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Eu ia descobrindo cada espaço da Canção Nova: a capela, a casa de confissão, as tendas
para oração e aconselhamento, a lanchonete, a lojinha com produtos religiosos... era
impressionante como essas estruturas físicas, materiais, eram repletas de significado que
as diferenciava de todas as outras construções. Em um dos passeios pela chácara, alguém
da comunidade me chamou de ‘irmão’. Fiquei tão impressionado! Eu não chamava nem
meus irmãos verdadeiros assim, com essa intimidade. A cada momento ficava mais
evidente o quão forte era a ‘ideologia’ deles, a sua maneira de ver o mundo (ainda que
para isso eles tenham criado seu próprio mundo, a Canção Nova, que eles acreditam estar
mais perto da perfeição, ou seja, de Deus).
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No domingo fui procurar um padre para me confessar. Queria comungar; participar
integralmente da última missa antes de ir embora. É curioso como cada detalhe, cada
pequeno fato ganha significação divina por e para os participantes da RCC. Há uma frase
recorrente entre eles que diz ‘nada é coincidência, tudo é providência’, é uma quase
completa santificação da vida e do mundo que a cerca.
Não achei nenhum padre na casa para confissões, ela estava lotada. Mais tarde, vi
algumas pessoas do acampamento entrando em uma porta, no alto de uma escada que
dava na parte superior da casa que fica bem no centro da chácara. Desconfiei que ali
haveria um padre, e realmente havia. Entrei, pedi e insisti para que ele me atendesse. Eu
não imaginava que uma das maiores marcas que eu guardaria da Canção Nova viria
daquele momento.
Chegada a minha vez, dirigi-me ao fundo da sala (era uma sala de aula do pessoal da
comunidade). Sentei em frente a ele e comecei a falar. Depois disso começou o que
depois eu ia classificar metaforicamente como uma tempestade que ocuparia minha
cabeça nos dias seguintes. Olhando para mim, o padre [Antônio, ele era de uma paróquia
carismática do Rio de Janeiro] disse que minhas inseguranças, minhas dúvidas, enfim,
meus questionamentos todos eram um sinal, mas que eu não estava percebendo. Ele leu
meu nome no crachá que eu usava, disse meu nome, segurou minha mão e falou ‘Deus te
quer como pescador de homens! Deus te quer como um membro de vida consagrada a
Ele!’
Fiquei confuso, não entendi (ou, não sei bem, não quis entender o que ele dizia). Eu?
Pescador de homens? Respondi que não pensava nisso e que tinha minhas dúvidas sobre
deus, se ele realmente existia e coisas assim. Ele me disse que isso era normal, que iria
passar a dúvida e que eu teria todas as respostas que confirmariam que eu deveria deixar
minha casa, meus afazeres, e ir para um seminário. Em contrapartida eu não sabia o que
dizer... as suas palavras me calaram. Ele, no contexto do retiro, era a representação carnal
do Deus Próximo e muito forte que só parecia existir na Canção Nova.
Pelo choque, pelo nervosismo, não tive como refutá-lo ali, naquele momento. Era como
se a minha insegurança tivesse sido derrotada pela ‘verdade’ que ele carregava (ou que
dizia carregar). Como penitência, para que eu fosse ‘efetivamente’ perdoado, disse que
eu teria seis meses para abandonar minha família e ingressar em uma comunidade de
vida como a Canção Nova. Ele me deu a benção e eu saí chorando.
Eu tinha um prazo, uma data para deixar tudo o que tinha como importante e passar a
viver para Deus, que era mais importante... Doía por não poder ter controle da minha
própria vida.”
Diante dessa projeção de comprometimento tão grande logo em minha primeira ida
à sede da Canção Nova, em Cachoeira Paulista, percebo hoje, além de um tipo possível de
argumento utilizado para atrair e convencer pessoas a entrarem para a vida consagrada,
esse tipo de abordagem pessoal possibilitou algumas conseqüências sobre o tipo de relação
que passei a manter com aquele universo. A violência simbólica existente na assimetria
entre aquele que fala e o que deve ouvir influenciou tanto na minha aproximação daquele
grupo – do qual Deus teria também me escolhido para “entrar” lá – quanto em certa
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