmo levar
vantagem.
De início, pareceu-me que seria agradável jogar futebol com ele, pois não
precisaríamos brincar dos jogos de encenação, que costumavam ser muito cansativos
para mim. Quando ele marcou o espaço de um dos gols embaixo da pia, porém, tal
impressão mudou e pensei que eu teria que fazer algumas concessões durante a
brincadeira para que ela chegasse ao fim.
O jogo foi disputado e durante a partida ele inventava uma série de regras para
se beneficiar. Isso me deixava sem chances e seus chutes eram muito fortes. Venceu e
trocamos de lado por iniciativa dele, como se quisesse ser justo. Comecei a fazer mais
gols e também passei a usar as regras que ele inventou para se beneficiar. Ele, então,
mudou o gol que estava embaixo da pia para um outro lugar e não satisfeito com isso,
trocamos novamente de gol.
Quando ele passou a inventar as regras que o favoreciam e tiravam minhas
chances, senti-me cansado. A impressão que eu tinha era a de que por mais que
avançássemos na terapia e por mais que o tempo passasse, as mudanças com ele eram
muito lentas e graduais. Parecia que ele não mudava, continuando a apresentar
condutas de desvalorização do outro e de um uso indiscriminado e pouco cuidadoso do
objeto. Transitando por uma posição maníaca em que o triunfo (KLEIN, 1940) era
freqüente. Quando trocamos de gol, eu passei a utilizar, em meu favor, as regras que
ele inventara para se beneficiar. Confesso que foi a insatisfação e um sentimento de
retaliação que motivaram tal conduta. Hoje reconheço que eu tinha a intenção de
provocá-lo e de revidar, de alguma maneira, as agressões que ele dirigiu contra mim.
Era como se eu quisesse que ele sentisse a impotência que eu costumava experimentar
em muitas de nossas sessões.
123
Ele estava agitado e chutava a bola muito forte. Pedi diversas vezes que não
fizesse isso, mas ele continuou e falei que faria a mesma coisa. Na minha vez, chutei
muito forte e a bola acertou seu rosto.
Conforme ele começou a ficar irritado, seus chutes se tornaram cada vez mais
fortes, o que por sua vez também me irritou bastante. Eu pedia para ele chutar mais
devagar, mas ele não obedecia. Começou a crescer em mim o desejo de ser agressivo,
como seu eu quisesse dar uma lição nele. Em certo momento, eu disse para mim
mesmo: “Dane-se!”. E foi que chutei a bola com muita força. Fiquei até
impressionado com o resultado da minha ação e do meu ódio. Acredito que se eu
tivesse mirado em seu rosto não o acertaria. Mas naquele momento, minha raiva era
tão grande que eu desisti de manter qualquer tentativa de me controlar e a bola
acertou seu rosto. Penso que a maneira como ele me tratou durante a sessão e a forma
como se relacionou comigo deixaram-me com muita raiva. Seu controle sobre o jogo e
sobre mim, utilizando-me como algo a ser dominado, manipulado, enganado e vencido,
a falta de espaço para que eu pudesse decidir sobre o que fazíamos a falta de espaço
para minha subjetividade e este estado fundido e misturado, com muitos sentimentos
hostis e primitivos em jogo, causaram-me desconforto e deixaram-me com ódio dele.
No entanto, acho importante ressaltar que havia uma participação minha nisso tudo.
Não foi apenas a maneira como ele se relacionava comigo e seu estado por vezes
regredido que me fizeram chutar a bola em seu rosto. Entrou em cena minha vontade
de travar um embate com ele e de mostrar que eu era melhor e mais poderoso. Quando
eu disse para mim mesmo “Dane-se!”, dei vazão a este desejo e, de fato, iniciei um
embate físico, correndo o risco de transformar a sessão em uma grande briga. Mas por
que fiz isso? Por que não consegui me controlar e passei a me encontrar em meus
próprios scripts e imerso em meus conflitos inconscientes? Talvez não haja uma
124
resposta para esta questão. Mas um caminho que nos devolva ao campo da linguagem
poderia estar relacionado com a dificuldade de elaboração de um luto. O contexto em
que este atendimento se desenvolveu era o do fim do trabalho psicoterápico entre nós,
que ocorreria dali a algumas semanas. É muito provável que não tenhamos conseguido
falar sobre este assunto e todo o ódio e tristeza envolvidos nesta despedida
transformaram-se em uma briga. Não deixo de reconhecer que me sentia um pouco
culpado pelo encerramento da terapia, como se o deixasse só e desamparado. Também
não deixo de reconhecer minhas próprias dificuldades em viver a dor de uma
separação. Assim, muitas dificuldades minhas também se expressaram nesta cena em
que chutei a bola nele, sem que pudéssemos acolher estas vivências para que elas
propiciassem uma transformação. A capacidade contratransferencial, entendida como
instrumento de fina mobilidade adaptativa, campo de ressonâncias (FÉDIDA, 1986,
1988), foi interrompida naquele momento, interrompendo também a possibilidade de
linguagem, de engendramento de formas e de abertura para o inesperado. O que o
inesperado poderia nos trazer se nos abríssemos a ele? Dor? Talvez. Não é possível
saber. O que ocorreu foi uma confusão de afetos, com tudo sendo vivido de forma
intensa e bruta, sem muita distinção e com bastante angústia. Penso também que a
violência do processo transferencial tenha, em algum nível, me assustado. Fiquei
perdido e sem referências diante do que ocorria entre a gente. Para me defender,
respondi também de maneira agressiva, como se apenas desta forma eu conseguisse
dar alguma ordem - interna - ao estranhamento que a situação me causava e à
impotência que eu sentia diante daquele menino. Além disso, como dar conta de um
ódio - por vezes rechaçado em minha vida - que era despertado na presença de
Samuel?
125
Dando continuidade à sessão, ele ainda conseguiu agarrar a bola após o chute e,
por alguns segundos, olhou para mim desnorteado. Logo percebi o ódio em seus olhos.
Resolvi parar e não deixei que chutasse a bola em mim, o que era sua vontade naquele
momento. Falei:
B: Você viu o que aconteceu aqui?
Ele começou a cantarolar uma música para não ouvir o que eu dizia.
B: A gente ficou nesse jogo e você ficou inventando um monte de regras pra me prejudicar. Além
disso, estava chutando a bola muito forte, mesmo depois de eu ter pedido que não fizesse isso. Esse
tipo de atitude provoca reações de muita raiva em mim. Eu peço desculpas por ter chutado a bola em
você, mas acho que você provocou isso em mim. Você faz com que eu perca o controle e acredito que
isso não aconteça só comigo, mas também com outras pessoas lá fora.
Minha intervenção apontou os efeitos de sua conduta em mim e, de certa forma,
buscou interromper os movimentos agressivos que ocorriam entre a gente. Ao ler esta
passagem, achei importante que eu tivesse pedido desculpas a ele pelo chute que dei,
pois assim reconhecia uma parte de minha responsabilidade na cena que ocorrera.
Porém, a frase que se seguiu à minha desculpa - “acho que você provocou isso em
mim” - tinha um caráter de bronca e hoje me soa um pouco pedagógica.
Ele continuou cantarolando a música enquanto eu falava. Isso também me
deixou irritado e de repente reparei que meu olhar lembrava o de Célia, sua professora
atual, em certo dia que veio reclamar dele para mim. Pude, assim, entender o ódio que
ela sentia naquele momento.
Acalmei-me, percebi que ele estava com raiva e verbalizei isso. Ele quis brincar
de espadas e pegou os pedaços do cabo de vassoura para que simulássemos a luta. Esta,
porém, não chegou a ocorrer, pois ele se interessou pelo jogo de amarelinha
18
que estava
18
Havia um jogo de amarelinha no chão da sala. Suas peças eram feitas de borracha e podia-se encaixá-
las ou desencaixá-las conforme se desejasse, como um grande quebra-cabeças.
126
no chão. Passamos a jogar suas peças um para o outro de forma a interceptá-las com a
espada. Fizemos isso a o fim da sessão e aos poucos pude perceber que seu ódio
diminuiu.
Foi interessante perceber que ele também procurou se controlar, pois era
evidente que sentira muita raiva de mim após o chute. Ao invés de tentar revidar,
resolveu brincar de luta de espadas, em uma tentativa de simbolização do ódio e da
vontade de me bater. Não chegou nem a encenar o embate, pois ficamos interceptando
as peças da amarelinha com os cabos da vassoura. Assim, após um momento intenso
entre nós dois, aos poucos conseguimos conter a raiva que sentimos um do outro sem
nos agredirmos.
Na sessão seguinte, começamos uma encenação de luta e ele vinha com muita
força para cima de mim. Como eu não estava com vontade de brincar disto, resolvi
imobilizá-lo no chão. Brinquei que ele era um menino sem controle e que eu o seguraria
para que não agredisse mais ninguém. Pareceu ter gostado e tentou escapar para que eu
continuasse segurando. De repente, parou e se deitou ao meu lado - eu estava sentado no
chão. Comeu salgadinho - que ele trouxera de casa - e ficou quieto. Lembrei-me da
imagem da mãe amamentando seu bebê. Ele começou a falar algumas coisas, de forma
fantasiosa, sobre uma época muito distante, em que ele e sua família eram muito felizes.
Não quis se deter neste assunto e apontei que talvez ele se referisse a quando seu pai era
vivo. Era provável que achasse sua vida melhor naquele tempo, pois depois da morte,
sua mãe passou a ser uma mulher triste e doente, sem tempo para cuidar dele.
Eu não quis brincar de lutinha, pois esta brincadeira era muito penosa para
mim. Sentia-me cansado e minha falta de autonomia no jogo, dado o controle
onipotente dele, deixava-me irritado e sem paciência. Assim, resolvi segurá-lo no chão,
de forma lúdica e como parte de uma encenação, pois sentia que ele precisava de
127
algum controle corporal, algo que desse contorno a ele e que limitasse sua ansiedade.
Como mencionei anteriormente, em muitos momentos tive a sensação de que ele ia
explodir e foi esta sensação que orientou a minha conduta. E ele pareceu gostar da
intervenção. Ficou mais calmo, sentou-se junto a mim e pôde falar sobre si. Talvez
tenha se acalmado quando percebeu que não estava sozinho para dar conta de sua
carga destrutiva e de sua ansiedade, estando acompanhado de alguém que o ajudava
lidar com isto. Uma citação de Winnicott pode ser esclarecedora: “Sem um ambiente
humano e físico limitado que ela possa conhecer, a criança não pode descobrir até que
ponto suas idéias agressivas não conseguem realmente destruir e, por conseguinte, não
pode discernir fantasia de fato” (1947b, p. 64). Portanto, a confiança que se estabelece
no ambiente a partir da repetição de oportunidades para a reparação, bem como a
constatação de que a destrutividade vivida em fantasia não tem um efeito real,
acalmam a criança. Samuel pôde expressar seu amor excitado e seu ódio que, após
contidos, deram lugar a um estado relaxado e agradável.
Após minha intervenção, ele pegou o quebra-cabeça e passou a montá-lo. Pediu
ajuda várias vezes e tentei dar dicas sobre como montar. Percebi que sentiu
dificuldades, mas teve um desempenho melhor que antigamente. Ficou feliz ao terminar
e quis guardá-lo junto com o jogo de damas para não desmontá-lo. Falei que isso, no
futuro, ia fazê-lo se lembrar de seu bom desempenho na sessão, mas que se outra
criança quisesse usar o quebra-cabeça, este seria desmontado. Falou que tudo bem, pois
era um brinquedo da sala.
Encerrei a sessão e antes de ir, ele disse que eu havia conseguido segurá-lo. Falei
que isso tinha sido possível porque ele também tinha se segurado internamente.
Depois que eu consegui segurá-lo, fazendo com que recebesse uma contenção
física ele se acalmou e pôde fantasiar sobre uma época muito feliz. Eu relacionei isso à
128
época em que seu pai ainda era vivo. Após a morte do pai, muitas perdas ocorreram,
inclusive a da mãe cuidadora e presente. Na seqüência desta intervenção, ele brincou
com o quebra-cabeça, como se tentasse construir algo, talvez a família interna que se
perdera ou mesmo seus objetos internos despedaçados e agredidos nos momentos de
maior frustração, de perda e de dor. É verdade que este movimento construtivo ainda
era difícil, o que se observou na dificuldade que teve em montar o quebra cabeça -
muito embora fosse um menino esperto e inteligente. Talvez montar o quebra cabeça
tivesse algum simbolismo com a capacidade de elaborar lutos (KLEIN, 1940), sendo
capaz de apresentar um movimento construtivo depois de uma dor, procurando
restabelecer ligações internamente. Talvez por isso queria que o quebra-cabeça
continuasse montado, para lembrá-lo de que podia suportar outras dores ou as mesmas
dores que sentia naquela sessão e que havia um bom objeto internalizado ajudando-o a
sustentar-se após as perdas. Como se sentisse e quisesse se lembrar posteriormente que
havia força dentro de si e capacidades para enfrentar a vida. Não é por acaso que este
evento tenha ocorrido em meio à elaboração do fim da terapia, quando provavelmente
as experiências de perdas mais arcaicas em sua vida foram retomadas, exigindo dele
recursos para lidar com elas de forma mais madura. Embora a sessão anterior tenha
sido difícil para nós dois, o que se seguiu àquele atendimento pôde colocar em marcha
transformações que aos poucos possibilitaram maior tolerância à tristeza,
proporcionando condições para um viver criativo.
Assim, conforme conseguimos conter o ódio e o impulso para a agressão, foi
possível tanto para mim quanto para ele retomar um estado de linguagem em que o
devaneio e o fantasiar foram novamente possíveis, sendo restabelecida uma capacidade
contratransferencial de ressonância e de recepção. Novamente aqui concordo com
Viana (1993) em sua tese de que quando o analista consegue suportar os conteúdos que
129
para dentro dele foram projetados, acolhendo-os, metabolizando-os e sonhando-os,
novamente o fantasiar pode ser possível, abrindo-se novos campos de sentido e de
experiências.
Vejo alguma semelhança entre um comentário que dida faz a respeito do
trabalho psicoterapêutico com casos de depressões carenciais graves e as duas sessões
que foram descritas acima. Diz ele:
Lanço a hipótese de que localizando-se no ponto mais sensível da
situação analítica, o paciente coloca a questão da análise sob a
forma do seu desafio mais radical: como se tratasse de destruir a
linguagem no analista para que este se engaje corporalmente na
troca.(FÉDIDA, 1991, p.28, grifos do autor)
Dessa forma, o desafio nas sessões apresentadas era justamente poder criar
linguagem onde Samuel “pretendia” destruí-la. E de fato, corremos o risco de
transformar aqueles atendimentos em uma troca corporal, sem as possibilidades de
abertura que a linguagem favorece. A violência da transferência fazia com que eu me
aprisionasse a ela, sentindo dificuldades em reverberar junto dele. A força de seus
processos mentais inconscientes tocavam-me em pontos de difícil resolução dentro de
mim, levando-me a atuações e a uma interrupção da linguagem. Suportar estes estados,
mesmo com as dificuldades que enfrentamos, foi importante para que esta - a
linguagem - novamente tivesse vez, favorecendo o processo psicoterapêutico.
Em outro atendimento, faltando duas semanas para o fim da terapia, Samuel
levou refrigerantes e salgadinhos. Disse que faríamos uma festa de despedida e como
sabia que eu não levaria nada resolveu comprar tudo. Sabia que ainda faltavam duas
semanas para o término de nosso trabalho, mas quis fazer uma surpresa para mim.
Contou-me que ajudara seu irmão em um trabalho e recebera quatro reais. Utilizou este
dinheiro para comprar as guloseimas e comentou que um funcionário do mercado o
ajudou a levar as compras para a escola. Falou que apenas “bateríamos papo” e não
conversaríamos, dando a entender que queria um encontro agradável e sem uma
130
conversa mais profunda. Agradeci pela festa e deixei que aquela fosse uma despedida
entre nós, sem me deter em comentários mais alongados ou em interpretações a respeito
do comportamento dele junto comigo. De fato, foi um encontro agradável. Ainda
compareceu à sessão seguinte, mas foi embora antes de seu horário terminar, parecendo
muito ansioso. Depois disso, faltou nas sessões posteriores. Após um mês, retornei à
escola e apresentei a ele sua nova terapeuta. Esta terapia teve boa continuidade e
Samuel deixou de ser uma criança que causava transtornos à escola.
Quando Samuel levou os salgadinhos e os refrigerantes para a sessão fiquei
profundamente emocionado. Era um gesto espontâneo de carinho, sem querer nada em
troca, apenas demonstrando sua gratidão pelo contato que tivemos juntos. Pensei na
dificuldade que teve para comprar aquelas coisas, pois vinha de uma família muito
pobre, que costumava passar por algumas necessidades materiais. Achei um gesto
muito generoso da parte dele. Ainda mais se lembrarmos sua conduta ao longo da
terapia, sempre querendo mais de mim e tentando levar os brinquedos da sala. Desta
vez foi bastante diferente, ele me deu algo e de uma maneira genuína. Não quis levar
nada em troca. Também - internamente - fui grato a ele naquele momento, por todo
aprendizado que me proporcionou e pelo carinho que estava me dando. Hoje penso que
fui bastante duro com ele em diversos momentos, porém, mostrou ter feito bom uso de
nossos contatos. Tive mesmo a impressão de que ele não iria às sessões que restavam,
o que acabou acontecendo. Minha sensação era a de trabalho realizado e me pareceu
que ele estava em um bom caminho para elaborar os lutos que a vida iria lhe impor.
Fornecida esta visão geral de como se deu o processo psicoterapêutico com
Samuel, farei uma discussão sobre os movimentos transferenciais e
contratransferenciais neste caso.
131
3.2. Discussão sobre a transferência e a contratransferência
Como me referi anteriormente, as sessões com Samuel foram bastante
intensas desde o início de nosso trabalho. Para mim, foi particularmente difícil estar
junto dele em diversas ocasiões, seja pela forma como se relacionava comigo, seja pelas
reações - com base em conteúdos inconscientes - que sua conduta me despertava.
Experimentei estados de paralisação interna e de impotência com muita freqüência.
Estas experiências eram bastante incompreensíveis para mim e me remetem às seguintes
questões: o que seriam estes estados em que me encontrei por diversas vezes? O que
acontecia comigo naquelas ocasiões?
A força das emoções vividas por Samuel era intensa e violenta, a ponto de seu
psiquismo se deparar com grandes dificuldades para organizá-las e para contê-las. Se
utilizarmos o referencial kleiniano para orientar uma leitura deste caso, acredito que em
seu funcionamento psíquico inconsciente, Samuel utilizava com muita freqüência
defesas características da posição esquizo-paranóide como forma de lidar com as
angústias persecutórias e de desintegração (KLEIN, 1946) a que era acometido. Sua
ansiedade se intensificava no decorrer de nossos jogos, bem como sua destrutividade,
dando mesmo a impressão de que “explodiria em muitos pedaços. Era nítida a
sensação de descontrole experimentada por ele, mais claramente quando se via frustrado
em seus objetivos, ocasiões em que ficava muito irritado e procurava dominar tudo o
que estava à sua volta, principalmente eu.
Já na primeira sessão, quando me pediu a chave para abrir a porta da sala, minha
sensação foi de paralisação e de constrangimento. Não soube o que fazer e deixei que a
abrisse. Mas senti-me profundamente invadido com sua atitude, como se tivesse
ocupado um espaço grande demais dentro de mim. Senti-me acuado dentro de minha
132
própria mente. À primeira vista, se observássemos apenas o ato de pegar a chave de
minha mão, poderíamos considerar minha reação um exagero. Porém, a sensação que
vivi internamente foi muito penosa e tornou-se constante ao longo de muitas sessões
com ele. Era como se ele se colocasse dentro de mim, sobrando pouco espaço para
minhas reverberações (FÉDIDA, 1986) e para meu próprio devaneio. Sentia-me
esmagado com a presença dele, o que me deixava, por vezes, sem reação. É provável
que estivesse em jogo a utilização, por parte dele, do mecanismo de identificação
projetiva (KLEIN, 1946), em que a criança projeta partes de si para dentro do outro,
com o intuito de controlá-lo. Não posso deixar de reconhecer que, de fato, sentia-me
controlado por ele naquelas ocasiões, que ao meu “não saber o que fazer” se seguia a
conduta que ele esperava que eu tivesse, naquele caso, entregar a chave e deixá-lo abrir
a porta. Impressiona-me também, o fato de tais aspectos estarem presentes no nosso
primeiro contato, antes mesmo de entrarmos na sala de atendimento.
Além disso, a constante tentativa de transgressão do enquadre - que por vezes se
expressava com a freqüente busca por levar consigo os brinquedos da sala - também me
incomodava. Num primeiro momento, pensei que meu incômodo em relação a isso se
devesse à possibilidade de deixarmos de fazer um trabalho sério - psicanalítico eu diria -
se eu respondesse a tal demanda. Porém, hoje acredito que o que me incomodava era a
voracidade com que dominava as sessões, querendo tudo para si, utilizando os objetos
de forma implacável e sem nenhuma consideração. Sentia-me usado e sem valor.
Porém, naqueles momentos, não conseguia nem vislumbrar assim estas sensações, dada
a dificuldade que eu tinha em pensar, em tentar compreender e em significar o que
ocorria. Era um estado de certo estarrecimento diante da intensidade de seus
movimentos. Recorro a Fédida (1988) para tentar pensar minhas reações - ou a falta
delas - nestes primeiros contatos com Samuel. Acredito que eu experimentava uma
133
angústia paralisante, mortífera - uma experiência de sinistro - deixando de produzir
imagens e de ressoar junto dele. Mas por que isso ocorria? Penso que a intensidade de
seus movimentos transferenciais - entendendo aqui a identificação projetiva como uma
manifestação e como parte do processo transferencial - deixava-me aprisionado na
imagem que dentro de mim era projetada. Eu me identificava com o objeto que tinha
como única função ser usado e controlado. Não descarto a possibilidade de meus
próprios conteúdos inconscientes favorecerem este meu “aprisionamento” por aquilo
que em mim era depositado e acredito que ele me tocava nos pontos em que eu era mais
vulnerável. Naquelas ocasiões de muito controle e dominação, tendo a pensar que a
força da identificação projetiva me fazia refém de seus objetos internos cindidos e
expulsos. Seria necessário tempo, o que de fato foi ocorrendo aos poucos - não sem
dificuldades, é verdade -, para que estes conteúdos pudessem ser metaforizados por
mim
19
. Acompanho, assim, novamente, as reflexões de Viana (1993), em sua tese de
que se estes estados de angústia siderante e mortífera puderem ser suportados, sendo
posteriormente metabolizados e sonhados pelo analista
20
, estaríamos novamente no
campo da linguagem.
Além da paralisação e do estarrecimento diante de sua conduta, outra reação
freqüente nos contatos com ele era a confusão. E isto ocorria com especial intensidade
em seus jogos de encenação e nas “lutinhas” que faziam parte destas brincadeiras. Em
geral, em tais encenações, simulávamos situações em que éramos constantemente
atacados por inimigos. Alternávamos também papéis em que eu era o agressor e ele era
do bem ou vice-versa. As brigas continham muita violência física e por diversos
momentos eu tinha que pedir para irmos mais devagar, pois poderíamos nos machucar.
19
Poderíamos pensar também, que um dos sentidos desta dissertação seria mesmo de continuar
metaforizando e produzindo imagens para as vivências em que isso não foi possível nos contatos com
Samuel.
20
O termo metabolizar indica sua filiação bioniana, dado que Viana (1993) articula o pensamento de
Fédida e de Bion para fundamentar sua tese.
134
Ele controlava tudo nestes jogos: como eu deveria reagir e o que eu deveria falar e
fazer. Quando eu apresentava algum movimento fora do planejado ele ficava irritado e
tínhamos que repetir a cena. Com muita freqüência estas brincadeiras ocorriam após um
jogo de regras
21
em que ele havia perdido uma partida para mim. Ficava então irritado e
agressivo e passávamos às encenações. Em determinado período da psicoterapia,
diversas sessões transcorreram apenas com este tipo de brincadeira. Nelas, ele me
humilhava e sentia prazer em me controlar. Por vezes, senti-me anulado e confuso
frente a tais situações. Eu ficava bastante cansado e tinha preguiça em atendê-lo,
sentindo sono e vontade de dormir. Antes de várias sessões eu imaginava que seria
muito bom se ele faltasse, ficando cansado de ouvir sua voz. Penso que sua atitude
nas encenações eram expressões de defesas de cunho maníaco (KLEIN, 1934, 1940)
diante da dificuldade em lidar com a dor decorrente da possibilidade de perder alguma
partida para mim, ou seja, a dificuldade de elaboração de um luto. Ficava muito
angustiado quando perdia uma partida ou quando errava uma jogada, como se nada de
bom houvesse dentro dele. Ao entrar em contato com angústias depressivas (KLEIN,
1934, 1940), recorria a defesas em que anulava o objeto, desconsiderando-o e
desprezando-o. Assim, o triunfo sobre mim durante as encenações também era
recorrente. Dizia que era muito bom e que iria me “detonar”.
É provável que minha confusão e meu cansaço estivessem também associados a
este movimento de anulação de minha pessoa. Como se para estar junto dele fosse
necessário suportar as agressões e a desconsideração que expressava por mim naquelas
brincadeiras. Era como se eu tivesse que estar anestesiado e confuso, quase morto, em
nossos contatos. Impressiona-me a força destas reações, pois apenas a presença dele
me colocava em tal estado. Novamente uma angústia de morte era sentida por mim?
Acredito que sim, pois embora seus jogos fossem muito ilustrativos de sua vida
21
Jogos de baralho, damas, botão etc.
135
psíquica, eu não conseguia ter uma apreensão clara disso. Nesse sentido, as supervisões
após os atendimentos eram muito importantes para me ajudar a lidar com o que ocorria.
Era nestas ocasiões que a figurabilidade e a reverberação (FÉDIDA, 1986, 1991)
tornavam-se possíveis.
Uma outra reação presente nestes jogos e, posso dizer, em quase todas as sessões
era a raiva que eu sentia por suas atitudes. Especialmente nos momentos em que me
provocava e em que tentava trapacear nas partidas. Não foram raros os momentos em
que tive que me esforçar muito para manter o autocontrole e não brigar com ele, o que
nem sempre foi possível. Por vezes fui muito incisivo, dei respostas secas e diretas,
utilizei a ironia e mesmo a provocação para lidar com ele; tornei-me competitivo em
muitas ocasiões e utilizei as interpretações como forma de retaliação em alguns
momentos. Com certeza, não são reações das quais me orgulho e nem sempre me dei
conta de que eu também fora duro e agressivo durante as sessões.
Acredito ser possível abordar esta questão - de minha agressividade em relação a
ele - a partir de vários ângulos. Restringirei a discussão a quatro deles que me parecem
plausíveis:
De início, poderia pensar meus movimentos agressivos como decorrentes do
ódio e da destrutividade que dentro de mim foram projetados (KLEIN, 1946), levando-
me à atuação - por vezes silenciosa - durante as sessões. Como se eu fosse tomado pela
intensidade dos afetos que em mim eram colocados, perdendo qualquer capacidade de
discernimento entre o que era meu e o que era dele e qualquer possibilidade de
reverberação. Naquelas ocasiões, a capacidade receptiva da contratransferência se
perdia, assim como as possibilidades internas de figuração e de mobilidade psíquica
(FÉDIDA, 1986, 1988, 1991). Não posso deixar de dizer - o que será abordado mais
136
adiante - que tais conteúdos tocavam em meus próprios aspectos e conflitos
inconscientes.
Em segundo lugar, de acordo com uma perspectiva winnicottiana
(WINNICOTT, 1964), minhas reações agressivas podem ser compreendidas como uma
tentativa de separação e individuação, não sendo apenas uma retaliação, dada a
demanda por fusão que Samuel apresentava. Era como se, pela agressividade, eu
tentasse impor uma oposição e um limite entre nós, procurando resgatar meus próprios
contornos corporais e psíquicos. Talvez eu dissesse de alguma forma e de maneira um
pouco bruta que éramos diferentes e que eu não poderia ser apenas usado como um
prolongamento dele. Procurando ressaltar minha necessidade de individuação, de um
espaço e de um tempo que fosse apenas meu. Tempo necessário e importante para que
eu pudesse estar com ele, acompanhando-o a partir de meus próprios movimentos
internos, a partir de meu silêncio (FÉDIDA, 1986).
Outro ângulo possível para pensar minha agressividade durante as sessões
leva em conta os pressupostos contidos no texto “O ódio na contratransferência”
(1947a) de Winnicott. Nele, o autor coloca a importância do analista - e da mãe - em
poder odiar objetivamente o paciente - filho - para que este também possa experimentar
seu ódio de forma mais livre, responsabilizando-se por ele posteriormente. A partir
desta concepção, posso compreender minha raiva em diversos momentos como uma
resposta objetiva aos movimentos de Samuel. Por exemplo, quando ele me provocava e
tentava me humilhar: o que seria possível sentir nestes momentos a não ser ódio
22
? A
grande dificuldade que surgia, no entanto, era a de não atuar este sentimento na relação,
o que nem sempre foi possível. Era importante que ele soubesse que eu o odiei nos
22
Talvez outro terapeuta não sentisse ódio. o pretendo generalizar, pois estou falando sobre os meus
sentimentos durante as sessões.
137
momentos em que ele me humilhava e me provocava. Porém, tornar isto claro para ele
sem maltratá-lo foi muito difícil, já que me sentia impelido em agir da mesma forma.
Outra perspectiva a respeito de minha agressividade refere-se aos meus
próprios conflitos e restos” inconscientes e reconheço que existe em mim uma
agressividade latente, que se fazia bastante presente no contato com Samuel. Não posso
atribuir, a responsabilidade desta carga agressiva e raivosa apenas à forma como ele se
relacionava comigo, pois observo que tal dinâmica afetiva faz parte da formação de
minha personalidade.
Refletindo a posteriori sobre esta experiência de atendimento, fica mais clara a
existência deste meu “lado” hostil, que se expressava ora por um movimento
competitivo, em especial nas ocasiões em que ele me provocava; ora por uma certa
necessidade de vingança e daí o prazer em derrotá-lo. Às vezes, senti vontade de
dominá-lo como forma de mostrar que eu era mais forte e poderoso, podendo subjugá-lo
a hora em que eu quisesse, mesmo corporalmente.
Penso que me causava irritação e desconforto não entender o que se passava com
ele durante as sessões e nem como lidar com ele frente a seus intensos movimentos e
desorganização. Assim, meus movimentos agressivos também se davam como resposta
a esta minha angústia frente ao inesperado e à falta de sentido. Ao tentar dominá-lo e
subjugá-lo, eu procurava de alguma maneira me afastar do desconhecido, procurando
também colocar alguma ordem que fizesse sentido, querendo controlá-lo ou me
vingando do desespero que ele me causava.
Hoje também chego a pensar que muitas de minhas atitudes de distanciamento e
de indiferença tinham como objetivo não corresponder à sua demanda de carinho.
Nestas ocasiões minha agressividade manifestava-se de forma sutil e quase silenciosa.
Como se eu dissesse que ele nada significava para mim, negando também a intensidade
138
que o contato com ele me despertava. Talvez esta indiferença também fosse um
movimento defensivo para lidar com as angústias que as sessões proporcionavam.
Angústias relacionadas à solidão, à falta de carinho, ao medo, enfim, aos meus próprios
aspectos infantis. Formas com que eu procurei lidar com a solidão ao longo da vida e
que, de certa forma, eu utilizava para me proteger da intensidade dos contatos com as
pessoas.
Creio ser importante destacar a minha responsabilidade nas experiências de
muita angústia e de maior agressividade como uma forma de dar lugar à verdade em
nossos contatos. Não seria honesto de minha parte omitir a minha participação -
inconsciente - nos momentos mais difíceis da terapia. Esta omissão deixaria tudo que de
ruim ocorrera como advindo dele. Foi justamente o reconhecimento da possibilidade de
pensar a experiência de angústia paralisante relacionada aos meus conteúdos recalcados
que me atraiu nas reflexões de Fédida. Por vezes, era como se eu me visse aprisionado
na própria imagem de meu recalcado - presente de forma bruta e traumática, sem
simbolização -, do meu próprio ódio infantil, nas ocasiões em que eu não pude ressoar
junto dele, perdendo momentaneamente minhas possibilidades de recepção e figuração
a seu jogo e a seu discurso (FÉDIDA, 1988).
Penso que em certas ocasiões deixei dar vazão à minha agressividade,
utilizando-me internamente da justificativa de que ele era invasivo e que na verdade era
ele quem despertava uma agressividade incontrolável em mim. Em muitos momentos
ele de fato me deixou com raiva. Mas houve situações em que seus movimentos já não
eram tão intensos e primitivos e mesmo assim eu continuei a reagir de forma hostil.
Retomo a passagem em que ele me abraçou após perceber que havia um brinquedo
novo na sala na ocasião em que lidava com o dano causado à caixa lúdica. Eu não havia
levado o brinquedo para ele, mas sim para a sala, para todos os pacientes que a usavam,
139
inclusive Samuel. Porém, a leitura que fez foi a de um presente. Um presente necessário
naquele momento de dor frente à constatação das conseqüências de sua destrutividade.
Quando me abraçou naquele dia, não o fez da forma invasiva e pegajosa com que
muitas vezes fizera em nossas sessões. Daquela vez, parecia ser mais tida uma
diferenciação entre nós dois, já com algum reconhecimento da alteridade, assim como
era evidente a aceitação - mesmo que momentânea - de sua própria tristeza. Mas minha
atitude em relação a ele continuou a ser de certo distanciamento, mesmo em se tratando
de uma situação com um sentido distinto das anteriores. Atribuo isso a meus próprios
movimentos defensivos e que se dão também com outras pessoas, não apenas com ele.
Depois que quebrou a caixa, passou a apresentar, em alguns momentos das
sessões, uma postura de menor necessidade de fusão comigo. Seus movimentos
invasivos, apesar de continuarem a ocorrer, se alternavam com uma posição de maior
aceitação da autonomia do objeto. A partir daí, começaram a ser freqüentes as
demandas por carinho e a identificação de minha figura com a imagem paterna e
materna. Chegou a dizer de forma explícita que eu era um pai para ele e isso me
incomodou bastante. Eu parecia ficar assustado com tal demanda, como se tivesse que
estar sempre muito próximo, cuidando dele e dando amor. Foi nesse contexto que me
pediu para tirarmos uma fotografia juntos, para eu levar bala a ele, para fazermos uma
festa etc. E minhas recusas a tais pedidos se davam de forma um pouco áspera, podendo
soar como uma espécie de rejeição. Nesse contexto também ocorreu a sessão em que se
sentou em meu colo e “mamou” em meu seio, em um estado bastante regredido. Tornar-
me a mãe/seio também não foi nada agradável e a identificação com esta imagem me
deixou paralisado e tenso. Fiquei lá, preso à angústia que a cena me suscitava, como se
estivesse vendo um filme de terror, ao mesmo tempo assustador e fascinante (FÉDIDA,
1988). Foi necessário tempo e supervisão para que, aos poucos, eu pudesse conversar
140
com ele sobre os possíveis sentidos destas demandas e o lugar que elas ocupavam na
vida dele.
141
V – Considerações finais
Escrever sobre este caso e entrar em contato com autores que me ajudaram a
pensar as experiências mais impactantes que tive com o menino propiciaram-me
vivências de descoberta e me fizeram retomar um período bastante inicial de minha
formação clínica. A partir das leituras que fiz a respeito do tema da contratransferência
vi se formar em mim novas maneiras de entender a Psicanálise, o que foi bastante rico.
Além disso, esta dissertação se desenvolveu, em muitos momentos, como forma de
possibilitar alguma inteligibilidade e contorno para um material clínico angustiante e de
difícil compreensão para mim. Mesmo porque, minha subjetividade foi um dos fatores
responsáveis pelos momentos mais impactantes no contato com Samuel. Mas se este
texto se propusesse a apenas uma reelaboração interna de conteúdos inconscientes
meus, ele não se justificaria como uma proposta acadêmica. Para isto, bastariam minha
análise pessoal e a supervisão.
Acredito que foi possível abordar e relatar um contato clínico intenso e extenso,
que pode ter eco para aqueles que lidam com o atendimento de crianças agressivas.
Seria arriscado - e talvez ingênuo - generalizar, a partir deste único caso, como é o
contato com um menino cuja demanda de atendimento é de tal ordem. Porém, relatos de
outros profissionais que trabalharam ou trabalham com crianças agressivas revelam
semelhanças quanto às dificuldades que surgem durante os atendimentos (KATZ, 1992;
KERNBERG e CHAZAN, 1992; SOUZA, 2001). Especialmente aquelas relacionadas
às tentativas de transgressão do setting, aos constantes sentimentos de humilhação por
que passa o terapeuta e, principalmente, ao ódio suscitado naquele que lida com um
menino hostil, ansioso e destrutivo
23
.
23
Souza, em comunicação pessoal, relatou a repetição de fenômenos semelhantes nos atendimentos de
estagiários que realizam ludoterapia com meninos considerados agressivos.
142
Os momentos em que reagi de forma agressiva e confusa foram os que mais me
chamaram a atenção quando o atendia. Na época, e mesmo algum tempo depois, minha
tendência era compreender aqueles episódios prioritariamente a partir do conceito de
identificação projetiva (KLEIN, 1946), como se algum estado estranho a mim fosse
criado em minha mente. Reconheço que tendia a compreender o conceito apenas com
esta conotação de criação e o como algo que me tocava em meus próprios aspectos
inconscientes, como passei a entendê-lo posteriormente. Assim, minha sensação ao
pensar meus movimentos agressivos durante algumas sessões era de que faltava algo a
ser dito e explorado. Foi quando me deparei com os artigos de Fédida (1986, 1988) que
abordavam a temática contratransferencial. Neles, havia uma nomeação que me fez
muito sentido para pensar as vivências de maior impacto no contato com o paciente: a
angústia contratransferencial vivida como uma sideração mortífera, em referência a
Freud (1919). As considerações de Fédida (1988, 1991) levavam em conta os conteúdos
inconscientes do analista nestas vivências de paralisação interna e isto me chamou muita
atenção. Para mim, foi importante utilizar tal abordagem para tratar das experiências
agressivas com Samuel, pois minhas reflexões iniciais levavam-me - defensivamente - a
responsabilizá-lo totalmente por minha hostilidade em relação a ele. Poder abordar a
questão considerando meus conflitos inconscientes, mas sem deixar de utilizar a
contratransferência como um instrumento de recepção à fala na sessão foi o que me
interessou nos textos de Fédida, colocando-me a necessidade de articular seu
pensamento com o dos autores que eu já utilizava anteriormente - Klein e Winnicott.
Feita a consideração sobre a minha participação inconsciente nas vivências mais
angustiantes dos encontros com o menino, considero ser possível pensar que era muito
freqüente, na dinâmica das relações estabelecidas com ele, o ataque à possibilidade de
linguagem (FÉDIDA, 1991). E isto levava a uma dificuldade grande nas sessões, pois
143
freqüentemente eu me via aprisionado pela força do processo transferencial, reagindo
defensivamente. E, em geral, as defesas eram agressivas. O que quase nos conduzia a
uma troca corporal violenta. Suportar e conter estes episódios foi o que possibilitou, aos
poucos, a abertura ao novo, ao desconhecido e à linguagem (VIANA, 1993).
Ainda que esta dissertação tivesse como objetivo um estudo sobre a
contratransferência e seus impasses em um atendimento específico, não posso deixar de
admitir que este trabalho também tinha uma finalidade pessoal de me ajudar na
elaboração de experiências clínicas bastante angustiantes e confusas. Mas será que um
trabalho acadêmico se presta a isso? A lógica da clínica, deste tipo de escuta e das
elaborações provenientes desta não é diferente da lógica de um texto acadêmico
24
? Qual
era o meu campo de trabalho aqui? O de um psicoterapeuta que procura entender e
trazer desdobramentos ao que ocorre em suas experiências de atendimento? Ou o de um
pesquisador que busca a compreensão de um fenômeno para produzir algum tipo de
conhecimento a partir daí? As palavras compreensão e entendimento têm sentidos
distintos quando referidas a um ou a outro destes campos. E reconheço que esta dupla
função do texto possa tê-lo deixado confuso em alguns momentos. Sem dúvida, o saber
na Psicanálise não deve estar separado da clínica, pois correria o risco de ser pura
abstração teórica ou estar em um campo que não seria seu, mas sim da Filosofia. Porém,
isso não quer dizer que o conhecimento que advém da Psicanálise tenha que estar
necessariamente atrelado a um caso clínico específico. O conhecimento estaria em
relação com esta atividade de linguagem (FÉDIDA, 1991) que se deixa surpreender a
partir dos ecos da clínica e do contato com o paciente. Ou seja, estaria relacionado com
as interrogações e questionamentos que surgem no terapeuta a partir do contato com o
outro. Neste sentido, acredito que a tarefa de pesquisa neste campo - psicanalítico - seja,
24
As observações que se seguem partiram de comentários feitos em comunicação pessoal pelo professor
Nelson da Silva Junior.
144
em si mesma, um empreendimento complexo e difícil. A formação e a maturidade do
analista provavelmente ajudam-no a trabalhar com uma clareza um pouco maior tais
questões. E acredito que o fato de eu ainda estar no início de minha formação, tanto
clínica quanto teórica, tenha sido um ponto de dificuldade para a elaboração deste texto.
A forma como me posicionei diante desta tarefa foi a de tentar me manter
aberto
25
a esta atividade de linguagem e de acolhimento e recepção ao desconhecido.
Neste sentido, reconhecer e relatar a minha participação - inconsciente ou não - nos
momentos em que fui mais agressivo com Samuel foi de grande importância. Foi uma
maneira de me manter honesto tanto ao caso clínico quanto ao texto que era escrito.
Reconheço nisto também, os reflexos de minha própria análise, tanto ao abordar minha
agressividade quanto a esta - de certa forma - exigência em ser verdadeiro comigo
mesmo.
Porém, como já disse, minha formação teórica e clínica ainda estão em seu início
e esta procura em ser verdadeiro com o que sou, com aquilo que me faz sentido, levou-
me a leituras de autores também com produções bastante distintas entre si. Não foi
aleatório o fato de escolher os textos de Klein, Winnicott e Fédida, mas sim porque as
teorizações deles eram importantes para pensar e elaborar minhas questões provenientes
da clínica. Os dois primeiros porque trabalharam a temática da psicoterapia de crianças
e a temática da agressividade. E o último por nomear e abordar de forma que me fazia
muito sentido a angústia vivida como uma sideração mortífera experimentada pelo
terapeuta no contato com alguns pacientes. O encontro destes autores nesta dissertação
delimitou em certa medida a liberdade em trabalhar com suas teorias, dado que não
cheguei a explorar mais profundamente as contribuições de cada um, prendendo-me às
articulações possíveis entre eles. Assim, a utilização teórica destes referenciais ficou
atrelada aos pontos de intersecções e não aos inúmeros desdobramentos internos de cada
25
Ainda que esta seja uma situação ideal.
145
uma das teorizações. Um preço a pagar por assumir um posicionamento diante daquilo
que pretendi investigar, mas que me trouxe novas formas de experienciar a Psicanálise.
146
VI – Conclusão
No processo ludoterápico com Samuel eram freqüentes os momentos em que a
linguagem era atacada e eu perdia minhas possibilidades de ressonância, vendo-me
angustiado e confuso, sem saber o que fazer ou reagindo de forma agressiva. É provável
que estas vivências estivessem relacionadas com a intensidade do processo
transferencial e também com o desdobramento de meus conflitos inconscientes, atuantes
durante as sessões, sendo aprisionado por eles. Foi possível reconhecer que, não a
utilização de mecanismos de defesa primitivos por parte do paciente eram fatores
determinantes para desencadear angústias mais intensas, mas também foi fundamental a
percepção de que minha subjetividade estava implícita neste processo. Isto leva a
constatar a importância que vem a ter a supervisão clínica e a análise pessoal daqueles
que pretendam trabalhar com meninos cuja queixa esteja relacionada à agressividade.
Poderia se supor que as dificuldades relatadas por colegas profissionais a
respeito do atendimento com meninos considerados agressivos estejam relacionadas a
uma ruptura da linguagem e da capacidade contratransferencial, em função de uma
demanda destes garotos para que a linguagem seja criada a partir do ponto em que ficou
impossibilitada de existir. Seria interessante se estas suposições pudessem suscitar
outros trabalhos relativos ao tema, pois o que pude deixar como contribuição foi o relato
desta experiência e a análise de minhas reações com este menino específico.
É provável também que o ataque à linguagem no caso de Samuel - e talvez nos
de outros meninos considerados destrutivos e agressivos - esteja relacionado à
dificuldade de elaboração de angústias primitivas que o levaria a entrar em contato com
a tristeza. Ou seja, não é improvável que a destrutividade de Samuel e a conseqüente
interrupção da possibilidade de linguagem nas sessões estivessem relacionadas à
147
dificuldade de elaboração de lutos, da posição depressiva. O que por sua vez leva a
pensar em minhas reações defensivas diante dele. Quais lutos eu não conseguia elaborar
junto dele? Qual tristeza tentava evitar ou repudiar, dada a angústia que os encontros me
despertavam? Talvez aquela relacionada ao abandono e à solidão, tão característica da
vivência pessoal destes meninos!
148
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151
Anexo
Estamos realizando na Escola XXX um trabalho de atendimento a crianças de 8
a 12 anos, que apresentam algum tipo de dificuldade no desempenho de suas atividades
escolares, como também no relacionamento com os colegas ou professores, devido ao
fato de apresentarem comportamento de agressividade um pouco mais acentuado em
determinadas circunstâncias.
Nossa proposta de trabalho inclui um atendimento semanal da criança.
Para isto, precisamos da autorização dos pais ou responsáveis.
Também gostaríamos de conversar com os pais sobre seu filho, em horário a ser
combinado. Por favor, escreva neste mesmo papel o horário que seria possível para
vocês e encaminhem por meio de seu filho, para que possamos marcar de comum
acordo.
Agradecemos desde a atenção que recebermos e nos colocamos à disposição
para os esclarecimentos que julgarem necessários.
Atenciosamente,
Profa. Dra. Maria Abigail de Souza e Equipe.
Instituto de Psicologia – USP
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
____
AUTORIZAÇÃO
Autorizo meu
filho____________________________________________________a ser atendido
semanalmente na Escola Ibrahim Nobre, de acordo com a proposta acima detalhada. Os
resultados deste atendimento poderão ser utilizados para divulgação científica,
preservando o anonimato de sua participação.
__________________________________
Assinatura dos pais ou responsáveis
São Paulo,____de____ de_____.
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