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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
CLARISSA ROCHA DE MELO
CORPOS QUE FALAM EM SILÊNCIO
Escola, Corpo e Tempo entre os Guarani
Florianópolis, 2008.
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CLARISSA ROCHA DE MELO
CORPOS QUE FALAM EM SILÊNCIO
Escola, Corpo e Tempo entre os Guarani
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal de Santa
Catarina como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social.
Orientadora: Antonella Maria Imperatriz
Tassinari
Florianópolis, 2008.
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Aos Guarani:
por me permitiram conhecer um pouco mais do seu
modo de ser e viver, um povo sábio e que resiste em sua
caminhada demonstrando a força que existe em seu
olhar, em seu silêncio.
Minhas Homenagens
Em primeiro lugar, agrado profundamente todos os Guarani - principalmente de
Morro dos Cavalos e Mbiguaçu - que me acolheram e me permitiram a realização da minha
pesquisa: Artur Benites, Agostinho, Cláudia, ao cacique Marcelo, de Morro dos Cavalos,
Elisete, Marco, Márcia, Leonardo Wherá Tupã, professor Adão, dona Ivete, Nice, Marcos.
Ao cacique Hyral, de Mbiguaçu, Nadir, Rosana, Rosângela, Adriana, Márcia, Geraldo,
diretor André, professora Isabel, Santa, Fátima,nia, Timóteo Karai Tataendy.
Um agradecimento especial ao seu Alcindo Wherá Tupã e dona Rosa, pela sabedoria, pela
existência. E as Kyringué i’kuery Guarani que cantam, dançam e encantam!
Agradeço a todos aqueles que me ajudaram no desenvolvimento da minha
dissertação de maneira direta e indireta.
A minha orientadora Antonella Tassinari, pela orientação conduzida de maneira
sábia, cuidadosa. Agradeço o incentivo, a paciência, a compreensão, o apoio, o
amadurecimento que vem me proporcionando e a amizade que sempre presente durante toda
a caminhada.
Ao professor Silvio Coelho, pelo apoio prestado durante toda a pesquisa, pela
disposição do NEPI – Núcleo de Estudos sobre Povos Indígenas – de materiais, livros,
câmera e pelo financiamento da pesquisa.
Aos meus professores, tutores, amigos e amigas da Universidade pelo incentivo e
pelas reflexões: Dorotéia Darella, Silvia de Oliveira, Fvia Mello, Aldo Litaiff, Oscar
Calávia, Miriam Grossi.
Aos meus amigos que me auxiliaram no desenvolvimento da minha dissertação:
Moreno, Bel, Flávia Maria, Everton, Érica.
Meus amigos e amigas do Mestrado que demonstraram que é possível fazer
diferente, com amor, amizade e alegria: Érica, Everton, Elias, América, Camila, Martina,
Tales, Rafa, Maya, Marcelo e Cadu.
Agradeço aos meus pais Hermano e Elizeth pela vida, pelo amor, pela confiança,
pelo apoio incondicional e por serem meus pais maravilhosos. Ao meu pai o meu
agradecimento pela leitura cuidadosa da dissertação.
Obrigada meu irmão Hermano, Yuri, Yasmin e Hugo por existirem em minha vida.
Aos meus avós Pnio e Maria pela força, incentivo e garra que demonstram no viver.
A toda minha família pelo apoio e amor durante minha caminhada. Aos meus
familiares de Recife que estão tão longe mais tão perto no meu coração.
Aos meus amigos e amigas de Floriapolis - ilha da magia - lugar onde encontrei
pessoas simplesmente especiais: Hanna, minha amiga de caminhada, obrigada pela
cumplicidade e dedicação; a Camila, pelas reflexões, pelo apoio de sempre.
Obrigada meus amigos, irmãos e irmãs: Paula, Lívia, Zeca, César, pelo carinho.
Meus amigos e amigas da capoeira pela amizade e leveza de viver.
Às minhas amigas que dividiram não só uma casa, mas uma vida: Flávia, Érica,
obrigada pela paciência, pelas reflexões, pelo amadurecimento, pelo carinho, pelas
conversas, pelas risadas.
Agradeço à Nuno Nunes, pelo imenso apoio nesta longa caminhada. Obrigada por
me apresentar os Guarani e por todas as conversas e discussões que me ajudaram
profundamente no desenvolvimento da dissertação.
Agradeço à vida, por ser simplesmente maravilhosa....
Esta dissertação contou com bolsa da CAPES durante 12 meses, e financiamento
para pesquisa de campo do NEPI.
RESUMO
Esta pesquisa foi realizada nas aldeias indígenas Guarani de Morro dos Cavalos e Mbiguaçu
- localizadas no sul e norte do Estado de Santa Catarina, respectivamente - com o intuito de
compreender os processos nativos de ensino e aprendizagem nos espaços escolares e não-
escolares. Tendo como foco o corpo, buscou-se perceber quais são os processos de produção
e transmissão de conhecimentos entre os Guarani e de que modo estes podem nos fornecer
dados relevantes sobre a educação escolar indígena. O olhar sobre a escola e fora dela,
associado à corporalidade, aos cuidados e técnicas corporais conduziram a pesquisa à uma
tade: escola, corpo e tempo. O modo como os guarani percebem o tempo remete a
significados imanentes à vida, à morte e ao cosmos, contribuindo para o entrelaçamento
dessa tríade. A partir desse viés, buscou-se associar estes aspectos para a compreensão dos
processos de aprendizagem guarani, que se dão em um ritmo próprio. Esse ritmo permite
compreender um pouco mais do pensamento guarani, do seu modo de ser, viver, aprender e
ensinar, bem como conhecer aspectos fundamentais da educação, como o silêncio. O
silêncio privilegia outras formas de produção e difusão de conhecimentos que não
necessitam de palavras. Além do silêncio, as danças, o entoar dos cantos, as rezas, são
momentos privilegiados em que se faz possível perceber esses processos nativos de ensino-
aprendizagem.
Palavras-chave: Educação Guarani, corpo, tempo.
ABSTRACT
This research was carried out in the indigenous Guarani villages of Morro dos Cavalos and
Mbiguaçu – localized at the south and north of Santa Catarina state, respectively - with the
intention of understanding the native processes of teaching and learning in the schoolar and
non-schoolar spaces. Taking the body as a focus, I try to understand the processes of
production and transmission of knowledges between the Guarani and in which way these
can supply us with relevant data on the Indigenous Schoolary Education. Looking at spaces
in and out of school and associating this to corporality and to phisical cares and techniques
drove the research to a triad: school, body and time. The way the Guarani percieve time
relates to meanings immanent in life, death and in the cosmos, contributing to the
interweaving of this triad. From this perspective, I try to associate these aspects for the
comprehension of the processes of Guarani learning, which happens in a characteristic
rhythm. This rhythm allows to understand a little more of the Guarani thought, their way of
being, living, learning and teaching, as well as to know basic aspects of education, as
silence. Silence privileges other forms of production and diffusion of knowledges that do not
need words. Besides silence, the songs, the prayers and the dances are privileged moments
in wich it is possible to realize these native processes of teaching and learning.
Key-words: Guarani education, body, time.
SUMÁRIO
Um Convite à Leitura........................................................................................................11
A Pesquisa de Campo e o com-viver com os Guarani....................................................23
CAPÍTULO I: CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA
I.1 A Aldeia de Morro dos Cavalos.....................................................................................31
I.2 A Aldeia de Mbiguaçu...................................................................................................35
I.3 Aspectos Gerais sobre os Guarani de Morro dos Cavalos e
de Mbiguaçu e suas classificações étnicas no século XXI.................................................37
CAPÍTULO II: A ESCOLA INDÍGENA: UM (DES)ENCONTRO
DE COSMOLOGIAS?
II.1 Memórias do processo de escolarização das aldeias indígenas....................................47
II.2 O problema Atual: As sociedades Indígenas contra o Estado......................................52
II.3 Itaty: A Escola Indígena de Morro dos Cavalos...........................................................57
II.4 Wherá Tupã Poty Djá: A Escola Indígena de Mbiguaçu..............................................69
II.5 Comissão Indígena Nhemonguetá................................................................................77
CAPÍTULO III: ORERETE: O CORPO GUARANI
III.1 O Corpo nas Sociedades Ameríndias..........................................................................81
III.2 A Escola no Corpo......................................................................................................83
III.3 O Corpo na Escola......................................................................................................91
CAPÍTULO IV: ARA REKO: TEMPORALIDADE GUARANI
Notas preliminares sobre o Tempo.......................................................................................100
IV.1 O Tempo e as Culturas.................................................................................................101
IV.2 Orerete Reko: O Tempo do Corpo e o Tempo no Corpo.............................................104
CAPÍTULO V: RE-INVENÇÃO DA TRADIÇÃO: OS PROCESSOS DE
PRODUÇÃO E TRANSMISSÃO DE CONHECIMENTOS NAS CERIMÔNIAS
V.I A tradição como processo............................................................................................116
V.II As cerimônias da Ayahuasca e Opydjere....................................................................119
V.III O Tempo Sagrado das Cerimônias e a importância do corpo, das danças e cantos
............................................................................................................................................126
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Corpos que falam em silêncio........................................131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................135
O dia nos realiza
Nos faz sorrir
O tempo nos traz juventude
Nos leva velhice
A chuva nos purifica
Nos faz brotar
O vento nos acalma
Nos faz fluir
O mar nos leva ao horizonte
Nos refugia
A água nos compõe
Nos faz parte
A terra nos faz existir
Nos faz possível
Trovão nos leva além da imaginação
Nos leva ao mistério
Raio nos mostra o poder
Nos mostra energia
A derrota nos faz vencer
Nos revela
O amar não significa ser amado
Comos gostaríamos
Humildade
Essência de grandeza
Poema da Vida
[Leonardo Wherá Tupã, Indígena Guarani]
Um Convite à Leitura
Esta dissertação é fruto de meu primeiro encontro com os Guarani. Foi aí que tudo
comou...
Quando ainda cursava graduação em Ciências Sociais no ano de 2004, pensava em
me especializar em Sociologia, pois havia feito alguns trabalhos preliminares de pesquisa
nesta área. A Antropologia não fazia parte dos meus planos, bem como o estudo de
populações indígenas. Mas tudo mudou com minha primeira visita a uma aldeia indígena
Guarani: fui à aldeia Morro dos Cavalos, localizada no Município de Palhoça, na grande
Florianópolis, por intermédio de amigos que possuíam contato com os moradores da
comunidade, com o objetivo de fazer o plantio de algumas árvores.
Minha segunda visita foi no mesmo ano a convite de amigos que atuavam como
professores de ensino fundamental na escola da aldeia. Um deles era professor de História e
Artes e o outro de Informática (os computadores eram uma novidade na aldeia, trazendo
curiosidades às crianças e adultos).
As visitas tiveram continuidade em 2005, com idas à comunidade, onde fazia
observações sobre as aulas na escola, participações em eventos culturais e cursos de
capacitação de professores indígenas.
Neste período, houve minha inserção no NEPI – núcleo de estudos sobre populações
indígenas –, então coordenado pelo professor Silvio Coelho dos Santos. Isto foi de suma
importância para o amadurecimento teórico na temática indígena. Além disso, as discussões
e apresentações dos trabalhos relacionados à Infância e Educação”, promovidas pelo grupo
de estudos sob a coordenação da professora Antonella Tassinari, conduziram-me a reflexões
teóricas e experiências práticas sobre Educação Escolar Indígena.
Em todas as visitas, e imbricada nas reflexões sobre Educação, a discussão sobre a
demarcação de Terras Indígenas esteve sempre muito presente em todas as visitas, pois a
aldeia de Morro dos Cavalos estava em lutapela demarcação de seu terririo, o que ensejava
muitos encontros com instituições, além de uma campanha em prol da demarcação.
Um outro episódio marcante foi uma viagem que fizemos, junto com os moradores
da aldeia de Morro dos Cavalos, ao município de Sete Barras, interior de São Paulo, quando
visitamos a aldeia Pegua’o ty, permanecendo lá durante três dias. Esta aldeia possui um
acesso muito restrito - com passagem através de uma mata densa – e não possui energia
elétrica, exceto o posto de saúde e a escola, que contavam com iluminação por placas
solares. Não se ouvia rádio nem televisão e, à noite, apenas as estrelas iluminavam o céu.
Pude perceber que esta viagem provocou uma reação muito interessante nos moradores de
Morro dos Cavalos, que retornaram decididos a fortalecer-se no viver como antigamente.”
É assim, em meio ao embate entre o antigo e o novo, que vivem as comunidades
Guarani, sendo a escola mais um elemento onde estes conflitos aparecem com maior
intensidade e visibilidade.
Foi a partir deste e de outros momentos que surgiu o meu interesse em estudar as
relações que aconteciam no espaço escolar da aldeia, observando-o como uma fronteira na
qual a escola não estava alheia à comunidade nem tampouco inserida nela
1
. Assistindo às
aulas na escola, pude perceber a lacuna no processo de ensino- aprendizagem entre professor
1
Ver Tassinari, 2001.
não-índio e alunos Guarani. Não por falta de interesse daquele, mas por desconhecimento de
como agir com uma cultura completamente diferente da sua.
Embora os cursos de capacitação para o magistério guarani - Kuaa-Mbo’e -,
oferecidos pela Secretaria de Educação dos Estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul,
Para, Rio de Janeiro e Esrito Santo, no chamado Protocolo Guarani, estivessem
acontecendo para os professores indígenas, os professores não-índios chegavam
despreparados para lidar com a cultura guarani.
Meu projeto de pesquisa foi se configurando na tentativa de compreender estas
relações. Neste contexto, um episódio que me causou bastante interesse foi relatado por uma
professora não-india na escola da aldeia Morro dos Cavalos: após chamar atenção de um
aluno para que olhasse para o quadro negro – achou que ele não prestava atenção pois seus
olhos estavam voltados para o chão - a professora percebeu que este aluno não voltou à sala
de aula nos dias seguintes.
Posteriormente, ao ler o trabalho de Seeger (1975) sobre os Suyá - quando o autor
ressalta que as crianças têm como órgão principal de aprendizado a audição, no qual ouvir
bem significa compreender bem - percebi que entre os Guarani acontece o mesmo, ou seja,
a visão não é central neste processo. Mas como a professora poderia saber? Além disso, nas
reuniões da comunidade também foi possível perceber que todos focalizam o olhar no chão,
muitas vezes parecendo desatentos por não olhar, mas, em seguida, por meio das falas
posteriores, percebe-se que todos eles estavam atentos, prestando atenção no que estava
sendo dito, ouvindo o que estava sendo dito, sem necessidade de olhar para quem o dizia.
A partir d, e com o intuito de contribuir com a discussão antropológica sobre a
educação escolar indígena - traçando um paralelo entre Antropologia e Educação - é que
percebi a relevância em estudar as relações que permeavam a escola, contribuindo assim,
para um melhor entendimento da relação entre indígenas e não-índíos, Secretarias de
Educação e demais órgãos que trabalham com educação escolar indígena.
Foi percebendo a importância da compreensão dos processos próprios de
aprendizagem entre as populações indígenas que são garantidos pela constituição de 1988:
...uma educação bilíngüe, diferenciada, na língua materna, respeitando os processos
próprios de aprendizagem, que se faz necessário levantar o seguinte questionamento: afinal,
quais são estes processos próprios de aprendizagem no caso dos Guarani?
Ainda no período que antecedeu a pesquisa de campo, foram realizadas várias visitas
à aldeia e percebi que o corpo era central nestes processos nos quais um simples gesto nos
remetia a uma elaborada técnica corporal.
Estas reflexões proporcionaram-me a construção desta dissertação partindo dos
espaços escolares e não-escolares, com o intuito de focar o corpo e seus processos de
ensino-aprendizagem: a corporalidade, os cuidados corporais, demonstravam formas de
comunicação entre os Guarani que extrapolavam a oralidade e remetiam ao corpo e suas
técnicas corporais. Além disso, a relação do corpo nestes processos de aprendizagem
demonstrava um outro aspecto importante: o tempo do (no) corpo. O ritmo do corpo guarani
era perceptivelmente diferente em relação ao ritmo corporal de um não-índio. E o que isso
poderia revelar? Aos poucos foi se traduzindo em um conhecimento próprio dos Guarani,
um mecanismo (in) corporado de transmissão de conhecimentos.
Este ritmo corporal era visível nas cerimônias de reza, no cotidiano da aldeia, e
contribuíam para sua compreensão dos espaços escolares, demonstrando uma gama infinita
de conhecimentos nos quais o tempo do (no) corpo fez-se importante para a percepção de
outros mecanismos de transmissão de conhecimentos e de percepção do mundo.
Nesse sentido, é importante salientar que o modo como as culturas concebem e
vivenciam o tempo é bastante diverso (Ricoeur, 1975). Esta diversidade pode ser percebida
na linguagem, na concepção de vida, de morte, do cosmos, enfim, nos remete a formas de
pensamento e de vivenciar a vida, explicitando muitas vezes esta relação com o tempo
através do corpo.
Como referencial trico, cito autores que apontam para a importância da
corporalidade, da noção de pessoa, a fim de compreender melhor, aspectos tácitos presentes
entre as populações indígenas. Estes trabalhos ressaltam o protagonismo das crianças
indígenas nos processos de ensino-aprendizagem, demonstrando sua centralidade nestes
processos de transmitir e produzir conhecimentos.
Aracy Lopes da Silva (2002), por exemplo, já chamava a atenção para a importância
da corporalidade nas crianças indígenas e sua relação com os processos de ensino-
aprendizagem em seu artigoPequenos 'xamãs': crianças indígenas, corporalidade e
escolarização”. No artigo, ela aponta para o estudo da corporalidade “como um dos
mecanismos centrais dos processos de aprendizagem e transmissão de conhecimentos,
habilidades, técnicas e concepções próprias à educação das crianças indígenas.”
Ainda sobre as crianças indígenas, Clarice Conh (2000), em seu artigo sobre as
crianças Xikrin, demonstra que a noção de pessoa possibilita o entendimento de como cada
sociedade concebe a infância e permite entender os processos necessários para que se
adquira o atributo de ser-humano. Desse modo, a noção de pessoa permite entender a
definição social de humanidade, como a sociedade intervém nestes processos, que não são
tidos como finitos, mas contínuos, e como o conjunto destas variáveis atua para definir a
infância e os estágios que a conforma (Howell,1988; Overing, 1988 Apud Cohn, 2000).
Codonho (2007), faz um estudo sobre os Galibi Marworno, utilizando a noção de
conhecimentos transmitidos horizontalmente que, ao contrário da suposição mais usual
quando se pensa no aprendizado infantil, o se dá apenas das gerações adultas para as
gerações mais novas, mas entre indivíduos de uma faixa etária aproximada. A autora segue a
trajetória da Antropologia da Infância, afirmando o papel central das crianças nas
elaborações das dinâmicas culturais nas quais se inserem, através das percepções e vivências
próprias da fase da vida em que se encontram, qualitativamente diferente da dos adultos.
Todos estes trabalhos mostram a importância da corporalidade para a compreensão
dos processos de ensino-aprendizagem entre as populações indígenas. Muitos deles me
trouxeram pistas de como o corpo é importante para compreender estas culturas e,
principalmente, no que se refere à educação indígena nos espaços escolares e não- escolares.
Para a reflexão teórica sobre Educação Escolar Indígena, diversos trabalhos referem-
se à necessidade de uma abordagem antropológica dos processos de escolarização nas
aldeias indígenas: Lopes da silva (2001), em seu artigo intitulado: “Uma Antropologia da
Educação no Brasil? Reflexões a partir da escolarização indígena”, faz uma crítica à
separação existente entre “o conhecimento acadêmico teórico das pesquisas antropológicas
sobre o pensamento ameríndio” e o “registro pragmático reivindicatório da mobilização em
torno dos direitos educacionais indígenas”.
Para demonstrar sua afirmação, a autora faz uma descrição das pesquisas recorrentes
na etnologia indígena sul-americana no decorrer de três décadas. Nos anos 70, os estudos
baseavam-se em “categorias nativas”, pessoa, tempo, espaço, idiomas simbólicos como a
corporalidade; nos anos 80 predominavam os estudos dos povos amazônicos; as relações
dos seres humanos com a natureza e o mundo dos espíritos: a busca da compreensão da
alteridade (Viveiros de Castro, 1986); na década de 90, (Descola, 1998) abordava questões
referentes à Ética e Ecologia Simbólica, problematizando a “natureza humana”, que seria
proveniente de um conceito ocidental (Viveiros de Castro, 1996: 129); a busca da
compreensão do pensamento ameríndio em seus próprios termos (Overing, 1990: 603); a
ampliação do conceito de racionalidade, pararacionalidades” no plural (Overing, 1990); a
subjetividade e a experiência como dimensões centrais para compreensão da cognição, das
práticas sociais, do simbolismo (Toren,1990; Taylor, 1996); o “Perspectivismo Ameríndio”
no qual Viveiros de Castro (1996) explica que o pensamento indígena sul-americano opera -
inversamente ao pensamento ocidental – a partir da concepção de multinaturalismo (em
oposição ao multiculturalismo relativista) entre os seres do universo. Além disso, traduz o
perspectivismo como a capacidade de ocupar um ponto de vista, uma perspectiva que estaria
no corpo (Lopes da Silva, 2001: 33-37). Esta descrição demonstra o refinamento teórico e
metodológico da etnologia para uma compreensão cada vez mais satisfatória do pensamento
indígena sul-americano. E neste sentido, a necessidade da utilização das teorias da etnologia
indígena para uma análise antropológica da educação escolar indígena.
A etnologia do pensamento indígena revela que a complexidade das preposições
ontológicas e metafísicas ameríndias e sua originalidade flagrante perante o
pensamento ocidental (ilustra-o perspectivismo amazônico), alerta para a
complexidade das questões com que terão de tratar as experiências de educação
escolar que se desejem efetivamente respeitosas dos direitos indígenas (id. ib.:
40).
Lopes da Silva (2001) sugere que esta interdisciplinaridade entre Antropologia e
Educação, e também o diálogo com a lingüística e a história são fundamentais para
promover a reflexão sobre uma transformação das escolas das aldeias historicamente
destinadas à civilização dos povos indígenas em um lugar para o exercício indígena da
autonomia.
Bergamaschi (2005), em sua pesquisa sobre os processos de escolarização entre os
guarani e kaingaing nos proporciona um panorama sobre a situação atual, na qual as
populações indígenas estão sendo protagonistas de processos de apropriação da escola, ou,
ainda, nas palavras da autora, “de indianização da escola”. Estes protagonistas indígenas
estão criando práticas escolares diferenciadas baseadas nos seus próprios conhecimentos.
Bergamaschi (2005) cita Bengoa (2000) para apontar que:
...a afirmação étnica de cada grupo, através de uma atitude política que busca na
ancestralidade, nos fios da tradição que tecem o presente, a inspiração e as ferramentas
para constituírem espaços de vida e ampliar seus direitos frente ao mundo ocidental. E
nesse sentido, um olhar mais alargado sobre o movimento e as lutas pelos direitos dos
povos indígenas de toda a América mostra que o reconhecimento dos seus direitos no
plano internacional deve muito à educação escolar (Bengoa, 2000 apud Bergamaschi,
2005: 111).
A escola se torna um palco privilegiado onde um movimento dinâmico se configura,
trazendo à tona a afirmação da identidade étnica e da tradição. Tradição esta que não é
imutável nem estática, muito pelo contrário. De acordo com Balandier (1997)
2
:
na medida que permanece viva e ativa, a tradição consegue nutrir-se do imprevisto e da
novidade; (...) Na medida que é praticada, descobre seus limites: sua ordem não mantém
tudo, nada pode ser mantido por puro imobilismo; seu próprio dinamismo é alimentado
pelo movimento e pela desordem, aos quais ela deve finalmente se subordinar.
2
apud Bergamaschi, 2005.
Ao mesmo tempo, a identidade é um conceito que parece invocar uma origem que
residiria em um passado histórico com o qual as populações ingenas continuariam a
manter certa correspondência. Têm a ver, entretanto, “com a utilização dos recursos da
história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que somos, mas daquilo que
nos tornamos.” (Hall, 2005: 109)
Nesse sentido, a Antropologia da Educação nos dá suporte teórico para estudar e
compreender estas práticas escolares diferenciadas, percebendo a escola como um espaço de
re-afirmação da tradição que se nutre diariamente das novidades, dos imprevistos, se
subordinando a desordem ao mesmo tempo em que busca a manutenção da sua ordem.
É desse modo que Álvares (1999) descreve a situação dos Maxacali que passavam
por um processo de domesticação da escola, percebendo como a ideologia individualista
predominante na sociedade não-indígena foi re-significada por esta população através da
distribuição da merenda escolar. Os Maxacali, pertencentes a uma sociedade igualitária –
quando se refere ao compartilhamento de alimentos – em que a comida, mesmo escassa, é
sempre dividida, se depararam com o controle da merenda por parte de funcionários da
FUNAI e Secretarias de Educação do Estado de Minas Gerais. As famílias tinham o hábito
de ir à escola na hora da merenda, para que todos comessem juntos. Proibidos de fazê-lo,
protestaram, até que chegaram em um consenso: a merenda seria levada para as famílias
dentro de saquinhos ao término das aulas. Em contrapartida, o faccionalismo interfamílias,
característico da sociedade Maxacali também é reproduzido na escola.
A situação entre os Kaingaing de toldo do Chimbangue é semelhante. Na dissertação
de Limulja (2007), a autora demonstra que a escola, localizada em uma Terra Indígena
Kaingaing, é freqüentada por alunos kaingaing e guarani, e que passam por um processo de
domesticação, mas do corpo pela escola. Em contrapartida, aponta para uma
intencionalidade na domesticação deste corpo pela escola, e da necessidade atribuída por
esta população indígena às práticas disciplinares da escola para a aquisição dos saberes não-
indígenas: os Kaingaing domesticaram a escola para que ela domesticasse seus corpos. A
escola, neste sentido retifica a hierarquia e disciplina que se espelham em aspectos da
organização social kaingaing. Já entre as crianças guarani, permeia uma atmosfera mais
descontraída, em que as crianças levantam, caminham, introduzindo cantos e danças em sala
de aula, aspectos de suma importância para a cultura guarani.
Deste modo, em sua pesquisa, a autora constatou que “cada grupo se apropria da
instituição escolar de formas distintas, e re-introduzem, nesse espaço, os elementos de sua
cultura que são selecionados para fazer parte desse novo processo de ensinar e aprender
dentro da escola” (Limulja, 2007: 76). Este é apenas um exemplo entre vários outros
descritos, em que as populações indígenas re-elaboram este “pacote” intitulado educação
escolar, transformando-o de acordo com sua cultura e concepções de mundo.
Em meio a essa complexidade em torno das experiências relativas à educação escolar
indígena - em que a escola indígena pode ser vislumbrada como um palco de negociações -
que as realidades escolares devem ser estudadas em suas particularidades, devido a grande
diversidade das concepções do papel da escola dentro das comunidades, de modo que as
tendências coletivas também possam ser refletidas em outras sociedades.
É possível perceber, portanto, que a escola aparece como um espaço em que duas visões de
mundo – a do índio e a do não-índio – estão em constante debate. Além disso, a própria
concepção indígena sobre a educação escolar ainda está em negociação em muitas
comunidades.
Enfim, para que os assuntos levantados neste “convite à leitura” possam ser descritos
de modo a proporcionar ao leitor uma melhor compreensão dos assuntos abordados na
presente dissertação, sua estrutura está organizada da seguinte maneira:
O item inicial é intitulado: “A pesquisa de campo e o com-viver com os Guarani”;
em que descrevo um pouco da minha caminhada rumo às aldeias Guarani e das amizades
constrdas ao longo deste percurso. Apresento os sujeitos da minha pesquisa e descrevo
minha vincia nas aldeias indígenas de Morro dos Cavalos e Mbiguaçu.
No capítulo I, descrevo as aldeias pesquisadas, abordando aspectos gerais sobre os
Guarani, suas classificações étnicas, e as diferenças existentes entre as aldeias de Morro dos
Cavalos e Mbiguaçu.
No capítulo II, descrevo rapidamente o processo de escolarização nas aldeias
indígenas, apontando trabalhos acadêmicos relevantes que discutem a temática. Busco
apontar aspectos importantes dentro deste processo: a introdução do cargo de professor
indígena nas aldeias indígenas e sua relação com o Estado; para posteriormente apresentar
as escolas indígenas pesquisadas.
No catulo III, o foco é o corpo, nesse sentido, demonstro sua importância para a
compreensão de processos de produzir e transmitir conhecimentos, descrendo trabalhos que
apontam para a relevância do corpo e dos cuidados corporais nas sociedades ameríndias.
Busco descrever os cuidados corporais entre os Guarani, percebendo o corpo como uma
escola, um lócus privilegiado de transmissão de conhecimentos. Além da “escola” no corpo,
traço seu inverso, descrendo o corpo na escola, focando as diferenças presentes na educação
indígena guarani em contraposição à educação escolar ocidental.
No catulo IV, chego a um momento singular em que o corpo guarani revelou sua
exclusividade: uma temporalidade própria. Um tempo vivido que se expressava pelo (no)
corpo. A partir deste viés temporal, descrevo o ritmo próprio Guarani, e de que modo esta
maneira singular de vivenciar o tempo remete significados diferentes à vida, à morte e ao
cosmos.
No capítulo V, discuto alguns temas imbricados na religião guarani, como tradição,
para posteriormente descrever o processo de introdução da ayahuasca na aldeia de
Mbiguu. As cerimônias religiosas se revelaram um palco privilegiado de produção e
transmissão de conhecimentos. Busco portanto, focar os processos de ensino-aprendizagem
presentes nestas ocasiões:a importância da dança, do entoar dos cantos e da resistência dos
corpos.
Nas considerações finais busco apontar para a eficácia da tríade que come a
dissertação: escola, corpo e tempo. A partir destes três aspectos, aponto alguns processos de
ensino-aprendizagem presente na cultura guarani, e sua importância para se pensar uma
educação escolar indígena que se adeqüe as concepções indígenas de ser e viver. O silêncio,
um mecanismo de ensino- aprendizagem presente no cotidiano das aldeias, revelou como os
corpos falam sem necessitar de palavras.
A Pesquisa de Campo e o com-viver com os Guarani
A com-vivência entre os Guarani de Morro dos Cavalos foi possível pela amizade
que foi construída ao longo de dois anos. Antes de interlocutores
3
, os Guarani se traduzem
para mim como amigos que me receberam em suas casas e compartilharam experiências,
saberes, tristezas e alegrias. Conduziram-me a um mundo tão perto e tão longe do olhar não-
indígena. Fui transportada para um lugar que se apresentava como um eterno presente” -
utilizando as palavras de Mircea Eliade (1999). O tempo parecia realmente não existir...acho
que é esta a sensação de pesquisadores que passam um tempo em aldeias indígenas: uma
“sucessão de eternidades”.
Imergir neste “estado atemporalme permitiu entender um pouco do pensamento
guarani – que foge à cosmologia ocidental – que é também percepção, e do seu modo de ser
e viver: a importância do silêncio, do cachimbo guaranipetynguá -, das rodas de
chimarrão em torno do fogo de chão. A com-vivência entre os Guarani foi permeada por
experiências marcantes também para minha vivência pessoal. A subjetividade é visível no
decorrer da dissertação pois os Guarani me guiaram para uma realidade que vai além do
plano físico. As experiências freqüentes nas cerimônias religiosas na Opy – casa de reza,
meu esforço em aprender a entoar os cantos, em dançar de mãos dadas, de fumar o petynguá
diariamente,o fatores que sem dúvida influenciaram no meu olhar no decorrer da
pesquisa.
4
3
Percebendo a diferença existente na relação pesquisador/informante e pesquisador/interlocutor, ao passo que
transformando o informante em interlocutor uma nova modalidade de relacionamento – mais produtivo –
possa emergir. Segundo Cardoso de Oliveira (2004), quando nos propomos a realizar esta mudança
metodológica, a relação se torna dialógica, deste modo mais relevante para o etnólogo.
4
Devereux (1985) em “Da Angústia ao Método”, fala da importância da subjetividade do pesquisador, pois,
segundo o autor, o há dados independentes do trabalho do pesquisador. Os dados são construídos a partir das
reações do pesquisador sobre as reações do nativo. Estes comentários, agradeço ao professor Oscar Calávia em
uma aula de Teoria Antropológica.
Foi a partir do entendimento de algumas premissas importantes para os guarani que
optei muitas vezes por permanecer em silêncio ao lado deles - ouvindo suas falas,
percebendo seus gestos, seus corpos, - do que enchê-los de perguntas. Em muitos
momentos as perguntas foram substituídas por simplesmente estar junto em sincio. Muitas
vezes até brincavam: “parece até uma guarani de tão quieta!. Talvez tenha perdido um
pouco por não perguntar, mas por outro lado busquei me comunicar de outras maneiras, foi
quando tentei estabelecer um diálogo corporal.
Um fator que contribuiu para minha observação em campo foi minha trajetória como
bailarina: iniciei um trabalho corporal em dança em Mato Grosso do Sul, fazendo parte de
um grupo de dança da capital - Campo Grande -, que desenvolvia um trabalho na academia
de Ballet Isadora Duncan e, posteriormente, na Corphus Academia de Dança. Em
Florianópolis fui bailarina do grupo Aplysia de Dança Contemporânea até o início do
mestrado em Antropologia Social. O corpo sempre foi o meu foco de observão, de me
sentir e sentir o outro. Nesse sentido, elaborei uma proposta de aulas de expressão corporal
entre as crianças, jovens e adultos guarani da escola de Mbiguaçu a fim de observar suas
reações corporais e perceber nossas diferenças e semelhanças: os gestos, os toques, o jeito
de dançar, de perceber o outro. Tudo isso foi de grande utilidade metodológica em campo
para compreender alguns processos de ensino-aprendizagem que se dão pelo (no) corpo.
De fato, é perceptível que a grande parte dos ensinamentos são passados pelo corpo,
além das histórias contadas à beira do fogo, os mecanismos de transmissão de conhecimento
entre os Guarani passam necessariamente pelo corpo: nas danças, no modo de entoar os
cantos, nos cuidados corporais, na intencionalidade na fabricação de um corpo saudável,
forte e resistente.
Percebendo a rentabilidade da tríade: escola, corpo, tempo, para uma reflexão sobre
os modos próprios de pensar, produzir e transmitir conhecimentos, e depois de conhecer
outras aldeias Guarani, vislumbrei a possibilidade de ampliação do meu campo de
investigação. Esta decisão concretizou-se a partir do convite de um amigo guarani para
participar de uma cerimônia religiosa na aldeia de Mbiguaçu, quando pude então entrar em
contato com conhecimentos importantes tanto para minha vivência pessoal, quanto como
pesquisadora. Na aldeia de Mbiguaçu, as cerimônias de reza são muito conhecidas pelo uso
da medicina ou ayahuasca
5
, que envolve uma gama infinita de conhecimentos rituais, onde
a Opy – casa de reza – mostrou- se um local privilegiado de transmissão de conhecimentos.
Esta ampliação do campo de pesquisa foi possível pela convivência com os guarani
de Morro dos Cavalos e suas relações de parentesco em várias aldeias do Estado de Santa
Catarina, inclusive em Mbiguaçu. As duas aldeias se apresentaram como possibilidades de
investigação principalmente pela diferença existente entre elas. As diferenças dialetais, nas
identidades étnicas, e principalmente pela possibilidade de participar das cerimônias de reza
em Mbiguaçu, que demonstravam processos de transmissão de conhecimentos relacionados
ao uso da ayahuasca.
Deste modo, como explicitei anteriormente, minha pesquisa teve como foco os
espaços escolares e não-escolares, buscando uma reflexão sobre o corpo e o tempo (no) do
corpo e seus processos de ensino-aprendizagem.
5
Ayahuasca é uma palavra que vem da língua Quíchua e significa liana ou cipó dos mortos, da alma, dos
espíritos (Luna,1986 apud de Rose, 2007). Este termo pode referir-se a uma bebida e também é o nome
popular do componente principal desta bebida, o cipó Banisteriopsis sp. Embora as bebidas produzidas com o
Banisteriopsis sp sejam conhecidas pelo nome genérico de Ayahuasca, elas receberiam mais de 40
denominações distintas.(Feriogla,1997 apud de Rose, 2007).
As observações dos espaços escolares foram permeadas por alguns encontros e
desencontros que demonstravam algumas lacunas possíveis de serem preenchidas por meio
de uma reflexão antropológica. Nesse sentido, a escola mostrou-se como um espaço de (re)
negociações, de (des) encontros e troca de conhecimentos: do não-índio com o guarani
reciprocamente.
É importante explicitar a contribuição dos trabalhos citados para a constituição do
meu olhar na compreensão dos processos de escolarização nas aldeias indígenas; no papel
central do corpo na transmissão de conhecimentos e mecanismos de ensino-aprendizagem;
no protagonismo das crianças nestes processos; na necessidade de uma interdisciplinaridade
para uma reflexão sobre educação indígena entre outros aspectos observados.
Minha pesquisa de campo em Morro dos Cavalos teve início em fevereiro de 2007,
quando foram realizadas incursões à aldeia a fim de participar de reuniões da comunidade.
Antes de me estabelecer, passei quatro dias na aldeia, quando pedi autorização formal para o
cacique e procurei um lugar onde pudesse residir. Com o aval do cacique e com a
possibilidade de residir na casa de uma moça guarani, no final de fevereiro me mudei para a
aldeia Morro dos Cavalos onde permaneci ate 1º de abril.
A estadia na casa de uma ma guarani foi um período de muito aprendizado para
mim. Inicialmente não a conhecia, ela havia se mudado a pouco de Chapecó para
Florianópolis - uma Terra Indígena Kaingaing para uma Terra Indígena Guarani. Ela vivia
sozinha em uma casa no topo do Morro e foi lá que passei a morar.
Nossa convivência se intensificou e nos tornamos amigas, com a minha presença, ela
passou a realizar rezas noturnas e benzimentos em pessoas que vinham de fora à sua
procura. Meu cotidiano pode ser resumido em atividades matinais e vespertinas que se
davam no espaço escolar. Os dias eram intercalados em visitas às pessoas da comunidade,
quando conversávamos sobre a história de cada um, enquanto degustávamos o tradicional
chimarrão. Ao cair da noite, na casa onde vivia, fazíamos um fogo de chão, e ela tocava o
violão e cantava as rezas em guarani. Gostava de me contar histórias sobre os Guarani, sobre
os espíritos, sobre os antigos. Contou-me que seu pai passou por um processo descrito como
odjepotá wa’e ou perda da humanidade - que ocorre por contaminação por substâncias – em
que a pessoa se transforma em um espírito predador (Mello, 2005). As histórias variavam
entre guarani que virou onça e bichos que possuíam espíritos sagrados e falavam guarani.
Minha com-vivência na aldeia de Morro dos Cavalos foi de um infindo aprendizado
sobre a vida e o pensamento guarani. É importante salientar que, mesmo com meu contato
anterior à pesquisa com a comunidade de Morro dos Cavalos, os guarani são de poucas
palavras. Saí de campo com a sensação de que naquele momento estava começando
realmente a conhecê-los.
No mês de abril, pedi autorização ao cacique de Mbiguaçu, bem como aos
professores e diretor da escola para prosseguir minha pesquisa na aldeia, me mudando para a
comunidade em maio, permanecendo até início de julho. Na aldeia de Mbiguaçu, passei a
residir no posto de saúde, local aonde as pessoas que vinham de fora geralmente dormiam.
Por achar que era mais conveniente, acabei passando o tempo de minha pesquisa lá, pois à
noite ficava só e podia escrever, ler e colocar os pensamentos “nos eixos”.
Minha pesquisa se constituiu, tanto na observação das atividades de aula na escola
quanto fora dela. Minha observação foi participante, quer fosse nas cerimônias religiosas;
nos funerais ocorridos na época da pesquisa, nas conversas na casa do txeramoi
6
, na casa de
reza, nas casas de famílias mais próximas, nas danças, nos cantos, nas reuniões da
comunidade, em eventos festivos. A intenção era de participar de todos os aspectos da vida
social dos Guarani, enquanto com-vivia com eles. É importante salientar que o termo
“convivência” se refere à minha estadia entre os Guarani, devido ao fato de que meu olhar
foi recheado de emoções. Estas emoções revelaram-se tanto no cotidiano da aldeia quanto
em vincias mais profundas nas cerimônias da Ayahuasca, transformando minha
experiência pessoal em uma categoria analítica.
7
Além das “experiências subjetivas”, faz-se importante descrever as “experiências
visuais”, pois como esta dissertação tem como foco o corpo e seus processos de ensino-
aprendizagem, utilizei recursos visuais como filmagens, fotografias e desenhos.
As fotografias certamente não reproduzem a realidade, mas são construídas a partir
de olhares e contextos diversos. Por outro lado, elas tornaram-se uma parte fundamental da
pesquisa constituindo uma memória visual de todos os acontecimentos. As imagens dizem,
na maioria dos momentos, mais que as palavras, traduzem o silêncio e a contemplação,
aspectos fundantes do modo de ser guarani.
Organizei-as ao longo do texto para que falem por si, proporcionando ao leitor outra
leitura por meio das visualidades. Meu acervo fotográfico composto durante a pesquisa é de
cerca de 200 fotografias, que serviram também como mecanismo de interação com os
sujeitos da pesquisa. O registro fotográfico era solicitado a todo instante, faziam poses,
davam risadas, e sempre queriam ver o resultado. No final do trabalho de campo realizei
6
Palavra guarani usada para designar “meu avô”. É assim que todos chamam Alcindo Wherá Tupã, o mais
velho da aldeia.
7
Rosaldo (1989) Apud de Rose (2007), fala da importância de levar em conta as emoções nos estudos
antropológicos, e que estas podem ser vistas como categorias analíticas.
atividades nas aldeias de Morro dos Cavalos e Mbiguaçu para compormos um acervo
fotográfico nas escolas.
Os desenhos que aparecem ao longo do texto foram realizados por crianças de
diversas séries, em atividades de sala de aula, bem como em projetos de pesquisa dos
alunos. As discussões que aconteceram na escola sobre educação escolar indígena foram
sistematizadas em cartazes que foram elaborados por alunos e professores indígenas,
fotografados e apresentados ao longo do texto.
Uma parte importante da observação em Mbiguaçu está relacionada às atividades de
encerramento do semestre letivo entre os meses de junho e julho, quando as crianças se
prepararam durante o mês inteiro para a apresentação do teatro sobre o meio-ambiente
intitulado Ayvu Rapyta – a origem da vida. No teatro, alunos das séries iniciais
representaram a chegada do homem branco e seu contato com seus antepassados guarani.
As roupas usadas no teatro eram trançadas com a fibra da bananeira e as pinturas
corporais eram desenhadas a partir do conhecimento dos mais velhos. Foi também
constrda, uma mini-aldeia com taquara e palha colhidos na mata. O petynguá – cachimbo
– de madeira e barro, era esculpido na aldeia e utilizado nas cerimônias religiosas e no
cotidiano da comunidade.
O teatro foi registrado pelos próprios alunos com uma filmadora cedida à escola de
Mbiguaçu pelo projeto “se essa mídia fosse minha”, responsável pela realizão de oficinas
de vídeo e edição de imagens e, por mim, através de fotografias e também de algumas
filmagens. Todas as atividades preparativas como a caminhada na mata, o corte da taquara,
o corte da bananeira, o modo de bater a fibra da bananeira e a taquara, a preparação da
ornamentação corporal, a construção da “mini-aldeia” e os ensaios com as crianças foram
registrados.
Além disso, é importante salientar que as aldeias escolhidas para a pesquisa diferem
uma da outra, mas, em contrapartida, apresentam alguns aspectos comuns. Nesse sentido, os
aspectos traçados como mote da pesquisa - escola, corpo e tempo - se traduziram em
categorias que podem extrapolar meu campo de investigação - as aldeias indígenas guarani
de Morro dos Cavalos e Mbiguaçu - possibilitando sua utilização em outras aldeias guarani
e, até mesmo, para a reflexão sobre uma relação entre escolas indígenas.
CAPÍTULO I: CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA
I.1 Aldeia de Morro dos Cavalos: Tekoa Ymã
A aldeia de Morro dos Cavalos se localiza no Km 235 ao sul, às margens da BR-101,
no município de Palhoça, SC, dentro da Terra Indígena guarani de Morro dos Cavalos
identificada pela FUNAI. A aldeia faz parte do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro e, de
acordo com alguns estudos na área, há indícios de ocupação que nos remetem a quatro
séculos de permanência dos guarani na Costa Catarinense
8
, e pelo menos 70 anos de
ocupação contínua
9
, neste local onde diversas famílias transitavam.
8
De Masi (1999) apud Dallanhol, (2002) .
9
ver Quezada, 2007.
Foi a primeira aldeia a ser registrada pelos etnólogos no litoral de Santa Catarina na
década de 70, mas sua memória de ocupação é datada na década de 30, quando uma família
guarani Chiripá chegou na localidade
10
.
A comunidade guarani, na época desta pesquisa era habitada por aproximadamente
25 famílias, constituindo uma média de 100 a 120 pessoas, que freqüentemente transitavam
de uma aldeia a outra. Aproximadamente 70% das pessoas estão em uma faixa etária de 0 a
15 anos, 20% de 16 a 40 anos e 10% pessoas com mais de 40 anos
11
.
Alguns guarani de Morro dos Cavalos se autodenominam como pertencentes ao
subgrupo Mbyá, que demarca diferenças em relação à aldeia de Mbiguaçu onde uma parcela
se autoidentifica como pertencentes ao subgrupo Chiripá
12
.
A aldeia Morro dos Cavalos foi identificada e reconhecida como Terra Indígena pela
FUNAI em 1995 e, em 2003 possuía uma área delimitada de 1.988 hectares.
13
Apesar de
todas as evidências de sua ocupação tradicional e de diversos pareceres favoráveis, ainda
o possui seu território demarcado devido a pressões contrárias do governo do Estado de
Santa Catarina.
É uma região de trânsito inter-aldeias, e ponto de passagem de diversas famílias,
sendo um local de suma importância na tradição guarani, por ser considerada a aldeia mais
antiga da região - Tekoa Ymã
14
.
10
De acordo com depoimentos de minha interlocutora, Nadir Moreira, (moradora da aldeia de Mbiguaçu), seu
pai Júlio Moreira, chegou em Morro dos Cavalos na década de 30, juntamente com sua família. Ver também
dissertação de Quezada, 2007, onde Rosalina Moreira, irmã de Nadir Moreira confirma a mesma data de
ocupação.
11
De acordo com o Projeto Político Pedagógico da escola Itaty de Morro dos Cavalos.
12
Descreverei a complexidade destas denominações posteriormente no item I.3.
13
Quezada 2007, quadro da situação fundiária das aldeias indígenas de SC.
14
Os elementos antropológicos que fundamentam a tradicionalidade da ocupação do grupo indígena envolvido
estão todos contemplados no relario circunstanciado de identificação e delimitação, elaborado pela
A primeira família extensa a ser registrada em Morro dos Cavalos
15
– “familia
anfitriã”
16
- foi de Julio e Isolina Moreira na década de 1960
17
. Moraram vários anos na
região, com os filhos: Milton, Lurdes, Nadir, Rosalina e Lúcia. Com a morte de Júlio
Moreira, Rosa, juntamente com Alcindo Moreira m morar em Morro dos Cavalos. O pai
de Julio Moreira era irmão do pai de João Sabino – pai consangüíneo
18
de Alcindo Moreira.
Após a morte dos pais de Rosa – Catarina e Vicente - , Alcindo e Rosa mudam-se para
Mbiguaçu, onde iniciam uma nova aldeia guarani. A filha do casal, Roseli, casa-se com o
filho de Julio – Milton Moreira, cacique de Morro dos Cavalos e posteriormente a sua
mudança para Mbiguaçu, se torna novamente cacique da aldeia. Mais tarde, Milton Moreira
se muda com sua família para o litoral Norte do estado, na aldeia de Conquista, e seu filho
Hyral Moreira permanece em Mbiguaçu se tornando cacique, posição que ocupa na
atualidade. Posteriormente - vindo de Itajaí, em 1995
19
- chega na aldeia Morro dos
cavalos, a família de Artur Benites, que nesse novo momento, passa a ser a família anfitr
da localidade. Artur Benites se torna cacique da aldeia de Morro dos Cavalos, vivendo com
sua família no local até a atualidade
20
.
A relação de parentesco entre os primeiros moradores de Morro dos Cavalos e
Mbiguaçu, pode ser observada no gráfico 1 a seguir:
antropóloga Maria Inês Ladeira, mediante Portaria nº 838 PRE/Funai de 16 de outubro de 2001 e Portaria
622 de 24 de junho de 2002.
15
Para mais informações sobre a ocupação do litoral Catarinense e ocupação de Morro dos Cavalos, ver
também Darella, 2004:137-139.
16
De acordo com Mello (2005), a família anfitriã refere-se a primeira família indígena a povoar uma
localidade.
17
Id. ib.: 2005.
18
Defino consangüíneo como pai biológico, pois após o falecimento de João Sabino, Alcindo é criado por
Vicente, pai de Rosa.
19
Saraiva, 2007: 42.
20
Para visualizar a genealogia da família extensa de Artur Benites ver Saraiva, 2007.
Helena
João Sabino
Júlio
Isolina
Catarina Vicente
Nadir
Rosa
Geraldo
Roseli
Rosana
Milton Vanderley
HyralCelitarcia
Marcos
Eunice
Marco
Elisete
MarceloJanis
Maria Adão Ivete
TiagoAdriana
Graciliano Dário Rosalina Alcindo
Gráfico 1
Ld
I.2 A Aldeia de Mbiguaçu
A aldeia de Mbiguaçu se localiza no Km 190 da Br 101, em São Miguel, no
município de Biguaçu, na grande Florianópolis. Constitui-se atualmente, como uma das duas
Terras Indígenas demarcadas em Santa Catarina. Sua demarcação se deu em 1996, seguida
da Terra Indígena de Araçaino oeste do Estado - demarcada em 2007.
A comunidade foi habitada em 1986, pela família extensa de Alcindo Moreira –
Wherá Tupã - e Rosa Poty Pereira, após o falecimento de seus pais Catarina Martins e
Vicente Pereira. Mais tarde, vieram morar em Mbiguaçu, Milton Moreira e sua esposa
Roseli Moreira – filha de Alcindo - e sua família extensa.
Alcindo, diz não se lembrar a localidade em que nasceu, mas nas entrevistas que
constituíram o trabalho de Mello (2001), apontam para a cidade de Nonoaifronteira entre
os Estados de RS e SC.
Alcindo Wherá Moreira é irmão
21
de criação de Rosa Poty Pereira, pois após o
falecimento de seus pais - João Sabino Moreira e Helena Conceição Paraguai - foi criado
pelos pais de Rosa, Catarina Xapecó Mariano e Vicente Karaí O’Kendá Pereira.
22
Não
apenas Alcindo, mas os outros dois iros (rio e Graciliano) também foram criados pelos
21
Utilizando os termos guarani, a mulher chama seu irmão mais novo de Kywy‘y e sua irmã mais nova de
Kupy‘y;sua irmã mais velha é chamada de tche ryke . O homem chama seu irmão mais novo de Rywy e a irmã
mais nova de Reindy Kyrinwé; o irmão mais velho é chamado de tche rykey e a irmã mais velha de reindy
waivin.
Todos os filhos consangüíneos ou não (os que chamaríamos de adotivos) são designados pelo mesmo termo
dos irmãos naturais. Da mesma forma todos os filhos da irmã do pai e da mãe - os quais designaríamos de
primos - , são chamados pelos mesmos termos de irmão/irmã. Para dados aprofundados sobre as categorias de
parentesco guarani (Mello, 2005).
22
Dados mais detalhados da história e trajetória das famílias podem ser observadas em Mello, 2001; e 2005.
pais de Rosa Poty. Esta relão deve-se ao fato de que Catarina Xapecó – mãe de Rosa - e
Helena Conceição – mãe de Alcindo - serem irmãs (ver gráfico 1, p.34).
Além de Alcindo Moreira, que se casou com sua “irmã de criação”, seu irmão Dário
-residente na aldeia de Cantagalo, Viamão/RS -, também se casou com a irmã de Rosa –
Doralina.
É interessante perceber a relação de parentesco que envolve as duas aldeias, pois
revelam aspectos importantes sobre a mobilidade inter-aldeias, sobre os deslocamentos que
inserem-se em um contexto de parentesco e territorialidade.
I.3 Aspectos Gerais sobre os Guarani de Morro dos Cavalos e de Mbiguaçu e a suas
classificações étnicas no século XXI
Para apresentar os guarani com os quais com-vivi e realizei minha pesquisa, devo
recorrer à etnologia indígena, pois os sujeitos pesquisados se auto-denominam pertencentes
a distintos grupos étnicos, e, visto que realizei uma pesquisa etnográfica em duas aldeias
díspares – apesar da proximidade das relações de parentesco e de solidariedade
23
que existe
entre elas – faz-se importante apontar para algumas classificações étnicas.
No decorrer da leitura dos textos de etnologia indígena referente às classificações
dos grupos guarani, percebi uma exaustiva tentativa de classificações e de encaixá-los em
23
Leonardo Whera Tupã – liderança indígena guarani - descreve as relações entre as aldeias como de
solidariedade ao invés de reciprocidade.
alguns sub-grupos, como Schaden (1974), que os distingue em Mbyá, Kayová
24
e Nhandeva
ou Chiripá
25
.
Assis y Garlet (2004) em seu artigo sobre as populações guarani contemporâneas, ao
tentar distinguir os grupos Guarani, apontavam para a dificuldade de muitos autores que
demonstravam pouco conhecimento etnográfico e metodológico em perceber estas
distinções, e outros pareciam ignorar a relevância das diferenciações entre os grupos. De
qualquer modo, Assis y Garlet observam a complexidade da questão, a falta de consenso e
muitas dúvidas quanto às maneiras de classificá-los. Segundo eles, o critério lingüístico é o
mais utilizado, entretanto sabe-se que é insuficiente para uma análise etnológica mais
consistente (Assis y Garlet, 2004: 37).
Em meio a esta complexidade de definições, inspirei-me no trabalho de Mello
(2005), que imerge nestas classificações, buscando seus aspectos históricos bem como as
atualizando, demonstrando o processo dinâmico em que as classificações em etnônimos e da
noção de identidade étnica perpassam no século XXI. Neste sentido, a autora está em
consonância com Hall (2005):
...as identidades não são nunca unificadas; elas são, na modernidade tardia, cada
vez mais fragmentadas e fraturadas; elas não são, nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem
se cruzar ou ser antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historização
radical, estando constantemente em um processo de mudança e transformação
(Hall, 2005: 108).
24
Segundo Meliá (2004:189), “los guarani que em el Paraguai se autodenominan pai tavyterã, y como tales son
ya conocidos em la conversación común, se han quedado en el Brasil con la de kaiowá que remite a sus
tiempos de ‘monteses’, como habitantes de la selva”.
25
Id. ib.: 187: “lás avá guarani, autodenominados tambn como ava katú eté, son los que eran más conocidos
por los etnógrafos modernos como chiripá. Si se pueden identificar con los habitantes del antigo Guairá,
constatamos que se mantuvieron todavía en la region de su primer ‘descubrimiento’: las regiones de
Mbaracayú, hoy departamento paraguayo de Canindeyú, sin desconocer los grupos que desde el siglo XX se
dispersaron por el Brasil y llegaron hasta el litoral paulista. En ese país se dan a conocers bien como
Nandeva.
É a partir deste pressuposto, de que as identidades estão em constantes processos de
transformação que explicitarei as diferenças entre os grupos que pesquisei, os Chiripá e os
Mbyá, apontando que as relações entre estes dois grupos estão imbricadas, refletindo ora
uma complementaridade ora demarcações de identidade entre ambos.
É pertinente apontar que entre os Chiripá e os Mbyá existem mais semelhaas do
que entre os Chiripá e os Nhandeva, os quais Schaden classifica como pertencentes ao
mesmo grupo. Os Nhandeva são vistos com desagrado pelos Chiripá em conseqüência da
ampla conversão dos grupos ao cristianismo
26
.
Os Chiripá, até algumas décadas eram denominados pela Etnologia de Nhandeva,
mas estudos recentes baseados em pesquisas de campo, elucidaram tratar-se de
um grupo distinto dos Nhandeva que habitam o interior do Paraná, São Paulo e
Mato Grosso. A denominação Chiripá refere-se a grupos que habitam o interior
do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e o litoral do RS, SC, PR, SP, RJ e
ES(Mello, 2001).
Os Guarani de Mbiguaçu são denominados por alguns autores como pertencentes a
subgrupo Nhandeva (Coutinho, 1999; Coelho, 1999 apud Oliveira, 2004), e por outros como
pertencentes ao subgrupo Chiripá (Oliveira, 2004; Mello, 2005), nome pelo qual grande
parte da população se define nesta aldeia. Utilizo neste trabalho, portanto, Chiripá ao me
referir aos Guarani da aldeia de Mbiguaçu.
Já em Morro dos Cavalos, algumas pesquisas apontam os guarani como pertencentes
ao subgrupo Mbyá (Dallanhol, 2002), nome pelo qual a comunidade se denomina.
Novamente busco denominá-los do modo pelo qual eles se identificam: Mbyá.
Neste sentido acho importante ressaltar as contribuições de Barth (1969) apud
Tassinari (2001), que se traduziram em um marco dentro da Etnologia ao apontar que “a
26
Mello, 2005.
característica de auto-atribuição e do reconhecimento pelos outros, que define o
pertencimento de alguém a determinado grupo étnico”.
As identidades étnicas se mobilizam - na maioria das vezes – em relação à
alteridade: em muitos momentos quando indagados, os guarani se autodenominam: “sou
Mbyá, ousou Chiripá”
27
, mas em contextos diversos, após uma aproximação, muitos
referem-se a estes nomes como trazidos de fora, ou mesmo colocados pelos Juruá
28
. Em
outros momentos se apresentam todos como guarani para ressaltar sua unidade em relação
ao outro.
Em muitas ocasiões, quando em contato com a sociedade não-índia, os Chiripá se
dizem Mbyá pois têm consciência da invisibilidade do termo Chiriem oposição aos
Mbyá, que são vistos como os “Guarani verdadeiros”. Este aspecto foi ressaltado por Mello
(2005), quando no curso de formação de professores indígenas, houve uma efervescência
nas discussões sobre os etnimos indígenas. Os professores Chiripá descreviam o
preconceito que havia como conseqüência do desconhecimento da diversidade interna nas
aldeias guarani e achavam importante deixar claro as diferenças.
Carneiro da Cunha (1983), em seu artigo sobre os critérios de identificação étnica
descreve o processo de identificação das populações indígenas no qual estas populações
eram identificadas a partir de três critérios: o de raça; de cultura; e o terceiro que a autora
defende - em consonância com Barth – que é o da organização social.
Após um longo processo histórico de políticas de miscigenação, não são as
características biológicas que identificam um grupo indígena, nem tampouco a definição de
27
A palavra Mbyá significa gente, e Chiripá era uma roupa semelhante a uma tanga amarrada entre as pernas e
na cintura.
28
Jur ou djuruá é utilizado para referir-se ao não-indio. Sua tradução literal é boca peluda.
cultura quando se refere a características primárias da população e não conseqüência da
organização social, buscando levar em conta o processo histórico vivenciado pelo grupo. A
organização social, diz respeito a sentir-se membro de um grupo. “A cultura é algo
dinâmico e perpetuamente re-elaborado, ao invés de ser um pressuposto de um grupo étnico
é mais um produto deste” (Carneiro da Cunha, 1983).
Neste sentido é possível perceber que quando comparados com os guarani de outras
aldeias, ou com outro subgrupo étnico, a demarcação da identidade é automática: “nós
somos os Mbyá, eles são Chiripá”. Este fenômeno foi apontado por Schaden em seu livro
intitulado: Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani (1974):
“...cada um dos subgrupos procura acentuar e exagerar as diferenças existentes a
ponto de se ridicularizarem uns aos outros. A diversidade dos dialetos, das
crenças e práticas religiosas, de constituição psíquica e mesmo aparência física
serve de motivo para cada bando afirmar sua pretensa superioridade sobre os
demais...” (Schaden, 1974).
Em contrapartida, quando estão entre seus pares e referindo-se à própria
comunidade, ressaltam, muitas vezes a falta de necessidade das subdivisões:
“...acima dessas diferenças indiscutíveis, há um fundo de elementos idênticos ou
semelhantes, em virtude do qual todos os bandos se apresentam como unidade em
oposição a outras tribos...” (Schaden, 1974).
Além disso, estas subdivisões não são apenas auto-denominações, mas demarcam
uma série de diferenças entre estes grupos, e mais especificamente entre estas duas aldeias
pesquisadas. Em vários momentos da pesquisa, pude perceber aspectos muito presentes em
Morros dos Cavalos, que não eram constatados em Mbiguaçu e vice-versa. A linguagem, a
entonação da voz, a velocidade da pronúncia, o modo de agir, diferenças religiosas, no
cotidiano da escola, na interação com os djuruá mostram a complexidade em definir uma
etnia:
...a dificuldade em estabelecer de forma definitiva a qual etnia eles pertencem
comprova a multiplicidade de elementos como as relações de parentesco, de
origem e de afinidade, as condutas e vivências no decorrer da vida, as opções
religiosas e de relacionamento com a sociedade envolvente, que se somam na
definição e na diferenciação da identidade étnica das pessoas Mbyá e
Chiri,etnias que convivem nas aldeias do litoral e afirmam sua identidade em
oposição uma à outra (Mello, 2001).
A linguagem é um critério efetivo de diferenciação entre os guarani, as variações
dialetais promovem sub-divisões relevantes apesar de no litoral habitarem Mbyá e Chiripá,
que realizam freqüentes alianças, tanto na esfera potica e de parentesco, sendo comum
encontrar Mbyás junto a um grupo familiar Chiripá e vice-versa.
A Língua Guarani é pertencente ao tronco Proto ou Macro-Tupi, que deu origem à
família lingüística Tupi-guarani e subdivide-se em vários dialetos. Dentro desta família
lingüística podemos citar o Tupi, Parintintin, o Tapirapé e o Guarani como tendo a mesma
origem lingüística.
Em contrapartida, existem muitas semelhanças entre os grupos pesquisados, a
mobilidade inter-aldeias” (Mello, 2001) é um fator predominante em ambas aldeias. Esta
mobilidade é um fator amplamente discutido por diversos autores (Ladeira,1992;
Litaiff,1996; Garlet,1997; apud Mello, 2001), sendo predominante até os dias de hoje, fato
que proporciona uma média muito variável entre as famílias residentes nas aldeias.
Presenciei a rotatividade de muitas famílias que vinham de longe para visitarem
parentes, e em Mbiguaçu, muitas famílias vinham com o objetivo de realizar um tratamento
de cura com o txeramõi da aldeia
29
.
Um outro tipo de deslocamento, a migração de famílias, que é diferenciada por
Mello (2001) e Ladeira (1992) da mobilidade inter-aldeias, é resultante de uma mudança
definitiva. Foi possível perceber que muitos Guarani que se separam; famílias que entram
em conflitos com a liderança local; outros que perderam algum parente próximo; alguns em
busca de melhores oportunidades, todos estes mudam de aldeia levando todos os seus
pertences. É uma mudança quase-definitiva, pois se mudam, levam tudo, depois de alguns
anos retornam, e assim ocorre com a maioria das famílias. Este foi um fator que permeou
toda minha pesquisa e predominante em ambas as aldeias.
A territorialidade guarani é baseada em preceitos cosmológicos, envolvendo a
ocupação circular de um território formado por redes de parentesco e reciprocidade. Esta
ocupação circular promove o contato entre as aldeias, sendo estes deslocamentos
responsáveis pela manutenção dos Guarani enquanto grupo étnico diante do processo de
expropriação territorial, principalmente no Sul do Brasil.
30
Neste sentido, estudos recentes demonstram que os guarani não podem ser
denominados nômades pois não abandonam definitivamente o local habitado, mas realizam
um movimento circular por um terririo tradicional previamente conhecido. Terririo onde
não haviam as fronteiras delimitadas pela formação dos Estados Nacionais, abrangendo o
Brasil, parte da Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina, denominado por eles de terra de
parentes” (Mello, 2005).
29
Descreverei a importância religiosa de Wherá Tupã - pajé da aldeia – posteriormente.
30
Ver relatório sobre o processo de demarcação da terra indígena de Mato Preto: Unesco, Funai, Mello,2005.
A noção de território tradicional deve ser entendida como um mecanismo de
fortalecer a tradicionalidade na forma de ocupação, no modo de se relacionar com o meio
ambiente, referindo-se a formas de ocupação tradicional, pois as terras reivindicadas não
correspondem à totalidade do território de ocupação guarani, mas sim a locais que podem
promover uma maneira de viver de acordo com o nhandereko – sua cultura, preservando o
tekoá - o sistema e a maneira de ser e viver guarani.
Apesar da questão da não-demarcação das terras indígenas guarani serem um
problema que gera instabilidade, estas populações preservam elementos centrais em sua
cultura, como a língua, as cerimônias religiosas e elementos cosmológicos que organizam
sua vida ritual e social dentro da comunidade.
As famílias extensas nas comunidades são um exemplo de organização social, e, ao
mesmo tempo potica, buscando a manutenção do tekoa. São compostas pelo casal, as
filhas, os genros, em alguns casos os filhos e as noras, e os netos, constituindo uma unidade
de produção e consumo
31
. A produção na roça é serviço daqueles que se casaram no grupo
familiar, e o consumo da produção é permitido à família nuclear juntamente àqueles que
trabalharam no plantio:
A composição familiar está intimamente associada aos aspectos econômicos,
políticos e de controle territorial. A separação em grupos familiares, que vão se
constituir em unidades próprias, é uma orientação religiosa de ordem mítica,
estratégica para a preservação dos tekoa, de cada um dos seus componentes e do
território guarani como um todo (Ladeira, 1992).
Além dos aspectos sociais e econômicos, é importante salientar o aspecto religioso.
Faz-se necessário que a família extensa possua sua refencia religiosa, que na maioria das
31
Ladeira (1992).
vezes, corresponde ao chefe da família extensa. Em ambas as aldeias pesquisadas, o chefe
da família extensa era o mais velho, e ao mesmo tempo a liderança espiritual.
As aldeias de Morro dos Cavalos e de Mbiguaçu, - como sugere a literatura
antropológica – possuem tendência a matrilocalidade e uxorilocalidade temporária
32
, em
que os genros ficam morando juntamente à família da esposa, mas em muitos casos, após
conseguirem um outro local para habitar, mudam-se. Todavia, se o casamento termina em
separação, ele volta a habitar a casa da mãe.
Existem exceções, como no caso de uma família extensa possuir como chefe da
família uma liderança religiosa, pois, neste caso, as noras acabam morando com os sogros,
pois os conhecimentos do xamã serão repassados ao filho, fazendo-se necessário sua
presença junto à família.
Em Mbiguu, os filhos de Alcindo Moreira e Rosa, moram junto a eles, e as
respectivas esposas que acompanham os maridos, convivendo na comunidade prestando
serviços aos sogros. Estes trabalhos vão desde serviços na roça, cozinhar na casa dos sogros,
freqüentar periodicamente a casa bem como as cerimônias na Opy.
Em Morro dos Cavalos a mesma exceção acontece, em que os filhos de Artur
Benites – cacique e pajé - moram na aldeia, e suas respectivas esposas prestam serviços à
família extensa de Artur
33
.
A ligação mais próxima entre a família “anfitriã” de Morro dos Cavalos e da família
anfitriã” de Mbiguaçu , são os filhos de Sônia Moreira – filha de Alcindo Moreira e Rosa -
32
Não possuo a pretensão de aprofundar-me nos aspectos relacionados ao parentesco, pois Mello (2005) faz
isso de maneira excepcional.
33
Atualmente,(dez/2007), o cacique é o filho de Artur Benites, Marcelo Benites.
, moram em Morro dos Cavalos, sendo que Agostinho Moreira, filho de Sônia, é casado com
Claúdia Benites, filha de Artur Benites.
Entre as aldeias é possível perceber algumas diferenças importantes, principalmente
quando adentramos na esfera religiosa. Em Morro dos Cavalos, as cerimônias de reza na
Opy, geralmente são fechadas ao grande público não-índio, e as rezas e curas são
transcorridas com o uso exclusivo de tabaco. Em contrapartida, em Mbiguaçu, as
cerimônias na Opy são realizadas com ayahuasca e tabaco, em que muitas delas são abertas
para o público de fora das aldeias
34
.
Todos estes aspectos descritos acima caracterizam os Guarani das aldeias pesquisadas,
demonstrando seu pertencimento a diferentes grupos étnicos; os deslocamentos e a mobilidade
inter-aldeias – que mostram as relações de reciprocidade que existem entre os grupos, bem
como a fluidez inter-étnica e inter-aldeias –; a composição de sua família extensa – na medida
que possibilita o entendimento de alianças políticas, matrimoniais, religiosas, bem como rixas
entre grupos. As diferenças dialetais, relações inter-aldeias, e as diferenças existentes entre as
aldeias podem ser transpostas para o espaço escolar, proporcionando uma reflexão inter-
escolas.
34
Estes aspectos religiosos serão descritos posteriormente.
CAPÍTULO II: A ESCOLA INDÍGENA: UM (DES)ENCONTRO DE
COSMOLOGIAS?
II.1 Memórias do Processo de Escolarização das Aldeias Indígenas
A primeira fase da história da educação escolar entre os povos indígenas foi caracterizada
pelo intuito de catequização, em que os indígenas eram percebidos - pelo ponto de vista
dos europeus - como selvagens.
Viveiros de Castro descreve este período histórico pelo viés do perspectivismo,
apontando para o embate de perspectivas ocorrido neste momento: os europeus matavam
os indígenas pois achavam que eles não tinham alma, os índios – todavia – o faziam para
certificar-se de que os corpos dos europeus estavam sujeitos a putrefação. Pois enquanto
os colonizadores preocupavam-se com a ausência ou não de alma, os indígenas
desejavam certificar-se de que possuíam os mesmos corpos
35
.
Os espanhóis conclram que os índios eram animais, os segundos desconfiavam que
os espanhóis eram divindades. Talvez a última fosse a atitude mais digna de seres
humanos! (Viveiros de Castro, 1986). Neste sentido, de acordo com o autor, podemos
narrar o primeiro contato entre europeus e indígenas a partir de um embate de
perspectivas
36
.
Posteriormente, visto que eram realmente humanos – (primitivos, mas humanos!) - e
passíveis – pelos olhos do colonizador - de serem integrados à sociedade envolvente as
populações indígenas são catequizadas.
As fases da educação escolar entre as populações indígenas, de acordo com Ferreira
(2001) podem ser divididas: na criação do SPI –serviço de Proteção ao Índio – em 1910 e
que se estende à potica da FUNAI. Nesse período, segundo a autora, o SPI teria o
intuito de integrar as populações indígenas à sociedade envolvente, baseada em ideais
positivistas do início do século.
Com a extinção do SPI e a criação da FUNAI nos fins da década de 1960 e 1970, o
ensino bilíngüe passa a fazer parte das poticas de educação, bem como alguns
programas de capacitão para professores indígenas. Como não havia programas
educacionais bilíngües para tamanha variedade lingüística, a FUNAI recorre ao Summer
Institute of Linguistics (SIL).
35
De acordo com Viveiros de Castro (1986), no pensamento ameríndio amazônico, todos os seres possuem a
mesma capacidade de pensamento, cultura, em contrapartida, o corpo é passível de ser transformado. O corpo é
uma roupa que institui uma função, não é uma morfologia fixa. No corpo está o ponto de vista, o ver como,
comer como, andar como.
36
Personitude, perspectividade, perceptos, capacidade de ocupar um ponto de vista; ver como (Viveiros de
Castro, 1986).
Mas qual seria a razão para estas instituições resolverem ensinar na língua indígena?
Ferreira (2001) salienta que seria pela “integração eficiente dos índios à sociedade
nacional, uma vez que os valores da sociedade ocidental seriam traduzidos nas línguas
nativas e expressos de modo a se adequar às concepções indígenas” (id. ib.: 77).
Os primeiros trabalhos a tratarem do tema da educação escolar indígena narram esta
história na qual as escolas indígenas - desde décadas anteriores até 1970 - eram
organizadas por óros governamentais (SPI/FUNAI) e por missões religiosas, atuando
com o objetivo de integrar as populações indígenas à sociedade nacional.
Em relação a esta temática, apresentamos como roteiro de pesquisa o livro de Marta
Capacla (1995): “O debate sobre a educação indígena no Brasil”, onde a autora faz um
apanhado da produção bibliográfica produzida a partir da década de 70 sobre o tema da
Educação Escolar Indígena.
Como ponto de partida o livro de Silvio Coelho dos Santos (1975): “Educação e
Sociedades Tribais no qual o autor trabalhou com populações indígenas da região sul na
década de 70 e apontou a dominação sobre a qual estavam submetidas estas populações
retratando sua dependência em relação aos órgãos governamentais
37
.
A escolarização na região sul teve inicio em meados da década de 40, quando o
fracasso dos projetos governamentais era explícito. Na perspectiva de Silvio Coelho este
fracasso estava diretamente relacionado à falta de um projeto maior que trouxesse em seu
bojo a discussão da terra, atividades na área da economia, saúde, em que a educação seria
um destes elementos. Em sua análise, nesta fase da história da educação indígena com a
37
Silvio Coelho realizou o registro etnográfico da família extensa fundadora de Morro dos Cavalos ainda na
década de 70, e seus dados remetem à ocupação tradicional guarani anterior a este período (Quezada, 2007).
experiência de ensino bilíngüe, bem como nas demais ações educacionais que se
desenvolviam nas aldeias, a escola não se constituiu em apenas uma “agência de
integração como pretendia a FUNAI, mas em instrumento de inculcação ideológica da
cultura da sociedade envolvente.”
O final da década de 70 foi marcado pela crescente mobilização indígena, período
em que Bartolomeu Meliá (1978) publica seu livro intitulado: “Educação para o
indígena”, no qual pontua que as populações indígenas já possuem seu sistema
educacional ao qual a educação escolar não deveria se justapor. Em consonância com
Silvio Coelho (1975), Meliá aprofunda a discussão sobre a língua na qual a educação
deveria se dar.
Neste momento inicia-se uma problemática central na educação escolar, em que a
questão da língua tem sido um dos temas pedagógicos mais discutidos até hoje, e Meliá
propõe à época, que a alfabetização deveria se dar na língua indígena e não ser
abandonada após a escolarização, além de lançar questões relativas aos materiais
didáticos e conteúdos pedagógicos.
Outros trabalhos neste período merecem destaque, a tese de mestrado de Eneida
Corrêa de Assis (1981): “Educação indígena: uma frente ideológica?” na qual a autora
demonstra as condições inadequadas de ensino as quais estavam submetidos alguns
grupos indígenas do Norte do Amapá. Além disso, no mesmo ano, Aracy Lopes da Silva
organiza o livro: “A Questão da Educação”, retratando experiências alternativas de
alfabetização em diferentes regiões do país. Este livro foi resultado do Encontro Nacional
sobre Educação Indígena (1981), e possuiu um papel importante na medida que aglutinou
experiências de diversas regiões do país.
O Encontro Nacional sobre Educação Indígena foi promovido pela Comissão Pró-
índio de São Paulo em 1979, relatando experiências alternativas de educação e
alfabetização ingena que já estavam ocorrendo em diversas regiões do país,
descrevendo suas experncias e delineando questões que norteariam debates futuros.
Os participantes do Encontro (professores e educadores, antropólogos, lideranças
indígenas) constataram o caráter isolado de suas experiências – fator principal que
culminou no Encontro – e ao mesmo tempo, constatou-se que a FUNAI não possuía o
objetivo de constituir uma escola pró-índio, nem uma filosofia educacional orientadora,
e devido a esta constatação, firmou-se como objetivo dos participantes fazer da escola
indígena um meio de fortalecimento dos próprios índios buscando sua autonomia.
Pedagogicamente aprofundava-se o debate em torno da língua da alfabetização, pois
se por um lado, a escolha era pela língua materna do grupo, por outro lado os professores
não-índios não dominavam a língua e tampouco possuíam materiais didáticos adequados.
A partir daí, percebeu-se que a questão da Educação Escolar Indígena deveria ser
realizada em um trabalho multidisciplinar, envolvendo lingüistas e antrologos na
construção de uma nova prática educacional, bem como materiais didáticos adequados.
Podemos observar a partir destes trabalhos a construção da educação escolar indígena nas
décadas de 70 e 80, ressaltando o caráter ideológico da educação, a questão da autonomia
das sociedades indígenas em relação aos órgãos governamentais e o debate em torno do
Ensino Bilíngüe.
Se no início a discussão levantada por Santos (1975) e Meliá (1978) girava em torno da
necessidade ou não da escola e da alfabetização, atualmente, com as diversas situações
de contato, as lideranças indígenas passam a colocar na sua pauta de reivindicações a
Educação Escolar.
Este foi um longo processo, e, como conseqüência dele, e das transformações das
escolas indígenas, principalmente com a Constituição de 1988, - garantindo uma educação
diferenciada, bilíngüe e na língua materna -, as populações indígenas passam a se apropriar
da escola e a utilizá-la como um acesso às informações do mundo do nãondio
38
.
Em contrapartida, a escola também se mostra como espaço de disputas e freqüentes
negociações como veremos a seguir.
II.2 O Problema Atual: As Sociedades Indígenas contra o Estado
Em seu livro A Sociedade contra o Estado, Pierre Clastres (1978) ressalta o caráter
etnocêntrico dos evolucionistas em apontar a ausência de elementos constitutivos de uma
sociedade como modo de classificar uma população indígena em relação à outra e à
sociedade ocidental. Teriam elas a falta de um Estado na qual estariam sempre tentando
suprir, seriam sociedades incompletas: sociedades sem Estado, sociedades sem escrita,
sociedades sem história.
Clastres salientava a necessidade de perceber que havia uma escolha realizada por
estas sociedades indígenas em não possuir um poder centralizado, realizando o papel que o
Estado exerce na sociedade ocidental.
Segundo ele, os chefes guerreiros das sociedades Tupi- Guarani eram os que
defendiam as sociedades indígenas na disputa com outros povos, pois possuíam o domínio e
38
Apropriação é uma palavra que traduz o movimento de tornar algo próprio. Refere-se à capacidade criativa
das pessoas em ocupar espaços de escolarização, evidenciando a natureza ativa e transformadora de suas ações
(Gomes, 2003). O termo também é trabalhado intensamente por Chartier (1995) ao abordar a relação entre
escrita e oralidade (apud Bergamaschi, 2005).
destreza do arco e flecha. Todavia, o que recebiam em troca era o prestígio na sociedade e
comemorações rituais.
As funções de chefe não dependiam do uso de autoridade, de poder, o chefe seria a
pessoa que ajudava a solucionar conflitos, aquele que dominava a palavra e agia como um
pacificador; ele o fazia pelo prestígio e reconhecimento da sociedade que não permitia que
um chefe fosse além de uma superioridade técnica para se tornar uma autoridade potica.
O chefe guerreiro é alguém que deveria defender a sociedade dos perigos externos,
principalmente na guerra. Ele era um chefe sem poder, em que o prestígio pela vitória de
modo algum se transformava em autoridade. Com a chegada dos colonizadores, as
populações indígenas Tupi-Guarani tiveram sua liberdade restringida, seu território
tradicional teve de ser recortado, limitado, reduzido. As condições básicas para produção e
reprodução da aldeia e do Tekoá- do sistema guarani – foram se tornando escassas. Além
disso, estas populações indígenas passam a ser catequizadas é a fase inicial da escolarização
das populações indígenas como descrito anteriormente.
A partir de movimentos indigenistas e de lideranças indígenas, a questão da
educação indígena passa a ser discutida e reivindicada. As populações indígenas lutam pela
manuteão de sua cultura, do conhecimento tradicional, e de seu território.
Mais tarde, a lei do Estado que limita, recorta e reduz os territórios indígenas
também aparece como protetor: é a partir de leis constitucionais que as populações
indígenas passam a ter legalmente (mas não praticamente) seus direitos respeitados - vide
constituição de 1988, que garante uma educação bilíngüe, diferenciada, na língua materna e
que respeite os processos pprios de aprendizagem.
A luta pela demarcação das terras é algo recente entre os guarani, pois acreditavam
que podiam caminhar livremente entre as diversas aldeias. A conservação do Ambiente em
que viviam dependia desta circularidade em que estavam acostumados.
No Estado de Santa Catarina, a presença Guarani no litoral e a luta guarani pela
demarcação de terras ficou mais visível na década de 90, como aponta Darella (2004):
... no transcurso da década de 90, a presença guarani no litoral de Santa Catarina
se fez crescente, comou a se tornar vivel e, no mínimo, incômoda ante
diversos interesses fundiários da sociedade envolvente. Nesse cenário, o projeto
de duplicação da BR-101 se estabeleceu como um canal para a legitimação de sua
demanda: terra. Um direito indígena, um dever governamental. Os grupos
familiares externaram que queriam ser respeitados e reconhecidos. Esse
posicionamento se fortalece na medida que pequenas, mas significativas
conquistas são efetivadas na defesa de seus direitos territoriais, a exemplo da
demarcação da TI de Mbiguaçu (Biguaçu), a primeira terra indígena guarani do
Estado de Santa Catarina. (Darella, 2004).
Esta é a situação de Mbiguaçu, mas muitas aldeias Guarani - inclusive a aldeia de
Morro dos Cavalos - prosseguem na luta pela demarcação de suas terras já alguns anos
39
.
Segundo Darella (2004), com os estudos para a duplicação da Br-101 na década de
90, e com a crescente população guarani no litoral, estes povos ganham visibilidade. Os
Guarani se colocam em cena como atores poticos na luta pela demarcação de suas terras,
percebendo que esta seria a única maneira que garantir o Tekoa - seu modo de ser e viver.
As terras destinadas às populações guarani, na maioria dos casos não são suficientes
para a manutenção de sua cultura e de seu sistema - nhandereko. A escola viria neste
processo, contribuir para a sustentabilidade da população Guarani.
39
A aldeia ingena de Morro dos Cavalos recebeu pareceres favoráveis à demarcação de suas terras
concedido pela FUNAI e pelos consultores do Ministério da Justiça, mas o relatório continua parado no
Ministério da Justiça. A demarcação das terras indígenas segue a Constituição Federal art. 231 que reconhece
as TI; e pelo decreto n.1775 de 1996 que define os passos e prazos para demarcação.
A escola aparece nas aldeias como mecanismo de alicerce das populações indígenas:
criam-se cargos, salários, tem-se comida - que antes era escassa. Todavia, juntamente com
os benefícios havia um outro lado da moeda: a instituição do cargo de professor na
comunidade, a centralização de poder em uma pessoa.
O professor seria aquele que domina o português, que pode servir de mediador entre
a cultura indígena e ocidental, alguém responsável por defender a sociedade do inimigo, um
chefe guerreiro como descrevia Clastres. Ao mesmo tempo, a este guerreiro, que deveria
defender os interesses da comunidade, existe uma autoridade superior que dita as regras: o
Estado.
Como então garantir uma educação diferenciada na medida em que o guerreiro da
aldeia deve se submeter a um outro sistema que não o ingena? Como aquele que defende a
comunidade contra a centralização estatal - em troca de prestígio interno – agirá tendo de
submeter-se às normas e regras impostas pelos mecanismos de funcionamento do Estado?
40
Álvares (1999) constata este impasse entre os Maxacali, em que o surgimento da
categoria de professor indígena, provoca alguns conflitos.
“A categoria de professor, é uma categoria emergente que lida com compromissos e
interesses que implica a rede de parentesco e os benefícios conseguidos através da escola –
salário, controle sobre os alimentos, acesso ao mundo dos brancos.”
Com a precária situação fundiária em que se encontram as populações indígenas, o
salário recebido na escola é motivo para disputas: quemo quer ser professor dentro da
aldeia?
Os Maxacali - apesar do faccionalismo – têm o hábito de dividir entre seus parentes
os bens. Os deres indígenas que recebem aposentadorias, dividem com seus grupos
40
Ver artigo: Nunes, O. (2007): “A existência essencial da escola e a educação indígena Guarani”.
familiares, mas os professores encontram-se na faixa etária dos jovens guerreiros. “Eles
controlam apenas suas famílias nucleares, não se mostrando muito dispostos a socializar o
grande volume de bens adquiridos com sua nova atividade” (Álvares,1999). Os professores
são considerados donos da escola, controlando o estoque de alimentos, de bens, além de
determinar a sua distribuição.
A sociedade Maxacali se caracteriza por uma mobilidade social provocada pelas
disputas e conflitos e tem, como estratégia de solução, o afastamento espacial e a atualização
de novas alianças para a composição de novos grupos locais. A distribuição desigual dos
bens e prestígio, provocada pela implantação da escola, dentro de uma sociedade com
grande mobilidade social e que não aceita diferenças internas será sempre tensa e difícil.
Esta situação de negociação e disputas, não ocorre na mesma intensidade entre os
guarani, mas é importante registrar que esta nova categoria deslocou muitos olhares de toda
aldeia para dentro dos prédios escolares. A aldeia indígena se constitui por uma comunidade
em que a escola está em todo lugar: na mata, na Opy, nas conversas com os mais velhos, na
fumaça do petyngua, no silêncio...Como disse o cacique da aldeia de Mbiguaçu: “A escola
acaba se tornando o centro da aldeia, quando a verdadeira escola é a Opy”, ou ainda:
“toda aldeia é uma escola”. Nesse sentido, é como um grande palco de re-significações, de
troca de saberes, mas também de disputas que lhes apresento as escolas indígenas.
II.3 Itaty - A Escola Indígena de Morro dos Cavalos
A escola indígena Itaty
41
está localizada na Terra Indígena de Morro dos Cavalos,
atendendo – na época de minha pesquisa – alunos do ensino fundamental, 1ª a 4ª séries e
EJA – Educação de jovens e adultos. As crianças que terminavam a 4ª série paravam de
estudar, ou buscavam uma escola fora da aldeia, na Enseada do Brito, o que era visto com
muito desagrado pela comunidade.
Desde 2007 os alunos contam também com a quinta série do ensino fundamental,
algo muito reivindicado pela comunidade desde o ano passado, e finalmente o pedido foi
atendido pela Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina.
41
Itaty significa monte de pedra na língua guarani.
A escola possui em sua estrutura física três salas separadas uma da outra e uma
cozinha com uma sala para escritório anexa, e dois banheiros. O pátio é de lage, sem
nenhuma segurança, local de alguns acidentes. Na atualidade, após muitas solicitações da
comunidade, foi construída uma mureta em volta do vão central da escola, garantindo a
segurança das crianças e afastando os cachorros. Mas a cerca que proporcionaria maior
segurança às crianças na escola que fica à margem da BR-101, é outra reivindicação que
ainda não foi atendida até a apresentação desta dissertação.
Em uma das salas de aula funcionam as séries iniciais e na outra o EJA - ensino de
jovens e adultos, na terceira sala de aula funciona uma biblioteca equipada com
computadores, televisão e DVD. Além disso, há um campo de futebol improvisado com
algumas estacas de madeira logo à frente da escola, local onde as crianças - kyringué –
estão sempre brincando de bola no intervalo das aulas.
Os contdos são selecionados e desenvolvidos pelos professores para os alunos de
primeira à nona série. À tarde e à noite os jovens e adultos estudam no EJA – em que por
meio de módulos - não específicos à cultura guarani - realizam o supletivo.
De acordo com depoimentos de um pesquisador guarani e professor da escola
Adão Antunes -, a escola passou por quatro momentos: primeiramente a casinha de barro e
madeira abaixo do morro do posto de saúde; depois o professor Darcy – que atualmente
mora em Imaruí – fez de sua casa a escola; mais tarde, por meio de projetos de
universidades do Estado, foram construídas duas salas em cima do Morro ao lado do posto
de saúde – que se tornaram casas de famílias Guarani e posteriormente se tornaria um centro
de educação infantil, mas na atualidade (2008) tornou-se novamente casas de famílias
guarani.
O professor Adão Antunes (2002) desenvolveu uma pesquisa minuciosa para
elaboração do projeto político pedagógico da escola, no qual relata todos os momentos
vividos pela comunidade desde a primeira escola, registrando todos os professores que
passaram pela aldeia.
42
Segundo Antunes (2002), a escola teve como seu primeiro professor
Milton Moreira - filho de Júlio Moreira, pertencente à primeira família extensa guarani que
chegou à aldeia de Morro dos Cavalos ainda na década de 30. Milton ministrava aulas de
alfabetização em guarani articulando com a ngua portuguesa, além de ensinar matemática.
Em 1997, foi iniciado o curso de Educação Indígena promovendo a capacitação de
professores indígenas, no período de 17 de Março a 21 de Março.
Em 1998, quem atuava como docente era o professor bilíngüe Afonso Cláudio e a
Professora Eliete Matos Rodrigues Raulino como professora de português. No peodo de 23
a 27 de Março iniciou-se o segundo curso de capacitão de professores indígenas
"Construção de um currículo diferenciado para Educação Escolar Indígena”.
No ano de 2000, foram contratados os professores: Aldo Gonçalves como professor
guarani; e de português, Eliete Matos. Neste mesmo ano a professora lecionou até o mês de
maio e o professor até junho. Os alunos ficaram alguns dias sem professor de português e no
lugar do professor Aldo foi contratado o professor bilíngüe João Antunes que ficou até
Dezembro, finalizando o ano letivo com as crianças.
Em 2001 foi contratado o professor Agustinho Moreira – como bilíngüe – e alguns
meses depois, a professora Eliete Matos retorna para a escola. De acordo com relatos de
Antunes (2002):
A o ano de 2000 a escola funciona em uma casa meia água e em 2001
mudou-se para uma sala grande no topo do morro, uma construção no estilo oca,
42
Esta pesquisa nos remete a aspectos que apontam para relações de parentesco, relações inter-aldeias e inter-
escolas como demonstrarei posteriormente.
feita de costaneira. A primeira sala de aula era uma meia água de madeira,
2,5m de largura por 4,0m de comprimento, energia elétrica, um quadro negro de
1m². não existia banheiro sanitário, as crianças utilizavam o mato. Na época
perto da escola existiam cinco casas. Três delas eram de barro típicas: feitas de
pau-a-pique, coberta de taquara e parede de barro. Duas casas de madeira feitas
pela FUNAI, uma delas morava o Cacique Darci Gimenes e na outra o professor
Aldo Gonçálves. O refeitório e depósito de merendas era uma meia água de
madeira construída pela FUNAI que ficava 15m longe da sala de aula. A escola
ficava na recosta do morro e era muito difícil o acesso.
Em 2003, o governador do Estado de Santa Catarina Esperidião Amim, autorizou a
construção do pavilhão da escola Itaty - que se localiza atualmente as margens da BR 101 -,
local não muito celebrado pela comunidade devido ao barulho e da falta de privacidade.
Ainda em 2003, a professora guarani Eunice Antunes- filha de Seu Adão Antunes -
passa a atuar como docente em Morro dos Cavalos como professora de língua portuguesa.
Eunice revela que “...foi muito difícil pois havia uma coordenadora não-índia na escola que
queria tudo ao seu modo.
Ao conversar com o cacique, Artur Benites, Eunice disse que queria trabalhar de
acordo com os interesses da comunidade e não da coordenadora juruá, e que se Artur assim
desejasse, ele podia ir à sala de aula contar histórias de como era antigamente. O cacique
ficou maravilhado, disse para Eunice reunir a turma que ele contaria história.
... o cacique contou a história de como era antigamente, da casa de reza, que se
as crianças quisessem era só ir na casa de reza que ele contaria mais.
No outro dia as crianças foram cortar lenha pra levar na Opy, a noite a Opy
estava cheia. Artur ao redor do fogo contava história de como era antigamentes,
de que se fazia artesanato pra enfeitar a Opy, fazia-se petynguá, balaio, colares.
No outro dia fui com as crianças cortar taquara e pegar material pra fazer
artesanato. Levaram para enfeitar a casa de reza. O cacique ficou muito
satisfeito, e a coordenadora, que era autoritária e queria impor seu trabalho foi
mandada embora (Depoimento de Eunice Antunes, 2007).
Em 2007, período de minha pesquisa de campo, atuavam como professores: Marco
Antônio de Oliveira, João Batista Gonçalves, Adão Antunes com asries iniciais:
primeira à quarta; e Joana e Diego (matemática), com o EJA.
Nesse processo é a rotatividade de professores, disputas de interesses e choques
culturais entre os professores Guarani e professores não- índios. Processo que se iniciou em
1992, quando havia uma pequena casinha de barro na comunidade – construída pelos
próprios Guarani – que pouco a pouco recebeu a presença de professores voluntários e de
projetos de Universidades, mas foi apenas em 2003 que se constituiu na escola sob a tutela
do Governo do Estado, com suas exigências e particularidades.
Em 1996, inicia-se o processo institucional de escolarização nas aldeias, mediante a
parceria entre deres Guarani, Secretaria de Educação do Estado e FUNAI. O objetivo
principal era elaborar um projeto que visasse à implementação de escolas nas três aldeias
guarani da grande Florianópolis: Morro dos Cavalos, Massiambu – distante 3km de Morro
dos Cavalos, em Palhoça - e Mbiguaçu. Este processo tinha o intuito de garantir o direito a
uma educação intercultural, bilíngue, específica e diferenciada
43
. Em 1998 foi fundada a
escola em Mbiguaçu
44
, e em 2003 no Morro dos Cavalos sob a tutela do governo do Estado.
Em Morro dos Cavalos a escola chegou mais tarde que nas demais aldeias, fato que
me chamou atenção. O cacique e as pessoas da comunidade resistiam muito sobre a
possibilidade de uma escola nos moldes do djuruá na aldeia. Quando indaguei aos
professores que estão a mais tempo na comunidade, me disseram que tinham medo que a
43
Refere-se a Lei Darcy Ribeiro n.9.394/96, de 20.12.96: Artigo 26, refere-se ao currículo diferenciado; Art.
78, refere-se a valorização das culturas ingenas e do direito ao acesso à sociedade nacional, demais
sociedades não-índias; Art. 79, refere-se ao apoio da união a educação inter-cultural, incluindo formação de
pessoal específico para o trabalho de educação nas sociedades indígenas e a publicação de material didático-
pedagógico específico e diferenciado.
44
Ver também Oliveira, 2004.
“cultura djuruá” influenciasse a cultura indígena, e portanto não queriam escola de djuruá
na aldeia.
45
Este fato foi descrito por moradores de muitas aldeias, que tinham medo, que não
queriam uma escola de branco. Mas, com o passar dos anos e a visibilidade de outras
experiências de escolarização, a comunidade de Morro dos Cavalos – percebendo que havia
direitos que contemplavam uma educação diferenciada para os indígenas e que eles
poderiam fazer uma escola ao seu modo começou a reivindicá-la.
O dia-a-dia na Escola Indígena de Morro dos Cavalos
45
De acordo com Clastres, H. (1978), de que os Guarani pertencentes ao subgrupo Mbyá seriam os mais
resistentes na preservação de sua cultura e de seus valores.
Na aldeia guarani de Morro dos Cavalos, a aula se inicia aos poucos. Primeiro o
professor chega, depois as crianças vão aparecendo lentamente. Algumas delas chegam e já
abrem o caderno comando a escrever, outras esperam sentadas em seus lugares. As mesas
têm os nomes das crianças, que não levam a regra muito a sério apenas uma ou outra menina
- kunhaí - reclama quando pegam seu lugar.
As cadeiras em alguns momentos viram mesas, os livros ficam empilhados e
espalhados pela sala de aula, o corpo das crianças tenta se encaixar - muitas vezes sem
sucesso – à postura exigida pelas cadeiras e mesas escolares.
Em contrapartida, o professor guarani percebe esta dificuldade, deixando as crianças
mais livres para saírem, andarem pela sala, assistirem a aula pela janela.
Segundo Adão Antunes professor guarani - , faz muita diferença em sala de aula
quando um professor fala guarani, e para exemplificar contou a história do professor não-
indio que começou a dar aula na escola este ano para quinta série.
O professor djuruá reclamava que os alunos não falavam com ele, não tinham
resposta para suas perguntas, estava muito angustiado e preocupado. Adão me explicou que
as crianças realmente têm outro tempo, são mais quietas, às vezes gostam de cantar as
músicas guarani em sala de aula, não param muito tempo sentadas, e o professor tem que
respeitar isso. Um outro fator, como ele apontou anteriormente é a língua: sem falar guarani
minimamente, se torna muito difícil das kiringué entenderem.
O professor Adão Antunes conta que “para ensinar os guarani é preciso além de
ser um bom professor, ter muito carinho e respeito pelas crianças” E acrescenta: “quando
vejo que estão cansadas, ou simplesmente não querem estudar, mando elas para casa, pois
não adianta forçar que não é assim que eles aprendem”. “...se eles começam a cantar na
sala, eu canto com eles! É assim que se ensina as crianças Guarani”.
Nas aulas em que os professores guarani estão ensinando, o atendimento às crianças
acontece individualmente, o professor passa de mesa em mesa tirando dúvidas com os
alunos. Geralmente os irmãos sentam juntos, mas não é uma regra constante, apenas quando
um deles é muito novo e só está acompanhando a aula.
A oralização, presente nas atividades áulicas, com repetições sonoras fortes
e vibrantes que o professor implementa no trabalho com as letras, também é
indício da influência da tradição nas práticas escolares. O modo como o professor
se dirige a cada criança distancia-se da simultaneidade das aulas que a escola
convencional realiza em suas turmas, em que pese a presença de diferenças
individuais. Assim como são atendidos na individualidade, perpassa a aula um
constante fazer juntos, olhar para o caderno do outro, desenhar no desenho do
irmão, ajudar os pequenos a desenhar as letras ou repetir a pronúncia de uma
palavra em português, até que outro a aprenda. São situações que ecoam na sala
de aula um modo de viver na aldeia, em que as crianças andam em grupo, em que
os menores acompanham e observam atentamente os maiores, repetindo e
tentando imitar seus gestos (Bergamaschi, 2007: 11).
As crianças chegam na escola aos poucos, de pés descalços, cabelos despenteados,
roupas coloridas, a maior parte proveniente de doação. As mochilas possuem personagens
famosos como Hellokitty e homem aranha. As pulseiras e colares feitos de sementes e
miçangas fazem parte da ornamentação corporal.
Quando chega a hora da merenda todos saem correndo e, a pedido do professor, vão
lavar as mãos...Após a merenda saem correndo para brincar: pega-pega, morto-vivo,
lobisomem, gritam em guarani por todo o pátio da escola.
Também o momento que entendem como recreio o é determinado
mecanicamente pelo relógio e ocorre através do anúncio do professor, em geral
ao final de uma atividade. Há, nesse intervalo, um misto da aula e da vida
ordinária na aldeia, especialmente considerando a suavidade de falas e
movimentos, o que, longe de deixá-los quietos e acabrunhados, insere-se nas
alegres brincadeiras, sempre em grupos (id. ib.: 10).
Depois da brincadeira o professor chama de volta à sala de aula, as crianças voltam
para aula de matemática entusiasmadas, o feijão vira brincadeira e muitas crianças vão à
frente pegar mais feijão para continuar os cálculos...
O professor pega grãos de feijão – kumandá – e ensina as crianças a contar, contas de
adição e subtração. Depois o professor pergunta: Há’ewe? – tudo certo? E todas respondem
positivamente. Na aula de matemática, o professor Marco Karaí Djekupé sempre pergunta
aos seus alunos: que dia é hoje? As respostas são sempre variadas, pois é perceptível entre
as crianças, que o tempo cronológico utilizado na sociedade ocidental não é o mesmo do
cotidiano guarani, referem-se aos dias, muitas vezes, como “tempinhos”.
46
Quando uma criança estava indo viajar e eu perguntava: “quanto tempo vai ficar
fora?” e ela respondia: “dois tempinhos”, para referir-se há alguns dias. Em muitos
momentos quando perguntava em que mês nasceram, muitas crianças não sabiam responder,
não sabiam o dia nem o mês. Este aspecto era percebido nas datas que deveriam ser
comemorativas como nos aniverrios, momentos em que as criaas o demonstram
nenhuma alteração de excitação ou euforia – pelo menos na maioria dos casos.
Em uma conversa com Timóteo Karai Tataendy de Oliveira – cacique e pajé da nova
TI Morro da Palha, adquirida com recursos de indenização pela duplicação da BR-101, ele
me dizia que contavam as idades das pessoas pelo tempo médio de vida da taquara. A
Taquara vive cerca de 60 anos, nos trinta primeiros anos ela cresce, depois ela começa a
florescer, e quando atinge os 60 anos, ela morre. Segundo ele, era assim que contavam a
idade, mas sem nenhum tipo de comemoração festiva, apenas para terem uma idéia relativa
da idade das pessoas.
46
Sobre a relação os Guarani e o Tempo, abordarei no capítulo IV.
Em um outro dia de manhã, desci para assistir aula, quando observei as crianças
lavando o pátio da escola junto ao professor Adão Antunes. Perguntei ao professor Adão se
não haveria aula aquela manhã, e ele me respondeu sorrindo: “a aula é aqui fora, lavar a
escola também faz parte do aprendizado!”. A escola possui o papel de integrar os
conhecimentos que fazem parte do cotidiano da aldeia, buscando integrá-los ao cotidiano
escolar.
(...) seu funcionamento, que foge à regularidade que conforma tempos e espaços
iguais, independentemente da vontade das pessoas. Pode-se dizer que uma
inconstância no cotidiano da escola, pois não vejo uma simetria no que diz
respeito a tempos, à localização e organização espacial, ao desenvolvimento das
atividades didáticas e das próprias pessoas que participam da escola. Algumas
apresentam assiduidade integral e outras a freqüentam irregularmente, todas
respeitando suas vontades. Essa intermitência, que por vezes causa
incompreensões, especialmente na relação com os gestores da política pública de
educação escolar, mostra também um desempenho de equilíbrio e beleza, que
conforma um conjunto harmônico, marcado ao mesmo tempo pela variação, pela
discrepância entre uma e outra situação escolar e pela continuidade, que confere
regularidade à concorrência de acontecimentos que está se inserindo no interior
de cada aldeia (Bergamaschi, 2007: 9).
Todos os momentos fazem parte do aprendizado, não há uma separação entre a
instituição escolar e a comunidade, como na sociedade ocidental. Por mais que a escola não
esteja totalmente inserida na comunidade, também é perceptível que não está alheia a ela,
nem tampouco às crianças.
As reuniões da comunidade em Morro dos Cavalos acontecem uma vez por semana
na sala de aula da escola, geralmente aos sábados, e tem durações variadas, entre quatro a
sete horas. São nessas reuniões em que todos os assuntos da comunidade são discutidos,
casamentos realizados, punições para os que se separam são aplicados. Acontece uma
verdadeira aula sobre a cultura guarani, de como era antigamente as diferenças em relação à
realidade atual da comunidade.
Geralmente nestas reuniões o cacique fala durante as três primeiras horas, depois as
demais lideranças, uma pessoa mais velha, o presidente da associação, professores, e por
último alguém que queira casar ou complementar os assuntos em pauta. Nesta reunião estão
presentes a família do cacique, mulheres com bebês, as crianças da comunidade, os
professores. Existe uma obrigação implícita em participar da reunião, pois aqueles que não
comparecem são mal vistos pela comunidade e principalmente pelo cacique.
As reuniões da comunidade chamam atenção pelo fato de durarem tanto tempo.
Novamente voltamos aoeterno presente” de que trata Eliade (1999), em que o tempo
parece não existir. Todos escutam atentamente as “belas palavras” do cacique, que de
acordo com Clastres (1975) repete sempre o mesmo discurso, relembrando dos tempos dos
antigos. As crianças, ao contrário do que acontece no dia-a-dia nas aulas, permanecem
sentadas todo o tempo, de olhos baixos, mas sempre atentos à fala dos mais velhos.
Um outro aspecto que me saltou aos olhos - entre as crianças Guarani,
principalmente - foi em relação ao tempo das saudações. Muitas vezes, no decorrer da
pesquisa, achava estranho que tinha dias em que as crianças me olhavam e não me
cumprimentam, outras vezes saiam correndo para me abraçar. Com o passar do tempo de
convivência nas aldeias, não sabemos ao certo o que pensam da gente, ou sequer se lembram
quem somos nós.
Desde 2004 vou à aldeia de Morro dos Cavalos, acompanhei neste período o
crescimento de algumas das crianças.
Luana Benites era uma criança que o me cumprimentava direito, só me olhava de longe.
Quando voltei à aldeia, em dezembro de 2007, ela estava sentada à minha frente e quando
peguei sua mão para dizer “nhandekarudju” – boa tarde – em guarani, ela segurou forte e
disse: Clarissa, minha amiga da vida toda! Fiquei surpresa, pois não sabia ao menos se ela
se importava com a minha presença na aldeia....
Este tempo próprio das crianças é bem vivel quando passamos um tempo na aldeia,
pois são esponneas, tem um ritmo corporal próprio, e o respeitam, só abraçam eo beijos
quando o corpo fala...se estão tristes, ou chateadas, ou mesmo se simplesmente não estão
dispostas, não falam, nem cumprimentam. Os adultos por sua vez, tentam respeitar este
ritmo, mas ao perceber este outro que necessita de resposta, de um cumprimento, de um
abraço, muitas vezes o fazem sem querer, desrespeitando seu corpo.
Neste sentido o corpo guarani é uma zona interdita na troca, alvo de incompreensões
pela sociedade ocidental, por respeitarem o silêncio, silêncio que se faz presente no corpo,
no ritmo corporal.
II.4 Wherá Tupã Poty Djá - A Escola Indígena de Mbiguaçu
A escola da aldeia de Mbiguaçu, foi inaugurada em
1998 com o nome de Yynn Moroti Wherá, -que
significa brilho ou reflexo das águas cristalinas - ,
atendendo crianças de 1º à 4º série. Posteriormente
inaugurou um novo pavilhão em 2004, onde
passou a atender crianças e jovens do ensino
fundamental (1ºa 9º ano) durante os períodos
verpertino e matutino, e EJA (Educação de Jovens
e Adultos) à noite.
Em 2005, foi denominada Wherá Tupã Poty Djá – uma homenagem a Alcindo
Wherá Tupã Moreira - pajé da aldeia e o fundador da comunidade, e sua esposa, Rosa Poty
Djá
47
.
A solicitação de uma escola à FUNAI se deu ainda em 1996, que juntamente com a
Secretaria de Educação do Estado a tornou realidade em 1998. Em Mbiguaçu também havia
uma escola de madeira, ainda não regulamentada construída em 1997, que posteriormente
deu origem a uma casa de nutrição e na atualidade foi demolida. O pavilhão atual se localiza
mais acima da montanha com vista para comunidade, para o mar e para a Br-101.
Os primeiros professores da escola foram Andréia Wollinger e Milton Moreira – que
vinha de Morro dos Cavalos, casado com Roseli Moreira, filha de Alcindo Moreira - e no
mesmo ano assume Geraldo Moreira, filho de Alcindo Moreira. No ano de 1999 a 2000,
47
Os nomes significam respectivamente: brilho do trovão e protetora das flores – nomes guarani de Alcindo e
Rosa.
permanecem como professores Geraldo Moreira e José Martins, e em 2001 assume a
professora Isabel Eiko Kodama - professora da comunidade até a atualidade - juntamente
com Geraldo Moreira.
Em 2004 além de Geraldo Moreira e Isabel Kodama, assumem Adriana Moreira -
filha do irmão de Alcindo Moreira, Graciliano Moreira – com a primeira e segunda série,
Wanderley Moreira – filho de Alcindo Moreira, e Marcelo Gonçalves sob a coordenação do
professor Julio César Rosa Lopes, com a terceira e quarta série.
O número de alunos matriculados aumenta, e com o passar dos anos as séries vão
sendo divididas e distribuídas entre os professores. Em 2005 já são 29 alunos e as séries são
divididas da seguinte maneira: 1ª série à tarde com as professoras Isabel Kodama e Adriana
Moreira; de manhã a professora Isabel Kodama e Wanderley Moreira, com a 2ª, 3ª e 4ª
série.
48
Durante minha pesquisa de campo na aldeia, os professores que atuavam na escola
eram Eunice Antunes – filha de Adão Antunes – que saiu de Morro dos Cavalos; seu marido
Marcos Moreira – filho de Dario Moreira, irmão de Alcindo Moreira; Adriana Moreira -
filha do iro de Alcindo – Graciliano Moreira - estava de licea maternidade mas
retornou às aulas; Geraldo Moreira -filho de Alcindo Moreira - ; Isabel Kodama (não-
índia), e sua filha Carol Kodama; o diretor da escola André (não-índio), e sua esposa
Marília que atua como docente (não-índia). A professora de artes, Andréia (não-índia),
também ministrava aulas durante minha pesquisa, mudando-se para França em julho de
2007.
A relação de parentesco entre os professores pode ser observada nos gráficos 1
(professores guarani), e gráfico 2 (professores não-indígenas) abaixo:
48
Dados retirados do Projeto Político Pedagógico da escola indígena Wherá Tupã Poty Djá.
Helena
João Sabino
lio
Isolina
Ca tarin a
Vicente
Nadir
Ro s a
Ge ra ld o
Ro se li
Ros ana
Milton Vanderley
HyralCelitaMárcia
Mar c os
Eun i ce
Mar c o
El i s et e
Whera
MarceloJanis
Mari a Adão
Ivete
Ti agoAdri ana
Gracil i ano Dári o Rosal ina Alcindo
Gráfico 1
Gráfico 2
Isabel
Car ol
André
Marília
Legenda
mul her
homem
casamento
filiação
professor
professora
Os conteúdos são fornecidos pelas Secretarias de Educação do Estado de Santa
Catarina, mas são aplicados juntamente aos conteúdos elaborados pelos professores Guarani.
As aulas são ministradas em duplas, intercalando um professor guarani com um professor
não-índio. Esta situação se deve a não finalização do curso de capacitação e formação de
professores indígenas pelos Guarani, com data para o término no final de 2008.
A partir desta data passam a ministrar aulas para todas as séries do ensino
fundamental sem a presença de professores não-índios. O cargo de diretor deve permanecer
por algum tempo com a presença de não indígenas, pois este deve ser concursado, possuindo
curso superior, caso não muito freente entre os guarani diferentemente de outros povos
indígenas.
Mesmo com a presença constante do professor não-indígena, é possível perceber a
busca por uma educação baseada na vontade do txeramõi Alcindo Wherá Tupã Moreira -
que é, muitas vezes consultado pelos professores para que possam desenvolver assuntos
relacionados à comunidade em sala de aula.
Mesmo com a obrigatoriedade dos órgãos responsáveis pela escola de uma total de
800 horas aula/ano – referente às horas em sala de aula - os professores contam estas horas
também em aulas na mata, no corte da taquara, em construções e outros assuntos
relacionados à comunidade.
O dia-a-dia na Escola Indígena de Mbiguaçu
Num dia de chuva e muito frio, acordei cedo e subi para escola temendo que não
houvesse ninguém. Para minha surpresa estavam todas as crianças em um clima
maravilhoso, encantadas com a aula de artes.
Em uma sala estavam as mulheres adultas, jovens e algumas meninas ajudando a cortar,
costurar e tingir saias de todos os tamanhos, que seriam utilizadas na cerimônia de reza.
Levei a máquina fotográfica, o que causou um alvoroço, pois todas as crianças
queriam tirar foto e aparecer, sem falar que queriam afoitamente ver como tinha ficado a
foto. Olhavam para mim e pediam sorrindo:deixa eu abrir?” –modo como se referiam
para deixá-las tirar uma foto.
Na mesa de refeição estavam os professores Geraldo Karai o’Kenda – professor
guarani bilíngue - e Andréia - professora não-índia de artes e espanhol - ajudando os
alunos de um lado a fazer as peças de barro; e de outro as pintando com tinta. Todas as
crianças participavam animadas.
A merenda chega com entusiasmo...logo depois retornam para as atividades.
As brincadeiras no intervalo são variadas, mas o tradicional jogo de bola sempre acontece.
Na sala de aula com os professores, os mais velhos fazem cortes em revista e colam
em papéis cartão. Alguns têm um pouco de preguiça, outros fazem o trabalho com
entusiasmo. Na outra sala, estão os menores com a professora Isabel Kodama – não índia - ,
desenhando. E na terceira sala continuam as mães com os bebês no colo terminando de tingir
as roupas e pegando as que já foram tingidas e estendendo em um varal improvisado dentro
da sala de aula. As mães ficam com as crianças penduradas por um pano nos quadris –
mondea - , fazendo sua atividade normalmente, ou, de vez em quando aparece uma criança
pequena pedindo pra pegar o bebê no colo e sai pela escola a passear...
O respeito é algo muito presente na relação entre as crianças Guarani, seus familiares
e com os professores Guarani:
destaco o respeito, atitude sempre evocada quando o assunto é educação
tradicional. E não me refiro apenas ao respeito às pessoas mais velhas, qualidade
reconhecida nos povos indígenas brasileiros, mas o respeito a cada pessoa na sua
individualidade, na forma de expressão de si e na busca do conhecimento e dos
seus limites, o que faz com que os adultos não repreendam as crianças, mas as
observem e as acolham em suas características próprias queo, aos poucos,
consolidando cada pessoa Guarani. Essas características, que são presenças fortes
na educação tradicional dos Guarani (Bergamaschi, 2007: 6).
Além do respeito, uma outra característica muito presente nos processos de ensino
aprendizagem entre as crianças tanto nos espaços escolares quanto fora deles, é a autonomia.
As mães deixam as crianças livres para aprender experimentando, observando, imitando os
iros mais velhos, os parentes:
(...) as crianças Guarani desenvolvem-se a partir dos modelos que observam,
imitando e, principalmente, fazendo. Usando uma categoria cara e de difícil
concretização nos processos educativos ocidentais, realço como característica da
educação dos kyringue a autonomia, que expressa a individualidade da pessoa,
não como individualismo que a isola e afasta das demais, mas como
reconhecimento de cada um no coletivo. São situões concretas que revelam
uma forma de estar no mundo e de se dispor a ele, desde o nascimento, quando o
corpo se abriga na carinhosa contiidade propiciada pela proximidade amorosa
do colo da mãe e na comunicação corporal que se estabelece nas brincadeiras, nas
danças, no contato com irmãos e outras crianças do grupo familiar – com o pai,
com os avós e demais parentes –, mas que fazem sobressair, também, o quanto
cada pessoa deve, desde pequena, responsabilizar-se de si (id. ib.: 6).
Estas características de produzir e transmitir conhecimentos foram observadas em
ambas aldeias pesquisadas onde o conhecimento depende também de curiosidade e da busca
individual.
Em contrapartida, há alguns aspectos que merecem destaque, pois a escola da aldeia
de Mbiguaçu apresenta muitas diferenças em relação à escola de Morro dos Cavalos. A
primeira delas é que em Mbiguaçu existe a atuação de professores não-indígenas, e em
Morro dos Cavalos o atendimento é realizado apenas por professores guarani desde 2007 –
com exceção da quinta série onde acaba de ingressar um professor djuruá.
Este fator provoca uma mudança significativa, mas, em contrapartida, alguns
professores não-indígenas em Mbiguaçu buscam de muitas formas suprir esta diferença
cultural e estar sempre em contato com os mais velhos e com os professores Guarani,
percebendo a melhor atitude a ser desenvolvida junto as Kiringué.
Desta forma, saliento a importância proporcionada pelas observações em sala de
aula, em ambas escolas, pois foi possível perceber que o corpo guarani está inserido em uma
outra escala de tempo, não é contado pelos ponteiros do relógio, nem pelos compromissos
de uma vida regrada aos parâmetros da sociedade ocidental. É uma vida com deveres e
obrigações, com trabalho e lazer, mas todos movimentos em um tempo próprio, no ritmo
guarani.
(...) cada criança faz sua atividade em seu tempo, pois não há, por parte do
professor, nenhuma imposição de regras temporais, como nos habituamos em
nossas escolas, cujas atividades são planejadas para determinado período de
execução, tempo esse explicitado e treinado junto aos alunos e que, por vezes,
funciona como ameaça: "tem mais dez minutos para concluir o
trabalho!"(Bergamaschi, 2007: 9).
Na escola Wherá Tupã Poty Djá, a professora de Artes (não-índia) afirma: “...eu
planejo uma aula, mas acabo não finalizando, pois é mais demorado, mas uma demora, não
por incapacidade, pois eles são muito detalhistas, são artistas...”A partir do relato da
professora é possível perceber um ritmo próprio dos guarani, que acaba por fazê-los
detalhistas no que fazem, sem pressa de finalizar...
Visto que o corpo é uma categoria de extrema rentabilidade para compreender
aspectos fundamentas da vida e do pensamento guarani, descreverei alguns trabalhos que
servem como base para argumentação teórica sobre a noção de corpo.
II.5 Comissão Ingena Guarani Nhemonguetá: Construindo políticas de educação
escolar dos Guarani em contraposição às políticas sobre os Guarani - uma nova
perspectiva política
Atualmente, como fruto de pesquisas e constantes debates entre os guarani, surge
uma comiso indígena – Nhemonguetá – em que se pensa e discute uma educação escolar
indígena que valorize seus ritmos de ser e viver e que garanta o respeito a temporalidade
guarani nos espaços escolares.
A Comiso Indígena Guarani Nhemongueta, é composta por lideranças Guarani do
Estado de Santa Catarina, criada em 2006 e oficializada em 2007, participante da
Organização Nacional Indígena de Terra Guarani Ywy Rupá.
A comissão vem se reunindo nas aldeias Guarani, seguindo os conselhos dos mais
velhos com intuito de fortalecer as comunidades e apoiar na conquista dos direitos e prezar
pela execução dos Artigos 231 e 232 da Constituição Federal do Brasil, assim como a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que regem os direitos das
comunidades Indígenas e Tribais no Brasil.
Nos dias 5 e 6 de Julho de 2007, foi realizada na aldeia Mbiguaçu, uma reunião em
que a comissão declarou sua existência oficial coma presença da Procuradoria da República
de Florianópolis e de Joinville com o intuito de discutir a temática referente à Educação
Escolar Indígena.
Nesta reunião participaram, além dos Procuradores, representantes da Secretaria
Estadual de Educação (Núcleo de Educação Indígena) e das Gerências Regionais de
Educação de Florianópolis e Joinville. Com o tema, “Escola nas Aldeias, Educação para
Quem?”, foi conduzida a reunião pelo Cacique Hyral Moreira, o qual apresentou as
problemáticas levantadas ao longo das reuniões da Nhemonguetá:
Os consensos a que chegamos foram: as escola nas Aldeias não devem seguir o
modelo de educação não-indígena, e para isso necessita de urgentes reformas; o
“sistema” que rege as escolas não-indígenas, não pode servir de base nem de
regra para o funcionamento das Escolas Indígenas Guarani; e é preciso por
parte dos administradores governamentais, uma urgente capacitação daqueles
que lidam diretamente com os povos indígenas, para melhor atender as Aldeias e
seguir sua organização tradicional, assim como respeitar as Leis, decretos e
regulamentações que regem a Educação Escolar Indígena.
Além disso, os guarani afirmaram que sabem qual a escola que querem, que
conteúdos querem ministrar, e querem decidir a maneira pedagógica de ensinar, partindo de
um projeto político pedagógico elaborado pelos membros da comissão em suas respectivas
aldeias e uma reunião posterior para a discussão do mesmo:
Para tanto, a Comissão se propôs a elaborar um Programa Geral de Educação
Escolar Guarani que queremos, a ser elaborado primeiramente nas
comunidades, pelos professores e lideranças, anciões, pais e mães; em segundo
passo a Nhemongueta reunirá as variadas propostas e elaborará um documento
final, que contemple os anseios de todas as comunidades Guarani de Santa
Catarina, e o apresentará aos órgãos competentes de educação para que sirva
como Diretriz em sua atuação rumo à construção da Escola Guarani que
queremos.
O cacique de Mbiguaçu explica que a escola na aldeia não tem o mesmo papel que
para os não-índios, salientando a necessidade real e urgente de uma educação que se adeqüe
a esta realidade, e que tenha seu sistema próprio.
Deste modo, acreditamos poder construir uma Educação Escolar Guarani que
assemelhe-se à Educação tradicionalmente praticada ao longo dos milhares de
anos nas Aldeias, respeitando o conhecimento tradicional, ouvindo as palavras
dos mais velhos, buscando não formar cidadãos que saibam lidar com a
sociedade envolvente no futuro, mas desde a infância preparar as crianças para
a vida cotidiana na Aldeia, junto à família, que é sua sociedade dentro da
comunidade, e para que possam sim, no futuro, vir a contribuir junto à sociedade
envolvente na elaboração de um novo mundo, de uma nova forma de relação
social.
49
Nas reuniões sobre o Projeto Político Pedagógico que ocorreram em Setembro de
2007, foi decidido pelas comunidades que a alfabetização deveria se dar na língua guarani
até a quarta série; de quinta a oitava receberiam os ensinamentos relativos à cultura guarani
e apresentando aspectos da cultura do não-índio; no ensino médio, seria necessário, segundo
eles, a inserção de cursos profissionalizantes para que profissionais indígenas de áreas
diversas possam trabalhar na comunidade sem depender dos não-indígenas, sendo eles,
médicos, enfermeiros, dentistas, agrônomos.
No ensino superior, foi cogitada a possibilidade de se pensar em uma Universidade
guarani na comunidade, para que formasse profissionais para trabalhar nas aldeias, ao
mesmo tempo, é possível perceber que muitos querem cursar Universidade fora da aldeia e
trabalhar em outras áreas.
Atualmente, a CIESI- Comiso Interdisciplinar Ensino Superior Ingena - , discute
juntamente às aldeias guarani a elaboração de um curso de Licenciatura Indígena na UFSC.
A Licenciatura Indígena vai formar profissionais habilitados em três áreas, os quais terão
Formação e Habilitação Superior, e poderão atuar na aldeia como professores. No Ensino
Superior Normal, a UFSC oferece 5 vagas no sistema de cotas para indígenas já em 2008.
Nas reuniões da comissão indígena Nhemonguetá que ocorreram em 2007 na aldeia
guarani de Mbiguaçu - segundo os participantes guarani -, ao mesmo tempo em que acham
necessário trabalhar na aldeia, querem ter habilitação para dar aula fora da aldeia também,
49
Dados retirados da Ata da reunião da comissão realizada nos dias 5 e 6 de julho de 2007.
pois como realizarão uma Formação Superior, desejam possuir o mesmo direito que os não-
indígenas.
Durante minha pesquisa de campo foi possível participar deste processo privilegiado
de discussões relacionadas à Educação Escolar Indígena, bem como visualizar um processo
de fortalecimento da Comissão Indígena Nhemonguetá, que por meio de reuniões inter-
aldeias com participação das lideranças e caciques, estão construindo sua percepção sobre a
Educação Escolar Indígena que almejam dentro de suas respectivas comunidades.
É partindo deste viés que destaco a importância da compreensão destes processos
próprios de aprendizagem entre os guarani pois:
A comunidade indígena, tanto como povo quanto como aldeia, tem uma
racionalidade operante que temos que saber descobrir para que as novas ações
pedagógicas possam praticá-la. É precisamente essa racionalidade o que mais foi
negado aos povos indígenas. Contudo, nela está a contribuição mais significativa
e necesria. A ação pedagógica para a alteridade não é uma descoberta feita
pela sociedade ocidental e nacional para oferecer aos povos indígenas, muito
pelo contrário: é o que os povos indígenas podem ainda oferecer à sociedade
nacional. Assim, não há um problema de educação indígena, há sim uma
solução indígena ao problema da educação (Meliá, 1999).
Desse modo, no cotidiano na aldeia indígena é que podemos visualizar e compreender esta
racionalidade presente nos processos de produzir e transmitir conhecimentos entre os
guarani.
Nesses processos de produção e transmissão de conhecimentos, de acordo com
alguns autores, o corpo é uma categoria de extrema rentabilidade para compreender aspectos
fundamentas da vida e do pensamento ameríndio, portanto, descreverei alguns trabalhos que
servem como base para argumentação teórica sobre a noção de corpo entre os Guarani.
CAPÍTULO III: ORERETE: O CORPO GUARANI
III.1 O Corpo nas Sociedades Ameríndias
A noção de corpo é uma ferramenta fundamental para se estudar populações
indígenas, principalmente na reflexão sobre a educação. Neste sentido podemos destacar
alguns autores que discutem a corporalidade e a noção de pessoa (Mauss,1936; Seeger, Da
Matta, Viveiros de Castro, 1979; Conh, 2000; entre outros), apontando para o lugar
fundamental que a noção de corpo tem dentro das sociedades sul ameríndias e da sua
rentabilidade para compreender o modo a partir do qual essas sociedades organizam sua
vida ritual, cosmológica e social com base no idioma focal da corporalidade.
No final dos anos 70, o trabalho de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979),
sobre a construção da pessoa nas sociedades indígenas, tornou-se um marco nos estudos
antropológicos ameríndios. Os modelos africanistas de linhagens, clãs e grupos corporados
não estavam dando conta de explicar aspectos mais gerais das populações das chamadas
Terras Baixas da América do Sul.
50
Os paradigmas cssicos utilizados como ferramenta de análise das sociedades
indígenas melanésias, da África e no sudeste asiático: noções de linhagens, aliança,
organizações sociais, dualismo, entre outros, não são compatíveis com todas as sociedades
ameríndias.
Como já havia observado Overing Kaplan (2002), “a estrutura das sociedades
ameríndias não se encontrava onde os etnólogos a procuravam”. Diante da ausência de
clãs, linhagens e grupos corporados, postulava-se a fluidez e a falta de princípios
50
É importante ressaltar que a nomenclatura terras baixas não se refere à diferenciação feita por Stewart
(1940), no Handbook of South American Indians, mas ressalto a importância do trabalho de Carlos Fausto a
favor da superação da dicotomia TBAS X TAAS, na busca de uma visão continental, que ao invés de pensar
em dicotomias, pense nas suas relações.
integradores nessas sociedades. Examinando algumas etnografias da época, tais como a de
Crocker sobre os Bororo, a de Reichel-Dolmatoff sobre os Desana do noroeste amazônico, e
a de Overing Kaplan sobre os Piaroa da Venezuela, Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro
(1979), observaram que todas elas davam muito espaço às ideologias nativas sobre a
corporalidade: "teorias de concepção, teorias de doenças, papel dos fluidos corporais no
simbolismo geral da sociedade, proibições alimentares, ornamentação corporal". Isso não
lhes pareceu acidental, mas resultado da centralidade das questões relacionadas a
corporalidade na definição da estrutura dessas sociedades.
Deste modo, as noções de pessoa e corpo seriam novas vias de acesso para o
entendimento destas sociedades. O corpo, além de trazer inscrições do social, é a matriz de
símbolos da sociedade, portanto “a fabricação, a decoração e transformação e destruição dos
corposo temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida cerimonial e a organização
social” (Seeger, Da Matta, Viveiros de Castro, 1979):
A produção física de indivíduos nas sociedades indígenas se inscreve em uma
produção social de pessoas membros de uma sociedade, onde perguntar sobre o
lugar do corpo é iniciar uma indagação sobre as formas de construção da pessoa
(id.ib.: 11).
Clarice Conh (2000), em seu artigo sobre as crianças XiKrin, demonstra que a noção
de pessoa possibilita o entendimento de como cada sociedade concebe a infância e permite
entender os processos necessários para que se adquira o atributo de ser-humano.
O corpo é trabalhado em toda sociedade, mas não da mesma forma pelas diversas
sociedades, tampouco dentro de um mesmo agrupamento humano tal construção não se faz
uniformemente para todos os seus membros. Assim, para pensar de que maneira o corpo é
constrdo dentro de uma determinada sociedade, é preciso prestar atenção “no modo de
transmissão das técnicas corporais, que constituem a educação, não produz apenas um
corpo, mas, também produz e influencia a consciência e visão que essas pessoas têm e terão
de seus corpos e do mundo que as rodeia” (Mauss, 2003).
As técnicas corporais podem ser definidas como “a noção pela qual os homens,
sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos, cada
sociedade tem hábitos que lhes são próprios.” E estas técnicas podem nos dizer muito sobre
a construção dos corpos de cada sociedade ou grupo (Mauss, 2003).
Neste sentido, aponto para a importância da construção do corpo entre os Guarani,
pensando no processo de fabricação deste corpo, como uma produção social da pessoa e dos
processos de ensino-aprendizagem que lheso próprios.
III.2 A Escola no Corpo
O corpo Guarani é uma escola, um lócus privilegiado dos processos de ensino-aprendizagem
ao longo de gerações:
Essa construção corporal diária faz parte do pensamento cosmológico e nos
mostra que este pensamento guarani, mesmo num olhar superficial, espelha uma
riqueza de elementos culturais que respondem por si a teorias de aculturação ou
de perda cultural. (Mello, 2005).
Foi a partir da observação da corporalidade entre os guarani, que busquei subsídios
para descrever os modos próprios de pensar, produzir e transmitir conhecimentos; de
cuidados e técnicas corporais que demonstram uma riqueza de elementos. Pois “o corpo é o
local privilegiado que se inscreve toda uma série de comportamentos e atitudes que vão
constituir o indivíduo”. Além disso, “esta construção corporal não é fruto de um esforço
individual e consciente, mas o produto de uma prática que é ao mesmo tempo individual e
coletiva, consciente e inconsciente”. (Mauss, 2003).
A sociedade Xinguana estudada por Viveiros de Castro (1979), é um exemplo desta
prática em que o corpo humano necessita ser submetido a processos intencionais de
fabricação. Substâncias que comunicam o corpo com o mundo: fluidos corporais, alimentos,
tabaco, sangue, sêmen, óleos e tinturas vegetais. A partir destes processos e da troca e
ingestão de substâncias, o corpo sofre transformações, não apenas o corpo, mas a posição
social; “a natureza humana é fabricada pela cultura, o corpo é imaginado pela sociedade”.
A produção destas novas identidades ocorre por meio do ciclo vital dos Yawalapiti,
na relação sexual que gera a criança - onde relações freqüentes são necessárias para formar a
criança no período da gestação; na reclusão pubertária – mecanismo de “trocar o corpo e
formar uma personalidade ideal” – ; nas cerimônias funerárias. De acordo com Viveiros de
Castro,aquilo que distingue os indivíduos – seus corpos - transformam-se na reclusão
aquilo que os identifica” (Viveiros de Castro, 1979: 47).
O corpo é corpo humano na sociedade Yawalapiti, e, só existe, a partir de um
processo de fabricação. Fato semelhante ocorre na sociedade Bororo, estudada por Viertler
(1979: 20-29), em que a autora ressalta a importância do ciclo de vida do indivíduo; as
idéias e representações sobre o corpo, a alma, práticas mágico-religiosas associadas à saúde,
ao crescimento, doença e morte. Além disso, aponta para a importância da cerimônia de
nominação, na qual a criança só tem vida após receber seu nome, constituindo sua
personalidade social.
Para os Guarani, assim como os Yawalapiti, o corpo humano é constituído na
gestação, quando a criança recebe cuidados especiais por meio de dietas alimentares da mãe,
e algumas restrições dos pais de manusear objetos cortantes, bem como de fabricar
bichinhos de madeira – artesanatopico entre os guarani.
A explicação dada pelos Guarani à imperfeições, doenças e outras enfermidades
presentes nas crianças, é de que os cuidados na gestação não foram adequados, ou o
resguardo não foi de acordo com o período necessário.
Além da gestação, há uma série de cuidados que devem ser tomados após o
nascimento, como por exemplo, a necessidade do pai da criança em não se ausentar, não
viajar ou sair da aldeia durante os primeiros meses de vida da criança.
Este aspecto foi salientado por Helene Clastres (1978), que falava da importância da
presença do pai, e de como a alma da criança guarani está muito ligada a ele após o
nascimento e, por este motivo, quando o pai se ausentava, era necessária a marcação do
caminho para que o filho não se perdesse.
Mello (2005), tamm fala da importância dos cuidados com a criança guarani após
o parto, que possui o nhe’è - sua alma, ligada ao plano espiritual, e o ligado ao corpo,
sendo a parte da alma ligada ao plano terreno, “a carne, ao sangue”. Segundo a autora, se o
pai for à cidade, deve cuspir no chão em cada esquina que dobrar e andar ao máximo em
linha reta para que o espírito da criança não se perca.
Em consonância, Limulja (2007), descreve os mesmos cuidados com a “alminha” da
criança guarani, e da importância dos cuidados do pai: “...quando o pai vai passar por uma
encruzilhada, deve deixar um raminho pelo caminho que escolher e falar em voz alta para
onde vai, para que a“alminha” siga o mesmo caminho e não se perca do pai” (id.ib.:64).
Percebemos a importância dos cuidados dos pais para que a criança nasça saudável e,
além disso, após o nascimento, que sua alma se adapte ao novo “lar terreno”.
Em minha pesquisa de campo, soube de uma criança que nasceu na aldeia com lábio
leporino. A explicação dada é de que o acontecimento foi conseqüência de seu pai ter
manuseado objetos cortantes, bem como pela fabricação de bichinhos de madeira que
possuem bico. De acordo com depoimentos de alguns Guarani, além da falta de cuidado do
pai, a mãe da criança matou uma galinha, cortando seu bico quando limpava a cabeça do
animal, estes fatos que determinaram a imperfeição da criança.
Por estes motivos, após o parto, a mulher deve permanecer em resguardo pelo menos
por dois meses sem relações sexuais, não deve preparar os alimentos utilizando objetos
cortantes, não deve comer carne, e além disso é importante a presença do marido pelo
menos nos primeiros meses após o parto. Neste período, a criança recebe toda atenção dos
pais, e quando começa a se expressar e dominar minimamente a linguagem,- ayú - a palavra,
é realizada a cerimônia de nominação, nhemongaraí – tornar-se sagrado -, quando receberá
seu nome guarani. O nome da criança é uma parte muito importante na constituição da
pessoa guarani
51
.
A criança só está completa quando domina a comunicação humana e começa a se
expressar. Assim, demonstrando suas características, poderá receber seu nome,
que será dado pelo opyguá (xamã), pois um novo ser humano só existe porque os
deuses falaram do espírito que vem a essa terra (Mello, 2005).
O nome - para os Guarani -, assim como para os Bororo, é uma parte muito
importante de seu portador, sendo inseparável da pessoa. O guarani não se chama fulano de
tal, ele é este nome.
52
O nome significa não apenas o modo pelo qual a pessoa é chamada,
mas representa as características da personalidade, do espírito, e predisposições rituais.
51
Fato semelhante relacionado à importância do nome ocorre na sociedade Bororo estudada por Viertler
(1979).
52
Nimuendajú, 1987.
O sistema de nominação guarani - diferentemente dos povos Jê que se referem a
papéis sociais, a modos da organização da sociedade, ao parentesco social – demonstram
relações de parentesco com seres humanos e seres de outros mundos.
Nimuendajú (1987), conta em seu livro: Lendas da criação e destruição do mundo
Apapocuva Guarani, que eles tinham uma espécie de menosprezo pelos nomes em
português, pois enquanto o cacique tem toda um inspiração sobrenatural para receber dos
espíritos o nome guarani a ser dado à criança,os padres perguntavam aos pais guarani qual o
nome que queriam dar ao seu filho. Ou seja, na perspectiva dos Guarani, para que serviria o
padre se não é capaz de dar o nome para seus filhos, assim como os pajés. Por este motivo,
guardavam os nomes Guarani como algo muito importante, que não poderia ser revelado a
qualquer estranho.
Atualmente utilizam o nome em português para se comunicar com a sociedade
envolvente, dirigirem-se à cidade, na venda de artesanato, mas na aldeia utilizam os nomes
Guarani. Quando um Juruá pergunta o nome de um guarani, ele sempre responde o nome
português, mas quando um guarani pergunta para o outro ele responde o nome guarani.
Nas aldeias pesquisadas percebi que além de os nomes terem todos significados e
símbolos próprios, existem nomes utilizados para as meninas: Djachuka, Pará (referente ao
mar), Kretchiu keretchu,, Takuá, e nomes utilizados para os meninos: karaí (se refere ao
sexo masculino, pessoa mais tranquila e também é utilizado para referir-se a uma liderança
espiritual, pessoa forte espiritualmente), Wherá mirim, Wherá tupã (meninos mais agitados,
a tradução de wherá seria brilho do relâmpago), Djekupé
53
. Ambos os nomes masculinos ou
karaí ou wherá são acompanhados de um nome posterior como exemplifiquei
53
Mello, 2005, faz uma lista completa dos nomes guarani.
anteriormente. Djeguaka se refere aos adornados, homens presenteados com adornos divinos
de penas na cabeça e Djachuka
54
seriam as adornadas.
nomes queo mais utilizados para meninas e nomes para meninos, dependem
principalmente do acyiguá – alma animal - de cada um. Acreditava-se entre os Apapocúva
guarani, que a alma da pessoa quando nasce é formada pelo ayvucué - que são as
disposições boas e calmas da pessoa - ; e o acyiguá - que depende das características do
animal que contribui para formação da alma humana.
Nas aldeias sempre alertavam que era necessário que Nhanderu – nosso pai - falasse
para o Opyguá – pajé da aldeia - qual seria o espírito da criança para que ela pudesse receber
seu nome. De acordo com os Guarani, o Opyguá pode receber o nome tanto através dos
sonhos como durante a cerimônia de reza.
Além disso, o nome traduz características da pessoa originárias de planos celestes,
nomes enviados pelos deuses que serão atribuídos ao indivíduo levando em conta sua
personalidade, assim, para entendermos o pensamento Tupi-guarani “devemos nos voltar
para a categoria da Pessoa, pois ali se divisará sua concepção de sociedadee se
contemplará um mundo“individualista” sem indivíduos, e uma vontade coletiva sem
sociedade” (Viveiros de Castro, 1986: 127).
Visto que o nome para os Guarani aponta para características importantes sobre sua
concepção de mundo, aponto a relevância da noção de pessoa para a compreensão desta
sociedade indígena, ressaltando a contribuição de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro,
(1979) na qual apontam que:
O corpo físico não é a totalidade da pessoa, a dialética entre corpo e nome parecem indicar
que a pessoa, nas sociedades indígenas, se define em uma pluralidade de níveis
54
Clastres, 1978.
estruturados internamente (id.ib: 13).
55
Schaden (1974) fala que esta crença na constituição da alma entre os guarani, pode
nos remeter a aspectos relevantes relacionados à educação. Para o autor, o fato de que a
alma é para os Guarani algo inato, e que seu carátero pode ser melhorado – pois depende
da predisposição do animal guia da criança – aponta como conseqüência disso a educação
livre, independente e sem repressão.
Todavia, existe uma intencionalidade na constituição do corpo - percebendo-o tanto
como corpo espiritual e físico - , tanto pelos cuidados corporais, quanto pelos processos de
fabricação do corpo, pois “é necessário que o corpo individual seja o ponto de encontro do
ethos tribal.” Clastres (1978).
“A imperfeição dos corpos e das almas impedem os Guarani de atingirem a terra
sem mal”. Este pensamento guarani nos permite compreender as restrições alimentares, as
danças - “cujo ritmo precisa aliviar o corpo das cargas terrestres” - ; as preces que
solicitam que os deuses pronunciem as belas palavras “que ensinam os homens às normas
de sua futura existência” (id.ib.:115).
O trabalho de Hélene Clastres (1978) levanta a importância do Arandu Porã,
traduzido pelos guarani como “belo saber”, que seria inspirado na palavra dos deuses que
revelam meios de atingir a perfeão, encantamento aguyje - , necessária para chegar à
terra sem mal. Deste modo, a autora busca demonstrar o caráter religioso da educação, e da
aquisição de saberes entre os Guarani.
Neste sentido, a educação indígena tem regras e etapas importantes na fabricação do
corpo, visto que a relação da pessoa guarani com a comunidade determina as etapas de
55
No capítulo seguinte apontarei as relações entre a noção de pessoa guarani e sua relação com o tempo.
constituição deste corpo, que acontece em todos os âmbitos da vida social: nas danças, nos
cantos, nas rezas, na casa dos mais velhos, nos rituais de iniciação.
De acordo com depoimentos da professora guarani Eunice Antunes, existe o tempo
do corpo das meninas, que é diferente do tempo do corpo dos meninos.
As meninas têm o período do djatxy, quando atingem a primeira menstruação. Estes
processos corporais são próprios das meninas, e segundo Eunice deveriam ser ensinados em
momentos diferentes, com professoras Guarani falando com as meninas e professores
guarani falando com os meninos.
Quando a menina atinge o período menstrual, deve-se fazer um resguardo, ficar mais
em casa, fazer silêncio; corta-se o cabelo bem curto; não é recomendável que ela cozinhe ou
prepare qualquer tipo de alimentos; não deve mexer com plantas pois elas murcharão; não
deve ter relações sexuais; o pode fumar o petyng de outras pessoas.
Se por acaso ela cozinhar, a comida “vira água” – fica sem gosto, nada que tem vida
deve ser tocado pela moça. Estas restrições devem acontecer até a terceira menstruação.
A explicação para todos estes cuidados, é devido ao fato de que a mulher é
influenciada pela lua – djatxi - , quando estão menstruadas, significa estão na lua”, ou sob
sua influência. Isso faz com que se forme um campo energético muito forte em torno da
menina, uma redoma de fogo, que murcha tudo e todos ao redor, se os resguardos forem
bem feitos durante as três menstruações, a menina adquirirá um poder espiritual imenso.
Neste período, enquanto está no resguardo, a menina receberá visita das mulheres mais
velhas que lhe explicarão todas as coisas da vida de mulher.
Já os meninos possuem um outro tempo corporal, quando vai ficando adulto sofre a
mudança da voz, sendo que para essa mudança ocorrer da melhor maneira, tornando-se um
homem resistente e forte, ele tem de fazer vários serviços diários: ir para roça, lidar com
enxada, tem que levantar antes do sol nascer, trabalhar.
Por isso, ficar na escola neste período não é desevel para este menino, pois ele fica
parado, sentado, e isso não é recomendado para este momento em que ele deve trabalhar.
Tampouco para a menina, pois se percebe que neste período é necessário que ela fique em
casa, em silêncio.
Com estes exemplos, é vivel que existem formas de ensino-aprendizagem entre os
guarani que devem ser levados em conta ao se pensar em uma educação escolar, pois muitas
das incompreensões e falhas de comunicação entre os professores não-índios e seus alunos
podem ser provenientes destes aspectos tácitos da cultura que só um olhar mais aprofundado
pode dar conta.
É neste sentido que os corpos guarani falam e demonstram características próprias
que nos remetem a processos de fabricação corporal, a maneiras particulares de produzir e
transmitir conhecimentos pelo corpo expresso através de sua relação com o tempo.
III.3 O Corpo na Escola
Em meados do século XX Foucault traz o conceito de docilidade do corpo referindo-
se aos processos de disciplinamento do corpo no séc XVIII - período marcado pela
revolução industrial - , em que este corpo seria algo manipulável, que poderia ser
transformado e aperfeiçoado.
O corpo na história sempre foi construído socialmente, mas a diferença deste período
era que havia uma necessidade produtiva de forjar um corpo manipulável em seus mínimos
detalhes. A disciplina fabricava corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. Segundo
Foucault, na sociedade ocidental, o corpo é domesticado pela escola e moldado para tornar-
se um corpo dócil como aponta em Vigiar e Punir (1975)
56
. Em sua análise,
o corpo é treinado e construído dentro de uma perspectiva envolvendo o tempo e
o espaço que o ser inscritos no corpo, a formação de uma economia simbólica
dos gestos sempre com objetivo do máximo controle e correta disciplina dos usos
dos corpos individuais e seus reflexos em sociedade.
De acordo com o autor, as instituições almejam a fabricação de um corpo altamente
produtivo e disciplinado. O modelo de educação escolar ocidental, segundo Foucault, é
estruturado de modo a tornar este corpo coerente com as regras morais e institucionais da
sociedade. Entretanto, existem outras perspectivas posteriormente, do próprio Foucault, que
arriscaria a falar em “sujeitos do desejo” (Foucault, 1987: 5 apud Hall, 2005), colocando em
pauta a questão da subjetividade.
Alguns autores (Mcnay,1994; Butler, 1993; apud Hall, 2005), criticam Foucault por
conduzir a uma superestimação da eficácia do poder disciplinar e uma compreensão
empobrecida do indivíduo, o que impede que se possam explicar as experiências que
escapam ao terreno do corpo dócil. De acordo com Hall (2005), o problema deste trabalho
de Foucault (1975), seria de que não uma teorização sobre os processos psíquicos ou
processos interiores que podem fazer com que estas interpelações automáticas sejam
produzidas ou, de uma forma mais importante, que podem fazer com que elas fracassem,
encontrem resistência ou sejam negociadas.
Em alguns trabalhos posteriores Foucault tacitamente reconhece que não é suficiente
que a Lei convoque, discipline, produza e regule, mas que deve haver também a
56
Apesar de escrever no século XX, Foucault se remete as instituições do séc XVIII.
correspondente produção de uma resposta – e portanto, a capacidade e o aparato da
subjetividade – por parte do sujeito.
...as práticas pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles
próprios, a se decifrar; a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo,
estabelecendo de si para consigo uma certa relação que lhes permite descobrir, no
desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou decaído. Em suma, a idéia era a
de pesquisar, nessa genealogia, de que maneira os indivíduos foram levados a
exercer, sobre eles mesmos e sobre os outros, uma hermenêutica do desejo
(Foucault, 1987:5 Apud Hall, 2005: 124).
Nesse trecho é possível perceber uma mudança no seu trabalho, diferentemente de Vigiar e
Punir (1975), em O Uso dos Prazeres (1987), aparece o sujeito, a “relação com o eu”, e a
constituição e reconhecimento de “si mesmo” enquanto sujeito. De acordo com Hall (2005):
Trata-se de um avanço importante, uma vez que, sem esquecer a existência da
força disciplinar, Foucalt acena, pela primeira vez em sua grande obra, à
existência de alguma paisagem interior do sujeito, de alguns mecanismos
interiores de assentimento à regra, o que livra essa teorização do “behaviorismo
e do objetivismo que ameaçam certas partes do Vigiar e Punir (id. ib.: 125).
Portanto, fez-se importante demonstrar que Foucault, - apesar da relevância de seu
trabalho - não fala da resistência frente às instituições que, no caso da Educação Indígena
Guarani é muito recorrente.
O disciplinamento característico do modelo escolar ocidental esbarra no sujeito
guarani, demonstrando que educação é também dança, canto, brincadeira; aprende-se junto
com os irmãos menores, as mães transitando pelo espaço escolar e na sala de aula.
Nas aldeias Guarani, este corpo é fabricado a partir de vários processos que
demonstram não apenas a cultura inscrita nos corpos, mas também processos que levam em
conta a agência do sujeito. Por mais que a escola implementada nas aldeias se traduza em
um modelo escolar Juruá - com regras e burocracias - , os Guarani são sujeitos ativos neste
processo que não aceitam passivamente as instituições de fora nem seus processos
disciplinadores. Estão a todo tempo re-inventando e re-significando os valores externos.
Exemplo disso ocorre em Morro dos Cavalos em que o professor Adão Antunes
descreve que se os alunos cantam em guarani na sala de aula, eu canto junto com eles”.
Além disso, atualmente, driblando todas as regras institucionais, com a percepção de que os
guarani possuem uma outra relação com o tempo, vivenciando-o de uma outra forma, uma
transformação na escola foi possível: a diretora da escola Itaty – Mara - juntamente com os
professores guarani, percebendo a incoerência de fazê-los acordar tão cedo, passou o horário
das aulas para 9:00 da manhã, e o primeiro ato é tomar café da manhã, nada de esperar até as
10:30, como era o costume anterior. Além disso, todas as crianças estudarão no mesmo
horário, não haverá turma da manhã e turma da tarde, serão divididas em 3 salas: primeira e
segunda série, terceira e quarta série, e quinta série em outra sala, o EJA à tarde. Após o café
da manhã as crianças entram para aula, saindo ao meio-dia para o almoço na escola, quando
todos almoçam juntos. Retornam as 13:30 para aula e encerram-se os trabalhos as 15:00.
A partir dos exemplos é possível perceber que a escola, para os guarani não possui o
papel incisivo de disciplinamento do corpo, mas também de afirmação de identidades, de
trocas de saberes e conhecimentos. Neste sentido, aponto novamente a contribuição de
Tassinari (2001) para pensar a escola como uma fronteira,um local de trânsito, articulão
e troca de conhecimentos, assim como espaços de incompreensões e de redefinições
identitárias dos grupos envolvidos neste processo, índios e não-índios.” A escola seria,
portanto, “um espaço de encontro entre dois mundos, duas formas de saber, ou, ainda,
múltiplas formas de conceber e pensar o mundo”.
De fato existem zonas interditas nestas trocas de saberes, e o corpo ainda é uma
destas zonas, pois demonstra características próprias que passam muitas vezes despercebidas
pelos professores não-índios.
Pouco tempo atrás, as populações Guarani não tinham a escrita como foco central em
sua cultura, a oralidade é o meio pelo qual a cultura é transmitida de geração para geração
57
.
A oralidade, associada a gestualidade, sempre foi o meio pelo qual os guarani repassaram
seus conhecimentos. Assim é feito ainda na atualidade, mas a escrita promoveu alguns
deslocamentos nestes processos de ensino-aprendizagem bem como em suas técnicas
corporais.
Na aldeia Morro dos Cavalos, o episódio em que a professora não-india, ao chamar
atenção das crianças para visualizar o quadro negro, percebeu que os afugentava da sala de
aula, pode ser associado com a característica atribuída pelos Guarani ao processo de
aquisição de conhecimento.
A experiência dos guarani é proveniente de uma cultura centralmente oral, seu lócus
de conhecimento é a audição, ouvir bem significa compreender bem. A palavra para
designar o ouvir em guarani é endu, ver é etcha, porém, a palavra endu também significa
sentir, entender, e endukuaa, monhendu também é utilizada para referir-se ao ato de tocar
alguns instrumentos, ou fazer ouvir/sentir.
Fato similar foi constatado por Seeger,(1975) entre os Suyá, em que a palavra Su
traduzida para o português como ouvir é Ku-mba, e seu significado na língua Syuá é ouvir-
compreender, saber. Acredita-se que o ouvido seja o receptor dos códigos sociais ao invés
57
Falo em oralidade em contraposição à escrita, faz-se necessário explicitar que a cultura guarani é repassada
oralmente, mas também pelo corpo, pelo entoar dos cantos, nas danças.
da mente ou do cérebro. A visão é um atributo negativo, atribuída aos feiticeiros, pois o
eles quem tudo vêem”.
Os Kamaiurá referenciados nos estudos de etnomusicologia de Menezes Bastos
(1999), possuem uma escuta do mundo ao ins de uma visão de mundo. São predispostos
mais aos sentidos da audição, do que a visão, que é pouco exaltada. Possuem um grande
controle da audição sendo utilizada em suas noções do ambiente. Não apenas os humanos,
mas estas características se expandem aos espíritos e conversas com os animais. Não apenas
ouvir e produzir sons é importante para os Kamaiurá, mas promover continuamente o
desenvolvimento destas funções. Ouvir é sinônimo de compreenderanup. Um dos rituais
Kamaiurá descreve homens tocadores de flautas sagradas e as mulheres – que não devem
tocar flautas – devem ouvir os sons (olhar é proibido), e buscar identificar através do som os
respectivos homens.
Em contrapartida, entre os Kaxinawá, uma pessoa sábia é aquela que “conhece com
todo o corpo”, correspondendo diversos saberes a suas diversas partes. O conhecimento
estaria assim no fígado, no coração, nas mãos. Todavia, salientam que estes conhecimentos
corporais são possíveis pela ingestão de substâncias adequadas e excluindo outras: “as
dietas e os ordálios a que o corpo é submetido o fazem assimilar poderes (por meio da
ferroada de vespas e formigas), e o fazem mais leve, limpando-o” (Kesinger, 1995 apud
Calávia, Naveira, Perez Gil, 2003).
Estas descrições vem ao encontro de outros processos de aquisição de conhecimento
entre os guarani, nos quais percebo processos muito particulares de ensino-aprendizagem.
Por outro lado, é possível perceber que estes processos são dinâmicos, muitos deles podem
ser deslocados, -como é o caso do ouvir para o olhar – mas outros não.
Em uma conversa com Artur Benites - txeramõi e ex-cacique de Morro dos Cavalos
- , foi possível perceber a dinâmica deste processo de transmissão de conhecimento quando
ele diz que tem vontade de construir uma aldeia como era antigamente,do jeito tradicional,
nem que seja para os meus filhos verem, para os meus netos, pois hoje, quando eu conto,
ninguém acredita, eles tem que ver...
São dois exemplos – o da professorao-india e o descrito acima – que ocorreram
na mesma aldeia, um deles em 2005, e outro recentemente, em outubro de 2007 em uma
conversa com o ex-cacique. Em apenas dois anos é possível observar um deslocamento
neste processo de aquisição de conhecimento, o ouvir bem, desloca-se para ver bem, mas
mesmo assim ainda existem aspectos corporais que são re-significados e re-elaborados, mas
aindao podem ser deslocados, como o ritmo do corpo, que descreverei no próximo
catulo.
CAPÍTULO IV: ARA REKO: TEMPORALIDADE GUARANI
Faz-se necessário nos direcionarmos as pesquisas anteriores referentes aos Tupi-
guarani para que possamos entender a atualidade desta populão.
Viveiros de Castro (1986) descreve em seu livro sobre os Araweté, a busca do vir-à-
ser que existe entre os Tupi-guarani. De acordo com o autor, o princípio fundador da
sociedade Tupi-guarani reside na heteronomia, no devir, a busca da identidade está fora da
sociedade, está no outro, esta no processo de vir-à-ser, na busca por uma realização que é
sempre um processo (id. ib.: 120).
Viveiros de Castro inicia sua argumentação com um questionamento: Como é
possível que as sociedades Tupi-guarani - que possuem um histórico de dispersão tão
anterior às sociedades Jê - , apresentam diferenças dialetais tão ínfimas em comparação com
os Jê, e ainda, como a sociedade Tupi apresenta uma cosmologia tão semelhante entre os
vários sub-grupos em meio a uma organização social tão variável?
Para responder estes questionamentos, ele faz uma comparação com os Jê - onde a
morfologia social da sociedade é explícita apresentando estruturas definidas- e, além disso,
entre os Jê, a nominação remete a papéis sociais, ao pertencimento a um determinado clã.
Em contrapartida, na sociedade Tupi, a morfologia social é muito variável, existem
várias formas diferentes de organização social para uma organização cosmológica muito
semelhante. O que se apresenta de maneira implícita que apenas com um olhar mais intenso
percebemos, é que a noção de pessoa entre os Tupi-guarani nos remete a discursos
cosmológicos, temas ticos e religiosos.
Entre os Tupi-guarani nota-se a ausência de fronteiras demarcadas como a sociedade
Jê, há uma ambivalência onde a sociedade é uma sociedade entre. Este entre é explicado por
Viveiros de Castro como nem natureza nem cultura, mas uma sociedade entre a divindade e
a animalidade . A ambivalência é constitutiva do ser e da noção de pessoa.
Enquanto a pessoa Jê se realiza se situando na sociedade, a pessoa guarani se realiza
se situando entre o pólo animal e o pólo divino, o foco da sociedade Tupi-guarani não está
na sociedade - papéis sócias - como entre os Jê, mas na noção de pessoa que se realiza no
plano divino. Desse modo, poderíamos dizer que a pessoa guarani se constituí enquanto eu e
o outro, a alteridade é parte constitutiva do ser guarani, que a partir do outro eu me torno o
que sou. Este processo guarani de construção da pessoa é descrito por Ciccarone
(2001), apud Darella, quando fala das caminhadas (oguata) guarani: “o movimento é
condição ontológica do modo de ser e pensar Mbyá: movimento simbolizado na figura da
caminhada, como um ser em construção, uma apreensão constante do vir-à-ser, um passado-
presente em direção ao futuro” .
A partir deste entendimento de que a sociedade Tupi-Guarani tem como foco a noção
de pessoa que se realiza no vir-à-ser, é possível chegar a um ponto de reflexão interessante:
para os guarani, mais do que ser no mundo, é importante estar no mundo. Este estado de
estar no mundo que permite a busca da realização que é sempre um processo, um estado de
impermanência, em que nada é estático, mas tudo se transforma. A resistência cultural só é
possível através deste constante movimento de tornar-se outro. Deste modo, é possível
perceber que as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela.
Tento levá-los neste momento a um caminho que pode explicar ou, pelo menos,
tentar explicar um pouco do pensamento guarani sobre este estado de impermanência e sua
relação com o tempo.
Notas preliminares sobre o Tempo
Num século em que o tempo vai se enchendo de ação eficaz, quando a história se
vai acelerando vertiginosamente, parece oportuno apreender a legitimidade dos
diversos ritmos da vida, do pensamento e da ação, pois tal diversidade só
constitui um obstáculo à compreensão quando não se percebe sua razão de ser. É
urgente, no entanto, esta compreensão, pois a história, ao se fazer sempre mais
englobante, transporta em seu dinamismo durações diferentemente vividas,
chamando-as a uma inevitável sincronização (P.Ricoeur, 1975).
IV.1 O Tempo e as Culturas
“Nem a água clepsidra
nem a falta da areia na ampulheta
tiram o tempo ao tempo.
(Fernando Pessoa)
Mas afinal, o que é o tempo? É justamente a partir desta indagação, que se busca
perceber a importância da tipologia das experiências do tempo vivido por diferentes
culturas, pois o contato com temporalidades diferentes pode revelar uma outra forma de
consciência do tempo, em que ele é vivenciado de maneira inconsciente e consciente,
produzindo diferentes tipos de relações com a vida, com a morte, com o cosmos e entre as
sociedades (Ricouer, 1975).
As concepções de tempo nas diversas sociedades nos permitem entender a maneira
como um povo sente as condições e exigências da vida, transparecendo, dessa forma, em sua
linguagem e nas suas formas de comportamento. Ricoeur (1975) aponta que para se fazer
uma análise do tempo em uma cultura, poderíamos recorrer a alguns aspectos como a
linguagem/gramática, bem como aos “cuidados espirituais de superação do tempo”, como
acontece na sociedade Hindu, por exemplo (id.ib.: 18).
Na Índia, algumas filosofias Tântricas descrevem a necessidade de superação das
concepções de tempo linear. O passado, por ser passado, não existe mais. O futuro, por estar
por vir, não existe ainda! Quanto ao presente, se ele um ano, um dia, um segundo, um
milionésimo de segundo? Para esta filosofia, o tempo é um eterno agora, que deve ser
vivenciado com toda sua intensidade.
Entre os Guarani, a cronologia do tempo reflete na sua linguagem e nas suas formas
de agir. A lógica de concepção do tempo é perceptível nas palavras e em toda a vida social.
A maneira de saborear o tempo, a contemplação e apreciação das qualidades do tempo tal
como tomar um chimarrão em meio aos familiares, contar histórias à beira do fogo de chão,
fumar o petynguá. O tempo vem, vai, passa e volta, juntamente com os hábitos cotidianos
que lheso próprios.
Desse modo, o tempo é tratado aqui, não como uma percepção mensurável, linear,
mas como um conceito elaborado cultural e historicamente. A partir daí, busca-se delinear a
relação dos guarani com o tempo, como o tempo é vivenciado por esta cultura, bem como
perceber que essa experiência com o tempo demonstra características peculiares em vários
âmbitos da vida social e cosmológica.
Em relação à cosmologia, as relações com o tempo podem nos remeter a aspectos
relevantes: os guarani não possuem como pressuposto a sua linearidade como determinante
da vida e morte, ou seja, o tempo linear que se inicia com o nascimento e termina com a
morte; para eles, é possível transcender a vida sem passar pela morte.
Na cosmologia Guarani, quando uma pessoa segue a vida de acordo com os preceitos
da sociedade, participa das rezas, realiza as restrições alimentares para uma vida saudável,
pode transcender para uma terra sem mal, sem passar pela morte. Essa transcendência
acontece de modo que o corpo físico, de tão leve e tão puro, simplesmente se transforma em
energia que se dissipa e vai de encontro com um local melhor para se viver.
Apoiando-se em dados de Cadogan, Schaden e Nimuendajú, Helene Clastres (1978)
desenvolve hipóteses etnológicas sobre a concepção guarani da pessoa, da sociedade e da
natureza, proporcionando um esboço da visão guarani de ser-humano. Essa concepção traz à
tona a relação entre animalidade e divindade, assim como explora a iia da originalidade
dos Tupi-Guarani, onde seria possível superar a condição humana e tornar-se divino sem
passar pela morte. Esta condição de existência entre os Guarani nos leva a uma outra
concepção de tempo.
Para que essa transição seja realizada, faz-se necessário viver de acordo com o
sistema guarani, pois eles sabem que a passagem por este plano é temporária, e sua
existência em um plano divino é o seu objetivo final.
Uma palavra que aparece nos mitos da criação do universo guarani (Darella, 2004) é
oguerojera que “revela a concepção de tempo dos Guarani, que evoca movimento,
expansão, e um processo contínuo de criação/evolução/destruição das formas.” É o “modo
guarani de conceber o universo, pois ele sintetiza tanto a errância de seus deslocamentos
territoriais, como o esforçostico individual e coletivo em busca da madurez acabada
(aguyje), quanto a elaboração de uma completa metafísica que constitui o seu arandu porã
(o belo saber, o conhecimento)”(Borges, 1998 Apud Darella, 2004).
Em relação à linguagem, a gramática - como forma de compreender alguns aspectos
relacionados ao tempo nas culturas - entre os guarani, a palavra Ara Reko, em guarani
refere-se à temporalidade, memória, vida, sabedoria. Ara é a categoria utilizada para definir
espaço/tempo para os guarani.
O tempo do milho, quando está se referindo ao tempo de vida do milho - desde o
plantio até a colheita - pode ser descrito como avatxiete’i reko, mas, quando se refere à
época de plantio, ou mês, é descrito como avatxi nhanhotya ara - tempo de plantar milho.
Estas duas palavras podem ser utilizadas para se referir à temporalidade. Mas as palavras
têm significados mais amplos como é possível perceber, por exemplo, na frase o céu da
aldeia” - Ara’í Reko Tekoa -, as palavras Ara e Reko aparecem juntas para designar o céu, o
conjunto das estrelas, o tempo das luas. Reko e teko também designam o modo de ser e viver
de acordo com o sistema guarani
58
.
58
Ver: Barros, M. e Castro, P. “Ara Reko: Memória e temporalidade Guarani”, 2005.
Além das palavras que auxiliam na compreensão da dimensão do tempo entre os
guarani, o próprio pensar sobre o tempo é diferente. Na cultura ocidental, quanto mais
pensamos no tempo, nas horas, mais elas custam a passar; entre os guarani, temos que
simplesmente esquecer o tempo, pois muitas vezes ele parece não existir, parece mais “uma
sucessão de eternidades...”, aliás, é um outro tempo, não é baseado nos ponteiros do relógio,
mas creio que na luz do dia (Eliade, 1999).
IV.2 Orerete Reko: O Tempo do Corpo e o Tempo no Corpo
“O sistema humano não produziu um sistema de categoria
universal no qual pudesse inserir um vivido temporal e histórico,
também universalizável” (Ricouer, 1975: 28).
O Tempo do Corpo
O sol raiou, é hora de espreguiçar e se levantar, mas sem pressa...lava-se o rosto,
veste-se roupa, senta-se à beira do fogo à espera do café que logo estará pronto. A fumaça
do fogo de chão invade a casa e muitas vezes deixa os olhos marejados... o café está pronto,
e a água do chimarrão já está no fogo, e todos ao redor da fogueira iniciam a conversa
lentamente, para que o corpo acorde sem pressa...
Na aldeia de Mbiguaçu, Alcindo Wherá Tupã e Rosa Poty Dvão para roça,
tentando dar exemplo aos mais novos da importância de plantar aquilo que é necessário para
a sobrevivência. Antes do meio-dia eles estão de volta, dão risadas, mas estão um pouco
cansados e sentam novamente para tomar o chimarrão e comer o mbodjapé - um bolinho
feito à base de farinha de milho e que geralmente acompanha todas as comidas, feijão, arroz
e carne.
Nos finais de semana, quando não há aula, o tempo sai realmente do ar e o ritmo é
outro: conversas, rodas de chimarrão, o preparo da comida, os meninos indo pegar lenha,
cortando taquara...as meninas cuidando dos bebês menores, dando risadas com as primeiras
palavras delas...a casa fica cheia de crianças e toda a família extensa de Alcindo e Rosa se
reúne.
Estes exemplos tornam-se necessários para demonstrar que entre os Guarani existe
trabalho, assim como lazer. A roça é muito importante e deve ser cultivada, assim como a
corte da taquara para manutenção das casas, o cuidado dos bebês pelas irmãs e irmãos mais
velhos, a fabricação de artesanatos e cestarias. Mas, todos estes momentos não são
delimitados pelos ponteiros do relógio, eles acontecem naturalmente por meio de cuidados
para que o corpo acorde lentamente, realizando todos os processos necessários para o seu
bem-estar. Nada é corrido e apressado, não há hora marcada com as obrigações, elas apenas
acontecem e vão sendo realizadas no seu ritmo, no seu tempo.
Se Wherá Tupã perceber que o é um bom dia para ir a roça, ele simplesmente não
vai. Um sonho ruim pode determinar o cancelamento de uma viagem. Os guarani dão muita
importância aos sonhos e às percepções sobre o que deve ou não ser feito, e isso é o que
determina o tempo, os presságios, as vontades do corpo.
Os sonhos possuem um papel importante na cosmologia guarani. Nimuendaju (1987)
já descrevia cenas em que os sonhos se traduziam em acontecimentos reais que poderiam
mudar o rumo de suas vidas. Garlet (1997)
59
, também fala da importância dos sonhos entre
os guarani do Rio Grande do Sul, em que eles revelam acontecimentos e auxiliam na busca
de um novo teko’a,o teko’a ideal é o teko’a mostrado a Nhanderu nos sonhos” (Garlet,
1997 apud Oliveira, V.L., 2004).
59
Apud Oliveira, V.L., 2004.
Entre as populações indígenas percebemos outras heranças cosmológicas nas quais
as relações de e com o tempo são bem diferente da relação que a sociedade ocidental possui
com o tempo. Este aspecto é descrito em outras realidades indígenas, como por exemplo,
entre os Maxacali.
De acordo com Álvares (1999), os Maxacali não concebem o tempo como nós, sendo
que existem apenas alguns termos que definem as marcações de tempo: um para “agora” ou
hoje; e outro para “antes” e “depois”, ontem ou amanhã. O tempo é concebido de uma forma
concêntrica e circular, centrado no “agora”. Segundo a autora, a escola como o espaço da
datação, seria responsável, portanto, por inserir uma nova ótica linear e progressiva do
tempo com noções de passado, presente e futuro.
Em consonância com os Maxacali, os Guarani não concebem o tempo linear e
irreversível, e também percebem o tempo centrado no “agora”, vivenciando e estando com o
corpo presente no presente.
Entre os Guarani, o calendário gira em direção anti-horária, isto é, no sentido
contrário aos ponteiros do relógio. Inicia-se no Ano Novo, depois primavera, ara pyau -
época de renovação - , depois época da consagração, limpeza com as chuvas e do plantio.
O sentido do calendário, que vai de leste para oeste é explicado pela posição de
Nhamandu, o deus do sol que os guia. Em oposição à crença ocidental de que a terra gira
em torno do sol, na cosmologia guarani, o sol gira em torno da terra no sentido leste-oeste, e
é a partir deste movimento que o calenrio e o tempo são contados.
Além disso, enquanto nós ocidentais falamos em décadas quando desejamos nos
referir ao passado, os Guarani referem-se aos antepassados que tem um papel singular na
constituição de um tempo histórico.
Esta dimensão do tempo nos leva novamente ao corpo, demonstrando que as
concepções Guarani de tempo demonstram uma maneira singular de vivenciá-lo.
Um exemplo percebido durante minha pesquisa de campo ocorreu em uma tarde em
uma reunião com os médicos da FUNASA. A reunião foi enriquecida com a presença de
Alcindo Wherá Tupã Moreira, que explicava para todos a origem da vida, do meio
ambiente, sugerindo o desenho para a camiseta que faria parte do teatro sobre o Meio
Ambiente. Cada aldeia escolheu um problema de saúde: Morro dos Cavalos optou pelo
desenvolvimento do plantio que era escasso; Marangatu pelo problema referente ao
alcoolismo; e Mbiguaçu o problema levantado foi sobre o lixo.
Para descrever o problema do lixo na comunidade, os alunos com orientação dos
professores decidiram apresentar o teatro sobre o Meio Ambiente no dia 29 de junho de
2007. Nesta tarde, o Txeramoi explicava a origem da vida e dos animais - Ayvu Rapytá –
tema central do Teatro.
Nessa reuno, o que me chamou a atenção foram os corpos das pessoas e a relação
corporal entre os não-índios e indígenas, que ao meu olhar, demonstrava uma grande
diferença nos ritmos corporais. Os Guarani possuem um tempo corporal diferente dos não-
indígenas, e isso era muito visível, comparando-se, por exemplo, quando os médicos da
Funasa estavam falando com AlcindoWherá Tupã: Alcindo falava baixo, parava, respirava,
pensava, olhava para todos em silêncio...depois de um tempo falava algo. Já os médicos
falavam tão rápido que pareciam nem respirar. Seus corpos eram agitados e inquietos,
drasticamente diferentes de Alcindo e de seu filho. O silêncio é algo negativo entre os não-
indígenas, provoca desconforto e ansiedade, faz transparecer um estado atemporal, em que
o tempo parece não passar.
É possível perceber que a relação que os Guarani possuem com o tempo, como
direcionam sua vivência, seus processos próprios de produzir e transmitir conhecimentos,
nos levam ao corpo como lócus central destes processos. É por meio do corpo que se faz
possível observar a temporalidade guarani que se expressa duplamente: no tempo vivido que
se projeta no ritmo corporalo tempo do corpo; no tempo inscrito no corpo durante este
processo, que o transforma em uma memória corporal passível de ser acessada quando
necessário o tempo no corpo.
O Tempo no Corpo
(...) o espaço e o tempo do corpo. Este território primordial onde a cultura
vive em cada indivíduo. O lugar onde ela se manifesta e se revela sensível,
viva. Dado que ela é apreendida desde o nascimento, admite-se que, até mesmo
antes, é transmitida pelos mais velhos aos mais novos. (...) inscrevem-na
profundamente nas suas estruturas psicofisiológicas a partir de sua
sensibilidade. Constituem as primeiras marcas, aquelas que vão ficar mais
profundamente inscritas, integradas no indivíduo (Grando, 2004: 43).
Na cultura ocidental, a escrita existe em função da lei (Clastres, 1975: 123-131): toda
lei é escrita e, deste modo, tudo fica registrado no papel. Era necessário que as leis fossem
registradas no papel, pela escrita, para que todos pudessem acessá-las – ao menos, aqueles
que sabiam ler. Não é por acaso que, para lembrarmos de algo, anotamos, escrevemos, assim
registramos nossa meria, no papel, escrita.
Várias culturas têm suas concepções de tempo ligadas ao registro da palavra – ou da
escritura – que fixa o conjunto das experiências, comportamentos e das interpretações que,
por sua vez, constitui o vivido singular característico desta cultura. Na tradição Cristã, por
exemplo, as coisas ditas são aquelas que se inserem em suas escrituras. Ler o Novo
Testamento é ler o documento em que se encontra o vivido cristão. Este documento afirma
algo sobre o tempo na medida que ele diz algo sobre a história, e o que ele diz sobre a
história é sua articulação a partir do tempo de Cristo (Neher, 1975 Apud Ricoeur, 1975).
A relação de reciprocidade que há entre Tempo e História é perceptível,
principalmente com o registro da palavra, da escrita, entre várias culturas e tradições.
Entretanto, entre os guarani, busco compreender a história que não está escrita no papel mas,
(in) corporada.
Kafka
60
faz uma analogia entre lei, escrita e corpo, designando o corpo como “uma
superfície de escrita, apta para receber o texto legível da lei.” Em algumas sociedades
indígenas, esta superfície é preenchida com as regras da sociedade por meio de rituais de
iniciação, pois é nocorpo que a sociedade designa como único espaço propício a conter o
sinal de um tempo, o traço de uma passagem, a determinação de um destino”. O corpo
mediatiza a aquisição de um saber, e este saber é inscrito no corpo (Clastres, 1975:125).
Nesse sentido, é possível perceber que “a construção e identificação da pessoa se dá nas
sociedades indígenas por meio da educação marcada no corpo(Grando, 2004: 50).
Entre as populações indígenas pertencentes a língua Pano, mais especificamente
entre os Yaminawa e os Yawanawa, a iniciação xamânica “visa à transformação corporal do
aprendiz através de dietas alimentares e sexuais rigorosas, ingestão de diversas substâncias
60
apud Clastres,1978: 124.
xamânicas, vigílias continuadas, dor e sofrimento, que tornam o corpo forte, resistente, leve,
amargo, sábio e poderoso” (Calávia, Naveira, Perez Gil, 2003).
Este aspecto é perceptível entre os guarani, em que o registro é realizado pelo corpo
e suas vivências, pela meria passada dos mais velhos para os mais jovens, ou seja, uma
memória incorporada. Pois o corpo:
...registra os acontecimentos da nossa existência, transformando-os em imagens-
lembranças...
A memória, experiência absolutamente singular que se deposita no corpo e que,
quando interpelada, aciona o passado para que prolongue seu efeito útil até o
momento presente. (Balandier , 1999:46 apud Bergamaschi, 2005).
Além disso, a memória é um mecanismo de armazenamento de informações e
conhecimentos estimulado entre os guarani pelos mais velhos, nas histórias, nos mitos. De
acordo com eles, o papel pode se perder, rasgar, mas o que é guardado na memória
dificilmente se perde: “A fala, a memória, não vai se perder. Guarani guarda as coisas na
memória e não no papel, por isso daqui a dez anos eles sabem porque guardam na cabeça.
(Fala de Teófilo, registrada no Diário de Campo, em 20 fev. 2004)” (Bergamaschi, 2007).
Para a compreensão desta memória incorporada, o capítulo intitulado: “Sobre a
tortura nas sociedades indígenas”, (Clastres, 1975:127) aponta para a tortura como um
mecanismo de ensino-aprendizagem inscrito no corpo, em que “a marca é um obstáculo ao
esquecimento”. Ou ainda:
A sociedade dita a sua lei aos seus membros, inscreve o texto da lei sobre a
superfície dos corpos. Supõe-se assim, que ninguém se esquece da lei que serve
de fundamento à vida social da tribo (Id. ib.:128).
Através desses exemplos, é possível perceber que desse modo, os conhecimentos são
incorporados e acessados quando necessário, promovendo uma memória que não está escrita
no papel, mas no próprio corpo.
Com o entendimento dessa memória incorporada, observando-se os gestos das
crianças, as posturas em sala de aula, na casa de reza – Opy –, em algumas cerimônias, e na
casa do Txeramõi, pude perceber que algo se revelava diante de meus olhos. Não eram
apenas técnicas corporais, mas algo que percebi ser ensinado pelos mais velhos: o tempo do
corpo, e o tempo no corpo.
Na cultura ocidental, as pessoas fazem coisas com o intuito de preencher o tempo,
pois o tempo refere-se a uma ordem temporal da vida, é um aspecto de ordenação moral do
universo. Em contrapartida, os guarani não têm o intuito de fazer o tempo passar, mas de
vivenciá-lo. O tempo entre os guarani não é o mesmo que o tempo ocidental, baseado nos
ponteiros do relógio, (apesar de o usarem atualmente) mas sim, baseado no próprio corpo.
Mas, por que no corpo?
Um exemplo de um acontecimento em minha pesquisa de campo me fez perceber
este ritmo corporal guarani: Fui à aldeia de Morro dos Cavalos, acompanhada de um amigo -
assessor da associação da comunidade – que precisava recolher algumas assinaturas para um
projeto do Ministério da Cultura, que deveria ser colocado no correio àquela tarde.
Chegamos agitados, Agustinho e Cláudia – presidente da associação e sua esposa - estavam
em casa. Estávamos com pressa, pois estava quase na hora do correio fechar. Agustinho
olhou o papel e lentamente acendeu seu petynguá, exalando a fumaça por todo o
ambiente...depois de quase meia hora, ele perguntou o que era mesmo que tinha que fazer.
Meu amigo disse que precisava das assinaturas...Demorou mais meia hora, ele chamou seu
filho e pediu que recolhesse as assinaturas. E foi assim que ele resolveu tudo: no seu ritmo,
no seu próprio tempo. (E realmente deu tudo certo, chegamos na hora certa no correio, e
tudo foi encaminhado).
Este ritmo corporal está associado à característica de aprendizagem entre os guarani:
a oralidade, o modo pelo qual os conhecimentos são repassados e, a importância da
audição, de ouvir/sentir as palavras. Retomando a palavra guarani que significa ouvir -
endu - percebemos na prática seu significado que também pode ser traduzida como de
sentir. Eles prestam muita atenção às palavras que pronunciamos, de modo a sentir o que
será necessário fazer, quais as atitudes a tomar.
Os guarani não são de muitas palavras, quando são expressas por eles, devem ser
ouvidas com atenção. É assim que os mais velhos ensinam, pelas poucas palavras, de modo
a permitir que o corpo se expresse, principalmente pelo silêncio.
É interessante perceber este ritmo próprio guarani e, além dele, os intervalos de
tempo que são recheados por um enorme silêncio...O silêncio sempre foi algo que me
chamou atenção entre os guarani, como era possível permanecer tanto tempo sem falar
nada? Além do silêncio das palavras, os corpos pareciam estar coniventes, lentos, em um
ritmo próprio. Os corpos falavam em silêncio. Depois de um tempo, o sincio era rompido,
e os corpos acompanhavam esta decisão, se movendo em um ritmo mais acelerado.
Em Mbiguaçu, um dia na casa de Alcindo Wherá Tupã, após realizar o benzimento
de várias crianças, ele sentou-se em seu banco de madeira, abaixou a cabeça e ficou
fumando o petynguá em silêncio. Cerca de dez pessoas que estavam ao redor do fogo de
chão, acompanhavam esse ritmo. Pareciam estátuas, em silêncio, não falavam nada,
olhavam para o chão, para as crianças, para nada, muitas vezes apenas contemplavam
alguma paisagem pela janela, tudo muito lentamente. De repente, o silêncio é quebrado e o
corpo ganha vida, falam, se olham, levanta-se para fazer chimarrão. Parece que tudo tem seu
tempo, seu ritmo próprio, inclusive de fumar o petynguá, que geralmente ocorre quando a
noite cai, quando todos comeram, tomam um chimarrão então o petynguá começa a se
acender.
A partir destas vincias - compreendendo este ritmo próprio guarani de ser e viver -
estou sugerindo que o silêncio é um mecanismo de ensino-aprendizagem onde os Tudja’í
Kuery, os mais velhos, ditam as regras. Nestes momentos é possível perceber um estado em
que o tempo parece não existir, quando a percepção se apura, e os mais velhos, ao expandi-
la, demonstram maior sensibilidade para o que ocorre a sua volta.
Alcindo Wherá Tupã, é um tudja’í que vive seus 96 anos de muita sabedoria. Ele é
um karaí, um rezador muito forte e muito conhecido, e seu arandu porã (belo saber) atrai
olhares para a aldeia de Mbiguaçu, litoral norte do Estado de Santa Catarina. Os guarani de
outras aldeias e de todo o país vêm para Biguu para participar da cerimônia de reza e
conhecer os poderes que envolve o uso da medicina, a ayahuasca.
Muitas vezes quando estava na casa de Wherá Tupã, sentava ao seu lado e ele sabia
como eu estava: triste, agoniada ou feliz, e sua percepção era muito aguçada. Quando
alguém chegava, sentava - como todos os demais que sempre visitam sua casa -, ele parecia
já saber o que a pessoa desejava. Quando chegavam para realizar um tratamento de cura –
algo muito recorrente em Mbiguaçu - ,Wherá Tupã já sabia o local da dor.
A percepção é algo muito aguçado entre os mais velhos, e são nestes momentos de
silêncio, momentos de fumar o petynguá, que estas habilidades são repassados para os mais
jovens. Segundo Wherá Tupã, o petynguá detêm uma sabedoria ancestral possuindo caráter
mediador entre os guarani e Nhanderu. No petynguá guarani utiliza-se o tabaco, e a sua
fumaça permeia toda a casa trazendo boas vibrações e a cura dos males. Podem ser feitos de
madeira, utilizado cotidianamente, e o de barro, mais utilizado nas rezas, mas também no dia
a dia. Ele possui várias formas: águias, tigres, corujas e outros bichos considerados
sagrados, com símbolos de Nhamandu - o poder solar - , como djatxy - o poder da lua.
Foi a partir de vivências em seu cotidiano que comecei a perceber momentos
privilegiados, momentos em que sutilmente conhecimentos eram repassados. Entre os
guarani é possível perceber características que se associam ao modo de ser e viver, um
constante vir-à-ser, esta vivência que é sempre um processo de superação do tempo e da
morte em vida. O tempoo é o que já passou, o que virá, mas o tempo é ele mesmo no
presente, por isso a necessidade de viver com o corpo presente no presente.
É uma cultura - como descrevi anteriormente - que tem como foco uma noção de
pessoa que se realiza no vir-à-ser, como um processo dinâmico. Para eles, mais do que ser
no mundo – que seria algo estático, algo que simplesmente é o importante é estar no
mundo, vivenciá-lo dinamicamente. É este estar no mundo que permite a contemplação, o
silêncio, a expansão da percepção. Não há pressa, tudo acontece no seu tempo, no seu ritmo.
A noção de pessoa guarani traduz-se em cuidados com o corpo físico e espiritual, por
isso a importância dos cuidados corporais desde antes do nascimento; a nominação da
criança, - que será enviada pelos deuses - ; a importância das danças e do entoar dos cantos
para tornar o corpo “leve”; das preces, para atingir a terra sem mal; de fumar o petynguá,
para se comunicar com Nhanderu; do silêncio, para a expansão da percepção. Todas estas
características associadas, demonstram os aspectos fundantes da pessoa guarani, que possui
estratégias para manutenção de sua cultura de modo a preservar sua temporalidade, seu
silêncio.
As aldeias Guarani pesquisadas durante meu trabalho de campo, proporcionaram-me
uma vivência singular em que o tempo tornava-se contemplação, delineando-se como uma
“sucessão de eternidades”. Foram nestes momentos em que aprendi que o silêncio falava
mais que as palavras, pois os corpos falavam em sincio.
CAPÍTULO V: RE-INVENÇÃO DA TRADIÇÃO: OS PROCESSOS DE
PRODUÇÃO E TRANSMISSÃO DE CONHECIMENTOS NAS CERIMÔNIAS
RELIGIOSAS
V.I A Tradição como processo
Este capítulo pretende descrever momentos privilegiados de produção e transmissão
de conhecimentos que perpassam a religião guarani. As cerimônias religiosas tornam-se um
cenário fundamental em que processos de ensino-aprendizagem que se dão pelo (no) corpo
ocorrem por meio de uma temporalidade própria. Além disso, segundo Langdon (1996)
apud Montardo (2004), o xamanismo e os rituais xamânicos fazem parte de um sistema
sociocultural, e falar de xamanismo em várias sociedades implica em falar de política, de
medicina, de organização social e estética.
Mas, antes de adentrar na descrição destas cerimônias religiosas, faz-se necessário
refletir sobre alguns temas imbricados na religo guarani. Quando nos referimos a temas
relacionados à religião, aos costumes tradicionais”, a memória de como era antigamente,
em muitas ocasiões somos tomados por súbitos resquícios dos estudos de aculturação
61
.
Alguns temas abordados a seguir pretendem refletir sobre a dinâmica dos processos
interculturais nas sociedades indígenas, bem como buscar uma re-significação de conceitos
como tradição. As questões as quais devemos partir para tal reflexão não devem ser
“quem somos nós” ou “de onde nós viemos”, mas “quem nós podemos nos tornar”, “como
nós temos sido representados”, e “como essa representação afeta a forma como nós podemos
61
Viveiros de Castro (1986: 89), descreve trabalhos das décadas de 30 e 40 que se baseavam em estudos sobre
aculturação nos povos Tupi-Guarani. Esta problemática estava presente nas obras de Schaden sobre os
Guarani, sendo um marco nos estudos sobre os povos Tupi deste período.
representar a nós próprios” (Hall, 2005: 108). Talvez estas questões sejam as indagadas
pelas populações indígenas a todo tempo, de maneira consciente e inconsciente.
Remetem-nos conseqüentemente a tradição, ou a re-invenção da tradição, que
conforme Balandier (1997), “a tradição consegue nutrir-se do imprevisto e da novidade; (...)
sua ordem não mantém tudo, nada pode ser mantido por puro imobilismo; seu próprio
dinamismo é alimentado pelo movimento e pela desordem, aos quais ela deve finalmente se
subordinar.”
A tradição pode ser descrita como “o mesmo que se transforma”, e não o “retorno às
raízes” - como uma incessante busca de uma origem que reside em um passado histórico
com o qual elas deveriam manter correspondência -, mas como uma negociação com as
rotas” (Gilroy,1994 apud Hall, 2005:109). Em consonância com Hall (2005), Bergamaschi
(2004) descreve este movimento em busca de uma tradição apontando para a dinamicidade
deste processo:
Nos fundamentos da cosmovisão guarani há um movimento que joga para diante,
para fora do limite,o implicando volta. É uma sociedade em que coexistem
valores antigos e valores novos e o mesmo esforço, realizado para atingir a
perfeição na forma de vida guarani, é empregado para seguir a tradição que, no
ato de re-atualização demonstra seu dinamismo (Bergamaschi 2004).
É a partir deste viés que busco perceber a religião Guarani, como “o mesmo que se
transforma”, que se nutre de novidades para a manutenção de sua cultura, religião,
transportando-as para um processo educativo que se dá pelo corpo e no corpo.
Antes de apontar a relação das cerimônias nos processos educativos de produção e
fabricação do corpo, pretendo descrever um pouco da história das cerimônias da ayahuasca,
pois sua introdução na aldeia de Mbiguaçu promoveu mudanças tanto nestes processos
educativos quanto nas relações entre as aldeias estudadas.
Na aldeia de Mbiguaçu, a ayahuasca é utilizada nas cerimônias guarani desde
2000/2001. A história contada pelo dentista da FUNASA, Marcelo França, é que Haroldo
Evangelista Vargas chegou na aldeia de Mbiguaçu para conhecer a comunidade, e nesta
visita percebeu alguns casos de alcoolismo entre os Guarani. Com formação em medicina,
Haroldo pediu para trabalhar no Projeto Rondon, para que pudesse desenvolver um trabalho
juntamente à comunidade guarani, mas deixou claro que este trabalho teria o intuito de
auxiliar pelo “plano espiritual”.
Voltou em Mbiguaçu e conversou com Alcindo Wherá Tupã Moreira, perguntou
como eram as rezas antigamente, conversou com dona Júlia - uma Tchedjaryi,, antiga
moradora da aldeia - , que descreveu algo semelhante à prática do Temascal
62
a qual eles
chamavam de Opydjere. Alcindo disse que tomavam a “medicina” ou ayahuasca também
como chá, possuindo até um nome em guarani.
A proposta de Haroldo era juntar a cerimônia conhecida pelos Guarani com a
cerimônia do Caminho Vermelho
63
, e chegaram a um consenso. O projeto desenvolvido por
Haroldo com duração de cerca de dois anos foi intitulado: “Fortalecimento das lideranças
espirituais da nação Guarani”, sendo financiado pelo Projeto Rondon
64
.
De acordo com depoimentos de Marcelo França - dentista da FUNASA - que
participa das cerimônias e desenvolve um trabalho no posto de saúde da aldeia - , Alcindo
dizia a ele, - antes de Haroldo chegar na comunidade - , que um branco ou um guarani,
ainda não sabia bem, mudaria as coisas na aldeia, ajudaria na revitalização da espiritualidade
62
Ritual realizado dentro de uma casa de barro redonda onde pedras aquecidas na fogueira são colocadas uma-
a-uma, proporcionando a sensação de uma sauna. São entoados cantos e utilizados instrumentos como o
mbaraca e o anguapu.
63
Grupo que realiza rituais que seriam originários de diversas etnias indígenas Norte-Americanas.
64
de Rose, 2007.
conforme buscava Alcindo. Este processo já tinha sido iniciado, mas, segundo ele, Haroldo
auxiliou introduzindo a medicina - ayahuasca.
Sobre a ayahuasca Alcindo Moreira conta que:
...quando os brancos vieram e mataram os índios, levaram a muda da planta
junto, só depois que ela entrou em contato com os índios de novo, mas sempre
foi, desde o inicio de conhecimento dos guarani.
Muitas aldeias são contra, dizem que é bebida de djuruá, e a bebida que eles
tomam? Não é de djuruá? E ainda por cima faz mal, a pessoa perde o respeito
com a família, faz besteira...que nem o cacique aqui bebia muito, tava perdendo o
respeito da família, demorou um pouco pra provar a medicina , mas depois que
começou tomar medicina nunca mais bebeu ( Entrevista com Alcindo Wherá
Tupã, Mbiguaçu, 2007).
Alcindo fala que algumas aldeias Guarani possuem diferentes olhares sobre a
medicina ou ayahuasca e sobre a cerimônia realizada em Mbiguaçu. A medicina gerou
polêmicas nas aldeias guarani - uns têm medo, outros são atraídos pelo seu poder de cura
associado com o poder de Alcindo Wherá Tupã Moreira.
V.II As Cerimônias Religiosas: Opydjere e Ayahuasca
Segundo Alcindo Wherá Tupã, a Medicina é muito forte, “abre portas, mostra os
caminhos, o que deve ser feito”. Muitas vezes são visões ruins, mas é preciso ter mbaraete
força espiritual, e ndepyaguatchu - coragem, pois o aguyjeo saber, e a cura, é um processo
a ser conquistado com esforço, e para tanto se deve pedir muito a Nhanderu.
Numa bela tarde de sol, ouvi o soar de algo que
parecia uma concha grande, o som que emitia
era bem alto, e fez com que todos descessem
correndo. Estavam todos prontos para ir no
Opydjere. Todos na fila ansiosos, bebês
(myntãi), crianças: meninos e meninas (kyringué: ava í, kunha í), moças (kunhatã í), moços
(kunumy), homens adultos (tudjá), mulheres adultas (guaimi), velhos (tudja’i) e velhas
(guaimi).
O Opydjere é uma casa de barro de formato redondo, e o ritual acontece neste local
geralmente antes de uma cerimônia grande no Opy. Os Guarani dizem que “limpa” a pessoa,
sendo muito bom para quem está doente, e, segundo o txeramoí, os guarani já praticavam
este ritual há muito tempo atrás.
O ritual inicia com todos em fila realizando uma volta completa por fora da opydjere.
Na porta de entrada, há um rapaz segurando um pote de barro com ervas na brasa que
exalam um aroma muito agradável. Todos passam por ele e, como se pegassem a fumaça
com a mão, em seguida pressionam-na em direção ao rosto. Depois entram agachados em
fila, e lá dentroo se posicionado em váriosrculos.
Depois que todos entram, o kunumy que está do lado de fora do Opy começa a trazer
as pedras quentes nas quais a esposa do cacique joga ervas aromáticas. Pude identificar um
leve e adocicado cheiro de canela. Dentro do Opydjere é inserido pelo kunumy, um balde
d’água que será jogada aos poucos nas pedras para que o calor possa aquecer o local.
Enquanto isso Geraldo Karai o’Kenda está tocando um tambor, o anguapu, no qual ele bate
com um bastão durante quase todo o tempo, e a esposa do cacique - o chocalho, mbaraca-
mirim.
Lá dentro são entoados alguns cantos por todos os participantes, e quando acaba
todos pronunciam agudjewete bem alto para quem está do lado de fora possa abrir a porta
fechada com o cobertor e deixar entrar o ar. Isso acontece umas 4 vezes, depois é encerrada
a cerimônia. Chega a ficar bem quente lá dentro, é necessário se concentrar, e muitas
crianças têm medo de entrar, mas o que entram ressaltam a necessidade de resistir
65
.
Bebês (myntãi) de colo, de 2 meses a 1 ano entram, e ficam até o final, apesar de
chorarem bastante. Quando acaba, todos saem em fila, e cumprimentam o kunumy que está
lá fora com agudjawéte e todos os demais que estão do lado posicionados em fila. Após
cumprimentar todos da fila, temos que entrar na fila, pois todos farão o mesmo conosco.
Depois todos vão pra casa leves...tomam banho, comem, e descem para o Opy,
trazendo suas cobertas, almofadas, para que possam escolher seus lugares e se prepararem
para a cerimônia, sempre embalados na fumaça aromática do petynguá.
Mais tarde, por volta das dezessete horas, uma outra sessão da opydjere é realizada
com a participação dos djuruá, sendo que a diferença é que na primeira, muitas guaimi
entram sem algumas vestimentas e todos entram juntos, na segunda, há uma separação em
filas, entrando primeiro as mulheres e depois os homens, todos de roupas. Mais tarde, as
pessoas começam a descer para o Opy, onde a cerimônia da medicina está prestes a
comar.
As pessoas aos poucos vão entrando no Opy - casa de reza -, o violão já toca no
ritmo guarani, e logo o anguapu soa.
Dentro da casa de reza retangular,
encontramos no final um altar, com alguns
instrumentos e baldes de água logo abaixo.
No centro está a fogueira rodeada por um
desenho de barro oval no formato de uma
65
Este aspecto foi ressaltado por Melissa Oliveira, 2004.
ferradura que simboliza a criação do universo – segundo Alcindo Wherá Tupã.
Ao redor deste desenho de barro são colocadas rodelas de palha onde ficarão as
peças do ritual: cocares, penas, cinturões de cura, cajado, e a ahuasca ou medicina, dentro
de garrafões.
Após a chegada do cacique, em torno das 22:30, a cerimônia vai lentamente
começando. O Txeramõi começa a cantar, duas pessoas começam a pegar a bebida e
despejar em duas jarras que serão servidas em copos de vidro. Antes de a bebida começar a
ser servida, alguns meninos se levantam para benzer com a fumaça do petynguá todos os
participantes do ritual e, logo depois, algumas meninas fazem o mesmo, pronunciando o
mesmo desejo de aguydjewete a cada participante.
66
A bebida é cercada de rituais, desde o início da abertura do garrafão até a hora de
servir. Dois responsáveis pela bebida vão, uma para cada lado com as jarras e começam a
servir as pessoas. A bebida é colocada no copo de vidro na medida de três dedos em média.
Cada pessoa que recebe e agradece a bebida com aguydjewete e a ingere de uma vez só.
Alguns logo em seguida a expelem involuntariamente, outros deitam, e alguns
continuam sentados ouvindo a música e fumando o petynguá. Depois de todos servidos,
66
Ver também Oliveira, Melissa (2004: 69). A autora faz uma descrição desta mesma cerimônia de reza
realizada em Mbiguaçu.
primeiramente um rezador - ywyraidja - levanta com o violão e vai à frente cantar, logo em
seguida os meninos, e as meninas com seus takuapu vão à frente dançar. A dança acontece
com os meninos à frente, tocando o mbaraca-mirim e o anguapu e as meninas paralelamente
atrás dançando com os takuapu ou apenas de mãos dadas. A dança apenas se cessa quando o
rezador que esta à frente para de cantar, e os instrumentos cessam junto com o rezador e
todos se sentam, mas os instrumentos voltam em seguida a tocar. Outro rezador vai à
frente, depois a bebida é servida de novo, mais tarde o ritual de cura começa. Uma pessoa
que deseja ser curada, ou benzida, se levanta, tira sua blusa e senta no banco de madeira
localizado no centro no Opy - próximo ao fogo. Logo em seguida os Karai vão a frente
esfumaçando do o corpo da pessoa, buscando localizar no corpo o local da dor. O final da
cura acontece quando um ava’í - a pedido do txeramõi - pega uma vela e ilumina a mão
dele, mostrando uma pequena pedra que foi tirada da pessoa, simbolizando a cura. Depois
disso a reza continua com a cura do rezador, que cansado do benzimento é curado por umas
dez pessoas que fumam petynguá ao redor dele, enquanto outros “sugam” com a boca, os
males que estão nele. Males que foram tirados das pessoas curadas naquela noite. Depois
disso, seu neto, e rezador mostra uma pequena pedra que tirou do Txeramoí. No final da
cerimônia a maioria das crianças está dormindo...
Quando o sol nasce, a cerimônia acaba e aos poucos
todos vão se levantando e em fila cumprimentam com um
aperto de mão e dizem: “djawydju” - que significa em
guarani,
levantamos novamente e utilizado como bom dia! - para
todos os participantes do ritual.
Atualmente, a Ayahuasca é plantada na aldeia, mas não em quantidade suficiente
para sua utilização semanal na comunidade de Mbiguu. Na aldeia o plantio é realizado
pelos homens, e a limpeza do terreno e cuidado das plantas, é realizado pelas mulheres.
De acordo com Oliveira (2004), a cerimônia de reza era realizada todas as noites na
aldeia de Mbiguaçu, e a cerimônia da medicina em uma data especial, marcada
anteriormente, causando muito entusiasmo, inclusive nas crianças.
Em 2007, época de minha pesquisa de campo, as cerimônias eram realizadas apenas
aos finais de semana, e todas as cerimônias fazem o uso da ayahuasca. o cerimônia
sem a medicina em Mbiguaçu. Para suprir a comunidade semanalmente, a planta é trazida da
Vargem Grande, por pessoas freqüentadoras do Santo Daime
67
, e possui um custo para as
famílias guarani e para os não-índios que desejam participar.
Além da cerimônia que ocorre nos finais de semana, podem acontecer em eventos
especiais, antes de viagens de moradores da aldeia, e também em rituais funerios. Nas
cerimônias funerárias, atualmente também se utiliza a ayahuasca e o tabaco. As danças e
cantos são intensos e existem algumas etapas essenciais para que o espírito do morto realize
sua passagem para o “outro plano”.
Em relação a estas cerimônias, pretendo destacar alguns aspectos que me chamaram
atenção como os processos de ensino-aprendizagem, os movimentos corporais, a resistência
e o tempo do (no) corpo.
Durante minha pesquisa de campo, uma morte inesperada provocou grande tristeza
na aldeia de Mbiguaçu. A morte repentina causa medo e desconfiança, sendo atribuída
muitas vezes à feitiçaria. Entretanto, o que pretendo destacar, são os momentos privilegiados
67
“Refere-se a um movimento religioso que teve inicio nas décadas de 20 e 40 no Acre (...); (...) é o nome
dado à bebida que os participantes deste movimento religioso consome em seus rituais.” (de Rose, 2007).
de produção e transmissão de conhecimentos, em que as crianças, com seu modo de
observar tudo a sua volta, agem, muitas vezes, como se já soubesse o que fazer, mesmo os
menores que nunca tinham passado por tal situação.
(...) todo o caminho do ciclo de vida de um indígena, em que os momentos
críticos – como a recepção do nome, a "iniciação", o nascimento do primeiro
filho, a morte de um parente ou de um membro da comunidade – são instantes
fortemente marcados por ações pedagógicas nas quais intervém quase toda a
comunidade (Mel, 1999).
A cerimônia funerária, pressupõe uma preparação tanto dos participantes quanto do
corpo do morto. O corpo é levado para o Opy – casa de reza - e durante algum um tempo,
pessoas dirigem-se ao local para fumar o petynguá e cantar ao lado do morto até que todos
os familiares possam chegar para o início da cerimônia. Aos poucos o Opy fica cheia e todos
cantando em fila dirigem-se ao morto com o petynguá na mão. A fumaça do petynguá é
direcionada para todo o corpo da pessoa, e todos que estão na fila repetem o mesmo
movimento. As crianças participam ativamente do ritual, cada uma com o seu petynguá,
sendo incentivadas pelos pais e familiares. A cerimônia dura à noite toda, a ayahuasca é
ingerida, são entoados cantos e danças para o morto, com diferenças em alguns passos de
dança e cantos.
Em um outro funeral na aldeia uma cena me chamou atenção: estávamos na escola,
na hora da merenda, todas as crianças estavam começando a comer, acompanhados da
professora não-índia, quando escutamos o soar do mbaracá - chocalho. Logo em seguida,
avistamos os mais velhos da aldeia subindo ao alto da montanha para finalizar o funeral,
enterrando o corpo. Todas as crianças, ao perceber a caminhada dos mais velhos em direção
à montanha, olharam-se por um instante, levantaram-se, e disseram: “temos que ir, temos
que pegar o petynguá...”, e saíram correndo, deixando a comida no prato – algo que nunca
acontece durante a merenda – e foram buscar seus petynguá para acompanharem a
cerimônia.
São nestes momentos privilegiados de transmissão de conhecimentos que é possível
perceber a autonomia, o respeito, e os processos de ensino-aprendizagem primordiais para
os guarani, em que os movimentos corporais, os olhares, falam mais que as palavras. Além
do ritmo corporal, nas cerimônias podemos perceber um outro tempo vivido, e um outro
tempo passível de ser atingido: o tempo sagrado.
V.III O Tempo Sagrado das Cerimônias e a importância do corpo, das danças e cantos
As cerimônias religiosas, dentro da Literatura Antropogica, sempre foram
realizadas pelos Guarani com o intuito de atingir o kandire – a perfeição, realizando a
passagem da vida terrena para a terra sem males. É com este intuito que realizam as danças,
que entoam os cantos, preconizando a leveza e perfeição do corpo. A este respeito discorre
Darella (2004):
Yvy Tenonde (Primera Terra) e Yvy Marã’ey (Terra sem Males), as terras
perfeitas, são as terras dos tempos passado e futuro, os tempos que embasam a
existência. Yvy Vai (Terra má, disforme), imperfeita, é a terra do tempo presente,
da profunda incerteza, da possibilidade de nova destruição. É a terra tanto da
precariedade quanto da instabilidade. A terra do confinamento, onde os Guarani
cotidianamente almejam o resgate da divindade que crêem se efetivará com a
superação da condição humana. Querem alcançar e viver o futuro, na terra
indestrutível, eterna, da verdadeira humanidade: a Terra sem Males (Darella,
2004:17). “E todo o esforço dos homens consistirá em abolir está separação, em
tentar transpor este espaço infinito que os mantém afastados de seus deuses:
migração religiosa, jejuns, danças, preces, meditações...” (Clastres, 1974 apud
id.ib.: 17).
Contudo, na atualidade, a cultura e religião guarani buscam, muitas vezes,
subterfúgios para continuar existindo e resistindo às incertezas de Yvy Vai. A partir deste
viés, busco nas contribuições de Eliade (1999), aspectos relacionados à reversibilidade do
tempo que só é possível através das cerimônias religiosas.
É em meio à cerimônia que se faz possível perceber esta reversibilidade, em que o
tempo pode ser alcançado novamente por meio do “tempo sagrado”. É um tempo diferente
do tempo histórico – “tempo profano” - , pois está sempre lá, passível de ser atingido
quando necessário, é o “tempo tico” (Eliade, 1999).
A cerimônia da medicina – ayahuasca - e do opydjere, promoveram a manutenção
da cultura guarani a partir deste contato com otempotico”, um “eterno presente”
alcançado através das danças, com o entoar dos cantos, pela ingestão da ayahuasca e na
prática do temascal/opydjere. São nesses momentos, fora dos intercursos do cotidiano, que
os corpos se tornam leves e as almas podem chegar à perfeição – aguyje.
Os rituais xamasticos realizados pelos guarani têm como foco a manutenção de sua
cultura, e de acordo com Montardo (2004), nestes rituais os guarani estão, “através da
condução do xamã, percorrendo caminhos que os levam ao encontro dos ancestrais míticos.
A música executada com os instrumentos recebidos do herói criador, cantada com a alma
vinda das regiões divinas e dançada com o corpo adornado, tem um papel de invocação, em
um dos gêneros identificados, e de superação de obstáculos em outro”(id. ib.: 78).
De acordo com os Guarani, nas cerimônias, os corpos das pessoas são unidos em um
só, todos precisam estar fortes, concentrados e ajudando o rezador – opyguá -,
principalmente na hora da cura:
O xamanismo guarani tem como uma de suas caractesticas a necessidade de
ajudantes para efetivar o ritual, os ywyra’ija kuery, cuja atuação tem implicações
de eficácias musicais, tanto instrumentais quanto vocais, assim como de
movimentos corporais. (...) “quando as mulheres cantam mais forte ou com mais
volume o xamã fica mais forte” (Montardo, 2004: 82)
Esta “união dos corpos” que promove a resistência das pessoas tanto nas danças, nas
rezas, e na intensidade dos cantos, esta união dos corpos é explicitada como fator
fundamental para proporcionar a resistência dos rituais religiosos. Em contrapartida, a
resistência das crianças no dia-a-dia escolar é mais difícil de ser alcançada justamente pela
ausência desta união corporal.
A dança também possui um papel importante pois é necessário que todos fiquem
dançando de mãos dadas e concentrados para ajudar o opyguá; o entoar dos cantos também
se faz essencial - as meninas cantam com intensidade -; o anguapu, mbaracá-mirim,
takuapu, todos instrumentos fazem parte do ritual guarani.
Nos cantos, é necessária uma afinação ideal que permita que as pessoas que cantam
acendam a um plano superior, “o grupo sobe em um fio, sã, que os leva para cima, acertar a
afinação faz com que acertem o fio” (Montardo, 2004: 80).
Nimuendaju (1987) narra que ouviu entre os Guarani acerca de um pajé que
obteve uma corda, tucumbó, diretamente dou, pendurou-a na casa de dança e
instruiu os seus discípulos como a deveriam segurar durante a dança para que
seus corpos se tornassem leves mais depressa (id. ib.: 80).
Os cantos e as danças – purahéi e jeroky -, segundo Montardo (2004), são
fundamentais para o entendimento da religiosidade guarani, e que compreende outras
manifestações relacionadas à cosmologia, mitologia, saúde, doenças. Segundo a autora,
nestes rituais “fica claro, de um lado, não apenas o esforço espiritual, mas também o esforço
corporal dispensado na manutenção da comunicação com as divindades, e da importância
dos cantos e das danças neste processo” (id. ib.:77).
As técnicas corporais aprendidas e ensinadas nas cerimônias religiosas, são
transmitidas como formas de educação do corpo, educação da pessoa. Práticas que são
transformadas de geração em geração, constituem-se em atos educativos. Tais técnicas
corporais aliadas à estética, comunicam relações sociais importantes para a educação que se
identifica no corpo. “A dança e o canto nas cerimônias de reza são um conjunto de técnicas
e estéticas corporais que moldam coletivamente os corpos em sentidos e significados
polissêmicos” (Grando, 2004).
As cerimônias são o ápice da educação do corpo – de técnicas e estéticas corporais
com as quais a pessoa se constitui - e desta forma, auxilia no entendimento das dinâmicas
estabelecidas pelos guarani para se constitrem como um grupo étnico e como pessoas.
“A dança expressa os sentidos e os significados das relações cotidianas, assim como
seus ritmos e emoções, por meio da cadência dos movimentos marcada por música e cantos
que resignificam e valorizam a corporalidade e as identidades das pessoas conforme o papel
social assumido nas cerimônias, rituais e festas. A dança pode ainda expressar formas de
acesso mágico a outras dimensões da realidade vivenciada por cada grupo étnico, seria
assim a representação que a pessoa (o corpo) assume na relação com essas dimensões”
(Grando, 2004: 245).
Assim, neste contexto, a dança e o entoar dos cantos durante a cerimônia de reza,
possui um papel importante na comunicação com o plano divino e na busca de atingir o
tempo sagrado”, em que o tempo possui como característica fundante sua reversibilidade
(Eliade,1999). Recorrendo ao termo do autor, “mito do eterno retorno”, estes momentos
representam uma possibilidade de vivenciar e revitalizar um tempo que é atemporal e cuja
relação com a realidade remete aos participantes às origens cosmológicas do grupo.
É possível perceber como as cerimônias demonstram estes mecanismos de produzir e
transmitir conhecimentos, e como o corpo e a temporalidade do corpo possuem um foco
central neste processo educativo. Mas, nesse caso,o corpos que ensinam e aprendem
cantando e dançando.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Corpos que falam em silêncio...
...o olhar que localiza os Guarani também como protagonistas da política
blica é o olhar que foge da unilateralidade e, mesmo no silêncio, reconhece a
potência de um povo que sobrevive aos mais refinados atos de destruição,
mantendo suas crenças e seu modo de ser, modificando-as de acordo com as
solicitações do presente, porém, coerentes com uma cosmologia que se
transforma, mas continua Guarani. Reconheço nesse povo uma força sutil de
resistência que, talvez, o olhar da política tradicional traduza como
conformidade. É o que Maffesoli (2002) denomina "potência", que tem que ser
sentida, porque é "tátil", constituída por uma multiplicidade de ações que
incluem silêncios e passividades e que fazem perdurar o modo de ser Guarani
(Bergamaschi, 2007: 11).
A partir da tríade: escola, corpo e tempo fez-se possível perceber aspectos
imbricados nas relações de produção e transmissão de conhecimentos entre os guarani. Nos
espaços não-escolares: casa dos parentes, cerimônias, danças, cantos, no cotidiano da aldeia,
foi possível apreender processos de ensino-aprendizagem que se expressam no corpo e pelo
corpo – a partir de uma temporalidade própria -, que explicam atitudes e falas que se dão em
silêncio.
Os cuidados corporais imbricados nos processos educativos que se dão pelo (no)
corpo, possibilitam a compreensão de um ritmo próprio guarani de aprender, ensinar e viver.
Com o intuito de compreender estes processos e ritmos singulares, a pesquisa buscou
explicitar estes mecanismos próprios de aprendizagem nos quais as populações indígenas
valorizam e lutam para concretizá-lo nos espaços escolares.
As diferenças nas concepções relacionadas à educação são muito evidentes quando
percebemos os ritmos guarani e as dinâmicas de seus processos de ensinar e aprender.
Enquanto “toda aldeia é uma escola” para os Guarani, para a sociedade ocidental a escola é
uma instituição responsável pelo disciplinamento sico e ajustamento moral do indivíduo
como descreve Bergamaschi (2007):
No interior da cosmologia ocidental moderna, inspirada na ciência que ordena o
mundo e fragmenta o conhecimento, constitui-se a escola como um projeto
educativo para a formação do cidadão, com uma identidade nacional. Diz Elias
(1994) que o controle do indivíduo, na sociedade moderna, saiu das mãos das
tribos, das paróquias, dos feudos e guildas e transferiu-se para um Estado
centralizado e urbano. A sociedade, mais complexa e especializada, implementou
formas de segregação espacial e temporal, particularmente das crianças e jovens,
tornando a trajetória educativa cada vez mais longa e complicada, distanciada da
família e do trabalho. A escola, assentada numa verdade supostamente universal
da ciência e da razão, no cristianismo e no conhecimento disciplinar, com o
tempo, passou a ser obrigatória, expandindo-se para propagar o processo
civilizador, desencadeado a partir da Europa. A idéia de escola como lócus
específico e único de educação adquiriu universalidade e naturalizou-se. A
sociedade ocidental moderna tornou-se escolarizada (id. ib.: 8).
Nesse sentido, é possível observar as diferentes concepções de escola,
conseqüentemente de educação. Entre os Guarani, foi possível conhecer seus processos
próprios de ensino-aprendizagem, em que o aprender despertado pela curiosidade privilegia
a observação, delineando um traço característico que busca no fazer e no silêncio dos
corpos, possibilidades concretas em que o aprender e o ensinar acontece naturalmente,
focando atenção nos ritmos corporais e na sua temporalidade.
(...) a pessoa é, desde pequena, uma observadora da natureza, da qual se sente
parte, tendo-a como fonte inspiradora de vida e de educação, mas é também
uma observadora do comportamento de outras pessoas. Especialmente os
pequenos têm nos irmãos maiores e nos adultos seus parâmetros e, por meio da
imitação, constroem seus comportamentos particulares. Nesse sentido, desde
pequena, a pessoa observa, inspirando-se naquilo que a rodeia, tendo como
exemplo as imagens que estão a sua disposição, buscando assemelhar-se ao
outro e, a partir daí, constituir um comportamento próprio, que tamm o
distinga. Imitam nas brincadeiras e nas demais situações da vida, pois
acompanham os adultos nas mais diferentes atividades. A oralidade, presente
o apenas na fala, mas na escuta respeitosa e atenta à palavra: escutar e entoar
os cantos e se dispor ao ensinamento que é oferecido pela palavra são marcas
importantes da educação tradicional Guarani. Reconheço, também, que o
aprender, mais do que o ensinar, está intensamente presente na vida das
crianças e das pessoas em geral, sendo essa uma postura necessária para se
tornar Guarani de verdade (id. ib.: 6. Grifos da autora).
Além disso, este aprender é realizado através da interação entre as crianças de
diferentes idades,-se geralmente pelo irmão mais velho ensinando o irmão mais novo.
São eles quem cuidam, ensinam as primeiras palavras, dão comida. O manuseio do fogo, o
caminhar na mata, o uso de facões, são atitudes que fazem parte da vida das crianças
guarani, e a experimentação é a base deste aprendizado em que elas próprias confeccionam
sua autonomia. Os adultos não antecipam restrições nem respostas, mas aguardam as
perguntas permitindo que as kiringué descubram seus limites e possibilidades,
transparecendo o esforço na busca do conhecimento.
Aprendizado se dá por meio da observação do outro, não há uma imposição que
pretende dizer o que fazer, mas momentos privilegiados em que estes processos de
aprendizagem se dão pela experimentação. Há um estimulo da capacidade individual de
cada um que ocorre no cotidiano, nas tarefas de casa, e assim acontece também nas danças,
nos cantos, nas rezas.
Uma cena que me chamou ateão foi um benzimento em uma noite de inverno na
casa de Alcindo em Mbiguaçu: seu neto observava o processo de cura que estava sendo
realizado pelo avô, o encaminhamento da pessoa curada em direção ao fogo para receber a
aplicação de uma massagem com banha animal. Notei o interesse do menino e o olhar
focado nos detalhes de cada momento. Em seguida, o menino de apenas sete anos olhou
para sua mãe que já o entendeu, e sem proferir nenhuma palavra colocou um pouco de óleo
em suas mãos. Ele passou suavemente o óleo nas mãos direcionando-as ao fogo para que
ficassem aquecidas, fechou os olhos, respirou fundo e passou as mãos por todo o corpo.
Depois de todo o ritual, tirou seu petynguá da bolsa, colocou fumo, o acendeu e ao expirar a
fumaça, com a ajuda das mãos direcionava-a ao rosto acompanhada de uma respiração
profunda.
São momentos como este que revelam características fundamentais predominantes
na cultura guarani, como a observação, a escuta e também a experimentação. O ouvir é um
traço marcante na cultura guarani, ouvem atentamente as histórias contadas pelos mais
velhos, prestando uma cuidadosa atenção aos conselhos e ensinamentos. Antes de
desenvolver a fala, demonstrando que estão aptos a receberem o nome guarani, o ouvir faz-
se necessário entre as kyringué.
Algumas palavras descrevem estes aspectos fundamentais da educação guarani e
possibilitam compreender um pouco mais a maneira de ser, viver, aprender e ensinar desta
população indígena: o respeito - atitude de reverência aos mais velhos, respeitando sua
experiência e sabedoria. São eles quem proferem os conselhos, guiam os passos, mostram os
caminhos existentes; autonomia - os mais velhos buscam aconselhar as crianças prezando
pela sua autonomia e iniciativa na busca do conhecimento e da experimentação; as crianças
aprendem fazendo, observando; o silêncio – um mecanismo central de transmissão de
conhecimentos por meio da contemplação, o silêncio permite a expansão da percepção,
proporcionando maior conexão com realidade à sua volta, estimula a sabedoria respeitando
o ritmo guarani de ser e viver. O silêncio privilegia outras formas de produção e transmissão
de conhecimentos que não necessitam de palavras, pois os corpos falam em silêncio.
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