segundo positivo) em um par assimétrico constituído pela mirada conjunta dos
Yudjá (posição enunciativa) e dos porcos
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.
O segundo exemplo é um clássico:
“Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto de carne humana.
Comia de uma perna, segurou-m’a diante da boca e perguntou-me
se também queria comer. Respondi: ‘Um animal irracional não
come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro
homem?’. Mordeu-a então e disse: ‘Jauára ichê’. ‘Sou um jaguar.
Está gostoso’. Retirei-me dele, à vista disso” (Staden 1556 [1998]:
132)
Hans Staden foi um viajante alemão que conheceu o litoral brasileiro em meados
do século XVI. Chegando aqui por uma frota portuguesa, ele serviu combatendo
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Não deixa de ser interessante observar que inicialmente as banhistas percebiam água onde
passam a perceber lama. Isto não parece ser fortuito, pois muito provavelmente os porcos se
banham naquilo que os Yudjá vêem como lama – e partindo dessa consideração atrevo-me a fazer as
observações que se seguem. O mundo sensível não é exatamente carregado pelos pontos de vista. Se
assim fosse, sempre que, em condições normais, houvesse um encontro entre os Yudjá e os porcos,
ali onde os primeiros vêem lama os segundos veriam cauim. Mas desconfio que um índio yudjá, ao
se deparar com algum poço de lama, não pode afirmar, com certeza e imediatamente, que aquilo
seja o cauim suíno – e isso porque a lama pode bem ser água onde os porcos se banham, ou mesmo
outra coisa. Para que o índio yudjá possa fazer alguma afirmação é preciso, antes de mais nada, que
aquele poço de lama esteja freqüentado por porcos. Em seguida é preciso, sempre, parar e observar
o que os porcos estão fazendo: eles estão realmente bebendo? Ou eles parecem estar nadando?...
Isto é, o percepto do porco sobre aquilo que os Yudjá tem como lama depende do modo como os
porcos se relacionam com a ‘lama’. O que estamos querendo dizer é que não é possível afirmar,
como no trecho supra citado, que a lama yudjá é o cauim suíno, e isso pelas mesmas razões por que
um porco, na floresta, pode acabar se mostrando um afim potencial para o caçador yudjá – tudo
depende do modo como se dá a relação. (E aqui se entende melhor nossos comentários,
desenvolvidos mais acima, sobre o modo como a literatura vem etnografando os relatos nativos: não
é apropriado descrever o relato yudjá como “os porcos vêem lama como cauim”, pois os perceptos
não falam dos pontos de vista, dados, mas das relações que vão sendo estabelecidas – nem sempre
o que os porcos vêem como cauim é lama para os Yudjá...) Para terminar esta longa nota, cito um
trecho de AmaZone, que vai neste mesmo sentido: “Durante uma tarde calorosa, conversava com
uma velha índia baré (aruak) na comunidade de São Francisco no alto rio Negro e enquanto
palestrávamos éramos a todo instante incomodados por uma mutuca que tentava, a todo custo,
sugar algum sanguinho de uma perna ou braço desavisado. De repente, como quem não quer nada,
a velha de supetão bate na mosca que cai estatelada e morta no chão. Imediatamente, um bando de
formigas, em constante vigília, se dirige até a mosca estendida no chão que é carregada com certa
dificuldade em direção ao formigueiro. Enquanto as formigas penavam para fazer com que a grande
mutuca passasse pelo pequeno buraco de entrada do formigueiro, a velha baré lança a seguinte
proposição: ‘Para essas formigas, essa mutuca é, na verdade, um grande tapir’ (Anotações de
campo)” (AmaZone 2008: [1]). Sabe-se que a mutuca serve de alimentação para as formigas, mas a
velha baré só pôde afirmar que se tratava especificamente de um tapir quando observou a
dificuldade das formigas em carregá-la para o formigueiro.
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