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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
SOBRE O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO
E VICE-VERSA
Rafael Rocha Pansica
FLORIANÓPOLIS
2008
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
“SOBRE O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO E VICE-VERSA”
Rafael Rocha Pansica
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina,
sob a orientação do Prof. Dr. Márnio Teixeira-Pinto.
FLORIANÓPOLIS
2008
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“Olhou-me, zombaz, seus olhos muito perspectivos”
João Guimarães Rosa
Agradecimentos
“Os Outros: o melhor de mim sou Eles”
Manoel de Barros
(Livro sobre Nada, 1996)
Dívidas de vida
A vida não tem volta. No em tanto, ela não nos passa diante dos olhos, pra
gente correr atrás dela. Antes, ela há de vir-e-ver manca, desajeitada, um passo
fundo e outro diverso – à sim, atrás da gente... E um dia, obstinada como ela é, a
vida vai desabar sobre nós, cheiinha do que não somos. Para quando, é preciso,
apenas, que nos disponhamos, em cheio, sob sua mirada. Sim, o que a vida espera
da gente é a abertura do caminho – o alijamento de tudo o que obstrui este entre.
No meu caso, o clarear do trajeto, a aproximação do dia-Dia, passa pelo
convívio com uma porção nobre de gente que, perdoem-me o detalhe, amo sem
nenhum porém: à mamãe Eleuza, ao papai Pedro, ao mano Dudu, à mana Marcela
e ao Carrilho, à titia Detinha e com ela o Angelo – agradeço. Em especial, agradeço
àquele que me incutiu o gosto torto do caminho, pai de todos nós, inspirador
silencioso destas linhas e entrelinhas – meu querido Seo Firmino! E quem diria,
meu Deus? Ele é mesmo brasileiro. E ateu. Vovô, “força na careca!” Quero te ver de
novo na faculdade...
À todos vocês, em agradecimento, dedico esta dissertação.
Dádivas devidas
Um dom para o professor Márnio Teixeira-Pinto que, com agitação e
inquietação peculiares, aceitou orientar um projeto, e um autor, sempre à divagar,
quase pairando. Tal diferença, pode-se imaginar, fazia de nossos encontros
ocasiões não destituídas de alguma graça. Melhor assim, afinal, não há
antropologia sem tal e qual. Agradeço-lhe pela confiança, pela liberdade e,
principalmente, pela antropologia, tão provocativa quanto fundamental.
Um dom ao professor Oscar Calavia Sáez que, senão no papel, na prática foi
o co-orientador dessa dissertação: sempre acessível e solícito, leu, comentou e
criticou alguns esboços desse trabalho – auxílio decisivo para o rumo trilhado por
esta dissertação. Agradeço-lhe pelas aulas, sempre instigantes, e pela generosa
parceria.
Um dom ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC e
aos professores que conheci, e com quem muito aprendi: Antonella Tassinari,
Filipe Verde, Miriam Grossi e Miriam Hartung. Em especial, agradeço ao xará
Menezes Bastos, a quem tenho em grande estima, sobretudo pela competência e
elegância com que lida com o ofício, e os ossos, antropológicos.
Um dom para América e Carlos; Cadu; Camilinha Antonino (que sabe
quando aniversariar); Camilinha de Caux (pelo franco apoio); para a querida
Clarissa; para Elias, Érica e Everton (parceiros ilustres da refinada arte do buteco);
para Edite; para Frank, Brasilino e Paulo (irmãos de som); Jake, Marcelo, Marcos,
Martina (em campo, sempre Ahlert!), Maya, Rubinho Caixeta, Sandra Rúbia, Tales,
Tiago, Val e para a querida Vivi Kraieski – vocês fazem à diferença.
Um dom aos mestres Claude Lévi-Strauss, Eduardo Viveiros de Castro e
Tânia Stolze Lima, a quem devo muito mais que a matéria deste trabalho, a saber, a
própria antropologia como vocação.
Um dom ao CNPq, pelo apoio necessário.
Um dom ao leitor, a quem ofereço este trabalho.
Resumo
Composta de três partes, esta dissertação versa sobre o perspectivismo ameríndio.
A primeira parte apresenta o argumento de Eduardo Viveiros de Castro e Tânia
Stolze Lima. Em seguida empreende-se uma análise etnograficamente motivada do
argumento desses autores para então, na última parte, propormos algumas
hipóteses de trabalho referentes a uma ‘estrutura relacional perspectivista’.
Abstract
Composed of three parts, this dissertation deals with the Amerindian
perspectivism. The first part presents the argument by Eduardo Viveiros de Castro
and Tânia Stolze Lima. Afterwards, an ethnographical analysis of this argument is
performed. Finally, some hypotheses on
a 'perspectivist relational structure’ are
proposed.
Sumário
Introdução
_____________________________________________ 10
Capítulo
1 A proposta do perspectivismo ____________________ 12
1) Tânia Stolze Lima e a proposta do perspectivismo yudjá ............................ 12
2) Eduardo Viveiros de Castro e a proposta do perspectivismo ameríndio ..... 20
3) Corpo e alma ................................................................................................. 28
Capítulo 2 Análises e questões _____________________________ 34
1) Multinaturalismo .......................................................................................... 34
1.1) Eu
e Outro .............................................................................................. 38
1.2) Estatuto e status .................................................................................... 44
2) Ponto de vista ................................................................................................ 48
2.1)
A história do conceito ........................................................................... 49
2.2) Dois exemplos
...................................................................................... 56
3) Dívidas e reparações .................................................................................... 64
4) Prefácio ao Capítulo 3 .................................................................................. 69
Capítulo 3 – Hipóteses de trabalho ___________________________ 74
1) Entre pontos de vista ................................................................................... 74
1.1) Troca de perspectivas ............................................................................ 75
1.2) Síntese disjuntiva .................................................................................. 77
2) Entre relações ................................................................................................. 89
2.1)
Relações genealógicas: o contínuo e o discreto ..................................... 90
2.2) Do contínuo ao discreto ....................................................................... 101
2.3)
Do discreto ao contínuo ...................................................................... 109
3) Estrutura relacional perspectivista .............................................................. 116
Referência Bibliográfica __________________________________ 134
Introdução
“Aqui até cobra eremisa, usa touca, urina na frauda.
Na frente do perigo bugio bebe gemada.
Periquitos conversam baixo”
Manoel de Barros
(O livro das ignorãças, 1993)
Esta dissertação versa sobre o perspectivismo ameríndio, ou seja, sobre a
proposta desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima acerca
do complexo etnográfico ameríndio referente, sobretudo, às relações entre
humanos (índios) e não-humanos (principalmente animais e espíritos). Para tanto,
organizamos nossos esforços em três movimentos.
No primeiro capítulo nos dedicamos a apresentar o argumento do
perspectivismo ameríndio proposto por Viveiros de Castro e Lima. O argumento
será exposto através das considerações que seus autores entretêm acerca dos
princípios do relativismo cultural, da versão do animismo proposta por Descola, da
noção de reciprocidade de perspectivas anunciada por Lévi-Strauss e, finalmente,
do material etnográfico ameríndio sobre a relação entre corpo e alma.
No segundo capítulo analisamos os conceitos de multinaturalismo e de
ponto de vista a partir de algumas das etnografias que serviram de fundamentação
para a proposta do perspectivismo ameríndio. A escolha das etnografias já aponta a
linha de nossos comentários: ao invés de analisarmos as etnografias que não fazem
parte do conjunto daquelas que fundamentam o argumento de Viveiros de Castro e
Lima – buscando, por exemplo, mostrar se as teses do perspectivismo se aplicariam
ou não à tais regiões analisadas –, trabalhamos com as próprias etnografias que
10
serviram de base ao argumento, empreendendo, assim, uma crítica perspectivista
de alguns pontos do perspectivismo. Nossos comentários incidem menos sobre a
amplitude da tese, que sobre seu argumento.
Estes comentários desembocarão no capítulo três, no qual apresentamos
algumas hipóteses referentes a uma “estrutura relacional perspectivista”. Partindo
de uma comparação mais ou menos livre entre uma porção de relatos indígenas
acerca de relações intersubjetivas, propomos abordar o perspectivismo ameríndio
através do conceito de estrutura, antes que do conceito de ponto de vista. Esta
proposta parte de uma interpretação etnograficamente motivada do par conceitual
lévi-straussiano contínuo/ discreto – interpretação que acabará por se afastar da
leitura, inspirada em Deleuze e Guattari, do perspectivismo ameríndio como
síntese disjuntiva. Sublinhemos, aqui, com força, que não se trata, de maneira
alguma, de oferecer respostas definitivas: nosso intuito, ao propor estas hipóteses,
é o de fomentar as discussões acerca do tema do perspectivismo. Enfim, trata-se,
do começo ao fim, de um ensaio no sentido estrito do termo: “uma prosa que versa
sobre um tema específico, sem esgotá-lo, reunido idéias e dados de outros autores,
de forma a ressaltar certas articulações ainda pouco exploradas” (Fausto 2002: 07).
Nota: As notas que consideramos mais importantes foram inseridas no corpo do
texto, e formatadas do presente modo. Esta maneira de apresentar o texto,
entremeado-o por adendos que facilitem nossa argumentação ou que nos pareçam
mais importantes para anotá-los no pé da página, nos pareceu interessante: ela segue
a sugestão que foi levada à cabo, por exemplo, por Viveiros de Castro em A
inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia (2002).
11
Capítulo 1 – A proposta do perspectivismo
“Mas o que está acontecendo no Brasil é formidável! Algo de
praticamente inédito! Quando conheci o Brasil o que era a
etnologia? Eram velhos eruditos de gabinete que se
debruçavam sobre a filologia tupi; era isso e nada mais. E
agora vemos uma das escolas mais brilhantes da atualidade.”
Claude Lévi-Strauss (Entrevista, 1998)
1) Tânia Stolze Lima e a proposta do perspectivismo yudjá
Em 1996, na mesma edição da revista Mana, são publicados os dois
primeiros estudos sobre o perspectivismo indígena. O primeiro artigo da edição é
de Tânia Stolze Lima e se intitula “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o
perspectivismo em uma cosmologia tupi”
1
. O texto trata do regime de
funcionamento da noção yudjá de ponto de vista através da análise etnográfica da
caça dos porcos. A caça se revela estratégica por descrever um tipo agonístico de
encontro entre pontos de vista: de um lado o ponto de vista dos caçadores yudjá, de
outro o ponto de vista dos porcos:
“Os porcos vivem em comunidades divididas em famílias e
organizadas em torno de um chefe dotado de poder xamânico.
Habitam aldeias subterrâneas e são produtores de cauim, o qual, na
perspectiva humana, nada mais é que uma argila finíssima,
conforme me contou uma mulher que sonhou com uma aldeia de
porcos em cujo porto ela e eu tomávamos banho, até que
descobrimos que estávamos atoladas em uma lama da qual os
porcos diziam ser, justamente, mandioca puba” (Lima 1996: 22-
23)
2
.
1
O segundo artigo é de Eduardo Viveiros de Castro e intitula-se “Os pronomes cosmológicos e o
perspectivismo ameríndio”. Trataremos dele adiante.
2
No capitulo seguinte retomaremos esse mesmo trecho para uma análise sobre as dinâmicas
intersubjetivas do perspectivismo.
12
A questão do ponto de vista dos porcos parecia remontar a discussão à noção
de animismo que, naquele momento, havia sido recuperada por Philippe Descola
(1992) em um estudo comparativo de grande escopo sobre “modos de objetivação
da natureza”. O autor, então, tomava o animismo como um desses modos de
objetivação, presente entre as sociedades que pensam as interações entre os
humanos e as espécies naturais através do modelo das relações sociais: as
sociedades ameríndias, por exemplo, seriam animistas na medida em que
apreendem o meio natural a partir da utilização de categorias elementares da vida
social, em especial as categorias de consangüinidade e de afinidade. Ponto
importante, o argumento considera que esse modo de objetivação implica a
atribuição de características humanas às espécies naturais – o que justificava a
retomada do termo animismo.
O artigo de Lima não ancora sua análise nesses termos. A humanidade dos
porcos não a orientou para uma investigação sobre o modo yudjá de apreensão do
meio natural, mas, antes, para o modo yudjá de se conceitualizar as noções de
apreensão e de natureza. Há uma diferença entre os respectivos projetos: enquanto
Descola toma a humanidade dos porcos como o objeto de sua explicação, e como
um índice que lhe permitiria classificar a sociedade no modo de objetivação
anímico, Lima a apresenta como um pressuposto etnográfico, um dado nativo que
se encontra, disperso, em diversas manifestações do pensamento e da socialidade
yudjá – ou seja, um ponto de partida, antes que um ponto de chegada de seu
argumento. Tal diferença nos ajuda a compreender as críticas que a autora
endereça à maneira como o idioma animista entende a questão da humanidade dos
animais. De fato, o material etnográfico de Lima não sustenta a idéia de que a
13
humanidade dos porcos seja projetada pelos Yudjá. Sobre este ponto, cito: “uma
proposição como ‘os [Yudjá]
3
pensam que os animais são humanos’ [...] é falsa,
etnograficamente falando. Eles dizem que ‘para si mesmos, os animais são
humanos’” (Lima 1996: 26). Ao afirmar que os animais tomam a si mesmos como
humanos, os Yudjá estão dizendo que a humanidade dos animais é algo que se dá
entre os próprios animais, independentemente do que nós, os Yudjá, possamos
pensar a este respeito. E o que os Yudjá pensam a este respeito é algo como: “os
animais estão longe de serem humanos, mas o fato de se pensarem assim torna a
vida humana muito perigosa” (Lima 1996: 27).
Pode-se perceber, portanto, como a etnografia yudjá problematiza o idioma
animista. Primeiramente, ela não permite afirmar que a humanidade dos animais
seja projetada pelos Yudjá, pois são os próprios animais que se considerariam
humanos, e não os índios: os Yudjá os vêem como animais. Em segundo lugar, o
fato da humanidade dos animais ser alvo de uma discórdia yudjá coloca em questão
um corolário da leitura animista, a saber, que a humanidade dos animais
aproxima-os dos humanos. Lima nos chama atenção para esse ponto: o sentido da
relação entre os animais e os Yudjá não se constitui e nem se encerra na
humanidade compartilhada por ambos: este fundo comum não parece estar em
3
Em seu último livro (2005), Lima nos relata os motivos pelos quais passou a utilizar o nome Yudjá
(em lugar de Juruna) para se referir ao povo com quem trabalha: “Esse povo assumia até
recentemente dois etnônimos, um de verdade e outro de mentira: Yudjá e Yuruna (Juruna). [...] Há
alguns anos, com a criação de uma escola indígena em Tubatuba, e a ortografização da língua, o
nome de verdade impôs-se rapidamente entre todas as pessoas. É por isso que esta etnografia trata
de um povo chamado Yudjá. É de minha responsabilidade a substituição do etnônimo Juruna por
Yudjá em todas as falas das pessoas inseridas nesse livro” (Lima 2005: 15-16). Por essa razão – e
procurando evitar confusões –, substituímos o etnônimo Juruna por Yudjá em todos trechos de
Lima citados ao longo desta dissertação. Estas substituições serão indicadas, sempre, entre
colchetes.
14
função de uma identificação, mas de uma diferenciação
4
entre as espécies viventes
– afinal, se os porcos se vêem como humanos, os Yudjá os tomam, imediatamente,
por porcos. Ora, tratava-se então de propor uma maneira mais apropriada de
abordar essas questões, e é justamente aqui que Lima sugere a noção de ponto de
vista.
A noção de ponto de vista parecia remontar tal discussão ao aparato analítico
do relativismo cultural. Com efeito, a relação entre os Yudjá e os animais parece
mesmo descrever uma situação onde um mesmo objeto é abordado de diferentes
modos – como naquele sonho da mulher yudjá (supra citado) em que os porcos
vêem mandioca pubando onde as banhistas vêem argila finíssima. A questão,
portanto, era saber se este tipo de encontro pode ser descrito pelo relativismo
cultural. E apesar de, à primeira vista, parecer uma aproximação provável, Lima
descarta tal possibilidade.
O relativismo expressa um jogo epistemológico em que a realidade do objeto
é anterior às abordagens culturais: dado a priori, o objeto é independente e, de
certa forma, indiferente às apreensões que lhe são dirigidas – ou seja, o objeto
mirado é, antes de tudo, coisa em si. Elemento pivotal deste jogo epistemológico, o
objeto não só possibilita a existência das abordagens culturais, como condiciona o
espaço de relação entre elas, ora justapondo-as enquanto pontos de vista, ora
sobrepondo-as conforme as aproximações diferenciais que as abordagens podem
manter em relação ao sentido real do objeto. Posto assim, uma leitura relativista do
relato onírico referido deveria poder fundamentar os diferentes pontos de vista a
4
“Acredito, então, que forjar uma caracterização geral da cosmologia [yudjá] mediante noções como
antropocentrismo e animismo é perder o essencial, porque ali a relação de identidade entre
humanidade e animalidade é dada primeiramente como condição para se pensar a diferença” (Lima
1999: 45-46).
15
partir do universo dado das coisas em si. No entanto, como Lima demonstra em
sua análise da caça dos porcos, a cosmologia yudjá parece se constituir
completamente alheia a este universo.
A caça mostra-se uma empresa muito perigosa. Trata-se de um encontro
agonístico entre os porcos do mato e os caçadores yudjá, caracterizado como uma
disputa entre pontos de vista. Os Yudjá vêem os porcos como presas e tencionam
caçá-los, mas os porcos, por sua vez, vêem os Yudjá como humanos e procuram
capturá-los como afins potenciais – ou seja, enquanto os Yudjá encaram o encontro
como uma caçada, os porcos encaram-no como uma oportunidade de angariar
parentes. Assim posto, o desfecho deste embate possui apenas duas possibilidades:
um homem yudjá, por exemplo, ou retornará à aldeia como um caçador trazendo
suas presas, ou então conhecerá a aldeia dos humanos (porcos) como um de seus
afins. O ponto importante, aqui, está no fato de que este embate de perspectivas
não remete a nenhum termo mediador que seja apto a determinar objetivamente a
verdade de tal encontro. De fato, a querela se resolve na própria interação, visto
que a relação caminha na direção de uma das duas perspectivas – aqui, não há
nada além dos pontos de vista:
“A caça dos porcos não põe em cena uma mesma realidade vista por
dois sujeitos, conforme nosso modelo relativista. Pelo contrário, ela
põe um acontecimento para os humanos e um acontecimento para
os porcos. Em outras palavras, ela se desdobra em dois
acontecimentos paralelos (melhor dizendo paralelísticos), [...] que
são também correlativos, e que não remetem a nenhuma realidade
objetiva ou externa, equiparável ao que entendemos por natureza.
Um é referente do outro. Diremos, pois, que a caça apresenta duas
dimensões, dadas como dois acontecimentos simultâneos que se
refletem um no outro” (Lima 1996: 35)
16
O embate não é um acontecimento visto por duas perspectivas diferentes, mas a
própria relação agonística entre os pontos de vista. A noção relativista do objeto
como coisa em si não tem nenhum sentido “nesse mundo marcado pela variação
dos pontos de vista” (Lima 1996: 33).
Não se tratando aqui de um universo de coisas em si, entende-se porque o
relativismo cultural não fornece um instrumental analítico satisfatório para se
compreender a dinâmica desse embate. Na verdade, o fato deste encontro se
desdobrar em dois pontos de vista correlativos, que não remetem a nenhum
referente externo, direciona formalmente o argumento àquele paradoxo do
relativismo cultural analisado por Lévi-Strauss em “Raça e história” (1950). Este
paradoxo é ilustrado por um famoso encontro dado nas Antilhas do século XVI, em
que espanhóis e índios, mutuamente desconfiados acerca da humanidade (um) do
outro, se mobilizam, de modos distintos, em uma investigação desta questão: para
os espanhóis tratava-se de um questionamento acerca da possibilidade dos índios
possuírem uma alma, enquanto que os índios se dedicavam a afogar os espanhóis
para verificar se seus corpos eram ou não humanos, ou seja, se estavam ou não
sujeitos à putrefação:
“Esta anedota, simultaneamente barroca e trágica, ilustra bem o
paradoxo do relativismo cultural [...]: é na medida em que
pretendemos estabelecer uma discriminação entre as culturas e os
costumes, que nos identificamos mais completamente com aqueles
que tentamos negar. Recusando a humanidade àqueles que surgem
como os mais ‘selvagens’ ou ‘bárbaros’ dos seus representantes,
mais não fazemos que copiar-lhes suas atitudes típicas. O bárbaro é
em primeiro lugar o homem que crê na barbárie” (Lévi-Strauss
1976: 60)
17
Para o autor, procurar se diferenciar dos outros tomando-os como bárbaros é uma
atitude, entre outras coisas, paradoxal, pois eles, como nós, tomam-se como
civilizados, tomando os outros (o que nos inclui) como bárbaros. A noção de
humanidade, sem distinção de raça e cultura, tem como fundamento paradoxal
essa atitude generalizada de recusa em ver os outros como vemos a nós mesmos.
Ora, uma lógica semelhante parece presidir a cosmologia yudjá: todas as pessoas se
apreendem sob a forma da cultura, mas, a princípio, se recusam apreender os
outros como apreendem a si mesmos
5
. A reciprocidade de perspectivas do
argumento lévi-straussiano ganha, na análise do aparato etnográfico referente às
concepções yudjá acerca da ontologia do sujeito, uma variação ameríndia proposta
por Lima. Segundo a autora, entre os Yudjá “a duplicidade é a lei de todo ser e de
todo acontecimento” (Lima 1996: 35). As subjetividades que compõem o cosmos
são constituídas, assim, por dois princípios distintos: o primeiro deles se refere ao
pensamento reflexivo e à consciência de si, o outro é marcado por valores ligados à
alteridade (como nas apreensões da vida onírica e do xamanismo). Pois bem.
Analisando o encontro entre os caçadores yudjá e os porcos do mato, Lima sugere –
se bem a interpreto – que estes princípios subjetivos, constituintes tanto dos
caçadores quanto dos porcos, acabam funcionando, no encontro em questão (e,
talvez, nas relações intersubjetivas em geral), separadamente como agente e
paciente: enquanto um dos princípios se presta a ver o interlocutor, o outro se dá a
ver pelo interlocutor. A dinâmica do encontro, assim, se efetua como uma
apreensão cruzada destes princípios subjetivos:
5
É bem verdade que, na caçada, enquanto os Yudjá vêem os porcos como ‘porcos’, estes vêem os
Yudjá como ‘gente’ (ou seja, como vêem a si mesmos). Mas “no quadro do xamanismo e do ponto de
vista dos porcos, os [Yudjá] representam espíritos” (Lima 1996: 26).
18
“Esses [princípios] operam por intermédio de uma noção, o ponto
de vista, que articula tanto as duas dimensões da experiência
humana (se sonhei com porcos, verei inimigos na vida desperta)
quanto
a dimensão sensível de um com a dimensão espiritual do
outro” (Lima 1996: 36, grifos adicionados).
O princípio subjetivo yudjá que ocupa a posição de agente irá apreender o princípio
subjetivo do porco que se encontra na posição de paciente (vendo-o como caça), ao
passo que o princípio subjetivo do porco em posição de agente irá apreender o
princípio subjetivo yudjá que se encontra na posição de paciente (vendo-o como
afim). O embate, portanto, está em saber qual dessas relações agente/ paciente
prevalecerá ao fim do encontro: se os caçadores yudjá permanecerem vendo os
porcos como caça dá-se uma relação, digamos, natural com os porcos (o princípio
subjetivo yudjá acaba apreendendo aquele princípio subjetivo dos porcos em
posição de paciente); mas se eles passarem a ver os porcos como afins dá-se uma
relação, digamos, sobrenatural
6
com eles (o princípio subjetivo dos porcos acaba
apreendendo aquele princípio subjetivo yudjá em posição de paciente). Enfim, o
perigo envolvido na possibilidade de um caçador passar a ver os porcos como afins
parece se aproximar do perigo envolvido na possibilidade de um índio, nas Antilhas
quinhentistas, começar a se indagar a respeito da qualidade cristã de sua alma,
passando a ver sua vida como bárbara, e a dos espanhóis como civilizada
7
– de todo
6
Ao dizer que a relação dos Yudjá com os porcos é natural (quando os vêem como porcos) ou
sobrenatural (quando os vêem como gente) refiro-me à problematização que a autora empreende à
dicotomia Natureza/ Sobrenatureza através da noção de reciprocidade de perspectivas.
7
A “inconstância” da alma ameríndia parece não se limitar às conversões cristãs tentadas por
espanhóis e portugueses na América à época da invasão européia. Nos capítulos seguintes
analisaremos um mito yaminawa cujo sentido muito se aproxima do da caça yudjá dos porcos: no
mito em questão, um caçador yaminawa, não conseguindo tomar os porcos como presa, se deixa
levar por eles, passando a viver na aldeia dos porcos. Lá o caçador vive muito tempo, chegando até a
se casar com uma moça da aldeia. No entanto, em certa ocasião é reconhecido por seus antigos
parentes Yaminawa (quando estes empreendiam uma caçada de porcos). Então ele volta a viver com
19
modo, o ponto que nos dedicamos a destacar é o seguinte: se o perspectivismo
yudjá se afasta do animismo e do relativismo cultural, aproxima-se
deliberadamente do jogo de perspectivas proposto
por Lévi-Strauss em trabalhos
como “Raça e História” e O pensamento selvagem. Sobre a dívida do argumento de
Lima para com o trabalho de Lévi-Strauss, cito o seguinte trecho:
“Esses fatos evocam diretamente a noção de ‘reciprocidade de
perspectivas’ (“o homem e o mundo se espelham um no outro”)
com que Lévi-Strauss argumenta em favor da superação da velha
dicotomia entre religião e magia [...], sustentando que o homem se
defronta com o mundo, tomando a ambos e no mesmo golpe como
sujeitos e objetos (Lévi-Strauss, O pensamento selvagem). É nesse
contexto teórico que eu situaria a noção de ponto de vista” (Lima
1996: 29).
A reciprocidade de perspectivas funciona, no argumento de Lima, para
problematizar a dicotomia entre Natureza e Sobrenatureza – ao tomar os Yudjá e
as outras subjetividades, num só golpe, como sujeitos e ‘objetos’.
2) Eduardo Viveiros de Castro e a proposta do perspectivismo
ameríndio
O segundo texto sobre o perspectivismo publicado na revista Mana (1996) é
o artigo de Eduardo Viveiros de Castro intitulado “Os pronomes cosmológicos e o
perspectivismo ameríndio”. No que se refere ao tratamento etnográfico, o estilo
analítico deste texto difere daquele do artigo de Lima: enquanto este se detém
seus conterrâneos, ajudando-os na caçada de porcos. No final da narrativa, o caçador acaba
morrendo por participar da uma refeição em que se serviam os porcos caçados – o que mostra que
se a dita conversão é inconstante (visto que o caçador que se transforma em porcos retorna, mais
tarde, a ser um Yaminawa), não deixa de ser perigosa. Retornaremos a esse mito adiante (ver
Calavia Sáez 2001, 2006).
20
sobre os detalhes de um evento específico do material etnográfico yudjá (a caçada
dos porcos do mato), aquele recolhe nas mais diversas etnografias americanistas
um material considerável, sem, contudo, analisá-lo detalhadamente. Apesar dessa
diferença, os artigos apresentam muitos pontos em comum
8
– a começar pelo
debate com Descola:
“O leitor terá advertido que meu ‘perspectivismo’ evoca a noção de
‘animismo’, recentemente recuperada por Descola (1992), para
designar um modo de articulação entre as séries natural e social
que seria o simétrico e inverso do totemismo. Afirmando que toda a
conceitualização dos não-humanos é sempre referida ao domínio
social, o autor distingue três modos de objetivação da natureza: [o
totemismo, o animismo e o naturalismo]” (Viveiros de Castro 1996:
120)
Segundo Descola, o totemismo e o animismo constituem-se como modos
simétricos e inversos de objetivação: enquanto o primeiro articula as séries natural
e social através das relações do mundo natural, o segundo articula as séries através
das relações do mundo social – ou melhor, se no totemismo a organização social é
constituída a partir do entendimento que os grupos sociais têm das relações que as
espécies naturais mantêm entre si, no animismo a organização das espécies
naturais é entendida a partir do modo como os humanos constituem suas relações.
O naturalismo, por sua vez e diferentemente dos outros dois modos, não articula as
duas séries: aqui opera-se uma oposição ontológica, uma relação descontínua,
entre natureza e sociedade.
Esta proposta é alvo de alguns comentários de Viveiros de Castro. Ao se
debruçar sobre a natureza das relações que constituem cada um desses modos de
8
Os artigos em questão são redigidos a partir de um mesmo diálogo empreendido por Tânia Stolze
Lima e Eduardo Viveiros de Castro – como eles próprios registram em seus textos.
21
objetivação, o autor argumenta que o totemismo, modo classificatório, é fenômeno
heterogêneo àquele do animismo e do naturalismo, dados como cosmologias:
enquanto o totemismo é uma estrutura de correlações lógicas e metafóricas entre
séries descontínuas, o animismo e o naturalismo se constituem como ontologias
diferenciadas segundo as relações que, um e outro, estabelecem entre natureza e
cultura. Assim, se em nosso naturalismo a cultura depende lógica e ontológica-
mente da natureza para se definir – sem que a natureza (pólo não-marcado)
dependa da cultura para tanto –, no animismo é a natureza que depende da
cultura, embora o contrário não seja verdadeiro
9
. Ora, esta leitura do argumento
proposto por Descola não consiste, apenas, em uma troca do totemismo pelo
naturalismo: se para Viveiros de Castro a inversão está na relação entre o animismo
e o naturalismo é porque eles se constituem, em seu argumento, como estruturas
ontológicas e hierárquicas, diferentemente do que foi proposto por Descola, para
quem a inversão está dada entre o animismo e o totemismo, modos lógicos e
simétricos de objetivação.
Mas o ponto mais importante no debate com Philippe Descola diz respeito,
especificamente, à questão do animismo. Por um lado, Viveiros de Castro dirige-lhe
a mesma crítica que Lima: “é de fato possível definir o animismo como uma
projeção de diferenças e qualidades internas ao mundo humano sobre o mundo
não-humano?” (Viveiros de Castro 1996: 122). Tomar o animismo ameríndio como
9
“Com efeito, se no modo anímico a distinção ‘natureza/cultura’ é interna ao mundo social,
humanos e animais estando imersos no mesmo meio sociocósmico (e nesse sentido a ‘natureza’ é
parte de uma socialidade englobante), na ontologia naturalista a distinção ‘natureza/cultura’ é
interna à natureza (e neste sentido a sociedade humana é um fenômeno natural entre outros). O
animismo tem a ‘sociedade’ como pólo não-marcado, o naturalismo, a ‘natureza’: esses pólos
funcionam, respectiva e contrastivamente, como a dimensão do universal em cada modo” (Viveiros
de Castro 1996: 121).
22
uma
projeção do mundo humano consiste em tratar estas cosmologias pela clave da
crença. Ora, o idioma da crença não parece ser aplicável ao universo etnográfico em
questão... “Não cremos: temos medo!” – estas são palavras de um xamã esquimó
(ver Lima 1996: 26) que poderiam ser atribuídas, por exemplo, aos caçadores yudjá
de porcos. Aqui, no entanto, não irei me aprofundar nas questões espinhosas do
idioma da crença para compreender a recusa do xamã esquimó (tarefa que
ultrapassa os limites propostos por esta dissertação, e os recursos de seu autor);
observo apenas que se a natureza da crença está vinculada à eficácia simbólica das
representações, seu idioma mostra-se inadequado para tratar das etnografias
ameríndias, visto que a economia nativa da apreensão se encontra mais próxima do
conceito de percepto que do conceito de representação: quando um caçador yudjá
vê os porcos como ‘porcos’, ou como ‘afins, trata-se sempre de um tipo específico
de apreensão: “este ver como se refere literalmente a perceptos, e não
analogicamente a conceitos” (Viveiros de Castro 1996: 117). Enfim, às críticas
endereçadas ao animismo como projeção articula-se um outro ponto crítico – este
independente do debate com Descola –, qual seja, a recusa do tratamento do
material etnográfico ameríndio a partir do aparato do relativismo cultural, que
pressupõe um universo de coisas em si abordadas por uma infinidade de
representações culturais:
“Os pressupostos e conseqüências [do perspectivismo] são
irredutíveis (como mostrou Lima) ao nosso conceito corrente de
relativismo, que a primeira vista parecem evocar. [...] Tal
resistência do perspectivismo ameríndio aos nossos debates
epistemológicos põe sob suspeita a robustez e a conseqüente
transportabilidade das partições ontológicas que os alimentam”
(Viveiros de Castro 1996: 115)
23
Retornaremos à questão do relativismo logo adiante. No momento observemos que
se, por um lado, Viveiros de Castro problematiza as propostas de Descola, por outro
não deixa de reter do trabalho do francês uma distinção fundamental para sua
proposição do perspectivismo, a saber, a distinção entre a espécie e a condição
humanas
10
: “o referencial comum entre todos os seres da natureza não é o homem
enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição” (Descola apud Viveiros
de Castro 1996: 119)
11
. É a partir daí que Viveiros de Castro retoma o trabalho de
Lévi-Strauss, no que se refere ao tema da reciprocidade de perceptivas (“Raça e
História”), para empreender uma crítica etnograficamente motivada da concepção
substancialista das categorias de Natureza e Cultura. Este momento do argumento
merece toda a nossa atenção.
O primeiro ponto destacado pelo autor diz respeito à contradição entre duas
imagens tradicionais que são caras às descrições deste campo etnológico: o
etnocentrismo e o animismo. O argumento pelo etnocentrismo ameríndio funda-se
na grande difusão de auto-etnônimos cujo significado é “os humanos verdadeiros”
(ver Lévi-Strauss 1976: 60). Ao entender que os predicados culturais da
10
No artigo em questão, Viveiros de Castro aborda a distinção entre a espécie e a condição humanas
citando o trabalho de Descola. Este, por sua vez, parece tomar esta distinção do trabalho de Tim
Ingold – que, salvo engano, foi quem a propôs: humanity (condição humana) e humankind (espécie
humana). Ver, por exemplo, Ingold 1995
11
A humanidade enquanto condição é um pressuposto do perspectivismo que, nesse sentido, é um
“corolário etno-epistemológico do animismo” (Viveiros de Castro 1996: 122). Mas se o trabalho de
Viveiros de Castro possui uma dívida em relação ao trabalho de Descola, o contrário também é
verdadeiro. Em Par-delà nature et culture (2006), o quadro de matrizes de identificação proposta
pelo autor soa diretamente tributária dos comentários de Viveiros de Castro acerca das relações
entre animismo e naturalismo. Neste livro de 2006, a distinção entre animismo, totemismo,
naturalismo e analogismo torna-se menos lógica (modo de objetivação) e mais ontológica (ou seja,
são tratadas como cosmologias). Ademais, neste livro o inverso do animismo já não é o totemismo,
mas o naturalismo – mudança proposta em uma argumentação que passa, necessariamente, pelas
relações de identidade/ alteridade entre corpo e alma (fisicalidade e interioridade) que, como se
sabe, caracterizam a proposta de Viveiros de Castro e Lima sobre o perspectivismo. Ver o quadro
das matrizes de identificação proposta por Descola (pp. 564) em:
http://www.college-de-
france.fr/media/anthrop/UPL31695_descola.pdf
24
humanidade se encerram na fronteira de seus grupos, os ameríndios estariam
imediatamente a definir seus estrangeiros como pertencentes ao domínio do
(sobre)natural, do extra-humano – donde se conclui que a distinção entre natureza
e cultura regeria, também, a apreensão ameríndia das relações sociais. Por outro
lado, e contraditoriamente, os índios americanos são ditos ser animistas, pois
estenderiam os predicados da humanidade muitos além das fronteiras da espécie,
tomando natureza e cultura como partes de um mesmo campo sociomórfico. Ou
seja: “ou os ameríndios são etnocentricamente avaros na extensão do conceito de
humanidade, e opõem ‘totemicamente’ natureza e cultura; ou eles são
cosmocêntricos e anímicos, e não professam tal distinção” (Viveiros de Castro
1996: 125). Ora, esta contradição é de suma importância para o autor, pois é contra
ela que a tese do perspectivismo ameríndio se constitui. Recusando-se a tomar o
etnocentrismo e o animismo como descrições mutuamente excludentes – visto que
ambas se fundamentam na mesma etnografia –, Viveiros de Castro propõe uma
espécie de síntese entre elas: (i) do etnocentrismo, o perspectivismo descarta a
avareza na extensão do conceito de humanidade, mas retém-lhe o caráter analítico
da distinção entre natureza e cultura; (ii) do animismo, o perspectivismo retém a
noção de um cosmocentrismo (da humanidade como condição) e descarta, à
primeira vista paradoxalmente, a idéia de uma indiferenciação entre natureza e
cultura
12
. A questão aqui, portanto, é como sintetizar o cosmocentrismo ameríndio
com a distinção pregnante, nessas cosmologias, entre as categorias de natureza e
12
“Penso que a solução para essas antinomias [etnocentrismo ou animismo?] não está em escolher
um lado [...]. Trata-se mais bem de mostrar que tanto a ‘tese’ quanto a ‘antítese’ são verdadeiras
(ambas correspondem a intuições etnográficas sólidas), mas que elas apreendem os mesmos
fenômenos sob aspectos distintos; e também de mostrar que ambas são falsas, por se referirem a
uma concepção substantivista das categorias de Natureza e Cultura (seja para afirmá-las ou para
negá-las) inaplicável às cosmologias ameríndias” (Viveiros de Castro 1996: 125).
25
cultura? Esta síntese é elegantemente operada através do conceito de ponto de
vista:
“A primeira coisa a se considerar é que as palavras ameríndias que
se costumam traduzir por ‘ser humano’, e que entram na
composição das autodesignações etnocêntricas, não denotam a
humanidade como espécie natural, mas a condição social de
pessoa, e, sobretudo quando modificadas por intensificadores do
tipo ‘de verdade’, ‘realmente’, funcionam (pragmática quando não
sintaticamente) menos como substantivos que como pronomes.
Elas indicam a posição de sujeito; são um marcador enunciativo,
não um nome. Longe de manifestarem um afunilamento semântico
do nome comum ao próprio (tomando ‘gente’ para nome da tribo),
essas palavras mostram o oposto, indo do substantivo ao
perspectivo (usando ‘gente’ como pronome coletivo ‘a gente’). Por
isso mesmo, as categorias indígenas de identidade coletiva têm
aquela enorme variabilidade contextual de escopo característica
dos pronomes, marcando contrastivamente desde a parentela
imediata de um Ego até todos os humanos, ou mesmo todos os
seres dotados de consciência; sua coagulação como ‘etnônimo’
parece ser, em larga medida, um artefato produzido no contexto da
interação com o etnógrafo. Não é tampouco por acaso que a
maioria dos etnônimos ameríndios que passaram para a literatura
não são autodesignações, mas nomes (freqüentemente pejorativos)
conferidos por outros povos:
a objetivação etnonímica incide
primordialmente sobre os outros, não sobre quem está em posição
de sujeito. Os etnônimos são nomes de terceiros, pertencem a
categoria do ‘eles’, não a categoria do ‘nós’” (Viveiros de Castro
1996: 125-126; grifos adicionados)
A natureza pronominal das autodesignações não indica outra coisa que a posição
de um sujeito, o ponto de vista de um agente. Ou seja, toda a espécie de seres capaz
de ver a si mesma como humana apresenta, por si, um ponto de vista: a afirmação
dos Yudjá de que os porcos do mato se vêem como humanos não se dá como
uma
projeção yudjá de sua
humanidade, mas como um reconhecimento yudjá da
subjetividade dos porcos – são os porcos que se vêem como humanos; os Yudjá os
vêem, justamente, como porcos. O ponto, aqui, é que através da natureza
pronominal das autodesignações, os predicados de humanidade deixam de ser
26
etnocentricamente projetados por uma espécie, dita mais humana que as outras,
para passar a se constituir como uma condição humana distribuída
eqüitativamente entre uma variedade de espécies viventes
13
. Pois bem: o
cosmocentrismo anímico dos ameríndios se dá através do princípio de subjetivação
implicado nestas autodesignações pronominais. Mas e a distinção natureza/
cultura?
Esta distinção se fundamenta a partir de uma diferença que pode ser vista,
no trecho supra citado, na relação entre as autodesignações e os etnônimos: os
porcos, por exemplo, se vêem como ‘humanos’ (autodesignação), mas são vistos
pelos Yudjá como ‘porcos’ (etnônimo). Autodesignações e etnônimos são índices de
perspectivas, pois se constituem como um par de apreensões assimétricas:
apreensão por mim e apreensão por outrem. É a esse jogo pronominal de
perspectivas (nós e eles) que Viveiros de Castro associa a distinção natureza/
cultura, distanciando-se, assim, daquelas abordagens que propõem uma concepção
substancialista desta distinção: no perspectivismo ameríndio, a cultura está
associada às autodesignações como princípio de subjetivação, e a natureza associa-
se aos etnônimos como modos de objetivação (vide
o trecho supra citado).
Por fim, observemos que a síntese perspectivista entre, por um lado, o
cosmocentrismo anímico e, por outro, a distinção etnocêntrica entre natureza e
cultura, passa pela reciprocidade de pontos de vista proposta por Lévi-Strauss em
seu argumento de “Raça e História”: assim como as culturas humanas tendem a
tomar a si mesmas como civilizadas e às outras culturas como não-civilizadas, no
13
“É por isso que termos como wari’ (Vilaça 1992), dene (McDonnell 1984) ou masa (Århem 1993)
significam gente, mas podem ser ditos por – e portanto ditos de – classes muito diferentes de seres;
ditos pelos humanos, denotam os seres humanos, mas ditos pelos queixadas, guaribas e castores,
eles se auto-referem aos queixadas, guaribas e castores” (Viveiros de Castro 1996: 126)
27
perspectivismo ameríndio os pontos de vista se tomam como humanos, vendo os
demais pontos de vista como não-humanos:
“Tipicamente, os humanos, em condições normais, vêem os
humanos como humanos, os animais como animais, e os espíritos
(se os vêem) como espíritos; já os animais (predadores) e os
espíritos vêem os humanos como animais (de presa), ao passo que
os animais (de presa) vêem os humanos como espíritos ou animais
(predadores). Em troca, os animais e os espíritos se vêem como
humanos: apreendem-se como (ou se tornam) antropomorfos
quando estão em suas casas ou aldeias, e experimentam seus
próprios hábitos sob a espécie da cultura – vêem seu alimento
como alimento humano (os jaguares vêem o sangue como cauim, os
mortos vêem os grilos como peixes, os urubus vêem os vermes da
carne podre como peixe assado, etc.), seus atributos corporais
(pelagem, plumas, garras, bicos, etc.) como adornos ou
instrumentos culturais, seu sistema social como organizado do
mesmo modo que as instituições humanas (com chefes, xamãs,
festas, ritos, etc.)” (Viveiros de Castro 1996: 117).
3) Corpo e alma
Vimos como as propostas de Lima e Viveiros de Castro se constituem através
de considerações acerca do animismo, do relativismo e da reciprocidade de
perspectivas lévi-straussiana. Falta-nos, no entanto, tratar de um importante
fundamento etnográfico da proposta perspectivista, a saber, aquele que diz respeito
à constituição ameríndia da ontológica do sujeito: a relação entre corpo e alma.
O argumento perspectivista parte, entre outros pontos, da observação nativa
(expressa em diversas etnografias do continente) de que, no cosmos, apenas os
sujeitos possuem corpo e alma. Entre os Wari’ da Amazônia meridional, por
exemplo, “se tudo tem um corpo, só os humanos – o que inclui os Wari’, os
inimigos e diversos animais – possuem alma” (Vilaça 2000: 59). Ora, se só os
28
humanos possuem alma, parece claro afirmar que o princípio subjetivo está
implicado nela. A alma, como condição humana, responde assim pela capacidade
de intencionalidade e consciência.
Frente ao fato de que todas as espécies de sujeitos são dotadas de alma,
porque, pergunta-se Viveiros de Castro, estas espécies não se tratam mutuamente
como sujeitos? Porque o perspectivismo? Bom, se a alma que compõe cada um dos
sujeitos é dada como princípio subjetivo, o corpo, que também os compõem,
responde pelos diferentes modos de atualização deste princípio, ou seja, pela
diferença de pontos de vista: “enquanto o corpo diferencia as espécies, a alma as
assemelha como humanas” (Vilaça 2000: 59). Sobre essa proposta, que articula a
identidade anímica à uma alteridade somática, Lima tece o seguinte comentário:
“Atingimos assim duas conclusões. Que a relação entre o humano e
o animal é marcada por uma contradição entre o mesmo e o outro:
a alteridade real do animal remete ao mesmo tempo à sua
identidade virtual. E que existe uma dicotomia muito clara entre as
disposições enraizadas no corpo e os atributos da alma” (Lima
1996: 29)
Partindo dessa contradição entre o mesmo e o outro, e de uma analogia com o
relativismo cultural, Viveiros de Castro propõe o conceito de multinaturalismo
para descrever o regime ontológico das sociocosmologias ameríndias: enquanto o
relativismo supõe uma diversidade de abordagens culturais incidentes sobre uma
Natureza una e total, o perspectivismo supõe uma unidade formal de abordagem (a
‘Cultura’) aplicada a partir de uma multiplicidade de corpos. Se o relativismo é
multiculturalista, o perspectivismo, ao propor uma epistemologia constante para
ontologias (‘naturezas’) variáveis, é multinaturalista.
29
*
No entanto, este modo de organizar o argumento – identidade
anímica
(locus do princípio subjetivo)/ alteridade somática (locus do ponto de vista, da
especificidade da apreensão) – encontra algumas dificuldades. Lima, por exemplo,
não pode sustentar, sem reservas, a idéia de uma identidade anímica inter-
específica na etnografia yudjá: é certo que ao observar que somente as
subjetividades possuem alma, “os [Yudjá] também postulam que os atributos
culturais são atributos da alma” (Lima 1996: 29); no entanto, a alma dos Yudjá não
tem o mesmo estatuto funcional que a alma dos porcos, pois “a experiência da alma
humana, diferentemente daquela da alma animal, não consiste em consciência de
si como sujeito” (1996: 35)
14
. Vê-se, aqui, como a etnografia yudjá coloca um
problema para este ponto do argumento perspectivista: por um lado, tanto os
Yudjá quanto os porcos são compostos de corpo e alma, ou seja, quando os Yudjá
referem-se às almas dos porcos, eles têm em mente algo da mesma natureza que a
alma yudjá (e o mesmo se diga da noção de corpo); por outro lado, se a alma e o
corpo constituintes de humanos e animais apresentam a mesma natureza, eles
operam diferentemente para uns e outros: a alma dos porcos é responsável pela
intencionalidade consciente e pelo pensamento reflexivo, o que, entre os Yudjá,
está implicado nos corpos, não em suas almas.
Uma outra dificuldade pontual do argumento sobre a relação corpo/ alma
pode ser vista no trabalho de Viveiros de Castro. Seu argumento está a afirmar,
14
“De um lado, enquanto princípio vital situado no coração, a alma [yudjá] é uma parte do eu e não
pode explicar porque o eu é uma pessoa; de outro, ela é o duplo do sujeito, e escapa, enquanto tal,
ao mesmo. Sua experiência não é, então, a subjetividade” (Lima 1996: 35).
30
também, que todo sujeito é composto de alma e corpo: enquanto aquela responde
pelo princípio subjetivo, este se responsabiliza pela atualização deste princípio
anímico (ou seja, pelo ponto de vista), de modo que alma e corpo se conjugam na
constituição das condições de apreensão. Mas se o esquema de apreensão de um
sujeito passa necessariamente pela cooperação entre corpo e alma, aquilo que ele
apreende mostra-se ou como corpo, ou como alma. Sobre este ponto, veja-se o
seguinte trecho:
“A forma manifesta de cada espécie é um mero envelope (uma
‘roupa’) a esconder uma forma interna humana, normalmente
visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres
transespecíficos como os xamãs. Esta forma interna é o espírito”
(Viveiros de Castro 1996: 117)
Normalmente, ao se relacionar com outrem, mira-se sua ‘roupa’, mas, em certas
ocasiões (como no xamanismo, por exemplo), é possível interagir com ele sob o
modo da cultura, vendo-o como humano, ou seja, acessando a forma interna (a
alma) oculta sob seu corpo. A dificuldade lógica do argumento está no fato de que
em uma relação intersubjetiva humano vs. animal, por exemplo, ambos se utilizam
de corpo e alma para ver a si mesmo como humano e seu interlocutor como não-
humano, mas, paradoxalmente, se dão a ver, pelo seu interlocutor, ou como corpo
(quando a forma manifesta é não-humana), ou como alma (quando a forma
manifesta é humana). Enfim, e em suma: como, diante de outrem, seria possível
ver apenas sua alma, se ele, ao nos mirar, se utiliza de corpo e alma?
A sugestão perspectivista de que na interação entre seres co-específicos a forma
manifesta humana é a forma do espírito, ou da alma, foi levada à cabo, por exemplo,
31
em um belo artigo de Aparecida Vilaça (1998) sobre o canibalismo funerário dos
Wari’: “se cada tipo de ser vê a si mesmo como humano, podemos dizer que seu corpo
é invisível para ele, dada a identidade entre o que vê e seu espírito. Do ponto de vista
dos Wari’, por exemplo, somente os animais tem um corpo objetivo, visível, diferente
de seu espírito. [...] O próprio corpo é, por definição, invisível, em oposição ao corpo
do outro que é visível” (1998: 15-16). Segundo a autora, o corpo Wari’ só poderá ser
contemplado na morte, quando se terá um cadáver. Me parece, no entanto, que a idéia
da invisibilidade do corpo encontra certas dificuldades em outros momentos da
etnografia wari’. Assim, em seu artigo de 2000, Vilaça ressalta que “o corpo ameríndio
não é um dado genético, mas construído ao longo da vida por meio das relações
sociais” (2000: 60). Ponto importante, a manipulação corporal não está a serviço,
apenas, dos processos de alteração subjetiva (como o xamanismo), mas também dos
processos de identificação:
“Entre os Wari’, após o nascimento, o corpo da criança, constituído por uma mistura
de sêmen e sangue menstrual, vai sendo constantemente fabricado através da
alimentação e da troca de fluidos corporais com seus pais, irmãos e parentes
próximos. Os filhos adotivos, por exemplo, são considerados consubstanciais de seus
pais de adoção e, de maneira análoga, marido e mulher tornam-se consubstancias com
a proximidade física decorrente do casamento [...]. A comida é central na constituição
da identidade física tanto dos Wari’ como das espécies animais” (Vilaça 2000: 60)
Os Wari’, assim, comem, bebem e ornamentam-se também para se parecer humano. O
grande investimento indígena sobre o corpo, moeda corrente em tantas etnografias da
região (ver Viveiros de Castro 1996: 130-135), não se efetuaria sobre um corpo
invisível. Enfim, se nossa análise procede, a relação entre corpo e alma mereceria uma
nova atenção por parte do argumento perspectivista.
32
Capítulo 2 – Análises e questões
“As teorias antropológicas devem ser encaradas menos como
um ponto de chegada do processo de pesquisa do que como o
ponto de partida e o meio de uma investigação etnográfica
que as coloca sob crítica das idéias e práticas dos grupos
estudados”
Marcio Goldman (Alteridade e Experiência:
Antropologia e Teoria Etnográfica, 2005)
Os comentários que empreenderemos neste capítulo acerca de alguns pontos
do argumento desenvolvido por Viveiros de Castro e Lima vão, única e
exclusivamente, em função da proposta que esta dissertação intenta apresentar: a
de que o material etnográfico visado pelo argumento perspectivista se presta bem,
e, talvez, mesmo, demande uma leitura realizada através do conceito de estrutura.
1) Multinaturalismo
“Uma tradução mais abstrata do conceito Yudjá de perspectiva é a
seguinte. Um ser aparece para si mesmo de modo distinto do que
ele aparece para outrem. Isto é, a relação consigo difere da relação
com outrem. Há um vínculo necessário (no sentido forte do termo)
entre essas duas perspectivas: elas constituem um par. E há mais.
Pois, a um ser que aparece para um outro ser de um modo distinto
do que aparece para si mesmo,
outros seres aparecerão
distintamente para um e outro – tendo esses terceiros, em muitos
casos, a sua própria perspectiva. Quer dizer, o conceito indígena
trata o mundo enquanto especificidade de cada vivente. Os viventes
arrastam consigo sua própria realidade sensível” (Lima 2006: 12,
grifos adicionados)
O primeiro ponto a se destacar é que a maioria absoluta (senão a totalidade)
dos exemplos que fundamentam o argumento sobre o perspectivismo ameríndio
relatam encontros entre duas perspectivas. A passagem supra citada aponta para
33
essa questão fundamental, ao afirmar que os perceptos se articulam em pares. Não
obstante, o trecho grifado acaba sugerindo a possibilidade de um encontro entre
três perspectivas ou mais...
A consideração desta possibilidade refere-se, me parece, à problemática do
multinaturalismo ameríndio. Dizíamos, no capítulo anterior, que o conceito de
multinaturalismo constitui-se como um modo de descrever a dinâmica do jogo
ameríndio das apreensões relacionais, proposto a partir de uma analogia com o
multiculturalismo relativista. Ali destacamos a inversão entre o multiculturalismo e
o multinaturalismo: enquanto o primeiro afirma a unidade dos objetos frente a
uma multiplicidade de abordagens subjetivas, o segundo afirma a unidade formal
dos sujeitos atualizada em uma multiplicidade de abordagens objetivas (pontos de
vista). No entanto, como já se pode perceber, a diferença entre o multiculturalismo
e o multinaturalismo não se encerra na inversão do par unidade/ multiplicidade
quando aplicados à relação entre sujeito e objeto – o que muda entre um e outro é,
justamente, a natureza desta relação. No multiculturalismo, o objeto independe do
sujeito: dado como coisa em si, o objeto é indiferente e anterior às abordagens
subjetivas que lhe são atribuidas. No multinaturalismo isso não acontece: o ‘objeto’
(que, aqui, vem entre aspas) não existe como coisa em si, mas como coisa para
alguém
1
. Ou seja, enquanto no multiculturalismo relativista a abordagem do
1
Se nos é dada a possibilidade de afirmar que nas cosmologias ameríndias há, de fato, a idéia de
‘objeto’ como algo que possui um sentido em si mesmo, este sentido não seria outra coisa que um
ponto de vista. E ainda assim, como se pode perceber, este conceito de ‘objeto’ seria muito diferente
daquele do multiculturalismo: aqui, no perspectivismo ameríndio, o sentido de um ‘objeto’ nem é
unívoco, nem é mais verdadeiro que os sentidos que outros pontos de vista lhe
constituem (veja
que, no multinaturalismo ameríndio, os pontos de vista não atribuem sentido ao objeto, mas
constituem-lhe como ‘objeto’, múltiplo). Esta questão é interessante, pois o ideal epistemológico
ameríndio parece inverter o ideal epistemológico da ciência: se, entre os ameríndios, é possível falar
em ‘objeto’ – ou seja, em algo que possui um sentido em si mesmo – eles (os ameríndios) não estão
muito de acordo com o sentido do ‘objeto’! Explico. Os porcos, alvo exterior da mirada Yudjá, se
34
sujeito ao objeto se dá como uma relação exterior e representacional, no
multinaturalismo perspectivista a relação do sujeito ao objeto é “interna e genitiva”
(Viveiros de Castro 2002b: 384). A ontologia do ‘mundo’ ameríndio é
integralmente relacional:
“O mundo real das diferentes espécies depende de seus pontos de
vista, porque o ‘mundo’ é composto das diferentes espécies, é o
espaço abstrato de divergência entre elas enquanto pontos de vista:
não há pontos de vista sobre as coisas – as coisas e os seres é que
são pontos de vista. A questão aqui, portanto, não é saber “como os
macacos vêem o mundo”, mas que mundo se exprime através dos
macacos, de que mundo eles o o ponto de vista” (Viveiros de
Castro 2002b: 384-385).
Retomaremos este mesmo trecho mais adiante para tratar da idéia de que a
realidade sensível está já implicada no ponto de vista. Por ora, nos debrucemos
sobre a questão da realidade das apreensões e da ontologia relacional do cosmos
ameríndio: se na relação de conhecimento das cosmologias multiculturalistas a
verdade se encontra na unidade do Objeto (externo, anterior e indiferente aos
modos de apreensão), a verdade da relação de conhecimento das cosmologias
multinaturalistas parece se fundamentar na unidade formal do Sujeito: toda
mirada de uma perspectiva é verdadeira porque todos os pontos de vista remetem a
uma unidade formal de apreensão, ou seja, todos os perceptos se equivalem porque
todos os pontos de vista, apesar de mutuamente distintos, atualizam uma mesma
forma de percepção. Nas palavras de Viveiros de Castro (2002b: 396),o que
temos aqui é um caso de universalismo cultural, cuja contrapartida é um
vêem como humanos, mas os Yudjá os tomam, justamente, como porcos (apreensão que os Yudjá
dizem ser mais verdadeira que aquela que os próprios porcos mantêm sobre si mesmos). Enfim, “os
pecaris são pecaris e humanos, são humanos naquilo que os humanos não são pecaris [...]. Assim,
quando se diz que os pecaris são humanos, não é para identificá-los aos humanos, mas para
diferenciá-los de si mesmos – e a nós de nós mesmos” (Viveiros de Castro 2002d: 136).
35
relativismo natural
2
. Pois bem. Os questionamentos que a seguir faremos ao
conceito de multinaturalismo não dizem respeito ao caráter relacional da ontologia
ameríndia, mas à idéia de que, na cosmologia desses povos, um ‘objeto’ seja
constituído a partir da articulação, e mútua implicação, de uma multiplicidade de
miradas. Ao levantar a questão do multinaturalismo, o argumento de Viveiros de
Castro e Lima tende a entender os ‘objetos’ ameríndios como uma enfiada dos mais
diversos pontos de vista: assim, em condições normais, um sujeito (coletivo ou
não) que vê a si mesmo como
humano, é visto por um outro sujeito (um animal
predador ou um espírito canibal) como
porco, e por um terceiro (um animal de
caça) como, por exemplo, um
jaguar...
3
No entanto – e este é o ponto que queremos
chamar atenção –, as etnografias nos oferecem apenas pares de perceptos, relatos
de encontros entre duas perspectivas: o multinaturalismo se efetua sempre como
um binaturalismo
4
.
2
Mais adiante, sobre esta mesma questão, o autor assim se expressa: “Mesmas representações,
outros objetos; sentido único, referências múltiplas” (Viveiros de Castro 2002b: 387).
3
Lembremos do seguinte trecho (citado no primeiro capítulo): “Tipicamente, os humanos, em
condições normais, vêem os humanos como humanos, os animais como animais, e os espíritos (se
os vêem) como espíritos; já os animais (predadores) e os espíritos vêem os humanos como animais
(de presa), ao passo que os animais (de presa) vêem os humanos como espíritos ou animais
(predadores)” (Viveiros de Castro 1996: 117)
4
Ao propor que os pontos de vista ameríndios não implicam opiniões subjetivas ou representações
parciais, Viveiros de Castro tece a seguinte analogia: “O sangue dos humanos é o cauim do jaguar
exatamente como minha irmã é esposa de meu cunhado, e pelas mesmas razões” (Viveiros de Castro
2002b: 385). Do mesmo modo que não há nada de subjetivo, ou de representacional, nos conceitos
de ‘irmã’ ou ‘esposa’, não há também nada de subjetivo ou representacional nos conceito de ‘sangue’
e de ‘cauim’: se a esposa de meu cunhado de fato é minha irmã, o sangue dos humanos de fato é o
cauim do jaguar. No entanto – e este é ponto que, como dissemos acima, queremos destacar –, o
‘multinaturalismo’ das relações de parentesco não parece ser o mesmo multinaturalismo do
perspectivismo ameríndio: enquanto o primeiro caso pode descrever um encontro entre uma
multidão de pessoas (numa reunião de família, por exemplo, enquanto eu trato minha irmã como
‘irmã’, meu cunhado a trata como ‘esposa’, meus pais como ‘filha’, meu avô como ‘neta’, minha tia
como ‘sobrinha’, etc...), no perspectivismo, ao que parece, o multinaturalismo só se realiza dois-a-
dois (o que os humanos tratam como ‘sangue’, as onças tratam como ‘cauim’). O multinaturalismo
ameríndio, assim, seria mais um binaturalismo.
36
1.1) Eu e Outro
De fato, é notável a ausência de exemplos etnográficos que descrevam uma
relação entre três ou mais perspectivas. Tal ausência é importante, pois se os
pontos de vista compõem e constituem o cosmos ameríndio, eles deveriam poder
interagir em encontros com mais de duas perspectivas – ou seja, deveria haver
algum caso etnografado de um ‘objeto’, qualquer, mirado (ou seja, constituído) por
três ou quatro pontos de vista diferentes. No entanto, salvo engano, não há notícia
de casos desse tipo. Ou será que não? O leitor atento poderia replicar que na
própria bibliografia usada na redação deste texto encontra-se não apenas um, mas
dois (e talvez mais) exemplos que relatam relações entre uma multiplicidade de
perspectivas. Um destes exemplos está já na epígrafe do primeiro artigo de Viveiros
de Castro sobre o perspectivismo ameríndio: “El ser humano se ve a sí mismo como
tal. La Luna, la serpiente, el jaguar y la madre de la viruela lo ven, sin embargo,
como un tapir o un pecarí, que ellos matan” (Baer apud Viveiros de Castro 1996:
115). O outro exemplo provém da etnografia yanomami:
“Os espíritos vêem os humanos sob a forma de assombrações
[revenants]; os animais os percebem como semelhantes que se
tornaram ‘moradores de casas’… os seres maléficos os consideram
como caça… e as assombrações os vêem como parentes
abandonados” (Kopenawa & Albert apud Viveiros de Castro 2006:
330)
Os exemplos são de nosso maior interesse, mas acreditamos que eles não
indicam, necessariamente, um multinaturalismo. Em ambos a multiplicidade de
perceptos é dada sobre àquele que está em posição de enunciação: (i) os
Machiguenga se vêem como humanos, mas a Lua, a serpente, o jaguar e a mãe da
37
varíola os vêem como antas ou porcos; (ii) os Yanomami se chamam yanõmami
thëpë (“seres humanos”), mas são tomados como assombrações pelos espíritos, e
como caça pelos seres maléficos. Tanto no caso machiguenga quanto no caso
yanomami, o ponto de articulação e implicação dos múltiplos perceptos é a
perspectiva que enuncia o relato. Ora, antes que um multinaturalismo, estes casos
talvez estejam a indicar que os encontros de perspectivas se dão como uma relação
entre ‘Eu’ (posição enunciativa) e ‘Outro’:
“O que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que para as
almas dos mortos é um cadáver podre, para nós é mandioca
pubando; o que vemos como barreiro lamacento, para as antas é
uma grande casa cerimonial...” (Viveiros de Castro 1996: 127)
Como sugere esta passagem de Viveiros de Castro, os exemplos etnográficos que
descrevem assimetrias de perceptos constituem-se como relatos de encontros entre
duas perspectivas, enunciados a partir de um dos pontos de vista da relação. O
perspectivismo ameríndio, assim, não parece tratar de encontros entre múltiplas
perspectivas, mas de encontros entre um par de pontos de vista: ‘Eu’ e ‘Outro’.
A questão da multiplicidade de perceptos (e, portanto, do multinaturalismo)
dos relatos machiguenga e yanomami não parece se constituir como uma descrição
etnográfica ou como uma experiência nativa. Ao contrário, me parece que a questão
referente a uma
multiplicidade de perceptos articulados remete a uma leitura do
material etnográfico que se empreende mais ou menos da seguinte forma: os
Machiguenga, por exemplo, mantêm relações com a Lua, com as serpentes, com as
onças, etc. Visto que todos esses seres tomam os Machiguenga a partir de um ponto
de vista específico, os Machiguenga seriam apreendidos por uma multiplicidade de
perceptos. No entanto, nada autoriza afirmar que esta multiplicidade de perceptos
38
seja a descrição etnográfica de um encontro real e simultâneo entre, digamos, um
machiguenga, uma onça, uma serpente e a Lua. Ao contrário, o fato de que os
perceptos se articulam em pares – como bem apontou Lima
5
– sugere que as
relações que os Machiguenga mantêm com esses seres se dão em encontros
sucessivos entre duas perspectivas (a perspectiva machiguenga e um outro ponto
de vista). Ou seja, primeiro há uma relação dos Machiguenga com a Lua, depois
uma relação dos Machiguenga com as onças, ou com as serpentes – e não
necessariamente nessa ordem: o importante é que os Machiguenga se relacionam
com a Lua, com as serpentes e com as onças em momentos distintos, isto é, com
uma perspectiva de cada vez. Ora, se os perceptos de fato se articulam apenas em
pares, a questão da validade etnográfica da multiplicidade de perceptos está dada.
Tal multiplicidade parece ser o efeito de uma leitura que sobrepõe os relatos
etnográficos que descrevem encontros intersubjetivos dados dois-a-dois: no caso
que vamos tratando, primeiramente toma-se contato com os Machiguenga, ou com
sua etnografia, e coleta-se uma diversidade de relatos de encontros intersubjetivos
(Eu/ Outro), descritos, todos, por um par de perceptos assimétricos. Em seguida,
ao se comparar os relatos, percebe-se que os Machiguenga são vistos de formas
diferentes por interlocutores diferentes. Então soma-se os perceptos que as onças,
as serpentes e a Lua mantêm, cada um por sua vez, sobre os Machiguenga – e se
obtém, assim, uma multiplicidade de apreensões. Como todas essas apreensões são
da ordem dos perceptos (isto é, são igualmente verdadeiras), a questão da
5
Reproduzo o trecho em questão, citado mais acima: “Um ser aparece para si mesmo de modo
distinto do que ele aparece para outrem. Isto é, a relação consigo difere da relação com outrem. Há
um vínculo necessário (no sentido forte do termo) entre essas duas perspectivas: elas constituem
um par (Lima 2006: 12). Em um momento anterior desse mesmo texto, a autora se expressa do
seguinte modo: “O regime Yudjá em que operam as perspectivas, por sua vez,
articula-as em pares:
a onça, para si mesma é gente, e onça para a gente” (2006: 11; grifo adicionado).
39
ontologia machiguenga poderia, assim, ser caracterizada pelo conceito de
multinaturalismo... Mas, se nossa análise está correta, há um problema com tal
abordagem: a multiplicidade de perceptos é um dado a posteriori. A soma dos
perceptos é algo que não condiz nem com uma descrição etnográfica, nem com
uma experiência nativa.
*
Nos casos acima problematizamos a idéia da multiplicidade de perceptos a
partir de dois pontos articulados: (i) em primeiro lugar, destacamos o fato de que,
em ambos os casos, a multiplicidade de apreensões se articula sobre o ponto de
vista em posição enunciativa; (ii) a partir daí sugerimos que os exemplos
etnográficos sobre o perspectivismo descrevem encontros entre duas perspectivas
(‘Eu’ e ‘Outro’), visto que os relatos etnográficos destes encontros intersubjetivos,
anunciados sempre a partir de um dos pontos de vista envolvidos, apresentam
invariavelmente um par de perceptos articulados. Agora abordamos a seguinte
questão: há, na etnografia indígena, casos de multiplicidade de perceptos dados
sobre um terceiro termo (ou seja, sobre um termo que não seja aquele em posição
enunciativa)?
Um mito etnografado por France-Marie Renard-Casevitz – que vamos tratar
com maior minúcia na seção seguinte – narra um encontro em que viajantes
machiguenga visitam uma aldeia de pessoas que comem cobras como se fossem
peixes. Relatos como este costumam ser descritos na literatura da seguinte forma:
40
“as pessoas daquela aldeia vêem as cobras como peixe”. Vide, por exemplo, a
descrição de Århem sobre um relato makuna:
“Los buitres se alimentan de cadáveres. Para ellos un cadáver es un
río lleno de peces. Los gusanos que viven en los cuerpos
descompuestos son los peces de los buitres” (Århem 1993).
A questão é que essa forma de descrever os relatos nativos acaba dando margem a
uma leitura que nos parece equivocada. Vamos supor que ao tomar contato com as
etnografias machiguenga e makuna, um analista colete relatos que tratam, no
primeiro caso, das relações dos Machiguenga com a Gente-Cobra, e, no segundo
caso, das relações dos Makuna com a Gente-Verme. Isso sugere que ao se debrar
sobre os relatos em questão, nosso analista
6
os interpreta sabendo que, em outros
momentos, as cobras machiguenga e os vermes makuna manifestam um ponto de
vista. Vamos supor, ainda, que nosso analista está a par do argumento de Lima e
Viveiros de Castro sobre o perspectivismo ameríndio e que, portanto, considere, em
sua interpretação, que todo ponto de vista vê a si mesmo como humano. Pois bem.
Partindo desses pressupostos, e descrevendo os relatos do modo colocado em
questão, nosso analista pode acabar imaginando um encontro intersubjetivo dado
entre três perspectivas. Assim, no caso machiguenga (“as pessoas de tal aldeia
vêem as cobras como peixes”), o relato pode ser lido como uma descrição do
encontro entre três subjetividades, a saber, a perspectiva dos habitantes de tal
aldeia, a perspectiva das cobras e o ponto de vista machiguenga: a ‘cobra’
6
Ponto importante, este ‘nosso analista’ não se refere nem a Eduardo Viveiros de Castro, nem a
Tânia Stolze Lima: nenhum dos dois propõe a leitura que iremos pintar a seguir. No entanto, a
proposição do conceito de multinaturalismo nos parece sugerir, ou pelo menos deixar entender, a
leitura que se segue – tal leitura, de todo modo, foi, em certos momentos, empreendida por
mim
e, talvez, algum outro leitor se identifique com certas passagens da interpretação que se segue...
41
machiguenga é ‘peixe’ para os habitantes desta outra aldeia e ‘gente’ em seu próprio
ponto de vista. No segundo caso (“os urubus vêem os vermes como peixes”), o
relato pode ser lido como uma descrição da relação entre os urubus, os vermes e os
próprios Makuna: os ‘vermes’ makuna são ‘peixes’ para os urubus e ‘gente’ para si
mesmos. Desse modo, no caso machiguenga a assimetria articularia os perceptos
cobra/ peixe/ gente; no caso makuna o multinaturalismo se daria como peixe/
verme/ gente.
Ora, esta leitura esbarra num mal entendido: ela confunde perceptos com
pontos de vista. Supõe-se que as cobras e os vermes participam do encontro pois,
em outros relatos, apresentam um ponto de vista específico. Embora este cálculo
possa parecer provável, nada nos exemplos acima nos permite afirmar que as
cobras ou os vermes sejam outra coisa que perceptos a compor, em cada caso, um
par assimétrico: no caso machiguenga o par cobra/ peixe; no caso makuna o par
verme/ peixe. De fato, o relato machiguenga – para ficarmos com o primeiro caso –
não está afirmando, em momento algum, que as ‘cobras’ machiguenga (vistas como
‘peixes’ para os habitantes de uma determinada aldeia) sejam ‘gente’ para si
mesmas. Este relato descreve, nada mais e nada menos, um encontro entre os
visitantes machiguenga (em posição enunciativa) e os habitantes de uma outra
aldeia: os primeiros vêem ‘cobra’ onde os segundos vêem ‘peixe’. ‘Cobra’ e ‘peixe’
são perceptos, não pontos de vista
7
.
7
Em outros momentos da etnografia machiguenga as cobras, ou os peixes, podem apresentar um
ponto de vista, mas não é o caso do relato analisado. Retomaremos, adiante, a questão de que este
modo de descrição (“as pessoas daquela aldeia vêem cobra como peixe”) pode acabar dando
margem a uma leitura que nos parece equivocada – ver a nota 23 deste capítulo.
42
1.2) Estatuto e status
Como estamos procurando mostrar, os relatos que descrevem assimetria de
perceptos, aqueles que fundam o complexo etnográfico visado pelo perspectivismo,
parecem indicar menos uma relação entre múltiplos pontos de vista do que uma
multiplicidade possível de encontros entre duas perspectivas (Eu/ Outro). Assim,
pois, coloca-se a questão: o problema do multinaturalismo seria, então, um
problema de prefixo? Ou seja, o conceito de binaturalismo (com o perdão da
palavra feia...) resolveria o problema? Por um lado sim, pois, de fato, os perceptos
que compõem um par assimétrico apresentam um mesmo estatuto epistemológico
(são igualmente verdadeiros). Por outro lado não, pois, com efeito, há outra
questão importante envolvida aqui, qual seja, a questão da diferença de status
entre os perceptos articulados.
A questão do status dos perceptos não é exatamente levantada por esta
dissertação. Ela já está presente na literatura, embora tenha sido tratada, na
maioria das vezes, como uma questão de diferenças entre juízos de verdade. Vide o
seguinte trecho de AmaZone:
Nota-se na literatura a utilização de juízos de verdade. Ainda não
está óbvio se tais juízos são um componente do perspectivismo
indígena ou de uma interpretação comandada pela distinção
aparência-essência, temperada por vezes com uma pitada de
relativismo. Weiss, por exemplo (mas Baer também), sugere que a
forma dos espíritos na apreensão humana seria menos verdadeira
que a forma humana auto-apreendida pelos espíritos. O diferencial
entre essas apreensões se traduziria em termos do verdadeiro e do
falso? A apreensão jaguar dos seres humanos como pecaris seria
mais falsa ou mais verdadeira que a auto-apreensão humana?
Somente a auto-apreensão seria verdadeira? [...] Uma
interpretação perspectivista do perspectivismo não teria de
dissociar a verdade e o julgamento? T. S. Lima (1995) sugere que,
43
mutatis mutandis, tudo é verdade no sistema Yudjá. O que se põe é
a questão da conveniência das verdades. Convém a pessoas
humanas embriagar-se com o cauim dos pecaris? É indiferente
para os humanos se o cauim é de gente, de porco, ou de pa’î?”
(AmaZone 2008: [2])
O trecho aponta uma questão específica referente à diferença dos perceptos
articulados em um par. Apesar de se mostrar recorrente, esta é uma questão
esquiva, de difícil formulação. O trecho supra citado nos coloca diante de duas
formas de abordagem. Por um lado, Weiss e Baer sugerem que a diferença das
apreensões pode ser compreendida como uma diferença de juízos de verdade. Os
autores não tomam as apreensões como perceptos, e, de fato, a leitura que Weiss e
Baer empreendem transita mais próxima das veredas do relativismo cultural que
das vias do perspectivismo ameríndio. Por outro lado, empreendendo uma leitura
propriamente perspectivista, Lima não procura compreender a questão através das
noções de verdadeiro e falso, pois, mutatis mutandis, os perceptos são igualmente
verdadeiros: para a autora, a questão é de conveniência.
Mas como conciliar essas duas abordagens? Debruçando-se sobre uma
mesma questão – a assimetria das apreensões articuladas em um encontro
intersubjetivo –, acreditamos que as formulações acima se fundamentam em
intuições etnográficas concretas, não se opondo como abordagens excludentes,
mas, antes, apontando duas facetas de um mesmo fenômeno: estatuto e status. Se
os perceptos que compõem um par assimétrico manifestam uma igualdade de fato,
uma equivalência de estatuto (como bem mostraram Viveiros de Castro e Lima), há
que se atentar para esta outra questão, esquiva, que vamos tratando aqui como
44
uma questão de diferenças de status, ou de direito
8
, entre os perceptos que
compõem um par.
Para tratar desta questão, trazemos ao argumento aquele exemplo
etnografado e descrito por Renard-Casevitz em seu Le banquet masqué: une
mythologie de l'étranger (1991)
9
. A autora nos oferece alguns relatos machiguenga
sobre viajantes que visitam aldeias estrangeiras
muito semelhantes à aldeia onde
moram;
esta impressão, no entanto, se desfazia toda vez que estes viajantes
aventavam a possibilidade de realizar uma refeição comum com seus anfitriões: o
que os anfitriões tinham como peixes ou cutias, os visitantes viam como cobras ou
morcegos – pratos que não são próprios do repasto humano. Para dar conta dessa
defasagem de apreensões, Renard-Casevitz traça uma analogia com as relações de
parentesco, sugerindo que o peixe dos aldeões é a cobra dos visitantes da mesma
forma
“Qu’une mère et um père pour X sont des beaux-parents pour Y [...]
Cette variabilité de la dénomination en fonction de la place occuppé
explique que A soit à la fois poisson pour X et serpent pour Y”
(Renard-Casevitz 1991: 29).
Esta analogia, como Viveiros de Castro já ressaltou, é “muito interessante”
(2002b: 383). Para o autor, ela servia, entre outras coisas, para o esclarecimento da
questão da equivalência do estatuto das apreensões. Aqui, ao contrário, e com uma
pequena reformulação, a analogia nos serve para apontar a questão da diferença de
status entre os perceptos. Vejamos: (i) os viajantes e os anfitriões do relato
8
Status pode parecer um termo desajeitado. O adotamos aqui tendo em vista a definição do
Dicionário Aurélio (1995: 612): “status (stáctuç). [Lat.] S. m. Etnol. Conjunto de direitos [...] que
caracterizam a posição de uma pessoa em suas relações com outras.”
9
Para duas análises desse relato, ver Viveiros de Castro (2002b: 382-383) e Calavia Sáez (2006: 13-
14).
45
machiguenga tratam-se como humanos, mas se diferenciam quando miram um
terceiro termo: o que para o primeiro é cobra, para o segundo é peixe; (ii) na
relação entre cunhados acontece algo bem semelhante: enquanto um deles tem a
moça como sua irmã, o outro a tem como sua esposa. Pois bem. Não custa repetir
que as relações que compõem um par de perceptos, apesar de diferentes, possuem
o mesmo estatuto epistemológico, ou seja, são igualmente verdadeiras. Mas se este
ponto já está claro, cabe notar, e acrescentar, que um par de perceptos qualquer,
seja ele cobra/ peixe ou irmã/ esposa, é sempre constituído de uma relação
positiva e outra negativa. Explico. No caso machiguenga, vimos como todos se
tratam como humanos; no entanto, quando a mesa é posta apenas os anfitriões
usufruem do repasto. No segundo caso, os homens são afins entre si, mas quando a
noiva está no altar apenas um deles tem o direito consumar o casamento. Ou seja,
um par de perceptos é composto de uma relação positiva e outra negativa. Isso
porque as assimetrias de perceptos não podem ser analisadas fora do sistema
referencial onde se manifestam. O ponto é que não parece haver encontro
intersubjetivo que não esteja implicado em um dado contexto
10
: o exato momento
em que se põe a mesa é aquele em que se manifesta a assimetria de perceptos
(cobra/ peixe) e, conseqüentemente, a diferença de status: enquanto um dos
perceptos indica uma relação positiva (pois, de fato, come-se peixe), o outro indica
10
O contexto é um componente do perspectivismo ameríndio. Vimos, no primeiro capítulo, a
dinâmica que caracteriza o encontro entre os caçadores yudjá e os porcos do mato: enquanto os
primeiros têm o encontro como uma caçada, os segundos o encaram como uma oportunidade de
angariar afins. Ou seja, pode-se dizer, aqui, que o foco do confronto diz respeito ao contexto da
relação: o encontro é uma caçada ou não? Voltaremos a tratar deste relato etnográfico no capítulo
seguinte.
46
uma relação, a princípio, negativa (pois não se come cobra)
11
– o repasto de uns é o
fastio de outros, assim como a aliança de um é incestuosa para o outro.
A diferença de status diz respeito à assimetria das relações que os pontos de
vista mantêm com o ‘objeto’ mirado: a relação positiva é aquela que acaba se
efetuando, enquanto a relação negativa é aquela que não possui, digamos, este
direito. A partir das considerações acerca do contexto da relação, trazemos ao
argumento a distinção criticista entre o quid facti e o quid juris para sugerir que os
perceptos que compõem um par de apreensões manifestam, por um lado, uma
equivalência de fato (mesmo estatuto) e, por outro, uma desigualdade de direito
(status diferentes).
2) Ponto de vista
A análise do multinaturalismo coloca uma questão importante para a
economia do argumento de Viveiros de Castro e Lima sobre o perspectivismo
ameríndio: o conceito de ponto de vista é o mais apropriado para dar conta do
complexo etnográfico visado? Esta questão se impõe justamente porque, ao longo
dos comentários acerca do multinaturalismo, pode-se aventar a proposta de um
11
Cabe notar que sempre há a possibilidade de um par assimétrico de perceptos deixar de ser um
par assimétrico para se transformar numa comunhão de perceptos positivos. Vide, por exemplo, o
relato yaminawa que mencionamos rapidamente no primeiro capítulo (e que iremos analisar com
maior minúcia no capítulo seguinte): um antepassado, sozinho na floresta (depois de uma caça mal
sucedida), foi avistado por porcos que se mostravam humanos, e convidado por eles para conhecer a
aldeia onde moravam. Lá ele foi recebido com uma cuia de lama que os habitantes chamavam de
cauim. A princípio recusou-se a beber (não se bebe lama). Mas depois que lhe pingaram um colírio,
ele passou a ver a lama como cauim, e bebeu da cuia. O mito segue relatando outras ofertas dos
anfitriões, outros pares assimétricos que se transformam, todos eles, em comunhão de perceptos
(ver Calavia Sáez 2001, 2006). No caso da transformação das relações no parentesco, remeto o leitor
ao texto de Coelho Souza (2004) em que a autora trata das possibilidades de afinização das relações
consangüíneas de parentesco.
47
modelo descritivo que não se fundamente no conceito de ponto de vista. Este
modelo, que apenas esboçamos, se fundamenta no conceito de estrutura (sensu
Lévi-Strauss
12
) – pois, se nossas análises estão corretas, o perspectivismo se dá
como um encontro entre duas subjetividades que se distribuem nas posições
relacionais ‘Eu’ e ‘Outro’, atualizando um par de perceptos que apresentam, ao
mesmo tempo, uma equivalência de estatutos e uma diferença de status (positivo/
negativo). Pois bem. O que se segue é o esforço de dar contornos mais nítidos a essa
proposta, a partir do apontamento de algumas inconsistências etnográficas e
lógicas do conceito de ponto de vista.
2.1) A história do conceito
Em uma entrevista concedida via correio eletrônico à Flávio Moura, Viveiros
de Castro explicita sucintamente seu argumento sobre o perspectivismo ameríndio:
“Trata-se da noção de que, em primeiro lugar, o mundo é povoado
de muitas espécies de seres (além dos humanos propriamente
ditos) dotados de consciência e de cultura e, em segundo lugar, de
que cada uma dessas espécies vê a si mesma e às demais espécies
de modo bastante singular: cada uma se vê como humana, vendo
todas as demais como não-humanas, isto é, como espécies de
animais ou de espíritos” (Viveiros de Castro s/d)
13
.
12
Não custa lembrar que o conceito lévi-straussiano de estrutura não é o mesmo daquele usado
pelos antropólogos do estrutural-funcionalismo. Nas palavras de Lévi-Strauss, “a noção de
transformação é inerente à analise estrutural. Diria, até, que todos os erros, todos os abusos
cometidos, sobre ou com a noção de estrutura, provêm do fato de seus autores não compreenderem
que é impossível concebê-la separada da noção de transformação. A estrutura não se reduz ao
sistema: conjunto composto de elementos e de relações que os unem. Para que se possa falar de
estrutura, é necessário que entre os elementos e as relações de vários conjuntos surjam relações
invariantes, de tal forma que se possa passar de um conjunto a outro por meio de uma
transformação” (Lévi-Strauss 2008: 163).
13
Ver http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1417,1.shl (acessado em 25/09/ 2008)
48
O modo como o autor entende a questão do perspectivismo gira em torno do
conceito de ponto de vista. Sua primeira consideração consiste em apontar uma
diversidade de espécies de seres dotados de consciência e cultura, cada qual
apresentando um ponto de vista específico. Dado a variedade de perspectivas, o
autor passa a destacar a assimetria das apreensões: o percepto é lido como o efeito
da mirada de um ponto de vista qualquer, e o perspectivismo (ou assimetria de
perceptos) é tomado como o efeito do encontro de duas ou mais perspectivas. Seu
argumento, portanto, se desenvolve sob o pressuposto de que os pontos de vista são
logicamente anteriores ao perspectivismo.
O conceito de ponto de vista, como se pode ver, possui um sentido específico
e ocupa uma posição estratégica no argumento perspectivista. Este conceito possui
uma história
14
que remete, por um lado, às considerações lévi-straussianas acerca
do paradoxo do relativismo e, por outro, a uma contraposição em relação às
propostas que Descola vinha formulando sobre a questão indígena da humanidade
dos animais. Como já tratamos da diferença entre o idioma animista e o idioma
perspectivista no primeiro capítulo, não se trata aqui de traçar o panorama da
discussão, mas apenas apontar, rapidamente, o modo como Lima e Viveiros de
Castro procuravam dar conta dos problemas postos pela etnografia ameríndia, ao
mesmo tempo em que firmavam uma posição alternativa no debate em questão.
Em meados dos anos 1990, Descola propõe um argumento para a questão
indígena da humanidade dos animais. Retomando a noção de animismo, o autor
sugere que, nas sociedades ameríndias, a condição social de pessoa era dada aos
humanos e projetada, por esses humanos, sobre os animais. Viveiros de Castro e
14
Segundo Deleuze & Guattari (1991), todo conceito possui uma história.
49
Lima, ao contrário, afirmavam que a condição de pessoa está dada tanto para os
índios quanto para os animais, pois, de fato, não só os animais foram humanos
para os índios (nos tempos míticos), como continuam a se ver como humanos. Ou
seja, o fato dos animais verem a si mesmos como humanos é algo que independe da
vontade e da mirada dos índios: os animais se vêem como humanos, mas os índios
(como Lima [1996] bem ressalta para o caso dos Yudjá) discordam desse ponto de
vista e os consideram, justamente, animais – os índios, portanto, não estariam a
projetar a condição de pessoa sobre aqueles que insistem perceber como animais.
Ora, isso significa dizer que se a humanidade dos animais deve ser dada por
alguém, ela só pode ser dada pelos próprios animais: ao afirmar, por exemplo, que
“os porcos se vêem como humanos”, os índios estariam afirmando, simplesmente,
que ali está dada a condição social de pessoa – e isso não tanto porque os porcos se
vêem como humanos, mas porque eles vêem como os humanos. Tem-se, assim, o
conceito de ponto de vista e, ao mesmo tempo, o lugar central que ele ocupa no
argumento perspectivista: os animais são pessoas porque possuem um ponto de
vista, de modo que a condição de pessoa se dá através da condição de sujeito, e
vice-versa
15
.
O conceito de ponto de vista serve bem à crítica do idioma animista. Mas o
ponto importante, aqui, é indicar o lugar teórico donde o conceito é tributário.
Vimos, no primeiro capítulo, como a questão do perspectivismo ameríndio se
colocava para Viveiros de Castro e Lima: os índios e os animais vêem a si mesmos
15
Para garantir a realidade da condição de pessoa dos animais é preciso demonstrar a realidade de
seu ponto de vista. E aqui é interessante observar onde se aloja, e se constitui, o ponto de vista: a
perspectiva está no corpo. Ora, o fato da perspectiva estar no corpo me parece crucial no debate
com o animismo, pois, digamos, garante mais realidade ao ponto de vista dos animais: o corpo é
aquilo que no outro já está dado naturalmente, independente de qualquer projeção subjetiva (e
anímica) dos índios.
50
como humanos, vendo os outros como não-humanos. Posto assim, o problema
parecia ser o mesmo do paradoxo do relativismo analisado por Lévi-Strauss em
“Raça e História”: todas as sociedades vêem-se como civilizadas, vendo as demais
como não-civilizadas. Com efeito, a proposta do perspectivismo ameríndio
encontra uma parte importante de seus recursos lógicos neste argumento lévi-
straussiano.
O argumento lévi-straussiano sobre o paradoxo do relativismo gira em torno
do conceito de ponto de vista. Lemos em “Raça e História”, acerca da questão do
etnocentrismo, que a extensão da noção de humanidade, sem distinção de raça e
civilização, é efeito de um reconhecimento tardio e instável do etnocentrismo (ou
ponto de vista) alheio: o outro só é visto como semelhante – ou seja, como parte da
humanidade – quando se consegue perceber que ele também considera bárbaro
tudo o que não lhe diz respeito. Retenha-se daqui o seguinte ponto: se na estrutura
Outrem deleuziana
16
é necessário haver ao menos dois pontos de vista para que
seja possível qualquer percepção, no relativismo etnocêntrico, em certo sentido,
basta haver um ponto de vista: o relativismo postula, em primeiro lugar, a
experiência de um ponto de vista etnocêntrico (o esquema apreensivo que toma a si
mesmo como civilizado e o outro como não-civilizado), para então poder
reconhecer e estender, de modo instável e limitado, este ponto de vista à outrem –
fazendo dele um outro Eu, ou melhor, um Tu (a segunda pessoa do singular). Pois
bem. Entendemos que o argumento de Viveiros de Castro e Lima se constitui a
partir de uma abordagem semelhante: ainda que os autores afirmem – e este ponto
é crucial! – que no perspectivismo ameríndio o reconhecimento da humanidade
16
Ver Deleuze (1969) e Deleuze & Guattari (1991)
51
alheia está dado desde o início e sobre uma multidão outros sujeitos (inclusive não-
humanos), o argumento se fundamenta no pressuposto de que a experiência do
ponto de vista é anterior ao encontro intersubjetivo e, portanto, à assimetria de
perceptos: aquilo que um ponto de vista percebe como x é logicamente anterior ao
estabelecimento de sua relação com outrem e, portanto, anterior à descoberta de
que seu x é y para ele
17
. Com efeito, a realidade sensível está dada em cada
perspectiva, questão que se traduz na idéia de que o mundo está implicado no
ponto de vista. Esta idéia que se encontra tanto no trabalho de Lima (no trecho que
citamos no início do capítulo
18
) quanto no trabalho de Viveiros de Castro:
“O mundo real das diferentes espécies depende de seus pontos de
vista, porque o ‘mundo’ é composto das diferentes espécies, é o
espaço abstrato de divergência entre elas enquanto pontos de vista:
não há pontos de vista sobre as coisas – as coisas e os seres é que
são pontos de vista. A questão aqui, portanto, não é saber “como os
macacos vêem o mundo”, mas que mundo se exprime através dos
macacos, de que mundo eles o o ponto de vista” (Viveiros de
Castro 2002b: 384-385).
Afirmar que as espécies viventes arrastam um mundo específico implicado em seus
pontos de vista acaba deixando entender que, no limite, as relações intersubjetivas
já estão previstas, ou que o perspectivismo (a assimetria de perceptos) está dado
de antemão. Se todo ponto de vista arrasta consigo sua própria realidade sensível,
17
Detalhemos este ponto claro: o fato das relações serem constituintes dos pontos de vista (isto é,
ontologicamente interiores a eles) independe da afirmação, no argumento perspectivista, de que a
articulação dos perceptos seja o
efeito de uma mirada conjunta de pontos de vista distintos. Ou seja,
as perspectivas (porco e humano, por exemplo) são logicamente anteriores à assimetria de
perceptos (cauim dos porcos/ lama dos humanos).
18
Destacamos, aqui, o trecho a que nos referimos: “O conceito indígena [de ponto de vista] trata o
mundo enquanto especificidade de cada vivente. Os viventes arrastam consigo sua própria realidade
sensível” (Lima 2006: 12).
52
os encontros entre pontos de vista seriam da ordem das relações relacionadas
19
: o
perspectivismo seria, assim, a atualização, em encontros reais, das assimetrias já
virtualmente estabelecidas. No entanto, os relatos nativos não tratam os encontros
intersubjetivos como sendo da ordem das relações relacionadas, e mesmo a idéia de
que os perceptos são predicados dos pontos de vista acaba esbarrando em alguns
pontos do material etnográfico ameríndio. Me refiro aqui àqueles momentos em
que, num encontro intersubjetivo, a forma manifesta de uma apreensão parece,
digamos assim, ter um comportamento independe do ponto de vista que a aprende:
há perceptos que se transformam por si mesmos, e outros que enganam ou se
impõem aos pontos de vista que estão a percebê-los
20
.
Em seu primeiro artigo sobre o perspectivismo yudjá, Lima anota o seguinte
comentário acerca das transformações dos perceptos (que aqui chama de categorias):
“Uma categoria (empírica ou não) relacionada com uma região cósmica determinada
transforma-se em outra categoria a fim de transitar em terra alheia – a transformação
sendo uma potência da própria categoria, a qual sustenta o ponto de vista que era o
seu antes da transformação” (Lima 1996: 44, grifos adicionados).
As categorias empíricas são aquelas dadas em vigília, e as oníricas são aquelas que se
dão em sonho. Dito isso, o trecho vem chamar atenção para a questão da potência do
19
Da ordem do sistema, antes que da ordem da estrutura – para retomarmos a distinção lévi-
straussiana citada mais acima (Rever nota 13 deste capítulo).
20
“É sempre possível que aquilo que, ao toparmos com ele na mata, parecia ser apenas um bicho,
revele-se como o disfarce de um espírito de natureza completamente diferente” (Viveiros de Castro
2002b: 354). Em outra ocasião, Viveiros de Castro faz as seguintes considerações acerca das
imagens dos espíritos xapiripë: “O que define os espíritos, em certo sentido, é indexarem os afetos
característicos daquilo de que são a imagem sem, por isso, parecerem com aquilo de que são a
imagem”. E um pouco mais adiante, na mesma página: “Os xapiripë são [...] imagens que devem
nos interpretar para que possamos vê-las” (Viveiros de Castro 2006: 325).
53
percepto em se transformar independentemente do ponto de vista que o está
percebendo. E veja, assim, que, às vezes, é o percepto que arrasta o ponto de vista
para outras paisagens cósmicas, não o contrário.
Ou seja, os encontros intersubjetivos são marcados por uma insistente
imprevisibilidade (ponto que tanto Viveiros de Castro quanto Lima ressaltam):
nem sempre se percebe a realidade que se espera, e às vezes pode-se dizer que são
os perceptos que arrastam os pontos de vista, e não o contrário.
Por fim, destacamos mais uma dívida formal da proposta perspectivista em
relação ao argumento lévi-straussiano: a maneira de se pensar a articulação das
apreensões. Em “Raça e História” a perspectiva se dá como um esquema
apreensivo que toma a si mesmo como civilizado e ao outro como bárbaro, de
modo que civilizado e bárbaro formam um par de apreensões que se articulam no
e pelo ponto de vista. O argumento do perspectivismo também se constitui assim.
Viveiros de Castro, por exemplo, se utiliza do par Natureza/ Cultura para abordar,
entre outras contendas, a questão dos perceptos e de suas relações assimétricas:
Cultura “é a forma pela qual todo agente experimenta sua própria natureza”
(Viveiros de Castro 2002b: 374), e “a Natureza é a forma do Outro enquanto corpo”
(2002b: 381). O argumento, portanto, trata estas noções como formas de
apreensão de um mesmo ponto de vista: toda espécie se vê sob a forma da Cultura,
vendo as demais sob a forma da Natureza: Cultura/ Natureza compõem um par de
apreensões articuladas no e pelo ponto de vista. Levantamos esta questão para
dedicar-lhe o seguinte comentário: um par de perceptos, como vamos procurando
mostrar, indica uma relação assimétrica entre dois pontos de vista, não uma
54
diferença entre as apreensões empreendidas por uma mesma perspectiva. Ou seja,
é equivocado, ao se analisar o complexo etnográfico visado, considerar que os pares
de perceptos se articulam no e pelo ponto de vista, pois, de fato, a assimetria se
manifesta na mirada conjunta dos pontos de vista sobre um ‘objeto’. O que estamos
a sugerir, enfim, é que os perceptos assimétricos não são, propriamente, índices de
cada um dos
pontos de vista em relação, mas da relação que os pontos de vista
estabelecem entre si. Vejamos dois exemplos.
2.2) Dois exemplos
A centralidade que o conceito de ponto de vista ocupa na economia do
argumento perspectivista é alvo da crítica que vamos formulando. Seguimos
analisando dois exemplos, um Yudjá e outro Tupinambá. Começamos pelo relato
que uma mulher yudjá fez à Tânia Stolze Lima acerca de um sonho que teve:
“[Os porcos] são produtores de cauim, o qual, na perspectiva
humana, nada mais é que uma argila finíssima, conforme me
contou uma mulher que sonhou com uma aldeia de porcos em cujo
porto ela e eu tomávamos banho, até que descobrimos que
estávamos atoladas em uma lama da qual os porcos diziam ser,
justamente, sua mandioca puba” (Lima 1996: 22-23)
A autora acrescenta: “Quando o olhar dos porcos se deita sobre uma amiga e eu, as
águas do rio onde tomávamos banho se transformam em lama, ao nosso olhar, e
em mandioca pubando para cauim, ao olhar dos porcos” (Lima 1996: 44).
Destaque-se, primeiramente, os pontos que vamos insistindo ao longo dessas
páginas: (i) o relato descreve um encontro entre duas perspectivas distribuídas nas
posições relacionais ‘Nós’ (posição enunciativa) e ‘Outros’ – respectivamente, os
55
Yudjá e os porcos; (ii) os perceptos se compõem num par de relações que
apresentam uma diferença de status, pois aquilo que os porcos vêem positivamente
como cauim (bebida humana), as banhistas, negativamente, vêem como lama (que
não é próprio nem ao banho, nem ao consumo humano). Estas considerações nos
parecem sugerir a presença de uma estrutura intersubjetiva. Sobre esta questão, o
relato da mulher yudjá apresenta um dado bastante interessante: as banhistas,
antes que a visão dos porcos se deitasse sobre elas, percebiam o banho como um
banho de rio, ou seja, relacionavam-se com o ‘objeto’ mirado de um modo positivo
(visto que o rio é o lugar próprio para se banhar). Elas só passam a ver a água do rio
como lama quando os porcos adentram a cena e, ponto importante, tomam para si
a relação positiva, resignando às banhistas atualizar o outro lado da estrutura, ou
seja, o modo negativo de se relacionar com o ‘objeto’ mirado. Ademais, o relato, de
fato, não está a registrar o encontro entre dois mundos específicos arrastados por
seus respectivos pontos de vista, pois, se assim fosse, as banhistas continuariam a
ver água quando os porcos chegam, e vêem cauim. A transformação do percepto
das banhistas
21
, de água à lama, parece estar em função da atualização de uma
estrutura relacional estabelecida no encontro entre duas subjetividades – no caso
yudjá, a estrutura articula os perceptos ‘lama’ e ‘cauim’ (o primeiro negativo, o
21
A transformação de perceptos não se restringe ao relato onírico da mulher yudjá. A caça dos
porcos, por exemplo, apresenta a mesma dinâmica. Lima nos informa que “no quadro do
xamanismo e do ponto de vista dos porcos, os [Yudjá] representam espíritos” (Lima 1996: 27). Este
é um dado importante, pois se tipicamente os porcos apreendem os Yudjá como espíritos, na ‘caça’
os porcos procuram apreendê-los como humanos, vendo-os e tratando-os como afins potenciais. Do
mesmo modo, a ‘onça’ é vista como onça do ponto de vista yudjá, mas há ocasiões em que ela pode
ser vista como abi, os povos indígenas não-Yudjá (ver Lima 2006).
56
segundo positivo) em um par assimétrico constituído pela mirada conjunta dos
Yudjá (posição enunciativa) e dos porcos
22
.
O segundo exemplo é um clássico:
“Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto de carne humana.
Comia de uma perna, segurou-m’a diante da boca e perguntou-me
se também queria comer. Respondi: ‘Um animal irracional não
come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro
homem?’. Mordeu-a então e disse: ‘Jauára ichê’. ‘Sou um jaguar.
Está gostoso’. Retirei-me dele, à vista disso” (Staden 1556 [1998]:
132)
Hans Staden foi um viajante alemão que conheceu o litoral brasileiro em meados
do século XVI. Chegando aqui por uma frota portuguesa, ele serviu combatendo
22
Não deixa de ser interessante observar que inicialmente as banhistas percebiam água onde
passam a perceber lama. Isto não parece ser fortuito, pois muito provavelmente os porcos se
banham naquilo que os Yudjá vêem como lama – e partindo dessa consideração atrevo-me a fazer as
observações que se seguem. O mundo sensível não é exatamente carregado pelos pontos de vista. Se
assim fosse, sempre que, em condições normais, houvesse um encontro entre os Yudjá e os porcos,
ali onde os primeiros vêem lama os segundos veriam cauim. Mas desconfio que um índio yudjá, ao
se deparar com algum poço de lama, não pode afirmar, com certeza e imediatamente, que aquilo
seja o cauim suíno – e isso porque a lama pode bem ser água onde os porcos se banham, ou mesmo
outra coisa. Para que o índio yudjá possa fazer alguma afirmação é preciso, antes de mais nada, que
aquele poço de lama esteja freqüentado por porcos. Em seguida é preciso, sempre, parar e observar
o que os porcos estão fazendo: eles estão realmente bebendo? Ou eles parecem estar nadando?...
Isto é, o percepto do porco sobre aquilo que os Yudjá tem como lama depende do modo como os
porcos se relacionam com a ‘lama’. O que estamos querendo dizer é que não é possível afirmar,
como no trecho supra citado, que a lama yudjá é o cauim suíno, e isso pelas mesmas razões por que
um porco, na floresta, pode acabar se mostrando um afim potencial para o caçador yudjá – tudo
depende do modo como se dá a relação. (E aqui se entende melhor nossos comentários,
desenvolvidos mais acima, sobre o modo como a literatura vem etnografando os relatos nativos: não
é apropriado descrever o relato yudjá como “os porcos vêem lama como cauim”, pois os perceptos
não falam dos pontos de vista, dados, mas das relações que vão sendo estabelecidas nem sempre
o que os porcos vêem como cauim é lama para os Yudjá...) Para terminar esta longa nota, cito um
trecho de AmaZone, que vai neste mesmo sentido: “Durante uma tarde calorosa, conversava com
uma velha índia baré (aruak) na comunidade de São Francisco no alto rio Negro e enquanto
palestrávamos éramos a todo instante incomodados por uma mutuca que tentava, a todo custo,
sugar algum sanguinho de uma perna ou braço desavisado. De repente, como quem não quer nada,
a velha de supetão bate na mosca que cai estatelada e morta no chão. Imediatamente, um bando de
formigas, em constante vigília, se dirige até a mosca estendida no chão que é carregada com certa
dificuldade em direção ao formigueiro. Enquanto as formigas penavam para fazer com que a grande
mutuca passasse pelo pequeno buraco de entrada do formigueiro, a velha baré lança a seguinte
proposição: ‘Para essas formigas, essa mutuca é, na verdade, um grande tapir’ (Anotações de
campo)” (AmaZone 2008: [1]). Sabe-se que a mutuca serve de alimentação para as formigas, mas a
velha baré só pôde afirmar que se tratava especificamente de um tapir quando observou a
dificuldade das formigas em carregá-la para o formigueiro.
57
como artilheiro na luta contra os inimigos do Rei. Durante suas atividades foi
capturado por um grupo tupinambá e tratado como um inimigo cativo,
permanecendo prisioneiro durante cerca de nove meses. Para a infelicidade do
alemão, ser tratado como um inimigo cativo significava que ele seria,
eventualmente, morto e consumido pelos índios da aldeia onde se encontrava. O
trecho supra citado relata, justamente, um evento festivo de execução e
antropofagia de um cativo.
Ser um cativo já revela a posição que Staden ocupava em relação ao grupo
tupinambá que o capturou: o alemão era um inimigo. Aliás, uma espécie muito
peculiar de inimigo cativo: de pele muito branca, barbado, falante de uma língua
completamente estranha, Staden não tinha vergonha nenhuma em temer a morte,
e insistia em dizer que era um francês (ou seja, que era, na verdade, um amigo dos
tupinambá) – comportamento destoante do padrão dos cativos, que se portavam
com muita altivez diante do tacape do matador e insistiam em se identificar como
inimigos (Ver Viveiros de Castro 2002a). Mas se havia momentos em que Staden
não atendia as expectativas dos índios, havia outros momentos em que ele se
portava exatamente como um inimigo tupinambá
23
. E é nesse sentido que
destacamos o trecho citado: ele nos interessa não apenas pela fala de Cunhambebe,
mas, antes dela, pela justificativa de Staden na recusa do banquete. Quando
Cunhambebe oferece comida àquele estranho inimigo, ele recebe uma resposta (na
língua nativa – nunca é demais lembrar...) tipicamente tupinambá: “Um animal
irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro
homem?”. Digo ‘tipicamente tupinambá’ apostando na proposta do perspectivismo
23
Assim como se deu a relação entre Capitão Cook e os havaianos (ver Sahlins 1985)
58
ameríndio, segundo a qual a relação entre homens não é uma relação de predação:
um homem não come outro homem, mas um porco, por exemplo.
Lima (1996), ao analisar a caça/ guerra entre os Yudjá e os porcos do mato, nos relata
um mito sobre Cabeça-de-Martim-Pescador, um homem yudjá que não obteve sucesso
na caça dos porcos: seu corpo foi perfurado pelos porcos enfurecidos, e sua alma
partiu para a aldeia deles. Ali, Cabeça-de-Martim-Pescador já não se relacionava com
os porcos pela via da caça e da predação, pois já não os via como porcos, mas como
humanos – os porcos não capturaram o índio yudjá como um grande predador
(digamos, como um troféu que se traz pra casa), mas como um afim humano. Veja, no
entanto, que se o caçador tivesse tido sucesso na empreitada, ele voltaria para a aldeia
yudjá com alguns porcos na mão, para prepará-los e comê-los. Ao contrário da relação
com os porcos, a relação entre humanos não pode ser tomada como uma relação de
predação
24
.
Este exemplo é yudjá. O relatamos aqui para descrever o perspectivismo
ameríndio e, por meio deste, tentar dar conta do encontro entre Staden e
Cunhambebe. Ao recusar a oferta do índio, o alemão se justificava identificando-se
ao cativo morto: Staden dizia que, sendo humano, não poderia comer um outro
humano. Cunhambebe não discorda da justificativa de Staden e, se o leitor me
permite, parecia até reconhecer sua validade. O ponto é que, involuntariamente,
Staden acaba se conformando à imagem que Cunhambebe e seus parentes faziam
dele, pois, ao se irmanar com o cativo morto, Staden imediatamente se diferenciava
24
Com efeito, a estratégia que os porcos possuem para não serem mortos e comidos pelos Yudjá é,
justamente, mostrar-se humanos aos caçadores – e, conseqüentemente, o maior temor dos
caçadores yudjá é percebê-los como humanos (e ser capturado como um afim).
59
dos aldeões e, nesse movimento, se mostrava um inimigo. Mas não é só isso: aos
olhos de Cunhambebe, Staden não apenas se mostrava como um inimigo, mas
também se portava como tal, visto que a relação que ele estabelece com seu
interlocutor é uma relação assimétrica estabelecida a partir de um terceiro termo –
no encontro em questão, o fato de Staden solidarizar-se com o morto é
indissociável do fato de Cunhambebe tratar esse mesmo morto como inimigo, de
modo que as relações de apreensão se articulam num par assimétrico sobre um
terceiro termo.
É digno de nota que não há exatamente uma assimetria de perceptos no
encontro em questão. Ambos vêem o inimigo morto, digamos, ‘como ele é’. Não
obstante, fica claro uma assimetria entre as relações que Cunhambebe e Staden
estabelecem com o cativo: Cunhambebe tem por comida aquele que Staden
lamenta ser um companheiro morto. Como o contexto do encontro é o da refeição
festiva (e não, por exemplo, o de um velório), a relação estabelecida por
Cunhambebe é positiva, e a relação de Staden negativa: o primeiro consome
enquanto o segundo lamenta. Ou seja, tudo na mais perfeita ordem tupinambá! De
fato, a assimetria do encontro não constitui nenhum absurdo para Cunhambebe
que, em momento algum, discorda do comportamento de Staden – o que não se vê
por parte do alemão: ainda que lhe tenha oferecido a comida, o comportamento de
Cunhambebe pareceu simplesmente absurdo aos olhos de Staden, pois comer o
inimigo morto e, enquanto o fazia, tomar-se como jaguar, era algo que o indignava
sobremaneira
25
.
25
Este ponto é o mesmo observado por Viveiros de Castro emO nativo relativo, acerca de um
relato que Peter Gow narrou-lhe certa feita, e que pode ser resumido assim: uma professora
moradora da cidade de Lima (Peru) tentava, durante uma visita, convencer uma mulher piro a
60
E aqui chegamos ao momento particularmente enigmático da conversa. À
justificativa de Staden sucede a réplica de Cunhambebe: “Jauára ichê. Sou um
jaguar. Está gostoso”. Se o perspectivismo se mostrou eficaz no tratamento da
justificativa de Staden – quando este se recusa a comer o cativo –, o mesmo não
acontece no tratamento da fala de Cunhambebe, pois, como se sabe, a proposta
perspectivista tem por pressuposto a seguinte afirmação: todo agente se toma
como humano
26
. Ora, o fato de Cunhambebe identificar-se como jaguar parece
estar em função daquela estrutura perspectivista que estamos a propor. Vejamos:
Cunhambebe já estava consumindo o cativo quando ofereceu uma perna a Staden.
Ao se recusar ver aquilo como repasto, Staden estabelece, a partir de um terceiro
termo (o cativo morto), uma relação assimétrica com Cunhambebe. Nessa relação,
o alemão ocupa uma posição negativa, justificando-a ao se identificar com o cativo
(ambos humanos). Em vista dessa tomada de posição, e tendo ouvido a justificativa
de seu interlocutor, restava a Cunhambebe a posição relacional e contrária:
mantendo sua diferença frente aos inimigos cativos (ou seja, ao cativo morto e à
Staden), Cunhambebe imediatamente assume sua relação como positiva e, ao
preparar a comida de seu filho com água fervida, mas esta não se convencia porque, segundo ela, a
água fervida dava diarréia. A professora, por sua vez, zombou da resposta e tentou explicar que o
que causava diarréia era, justamente, a ingestão de água não-fervida. Mas a mulher pior replicou:
“Talvez para o povo de Lima isso seja verdade. Mas para nós, gente nativa daqui, a água fervida dá
diarréia” (Gow apud Viveiros de Castro 2002d: 138). Ao analisar a anedota, Viveiros de Castro faz a
seguinte observação: “A mulher piro concordou em discordar, mas a professora, de modo algum. A
primeira não contestou o fato de que as pessoas da cidade de Lima (“talvez”) devam beber água
fervida, ao passo que a segunda recusou peremptoriamente a idéia de que as pessoas de Santa Clara
não o devam” (2002d: 139).
26
O argumento perspectivista tem como pressuposto que todo agente se vê como humano, inclusive
nas dinâmicas transformacionais: um xamã, por exemplo, pode ver as onças como gente; pode até
ver seus companheiros de aldeia como animais – e estes companheiros, por sua vez, podem
perceber o xamã como não-humano (ver Vilaça 1998) –, mas o xamã não chega a ver a si mesmo
como não-humano: assim, segundo o argumento perspetivista, todo agente vê a si mesmo como
humano. Claro está, ademais, que nossa interpretação parte da idéia de que a fala de Cunhambebe,
sua auto-identificação como jaguar, não passa pelo universo das representações, metáforas...
61
comer do cativo (humano como o alemão), se justifica tomando-se como jaguar –
como se sabe, os jaguares são justamente aqueles que se relacionam com os
humanos pela via da predação (tratando-os como presas). A justificativa de
Cunhambebe arremata aquela de Staden e atualiza o par assimétrico de relações.
Tais considerações reforçam a proposta de uma abordagem efetuada a partir
do conceito de estrutura, pois, de fato, o encontro se dá entre dois pontos de vista
distribuídos em posições relacionais (Eu/ Outro) que atualizam um par de posições
assimétricas através de um terceiro termo – no relato de Staden, o alemão ocupa a
posição enunciativa e Cunhambebe a posição de outrem, sendo que o primeiro
atualiza o modo negativo da relação, enquanto o segundo, com uma perna na mão,
atualiza o modo positivo.
Aos poucos vamos apresentando os motivos que nos levam a reivindicar, para o
material etnográfico em questão, o conceito de estrutura. Comparando alguns relatos
ameríndios de relações intersubjetivas, vimos que:
(1) Estes relatos parecem sempre descrever encontros entre duas subjetividades
dispostas nas posições relacionais Eu/ Outro. Tais posições são relacionais, em
primeiro lugar, porque são pronominais
27
e, em segundo lugar, porque estas posições
não existem fora de uma relação estabelecida – estas posições não existem por si,
como pontos de vista: ao contrário, elas só emergem no estabelecimento de uma
relação.
(2) Estes relatos – deliberadamente escolhidos – apresentam uma mesma forma de
relação: um desacordo intersubjetivo mediante de um terceiro termo. Este terceiro
27
Assumir a perspectiva enunciativa – Ego –, implica em uma distribuição pronominal dessas
posições: ou seja, para o outro, o ‘Eu’ é ele...
62
termo, como bem demonstrou Viveiros de Castro e Lima, não existe por si mesmo: ele
é sempre algo para alguém, ou melhor, algo para uma relação. Pois, como vamos
sugerindo, os perceptos que incidem sobre esse termo não apontam para dois pontos
de vista específicos, mas para uma estrutura intersubjetiva. O ponto é que este terceiro
termo é imanente a uma forma específica de relação (deixemos avisado, desde já, que
no capítulo seguinte abordaremos outras formas de relação...)*. Enfim, esta forma
específica de relação, como vimos, caracteriza-se por articular um par de relações
assimétricas (uma positiva/ outra negativa) mediante um terceiro termo.
3) Dívidas e reparações
Se há alguma justiça nas críticas empreendidas acerca da centralidade do
conceito de ponto de vista, há certamente, também, alguma injustiça em nosso
comentário. Os comentários acima se endereçam apenas a certas tendências de um
argumento realmente amplo e complexo, do qual, na verdade, não nos afastamos:
neste capítulo empreendemos uma crítica perspectivista do perspectivismo, ou
melhor, procuramos potencializar aqueles momentos em que o argumento de Lima
e Viveiros de Castro ressaltam as relações em detrimento dos pontos de vista.
Assim, se problematizamos alguns pontos do argumento, o fizemos na busca de
desenvolver outros tantos. Vide as seguintes passagens de Lima:
“O ponto de vista implica uma certa concepção, segundo a qual só
existe mundo para alguém. Mais especificamente, seja um ser ou
um acontecimento [...], o que existe, existe para alguém. Não há
realidade independente de um sujeito. No entanto, conforme
tentarei mostrar nas seções seguintes, sucede que o que existe para
63
o caçador quando ele toma a palavra para falar de si mesmo é
apenas parte daquilo que existe para outrem” (Lima 1996: 31)
Este trecho está a afirmar que não há realidade independente de um sujeito, ou
seja, que o mundo está implicado nos pontos de vista: o que existe para o caçador
yudjá é parte do que existe para outrem
28
. No entanto, dez páginas adiante neste
mesmo artigo lê-se o seguinte trecho:
“O sujeito ao qual os acontecimentos são referenciados não é um
centro em torno do qual gira seu próprio mundo. Trata-se antes de
um Sujeito disperso no tempo-e-espaço cósmico, duplicado entre a
vida sensível e a vida da alma, partido entre Natureza e Sobre-
natureza, e complexificado por seu Outro” (Lima 1996: 41)
Ora, é a partir de trechos como este que elaboramos nossas propostas. Veja que
apesar de os acontecimentos permanecerem referenciados ao sujeito, este agora se
mostra disperso no tempo-e-espaço, partido entre corpo e alma, em suma,
complexificado pelo outro. É digno de nota que esta passagem venha logo após a
análise que Lima empreende sobre a relação entre os caçadores e os porcos. Neste
momento a autora destaca o perigo da caçada, ou seja, a possibilidade do caçador
passar a ver os porcos como afins potenciais: ver os porcos como caça ou como
28
O fundamento etnográfico do argumento de Tânia Stolze Lima sobre a noção de ponto de vista
encontra-se na seguinte observação: “Em meu trabalho de campo, uma das primeiras coisas a
chamar-me a atenção foi a marca indelével, mas muito misteriosa, da noção de ponto de vista.
Certas frases, ditas para mim em português, comoisso é bonito para mim,bicho virou onça para
ele’, ‘apareceu caça para nós quando estávamos fazendo canoa’, pareciam remeter exclusivamente à
estrutura gramatical de uma língua que eu não dominava, mas que transparecia no português dos
[Yudjá]. Depois que comecei a arranhar algumas frases, as construções que ensejavam tais
traduções, nunca deixaram de soar estranhas; dentre as práticas [yudjá] mais difíceis de assimilar
eu as destacaria, em primeiro plano e sem hesitação: Amãna ube wï – não é fácil dizer isso sem se
desconcertar, desagradavelmente ou não. Sentia-me dizendo ‘choveu para mim’, e ‘não choveu onde
eu estava’. Essa maneira de relacionar à pessoa até mesmo os acontecimentos mais independentes e
alheios à nossa presença deixa sua marca na cosmologia [yudjá]” (Lima 1996: 30). Este trecho, por
várias (e óbvias) razões, está entre aqueles que eu mais gosto no trabalho de Lima. Sua conclusão é a
de que as ‘coisas’ que compõem o cosmos só existem em relação à alguém. O ponto que quero
somar a esta observação é que este alguém também está em relação com a ‘coisa’ apreendida, e que,
assim, os perceptos mudam conforme mudem as relaões. Enfim, nossa sugestão é que os perceptos
indicam mais uma relação estabelecida do que um ponto de vista dado.
64
afins não depende propriamente do ponto de vista dos caçadores yudjá (e,
portanto, de uma troca de perspectivas), mas da relação que os caçadores
estabelecem com os porcos do mato. As relações, aqui, se sobrepõem aos pontos de
vista.
Ora, o primado das relações nunca deixou de ser proposto por Viveiros de
Castro, cujo estilo de análise etnológica, como é sabido, passa tanto pelo
estruturalismo de Lévi-Strauss, quanto pela filosofia de Deleuze e Guattari.
Tratando do tema do perspectivismo ameríndio em “A propriedade do conceito”
(2001), o autor discorre sobre a anterioridade ontológica das relações, sugerindo a
presença de Outrem enquanto estrutura a priori e o vínculo de alteridade
como o
modelo da relação relacionante: “o perspectivismo amazônico poderia ser descrito
como uma ontologia relacional [...] onde a relação primeira é o nexo da alteridade,
a diferença ou ponto de vista implicado em Outrem” (Viveiros de Castro 2001: 09).
No entanto, essa alteridade ontológica não parece incidir sobre o jogo
epistemológico do perspectivismo. Tudo se passa como se a compreensão do
perspectivismo exigisse, como pressuposto lógico condicionante, a identidade
anímica e formal entre os pontos de vista
29
. Ponto importante, esta identidade se
fundamenta em uma
auto-relação, em uma “equivalência lógica das relações
reflexivas que cada espécie, a humana inclusive,
entretém consigo mesma
(Viveiros de Castro 2002b: 376, grifos adicionados). E, com efeito, parece ser nesta
auto-relação que o conceito de perspectiva, entendido como esquema de percepção,
se assenta:
29
Como já vimos, o autor propõe o perspectivismo como um corolário epistemológico do animismo
(ver Viveiros de Castro 1996).
65
“Todo ser que ocupa vicariamente um ponto de vista de referência,
estando em posição de sujeito, apreende-se sob a forma da
humanidade.
A forma corporal humana e a cultura – os esquemas
de percepção e ação 'encorporados' em disposições específicas
são atributos pronominais [...]. Esses atributos são imanentes ao
ponto de vista, se deslocam com ele” (Viveiros de Castro 2002b:
374, grifos adicionados)
A questão que queremos sublinhar é que a cultura, enquanto esquema de
apreensão, se funda na relação da perspectiva consigo mesma (e não em uma
relação de alteridade). Os fatos dos humanos parecerem aos humanos o que os
jaguares parecem aos jaguares tende a ser tomado como logicamente anterior à
diferença dos perceptos articulados no encontro entre os humanos e os jaguares
(afinal, antes dos perceptos há os esquemas de percepção). Se “a Cultura é a
natureza o Sujeito” (2002b: 374), é porque ela é o modo próprio de experiência dos
pontos de vista.
A idéia da cultura como modo de experiência dos pontos de vista tem duas aplicações:
a cultura refere-se ao esquema perceptivo que possibilita a mirada de um ponto de
vista, ao mesmo tempo em que se refere à forma manifesta desta mirada (o
percepto)
30
. Diferentemente, a idéia da natureza, “como forma do Outro enquanto
corpo” (2002b: 381), refere-se apenas à forma manifesta da mirada. Ou seja, o ato de
ver só é possível enquanto cultura, mas os perceptos podem tomar a forma da cultura
ou da natureza (afinal, o que é natureza para uns é cultura para outros): nesse sentido,
30
“[Os pontos de vista] experimentam seus próprios hábitos e características sob a espécie de
cultura: vêem seu alimento como alimento humano (os jaguares vêem sangue como cauim, os
mortos vêem grilos como peixes), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.)
como adornos e instrumentos culturais, seu sistema social como organizado identicamente às
instituições humanas (com chefes, xamãs, ritos, regras de casamento etc)” (Viveiros de Castro
2002b: 350).
66
a Cultura engloba a natureza
31
. Enfim, sobre a tendência do argumento perspectivista
em fundar o conceito de ponto de vista na auto-relação ‘cultural’, vide o seguinte
trecho: “A cultura tem a forma do pronome-sujeito ‘eu’; a natureza é a forma por
excelência da ‘não-pessoa’ ou do objeto, indicada pelo pronome pessoal ‘ele’” (2002b:
381).
*
Mas, repito, se problematizamos o conceito de ponto de vista, o fazemos para
sugerir uma outra abordagem. Esta outra abordagem não é exatamente uma
abordagem nova, e muito menos nossa. Ao observar que os perceptos se articulam
em pares cujo padrão procuramos descrever (observação que nos levou a sugerir
que estas apreensões se dão menos como índices dos pontos de vista específicos
que como índices de uma estrutura intersubjetiva), não estamos a fazer outra coisa
que trazer o ponto central da mais famosa proposta maussiana para o interior da
análise do complexo etnográfico em questão. Assim, ver o dom como dívida ou
como crédito não depende do ponto de vista dos prestadores, mas da posição que
eles ocupam na relação de troca: enquanto o donatário tem o presente como
dívida, o doador o toma como crédito. Dívida/ crédito formam um par de
perceptos que, apesar de igualmente verdadeiros, apresentam claramente uma
diferença de status. O ponto importante a se reter é que donatário e doador não se
constituem como pontos de vista do modo como o perspectivismo pensa este
31
Se a noção Cultura é, ao mesmo tempo, percepto (apreensão) e ponto de vista (capacidade de
apreensão), a noção de natureza se dá apenas como percepto e a de sobrenatureza apenas como
ponto de vista. Ver Viveiros de Castro 2002b.
67
conceito: donatário e doador são posições implicadas em uma estrutura de troca,
ou seja, não existem fora de uma relação estabelecida
32
.
4) Prefácio ao Capítulo 3
Apesar das críticas, esta dissertação continuará a trabalhar com o conceito
de ponto de vista. Apostando que o perspectivismo trata de encontros entre duas
subjetividades distribuídas nas posições relacionais ‘Eu’ e ‘Outro’, tomamos o
conceito de ponto de vista para apontar, justamente, a posição donde se descreve o
encontro (‘Eu’). Mas, desse modo, implicado numa estrutura, o conceito de ponto
de vista vem esvaziado de todo seu conteúdo, não desempenhando qualquer papel
condicionante, ou constituinte: o conceito de ponto de vista é tratado aqui como
um recurso lógico. O que estamos propondo é uma outra analogia para se pensar o
perspectivismo ameríndio: ao invés de tratá-lo a partir do paradoxo do relativismo
lévi-straussiano, vamos tratá-lo a partir de uma analogia já clássica, a saber, a da
genealogia. Vejamos.
A rede de relações de uma árvore genealógica é constituída pelos laços de
consangüinidade e de afinidade. Atribuir a posição de Ego a qualquer indivíduo da
árvore, antes que um instrumento proposto por um analista, é um recurso lógico
instituído pela própria rede de relações – recurso que consiste em distribuir os
laços de parentesco a partir de um ponto de referência. Assi, os termos de
parentesco (pai, mãe, filho, sobrinho...) que cabem à Ego, apesar de, digamos, se
32
Nossa analogia, no entanto, não irá adiante: me refiro aqui à possibilidade de entender a troca de
pontos de vista no perspectivismo ameríndio a partir do modelo do intercâmbio das dádivas.
Trataremos a questão da troca de perspectivas no capítulo seguinte.
68
arrastarem com ele, não são constituídos por ele: os termos manifestam os laços de
consangüinidade e afinidade que Ego mantêm com seus parentes. São estes laços, e
não a mirada de Ego, que constituem a rede de relações de uma árvore qualquer.
O leitor já pode perceber as razões do interesse por tal analogia. Em
primeiro lugar, ter determinada pessoa como irmão não depende da mirada de
Ego, mas de um laço consangüíneo específico – aquele que liga Ego ao outro filho
de seus pais. Do mesmo modo, sugerimos que ver uma certa pessoa como porco
não é algo que depende da mirada de um ponto de vista, mas de algum laço
específico que relaciona esta perspectiva àquela certa pessoa (o porco)
33
.
Ademais, e extrapolando um pouco a analogia, sempre há a possibilidade de
alguém inicialmente estranho se mostrar um ‘irmão’ para Ego, ao partilhar outros
laços importantes que não sejam aqueles instituídos pela consangüinidade
fraternal – e, ao contrário, um irmão de sangue, outro filho dos pais de Ego, pode
bem se mostrar um estranho e um inimigo, como Caim se mostrou à Abel. Esta
dinâmica também pode ser vista no perspectivismo ameríndio: aquele que
inicialmente se mostra como um porco pode bem se revelar um humano, assim
como um humano pode vir, eventualmente, a se mostrar como um porco
34
. Ou seja,
33
Este laço específico é uma questão para ser formulada e analisada. Se as apreensões não são
constituídas pela mirada de um ponto de vista, a pergunta que fica é a seguinte: o que faz as vezes
das relações de afinidade e consangüinidade no perspectivismo ameríndio? Ou ainda: se o fato de eu
chamar alguém de ‘irmão’ aponta um laço de consangüinidade específico, o fato de eu chamar
alguém de ‘porco’ aponta que tipo de laço constituinte? Assim, a abordagem que vamos aqui
esboçando acaba por questionar um dos pontos de maior fortuna da proposta de Viveiros de Castro
e Lima: se a diferença dos perceptos se dá conforme as relações, e não conforme os pontos de vista,
então coloca-se em xeque a questão do idioma corporal como locus da diferença de perspectivas.
Nos reservamos outra oportunidade para tratar dessa questão.
34
Sobre o caso de um porco passar a mostrar-se como humano, lembremos do mito yudjá sobre
Cabeça-de-Marim-Pescador: o caçador sai à floresta em busca de porcos, mas acaba vendo-os como
humanos, passando a viver com eles. Já sobre o caso de um humano passar a mostrar-se como
porco, destacamos um relato de Vilaça sobre os Wari’: em certa ocasião, Orowan, xamã wari’ que
tem seu espírito morando com a gente-Onça, preparava-se “para atacar as pessoas que o
69
ter alguém como irmão ou como estranho, ver alguém como porco ou como
humano, não é algo que depende da mirada de um ponto de vista, mas das relações,
dadas ou estabelecidas, entre as subjetividades.
Em segundo lugar, a analogia nos ajuda a entender a questão dos pares de
apreensões, abordada, aqui, a partir de um texto clássico de Rivers. Em “O método
genealógico na pesquisa antropológica” (1910), Rivers nos informa seu método de
coletar as genealogias: “Meu procedimento é perguntar ao informante os termos
que ele aplicaria a diferentes membros de sua genealogia e, reciprocamente, que
aqueles aplicariam a sua pessoa” (Rivers 1991: 55). Não discuto aqui a questão da
eficácia do método na coleta da genealogia, que já foi devidamente criticada.
Chamo atenção apenas para o pressuposto da proposta: o fato de que os termos
aplicados reciprocamente por duas pessoas se associam em pares. Analisando um
caso específico, diz o autor:
“Os termos aplicados um ao outro por Vakoi e Arthur deram os
equivalentes a “filho da irmã” e “irmão da mãe”, respectivamente;
no parentesco de Komboki e Arthur surgiram os termos “esposa do
irmão da mãe” e “filho da irmã do marido”” (Rivers 1991: 55)
Para cada tio ou tia há um sobrinho ou uma sobrinha. Esses termos se
articulam em pares e indicam um laço de parentesco específico. Pois bem. Cabe
notar, para o desenvolvimento da analogia, que estes pares podem se articular de
duas formas. No primeiro caso, os termos não apenas remetem um ao outro, como
se correspondem, manifestando uma mesma e única relação. Meu avô Firmino, por
circundavam, dentre elas eu e seu neto classificatório. Ele coçava os olhos e rugia. Seu neto que
percebeu o que acontecia, conversou com ele, lembrando-lhe que eram parentes os que estavam ali
(incluindo-me, por gentileza, nesse grupo)” (Vilaça 2000: 63). Para Orowan, o que era wari’
(humano) passa a se mostrar como karawa (não-humano, presa) – nesse sentido, as pessoas que o
circundavam foram tomadas como se fossem porcos.
70
exemplo, se refere a mim como neto: avô/ neto formam um par de termos que se
correspondem, apontando para uma relação específica. Há, por outro lado, o par de
termos que tratamos ao longo deste capítulo, ou seja, aquele que se articula a partir
de uma terceira pessoa e se caracteriza pela não correspondência dos termos. Ora,
isto, como vimos, significa dizer que os termos subsumem duas relações distintas.
Ronaldo, por exemplo, tem minha irmã Marcela como sua esposa: irmã/ esposa
formam um par de termos não correspondentes, apontando para duas relações (a
primeira por consangüinidade, a segunda por afinidade)
35
. Estas considerações nos
ajudarão a entender melhor os pares de perceptos assimétricos dos relatos
etnográficos que vamos trabalhar. Os pares de perceptos são de dois tipos: (i) há
pares de perceptos que, apesar de assimétricos, se correspondem, indicando uma
única relação (avô/ neto); (ii) há pares de perceptos assimétricos que não se
correspondem, indicando duas relações articuladas a partir de um terceiro termo
(irmã/ esposa). Desenvolveremos esta proposta no capítulo seguinte.
Por ora, destacamos o potencial desta analogia que, como qualquer outra,
possui suas ressalvas. Sobre as ressalvas, nos referimos à questão do
multinaturalismo, posto que, em uma árvore genealógica qualquer, o pai de uma
pessoa pode ser visto, ao mesmo tempo, como o marido de outra, filho de um
terceiro e irmão de um quarto. Pai/ marido/ filho/ irmão formam um conjunto de
apreensões dado num encontro real e simultâneo entre uma multiplicidade de
subjetividades, o que, como procuramos mostrar, não parece acontecer no
perspectivismo ameríndio. Não obstante, esta analogia nos ajuda vislumbrar
35
E vimos como no perspectivismo ameríndio este tipo de relação se caracteriza por uma diferença
de status entre o par de relações. Isto pode ser ilustrado na analogia que propomos, pois, no Dia dos
Namorados, são eles, Marcela e Ronaldo, quem trocam presentes.
71
pontos cruciais do perspectivismo, entre eles o fato de que os perceptos remetem
uns aos outros, articulando-se em pares de apreensões que são índices de relações,
antes que de pontos de vista.
Esta dissertação, assim, procura propor outra abordagem para o complexo
etnográfico visado. O argumento de Viveiros de Castro e Lima, do qual partimos, se
desenvolve baseado em duas observações etnográficas: por um lado, a alteridade
das apreensões dada nos encontros entre diferentes perspectivas; por outro, a
equivalência da auto-apreensão, visto que todas as perspectivas se percebem sob a
forma da Cultura. Ou seja, por um lado os pontos de vista se diferenciam, por
outro, se assemelham: (i) as relações assimétricas e os pares de perceptos remetem
à especificidade dos pontos de vista (à particularidade dos corpos das diferentes
espécies viventes); (ii) as relações comunicativas e a troca de perspectivas remetem
à generalidade dada entre os pontos de vista (ao fundo comum mítico animista).
Pois bem. Se o argumento dos autores propõe uma abordagem fundamentada nas
relações entre
pontos de vista, supomos uma abordagem fundamentada na noção
de ‘estrutura’, entendida aqui como relações
entre relações...
72
Capítulo 3 – Hipóteses de trabalho
“O terceiro volume [...] dá um passo decisivo. Trata-se dos
mitos que, em vez de colocarem termos em oposição, opõem
os modos diferentes segundo os quais esses termos vêm a
opor-se entre si: eles podem ser conjugados; podem também
ser separados. Como, perguntam-se os mitos, se opera a
passagem de um estado a outro?”
Claude Lévi-Strauss (De perto e de longe, 1988)
A abordagem do perspectivismo ameríndio proposta por esta dissertação
também tem como elemento chave a noção de relação. Iniciamos o último capítulo
tratando do modo como o argumento de Viveiros de Castro e Lima discorre sobre a
o conceito de relação (na seção “Entre pontos de vista), para então, traçando
algumas diferenças entre as propostas destes autores e as nossas, esboçar algumas
hipóteses de trabalho a respeito da possibilidade de uma estrutura relacional
perspectivista.
1) Entre pontos de vista
Vimos como a economia do argumento de Viveiros de Castro e Lima gira em
torno do conceito de ponto de vista. Dado a variedade de espécies viventes dotadas,
cada qual, de uma perspectiva específica, tem-se que, em condições normais, os
encontros intersubjetivos se caracterizam por uma assimetria de perceptos, ou seja,
pelo perspectivismo: o que um ponto de vista vê como x, outro vê como y. A
proposta procura compreender a alteridade das apreensões através da diferença de
perspectivas. Note-se, no entanto, que não são todos os encontros de perspectivas
que se caracterizam pela alteridade de apreensões: há encontros em que diferentes
73
pontos de vista se tratam como humanos. Pois bem. Se a abordagem dos autores
lida bem com a assimetria dos perceptos, o mesmo não nos parece acontecer
quando o argumento versa sobre estes encontros, inter-específicos, em que pontos
de vista distintos se tomam como humanos – isto que nos parece uma dificuldade
talvez já esteja indicada na maneira como o argumento descreve as relações
intersubjetivas: o perspectivismo (onde se manifesta assimetria de perceptos) é
tomado como um encontro entre diferentes perspectivas dado em condições
normais; mas o xamanismo (onde todos se vêem como humanos) é tomado como
uma relação dada em outras condições... De qualquer modo, é digno de nota que a
questão das relações humanas inter-específicas tenha sido inicialmente tratada por
uma abordagem centrada na dinâmica da troca de perspectivas, desenvolvendo-se
posteriormente sob uma abordagem deleuziana.
1.1) Troca de Perspectivas
A troca de perspectivas é uma proposta que procura entender as relações em
que as diferentes perspectivas se tomam como humanas. Esta proposta se constitui
partindo da afirmação de que “os humanos, em condições normais, vêem os
humanos como humanos e os animais como animais” (Viveiros de Castro 2002b:
350). Cunhambebe, por exemplo, vê a si mesmo como humano e as onças como
onças. Mas quando Cunhambebe passa a se ver como onça é sinal de que as
condições de percepção já não são as normais, ou seja, é sinal de que ele passa a se
apreender por outro ponto de vista. A troca de perspectivas explica este tipo de
experiência sugerindo a existência de dois modos de apreensão: aquele que se dá
74
em condições normais e aquele dado em outras condições. As condições normais
promoveriam a apreensão segundo o ponto de vista próprio do sujeito, enquanto as
outras condições possibilitariam uma apreensão através do ponto de vista alheio.
Cabe notar, aqui, que estas considerações partem do pressuposto de que os pontos
de vista são anteriores aos sujeitos: uma pessoa qualquer só é capaz de ver e
perceber o mundo quando é agenciada por uma perspectiva:
“A idéia básica (que não é uma idéia simples) do perspectivismo,
tanto o indígena quanto seu análogo ocidental, é que toda posição
de realidade especifica um ponto de vista, e que todo ponto de vista
especifica um sujeito – nessa ordem” (Viveiros de Castro 2001: 08)
A anterioridade da perspectiva em relação aos sujeitos torna logicamente possível,
a uma pessoa, seguindo técnicas específicas, circular pelos pontos de vista que
compõem o cosmos e, nesse movimento, ser agenciado por outros pontos de vista.
A transformação dos perceptos indica este intercâmbio, ou seja, a passagem das
condições convencionais para as condições não-convencionais de apreensão.
Vejamos um exemplo: os porcos são vistos como porcos pelos humanos, mas sabe-
se que eles próprios se percebem como humanos. Se um xamã passa a perceber os
porcos como humanos, é sinal de que sua apreensão começa a se dar através do
ponto de vista dos porcos, pois é exatamente este ponto de vista que toma como
gente o que na perspectiva do xamã é porco.
Este exemplo, apesar de abstrato, não é fortuito. O xamanismo apresenta-se
como campo estratégico para as considerações perspectivistas acerca das trocas de
pontos de vista. Segundo Viveiros de Castro (2002b), o xamã é o operador
conspícuo do intercâmbio perspectivista, visto ser aquele que possui a habilidade
manifesta de adotar o ponto de vista de outras subjetividades. O autor funda esta
75
afirmação na constatação de que o xamã, em suas relações com outros seres, toma-
os, sempre, como humanos – o que sugere que o xamã os apreende pelos pontos de
vista que lhes são próprios.
No entanto, a dinâmica do xamanismo não se encerra nesta identificação:
“Ao longo de suas viagens a outros mundos, [o xamã] observa sob
todos os ângulos, examina minuciosamente e abstém-se
cuidadosamente de nomear o que vê. Donde a suspensão da
linguagem ordinária, substituída por 'palavras torcidas' [...]. Como
se escrutasse por apalpadelas, como se abordasse um domínio
desconhecido cujos objetos só se deixam ver parcialmente, o xamã
adota uma linguagem que expressa um ponto de vista parcial. Essas
manchas claras são brânquias de peixes ou o colar de um caititu? E
o peixe acaba sendo chamado de caititu” (Carneiro da Cunha 1998:
13)
Na experiência xamânica também se pode observar a assimetria de perceptos: o
xamã toma peixe por caititu. É por isso que, ao abordar um domínio desconhecido,
o xamã se comporta com tamanha hesitação. O interessante, aqui, é observar que a
assimetria de perceptos constitui-se como a própria condição que permite ao xamã
administrar as relações interespecíficas e, assim, assumir o papel de tradutor dos
encontros entre perspectivas – ou seja, a assimetria de perceptos faz parte da
experiêcnia xamânica. No entanto, pode-se ver como esta assimetria problematiza
o argumento da troca de perspectivas: se a experiência xamânica é dada pelo ponto
de vista alheio (ver como os outros vêem), como explicar então essa assimetria de
perceptos (não ver como os outros vêem)?
76
1.2) Síntese disjuntiva
O xamanismo, portanto, se apresenta como uma questão esquiva para o
argumento perspectivista. Não se encerrando em uma dinâmica identitária, o devir
xamânico não pode ser descrito como uma experiência cujo agenciamento se dá
através de um ponto de vista alheio. A dificuldade, assim, está no fato de que a
dinâmica relacional do xamanismo não se mostra exatamente a mesma que a
dinâmica relacional intra-específica, que inicialmente parecia remeter: as pessoas
se vêem como humanas, mas também se diferenciam por uma assimetria de
perceptos. Assim, o xamanismo manifesta, por um lado, a dinâmica relacional
própria dos encontros intra-específicos (os sujeitos se vendo, mutuamente, como
humanos) e, por outro lado, a dinâmica relacional típica dos encontros inter-
específicos (uma assimetria de perceptos sobre um terceiro termo).
Esta é uma das questões sobre a qual, me parece, Viveiros de Castro vem se
debruçando nos últimos anos. Abordando-a a partir de uma ferramenta conceitual
proveniente da filosofia deleuziana, o autor propõe um tratamento cujo trajeto
procuro descrever a seguir, de um modo, se me permite o leitor, mais ou menos
despojado.
Nosso ponto de partida é o texto intitulado “Atualização e contra-efetuação
do virtual: o processo do parentesco” (2002)
1
. A influência de Deleuze e de seu
parceiro Guattari no trabalho de Viveiros de Castro é marcante e bem anterior ao
artigo em questão. Iniciamos nossa análise com este artigo por considerá-lo o
1
A primeira versão deste artigo foi publicada em Ilha: Revista de Antropologia, 2 (1), no ano de
2000. Uso aqui a versão revisada que está publicada na coletânea de artigos A inconstância da
alma selvagem – e outros ensaios de antropologia (2002).
77
primeiro a desenvolver mais sistematicamente o tema da síntese disjuntiva no
tratamento do material etnográfico ameríndio. O texto apresenta algumas
propostas referentes à questão da socialidade amazônica, através de uma leitura
original da relação do par consangüinidade/ afinidade. Sua tese passa por duas
considerações etnográficas. Em primeiro lugar, o autor observa que ao padrão
concêntrico das organizações sociopolíticas amazônicas corresponde uma dinâmica
relacional intersubjetiva que pode ser assim descrita: “à medida que passamos da
área proximal às regiões distais do campo relacional, a afinidade vai
progressivamente prevalecendo sobre a consangüinidade, acabando por se tornar o
modo genérico da relação social” (Viveiros de Castro 2002c: 409). Destaque-se do
trecho a idéia da afinidade ser o modo genérico da relação. Em outra ocasião, o
autor se exprime da seguinte forma:
“The common word for the relation, in Amazonian worlds, is the
term translated by ‘brother-in-law and/or ‘cross-cousin’. This is
the term we call people we don’t know what to call, those with
whom we wish to establish a generic relation. In sum,
‘cousin/brother-in-law’ is the term which creates a relation where
none existed” (Viveiros de Castro 2004: 18)
Mas se a afinidade se constitui como o modo geral da relação, isso não se deve,
exatamente, ao fato de se perpetuar em extensão, ou seja, de se aplicar à todas as
pessoas, outras, com as quais os vínculos por matrimônio não chegam a ser uma
possibilidade real ou pertinente. Não é nesse sentido que a afinidade engloba a
consangüinidade. A afinidade é tomada como o princípio geral da socialidade em
razão da natureza de sua relação – e aqui chegamos à segunda observação
etnográfica que nos referimos acima: “[A afinidade] é um vínculo no qual os termos
se ligam por diferirem em sua relação com o termo de ligação: minha esposa é tua
78
irmã etc. O que nos une é o que nos distingue” (Viveiros de Castro 2002c: 423). É
por ser um vínculo que liga-e-separa
2
, por se caracterizar como uma síntese
disjuntiva, que a afinidade é tomada como o modo genérico da relação. Cabe notar
que este modo genérico da relação, este princípio geral de socialidade, se refere
menos à afinidade como manifestação particular (afinidade matrimonial) do que à
afinidade como valor genérico: o fundo infinito de socialidade virtual remete à uma
afinidade potencial. Enfim, é esta afinidade potencial que é dada como condição
das relações sociais e, em particular, da construção do parentesco: “a afinidade
potencial é a fonte da afinidade atual, e da consangüinidade que esta gera. E assim
é porque relações particulares devem ser construídas a partir de relações genéricas”
(Viveiros de Castro 2002c: 420-21).
Chegamos, aqui, à tese do artigo: as relações efetivas são atualizações de um
fundo virtual infinito de socialidade sintético-disjuntiva. No que toca ao
parentesco, a consangüinidade é algo que se deve ‘extrair’ da afinidade potencial
(virtual e genérica). Um dos corolários desta proposta é a afirmação de uma
continuidade relacional entre afinidade e consangüinidade, de modo que o
parentesco indígena, como construção perpétua, é uma questão de movimento
gradual: os afins, potenciais ou efetivos, podem ser consangüinizados por
atualização e os consangüíneos, por sua vez, podem ser afinizados por contra-
efetuação. Resta dizer que estes processos de atualização e contra-efetuação,
apesar se estenderem num continuum de socialidade virtual (afinidade potencial),
são de qualidades distintas: enquanto a atualização é o movimento da afinidade
2
“Recorde-se que tovajar, palavra tupinambá que significava ‘cunhado’ e ‘inimigo’, exprimia tanto a
aliança amigável dentro como a inimizade mortal fora, e muito provavelmente vice-versa. Ela
aproximava e opunha de um só golpe” (Viveiros de Castro 2002c: 409).
79
diferenciando-se de si mesma, a contra-efetuação é o movimento da afinidade se
potencializando – ou seja, a dinâmica relacional desses dois processos se organiza,
ela mesma, como síntese disjuntiva.
Ora, esta tese parece ser a mesma que aquela mais recentemente defendida
em “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”
(2006)
3
. Este artigo se inicia com a exposição de um relato que Davi Kopenawa
Yanomami faz ao antropólogo Bruce Albert a respeito dos espíritos xapiripë.
Partindo desse relato, Viveiros de Castro chama atenção para os pontos que
caracterizam o modo de existência e manifestação desses espíritos, dedicando-lhes
uma interpretação bastante instigante: “xapiripë, menos ou antes que designando
uma classe de seres distintos, fala de uma região ou momento de indiscernibilidade
entre o humano e o não-humano” (Viveiros de Castro 2006: 321). Como o leitor já
percebeu, a maneira de descrever os espíritos xapiripë se assemelha muito à
caracterização da afinidade potencial, que menos ou antes que uma relação efetiva,
designa um fundo de socialidade sintético-disjuntiva.
Posto isso, o argumento de Viveiros de Castro estabelece duas aproximações.
Em primeiro lugar, o autor aproxima as descrições dos espíritos amazônicos à dos
personagens míticos. Isso lhe permite sugerir que
“[O tempo mítico], muito longe de exibir uma ‘indiferenciação’ ou
‘identificação’ originárias entre humanos e não-humanos, como se
costuma caracterizá-lo, é percorrido por uma diferença infinita,
ainda que (ou porque) interna a cada personagem ou agente”
(Viveiros de Castro 2006: 323).
3
Com efeito, em “Atualização e contra-efetuação...” (2002) já se apontava a possibilidade de se
estender o argumento para a compreensão das relações inter-específicas: “Isso que chamo de fundo
de socialidade virtual encontra sua plena expressão na mitologia indígena, onde se acha registrado
o processo de atualização do presente estado de coisas” (Viveiros de Castro 2002c: 419).
80
Ou seja, o tempo mítico se constitui como um fundo infinito de socialidade virtual.
Um dos corolários dessa idéia está na sugestão de que os mitos ameríndios estão a
narrar, entre outras coisas, o processo de atualização do cosmos, de especiação dos
pontos de vista. O estado de coisas atual remete a esse fundo virtual mítico
4
.
Em segundo lugar, o autor aproxima, sempre por meio da apresentação de
uma diversidade de referências etnográficas, a experiência dos xamãs à ontologia
dos espíritos. Para ficarmos com o caso yanomami, “o termo xapiripë se refere
também aos xamãs humanos, e a expressão ‘tornar-se xamã’ é sinônima de ‘tornar-
se espírito’, xapiri-pru” (Viveiros de Castro 2006: 312). A experiência do xamã,
assim, parece remeter àquele fundo virtual de diferença infinita que caracteriza o
tempo mítico. Ora, estas considerações, se bem entendo, apontam para a leitura de
que o devir xamânico se desenrola em um processo contrário à atualização narrada
no mito, o que implica dizer que a experiência do xamã aponta para um processo
de contra-efetuação: à atualização dos pontos de vista seguiria-se a possibilidade
da contra-efetuação xamânica
5
, tomada aqui como uma experiência de síntese
disjuntiva, ou seja, de uma articulação dada através de uma assimetria de
perceptos – o que finalmente nos permite retomar aquela questão inicial, esquiva:
o devir xamânico não passa exatamente por uma troca de perspectivas, mas, ao que
parece, por um processo de contra-efetuação do virtual mítico.
4
O fato de Viveiros de Castro propor que as perspectivas atuais remetem ao fundo virtual mítico (ou
seja, que os pontos de vista são ontologicamente relacionais), não chega a comprometer as críticas
elaboradas no capítulo passado, pois o fato das relações serem ontologicamente interiores aos
pontos de vista não chega, se bem entendo, a transformar a lógica do argumento: este permanece a
considerar a assimetria de perceptos como o efeito do encontro entre diferentes perspectivas, ou
seja, os pontos de vista como logicamente anteriores ao perspectivismo.
5
A contra-efetuação xamânica não se restringe apenas a certas pessoas (os xamãs), pois “as palavras
que traduzimos por ‘xamã’ não designam algo que se ‘é’, mas algo que se ‘tem’ – uma qualidade ou
capacidade adjetiva e relacional mais que um atributo substantivo” (Viveiros de Castro 2006: 322).
81
*
O desenvolvimento do argumento referido acima – da dinâmica da troca de
perspectivas àquela da síntese disjuntiva – também pode ser observado nos textos
de Viveiros de Castro dedicados ao estudo da epistemologia antropológica. Sabe-se
como a tese do perspectivismo ameríndio inspira as considerações do autor acerca
da simetrização das relações de conhecimento entre ‘antropólogos’ e ‘nativos’. De
fato, o perspectivismo ameríndio se formulou, teoricamente, bem próximo do
universo das questões epistemológicas. Assim, a respeito da assimetria de
perceptos, propôs-se que as apreensões são epistemologicamente equivalentes, (ou
seja, igualmente verdadeiras) – e sobre o xamanismo compreender esta assimetria,
o devir xamânico foi tomado como uma experiência privilegiada de conhecimento.
Ademais, já em seu primeiro artigo sobre o tema, Viveiros de Castro enunciou o
perspectivismo como “corolário etno-epistemológico do animismo” (1996: 122) – e,
com efeito, a extensa comparação negativa como o relativismo multiculturalista
não parece se dar como uma discussão fortuita.
Dito isso, passamos à questão do tratamento do problema epistemológico
sugerido pelo autor, no intuito de exemplificar, paralelamente, a trajetória
heurística que vai de uma abordagem pensada a partir da dinâmica do intercâmbio
de pontos de vista para uma outra abordagem pensada em estilo mais deleuziano.
Em “O nativo relativo” (2002), Viveiros de Castro formula uma série de questões
das quais reproduzo a seguir algumas, destacadas de uma passagem que se tornou
famosa:
82
“O que se passa quando o discurso do nativo funciona, dentro do
discurso do antropólogo, de modo a produzir reciprocamente um
efeito de conhecimento sobre este discurso? Quando a forma
intrínseca do discurso do primeiro modifica a matéria implícita na
forma do segundo?” (2002d: 115).
Estas questões compõem a crítica do autor à matriz hilemórfica de um discurso
antropológico que debruça-se sobre a pressuposição, mais ou menos velada, de que
a abordagem antropológica deve se exercer através da aplicação de conceitos
extrínsecos à teoria nativa, ou seja, que o discurso do antropólogo deve englobar o
discurso do nativo. A contra-proposta do autor à esse jogo passa, em certo sentido,
pela inversão da dinâmica: o trecho supra citado está a sugerir que a forma
intrínseca do discurso do nativo fique em posição de modificar a matéria implícita
à forma discursiva do antropólogo. Ou seja, a questão epistemológica se desenrola,
aqui, numa espécie se troca de perspectivas que, apresso-me a dizer, distancia-se
muito da fusão de horizontes geertziana
6
. A sugestão de “O nativo relativo” é a de
uma troca de perspectivas à moda indígena, isto seja, a de uma tentativa, por parte
do antropólogo, em buscar uma experiência de conhecimento que não se encerre
nos limites de seu ponto de vista, um agenciamento heurístico que se inspire nos
conceitos nativos, de modo a se “pensar o outro pensamento [...] como a
atualização de virtualidades insuspeitas do pensar” (Viveiros de Castro 2002d:
129).
6
Não há fusão de horizontes porque a dinâmica da troca de perspectivas, proposta no artigo, não
intenta uma relação de identidade: “o antropólogo sempre diz, e portanto faz, outra coisa que o
nativo, mesmo que pretenda não fazer mais que redizer ‘textualmente’ o discurso deste, ou que tente
dialogar – noção duvidosa – com ele. Tal diferença é o efeito de conhecimento do discurso do
antropólogo, a relação entre o sentido de seu discurso e o sentido do discurso nativo” (Viveiros de
Castro 2002d: 114).
83
Em “Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation”
(2004) a proposta está mais centrada na síntese disjuntiva. Penso que aqui se leva
adiante, mesmo que indiretamente, as considerações levantadas no texto de 2002
acerca da estrutura Outrem deleuziana. Como a afinidade, o termo Outrem possui
dois sentidos: em primeiro lugar, tem-se Outrem como fundo virtual, algo que não
é nem sujeito nem objeto, mas a condição do campo perceptivo; em segundo lugar,
tem-se outrem como aquele que manifesta uma subjetividade outra, ou seja, como
uma pessoa a atualizar um mundo possível que, mesmo sendo-me virtual, mostra-
se real no pensamento, na fala e na ação de outrem outrem como expressão de
um mundo possível (ver Deleuze & Guattari 1997). Pois bem. Outrem, enquanto
fundo virtual de subjetividade infinita, constitui-se como a estrutura donde se
atualizam antropólogos e nativos. Mas o que caracteriza esta estrutura Outrem?
Conforme os textos que vamos analisando ao longo deste capítulo, o que
caracterizam as dinâmicas virtuais também caracterizam as relações atuais, ou
melhor, o que acontece no fundo virtual é, sob o ponto de vista ontológico, o
mesmo que acontece entre suas diferentes atualizações
7
. Ora, é possível, então,
induzir a caracterização ontológica da estrutura Outrem a partir das relações
estabelecidas entre antropólogos e nativos (tomados aqui como expressões de
mundos possíveis)
8
. Para Viveiros de Castro, as relações entre antropólogos e
7
Assim, vimos, nos textos em questão, (i) que as relações entre não-parentes (afins) se caracterizam
por uma síntese disjuntiva que liga-e-separa os termos em interação, exatamente como na descrição
da afinidade potencial; (ii) que no perspectivismo ameríndio as relações entre os pontos de vista se
caracterizam por um par de assimétrico de perceptos articulados (que remetem um ao outro),
exatamente como na descrição do fundo virtual mítico (região de indiscernibilidade entre o humano
e o não-humano).
8
Esta indução é possível, justamente, porque as discussões que abordamos ao longo deste capítulo
pressupõem e se desenrolam num universo fractal: o fundo virtual é tomado em continuidade
relacional com o universo atual.
84
nativos são marcadas pela equivocação. O encontro entre Hans Staden e
Cunhambebe, analisado no capítulo anterior, ilustra este ponto: uma relação em
que os discursos de ambos se articulam, mas de um modo assimétrico irredutível
9
.
Há muitíssimos outros exemplos, menos ou mais conhecidos, difundidos na
literatura antropológica e alhures. A questão, porém, está em compreender o que
caracteriza a estrutura Outrem: se o que acontece nas relações entre as diferentes
atualizações também acontece no fundo virtual relacional, então a estrutura
Outrem deve ser compreendida a partir da dinâmica sintético-disjuntiva da
equivocação.
As considerações acima, não nos esqueçamos, vão em função da
compreensão do desenvolvimento da abordagem vieiriana sobre as questões
epistemológicas em antropologia. Após aventar, por um lado, Outrem como fundo
virtual de subjetividade infinita e, por outro, antropólogos e nativos como
atualizações desse fundo sintético-disjuntivo, restava ao autor tratar da
possibilidade da contra-efetuação como procedimento heurístico. Este
procedimento, se bem entendo, consiste em uma proposta de tradução por
equivocação, baseada em um método comparativo original. Vejamos.
Em “Perspectival anthropology...” Viveiros de Castro sugere que “fazer
antropologia consiste em comparar antropologias” (2004: 04), isto seja, consiste
em comparar os mundos possíveis implicados nos modos de teorização (ou
9
Vimos, no capítulo passado, como o encontro é marcado pela má compreensão mútua. Mas o mal
entendido não é o mesmo, lá e cá: o modo como Staden mal compreende a fala de Cunhambebe (o
horror do alemão diante do “Jauára ichê. Sou um jaguar. Está gostoso”) não é o mesmo modo como
Cunhambebe mal compreende a fala de Staden (a boa recepção de Cunhambebe diante da
justificativa do alemão quando este se recusou a participar do banquete: “Um animal irracional não
come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?”). Ou seja, os discursos,
assimétricos, são irredutíveis um ao outro – e, no entanto, se articulam: os discursos se ligam e se
separam (síntese-disjuntiva).
85
conceitualização) de nativos e antropólogos. Esta fórmula, me parece, já se
encontrava latente em “O nativo relativo”: ali, após citar uma analogia elaborada
por Bruno Latour em um debate sobre ciência e antropologia realizado pela
American Anthropological Association – uma comparação entre as concepções
indígenas e os objetos das ciências
10
Viveiros de Castro propõe uma outra
analogia, agora articulando as concepções indígenas aos conceitos filosóficos, a
imaginação nativa às teorias sociais das ciências humanas:
“Diríamos então, parafraseando a citação [de Latour], que o
conceito melanésio de pessoa como ‘díviduo’ (Strathern) é tão
imaginativo como o individualismo possessivo de Locke; que
compreender a ‘filosofia ameríndia da chefia’ (Clastres) é tão
importante quanto comentar a doutrina hegeliana do Estado”
(Viveiros de Castro 2002d: 127)
Tal analogia aponta uma equivalência de estatuto teórico entre os discursos de
diferentes mundos possíveis. Mas o destaque, aqui, fica por conta da forma como se
dá a construção da analogia supra citada: ela está a propor que os antropólogos
procurem destacar no mundo possível de outrem as teorizações que, virtualmente,
correspondam às nossas teorizações, articulando-as em um par conceitual. Assim,
por exemplo, o conceito melanésio de
pessoa como divíduo deve se compor com o
conceito ocidental de
pessoa como indivíduo: o ponto deste método comparativo,
portanto, é buscar estabelecer uma “alteridade referencial entre conceitos
homonímicos” (Viveiros de Castro 2004: 05, grifo adicionado), ou seja, uma
equivocação. Com efeito, é isso que se lê em “Atualização e contra-efetuação do
10
“A descrição do kula equipara-se à descrição dos buracos negros. Os complexos sistemas de
aliança são tão imaginativos como os complexos cenários evolutivos propostos para os genes
egoístas. Compreender a teologia dos aborígines australianos é tão importante quanto cartografar as
grandes falhas submarinas. O sistema de posse da terra nas Trobriand é um objetivo científico tão
interessante quanto a sondagem do gelo das calotas polares” (Latour apud Viveiros de Castro
2002d: 126).
86
virtual: o processo do parentesco” (2002): observando que o par conceitual
consangüinidade/ afinidade não apresenta, nas cosmopráxis indígenas, o mesmo
rendimento formal (ou compreensivo) dado entre nós, o autor argumenta sobre a
boa razão de se manter estes conceitos, e portanto a analogia, para o estudo dos
mundos amazônicos:
“Então para que aplicar os termos ‘consangüinidade’ e ‘afinidade’, e
mesmo o de ‘parentesco’, ao mundo amazônico? Precisamente,
penso, para poder enxergar a diferença que liga esse mundo ao
nosso. Suponho que há uma relação entre, digamos, nosso conceito
de parentesco e o que vou chamar de parentesco no contexto
amazônico. Mas tal relação não é de identidade [...]. A entre-
expressão analógica destes conceitos não exprime outra coisa que
suas relações diferenciais aos outros conceitos de seus respectivos
planos de imanência (Deleuze & Guattari); suas dissonâncias são
tão ou mais significativas que suas ressonâncias. A decisão de dar o
mesmo nome a dois conceitos ou multiplicidades diferentes não se
justifica, então, por causa de suas semelhanças, e apesar de suas
diferenças, mas o contrário: a homonímia visa ressaltar as
diferenças, a despeito das semelhanças. A intenção, justamente, é
fazer parentesco querer dizer outra coisa.” (Viveiros de Castro
2002c: 407)
11
.
Ou seja, a tradução como um processo heurístico de contra-efetuação passa,
necessariamente, pela composição das equivocações nos conceitos antropológicos,
tomando-os, assim, como sínteses disjuntivas:
“[Os conceitos antropológicos] refletem uma certa relação de
inteligibilidade entre as duas culturas, e o que eles projetam são as
duas culturas como seus pressupostos imaginados. Eles operam,
com isso, um duplo desenraizamento: são como vetores sempre a
apontar para o outro lado, interfaces transcontextuais” (Viveiros de
Castro 2002d: 125).
11
Entre as equivocações analisadas em “Perspectival anthropology...”, está a famosa anedota
relatada por Lévi-Strauss acerca do desencontro quinhentista entre os espanhóis e os índios nas
Antilhas: “Both Europeans and Indians ‘were talking’ about humanity, that is, they were questioning
the applicability of this self-descriptive concept to the Other; but what Europeans and Indians
understood to be the concept’s defining criterion (its intension and consequently its extention) was
radically different” (Viveiros de Castro 2004: 09).
87
Os conceitos antropológicos são os pontos de partida de uma proposta
epistemológica mais próxima da dinâmica sintético-disjuntiva deleuziana que de
um intercâmbio de perspectivas – visto que a via comunicativa com o mundo
possível de outrem efetua-se através da equivocação, e não a partir de uma
tentativa de atualizar o ponto de vista do nativo (processo que, de fato, subentende
uma certa dinâmica identitária
12
).
O argumento perspectivista, portanto, tem como relação primeira aquilo
que Deleuze, ao propor, batiza síntese disjuntiva: esta relação se manifesta no
campo do parentesco como afinidade potencial, no universo perspectivista como
fundo mítico, ou nas questões epistemológicas como equivocação (estrutura
Outrem).
2) Entre relações
Vimos como o argumento perspectivista tem na síntese disjuntiva o modo
primordial, condicionante e constituinte, das relações do mundo ameríndio. Em
condições normais, a síntese disjuntiva descreve o par assimétrico de perceptos, ou
seja, a relação entre perspectivas. No xamanismo, ela descreve a experiência do
xamã como uma relação, digamos, intra pontos de vista. Ou seja, os modos de
interação dos pontos de vista remetem a momentos diversos dessa disjunção
inclusiva. O que queremos destacar, aqui, é que ao propor o conceito de síntese
12
Comentando um conto de Jorge Luis Borges (El Etnógrafo), Oscar Calavia Sáez tece a seguinte
observação: “Os etnógrafos sabem que encontrar o santo graal e virar nativo são desiderata da
etnografia só para quem sabe pouco de etnografia; esta pode ser um processo iniciático, certo, mas
numa acepção, afinal, bastante profana” (2006: 05).
88
disjuntiva, o argumento perspectivista o faz articulando-o diretamente ao conceito
de ponto de vista.
A presente dissertação sugere uma outra abordagem. Para dizer de chofre,
propomos abordar o material etnográfico através de uma estrutura que ligue-e-
separe diferentes relações, não pontos de vista. A partir de uma análise da
transformação dos pares de perceptos manifestos nas interações intersubjetivas,
apontamos uma dinâmica relacional que liga-e-separa o que liga (o contínuo) e o
que separa (o discreto)
13
. A seguir, restituímos a comparação genealógica para
tratar das relações contínuas e discretas, de modo a lançar as bases para a hipótese
concernente a uma estrutura relacional perspectivista.
2.1) Relações Genealógicas: o contínuo e o discreto
No final do capítulo anterior iniciamos uma analogia entre os pares de
perceptos do perspectivismo ameríndio e os pares de termos (posições) de uma
árvore genealógica. Vimos que os pares de termos genealógicos podem se articular
de duas maneiras: por um lado, têm-se as relações em que os termos de um par se
correspondem, como no caso avô/ neto; por outro lado, há relações em que os
termos, articulados a partir de uma terceira pessoa, não se correspondem – um
bom exemplo está na relação entre cunhados: o que um toma por esposa, o outro
tem como irmã. O par de termos correspondentes indica uma única e mesma
13
O modo como utilizamos o par conceitual contínuo/ discreto não é exatamente o mesmo
proposto por Lévi-Strauss. O uso que utilizamos da linguagem analítica proposta pelo autor –
justamente em seus estudos do material ameríndio – baseia-se na interpretação que a seguir
faremos da etnografia em questão. Adianto, apenas, que o par conceitual não levanta, aqui, questões
referentes à, digamos, topologia das relações (intervalo, distância...).
89
relação contínua, enquanto o par de termos não-correspondentes indica duas
relações discretas.
No perspectivismo ameríndio, a descrição de uma relação discreta se faz
através da dinâmica que nos dedicamos a analisar no capítulo passado. Vimos ali
que, articulados sobre um terceiro termo, os perceptos que compõem este tipo de
par são discretos, pois subsumem duas relações distintas: uma positiva e outra
negativa. As relações discretas se apresentam sempre nessa dinâmica. Quanto às
relações contínuas – sobre as quais nos debruçaremos nos parágrafos a seguir –,
elas se manifestam em duas formas, distintas, segundo a maneira como as
apreensões se articulam: os perceptos de um par contínuo podem ser homônimos
ou assimétricos. Para tratar deste ponto, retomamos a comparação genealógica.
Dada uma árvore genealógica qualquer, a relação que liga Ego ao outro filho
de seus pais é a mesma que liga este outro filho à Ego: ambos se tratam por irmãos.
O par irmão/ irmão constitui-se como um par de termos correspondentes e
homônimos – do mesmo modo como o par primo/ primo, ou cunhado/ cunhado.
No perspectivismo ameríndio, como se sabe, o par homônimo é única e
exclusivamente o par humano/ humano. Este par indica um tipo específico de
relação social marcado por valores referentes à confiança e à tranqüilidade. Vide,
por exemplo, o modo como os Yudjá procuram conceber os filhos que estão por vir:
“O temperamento social que os [Yudjá] buscam imprimir ao
embrião não significa nada mais que a ausência de agressividade-
e-medo. Ele representa o grau mais baixo da força de defesa de
que é capaz um ser vivo. Sua imagem ideal é, de um lado, aquela
mansidão (um misto de confiança e tranqüilidade) que os mais
diversos filhotes e o bebê (bem alimentado) demonstram diante
dos humanos, e, de outro, a gratificação que a simples observação
90
dessa mansidão desperta. Em uma palavra, ser sociável é não
estar amendrontado-e-violento” (Lima 1996: 28)
14
As manifestações mútuas de confiança e tranqüilidade marcam o tom das relações
entre humanos. Observe-se, no entanto, que este laço, indicado no par humano/
humano, pode caracterizar tanto as relações intra-específicas quanto as relações
inter-específicas. No primeiro caso, é digno de nota o cuidado vigilante e constante
dos Yudjá em procurar afastar a ‘agressividade-e-medo’ do temperamento de seus
filhos. Os desentendimentos internos, com efeito, são passíveis de sobrevir em
qualquer âmbito social yudjá, chegando, em casos mais sérios, a desmembrar a
aldeia (ver Lima 2005). Estas considerações sugerem que, se, de fato, as relações
intra-específicas costumam se caracterizar pela confiança mútua, tal modo de
sociabilidade não parece ser nem inevitável, nem imanente: alegria, confiança e
respeito mostram-se mais como um ideal de sociabilidade buscado para as relações
intra-específicas, visto não ser a única possibilidade de interação. No segundo caso
– sobre as relações inter-específicas também atualizarem um par homônimo de
perceptos (humano/ humano) – chamamos a atenção para as relações xamânicas,
que, como vimos, se caracterizam como uma interação humana. Note-se, ainda,
que os encontros humanos inter-específicos não passam necessariamente pelo
xamanismo: no caso dos Yudjá, este tipo de relação se dá, também, nos sonhos – a
14
Sobre o que qualifica a relação entre humanos, Viveiros de Castro escreve a seguinte nota
referente aos Araweté: “‘Observei que [os Tupinambá] amam as pessoas alegres, galhofeiras e
liberais, aborrecendo os taciturnos, os avaros e os neurastênicos...’ (Lery). E eu pude notar, de fato,
que uma das coisas que mais surpreendia os Araweté, no comportamento dos brancos, eram as
flutuações de ânimo e humor, sem razão aparente. A tristeza e a ‘seriedade’ são valores
absolutamente negativos, em geral. ‘Não rir’ é um eufemismo para
rancor, e a noção de alegria (tori)
tem uma ressonância filosófica profunda” (Viveiros de Castro 1986: 42). Ver também Gow (1997)
sobre os Piro.
91
vida onírica yudjá trata, cotidianamente, de relações inter-específicas em que as
pessoas envolvidas se vêem como humanas
15
.
Mas o modo contínuo de relação não se manifesta apenas em pares de
perceptos homônimos. Retomando a analogia genealógica, percebemos a existência
de relações contínuas manifestas em pares de termos assimétricos, como no caso,
por exemplo, da relação entre pais e filhos: a mirada dos pais sobre os filhos é a da
descendência, traduzida, idealmente, como cuidado e proteção; a mirada dos filhos
sobre os pais é a da ascendência, que idealmente se traduz como respeito e
agradecimento. Pois bem. Se o par pais/ filhos é assimétrico ele, no entanto, não se
aproxima do par esposa/ irmã que caracteriza a relação indireta entre cunhados. A
diferença entre os pares em questão está no fato de que o primeiro é um par
contínuo (os termos se correspondem, apontando uma única e mesma relação), e o
segundo é um par discreto (os termos, articulados em uma terceira pessoa, não se
correspondem, apontando duas relações distintas). É nesse sentido formal, de
pares assimétricos de perceptos correspondentes, que as relações entre pais e filhos
– ou avô/ neto, tia/ sobrinho, etc – nos ajudam a compreender um tipo específico e
conspícuo de interação no perspectivismo ameríndio: a predação. Esta relação
articula duas posições correspondentes em um par assimétrico: a posição de
predador e a de presa. Para que a predação se atualize é necessário que os agentes
em interação se reconheçam, e ocupem, cada qual, uma dessas posições relacionais.
Ponto importante, esse reconhecimento deve ser mútuo, pois as posições em
15
“O sonho é o plano privilegiado da comunicação entre os humanos propriamente ditos e as mais
diferentes espécies animais (e outras categorias ontológicas, como os ogros e os espíritos). Aí, o
animal não apenas se toma por, mas, sob certas condições, se transforma em humano para alguém;
é identificado como pessoa por outra pessoa, e os dois travam (ou não) uma aliança mais ou menos
duradoura” (Lima 1996: 28).
92
questão não estão dadas em uma cadeia alimentar que organiza, a priori, a relação
das espécies viventes
16
. Ao contrário, a predação só se realiza quando um dos
agentes, vendo o outro como presa, é visto por ele como predador – ou seja, não
basta que um dos agentes tenha o outro como presa se este se recusar a vê-lo como
predador! Sobre este ponto, Oscar Calavia Sáez nos apresenta um mito yaminawa
esclarecedor:
“Os antigos matavam muita caça; matavam muita queixada. Mas
tinha um cara que era ruim caçador, poucas vezes saia para o mato
para caçar; só comia porque os parentes davam um quarto do que
caçavam para os outros comerem; só disso ele comia. Aí um dia o
mal caçador perguntou: ‘Onde é que vocês mataram essas
queixadas, eh?’ ‘Aí mesmo no barreiro, aí matamos’ disseram.
Então ele decidiu ir tentar sorte, e bem de manhã saiu a caminho
do barreiro. Viu os rastros dos parentes: onde tinham matado as
queixadas, onde tinham feito os paneiros para transportá-las. Foi
andando devagarinho e se encontrou com as queixadas, um bando
grande, que fuçavam na terra: ‘tatatatata...!’ Pegou então a flecha,
atirou e acertou numa fêmea bem grande. Aí foi flechando, um,
outro, outro! Uma grande caçada! Mas quando cansou de matar e
foi colher os animais, viu que seguiam vivos, porque as flechas nem
tinham lhe furado o couro. Ficou muito bravo; pegou o terçado e
começou a amolar as pontas de suas flechas, e quando acabou foi
de novo atrás da vara de queixadas. Atirou, atirou, e sempre
acertava; mas as flechas não entravam” (Calavia Sáez 2006: 17-18)
O mito continua e o caçador, ruim, não conseguindo tomar os porcos por
presas, é encontrado, mais tarde, perdido na floresta por esta mesma vara de
queixadas que, ao dirigir-se a ele, chamam-no de primo (termo de afinidade
potencial)
17
: “‘Aí, aí está que eu vi, aí está’ e eram as queixadas que o procuravam,
16
A cadeia alimentar ameríndia apresenta uma maior abertura: em vigília, um encontro entre
predador e presa pode se efetivar como predação, mas pode também ser neutralizado como uma
interação humana (trataremos dessa questão logo a seguir). Na vida onírica, estas posições podem
até se inverter, mas, certamente, de um modo atenuado: assim, a doença de um predador pode ser
interpretada, pelo xamã, como um ataque de uma presa (ver Vilaça 1998).
17
Conferir a versão do mito relatada pelo mesmo autor em “El rastro de los pecaríes – variaciones
míticas, variaciones cosmológicas e identidades étnicas em la etnologia Pano” (2001).
93
mas as queixadas eram gente. ‘Quem vocês são?’ ‘E tu? Não eras tu que ontem
estava nos flechando?’ ‘Não, não fui eu: eu flechava queixadas’. ‘Éramos nós que tu
flechavas’” (Calavia Sáez 2006: 18). Convidado pelos porcos para conhecer a aldeia
onde moravam, o caçador se deixou levar. Chegando lá, lhe ofereceram uma cuia
cheia de cauim que, no entanto, mostrava-se lama aos olhos do índio yaminawa.
Então pingaram-lhe um colírio e o caçador passou a ver a lama como cauim,
bebendo, assim, da cuia... Ou seja, o caçador não conseguiu convencer os porcos de
que eles eram presas, mas deixou-se convencer por eles de que era um afim
potencial – passando a ver gente onde antes via queixada, e cauim onde antes via
lama. A moral da história yaminawa é semelhante à de uma história yudjá que
trataremos adiante: é preciso tomar os porcos como porcos, antes que eles nos
tomem como humanos, como seus afins potenciais
18
. O ponto que queremos
destacar aqui, no entanto, é outro: o ponto é que as relações contínuas, predatórias
ou não, exigem que os agentes estejam mutuamente em acordo
19
. Assim, sobre a
18
Lembremos da recomendação dos Achuar destacada por Viveiros de Castro no final de seu artigo
sobre o perspectivismo ameríndio (2002): “Veja-se o que o Achuar estudados por Taylor
recomendam, como método de proteção ao se encontrar um iwianch, um fantasma ou espírito na
floresta. Deve-se dizer ao iwianch: ‘Eu também sou pessoa!...’” (Viveiros de Castro 2002b: 397).
Penso que ao se tomar também como pessoa, o índio achuar não está dizendo, exatamente, que ‘a
verdadeira pessoa aqui sou eu’ – como propôs Viveiros de Castro ao comentar a recomendação dos
Achuar. Se bem a interpreto, esta recomendação procura contrapor a tentativa dos iwianch em se
relacionar com os índios achuar pela via da
predação: em vista dessa tentativa dos iwianch, os
Achuar propõem-nos, em contraposição, uma interação
entre humanos (“Eu também sou pessoa!”).
Com efeito, este tipo de encontro não parece possibilitar às presas a inversão da predação, ou seja,
tomar seus predadores como caça – de modo que a estratégia dos Achuar é a mesma dos porcos do
relato yaminawa: a estratégia está em mostrar-se como humano, procurando convencer outrem a
embarcar numa relação de cavalheiros.
19
Este ponto é importante: as relações contínuas, predatórias ou humanas, só se dão quando os
agentes em interação estão em acordo. Lembremos do trecho de Lima supra citado: o regime
alimentício das mulheres yudjá grávidas tem por objetivo eminente afastar o risco de seus filhos
nascerem com um temperamento social típico dos animais, a saber, a agressividade e o
amedrontamento. A imagem ideal da relação pais/ filho passa pela mansidão que o bebê demonstra
e, ao mesmo tempo, pela gratificação que essa mansidão desperta nos pais e nos parentes em geral
– ou seja: os bebês e seus pais devem se ver e se tratar, mutuamente, como humanos. Nesse mesmo
sentido, vide o que os índios Piro pensam sobre tal relação: “o feto é o agente de seu próprio
94
relação de predação, vide o seguinte exemplo da etnografia yudjá: “no quadro do
xamanismo e do ponto de vista dos porcos, os [Yudjá] representam espíritos”
(Lima 1996: 26). Ora, num encontro em que os Yudjá vêem os porcos como porcos,
e estes, por sua vez, vêem os Yudjá como espíritos, dá-se uma relação em que os
perceptos, apesar de assimétricos, se correspondem: o par porcos/ espíritos é um
par presa/ predador
20
.
Note-se, aqui, que a relação de predação, como a relação entre humanos,
pode caracterizar tanto os encontros inter-específicos, quanto os encontros intra-
específicos. Vejamos o exemplo dos índios Wari’. Segundo Vilaça, o modelo típico
dos Wari’ de relação com a alteridade (os animais, os índios de outras etnias e os
brancos) articula duas posições correspondentes: (i) wari’ – humano, predador; (ii)
karawa – não-humano, presa. No entanto, isto não significa dizer que as relações
inter-específicas não se dêem como uma interação wari’/ wari’ (como é o caso das
relações xamânicas), ou que as relações intra-específicas não possam se efetuar
como uma interação wari’/ karawa. Sobre este segundo ponto, chamamos atenção
para a prática antiga de endo-canibalismo que os Wari’ exerciam em seus rituais
funerários. A morte de um membro da aldeia provocava uma divisão dos Wari’
entre aqueles que choravam (parentes mais próximos) e aqueles que não choravam
nascimento. Os bebês surgem ‘de dentro’, ativamente; eles não são passivamente ‘paridos’ ou ‘dados
à luz’. O feto só pode ser conhecido após ter emergido espontaneamente, e somente então pode-se
dar uma resposta satisfatória à questão crucial: ‘Ele é humano?’ O recém-nascido é inspecionado
visualmente em busca de evidências de sua identidade. Muitos fetos ao emergirem revelam-se não-
humanos: formam-se como jabotis, peixes ou ‘algum animal que não reconhecemos’. [...] A maioria
dos fetos, entretanto, revela-se espontaneamente como humanos” (Gow 1997: 47-48). Ou seja, tanto
o recém-nascido como os pais devem se mostrar, mutuamente, como humanos.
20
Esta análise fundamenta-se, e reforça, a sugestão de Viveiros de Castro de que os espíritos são,
por excelência, os seres predadores na cosmopraxis ameríndia: “o que define os espíritos é, entre
outras coisas, o fato de serem supremamente incomestíveis; isso os transformam em comedores por
excelência [...]. Por isso, é comum que os grandes animais predadores sejam formas diletas de
manifestação dos espíritos.” (Viveiros de Castro 2002b: 393). Ver também Viveiros de Castro 2006.
95
(‘não’-parentes
21
). Esta divisão se dava a partir do modo como as pessoas se
relacionavam com o cadáver: os primeiros viam no morto um ente querido, uma
pessoa wari’; os segundos viam o cadáver como um karawa. Trata-se do tipo de
relação que descrevemos no capítulo anterior, e que aqui chamamos de relação
assimétrica discreta. Com efeito, os perceptos articulados sobre o cadáver
apresentam uma diferença de status. Até um certo momento do ritual funerário, a
relação dos parentes com o morto dava-se como uma relação positiva, e a dos não-
parentes, ao contrário, como uma relação negativa: neste período, os parentes
choravam, entoavam cantos fúnebres que relatavam suas relações e histórias com o
morto, deitavam-se sobre ele – mantinham, portanto, uma relação de extrema
proximidade com o cadáver. Do outro lado, os não-parentes não choravam, não
podiam tocá-lo e, de fato, se distanciavam do cadáver (alguns deles tinham por
tarefa chamar os parentes do morto que viviam longe do lugar). Mas a partir de um
certo momento este quadro se inverte: os não-parentes se aproximam do morto no
intuito de esquartejar seu corpo, preparar o moquém para assá-lo e, por fim, comê-
lo; e os parentes se distanciam por não conseguirem ver o corte e o preparo do
morto – mais afastados, não participam da refeição. Sublinhe-se que o momento da
inversão do status é, justamente, o momento em que os não-parentes são
intimados a ingressar em uma relação antropofágica com o cadáver, tomando a
posição de comensais. Os não-parentes resistem e hesitam passar por esses mal
bocados – vide o seguinte trecho de uma conversa entre Paletó (índio wari’) e
Aparecida Vilaça:
21
Os Wari’ procuram enfatizar um parentesco generalizado na aldeia, mas “se a diferença entre
parentes próximos e distantes, entre afins e consangüíneos é, com algum sucesso, mascarada no
dia-a-dia, ela é necessariamente explicitada no funeral, e essa dicotomia, como já disse, é a parte
central deste rito” (Vilaça 1998: 20)
96
“Paletó: Quando não querem mais chorar, dizem: ‘Vamos até [os
não-parentes]. Vamos falar para eles do fogo para o nosso irmão
mais velho. Nosso irmão mais velho já devia estar assado’. Choram,
choram. Levam o morto também. Levam-no para falar do fogo dele.
É como se o morto pedisse para ser cortado. Colocam o morto
sobre uma pessoa que está de quatro no chão. (É assim: o morto
fica como que sobre um cavalo, ereto, porque duas pessoas
seguram seus braços). ‘Tere, tere, tere’ (som de deslocamento).
Aparecida: Porque o morto vai até a casa dos homens?
Paletó: ‘Vou falar do meu fogo!’
Aparecida: Como se estivesse vivo?
Paletó: É. Como se fosse dizer: ‘Cortem-me!’
Aparecida: Como é que se fala? Quem fala?
Paletó: Quem fala é gente de verdade (iri wari’), que está vivo.
Aparecida: O que ele diz?
Paletó: Ele diz: ‘Não queremos mais (ver) o nosso irmão mais
velho. Cortem o meu irmão mais velho!’. ‘Não, não quero, não
quero’ (diz o cortador). Ele não quer tocar o líquido podre. Está
podre [o cadáver]. ‘Cortem, cortem, não quero mais o meu irmão
mais velho’. ‘Não quero.’ ‘Fique de pé. Diga que sim para ele. Por
que você teima? Cortem rápido’, diz um velho ficando de pé
(repreendendo os que se recusam a prestar o serviço)” (Vilaça
1998: 26-27)
E continuam insistindo até que os não-parentes aceitam os termos da relação, e
resolvem cortar o morto. Chamamos atenção para alguns pontos do trecho citado.
O cadáver, com ajuda dos seus, levanta-se para falar de seu fogo com os não-
parentes, exigindo-lhes que o assassem. O morto está obstinado a ser cortado,
preparado e comido pelos não-parentes, mas estes, por sua vez, precisam ser
convencidos a ingressar na relação de predação – o que explica a tom exigente do
morto e de seus parentes. Mais adiante no ritual, depois de colocado no fogo, há
um momento em que os parentes retiram do moquém um embrulho com o coração
e o fígado do morto (que ficam logo assados), para então desfiar a carne e se dirigir
aos não-parentes solicitando-os que comam. Ora, estes pontos vão ao encontro das
considerações feitas acima, a saber, que a relação de predação só se efetua quando
um dos agentes, vendo o outro como predador, é visto como presa: o acordo deve
97
ser mútuo, não bastando, portanto, que um dos agentes tenha o outro como
predador, se este não o perceber como presa.
Algo parecido pode ser visto naqueles famosos diálogos entre matador e vítima que
foram relatados pelos cronistas dos tupinambá quinhentistas. O duelo levado à cabo
entre o cativo de guerra e o futuro matador não se constitui no mesmo sentido do
embate dado, por exemplo, entre os porcos e o caçador yaminawa (no mito analisado
acima). Diferentemente do mito pano, o que está em disputa entre os tupi não são
modos de relação (o caçador yaminawa procurando impor uma relação de predação,
enquanto os porcos, resistentes, procuram impor uma relação entre humanos). O que
está em disputa entre o cativo e seu futuro algoz são as posições relacionais de
matador e vítima
22
. Tal encontro, assim, é marcado por um modo de relação que os
Wari’, por exemplo, classificariam como de tipo wari’/ karawa.
Mas para que este embate se efetuasse era preciso ter certeza que o cativo estava
disposto a entrar em tal relação (repetimos, para frisar: numa relação contínua, os
sujeitos devem estar, mutuamente, em acordo). Isso significa dizer que, para os
aldeões, antes de mais nada, era preciso afastar a possibilidade de uma relação
amistosa com o cativo, ou, dito de outro modo, era preciso que o cativo permanecesse
um inimigo, de que ele não se deixasse levar pelo processo de consangüinização. Me
refiro aqui ao, por assim dizer, bom tratamento que os aldeões tupinambá ofereciam
ao cativo: sugeriam-lhe a possibilidade de contrair matrimônio com uma moça da
aldeia, procuravam embelezar-lhe à moda da casa e lhe davam de comer e beber o
repasto nativo. O cativo, inimigo irredutível, devia recusar essas ‘tentações’ de
consangüinização, pois ser um inimigo valente é o que todos esperavam dele: seus
22
Para uma análise magistral desses diálogos, ver Viveiros de Castro 2002a.
98
captores, seus parentes e, enfim, o próprio cativo
23
. O diálogo parece se constituir
mesmo como mais uma prova imposta ao cativo: momento crucial, talvez mais difícil,
em que se deve voluntariamente mostrar-se inimigo, e não afim
24
.
*
A partir dos pares de perceptos manifestos nos encontros entre duas
subjetividades (intra- ou inter-específicas), analisados através de uma analogia
com os pares de termos genealógicos, vislumbramos aqui dois modos de relação
dados no perspectivismo ameríndio: por um lado temos a relação discreta, que se
manifesta na articulação, através de um terceiro termo, de perceptos não
correspondentes – esses perceptos, assimétricos, indicam duas relações distintas
(de status diferentes); por outro temos a relação contínua, que se manifesta na
correspondência dos perceptos articulados, indicando, assim, uma única relação ou
acordo (aqui, os perceptos podem se compor em pares homônimos ou
23
Embora lhes seja possível fugir, à vista da liberdade de que gozam, nunca o fazem apesar de
saberem que serão mortos e comidos dentro em pouco. E isso porque, se um prisioneiro fugisse,
seria tido em sua terra por cuave eim, i.e., poltrão, covarde, e morto pelos seus entre mil censuras
por não ter sofrido a tortura e a morte junto aos inimigos, como se os de sua nação não fossem
suficientemente poderosos e valentes para vingá-lo” (Abbeville [1614] apud Viveiros de Castro
2002a: 234)
24
A pergunta inicial do diálogo era mais ou menos essa: “Você não é um daqueles que mataram
membros de minha tribo?” Ao que o cativo orgulhosamente devia replicar: “Sim, sou matador”. O
algoz exorta-o a tombar como um bravo, e o cativo respondia-lhe evocando os inimigos que havia
morto nas mesmas circunstâncias. Nas palavras de Viveiros de Castro: “Vê-se a
cumplicidade entre
cativos e captores, que fazia com que o inimigo ideal de um tupinambá fosse outro tupinambá”
(2002a: 231, grifo adicionado). O caso de Hans Staden, que analisamos no capítulo passado, ganha
aqui novas cores: o alemão, do ponto de vista dos tupinambá, deixou-se consangüinizar muito
facilmente, visto que sua estratégia era mostrar-se francês, ou seja, amigo dos tupinambá. Para que
fosse morto e servido como repasto aos tupinambá, era preciso que o alemão se mostrasse um
inimigo – e ele, de fato, acaba mostrando-se apetitoso para os índios quanto involuntariamente
ocupa a posição de inimigo (como naquela ocasião em que se irmana com o cativo morto que está
sendo canibalizado pelos tupinambá). Enfim, o ponto que queremos destacar é aquele referente ao
mútuo acordo da relação contínua: ou o inimigo se transforma num amigo (e os aldeões e o cativo
passam a se ver mutuamente como afins, como humanos); ou o inimigo continua a se mostrar como
um inimigo (disputando as posições relacionais de matador/ vítima com seu futuro algoz).
99
assimétricos). No perspectivismo ameríndio, diferentemente da comparação
genealógica – e aqui encerra-se a analogia –, as relações contínuas são sempre
relações diretas, conectando as pessoas via comunidade ou predação; enquanto as
relações discretas são sempre relações indiretas, separando as pessoas via
defasagem
25
.
Partindo das relações, e não dos pontos de vista, lançamos as bases para a
constituição de uma hipótese referente a uma estrutura relacional perspectivista
que liga-e-separa o contínuo e o discreto. A seguir, apresentamos esta hipótese
através da análise de alguns casos etnográficos.
2.2) Do contínuo ao discreto
Comecemos retomando a descrição, agora com maior minúcia, do mito
machiguenga etnografado por Renard-Casevitz. Segundo a narrativa, trata-se de
uma viagem que os antigos machiguenga empreenderam ao redor do mundo. Após
caminharem muito tempo, os antigos encontraram uma aldeia de pessoas
hospitaleiras que os saudaram e os convidaram a ficar ali. Anfitriões e visitantes
logo se entenderam, passando o dia todo a conversar. As aldeãs, que preparavam o
jantar, perguntaram aos visitantes machiguenga se eles comiam peixe, ao que
responderam: “Sim. Todo mundo, todas as pessoas comem peixe”. Então, visitantes
25
Nota para desfazer uma possível confusão que o texto possa sugerir. Quando nos referimos,
acima, ao limite da analogia proposta, pensávamos no seguinte: em uma árvore genealógica, a
relação subsumida pelos termos avô/ neto (que usamos como analogia para entender as relações
contínuas assimétricas, ou seja, as relações de predação) pode também ser subsumida com os
seguintes termos (tecnônimos): “pai de minha mãe/ filho de minha filha”. Ou seja, a relação avô/
neto pode ser lida como uma relação indireta, visto que passa por um terceiro termo. Mas no
perspectivismo ameríndio isso não acontece: aqui, os pares de perceptos contínuos sempre
apontam uma relação direta. Enfim, a analogia, insistimos, se efetua entre os pares de termos de
uma árvore genealógica e os pares de perceptos do perspectivismo.
100
e anfitriões comeram juntos, e depois conversaram madrugada à dentro. Antes de
descansar, os Machiguenga fizeram entender que gostariam de ficar na aldeia
durante uns três dias, para então continuar viagem.
Na manhã seguinte os anfitriões anunciaram que iriam pescar, alguns
visitantes se ofereceram a ajudar, e todos eles se agruparam para a pescaria.
Caminharam muito tempo na floresta, até que um deles (um anfitrião) se concentra
sobre uma pilha de folhas mortas, bate na pilha, captura uma cobra peçonhenta e
mostra a todos: “Vejam só! Já temos um peixe bom e grande!”. Os visitantes
imediatamente discordam, afirmando tratar-se de uma cobra – ao que os aldeões
respondem: “Como ousam dizer que se trata de uma cobra? É um peixe tão bom
quanto aquele que vocês comeram ontem à noite!”. Os Machiguenga, então,
perceberam, com desgosto, que haviam comido carne de cobra, e passaram a
lamentar a sorte de seus anfitriões, afinal, deviam sofrer muito por ter que comer
este tipo de carne. Diante desta atitude, os anfitriões propuseram que os visitantes
voltassem para a aldeia e conferissem melhor o repasto. Nesse instante os
visitantes pararam, refletiram e, entre si, concluíram: “Aquela carne de cobra deve
ser de peixe”. Caminhando rumo à aldeia, os Machiguenga pararam num rio
bastante piscoso e flecharam todo tipo de peixe, enchendo suas redes em pouco
tempo. Assim munidos, retornaram. Chegando à aldeia os anfitriões receberam-
nos com expressões de repugnância: “Que horror! Nossos visitantes são comedores
de cobras”. “Não senhores!” – retrucaram os visitantes. “Nós nos alimentamos dos
verdadeiros peixes. São vocês os comedores de cobras”. Cada grupo defendia
firmemente sua posição. Os visitantes apontavam sua pescaria e diziam: “Mas
vejam as escamas, vejam as nadadeiras”. Do lado de lá, os anfitriões faziam o
101
mesmo, apontando as mesmas evidências com relação à sua própria pescaria. A
discussão se eternizava, até que os viajantes machiguenga propuseram: “Nos dêem
uma panela grande onde vocês nunca tenham preparado os seus peixes, para que
possamos cozinhar nossa comida”. Dito e feito: cada grupo cozinhou e comeu à
parte. Mais tarde, no momento de dormir, visitantes e anfitriões formaram dois
grupos separados. De manhã, os grupos continuavam a conversar, mas cada qual
comeu de sua própria cozinha, e depois disso, antecipando sua viagem, os viajantes
despediram-se de seus anfitriões e tomaram caminho.
A saga machiguenga continua em mais quatro encontros parecidos com este.
Nos relatos que se seguem, a diferença é que quanto mais longe os Machiguenga
vão, menos tempo ficam entre seus anfitriões – afinal, estes se mostravam cada vez
mais estranhos: de comedores de cobras, os anfitriões passam a comedores de
morcegos e bolas de fogo. Ao fim do quinto encontro, os Machiguenga tomam o
caminho de casa.
Dado o relato, nos debrucemos sobre sua dinâmica relacional. Os
Machiguenga saem de sua aldeia no intuito de conhecer o mundo. Fora de casa,
andam muito tempo até chegar naquela primeira vila. Ao ver os viajantes, os
habitantes da aldeia se mostram bastante acolhedores: oferecem estadia e comida.
Os visitantes aceitam a hospitalidade, entretendo com seus anfitriões uma relação
de confiança recíproca, de alegria generalizada. Ou seja, visitantes e anfitriões,
embora mutuamente estrangeiros, tratam-se como parentes: comem e bebem
juntos, conversam muito e não se separam no momento de dormir. Ambos se vêem
como humanos, atualizando, assim, uma relação contínua.
102
No dia seguinte, visitantes e anfitriões formam um grupo para pescar. Os
Machiguenga vão seguindo os aldeões, até que um deles bate em uma pilha de
folhas, captura uma cobra e a mostra a todos como sendo um peixe. Nesse instante
observa-se uma assimetria que divide o grupo entre aqueles que vêem peixe (os
anfitriões) e aqueles que vêem cobra (os visitantes). Depois de alguma discussão, os
primeiros sugerem aos Machiguenga que retornem à aldeia e confiram o repasto –
argumento que parece querer dizer: “Não somos nós que estamos errados, afinal
vocês também comeram do nosso pescado ontem”. Com efeito, é nesse exato
momento que os visitantes, refletindo melhor, concluem que “aquela carne de
cobra deve ser de peixe
26
”. Pois bem. Tanto o argumento dos anfitriões quanto a
reação dos visitantes parecem apontar para o fato de que o embate em questão não
diz respeito a se saber, na verdade, o que é mesmo aquilo que ambos estão vendo:
cobra ou peixe? Ao contrário, o encontro parece indicar aquela forma de relação
intersubjetiva discreta que estamos a propor: de fato, cobra/ peixe formam um par
assimétrico de perceptos articulados em um terceiro termo, e a disputa, ao que
parece, remete à questão da diferença de status: qual percepto subsume a relação
positiva? É nesse sentido que entendemos o argumento dos anfitriões, quando
dizem aos visitantes que aquele peixe era o mesmo da refeição da noite anterior,
provocando-os a retornar a aldeia para conferir o repasto – a estratégia era apontar
o mal entendido dos visitantes que comeram cobra como se fosse peixe, e desse
26
Isso não significa dizer que os Machiguenga comam cobra: na noite anterior, eles haviam comido
peixe, não cobra. Foi apenas na pescaria que os Machiguenga acabaram percebendo seu mal
entendido. Ademais, após percebê-lo, fazem questão de pescar sua própria comida e, sublinhe-se,
pedem aos anfitriões que lhes emprestem uma panela onde nunca tenham cozinhado seus peixes
(ou seja, cobras).
103
modo reivindicar para si a posição positiva (afinal, diriam os anfitriões, aquilo que
vimos como peixe, e comemos como peixe, sempre se mostrou como tal).
Os Machiguenga parecem reconhecer esse mal entendido, pois antes de
retornarem à aldeia, tratam de achar um rio e fazer sua própria pescaria. Quando
os Machiguenga voltam da floresta o diálogo se inverte, e é a vez dos anfitriões
discordarem da pesca: “Nossos visitantes são comedores de cobras”. “Não
senhores! Estes são os verdadeiros peixes. São vocês os comedores de cobras”. A
querela se resolve quando os visitantes sugerem aos anfitriões que cada grupo
cozinhasse e comesse separadamente, o que não deixa de se constituir como algo
bastante curioso: todos comem peixe, mas não podem compartilhar a refeição. Os
comensais, lá como cá, fartam-se de sua peixada, mas não podem participar da
refeição dos outros: o peixe de outrem é cobra para mim, e vice-versa. Visitantes e
anfitriões, assim, atualizam relações descontínuas.
Vê-se como o mito se compõe por dois momentos articulados. Inicialmente
afastados, visitantes e anfitriões formavam dois grupos distintos. Quando os
Machiguenga chegam, os aldeões acolhem-nos da melhor maneira possível,
oferecendo estadia e comida. Os visitantes aceitam de bom grado: comem e bebem
junto de seus anfitriões e, na hora de dormir, não se separam. O primeiro dia do
encontro, portanto, caracteriza-se por um movimento de mútua aproximação:
afastados, os dois grupos se aproximam e se misturam na refeição e no descanso
comuns. Tal comunidade pode bem ser observada no segundo dia: o grupo que sai
à floresta para pescar é composto por anfitriões e visitantes – do mesmo modo que
o grupo de pessoas que ficam na aldeia. No entanto, se os Machiguenga e os
aldeões amanhecem agrupados, tendem a se distanciar ao longo do dia, invertendo
104
o movimento do dia anterior: na pescaria, inicialmente próximos, o grupo de
pescadores acaba se dividindo em visitantes e anfitriões – pescando, cozinhando e
dormindo separadamente. Ou seja, a interação entre os Machiguenga e os aldeões
passa de uma relação contínua para uma relação discreta, ou, dito de outro modo, a
dinâmica do encontro parte de uma disjunção sintética e termina numa síntese
disjuntiva. Isso tudo se manifesta de modo bastante claro na transformação dos
pares de perceptos: o par peixe/ peixe da refeição em comum se transforma no par
peixe/ cobra das refeições separadas.
*
Esta dinâmica organiza muitos outros encontros. O próprio xamanismo
ameríndio, como se sabe, inicia-se como uma relação contínua (os sujeitos vendo-
se mutuamente como humanos) que acaba desembocando numa relação discreta...
Como observou Carneiro da Cunha (1998), o xamã, em suas viagens, toma muito
cuidado ao nomear aquilo que vê. Ora, isso parece acontecer porque o xamã, nas
suas experiências intersubjetivas, sabe que a relação contínua sempre desembocará
numa relação discreta, indicada nas “palavras torcidas”, que apreendem o peixe
como caititu.
Tratamos a pouco do endo-canibalismo funerário wari’. Este ritual também
parece se desenrolar na passagem do contínuo para o discreto. Os Wari’, todos, se
vêem como wari’, se tomam como parentes – Vilaça insiste neste ponto. Mas com a
morte de um membro da aldeia, os índios se dividem em dois grupos: os que
choram (parentes) e os que não choram (não-parentes). Vimos ali, mais
105
detalhadamente, como se desenvolve a dinâmica desta relação discreta: os
afastamentos e as aproximações ao morto; a diferença de status que os parentes e
os não-parentes mantêm diante do cadáver; a inversão dessas posições. O ponto,
aqui, é que o funeral constitui-se como momento em que os Wari’ – até então
entretendo uma relação contínua – passam a se estranhar em uma relação discreta.
Mas findo o ritual, todos voltam a se ver como parentes, de modo que a dinâmica
vai do contínuo ao discreto, retorna ao contínuo e, com a morte de um outro
membro da aldeia, ao discreto... A relação contínua parece ter um devir-discreto,
assim como a relação discreta um devir-contínuo. Esta observação vem propor uma
questão aos debates americanistas, iniciados por Lévi-Strauss, acerca da passagem
do contínuo ao discreto. No entanto, não iremos ingressar diretamente nessas
discussões. Nosso intuito aqui é apenas aprofundar a compreensão dessa dinâmica
que estamos descrevendo, destacando, por exemplo, um uso que os índios Piro
fazem dela.
Os Piro, nos informa Peter Gow (1997), tem idéias muito diferentes das
nossas a respeito da concepção de um bebê. A começar, eles entendem que a
chegada do bebê no mundo piro depende da vontade dele, ou seja, que o bebê é o
agente de seu próprio nascimento. Os pais, portanto, esperam-no surgir
espontaneamente para poder examiná-lo, procurado descobrir se ele se mostra
humano ou não-humano
27
. Se o bebê se mostra humano, então o pai
imediatamente parte em busca de uma pessoa para cortar o cordão umbilical da
criança. Segundo os Piro, o cordão umbilical e a placenta fazem parte do recém-
nascido. Ou seja, cortar o cordão umbilical implica em separar o bebê de si mesmo,
27
Muitos fetos, ao emergirem, revelam-se não-humanos: formaram-se como jabutis, peixes ou
algum animal que não reconhecemos’” (Gow 1997: 48)
106
afastá-lo de sua outra metade – desampará-lo, enfim. É por isso que o pai deve
chamar uma outra pessoa para a tarefa. Cabe notar, no entanto, que se esta é uma
escolha bastante difícil, não o é porque ninguém queira fazer o corte – muito pelo
contrário. O cortador do cordão deve ser uma pessoa estimada, um parente
próximo, o que significa dizer que a escolha do cortador revela o apreço que o pai
tem por ela: é honroso ser escolhido, e aqueles que não o foram, e esperavam sê-lo,
ficam desapontadas. Mas porque as coisas se passam desse modo? Afinal, cortar o
cordão umbilical, segundo os Piro, não significa apenas desamparar o bebê que,
sozinho e abandonado, chora demonstrando sua tristeza; este processo também
implica em ser tomado como um não-parente. A resposta à questão está no trecho
a seguir:
“O pré-requisito para que o bebê tenha parentes, pessoas para quem
se volta sua consciência, é a perda de parte de seu Eu original, a
saber, seu Outro Primordial. Este outro eu é seqüestrado por um
Humano que se torna o primeiro outro Humano do bebê, o
nustakjeru, ‘meu cortador-do-cordão-umbilical’. Como vimos, tal
pessoa, aquela que permite que a criança tenha parentes, é definida
como não-parente” (Gow 1997: 54)
Cortar o cordão é uma tarefa ingrata, mas é a condição para que o bebê se aparente
aos seus pais. Ou seja, é preciso que, em relação ao bebê, o cortador ocupe uma
posição negativa (não-parente), para que os pais possam assumir uma posição
positiva (parentes).
Este, portanto, é um uso bastante interessante da estrutura que estamos a
descrever: pai, mãe e cortador são todos parentes entre si, atualizando uma relação
contínua; mas quando a criança resolve aparecer, dá-se uma assimetria entre eles,
isto é, a relação torna-se discreta: o cortador transforma-se em um não-parente
107
para que os pais possam se aparentar ao bebê. Cabe notar, no entanto, que, em
algum momento após o corte, a relação da criança piro com seu nustakjeru se
transforma em um laço de parentesco – sugerindo que a passagem do contínuo ao
discreto não é irreversível
28
.
2.3) Do discreto ao contínuo
O mito machiguenga, o ritual funerário wari’ e o ritual de concepção piro que
acabamos de analisar apresentam uma dinâmica relacional que se desenrola na
passagem do contínuo ao discreto. Tratemos, agora, da passagem do discreto ao
contínuo, através da descrição da caça yudjá de porcos, seguido da análise de um
relato dos Yaminawa e outro dos Mbya (Guarani) de Parati sobre este mesmo tema.
Segundo Lima (1996), antes de se lançar à floresta a procura de porcos, os
homens yudjá engajados no projeto se reúnem para combinar a caça. Neste
encontro os caçadores falam da caçada: “[são] gritos estridentes, onomatopéias de
explosões e tiros, flechas silvando, porcos batendo os dentes, porcos em correria”
(Lima 1996: 22). Os casos que os caçadores contam, as mímicas que fazem,
constituem-se como preparativos, como demonstrações de cautela frente ao perigo
de tal empresa. De fato, os porcos os afrontam com violência e não se deixam levar
pelos caçadores yudjá sem luta. No entanto, segundo os Yudjá afirmam, a luta dos
porcos não é a mesma que a luta dos caçadores, pois enquanto estes encaram o
28
“Tão logo o ato é consumado, tudo se estabiliza, pois seus protagonistas entram em uma rede de
novas relações baseadas nele. Após ter tido sua condição de nomolene negada pelo pai da criança, o
cortador do cordão torna-se nkompate (se homem) ou nkomate (se mulher) dos pais, e nustakjeru
da criança. Estes termos substituem os termos de parentesco tanto na referência como no vocativo,
e definem uma espécie de hiperparentesco, marcado por uma intensificação da memória e do
respeito que caracteriza as relações entre parentes” (Gow 1997: 49)
108
encontro como uma relação entre predador e presa, aqueles encaram o encontro
como uma relação entre humanos – ou melhor, os caçadores vêem os porcos como
presas de uma caçada, mas os porcos vêem os Yudjá como afins potenciais para
serem consangüinizados. Tal assimetria se manifesta, por exemplo, em um relato
yudjá acerca de um artifício que outrora usavam para atrair os porcos e caçá-los:
“Dizia-se ao xamã: ‘Vá chamar os porcos!’ Ele usava para isso um
apito de coco, réplica do apito que os porcos fabricam e definem
como sua ‘flauta’. Os porcos ouviam a música e diziam: ‘Eles vão
dar uma festa! Vamos! Vamos!’ Alegres com a possibilidade de
dançar e comer com os [Yudjá], demoravam de um a três dias para
chegar, conforme a distância em que se encontraram. Quando
desembocavam no rio, atravessavam em direção aos [Yudjá],
passando por entre as casas (situadas em uma ilha), e de novo
entravam nas águas. ‘Nesse momento, vocês vão lá e matam, dizia o
xamã. Era excelente!’” (Lima 1996: 23)
Vê-se como os porcos encaram alegremente o encontro com os Yudjá, como uma
oportunidade de dançar e beber junto de afins potenciais. Os Yudjá, por outro lado,
se alegram com a possibilidade de uma caçada menos perigosa.
Eis, portanto, uma interação tipicamente discreta: os Yudjá encaram o
encontro como uma caçada, enquanto os porcos encaram o encontro como uma
oportunidade de angariar parentes – ou seja, um par assimétrico de apreensões
(caça/ afinidade) que se articulam em um terceiro termo (o encontro). Ademais, o
desenrolar da relação definirá a questão do status: qual das apreensões assume a
posição positiva? O embate em questão não diz respeito à outra coisa:
“Assim, o acontecimento que existe para os porcos deve ser (em
uma formulação a nosso ver grosseira, mas, na verdade, bem
adequada ao espírito dos [Yudjá]) reduzido a uma mentira pelos
humanos. Na mesma medida em que os caçadores querem impor
109
seu ponto de vista aos porcos, estes não perderiam a chance de
fazer o mesmo” (Lima 1996: 37)
29
É por isso que ao se reunirem, antes da caçada, os Yudjá tratam os porcos como
presas: eles estão se preparando para não se deixar levar pelos porcos. No capítulo
anterior relatamos, de passagem, a história de Cabeça-de-Martim-Pescador, um
homem yudjá que, diante do projeto da caçada, não se portou com prudência,
fazendo troça dos porcos, brincando às custas deles, ou seja, tratando-os a partir de
uma relação jocosa típica da interação entre afins. No dia seguinte, os
companheiros de Cabeça-de-Martim-Pecador avisaram-lhe do perigo implicado
nesse tipo de brincadeira, e aconselharam-no a ficar na aldeia. Mas ele não deu
ouvidos; foi para a caçada e, de fato, foi levado pelos porcos como um afim, rumo
ao rio Amazonas
30
. Eis a moral yudjá da história: “cuidado! os porcos se parecem
conosco; portanto, não os tratem como pessoas; senão vocês viram porcos” (Lima
1996: 38).
Mas retomemos a questão da diferença de status que caracteriza as relações
discretas. Dizíamos que o encontro põe em disputa duas possibilidades
excludentes, a saber, a interação predatória e a interação entre afins: um homem
yudjá, por exemplo, ou retornará para casa como um caçador trazendo suas presas,
ou então conhecerá a aldeia dos humanos (porcos) que o capturaram como um
afim. No primeiro caso, é a relação entre predador e presa que obtém o status
positivo, enquanto no segundo é a relação entre afins que assume tal posto. Ponto
importante, a passagem do discreto ao contínuo se dá no exato momento em que a
29
“Quem participará sobre a linha [...] do outro, o caçador ou [o porco]?” (Lima 1996: 40)
30
Os porcos vêem a si mesmos como parte da humanidade e consideram [o encontro] como um
confronto em que tentam capturar estrangeiros. As brincadeiras feitas por um caçador em intenção
dos porcos possibilitam a concretização de seu ponto de vista e desejo” (Lima 1996: 25).
110
questão do status se resolve: na solução desta querela, o encontro entre os Yudjá e
os porcos, que até então se dava como uma relação discreta, passa a se dar como
uma relação contínua, pois, não custa repetir, ou os porcos deixam de ver os Yudjá
como afins e passam a vê-los como predadores (adentrando assim numa relação de
predação); ou os caçadores deixam de ver os porcos como presas e passam a vê-los
como humanos (adentrando, voluntariamente, numa relação de afinidade).
Ora, esta é a mesma dinâmica que descreve o mito yaminawa que tratamos
mais acima. O relato narra a história de um homem que, diferentemente de seus
companheiros, não consegue trazer os porcos para casa, e acaba se deixando levar
por eles. Retomo o mito yaminawa para destacar um ponto importante dessa
dinâmica relacional que a caçada yudjá dos porcos aborda apenas indiretamente.
Quando o homem yaminawa chega à aldeia dos porcos
“Le ofrecieron bebida, aunque era un cuenco de lama: ‘Yo no bebo
eso: eso es lo que beben los pecaries, no los seres humanos’. ‘No lo
estás viendo bien, primo’ le dijeron, y exprimieron en sus ojos una
planta; entonces vió que el cuenco tenia chincha saborosa. ‘Tendrás
hambre’ le dijeron, ofreciéndole un puñado de paxiu-binha. ‘Eso es
comida de queixada, no de ser humano’ repuso. ‘No lo sabes ver’ y
de nuevo gotearon en sus ojos el zumo de aquella planta. Vió
entonces que era buena carne asada” (Calavia Sáez 2001: 163)
Vimos como o ritual funerário wari’ e o ritual de concepção piro apresentam uma
dinâmica relacional circular, pois ambos se iniciam numa relação contínua entre
parentes, passam a se dar em uma relação discreta (parentes e não-parentes) e,
mais adiante, retornam à relação entre parentes..., de modo que as relações
contínuas parecem mesmo ter um devir-discreto, e as relações discretas um devir-
contínuo. Ora, o mesmo pode ser observado a respeito das caças yaminawa, yudjá e
mbya dos porcos. No caso yaminawa, vê-se como o caçador, após apreender os
111
porcos como humanos e se deixar levar por eles, passa a entreter algumas relações
discretas com seus anfitriões: assim, por exemplo, o que o homem yaminawa vê
como lama os aldeões vem como cauim. Mas esta assimetria se resolve quando o
caçador deixa que os aldeões lhe pinguem um colírio – instante em que se
suspende o desacordo de perceptos, e todos, juntos, passam a ver e beber cauim.
Mais adiante toda essa dinâmica se repete, sugerindo a transformação mútua e
sucessiva entre o contínuo e o discreto.
No caso dos Yudjá, chamamos a atenção para o que acontece com o outro
modo da relação contínua, a saber, quando o encontro se resolve em uma relação
de predação. Após matar os porcos no mato, o caçador passa a se referir à caça
como “‘minha presa’ (u-mita), para exprimir que ela é uma parte inerente de si
mesmo, o caçador” (Lima 1996: 38). Interpretamos este ato de nomeação como um
cuidado que o caçador deve tomar referente a possibilidade de sua relação com a
caça, até então contínua (“parte inerente de si mesmo”), se transformar em uma
relação discreta: é assim que entendemos o infortúnio do caçador que, depois de
caçar, cozinhar e comer a caça, ainda assim pode entreter um desentendimento
indireto com o porco, quando este morde, fura e espeta o interior do corpo de seus
filhos pequenos (ver Lima 1996)
31
.
31
Neste caso (quando o porco ataca os filhos pequenos do caçador), os porcos veriam como presa o
que os caçadores vêem como
humano – retomando, assim, uma relação discreta. Vê-se, aqui, como
a relação que os caçadores entretém com os porcos não se encerra no encontro da floresta: inicia-se
muito antes deste encontro, terminando só depois da refeição. Esta é uma das razões que nos leva a
defender a hipótese de que análise do perspectivismo demanda uma abordagem mais próxima do
conceito de estrutura que do conceito de ponto de vista: a relação inicia-se pelo modo discreto (o
encontro é uma caçada ou oportunidade de angariar afins?), desemboca numa relação contínua (a
predação yudjá do porco, por exemplo), mas, segundo a dinâmica que move a estrutura – a saber, o
devir-discreto da relação contínua e o devir-contínuo da relação discreta –, a interação entre o
caçador e o porco pode ainda desembocar, depois da predação, numa relação discreta (quando os
porcos atacam os filhos pequenos do caçador – tomando como presa o que os caçadores tomam
como gente). Esta interpretação ganha sentido quando relacionada àquele difundido complexo
112
Os Mbya, enfim, que vivem no litoral do Rio de Janeiro, relatam, entre
muitos outros casos de transformações de homens em animais, uma história que
aqui particularmente nos interessa. Um rapaz mbya, contrariando os conselhos de
seu pai sobre o perigo da caçada, resolveu conferir como andavam as armadilhas
para matar porcos:
“Antes que chegasse ao lugar da armadilha, viu um bando de
porcos (koxi) comendo e pensou em matar algum e levar até opy
[local onde os Mbya se reúnem], logo em seguida vendo, sentada
próximo da armadilha, uma mulher muito bonita, de cabelos
compridos, que lhe falava. Era koxi que lhe aparecia como uma
jovem e chamava-o para ir com ela. Deixando arco e flecha no chão,
o jovem a acompanhou” (Pissolato 2006: 324)
Em algum momento após chegar à aldeia dos koxi, o jovem, por alguma razão,
desiste de levar sua vida entre eles, recusando-se a casar com a filha do chefe.
Expulso pelos porcos, o jovem, em busca de sua casa entre os Mbya, passa por
várias aldeias sem se alimentar da comida que essas outras pessoas (não-Mbya) lhe
oferecem – mas quando acha o caminho de casa, quando reencontra seus parentes,
lembra que comeu farinha de amendoim eterna (comida de koxi) e, então, morre.
Destaquemos deste relato os pontos condizentes com o argumento que
vamos propondo. Em primeiro lugar, tem-se o alerta do pai sobre o perigo da caça:
sozinho, fora de casa, o jovem avista alguns porcos, pensa em flechá-los, mas antes
que pudesse se dirigir a eles é tomado, pelos porcos, como um afim. São os porcos
que se inclinam ao jovem, e não o contrário: a moça bonita de cabelos compridos é
etnográfico ameríndio sobre a desubjetivação da caça, que interpretamos da seguinte forma: mesmo
depois de finalizada a caça, mesmo depois que o caçador convenceu o outro (o porco, por exemplo)
de que ele é sua presa, esta (a presa), ainda assim, procura se mostrar ao caçador como gente – do
mesmo modo que procurava fazer no encontro da floresta...
113
quem dirige-lhe a palavra
32
. Ora, isso também se observa entre os Yaminawa e
entre os Yudjá. Entre os primeiros, vimos que o caçador, ruim, não conseguia,
apesar das diversas tentativas, fazer as flechas penetrarem o couro dos porcos.
Mais tarde, quando o caçador se encontra perdido, sozinho e com medo, são os
porcos que lhe dirigem a palavra: “Primo, era você que nos flechava hoje de
manhã?” O caçador responde que não, que tinha atacado porcos, não humanos –
mas os porcos lhe afirmam que se tratavam deles mesmos, e o levam para sua
aldeia.
A análise de Lima acerca da relação entre os caçadores yudjá e os porcos
também aponta para essa questão: não se deve brincar com as palavras à custa dos
porcos, como se eles fossem primos cruzados, amigos ou afins potenciais, pois isso
implicaria em ceder-lhes a palavra, e “ao animal não pode ser dada nenhuma
chance de tomar a Palavra” (Lima 1996: 38). Mais adiante a autora tece um
comentário sobre o caráter contínuo da relação que este tratamento acarreta: “A
palavra do caçador, desencadeadora de um diálogo fatal com os porcos, assumiria
aqui um papel que lembra a operação sacrificial: ela traça [...] uma continuidade
entre o caçador e a caça” (Lima 1996: 39). Façamos apenas uma ressalva: a troca de
palavras entre os porcos e os Yudjá não revela, exatamente, uma continuidade
entre predador e presa, mas uma continuidade entre humanos, afins. É isso que se
pode perceber, por exemplo, no relato mbya supra citado: o jovem caçador deixa
32
Após relatar a história do jovem mbya que foi viver com os porcos, Elizabeth Pissolato tece o
seguinte comentário: “Há um conjunto de elementos que mereceria análise na descrição como um
todo, mas a ênfase que a própria narradora faz merece atenção. Ilda enfatiza os conselhos dos
parentes mais velhos, observando recomendações semelhantes de seu próprio pai xamã, que afirma
a necessidade de andar com cuidado ao deixar a casa. Quando se escuta alguém que chama no mato,
não se deve olhar ‘para ver que gente vem atrás’; se se escuta um assobio ou algo semelhante, não se
deve responder” (Pissolato 2006: 325). Comentamos um exemplo parecido com este (da etnografia
Achuar) na nota 18 deste capítulo.
114
arco e flecha no chão, para acompanhar os porcos, humanos – ou seja, desiste da
predação para ingressar em uma relação de afinidade. No entanto, em algum
momento dessa relação contínua entre humanos, observa-se um desencontro, um
desentendimento entre o jovem mbya e os koxi humanos – o que, enfim, nos
parece ser mais um dado referente ao potencial discreto da relação contínua, ou
melhor, à dinâmica que articula o contínuo e o discreto em transformações mútuas
e sucessivas.
3) Estrutura relacional perspectivista
O conceito de estrutura proposto por Lévi-Strauss tem como componente
imanente, e central, a noção de transformação – noção que, cabe ressaltar, opera
sem qualquer insinuação a um Sujeito, transcendental ou não. As hipóteses que
propomos para o complexo etnográfico visado pelo perspectivismo ameríndio se
encaminham nessa direção: uma estrutura relacional autopoiética que encontra na
dinâmica transformacional sua condição e seu motor. Nesse sentido, esta
dissertação não faz mais que seguir uma intuição etnográfica lévi-straussiana, a
saber, a de um dualismo ameríndio, em perpétuo dinamismo.
Através de uma abordagem comparativa do problema da gemelaridade em
mitologias provenientes das mais distintas tradições, Lévi-Strauss observa, em
História de Lince, que, ao contrário do que tende a acontecer em outras tradições,
“o pensamento ameríndio recusa essa idéia de gêmeos entre os quais reinaria uma
perfeita identidade” (1993: 207). Os índios americanos agem como se toda
115
aproximação inicial (de gemelaridade, e outras) desembocasse inevitavelmente em
um afastamento correspondente e positivo
33
. Nas palavras do antropólogo francês:
“No pensamento dos ameríndios, parece indispensável uma espécie
de clinâmen filosófico para que em todo e qualquer setor do cosmos
ou da sociedade as coisas não permaneçam em seu estado inicial e
que, de um dualismo instável em qualquer nível que o apreenda,
sempre resulte um outro dualismo instável” (Lévi-Strauss 1993:
208-209).
Assim, segundo um princípio de se estranhar (literalmente...), toda aproximação
desembocará em um distanciamento. No entanto, vide esta outra passagem:
“Uma lógica que recusa o princípio da contradição parece operar
nesse pensamento que, ao mesmo tempo, opõe os extremos e
almeja torná-los compatíveis ou compossíveis” (Hélène Clastres
apud Viveiros de Castro 1986: 123)
Ou seja, todo distanciamento desembocará em uma aproximação... Nos
debrucemos sobre a diferença entre as passagens supra citadas. Uma primeira
leitura poderia apostar na contradição entre esses trechos: ou o pensamento
ameríndio opera pelo princípio do distanciamento, ou opera pelo princípio da
aproximação – se um deles é verdadeiro, o outro imediatamente é falso, visto que, a
princípio, os princípios são irredutíveis entre si
34
. Uma outra leitura poderá
atribuir tal diferença às especificidades regionais donde se originam as afirmações:
assim, assumindo que os trechos são igualmente verdadeiros, nosso leitor diria que
33
“A identidade constitui um estado revogável ou provisório; não pode durar” (Lévi-Strauss 1993:
208)
34
Uma abordagem alternativa poderia se fundar na tentativa de mostrar como estes princípios
apenas aparentam ser irredutíveis. Seria necessário, aqui, mostrar como, no fundo, a aproximação é
um caso do distanciamento, ou, ao contrário, o distanciamento é derivado da aproximação.
Trataremos desta forma alternativa de abordagem (a dialética lévi-straussiana entre concêntrico e
diametral, ou a síntese disjuntiva viveiriana entre afinidade e consangüinidade) a seguir.
116
Lévi-Strauss está a descrever uma lógica indígena, digamos, de tipo jê-bororo
35
,
enquanto Hélène Clastres, e com ela Viveiros de Castro, está a descrever uma lógica
tupi-guarani. Mas há também uma terceira possibilidade de leitura: os trechos
supra citados, cuja relação nos parece notável, podem ser articulados e
interpretados como descrevendo momentos sucessivos de uma estrutura ameríndia
cuja dinâmica se desenvolve de um modo que a aproximação de um par de termos
desembocará em um distanciamento, e este, por sua vez, desembocará em uma
aproximação. A seguir, procuramos fundamentar a leitura desse dualismo.
*
O dualismo que aqui iremos propor não é exatamente o mesmo proposto por
Lévi-Strauss, pois, através das análises etnográficas empreendidas nos parágrafos
seguintes, aventamos uma dinâmica do dualismo ameríndio que não é exatamente
o de uma dialética entre o concêntrico e o diametral... No entanto, se de fato não é
exatamente o mesmo dualismo proposto por Lévi-Strauss, a proposta que iremos
defender não deixa de ser lévi-straussiana: primeiramente, porque ela continua a
pensar o dualismo como relação entre relações; e em segundo lugar, porque se nos
afastamos de uma dialética entre o concêntrico e o diametral, o fazemos para
desembocar numa dinâmica de mútua transformação entre o contínuo e o
35
É certo que História de Lince trata da mitologia norte-ameríndia. No entanto, as conclusões que o
autor propõe se fundamentam também nos materiais etnográficos referentes às organizações do
Brasil Central (região sobre a qual Lévi-Strauss se debruçou durante muito tempo): “Essa noção
fundamental de um dualismo em perpétuo desequilíbrio não transparece apenas na ideologia. Seja
na América do Norte (onde a evidenciei entre os Winnebago) ou na América do Sul, reflete-se
também na organização social de vastos grupos de populações. As tribos da família lingüística Jê e
outras, suas vizinhas no Brasil Central e Oriental, ilustram-no” (Lévi-Strauss 1993: 212).
117
discreto. O ponto, aqui, está no fato de que o contínuo e o discreto formam um par
analítico qualitativamente diferente do par concêntrico/ diametral – e isso tanto no
que se refere aos ‘termos’ (contínuo e discreto versus concêntrico e diametral),
quanto no que se refere às relações que articulam esses pares (transformação
versus dialética).
Comecemos abordando a diferença entre, por um lado, o diametral e o
concêntrico e, por outro, o discreto e o contínuo. O par analítico diametral/
concêntrico, tratado por Lévi-Strauss em “As organizações dualistas existem?”
(1956), pode ser lido como uma variação estrutural (dualista) do par identidade/
alteridade: enquanto a estrutura diametral articula, formalmente, dois termos
equivalentes e simétricos, a estrutura concêntrica articula termos distintos e
assimétricos (dispostos a partir de um centro). Posto isso, queremos chamar a
atenção para as implicações qualitativas que os conceitos de identidade e alteridade
imprimem ao par diametral/ concêntrico. A questão é que identidade e alteridade
são relações que partem, necessariamente, de uma consideração ontológica dos
termos – ou seja, dado os termos, é preciso compará-los, no que os constituem,
para que se possa estabelecer uma relação de identidade ou alteridade. Com efeito,
o diametralismo e o concentrismo propostos por Lévi-Strauss passam pela
consideração dos termos que os compõem: dois termos simétricos se articulam em
relações especulares (estrutura diametral), e um par de termos assimétricos
tendem a se articular em relações hierárquicas (estrutura concêntrica)
36
.
36
Lembremos que um dos problemas centrais abordados por Lévi-Strauss nesse artigo é o de
compreender como organizações sociais diametrais podem articular metades assimétricas.
Retomaremos este ponto logo adiante.
118
Há, como se sabe, muitos outros exemplos de abordagem que se constituem a partir
dos conceitos de identidade e alteridade, este par conceitual tão caro ao exercício
antropológico. Vide, como aqui nos interessa, os argumentos de Viveiros de Castro e
Lima sobre o perspectivismo, e o argumento de Descola sobre o animismo. As
diferentes propostas destes autores passam igualmente por uma consideração acerca
do que constituem humanos e não-humanos: os seres que compõem o cosmos são
constituídos de corpo e alma, fisicalidade e interioridade. Comparando os seres
viventes, humanos e não-humanos, percebe-se que eles apresentam uma identidade
no que se refere à alma ou à interioridade, e uma alteridade no que toca ao corpo ou à
fisicalidade. A diferença dos argumentos está no modo como Viveiros de Castro e
Lima, por um lado, e Descola, por outro, entendem a natureza desses ‘termos’:
enquanto os primeiros partem da consideração de uma multidão de ‘termos’
equivalentes (pois os seres que compõem o cosmos ameríndio são tomados, ao mesmo
tempo, como sujeitos e objetos), Descola considera apenas um par de ‘termos’
relacionados: os nativos (sujeitos), e tudo o que se encontra no meio que os circunda
(objeto)
37
.
Se as formas diametral e concêntrica podem ser consideradas como uma
variação do par identidade e alteridade, o mesmo não se pode dizer do contínuo e
do discreto. O par lévi-straussiano do contínuo e do discreto, aqui conceitualizado
37
As matrizes de identificação (grifo meu) propostas por Philippe Descola em Par-delà nature et
culture (2006) – entre elas o animismo que, note-se, não caracteriza apenas os povos ameríndios –,
têm por pressuposto as seguintes considerações: “L’identification est ici entendue comme cette
disposition grâce à laquelle j’établis des differences et des ressemblances entre moi et les existants
en inférant des analogies et des contrastes d’apparence, de comportement ou de propriétés entre ce
que je pense que je suis et ce que je pense que sont les autres. Or, ce mécanisme élémentaire de
discrimination paraît fondé sur l’imputation ou le déni à des objets indéterminés d’une ‘intériorité’
et d’une ‘physicalité’ analogues à cella que nous nous attribuons à nous-mêmes” (Descola 2000/
2001: 563) – utilizo aqui o resumo do curso que o autor professou nos anos de 2000 e 2001 no
Collège de France. O texto está disponível em:
http://www.college-de-france.fr/media/anthrop/UPL31695_descola.pdf
119
segundo as análises etnográficas que empreendemos durante este capítulo, se
constitui, necessariamente, sem passar por uma consideração ontológica dos
termos. Assim, procuramos mostrar ao longo do capítulo que as relações contínuas
e discretas se efetuam para além dos ‘termos (dos pontos de vista) que vinculam,
visto que se desenrolam tanto nas interações intra-específicas quanto nas inter-
específicas
38
.
Mas se no par contínuo/ discreto os termos não são anteriores às relações,
eles não deixam de estar implicados nelas. Um modo de apresentar essas questões
está em dizer que o contínuo e o discreto, ao contrário do concêntrico e do
diametral, não são relações que operam por comparação de termos (identificando-
os ou diferenciando-os), mas por emparelhamento deles: ou seja, o importante é
que os termos formem um par. Ora, para se emparelhar termos, dispô-los lada-a-
lado, não é necessário considerá-los ontologicamente: os termos podem ser
idênticos ou distintos, híbridos ou puros, concretos ou não. Emparelhar é
relacionar – nada mais, nada menos.
38
Este ponto do argumento se inspira diretamente em alguns momentos do trabalho de Tânia
Stolze Lima. Vejamos os seguintes trechos: “os [Yudjá] concluem que ‘os porcos se parecem com os
mortos’. De fato, ambos vivem em aldeias subterrâneas e são chefiados por afins potenciais (não por
um parente); alegram-se com a possibilidade de tomar cauim com os [Yudjá] e tentam capturá-los”
(Lima 1996: 25). Ou seja, as relações que os Yudjá estabelecem com os porcos se assemelham
bastante às relações que os Yudjá estabelecem com os mortos. Este é um dos pontos defendidos pela
autora em seu artigo de 2006, onde ela leva adiante uma abordagem – já bem palpável em seu
artigo de 1999 – que nos é muito sugestiva: a de que as diferenças entre, por exemplo, os Yudjá e os
porcos do mato é uma questão
distância: “Vim depois a perceber que é muito mais uma questão de
distância, e que esta [distância] não merece ser entendida como uma constante, mas como uma
variável que se submete à variação continua. [...] E o que quero dizer com isso é que uma variável
como a relação diferencial entre a humanidade e determinada espécie animal não opera como uma
constante, como diriam Deleuze e Guattari, mas, pelo contrário, ela entra em variação contínua”
(Lima 2006: 10-11). Ou seja, quando um caçador yudjá vê um porco do mato como porco ou como
gente, não se trata, exatamente, de uma questão de ponto de vista (ou de troca de perspectivas), mas
da variação da distância que estes caçadores mantêm com os porcos – é, portanto, uma questão de
relação. No entanto, ainda que nos inspiremos no trabalho da autora, nos distanciaremos dele num
ponto importante: a variação, supomos, não é exatamente da distância entre os ‘termos’ – em certo
sentido, a distância permanece constante... O que varia, supomos, é a disposição, a forma que
articula o par de ‘termos’ (essas formas são o
contínuo – predação ou convivialidade – e o discreto).
120
É nessa direção que entendemos os conceitos de contínuo e discreto: duas
formas positivas de emparelhamento, a primeira efetuando-se por conexão e a
segunda por defasagem
39
. Note o leitor que as relações de conexão e defasagem
não são sequer análogas às relações de identidade e alteridade (insistimos neste
ponto!). Conectar não é o mesmo que identificar: se, por um lado, a relação
contínua conecta termos equivalentes e simétricos (nas interações onde as pessoas
se vêem, mutuamente, como humanas), ela não deixa, por outro lado, de conectar
termos assimétricos (nas interações em que outrem, vendo-me como presa, é visto
como predador – ou vive-versa, pois o importante, aqui, é que as posições de
predador e presa remetam uma à outra). Nem a conexão se confunde com a
identidade, nem a defasagem se confunde com a alteridade. O discreto, como aqui
vamos propondo, não é o nome de um intervalo, mas de um tipo ameríndio de
defasagem, ou seja, de uma comunicação indireta que distingue as pessoas,
humanas, por diferença de status. Ademais, esta defasagem, que liga-e-separa os
termos da relação discreta, não é a mesma coisa que uma síntese disjuntiva – não
apenas porque a defasagem não se constitui aqui como o modo genérico da relação
(da qual derivaria o contínuo), mas porque a idéia de defasagem apresenta uma
diferença qualitativa frente à idéia de síntese (conjuntiva ou disjuntiva).
*
39
A idéia de um emparelhamento que opera por ‘defasagem’ pode soar como uma contradição per
se. Mas com esta idéia queremos dizer, apenas, que a relação discreta constitui-se como um
encontro entre duas pessoas dado a partir de um desacordo referente à um terceiro termo. Um
emparelhamento pode se dar por conexão (relação contínua) ou por defasagem (relação discreta).
121
Tratamos acima da diferença qualitativa entre, por um lado, o par
concêntrico/ diametral e, por outro, o par contínuo/ discreto: enquanto o primeiro
pode ser lido como uma variação estrutural das relações de identidade e alteridade,
o segundo par não pode ser lido assim. Nos debrucemos agora sobre a diferença
qualitativa entre as relações que articulam cada um desses pares. Para tal empresa
retomamos aquele texto de 1956 (“As organizações dualistas existem?”). Nele, Lévi-
Strauss trata da relação entre concentrismo e diametralismo como uma relação
dialética. Após analisar a organização social dos Winnebago, povo norte-
ameríndio, o autor faz as seguintes considerações (que estenderá para os Bororo,
sul-ameríndios): “nos parágrafos precedentes expus, com um exemplo norte-
americano, o problema da tipologia das estruturas dualistas e a da
dialética que as
une” (Lévi-Strauss 1985: 164; grifo adicionado). Por dialética o autor se refere à
simultaneidade, ou coexistência, das estruturas diametral e concêntrica na
formação da complexa organização social winnebago
40
. Ora, mas a questão da
dialética como síntese conjuntiva não se encerra na indicação do fato de que “os
índios não pensam sua aldeia, apesar da forma circular, como um só objeto
analisável em duas partes, mas antes como dois objetos distintos e acoplados”
(Lévi-Strauss 1985: 169). Pois se os índios pensam dessa forma, a questão, então, é
a de entender como esta síntese se torna possível, ou seja, como duas estruturas
tão dispares – uma simétrica e equistatuária (diametral); outra assimétrica e
hierárquica (concêntrica) –, podem coexistir. O tratamento que o autor aventa para
40
“Gostaria de mostrar aqui que não se trata, necessariamente, de uma alternativa [entre
concentrismo e diametralismo]: as formas descritas não precisam corresponder a duas disposições
diferentes. Podem corresponder, também, a duas maneiras de descrever uma organização muito
complexa que não pode ser formalizada por um só modelo” (Lévi-Strauss 1985: 158)
122
este problema passa pela consideração, mais geral, das relações entre dualismo e
triadismo.
O tema do triadismo remonta às análises anteriores que Lévi-Strauss
empreendeu sobre a organização social bororo
41
. Ancorado nos trabalhos dos
padres salesianos, para quem os clãs bororo se dividiam em três sub-clãs
(‘superior’, ‘médio’, ‘inferior’), o autor levantará a questão das relações entre o
triadismo e o dualismo – tomados, ambos, como princípios estruturadores da
organização social. A tripartição dos clãs bororo respondia pelas interações
matrimoniais: as pessoas que integravam os sub-clãs superior, médio ou inferior só
se casavam com aqueles que, na outra metade da aldeia, compunham um sub-clã
do mesmo nível. Essas considerações levaram o autor a formular a hipótese de que
as metades diametrais exogâmicas escondiam, na verdade, um sistema mais
fundamental de endogamia triádica: “estamos diante de três sub-sociedades, cada
uma formada de indivíduos sem relação de parentesco com os membros das outras
duas” (Lévi-Strauss 1985: 167-168). Assim, a questão das relações entre triadismo e
dualismo, enquanto princípios reais de organização social, foi compreendida da
seguinte forma: o dualismo matrimonial mostrava-se derivado de um triadismo
matrimonial mais fundamental, de modo que “o triadismo e o dualismo são
inseparáveis, porque o segundo nunca é concebido como tal, mas apenas como
limite do primeiro” (Lévi-Strauss 1985: 176). Esta foi a chave encontrada para o
tratamento do problema da síntese conjuntiva entre estruturas tão dispares quanto
a diametral e a concêntrica. O compromisso entre essas estruturas deve-se ao fato
de que o dualismo diametral deriva do dualismo concêntrico, que, como Lévi-
41
As considerações que se seguem foram baseadas diretamente no artigo de Coelho Souza & Fausto
(2004), ao qual remeto o leitor interessado no tratamento lévi-straussiano do dualismo ameríndio.
123
Strauss destacou, apresenta uma natureza ternária
42
. A derivabilidade do dualismo
diametral a partir do dualismo concêntrico explicaria, enfim, os valores
assimétricos atribuídos às metades que formam, por exemplo, as organizações
diametrais do Brasil Central.
Assim, a dialética ou síntese conjuntiva que une o concêntrico e o diametral
tem como condição de possibilidade a hipótese de que, no fundo, os termos não se
diferenciam, ou melhor, que um dos termos é derivado de um outro mais
fundamental. Ecos audíveis dessa abordagem são notados na maneira como
Viveiros de Castro trata a questão da relação entre afinidade e consangüinidade na
Amazônia indígena. Vimos como a afinidade potencial é tomada como o modo
geral, ou primordial, da relação: como um fundo infinito de socialidade virtual.
Pois bem. É a partir dessa afinidade potencial, dada, que se efetua a construção das
relações de consangüinidade – de modo que a consangüinidade é entendida como
um caso particular da afinidade:
A identidade é um caso particular da diferença. Assim como o
frio é a ausência relativa de calor, mas não vice-versa (o calor é uma
quantidade sem estado negativo), assim a identidade é ausência
relativa de diferença, mas não vice-versa. O que equivale a dizer
que só existe diferença, em maior ou menor intensidade: essa é a
natureza do valor medido. [...] O que o parentesco mede ou calcula
na socialidade amazônica é o coeficiente de afinidade nas relações,
que não chega jamais a zero, visto que não se pode haver
identidade consangüínea absoluta entre duas pessoas, por mais
próximas que sejam” (Viveiros de Castro 2002c: 422)
Como para Lévi-Strauss o diametralismo deriva do concentrismo, para Viveiros de
Castro a consangüinidade deriva da afinidade. E é por esta razão que a passagem
42
“A natureza ternária do dualismo concêntrico destaca-se, também, numa outra observação: é um
sistema que não se basta a si mesmo e que deve referir-se sempre ao meio que o circunda” (Lévi-
Strauss 1985: 177)
124
da afinidade à consangüinidade (ou atualização) não é pensada da mesma forma
que a passagem da afinidade à consangüinidade (ou contra-efetuação). Enquanto a
atualização se dá como um processo no qual a afinidade vai se diferenciando de si
mesma, a contra-efetuação refere-se, por um lado, ao efeito, digamos, co-lateral
deste processo de diferenciação, indicando aquela porção da afinidade extraída na
atualização de uma não-afinidade
43
e, por outro lado, ao próprio processo de
potencialização da diferença.
Pois bem. Nossa análise do material etnográfico sugere que a relação entre o
contínuo e o discreto não passa nem pela síntese conjuntiva do par concêntrico/
diametral, nem pela síntese disjuntiva do par afinidade/ consangüinidade. Isso se
deve porque o contínuo e o discreto se constituem como duas formas positivas de
relação, isto é, uma não deriva da outra. Dizer que estas relações são igualmente
positivas não significa dizer, bem entendido, que sejam independentes: o contínuo
não existe sem o discreto, nem o discreto sem o contínuo. O ponto é que estas
relações formam um par: assim como o contínuo é um modo de emparelhamento
que opera por conexão e o discreto um modo de emparelhamento que opera por
defasagem, a relação entre o contínuo e o discreto é, ela própria, um modo de
emparelhamento que articula seus ‘termos’ sucessivamente, através de trans-
formações mútuas.
43
Esta não-afinidade só é tomada assim em relação àquela porção de afinidade que, no processo de
atualização, lhe é co-lateral: do ponto de vista ontológico esta não-afinidade é, também, uma
afinidade. Como vimos na passagem supra citada, o coeficiente de afinidade nunca chega a zero – e
é esta afinidade imanente à uma não-afinidade o motor que opera a articulação com aquela porção
de afinidade que lhe é co-lateral, potencializando, assim, o processo de contra-efetuação. Ver o
diagrama proposto pelo autor (Viveiros de Castro 2002c: 433).
125
Para o argumento que estamos descrevendo, este emparelhar se constitui como a
forma genérica da socialidade ameríndia. Bom, pelo menos é nesse ponto que a
hipótese intenta chegar um dia... Para tanto, será preciso tratar, entre outras questões,
da possibilidade de abordar a relação do par corpo/ alma através da dinâmica
transformacional entre o contínuo e o discreto. Ora, esta possibilidade nos parece
pertinente.
Vimos, por exemplo, segundo os Wari’, que tudo o que compõe o cosmos possui um
corpo, mas só os humanos (os Wari’, os brancos, outros povos indígenas e alguns
animais) possuem, também, alma. O fato de que só os humanos são dotados de alma
motivou o argumento perspectivista a considerar a alma como o sítio do princípio
subjetivo. Mas esta não é a única maneira de abordar a questão. Com efeito,
poderíamos propor que os humanos são sujeitos não exatamente por serem dotados
de alma, mas porque, neles, corpo e alma constituem-se em par – ou seja, haveria
sujeito onde corpo e alma se emparelham. Esta sugestão me parece ir ao encontro da
tradução alternativa que muitos etnógrafos escolheram dar àquele componente do
sujeito que outros tantos tratam por alma: traduzi-lo como duplo, e não como alma,
nos parece algo bastante significativo!
Partindo dessas considerações, o próximo passo seria o de perguntar: corpo e duplo se
relacionam de modo contínuo? E de modo discreto? A vida onírica não apontaria um
modo discreto da relação deste par, visto que o duplo do sujeito se distancia de seu
corpo para viajar por outros patamares cósmicos (o duplo, assim, ocupando uma
posição positiva na relação com outrem, enquanto o corpo ocupa uma posição
negativa)? E a vida em vigília? Ela não indicaria uma relação contínua entre corpo e
duplo?
44
A interação entre a saúde e a doença (cujo devir é a morte, ou seja, o fim de
44
A hipótese de que a vida em vigília se constitui como uma relação contínua parte de duas
observações: (i) na vida em vigília o corpo e o duplo são princípios de apreensão que não parecem
se separar (de fato, eles só se separam quando as pessoas estão doentes...). E mais: além de não se
126
uma articulação entre corpo e duplo), por sua vez, não demandaria, também, uma
leitura que abordasse a relação corpo/ duplo através das transformações mútuas entre
o contínuo e discreto? Essas são algumas perguntas que me parecem valer a pena
investigar.
Mas, voltando à questão, porque estamos a caracterizar o emparelhamento
entre o contínuo e o discreto através do conceito de transformação?
Primeiramente, porque este emparelhamento é o nome que vamos dando à
estrutura relacional perspectivista que anunciamos desde o começo deste texto: o
conceito de estrutura com que trabalhamos (o conceito lévi-straussiano) tem como
componente imanente e central o conceito de transformação
45
.
Em segundo lugar porque, na literatura americanista, a dinâmica relacional
das apreensões costuma ser descrita pelo conceito de transformação: Tânia Stolze
Lima, por exemplo, o faz na seguinte passagem: “o porco-xamã diferencia-se dos
demais por carecer de pêlos no traseiro e ter pêlos avermelhados na cara. [...] Em
sonho, o xamã [yudjá] vê esse porco se transformar em um homem” (Lima 1996:
23) – ou seja, o relato yudjá sobre este encontro intersubjetivo se constitui de
maneira que aquele que se mostrava sob a forma de um porco se trans-forma em
humano.
separarem, esses princípios de apreensão parecem se remeter mutuamente (este, pelo menos, nos
parece ser uma das teses do perspectivismo ameríndio: corpo e alma se conjugam para constituírem
as condições de apreensão de um ponto de vista – tratamos desta questão no primeiro capítulo);
(ii) a vida onírica e a vida em vigília, como o discreto e o contínuo, desembocam sucessivamente
um no outro.
45
Segundo Deleuze & Guattari (1991), os componentes de um conceito (todo conceito é múltiplo)
podem ser também conceitos: este é o caso do conceito lévi-straussiano de estrutura, que tem como
componente central o conceito de transformação.
127
Por fim, mas não menos importante, o conceito de transformação nos serve
para indicar um processo que não opera por etapas cromáticas
46
. A transformação
de um porco em um homem não lembra em nada o devir (ou a imagem) de, por
exemplo, um lobisomem: no perspectivismo, uma pessoa pode ser apreendida
como lobo ou como homem, e se, por acaso, um desses perceptos se transformar no
outro, esta passagem parece se efetuar, literalmente, num piscar de olhos – no
relato yudjá, pelo menos, aquele que num momento era porco, no momento
seguinte se mostra completamente humano. Ora, se, como vamos sugerindo, a
mudança da percepção indica uma mudança de relação, então pode-se concluir que
as passagens do contínuo ao discreto, e do discreto ao contínuo, são imediatas e
completas. Assim, o emparelhamento entre essas duas formas positivas e
irredutíveis de relação seria tal que sua dinâmica não pode ser descrita como uma
“síntese”: quando sugerimos, na análise do ritual funerário wari’ – e depois na
análise da caça de porcos entre os Yudjá, os Yaminawa e os Mbya guarani –, que o
contínuo possui um devir-discreto e o discreto um devir-contínuo, nos referíamos
às propriedades relacionais de uma estrutura que cabia descrever, não à ontologia
relacional do contínuo e do discreto que deteriam, em si, a possibilidade de
atualizar os seus opostos (como o concêntrico em relação ao diametral, e a
afinidade em relação à consangüinidade). E suma: transformação e síntese
parecem ser conceitos fundamentalmente diferentes. Nem o conceito de
transformação se efetua por síntese, nem o conceito de síntese via transformação:
não por acaso, a conceitualização viveiriana das passagens dadas entre a afinidade
46
O conceito de síntese disjuntiva que, como vimos, foi proposto para os estudos do parentesco e do
perspectivismo indígenas, pressupõem um processo que opera por etapas cromáticas: assim, a
atualização e a contra-efetuação.
128
e a consangüinidade dá-se ao largo do conceito de transformação – se a afinidade
já possui em si a consangüinidade, e esta, por sua vez, nunca deixará, no fundo, de
ser afinidade, então não há, de fato, nenhuma transformação entre uma e outra,
mas variações (a atualização e a contra-efetuação) dadas em, e por, um fundo
virtual mais fundamental
47
.
A dinâmica entre o contínuo e o discreto não opera por síntese, mas por
transformação. Contínuo e discreto são formas positivas de emparelhamento que
desembocam uma na outra, sem que, por isso, uma forma se reduza à outra. Mas se
elas não se reduzem entre si, como então se daria a passagem de uma forma para
outra?
48
Bom, apesar de serem irredutíveis, contínuo e discreto são compatíveis, e
assim o são porque ambos são formas de emparelhamento – a transformação
entre
o contínuo e o discreto (irredutíveis, mas compatíveis), é uma transformação
intra
emparelhamento (ou seja, o que muda do contínuo para o discreto, ou do discreto
para o contínuo, é a forma do emparelhamento...). Mas não avancemos o carro
diante dos bois. Comecemos do início, ou seja, insistindo que o fato de
descrevermos o contínuo e o discreto como formas de emparelhamento, e a
transformação como algo que se dá no emparelhamento, não significa pressupor a
existência de um Emparelhamento, virtual e sintético, do qual contínuo e discreto
47
Enquanto afinidade e consangüinidade são relações que se articulam em processos qualitativa-
mente distintos (atualização vs. contra-efetuação), o contínuo e o discreto interagem através de um
único processo: a linha, ou melhor, a passagem que vai de cá para lá, é qualitativamente a mesma
que vai de lá para cá – ou seja, a transformação.
48
O motor da dinâmica entre o contínuo e o discreto não se encontra no caráter disjuntivo de uma
síntese. Pensar o movimento a partir de um pré-movimento (ou seja, de uma
instabilidade) que
caracterizaria as propriedades daquilo que se está a estudar não deixa de ser uma solução clássica
da antropologia: assim, a síntese disjuntiva do virtual ameríndio (proposta por Viveiros de Castro a
partir da filosofia de Deleuze e Guattari); mas também a impagável dívida das trocas-dom, proposta
por Mauss, e o desequilíbrio perpétuo do dualismo, proposta por Lévi-Strauss. O ponto, no entanto,
é que o movimento não precisa ser pensada ou procurada em um pré-movimento, em uma
instabilidade. Como o próprio Lévi-Strauss nos sugere, a estrutura é já a transformação – a relação é
já movimento.
129
se derivam: o emparelhamento, aqui, não é exatamente uma condição dada a
priori; ele é mais bem um espaço que se deve constituir para que as relações
contínuas e discretas, e suas transformações mútuas, possam se efetuar. Este
espaço é aquele que se abre através do encontro de um par – este encontro pode se
dar entre corpo e duplo, entre duas subjetividades (intra-específica ou inter-
específica) ou entre duas relações (contínuas e discretas). Pois bem. O
emparelhamento, como espaço necessário para que as relações possam se efetuar,
depende invariavelmente da possibilidade de um encontro. Ora, mas se os
encontros podem ser constituídos, eles podem muito bem ser evitados
49
! E este é
um ponto que depende, única e exclusivamente, da vontade das pessoas: (i)
assim, segundo os Piro, o bebê é o agente de seu próprio nascimento, entenda-se,
ele se dá à luz, e conhece os Piro, quando lhe parece adequado fazê-lo; (ii) assim,
também, a história daquele ‘caçador’ yaminawa que só sai para a floresta em busca
de porcos quando se cansa de comer o que os outros lhe oferecem; (iii) assim, no
ritual funerário wari’, os não-parentes do morto precisam ser convencidos a tomar
o cadáver como presa (e não são todos os que se deixam convencer e encaram esse
encontro...); (iv) outrossim, me parece, os porcos, na floresta, que são tomados de
surpresa pelos caçadores yudjá: enquanto uns ousam afrontar os caçadores, outros
batem em retirada (ver Lima 1996)
50
. Os encontros podem ou não se efetuar –
depende da vontade mútua das pessoas. Desse modo, e se nossas análises estão
49
Vide o conselho dos Mbya guarani de Parati (Pissolato 2006) para as pessoas que se encontram
sozinhas na mata: diante de um assobio ou coisa parecida, não se deve responder! Ou seja, é sempre
possível evitar um encontro – permanecer indiferente diante de sua possibilidade.
50
Aventemos, enfim, e rapidamente, a possibilidade de ler a relação de cura entre o xamã e o doente
(que perdeu seu duplo) desse mesmo modo: o xamã, que procura trazer o duplo do doente de volta
ao corpo do doente, seria aquele que tenta convencer o duplo a retornar – como se o duplo
precisasse, para voltar ao corpo do doente, de boas razões...
130
corretas, todo encontro é uma possibilidade que passa, necessariamente, pela
abertura dos sujeitos – uma abertura que não é exatamente uma abertura ao
Outro, mas uma abertura ao Par.
O emparelhamento, então, não é nem um fundo virtual, nem um dado a
priori. O emparelhamento é um espaço formal constituído por um encontro –
contínuo ou discreto. O contínuo se forma quando o par se relaciona por conexão, e
o discreto se forma quando o par se relaciona por defasagem. Ponto importante,
este par, do começo ao fim, é o mesmo: na caça yudjá dos porcos, por exemplo, o
par é formado por caçadores e porcos – no início este par toma a forma discreta
(os caçadores vêem o encontro como uma caçada, enquanto os porcos o vêem como
uma oportunidade de angariar parentes), mas, em um determinado momento, a
relação se transforma em um par contínuo (o caçador, por exemplo, pode se deixar
levar pelos porcos, que passam a se mostrar humanos; ou então, se for persistente,
e contar com alguma competência e sorte, pode levar consigo alguns porcos,
abatidos como presas numa relação de predação). Portanto, dizer que a
transformação se dá entre uma relação discreta e uma relação contínua, é o mesmo
que dizer que a transformação se efetua no par: o que muda, justamente, é a
forma, a disposição em que os caçadores e os porcos se encontram articulados.
Enfim. Tentemos resumir nossos esforços num parágrafo final. A abordagem
que esta dissertação propõe não se desenvolve a partir do conceito de ponto de
vista. Observando que os perceptos se articulam em pares (ver Lima 1996, 2006;
Viveiros de Castro 1996, 2002b), procuramos entendê-los não como índices de
perspectivas específicas, mas como índices de relações intersubjetivas – dadas
tanto nos encontros intra-específicos quanto nos inter-específicos. Comparando e
131
analisando as relações intersubjetivas a partir dos pares de perceptos que elas
manifestam, aventamos duas formas, articuladas, de interação: as contínuas (de
perceptos homônimos ou assimétricos) e as discretas (de perceptos assimétricos).
Então, tratando o contínuo e o discreto como duas formas positivas de relação
51
,
diferenciamos qualitativamente estas formas daquelas relações que funcionam
como uma variação do par identidade/ alteridade (como é o caso das relações
diametrais e concêntricas). Nosso argumento, ao contrário, é o de que o contínuo e
o discreto não se constituem como uma variação do par identidade/ alteridade,
visto que operam por comparação, mas por
emparelhamento (ou seja, por um
modo de relação que independe de uma consideração ontológica dos termos). Por
fim, através das análises etnográficas empreendidas, descrevemos a relação entre o
contínuo e o discreto como uma transformação estrutural autopoiética
52
cuja
dinâmica se distancia daquela dada por uma síntese disjuntiva, visto não operar
por etapas cromáticas.
*
A proposta de uma estrutura relacional perspectivista não faz mais que
apontar para a segunda margem do rio. Afinal, cabe perguntar: com quantos ‘pós’
se faz uma canoa? ...Nonada. Antes de buscar a terceira margem, fiquemos a
observar, como todo mundo, que, entre as duas margens do velho rio, muita água
há de rolar – o que é um modo de dizer que nos dispomos entre aqueles que não
51
Uma não deriva da outra...
52
As transformações entre o contínuo e o discreto duram enquanto durar a relação, ou seja, o
emparelhamento...
132
vieram para transpor o rio, mas, apenas, para navegá-lo: pescar um peixe aqui,
outro acolá, em meio a toda essa gente boa que, a tempos, vem nos ensinado a jogar
a rede. Assim, a estrutura relacional perspectivista não se constitui como uma
resposta, mas como uma aposta (é o arremessar do anzol...). Esboçamo-la como
uma hipótese de trabalho, buscando fomentar os debates em torno do
perspectivismo ameríndio.
133
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