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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA
CONFIGURAÇÃO POLÍTICA EM MICHEL DE MONTAIGNE
Dalton Franco
Dissertação apresentada ao
Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Ciência Política.
Banca Examinadora:
_______________________________
Dr. Renato Lessa (orientador) - UFF
_______________________________
Dr. Cláudio de Farias Augusto - UFF
_______________________________
Dra. Sabrina Medeiros - UFRJ
Niterói
2008
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Sumário
Introdução
p. 1
Capítulo 1
Aparelho Cético
p. 2
Capítulo 2
Aplicação Cética em Michel de Montaigne
p. 36
Capítulo 3
Configuração Política em Michel de Montaigne
p. 69
Conclusão
p. 103
Anexo
p. 105
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Resumo
O trabalho que segue disserta sobre a chamada teoria política combinando a
apresentação de uma reflexão antiga e uma elaboração moderna. O objetivo
em curso tenta articular o pensamento cético moderno com a política ocidental
do século xvi. Os processos mentais da sképsis parecem caminhar para as
teorias do conhecimento de modo geral, e diante disso tenta-se promover um
esforço de adesão dessa vertente ao pensamento da política, aos seus meios e
objetos que mobiliza. O móbil para esse percurso é a obra do ensaísta Michel
de Montaigne.
Pressupõe-se, por um lado, que há uma conexão causal possível entre a
reflexão ordenada por Sexto Empírico, a recepção e elaboração dada por
Michel de Montaigne, que por sua vez configuram procedimentos de reflexão e
imagens possíveis da política e seus derivados. Ao mesmo tempo, imaginamos
que o trabalho do ensaísta sofre de endemia cética soprada ao longo dos seus
três livros, os Ensaios, e que, portanto, constitui matéria igualmente remetida à
reflexão e imagens dos negócios da cidade.
A partir disso discutimos os argumentos oferecidos por Enesidemo e Agripa,
com o propósito de aclarar a entrada na reflexão não-simétrica de Michel de
Montaigne e, também, conferir uma proposta de introdução que credencie uma
leitura conduzida de um trabalho que parece não possuir vínculos analíticos
sistemáticos ao primeiro golpe de vista. Esse tratamento permite consagrar a
adesão do ensaísta ao que dispôs Pirro de Élis mais de dezoito séculos antes.
Do pirronismo retiramos o fio analítico para procedermos a um ajuste
organizado das diversas produções dos Ensaios de Michel de Montaigne para
o tratamento da política. Observamos assim o trabalho do pensador orientando
parte dos seus esforços filosóficos para esse domínio específico sem ignorar
as limitações que essa métrica impõe. O ensaísta pensa a reflexão e a política,
e esta última de duas maneiras, elaborando um diagnóstico pessimista do
ponto de vista ontológico, bem como prescrevendo um tipo de ordenamento via
ensaios teóricos ou mesmo num domínio retórico.
iii
Primeiro ato:
Os deuses, sentados ao lado de Zeus, estavam reunidos
em conselho no salão dourado e, entre eles, a majestosa
Hebe servia o néctar. Eles o saboreavam em taças de ouro,
contemplando a cidade dos troianos. (Homero, Ilíada)
Segundo ato:
O universo tem tantos centros quantos os seres vivos que
nele existem. Cada um de nós é o centro do mundo e do
universo, e ele se desmorona quando alguém nos sussurra
ao ouvido: Está preso! (Alexandre Soljenítsin, Arquipélago
Gulag)
Wendel, Yan
iv
Agradecimentos
Depois de alguns anos trabalhando com Indicadores Sociais, efeitos da
UFRuralRJ, imaginava quão abstrata era toda aquela marcha de medição de
caráter fundamental a confecção e também para os resultados de decisões
políticas. Concluí que poderia ser a política, e não solitariamente a economia, o
ponto que conduzia o que havia de mais ou menos trabalhoso nesses esforços,
fosse resultado de alguma interpretação sistemática mobilizada de uma teoria
social ou mesmo de alguma decisão acidental. A UFF me permitiu um novo
esmero profissional. Além da recepção amigável recebida do seu
Departamento de Ciência Política, manifesta pelas generosas entrevistas que
obtive do Prof. Eurico de Lima Figueiredo, agradeço o apoio que recebi do
CNPq por seu intermédio. Simultaneamente sou grato pelo treino intelectual
plural que recebi dessa escola, especialmente as aulas oferecidas pelo Prof.
Renato de Andrade Lessa. Não sei exatamente como apontar no trabalho onde
deveria citar o termo notas de aula, assim, colonizado por essa dúvida que
pervaga, caminhei sem oferecer a transparência adequada ao trabalho desse
mestre, outrossim, sigo solitário com os erros e eventuais equívocos de
interpretação que a minha própria fantasia produziu a partir das matérias.
Ofereço um pavoroso eclipse a vários nomes, mas creio expressá-los por
alguns intelectuais a quem submeti à minha decisão e modo de aderir à política
com os assuntos de minha predileção: Inês Patrício, Georgheton Nogueira,
Rogério Rocha e Délcio Lima. Igualmente, rendo gratidão às audições que a
Pedagoga Ariléa Duarte me ofereceu, bem como a conecto ao Intelectual e
Empreendedor Social Giovanni Harvey, ambos do militante infatigável Instituto
Palmares de Direitos Humanos. Não poderia deixar de anotar a assiduidade e
acuidade que me foi oferecida pela reluzente Daniele dos Santos Grimião,
figura que conduziu comigo e Michel de Montaigne um verdadeiro triálogo.
Agradeço à minha família por acreditar em coisas que não existem e disso à
sabiamente me comunicar estímulos à segui-las. Quatro anos de estudo de
uma jovem senhora chamada Leni Maria Rodrigues Franco conseguiram apoiar
incondicionalmente outros vinte e um até o momento dessa contagem. E dela
estendo à minha eterna gratidão a Elton e Ilton.
v
1
Introdução
A teoria contemporânea tenta insistentemente simular as imagens sociais
segundo as coisas que existem, tal como se apresentam num momento e
segundo um padrão de repetição. O esforço invariavelmente deve produzir
soluções concretas aos problemas cotidianos. Essa pressão se abate
sobremaneira a investigadores profissionais que emprestam imagens
constituídas debaixo de gabaritos clássicos para provocações pretensamente
contemporâneas. Trata-se de uma perspectiva que contrata a reflexão como
produto instantâneo, alojado no espaço e sujeito a um padrão ferramental. Não
precisamos de muito exercício para extrair alguns predicados desse plano de
observação, uma seriada produção intelectual, exalando datas e infestadas
de ferramentas atualizáveis.
Se vasculharmos coerência, podemos acusar que problemas contemporâneos
devem obedecer a artifícios atualizados, e disso proceder a resultados
semelhantes. A resposta a tais interrogações é verificada sob recipientes
incrustados de termos de atenuação da certeza ou ainda da consagração
velada da verdade. Entretanto, seja qual for o veículo e o aspecto que essa
imagem prefigure, ela reiteradamente se presta a falar de uma asserção
privada e evidente para quem à confecciona. E como o resultado não prescinde
de pelo menos uma resposta radicalmente contrária, somos lançados de volta
ao ponto de partida e o monstro horrendo da dúvida se alastra sobre os
diversos percursos da pesquisa, de modo que parecem eternizar a fabulação
humana sob o contraste entre o que é e o seu termo rival.
A máquina que produz coisas que existem supostamente atualizáveis diante de
problemas também tocados de ineditismo replica um e grande produto, a
pesquisa. Esse é o termo que liga as dúvidas ontem e hoje e que é capaz de
arrefecer boas quantidades de inovações quando olhamos as coisas que não
existiam. E o dragão maldito da dúvida empurra a pesquisa à revelia do
resultado dos seus procedimentos pretensamente renovados de investigação e
simulação da sociedade.
Capítulo 1
Aparelho Cético
Índice
Apresentação p. 3
Preâmbulo p. 4
Sképsis p. 8
Pirro de Élis (Pirronismo) p. 09
Sexto Empírico p. 10
Dez Modos p. 11
Tropo 1: Diferenças Entre os Animais p. 14
Tropo 2: Diferenças Entre os Seres Humanos p. 14
Tropo 3: Diferentes Constituições dos Órgãos dos Sentidos p.
15
Tropo 4: Circunstâncias que Afetam o Sujeito p. 17
Tropo 5: Posições, Intervalos e Lugares ou Circunstâncias do
Objeto p. 17
Tropo 6: Combinações p. 19
Tropo 7: Quantidades p. 20
Tropo 8: Relatividade p. 21
Tropo 9: Freqüência p. 22
Tropo 10: Costumes e Persuasão p. 22
Os Oito Tropos da Causalidade p. 24
Tropo 1: Princípio da Não-Confirmação p. 24
Tropo 2: Princípio da Pluralidade Causal, ou Monocausalidade
Arbitrária p. 25
Tropo 3: Princípio da Incompatibilidade Formal p. 26
Tropo 4: Princípio da Falácia Analógica p. 27
Tropo 5: Princípio da Idiossincrasia p. 27
Tropo 6: Princípio da Seletividade p. 28
Tropo 7: Princípio da Inconsistência p. 28
Tropo 8: Princípio da Incerteza Hiperbólica p. 28
Os Cinco Tropos de Agripa p. 29
Tropo 1: Disputa p. 29
Tropo 2: Regressão ao Infinito p. 30
Tropo 3: Relatividade p. 30
Tropo 4: Hipóteses p. 30
Tropo 5: Reciprocidade ou Circularidade p. 31
Epílogo p. 32
3
Apresentação
O presente capítulo versa sobre o ceticismo antigo. Nesta etapa ele é tratado
como um aparelho específico de reflexão filosófica remetido a enunciados
dogmáticos de modo geral. A demonstração do chamado Aparelho Cético
obedece a seis momentos distintos após essa breve apresentação.
A exposição sumária dos obstáculos céticos é precedida de uma visão
preambular que faz uso de um par de assertivas contrárias para erguer um
impasse interpretativo sobre a natureza de algo. Introduzimos a essência de
um fenômeno, objeto ou dado empírico sendo observados por mais de um
intérprete ou teórico social, ao mesmo tempo consideramos outro tipo de
indivíduo que não se ocupa desse tipo de formulação, o homem comum.
Finalmente, apresentamos a resposta cética a esse tipo de disputa teórica.
Fazemos emprego de Pirro e Sexto Empírico para chegarmos aos argumentos
céticos construídos para responder aos dilemas interpretativos erguidos pelos
filósofos dogmáticos. Esse recurso não tem a menor presunção de estabelecer
alguma narrativa exaustiva, pelo contrário, nos servimos da escassa biografia
de ambos para introduzirmos o material cético sistematizado e conhecido.
A partir de Pirro e Sexto apresentamos com parcimônia o trabalho de
Enesidemo, que constitui o terceiro e o quarto momento. Perfazem um total de
18 argumentos enumerados de um a dez e posteriormente de um a oito. Essa
divisão separa a natureza dos dois trabalhos. Os Dez Modos iniciais estão
referidos às tentativas de construção de conhecimentos fundados em base
empírica. Os Oito Modos finais tentam obstruir tentativas de caráter etiológico.
Finalmente, apresentamos Agripa, onde enfatizamos o caráter suspensivo
ventilado pelo ceticismo face ao autismo dogmático.
O sexto ponto desse capítulo articula os cinco que o antecedem. O objetivo
dessa etapa, em termos agregados, é refletir com mais clareza a etapa
seguinte do trabalho, o Capítulo 2, que trata da Aplicação Cética em Michel de
Montaigne.
4
Aparelho Cético
Preâmbulo
Com uma freqüência disciplinada os filósofos ou mesmo os cientistas põem e
tiram imagens da sociedade, fazem isso com alguma robusta presunção de
que ao colocarem, estão bafejando algo imantado num sistema ordenado pela
razão e que, portanto, constitui um resultado desejoso de certeza. Quando as
removem, com as mais diversas motivações, eles crêem ter um pedaço
específico tal como se fora pinçado com instrumento equivalente de excisão.
Se considerarmos que a sociedade é um objeto de entendimento, que é
expresso por sua vez sob incontáveis narrativas distintas entre si, o que temos
como conclusão constitui um conjunto de afirmações cada qual relatando uma
coleção de conteúdo
1
. Cada imagem posta na sociedade enceta uma descrição
supostamente tocada por algum nível daquilo que lhe parece ser a verdade.
Nelson Goodman lembra que do lado de fora desse aparelho cognitivo
polifônico algo que ele chama de homem da rua
2
. Esse personagem pode
ser compreendido como uma parte da sociedade que de algum modo recebe o
produto dessa experimentação cognitiva do intérprete do objeto sociedade
3
.
Por coerência, coloquemos mais uma condição à essa reflexão, imaginando
que a sociedade pode ser lida como um mundo social, ou simplesmente
mundo, deduziremos então que há uma grande diversidade de narrativas sobre
o que seja o mundo ou, em termos derivados, os mundos sociais possíveis
4
.
1
Uso provisoriamente o termo objeto de entendimento para designar, por exemplo, o objeto
que provoca a reflexão, tal como explicado pacientemente para Glauco no diálogo. Platão. A
República. São Paulo: Martin Claret, 2006. (p. 219)
2
Goodman, Nelson. Modos de fazer mundos. Trad. de António Duarte. Porto: Edições Asa,
1995 (Originalmente publicado em 1978). (p. 58)
3
Hume, David. Investigação Acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Editora Nova
Cultural Ltda, 1999. Interessa-nos contrapor rapidamente a Seção III, Da Associação de Idéias,
em que o poeta é colocado ao lado do nosso intérprete: toda poesia, que é uma espécie de
pintura, nos coloca mais perto do objeto do que qualquer outro tipo de narrativa, o ilumina com
mais força e delineia com mais distinção as menores circunstâncias que, embora pareçam
supérfluas ao historiador, servem vigorosamente para avivar as imagens e satisfazer à
imaginação. (Col. Os Pensadores) (p. 43)
4
Lessa, Renato. Veneno Pirrônico: ensaios sobre o ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1995.
5
Interessa-nos um ponto ou resultado específico dessas descrições, manifesta
dos seguintes termos:
a. No quadro de referência A, o Sol move-se sempre
b. No quadro de referência B, o Sol nunca se move
5
Dos enunciados a e b podemos perceber que do mesmo objeto de
entendimento, o Sol, referenciado distintamente conforme A e B, chegamos a
conclusões díspares. Por ansiedade, exercitemos pesquisar alguma coisa
como solução da divergência dos enunciados. Para esse esforço poderíamos
imaginar algo sob o nome de critério, um enunciado c; contudo, o que assim
chamássemos, constituiria outra seleção de conteúdo, nominado agora a partir
de uma nova narrativa idiótica daquilo que constitui o mundo
6
.
O personagem de Goodman teria razão absoluta de não perceber nenhuma
natureza especial que o abalasse diante do contexto a ou b. Ele poderia
mesmo observar o enunciado c e não verificar nenhuma expressão de
coerência com as imagens tal como elas se apresentam nos fenômenos
cotidianos
7
. Para ele as assertivas podem lhe inocular inclusive um grau
elevado de estranhamento no caso do terceiro enunciado, uma vez que
outro tipo de elemento que fornece o parâmetro de decisões no mundo
ordinário, já que opomos a esse, um mundo, não raramente abstrato
8
.
5
Cf. Goodman, 1995 (p. 39)
6
Emprego o termo idiótico para designar uma patologia de tipo autista, referida a autismo, onde
se cria um mundo mental autônomo.
7
Estamos tratando do fenômeno representado pelo intérprete dogmático em oposição às
representações ordinárias e seus modos de pautarem a decisão do personagem de Goodman.
Ainsi l’opposition n’est pas seulement entre choses (pragmata) et discous (logoi), mais entre les
représentations des choses, sans que nous ayons à nous soucier de la manière dont les
phénomènes sont représentés. Dumont, Jean-Paul. Le Scepticisme et le Phénomène. Paris:
Librarie Philosophique, 1972 (p. 174) Deste, ver ainda o trabalho traduzido por Jaimir Comte:
Dumont, Jean-Paul. Ceticismo. Originalmente: Scepticisme. Encyclopaédia Universallis France,
1986, p. 509-513. Disponível em: <www.cfh.ufsc.br>, acessado em 08/2007.
8
Goodman, Ibid., […] a maioria das versões da ciência, da arte e da percepção afastam-se de
várias maneiras do mundo útil familiar que ele atamancou a partir dos fragmentos da tradição
científica e artística, e afastam-se também da sua própria luta pela sobrevivência. Este mundo,
na verdade, é aquele que mais freqüentemente se considera como real; porque a realidade
num mundo, como o realismo num quadro, é largamente uma questão de hábito. (p. 58)
Unger, Peter. Ignorance: A Case for Scepticism. Glasgow: Claredon Press, Oxford, 1975. O
autor formula o problema about the external world. (p. 11)
6
Se precipitarmos sobre c uma atitude anterior a decisão do agente diante dos
enunciados em questão, a suspeição sobre o estatuto de verdade na
proposição a ou da proposição b, opondo uma mera pergunta dubitativa,
teremos como ponto de chegada o nosso interesse imediato. O conjunto de
processos mentais cético não possui nenhuma motivação especial para aceitar
ou negar as proposições
9
. Essa dúvida quanto à razão presente numa ou
noutra assertiva constitui material suficiente para a interrupção do julgamento.
Não conteúdo especial na primeira (a), segunda (b), ou mesmo na terceira
(c) proposição dos enunciados para um cético. Sobre o que fazer exatamente
diante desse dilema do entendimento, entre decidir por uma ou por outra
afirmação, o cético permanece com a pesquisa do objeto. Ele dará o seu
assentimento para a existência dos corpos por um lado, sem, contudo, ser
convencido da razão pela razão
10
.
Essa relação peculiar com as imagens que aparecem sob características
dogmáticas constitui a postura comum do ceticismo grego antigo. Dentro da
rotina cotidiana, em algum momento do relacionamento dos agentes sociais
com a vida, tal como ela se apresenta, eles são capazes de demonstrar essa
postura, um cético, por sua vez, se utiliza dessa perspectiva rotineira e
sistematicamente diante dos objetos problematizados filosoficamente. Mais do
que isso, eles ordenaram um conjunto de obstáculos contrários à uma
observação e definição nesses termos do que quer que seja algo
11
.
Podemos nos deter um pouco mais nesse ponto. O que Annas e o próprio
Hume estão afirmando é que os céticos estão, por exemplo, preocupados com
os resultados das proposições filosóficas e que, portanto, não referem o seu
aparelho dubitativo para as proposições ordinárias, os dilemas do homem
comum entre as experiências diárias. Segundo a própria Annas a preocupação
do cético é remover o conteúdo dogmático de nossa esfera de decisão
9
Julia, Annas. The modes of scepticims; Coordenação de Jonathan Barnes. Oxford: Cambridge
University Press, 1985. Sceptiques are doubters: they neither believe nor disbelieve, neither
affirm nor deny. (p. 1)
10
Hume, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução: Deborah Danowski. São Paulo:
Editora UNESP, 2000. Livro I, IV (p. 220)
11
Annas, loc. cit.
7
ordinária, primando por uma vida prática, não referida a processos filosóficos
de decisão.
Scepticism, they claimed, by relieving us of our ordinary beliefs, would remove
the worry from our lives and ensure our happiness
12
. Por essa razão, o homem
da rua de Goodman pode continuar a expressar as suas decisões sobre certo e
errado e também sobre toda sorte de dilemas morais, a julgar pela natureza do
escopo a que o cético emprega o seu sistema filosófico, ou ainda, à sua forma
de filosofar. A prescrição cética é, podemos adiantar, uma vida sob
tranqüilidade ou imperturbabilidade.
Uma vida livre de incômodos acerca da certeza e natureza intrínseca das
coisas é o centro da preconização dos céticos antigos. A atitude dogmática é,
por excelência, aquela que se ocupa obsessivamente dessa postura analítica
decisiva. Mas o que constitui um dogma e do que é feito o seu operador para o
nosso interesse imediato? Responde, abaixo, Renato Lessa.
d. dogma é qualquer proposição que pretenda determinar o que as coisas são
por natureza, nelas mesmas, com base em entidades não evidentes (átomos,
hexâmeros, apeíron etc...);
e. dogmático é alguém possuído por uma dupla patologia: oiésin e propetéian,
que, de acordo com o bom Rev. Bury, signicam self-conceit e rashness; em
outras palavras, o dogmático combina uma espécie de narcisismo cognitivo
com uma radical – e perigosa – ausência de qualquer hesitação
13
.
Por sua vez, para Popkin o dogmatismo é desagregável e, por essa razão, o
ceticismo dirigiu seus esforços para fronteiras posteriores às da filosofia,
tratando na mesma bateia os cientistas e os teólogos
14
. Ou seja, filósofos,
teólogos e cientistas experimentaram igualmente um modo antagonista distinto
de observar a vida e a sociedade, viram uma visão de mundo equipada para a
neutralização de diversos aparelhos cognitivos conforme veremos.
Portanto, a natureza das obstruções do ceticismo antigo estará remetida
primordialmente para d. No seu lugar, diante de proposição com essa estatura,
12
Annas, Julia and Barnes, Jonathan. The Modes of Scepticism: Ancient Texts and Modern
Interpretations. New York: Cambridge University Press, 1985. (p. 9)
13
Lessa, Renato. Agonia, Aposta e Ceticismo: ensaios de filosofia política. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2003 (p. 98)
14
Popkin, Richard H. Ceticismo. Organizador: Eigenheer, Emílio M. Niterói: EDUF, 1986 (p. 1)
8
o fenômeno e as suas aparências carregam material suficiente para as práticas
da vida sem perturbações
15
. O operador dogmático (e) tem pela frente então
um tipo de filosofia que a todo instante lhe provocará sistematicamente todas,
ou quase todas, as proposições resultantes de suas elucubrações abstratas e
de resultados decisivos. Ao que aparece, a pesquisa continuada é um caminho
para a felicidade de acordo com a letra de Smith na passagem abaixo.
Tendo suspendido o juízo acerca de todas as teorias filosóficas, inclusive das
teorias éticas, o cético não como se possa dispor de uma teoria dogmática
para orientar nossas vidas. Mais do que isso, entende que uma teoria filosófica
não é a melhor garantia da felicidade e, em geral, perturba nossa vida e
conduta. A melhor maneira de viver e buscar a felicidade, aos olhos do cético,
é simplesmente mergulhar na vida cotidiana e gostosamente deixar-se levar
por ela
16
.
Até o momento definimos explicitamente um dos lados da querela entre dois
sistemas cognitivos, bastante evidenciados inicialmente em d, e em e, mas
também presentes na passagem de transição expressa no excerto do trabalho
de Smith. Estamos então considerando para fins analíticos que uma
discussão entre os céticos e os filósofos dogmáticos e que, hipoteticamente,
estão em lados opostos. Entretanto, o lado cético dessa disputa ainda carece
de uma demonstração mais detida do conjunto de processos mentais e
dificuldades oferecidas para o seu antípoda. Antecipamos para quem ele olha,
mostramos um pouco de como se comporta e qual objetivo procura, exibiremos
então uma parcela mais expressiva do material que constitui o ceticismo e de
que modo essa composição será empregada ao longo desse ensaio.
Sképsis
17
15
Porchat Pereira, Oswaldo. Vida Comum e Ceticismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, 2
ed. Isso que não podemos rejeitar, que se oferece irrecusavelmente a nossa sensibilidade e
entendimento, é o que os céticos chamamos de fenômeno (tò phainómenon, o que aparece). O
que nos aparece se nos impõe com necessidade, a ele não podemos senão assentir, é
absolutamente inquestionável em seu aparecer. [...] O que nos aparece não é, enquanto tal,
objeto de investigação, precisamente porque não pode ser objeto de dúvida. (p. 176)
16
Smith, Plínio Junqueira. Ceticismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004 (p. 52)
17
Usado a propósito dos filósofos céticos na acepção de dúvida, hesitação, incerteza, o
substantivo sképsis tem, contudo, o sentido originário de percepção pela vista, observação,
consideração, visto ser derivado de sképtomai, verbo cujo sentido denotativo é voltar o olhar
para, olhar atentamente, considerar, observar. Sképtomai é ainda usado com os sentidos
figurados de examinar, meditar, refletir. [...] exame, reflexão, especulação, meditação. Nota
técnica extraída de: Popkin, Richard H. Ceticismo. Organizador: Eigenheer, Emílio M. Niterói:
EDUF, 1986.
9
Conforme apresentei brevíssimas pistas na parte anterior desse ensaio, o
ceticismo se apresenta composto de um conjunto de desafios articulados para
a obstrução das proposições dogmáticas. Possui uma história pouco
explicitada diante das grandes escolas do Peloponeso
18
. Se observarmos as
grandes figuras da filosofia ocidental mais conhecida, dificilmente grassarão os
nomes de seus principais mestres e representantes, salvo indiretamente. Perto
da escola socrática, por exemplo, a posição do ceticismo é bastante diminuta.
Os registros céticos na história são obra de autores bem peculiares dos quais
sabemos muito pouco, e algumas de suas obras são encontradas de modo
incompleto ou por registros indiretos
19
. Ou seja, o ceticismo constitui uma das
muitas visões de mundo que sofreu com a descontinuidade ou mesmo
ausência de registros sistemáticos se estabelecemos qualquer tipo de
comparação com algumas das mais famosas escolas gregas
20
. Por certo não
nos ocuparemos de historiá-lo, contudo, passaremos pelos principais
referenciais que nos interessam que estão presentes nessa vertente.
Pirro de Élis (Pirronismo)
Uma das primeiras referências do ceticismo antigo é erguida a partir de uma
figura nebulosa, da qual se tem mais hipóteses do que propriamente
informações seguras
21
. registros razoáveis de sua vida por meio de seu
discípulo Timon em suas obras Silli ou Sátiras
22
. ainda indícios de que Pirro
da cidade Élis tenha seguido viagem com Alexandre o Grande numa de suas
campanhas e teria trazido, portanto, algum resultado intelectual de encontros
com povos da Índia
23
.
18
Prado Jr, Bento; Porchat Pereira, Oswaldo; Ferraz Jr, Tércio Sampaio. A Filosofia e a Visão
Comum do Mundo. São Paulo, Editora Brasiliense,1981 (p. 11). Creio que a leitura de um
trabalho de Stanford ajuda na compreensão geral do ceticismo, ao menos por dividir ceticismo
e incredulidade: Stanford Encyclopedia of Philosophy. Skepticism. Publicado em 2001 e
revisado em 2005, 27p. Disponível em: <plato.stanford.edu/entries/skepticism/>, acessado em
10/2006.
19
Cf. Popkin, 1986
20
Lessa, Renato de Andrade. Vox Sextus, Pluralidade dos Mundos, Estratégias Cognitivas e
Conhecimento Ordinário nas Reflexões Políticas dos Modernos. Rio de Janeiro. 1992. Tese de
Doutoramento, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (p. 23)
21
Cf. Annas and Barnes, 1985. Pyrrho of Elis is for us a shadowy figure. (p. 10)
22
Hankinson, J. R. The Sceptics. London and New York: Routledge, 1995 (p. 52)
23
Cf. Annas and Barnes, 1985. The biographical tradition connects Pyrrho’s thought with the
Índian ascetics (or ‘naked sophists’ as the Greeks called them) whom Pyrrho allegedly met
during his travels with Alexander. (p. 12)
10
A vida de Pirro é quase uma incógnita, ao passo que seu trabalho não goza do
mesmo obscurantismo. Ele imprimiu ao ceticismo um modo de vida levando a
cabo uma prática sistemática da canônica cética. Desse modo, pertence a ele
uma das principais identidades e também um guia para o ingresso no ceticismo
antigo
24
. Do interior da obra de Sexto Empírico, é a partir desse personagem
que a expressão pirronismo emerge; o que faz referência imediata ao conteúdo
conhecido em forma sistêmica
25
.
Sexto Empírico
A reflexão grega vivia um momento de muita harmonia com o empirismo e o
médico Sexto Empírico também esteve envolto nesse modo de operar o
entendimento
26
. A medicina estava bastante relacionada com a produção
filosófica, por essa razão ainda, a produção sistemática do material cético hoje
disponível é resultado do trabalho sextiano
27
. A partir dele o ceticismo ganhou
as feições delineadas tal como hoje as conhecemos ordenadas a partir dos
Tropos, ou argumentos, orientados para a suspensão do juízo
28
.
The goal of sceptical philosophy, accordin to Sextus, is ataraxia, the state of
tranquility which is supposed to attend the purgation of all cares and concerns
[…], although this is not peculiar to the Sceptics. Ataraxia, on their view (PH 1
25-30), supervenes upon suspension of judgement (epoché) as to the real
nature of things; and epoché is induced bu the fact that conflicting appearances
are the subject of undecidable disputes […]
29
.
24
Cf. Annas and Barnes, 1985. Not all that he wrote has survived, but we still posses the
Outlines of Pyrrhonism, a general introduction to Pyrrhonism in three books, and a further group
of eleven books known collectively as Against the Mathematicians. (p. 16)
25
Lessa, Renato. Veneno Pirrônico: ensaios sobre o ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1995. uma variante condicionada cética posta de lado momentaneamente dado
que trabalharemos mais detidamente com o pirronismo –, trata-se do Ceticismo Acadêmico. Ele
é considerado a derivada dogmática do ceticismo (dogmáticos negativistas, céticos
dogmáticos), pois acreditam poder destruir toda e qualquer proposição dogmática. p. 26-28.
Um bom representante dessa corrente, conforme faremos menção nesse trabalho é Cícero.
26
Annas and Barnes, op.cit., p. 16. Ver também o trabalho de Stough traduzido por Jaimir
Conte. Stough, Charlotte. Sexto Empírico. Originalmente como: Dancy, Jonathan e Sosa,
Ernest (org.) A Companion to Epistemology. Blackwell Companion to Philosophy, 1997, pp.
475-477. Disponível em: <www.portal.filosofia.pro.br>, acessado em 06/2007. Ver também
Vickers, que alia ceticismo, empirismo e reflexão. Vickers, John M. I believe it, but soon I’ll not
believe it any more: Scepticism, empiricism, and reflection. Publicado em 2000, revisado em
2003. Acessível em: <www.springerlink.com>, acessado em 12/2006.
27
Cf. Annas and Barnes, 1985 (p.16)
28
Cf. Annas and Barnes, 1985 In Sextus’ writings we see greek sceptcism fully formed. (p. 17)
29
Hankinson, J. R. The Sceptics. London and New York: Routledge, 1995 (p. 155)
11
Observando a obra de Sexto Empírico, Renato Lessa dispõe as três
características principais do ceticismo, parcialmente explícitas na passagem
anterior do trabalho de Hankinson: (a) o princípio da isosthenéia: eqüipolência
entre argumentos dogmáticos contrários a respeito de coisas não-evidentes; (b)
a atitude de epoché: suspensão do juízo diante de diferentes proposições
igualmente plausíveis e inverificáveis; (c) a obtenção da ataraxia: estado de
quietude ou imperturbabilidade derivado da interrupção da atividade
dogmática
30
.
Dez Modos
Esse ponto nos pede uma reflexão de corte diretivo. Obviamente diversos
personagens igualmente importantes para a construção do que chamo aqui de
aparelho cético, contudo considero não incorrermos em perdas demasiadas
introduzindo com parcimônia algumas figuras capitais. Aqui, nos interessa mais
a construção da imagem que lhe conteúdo e conformação teórica, e menos
os aspectos biográficos pormenorizados das figuras centrais ou periféricas.
A partir desse ponto do trabalho serão expostos mais claramente os tropos que
dão ou ajudam a dar concretude filosófica ao ceticismo. Para fins explicativos,
iniciaremos os tropos contidos no material de Enesidemo, que são um total de
18 aqui enumerados de um a dez, sucedidos na apresentação
posteriormente anunciados de um a oito e conseqüentemente os cinco
argumentos contidos no trabalho de Agripa. Passemos agora aos primeiros
Dez Modos de suspensão.
Enesidemo, no contexto do ceticismo de tipo pirrônico, produziu originalmente
dez tropos sistemáticos orientados para a condução da conclusão da
impossibilidade de conhecimento dogmático
31
. Os 10 Modos de Enesidemo
observam um tipo específico de oponente, pois essas notações, que primam
30
Cf. Lessa, 1992 (p. 229)
31
Striker, Gisela. Essays on Hellenistic Epistemology and Ethics. Cambridge: Cambridge
University Press, 1996. The Ten Tropes of Skepticism are, as histories of philosophy tell us, a
systematic collection of all or most important arguments against the possibility of knowledge
used by the the ancient Pyrrhonist. The list of eight, nine, or ten tropes, or modes of argument,
presumably goes back to Aenesidemus, the reviver of the Pyrrhonist school in the first century
B. C. (p.116)
12
essencialmente por um resultado suspensivo, estão observando a tentativa de
forja de conhecimento, estabelecido pelos operadores dogmáticos, a partir de
uma base de talho empírico
32
.
Cada um dos argumentos se dirige a um tipo específico de apresentação de
algumas das esferas possíveis do entendimento a partir do sujeito ou do objeto.
Eles são dispostos detidamente de várias formas e, para Hankinson, assumem
a seguinte notação ou ordenamento sintético:
(1) x appears F relative to a;
(2) x appears F* relative to b;
(3) at most one of the appearances of (1) and (2) can be true;
(4) no decision procedure tells decisively either for (1) or (2);
So
(5) we should suspend judgement as to what x is like in its real nature
33
.
Pela notação pirrônica, em (1) o objeto x aparece F em a; em (2) o mesmo x
aparece como F* observando b; Em (3) vemos que as duas narrativas [(1) e
(2)] podem ser verdadeiras (isosthenéia ou eqüipolência); em (4) temos que
nenhum procedimento pôde dizer algo que nos conduzisse para a assertiva (1)
ou mesmo (2); finalmente, em (5), somos então guiados a suspender o juízo
sobre a real natureza do objeto x
34
.
Em (3) e (4) somos dirigidos a uma situação irresoluta, o que por sua vez nos
encaminha para uma conclusão, posta em (5), onde o melhor caminho a ser
tomado é o da suspensão do juízo, ou a atitude de epoché. Como estamos
diante de um percurso cognitivo dogmático para estabelecer à essência de algo
evidente (x) a partir de domínios não-evidentes (F, F*), o cético tem motivação
para concluir pela ataraxia, depois de percorrer a isosthenéia e a epoché
35
.
32
Cf. Lessa, 1995. Tem por alvo as pretensões de conhecimento empírico, dirigindo-se tanto a
aspectos do objeto como a problemas localizados na órbita do sujeito de conhecimento. (p. 29)
33
Cf. Hankinson, 1995 (p. 156)
34
Os operadores do dogmatismo cético podem ser sumariados na seguinte estrutura atribuída
a Arcesilau: (1) Nothing can be known (including that very statement); (2) We should suspend
judgement about everything; (3) To eulogon, ‘the reasonable’, is the criterion for conducting
one’s life; (4) Assent is not necessary for action. Bett, Richard. Carneades’ Pithanon: A
Reappraisal of its Role and Status. Oxford Studies in Ancient Philosophy, New York, Volume
VII, n. 1, p. 59-94, Anual, 1989 (p. 67)
35
Cf. Hankinson, 1995 (p. 155)
13
Podemos dizer que o material que preenche os Modos de Enesidemo, a partir
da notação apresentada, demonstrará a baixa capacidade que os movimentos
cognitivos dos operadores dogmáticos têm para apresentar a definição da
natureza intrínseca daquilo que aparece
36
. Se postos lado a lado, seus
resultados prefiguram invariavelmente um resultado diafônico tal como
denotado pelo par (F, F*). O próprio Sexto Empírico é quem nos ajuda com a
antecipação desse material de Enesidemo, abaixo ele faz um sumário rápido
que pode nos ajudar com a descrição que percorreremos em seguida.
First, the mode depending on the variations among animals; second, that
depending on the differences among humans; third, that depending on the
differing constitutions of the sense organs; fourth, that depending on
circumstances; fifth, that depending on positions and intervals places; sixth, that
depending on admixtures; seventh, that depending on the quantities and
preparations of existing things; eighth, that deriving from relativity; ninth, that
depending on frequent or rare encounters; tenth, that depending on
persuasions and customs and laws and belief in myths and dogmatic
suppositions
37
.
O que podemos extrair da enumeração de Sexto é que Modos mais
articulados com o sujeito de entendimento, com os objetos de entendimento, e
ainda uma combinação dos modos do sujeito e objeto
38
. No primeiro, segundo,
terceiro e quarto Modos, o (a) sujeito está em destaque, constituindo um grupo;
no sétimo e décimo tropos, o (b) objeto julgado está sob a mira cética; no
quinto, sexto, oitavo e nono modos, (c) sujeito e objeto estão na bateia cética
39
.
Tropo 1: Diferenças Entre os Animais:
(1) x parece ser F a animais do tipo K;
(2) x parece ser F* a animais do tipo K*;
36
Acredito que fazemos justiça se mencionarmos a notação de Annas and Barnes apresentada
no trabalho de Renato Lessa de onde poderemos notar uma distinção na quantidade de
termos: (1) x aparece como F em S; (2) x aparece como F* em S*; (3) não podemos preferir S a
S*, ou vice-versa (eqüipolência); (4) não podemos afirmar ou negar que x seja realmente F ou
F* (suspensão do juízo). E, a partir desse ponto, todas as notações expressas em idioma
português são extraídas do mesmo trabalho. Cf. Lessa, 1995 (p. 47)
37
Empiricus, Sextus. Outlines of Scepticism. Trad. de Annas, J. and Barnes, Jonathan.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994 (p. 13). Desse ponto em diante como
Hipotiposes Pirrônicas, essa e as demais edições, representado por: HP I, 36-39.
38
Dumont, Jean-Paul. Les Sceptiques Grecs: textes chosis. Paris: Presses Universitaires de
France, 1966 (p. 50)
39
Cf. Annas and Barnes, 1985 (p. 19)
14
(3) eqüipolência entre K e K*;
(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.
Há mais de um sujeito de entendimento, é o que sustenta o ceticismo, por essa
razão o Tropo 1 se ocupa de explicitar essa diversidade. Os objetos se
apresentam distintamente para diversos intérpretes, constatamos uma grande
variedade de diferenças físicas entre os animais, o que por sua vez pode ser
compreendido como uma miríade de seres e percepções díspares
40
. Em (1) ele
aparece como F aos animais de tipo K, por conseguinte, em (2) ele se
apresenta para animais de tipo K* como F*. Novamente estamos diante do par
(K, K*), ou dito de outra forma, podemos encará-lo como uma pareada
patologia idiótica que tenta explicar aquilo que aparece a partir do não-
evidente. Sexto leva ao limite essa comparação entre animais, elege o
cachorro e inicialmente as capacidades de seu olfato e demonstra que a
afirmação de desigualdade da comparação não apresenta pertinência, apenas
para a debilidade cognitiva do self-satisfied
41
.
Tropo 2: Diferenças Entre os Seres Humanos:
(1) x parece ser F a seres humanos do tipo H;
(2) x parece ser F* a seres humanos do tipo H*;
(3) eqüipolência ente H e H*;
(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.
Se por outro lado fecharmos o escopo em apenas um desses tipos de
intérpretes, somos arrastados para um dilema não menos cativo do resultado
suspensivo de acordo com o Tropo 2. Pela notação, vemos que o objeto
aparece como F a seres humanos do tipo H, por outro lado, o mesmo x
aparece F* para seres humanos de tipo H*. Para Sexto cada corpo é assolado
por um tipo específico de humor, afecção, e assim em função deles a
aparência das coisas pode variar e:
40
Cf. HP I, 36-55. […]That the animals’ eyes contain mixtures of different humours, that they
should also get different appearances from existing objects […] Smell too will differ depending
on the variation among animals. Perfume, paladar e etc. são outros exemplos que ele explorará
contra os self-satisfied. (p. 13-16)
41
Cf. HP I, 60-65.
15
[…] there are many differences in our choice and avoidance of external things;
for Indians enjoy different things from us, and enjoying different things shows
that varying appearances come from existing objects
42
.
Para os propósitos globais desse ensaio, cabe notar a referência que Renato
Lessa faz das tentativas de resolução das objeções entre si. Segundo anota,
Sexto aventa quatro alternativas: i. que acreditemos em todos os homens, com
efeitos sujeitos a toda sorte de crença em julgamentos díspares; ii. que
acreditemos em alguns, o que nos sujeitaria a decidir em quais, recuperando a
eqüipolência; iii. que acreditemos na maioria, com efeitos igualmente
suspensivos, uma vez que ninguém está apto a consultar e distinguir sem
idiossincrasia o conjunto da humanidade para entender o que apraz a sua
maioria; iv. que acreditemos nos sábios, o que, onde mais facilmente
poderíamos opor o fato de que, eles mesmos, entre si, não concordam sobre a
natureza do que quer que seja
43
.
Tropo 3: Diferentes Constituições dos Órgãos dos Sentidos:
(1) x parece ser F ao sentido S;
(2) x parece ser F*ao sentido S*;
(3) eqüipolência entre S e S*;
(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.
Na passagem anterior, em (iv), se tivéssemos depositado um pouco de
confiança num desses intérpretes, o Tropo 3, nos devolveria a situação
suspensiva por outro meio ainda mais radical. Nem mesmo a solidão cognitiva
do sábio, imune a contaminação opiniática, poderá ser tomada como infensa à
dúvida cética
44
. Aqui uma menção rápida a um personagem é imperativa,
antecipando um período posterior, entre os desafiantes do ceticismo, a fábula
de Descartes caminha na experimentação do caminho oposto, ainda que seja
modesta no começo da jornada rumo à certeza do sujeito
45
. Abaixo, Sexto
comenta o absurdo do operador dogmático, eles são mera parte na disputa.
42
Cf. HP I, 80.
43
Cf. Lessa, 1992. (p. 246)
44
Ibid., loc. cit.
45
Descartes, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Pode ser que me
engane e talvez não passe de um pouco de cobre e de vidro o que tomo por ouro e diamantes.
Sei o quanto estamos sujeitos a nos enganar naquilo que nos diz respeito, e também o quanto
os pensamentos de nossos amigos nos devem ser suspeitos, quando são a nosso favor. (p. 7)
16
When the self-satisfied Dogmatists say that they themselves should be
preferred to other humans in judging things, we know that their claim is absurd.
For they are themselves a part of the dispute, and if it is by preferring
themselves that they judge what is apparent, then by entrusting the judging to
themselves they are taking for granted the matter being investigated before
beginning the judging
46
.
O terceiro tropo é derivado direto do segundo e concentra a querela mais
radicalmente no equipamento que interage com o sujeito. O par (F, S) e o par
(F*, S*) põe os sentidos em desacordo inarredável sobre a essência do objeto,
ao sentido S ele se apresenta com uma propriedade, ao mesmo tempo, se
mostra com outra conformação ao sentido S*. Abaixo segue outro pequeno
excerto do próprio Sexto sobre o experimento do mel.
[…] and honey appears pleasant to the tongue (for some people) but
unpleasant to the eyes; it is impossible, therefore, to say whether it is purely
pleasant or unpleasant.
Após um conjunto de objetos experimentados, Sexto conclui e sugere a
transição para o modo de circunstâncias:
Hence we will not be able to say what each of these things is like in its nature,
though it is possible to say what they appear to be like on any given occasion
47
.
Tropo 4: Circunstâncias que Afetam o Sujeito:
(1) x parece ser F a y, estando y em situação S;
(2) x parece ser F* a y, estando y em situação S*;
(3) eqüipolência entre S e S*;
(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.
De acordo com a notação, o objeto aparece ora como F, ora como F*, e que
para isso o sujeito estará envolto na situação de tipo S, e que o sujeito em
seguida estará inserido na situação de tipo S*. Novamente estamos diante de
um par de proposições (F, F*) erguidas com o mesmo estatuto de convicção e
caminho mental cognitivo, ou seja, a explicação daquilo que aparece, com base
em coisas não observadas.
46
Cf. HP I, 90.
47
Cf. HP I, 92-93.
17
Por S e S* temos que um conjunto de circunstâncias que se colocados em
perspectiva, podem interferir decisivamente sobre os processos de julgamento
e demais constrangimentos orgânicos com rebatimento sobre o sujeito. O
quadro pode ser aplanado por uma pergunta de tipo: que circunstâncias
oferecem a melhor posição para a operação inequívoca do sujeito? Conforme o
fragmento, Dumont faz a provocação mais detalhada do sujeito.
Selon que les dispositions des sujets sont conformes ou non à la normale les
onjets leur procurent des impressions différents. Les sujets en proie à la
frénésie ou à l’extase croient entendre des voix surnaturelles, et nous
nullement; de même ils diset souvent sentir des exhalasisons de résine,
d’encens ou autre, et mainte autre chose encore, alors que nous ne sentosn
rien
48
.
O estado normal ou o patológico, a juventude ou a velhice, o movimento ou o
repouso? Os objetos se abatem sobre nós de maneiras diversas. Essas são
algumas das circunstâncias que expressam conteúdo suficiente para a
suspensão do juízo quando a condição das coisas é alvo da consideração
cética
49
.
Tropo 5: Posições, Intervalos e Lugares ou Circunstâncias do Objeto:
(1) x parece ser F na condição C;
(2) x parece ser F* na condição C*;
(3) eqüipolência entre C e C*;
(4) epoché a respeito de F ou F*.
Ou ainda,
(1.5a) x appears F at interval I
(2.5a) x appears F* at interval I*
(1.5b) x appears F in background B
(2.5b) x appears F* in background B*
(1.5c) x appears F in posture P
(2.5c) x appears F* in posture P*
50
Como podemos perceber dos dois mapas, o objeto oferece um conjunto de
circunstâncias analíticas ao sujeito, capazes de lhe oferecer um painel obscuro
para a decisão e a condução ao resultado certo de tipo dogmático. O intervalo
48
Cf. Dumont, 1966 (p. 68)
49
Cf. Dumont, 1966 (p.69). Ver também Annas and Barnes, 1985 (p. 78)
50
Cf. Annas and Barnes, 1985 (p.102)
18
de aparições do objeto, o lugar e a posição são motivos suficientes para
produzir um conjunto narrativo polifônico do que quer que seja o objeto ao olho
do sujeito de conhecimento. As posições e intervalos são bem marcados no
fragmento abaixo.
Since, then, all apparent things are observed in some place and from some
interval and in some position, and each of these producers a great deal of
variation in appearances, as we have suggested, we shall be forced to arrive at
suspension of judgment buy these modes too
51
.
Como podemos depreender da análise das duas representações do quinto
tropo, um conjunto de circunstâncias que desmobilizam a certeza, senão
vejamos. O objeto (x) aparece como F na condição C, que por sua vez pode
ser representada pelo conjunto (I, B, P); ao mesmo tempo, considerando um
diálogo entre apenas dois self-satisfied, ele aparece como F* na condição C, ou
seja, sob o conjunto linear simplificado de tipo (I*, B*, P*). Como introdução ao
conteúdo provocativo do Tropo número 5, exercitemos imaginar apenas
intervalos contínuos (I) na condição C e intervalos descontínuos (I*) na
condição C*. Desse modo, a conclusão do excerto anterior nos ajuda com a
resposta desse breve parêntese.
Tropo 6: Combinações:
(1) x aparece como F em S;
(2) x aparece como F* em S*;
(3) eqüipolência entre S e S*;
A combinação M = x + y + ... Parece ser F
A combinação M = x + y + ... Parece ser F1
A combinação M = x + y + ... Parece ser Fn
Alarguemos o parêntese. Estamos diante de um movimento de desagregação
da notação geral do ceticismo conforme expusemos pelo desenho ampliado de
Hankinson. Assim, a passagem do Tropo 5 para o Tropo 6 também expressa
uma espécie de continuidade do macro objetivo contido na referência inicial do
trabalho, narrada pelo caminho cognitivo eqüipolência, suspensão do juízo e
ataraxia. No Tropo 4, vimos que o sujeito não consegue depreender por si, o
51
Ibid., p. 99 Grifo nosso
19
que seja o objeto sem considerar certas circunstâncias, por sua vez, no Tropo
5, quando ele concentra os esforços no contexto, percebe que ele se apresenta
de diversas formas. Essa constatação nos conduz para observarmos então as
manifestações do sujeito com as apresentações do contexto.
O objeto se apresentará, segundo o Tropo 6, necessariamente interado com
outros objetos de um cenário, que por sua vez poderá ser observado sobre
uma variedade diversa de interações
52
. Para sermos fiéis ao vocabulário do
Tropo, o objeto será combinado de tantas formas possíveis, de maneira que o
julgamento operará sob condição quase infinita de organizações de cenários de
entendimento. Vejamos então como pode ser concluída a questão.
[...] toda ação perceptual traz consigo a ação de um juízo automático. Sua
finalidade seria, diante do amorfismo das combinações, estabelecer recortes e
ênfases, tornando possível, dessa maneira, a emissão de proposições a
respeito do mundo.
[...] Perceber um objeto é percebê-lo como algo
53
.
Se tomarmos mais da combinação das circunstâncias que afetam o sujeito
(Tropo 4) e das que afetam o objeto (Tropo 5) para então observarmos as
diversas combinações do objeto com o ambiente (Tropo 6), teremos como
ponto de chegada o segundo termo apresentado no ponto em questão. Um
sujeito sobre efeito de icterícia terá o seu equipamento perceptual sujeito a um
tipo de observação ocular de um mundo de tendências amarelas. Os
mecanismos perceptuais alteram de modo necessário as condições externas
dos objetos
54
.
Dessa forma, não falamos numa circunstância que enceta eqüipolência, mas
sim numa estrutura que expressa uma linguagem binária, a combinação M,
expressando uma aparência de tipo F
55
. Podemos demonstrar o argumento,
acredito que mais adequadamente como M↔F, ou em termos mais
unidirecionais M→F. As diversas combinações (M), implicando uma aparência
52
Un objet ne nous apparaî jamais seul, mais toujour uni à quelque autre chose: à l’air, à la
chaleur, à la lumière, au froid, au mouvement. Dans ce mélangue, comment connaître l’objet
lui-même? Brochard, V. Les Sceptiques Greecs. Paris: Librarie Philosophique, 1986 (p. 257)
53
Cf. Lessa, 1995 (p. 62)
54
Ibid., p. 63
55
Ibid., p. 64
20
distinta (F). Com esse Modo, a relatividade aparece como mecanismo
inerradicável da percepção [...]
56
.
Tropo 7: Quantidades:
(1) x parece ser F em quantidade Q;
(2) x parece ser F* em quantidade Q*;
(3) eqüipolência entre Q e Q*;
(4) epoché a respeito de F e F*.
Os objetos se abatem sobre o sujeito perturbados por diversos predicados, é o
que denota o Tropo 7. Eles podem vir em proporção e forma distinta, e se
considerarmos que são perecíveis, teremos então motivações adicionais para
concluirmos pela relatividade. Eles assumirão sempre um grande número de
aparências, o que para Sexto parece claro.
That none of the external objects affects our senses by itself but always in
conjunction with something else, and that, in consequence, it assumes a
different appearance, is, I imagine, quite obvious
57
.
A notação resume o Modo que se detém nos objetos e também caminha para a
suspensão. Nela podemos ver o retorno do pareamento (Q, Q*) e a suspensão
do par (F, F*). O Modo é curto no trabalho de Sexto e também carregado de
exemplos. Entre eles um nos interessa em especial, pois dá uma boa dimensão
do argumento em questão. Abaixo, a apreensão do som pela audição humana
na letra sextiana.
And since the same sound seems of one quality in open places, of another in
narrow and windings places, and different in clear air and in murky air, it is
probable that we do not apprehend the sound in its real purity; for the ears have
crooked and narrow passages, which are also befogged by various vaporous
effluvia which are said to be emitted by the regions of the head
58
.
Tropo 8: Relatividade:
(1) x aparece como F no contexto relacional R;
56
Ibid., loc. cit.
57
Empiricus, Sextus. Outlines of Pyrrhonism. Translated by R. G. Bury. Great Books in
Philosophy. Nova York: Prometheus Books, 1990 (p.53). Desse ponto, cito como: HP I, 125.
58
Ibid., loc. cit.
21
(2) x aparece como F* no contexto relacional R*;
(3) eqüipolência entre R e R*;
(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.
Reposto o caminho suspensivo, esse Modo deseja mostrar que as coisas
aparecem para nós em contextos relacionais. As coisas aparecerão para o
intérprete de maneiras distintas, sendo um homem, acusará uma característica,
se animal, outra. Assim, as coisas serão iguais ou diferentes relativas a algo.
De acordo com Sexto:
We have thus established that all things are relative, we are plainly left with the
conclusion that we shall not be able to state what is the nature of each of the
objects in its own real purity, but only what nature it appears to possess in its
relative character. Hence, it follows that we must suspend judgment concerning
the real nature of the objects
59
.
Esse Modo assume uma feição síntese dos demais
60
. Sua característica se
expressa definidamente dizendo que todas as afecções dogmáticas são
relativas, tal como vem sendo tratado desde o Modo do Sujeito. Ele se
apresenta como a matriz resumo do conteúdo dos demais
61
.
Tropo 9: Freqüência:
(1) x aparece como F na freqüência f;
(2) x aparece como F* na freqüência f*;
(3) eqüipolência entre f e f*;
(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.
A constância e a raridade com que nos deparamos com os objetos são
decisivos para oferecermos considerações ao seu respeito. Se os vemos com
freqüência, temos uma relação de um tipo, se não, a raridade nos coloca numa
posição peculiar diante do mesmo. Vejamos um exemplo concreto, narrado por
Sexto do Modo em questão.
How much amazement, also, does the sea excite in the man who sees it for the
first time! And indeed the beauty of a human body thrills us more at the first
sudden view than when it becomes a customary spectacle
62
.
59
Cf. HP I, 137-140.
60
Cf. Lessa, 1995 (p. 66)
61
Cf. HP I, 137-140.
62
Cf. HP I, 141-144.
22
O caminho do self-satisfied atribuirá uma propriedade conforme a raridade do
objeto, como a preciosidade atribuída ao cometa, o mesmo movimento
explicaria a relação ordinária que se têm com a água. Assim temos que o Modo
se refere aos pares: raro, trivial; inédito, não-inédito; estranho, familiar
63
. Não
podemos afirmar nada sobre o par (F, F*).
Tropo 10: Costumes e Persuasão:
(1) x aparece como F à persuasão P;
(2) x aparece como F* à persuasão P*;
(3) eqüipolência entre P e P*;
(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.
É possível extrair desse Modo ainda alguns elementos mais marcados no
trabalho sextiano com corte comportamental: ethics, being based on rules of
conduct, habits, laws, legendary beliefs, and dogmatic conceptions
64
. Um a um,
um contra outro, o Modo trabalha a suspensão de juízo. Vejamos como Sexto
Empírico manifesta a oposição de leis na passagem.
And law we oppose to law in this way: among the Romans the man who
renounces his father’s debts, but among the Rhodians he always pays them;
and among the Scythian Tauri (habitants of the Crimea) it was a law that
strangers should be sacrificed to Artemis, but with us it is forbidden to slay a
human being at the altar
65
.
Regras de conduta, Hábitos e Costumes, Leis, Crenças derivadas de lendas e
finalmente, Concepções Dogmáticas. Tratando, por ordem de entrada, como R,
H, L, C, D, o Modo da relatividade assume uma feição aterradora que oporá (R,
R*), (R, L), (R, L*)... Procederíamos assim até a última combinação possível.
Desse contexto, a notação pode ser expressa num apontamento síntese,
manifesto sob a forma de persuasão
66
. Por essa rubrica compreendemos as
várias manifestações resultantes dos antagonismos em disputa pela certeza
dos objetos. Seria no mínimo enfadonho fazermos um exercício caso a caso
nesse momento, contudo, segue abaixo uma rápida aplicação.
63
Cf. Lessa, 1995 (p. 69)
64
Cf. HP I, 144-148.
65
Cf. HP I, 148-152.
66
Cf. Lessa, 1995 (p. 70)
23
(a1) x aparece como F a R1, H1, L1, C1, D1;
(a2) x aparece como F* a R2, H2, L2, C2, D2;
(a3) eqüipolência entre (R1, H1, L1, C1, D1) e (R2, H2, L2, C2, D2);
(a4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.
Nenhum dos domínios internos possui qualidade melhor ou pior, boa ou má.
Contra princípios dogmáticos, Sexto opõem aquilo que aparece contra o seu
equivalente: we oppose law to belief in myth [...] e também na conformação de
leis com o mesmo movimento intelectual: we oppose law to dogmatic
supposition
67
. Como podemos perceber, um dogma grassa ao mesmo nível de
mitos, lendas e hábitos. Não conteúdo que qualifique um dogma ao mesmo
tempo em que desqualifique aquilo que é patente.
Os Oito Tropos da Causalidade
68
Dos Dez Modos de Enesidemo, seguem-se outros Oito narrados por Sexto
empírico
69
. Diferente dos caminhos suspensivos armazenados nos dez
primeiros, eles perseguem outra patologia do autismo dogmático, presente nas
descrições etiológicas. Isto é, nessa exposição do material pirrônico, a
explicação da aparência sob o domínio do não-evidente sofrerá oposição dos
Modos de Causalidade.
No instante em que o personagem de Goodman e o intérprete do objeto o
mobilizam, o dogmático lhe emprestará uma causa. A origem do efeito terá
uma explicação não evidenciada para demonstrá-la. No entanto, a cadeia
causal sofre uma quase infinita quantidade de interferências e hipóteses, de
sorte que o seu conteúdo explicativo pode não passar de uma máxima interna
do intérprete. Vejamos como Smith apresenta esse ponto.
É fundamental notar que uma enorme diferença entre a causa desse
processo (um objeto) e o efeito produzido em nós (uma percepção). E isso não
nos deve espantar, já que esse processo, ainda que complexo e eficaz, é muito
precário e sujeito a excessivas variações e deformações para que possa nos
dar, no final, uma informação verdadeira sobre sua causa inicial
70
.
Tropo 1: Princípio da Não-Confirmação:
67
Cf. HP I, 148-152.
68
As notações que seguem são extraídas da interpretação conferida por Renato Lessa ao
legado cético.
69
Cf. HP I, 148-152.
70
Cf. Smith, 2004 (p. 13)
24
De acordo com Sexto Empírico, não clareza explicativa contida na narrativa
de tipo se causa, logo, efeito (causa→efeito). Aquilo que aparece não pode ser
explicado pelo seu contrário, o domínio de tipo não-evidente. Abaixo, um
fragmento do próprio Sexto:
[…] Is the mode in accordance with which causal explanation, which are all
concerned with what is unclear, have no agreed confirmation from what is
apparent
71
.
A enfermidade dogmática pressupõe o conhecimento da natureza do mundo
para explicar aquilo que aparece, contudo, para Sexto, aquilo que aparece
deve ser explicado pelo seu equivalente
72
. De modo contrário o dogmático cai
numa regressão ao infinito. Hume aponta que se nós perguntássemos a um
homem porque acredita num fato, obteríamos como resposta uma razão, que
por sua vez seria baseada noutro fato
73
. O espírito nunca pode encontrar pela
investigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa
74
. A
regressão pode então ser posta do seguinte modo: (A) aquilo que aparece
(B) explicado por uma máxima privada (B-1) baseada num experimento ou
nova máxima privada ← (A-1) aquilo que aparece.
Tropo 2: Princípio da Pluralidade Causal, ou Monocausalidade Arbitrária
Liberado da preocupação com a trilha até a suspensão, esse Tropo se
apresenta ante a certeza dogmática de pautar uma explicação numa única
causa. Por outro lado, Sexto, lembra da multiplicidade delas, expostas ao
sujeito, presentes nesse tipo de investigação.
[...] Some people often give an explanation in only one mode, although there is
a rich abundance enabling them to explain the subject of investigation in a
variety of modes
75
.
71
Cf. HP I, 180-186 (1994).
72
Cf. Lessa, 1992 (p. 272)
73
Cf. Hume, 1999. Um homem, ao encontrar um relógio ou qualquer outra máquina numa ilha
deserta, concluiria que outrora havia homens na ilha. [...] E constantemente supõe-se que
uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele. Se não houvesse nada que os
ligasse, a inferência seria inteiramente precária. (p. 49)
74
Cf. Hume, 1999 (p. 51)
75
Cf. HP I, 181.
25
Segundo Renato Lessa, quando alcançam alguma generosidade, os
dogmáticos conseguem hierarquizar um conjunto de causas submetidas a uma
causa central do objeto. Por outro lado, ela é uma das patologias suscitadas
pela indecidibilidade provocada pela pluralidade de causas
76
. Smith as põe
numa posição distinta, de modo que o cético tem na verdade uma hipótese de
pluralidade, fazendo então a vez do refutável, que sua base (hipotética) se
fixaria na posição de onde o sujeito é afetado por uma diversidade de causas
sem ter como decidir pela real
77
. Sob essa perspectiva, o dogmático estaria
sujeito a seguinte síntese.
(a) eu não sei que não-H (H é uma hipótese cética);
(b) se eu não sei que não-H, então eu não sei que C;
(c) logo, eu não sei que C.
Visto dessa perspectiva, o cético ataca com uma multiplicidade de hipóteses
causais, por outro lado, a caminhada cognitiva de corte etiológico está aferrada
ao conhecimento C. A tríade pode ser relida da seguinte maneira: i. não sei se
o cético está errado; ii. como não posso afirmar isso, logo não posso afirmar
conhecer; iii. se não posso afirmar isso, não tenho conhecimento.
Tropo 3: Princípio da Incompatibilidade Formal
[...] they assign causes that display no order to things that take place in an
ordered way
78
.
Esse princípio se reporta ao invólucro da etiologia. Segundo Sexto os
dogmáticos estão opondo uma causa sem ordem a um mundo ordenado. Os
fenômenos estão sob um tipo de organização natural, ao passo que o caminho
etiológico vem de uma matriz de tipo atomista. Uma origem difusa não pode ser
rebatida sobre eventos estáveis
79
.
(d) Desordem → (o) Ordem
76
Cf. Lessa, 1992 (p. 276)
77
Cf. Smith, 2004 (p. 18); Ver também Hume e a aplicação com as hipóteses sobre a bola de
bilhar, op. cit., 1999, p. 51.
78
Cf. HP I, 182
79
Cf. Lessa, 1992 (p. 277)
26
(o) Ordem fenomênica → (o) Ordem fenomênica
Segundo o esquema, a incompatibilidade formal está no fato de uma origem
difusa e obscura explicar um curso naturalmente ordenado prescindindo de
uma causa fundamental. Para um pirrônico, ordenamento fenômeno explica
ordenamento fenômeno, i.e, (o) contra (o). Aqui é importante a lembrança de
um personagem do ceticismo pirrônico do Século XVI, Michel de Montaigne,
que vai introduzir a questão de maneira distinta, onde serão possíveis
pareamentos combinados do nosso esquema simplificado
80
.
Tropo 4: Princípio da Falácia Analógica
Esse Tropo se volta contra o princípio de analogia entre coisas díspares. Uma
vez que o domínio do não-evidente não pode ser corretamente definido, não se
pode estabelecer vínculo automático com o aparente. A evidência não
estabelece a existência ou o domínio seguro do não-evidente
81
. Desse ponto, o
dogmático emite uma definição do que seja algo, contudo, constitui uma
assertiva privada do que seja, explicando por sua vez aquilo que aparece.
Desse modo, os dogmáticos produzem uma decisão a respeito do caráter
objetivo e pré-representacional do mundo
82
. Nas palavras de Sexto Empírico a
explicação toma a seguinte forma:
[...] when they have grasped how apparent things take place, they consider that
they have apprehended how non-apparent things take place. But perhaps
unclear things are brought about similarly to apparent things, perhaps not
similarly but in a special way of their own
83
.
Tropo 5: Princípio da Idiossincrasia
[...] just about all of them give explanations according to their own hypotheses
but reject what opposes them, even when this has equal plausibility
84
.
80
Montaigne, M. Ensaios. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Trad. de Sérgio Milliet (L I, Cap.I, p.
33) Por diversos meios chega-se ao mesmo fim; e (LI, Cap. XXIV, p. 129) Uma mesma linha de
conduta pode levar a resultados diversos. (Coleção Os Pensadores)
81
Cf. Smith, 2004 (p. 19)
82
Cf. Lessa, 1992 (p. 278)
83
Cf. HP I, 183
84
Cf. HP I, 184
27
De certa forma esse Tropo foi antecipado de maneira pulverizada no trabalho
até aqui, contudo, conforme o fragmento, ele lembra que as afirmações dos
dogmáticos, pautadas em hipóteses, são privadas, ainda que rejeitem as
máximas opostas. Mais do que isso, o dogmático despreza veementemente o
primado da inscrição e das circunstâncias conforme vimos no Tropo
equivalente. Ao contrário, a estratégia dogmática, tipicamente idiótica, define
de forma automática seus próprios constrangimentos. E ainda, os
constrangimentos da cognição dogmática definem um cenário de radical
solidão
85
.
Tropo 6: Princípio da Seletividade
[...] they often adopt what is concordant with their own hypotheses but reject
what oppose them, even when this has equal plausibility
86
.
A explicação do Tropo 6 é ainda mais econômica que a do anterior. Pelo
princípio da seletividade, o dogmático faz uso seletivo ao desconsiderar, pelo
menos, dimensões importantes para a compreensão a que se submetem.
Dentro de seu autismo um imperativo de coleta daquilo que lhe empresta
concordância. Por outro lado, ele despreza aquilo que lhe parece estranho,
outrossim, gozam desse estatuto as afirmações contrárias, conforme a breve
definição de Sexto. depreensão menos angélica: A objeção, aqui, dirige-se
menos à epistemologia do que ao domínio de uma ética do conhecimento
87
.
Tropo 7: Princípio da Inconsistência
[...] they often assign causes which conflict not only with what is apparent but
also with their own hypotheses
88
.
O argumento fala então da inconsistência primária de algumas hipóteses dos
dogmáticos, aqueles imperitos que aventam contra as próprias bases. Esse
intérprete parece desprezar, ignorar ou pelo menos não concordar com o
85
Cf. Lessa, 1992 (p. 281)
86
Cf. HP I, 183.
87
Cf. Lessa, 1992 (p. 282); Hume, por sua vez, acha que essa redução e sistemática
simplificação é o máximo que podemos alcançar dentro da problematização cética. Op. cit.,
1999 (p. 52).
88
Cf. HP I, 184.
28
comportamento do seu par do Tropo 6. Ele parece ser menos competente, ou
pelo menos ético, portanto, que uma definição é o que procura. Com boa
vontade, podemos dizer, ele sofre de dilemas éticos e também lógicos.
Tropo 8: Princípio da Incerteza Hiperbólica
[...] often when what seems to be apparent is just as puzzling as what is being
investigated, they rest their teaching about what is puzzling upon what is
puzzling
89
.
Diante do embaraço apresentado sobre a quantidade de incertezas atinentes
ao objeto, o dogmático deflagra uma busca desesperada por explicação fora do
domínio aparente. O caminho que percorre, uma vez colocada a dúvida no
interior de sua pesquisa, é o de procurar sanar uma dúvida por outra com teor
ainda menos explicativo. Pois, diante da impossibilidade de validar, através dos
fenômenos, proposições esotéricas, os dogmáticos acabam constrangidos a
buscar confirmações em enunciados esotéricos subseqüentes
90
.
Os Cinco Tropos de Agripa
Os argumentos de Agripa perpassam toda a narrativa do ceticismo na obra de
Sexto Empírico, por essa razão, os cinco tropos poderão ser percebidos como
circunstâncias nas quais a suspensão do juízo é novamente colocada na
ordem da postulação cética. mesmo quem os veja como uma síntese para
expressar a impossibilidade do dogmático apresentar uma crença justificada, é
o caso de Lammeranta
91
.
Tropo 1: Disputa
O Modo da disputa centra a posição cética na diaphonía, o desacordo de
proposições, dirigida tanto a dogmáticos quanto ao senso comum. Nessa
circunstância então, as certezas dogmáticas podem ser entendidas como
afecção que se abate sobre o homem comum em suas certezas sobre as
essências daquilo que lhe aparece no dia a dia. Dessa maneira, o ceticismo
89
Cf. HP I, 184.
90
Cf. Lessa, 1992 (p.283)
91
Lammeranta, Makus. The Pyrrhonian Problematic. In. The Oxford Handbook of Skepticism,
ed. J. Greco. Disponível em: www.external.stir.ac.uk. Acessado em 14/05/2007.
29
pode ser percebido como o meio filosófico para observar o desacordo
incorrigível presente entre os homens onde quer que grasse o dogmatismo
92
. O
Tropo é angular em relação aos demais, diante do qual os dogmáticos traçarão
estratégias escapistas
93
.
De acordo com Lemmeranta, o Tropo 1 de Agripa pode ser expresso tal como
se segue:
(1) S1 believes that p.
(2) S2 believes that ~p.
(3) At most, one of them is right.
(4) The disagreement between S1 and S2 is irresolvable.
(5) We should suspend judgment about p.
Tropo 2: Regressão ao Infinito
Ao tentar escapar da suspensão posta pelo Tropo da Disputa, o dogmático
deflagraria uma corrida para superar a eqüipolência por outros meios. Assim,
nessa circunstância ele apresentaria uma proposição a1 apoiada numa
evidência e1 que, por sua vez, necessitaria de um conteúdo que a
comprovasse de tipo c1. A prova da evidência c1 estaria sujeita a mesma
narrativa para fins de comprovação, o que por sua vez daria início a regressão.
Assim, a evidência (e1) oferecida como prova de uma asserção (a1) necessita
de prova (c1)
94
.
Tropo 3: Relatividade
Segundo Renato Lessa esse argumento não parece ter origem no material de
Agripa, uma vez que Sexto faz remissão ao Modo anterior, das Hipotiposes.
92
Para Hankinson o Tropo 1 de Agripa pode também ser expresso segundo a seguinte
notação: (1) it now seems to me overwhelmingly (subjectively) likely that p; (2) not-p is
compatible with absolutely any degree of evidence E that p, and hence that; (3) E cannot entail
p; (4) p is certain only if not-p is not possible, then; (5) I cannot be certain that p; Hence; (6) I
suspend judgement as to p. Cf. Hankinson, 1995 (p. 184)
93
Cf. Lessa, 1995 (p. 92)
94
Cf. Lessa, 1995 (p. 92)
30
Assim, trata-se de reafirmar que nada é apreendido a não ser em conexão com
circunstâncias que afetam os objetos e os sujeitos de conhecimento
95
.
Tropo 4: Hipóteses
O modo das hipóteses se apresenta como a circunstância em que o dogmático
parece não subscrever a regressão ao infinito, por meio de uma estratégia
pretensamente isenta da diaphonía (desacordo infinito). Para evitar a
regressão, ele firma um patamar a partir do qual pode então ter um argumento
que não demanda prova. Uma vez revelados em seu mergulho em direção ao
infinito, os dogmáticos teriam como único recurso – além daquele representado
pela completa rendição – o apego a proposições inegociáveis
96
.
Esse tipo de recurso pode ser também compreendido como um tipo de petição
de princípio, pois, nesse momento, o dogmático fixa um ponto a partir do qual
as coisas têm que ser aceitas necessariamente
97
. Formalmente o Modo da
Hipótese pode ser expresso como segue:
Se diaphonía, então regressão;
Se interrupção da regressão, então hipótese;
Se hipótese, então diaphonía
98
Tropo 5: Reciprocidade ou Circularidade
(a) P1 deriva de P2;
(b) P2 deriva de P3;
(c) P2 deriva de P1
P1 (posterior) é assumido como verdadeiro porque deriva de P2
P2 é assumido como verdadeiro porque deriva de P1 (anterior)
Estamos diante de uma tentativa de provar uma asserção com base num termo
derivado de si mesmo. Qualquer desdobramento que faça com que algum Pn
95
Cf. Lessa, 1995 (p. 93)
96
Cf. Lessa, 1995 (p. 94)
97
Genovesi, Antonio. A Instituição da Lógica. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1977.
Textos Didáticos do Pensamento Brasileiro. Vol. IV (p. 125)
98
Cf. Lessa, 1995 (p. 94)
31
derive de P1 incorrerá em absurdo gico se temos em vista que P1 é ao
mesmo tempo um termo anterior e também posterior da proposição
99
.
Assim sendo, o dogmático, depois de tentar bloquear a regressão ao infinito
por meio de uma interrupção, com o recurso de uma hipótese, agora tenta
desprezar ambas as tentativas e propõe a demonstração por meio de algo
derivado de si mesmo.
Epílogo
Acaso tenha obtido algum êxito nessa etapa do trabalho, demonstrei em
algumas palavras algo da ambição do conhecer humano, manifesto mais
claramente na presunção dogmática, de modo geral, pronunciadamente na
pretensão de alguns ramos da ciência e, mais amplamente, na filosofia. Da
mesma maneira, contrapus a essa mesma ambição um domínio da ação
humana pouco ou nada coerente com esse tipo de manifestação da reflexão.
Para tanto, usei como títere a imagem social estereotipada pelo personagem
de Goodman, o homem da rua.
Por um lado, estão colocadas as pretensões idióticas e narcísicas de um
sujeito que pesquisa e que interpreta a aparência dos fenômenos com vistas à
emissão de pareceres amplos e definitivos do que seja a essência desses
reféns do entendimento. Por outro lado, de qualquer forma o homem comum
encontra-se em contato com os produtos das afecções oriundas dessa atitude
cognitiva. Pouco atento a questões que expressem aquilo que seja algo por
meio de processo análogo de pesquisa, mas que, de algum modo, direta ou
indiretamente trava contato com essa produção.
Essa elaboração extenuada da natureza das coisas acontece a todo instante
com os filósofos. Num bar, bebendo um chope, segundo a imagem aplicada
por Porchat Pereira, os filósofos diriam mais ou menos as mesmas coisas
sobre a aparição dos fenômenos, ao passo que divergiriam radicalmente
quando dissessem sobre os fenômenos. A representação dessa perspectiva é
99
Cf. Lessa, 1995 (p. 95)
32
bastante didática. O excerto é longo, porém, bastante útil para revelarmos em
nuance a diaphonia.
Suas diferentes doutrinas oferecem leituras diferentes e entre si incompatíveis
dessa experiência comum que eles consensualmente descrevem, elas
interpretam os fenômenos de diferentes maneiras.
Cada um deles certamente rejeitaria as interpretações de todos os outros e
pretenderia ser a sua própria leitura filosófica do fenômeno comum em questão
a única capaz de dele dar integralmente conta. Sua discordância doutrinária é
total, tanto quanto seu acordo pré-filosófico sobre o fenômeno e como
descrevê-lo é, suponhamo-lo, inteiro
100
.
Dessa explosão de discursos, podemos dizer, emerge uma figura em
perspectiva do ceticismo. Inicialmente ele se apresenta como a concepção que
atesta e derruba a diversidade de narrativas sobre a existência real das coisas
em si, colocando-as sob um constrangimento avassalador; noutro momento, e
assim que é compreendido, pode e deve ser observado como uma das
filosofias em disputa, constituindo outra narrativa em curso imersa na
diaphonia.
Desse ponto então pode ser verificado como uma posição filosófica preenchida
de caracteres positivos e particularmente orientada para a vida prática livre de
perturbações dogmáticas. Essa conclusão, a meu ver, é capaz de bloquear em
boa medida alguma ênfase interpretativa que conduza o pirronismo, por
exemplo, a uma chave para a paralisia. Ao contrário, o cético não se precipita
com a facilidade que o dogmático se permite, o que faz dele um inquiridor
infatigável.
O tratamento dado aqui a vertente grega da sképsis, conforme dito, organizado
de maneira sistemática por Sexto Empírico, privilegiou a apresentação genérica
e particular dos conteúdos de Enesidemo, Agripa e as considerações de Sexto
Empírico. Em conjunto, guiados pelas notações ou, na letra cética, tropos, o
conteúdo conhecido orienta para o caminho isosthenéia, epoché e ataraxia.
100
Pereira, Oswaldo Porchat. Sobre o que a parece. Revista Sképsis, São Paulo, Ano 1, n 1, p.
7-42, 2007 (p. 19). Disponível em: <www.skepsis.com>, acessado em 10/2007.
33
Os Dez Modos de Enesidemo dão a materialidade e a sistematicidade
necessárias para expressarmos formalmente o caminho cético que clareia o
percurso cognitivo dogmático quando este articula sujeito e objeto para o
entendimento. O resumo dos dez argumentos iniciais manifesta os obstáculos
e constrangimentos a que está submetido o percurso para a essência. A
variedade de animais, seres humanos, composições orgânicas, circunstâncias
que afetam o sujeito, circunstâncias que afetam o objeto, combinações,
quantidades, relatividade, freqüência e persuasão são o material sistemático
para tanto. Eles constituem a primeira bateria de argumentos erguidos nesse
ensaio para demonstrar a incapacidade de alguns recursos cognitivos e que,
por conseguinte, nos conduzem a suspensão do juízo: agrupados, são
descritos como Modos do Sujeito, Modos do Objeto e Modos Mistos.
Desse ponto seguem os Oito Modos de Enesidemo. Esse material privilegia o
caminho para a ataraxia, sem explicitar a suspensão de juízo, interrompendo
as ambições etiológicas. A gana de conhecer a origem daquilo que aparece é
obstruída sistematicamente, a sua explicação por algo que não aparece, o não-
evidente, é o sintoma mais pronunciado do self-satisfied.
O primado do caminho causa, então, efeito é alvo da obstrução sistemática do
primeiro dos oito tropos. A escapar disso, o dogmático incorre num movimento
de arbitrariedade causal, onde elege idiossincraticamente uma única causa. O
terceiro movimento manifesto na patologia dogmática é a incompatibilidade
formal entre as ordens que supõe conectar, o não-evidente pelo seu contrário,
o evidente. Na seqüência, a analogia entre o indefinível e o evidente é o objeto
refém do cético. O princípio da idiossincrasia é diluído entre os demais tropos,
uma vez que as assertivas do dogmático lhe dizem respeito. Seu
pressuposto, por exemplo, tem compartilhamento estreito, alcança o seu
próprio emitente.
Com traços que apontam para questões que podem envolver éticas (impostura,
probidade) e pesquisa, o princípio de seletividade manifesta uma atitude de
coleção arbitrária de conteúdo para a confirmação daquilo que se quer
asseverar sobre o fenômeno. A inconsistência é outro tipo de manifestação
34
dogmática que denota, senão fragilidade intelectual, pelo menos franca
imperícia. Diante desse quadro, o dogmático tem como engenho de escape a
pronúncia de incontáveis afirmações daquilo que não aparece para explicar o
evidente.
O material de Agripa apresenta alguns elementos não explorados nos tropos
anteriores que elegemos para esse trabalho. E de um total de cinco, o Modo da
Disputa se ocupa de denunciar e consagrar a diaphonia filosófica como
resultado imediato da produção de corte dogmático. Uma clara distinção
presente nesse argumento diz respeito ao alvo da obstrução cética, dessa vez
referida a qualquer tipo de dogma. Por outro lado, a partir de estratégias de
fuga dessa atitude de obstrução cética, podemos entender os demais
argumentos remetidos para um conjunto de circunstâncias onde o self-satisfied
fantasia estar posto em segurança da ameaça da sképsis.
Ao tentar posicionar aquilo que diz ser a prova (1) evidente de sua afecção, o
dogmático se vê obrigado a apresentar uma prova (2) de sua prova (1), que por
sua vez necessitará de uma prova (3) para a prova (2), que por sua vez não
prescindirá desse movimento, configurando uma infinita regressão (Tropo 2).
Seguiu-se então na apresentação proposta que para a vertente cética nada se
apresenta dissociável. Os fenômenos têm suas representações relativas a algo
e segundo quem o recebe (Tropo 3).
Outro comportamento sisífico inaugura uma assertiva inegociável na figura de
hipótese. Esta posta, não se remove a objeção, apenas se apresenta uma
petição de começo segundo um critério meramente arbitrário, e que, portanto,
só diz respeito ao seu emissor (Tropo 4). Finalmente, outro expediente aplicado
representa como prova da assertiva algo derivado da mesma, ou seja, o
enunciado é verdadeiro se sua prova for um derivado de si mesmo (Tropo 5).
Capítulo 2
Aplicação Cética em Michel de Montaigne
Índice
Apresentação p. 37
Preâmbulo p. 38
Cético p. 43
Conhecimento p. 49
Religião p. 55
Aplicação p. 61
Epílogo p. 66
37
Apresentação
O presente trabalho expõe uma proposta de recepção do ceticismo antigo no
Século XVI no cerne do trabalho do Ensaísta Michel de Montaigne. Seu
estribilho é manifesto pelo ceticismo de aplicação. Essa tentativa também está
dividida em seis momentos distintos a exemplo do capítulo que antecede a
esse.
Em primeiro lugar forjamos Montaigne como pensador que repercute uma obra
pulverizada de ceticismo antigo e acadêmico no seio das discussões
intelectuais do seu século. Para os nossos propósitos ele o faz de duas
maneiras distintas, sob uma arguta interrogação das suas próprias faculdades
intelectuais, manifestando um “eu” que fala, consigo mesmo, bem como
interrogando as questões e definições demonstradas ou praticadas no coração
da disputa fincada em França.
Decorre dessa visão que a comunicação entre Montaigne e seu juízo e
Montaigne e os fenômenos em curso são repercutidos por intermédio do
legado cético. Assim sendo, o esforço que segue a essa proposta procura
evidências claras em seu trabalho que manifestem essa disposição.
O terceiro momento procura uma atenção de Montaigne para a elaboração das
teorias e o conhecimento de modo geral, bem como especulamos, segundo os
Ensaios, que tipo de elaboração está sendo ensaiada. Foi possível capturar
nessa pesquisa que nos Ensaios um forte enaltecimento do pensamento
livre.
Na seqüência interrogamos então que tipo de adesão ele lança sobre a religião
e também o tipo de elaboração que surge do que chamamos de Aplicação
Cética em Michel de Montaigne. O sexto ponto também articula os cinco
anteriores, a exemplo do tratamento que demos ao capítulo anterior. O objetivo
dessa etapa é configurar ao menos como Montaigne pensa para disso extrair o
que ele pode pensar sobre o objeto política, ou seja, traçar mais claramente
como e o que ele supostamente pensa da política no terceiro capítulo.
Aplicação Cética em Michel de Montaigne
38
Preâmbulo
Dada a sua especificidade analítica, a elaboração cética possui certamente
múltiplas portas de entrada na vida intelectual ocidental depois da sua
fundação no período helênico, ainda um período posterior ao seu
nascimento onde supostamente foi esquecida. Ela foi retomada mais
explicitamente no século XVI na Europa e França, que constitui o principal
período de interesse desse ensaio. Esse momento conteve pelo menos um
grande debate peculiar que apresentaria o aparelho cético contra as
proposições teóricas contidas nos movimentos de reforma religiosa e também
no de contra reforma, com efeitos diversos, às vezes análogos, para ambos os
lados em disputa
101
.
Para Popkin, um dos expoentes na historiografia do ceticismo, com a
redescoberta do trabalho de Sexto, o composto cético se empresta a função de
centro da disputa filosófica entre os lados opostos no contexto da querela
religiosa.
Com a redescoberta no século XVI dos escritos do pirrônico grego Sexto
Empírico, os argumentos e pontos de vista dos céticos gregos tornaram-se
parte do núcleo filosófico das lutas religiosas que ocorriam nesta época
102
.
Por outro lado, no mesmo documento, convém destacar, Popkin é
curiosamente bastante duro com relação ao trabalho de legado
verdadeiramente sextiano para o ceticismo, e, por conseguinte o coloca
numa posição angular para a formação do pensamento cético dos modernos
pela sua natureza única e, implicitamente, acidental. Nesse sentido o valor da
obra do grego será posto pela mera capacidade de apresentar um relato
sistemático apto a dar concretude a uma postura filosófica. Senão, segue:
Foi um escritor do helenismo, obscuro e sem originalidade, cuja vida e carreira
são praticamente desconhecidas. Mas, por ser o único cético pirrônico grego
101
Maia Neto, José Raimundo. Panorama historiográfico do ceticismo renascentista. Revista
Sképsis, São Paulo, V. 1, n. 1, p. 83-97, Ano 1, 2007 (p. 86) Disponível em <www.revista-
skepsis.com.br>, acessado em 10/2007.
102
Popkin, Richard. História do Ceticismo: de Erasmo a Spinoza. Trad. Danilo Marcondes de
Souza Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000. (p. 49)
39
cuja obra sobreviveu, acabou por desempenhar um papel fundamental na
formação do pensamento moderno
103
.
De qualquer forma que a qualifiquemos, a obra sextiana consiste a fonte direta
ou indireta para a grande profusão de recepções dos pensadores modernos, da
mesma maneira para Michel de Montaigne
104
. Para Popkin, a publicação da
obra de Sexto no XVI, por Henri Estienne em 1562, foi capital para a retomada
coordenada do ceticismo, especialmente na obra de Montaigne.
Foi apenas após a publicação das obras de Sexto que o ceticismo tornou-se
um movimento filosófico importante, especialmente como resultado de
Montaigne e seus discípulos
105
.
Entretanto, com relação a Michel de Montaigne, um aspecto persistente na
obra de Popkin que o instala numa época e num tempo onde a dúvida primaz
do conflito religioso tenha sido o estopim para a postura do filósofo. Passa
então uma mensagem na qual o contexto teria amoldado a resposta automática
de feições céticas como necessárias. O século traz, nessa perspectiva, uma
insistente componente que empurra o espírito do perigordiano ao aparelho
cético. Segundo essa visão, o refúgio a um mundo de crenças abaladas,
imediatamente posterior ao fim da idade média, é acompanhado de um
encontro de Montaigne com a obra de Sexto seguido de conseqüências
pirrônicas explosivas em sua obra. Dessa crise contextual, segue-se para
Popkin aquilo que deflagraria uma crise cética privada, mais marcada no
ensaio Apologia de Raimond Sebond. Assim, segundo ele:
Os sistemas intelectual e religioso, que haviam sido construídos na Idade
Média, estavam desmoronando e tornava-se cada vez mais difícil dizer em que
acreditar. Justamente quando o mundo de Montaigne se desfazia, aconteceu
ele ler o principal trabalho cético antigo sobrevivente: a obra de Sexto
Empírico
106
.
Skinner também trabalha de fora pra dentro quando olha Montaigne, ainda que
explore um pouco mais o humanismo, o faz de maneira não menos
103
Cf. Popkin, 2000 (p. 49-50)
104
Moureau, Pierre. Montaigne O Homem e a Obra, in M. de Montaigne, Ensaios.
Brasília/São Paulo, Ed UnB/Hucitec, 1987, vol. 1.Trad. Sérgio Milliet. 1-92 p. […] graças ao
velho médico grego, os céticos modernos recolhiam as armas dos céticos antigos. (p. 9)
105
Cf. Popkin, 2000 (p. 74)
106
Popkin, Richard H. Ceticismo. Organizador: Eigenheer, Emílio M. Niterói: EDUF, 1986. (p.
20-21)
40
automatizada que Popkin. Do pesquisador do pensamento político moderno
todo o contexto do quinhentos é capaz de explicar a movimentação de
Montaigne para decidir pela introspecção. A partir disso, sua criatividade seria
mobilizada para uma exploração de si como resultante quinhentista.
Essa ênfase na capacidade criativa do homem veio a tornar-se uma das
doutrinas mais influentes e ao mesmo tempo mais características do
humanismo renascentista. Acima de tudo, contribuiu para se voltar maior
interesse para a personalidade do indivíduo. O homem passou a sentir-se em
condições de utilizar sua liberdade, de modo a fazer-se arquiteto e explorador
de sua própria pessoa. Isso, por sua vez, permite compreender a maior
complexidade psicológica que constatamos em boa parte da literatura
quinhentista, assim como a paixão pela introspecção que mais tarde levaria
Montaigne a dedicar toda a sua energia criativa ao estudo de sua própria
natureza
107
.
A corrente liderada pelo Popkin parece mais conforme o apetite de Montaigne,
preenchida de substantivo pirronismo e claramente defronte a uma disputa de
caráter teórico e concomitantemente de rebatimentos práticos, diferente da
preconização marcada pela exaltação da capacidade criativa do homem
postadas acima de tudo. É patente que o ambiente de crise intelectual surgida
do fim da idade média e início do renascimento são uma boa medida para a
experimentação, mas o que merece destaque é que a matéria montaigniana
não está embalada em invólucro tão otimista conforme veremos.
Ainda que se trate de uma abordagem historiográfica diversa, o escrutínio de
Maia Neto do registro cético do renascimento põe, a meu ver, em linhas planas
a efetiva contribuição de Montaigne, segundo a vertente que ele batiza como
Popkin-Schimitt. O trabalho enumera várias passagens da contribuição dessa
dupla de historiadores do ceticismo, para os nossos propósitos uma delas
constitui substância elucidativa:
Entronizaram (sobretudo Popkin) Montaigne como pirrônico e fideísta e como o
principal cético renascentista e principal responsável pela grande influência do
ceticismo na filosofia moderna
108
.
107
Skinner, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Trad. Renato J. Ribeiro e
Laura T. Motta. São Paulo: Companhia das Letras. (grifo nosso) (p. 119)
108
Cf. Maia Neto, 2007 (p. 87)
41
De fato Montaigne se revela como um grande expoente de um tempo e
observou um ambiente de turbulência inigualável, contudo seu trabalho é, ao
que parece, introspectivo e então voltado para os problemas de sua época.
É quase impossível mesmo expressar uma linha ou um conjunto causal nítido
para dizer quem determina a sua matéria cética, se seu tempo o determina ou
se o contrário, se ele é voluntariamente um cético
109
. Contudo, esta constitui a
hipótese da qual esse trabalho mais se aproxima, imaginando, a partir disso,
que sua filosofia é mais manifesta pelo percurso epistemológico internalista e
então cognitivo.
Não é um (1) tolo quem não desconfia afinal de seu juízo, se reconhece ter
sido por ele enganado mil vezes? Quando me convenço, diante dos
argumentos que me apresentam, de que minha opinião é errônea, não é tanto
a ignorância que se evidencia a meus olhos – seria pouco – é minha fragilidade
que constato, é a (2) traição de minha inteligência, e chego a conclusão de que
tudo está a exigir reforma.
Em todos os meus outros erros, ajo da mesma maneira e tiro dessa regra
grande proveito na vida. Não olho, no caso, o fato, como uma pedra em que
ocasionalmente tropeço; (3) o que ele me revela é que possivelmente tudo
precisa ser revisto e reajustado. Saber que dissemos ou fizemos uma tolice,
pouca importância tem; (4) o importante é saber que somos tolos
110
.
O que precede a análise do fato é uma avaliação detidamente no juízo, sua
mobilidade está sob a mira do autor, o que ele frisa é a alta capacidade deste
nos conduzir no mais das vezes ao engano. Quando se convence da
fragilidade do juízo, não acha motivo especial no equívoco resultante dos
processos deste, acha na verdade um meio claro de demonstração de
ignorância permanente. A conclusão é que o seu equipamento cognitivo
merece reforma, suas aplicações epistêmicas devem se repetir com
constância. O fato, entendido como qualquer resultado do processo de
cognição, demonstra a necessária constância da reforma da opinião.
Finalmente, em (4), mais importante no fato é a sua capacidade de conduzir a
109
Bencivenga se ocupa de observer os jogos mentais produzidos por Montaigne, uma das
razões para repousar sobre esse trabalho essa posição pouco taxativa. Bencivenga, Ermanno.
The Discipline of Subjectivity: An Essay on Montaigne. Princeton: Princeton University Press,
1990 (p. 49-62)
110
Montaigne, Michel de. Ensaios. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. (Coleção os
Pensadores) LIII, XIII, p. 362 De agora em diante, quando me referir a essa coleção farei uso
da citação de Livro representado pela letra “L” (LIII), capítulo em Romanos (XIII), e página
representada em algarismos precedidos da consoante “p.” (p.362). Desse modo, a mesma
citação seguiria como: Cf. LIII, XIII, p. 362
42
conclusão de que somos tolos e pouco ou nada equipados para dele
extrairmos opinião definitivamente verdadeira.
É preciso então uma elaboração sofisticada para apresentarmos o contexto
conduzindo o pensamento de Montaigne, é patente que ele se relaciona com o
ambiente intelectual em curso, mas o ponto é que o gênio de sua obra pode ser
mais bem observado numa chave internalista onde o fato pode não ser
condição automática de sua matéria
111
. Ele pode, colateralmente, através de
sua narrativa, revelar mais sobre o perigordiano, do que sobre este e o
ambiente.
É mais difícil do que parece acompanhar o espírito na sua marcha insegura,
penetrar-lhe as profundezas opacas, selecionar e fixar tantos incidentes miúdos
e agitações diversas. É uma ocupação inédita e excepcional, mas das mais
recomendáveis, que nos afasta das ocupações habituais a que se entrega em
geral a gente.
Não descrição mais difícil do que a de si próprio, nem mais aproveitável,
mas é necessário enfeitar-se, arranjar-se para se apresentar em público.
Assim, enfeito-me sem descontinuar, por isso que me descrevo
constantemente
112
.
A primeira passagem deixa uma forte sugestão de que a companhia e
observação introspectiva devem ser levadas a efeito em profundidade, o
espírito promove por si um conjunto de acidentes e agitações que conferem
mobiliário legítimo para uma pesquisa. Esse trabalho lhe apresenta a
capacidade de se afastar de análises exteriores e habituais com resultados
conhecidos e narrados, desse modo, o trabalho de se observar é composto por
motivação suficiente para não sair de si mesmo
113
.
Fixar um ponto em si se apresenta antecipadamente à dificuldade presente em
qualquer pesquisa de tipo factual, o movimento humano lhe atrai mais
114
. O
homem constitui então um objeto de conhecimento tão ou mais precioso do
111
Cf. LII, X, p. 349 Não se preste atenção à escolha das matérias que discuto, mas tão
somente à maneira por que as trato.
112
Cf. LII, VI, p. 325 (grifo nosso)
113
Cf. LII, VI, p. 321
114
Cf. Moreau, 1987 […] Montaigne deixa-se tentar pelo ceticismo. O movimento universal,
essa ‘passagem’ perpétua – esse vir a ser sem fim que transporta, segundo Heráclito, os seres
e as coisas – obsedam-lhe a imaginação [...]. (p. 5)
43
que aquilo que o cerca
115
. É um labirinto que deve ser observado e também
que, em síntese, o mapa do singular apresentaria mais substância provocativa
do que os universais, conforme apresenta Friedrich:
Montaigne parfait définitivement dans l’observation de soi as conviction que le
singulier est plus riche que l’universal et que l’on ne vient jamais à bout du
labyrinth humain. Il est à lui-mème le labyrinth le plus surprenant, mais aussi le
plus accessible et le plus précieux pour la connaissance
116
.
Assim, o que está em representação é uma observação de Montaigne de duas
maneiras distintas: uma que o contextualmente, e outra que o recebe como
pensador de uma natureza idiossincrática bem marcada, ainda que seja
legitimamente um pensador de talho geral quinhentista
117
. E, pela abordagem
sugerida, a partir dos fragmentos montaignianos, diversa da visão de Lima, a
pesquisa introspectiva resulta em análises do ambiente expressas em
embalagens enfeitadas ou dissimuladas, para se apresentar em público num
contexto de enfermidade, também segundo ele mesmo
118
.
Cético
O ponto que conecta originalidade e o contexto montaigniano pode ser
encarado como cético, perpassado por outros cem números de influências
igualmente amoldadas ao que ele próprio considera e, ao cabo, assimila como
seu
119
. Friedrich assinala que scepticisme et ignorance sont des conditions
élémentaires de sa sagesse
120
.
115
Cf. LII, X, p. 349 (Ibid)
116
Friedrich, Hugo. Montaigne. Paris: Gallimard, 1968. Trad. Robert Rovini. (Col. Tel) (p. 220)
117
Cf. Popkin, 1986 Montaigne apresentou a crise do homem moderno, que não conseguia
encontrar qualquer fundamento para acreditar em algo. Qualquer crença era possível de ser
contestada (p. 21)
118
Para quem Montaigne está a apresentar-se realmente sem os adornos retóricos. Lima, L.
Costa. Montaigne: A História Sem Ornatos. Revista de História e Estudos Culturais, Rio de
Janeiro, V. 3, n. 2, p. 01-115, Ano 3, 2007 (p. 5) Disponível em <www.revistafenix.pro.br>,
acessado em 08/2007. Na seqüência Cf. LII, XVIII, p. 48 Pintando-me para outrem, pintei a
minha alma com cores mais nítidas do que a apresentava primitivamente. Cf. LIII, IX, p. 278
Tenho-me livrado de tudo, [ele se refere à guerra] mas lamento que isso se deva ao acaso e
também a minha prudência – mas não a justiça. (grifo nosso)
119
Cf. LII, XVII, p. 38-39 Quem desejasse saber a autoria dos versos que cito nesta obra,
colocar-me-ia em grande dificuldade. Entretanto, não bati senão a portas conhecidas e
célebres, não me contentando com o valor intrínseco do pensamento, mas cioso de que
proviesse de quem o tivesse rico e honroso e cuja autoridade se juntasse à razão. Também em
LII, X, p. 349 Quanto às razões, às comparações e aos argumentos que transplanto para meu
jardim, e confundo com os meus, omiti muitas vezes, voluntariamente, o nome dos autores [...]
(o grifo é nosso)
120
Cf. Friedrich, 1968 (p. 317)
44
O tamanho da pretensão capciosa de Montaigne uma boa confirmação do
diagnóstico de Friedrich. Ele está ocupado da descrição humana, ao passo que
os demais procuram a verdade para educar; ele percorre um caminho diverso,
está em busca da descrição para só então descobrir algo da natureza humana.
Em qualquer caso poderíamos ter uma ordem direta, na qual o descobrir seria
posteriormente acompanhado da narrativa noticiosa do conhecimento, por
conseguinte seguida de algum procedimento pedagógico. Seu movimento é
mais original, pois descrever revelará, ou não, a capacidade de se conhecer o
homem.
Outros autores têm como objetivo a educação do homem; eu o descrevo. E o
que assim apresento é bem malconformado. Se o tivesse de fazer, faria-o sem
dúvida bem diferente. Acontece que está feito. Os traços deste seu retrato
são fiéis, embora variem e se diversifiquem
121
.
A autodescrição que por um lado se expressa recheada de pouca ambição, por
outro, no fim do fragmento, apresenta sintomas de uma segurança adicional
de percurso. Ela manifesta que o seu traço é fiel, ou seja, pelo menos uma
descrição de natureza pode ser oferecida, não obstante, a cada momento.
Dessa maneira, os traços estão sujeitos a quantidades ímpares de variações e,
dentro delas ainda, grandes diversificações. A segurança sobre a fidelidade
não põe de lado a qualidade da análise, ela não está isenta de dificuldades,
apenas aponta um caminho metodológico. As coisas mudam continuamente, o
que torna a fixação algo com dificuldades quase obstrutivas.
O mundo é movimento; tudo nele muda continuamente; [...] tudo participa do
movimento geral e do seu próprio; e a imobilidade mesma não passa de um
movimento menos acentuado. Não posso fixar o objeto que quero representar:
move-se e titubeia como sob o efeito de uma embriaguez natural
122
.
Como resposta a esse movimento contínuo, a embriaguez natural do
movimento do indivíduo e do geral, temos um forte motivo que explica o
recurso ao ensaio, a tentativa contínua, a expressão e preferência por uma
busca pirrônica infatigável do quer que seja algo. O pressuposto da ignorância
relatada por Friedrich é o composto adicional.
121
Cf. LIII, II, p.153 (o grifo é nosso)
122
Cf. LIII, II, p.153 (grifo nosso)
45
A esse geral e particular que se movem continuamente dificultando uma
narrativa definitiva dos objetos, ele procede alguns recursos, dentro do ensaio
livre, com completa falta de pauta definitiva, mas articulada por um método,
uma certeza na qual prevalecerão tentativas de um ensaio de si que não
termina. Se connaître est plus urgent que connaître lês choses como um
movimento já bem conhecido da filosofia antiga
123
.
Os Ensaios se materializam como uma busca constante de apresentar algo em
face de tamanha fragilidade do juízo. O sistematismo não contém consistência
nem mesmo no sujeito, e por essa razão, quando vai aos objetos, o resultado
é cativo de corrupção
124
. A imaginação trará embaraços tamanhos que a
qualidade do que seja estará sujeita a um ambiente indefinível. Observar e fixar
alguns acidentes, e pintá-los como aparecem num fragmento de momento, é
assim a alocução dos Ensaios.
Observo e anoto os diversos (a) acidentes que ocorrem dentro de mim e as (b)
concepções mais ou menos fugidias que minha imaginação engendra, as quais
são por vezes (c) contraditórias ou porque tenha mudado eu, ou porque o
objeto da observação apareça dentro de um (d) quadro e de uma luz
diferentes. Daí acontecer-me, não raro, cair em contradição [...] Se minha alma
pudesse fixar-se, eu não seria hesitante; falaria claramente, como um homem
seguro de si. (e) Mas ela não pára e se agita sempre à procura do caminho
certo
125
.
Os acidentes, a contradição, o quadro de referência e a conclusão pela
pesquisa interminável passam pela marcação proposta acima. Podemos vertê-
las em conjunto (a, b, c, d, e) no quarto, quinto, sexto e oitavo tropos do
material suspensivo de Enesidemo
126
. Assim, o sujeito está constrangido a um
conjunto de afecções internas que deterioram as tentativas de fixação de algo,
some-se a isso a ação da imaginação, as contradições mobilizadas dessa
origem difusa e os infinitos quadros de referência nos quais o sujeito opera.
123
Cf. Friedrich, 1968 (p. 222)
124
Cf. LII, XXVII, p. 73 Eu, que mais me preocupo com o alcance e o interesse de meus
comentários do que com a ordem e a lógica da apresentação, não hesito em incluir aqui uma
bela história, pois, quando valem realmente à pena, arrasto-as até pelos cabelos.
125
Cf. LIII, II, p.154
126
Woodruff, Paul. Aporetic Pyrrhonism. Oxford Studies in Ancient Philosophy, Oxford,
Clarendon Press, V. 6, p. 139-168, Annual, 1988 (p. 154). O autor confere autoria aos Modos
de Enesidemo e questiona alguns aspectos da originalidade de Sexto, bem como demarca um
campo para o pirronismo aporético.
46
Como portas de saída Montaigne têm a constatação quase infinita e ao mesmo
tempo momentânea da suspensão do juízo
127
.
A substância mais sistemática de aplicação cética em Montaigne está
concentrada no seu mais longo Ensaio, Apologia de Raimond Sebond que
será bastante explorado nesse trabalho –, talvez por causa daquilo a que
propõe, qual seja, fazer a defesa de Sebond contra os ataques da razão
128
.
Considerando ao menos em termos temporais, as duas colunas do ceticismo
passam pelo crivo de Montaigne ao longo de boa parte dos Ensaios, contudo, a
atitude pirrônica é mais explícita que o conteúdo de viés acadêmico. Essa
divisão, notoriamente, não é muito pedagógica, mas podemos apresentar
esquematicamente o cético acadêmico como um indivíduo intoxicado pela
certeza de que não é possível se atingir o saber, ou, dito de outra forma, se
uma assertiva puder ser falsa, então ela não é conhecimento
129
.
Por sua vez, um pirrônico diria que isso é a demonstração da outra face do
dogmatismo, o de corte negativista, e que, portanto, nem isso é possível ser
afirmado. Segundo Striker, os acadêmicos nem sempre afirmam que não é
possível o conhecimento e que, logo, está mais inclinada a pensar que a
própria corrente cética pirrônica expressa mais uma school politics than of
differences in content
130
.
Os expoentes do ceticismo dito acadêmico e pirrônico são apresentados
indistintamente no trabalho, assim, podemos entender que Montaigne não se
aferra a esse tipo de demarcação
131
. Carnéades, Arcesilau, Cícero, Pirro e
Sexto Empírico entram de acordo com o curso dos Ensaios, mas são
oportunamente convocados na Apologia. Segundo Montaigne, o fundamento
das idéias humanas dogmáticas precisa ser derrubado, e para tanto ele não
127
Cf. LIII, II, 165 Luto na medida de minhas forças, [diante de mais uma metamorfose] mas
sem saber até onde poderei chegar. O que quer que aconteça, entretanto, quero que saibam
de que altura caí.
128
Cf. LII, XII, p. 370 (Apologia de Raimond Sebond - Apologia)
129
Striker, Gisela. Essays on Hellenistic Epistemology and Ethics. Cambridge: Cambridge
University Press, 1996. O trabalho dedica um capítulo especial a essa discussão, On the
difference betwen the Pyrronists and the Academics. (p. 135-149)
130
Cf. Striker, 1996 (p. 136)
131
Cf. LII, XXIX, p. 77 Pirro, num ensaio de título que remete a virtude, é alvo de uma pintura de
conteúdo inverso.
47
escolhe fixamente a maneira, vejamos então, inicialmente, parte da energia
desferida contra a opinião fundamentada:
É preciso dominar tão tola vaidade e solapar ousada e energicamente os
fundamentos ridículos sobre os quais se erguem as opiniões errôneas
132
.
O ataque é coordenado de um jeito particularmente cético, ou seja, o golpe
sobre a tentativa ostensiva de se fixar um fundamento, não evidente, para a
explicação de um fenômeno. Sob a bateia do sistematismo, o extrato é capaz
de transmitir uma virulência de corte negativo, o que desenharia um Montaigne
Acadêmico. Todavia, a passagem abaixo pode enfronhar grande obscuridade a
esse tipo de divisão.
(a) O próprio Cícero, que aufere todo o seu valor de seu saber, principiava, em
sua velhice (segundo Valério Máximo) a desprezar as letras. (b) Quando as
cultivava, fazia-o sem optar por nenhuma solução, tendendo ora para uma seita
ora para outra, segundo o que lhe parecia mais certo, (c) sem contudo se
afastar da dúvida da Academia: ‘Vou falar, mas em nada afirmar; tudo
investigarei, sempre desconfiado de mim mesmo’
133
.
Podemos ler o fragmento em pelo menos três direções diferentes. A primeira
onde Montaigne delinearia um Cícero pirrônico, francamente inclinado a não
cortejar as letras, lida como conhecimento, e que quando se aproximava, não
pendia para uma ou outra direção, numa postura de epoché. Na segunda
direção, em (b), Montaigne retoma a divisão clássica. Ao cabo, podemos
concluir que o tratamento dado não se fixa nas divisões esquemáticas, ainda
que ele empregue ocasionalmente mais ou menos a distinção de corte mais
nítido entre a vertente antiga e a de Cícero
134
.
Os dois últimos excertos removidos da Apologia têm conteúdo emblemático do
tipo de aplicação cética de Montaigne que poderia ser compreendida como
uma postura de ceticismo pirrônico com utilizações contextualizadas de feições
132
Cf. LII, XII, p. 410
133
Cf. LII, XII, p. 419-420
134
Dumon, Jean-Paul. Le Scepticisme et le Phénomène: essai sur la signification et les origins
du pyrrhonisme. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1972. O emprego sistemático do material
de Sexto o leva concluir por uma postura de respeito à fidelidade histórica. Cette distinction
constitue, par l’insistance avec La maintient Montaigne, um retour décisif à la fidelité historique.
(p. 42). Cf. LII, XII, 470 O próprio Montaigne apresenta a definição das correntes céticas. Ele
faz menção, inclusive, a postura probabilística assumida em alguns momentos entre os
acadêmicos.
48
negativistas. Observando quadro a quadro a Apologia, talvez ele penda para
Sexto Empírico, conforme a intenção de Dumont, não obstante, esse trabalho
se aproxima da hipótese de que ele use a ambas indistintamente de acordo
com o resultado da pesquisa de si que deseja transmitir, face aos fenômenos
que verifica
135
.
O ceticismo de aplicação em Montaigne faz dele um tipo inovador pelo menos
na medida em que ostensivamente faz uso para narrar a si mesmo e, por
extensão, como percebe os fenômenos, como os pensa e como lhes pinta
136
.
Da tomada de posição na querela político-religiosa ele se pronuncia de fora da
vertente de Pirro, afinal, não será mil vezes preferível evitar um julgamento a
se meter em discussões fantasistas e puramente polêmicas?
137
Como corolário,
temos que estão na disposição montaigniana tanto as fragilidades incontestes
do juízo acompanhados de uma pesquisa interminável via Ensaios, bem como
a aplicação útil dessa decisão diante da introdução violenta de questões
evidentes como a partição do agregado social francês
138
.
Podemos mesmo observar na passagem outra matéria, onde ele teria a
posição firme do lado da vertente sextiana, não obstante, essa leitura pode
facilmente ser fragilizada se de um lado descortinarmos a substância das
discussões fantasistas. Façamos a coisa de pelo menos um axioma básico: ele
135
Cf. LII, XVII, p. 28 Há pelo menos igual talento em dar realce a um assunto vazio de sentido
quanto em defender outro de peso. Sugiro aqui um forte conteúdo de isosthenéia. Cf. LIII, XIII,
p. 364 A atenção que de muito aplico em analisar-me, habilita-me a julgar com algum
discernimento. Pouilloux, Jean-Yves. Lironie Du Sort. In Montaigne et L’Histoire. Textes réunis
par Claude-Gilbert Dubois. Paris: Editions Klincksieck, 1988. p. 91-101 A perspectiva do
trabalho é historiográfica e introduz alguns dos temas que provocam as elaborações de nosso
interesse. Montaigne va s’efforcer, en dépit de tout, en dépit de l’acharnement du sort (de la
peste, de l’anarchie civile, de la confusion politique et religieuse) d’interroger l’énigme de
l’histoire qu’il vit. (p. 92)
136
Cf. LII, XII, p. 466 E quem não entende de si, de que de entender? [...] Não pode ser a
medida de tudo que não conhece a própria medida. Cf. LIII, XIII, p. 364 [...] E quando me
esforço, poucas coisas me escapam das que se verificam ao redor de mim e possam auxiliar-
me nessa tarefa: fisionomias, raciocínios, tendências. Tudo estudo: o que convém evitar e o
que cumpre imitar. Cf. LIII, IX, 301 Gosto de andar dando cabriolas, à maneira dos poetas, que
é ligeira, alada, demoníaca, como diz Platão.
137
Cf. LII, XII, p. 422
138
Cf. Moreau, 1987 As próprias perturbações e desordens preparam uma sociedade em que
as verdadeiras paixões religiosas e as convicções políticas se dissipam em uma elegante
corrupção. (p. 13). Também em LI, XXIII, p. 128 [...] uma inovação que acaba por se impor pela
violência [...]
49
está ao lado do partido católico
139
. Se percebermos que na ocasião o lado
católico é apresentado como uma das partes nas fantasias em disputa, como
conseqüência, nós temos que ele está momentaneamente fora, pelo menos, da
vertente de Pirro de Élis.
A flexão de Montaigne verte a matéria cética ora por uma alça, ora por outra,
por si ou para si. Ele antecipa a confissão de ignorância num contexto menos
definido de disputa e, então, vejamos nisso uma última passagem dessa
definição do que chamo de ceticismo de aplicação.
Imagine-se uma contínua confissão de ignorância, um juízo sempre indeciso
acerca de todos os assuntos, e ter-se-á a escola de Pirro. Se tento descrever
como me é possível esse estado de espírito, é porque muitos não o percebem
e mesmo os que escrevem a respeito fizeram-no com obscuridade, de diversas
maneiras
140
.
Conhecimento
Essa posição de radical aplicação cética produz um relacionamento igualmente
antipático com o que seja o conhecer, tal como enfaticamente apresentado
pela ciência e filosofia dogmáticas observadas por Montaigne. O aparelho
cético está posto na obra de Montaigne num concentrado extraordinário contra
a razão e os seus hipotéticos operadores primaciais. No entanto, uma pausa
para a perspectiva de Villey pode ajudar na montagem de uma reflexão um
pouco mais calma.
Villey, um dos intérpretes de viés fasista ou etapista da obra de Montaigne,
o ceticismo como mais uma das múltiplas influências do gascão em direção a
um eterno auto-retrato, a pintura de si. E segundo essa perspectiva, Montaigne
foi se desenhando e, durante esse percurso, teria empregado autores à medida
que os lia, do mesmo modo com Sexto Empírico.
141
Num parco resumo aqui da
139
Cf. LII, XIX, p. 51 É freqüente vermos as boas intenções, quando mal orientadas,
provocarem os piores resultados. Nesse conflito que leva a França à guerra civil, o melhor
partido, o mais justo, é sem dúvida o que tem como objetivo a manutenção da religião e do
governo que existiam antes da perturbação da ordem. Ressalvados os exageros de conduta
católica inclusive. (grifo nosso) Ver também: Burke, Peter. Montaigne. São Paulo, Edições
Loyola, 2006. Trad. Jaimir Conte. (Col. Mestres do Pensar). 116 p. Montaigne não simpatizava
com o protestantismo [...] (p. 42)
140
Cf. LII, XII, p. 423
141
Villey, Pierre. Os Ensaios de Montaigne, in M. de Montaigne, Ensaios, Brasília/São Paulo,
Ed UnB/Hucitec, 1987, vol. 2. Trad. Sérgio Milliet. 1-78 p. Como acreditar que Sexto Empírico
50
obra de Villey, podemos dizer que ele observa Montaigne por meio de uma
audaciosa cronologia: um período estóico, uma crise cética e a conclusão do
auto-retrato.
Podemos oferecer a essa tentativa, bem como a intentos correlatos de
disposição linear, algo que concorra a submeter boas narrativas sem fundo
cético. Para o gascão, qualquer espírito engenhoso é capaz de extrair de
frases simples um conteúdo disparatado do sentido original. A passagem é
pródiga pelo menos em convicção.
[...] (a) cada qual traz em si a causa das aparências. [...] (b) De quantas
falsidades ou mentiras uma frase clara, pura e perfeita quanto possível, não é
ponto de partida! [...] (c) Há tantas maneiras de interpretar, que é difícil,
qualquer que seja o assunto, um espírito engenhoso não descobrir o que lhe
convenha
142
.
(d) Vede como estudam e aprofundam Platão, cada qual se vangloriando de o
ter a seu lado e interpretando a seu modo. Passeiam-no por todas as opiniões
do século e obrigam-no a tomar partido. Forçam-no mesmo à contradição
segundo as idéias em voga. [...] (e) Os pirrônicos teriam dito não saberem se [o
mel] é doce ou amargo, se não é doce nem amargo, ou se é doce e amargo,
pois chegam sempre à conclusão de que o ponto litigioso se presta a dúvida
143
.
um gosto inequívoco aproximado muito perifericamente de uma adesão as
correntes da filosofia e ciência no fragmento como também noutros momentos
dos Ensaios
144
. Não obstante, Villey observa pela margem de Montaigne,
parece tratar como diminuto o descaso e obstrução quase generalizada dos
movimentos da razão filosófica e científica. Uma questão pode introduzir o
desacordo com essa posição: por que então ele seguiria os Ensaios de acordo
com uma razão desarrazoada? A marcação dos Ensaios em tempos, épocas
onde ele estaria mais ou menos afeito a um ou outro pensador que estivesse
lendo, se rebateria, nessa perspectiva, dentro dos Ensaios. Entretanto, o andar
montaigniano é muito afeito a cabriolas
145
.
conduzirá, ele também, Montaigne à pintura de seu Eu? Plutarco trata de assuntos familiares,
mas um filósofo apegado ao mais abstrato dos problemas filosóficos, o problema do
conhecimento? Sexto parece dar as costas à direção que Montaigne segue. (p. 31) Villey,
Pierre. Les Essais de Montaigne. Paris: Librairie Nizet, 1992 (189p)
142
Cf. LII, XII, p. 490
143
Cf. LII, XII, p. 491
144
Cf. LII, XVIII, p. 49; Também em LI, XX, p. 92
145
Cf. LI, X, p. 58-59 O acaso é meu senhor: a oportunidade, a companhia, o próprio fogo das
minhas palavras atuam sobre o meu espírito que produz então muito mais do que quando com
ele me isolo, o consulto e o obrigo a trabalhar.
51
Na anotação proposta, temos, pelo menos, uma forte amostra da aversão a
razão científica e filosófica dogmática. Estão presentes, ao menos diretamente,
a idiossincrasia, indeterminação causal, hipóteses, e uma forte alusão de
simpatia aos enunciados de preenchimento pirrônico. Essa proposta
externalista não é unânime e a corajosa tentativa de Villey não goza de
sucesso, por exemplo, na interpretação de Hartle e Schaefer
146
. Sobre o
registro temporal, a resposta de Schaefer, que procura uma clara postura
política de Montaigne nos Ensaios, traz mais concordância com as cabriolas
montaignianas. Ante a sugestão dos tempos estóicos da obra de Montaigne, o
início do desmonte acontece da seguinte maneira nas grevas de Schaefer:
It is not difficult to find a multitude of instances where the text of the Essays
contradicts Villey’s interpretation. On the one hand, many of the chapters that
Villey assigns to Montaigne’s early period contain thoughts he attributes to the
‘late’ Montaigne
147
.
A interpretação de Villey parece desprezar a endêmica componente cética na
observação dos fenômenos do sujeito analisados por Montaigne
148
. A posição
de Montaigne com relação à ciência e filosofia dogmática é obstruída se o
colocamos a sofrer passivamente a influência coordenada e linear de Plutarco
ou Sêneca com efeitos nos Ensaios
149
. A montagem do conhecimento em
Montaigne passa pela tentativa de observar fenômenos internos e então
146
Hartle, Ann. Michel de Montaigne: Accidental Philosopher. Cambridge: Cambridge University
Press, 2003. Villey’s thesis may capture something of the changing tone of the three books
[periodo estóico, crise cética e auto retrato], but it cannot stand as an accurate account of
Montaigne’s thought, even if one believes him to be simply a philosophical follower, for he
quotes dozens of philosophers with apparent approval throughout all three books. (p. 11)
Schaefer, David Lewis. The Political Philosophy of Montaigne. Ithaca and London: Cornell
University Press, 1990.
147
Cf. Schaefer, 1990 (p. 26)
148
Cf. LI, III, p. 39 Nunca estamos em nós; estamos sempre além. [...] é necessário adquirir
antes de mais nada o conhecimento de si próprio e daquilo a que está apto. Ver também a
figuração do eu, em: Marin, Louis. L’ecriture de soi. Paris: Presses Universitaires de France,
1999 (p. 113-125)
149
Cf. LII, XII, p. 457 Não querem pronunciar-se francamente acerca da ignorância e da
fragilidade da razão humana para não fazer medo às crianças, mas as revelam suficientemente
sob a aparência de sua ciência confusa e contraditória. Cf. LII, XII, p. 457 Direi o mesmo da
filosofia. Tem tantas formas diferentes e tanto falou, que abarcou todos os nossos sonhos e
devaneios. A fantasia humana nada mais pode conceber que não se depare nela: ‘nada se
dirá, por mais absurdo, que não tenha sido dito por algum filósofo’. (o fragmento em aspas é de
Cícero). Isso me proporciona maior liberdade ainda para divagar publicamente, tanto mais
quanto, embora emanando de mim só, e sem que ninguém mos tenha sugerido, meus
propósitos terão sempre alguma relação com outros mantidos e não faltará quem diga um
dia: eis de onde os tirou. Ainda em LII, X, p. 349
52
externos. As experiências generalizadas dos sujeitos e a sua própria confecção
de conhecimento são determinantes para tomada de decisão na vida ordinária,
pois é o que importa para uma vida sem a perturbação promovida pelas
especulações sobre a verdadeira natureza das coisas
150
.
Fenômenos internos e externos podem ser relidos numa matriz cética,
apresentados como uma plataforma da qual poderemos traduzir o
conhecimento de corte dogmático pelo seu entendimento como mera opinião. A
natureza e o acaso assumem papel determinante na perspectiva montaigniana.
O conhecimento de percurso dogmático é mais uma das asserções justificadas
com o mesmo peso das asserções injustificadas. As primeiras estão baseadas
em hipóteses que são passíveis de assertivas radicalmente antagônicas se
erguidas pelo mesmo caminho cognitivo, assim especialmente as que almejam
o estatuto de regras gerais. Finalmente, para Montaigne, a certeza absoluta, a
fantasia e a insegurança andam juntas. Assim sendo, acredito que depois dos
excertos podemos seguir sem o empréstimo de Villey.
Minhas idéias são o que as fez a natureza. Para formá-las procurei não seguir
nenhuma regra; [...] A que doutrina se ligam? o soube depois de as expor e
julgar do resultado: pertenço a uma nova espécie, sou um filósofo que se
tornou filósofo por acaso e sem premeditação
151
.
Aos que, para combater, se apóiam em hipóteses, cumpre opor como axioma
as teses contrárias àquelas acerca das quais se discute. Todas as que o
homem é capaz de imaginar podem emitir-se; têm todas igual autoridade, se
entre elas a razão não estabelece uma diferença. É preciso, pois, compará-las;
e antes de tudo as que se apresentam como regras gerais e pesam mais.
Querer chegar a uma certeza absoluta é, até certo ponto, prova de loucura e de
extrema insegurança
152
.
Tentativas de forjar algum mapa das operações daquilo que pensa Montaigne
com respeito a algum tipo de produto dogmático devem obedecer ao mínimo
de observância com relação à vertente freqüentada por Pirro
153
. A formação
das idéias para Montaigne tem como ponto de partida um fundamento possível
150
Cf. LIII, XII, p. 334 Não precisamos de muita ciência para vivermos satisfeitos.
151
Cf. LII, XII, p. 453
152
Cf. LII, XII, p. 457
153
Cf. Hartle, 2003 O trabalho marca três aspectos que conduzem ao tom cético dos Ensaios: o
elogio da diversidade de opiniões, o senso comum cético e moderação com relação a idéias
diferentes e, finalmente, a reiterada fala elogiosa ao ceticismo. (p. 13)
53
em pelo menos três fontes, todas essas sob ordenação pouco nítida: a
operação dos sentidos, a operação da razão e a interferência da paixão
154
.
A soma da aplicação dos sentidos e das operações da razão sofrerá a
interferência contínua de uns cem números de afecções definidas como
paixão
155
. Essa notação será capaz de produzir, no ponto de chegada, uma
infinita quantidade de idéias dessemelhantes. A conclusão é pelo menos
diafônica, o que sobra para o conhecimento de matriz dogmática é resultado de
profecia e das adivinhações
156
.
No lugar do conhecimento erguido sob hipóteses, premissas, petições de
princípio e o convite a autoridades de outros autores, ele promoverá um
julgamento livre e permanente
157
. A razão e os sentidos são as principais
motivações para uma postura experimental, tal como preconizada por
Montaigne. Uma das explicações não poderia ser menos cética: a razão não se
abate diretamente sobre as coisas, ela é guiada pelos sentidos e estes, apenas
operam pelos objetos que conseguem captar
158
.
Assim tem-se que os objetos se apresentam aos sentidos, aos que os homens
possuem, e da recepção se dirigem então a razão, esta que finalmente, quando
vai comunicá-los, o faz pelos sentidos. O processo racional de interpretação do
mundo exterior começa e termina pelos sentidos. O homem está condicionado
154
Cf. LII, XII, p. 475
155
Sugiro aqui simplesmente a operação orgânica das faculdades sensitivas do indivíduo.
Essas faculdades são aqui observadas por Montaigne, conforme sugerimos, segundo os tropos
do sujeito e objeto do material de Enesidemo. E sobre a razão, sugiro os seguintes fragmentos:
Cf. LII, XII, p. 472-473 Razão: (1) aparência de juízo que cada um forja em si mesmo (2) e que
a respeito de um mesmo assunto pode levar a cem apreciações diversas e contraditórias, (3)
instrumento feito de chumbo e cera, que se estica e dobra (4) e se ajeita a todas as
circunstâncias, a todos os compromissos, (5) e que um pouco de habilidade basta para levar a
amoldar-se a quaisquer moldes. Ainda em LI, XXIII, p. 118 [...] A razão humana é um
amálgama confuso em que todas as opiniões e todos os costumes, qualquer que seja a sua
natureza, encontram igualmente lugar. Infinita em sua matéria, infinita na variedade de formas
que assume. (os grifos são nossos)
156
Cf. LII, XII, p. 475
157
Quesnel, François. Montaigne. Publicado na web, Stanford Encyclopedia of Philosophy,
2004. (p. 3-6) Disponível em <www.seop.leeds.ac.uk/montaigne/> Acessado em 10/2006.
158
Por ordem de entrada, sugiro os seguintes fragmentos: Cf. LII, XII, p. 491 Esta dissertação
induziu-me a considerar os sentidos a grande causa e a prova, a um tempo, de nossa
ignorância. Cf. LII, XII, p. 491-492 São a via pelas quais a evidência penetra no santuário do
espírito humano. Cf. LII, XII, p. 492 Não me parece seja o homem provido de todos os que
existem na natureza.
54
a essas limitações, não chegará à essência ou a verdade sobre o que quer que
seja, pois os objetos se apresentam sempre sobre disposições enviesadas ou
estranhas ao seu equipamento perceptual
159
.
O exercício de buscar a verdade absoluta será apresentado como uma
atividade de prestidigitação, onde o formato terá mais a dizer do que o
conteúdo
160
. A experiência do sujeito lhe basta, que a verdade e o
conhecimento não se abatem igualmente sobre todos os indivíduos com
mesma forma e conteúdo, cada qual o receberá de um modo único
161
. Dessa
maneira, com um conhecimento da verdade se abatendo com uma grande
diversidade de formas, o que se produz é uma verdade atenuada e
idiossincrática
162
.
Dessa posição podemos refinar algumas conexões, das quais, convém
destacar, pelo menos rudimentarmente antecipadas: a substituição da verdade
e do conhecimento pela opinião, o pensamento livre no lugar da busca de
universais. Pelo menos mais um pequeno excerto dos Ensaios pode tornar
menos inóspito o que pensa Montaigne do homem em geral e também daquilo
que constitui a porta de saída do seu labirinto cético para os propósitos desse
rápido ensaio no que diz respeito à reflexão.
Parece-me que a origem dos maiores erros de nosso julgamento, tanto do
indivíduo como da massa, e o que nos mantém vivos, é a opinião demasiado
favorável que o homem tem de si. Esses sujeitos que cavalgam a órbita de
Mercúrio e vêem tão claramente o que ocorre no céu, fazem-me dar de
ombros
163
.
159
Cf. LII, XX, p. 54 A fraqueza de nossa condição faz que não possamos apreciar as coisas
em sua simplicidade e pureza naturais [...]
160
Cf. LIII, VI, p. 228 É fácil verificar que os grandes autores, ao tratar das causas de tais ou
quais fatos, não se referem apenas às que acreditam serem verdadeiras, mas também às que
não imaginam justas, conquanto comportem alguma beleza e invenção. Dir-se-ia que pensam
expressar-se de maneira útil e certa desde que expresse com talento. Não podendo estar
seguros da causa principal, enumeram umas tantas outras, na esperança de que se encontre
por acaso entre elas [...]
161
Sugiro as seguintes páginas e fragmentos: Cf. LIII, XII, p. 332, 333, 334 e 338. Cf. LIII, XIII,
p. 354, 355 (O que encontramos nas coisas mais semelhantes é a diversidade, a variedade),
362
162
Cf. LIII, XIII, p. 356 Sabemos por experiência que a pluralidade de interpretações dissipa e
desagrega a verdade.
163
Cf. LII, XVII, p. 25
55
Da passagem temos uma origem desordenada e difusa produzindo um efeito
benéfico para o agregado humano. A arrogância da razão humana produzindo
algo fora do seu controle, o efeito não tem nada haver com a causa, a
manutenção do ordenamento e a preservação da massa dependendo ainda da
intervenção do julgamento. O que Montaigne antecipa indiretamente na
passagem é a motivação particular desejando vaidosamente interferir no
agregado, em outros termos, a ingerência humana sobre a melhor maneira de
se promover a organização social e religiosa.
Religião
A opinião e o pensamento livre operam sobre um referencial claro no
pensamento de Montaigne, eles estão represados na experiência aceita pela
sociedade. A opinião coletiva sobre as referências sociais serão o guia
privilegiado das ações de modo que um produto intelectual, seja ele originário
da opinião do vulgo ou na do filósofo, não sobrepõe outro. Por opinião coletiva
podemos ler o estatuto do hábito e da tradição, o efetivo uso, aquilo que está
em curso entre as práticas sociais são o invólucro, o amálgama da sociedade.
Aquilo que a sociedade compreende habitualmente como aceito para as
práticas diárias são o guia seguro e isento ante as perturbações vaidosas e
precipitadas dos dogmáticos.
A ontologia montaigniana pode ser lida numa perspectiva agostiniana, tal como
lembrado por Friedrich, disso a uma antropologia escrita pelo ensaísta que põe
o homem rebaixado, sobretudo num momento onde é este mesmo homem e
sua vaidade que inflamam e colaboram para a partição do agregado
humano
164
. Vista pelo momento de crise e disputa de dois partidos religiosos de
plataformas pouco distintas, aquilo que o uso corrente consagrou, na visão do
perigordiano, é o insólito critério capaz de resolver ou aplacar a ambição
vaidosa da verdade preconizada pelos reformadores
165
.
164
Agostinho, Santo. Confissões. São Paulo, Editora Nova Cultural, 2004 (p. 263) Há, porém,
coisas no homem que nem sequer o espírito que nele habita conhece. Mas Vós, Senhor, que o
criastes, sabeis todas as suas coisas. Cf. Friedrich, 1968 (p. 120)
165
Birchal, Telma de Souza. Fé, Razão e Crença na Apologia de Raymond Sebon? Somos
cristãos como somos perigordianos ou alemães? Kriterion, Belo Horizonte, n. 111, 2005, p. 44-
54 (p. 48)
56
Dessa posição de Montaigne emerge então uma refletida e ostensiva adesão
pela religião e partido católico, face ao absurdo humano trazido pela razão,
dessa vez erguida com pretensão de reformar aquilo que é evidente pelo seu
termo rival
166
. O predomínio dessa razão que deseja transformar, em termos
concretos, claramente leva ao estado de doença daquilo que é um corpo
concreto e de vida sadia se guiado pelo hábito. O que Montaigne observa no
homem constitui um corpo frágil e bil, operado pela razão pesquisadora
inclinada a ficções e quimeras protagonistas de efeitos devastadores, pois
desejar definir e abarcar o que é e deve ser seguido pela massa traz sim a
capacidade de uma ampla e irrestrita perturbação
167
. Dito de outra maneira,
aquilo que é informe, desejando reconformar algo conformado e consagrado
pela sociedade, ou ainda, o desordenamento esperando aplicar o seu inverso,
o ordenamento social. Defronte a isso cabem pelo menos duas perguntas
percussivas.
Poremos fim algum dia a essa mania de interpretar? Teremos feito algum
progresso no caminho da tranqüilidade?
168
O experimento humano pode caminhar sem a submissão a uma experiência
ontológica meramente privada, dessa maneira, ouvir a experiência em curso na
comunidade, aquela condição estatuída e que preserva o corpo público, é
primordialmente o que deve pautar uma vida sem perturbações de efeitos tão
incontroláveis
169
. A insistência na revelação da verdade por meio de um
intérprete operado pela razão quimérica, a declarar os reais desejos divinos, é
algo pelo menos bizarro para uma natureza humana tão corrompida. Pois uma
discussão binária e idiossincrática sobre aquilo que é aceito no público, é, ao
menos, uma discussão de fundo racional
170
.
166
Cf. Birchal, 2005 A aceitação da autoridade da Igreja funda-se, de forma mais geral, numa
reflexão sobre os poderes da razão e de seus limites, o que se revela claramente no título de
um de seus capítulos: ‘É loucura condicionar ao nosso discernimento o verdadeiro e o falso’. (p.
51) Cf. Birchal, 2005 Submeter os dogmas da religião ao crivo da razão significaria uma
ignorância maior: a ignorância de si mesmo, ou dos limites da razão. (p. 52)
167
Cf. LIII, XI, p. 331 Todos esses exemplos confirmam o que disse a princípio; que a procura
da causa se antecipa por vezes em nós à constatação do resultado e isso vai tão longe que
chegamos a julgar não o que existe, mas o que não existe. (grifo nosso) Eva, Luis. A. Sobre as
Afinidades Eletivas Entre a Filosofia de Francis Bacon e o Ceticismo. Kriterion, Belo Horizonte,
nº 113, Jun/2006, p. 73-97 (p. 85)
168
Cf. LIII, XIII, p. 356
169
Cf. LIII, XIII, p. 362
170
Cf. Popkin, 1996 (p. 2)
57
O ponto impõe uma rápida pausa. O tópico colocado por Montaigne, hoje, pode
incitar pelo menos uma fúria anacrônica, contudo, convém sublinhar, uma
posição de moderação e adesão aos costumes, em quase nada lembram as
posturas e identidades políticas dicotômicas em curso. A conservação no seu
trabalho se coloca para a manutenção da vida, o que ele preconiza são os
particulares, a adesão e respeito ao conteúdo da religião consagrada por uma
comunidade
171
. Tal preconização poderia ventilar, em tese, algo
contemporâneo como um princípio de autodeterminação dos povos
172
.
Decisões intelectuais sobre a verdadeira relação com Deus rendem-se a
dogmatismos de efeitos humanos deletérios na religião, na sociedade e na
política
173
. Assim, a conservação do agregado se pela moderação como
critério adequado a manutenção do uso ante a verdade ou essência universal
teológica, filosófica ou científica
174
. Isso, se temos em vista que a precipitação
dogmática se manifesta, ao tempo montaigniano, pela eliminação prática e
casuística, pois é idiossincrática, do seu adversário
175
. Voltemos ao ponto.
Tal discussão só pode ser cativa de mau gosto e extravagâncias, o que justifica
pelo menos a concentração nos seus próprios ensaios. Contudo, a capacidade
de refletir, dada pela natureza, o impele a um senso de identidade social e
política, assim, os próprios Ensaios podem contribuir para aplacar a nutrição da
arrogância
176
.
171
Cf. LIII, I, p. 147 Minha palavra e a confiança que possa inspirar pertencem, como tudo o
que há em mim, à minha comunidade.
172
Cf. LIII, IX, p. 294 Envergonho-me com ver meus compatriotas hostilizarem e criticarem os
costumes contrários aos seus; parece-lhes estar fora de seu elemento, mal saem de sua
aldeia. Ainda em: LI, XXIII, p. 122 Os povos, afeitos à liberdade e a se governarem por si
mesmos, encaram qualquer outra forma de governo como monstruosa e contrária à natureza.
173
Decisões mobilizadas pelos intelectuais na política tais como desenhados por Tocqueville
séculos depois de Montaigne. Tocqueville, Alexis. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo,
UnB/Ucitec, 1989. 3 ed. (p. 143)
174
Cf. LIII, I, p. 144, 145 (Nada impede que inimigos leais se conduzam de maneira sensata.
Tratemos com igual moderação, senão com idêntica afeição pois esta pode realmente variar
e não nos dediquemos a ninguém a ponto de lhe dar o direito de tudo exigir de nós.), 152 e
153 (... atentemos para exemplos mais humanos).
175
Cf. LIII, IX, p. 282 Mil vezes vi-me recolhido em minha residência a imaginar que, naquela
noite mesmo, seria vítima de alguma traição e trucidado; e pedia ao destino que isso
acontecesse sem delongas inúteis e sem que eu me sentisse amedrontado.
176
Cf. LII, XVIII, p. 47
58
A fim de forçar nossa imaginação a pôr ordem no próprio devaneio e conduzi-la
na direção de dados objetos, impedindo-a de se perder em extravagâncias,
nada melhor do que desenvolver as idéias ocasionais. É o que faz que
atenção às minhas, pois impus a mim mesmo consigná-las em meus
escritos
177
.
Apresentada uma de suas motivações para a confecção dos Ensaios é
imperativo narrar como a reflexão de Montaigne se posta analiticamente diante
da querela religiosa levantada. Se pensarmos a partir de pelo menos um
pressuposto, no qual temos que uma controvérsia em curso, disso se
imporá que deve haver uma solução. A sugestão forte de Montaigne é uma
solução pela moderação, a calma e, preferencialmente, que se acomodem a
diversidade de opiniões, ou noutra chave, a diversidade de crenças justificadas.
A solução é pela vertente de Pirro.
Uma vez que o edifício da razão está erguido sobre um alicerce viciado, os
sentidos, de onde se começa e se finda o conhecimento dos objetos exteriores,
se temos assim estrutura comprometida, todo o prédio está por desabar
178
. A
querela então pede um juiz, alguém que decidirá o objeto em questão. Isso
introduz a passagem abaixo pelo menos como cavilosa e empresta ao
ceticismo apelidos como o de máquina de guerra
179
.
Dizemos que quando se trata de controvérsias religiosas seria necessário um
juiz neutro, isento de preconceito ou preferência, o que não se encontra entre
os cristãos. [...] Fora preciso alguém que nunca tivesse estado em nenhum
desses casos para que se pronunciasse sem prevenção por uma ou outra das
diversas opiniões em presença. Ora, um juiz desse tipo não existe
180
.
Da passagem podemos perceber pelo menos uma posição contra o próprio
campo em disputa, que entre os cristãos não sequer um indivíduo
equipado e isento de preconceito e preferência. Os dois lados são tragados
pela análise montaigniana, ele pega com a mesma bateia os reformadores e
contra reformadores
181
. Mais do que isso, a passagem, entre tantas de igual
obscuridade, apresenta como conclusão evidente pelo menos uma questão:
177
Cf. LII, XVIII, p. 49 (o grifo é nosso)
178
Cf. LII, XII, p. 501
179
Cf. Popkin, 1996 (p. 26)
180
Cf. LII, XII, p. 501 (o grifo é nosso)
181
Cf. LIII, IX, p. 300 Nessas dissensões que nos perturbam e fizeram da França a presa dos
partidos, cada qual (mesmo os melhores) defende sua causa com dissimulação e mentira.
59
Montaigne não está ao lado da religião católica? Deixemos a resposta em
suspenso e vejamos mais uma pequena passagem de conteúdo suspensivo
por meio da regressão ao infinito.
(a) Para aquilatar da aparência das cosias, precisaríamos de um instrumento
aferidor; para controlar esse instrumento necessitaríamos de experiências e
mais um instrumento para comprová-las. (b) Se os sentidos não podem decidir
serem imperfeitos, é preciso que a razão decida. Mas nenhuma razão se
aceitaria sem que outra lhe demonstrasse a validez; e eis-nos de volta ao ponto
de partida
182
.
Os dois pontos destacados prestam-se ao mesmo efeito, qual seja o de
conduzir a isosthenéia. A invenção de uma máquina de decisão isenta de
defeitos humanos, para assentar sobre impasses humanos haveria de ser
aplicada por eles, o que comprometeria o uso e o resultado do equipamento,
desse modo pendendo para um dos lados. Como alternativa, o recurso a uma
razão humana traria consigo o problema da demonstração suscetível de ser ou
não aceita por uma outra razão. Essa razão, se humana, não se encontra
dentro ou fora do universo cristão, já que não existe um juiz sem prevenção.
Como resposta a pergunta levantada anteriormente, temos que a resposta é
preliminarmente sim
183
. Ainda que todo material bélico aponte para católicos e
huguenotes, o recurso a suspensão do juízo, via eqüipolência, para ambos os
lados deseja a promoção da moderação. A virulência cética está postada
contra o despautério humano, a anomalia, a intolerância exibida pela guerra
civil
184
. O aparelho cético foi empregado por ambos os lados em disputa, o que
gera então uma aquecida dúvida se de fato ele é um católico
185
. Podemos
concordar que em sendo, ele é de fundo racional, pois é depois de um longo
percurso da reflexão que ele conclui pelo catolicismo.
186
182
Cf. LII, XII, p. 501. (o grifo é nosso)
183
É o que pensa também Weiler. Weiler, Maurice. Para Conhecer o Pensamento de
Montaigne, in. M. de Montaigne, Ensaios, Brasília/São Paulo, Ed. UnB/Hucitec, 1987, vol. 3.
Trad. Sérgio Milliet. 1-132 p. [...] não é necessário acreditar que tenha mentido quando se disse
bom católico. Sem dúvida imaginava sê-lo. (p. 55); Também Cf. LIII, X, p. 313 Nas agitações
que perturbam atualmente o país, meus interesses não me fazem desprezar as qualidades
louváveis de meus adversários nem ignorar os defeitos de meus correligionários.
184
Cf. Skinner, 1996 (p. 552-555)
185
Cf. LIII, I, p. 144 […] pois entendo não ser escravo senão da razão, e ainda assim mal o
consigo.
186
Cf. Weiler, 1987 (p. 55)
60
Resultam dessa perspectiva de Montaigne as considerações sobre o fideísmo
cético
187
. Como a religião e a pertencem a domínios distintos, ao céu e a
terra, a discussão racional pode passar ao largo de considerações sobre a
revelação. É o domínio racional o vetor que opera a doença do século de
Montaigne, ou pelo menos uma fraca e humana, quem deflagra a guerra
civil, sendo assim, ambos os lados podem perfeitamente ser atacados
188
. O
emprego do pirronismo serve como elemento capaz de arrefecer, curar a
patologia do século, ele constitui o antídoto contra a depauperação do
agregado
189
. Noutra ponta, isso não impede que Montaigne conserve sua e
sua devoção a religião conforme a liberdade que a sua comunidade lhe dá
190
.
A manutenção da defesa do catolicismo e da conservação tem preocupação
diretamente associada à pretensão corretora e conversora presentes na letra
reformadora que impele e agita
191
. Os efeitos imediatos dessa disputa fazem
Montaigne se perder para levar alguém à perdição, portanto, ele sai do seu
caminho habitual, para entrar no berço da disputa.
Quanto ao método de discussão que venho empregando, cumpre só recorrer a
ele em última instância; é em caso de desespero que largamos nossas próprias
armas para usar as do adversário; é golpe secreto que cabe utilizar raramente
e com discrição
192
.
Com a passagem podemos afirmar com mais segurança que a preocupação de
Montaigne não se reduz a um auto-retrato. uma preocupação fina com a
filosofia e os seus vínculos com a vida em curso. A observação internalista por
uma lado é perceber a limitação de si, por outro, compreender o meio.
Montaigne não faz que fale a loucura como teóloga ou intelectual tal como
Erasmo
193
. Mas promove a comunicação de uma razão limitada, incrustado
187
Cf. Popkin, 2000. Também em Brahami. Brahami, Frédréric. Le scepticisme de Montaigne.
Paris: Presses Universitaires de France, 1997 (p. 29-33, 73-79)
188
Cf. LII, XXIX, p. 80. Cf. LIII, X, p. 313 […] uma obra não perde seus méritos porque foi
escrita contra mim. Salvo quanto à razão essencial do debate (pois sou e continuarei católico),
mantenho-me equânime e indiferente: fora das exigências da guerra, não desejo nenhum mal a
meus inimigos.
189
Cf. LII, XXVII, p. 70 Nossa conduta atual leva-nos a buscar a morte de quem ofendemos da
mesma forma que buscamos a de quem nos ofende.
190
Cf. LII, XVII, p. 41
191
Cf. LII, XXIX, p. 77
192
Cf. LII, XII, p. 466
193
Rotterdam, Erasmo de. Elogio da Loucura. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo,
Editora Martins Fontes, 2000 (p. 66-67)
61
pelo ceticismo, ou por um pirronismo católico, como aventa Popkin, capaz de
um amplo relacionamento intelectual com o tema da política e religião.
Aplicação
[...] pois não dou nenhuma garantia do que digo, a não ser a de que o tinha na
cabeça, embora confusamente, ao escrever
194
.
Apresentado como cético, perfilando o seu relacionamento com o
conhecimento e a religião, cabe aqui ainda uma breve nota de aplicação do
pensamento de Montaigne. Ele pode nos conduzir para várias direções em
suas reflexões, o que faz dele, não raro, um pensador cortejável
195
. O trabalho
de Friedrich nesse aspecto é angular ao explorar a inteligência de
Montaigne
196
. No entanto, nos interessa destacar nesse ponto, um emprego
livre da reflexão sobre si, onde introduz o que pensa por inteiro ou pelo menos
em parte de maneira capciosa.
Antecipamos a sua disposição por um andar simpático a saltos e desvios
197
.
Exploremos um pouco mais disso que aparece. A decisão de escrever pode ter
diversas origens, contudo, uma pergunta pode nos ajudar: por que ensaiar-se?
Se filosofar é conhecer-se, o que temos é parte da resposta. Em seguida, o
encontro com a tradição filosófica antiga e uma disposição original faz que
comece então alguma metodologia
198
. Façamos apenas uma rápida pausa para
uma comparação que pode aproximar Montaigne de outra fonte que não
apenas Sexto:
1. Sofro com meus concidadãos da mesma carência no que se refere a esse
assunto, e me censuro a mim mesmo por não saber absolutamente nada sobre
a virtude. E, quem não sabe o que uma coisa é, como poderia saber que tipo
de coisa ela é?
199
2. [...] Como saber se uma coisa se assemelha a outra cuja essência
desconhecemos?
200
194
Cf. LIII, XI, p. 331
195
Villey investiga se o perigordiano influenciou Bacon. Villey, Pierre. Montaigne et Fraçois
Bacon. Geneve: Slatkine, 1973 (109p)
196
Cf. Friedrich, 1968 (p. 317-339)
197
Cf. LII, X, p. 349 (Só o acaso guia meus passos na escolha de meus assuntos), 350
198
Cf. LII, X, p. 350 Quase não leio livros novos; prefiro os antigos que me parecem mais sérios
e bem feitos;
199
Platão. Menon. Rio de Janeiro, Editora PUC/Rio e Loyola, 2001 (p. 21) (o grifo é nosso)
200
Cf. LII, XII, p. 470 (o grifo é nosso)
62
2.1 Mas como podem a alma e os sentidos assegurar-se da exatidão da
semelhança?
201
Platão é uma das fontes reiteradamente citadas no seu trabalho
202
. Na
passagem acima o grego passa pelo sofrimento da ignorância com rebatimento
sobre seus concidadãos, o que parece, o estimula a conhecer a virtude. Não
sabe o que seja e, portanto não pode proceder por analogia, ou qualificar o
objeto. Na seqüência Montaigne apresenta o mesmo sofrimento de Platão com
relação ao conhecer. Dessa forma, podemos aproximar ambos de um desejo
em comum: uma busca filosófica da propriedade ou impropriedade das coisas
com vistas a sanar a ignorância e sofrimento a começar por si, além da já óbvia
possibilidade da suspensão do juízo ou da manutenção da pesquisa
203
.
Decorre então que, se lembrarmos que o tema da ignorância em Montaigne é a
plataforma de sua reflexão, tal como antecipamos em Friedrich, e que um
fenômeno concreto que mobiliza parte dos seus Ensaios, temos como corolário
que o gascão ensaia para conhecer o que ignora em si e também sob a
preocupação com o sofrimento com a sua comunidade
204
.
Se combinarmos então ignorância, a pesquisa de si e uma atitude pela sképsis,
o ensaio se apresentará para Montaigne como uma metodologia em
construção, que, segundo Frame, ele descreve, mas nunca define e que, ao
cabo, o seu livro é a própria definição
205
. O ensaio é uma aplicação ostensiva
de uma pesquisa inovadora pelo objeto e pelo meio
206
. Para Frame o ponto se
expressa da seguinte maneira:
201
Cf. LII, XII, p. 501 (o grifo é nosso)
202
Cf. LII, X, p. 353 [As idéias de Platão] estão isentas de exagero e se acomodam à sociedade
tal qual é. Também em LII, XI, p. 360 Seu raciocínio era tão perfeito, e tal seu domínio sobre si
mesmo, que nunca deve ter nele o menor apetite repreensível. (os grifos são nossos)
203
Cf. LII, VI, p. 326 De que fala Sócrates mais abundantemente que de si próprio? Para que
encaminha suas conversações com seus discípulos, senão para as suas pessoas? E nunca
uma lição dos livros mas para os movimentos da alma e do ser. (grifo nosso)
204
Cf. LIII, IX, p. 271 Facilmente me consolaria dessa corrupção tendo em conta o interesse
geral: [...] mas no que me diz respeito sofro demasiado; Cf. LIII, I, p. 147 Minha palavra e a
confiança que possa inspirar pertencem, como tudo o que em mim, à minha comunidade.
(grifo nosso)
205
Frame, Donald. Montaigne’s Essais: A Study. New Jersey, Prentice-Hall, 1969.
206
Cf. LII, VI, p. 327 Eu me mostro por inteiro [...] Não são apenas meus gestos que descrevo,
sou eu mesmo, é a minha essência.
63
[...] and that Montaigne seems to have had two main overlapping meanings in
mind, related to this subject of self-study, of which the Essais were rather the
method than the vehicle: tests or trials of his judgment, the instrument of self-
study; and probings and samplings of that self
207
.
Montaigne se aplicará na busca do auto conhecer a partir de uma atenção ao
juízo, e de sua existência a sua capacidade ou não de se manter uniforme, de
se estabelecer ou não alguma constância para tirar dele alguma referência
segura ou mesmo a verificação de algum conhecimento, em face da
antecedência da ignorância
208
. Para a apresentação dessa aplicação, ou dos
seus resultados parciais, prefere não apenas os tropos do ceticismo grego,
mas também seu vocabulário capaz de mitigar a certeza.
Eu chego a odiar as coisas verossímeis se me são apresentadas como
infalíveis, e prefiro as expressões que atenuam a audácia da proposição, como,
por exemplo: ‘talvez, até certo ponto, dizem, penso’, e outras do mesmo
gênero
209
.
[Referindo-se aos Pirrônicos] Suas expressões habituais são: ‘não pretendo ter
estabelecido’, ‘não mais razões para que seja assim do que de outro jeito’,
‘não percebo’, ‘as aparências são iguais em um caso como noutro’, ‘não
como falar mais a favor do que contra’, ‘nada parece verdadeiro que não possa
ser falso’. Sua palavra sacramental é ‘sustento’, isto é, argumento, mas não
vou além e não julgo’. Eis seus estribilhos
210
.
As passagens sugerem pelo menos duas portas de saída por onde se vertem
as análises ou as parcelas de resultados da aplicação de Montaigne. Na
primeira, sua pesquisa é capaz de dialogar com outros resultados, desde que
sejam comunicados com radical arrefecimento das pretensões definitivas,
libertas das expressões que estabelecem. Pesquisador obstinado e senhor de
um objeto definido, demonstra que domina, claramente, quais são as
capacidades e limitações intelectuais, bem como os tipos de percursos
207
Cf. Frame, 1969 (p. 3) (grifo nosso)
208
Cf. LII, X, 351quanto a fraqueza de meu juízo, reconheço-a e a confesso. Cf. LII, X, p. 349
[…] a idéia que desenvolvo [...] é sempre minha. Cf. LII, XII, p. 471 […] nosso julgamento não
tem fundamento sólido. Quantas vezes julgamos diversas vezes as coisas? Quantas vezes
mudamos de idéias? O que hoje admito e creio, admito e creio na medida do possível.
Também em LII, XII, p. 476 Conhecendo a instabilidade de meu julgamento, reagi e,
excepcionalmente, cheguei a uma certa continuidade de opinião, conservando ou menos
intatas as que a princípio tivera. Cf. LII, X, p. 348, Quem busca sabedoria, que a busque onde
se aloja; não tenho a pretensão de possuí-la. O que se encontra é produto de minha
fantasia. Ainda em LIII, XI, p. 327 Quem deseja curar-se de sua ignorância precisa confessá-la.
[...] e tanta ciência em conceber essa ignorância como em conceber a própria ciência. (os
grifos são nossos)
209
Cf. LIII, XI, p. 327 (grifo nosso)
210
Cf. LII, XII, p. 423 (grifo nosso)
64
cognitivos empregados na pesquisa dogmática. Da mesma maneira como sabe
que desenha sim uma metodologia na prática, se pesquisando, e expressa
também tolerância condicionada contra os dogmáticos.
Na segunda uma apreciação não apenas teórica, mas também formalista.
Montaigne aparece sensibilizado pela capacidade peculiar de investigar
erguida pelos pirrônicos e disso a sua maneira de comunicar. Todas as
pesquisas devem ser encaminhadas, o que inclui a pesquisa dogmática,
entretanto, um ponto de encontro, aquilo que de comum, seu resultado,
que pode acontecer pelo menos pela linguagem, aquilo que comunica. Assim,
a capacidade da língua é de natureza interacional, ela não expressa a
essência, mas os resultados das tentativas sistemáticas. No entanto, em
Ehrlich esse tema é recebido da seguinte maneira,
En considérant le langage comme un instrument de communication, Il mettait
en lumière son grand pouvoir, mais em démasquant les ‘menteurs’, en montrant
que ces derniers ne présentent pas les choses comme elles sont, mais comme
ils veulent les faire paraître, il avilissait la valeur du langage
211
.
Das duas inferências extraídas de Dos Coxos e Apologia podemos então
concluir que a aplicação de Montaigne, de sua necessidade e decisão de
escrever a pesquisa, tal como em Frame, extrai da vertente de Pirro a
ferramenta adequada e a maneira de dispor os resultados
212
. Sua escrita será
livre e assistemática, contudo, será circundada pelo referencial sextiano.
Finalmente, em boa hora, da perspectiva provocativa do trabalho de Ehrlich
temos que, ao mesmo tempo que ilustra o problema da língua, apresenta um
dos elementos sobre os quais o perigordiano irá se debruçar continuamente,
que é o seu diagnóstico de mascaramento posto no sujeito de modo geral e,
aqui nesse tópico, está contextualizado no sujeito que opera ou pensa operar
conhecimento. No entanto, creio que esta breve nota pode dar algumas pistas
ou referenciais programáticos para um tipo de entrada aos Ensaios.
211
Ehrlich, Hélène-Hedy. Montaigne: La Critique et le Langage. Paris, Editions Klincksieck,
1972. (p. 70) Ver também: Conche, Marcel. Montaigne et la philosophie. Paris: PUF, 1996
(sobre a comunicação p. 79-110; e pirronismo e método 27-42)
212
Cf. Frame, 1969 (p. 17, 22-31)
65
Epílogo
A despeito de querer instalar o reingresso do ceticismo no centro dos grandes
debates intelectuais apenas no século XVI em França e num autor, tal como
bem observado em Popkin e o embaraço religioso, fazemos peso arbitrário na
recepção de seu aparelho na obra de Michel de Montaigne. Dessa recepção de
Montaigne, se o trabalho obteve êxito, pintamos de ceticismo as cores vivas do
filósofo perigordiano. Posta a recepção, imaginamos então que a pesquisa
levada a cabo por Michel de Montaigne se prende primordialmente para ele
próprio e só então para o ambiente.
A observação da obra do gascão é pensada então a partir da investigação do
sujeito, de modo que a interpretação de tipo contextual nos serve apenas para
fins indiretos. Assim, as narrativas factuais propostas na obra de Montaigne
são, para propósitos analíticos, observadas para demonstrar que tipo de uso da
pesquisa de si ele leva a efeito. Ao mesmo tempo, alguns dos resultados
narrados de si, se prestam a um debate oportuno sobre a natureza das coisas
e a melhor forma do ordenamento social, de onde extraímos a evidência
pirrônica de Montaigne.
Em face desse material cético introduzido de modo pulverizado tentamos
condensar a obra Montaigniana como oportuna e sistematicamente cética. O
ponto que esse trabalho observa como senhor da capacidade de associar as
duas principais posturas de Montaigne, a sua análise interna e a análise do
problema político de sua comunidade, foi marcado como assolado pela
vertente de Pirro.
O percurso de sua própria pesquisa é estabelecido a partir do recurso a
descrição contínua tomada da premissa da ignorância conforme demonstramos
rapidamente com o apoio da obra de Friedrich. A insistente narrativa de si
mesmo lhe trará ou não alguma regularidade ou pista de um mapa da ciência
ou da ignorância completa. Ao longo do trabalho percebemos peso equivalente
atribuído por Montaigne aos dois contrários, o conhecimento e a ignorância.
66
Todavia, uma forte alusão da ignorância confundida com o seu termo
antagônico.
Entre as novidades do ceticismo de Montaigne é possível anotar o objeto de
estudo, o “eu”. Essa pesquisa não nos permite concordar completamente com
uma apresentação de tipo fasista, de modo que seria, do meu ponto de vista,
um modo de rendição ao conteúdo dogmático a que Montaigne leria com
influência direta sobre os seus Ensaios. Um dos principais aspectos de
inconsistência grassa no fato de que vários aspectos de um late Montaigne
estão apresentados no Montaigne novo, e vice versa, segundo a descrição de
antagonistas da visão de fases da obra. Além disso, algumas citações do
próprio Montaigne oferecem menção contrária à perspectiva etapista.
Assolado por essa discrepância, identificamos um tipo peculiar de
relacionamento com o que seja conhecer. A priori, para os nossos propósitos,
está claro o domínio de Montaigne sobre o percurso da pesquisa dogmática, e
contra essa, sua pesquisa combina elementos distintos para uma tentativa de
definição peculiar do que seja pensar. Na equação montaigniana, a fábrica das
idéias combinará ao menos os sentidos, a razão, novamente os sentidos e um
conjunto de paixões. Como efeito, o que se reproduz disso será traduzido como
um grande número de imagens ou figuras difusas. Como conclusão do
percurso e pesquisa dogmática, fica a comparação entre a metodologia desta
com os recursos empregados pelos adivinhos.
Essa conclusão tão próxima de uma pesquisa do conhecimento estimula então
uma pergunta sobre o tipo de adesão que Montaigne leva a efeito diante da
religião católica. Montaigne é um cético fideísta, ou seja, embora, esteja
radicalmente contra a certeza ficcional dos dogmáticos, acredita que a
discussão sobre a natureza das coisas se apresenta em dois planos distintos: o
céu e a terra. As especulações humanas não se abatem sobre a revelação
divina, de onde emana a verdadeira essência de tudo que há, de modo que ele
se põe efetivamente como um católico nessa matéria, embora não concorde
com a conduta intelectual dos sequazes do método contra-reformador, seja em
67
meio de elaboração teórica ou na qualidade do péssimo diagnóstico da conduta
ética desses operadores.
O que tentamos demonstrar também foi uma postura de Montaigne com
relação aos marcos que circunscrevem a reflexão. Segundo Montaigne apenas
uma experiência pública pode promover uma aceitação universal. Contudo, as
pesquisas dogmáticas produzem um conjunto de percursos meramente
privados do que seja a verdade e que, não raro, um dos principais elementos
que promovem essa visão são pressupostos idiossincráticos que tentam
explicar o que aparece para todos, pelo seu contrário, aquilo que só aparece ao
sujeito de conhecimento dogmático.
No último ponto desse trabalho pensamos um Montaigne Aplicado. Nesse caso
a ação montaigniana promove uma reflexão livre, pouco inscrita nos
parâmetros sistemáticos tal como preconiza a pesquisa convencional. Sua
prática intelectual se define como um ensaio que não tem fim, uma vez que a
descrição cumpre o papel de tentar promover algum sentido ou não ao juízo e
o seu pensamento. A pesquisa é paradigmática na medida em que o seu objeto
de estudo é ele mesmo, por outro lado o fato de que a sua pesquisa pode
encontrar-se com uma produção intelectual dogmática. Ainda que esse
encontro possa ser condicionado a sua predileção por uma comunicação que
arrefeça a certeza de algumas proposições, surge disso, por inferência, um
poderoso clima de tolerância intelectual.
Percebemos com essa escrita livre e de conteúdo capcioso, que Montaigne
detêm uma forte preocupação com o público e a política. Essa matéria é
extraída por meio de uma analogia e também através de uma conexão com a
vertente de Pirro. Percebemos o forte paralelo entre a preocupação socrática
da busca do conhecer com vistas a sua comunidade e, de modo análogo, a
preocupação montaigniana com o tormento doentio pelo qual passa a sua
comunidade. No entanto, o que precede a pesquisa de Montaigne é uma forte
inscrição na vertente pirrônica, no sujeito e só então no cenário francês.
Capítulo 3
Configuração Política em Michel de Montaigne
Índice
Apresentação p. 70
Recepção p. 76
Natureza e Governo p. 76
Máscara p. 82
Moderação p. 87
Dragão Maldito e o Espaço da Quimera p. 92
Epílogo p. 97
70
Apresentação
Esse terceiro capítulo procura produzir coerência entre Ceticismo, Michel de
Montaigne e a Política. Tentamos por seu intermédio o que chamamos de
Configuração Política em Michel de Montaigne. E a exemplo dos dois capítulos
anteriores, está igualmente dividido em seis partes além dessa apresentação.
A entrada desse trabalho, a qual foi chamada de Recepção, possui dois
momentos distintos: o primeiro aponta a trilha que seguiremos para conectar a
reflexão de Montaigne a Política. O segundo tenta produzir um breve ajuste
entre a vertente cética e a política em sentido estreito, ao mesmo tempo em
que tenta ligar Michel de Montaigne, em sentido agregado, com os negócios da
cidade.
A segunda parte do trabalho introduz uma reflexão sobre o significado de
Natureza para Michel de Montaigne bem como a imagem de ordem sobre as
diversas comunidades humanas. A partir da noção de diaphonia apresentamos
uma narrativa que deseja expressar um roteiro ontológico montaigniano, e
nesse interior, onde ele localiza a política.
A terceira parte fala sobre a noção ou disposição humana para o
mascaramento. Procuramos produzir dessa noção o tipo de adesão que se
verifica na política e os seus efeitos, bem como buscamos extrair disso uma
postura normativa. A quarta parte põe a moderação como um dos elementos
centrais que devem constituir a política dado o diagnóstico da falibilidade
humana. Ela deve produzir a convivência entre as diaphonias entre os sujeitos
e as comunidades, bem como ligar as várias maneiras de ordenar as
comunidades humanas.
A quinta esboça o estabelecimento do espaço adequado ao ceticismo na
interpretação montaigniana no contexto das reflexões políticas. Apresentamos
algumas produções humanas segundo a razão e o tipo de discordância entre
as cadeias causais esperadas e as verificadas. Finalmente, articulamos as
cinco partes anteriores.
Configuração Política em Michel de Montaigne
71
Recepção
A leitura do trabalho de Montaigne possui várias fendas pelas quais podemos
entrar e que, podemos dizer, são cânulas por onde se observam recortes mais
ou menos claros duma produção assistemática. Para esse trabalho de ensaiar
sobre os Ensaios, elegemos pelo menos um ponto de partida discricional
seguido de uma cadeia causal preliminar. Assim sendo, imagina-se que uma
apresentação do aparelho cético constituiu um elemento decisivo para se
chegar ao pensamento de Michel de Montaigne. E, por conseguinte, não é
ocioso dizer, pensamos que um encadeamento de causas entre ceticismo
antigo e moderno que pelo menos conduzem algumas análises dentro da obra
do ensaísta.
Dessa premissa, sustenta-se ainda que na aplicação cética de Montaigne
um programa de reflexões epistêmicas que emolduram pelo menos duas
imagens que tentaremos demonstrar: a) um roteiro cognitivo de filosofia
pirrônica que resulta numa ontologia possível da política; e b) um conjunto de
resultados temáticos removidos dos Ensaios que podem introduzir e configurar
o que Montaigne pensa da política.
Podemos considerar como roteiro o ostensivo material cético empregado na
pesquisa do sujeito em Montaigne que comunica o apregoamento do acidente,
da variedade e da dessemelhança humana em relação à natureza. Por outro
lado, compreendo que um grupo de elementos que sugerem uma matriz
possível de reflexão de imagens da política. Embora o equipamento perceptual
do ensaísta esteja aparentemente mais voltado para o sujeito, um conjunto
de aproximações empreendidas entre o sujeito e alguns objetos ou fenômenos
que ajudam no encaminhamento dessa abordagem da questão.
Podemos operar, por compressão, as duas imagens propostas numa
tautologia. A resolução de um caminho filosófico via pirronismo tem nuances
mais amistosas, pois falamos da filosofia como um pensamento livre segundo a
vertente ataráxica prefigurada por Pirro. Não obstante, a reflexão de temas na
obra de Montaigne, especificamente por imagens da política ainda carece de
72
observação mais atenta. Um convite ao trabalho de Wolff pode ajudar
inicialmente.
A política não passa da realização de si, uma vez que o si’ é relação com o
outro. A política, cruzamento de ‘pensamento racional’ e da polis, tem
finalmente um terreno tão amplo, que seus limites confundem-se com os limites
do humano, e um valor tão eminente, que de certo modo engloba todos os
outros valores
213
.
O autor acolhimento a uma matéria cara ao pensamento grego, no entanto,
nessa definição preliminar do seu trabalho uma vez que ele está de
passagem para uma definição da política via Aristóteles, autor a quem
Montaigne chama de cético pela linguagem que emprega –, o indivíduo e a
comunidade estão muito próximos um do outro, da mesma maneira a reflexão
e a cidade. Podemos então, obsequiados por essa analogia, declarar que o
tratamento que damos tenta fincar uma possível filosofia política no trabalho de
Montaigne por constituir a um tempo a reflexão filosófica de si e da polis, ou
ainda, dos negócios da cidade.
O trabalho de Montaigne não traz uma definição ordenada dos assuntos mais
comuns em teoria política, assim sendo, o caminho mais seguro para operar
esse intento, imaginamos, é pelo ceticismo. Numa acepção dogmática,
estranha ao seu trabalho, não definições a priori, mas sim um conjunto de
temas mais ou menos reincidentes refletidos livremente que podem introduzir
uma leitura dos Ensaios como vetor de imagens da política.
É possível recolher dos Ensaios outros fragmentos e inferir soluções
antagônicas ao percurso proposto, de modo que em vários momentos há, em
profusão, um conjunto de pequenas certezas definitivas ao longo dos três
livros. Todavia, ainda que se proceda dessa maneira, uma tal observação
dogmática do trabalho de Montaigne não inibe uma tréplica. É factível conduzir
a uma coleção de pequenas certezas contrárias à réplica dogmática com igual
disposição dogmática. E como resultado dessa disputa simulada poderemos
encontrar a obstrução suspensiva (epoché) que julgamos mais ajustada a
proposta que tenta ligar coordenadamente Ceticismo, Montaigne e Política.
213
Wolf, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso, 1999. (os grifos são nossos) (p.
8) Maclean não deixa incólume o relacionamento de Montaigne e Aristóteles. Maclean, Ian.
Montaigne Philosophe. Paris: Presses Universitaires de France, 1996 (p. 21)
73
Decorre desse mapa analítico diverso a extração do mínimo de segurança
metodológica adicional.
com finalidade introdutória, uma boa tarefa que se apresenta é uma breve
exposição de um elo de conexão existente entre modo cético de filosofar e
política. Ao observarmos panoramicamente a vertente cética, poderemos
entrever que é possível detectar algo que constitui um aparelho de múltiplas
capacidades, a partir da disposição do conjunto de seus tropos, especialmente
equipados para o arrefecimento de enunciados dogmáticos
214
. Entretanto, isso
ainda não satisfaz o problema de uma vinculação cristalina entre os objetos
das teorias de conhecimento e o objeto teoria política num sentido estreito.
Se procedermos ao exame dos tropos exclamados por Sexto Empírico não
veremos uma demonstração coordenada para a política, mas sim ao
conhecimento dogmático de modo geral. Contudo, há nos tropos de suspensão
do julgamento, em Enesidemo, pelo menos um que vincula estritamente a
suspensão do julgamento face aos diferentes costumes e também a freqüência
com a qual percebemos os objetos. A anotação que segue é de Laursen:
From Aenesidemus [Enesidemo] only the last two tropes have clear political
implications. Only the tenth specifically mentions political factors: it brings out
the influence of law, habit, and tradition on value judgments. Since social and
political values, institutions, and practices differ among the different nations,
they cannot represent some universal true nature of things. The ninth trope
stresses the effects of frequency or rarity on value judgments, with obvious
bearing on political life although conventional political examples are not used
215
.
Na passagem Laursen revisita a narrativa de Sexto com relação à função de
leis, hábitos e da tradição, bem como o papel introduzido pela freqüência com a
qual o sujeito percebe um objeto como fatores presentes ou implicados na
teoria política. Entretanto, a despeito de ser o décimo tropo aquele cuja
214
Empiricus, Sextus. Outlines of Scepticism. Edited by Annas, Julia and Barnes, Jonathan.
Cambridge: Cambridge Universitiy Presses, 2000 (250p)
215
Laursen, J. Christian. The Politics of Skepticism in the Ancients, Montaigne, Hume, and
Kant. Leiden: E. J. Brill, 1992. (Os grifos são nossos) (p. 22) No trabalho de Renato Lessa
uma sugestão de legado pirrônico para a observação da política a partir da seguinte trilha: 1. a
definição de ataraxia; 2. o quarto e o décimo Modos de Enesidemo, sobre a epoché; 3. os
Modos de Enesidemo sobre a Causalidade; 4. os Modos de Agripa, em especial o da hipótese
e o da diaphonia; 5. a definição ceticismo como terapia. Lessa, Renato. Veneno Pirrônico:
Ensaios sobre o Ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995 (p. 212)
74
proeminência da política se manifesta de maneira aberta e pétrea, uma visão
genérica da política a partir do ceticismo também pode ser extraída. Para o
interesse geral em curso, essa primeira conexão pode servir de sala de
recepção, portanto momentaneamente satisfatório, para percorrermos um
contorno preliminar de uma tentativa de narrativa política de corte pirrônico no
edifício montaigniano.
Podemos reforçar que o mundo montaigniano não é tão esquemático e,
portanto, ao longo dos Ensaios são expressos indistintamente os argumentos
da vertente de Pirro remetidos a si e a dogmas de modo geral tanto quanto a
imagens clássicas da teoria política antiga e moderna. O afluxo mais
concentrado da matéria pirrônica está entalhado no ensaio Apologia de
Raymond Sebond
216
. Para Frame essa confirmação é expressa da seguinte
maneira: Skepticism in its systematic or doctrinal form is found mainly in the
‘Apology’. In a sense it is everywhere […]
217
.
A partir desse momento temos um pouco mais de caução para oferecer alguns
enunciados liminares. Em primeiro lugar, uma solução cética para os
problemas articulados pelo sujeito de entendimento e, da mesma maneira com
relação aos objetos. Isso que por sua vez produz um aporte capaz de abarcar
duplamente a política, intermediado ou não por algum tropo ou tópico
específico da vertente de Pirro, mas que possibilitam uma investigação e o
delineamento de traços ou primeiros esboços de um pensamento político via
sképsis.
Em seguida, podemos afirmar que esse percurso pode ser atestado na obra de
Montaigne. Está em curso nos Ensaios uma radical aplicação dessa matéria
referida a sujeito e objetos de entendimento em sentido extenso. Mais
especificamente, a política se apresenta ostensivamente no trabalho, por
intermédio de pontos recorrentes, ou mesmo contingentes tratados
216
Montaigne, Michel de. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996 (Col. Os Pesadores) LII, XII. A
partir desse ponto empregarei a marcação dos Ensaios da seguinte maneira: Livro
representado pelo algarismo arábico seguido de vírgula (1,), por sua vez seguido do Capítulo e
Página de maneira análoga. Ou seja, a representação do ensaio Apologia será escrita, por
exemplo, da seguinte maneira: Cf. (2, 12, 370)
217
Frame, David. Montaigne’s Essais: A Study. New Jersey, Prentice-Hall, 1969 (p. 25)
75
filosoficamente ou não. Fala de si, de si e do mundo exterior e do mundo
exterior; de outra forma, narra o sujeito, sujeito e objeto, e objetos. Em vários
desses momentos podemos capturar algo que concorra a nos credenciar a
erguer uma matriz de pensamento cético da política, e a rigor, o que Montaigne
pensa da política.
Em terceiro lugar, conforme antecipado, ainda que o trajeto em marcha não
seja muito visitado, estamos diante de uma tentativa de demonstrar uma
adesão montaigniana a determinados objetos. Portanto, de nenhuma maneira
esse caminho se isenta de equívocos ou promove o alojamento definitivo do
ensaísta na filosofia política.
Isto posto, agora me parece ser adequado em última análise, introduzir uma
parte do relacionamento de Montaigne com a sua comunidade, algo que pode
nos remeter aos primeiros passos de uma aderência ao tema da política, esta,
preliminarmente, tal como lembrada pelo trabalho de Wolff. Na passagem o
perigordiano fala, amorosamente, do geral ao particular e desse novamente ao
geral ao tratar um Estado.
Não me revolto jamais tanto contra a França que não olhe Paris com bons
olhos. Tem ela o meu coração desde a minha infância [...]. Amoa-a por si
mesma. E mais no seu próprio ser que carregada de estranhas pompas; amo-a
ternamente, até nas suas verrugas e nos seus defeitos. Não sou francês senão
por esta grande cidade, grande na felicidade dos seus assentos, grande em
povos, mas, sobretudo, grande e incomparável em variedade e diversidade de
bem estar; a glória da França é um dos mais nobres ornamentos do mundo.
Que Deus afaste dela as nossas dissensões. Inteira e unida, vejo-a defendida
de qualquer violência. Advirto-a que, de todos os partidos, o pior será aquele
que a ponha em discórdia; e não temo por ela senão por ela própria; e temo
por ela tão certamente quanto por outra parte deste Estado
218
.
A narrativa vai de França a Paris e retorna ao Estado. Se por um lado a
passagem denota uma análise e um relacionamento apaixonado e preocupado
com a cidade e os atores e fenômenos encarregados de sua manutenção, por
outro há pelo menos uma noção da capacidade desses agentes desarticularem
um todo. Ainda no seio da passagem, outra marca ontológica forte da pesquisa
de Montaigne que ele transfere para a cidade é a variedade e a diversidade, ali
convertida pela noção de bem estar coletivo.
218
Gide, André. O Pensamento Vivo de Montaigne. Trad. José Pérez. São Paulo: Livraria
Martins, 1940 (Os grifos são nossos)
76
Natureza e Governo
A articulação entre a parte e o todo em Montaigne é empurrada por duas
extremidades sob a diaphonia. Consideremos o sujeito como a menor parte, e
a comunidade como o todo. Entre um sujeito a concordância e a constância
de opinião serão reféns da descontinuidade
219
. O todo, a comunidade, ainda
que dotado de mecanismos que promovam certezas compartilhadas
localmente importantes para a manutenção da condição humana, tais como
leis, crenças e hábitos, quando comparada a outras, não observarão
concordância entre si. De modo que a maneira de ordenar o todo será sempre
conduzida de acordo com mecanismos dessemelhantes entre si
220
.
As duas partes em questão marcham sob desacordo inerradicável, em
diaphonia, de modo que a produção de universais humanos se apresenta para
Montaigne como artifício quimérico sem vestígio de coerência. O equipamento
possível mobilizado para a preservação do agregado não é então senhor de
certeza, verdade ou valor ubíquo, apenas constitui um artifício possível,
meramente local, voltado para arrefecer a inconstância e uma miríade de
certezas momentâneas, mediante a tutela humana
221
.
Se um universal que dirija o homem, algo que se abata igualmente sobre
todas as comunidades, é a natureza
222
. Ela é o princípio que preside as
relações sociais entre seres sem, contudo, por eles ser decifrado pela razão
dogmática que apenas opera por intervenções artificiais. Vejamos duas
passagens.
Estando tudo que sob o céu submetido às mesmas leis, como diz a Bíblia,
admitem as pessoas sensatas que nas questões dessa ordem [a origem do
hábito], para distinguir as leis naturais das por nós inventadas, é preciso que
219
Cf. (1, 1, 35) Em verdade o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente
desigual e diverso. Dificilmente o julgaríamos de maneira decidida e uniforme.
220
Cf. (3, 5, 221) Assim acontece, como em certos países, serem os crimes erros e os erros
crimes; e em outras nações, em que as regras da boa educação são poucas e sem
conseqüência, o bom-senso faz que se observem mais estritamente as leis naturais. (grifo
nosso)
221
Cf. (2, 12, 467) amarram-no com a religião, as leis, os costumes, a ciência, os preceitos...
222
Cf. (2, 8, 31) Se alguma lei natural existe, isto é, algum instinto que se manifeste sempre em
todos, bichos e gente (embora haja quem diga o contrário), é, ao meu ver, a da afeição que
quem engendra dedica ao engendrado, sentimento esse que vem logo após o cuidado que
cada qual tem com a sua conservação e com evitar o que lhe pode ser nocivo.
77
nos reportemos às regras gerais que presidem ao trabalho da natureza neste
mundo e que não sofrem alteração
223
.
Somos todos constituídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e
diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão
grande a diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem: ‘Crede-
me, não é coisa fácil conduzir-se como um só homem’ (Sêneca)
224
.
Em primeiro lugar, se um debate acerca de leis naturais entre os homens,
sobre um todo que seja a vértebra da conduta especificamente humana, será
preciso pelo menos observar o universal original que é a natureza. Contudo,
esse esforço não passa de mero engenho mediante um grande número de
afecções que operam sobre o sujeito interrompendo uma conclusão definitiva.
É difícil para Montaigne, que na passagem é ajudado por Sêneca, ser apenas
um homem coerente, quanto mais ser um intérprete iluminado capaz de
decifrar sequer um universal em si próprio.
Ao que aparece, Montaigne se inclina para uma premissa que instala a
natureza como arché. E o acordo possível entre os seres conduzidos por esse
princípio é via ataraxia, liberto de discussões cabais sobre a essência que
regula os seres, o homem e os seus derivados, ou seja, os artifícios
humanos
225
. Natureza e ataraxia parecem preencher o resultado do caminho
eqüipolência e epoché deflagrando a calma e o soberano bem
226
. Vejamos um
par de modos montaignianos de perfilar a natureza na posição de centro.
A natureza cria sempre leis melhores do que as nossas. Atestam-no a idade de
ouro de que falam os poetas e o estado natural em que vemos viverem os
povos que não conhecem leis artificiais
227
.
Existe na organização da natureza uma maravilhosa correlação e uma
similitude que não resultam do acaso nem podem provir da vontade de
muitos
228
.
223
Cf. (1, 36, 210) (grifo nosso)
224
Cf. (2, 1, 292) (grifo nosso)
225
Cf. (2, 16, 12); Ver também a discussão da tese de Conte sobre a natureza em Hume
especialmente a página 14. Conte, Jaimir. A Natureza da Moral de Hume. São Paulo: USP,
2004. Acessível em <www.cfh.ufsc.br>.
226
Cf. (2, 12, 484); Também Cf. Laursen, 1992 The activities of politics are subordinated to the
goal of the individual’s tranquility. (p. 104). Cf. (1, 20, 93) [...] um dos principais benefícios da
virtude está no desprezo que nos inspira pela morte, o que nos permite viver em doce quietude
e faz com que se desenrole agradavelmente e sem preocupações nossa existência. (os grifos
são nossos)
227
Cf. (3, 13, 355)
228
Cf. (2, 23, 61)
78
Na primeira passagem Montaigne avoca a noção de prova contra leis erguidas
pelo artifício e introduz um estado humano natural, uma alusão direta ao Novo
Mundo. Na segunda uma premissa inegociável, as leis da natureza não
resultam do acaso ou da vontade de uma maioria precária. Nessa passagem
ainda a correlação a que se refere se dirige para o par: natureza, e natureza e
ordenamento social, o que sugere que ele procura algum estatuto que possa
refletir o agregado tal como está colocado pelas comunidades
229
.
A investigação acerca da natureza humana rumo a um princípio geral caminha
livremente acompanhada da fantasia e da obsessão dogmática. Entretanto,
na pesquisa da causa primária humana pelo menos ingenuidade se
observarmos numa perspectiva otimista. Vejamos uma avaliação de uma
dessas pesquisas:
Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão
embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma mesma
luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal
ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo.
É aparentemente possível julgar um homem pelos fatos mais comuns de sua
vida; mas, dada a instabilidade natural de nossos costumes e opiniões,
pareceu-me muitas vezes que os melhores autores erravam em se obstinar a
dar de alguém uma idéia bem assentada e lógica. Adotam um princípio geral e
de acordo com este ordenam e interpretam as ações, tomando o partido de as
dissimular quando não as deformam para que entrem dentro do molde
preconcebido
230
.
Otimismo à parte, a visão dessa investigação é aterradora. A procura de um
princípio geral de harmonização das coisas humanas é perpassada de doses
elevadas de contradição e desacordo com as coisas ordinárias tais como são.
Em seguida, o panorama de bons autores antecipa uma intensa discussão no
trabalho de Montaigne, a dissimulação. Para preencher um princípio dos
fenômenos esse pesquisador obstinado não mede esforços, para atestar o seu
resultado é capaz de deformar a coisa pelo nome ou o objeto pelo pressuposto.
229
outras citações diretas ou indiretas que lembram essa comparação ou mesmo atestam a
superioridade absoluta da natureza sobre os artifícios e ignorância humanas, ainda que ele
abra um precedente dúbio para as leis divinas. É possível percebê-las, pelo menos, nos
seguintes endereços: (3, 5, 221); (1, 20, 97); (1, 23, 117); (1, 25, 141); (1, 28, 178); (1, 30, 195);
(2, 1, 191); (2, 37, 122); (3, 1, 141); (3, 9, 296); (3, 10, 310); (3, 13, 390).
230
Cf. (2, 1, 291)
79
Aquilo que Montaigne alude parece ter endereço fixo, o que está em pauta é
um conjunto de imagens sociais forjadas em privado e trazidas ao público sob
inarredáveis idiossincrasias encapadas em certeza e, portanto absolutamente
sujeitas à fantasia do investigador. Por outro lado, uma cláusula, o indivíduo
é instável e disso deriva aquilo que guia a natureza de seus costumes e
opiniões. Aqui uma robusta lembrança aos modos do sujeito que nos são
apresentados por Sexto Empírico.
Se existe um princípio que recebe os indivíduos em Montaigne, é no acaso e
no acidente onde se instala e não na iluminação forjada da pesquisa
precipitada à revelia de qualquer bom senso ou ética
231
. Depois deste objeto ou
ponto de partida estabelecido em ambiente precário, a política o tratamento
possível ao desfile das diaphonias dos indivíduos e produz os vários
ordenamentos possíveis. Ela catalisa as múltiplas ordenações verificáveis e
assume a função de tentar conduzir a ataraxia. Vejamos agora como
Montaigne funda os Estados e compara a operação humana e a operação não-
humana.
De qualquer jeito que se coloquem os homens, juntam-se e se ordenam, como
esses objetos heterogêneos que pomos no bolso e que acabam por se ajeitar
sozinhos, por vezes melhor do que o faríamos
232
.
A passagem não interdita a interferência humana, todavia a sua atividade é
desenhada com uma participação de peso atenuado, de maneira que o critério
verdadeiro de ordenar é um observador passivo de uma reunião casual de
objetos heterogêneos. Passada a apresentação dos objetos que vão estatuir o
corpo, o ordenamento se dá com ou sem a interrupção humana
233
.
O acaso cumpre a função de resposta possível diante da constatação do
desacordo interminável entre as combinações sujeito e todo. O que está em
231
Acidente tal como narrado em Mill séculos depois. Mill, Stuart. Sobre a Liberdade. Trad.
Alberto Barros. São Paulo: Comp. Editora Nacional, 1942. E jamais o perturba que um mero
acidente tenha decidido qual desses numerosos mundos seja objeto de sua confiança. (p. 45,
46)
232
Cf. (3, 9, 271); Cf. (3, 9, 272) A necessidade reúne e acomoda os homens e essa ligação
fortuita transforma-se em seguida em leis; (grifo nosso). Ele crê tola a discussão sobre formas
de governo Cf. (3, 9, 273).
233
Cf. (1, 28, 178); Para o bom trabalho de Eva, depois de uma caminhada cética, Montaigne
funda a ordem pública com o costume. Eva, L. Alves. A Figura do Filósofo: Ceticismo e
subjetividade em Montaigne. São Paulo: Edições Loyola, 2007 (p. 151)
80
pauta é a constatação da falibilidade humana e da concomitante fundação da
política nessas mesmas bases, onde o homem não possui o domínio de
ferramentas definitivas para fiar a condução dos negócios públicos ou mesmo
dos negócios privados. Instalada essa imagem de partida, isso promulga a
atividade política num patamar de magnanimidade muito forte observando o
imperativo da ignorância humana. A passagem de Laursen é conveniente:
For most skeptics, and for Montaigne, an acceptance of man’s weaknesses did
not imply misanthropy or any strong sense of pity. In fact, there is almost a
sense of reveling in the challenge and heroism of living with fallibility. Over and
over, Montaigne displays pride in living life conforming to this natural
condition
234
.
A vida em concordância com a falibilidade é locupleta pela isenção das
certezas do artifício, ou de acordo com a letra cética, é resultado do tratamento
inaugurado pelo antídoto pirrônico
235
. A condição natural em Montaigne tocada
na passagem de Laursen parece guardar estreita interlocução com uma vida
liberada da convenção social mediada pelo artifício e do hábito investigativo
dogmático. Isso faz sugerir que o enaltecimento do Novo Mundo parece
espelhar um pouco da condição mais adequada aos ordenamentos segundo
Montaigne
236
.
O cruzamento de dois estratos dos Ensaios concorre a nos ajudar a configurar
a conclusão desse rápido esboço ontológico
237
.
[...] permitam-nos algo mais e chamemos natureza aos costumes e situação
pessoal e fixemos assim os limites de nossas aspirações, levando em conta o
que possuímos. Parece-me desculpável agir desse modo, pois os costumes
são uma segunda natureza, tão poderosa quanto a primeira.
Todas essas convenções não passam de pára-ventos atrás dos quais nos
confiamos e regulamos nossas relações sociais; mas não nos permitem
libertar-nos [...]
238
Montaigne concorda em chamar de natureza apenas o costume idiossincrático
e descontínuo do indivíduo. Sobre essa imagem, as convenções sociais não
234
Cf. Laursen, 1992. (o grifo é nosso)
235
Smith, Plínio J. Terapia e Vida Comum. Revista Sképsis, São Paulo, v1, n 1, p. 43-67, Ano
1, 2007. Disponível em <www.revista-skepsis.com.br>, acessado em 10/2007.
236
Cf. (1, 30, 195) Onde não se verifica, entre outras coisas, “hierarquia política”, “nem ricos e
pobres”, ou metade faminta e metade nutrida.
237
A falha e a qualidade do artifício podem ser capturados nos seguintes endereços: (2, 17,
41); (3, 5, 221); (1, 23, 122); (1, 25, 141); (1, 30, 189); (2, 1, 291); (2, 2, 296); (2, 8, 331); (2, 37,
122); (3, 1, 141); (3, 1, 147); (3, 6, 236); (3, 9, 273); (3, 10, 310); (3, 11, 324); (3, 13, 361).
238
Por ordem de entrada, respectivamente: Cf. (3, 10, 311); (2, 17, 41). (grifo nosso)
81
dissipam de modo algum aquilo que move cada um dos indivíduos, elas são o
mero pára-vento coexistente com a verdadeira ação deles. Temos então um
problema adicional, uma generalizada tendência humana a apresentar-se sob
máscara e a simulação, uma vez que a convenção não consegue ter um
reflexo concreto que a reforce. É possível reescrever esse percurso sob o
seguinte plano simplificado:
Natureza
Ataraxia
Seres Animados (SA) -> SA1 + SA2 + SA3 + ... + SAN
= SA
Acaso
SA1 = Seres Humanos (SH)
Política
SH(1) + SH(2) + SH(3) + ... + SH(N) = SH
Ordenamento (governos, leis, hábitos, crenças, convenções sociais e etc.)
Diaphonia T (Todo)
SH(1) = Comunidade A (CA), Ordenamento A (OA)
SH(2) = Comunidade B (CB), Ordenamento B (OB)
SH(3) = Comunidade C (CC), Ordenamento C (OC)
SH(N) = Comunidade N (CN), Ordenamento N (ON)
Diaphonia P (Parte)
-> CA, OA = Indivíduos
Indivíduos = Indivíduo 1 + Indivíduo 2 + Indivíduo 3 + ... + Indivíduo N
Indivíduo 1 = Natureza A, Idiossincrasia 1
Indivíduo 2 = Natureza B, Idiossincrasia 2
Indivíduo 3 = Natureza C, Idiossincrasia 3
Indivíduo N = Natureza N, Idiossincrasia N
Máscara
A convenção pode ser entendida como um entre vários tipos de acordos tácitos
de assentimento generalizado, que é vitimada ao menos por uma postura
ambígua dos agentes sociais em qualquer domínio, pois é ávida postulante a
promoção da unidade entre os homens
239
. A simulação ou máscara, por sua
‘N’ tende a um número grande, nessa e nas demais representações.
239
Crê que nem ele a segue ao falar de si em público por meio de um livro Cf. (2, 17, 23)
82
vez, é uma imagem que articula pelo menos duas coisas entre parte e todo em
Montaigne: o sujeito e a sua comunicação com a comunidade
240
.
A simulação é levada a efeito ao domínio público quando o sujeito não
comunica coerência entre discurso e ato entre os seus pares
241
. O momento
posterior, de implicações repulsivas segundo Montaigne, acontece quando
essa narrativa se alista a política
242
. Esse tipo de procedimento configura a
política como refém da manifestação de um ordenamento carregado de atores
e papéis por um lado tal como em Petrônio –, e como o fertilizante ideal para
a experiência meramente privada sobre o domínio público
243
.
pelo menos um corolário adicional dessa inclinação do indivíduo para o
emprego da máscara, a sua remoção não obsta a chance de percebermos uma
superposição. De modo que se arrancarmos a primeira, não temos segurança
se o que resta é o sujeito ou a sua representação, se removemos um discurso,
ainda concorremos a verificar outra retórica no lugar da anterior. O
desmascaramento não restitui o sujeito e o que temos é uma ontologia
extremamente pessimista aos olhos da máscara montaigniana, o que lhe
empresta originalidade. Passemos a palavra ao próprio.
nos mesmos sabemos se somos covardes e cruéis, ou leais e religiosos;
não nos vêem os outros, tão-somente nos adivinham de acordo com conjeturas
duvidosas. Não é a nossa natureza real que percebem, e sim a aparência que,
mediante artifícios, conseguimos exibir
244
.
240
Ver: Ehrlich, Hélène-Hedy. Montaigne: La Critique et le Langage. Pairs: Editions Klincksieck,
1972. Especialmente o capítulo V, Le Masque et le Jeu. Nesse trabalho a máscara possui um
conteúdo privado e ideológico muito forte e Montaigne é contra esse artifício.
241
Cf. (3, 9, 298) Em todo caso essa liberdade discutível de se apresentar com duas caras, um
nas palavras e outra nos fatos, será talvez permitida a quem fale de certos assuntos, não a
quem trate de si mesmo como o faço.
242
Cf. (1, 23, 128) Considero com efeito soberanamente iníquo querer subordinar as
instituições e os costumes públicos, que são fixos, às opiniões variáveis de cada um de nós (a
razão privada tem jurisdição privada) e empreender contra as leis divinas o que nenhum
governo toleraria contra as leis civis. (grifo nosso).
243
Ehrlich distingue máscara e sujeito. Cf. Ehrlich, 1972 (p. 59). Ver ainda: Cf. (1, 23, 127) E
direi francamente que me parece sinal de excessivo amor-próprio e grande presunção valorizar
alguém sua opinião a ponto de tentar, a fim de vê-la triunfar, subverter a paz pública em seu
próprio país, facilitando o advento dos males inevitáveis inerentes à guerra civil, sem falar no
horrível corrupção da moral e nas mutações políticas que podem ocorrer.
244
Cf. (3, 2, 156)
83
Por um lado resta ao interlocutor externo, que deseja conhecer, o exercício
frágil da conjectura, da especulação eternamente governada pela dúvida
245
. Por
outro, um mesmo exercício não menos sisífico que o anterior, um empenho em
promover artifícios capazes de gerar imagens que ao menos imitem o sujeito
ou a natureza do indivíduo
246
. A convergência entre ambos nos coloca diante
de um enclave retórico, uma comunicação continuamente pautada pela dúvida
e pelo artifício.
O ponto clama uma sugestão senão uma hipótese de corte causal. Em vários
Ensaios, e especialmente na Apologia, Montaigne percebe que ao menos uma
forma de conhecimento pode começar pelo aparelho sensitivo do indivíduo, é
por ele que as imagens dos objetos penetram no equipamento cognitivo, e
como resultado da elaboração, os veículos que necessariamente comunicam
esse produto são novamente os sentidos, e assim o que temos é um conteúdo
decaído. O processo de conhecimento começa e termina pelos sentidos, a
fabricação da imagem é corrompida na entrada e na saída e, no meio do
processo, não há garantias de que a razão opere com isenção uma vez que ela
age, por exemplo, necessariamente repercutindo a experimentação dos
sentidos que por sua vez só capturam em condições que lhes são favoráveis
247
.
Desse modo, conduzir a verdade para a comunidade será sempre uma
experiência privada e a remoção da máscara não produzirá senão mais
dúvidas
248
. O diagnóstico erguido nessa perspectiva traz outra face em chave
positiva. A dúvida sobre os sujeitos isentos de papéis, num relacionamento de
implicações concretas na política, traz a pesquisa da justa condução dos
negócios públicos.
245
Cf. (1, 25, 143) Pois detesto as pessoas que suportam mais dificilmente um terno mal feito
do que uma alma e julgam a qualidade do homem pelas reverências, as atitudes, e as botas.
246
Cf. (1, 38, 217) Sem dúvida nossas ações, em sua maioria, são máscara e artifício [...].
247
Cf. Lessa, 1995. Cf. (2, 12, 491) ...os sentidos [são] a grande causa e a prova, a um
tempo, de nossa ignorância. (grifo nosso)
248
É quase impossível falar desse assunto sem falar no trabalho de Starobinsk. Starobinsk,
Jean. Montaigne em Movimento. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Atrás dos discursos
ilusórios, Montaigne descobre apenas outros discursos, do mesmo estofo; atrás das
sensações, outras sensações, igualmente incertas e enganadoras. (p. 74)
84
Isso orienta pelo menos dois tipos de análises ao trabalho de Montaigne, a
descrição da virtude em uso e a sua postulação normativa. A primeira delas
mistura a um tempo mais de um objeto que remete ao domínio da política
em sentido amplo, além disso, aos acontecimentos comunitários que mais lhe
afligem, entre eles, acima de tudo, o esfacelamento do ordenamento local em
nome de uma falsa controvérsia em torno da religião
249
. O próximo extrato é
capaz de contribuir para a ilustração proposta.
Somos um amontoado de peças juntadas inarmonicamente e queremos que
nos honrem quando não o merecemos. A virtude vale por si mesma; se para
outro fim tomamos a sua máscara, logo ela no-la arranca da cara. Quando
nossa alma se impregna dela, forma ela uma espécie de verniz fortemente
adesivo que só se tira com a própria pele
250
.
Ao que parece a paternidade do ordenamento é reivindicada pela impostura,
uma vez que o ocupante da função pública avoca a si o predicado da virtude,
quando deveria ser atribuído ao sinistro, ao acaso, a natureza. Ela é coisa
cristalina e seu emprego via artifício arbitrário, por intermédio da dissimulação,
é incapaz de passar incólume, de modo que a sua remoção acontece à revelia
do ator. Quanto mais a alma se persuade de que toca a virtude e de que se
confunde com ela, mais prejuízo de ser verificado contra o intérprete da
peça.
A inversa desse movimento é indissociável dessa perspectiva do perigordiano,
a crítica da impostura evidentemente traz no mínimo o desejo da verdadeira
virtude tal como destacado por Starobinsk, o que configura uma forte sugestão
normativa, pelo menos velada; ou então, de modo menos elegante, dizer o que
ela deve ser a partir daquilo que ela não vem sendo
251
. No plano comunitário há
a inauguração de uma nova virtude, ou seja, não está em conformidade com a
virtude de fato. O curso dos acontecimentos, observados pelo ensaísta,
249
Ver os textos reunidos por: Dubois, Claude-Gilbert. Montaigne et L’Histoire. Paris: Editions
Klincksieck, 1988. Especialmente Montaigne et la rhétorique de la controverse religieuse de
Wim J. A. Bots. (p. 193)
250
Cf. (2, 1, 195)
251
E ao que algumas citações indicam, Montaigne deseja perpetrar a virtude em Sócrates
narradas em vários momentos, inclusive quando silencia no cárcere. Ver como exemplo (2, 17,
362). Sugiro, de acordo com essa imagem proposta por Montaigne, a leitura de Críton onde
Sócrates exacerba a virtude em absoluta obediência as condutas instaladas na cidade. Nega
veementemente a idéia de evadir ao aprisionamento usando de expedientes astuciosos.
Platão. Críton. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores) (p. 99)
85
apresentam uma acachapante discrepância entre o nome e o significado. De
outro modo, que fale Montaigne.
Quanto a essa nova virtude do artifício e da dissimulação, tão apreciada nestas
eras, odeio-a supremamente. Entre todos os vícios, não conheço nenhum que
revele tanta covardia e tanta baixeza. É característico da covardia e do
servilismo, e predispõe à perfídia, fantasiar-se e mascarar-se e não se mostrar
como se é
252
.
uma manifestação inequívoca de ódio declarado a impostura nessa
dimensão da sociedade, trata-se de uma disposição do indivíduo que se
apresenta ao nível mais baixo na hierarquia montaigniana. Essa nova acepção
campeia os fenômenos locais em sentido vasto e um dos edifícios do Estado
recebe particularmente esse problema por meio de uma querela de dimensões
amplificadas, [...] a questão religiosa, a que misturam tantas imposturas [...]
253
.
Os dois lados em disputa prestam-se a impostura, introduzem o desacordo
eterno no plano ideológico e no plano semântico
254
. No primeiro domínio
acampam idéias meramente antagônicas, entretanto, os meios aplicados para
fazer valer o que dispõem é refém do ódio montaigniano. O recurso vocabular
dos querelantes não guarda relação de significado algum e carregam o
duvidoso agravante de possuírem o genuíno programa de ordenamento dos
indivíduos em seus discursos, de modo que, ao ponto montaigniano a própria
inocência não poderia, em nossa época, dispensar a dissimulação, nem
negociar sem mentir
255
.
No mundo montaigniano o ponto de partida da impostura no domínio público é
mobilizado por uma imagem radicalmente equivocada, um desequilíbrio da
paixão humana em campanha aberta. O amor próprio em demasia é capaz de
deflagrar essa desordem das paixões e promover o lançamento do desacordo
privado sobre os ordenamentos
256
.
252
Cf. (2, 17, 35)
253
Cf. (1, 23, 127)
254
Os lados citados são a Liga Católica e os Huguenotes.
255
Cf. (3, 1, 146)
256
Cf. (2, 17, 22); E sobre a capacidade desestabilizadora das paixões, sugiro o seguinte
endereço: (2, 12, 474) Os abalos e golpes que atingem nossa alma por causa das paixões do
corpo, atuam fortemente sobre ela; e (2, 12, 475) Que diferenças de sentidos e razão
apresentam nossas paixões em sua diversidade e quantas idéias dessemelhantes disso
resultam?
86
Essa doença individual é seguida de patologias adicionais capazes de
converter o erro privado em erro público
257
. A capilaridade desse diagnóstico no
equipamento dos Estados faz Montaigne estabelecer uma radical divisão entre
público e privado
258
. De acordo com a narrativa dos Ensaios, o próprio
experimento montaigniano pode ser igualmente compreendido como uma
pesquisa que interroga, em sentido amplo, o sujeito privado e o sujeito político
num plano estreito
259
.
Ao menos um sintoma adicional capaz de incutir inclusive a tirania preocupa o
ensaísta, uma segunda ordem de desacordo entre o nome e a coisa, desta vez
quando o significado assume o nome, ou de maneira aberta, quando o sujeito
se confunde com o cargo. Esse posicionamento patológico dessa maneira
diante da política coloca-a como refém das desordens locais e inter-
comunitárias. A identidade do indivíduo perde o sentido original e grassa na
sua rotina um comportamento genuinamente autista. Vejamos um último
fragmento.
Basta enfarinhar o rosto, não é preciso mascarar igualmente o peito. quem
mude e se transforme em outro ser segundo o cargo que assume; neste
mergulham até o fígado e os intestinos e mesmo na vida privada agem como
se estivessem no exercício de suas funções. Gostaria de ensinar-lhes a
diferençar as saudações que se dirigem a suas pessoas das que visam o
mandado, o séquito ou a mula que montam
260
.
Moderação
É possível desenhar com alguma segurança um conjunto de trilhas nos
Ensaios, direta ou indiretamente que se desdobram nessa implacável
intoxicação amorosa, das quais as mais marcadas, mas não mais inextricáveis,
257
Cf. (3, 11, 325) O erro individual forma o erro público, o qual por sua vez, cria o erro
individual.
258
Cf. (2, 17, 35); (3, 10, 310); (3, 2, 157)
259
Cf. Frame, 1969 (p. 46); Cf. Laursen, 1992 (p. 116); Ver: Friedrich, Hugo. Montaigne. Paris:
Gallimard, 1968. Trad. Robert Rovini. (Col. Tel). Especialmente o Capítulo V, Le Moi (p. 220). E
dado o imperativo métrico, apenas citamos. Contudo, para os tópicos discutidos nessa
passagem, e também ao tema do domínio público e privado em Montaigne, sugiro ainda os
seguintes endereços dos Ensaios: (1, 19, 91); (1, 9, 57); (1, 23, 177); (1, 23, 126); (1, 32, 203);
(2, 8, 331); (2, 10, 348); (2, 11, 358); (2, 17, 22); (3, 2, 156); (3, 2, 157); (3, 2, 158); (3, 9, 283);
(3, 9, 287); (3, 9, 290); (3, 9, 298); (3, 10, 212); (3, 10, 219); (2, 12, 370), neste último em várias
passagens.
260
Cf. (3, 10, 298)
87
podemos sugerir três. A experiência investigativa sistemática de um aparelho
perceptual dogmático operada por um filósofo em geral, uma atitude dogmática
assistemática operada por qualquer indivíduo e, finalmente uma inarredável
inclinação humana a diaphonia assolada por um dos lados anteriores.
Em separado ou em conjunto, essa catalepsia generalizada apresenta uma
nova interface à política, dessa vez como um espaço e uma atividade que
requer moderação e, a rigor, ambos capazes de reforçar a plataforma de
lançamento do ceticismo como terapia ante a doença dogmática
261
. Essa
modalidade curativa do ceticismo coloca Montaigne talvez numa postura de
vanguarda moderna de defesa dos indivíduos e do relacionamento amigável
entre as diversas comunidades humanas
262
. Como pode ser inferida, essa
postura que postula a moderação é uma projeção que se abaterá sobre o
indivíduo, sobre a comunidade e sobre o relacionamento entre as
comunidades. Passemos ao trabalho de Cresson que dará voz ao próprio
Montaigne.
Non parce que Socrates l’a dict, mais parce qu’en verité c’est mon humeur, et à
l’avanture non sans quelque excez, j’estime tous les hommes mes
compatriotes, et embrasse um Polonois comme um François, postponan cette
lyaison nationale à l’universelle et commune
263
.
Aqui o plano agregado da vertente de um sujeito chamado Pirro da cidade de
Élis parece ter recepção afável. Se tratarmos o ceticismo como uma vertente
filosófica prontamente capaz de arrefecer enunciados dogmáticos, ou
exercendo sua face terapêutica, e se ignoramos os diversos discursos de uma
comunidade e o vertemos num enunciado em relação a outro, talvez a
moderação montaigniana, acredito, se enquadre precisamente ao conjunto dos
tropos quando, pelo menos, tratamos comunidades distintas. A partir desse
dispositivo, uma definição de Estado ou discussão sobre o melhor
ordenamento possível no plano doméstico e mundial será objeto de ataque
sistemático no mundo montaigniano conforme verificamos em algumas
261
Cf. Smith, 2007.
262
Cf. (1, 28, 178) A natureza parece muito particularmente interessada em implantar em nós a
necessidade das relações de amizade e Aristóteles afirma que os bons legisladores se
preocupam mais com essas relações do que com a justiça. (grifo nosso)
263
Cresson, André. Montaigne: as vie, son ceuvre. Paris: Presses Universitaires de France,
1952 (p. 142)
88
passagens precedentes bem como outras moléstias derivadas de caminhos
semelhantes. Talvez esse posicionamento tenha celebrizado o ensaio Dos
Canibais
264
.
O fragoroso abraço do citoyen du monde em volta de Polônia e França ou outro
país, não porque o disse Sócrates, mas porque assim o crê adequado, faz
desse filósofo algo bem aderido a política. Ao ponto em pauta, por um lado, a
política como atividade de militância intelectual será capaz de deflagrar um
movimento pela moderação e a publicação dos Ensaios serve sim para tentar
incutir uma reflexão, tal como perseguido obstinadamente por Schaefer e
também pela ostensiva recomendação de moderação que pode ser verificada
de Montaigne para Margot
265
.
Da mesma maneira, o campo gravitacional da moderação, por outro lado, é
ladeado de predicados num plano prescritivo com aspectos importantes que
merecem alguma apreciação, entre eles, acredito que sem prejuízo do conjunto
dos Ensaios, destacam-se a tolerância, as leis e a diversidade. Ao menos um
pressuposto de Montaigne pode ser angular para entendê-los, o espraiamento
da intoxicação dogmática no seio da política produz um efeito irrefutável aos
seus olhos: a extinção apaixonada de vidas humanas
266
.
As três imagens são o produto combinado da repetida aplicação do julgamento
via Ensaios e de sua experiência com o mundo exterior. Disso emerge
inicialmente, como conseqüência desse percurso epistêmico, que diante da
impossibilidade de se conduzir a verdade e a certeza via universais a partir do
sujeito de entendimento, ao menos é possível experimentá-las a cada instante
e da maneira como se apresentam, de modo que a tolerância deve ser algo
264
Cf. (1, 31, 192) Ver: Quint, David. Montaigne and the quality of mercy. Princeton: Princeton
University Press, 1998 Montaigne asserts that the existence of the Brazilian cannibals
surpasses in happiness […] without the intervention of culture. (p. 75) (grifo nosso)
265
Schaefer, David Lewis. The Political Philosophy of Montaigne. Ithaca and London: Cornell
University Press, 1990. Ver Apologia em: (2, 12, 370) e (2, 12, 467)
266
Cerca de 300 vidas de huguenotes foram extirpadas na ocasião eternizada como a Noite de
São Bartolomeu, para isso sugiro o trabalho de Lacouture. Lacouture, Jean. Montaigne a
Cavalo. Trad. F. Rangel. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 1996 (p. 159). Cf. (2, 11, 367) [...]
por causa de nossas guerras civis abundam exemplos de crueldade. Não vejo na história
antiga nada pior do que os fatos dessa natureza, que se verificam diariamente e aos quais não
me acostumo.
89
que diga respeito a um tempo ao sujeito e ao agregado humano
267
. Dessa
tolerância generalizada não se promove toda sorte de liberdades apenas
excetuando o assassínio, a conclusão é bem diferente. um poderoso
composto lubrificante que opera impetuosamente com a política sobre o sujeito
e os diversos tipos de ordenamentos humanos e que responde pelo nome de
hábito
268
.
Ele constitui, ao mesmo tempo, o elemento que perpassa os diversos tipos de
ordenamentos, bem como é parte da imagem que integra cada comunidade
269
.
Ainda que seja distinto em cada local, ele serve como guia seguro na ausência
de qualquer estatuto resultado das diversas verdades privadas elaboradas
filosoficamente ou não
270
. Ele constitui aquilo que aparece a todos com igual
força persuasiva logo após a primeira conformação dos objetos heterogêneos
que erguem as comunidades e Estados. O próximo extrato pode contribuir para
a explicitação do ponto, que também não é dotado de muito otimismo.
Em geral a melhor partilha que podemos fazer de nossos bens ao morrer
consiste em obedecer aos costumes do país, e as leis os levaram em conta
melhor do que faríamos, e é preferível que elas se enganem na escolha a
incorrermos nós mesmos no erro agindo inconsideradamente
271
.
A passagem exprime um legado de significado ambíguo na entrada com um
parâmetro de saída que permitem igualmente uma dupla interpretação, ambos
em absoluta coerência com o programa fundado na falibilidade humana. No
input Montaigne de fato fala de partilha de bens tangíveis, no entanto, a
verdadeira herança para a comunidade é a manutenção de um procedimento
de convívio que emerge do acordo tácito original definido pelo hábito. Como
processamento desses insumos por um lado a obstrução do erro individual
por um instrumento artificial compartilhado, e por outro, estatui a lei como a
ferramenta menos prejudicial para a comunidade ou como a melhor maneira de
267
Cf. Starobinsk, 1992 (p. 74). Cf. (1, 23, 121) Aponta que o hábito é rei e senhor do mundo e
aquilo que a filosofia não consegue ensinar ele o faz.
268
Segundo o trabalho de Eva, o hábito em Montaigne age como um poderoso obstáculo
cognitivo aos procedimentos racionais, e que em alguns momentos se confundem. Cf. Eva,
2007 (p. 151) Ver ainda: Bencivenga, Ermanno. The Discipline of Subjectivity: An Essay on
Montaigne. Princeton: Princeton University Press, 1990 (p. 34-48)
269
Cf. (1, 23, 122) [...] ingerimos o primeiro leite com hábitos e costumes.
270
Cf. (3, 9, 294) A diversidade de costumes entre um país e outro me impressiona pelo
prazer da variedade. Cada uso tem a sua razão de ser.
271
Cf. (2, 8, 341) (grifo nosso)
90
simular o hábito. O que nos permite chegar mais facilmente a ontologia
montaigniana, que prescreve a absoluta rendição da razão humana ante a sua
fraqueza, pois as leis são feitas para remediar o mal inicial
272
.
Está nesse diagnóstico o fundamento das leis segundo Michel de Montaigne,
elas são um conjunto de cópias decaídas que auxiliam na manutenção do
ordenamento promovendo as relações sociais em coordenação com a imagem
do acordo produzida pelo costume local
273
. Por extensão, o mesmo acordo
tácito é verificado em cada comunidade habitada das terras ocidentais e
orientais conhecidas com exceção dos povos do Novo Mundo que se regulam
de maneira mais adequada aos preceitos da boa convivência segundo o
ensaísta que lamenta que nem Licurgo e Platão tenham visto.
A imagem das leis é outro instrumento empregado pela moderação para conter
o horror radical das convicções humanas, ela reduz a termo os extremos
opiniáticos da maneira que os costumes locais lhe oportunizam as imagens do
agregado. É possível tomar a lei e introduzir o terceiro predicado proposto
274
.
Podemos relê-la da seguinte maneira: uma das manifestações possíveis dos
vários ordenamentos possíveis
275
. Assim, ela compõe um dos ardis edificados
nos Estados, de maneira que não possui autoridade racional positiva, mas sim
a visualização do pessimismo ontológico de Montaigne, uma rendição
epistêmica. Ao mesmo tempo em que regula as relações sociais, por conferir
corpo a um tipo de convenção, se presta a tentar garantir à variedade humana
mediante tentativas de harmonização da diaphonia
276
.
Pouca relação existe entre nossos atos, sempre em perpétua transformação, e
as leis que são fixas e estáticas. O mais desejável a esse respeito é que estas
sejam as mais simples possíveis e concebidas em termos gerais [...]
277
.
272
Cf. (1, 23, 126). Ver também: Cf. Eva, 2007 (154-155)
273
Cf. (1, 232, 122) As leis da natureza nascem dos costumes, pois todos veneram
interiormente as opiniões e os usos aprovados e aceitos pela sua sociedade.
274
Para mais desdobramentos e compreensões das leis, sugiro os seguintes endereços: (1, 23,
125); (1, 23, 128); (1, 39, 223); (3, 9, 278); (2, 12, 488)
275
Cf. (2, 17, 42) As nossas leis, como as nossas roupas, não têm forma definitiva. É fácil
acusar um governo de imperfeição [...]. (grifo nosso). Cf. (2, 12, 485). É possível uma leitura
pelos tropos de circunstâncias do objeto, Cf. Lessa, 1995
276
Cf. (3, 1, 146) Nossa vontade e nossos desejos a eles mesmos obedecem, mas nossos
atos devem atentar para as leis que regulam e resguardam a ordem pública. (grifo nosso)
277
Cf. (3, 13, 359); (3, 9, 298)
91
então uma interface prescritiva que deve apelar para um termo genérico,
uma vez que uma perpétua transformação dos indivíduos que se
apresentam numa variedade muito superior a capacidade do simulador. Essa
dimensão, o fabrico de leis, também não elimina a baixa capacidade concreta
de produzir esses objetos, o homem confecciona bizarrias
278
. Por outro lado,
numa perspectiva interacional, a outra fonte de variedade é o conjunto de
imagens desordenadas que cada indivíduo é capaz de lançar sobre a
comunidade
279
. Numa palavra citada, o homem é de natureza muito pouco
definida, estranhamente desigual e diverso
280
.
A face terapêutica da política montaigniana não parece predispor um regime
ideal ou uma camada de indivíduos que podem reter algum tipo de privilégio ou
isenção de maneira que podemos descartar a avaliação dos Ensaios como
uma pesquisa idiótica e de resultados meramente locais. A moderação é um
recurso de contenção de colisões intoxicadas pelas filiações apaixonadas, e
dentro de seu estatuto ou do seu campo gravitacional, não brecha ou
concessão a qualquer comunidade ou indivíduo
281
. Em outras palavras, ela é
um meio que resulta de um processo racional e da experiência do sujeito
Montaigne que, a partir de um mapa cognitivo, prescreve universalmente
artifícios que conservem o agregado humano.
Dragão Maldito e o Espaço da Quimera
A contínua variedade humana permite uma re-elaboração do acaso que reúne
os homens, ela nos habilita a percebê-lo como igualmente contínuo, infinitos
acidentes diários que determinam ao menos uma parcela instantânea da
qualidade da natureza que o sujeito humano receberá via primeiro leite
282
. O
que então nas comunidades são as formações constantes de pequenos
278
Cf. (3, 9, 297); Cf. (3, 13, 361) Nada há tão grave, ampla e comumente defeituoso quanto as
leis. (grifo nosso)
279
Cf. (2, 12, 499)
280
Cf. (2, 12, 504)
281
Ainda que assuma a demonstração corriqueira de que cada povo venere a sua comunidade
e a sua forma de se conduzir, Montaigne não isenta a monarquia da submissão a leis,
desdenha das cerimônias reais, da bajulação da corte e vários outros pontos. Sua submissão
ao governo de França é absolutamente submetida à ausência de paixão. Cf. (1, 30, 40) Os
príncipes com efeito devem submeter-se às leis, pois não pairam acima delas. (grifo nosso). Cf.
(1, 37, 213)
282
Cf. (3, 9, 271) Pelo nosso exemplo verifico que a sociedade humana se perpetua de
qualquer forma, aconteça o que acontecer. (grifo nosso)
92
mundos se processando diariamente, o que lembra a definição de mundo em
Mill. A política se apresenta para cada um dos mundos olhando para dentro e
para fora de cada local, disso, Montaigne funda, de fato, um mundo, que
aparentemente guarda algum nível de correlação com a natureza.
A formação desse planeta Montaigne é cautelosa e manutenção ao único
princípio que se abate igualmente sobre homens e animais, a natureza, que por
enxerto de significado, foi chamada arché. A passagem abaixo serve para
sugerir ou ilustrar que nas cânulas que elegemos, grita uma pesquisa de sujeito
e objetos de acordo com a canônica cética para os tipos de comunidades que
podem acomodar os indivíduos sob um justo ordenamento. Trata-se de uma
lembrança silogística, uma das experiências e testes de pequenas assertivas
do julgamento do ensaísta
283
.
(i) Nada, desprovido de alma e razão, fora capaz de criar um ser provido de
razão e suscetível de dar a vida;
(ii) o mundo produz-nos;
(iii) logo tem alma e razão.
(a) cada fração de nós mesmos é menor do que nós mesmos
(b) somos uma fração do mundo
(c) logo o mundo é dotado de sabedoria e razão e em grau superior ao nosso.
A conclusão é a um tempo local e inter comunitária: E uma bela coisa ter
um bom governo; o mundo deste ponto de vista comprova pois a excelência do
princípio que preside a nossos destinos
284
. Descartes chama de Dragão Maldito
um tipo de pesquisa que permite a reinterpretação constante de possíveis
universais e uma incansável observação sobre as capacidades cognitivas do
indivíduo e as suas diversas implicações com as relações sociais.
O fragmento abaixo explora um pouco mais do desenvolvimento da matéria
montaigniana, difusa e sujeita a várias interpretações.
Como quer que encaremos este nosso mundo, vemo-lo cheio de imperfeições;
nada é inútil entretanto na natureza, nem mesmo as inutilidades. Nada existe
283
intérpretes otimistas, como Schaefer, que encontra uma rota clara em Da Amizade. Cf.
Schaefer, 1990 (p. 40)
284
Cf. (2, 12, 445)
93
que não tenha sua aplicação. Nosso ser é um aglomerado de qualidades que
são ao mesmo tempo defeitos
285
.
O desarranjo do binômio qualidade-defeito contra o ordenamento é a
demonstração amplificada e cabal da falha humana. A reunião imoderada das
imperfeições humanas lança sobre os agregados um conjunto de imagens
absurdas, toda sorte de monstros e horrores. Exploremos rapidamente alguns
produtos humanos.
A elaboração das leis promove coisa diversa do que a mera cópia decaída do
que um dia foi o hábito, além de ser a rendição da razão, ela ainda manifesta a
imoderação do fabulador, que recorrentemente ignora a equidade. Por outro
lado, sua peça legal faz que o todo prometa antecipadamente algo tão rígido
que jamais será capaz de realizar. Os seus vários termos específicos
produzem toda sorte de arbítrios capazes de render a moderação humana hoje
e no futuro
286
.
Em matéria de os procedimentos estabelecidos também habilitam o absurdo
humano, e na letra montaigniana, marcha sobre a fé, impávida, toda sorte de
trejeitos humanos e nenhum resquício de plano divino
287
. A Reforma introduz
por um lado os genuínos artigos da lei religiosa deflagrando todo tipo de
assassínios, por outro, a persuasão de novas almas promove toda sorte de
procedimentos pela crença no Novo Mundo. Depois de 460 indivíduos lançados
à fogueira pelo exército de Deus, Montaigne define o sentido dessa prática
religiosa. Pois se esses bárbaros tinham a intenção de propagar a nossa fé,
deviam pensar que não é de territórios que ela precisa e sim de almas
288
.
285
Cf. (3, 11, 141)
286
Cf. (3, 9, 298) O homem obriga-se a si mesmo continuamente a errar e passa a vida a criar
deveres feitos para outros seres que não ele. Por que determinar o que não se espera que
alguém cumpra? Teremos culpa de não fazer o impossível? As leis que nos condenam ao que
não podemos, condenam-nos pelo que não podemos.
287
Cf. (1, 23, 126); Cf. (1, 30, 199) [...] e é pior esquartejar um homem entre suplícios e
tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé,
como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em
verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado. (grifos
nossos)
288
Cf. (3, 6, 239)
94
A fabricação e a implementação de leis respondem pelo nome de justiça
segundo Montaigne, ainda que sejam resultados de infinitas fábulas
idiossincráticas individuais. Mais uma vez ele detecta pleno desacordo entre o
nome e a coisa. A justiça responde então pela cerimônia processual pública da
bestialidade humana, é por ela que toda sorte de imoderações, como a tortura,
tomam o conhecimento geral
289
. Essa imagem merece justo polimento e a
apresentação do próprio Montaigne.
Considerai as formas de justiça que nos rege: são um autêntico testemunho da
imbecilidade humana, tal o número de contradições e erros que computam. [...]
Quantos inocentes sabemos terem sido punidos, sem culpa sequer dos juízes?
Quantas condenações mais criminosas do que o crime não tive a oportunidade
de ver!
290
A passagem dispõe apenas uma seleção arbitrária para demonstrar a visão
precária sob a qual se ordenam artificialmente os povos segundo Montaigne.
Seria pelo menos enfadonho proceder a um inventário completo das imagens
da intolerância e rendição da ordem, segundo a razão, que pode bem ser
compreendida como filosófica ou não, uma vez que ambas se credenciam a
política. Mas podemos tomar a passagem que aparentemente é uma crônica
da estupidez segundo um fenômeno experimentado pelo perigordiano e
procedermos a um brevíssimo diálogo hipotético entre ceticismo e dogmatismo.
O dogmático veria na autoridade da instituição, fundada na razão, um
procedimento regular e, se fosse um filósofo, diria que a sentença é justa e
procede como causa de um crime. O primeiro interrogaria ambos se a justiça
pode promover injustiças, e ao filósofo em particular, pelo menos, lembraria da
ausência de nexo causal. Um inocente punido por um árbitro que sabe do
equívoco de um termo geral que sacrifica um indivíduo.
Temos agora massa suficiente de recurso para invertermos uma posição, o
dragão assume a posição da quimera e esta a daquele. Os vários mundos e
produtos demarcados por Montaigne sob os auspícios da razão não cansam de
ostentar aberrações monstruosas. A quimera montaigniana assume a vez de
289
Cf. (2, 5, 318) ...considero a tortura um processo inumano...
290
Cf. (3, 13, 359)
95
uma pesquisa livre de precipitação otimista de alguma maneira de entender e
preservar um agregado tão heterogêneo e de contornos individuais tão difusos.
As almas viciosas são por vezes instadas à prática do bem; da mesma forma,
as virtuosas são ocasionalmente solicitadas pelo mal
291
.
uma grande quantidade de passagens que trazem mensagem análoga,
poderíamos multiplicá-las nesse trabalho, entretanto cabe comunicar que elas
repercutem a variedade, a diversidade e a dessemelhança dos indivíduos e dos
povos humanos. De maneira que há mais diferenças entre um indivíduo e outro
do que entre um animal e outro, segundo Montaigne.
E retomando a passagem, a natureza humana não apresenta estabilidade
comportamental ou confirmação dos caminhos dogmáticos padronizados como
nexos causais, monocausalidades, certezas etiológicas e movimentos afins
para ordenar o mundo. Com o pirronismo de Montaigne tanto o vício pode
deflagrar fenômenos virtuosos como a virtude pode promover um conjunto de
fenômenos viciosos como a crueldade
292
. De maneira que em assuntos
humanos os resultados dogmaticamente otimizados podem redundar
generalizados equívocos com perdas humanas.
Podemos arriscar que uma possível resposta montaigniana para essa profusão
de dragões realistas é via suspensão do juízo sobre o estatuto de verdade e
acerto contido nas proposições. Logo isso significa dizer que a matéria pode e
deve continuar a ser observada, a suspensão não pressupõe imobilidade, é
uma postura de cautela articulada por resultados auto-evidentes para
Montaigne.
É possível afirmar ainda que o tipo de ordenamento que o perigordiano procura
não se parece muito com a fabulação que se pratica. Podemos dizer que sua
adesão a monarquia, por exemplo, é derivada de um percurso racional e,
portanto, marcada de baixo entusiasmo ou paixão, ela se configura como uma
adesão meramente acidental, em conformidade com sua filiação filosófica.
291
Cf. (3, 2, 158)
292
Cf. Quint, 1998 (p. 41-74)
96
Desse modo, ao que parece, o tipo de harmonização do indivíduo humano que
ele procura parece combinar estratégias cognitivas céticas e dogmáticas, se
considerarmos que o pirronismo constitui uma vertente de mobilização da
reflexão para a prática.
Assim decorre que as imagens céticas que emergem em Montaigne parecem
combinar o tipo de convívio interacional observado no Novo Mundo, onde as
relações sociais são livres de artifícios demasiados, que ele, por exemplo,
elogia a grandeza de Cuzco e México, com alguns elementos em curso na sua
própria comunidade. Entretanto, o seu pessimismo ontológico também sugere
um artifício de animosidade contra as inovações embaladas em certeza, assim
sendo, essa abordagem merece ser mais desenvolvida.
De qualquer forma, no que diz respeito a nossa matéria, ele preconiza uma
criança monstruosa
293
. Se juntarmos essa imagem com o conjunto do
equipamento cético, podemos dizer que uma regulação da política que acolha
a plena manifestação do indivíduo demarcada por parâmetros de limitação
amplamente compartilhados e harmonizados, perpassado por uma ostensiva
tolerância e moderação inter comunitária, poderíamos considerar que temos
um contorno político.
Se essa composição se parece com o liberalismo em política, é possível
concordar com o resultado de Schaefer e Montaigne lança as bases do
pensamento liberal
294
. Acaso seja esse mais um anacronismo, Montaigne
apresenta ao menos uma criança monstruosa intoxicada de tolerância a
pluralidade de manifestações humanas.
Epílogo
Uma definição dos Ensaios de Michel de Montaigne como um complexo de
matéria pirrônica não-sistemática foi uma opção que elegemos para penetrar
no pensamento do ensaísta. Para chegar até os Ensaios pensamos ser
293
Cf. (2, 30, 83)
294
Cf. Schaefer, 1990
97
indispensável uma apresentação do que dispõe a vertente cética antiga, de
maneira que a maior parte dos tropos e argumentos que foram sumariamente
apresentados a partir do trabalho de Sexto Empírico fosse refletida durante a
exposição do ceticismo moderno em Montaigne. Segue-se disso, que a
aplicação de Montaigne pode gerar um conjunto de imagens que montam um
pensamento da política.
Se o trabalho conseguiu atingir o objetivo, aproximamos o ensaísta do
ceticismo referido a si, aos objetos e aos meios epistêmicos entre sujeito e
objeto. De modo que em vários desses momentos podemos perceber algum
nível de preocupação com os negócios públicos de sua comunidade, da menor
parte a maior parte. Assim sendo, demonstramos que é possível relacionar os
tropos céticos e a política, por intermédio do nono e décimo tropos de
suspensão da obra de Sexto ou de maneira genérica, uma vez que o ceticismo
em Montaigne se apresenta pulverizado ao longo dos Ensaios o que pode nos
ajudar a inferir o todo, o que fizemos com a ajuda de Laursen e Frame.
Em segundo lugar introduzimos uma discussão para checar que tipo de
reflexão o ensaísta estabelece para comunicar um dos enunciados mais
marcados na teoria política tal como a confecção do Estado e Governos. Como
ponto de partida, identificamos que a diaphonia pode ser empregada para se
chegar ao modo como Montaigne pensa os ordenamentos humanos a partir da
reflexão da menor parte, o indivíduo, até o conjunto de imagens que se pode
rebater no ordenamento dos Estados. Chegamos à conclusão de que o
indivíduo e o ordenamento apresentam vários níveis e combinações de
dessemelhanças.
A partir disso pudemos constatar que a confecção de universais a partir do
aparelho cognitivo humano passa longe do modo montaigniano de pensar o
agregado humano. Buscamos lançar algum tipo de luz sobre como ele recebe
a possibilidade de estabelecer princípios. Inicialmente ele nega toda e qualquer
chance de derivar o ordenamento de um princípio universal que não seja a
natureza, ainda assim condicionada a algo indemonstrável, algo fora da
capacidade de entendimento humano, a natureza como código fechado aos
meios de entendimento disponíveis para perceber o que lhe preenche.
98
Montaigne parece gostar da idéia de admitir a natureza como objeto que se
abate sobre todos os seres animados com igual força persuasiva. Ela parece, a
partir disso, ser o elemento que ordena as vidas, pois não resulta, em hipótese
alguma, do acaso ou da seleção da maioria. Por outro lado, fica claro que ele
não concorda com nenhum método dogmático de se atingir o objetivo de se
conhecer a essência do que quer que seja, de maneira que opera ostensiva
veemência sobre o método e faz pesadas críticas sobre a ética presente nesse
tipo de investigação.
Se um princípio ao alcance humano para remontar ao que origina os
Estados e os vários ordenamentos sociais possíveis ele reside da natureza
para o acaso. A partir disso, definimos a política como a dimensão que
comunica os vários modos de ordenar as comunidades e também de articulá-
las entre si sob algum nível de harmonia. O ensaísta é simpático a considerar a
natureza humana algo em processo, afetada de humores diversos e uma
grande quantidade de hábitos descontínuos. Dessa forma, o homem está
encapsulado num tipo de apresentação social sempre pautada pelo esforço de
se mostrar como se parece ser, nunca em termos definitivos.
Esse esforço de se apresentar provoca um desacordo entre sujeito e
comunidade do qual retiramos um denso pessimismo dos Ensaios de
Montaigne. Segundo essa perspectiva, o homem se apresenta facilmente pelo
que não é segundo as convenções. Assim, o homem é capaz de se apresentar
ao público sempre segundo o apelo da convenção em curso quando lhe é
conveniente e não raro constantemente de maneira instável. Chegamos então
à conclusão de que os universais são tentativas frágeis de se observar o
comportamento dos indivíduos.
Quando o sujeito se comporta segundo aquilo que lhe é mais conveniente
alojado a política, ele a configura como um grande teatro assolado de peças e
atores e também como a plataforma capaz de fertilizar o erro privado sobre
toda a comunidade. A natureza do indivíduo não permite a remoção da
máscara seguida da exibição da verdadeira face, ao contrário, é humanamente
99
impossível perceber a verdade de dentro para fora ou vice versa. Esse embate
de enunciados pode ser perfeitamente explicado pela vertente cética, o que
produz como conseqüência a suspensão do juízo, mas sem, contudo, diminuir
a dimensão do problema sobre a política.
Disso concluímos que Montaigne deflagra uma pesquisa então da justa
condução dos negócios públicos e passa por temas consagrados na teoria
política tais como justiça, leis, hábitos e, especialmente, a virtude. Percebemos
que a virtude em curso pode sinalizar que tipo de fato ele procura por
eliminação. Montaigne a impostura em negócios públicos como algo
temerário capaz de assolar todo o edifício do Estado a partir de uma atitude
irrefreada de amor subjetivo
295
.
A partir de um diagnóstico pessimista do indivíduo humano no plano cognitivo e
no domínio da conduta ordinária, simultaneamente em contato com a política
intermediado por uma intoxicação amorosa que afeta indivíduos e os conduz a
comportamentos extremados, configuramos a política em Michel de Montaigne
com objeto e como atividade que devem ser e conduzir a moderação.
Ao mesmo tempo, abrimos dessa perspectiva a tomada do ceticismo como a
melhor maneira de arrefecer enunciados e a conduta de atores que
apresentam esse comportamento em domínio público. Dessa maneira
percebemos o ceticismo como terapia a patologia dogmática num domínio
sensível a manutenção dos ordenamentos humanos. Colocamos Montaigne
operando em dois campos concomitantes, um cético terapeuta interferindo a
partir da interferência direta, sobre os agentes, e na ocasião tomamos o
exemplo de uma representante do Estado francês, e ao mesmo tempo como
intelectual capaz de rebater dogmatismos em curso no campo da filosofia, ou
para sermos mais precisos, sobre a discussão teológica.
Apresentamos o gascão definindo mecanismos de promoção da moderação,
inicialmente abraçando todos os povos possíveis e usamos a expressão
idiomática que o marcou como cidadão do mundo. Usamos a imagem da
295
Ver o estudo da politica como subjetividade em: Reiss, Timothy J. Montaigne and the
subject of polity. Edited by Parker, Patricia and Quint, David. Baltimore and London: The Johns
Hopkins University Press, Cap. 7 (p. 116-149)
100
tolerância, das leis, do hábito e da diversidade para oferecer concretude
conceitual à imagem agregada da moderação. Em conjunto elas podem
oferecer a prescrição de acordos tácitos humanos como um fio precário capaz
de orientar algum nível de esfriamento da manifestação de intolerância e
imoderação a que se inclina o espírito humano. De algum modo o tipo de
regulação levada a efeito no Novo Mundo produz em Montaigne um referencial
auto evidente de que o tipo de ordenamento que ele vive, é a expressão da
incompetência humana.
À medida que Montaigne observa o homem como um processo, ainda que
numa perspectiva negativa, reelaboramos o tipo de visão que ele remete ao
agregado. Inferimos um dos testes de fabulação de mundos a partir de uma
estrutura de forte lembrança silogística. Essa formação obedece coerência e
cuidado com a rendição humana em relação a natureza, único universal
possível. Dessa peça removida de dentro da Apologia percebemos que o
perigordiano de algum modo procura a formação de agregados que possam
promover a ataraxia ou a vida fora de perturbações e estorvos dogmáticos.
Apresentamos em seguida a pesquisa montaigniana com a flexibilidade e vigor
necessários para a configuração desse ordenamento. A natureza humana
encerra um conjunto de predicados de orientações dinâmicas e díspares
capazes de expressar absurdos e contradições descontínuas ou não, é a
própria manifestação da diversidade, de modo que é preciso muito cuidado
com otimismos ontológicos e epistêmicos tal como notados nas pesquisas que
se pressupõe dotadas de razão universal.
Em seguida, demonstramos algumas imagens e artifícios produzidos pela
razão passeando os resultados mais devastadores possíveis para uma matriz
de pensamento ungida de etiologias. A pintura de um quadro de manifestações
racionais produzindo várias imagens absurdas e desconexas de corte
dogmático. O devaneio otimista deflagrando a partição lógica do agregado
possível em curso na comunidade de Montaigne e fora dela. Simulamos um
diálogo que pode atestar que a posição cética pode não ter em si matéria que
101
expresse indiferença ou absurdo lógico, na passagem pintamos de ficcionais as
produções dogmáticas.
Finalmente, a ausência de filiação apaixonada ao próprio ordenamento, a
pesquisa em curso e a sugestão de uma criança monstruosa, alusão que fiz ao
ensaio A Propósito de Uma Criança Monstruosa, contida no Livro 2 (Capítulo
30, página 82) podem indicar uma postura crítica local e sugerir a política como
capaz de reproduzir outra imagem, diferente da que Montaigne viu em curso
em sua comunidade. Por outro lado, os reiterados apelos a variedade,
diversidade e moderação podem nos sugerir ainda, em tese, uma vez que o
veneno do anacronismo é latente, que a elaboração montaigniana pode se
coadunar com a fundação de algumas vertentes da teoria política posterior;
pois afinal, como diz o próprio, ele é gascão.
102
Conclusão
Uma busca de caracteres genuínos que coordenem o bojo ou uma parcela do
ceticismo grego e moderno para a reflexão política e de suas imagens
desagregadas podem presumir coexistência compatibilizada. As indicações
explícitas em alguns tropos, que proferem obstruções diretamente sobre
algumas imagens, não interrompem ligações de enunciados dogmáticos
originadas da reflexão ou teoria política agregada. A trilha de ambas as
orientações pode conduzir a essa harmonização sem concorrência despótica
de qualquer dos lados.
Na reflexão do moderno Michel de Montaigne o purgante cético é oferecido
para dogmas das teorias de conhecimento, para a política e também para os
seus objetos aparentemente mais conexos como leis, hábitos e crenças que
conferem identidades a comunidades e Estados. Se concordarmos que há uma
teoria do conhecimento da política, temos que Montaigne é um representante
da categoria que estamos sugerindo nessa conclusão.
Os Ensaios perfilam um ataque a busca de universais ao mesmo tempo em
que parecem lhes restituir, de modo que a natureza e o acaso assumem as
funções que cooperam os ordenamentos dos seres e que conferem à política a
capacidade de mobilizar as diaphonias dos indivíduos e comunidades humanas
entre si. Assim como o sujeito é processo em Montaigne, tal como no trabalho
de Starobinsk, todas as representações que daí surge vão operar definições
mutáveis e concorrentes entre si, e assim a política poderá ser vista nos três
volumes da fala do eu como teoria, função ou atividade, que, por exemplo,
recebe a mudança e pluralidade humana.
O fio que alinhava esse pensamento da política, entendemos, é um ceticismo
reelaborado. A variedade dos sujeitos humanos será o ponto de partida para a
compreensão dos diversos tipos de relacionamentos estabelecidos entre
indivíduos e povos, esse mesmo diagnóstico porá o trabalho de Montaigne
como um tipo de guia de promoção da tolerância e uma prescrição original de
103
plena capacidade de cada povo conduzir os seus negócios, de acordo
compartilhado com aquilo que apenas lhe parece correto.
Anexo ao Capítulo 3
Guia de Fragmentos
Configuração Política em Michel de Montaigne
Recepção p. 107
Natureza e Governo p. 111
Máscara p. 119
Lei p. 125
Moderação (tolerância) p. 129
Ficção (idéias e realismo) p. 134
Epílogo p. 144
-105-
Apresentação e Método
Essa guia auxilia parte dos esforços de pesquisa do trabalho de dissertação
para o capítulo terceiro de título Configuração Política em Michel de Montaigne.
Ela foi elaborada sob a percepção de que a quantidade de citações feitas ao
longo do capítulo torna pouco aprazível, para a pesquisa e para a banca
avaliadora, uma reiterada comparação entre a citação no corpo do texto e o
seu rebatimento nas referidas páginas dos Ensaios de Michel de Montaigne
que é utilizada como referência principal.
Ela reflete a proposta de índice que a precede com exceção de duas
passagens não abordadas Ficção e Realismo em Montaigne e Lei. Assim, para
cada tópico enumerado, procedemos a uma hierarquia do livro um ao livro três
em termos temáticos, de maneira que os temas capturam fragmentos. Assim,
para a Recepção, retiramos um conjunto de fragmentos que se coadunam com
a sua proposta de conteúdo, do Livro um ao Três. E assim sucessivamente.
Livro 1: 57 Ensaios; Livro 2: 37 Ensaios; Livro 3: 13 Ensaios
Recepção
Trata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.
Livro 1: 57 Ensaios;
1, 23, 125 (dos costumes...) “O sábio precisa concentrar-se e deixar a seu
espírito toda liberdade e faculdade de julgar as coisas com serenidade, mas
quanto ao aspecto exterior delas cabe-lhes conformar-se sem discrepância
com as maneiras geralmente aceitas. A opinião publica nada tem a ver com o
nosso pensamento, mas o resto, nossa ações, nosso trabalho, nossas fortunas,
cumpre-nos colocá-lo a serviço da coletividade e submetê-lo a sua aprovação.”
1, 23, 128 (dos costumes...) “Considero com efeito soberanamente iníquo
querer subordinar as instituições e os costumes públicos, que são fixos, às
opiniões variáveis de cada um de nós (a razão privada tem jurisdição privada) e
empreender contra as leis divinas o que nenhum governo toleraria contra as
leis civis.”
1, 25, 140 (do pedantismo) “Sabem dizer ‘como observa Cícero’, ‘eis o que
dizia Platão’, ‘são palavras de Aristóteles’, mas que dizemos nós próprios? Que
pensamos? Que fazemos? Um papagaio poderia substituir-nos.”
1, 25, 140 (do pedantismo) “Cuidamos das opiniões e do saber alheios e
pronto; é preciso torná-los nossos. [...] Que adianta ter a barriga cheia de
comida se não a digerimos? Se não a assimilamos, se não nos fortalece e faz
crescer!”
1, 25, 142 (do pedantismo) “Tais mestres, como os sofistas seus parentes
próximos a que alude Platão, são de todos os homens os que parecem mais
úteis à humanidade. No entanto são os únicos que não somente não
melhoraram a matéria-prima que se lhes confiou, como fazem o carpinteiro e o
pedreiro, mas a estragam e ainda cobram por tê-la estragado.”
1, 26, 140 (da educação das crianças) “Exponho aqui meus sentimentos e
opiniões, dou-os como os concebo e não como os concebem os outros; meu
único objetivo é analisar a mim mesmo e o resultado dessa análise pode,
amanhã, ser bem diferente do de hoje, se novas experiências me mudarem.
-106-
Não tenho autoridade para impor minha maneira de ver, nem o desejo,
sabendo-me demasiado mal instruído para instruir os outros.”
1, 40, 266 (sobre Demócrito e Heráclito) “Ao acaso escolho um assunto, pois
todos me são igualmente bons e não pretendo esgotar nenhum, porquanto de
nenhum chego a ver o fundo. E os que nos prometem mostrá-lo não cumprem
suas promessas”. “Entre cem aspectos da mesma coisa, tomo um. E ora o
debico apenas, ora o mordisco, ora vou até o osso.”
Recepção (Cont. 1)
Livro 2: 37 Ensaios;
2, 16, 12 (da glória) “Há em tudo o nome e a coisa. O nome é a palavra que
marca e significa a coisa: não faz parte dela, a ela não se incorpora; é um
acessório que se acresce, por fora”. Ele emprega Deus e o nome de Deus
como exemplo.
2, 16, 12 (da glória) “A glória a que aspiro é a de ter vivido tranqüilo, não como
o entendem Metrodoro, Arcesilau ou Aristipo e sim a meu modo. Em sendo a
filosofia incapaz de mostrar o caminho que conduz ao repouso da alma e a
todos convém, que cada qual por seu lado o procure”.
2, 16, 18 -19 (da glória) os estranhos o concebem pela aparência, mas ele é
outra coisa.
2, 17, 41 (da presunção) “A razão humana é uma espada de dois gumes,
perigosa de se manejar. Na própria mão de Sócrates apresenta mil e uma
soluções para o mesmo caso! Por isso sigo os outros e deixo-me arrastar pela
massa; não tenho bastante confiança em minhas forças para comandar e
dirigir; e apraz-me encontrar aberto o atalho pelo qual caminho. Se devo correr
o risco de uma escolha incerta, prefiro seguir alguém mais seguro de sua
opinião, à qual me filio mais do que à minha, a meu ver sempre assentada em
base escorregadia.
Entretanto, não sou homem a que iludam facilmente, tanto mais quanto distingo
muito bem o lado fraco das opiniões contrárias: ‘dar constantemente seu
assentimento pode acarretar mitos erros e perigos’ (Cícero). Isso é
principalmente verdadeiro nos negócios políticos, que apresentam um campo
-107-
aberto às discussões e incertezas: a balança cujos pratos se acham
carregados de pesos iguais, não se abaixa nem levante de nenhum lado
(Tibulo).
Os princípios de Maquiavel são, por exemplo, bastante sérios a esse respeito,
e no entanto têm sido facilmente refutados, e os que os refutam apresentam
razões igualmente refutáveis. Qualquer argumento encontra sempre duas, três
ou quatro réplicas, sem contar que dão azo a inextricáveis debates,
prolongados ainda pela chicana a fim de que não se encerre a discussão:
‘vence-nos o inimigo, vencemo-lo por nosso turno’ (Horácio). As razões de
ambas as partes assentam unicamente na experiência, e os acontecimentos
humanos produzem-se sob tantas formas que, em cada caso, infinitos são os
exemplos.
Assim penso das discussões políticas: qualquer que seja a tese, teremos a
mesma probabilidade de acertar que os nossos adversários, conquanto não
nos choquemos de encontro a princípios elementares e evidentes. Entretanto,
nos negócios públicos, não há direção, por má que seja, que, se continuamente
seguida durante algum tempo, não se deva preferir a mudanças perturbadoras.
Nossos costumes são por demais corruptos e tendem a piorar; entre nossas
leis e nossos usos, muitos há bárbaros e monstruosos; entretanto, em razão da
dificuldade em melhorar o que existe e do perigo da destruição atribuível a
qualquer mudança, se pudesse cravar uma cunha que sustasse o movimento
de nossa roda do ponto em que se acha eu o faria de bom grado: ‘não há ação,
por vergonhosa e infame que seja que não encontre pior’.
Recepção (Cont. 2)
Livro 3: 13 Ensaios
3, 5, 221 (a propósito de Virgílio) “Devo ao público um retrato realista de mim.
Estes ensaios são edificantes porque a verdade, a realidade e a liberdade
neles reinam. Recuso-me a trocar um dever real por essas regras mesquinhas,
hipócritas, fictícias e de uso restrito. Atenho-me às leis gerais e constantes que
a natureza nos dita e de que são filhas, mas filhas bastardas, a civilidade e as
convenções sociais. Que importam os vícios que parecemos ter, ao lado dos
-108-
que realmente temos? Quando houvermos acabado com estes, atacaremos os
outros se acharmos necessário. Pois corremos perigo em imaginar novos
deveres a fim de desculpar-nos por não termos cumprido os verdadeiros,
estabelecendo a confusão. Assim acontece, como em certos países, serem os
crimes erros e os erros crimes; e em outras nações, em que as regras da boa
educação são poucas e sem conseqüência, o bom-senso faz que se observem
mais estritamente as leis naturais. A multidão inumerável dos deveres exige tal
atenção, que chegamos a negligenciá-los e ouvida-los. Um excesso de
aplicação às cosias de nonada desvia-nos das importantes. Fácil é o caminho
homens que vêem as coisas superficialmente! Todas essas convenções não
passam de pára-ventos atrás dos quais nos confiamos e regulamos nossa
relações sociais; mas não nos permitem libertar-nos, antes aumentam nossos
deveres para com o grande juiz que, afastando trapos e ouropéis, nos examina
em nossa nudez total, pois não lhe escapam nem mesmo as nossas vergonhas
e os nossos vícios mais secretos”.
3, 9, 268 (da vaidade) “Acho que servir ao público e ser útil ao maior número é
o que de mais honroso, ‘nunca apreciamos melhor os frutos do gênio e da
virtude como quando os repartimos com o próximo’ (Cícero)”. Lembra que
Platão se negou a cargos públicos, ele também o faz.
3, 9, 271 (da vaidade) “De qualquer jeito que se coloquem os homens, juntam-
se e se ordenam, como esses objetos heterogêneos que pomos no bolso e que
acabam por se ajeitar sozinhos, por vezes melhor do que o faríamos”.
3, 9, 291 (da vaidade) “Cabe aos bons escritores, aos que escrevem coisas
úteis, fixá-la [a língua] até certo ponto; quanto à duração da mudança,
dependerá de nosso estado político. Não hesito entretanto em introduzir aqui
alguns temas que são mais da alçada de certas pessoas de nossa época, que
se especializaram em determinadas ciências; compreendê-los-ão por isso
melhor do que a generalidade de meus leitores”.
3, 9, 300 (da vaidade) “O leitor distraído é que perde de vista meu tema; eu
não. Sempre, em algum lugar, umas poucas palavras hão de mostrar que o
tenho em mente. Passo de um assunto a outro sem regra nem transição; meu
estilo e meu espírito vagabundeiam juntos”.
-109-
Natureza e Governo
Trata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.
Livro 1: 57 Ensaios;
1, 3, 40 homem de natureza pouco definida e julga diversamente as coisas.
1, 3, 39 pouco disposto a paixões violentas.
1, 6, 50 a guerra admite como lícitas práticas condenáveis.
1, 9, 55 os negócios públicos exigem boa memória. (-) memória = (+) verdade.
1, 10, 59 conhece por experiência os que dispensam os estudos e falam com
alegria de improviso.
1, 20, 97 (de como filosofar...) “Em verdade, sem certa anuência da natureza é
difícil que a arte e a indústria progridam nas obras que produzem. Eu não sou
melancólico, sou sonhador”
1, 20, 102 (de como filosofar...) “A natureza nos ensina: saís deste mundo
como nele entrastes”.
1, 23, 117 (dos costumes e da...) “Os milagres decorrem de nossa ignorância
da natureza”...
1, 23, 122 (dos costumes e da...) “imaginamos” que as idéias aceitas em torno
de nós, trazidas pelos nosso pais, “são absolutas e ditadas pela natureza”
1, 23, 122 (dos costumes...) “Os povos, afeitos à liberdade e a se governarem
por si mesmo, encaram qualquer outra forma de governo como monstruosa e
contrárias à natureza”.
1, 25, 141 (do pedantismo) “A natureza, para mostrar que não nada
selvagem em sua obra, permite que surjam nos países onde as artes se acham
menos desenvolvidas produções do espírito que ombreiam com as demais
admiráveis.”
1, 28, 178 (da amizade) “A natureza parece muito particularmente interessada
em implantar em nós a necessidade das relações de amizade e Aristóteles
afirma que os bons legisladores se preocupam mais com essas relações do
que com a justiça.”
1, 30 189 (da moderação) “Calicles tem razão: levada ao exagero, a filosofia
escraviza nossa franqueza natural e, mediante sutilezas importunas, nos
desvia do belo caminho que a natureza nos traça.”
-110-
1, 30, 195 (dos canibais) “àqueles que alteramos por processos de cultura e
cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto
[de selvagem]”.
1, 30, 195 (dos canibais) “As qualidades e propriedades dos primeiros são
vivas, vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las
nos outros a fim de melhor as adaptar a nosso gosto corrompido”.
1, 30, 195 (dos canibais) “Não razão para que a arte sobrepuje em suas
obras a natureza, nossa grande e poderosa mão. Sobrecarregamos de tal
modo a beleza e riqueza de seus produtos com as nossas invenções, que a
abafamos completamente”.
1, 30, 196 (dos canibais) “As leis da natureza, não ainda pervertidas pela
imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que
lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando
havia homens capazes de apreciá-las”.
1, 30, 195 (dos canibais) “Lamento que Licurgo e Platão não tenham ouvido
falar delas, pois sou de opinião que o que vemos praticarem esses povos, não
somente ultrapassa as magníficas descrições que nos deu a poesia da idade
de ouro, e tudo o que imaginou como suscetível de realizar a felicidade perfeita
sobre a terra, mas também as concepções e aspirações da filosofia”.
1, 30, 195 (dos canibais) “Ninguém concebeu jamais uma simplicidade natural
elevada a tal grau, nem ninguém jamais acreditou pudesse a sociedade
subsistir com tão poucos artifícios. É um país, diria eu a Platão, onde não
comércio de qualquer natureza, nem literatura nem matemáticas; onde não se
conhece sequer de nome um magistrado; onde não existe hierarquia política,
nem domesticidade, nem ricos e pobres”. ... “as próprias palavras que
exprimem a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a calúnia e
o perdão excepcionalmente se ouvem”. “Como essas, foram as primeiras
leis da natureza (Virgílio)”.
1, 30, 203 (dos canibais) “Três dentre eles (e como lastimo que se tenham
deixado tentar pela novidade e trocado seu clima suave pelo nosso!),
ignorando quanto lhes custará de tranqüilidade e felicidade o conhecimento de
nossos costumes corrompidos, e quão rápida será a sua perda, que suponho já
iniciada, estiveram em Ruão quando ali se encontrava Carlos IX”. Estranharam
barbudos obedecendo criança e a metade faminta não se insurja contra os
-111-
alimentados. Tudo isso é interessante, “mas, que diabo, essa gente não usa
calças!”
1, 36, 210 (do hábito de se vestir) “...e pergunto a mim mesmo se o fazem
[andam nus] por causa da temperatura elevada (como o dizem, no que respeita
aos índios e aos mouros) ou porque originalmente assim andaram os homens.
Estando tudo o que sob os céus submetido (1) às mesmas leis, como diz a (A)
Bíblia, admitem as pessoas sensatas que nas questões dessa ordem, para
distinguir as (1.1) leis naturais das (1.2) por nós inventadas, é preciso que nos
reportemos às regras gerais que presidem ao trabalho da (B) natureza neste
mundo e que não sofrem alteração”.
1, 36, 211 (do hábito de se vestir) “É fácil de se compreender que é o costume
que nos faz parecer natural o que não o é, pois, entre os povos que não usam
roupa, alguns habitam em climas semelhantes ao nosso e outros bem mais
rudes.
1, 41, 269 (vãs são as palavras) “As repúblicas bem organizadas e
administradas não deram muita importância aos oradores. Assim foi em Creta e
na Lacedemônia. [...] Sócrates e Platão a definem como a arte de enganar e
adular”.
Natureza e Governo (Cont. 1)
Livro 2: 37 Ensaios;
2, 1, 291 (da incoerência de nossas ações) “Os que se dedicam à crítica das
ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram
agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois
estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um
mesmo indivíduo.”
2, 1, 291 (da incoerência de nossas ações) “É aparentemente possível julgar
um homem pelos fatos mais comuns de sua vida; mas, dada a instabilidade
natural de nosso costumes e opiniões, pareceu-me muitas vezes que os
melhores autores erravam em se obstinar a dar de alguém uma idéia bem
assentada e lógica. Adotam um princípio geral e de acordo com este ordenam
e interpretam as ações, tomando o partido de as dissimular quando não as
deformam para que entrem dentro do molde preconcebido”.
-112-
2, 1, 292 (da incoerência de nossa ações) “Hesitamos em tomar partido; nada
decidimos livremente, de maneira absoluta, coerente. Se alguém traçasse e
estabelecesse determinadas leis de conduta e regime político de vida,
veríamos brilhar em seus atos e atitudes uma harmonia cabal e em seus
costumes uma ordem e uma correlação evidentes”.
2, 1, 292 (da incoerência de nossas ações) “Somos todos constituídos de
peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona
independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós e
nós mesmos quanto entre nós e outrem: ‘Crede-me, não é coisa fácil conduzir-
se como um homem’”. É muito difícil julgar alguém pelos seus atos
exteriores, é preciso penetrar na pessoa, e como isso é difícil, recomenda que
poucas pessoas o façam.
2, 2, 296 (da embriaguez) “O mundo não é senão variedade e dessemelhança.
Os vícios têm em comum o fato de serem vícios”. [...] “Há tanta diversidade no
vício quanto em qualquer outra coisa”.
2, 8, 331 (da afeição dos pais pelos filhos) “Se alguma lei natural existe, isto é,
algum instinto que se manifeste sempre em todos, bichos e gente (embora haja
quem diga o contrário), é, ao meu ver, a da afeição que quem engendra dedica
ao engendrado, sentimento esse que vem logo após o cuidado que cada qual
tem com a sua conservação e com evitar o que lhe pode ser nocivo. A própria
natureza o parece ter desejado, a fim de que as diferentes peças da maquina
por ela criada se desenvolvam e prodigam”.
2, 23, 61 (dos meios e dos fins) “Existe na organização da natureza uma
maravilhosa correlação e uma similitude que não resultam do acaso nem
podem provir da vontade de muitos. As doenças, as condições diversas de
nosso corpo, vêem-se também nos Estados e governos. Como os indivíduos,
os reinos e repúblicas nascem, crescem e definham ao ser atingidos pela
idade”.
2, 30, 83 (a propósito de uma criança monstruosa) “Esse duplo corpo e esses
múltiplos membros ligados a uma só cabeça, poderiam muito bem constituir um
bom prognóstico para o nosso rei, pressagiando a coexistência de vários
partidos sob as suas leis. Mas é melhor deixá-lo de lado, pois os
acontecimentos podem desmenti-lo. É mais seguro prognosticar os fatos
consumados ‘mediante interpretações que os enquadrem nas conjeturas’,
-113-
como diz Cícero e também Epimênides, de quem afirmavam que adivinhava
‘para trás’.”
2, 30, 83 (a propósito de uma criança monstruosa) Só Deus pode saber o que é
monstruoso, o que se apresenta para os homens não o são para os olhos
divinos. Acredito que ele quer descaradamente influenciar, tal como Schaefer o
fala. “Tudo o que emana de Sua infinita sabedoria é belo e decorre de leis
gerais; mas, as relações dessas coisas entre si e sua ordenação escapam-
nos”.
2, 37, 122 (da semelhança dos filhos com os pais) “Não sou hostil ao
aproveitamento dos produtos naturais e não duvido da eficiência dos recursos
da natureza, nem da possibilidade de os utilizarmos. Bem vejo como os
pássaros e os peixes têm razão de confiarem nela, desconfio das intervenções
de nosso espírito, de nossa ciência, de nossa arte que não sabemos conter
dentro de prudentes limites e pelas quais nós abandonamos a natureza e suas
leis”.
Natureza e Governo (Cont. 2)
Livro 3: 13 Ensaios
3, 1, 141 (do útil e do honesto) “Como quer que encaremos este nosso mundo,
vemo-lo cheio de imperfeições; nada é inútil entretanto na natureza, nem
mesmo as inutilidades. Nada existe que não tenha sua aplicação. Nosso ser é
um aglomerado de qualidades que são ao mesmo tempo defeitos”.
3, 1, 147 (do útil e do honesto) “A justiça em si, em seu estado natural, é
universal e tem regras diferentes e mais elevadas do que essa justiça especial,
nacional e condicionada às necessidades dos governos: ‘Não temos modelo
sólido e positivo do verdadeiro direito e da justiça perfeita; temos apenas uma
imagem dela, uma sombra’ (Cícero).
3, 6, 236 (dos coches) “Nosso mundo acaba de descobrir outro não menor,
nem menos povoado e organizado do que o nosso (e quem nos diz que será o
último?) e, no entanto, tão jovem, que ignora o a-bê-cê [...] Receio, porém, que
venhamos a apressar a decadência desse novo mundo com nosso contato e
que ele deva pagar caro nossas artes e idéias”.
-114-
3, 9, 273 (da vaidade) “Pois todas as medidas imaginadas artificialmente [para
organizarem os homens por meio das leis] revelam-se ridículas e ineptas na
prática. Essas grandes e prolixas discussões acerca da melhor forma de
governo somente são úteis como exercícios espirituais, semelhantes nisso a
certas questões artísticas que interessam como temas de controvérsia,
porquanto fora desse clima não existem. Alguns desses projetos de governo
poderiam talvez aplicar-se a um muno novo, mas estamos em um mundo
velho em que reinam certo costumes; não o criamos, nós outros, como fizeram
Pirro ou Cadmo. Quaisquer que sejam as possibilidades que tenhamos de
corrigi-lo e reorganizá-lo, não podemos, sem o quebrar, dobrá-lo até perder o
vinco antigo. [...] A melhor forma de governo de um país é aquela que vem
sendo adotada tradicionalmente e não a ideal, pois sua eficiência depende
somente dos costumes. Nós nos queixamos das condições presentes; mas
creio errado querer, em uma democracia, que o poder se concentre em poucas
mão, ou, numa monarquia, que outro governo substitua o existente [...] Nada
me parece mais grave par um país do que uma mudança radical. Esta é que
permite o aparecimento da tirania e da injustiça. Quando uma peça qualquer se
estraga, cabe consertá-la, pois assim podemos evitar que a alteração e a
corrupção inerentes a todas as coisas não nos afastem demasiado de nossos
princípios e instituições; mas querer refundir tão grande massa e trocar os
alicerces de tamanho edifício é fazer como os que, para melhorar, apagam
tudo, para corrigir um defeito tudo desmantelam, para curar matam o doente:
‘Não é bem mudar que pretendem; é destruir’(Cícero)”. [Aqui as analogias
remetem a comparação do Estado a um corpo refém de procedimentos da
medicina] [...] todas as grandes mudanças abalam o Estado e provocam a
desordem. “Quem consultasse os interessados antes de tentar a cura ficaria
logo hesitante”.
3, 9, 274 (da vaidade) “A conservação dos Estados é coisa que provavelmente
ultrapassa nossa inteligência. Um governo é, como diz Platão, uma força difícil
de se dissolver; resiste muitas vezes a doenças mortais que o roem
interiormente; mantém-se, apesar das leis injustas, a despeito da tirania, da
prevaricação, da ignorância dos magistrados, da licença e da sedição dos
povos”.
-115-
3, 9, 275 (da vaidade) “Se o mal é universal, podemos encontrar nessa
generalização razões de sobra para nos consolarmos e até a esperança de
durarmos, pois nada cai quando tudo cai. Uma doença que a todos atinge
torna-se um estado normal de saúde para os indivíduos. Onde tudo é igual não
pode haver dissolução”.
3, 9, 280 (da vaidade) “Já me dão muito os príncipes, quando nada me tiram, e
fazem-me um bem suficiente quando não me prejudicam. E tudo o que lhes
peco. Como agradeço a Deus por somente dever a Sua bondade, tudo o eu
possuo!”
3, 9, 283 (da vaidade) “A febre atual atacou nosso corpo, sem entretanto
agravar o estado em que se encontrava; a brasa dormia e agora surge a
chama, eis tudo”.
3, 9, 296 (da vaidade) “’Devemos agir de maneira a não ir de encontro à
natureza universal, sem entretanto deixar de seguir nossos próprias
tendências’”(Cícero).
3, 10, 310 (do domínio da própria vontade) “As leis da natureza nos ensinam.
Os sábios dizem que a natureza não faz indigentes e quem o é, o é em
conseqüência da desordem de sua imaginação. E distinguem com sutileza os
desejos naturais dos que nós mesmos criamos. Os que são realizáveis vêm
dela; os que não podemos satisfazer nascem de nossa fantasia. A pobreza de
bens é facilmente remediável; a da alma não tem cura. ‘Se o homem se
contentasse com o suficiente, eu seria rico; mas como o homem não contenta,
não há riqueza bastante para mim’ (Lucílio).
3, 10, 311 (do domínio da própria vontade) “A natureza exige muito pouco para
nossa conservação, tão pouco que foge aos golpes possíveis da sorte.
Entretanto, permitam-nos algo mais e chamemos natureza aos costumes e
situação pessoal e fixemos assim os limites de nossas aspirações, levando em
conta o que possuímos. Parece-me desculpável agir desse modo, pois os
costumes são uma segunda natureza, tão poderosa quanto a primeira”.
3, 11, 324 (dos coxos) “Nosso raciocínio é capaz de reconstruir um mundo
como o nosso e descobrir-lhe os princípios e a organização; não precisa para
tanto nem de base nem de materiais; basta-lhe deixar-se levar, ‘hábil que é em
dar um corpo a fumaça’ (Pérsio). Constrói tão bem sobre o vazio como sobre o
cheio, com nada como com alguma coisa”.
-116-
3, 11, 325 (dos coxos) “Disso resulta conhecermos as causas e os efeitos de
mil coisas que nunca existiram, e discutirem os indivíduos acerca de assuntos
em que o pró e o contra são igualmente falsos...”.
3, 11, 325 (dos coxos) “O erro individual forma o erro público, o qual, por sua
vez, cria o erro individual. Assim, vai-se a coisas enraizando, de mão em mão,
a ponto de cada nova testemunha se achar mais bem-informada do que a
precedente, e a última mais convencida do que a primeira. É uma progressão
natural; quem quer que acredite em algumas coisas, considera obra convencer
a outrem”.
3, 12, 332 (da fisionomia) “Nosso mundo é feito de ostentação; os homens
incham-se de vento e andam aos saltos como os balões”.
3, 12, 332 (da fisionomia) “Nessas doenças dos povos, podem-se, no início
distinguir os enfermos dos sãos. Mas quando a doença se prolonga, como em
nosso caso, todo o corpo se ressente, da cabeça aos pés, nenhuma parte
permanece isenta de corrupção, pois não ar que mais gulosamente se
respire e penetre um organismo do que o ar da licença”.
3, 13, 355 (da fisionomia) “A natureza cria sempre leis melhores do que as
nossas. Atestam-no a idade de ouro de que falam os poetas e o estado natural
em que vemos viverem os povos que não conhecem leis artificiais”.
3, 13, 361 (da experiência) “Nesse grande todo abandono-me despreocupado e
ignorante à grande lei geral que rege o mundo; conhecê-la-ei suficientemente
quando lhe sentir os efeitos. Meu saber não pode afastá-la de seu caminho;
não se modificará por mim, seria loucura esperá-lo; e maior loucura ainda
aborrecer-me, pois necessariamente é ela igual, para todos e a todos se aplica.
A bondade, o poder de quem governa o mundo exime-nos de qualquer
ingerência em suas leis. As pesquisas e as contemplações dos filósofos
servem apenas de alimento para nossa curiosidade. Têm razão quando
apontam a natureza; mas de que vale tão sublime conhecimento?”
3, 13, 389 (da experiência) “Mas eu, homem de gosto pouco requintado, não
posso ventilar tão singelo tema sem deixar de inclinar-me fortemente para os
prazeres presentes da lei humana e geral, intelectualmente sensíveis e
sensivelmente intelectuais”.
3, 13, 390 (da experiência) “A boa mãe natureza fez que os atos que somos
instigados a praticar, para satisfazer às nossas necessidades, nos dessem
-117-
igualmente prazer. Incita-nos não somente pela razão mas ainda pelo desejo, e
é erro ir de encontro a suas regras”.
3, 13, 390 (da experiência) “Não soubesses então dirigir a vossa vida? Tereis
nesse caso cumprido a mais bela das tarefas. Para se manifestar e frutificar, a
natureza não precisa da fortuna; sua ação se exerce em todas as condições
sociais: às ocultas como a descoberto”.
Máscara
Trata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.
Livro 1: 57 Ensaios;
1, 19, 91 (somente depois da morte...) “na última cena, a que se apresenta
entre nós e a morte, não há como fingir”
1, 9, 57 o campo de ação da mentira não comporta limites; não tem força de
vontade para não fazer uso da mentira em situação perigosa.
1, 23, 117 (dos costumes e da...) ... “a questão religiosa, a que misturam tantas
imposturas”...
1, 23, 126 (dos costumes...) “empregam eufemismos para qualificar as piores
paixões políticas, para apresentá-la de um ângulo favorável, desculpar-lhes os
atos, alterar e atenuar as idéias que teriam despertado se usassem seus
verdadeiros nomes.”
1, 23, 127 (dos costumes...) “E direi francamente que me parece sinal de
excessivo amor-próprio e grande presunção valorizar alguém sua opinião a
ponto de tentar, a fim de vê-la triunfar, subverter a paz pública em seu próprio
país, facilitando o advento dos males inevitáveis inerentes à guerra civil, sem
falar no horrível corrupção da moral e nas mutações políticas que podem
ocorrer.”
1, 38, 217 (como uma mesma coisa nos faz rir e chorar) “Sem dúvida nossas
ações, em sua maioria, são máscara e artifício, e é verdade por vezes que ‘as
lágrimas do herdeiro se fazem risos sob a máscara’ (Públio Siro). Segue-se
disso a explicação das diversas paixões que agitam a alma. Humores,
sentimentos, idiotia; a alma muda o ponto de vista, com outros olhos, por
outros ângulos, diferentes lados e aspectos diversos.
-118-
1, 25, 143 (do pedantismo) “Pois detesto as pessoas que suportam mais
dificilmente um terno mal feito do que uma alma e julgam a qualidade do
homem pelas reverências, as atitudes, e as botas.”
1, 32, 203 (de como é preciso prudência...) “No desconhecido situa-se o
verdadeiro campo de ação da impostura; porque a própria extravagância a
favorece e lhe crédito, porque, escapando à razão comum, não temos
meios para a combater.” Fabula, alquimia, quiromancia, alguns teólogos.
Máscara (Cont. 1)
Livro 2: 37 Ensaios;
2, 1, 295 (da incoerência de nossas ações) “Somos um amontoado de peças
juntadas inarmonicamente e queremos que nos honrem quando não o
merecemos. A virtude vale por si mesma; se para outro fim tomamos a sua
máscara, logo ela no-la arranca da cara. Quando nossa alma se impregna dela,
forma ela uma espécie de verniz fortemente adesivo que se tira com a
própria pele”. Assim, para conhecer alguém é preciso seguir os seus passos e
achar a constância, se mostrar diferente, abandonemo-lo.
2, 8, 331 (da afeição dos pais pelos filhos) “...devemos atentar para os
desígnios da natureza, sem contudo nos escravizarmos a ela, pois somente a
razão deve regular as nossa inclinações”.
2, 10, 348 (dos livros) “O que escrevo resulta de minhas faculdades naturais e
não do que se adquire pelo estudo”.
2, 11, 358 (da crueldade) “Parece-me que a virtude é coisa diferente, e mais
nobre, do que as inclinações para a bondade, que nascem em nós. As almas
nascidas e naturalmente bem equilibradas seguem caminhos idênticos e
apresentam em suas ações fisionomia igual à das virtuosas. Mas a virtude
revela não sei que de maior, mais ativo, do que deixar-se, sob a influência de
uma feliz compleição, serenamente conduzir pela razão.”
2, 11, 358 (da crueldade) Virtude não é apenas fazer o bem. “... que a virtude
recusa a companhia da felicidade; e que esse caminho cômodo, de declive
suave, pelo qual nos deixamos levar naturalmente, não é o da verdadeira
virtude. O caminho desta é árduo e espinhoso”.
-119-
2, 11, 362 (da crueldade) Ele está procurando uma definição de virtude e chega
em Platão. “Quem tem em seu cérebro algumas noções, embora sucintas, de
filosofia, poderá representar-se Sócrates em sua prisão, acorrentado e
condenado, livre unicamente de seus temores?” Quer induzir que havia em
nele a virtude.
2, 17, 22 (da presunção) “Há outro tipo de glória que consiste em termos
opinião demasiado boa de nós mesmos. Essa afeição imprudente faz que nos
representemos aos nossos próprios olhos diferentes do que somos. E atua
como a paixão amorosa, que empresta ao objeto de seu amor a beleza e a
graça, turvando e alterando a razão de quem ama e fazendo da pessoa amada
um ser muito mais perfeito do que é.”
2, 17, 23 (da presunção) ele acredita que não segue as convenções ao falar de
si mesmo e seus atos.
2, 17, 35 (da presunção) Em relação ao século: “Quanto a essa nova virtude do
artifício e da dissimulação, tão apreciada nestas eras, odeio-a supremamente.
Entre todos os vícios, não conheço nenhum que revele tanta covardia e tanta
covardia e tanta baixeza. É característico da covardia e do servilismo, e
predispõe à perfídia, fantasiar-se e mascarar-se e não se mostrar como se é”.
2, 17, 35 (da presunção) “Não sei que vantagem podem esperar dissimulando
e agindo continuamente ao contrário do que pensam, senão a de que os outros
acreditam como quando falam a verdade”. Mas dizer abertamente que quem
não dissimula o pensamento em público não governa, é dizer que se
governará com mentiras”.
2, 27, 68 (a covardia é mãe da crueldade) “Vi gente cruel ter a lágrima fácil a
propósito de coisas insignificantes”.
Máscara (Cont. 2)
Livro 3: 13 Ensaios
3, 1, 145 (do útil e do honesto) “As pessoas de duas caras são úteis pelo que
trazem, mas é preciso atalaia para que levem o menos possível”.
3, 1, 146 (do útil e do honesto) “...a própria inocência não poderia, em nossa
época, dispensar a dissimulação, nem negociar sem mentir. Daí não serem os
cargos públicos do meu agrado;”
-120-
3, 2, 156 (do arrependimento) “Só nos mesmos sabemos se somos covardes e
cruéis, ou leais e religiosos; não nos vêem os outros, tão-somente nos
adivinham de acordo com conjeturas duvidosas. Não é a nossa natureza real
que percebem, e sim a aparência que, mediante artifícios, conseguimos exibir”.
3, 2, 156 (do arrependimento) “Deliciosa é a vida de quem obedece à regra,
mesmo na intimidade. Todos podem fazer-se comediantes e representar o
papel de um personagem honesto. Mas dentro de nós, onde somos senhores,
onde tudo permanece secreto, é difícil não nos afastarmos da regra. E ser
ponderado em assunto que não suporta a interferência alheia, é aproximar-se
da perfeição”.
3, 2, 157 (do arrependimento) “Há quem passe aos olhos do mundo por ter
realizado milagres, sem que a mulher ou o criado o tenham percebido. Poucos
homens suscitaram a admiração de seus lacaios; ninguém é profeta em sua
casa, nem mesmo em seu país, dizem as lições da História”.
3, 2, 157 (do arrependimento) “E mesmo que os atos humildes da vida privada
se ordenassem admiravelmente, fora preciso um juízo penetrante e
particularmente lúcido para constatá-lo, pois a ordem é uma virtude sem brilho
e que não atrai atenção”. Ele fala das discrepâncias entre o que aparece para o
público e o que acontece no privado, na vida doméstica. Ele procura a
perfeição quando ambas se equilibrarem.
3, 2, 158 (do útil e do honesto) “O mérito da alma não consiste em se elevar
mais algo e sim em se conduzir ordenadamente. Sua grandeza não se
manifesta na grandeza, mas na mediocridade”.
3, 2, 158 (do útil e do honesto) “Os que nos julgam pelas aparências brilhantes
que percebem de fora deduzem que por dentro somos iguais; não podem
estabelecer uma ligação entre as faculdades comuns, semelhantes às deles e
que também existem em nós, e as que os espantam e se acham tão longe do
que procuram ver”.
3, 2, 159 (do arrependimento) “... antes me encontro sempre bem firme em
meu equilíbrio, como os corpos pesados e maciços. Se não estou na inteira
posse de mim mesmo, acho-me no ponto de me dominar”.
3, 2, 159 (do arrependimento) “O que verdadeiramente nos condena, e afeta a
maneira de se ser de todos, é que o próprio arrependimento se acha
corrompido pelas más intenções. Temos apenas confusamente o desejo de
-121-
nos corrigir, iludimos a penitência e nos conduzimos então pior ainda do que no
pecado”.
3, 9, 283 (da vaidade) “Não quero esquecer-me de que, por mais irritado que
ande contra a França, não deixo de olhar Paris com bons olhos. Esta cidade
conquistou-me o coração desde criança e quanto mais belas cidades conheço
tanto mais ela cresce na minha afeição. Amo-a pelo que é e como é, e mais em
sua vida habitual do que nas épocas de festas; amo-a com ternura e até em
suas imperfeições e seus vícios; e só me sinto francês por causa dessa grande
cidade, grande pelo seu povo e pela sua localização, e grande ainda, e
principalmente, pela variedade e diversidade dos prazeres e vantagens que
nos oferece. É a glória de França e um dos mais nobres ornamentos do
mundo. Que Deus afaste dela as nossas dissensões!”
3, 9, 287 (da vaidade) “Na verdadeira amizade, e bem a conheço, damos ao
amigo mais do que tiramos. Não somente prefiro fazer-lhe bem a receber dele
favores mas ainda prefiro que o faça a si mesmo a fazê-lo a mim”.
3, 9, 289 (da vaidade) “Tiro deste estudo de meus costumes um inesperado
proveito: serve-me até certo ponto de regra de conduta. Obriga-me por vezes a
não desmentir o que sempre fui. Esta declaração pública força-me a manter-me
obediente à direção tomada e a não desacreditar a descrição de minhas
condições, por certo menos desfiguradas e contraditórias do que seriam
através de falsos juízos”.
3, 9, 290 (da vaidade) “Gostaria de viver em um país onde tais questões
[cargos e honrarias] fossem reguladas ou desprezadas”.
3, 9, 297 (da vaidade) “Vi outrora um senhor de boa sociedade dar ao público
por um lado um punhado de versos notáveis pela beleza e o despudor e por
outro propagar uma defesa violenta da Reforma. Assim são os homens; deixam
que os príncipes e as leis sigam um caminho e eles próprios seguem outro, e
não somente por desregramento de costumes, mas também porque não raro
pensam e julgam diferentemente”.
3, 9, 297 (da vaidade) “Sólon, por exemplo, ora se apresenta como indivíduo,
ora como legislador, falando ora para si mesmo, ora para as massas. No
primeiro caso atém-se às regras naturais e diz com liberdade o que pensa, ‘ao
passo que o doente grave precisa ser tratado pelos mais hábeis
médicos’(Juvenal).
-122-
3, 9, 298 (da vaidade) “Em todo caso essa liberdade discutível de se
apresentar com duas caras, uma nas palavras e outra nos fatos, será talvez
permitida a quem fale de certos assuntos, não a quem trate de si mesmo como
o faço”.
3, 9, 298 (da vaidade) “A virtude que as coisas deste mundo exigem é uma
virtude flexível, capaz de se adaptar à fraqueza humana; não é pura nem
simples; não é reta, constante, imaculada”.
3, 10, 312 (do domínio da própria vontade) “A maior parte das funções públicas
tem algo de cômico, ‘todos representam’, dizia Petrônio. Cumpre desempenhar
devidamente seu papel, mas sem transformar a máscara e a aparência em
realidade nem deixar que o estranho se encarne em nós. Não sabemos
distinguir a pele da camisa. Basta enfarinhar o rosto, não é preciso mascarar
igualmente o peito. quem mude e se transforme em outro ser segundo o
cargo que assume; neste mergulham até o fígado e os intestinos e mesmo na
vida privada agem como se estivessem no exercício de suas funções. Gostaria
de ensinar-lhes a diferençar as saudações que se dirigem a suas pessoas das
que visam o mandado, o séquito ou a mula que montam”.
3, 10, 310 (do domínio da própria vontade) “Montaigne prefeito e Montaigne
simples particular sempre foram homens distintos”.
3, 10, 319 (do domínio da própria vontade) “Em sua maioria os acordos com
que hoje pomos fim a nossas dissensões são vergonhosos e hipócritas;
procuramos apenas salvar as aparências e por isso traímos e negamos nossas
verdadeiras intenções. Sabemos em que circunstâncias falamos, o sentido que
deve ser dado às nossas palavras; sabem-no também os assistentes, como
sabem igualmente os amigos perante os quais quisemos engrandecer-nos. De
forma que é a expensas da nossa fraqueza, de nossa honra e de nossa
coragem que negamos nosso pensamento; e buscamos as escapatórias da
falsidade para alcançar o acordo”.
-123-
Lei
Trata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.
Livro 1: 57 Ensaios;
1, 3, 40 príncipe submetido a leis, devemos-lhe disciplina e obediência sincera;
justiça privada e prejuízo público.
1, 23, 115-129 (dos costumes e da inconveniência de mudar sem maiores
cuidados as leis em vigor) lei decorre do hábito
1, 23, 122 (dos costumes...) “As leis da natureza nascem dos costumes”, pois
todos aclamam os que existem em sua sociedade
1, 23, 123 (dos costumes...) o pudor se impõe pelo costume, não pela
natureza.
1, 23, 125 (dos costumes...) “Observar as leis do país em que nos encontramos
e a primeira das regras, e uma lei que prima sobre as demais: ‘e belo obedecer
às leis de seu país’.”
1, 23, 125 (dos costumes...) “Encaremos a questão por outro ponto de vista. É
duvidoso que a vantagem que pode haver em modificar uma lei por todos
acatada, seja incontestavelmente maior do que o mal resultante da mudança;
tanto mais quanto os usos e costumes de um povo são como um edifício
constituído de peças diversas de tal maneira juntadas que é impossível abalar
uma sem que o abalo se comunique ao conjunto.”
1, 23, 126 (dos costumes...) “As nossas próprias leis, feitas para remediar o
mal inicial, fornecem meios e desculpas a todos os maus empreendimentos.”
1, 23, 128 (dos costumes...) “No que diz respeito à grande querela que nos
divide atualmente, em que cem artigos a suprimir ou a introduzir e todos de
primeira importância, Deus sabe quantas pessoas podem vangloriar-se de
terem estudado as razões essenciais, a favor ou contra, de cada partido.”
1, 39, 223 (da solidão) Por que, desobedecendo às suas leis, nos colocaríamos
no que respeita à nossa comodidade, sob a dependência de outrem?
Lei (Cont. 1)
Livro 2: 37 Ensaios;
-124-
2, 8, 341 (da afeição dos pais pelos filhos) “Em geral a melhor partilha que
podemos fazer de nossos bens ao morrer consiste em obedecer aos costumes
do país, e as leis os levaram em conta melhor do que faríamos, e é preferível
que elas se enganem na escolha a incorrermos nós mesmos no erro agindo
inconsideradamente”.
2, 17, 42 (da presunção) “As nossas leis, como as nossas roupas, não têm
forma definitiva. É fácil acusar um governo de imperfeição, coisas comum a
tudo o que é mortal; é fácil impelir o povo ao desprezo pelo que apreciava
antes; quem quer que o tenha tentado alcançou-o. Mas substituir por algo
melhor o que se destruiu, muitos o experimentaram sem resultado. Em minha
conduta, dou pouca importância à minha própria opinião; sigo aquilo que
assegura a ordem pública. Feliz o povo que faz o que lhe ordenam melhor do
que quem ordena, e entrega serenamente à Providência. Quem discute e
critica nunca obedece sem segunda intenção, e totalmente.”
2, 27, 74 (a covardia é a mãe da crueldade) “Tudo o que ultrapassa a morte
pura e simples se me afigura cruel. Nossa justiça não pode esperar que se
amedronte ante a morte pelo fogo ou tortura, e deixe de cometer crimes, quem
os comete apesar da ameaça da forca e da decapitação. Ademais, suspeito
que estejamos instigando ao desespero aqueles a quem infligimos tais
suplícios, pois em que estado da alma pode achar-se um home que permanece
vinte e quatro horas sobre uma roda, membros partidos, ou pregado a uma
cruz como outrora?”
2, 37, 122 (da semelhança dos filhos com os pais) “Assim como enfeitamos
como o nome de justiça um amontoado de leis, não raro aplicadas de maneira
inepta e iníqua (e quem as critica não pensa em condenar a nobre virtude mas
tão-somente o abuso de colarem um respeitável rótulo em tão lamentável
sistema)”... ele está fazendo uma analogia com a medicina.
Lei (Cont. 2)
Livro 3: 13 Ensaios
3, 1, 145-146 (do útil e do honesto) “Pouparam-me as leis graves dificuldades:
indicaram-me o partido que me cumpria tomar, apontaram-me o meu chefe;”
[...] Nossa vontade e nossos desejos a eles mesmos obedecem, mas
-125-
nossos atos devem atentar para as leis que regulam e resguardam a ordem
pública”.
3, 9, 272 (da vaidade) “A necessidade reúne e acomoda os homens e essa
ligação fortuita transforma-se em seguida em leis; entre as quais se deparam
as mais selvagens imagináveis, deram resultados mais felizes e duradouros do
que as que Platão e Aristóteles teriam sido capazes de fazer”.
3, 9, 278 (da vaidade) “Lamento não estar protegido por leis e ser obrigado a
buscar outra salvaguarda. Vivo assim em boa parte graças à benevolência
alheia, o que me pesa extraordinariamente”.
3, 9, 297 (da vaidade) “Como nossa licença nos solicita quase sempre mais do
que o razoável, não raro apertaram-se mais do que fora indicado às leis e os
preceitos de nossa vida. ‘Nunca se pensa delinqüir além do limite permitido’
(Juvenal). Seria desejável que entre a ordem e a obediência houvesse mais
justa proporção; parece estúpido propor-nos um objetivo que não temos a
possibilidade de atingir. Não há homem de bem, dedicado aos estudos das leis,
que não se encontre de vezes na vida no caso de ser condenado à forca. E
entre eles alguns seriam punidos mui injustamente”.
3, 9, 298 (da vaidade) “Estamos longe de ser gente de bem segundo a doutrina
divina. Nem o poderíamos ser com as regras que nós mesmos criamos. A
sabedoria humana não cumpriu jamais os deveres que ela própria se propôs;
se o houvesse conseguido, estabeleceria desde logo outros mais rigorosos
ainda, pois nossa natureza é hostil a tudo o que é realizável. O homem obriga-
se a si mesmo continuamente a errar e passa a vida a criar deveres feitos para
outros seres que não ele. Por que determinar o que não se espera que alguém
cumpra? Teremos culpa de não fazer o impossível? As leis que nos condenam
ao que não podemos, condenam-nos pelo que não podemos”.
3, 9, 300 (da vaidade) “Enquanto souber da existência de algum representante
das leis que a monarquia nos deu, não o abandonarei; mas se porventura uma
cisão se verificasse sob a ação dos partidos contrários que as entravam, e a
escolha entre os dois fosse difícil e duvidosa, creio que me decidiria por fugir à
tempestade, no que, possivelmente, fora ajudado pela natureza ou os azares
da guerra”.
3, 13, 355 (da experiência) Não concorda que a quantidade de leis diminua o
poder do juiz. Os legisladores inventaram cem mil leis e não deram fim a infinita
-126-
quantidade de exemplos na experiência humana. “Pouca relação existe entre
nossos atos, sempre em perpétua transformação, e as leis que são fixas e
estáticas. O mais desejável a esse respeito é que estas sejam as mais simples
possíveis e concebidas em termos gerais;”
3, 13, 359 (da experiência) “Considerai as formas de justiça que nos rege: são
um autêntico testemunho da imbecilidade humana, tal o número de
contradições e erros que computam”. “[...] Quantos inocentes sabemos terem
sido punidos, sem culpa sequer dos juízes?”
3, 13, 359 (da experiência) “Quantas condenações criminosas do que o crime
não tive a oportunidade de ver!” Conclui que a justiça só se monta com prejuízo
do particular ao geral.
3, 13, 361 (da experiência) “A autoridade das leis não está no fato de serem
justas e sim no de serem leis. Nisso reside o mistério de seu poder; não têm
outra base, essa lhes basta. Foram não raro feitas por tolos; mais vezes ainda
por indivíduos que, no seu ódio à igualdade, incorriam em falta de equidade;
mas sempre por homens e portanto por autores irresolutos e frívolos. Nada
tão grave, ampla e comumente defeituoso quanto as leis; quem as obedece
porque são justas, labora em erro, pois é a única coisa que em verdade não
são”.
-127-
Moderação (tolerância)
Trata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.
Livro 1: 57 Ensaios;
1, 20, 93 (de como filosofar...) “um dos principais benefícios da virtude está no
desprezo que nos inspira pela morte, o que nos permite viver em doce quietude
e faz com que se desenrole agradavelmente e sem preocupações nossa
existência.”
1, 13, 66 (cerimonial das entrevistas reais) país, cidade e profissão, cada um
tem os seus usos em questões de civilidade.
1, 14, 67 (o bem e o mal...) “Se aquilo a que chamamos mal não é nem mal
nem tormento, e se somente nossa fantasia lhe atribui tal qualidade, podemos
modificá-lo.” “Pois o destino apenas suscita o incidente; a nós é que cabe
determinar a qualidade de seus efeitos.” “Se as coisas que tememos tivessem
um caráter próprio, a todos se imporiam de igual maneira, produzindo idênticas
conseqüências.” “diversidade de opiniões”
1, 23, 115-129 (dos costumes e da inconveniência de mudar sem maiores
cuidados as leis em vigor)
1, 23, 118 “Não são os bárbaros motivo de maior estranheza pra nós do que
nós para eles” há diversos exemplos.
1, 23, 121 o que a filosofia não ensina aos ignorantes o hábito faz; ele é rei e
imperador do mundo
1, 23, 122 (dos costumes...) “...ingerimos o primeiro leite com hábitos e
costumes”
1, 23, 122 (dos costumes...) “Os povos, afeitos à liberdade e a se governarem
por si mesmo, encaram qualquer outra forma de governo como monstruosa e
contrárias à natureza”.
1, 23, 128 (dos costumes...) inovação imposta pela violência.
1, 26, 153 (da educação das crianças) “Por isso o comércio dos homens é de
evidente utilidade, assim como a visita a países estrangeiros; não para nos
informar, como fazem nossos fidalgos franceses, acerca das dimensões da
Santa Rotonda, ou da riqueza das calças da Signora Lívia, dizer-nos se a
cabeça de Nero em uma velha ruína qualquer é mais comprida ou mais larga
-128-
do que em certas medalhas, mas para observar os costumes e o espírito
dessas nações e para limpar e polir nosso cérebro ao contato dos outros.
1, 30, 188 (da moderação) “A virtude pode tornar-se vício se ao seu exercício
nos dedicamos com demasiada avidez e violência.”
1, 30, 188 (da moderação) “Aprecio os caracteres moderados e prudentes:
ultrapassar a medida, ainda que no sentido do bem, é coisa que me espanta,
se não me incomoda, e a que não sei como chamar.”
1, 31, 193 (dos canibais) “Isso [chamar alguém de bárbaro] a que ponto
devemos desconfiar da opinião pública. Nossa razão, e não o que dizem, deve
influir em nosso julgamento.
1, 31, 194-195 (dos canibais) “O homem que tinha a meu serviço, e que voltava
do Novo Mundo, era simples e grosseiro de espírito, o que mais valor a seu
testemunho.” As pessoas finas deformam o relato e a verdade do que viram.
1, 31, 195 “...não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles
povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em
sua terra. E é natural, porque podemos julgar da verdade e da razão de ser
das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que
vivemos. Neste a religião é sempre melhor, a administração excelente, e tudo o
mais perfeito.”
1, 37, 213 (Catão, o jovem) “Não cometo esse erro tão comum de julgar os
outro por mim. Acredito de bom grado que o que está nos outros possa divergir
essencialmente daquilo que está em mim. Não obrigo ninguém a agir como ajo
e concebo mil e uma maneiras diferentes de viver; e, contrariamente ao que
ocorre em geral, espantam-me bem menos as diferenças entre nós do que as
semelhanças. Não imponho a outro nem meu modo de vida nem meus
princípios; encaro-o tal qual é, sem estabelecer comparações.”
Moderação (Cont. 1)
Livro 2: 37 Ensaios;
2, 5, 318 (da consciência) “A tortura é uma invenção perigosa que parece antes
pôr à prova a resistência a dor do que a sinceridade”. [...] “Daí ocorre que
aquele a quem o juiz inflige a tortura para não se expor a condenar um
-129-
inocente, na realidade morre inocente e torturado”. [...] “... considero a tortura
um processo inumano e bem pouco útil”.
2, 11, 365 (da crueldade) “Entre os vícios, um que detesto particularmente:
a crueldade. Por instinto e por reflexão, considero-o o pior de todos;”
2, 11, 366 (da crueldade) “Os selvagens, que assam e comem o corpo dos
mortos, provocam em mim uma impressão menos penosa do que os que os
atormentam e torturam quando ainda em vida; não posso sequer assistir
calmamente às execuções capitais impostas pela justiça, por mais razoáveis
que sejam”.
2, 11, 367 (da crueldade) por causa da guerra civil abundam exemplos de
crueldade.
Moderação (Cont. 2)
Livro 3: 13 Ensaios
3, 1, 143 (do útil e do honesto) Se dedica ao rei como cidadão, quanto à causa
ele adere com moderação, racionalmente, evitando as paixões da maioria e por
isso pode andar de cabeça erguida em qualquer canto.
3, 1, 145 (do útil e do honesto) “Nada impede que inimigos leais se conduzam
de maneira sensata. Tratemos todos com igual moderação, senão com idêntica
afeição – pois esta pode realmente variar – e não nos dediquemos a ninguém a
ponto de lhe dar o direito de tudo exigir de nós”. Cuidemos da paixão, que ela
não prevaleça.
3, 6, 236 (dos coches) “Não o conquistamos pela justiça e a bondade; nem o
vencemos pela nossa magnanimidade. Na maioria das negociações que
conosco estabeleceram, provaram os indígenas do Novo Mundo que não nos
eram inferiores em clarividência e perspicácia. Nem tampouco quanto à
capacidade, como o comprova a grandiosidade de Cuzco e México onde, entre
outras coisas surpreendentes, se encontrou uma reprodução exata, de
tamanho natural e em ouro, de todas as árvores e frutos de um pomar”.
3, 6, 239 (dos coches) “...os espanhóis mandaram queimar vivos em uma
fogueira quatrocentos e sessenta prisioneiros de guerra, dos quais sessenta
eram fidalgos dentre os principais da região. Todos esses pormenores por eles
próprios nos foram comunicados, pois não somente confessam tais
-130-
barbaridades como delas se vangloriam. Como testemunho de sua justiça ou
para prova de seu espírito religioso? Como quer que seja, nossa santa causa
os reprova, exigente que é de meios bem diversos. Se esses bárbaros tinham a
intenção de propagar a nossa fé, deviam pensar que não é de territórios que
ela precisa apossar-se e sim de almas”.
3, 6, 241 (dos coches) “A pompa e a magnificência que reinavam nesses
países e que me induziram a ventilar o assunto, eram de tal ordem que nem
em Roma, nem na Grécia, nem no Egito se viram iguais”.
3, 8, 246 (da arte de conversar) “O mais proveitoso e natural exercício de
nosso espírito é, a meu ver, a conversação. É-me a sua prática mais agradável
do que qualquer outra. Eis por que, se me coubesse escolher, antes
consentiria, penso, em perder a vista do que o ouvido ou a fala”.
3, 9, 271 (da vaidade) “Vejo em nossos dias não fatos isolados, mas costumes
aceitos, tão ferozes, desumanos e desleais – o que na minha opinião é o pior –
que não os posso conceber sem horror”.
3, 9, 284 (da vaidade) “Não porque o disse Sócrates, mas porque em verdade
o penso, todos os homens são meus compatriotas; e sou mesmo levado a
exagerar este sentimento. Abraço um polonês como abraçaria um francês,
fazendo passar os laços que unem os indivíduos de uma nação após os que
vinculam uns aos outros os habitantes do mundo. A doçura do clima natal não
me enreda; as relações novas parecem-me valer as de minha vizinhança; e os
bons amigos que adquirimos espontaneamente são em geral melhores do que
os que devemos ao parentesco ou ao clima. Pôs-nos a natureza neste mundo,
livres de quaisquer compromissos e nós nos prendemos dentro de estreitos
limites [...]”.
3, 9, 284 (da vaidade) “... viajar afigura-se-me um exercício proveitoso, pois o
espírito vive então continuamente solicitado a observar coisas novas e
desconhecidas; e, como digo amiúde, não sei de melhor escola do que essa
que lhe mostra a grande diversidade de existência, idéias e usos entre os
homens, bem como a contínua variedade de formas da natureza”.
3, 9, 294 (da vaidade) “Adapto-me a tudo, e meus gostos são os de um homem
igual aos outros. A diversidade de costumes entre um país e outro me
impressiona pelo prazer da variedade. Cada uso tem a sua razão de ser. [...]
-131-
Vou ainda mais longe: não creio ter observado, em minhas peregrinações,
costumes que não valham os nossos”.
3, 13, 360 (da experiência) “... o mundo é maior e mais variado do que os
antigos – e nós mesmos – imaginamos”.
3, 13, 361 (da experiência) “Sou tão ávido de liberdade que, se me proibissem
o acesso a algum recanto das Índias, passaria a viver por assim dizer
incomodamente; e enquanto houver um lugar em que a terra e o mar sejam
livres, não residirei onde precise esconder-me”.
3, 13, 368 (da experiência) “Quantos povos, a dois passos daqui, não
consideram ridículo o nosso medo do sereno?”. “[...] Na realidade, todo povo
tem costumes e usos que não somente são desconhecidos dos outros como
ainda lhes parecem estranhos e bárbaros”.
-132-
Ficção (idéias e realismo)
Trata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.
Livro 1: 57 Ensaios;
1, 14, 69 (o bem e o mal...) qualquer idéia pode se abater sobre nós que a
sustentemos até a morte.
1, 20, 105 (a força da imaginação) “Sou desses sobre os quais a imaginação
tem grande domínio”. “Não acho estranho que a imaginação febre e mesmo
provoque a morte nos que não a controlam”.
1, 21, 113-114 (a força da imaginação) estimularam que escrevesse sobre o
presente, que conhecia de perto líderes de ambos os partidos, ao que se
negou por achar que não conseguiria um método e assiduidade que a tarefa
exigiria. “Não sei estabelecer um plano de composição, nem o desenvolver”
“pus-me a escrever o que sei dizer, adaptando o meu assunto às minhas
forças”.
1, 23, 118 (dos costumes e da...) Não se depara com nenhuma fantasia
humana, embora desprovida de sentido, sem que não se encontre exemplos
em algum costume”...
1, 23, 126 (dos costumes...) A novidade o “aborrece profundamente e creio ter
razão, pois vi os seus efeitos altamente desastrosos.” Ela foi a causa primeira
de muitas desgraças. “A Reforma abalou e desmantelou as velhas instituições
de nossa monarquia. Com ela, esse grande edifício perdeu o equilíbrio e vem
rachando na velhice e dando acesso, através das fendas, a todas as
calamidades.” “Se o mal é principalmente aos seus inventores (os huguenotes)
do movimento, mais criminosos ainda são seus imitadores (a Liga) que se
entregam aos mesmos excessos cujo horror presenciaram e de cuja repressão
participaram.” Se o mal se gradua, os huguenotes são piores pela primazia da
invenção. “Os fautores de perturbações desejosos de introduzir a desordem no
Estado podem facilmente escolher seus modelos nuns como noutros;
oferecem-lhos, ambos, de toda espécie.”
1, 27, 177 (da loucura de opinar acerca do verdadeiro e do falso unicamente de
acordo com a razão) o que causa confusão é o abandono parcial que os
católicos fazem de sua fé; “Imaginam que são moderados e sensatos cedendo
-133-
aos adversários no que diz respeito a certos pontos em litígio”; acha que
cedem espaço para avanços dos huguenotes.
1, 30, 199 (dos canibais) “...e é pior esquartejar um homem entre suplícios e
tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto
de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos
nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e
comer um homem previamente executado.”
1, 32, 203 (de como é preciso prudência...) “No desconhecido situa-se o
verdadeiro campo de ação da impostura; porque a própria extravagância a
favorece e lhe crédito, porque, escapando à razão comum, não temos
meios para a combater.” Fábula, alquimia, quiromancia, alguns teólogos.
1, 32, 203 (de como é preciso prudência...) “O que eu reprovo é que se apele
para os nossos sucessos felizes como meio de exaltar e consolidar nossa
religião. Nossa se assenta em outros alicerces, e não lhe é necessária a
ajuda dos acontecimentos.” Se há uma reviravolta, a fé pode ser abalada.
1, 32, 203 (de como é preciso prudência...) “Deus quer mostrar assim que os
bons têm outra coisa a esperar e os maus outra a temer, que não as graças e
desgraças deste mundo.”
1, 37, 213 (Catão, o jovem) “Nosso século, pelo menos no meio em que
vivemos, é tão viciado que não somente não pratica a virtude como ainda não a
concebe sequer. Dir-se-ia que já não passa ela de jargão acadêmico”.
1, 37, 214 (Catão, o jovem) “Não se verificam mais atos de virtude. Os que
assumem esse aspecto não lhe têm a essência. São o lucro, a glória, o hábito
e o medo que nos levam a praticá-los”. “Dêem-me a ação mais bela, mais pura,
e conseguirei sem dificuldade atribuir-lhe as piores intenções por móvel”. “Não
hesitaria em ampliara ainda, quanto pudesse, a sua glória [dos homens da
antiguidade] por meio de interpretações e de circunstâncias favoráveis a meu
ponto de vista, que conseguiria inventar. E creio que o resultado da imaginação
se situaria bem abaixo de seus méritos. É dever do homem de bem representar
a virtude sob as mais belas formas e não teria nada a criticar se a paixão nos
induzisse a exagerar os elogios a essa manifestações dignas de nosso
respeito.
1, 41, 233 (o homem não cede a outrem a glória que conquistou) “De todas as
quimeras do mundo, a mais admitida e universalmente espalhada é a do
-134-
cuidado com nossa reputação e nossa glória, que apreciamos a ponto de, em
troca de tão imagem, de uma simples voz sem corpo, renunciarmos às
riquezas, ao repouso, à saúde, à vida, bens efetivos e substanciais”.
1, 42, 235 (da desigualdade entre os homens) “No que concerne à apreciação
das coisas, é espantoso que tudo julgando pelas suas qualidades específicas
não nos encaremos da mesma maneira.”
1, 42, 239 (da desigualdade entre os homens) “Platão está certo quando em
seu ‘Górgias’ define como tirano aquele que na cidade tem licença de fazer o
que bem entende e acrescenta que o espetáculo e a publicidade dos abusos
chocam mais, por vezes, do que os próprios abusos.”
1, 42, 240 (da desigualdade entre os homens) “Tampouco compreendo que se
acomode melhor um rei com os serviços de alguém que possui dez mil libras
de rendimento, que tomou Casal ou defendeu Siena, do que com os de um
bom e experiente criado de quarto. As vantagens do príncipe são em sua
maioria puramente imaginárias e cada camada social tem seus príncipes.”
1, 42, 240 (da desigualdade entre os homens) “Em verdade, nossas leis dão-
nos grande liberdade. O peso da autoridade real não se faz sentir mais do que
duas vezes na vida de um fidalgo francês. A sujeição completa e efetiva se
impõe àqueles que a consideram vantajosa porque a trocam por proventos e
honrarias. Quem permanece sossegado em suas terras e sabe dirigir seus
negócios sem querelas nem processos é tão livre quanto o doge de Veneza [...]
1, 42, 241 (da desigualdade entre os homens) “Todas as verdadeiras
vantagens de que gozam os príncipes são comuns aos homens de fortuna
média (somente os deuses cavalgam animais alados e se alimentam de
ambrosia); não diferem de nós quanto ao sono e ao apetite;”
1, 42, 239 (da desigualdade entre os homens) “Mas lamento encontrar em
meus compatriotas essa inconseqüência que faz que se deixem tão cegamente
influenciar e iludir pela moda do momento, que são capazes de mudar de
opinião tantas vezes quantas ela própria muda, isto é, de mês em mês, e
forjando cada vez novas razões para justificar a seus próprios olhos seus juízos
mais díspares.”
1, 41, 269 (vãs são as palavras) “[a retórica] trata-se de um instrumento muito
adequado a excitar ou acalmar o populacho alvoroçado e que, como a
medicina, só se aplica aos Estados enfermos”.
-135-
1, 41, 271 (vãs são as palavras) “Quando ouvis falar de metonímia, metáfora,
alegoria e outras expressões da gramática não vos parece que sejam locuções
de uma língua rara e peregrina? [...] É erro semelhante aplicar aos cargos de
nosso Estado político os pomposos títulos que usavam os romanos, pois não
nenhuma relação nem quanto às funções nem no que concerne à
autoridade e ao poder”.
1, 45, 277 (das orações) “À semelhança do que fazem nas escolas os que
põem em discussão questões controvertidas, enuncio idéias fantasistas e mal
definidas: não a fim de provar a verdade pois não tenho tal pretensão mas para
a procurar.” E ele só as submete a Igreja, na qual e nasceu e morrerá.
Ficção (Cont. 1)
Livro 2: 37 Ensaios;
2, 3, 304 (a propósito de um costume da ilha de ceos) “Dizem que filosofar é
duvidar. Com maior razão ainda fantasiar e divagar. Cabe porém aos
aprendizes inquirir e indagar; e aos mestres resolver. O meu mestre é a
autoridade da vontade divina, a qual sem contestação possível nos rege,
pairando acima das vãs indagações humanas”.
2, 5, 316 (da consciência) com a guerra as cartas tanto se misturaram que não
é possível saber nitidamente quem é o inimigo, pois seu irmão estava no
partido contrário.
2, 16, 21 (da glória) “Se, entretanto, a idéia falsa contribui para manter os
homens no caminho do dever, e os predispõe a virtude; [...] deixemo-la
desenvolver-se”.
2, 16, 21 (da glória) “Se os homens são incapazes de apreciar a moeda
verdadeira, usa-se a falsa. Todos os legisladores assim o fizeram; não
legislação em que não se depare com alguma mistura de cerimônias fúteis ou
de lendas fantasistas que servem para manter o povo no caminho do dever. É
por isso que em sua maioria têm elas origem na fábula e se enriquecem de
mistérios sobrenaturais, o que deu crédito a essas religiões nascidas do erro e
fez que pessoas sensatas as aceitasse.”
2, 18, 49 (do desmentido) “Quantas vezes, aborrecido, aborrecido por não ter
podido criticar abertamente tal ou qual ação, por civilidade ou prudência, eu o
-136-
fiz nestes ensaios com a esperança de contribuir assim para a edificação de
alguém! Aliás esses golpes poéticos, ‘pan no olho, pan no focinho, pan nas
costas do sagüi’ (Marot), produzem mais efeito ainda no papel do que na
própria carne”.
2, 27, 69 (a covardia é a mãe da crueldade) “Ninguém ignora que mais
bravura em vencer o inimigo do que em o exterminar; mais em forçar a ceder
do que em o matar. Ademais, nossa vingança é assim bem mais completa, pois
seu objetivo é sobretudo provocar o ressentimento do inimigo;”
Ficção (Cont. 2)
Livro 3: 13 Ensaios
3, 1, 142 (do útil e do honesto) “Quem extirpasse o germe dos maus
sentimentos do coração do homem destruiria nele as condições essenciais à
vida. Da mesma forma, em todas as administrações existem cargos
necessários que são abjetos, detestáveis. Os vícios têm sua função, e
servem para soldar os diversos elementos da sociedade, como o veneno seu
utiliza na conservação de nossa saúde”. Se assim o exige o interesse público,
que o pratiquem. ...”o interesse público exige que se traia e mate”.
3, 1, 142-143 (do útil e do honesto) ele se diz num enclave diante de sua
praticas como diplomata, onde a carreira diga que se dissimule e ele não
concorda, quer mostrar-se. “Meu falar franco poupou-me a suspeita de
dissimulação”.
3, 1, 142-143 (do útil e do honesto) Acha que no momento de divisão da
política, o melhor é assumir uma posição.
3, 1, 142-143 (do útil e do honesto) “Mas não devemos denominar ‘dever’,
como fazemos diariamente, esse encarniçamento e essa rudez que engendram
as paixões e os interesses, nem devemos considerar corajosa uma conduta
prenhe de traições e crueldades”.
3, 1, 146-147 (do útil e do honesto) “Mas seria desconhecer a realidade não dar
à malandragem o mérito que lhe cabe; sei que não raro presta serviços e é
necessária em mais de uma ocasião. defeitos lícitos como boas ações
ilícitas”.
-137-
3, 1, 147 (do útil e do honesto) “Quanto a mim, emprego a linguagem comum,
distinguindo as coisas úteis das honestas, e qualificando como desonestos e
indecentes certos atos naturais, não apenas úteis mas necessários”.
3, 1, 149 (do útil e do honesto) “Em algumas choupanas tomadas de assalto
em nossas guerras civis, tive a oportunidade de ver indivíduos que, para salvar
a pele, concordavam em enforcar os companheiros; seu destino pareceu-me
bem mais lamentável”.
3, 1, 150 (do útil e do honesto) “O príncipe que por uma circunstância qualquer
ou acidente inopinado se vê forçado a faltar à sua palavra ou a desprezar o seu
dever, deve encarar tal necessidade como uma prova imposta por Deus. Não
se trata então de um defeito; sua razão vê-se constrangida a ceder diante de
outra mais poderosa; mas trata-se de uma desgraça”. [...] “Mas tal exemplo é
por certo perigoso porque faz exceção às regras naturais. É normal, pois, que
ceda quando preciso, mas que se modere então. Nenhum interesse particular
mas tão somente o interesse público deve levar-nos a violentar assim nossa
consciência; assim mesmo quando perfeitamente definido”.
3, 1, 150 (do útil e do honesto) “As guerras civis produzem com freqüência
exemplos como esses. Castigamos os cidadãos por terem acreditado em nós
quando éramos diferentes do que agora somos; o magistrado obrigado a
mudar de orientação aplica a pena a quem nada tem com isso; o professor
açoita o aluno por ter sido dócil demais, e o guia maltrata o cego. Linda
imagem da justiça!
3, 1, 152 (do útil e do honesto) “Aprendamos, pois, com tão nobre modelo, a
pensar que, mesmo contra o inimigo, nem tudo é permitido e que o interesse
geral não deve tudo reivindicar em detrimento do interesse particular: ‘O direito
privado não deve ser olvidado em meio às dissensões públicas’(Tito Lívio).
‘Não força que nos possa levar a infringir os direitos da amizade’ (Ovídio).
coisas que um homem de bem não faz nem em defesa do rei, nem em
defesa da ordem e da lei, ‘pois a pátria não destrói todos os deveres, e a ela
própria convém ter cidadãos que honrem seus pais’ (Cícero). Parece-me
oportuno apregoá-lo em nosso tempo”.
3, 1, 152 (do útil e do honesto) “não é necessário que encouracemos nossas
almas como fazemos com nosso corpo; e que nossas pensas molhem na tinta
-138-
e não no sangue”. Ele fala que não devemos desprezar família e amigos
nessas ocasiões, por eles descumpre-se a lei e o príncipe.
3, 2, 155 (do arrependimento) Montaigne fala em tom de desabafo, da coisa
que ele pode dizer tranquilamente apesar dos tormentos. “nem tampouco de
haver atentado publicamente contra as leis, ou contribuído para fazer que
prevalecessem novidades, ou participado das perturbações da ordem, ou
faltado à palavra dada. E, embora a licença da época o haja permitido e
ensinado, não pus a mão nem nos bens nem na bolsa de nenhum francês.”
3, 2, 156 (do arrependimento) “Nós, que não vivemos uma existência pública,
temos necessidade de um juiz interior que julgue nossos atos e nos anime ou
castigue.”
3, 2, 158 (do útil e do honesto) “As almas viciosas são por vezes instadas à
prática do bem; da mesma forma, as virtuosas são ocasionalmente solicitadas
pelo mal. Não as devemos julgar, portanto, senão em seu estado normal, ou
pelo menos quando mais perto se encontrem desse estado”.
3, 2, 158 (do útil e do honesto) “Imaginamos mais facilmente um operário na
privada ou com sua mulher, do que um venerável magistrado. Parece-nos que
uma pessoa tão altamente situada não desce de seu trono para viver”.
3, 2, 159 (do arrependimento) “Os que tentam corrigir os costumes de nossa
época, com idéias em voga, corrigem a aparência viciada das coisas, mas
não o fundo delas, o qual talvez se agrave ainda. E acho a agravação possível,
porque é fácil aceitar alguém as reformas exteriores e arbitrárias, menos
custosas e de vantagens mais tangíveis que as interiores, satisfazendo assim
os vícios essenciais sem maiores riscos”.
3, 2, 160 (do arrependimento) “A devoção é a qualidade que mais facilmente se
simula, quando se acordam a ela os costumes e a vida; pois se sua essência é
abstrusa e oculta, sua aparência é pomposa e enganadora”.
3, 5, 184 (a propósito de Virgílio) “Minha filosofia atem-se aos atos e ao
presente; não se subordina à fantasia”.
3, 5, 191 (a propósito de Virgílio) “Pediram a um de nossos reis que escolhesse
entre dois candidatos a certo cargo, um dos quais era fidalgo. Ordenou ele que
se nomeasse o mais capaz, sem se levar em conta a nobreza. Assim mostrava
com precisão o lugar que esta deve ocupar”.
-139-
3, 6, 232 (dos coches) “Os povos gostam que seus reis façam o que queremos
que façam nossos criados: tudo nos dêem com abundância e em nada toquem.
[...] A liberalidade não se justifica nos reis. Os particulares têm mais direito a
ela, pois, a rigor, um rei nada possui de verdadeiramente seu e deve-se por
inteiro aos outros. A administração não foi criada par o bem do administrador e
sim para o do administrado. Não se cria um superior em vista de sua própria
vantagem, mas em benefício do inferior;” “Não é pois a liberalidade uma grande
virtude para um rei; é, aliás, a única, como dizia o tirano Dionísio, que se alia
muito bem a tirania. A esses, príncipes, eu ensinaria de preferência este
provérbio de um lavrador da antiguidade: ‘Semei-se com a mão e não com o
saco de semente aberto’(Plutarco). Cabe distribuir a semente com cuidado e
não espalhá-la ao acaso. Cumpre-lhes pagar os serviços de tanta gente, que é
preciso que o façam com lealdade e prudência. E preferiria um príncipe
avarento a sabê-lo de uma liberalidade insensata e indiscreta”.
3, 6, 233 (dos coches) “A virtude predominante em um rei deve ser antes a
justiça, e de todas as partes desta a que melhor lhe assenta é saber distribuir
suas dádivas. As demais justiças exercem-nas os reis através de
intermediários. Uma largueza imoderada é um meio ineficiente de angariar
simpatias, porquanto aliena maior número de pessoas do que as que atrai”.
3, 7, 243 (dois inconvenientes das grandezas) “O ofício mais difícil deste
mundo é sem dúvida o de rei. Desculpo-lhes os erros de bom grado, pois
considero extremamente pesado o fardo que lhes cumpre carregar. É difícil
conservar a medida no exercício de tão grande poder, embora constitua
excepcional incentivo à virtude o fato de saber que todas as ações, boas ou
más, ficam registradas na história e atingem tanta gente. Por outro lado, tudo o
que façam visa o povo, juiz que se ilude sem maiores percalços e se contenta
com pouco”.
3, 9, 271 (da vaidade) O desacordo de costumes na França o impele a viajar.
“Facilmente me consolaria dessa corrupção tendo em conta o interesse geral:
‘Suportaria estes tempos piores do que a idade do ferro, em que faltam nomes
para os crimes e que a natureza não pode designar por nenhum novo
metal’(Juvenal); mas no que me diz respeito sofro demasiado, pois, em
conseqüência dos desregramentos inerentes a nossas guerras civis, toda a
vida decorre em um ambiente perturbado: ‘em que o justo e o injusto se
-140-
confundem’(Virgílio). ‘Lavram a terra armados, diariamente cometem atos de
banditismo e vivem de saques’(Virgílio). Pelo nosso exemplo verifico que a
sociedade humana se perpetua de qualquer forma, aconteça o que acontecer”.
3, 9, 281 (da vaidade) “Se o destino me tivesse feito nascer em condições de
ocupar altos cargos, desejaria tornar-me estimado mais do que temido e
admirado. Teria antes me esforçado por agradar do que por tirar proveito”.
3, 9, 283 (da vaidade) “As mais diferentes vestimentas encobrem consciências
idênticas; a crueldade, a deslealdade, o roubo são piores ainda quando
protegidos pelas leis; detesto menos a injustiça declarada nas desordens da
guerra do que a que se verifica na paz e reveste formas legais”.
3, 9, 298 (da vaidade) “Tentei outrora aplicar à gestão dos negócios públicos as
regras e os princípios a que obedeço na vida particular, regras e princípios
rudes, pouco requintados, mas impolutos, que nasceram comigo ou adquiri
com minha educação e que sigo com segurança, senão com prazer. E
verifiquei que essa virtude inexperiente e escolástica é insuficiente e perigosa
nas coisas públicas”.
3, 9, 299 (da vaidade) “Julgar que alguém está apto a gerir os negócios
públicos pelas qualidades reveladas em sua vida particular, é julgar
erroneamente”.
3, 9, 299 (da vaidade) “Quem, em tempos tão ruins, se jacta de pôr a serviço
público uma virtude cândida e sincera, ou não a conhece (pois, com as
opiniões, corrompem-se os costumes) ou, se a conhece, vangloria-se
totalmente e faz, o que quer que diga, mil coisas de que sua consciência o
acusa”.
3, 9, 300 (da vaidade) “Mesmo o partido mais certo não é senão parte de um
organismo corroído; mas o membro menos doente desse organismo não deixa
de passar por são, porque somente por comparação é podemos julgar. A
inocência na vida pública mede-se segundo os lugares e as estações”.
3, 10, 307 (do domínio da própria vontade) “Se por vezes me convenceram de
me encarregar de negócios alheios, nunca prometi apaixonar-me. Prometi
encarregar-me deles, não incorporá-los a mim”.
3, 10, 307 (do domínio da própria vontade) “Os homens alugam-se; suas
faculdades não lhes são úteis senão a quem eles se escravizam. São os
locatários que vivem neles e não eles próprios. Essa disposição de espírito
-141-
habitual não me seduz. Cumpre zelar pela liberdade de nossa alma e não a
comprometer senão em circunstâncias excepcionais, as quais são poucas”.
3, 10, 308 (do domínio da própria vontade) “Meu pai ouvira dizer que é
necessário sacrificar-se pelos outros; que o interesse particular não deve ser
levado em conta que não está em jogo o interesse geral. Em sua maioria, as
regras e os preceitos deste mundo abundam nesse sentido, tendendo a
expulsar-nos de nós mesmos em benefício da sociedade. Assim nos desviam
do que nos interessa diretamente, com receio de que nos apeguemos
exageradamente a isso, e nada se poupou nesse sentido, pois é comum aos
sábios legislar segundo a utilidade das leis e não de acordo com a realidade
das coisas”.
3, 10, 309 (do domínio da própria vontade) “Desempenhei cargos públicos sem
me afastar de mim mesmo e entreguei-me a outrem sem me perder de vista”.
3, 10, 310 (do domínio da própria vontade) “Quem aplica nos negócios
públicos a inteligência e a habilidade, age com melhores resultados, porque
pode dissimular, ceder, diferir à vontade, segundo as circunstâncias”.
3, 10, 310 (do domínio da própria vontade) “Quem menos se irrita ou se
apaixona é quem melhor dirige o jogo, e com maiores probabilidades”.
3, 10, 310 (do domínio da própria vontade) “não pensa então em como exercer
o cargo, mas em quanto tempo se poderá exercê-lo; já ao assumi-lo temos que
atentar para o momento de deixá-lo”.
3, 10, 313 (do domínio da própria vontade) “Não sei dar-me por inteiro, e
quando minha vontade me induz a optar por um partido não crio obrigações
que contagiem meu entendimento”.
3, 10, 313 (do domínio da própria vontade) “Os que estendem seu ódio além da
causa que o motiva, como costumam fazer os homens, mostram que defendem
outra coisa e por razões de ordem pessoal”.
3, 10, 318 (do domínio da própria vontade) “Nem sempre se governa como fora
desejável; não raro mesmo atuam com violência com violência e aspereza.
Como quer que seja, a tática é boa e dá-nos algum alívio e alguma vantagem,
salvo aos que não desejam vantagem que não acarrete com ela a estima
alheia”.
3, 10, 320 (do domínio da própria vontade) “Criticam minha inatividade em um
momento em que se censuram os outros por fazerem demais”.
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3, 10, 322 (do domínio da própria vontade) “Como prefeito, cabia-me apenas
conservar e continuar, o que é possível sem ruído e sem que percebam. As
inovações ressaltam naturalmente, mas não são recomendáveis em épocas
como a nossa em que temos sobretudo que nos defender contra as novidades.
Abster-se de fazer é por vezes tão meritório como fazer; mas isso menor
relevo e o pouco que valho está nesse caso”.
3, 12, 326 (da fisionomia) “Monstruosa guerra! As outras são dirigidas para
fora; esta volta-se contra nós mesmo; destrói-se a si própria e morre de seu
próprio veneno. É de natureza tão maligna e desastrosa que se arruína com a
ruína que provoca; na sua cólera, esquarteja-se a si mesma”.
3, 13, 366 (da experiência) “Acontece não raro que, dada a natureza das
coisas, dizer a verdade ao ouvido do príncipe pode ser contraproducente e
mesmo injusto. Uma crítica merecida pode aplicar-se erroneamente, porque o
interesse do conteúdo deve por vezes dar prioridade às exigências imediatas
da conveniência”.
3, 13, 371 (da experiência) “Reis e filósofos precisam diariamente esvaziar os
intestinos; e também as mais belas damas. Aqueles cuja vida decorre sob as
vistas do público precisam manter um certo decoro; a minha é obscura e gozo
a vantagem de algumas liberdades naturais; demais sou soldado e gascão, um
e outro algo indiscretos; posso pois dizer o que penso desse ato”.
Epílogo
Todos os temas reelaborados.
Universidade Federal Fluminense
Curso de Mestrado em Ciência Política
Dalton Franco ([email protected])
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