Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
MARA LIGIA DINELLI GAMBÔA
A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE
SENTIDO DA AIDS CONSTRUÍDOS PELA MÍDIA
IMPRESSA NOS FILMES CAZUZA E CARANDIRU.
SÃO PAULO
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
MARA LIGIA DINELLI GAMBÔA
A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE
SENTIDO DA AIDS CRIADOS PELADIA IMPRESSA
NOS FILMES CAZUZA E CARANDIRU.
Dissertação de Mestrado apresentada à Banca
Examinadora, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre do Programa de
Mestrado em Comunicação, área de concentração
em Comunicação Contemporânea da Universidade
Anhembi Morumbi, sob orientação da Profa. Dra.
Maria Ignês Carlos Magno.
SÃO PAULO
2008
ads:
MARA LIGIA DINELLI GAMBÔA
A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE
SENTIDO DA AIDS CRIADOS PELA MÍDIA IMPRESSA
NOS FILMES CAZUZA E CARANDIRU.
Dissertação de Mestrado apresentada à Banca
Examinadora, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre do Programa de
Mestrado em Comunicação, área de concentração
em Comunicação Contemporânea da Universidade
Anhembi Morumbi, sob orientação da Profa. Dra.
Maria Ignês Carlos Magno.
Aprovado em ___/___/____
Profa. Dra. Maria Ignês Carlos Magno
Profa. Dra. Rosana de Lima Soares
Prof. Dr. Vicente Gosciola
DEDICATÓRIA
Para Celso Augusto Gambôa
AGRADECIMENTOS
Ao meu marido, Celso, pelo amor, compreensão, apoio e confiança.
Ao Programa de Mestrado em Comunicação Contemporânea da
UAM, pela rica convivência com mestres e colegas.
A Marcos Aleksander Brandão, pela gentil e solícita atenção.
Ao amigo Eddie Louis Jacob, pelas longas, inúmeras e elucidativas
conversas e pela compreensão da espera.
À amiga Victoria Daniela Bousso, pela única e breve conversa,
igualmente elucidativa.
À Profa. Dra. Rosana de Lima Soares e ao Prof. Dr. Vicente
Gosciola, que na etapa de qualificação contribuíram para o
aprimoramento desta pesquisa.
À Marilda Perez Viana, pelas leituras e tradução do resumo.
E para todos os demais que acreditaram em mim.
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
À Profa.Dra. Maria Ignês Carlos Magno, por ter ido além dos
limites da orientação e pelo incentivo e estímulo para
que eu continue na vida acadêmica.
HOMENAGEM
Ao Prof. Dr. Antonio Fausto Neto que, embora ainda que não me conheça, foi
minha fonte de inspiração
Resumo:
A AIDS, como qualquer fenômeno social, tornou-se visível e obteve face
própria, a partir do momento em que as práticas midiáticas revelaram-na ao
público. Os meios de comunicação massivos (inclusive o cinema e, sobretudo a
mídia impressa), não só auxiliaram na visibilidade da AIDS e na construção dos
seus efeitos de sentido, como também participaram da construção das
representações sociais desse fenômeno. No entanto, devido à urgência em se
comunicar sobre a AIDS, houve a elaboração do conhecimento comum. Esse
conhecimento foi produzido pela sociedade, pela opinião pública e pelas mídias
e aconteceu paralelamente com a decodificação médica. Daí talvez tenha
originado as representações apoiadas em idéias estereotipadas. No cinema a
AIDS influenciou e continua influenciando diversas produções
cinematográficas. Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande
destaque na mídia.
Pressupondo-se que, como qualquer outra produção simbólica, os filmes são
máquinas geradoras de significados. Considerando-se também que por causa
dessa polissemia um filme pode ser lido em contextos distintos do original, o
presente estudo tem como objetivo discutir e verificar a permanência e a
manutenção dos efeitos de sentido da AIDS, que foram construídos pela mídia
impressa, nos filmes Cazuza e Carandiru.
Para isso, abordamos o cinema como uma prática social para
compreendermos a sua capacidade de gerar significados dentro de uma
determinada cultura e elucidamos ao leitor sobre a retomada do cinema
brasileiro na década de 90 e o seu papel na reflexão dos assuntos
contemporâneos que estão tão enraizados no imaginário nacional.
Considerando que um deles é a AIDS, fazemos um breve histórico sobre ela no
Brasil e no mundo trazendo os dados da epidemia para a atualidade;
estudamos as representações sociais da AIDS para elucidar ao leitor sobre
como a doença tem sido representada nos diversos segmentos sociais;
desenvolvemos uma reflexão teórica a respeito dos efeitos de sentido;
abordamos as estratégias de produção e de efeitos de sentido gerados pela
mídia impressa; e, finalmente, propomos discutir, analisar ou verificar a
permanência, a transformação e a manutenção dos efeitos de sentido da AIDS
criados pela mídia impressa nos filmes Cazuza e Carandiru e como aconteceu
a aparição desses efeitos de sentido em cada um dos filmes.
Palavras-chave: AIDS; discurso; efeitos de sentido; mídia impressa; cinema
nacional; filmes Carandiru e Cazuza.
ABSTRACT
As any social phenomenon, the AIDS had its own feature visible when the
massive media revealed it to the public. This includes the cinema, but mainly
the press that has not only helped with the visibility of the AIDS and in the
building of its sense of effect, as well as taking part in the building of the
representation of these social phenomenon. Because of the necessity in
communicating about the AIDS, the society, the public opinion and the media
produced a common knowledge between them. This happened at the same
time as the medicine was decoding the AIDS. It was probably where the
representations based on stereotyped ideas started. Concerning the cinema,
some productions were AIDS influenced. All these films related to the AIDS
became popular with the media.
If we consider that films, as any other symbolic production generate meanings.
Considering that because of these differences in word meanings, a film can be
read in different context from its original one, the aim of this essay is to discuss
and check the stay and keeping of the sense of effect, caused by the AIDS but
built by the media, in the films Cazuza and Carandiru.
To do this we considered the cinema as a social activity, so that we could
understand its capability of generating meanings within a certain culture and we
clarify to the reader about the re-start of the Brazilian cinema in the 1990´s and
its contribution to the reflection about contemporary subjects that are deeply
inside the national imagination. Considering that the AIDS is one of them, we
made a brief story about it in Brazil and round the world. We showed
information about the AIDS up to these days. We studied the social
representation about the AIDS to clarify to the reader about how the disease
has been represented in different social classes. We developed a theoretical
reflection about the sense of effects. We mentioned the strategies for producing
sense of effects generated by the media press and finally, we propose to
discuss, analyse or verify the staying, the transformation and the keeping of the
sense of effects cause by the AIDS. They were created by the press media
with the films Cazuza and Carandiru and how these senses of effects has
appeared in each film.
Key Words: AIDS; Speech; Sense of Effects; Press Media; National Cinema;
The films Cazuza and Carandiru.
“É preciso deter uma epidemia que atinge a todos nós,
pois seu impacto não se resume à dimensão biológica:
vai além ao colocar-nos, frente a frente com questões sociais e
comportamentais, como o preconceito, o estigma e o abandono”.
José Gomes Temporão
Ministro de Saúde
Relatório UNAIDS – 2007/2008
13
SUMÁRIO
14
SUMÁRIO
A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE SENTIDO
DA AIDS CRIADOS PELA MÍDIA IMPRESSA NOS FILMES CAZUZA
E CARANDIRU.
INTRODUÇÃO [17]
CAPÍTULO 1 – A IMERSÃO SOCIAL DO CINEMA [21]
1.1 Os estudos culturais: política e ideologia [21]
1.2 Ideologia e discriminação [24]
1.3 O cinema na agenda social de um país [26]
1.4 O renascimento do cinema brasileiro [28]
CAPÍTULO 2 – HISTORICIZANDO A AIDS [35]
2.1 O surgimento de uma nova doença [35]
2.2 O relatório mundial de 2007: um panorama atual [36]
2.2.1 A visão global da AIDS [37]
2.2.2 Os números da AIDS no Brasil [40]
CAPÍTULO 3 – A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA AIDS [44]
CAPÍTULO 4 – EFEITOS DE SENTIDO UMA REFLEXÃO TEÓRICA [57]
4.1 O surgimento da Análise do Discurso [57]
4.2 Os estudos da AD no Brasil [59]
4.2.1 A Construção Social dos Sentidos [59]
4.2.2 O sentido e a memória discursiva [63]
4.3 As enunciações discursivas na construção dos sentidos [65]
4.4 Memória e produção de sentido [64]
4.5 Os efeitos de sentido da AIDS na mídia impressa [68]
4.5.1 A construção da morte [71]
4.5.2 A AIDS e a construção na mídia impressa [75]
CAPÍTULO 5 A AIDS no cinema: Os filmes Cazuza e Carandiru duas
abordagens para o mesmo problema. [81]
5.1 Cazuza - um objeto a parte [81]
5.2 Carandiru - uma outra história [86]
CONCLUSÃO [94]
15
REFERÊNCIAS [97]
ANEXOS [102]
16
INTRODUÇÃO
17
INTRODUÇÃO
Nos quase 30 anos desde o descobrimento do vírus HIV como o causador da
AIDS, a doença tomou corpo no tecido social e não tornou-se um fenômeno
de ordem biológica como também um problema social e discursivo. Qualquer
coisa que fosse referente à AIDS ganhava espaço nos jornais, nas rádios e na
televisão. Desta forma a AIDS tornou-se uma doença da mídia.
Como qualquer novo fenômeno social a AIDS tornou-se visível quando foi
revelada ao público, por meio das práticas midiáticas as mídias não lhe
conferiu visibilidade como também auxiliou na construção dos seus efeitos de
sentido. A mídia disseminou e tornou a AIDS comum e inteligível.
Entretanto, não foi a mídia a responsável por noticiar seus primeiros
impactos. Outros meios de comunicação massivos começaram a falar da
doença: livros, peças de teatro, movimentos culturais e cinema.
É verdade que, devido à urgência de se comunicar a respeito da AIDS, a
elaboração do conhecimento comum produzido pela sociedade, pela opinião
pública e pelas mídias, aconteceu paralelamente à codificação médica, dando
origem, talvez, às representações apoiadas em idéias marginalizadas,
excludentes e discriminatórias.
A construção dos efeitos de sentido da AIDS passa por diferentes falas que
acontecem em espaço público. Cada fala é construída de acordo com as
próprias regras e estratégias discursivas de cada instituição com poder de fala.
Desta forma, temos a fala da medicina que procura diagnosticar e buscar
alternativas para o tratamento clínico; temos a fala da indústria farmacêutica,
ofertando medicamentos e terapias; a fala da administração pública que cria
mecanismos de controle e prevenção; a fala das instituições religiosas,
opinando sobre a ação de suas vítimas e não vítimas; a fala dos pacientes que,
além de sofrerem com as doenças desencadeadas pelo HIV, também sofrem
com a discriminação: do preconceito e da exclusão. Assim como sofrem com a
fala das mídias que, ao dar vozes a essas tantas falas, o faz em meio às
18
transações com outras situações e com outros regimes de falas das suas
próprias regras privadas.
Em meio a essas tantas falas as mídias assumem um papel estratégico, não só
no sentido de ofertar espaço para que essas falas possam se manifestar,
como também em auxiliar na construção de um código comum para que a
AIDS possa ser entendida por todos. É a polifonia dos discursos.
A divulgação de que pessoas famosas, no Brasil e no mundo, tinham assumido
que eram portadores do vírus HIV, contribuiu para a conscientização da
população em geral, de que a doença não discrimina raça, cor, sexo,
condições sociais e econômicas e nacionalidade. Qualquer um,
independentemente da sua condição social pode contrair a doença: cantores,
desportistas, artistas, médicos, o filho do vizinho, o colega do escritório, a
pessoa mais perto de você.
No Brasil, tanto o cantor Cazuza (que foi o primeiro artista a assumir
publicamente que estava com a doença) quanto o cartunista Encheu (que era
hemofílico por ter sido contaminado por transfusões em Bancos de Sangue),
tiveram um papel muito importante como símbolo da luta contra a doença.
A AIDS continua, sem dúvida, sendo um tema de grande impacto nas artes e
na cultura de diversos povos. No cinema a AIDS influenciou e influencia
diversas produções cinematográficas.
Assim sendo, propomos discutir nesse trabalho e dissertação, como os efeitos
de sentido da AIDS, construídos pela mídia impressa, foram narrados nos
filmes Cazuza e Carandiru e se esses efeitos de sentido se mantêm ou são
modificados.
Julgamos que esse trabalho tenha relevância para a área da comunicação
massiva, visto que analisamos um movimento que não se fecha
exclusivamente na área do cinema e conectamos suas questões específicas ao
contexto social. Ele aborda o diálogo entre a mídia impressa e o cinema, no
que se refere à construção dos efeitos de sentido sobre um determinado
19
assunto e promove o deslocamento das obras analisadas, incluindo-as em
contextos distintos dos originais.
A proposta da abordagem estratégica desse estudo segue o seguinte roteiro:
no primeiro capítulo abordamos o cinema como uma prática social e
elucidamos ao leitor a “retomada” do cinema brasileiro na década de 90; no
segundo capítulo fizemos um breve histórico sobre a AIDS no Brasil e no
mundo; no terceiro capítulo estudamos as representações sociais da AIDS; no
quarto capítulo desenvolvemos uma reflexão teórica a respeito dos efeitos de
sentido e abordamos as estratégias de produção e de efeitos de sentido
gerados pela mídia impressa; finalmente, no quinto e último capítulo
propusemos discutir, analisar ou verificar a permanência, a transformação e a
manutenção dos efeitos de sentido da AIDS, que foram criados pela mídia
impressa através dos filmes Cazuza e Carandiru e como surgiram esses efeitos
de sentido em cada um deles.
Assim sendo, a presente pesquisa corresponde às exigências de originalidade
do tema, densidade em seu desenvolvimento e deslocamento em sua
conclusão.
20
CAPÍTULO1
21
O cinema ainda é capaz de nos mostrar a verdade (eu me
sinto mais confortável dizendo “uma” verdade). Por isso o
cinema é tão urgente hoje, e é por isso que cineastas têm
uma responsabilidade inteiramente nova. É como se todas
as outras mídias, especialmente a TV, tivessem desistido
de mostrar o mundo sem preconceitos.
WIM WENDERS (18/08/2008 em entrevista
à Folha de S.Paulo).
CAPÍTULO 1:
O objetivo desse capítulo é o de compreendermos a capacidade do cinema em
gerar significados dentro de uma determina da cultura, para isso abordaremos
o cinema como uma prática social. Temos também como objetivo elucidar ao
leitor a retomada do cinema brasileiro na década de 90 e o seu papel na
reflexão sobre os assuntos contemporâneos que estão tão enraizados no
imaginário nacional, dentre eles a AIDS. Nota-se que a retomada do cinema
nacional aconteceu, de certa forma, uma década depois do descobrimento da
AIDS e no auge da pandemia.
1. A imersão social do cinema
1.1 Os estudos culturais: política e ideologia
Os estudos culturais são considerados um campo em processo de construção
e, por isto está sujeito a intervenções que são capazes de criar novas
perspectivas e análises.
Desta forma, os estudos culturais sofrem influências de novos grupos, sendo
que nos últimos anos, tem-se evidenciado as teorias feministas e multiculturais
conforme a raça, etnia, nacionalidade, subalternidade e preferência sexual
que, em seu conjunto, expressam as teorias de resistência e críticas à
opressão.
Para Douglas Kelper (2001) esses grupos trouxeram contribuições importantes
aos estudos culturais, visto que suas teorias estão enraizadas nas lutas dos
22
oprimidos. Esse fato amplia não os próprios estudos culturais, como
também expandem o conceito sobre a crítica à ideologia com a inclusão de
dimensões de raça, sexo, sexualidade, etnia e classe.
No que se refere a este ponto, as formas da cultura da mídia tornaram-se
extremamente políticas e ideológicas, por isto, para aqueles que desejam saber
como ela incorpora posições políticas e exerce efeitos políticos, é preciso
aprender a ler a cultura da mídia politicamente. Para Kellner:
Ler politicamente a cultura também significa
ver como as produções culturais da mídia
reproduzem as lutas sociais existentes em
suas imagens, seus espetáculos e sua
narrativa. (KELLNER, 2001:76).
Em sua obra, conjunta com Michel Ryan, intitulada Câmera Política: The
Politics and Ideology of Contemporary Hollywood Film de 1988, os
autores indicaram como é que o estilo de vida e as lutas diárias, assim como o
mundo das lutas sociais e políticas, se expressaram no cinema popular. Eles
apontaram como alguns dos filmes e dos gêneros mais populares de
Hollywood, no período de 1960 a 1980, “transcodificaram” discursos sociais e
políticos opostos e representaram posições políticas específicas. Eles tomaram
como base, os debates sobre a Guerra do Vietnã, bem como outras questões
que preocupavam a sociedade americana daquela época.
Assim, explicou-nos Kellner (2001) que a cultura da mídia tem sido um campo
de batalha, no qual alguns grupos sociais assumem posições liberais ou
radicais, e outros assumem posições conservadoras. Todavia suas produções
refletem, automaticamente, nas suas posições. Da mesma forma que alguns
textos da cultura da mídia assumiram posições e representações progressistas
sobre assuntos como: sexo, preferência sexual, raça ou etnia, enquanto que
outros, ao contrário, expressam posições reacionárias. E Kellner exemplificou:
...alguns filmes sobre os anos 1960
apresentavam discursos ambientalistas e
defendiam posições da contracultura
daqueles (por exemplo, Vietnam: The Year
of the Pig), enquanto outros como Os
boinas-verdes (The Green Berets, 1967)
23
representavam positivamente a intervenção
americana no Vietnã e atacavam a
contracultura... (Kellner, 2001:76/77).
O marxismo clássico de Marx e Engels caracterizava a ideologia como as
idéias da classe dominante que predominaram em determinada época
histórica. Para eles a classe dominante lutava por idéias e interesses
particulares, porém sob o disfarce de lutarem pelos interesses gerais. Desta
forma, justificavam ou encobriam o domínio de classe, servindo aos seus
interesses que era de dominá-las. Suas idéias tendiam a dar ênfase à primazia
da economia e da política e nenhuma atenção à cultura e à ideologia.
Por volta de 1920 surgiram novos pensadores que ressaltaram a importância
da cultura e da ideologia, assim como outras escolas e outras versões do
marxismo ocidental também evidenciaram a crítica à ideologia como importante
elemento à crítica da dominação. O conceito de ideologia foi o tema central
para os estudos culturais britânicos, tanto no que se refere à cultura quanto à
sociedade.
No entanto, estes conceitos ainda reduziam a ideologia à defesa de interesses
de classe e, dentro desta concepção, ela se restringe ao conjunto de idéias que
promovem os interesses econômicos da classe capitalista (Kellner, 2001).
Porém, nas últimas décadas, este conceito tem sido contestado por vários
críticos que propõem adicionar a ele, o conceito de ideologia, das idéias, das
teorias, dos textos e das representações que tornem legítimos os interesses
das forças dominantes, no que ser refere a sexo, raça e classe. Para Kellner:
Dessa perspectiva, fazer crítica à ideologia
implica criticar ideologias sexistas,
heterossexistas e racistas tanto quanto a
ideologia da classe burguesa capitalista. Tal
crítica da ideologia é multicultural,
discernindo um espectro de formas de
opressão de pessoas de diferentes raças,
etnias, sexo e preferência sexual e traçando
os modos como as formas de opressão de
pessoas de diferentes etnias, raças, sexo e
preferência sexual e traçando os modos
como as formas e os discursos culturais
24
ideológicos perpetuam a opressão.
(KELLNER, 2001:79).
Como podemos observar, a crítica multicultural de ideologia abrange a todas
as camadas sociais e, não só as classes capitalistas dominantes. Assim sendo,
é preciso considerar todas as lutas de todas as camadas sociais e não
somente os conflitos de classe.
Por conseguinte, Kellner (2001) sugeriu que a sociedade é um grande campo
de batalha e acrescentou que essas lutas heterogêneas são retratadas nas
telas e nos textos da cultura da mídia.
Além disso, ele propôs a expansão do conceito de ideologia para explorar o
modo como as imagens, as figuras, as narrativas e as formas simbólicas
tornam-se parte das representações ideológicas de sexo, sexualidade, raça e
classe, no cinema e na cultura popular.
Numa cultura da imagem dos meios de
comunicação de massa, são as
representações que ajudam a constituir a
visão de mundo do indivíduo, o senso de
identidade e sexo, consumando estilos e
modos de vida, bem como pensamentos e
ações sociopolíticas. (KELLNER, 2001:82)
Essa condição posiciona a ideologia não num processo de representação,
figuração, imagem e retórica como também num processo de discursos e
idéias.
1.2 Ideologia e Discriminação
Para Kellner, a ideologia pressupõe que “eu” seja a norma e aqueles que não
forem como eu sou, são anormais. No entanto, a posição da qual a ideologia
fala, geralmente é a do branco masculino, ocidental de classe média ou alta e
isto representa posições superiores: de raças, classes, grupos e sexos,
diferentes daquelas que são consideradas como secundárias, derivativas,
inferiores e subservientes. Desta forma a ideologia:
25
...diferencia e separa grupos em
dominantes/dominados e superiores/
inferiores, produzindo hierarquias e
classificações que servem aos interesses das
forças e das elites do poder. (KELLNER,
2001:83)
Quando a ideologia diferencia e separa as classes, ela passa a fazer parte de
um sistema de dominação, abstração e distinção entre: sexo, raça, etnia e
classe, portanto constrói divisões ideológicas entre homens e mulheres, ricos e
pobres, brancos e negros, enfim dentre aqueles que essa ideologia considera
os “melhores” e os “piores”. Além disso, ela separa o comportamento próprio
do impróprio e cria em cada um desses domínios uma hierarquia para justificar
a dominação de um sexo, uma raça, uma classe sobre outras, em virtude de
sua superioridade ou da ordem natural das coisas.
A “norma” da ideologia em geral é branca,
masculina e da classe superior, servindo
para denegrir e dominar os não brancos, as
mulheres e os trabalhadores. (KELLNER,
2001:84).
Para Kellner, uma das funções da cultura da mídia dominante é justamente a
manutenção desse estado de coisas, é conservar fronteiras e legitimar o
domínio da classe, da raça e do sexo hegemônico (Kellner, 2001:85).
E assim, a mídia dominante auxilia na manutenção de estigmas e preconceitos.
As mulheres são consideradas submissas, domésticas e passivas, portanto
pertencem à esfera privada - muito embora esta “classificação” tenha mudado
bastante em determinadas culturas, em conseqüência das condições do
capitalismo atual. À esfera pública pertencem os homens – mais seguros,
combativos e racionais. Aqui no Brasil, diz-se com freqüência que os negros e
nordestinos são preguiçosos e indolentes, portanto inferiores aos brancos que
vivem no “sul maravilha”.
1.3 O cinema na agenda social de um país
26
Na opinião de Graeme Turner (1977), o cinema poderia ser considerado um
reflexo das crenças e valores de uma cultura. Entretanto esta afirmação seria
demasiadamente reducionista, uma vez que entre a sociedade e este meio de
expressão um conjunto de determinantes culturais, subculturais, industriais
e institucionais, que como vimos anteriormente, concorrem e conflitam entre si.
De acordo com Turner (1977), assim como qualquer outro meio de
representação o cinema constrói e “re-apresenta” a realidade por meio de
códigos, convenções, mitos e ideologias de sua cultura, bem como por meio
de suas próprias práticas significadoras. Assim sendo, o cinema tanto atua
sobre os meios de significação de uma determinada cultura, como também é
produzido por eles. E, ao atuar sobre os meios de significação cultural o
cinema tem o poder de renová-los, reproduzi-los e analisá-los.
O cineasta usa os repertórios e convenções
representacionais disponíveis na cultura a fim
de fazer algo diferente, mas familiar, novo,
mas genérico, individual, mas
representativo. (TURNER, 1997:129)
Ainda segundo Turner (1997), o resultado das abordagens culturais do cinema,
como representação, é ter em foco as relações de representação entre o
cinema e a ideologia.
Vale acrescentar que os conceitos de ideologia desenvolvidos por Turner
(1997), são muito semelhantes aos de Kellner (2001), porém ele também utiliza
o termo para descrever as atividades da linguagem e da representação na
cultura.
Como foi afirmado anteriormente, o sistema ideológico da cultura é composto
de classes, interesses conflitantes e concorrentes. Este processo, num certo
sentido, é reproduzido em nossas narrativas, tendo em vista que elas atuam
simbolicamente na resolução destas contradições sociais. Assim sendo, os
filmes, os sistemas de representação e as estruturas de narrativas, podem ser
utilizados muito apropriadamente nas análises ideológicas.
Retornamos a Kellner (2001), para explicitar melhor o que foi exposto acima:
27
O exame do cinema de Hollywood de 1967
até hoje, por exemplo, revela que a
sociedade e a cultura americanas foram
dilaceradas por uma série de debates em
torno do legado dos anos 1960, de questões
de sexo e sexualidade da guerra, do
militarismo, do intervencionismo e de várias
outras questões. (KELLNER, 2001:134).
Ao mencionar isso, Kellner (2001) nos revelou que filmes como Rambo,
Amanhecer Sangrento (Red Dawn), Missing in Action (Supercomando) Invasion
USA, Top Gun e outros do mesmo gênero, representam posições direitistas
sobre a guerra. O militarismo e o comunismo, prestando serviço à propaganda
implícita e explícita do reaganismo, assim como a um programa
intervencionista e militarista de direita. Enquanto que outros filmes, como
Missing (O desaparecido, 1982) e Under Fire (Sob fogo cerrado, 1983), para
citar apenas alguns, contestaram veementemente a visão direitista da América
Central e o intervencionismo americano na região. Eles retrataram os
americanos e a burguesia dirigente como “malvados” e foram solidários aos
rebeldes e aos que lutam contra o imperialismo americano.
Assim como os filmes podem ser um terreno fértil para as análises ideológicas,
podemos afirmar que as instituições cinematográficas também são
estruturadas pelas ideologias, que elas têm seus próprios interesses
políticos. Portanto determinam quais os filmes que serão feitos e, por
conseguinte, quais os que serão vistos pelo público.
Alguns países reconhecem o poderio da indústria cinematográfica na geração
de significados e no desempenho de suas funções culturais. Além disso,
reconhecem a importância de se controlar a agenda representacional de uma
nação. Esse fato demonstra enorme preocupação com o domínio de produção
e distribuição de filmes por parte dos Estados Unidos. Sabe-se que o cinema
desempenha funções culturais importantes e os países que montaram suas
próprias industriais cinematográficas, tinham como objetivo a retomada do
controle dessas funções.
28
Para Turner (1977), quando os filmes agem como representantes ou
representações de uma nação no exterior, eles passam por um regime
diferente de inspeção, podendo ser avaliados, por exemplo, pela sua
adequação como propagandas turísticas ou por sua “tipicidade” como imagens
de uma nação.
Tanto isto é verdadeiro que uma revista de negócios, ao apontar a “Marca-país”
como um ativo estrategicamente importante para alavancar o crescimento de
uma nação. Ela questionou o porquê de haver mais turistas que visitam a
Grécia do que a Turquia, uma vez que os turcos alegam ter um litoral mais
extenso, suas águas menos poluídas e seus sítios arqueológicos excepcionais.
Ou seja: a Turquia tem tudo para agradar aos turistas.
No entanto, um número consideravelmente maior de pessoas prefere a Grécia,
porque a Turquia tem uma imagem problemática, que viola os direitos
humanos. Essa imagem foi difundida para o mundo todo, no filme Expresso da
Meia-Noite (1978) uma produção que teve origem nos Estados Unidos/Reino
Unido. As imagens deste filme foram tão contundentes na criação de uma
imagem ruim para a nação Turca, que o governo daquele país foi obrigado a
lançar uma grande campanha publicitária para convencer aos turistas de que a
Turquia é tão democrática quanto ao seu vizinho mediterrâneo
1
. Com este
exemplo, voltamos a questionar a importância da produção cinematográfica
dentro do contexto da produção da cultura nacional. Também consideramos
relevante olharmos para o exemplo da retomada do cinema brasileiro, através
da recuperação da sua crise de produção, na década de1990.
1.4 O renascimento do Cinema Brasileiro
A Embrafilme foi criada em 1969, pelo governo militar, para gerenciar a
produção cinematográfica brasileira. Ela foi extinta em 1990, pelo então
presidente Fernando Collor de Mello. Com a falta de outro órgão para substituí-
la, a produção de filmes nacionais diminuiu drasticamente. Consequentemente
1 (HSM Management, 44, vol.3, maio-junho 2004: 68).
29
o público afastou-se do cinema e elegeu a televisão como meio audiovisual de
sua preferência.
O autor Ismail Xavier (2001), descreveu dois momentos contrastantes do
cinema nacional. O primeiro foi em 1964, quando aconteceu o golpe militar. O
cinema estava em ascensão, em plena explosão criativa, com filmes de
Nelson Pereira dos Santos (Vidas Secas, 1963), Glauber Rocha (Deus e o
Diabo na Terra do Sol, 1964) e Ruy Guerra (Os Fuzis, 1964). Este foi o apogeu
do Cinema Novo, que apresentava filmes em estilos diferentes e
demonstravam a solução encontrada pelo “cinema de autor” para afirmar sua
posição na luta política e ideológica, que estavam em curso no país e na
sociedade (XAVIER, 2001:47).
O segundo período foi o de 1984, quando o país encontrava-se em plena
abertura política, com a luta pelas “Diretas Já”. A sociedade vivia um clima
intenso de transição, porém a produção cinematográfica era quase inexistente.
O quadro cinematográfico que se apresentava era de morte e havia a
necessidade de se promover uma reformulação da Embrafilme (XAVIER,
2001:48), a qual foi extinta anos mais tarde durante o governo de Collor de
Mello.
Segundo Xavier (2001), o cinema não conseguiu se renovar, apesar de que o
país vivenciava novos valores e havia uma rápida ascensão de novos talentos.
Porém, tal como ocorreu nos anos de 1960, ela foi prejudicada por uma crise
geracional. Assim, a produção mais visível do mercado, foi a de cineastas
veteranos que realizaram projetos antigos, aproveitando o clima social e
político que tinham vivido: Memórias do Cárcere (Nelson Pereira, 1984) e
Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984).
Em consequência disso, conclui-se que a extinção da Embrafilme em 1990,
assim como a de outros órgãos: o Concine e a Fundação do Cinema Brasileiro,
tenha sido somente a gota d´água para a quase extinção da produção
cinematográfica nacional. A Embrafilme tinha um modelo de produção
esgotado e estava em franca decadência. O problema com a sua extinção é
que nada foi criado para substituí-la, deixando o cinema ao sabor do mercado.
30
Assim, cinema e cultura passaram a ser considerados mercadorias como
qualquer outra (ORICCHIO, 2003:25).
Durante esse período de decadência do cinema nacional, alguns filmes ainda
foram lançados, porém em condições muito precárias. No período de 1990 a
1994 foram produzidos apenas 30 títulos nacionais.
Para que o cinema nacional pudesse se reerguer e contar com algum tipo de
financiamento público, foi preciso reestruturar as leis e os órgãos de incentivo à
produção. Desta forma, em 1991, foi sancionada a Lei Rouanet e
posteriormente, em 1993, a Lei do Audiovisual.
Com estes incentivos, a realização de filmes nacionais voltou a crescer e
iniciou-se uma nova fase do cinema no Brasil. Ela foi denominada Retomada,
porque a atividade cinematográfica daquele período era muito baixa e começou
a se re-erguer. Aquele período foi caracterizado pela: reestruturação dos meios
de produção, inserção da iniciativa privada no financiamento e distribuição dos
filmes, renovação profissional da categoria e reconquista do público.
Segundo Oricchio (2001), a partir de 1995 vários títulos foram lançados, dentre
eles, Carlota Joaquina de Carla Camurati, cuja qualidade estética não foi
comentada. Porém, ele foi considerado uma espécie de marco zero da
Retomada do cinema Nacional, pelo seguinte motivo:
A resposta do público, principalmente. Se
antes do filme de Carla outros tiveram
repercussão e espaço na mídia, este falou
diretamente ao expectador. (ORICCHIO,
2001:26).
Apesar de ter sido produzido com um orçamento baixo e com apenas 4 cópias
lançadas no mercado, o filme Carlota Joaquina atraiu 1.286.000 expectadores.
Esse fato o posicionou como o primeiro filme da Retomada nacional a atrair
mais de 1 milhão de expectadores.
Para Oricchio (2001), o mais importante foi que, após a exibição do filme
Carlota, a população voltou a conversar sobre o cinema nacional.
Depois disso, outros filmes também alcançaram sucesso de público,
31
principalmente as produções de Renato Aragão e Xuxa, mostrando que o
sucesso desses artistas na TV, também encontrava resposta de público nas
telas do cinema.
A aplicação da Lei do Audiovisual propiciou o crescimento e a estabilização da
produção cinematográfica nacional. Foi produzido por volta de 20 a 30 títulos
por ano e, segundo dados da Secretaria do Audiovisual, entre 1995 e 2001 o
país produziu 167 longas-metragens e se contarmos até o final de
2002, chega-se a aproximadamente 200 filmes de longa metragem rodados e
distribuídos durante o período da Retomada (ORICCHIO apud Folha de
S.Paulo, 24/05/2002).
No entanto, para Oricchio (2001), se notava alguma limitação na produção
dessa modalidade, no final da década. Uma das queixas mais freqüentes era
de que a lei outorgava muito poder aos diretores de marketing das empresas.
Afinal, eles eram quem decidiam a que tipo de produção cultural associar a
marca da empresa e, conseqüentemente, controlavam a produção de filme no
país.
Mas, felizmente, nem tudo ficou atrelado à lei, por isso alguns filmes de longa-
metragem puderam ser produzidos por meio de outras fontes: concursos
organizados pelo governo federal e governos estaduais, assim como a entrada
da Warner e da Columbia na produção e distribuição dos filmes brasileiros e a
criação da empresa Globo Filmes.
Aqui não podemos afirmar se feliz ou infelizmente, pois ao contrário do que
acontece em outros países, como: França, Espanha e Inglaterra; a televisão
brasileira não produz muitos filmes e a Globo Filmes investe mais na produção
de filmes comerciais. Os filmes da apresentadora Xuxa tiveram 39% da fatia do
mercado e, outros filmes cujo elenco foi composto por atores da emissora,
tiveram quase 70% da taxa de ocupação das salas. Para Oricchio:
Isto significa dizer que o filme mais crítico,
menos associado ao entretenimento
imediato, tem encontrado dificuldades, o que
não chega a ser novidade nem representa
uma característica específica do Brasil. Com
32
as diferenças de praxe, este tipo de
concentração de público em produtos
descompromissados e repetitivos parece
dominante em todo o mundo, incluindo-se
os centros mais desenvolvidos. (ORICCHIO,
2003: 28).
Porém, há uma questão importante a ser considerada: se por um lado o
desmanche da era Collor produziu um sentido de degradação do cinema
nacional, por outro, não se pode negar que o cinema renasceu, quando teve
sua produção atrelada à renúncia fiscal e, por conseguinte, controlada, ao
menos em parte, pelo departamento de marketing das empresas.
Mas para Oricchio (2003), esse fator não representa uma camisa de força ao
cinema nacional, haja vista que muitos filmes foram feitos de maneira radical,
sem muitas concessões. Na opinião do autor, a maioria dos longas-metragens
produzidos, é o resultado do desejo de fazê-lo por parte de seus
diretores. Todavia mesmo aqueles que foram produzidos por razões
mercadológicas, para aproveitar o sucesso de alguma estrela de novela, por
exemplo, não deixam de abordar o país onde são feitos.
É importante destacar que a produção cinematográfica brasileira dos últimos
anos, não deixou de considerar as condições do país. Ela abordou temas
sociais relevantes da nossa cultura, ao mostrar a enorme diferença entre
classes existente na nossa sociedade, para tentar compreender a história do
país e examinar os impasses causados pela modernidade na estrutura das
grandes cidades.
Fazendo um balanço geral, Oricchio aponta que, grande parte dos filmes
produzidos no Brasil, durante estes anos, considerou as condições do país:
Bem ou mal, debruçou-se sobre temas como
o abismo de classes que compõe o perfil da
sociedade brasileira, tentou compreender a
história do país e examinou os impasses da
modernidade na estrutura das grandes
cidades. Foi do sertão às favelas e
reinterpretou estes espaços privilegiados de
reflexão do cinema nacional.., Como pôde,
examinou o caráter das novas relações
33
amorosas surgidas com a modernização,
ensaiou a volta ao regionalismo e ao
metacinema e refletiu sobre temas difíceis e
tão enraizados no imaginário nacional) como
o relacionamento do brasileiro com o Outro
o estrangeiro, aquele que não faz parte de
“nós” e no encontro com quem,
paradoxalmente, buscamos nos
reconhecer.(ORICCHIO, 2003: 32)
Dentre tantas outras coisas, ousamos acrescentar, pontualmente, o
relacionamento do brasileiro com ele mesmo e com a doença, com vista em
que o cinema auxiliou na representação e na re-apresentação de um difícil e
delicado problema, que também está enraizado no imaginário nacional: o
surgimento de uma nova pandemia denominada AIDS.
Dentro desse contexto, propusemos, neste estudo e dissertação, a discussão
dos filmes Carandiru e Cazuza que, apesar de não terem a AIDS como tema
central, de certa forma, eles retrataram a convergência e/ou divergência dos
seus efeitos de sentido, que foi criado pela mídia impressa desde o seu
surgimento.
34
CAPÍTULO2
35
CAPÍTULO 2
Este capítulo destina-se a elucidar ao leitor, de forma sucinta, sobre a
existência da doença.
Não se pretende aqui discutir a doença sobre o ponto de vista médico-
científico, sócio-político ou cultural. Pretende-se somente apresentar os
principais avanços na área científica, a partir da época de sua detecção,
assim como apresentar um panorama mundial sobre a situação da epidemia,
sem esboçar quaisquer comentários de ordem pessoal, científica ou social. O
presente capítulo foi baseado nos últimos estudos realizados pelo UNAIDS
Joint United Nations Programme on HIV/Aids
2,
em dezembro de 2007, e nos
registros oficiais do Ministério da Saúde sobre a doença no Brasil. O resultado
desta análise foi, um resumo das estimativas mais recentes sobre o
alastramento da epidemia no mundo.
2. Historicizando a Aids
2.1 O surgimento de uma nova doença
Em 1981, o Centro de Controle de Doenças CDC (Center for Disease Control)
em Atlanta (Sul dos Estados Unidos), revelou, através de seu boletim semanal,
o diagnóstico de cinco homossexuais com uma forma rara de pneumonia, o
que normalmente afeta pacientes imunodeprimidos, e que dois deles morreram
deste mal. Naquele mesmo ano, o CDC anunciou a detecção de sarcoma de
Kaposi, um câncer raro que, normalmente afeta idosos, em 26 homossexuais
(dos quais oito morreram) e dez novos casos de pneumonia, o que alertou as
autoridades americanas para o aparecimento de uma nova doença.
Em 1982, a nova doença foi batizada com o nome de AIDS, sigla que em inglês
significa - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.
2 Programa conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids – UNAIDS, criado em 1996 e co-patrocinado por dez agências
do Sistema das Nações Unidas.
36
O agente causador da doença foi isolado pela primeira vez em 1983. Os
cientistas deram-lhe o nome de LAV (sigla que em inglês significa
Lympadenopathy-associated vírus).
Em novembro daquele ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS)
estabeleceu uma vigilância global. O número conhecido de casos de AIDS (só
nos Estados Unidos) era de 3.064. Também foram registrados os primeiros
casos de AIDS no Brasil. Em conseqüência disso, foi implantado o primeiro
programa oficial de controle da doença, no Estado de São Paulo e depois no
Estado do Rio de Janeiro.
Em 1985, surgiram os primeiros testes comerciais para detectar a doença e
aconteceu a primeira Conferência Internacional sobre a AIDS, em Atlanta nos
Estados Unidos. No ano subseqüente foi criado, no Brasil o Programa Nacional
de DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e AIDS.
Em 1987, surge a primeira droga anti-HIV, a zidovudina (AZT), que foi
aprovada após a realização de testes que demonstraram sua eficácia na
redução da progressão do vírus, mas não na sua cura. Finalmente, em 1988, a
Organização Mundial da Saúde instituiu o dia de dezembro como o Dia
Internacional de Combate à AIDS.
2.2 O relatório mundial de 2007: um panorama atual
Segundo o boletim, atualizado em 2007, emitido pela OMS e o UNAIDS, a
prevalência o alastramento do HIV permanece estável em todo o mundo, após
entrar na sua terceira década de existência. N o entanto, segundo o mesmo
boletim, a AIDS continua entre as principais causas de morte em todo o mundo
– são 5.700 óbitos e mais de 6.800 novas infecções por dia.
Em 2007, o Grupo de Referência do UNAIDS sobre Estimativas, Modelagem e
Projeções (UNAIDS Reference Group on Estimates, Modelling and Projections)
recomendou à OMS e ao UNAIDS que se revisasse o número estimado de
pessoas que vivem com HIV atualmente. Essas revisões foram feitas,
37
principalmente por causa: da revisão das metodologias de estimativas
3,
aprimoramento da vigilância
4
em alguns países e mudanças nas suposições
epidemiológicas chaves
5
utilizadas para o cálculo das estimativas.
O resultado foi de uma redução no número total de 39,5 milhões de casos em
2006 para 33,2 milhões em 2007, sendo que a maioria das estimativas é mais
baixa do que aquelas publicadas em relatórios anteriores, tanto em relação a
2007 como também em relação aos outros anos.
2.2.1 A visão global da AIDS.
Conforme já foi mencionado, o número de pessoas que vivem com o HIV
parece estar estabilizado. Porém nos últimos seis anos a prevalência do HIV
aumentou para 33,2 milhões (30,6-36,2 milhões) em 2007. Em 2001, a
prevalência era de 29,0 milhões (26,9-32,4 milhões) em 2001.
3
Revisão da metodologia: A revisão da metodologia deu-se como parte do processo contínuo de aprimoramento das
estimativas de HIV com base nas mais recentes descobertas científicas. No mês de novembro/07 o UNAIDS e a OMS
promoveu uma consulta internacional sobre estimativas em HIV que reuniu mais de 30 especialistas em todo o mundo
com o objetivo de revisar os processos, as metodologias e as ferramentas utilizadas para produzir as estimativas sobre
HIV.
4
Aprimoramento da vigilância: Nos últimos anos vários países, principalmente os da África Subsaariana e da Ásia
realizaram estudos novos e mais precisos para aprimorar seus sistemas de vigilância do HIV. Em alguns países houve
um aumento de sítios de vigilância sentinela, tanto em quantidade quanto em cobertura geográfica. Além disso, 30
países, a maioria na África, realizaram pesquisas domiciliares representativas com base em populações.
Consequentemente, as novas informações auxiliaram no ajuste dos dados de outros países com epidemias
parecidas,mas que ainda não realizaram pesquisas.
5
Mudanças nas suposições epidemiológicas chaves: foram incorporadas às ferramentas de software utilizadas
pelo UNAIDS e pela OMS para as estimativas de 2007 várias suposições novas, dentre elas: a. adaptação da forma
como os dados de clínicas de pré-natal são utilizados para auxiliar no cálculo da prevalência do HIV. Estes dados
foram ajustados para baixo utilizando em média um fator de 0,8, nos países que não realizaram uma pesquisa nacional
com base em populações. b. aumento do número estimado de anos de sobrevida de pessoas vivendo com HIV, mas
sem tratamento, de 9 para 11 anos - o que resultou em estimativas mais baixas de novas infecções por HIV e óbitos
por Aids.
38
Segundo o boletim da AIDS, atualizado em 2007, estimava-se havia 2,5
milhões de pessoas infectadas pelo vírus pela primeira vez, naquele ano. E que
2,1 milhões de pessoas morreram de doenças relacionadas à AIDS.
2.2.1.1 Os fatos chaves por Região no Mundo
Estima-se que, na África Subsaariana, 1,7 milhão de pessoas foram infectados
pelo vírus da AIDS em 2007, totalizando 22,5 milhões de pessoas vivendo com
o vírus, sendo que a maioria são mulheres (61% dos infectados). Daquela
região, a África Meridional é a mais afetada, sendo que em oito6 países, a
prevalência do HIV ultrapassou a marca dos 15% da população em 2005.
A África do Sul é o país onde existem mais pessoas vivendo com o HIV no
mundo. Porém, a prevalência de HIV, entre os adultos, está estabilizada e
mostra sinais de diminuição, nota-se também, evidências de mudanças
comportamentais para comportamentos mais seguros.
Estima-se que, na Ásia, 4,9 milhões de pessoas viviam com HIV em 2007,
sendo que 440.000 pessoas foram infectadas no ano antecedente. O número
de pessoas que morreram por causa de doenças relacionadas à AIDS em 2007
foi de aproximadamente 300.000.
Na Ásia oriental, o número de infecções por HIV foi quase 20% maior do que
em 2001 e no Sudeste da Ásia concentra-se a maior prevalência de HIV.
Naquela região, há uma grande variação quanto às tendências epidemiológicas
entre os diversos países – queda em alguns países e ritmo acelerado de
crescimento em outros.
Estima-se que na Índia, apesar da queda nos números de infecções estimados
anteriormente, a epidemia continua a afetar 2,5 milhões de pessoas.
O Caribe é considerado a segunda região mais afetada do mundo, sendo que a
prevalência do HIV atingiu 1% da população de adultos em 2007, com 230.000
pessoas infectadas.
6
Botsuana, Lesoto, Moçambique, Namíbia, África do Sul, Suazilândia, Zâmbia e Zimbábue.
39
Na Europa do Leste e na Ásia Central a estimativa é de que aumente o
número de pessoas infectadas pelo vírus do HIV em 2007, desde 2001 o
número cresceu em mais de 150%. Estima-se que haja 1,6 milhões de
pessoas infectadas naquela região. Foi detecta cerca de 150.000 novas
infecções por HIV, sendo que quase 90% dos novos casos notificados deram-
se na Federação Russa e na Ucrânia.
O uso de drogas injetáveis é um fator significativo para o aumento do número
de casos.
Na América Latina as epidemias permanecem estáveis. O número estimado de
novas infecções em 2007, foi de 100.000 casos, totalizando 1,6 milhões de
pessoas infectadas. A transmissão do HIV continua relacionada ao
comportamento de risco, que se agrava com a exposição ao sexo, ou seja: a
maior incidência continua entre os profissionais de sexo e homens que têm
relacionamento sexual com outros homens.
O estigma e a discriminação generalizados dificultam os esforços para se levar
o acesso universal à prevenção, ao tratamento, à atenção e ao apoio em
relação ao HIV, na região. Além disso, por falta de investimentos em alguns
países, a vigilância continua inadequada.
Na América do Norte, Europa Ocidental e Central, um total aproximado de 2,1
milhões de pessoas vivia com o HIV em 2007, incluindo as 78.000 pessoas que
se infectaram no ano anterior. Estima-se que 32.000 pessoas morreram de
doenças relacionadas à AIDS em 2007. Este número relativamente baixo de
óbitos está relacionado ao amplo acesso ao tratamento anti-retroviral naquela
região.
No Oriente Médio e na África do Norte a vigilância e a coleta de dados ainda
continuam inadequados. Estima-se, entretanto, que houve 35.000 novas
infecções em 2007, sendo que a maioria ocorreu em homens e em áreas
urbanas, com exceção do Sudão, onde a relação heterossexual desprotegida
é o maior fator de risco. O uso de drogas injetáveis é a principal via de
transmissão do HIV nessas regiões.
40
Na Oceania a AIDS atinge cerca de 75.000 pessoas, a estimativa é de que
14.000 pessoas contraíram o vírus em 2007.
2.2.2 Os números da AIDS no Brasil
No Brasil, dados publicados no Boletim Epidemiológico do Ministério da
Saúde7 sobre AIDS/DST, registraram, desde 1980 até junho de 2007, o total
de 474.273 casos de AIDS notificados. Destes, 66,27% correspondem ao sexo
masculino e 33,73% ao feminino. Na última década, vimos crescer
vertiginosamente o número de mulheres infectadas, tendo em vista que se
analisarmos o período de 1985-1995 as taxas de infecção estavam na
proporção de 79,13% para homens e 20,87% para as mulheres, ou seja: uma
mulher infectada para cada quatro homens em média8.
Na categoria por exposição, o Boletim demonstrou que, do número total de
infectados do sexo masculino 31,7% correspondia à categoria
“homo/bissexual”, 30,1% à “heterossexual” e 19,7% a “usuários de drogas
injetáveis”. O número de mulheres infectadas por “uso de drogas injetáveis”
correspondia a 9,1% da população. Em menores de 12 anos, a transmissão
vertical (vírus da mãe para o filho) corresponde a 83,4% dos casos notificados.
Aproximadamente 42% das pessoas infectadas morreram, no Brasil. Quanto
ao número de óbitos, segundo o critério raça/cor, observamos um crescimento
persistente nas categorias “preto/pardo”, em ambos os sexos, entre 2000 e
2006, enquanto que na categoria “branca” observamos uma queda de mais de
10 pontos percentuais (Tabela XIV do Boletim Epidemiológico Aids/DST 2006).
Segundo o Relatório UNGASS Resposta Brasileira 2005-2007 Relatório de
Progresso do País do Ministério da Saúde9, houve o “empobrecimento” da
7 www.datasus.gov.br no menu > Informações em Saúde, acessado em 09/11/2007.
8 www.Aids.gov.br no menu > Área técnica > Epidemiológico > Boletim epidemiológico, acessado em 09/11/2007.
9 www.aids.gov.br - Ministério da Saúde do Brasil - Secretaria de Vigilância em Saúde Programa Nacional de DST e Aids - Metas e
Compromissos Assumidos pelos Estados-Membros na Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas em HIV/Aids -
UNGASS – HIV/Aids – acessado em 16/02/2008.
41
doença nos últimos anos. Pois, o perfil da epidemia aponta para o aumento
proporcional e do número absoluto de casos, entre indivíduos com menor
inserção social, notadamente aqueles com menor grau de instrução, com
ocupação que exige menor qualificação e residentes nas periferias dos centros
urbanos. Para essa população, a presença de uma doença, especialmente da
AIDS, significa um aumento considerável no seu grau de vulnerabilidade social,
contribuindo para o aumento do nível de pobreza no País.
Os estudos realizados neste sentido mostraram as dificuldades dessa
população, em manter o seguimento adequado do tratamento, assim como em
encontrar as condições necessárias para a inserção social e para o mercado
trabalho. Essas circunstâncias relevam a importância de políticas sociais, para
levar apoio a essa população, o que reduziria o potencial impacto da epidemia.
Em uma publicação muito recente
10,
a Agência Brasil anunciou que quase
metade dos brasileiros portadores do vírus HIV demora a começar o tratamento
à base de coquetéis anti-retrovirais. A informação é do relatório UNGASS:
Resposta Brasileira à Epidemia de AIDS 2005-2007, divulgado pelo Ministério
da Saúde.
Nessa reportagem, a Agência Brasil afirma que, entre 2003 e 2006, 43,7% dos
brasileiros infectados, com idade acima de 15 anos, chegaram aos serviços
de saúde com algum tipo de deficiência imunológica ou com sintomas da AIDS.
De um total de 115.441 pessoas infectadas, 14.462 (28,7%) morreram no início
do tratamento, em decorrência de quadros clínicos mais graves. Na região
Centro-Oeste, 47,4% dos infectados procuraram tratamento tardiamente.
Segundo Mariângela Simão, diretora do Programa Nacional DST/AIDS do
Ministério da Saúde, “O perfil da epidemia mudou radicalmente no Brasil. Hoje,
ela é uma epidemia predominantemente heterossexual, ou seja, pessoas que
praticam sexo desprotegidamente, com pessoas do sexo oposto. Todos
aqueles que têm uma vida sexualmente ativa, precisam pensar na qualidade de
suas relações”.
10 Boletim da Aids – faleco[email protected]v.br – acessado em 23/02/2008.
42
O relatório UNGASS aponta também que 94,8% das pessoas infectadas no
país estão em tratamento – ainda que tardiamente. O documento destacou que
a AIDS no Brasil aumentou entre a população acima de 50 anos e, sobretudo,
acima dos 60. Isso porque esse grupo populacional não foi habituado a usar
preservativo. Portanto, hoje, não percebe o risco a que se expõe. Enquanto o
jovem aumentou o uso do preservativo, esse hábito cai radicalmente conforme
o aumento da idade.
43
CAPÍTULO3
44
CAPÍTULO 3
Em 1987, o médico Jonathan Mann que era o responsável pelo programa de
controle da AIDS na Organização Mundial da Saúde (OMS), indicou pelo
menos três fases da epidemia da AIDS numa dada comunidade: a primeira é a
epidemia pelo HIV que penetra a comunidade silenciosamente e, muitas vezes,
nem é notada. A segunda epidemia ocorre alguns anos mais tarde, é a
epidemia da própria AIDS: a síndrome de doenças infecciosas que se instalam
em decorrência da imunodeficiência provocada pela infecção do HIV e,
finalmente, a terceira (e talvez a mais explosiva) epidemia que é a de reações
sociais, culturais, econômicas e políticas11.
Considerando a “terceira epidemia” cunhada por Mann, este capítulo pretende
elucidar ao leitor sobre como a AIDS tem sido representada, desde o seu
surgimento, pelos diversos grupos sociais: ciência, poder blico, imprensa e
movimentos autônomos organizados de luta contra a AIDS.
3. A construção social da Aids
A síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) é a manifestação clínica (de
sinais, sintomas e/ou resultados laboratoriais que indiquem deficiência
imunológica) da infecção pelo vírus HIV, que demora em média, oito anos para
se manifestar.
Em junho de 1981, o Centro de Controle de Doenças CDC (Center for
Diesease Control) em Atlanta (Sul dos Estados Unidos), revelou, em seu
boletim semanal, o diagnóstico de cinco jovens homossexuais do sexo
masculino. Eles apresentavam uma forma de pneumonia atribuída ao
microorganismo Pneumocystis carinii (PPC), o qual normalmente afeta
pacientes imunodeprimidos, dois deles morreram deste mal.
11 www.somos.org.br – acessado em 26/02/2008.
45
A edição do mês subseqüente desse mesmo boletim apresentou a ocorrência
de sarcoma de Kaposi (SK) em homossexuais jovens, em hospitais de Nova
Iorque e da Califórnia. A nota editorial desse boletim sinalizava para a
freqüência e malignidade pouco usual do sarcoma de Kaposi
12
e novamente
recomendou à comunidade médica que ficasse atenta à ocorrência de PPC, SK
ou outras doenças oportunistas, em homossexuais (Nascimento, 2005: 82).
Realmente tratava-se de uma nova doença e por causa disso, surgiram várias
especulações para tentar explicá-la, elas variavam desde: punição divina pela
transgressão da ordem sexual ou promiscuidade, até a criação do vírus em
laboratórios.
Segundo Nascimento (2005), os equívocos médicos geraram denominações
carregadas de moralismo, como: “síndrome gay”, “câncer gay”, “pneumonia
gay” e até imunodeficiência ligada ao homossexualismo.
O público leigo tomou conhecimento sobre a misteriosa doença, em julho de
1981, por meio de um artigo publicado por um cronista de medicina no New
York Times. Ao referir-se à AIIDS, o cronista relatou o surgimento de um
“fenômeno patológico curioso que intrigava aos especialistas e que começava
a assustar os gays de Nova York” (Nascimento: 2005, apud Grmeck).
A partir de então, a divulgação dessa nova ameaça aos homossexuais tornou-
se notícia constante nos grandes jornais e na mídia em geral, o que resultou
em uma crescente organização de grupos gays, não nos EUA como
também em outras partes do mundo.
Os meios de comunicação usaram a Aids
como notícia cotidiana. Os médicos tinham
espaço para divulgar suas opiniões e seus
conhecimentos, ao mesmo tempo em que
grupos de porta-vozes de interesses
específicos ameaçados pela vigilância
também o tinham. Especialmente grupos de
defesa da liberdade de orientação sexual se
expressaram (LIMA, 2006:28).
12 Trata-se de um tipo raro de câncer de pele, de causa desconhecida e pouca malignidade, que acomete, preferencialmente, homens
com mais de 50 anos de idade.
46
Em 1982, a doença foi batizada com o nome de AIDS, sigla em inglês para -
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Ela foi inicialmente identificada como
síndrome que acomete indivíduos do sexo masculino e os homossexuais, que
foram categorizados como “grupo de risco”
13
. No entanto, não demorou muito
para se constatar a doença em usuários de drogas injetáveis e hemofílicos,
conseqüentemente ampliando os grupos de risco. A AIDS permanecia, assim,
como uma doença “estranha” que acometia pessoas consideradas “estranhas”
(Nascimento, 2005:83).
Em 1983, cientistas do Instituto Pasteur, na França, liderados por Luc
Montagnier, isolaram o vírus que invade os leucócitos e provoca a AIDS. Eles
lhe deram o nome de LAV (sigla em Inglês para - Lympadenopathy-associated
vírus) e esclareceram os mecanismos de transmissão da doença, que ocorre
por via sexual e sangüínea. No mesmo ano, Robert Gallo do National Câncer
Institute, também isolou o vírus e nomeou-o HTLV-III.
A descoberta do vírus e sua associação ao grupo HTLV gerou grande
controvérsia no meio científico. Em 1986, finalmente, o nome do vírus foi
universalizado como HIV por uma Comissão Internacional de Nomenclatura em
Virologia. Em 1992 ficou provado que Gallo aproveitou-se das investigações de
Montagnier e por isso ele perdeu os direitos sobre o retrovírus e sua imagem
acadêmica ficou bastante abalada.
O anúncio da descoberta do vírus apareceu rapidamente, o que provocou uma
sensação de que tudo seria resolvido num curto espaço de tempo. Pensou-se
que a descoberta da cura para a doença também pudesse ser rápida. Mais
uma vez a comunidade científica se enganou e a mídia deixou-se levar.
A autora Rosana de Lima Soares, citou Mello em sua dissertação de
mestrado
14
, e afirma que: do HIV pode-se dizer que seu aspecto mais
significante seja a sua singularidade biológica (SOARES, 2001:81): ”Ele
13 Denominam-se grupos de risco aqueles indivíduos onde a prevalência da doença é maior, em comparação com a população em
geral.
14 Soares, Rosana de Lima. Imagens veladas: Aids, imprensa e linguagem – São Paulo: Annablume, 2001. Originalmente apresentada
como dissertação (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 1997) sob o título: Imagens veladas, imagens
reveladas: narrativas da Aids no Jornal Folha de S.Paulo.
47
reproduz-se dentro da estrutura das células, do sistema imunológico
denominado T-4 (ou linfócitos auxiliares), de maneira bem diferente da dos
vírus causadores das viroses mais conhecidas (...) permanecendo por toda a
existência dessas células” (MELLO, 1994:23). Daí a dificuldade em aprisioná-
lo. O vírus tinha múltiplas formas de aparição, o que reforçou, no imaginário
social, perspectivas aterrorizantes de algo inapreensível (NASCIMENTO,
2005:119).
Dráuzio Varella, em depoimento gravado
15
, revelou à Nascimento essa
“inapreensão”, ao explicar o mecanismo de replicação do vírus que possui
RNA:
Ele tem que se transformar em DNA e utiliza
a transcriptase reversa para fazer isso.
que este mecanismo é muito arcaico. Muito
velho. Foi abandonado atrás, ao longo do
processo evolutivo. Trata-se de um
mecanismo arcaico e que produz erros com
muita freqüência! Esse conjunto de erros é o
segredo da mutação do HIV. O HIV não é
inteligente. Agente fala: ‘Ah, o vírus é
esperto! Isso é uma figura de linguagem na
qual agente acaba acreditando: o vírus é
esperto, ele é aquilo ele muda. Nada! Ele
comete tantos erros nessa passagem, que a
maioria de suas cópias é inútil, não serve
para nada. Mas alguns servem. E essas que
servem não são iguaiszinhas a que lhes deu
origem. Nessas diferenças (...) aquelas que
são sensíveis ao AZT, por exemplo, vão
morrendo. Vão morrendo, vão morrendo (...).
As que não são sensíveis começam a
competir mais e ele vem com tudo
(NASCIMENTO: 2005, apud Varella).
Apesar de tantos avanços e descobertas na área científica, em tão curto
espaço de tempo, criou-se preconceito e discriminação de soropositivos ou
doentes porque esses fatos foram alardeados pela imprensa, o que também
contribuiu para a sua rápida expansão mundial, dando origem a uma
15 A Representação Social da Aids (arquivo Sonoro, COC/Fiocruz, fita 4, lado A, 1998).
48
pandemia
16
. A esse respeito, Nascimento (2005:84) diz o seguinte: “Há que se
observar que o pensamento da comunidade científica realmente não esteve
isento de concepções morais no seu processo de construção de um modelo
adequado de evolução do vírus”.
E Soares (2001) conclui:
muitas crenças ocultas em torno da Aids.
Muitas delas cristalizadas nos discursos
médico e científico, especialmente no início
da epidemia. A forma como a Aids foi se
caracterizando ao longo da história indica
esse percurso: primeiramente o advento
social da doença, no início dos anos 80, deu-
se em torno da categoria “grupo de risco”. A
imprensa assumiu o discurso da “peste
gay”... e a ciência, num primeiro momento, foi
responsável pela formação dessa imagem...
(SOARES, 2001:81).
Desta forma, a AIDS que a princípio estava aprisionada a guetos americanos
de homossexuais, hemofílicos e usuários de drogas injetáveis, chega ao Brasil.
Quando os primeiros casos de AIDS surgiram no Brasil, a comunidade
científica brasileira usou a mesma classificação norte-americana: tratava-se de
uma síndrome de imunodeficiência adquirida, causada por um vírus
denominado HIV, transmitida por via sexual ou sanguínea, e que acometia
homossexuais masculinos, usuários de drogas e hemofílicos.
Notícias sobre essa nova doença circulavam por aqui, tanto no meio
científico quanto na imprensa. O primeiro jornal de grande circulação a abordar
a AIDS, foi o Jornal do Brasil, em setembro de 1981, seguido pelo O Globo. Em
ambos os jornais a AIDS foi fortemente vinculada ao homossexualismo
masculino e nos três anos subseqüentes, a mídia insistiu em trazer ao público
essa vinculação através de notícias pouco esclarecedoras, sobre o ponto de
vista científico, carregadas de contradições, “espelhando a perturbação
causada por esse novo evento no campo científico” (NASCIMENTO, 2005:86).
16 Aumento inesperado do número de casos de uma doença em vários lugares ao mesmo tempo.
49
Além da vinculação a homossexuais, a imprensa brasileira também vinculava a
AIDS a estrangeiros, ou seja, uma doença que veio de fora e que existia
fora. Em 1983, com a notícia da morte do famoso costureiro brasileiro, o
Markito, que fazia muitas viagens aos EUA, este vínculo ficou ainda mais
evidente. Segundo Nascimento (2005), a morte de um costureiro famoso, rico,
branco, jovem e homossexual, que viajava muito aos EUA reforçava ainda mais
a idéia de que a AIDS estaria longe do brasileiro comum e restrita aos
homossexuais de classe média alta, que realizavam muitas viagens ao exterior.
Em pouco tempo os jornais brasileiros começaram a noticiar vários casos da
doença. A AIDS não era mais uma doença trazida de fora, por estrangeiros
ou por homossexuais de classe média alta que realizavam muitas viagens ao
exterior, mas continuava a ser a doença do “câncer gay”.
Não mais doença de estrangeiro, mas ainda
‘doença do outro’, pela pregnância no plano
simbólico e no plano social de uma
associação da Aids com homossexuais.
Nesse sentido, instaura-se um debate sobre
a legitimidade de se pensar a Aids como
doença dos homossexuais. O número
crescente de casos fez com que a doença
passe a ser uma grande ameaça que pode
matar, num futuro mais ou menos longínquo,
cada vez mais pessoas. Desse modo os
homossexuais, estigmatizados por sua
preferência sexual diversa do que se
pretende predominante ou ‘normal’, passam a
carregar mais um estigma, o de responsáveis
pela disseminação da Aids. (NASCIMENTO,
2005:88).
Em meados da década de 80 a AIDS tinha extrapolado o território paulista e,
em março de 85 a revista Isto É informava a existência de “219 casos no eixo
Rio - São Paulo”. Em agosto do mesmo ano, o Jornal do Brasil afirmava: “AIDS
contamina 32,4 % da população homossexual do Rio”. (NASCIMENTO, 2005:
88).
A AIDS revelou também uma grande controvérsia no meio médico, no Brasil.
Alguns médicos eram da opinião de que, era obrigação da ciência oferecer aos
50
doentes: meios para prevenção, tratamento e cura sem questionar suas
preferências sexuais. outros renomados infectologistas, argumentavam que
a imunodepressão era uma conseqüência da própria maneira como os
homossexuais se relacionavam. Aparentemente os dados epidemiológicos da
doença confirmavam o que eles diziam, uma vez que a ocorrência da doença
ainda era restrita aos chamados: grupos de risco.
O conceito de grupo de risco, com origem na
epidemiologia... fortalece a noção de que os
indivíduos não são iguais perante a doença.
Esse é um conceito que, por um lado, foi
necessário à investigação científica no
reconhecimento dessa ‘nova doença’, mas,
por outro, criou no imaginário social a noção
de exclusividade para a doença, isto é, de
que somente alguns indivíduos ou grupos de
indivíduos seriam passíveis de adoecer...
(NASCIMENTO, 2005:90).
Foi justamente um desses grupos de risco, o responsável pela denúncia sobre
as mazelas dos bancos de sangue no país: os hemofílicos que, em 1985,
apareceram nas estatísticas com número expressivo de soropositividade. A
questão da qualidade do sangue nos centros de hemoterapia desperta um
grande interesse público, afinal, qualquer um e a qualquer momento, pode
precisar de uma transfusão de sangue. Assim, a questão dos bancos de
sangue não despertou um grande debate político, como também,
finalmente, a mobilização da sociedade civil que se ameaçada por uma
transfusão, com sangue contaminado.
Para Nascimento (2005), nem mesmo essa constatação foi capaz de produzir
uma desconstrução da AIDS como ‘doença de gays’. Nas palavras de
Nascimento, “não gays doam sangue, portanto, haveria de se perceber que
a ocorrência do HIV estaria indiscriminadamente disseminada e não restrita
aos, até então, chamados grupos de risco. Este elemento não foi incorporado
na luta pela qualidade do sangue” (NASCIMENTO, 2005:90).
Reforçando a afirmação de que a AIDS não deveria ser tratada como uma
doença restrita a “grupos de risco”, Soares (2001) diz o seguinte:
51
Algum tempo depois, o próprio conceito de
grupo de risco começou a ser questionado:
se somos homens, mulheres e crianças, não
estaríamos todos arriscados? A resposta a
essa pergunta não tardou. De estrangeiros
distantes, a imprensa passou a falar de
pessoas famosas do Brasil mesmo: artistas,
cantores, escritores. Vieram os Cazuzas,
Lauros, Claudias. Mais alguns meses depois
e se ouvia: “Meu primo tem um amigo que
tem um tio que tem um vizinho que está com
Aids”... O cerco foi se fechando: minha tia
tem uma vizinha, minha vizinha tem um filho,
minha tia, minha amiga, meu irmão, minha
filha. Eu? (SOARES, 2001:85).
Houve uma pressão social, para se melhorar a qualidade do sangue oferecido
pelos Bancos de Sangue, essa pressão foi potencializada pela morte de uma
pessoa pública, o cartunista Encheu, o que levou o governo federal a tornar
obrigatório o teste anti-AIDS na triagem do sangue
17
, em janeiro de 1988.
A partir daí, os grupos sociais, que de alguma forma se mobilizavam na luta
contra a AIDS no Brasil, se organizaram. Duas importantes ONG´s foram
fundadas no Rio de Janeiro: a ABIA Associação Brasileira Interdisciplinar da
Aids e o Grupo pela Vidda Grupo pela Valorização, Integração e Dignidade
do Doente com Aids.
A Abia, fundada em janeiro de 1986, aglutinou cientistas, intelectuais de
diversas áreas, autoridades civis, religiosas e militantes de vários grupos
comunitários. Eles tiveram como eixo de atuação, tanto o monitoramento das
políticas públicas relacionadas ao HIV/AIDS, como a produção e disseminação
de informações atualizadas sobre a doença. A Abia, por ter conseguido
mobilizar segmentos sociais expressivos, teve grande atuação junto ao
governo no sentido de estabelecer as políticas públicas de controle da
epidemia.
17 No dia 22/02/2008 foi anunciado no Jornal Folha de S.Paulo que a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou o
teste de detecção de HIV por via oral. O exame usa a saliva, sai em 20 minutos tendo 99% de confiabilidade. No entanto, o teste oral
não estaà venda nas farmácias e será usado somente em centros de saúde, hospitais, clínicas e laboratórios particulares, pois a
inclusão ou não do teste no serviço público ainda está sendo avaliada pelo Ministério da Saúde. faleco[email protected]v.br acessado
em 23/02/2008.
52
Ao contrário da Abia, o Grupo pela Vidda formou-se basicamente de portadores
do HIV, assintomáticos ou não, por amigos e familiares. Seu objetivo era dar
voz aos portadores de HIV como forma de se contrapor ao discurso oficial, que
havia provocado medo e discriminação, alimentando reações sociais,
econômicas, ideológicas e políticas em relação à AIDS (NASCIMENTO, 2005:
95).
As ONGs/AIDS compartilhavam a idéia de que o Estado deveria
responsabilizar-se pelo estabelecimento de uma política pública para atender
aos soropositivos e doentes. Exigiam, também que se criasse mecanismos de
controle da doença, cabendo-lhes somente o papel complementar as ações do
governo.
No entanto, por ineficácia do governo brasileiro em cuidar da prevenção e da
assistência, o papel das ONG’s/AIDS foi muito além dos seus propósitos
iniciais, cabendo-lhes também uma forte atuação na disseminação de
informações e na educação referente à prevenção da doença, além de
exercerem pressão para que o governo brasileiro formulasse políticas
consistentes e eficazes na luta contra a AIDS.
Atualmente, segundo relatório do Ministério da Saúde sobre a Reposta
Brasileira às Metas e Compromissos Assumidos pelos Estados-Membros na
Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas em HIV/Aids:
No contexto da gestão participativa,
movimentos sociais organizados de luta
contra a aids, autônomos, articulam políticas
e ações estratégicas em todo o território
nacional. Como exemplos: 1- Fóruns de
ONG/Aids: iniciados a partir de 1996,
constituem espaços importantes de
representação das ONG e dos movimentos
sociais que atuavam no País desde 1983.
Hoje, existem fóruns nos 26 estados
brasileiros, numa articulação política nacional
para acompanhamento e construção das
políticas publicas em HIV/aids no âmbito
municipal, estadual e federal. 2-
Organizações de Pessoas Vivem com
HIV/Aids: a Rede Nacional de Pessoas
Vivendo com HIV/Aids RNP+Brasil - foi
53
fundada em 1995, com o intuito de possibilitar
aos portadores do vírus HIV/aids
oportunidades para se tornarem
protagonistas da luta contra a aids no País,
fortalecendo conhecimentos sobre seus
direitos e deveres como cidadãos e, também,
acerca das políticas públicas de saúde.
Possui representações em todas as esferas
de controle social do Estado e é reconhecida
por ser esfera mais ampliada de organização
e representação das PVHA... 3-
Organizações de grupos vulneráveis: essas
redes e articulações atuam no território
nacional na defesa de direitos humanos,
visibilidade, inclusão social e no contexto do
enfrentamento da epidemia de aids com suas
especificidades... (RELATÓRIO UNGASS
Resposta Brasileira 2005-2007-MINISTÉRIO
DA SAÚDE – 2008:21/22)
Ao contrário dos progressos médico-científicos em relação à AIDS, é possível
afirmar que os progressos referentes à relação do infectado com o meio social
foram substanciais. Nos anos 90 assistimos a um progresso crescente de
integração social por meio da criação de grupos de apoio e assistência aos
soropositivos. Na opinião de Nascimento (2005), “a organização de pessoas
comprometidas, em diversos graus, com o problema da AIDS, resultou em
avanços para uma melhor assimilação, por parte da sociedade, da idéia de
convivência com a doença”.
Mesmo o conceito de ‘grupo de risco’, que resultou em forte discriminação
daqueles enquadrados, foi alterado e passou-se a trabalhar com a idéia de
‘comportamento de risco’, mas, ainda assim, de responsabilidade individual em
relação à prevenção da doença. Atualmente utiliza-se o conceito de
‘vulnerabilidade’
18
, de forma muito mais ampla e considera-se três planos
interdependentes de determinação dela: a vulnerabilidade individual que
18 www.saude.df.gov.br. A origem do conceito de vulnerabilidade - acessado em 12/02/2008.
O conceito de vulnerabilidade nasceu na área dos Direitos Humanos, tendo sido incorporado ao campo da saúde a partir dos trabalhos
realizados na Escola de Saúde Pública de Harvard por Mann sobre a epidemia da Aids. Em seus trabalhos, Mann e colaboradores
(1993) passaram a utilizar o conceito de vulnerabilidade e a elaborar indicadores para avaliar o grau de vulnerabilidade à infecção pelo
HIV, considerando três planos interdependentes de determinação. Com base nesses estudos, pode-se dizer que o conceito de
vulnerabilidade busca avaliar a suscetibilidade de indivíduos ou grupos a um determinado agravo à saúde.
54
considera, o conhecimento do indivíduo a respeito da gravidade da doença e a
existência de comportamentos que facilitam a ocorrência da infecção; a
vulnerabilidade programática que considera o acesso aos serviços de saúde,
aos programas de prevenção e os recursos sociais existentes na área de
abrangência do serviço e, por último, a vulnerabilidade social que avalia a
dimensão social da doença, utilizando-se de indicadores capazes de revelar o
perfil da população no que se refere ao acesso à informação.
No entanto, infelizmente, a adoção e o conhecimento desses conceitos
certamente não se tornaram de domínio público tanto quanto o conceito de
‘grupo de risco’. Na opinião de Soares (2001):
A trajetória da transformação do conceito de
‘risco’ em ‘vulnerabilidade’, ocorrida nos anos
90, é uma abordagem bastante interessante
para se pensar a questão da Aids enquanto
construção social e suas campanhas de
prevenção... É interessante notar que as
mídias não divulgaram os conceitos
‘comportamento de risco’ e ‘vulnerabilidade’
com a mesma intensidade com que
divulgaram o conceito de ‘grupo de risco’, e
nem a própria sociedade os incorporou tão
largamente... (SOARES, 2001:82).
Nota-se assim que os resultados dos estudos realizados por Nascimento e
Soares revelaram como a AIDS tem sido ligada à responsabilidade e à
culpabilidade de determinados grupos sociais, denominados “outros” e sua
representação social atrelada à “condição estrangeira, aos outros e a pessoas
estranhas” como responsáveis pela disseminação da doença.
Segundo Nascimento (2005), o surgimento da AIDS colocou em xeque o
campo médico-científico, num momento em que as doenças contagiosas
encontravam-se num estágio de quase absoluto controle, ou, pelo menos, de
curabilidade. E por ter surgido em países desenvolvidos ou por ter atingido
indivíduos com maior poder de organização, a AIDS tornou-se rapidamente
uma questão pública, ao contrário da tuberculose que perdeu seu
significado mítico, a partir do postulado de Koch em 1882. Ele passou a
orientar as ações higienistas que estavam intrinsecamente relacionadas à:
55
doença, natureza e sociedade. Com isso, a saúde tornou-se uma questão de
interesse público e de competência estatal.
A rápida invasão do espaço público pela AIDS, fez com que a doença
adquirisse significados múltiplos e variados, porque apesar dela ter sido
definida sob a ótica médica, outras instituições, alinhadas às suas próprias
estratégias discursivas, participaram das diferentes construções de sentidos da
doença.
56
CAPÍTULO4
57
CAPÍTULO 4
Neste capítulo será feita uma reflexão teórica acerca da formação dos efeitos
de sentido e se abordará as estratégias de produção e de efeitos de sentidos,
através de um levantamento do que se falou sobre a AIDS, especificamente a
grande cobertura que foi dada pela mídia impressa ao assunto.
4. Efeitos de Sentido: uma reflexão teórica
4.1 O surgimento da Análise do Discurso
Em 1960 originou-se na França, uma disciplina chamada Análise do Discurso
(doravante denominada AD) estruturada no espaço que entre a lingüística
e as ciências sociais. Esta nova disciplina originou-se a partir dos estudos do
lingüista Jean Dubois, e do filósofo Michel Pêcheux, que partilhavam
convicções sobre a luta de classes e a história do movimento social.
A AD propõe um deslocamento das noções de linguagem e sujeito que se a
partir de um trabalho com a ideologia, permitindo-se entender a linguagem
enquanto produção social e, conseqüentemente, trabalhar em busca dos
processos de produção de sentido e de suas determinações histórico-sociais.
A análise visa a apreender esse novo objeto
(discurso como processo), indagando sobre
as novas condições de sua produção, a partir
do pressuposto de que o discurso é
determinado pelo tecido histórico-social que o
constitui. (GREGOLIN e BARONAS, 2003:7).
Segundo Gregolin (2003), Saussure, Max e Freud formaram o tripé das
propostas de Pêcheux, que situa o discurso em três regiões do conhecimento:
na lingüística – ele atribuiu a Saussure o lugar de fundador da Lingüística como
ciência: no materialismo histórico com a releitura de Althusser sobre Marx
(que afirmava que o real da história não é transparente para o sujeito porque
ele é subjugado pela ideologia); e finalmente, na psicanálise, com a releitura
58
lacaniana de Freud, que analisou a relação do sujeito com o simbólico, onde o
inconsciente é estruturado por uma linguagem.
Para Gregolin (2003), este triplo assentamento traz uma série de
conseqüências teóricas e metodológicas ao discurso
19
Posteriormente, as idéias de Pêcheux acompanharam as mudanças teóricas e
políticas dos anos 80 e 90. Elas aproximaram-se de outros fundadores, dentre
eles, Foucault foi quem definiu que, uma ordem de discursos é um conjunto ou
uma série de tipos de discursos, que são classificados, socialmente ou
temporalmente, a partir de uma origem comum. Para Foucault, os discursos
produzidos num mesmo contexto de uma instituição ou comunidade, para
circulação interna ou externa interagem não apenas entre eles, mas também
com textos de outras ordens discursivas (Gregolin, 2003).
Foucault contextualizou os discursos como elementos relacionados em redes
sociais e determinados socialmente por regras e rituais (os saberes e os micro-
poderes), modificáveis porque lidam permanentemente com outros textos que
chegam ao emissor e o influenciam na produção de seus próprios discursos
(GREGOLIN, 2003).
De Bakhtin, Pêcheux incorporou as idéias da heterogeneidade, do dialogismo,
do discurso inscrito em uma série de traços sócio-históricos, com os quais todo
sujeito necessita situar-se. (GREGOLIN, 2003).
Ainda segundo Gregolin (2003), Pêcheux posteriormente absorveu as idéias
dos teóricos da Nova História, como Michel de Certeau, Jacques Legoff e
Pierre Nora, que propuseram: a análise dos discursos do cotidiano, a reflexão
sobre a escrita da história e a emergência das resistências. Sobre este período,
Gregolin:
19 Conseqüências Teóricas: forma material (o discurso é ao mesmo tempo lingüístico-histórico, uma vez que a sua produção de
sentido está enraizada na História); a forma sujeito do discurso é ideológica, não psicológica, não empírica; na ordem do discurso o
sujeito na língua e na História; o sujeito é descentrado porque ele tem a ilusão de ser a fonte, mas o sentido já foi dito antes em outro
lugar e outro tempo;
Conseqüências Metodológicas: a busca de um dispositivo de análise do processo discursivo; a busca dos vestígios históricos e de
memória do discurso e a conseqüente inter-relação entre a ordem da língua, a ordem da história e a ordem do discurso.
59
A análise do discurso desloca-se da primazia
sobre o discurso político, sobre a
materialidade escrita, para encontrar outras
formas materiais, outros regimes de
materialidade. Esse deslocamento levou
Pêcheux, em seus últimos textos, a preferir
falar em “análise de discurso” em vez da
fórmula tradicional “análise do discurso”; ao
mesmo tempo, o leva a intuir a fecundidade
da análise da materialidade não-verbal e a
nuançar a aproximação com a Semiótica
(Gregolin, 2003:9).
4.2 Os estudos da AD no Brasil
Os autores Maria do Rosário Gregolin e Roberto Baronas organizaram um
seminário sobre pesquisa, com o objetivo de investigar as múltiplas
materialidades do sentido. O seminário, realizado pelo Grupo de Estudos de
Análise do Discurso da FCL-UNESP, contou com a participação de diversos
estudiosos, de onde originaram “textos que lançassem olhares sobre o
discurso, suas nervuras e complexidades” (GREGOLIN et al, 2003:9).
Com base nesses autores, e partindo da premissa de que sem discurso não
produção de sentido, analisaremos as propostas fundadoras de análise do
discurso de Bakhtin, Pêcheux e Foucault com a finalidade de refletir
teoricamente sobre as materialidades do sentido.
4.2.1 A construção social dos sentidos
A autora Beth Brait (2003), rastreou historicamente a obra de Bakhtin para
demonstrar como o discurso era encarado por ele. Ela aponta para a dispersão
de sua obra, e também a falta de linearidade entre a publicação e a
distribuição dos textos do autor, o que dificultou suas releituras e a
interpretação delas.
No entanto, na visão da autora, uma profunda coerência na obra do teórico
russo e seu círculo:
60
Se hoje, para imaginar uma seqüência linear
das reflexões, assinadas por Bakhtin ou por
outros membros do círculo, teríamos de reler
as obras, o que efetivamente várias pessoas
estão fazendo nesse momento, encontrando
uma profunda coerência para a colcha de
retalhos que nos chegou, teríamos também
de reconhecer que essa coerência de fato
estava metonimizada em cada trabalho,
especialmente se considerarmos a
concepção histórico-cultural de linguagem
que orienta e se constitui como marca
essencial do conjunto dos textos (BRAIT,
2003:20).
Desse conjunto de textos da obra bakhtiniana, o que nos interessa investigar
são os textos que extrapolaram a teoria literária; e que passaram a ser lidos,
segundo Brait (2003), a partir da década de 90; sob a ótica da linguagem em
geral e não exclusivamente à ótica da literatura. Aos textos de Brait fiz uma
complementação com alguns estudos de Robert Stam.
Brait (2003) afirma que, na obra Estética da comunicação verbal
20
, aparecem
três ensaios
21
fundamentais para reflexões sobre a linguagem nas ciências
Humanas em geral.
Nestes trabalhos, Bakhtin destaca a importância e a presença do texto em
todas as Ciências Humanas. Para Bakhtin, o texto é a “única realidade” do
pensamento e da vivência, e um ponto de partida para todas as disciplinas
(BRAIT, 2003). No ensaio “Por uma metodologia das Ciências Humanas”,
Bakhtin deu continuidade às questões do “texto”, e discutiu aspectos sobre a
natureza da compreensão, da imagem, do símbolo e da compreensão dialógica
ativa. Mas é em Gêneros Discursivos que Bakhtin vai religar todos os conceitos
anteriormente citados em suas obras: “signo, enunciação, interação,
dialogismo, plurilingüismo, polifonia etc.” (BRAIT, 2003:23).
20
Estética da comunicação verbal (1979 - reunião de textos, incluindo um de 1919, até então inédito e o último publicado em vida, de
1974 - “Por uma metodologia das ciências humanas”, espanhol 1982; português 1992).
21 A questão dos gêneros discursivos” (Bajtín, 1982, p.248-93), “O problema do texto na lingüística, na filologia e outras ciências
humanas: Ensaio de análise filosófica” (Bajtín, 1982, p.294-323) e “Por uma metodologia das Ciências Humanas” (Bajtín, 1982, p.381-
96) (BRAIT, 2003:22).
61
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem” de 1929, originalmente publicado
sob o nome de Voloshinov, Bakhtin abordou o signo sob a perspectiva
dialógica, enquanto intercâmbio verbal e não simplesmente como uma entidade
abstrata para ser interpretada meramente à luz de uma organização, mas sim,
um ponto de encontro entre sujeitos, a língua e a história.
Para Robert Stam (1993), este texto é a primeira intervenção direta de Bakhtin
sobre o pensamento contemporâneo da linguagem. Ao contrário de Sausurre,
que considerava que a linguagem e a ideologia existiam somente na
consciência individual, Bakhtin aponta para a sua descentralização e classifica
a consciência como uma realidade sócio-ideológica.
Para Bakhtin tanto a consciência quanto a ideologia só passam a existir depois
de alguma realização semiótica, seja sob a forma da própria “fala interior” ou
do processo de “interação verbal com outros”, seja através de processos de
mediação, como a literatura e a arte. Esta fala interna quando traduzida em fala
pública é capaz de agir sobre o mundo.
Este conceito de “translingüistica” de Bakhtin rejeita o individualismo
mentalista de Sausurre, uma vez que ele considerou que a língua não pode ser
entendida isoladamente, porque cada análise lingüística deve incluir,
necessariamente, fatores extra-lingüisticos como o contexto da fala, a relação
do falante com o ouvinte, o contexto histórico etc.
Aqui, Brait (2003) enfatizou que o conceito de interação bakhtiniano difere de
outras concepções interacionistas, cujo foco de análise para a compreensão de
sentidos está basicamente centrado na situação e não no exterior, como
propõe Bakhtin:
Ao apontar para “um contexto mais amplo”,
Bakhtin acena com a participação do
interdiscurso, ou seja, da história e da
memória, nem sempre explícita na situação,
mas sem dúvida participantes ativas da
produção de sentidos. (BRAIT, 2003:25).
Ainda neste ensaio, Bakhtin definiu a enunciação como um produto da
interação social. A fala pode ser individual, mas ela produz enunciados que
62
são definitivamente sociais, uma vez que um enunciado necessita de um
falante e de um interlocutor socialmente instituídos.
Segundo Stam (1993), para Bakhtin a individualidade não se desenvolve
contra o social, mas sim através dele. O processo de construção do eu se
por meio da escuta e da assimilação dos discursos aos quais somos expostos:
família, amigos, instituições religiosas, educacionais, políticas etc., todos
assimilados e processados através do diálogo.
Após a definição da enunciação, Bakhtin descreveu uma série de elementos
que contribuiriam para a concepção do gênero discursivo. Para Bakhtin,
qualquer enunciado faz parte de um gênero. Porém, esta participação não se
de forma pura e determinante, pois ao se anunciar alguma coisa, essa é
expressa, necessariamente, num determinado gênero. Enquanto que, o
enunciado, o discurso e o texto serão sempre respostas a outros enunciados
que vieram antes e produzirão respostas futuras:
Assim, quando Homero inicia no Ocidente
uma tradição genérica com sua “Odisséia”,
ele está recuperando gêneros de uma
tradição que o antecede... Ao mesmo tempo,
ele está instaurando, motivando respostas
que constituirão, na esteira da sua obra,
outras epopéias. (BRAIT, 2003:26)
Para Bakhtin é impossível operacionalizar conceitos pré-estabelecidos, pois ele
não acreditava que esta fosse uma função das Ciências Humanas (BRAIT,
2003). Seu pensamento, enquanto produtor de conhecimento, de que um
contato dialógico com o corpus selecionado é inconclusivo e sem fim, por
causa da dinâmica que, permanentemente, intriga ao analista. Fato que o leva,
até mesmo a buscar conceitos e noções, em outras disciplinas, à procura de
ajuda para analisar a complexa relação que existe entre as atividades humanas
e as atividades discursivas que delas advêm. Para Brait:
...Seja qual for o lugar assumido para olhar o
pensamento bakhtiniano, a idéia do diálogo,
enquanto estrutura enunciativa e enquanto
forma dialógica constitutiva da existência das
atividades de linguagem atravessa o campo
63
de visão e desdobra as possibilidades do ver,
incluindo incessantemente a história e a
memória na cena de produção de sentidos e
de seus efeitos. (BRAIT, 2003:29)
Consequentemente é importante destacar que Bakhtin situou o sentido do uso
da linguagem e da comunicação através do enunciado, que sugere que os
sentidos são gerados e ouvidos como vozes sociais que interagem
constantemente – o dialogismo.
4.2.2 Sentido e memória discursiva
O autor Sírio Possenti (2003) propôs um aprofundamento da idéia de efeito de
sentido, a partir de um diálogo das propostas de Pêcheux com as de Freud-
Lacan. Ao confrontar as propostas e colocá-las nas formulações da AD,
derivada de Pêcheux, o autor demonstrou que o “efeito de sentido” não é
produzido no instante de sua enunciação com base em certa relação entre
significantes; mas sim que as palavras têm seu sentido num discurso, sentido
que sempre remete às ocorrências anteriores; que a qualquer enunciação
supõe-se uma posição a partir da qual recebe seu sentido e que, portanto, o
sentido implica numa memória discursiva, na qual formulações relacionam-se
historicamente.
De fato, a AD não pode aceitar que o efeito
de sentido seja um efeito que se produza no
instante mesmo da enunciação, com base
numa certa relação entre significantes (como
propõe Lacan)... Portanto, para a AD, não
não é estranho conceber a existência de um
sentido anterior a uma enunciação específica,
como até mesmo uma exigência...
(POSSENTI, 2003:38)
Segundo Possenti (2003), para Pêcheux duas coisas são claras: a primeira é
que a matriz do sentido não é a palavra ou o enunciado e sim uma “família”
metafórica ou parafrásica, conforme o caso, ou seja: o que é metáfora na
relação palavra a palavra é paráfrase em relação ao enunciado. A segunda é
que para a AD o sentido não pode ser produzido pela enunciação de um texto
64
no momento da sua enunciação. Ele somente terá sentido, na medida em que
for circunscrito num discurso que lhe é necessariamente anterior. Ou seja:
Para a AD, se o sentido não pode ser prévio
ou fixo em termos de língua, pode sê-lo (mais
ou menos prévio ou mais ou menos dado)
em termos de discurso. É assim que
determinadas formulações são reconhecidas
como pertencendo a um certo discurso.
(POSSENTI, 2003:39)
A partir dessa reflexão, podemos afirmar que Pêcheux, em resumo, quer dizer
que as palavras têm seu sentido num discurso que remete a outros discursos
anteriores. Isto é, segundo Possenti:
Qualquer enunciação supõe uma posição, e é
a partir dessa posição que os enunciados
(palavras) recebem seu sentido. Melhor
ainda: qualquer uma dessas posições implica
numa memória discursiva, de modo que as
formulações não nascem de um sujeito que
apenas segue as regras de uma língua, mas
do interdiscurso, vale dizer, as formulações
estão sempre relacionadas a outras
formulações. (POSSENTI, 2003:40)
Nesse sentido compreendemos que, com relação às propostas da AD, existe
sempre uma conexão entre o que se diz e outros discursos do mesmo tipo e
que o resultado, em termos de sentido, só existe se ele também estiver
conectado a um tipo de memória.
4.3 As enunciações discursivas na construção dos sentidos
O sentido não é doado, ele é construído pelo trabalho das enunciações
discursivas (FAUSTO NETO, 1999). E como são construídos os enunciados?
Existe relação entre eles? Com essas indagações é que fizemos um
rastreamento na obra de Michel Foucault, para refletir sobre como se o
processo de formação de um discurso.
Michel Foucault (1969), ao decidir estudar as formações discursivas, tomou
como base três grandes grupos de enunciados que fazem parte do nosso
65
cotidiano: a medicina, a economia e a gramática, questionando em que ponto
poderia se fundar a sua unidade.
Assim, ao descrever os enunciados no campo dos discursos, que estão
expostos a modificações, visualizou algumas hipóteses: para Foucault a
primeira hipótese foi achar que os enunciados, diferentes em sua forma e
dispersos no tempo, formariam um conjunto ao se referir a um mesmo objeto.
No entanto, ao rastrear a construção da doença mental, através do que foi dito
a seu respeito e ao longo da sua evolução histórica, Foucault (1969) concluiu:
se a construção foi feita pelo conjunto dos dizeres nos enunciados que a
nomearam, é impossível que esse conjunto de enunciados se relacione a um
único objeto. Isto porque o objeto, ao longo do seu processo de nomeação,
descrição, explicação, sofre alterações através dos discursos, sendo que sua
formação nunca acontece de maneira inesgotável e definitiva:
...a doença mental foi construída pelo
conjunto do que foi dito no grupo de todos os
enunciados que a nomeavam... O objeto que
é colocado como seu correlato pelos
enunciados médicos dos séculos XVII ou
XVIII não é idêntico ao objeto que se delineia
através das sentenças jurídicas ou das
medidas policiais; da mesma forma, todos os
objetos do discurso psicopatológico foram
modificados desde Pinel ou Esquirol até
Bleuer: não se trata das mesmas doenças,
não se trata dos mesmos loucos.
(FOUCAULT, 1969:36)
Diante dessas reflexões, podemos inferir com Foucault que, ao contrário do
que parece, definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual
consiste em descrever a dispersão dos objetos e classificar sua divisão no
espaço social.
A segunda hipótese, levantada por Foucault (1963), é a respeito da definição
de um grupo de relações entre enunciados: sua forma e sua conexão.
Para isto, Foucault toma como exemplo a evolução da medicina, a partir o séc.
XIX. Ele reconheceu que a enunciação descritiva não passava de uma das
66
formulações do discurso médico e que as outras formulações baseavam-se
numa série de elementos necessários à própria existência da medicina, sendo
que a primeira não poderia abstrair-se das outras formulações.
Foucault (1969) reconhece também que esta formulação descritiva não parou
de evoluir, conforme todos os campos da medicina também evoluíram e que
todas essas alterações foram lentamente agregando-se ao médico no decorrer
do séc. XIX. Assim, se uma unidade, ela não está determinada numa forma
de enunciados e sim no estudo da sua evolução:
Seria preciso caracterizar e individualizar a
coexistência desses enunciados dispersos e
heterogêneos; o sistema que regem a sua
repartição, como se apóiam uns nos outros, a
maneira pela qual se supõem ou se excluem,
a transformação que sofrem, o jogo do seu
revezamento, de sua posição e de sua
substituição. (FOUCAULT, 1969:39)
Em uma terceira hipótese, Foucault questiona se não seria possível
estabelecer grupos de enunciados, a partir de um sistema de conceitos
permanentes e coerentes entre si. Ao analisar a evolução da linguagem e da
gramática concluiu que a todo objeto pressupõe-se o aparecimento de novos
conceitos, que alguns são derivados entre eles, talvez dos primeiros, mas que
outros são heterogêneos e até mesmo incompatíveis.
Para Foucault,
A noção de ordem sintática natural ou
inversa, a de complemento (introduzida no
decorrer do século XVIII por Beauzée)
podem, sem dúvida, integrar-se ainda ao
sistema conceitual da gramática de Port-
Royal. Mas nem a idéia de um valor
originariamente expressivo dos sons, nem a
de um saber primitivo guardado nas palavras
e transmitido obscuramente por elas, é
compatível com o conjunto dos conceitos que
Lancelot ou Duclos podiam usar.
(FOUCAULT, 1969:39)
67
Assim sendo, Foucault propôs que se descobrisse uma unidade discursiva não
na coerência dos conceitos, mas sim através da análise dos seus
aparecimentos e afastamentos tanto na distância que os separa quanto na sua
incompatibilidade.
E, finalmente, em uma quarta hipótese sobre as formações discursivas, às
quais, Foucault propôs uma análise da identidade e da persistência dos temas.
Para tanto, Foucault chama a atenção para as ciências econômicas e
biológicas, que são tão expostas a polêmicas e tão permeáveis a discussões
filosóficas e morais. Assim como são tão suscetíveis à utilização política, e
conseqüentemente questiona-se, se não é possível que certa temática seja
capaz de ligar e de animar um conjunto de discursos.
E conclui que a mesma temática pode ser articulada conforme a dualidade de
conceitos, análises e campos de objetos totalmente diferentes: a idéia
evolucionista do século XVIII e a do século XIX, foi desenvolvida a partir de
conceitos totalmente diferentes. Embora o tema seja o mesmo, os discursos
para descrevê-lo são diferentes.
Enquanto que na fisiocracia, um mesmo conceito pode gerar duas opções
diferentes para se explicar a mesma coisa: a formação de valor podia ser
explicada tanto através da troca quanto por meio da remuneração da jornada
de trabalho (FOUCAUL, 1963).
Assim, Foucault questionou se não seria mais apropriado, ao invés de buscar
nesses temas o princípio de individualização de um discurso, demarcar a
dispersão dos pontos de escolha e definir um campo de possibilidades
estratégicas.
A partir destas quatro hipóteses em que Foucault perguntara em que poderia
se fundar a unidade de três grandes famílias de enunciados, que foram
designada por ele de: medicina, economia e gramática.
O autor se depara com uma série de dispersões entre os enunciados, as quais
ele convencionou chamar de formação discursiva (Foucault, 1969:43).
68
4.4 Memória e produção de sentido
Para a autora Edna Maria Fernandes do Nascimento (2003), ao se aplicar os
conceitos semióticos, de A.J. Greimas, para analisar os textos jornalísticos,
propõe-se que ao pensar a produção de sentido e sua articulação com a
memória, o sujeito enunciador produz um novo texto a partir do momento em
que ele se apodera de um saber institucionalizado, tanto na língua quanto na
cultura, transcodificando-o no ato enunciativo. Isto se graças à capacidade
de elaborar traduções intralinguais, ou seja, de ampliar os significados daquilo
que se originalmente e/ou acrescentar novas nuanças de significação, a
partir de uma determinada leitura. Na opinião de Nascimento
Segundo nosso ponto de vista, é a
capacidade de definir, de elaborar traduções
intralinguais, ou seja, de atribuir novas
diferenças específicas a uma definição-tipo
de um termo, que permite a um sujeito
enunciador se apoderar de um saber
institucionalizado, tanto na língua, quanto na
cultura, e transcodificá-lo no ato enunciativo,
produzindo um texto novo. Nessa
perspectiva, todo texto é a construção de um
novo saber a partir de um saber comum:
memória e gênese. (NASCIMENTO,
2003:33)
Os estudos destes autores vieram ao encontro dos nossos anseios de fazer
uma breve reflexão acerca da construção dos efeitos de sentido. Pudemos
refletir sobre a relação entre sentido e memória, o papel do produtor e do leitor
na interpretação de um discurso, a constituição dos sentidos no discurso e o
papel dos sujeitos na sua construção, levando-nos a questionar de onde é que
os sentidos se constituem. Na língua, no texto, na história, na conexão com
outros discursos ou na memória discursiva?
4.5 Os efeitos de sentido da AIDS na mídia impressa
69
Este capítulo apresenta um estudo, para auxiliar na compreensão da prática
comunicativa sobre um determinado tema, num determinado território: o
mapeamento da rede de produção de sentidos da AIDS nos principais jornais
do país.
Pretendemos aqui fazer um levantamento das estratégias de produção e de
sentido gerados pela mídia impressa, a partir dos diversos gêneros de
discursos oriundos das instituições que falam da AIDS, mediante as disputas
discursivas: médicos, religiosos, indústria farmacêutica, políticos, entre outros.
Aqui, vale à pena fazermos um parêntese, para conceituarmos o que é a mídia,
segundo Spink et al (2001), em consonância com as reflexões de Thompson:
... um sistema cultural complexo que
envolve uma dimensão simbólica e uma
dimensão contextual. A dimensão simbólica –
um constante jogo entre signos e sentidos
compreende (re)construção, arma-
zenamento, reprodução e circulação de
produtos repletos de sentidos, tanto para
quem os produziu (os media) como para
quem os consome (leitores, espectadores,
telespectadores etc.). A mídia compreende
também uma dimensão contextual – temporal
e espacial -, na medida em que esses
produtos são fenômenos sociais, situados em
contextos, que têm aspectos técnicos e
comunicativos e propriedades estruturadas e
estruturantes. (SPINK et al, 2001:854).
Como uma nova doença que ainda não tinha sido devidamente codificada pela
ciência, o discurso da AIDS foi construído pela medicina e, quase
simultaneamente, pela opinião pública - onde a mídia teve um papel
importante, o que talvez tenha dado origem às representações apoiadas em
idéias marginalizadas e discriminatórias.
É importante ressaltar que o primeiro texto oficial a respeito da AIDS, foi um
artigo publicado no Morbidity and Mortality Weekly Report (MMWR) boletim
oficial do “Center of Disease Control (CDC)”, em 05 de junho de 1981. Apenas
um mês depois - julho de 1981, um artigo assinado por Laurence Altman,
cronista sobre medicina do New York Times, leva ao público leigo informações
70
sobre o surgimento de um “fenômeno patológico curioso que intrigava os
especialistas e começava a assustar os gays de Nova York” (NASCIMENTO,
2005).
No Brasil, a primeira notícia publicada em um jornal foi no dia 12 de julho de
1983. O Jornal do Brasil publicou a notícia sobre casos de AIDS no país:
“Brasil registra dois casos de câncer gay”
22
.
Assim sendo, essa construção foi, pelo menos no início, obra dos meios de
comunicação, mais precisamente da mídia impressa. Foi através dos jornais
que a AIDS passou a existir para a sociedade como um todo, e a fazer parte do
cotidiano das pessoas. Foi ela quem anunciou o aparecimento de um novo
fenômeno no campo da patologia, foi ela que levou as primeiras informações
do domínio médico para o domínio social.
Segundo Spink et al (2001), este papel da mídia tem chamado a atenção de
diversos pesquisadores, cujo principal foco de atenção está voltado para as
funções da mídia como elemento importante na produção de sentidos na
sociedade contemporânea, frente aos acontecimentos novos e/ou
ameaçadores:
A mídia, nessa perspectiva, cumpre dois
papéis importantes: por um lado, a imprensa
anunciou o aparecimento de um novo
fenômeno no campo da patologia; e, por
outro, desenhou progressivamente seus
contornos e, sobretudo, operou a passagem
das informações sobre a doença do domínio
médico e científico para o registro social.
(SPINK et al, 2001:853).
No entanto, esta construção não se deu de forma isolada, pois estamos
assumindo que no campo da comunicação social, várias vozes concorrem
entre si para fazer prevalecer o seu próprio modo de perceber, analisar e
intervir sobre a realidade. Assim sendo:
Parte-se, pois, do entendimento de que o
campo da comunicação social não se
22 www.ioc.fiocruz.br/AIDS20anos/linhadotempo.html - 26k. Acessado em 21/07/2008.
71
constitui apenas num lugar de “acolhimento”
das representações sociais, em torno das
quais se estabelecem e se articulam as
compreensões e os processos de interação
social. Pelo contrário, este campo se destaca
como agente que, dispondo de regras e
poderes específicos, dá conta de operar a
própria construção dos sistemas de
representações. (FAUSTO NETO, 1991:13).
Ao assumirmos isto, assumimos a idéia de “polifonia”, que faz referência à
presença de múltiplas vozes, que ora se configuram em sinergia, ora
concorrem entre si (ARAÚJO, 2000) na produção, circulação e recepção de
sentido.
Assumimos também que a comunicação não é um campo de repasse de
idéias e conteúdos, de discursos alheios, mas sim que a comunicação também
é uma produtora de realidade e conhecimento, claro que em conformidade
com os seus próprios saberes, regras de construção, e códigos de produção.
Desta forma, segundo Fausto Neto (1991),
...o campo da comunicação social não se
constitui apenas num lugar de “acolhimento
das representações sociais, em torno das
quais se estabelecem e se articulam as
compreensões e os processos de interação
social. Pelo contrário, este campo se destaca
como agente que, dispondo de regras e
poderes específicos, dá conta de operar a
própria construção dos sistemas de
representações. (FAUSTO NETO, 1991).
4.5.1 A construção da morte
Um dos aspectos mais marcantes da epidemia da AIDS foi destacado, em 30
de outubro de 1985 pelo Jornal Francês Le Fígaro, com a seguinte frase: A
AIDS é a primeira doença da mídia (SPINK et al, 2001). Sim, a AIDS foi
amplamente difundida pelos meios de comunicação de massa e assim,
constituiu-se gradativamente um novo fenômeno social.
72
Os meios de comunicação não formam um mero sistema de repasse de
conteúdos, mas sim um dispositivo de produção de realidade e conhecimento
(FAUSTO NETO, 1991:14), assim como outros campos de saberes que se
utilizam de seus próprios meios para falar do corpo, das doenças e da morte;
os meios de comunicação igualmente simbolizam estas questões.
Pessoas morrem todos os dias, em decorrência da violência urbana, de
negligências diversas, de doenças, por causa de guerras e de atentados. No
entanto, um tipo de morte que é supervalorizada, de certa forma
hierarquizada pelos meios de comunicação trata-se da morte de pessoas
públicas, das “superpessoas”, cujas mortes são retratadas como um
acontecimento social, pois os meios de comunicação lhe dão grande cobertura
e valorização.
Quanto a isso, Fausto Neto (1991) afirma que a conseqüência imediata é a
subordinação deste acontecimento à inteligibilidade dos próprios sistemas de
enunciação mediáticos. Assim, as diferentes mortes, das diferentes pessoas,
são convertidas em objeto de formação da noção de realidade. Cada sujeito é
objeto, no que se refere ao discurso de processos simbólicos e singulares,
que passam a particularizar a morte do corpo, mas de sujeitos sociais
diferentes (FAUSTO NETO, 1991:15).
Para Fausto Neto (1991), nos diversos processos discursivos da comunicação
de massa, são construídos registros sobre mortes de “indivíduos”,
“desconhecidos”, “pessoas”. Essa hierarquização funciona conforme o status
ou a importância que o morto goza dentro do sistema social. Tal hierarquização
se porque a mídia sofre pressões quanto a diferenciação social, que marca
o sujeito na vida e na morte. Ao mesmo tempo em que ela demonstra essas
diferenciações, também cria diferenciações para tratar e demonstrar a morte de
indivíduos socialmente diferentes.
‘A essa hierarquização pode-se juntar o registro/construção da morte de
indivíduos que exercem certa influência social, que pertencem a certo grupo,
como Fausto Neto diz - espécie de “superpessoas”, os “olimpianos”:
73
(...) seres cuja vida privada é de certo modo
pública, cuja vida pública de certo modo é
publicizada, cuja vida real é de certo modo
mítica. Referimo-nos aos chamados
“olimpianos”, heróis e mitos produzidos pela
cultura de massa; espécie de celebridades
dos mundos do cinema, da música, da
poesia, da política e, particularmente, no
Brasil, da televisão. (FAUSTO NETO,
1991:15, 16).
Ainda, segundo Fausto Neto (1991), a morte dessas “superpessoas”, além de
serem acolhidas nos diferentes sistemas de comunicação, também são
construídas no seu interior conforme os seus próprios meios de referenciação.
Mas para que haja este “acolhimento” e esta “construção” a mídia necessita do
corpo do outro para transformá-lo em objeto de sua realidade, para não dizer
em sua mercadoria. Sem o outro, não uma estória para contar, não uma
realidade a ser construída.
No entanto, quais os tipos de mecanismos que estão por trás da construção
destas operações que tratam de “dissecar” e “esquadrinhar” o corpo dos
olimpianos? (FAUSTO NETO, 1991).
Para Fausto Neto (1991), várias operações podem dar conta desta tarefa.
Operações que ao mesmo tempo em que resvalam a morte, também criam a
sensação de imortalidade.
Aqui descreveremos as operações a que se refere o autor: Quem não se
lembra da morte do cantor Leandro, que compunha a dupla: Leandro &
Leonardo, dez anos no Hospital São Luiz em São Paulo
23
.Foi uma loucura
para conseguir satisfazer a todas as solicitações da imprensa. Links televisivos
que ficam no ar 24h por dia; plantão de repórteres dos principais jornais e
revistas do país. Todos ávidos por uma informação, por um acontecimento, por
uma estória dramática. Boletins médicos eram emitidos duas vezes ao dia
mesmo quando não se tinha nada a dizer, somente que o paciente apresentava
um quadro estável.
23 Experiência pessoal da autora desta dissertação que, na época, ocupava o cargo de Gerente de Comunicação do Hospital São Luiz.
74
Por causa da falta de notícias, de boletins médicos, de entrevistas aos outros
“olimpianos” que visitavam o cantor, as emissoras de TV veiculavam a história
da infância triste daquele cantor que trabalhava na roça, em Goiás, para
sobreviver. Suas músicas mais populares eram tocadas ininterruptamente nas
rádios, os jornais sempre apresentavam alguma história ainda não revelada.
Enfim, o cantor passou dias internado na UTI sem alteração substancial do seu
quadro clínico.
Após a sua morte, no cerimonial fúnebre, todos queriam ver seu corpo, todos
queriam participar, todos queriam ter acesso ao último adeus.
Por meio destas operações, os meios de comunicação constroem estruturas
simbólicas acerca da morte e dos processos que implicam na sua recusa
(FAUSTO NETO: 1991). E neste ponto, podemos entender como “recusa” a
criação da sensação de imortalidade.
Em se tratando de uma pessoa comum, os meios de comunicação criam outras
operações para conseguir construir suas estruturas simbólicas. Um exemplo
disso é a construção do lide que em jornalismo significa o início de qualquer
texto. O repórter é quem tem a responsabilidade pelo lide, mas o redator pode
influenciar no conteúdo e na seqüência das matérias. O lide é construído
minuciosamente pelo repórter, porque a escolha das palavras, da estrutura do
texto e seu posicionamento têm grande importância no resultado almejado:
“Você pode abrir a matéria contando o caso,
que o senhor José da Silva não encontrou
AZT num lugar e tal, depois mostrar que isso
acontece com 20 mil João José da Silva pelo
Brasil (...) Aliás fica muito mais bonito... É
muito mais bonito que você abrir que no ano
passado o Brasil registrou 747 mil casos de
AIDS e, destes, 385 foram de homens...
dentre os quais João José da Silva. Esta é
uma matéria que interessa menos ao leitor, é
menos chamativa”. (SPINK ET AL apud
editor, Ciência e Vida, sede do GLB: 2001).
Fausto Neto (1999) adiciona que além de todas as imposições que são
colocadas às vítimas da AIDS, como: “reclusões”, “encarceramentos” e
75
“estigmatizações”, o sujeito que tem a sua vida privada permanentemente
especulada e sancionada pelo público de frente, vive uma situação ainda mais
complexa, quando o real e a ficção se fundem.
No entanto, a exemplo do que vimos acima, acreditamos ser oportuno
acrescentar que, ao julgarmos a forma de como as matérias são construídas,
há sempre uma dose de ficção na realidade daqueles que são acometidos pela
doença. Mesmo em se tratando de pessoas comuns.
4.5.2 A AIDS e a construção na mídia impressa
O surgimento da AIDS invadiu violentamente o espaço social com informações
a respeito da doença, porque as discussões em torno do controle e da
prevenção extrapolavam os campos de saberes científicos da medicina.
Essa questão, sem dúvida alguma, serve para ilustrar o funcionamento dos
mecanismos complexos de produção e de disputa de sentido entre as
instituições, que o consideraram como: um problema de natureza política e
outro de natureza simbólica(FAUSTO NETO, 1999).
Politicamente, a AIDS envolve uma série de questões: a ética, a moral, a
tecnologia e simbolicamente, segundo Fausto Neto (1999), a AIDS é um
significante que possui várias dimensões, que são resultantes das construções
de sentidos realizadas pelas estratégias de produção das instituições a ela
ligadas. São instituições médicas, políticas, religiosas, administrativas,
científicas etc.
No entanto, a AIDS toma visibilidade à medida que é publicizada pelas
práticas midiáticas. A mídia, dentro do espaço público, é uma das instâncias
que tem o poder de construir a realidade. As demais são aquelas acima
mencionadas que também participam da produção do real.
Obviamente, as instâncias mencionadas não dependem da mídia para existir,
porém, se utilizam dela, com freqüência, para se auto-consolidarem como
portadores de saberes.
76
Para Fausto Neto (1999) é justamente nesse ponto que o espaço público se
constitui, a partir das interações entre os campos das mídias e estes outros
campos, ou seja: através da mediatização.
É dentro deste espaço público que a AIDS tomou corpo social e diferentes falas
são produzidas em diferentes instituições e por meio de diferentes protocolos
discursivos, que eram usados em conformidade com suas próprias estratégias
e interesses. Assim, a AIDS se tornou um efeito de sentido dessas diferentes
falas e a mídia assumiu um papel fundamental para fazê-la chegar ao
conhecimento de todos.
Fausto Neto (1999) foi quem analisou as notícias publicadas nos jornais de
maior circulação no país, durante o período de 1983 a 1995, procurando
descrever as condições de comunicabilidade sobre AIDS e o trabalho de
produção de sentido que os jornais realizaram e concluiu que:
Os jornais estabeleceram uma relação de forças e de relações simbólicas com
os demais campos de saberes e poderes, enquanto que outras instituições não
jornalísticas exerceram um papel de coadjuvantes no processo da construção
de comunicação da AIDS na esfera do espaço público. Assim, podemos aferir
que o discurso AIDS se forma a partir de um conjunto de interações
discursivas, que são transformadas em representações sociais inteligíveis para
a sociedade.
Nestes termos, segundo Fausto Neto (1999) a AIDS passa a existir a partir
da nossa experiência bio-histórico-ética-corporal e, particularmente, dentro de
uma diversidade própria que é a “ordem dos discursos”, se considerarmos que
várias falas participaram da sua construção.
Ainda segundo Fausto Neto (1999), apesar de várias instituições trabalharem
com o corpo na sua esfera técnico-ético-estética, a AIDS só passa a ser
compreendida através do trabalho específico que foi realizado pelos discursos
jornalísticos. É nesse lugar que a AIDS se corporifica e se realiza, é por causa
desse trabalho de construção, do qual participam várias vozes, é no trabalho
de articulação dos jornais, que a AIDS é nomeada e passa a existe para os
demais membros da sociedade.
77
Entretanto, os jornais construíram o cotidiano da AIDS, de uma forma muito
peculiar e de acordo com seus próprios protocolos discursivos, conforme
aponta Fausto Neto:
Este cotidiano está estruturado em torno de
agendas, tematizações, estratégias de
tratamentos, hierarquização de outros
discursos a partir de diferentes modalidades
de políticas editoriais. (FASTO NETO,
1999:146).
Além disso, o discurso jornalístico protagoniza a AIDS de tal maneira que a
sociedade se converte “num grande paciente” e a eles são endereçados
diferentes discursos com as mais diferentes finalidades. As mídias realizaram
várias operações, sobretudo de natureza pedagógica, para, segundo Fausto
Neto (1999): criar um lugar de localização para a AIDS que, curiosamente
referia-se aos menos favorecidos - Terceiro Mundo, pessoas drogadas e
homossexuais; nomear a AIDS segundo um conjunto de metáforas de forma a
evitar que a doença vague sem sentido; aprofundar a compreensão patológica
sobre ela, como uma doença misteriosa, mas que acontece com aqueles
que transgridem as regras sociais pré-estabelecidas, como os homossexuais e
usuários de drogas injetáveis; sublinhar o mal estar moral quanto ao
encaminhamento das terapêuticas, sobretudo daquelas que contrariavam
credos e princípios religiosos; instituir hierarquias de recepção, nomeando
aqueles que podem falar sobre a doença e aqueles que apenas podem ler o
que os jornais dizem; democratizar o acesso ao saber científico e ao mesmo
tempo apontar que ele não é o “dono da razão”; permitir que as fontes técnicas
façam as notícias, mas assumir que quem faz a sua inteligibilidade é a própria
cultura jornalística etc.
Desta maneira, as mídias cumprem a missão que lhes foi delegada pelos
outros campos de saberes, ao mesmo tempo em que assumem a existência de
suas novas funções, na construção do espaço público (Fausto Neto, 1999:148).
Apesar de entendermos que o estudo, de Fausto Neto, tenha contemplado uma
série de questões, a respeito dos efeitos de sentido da AIDS e construídos pela
mídia jornalística brasileira, achamos oportuno acrescentar as mais relevantes
78
considerações elaboradas por Herzlich e Pierret, quando analisaram o tema em
seis jornais Franceses. Essa oportunidade decorre do fato de que os autores
chegaram a conclusões muito semelhantes, porém desenvolvidas sob um olhar
diferente.
Herzlich e Pierret (2005) apontaram que, para se compreender o excesso de
discurso que fez com que a AIDS se tornasse um fenômeno social, é
necessário atentar para dois aspectos importantes: o primeiro é a atribuição da
própria natureza dos grupos mais atingidos e os seus mecanismos de
transmissão, o que levou à constituição do discurso estereotipado sobre sexo,
sangue e morte. O segundo aspecto é que, pelo menos no início da doença,
as pessoas mais atingidas eram em grande número, membros da classe média
alta e pessoas com grande projeção pública, como: intelectuais, artistas etc.
Daí a afirmação de que a AIDS é uma doença da mídia.
Outro aspecto importante da doença foi o seu crescimento contínuo que, por si
só, constituía a notícia e a informação, pois cada publicação de números,
associada a um acontecimento, adequava-se às exigências de ter sempre
alguma coisa de “novo” a dizer.
Herzlich e Pierret (2005) corroboram a idéia de que a elaboração do sentido da
doença esteve intrinsecamente ligada à progressão do saber. Em 1983, foram
publicados os primeiros trabalhos sobre o vírus colocando fim ao discurso da
ignorância. No mesmo ano começam a aparecer as primeiras reportagens
sobre a “maldição” que se abateu sobre as comunidades homossexuais
americanas, os chamados “grupos de risco”. Uma nova realidade social foi
construída a partir de fatos e noções científicas.
O discurso da AIDS foi se desenvolvendo de uma forma muito peculiar, pois foi
sempre um discurso sobre o outro, o mais distante possível de nós e o mais
estranho possível. Em 1987 o discurso da AIDS serviu de suporte para o
reaparecimento de um discurso de extrema direita, com temas racistas e
excludentes (HERZLICH e PIERRET, 2005:96).
Aliás, afirmam os autores, que este discurso sobre o outro é também um
discurso imputado ao outro, onde o sujeito enunciador não aparece. A
79
imprensa foi aparentemente a responsável pela construção de uma doença
diante da opinião pública. Para HERZLICH e PIERRET (2005), os jornais
sempre acreditaram que estivessem passando informações sobre o impacto
social que a doença causou e também reproduzindo as reações coletivas a ela,
mas essas reações vinham de dentro do próprio discurso articulado pelos
jornais.
80
CAPÍTUL05
81
CAPÍTULO 5
Neste capítulo pretende-se discutir, analisar ou verificar a permanência, a
transformação e a manutenção dos efeitos de sentido que foram criados pela
mídia, no que se refere à AIDS, nos filmes Cazuza e Carandiru e também,
como surgiram esses efeitos de sentido em cada um deles.
5. A AIDS no cinema: Os filmes Cazuza e Carandiru duas
abordagens para o mesmo problema.
5.1 Cazuza – um objeto a parte
No capítulo 4 procuramos descrever de que maneira a AIDS foi amplamente
difundida pelos meios de comunicação de massa, principalmente pela mídia
impressa que, com essa difusão, constituiu um novo fenômeno social.
Destacamos também a hierarquização do registro/construção da morte de
pessoas comuns e dos “olimpianos” termo utilizado pelo autor Fausto Neto
(1993) para denominar a morte das pessoas que exercem influência social.
Ao contrário da situação de muitas pessoas públicas que morreram em
conseqüência da AIDS, mas tiveram a doença sistematicamente negada, a do
cantor Cazuza foi bem diferente: sua morte foi construída através de um ritual,
como capítulos de uma novela, especialmente pela chamada “imprensa do
coração” as revistas: Amiga, Contigo, Semanário, Manchete - que trazem,
semanalmente, fofocas da vida dos artistas e também a descrição dos
próximos capítulos da novela que está no ar.
... a doença/morte de Cazuza é inserida no
circuito (social e cultural) através de um
cerimonial público, cujos principais
orquestradores foram o próprio compositor e
a comunicação de massa, com ênfase na
imprensa especializada. (FAUSTO NETO,
191:121)
82
Assim a morte de Cazuza foi construída aos poucos, metaforicamente, ao
ponto de seu nome deixar de ser nome próprio e confundir-se com um outro
signo, o signo da luta contra a AIDS. Toda a construção negativa em torno da
doença e dos doentes passou ao largo desse personagem. A ele não se
atribuiu termos como “grupo de risco”, “drogado”, “viciado”, “gay” ou
“promíscuo”. Procurou-se construir uma imagem de... “A vida não pára”.
Na opinião de Fausto Neto (1991) Cazuza e a mídia selaram uma espécie de
aliança para orquestrar este cerimonial público, que de certa forma nos lembra
as antigas maneiras de morrer. Essa morte acontecia quando o paciente tinha
algum controle no trajeto que percorria em direção à morte. Ele era cercado por
amigos, familiares, agentes da medicina e da religião, ao contrário dos
cerimoniais modernos, onde o paciente é entubado e recluso ao mundo
hospitalar, deles restando apenas boletins e diagnósticos.
Desta forma, a doença e morte de Cazuza, como também a forma antiga de
morrer guardam grande semelhança, pois entre uma internação e outra, ele
orquestrava juntamente com mídia, o seu próprio cerimonial. A mídia utilizou
processos interativos e sofisticados para desenvolver ritualisticamente o
cerimonial, fazendo com que a vida privada de Cazuza retornasse ao espaço
público, para trazer ao conhecimento dos leitores, todo o trajeto da vida do
cantor, durante o período da doença,
... as construções discursivas, a partir da
revelação, não mais procuraram especular
sobre a doença do artista, mas desdobrá-la
em várias matrizes, evocações, associações
e determinações distintas, transformando-o
num personagem, espécie de mártir e herói,
talvez um paradigma do nosso tempo.
(FAUSTO NETO, 1991:122)
É curioso observar como que dois suportes diferentes – mídia impressa e
cinema, utilizaram estratégias muito semelhantes na construção deste
cerimonial.
83
A mídia impressa e o filme, em seus conjuntos de enunciados possibilitaram
agrupamentos temáticos que sugeriram construções de uma série de situações
metafóricas.
A própria estrutura do filme o tom: a narração em off do ator Daniel de
Oliveira oferece a sensação de que é o próprio Cazuza quem conta a história
da sua vida e fala dos momentos difíceis da doença, como se ele operasse a
sua própria identificação.
Na opinião de Fausto Neto (1991), Cazuza foi apanhado pela mídia que
mostrou como ele ocupava seu tempo e os vários lugares que freqüentava.
Assim, filme e mídia impressa procuraram mostrar minuciosamente todas as
cenas que possibilitassem aos leitores/expectadores e fãs capturarem a
intimidade deste cerimonial: Cazuza no hospital; Cazuza compondo novas
músicas; Cazuza gravando discos; Cazuza fazendo shows; Cazuza indo à
praia de cadeira de rodas; Cazuza bebendo com os amigos. Enfim, Cazuza um
doente ativo que não se deixa morrer.
Esse movimento, de não se deixar capturar pela doença e morte, foi feito pela
imprensa, já que ela garantia a fala de Cazuza por meio de entrevistas. Nelas o
cantor debate-se contra a morte e isso revela os seus projetos e seu estado
pessoal. “A Revolta de Cazuza: Estou numa cadeira de rodas, mas não estou
morrendo”; que veio acompanhada de uma foto do cantor, de turbante; foi
matéria de capa da Revista Amiga, edição de 04/05/89 (Fausto Neto,
1991:anexo III, ilustr.A).
O mesmo movimento aconteceu com o filme, nesse suporte Cazuza não se
deixa capturar pela morte. Na última cena, o cantor (ator) aparece à beira mar
em uma cadeira de rodas, logo em seguida entra cenas de um vídeo caseiro.
Nele o próprio Cazuza aparece gozando de plena saúde, e não o ator Daniel
de Oliveira, que o interpreta no filme. Com isso tem-se a sensação de que ele
continua vivendo saudavelmente e feliz. A vida real e a ficção se embaralham.
Na cena final do filme, em off, ouve-se a voz de Cazuza (ator), enquanto na
praia: ...”A vida veio e me levou com ela. Sorte é se abandonar e aceitar essa
vaga idéia de paraíso que nos persegue. Bonita e breve, como borboletas que
84
só vivem 24 horas. Morrer não dói” (Personagem “Cazuza” no filme Cazuza – o
tempo não pára – 2003).
Diante disto, retornemos à matriz de sentido de Pêcheux: o sentido não é
produzido pela enunciação de um texto no momento da sua enunciação, mas
está circunscrito num discurso anterior. Formular um discurso significa
relacioná-lo a outras formulações e isto é o interdiscurso. Podemos aferir que
mídia impressa e filme se inter-relacionam, porque o efeito de sentido
produzido na revista é mantido no filme.
A mídia especializada utilizou diversos dispositivos semânticos em momentos
diferentes da vida do cantor, para mostrar seus movimentos e ações em
relação à AIDS. Semana após semana, as revistas procuravam mostrar ao
leitor quais eram as providências terapêuticas escolhidas para o tratamento de
Cazuza (Fausto Neto, 1991). No filme aconteceu a mesma coisa, ainda que
com menor intensidade, o receptor também participou de uma viagem
imaginária até onde, supostamente, Cazuza era tratado.
Na cena 08 do filme, vemos Cazuza internado num hospital em Boston.
Quando ele chegou ao hospital, estava visivelmente debilitado e quase à beira
da morte. O sofrimento de sua mãe, sua estada na UTI respirando
artificialmente através de balão de oxigênio. O acompanhamento da família e
de seu amigo e empresário. Seu estado de saúde melhora, ele começa a
compor novas músicas. Descobriu-se um novo tratamento com AZT. Cazuza
retorna para casa. Com tudo isso, o espectador pode ter a sensação de
participar de um momento tão delicado da vida do cantor.
Segundo Fausto Neto (1991), todo suporte possui uma forma específica para
organizar o real de acordo com critérios técnico-discursivos. Assim sendo,
guardadas as devidas estratégias, cada suporte, desenvolveu, à sua maneira,
formas de captar as diferentes ações de Cazuza na luta contra a doença. O
efeito de sentido provocado foi o de que Cazuza não se deixou levar pela
AIDS, mantendo-se ativo mesmo nos piores momentos.
85
Nada mais ilustrativo que fragmentos do
editorial de Amiga (“A saudável irreverência
na luta pela vida”), em que o “Caso Cazuza”,
além de ser semantizado pelas metáforas da
irreverência, heroísmo, bandeira etc., se
constitui no próprio insumo com que vai
sendo engendrado o discurso
espetacularizado da comunicação de
massa... (FAUSTO NETO, 1993:136)
Selecionamos, a seguir, mais algumas cenas do filme que ilustram a
semantização à qual Fausto Neto fez referência.
Cena 09:
Cazuza em estúdio gravando. Ao ser questionado pelo amigo Frejat se ele
queria dar um tempo, Cazuza responde não tenho tempo prá dar Frejat”. O
efeito de sentido dessa cena é a urgência. O espectador sabe que ele está
doente e participa dessa urgência ouvindo: “o meu prazer agora é risco de
vida”.
Corta. Cazuza está bebendo com os amigos num bar e ao mesmo tempo
tomando AZT. Cazuza, embora doente, leva uma vida normal. Ele não ficou
recluso, como acontecia nas antigas formas de morrer.
Corta. Cazuza estava escrevendo (em off): estou escrevendo numa tarde fria.
Trabalho para espantar minha solidão e meus pensamentos. Hoje assumi em
público a minha doença. Estou mais leve, mais livre... Ganho dinheiro cantando
as minhas desgraças. ...Comprar uma fazenda e fazer filhos, talvez seja uma
maneira de ficar prá sempre na terra. Porque discos, arranham e quebram”.
Esta cena mostra um Cazuza imortal.
Corta. Cazuza canta num show: “saiba que ainda estão rolando os dados
porque o tempo, o tempo não pára... Dias sim, dias não, eu vou sobrevivendo
sem um arranhão da caridade de quem me detesta... O tempo não pára. Não
pára, não não pára”. Ele apresentou, novamente, o sentido de urgência, da
pessoa que não pára e que, embora doente, continuava trabalhando. Assim
como apresentou, novamente, o sentido de vir ao público e orquestrar a sua
86
própria morte, o que levou, novamente, ao sentido da eternidade, de ficar para
sempre.
Cena 10:
Cazuza volta para casa dos pais. Cazuza conversa com o pai rememorando
cenas da infância. Cazuza e mãe cantam enquanto ela o banha. O retorno
ambíguo à antiga forma de morrer: cercado dos amigos e da família e não
enclausurado num quarto de hospital.
Corta. Cazuza rumo à praia com os amigos. Em off Cazuza canta: “Vida louca.
Vida breve. que eu não posso te levar quero que você me leve”. Em off
Cazuza morre. Na beira mar. Da água viemos e para a água retornamos.
As imagens da doença de Cazuza foram tratadas publicamente, tanto pela
imprensa quanto pelo filme, eles procuraram produzir junto aos receptores,
enquanto efeito de sentido, valores como tenacidade, irreverência e luta contra
um fim inexorável. Cazuza, enfim, não foi colocado num lugar passivo, de
agonizante. Mas sim daquele que luta, que enfrenta, que produz, porque ele
simplesmente não acreditava na morte.
5.2 Carandiru - uma outra história
A análise do filme Carandiru é muito mais complexa do que a do filme Cazuza.
Na análise de Cazuza, procuramos mostrar como que o cantor articulou todo o
trajeto da sua doença até a morte com a mídia. O filme nada mais é do que a
re-apresentação desta orquestração.
Carandiru é mais complexo porque é um filme que esboça um retrato do Brasil.
Seu sentido é de um Brasil caótico, multifacetado, que abre precedentes para
uma análise mais ampla e esbarra em uma ordem social e discursiva, que
amplia os limites do foco de análise.
87
Ao contrário das construções discursivas do filme Cazuza, em torno da AIDS,
as do filme Carandiru se assemelham muito às construções do discurso
estereotipado sobre sexo, sangue, ignorância, morte e minorias.
Aqui desenvolvemos melhor a idéia de minorias: certamente que os discursos
sobre a AIDS não ficaram restritos somente à esfera biológica, mas também
atravessaram o corpo social através do corpo das minorias que foram e
continuam sendo objeto de análises; formulações e advertências; exploração e
estudos clínicos, enfim, campos que fornecem material para a produção de
novos discursos:
O fundamento do discurso é dizer que a AIDS
“pega em qualquer um”. Se de maneira
majoritária, nas minorias, porque estas
erram, também nas crianças, mulheres e
despossuídos, porque eles são vítimas de
outros reveses. De modo geral, via tais
enunciados, os jornais procuram denunciar a
onda de medo, o pânico e a ameaça que a
AIDS causa junto a um conjunto
indeterminado de receptores, mas que de
certa forma é apresentado com limitações, na
medida em que esses não são todos os
receptores dos jornais, mas um conjunto
preciso: as minorias.
O filme Carandiru mostra isso: um filme das minorias, dos despossuídos, das
vítimas de outros reveses, pois ele narra histórias daqueles, cuja vida foi
alterada por algum convívio com a sociedade e, atravessa o corpo dessas
minorias através de formulações e advertências encenadas pelo médico.
Nesse filme o sentido surge a partir da vivência do médico na cadeia. Ele surge
em cada uma daquelas vidas, daquele ambiente. O filme visita a prisão e os
moradores de algumas daquelas celas. São muitas pessoas diferentes, com
histórias de vida diferentes, que são obrigadas a conviverem confinadas em
uma instituição mais do que falida, que procuram reinventá-la, para torná-la um
pouco mais suportável.
88
Hector Babenco, ao ser questionado sobre os motivos que o levaram a filmar
as histórias do Dráuzio Varella, respondeu:
... E quando esse conceito de lutar para estar
vivo se associa à necessidade que o homem
tem no presídio de formar alianças e respeitar
os códigos de cooperação para estar vivo, e
quando o Dráuzio me explica que o macaco
também se organiza, me interessou muito
poder explorar a possibilidade de contar as
histórias de homens que estão no limite
extremos que um ser bípede pode estar,
tolhido de todas as suas funções básicas,
quase regredido às funções de um símio, e
que mesmo assim tem de lutar para estar
vivo. Não adianta estar preso, não adianta
estar humilhado – ele ainda tem que lutar
para estar vivo. Eu achei fascinante. É uma
viagem minha, isso não está no filme. No
filme está o filme... (HECTOR BABENCO,
2003:101).
E em seguida, acrescentou:
...O livro ilustrava uma hipótese: a hipótese
do homem socialmente excluído, vivendo em
reclusão, com todos os direitos
comportamentais cerceados. Qual é o
modelo que esse homem escolhe para poder
sobreviver sem se suicidar? ... Deve haver
um processo mental de reorganização muito
forte. E, depois, escrevendo o roteiro, me
lembrei muito de um texto do Millôr
Fernandes na época em que fiz “O Pixote”,
em que ele perguntava: “O que fazer com o
menor abandonado?” Ele mesmo respondia:
“Deixá-lo crescer”. Estou fazendo um filme
dos personagens do “Pixote” 20 anos depois.
(HECTOR BABENCO, 2003:104)
Achamos importante apresentar os motivos que levaram o diretor a fazer “esse”
filme e não “aquele” filme. Isso porque Carandiru é um fenômeno específico de
público, ele fez quase 5 milhões de espectadores. Por não se tratar de um filme
da Rede Globo, daqueles de série e, também por não se modelar ao sucesso
de público para a classe média alta, Carandiru extrapolou em público de classe
89
média. O público nos cinemas do Centro da Cidade e nos shoppings da
periferia era muito grande, o que despertou o interesse da classe média para
ver o filme.
Carandiru é o retorno a um episódio, um tanto recente, da história nacional,
mais precisamente, uma tragédia a morte de 111 presos em um de seus
pavilhões, pela polícia. Porém, o interessante é que ele não se presta a buscar
as causas dessa tragédia. O filme retrata instantes da vida de seus presos.
Instantes às vezes brutais e violentos que seguem uma lei própria de
sobrevivência. O efeito de sentido mais contundente que ele encerra é a
maneira como se conduzem as coisas nesse país chamado Brasil. Na cena
final, a implosão de um dos prédios do Carandiru, evidenciou como os
assuntos delicados, tal como: o problema das instituições penitenciárias e
todos os seus desdobramentos, e a correção de indivíduos desviantes e
também a brutalidade da nossa polícia, são resolvidos. A realidade do
Carandiru ficou confinada a ele mesmo, nos dando a sensação de “ainda bem
que acabamos com mais esse problema, ele agora está derrubado”. É como
se estivéssemos, mais uma vez, empurrando a sujeira para debaixo do tapete.
Está claro que o filme Carandiru não é um filme sobre a AIDS, ela só serve de
pano de fundo para justificar a presença do médico no presídio. Sabemos que
a figura do médico é o fio condutor da narração das histórias de seus principais
personagens. Mas o médico funciona também como fio condutor para trazer à
tona o problema da AIDS dentro do presídio: o uso de drogas injetáveis, o
compartilhamento de seringas sem nenhum critério, o homossexualismo sem o
uso devido de preservativos etc., enfim, as condutas desviantes e inaceitáveis
da nossa sociedade.
Mas como dissemos anteriormente, um filme é uma obra polissêmica e diz
muitas coisas ao mesmo tempo. Portanto, um filme pode ser entendido e citado
em contextos distintos ao originalmente concebido.
Enquanto discurso, Carandiru pode ser inserido em todas as categorias
teóricas que revistamos no Capítulo 3, no entanto, achamos apropriado
retornar a apenas uma: a ordem dos discursos desenvolvida por Foucault. Para
90
ele os discursos produzidos num mesmo contexto de uma instituição ou
comunidade, para circulação interna ou externa interagem não apenas entre
eles, mas também com textos de outras ordens discursivas (Gregolin, 2003).
A análise do discurso desloca-se da primazia
sobre o discurso político, sobre a
materialidade escrita, para encontrar outras
formas materiais, outros regimes de
materialidade. Esse deslocamento levou
Pêcheux, em seus últimos textos, a preferir
falar em “análise de discurso” em vez da
fórmula tradicional “análise do discurso”; ao
mesmo tempo, o leva a intuir a fecundidade
da análise da materialidade não-verbal e a
nuançar a aproximação com a Semiótica
(Gregolin, 2003:9).
Se analisarmos Carandiru, sob a ótica da ordem dos discursos, podemos
observar a re-apresentação do discurso produzido pela mídia impressa, que
também se insere em outra ordem dos discursos na medida em que a mídia
funciona como ponto de convergência e que acolhe todos os lugares
discursivos da AIDS. Ela transforma as falas públicas e privadas num discurso
público, mas ao mesmo tempo privatizado pelas próprias regras de produção
de cada instituição que atua no campo jornalístico.
A seguir, selecionamos algumas cenas que retratam os efeitos de sentido
“transgressor” da AIDS.
Cena 3:
Após fazer uma visita exploratória ao presídio, o médico entra acompanhado
do diretor em sua sala e dispara: “Seu Pires se eles entenderem como é que se
pega AIDS para mim é um adianto. Eles pegam a doença é aqui dentro.
Depois eles transam com a mulher... com a namorada... daí a epidemia não
pára mais...” Nesta cena ficam claras as preocupações do médico quanto a
falta de informação em relação à doença, bem como em relação à
promiscuidade.
91
Nesta mesma cena o médico começa a prestar atendimento aos presidiários e
depara-se com uma série de situações de risco: viciados em drogas injetáveis,
homossexuais que não fazem uso de preservativos, soropositivos em estágios
avançados da doença, reforçando o efeito de sentido da transgressão.
Cena 06:
Na enfermaria o doutor passa visita aos doentes. Um auxiliar fala de um
paciente que está com febre alta e que nada adianta, nem antibiótico, a seguir
o veredicto: prá mim isso é AIDS. O doutor vai ao doente que está muito
machucado, sem o oxigênio e pergunta quem tirou. Os auxiliares dizem que é
estuprador e que ele não tem chance de sobreviver por causa do delito
cometido. Matar para eles, tudo bem, estuprar não.
Nesta cena fica claro que discriminação entre eles mesmos. Ora, o doente
não estava morrendo de AIDS e sim do espancamento que sofreu por ser
estuprador.
Cena 12
Esta é a famosa cena em que a ex-chacrete Rita Cadilac ensina aos presos
sobre a importância e o uso correto do preservativo.
Cena 17
Nesta cena Majestade visita Ezequiel para pedir que ele assuma a morte de
Zico. Ezequiel responde que tem mais dois anos de pena a cumprir e se
assumir a morte do Zico pegaria mais vinte anos. Porém, Majestade responde
que para Ezequiel tanto faz dois ou vinte anos, uma vez que ele está com
AIDS. Essa cena mostra claramente o desprezo e a discriminação pelo
soropositivo.
92
Cena 20
Esta cena retrata a invasão do presídio pela PM que entra gritando: volta prá
trás! Tá todo mundo aidético aqui! Vocês vão morrer! Mais uma vez desprezo e
discriminação.
Ao analisarmos sob o ponto de vista da doença, o filme Cazuza gera como
efeito de sentido, valores de tenacidade, de luta, de irreverência entre outros.
o filme Carandiru produz junto ao receptor, enquanto efeito de sentido,
valores como ignorância, desprezo pela própria vida e pela vida do outro,
promiscuidade, sentimento de culpa, discriminação e exclusão.
93
CONCLUSÃO
94
CONCLUSÃO
Este trabalho procurou verificar e analisar a manutenção e a permanência dos
efeitos de sentido gerados pela mídia impressa ao se comunicar sobre a AIDS,
nos filmes Cazuza e Carandiru. Alguns resultados aqui obtidos propiciam
possibilidades de desdobramentos para novos estudos sobre a AIDS, enquanto
discurso e seus conseqüentes efeitos de sentido, tanto em outros campos da
comunicação de massa, quanto em outros campos da produção cultural.
Achamos interessante colocar, de uma forma bastante resumida, alguns pontos
que estiveram presentes ao longo de todo esse trajeto.
A AIDS invadiu o espaço social na medida em que ela foi publicizada pelos
meios de comunicação de massa. No entanto, a mídia impressa foi o principal
fio condutor dessa invasão, porque foram os jornais os primeiros a abrirem
espaços para que todas as instituições que participaram do processo de
construção de discursos sobre a AIDS pudessem se manifestar. Assim, outras
instituições não-jornalísticas participaram do processo de construção das
diferentes modalidades de comunicação da AIDS na esfera do espaço público.
Médicos, biólogos, pesquisadores de diferentes campos, políticos, líderes
religiosos e, porque não mencionar, o próprio doente.
Mas os jornais, enquanto dispositivos do campo das mídias, foram atrelados às
suas próprias regras e estratégias discursivas. Assim, eles abriram espaço
para que todas as instituições, que participaram da formação de um discurso a
respeito da AIDS, pudessem se manifestar. Os jornais hierarquizaram esses
discursos e os colocaram em uma “ordem discursiva”.
Também é importante destacar que: em conseqüência da rápida invasão do
espaço público pela AIDS, ela adquiriu significados múltiplos e variados.
Apesar de que doença tenha sido definida sob a ótica médica, outras
instituições, alinhadas às suas próprias estratégias discursivas, também
participaram das diferentes construções de sentidos sobre ela. Retornando ao
conceito bakhtiniano, de que o diálogo com outras disciplinas, conceitos e
95
noções é permanente no que se refere à análise das atividades discursivas, e
que o diálogo desdobra as possibilidades do ver. Isso sempre inclui a história e
a memória que produzem sentidos e seus efeitos. Portanto podemos aferir que
o efeito de sentido da AIDS foi tecido por várias vozes, porém articulado pelos
dispositivos jornalísticos.
Ao se pensar que o sujeito enunciador produz um novo texto, a partir do
momento em que ele se apodera de um saber institucionalizado tanto na
língua quanto na cultura, esse saber é transcodificado no ato enunciativo e,
portanto, podemos constatar que: tanto o filme Cazuza quanto o filme
Carandiru, mantêm permanentemente os efeitos de sentido da AIDS
construídos pela mídia impressa, cada um ao seu modo.
Ao filme Cazuza coube o discurso do “olimpiano” com seus efeitos de
tenacidade, irreverência e luta contra a doença e ao filme Carandiru coube o
discurso das “minorias” com seus efeitos de ignorância,
discriminação, dependência e exclusão social..
96
REFERÊNCIAS
97
Referências
BARATA, Germana Fernandes. A primeira década da AIDS no Brasil: O
Fantástico apresenta a doença ao publico (1983-1992). Dissertação
(Mestrado)–Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Departamento de História. Programa de História Social.
São Paulo, 2006.
BRITO, Ana Maria... [et al]. Aids e infecção pelo HIV no Brasil: uma
epimedia multifacetada. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina
Tropical. 34(2): 207-217, mar-abr, 2000.
CAETANO, Daniel (org.). Cinema Brasileiro 1995-2005 revisão de uma
década. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.
CAMARGO JR, Kenneth Rachel de. Prevenções de HIV/Aids: desafios
múltiplos. Divulgação em Saúde para Debate. Rio de Janeiro, n 27, pp. 70-80,
agosto 2003.
FAUSTO NETO, Antônio. Comunicação & Mídia Impressa. Estudo sobre a
AIDS. São Paulo: Hacker Editores, 1999.
____________________. Mortes em Derrapagem. Rio de Janeiro: Rio Fundo
Ed., 1991.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária,2007.
________________. A Ordem dos Discursos. 16 ed. São Paulo: Edições
Loyola, 2008.
GREGOLIN, Maria do Rosário e BARONAS, Roberto (org.). Análise do
Discurso: as materialidades do sentido. 2 ed. São Carlos,SP: Editora
Claraluz, 2003.
GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucualt e Pêcheux na análise do discurso:
diálogos & duelos. 3 ed. São Carlos, SP: Editora Claraluz, 2007.
HERZLICH, Claudine, PIERRET Janine. Uma Doença no Espaço Público. A
AIDS em Seis Jornais Franceses. PHYSIS. Ver. Saúde Coletiva. Rio de
Janeiro, 15 (suplemento): 71-101, 2005.
Joint United Nations Programme on HIV/AIDS - UNAIDS. 2006 Informe sobre
la epidemia mundial de SIDA: Resumen de orientación. www.onu-
brasil.org.br.
KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
LIMA MONTEIRO, Clóvis Ricardo. Aids. Uma epidemia de informações. Rio
de Janeiro: e-Papers, 2006.
98
MINISTÉRIO DA SAÚDE - SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE -
PROGRAMA NACIONAL DE DST E AIDS. Boletim Epidemiológico - Aids e
DST Ano IV - nº 1 - 27ª - 52ª - semanas epidemiológicas - julho a dezembro
de 2006 Ano IV - 1 - 01ª - 26ª - semanas epidemiológicas - janeiro a
junho de 2007. Brasília: Ministério da Saúde, 2008 - www.aids.gov.br.
MINISTÉRIO DA SAÚDE DO BRASIL - SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM
SAÚDE - PROGRAMA NACIONAL DE DST E AIDS. Metas e Compromissos
Assumidos pelos Estados-Membros na Sessão Especial da Assembléia
Geral das Nações Unidas em HIV/Aids UNGASS – HIV/Aids. Resposta
Brasileira 2005/2007 Relatório de Progresso no País. Brasília: Ministério
de Saúde, 2008 – www.aids.gov.br.
NASCIMENTO, Dilene Raimundo. As pestes do século XX: tuberculose e
aids no Brasil, uma história comparada. - Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2005.
OLTRAMARI, Leandro Castro. Um Esboço sobre as Representações
Sociais da Aids nos Estudos Produzidos no Brasil. Cadernos de Pesquisa
Interdisciplinar em Ciências Humanas. 45 setembro de 2003.
http://www.cfh.ufsc.br.
ONUSIDA/07.27S / JC1322S (versión española, diciembre de 2007). Situación
de la epidemia de sida. Diciembre de 2007. ISBN 978 92 9 173623 2.
www.unaids.org.
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada.
São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
PELLEGRINI, Tânia... [et al]. Literatura, cinema e televisão. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003.
RAMOS, Fernão Pessoa (organizador). Teoria Contemporânea do Cinema,
volume II. São Paulo: Editora Senac, 2005.
SELLIGMAN, Flávia, SANTOS, Araci Koepp. A produção audiovisual
brasileira contemporânea e a intertextualidade das mídias. O caso Ônibus
174. Rev. De Economia Política de lás Tecnologias de la Información Y
Comunicaión. Dossiê Especial Cultura e Pensamento, Vol. II Dinâmicas
Culturais, Dec. 2006. www.epitic.com.br.
SOARES, Rosana de Lima. Imagens veladas: Aids, Imprensa e Linguagem.
– São Paulo: Annablume, 2001.
SONTAG, Susan. Doença como Metáfora. AIDS e suas Metáforas. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
TURNER, GRAEME. Cinema como prática social. São Paulo: Summus,
1997.
99
VALLE, Carlos Guilherme do. Identidades, doença e organização social: um
estudo das "Pessoas Vivendo com HIV e AIDS". Horiz. antropol., June 2002,
vol.8, no.17, p.179-210. ISSN 0104-7183.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
www.aids.gov.br > Área técnica > Epidemiologia > Tabulação de Dados.
Mortalidade por Aids no Brasil.
www.datasus.gov.br > Informações de Saúde > informações epidemiológicas e
morbidades > doenças de notificação > Aids. Casos de Aids Identificados no
Brasil.
5.1 Referências consultadas:
Agence France-Presse 2006. Cronologia dos 25 anos do surgimento da
Aids. www.afp.com
BARBOSA, Marialva, ENNE Ana Lúcia Silva. O jornalismo popular, a
construção narrativa e o fluxo sensacional. Revista ECO-PÓS-v. 8, n.2,
agosto-dezembro2005, pp.67-87.
CARDOSO, Janine Miranda. Discurso preventivo e estratégias de
Comunicação: as campanhas da Aids na TV. In: Mídia. Br. Livro da XII
Compôs 2003. Porto Alegre: Sulina, 2004. pp 39-60.
CARVALHO, Mário César. Carandiru: Um filme de Hector Babenco. São
Paulo: Wide Publishing, 2003.
FACCHINI, REGINA. Movimento homossexual e construção de identidades
cletivas em tempos de Aids. In: Construções da Sexualidade: gênero,
identidade e sexualidade em tempos de Aids. Rio de Janeiro: IMS/UERJ e
ABIA, 2004, pp 151-165.
GOMES, Itania Maria Mota. Os estudos dos efeitos. In: Efeito e Recepção: a
interpretação do processo receptivo em duas tradições de investigação sobre
os media. Rio de Janeiro: e-Papers Serviços Editoriais, 2004. pp 19-78.
GRUPO PELA VIDDA. Aids e Imprensa. Um guia para ONG. Rio de Janeiro,
Grupo pela Vidda: 2001. www.pelavidda.org.br.
HERZLICH, Claudine. Saúde e Doença no Início do Século XXI: Entre a
Experiência Privada e a Esfera Pública. PHYSIS: Ver. Saúde Coletiva, Rio
de Janeiro, 14(2): 383-394, 2004.
LOPES, Orquídea Maria Mendes. Os meios de comunicação na prevenção
do SIDA. Universidade de Salamanca Faculdade de Educação Espanha
artigo publicado no HIV/Aids Virtual Congress - Congresso de Comunicação
Tema: Epidemiologia, Prevenção e Saúde Pública, 2005
www.aidscongress.com.
100
MARQUES, Francisca Ester de Sá. As interações entre os media e a
cultura: a produção do fundo arcaico e as variações de sentido. In:
Comunicação e corporeidades/Antonio Fausto Neto... [et al]. João Pessoa:
Editora Universitária/UFBP, Compós, 2000. pp. 61-84.
MEYER, Dagmar Estermann, SANTOS, Luis Henrique Sacchi dos, OLIVEIRA,
Dora Lúcia de et al. 'Shameless woman' and 'responsible traitor':
problematizing gender representations in official HIV/AIDS television
advertisements. Rev. Estud. Fem., May/Aug. 2004, vol.12, no.2, p.51-76.
ISSN 0104-026X.
RIBEIRO, Lavinia Madeira. Considerações sobre a Origem Histórico-
sociológica da Informação e sua Contemporânea Conformação
Institucional. In: Comunicação e Sociedade: Cultura, Informação e Espaço
Público. Rio de Janeiro: e-Papers Serviços Editoriais, 2004. pp 73-114
RIBEIRO, Lavinia Madeira. Teoria do Espaço Público em Jüngen
Habermas. In: Comunicação e Sociedade: Cultura, Informação e Espaço
Público. Rio de Janeiro: e-Papers Serviços Editoriais, 2004. pp 187-318.
TRINDADE, José Ronaldo. Construções de identidade homossexuais na
era Aids. In: Construções da Sexualidade: gênero, identidade e sexualidade
em tempos de Aids. Rio de Janeiro: IMS/UERJ e ABIA, 2004, pp 169-197.
UNAIDS. Os homens e o SIDA: Uma Abordagem Baseada no Gênero.
Campanha Mundial contra o SIDA, 2000. Programa Conjunto das Nações
Unidas sobre HIV/SIDA (ONUSIDA), 2001. – www.unaids.org.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. Revista ECO/PÓS/UFRJ
Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação
Comunicação e Saúde. Vol.10, n.1 (2007) Rio de Janeiro: ECO/UFRJ 2007
– ISSN 0104-6160.
101
ANEXOS
102
ANEXOS
Anexo 1: Decupagem do Filme Carandiru
Sinopse:
Carandiru conta a história de um médico que realiza um trabalho de prevenção
à AIDS no maior presídio da América Latina, o Carandiru. ele vive com a
realidade atrás das grades, que inclui violência, superlotação das celas e
instalações precárias. Mas, apesar de todos os problemas, o médico percebe
logo que os presos não são figuras demoníacas, existindo dentro da prisão
solidariedade, organização e uma grande vontade de viver. Merece atenção,
sobretudo, a polêmica intervenção policial que matou 111 presos em 1992e
que ficou conhecida como “O Massacre do Carandiru”.
Carandiru foi o filme mais visto no Brasil em 2003 e foi escolhido para
representar o Brasil no Oscar de melhor filme estrangeiro.
Ficha Técnica
Ano de Lançamento: 2002
Distribuição: Sony Pictures Classics / Columbia Tristar do Brasil
Direção: Hector Babenco
Roteiro: Hector Babenco, Fernando Bonassi e Victor Navas
Produção: HB Filmes, Globo Filmes e Columbia Tristar do Brasil
Co-produtores: Flávio R. Tambellini e Fabiano Gullane
Direção de Produção: Caio Gullane
Produtor Associado: Daniel Filho
Coordenação de pós-produção: Alessandra Casolari
Música: André Abujamra
Som direto: Romeu Quinto
Edição de som: Elisa Paley e Miriam Biderman
Fotografia: Walter Carvalho – ABC
Direção de Arte: Clóvis Bueno
Figurino: Cristina Camargo
103
Edição: Mauro Alice
Principais personagens
1. Médico (Luiz Carlos Vasconcelos) sem história pessoal, é um mais um
veículo para que as histórias dos presos sejam contadas. Ele faz a ponte
entre os presos e os telespectadores.
2. Zico (Wagner Moura) É um preso ativo, participa da organização interna.
Começa a usar e a vender drogas e a perder seu bom senso. Recebe em
sua cela Deusdete, seu amigo de infância, cuja irmã, Francineide, é sua
paixão de anos atrás. Ela o visita quando Zico está tomado pelas drogas.
Mata Deusdete num momento de alucinação. Morre por não pagar a conta
de drogas. Sua história fora do presídio também é encenada.
3. “Seu” Pires (Antonio Grassi) – diretor do presídio.
4. Nego Preto (Ivan de Almeida) é uma espécie de coordenador geral das
ações dentro da prisão. Respeitadíssimo, ninguém ousa desobedecê-lo:
ninguém mata ninguém sem antes pedir licença a ele. Sua história também é
encenada.
5. “Seu” Chico (Milton Gonçalves) Veterano na cadeia, tem 18 filhos, alguns
dos quais sequer conhece. É respeitado pelos internos.
6. Majestade (Ailton Graça) vende drogas para sustentar as duas famílias
que tem. É casado com uma loira e outra mulata. Ama suas duas mulheres,
que se detestam. A história de como as conheceu é encenada. Na visitação
ele recebe as duas, faz sexo com ambas (separadamente) e tenta um
entendimento entre elas.
7. Dalva (Maria Luisa Mendonça) – mulher de Majestade.
8. Rosirene (Aída Lerner) – a segunda mulher de Majestade.
104
9. Deusdete (Caio Blat) irmão de Francineide, amigo de infância de Zico,
preso por matar quem violentou a irmã, usando uma arma que Zico lhe dera.
10. Francineide (Júlia Ianina) – irmã de Deusdete.
11. Lady Di (Rodrigo Santoro) um dos muitos travestis confinados no
Carandiru. Ela se apaixona e se casa com Sem Chance, numa festa gay
dentro do presídio.
12. Sem Chance (Gero Camilo) ajudante do doutor, ganha a liberdade, mas,
apaixonado por Lady Di casa-se com ela e fica no presídio.
13. Antonio Carlos (Floriano Peixoto) um dos assaltantes de carros-forte.
Sua história é encenada junto com a relação com seu comparsa
Claudiomiro.
14. Claudiomiro (Ricardo Blat) comparsa de Antonio Carlos. Seria traído
pela esposa, mas Antonio Carlos o alerta. Elimina a esposa e o policial com
quem ela o trai. Sua história é encenada junto com a de Antonio Carlos.
15. Célia (Vanessa Gerbelli) – esposa de Antonio Carlos.
16. Dina (Leona Cavalli) – esposa de Claudiomiro.
17. Ezequiel (Lázaro Ramos) – presidiário viciado.
18. Peixeira (Milhem Cortaz) presidiário que matou muita gente e não tem
família que o espera lá fora.
Diálogos e Cenas em que a AIDS aparece:
Cena 3: Visita exploratória
Depois de andarem pelo presídio, o médico e o diretor da prisão entram na sala
do diretor, em segundo plano podemos ver alguns presos sentados em um
banco que são chamados em uma sala, entrando um por vez. Há uma pequena
105
fila de presos aguardando a chamada. Parece uma triagem. Ao fundo podemos
ver um dos personagens (Deusdete) saindo da sala.
Falas:
Médico: Seu Pires se eles entenderem como é que se pega AIDS para mim
é um adianto. Eles pegam a doença é aqui dentro. Depois eles transam com a
mulher... com a namorada... daí a epidemia não pára mais...
Seu Pires: quem vai querer ouvir seus conselhos Doutor é o malandro de
verdade... aquele que quer sair inteiro daqui prá assaltar de novo lá fora... Essa
é a vida dele!
Médico: que seja, mas agora já estão vivendo é no foco da doença seu Pires...
Estão presos aqui!
Seu Pires: Presos??? Eles são os donos da cadeia Doutor!!! Isso aqui não
explode porque eles não querem!!!
Cena 3: Consultório
Depois de conversar com seu Pires o médico se dirige ao “consultório”
carregando uma pasta e uma caixa de isopor, onde, supõe-se que ele está
carregando material necessário para teste HIV.
Logo que entra, depara-se com Antonio Carlos dando banho em Claudiomiro
que está muito doente, tossindo muito e cuspindo sangue. Outros personagens
estão no consultório. Sem Chance está de jaleco branco, é o ajudante do
doutor.
Falas:
Médico - (entrando na enfermaria): ele não pode cuspir aí. Tuberculose. Quem
pisa espalha doença.
Antonio Carlos (amparando Claudiomiro): doutor, se a tosse fosse menos e o
fôlego mais ele procurava uma pia. Mas tá difícil...
106
Médico (virando-se para Sem Chance): tem que isolar esse rapaz!
Sem Chance (olhando ao redor e fazendo e franzindo os ombros): e tem onde
doutor?
*Algumas cenas depois Claudiomiro morre em decorrência da
tuberculose, mas não fica claro se a tuberculose foi conseqüência da
AIDS.
Médico (começa a prestar atendimento, depois de perguntar por que “Barba”
está preso e ouvir suas explicações): ... escuta Barba, você tem relação sexual
aqui dentro da cadeia?
Barba: quem disse que não ta mentindo...
Médico (em tom de afirmação): usa camisinha...
Barba: quando tenho eu uso.
Médico: e droga na veia?
Barba: que é isso doutor?
Médico: eu é que pergunto Barba... qui é essa marca no braço...
O m édico e seu
assisten te, Sem
Cha nce no prim eir o
dia d e v isita na
Pen itenciár ia.
107
Barba: (olhando para as marcas, meio se jeito, estende o braço, mostra as
marcas para o Médico e não responde nada).
Médico (pegando um frasco de coleta de sangue e entregando ao “Barba” que
o pega e sai cabisbaixo): manda o próximo...
Entra o próximo amparado por dois outros presos...
Preso 1 (sem cabelos, muito magro e com aparência bastante debilitada): meu
nome é Alípio.
Médico: Alípio você usa droga?
Alípio: faz que não com a cabeça...
Médico: nada na veia?
Alípio: esquece doutor... eu peguei AIDS foi comendo bunda de cadeia... muita
bunda... Adianta fazê o teste?
Médico (não responde nada... fica olhando com uma cara meio incrédula e
corta a cena para outro personagem).
Preso 2: (homossexual travestido... unhas pintadas...jeito de mulher): eu
escuto... aconselho... faço carinho... ponho no colo... depois eles sempre faz
108
um agrado prá nós. Sabe doutor: um maço de cigarro... um docinho... um
pedaço de queijo...
Médico: olhando incrédulo joga a caneta sobre a mesa.
Preso 2 (em tom de confidência e tentando se justificar diante da incredulidade
do médico): sabe doutor, é muito homem fechado aqui dentro, sem aquela
nossa coisa feminina de dá apoio...
Preso 3: (ao sentar-se na frente do médico pode-se ver que algumas cartelas
de medicamentos estão espalhadas sobre a mesa): To com AIDS sim doutor,
mas não peguei aqui dentro não, trouxe da rua, mas não nem pra reclamar
viu doutor? Porque chegar doente numa cadeia e os companheiro tratá agente
com respeito, com dignidade é a coisa mais bonita na vida de um ladrão...
Preso 4: Sou viciado e traficante... no meu negócio, se o cara num paga, num
posso pegá o que eu vendi prá ele. O desgraçado cherô, fumô, vai sabê,
pego tudo o que ele tivé chefe... se o cara num tivé nada, aí eu mato ele.
Preso 5: (mais um homossexual): um dia desse pedi uma banana a mais pro
moço que entrega o almoço... o safado me disse que me dava se eu desse
um beijinho na banana dele... Fazê o quê?... Sou louca por banana...
Preso 6: (vestindo a camisa depois de ser examinado): aí doutô, no meu
barraco tá todo mundo com essa cocera... num dá prá aguentá...
Médico (lavando as mãos): é sarna... vou arranjar um remédio prá vocês...
(depois se dirigindo ao Sem Chance que está colhendo amostras de sangue): e
ai? Comé que tá indo?
109
Sem Chance: doutor, prá quem injetô cocaína no escuro com agulha
sem ponta. Tirá sangue com esse material aqui é até covardia da parte nossa
doutor! É sem chance...
Cena 4: Fim do expediente do primeiro dia na penitenciária:
No final do dia, bem escuro, o doutor vai saindo da cadeia com o isopor com
as amostras de sangue nas mãos. Antes de sair, no portão, é indagado por
Nego Preto: doutor? O senhor volta?
O médico só olha prá ele e nada responde...
No caminho, dentro do metrô o doutor vai pensando...
Pensamento do médico: eu sabia que muitos daqueles homens não tinham
demonstrado clemência diante de suas vítimas. Mas a sociedade tinha seus
juízes, não me cabia julgar. Ao mesmo tempo o que tinha eu a ver com aquilo...
Havia duas escolhas: esquecer ou voltar...
Sem Chance (Gero
Camilo) coletando
sangue dos presos para
fazer o teste de Aids.
110
Cena 6: Lady Di se apresenta para fazer o teste de Aids:
(Lady Di é a “companheira” do Sem Chance)
Lady Di: (travesti). Com licença? Oi eu sou a Lady. Vim fazê o teste...
Médico: Por favor, sente-se... Primeiro eu gostaria de lhe fazer umas
perguntas Lady Di.
Lady Di: Eu já conheço essa missa viu doutor. Nunca precisei de transfusão de
sangue, num boto nada na veia (mostra os braços para o médico). Droga pra
mim doutor é um baseadinho que eu fumo de vez em quando viu? Assim...
prá vê televisão ou prá namorá.
Médico: parceiros... quantos?
Lady Di: Ah... uns dois mil...
Médico: (faz um olhar do tipo:não tem jeito mesmo!)... Pega a borrachinha e
amarra no braço da Ladi e pergunta: posso? (referindo-se aos peitos da Ladi e
o aperta dentro da camisa): Lady o silicone que você usou não é prá isso...
Lady Di: e eu tinha dinheiro pra coisa melhor doutor?
Médico: e hormônio? Já tomou?
Lady Di: magina... hormônio prá que? Agente toma e não acontece nada! Tem
cliente nosso, o senhor sabe, gosta mesmo é de virá moça.
Médico: é Lady, acho mesmo que chegou a hora de você saber se tá doente...
Na enfermaria o doutor passa visita nos doentes. Um auxiliar fala de um
paciente que está com febre alta e que nada adianta, nem antibiótico, e o
veredicto: prá mim isso é AIDS.
O doutor um preso que está muito machucado, sem o oxigênio e pergunta
quem tirou. Os auxiliares dizem que é estuprador e que ele não tem chance de
sobreviver por conta do delito cometido. Matar para eles, tudo bem, estuprar
não.
111
Cena 8: Sem Chance não quer fazer o teste de HIV
Sem Chance, Lady Di e o médico conversam. Sem Chance e Lady Di querem
assumir o caso e o médico fala que a Lady fez o teste e ele não faz por que.
Medo de injeção? A cena corta para a história de Zico e Deusdete.
Cena 12: O show de Rita Cadilac
Rita Cadilac: Pois bem. Eu sei que vocês... todos... namora bastante. É
verdade? Mas vocês tão se cuidando? O nosso amigo doutor... (pegando o
doutor pela mão que estava em cima do palco) veio aqui hoje e me ensinou
bastante pra eu ensiná pra vocês... não é isso? (doutor responde que sim no
microfone). Pois bem, tem uns que se cuidam e ainda se lembram. Têm outros
que não se lembram. Então eu vou ensiná como é que se faz.
Em visita à enfermaria, o Médico (Luiz Carlos Vasconcelos) e Antonio Carlos (Floriano Peixoto)
amparam Claudiomiro (Ricardo Blat) na hora da morte.
112
Rita Cadilac “relembra” aos detentos como que se usa a camisinha.
Um “ajudante de palco” joga camisinha para a platéia.
Cena 13: Peixeira conversa com o estuprador:
Peixeira: que cara é essa minino?
Preso estuprador (ainda todo estropiado, chorando): eu inventei que tava com
AIDS pra ninguém zuá comigo, mas não adiantô nada.O filho da puta que me
fez tá com a maldita.
Peixeira: esquece garoto. Ele mandô te dizê que mentiu. Ele também não tem
AIDS.
Preso estuprador: sorri e respira aliviado.
Cena 14: Lady Di e Sem Chance abrem o resultado do teste de AIDS.
Sem Chance: O doutor falou que tem que dar positivo.
113
Lady Di: Não. Positivo é justamente a maldita no sangue. Tem que
negativo. HIV Negativo. Eu vou abri primeiro. Meu caso é pior mesmo.
(depois de abrir e ver o resultado): Tô limpa! Tô limpa! (chorando)...
Sem Chance (rindo): olha só... Tu fez ponto na noite, só aqui dentro mais de
dois mil homens e... limpinha. E eu todo certinho e ó: sem chance (Lady olha
prá ele com um olhar de incredulidade). To limpo também Lady (mas continua
triste porque recebeu liberdade e não quer ir embora e deixar a Lady).
Cena 16 : o casamento de Lady e Sem Chance:
Todos os travestis do presídio se reúnem para o casamento. Odico leva Lady Di ao altar.
Cena 17: a morte de Zico:
Ezequiel, que devia dinheiro de drogas a Zico tem sua cabeça pedida ao Nego
Preto. Ezequiel, não tendo como pagar o que deve oferece a própria irmã como
pagamento. Zico não aceita e absolve Ezequiel. Mas Nego Preto é implacável
e manda Ezequiel morar no pavilhão “amarelo”.
A cena corta para Zico, que em uma alucinação, mata seu amigo de infância,
Deusdete e é julgado e condenado por todos da cadeia, sobretudo por
Majestade que lidera a morte de Zico que morre a facadas desferidas por
vários presos. Depois da morte de Zico, Majestade vai visitar Ezequiel e induz
114
ele a se responsabilizar pela morte de Zico. O que Ezequiel responde: mas eu
tenho mais dois anos... e se eu assumir a morte do Zico eu vou amarrar
mais vinte. Ao que Majestade responde: dois anos, vinte anos, que diferença
faz pro Ezequiel? com Aids! Pelo menos tu vai uma cela prá ti, roupa
lavada... e é claro! Pedra prá fumá (Ezequiel era viciado em craque). Ezequiel
sorri e recebe a faca com a qual Majestade e seus comparsas haviam matado
Zico. Por fim Ezequiel assume o crime dizendo que foi ele que “fez” o Zico e
que agora não deve mais nada prá ninguém.
Cena 20: A invasão da PM:
PM (invadindo o prédio quando se depara com um bando de presos que
vinham descendo as escadas): Volta prá trás! todo mundo aidético aqui!
Vocês vão tudo morrer!
Ezequiel (Lázaro Ramos),
isolado e doente de Aids assume
a morte de Zico (Wagner Moura)
em troca de favores e drogas.
115
Última cena: O médico no metrô se dirige à Penitenciária para mais um
dia de trabalho:
Médico (narração em off): no final dos anos 80, um trabalho de prevenção à
AIDS entre a população carcerária, me levou à Casa de Detenção de São
Paulo, no Carandiru. Ali dentro ouvi histórias, fiz amizades verdadeiras, aprendi
medicina e na convivência penetrei em alguns mistérios do cárcere,
inacessíveis se eu não fosse médico. Ainda hoje, quando o portão de ferro bate
às minhas costas sinto um aperto na garganta igual àquelas matinês no Cine
Real, quando eu assistia, eletrizado, os filmes de cadeia em preto e branco.
No dia 09 de dezembro de 2002 o
Carandiru foi, finalmente, implodido.
Travesti
(relata ao
médico o que
aconteceu no
massacre):
“Entraram prá
matar doutor,
gritaram que
agente era
tudo um
bando de
aidético, que
se
encostassem
na gente
pegava
doença...
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo